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Copyright © Librairie Arthème Fayard, 1988

Título original: Le áésordre

Capa: projeto gráfico de Dounê

1997
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

p e o o o ,^ q < :

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE o
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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
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Balandier, Georges, 1920- O
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B144d A desordem: elogio do movimento / Georges 0)
(VI
Balandier: tradução de Suzana Martins. — Rio de Janeiro;
Bertrand Brasil, 1997. 2p

DO MOVIMENTO
266p. g cí
30
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Tradução de: Le désordre O*
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ISBN 85-286-0618-X iu 0
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1. Mudança social. 2. Conflito social. I. Título.
2 C)
Titulo: A DESORDEM: ELOQIO

CDD - 303.4 sd
97-1239 CD U-301.175 ÜJ A
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P a ra N il,
Jean-Sébastien
e Emmanuel,
meus netos,
que entram
neste mundo turbulento.
Sumário

O E n ig m a ........................................................................... 9

P rimeira P arte

ORDEM E DESORDEM

1. O mito da ordem primordial............................................... 17


No começo era o caos. O rito trabalha para a ordem. A tra­
dição joga com o movimento
2. A ciência perde a harmonia................................................ 43
O retomo inicial. O relógio de Dondi e outros mecanismos.
O ruído, a dissipação e o caos. O concerto interrompido
3. A sociedade já não é mais a mesma.................................... 65
O retomo. O conde e suas heranças. A desordem incontor-
nável e ainda desconhecida. A sedução e seus limites

Segunda P arte

DESORDEM NA TRADIÇÃO

4. A desordem trabalha escondida.......................................... 93


O segredo e o oculto. Os lugares e as figuras. O exercício da
feitiçaria, a desordem disfarçada
5. A desordem se traduz em ordem......................................... 121
O mundo ao contrário. Os limites e seus levadores. O poder
por meio da desordem

T erceira P arte

DESORDEM NA MODERNIDADE

6. A modernidade embaralha as cartas.................................... 155


A dificuldade de saber. O real fica mais incerto. O homem
indeciso
7. A desordem não se isola...................................................... 191
FIGURAS DA DESORDEM: FIGURAS REVELADORAS. O aconteci­
mento: aparecimento de uma figura da desordem. A doença,
o mal, a desordem que vêm de fora. A violência, exploração
da desordem. A política desvalida: incerteza e desordem
FORMAS DE RESPOSTA À DESORDEM. A resposta total, a ordem
totalitária. A resposta da pessoa, a ordem do sagrado. A
resposta pragmática, a ordem pelo movimento

O Movimento 249
0 ENIGMA

O caos é o enigma desde tempos muito remotos, onde os mitos


tentavam mostrar como tudo procede e resulta de gêneses sucessi­
vas. Hoje, a exploração científica serve-se de caminhos que levam
inevitavelmente ao caos. A desordem, a turbulência, a desorganiza­
ção e o inesperado fascinam, os arcanos do acaso levam menos a
uma iniciação que a um avanço, utilizando os mais complexos e
poderosos instrumentos informáticos. Há uma década nasceu uma
disciplina nova: a caoslogia, que alguns já apontam como uma das
maiores invenções a revolucionar a história das civilizações. Parece,
entretanto, que a caoslogia, em sua origem, ocupa-se das curiosida­
des e dos desvios da fantasia em benefício de uma ciência que se
tornou estranha. Pela caoslogia, a banalidade transforma-se em um
mistério. A torneira que pinga já não é apenas um problema domés­
tico e a causa de uma irritação, mas o momento para uma reflexão
erudita, conduzida por anos a fio, que faz desta anomalia uma espé­
cie de paradigma do caos. A água que cai de uma cascata, em
nuvem, sua dispersão em infinitas partículas, depois sua vazão lenta,
mostra um nível superior dessa complexidade desordenada. A fuma­
ça de um cigarro, cúmplice do espírito errante, que primeiro sobe
reta, depois se retorce formando figuras, sugere a presença de um
fenômeno semelhante. Alto, muito alto, as nuvens maravilhosas se
agitam, moldam paisagens celestes, móveis e incessantemente
mutáveis, caos aos quais se amarram os sonhos, mas a nova discipli­
na quer forçar seu mistério, encontrar a resposta que tomará a pre­
visão meteorológica menos falha, em um prazo mínimo.
É sabido que “a natureza não é linear” , nada é simples, a
ordem se esconde na desordem, o aleatório está constantemente a

9
refazer-se, o imprevisível deve ser compreensível. Trata-se agora de
produzir uma descrição diferente do mundo, onde a idéia do movi­
mento e de suas flutuações prevalece sobre a das estruturas, das
organizações, das permanências. A chave aponta para uma nova
dinâmica, não-linear, que dá acesso à lógica dos fenômenos aparen­
temente menos ordenados. Esta subversão do saber traz necessaria­
mente a incredulidade e a rejeição, mas a paixão pelos novos descri-
tores é contagiosa. Ela se desloca da física para as ciências da vida e
da sociedade, mesmo levando-se em conta, no que diz respeito à
sociedade, que as pessoas são mais complicadas que as partículas.
Desde já suas aplicações são pesquisadas nos mais diversos
domínios. Na medicina, com a interpretação do infarto como um
fenômeno de passagem brutal de um estado de regularidade a um
estado caótico, da crise epilética que irrompe subitamente e subme­
te o corpo ao ataque perturbador do grande mal. Também a econo­
mia tenta recorrer a essa arriscada exploração, ao estudar a desor­
dem dos investimentos e do emprego, a desordem dos ciclos des­
concertantes e do comportamento errático da Bolsa. A caoslogia não
seria vista como apologia da desordem, para a qual propõe uma
outra representação, um lugar específico, a caoslogia mostra que se
os acontecimentos e as turbulências da natureza dão uma impressão
de confusão, de ruído, na verdade são atraídos para certos estados.
Essas “atrações estranhas” permanecem mal identificadas, mas sua
ação é reconhecida; a desordem não se confunde com a bagunça.
Outras questões inquietantes permanecem, principalmente
estas: como pode uma determinada organização nascer do caos?
Como o novo consegue surgir da ordem e fugir às opressões da
ordem? Desde sempre o mito fornece as respostas, a ciência anuncia
as suas, submetendo-as a verificações e revisões infinitas. São duas
as práticas da razão, duas as lógicas, hoje melhor reconhecidas por­
que mais separadas. Os grandes mitos das sociedades tradicionais
procedem de uma explicação total, eles afirmam, dizem o que é e o
que deve ser. A ciência atual não busca mais uma visão do mundo
totalmente explicativa, o que produz é parcial e provisório. A ciência
confronta-se com uma realidade incerta, de fronteiras imprecisas e
mutáveis, estuda “o jogo dos possíveis” , explora o complexo, o
imprevisível e o inédito. Não tem mais a obsessão da harmonia, cede
um grande espaço à entropia e à desordem, e sua argumentação,

10

\
n ur i auRur i W

enriquecida de metáforas e de conceitos novos, descobre progressi­


vamente suas próprias limitações.
Se os cientistas parecem jogar com o caos no imenso painel da
natureza, os analistas da modernidade se empenham, com menos
trunfos, em um jogo comparável. Já defini a modernidade por meio
de uma fórmula: o movimento mais a incerteza. O movimento se rea­
liza em múltiplas formas, vistas por muitos tanto como armadilhas
ou como máscaras da desordem. O vocabulário pós-modemo ajusta-
se a esse inventário especulador da “desconstrução” e das simula­
ções. Há alguns anos forma-se progressivamente a lista dos desapa­
recimentos: do campo à cidade, dos grupos às relações entre indiví­
duos, destes aos espaços da cultura e do poder, tudo foi condenado
ao apagamento, à realidade mínima. A era do falso e do simulacro,
depois a “era do vazio” e a “derrota do pensamento” foram recente­
mente proclamadas. As aparências, as ilusões e as imagens, o
“ruído” da comunicação desnaturada e efêmera tomaram-se pouco a
pouco os elementos constitutivos de um real que não é uno, mas
que é percebido e aceito sob esses aspectos. Essa é a nova maneira
de apresentar as figuras da desordem, sem esquecer que o real se
constrói e que só a incapacidade e a passividade conduzem à uma
submissão desamparada, negligenciando-se também o fato de que as
novas técnicas progridem separadas deste abandono e que elas mol­
dam um mundo que poderiam submeter. O segundo termo da minha
fórmula — a incerteza — exprime tanto o surgimento do inédito sob
os ímpetos da modernidade como o risco, para o homem, de se ver
em posição de exilado, de estrangeiro ou de bárbaro dentro de sua
própria sociedade, na medida que a incompreensão do que está em
vias de se fazer afasta-se do conceito de uma civilização contempo­
rânea, onde ele só identifica o caos e o absurdo.
A consciência da desordem está viva e cria reações contrárias,
hesitações. Para alguns, o passado (depositário da tradição) e
mesmo o arcaico (fator de permanência e do universal) relacionam-
se à ordem, revelam o que está solidamente demarcado, propõem os
repertórios ou guias necessários a uma orientação, segundo a qual
este tempo poderia ser explorado, interpretado, organizado. Para
outros, a confusão e a instabilidade diminui o peso da ordem pre-
estabelecida, fermentam o novo e abrem caminho a uma liberdade
nova e fecunda: a desordem torna-se criadora, os períodos de transi-

11
U tU KU t-S BALAND1EK

ção exercem então uma verdadeira fascinação e são vistos como os


tempos, que fazem recuar as fronteiras do impossível, ao longo dos
quais se realizam as rupturas e os avanços. Entre esses dois pólos
situam-se as ignorâncias, as interrogações, as dúvidas, as acomoda­
ções e as confusões, tudo o que conduz a um ceticismo banal ou a
um niilismo nefasto, tudo o que igualmente contribui para alimentar
lima demanda impaciente de ordem, sem a medida dos riscos.
Ordem e desordem não se separam. Este livro não as vê disso­
ciadas; dedicado à desordem, trata o tempo todo de suas relações
complexas e misteriosas, do duplo enigma que constantemente
afronta o homem, em todos os tempos e em todas as culturas. A pri­
meira parte trata ordem/desordem sob três aspectos. Primeiro mos­
tra como os m itos o rig in a is exprimem uma ordem primordial
extraída do caos, como os rituais trabalham para a ordem e por
quais procedimentos a tradição disputa com o movimento. Em
seguida, aborda o devenir da ciência, a história das formas de diá­
logo com a natureza, a passagem de um mundo em movimento,
tomado de incessante turbulência. Finalmente, mostra um saber
social em total transformação, por meio do qual a sociedade não
mais se estabelece a partir da unidade e da permanência; aqui
ordem e desordem atuam juntas, a crescente complexidade multipli­
ca seus possíveis, tomando-se um fator de improbabilidade.
A segunda parte do livro estuda a desordem nas sociedades
tradicionais. A tradição, que faz seu trabalho subterrâneo, marca
os lugares onde a desordem se situa, identifica as figuras que a
encarnam e a coloca em ação sob as máscaras da feitiçaria. Mas,
nessas sociedades, a desordem pode se tra d u zir em ordem por
meio do imaginário, da simbólica e das práticas ritualizadas. Mesmo
o poder aqui aparece como máquina capaz de convertê-la em ener­
gia positiva; o movimento deve ser um agente de fortalecimento e
não de dissipação das forças coletivas.
A terceira parte mostra o retomo ao universo da modernidade.
Revela como esta modernidade embaralha as cartas, mantém as
incertezas e leva, de alguma forma, ao engajamento superficial na
história imediata. A atenção volta-se primeiro sobre a dificuldade de
saber, sobre os destroços do real e sobre o homem atual, transfor­
mada em sujeito mal identificado. A desordem não se isola, e a
consciência do desordenado exaspera. As figuras de desordem são

12
n. u u u v i k w u m

então tratadas como figuras reveladoras. Quatro delas são exempla­


res: o fato, o advento súbito da desordem (a crise da Bolsa de 1987);
a doença, o mal, a desordem vinda de fora (a Aids); a violência, a
exploração da desordem (o terrorismo); a política desvalida, desor­
dem e incerteza (o placar eleitoral). Arrisca-se em seguida uma pes­
quisa inicial sobre as formas dadas como respostas à desordem. São
três as principais: a resposta total, a ordem totalitária; a resposta da
pessoa, a ordem do sagrado; a resposta pragmática, a ordem pelo
movimento.
Impõe-se aqui uma dupla certeza. A crise tão evidente é uma
crise de interpretação. Este livro tenta traçar os caminhos de um
conhecimento, onde a desordem não passa de uma cômoda pertur­
bação. O pensamento deste tempo, situado neste tempo, leva inevi­
tavelmente a pensar o movimento — e, talvez, elogiá-lo.*

* Meus agradecimentos vão primeiro para Claude Durand, pelo interesse que
demonstrou para com este livro, pela leitura atenta e eficaz do manuscrito. Vão em
seguida para Brigitte Guigou, que me ajudou na seleção das fontes antropológicas, a
Yvonne Roux e Denise Nobre que fizeram uma primeira correção do texto, e a
Christine Cailleteau, que o datilografou.

13
Primeira Parte

ORDEM E DESORDEM
1

0 MITO DA ORDEM PRIMORDIAL

No início a ciência quis a morte do mito, como a razão quis a


supressão do irracional, visto como obstáculo a uma verdadeira
compreensão do mundo, dando início assim a uma guerra interminá­
vel contra o pensamento mítico. Valéry glorificou esta luta destrui-
dora contra as “coisas vagas”: “Aquilo que deixa de ser, por ser
pouco preciso, é um mito; basta o rigor do olhar e os golpes múlti­
plos e convergentes das questões e interrogações categóricas, armas
do espírito ativo, para se ver os mitos morrerem.”1 O mito por sua
vez trabalha duro para se manter e, por meio de suas metamorfoses,
está presente em todos os espaços. Do mesmo modo, a ciência atual
busca menos sua erradicação que seu confinamento. Quando a ciên­
cia traça seus próprios limites — as fronteiras do possível, do real,
segundo François Jacob — , ela reserva ao mito — e ao sonho — o
lugar que lhe é próprio. A ciência concede ao mito aquilo que ela
não poderá jamais reivindicar: dar um sentido, propor justificativas
morais, apresentar uma visão do mundo. O pensamento científico
coloca questões, o pensamento mítico dá as respostas, as explica­
ções que, evidentemente, não se situam no mesmo registro da inter­
rogação culta. São duas as práticas da razão, dois os procedimentos
que permitem dar ordem e inteligibilidade ao universo, por meio de
‘discursos’ totalmente distintos no seu modo de produção, pela lógi­
ca, pela autoridade e no tempo que lhe são próprios. O discurso
científico é revisável e revisado. O discurso mítico, uma vez estabe­
lecido, requer uma perenidade que efetivamente se mantém, porque
mantém suas aparências e sua forma; inscreve-se em uma tradição,
enraíza-se, e só a migração provoca suas mudanças.
Esta separação nítida foi algumas vezes negada, principalmen-

17
te por Manuel de Diéguez, que percebe um “discurso velado" e
inconsciente “sob o discurso descritivo do sábio”. Ele propõe a
seguinte questão: “Qual é o antropomorfismo da ciência no seu mito
secreto, a partir do qual o sábio confere, por sua vez, inteligibilidade
ao universo?” Questão que deságua em uma resposta interrogativa e
provocante: “E se este discurso fosse tão ingênuo quanto o dos sel­
vagens?”2 Os cientistas modernos separam-se, mesmo admitindo
uma dupla legitimidade; os dois recursos existem sem uma medida
comum, são caminhos diferentes que não devem se confundir nas
tentativas de acesso ao real; são duas práticas de conhecimento que
engendram efeitos totalmente distintos: nenhuma está errada,
nenhuma está certa.3 Contudo, a certeza da divisão se enfraquece,
quando se faz o retomo à história da ciência, à consideração do mito
relacionado às origens da ciência e à origem do mito científico hoje;
quando o sábio se pergunta sobre a realidade dos seres científicos
que ele trata ou quando ele se pergunta se tais seres existem inde­
pendentemente de toda observação humana, como no “grande
debate da teoria quântica”.4 Ilya Prigogine e Isabelle Stengers traba­
lharam com a semelhança e a diferença, aproximaram e dissociaram:
“Assim como os mitos e as cosmologias, a ciência parece buscar a
compreensão da natureza do mundo, a forma como está organiza­
do, o lugar que os homens nele ocupam”; mas o pensamento científi­
co se afasta da interrogação mitológica, submetendo-se “aos proce­
dimentos da verificação e da discussão crítica”.5 Já o discurso mítico
impõe-se pela autoridade, dispensa a hermenêutica (interpretação)
e a exegese (explicação).
Por natureza o mito não possui evidência, o que resulta na
incerteza de sua identificação. O mythos grego se refere tanto à
palavra enganadora, que gera ilusão, quanto à palavra capaz de atin­
gir a verdade — aquela que leva Aristóteles a concluir que “o amor
dos mitos é uma forma de amor à sabedoria”. Neste caso, dá-se ao
mito o poder de levar o espírito a especular, começando pela busca
de seu próprio sentido, misterioso e obscuro. É a partir dessa difi­
culdade, de sua aparência enigmática, que o mito fascina, obrigando
à decifração, à leitura iniciática. De antemão, segundo a concepção
grega, o mito que não ilude possui três características: trata da ori­
gem, do começo; remete, por meio do discurso, à temporalidade,
não a que resulta de uma sucessão de acontecimentos históricos,

18
mas a de um tempo fundador, durante o qual uma ordem se forma;
por último, o mito liga-se à memória enquanto revelação que permi­
te chegar a realidades ocultas.
Schelling, em F ilosofia da m itologia , confere ao mito um
valor elevado, supra-racional. Qualifica-o de discurso concreto, fixo
na memória, na língua, na criação, e que restitui, pelo símbolo, os
momentos e os fenômenos originais. O mito refere-se a uma reali­
dade primordial que preexiste em uma misteriosa profundeza e que
se traduz por signos, imagens e reflexos no mundo em que vivemos.
O mito aproxima dois mundos, revela o oculto e transmite parte da
verdade. O mito ajuda a consciência na descoberta de um processo
teogônico e cosmogônico. Cassirer, quando trata das formas simbóli­
cas e apóia-se no saber antropológico, considera o mito como saber
coletivo inato, que permite estruturar e dar sentido ao universo sen­
sível; é a expressão da busca difícil do segredo da origem, da primei­
ra ordenação do mundo das coisas e dos homens. Mas, acima do
mito, Cassirer ressalta o pensamento mítico, sua forma de operar e
dar unidade à diversidade dessas operações. Afirma sua permanên­
cia, sua onipresença. Não se trata de um único momento da história
do conhecimento: as formas do pensamento mítico e as da racionali­
dade desenvolvem-se sob dois planos diferentes; o sentido do mito
coloca-se ao lado ou no interior do que dele pode dizer o pensamen­
to racional.
O mito é irredutível; sua interpretação, inesgotável. Os filóso­
fos o interrogaram e às vezes lhe deram uma função didática. As
ciências humanas multiplicaram as tentativas no sentido de precisar
sua natureza (traço de mentalidade?), determinar suas funções
(conhecimento ilusório? memória que fixa o passado transfiguran­
do-o? título que rege o compromisso social? aspecto da criação em
toda cultura?) e precisar sua história (estaria condenado ao desapa­
recimento face aos avanços da razão?). Em favor de uma espécie de
‘mito do mito’, o imaginário se nutre incansavelmente de produtos
do pensamento mítico. O comentário mitológico não tem muros.
Neste texto, meu objetivo é tratar a lógica enquanto forma de dar ao
mundo uma unidade, uma ordem, um sentido primordial; é com­
preender como a criação, a partir de um caos inicial, impõe inces­
santemente o jogo duplo das forças da ordem e da desordem, e dos
símbolos pelos quais operam.
No começo era o caos

O tempo dos começos está fora do tempo, quando nada era,


tudo estava para ser criado, cada elemento colocado progressiva­
mente em seu lugar, ou refere-se a uma suspensão do tempo históri­
co, quando os homens transformam a esperança em ruptura com a
ordem estabelecida, convertem um presente vivido, assimilado à
desordem e ao mal, em um futuro portador de uma nova e desejada
ordem. Tempo de nascimento do mundo ou tempo de espera de
uma nova sociedade. A antropologia trata da primeira hipótese
levando em consideração as cosmologias, os sistemas simbólicos, as
definições da pessoa, os jogos de palavras e as práticas que criam e
mantêm uma cultura tradicional. A história e a sociologia das reli­
giões estudam os momentos em que, pela ruptura, quebra-se o acor­
do do homem com a sociedade e a cultura, quando se forma o proje­
to de um novo começo, de uma re-criação pela qual tudo fica em
jogo — as ligações dos homens com as forças que os dominam e
suas relações mútuas.
Prim eiro exemplo: “ uma cosmologia tão rica como a de
Hesíodo”, e também, ainda viva, a cosmogonia que fazem, pela leitu­
ra do mito e de sua simbólica, os trabalhos de Mareei Griaule e seus
colaboradores, dedicados aos dogons do Mali. A narrativa das cria­
ções, produtos do “verbo” inicial, acompanha um comentário filosó­
fico (uma metafísica) e uma teologia. Resulta de fragmentos de
mitos e conhecimentos, transmitidos de maneira dispersa, ligados e
ordenados segundo a lógica dos comentaristas (e sábios) dogons. É
preciso “começar na aurora das coisas”, diz o mais ilustre deles,
identificar os princípios ou signos de onde procedem. Nas origens,
uma figura divina e única, feita de quatro partes que correspondem
aos quatro elementos, que concebe o plano do mundo em “palavras”
para realizá-lo materialmente. De uma espécie de jogo cósmico
resulta um primeiro universo — as estrelas, o sol, a lua e a terra
assimilada em um corpo de mulher — , que não se realiza, a “primei­
ra desordem” mostra as “dificuldades de Deus”. Este mundo sem
coesão deve ser destruído.
É preciso então levar adiante uma outra criação, por meio da
mistura dos quatro elementos, sendo o homem a base. O relato disto
é de uma riqueza impressionante. Associa uma mitologia de movi-

20
rnontos — a espiral, as vibrações que são a forma inicial da vida — a
uma mitologia do vegetal, da árvore e do grão, a uma mitologia da
água, associada ao céu e ao peixe, e a uma mitologia dos seres, le­
vando ao aparecimento do homem. Assim, a humanidade se desen­
volve, e a vida se organiza sobre a terra pela divisão de regiões culti-
váveis, a instituição do casamento, a invenção e o desenvolvimento
das técnicas. O lugar, a regra, a ferramenta fundam uma ordem dos
homens, mas dentro desta a desordem progride, e dela procede ini­
cialmente, através de peripécias que relatam a conduta dos ances­
trais míticos e dos ancestrais “sociológicos”. Sempre se descobre em
ação uma figura da desordem, cósmica, mítica ou humana.
As primeiras criaturas vivas criadas por Deus (o Único) são
dois casais de gêmeos andróginos com dominante masculino: um
deles realiza a união, a harmonia, o outro traz em si a ferida e a
separação. O plano divino era estabelecer uma correspondência
entre estes com dois casais de gêmeas; se tudo corresse bem, se
chegaria à formação de oito criaturas perfeitas das quais nasceriam
outras formas humanas perfeitas, e, por conseguinte, um universo
ilimitado e harmônico, resultando a liberação, por Deus, de todas as
coisas ainda concentradas Nele. O projeto de harmonia imediata fra­
cassa pelo erro de um dos gêmeos do casal ferido, impaciente de
possuir sua gêmea (seu componente fêmea), revoltado contra uma
Criação da qual não participou, ambicioso na rivalidade com Deus,
querendo tomar para si o mundo criado. Esta primeira figura do
transgressor conserva sua forma, senão seu nome, ao passar do
domínio do mito para o domínio dos homens. No primeiro caso, ele é
Ogo, que vive na ilusão de possuir o “segredo”: podendo ser demiur­
go em seu único proveito, ele só consegue engendrar a esterilidade
da terra, o incesto, o monstruoso, a morte: um mundo que não é um
mundo, é uma realização fracassada e condenada à degradação, uma
falsa ordem sem vida verdadeira. Deus deve intervir: primeiro pensa
em proceder a uma terceira criação, depois renuncia e decide lutar
contra a desordem e a impureza do mundo atual. Por um sacrifício,
que é o de Nommo, o gêmeo do transgressor, reduzido a um corpo
mutilado (pela evisceração) e desmembrado, cujas peças devem
servir à “retomada da marcha do universo” e à busca da ação criado­
ra, que é essencialmente uma ordenação mais acabada. Esta permi­
te ressuscitar o sacrificado, fazer do corpo recomposto o equivalen­

21
te de um universo regenerado, onde tudo — inclusive os primeiros
ancestrais dos homens — encontra um lugar justo. 0 mundo está
feito, mas ele resulta de um drama, onde o criador manifesta seus
limites, onde o transgressor gerador de desordem só é vencido pela
operação sacrificial que acarreta um re-nascimento da ordem. Ao
Salvador se opõe o Revoltado, como à ordem civilizada a desordem
selvagem.
A luta das forças contrárias não cessa com a finalização de uma
Criação, daqui para frente fundada sobre o homem. O transgressor
persegue seu destino sob os traços da Raposa pálida, figura mítica
ou legendária que simboliza a natureza inculta, a solidão, a febre
incestuosa, a sofreguidão, a agitação, a obsessão da reprovação, a
morte. Em um mundo que não pode ser perfeito, mas onde o
homem está finalmente estabelecido, a Raposa mantém uma
influência perturbadora. Ela manifesta a ambivalência do ser huma­
no e de tudo o que existe, sendo, aliás, percebida pela forma ambí­
gua. Ela é temida e ridicularizada, é vista sob um aspecto negativo,
mas reconhecida “como elemento indispensável nos rumos do
mundo” . A lógica da narrativa opera sobre dois planos: ela governa
um discurso sobre o homem e um discurso sobre a ordem das coi­
sas. O primeiro alia o aparecimento do homem com a vitória sobre a
animalidade, sobre o instinto, sobre a pulsão selvagem manifestada
pelo incesto, gerador do caos e da morte. O segundo discurso mos­
tra que as forças contrárias entregam-se a uma disputa sem fim, que
a ordem não será jamais estabelecida. E que não deve sê-lo. Esta
luta renhida é considerada necessária, porque o movimento (o pro­
gresso, a marcha para o futuro) é concebido “como um perpétuo re-
equilíbrio, e a desordem como um fermento de civilização”. “É por­
que Deus não aniquilou a Raposa.”6 Uma remota tradição traz a lição
que redescobre a modernidade, fala da necessidade de reconhecer o
lugar da desordem.
As tradições africanas encerram, em graus variados de riqueza
e complexidade, relatos de origem dos mitos ancestrais, que com­
põem os sistemas conceituai, simbólico e imaginário, a partir dos
quais as sociedades idealizam e legitimam sua ordem. Todas chegam
à conclusão de que a ordem pressupõe riscos e está sempre a se
refazer. Um exemplo suplementar é proposto por um estudo em vias
de finalização, dedicado aos bwas do Burkina e do Mali. Neste caso

22
uinda, a Criação conhece fracassos e retomadas; é continuada para
além das rupturas e se desenvolve em três movimentos. No início, a
“ Forma” ( “o avô de Deus”) aparece por autogênese; engendra as
primeiras criaturas através do jogo e do gosto pelo espetáculo que
estas lhe proporcionam quando enfrentam seus desejos. A tentativa
de harmonizá-los conduz a um fracasso: “casais" são constituídos,
mas um permanece isolado, incompleto, malfeito, ser ávido e domi­
nador que visa apoderar-se do segredo de seu criador e se torna
então fator de desordem. A aventura termina em um dilúvio, e este
é o momento de passagem para a segunda Criação, com o apareci­
mento da matéria, dos vegetais, dos animais, dos gênios e das más­
caras. Sua convivência difícil com as criaturas primordiais suscita
episódios de ordem e de abundância, de desregramento e de penú­
ria. Um poder feminino se estabelece e fracassa, um primeiro casal,
criado sobre a diferença e a atração mútua dos sexos, se constitui
com a invenção do casamento e da cozinha, mas sua avidez o leva a
desafiar Deus. Uma terceira Criação inaugura o tempo da “grande
aceitação”, que é também o tempo da instituição da morte. O espaço
é rearrumado, e quatro divindades recebem a função de gerir o
mundo. A sociedade humana se organiza em suas formas tradicio­
nais e recebe sua Lei. A agricultura e a arte da ferraria são descober­
tas. A aliança dos homens com os animais e as alianças simbólicas se
estabelecem. Mas este mundo ordenado não é um mundo acabado,
ele é movimento, vida, turbulência. O mito transmitido pela tradição
dos bwas aponta para seu “pensamento antropológico”. As relações
inicialmente tumultuadas, depois dificilmente estabelecidas entre a
Criação (o Criador) e a sociedade dos homens se encontram no
interior desta — e em cada homem.
O mito aborda, em sua linguagem própria, a ambigüidade do
social e o aleatório que o afetam: ele resulta de uma oscilação neces­
sária entre aliança e enfrentamento, ordem e desordem. A socieda­
de é mostrada como o produto da negociação e do compromisso, da
dificuldade e de uma liberdade que pode se tornar excessiva. Os
bwas afirmam sem medo do sacrilégio: “Aquilo que Deus refez tan­
tas vezes, o homem pode modificar.” Eles propõem também, por
meio da narrativa mítica, uma interpretação psicológica que faz do
desejo uma força que anima; o desejo é o “ser que atiça o interior”,
age como uma “pessoa da obscuridade”, leva o indivíduo a seu limite

23
para “precipitá-lo na felicidade” ou “mergulhá-lo na infelicidade".
Ele é aquele pelo qual se efetua a realização pessoal, mas também a
desagregação geradora da desordem em si e ao redor de si. Delineia-
se assim uma espécie de energética das pulsões. Finalmente, é
importante destacar — como o faz enfaticamente a relação mítica —
a função do jogo e do arbítrio. A Criação é um “grande jogo", as cria­
turas vivas são os atores de um espetáculo que Deus incessante­
mente apresenta. A Criação é uma recriação, o Deus dos bwas tem o
privilégio do riso, segredo de que os homens vão querer se apoderar
e do qual farão finalmente a razão de suas festas. O que é tomou
forma pelo efeito do jogo e do espetáculo, cuja finalidade primeira
foi o “riso de Deus”. O arbítrio divino é a figura da necessidade, e os
caminhos do jogo da Criação constituem as figuras do acaso. Os
homens entram progressivamente nesta “parte” que não tem fim, e
seu conhecimento é primeiro o conhecimento das regras móveis do
jogo do mundo.7
Em certas tradições remotas do espaço cultural africano, a
antropologia restituída pela narrativa mítica e as práticas ritualizadas
são essencialmente, pode-se dizer sem exagero, uma entropologia:
um saber que mantém permanentemente a obsessão da entropia, da
perda e da desordem. Ocorre o mesmo com os astecas, fundadores
do México, quando os Capetos fundam progressivamente a França e
sua identidade, criadores de um império, geradores de um poder
temido por todos os seus vizinhos. Sua interpretação do mundo é
exemplar, na sua visão paroxisticamente dramática da certeza na
destruição do universo em cataclismos capazes de provocar o apare­
cimento de “monstros do crepúsculo”. Sua cosmogonia é uma genea­
logia de mundos criados e destruídos: quatro dentre eles — quatro
“sóis” — precederam aquele no qual vivem e que sabem igualmente
ameaçado de ruína. O primeiro foi aniquilado pelas “forças obscuras
da terra”, o segundo pela violência das tempestades, o terceiro pela
chuva de fogo, e o quarto pelo dilúvio de 52 anos. É dos escombros
deste último, e graças ao sacrifício de seu próprio sangue que apare­
ce Quetzalcoatl (a Serpente Emplumada), fazendo surgir a raça dos
homens atuais; eles aparecem em um universo que não foi criado de
uma hora para outra, mas conduzido em ciclos de construção (de
ordenação) e de destruição (de redução ao caos). Nada do que exis­
te é estável e assegurado de permanência, tudo está condenado à

24
degradação longa e lenta. Os astecas ligaram de forma indissociável a
economia do Cosmo e a dos processos humanos. Todas as gestões —
a da cidade, a do império e a do mundo — são uma só; elas se sus­
tentam e se condicionam umas às outras. São uma resposta, um apa­
rato à lei inexorável da Criação: o Cosmo engendra sua própria des­
truição, a energia se esgota “no calor da vida”, o tempo se desagrega
a ponto de atrair o fim do futuro. Esta física e esta metafísica trágicas
acompanham uma sociologia que não o é menos; as forças sociais se
corroem, a sociedade sofre os efeitos da deterioração...
Para remediar, diminuir ou retardar a degradação, tudo deve
ser programado e concorrer à salvaguarda energética. O indivíduo
está inteiramente subordinado a essa dificuldade, e tudo aquilo que
pode afastá-la — o jogo livre, bem como o desvio — é reprimido. Mas
esta rude gestão não é suficiente, é preciso criar uma nova energia,
recarregar o universo e, com ele, a sociedade. A máquina do mundo
deve ser alimentada de energia vital, de “água preciosa”, quer dizer,
de sangue humano. O sacrifício de homens e mulheres se toma uma
técnica tanto quanto uma operação simbólica e ritual; capta forças
que seriam usadas na dissipação sem seu freqüente cumprimento,
permite “afastar dia após dia o ataque do nada”, entretém a ordem
cósmica que, por esse motivo, parece-nos ainda mais monstruosa.
Jacques Soustelle mostra o paradoxo que acarreta esta visão do
mundo: “É uma idéia levada rigorosamente às suas conseqüências
mais extremas... com uma lógica perfeitamente coerente, condu­
zindo a esse paroxismo sangrento uma civilização, que não estava
fundada sobre uma base psicológica mais desumana e mais cruel que
outras.”8 Muitos ensinamentos podem ser tirados disto, independen­
temente de quaisquer avaliações morais. A descrição do mundo
pelos astecas é concebida — ao contrário da descrição que a maioria
dos mitos e a ciência longamente propuseram — segundo as catego­
rias de economia estrita das forças, da irreversibilidade de um
tempo, que chega a seu esgotamento junto com todas as coisas, e o
fim de uma ordem em um caos criado por cataclismo, sinalizando o
término de um ciclo. Trata-se de uma termodinâmica cósmica não
denominada: a certeza do reino da entropia que se traduz em degra­
dação qualitativa, em desaparecimento das diferenciações, em perda
de energia eficaz. A história dos homens é a história de uma luta per­
manente e trágica contra esse processo. Nesse projeto sem prazo, é
a simbólica e o rito, o governo dos signos e das ações sacrificiais que
fornecem os meios de estabelecer a ordem, de lutar contra a desor­
dem generalizada enquanto estado que atrai — como se diz hoje. Os
filósofos epicuristas reconheciam efeitos de ordem sobre um fundo
de desordem; os astecas eram produtores de ordem, e a um custo
elevadíssimo, apesar da força da desordem; para eles, o real é uma
construção frágil que corre o risco de se destruir a qualquer momen­
to. O que eles levaram ao extremo se toma um revelador “da grande
parcela de arbítrio e de contingência que ocorre nas questões huma­
nas”; e, também, do totalitarismo que pode dominar de forma abso­
luta a sociedade, quando este arbítrio é imposto sem tréguas até
suas mais impiedosas conseqüências.
Diante do mito original, aparece o mito dos novos começos,
que almeja a ruptura com a história vigente no sentido de provocar
a chegada da história desejada. É o que recorre ao “princípio espe­
rança”, de que trata uma sociologia definida em sua especialização,
como estudo das expectativas, das profecias e dos messianismos,
dos prelúdios revolucionários. É preciso mostrar aqui a diferença:
este mito se inscreve em um tempo histórico (o dos homens, e não
de meras entidades ou figuras imaginárias), e não no “tempo antes
do tempo”, de acordo com uma fórmula que abre freqüentemente a
narrativa mítica das origens do mundo. Mas é um tempo que permi­
te conjugar ruptura e nascimento. O que está lá aparece como uma
desordem iníqua, uma violência feita aos homens e uma injustiça,
um mundo falso e mau; o que é anunciado se apresenta como um
mundo verdadeiro, uma ordem cujo aparecimento deve ser provoca­
do, sem que por isso se estabeleça a ilusão de um retomo ao passa­
do, que permitiria restabelecer algum estado ideal. A ordem e a har­
monia são projetadas no futuro. Elas se realizarão, e tudo concorre
para esta espera: homens fora do comum, mediadores e mensagei­
ros — de Deus ou da história — , são seus iniciadores e promotores;
acontecimentos sucessivos são reconhecidos, enquanto signos de
uma desordem crescente, cujo fim próximo será uma catástrofe des-
truidora; novas ordens regem as condutas, provocam movimentos
de dissidência, introduzem ritualizações que convertem a esperança
em ação. O mito trabalha na esteira da ação, passa por cima dos
homens para se realizar, estabelece sua relação com as potências
simbólicas das quais eles pensam ter o apoio, ele alimenta a palavra

26
"quente", que dá a certeza que o mundo pode e vai mudar. A histó­
ria está longamente marcada por essas manifestações, que tomaram
a forma de revoltas ou revoluções fundadoras, ou de inovações reli­
giosas, que engendram primeiro uma liberação e uma re-criação no
imaginário e acabam por transformar o real. Em tempos mais recen­
tes, a descolonização foi freqüentemente traçada por meio dessas
iniciativas, o sagrado traçando o rumo da política.
A África foi nessa época o continente onde tais iniciativas se
multiplicaram, onde os mitos que anunciavam os novos começos
eram abundantes. Durante mais de meio século a região congolesa
foi uma das mais fecundas; ali nasceu sobretudo uma religião
(Igreja) recente, a quimbanda. O cristianismo colonialista faz o
papel de inspirador e de provocador de rejeições; é rejeitado porque
é acusado de traduzir para a linguagem do simbolismo e do rito as
relações de dominação, de discriminação e de desigualdade, mas é
utilizado enquanto repertório de onde saem os primeiros temas da
liberação. O fundador, Simon Kimbangu, fracassou na carreira de
missionário protestante, antes de se tomar uma figura messiânica.
Foi depois dos trinta anos que ele recebeu as primeiras provas de
ser um eleito de Deus, submetendo-se à injunção de ensinar uma
nova fé e manifestando dons de cura. Provoca então uma dupla rup­
tura: com as igrejas cristãs, onde as dissidências logo se multiplica­
ram, e com os adeptos divididos dos cultos locais neotradicionais;
ele só retém a relação fundamental estabelecida com os ancestrais,
garantia de uma aliança propícia ao nascimento de um mundo liber­
tado da lei estrangeira e colocado em ordem. Sua ação obtém um
sucesso rápido ao atacar aquilo que é, por excelência, a manifesta­
ção da desordem generalizada: a feitiçaria difusa, trabalho oculto e
incontrolável pelo qual tudo se degrada, gerador e signo de uma
insegurança que a todos reduz a uma vida de permanente ameaça.
Também neste projeto, Kimbangu aparece como um salvador.
Torna-se, durante um curto período — de março a setembro de
1921 — o agente de um movimento, místico e social, que acarreta,
em razão de seu poderio, a intervenção da força colonialista. Ele é
preso, condenado, deportado. Sua “Paixão” então se inicia diante de
seus fiéis, sua Igreja se mantém ao sabor de sucessivas metamorfo­
ses, sua força simbólica aumentada pelo martírio concorre para o
crescimento do mito. _______ _____
BIBLIOTECA
27 DE CIÊNCIAS
HUMANAS E
EDUCAÇÃO
Ele se toma a referência original, o fundador de uma religião
autóctone, mesmo conservando as aparências cristãs, o ponto de
partida para novos tempos; mais tarde, sua própria pessoa, apresen­
tada sob 12 manifestações, associadas aos 12 meses do ano, definirá
um ciclo temporal marcado por este calendário místico. Mas, no
princípio, Kimbangu está essencialmente identificado na sua quali­
dade de salvador, surgido de uma desordem que ele converterá em
ordem, pela graça divina, da qual se beneficia sem nenhuma media­
ção. A desordem está reconhecida nas provas e nas “misérias”
impostas pela dominação estrangeira, na degradação dos costumes
de agora em diante sem regras (sem “mandamentos”), propiciadora
do aumento das manobras de feitiçaria, na corrupção do poder indí­
gena e da autoridade. A cupidez sem limites e a sexualidade selva­
gem são as figuras principais da desordem; o sexo e o dinheiro a
designam bem como a feitiçaria (a insegurança). A espiral de desor­
dens conduz inelutavelmente ao caos, às catástrofes e às revoltas,
que destruirão o mundo mau e pouparão os adeptos da nova fé; e,
no final, à fundação do “Reino” no interior do qual tudo e todos
encontrarão um lugar justo.
O mito se organiza e se desenvolve em função da pessoa funda­
dora. Ela estabelece as etapas de sua transfiguração. Kimbangu é o
messias (o enviado que deve salvar), o salvador (aquele que realiza a
salvação coletiva e individual), o mártir (a vítima eleita cujos sofri­
mentos são a condição de uma redenção, de uma passagem para um
mundo novo), o rei (o criador de uma sociedade nascida de um con­
trato moral tomado vivo); ele é também o “Grande Simão” cuja coni­
vência com as forças destruidoras do mal e as que são geradoras do
bem permite ter a certeza da vitória final; ele é, em cada um desses
projetos, o instrumento de Deus. Uma fórmula o afirma: ele é “tudo
isto ao mesmo tempo”. Seu distanciamento favorece o processo de
elaboração simbólica: ele tem o dom da ubiqüidade, pode agir por
suas meras aparições; ele tem o poder de comandar os elementos e
de provocar a última catástrofe lembrada pelo “reino do sangue ver­
melho”; ele formula a Lei que fará surgir a ordem desejada; ele des­
via o poder material confiscado pelos dominadores estrangeiros em
proveito de seu povo. Tudo contribui para manter a espera de sua
volta, associado ao total desaparecimento da sociedade recusada. Os
cânticos dos adeptos proclamam de maneira antecipada: “O Reino é

28
nosso. Nós o possuímos!” O tempo dos novos começos já chegou.
Mas a história pratica a ironia. Uma vez conquistada a independên­
cia, a quimbanda se toma, no Zaire, um poder eclesiástico, político e
econômico. É a instituição de uma ordem, que não realiza a espe­
rança sonhada ao longo dos anos de efervescência fundadora.9
Neste mito, como em todos de igual fatura, é da transfiguração
de um homem (parcialmente assimilado a Deus, a um deus ou a
qualquer outro poder) que se dará a transfiguração da história, a
abolição de uma era e o aparecimento de outra era. É a passagem de
uma desordem, pintada de ordem e mantida pela força, em uma ver­
dadeira ordem. A figura original é um poderoso operador simbólico;
tudo se exprime e se dá no espaço do sagrado: na origem, uma elei­
ção divina que designa o momento da ruptura com um mundo, que o
mal destrói; depois, uma aceleração do processo destruidor durante
o qual os sofrimentos do fundador anunciam a catástrofe final;
enfim, a criação de uma nova ordem, sob a aparência de um novo
reino, onde o acordo dos homens entre si e com o universo se reali­
zará. Imagens de forte carga afetiva reforçam o corpo do mito, os
acontecimentos revelam sua verdade, práticas rituais e solidarieda-
des o mostram em ação. É pelo mito conjugado ao rito que a trans­
formação deve se efetuar, se realizar ao mesmo tempo enquanto
teogonia e politogonia a fim de dar um outro curso à história, um
caminho que traga em si o sentido e a ordem diante do que os
homens, confusamente, se puseram à espera.

O rito trabalha para a ordem

A complexidade do rito fez dele o objeto dos mais ininteligíveis


comentários. O rito está associado ao mito que ele traduz em ações,
práticas, algumas seqüências; mas o rito não é nem o simples reflexo
do mito, nem sua representação: tem sua própria lógica, determina­
da por sua finalidade e a exigência de eficácia. Sua própria organiza­
ção resulta disto; está acomodado em tomo de elementos centrais
que o especificam e designam sua função particular; se inscreve no
interior de um sistema, que contribui para a integração individual
em uma sociedade e em uma cultura (iniciação), ou à gestão do
sagrado (culto), ou à manifestação do poder (cerimonial político),
ou a qualquer outra finalidade de ordem social. O rito penetra na

29
“floresta de símbolos”, ele os utiliza dando-lhes forma por sua asso­
ciação e manipulando-os; ele recorre ao capital simbólico para expri­
mir (afirmar-se ao longo de sua realização) e agir; é um operador
simbólico, mas não se reduz a isto. O rito é uma dramatização que
impõe condições de lugar, de tempo, de circunstâncias propícias, de
designação daqueles que inclui ou exclui; requer de seus executantes
que o conduzam de acordo, porque qualquer infração maior à ordem
que o constitui o arruina e cria efeitos nefastos, de desordem conta­
giosa. Desde o momento em que se situam no espaço ritual, esses
executantes mudam de ser: sacerdote oficiante, sacrificador, másca­
ra encarnando um deus ou um ancestral, possuído por um espírito
durante o transe. Por meio do jogo dos atores litúrgicos e daquilo
que o acompanha — cânticos, danças, expressões corporais — , o
drama ritual transfigura o real, provocando o aparecimento do imagi­
nário. Realiza uma função mediadora, inteiramente aparente no
momento de sua intensidade mais forte; acarreta uma mudança de
estado dentro do qual as antinomias se dissolvem, e as dificuldades
desaparecem sob a ação da crença. Por um tempo, converte a incer­
teza em certeza; faz com que qualquer coisa aconteça de acordo
com os poderes e as forças que governam os destinos humanos, e
cujo resultado é tido como positivo por toda a sociedade ou por
alguns de seus componentes.
O rito se apresenta sob múltiplas formas, segundo a natureza
das dificuldades que requerem sua efetivação, segundo sua ocorrên­
cia periódica (repetição constitutiva de um ciclo) ou ocasional
(acontecimento que clama por uma resposta), segundo sua ação em
proveito da coletividade ou de indivíduos, segundo a riqueza de seu
conteúdo e a força do jogo dramático que acompanha seu movimen­
to. Mas, em todos os casos, o rito aparece como distinto da ferra­
menta — ligado aos procedimentos técnicos, racionais, de ação
sobre o mundo — e também como uma ferramenta que age sobre o
mundo por outros meios. Recorre à informação, ao saber; sob este
aspecto, pode ser comparado a uma memória (dispositivo de estoca-
gem) no sentido informático da palavra. Resulta de utilização desses
dados segundo um programa ajustado a um objetivo; por esta razão,
comporta fases, seqüências pelas quais se realiza a progressão de
sua ação. Ele tira sua eficácia das forças às quais se dirige, e, neste
sentido, impõe a conformidade a uma representação do mundo

30
(portanto da sociedade) e às significações, aos valores que a expri­
mem. Seu arbítrio, sob ótica estranha, apenas designa o arbítrio par­
ticular do qual resulta toda cultura. Inscreve-se no campo das con­
venções culturais dominantes, geralmente de forma positiva, às
vezes de forma negativa. Com o apoio dos deuses, dos ancestrais e
de outras entidades, obtido por sua mediação, contribui para o bom
funcionamento da máquina social da qual se utiliza e mantém a
energia. Sua função desagregadora só aparece em circunstâncias ou
em conjunturas raras. O rito age sobre os homens por sua capacida­
de de emocionar; o rito coloca-os em movimento, corpo e espírito,
graças à coalizão de meios que provoca. Faz a ligação com as forças
das quais manifesta a presença, por meio de um efeito místico que a
união sacrificial e o transe dão a prova maior. Apela à função imagi­
nária. Explora o registro simbólico e o conhecimento reservado —
ou “profundo” — que lhe conferem a autoridade associada a todo
esoterismo. Conjuga linguagens: a sua própria, mas também a músi­
ca, a dança, o gesto, e os atos litúrgicos definidos segundo seu códi­
go particular. É uma obra coletiva que utiliza a m íd ia disponível,
uma espécie de criação m u ltim íd ia que obedece a convenções
estritas, da mesma forma que um drama indissociável do sagrado. O
rito requer a crença e a legitima para a participação na vida de um
além do universo humano banal; ele a reativa, mas associando-a a
um jogo onde a simulação dá forma a outro tipo de real, a um sobre­
natural — mesmo que os participantes possam ter consciência dessa
simulação, enquanto dominados pelo efeito ritual.
O rito reporta às práticas que tratam explicitamente a ordem e
a desordem, indissociáveis de toda a vida, de toda a história. Qual­
quer que seja sua pretensão, o rito é, por natureza, ordem em si
mesmo. É estruturado e constitui um sistema de comunicação e de
ação de uma grande complexidade. O antropólogo Victor Turner
lembra que o rito “possui ao mesmo tempo uma estrutura simbólica,
uma estrutura de valor, uma estrutura teleológica e uma estrutura
de função”, às quais convém acrescentar a que depende do imaginá­
rio. Na medida que governa as condutas de comunicação cultural­
mente definidas, ele se submete a um código geral, deste reforçando
a pertinência e a eficácia para as múltiplas repetições e variações
temáticas, que reduzem as ambigüidades ou os “ruídos” que diluem
a significação. Seu código tem força de lei, exceto para perverter

31
sua ação e os efeitos antecipados. O rito, como já foi dito, é um pro­
cesso adaptado a uma finalidade; é uma liturgia e, enquanto liturgia,
comporta episódios ordenados, uma sucessão de fases durante as
quais se associam de forma específica os símbolos, os ícones, as
palavras e as atividades. Impõe a idéia de uma ordem global à qual
ele contribui e da qual participa, mesmo que sua execução possa
trazer hesitações resultantes de apreciações contraditórias ou incer­
tas, e aparecer então sob a forma de bricolagem. O rito “é” necessa­
riamente uma ordem, marcada pela não rigidez em quaisquer mani­
festações rituais.
O rito trabalha para a ordem. Um grande texto chinês, o L ivro
dos ritos, diz que estes “têm uma única e mesma finalidade, que é a
de unir os corações e estabelecer a ordem”. A harmonia entre os
homens e o acordo do mundo, eis o princípio. Este se verifica princi­
palmente nos casos de manifestações rituais periódicas associadas
aos ciclos da natureza e da atividade agrária. As regularidades natu­
rais e as regularidades sociais se apresentam deste modo ligadas, os
homens tornando-as solidárias por meio de práticas simbólicas e tra­
tando de salvaguardá-las conjuntámente. As ordens que elas regem
devem ser mantidas juntas, porque qualquer perturbação engendra
outras perturbações que se expandem por contaminação. Nesta cor­
relação, aparece uma teoria: a natureza e a sociedade obedecem à
uma mesma necessidade; contrariar esta necessidade é ameaça
tanto para uma quanto para outra, é abrir um ciclo de desordens ao
longo do qual catástrofes, calamidades e crises sociais se alimenta­
rão mutuamente. Disto resulta uma conseqüência: a afirmação de
uma tal solidariedade assimila a “natureza” da sociedade da “na­
tureza” da natureza, a ordem e a permanência (a eternidade) de
uma garantem a ordem e a permanência da outra (assim obtida livre
da história e das incertezas). É aliás significativo que o poder políti­
co tenha uma dupla função nas sociedades tradicionais, a da ordem
dos homens e a da ordem das coisas, que a relação seja concebida
como uma harmonia primordial mantida com a natureza ou como
uma relação positiva a estabelecer e a manter de maneira constante.
Assim acontece nos antigos reinos africanos — sobretudo na África
central e oriental — onde o rei alia à sua dignidade um governo “na­
tural” dos homens a um governo político da natureza. Na Ruanda
monárquica, “o rei, concebido ao mesmo tempo como o responsável

32
político dos fenômenos naturais e como o fecundador da ordem
social, é a garantia desta harmonia preestabelecida mas sensível, na
medida em que toda anomalia da ordem natural acarreta um desre-
gramento sócio-político, e vice-versa”.10 A desordem trabalha muitas
vezes escondida, o poder a impede ou contraria seus objetivos; a
teoria social também, ao impor a conformidade a uma ordem cuja
degradação nada poupa (a natureza inclusive) nem ninguém, fazen­
do do rito um instrumento das regularidades ou um corretor dos
defeitos da ordem.
É graças ao rito que o indivíduo se toma um homem social, e
que o curso de sua vida passa do nascimento à morte por suas mais
importantes etapas. O rito entra em uma ordem (sua própria socie­
dade), está nela situado e nela progride até o fim de sua existência.
A iniciação masculina efetua a socialização, é o “verdadeiro” nasci­
mento, o acesso a um estado duplo de realização, na medida que a
criança é considerada como um ser incompleto; consagra a maturi­
dade física, procede à marcação do corpo e confere à sexualidade
sua disciplina; comporta revelações e ensinamentos, a entrada no
conhecimento e a imposição de uma moral sem as quais é impossível
existir socialmente. Para uma simbólica muitas vezes utilizada, a ini­
ciação masculina se dá à vida e ã vista como uma morte (à infância e
ao mundo das mães) e um nascimento (à maturidade e ao mundo
social) simbólicos; ela é a mímica ritual do parto de homens, feitos
para ser ajustados à sociedade que os acolhe. A iniciação provoca a
interiorização da ordem própria a esta: e a mantém, abrindo um pro­
cesso que permite subir os degraus do conhecimento e do status
social na medida que a idade avança. Faz com que cada geração
nova contribua para a conservação da ordem. Ao contrário, a morte
aparece como uma vitória da desordem, um atentado ao fluxo da
vida associado à impureza. O rito funerário visa o restabelecimento
de um e o desaparecimento de outro. É preciso que a obra nefasta
da morte esteja relacionada a uma causa, raramente tida como natu­
ral nas sociedades tradicionais: o costume africano de interrogar o
cadáver bem o demonstra ao forçá-lo a dizer seu segredo. É preciso
que a morte seja tratada de forma regulamentada, para que não se
torne um agente de desordem que vagueia entre os vivos, mas, ao
contrário, um poder benéfico que age em proveito deles; só o traba­
lho simbólico e ritual pode converter o negativo (potencial) em posi­

33
tivo (atual), o defunto temido em ancestral propício. É preciso
enfim que a coletividade se libere da “morte do morto”, que se puri­
fique, que elimine os fatores de desorganização e de degradação e
faça dos ritos funerários a ocasião de uma verdadeira renovação. É a
dramatização ritual, na qual tudo e todos se acham engajados, que
produz este efeito no momento de maior intensidade emocional. Os
dogons do Mali, já mencionados, fazem explicitamente de funerais
notáveis uma ocasião para lembrar os fatos primordiais e fundado­
res, de manifestar uma continuidade resultante da conformidade,
para reavivar as normas e as relações sociais mais importantes. Em
uma época crítica, quando a morte exerceu sua ação diluidora e tor­
nou manifesto o trabalho das forças da destruição, a dramaturgia
litúrgica reúne a totalidade dos participantes em uma ação que
exprime a permanência e o poder da ordem social.
O rito traz uma resposta ao acontecimento, ao inesperado, ao
aleatório; ele afasta a ameaça neles contida ou administra a fachada
de seus crimes, tomando-os aparentes. De modo que o rito não man­
tém mais uma ordem, opera como redutor de uma desordem real ou
suposta: sua intervenção se situa no campo das conjunturas imprevi­
síveis, temidas ou nefastas. Quando toda a coletividade se encontra
nesta situação, esta é vivida muitas vezes como uma calamidade que
resulta de uma vontade má (a de uma força) e de uma falta que força
sua própria responsabilidade. Tanto quanto a morte, o acontecimento
não é encarado como natural; revela p o r seus efeitos uma intenção e
um processo que é preciso identificar recorrendo à adivinhação, aos
artifícios apropriados. A resposta ritual não exclui a resposta técnica,
mas o rito prevalece sobre a ferramenta, e esta, tanto mais o período
crítico perdurar alimentando um sentimento de impotência. A seca, a
epizootia, a epidemia, a esterilidade, a feitiçaria e o conflito insidioso
em vias de generalizar-se são os geradores dos ritos; espera-se que
estes ergam obstáculos a um mal cujo contágio, real e simbólico,
ameaça criar uma desorganização generalizada. O destino, a sorte, a
desgraça, a morte, a desordem estão no interior de uma mesma confi­
guração interpretativa. É o excesso que indica a presença da desor­
dem ou o risco de sua irrupção, a tal ponto que mesmo a sucessão
rápida de acontecimentos felizes é percebida como algo prestes a
romper a ordem normal das coisas e muitas vezes conduz a práticas
conjuratórias. A ordem e a norma estão ligadas; a ordem é medida.

34
O infortúnio individual é geralmente relacionado a uma agres­
são mística ou a uma transgressão; nos dois casos, existe a infração
a uma lei da tradição, desconhecida (é a punição dos poderes que a
revela) ou conhecida (é o desrespeito consciente de uma obrigação
que acarreta as conseqüências nefastas). O risco e o perigo vêm da
falta de conformidade às normas que regem a ordem social tradicio­
nal. Em certas sociedades, o inverso revela a retidão: entre os dor-
zês da Etiópia, as pessoas bem-sucedidas “podem proclamar [segun­
do Dan Sperber] que sua saúde e sua riqueza testemunham seu bom
comportamento moral’’. Os ndembus da Zâmbia atribuem à adversi­
dade que assalta as pessoas — eles a denominam aflição — o fato de
estarem possuídas por um determinado espírito; um adivinho o
identifica; uma associação ritual apropriada intervém para apaziguar
o espírito que “emergiu” e provocou as desordens. Neste caso, a
culpa importa menos que a cura; o essencial é que a ordem seja
capaz de vencer a desordem. Uma vez tratada, a vítima entra em ini­
ciação e se torna membro do grupo de culto, que a tomou como
encargo espiritual; transformada pela operação simbólica e dramáti­
ca, ela se converte em um fator de ordem. Turner afirma sobre o
ritual ndembu, do qual é analista, que ele “pode ser considerado
como um instrumento que consegue maravilhosamente exprimir,
manter e purificar periodicamente a ordem social secular” . Tal
resultado não é obtido de forma mecânica; é o produto de um traba­
lho coletivo constante, redutor de uma desordem que não pode de­
saparecer. Por meio do rito, os conflitos, as desorganizações, os
males são tem porariam ente transformados; o rito não age nem
como um meio de repressão, nem como um exutório; capta as ener­
gias que se desprendem dessas situações para os converter positiva­
mente; faz do que é provocador de confrontos, de ferida social e de
degradação individual, um fator de reconstrução e de coesão. Se
existe um desejo nessas circunstâncias, é o desejo de “dominar as
divisões arbitrárias criadas pelos homens, de superar por um
momento — ‘dentro e fora do tempo’ — as contingências materiais
que separam os homens e os desarmonizam com a natureza”.11
O rito explicitamente político manifesta por necessidade o jogo
jamais realizado da ordem e da desordem, em uma abundância sim­
bólica única e dando a perceber uma verdadeira dramaturgia do
poder. Os períodos de interregno, ou de vacância do poder detido

35
pelos sobeFanos das sociedades tradicionais, abrem freqüentemente
uma crise ao mesmo tempo simbólica e efetiva. É um tempo de
desordem e de violência, de suspensão da norma, de agressão e de
confusão; quando a força geradora da ordem perdeu seu apoio, o
corpo real se toma inoperante, e o caos se estabelece por meio de
ações miméticas e de múltiplas transgressões. Parece então que a
ritualização age no sentido inverso: é preciso deixar o campo livre à
desordem, para que a ordem reavivada surja de uma sociedade pro­
visoriamente falsa, pervertida, aparentemente desgovernada. Com a
entronização do novo soberano, o rito é recolocado sobre seus pés:
ele “ordena” com mais força, enquanto a Lei retoma um novo e mui­
tas vezes rude vigor; o rito se conclui através de um ato sacrificial ou
comunitário recombinando coesão e conflito sociais. Nas sociedades
tradicionais, esta ascensão ao poder não é jamais um procedimento
puramente constitucional e encenado com fausto. O rei é feito, pro­
duzido através de uma verdadeira transfiguração. Ele muda de ser
ao receber sua dignidade. Sua pessoa pode se tomar o lugar onde se
enfrentam ritualmente as forças da ordem e da desordem. No univer­
so congolês, particularmente entre os sukus do Médio-Congo, no
Zaire, a iniciação real que conduz à investidura requer o isolamento,
a des-aculturação, o abandono a uma espécie de selvageria e às vio­
lências, a retração de toda ordem, antes que o personagem soberano
seja ritualmente construído e investido da força do poder. A ordem
deve, nele, vencer a desordem para que ele possa, na sua função, sal­
vaguardá-la. O imaginário e a dramatização ritual fazem surgir deste
enfrentamento uma energia nova, capaz de tudo manter segundo sua
ordenação e de assegurar o fluxo da existência.12
Nenhuma sociedade pode ser purgada de toda desordem; é
preciso então saber lidar com ela em vez de tentar eliminá-la. Este é
principalmente o papel do mito e do rito: tratam a desordem no sen­
tido de lhe dar uma forma dominável, de convertê-la em fator de
ordem, ou de deportá-la para os espaços do imaginário. Por meio de
procedimentos, onde operam principalmente a transgressão e a in­
versão, o mito e o rito se tomam os instrumentos que permitem jun­
tar ordem e desordem, do mesmo modo que a Grécia antiga associa­
va medida e desmando, razão e excesso dionisíaco. Todas as cultu­
ras fazem de algum modo a parte do fogo; todas as tradições com­
portam esses dois aspectos indissociáveis.

36
A tradição joga com o movimento

Como se diz comumente, a tradição gera continuidade; expri­


me a difícil relação com o passado; impõe uma conformidade resul­
tante de um código do sentido, e portanto de valores que regem as
condutas individuais e coletivas, transmitidos de geração em gera­
ção. A tradição é uma herança que define e mantém uma ordem ao
apagar a ação transformadora do tempo, só retendo os momentos
fundadores dos quais tira sua legitimidade e sua força. Ordena em
todos os sentidos da palavra, como enfatizou Marx quando a conside­
rou uma “obsessão” que pesa sobre o cérebro dos homens. É na reli­
gião, e sobretudo em sua instituição cultuai ou eclesial, que a tradi­
ção encontra seus mais sólidos ancoradouros. Elas lhe dão sua refe­
rência original, traduzem-na em sistemas simbólicos e em figurações
ou ícones, elas a mantêm e lhe conferem uma eficácia por meio das
práticas rituais. Afirmam permanências pelas quais o mundo se esta­
belece em seu sentido, sua ordem e sua inalterabilidade. São os dis­
positivos de negação da história, do movimento gerador de desordem
e de mudança; são os meios de simulação de uma ordem imutável,
fundamental, que o curso dos acontecimentos pode apenas mascarar.
As sociedades estudadas pelos antropólogos são aquelas onde
a tradição e sua relação com o sagrado são as mais manifestas. É,
aliás, segundo esta dupla característica que por muito tempo foram
definidas: sociedades mantidas pelas injunções da tradição, pouco
produtoras de desordem, e, por essas razões, consideradas capazes
de opor uma forte resistência às marcas históricas. Desse modo, não
teriam um devenir oriundo de si mesmas, apenas repetiriam a
ordem antiga, se reproduziriam sem variações de qualquer impor­
tância. Mesmo os “antropologizados” não reduzem a tradição a esses
efeitos. Segundo os balantes, da Guiné Bissau, a tradição é primeiro
uma memória que o passado alimentou; estoca experiências (e da
experiência), conserva modelos de ação, guarda saber, informação.
Neste sentido, é programável, é o meio de dar forma e sentido ao
presente, de trazer uma resposta concreta aos problemas que este
impõe. Os balantes associam a tradição ao saber, e fazem do saber o
equivalente do poder: conhecer a ordem fundamental é ter o poder
de mantê-la adquirindo assim a capacidade de reduzir a desordem
ou de convertê-la em fator de ordem.13 Em algumas sociedades tra­

37
dicionais, sobretudo aquelas onde o lugar do poder político perma­
nece discreto, um sistema principal exprime e impõe as dificuldades
provocadoras de conformidade. É o caso do culto dos ancestrais que
rege os destinos individuais e tenta assegurar a salvaguarda da
sociedade contra os maiores riscos da alteração. Um antropólogo de
grande renome, Meyer Fortes, o demonstrou a propósito dos tallen-
sis de Gana: a relação com os ancestrais manifesta pelos meios sim­
bólicos a necessária submissão às relações sociais e ela justifica, na
linguagem do sagrado, esta aceitação da ordem estabelecida. Está
dito que: os ancestrais são onipotentes, os homens não têm outra
alternativa senão submeter-se; os ancestrais situam-se em posição
de “árbitros supremos”, mantêm sob a ameaça de morte a conformi­
dade aos axiomas morais, transmitidos de geração em geração. Do
ponto de vista do indivíduo, a inserção na ordem simbólica (que as
figuras ancestrais governam) e a inserção na ordem social (que as fi­
guras notáveis governam) são uma só.14 A tradição fixa as posições,
o sagrado esconde a história, ou seja, o movimento do qual nenhuma
sociedade saberia escapar.
Mas a tradição só joga em parte sobre as aparências de estabili­
dade; deve compor com o que a corrói e tentar subjugá-lo. Os do-
gons do Mali manifestam uma clara consciência da presença da
desordem e do perigo do imobilismo, que impediriam toda “marcha
para frente”. A narrativa mítica, anteriormente analisada, mostra-o
claramente: conclui pela necessidade de contínuas retomadas de
equilíbrio à ação de forças contrárias, que se enfrentam no homem
(principalmente no conflito edipiano), como em qualquer campo da
criação. A tradição não é nem o que parece ser, nem o que diz ser;
os antropólogos já sabem disto. Ela está dissociada da mera confor­
midade, da simples continuidade por invariância ou reprodução
estrita das formas sociais e culturais; a tradição só age enquanto
portadora de um dinamismo que lhe permite a adaptação, dando-lhe
a capacidade de tratar o acontecimento e de explorar algumas das
potencialidades alternativas. O tradicionalismo se apresenta sob
várias formas, e não somente sob o único aspecto de uma herança
de dificuldades que impõem o enclausuramento no passado.
Vamos distinguir, como fiz recentemente, três realizações prin­
cipais. O tradicionalismo fundamental visa a manutenção de valores,
de modelos, de práticas sociais e culturais as mais enraizadas; está a

38
serviço de uma permanência, do que se supõe como constitutivo do
homem e da relação social, conforme o código cultural do qual ele é
o produto e o conservador. O tradicionalismo formal, que não exclui
o anterior, utiliza as formas mantidas cujo conteúdo foi modificado;
estabelece uma continuidade de aparências, mas serve a novos obje­
tivos; acompanha o movimento sempre preservando uma relação
com o passado. O pseudotradicionalismo corresponde a uma tradi­
ção reelaborada, intervém durante os períodos onde o movimento se
acelera e engendra grandes reviravoltas; permite dar um sentido ao
novo, ao inesperado, à mudança, e de domesticá-los impondo-lhes
um aspecto conhecido e tranqüilizador. Ele arma a interpretação,
postula uma continuidade, exprime uma ordem que nasce da desor­
dem.15 Neste sentido, revela a que grau o trabalho da tradição não
está dissociado do trabalho da história, e como a tradição é uma
reserva de símbolos e de imagens, mas também de meios, que per­
mitem apaziguar a modernidade. A tradição pode ser vista como o
texto constitutivo de uma sociedade, texto segundo o qual o presen­
te se encontra interpretado e tratado.

39
NOTAS

1. P. Valéry, Petite lettre sur les myth.es, in Variété II, Paris,


Gallimard, 1930.
2. M. de Diéguez, Science et nescience, Paris, GaUimard, 1970, pp. 32
e33.
3. Tema dominante da obra de H. Atlan, A tort et à raison, intercri-
tiqu£ de la Science et du mythe, Paris, Seuil, 1986.
4. F. Selleri, Le grand débat de la théorie quantique, prefácio de K.
R. Popper, Paris, Flammarion, 1986.
5 .1. Prigogine e I. Stengers, La nouvelle alliance, métamorphose de
la Science, Paris, Gallimard, 1979, p. 44.
6. G. Calame-Griaule e Z. Ligers, “L’homme-hyène dans la tradition
soudanaise”, L ’Homme, I, 2,1961, pp. 10948. Sobre a mitologia e a simbóli­
ca dogon: M. Griaule, Dieu d’eau, Paris, Fayard, 1966 (nova edição). Sobre
o personagem e a gesta da Raposa (a figura da desordem): M. Griaule e G.
Dieterlen, Le Renard pâle, Paris, Institut d’Ethnologie, 1965; e L. de
Heusch, “Le renard et le philosophe”, L ’Homme, VIII, 1, 1968, pp. 70-9; A.
Adler e M. Cartry, “La transgression et sa dérision”, L ’Homme, II, 3, 1971,
pp. 5-63.
7. Toda esta seção dedicada ao mito dos bwas repousa sobre um
importantíssimo estudo de J. Capron, produzido ao longo de muitas déca­
das de trabalho. Estudo ainda inédito em sua totalidade: Le pouvoir villa-
geois: essai sur le système politique des populations bwa, conjunto de
textos que perfaz o volume: Le grand jeu, le mythe de la création,
Ouagadougou-Tours, 1988.
8. Citações extraídas de J. Soustelle, Les Quatre Soleils, Paris, Plon,
1967, prólogo e capítulo VI; do mesmo autor, La Vie quotidienne des
Aztèques, Paris, Hachette, 1955. Sobre a economia cósmica dos astecas,
ver principalmente C. Duverger, La Fleur létale, Paris, Seuil, 1978.
9. Dediquei aos messianismos congoleses o primeiro estudo de socio­
logia interpretativa: G. Balandier, Sociologie actuelle de VAfrique noire,
dynamique sociale enAfrique centrale, Paris, P.U.F., 1955 (4. ed., 1982).
Outras obras se seguiram e apresentaram a evolução da quimbanda; a mais

40
recente é a de S. Asch, LÊglise du prophète Kimbangou, de ses ongines
á son rôle actuel au Zaire, Paris, Karthala, 1983.
10. P. Smith, “Aspects de 1’organisation des rites”, in M. Izard e P.
Smith, Lajbnction symbolique, essais d’anthropologie, Paris, Gallimard,
1979.
11. V.-W. Tumer, Les Tambours d’affliction, analyse des rituels
chez les Ndembu de Zambie, trad. francesa, Paris, Gallimard, 1972.
12. Cf. G. Balandier, Le détour, pouvoir et modemité, Paris, Fayard,
1985, capítulo I, “O corpo enquanto ‘corpo político’”.
13. Dados retomados na tese (não publicada, E.H.E.S.S.) de D. Lima
Handem, Nature etfonctionnement du pouvoir chez les Balanta Brassa.
14. M. Fortes, Oedipus and Job in West African Religion, Cam-
bridge, Cambridge University Press, 1959.
15. G. Balandier, Anthropologie politique, Paris, P.U.F., 4. ed. 1984;
cap. VII, “Tradition et modemité”.

41
A C iê n c ia p e r d e a h a r m o n ia

Para ter a certeza, outorgada por um século XIX triunfante,


que “o universo daqui para frente não tem mais mistério”, a ciência
primeiro criou um efeito de desencantamento. Rechaçou o mito e
suas razões para um passado abolido — cemitério onde também
repousam suas próprias teorias, mortas e reduzidas ao estado de
formas míticas — ou para um exterior, que é o das sociedades ditas
tradicionais ou com pouca racionalidade. A ciência atual testemu­
nha, ademais, a incerteza, na medida que seus sucessos instrumen­
tais fazem crescer, rapidamente, sua tomada de poder sobre o
mundo e sobre o homem, sua potência expansiva. É o movimento e
esta eficácia que a legitima: a ciência triunfa; seu sucesso provoca
reações contrárias, uma passagem aos extremos: ou bem alimenta
uma fé absoluta, uma quase-religião, ou bem provoca uma rejeição
radical justificada pelos efeitos descontrolados (incontroláveis) de
suas aplicações. Entre os dois fica a dúvida, a discussão. A própria
ciência já não segue a prescrição de Albert Einstein: dar “uma ima­
gem do mundo simples e clara”. Interroga seu mundo de conheci­
mento, trata do que é complexo, dá lugar ao imprevisível. As teorias
científicas estão agora menos globais e unificadoras, mais locais,
pouco ou não deterministas, submetidas ao trabalho do tempo; pro­
põem sínteses sucessivas separadas por espaços vazios.
Ao perder seu grande sonho unificador, a ciência atual se tor­
nou mais permeável ao que lhe é exterior, em uma relação de intera­
ção muito maior com o que está de fora. Abandonou toda ilusão de
“extraterritorialidade” teórica (Serge Moscovici) e mesmo cultural
(Ilya Prigogine). Suas proposições são pouco dissociáveis do meio
onde se encontram enunciadas. E ela mesma parece inseparável, em

43
sua totalidade e em seu movimento, de uma certa forma de cultura
que a torna possível e mantém seu desenvolvimento. É assim que as
diferentes culturas, portadoras de outras lógicas da natureza, passa­
das ou ainda vivas, a obrigam à sua própria avaliação, desde que
essas variações culturais não sejam grosseiramente imputadas a um
déficit — o de sociedades ditas incapazes de ciência, como elas
foram ditas incapazes de devenir histórico — ou a um arcaísmo
exclusivo de qualquer racionalidade. Nesta exploração feita fora de
suas fronteiras, a ciência começa a achar os espaços da tradição e
do mito; não mais os exclui, ela os constitui às vezes enquanto uma
“intercrítica” , de que Henri Atlan mostrou a fecundidade.1A ciência
faz reaparecer enraizamentos ocultos e há muito escondidos. Além
disso, no interior de seu próprio território cultural, não é inteira­
mente dona de sua própria linguagem. Seus novos objetivos — o
complexo, o devenir, e um pelo outro — , s u e i s novas leituras de um
real, cujas infinitas decifrações fazem com que não possa mais se
satisfazer apenas com suas palavras, suas formalizações. Ela toma
emprestado, contribui para a circulação de metáforas e de figuras,
utilizando-as enquanto mídia, intervindo em sua comunicação com
a natureza. A ciência é antropomorfista, notadamente no campo da
biologia, quando recorre a noções tais como código e programa,
comando, circulação e quantidade de informação, transcrição e tra­
dução. Imagina máquinas naturais, segundo as máquinas finalizadas
e produzidas pelo homem, que têm a capacidade de manter uma
orientação em um ambiente variável e em parte imprevisível.
Recorre às vezes, para melhor representar os seres que trata, a um
animismo de comodidade; desse modo, quando a física das partícu­
las não as designa a partir de suas próprias convenções ( bozons W e
Z, por exemplo), mas também pela atribuição de uma identidade e
de uma personalidade que definem seu comportamento.2
No esforço de busca e expressão que a leva a incursões extra­
territoriais, a ciência consente em outra apresentação de si mesma e
a uma relativização mais abrangente. Não fala apenas daquilo que a
ela concerne, vai adiante. Às vezes sob o risco de se perder, quando
se aventura nos caminhos de um sincretismo que associa sua pró­
pria racionalidade à racionalidade de outras tradições, principal­
mente as do Oriente: assim, o Tao pode habitar a física atual graças
à habilidade de um Fritjof Capra.3 Percursos menos aventureiros

44
conduzem a uma epistemologia reavivada, à renovação da filosofia
das ciências, a uma correlação das concepções presentes da nature­
za, do homem e do social, a uma interrogação das linguagens.
Efetuam-se itinerários cruzados, quando os filósofos e cientistas se
encontram, e que nem sempre evitam os desvios pela substituição
dos papéis e dos jogos de saber, que estes regem. Nessas turbulên­
cias de onde surgem por sucessivos impulsos as obras da moderni­
dade, paradigmas se perdem, aparecem e desaparecem, ou então se
mantêm até serem abandonados, mais dia menos dia. O paradigma
ordem/desordem é às vezes novo (por meio de suas figuras nas ciên­
cias atuais) e muito antigo (por meio de seus exemplos nos primór-
dios da filosofia ocidental). Ele se combina com uma ciência que
hoje deve se manter nos limites do parcial, do provisório, de uma
representação fragmentada do mundo, e com o movimento geral das
sociedades e das culturas contemporâneas, muitas vezes mostrado
sob os aspectos de um progressivo caos.

O retom o in icia l

A ordem e a desordem são indissociáveis, qualquer que seja o


caminho que conduza de uma a outra, assim como são indissociáveis
da história da racionalidade. Platão propõe uma concepção comple­
ta, indiscutível, da ordem. Se o Espírito “colocou ordem em tudo”, é
preciso também mostrar (é o objeto da dialética) que “cada coisa
em particular” se acha disposta, no arranjo do universo, “da melhor
maneira possível”. Tal disposição (taxis) das coisas é a mesma dos
elementos como um todo; é a partir das coisas, do todo e de suas
relações mútuas que as noções de ordem e desordem se tornam
definíveis, como o demonstra ainda um pensamento científico con­
temporâneo, que lê a natureza de um ponto de vista sistêmico e a
sociedade de um ponto de vista holístico. Mas Platão introduz tam­
bém uma consideração de valor não submetendo a ordem à aprecia­
ção exclusiva da razão, na medida que a ordem só é plenamente
realizada (tornando-se o cosm o) como o melhor arranjo — ao
mesmo tempo racional, belo e bom. A “virtude” de uma coisa resulta
da realização da ordem específica a esta coisa, o que implica propor­
ção, harmonia, boa forma. “O cosmo é por excelência o mundo, o
todo absoluto que contém todos os todos parciais.”4 E a desordem

45
___ V...4 UU1 HU qucuici ud umuaue, ao acordo geral, e enquan­
to obscurecimento da finalidade. Neste sentido, “a ordem vale infini­
tamente mais que a desordem” ( Tim eu). Não é apenas objeto de
saber (opção do realismo), mas também de avaliação e de preferên­
cia. Para Platão, a ordem das coisas e a ordem que imputamos às
coisas estão indissoluvelmente ligadas; nosso conhecimento é reve­
lador da ordem das coisas, e este conhecimento só se toma possível
se existe “uma natureza das coisas, uma realidade imutável das for­
mas” . É preciso que a razão seja e que o ser seja razão, pontua
Mareei Conche, do qual faço aqui a análise. Mas, se a ordem é prefe­
rível — porque o real é racional — , o homem pode todavia ser gera­
dor de contingência e desordem.
Depois de Platão e Aristóteles, a leitura dupla em termos de
ordem e desordem se traduz em opções de escolas, em oposições
privilegiando uma ou outra dessas duas interpretações. Nos dois
extremos, os estóicos e os epicuristas. Para os estóicos, a razão é
onipresente, está em tudo, rege o sensível e o curso das vidas indivi­
duais, não deixa lugar ao acaso e à desordem, subordina o que pare­
ce “contra a natureza”, da mesma forma o mal. O mundo é harmo­
nia, é a cada instante tudo o que deve ser: uma verdade que só apa­
rece para o sábio, porque só um pensamento em concordância com
tal idéia tem a capacidade de chegar a isto. A razão “insensata”, ge­
radora de paixão e conflito, que leva o homem a se insurgir contra
seu destino e lhe opor sua liberdade, produz “efeitos de desordem”.
Alimenta o desejo de mudança que contradiz a realidade do mundo,
sistema harmonioso e justo que não precisa mudar nada. O pensa­
mento estóico afirma a necessidade da ordem, negando-se a com­
preender os desvios da razão e a necessidade de uma ordem que
permite fazer surgir, de si mesma, a desordem.
Os epicuristas operam de maneira diferente, apreendem “os
efeitos de ordem em um fundo de desordem”. Não existe um mundo
uno, conjunto de todos os conjuntos compreensível por meio de
uma visão única, mesmo divina, mas a soma de uma infinidade de
elementos, de sistemas ou de ordens parciais. Uma “soma de
somas” , diz Lucrécio. Este ajuntamento sem limites traz em si
ordens parciais, arranjos (matéria, ser vivo, mundo visível), cuja rea­
lidade se manifesta por nossos sentidos e cuja explicação é de cará­
ter atomista. A ordem visível “é apenas uma parte de um universo

46
rk u u u v n u in

Infinito invisível aos sentidos, vazio mas povoado de átomos em


movimento, o número de formas atômicas sendo incomensuravel-
mente grande e o número dos átomos de cada espécie sendo infinito
— como se o mundo visível (nosso mundo) fosse um texto portador
de um sentido que o acaso teria longamente produzido, combinando
em todas as formas possíveis as letras de um alfabeto.”5 Esta metá­
fora é ainda hoje utilizada por certos teóricos da auto-organização;
na filosofia epicurista, permite mostrar que os conjuntos dotados de
ordem e de sentido devem ser produzidos — efeitos do acaso — nos
inúmeros conjuntos sem ordem e sem sentido, e longe da razão. Na
natureza, em um tempo que não está na escala humana, é impossí­
vel que esses arranjos ordenados não apareçam, em seguida não
desapareçam de um momento para outro. Não existe aí uma neces­
sidade, mas uma probabilidade que acaba por se realizar e que
pode se repetir. A desordem portadora de uma infinidade de possí­
veis, de uma inesgotável fecundidade, é geradora da própria ordem;
faz desta um acidente, um acontecimento.
Todos os termos de um debate sempre atual — sobretudo
junto aos biologistas filosofantes — estão presentes neste rápido
confronto onde se ligam e se opõem ordem e desordem, necessida­
de e acaso, totalidade e elemento. É também um convite no sentido
de melhor situar no espaço filosófico, depois fora dele, o primeiro
destes pares de noções. Ordem e desordem informam sobre a rela­
ção do todo e das partes, de um e do múltiplo, nos conjuntos de ele­
mentos. É preciso referir-se aqui ao comentário de Mareei Conche,
depois de suas definições e diferenciações, de sua rigorosa análise,
começando da ordem para a desordem: “Existe ‘ordem’ quando os
elementos não existem sem ligação, mas têm entre si um princípio
de unidade que os faz participar, ao mesmo tempo, de um conjunto
único”; este princípio pode ser interior, imanente, formador de uma
estrutura, de um organismo, ou exterior, sendo apenas uma “ordem
mínima”, uma soma. A diferença é a mesma feita pela filosofia epicu­
rista a partir da tese da desordem inicial dos átomos. O universo,
“quer dizer, o conjunto de átomos, é apenas uma soma”, mas, pelo
jogo do acaso, podem se formar combinações ordenadas e viáveis; é
a realização de alguns possíveis. Uma definição leva à outra: “Existe
desordem quando os elementos de um conjunto, fazendo parte
deste todo, se comportam como se não fizessem parte"-, introdu-

47
zem aqui a contradição; de qualquer maneira, jogam o jogo do cada
um por sí.
A desordem refere-se ao elemento, onde reside seu princípio; e
as possibilidades de desordem crescem na medida do grau de auto­
nomia, de individualidade que dispõem as partes: do cristal às
outras formas da matéria, depois aos organismos vivos, depois à
sociedade onde a “liberdade” dos indivíduos é maior. Neste sentido,
os fenômenos materiais e vitais, onde “os elementos estão tecidos
em apertadas tramas de relações”, não ficam jamais em presença de
uma desordem absoluta — exclusiva de toda relação, de toda lei — ,
mas de desordens relativas. O que leva a diferenciar as duas princi­
pais figuras da desordem, independentemente de qualquer juízo de
valor. A desordem se torna destruidora, quando existe perda de
ordem, quando os elementos se dissociam e tendem a não mais
constituir uma estrutura, uma organização, mas uma adição, uma
simples soma (uma “ordem de soma”). A desordem se toma criado­
ra, quando acarreta uma perda de ordem acompanhada de um
ganho de ordem, quando é geradora de uma ordem nova que substi­
tui a antiga, desta podendo ser superior. O processo de complexão
opera segundo esta lógica, não por adição, mas por substituição em
um nível mais elevado. De um lado, a realidade é amputada de for­
mas de ordem que desaparecem sem compensação; de outro, é enri­
quecida por novas formas de ordem.6
Repetidas vezes aludiu-se à importância do retorno filosófico
no pensamento científico atual: parentescos se estabelecem, equiva-
lências de linguagem aparecem; interrogações se repetem — sobre­
tudo a que impõe o caráter paradoxal da transformação do acaso em
organização. Tal reaproximação é ainda mais importante quando o
homem torna a ocupar um lugar na reflexão teórica do sábio, na
medida que os sujeitos humanos haviam sido eliminados do palco
das ciências “duras”, durante um longo período para que a objetivi­
dade fosse absoluta. Não se trata evidentemente de revalidar em
termos modernos uma harmonia, onde se comunicam e se acomo­
dam a ordem da natureza e a ordem dos homens — social, política e
moral — , mas de definir melhor como o homem se situa no mundo
que ele descreve, como ele dialoga com a natureza, como a lógica de
sua forma de conhecimento está ligada à lógica do real. São os biólo­
gos Henri Atlan e Francisco Varela, principalmente, que acentuaram

48
a obrigação de não dissociar o estudo do ser vivo do conhecimento
do ser vivo e, além disso, do conhecimento do conhecimento. Do
local de seu saber, melhor explorado, mostram como se efetua a
percepção de um mundo ordenado, mesmo de forma incompleta: de
um mundo onde a criação da ordem procede da desordem por
desorganizações e reorganizações sucessivas.

O relógio de D ondi e outros mecanismos

Em Pádua, no século XIV, a Universidade é um dos centros ati­


vos mais importantes do aristotelismo. Múltiplas pesquisas ali anun­
ciam o espírito da Renascença nos domínios naturalista, médico,
astronômico e astrológico, na medida que o curso dos astros parece
então governar o curso das vidas, dos destinos individuais. A este
meio científico pertence Giovanni Dondi, elevado à dignidade de
príncipe dos astrônomos por Petrarca, depois chamado de Leonardo
da Vinci da Idade Média pelos especialistas modernos. Ele é ao
mesmo tempo médico, físico e poeta, o representante de um século
que é “um mundo de razão”. Ele se torna célebre por causa da in­
venção do primeiro relógio planetário, o Astrarium , destinado ao
potentado de Pádua. O instrumento possui sete faces que apresen­
tam um quadrante da Lua, do Sol e dos cinco planetas então conhe­
cidos — Vênus, Mercúrio, Saturno, Júpiter e Marte; sua função é
informar instantaneamente sobre o estado do Céu, sem recorrer a
complexos ajustamentos com base em cálculos e a referências docu­
mentais. Para traduzir mecanicamente a geometria celeste herdada
diretamente de Ptolomeu, Dondi teve de realizar uma verdadeira
proeza técnica; seu relógio é “uma tal maravilha” que os astrônomos
“vêm de regiões longínquas admirá-lo com o mais profundo respei­
to”, como relata um cronista.
Um manuscrito do inventor apresenta a descrição do As­
tra riu m e a maneira de construí-lo; seu prefácio indica o projeto —
“reproduzir o que se passa nos céus” — glorificando a Criação. Tra­
ta-se de produzir uma imagem mecânica do mundo, um mundo defi­
nido por suas regularidades, já assimilável a um autômato governado
por forças, por leis que é preciso identificar ou captar. A representa­
ção é falsa, porque centrada na Terra, mas rigorosa (regida por uma
concepção matemática da natureza) e eficaz (capaz de precisar a

49
posição dos planetas). A visão corresponde a um universo de leis
imutáveis, que governam do exterior os fenômenos, inclusive os que
manifestam em seus diversos aspectos o mundo dos homens, embo­
ra nele o tempo não tenha vez, a tal ponto que o relógio planetário
só serve acessoriamente para dar as horas. Tanto quanto um estado
de saber, o projeto de Dondi revela uma cultura, uma forma social e
o poder correlativo — apenas alguns poderosos dispõem dessas má­
quinas que permitem regulamentar a decisão sobre os movimentos
do universo. De fato, no início do século XIV, a astronomia e a astro­
logia experimentam um grande sucesso, e muitas pessoas as tratam
com uma certa familiaridade. A ordem do mundo e a ordem dos ho­
mens parecem estreitamente ligadas; cada planeta tem uma respon­
sabilidade, e a astrologia se toma um medium, um meio de comuni­
car e gerar o curso das existências individuais ou coletivas. Aco­
modar-se a um universo do qual o acaso é excluído parece ser a úni­
ca possibilidade de reduzir o aleatório nos processos humanos.7
Tal concepção do mundo traz em si uma ciência, herdeira de
um longo passado, que formula questões e fornece respostas sobre
as relações do homem com a natureza; reconhece nesta uma inteli­
gência que desenvolve ordenadamente todos os movimentos que a
revelam. Ao se tomar moderna e ao se instituir por etapas, ao longo
dos séculos vindouros, a ciência marcará rupturas, sem que isto apa­
gue inteiramente a antiga maneira de ver. Tentará romper com os
dogmatismos anteriores (sobretudo o aristotelismo e os tratamentos
simbólicos ou analógicos geradores da harmonia no cosmo, no
mundo ordenado); fará progredir esse diálogo com a natureza que é
a experimentação; buscará uma autonomia crescente diante dos
poderes que lhe são exteriores — e, conseqüentemente, provocará
reações de rejeição, de desconfiança ou de entusiasmos, suscitados
pela manifestação de uma racionalidade universal. Todo este projeto
concorre para tomar a natureza inteligível a partir da afirmação de
que ela está inteiramente ordenada, e, a partir daí, impondo-lhe a
linguagem científica.
Dois conjuntos de circunstâncias contribuem ao estabeleci­
mento da ciência modema: a presença de um meio intelectual que
Alexandre Koyré designa pela conjugação de Galileu e Platão; a for­
mação e o desenvolvimento de um meio econômico e social que,
desde o final da Idade Média, com a expansão das cidades e das ati-

50
vldades comerciais, favorece as inovações técnicas e as artes
manuais, assegura uma conivência entre os inventores e os mecenas
inebriados do novo. Trata-se de uma dinâmica geral em operação,
em favor da qual se assume o risco do novo e de seus efeitos trans­
formadores. A ciência resultante e tornada provocadora de um
movimento de modernidade é levada, é estimulada por uma corren­
te proveniente de múltiplos projetos. Mas ela não destrói de um só
golpe as raízes culturais mais antigas. Nos primórdios do século
XVII, Kepler revoluciona a pesquisa astronômica com o cálculo das
órbitas, sem contudo expulsar de sua reflexão alguns dos saberes
esotéricos. Ele faz da esfera o símbolo da Trindade, crê em uma
alma do mundo, simboliza os quatro elementos e a “quinta-essência”
por meio dos poliedros, além de justificar o saber dos astrólogos e
sua eficácia; “ouve”, nas proporções matemáticas que “ele descobre
entre os movimentos planetários, um hino à glória de Deus.”8
Aos cálculos de Kepler, Galileu acrescenta a prova experimen­
tal (a observação através da luneta astronômica, inaugurada em Pá-
dua) e sua própria contribuição à descrição do movimento com as
leis que regem a queda dos corpos. O que se afirma, ao mesmo
tempo que a “harmonia do mundo”, é uma concepção da ciência que
lhe confere a capacidade de descobrir o conjunto da verdade da
natureza, esta estando de algum modo fechada sobre si mesma. O
mundo é homogêneo — ainda que cada descoberta local seja credi­
tada a uma visão geral — , porque descritível com a ajuda de uma só
linguagem, a das matemáticas colocadas a serviço da observação e
da experimentação. E porque o mundo é homogêneo, a complexida­
de de suas aparências pode ser reduzida. O simples se toma a chave
do complexo. Ilya Prigogine, referindo-se ao pensamento teórico de
Galileu e de seus sucessores, sublinha este aspecto: “O diverso se
junta à verdade única das leis matemáticas do movimento.”9 Uma
metafísica acompanha claramente uma física, as duas são a afirma­
ção de uma ordem dinâmica e apesar disto conservada.
Os inventores e os construtores de máquinas também se ocu­
pam do movimento, eles o traduzem em funcionamento, depois
fazem de seus conhecimentos e habilidades um novo modo de
exploração racional da natureza. Utilizam descrições e conceitos
matemáticos, deduzem as relações entre as velocidades e os deslo­
camentos de peças reunidas, os movimentos relativos destas e seus

51
efeitos. Exemplares do relógio multiplicam-se a partir do século XIV,
aparecendo ao mesmo tempo como um objeto científico — pelas ra­
zões que acabam de ser explicitadas — e maravilhoso, na medida
em que ajuda a compreender. Os movimentos da natureza são desse
modo assimilados aos da máquina, particularmente ao relógio que
representa a ordem do mundo em sua perfeição; um mecanismo
construído segundo um plano que seus elementos dominados reali­
zam, homólogo de uma natureza autômata — de uma “máquina uni­
versal” — cujo Deus é o Relojoeiro. Na medida que a física não está
ainda desligada de uma metafísica, a prática experimental e teórica
não está dissociada de uma teologia. O homem mecânico compreen­
de e conhece, pelo exercício de sua arte, a Obra divina.
Com Newton, a ciência nova parece chegar a uma realização
que a Europa das Luzes transforma em objeto de glorificação; herói
nacional, Newton será, por muito tempo depois de sua morte, apre­
sentado como símbolo da revolução científica, o modelo inspirador
de todo conhecimento científico. Ilya Prigogine e Isabelle Stengers
definem assim a síntese newtoniana: a de “dois desenvolvimentos
convergentes, o da física — a descrição do movimento, com as leis
de Kepler e as da queda dos corpos formuladas por Galileu — e o
das matemáticas que desembocam no cálculo infinitesimal”, sempre
mostrando que esta ciência está indissociável de uma prática: “Uma
de suas fontes é claramente o conhecimento dos artesãos da Idade
Média, o conhecimento dos construtores de máquinas: [ela] dá, pelo
menos em princípio, os meios de agir sobre o mundo, de prever e de
modificar o curso de alguns processos, de criar dispositivos próprios
para usar e explorar algumas das forças e dos recursos materiais da
natureza.”10 Um mundo definido pela sua ordem mecânica, cujas leis
imutáveis comandam do exterior (como um plano) o desdobramen­
to dos fenômenos, estranho à história, sempre propício à aliança do
homem com um Deus racional e inteligível, mas também à explora­
ção pela sociedade “esclarecida” de seus poderes e de suas riquezas.
A afirmação de Newton — a natureza está intimamente ligada
a si mesma — permite conferir um poder explicativo universal às
leis que ele formulou, à linguagem que exprime. A ordem natural
nova se torna, por extensão, metáfora e tradução mítica, a forma de
toda ordem. Da ordem do mundo à ordem dos homens em suas
diversas manifestações (sobretudo as morais e políticas), tudo se

52
A ULBUKU&M

comunica e se equilibra. Este tempo que é o da idade de ouro da


ciência, como foi dito, é também o da harmonia; muitos dos que
contribuíram para o elogio de Newton nutriam sua admiração desta
certeza. Ao exprimir a verdade do mundo, a ciência do século XVIII
demonstra a convicção de seu próprio e completo sucesso. Mas seu
desenvolvimento, resultante do trabalho teórico dos físico-matemá-
ticos e das pesquisas de caráter empírico e técnico, favorece por sua
vez o aparecimento de uma nova época científica. A legitimação teo­
lógica desaparecerá. A investigação experimental progredirá, depois
vai se acelerar com o avanço da sociedade industrial. A atividade
científica se tomará mais profissional que mundana. Com a impor­
tância do ser vivo, que Diderot e os enciclopedistas acolhem, nasce­
rá a reação contra a dominação abstrata dos sábios de inspiração
newtoniana. Um movimento se insinua: a passagem para uma outra
física, para um re-conhecimento da complexidade, para uma figura­
ção do mundo onde a ordem e o equilíbrio não estão somente asso­
ciados à dinâmica das forças, mas sobretudo à dinâmica do calor.
Formam-se interpretações antagônicas, às quais se juntará mais
tarde o desafio-contradição das teorias evolucionistas do ser vivo e
do social. A figura da desordem faz uma nova aparição na cena inte­
lectual, em um cortejo onde a acompanham a degradação e a morte.

O ruído, a dissipação e o caos

O relógio — imitação de uma natureza autômata cuja ordem é


imutável por sua conformidade às leis do movimento — , o século
XIX substitui pela máquina a vapor, evocadora de um mundo onde a
transformação do calor em movimento se efetua com um desperdí­
cio irreversível, onde se revela a obra de um poder ao mesmo tempo
criador e destruidor. De mecânica, a natureza passa a ser termodi­
nâmica. A mudança do modelo de referência é fecunda de novas
metáforas empregadas na definição do homem e da sociedade; tal
mudança conduz a uma avaliação (de grandes conseqüências) das
concepções de ordem e desordem, e dos estados de equilíbrio. Um
princípio dominante rege as novas configurações do pensamento
científico: o princípio da entropia. O saber científico, como já foi
dito sem solicitar muito o apoio das palavras, se faz então funda­
mentalmente enquanto “entropologia”. Do estudo teórico da propa­

53
gação do calor nos sólidos à pesquisa das condições necessárias à
concepção de uma máquina térmica ideal, depois à fundação defini­
tiva da termodinâmica de equilíbrio por Clausius, há um percurso de
quase meio século. Acompanha a virada da industrialização, o apare­
cimento do reinado do fogo (forjas e máquinas a vapor), a subversão
do sistema de representação: passagem de uma cosmologia do Sol,
recebida de Newton e Laplace para uma “termogonia”.
No início, é bom lembrar, encontra-se uma mudança da repre­
sentação mecanicista que começa por manter uma certa relação
entre uma imagem e a outra. O estudo das máquinas térmicas é pri­
meiro relacionado ao das máquinas clássicas: considera as primeiras
como dispositivos que efetuam uma conversão de energia e onde,
em estado de equilíbrio, o balanço é irreversível. É a medida do des­
vio entre o ciclo ideal e o ciclo real das máquinas a vapor, que con­
duz Camot à descoberta de dois princípios da termodinâmica: o da
conservação da energia (já formulado no tocante às máquinas mecâ­
nicas) e o da propagação irreversível do calor, que explica a perda
de rendimento. Momento de uma ruptura que se traduz pela impos­
sibilidade, apesar de resistências longamente mantidas, de atribuir
um mesmo status a todas as energias. Clausius pontua a diferença
ao opor processos mecânicos, onde conservação e reversibilidade
são associadas, aos processos termodinâmicos onde pode acontecer
a conservação de energia sem que haja reversibilidade. Em todo sis­
tema térmico, ele distingue os fluxos de calor “úteis”, que compen­
sam exatamente a conversão de energia ao longo do ciclo, dos fluxos
“dissipados”, perdidos ao longo do ciclo na medida em que não po­
dem ser trazidos à fonte pela inversão do funcionamento da máqui­
na. Duas formas de energia são desse modo diferenciadas: uma “li­
vre”, capaz de efeitos mecânicos, outra “ligada" ao sistema; a primei­
ra, como faz o calor, se transforma na segunda durante o ciclo, don­
de há degradação qualitativa da energia. Isto define a entropia do
sistema e permite prever, por degradação contínua no núcleo de um
sistema isolado, um estado final dentro do qual toda energia está
“ligada” e, portanto, não utilizável. Se o universo é interpretado con­
forme esse modelo, só pode ser a manifestação de uma evolução que
marcha no sentido de uma crescente entropia: a energia do mundo é
constante, a entropia do mundo tende para um máximo (Clausius).
Os processos naturais caminhariam no sentido de um estado de

54
fl

equilíbrio, onde nenhuma geração de entropia pudesse mais se pro­


duzir. Cosmologia trágica anunciadora do fim, da morte absoluta.
A concepção termodinâmica subverte os sistemas de pensa­
mento e acaba por provocar um uso disseminado (sempre atual) da
metáfora entrópica. Enquanto ciência ou economia, como foi dito a
propósito de Camot, da energia, ela acentua a diferença: “A conver­
são da energia não é nada mais que a destruição de uma diferença,
a cria çã o de uma outra diferença.” 11 A degradação, a perda do
potencial energético, o avanço no sentido de uma ordem “simples”
ou mínima, acompanham o desaparecimento das diferenças, o nive­
lamento. A partir do segundo princípio, a irreversibilidade desembo­
ca na física: uma “flecha do tempo” é assim designada, uma evolução
provocada pela produção e a progressão de entropia. Uma máxima
de Prigogine a reforça: “O futuro é a direção na qual a entropia
aumenta.” Outra de suas fórmulas mostra em que o “objeto termodi­
nâmico” pode escapar ao domínio: “Contrariamente ao objeto dinâ­
mico, [ele] só é controlado parcialmente.” Eis uma linguagem estra­
nha à mecânica; segundo esta, “o sistema evolui de uma vez por
todas sobre uma dada trajetória, e guarda eternamente a lembrança
de seu ponto de partida”. O jogo dos possíveis parece, então, aberto.
Nos últimos anos do século XIX, Boltzmann inova ao propor
uma definição probabilista da entropia, fazendo da probabilidade o
princípio explicativo. Pesquisa-se o meio de passar dos níveis
microscópicos aos macroscópicos, de mudar a escala, de chegar à
descrição dos fenômenos complexos. Trata-se de reconhecer o novo
comportamento que um sistema pode adotar sendo constituído de
numerosos elementos ou partículas. A física dos gases, em sua teo­
ria própria, emoldura esse projeto; trata de vastas “populações” ,
introduz a consideração estatística a partir da qual Boltzmann tenta­
rá anunciar as regras do mundo. Ele o faz considerando que o
aumento irreversível da entropia pode ser interpretado como a
expressão do crescimento da desordem molecular. Sua contribuição
é de ter definido a entropia de cada macroestado do sistema para o
n ú m ero de microestados correspondentes, de ter estabelecido a
fórmula disto conhecendo a divisão dos elementos no instante em
questão. A fórmula de Boltzmann permite portanto uma previsão
probabilista da evolução dos sistemas de grande número; manifesta
uma dinâmica irreversível, geradora de estados de probabilidade

55
crescente, que efetuam, sob o efeito do acaso calculável, a passagem
da ordem à desordem — o movimento inverso sendo muito pouco
provável. A ordem e o acaso estão associados; os sistemas se tomam
estruturas de ordem relativa onde atua o desequilíbrio, que evo­
luem — se nenhuma ação externa venha contrariar a tendência —
para a desordem máxima. A ordem e o equilíbrio não estão mais
ligados, a desordem opera enquanto estado “atraente”.
Isto está em parte desprovido de tal capacidade nos trabalhos
recentes (os de Prigogine), fundadores da termodinâmica não-li-
near. Esta trata dos sistemas que estão longe do equilíbrio, das flu­
tuações que podem levar o sistema para um comportamento dife­
rente daquele então descrito. Aparecem novos pontos de vista que
conduzem ao reconhecimento de estruturas ditas dissipadoras.
Esta palavra traduz a associação entre a idéia de ordem e a do des­
perdício, e foi escolhida para exprimir o fato novo: a dissipação de
energia e de matéria — geralmente associada às idéias de perda de
rendimento e de evolução para a desordem — se toma, longe do
equilíbrio, fonte de ordem; “a dissipação está na origem daquilo que
se pode chamar de novos estados da matéria”.12 Existe, neste caso,
criação de ordem a partir da desordem; o caos se tomou fecundo. A
fecundação opera por amplificação: de origem local, em lugar de
regredir, ela invade o sistema e acaba por engendrar uma nova
estrutura de ordem; o ponto crítico, a partir do qual este novo esta­
do qualitativo é possível, recebe o nome de bifurcação. Em outras
palavras, os pontos de bifurcação são os pontos de instabilidade de
um sistema: uma perturbação, muito fraca no início, é suficiente
para impor progressivamente um novo comportamento macroscópi­
co. Ao princípio da ordem de Boltzmann opõe-se o princípio da
ordem por flutuações, que age sobretudo no centro de um sistema
de fraca integração. Neste caso, as flutuações podem se estender e
afetá-lo cada vez mais no seu todo. O sistema não escapa mais à
dominação, aos efeitos do tempo. A explicação é necessariamente
geradora-. “É preciso descrever o caminho que constitui o passado
do sistema, enumerar as bifurcações atravessadas e a sucessão das
bifurcações, que decidiram a história real dentre as muitas histórias
possíveis.” É preciso recorrer a um complexo de noções, mesmo na
descrição dos sistemas físico-químicos mais simples: as “de história,
de estrutura e de atividade funcional se impõem ao mesmo tempo

56
para descrever a ordem p o r Jlutuação, a ordem cuja fonte é o não-
equilíbrio”.13
Os trabalhos de Ilya Prigogine dedicados às estruturas dissipa-
doras conduziram a empregos do modelo fora de seu próprio campo.
Da matéria inerte à matéria viva, depois ao social, efetua-se uma
transferência, que visa encarar a conversão da desordem em ordem
e o aumento da complexidade. O ser vivo e o ser social têm em
comum o fato de serem sistemas complexos e abertos, isto na rela­
ção de troca com o mundo exterior. Como demonstraram os biolo-
gistas, essas duas propriedades levam a considerar a entropia sob
pelo menos dois aspectos: o de uma entropia crescente verificável
na escala do sistema completo, ligado a seu meio, e o de uma dimi­
nuição da entropia que operou localmente fora da formação de
estruturas organizadas. O crescimento local da ordem é compensa­
do por um crescimento global da entropia.
Seria preciso ainda encarar o paradoxo de maneira mais direta:
a saber, a transformação do acaso em organização sem que este
esteja a serviço de uma necessidade exterior, como é o caso do neo-
darwinismo, mas, ao contrário, seja o gerador da necessidade. Para
o biólogo, não se trata somente de se interrogar sobre a identidade
do ser vivo, sobre a capacidade de mantê-la e de reproduzi-la ao
longo da vida, mas igualmente sobre a capacidade do ser vivo de
produzir, em interação com seu meio, outras formas de complexida­
de ou do radicalmente novo. Sob este segundo aspecto, o ser vivo
poderia ser metaforicamente percebido como uma espécie de estru­
tura dissipadora, um processo auto-referente onde a flutuação se
toma finalmente fonte de ordem. Henri Atlan, biofísico, trata o pro­
blema utilizando os instrumentos dos cibernéticos e dos lógicos. Ele
alia ao mesmo tempo a ordem e a complexidade, e formula dois
princípios, o da ordem pelo ru íd o e o da com plexidade pelo
ru íd o , ou seja, pelo efeito de perturbações aleatórias. Ordem e com­
plexidade são definidas do ponto de vista do observador externo, e
não a partir das propriedades intrínsecas dos seres naturais organi­
zados. Tais noções remetem a uma forma de conhecimento, não a
um conhecimento total (inacessível) das propriedades desses seres
e de suas eventuais determinações. O papel organizador do acaso
deve ser entendido de fora, a partir da percepção da história desses
seres naturais. O que Jean-Pierre Dupuy ressalta no sentido de mos­
trar como pode se resolver a confusão paradoxal dos contrários, da
ordem e da desordem: “O acaso, o ‘ruído’, tem o efeito de reduzir as
dificuldades que ordenam o sistema para o observador. Este diag­
nostica, portanto, um aumento da variedade, da complexidade, o
que quer dizer ainda, para ele, da ‘desordem’. Mas na medida que,
por hipótese, o sistema continua a ser organizado e a funcionar, o
observador é obrigado a postular que o acaso se converteu em novas
significações pelo sistema, significações às quais ele, o observador,
não tem acesso.”14 Além do aumento aparente da desordem, é preci­
so então postular a formação de uma nova ordem, da passagem para
uma complexidade maior. Esta é a afirmação da autonomia do sis­
tema, capaz de criar a ordem (a organização) e o sentido para si
mesmo e por ele mesmo, afirmação que enfraquece a dependência
diante do meio. A teoria da auto-organização, da autonomia oposta à
heteronomia, seduziu; circulou ligando disciplinas separadas; incitou
a enunciar de outra forma os problemas da morfogênese social e
cultural, e a validar (não sem riscos) o desejo de criar uma socieda­
de autônoma, inteiramente liberada da transcendência e tornada
mestre de sua contingência.
De uma termodinâmica à outra, se a metáfora mecanicista se
perde, se outras homologias se impõem pelo fato das comunicações
estabelecidas de disciplina para disciplina, se os tratamentos for­
mais se diversificam e ganham em pertinência, a evolução conduz
entretanto a considerar sempre mais — conjuntamente — a singula­
ridade, o aleatório e o embaralhamento hierárquico, que os ligam ao
universal e ao determinado. Ondulações estranhas que a atividade
de observação e de conhecimento manifesta agora, mas cujo misté­
rio ainda não foi desvendado. É o incitamento a outras explorações
teóricas, equipadas de novos instrumentos lógicos, matemáticos e
informáticos — computadores mais poderosos, capazes dos mais
elaborados tratamentos gráficos. Na esteira das pesquisas dedicadas
à termodinâmica não-linear, são todos os fenômenos não-lineares, as
turbulências, as menos previsíveis manifestações — inclusive as
mais triviais, como o comportamento da torneira que pinga ou as
figuras fantasmagóricas da fumaça do cigarro — que fixam de agora
em diante a atenção e provocam uma coalizão de meios intelectuais
e tecnológicos. A dinâmica não-linear tende a se tornar a chave de
acesso a uma outra compreensão de todas as coisas: “A natureza

58
não é linear”, já está dito. 0 caos não é apenas o enigma que é preci­
so decifrar, se torna a palavra, o signo, o símbolo pelos quais se
designam esses novos projetos. Ele provoca o entusiasmo de alguns
cientistas e a curiosidade de jornalistas especializados; um dos pio­
neiros dessas pesquisas, o matemático americano Ralph H. Abraham,
não hesita em dizer que elas são “tão importantes do ponto de vista
histórico quanto a invenção da roda”.
A partir de agora a natureza e o mundo não são mais conside­
rados sob o aspecto de uma ordem no centro da qual trabalha a
desordem, mas sob o aspecto inverso: o das turbulências, dos movi­
mentos de aparência errática. O projeto não é mais estabelecer a se­
qüência ordem -*■ desordem -» ordem, mas de interrogar a desordem
(ou o caos) enquanto tal, independentemente de seu suporte, de tor­
nar o imprevisível compreensível e, se possível, ulteriormente, previ­
sível. Os caprichos do tempo e as falhas muito conhecidas da previ­
são meteorológica foram um dos capítulos iniciais. Tal foi a função
de Edward N. Lorenz, que inventou um modelo geométrico do tem­
po em escala mundial, utilizando dados relativos aos movimentos
globais das massas de ar. Não sem provocar inicialmente um enorme
ceticismo, ele demonstrou a possibilidade de conceber um modelo
matemático que possa levar em conta o imprevisível, ajudar a com­
preender o “comportamento caótico”. A tradução gráfica (o recurso
aos modelos matemáticos gráficos) faz aparecer na tela do computa­
dor uma(s) configuração(ções) que sai(saem) progressivamente da
desordem: um jogo de estados atraentes se manifesta na base do
caos. Formas muito particulares, privilegiadas mesmo, penetram
pelas aparências caóticas, e se definem matematicamente. O termo
estranho atraente ( strange attractor) as designam. Tais figuras não
aparecem à primeira vista: “Os pontos fulguram aqui e ali sobre a te­
la até que os contornos da imagem se precisam como uma silhueta
que emerge do nevoeiro, formando uma curva que se desdobra infi­
nitamente sobre ela mesma.” 15 Os pontos, ou as linhas brilhante­
mente coloridas que serpenteiam na tela criam uma figura que pro­
gressivamente se define. O resultado dos trabalhos de Lorenz —
uma espécie de borboleta esculpida com as cores da luz — se tor­
nou o emblema desses estranhos atraentes.
Com os matemáticos, o estudo do caos se desenvolve indepen­
dentemente das manifestações concretas; este foi o caso dos traba­

59
lhos de Mitchell Feigenbaum, que progrediram segundo um proces­
so contínuo de abstração, de pesquisa de constantes a partir das
quais o imprevisível pode ser reduzido, de exploração dos proble­
mas proporcionando uma larga margem à intuição. Com os pragmá­
ticos, a dinâmica não-linear sai do campo das matemáticas e da físi­
ca onde nasceu e é convocada a dar respostas de ordem teórica e de
soluções práticas, em domínios cada vez mais complexos: fisiologia,
medicina, economia e ciências da sociedade. A certeza de um eco­
nomista da Universidade de Nova York é significativa nesse sentido,
ainda que pouco compartilhada: “Caos [apelido da nova disciplina] é
aplicável à economia apesar da complexidade."Alguns já tentam
decifrar esse mistério que são os sempre erráticos comportamentos
da Bolsa, e as crises cuja irrupção desconcerta e alimenta a inquieta­
ção e o pânico.16

O concerto interrom pido

Da harmonia newtoniana à ordem escondida no caos, segundo


as teorias contemporâneas, o percurso conduz ao esmigalhamento
das representações do mundo, à multiplicação das questões mais
que das respostas, à identificação de possíveis mais que a capacida­
de de formular uma explicação verdadeira. O conhecimento científi­
co encontra-se em situação paradoxal: na medida em que está arma­
do de meios sem precedentes, seus resultados parecem mais par­
ciais e mais precários que antigamente. Sob um certo ponto de vista
(o de Henri Atlan), a ciência leva a sério um jogo no qual a verdade
do real está “fora do jogo”. Se é verdade que os homens pediram à
ciência que trouxesse sua contribuição para um discurso de ordem
que os confortasse, hoje a ciência não cumpre mais essa função; ela
é primeiro um instrumento: sua eficácia manipuladora confirma sua
retidão. Traça e retraça as fronteiras do real, do mundo objetivo
conforme suas formas de conhecimento, dá a possibilidade de agir
sobre estas, é operacional. Mas a ciência não pratica mais o discurso
da unidade. O concerto pelo qual o homem se acomodava ao mundo,
e onde a unidade faz seu jogo, parece interrompido sem que jamais
possa ser retomado.17 O filósofo faz a mais brutal das constatações:
“A desordem absoluta que em nossa época de barbárie racional
ficou impossível negar... obriga a ver o mundo, pelo menos do ponto

60
de vista filosófico, como sem unidade, sem sentido nem ordem ver­
dadeiros... como não sendo mesmo um mundo, mas um conjunto
absurdo.”18 É preciso enfrentar o caos e se tornar uma espécie de
detetive, em busca das ordens parciais que ele encerra.
A ciência mede melhor seus limites, o conhecimento é interro­
gado de outra maneira e se toma, ele mesmo, objeto de ciência. Ad-
mite-se hoje que é impossível chegar à uma descrição absolutamen­
te lógica da totalidade do mundo, porque uma falha estará sempre
presente sob a forma de proposições indefinidas, cujo caráter de
verdade ou de falsidade permanecerá indemonstrável, e isto sem
qualquer tipo de recurso lógico. Começa-se a reconhecer que ne­
nhuma linguagem formal pode chegar ao estado de perfeição, que
permitiria evitar essa cilada. Existe sempre a “incompletude”; o sis­
tema formal contém, ao menos parcialmente, uma representação de
si mesmo; comporta proposições em auto-referência, que remetem
todas a si mesmas pelo efeito das “estranhas ondulações”; o arbítrio
do entendedor (suas convenções) não é inteiramente neutralizável.
Trata-se do “teorema de limitação” de Kurt Gõdel, que possibilitou a
reabilitação da analogia e da metáfora; a elas se credita o poder de
religar, fora de qualquer linguagem a p rio ri, dois sistemas diferen­
tes e aparentemente incoerentes, em uma outra linguagem que os
ultrapasse e contribua para explicá-los.19
Se o saber científico dá lugar à incerteza, é também porque
chegou a um melhor reconhecimento da complexidade; a simplici­
dade e a estabilidade se tomaram exceção, e não mais a regra. O
problema do pensamento complexo é aquele contra o qual lutou
Edgar Morin em suas obras dedicadas ao método (L a méthode'),
principalmente a partir da consideração do ser vivo. Ele mostra que
a dificuldade é de “pensar a união/desunião da vida sem desfazer,
reduzir, enfraquecer um dos dois termos”; ou, dito de outra forma,
de entender como, “a partir das dissociações, se criam novas unida­
des complexas onde se juntam os diversificados, os diferentes, os
concorrentes, os inimigos, enfim”. Morin lembra justamente que as
desordens que afetam as existências vivas são inúmeras e ininter-
rompidas — “quanto maior a atividade, maior o trabalho produzido
pelas desordens; o aumento da complexidade e o aumento da desor­
dem estão ligados.”20 Assiste-se de fato ao nascimento de uma nova
ontologia, cujos princípios podem ser apresentados, sob uma forma

61
multo simplificada, da seguinte maneira: todo ser é uma organiza­
ção; esta, enquanto lugar, onde ordem e desordem se entrecruzam
de forma indecifrável, se ligam por hierarquias emaranhadas, é gera­
dora de novas maneiras de ser. É sobre essa turbulência incessante
do mundo, sobre essa história ao mesmo tempo destrutiva e cons­
trutiva, que os teóricos do caos dedicam toda sua atenção.
Nesse estado, as ciências da natureza facilitam sua reaproxi-
mação com as ciências do homem e da sociedade, ainda que umas e
outras se acomodem ao espírito do tempo, um tempo do movimento,
da mudança generalizada, do aleatório e das incertezas. Para a
mudança generalizada, o próprio movimento é que está cada vez
mais acrescentado de uma virtude explicativa, quando sua reflexão
foi por muito tempo centrada sobre a estrutura, a organização, o
equilíbrio, os grandes dispositivos de conservação ou de reprodução
social. A inteligibilidade da sociedade era então, e necessariamente,
a de uma ordem, de uma sincronia. Hoje, o tempo não é mais consi­
derado somente como o tempo da evolução ou de períodos de rup­
tura, mas em sua onipresença. Aparece como um componente da
sociedade, uma parte constitutiva de sua dinâmica, um motor conti­
nuamente em ação. Sobretudo em razão disto, a sociedade se conce­
be, ela própria, como uma “ordem improvável .”21

62
NOTAS

1. H. Atlan, A tort et à raison, intercritique de la Science et du


mythe, Paris, Seuil, 1986.
2. Informação dada, por ocasião de um encontro na Université de
Genève, por Cario Rubia, prêmio Nobel de física.
3. As sínteses científico-místicas tiveram seu tempo: F. Capra, Le Tao
de la physique, R. Ruyer, La gnose de Princeton, e, ainda, o “Colloque de
Cordoue”, de 1979.
4. M. Conche, “La notion d’ordre”, Rev. de 1’Enseignement Philo., 4,
abr.-maio 1978. Esta curta incursão filosófica foi efetuada a partir de traba­
lhos consideráveis de M. Conche: cf. o artigo citado e “Ordre et désordre”,
cap. VII de L ’orientation philosophique (1973).
5. M. Conche, “La notion d’ordre”, op. cit., p.10.
6. M. Conche, “Ordre et désordre”, op. cit., pp. 214 segs.
7. Uma instituição italiana, o Centro Internacional de História do
Espaço e do Tempo, reaviva as obras e criações de Giovanni Dondi: edição
do manuscrito com uma introdução geral e uma tradução; reconstrução do
Astrarium (desaparecido) a partir da descrição do manuscrito; realização,
em Pádua (1988), de um congresso internacional e de uma exposição cen­
trada no relógio planetário. E. Poulle, autor de Équatoire et horlogerie
planétaire du XHIe. au XVIe. siècle, deu uma entrevista dedicada a Dondi
e a seu relógio, Libération, 3-4, jan., 1987.
8. G. Simon, Kepler, astronome astrologue, Paris, Gallimard, 1979.
9.1. Prigogine e I. Stengers, La nouvelle alliance, métamorphose de
la science, Paris, Gallimard, 1979, p. 52.
10.La nouvelle alliance..., op. cit., pp. 65, 43.
11.La nouvelle alliance..., op. cit., p. 127.
12. La nouvelle alliance..., op. cit., p. 156.
13. La nouvelle alliance..., op. cit., pp. 168-9.
14. J.-P. Dupuy, Ordres et désordres. Enquête sur un nouveau
paradigme, Paris, Seuil, 1982, p. 117. E também: P. Dumouchel e J.-P.
Dupuy, L ’auto-organisation. De la physique au politique, Paris, Seuil,
1983. E, sobretudo, a própria fonte: H. Atlan, Entre le cristal et lajumée.
Essai sur l’organisation du vivant, Paris, Seuil, 1979.

63
15. J. Gleick, “Le mystère du CHAOS", Dialogue, 2, 1985; apresenta­
ção vulgarizada a partir de trabalhos de M. Feigenbaum. As pesquisas sobre
dinâmica não-linear, os estudos de sistema de alta complexidade multiplica­
ram-se nos Estados Unidos (Centro Especializado de Los Alamos, Uni­
versidade do Texas, Universidade da Califórnia, principalmente em San
Diego).
16. O interesse dos meios industriais e dos atores econômicos, nos
Estados Unidos, aparece em um artigo da revista Business Week, 4 ago.,
1986: “Making some order out of chaos”.
17. Ver F. Jacob, Lejeu des possibles, Paris, Fayard, 1981; evocação
de um mundo desprovido de espírito e de alma, de acordo com a ética do
conhecimento, uma ética que se encontra no oposto daquela à qual se refe­
rem as grandes ideologias e as grandes teorias (os discursos unificadoresl.
18. M. Conche, “Ordre et désordre”, op. cit., p. 225. É a constatação
da barbárie que acaba de lançar outro filósofo, M. Henry: La barbarie,
Paris, Grasset, 1986.
19. Ver principalmente D. Hofstadter, Gõdel, Escher, Bach, les brins
d’une guirlande étemelle, Paris, Inter-Éditions, 1985.
20. Cf. E. Morin, a série de tomos de La méthode (I a III), sobretudo
o volume La vie de la vie, Paris, Seuil, 1980.
21. M. Forsé, L ’ordre improbable, Entropie et processus sociaux,
Paris, P.U.F., 1989.

64
3

A SOCIEDADE JÁ NÃO É MAIS A MESMA

As ciências sociais atuais conhecem a penitência. Estão conde­


nadas a se refazer, mergulhadas na nostalgia de uma época ainda
próxima, onde suas “grandes teorias” beneficiavam uma enorme pla­
téia, onde a filosofia desaparecia ou tentava se manter, estabelecen­
do com elas uma conivência. A elas não se credita mais o fato de
serem capazes de dar o sentido (na dupla acepção da palavra) da
história que se faz; muito menos de contribuir para o governo escla­
recido de sociedades e culturas, em processo de metamorfoses múlti­
plas. As ciências sociais se mexem, se afastam dos sistemas de refe­
rências e de formas explicativas que as orientaram durante décadas,
elas mudam de objetos e interrogam — elas também — seu saber. O
conhecimento de seu conhecimento se toma um de seus objetivos.
Clifford Geertz lembra a propósito a “refiguração do pensamento
social”, a mudança de instrumentos do raciocínio e as substituições
de analogias: cada vez menos as da máquina complexa, ou do orga­
nismo, cada vez mais as do jogo, do drama ou do texto.
Não existe mais uma teoria geral largamente aceita, uma ciên­
cia unificada da sociedade; da mesma forma que nas ciências da
natureza, a visão se faz ao mesmo tempo parcial e mais variável.
Desafios são lançados, que colocam em causa as dificuldades longa­
mente respeitadas: a estrita separação do fato (fato bruto) e da
construção teórica; o recurso a uma linguagem considerada exauri­
da de toda implicação subjetiva, que se reaproximaria do estado de
perfeição formal, reduzindo ao máximo o arbítrio do entendedor; a
pretensão à neutralidade, à capacidade de atingir uma verdade iso­
lada das circunstâncias que provocaram sua busca e sua manifesta­
ção. O conhecimento do real está intimamente ligado ao conheci-

65
mento dos procedimentos do pensamento que lhe dão forma, o
informam e o questionam: “É preciso um procedimento para disse­
car o pensamento, não para manipular o comportamento.” 1 Se as
ciências sociais estão condenadas a um “novo” novo nascimento é
que a sociedade já não é mais a mesma; seu próprio movimento,
suas mudanças e suas desordens impõem outro diálogo com o social
a fim de tomá-lo mais inteligível.
Ao longo deste período oco, as ciências da natureza buscaram
sua revolução. Seus teóricos multiplicam — faço questão de lembrar
— as explorações extraterritoriais; eles se arriscam para fora das
fronteiras de seu saber, e suas formulações tomaram progressiva­
mente o lugar dos “grandes relatos” de antigamente. Desse modo
contribuem para a renovação de todo método científico, qualquer
que seja seu objeto, sugerem e incitam o emprego de suas próprias
analogias e de suas metáforas. As pretensões a todo entendimento
global da sociedade, a toda formulação teórica unificadora, como as
tentações de trazer o complexo ao mais simples e ao mais estável,
estão desencorajadas. Ilya Prigogine e Isabelle Stengers afirmam:
“Não são mais as situações estáveis e as permanências que primeiro
nos interessam, mas as evoluções, as crises e as instabilidades... não
apenas o que permanece, mas também o que se transforma, as per­
turbações geológicas e climáticas, a evolução das espécies, a gênese
e as mutações das normas que vicejam nos comportamentos so­
ciais.”2 O simples se torna complexo, o múltiplo prevalece sobre o
singular, o aleatório sobre o determinado, e a desordem toma o lugar
da ordem. Se foi preciso encarar a “concepção de uma natureza
criadora de estruturas ativas e proliferantes”, é pelo menos necessá­
rio creditar à sociedade um poder igual. Ela é, também, capaz de
morfogêneses imprevisíveis, do inédito, de uma produção contínua
de si mesma na qual a ordem e a desordem operam conjuntamente,
de um crescimento de complexidade multiplicador dos possíveis e
portanto fator de improbabilidade. A própria idéia de sociedade,
enquanto totalidade estabelecida na permanência, começa a ser
recusada: ilusão sobre a natureza das coisas sociais, ou projeção em
um futuro que se afasta sempre, ou perversão que desemboca no
autoritarismo. Como um efeito de eco à constatação extrema formu­
lada por Prigogine: “Nenhuma organização, nenhuma estabilidade,
enquanto tal, está garantida ou legitimada, nenhuma se impõe por

66
rv u i j l i 1 / i i u u in

direito, todas são produtos das circunstâncias ou estão à mercê das


circunstâncias.”3 A desordem está sempre em jogo, o que traz inse­
gurança, ou, se preferirem, vulnerabilidade. As antigas sabedorias já
o sabiam, chegaram a isto por outras vias.

O retom o

O breve retomo a alguns aspectos da minha própria contribui­


ção teórica é um preâmbulo à minha apresentação do lugar da
desordem na teoria social; ainda mais que, se bem que seja total­
mente independente, aparece em ressonância com algumas das for­
mulações científicas atuais. Inscreve-se no projeto de construir uma
sociologia dinâmica, geradora, fundada sobre uma dupla experiên­
cia: a das sociedades tradicionais submetidas à prova de grandes
transformações, e a das sociedades da modernidade onde predomi­
na o movimento e a incerteza. Nos dois casos, a história presente
desempenha o papel de um descobridor. Manifesta configurações
sociais subvertidas, reorganizações a caminho, surgimentos do iné­
dito; quebra a ilusão da longa permanência das sociedades, que cada
vez mais tomam o aspecto de uma obra coletiva jamais acabada e
sempre buscada; mostra mais nitidamente os efeitos das relações
externas, do meio ambiente, sobre os acomodamentos internos das
sociedades. A dinâmica interna e externa estão hoje indissociáveis.
Não é suficiente opor as sociedades frias, que seriam regidas
por leis semelhantes às da mecânica clássica e, pela reversibilidade,
às sociedades quentes, que seriam governadas pelos princípios de
uma termodinâmica social, pela irreversibilidade e pela entropia.
Cada um sabe que a história pratica a esperteza e a ironia, mas não a
ponto de dividir as sociedades segundo as duas idades da física. O
que importa é restituir a todas a dimensão do tempo, de saber o que
têm em comum com este fato, evitando cair nas armadilhas de uma
nova divisão, inclusive a que opõe as sociedades que dependem de
um estudo probabilista (porque são as mais numerosas) das outras
(menos numerosas). Importa também não se prender à uma reinte­
gração do tempo que se dissolve ou que se retrai a ponto de se con­
fundir com o acontecimento comum. Não basta também considerar
o tempo nos únicos períodos onde a amplitude das mudanças sociais
impõe sua presença e sua ação; a dinâmica social se confundiria

67
então (o que é muitas vezes o caso) com uma sociologia da mudan­
ça. É preciso partir da constatação que se toda sociedade está den­
tro do tempo, engajada em uma história, o tempo está nela também:
nela adquire uma onipresença, nela exerce uma ação constante.
Esta se identifica pelo menos sob dois aspectos principais e, em
parte, contraditórios: um permanece ligado ao passado, à definição
anterior da sociedade, exprime a tensão no sentido do equilíbrio, a
busca da manutenção no estado; a outra atualiza a abertura para um
futuro mais nitidamente histórico, a capacidade criadora adquirida
“longe do equilíbrio” , manifesta a parte do aleatório e a produção do
novo. A imprevisibilidade não é necessariamente o sinal de um
conhecimento falso ou imperfeito; resulta da natureza das coisas, é
preciso reservar seu lugar e sua qualidade.
Mais ainda que o tempo do ser vivo, o tempo da sociedade não
se faz perceber sob uma única e monótona forma: a da repetição, da
reprodução ou do progresso unilinear, ou ainda da degradação,
então chamada de decadência ou declínio. Os tempos sociais são
múltiplos, ligados entre si de acordo com modalidades complexas.
Toda sociedade revela diferenças setoriais no que diz respeito à
temporalidade, à presença ativa do tempo e de seus efeitos. Alguns
setores podem ser tidos como lentos: o do sagrado, do religioso, que
se refere ao passado fundador tentando eternizá-lo, resistir aos ata­
ques da história, manter uma conformidade; o dos agenciamentos
culturais e dos dispositivos emocionais que regem o vínculo a uma
sociedade “global” apresentado sob o aspecto da nação, da etnia, do
país ou da comunidade política, todos a afirmar sua existência, a
atribuir um valor elevado à sua continuidade. Tais setores definem
uma ordem muito globalizante, um estado atraente poderoso (se­
gundo o léxico científico atual) que tende à subordinação dos indiví­
duos e das coletividades pela forte integração; formam espaços onde
agem os fatores da conservação, que não conseguem impô-la inteira­
mente, na medida que a dissidência e a inovação religiosas provo­
cam rupturas e alimentam revoltas, e porque a separação da socie­
dade “global” leva à ruína de sua ordem interna ou a querer subver-
tê-la radicalmente. Muitos setores podem ser considerados os mais
rápidos nas sociedades da modernidade: o das ciências e das tecno­
logias de aplicação, em contínua expansão e detentoras de uma
crescente capacidade de afetar o homem em sua própria natureza,

68
na sua relação com o real e com o mundo sensível, em sua relação
com o meio ambiente; o da comunicação das informações, das men­
sagens e das imagens, em constante revolução; o da economia, hoje
cada vez mais submetida às flutuações que às dificuldades dos ciclos
longos. Entre os dois conjuntos se situa, entre outros setores, o da
sociabilidade ou dos diversos movimentos da vida social subjacentes
às organizações, onde a ritualização dos comportamentos se conjuga
com a iniciativa que responde aos problemas do cotidiano e aos
desafios do acontecimento.
Essas temporalidades diferentes, de setor em setor, geram dis-
cordâncias, desajustamentos; quanto mais estes se acentuam, mais
os desequilíbrios se multiplicam e acentuam, ao fim e ao cabo, a
consciência de um estado de desordem e crise. Os efeitos das dife­
renças de temporalidade não resultam apenas da ordem interna. A
relação entre sociedades, generalizada há pouco tempo, conduz a
um enfrentamento fundado globalmente sobre a desigualdade de
poder; leva cada uma delas a manter sua supremacia, ou a conservar
seu lugar, ou a elevar sua posição relativa e seu grau de autonomia.
Nesta competição, o jugo do tempo importa tanto quanto o acesso
às fontes e a capacidade de valorizá-las. O que é chamado de moder­
nidade (marcando o avanço dos mais desenvolvidos) e moderniza­
ção (marcando o esforço dos que querem chegar lá) apreende-se
primeiro como um movimento, como uma mobilidade geral com
efeitos cumulativos — positivos e negativos — em todos os domí­
nios. As temporalidades das sociedades mais ativas, e portanto
dominantes, não estão em total harmonia com as temporalidades
das sociedades, que tentam interiorizá-las durante sua luta pelo pro­
gresso, pela redução do atraso. Disto resultam desajustes de origem
externa e, conseqüentemente, novas rupturas de continuidade. Há a
multiplicação dos lugares de instabilidade, das possíveis bifurcações,
das escolhas a partir das quais a sociedade pode caminhar para for­
mas de ordem consideradas preferíveis, ou superiores em termos de
competição. Mas reside aqui a exasperação contemporânea de um
estado normal, produzido pela conjugação das dinâmicas interna (o
movimento de dentro) e externa (o movimento que resulta das rela­
ções com o de fora). Em toda sociedade, a ordem do conjunto é ape­
nas aproximativa, vulnerável, sempre variável e, por isso mesmo,
geradora de incerteza.

69
Sem dúvida porque foi pouco ou mal recebida pelas teorias
sociais que prevaleceram durante décadas, esta consideração da fle­
cha do tempo, do jogo das temporalidades, modificou, terminando
por impor, as representações atuais da sociedade. As sociologias do
equilíbrio e as sociologias da mudança não conseguem mais dar
conta da complexidade da sociedade, dos movimentos que dela são
indissociáveis como o são de toda vida, do constante trabalho da
qual é ao mesmo tempo a artesã e o produto. Há que colocar os pro­
blemas de outra maneira, sem esconder os que perturbam, a come­
çar pela questão da permanência, do que parece ter sido e estar
sempre inscrito no tempo. A continuidade é um fato e também uma
ilusão. As reviravoltas em todas as sociedades atuais acentuam o se­
gundo desses aspectos: as palavras “crise” e “mutação” servem para
designá-las. A afirmação de uma mutação sugere ainda que a
mudança de forma proporciona um conhecimento diferente (mais
verdadeiro) do que é objeto de transformação. A identificação de
uma crise global restitui a esta sua função de manifestação, de um
revelador de uma natureza social que o curso normal dos aconteci­
mentos manifesta menos. Ao impor sua manifestação, a situação
atual mostra e prova as propriedades principais — e na maioria das
vezes escondidas — de toda sociedade. Primeiro, é preciso repetir, a
sociedade se concebe enquanto uma ordem aproximativa e sempre
ameaçada; em graus variáveis conforme seus tipos ou formas, é o
produto das interações da ordem e da desordem, do determinismo e
do aleatório. Em seguida, a sociedade apresenta configurações cuja
reprodução não está assegurada. O próprio termo se tomou engana­
dor pelo efeito da analogia e nefasto, porque esconde a realidade
social que resulta de uma produção con tín u a , jamais acabada.
Enfim, a sociedade se mostra como um conjunto unificado, como
uma forma cuja coerência interna se impõe, mas antes de tudo pelo
jogo das aparências que mascaram as rupturas e os desajustes. O
que é chamado de “sociedade” não corresponde mais a uma ordem
global existente, feita, mas a uma construção de aparências e repre­
sentações ou a uma antecipação nutrida pelo imaginário. A socieda­
de, para usar uma fórmula, está constantemente em busca de sua
unificação; este é seu horizonte.4

70
0 conde e suas heranças

O conde Henri de Saint-Simon escolheu apreender a sociedade


em seu movimento, sua abundância e suas turbulências. Por expe­
riência própria, confirmou isto ao apresentar o balanço de sua exis­
tência perto dos cinqüenta anos: “Levar a vida da forma mais origi­
nal e mais ativa ... colocar-se pessoalmente no maior número possí­
vel de posições sociais diferentes, e mesmo criar ... relações que
sequer existiram.” Seu projeto venturoso aconteceu em uma época
fértil em revoluções — a americana, onde foi companheiro de La
Fayette, a francesa, à qual aderiu antes de se tomar um suspeito;
uma época geradora de grandes articulações políticas, de ruptura
com a sociedade “antiga”, substituída pela “sociedade industrial”,
época de expansão científica que acompanhou a expansão das técni­
cas. Tempo de um vendaval histórico, comparável em sua amplitude,
sua duração, seus efeitos ao mesmo tempo destruidores e produto­
res do inédito, ao tempo onde se persegue a realização da moderni­
dade atual. Saint-Simon encontrou ali a ocasião para diversas carrei­
ras e de um destino caprichoso, depois invertido; é empresário, arti-
culador do “partido dos industriais”, e depois, no fim da vida, defen­
sor da “classe mais pobre”; ele se vê sobretudo como artesão de uma
renovação intelectual, empreendida pelo movimento científico do
início do século XIX, e propícia ao aparecimento de uma “ciência do
homem e das sociedades”. É a vontade de responder por meio da
ciência (mais que pela filosofia) a uma dupla crise: a das nações eu­
ropéias desorganizadas, e a das idéias mal relacionadas com o de­
senvolvimento científico e industrial e trazendo ainda viva a ferida
do acontecimento revolucionário.
Esta consciência de uma crise não bastaria para legitimar uma
atualização do pensamento de Saint-Simon. Outras analogias se
estabelecem entre sua época e esta: a certeza de uma transição (ou
mutação) que se realiza pelo nascimento de uma sociedade radical­
mente nova; à época, a sociedade da “Indústria”, hoje, a da informa­
ção e da comunicação; a convicção que o período transitório man­
tém uma falsa ordem que mascara os dinamismos que criam um
“regime” ou “sistema” em vias de se fazer. É um apelo à organização
da sociedade futura, semelhante ao que hoje incita à aceitação da
modernidade. Nos dois casos, o destaque para o novo, o inédito, que

71
toma ilusória a busca das continuidades. A forma social do futuro
não tem precedente, e a tarefa mais urgente é o reconhecimento e o
conhecimento de sua originalidade. Saint-Simon exige uma mutação
completa nas maneiras de pensar, comparável àquela hoje requerida
— o acesso a um equipamento intelectual diferente e largamente
difundido. Ele une esta criação ao progresso das ciências, ao saber
positivo fundado sobre a experiência e provocador de uma renova­
ção epistemológica. A ciência e a competência são convidadas a
governar tudo, inclusive a moral e a religião ( “O sistema religioso se­
rá aperfeiçoado”). Isto posto, a organização — a construção do rea'
de acordo com a racionalidade científica e técnica — aparece. Saint-
Simon procura no saber do seu tempo os modelos, as analogias, as
metáforas necessárias à edificação da ciência do homem. Ele passa
rapidamente de uma física a uma fisiologia da sociedade; esta é con­
cebida sob a forma de corpos organizados cujas propriedades são
consideradas comparáveis às dos organismos vivos. As “leis da exis­
tência” da sociedade não diferem das leis formuladas pela fisiologia
geral. Tal referência à ciência que nasce do ser vivo — igual à que
inspira hoje certas recomposições da teoria social — leva Saint-
Simon a entender a sociedade não somente sob os aspectos das fun­
ções e das organizações, mas também sob os aspectos dos equilí-
brios precários e das degradações — da patologia e da morte.
Não é o caso aqui de apresentar a obra em sua abundância e
suas ambições — o projeto seria o de uma monumental história das
sociedades — , nem de seus efeitos — uma contribuição à formação
do pensamento socialista e um apelo ao aparecimento de um novo
cristianismo — , mas naquilo que esteve na origem de uma filiação e
que parece revelador das preocupações contemporâneas. Aquele
que foi considerado o “Fausto francês” , porque ele se achava o
inventor da forma própria à nova sociedade, é primeiro o pensador
que se esforça para tomar seu tempo inteligível e para trazer toda
ordem social à temporalidade. Sob este segundo aspecto, a interpre­
tação recorre a um esquema evolucionista e reconhece o jogo de
uma necessidade. Mas a evolução é provocadora de rupturas, forma­
dora de sociedades cuja diferença radical (a novidade) deve ser
compreendida nela mesma. A evolução não manifesta uma continui­
dade que seria identificável a um progresso. A continuidade não
seria um objeto de estudo, apenas pode sê-lo a organização social

72
em seu devenir. Saint-Simon propõe um método gerador, não uma
interpretação historiciata. Identifica um movimento de desorganiza­
ção e de reconstrução, de decomposições progressivas que provo­
cam rupturas de equilíbrio e criam tendências que levam a outros
equilíbrios. Na medida que a sociedade está sempre “em ação”, que
é o lugar de uma “atividade total”, temporalidades múltiplas ali se
manifestam, ali se conjugam ou ali se opõem. Ao tomar consciência
de si mesma, adquire a dupla capacidade de se pensar e de se pro­
duzir. Toma-se uma criação coletiva cujos maiores créditos ficam,
neste início do século XIX, para os industriais e os intelectuais. O
reconhecimento de uma auto-organização da sociedade se anuncia e
busca sua formulação.
Saint-Simon afirma que o conhecimento novo só pode ser o das
mutações sociais, dos tempos de ruptura e de transição. Isto posto,
ele se impõe pensar a passagem que a Revolução Francesa inaugu­
rou e que deve encontrar sua saída em uma “verdadeira revolução”:
a formação da sociedade industrial. Não existe restauração, mas
criação. Esta só pode se realizar tendo primeiro levado ao extremo
as incoerências que o período revolucionário revelou. O estado tran­
sitório é o de uma crise, elementos opostos ali coexistem em uma
ordem sem duração; a ruptura deve se produzir sob a avalanche de
uma necessidade impossível de contrariar e geradora de uma forma
social radicalmente diferente. O momento histórico é o de uma
bifurcação: depois da ruína do edifício mantido durante a transição
— sua redução à desordem — , uma nova “organização social” apare­
cerá. A desordem só intervém como condição para o nascimento de
outra sociedade em circunstâncias históricas excepcionais; ainda
não há um lugar claramente determinado no curso ordinário das coi­
sas sociais.
A desordem lá está subentendida, não mencionada. Com efei­
to, Saint-Simon tenta descobrir o que constitui a unidade de uma
sociedade ou provoca ao contrário suas rupturas, o que permite o
funcionamento social ou engendra a mudança. Sua resposta hoje
seria considerada do tipo holística ou sistêmica: ele a relaciona com
a ciência dos “sistemas” ou “organizações” — a que ele quer fundar.
A organização global é o fato ao qual os elementos particulares
devem estar ligados; eles não têm nem função, nem sentido inde­
pendente; seria um erro isolar os elementos constantes e afirmar
sua perenidade: mantidos em aparência, mudam de natureza, até de
forma. Seria igualmente um erro apreender o “todo sistemático” a
partir dos elementos, e ainda mais anular logicamente este apegan­
do-se nos efeitos de agregação que resultam da interdependência e
interação dos diversos atores sociais. Saint-Simon definiu o sistema
pelo jogo das forças conflitantes em relação de dominação/subordi­
nação, das forças heterogêneas cuja combinação forma seu equilí­
brio ou seu desequilíbrio. A dinâmica dos conflitos, sobretudo a das
classes sociais, e não a desordem — imputada unicamente à transi­
ção — , contribui para a constante criação da sociedade: no caso, a
sociedade que realiza o futuro “necessário” da Indústria e onde vice­
jam os movimentos sociais. Saint-Simon identifica entretanto fatores
de desorganização: a dinâmica social espontânea que é contrariada
pelo poder do Estado, o movimento das ciências e das idéias que
constituem uma verdadeira força social. Mas ele não consegue res­
ponder à questão inicial: como ligar a coesão do todo social aos
desequilíbrios que nele se atualizam sem que haja permanente tur­
bulência, e não apenas durante os períodos ditos transitórios ou
revolucionários? Saint-Simon hesita entre um modelo inspirado na
física newtoniana (o da harmonia) e um modelo emprestado da nova
ciência do ser vivo (o de uma complexidade produzida com riscos ao
longo dos processos de evolução). No final de sua vida, ele tempera
o otimismo que o conduziria a ver na sociedade industrial nascente
uma sociedade plenamente ativa e consciente de si mesma, inte­
grando todos os seus participantes e pacificada, onde poderia se ela­
borar uma nova liberdade.5
Marx reconheceu ser “impregnado” das idéias de Saint-Simon;
ele o é na medida em que qualifica de reveladores e aceleradores os
períodos revolucionários; ele o é menos em sua concepção da socie­
dade, reconhecida em estado de desequilíbrio permanente, em
razão de suas contradições e dos conflitos de classe. Neste caso, a
desordem é constante, e o próprio mercado é menos um fator de
regulação que um caos propício à injustiça. Esta desordem está con­
tida pelo fato da dominação de classe, até o momento em que a
intensificação da luta de classes consegue efetuar uma reviravolta
na estrutura. A filiação direta a Saint-Simon conduz a Auguste
Comte e a Émile Durkheim. O primeiro, que foi durante um tempo
secretário de Saint-Simon, aderiu com entusiasmo à sua doutrina,

74
n U L & U K U E iM

depois rompeu com igual paixão, retomando mais tarde o projeto


inicial do mestre ao aliar a filosofia e a política positivas. Ele retém a
concepção do sistema e a exigência do recurso ao método dinâmico,
conjugando-os. Define a sociedade por meio do acordo entre diver­
sos sistemas: o que rege a divisão do trabalho e determina um tipo
de organização e de classificação social, o que permite a instituição
do poder político, o que cimenta a unidade social através de idéias.
Esses sistemas estão sempre em movimento, “por definição” . Seu
equilíbrio permanece precário-, qualquer ruptura de solidariedade,
todo antagonismo entre os elementos que os compõem acabam por
provocar sua degradação. Desde que um deles não resulte mais da
inteira harmonia de seus elementos, os “germens de destruição” o
ameaçam de dentro. As contradições então se multiplicam e o con­
denam, o que quer que façam os poderes que tentam consolidá-lo —
“contribuindo por seus próprios atos, seja para tomar mais inteira
[sua] desorganização... seja para acelerar a formação daquele que
deve substituí-lo” . A degradação (a desordem) alimenta mais uma
vez a necessidade de mudança. Auguste Comte vê na contradição, no
âmago dos sistemas — e entre eles — a lei da dinâmica social, mas
de uma dinâmica que opera em média ou longa duração e cuja força
transformadora resulta, principalmente, do desacordo entre as idéias
e a organização social. Ele se situa aqui nas fileiras de Condorcet,
que faz da história inicialmente uma história do espírito humano, e
não nas de Saint-Simon que, neste ponto, operou a ruptura.6
Durkheim atribui a Saint-Simon um papel duplamente funda­
dor — do positivismo e da sociologia — e à sua doutrina o crédito
de ter definido o socialismo nos seus começos. Ele se inspira por
uma parte, sobretudo em sua teorização das crises, mas, por seu
próprio método e pela insistência sobre a idéia do progresso, evoca
mais diretamente Auguste Comte. Não trata quase de sistemas ou
de organizações, mas de n ív e is de manifestações da realidade
social, da qual distingue três principais. Primeiro, as estruturas
reais, que correspondem ao suporte físico da sociedade (território,
população, coisas); a vida social “aí está” e “disto decorre”, mas está
ali constrangida à “consolidação” ao se materializar; este substrato
tem uma certa estabilidade, não é todavia estático, “encontra-se no
devenir” . O segundo nível é o das instituições ou fatos de funciona­
mento, que são os conjuntos de normas, regras e prescrições que

75
governam a ação dos atores sociais; possuem uma inércia própria, so­
bretudo aparente durante os períodos em que se transformam os
dois outros níveis. O terceiro nível é o das representações coletivas:
valores e ideais, idéias e imagens relacionadas à sociedade existente
— valores sociais últimos, que se revelam e são aceitos na perma­
nência ou enquanto geradores de conformidade; mas Durkheim
demonstra uma repetida atenção às representações que nascem
durante os “momentos de efervescência”, porque são geradores de
mudanças. Se estes três níveis e suas subdivisões são tratados em
constante interação, é às representações coletivas (como Auguste
Comte e as idéias) que ele confere uma autonomia, uma capacidade
criadora. Ele lhes atribui a qualidade de principal fator do desenvol­
vimento social.
Ao estudar as crises, e mais ainda a anomia, Durkheim introduz
a temática ordem/desordem, sem no entanto designá-la dessa manei­
ra. Ele localiza sua preocupação primeira sob outras formas: saber
como “a sociedade, sempre permanecendo conforme sua natureza,
está constantemente a se tomar algo novo” . Tal método é gerador, a
sociedade se produz sempre, deve ser considerada em ação. Ele atri­
bui toda sua importância no fato de o tempo estar presente na socie­
dade e desta se inscrever no tempo. Cada um dos níveis sociais obe­
dece a temporalidades diferentes que criam discordâncias, depois
incompatibilidades. É a partir desta constatação que Durkheim ela­
bora sua teoria das crises, que não são vistas como acidentes da his­
tória, mas como fases inevitáveis que de certa maneira marcam o fu­
turo das sociedades. Os períodos de crises são aqueles durante os
quais a não-correspondência de um nível para o outro, e no interior
de cada um, fica mais acentuada; esse desajustamento (diríamos
desordem) pode ter um valor positivo, pois o progresso (formas de
ordem superior realizadas no final de um processo de desenvolvimen­
to) dele procede em parte. O problema aparece também quando se
considera a capacidade criadora, inovadora, que Durkheim confere à
“efervescência” da sociedade: sob a superfície fria das sociedades
encontram-se as “fontes de calor”, lugares onde “uma vida intensa se
elabora, busca suas saídas e acaba por encontrá-las”. É a intuição de
uma termodinâmica social que mascara uma mecânica social associa­
da à ordem instituída, prescrita e obtida pelos efeitos das sanções; é o
reconhecimento do fato de que as sociedades são ao mesmo tempo

76
ri i r Cj o u i \ u ci wi

“rrias" e “quentes", e não divididas conforme estas categorias em dois


conjuntos: aquele em que prevalece uma forma mecânica de funcio­
namento e onde se produz pouca desordem, e aquele onde intervém
o desequilíbrio que culmina em transformações.
A teoria de Durkheim acerca da anomia é um prolongamento
da teoria das crises, ou, em suma, sua exasperação. Nutre-se de uma
experiência pessoal, de um desespero diante da tomada de cons­
ciência dos efeitos do desastre de 1871 e da Comuna de Paris, de
uma vontade de contribuir para a reconstrução de uma França repu­
blicana da qual ele se faz o Grande Mestre. A anomia é apresentada
sob dois aspectos que se completam, na medida que se relaciona
principalmente com a sociedade (em De la d ivisio n du trava il
social) ou ao indivíduo (em Le suicide). No primeiro caso, corres­
ponde a uma ruptura da solidariedade, a uma crise de diferencia­
ções segundo as quais se definem as normas, os valores e a regulari­
dade das relações sociais. Resulta do desaparecimento das referên­
cias, assim como dos desequilíbrios engendrados pela anarquia eco­
nômica e o enfraquecimento das instituições mediadoras. É menos
uma violação da regra (infração, desvio) que um vazio desta regra;
assim, a determinação individual dos objetivos e meios é maior que a
determinação coletiva. A harmonia social relativa se degrada, o des-
regramento é a figura da desordem. No segundo caso, é a função
moral da sociedade e a relação com a ordem simbólica que conhe­
cem os malogros, que perdem eficácia. Durkheim ressalta o poder
do desejo, infinito quando entregue a si mesmo, revoltado contra os
limites e as fronteiras; esta potência é ilustrada por René, o persona­
gem imaginado por Chateubriand, para quem “o que acaba” não tem
“nenhum valor”. Esta exigência portadora de angústia se enfraque­
ce, quando a sociedade tem a capacidade de submetê-la pelo efeito
de suas normas, seus valores, sua regras; reaparece intensa — pro-
vocadora de anomia — , quando se degrada a força dos dispositivos
integradores. Não se explica mais pela ruptura de solidariedade,
mas pelo fracasso da Lei em sua relação com o desejo visando nor-
malizá-lo. Traduz-se em um eretismo, uma doença do desregramen-
to. Já se disse que a anomia relacionada com a divisão do trabalho
social se transform a em anomia da personalidade mórbida.
Durkheim explorou, sob esses dois aspectos, os espaços da desor­
dem: um, sempre presente, onde acampa o desejo humano cujas

77
turbulências são mais ou menos contidas; o outro, que aparece
como um solo novo na esteira dos movimentos sociais, e não apenas
na esteira das revoluções. Um permanece associado, como nos pre­
cursores da sociologia, ao tempo da mudança; o outro remete a uma
permanência, à efervescência de uma vida social capaz de criar uma
ordem e formas novas de sua própria desordem.7
Saint-Simon ocupa um lugar — menor, todavia, que o atribuído
a Proudhon — na obra teórica de Georges Gurvitch. É a concepção
da sociedade como realidade em ação, de uma obra coletiva que
ultrapassa os participantes individuais. É, além disso, o reconheci­
mento de uma “visão genial”: a da “riqueza extrema” da sociedade,
de seu “vulcanismo” que impõe uma sociologia dinâmica, que leva ao
estudo dos “progressos da liberdade através dos determinismos” .
Tal crédito não exclui a crítica, principalmente a denúncia de um
otimismo sustentado pela espera do “triunfo da harmonia total na
sociedade”. Gurvitch tem poucas ilusões. Sua própria vida, marcada
pelas turbulências deste século, a começar pela Revolução bolche-
vique com a qual cedo rompeu, alimentou seu vigor polemista e sua
singularidade. Em uma apresentação tardia de seu itinerário intelec­
tual, ele diz ser o “excluído da horda” . Ele não adere jamais; a todo
dogmatismo ele opõe o uso da dialética, destruidora de tudo o que
emperra “o contato com as sinuosidades do real”. Com a complexi­
dade a ele inerente.
Gurvitch afirma a necessidade de considerar a sociedade sob
todos esses aspectos — pois é multidimensional — e em toda sua
profundidade — , porque se faz perceber como um arranjo precário
de níveis, estratos ou patamares. Estes se interpenetram e se
influenciam mutuamente, desde a base ecológica e morfológica até
os “estados mentais e atos psíquicos coletivos”. Entram em conflito,
suas relações são denominadas dialéticas ou tensionais. Essas ten­
sões “verticais” se juntam aos conflitos, às tensões “horizontais” pró­
prias a cada um dos níveis e dos quais os antagonismos entre classes
sociais são a manifestação mais aparente. Umas e outras estão pre­
sentes em toda realidade social; a vocação da sociologia é de fazê-las
surgir “na superfície” e na consciência, de desmascarar as contradi­
ções e tensões latentes, indissociáveis da existência coletiva. O
modo de ser da sociedade é dramático: um drama agudo acontece
entre os diversos níveis da sociedade e em cada um deles. Nesta

78
perspectiva, nem a harmonia total, nem a perenidade são dadas à
sociedade. A desordem sempre está ali, ainda que raramente
nomeada.
Essa visão sociológica anuncia certos pontos de vista atuais.
Ela apreende o fenômeno social não apenas em sua complexidade
(que condena toda redução ao mais simples, a fins explicativos),
mas também em seu movimento, no jogo de forças de “estrutura­
ção” e de “des-estruturação” que estão constantemente em ação.
Em conseqüência, a contingência e a descontinuidade, a limitação
do determinismo e a capacidade criadora de novas conjunturas são
vigorosamente afirmadas. Precedendo os teóricos da auto-organiza-
ção e seguindo Saint-Simon, Gurvitch insistiu muito no fato de que a
sociedade é ao mesmo tempo criada e criadora; a produção contínua
é a sua lei, cujos efeitos não se manifestam unicamente durante os
períodos de mudança imediatamente aparente. A teoria da liberdade
de Gurvitch interessa mais diretamente a meu propósito. Ela nutre a
sociologia bem como a convicção íntima de seu autor. A liberdade é
condicional e relativa; nem um absoluto, nem uma vontade sem limi­
tes; só existe em relação com os determinismos, inserida (segundo
uma fórmula rebatida) entre a contingência e a necessidade, o des­
contínuo e o contínuo. Ativa tanto na experiência coletiva quanto na
individual, apresenta-se sob a forma de uma ação voluntária, inova­
dora, criadora. “Esforça-se por superar, derrubar, quebrar todos os
obstáculos e por modificar, ultrapassar e recriar todas as situações”;
abre o caminho dos possíveis “ao construir novas conjunturas, ao
criar novos quadros de referência, e, por isso mesmo, ao provocar o
aparecimento de novas contingências”. Esta liberdade, destruidora-
geradora, simboliza de uma certa forma o movimento ordem -*■
desordem ->■ ordem; um movimento sem fim.8

A desordem incontom ável e ainda desconhecida

A linhagem dos fundadores franceses se rompe com o apareci­


mento de Gurvitch em 1965. A sociologia vê-se empurrada em várias
direções: para o empirismo imitador de procedimentos científicos
em vias de desaparecimento, em busca das aplicações de seus resul­
tados graças a um tipo de tecnologia social; para a produção teórica,
brilhando pela explosão do último enfrentamento das “grandes

79
teorias” e das ideologias; para uma prática ligando o conhecimento
social à ação, à intervenção geradora de situações novas. É um
campo científico ativo, senão unificado, mas onde a incerteza come­
ça a se insinuar apesar das afirmações em contrário. As mutações,
particularmente as do saber, que acompanham as reviravoltas das
paisagens sociais e mentais, realizam-se cada vez mais rápido. A cul­
tura e a sociedade se mexem, depois a crise se instala na metade
dos anos 70. O que aparecia antigamente como desordem impõe-se
progressivamente como um novo estado de coisas. A desordem se
banaliza, parece pertencer à natureza das realidades contemporâ­
neas; as gerações jovens vivem nessas sociedades do movimento, do
transitório, cuja relativa coesão se quebra; o movimento e a desor­
dem se tomam, conjuntamente, uma parte crescente de sua expe­
riência cotidiana e de suas provas. Condições que afetam o dia-a-
dia, mas que permanecem, todavia, mal definidas, mal identificadas.
A partir das constatações dos efeitos da desordem, de sua
conscientização, como fazer para delimitar seu lugar? Primeiro são
utilizados os procedimentos antigos, atualizados pela novidade das
situações, modificados pela evolução da teoria científica e pela críti­
ca dos conhecimentos. É ainda o discurso da mudança e da crise,
mas recorrendo a uma sociologia que deve sair de sua própria crise.
Ela não pode escapar à dificuldade de pensar agora a desordem e de
se refazer, ao mesmo tempo. Uma nova etapa — mais crítica —
começa, marcando o fim das embalagens teóricas que caracteriza­
ram a atividade sociológica ao longo dos anos 60; o destaque está
agora sobre as dinâmicas sociais e culturais, sobre as formas e as
etapas do desenvolvimento e da modernização. “Ordem e mudança”
parece ser uma boa bandeira, em harmonia com um período de cres­
cimento ainda não interrompido. O que agora se coloca em questão
é a validade — e, para alguns, como o sociólogo americano Robert
Nisbet, a própria possibilidade — de uma teorização das mudanças
sociais. A história imediata obedece a progressões dificilmente pre­
visíveis, a história de longa duração não progride em toda parte de
acordo com etapas até hoje reconhecidas. A previsão vive muitas
vezes o desmentido do real realizado.
Raymond Boudon pode então partir desta constatação: “A
impressão geral... é a de fracasso.” No espírito do tempo, ele tenta
interrogar menos a mudança que a forma de seu conhecimento, de

80
A Ut.3U K LII.IV I

(‘numerar os processos que as razões de invalidação teórica. Para


avaliá-los, começa por uma classificação das teorias segundo sua
intenção dominante: identificação das tendências mais ou menos
gerais e irreversíveis, ou de etapas percorridas de acordo com uma
certa ordem; formulação de leis condicionais ou estruturais gover­
nando tais ou tais mudanças; atenção dirigida à forma (ao processo)
mais que ao conteúdo destes; enfim, determinação das causas e
fatores da transformação social. Nesses projetos, a parte dedicada
ao empirismo é muitíssimo variável, mas todos chegam a resultados
cientificamente contestáveis; a ponto de alguns dentre eles serem
vistos como uma repetição disfarçada da filosofia da história.
Traduzem intuições ou incertezas em afirmações; ultrapassam os li­
mites de seu espaço de validade, generalizando o que está ligado a
condições de lugar e data; mantêm o pressuposto nomológico (bus­
cando as leis da mudança), o pressuposto estruturalista (quando “a
estrutura de um sistema não permite determinar seu futuro”) e o
pressuposto ontológico (pela atribuição dos efeitos a um fator prin­
cipal). A crítica conduzida por Boudon é demolidora, ela relativiza,
tempera o determinismo com o acaso, cerceia a racionalidade no
interior de situações consoante as quais agem os atores.
A escolha efetuada é a do “individualismo metodológico”, do
conhecimento da sociedade por meio do jogo das ações e interações
individuais; é a adoção do ponto de vista “estritamente individualis­
ta” preconizado por Max Weber e outros. Tudo é considerado a par­
tir dos comportamentos dos conjuntos de indivíduos, em termos de
efeitos de agregação (de composição) ou de efeitos perversos, quan­
do a resultante é de valor negativo. Vista sob esse aspecto, a mudan­
ça social não pode dar lugar à enunciação de proposições de valida­
de geral, somente de validade local; o conhecimento do processo é
circunstancial, exprime-se, conforme os casos, na linguagem do pos­
sível ou do conjetural, ou (raramente) da legalidade condicional. A
conclusão não é específica a esta ordem de fenômenos. De maneira
mais significativa, trata-se da mudança sem a intervenção dos ter­
mos convencionais de diacronia (relação com as temporalidades
sociais) e de dinâmica (consideração dos movimentos); a separação
da sociologia geradora ou dinamista é total. O paradoxo reside
sobretudo no fato de a obra intitulada La place du désordre [O
lugar da desordem] só conceda à desordem uma presença alusiva;

81
em matéria de status, só visa a desordem das teorias de mudança
social: “a confusão de gêneros”. Não coloca nem a questão da desor­
dem no real, recomendando vigorosamente evitar a “armadilha do
realismo”, nem a da desordem enquanto categoria tendo uma fun­
ção na lógica explicativa dos funcionamentos (forma de existência)
e das transformações (forma de situação no tempo) da sociedade.
Pergunta-se se tal teorização não identifica a desordem porque a
contém, a torna, a seu modo, onipresente e irredutível. Todas as in­
terações e transações entre os indivíduos não são nem perfeitamen­
te integráveis, nem totalmente produtoras dos efeitos buscados. Az
pequenas decisões ligadas umas às outras levam a desequilíbrios
mantidos porque renovados, e, no final, suficientemente acumula­
dos para impor mudanças. O individualismo absoluto, pela primazia
dada ao indivíduo sobre o macrossocial, ao elemento sobre o conjun­
to, informa mal sobre os limites, sobre as dificuldades impostas ao
ator social e sobre os desajustamentos que disto resultam.
Igualmente não pode explicar uma ordem de nível superior (um
metanível) a partir unicamente da agregação das ações individuais e
da desordem parcial que disto é indissociável.9
Se o método científico leva a não afirmar o real, mas a questio­
ná-lo, é preciso ainda escolher as boas questões e as boas circuns­
tâncias. A sociologia da crise faz desta um revelador — uma conjun­
tura no momento da qual a sociedade se torna mais loquaz — ao
tomar o partido inverso do anterior, o da totalidade. A duração da
crise instaurada há quinze anos restitui ao método sua atualidade e
seu terreno de aplicação. Com o tempo, as explicações abundam.
Uma obra coletiva publicada sob o título de The global crisis, resul­
tado de uma colaboração internacional, propõe uma boa ilustração
desse procedimento de interrogação da sociedade; assim, Edward
Tiryakian, responsável pela edição, invoca o patrocínio de Saint-
Simon. Muitas das contribuições consideram justamente a crise
como o acesso a uma outra forma de conhecimento da sociedade;
leva a uma representação (portanto a uma construção) da realidade
social renovada, a uma busca de instrumentos intelectuais mais
apropriados — o que não é uma novidade. Em compensação, é
ainda mais nova a observação de que a crise proporciona a capacida­
de reflexiva do sistema social sobre si mesmo — a tal ponto que
Niklos Luhman propõe substituir a palavra “crise” por “auto-referên-

82
cia” (s elf reference). Sugere que o trabalho pelo qual a sociedade se
produz inclui seu próprio trabalho de reflexão sobre si mesma,
requer que a sociedade faça claramente de sua própria descrição um
de seus componentes.
Desse modo, a crise é de um lado uma pane, à qual se liga o
problema de sua percepção, da tomada de consciência daquilo que é
“em si” e daquilo que é “para" um sujeito. Este não a percebe ime­
diatamente (a crise existe primeiro em estado latente); ele a inter­
preta, quando se torna manifesta, através de “programas” e imagens
que lhe são anteriores e mal ou não ajustados, variáveis segundo as
condições e os interesses individuais. Uma relação dialética se esta­
belece entre a crise e sua percepção, que opera primeiro no sentido
de um reforço, de um choque das interpretações e das ações, com
efeitos de retroação. A crise recoloca as idéias em primeiro plano,
sua força e sua fraqueza, ou melhor, as cosmologias sociais, segundo
a fórmula de Johan Galtung. A fraqueza constitui parcialmente a
consciência da crise; e esta constitui parcialmente a desordem. Em
uma visão clássica, a crise é entendida em termos de mau funciona­
mento, até uma patologia; é o sinal de que “alguma coisa não fun­
ciona”; define-se então por sintomas e um diagnóstico, avaliada em
seu futuro por um prognóstico. Sociedade anômica, sociedade em
choque, sociedade doente são outras expressões que designam esse
estado crítico. Em uma perspectiva científica mais atual, a crise é
relacionada ao movimento, a uma evolução dissociada da interpreta­
ção darwiniana. É uma dificuldade mais aparente, mais pesada, de
proceder a uma recombinação da ordem e da desordem, a uma cor­
reta utilização do “caos”. A crise impõe a transformação do imprová­
vel em provável, de estabelecer as estruturas relativamente estáveis
sobre uma plataforma móvel. É a exasperação da forma de existên­
cia do social, e não sua doença. Niklos Luhman conclui que o “espe-
rismo” [attentisme], o wait and see, é apenas uma forma de respos­
ta. A teoria afirma a possibilidade de agir sobre “a evolução societal
em curso”; o aperfeiçoamenmto dos meios de auto-observação e de
autodescrição da sociedade se torna então “uma estratégia adequa­
da ou mesmo preeminente”.10 Conclusão em harmonia com a que eu
formulava há quinze anos: “As novas pesquisas conduzem a medir
melhor o espaço de liberdade e de especificidade presente em toda
sociedade... Mostram que não existem sociedades planas, ou reduzi­

83
das a uma única dimensão, e que não existe nenhuma que não traga
em si diversos ‘possíveis’ a partir dos quais os atores sociais podem
orientar seu futuro.”11
O paradigma ordem/desordem, inspirado pela teoria científica
atual, orienta as interpretações da sociedade que privilegiam seja a
auto-organização (modelo biológico), seja a tendência a uma maxi-
mização da entropia (modelo termodinâmico). Jean-Pierre Dupuy
relaciona as primeiras em sua “pesquisa sobre um novo paradigma”,
do qual é o difusor, o advogado e o protagonista. O pensamento
dominante é o da autonomia do qual Francisco Varela e Henri Atlan
são os principais iniciadores; este pensamento atribui ao real a capa­
cidade de engendrar por si mesmo a ordem e o sentido, do olhar do
observador interior ou exterior ao sistema considerado. A formula­
ção científica foi anteriormente mencionada; a retomada será aqui
muito simplificada: a criação se nutre da desordem, o aleatório (as
perturbações) faz parte da organização, a desordem se inscreve
naquilo que se define como ordem. A liberdade parcial, o apareci­
mento do novo e sua estabilização relativa, o determinismo limitado
encontram assim sua importância. Trata-se de uma visão exclusiva
de “um mundo sem dificuldades, sem ordem, onde tudo será possí­
vel”, e de um mundo “perfeitamente determinista” cujas determina­
ções seriam, todas, reconhecíveis. Da “posição epistemológica do
observador, que percebe um mundo ordenado, mas não totalmente
ordenado, resulta o sentimento de que existem sistemas autônomos,
capazes de criar o radicalmente novo”. E, com este, a complexidade,
a singularidade, o devenir contínuo. A tradução sociológica dessa
nova ontologia, pela qual ordem e desordem estão completamente
misturadas em toda organização, fica mais teórica que empírica e
específica — e sem que o status de observador-ator e a posição da
sociedade nesses quadros sucessivos sejam desde já particulariza-
dos. Busca-se uma ultrapassagem, uma terceira via, pela dispensa
de duas famílias teóricas: a dos “holistas” (primazia do todo, qualida­
de de realidade primeira conferida à sociedade), a dos “reducio-
nistas” (tudo resulta da composição das partes, a sociedade é redu-
tível às propriedades e às interações dos indivíduos). Ultrapassar
esses dois métodos é percebido como uma necessidade de conduzi-
los conjuntamente. “Em vez de opor o indivíduo e o social, é preciso
pensá-los conjuntamente como se criando mutuamente, se definin­

84
do e se contendo um no outro ... é preciso pensá-los também assim
|na] separação e na confusão dos níveis de organização.” O que não
(• assim tão novo como parece ser... Mais importantes são a questão
central e o problema que esta impõe: como perceber as influências
exteriores (da dependência) exercidas sobre um sistema autônomo,
necessariamente enclausurado em sua própria organização? Res­
ponde-se concluindo que “se a autonomia não é a dominação absolu­
ta, ela não é menos autonomia”, por mais difícil que seja para a tra­
dição ocidental distinguir uma da outra. Os sistemas auto-organiza-
dores (os de mais alto nível de complexidade) seriam capazes de
produzir formas novas sobre as quais nem o exterior nem eles mes­
mos exerceriam a dominação absoluta. “A complexidade seria o
resultado de uma colaboração negativa entre o sistema e seu meio,
este, paradoxalmente, agindo de forma positiva por meio de suas
perturbações, quer dizer, por meio de seu poder de destruição.”
Dito de outra maneira, a morte é parte integrante da vida, a an-
tiorganização da organização, a desordem da ordem.12 Estranha
ondulação pela qual se encontram as questões e os debates dos
quais a filosofia iniciante se nutre.
As afirmações contrárias a toda busca de analogia entre os siste­
mas sociais e os sistemas físicos não desencorajaram, inteiramente, as
tentativas de interrogar os sistemas sociais — no que é de sua nature­
za e de seu devenir — com a ajuda dos ensinamentos resgatados pe­
los sistemas físicos. Disto trata o ensaio recente de Michel Forsé, que
tenta fundar uma termodinâmica social. Trata-se de aplicar às socie­
dades o princípio de entropia sob a forma estatística: todo sistema
tende para seu estado mais provável e este estado corresponde à
desordem máxima para o sistema-, mas tal aplicação só pode ser pri­
meiro a construção de um modelo capaz de contribuir para uma
melhor inteligibilidade dos processos sociais, e unicamente utilizável
nos casos de “populações numerosas” devido a seu caráter probabilis-
ta. É exclusivo das pequenas sociedades abandonadas aos antropólo­
gos. Requer o primado da totalidade sobre o indivíduo; todo sistema
social visa a estabilidade, a manutenção, e, para este objetivo, subor­
dina todas as finalidades individuais. A dificuldade social da teoria de
Durkheim se traduz assim em “dificuldades sistêmicas”. É a partir do
conhecimento destas que o jogo dos atores pode eventualmente ser
compreendido, em termos de ajustamento ou desajustamento.

85
O paradigma entrópico é definido por elementos que opõem
ordem e desordem, e desviantes para o senso comum: à ordem estão
ligados o desequilíbrio, a heterogeneidade, a desigualdade, a dificul­
dade, a instabilidade; à desordem liga-se o equilíbrio, a homogenei­
dade, a igualdade, a liberdade, a estabilidade. Em sua utilização
sociológica, leva a explicar o estado de um sistema social — no
momento da observação — através “da dinâmica que impõe a todo
sistema a tendência espontânea para o estado de equilíbrio” , este
estado que “representa a desordem máxima diante das dificulda­
des” . É o conjunto, o macrossocial, que obedece a esta tendência,
que conduz a uma dissolução da sociedade pelo desaparecimento
das diferenças, das hierarquias, dos problemas implícitos ou explíci­
tos, pela redução a uma liberdade anárquica ou a uma submissão ao
déspota que faz todos os particulares iguais “porque não são nada”
(segundo o paradoxo de Simmel). “Os estados de desordem cres­
cente não passam de estados de probabilidades crescentes” ; em
outras palavras — aquelas que utilizei por minha própria conta — , a
sociedade está sempre inacabada e só existe sob a ameaça perma­
nente de sua própria destruição.
A conclusão não é inteiramente nova, se demonstrada pelo
efeito de uma espécie de integrismo termodinâmico. Nada é falado,
nem poderia sê-lo, a respeito das evoluções sociais conjunturais.
Muito pouco foi dito sobre o que desenquadra a tendência entrópi-
ca: a sociedade, sistema aberto, pode ter a capacidade de encontrar
do lado de fora o que contribui para manter sua ordem. Enfim, se o
tempo é levado em consideração “enquanto grandeza irreversível”,
base de toda termodinâmica, ele não o é enquanto constituinte da
sociedade e de sua dinâmica. O que levaria a perceber sob outros
aspectos, como já sugeri, as relações complexas, emaranhadas, da
ordem e da desordem. Mas é forte o apelo para que uma sociologia,
há muito obcecada pela ordem e o equilíbrio, possa escolher corajo­
samente o ponto de vista da desordem.13

A sedução e seus limites

A ciência atual seduz os exploradores da sociedade. Tem tudo


para agradar quando se lhes torna acessível através da vulgarização
das teorias e do passeio pelas filosofias. Manifesta a inesgotável

86
complexidade do real e a incerteza que afeta todo conhecimento;
leva em conta o imprevisível, o espontâneo, a evolução no sentido
da desordem pelo “esquecimento das condições iniciais”, o processo
de auto-organização; determina menos, reconhece os possíveis e dá
às suas formulações teóricas uma validade local e não mais geral.
Daí que fica possível responder, aparentemente, às preocupações
ainda encobertas dos sociólogos no sentido de um positivismo à
antiga e confrontados com sociedades em completo movimento e
que, por essa razão, parecem cada vez menos inteligíveis. A tenta­
ção se torna forte no sentido de traduzir em linguagem sociológica o
novo discurso da natureza, descobrindo isomorfismos entre domí­
nios muito distanciados, procedendo por analogias, demarcando os
métodos interpretativos. A versão entrópica começa a tomar forma
de texto, seja para definir a tendência espontânea do sistema social
global (Michel Forsé), seja para fazer da ordem — coisa desejável e
rara — um objeto econômico (Jacques Attali).14
A transposição oferece outras possibilidades. A idéia de “or­
dem por flutuações” é adaptável no campo social entendido como
realização por aproximação, por jogo de equilíbrios e de ajustamen­
tos precários. O poder (o centro) jamais foi matéria dominável. A
instituição mantém no exterior a impressão de uma capacidade de
ordenar, que não possui inteiramente. A ordem obtida é a das uto­
pias e ucronias — sociedades de lugar e tempo nenhuns — , ou as
que buscam os totalitarismos na violência exercida sobre os ho­
mens, sem jamais conseguir estabelecer outra coisa senão a ditadura
do arbítrio e da ignomínia. Nos dois casos, trata-se de interromper
ou diminuir o curso do tempo, de expulsar da sociedade o movimen­
to; se o tempo das mitologias é freqüentemente devorador, o pensa­
mento negador do tempo é pior, porque reduz o homem ao estado
de coisa ou de simples elemento submetido à relação de ordem.15
A idéia de bifurcação é também transportável e já utilizada.
Limita a dominação dos determinismos sociais, permite situar os
pontos de liberdade, identificar os possíveis. As sociedades da
modernidade mais ativa começam a ser consideradas como socieda­
des de bifurcações; a seleção dos possíveis se faria sucessiva e pro­
gressivamente, da mesma forma que um percurso é feito de encruzi­
lhada em encruzilhada, até chegar a um final ainda desconhecido. A
necessidade da evolução e, mais ainda, da revolução, desaparece

87
enquanto transformação inelutável e global, para dar lugar a realiza­
ções sociais mais incertas e mais localizadas.
Outras transposições se vislumbram, sobretudo a partir da
noção do estado atraente; não se trata de fazer o inventário disto,
mas aprender a lição. A mais importante é a insistência da ciência
atual sobre o tempo reconquistado, sobre a pluralidade de suas for­
mas, sobre a história já presente na natureza. Cada ser complexo é a
manifestação disto. O contra-senso na leitura da sociedade resulta
principalmente do esquecimento dessa constatação, todavia levado
a efeito em nome da exigência do cientificismo.
Uma segunda lição é de outro tipo, e sem dúvida de grande
importância. A ciência de hoje, porque é mais interrogativa do
conhecimento que produz, define melhor o arbítrio a partir do qual i
dialoga com a natureza. Ela sabe que traz em si uma parte do mito e
da ideologia, que recorre a analogias e imagens propícias a uma
melhor inteligibilidade e a uma intervenção mais ajustada ao real
(de crescente eficácia), e que esta inteligibilidade depende do dis­
curso convincente — segundo o termo de Manuel de Diéguez — ,
que se esconde naquilo que o saber tem de mais secreto. O discurso
se torna claro a partir disso mesmo, que as ciências da sociedade
não têm de imitar, pedir emprestado, transpor, mas definir sua pró­
pria escolha, a mais apropriada ao conhecimento da sociedade —
não em sua generalidade e sua eternidade, mas em seu lugar, seu
momento e seu movimento. Nesta perspectiva situa-se a importân­
cia da desordem, manifesta em toda sociedade e em todo tempo;
com a quase-certeza que nenhum poder poderá aboli-la por uma
polícia das coisas (racionalidade inteiramente dominadora do
mundo), uma polícia dos seres (governo absoluto e total), uma polí­
cia das idéias (despotismo da conformidade).

88
no tas

1. C. Geertz, Savoir local, savoir global, les lieux du savoir, trad.


francesa, Paris, P.U.F., 1986; cap. primeiro, “Gêneros flutuantes: a refigura-
ção do pensamento social”.
2 .1. Prigogine e I. Stengers, La Nouvelle Alliance, métamorpkoses
de la Science, Paris, Gallimard, 1979, p. 15.
3. La nouvelle alliance, op. cit., pp. .295-6.
4. Ver os textos “desenvolvidos” e portanto no conjunto das proposi­
ções teóricas, principalmente: G. Balandier, Sens et puissance, les dyna-
miques sociales, 3. ed., Paris, P.U.F., 1986 (primeira parte e conclusão), e
Anthropo-logiques, 2. ed., Paris, Livre de Poche, Biblio-essais, aumentada,
1985.
5. Consultar principalmente as obras de P. Ansart começando por:
Saint-Simon, Paris, P.U.F., 1969, e as de G. Gurvitch: C.-H. de Saint-
Simon. La physiologie sociale, Oeuvres choisies, Paris, P.U.F., 1965, e
Saint-Simon sociologue, 2. ed., Paris, C.D.U., 1961. Também H. Gouthier,
Lajeunesse dAuguste Comte et laformation du positivisme, t. 2 e 3; F.
Perroux, Industrie et création collective, t. I e M. Dondo, The French
Faust, Henri de Saint-Simon.
6. Le Système de politique positive, terceiro caderno do Caté-
chisme des industrieis, foi publicado pouco antes da ruptura com Saint-
Simon, que aliás o prefaciou. É lá que se encontram a filiação e a diferença.
7. Émile Durkheim: De la division du travail social, Le suicide,
Les formes élémentaires de la vie religieuse, várias edições, Paris,
P.U.F., e os escritos apresentados e reunidos por J.-Cl. Filloux sob o título
La Science sociale et 1’action, Paris, P.U.F., 1970; Sobre Durkheim e sua
contribuição ao conhecimento da dinâmica social: R. A. Nisbet, Émile
Durkheim, Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1965. Sobre a anomia, entre
outros textos (p. ex., R. K. Merton, Éléments de théorie et de méthode
sociologiques, trad. francesa, Paris, Plon, 1953), o ensaio de J. Duvignaud,
Hérésie et subversion. Essais sur Vanomie, Paris, La Découverte, 1986.
8. Da obra sociológica de G. Gurvitch, convém reter as seguintes:
Déterminismes sociaux et liberté humaine, Paris, P.U.F., 1955,

89
Dialectique et sociologie, Paris, Flamraarion, 1962, a “Introdução" à
Physiologie sociale de Saint-Simon, já citada; e “Continuité et descontinui-
té en histoire et en sociologie”, Annales, 12, 1957. Sobre Gurvitch: G. Ba-
landier, Gurvitch, Paris, P.U.F., 1972; J. Duvignaud, Georges Gurvitch:
symbolisme social et sociologie dynamique, Paris, Seghers, 1969; P.
Bosserman, Dialectical sociology: an analysis o f the sociology oj
Georges Gurvitch, Boston, Porter Sargent, 1968.
9. R. Boudon, La place du désordre, critique des théories du chan-
gement social, Paris, P.U.F., 1984. E também, porque a redução às intera­
ções e transações individuais aqui é menos acentuada: Effets pervers et
ordre social, Paris, P.U.F., 1977 e 1979.
10. E. A. Tiryakian, dir., The Global Crisis, Sociological Analyses
and Responses, Leiden, E. J. Brill, 1984; principalmente as contribuições
de J. Galtung, “On the Dialectics between Crisis and Crisis Perception”, N.
Luhman, “The Self-Description of Society: Crisis Fashion and Sociological
Theory”, e P. Sztompka, “The Global Crisis and the Reflexiveness of the
Social System”.
11. G. Balandier, Sens etpuissance, les dynamiques sociales, Paris,
P.U.F., 1971, p. 9, e a “Conclusion”, p. 299.
12. J.-P. Dupuy, Ordres et désordres. Enquête sur un nouveau
paradigme, Paris, Seuil, 1982; sobretudo: “Vers une Science de 1’autono-
mie” e “La simplicité de la complexité”.
13. M. Forsé, L ‘ordre improbable, Entropie et processus sociaux,
Paris, P.U.F., 1989; “Introduction”, capítulos 1 e 4, “Conclusion”.
14. Crítica da obra de J. Attali, La parole et VOutil, Paris, P.U.F.,
1975, por J.-P. Dupuy, op. cit., pp. 62-7.
15. Sobre a utopia (“Le sol froid, silencieux et blême de 1’utopie”), cf.
G. Lapouge, Utopie et civilisations, Paris, Weber, 1973.

90
Segunda Parte

DESORDEM NA TRADIÇÃO

4

A D e so r d e m t r a b a l h a e s c o n d id a

Na concepção ocidental, a tradição tem duas figuras: uma, pas­


siva, que manifesta sua função de conservação, de memorização;
outra, ativa, que lhe permite ser o que já foi. A palavra, o símbolo, o
rito a mantêm sob este duplo enfoque. É por meio deles que a tradi­
ção se insere em uma história onde o passado se prolonga no pre­
sente, onde o presente chama o passado; história desconcertante,
porque negadora de seu próprio movimento e refratária à novidade.
Quer exprimir na permanência a verdade, a da ordem do mundo
desde sua origem. O que a escola tradicionalista do século passado
constituiu em tese, no sentido de melhor desacreditar o novo quali-
ficando-o de erro, e, além disso, de fator de desordem. Bonald dá a
essa afirmação e a esta rejeição todo seu vigor: “A verdade, mesmo
esquecida pelos homens, nunca é nova; a verdade é do começo, ab
in itio . O erro é sempre uma novidade no mundo; o erro é sem
ancestrais e sem posteridade...” Neste sentido, a recusa da moderni­
dade é primeiro a recusa do novo, do movimento e do efêmero, con­
siderados os assassinos da tradição, dela retirando qualquer chance
de renascimento.
Neste extremismo aparecem, de forma exagerada, os aspectos
da tradição identificados desde a Antigüidade clássica: a idéia de
uma época inicial, onde uma ordem fundamental assegurava o acor­
do entre os homens, os deuses e a natureza; uma época que só
poderia ser seguida de uma contínua degradação, reconhecida
mesmo. A idéia, também, da autoridade inerente ao original, primei­
ro, fundador desde o início, daquilo que confere um valor absoluto
ao saber e ao discurso dos sábios, dos poetas, dos filósofos primor­
diais. Platão, em Fedra, atribui à tradição um valor insubstituível: “A

93
verdade, é a tradição que conhece"; e “o discurso de quem sabe”, e
“o discurso vivo e animado”, manifesta a tradição pela palavra. Uma
terceira idéia faz enfim da tradição um mantenedor da múltipla con­
tribuição das civilizações submersas: elas sobrevivem na memória de
alguns sábios que transmitem oralmente seu conhecimento. Na
Metafísica, Aristóteles evoca essas “relíquias da sabedoria antiga
conservadas até nossos tempos” .
Nas sociedades tradicionais estudadas pelos antropólogos,
esses aspectos mostram-se claramente: a necessária conformidade à
ordem estabelecida na época da fundação, a associação da origem
com todas as forças do poder, a transmissão, através de procedi­
mentos bem codificados, do saber mais valorizado — e, portanto, o
primeiro. Mas, no caso, a tradição traduz-se continuamente em prá­
ticas; é aquilo pelo que a comunidade se identifica (tal como apare­
ce diante de si mesma), se mantém em uma relativa continuidade,
se faz de maneira permanente sempre produzindo as aparências de
ser, agora, o que deseja ser. Na medida que permanece viva e ativa,
a tradição consegue nutrir-se do imprevisto e da novidade; de certa
forma compõe, tal como demonstrei ao estudar as figuras do tradi-
cionalismo e as estratégias que regem. Na medida que é praticada,
descobre seus limites: sua ordem não mantém tudo, nada pode ser
mantido por puro imobilismo; seu próprio dinamismo é alimentado
pelo movimento e pela desordem, aos quais ela deve finalmente se
subordinar. A tradição não se dissocia daquilo que lhe é contrário.
Governa os indivíduos e a coletividade, mas só alguns a conhecem
inteiramente. Na superfície do conhecimento banal — aquele que as
práticas utilizam — encontra-se escondido o conhecimento profun­
do, que só um pequeno grupo detém e que se transmite por meio de
um lento procedimento iniciático. A tradição é ao mesmo tempo
exotérica e esotérica, vulgarizada em graus variáveis segundo as
condições sociais e, em sua totalidade, reservada apenas à guarda
dos sábios.

O segredo e o oculto

O segredo ocupa todos os lugares do espaço social, desde o


que encerra a vida privada até os que enfrentam os atores econômi­
cos, e também aqueles onde os poderes se rivalizam na busca da

94
A UK3ÜKUEM

supremacia e das formas de impor seus pontos de vista e sua ordem.


È o segredo que atribuiu à tradição antigas funções, sua capacidade
de proteger a arte, o saber e a habilidade. A tradição mantém e
transmite procedimentos técnicos e seus instrumentos; vai além ao
associá-los a sistemas simbólicos, mitos, mistérios e ritualizações
pelos quais os artesãos compõem uma determinada sociedade no
interior da grande sociedade. Esta tradição restrita a um corpo
apresenta contudo características consideradas próprias à tradição
comum da qual participam os membros de uma mesma coletividade:
requer mestres que a conheçam, que a mantenham viva e a comuni­
quem aos que nela se iniciam; recebe sua autoridade e sua eficácia
por sua antigüidade, pelas idéias, pelos valores e modelos dos quais
é herdeira, pelo segredo que a diferencia dos saberes comuns. É por
esses últimos aspectos que a tradição encerra um elemento de cará­
ter sobre-humano, que remete aos deuses, aos heróis e aos fundado­
res, e que se toma o depósito sagrado daqueles que se apresentam
como seus vicários ou seus mandatários no presente.
Em sua forma acabada, completa, a tradição não prescinde do
esoterismo; nem este, sem o pequeno grupo dos donos das chaves.
A tradição é a soma de saberes acumulados pela coletividade a par­
tir de acontecimentos e princípios fundadores. Exprime uma visão
do mundo e uma forma específica de presença no mundo. Por estas
duas razões, remete a uma realidade primeira e a uma ordem que a
manifesta, formando-se ao longo do tempo. Traz em si um núcleo de
verdades fundamentais das quais os especialistas são os guardiões e
os intérpretes; é, neste sentido, um conhecimento “de dentro” que
não é acessível a todos, e, por isso mesmo, necessariamente reserva­
do. É a parte esotérica da tradição a partir da qual um conhecimen­
to menos secreto, mais comum, se difunde e direciona as maneiras
de compreender, fazer e dizer. A iniciação imposta, como as que
aparecem nas sociedades antropologizadas, dá a uma tradição sua
parte de exoterismo. É o caso da África, onde os sistemas iniciáticos
masculinos designam geralmente, por inclusão (os homens a partir
da adolescência) e exclusão (as mulheres e os jovens), os que ace­
dem às revelações e, progressivamente, à plena capacidade social, e
os que são afastados e mantidos em posição socialmente periférica.
Já observei que tal procedimento faz da participação ao segredo, e
das provas que acompanham seu desvendamento, a condição para o

95
nascimento social, para o poder de intervenção nos negócios públi­
cos, para o acesso ao domínio de si mesmo. Esta progressão iniciáti-
ca se efetua gradativamente: o saber aumenta com a idade, quanto
maior o exoterismo (o conhecimento do primeiro degrau) tanto
maior o esoterismo (o conhecimento último, detido por uma elite de
sábios); opera desse modo a divisão entre os que recebem e os que
transmitem. Sobretudo, tal percurso, que se abre sobre a revelação
da ordem social, no interior da qual o iniciado vai se situar, termina
com a revelação da ordem do mundo que somente os velhos conhe­
cem, os sábios que estão às margens da vida, nas bordas de um além
da comunidade dos vivos. O ciclo do saber acompanha o ciclo da
vida, só é completado por um pequeno número de homens, os mes­
mos dos quais se disse que sua morte eqüivale ao desaparecimento
de uma biblioteca.i
Toda cultura de componente esotérico manifesta a função do
segredo, a força do oculto. Muito cedo, o sociólogo Georg Simmel
reconheceu que um e outro são necessários à formação das estrutu­
ras e à interação sociais. Ele propôs uma sociologia das “sociedades
secretas”. Os caracteres anteriormente mencionados subsistem. O
vínculo requer ritos de iniciação, e os degraus iniciáticos correspon­
dem a uma hierarquia interna que estratifica a associação assim
constituída. A autoridade se adquire progressivamente de acordo
com o movimento de avanço no conhecimento. No topo encontra-se
uma elite restrita exercendo uma verdadeira dominação: os que sa­
bem e regem a circulação do saber. A participação no conhecimento
cria entre os membros uma solidariedade e uma fraternidade incon­
dicionais, que apagam as diferenças sociais (os status desiguais)
próprias à sociedade global, englobalizante.2 O segredo, cobrindo o
conhecimento profundo de uma ordem do mundo e dos homens,
cria a ordem forte pela qual os iniciados estão ligados e em função
da qual eles intervém na ordem geral da sociedade.
O segredo inclui o oculto, mas este o ultrapassa ao se apresen­
tar sob três aspectos, pelo menos. O oculto é o saber fundamental
cuja aquisição se efetua por degraus, e somente por alguns em sua
totalidade. Nesta acepção, o oculto pode implicar o conhecimento
escondido, a descoberta dos arcanos, aquilo que tenta ir além do
conhecimento legitimado seja pela tradição, seja pela ciência, levan­
do à busca arriscada de revelações e verdades últimas. Trata-se

96
entào de uma vagueação e de um desvio. A corrente gnóstica per­
corre de outra maneira o espaço do saber reservado: visa a comuni­
cação direta com a natureza autêntica das coisas, ou o retomo a um
conhecimento inicial (e verdadeiro) deformado, alterado ou perver­
tido pelos sucessivos intermediários. Na história do cristianismo, a
gnose é, durante um tempo, o ensimamento secreto destinado aos
perfeitos, a transmissão exclusivamente oral de uma revelação
comunicada por Jesus somente a alguns apóstolos. O conhecimento
verdadeiro só é acessível ao pequeno número dos que nadam na
perfeição; e por esta medida são avaliados a imperfeição, a falsidade,
o mal, a desordem. Mas a gnose pode também ser vista como uma
heresia, uma ameaça mais operante que secreta, pelas potências
que definem a ordem oficial do mundo e dos homens. Nesta pers­
pectiva, inverte-se ao se transformar em uma figura do caos.
O oculto engloba dois outros aspectos que são objeto de temor
e medo. De um lado, é a fonte do inesperado, do imprevisível, do
acontecimento que atenta contra os seres vivos e contra o curso
natural das coisas. Manifesta-se então em momentos de aflição
interpretados por Victor Turner, renovador de uma antropologia dos
símbolos e dos ritos.3 São os efeitos — as perturbações e as desor­
dens — que revelam uma agressão não identificada ou uma trans­
gressão desconhecida ou uma falta por negligência; tais efeitos estão
portanto associados, na maioria das vezes, a uma falta que deve ser
determinada a uma culpa. Certas culturas acentuam esta atribuição,
fazem dela o elemento central das configurações que regem, sendo
por isso denominadas “culturas da culpa”. Mas, em todas as situa­
ções, a falta deve ser reparada; os meios simbólicos e ritualísticos
são então empregados para reordená-la. O desconhecido é também
o que está por vir, o que pode surgir do futuro imediato: a incerteza
mantém o receio do aparecimento do nefasto, leva à busca de proce­
dimentos que permitem forçar a ignorância, operar escolhas mais
esclarecidas no presente e de construir obstáculos contra a irrupção
dos infortúnios e dos males. É o futuro, escondido dos homens que
dele não se sentem donos, que se apresenta como um perturbador
potencial. Ele é o movimento, o aleatório, assim como o ignorado, na
medida que o presente está ligado a uma ordem conhecida e às con­
venções ou procedimentos pelos quais a ordem tenta se prolongar.
O acontecimento, venha ele de algum lugar (pela ação dos poderes

97
\ J Ct Uf t UC» 3 D A L A n U I L i M

aos quais a tradição deu forma) ou do futuro, mostra uma mesma


categoria do oculto.
Este, por outro lado, se revela indiretamente sob o aspecto de
um trabalho oculto que realiza uma intenção destrutiva: ação sub­
terrânea que uma fórmula africana designa como “trabalho do
diabo”. O ator, agora humano e agente do mal, é geralmente identifi­
cado e temido enquanto feiticeiro. Situa-se no espaço do nefasto,
manipula a desordem, subverte as convenções sociais e as condutas.
Destrói as pessoas aniquilando-as por dentro, perturba suas relações
e destrói a natureza. Ele é o inimigo mascarado do interior. Neste
caso, o oculto depende unicamente dos homens, está entre eles e por
eles manifesta o lugar do mal, da doença e da infelicidade, lugar de
onde podem surgir as forças provocadoras de um retomo ao caos.
Na presença dos perigos que procedem do oculto, a principal
preocupação é a identificação: qual é a falta e diante de que poder?
Quem é o ator humano do mal e de suas conseqüentes destruições?
Que acontecimento pode vir do futuro e alterar o curso regular das
coisas? Para identificar, é preciso interrogar, consultar, questionar:
os poderes do sagrado, pelo procedimento oracular ou a interpela­
ção mística; a vítima, pela interrogação de seu cadáver, e o suspeito,
pela prova ou o juízo de Deus; as conjunturas nefastas ou críticas,
por técnicas divinatórias. Estas são múltiplas, e vão do recurso à in­
tuição profética (verdadeira iluminação interior) aos condiciona­
mentos psicológicos, que dependem do sono ou do transe, da inter­
pretação dos signos propostos pela natureza (estado ou comporta­
mento dos animais e vegetais, modificações de objetos e de seres
inanimados) aos procedimentos cultos que fazem uma adivinhação
às vezes ser qualificada de “matemática”, à leitura dos presságios e
dos fenômenos extraordinários, segundo uma tabela de referência.
Uma adivinhação intuitiva, inspirada, essencialmente expressa pela
palavra, distingue-se da adivinhação indutiva, fundada na observa­
ção, no raciocínio, na decifração de conjuntos de signos ou figuras
portadores de mensagens, de informações. A primeira resulta de
uma comunicação direta, revelando-se por meio de uma anomalia ou
de uma desordem interior, que afeta indivíduos predispostos, ou
preparados para esta função, ou eleitos; aparece por meio de uma
iluminação ou de um transe. A segunda é instmmental, associada à
concepção de uma ordem do mundo fundada sobre correspondên­

98
cias (como na astrologia), ou a uma ordem da sociedade segundo a
qual são relacionadas as principais situações críticas e suas causas
(como na geomancia). O saber prevalece sobre a escolha, ao contrá­
rio daquilo que provoca a adivinhação inspirada. Mas, nos dois
casos, ordem e desordem estão em jogo. E, por esta razão, os pode­
res impõem seu controle estrito aos que praticam a adivinhação: a
eles se ligam ou se aliam. Nas civilizações antigas da Europa e alhu­
res — da China à índia, à Mesopotâmia, à América pré-colombiana
— , o staff divinatório dependia do soberano e se unia às tradições
sacerdotais. Na África ocidental, o “contador de coisas escondidas”
tem, lado a lado com um saber técnico, o conhecimento dos mitos e
outros componentes da tradição oral, sobre os quais seu saber se
apóia; a longa experiência coletiva esclarece sua interpretação. Ele
exerce uma arte à disposição de todos; nas sociedades estáticas,
hierarquizadas, ocupa apesar disso um lugar elevado no séquito do
soberano e dos personagens notáveis. Assim é na região do Benim,
por exemplo, onde uma realeza muito complexa é associada a um
sistema de geomancia de abundante riqueza, governado por Fa, a
figura do destino. Todas as precauções tomadas não conseguem
dominar inteiramente as forças contrárias e os geradores de desor­
dem, não conseguem conter os ataques do desconhecido e das
potências ocultas. Há que agir não somente através dos ritos de con­
juração, mas também identificar os lugares e os personagens porta­
dores de riscos.

Os lugares e as figuras

O imaginário, a simbólica, o rito impõem sua marca nos luga­


res; regem uma topologia a que se opõem o imaginário e o extraordi­
nário, o normal e o anormal ou o monstruoso, o espaço humanizado
e os aléns onde o homem se encontra em perigo, entregue ao desco­
nhecido. Esta apropriação mental do espaço diferencia uma nature­
za ainda selvagem, sítio das forças e das potências as mais diversas,
e os lugares ordenados onde o homem é mais dono do jogo na medi­
da que tais lugares resultam de seu trabalho. Trata-se da oposição
entre a savana e o vilarejo, ou, mais abstratamente, entre o de fora e
o de dentro; a natureza encontra-se assim dotada de uma existência
sobrenatural, e por isso menos entregue à possessão dos homens do

99
que estes à lei das potências que ela encerra. Na Europa, na literatu­
ra medieval e na cultura popular oral, os sítios naturais são ocupa­
dos mais por seres fantásticos que por animais selvagens. A floresta
se transforma em território perigoso ou em lugar de terror; onde
nem todas as fadas são boas (por exemplo, as damas verdes que
apavoram os homens e os perseguem), onde os animais podem se
transformar, onde lenhadores e carvoeiros mantêm um comércio
com os espíritos das árvores e adquirem os poderes dos feiticeiros e
chefes de lobos, onde os heróis das fábulas submetem-se a provas
enfrentando monstros de aparência humana ou animal. A floresta
não é vista somente como um espaço ainda desgarrado da atividade
ordenadora e do controle dos homens, ela é nela mesma outro
mundo, tem uma ordem própria na qual nada se reconhece enquan­
to ordem humana, e, por esta diferença absoluta, a floresta ameaça
o homem. É um território quase desconhecido, onde a exploração e
a proeza engendram heróis e personagens extraordinários. O campo
não é menos povoado imaginariamente, na periferia das aglomera­
ções se dá a comunicação entre os dois mundos, o de dentro e o de
fora. Lá estão as fadas más que freqüentam os barrancos, os atalhos
estreitos, as entradas dos vilarejos; a noite é o seu reino, quando
podem roubar as criancinhas, agredir os que passam apressados,
perseguir os que dormem. Também lá estão, em ataques noturnos,
as criaturas mais temíveis, meio homens, meio animais. É a espécie
dos lobisomens e outras transfigurações animais: os homens as
criam por má sorte de nascença, por um crime impune ou um pacto
com o Maligno. Os lobisomens se confundem com as pessoas co­
muns durante o dia, vivem e trabalham entre elas; mas, quando che­
ga a noite, cobertos de uma pele de animal, que lhes confere o su-
perpoder e a impunidade, eles se alimentam dos seres vivos. Em ca­
sos diferentes, a desordem e os males e a morte resultam da não-se-
paração de dois mundos bem distintos (a natureza selvagem/a cida­
de organizada), da hibridação dos seres e da confusão das catego­
rias (as do bem e do mal).4
A interpretação do espaço imaginário a partir de um corpus
homogêneo de narrativas leva a precisar melhor essas relações em
sua complexidade e ambivalência. É com esta intenção que Mareei
Drulhe propõe a análise de um conjunto de contos de fadas proven-
çais recolhidos em Sault, pequena região de Aude. O estudo mostra

100
como as narrativas tratam a relação de dois espaços (o do microcos­
mo social, o do mundo caótico), a relação de dois universos ou cam­
pos (o dos homens, o do animal e o do monstro) e a questão de seus
respectivos limites. O sistema de oposições, há pouco mencionado, é
central. O espaço policiado, ordenado, corresponde ao vilarejo, à
cidade e seus arredores imediatos: é o que se situa “sob a égide da
lei e do poder", mas que não suprimem os males, as injustiças e as
pilhagens sociais, as calamidades. O espaço caótico é “designado
pela extensão florestal e a extensão aquática ou próxima da água”; é
o lugar da vida animal, o refúgio dos monstros e dos homens rejeita­
dos, de identidade inquietante, o sítio das energias misteriosas e dos
poderes. Esta topologia imaginária não se reduz todavia a uma
representação dualista da espacialidade. Os dois universos têm limi­
tes incertos; bordas mal definidas os separam, passagens estão aber­
tas de um lado para outro — fronteiras a ultrapassar mediante pro­
vas. Do espaço policiado ao espaço da desordem integral, o dos
monstros, são traçados espaços de transição onde o desordenado se
manifesta dentro da ordem, e onde a desordem permanece ordená-
vel. Mais significativa ainda é a recusa em excluir totalmente da
organização a presença do não-ordenado: “O microcosmo não rejei­
ta, não exclui o caos... ele o inclui para dominá-lo, para vigiá-lo, para
controlá-lo, às vezes reprimi-lo; ele o inclui delimitando-o, mas dei­
xando a comunicação possível..."5 De um lado, a desordem não é
redutível, é preciso dar-lhe um lugar, tê-la sob controle, utilizá-la
também — tarefa dos heróis que convertem o negativo em positivo.
De outro lado, a desordem extrema, o caos, pode invadir o domínio
da vida social e desregular sua ordem. O espaço imaginário é iso-
morfo do da sociedade, campo de relações em que a ordem e a
desordem coexistem em constante confrontação, onde a Lei enfren­
ta as forças destrutivas e resiste à degradação do tempo.
É bom lembrar que todas as sociedades tradicionais imprimem
fortemente sobre os lugares conhecidos as significações exigidas por
seu imaginário, seus sistemas simbólicos e suas práticas rituais. As
da África ocidental, no caso, revelam-se de uma rara criatividade; os
mitos, as literaturas orais, os sistemas de representações o demons­
tram e são objeto de interpretações antropológicas cada vez mais
elaboradas. A oposição entre os espaços sobre os quais os homens
inscreveram sua ordem e os espaços de natureza ainda selvagem se
mantém. O status do caçador freqüentemente a manifesta; ele é
uma figura singular, submetida a dificuldades rituais específicas,
ambígua em razão de sua convivência com as potências externas e
com a morte. Nos mitos fundadores de um poder novo, o caçador
surge freqüentemente sob o aspecto de um desconhecido, vindo de
um país longínquo e desabitado onde as provas têm uma função ini-
ciadora, que o capacitam à realização das façanhas e o elegem no
momento de sua chegada (ou de seu retomo) entre os homens: ele
se toma o artesão de uma ordem refeita e considerada superior, na
medida que adquiriu esses dons, percorrendo espaços não submeti­
dos à lei humana. Figura mediadora, o caçador mítico fundador
revela passagens entre o mundo socializado e o selvagem; é aliás
passando deste para aquele que ele pode ter acesso a poderes fora
do comum e os demonstrar. Essas comunicações, os homens estabe­
lecem necessariamente. Sua produção determina os avanços no
âmago da natureza selvagem, introduzindo uma diferenciação
segundo os espaços ainda submetidos a seu controle: do vilarejo até
as zonas de atividade mais em contato com o espaço inculto se ele­
vam gradativamente os riscos, e se multiplicam as proteções rituais.
A comunicação se cria igualmente por necessidade simbólica, os
dois elementos do símbolo associando o social e o não-social. O ani­
mal às vezes mostra-se aliado do homem, seu gêmeo conforme a tra­
dição dos dogons, seu parceiro na savana; na maioria das vezes, o
mundo animal se divide segundo os critérios do positivo e do negati­
vo, do bem e do mal, da conformidade e do nefasto, da ordem e da
desordem: manifesta assim os enfrentamentos dos quais a sociedade
é o campo, os equilíbrios e os desequilíbrios que disto resultam, os
jogos de vida e de morte nos quais tudo se converte. Do mesmo
modo, a árvore pode se tornar um aliado, na medida que a floresta é
vista como o sítio das potências temíveis, o território onde comba­
tem os heróis e anti-heróis. Em um número significativo de contos
(África ocidental e África banto), a árvore intervém enquanto mé­
dium, agindo por esperteza e magia em proveito do herói — através
do qual a ordem se restabelece com a reafirmação da regra. Enfim, a
comunicação dos dois mundos se efetua por necessidade ritual. As
iniciações masculinas realizam-se fora dos lugares habitados, à dis­
tância e ao abrigo dos olhares inoportunos, em instalações provisó­
rias destruídas no final do ciclo iniciático. A operação é conduzida

102
em contato com a natureza, no momento em que é preciso submeter
a própria natureza do homem à lei social e, geralmente, dar ao ini­
ciado um lugar apropriado à ordenação da sociedade e da cultura.
Esta passagem pelo mundo selvagem, esta morte simbólica que faz
desaparecer no iniciado um estado ainda natural, condicionam o
pleno acesso à sociedade, a entrada em um mundo onde prevalece a
ordem humana. A ordem não é dita, só se traduz por referência ao
que não é ordem; a savana empresta seu sentido, sua possibilidade
de estar na ordem policiada. As duas instâncias podem aliás coexis­
tir em lugares onde o sagrado os une em sua diferença absoluta,
onde sua relação é geradora de significações, e sua aliança uma
necessidade imprescindível à coletividade, sem a qual esta ficaria
sujeita aos riscos de degradação. Os bosques sagrados, onde moram
os deuses e os espíritos reverenciados, e cujo acesso é rigorosamen­
te controlado, estabelecem esta conexão, principalmente entre as
civilizações do Benim.6
A desordem e o caos não estão somente situados, estão exem­
plificados: à topologia imaginária, simbólica, associa-se um conjunto
de figuras que manifestam sua ação dentro do próprio espaço poli­
ciado. Figuras ordinárias, no sentido de que se encontram banal­
mente presentes dentro da sociedade, mas em situação de ambiva­
lência por aquilo que é dito delas e aquilo que elas designam. Com­
plementar e subordinadamente, elas são o outro objeto de descon­
fiança e de medo em razão de sua diferença e de seu status inferior,
causa de suspeita e geralmente vítima de acusação. Ocupam a peri­
feria do campo social no sistema de representações coletivas domi­
nantes, muitas vezes em contradição com sua condição real e o re­
conhecimento de fato de seu papel. Tais figuras são instrumentos de
ordem ao mesmo tempo que agentes potenciais da desordem. A
mulher, o filho mais novo, o escravo ou o cativo, o estrangeiro — uti­
lizados como significantes — estão entre as figuras mais freqüente­
mente exploradas pelas culturas das sociedades tradicionais.
Em primeiro lugar, e em completa ambivalência, a mulher. Mais
que o homem, ela está ligada ao mundo natural; a topologia imaginá­
ria a coloca nos confins da natureza e da cultura. Ela detém o poder
da fecundidade, o que lhe permite criar, reproduzir, ser a origem de
uma descendência. Poder original que não pode ser desviado, que
numerosas tradições africanas manifestam ao evocar uma época ini­

103
ciai durante a qual as mulheres, detentoras do poder sobre os
homens, dele abusaram e dele foram subtraídas. Tal subtração res-
veste-se de formas múltiplas, efetuando-se principalmente nas práti­
cas de iniciação masculina que apresentam o nascimento social, que
elas realizam como superior ao nascimento biológico; o parto meta­
fórico do qual os homens se encarregam exclusivamente prevalece
e, com ele, o masculino sobre o feminino. Mais significativa é a con­
versão do poder de natureza que possui a mulher em um poder
negativo, nefasto, inerente à natureza feminina: o positivo (a capaci­
dade de reprodução) se transforma em negativo Ca impureza conta­
giosa); o sangue da vida se degrada em sangue da sujeira e da polui­
ção. Assim, entre os Lelê do Zaire, o acesso à floresta está proibido às
mulheres — a floresta enquanto espaço perigoso do qual os homens
têm a apropriação — em todas as circunstâncias em que sua impure­
za aparece mais ativa, na época da menstruação, e também perto de
um nascimento ou um contato com a morte surgida em seu meio. No
espaço tradicional, toda a formação dada às jovens africanas, forma­
ção nem sempre requerida, leva a domesticar a natureza da mulher
e a relação desta com as coisas da natureza: a sexualidade e a repro­
dução, a terra e a produção, os alimentos e a cozinha.
É sobretudo pela sexualidade que a ambivalência da figura
feminina se expressa, mesmo que uma grande liberdade sexual seja
atribuída à mulher. Entre os massais do Quênia, a jovem não casada
é totalmente livre sexualmente; em seguida, feita a excisão, já socia­
lizada, ela se torna uma esposa cuja liberdade é restringida. A fragili­
dade das estruturas sociais, a ordem, considerada precária, reque­
rem obstáculos ao poder demolidor do desejo. Entre os balantes da
Guiné, enquanto a sexualidade livre do homem casado se mantém
sem limites ou dificuldades, a da esposa existe — reconhecida
enquanto compensação que equilibra o casamento, realizado sem
possibilidade de escolha, discriminação sexual e exclusão das ques­
tões públicas — , mas em um quadro de condições estritas, sobretu­
do as que permitem respeitar as aparências e satisfazer a exigência
de submissão em relação aos homens. Aqui, um lugar determinado é
atribuído ao desejo feminino, e o termo que denomina esta liberdade
condicional significa ao mesmo tempo o desejo e a inclinação amoro­
sa. Entretanto, este quinhão de liberdade é essencialmente entendi­
do como forma de entravar uma liberdade total que seria geradora

104
de desordem, como um meio de manter a ordem do parentesco e
das alianças, reduzindo os riscos de conflito e a degradação das rela­
ções. As representações masculinas do feminino, na cultura dos
mandenkas senegaleses, estabelecem uma equivalência (aliás banal)
entre a mulher e a natureza selvagem, e lhe atribuem o aspecto do
inesperado ou do perigo. Se a virilidade, com o poder de ordem que
lhe é atribuído, consiste em “exercer seu império sobre a mulher” ,
esta não tem menos a capacidade de atacar insidiosamente, sobretu­
do ao submeter o homem à tirania do desejo a fim de destruir seu
poder social e corrompê-lo. A mulher é comparada à serpente mítica
que não morde, mas engole. A desordem amorosa devora a ordem
geral da sociedade. O adultério é sempre reconhecido enquanto
desordem social; a mulher, porque sua fecundidade e sua função
instrumental a serviço da máquina social estão em jogo, carrega o
peso da culpa mais pesada: segundo a antiga tradição dos fangues
do Gabão, seu corpo nu e às vezes seu sexo deveriam sofrer uma
sanção pública, um castigo mutilante. O incesto é pior: transgride a
lei fundamental do ser vivo; além da ordem social, ameaça a ordem
dos seres e do mundo. Segundo esta interpretação, seus efeitos con­
tagiosos levam ao caos e à morte; traz a doença que afeta os homens
e os animais e o esgotamento das fontes da vida, desordena e espa­
lha a esterilidade. O sexo conjugado ao incesto chama a morte,
arruina a fecundidade e destrói a sociedade. Não basta opor-lhe uma
sanção, é preciso construir as barragens rituais que reduzem o con­
tágio desastroso e permitem uma difícil reordenação.
A incerteza em relação ao ser da mulher se manifesta na maio­
ria das culturas. O imaginário grego, pela intermediação dos mitos,
já revela uma certa interrogação sobre uma alteridade inquietante.
A figura da mulher guerreira, a amazona, exprime isto sob três
aspectos: o da feminilidade perigosa; o da inversão dos papéis
sexuais e da exclusão dos homens da reprodução, roubando o seu
sêmen e a geração unicamente de meninas; o da barbárie, do retor­
no ao estado selvagem pela recusa dos valores masculinos que ins­
tituem a Cidade. Uma parte da feminilidade parece desse modo
estar ligada à regressão e à desordem. A relação de incerteza recai
principalmente sobre a natureza da mulher. Esta, segundo os lug-
baras da Uganda, deve ser definida como o inverso da natureza
masculina, o que a coloca do lado das forças que agridem a ordem

105
social, que operam às ocultas e corroem tudo por dentro, na medi­
da que o procedimento da inversão serve para designar o anormal,
o anti-social, o mal insidioso. O que aparece claramente na topolo­
gia imaginária lugbara é a localização da mulher nas margens, nas
entradas, lá onde se efetuam as passagens do social para o selva­
gem, do tempo histórico ao tempo mítico, das pessoas para as coi­
sas, do religioso para a magia negra. Fronteiriça, a mulher é ambi­
valente; ponto de convergência das forças naturais e das forças
sociais, sempre ameaçada de ser arrancada da natureza. A incerte­
za relativa à sua natureza faz dela uma aliada incerta da ordem
essencialmente masculina.
Por ela, a linguagem da fecundidade e a linguagem do sangue
exprimem a conjugação do positivo com o negativo, da vida com a
morte. Fecunda, a mulher detém um poder cujo bom uso, evidente­
mente necessário ao equilíbrio da coletividade, não é nunca inteira­
mente assegurado. A perversão e a degradação deste poder eqüiva­
lem a um risco mortal, a uma esterilidade que condena o grupo ao
desaparecimento. Um conto africano muito difundido — o da moça
sem mãos, ou mutilada, ou hermafrodita — manifesta a obsessão
com este tema. O conto dramatiza uma angústia latente, a de uma
dúvida obsedante quanto à realização da fecundidade feminina. A
falta é relacionada com os desequilíbrios naturais e sociais, com o
aparecimento da desordem; a única forma de afastar esta fatalidade
é a aliança com as potências, divindades ou espíritos capazes de rea­
vivar a fecundidade, restaurando a ordem. Envelhecida e estéril, a
mulher ainda permanece um enigma; ela está de uma certa maneira
desfeminilizada ou híbrida: uma “mulher-homem”, como se diz às
vezes, um ser de identidade sexual ambígua. Ela tem acesso a ativi­
dades (sobretudo rituais) antigamente proibidas. Ela é respeitada,
mas igualmente temida, na medida que poderes extraordinários lhe
são atribuídos, os da magia e, às vezes, os da feitiçaria. No imaginá­
rio e nas representações transmitidas pelas tradições africanas, não
aparece a figura feminina inteiramente positiva: a mãe pode se tor­
nar “devoradora” , a esposa, perturbadora, agressiva, sexualmente
insaciável, e as co-esposas geradoras de problemas em razão de suas
constantes brigas. As mulheres constituem a metade perigosa; sob o
efeito de muitas de suas intenções, a ordem (masculina) se altera.
Existem discursos que tornam ainda mais complexas as espe­

106
culações sobre o sangue da mulher, sobre a ferida interna que asso­
cia a feminilidade ao sangramento — enquanto que os homens estão
associados aos derramamentos de sangue que resultam de seus
atos, de uma intervenção externa: a caça, a guerra e o homicídio, o
sacrifício, as feridas de iniciação. O sangue da mulher (o sangue das
regras, do parto, dos lóquios) é portador de perigo, objeto de inter­
dições as mais imperativas: a infração ao resguardo pode ser da
mesma natureza, geradora dos mais altos riscos, igual à que afetaria
a relação com as potências religiosas (os deuses, os espíritos e seus
altares) ou com o poder político (o soberano estabelecido pela
sacralidade). Os joolas senegaleses definem muito claramente essas
situações de incompatibilidade, de separação e de exclusão. A
mulher menstruada é levada a viver à parte; ela não pode nem tocar
nem cozinhar os alimentos; não pode ter relações sexuais; fica afas­
tada dos homens, os quais contaminaria, e dos lugares sobre os
quais ela teria uma influência nefasta. O parto é proibido na casa da
mulher, pois o sangue derramado nesta circunstância é o veículo
para calamidades extremas. O sangue da vida é também o da conta­
minação e do mal, uma energia negativa e destruidora. Se a partu-
riente se deixa surpreender, é preciso eliminar ritualmente a polui­
ção ou, em certos casos, destruir sua casa, incendiando-a. Tais proi­
bições se encontram na maioria das sociedades antropologizadas.
Mas o mais significativo é a ambivalência desses sistemas de repre­
sentações, dessas classificações segundo as quais ficam divididos o
fausto e o nefasto, a vida e a morte, a ordem e o caos. O sangue da
menstruação, segundo palavras de Mareei Griaule, mistura em “um
mesmo lugar o melhor e o pior”; traz a promessa de vidas novas ou,
ao contrário, o risco da doença, do enfraquecimento e da esterilida­
de. O sangue do nascimento pode ser assimilado ao do sacrifício;
refere-se desse modo a algo que está além do mundo dos homens (o
das potências), aos territórios da sacralidade, com a ambivalência
própria desta, com o sistema de forças sobre as quais é preciso agir,
a fim de nutrir a ordem da desordem e a vida da morte. O nascimen­
to africano está aliás associado com freqüência a uma morte metafó­
rica. Em seu percurso biológico, indissociável de seu percurso
social, a mulher aparece como o s ign ifica n te p o r excelência,
mesmo se ela se encontra reduzida legalmente à condição de ser
subordinado ou de coisa. É a partir do discurso sobre o feminino

107
que a sociedade é pensada em sua ordem e naquilo que, nela, pode
se voltar contra ela.7
O filho mais novo é a segunda das figuras marcadas pela ambi­
valência, ainda que em menor grau. As relações de desconfiança, de
enfrentamento e de rivalidade entre as gerações masculinas estão
em todos os tempos e em todos os lugares; delas nascem as lutas
insidiosas e os conflitos, a contestação e o movimento, o corte e a
oposição, segundo uma fórmula de Robert Lowie, um dos fundado­
res da antropologia americana. As tradições orais africanas, que uti­
lizam esse registro de referências na apresentação das imagens do
feminino, dão, também neste caso, uma informação significativa. Os
conflitos, que conferem ao relato uma intensidade dramática, são
freqüentemente os que opõem o irmão mais velho aos mais novos,
pais aos filhos, tios maternos aos sobrinhos. Os bumas do Zaire rela­
cionam esses antagonismos, todos presentes em sua sociedade, a
uma teoria geral que faz do enfrentamento a lei de toda vida, e do
equilíbrio encontrado neste jogo de oposições o estado normal das
coisas e da sociedade.
No campo de uma teoria mais específica, o mais novo — des­
cendente ou júnior no seio em uma pátria de irmãos — se define
mais em termos sociais que em termos de natureza. A identidade de
sexo toma mais difícil o recurso a essa segunda linguagem. O que
fica disto é a relação de criação, a relação de genitor e filho, desde
que se os considere em sua significação biológica (o que nasce do
sêmen do pai) e na sua extensão metafórica. Os bwas do Mali e de
Burkina ilustram claramente esses dois aspectos. A figura paterna
simboliza a potência, o poder, a autoridade; está dito: “A palavra do
pai tem força porque ele é pai; ele criou; o filho nada pode contra a
força de seu pai.” Com o passar do tempo, esta representação do pai
se aplica ao pai social que governa a unidade familiar no todo, ao
mais velho dos irmãos, considerado mais próximo do tronco, ao ho­
mem em posição de proximidade genealógica em relação a um
ancestral, e ao grupo oriundo do fundador da comunidade. O dado
discriminador é o fato de ser na origem, de ter engendrado ou fun­
dado, e, de um modo mais geral, de ter precedido. A condição bioló­
gica do mais velho informa, por metáfora, a condição social; as duas
são criadoras de diferenciação, legitimam posições de dominação e
os privilégios a elas ligados. Os desafios são os da desigualdade, jus­

108
a unautiULM

tificada em termos de natureza e ordem social, no acesso aos circui­


tos matrimoniais, às riquezas, aos poderes e aos bens simbólicos.
Mas eles não são da mesma natureza na relação entre pais e filhos
(reais e metafóricos) — a condição do mais velho está aqui aberta,
pois permanece acessível no curso das sucessivas gerações — e na
relação entre os mais velhos e os mais novos (reais e metafóricos)
— a condição do mais velho está aqui fechada, estabelecendo uma
superioridade irreversível em seu proveito. Por esta razão, a figura
do irmão mais novo ilustra bem a desordem que pode surgir da luta
entre gerações.
Os lugbaras da Uganda ou do Zaire traçam uma nítida separa­
ção entre os mais velhos e os mais novos ou jovens, ainda que as
diferenciações no interior desses dois conjuntos só apareçam de
forma conjuntural. Os mais velhos dispõem da autoridade, do saber
e dos segredos do saber, do poder de interceder junto aos ances­
trais; eles detêm os meios para conhecer a ordem e a preservar. Os
mais novos estão sujeitos ao medo e ao respeito, devem seguir à
risca as condutas codificadas, a conformidade; faltas sucessivas
designam um homem “mau” que “destrói” a linhagem, depois a
comunidade, e que incorre por isso em uma sanção mística. A guer­
ra insidiosa entre as duas classes de idade situa-se, principalmente,
no campo do sagrado e da feitiçaria, tal como necessariamente
acontece quando os princípios da ordem social estão em jogo. Os
mais velhos ameaçam invocar os espíritos dos ancestrais a fim de
sancionar (e abolir) toda infração grave. Ao contrário, os mais novos
recorrem à acusação de feitiçaria para se opor ao que julgam ser um
abuso de poder. Duas linguagens são assim utilizadas: a da religião,
pela conformidade, e a da feitiçaria, pela contestação. Os Lelê do
Kasai, província do Zaire, conhecem uma mesma forma de hostilida­
de entre gerações masculinas, com os mesmos efeitos; inúmeros
conflitos se exprimem em termos de agressão contra os homens
jovens. Os seniores dispõem dos mecanismos de controle social, eles
têm o sistema nas mãos; os juniores fazem da acusação de feitiçaria
uma arma defensiva, usada até para ameaçar a separação da comu­
nidade, a fim de escapar ao ataque insidioso. Por essa reviravolta, os
jovens tornam-se promotores de perturbações e de desorganização,
e os velhos lhes atribuem essa culpa. O essencial encontra-se entre­
tanto na tradução do confronto em uma oposição religião/feitiçaria,

109
que é, no caso, o dublê da relação ordem/desordem. Neste jogo
duplo, o mais novo exerce uma função de operador principal.8
O escravo e o estrangeiro, associados ou confundidos, com­
põem uma terceira figura à qual a desordem pode ser relacionada. O
suporte é a alteridade absoluta. A história da escravidão é longa —
ela cobre vários milênios — e trágica; não é uma história unificada,
pois remete a condições diferentes em que o escravo se encontra
reduzido, seja ao estado de coisa, de mercadoria, de simples repro­
dutor de seus semelhantes, seja porque ele se beneficia de direitos
que o colocam em um estado intermediário entre a servidão e a
liberdade. Por trás do pano se mantém todavia um discurso sobre o
próprio ser do escravo, repetido ao longo do tempo e em todo espa­
ço das diversas civilizações escravocratas: desde Aristóteles que, na
P olítica , considera que “a utilidade dos animais privados e a dos
escravos é mais ou menos a mesma”, até santo Tomás de Aquino,
para quem não poderia haver justiça precisa entre um senhor e seu
escravo, e até os teóricos do século XVIII que, ao classificar os seres
vivos, colocam em relação ao escravo a questão da fronteira entre o
homem e o animal.
Tudo começa por esse vínculo incerto, essa localização do
escravo em uma região onde a natureza e a sociedade não são mais
nitidamente separados: ele é uma força (natural) de reprodução e
produção. Aparece como nascido da violência, da guerra, da captu­
ra, do preço do sangue, da expulsão imposta pelo grupo que o con­
denou e o rejeitou; essa violência, que o constitui, permanece de
alguma forma ligada a ele, e ele tem de sofrer as conseqüências de
sua terrível lei. Restituído ao mundo dos homens, é assimilado às
coisas de valor, ao que é negociável, às riquezas; pode se tomar o
penhor (por um tempo) para um empréstimo, ou a compensação
(definitiva) que salda uma dívida. Quando seu estado não comporta
nenhum abrandamento, o escravo é inteiramente des-socializado;
perdeu tudo o que definia anteriormente seu vínculo com uma
sociedade, um grupo, um parentesco; alguns procedimentos — algo
como iniciações ao contrário, que extinguem a socialização em vez
de efetuá-la — realizam às vezes este arrancamento. O único laço é
o da servidão, o escravo é estrangeiro ao universo social onde a má
sorte o colocou. Os kongos da África central, onde a escravidão
interna e o tráfico foi numericamente importante e durou muito

1 1 0
tempo, dizem que o escravo não tem o “nascimento”: não pertence a
um clã e, por esta razão, não dispõe nem da liberdade nem da exis­
tência social que dela resulta. É definido em termos de localização
(chamam-no de criança do povoado) e de apropriação (ele é o bem
de uma linhagem). Esta condição só mudaria para sua descendência
por meio de um casamento com uma mulher livre, na medida que
esta faz a contribuição de liberdade com aquele que é do seu san­
gue. Além disso, o resgate restituiria para todo escravo seu estado
anterior: a transação transformava o bem em sujeito, que recupera­
va sua identidade e sua capacidade sociais. Esta saída permanecia
na maioria das vezes fechada, pois correspondia a uma perda para o
grupo escravocrata, enquanto que os procedimentos que conferem
um statüs intermediário manteriam o efetivo e criariam devedores.
O escravo é tido como um indivíduo de “lugar nenhum”; é em
parte um ser da natureza (quase animal, quase unidade de um gado
arrendado), uma coisa e uma mercadoria, um estrangeiro e o ele­
mento constitutivo de uma ordem econômica e social, um homem
de identidade extinta mas, em princípio, recuperável. A incerteza
quanto à sua identidade o faz temido, e torna sua função incerta na
gestão da ordem e da desordem. Ele manifesta essa incerteza sub­
metendo-se a uma lei terrível e mantendo constantemente presente
a ameaça de uma redução a seu estado servil — à morte civil. O
escravo não está menos associado à desordem: as faltas do senhor
podem lhe ser atribuídas (é um culpado-emissário), e ainda mais às
manobras de feitiçaria. Durante muito tempo carregou este fardo
suplementar: os kongos viam em tais acusações a solução “mais sim­
ples e menos perigosa”. A figura do escravo fugitivo é, aliás, por
causa de seu retomo à natureza selvagem e à sua condição de erran­
te, a figura de um feiticeiro; nas Antilhas, as imagens do negro mar­
rom e do “quimbandeiro” ainda se confundem no imaginário.9

O exercício da feitiçaria, a desordem disfarçada

Nos espaços imaginários das sociedades tradicionais, o feiticei­


ro está muitas vezes em oposição a duas outras figuras: a do sobera­
no e a do perturbador. Como o soberano, o feiticeiro está separado,
estabelecido na diferença absoluta, até em seu corpo (aliás interro­
gado durante o procedimento da acusação); é também detentor de

1 1 1
poderes — quando o poder não existe — que lhe permitem coman­
dar as forças, agir sobre o mundo, as coisas, os seres vivos, os
homens; mas sua potência é destruidora, manifesta-se por meio do
mal, da doença, da dor, das desordens e da morte. Já o soberano
governa e mantém a ordem geral, porque definido e legitimado pela
tradição, que o conserva ao converter positivamente tudo o que
poderia desfigurá-lo ou degradá-lo. Como o perturbador, herói míti­
co ou deus, cuja função é confundir, e Dionísio é o exemplo clássico,
o feiticeiro pode passar dos limites, estabelecer a desordem e jogar
com ela, abolir as proibições e embaralhar todas as diferenças. Mas o
perturbador introduz a liberdade e o movimento da vida para criar
uma desordem fecunda. O feiticeiro, não, faz aparecer uma liberda­
de negativa, ele a utiliza para produzir o caos e a destruição. Os tem­
pos de grandes incertezas lhe são propícios: no Ocidente, no final da
Idade Média, geradora de um mundo em transição onde os exorcis­
tas sempre reconheciam o trabalho da desordem e do mal; e em paí­
ses às voltas com a dominação colonial e a modernização, onde as
práticas de feitiçaria se multiplicam, e os movimentos antifeiticeiros
nascem de um medo difuso.
A feitiçaria designa a desordem escondida em toda sociedade,
manifesta-a pelos efeitos que produz, utiliza-a e a desenvolve; nesse
sentido, amolda-se de acordo com a ordem que deseja destruir, e
sua forma varia portanto em função das configurações culturais no
interior das quais dá-se sua prática. A feitiçaria é diversa, como suas
figuras; estas se dividem entretanto em duas grandes categorias: a
das pessoas cujo ser é o próprio feiticeiro, pessoas nascidas para o
mal, e a das pessoas que têm acesso à arte nefasta e ao conhecimen­
to do lado “escuro”, através de uma formação oculta. É o inato e o
adquirido colocados a serviço da negação da ordem. O ordenamento
dos seres e das coisas fica ameaçado pelo instrumento de agressão
dirigido contra os indivíduos, os que os cercam e seu meio ambiente
imediato. Tão diversa quanto as culturas, a feitiçaria não tem menos
características comuns enquanto sistema de representações, sabe-
res e práticas.
A feitiçaria remete a uma visão de mundo (que não é a imagem
invertida do mundo ordenado e governado), bem como a uma con­
cepção da pessoa e das forças que agem sobre ela. Os ezuvoks de
Camarões, pertencentes ao grande conjunto cultural fangue, organi­

1 1 2
zam seu sistema simbólico ao redor da noçào centrai ao evu, ueimi-
da como uma potência qualitativa não diferenciada e utilizável de
maneira positiva ou negativa. Os homens podem ser ou não detento­
res deste poder. Os que não o possuem situam-se “do lado da
ordem, do dia, da luz", ao lado de Zemba, ancestral fundador, fonte
da lei do clã. Os que possuem evu ficam então fora desta ordem;
entre eles, alguns se opõem pelo uso nefasto de seu poder: são os
feiticeiros, criaturas da noite, agressores e agentes anti-sociais; os
outros, que praticam uma arte (uma magia) benéfica, têm uma fun­
ção social, contribuem para integrar o risco, o acontecimento, o
novo ao cosmo mantido pelas gerações precedentes. Este exemplo
muito esclarecedor revela uma dupla divisão do mundo entre uma
ordem assegurada conforme a tradição ancestral, e uma ordem
incerta, dividida entre desordem feiticeira e movimento, que se
ultrapassam pelo efeito do imprevisto, da marcha contínua do tem­
po. Uma desordem destruidora coexiste com uma desordem capaz
de fortalecer a conformidade, e as duas com uma ordem ideal: a do
universo do clã, lugar de todos os acordos.
A pessoa feiticeira está dentro da sociedade, condições de sua
ação diluidora e destruidora exercida do interior, e dela está tam­
bém separada-, a sociedade torna-se-lhe estranha através do pró­
prio ser do feiticeiro, que o leva à recusa, à agressão indireta, à
manipulação das forças negativas. O feiticeiro aparece sob a forma
de um inimigo disfarçado, próximo e portanto dificilmente identifi­
cável. Ele é o mal — ou o Maligno, segundo a tradição cristã — dis­
simulado sob a banalidade: esta é sempre enganadora e deixa tudo
sob constante ameaça. Aquilo que o designa pertence ao mesmo
tempo à sua personalidade e a signos que lhe são associados. A per­
sonalidade, que faz os acusados potenciais, recebe da sociedade e
da cultura as características que lhe dão forma. Trata-se mais fre­
qüentemente de uma personalidade que o excesso discrimina, seja a
capitalização anormal de mulheres ou de riquezas, sucesso excep­
cional nas realizações, utilização exorbitante de um poder, ou, ao
contrário, infração repetida e provocadora, ligação com numerosos e
intermináveis conflitos, ou ainda desligamento pela marginalização
social voluntária ou sofrida. As circunstâncias que acabam de ser
mencionadas têm em comum o fato de permitirem a designação da
feitiçaria com base na superação de limites que definem o status (a

113
condição) de cada indivíduo, de um ataque aos equilíbrios precários
que mantêm as relações sociais. A feitiçaria nasce do excesso, da
não-conformidade, do conflito, da recusa era aceitar as restrições
próprias ao lugar que cada um ocupa na sociedade; por essas razões,
o jogo social fica emaranhado, sua regras se tomam mais confusas e
seus malogros mais aparentes. Assim é que existem sinais que apon­
tam para a suspeita de feitiçaria, mas é preciso que tal suspeita se
transforme em acusação verossímil. É tudo o que se relaciona aos
signos, à existência de um espaço onde se concentram as calamida­
des, as desordens, os infortúnios, os males e as mortes, e a que a
pessoa suspeita está manifestamente associada. Basta então conver­
ter a acusação verossímil em acusação possível; os procedimentos
de adivinhação ou as provas reveladoras (por exemplo, a do vene­
no), utilizadas para esta finalidade, parecem satisfazer a exigência
de neutralidade necessária a um processo “justo” . Mas todos os sus­
peitos não são iguais perante a acusação: as barreiras erguidas pela
instituição da desigualdade são pouco ultrapassáveis; os poderosos
podem ser suspeitos, mas são raramente acusados, têm substitutos
(o escravo, por exemplo). O processo de acusação se desenvolve
sob o controle do poder que dita a Lei e a ordem e gera a cura da
desordem insidiosa, ou o efeito feiticeiro, que não depende de trata­
mentos comuns.
Durante a fase oculta, a ação feiticeira é um drama com dois
personagens, o feiticeiro e sua vítima, aos quais um terceiro é acres­
cido, o acusador, durante a fase pública que leva ao processo e à
repressão. Toda teoria da feitiçaria vincula-se primeiro a uma ou
outra destas figuras. O acusador suscita uma teorização de cunho
mais sociológico; coloca em questão fatos de opinião, situações e
maneiras de interpretação, procedimentos e atos do poder legal que
reduzem a nada os utilizadores do poder negativo. As duas outras
figuras não são indissociáveis, o feiticeiro e sua vítima estão ligados
de tal maneira que pode se produzir uma interversão de papel ou
uma espécie de conivência. A feitiçaria só tem existência pela sua
relação, e cada uma delas dá um acesso diferente e em parte com­
plementar ao conhecimento do fenômeno. Marcelle Bouteiller, atra­
vés de uma pesquisa ao mesmo tempo atual e histórica, localizada e
extensiva, tentou “fazer um retrato geral do feiticeiro”; ele é duplo,
ao mesmo tempo social (o indivíduo maléfico está sempre à parte,

114
excluído) e sobrenatural (u personagem feiticeiro tira de um além
os meios para exercer seu poder: elementos, natureza selvagem,
mortos, forças ou entidades destruidoras). O discurso da vítima per­
mite chegar, pelo interior, à compreensão da crise feiticeira; é dele
que parte Jeanne Favret-Saada, e da seguinte constatação: “Se fala­
mos em termos de feitiçaria, é porque sem dúvida não podemos
falar de outra maneira.” Essa escolha de última instância, porque
não há outra possível, porque o saber comum não fornece respostas,
se efetua quando o infortúnio e os males se acumulam, se repetem,
atingem uma certa pessoa e não são explicáveis. Essa desordem do
curso da vida individual não pode resultar de uma intenção má, ser­
vida por meios que não dependem da ordem das coisas comuns. Os
acontecimentos nefastos não podem ser tratados separadamente, a
cura deve ser global, o feiticeiro e sua vítima estão unidos por uma
espécie de guerra secreta e total, onde a morte surge por caminhos
oblíquos, onde tudo produz efeito (as palavras, os olhares, os conta­
tos, os artifícios maléficos), onde as forças em jogo estão repartidas
de forma vantajosa para o agressor. É preciso compreender que a
feitiçaria existe em princípio pela certeza que tem o enfeitiçado de
ser vítima, pelo discurso que sustenta, a fim de dar um pouco de
sentido à sua má sorte. No limite, não é necessário que o feiticeiro
exista, basta supor que exista; o que faz dele uma pessoa imaginária,
uma persona fic ta , ao mesmo tempo que uma pessoa real sobre a
qual incide a suspeita. A dominação do imaginário é tão forte que o
feiticeiro desmascarado (ou apontado) acaba muitas vezes por ade­
rir à imagem negativa que lhe é imposta.
A feitiçaria tem uma parte ligada ao escondido, ao segredo, não
somente porque o feiticeiro permanece uma figura só parcialmente
real, cujo trabalho destruidor realiza-se na sombra, mas porque ela
indica o que escapa ao saber e aos poderes sociais estabelecidos.
Mostra o desconhecido, o incompreensível, manifesta forças não
domesticadas, na medida que revela a presença ativa de um acaso
cego e de uma desordem irredutível. Do ponto de vista da coletivi­
dade, tudo se joga sob um triplo registro: o do sentido — o discurso
feiticeiro está além dos sistemas interpretativos normalmente utili­
zados, impondo-se pela capacidade de explicar o inexplicável; o da
culpa — o discurso feiticeiro dá à sociedade tradicional a possibili­
dade de jogar a responsabilidade de seus malogros funcionais, suas

115
fraquezas, seu ineficiente domínio diante do acontecimento, sobre
atores humanos nefastos; o da ordem — uma vez resolvida, a crise
de feitiçaria contribuiu para restabelecer o equilíbrio pelo uso da
simbólica e do imaginário.
As comunidades definidas por uma tradição forte localizam seu
mal designando o feiticeiro; é um dos procedimentos que empregam
a fim de transformar o negativo em positivo, as forças geradoras de
desordens em forças de coesão social. O efeito é duplo. O temor, às
vezes o medo, que inspira o risco de ser suspeito de feitiçaria, traz
uma autocensura que reduz as tentações de revogações, corrige as
condutas, retifica a tempo os desvios provocadores de desorganiza­
ção. A dramatização sacrificial, que se desçnrola fora da busca e do
castigo do feiticeiro, cria uma intensa emoção coletiva e faz do agres­
sor identificado uma vítima expiatória. Ao designar publicamente,
depois ao eliminar o fator de crise — aquele considerado estranho
segundo os valores, as normas, os códigos sociais admitidos, e agente
do mal — , a comunidade se restabelece, a autoridade se reforça. A
culpa que recai sobre o feiticeiro inocenta todos os outros, em pri­
meiro lugar os poderosos; seu desaparecimento restitui provisoria­
mente uma sociedade que se crê purificada. O culpado é des-sociali-
zado, expulso ou coisificado (quando é reduzido à escravidão), ou
ainda condenado à eliminação física; então o corpo nefasto é coloca­
do ritualmente à parte, jogado no esquecimento, às vezes depois de
ter sido degradado e rebaixado ao estado de dejeto social poluente.
As sociedades da modernidade não eliminaram, mas mudaram a
forma desses expedientes. Os irredutíveis, por condição ou escolha e
convicção, foram considerados agentes nefastos ou inimigos do país,
como eram os feiticeiros do passado ou de outros lugares. Se sobre­
vêm uma crise grave, que pode se converter em uma espécie de crise
feiticeira, são publicamente designados e sacrificados para que a cole­
tividade reencontre uma coesão, e o poder um crédito. O racismo
confere uma ideologia, uma simbólica, uma carga emocional a essa
exclusão sacrificial. Somente as sociedades totalitárias dela fizeram
um componente de sua forma de governo, o elemento motor de um
sistema que impõe a submissão geral e total. Sua ordem é sacralizada
ao extremo; os fracassados e seus malogros são mostrados como obra
de criminosos de dentro e cúmplices de fora; a inquisição politica
aqui substitui a religião de antigamente. A ideologia totalitária retoma

1 1 6
« utBuitutm

as metáforas pelas quais alguns historiadores da Idade Média justifi­


cavam o absolutismo: o corpo dissidente deve ser separado ou des­
truído para que o corpo coletivo seja preservado da contaminação.10
Os períodos de transição, na medida que são portadores de
grandes perturbações e incertezas, são os mais propícios ao floresci­
mento das interpretações simplistas. Os homens admitem mal que a
história lhes impõe armadilhas, escapa-lhes e os leva a um futuro
cujo sentido lhes permanece oculto. Cada sociedade, segundo sua
própria cultura e o espírito de seu tempo, pode então fazer surgir
uma resposta sumária que acaba por beneficiar através de um crédi­
to, de uma credibilidade, e por se impor, na medida que cria as apa­
rências de uma explicação e de um remédio; é uma resposta aceita
por falta de outra melhor. No redemoinho que tomou a Europa com
o progressivo fim da Idade Média, com o lento desaparecimento de
uma concepção totalmente teológica do mundo, com a transforma­
ção da sociedade, das mentalidades e da cultura, desordens e males
sobrevêm em todos os lugares. E passam a existir efetivamente. A
linguagem do poder eclesial, na sua formulação mais repressiva,
nomeia então o mal: “a heresia de feitiçaria e a magia demoníaca”,
designando, assim, os agentes. Os tratados dos inquisidores fazem
deste tempo uma descrição catastrófica: a natureza é o espólio das
calamidades, seus benefícios se convertem em malefícios sob a ação
das más intenções; as relações entre as pessoas, fundadas sobre a
solidariedade hierarquizada das funções, abrem-se para influências
nefastas ao se modificarem; a grande família guardiã dos costumes
está pervertida: a mulher já não está mais no seu lugar, os homens se
entregam à fomicação, as crianças-monstros aparecem, as festas se
degradam em orgias; e mesmo a morte se espalha desordenadamen­
te, como uma violência injusta e louca. Tudo contribui para manifes­
tar o nefasto; esta desordem do mundo é maléfica, diabólica. É preci­
so feiticeiros (feiticeiras, sobretudo) para que o mal seja localizado e
impedido de se disseminar; é preciso que estes seres demoníacos
sejam executados e destruídos pelo fogo, para que o mal desapareça
com eles, para que haja um sacrifício de reparação diante de Deus, e
de purificação diante da coletividade. A recolocação do mundo em
estado entrópico como resultado do trabalho feiticeiro revela uma
escolha: a de uma sociedade fechada e estável, e não de uma socie­
dade aberta ao movimento, ao inesperado, capaz de responder ver­

117
dadeiramente ao desafio da desordem. Neste sentido, o exemplo
medieval tem descendência: outros redemoinhos históricos, inclusive
o atual, fizeram ou fazem com que suijam os simplificadores, os doa­
dores de sentido e de confiança, que manobram por meio da persua­
são e da dramatização, e os fornecedores de culpados.11

118
NOTAS

1. Para uma exemplifícação das idades e dos graus de iniciação, ver o


conjunto de estudos apresentado e dirigido por D. Paulme: Classes et asso-
ciations d'âjge enAfrique de l ’Ouest, Paris, Plon, 1971.
2. G. Simmel, “The Sociology of Secrecy and of Secret of Societies”,
Amer. Journal of Sociology, 11, jan. 1906. E, mais abrangentemente, a
obra dirigida por E. A. Tiryakian, On the Margin of the Visible, Sociology,
the Esoteric and the Occult, Nova York, John Wiley and Sons, 1974.
3. Ver o capítulo 1, seção intitulada: “O rito trabalha para a ordem."
4. Sobre esta topologia imaginária, simbólica e mítica, a literatura é
abundante, sobretudo a dos folcloristas. Ver, entre muitos outros títulos: H.
Dontenville, Histoire et géographie mythiques de la France, Paris,
Maisonneuve, 1973; M. Crampon, Le Culte de 1’arbre et de laforêt, Paris,
Picard, 1936; A. Corvol, L ’Homme aux bois. Histoire des relations de
Vkomme et de laforêt, XVIIe.-XXe. siècle, Paris, Fayard, 1987.
5. M. Drulhe, “L’espace imaginaire dans le conte. Analyse d’un corpus
de contes merveilleux occitans”, Ethnologie française, IX, 4, 1979,
pp. 351-64.
6. Extraídos de uma literatura africanista hoje abundante, alguns
exemplos: D. Paulme e C. Seydou, “Le conte des alliés animaux dans
1’Ouest africain”, Cah. Études A fric., XII, 45, 1972, pp. 77-108; T.-O.
Beidelman, “Hyena and rabbit: a kaguru representation of matrilineal rela­
tions”, África, XXI, 1, 1961, pp. 61-74; V. Gõrõg, LArbre justicier. Le
thème de l’arbre dans les contes africains, Bibliothèque de la S.E.L.A.F.,
II, Paris, 1970, pp. 23-62.
7. Para toda a seção relativa à ambivalência da “figura” feminina: G.
Balandier, Anthropo-logiques, Paris (1974), Livre de Poche, 1985,
“Hommes et femmes, ou la moitié dangereuse”, e Le Détour, Paris, Fayard,
1985 (O contorno, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997), “Le sexuel et le
social” ; D. Paulme, La Mère dévorante. Essai sur la morphologie des
contes africains, Paris, Gallimard, 1976; J.-C. Muller, “Mythes et structure
sociale chez les Rukuba”, Archives Suisses d’Anthrop. Gén., 38, 2, 1974,
pp. 135-42; S. Ruellan, La Filie sans mains. Analyse de dix-neuf ver-

119
sions africaines du conte, Paris, S.E.L.A.F., 1973; M. Cartry, dir., Sous le
masque de Vanimal. Essais sur le sacrifice en Afrique noire, Paris,
P.U.F., 1987, contribuição de O. Joumet, “Le sang des femmes et le sacrifi­
ce”, pp. 241-65; e J. Carlier-Detienne, “Les Amazones font la guerre et
1’amour”, L ’Etknographie, CXIII, 81-2, pp. 11-34.
8. Ver principalmente: G. Balandier,Anthropo-logiques, op. cit., cap.
II, “Pères et fils, aínés et cadets”. E, enquanto estudos de casos suplemen­
tares: M. Douglas, The Lele of the Kasai, Londres, Oxford University Press,
1963; H. Hochegger, Le soleü ne se lèvera plus. Le conflit social dans les
mythes buma, C.E.E B.A., Bandundu, 1975.
9. Sobre a escravidão em geral, um último e importante trabalho: C.
Meillassoux, Anthropologie de Vesclavage, Paris, P.U.F., 1987. Sobre a
escravidão na região do Congo, cf. G. Balandier, Sociologie actuelle de
VAfrique noire, 4. ed., Paris, P.U.F., 1982.
10. Principais obras relativas à feitiçaria: E.E. Evans-Pritchard,
Sorcellerie, oracles et magie chez les Azandé, trad. francesa, Paris,
Gallimard, 1977; M. Bouteiller, Sorciers et jeteurs de sorts, Paris, Plon,
1958; J. Favret-Saada, Les Mots, la mort, les sorts, Paris, Gallimard, 1977.
E L. Mallart-Guimera, “Ni dos, ni ventre”, L ’Homme, XV, 2, 1975, pp. 35-65;
P. Métais, “Contribution à une étude de la sorcellerie néo-calédonienne
actuelle”, Année Sociologique, 18, 1967 (pp. 111-20) e 19, 1968 (pp. 17-
100); J.-P. Terrail, “La pratique sorcière”, Arch. de sc. soc. des Religions,
48, 1, 1979, pp. 21-42.
11. Cf. a apresentação do guia dos tribunais da Inquisição (Marteau
des Sorcières) in G. Balandier, Le Pouvoir sur scènes, Paris, Balland,
1980, pp. 99-105.

1 2 0
5

A DESORDEM SE TRADUZ EM ORDEM

A ordem e a desordem são como as duas faces de uma moeda:


indissociáveis. São dois aspectos ligados ao real, sendo que um,
baseado no senso comum, parece ser o inverso do outro. Em uma
sociedade tradicional que se define em termos de equilíbrio, de con­
formidade, de estabilidade relativa, que se vê como um mundo civili­
zado, a desordem se torna uma dinâmica negativa que cria um mun­
do ao contrário. Do mesmo modo ninguém ignora que a inversão da
ordem não é seu desmantelamento; pode servir para reforçá-la ou
ser um de seus elementos constitutivos sob um novo aspecto. Faz-se
então a ordem com a desordem, o sacrifício faz a vida com a morte,
e a lei com a violência domesticada pela operação simbólica. Todas
as sociedades reservam um lugar para a desordem, mesmo temen­
do-a; por não terem a capacidade de eliminá-la — o que as levaria a
matar o movimento em seu interior e a se degradar até o estado das
formas mortas — , é preciso de alguma forma compor-se com ela. Na
medida que é irredutível, e mais que isso, necessária, a única saída é
transformá-la em instrumento de um trabalho com efeitos positivos,
de utilizá-la no sentido de sua própria e parcial neutralização, ou de
convertê-la em fator de ordem.
Desarmar a desordem é antes de mais nada jogar com ela, sub­
metê-la à prova do deboche e do riso, introduzi-la em uma ficção
narrada ou dramatizada que produza este efeito. As palavras e o
imaginário permitem lembrar as condutas geradoras de crise que a
ordem social comumente refuga, substituir a transgressão fictícia
pela transgressão real, portadora do mais alto risco em um mundo
regido pela tradição, colocar a esperteza a serviço de uma liberdade
de fato impossível, mas cuja invocação tem uma função catártica. O

1 2 1
OEORGES BALANDIER

que Pierre Clastres afirma a propósito do riso dos indianos (eles


“fazem no nível do mito aquilo que lhes é proibido fazer no nível do
real”), é muitíssimo válido. As literaturas populares de todos os lu­
gares o confirmam: nelas abundam as narrativas que se apresentam
sob esses mesmos aspectos, associando muitas vezes a transgressão
semântica (liberdade tomada sob a disciplina da linguagem) com as
proibições imperativas (liberdade tomada sob os comandos da
ordem moral, social). Nos contos tradicionais franceses e europeus
de um modo geral, o herói a quem sua força confere um superpoder,
no qual Rabelais se inspirou para fazer o Gargântua, é o exemplo do
excesso, dos desregramentos que ultrapassam as normas. Sob
nomes diferentes, como o de Jean le Fort, o herói realiza façanhas
físicas que degeneram em catástrofes, provoca destruições e desor­
dens múltiplas, ousa até atracar-se com o diabo. As tentativas feitas
para colocá-lo fora da sociedade são infrutíferas; ele representa uma
desordem elementar, uma violência primeira rebelde a qualquer
domesticação, cujas relações sociais não são jamais inteiramente
liberadas, mas da qual os homens se livram ilusoriamente por meio
da zombaria.
Este tema do excesso, do desregramento, encontra-se nas tra­
dições orais africanas. Entre os wolofes senegaleses, traduz-se a lin­
guagem da sexualidade e da escatologia propícia ao riso, expondo
menos a luta do bem contra o mal que a liberdade em condutas,
cujos riscos a sociedade real não suportaria. No antigo Burundi, é
um herói lendário, que não aceita nenhum limite, que estabelece as
contradições e os conflitos e que engendra a desintegração do
mundo social: Samandari. Ele recorre a todos os meios: zombaria,
esperteza, contestação, agressão e rebelião; não respeita nenhuma
das mais estritas injunções da tradição; simboliza uma anticultura, o
que o toma popular entre as pessoas comuns, submetidas aos cons­
trangimentos de uma sociedade aristocrática. Samandari sabe lidar
com as situações e as palavras, a ponto de ridicularizar e aviltar o
poder real; traduz as fórmulas mais convencionais ou as mais sagra­
das em uma linguagem destruidora e provocadora de um riso revan-
chista. Ele triunfa, mas instalando uma nova opressão por sua pró­
pria conta. No final do ciclo, a ordem aparece com seu arbítrio e seu
suporte na desigualdade. A literatura oral do Magreb coloca em ação
um personagem com menos audácia, Djiha, cuja falta de respeito e

1 2 2
A DESORDEM

agitação operam sob um risco calculado. É um esperto que simula


ingenuidade, um inocente que fala a torto e a direito, mas cujo
humor despedaça os códigos tradicionais e desmistifica a glória dos
poderosos e dos ricos. Imaginariamente, ele libera, fornece compen­
sações iludindo sobre uma liberdade capaz de introduzir o jogo na
ordem estabelecida. De um continente a outro, de uma região cultu­
ral a outra, a narrativa popular veicula os mesmos ensinamentos:
realiza uma transgressão impossível, porque geradora de crises ame-
drontadoras, através da fala de personagens imaginários; mas a saí­
da abre-se muitas vezes para uma ordem mantida, refeita ou refor­
mada, ou aceita em razão dos absurdos que, ao fim e ao cabo, as de­
sordens destruidoras do social revelam.1
A gestão da desordem não rege somente as representações
coletivas ou as simulações imaginárias, mas também as práticas que
não se reduzem à ação repressiva. Os meios para obter a conformi­
dade são conhecidos. Admitem a Lei, concebida em sua acepção
mais abrangente, bem como os dispositivos que corrigem o desvio.
Compreendem — ainda que seu modo de agir e seus efeitos sejam
menos aparentes — os sistemas cognitivos, simbólicos e rituais que
levam à adesão do indivíduo e à submissão a verdadeiras montagens
inconscientes. É sobretudo por meio deles que a ordem social é
colocada em analogia com a ordem da natureza, levando a crer,
desse modo, que existe uma natureza social que só é comandada se
obedecida. Portanto, o governo da ordem, é bom lembrar mais uma
vez, está sempre inacabado; a passagem do tempo e o movimento
das forças sociais traçam incessantemente os caminhos da desor­
dem. Esta é percebida como uma energia ainda selvagem que con­
vém expulsar realmente (utilizando uma vítima expiatória) e imagi­
nariamente, e que é preciso domesticar ou converter fazendo-a tra­
balhar com finalidades positivas.
Antes de identificar as lógicas em questão em seus resultados,
um exemplo permite manifestá-las em seus diversos efeitos. Os ba-
lantes da Guiné-Bissau, cuja sociedade é do tipo gerontocrático,
revelam em três circunstâncias principais seu modo de negociar
com a desordem. Durante o período de iniciação dos jovens, a
ordem social é totalmente subvertida por um curto período; os futu­
ros iniciados dispõem então de um poder que faz com que não pou­
pem nada nem ninguém, dando livre acesso às condutas agressivas,
v i d u u u d l i D n i i n i i u i ü n

escandalosas, obscenas, exaltando a força da juventude, reivindican­


do presentes e afirmando uma breve imunidade; esta subversão
afeta toda a coletividade, sobretudo ao suspender as proibições que
socializam a sexualidade: o incesto, a violação, o adultério não são
mais, nesta circunstância, obstáculos erguidos contra as pulsões.
Desta desordem generalizada deve sair uma geração nova, submeti­
da a uma ordem refeita da qual começa a ser a guardiã. Junto com a
iniciação masculina, a festa: cada ano, em escala nacional, uma dra­
matização festiva junta todos os atores sociais e os leva a uma con­
testação simbólica da ordem e de seus poderes. É um grande jogo
do deboche, na medida que os mais moços imitam os mais velhos,
mostrando-os ridículos e libidinosos e fazendo de todas as mulheres
suas aliadas, na medida que os mais velhos, rebaixados, se compor­
tam de maneira servil, não dizem coisa com coisa, entregam-se à
obscenidade e simulam medo de um jeito feminino. Mas, durante
este mesmo período, os atores que pertencem às camadas de idade
intermediárias exibem suas reais pretensões de poder e de autorida­
de doméstica. Eles lembram os fundamentos da ordem, compõem
um contraponto que acompanha a desordem burlesca, que resulta
da inversão dos papéis, manifestando desse modo sua falsidade. Por
fim, a feitiçaria, que exemplifica a desordem por excelência, o ator
dos males, das calamidades, das perturbações onde a cólera dos
ancestrais ou a vingança dos espíritos não está em questão. A feiti­
çaria é vista como um impiedoso e invisível combate onde envol­
vem-se as forças, os instrumentos humanos e as vítimas potenciais.
O feiticeiro, freqüentemente nefasto sem o saber, mas suspeito, faz
a prova do veneno; o resultado, se negativo, o inocenta e o restitui
ao universo das normas; se positivo, o mata e seu corpo é destruído
pelo fogo, ou, se não o mata, condena-o a ser socialmente anulado
por banimento. O mal é simbolicamente rechaçado, o medo da acu­
sação mantém a conformidade, os fracassos de gestão e a incompe­
tência do poder se tornam efeitos dos procedimentos feiticeiros e
perdem seu caráter político. Estabelecem-se assim três formas de
gestão da desordem: as duas primeiras obedecem a uma periodici­
dade; a última, excepcional, só aparece nos momentos de crises gra­
ves. Uma provoca a irrupção da desordem a fim de levá-la a fecun­
dar a ordem; a outra a desacredita e a transforma em ordem; a ter­
ceira, enfim, a converte, por meio da operação sacrificial, em gera­

124
dor de fortalecimento. Nos três casos opera uma só lógica: a da
inversão e conversão dos contrários.2

O mundo ao contrário

O tema da inversão se apresenta sob uma dupla forma, erudita


e popular. Aparece ao longo de séculos de história européia; é um
dos tópicos aristotélicos, figura nos tratados de retórica da Idade
Média e, mais tarde, nos ensinamentos da argumentação; encontra-
se nas ciências onde designa propriedades, processos, transforma­
ções de relações e estruturas. Os pensamentos exteriores a ela re­
correm do mesmo modo, pois esse tema e as categorias que rege
têm, de acordo com certas variações, um caráter de universalidade.
Intervém principalmente na definição das posições e papéis sociais,
em um ordenamento que divide estes em superiores e inferiores,
valorizados e desvalorizados, positivos e negativos. No sistema de
representações coletivas legitimadas pela tradição, o menor, o domi­
nado, o sujeito ocupam a posição inversa da do dominante e senhor.
Particularmente, a divisão desigual instaurada segundo o critério de
sexo é muitas vezes justificada em termos de inversão. Em certas
culturas, o recurso a esse procedimento permite designar tudo o
que é ruim, tudo o que contribui para enfraquecer, modificar ou des­
truir as bases da ordem. É também pelo recurso da inversão que a
simbólica dos movimentos messiânicos e apocalípticos exprime a
ruptura, o desmoronamento. O mundo atual está pelo avesso, gover­
nado pela injustiça e pelo mal, com milhares de catástrofes sinaliza­
das; é um mundo que deve acabar para que outro, novo, lhe suceda.
Esses exemplos, pelos quais o sagrado se toma evidentemente
subversivo, estão próximos das expressões populares da inversão:
delas fazem grande uso as literaturas orais, as artes, as explosivas
festas coletivas, as práticas ritualizadas que provocam um retomo
aos papéis. Nos contos de mentiras, presentes em numerosas tradi­
ções, três procedimentos principais são empregados: o emaranhado
das classificações, a associação dos contrários, a interversão dos ter­
mos de uma relação. Daí resulta a lembrança de um mundo ao con­
trário, de um universo do qual a desordem se apoderou. Os elemen­
tos ali estão confundidos (o mar e a terra, o mar e o céu, a terra e o
céu), as coisas e os seres animados são deslocados e colocados em

125
situações impossíveis, a natureza não produz o que dela se espera,
os animais exercem os papéis dos homens, como acontece nas fábu­
las, e os homens se comportam de maneira aberrante ou excessiva.
Mesmo a linguagem às vezes se desordena a ponto de se reduzir a
galimatias. Nessas ficções, onde tudo o que organiza o real se encon­
tra de pernas para o ar, confuso, invertido, preparam-se a descober­
ta de países imaginários (como o de Cocagne), prefiguram-se para
as viagens fantásticas, e as explorações conduzidas no país das men­
tiras — às quais associam-se espontaneamente os nomes de Ra-
belais e Swift. Ao desencantamento que nasce da estupidez de cer­
tas realidades opõe-se o encantamento das mentiras; mas o efeito
não fica somente no encantamento: a mentira carrega uma crítica
disfarçada, mostra a desordem escondida sob a ordem aparente das
coisas, sempre deixando entender que a substituição de um mundo
por outro depende mais do imaginário que dos projetos humanos de
subversão. Fica à disposição dos homens reais somente a mentira
social e a esperteza.
O ciclo africano dos contos da criança terrível revela um herói
absurdo, estranho a toda norma social, transgressor, capaz de atos
abomináveis e gratuitos, governado pela lógica de um mundo às
avessas. Este corpus narrativo, mais complexo que o anterior,
impõe duas leituras, exotérica e esotérica, sociológica e simbólica.
Os dogons conhecem aliás uma versão dupla da narrativa: uma
remete ao conjunto de sua mitologia e se apresenta como um per­
curso iniciático; a outra relata uma aventura humana provocadora
de malefícios, de destruições cuja finalidade última é a “reordenação
das coisas”. Geneviève Calame-Griaule, analisando este conjunto de
narrativas, revela o movimento que resulta das relações estabeleci­
das entre esses dois aspectos. A criança terrível, na sua forma mais
popular, é um personagem anti-social; ele inverte, reverte os valo­
res, as normas, os códigos estabelecidos “pelo grupo, como necessá­
rios a seu equilíbrio e a sua sobrevivência”; ele enfrenta o poder, e
vence-o para melhor desprezá-lo. Entretanto, suas ações são todas
marcadas pela contradição, a ponto de colocá-lo em perigo de morte
quando as realiza. Todos esses projetos colocam sua vida em jogo, o
que impõe uma outra leitura: se ele encarna o gênero de herói
excessivo e destruidor da ordem social, o caráter deliberado de seus
atos arriscados sugere “que seu comportamento deve ser decodifi­

126
cado sob a ótica de outro conhecimento, do qual ele é justamente
investido — o conhecimento iniciático”. Ou, mais exatamente, “a
própria natureza e a força terrível dos atos maléficos” do herói
fazem dele “o iniciado supremo que pode se permitir tudo porque
conhece a face oculta das coisas” e que “nesse nível, tudo, se inver­
te”. Quando a narrativa acentua esse aspecto, a desordem positiva e
fecunda é manifestada no interior da ordem, e tal descoberta intro­
duz ao grau máximo do conhecimento. O saber último dá acesso à
revelação da desordem e à capacidade de governá-la, ou seja, ao
verdadeiro poder. Quando, mais raramente, a narrativa diminui esse
aspecto, o personagem não perde seus poderes excepcionais, exces­
sivos e incompreensíveis, com efeitos negativos e positivos; a desor­
dem é mostrada na sua ambivalência diante do olhar habitual dos
homens. A desordem fascina e inquieta ao mesmo tempo. Os bam-
baras do Mali aprendem a lição ao afirmar: “Se só houvesse sábios
no mundo, nada aconteceria.”3
Na Europa, a iconografia popular reserva um lugar significativo
à representação dos mundos às avessas até o início do século XIX.
Esta iconografia trata de um número restrito de temas e emprega
necessariamente alguns dos procedimentos que acabam de ser con­
siderados. O motivo mais freqüente mostra situações onde as rela­
ções entre os homens e os animais se invertem; os animais “ganham
de seus donos”. Numerosas séries são constituídas de gravuras que
revelam a permutação dos papéis sociais entre homens e mulheres,
crianças e adultos, superiores e inferiores, mas, neste último caso,
com uma reserva voluntária que mostra a preocupação de não ir
contra uma autoridade formalmente estabelecida. Enfim, um con­
junto de séries revela um cosmo de pernas para o ar, uma natureza
onde coisas e seres vivos são banidos e mantêm entre si relações
absurdas. Os fabricantes dessas imagens, inventores desses univer­
sos revirados, buscam em princípio o divertimento ao representar o
que aconteceria, se a ordem do mundo e dos homens não fosse o
que é, a saber: o aparecimento do absurdo e do insensato. Isso é
realizado dentro de limites estreitos que restringem o campo do
imaginário e mantêm os autores muitíssimo aquém de suas possibili­
dades: a ordem social real impõe restrições à sua invenção da desor­
dem. Jacques Cochin constata isso no estudo de um corpus de gra­
vuras antigas com imagens da inversão: as representações estão

127
“submetidas a certas transformações que têm como efeito expurgar
implicações perturbadoras ou subversivas que pudessem conter”; ou
melhor, a maneira de transcrever restabelece “o conjunto da vida
social... em relações ‘naturais’”. A natureza social não é mais “sub­
versiva” que a outra, a iconografia dos mundos às avessas chega a
um resultado paradoxal que é descobrir regularidades e “um univer­
so imobilizado”. De uma certa maneira, o absurdo dilui a desordem,
na medida que a restringe no interior dos territórios dos fantasmas,
das fantasias, dos sonhos, lá onde o impossível pode ultrapassar a
impossibilidade de se dizer e de se representar. A partir do momen­
to onde a grande transformação embaralha os critérios do impossí­
vel, é importante notar que a representação dos mundos às avessas
cede progressivamente seu lugar a outras figurações.4
Com a festa, o desmoronamento da ordem das coisas acontece
na efervescência coletiva. É a esbórnia graças à qual manifesta-se,
como um parênteses colocado no interior do cotidiano, um mundo
inteiramente diferente. Durante a Idade Média européia, a Igreja
sendo o local privilegiado onde tudo se legitima e se exprime, a dra­
matização festiva nela se localiza. A festa dos loucos, realizada nas
cidades com catedral, elegendo um bispo, papa ou rei dos loucos,
subverteu totalmente o universo do sagrado. Naquele momento
tudo se invertia. O alto clero era despojado de suas funções dando
lugar a um clero de mentira que ocupa as estalas da catedral. O ofí­
cio se desenvolve de forma burlesca, entrecortado por episódios
sacrílegos ou orgíacos; máscaras grotescas de mulheres, palhaços ou
animais cantam, dançam e se entregam a pantomimas obscenas no
coro; nada é poupado: o altar é transformado em mesa onde são ser­
vidas “comidas pesadas”, a fumaça dos restos substitui o incenso, as
pessoas correm e pulam como desvairadas. O lugar santo parece
entregue à agressão, à obscenidade, à orgia — aos excessos extre­
mos pelos quais os signos se invertem. Mas essa inversão, ainda que
não exclua a violência, não degenera em subversão. Realiza-se no
interior do sistema simbólico e ritual que define a ordem social
medieval, invertendo-a; faz do mundo invertido um mundo louco,
sempre manifestando a necessidade de proporcionar um espaço e
um tempo de jogo à desordem. A autoridade eclesiástica faz disso,
aliás, um julgamento ambíguo: de um lado, condenam essas “abomi-
nações e ações vergonhosas”; de outro, alguns doutores admitem

128
que o vinho da sabedoria nào pode atender sem descanso ao serviço
divino e que é preciso lhe conceder, pelo menos, uma explosão
libertadora.
Outro desregramento, a festa do asno, estabelece ainda mais
claramente o exagero e a zombaria no interior do quadro eclesiásti­
co. Sua origem vem da comemoração da fuga de Maria para o Egito;
depois, por desdobramento simbólico, o asno passa a ocupar a posi­
ção central e se associar ao próprio Cristo. O asno é levado em pro­
cissão solene, escoltado por sacerdotes e fiéis em roupas de festa,
até o centro da igreja onde se torna o personagem principal do ofí­
cio. Todas as seqüências da missa são concluídas pelos zurros dos
membros das congregações e da assistência; os cânticos celebram o
asno em latim e em francês; o padre substitui o Ite missa est por
três zurros, e a assistência dá graças ao Senhor como sempre.
Quanto mais o ofício-paródia é exagerado, maior o entusiasmo
popular. A desordem se inscreve na ordem litúrgica, o mundo inver­
tido aparece na substituição da figura divina pela figura animal, o
que levou Nietzsche a considerar a festa do asno como um ofício
escandaloso e blasfematório, quando a transgressão cerimonial pode
ser uma outra forma (extrema e turbulenta) da relação do sagrado
com a Lei. A inversão e a efervescência coletiva permanecem codifi­
cadas, ritualizadas e festivas ao mesmo tempo; situam-se no calen­
dário litúrgico e se submetem a uma periodicidade; pelo exagero,
liberam o jogo, sem minar as instituições. É aliás significativo que a
partir do século XVI, quando múltiplas mudanças se operam no
Ocidente dentro dos sistema de poder, um deslocamento do religio­
so para o político se realiza: as festas do príncipe ilustram o poder, e
as “loucuras” se tornam também um item da corte.
No carnaval encontram-se vários dos componentes que aca­
bam de ser apresentados, mas associados a outros, variáveis segun­
do as províncias e os países. O tempo carnavalesco é aquele durante
o qual uma coletividade inteira se apresenta em uma espécie de exi­
bição lúdica, liberando-se através da imitação e dos jogos, abrindo-
se a críticas e ataques através de exageros toleráveis, entregando-se
por arremedo às turbulências a fim de alimentar sua ordem. Tudo é
dito pelo disfarce, tudo se legitima pela união dos contrários, o
sagrado e o bufão. A inversão permanece o principal operador, per­
mite quebrar as restrições temporais, metamorfosear a raridade em

129
abundância, a consumição em consumo, romper as censuras e as
conveniências revertendo as hierarquias em favor da máscara, dar
lugar à contestação dissolvendo-a na brincadeira coletiva e na zom­
baria. Mas, no carnaval antigo, a ordem não é repelida; rege a fase
das manifestações durante a qual se revela, sobretudo no desfile em
que a sociedade urbana se expõe espetacularmente. Em La Ré-
pubiique, Jean Bodin evoca, no final do século XVI, essa sociologia
das cidades que se oferecem ao olhar dos basbaques, em uma pro­
cissão. Uma ordem ao mesmo tempo verdadeira e paródica: "rey-
nages”, ou reinos, se formam sob a autoridade de um “rei” que dis­
põe de oficiais, de uma guarda, de um séquito; essas imitações da
realeza exprimem os componentes sociais da cidade — a ordem das
ordens e dos corpos constituídos — e contribuem para a regulamen­
tação da participação nos cortejos, nos ritos, nas festas e nos ban­
quetes do período carnavalesco. Os participantes se apropriam da
ordem por mimetismo, encenam a desordem para afastá-la, se
enfrentam no jogo; mas acontece, como em Romans em 1580, que a
festa degenera, que a inversão degringola e acarreta um confronto
da ordem com a desordem verdadeiras, uma revolta seguida de uma
repressão. O carnaval recorre ao simbolismo e ao rito da vítima
expiatória com o manequim carnavalesco; mas este é um falso (uma
tradução irrisória) do pharmakos da Grécia antiga, que carrega e
larga a carga dos males que a Cidade não pode reduzir e ainda
menos eliminar. O manequim é condenado durante um processo
paródico, é acusado de uma forma extravagante, não é um verdadei­
ro culpado, mas pode servir para designar, por meio do jogo da alu­
são ou da semelhança, os poderosos ou os inimigos considerados
responsáveis pelas injustiças e as misérias. A ordem simulada — a
paródia do procedimento e do rito judiciários — se transforma então
em crítica indireta à verdadeira ordem.
É o carnaval brasileiro, que apareceu no último século nas for­
mas hoje conhecidas, que melhor revela como essa efervescência
nasce de uma ordem, inscreve-se em uma configuração simbólica
onde exprime, junto com outras grandes manifestações nacionais, o
ordenamento geral da sociedade. Deve ser relacionado com a
Semana Santa — em sua intensidade dramática, nos seus rituais que
terminam na alegria da Ressurreição, na movimentação espiritual
que esta provoca em um povo de religiosidade intensa — e em sua

ISO
11 U U U V I i v u tu

relação com a Semana da Pátria ao longo da qual a unidade, a coe­


são, a força coletiva são exaltadas pelo cerimonial e as demonstra­
ções militares. Nos dois casos, a ordem é afirmada segundo uma
dupla referência, divina e histórica. No caso do carnaval, a ordem se
afirma pelo contrário, fazendo da inversão um jogo que contribui
para assegurá-la. O antropólogo Roberto DaMatta constata que o car­
naval ‘‘fala” de uma mesma estrutura social. Mas o faz transforman­
do-a pela inversão, transfigurando-a pelo imaginário. A festa carnava­
lesca substitui a noite pelo dia, a rua aberta aos olhares e propícia ao
súbito aparecimento do privado, o papel representado, por identifica­
ção, de personagens importantes pela medíocre condição social real,
o fausto artificial pelo despojamento cotidiano. O carnaval joga por
terra as classificações sociais pela fantasia dos encontros e a união
insólita dos personagens imitados; cria uma comunidade lúdica efê­
mera onde tudo se toma possível, onde hierarquias e convenções da
vida comum se dissolvem; oferece para troca um dos componentes
da cultura brasileira, a que alia o imaginário alimentado do passado à
música, à dança e às ritualizações. O carnaval brasileiro, em seus
primórdios, falava de uma ordem estabelecida no tempo da domina­
ção e das grandes fazendas; e apagava essa ordem, por um tempo
curtíssimo, por meio do jogo e da farsa, da improvisação desabrida, e
do excesso levado ao extremo da licença. Faz do corpo e da sexuali­
dade, momentaneamente livres das restrições, os instrumentos de
uma efêmera libertação, mas cada um dos participantes sempre
soube que essas rupturas e esses desvarios deviam ser seguidos, aca­
bada a festa, de um retorno às normas, aos códigos, a uma ordem
que foi remexida mas não quebrada.5
O carnaval é definido por uma cultura (dita popular) e uma
história; disto resulta e contribui para produzi-los, como na Europa
dos séculos XIV e XV onde aparece na formação do meio cultural
urbano. É então possível relacioná-lo a uma história, a acontecimen­
tos e a um movimento de longa duração, disto originando continui-
dades (relação com o calendário das estações e da liturgia, impor­
tância dada pela juventude a esse jogo insolente, desafio e revolta
disfarçada dos desfavorecidos etc.) e descontinuidades, até as que
reduzem a manifestação ao estado de mercadoria lúdica. Contudo, a
explicação do carnaval não se faz primeiro por sua natureza históri­
ca. Logo a importância recai sobre sua função social: libera as ten­

131
UEjV B U Ü J DnLiAIVUlLn

sões, associa processos de contestação e de integração, exprime a


sociedade e se apresenta como ura tipo de linguagem E logo a
importância recai sobre a ordem psicológica ou psicanalítica: o car­
naval libera as pulsões fortemente controladas pela sociedade em
seu dia-a-dia — daí o lugar que ocupam o corpo, o sexo, e muitas
vezes a violência; tem um efeito catártico; estabelece uma relação
diferente com o outro e dá também a possibilidade de jogar com o
outro — o personagem encarnado, persona — introduzido dentro
de si. Em seu célebre estudo sobre Dioniso, Henri Jeanmaire abriu
novo caminho ao constatar: “Simbolização de um sonho de desor­
dem sempre recomeçado, o carnaval exprime [um] desejo profundo
de liberdade.” Sonho sempre recomeçado, porque cada sociedade,
cada uma a seu modo, define os limites que impõe ao que não é con­
forme, ao espaço que concede à liberdade modificadora e à mudan­
ça, e porque ela não cessa nunca de erguer barreiras, assegurar
proibições, produzir códigos. O debate ordem/desordem é constante
em qualquer sociedade; é indissociável de sua própria existência,
como a de todo ser: sítio de forças, de processos, de trocas conti­
nuamente em movimento. A ordem social se alimenta incessante­
mente da energia nova que a desordem providencia, mesmo através
dos fracassos, quando o equilíbrio não se refaz ou não se estabelece
em configurações diferentes. Os dispositivos que operam a domesti­
cação dessa energia, criados com essa finalidade, não a dominam em
todas as circunstâncias. A máquina carnavalesca é um deles; calha
às vezes de se produzir o contrário do efeito normalmente esperado:
o efêmero carnaval dos estúpidos, em Estrasburgo, de 1972 a 1978,
ano em que foi cancelado, deixou a cidade entregue ao vandalismo,
sobretudo seu centro — burguês e de cultura elitista — , aos assaltos
de populares revoltados vindos dos subúrbios.6
A prática do tumulto mostra claramente — e também mais
sumariamente — a manipulação da desordem em proveito da ordem
e da moral. Ela o capta e o utiliza sob sua forma menos “trabalhada”:
a violência elementar dirigida contra as pessoas, a hostilidade pouco
ritualizada, a bagunça agressiva associada ao barulho, ao que é de­
nominado rough music na baderna inglesa; carrega uma carga sim­
bólica fraca e brinca com o nonsense, reduzindo-se muitas vezes a
nutrir o medo da violência social (no estado quase bruto) e a mani­
festar a reprovação coletiva, ao contrário, de pessoas excluídas pelo

132
desrespeito às normas e preconceitos. O tumulto intervém no
âmago da vida privada, quebra seus limites, sobretudo quando recai
sobre casais recentemente recasados ou casados, ou sobre uma
sexualidade que transgride os comportamentos permitidos. “Com­
bate a desordem social por um ato de desordem social”, às vezes a
ponto de ultrapassar seu próprio excesso e acarretar processos
penais. Esta confrontação dramatizada tem evidentemente como
pano de fundo uma ordem e as técnicas que contribuem à sua ma­
nutenção; neste sentido, é “um desafio entre classes sociais”. Du­
rante os períodos revolucionários, a desordem ritualizada e conser­
vadora se inverte, destrói as convenções e hierarquias do antigo re­
gime, ainda presentes, e se toma um instrumento de vingança so­
cial. A sacralização por meio da desordem trabalha para reforçar
uma ordem e uma moral em vias de construção; em 1793, a festa do
“Triunfo do Pobre” foi instituída no departamento de Aveyron, ten­
do por objetivo humilhar o rico (que a financiava) e de elogiar o po­
bre: a bagunça e os trotes rebaixavam e ridicularizavam os “gran­
des” , pois “é chegada a hora da pobreza ser vingada”.7
Nas sociedades exteriores, antropologizadas, o procedimento
de inversão traduz-se freqüentemente por uma alteração dos papéis
sociais, às vezes pelo seu disfarce, efetuado de maneira ritual ou fes­
tiva. O retomo das relações entre seniores e juniores foi descrito a
propósito dos balantes da Guiné; encontra-se em numerosas socie­
dades tradicionais, por exemplo entre os Iqar’iyen marroquinos: nos
casamentos, os solteiros zombam dos mais velhos, desprezam os
valores fundadores do grupo e transgridem as proibições mais cate­
góricas; uma violação metafórica da ordem dá toda sua força à con­
firmação real desta ordem, pela união solene de um homem e uma
mulher, pela socialização de sua sexualidade e de sua capacidade
reprodutora. A mais importante inversão é a dos papéis femininos e
masculinos, que tem como característica ridicularizar ou suprimir a
sociedade masculina durante o tempo de sua realização. As mulhe­
res ocupam a cena social, todas se portam ao avesso das regras que
regem seu comportamento comum, algumas dentre elas fazem o
papel dos homens encampando signos e símbolos da masculinidade
e da virilidade. Nesta circunstância, as mulheres mostram ao mesmo
tempo sua figura positiva — ninguém ignora que tem a responsabili­
dade da reprodução e da produção de alimentos — e sua figura

133
V U W JkU U W l / J I U I l l l U I U LI

negativa: quebram os usos prescritos e invertem pela dramatização


uma ordem que as faz menores e subordinadas, ritualmente perigo­
sas, associadas à impureza, ao mal e muitas vezes à feitiçaria. Os
mandenkas senegaleses apresentam a singularidade de acentuar
esta função da inversão e de ligá-la a um princípio de incerteza se­
xual, que impõe sua marca em sua sociedade e em sua cultura, em
sua dominação masculina, portanto. A mulher pode entrar em um
papel masculino de caráter sexual; a irmã do marido se comporta
como homem em relação à mulher com quem ele acaba de se casar,
ela a trata como sua própria esposa e faz dela uma parceira de seu
jogo amoroso. As mulheres se vestem de homens quando seus filhos
são circuncidados, no oitavo dia de seu período iniciático; elas se
identificam com os rapazes e, através deles, com os homens, quando
na verdade estão sumariamente excluídas deste procedimento de
masculinização e dos lugares onde ele se realiza. Sobretudo, as
mulheres invertem a relação de subordinação na ocasião de duas
manifestações festivas das quais têm a iniciativa. No início da esta­
ção das chuvas, quando são reverenciadas as divindades da terra e
da fecundidade, elas recusam toda e qualquer obediência e agridem
verbalmente os homens; a inversão das condutas é o modo pelo qual
elas recorrem, a fim de afirmar sua supremacia na reprodução (ser
fecundas) e produção (tornar a natureza fértil por meio de seu tra­
balho). Em dezembro, durante a festa dos inhames selvagens, elas
praticam uma dança de provocação aos homens, escolhem livremen­
te seus parceiros, entregam-se a orgias de palavras e gestos e reto­
mam em coro cânticos obscenos, que exaltam os “gordos peitos” em
detrimento das “imensas varas”. O feminino leva vantagem sobre o
masculino, quando na verdade todo poder efetivo deve primeiro ser
imposto às mulheres, fundamenta-se em sua submissão. As mulhe­
res, através da inversão e da desordem cerimoniais, deixam o confi-
namento dos espaços privados, dão uma visibilidade à sua presença
social, igualizam ou suplantam os homens e, finalmente, confirmam
sua contribuição à ordem mandenka. Elas ultrapassam os limites a
fim de melhor demonstrar seu lugar e seu papel no interior desses
mesmos limites.8

134
n üDjv/nuLini

Os limites e seus ievadores

O retomo para o Egito e a Grécia antiga leva ao encontro de


figuras divinas longínquas da desordem, e de seus efeitos devastado­
res e dos projetos que, inversamente, a tomam fecunda. A mitologia
egípcia fundamenta-se sobre um sistema dualista que simboliza o
casal Osíris/Hórus-Seth, junção de oposições necessariamente soli­
dárias. Seth é colocado nos confins (nas bordas e no exterior) onde
representa “o inimigo”, o “espírito da desordem”, e, sob a forma de
Seth-Typhon, o “deus da confusão”. Trata-se de uma primeira defini­
ção: a de um ser à margem, em relação de agressão desorganizado-
ra, de embaralhamento com tudo o que diferencia, classifica e orde­
na. Seth realça a incerteza e o extraordinário: de nascimento quase
divino, seu status de deus, particular, o faz estrangeiro, periférico,
ao mesmo tempo que tipicamente egípcio. Todas as suas ações o
apontam como transgressor: ele rouba, mata, entrega-se ao homos-
sexualismo e a práticas sexuais descomedidas. Aparece como um
ser divino inacabado, incompleto, exterior ou pouco integrado na or­
dem geral do cosmo. Por sua própria natureza, situa-se em corres­
pondência com a seca, a esterilidade, a ruína; opõe-se desse modo a
Osíris, que, ao contrário, simboliza a umidade, a fecundidade, a vida.
Um deus “seco” e mortificador se encontra associado a seu contrá­
rio, um deus fecundo e civilizador, como o são no Egito o deserto e a
terra que as águas fertilizam. Seth, violador e destruidor, se apre­
senta de maneira mais secreta sob um outro aspecto, o de criador:
ele possui certos traços do demiurgo, tem de um lado um caráter
“cósmico-titânico”, contribui para o “afastamento do caos”. A narra­
ção mítica se toma, segundo suas próprias convenções, por narrati­
va e gestos, uma apresentação da desordem e da ordem que dela
pode nascer. Seth dá à desordem uma figura quase estrangeira: sua
ação realiza-se na periferia e não no centro, lugar da ordem; faz dela
uma figura desestabilizadora, em razão da confusão introduzida nas
diferenças, nas classificações, no ordenamento dos seres e das coi­
sas, e da transgressão dos códigos; mas ele mostra ao mesmo tempo
o essencial, sendo um personagem que encama o movimento e foge
aos quadros estabelecidos do cosmo, bem como da ordem social.
Aquilo que destrói é também aquilo que constrói; Seth, porque
sofre de incompletação, completa a seu modo a Criação, perseguin­

135
UbUKULS DAliAPIÜILK

do-Lhe a realização ao buscar a sua; revela uma desordem criadora


de novas formas de ordem. Ao mostrar essa luta do pensamento e
da ação contra a rigidez dos sistemas sobre si mesmos, ele nos mani­
festa um avanço muito antigo da filosofia mítica®
No mundo grego, a filosofia mítica acompanha a filosofia dou­
trinai. O conceito de ubris, que opõe o desregramento insensato à
ordem governada pela razão, liga-se a Dioniso, a seus avatares e pro­
jetos — e, de maneira mais geral, aos “mistérios”. Esta figura divina
é móvel, dificilmente perceptível, e se disfarça em múltiplos rostos
que se escondem uns dos outros. A incerteza e o não-lugar caracte­
rizam em uma primeira abordagem esse deus: nascido de uma mãe
mortal, tem um duplo nascimento, humano e divino, gosta de fazer-
se de estrangeiro (de ser “o deus-que-vem”), não tem domínios pre­
cisos, localização fixa, e seus fiéis o veneram lá mesmo onde seu
grupo se detém: e escolhe a errância; mas ele é também um deus do
interior, tem seu lugar ao lado dos titulares de templos e nas festas
antigas da Cidade, sobretudo as das fratrias, a do vinho novo e a dos
mortos. É de sua potência, de sua dynamis que ele tira sua capaci­
dade de multiplicar suas formas e de ultrapassar fronteiras, a que
separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Ele suprime os gol­
pes e embaralha as classificações, derruba pontes e anuncia aquilo
que a ordem deve necessariamente separar para ser e se manter.
Dioniso destrói as barreiras erguidas entre o divino, o selvagem
e a sociedade. Seus fiéis tentam escapar da condição humana por
uma verdadeira regressão, uma fuga para a bestialidade; tomam-se
selvagens, comportam-se como grandes carniceiros; praticam a
errância no espaço não domesticado e se sustentam de carnes
emas. Seu deus adora comer o cru, freneticamente, dando a esta
violência — que contradiz o sacrifício civilizador — uma aura dra­
mática: é o final de uma caça desvairada, que termina pelo retalha-
mento do animal com as próprias mãos e a devoração das carnes
ainda quentes. A ordem dos homens, da Cidade, é transgredida,
subvertida por essa devoração; mas a extrema selvageria que
Dioniso carrega consigo “suprime de um só golpe qualquer distância
entre o divino e o humano”. “A idade de ouro costeia o tempo todo o
estado bestial; e Dioniso passa sem transição de um mundo paradi­
síaco às loucuras da caça selvagem.”10 Se uma ordem é negada, a

136
A ULSUKUC.M

atual, o é levando vantagem sobre a mítica, que havia no princípio,


onde nada separava nem limitava e de onde qualquer singularidade
era excluída.
Depois da violência ritual, a sexualidade, ameaçadora na medi­
da que nada a refreia e que dispõe de uma liberdade devorante. Dio-
niso é o “homem-mulher”, segundo a denominação de Ésquilo. Nele
os dois sexos não podem se separar e todas as suas manifestações
colocam em questão o elemento feminino — sua companhia é aliás a
das mulheres arrancadas de seu universo doméstico. Ele tem a
vocação do incesto, conferindo à união a mistura de gerações, ritual­
mente celebrada nos cultos secretos, um efeito benéfico. É o “aman­
te da rainha” , em Atenas, no momento culminante da festa das flo­
res, e, por este ato, é com a Cidade, na pessoa de todas as mulheres,
que ele se casa. O deus temido impõe uma vez por ano a esta cida­
de, onde todas as normas são masculinas, uma união que a faz mu­
lher; durante três dias, ele é o senhor; “ele é mais forte que a ordem
olímpica e ele celebra essa vitória no comando de um exército infer­
nal, que ataca pelos subterrâneos”.11 A transgressão sexual ritualiza-
da, reiterando a união sempre nefasta entre deuses e mortais, é o
mais grave de todos os perigos: é o que atinge a coletividade em
suas estruturas domésticas, fissurando-as e abrindo passagem às
potências destruidoras. Dioniso está associado ao falo, a uma potên­
cia de criação que lhe permite renascer eternamente de si mesmo.
Na ocasião de suas festas há as falofórias, como em Delos, onde um
falo gigantesco de madeira era transportado; muito mais que um
símbolo masculino, o falo é a afirmação de um querer-viver capaz de
quebrar todos os obstáculos e de triunfar sobre a morte — o que
Nietzsche achava ser a realidade fundamental do instinto helênico.
Essa arrancada vital se revela geradora de confusão nas classifica­
ções sociais e de rupturas, criadora de ligações ou comunicações
proibidas, propagadora de movimento e de uma desordem que traz
em si a fecundidade absoluta.
Dioniso obriga a percorrer um caminho ao contrário: as mulhe­
res que ele seduz rompem com o casamento, esta passagem que as
conduziu “da selvageria à civilização”. Elas abandonam o espaço
civilizado, o lar, e vão se reunir nos “lugares selvagens” para ali se
entregar à livre troca, rejeitando seu status de esposas. Essas bacan-
tes têm péssima reputação, são tidas como cortesãs que “vão se ser­

137
vir nos desertos do bom prazer dos machos”; são consideradas
devassas, que escondem sua devassidão por conta de “certos misté­
rios”, celebrações onde a orgia ( “na montanha”) e a possessão místi­
ca se confundem. Dioniso é o senhor todo-poderoso dos espíritos, se
apodera dos fiéis e lhes impõe a mania, esta demência que nenhu­
ma força subjuga; por ele, uma religião de polarização orgiástica
confronta-se com religiões fundadoras da ordem. O ritual dionisíaco
repousa sobre a crença de que todas as manifestações da vida se re­
duzem a um princípio cujo deus é a personificação; quando este sur­
ge em um dos adeptos, no transe, produz-se uma verdadeira apro­
priação do gozo vital, dessa exuberância essencial. O movimento da
vida é açambarcado em sua fonte, antes de qualquer domesticação,
qualquer submissão à ordem. A interpretação de cunho psicanalítico
faz do culto dionisíaco uma forma de diminuir a fronteira entre o ser
e o outro, de vencer a alteridade, de chegar à uma fusão comunica­
dora na participação coletiva do fluxo vital. Aqueles nos quais o
deus manifesta sua presença constituem aliás um grupo informal, o
thiase, onde se misturam mulheres e homens, escravos e cidadãos:
uma comunidade sem fronteiras e sem diferenças exclusivas. Em
uma mesma perspectiva, o dionisismo aparece como oferecendo aos
fiéis a possibilidade “de viver plenamente a ambivalência do desejo”,
de expurgar da morte seu sentido atemorizante, de construir a lou­
cura provocada e ritual diante da ameaça da loucura sofrida.
Com Dioniso é possível fazer o inventário das transgressões,
que o pensamento grego revelou ao mundo por ele organizado, de
estabelecer a carta dos deuses da desordem aos quais ele deveria
ceder o lugar, dentro de um cosmo ordenado segundo sua razão. O
deus excessivo, volúvel e senhor de todas as perversões, gerador de
todas as inquietações, embaralha as formas pelas quais a ordem
social é definida, subverte os valores fundamentais, nutre a exigên­
cia de ultrapassagem dos limites individuais e de salvação, do
mesmo modo que o protesto de onde nascem as forças de ruptura e
de subversão da Cidade. Por essas razões, e porque ele parece con­
tradizer a racionalidade que governa o mundo grego, Dioniso apare­
ce como o estrangeiro, “o outro instalado na polis”. Nesta, ele tem e
não tem lugar. Eurípides deu dessa contradição um exemplo em As
bacantes: o retomo de Dioniso a Tebas nela engendra a desordem e
a conduz à destruição; mas o deus mostra que uma cidade inteira­

138
mente govemável, inteira dentro de sua ordem é ao mesmo tempo,
e de fato, uma cidade morta. É preciso que o movimento, portador
de vida e de renovação, mas também de questionamentos e provas
incessantes, evolua. Ordem e movimento devem estar juntos, equilí-
brios e processos longe do equilíbrio devem coexistir, tal como a ra­
zão e aquilo que a nega, como uma quase loucura. De Dioniso disse-
se que ele liga dois sistemas de representações do mundo, duas lógi­
cas (a começar pela masculina e a feminina), dois aspectos indisso­
ciáveis — a ordem da racionalidade e a desordem que dela transbor­
da e a fortalece. Já se disse que Dioniso “é o lugar das maiores con­
tradições, que a razão humana é impotente para assumir” ; porque
ele provoca o aparecimento do irracional e do sagrado no âmago da
Cidade, “ele é o próprio paroxismo da tensão trágica”. Se o deus é o
“emblema da subversão dentro do helenismo”, é também do helenis-
mo a presença indelével. Ele é o conquistador que tem direito ao
triunfo, seu culto ocupa um lugar enorme no calendário religioso,
mas sob a forma de um sistema ritual aberto às possibilidades que a
religião estabelecida ignora ou censura.12
Do Egito à Grécia e ao mundo helenístico, depois à África, o
Perturbador divino ou o herói ultrapassador dos limites multiplica
suas manifestações e seus avatares. A mais comum dessas figuras
que apareceram no mundo negro é Legba ou Eshu, situado no uni­
verso religioso do Benim e realizando sua migração quando da
deportação negra para as Antilhas e as Américas. No Daomé antigo,
Legba situa-se na genealogia dos deuses oriundos de uma divindade
bissexual, em posição de recém-nascido. Por causa desse apareci­
mento tardio, ele não recebe a responsabilidade de nenhum setor do
universo, mas apenas a capacidade de dominar todas as palavras e
de jogar com todas as significações. Ele torna-se desse modo o
intérprete, o mediador que permite às múltiplas divindades comuni-
carem-se entre si e de ter um enviado junto aos homens. Porque é o
senhor da comunicação, ele tem igualmente o dom da ubiqüidade e
pode estar em toda parte em ação. Associa-se aos lugares de encon­
tro e passagem: encruzilhadas, espaços públicos, entradas. Tem seu
lugar em todos os grupos de culto e em todas as casas, e junto de
cada homem a quem dá uma porção de liberdade. A ubiqüidade de
Legba não se inscreve somente no espaço, mas também no tempo:
ele é essencialmente aliado à adivinhação, à comunicação com o

139
futuro, à palavra e à escrita de Fa, senhor do destino, a ponto de os
mesmos mitos tratarem tanto de um como de outro. Com a capaci­
dade de intervir em todos os lugares e de se fazer comunicar, este
deus da presença múltipla, do movimento e das transgressões tem o
poder de brincar com as restrições que regem a ordem do mundo e
da sociedade.
Legba é também indissociável da sexualidade e dos símbolos
fálicos. De um certo modo, ele mesmo é um falo. É por meio desses
símbolos que exprime seu superpoder, segundo o que dizem os seus
sacerdotes, e que ele leva ao grau extremo suas transgressões. Ele
destrói as proibições mais invioláveis: comete o incesto com uma
irmã e a filha desta, tem relações sexuais com sua sogra, copula com
os cadáveres de três mulheres que ele mesmo matou, deflora a filha
de um chefe depois de ter reduzido o marido e os homens do séqui­
to à impotência. Ele se diz dotado de um apetite sexual inesgotável
— como castigo por sua primeira relação incestuosa — , apoderan­
do-se de todas as mulheres que encontra em seu caminho.13 Legba é
o destruidor (um dos nomes pelos quais é conhecido), quando pri­
meiro destrói as convenções pelas quais a sexualidade se socializa e
enquadra primordialmente a sociedade. Ele revela a sexualidade sel­
vagem; tal como o deus grego, coloca o divino e a selvageria em
estreito relacionamento.
A comparação impõe-se sobre um outro plano: o deus daomea-
no também está ligado à loucura, é o louco entre os deuses cuja obra
de gestão do mundo e dos homens confunde, e que entre estes
semeia a inquietação, a discórdia, o imprevisto e o sacrilégio. Os
múltiplos nomes de Legba mostram que se trata de uma figura
capaz de contínuas transformações, e tão inatingível quanto o vento
e o fogo que representa. Legba é inclassificável, embaralha as classi­
ficações, as ordenações. O espaço, as regras, as categorias não lhe
impõem limites. Para ele, o pensamento se desorienta, é um jogo pe­
lo qual as significações entram em curto-circuito e se transformam;
substitui por sentidos inteiramente novos os sentidos dados ordina­
riamente às palavras; porque desdenha da lógica social, toma-se um
contrapensamento, um “método proibido”, um abuso da inteligência
servida pela esperteza e a falta de respeito. Legba, o grande comuni­
cador, brinca com a linguagem para criar o movimento nas classifi­
cações sociais e nas lógicas que as sustentam; pode-se aplicar nele,

140
a propósito, uma fórmula de Roger Bastide, relativa aos procedi­
mentos lingüísticos anti- ou a-sociais: “introduzir a desordem na
ordem para impedi-la de se estrangular”.14
Legba atravessa com suas turbulências os territórios dos pode­
res. É o único que pode se opor ao deus supremo e a grupos de deu­
ses — uma narrativa faz de Legba o chefe destes — , ao soberano, à
família real, aos dignitários. Diante de todos tem a capacidade e o
direito de se encolerizar. A análise da narrativa mítica e a exegese
dos comentaristas permitem precisar as formas dessa oposição: a
ironia, que deprecia o poder político e seu sistema de autoridade; a
rebelião, que os coloca em situação de vulnerabilidade e os torna
frágeis, apesar das aparências em contrário; o movimento, que cede
espaço à corrente da vida e deixa a ordem ao sabor das perturba­
ções da mudança. Legba traça os limites do poder, seus projetos
levam para o imaginário a prova de que este não está inteiramente
confiscado, mesmo sabendo-se que o Estado de Daomé antigo é for­
temente centralizado e seu soberano considerado despótico. O deus
está presente em cada homem como uma chance de liberdade, ele
lhe oferece a possibilidade de não ficar inteiramente submetido à
sua condição, de ter uma parte da iniciativa, de afrouxar os nós das
imposições políticas, sociais e culturais. Ele dá a cada um os meios
para obter o melhor ou o pior do destino que lhe é próprio, e mesmo
o rei — ainda que seu “próprio Legba” seja considerado o mais
poderoso — não escapa a essa dominação.
A oposição onde o deus se situa é bem definida. De um lado, o
que depende do poder organizador, da força geradora da existência
e da ordem, presente em toda divindade, em todo ser vivo, em toda
coisa; uma potência (chamada acè), que não pode ser nem captada
nem apropriada, mas somente gerada de maneira conveniente pelo
estrito respeito às regras, às proibições, aos ritos e pelo uso correto
das palavras. De outro lado, o que depende de Legba, o quase louco,
o violador, o “ser bom-e-mau”, o destruidor, aquele pelo qual tudo se
comunica sem medo dos cortes, das separações constitutivas de
ordem, e pelo qual tudo é colocado em movimento sem preocupa­
ções, com as rupturas de equilíbrio e as confusões de sentido que
disto resulta. Legba opõe sua indisciplina divina à disciplina da
ordem social e universal. Mostra que esta carrega em si, necessaria­
mente, o aleatório e a desordem; manifesta o que se esconde por

141
trás das aparências tranqüilizadoras da estabilidade e da repetição
Ele remete a ura ensinamento capital: se não faz parte do movimen­
to, se não reconhece nem governa a desordem que não pode deixar
de criar, a ordem simplesmente reduziria a sociedade ao estado de
astro gelado.15
Em todos os universos culturais, o imaginário coletivo deu
forma e vida a personagens capazes de se transformar tanto em deu­
ses ou heróis quanto em bufões, e de agir ao contrário das normas e
dos códigos. Um nome os designa: Trickster, dos mitólogos anglo-
saxões, palavra que evoca o trick (as voltas) e a “triche” (a “tra­
paça”); é o Décepteur dos mitólogos e antropólogos de língua fran­
cesa, de volta como um avatar exótico do Deceptor de Descartes. Se
é certo que cada uma dessas figuras, e o que cada uma exprime, só
se enquadra totalmente no interior dos sistemas de idéias, de símbo­
los e de crenças que lhe é particular, não é menos verdadeiro que
elas têm em comum características essenciais. Todos esses persona­
gens estão à parte, ou separados por uma impureza original, desde
seu nascimento; eles são “outros", de identidade incerta ou variável,
seu ser móvel os exclui de toda conformidade; podem aparecer
como meio loucos inquietantes e cômicos. Por eles, também, os limi­
tes se apagam, as categorias e as classificações se embaralham, os
valores e as obrigações se enfraquecem. Eles perturbam, transgri­
dem, subvertem; desafiam os poderes, e as potências superiores
com as quais seu estado intermediário (entre os deuses e os ho­
mens) os relaciona. A uma lógica da ordem opõem uma lógica da
contradição e da incerteza.
O ciclo de Wakdjunkaga, transmitido pelos winnebagos india­
nos e sobre o qual Jung e Kerenyi apresentaram um comentário,
narra os incidentes, os acontecimentos e os escândalos dos quais
este herói é o agente ou o provocador. Alguns ritos centrais estão
submetidos a uma deformação paródica e bizarra: a competição ceri­
monial entre clãs, que tem como desafio sua organização política, os
procedimentos e as restrições que acompanham a passagem à matu­
ridade viril, as práticas que atraem as bênçãos dos espíritos e as que
a boa condução das operações guerreiras requer. Nessas circunstân­
cias, o perturbador provoca desordens e transgressões; e delas se ri
— riso sacrílego — em total impunidade. Em razão de tudo isso, o
chefe não se comporta como dele se espera: derruba as proibições,

142
sobretudo as do caráter sexual, saqueia os lugares de culto, levanta
seu pênis em lugar do emblema de autoridade, que usa por ocasião
da festa anual, onde tem por incumbência lembrar os ideais de sua
coletividade. Mitos ou ciclos legendários homólogos tiveram uma
enorme difusão entre os ameríndios setentrionais. Eles anunciam
todos os benefícios (e malefícios) e gestos de um herói mal identifi­
cável, divino por vários aspectos, sempre errante, ignorando a fron­
teira entre o bem e o mal, poderosamente sexuado e obsceno, enga­
jado em aventuras onde enfrenta sempre os costumes e as regras.
Seus excessos, que às vezes o levam a ponto de a má sorte voltar-se
contra ele próprio, asseguram a ordem mostrando-o inaceitável
quando colocou tudo de pernas para o ar; além disso, o personagem
aparece em algumas circunstâncias como o criador de novas formas
de instituições, que nascem de suas próprias transgressões. O que
ele exprime, sobretudo, é a natureza contraditória da sociedade —
mistura instável de ordem e desordem, de conformidade e de não
conformidade — do que resulta sua própria natureza, sua instabili­
dade essencial.
Na África ocidental, o “deceptor” encontra-se nos mitos e so­
bretudo nos contos que têm os animais como sujeitos. Fora o cor-
pus sagrado dos dogons, que faz da raposa mítica ( “a Raposa páli­
da”) uma figura da desordem necessária ao movimento do mundo,
um dos conjuntos narrativos mais providos de ensinamentos é o dos
akans, sobretudo dos ashanti de Gana. Numerosos contos têm como
figura central Anansê, a aranha que transgride as regras do deus
criador: são transmitidos, enriquecidos e multiplicados em razão do
grande valor que lhes é dado e porque preenchem uma função con­
siderada vital: a de colocar em questão e de afirmar, contestar e for­
talecer a “crença a respeito dos conceitos socitais mais importan­
tes” . Trata-se de uma espécie de pedagogia do conhecimento da
sociedade, geradora de desilusões e de apreciações críticas, e entre­
tanto ambígua, pois contribui em última análise para confirmar e
reforçar a regra. O personagem de Anansê arruina os fundamentos
da sociedade akan, é o ser negativo que traz a contradição e a incer­
teza, a desordem e, finalmente, a morte. Não aceita nenhum laço,
nem de parentesco nem de amizade; experimenta um individualis­
mo absoluto, resolutamente anti-social. É rebelde em todas as suas
relações com Nyamê — o Criador “que deu sua ordem ao universo e

143
designou todas as coisas”, com os espíritos e com a morte. Mas a
revolta de Anansê encontra obstáculos e seus projetos experimen­
tam muitos fracassos. O personagem não é um agente da desordem
cujo sucesso é assegurado; é ambivalente, como os ensinamentos
que transmite. Se permite uma liberação no imaginário, dissolvendo
as dificuldades sociais, provoca sobretudo a desaprovação; se
demonstra a possibilidade de violar a lei, revela também que esta
tem a última palavra. Anansê é a exceção que confirma as regras,
que dá validade, através da inversão de suas próprias inversões e
subversões, à ordem akan. Mais uma vez, a desordem se traduz em
ordem.10

O poder p o r meio da desordem

As produções do imaginário não estão unicamente destinadas à


transmissão da palavra: inscrevem-se nos sistemas de práticas mais
ou menos dramatizadas, chegam à materialidade por meio da cria­
ção artística — principalmente a arte das máscaras. É importante
precisar, por conseguinte, que os jogos de palavra, pelos quais a
palavra se desvia, se inverte e se torna “má”, podem contribuir para
o aprendizado e a pacificação das relações sociais. Desse modo, o
insulto desprovido de sua carga agressiva, dentro do próprio contex­
to de sua emissão, se torna um instrumento pedagógico: as mulhe­
res mossis (do Burkina) insultam seus filhos, utilizando formas
específicas que recorrem sobretudo à metáfora e à sinédoque, a fim
de afirmar sua própria autoridade e de interiorizar a hierarquia dos
papéis e as relações de desigualdade constitutivas do universo fami­
liar. Desde o momento em que circulam em um contexto cerimonial
(ou festivo) propício a todos os disfarces, as palavras que violentam,
normalmente geradoras de conflitos e confrontos graves, adquirem
uma capacidade purificadora; levam embora os rancores secretos, as
violências e as desordens ocultas. A festa abisa dos nzemas da
Costa do Marfim e de Gana durante muito tempo fizeram uma espé­
cie de limpeza, de fortalecimento no momento em que o ano termi­
na. A festa caracteriza-se por disfarces — como se a palavra tornada
livre devesse ser “disfarçada” — , pelas trocas de insultos e pela
expressão violenta de todos os ressentimentos. É preciso “esvaziar
seu coração” para não assumir o risco de morrer durante o ano. É a

144
ocasião de, publicamente, fazer advertências ao chefe, expulsar uma
feiticeira simbólica, jogada no mar com a carga dos males acumula­
dos ao longo dos meses passados, mas também de fortalecer o acor­
do entre os ancestrais, ofertando-lhes os primeiros frutos da terra. É
uma espécie de carnaval que permite liberar os problemas da comu­
nidade, reverter positivamente as relações entre as pessoas e entre
os grupos, e que deságua no sagrado ao renovar a relação com os
fundadores da ordem nzema e com as potências que regem a natu­
reza. Em outras circunstâncias, uma guerra e uma desordem de
palavras semelhantes servem de substitutos (ou simulacros) apazi-
guadores dos confrontos e desordens reais; contribuem para contê-
los relaxando-os ficticiamente.17
Fazer a desordem não é apenas deixá-la passar ou tentar dirigi-
la ao menor custo, é também abrir-lhe os espaços onde será simboli­
camente capturada, depois domesticada. O campo do ritual permite
esta operação pela oposição do sagrado, do poder, da ordem, da cul­
tura e da seriedade à transgressão, à desordem insana, à selvageria,
ao cômico grosseiro e obsceno; o riso nasce deste confronto, dos
choques e curto-circuitos que provoca, mas também da angústia
criada pelo sacrilégio. Os índios americanos fizeram deste procedi­
mento uma instituição, o instrumento de uma estratégia coletiva da
qual, sobretudo o poder, tira proveito. No centro do que é um drama
sagrado, onde ordem e desordem estão em jogo, encontra-se uma
figura muito conhecida dos antropólogos: o Palhaço ou Bufão ceri­
monial. Encarna de maneira muito próxima o personagem do “De-
ceptor”, realizando o que este evoca em favor da narrativa; é uma
figura que aparece espetacularmente. Como o acidente, o aconteci­
mento e a improvisação, a desordem, surge nas reuniões tribais mais
solenes. Nos intervalos do drama ritual, manifesta o que é censura­
do, repelido, reprimido: a violência, a loucura, a sexualidade pública
e a obscenidade, a regressão selvagem, o escárnio do qual a própria
morte está marcada. O Palhaço cerimonial não respeita nada nem
ninguém, sua permissividade é total, e seu ataque é mais forte quan­
do visa um objeto reverenciado; é o mestre do mal como o é, ou
poderia ser, do bem. Revela fugazmente, sob o efeito do brilho da
transgressão, um outro mundo onde as significações circulam em
todos os sentidos, onde nada está ordenado, onde as palavras não
dizem aquilo que supostamente deveriam dizer, e onde as normas se

145
tomam anormais. A sociedade, personificada pela platéia cerimo­
nial, o “pune” por ser o artesão dessa bagunça escandalosa; conde­
na-o pelo riso (amarelo), agride-o parodicamente (utilizando as
crianças), faz dele uma espécie de personagem expiatório, mas sem­
pre lhe outorgando um poder mágico que o toma temido.
O trabalho do Palhaço cerimonial realiza-se sobre quatro prin­
cipais terrenos. E primeiramente o do sagrado: a comunicação esta­
belecida com certos deuses é banalizada, quase trivializada como a
comunicação do cotidiano, a ordem cerimonial é invertida e as atitu­
des rituais escarnecidas burlescamente. Em seguida, o terreno da
des-aculturação ou da selvageria: os trapos, a lama, a sujeira, as
matérias impuras vestem o personagem; a repulsão extrema, como
entre os zunis, é provocada pelo consumo de urina e excrementos,
de dejetos, de pequenos animais retalhados vivos; a regressão se
manifesta em um jogo de selvageria e bestialidade. O terreno da
sexualidade é aquele sobre o qual o escândalo da transgressão atin­
ge sua mais alta intensidade, a ponto de se denominar essas culturas
da desordem cerimonial de “fálicas” . Os Palhaços sagrados usam
simulacros de pênis, exibem imitações de vulvas enormes, praticam
gestos equívocos com travestis, entregam-se a cópulas simuladas
sobre os altares; dissocializam parodicamente a sexualidade e enco­
rajam a devassidão sexual durante as cerimônias, fazendo da des-
construção dos códigos sexuais o próprio signo da subversão total
da ordem. O último terreno onde se dá sua provocação é o infortú­
nio: os enfermos de nascença e de vida se degradam em objetos de
impiedosas zombarias, suas enfermidades ou suas desgraças, carica­
turadas, grotescamente exageradas, tomam seu lugar na pantomima
cerimonial. Esses registros, segundo os quais o Palhaço ritual com­
põe seu papel e seu texto, não são dissociáveis. Colocam cada
homem, no momento do espetáculo sagrado, na presença de siste­
mas de forças e significações que ordenam (e podem desordenar)
sua condição: o sagrado que o submete, o sexo que nutre suas pul-
sões, o destino que lhe designa uma sorte desigual e mutável, e,
mais globalmente, a cultura que lhe traz o sentido com o Símbolo e a
Lei. O Palhaço mostra a ambivalência, os sentimentos que inspira
são, aliás, reveladores: a reverência e a afeição juntam-se à raiva, até
ao medo que incitam ao apaziguamento através dos dons. Ele entra
no grande jogo dos poderes; faz a autoridade nos debates dos temas
da comunidade, o é, às vezes, como entre os zufíis, um elemento da
hierarquia governante Sobretudo, ele é o revelador de uma realida­
de onde prevalecem o movimento, o imprevisto e a turbulência.
Destes é, de uma certa maneira, o mestre, o responsável de um
encargo que não está limitado a uma invocação periódica do “cará­
ter a-social da transgressão”: é aquele que converte a desordem por
meio da teatralização ritual.18
Na medida que estão a serviço de dispositivos que têm por
finalidade conservar, tratar a mudança no sentido de uma continui­
dade mantida, de preservar e fortalecer as aparências da unidade
social, a simbolização e a ritualização propriamente políticas mos­
tram ainda mais claramente essa conversão da desordem em ordem.
No caso, há ainda por constatar o efeito de um processo de inversão
social, inversão que se voltaria de alguma forma contra si mesma,
consolidando o que deveria arruinar. Uma segunda leitura deixaria
entrever a consciência do tempo naquilo que o faz irreversível, do
movimento naquilo que o constitui fator de desperdício de forças,
de usura, e, em sentido contrário, de possível renovação. O cerimo­
nial político dos anyis da Costa do Marfim dá a prova disso na pessoa
do soberano, que governa seus reinos minúsculos. O rei é o suporte
da força do poder, mas só está ali na condição de permanecer corpo­
ralmente íntegro e infenso a qualquer sujeira. Essa força é o princí­
pio mais ativo, a ponto de poder abreviar a própria vida do soberano;
é uma força que pode se degradar ou deixá-lo, e tudo aquilo pelo
que é responsável fica, pois, em estado entrópico. É preciso então
fortalecê-la, e é este o objetivo dos rituais anuais e cíclicos (a cada
sete anos) denominados festas do inhame. Tais manifestações asso­
ciam a renovação da força do poder à renovação da natureza. Essas
verificações periódicas permitem reafirmar ou enfraquecer a plena
capacidade real; se o soberano aparece de forma declinante, “o
mundo arruina-se com ele”, ele se torna nefasto e uma mensagem
informa que deve ser “suprimido”. O tempo vence o soberano mas
não a realeza, que se fortalece quando surge o novo reino.
Entre os swazis da África sul-oriental, uma grande cerimônia
nacional e anual dá ao soberano a oportunidade de se colocar simbo­
licamente à prova e de mostrar seu vigor. E um drama político — e
cósmico — onde ele desempenha o papel de personagem central
que se submete a uma agressão perfeitamente codificada, que lhe

147
permite definir-se periodicamente e fortalecer-se efetivamente. A
dramatização comporta duas fases. A primeira é a das desordens,
dos enfrentamentos, das provas e do ódio encenados; o rei sai disso
tudo vencedor, e sua força, regenerada. A segunda alia a política e o
cosmo, a ordem dos homens e a ordem do mundo. Associa o rei às
forças e aos ciclos naturais, às práticas provocadoras de vida e de
fertilidade, à consumação cerimonial dos primeiros frutos. A ordem
social fica então exposta, o soberano rege todos os momentos do
rito, exige que cada participante se conforme a um código de prece­
dência que exprime solenemente os diversos status, as posições e as
hierarquias que regem. Sob esse aspecto, o rei pode ser visto como
uma figura inversa daquela do Bufão ritual; tudo, por meio dele, se
manifesta segundo a categoria da ordem: o sagrado e seus manda­
mentos, a sociedade e sua Lei, o mundo natural e suas regularida-
des. Ele exerce um sacerdócio geral da ordem, deve fazer com que
esta submeta a desordem.
Nas sociedades tradicionais de estado, o corpo soberano é o
lugar central onde a ordem e a desordem se encontram e se enfren­
tam. A força (a potência) da qual é investido é ambivalente. Repto
de ordem e desordem, de fecundidade e esterilidade, de vida e de
morte, esta força engendra um e outro segundo seja ou não tratada
de maneira adequada. A iniciação, precedendo o momento da inves­
tidura, requer freqüentemente a passagem pela regressão, a trans­
gressão e a violência bruta, o que realiza o afastamento de sua con­
dição humana comum e faz do rei uma pessoa singular, um ser único
e à parte. O que é sobretudo demonstrado é a capacidade de subme­
ter a ordem além da desordem, de colocar a energia selvagem, pri­
meira, e da qual a desordem é o veículo, a serviço da instituição —
domesticando-a. O tempo dos interregnos revela o que exatamente
acontece: a vacância do poder se torna um período de regressão
durante o qual a energia social retoma simbolicamente (e, por um
lado, efetivamente) ao estado bruto. Nada fica regulado, tudo pare­
ce conduzir ao caos. Nos antigos reinos do Benim, na África ociden­
tal, uma fórmula convencional diz o seguinte: “é noite” sobre o país.
É o tempo das trevas. Os primeiros observadores estrangeiros cons­
tatam então o desregramento dos costumes, a multiplicação dos
estupros e depredações, tudo envolvido em impunidade provisória,
“como se a justiça morresse com o rei”. Esta reaparece, ainda mais

148
severa que a anterior e, com ela, toda definição das normas e limi­
tes, quando da entronização do novo soberano; o reino se abre para
desdobramentos simbólicos e operações sacrificiais, que mostram
que as forças de desorganização, até então liberadas, estão a partir
de agora dominadas. As ritualizações, pelas quais se encena o drama
do poder vacante, são todas conduzidas segundo os princípios da
inversão e da hipérbole, do excesso e do desrespeito aos limites
sociais. As proibições e censuras são substituídas pela obscenidade
desatinada ou orgíaca; o direito pela violência; o decoro e os códigos
pela paródia e a irreverência; o poder conservador de uma ordem
pela liberdade louca e a agitação desordenada. As ritualizações
impõem finalmente uma certeza: a continuidade em vez do caos.
Elas acenam para o desejo de ordem.19

149
N otas

1. Textos principalmente utilizados: P. Clastres, “De quoi rient les


Indiens?”, Les Temps modemes, 253, 1967, pp. 2179-98; P. Delarue, M.-L.
Teneze, Le conte populaire français, tome II, Paris, Maisonneuve et
Larose, 1964; J. Copans, P. Couty, Contes wolof du Baol, Paris, 10/18,
1976; M. Colardelle-Diarrassouba, Le lièvre et 1’araignée dans les contes
de l'Ouest africain, Paris, 10/18, 1975; F. Rodegem, “Ainsi parlait
Samandari”, Anthropos, 69, 5/6, 1974, pp. 753-835; J. Scelles-Millies,
Contes arabes du Maghreb, Paris, Maisonneuve et Larose, 1970; B.
Juillerat, “Humour et transgression dans la littérature orale d’une société
de Nouvelle Guinée”, Cah. De Lit. Orale, 8,1981, pp. 125-45.
2. D. Lima Handem, Nature etfonctionnement du pouvoir chez les
Balanta Brassa, tese inédita E.H.E.S.S., 1985, pp. 214-7, 268-80 e 304-6.
3. Sobre os contos de mentiras, A. de Félice, “A propos de contes de
mensonges”, Arts et traditions populaires, XII, 3/4, 1964, pp. 239-45;
sobre os contos da criança terrível, V. Gõrõg, S. Platiel, D. Rey-Hulman, C.
Seydou, Histoires d’enfants terribles, Afrique noire, Paris, Maisonneuve
et Larose, 1980; citações extraídas da “Conclusão” de G. Calame-Griaule,
“L’enfant terrible ou comment s’en débarrasser”, pp. 241-9.
4. Cf. J. Cochin, “Mondes à 1’envers, mondes à 1’endroit”, Arts et tra­
ditions populaires, 3/4, 1969, pp. 234-57.
5. A propósito do carnaval, objeto de numerosos estudos, alguns títu­
los: G. Balandier, Le pouvoir sur scènes, op. cit., cap. 3, “Lenvers”, pp.
128-37; C. Gaignebet, Le Carnaval, Paris, Payot, 1974; E. Le Roy Ladurie,
Le Carnaval des Romans, Paris, Gallimard, 1979; J. Heers, Fêtes des fous
et Carnaval, Paris, Fayard, 1982.
6. Sobre a interpretação do carnaval, complementando: M. Grindberg,
“Carnaval et société urbaine, XlVe.-XVe. siècle: le royaume dans la ville”,
Ethnotogie Française, IV, 3, 1974, pp. 215-44; M.-I. Sampaio, “La mort du
chat, tragédie de la joie au Carnaval de Bahia”, Nouv. Rev. d'ethno-psychia-
trie, numéro spécial “Dyonisos", 1, 1983, pp. 81-106; E. Cerf, “Le Carnaval
des voyous à Strasbourg”, Ethnotogie Française, 12,2,1982, pp. 177-84.

150
7. J. Le Goff e J.-C. Schmitt, dir., Le Charivari, Paris, C.N.R.S. e
E.H.E.S.S., colóquio de abril L977; E.-P. Thomson, “Rough Music: le chari­
vari anglais", Annales E S C., 2, 1972, pp. 285-312; C. Petit, “Le triomphe
du Pauvre, les pauvres contre les riches à 1’époque révolutionnaire à travers
une fête rouergate”, Annales duMidi, 90, 137,1978, pp. 141-54.
8. R. Jaraous, “La parodie des valeurs: les cérémonies du mariage
chez les Iqar’iyen (Maroc)”, in Le Charivari, op. cit.; C. Gatheron, Essai
sur la condition et le rôle de lafemme mandénka du Niokolo, tese s.p.,
Paris, Université René Descartes.
9. Cf. U. Bianchi, “Seth, Osiris et l’ethnographie”, Rev. d’Histoire. des
Religions, CLXXIX, 2,1971, pp. 113-35.
10. M. Detienne, “Dionysos”, in Y. Bonnefoy, dir., Dictionnaire des
mythologies, Paris, Flammarion, 1981, pp. 300-7.
11. M. Daraki, Dionysos, Paris, Arthaud, 1985, pp. 78-83.
12. M. Daraki, op. cit., citações e dados extraídos dos caps.III e IV; M.
Detienne, “Dionysos”, op. cit., citações e dados selecionados; M. Detienne,
Dionysos mis à mort, Paris, Gallimard, 1977, e o artigo de N. Loraux, “La
Grèce hors delle”, L ’Homme, XX, I, 1980, pp. 105-11.; número especial
“Dionysos, le même et l’autre”, Nouv. Rev. d’ethnopsychiatrie, 1, 1983, e
sobretudo a contribuição de M. Bourlet, “L’orgie sur la montagne”, pp. 9-44;
e a obra clássica de H. Jeanmaire, Dionysos, histoire duculte de
Bacchus, Paris, Payot, 1951, reeditada em 1970.
13. Dados extraídos de M.-J. e F.-S. Herskovits, Dahomean narrati-
ve (1958), retomados por L. Makarius, “Le mythe du Trickster”, Rev.
d’Histoire des Religions, 1, jan.-mar. 1969, pp. 17-46.
14. R. Bastide, “Le rire et les courts-circuits de la pensée”, Échanges
et communication, La Haye, Mouton, 1970, pp. 953-63.
15. Sobre os legbas: B. Maupoil, La Géomancie à 1’ancienne Côte
des Esclaves, Paris, Institut d’Ethnologie, 1941; H. Aguessy, Essay sur le
mythe de Legba, t. 1-3, tese, Paris, Université Panthéon Sorbonne, 1973;
M.-J. et F.-S. Herskovits, op. cit., e L. Makarius, op. cit.; G. Balandier, O
Contorno, poder e modernidade, op. cit.
16. Sobre o “Deceptor”: P. Radin, K. Kerenyi, C. Jung, The Trickster. A
study in American Indian Mythology, London, Routledge and Kegan Paul,
1956 (nova ed.); R. D. Pelton, The Trickster in West África, Univ. of Cali­
fórnia Press, 1980; D. Paulme, “Typologie des contes africains du Dé-
cepteur”, Cah. Ét. Afr.,XV, 4, 1975, pp. 569-600; C. Vecsey, “The Exception
who Proves the Rules: Anansé the Akan Trickster”, Joum. of Religion in
África, XII, 3,1981, pp. 161-77; sobre o mito dogon, cf. o primeiro cap. supra.
17. Cf. S. Lallemand, “Têtes en loques: insultes et pédagogie chez les
Mossi”, Cah. Ét. Afri., XV, 4,1975, pp. 649-67; D. Paulme, “Un rituel de fin

151
GEORGES BALANDíER

d année chez les Nzéina de Grand Bassam Cah. Ét Afri., X, 2, 1970, pp.
189-202.
18. O estudo dos palhaços rituais foi efetuado em numerosas socieda­
des indianas por: Lowie (Plains), Skinner (Ponca), Bunzel (Zuni), Parsons
(Pueblo e Yaqui), Opler ( Chiei cahua), Howard (Sioux). Ver também: L
Makarius, “Clowns rituels et comporteraents symboliques ”, Diogène, 69,
1970, pp. 47-74 , e a nota de T. H. Lewis, “Traditional and Contemporary
Ritual Clowns of the Crow”,Anthropos, 77, 5-6, 1982, pp. 892-5.
19. Cf. G. Balandier, Le Pouvoir sur scènes, Paris, Balland, 1980,
cap. 3, “L’envers”; C.-H. Perrot, Les Anyi-Ndénié et le pouvoir au XVIIIe.
etXIXe. siècles, Paris, Éd. de la Sorbonne, 1982, e o regrupamento de tex­
tos de M. Gluckman, Order and Rebellion in Tribal Africa, Londres,
Cohen and West, 1963.

152
Terceira Parte

DESORDEM NA MODERNIDADE
6

A MODERNIDADE EMBARALHA AS CARTAS

As sociedades tradicionais dispõem de uma cartografia da


ordem e da desordem, demarcando-lhes os lugares e as evoluções;
na medida que estão abertas a um movimento portador de contínuas
e incertas transformações, as da presente modernidade só dispõem
de cartas reviradas, engajando-se a esmo na história imediata.
Nas sociedades tradicionais, as dominações sociais são mais
efetivas, senão totais: o mito lembra a carta fundadora e contribui
para a definição de uma identidade coletiva, as linguagens determi­
nam o status dos seres e das coisas, o sistema simbólico une, estabe­
lece correspondências, equipa as práticas em instrumentos de ação
geral sobre o mundo e sobre os homens; o poder se situa na encruzi­
lhada desses três conjuntos de relações, desses três sistemas de
definição e legitimação, recebe deles sua eficácia e se inscreve atra­
vés deles em uma temporalidade, que amortece o efeito do aconteci­
mento. A tradição mantém a presença dos deuses, das entidades,
das forças, ou seja, das potências que a todos se impõem, sobrepon­
do-se como fatores de ordem em um mundo humano, onde a desor­
dem trabalha permanentemente. A referência suprema de toda
ordem se encontra assim fora da esfera de ação do tempo e dos
homens, a elas submissos; dá à sociedade sua estrutura simbólica
forte e estável, outorgando-lhe um sentido largamente dissociado
das condições históricas.
Seria portanto um erro — durante muito tempo sustentado por
uma etnologia voltada para as interpretações em termos de oposi-
ções — de ver a sociedade tradicional como a forma invertida da
sociedade moderna. Esta conhece os desafios da história, vence as
provas que as condições externas (as do meio) lhes impõem, está

155
aberta ao acontecimento e aos riscos, gera recusas que derrubam a
conformidade, discórdias e confrontos, se move e não se repete de
geração em geração. Aquilo pelo que difere essencialmente é de
outra natureza, e talvez revelador de certas falhas aparentes na
sociedade da modernidade, falhas que criam um desejo de retomo
ao passado (a nostalgia tranqüila) ou uma certa fascinação para o
arcaico (a permanência resistente aos ataques da história).
As sociedades tradicionais estabelecem entre o real e elas mes­
mas uma relação de equivalência, sua ordem e a ordem geral do
mundo são indissociáveis; constituem-se ao se situarem por comuni­
cações e correspondências múltiplas com o mundo, delas não se se­
parando no desejo de melhor dominá-lo. Neste sentido, suas teorias
do mundo, do homem e da sociedade são globais, unificadoras. Ain­
da que inegavelmente acessível a todos, seu saber é ele mesmo glo­
bal; é dividido a partir de graus de iniciação que o eleva, e não a par­
tir de uma setorização de conhecimentos. Ele não separa, mas reata
e une em uma mesma visão de mundo conhecida pela maioria dos
que compõem a camada principal. A definição dita holística dessas
sociedades acentua particularmente esses aspectos. Nelas, a mobili­
dade é grandemente contida, enquanto as transformações resultan­
tes da modernização não se efetuam de fato. Nela os indivíduos
estão, de uma certa maneira, instalados: no grau mínimo de mobili­
dade, seu percurso de vida é quase conhecido desde o início, salvo
acidentes; no grau máximo, as realizações e vitórias pessoais aconte­
cem, mas no interior do status, nos limites do estado ou da condição
— nunca além, salvo exceções. Os lucros e perdas individuais rece­
bem sua explicação — e sua salvaguarda ou seu remédio — de
potências e de forças postuladas independentes da história; esta não
é ignorada, mas o acontecimento, o inesperado, a novidade, o desco­
nhecido e o acidente não lhe são, em p rin cíp io, atribuídos. A con­
sulta e a adivinhação, pelas quais sua elucidação é buscada, operam
segundo uma concepção e uma simbolização da ordem, estabeleci­
das durante muito tempo pela tradição. Neste sentido, o homem não
está abandonado diante das turbulências e vicissitudes que o afe­
tam; dispõe de chaves de interpretação e meios de ação; corrige a
má sorte ou submete-se a ela com razões para aceitá-la. Nas socie­
dades tradicionais, o curso dos acontecimentos não é essencialmen­
te concebido sob o aspecto do irreversível. O tempo humano não é

156
um avanço sem referências fixas na direção ao futuro e, individual­
mente, em direção à morte; mantém um passado atualizável; acen­
tua a regularidade dos ciclos naturais e alia a esta regularidade os
ciclos cerimoniais; impõe a consciência de uma profunda permanên­
cia sob a superfície dos acontecimentos, de uma continuidade man­
tida ao longo de sucessivas metamorfoses. No prolongamento dessa
interpretação, a desordem não é entendida como um encadeamento
de processos desequilibrantes que leva a mudanças irreversíveis,
mas como um movimento, um jogo de forças que é preciso dominar
a fim de esvaziá-lo de sua carga negativa e de empregá-lo a serviço
da ordem. São principalmente os dispositivos simbólicos e rituais,
como já demonstrei, que efetuam esse retorno, essa conversão da
desordem em ordem. Não existe (ou existe pouca) repressão no
sentido policial moderno, nem normalização no sentido burocrático
atual; a potência simbólica — não a do instrumento repressivo ou
corretivo especializado — submete a desordem e por meio dela nu­
tre a ordem que define. Em um mundo ainda não desmistificado, o
pensamento dissociativo, gerador de fissuras, não prevalece; a cisão
entre ordem e desordem eqüivale à cisão entre a natureza e o ho­
mem, entre a ordem mítica e a ordem lógica.
É o pensamento moderno que opera rupturas, que afasta a tra­
dição portadora de permanência e apreende tudo sob o aspecto do
movimento, sendo deste, ao mesmo tempo, o instrumento e a
expressão. A interpretação sociológica contemporânea, situada na
esteira do marxismo, está centrada na mudança de regime “en-
tropológico” das sociedades, oriundas da indústria e do capitalismo.
Estas produziram uma categoria particular de desordem e, por cor­
respondência, uma forma específica de normalização: “com a divisão
de classes começa a luta e portanto um princípio de desordem inter­
na e permanente”, de onde resulta o desenvolvimento de um poder
racional, de um aparelho de Estado homogêneo que se alia à “classe
homogênea” dominante a fim de fazer respeitar sua ordem. É ao
longo do século XIX que o processo histórico, de expansão acelera­
da do mercado, da indústria e das cidades acarreta novas e cumula­
tivas desordens. “É preciso [então] trazer as funções de manutenção
da ordem e de organização do enriquecimento no nível de uma nor­
malização global da sociedade industrial.” O que foi então determi­
nado “de maneira decisiva, foram os aparelhos e a ideologia do ensi-

'57
nar-educar-cuidar Os equipamentos de manutenção das normas
acabam por constituir “um modo de produção não comercial, que se
organiza em tomo da função de normalização social” . Generalizan­
do: a passagem de uma sociedade tradicional dominada [maítrisée]
para uma sociedade industrial e burocrática “medida” \“métrisée”\
tem como efeito a supremacia da norma, da classificação, da hierar­
quia dos homens e das coisas; operações estas que, na formação
capitalista, se baseiam em uma simbolização gerada pelas instâncias
do poder “separadas da comunidade” . Uma simbolização que, sobre­
tudo, exprime a redução a uma “ordem que esgota completamente o
real”. As classes, suas rupturas e suas lutas, o Estado dissociado e
guardião da ordem geral da sociedade, a burocracia agindo por dis­
persão sobre o tecido social a fim de impor suas normas, a separa­
ção com o real, além de outros temas oriundos do marxismo aos
quais se juntam, por ajustamento com as linguagens recentes, ou­
tros elementos: a tendência a tudo submeter à lei da medida, a mu­
dança do regime simbólico pelo afastamento do não-mensurável e o
avanço das representações racionais, a substituição pela normaliza­
ção — que se tomou capaz de envolver o sujeito e não somente de
lhe ser aplicada — da conformidade regida pela tradição e pelo sim­
bolismo radical que a constitui.1 A Escola de Frankfurt bem demar­
cou a separação, substituindo a crítica da economia política pela
“crítica da razão instrumental”, e considerando sobretudo essa per­
versão da ordem que toma no universo da modernidade a forma da
barbárie totalitária. O corte primacial veio da cisão entre o pensa­
mento mítico e o lógico, ao avanço triunfante deste, que revela um
sujeito liberado de qualquer tutela e progressivamente reduzido a se
tornar o suporte neutro das operações lógicas. Pelo efeito de uma
“esperteza da Razão” que se volta finalmente contra o próprio sujei­
to, tudo o que não deveria passar de um meio se torna por necessi­
dade imanente um fim em si. A atividade prática se instrumentaliza
e transforma seu objeto em “matéria” no sentido técnico da palavra,
seja em se tratando da natureza (de onde o homem se excluiu para
dominá-la), seja do homem (tratado por cálculo e manipulação). O
despotismo da mercadoria identificado pela crítica da economia é
substituído pelo despotismo do instrumento.2 Esta ordem definida
unicamente pela razão instrumental é apresentada como portadora
de efeitos perversos, de desordem, de degradações que, juntas,

158
r\ i/unu n u o m

constroem uma ordem contra o homem, e por fim, a ordem de uma


sociedade “louca” .

A dificuldade de saber

As interpretações orientadas pelo marxismo ao longo das últi­


mas décadas resistem mal às provas impostas pela modernidade
atual (ultrapassada e já pós, segundo alguns); estas interpretações
não estão sozinhas, a ponto de se constatar a vida intelectual dos
anos recentes como a entrada na “era do vazio”. Este seria o tempo
do pensamento desarmado, desfeito, impotente para tomar inteligí­
vel um mundo onde a única certeza é a do movimento, onde toda
ordem parece se dissolver na sucessão de mudanças, onde o real
parece se reduzir em transformações ou simulações múltiplas e
escapar de qualquer tentativa de exploração. A modernidade supe-
rativada produz incessantemente o desconhecido, toma o homem,
de uma certa maneira, estranho ao mundo que criou. Ele não sabe
mais designar o universo social e cultural que se compõe e se
decompõe à força de seus projetos. O excesso de fórmulas utilizadas
no sentido de lhe conferir uma identidade, desde os anos 60 até
hoje, revela essa impotência. Na minha opinião, é melhor estudar
sua geologia — sua coexistência por sedimentação léxica — que sua
genealogia, a partir de uma época ainda recente onde o modo de
produzir e repartir, as formas de arrumação do espaço, o sistema
estatal e burocrático permitiam satisfazer uma necessidade de iden­
tificação. De fato, não é suficiente trocar as palavras, as metáforas,
as designações (do consumo, do lazer, das novas técnicas, da comu­
nicação, das simulações e outras novidades) para se colocar em
situação de compreender menos mal este mundo em desvario.
O que importa agora é descobrir como as formulações esclare­
cem ou obscurecem a relação ordem/desordem a partir dos dados
contemporâneos. Certos termos acentuam uma tendência entrópica
que leva à generalização das desordens, do incontrolável e, final­
mente, do enfraquecimento. O Ocidente, e mais precisamente sua
parte européia, é disto a referência. O tema é velho e recorrente:
antigas variações, desde o anúncio da decadência limitada (por
Tocqueville ou Coumot), ao da decadência inelutável (por Gobineau
ou Nietzsche), até o momento em que Spengler dá ao tema seu pri­

159
meiro exemplo popularizado. O fascismo italiano fez disto o argu­
mento justificador de sua ordem em sua oposição a uma Europa
então considerada frágil, decadente, corrompida e derrotista. Hoje,
a decadência estimula de novo a curiosidade dos historiadores, e o
declínio anima de forma passageira a controvérsia política, permitin­
do atribuir ao adversário uma responsabilidade e uma incapacidade
totais. Tais palavras transformam-se em comodidades retóricas, car­
regadas de imagens recebidas do passado ou das mitologias. São
mais importantes por aquilo que dissimulara — sobretudo, a nostal­
gia de uma tradição protetora da ordem, ou a impotência parcial
para pensar e conduzir o movimento — do que por aquilo que expri­
mem e provocara. Os estudos dedicados aos períodos de transição,
ou à cultura que ali se forma, destroem essas interpretações simplis­
tas. O retomo de curiosidade sobre Weimar e sua modernidade re­
vela o duplo aspecto desses tempos onde acontece uma reviravolta:
de um lado, uma decadência; de outro, uma eclosão simultânea de
novas e numerosas possibilidades; rupturas, deslocamentos, desapa­
recimentos, portanto, o esquecimento e a evolução para a desor­
dem, mas também as flutuações e os geradores do novo; outras for­
mas e ordens, no devir, que não estavam necessariamente fadadas
ao destino fatal que foi o delas.3
Ainda que possa se tornar por si só uma comodidade, um álibi
e um salvo-conduto explicativo, a interpretação pela crise é menos
frágil que a anterior. A filosofia, a história, a ciência deram-lhe um
status, uma certa validade. Já mencionei seu emprego sociológico,
desde o momento em que Saint-Simon fez dela a parteira da nova
disciplina. Nas atuais aplicações, contribui para uma mudança pro­
funda das representações da sociedade. A crise não é percebida
apenas a partir do mau funcionamento, é também reconhecida
enquanto prova que afeta a capacidade do sistema e de seus atores,
para se definir, se organizar, de uma certa maneira, por autoconheci-
mento. Ela toma mais incertas e menos operantes as cosmologias
sociais, e essa menor dominação contribui ao mesmo tempo para
uma má interpretação e um mau uso que a mantêm ou lhe acentuam
a acuidade. A consciência de crise não cria a crise, mas aparente­
mente a reforça. As novas incertezas e complexidades que disso
resultam levam progressivamente à descoberta de um mundo, cuja
ordem se torna cada vez menos pensável nas formas inadequadas

160
n u c io u iv u u in

que herdamos; a consciência da desordem se intensifica e tudo reve­


la sob os aspectos da dispersão, do aleatório e do domínio incipien­
te. A desordem contemporânea está na cabeça, e não somente nas
situações com as quais cada um de nós se confronta.
Faz-se uma correção quando se apreende a crise menos como
geradora e reveladora de uma sociedade doente e mais como exas­
peração ou manifestação extrema da forma comum da existência da
sociedade. Leva a não mais dissociar ordem e desordem, estrutura
(ou organização) e movimento, equilíbrio e desequilíbrio. Revela
que a construção da sociedade, sua produção contínua, efetua-se
sobre uma camada que se move, acentuando a seguinte característi­
ca: a ordem social não é um saber adquirido, não chega jamais, feliz­
mente, ao estado de realização da inércia; impõe, a um nível de com­
plexidade muito alto, a questão já formulada pela lógica do ser vivo,
que é a da relação da ordem com a atividade. Na mesma medida que
o movimento da modernidade progride em extensão e duração, é o
sentimento de uma ordem desfeita, de formas em contínua instabili­
dade que, todavia, prevalece. A crise já não toma mais o aspecto de
um fenômeno conjuntural — o que facilitaria a previsão de seu fim —
e a sociedade é hoje chamada de “mole, frouxa ou fluida”.
Esta imagística se traduz em várias figuras, das quais tomarei
aqui as duas principais. Uma delas remete ao nível tecnológico, àqui­
lo que, durante muito tempo, configurou a ordem social sobre uma
materialidade resultante da conjugação da natureza, da habilidade e
do instrumento. Com as novas técnicas, esta base aparece ao mesmo
tempo como produtora de uma ordem cada vez mais complexa e de
uma desordem catastrófica, ou perversa. No primeiro caso, trata-se
dos riscos até hoje pouco atualizados, mas de efeitos desastrosos,
que resultam em usinas nucleares, químicas e biológicas. A desor­
dem realiza-se então em processos de autodestruição. No segundo
caso, toma banalmente — ainda que com conseqüências cada vez
menos negligenciáveis — a forma da pane. Os sistemas nascidos de
tecnologias avançadas, integrados, automatizados, dirigidos por pro­
gramas informáticos de crescente complexidade se tornam cada vez
mais vulneráveis. E suas grandes panes podem ser espetaculares e,
também, nefastas pelas conseqüências em cadeia que produzem. Os
fatos são incontestáveis; acentuam a imagem da sociedade frágil,
vulnerável, ainda que formada segundo uma ordem lógico-experi-

161
mental forte e em vias de generalização. Quanto mais esta ordem
progride, tanto mais parece se desenvolver uma civilização da pane,
cuja degradação — por incapacidade de responder a seus desafios
— faria uma civilização da catástrofe.
O outro exemplo constitui-se a partir do estilhaçamento de
uma representação da ordem social, quase inteiramente ligada à
consideração das classes, primeiro princípio de ordem e desordem,
segundo a interpretação dominante em um determinado tempo, já
mencionada. Esta configuração sociológica perde sua nitidez.
Classe, classe de idade e classe de gênero (ou de sexo) interferem, e
esta interferência embaralha as diferenças. Sobretudo, as reviravol­
tas nos sistemas de produção e de serviços, a supressão em larga
escala dos signos diferenciadores das condições em razão do consu­
mo, da mídia e das novas formas de vida, o enfraquecimento da
consciência de classe tiveram como conseqüência a perda da coe­
rência das classes sociais, senão o desaparecimento das desigualda­
des. Do mesmo modo, uma sociedade que não é mais nitidamente
ordenada segundo essas categorias — como era o caso das socieda­
des do final do século XVIII até seus últimos decênios — configura-
se pouco estruturada, fluida, geradora de incerteza quanto às classi­
ficações sociais que permitem defini-la.
A tentação de abandonar a sociedade em seu próprio barco é
grande, da mesma forma que apostar tudo no retomo do indivíduo
ou do ator, na virtude da iniciativa ou da espontaneidade. Os deba­
tes contemporâneos, os que são ainda moderadamente apaixonados,
nutrem a legitimação ou a rejeição da “nova revolução individualis­
ta” , sem que a divisão dos parceiros se efetue unicamente conforme
as divisões políticas convencionais ou unicamente segundo as varia­
ções e retornos ideológicos, nascidos a partir dos anos 60. Neste
confronto, os filósofos — os que fazem da filosofia imediata um dos
instrumentos de sua análise política — ocupam o lugar de maior
destaque. Os sociólogos aqui aparecem mais modestamente: ou bem
aplicam a lição do método (com raros exemplos) propondo o indivi­
dualismo metodológico, ou bem deslocam, com hesitação, suas
preocupações sociais no sentido “das pessoas”, segundo uma fórmu­
la de Alain Touraine. Com isso se abandona ou se questiona toda
uma herança de representações e teorizações da sociedade: a socie­
dade enquanto conjunto construído, feito, unificado, e que se toma

1 6 2
n i 'b v u a vu u i' i

assim capaz de entraves multiformes, onipresentes; a estrutura e o


sistema constituindo a única realidade, impondo a lógica das rela­
ções que apaga o sujeito e reduz o ator ao estado de aparência; a
grande teoria social, considerada todavia como um mito enganador
que fala de uma ordem que não existe mais. É justamente tudo o
que impunha o primado da ordem e afirmava a partir desta o desdo­
bramento de uma lógica dominante e de dominação, que é rejeitado;
e esta rejeição pode ser considerada como um corte que libera as
teologias sociais e políticas, e que se realiza no final de um longo pe­
ríodo da história das idéias. Este retorno de perspectivas leva à ado­
ção do ponto de vista da desordem, com o que contém de possibili­
dades criadoras ou ao encontro de um empirismo que a modernida­
de veste de outra maneira. Este empirismo se reveste de formas
diversas, muitas vezes banais, ou variáveis sob o efeito das modas,
seja para exaltar a capacidade de invenção no dia-a-dia, resultando
em um superinvestimento do domínio privado, ou, em um nível
superior, para valorizar a ordem espontânea em detrimento da
ordem instituída — como faz o neoliberalismo simplista. Existem,
contudo, projetos intelectuais mais bem fundamentados. Assim, à
direita, o que inspira o pensamento de Friedrich von Hayek e recha­
ça todo voluntarismo social, todo projeto de construção da socieda­
de. Reivindica para o indivíduo a liberdade de servir seus próprios
fins e credita à economia de mercado a capacidade de produzir um
sistema autogerenciado, auto-organizado; reduz a política ao estado
(ou Estado) mínimo e só impõe limites pela força dupla que une a
lei civil e a tradição. É a aceitação de uma sociedade que não define
nem finalidades coletivas nem ordem, entregue de qualquer maneira
a um espontaneismo do presente, ponderado por um tradicionalis-
mo fundamental. À esquerda situa-se o projeto dos teóricos da auto-
organização (formulação erudita) e da autonomia (formulação polí­
tica). A partir da constatação de que a modernidade liberou a socie­
dade de qualquer transcendência, busca-se por meios intelectuais e
pelas práticas de provocação o aparecimento de uma sociedade
autônoma; o que supõe a capacidade de levar em conta a contingên­
cia, o aleatório, o novo, sempre assegurando um mínimo de estabili­
dade às instituições, às leis, às mediações sem as quais nenhuma
forma social poderia existir. Paradoxo de um objetivo que Cornelius
Castoriadis tenta desmontar, mostrando que para se chegar a isso é

163
preciso renunciar ao pensamento herdado e mudar a lógica. Ele subs­
titui as lógicas precedentes pelo projeto — bem significativo da revi­
ravolta no sentido da desordem e do caos — de construir uma “lógica
dos magmas”. De uma forma menos ambiciosa ou menos temerária, a
crescente desordem, seja econômica, social ou política, é considerada
a partir das respostas que lhe opõem os atores sociais. O ensaio mais
importante sobre este ponto de vista é o de Albert Hirschman, que
estabelece a escolha entre duas formas de ação: a defecção (exit) ,
que se efetua pela retração de uma relação entre pessoas ou organi­
zações cujos “serviços” se degradam; a ação da palavra (voice), de
caráter mais político, que responde a essa degradação através das crí­
ticas ou reivindicações, e, além disso, pela criação de organizações de
substituição. É uma antonomia fundamental da ação social, que se
encontra desse modo recolocada em evidência: as respostas às desor­
dens atuais carregam consigo desordens futuras, sem fim.
Faço aqui uma pausa para mostrar a efêmera população das
expressões que tentam designar esse tempo, bem como as novas for­
mas da sociedade e da cultura que nele surgem. Umas remetem a
morfogêneses totais ou brutais (mutações), a desaparecimentos e
desconstruções (estilhaçamento, dispersão), a desregramentos (nem
sinais nem valores claros), à quase-patologia (retraitismo, narcisismo,
solidão), à regressão (barbárie). Outras acentuam as capacidades
lógico-instrumentais e as técnicas ditas de ponta: sociedade abstrata
ou tecnoprogramada, informática e “tecnotrônica”, “midiática”; com
uma qualificação positiva (tudo começa a ser possível) ou negativa
(o futuro não existe mais). No último caso, trata-se do emprego de
um certo vocabulário alarmista que destaca os efeitos perversos ou
incontroláveis. A crítica da razão instrumental, a manifestação de
seus desvios já foram mencionados — até em suas extremas perver­
sões: a instauração de um totalitarismo, antigamente; a evolução de
potências desencarnadas e de um poder anônimo de impossível
designação, hoje. A crítica da sociedade de comunicação cobre o
real de incertezas e denuncia as estratégias da ilusão. Jean Bau-
drillard ilustra, recorrendo ao procedimento da teoria-ficção, a tese
do desaparecimento. Essa época é vista como a da simulação, dos
simulacros, de uma hiperprodução onde tudo se anula; há o desmo­
ronamento da ordem simbólica (de onde as sociedades tradicionais
tiram sua relativa coesão), proliferação das informações, esvazia-
ft U K S U K U L M

mento dos conteúdos substituídos por puras imagens: assim se cria


um pseudo-real muito real. Furar a tela das aparências e reaprender
a ver o mundo, este foi o projeto de Umberto Eco, realizado em eta­
pas e errâncias ao longo de numerosas crônicas. É a denúncia do
jogo das máscaras e do falso, da multiplicação dos comportamentos
da ilusão, de um universo ideologizado pela mídia. Aliás, com uma
abertura: “elaborar as hipóteses sobre a exploração da desordem” e
contribuir para “uma cultura da readaptação contínua, alimentada
pela utopia”. Ter acesso ao que as aparências e o efêmero escondem
é também atingir a capacidade de se ajustar à transição permanente,
e portanto aceitar uma espécie de bricolagem construída de preca­
riedades. Como identificar uma ordem, quando tanta coisa se revela
na instabilidade e na ilusão?
É justamente no que existe de instável que alguns dos projetos
atuais buscam a possibilidade de identificar e pensar esta época. De
pronto, o novo e o neo, a cultura do efêmero ou da insignificância
são suficientes para designar o desmoronamento do sentido de uma
história, que parece cada vez mais inatingível. Com audácia ainda
maior, os que anunciam o fim da modernidade entram, segundo uma
fórmula de Jurgen Habermas, na “clareira anarquista da pós-moder-
nidade”: lá onde tudo se desfaz e onde se afirma a recusa das repre­
sentações unívocas do mundo, das visões totalizantes, dos dogmas,
das atribuições de sentido, sítio de desconstruções em que jazem os
destroços da hierarquia dos conhecimentos e dos valores, dos sis­
temas de significação, dos paradigmas e dos modelos. Nesses
escombros, não há mais que se buscar uma lógica de conjunto, ape­
nas micrologias. Jean-François Lyotard, promotor da pós-modemi-
dade à francesa, corrigiu as falhas de interpretação, inclusive as
suas. Hoje ele nega a idéia de uma ruptura completa, de uma espé­
cie de Ano Um do novo pensamento, denuncia a conversão da dúvi­
da atual em um “niilismo ativo” diante do qual tudo fica superficial e
oscilante. Ele não faz mais da pós-modernidade um período que
segue a modernidade, mas uma dinâm ica: um trabalho permanente
visando descobrir “o que se esconde” no que acontece hoje, com-
prender as coisas até em suas contradições internas, na verdade
aprender novos começos, como as crianças. É um apelo ao movi­
mento, um chamamento a não fazer das desordens atuais a justifica­
tiva de uma passividade resignada ou cínica.

165
Mas outra figura, italiana, ergue-se no palco pós-mo de mo: o
filósofo Gianni Vattirno. Ele proclama um duplo desaparecimento, o
das concepções historicistas do mundo e o das teorias de superação
do sentido, de Hegel ou Marx. O primeiro desses desaparecimentos
refere-se a uma experiência do tempo e da história hoje radicalmen­
te diferente. A linearidade da história, esse fio vermelho que ela
parecia desenrolar, está partida. Segundo Lyotard, a história foi
“demasiadamente culpada” , e a sociedade se tornou complexa
demais para que não haja fissuras, desvios e perversões em sua evo­
lução. Mas esta explicação não é suficiente; a visão linear da histó­
ria, portadora de uma certa idéia de progresso, se dissolveu a partir
do momento em que se impôs o reconhecimento da multiplicidade
de culturas, e do fato destas elaborarem “genealogias” diferentes. A
concepção historicista unificadora explodiu sobre o terreno do plu­
ralismo antropológico. Também a experiência da temporalidade
deve ser examinada, na medida que ela muda profundamente sob o
efeito da “midiação”. Tudo tende a se reduzir à simultaneidade, à
contemporaneidade, à predominância do instante, e conduz assim a
uma rápida “des-historização” dos tempos sociais, hoje pulverizados.
O segundo desaparecimento é correlativo: não há mais nem supera­
ção cronológica sob o eixo único do progresso, nem a superação crí­
tica operando uma aproximação progressiva da verdade. “O que
acontece não é o que é “natural” [em oposição às pretensões de vali­
dação “natural” das ordens instituídas], mas aquilo que tomou uma
forma entre outras formas possíveis de futuro, de outros possíveis
horizontes epistemológicos”. É preciso pois diminuir as ambições e
ilusões, fa z e r ju n to — pode-se dizer trivialmente — o que foi trans­
mitido, consentir em uma “ontologia frágil”, em um “pensamento
frágil” . Vattimo propõe “repensar a herança” , ou seja, “as formas
simbólicas, as formas de experiência culturalmente concretizadas, o
que se poderia chamar de linguagem de uma cultura”, e tirar disso a
orientação para nossa experiência do mundo, chegar a “uma realida­
de leve, menos nitidamente dividida em verdade e erro, verdade e
ficção, informação e imagem”. Trata-se de outra combinação com a
atual desordem, pelo recurso a uma m em ória colocada a serviço de
uma liberdade oriunda da diminuição das restrições de ordem e
capaz de fortalecer o “desejo de pertencer a este mundo”.4 Depois
de tantos retornos para o futuro ou algures, prospectivos ou exóti­

166
cos, é o contorno sobre si mesmo e neste tempo, que vai satisfazer a
nova paixão ocidental.
As fórmulas abundam em uma confusão resultante das múlti­
plas identificações, concorrentes e contraditórias, e que exprimem
sobretudo a dificuldade de perceber o movimento. Também as
regras do pensamento atual tendem a se tornar mais libertárias,
mais anarquistas, destruidoras das construções da razão positiva e
das demais dialéticas: de Feyerabend, que propõe em seu manifesto
intitulado Contre la méthode, “o esboço de uma teoria anarquista
do conhecimento”, a Giulio Giorello, filósofo das ciências e episte-
mólogo, defensor de um “empirismo libertário”, que invoca a neces­
sidade à qual encontra-se submetido todo o desejo de nascer e pro­
gredir, necessariamente “em um oceano de anomalias” — sem o que
tudo estaria condenado à ruína ou à esterilidade. É também a evolu­
ção, mais errática e ávida de suculências, que traça Michel Serres
quando denuncia uma filosofia que perdeu o mundo substituindo-o
por uma “vaga abstração”. Retornar às coisas e “escrever o mais per­
to possível da agitação”, esta é a recomendação que permite, por
outras vias, retomar o caos: “A meditação sobre o caos e a confusão,
a atenção voltada para o sensível, isso parece muito com uma filoso­
fia da balbúrdia.”
Esta, tal como a teoria anarquista do conhecimento, é feita
para desconcertar. Do mesmo modo, tanto no terreno da condução
das idéias como em outros, a função bipolarizante da modernidade,
que recentemente demonstrei, está a postos. É a mais aparente, por
ampliação simplificadora, no debate político. Permanece discreta,
mas com crescente importância, no atual confronto filosófico: de um
lado, os que querem se apegar à verdadeira filosofia e que, a fim de
poder pensar um mundo ordenado, colocam este tempo e suas
desordens entre parênteses; de outro, aqueles para quem a filosofia
é o trabalho de um pensamento em vias de se fazer, de se elaborar
em contato com o real que lhe é contemporâneo. Mas é justamente
este real que, por suas infinitas explosões e transformações, parece
hoje zombar do pensamento.5

O real fic a mais incerto

A modernidade é o movimento mais a incerteza; é sempre bom


lembrar minha própria máxima. E lembrar muito, senão tudo fica

167
UtUrtULS BAL.AMIILK

em situação de desaparecimento, de substituição ou de transforma­


ção, mas também de retomada de algumas formas recebidas do pas­
sado. É banal, a ponto de perder qualquer significação, enumerar os
desaparecimentos e, para compensar, enumerar o novo e o inédito,
o que levaria a uma neofilia tola ou cínica. A devastação das paisa­
gens sociais e culturais, das referências, do instrumental e das habi­
lidades, bem como as montagens múltiplas que administram a rela­
ção entre o indivíduo, seu meio ambiente e a sociedade, tudo contri­
bui ao aparecimento, depois ao fortalecimento de uma consciência
da desordem. O que era desordem há uns vinte anos atrás eis que
tende progressivamente a se impor como um novo estado de coisas;
a palavra é uma das mais comumente utilizadas, o tema orienta a
criação em vários setores. Além disso, é o movimento pelo movimen­
to que tende a se tomar a referência única, a regra das condutas.
Mexer em um universo que parece o universo do mexido, onde o real
é apreendido sobretudo sob um aspecto cinético, eis o mandamento
respeitado por um número crescente de contemporâneos. Mas essa
agitação é em parte cega. Na superfície, a perda do sentido (efeito do
enfraquecimento dos grandes sistemas simbólicos e explicativos e da
expansão de uma espécie de agnosticismo generalizado) é também a
perda das orientações que guiam o indivíduo. A negociação das rela­
ções imposta pelo cotidiano, e, mais ainda, o avanço durante o per­
curso de vida são afetados pela dúvida e sujeitos a freqüentes reajus-
tamentos; um empirismo móvel e superficial reduz o campo das
ritualizações e rotinas, dos hábitos e das certezas.
Não é somente a capacidade de homem comum, mas também a
do político que fica assim diminuída. Em um período de grande
transformação, quando tudo é colocado em movimento, inclusive a
tradição, o poder deve se compor com a incerteza, enfrentar situa­
ções cujo conhecimento integral e o controle total lhe escapam; hoje
menos que ontem, o poder tem uma possibilidade menor de vencer
com pletam ente, e seus fracassos escondem ou desvalorizam os
resultados de sua ação. Sobretudo, o poder perde o que fazia sua
força nas sociedades tradicionais: ser o guardião do sentido estando
ligado a uma ordem simbólica relativamente estável pela qual a
sociedade é constituída; ser o agente pelo qual a tradição dá seu
sentido e sua direção aos projetos coletivos, e produz um grande
(senão completo) consentimento.

168
Enfim, é a capacidade dos competentes — sábios e técnicos —
que passa por uma prova semelhante, pela multiplicação acelerada
das informações (espécie de acumulação de dados), das descober­
tas, dos meios instrumentais, e pelo jogo dos efeitos pouco previsí­
veis, considerados perversos. A obsolescência age mais rápida e
repetidamente; o arcaísmo, enquanto desuso de idéias e sistemas, se
torna logo, e mais, aparente; a mobilidade adquire um valor alto no
mercado de trabalho e nas estratégias de acesso às responsabilida­
des. Essas são as conseqüências de uma acumulação sempre mais
rápida de conhecimentos, de meios e produtos novos, de interven­
ções em todos os sentidos que não deixam grande coisa em estado
bruto, nem mesmo o homem naquilo que o define fisicamente e
depende de diversas engenharias. Uma leitura pessimista anuncia a
degradação do saber (uma acumulação do “ruído” em detrimento da
informação), a progressão no sentido de um caos que seria conve­
niente ordenar pelo conhecimento, ainda que as possibilidades disto
sejam hoje muito remotas; uma leitura otimista anuncia para breve
um novo estado de “estabilidade geral” em favor do qual haverá um
emprego ótimo de tudo o que foi adquirido.6 Em suma, a era do
abandono ou a idade de ouro.
Em todos os momentos dessa incursão inicial, é o movimento
que impõe sua presença; tanto é verdade que pensar este tempo e
neste tempo é pensar necessariamente o movimento. O real, tal
como podemos apreendê-lo em suas atuais manifestações, deve
estar com ele relacionado, ainda que as disciplinas encarregadas de
explorá-lo estejam preparadas de maneira desigual para essa dificul­
dade dinamista. A ciência social herdada, estabelecida, não foi
sequer chamada a considerar os fenômenos que ela trata em estados
longe do equilíbrio; sua prática a leva a preferir a estabilidade (o
conflito sendo matéria da sociologia crítica, mais periférica), o fun­
cional, o estruturado, o organizado. Nessas condições, o tempo se
torna a dimensão esquecida, e o acontecimento o intruso que deve
ser expulso. Este se impõe, contudo, e muitas das vezes com a ace­
leração que a atualidade lhe confere. O caso extremo se dá quando
uma sociedade congelada pelo autoritarismo, na qual a vida real foi
confinada aos subterrâneos, tem acesso à liberdade. A ordem estag­
nada de repente se quebra e é levada pelo movimento geral, alimen­
tado pelas expectativas e pelos desejos há muito reprimidos.

169
A Espanha do imediato pós-franquismo manifesta-se pela
movida, efervescência enquanto re-criação e espetáculo do novo,
animação pelo avanço jovem que é uma entrada na modernidade e
que dilacera o ordenamento das velhas províncias conservadoras
De um lado, uma ordem que sobrevive mal entretendo-se sobretudo
de nostalgias; de outro, um movimento que tira o país das escleroses
resultantes da ditadura, identifica-se com uma liberdade que irriga
todas as partes da vida individual e coletiva e muda profundamente
as mentalidades. É primeiro a ruptura de um duplo confinamento: o
interior, com a liberação dos costumes, a quebra dos enquadramen­
tos e a perda da eficácia dos códigos antigos; o exterior, com o
enfraquecimento das fronteiras protetoras, sobretudo as que funcio­
navam como uma censura cultural e impediam o acesso ao espaço
aumentado das comunicações. Dupla abertura que tem uma função
motriz e dá a prevalência do instante sobre a duração, que valoriza o
desempenho imediato em detrimento do projeto formador de uma
nova ordem em vias de realização, que faz do presente uma conquis­
ta. É também o rebaixamento do sistema simbólico, que mantinha o
antigo estado de coisas: o sistema do qual a Igreja era a guardiã e
pelo qual exercia sua dominação sobre a sociedade e sobre as ma­
neiras de ser, o sistema que o laicismo começava a corroer, que
mantinha a família tradicional e seus ritos festivos. A essa descons-
trução da simbólica responde uma simbólica leve, flutuante, sendo a
figura real o elemento central a religar com brandura a uma história,
a uma tradição; unifica para além das fraturas resultantes da transi­
ção democrática e das ações nacionalistas; exprime a Espanha nova
e representa o acesso à modernidade e ao mundo exterior. Em tudo
a realidade presente fala em termos de movimento; com as flutua­
ções que provocam o retomo de imagens do passado rejeitado, ou,
ao contrário, de tradições que respondem à busca de um enraiza­
mento: o atual cinema espanhol se nutre dessas ambivalências e
contradições. A passagem brusca de uma estabilidade mantida pela
restrição e coerção para a instabilidade inovadora, a dinâmica cria­
dora manifesta as atuais figuras do real com um efeito de alarga­
mento, ligado às especificidades desta situação. Revela ainda mais,
com a aceleração e a mistura dos processos, a obra desconcertante
da modernidade.7
Hoje o real é apreendido no e pelo movimento, necessariamen­

170
te, o movimentei requer a identificação das novas formas da tempo-
ralidade e portanto dos tempos sociais, segundo a terminologia con­
vencional. A experiência humana encontra-se radicalmente mudada
em sua relação contemporânea com o tempo, a ponto de ficar às
vezes desorientada, de reconhecer apenas uma agitação cujos movi­
mentos são comparáveis aos das máquinas delirantes e inúteis, pro­
dutoras de efeitos sem razão aparente por meio de uma mobilidade
inscrita em uma duração destituída de qualidade. Tinguely, escultor
do movimento, que mostra um mundo e evoca um homem mecânico
e desamparado, ilustra essa condição. Além dessa impressão super­
ficial, a constatação global é de uma decomposição do tempo unifi­
cado que se realiza no século XX; processos em aceleração, arrui­
nando uma longa tradição filosófica que postulava essa unidade, e
que conduzem a apreensão do tempo somente a partir de suas
diversas manifestações e na dispersão. Sua explosão leva a pensar
(e a crer) que o próprio tempo está sob a influência dos geradores
de desordem, e que está, de uma certa forma, doente.
A atual temporalidade está tão composta quanto estilhaçada;
comporta níveis ou estratos ligados frouxamente ou associados de
maneira conflituosa e precária. Dois desses sistemas, pelos quais se
reconheciam as regularidades, as repetições e os ciclos não assegu­
ram mais inteiramente essa função. Nas sociedades em que as cida­
des e os artifícios progridem e se multiplicam, o tempo natural não é
mais a matéria principal a partir da qual os homens constroem e
geram suas temporalidades, fundando assim, naturalmente, sua or­
dem social. As referências temporais não possuem mais suportes
naturais, por assim dizer, evidentes; outros sinais, flutuantes e pró­
prios a essa segunda natureza que é o meio urbano-técnico-midiáti-
co, os disfarçam e os alteram. O homem, fiando-se na experiência
individual, não reconhece mais em seu percurso de vida e na sua
condição biológica os indicadores necessários à sua percepção do
tempo: os diferentes graus de idade se tornam fluidos, os estados de
saúde ficam na dependência do suporte médico e de suas próteses,
o envelhecimento e, com ele, a morte, recuam ou são escamoteados.
Em outro nível, a própria ciência não fornece mais a certeza de uma
ordem do mundo regida pelo tempo das regularidades; despojou de
seu poder estabelecido as noções de estabilidade e de regulação; o
tempo que percebe não segue mais caminhos bem aparentes e

171
retos. O tempo se manifesta em Figuras múltiplas, muito diferencia­
das de acordo com os objetos considerados e as disciplinas que os
abordam; começa a ser apreendido, conhecido em seu avanço para
os extremos: tempo do ilimitado, com a vulgarização da astrofísica e
das técnicas espaciais; tempo da retração no momento mais breve,
com a informação relativa às experimentações feitas na física das
partículas e com o tempo real dos utensílios informáticos; não apa­
rece mais somente pela intermediação de máquinas analógicas sim­
ples, mas por instrumentos complexos que associam a precisão
crescente à capacidade de decompô-lo em unidades arbitrárias cada
vez menos representáveis. Todas essas reviravoltas se produzem
concomitantemente às que afetara as regularidades sociais — a
ordem que administra o percurso dos dias — na medida que des-
troem as simbólicas e as ritualizações, bem como os ciclos festivos
herdados da tradição.
As temporalidades presentes, relacionadas com a vida indivi­
dual, podem ser consideradas segundo quatro referentes: o cotidia­
no, as máquinas, as imagens e o imaginário. A época é cada vez me­
nos propícia a uma representação linear do percurso de vida, a uma
gestão do tempo que acompanha a duração sob a única reserva dos
cortes atribuídos à má sorte ou à fatalidade. A incerteza prevalece, o
presente está para ser conquistado sem prazo determinado e o ciclo
da vida individual toma o aspecto de uma corrida de obstáculos. É
um tempo onde nada se adquire de forma segura, nem o saber e a
competência, nem o emprego ou o período de atividade, nem o
apoio social e afetivo que assegura a existência privada. De forma
mais global, o homem da modernidade pode se sentir em situação
de estrangeiro diante do que não faz parte da temporalidade ime­
diata. A mudança, a mobilidade, a precariedade lhe são cada vez
mais familiares; a novidade, o efêmero, a rápida sucessão das infor­
mações, dos produtos, das formas de comportamento, a necessidade
de efetuar freqüentes adaptações lhe dão a impressão de viver
somente no presente, ainda que a gestão de uma existência venha a
se tomar a gestão de seus momentos sucessivos.
A modernidade se realiza e se simboliza também por meio de
máquinas complexas, por meio de sistemas homens-máquinas que
compõem um universo técnico, descoberto por muitos como um
mundo em expansão, fascinante, de difícil exploração, conhecimen-

172
n urJiPUJ bbuin

to e reconhecimento. São instrumentos que funcionam sem que


suas operações sejam aparentes, tão mais misteriosos na medida
que sua coerência interna aumenta e obedece a uma lógica dificil­
mente acessível. Esse conhecimento incompleto favorece o desen­
volvimento de um novo animismo que empresta vida, intenção, von­
tade e, às vezes, paixão aos seres-máquinas; suas panes tomam
então o aspecto de crises grosseiramente semelhantes às que
podem degradar as relações humanas. A assimilação com o ser vivo
parece tanto mais fundamentada que o movimento técnico impõe às
máquinas um limite próximo à sua existência (a obsolescência eqüi­
valendo à morte) e os faz se sucederem como as gerações de curta
duração. Mesmo a doença parece afetá-las; os “vírus”, alterações
malévolas dos lógicos, atacam de maneira contagiosa os sistemas
informáticos. Há que lembrar ainda que a biografia da máquina reve­
la a que ponto ela está necessariamente, e de forma durável, ligada
ao imaginário e à projeção dos desejos humanos.
Tudo isso é sabido; contudo, sabe-se menos sobre a entrada
em uma outra ordem da temporalidade para a qual o mundo é leva­
do, constantemente renovado por novas técnicas. O computador,
cuja gestação de sua quinta geração efetua-se no Japão, o ressalta
não sem paradoxo. O vocabulário da informática, das técnicas
numéricas, introduz a noção do tempo real, muito definido oficial­
mente na França há uma década; uma noção que parece transferir
da experiência humana para as máquinas a relação com a realidade
temporal, pelo efeito de uma espécie de humor involuntário que
subentende uma despossessão. De fato, a noção define um funciona­
mento: a capacidade do computador de tratar os dados com um
quase-imediatismo, de efetuar com grande rapidez (as batalhas
industriais atuais dão-se por ganhos de milionésimos de segundo) a
sincronização de um grande número de operações (muitos milhões).
É o universo das “immédias", como se falou, onde o tempo seqüen­
cial ou cronológico não tem claramente um lugar, mas um tempo
que não mais se escoa, tempo de uma outra natureza, e produzido
de outra maneira. Singular, esse tempo manifesta uma temporalida­
de flutuante e modelável; imaterial, é entretanto uma espécie de
matéria explorada pela inventividade e os trabalhos humanos.
Tempo de uma potente eficácia, pela qual a máquina se torna ela
mesma geradora de sentido, autora de significações que resultam de

173
sua interação com a pessoa que comanda o sistema. Esse apareci­
mento de um tempo que não mais se desdobra é acompanhado de
um desaparecimento progressivo da materialidade e de uma minia-
turização do espaço mecânico. Este se reduz tornando-se cada vez
mais cheio; parece se transformar em uma espécie de átomo artifi­
cial (ou técnico) onde se conjugam e se concentram o poder da in­
teligência e o poder contido pela matéria. O ch ip , pelo qual se efe­
tuam os avanços da eletrônica, é uma parcela da matéria (de silício)
carregada de minidispositivos, memórias, circuitos e matéria cinzen­
ta; é o lugar onde se realizam cada vez mais rapidamente operações
cada vez mais numerosas e complexas, a ponto de os laboratórios
americanos e japoneses fazerem dele o apoio de uma cópia de cére­
bro rudimentar. Tempo e espaço parecem se confundir, realizar con­
juntamente uma verdadeira mutação, abolir-se em suas antigas for­
mas e se tomar assim capazes de produzir efeitos cada vez mais in­
teligentes. A máquina não subverte apenas as categorias, os referen­
tes segundo os quais a experiência humana constrói o real e dele se
apropria, ela tem acesso a um poder que lhe é próprio: a máquina
não está restrita ao estado de puro instrumento, torna-se parceira,
estabelece uma relação “conversacional”, como se diz atualmente.8
A mutação do tempo, do espaço, do real se faz também na pro­
dução de imagens, prolíficas pelo uso de novas técnicas, e formado­
ras de “populações” multiplicadas e diversas. As redes que as veicu­
lam, bem como as mensagens associadas duplicam a realidade mate­
rial, impõem uma sobre-realidade sempre mais densa, mais englo-
bante. Transmitem para o real uma espécie de vida dupla e tomam
mais confusas as fronteiras até então conhecidas. Todas as culturas
definiram sempre as formas de um além-real imediato, mas esta é a
primeira vez na história que a realidade próxima está imersa no
fluxo cotidiano das imagens e das mensagens. Tal situação muda
radicalmente a relação com a temporalidade. Em razão da enorme
rapidez de sua transmissão, a imagem atual quase suprime a relação
comumente estabelecida entre o espaço e o tempo. A mídia realiza a
ubiqüidade; através do som e da imagem, tomam simultaneamente
presente em vários lugares o acontecimento, real ou fictício, regis­
trado em outro lugar, não importa a distância. A percepção e a con­
cepção da proximidade, da distância, estão profundamente transfor­
madas. A noção de “proximidade midiática” indica um desapareci­

174
r\ U E S U H U t M

mento do espaço e uma contração total do tempo pelo efeito da


simultaneidade; a sociedade se encontra pois definida como “poten­
cialmente sem distância e simultânea”. No cotidiano, as formas de
comunicação e as relações entre as pessoas mudam de forma; a divi­
são entre público e privado, interior e exterior, se toma mais confu­
sa. As fronteiras que separam essas duas espécies de espaço são
ainda mais permeáveis; o privado tende a ser um lugar a partir do
qual um número crescente de relações com o exterior se estabelece
instrumentalmente: aparece como uma forma de v ive r ju n to sepa­
radamente. Essa comunicação em contínua extensão, e simultânea,
essa visibilid ad e que resulta da onipresença da imagem não se
fazem sem riscos. Em particular, o espaço perde progressivamente
sua função protetora, defensiva, na medida que a distância não tem
mais o papel de uma tela opaca; as imagens se fazem não somente
invasoras, mas também inquisidoras; os sistemas de teledireção,
ajustáveis em todas as escalas, introduzem e multiplicam uma amea­
ça panorâmica.
É com imagens numéricas, de síntese, ditas provocativas de
uma revolução na revolução da mídia, que a relação do real com o
imaginário está quase subvertida. Sua fatura acarreta os mesmos
efeitos que a dos produtos informáticos, das quais não são indisso­
ciáveis. Sua produção resulta também de uma parte de materialida­
de e de uma parte muito maior de tecnologias, de linguagens e de
símbolos, de operações lógico-matemáticas; são estes componentes
e processos que geram, por elementos e valores cromáticos defini­
dos, numérica e simbolicamente, as formas que o operador controla.
Carregam consigo uma capacidade infinita de metamorfoses. O ter­
mo “imagem-matriz” ou “imagem com poder de imagem” (expres­
sões propostas por Edmond Couchot) exprime este aparecimento
das imagens que podem se reproduzir sem limites. É o próprio movi­
mento, resultado da interação entre elas e o operador (o observa­
dor, como se disse), que as constitui geradoras de sentido. Imagens
que não são mais representações do mundo, mas simulações de
objetos existentes ou imaginários. Fazem surgir um outro real, ime­
diato e imaterial, fugaz, incerto, porque portador de um grande
número de possíveis, que leva a uma outra experiência do tempo, do
espaço e do objeto. Este tempo não se escoa, está “aberto sem fim
nem começo... simulação de instantes sempre renováveis e diferen­

175
u n u m jQ O jjm L n iiu iL J i.

tes que podem se atualizar... em uma infinidade de momentos que


nem o Objeto, nem o Sujeito, nem a Imagem viveram antes”. É o
tempo do instante, dissociado de um passado que impõe sua neces­
sidade e de ura futuro cuja realização seria inelutável. A contribui­
ção das novas técnicas imagéticas à cultura do efêmero reacende os
debates sobre a função da imagem e das incertezas quanto à nature­
za do real. Críticos e apologistas da simulação se enfrentam em ver­
dadeiras guerras de ícones.8
Os apologistas são os anunciadores de ura imaginário diferente,
numérico, que, ainda que ligado ao real habitualmente reconhecido,
tem uma crescente capacidade de gerar o real inédito e de lhe dar
uma evidência. As categorias e as estratégias da percepção são pro­
gressivamente transformadas; não se trata somente de ver, mas de
operar, manipular; o espaço se apreende menos por sua extensão
que pelo movimento, os processos que dele produzem o efeito; o
tempo é percebido pelos acontecimentos, os momentos, não por
uma continuidade e uma cronologia. Aquilo que contribuía funda­
mentalmente para identificar uma ordem — e a necessidade que lhe
é própria — está assim destroçado, senão anulado. Cenas do imagi­
nário, até então insuspeitáveis, parecem se abrir ao infinito e as
metamorfoses escapam aos limites que lhes impõem um fim. A fic­
ção científica, em suas diversas realizações, explora essas possibili­
dades. Recorre sempre à mixagem do real com o imaginário, apre­
sentando ainda um tanto de antropomorfismo, mas encena plena­
mente as novas figuras da espacialidade e da temporalidade. Per­
mite manifestar de outra maneira, e, além disso, inventar espaços e
suas transformações. Os criadores de obras de ficção — que se tra­
duziram em imagens de síntese — levam ao extremo os paradoxos
temporais dos físicos. Assim é que o tempo pode ser interrompido e
satisfazer a espera de um eterno presente; pode ser invertido e per­
mitir vir do futuro ou retomar ao passado; toma às vezes a forma de
um labirinto cujos meandros precisam ser descobertos. É, de uma
certa forma, a expressão da relação problemática com as temporali-
dades atuais.10
Na mesma medida em que as categorias de tempo e de ordem
foram sempre estreitamente associadas, a prevalência do efêmero,
do instante, do presente, contribui para a conscientização da desor­
dem. O tempo descontínuo, vivido na dispersão, parece manifestar

176
uma ordem sem duração, portanto falsa. A urgência, acentuada nas
sociedades da modernidade e onipresente, dramatiza um estado de
coisas que não ressalta mais o ordinário, a regularidade, mas o ines­
perado, o acontecimento, o imediato. A urgência não é somente
aquilo que nasce do acidente, da catástrofe ou da crise parcial que
irrompe (como a de outubro de 1987) na crise global e durável,
ainda que possa tomar esses aspectos extremos em um mundo de
complexidade crescente vítima do movimento, rebelde às domina­
ções que mantêm no homem o sentimento de uma ameaça multifor-
me. A urgência fala, como acabo de mostrar, de uma form a de ser
do tempo: o de uma época onde as técnicas são validadas pela rapi­
dez de suas operações e de sua evolução, onde a informação recebe
qualidade (e eficácia) por sua velocidade, e as mídias por sua capa­
cidade de tratar as flutuações de opinião, de sondagens, de circuns­
tâncias, e menos dos programas que definem as escolhas a longo
prazo, onde o cotidiano é vivido em grande parte no instante, sob a
pressão de uma urgência que comanda o sucesso pessoal e sua con­
servação ou a busca dos remédios para o infortúnio. O futuro ime­
diato, e o que traz de imprevisível, introduz uma espécie de violên­
cia no presente. É a oportunidade que tende a fazer a lei multipli­
cando os oportunismos sem perspectivas. Tem o campo tão mais
livre que a urgência não deixa sequer a possibilidade de diferenciar a
reação do acontecimento, depois a decisão da ação. Quase suprime a
distância entre esta e o acontecimento. Nesse esmagamento do
tempo, o real se toma mais fluido, mais confuso, e o espaço acordado
à reflexão se reduz ou desaparece. Nesse esmigalhamento do tempo,
o pensamento pode ceder à tentação de renunciar à coerência e à
unidade, consentindo desse modo a ser tão-somente fragmentário.11
Mas os homens não são assim tão passivos como o pessimismo
contemporâneo quer fazer crer; eles sabem que se o tempo é seu
senhor, é também uma matéria que eles controlam, um produto so­
cial. No cotidiano, tentam conquistar o presente, dando lugar (quan­
do possível) a um tempo livre que pode se tornar o seu (indepen­
dentemente das dificuldades exteriores), fugindo de certos momen­
tos de pressão da urgência e da servidão do instante, com todos os
limites com os quais se depara uma tal façanha e com a ambivalên­
cia que lhe é própria. A prova do presente estimula o restabeleci­
mento de uma continuidade (e, com este, uma ordem de referência)

177
u bunuL O DAün^jjiLn.

a ser encontrada no antes e no depois temporais, é retrospectiva e


prospectiva ao mesmo tempo Produz-se um retomo para o passado,
para o tempo realizado onde as vidas adquiriram uma plenitude de
sentido, onde se origina a nostalgia, onde o enraizamento se dá ima-
ginariamente. A paixão pela história é há muitos anos uma das pai­
xões francesas; a política cultural japonesa faz da recuperação do
passado uma forma de reordenar a identidade coletiva e a indivi­
dual, de melhor preparar o confronto com o futuro. A questão da
memória coletiva, a busca dos lugares de memória são reativados
pela atualidade; é uma necessária distância do mundo atual, uma
tomada em perspectiva que tende a tornar o imprevisível mais previ­
sível e menos angustiante. Tradição e modernidade se encontram,
aliás, porque a modernidade traz para a tradição o suporte das no­
vas técnicas: os bancos de dados e de imagens, as bibliotecas eletrô­
nicas e as videotecas, os terminais de computadores começam a tor­
nar o passado mais acessível, permitindo questioná-lo, submetê-lo
às interrogações atuais. A projeção para o futuro — freqüentemente
a antecipação de um a continuidade, afirmação de uma parte de or­
dem mantida em profundidade na superfície das mudanças inces­
santes — se fundamenta também sobre os novos dispositivos técni­
cos, mais que sobre uma filosofia da história. Mesmo a utopia se tec-
nicaliza tentando referenciar os períodos do próximo milênio, que
realizariam a evolução para um mundo globalmente ordenado, paci­
ficado, uma espécie de terra sem mal onde a história estacaria.
Entretanto, os “trabalhadores do futuro” já aprenderam que o
mundo só se deixa conquistar aos poucos. Eles se repartem segundo
suas opções dominantes, atrás das quais se reconhecem as figuras
da ordem e da desordem: uns afirmam que o futuro é, apesar de
tudo, previsível, que uma forte tendência leva a isso, que uma or­
dem se mantém e progride realizando-se em níveis superiores, além
das transformações, dos movimentos geradores do novo, do inédito
e dos riscos; outros acham que o avanço se efetua por cortes e cri­
ses, por recrudescimento de desordem que rompe toda continuida­
de, que traz todavia em si as chances de revelar soluções alternati­
vas, formas diferentes da sociedade e da cultura; outros, enfim, que
tratam ordem e desordem conjuntamente, associam o futuro a mui­
tos estados possíveis, nos quais uma escolha e uma vontade coletivas
podem interferir. As atuais sociedades são, pois, chamadas socieda­

178
des de bifurcações; a seleção dos possíveis dá-se sucessivamente aos
moldes de um trajeto que se faz de cruzamento em cruzamento,
tendo em vista um final longínquo cuja espera pode ser ilusória.12

O homem indeciso

Face a um real incerto, a figura do homem se toma cada vez


mais confusa, embaralhada como seria a imagem transmitida por
uma superfície líquida em constante movimento. O homem se vê em
parte deslocado em um mundo onde a ordem, a unidade e o sentido
lhe parecem obscurecidos; na presença de uma realidade flutuante e
fragmentada, ele se interroga sobre sua própria identidade, sobre
sua própria realidade, na medida que a modernidade superativada
multiplica as manipulações resultantes das novas técnicas, as enge­
nharias das quais ele é o objeto, e na medida que ela estimula a pro­
dução das aparências e dos logros que o enredam. O que importa,
em uma primeira abordagem, é a descoberta dos processos que
fazem do homem contemporâneo um ser histórico mal identificado,
sem definição mítica, metafísica, positiva e cultural de larga aceita­
ção. A indiferença, o desprezo, a violência podem atacá-lo com cus­
tos mais reduzidos, a inquietação e o medo confiná-lo na passivida­
de, o poder técnico torná-lo amoldável. A apatia o levaria a ser o
espectador desengajado de tudo e de si mesmo.
A incerteza exprime em parte a relação ambígua que o homem
atual mantém com seu meio ambiente e sua própria natureza. Ele
tomou consciência do crescente poder das técnicas, das conquistas
que realizam e dos efeitos de desordem das quais são também gera­
dores. Sua capacidade, em crescimento constante, está associada à
desnaturação, ao risco, à ameaça fatal, e não somente a uma domi­
nação da natureza sempre melhor assegurada e mais propícia. O
homem está hoje atento às reviravoltas que o afetam em sua própria
natureza. A intervenção resultante do movimento acelerado da bio­
logia pode atingi-lo em seu ser físico, em sua própria formação,
naquilo de que é constituído. Os processos biológicos humanos tor­
naram-se portadores de cultura até na intimidade celular. O gênio
genético adquire o poder de efetuar recombinações, os meios de
agir sobre as fontes da vida. Se o homem já começava a saber como

179
U L .U J T .U L O D A b /U M L M & N

ele é programável por meio do efeito das restrições sociais e cultu­


rais, hoje ele descobre que é fabricável sob encomenda, que uma
ordem insidiosa pode moldá-lo ou interrogá-lo naquilo que é sua
condição biológica. A bioética ergue com dificuldade barreiras pro­
tetoras, as regulamentações hesitam, até a definição genética do
indivíduo — através da carta genética — pode dobrar a identifica­
ção burocrática. Ainda mais significativas, porque já existentes, são
as técnicas de procriação artificial. É o aparecimento da natividade
tecnicalizada, com todas as dissociações que pode engendrar: da
sexualidade e da reprodução, do corpo e da procriação, do parentes­
co natural e do parentesco social, da união das diferenças sexuais e
da fecundidade. Uma camada inteira, e em todas as sociedades,
sobre a qual foram construídas ao longo de muito tempo as relações
sociais primárias ligadas a formas culturais, está desmoronada. Ga­
nha-se em liberdade, mas também em riscos, sobretudo o de uma
eugenia, a princípio considerada positiva, que se pervertiria em se­
guida por deslizamentos progressivos. Decola daí um movimento por
meio de meios artificiais (mediações técnicas complexas), de deslo­
camento (dissociação dos elementos constitutivos de uma ordem) e
de recomposição (emergência de recombinações, de novas formas
ainda precárias). Desordem e ordem estão em ação, de forma con­
junta, em um enfrentamento de objetivos ainda imprecisos.
Além do que afeta atualmente a relação econômica — a revira­
volta radical do mercado de trabalho, a precariedade das empresas,
a desordem monetária e financeira, que provoca em muitas pessoas
a degradação das condições de vida, é preciso levar em conta os
efeitos das organizações, o avanço devorador dos sistemas hiper-
racionalizados e burocratizados. Sua multiplicação, a tecnização de
sua dominação tomam-na mais constrangedora nos diversos domí­
nios de sua competência; as regulamentações proliferam e se sedi­
mentam, tornam mais confuso o conhecimento dos deveres e direi­
tos. Os sistemas não visam mais um homem global — como é o caso
das sociedades tradicionais — , mas setores considerados separada­
mente, como se o homem estivesse em estado de dispersão. O siste­
ma médico o decompõe, trata-o segundo especializações e se presta
cada vez menos a uma avaliação geral da condição física e moral. O
sistema educativo o forma através de níveis sucessivos, com passa-

180
n i/u a u iiu u n i

gens imprecisamente traçadas de um a outro, uma enorme incerteza


quanto aos objetivos e a demanda social, tendo como conseqüência
uma série de reformas que acentuam a impressão de desajuste e
desordem, que levam à busca muitas vezes vã da abertura pedagógi­
ca sobre a vida. O sistema produtivo tomou-se também gerador de
segmentação, ao contrário daquilo que era o resultado dos antigos
ofícios; separa as funções e automatiza, substitui a habilidade global
por operações em cadeia e repartidas de maneira serial; toma pre­
cárias as competências em razão da rápida obsolescência; rompe
com a unidade da vida ativa impondo mudanças de emprego, reci­
clagens e reconversões; introduz cortes na atividade individual,
criando o desemprego pelo desaparecimento de setores produtivos
em vias de regressão. O sistema comercial, nas sociedades onde o
consumo é o motor principal, apresenta igualmente efeitos de frag­
mentação; mantém, com a ajuda dos meios técnicos programados e
fundamentados na publicidade intensiva, a força dos desejos e a re­
novação das demandas; as vogas e as modas se aceleram, as coisas
se multiplicam e solicitam uma infindável paixão pela posse, cada
vez mais efêmera; o processo de redução ao estado de mercadoria
persegue um avanço em vários domínios. Nesse movimento cada vez
mais englobante, nessa perseguição sem tréguas ao que é dado ao
consumo, o homem contemporâneo experimenta uma espécie de
liberdade favorável a seu prazer, mas ele se dispersa nas realizações
efêmeras e sofre da insatisfação do “sempre mais”. Enfim — como já
mostrei — , o sistema de comunicação e informação impõe também
uma profusão de acontecimentos, mensagens e imagens; dá ao
mundo e ao homem uma visão caleidoscópica, explodida e variável.
Nesse turbilhão, é possível tanto se perder (se diluir) quanto ter
acesso a uma certa liberdade, pelo aumento das escolhas e pela
capacidade de troca.
Tendências contrárias opõem-se às tendências de segmenta­
ção, diluidoras de toda unidade. Em favor da informática realiza-se
uma totalização burocrática; a interconexão completa das redes
daria o poder de reunir as identidades parciais de cada indivíduo, de
construir uma identidade global que permitiria colocá-lo sob vigilân­
cia e tomar mais operantes os processos de normalização. A criação
da comissão francesa “Informatique et libertés” mostra ao mesmo

181
tempo a existência do risco e a tentativa de limitá-lo. As organiza­
ções de grande porte conferem à gestão um alto grau de instrumen­
talização; recorrem a sistemas técnicos complexos e associados,
fazendo destes o meio de criação da unidade e da centralização —
tudo sempre muito rápido — , conectando-os; mas o centro está
sempre à mercê de um erro, de uma disfunção, de uma pane ou de
uma má vontade, cujos efeitos em cadeia se amplificam e se tomam
geradores de desordem. Em outra escala, os sistemas de regulação
dos movimentos de massas humanas, que controlam os fluxos e
mantêm uma ordem de conjunto, transformam esta em caos quando
de repente algo fica travado em um ponto. As vastas aglomerações
urbanas estão constantemente sob a ameaça dessas rupturas de
ordem: nos engarrafamentos produzidos pelo tráfego de automóveis,
que o paralisam; na interrupção imprevisível dos transportes coleti­
vos que, ponto a ponto, desorganiza uma cidade inteira; nas panes
de energia que imobilizam uma grande cidade (como o blackout de
Nova York), que acarreta uma total desorganização e efeitos de
pânico.13 A constatação mais geral é a seguinte: as totalizações, a
constituição de conjuntos ordenados dão-se sobretudo por meio de
procedimentos lógico-instrumentais, de sistemas técnicos de grande
complexidade, cada vez menos pelo recurso às simbólicas unificado­
ras e aos dispositivos políticos, ou de poder, criadores de unidade ao
mesmo tempo real e aparente. Aqueles sistemas operam de maneira
abstrata, impessoal; além disso, por sua natureza complexa, são vul­
neráveis. O erro, a pane, o mau uso e o bloqueio voluntários conver­
tem sua ordem em desordem, depois em caos. Com isso, o perigo e
o risco mudam de caráter e de escala; é aliás significativo que uma
ciência nova, a do risco, ou “cin d y n iqu e ” (do grego kind unos,
perigo), acaba justamente de nascer.14
A figura do homem indeciso resulta igualmente da interferên­
cia de outras correntes contrárias: de um lado, as que levam a indi-
ferenciação (ou a diferenciação fraca) no interior das massas; de
outro, as que conduzem ao individualismo e permitem uma certa
consciência de si mesmo. A massa resulta dos efeitos de número, de
uma multiplicação dos homens concentrados nos mesmos lugares,
ou submetidos às mesmas restrições de normalização, ou quase
iguais através de um mesmo consumo de coisas, signos, mensagens,
imagens e modelos imitáveis; ou ainda por tudo isso ao mesmo

182
tempo, sob os avanços de uma modernidade que se caracteriza por
uma inflação que podemos chamar de generalizada, e não somente
monetária. A inflação deprecia, desvaloriza; a massa desvaloriza,
despersonaliza reduzindo as diferenças. Uma e outra revelam uma
desordem ativa sob a aparência de ordem, mesmo quando estas são
fortemente mantidas por um poder total ou totalitário. O indivíduo
se dilui sob o efeito do número, na medida que o tratamento numé­
rico o reduz à existência estatística para constituir um efetivo, um
mercado, um público, um eleitorado, ou simplesmente um fragmen­
to de pesquisa. Contudo — e aí está o jogo contraditório — proces­
sos de desmassificação aparecem. Objetivos, e de grande amplitude,
resultam das novas energias e da evolução de certas técnicas produ­
tivas, os que provocam a reviravolta da “infosfera” pela multiplica­
ção das redes midiáticas, os que favorecem as descentralizações pri­
vilegiando os lugares de iniciativa potencial.15 Possibilidades se
criam, mas sua exploração permanece hesitante e o mau uso pode
pervertê-las ou contrariá-las. O indivíduo age, aliás, por sua própria
conta, seja por retraimento, defesa e esperteza, seja por iniciativa.
Tenta retomar como vantagem o que pode contribuir para seu desa­
parecimento; substitui as relações em rede criadas a partir de afini­
dades pelas antigas relações sociais desfeitas; às dificuldades dos
sistemas técnicos, ele opõe seu emprego modulado: através da infor­
mática personalizada, com a telemática, propícia aos jogos de perso­
nagem que engajam (e descobrem) sua personalidade, com as mí­
dias mais favoráveis, em razão de sua diversificação, pela interação,
e não somente pela manutenção de um narcisismo por procuração.
Mas o essencial situa-se em um outro plano: o infra-social, onde o
indivíduo se “refaz”, onde ele faz as tentativas de reapropriação de
sua própria pessoa e as experiências de reconstrução de um liame
social menos dependente das circunstâncias externas. O superinves-
timento do terreno privado e a busca de uma autonomia, que pode
advir disto, engendram uma socialização móvel, funcionando por
uma espécie de regime de ensaio. Essa socialização experimental e
mutante estimula os mais otimistas dos observadores da contempo-
raneidade a se fazerem anunciadores de uma nova revolução indivi­
dualista, ignorando que tal mobilidade exerce também sobre o indi­
víduo efeitos indesejáveis e arriscados, e que leva ao coração de sua
vida privada tão-somente uma liberdade incerta.

183
Esta é ainda mais desconcertante — sem forma de emprego
preciso — na medida que a modernidade faz do indivíduo um ho­
mem fabricado, preso ao jogo das aparências e do espetacular; um
homem variável que tenta se definir nas e por suas variações. As
técnicas de manutenção e controle corporais se vulgarizam, obede­
cem a um ciclo de modas, associam-se a esquemas míticos: o da
esperteza diante da idade e do declínio, o da superação de si mesmo
e do desempenho, o de sentinela capitalizando a perfeição do movi­
mento e o sucesso social. O corpo se torna cada vez mais amoldável
por meio de próteses mecânicas e químicas ou de transplantes; é
assistido, preparado, levado para além de suas capacidades; já se
formula o projeto de ultrapassar o estado do “homem neuronal”, efe­
tuando uma transferência de inteligência artificial para o cérebro. O
corpo entra ativamente, em um número crescente de pessoas, no
jogo do faz-de-conta; contribui para a apresentação (e representa­
ção) de si mesmo; obedece às leis da imitação; presta-se às restri­
ções do look, da imagem pessoal construída segundo os cânones do
momento. De uma forma diretamente social, o que está sobretudo
em causa é o consumo e seu estímulo pela moda, pela publicidade.
Já disse antes: nas sociedades da modernidade comercial, tudo é
dado ao consumo e tudo acaba por se submeter ao sistema da moda.
É aliás significativo que a moda seja provocadora de debates,
em detrimento de outras preocupações em torno das quais argu­
mentar. O elogio da frivolidade é antigo, remete principalmente a
um tempo — este — onde a brevidade é uma das características,
uma das maneiras de ser das coisas, dos produtos culturais e das
idéias. Não existe mais uma continuidade que mantenha os valores
firmes e provoque a adesão individual, há uma atração que se suce­
de atrás de outra e que ao fim e ao cabo descobre-se apartada.
Tanto esse afrouxamento do domínio social, cultural e dos poderes é
interpretado de maneira positiva, visto como uma das condições de
possibilidade de uma liberação individual, de uma “autonomeação”
da existência pessoal, de uma democracia sem guerra ideológica e
com desafios políticos pacíficos. Por outro lado, e não sem razões
muito fortes, o domínio do efêmero é designado como o domínio da
insignificância; não aparece mais enquanto sistema propício a um
novo individualismo e a uma nova democracia, mas como gerador de
um mundo sem humanidade. Esta acaba por se dissipar e se apagar

184
“se tudo é precário e perecível, se nenhuma obra, acontecimento ou
criatura humana escapa aos ciclos devorantes do consumo” .16 Por
trás desse confronto estão presentes os efeitos da desordem (pelo
esquecimento que esta provoca) e da ordem (pela memória e a
duração que esta implica), próprias a um tempo do movimento e da
incerteza. A fábrica cultural de hoje é principalmente a que opera
pela mídia e suas redes em expansão. Ela é vasta e diversificada,
cada um nela se coloca em situação de receptor acolhedor e compla­
cente e/ou interativo. No primeiro caso, o indivíduo está sob influên­
cia, preso no fluxo cotidiano das mensagens e imagens, submetido
ao desdobramento das aparências e do espetacular; é levado na cor­
rente de uma cultura, que já denominei há pouco de extensiva, que
banaliza e universaliza por irradiação, porque ultrapassa fronteiras e
atinge populações cada vez mais numerosas. Com a interação, cujas
possibilidades aumentam pelo desenvolvimento de novas teletecno-
logias, o indivíduo reencontra uma iniciativa. Ele escolhe, entra no
jogo dos encontros à distância e no jogo dos papéis precariamente
assumidos, encena seu próprio eu, suas demandas e suas emoções;
atinge uma tecnocultura onde o imaginário importa tanto quanto a
informação sobre o real. “Carnaval dos espectros”, já se disse, mas
também movimento de uma busca (a começar pela busca de si
mesmo e do outro) conduzida em favor dessa exploração (desse
nomadismo) imóvel que propõem os dispositivos telemáticos.
O homem está indeciso em um mundo flutuante onde os prin­
cípios de ordem não são mais claramente legitimados nem facilmen­
te identificáveis, onde sua própria identidade permanece variável e
fluida. As palavras do momento — e da moda, com freqüência — o
afirmam. Tempo das aparências e simulações, do vazio, do efêmero,
da ligeireza e dos gozos precários, de uma cultura da inconsistência
(do zumbi pós-moderno) e do saber de massa difundido na desor­
dem, superficial e sem hierarquização, de ideologias flácidas e pen­
samento débil. No horizonte apareceria uma dissimulada barbárie:
um mundo em que a criação cede lugar ao tédio, o sagrado à angús­
tia, a educação à programação dos indivíduos; um mundo onde a
cultura se atrofia enquanto a ciência e suas aplicações se hipertro­
fiam, onde a sensibilidade definha e a energia da vida mal encontra
seu uso.17 A consciência da desordem se torna aguda enquanto as
referências de ordem se tornam fluidas, a incerteza aumenta. Então

185
os deuses do efêmero substituem o Deus perdido, o destino se frag­
menta, o trágico assume as figuras variáveis do risco, real ou mítico.
E cada ura, a seu modo, fica tentado a preservar, com o máximo de
liberdade possível, seu lugar em ura mundo onde em certos momen­
tos ele só descobre “a desordem, o barulho, o arcaísmo” .18

186
N o tas

1. Apresentação referida a partir da obra de M. Guillaume, Éloge du


désordre, Paris, Gallimard, 1978.
2. Resumo reduzido nos aspectos dominantes de argumentação de T.-
W. Adorno e M. Horkheimer, La Dialectique de la raison — Fragments
vhilosophiques, Paris, Gallimard, Tel, 1983.
3. Sobre Weimar, a transição, a modernidade, enquanto ocasião de
debate sobre a decadência: Colóquio Weimar ou 1'explosion de la moder-
nité, Paris, Anthropos, 1984, sob a direção de G. Raulet.
4. Algumas referências relativas a esta seção intitulada: “A dificuldade
de saber”. Para uma apresentação geral: G. Balandier, O retomo, poder e
modernidade, Rio de Janeiro, Bertrand/Civilização Brasileira, 1997, capítu­
lo 5 “A modernidade e suas facetas”; E. A. Tiryakian, dir., The Global Cri-
sis, op. cit.; C. Castoriadis, Les Carrefours du Layrinthe, Paris, Seuil,
1978; A.-O. Hirschman, Exit, Voice and Loyalty: Responses to Declive in
Firms, Organizations and States, Harvard, Harvard. Univ. Press, 1970; J.
Baudrillard, L'Autre par lui-même, Paris, Galilée, 1987; U. Eco, La Guer-
re dufaux, Paris, Grasset, 1985; J.-F. Lyotard, La condition post-moder-
ne, Paris, Éditions du Minuit, 1981, e La Post-modemité expliquée aux
enfants, Paris, Galilée, 1986; G. Vattimo, La F in de la modemité.
Nihilisme et herméneutique dans la culture post-modeme, Paris, Seuil,
1987, e a entrevista concedida por G. Vattimo, Libération, 12 ago. 1987.
5. P. Feyerabend, Contre la méthode, esquisse d’une théorie anar-
chiste de la connaissance, Paris, Seuil, 1979; L. Geymonat e G. Giorello,
Le ragioni delia scienza, Roma, Sagittari/Laterza, 1986; M. Serres, Les
Cinq Sens, Paris, Grasset, 1985; J.-L. Nancy, L ’Oubli de la philosophie,
Paris, Galilée, 1986.
6. A título de ilustração das duas proposições: I. Lakatos e A. Musgra-
ve, ed., Criticism and the Growth of Knowledge, 3. ed. Londres, Cam-
bridge Univ. Press, 1974; G. Stent, The Corning of the Golden Age. A View
ofthe End of Progress, Nova York, Natural History Press, 1969.
7. Sobre a movida, entre outros testemunhos: o do escritor H.-F.
Rey, “Le choc des Espagne”, Le Point, 11 nov. 1985, e C. Tréan, “Les nou-

187
M L u n u j j j □ n L A i ^ ü L ^ n

veaux conquistadores”, Le Monde, 7 fev. 1986; e também o Festival do


cinema espanhol do outono 1987, em Paris. Sobre a relação entre “o arcai­
co” e a tradição nos processos de modernidade, com exemplo por casos: L.
Dispot, Manifeste archa/ique, Paris, Denoêl, 1986.
8. Os novos exemplos do tempo são apresentados — principalmente
no artigo de É. Couchot: “Le temps réel’” — no volume 13 de Temps
Libre, 1985. Mais globalmente, o status do real é considerado por P.
Watzlawick: La Récdité de la récdité, confusion, désinformation, com-
munication, Paris, Seuil, 1984. Les Études Philosophiques, 1, 1985, dedi­
caram um excelente número especial “ao imaginário e à máquina”.
9. Sobre as imagens e sua relação com o real: G. Balandier, dir.,
“Nouvelles images, nouveau réel”, volume especial dos Cah. Int. de Socio.,
jan.-jun. 1987. Citação extraída do artigo de É. Couchot, “Sujet, objet,
image”; Ver também Images, de Voptique au numérique, Paris, Hermes,
1988.
10. ibid., artigos de M. Guillaume (“Le Carnaval des spectres”), de É.
Couchot (já citado), A. Sauvageot ( “Mémoire et anticipation d’un imaginai-
re numérique”), A. Renaud (“Nouvelles images, nouvelle culture: vers un
‘imaginaire numérique”’ e J. Baudrillard (“Au-delà du vrai et du faux, ou le
malin génie de 1’image”).
11. Um número especial da revista Actions et Recherches Sociales
foi dedicado à “Urgência”, n.° 2, jun. 1987. Bem como diversos estudos
recentes de P. Virilio, sobretudo Vitesse et politique e L ’espace critique.
12. Obra de referência: B. Cazes, Histoire desfuturs, Paris, Seghers,
1986. Enquanto avanço aos extremos (e não sem humor) das programa­
ções do futuro, a obra de dois cientistas ingleses, B. Stableford e D. Lang-
ford, Le Troisième millénaire, trad. franc., Paris, Aubier, 1986.
13. Ao tratar a greve-surpresa do metrô e do R.E.R., em Paris, antes
do Natal de 1985, um jornalista do Le Monde (22-23 dez. 1985) escreveu:
“E toda a cidade, de repente, degringolou. Estrangulada pura e simples...
uma cidade enlouquece.” A pane de eletricidade, em Nova York há uma
década mais ou menos, provocou a imaginação romanesca pela amplitude
das desordens, do pânico e dos dramas que dela resultaram. As pesquisas
sobre o ‘caos’, mencionadas no capítulo 2, aplicam-se a esses fenômenos
inesperados de ruptura da ordem por contaminação de massa.
14. A “cindynique” foi apresentada, quando de seu nascimento ofi­
cial em Paris, dez. 1987, como uma exploração do “arquipélago do perigo”;
ou ainda como a conscientização de todos os componentes do risco, desde
os “impactos da atividade humana sobre o meio ambiente” até os “aspectos
econômicos e financeiros” e a “informação”.
15. Esses processos, e a versão otimista da “desmassificação” são

188
apresentados no livro de A, Toffler, que completa sua leitura (talvez radio­
sa) do futuro, La troisième vague, trad. franc., Paris, Denoêl, 1980.
16. A fórmula é de A. Finkielkraut, por ocasião de uma crítica severa
da obra de G. Lipovetsky, L ’empire de l’éphémère, Paris, Gallimard, 1987.
17. Ver M. Henry, La barbarie, Paris, Grasset, 1986.
18. Fórmula do escritor e poeta P. Guyotat, a propósito de Bivouac,
sua última obra: “No fundo, nada sei. Deixei que entrassem em mim, com a
maior liberdade possível, a desordem, o barulho, o arcaísmo desse mundo
de hoje.”

189
7

A DESORDEM NÃO SE ISOLA

No século XVIII, a idéia que a desordem embute necessaria­


mente uma ordem adquire uma força avassaladora. Sade reconhecia
assim a obra da “mão sábia da natureza” que “faz nascer a ordem da
desordem e, sem desordem, ela não chegaria a nada: este é o equilí­
brio profundo”.1 A idéia tem hoje um lugar especial na teoria cientí­
fica, mas o senso comum a utiliza cada vez menos de forma positiva
naquilo que é sua própria apreciação do mundo atual. Em uma visão
comum, o progresso não se faz sem fracassos ou regressões; resfole-
ga como um motor cansado, e a desordem evolui no seu rastro de
destruição. Já disse que a consciência da desordem está mais viva;
administra as maneiras de negociar o cotidiano, as espertezas, os
subterfúgios, as defesas, as necessidades, e não somente as estraté­
gias de sucesso encorajadas pelas possibilidades oferecidas por um
mundo em movimento, onde os códigos se embaralham, referências
e valores se intercomunicam ou desaparecem. Todavia difunde-se a
idéia que, se a desordem não se isola, é importante identificar suas
manifestações, sinalizar-lhe uma oposição, convertê-la em energia
capaz de efeitos positivos; utilizar o movimento em vez de deixá-lo
solto ou sofrê-lo, mesmo sem saber ao certo quais os meios para se
chegar a isso e os riscos assumidos por erro e não por passividade.
Depois de um período de afrouxamento das restrições, de libe­
ração, da valorização da espontaneidade e da experimentação livre
em todos os campos, a demanda de regra se exprime de novo e com
intensidade crescente. Outro ciclo parece então se abrir. A desor­
dem da economia mundial, que leva a flutuações monetárias e finan­
ceiras incontroláveis, à precariedade dos mercados de trabalho, à

191
utilização viciosa dos recursos, mantém um desejo repetido de reor-
denação; uma etapa foi vencida, além da qual formas de regulação
são almejadas mesmo por aqueles que tiram proveito da instabilida­
de e da confusão. A mobilidade dos costumes, sobretudo no campo
da sexualidade e da vida familiar, tende a se reduzir por auto-regula-
ção, sempre mantendo certos princípios adquiridos ao longo das
décadas precedentes. A desordem amorosa não se aplaca somente
sob a ameaça de morte que mantém a nova endemia. As figuras da
família atual e as das uniões antigamente reprovadas são menos
variáveis na medida que os códigos autogeridos começam a fixar sua
definição. Uma liberdade permanece a postos, mas esta opera mais
sob um controle voluntário e menos prescrito. De uma forma mais
geral, com o recuo para a vida privada, o cotidiano se torna também
um terreno onde regras ainda frágeis tentam dar forma a uma socia­
lização inédita, a um laço social menos dependente das circunstân­
cias, às relações estabelecidas por meio das redes que substituem as
antigas formas de agrupamento.
Mas o indicador mais significativo é a volta da exigência moral
e a descoberta da necessidade do recurso à ética. Os poderes públi­
cos franceses já ergueram barreiras ao avanço dos grandes riscos
contemporâneos (a informática face às liberdades, a engenharia
genética face ao que é próprio do homem enquanto espécie); deci­
dem agora regulamentar os nascimentos frutos da técnica, os usos
dos métodos de procriação artificial; enfrentam o problema da pro­
teção da carta genética. A questão ética é colocada com uma inten­
sidade e uma urgência bem na medida dos perigos já existentes e
múltiplos. Fora do espaço político, em diversos lugares e com vigor
inegável, surgem demandas de natureza moral que não nascem ape­
nas das conjunturas, dos cálculos e das estratégias. As manifesta­
ções estudantis do final de 1986, na França, popularizaram a fórmu­
la anunciadora do aparecimento de uma geração moral. A juventude
se vê então exaltada quando retoma a felicidade da virtude. É verda­
de que se tornou mais reativa às violações dos direitos humanos e às
violências totalitárias, ao racismo e às discriminações, à miséria dos
povos do Terceiro Mundo e à nova pobreza, às relações de competi­
ção desigual e confronto brutal. As ligações pessoais, os movimentos
coletivos, as associações bem o testemunham: trata-se menos de
conversa fiada e pose e mais de uma emoção provocada pela desor­

192
dem selvagem do mundo, de uma exigência de recodificar a vida e
assegurar sua defesa. Também os responsáveis pelas empresas, em
meio às turbulências econômicas, aspiram pelo retorno de mais
estabilidade, aos valores que corrigem os efeitos brutais das desre-
gulamentações, a uma moral dos negócios. Os dirigentes mais jovens
reafirmam que é preciso colocar “a empresa a serviço dos homens”,
que é urgente considerar os problemas morais colocados pelo apare­
cimento das novas técnicas; e, da parte de alguns, a afirmação rea­
lista de que um funcionamento sobre bases éticas é mais propício a
uma rápida adaptação.2
Uma palavra reaparece — e neste reaparecimento, a crise, com
seu cortejo de males individuais, não é estranha — , a palavra: soli­
dariedade. Serve para moralizar o discurso político, para provocar,
no quadro das iniciativas midiatizadas, dramatizadas, a generosidade
ou a caridade de massa, para exprimir também a busca ainda confu­
sa de novas formas de laço social. Neste sentido, revela igualmente a
necessidade de regras, enquanto que o jogo social parece entregue
ao arbítrio e aos cálculos dos múltiplos atores, eles mesmos flutuan­
tes ao sabor das circunstâncias. A palavra solidariedade tem uma
longa história, mas permanece de significação suficientemente flui­
da — salvo nas acepções jurídicas — para tolerar diferentes usos e
convicções. É esta fluidez que permite legitimar, no momento da
recusa das ideologias fortes e da ordem por coerção, os reagrupa-
mentos e as solidariedades incipientes, suas composições e recom­
posições incessantes. A crítica das ideologias adocicadas (como
existe a medicina adocicada) poderia se aplicar a essa solidariedade
generalizada, considerada frouxa diante da dureza dos tempos
modernos e futuros. Seria esquecer lutas ainda recentes, ainda pre­
sentes, engendradas pelo terror ideológico; seria subestimar tam­
bém uma busca, com certeza pragmática e sem arrogância, que con­
cede mais crédito à criação contínua que às práticas de conformida­
de doutrinária.3 Entretanto, é verdade que as necessidades e tenta­
tivas há pouco lembradas permanecem frágeis e muitas vezes impre­
cisas, até mesmo contraditórias em sua formulação ou forma. É a
conseqüência de um movimento e de um avanço de complexidade
que permeiam todos os domínios, inclusive os espaços sociais e cul­
turais; é a conseqüência derivada de formas de representação, de
interpretação, pelas quais a figura da desordem permanece enquan­

193
to principal referência obsedante e fixadora de incompreensões,
inquietudes e angústias.

FIGURAS DA DESORDEM: FIGURAS REVELADORAS

A desordem é geralmente vista sob os aspectos do mal — e


como este, a desordem “se espalha” — ou do inesperado, do inco-
mum temido. Assim é que aparece transtornando a ordem das coi­
sas, dos seres, das idéias. A modernidade parece lhe dar uma capa­
cidade de onipresença e uma crescente virulência. Contribui pouco
para a interpretação racional das situações e dos problemas, sua
própria lógica fica confinada no interior dos conhecimentos científi­
cos. Segundo o senso comum, suas razões permanecem muitas
vezes estranhas ã Razão; são de uma outra natureza, o que não quer
dizer que sejam sem fundamento. O recurso à explicação pela
desordem designa a realidade presente em alguns desses estados,
manifesta uma quase impossibilidade de compreendê-la de outra
maneira; depende também da lógica constitutiva das mitologias con­
temporâneas, na medida que está de certo modo sempre ativo nas
situações imaginárias variáveis que estas englobam, em associação
com outras entidades, outras figuras. É por meio dessas funções que
convém abordá-lo, constitui-lo enquanto revelador da atualidade e
das atitudes intelectuais e emocionais diante da desordem. As cir­
cunstâncias oportunamente fazem-na surgir, dando-lhe uma espécie
de evidência. E é partindo dessas circunstâncias que é preciso con­
siderá-la, depois investi-la, a fim de submetê-la a uma exploração
interpretativa de caráter sócio-antropológico.

O acontecimento: aparecimento de um a fig u ra da desordem

A história imediata acaba de provocar a irrupção espetacular,


mundial, de uma desordem de origem econômica e de seu cortejo de
destruições, inquietações, associadas aos desastres oriundos de crises
do passado. Tudo começa em outubro de 1987 e se sucede por alter­
nâncias de prazos curtos e abalos de longa duração; mesmo anuncia­
da por sinais precursores mal percebidos ou ignorados, uma poderosa
tormenta da Bolsa se abate de repente e a anarquia monetária se
toma aparente aos olhos de todos, sem que nenhum poder consiga

194
contê-la ou se desviar do hábito e dos lucros do laisser-faire. É o
estado de choque que as primeiras vítimas elevam ao nível do drama,
do destino fatal, e a mídia aumentando, ilustrando, comentando o
acontecimento. A queda da Bolsa, em poucos dias, passa a ser uma
questão para financistas, especialistas, políticos; cada um compreen­
de imediatamente ao que já está ou ao que pode estar relacionado. O
fenômeno toma uma outra amplitude e passa a carregar significações
flutuantes. As fórmulas e as metáforas abundam para defini-lo, identi-
ficá-lo e explicá-lo, para fabricar uma resposta imediata mais mágica
que racional: o fenômeno parece fugir à competência dos competen­
tes. Metáforas emprestadas das manifestações naturais da desordem
ou do caos: tempestade, tomado, catástrofe, desabamento, desastre,
tremor. Metáforas que realçam o léxico da patologia física e mental:
doença disfarçada que subitamente aparece e se abate, movimento
de loucura, reação delirante, psicose coletiva, pânico generalizado. A
tudo isso se junta, como no universo dos mitos e dos ritos, a busca de
um culpado, de uma vítima expiatória: o computador utilizado há
pouco tempo nas operações da Boisa é designado para essa finalida­
de, a máquina tomada de perversão teria provocado o desastre.
Evidentemente, o acontecimento não foge totalmente à racio­
nalidade. Análises e comentários fervilham, provocam o confronto
contraditório sobre a natureza das causas. O duplo déficit americano
— o do orçamento e o do comércio exterior — , as errâncias do dólar
que provocam e fazem perdurar a incerteza sobre o valor da moeda
de referência, o nível das taxas de interesse, a especulação mantida
pelas transformações e a modernização do sistema financeiro, as
desregulamentações: dados que intervém geralmente na argumenta­
ção explicativa, sempre deixando o campo livre para o conflito das
interpretações, dos diagnósticos e das previsões relativas ao futuro
imediato. Segundo um economista prêmio Nobel, dentre outros, não
havia fatalidade portadora do desastre; segundo outros (para quem
um bem pode nascer de um mal), a crise terá efeitos corretivos
sobre um mercado muito instável; outros enfim acham que a evolu­
ção não é domável (os poderes “podem pouca coisa”), a recessão e o
caos serão o resultado. Eis a incerteza, incapaz de orientar as con­
dutas que hesitam entre a prudência medrosa e o risco audacioso,
que espera tirar proveito das circunstâncias. Para escapar à passivi­
dade inerente ao indecifrável, é preciso tentar saber melhor. As fer­

195
ramentas reaparecera, os novos instrumentos são colocados sucessi­
vamente à prova. As teses cíclicas são retomadas; nestas a análise
recua e fica mais pertinente, porque se aventura menos em pronun­
ciar tendências a longo prazo. O “abominável doutor K.” está de
volta; os ritmos longos de Kondratieff são reconsiderados, com a
alternância de cinqüenta anos de fases operando entre recessão e
depressão, com a concepção das crises do capitalismo como um pro­
cesso normal e regular cujo fim não é (ao contrário da profecia dita
marxista) apocalíptico.4
O .iovo é a intervenção dos caologistas, dos teóricos do caos
para quem ura efeito imprevisto — o “efeito-borboleta” dos meteo­
rologistas — cria movimentos de aparência errática. Tomam carona
nos teóricos desbotados da economia e nos financistas desampara­
dos. A desordem associada aos fenômenos complexos é seu campo
de trabalho. As turbulências da Bolsa lhes dão oportunidade de um
estudo de verdadeira grandeza: identificar o ou os fenômenos
imprevisíveis que as engendraram e que mantêm um estado caótico,
reconhecer com a ajuda dos meios científicos mais sofisticados os
atraidores capazes de criar novas formas de ordem, e as desordens
futuras escondidas sob estas regulações.5 Mas, nas diversas tentati­
vas de interpretação ou de explicação, os caminhos da racionalidade
se perdem ou se misturam confusamente. A incerteza dominante as
obscurece, e isto na medida que a figura do caos é propícia a todas
as mistificações. Por meio dessas operações do imaginário — em
razão também da carga psicológica ligada ao dinheiro — os dados de
fato — e, para muitos dentre eles, técnicos — estão transfigurados.
Os dados se tornam entidades que agem tal como as potências
nefastas engendradas pelas mitologias.
Quando a desordem, por sua intensidade, duração e extensão
se identifica com o caos, a incerteza e a inquietação não são mais as
únicas manifestações das reações que ela acarreta. Não é somente
inexplicável, é percebida como fator de contágio que ameaça não
deixar pedra sobre pedra, aparecendo também como o revelador,
pelo qual os problemas e as dúvidas de alguma forma crescem.
Mostra as coisas em negativo, converte as certezas, as ignorâncias e
as indiferenças em desconfianças que se generalizam e se ampliam.
A quebra da segunda-feira, 19 de outubro de 1987, e o que se seguiu
dá um vigor novo à contestação do saber, da artes dos especialistas

196
e dos sistemas técnicos a seu serviço. O conhecimento econômico,
apesar do aperfeiçoamento das teorias, dos modelos, dos cenários,
não pôde contribuir para antecipar e pode ainda menos contribuir
para prever o que serão os desdobramentos do acontecimento. Os
comentaristas de imprensa constatam então que os profissionais
estão “ultrapassados”, que a habilidade dos antecipadores “está em
pane”. Os especialistas tentam deslocar as responsabilidades, mui­
tos dentre eles então acusam — como fez o presidente da Bolsa do
Pacífico — as “máquinas que os homens não conseguem mais con­
trolar”. São os computadores e os sistemas informatizando as opera­
ções que se tornam os atores do desastre; duvida-se que os benefí­
cios resultantes desses programas informáticos sejam “superiores ao
enorme potencial de catástrofes que [a “segunda-feira negra”] ante­
cipou”; na melhor das hipóteses, tenta-se não renunciar ao emprego
dos computadores, apenas redefinir melhor seu papel. Descobre-se
que a máquina, pela qual a racionalidade se instrumentaliza comple­
tamente, é capaz de loucuras. Tal explicação, vulgarizada pela mídia,
reaviva de repente as reticências e os temores mais ou menos laten­
tes relativos à sociedade informatizada; isto e mais o fato importan­
tíssimo de uma crise, que deprecia o valor daquilo que exprime
todos os valores materiais: o dinheiro.
Análises realizadas à distância do acontecimento, e menos
orientadas pela busca de culpados, colocam a mais importante ques­
tão: a da conversão brutal da racionalidade em irracionalidade. No
caso, o excesso de cálculo dos grandes atores monetários e financei­
ros seria mais catastrófico do que teria sido sua ausência; seus com­
portamentos, obedecendo aparentemente a um máximo de raciona­
lidade, teriam tido como resultado, por agregação e efeito coletivo,
uma irracionalidade desorganizadora. Contudo, essa análise não
exclui a interferência da máquina: a rapidez das intervenções (na
medida que a velocidade é o verdadeiro operador) requer a rapidez
da informação e da transação; a informática fornece esses meios e o
computador age automaticamente em conformidade com seu pro­
grama, mas o ímpeto do dispositivo não se corrige com a mesma
rapidez e pode produzir uma desordem quase instantânea. A técnica
mais avançada não garante uma racionalidade sem fracassos nem
uma relativa estabilidade; os atores estão nisso ainda mais desampa­
rados conquanto haviam-lhe concedido um enorme crédito.

197
Esse tempo de tormentas não é somente o das provas sofridas
pelos doutos, os competentes, os mandachuvas, é também o tempo
das provas impostas aos dirigentes políticos: uma espécie de hora da
verdade, no momento, à qual se medem suas aptidões para com
preender as situações e seu poder de dominá-las; o tempo não lhes é
mais concedido, nem a paciência fundamentada na crença de que as
coisas vão se resolver. Quando os ministros qualificados (os que
administram as finanças dos países mais poderosos) mostram-se
hesitantes quanto a seu concertamento (no quadro do Grupo dos
Sete, colégio quase mítico para a maioria), os governos lançam a
falta sobre os outros, expulsam-nos para fora, enquanto que os
enfrentamentos políticos internos utilizam o acontecimento nefasto
para jogar a carga no adversário. Os poderes apresentam-se parali­
sados, a imprensa menos crítica observa que eles não sabem era que
se sustentar. Suas palavras ficara ainda mais vazias, suas ritualiza-
ções apaziguadoras não convencem mais, seus atos têm pouco cré­
dito. Sob os holofotes da crise, os políticos parecem se situar fora da
sociedade, à parte, sem amarras à mais próxima das realidades.
Desse modo se acentua fortemente uma tendência que apareceu
periodicamente ao longo da história das democracias, sobretudo a
francesa: a do ceticismo dos cidadãos, que acarreta o descrédito dos
políticos. A desordem imposta pela crise revela mais (e, para os sub­
metidos, com o risco pessoal e imediato em jogo) os limites, as
impotências dos dirigentes. Esse enfraquecimento da representativi-
dade, da capacidade, manifesta-se com vigor quando é também o
resultado de transformações anteriores ou em vias de se fazer: a
crescente complexidade dos problemas que contraria a busca de
soluções, o movimento contínuo das coisas que obriga a negociar
com a incerteza, o novo regime da informação submetida à lei midiá-
tica segundo a qual a imagem (o espetáculo) prevalece sobre a men­
sagem. Mais importante ainda, o fato de as sociedades da moderni­
dade se constituírem contra a estabilidade, através de desequilíbrios
sucessivos que têm uma função motriz. Nela os princípios de ordem
são variáveis, móveis, ocultos ou latentes. Ora, o político, em sua
essência, é indissociável desses princípios; é pois sua função que se
encontra mais confusa; parece mesmo tê-la perdido a ponto de criar,
no momento do caos coletivo, o sentimento de seu próprio desapa­
recimento ou de sua inutilidade.

198
Já vimos que a desordem age por contágio; atinge os espaços
dos signos, dos símbolos, o espaço do imaginário, as figuras que ali­
mentam as paixões. Forque esta crise inacabada tomou inicialmente
a forma de uma quebra da Bolsa, abalou os santuários onde se reali­
za o rito cotidiano das operações financeiras, degradou o patrimônio
daqueles que contam, afetou a imagem do dinheiro, deu um basta à
glorificação da qual era objeto e que havia apagado a velha descon­
fiança, oriunda da moral cristã. No início deste século, o sociólogo
alemão Georg Simmel, em sua grande obra que propunha uma filo­
sofia do dinheiro, a situa “aquém e além de uma ciência econômica
deste”; demonstra que a essência do dinheiro deve ser esclarecida
“a partir das condições e relações da vida em geral”, e, ao contrário,
“a essência da vida em geral e sua modelagem a partir da influência
do dinheiro” .6 A dupla relação se mantém dentro das turbulências,
que tomam mais evidente o que é ameaçado e revelam enquanto
ilusão o que era o efeito de uma facilidade falaciosa, vulnerável. Os
novos heróis — os grandes manipuladores financeiros, os vencedo­
res, os golden boys inventores de fortunas juvenis construídas na
Bolsa — perdem uma parte de seu brilho; antigas imagens ressur­
gem, a dos Pequenos, frágeis diante dos Grandes, enganados e
impotentes face aos predadores. Os lucros já não estão mais ao
alcance de qualquer mão mais audaciosa, o capitalismo dito popular
já não é tanto assim. O dinheiro se toma um signo que se inverte,
designa agora uma precariedade mais generalizada (o drama se ins­
creve em toda parte, e as fortunas consumidas são sua imediata
manifestação) e um desregramento sem freios que pode criar uma
desordem também sem limites, revestida de fatalidade, de uma con­
denação suprema que sanciona a adoração de falsos deuses, como
se o valor do dinheiro aniquilasse os verdadeiros valores.
É também a relação de uma sociedade com o jogo que se des­
venda em toda sua ambigüidade, uma sociedade em que o efêmero
encoraja a escolha de realizações imediatas, em que a busca do
sucesso rápido conduz à espera da sorte, uma sociedade onde a
Fortuna faz girar as rodas que os inúmeros empresários multiplicam.
Essa deusa inconstante não distribui seus benefícios segundo os
méritos, pode enriquecer os pobres mas acabar com eles ainda mais,
pode trazer mais riquezas aos ricos, mas também arruiná-los por
seus excessos. A sorte que dá para trás aparece sob os aspectos do

199
sacrifício ou da proibição, parece introduzir o sagrado e a moral nos
espaços da desordem. A exploração da crise mostra, da parte
daqueles que a vivem, as múltiplas passagens do real para o imagi­
nário, as variações da consciência de desordem e seus efeitos. O
mais importante é sem dúvida aquilo que pode ser designado corno
a retomada do arcaico na superfície da modernidade, sob a forma de
linguagens, de imagens, de entidades, de modelos das condutas de
defesa ou de exorcismo. O mito é a primeira das tentativas de orde­
nação do mundo, de pensamento desta ordem; reaparece enquanto
recurso quando as formas da racionalidade, seus instrumentos, per­
dem o controle sobre a ordem estabelecida.

A doença, o mal, a desordem que vêm de fo ra

Nas sociedades tradicionais, antropologizadas, a doença não


está confinada no interior do corpo doente; este é apenas o lugar
onde a desordem se estabelece, introduzindo uma ameaça de morte.
Uma desordem nascida de fora, da cólera das potências que regem o
destino dos homens, vingadora (que clama por uma reparação
ritual, sacrificial) da perversão das relações humanas, das relações
entre pessoas (o que leva a estabelecer a culpa, sancioná-la ou
absolvê-la). A doença e a morte não dependem somente da natureza
e seus desregramentos, remetem ao sobrenatural e à sociedade; não
estão dissociadas da falta, da transgressão à lei das potências que
garantem a ordem do mundo, também não são a infração aos códi­
gos, aos imperativos que regem a boa ordenação da sociedade e o
apaziguamento das relações de homem a homem. São de uma certa
maneira as formas da violência, de uma violência que não é a do
confronto físico, mas a outra, insidiosa, que opera no interior do ser
e cuja fonte está no exterior, ativada pela falta religiosa e/ou pela
infração moral. Nesses jogos de vida ou morte, o poder humano,
ligado (aliado) aos poderes que o ultrapassam é parceiro, é o agente
de sua ordem no seio da sociedade e a ligação necessária com a
ordem exterior; é um difusor da ordem, o que pode constituí-lo em
taumaturgo, gerador dos males individuais e coletivos. Nessa pers­
pectiva, a doença e a morte revelam que a desordem não é separada
do contágio, ela o traz em si. A pessoa doente não é em princípio
contagiosa no sentido clínico — o medo não se origina disso — , mas

200
no sentido cultural, simbólico. Toma evidente o trabalho da desor­
dem, toma temível a extensão de seus efeitos; sua cura não se limita
a uma relação terapêutica singular; a coletividade está engajada nela
porque se sabe, também, envolvida. A doença aparece como um mal
plural, é a metáfora da desordem expressa pela da linguagem do
sofrimento e da precariedade dos homens.7
A modernidade não está totalmente excluída dessas formas de
ver; a ameaça surge, e a retomada do arcaico se produz também sob
esse impulso. Malraux já designava, em uma entrevista concedida
em 1975, o medo de “ver chegar algo como as epidemias de antiga­
mente”.8 A “coisa” já está aí; o medo fundamentado e também gran­
de fabulista, a acompanha; o apocalipse bate a nossa porta — é o
que dizem — , a besta destruidora vestiu-se de Aids. Esse tempo
apareceu de repente, com a amnésia de seus sucessos, como um dos
tempos marcados pela desgraça. Os historiadores dele fazem opor­
tunamente a genealogia. Jean Delumeau lembra que esses períodos
são aqueles durante os quais os homens se descobrem sem controle
sobre o que os arruina: a doença mortal se espalha e mata sem que
haja possibilidade de conhecer logo sua natureza, sua forma de
transmissão, e de lhe fazer frente com as defesas que a desarma­
riam; sobretudo, não age sozinha, outras calamidades e ameaças lhe
estão associadas, ela as simboliza todas definindo-se temível e ater-
rorizante. Impõe-se como a figura principal de uma cultura que se
constitui em “cultura da morte”.9 Nosso fim de século, apesar das
conquistas científicas e técnicas em contínuo crescimento, em parte
por causa delas, pela soma de seus efeitos perversos, engendra uma
configuração semelhante que a revela em negativo. Mas esse con­
junto — onde situam-se o perigo atômico, a desnaturação, o risco
genético, a patologia do contágio, a insegurança e outros males — é
flutuante. Organiza-se em torno de figuras principais variáveis: a
bomba, o meio ambiente, a violência, hoje epidêmica; modifica-se à
medida que as respostas permitem domesticar certos riscos ou que
a lenta aculturação acarrete um semi-esquecimento.
Agora, a Aids. Fórmulas fortes a designam: a maré que “sobe
para aniquilar as sociedades humanas”, a “epidemia do século”, a
“nova peste” , a “portadora de psicose e pânico” , a maldição que
mantém “o medo do sexo”, a “besta imunda”, entre outras variações.
O mal rende literatura. Faz reaparecer o trágico e o mito. Apela para

SOI
UbUitUE.3 D n m n u i b n

imagens de corpo a corpo, de combate; é o equivalente de “uma ter­


ceira guerra mundial” em que os doentes estão “na linha de frente”
e os outros são “os da retaguarda”.10
Enquanto a mídia e o poder público se mobilizam para instruir,
o avanço científico e médico prossegue Explora para identificar os
vírus e suas variações, sinalizar os caminhos da infecção e as “popu­
lações” que por ali passam, encontrar os remédios que retardam o
mal na expectativa de poder eliminá-lo. As campanhas de informa­
ção e prevenção mudam as regras do comportamento amoroso. A
vulgarização das pesquisas, de seus resultados e progressos introduz
a racionalidade em contraposição aos fantasmas, às loucuras, à nova
irrupção da morte que a cultura da modernidade havia empurrado
para baixo do pano. Mas esta apresentação racional da doença mos­
tra também os limites do saber e da terapia diante de um mal singu­
lar. A Aids parece perversa, os especialistas se assombram diante da
extraordinária “capacidade de camuflagem” do vírus. Este pertence
a uma espécie que aniquila o homem pela primeira vez e que, além
disso, se disfarça por “mimetismo molecular”. Ele não ataca direta­
mente, tem como alvo as células encarregadas da defesa do organis­
mo (os linfócitos), anula esses defensores e deixa o campo livre para
todas as espécies de germens oportunistas, mata por delegação, o
que levou Luc Montagnier — descobridor do vírus — a dizer que as
formas de sua ação são “simplesmente diabólicas”. Tal como o diabo,
opera oculto e por vias indiretas. Pode ser o ocupante discreto de
um corpo que não é doente, onde mantém uma ameaça permanente,
uma incerteza corrosiva, e do qual faz um agente de contaminação.
O estado de pré-Aids, de soropositividade, manifesta sua malignida-
de: não ataca ainda para dentro, mas para fora e destrói a vida de
relações da pessoa da qual é hóspede. Nenhuma doença, nenhuma
epidemia manifestou neste grau a figura da desordem insidiosa, oni­
presente, aniquiladora, mal localizável e de difícil isolamento na
espera dos meios para reduzi-la. O mal parece ao mesmo tempo
estar e não estar. O que vem explicar, afora as reações organizadas
(científicas, hospitalares, solidárias), as respostas contraditórias que
lhe são atribuídas. Para alguns, essa desordem mortífera deve ser
contida por barragens: controles repressivos, confinamento, exclu­
são. Para outros, ao contrário, a negação da realidade leva a eclipsar
o risco, varrer a inquietação, jogar com a morte sem querer admiti-

202
Ia. Em suma, o reordenamento totalitário ou o laisser-faire hedonis­
ta, o deixa-estar; entre os dois situam-se todos os graus da prudên­
cia auto-imposta, do risco calculado, da sexualidade “mais segura”.
O deslocamento do real para a simbólica, do real para o imagi­
nário encontra, no caso da Aids, vias de acesso fáceis, porque traça­
das há muito tempo em inúmeras culturas. O vírus se transmite por
dois veículos, o esperma e o sangue: ambos carregam uma forte
carga simbólica, pesada e temida por sua ambivalência. As especula­
ções sobre o sangue estão no centro de um sistema de representa­
ções na quase totalidade das culturas tradicionais. Já os astecas fa­
ziam do sangue sacrificial o fluxo de energia que corrige a entropia
do mundo, que retarda a diminuição e o avanço da desordem, signi­
ficando o “fim do futuro”. Para eles, o sangue humano é a “água pre­
ciosa”. Em outras culturas, geralmente, todo sangue é um humor,
um líquido sagrado: o da comunicação suprema estabelecida com os
deuses, as potências, o do sacrifício que aproxima e comunica, o das
feridas rituais feitas no momento da iniciação que dá acesso ao co­
nhecimento da ordem do mundo e dos homens. Mas o valor atribuí­
do ao sangue pode se inverter; ele une no ato comunitário, desune e
opõe no ato violento que o espalha; traz a vida, se toma agente de
contaminação — no sentido simbólico e não biológico — nas situa­
ções nefastas, sobretudo naquelas onde aparece o sangue da mu­
lher. Nisto reside o mais significativo: esta ambivalência que liga o
sangue às classificações, segundo as quais se dividem o fausto e o
nefasto, a vida e a morte, a ordem e o caos. Dessa herança recebida
das tradições, não perdemos tudo; o que conservamos, traduzimos
em outras linguagens. O sangue permanece o líquido “precioso” que
circula, irriga o organismo, mantém a vida e a protege das agressões
patogênicas; encerra ainda um simbolismo confuso, sua visão e seu
contato podem chocar, nutrir certas perversões e assim permitir a
satisfação erótica; dá acesso à leitura do destino individual, pela
mediação técnica da análise, aparecendo como um registro sobre o
qual se inscrevem os signos da saúde, os males ocultos ou as amea­
ças insidiosas; nesse sentido, é para muitos uma adivinhação que se
tomou racional e incontestável. O sangue não é somente o agente
da vida, é também o da salvação: sangue do redentor, do mártir, do
herói; hoje, sangue desconhecido que leva a vida para situações crí­
ticas onde o indivíduo está em perigo de morte. Só por isso ele se

203
toma um produto, complexo e fracionável em seus elementos (gló­
bulos vermelhos e brancos, plaquetas, plasma, fatores de coagula-
ção, anticorpos) a fim de permitir um emprego mais seletivo e mais
apropriado. Este produto, sangue total ou frações, se converte em
mercadoria desde o momento em que é objeto de comércio, instru­
mento de lucro ou de especulação. Um comércio “que amedronta”,
não somente porque o sangue não é uma mercadoria como as ou­
tras, mas porque as categorias do puro e do impuro, os desafios de
vida ou de morte dele são indissociáveis. O sangue impuro não vei­
cula mais a vida, mas a morte. Pode matar os que o recebem. O risco
leva alguns a se protegerem do recurso eventual de um sangue anô­
nimo — suspeito, talvez maldito — prevendo um dom recíproco
com os doadores conhecidos, os próximos, ou fazendo da conserva­
ção de seu próprio sangue o primeiro (e necessário) seguro de vida.
A circulação social do fluido vital fica assim confinada ou suspensa.
A epidemia da Aids reaviva os temores e reativa um simbolis­
mo negativo antes adormecido. O outro é objeto de suspeita, de
escusa, porque seu sangue pode estar contaminado: se sua ferida
encontra a minha, este contato deixa passagem livre para o vírus; se
sua agressividade quer me prejudicar ou contrariar, ele me ameaça
de contaminação. O mal parece reforçar a ligação com a maldição; é
sobretudo associado ao uso da droga: a seringa suja simboliza a
dupla maldição do toxicômano, a que chama ainda mais a morte
para si mesmo, a que o faz portador da morte pela mão do outro, seu
parceiro na troca dos prazeres. Mais que qualquer outra doença epi­
dêmica, a Aids destrói a comunicação e a troca. O sangue circula
para veicular a vida, o mal o toma nefasto e perverte as relações,
onde ele está real ou eventualmente presente.
O esperma se transmite para manter a vida aliando-a ao prazer;
o mal o transforma em um aliado do sangue contaminado e faz dele
um agente fatal. Em todas as tradições, o sêmen, como o sangue,
realça o registro simbólico, os códigos que regem os tabus, as con­
venções que definem a sujeira, a impureza ou o pecado. E isto a
modernidade não aboliu de todo; a conversão do líquido seminal em
produto comercial se efetuou com a difusão dos procedimentos de
fecundação artificial. Ao contrário do que se passa com o sangue, a
suspeita aqui é menor, pois as amostras pouco numerosas são mais
facilmente controláveis. É o esperma do comércio amoroso que

204
nutre a suspeita, e que o método de preservação isola. O mal oculto,
como a desordem difusa, mantém a incerteza; permite, durante um
longo período de latência, o não querer saber (a verdade deve ser
testada) ou o não revelar (o parceiro é entregue ao risco). A estatís­
tica médica específica não passa de uma estatística de dados incom­
pletos: como no universo da desordem, os números ajudam muito
pouco a efetuar divisões, a traçar as fronteiras. A falta de certeza, as
dúvidas quanto à vulnerabilidade têm evidentemente seus efeitos
sobre os comportamentos sexuais e sobre as condutas amorosas. A
disciplina e a limitação de relações, a monogamia com um parceiro
certo, a relação preservada e também a relação fantasma, facilitada
pelos recursos de vídeo, e as mensagens eróticas respondem a uma
situação onde a extensão rápida do risco cria a urgência. A norma
reativada e aquilo que é, às vezes, chamado de noção nova: a “res­
ponsabilidade sexual”, corrigem a desordem amorosa. O catastrofis-
mo não está menos excluído sob a forma dos efeitos de uma espécie
de esterilidade involuntária; um especialista aponta para a ameaça
demográfica: “Curiosa doença a Aids que, sem afetar diretamente a
fertilidade, leva por medida de proteção a um estado, de fato, de
esterilidade.”11 Mas a consciência da desordem, que o mal maldito
exaspera, remete sobretudo à condenação moral, às vezes à invoca­
ção de uma punição divina. Um modesto abade de província, funda­
dor de um “Comitê de higiene social”, reprova a erotização difusa da
sociedade, a degradação dos costumes, faz da Aids um dos “anún­
cios de Deus”, anunciador do castigo. A Igreja, mais prudente, não
faz uma leitura igual dos signos. A sanção moral progride todavia
por avanços furtivos. A sexualidade minoritária, a dos homossexuais
e dos bissexuais, é a dos “grupos de risco”; a sociedade permissiva
de alguma forma a havia banalizado, a Aids a dramatiza e faz reapa­
recer a exclusão. A homossexualidade, que era confusamente reco­
nhecida como uma união do igual, biologicamente estéril e social­
mente menos fecunda, menos fundadora, é tomada agora como uma
relação mortífera. Mais geralmente, é a liberação sexual, a abertura
da rede das trocas sexuais e a ausência de culpa promovida pelos
métodos anticoncepcionais que estão de novo em causa. A epidemia
fatal traz à superfície e cristaliza todas as restrições criadas por uma
sociedade em movimento, onde a contínua mobilidade dos seres,
das coisas, das idéias, multiplica os encontros, as misturas, as mesti-

205
çagens e, daqui para frente, todos os tipos de contaminações. Esses
medos acarretam o contingenciamento voluntário das relações, a
privacidade, o refúgio protetor mantidos dentro de uma barragem
de normas e na segurança do entre-si. A troca generalizada se torna
mais imoral; o retraimento seletivo, moral e virtuoso. A esquivez se
transformaria então em um cerco ao mal, depois em uma caça aos
culpados: eles deveriam ser identificados, acuados nas fronteiras,
isolados em estabelecimentos especializados, e, no final do proces­
so, esmagados socialmente, senão fisicamente. Já se manifestam nos
Estados Unidos reações de rejeição, algumas acompanhadas de vio­
lências, nas relações de vizinhança onde estão incluídos os portado­
res do vírus — inclusive as crianças contaminadas.
A epidemia temível, amedrontadora, cria a necessidade, de um
lado tranqüilizadora, de encontrar responsáveis e causas, na condi­
ção de poder situá-los bem longe (o mal viria de fora) ou de poder
encerrá-los na diferença (o mal seria confinado, uma questão de
marginalidade). São assim acusados os cientistas depravados, inven­
tores do vírus a serviço de uma conjuração sinistra; uma certa
África, lugar de emergência da vida humana, agora local de apareci­
mento e centro de difusão do mal fatal; os grupos minoritários, veto­
res do flagelo, nômades do prazer importadores de uma doença con­
traída fora, ou simplesmente intoxicados de sexo, vítimas do mal
aniquilador por libertinagem trivial. A epidemia carrega o contágio
da desordem até na cabeça; toma-se veículo de culpa; é imaginaria-
mente domesticada ao designar os agentes no exterior e as vítimas
expiatórias no interior. O procedimento longamente utilizado pelas
sociedades, para fixar seus males e desembaraçar-se deles, não de­
sapareceu da memória coletiva: a ameaça feiticeira, os sacrifícios
oferecidos às potências da ordem, se foram afastados não foram
expulsos. A epidemia acarreta reações extremas provocadas pela
desordem social, pelo menos as torna possíveis, permite sua explo­
ração. O moralismo só aparece sob o aspecto de uma retomada ate­
nuada da ordem — assim, quando o presidente americano, em um
discurso sobre o estado da União, reformula o “conselho sábio e
eterno... de se abster de relações sexuais ilícitas” — diante de tenta­
tivas de reorganização total, totalitária. A exclusão/isolamento das
pessoas contaminadas legitima (ou toma mais toleráveis) outras ex-
clusões; a higiene se desloca, pela extensão da biologia, da medicina

206
para a sociedade. As medidas de despistamento, desde o momento
em que se tomam obrigatórias e generalizadas — necessidade ex­
pressa contra o ponto de vista dos especialistas, que as consideram
ilusórias — contribuem para o progresso rápido da inquisição infor­
matizada. A doença serve para designar um mal generalizado atri­
buído à sociedade, à cultura, aos costumes. O medo instituído —
como é o caso do movimento Panic Aids, nos Estados Unidos, que
proclama a doença “mais mortal que a guerra nuclear”, e incita a
“espalhar o pânico e não a assistência" — se toma assim uma força a
serviço de um culto de ordem, de um pretenso totalitarismo que uti­
liza a saúde pública para tornar desejável seu projeto de salvação
pública. A razão deve retomar a iniciativa no sentido de erguer bar­
reiras a esses exageros amedrontadores.

A violência, exploração da desordem

A violência pode também tomar a forma de uma epidemia, de


uma desordem contagiosa e dificilmente controlável, de uma doença
da sociedade que aprisiona o indivíduo, e, por extensão, a coletivida­
de em um estado de insegurança. Nunca foi expulsa do horizonte
humano. A violência está no começo, energia selvagem cujos fluxos
repartem e hierarquizam os homens segundo as relações de força.
Impõe a prova primordial, a de sua domesticação, de uma conversão
que abre uma possibilidade de fazê-la trabalhar na produção de
laços sociais menos rudimentares e menos precários. A operação
ritual, simbólica e sacrificial, foi o meio utilizado para este fim antes
que as instituições aparecessem para definir direitos, fundar e legiti­
mar os poderes. Trata-se pois de enganar a violência, de fixá-la
transfigurando-a, de lhe dar uma forma que a tome capaz de se vol­
tar contra si mesma e de dominar suas manifestações difusas. O
sacrifício inicial, sacrifício humano, é incontestavelmente uma vio­
lência, mas exercida fora da responsabilidade dos homens, porque
apresentado como feito enquanto resposta a uma injunção suprema:
a dos deuses, das potências, dos ancestrais. Toma-se uma violência
que não visa a rivalidade fatal dos desejos pelo confronto generaliza­
do até o risco de uma crise destruidora, é uma violência que une. A
vítima expiatória leva a carga dos males comuns, seu sacrifício os
extingue mediante o preço de sua própria vida e, através dela, o

207
grupo se junta e restaura por um tempo a confiança na sua pereni­
dade.12 A transfiguração da violência encontra-se nos relatos das
origens do poder político e nas práticas cerimoniais destinadas ao
seu fortalecimento enquanto fator de ordem. Todos os inícios do
poder são relatados pela tradição na linguagem da epopéia violenta,
com fases de transgressão, de prova, de luta e de vitória. Os mitos
originais redesenham os ciclos de violência inicial, onde se enfren­
tam até a morte os deuses e os heróis fundadores; o triunfo de um
deles rompe o encadeamento: permite conter a violência, tomá-la
construtiva e não mais destruidora, e de civilizar, através da inven­
ção das técnicas, as normas e os ritos. Algumas das práticas associa­
das aos períodos de transição do poder, nos tempos de interregno,
em inúmeras realezas da tradição estudadas pelos antropólogos,
mostram que esse vazio político deixa livre a passagem para uma
violência de novo selvagem. Tudo parece então se desfazer e se des­
faz efetivamente; as hierarquias, o direito e a justiça, a salvaguarda
das pessoas e dos bens, a restrição dos valores e do conformismo
não mais existem; é o retomo a uma espécie de caos coletivamente
vivido. A ordem se restabelece rudemente com o aparecimento do
novo soberano, que inaugura um reinado (um novo começo) restau­
rando todas as formas e manifestando o poder absoluto da Lei.
Nas sociedades tradicionais, a violência está sempre presente,
sempre a postos e sob controle: desde o homicídio (não reprovado
quando sanciona) até os confrontos internos entre grupos, à guerra
(orientada para o estrangeiro, inimigo real ou potencial); da violên­
cia formadora, meio de educação e socialização de adolescentes, à
violência oculta, insidiosa, que toma a forma da feitiçaria, à violência
aberta jamais inteiramente contida. Se esta energia pode servir ao
funcionamento social, à produção de ordem, dela não subsiste
menos uma parte irredutível; a violência, que freqüentemente não é
nomeada, constituída enquanto categoria, é reconhecida na diversi­
dade de suas manifestações e sob dois aspectos principais: positivo,
quando é domesticada; negativo, destruidor, quando é livre. Nesse
duplo sentido, é o objeto de um trabalho, que a transforma, e de
espertezas, que a desviam. No primeiro caso, o conjunto das institui­
ções pode ser visto, metaforicamente, como um maquinário comple­
xo que tem por função governar a violência convertendo-a, ser seu
transformador e regulador (pela troca, as normas, as regras e as res­

208
trições fundadoras da Lei e do poder, os símbolos e os ritos). No
segundo caso, a violência é desviada, deslocada: produzem-se exu-
tórios. Os procedimentos da inversão social, reconhecidos pelos
antropólogos, liberam a violência, colocam a ordem social de cabeça
para baixo durante um período curto, sempre tratando-a ritualmen­
te no sentido de contribuir ao seu fortalecimento e de se prevenir
contra sua subversão ou sua perturbação.13 A violência pode igual­
mente ser transferida para os sítios definidos pelo imaginário: é o
que se passa quando a inovação religiosa, nos cultos de contestação,
provoca simbolicamente, ritualmente, uma liberação das agressões
que a vida social ordinária reprime; assim é que tudo se subverte, a
linguagem, as regras, os símbolos e as condutas que significam às
vezes um retorno à selvageria primitiva, ao tempo anterior à ordem
que submete e hierarquiza. Mas essa violência dramatizada, ritual­
mente liberada, vivida imaginariamente, mantida no interior das
fronteiras do culto, enfraquece as violências reais as quais substitui
ou serve de engodo.14
A erradicação de violência primitiva ou livre nunca é total; per­
manece presente, aparente ou subterrânea, em graus variados, na
proporção das incapacidades que as sociedades têm para definir cla­
ramente e reconhecer seu sentido, impor suas normas, seus códigos,
suas regras, dominar suas provas, obter a adesão do maior número
possível dos homens que a constituem. A lição antropológica, formu­
lada a partir de experiências sociais distantes, esclarece nossa atua­
lidade. Ensina que a questão da violência está colocada em todas as
sociedades, de modo constante, e que as conjunturas podem lhe dar
*uma importante acuidade; revela também a existência de socieda­
des que fizeram a escolha da violência ou que sobrevivem pela
crueldade. O principal ensinamento é contudo de outra natureza: a
violência não é de pronto identificada enquanto ameaça mortal. É
vista como inerente a toda existência coletiva, resulta do movimento
das forças pelas quais esta se compõe e se cria, realça a dinâmica do
ser vivo pela qual a ordem e a desordem são indissociáveis. Muda de
natureza logo que é dominada e trabalha em proveito da coletivida­
de, regride — retoma a seu primeiro estágio — quando escapa ao
controle e fica dispersa na sociedade. A violência difusa (ou selva­
gem) — sempre há um maldito difuso (ou selvagem) capaz de se
aliar à violência — é a mais temida; onipresente, variável, golpeia

209
aparentemente por acaso, tomando a forma da fatalidade. Esta é a
verdadeira violência.
As sociedades da modernidade não escapam à lei comum, a
violência contribuiu para sua formação. E aquela que exemplifica
todas até o momento, a americana, foi até definida como portadora,
ao longo de sua história, de uma cultura violenta, de subculturas
conflituosas: na América, “sempre se falou e sempre se viveu a lin­
guagem da violência”. De uma forma mais geral, essas sociedades
parecem abrir o campo às violências; desde o século XVIII progri­
dem em extensão (se universalizam) e diversificação (multiplicam-
se sob novas formas). O pensamento ocidental, em seguida os ou­
tros, se desenvolvem de um lado enquanto pensamentos da violên­
cia, seja esta relacionada ao Estado ou à revolução, à guerra ou à
emancipação, à razão ou à liberdade. Isto seria uma outra história.15
O que importa é o fato de a modernidade presente estar associada à
violência, a ponto mesmo de os poderes políticos encarregarem
comissões especializadas de estudarem suas “causas e a prevenção”,
instituírem organismos preparados ao exercício rápido da repressão
e dissuasão, à intervenção urgente. Não é mais fácil — ou simples­
mente mais sensato — comparar o quantum de violência de um
período a outro em uma mesma sociedade, que de uma sociedade à
outra durante um mesmo período. Os números dão uma imagem
incompleta, tanto as intensidades quanto as mudanças rápidas dos
modos de ação violenta são mal percebidos. Se é portanto difícil afir­
mar que este tempo é, mais que outros, o tempo da violência, fica
claro, ao contrário, ser este o tempo da consciência da violência.
E esta está em estreita correlação com a consciência da desordem
da qual já mostrei a formação. Sua associação se traduz em termos
de insegurança; a palavra, o tema totalizam os temores e as incom-
preensões. Tal leitura não se limita à avaliação dos atentados à segu­
rança das pessoas e dos bens, ao avanço das agressões, inclusive as
mais banalizadas, as cotidianas. Exprime a dúvida na capacidade de
empreender esse tempo (crise de interpretação), de conduzir o
movimento reduzindo os custos da adaptação (crise da instituição),
de governar tratando os verdadeiros problemas (crise do poder).
Agrega também as inquietações individuais nascidas das incertezas
do percurso de vida, dos medos provocados pelas ameaças exterio­
res reais ou fictícias. O reconhecimento de uma insegurança multi-

210
forme, insidiosa, traz na contingência das circunstâncias uma forte
carga emocionai e negativa na apreensão comum das situações de
modernidade. Realça de um lado o imaginário, o que lhe dá uma
incontestável eficácia nos debates relativos ao estado da sociedade e
faz disso um instrumento político cujo uso pode ser perverso. Mais
ou menos conscientemente, a segurança é apreendida enquanto
manifestação no cotidiano de uma ordem geral que o ultrapassa.
A violência moderna está aí, com sua visibilidade aumentada.
Mais visível, aparece em expansão, portanto mais contagiosa, parece
criar-se de si própria, multiplicar-se por metamorfoses. Ela se adivi­
nha, se vê, se experimenta na rua, nos lugares públicos, nas estra­
das, e até no âmago da vida privada onde sua irrupção é temida.
Pela imagem midiática, a das informações, a das ficções violentas,
invade as consciências e o imaginário individual; já se disse que sua
apresentação espetacular engendraria um processo em espiral: esti­
mula o desejo de sua representação, mas fica difícil provar que a
“síndrome do voyeur leva a uma explosão de violência civil”. Ao la­
do da manutenção das formas conhecidas da violência — as que
atualizam o delinqüente, o criminoso, o rebelde, o herói combatente
— , novas formas aparecem, ligadas às condições sociais, culturais,
inéditas e inconstantes.
O vandalismo é uma dessas formas, menor. Lança-se sobre as
coisas, os instrumentos, os lugares a fim de destruí-los, sujá-los,
tomá-los inutilizáveis, às vezes em investidas verdadeiramente sel­
vagens. Esse estrago é muitas vezes ritualizado, é tanto uma trans­
gressão quanto uma infração, exprime uma rejeição confusamente
formulada, significa a ruptura de um laço social frágil e recusado;
produz, em uma espécie de gozo, um sacrifício das coisas: um culto
irrisório à desordem. Com a agressão dos hooligans aparece uma
mudança de escala, de natureza, de significação: a morte pode ser o
cortejo da desordem, da destruição. É a exploração de uma situa­
ção, a presença de uma massa dividida pela paixão nas grandes par­
tidas de futebol, de um jogo cujo movimento e cuja linguagem (as
metáforas) fazem um simulacro da guerra, de uma religião esportiva
que é também a do corpo e que dá forma ao paganismo moderno,
que impregna a sociedade atual. Tudo isso se traduz em espetáculo,
ampliado pela mídia. Os hooligans provocam um desmoronamento
que também é espetacular, o simulacro se converte em pequena

211
guerra, a paixão em ódio, o culto do corpo em paganismo vulgar. O
escárnio, a provocação, o excesso, a bebedeira, a pura violência são
os meios dessa inversão social selvagem. Mas o ódio tenta se trans­
formar em linguagem: resposta agressiva a uma sociedade geradora
de rejeições, de exclusões; expressão de xenofobia e recusa do
Outro; sacrifício improvisado de culpados apanhados no campo
adversário. A tragédia pode então surgir nos gradis do estádio. O
culto da violência produz também os adeptos entre os quais são
recrutados os agressores da ordem de hoje, convertidos em compa­
nheiros de uma ordem dura de amanhã, próximos do National Front
na Inglaterra, jovens neonazistas na Alemanha, fascistas por nostal­
gia e mimetismo na França.15 Nas sociedades da modernidade atual,
as situações potencialmente geradoras de violência são permanen­
tes, e não somente conjunturais: efeitos de número (com o amon-
toamento urbano), de massa (com a indiferenciação), de multidão
(com os ajuntamentos ocasionais carregados de uma potência mal
controlável), de imitação (com a fragilidade dos valores e dos mode­
los de identidade, propícia ao desamparo individual). O meio social,
em seus movimentos, suas configurações, deixa continuamente
aberturas por onde pode passar a ação violenta. Disto resulta um
fortalecimento do temor pela incerteza; e mais, ondas de medo,
como ondas de febre.
O medo, a catástrofe, o apocalipse freqüentam os palcos da
modernidade como os velhos monstros de retomo. Uma cultura do
assombro inscreve-se no corpo em movimento da cultura atual. É o
tempo percebido por meio do rasgo apocalíptico, definido em sua
essência pela forma catastrófica. O sociólogo enumera os exemplos
das angústias contemporâneas, explora os mecanismos do medo. O
filósofo faz deste uma relação da consciência com um objeto ainda
desconhecido, embora real, a um ambiente que não é misterioso por
sua natureza, mas por sua carga de potencialidades. O medo apare­
ce quando o real se torna imprevisível, quando está próximo; a reali­
dade que vai se fazer é de repente percebida como algo diferente do
esperado ou antecipado, ameaça por isso mesmo, obriga a reconhe­
cer os limites dos domínios e projetos humanos.17 A modernidade
ativada repete rapidamente esses momentos de “proximidade” que
manifestam o real no que tem de imprevisível, fabrica o medo — no
sentido que acabamos de dar — mais que o hábito. A cultura midiá-

212
tica nutre igualmente o assombro ou a inquietação, propondo disto
versões hard ou sofl; ao ampliar através da imagem, passa uma lite­
ratura do horror, do sangue, ou, mais perversamente, dos temores
que convertem o homem em máquina infernal. De um filme para
outro, de um apocalipse brincalhão ou faustoso para um apocalipse
doce do tempo das simulações, Fellini explora um mundo que ele vê
perdendo em humanidade. No final, a catástrofe se torna um aniqui­
lamento do homem; uma imagem o substitui, codificável e codifica­
da, emaranhável e manipulável.
A violência calculada, real e sub-repticiamente destruidora, é
ao terrorismo, verdadeiro laboratório do medo, que ela está princi­
palmente associada. O fenômeno é universal, não conhece fronteiras
nem limites, porque joga com o excesso. Não manifesta uma violên­
cia desprovida de sentido, porque deseja exprimir; e revela e expri­
me efetivamente. A ação terrorista, o terror, não são a marca desta
época; mas o sistema terrorista em suas formas atuais se explica em
parte por ela. Opera em um mundo onde todas as sociedades são
comunicantes, onde a circulação das pessoas é tão ativa quanto a
das coisas e das informações. A ação violenta circula, o terrorismo
se exporta, sobretudo a partir de países em estado de revolta, de
subversão, de guerra interior endêmicas. É, mais geralmente, um
fenômeno de comunicação e um efeito da comunicação; utiliza a vio­
lência como um canal pelo qual se transmitem mensagens, a surpre­
sa terrificante como um meio de forçar a atenção pública; serve-se
da mídia, faz dela um amplificador e uma arma que é preciso mane­
jar com a eficácia de uma metralhadora: é seu modo de ação de
massa sobre os espíritos, sua forma de existir midiaticamente para
chegar à existência política por meio da dramatização violenta.18 O
sistema terrorista atual é também o produto das técnicas deste tem­
po, e não somente pelos instrumentos de morte e destruição que
pode dispor; ele o é ainda mais pelo recurso aos novos meios de in­
formação (conhecimento de seus alvos), de organização e também
de manipulação, quando recorrem aos procedimentos derivados da
psicopatologia. Enfim, o sistema encontra nesse tempo de mudanças,
incertezas, crises, e nesse meio que lhe é específico, o espaço urbani­
zado sem limites de qualquer natureza, as condições particularmente
propícias a seu funcionamento. Seus atores vêem nele as razões
daquilo que mantém sempre o espírito do terrorismo assim definido

213
recentemente: "Só temos esperança no caos... a Desordem é a salva­
ção, é a Ordem,” Deixam-se levar por essa tendência que mostrei em
ação no campo da modernidade: o avanço para os extremos.19
O terrorismo busca menos seus efeitos pelo número de suas
vítimas que pela dramatização espetacular nelas empregada, fazen­
do-as os instrumentos de uma realização trágica da política. O terro­
rismo ataca de surpresa, como a fatalidade; converte a morte em
uma permanente ameaça que a morte dos outros, resultado de suas
ações, confirma e mantém; provoca um estado de medo e angústia
pela utilização da violência difusa, desorganiza, enfraquece os pode­
res, imita as catástrofes naturais e as devastações da doença conta­
giosa. Seus atores são os técnicos e os diretores: a multidão pisotea­
da em um pedaço de rua em ruínas contribui para uma demonstra­
ção sacrifícial onde se afirma seu poder, onde se revela a fragilidade
da ordem estabelecida; o desvio de um avião com seus passageiros
se transforma em drama de suspense, de fato vivido pelas vítimas da
chantagem, imaginariamente vivido por aqueles (milhares) que o
recebem em teleespetáculo; a prisão de reféns manifesta uma espé­
cie de superpoder, um poder de vida e de morte imposto indireta­
mente e em uma grande impunidade, a toda uma sociedade, e
sobretudo a seus governantes; a chantagem, paga pelo sofrimento e
a morte suspensa de alguns, tenta tornar a decisão política cativa e
sensibilizar as pessoas, alternando esperança e decepção angustian­
te. O terrorismo serve-se do acaso, a fim de marcar fortemente o
imaginário pela morte, por uma espécie de “tanatofania” sempre
renovada; seleciona, ao contrário, quando atribui a seus alvos uma
forte qualidade simbólica, quando exemplifica através deles (símbo­
los dos poderes) o aniquilamento necessário da sociedade rejeitada.
O terrorismo quer desestabilizar pelo contágio da desordem, a partir
do estrago corrosivo dos mais firmes ancoradouros sociais.
O terrorismo obedece incontestavelmente a uma racionalidade,
a de sua organização, suas estratégias, suas técnicas. Mais dificil­
mente quer associar uma lógica à relação que impõe à coletividade.
A teorização do terror e as práticas resultantes têm uma longa histó­
ria de onde surgem diferentes formas de pensamento revolucioná­
rio. O terrorismo atual retoma certos temas: a conversão da destrui­
ção em fator de liberação, a oposição da violência total à violência
de Estado instituída e legitimada, o niilismo decretado diante do

214
A UESUKUKM

vazio da sociedade moderna, a solidariedade afirmada pelos movi­


mentos antiimperialistas, a força da subjetividade tratada enquanto
transformação radical. Mas a relação terrorista não se amolda em pri­
meira instância segundo princípios, ela se constitui pela ação disso-
ciativa das relações estabelecidas entre o poder e a população, entre
esta e tudo o que a relaciona com a ordem. Já se disse que sua lógica
é a do mimetismo: imitação da guerra, imitação das resistências e,
também, imitação das estruturas do poder cujo desaparecimento é
buscado (governo clandestino, tribunais ditos populares, organização
militar, proclamação de uma legitimidade). Sua lógica é também a do
excesso que o conduz ao extremo daquilo que critica e rejeita atri­
buindo-o ao adversário, a tomar seu próprio discurso delirante e sua
ação odiosa; o que o leva, finalmente, a provocar sua própria destrui­
ção, depois a tentar renascer, sempre, de suas próprias ruínas.
Porque faz da ação um drama demonstrativo, uma simbólica
trágica, uma manipulação das emoções coletivas, a lógica terrorista
é daquelas que contribuem para o renascimento do arcaico. Tem
uma capacidade mitificadora; a situação alemã durante os anos 60 é
denominada de wagneriana, e sua figura feminina principal na cena
dramática é uma “Lorelei perdida”; o talento mimético, a incerteza
mantida sobre a identidade real e a ubiqüidade impenetrável trans­
formam alguns atores em personagens quase heróicos ou em rebel­
des de múltiplas máscaras. A lógica terrorista recria a cena sacrificial,
mas a função do sacrifício se inverte: não contribui para a domestica­
ção da violência, ao contrário, manifesta sua liberação no estado sel­
vagem. Esta lógica faz do corpo rendido, mutilado, desmembrado, o
suporte de uma mensagem; traz sua inscrição sinistra na carne das
vítimas: só escreve a atrocidade. Enfim, derruba as fronteiras entre o
real e o imaginário, enfraquece a gestão dos fantasmas, aprisiona em
uma dupla confusão: a confusão assustada dos homens que se sen­
tem prisioneiros do terrorismo como se o fossem dos poderes invisí­
veis; a dos atores fechados na clandestinidade, unidos comunitaria-
mente pela violência, possuídos por uma paixão destrutiva e exclusi­
va do que não é violência. O imaginário do terrorismo, em outro
nível, mantém o sonho da guerra civil, realizando-o, todavia, sob a
forma de um ritual trágico e espetacular. Não faz surgir uma violência
mais verdadeira e fundadora, seu jogo mortal libera apenas uma
desordem contagiosa, e seu custo parece ainda mais odioso.20

215
U&UMULO D n u ih J iL ii

A p olítica desvalida: incerteza e desordem

O terrorismo atual é uma enorme ameaça sobretudo para as


sociedades democráticas; as outras têm a resposta mais fácil. A
observação é banal de tanto que se repete. Não é evidentemente o
espírito desses regimes — a suposta liberdade não pode ser dema­
siadamente remexida — que se questiona, mas o projeto terrorista
com os apoios internacionais que o mantêm e lhe fornecem seus
santuários. Qualquer que seja sua fonte, ideológica e sectária, nacio­
nalista regionalista, estatal, as correntes do terrorismo são como
duas águas misturadas. Circulam e se unem em favor das situações
de crise, mundiais e nacionais. Corroem as relações internacionais,
operando de forma indireta e incontrolável, mostram-lhes as fraque­
zas, acentuam-lhes as contradições; querem colocar a nu a ordem
do mundo. As correntes terroristas minam no espaço nacional os
suportes do poder; aqui, e o efeito psicológico lhes é necessário,
destroem a ordem para mostrá-la sob o aspecto da desordem.
Atacam o poder por contornos para revelá-lo fraco, incapaz de assu­
mir suas funções, sobretudo a de pacificação das relações sociais
pelo estado de direito. A violência difusa, a provocação espetacular,
a relação agonística com tudo que é fator de ordem são as manifes­
tações desse trabalho destruidor.
O desafio (a prova) e as destruições tendo como causa o direi­
to (a exceção contra a lei) estão no centro das questões que o terro­
rismo impõe. Definem dois momentos: o ataque, a matança de ino­
centes — como na França do “Setembro Vermelho” de 1986 — e as
reações imediatas que disso resultam; em seguida, a busca da res­
posta, dos meios de proteção, de dissuasão, e a medida de seus limi­
tes. No primeiro tempo, o horror reforçado pela angústia é gerador
de unidade na reprovação; as fórmulas duras apelam para uma luta
sem descanso contra o novo Moloch, à recusa de “viver o momento
de um Munique eterno”, para a utilização legítima da “força contra a
barbárie”. Depois o efeito do choque perde progressivamente sua
intensidade, a resposta é primeiro procurada nas formas jurídicas e
policiais; é o segundo tempo. A lei é reformulada no sentido de ins­
crever em seus limites a exceção e a repressão. Já a França da déca­
da de 1890 tenta encontrar sua proteção em uma legislação de cir­
cunstância que censura a imprensa, reprime a “associação de malfei­

216
tores”, pune a cumplicidade intelectual com os teóricos da violência:
são as leis ditas celeradas pela esquerda, porque contrárias à tradi­
ção, à doutrina e ao direito republicanos. Da mesma forma que a
desordem, a necessidade de ordem é contagiosa; arrisca constante­
mente a superação do que é legítimo, alarga por amálgama a popula­
ção dos culpados e cúmplices. Desde o final dos anos 60 deste sécu­
lo, sob o impacto dos acontecimentos violentos e a pressão das emo­
ções coletivas, os recursos à exceção multiplicam-se nos países da
Europa democrática, com inovações ameaçadoras: a coletivização da
responsabilidade, a delação premiada, a invasão do policial no jurídi­
co. A popularidade política pode ser procurada no tratamento eficaz
da violência, com uma dramatização da ordem diante das agressões
perpetradas pela ação terrorista. Desenvolve-se então o que foi
reconhecido na Itália como uma “cultura de estado de urgência” ,
onde os medos se sobrepõem à salvaguarda das liberdades, onde os
fins se embaralham para dar vantagem aos resultados manifestos, e
onde o uso do direito prevalece sobre o que nele está escrito. A
democracia encara o risco de se perverter ao assegurar sua própria
defesa. É a armadilha do terrorismo: mostrar o Estado desampara­
do, ou, ao contrário, torná-lo insuportável levando-o a um controle
sempre mais rigoroso da sociedade civil, inclinando-o a uma espécie
de totalitarismo rasteiro e não assumido; e reforçar, pela inseguran­
ça mantida, as interpretações escatológicas que vêem as mudanças
atuais unicamente sob o aspecto da autodestruição.
O ato terrorista coloca a instituição policial (instrumento de
manutenção da ordem) à prova, tanto quanto o direito; ao manter
uma ameaça insidiosa, onipresente, contribui para o crescimento
dos instrumentos policiais através da modernização e de seu âmbito
de competência em detrimento do poder judiciário, mas realça tam­
bém suas insuficiências, seus defeitos e seus erros. Interroga a insti­
tuição em sua natureza e função. As paixões e os cálculos empres­
tam à questão um vigor conflituoso; a iniciativa teórica tenta dar-lhe
uma resposta. Sob as luzes da teoria, a polícia não aparece mais
somente como uma administração especializada e portanto seme­
lhante às outras; define-se menos por seu projeto — a ação repressi­
va — do que por um tipo de relação com a sociedade em que se
reconhece seu caráter próprio. Por princípio destinada à manuten­
ção da ordem e racionalmente organizada para este fim, a polícia se

217
GEORUES BALANDIEK

alimenta de fato da desordem da sociedade. Situa-se entre a ordem


e a desordem.21
A violência faz sempre o papel de revelador, dramatiza o que a
origina e o que a toma contagiosa — suas causas e os agentes de
sua expansão — , mostra aquilo pelo qual pode se manter e perma­
necer. Nesse sentido, em suas manifestações atuais, informa sobre o
estado da modernidade, sobre a desordem e as incapacidades dos
quais não está ainda dissociável. É necessário lembrar aqui a relação
da ordem com a violência. A ordem só pode resultar do jogo das
diferenças e da hierarquização (lógica, simbólica, efetiva) dos ele­
mentos diferenciados. É por causa das diferenças ordenadas que a
sociedade e sua cultura se constituem em conjuntos organizados,
que os homens podem nela se definir (construir sua identidade,
determinar seus papéis) e nela se situar (reconhecer suas posições
sociais). As sociedades tradicionais são as que mais se adequam a
essas condições; puderam ser chamadas de hierárquicas, em oposi­
ção às sociedades democráticas e individualistas, surgidas no come­
ço da modernidade ocidental; elas não ignoram a violência interna,
mas multiplicam os meios de contê-la e convertê-la. O risco resulta­
ria menos desta que de uma menor capacidade de tratar o movimen­
to, fazer deste um instrumento do futuro, um recurso contra os peri­
gos do imobilismo. Vistas desse modo, essas sociedades se situam no
horizonte de algumas das nostalgias de hoje. Toda crise grave da
ordem sociocultural aparece primeiro como uma crise de diferenças;
os indivíduos estão em posição de incerteza, suas referências, seus
códigos, seus modelos estão embaralhados; os controles da violência
se enfraquecem. Esta reaparece, progressivamente liberada, com a
generalização imprecisa ou flutuante de estados de diferenciação; é
ao mesmo tempo o efeito e o indicador. Durante os períodos de
grandes transformações, tais características se acentuam, os dese­
quilíbrios se multiplicam. Na fase atual da modernidade, a relação de
incerteza e de mimetismo (de grupo a grupo, de sexo a sexo, de gera­
ção a geração, de classe a classe) contribuem para essa confusão. O
Eu se toma mais fluido, mais sensível ao jogo das circunstâncias e às
sugestões da moda. As identidades instáveis fazem com que os indiví­
duos não sejam jamais totalmente eles mesmos, consentindo em uma
espécie de agnosticismo trivializado (nada é certo, nada é obtido) e
abandonando-se à versatilidade. Sua relação com as instituições está

218
n u l o u h u d iíí

afetada, ainda que estas estejam submetidas aos ataques da mudan­


ça, perdendo eficácia por um crescente desajustamento.
O choque do movimento atinge a instituição política; as novas
condições técnicas — e culturais no sentido amplo — perturbam os
dispositivos necessários a seu funcionamento, ainda que a transfor­
mação geral da sociedade e a instabilidade do ambiente internacional
tomem sua ação mais aleatória. Os comentaristas apressados procla­
mam seu desaparecimento, sua redução ao estado de simulacro, ou
sua depressão em proveito de uma sociedade atualmente dissociada
e variável. É a afirmação de um “fim da política” , dando lugar a uma
gestão explodida dos homens e a uma administração desmultiplicada
das coisas, ou ainda a uma expansão da sociedade tomada capaz de
tudo absorver. Nesse sentido, a crise do poder seria também uma
crise da representação; a política não representaria mais que a si
mesma, os representados não se sentiriam representados, não seriam
mais envolvidos pela adesão, mas pela emoção e as crenças variáveis
submetidas aos efeitos especiais produzidos pela mídia.
Episodicamente, as pesquisas revelam uma perda de credibili­
dade que a busca da “palavra verdadeira” e a “autenticidade” tenta
reduzir, e um desapego, que interfere no engajamento político e sin­
dical, cria os entusiasmos e os desafetos em relação às figuras domi­
nantes. Mas essas imagens tomam-se demasiadamente simples, e
portanto falsas, quando colocadas em oposição às tendências nasci­
das por efeito das circunstâncias e dos acontecimentos. Assim é na
França em período de ativação da vida política. As eleições majoritá­
rias não são todas deserdadas, novas gerações de votantes tomam a
iniciativa de participar realizando o ato administrativo necessário.
Movimentos inéditos, compostos de jovens, principalmente, animam
o debate político à margem das organizações estabelecidas, em fun­
ção das preocupações concretas e específicas, não políticas. For­
mulam-se críticas que não exprimem mais a indiferença ou a recusa
total do sistema, mas o apelo para realidades e problemas atuais; ten­
tam inscrever nos tapumes políticos as palavras que nascem da
sociedade civil, que falam de suas necessidades e urgências. A liber­
dade começa a se retomar diante da política hipermidiatizada, os
jogos de aparência e máscaras já não têm mais a ingenuidade fascina­
da como cúmplice, a dureza do real é cada vez menos dissimulável
pelos reflexos que criam uma espécie de “midiacracia”. Neste campo

219
ujc*un\jLi«o B A u n i n m - n

da política, a complexidade das mudanças e as incidências enganado­


ras da consciência da desordem deveriam incitar menos temeridade,
na afirmação de que a era do vazio está de ora em diante aberta.
Mas as reformulações se fazem sobretudo em profundidade,
em uma grande mobilidade e incerteza sempre atuais. Não estão to­
das em ação direta sobre a política, mesmo se todas a afetam. A or­
dem se define em termos de centro, onde se impõe, e de periferia,
onde seus efeitos se enfraquecem. Nas sociedades onde a informa­
ção, a comunicação, as redes estão em expansão, onde efetuam-se
os deslocamentos, os centros se tornam menos identificáveis: for-
mam-se e desaparecem segundo as variações do poder técnico e fi­
nanceiro. Em um mundo modificado mais em algumas décadas do
que o foi em muitos séculos, não existe mais o centro incontestável
nos moldes de Roma no tempo do Império romano. O “meio do
mundo”, que exprime a pretensão universal a ser o centro de tudo,
não é mais localizável na Europa, certamente menos na América do
Norte, ainda não fixo no Japão. Se a ordem mundial parece mais flu­
tuante e mais falsa, de tendência caótica, é porque ainda não se
aprendeu a organizar o mundo sem uma referência central. Em
escala nacional, em países até o momento marcados por uma histó­
ria centralizadora, como a França, o centro político não mais dispõe
de uma situação de quase-monopólio; uma descentralização efetiva
toma seu lugar em outras cidades que não a capital, no interior das
fronteiras das regiões; estabelece-se uma concorrência, nascida do
avanço de novas potências no campo da economia, de técnicas de
ponta e da comunicação. Sobretudo esta última constitui um verda­
deiro desafio; o controle das imagens é daqui para frente eminente­
mente político. Isso é ainda mais verdadeiro levando-se em conta
que as ideologias, os sistemas doutrinais herdados correspondem
cada vez menos à gestão de um longo tempo de transição. É esta
falta, esse período oco que abre espaços a substitutos medíocres e
usáveis, a afirmações prematuras e não ainda a concepções novas; é
ele que leva a exprimir o desejo de ver nascer uma qualidade maior
de idéias, sem que estas todavia tenham ainda aparecido ou tenham
sido aceitas sob formas inéditas.
Mais importante é o processo de dissociação que opera no inte­
rior da esfera de poder. De um lado, uma tecnicização que pretende
se encarregar dos problemas urgentes ou de um custo social eleva­

220
Pi D E S O R D E M

do; fundamenta-se na doutrina que um grupo de altos funcionários


franceses denominou de “humanismo empírico”. O que leva à rejei­
ção do enfrentamento ideológico, a anunciar o desaparecimento da
“guerra civil fria” (na França, a oposição esquerda/direita) e o “apa­
recimento de um sistema de valores” que é o de uma larga maioria, a
afirmar que o poder (qualquer que seja sua coloração) é levado a
tratar “os mesmos problemas manipulando os mesmos instrumen­
tos” e experimentando as mesmas servidões.22 Este processo tem
duas conseqüências: a mudança da função governamental, a técnica
(a ação competente) sobressaindo-se à política (a doutrina e as
palavras) na gestão dos negócios; a constituição de uma classe de
poder dispondo de uma certa autonomia, sobretudo na França onde
os administradores oriundos da função pública colonizam o universo
político, a economia, a cultura e a comunicação. Reforça-se desse
modo um poder pouco aparente, de ação sobre os lugares de deci­
são, senão sobre a realidade social, menos imediatamente submisso
às flutuações e turbulências políticas.23 Essa visibilidade menor de
um poder real e ramificado reforça a impressão de um desapareci­
mento do poder propriamente político, ou talvez de uma perda de
substância deste. É nesse sentido que é preciso buscar a explicação
de uma necessidade já presente, ainda que confusamente formula­
da: a da restauração de certos aspectos da política, aqueles sem os
quais a política não saberia ser, e que ultrapassam em muito a mani­
festação da competência ou da capacidade técnica.
Na dissociação mencionada, a tendência à tecnicização se
opõe, por outro lado, à tendência a um reinvestimento da simbólica,
do imaginário, dos afetos na política. Esta não é somente a expres­
são oficial da sociedade, o instrumento da administração social, é
também a expressão idealizada da coletividade; afirma sua utilidade
para além das rupturas, das fragmentações antagônicas; atribui-lhe
seu sentido ao mesmo tempo que se encarrega de sua orientação.
Nas sociedades tradicionais tudo isso aparece através da pessoa do
soberano e por suas manifestações ritualizadas, dramatizadas. Nas
sociedades da modernidade, a imagem está embaralhada; espera-se
que se reconstitua, o que implica em novos recursos de tecnologia,
de simbologia e de imaginação políticas. E chegado o tempo da re­
formulação dos “soberanos”. A chegada do presidente Reagan no
universo americano foi facilitada; durante o grande período de seus

221
UE. URULO DA L i / k N J I L n

mandatos ele esteve entre uma administração poderosa e um


mundo politicamente reticente; ele foi o símbolo servido por uma
capacidade midiática, que levou seus adversários a chamá-lo de
“Grande comunicador”. A campanha para a eleição presidencial de
1988, na França, pode ser parcialmente interpretada a partir dessa
necessidade de restauração da política. A curiosidade reavivada pela
figura real a havia precedido, mantida por um regime constitucional
fundador de uma República denominada “monárquica” pelos politi-
cólogos. O enfrentamento dos candidatos, se não elimina o confronto
de objetivos e proposições, aparece primeiro como uma batalha de
imagens; os comentaristas o colocam sob o signo da televisão, a rela­
ção com os eleitores estabelecendo-se sobretudo pela intermediação
da câmera e dos diversos técnicos que a manejam. O mais significati­
vo foi entretanto a posição singular de François Mitterrand, a força
de sua imagem antes mesmo que ele tenha precisado sua opção pela
candidatura ou não candidatura; as pesquisas colocam-no no topo da
competição, e a ligação manifestada à sua pessoa foi denunciada por
alguns como tendo algo de idolatria. Pelo efeito acelerador das cir­
cunstâncias — as eleições legislativas de 1986 — , produziu-se essa
dissociação cujo processo acabo de demonstrar. A perda de sua
maioria pelo presidente cortou a função governamental da função
presidencial. A primeira teria podido reduzir a segunda, pensava-se,
confiná-la em meras aparências. Evidentemente, este não foi o caso.
A bipolarização do poder fez do governo um organismo principalmen­
te gestor, tendo a carga direta e cotidiana dos negócios, tirando argu­
mento de uma superioridade definida em termos de eficácia, e da
presidência um organismo mais político, no sentido já mencionado.
François Mitterrand soube converter uma fraqueza em uma força:
colocou-se acima do universo político ordinário; conferiu à sua função
um caráter mais soberano, fazendo-se o guardião da Nação diante das
ameaças exteriores, a garantia de sua unidade pelo exercício da lou-
vação e o apelo à solidariedade, o doador de sentido capaz de formu­
lar os princípios da ação coletiva a longo prazo; Mitterrand simboli­
zou, representou, expressou. Essa transfiguração encontrou uma
expectativa; rapidamente, o desamor revelado no tempo da inteira
responsabilidade transformou-se em adesão e em emoção favorável.
A situação francesa nos revela desse modo, por sua proximida­
de, uma tendência mais geral. O espaço da política se reformula

222
(não desaparece) sob a pressão da necessidade; seu componente
técnico, burocrático-racional, expansivo ao longo das décadas passa­
das, não é suficiente, e isto começa agora a ser visto; seu componen­
te de idéia e ideal, simbólico e imaginário, se refaz integrando os
meios da comunicação moderna. Em um mundo perturbado pelas
mudanças, aberto às incertezas e às inquietações que mantêm a
consciência da desordem, se reforça a necessidade de uma imagem
confiável do poder supremo, porque ajustada a este tempo, porque
dele mostra o sentido, porque assume o movimento sem confrontá-
lo, porque traduz idealmente a realidade contemporânea. São estes
os aspectos indissociáveis desse poder quando é legítimo, e isto, em
qualquer época. São os que reaparecem depois de terem sido com­
primidos sob os golpes da grande transformação e das crises.

FORMAS DE RESPOSTA À DESORDEM

A modernidade atual repõe em questão o poder através de seu


próprio movimento, mais que pelo confronto de idéias e projetos de
sociedade, hoje fluidos. Além de um esboço de mudança, hoje ultra­
passado, a modernidade desarruma, interfere na familiaridade apazi-
guante das aparências, cria um real tão diferente que a realidade
conhecida parece apagada. Opera por meio de choques repetidos;
diante dela, as referências ficam mais imprecisas, se intercambiam,
e a lógica comum freqüentemente se perde. O conhecimento ordiná­
rio se exerce mal, apóia-se muitas vezes na constatação de “não
compreender mais nada” . O que tem uma incidência de natureza
política. Uma sociedade e uma cultura que se transformam a ponto
de parecer quase estrangeiras a si próprias provocam a expectativa
de um poder capaz de adaptar-se ao novo estado das coisas a fim de
explorar-lhe as potencialidades, de adquirir o controle progressivo
organizando-o, de construir um sentido necessário à orientação
geral das condutas individuais e coletivas. Esta necessidade, toda­
via, não se dissocia ainda de uma interrogação mais crítica ou mais
cética acerca da política; esta deve responder sobre a pertinência de
suas respostas, na medida que é atacada ou deserdada quando con­
junturas geradoras de problemas não são rapidamente solucionadas;
contraditoriamente, a política é ao mesmo tempo subestimada ou
desconhecida e chamada a intervir em múltiplas frentes. Tal sempre

223
GEORGES BALANDIER

se dará enquanto o poder político estiver associado às formas, ao


modo de ser e de funcionar de uma determinada época. Deve se
mover, e não apenas em suas aparências, seja em sociedades demo­
cráticas ou em outras, como espetacularmente o demonstra a tenta­
tiva soviética e, mais discretamente, a tentativa chinesa, as duas que
mais revelam essa necessidade, mas que não estão ainda seguras de
seu sucesso duradouro.
Não é suficiente relacionar a interrogação da desordem com a
interrogação da política, ainda que esta seja a principal produtora
dos efeitos de ordem. Trata-se, além disso, de apreender melhor
como ordem e desordem se ligam, se aliam, se criam mutuamente,
operam por flutuações. Ou ainda, aplicando sobre as situações
atuais uma noção emprestada do vocabulário científico, de anunciar
uma dupla questão: pode-se identificar os estados atraentes? E de
que natureza são eles? Igual formulação revela a si própria o exage­
ro dessa exigência, dessa ambição de saber que não pode dar um
fim à sua própria realização. É preciso considerá-la como uma cha­
mada ao reconhecimento, depois a um melhor conhecimento das
formas de resposta à desordem. A tarefa requer mais que um proje­
to solitário. Vou me limitar a lembrá-la por meio de exemplos, dela
retendo três manifestações: a do holismo, do total ordenamento; a
do sagrado reavivado, do desligamento da história imediata pela
aspiração da pessoa a uma ordem íntima; a do pragmatismo, da con­
quista da ordem no interior da desordem pelo avanço ousado ou
pela domesticação empírica de certas mudanças.

A resposta total, a ordem totalitária

O totalitarismo é “o novo por excelência do nosso século”


(segundo palavras de Mareei Gauchet), enquanto sistema de domi­
nação e controle total dispondo de armas, técnicas e meios de
comunicação e de direção da modernidade. Mas a sociedade, subor­
dinando os elementos — indivíduos e “corpos” — que a constituem,
acumulou outras realizações na história universal, nas civilizações
que nos são anteriores ou exteriores. Isso permite distinguir o totali­
tarismo moderno do fenômeno totalitário presente ao longo de
todos os tempos. A história do pensamento social ocidental manifes­
ta-o em diversos períodos, pela teoria política ou pela projeção no

224
imaginário da utopia. No final da Idade Média, a metáfora corporal
reaparece para propor uma descrição e uma explicação da socieda­
de, para definir, legitimando-a, a relação do Príncipe com o conjunto
de seus súditos. Ela pode então tomar a forma de uma teoria totali­
tária, como foi o caso do tratado redigido pelo futuro papa Pio II em
pleno século XV. O poder do soberano é absoluto, situa-se acima das
leis; o corpo político prevalece totalmente sobre os membros que o
constituem, ele não existe para assegurar sua salvaguarda, mas o
inverso. Tudo deve estar submetido sem limites ao corpo político
qualificado de místico; deve ser mantido em bom estado, mesmo ao
preço da injustiça; deve ser separado do membro que o enfraquece,
que o atinge em sua vitalidade. Certos homens são obrigados a “so­
frer” , mesmo “se não mereceram seu castigo”, desde o momento em
que sua presença dentro do corpo político provoca sua perda e que
sua “amputação” restabeleça, ao contrário, a saúde. É através de
uma argumentação semelhante que o Estado nazista justificará a
função da polícia política, instituição que tem por encargo cuidar do
“corpo” do povo alemão e do seu estado de saúde. Qualquer sintoma
de “doença” deve pois ser reconhecido a tempo, qualquer germe de
destruição deve ser eliminado por meios apropriados. A ideologia re­
toma assim as metáforas corporais, médicas e cirúrgicas pelas quais
certos teóricos do passado justificavam o absolutismo.24
Com a utopia, o imaginário também pode se submeter à lógica
totalitária, quando a construção utópica é a das cidades ideais, reali­
zadas porque perfeitas, subordinando tudo a uma ordem que rege as
posições, as funções, os empregos, as existências e as relações
sociais tomadas imutáveis. A ordem realizada na perfeição é neces­
sariamente estabelecida de uma vez por todas, negadora do tempo
dos homens como do movimento da vida, portadores de transforma­
ções. É a definição de uma ordem erigida enquanto bem absoluto,
purgada de toda desordem, imposta aos beneficiários contra sua
vontade, se fosse o caso, incontestável e exclusiva daquilo que lhe é
estranho. A utopia toma então o aspecto de uma religião da ordem
levada a seu grau extremo, mesmo se se apresenta como incontesta-
velmente laica. As construções utópicas têm hoje má reputação,
muitos as consideram nefastas e atacadas de inanição. Seriam anun-
ciadoras de um mundo obcecado pela busca da coerência, que quer
ter a capacidade de suprimir os entraves resultantes dos movimen­

225
tos sociais e históricos. Para esses críticos, a utopia risca em seu
solo frio os caminhos do totalitarismo.
O retomo antropológico leva o fenômeno totalitário para uma
outra via. Nas sociedades tradicionais ditas holistas (segundo o
termo revigorado por Louis Dumont), onde o todo governa cada
indivíduo e cada grupamento intermediário, o conjunto funciona e
busca a duração por uma economia muito particular: a que resulta
de uma concepção onde, do homem ao universo, tudo se ordena
pelo jogo de relações, de correspondências e subordinações comple­
xas; economia cósmica e economia humana acham-se então ligadas
inextrincavelmente. Contudo, e este é o caráter essencial, a potên­
cia unificadora é aqui exterior ao mundo dos homens; deus domi­
nante, colégio dos deuses, assembléia dos espíritos ou conjunto dos
ancestrais, ela está acima. A ordenação simbólica e os ritos associa­
dos, a conformidade imposta pelos mandamentos da tradição contri­
buem para realizar e preservar o acordo com o todo ao qual a socie­
dade se atribui (se atribuiria) a manifestação humana. Essa ordem
total, pensada e expressa, não tenta se traduzir na realidade sem
custos ou riscos. De um lado, ela tem um preço: o do sacrifício que
une os sacrificantes às potências e pode fazer deles “seres sacrifi-
ciais” (segundo expressão de Andras Zempléni); o da exclusão que
enfraquece ou expulsa — feiticeiros ou vítimas expiatórias — os que
são considerados agentes da desordem. De outro lado, este último
está constantemente em ação, é ao mesmo tempo ameaça e necessi­
dade, como já demonstrei várias vezes; é reconhecido enquanto
motor e não como inteiramente destruidor; pode trabalhar a serviço
da ordem, fazendo-o graças a procedimentos de conversão do negati­
vo em positivo, mas sem ser jamais domesticado. A lógica da totalida­
de define o conjunto da sociedade, invade os diversos espaços sociais
e as consciências, orienta as práticas corretivas e repressivas; onipre­
sente, não provoca necessariamente a formação de um sistema totali­
tário, ainda que possa chegar a isso sem que o próprio Estado seja
constituído. Um estudo recente dedicado a uma sociedade africana, a
dos gurunsis do Burkina-Faso, colocou em evidência um “totalitaris­
mo elementar”, conservador e não provocador de ruptura, legitimado
pela fidelidade ao passado ancestral e não pela vontade revolucioná­
ria, eficaz em sua ação sobre os espíritos, as pessoas, não através do
instrumento estatal (inexistente), mas pelos meios político-religiosos

226
que dispõem os detentores da “força" capaz de erguer obstáculos à
agressão feiticeira e ao mal.25 O exemplo esclarece melhor aquilo que
é preciso reconhecer ora em diante: o fenômeno totalitário está ins­
crito na ordem social, pode nela ser mantido em estado virtual (em
regime democrático), ou, ao contrário, se atualizar e tomar uma
forma política quando as circunstâncias a tomem possível (em regi­
me totalitário). Suas realizações são diferentes, mas a ameaça se
coloca, depois se toma fatal com o aparecimento dos totalitarismos
modernos. A atualização dá uma estrutura, instaura um enclausura-
mento e uma dominação total explorando e levando ao extremo o
que está presente em toda sociedade: a necessidade de totalidade;
dividida, jamais realizada, sempre em vias de se produzir, a sociedade
está constantemente à procura daquilo que manifesta melhor, e
menos precariamente, sua unidade e sua identidade.
Com a história da modernidade iniciada no século XVIII, o
movimento de transformação toma uma feição de certa forma para­
doxal. Durante o primeiro período, o homem está libertado de seus
grilhões, entregue a si mesmo e instado a se tomar senhor de si pró­
prio. A modernidade o retira da transcendência, e a partir de então
depende dele somente a definição do humano; a modernidade o
lança em uma história que é uma conquista pela racionalidade, uma
dominação crescente da natureza por meio da ciência e da máquina
— suporte das interpretações futuristas — , uma história que é vista
como um progresso contínuo e um avanço no sentido da igualdade.
O movimento de unificação resulta disto, a forma política nasce da
igualdade. O individualismo democrático tenta realizar-se através
disto, associando — ideal claramente definido por Tocqueville — o
gosto da liberdade com o da igualdade. Mas, em contínuas investi­
das, a liberdade é confiscada, a igualdade é contrariada pela dinâmi­
ca das classes sociais; o domínio adquirido pelo conhecimento e pela
técnica fica melhor assegurado que o futuro histórico.
Mas eis que surgem os totalitarismos do século XX e tudo se
modifica. Produz-se uma inversão, ao mesmo tempo que se exprime
uma arrebatada denúncia dos malogros, dos fracassos e das ilusões.
O indivíduo é anulado, a democracia é comparada a uma degeneres-
cência ou a uma enganação, associada a períodos de decadência. O
sistema totalitário submete e subordina, visando o controle político
da sociedade inteira, justificando-se através de uma ideologia que se

227
proclama a verdade da história imediata e futura, realizando-se pela
violência e pelo terror, excluindo toda e qualquer referência que não
seja ele mesmo. Só retém do sagrado e da religião o culto de seu
próprio fundador, uma só igreja: o partido único, com sua liturgia
orientada para as massas, sua inquisição permanente e impiedosa
faz do Estado-partido o instrumento de uma ordem total que sub­
mete a economia, a cultura, a linguagem e o pensamento, bem como
os homens, afastados de qualquer outra realidade que não seja a
deles próprios; busca o apagamento das diferenças coletivas e indivi­
duais, que manifestam normalmente a múltipla riqueza da sociedade.
A polícia toda-poderosa e o aparelho centralizador reduzem à clan­
destinidade os dissidentes, alimentam o medo, funcionam como
máquinas que selecionam e desumanizam os “culpados”, os irrecupe­
ráveis, os inferiores indignos e incapazes de contribuir para o grande
projeto. O desaparecimento do indivíduo realiza-se de maneira trági­
ca através do desaparecimento do humano, do homem que é norma­
lizado e se transforma em um instrumento, que pode também ser
convertido em objeto de experiência ou em vítima expiatória.
Enquanto uma nova ordem, o sistema totalitário moderno faz
da ruptura com o passado, a projeção no futuro para onde carrega as
massas, uma transgressão necessária. Nega totalmente o que fez o
homem mais humano ao longo da história anterior, secreta uma certa
amnésia, uma pedagogia do esquecimento. Realiza uma unificação
fantasmagórica identificando o povo (ou qualquer outra grande cole­
tividade) ao partido, este a seu órgão dirigente, e este último ao
senhor absoluto, ao “egocrata”, diz Claude Lefort; e também, desig­
nando constantemente um inimigo, excluindo os que apontam como
promotores de desordem, agentes do mal social e fatores de declínio.
Transfigura uma vontade, a do grande indivíduo no qual tudo se
encarna, em instrumento quase divino de uma realização histórica
que não conhece limites; nesse sentido, que é o de uma superação
constante e insensata, provoca inevitavelmente uma escalada para os
extremos. O totalitarismo quer ser a realização de uma história que
eliminou todas as taras da modernidade; sua grandeza delirante
passa por seus projetos sem medida, por suas obras monumentais
que disfarçam uma regressão qualitativa das relações sociais e da
cultura. A metáfora da máquina é aquela que melhor o designa: uma
máquina-mundo com poder de absorver o espaço, o tempo, as forças

228
naturais e sociais, os seres, retirando parte de sua energia daqueles
que exclui, utiliza e consome. Essa relação com a máquina é uma
relação com a mecânica, com o não vivo, portanto, com a morte. É
aqui que se marca a diferença com as sociedades totais da tradição
que se desejam em acordo com o mundo, orientadas para a mais
completa realização das forças vitais, inclusive pela captura vital que
o sacrifício efetua. São sociedades para a vida, enquanto que os tota-
litarismos modernos constituem-se em sociedades para a morte.
Mas, qualquer que seja a dureza de sua ordem, eles não podem
aferrolhar completamente o sistema; a vida, que não se forma
segundo os padrões e as restrições oficiais, encontra saídas; a desor­
dem trabalha nas margens e por baixo. Isto mais efetivamente no
universo soviético que no nazista, que resultou de uma “revolução
do niilismo”, segundo uma expressão de Rauschning, e que se reali­
zou nos escombros. A duração aí está evidentemente para qualquer
coisa, mas não ela somente. O primeiro é certamente um mundo
inteiramente dissimulado, mas a esperteza cotidiana, a dissidência
jovem (pelo modo de vida), e não somente pela dissidência intelec­
tual, o protesto individual com altos riscos, os sobressaltos da mino­
ria, as reminiscências culturais e espirituais manifestam os avanços
de vida que o sistema não consegue conter inteiramente; a isto é
preciso acrescentar as fraquezas da periferia, os movimentos sociais
irredutíveis, se bem que semiclandestinos (na Polônia), ou as revol­
tas episódicas contra um poder delirante e megalomaníaco (na
Romênia). Um mundo onde o sistema se imobiliza progressivamente
por meio da usura, da degradação ou perversão que mantêm os pri­
vilégios, o nepotismo, a corrupção, por meio da inércia dos guar­
diões da ortodoxia, e, sobretudo, pela incapacidade de manter o
fechamento (a clausura social) em um tempo em que os maiores
engajamentos são internacionais, onde a revolução da comunicação
toma as fronteiras mais permeáveis. A lógica da dominação totalitá­
ria não está isenta de falhas; permanece geradora de uma concepção
do mundo que se quer exclusiva daquilo que a contradiz e conserva­
dora de sua ordem total, mas a prova do tempo, indissociável do
movimento e da abertura para o exterior, a confronta inelutavelmen-
te com a lógica da desordem.
Os totalitarismos de primeira geração regrediram, mas não
desapareceram de todo. Outros lhes sucederam sob a forma de um

229
ULUKUJia DftLnnLMEin

cesarismo ou de ura absolutismo religioso — nova figura teocrática


— que faz da reação contramodema um instrumento de dominação,
sempre utilizando a modernidade como fonte de poder. A inscrição
do fenômeno totalitário na modernidade das democracias é incon­
testável, na medida que toda sociedade a traz era si mesma; mas ela
se perpetua de outra forma, dissimulando-se ainda melhor: ela se
realiza em totalitarismo na literatura de ficção antecipadora, ela se
lê no poderio das novas técnicas e da racionalidade que as governa,
ela se esconde nas imagens e em outros lugares. Já ficou bem claro,
e Jacques Attali vem lembrar, que o homem se tornou completa­
mente proprietário de si mesmo, no sentido que ele tem a capacida­
de de dispor do homem (a de modificar a espécie pela aplicação da
genética) e de destruí-lo (aniquilar a humanidade pela arma atômi­
ca); convém precisar, depois dessa lembrança, que tal capacidade
está a cargo de ura pequeno número de poderosos, senhores da vida
e da morte coletivas e não somente individuais.
Os efeitos das técnicas informáticas, das técnicas de observa­
ção, de informação e de comunicação são mais perversos, pois não
possuem a mesma evidência; manifestam todavia os riscos funda­
mentais que podem escapar do controle democrático. A informatiza­
ção acelera o desenvolvimento da organização em todas as suas for­
mas, multiplica os procedimentos de decisão “técnicos” e de caráter
automático, direciona-se no sentido de uma gestão coordenada de
todas as atividades e da instauração de um poder aparentemente
anônimo, pois que estabelecido por uma máquina. Torna possível
uma centralização da informação, essa totalização burocrática que já
mencionei, mesmo que os sistemas de teledetecção dêem à imagem
uma capacidade inquisitorial e introduzam uma ameaça panóptica.
Os dispositivos de controle e fiscalização eletrônicos adquiriram
uma eficácia e uma discrição crescentes, tornam-se cada vez mais
conectáveis. A midiatização em expansão — geradora de um regime
de “midiacracia”, como se diz pejorativamente — produz efeitos de
âmbito geral. Afeta a definição legítima da realidade, função das au­
toridades sociais, culturais e políticas até então; arma com novos
meios a gestão da restrição: a democracia está confrontada com o
poder da comunicação; modifica a natureza do laço social, instru-
mentalizando-o; é um dos dispositivos de manipulação dos espíritos
e das emoções, de exercício da fascinação. O poder político mergu­

230
lha cada vez mais na dependência das imagens, de sua p ró p ria
imagem-, o poder político não pode mais se dissociar do espetáculo
e, por isso mesmo, toma-se mais vulnerável, menos consistente,
submetido aos efeitos da versatilidade dos cidadãos; tecnocrático,
menos aparente, menos precário, apoiado em redes de solidariedade
e na certeza de sua competência, o poder subjacente pode manter
um espírito de controle total da sociedade.
Acaba de ser demonstrado em que sentido o fenômeno totali­
tário liga-se daqui para frente aos sistemas técnicos e às suas lógi­
cas. Estas não são as únicas manifestações de sua existência poten­
cial-, a economia, em razão dos processos de concentração, do forta­
lecimento das potências financeiras, das contaminações que afetam
a política, da mercantilização em vias de generalização, cria outras;
da mesma forma que nisto concorrem a primazia da estatística, em
uma sociedade “metrificada” [métrisée], que acarreta a raspagem
das particularidades e sobretudo o desenvolvimento de uma cultura
que apaga as diferenciações e multiplica as de caráter fictício e pre­
cário. Portanto, o risco de atualização do potencial totalitário reside
também (senão mais) na própria natureza da modernidade, no mo­
vimento e nas incertezas que lhe são próprias. Os períodos de tran­
sição, de grande transformação e de crise durável abrem um campo
mais livre às tendências constitutivas do totalitarismo; aquilo que é
sentido como desordem nutre então o desejo de ordem, a inquieta­
ção ou a angústia individual pode levar à busca de certezas, de
remédios que se transformam na maioria das vezes em armadilhas,
onde o indivíduo se deixa cair. Diante da dispersão, a sedução pela
totalidade se fortalece, e, com ela, a figura histórica que parece po­
der e dever efetuá-la. O estado democrático não se estabelece de
uma vez por todas, é mantido por invenção e criação contínuas, ca­
pazes de produzir uma renovação dos efeitos de ordem.26

A resposta da pessoa, a ordem do sagrado

Diante da derrocada do sentido, do desaparecimento de uma


ordem que não deixa vislumbrar uma ordem futura, as tentativas de
reapropriação individual e coletiva do sentido se multiplicam. Tais
projetos situam-se em dois pólos:
De um lado, a versatilidade, o que eu chamaria de metáfora do

231
Ü K U H U E S B A L A M Dlfc K

termo “nomadismo” , que leva a uma procura incessante, sem objeti­


vos definidos, às tentativas, a uma atribuição de significação às
mudanças enquanto tais. Os novos espaços de ordem são aceitos em
sua precariedade, a novidade e o efêmero são assumidos por sua
precária duração, a futilidade ganha importância, o gozo do imediato
vira projeto, e a moda se toma um sistema pelo qual progride a rea­
lização pessoal e se realiza um “adoçamento dos costumes” — se­
gundo expressão de Tocqueville — considerado propício à democra­
cia. É traduzir em modo de viver o que exprime a pós-modemidade:
pensar deixando para trás todos os paradigmas, existir sem se refe­
rir a normas (princípio de ordem exterior) ou valores (princípio de
ordem interior) relativamente estáveis.
De outro lado, ao contrário, é a ancoragem e não mais a errân-
cia, o refúgio nos espaços sociais ou culturais onde passado e tradi­
ção deixaram seus sinais. Este movimento de retorno leva a uma
retomada de valores reconhecidamente perenes (e por isso conside­
rados verdadeiros), a uma reivindicação de clareza, de normas (con­
tra os emaranhados da modernidade) e a uma exigência de rigor
(contra a experimentação temerária e aventureira dos possíveis). É
a oposição da certeza, da afirmação aos efeitos nefastos de uma
mobilidade que desconcerta; de um mundo de permanências, de um
real solidamente construído contra as aparências invasoras que as
mascaram e que não passam de simulações da realidade. A ordem
“verdadeira, natural e justa” é julgada capaz de submeter a desor­
dem à condição de ser servido por uma adesão e uma vontade fir­
mes, de se impor por uma espécie de evidência íntima ao indivíduo
que disto assume ativamente a tarefa. Em relação a esse pólo fixo se
organizam diferentes figuras, como as do conservadorismo funda­
mental, do integrismo ou do totalitarismo nascente.
O retorno do sagrado foi anunciado, depois reconhecido, ao
longo dos vinte ou trinta últimos anos, em oposição à constatação de
uma secularização generalizada; Malraux então a separava, com sua
profecia de um século XXI necessariamente religioso, da racionali­
dade conquistadora de Weber. O espaço do sagrado é aquele onde a
exigência pessoal do sentido, da relação com uma ordem idealizada
pode encontrar seu lugar e sua satisfação. Mas tal relação não se dá
sem ambigüidade. A própria natureza do sagrado não se revela intei­
ramente, nem se fecha em uma definição. Durkheim, visando fundar

232
uma sociologia da religião, só consegue chegar depois de inúmeros
retornos à consideração do sagrado. Ele identifica “seres e coisas
sagradas” em relação aos quais se definem as representações (uma
ordem das coisas e dos seres expressa pelo mito ou pelo dogma), as
relações de crença e obrigação, as práticas. De tudo isso Durkheim
manifesta a ambigüidade: o sagrado, ou o religioso, realça a trans­
cendência, mas é de origem social, diversifica-se com as formas da
sociedade e, como esta, não escapa inteiramente ao processo histó­
rico; separa o que lhe diz respeito daquilo que constitui o reino do
profano, ainda que haja “comunicação entre os dois mundos”; des-
dobra-se a si mesmo em um sagrado puro (garantia da ordem, do
bem, dos valores) e um sagrado impuro (associado à desordem, ao
mal, às transgressões); essas duas categorias não são antagônicas,
permitem transformações recíprocas. O sagrado, enfim, se constitui
em uma infinita variedade, não delimita somente o espaço dos deu­
ses, dos espíritos e de outros seres pessoais, pode se manifestar sob
formas novas, até então insuspeitas.27
A obra de Durkheim não é, evidentemente, a única fonte, nem
a menos controvertida, mas é incontestável que conserva uma vali­
dade na orientação das explorações atuais do sagrado, em um perío­
do onde os novos movimentos religiosos estão prestes a se tornar
uma das realizações do movimento social. A modernidade submete o
sagrado à prova das grandes mudanças, e a religião não aparece
mais tão claramente por meio daquelas funções que a tradição e o
passado tinham definido: propor à consciência uma imagem coeren­
te do universo; conferir uma legitimidade às instituições, às restri­
ções, aos papéis sociais; dar os meios de resposta coletiva e indivi­
dual aos riscos, ao inesperado, ao acontecimento e às provas. As
situações nascidas da modernidade se tomam reveladoras da ambi­
güidade constitutiva do sagrado e do religioso, dados de uma ordem
e fontes de efervescência coletiva (segundo Durkheim), respostas
às necessidades de legitimação e às reivindicações (segundo We-
ber); uma ambigüidade que se acha ao mesmo tempo manifestada,
explorada e levada aos extremos. A religião, objeto de fé, está em
crise de credibilidade por causa dos efeitos dos processos de secula-
rização e pelo avanço — para retomar minha fórmula — de um
agnosticismo banalizado. Não pode mais manter um monopólio
como o fez nas sociedades do passado; com a modernidade, ela se

233
divide, se pluraliza, está restrita à lei da concorrência, do mercado,
não mais imposta pela tradição ou coerção, depende cada vez mais
da escolha e da apropriação individuais. No interior e no exterior
das Igrejas estabelecidas, históricas, forças e ofertas concorrentes
operam; de dentro: as da adaptação, que dão uma abertura filtrada
às necessidades modernas, as que levam ao retomo da integridade
doutrinai e litúrgica, da autoridade eclesiástica, as que reivindicam
uma revitalização da fé e uma renovação carismática, as que resti-
tuem à religião uma carga política e social libertadora; de fora: os
movimentos da dissidência e do sincretismo que tomam a forma sec­
tária, os grupamentos que se constituem através da importação de
espiritualidades e de um ritualismo próprios das civilizações não oci­
dentais, sítios que se fazem propagadores de notícias místicas, for­
mas modernas da meditação e do esoterismo reavivado, e, no extre­
mo, os centros que impulsionam as forças do sagrado impuro e pro­
vocam espécies de conversões ao contrário.
O sagrado ultrapassa o espaço das religiões, não depende des­
tas e a morte dos deuses não acarreta seu desaparecimento; é o
objeto de transformações que lhe são próprias. Ao longo da história,
as instituições religiosas são os principais instrumentos da gestão do
sagrado e as relações que mantém com o mundo profano; enfraque­
cidas pela modernidade, como a maioria das instituições herdadas,
perderam a carga exclusiva dessa função. O sagrado está liberado,
mais disponível; volta ao estado difuso, espécie de energia utilizável
em outros empregos. Esses deslocamentos do sagrado para o domí­
nio temporal tiveram realizações anteriores ou muito antigas, sobre­
tudo com as religiões políticas sacralizadoras da política e da domi­
nação. É bom lembrar que essas transferências efetuam-se entre
campos semelhantes; muitas vezes insisti no que alia política e reli­
gião, particularmente na afirmação de uma coerência de uma unida­
de, de uma ordem e de um sentido, a imposição de obrigações justi­
ficadas por uma transcendência, a capacidade de orientar as esco­
lhas, as condutas individuais e coletivas. Com a modernidade, o que
é novo é a grande mobilidade do sagrado, a diversidade dos objetos
nos quais acha-se investido, suas metamorfoses associadas à multi­
plicação de experiências subjetivas; liberado, o sagrado retomaria
então, por um lado, o que estava no seu início: sua qualidade de
energia oriunda da exuberância de uma vida coletiva ainda não

234
a u r.» a u n u & w

reprimida e induzida na busca de seu sentido. Adquire assim a capa­


cidade de impregnar mais o terreno secular. Entra em composição
com as ritualizações da vida cotidiana, pode contribuir para um
“encantamento” pelo qual se ameniza a dureza do real nas situações
de crise grave e durável. Através do trabalho da simbologia e da soli­
dariedade intensa que engendra, o sagrado valida as experiências
culturais, sociais e políticas que tentam aliar uma sociabilidade nova
com significações revigoradas ou inéditas. Traz sua força, seu poder
de fascinação às contestações e projetos de ruptura nos quais serve
para legitimar a violência, traduzindo-a em um ato moral destruidor
(arruinar uma ordem falsa inaceitável) e em um ato sacrificial funda­
dor. O sagrado difuso pode fixar-se em figuras, aliar-se a práticas
múltiplas e variáveis. No primeiro caso, mestres de vida de autentici­
dade incerta, vedetes espetaculares convertidas em objetos de cultos
juvenis, heróis negativos transfigurados pela audácia de suas trans­
gressões, eis os personagens políticos de repente provocadores de
um entusiasmo idólatra, entre outras encarnações às quais a mídia
oferece, com a consagração, uma sacralidade muitas vezes efêmera.
No segundo caso, a rotinização do cotidiano que se transforma em
religião e, ao contrário, as práticas da superação, do excesso, das con­
dutas de “pura explosão” — seja por drogas, sexo, violência ou per­
formance — que opõem uma espécie de sagrado selvagem ao sagrado
domesticado (de uso doméstico) das ritualizações banais. Por meio
dessas transformações — “tanto para o melhor quanto para o pior”,
como dizem os comentaristas desconcertados — o sagrado permane­
ce aquilo pelo qual a experiência humana se atribui sentido e valor,
aquilo pelo qual a experiência subjetiva adquire sua densidade.
Os novos movimentos religiosos, as novas religiosidades foram
avaliadas de acordo com os critérios de ordem e desordem, e não
somente segundo a qualidade das respostas que propõem ou os des­
vios de consciência que operam. Sua abundância explica sua dispari­
dade, como a lógica totalitária de certas seitas explica o vigor das
reações (de adesão ou recusa) diante desse mercado do sagrado,
rico e atraente. O conflito das interpretações tira daí sua intensida­
de. Para alguns, a inovação religiosa, não obstante seu caráter rea­
cionário inicial, contribui para manter a ordem dominante; afasta a
contestação, produz efeitos de compensação, torna de novo capaz
“de rodar as engrenagens das grandes burocracias impessoais”

235
U t U K l í f c S HALArí ULSK

(Harvey Cox); recombina os símbolos e os valores e toma aceitáveis


sob outra roupagem os que legitimam o sistema existente; permite
testar formas de comportamento, que podem ser eventualmente
incorporadas às maneiras de ser estabelecidas. No final, portanto, um
novo ajustamento, uma contribuição que se traduz em revigoramento
da ordem. Para outros, esses movimentos religiosos são os indicado­
res de uma desintegração da sociedade, da cultura, da pessoa: em
uma anomia em expansão se amolda uma espécie de sagrado anômi-
co, e este se torna um agente da desordem, trabalhando para o enfra­
quecimento daquilo que legitima as instituições e mantém um largo
consenso normativo. Segundo um terceiro conjunto de interpreta­
ções, dá-se, tanto de um lado quanto de outro, demasiado crédito a
essas inovações, Esta é a apreciação das interpretações, que limitam
a importância dessas inovações, confinando-as nos domínios da vida
privada, tratando-as como instrumentos de uma disciplina pessoal,
ao mesmo tempo espiritual e moral, de fraca incidência sobre o fun­
cionamento da máquina social (Bryan Wilson); e as que fazem da
nova religiosidade uma das formas da cultura narcísica, do mergulho
no Eu em busca de sua autenticidade, da afirmação de um individua­
lismo levado “a um ponto a-social extremo” (Norman Bimbaum).
Consideradas enquanto respostas da ordem à interrogação e à
angústia que criam o movimento, a desordem, o embaralhamento do
sentido, as novas religiões devem ser definidas por sua forma, seu
modo de resposta às necessidades e expectativas individuais, sua
organização, pela qual podem se constituir em “totalidade” , em
sociedade de substituição capaz de açambarcar completamente os
adeptos. A forma é específica de uma modernidade que se constrói
por desconstrução e reconstrução, pela adição do novo, do inédito,
pelo emprego de elementos recebidos do passado e emprestados de
culturas e tradições exteriores; é uma criação por amálgama ou sin-
cretismo cultural. As novas religiões se formulam segundo o mesmo
procedimento, como aliás aqueles que o choque da modernização
revelou nas sociedades submetidas, dependentes e ocidentalizadas;
associam referências doutrinais, temas e valores, simbologias, mode­
los de vida e de conduta espiritual de origens diversas. Assim é com
as de inspiração oriental na América do Norte; ao mesmo tempo,
substituem as crenças por uma experiência pessoal que deve dar
acesso a uma realidade mais profunda, mais verdadeira, e que se

236
amolda na correnle da cientologia; introduzem uma ritualização
complexa da existência individual, contribuem para uma construção
e uma gestão do Eu recortadas das práticas psi vulgarizadas ao
longo das últimas décadas; informam sobre um individualismo oriun­
do de outras fontes, a ponto de se tê-las considerado como um dos
fatores da atual revolução individualista. O que os adeptos esperam
em princípio das novas religiões se exprime por uma dupla fórmula:
a significação por eles mesmos, a ordem neles mesmos. Eles tiram
da sua adesão a capacidade de transfigurar sua existência (sem que
um Deus reencontrado seja necessariamente a causa, porque algu­
mas dessas experiências fazem a economia do divino), assim como a
capacidade de reformular suas relações com o exterior. Eles não
estão somente em busca de um apaziguamento de sua “angústia
moral” (segundo a interpretação de Daniel Bell) e dos meios de
ocultar a racionalidade instrumental e burocrática sob as cores da
mística. Esses adeptos, principalmente os jovens, tentam descobrir
a certeza em um tempo de incertezas; a validação para uma certa
ciência (e sobretudo a metaciência), o crédito atribuído às tradições
exóticas, consideradas melhor integradas, o demonstram sem ambi­
güidade. Eles têm acesso a outra prática da temporalidade, quando
o efêmero e a opacidade da história próxima se lhes impõem; so­
nham com um tempo de permanências ou, ao contrário, com o dos
começos fundadores, ou com uma história reaparecida mas transfor­
mada em outra pelo efeito do sagrado. Tentam e louvam a união
com valores menos precários, o recurso a uma moral e a uma disci­
plina que os unam e possam levá-los a uma harmonia maior, a uma
espécie de salvação aqui e agora.
Em tudo isso há muito sentido, muita ordem. Um desejo de
ordem que a instituição da religião nova explora, quando se traduz
em uma organização de seita, e não mais somente em uma pedago­
gia da experiência mística individual. Por esse motivo as seitas
inquietam, e isto levando-se em conta que algumas delas se consti­
tuem em sistema totalitário. Fazem o recrutamento recorrendo a
manipulações mentais e à sedução por uma publicidade espiritualis­
ta; separam ao quebrar a rede das relações familiares e de amizade,
impondo o agrupamento dos adeptos como o dos únicos “verdadei­
ros pais”; praticam a captura de consciência, o condicionamento dos
espíritos e dos meios de expressão (as linguagens que não são da

237
OEORCES BALANDIER

igreja são excluída), e muitas vezes a submissão dos corpos através


de técnicas de mortificação; submetem a uma hierarquia de senho­
res supremos apoiados em uma burocracia, fiscalizam, punem e
reprimem qualquer tentativa de autonomia. Apresentadas aos olhos
do público externo como potências espirituais, esses tipos de seitas
são potências temporais: sua base internacional não é unicamente a
de uma religião em vias de universalização, mas a de uma empresa
econômica com atividades e haveres diversificados, a de uma orga­
nização com capacidade política pouco contestável. Essas potências
duplas são por certo pouco numerosas, comparadas à população fer­
vilhante das seitas e movimentos místicos; sozinhas fizeram da
necessidade individual de sentido e de ordem, captando-a e desvian­
do-a, o instrumento de uma nova construção totalitária.
Mas se é verdade que o homem atual procura também suas
principais razões de viver fora dos caminhos balizados pelas reli­
giões estabelecidas, não é menos verdade que a dinâmica atual do
sagrado lhe oferece outras saídas além da entrega a igrejas jovens e
pervertidas que devem mais ao cálculo, à oportunidade misturada
com cinismo político, que a uma revelação qualquer.2®

A resposta pragmática, a ordem pelo movimento

A atualidade midiatizada coloca tudo aos pés do movimento,


consagra as figuras que o encarnam, alimenta o pequeno culto dos
cavadores e ganhadores, e o outro, superior, mas não menos vulne­
rável, dos pilotos experientes de épocas difíceis. Entretanto, por
trás do pano, as imagens do declínio, da impotência ou da passivida­
de permanecem presentes. A época das profecias negativas não está
assim tão afastada, quando o presidente do célebre Clube de Roma
profetizava que “a humanidade caminha para um declínio progressi­
vo”, salvo se se tornar capaz de “inventar o futuro”; isto era 1979!
Otimistas no início, menos nos dias de hoje, os questionadores do
futuro, armados das mais complexas técnicas, limitam suas ambi­
ções. A profecia técnica já sofreu demasiadamente o desmentido
dos fatos; ao anunciar o possívei ou os possíveis, simulava o sentido
e a ordem futuros, o que lhe assegurava um crédito; daqui para fren­
te, a profecia do futuro perdeu seu brilho e sua interrogação dá-se
mais sobre o porvir próximo, o presente-quase.

238
A atenção crítica centraliza-se sobre aquilo que imobiliza as
situações, sobre o que trava o movimento. Propõe remédios. Avalia
desse modo as forças e fraquezas do Estado-Provedor, protetor das
seguranças, barragem contra os riscos, aniquilador do medo nos
moldes da religião. Sem querer aboli-lo, como prega o ultraliberalis-
mo, pode tentar da melhor maneira possível mantê-lo reanimando-o;
preconiza então o apoio sobre uma economia de mudança propícia à
mobilidade das condições individuais e à reforma permanente, o
recurso inventivo a um direito “oportunista”, variável, capaz de uma
adaptação constante da realidade; recomenda a audácia de se ques­
tionar, de remexer experiências e inércias. Trata-se em suma de
injetar o movimento e obter os meios de gerenciá-lo; eco à constata­
ção que sempre faço: a produção da sociedade é contínua, sempre a
se refazer, as escolhas que a orientam e as significações que gera
não são fixas, sob pena de se deparar, no final, com esclerose e
depauperação.29 A crítica se formula também enquanto denúncia da
mesquinhez dos responsáveis e do sistema que governam; a tônica
recai sobre a rotina (fuga do risco), o conservadorismo (a salvaguar­
da dos privilégios) e sobre o descrédito que disso resulta. A crítica
repousa ainda sobre uma passividade — “deixar como está para ver
como fica” — que reduz ao estado de espectador diante do aconte­
cimento e das turbulências da história imediata; leva, como fez Alain
Touraine, a clamar pela “vontade de ação” e a proclamar que “o pior
fator de crise é a consciência da impotência”.30 O inventário poderia
ser completo ao se levar em conta as idéias débeis e os valores
incertos, cujo único mérito reconhecido é o de serem inofensivos,
portanto pouco nocivos ao exercício da democracia.
Ao contrário, se nos limitamos a observar o único espetáculo
francês dos anos recentes, parece que o movimento, porque é uma
força criadora, e o empirismo, porque substitui o dogma pela reali­
dade, são de novo apreciados e exaltados. Não sem ambigüidade. As
significações e apreciações novas associadas ao dinheiro, à sua
posse, a seu trabalho e à sua circulação, são, sob esse aspecto, reve-
ladoras: trata-se bem mais que um simples meio de satisfazer o culto
do consumo e dos prazeres. Como o fluido vital irrigando o organis­
mo, o dinheiro simboliza a vida na sociedade. Também ele, a seu
modo, serve de indicador do bom ou do mau estado de conjunto, do
funcionamento e dos maus funcionamentos; o valor da moeda, co­

239
municado todo dia pela mídia, ritualiza essa medida da economia, da
sociedade, do crédito que lhe é dado, e o índice global das cotações
da Bolsa pode se tornar, por causa das conjunturas, uma escala dos
valores mais comuraente repartidos — no sentido ético da palavra,
evidentemente. O dinheiro exprime a essência de sociedades onde
quase tudo pode se traduzir em termos de mercadoria; além disso,
informa— como acaba de ser dito — em um universo social e cultu­
ral onde a informação é a energia indispensável em atividades cada
vez mais numerosas, e ele designa por excelência a relação de troca
em um mundo que é o da comunicação, da multiplicação rápida e da
intensificação das trocas de todas as naturezas. Amolda-se perfeita­
mente em sociedades do seguinte tipo: pelo mercado, ele regula;
pela divisão, ele hierarquiza; pelo investimento, ele cresce. Faz o
papel de gerador da ordem.
Esse acordo se efetua também no terreno do imaginário, nes­
ses lugares em que o desejo, os fantasmas e o jogo se aliam. As
aventuras do capital se convertem em relatos, fragmentos de mitos
e epopéias de uma certa modernidade; o romance americano e o
cinema neles se inspiram com absoluto sucesso. Fórmulas próprias
dos especialistas são vulgarizadas e imaginariamente transformadas;
o capital de risco se toma uma conquista de novas fronteiras (as da
modernidade mais avançada), e o movimento aparece fundador sob
esse aspecto; as O.P.A., operações rápidas pelas quais se realizam as
tomadas de controle do capital e das firmas, ou dos efeitos especulati­
vos assimilados em um piscar de olhos, são descritas em termos que
evocam a competição, o confronto heróico ou a carga selvagem; e o
capitalismo dito popular se interpreta nos moldes de uma nova divi­
são (mais simbólica que efetiva) onde entra uma parte de jogo. Toda
uma imagística através da qual a audácia, o risco, a performance rece­
bem crédito, se beneficiam de uma avaliação em princípio positiva,
como se houvesse ali o desaparecimento das inércias contrárias à
emergência das novas formas concedidas aos dinamismos atuais.
Mas o dinheiro, figura principal de todos esses espetáculos,
aparece também sob os aspectos negativos. Cria a desordem que as
crises acentuam e dramatizam; ele destrói, em batalhas cujo capital
é o risco, empregos e empresas cujo valor não é simplesmente con­
tábil; faz e desfaz as fortunas precoces; corrompe e alimenta os
negócios sujos; foge dos que o movimento da modernidade deixou

240
no mesmo lugar, de terâo que sofrer sua pobreza como uma novida­
de má. Todo o brilho da solidariedade (caridade) espetacular não
seria suficiente para disfarçar essa violência até agora sem recurso.
A busca da ordem pelo movimento tenta associar a eficácia,
geralmente assimilada à racionalidade instrumental, ao empirismo
que diversifica, reduz as respostas e exclui qualquer reformulação
total, ao contrário do projeto revolucionário, hoje abandonado por
inúmeros de seus adeptos de ontem que o reduzem ao estado de
liturgia violenta. É em princípio às aplicações da ciência, às técnicas
que ele é solicitado para que sejam geradoras de uma ordem pro­
gressiva e para se tornarem autocorretivas de seus próprios efeitos
perversos. A racionalidade do saber e da habilidade retoma então
sua vantagem; aparece como a força organizadora, que opera por
setores, por problemas, por interação das competências. São-lhe
indicados os lugares de manifestação, que podem ser vistos como os
lugares santos, onde se celebrava um culto positivista e moderno,
consagrado à criação: os parques científicos e técnicos. Pierre
Lafitte, fundador de Sophia-Antipolis, definiu o que ele denomina de
“criatividade tecnopolística”: “Concentração de matéria cinzenta
voltada para a passagem do saber e da habilidade; interação entre os
que sabem, os que agem, os que financiam, os que gerenciam.”
Neste caso, não há apenas um exemplo, ainda menos espetáculo
futurístico, mas um amplo projeto em vias de realização. O meio
ambiente, os instrumentos e as obras da modernidade, o homem
imaginativo criador de riquezas e serviços, de cultura e de um modo
de vida superior estão engajados em uma nova aliança. A mobiliza­
ção da inteligência, o debate e a formação mútua (ou “fertilização
cruzada”), a prática das firmas especializadas, que utilizam as mais
avançadas tecnologias, a banalização pelo uso cotidiano dos mais
novos instrumentos, o encontro de sábios e artistas se tornam os
meios de “uma ação todos azimutes”, geradores de um movimento
propício à criação de formas, significações e maneira de ser que
poderão ter futuramente uma qualidade exemplar. No caso, um tec-
nomessianismo parece em ação, pelo qual o culto da sabedoria e do
humanismo sem dogma tenta mostrar um futuro possível e fazê-lo
existir, opondo uma fé racional à apatia, à rotina e à incerteza.31
É sobretudo a empresa que foi convertida em agente capaz de
transformar o movimento em produção expansiva, em relações

241
sociais diferentes, em cultura e valores restaurados. É dito e repeti­
do que os franceses estão hoje mais afinados com o espírito em­
preendedor e o lucro, menos desconfiados em relação ao dinheiro,
menos culpados. À direita e ã esquerda é a mesma celebração, o
mesmo voto de sucesso dirigido às empresas. Os jovens são Louva­
dos por esse novo ímpeto: foram eles que o criaram, escapando
assim à maldição do desemprego do qual são as vítimas mais nume­
rosas. Segundo o objetivo de um antigo representante do patronato
francês, eles teriam feito uma dupla revolução: liberados do “modelo
estrutural” antigo que destruíram, valorizariam a partir de então a
iniciativa, a novidade, o risco “e até a responsabilidade”. A imagística
atual é sobretudo um exemplo do herói da performance e do dirigen­
te, que sabe levar a empresa ao sucesso; opõe os que ganham dos
pusilânimes, dos incompetentes e dos desiludidos; introduz uma lógi­
ca da criação — da produção de ordem — , que tira vantagem da
lógica do jogo. O elogio das empresas de boa performance pode en­
tão se tomar explicativo de seu sucesso, por uma maior capacidade
de inventar relações sem inércia e comunicação sem desperdício, no
interior das mesmas e em suas relações com o mercado. Este elogio
é o dos “novos construtores” dos quais foi dito que assumem resolu­
tamente o partido da inovação, que exploram todas as possibilidades
que resultam de suas ligações internacionais, que eles não hesitam
em praticar a reformulação permanente de suas próprias atividades.
É um convite ao aprendizado do bom uso da crise, acompanhado de
uma louvação ao risco, o que é também uma apreciação reveladora.
Mostra aquilo que se inscreve no terreno da performance: a supera­
ção da simples modernização, a conjugação de imaginação e iniciati­
va, a recusa a comportamentos “sensíveis” , a capacidade constante
de auto-avaliação, em suma, um movimento mantido em razão de
sua fecundidade. Se é por aí que se vai, por aí vai também o vence­
dor. Na cenografia midiática, o personagem do empresário bem-
sucedido assume as outras figuras de sucesso, às vezes a ponto de
se tornar ele mesmo um animador da imagística televisiva; encarna a
ação múltipla: mais que seu poder, é sua onipresença que aparece,
quer se trate de economia, de política, de cultura e comunicação ou
de ética e solidariedade; ele aparece como aquele pelo qual se forma
principalmente o mundo em vias de construção, aquele que já per­
cebeu o sentido, que está em posição de filósofo pela atividade, e

242
não mais pelo discurso. Mas essa popularização permanece ligada à
imagem, da qual tem a fragilidade; a impopularidade redibitória, que
Schumpeter deplorava a propósito do espírito empresarial, não foi
ainda inteiramente afastada.
A figura do político está mais fluida, mais desacreditada no que
diz respeito à sua capacidade de produzir efeitos “atraentes”; as
relações de ordem e desordem, das quais está encarregado, se em­
baralham. A potência cresce enquanto o poder parece submetido a
um processo regressivo e progressivamente vago, o que pode favo­
recer o avanço aos extremos, aumentar a sedução das respostas
simplistas. De um lado, a exploração do desejo de ordem: a ascensão
política dos que prometem e promovem uma ordem renovada, ele­
mentar e rude, recebe seu impulso dessa expectativa. De outro lado,
ao contrário, a manifestação de uma lógica da desordem: legitima as
violências e as revoluções em seu cotidiano, postulando-as criativas;
reveste-se de um aspecto mais apaziguador tomando as formas do
espontaneísmo (deixar passar o imprevisto) e da criatividade (dei­
xar passar a inovação), incitando então a captar a energia criada
pela desordem a fim de convertê-la em força positiva. A simples res­
posta empírica traduz a desordem em questões, cuja gravidade e a
não-resolução produzem males; esta se quer técnica, curativa e dis­
sociada de uma ação política que divida e oponha; apresenta-se
como geradora de ordem pela coesão, a frente (todos juntos, e não
uns contra os outros) que tenta realizar em uma busca coletiva de
solução dos problemas mais ameaçadores. Mais respeitosas em rela­
ção à complexidade são os projetos que tentam encarar a ordem
enquanto organização e a desordem enquanto movimento. O modelo
estatal-libertador caracteriza uma dentre estas, levada ao paradoxo.
Alia componentes pouco ou mal associáveis: o mercado, que é uma
força de regulação e que abala as inércias; o Estado, que amortece
os golpes das turbulências, que é um escudo cujo uso não se limita
exclusivamente à defesa armada; a dimensão libertadora no jogo
social, que lhe restitui sua plena capacidade inventiva, que contém
ou compensa a entropia do universo burocrático; enfim, a autoges-
tão enquanto utopia da qual se deve nutrir incessantemente a socie­
dade civil. Trata-se, de uma certa maneira, de um sincretismo. De
estrutura semelhante a dos novos sincretismos religiosos e que pode
ser portador, como estes, de uma força atraente. É também um

243
revelador suplementar da dificuldade de trabalhar de uma forma
diferente na produção contínua da sociedade atual.32
O modelo inspirado pela autonomia situa-se à parte; não é assi­
milável, segundo seus autores e defensores, a um projeto; visa à rea­
lização de uma possibilidade efetiva do homem que nenhuma cor­
rente política até agora gerou, está ambiciosamente ligado a um
novo começo da filosofia e, a bem dizer, à recusa da esterilidade
eclética. Este modelo apela também para a criatividade, a eficácia
crítica, a responsabilidade, a recusa à inércia. Convida a encontrar a
força da tradição emancipadora no sentido de utilizá-la na constru­
ção de uma sociedade autogovernada, onde a autonomia individual e
a coletiva se sustentem e se mantenham, onde a instituição da
sociedade esteja renovada e onde as significações imaginárias sejam
suficientemente vivas para poder formar, inspirar e animar os indiví­
duos. É no movimento que estes se tornam os artesãos de uma
ordem e de um sentido que os arrancam da passividade, que os
fazem renunciar à aceitação de “viver sobre o sistema”.33 Nesses ter­
mos, a questão da democracia fica igualmente clara: é a única que
permite restituir um vigor aos debates sobre o presente, assumindo
suas contradições, utilizando suas incertezas como um remédio anti-
dogmático, convertendo o relativismo dos valores em possibilidade
oferecida a uma liberdade, que se define no movimento, e renas­
cendo constantemente de sua própria crítica.34

244
NOTAS

1. Sade, Histoire de Juliette, tomo I.


2. O “Centre des jeunes dirigeants d’entreprise” escolheu como tema
a pesquisa do ano de 1988: “Ética e mutações”, nisto implicando a reflexão
sobre a ética e as novas técnicas.
3. Sobre a solidariedade, considerada em uma perspectiva histórica, a
obra de J. Duvignaud: La Solidarité, liens de sang et liens de raison,
Paris, Fayard, 1986. Sobre a ideologia “doce”, a mercantilização dos seus
produtos, seus efeitos, o livro polêmico e decapante de F.-B. Huyghe e P.
Barbès, La Sojt-idéologie, Paris, Laffont, 1987.
4. As obras dedicadas às crises, às interpretações cíclicas dos movi­
mentos da economia, retomam força: C. Stoffaes, Fins de mondes, Paris,
Odile Jacob, 1987; B. Rosier, Les Théories des crises économiques, Paris,
La Découverte, 1987.
5. Sobre a corrente de pesquisa designada pelo termo caos, ver neste
livro, cap. II, “A ciência perde a harmonia; o ruído, a dissipação e o caos”. A
quebra de outubro de 1987 foi considerada sob esse aspecto por certas
revistas especializadas, sobretudo as americanas.
6. G. Simmel, Philosophie de Vargent (1900), trad. franc., Paris,
P.U.F., 1987.
7. A antropologia da doença, da morte e do mal se tomou em poucos
anos um dos setores mais ativos da disciplina. Cf. M. Augé e C. Herzlich,
dir., Ordre biologique, ordre social. La maladie, forme élémentaire de
Vévénement, Paris, Éd. des Archives Contemporaines, 1984.
8. Entrevista com Mihaileanu, “Nossa unidade é a interrogação”, Le
Monde, 5 jul. 1986 (entrevista inédita em francês até a presente data).
9. J. Delumeau e Y. Lequin, dir., Les malheurs des temps ( histoire
desjléawc et des calamités en France), Paris, Larousse, 1987.
10. Fórmulas emprestadas do primeiro livro — denominado de
“empreendimento médico-literário” — escrito por um aidético: E. Dreuilhe,
Corps à corps, Paris, Gallimard, 1987.
11. Comentário do professor G. David, presidente-fundador dos

245
U üUf lAJ lJ ü lüvijnr u i l u

Centres d’Études et de Conservation du Sperme, no jornal Le Monde, sob


um título bastante significativo: “Aids: a ameaça demográfica.”
12. Estes temas — violência, conversão da violência, esperteza com a
violência — apareceram no terreno antropológico com os trabalhos da
escola dita dinamista (em oposição à estruturalista). R. Girard tratou-os a
partir de sua obra La Violence et le sacré (Paris, Grasset, 1972), até seu
livro Le Bouc émissaire (Paris, Grasset, 1982).
13. Ver o reagrupamento de artigos, hoje clássico, de M. Gluckman,
Order and Rebellion in Tribal África, Londres, Cohen and West, 1963.
14. Para uma apresentação geral, mais completa, ver meu artigo da
Revue Internationale des Sciences Sociales, 110, dez. 1986, “La violence
et la guerre: une anthropologie”.
15. Na França os debates com (e acerca de) Sartre se centraram um
tempo na violência; exemplos notórios: R. D. Laing e D. G. Cooper, Reason
and Violence, aDecade of Sartre’s Philosophy, Londres, Tavistock, 1964;
R. Aron, Histoire et dialectique de la violence, Paris, Gallimard, 1973.
Sobre a violência e sua relação com o poder, a obra importante de W. J.
Mackenzie, Pouvoir, violence, décision (1975), trad. franc., Paris, P.U.F.,
1979.
16. Um estudo de espírito etnográfico, realizado por pesquisa direta,
foi dedicado aos hooligans ingleses, observados durante as grandes parti­
das no estrangeiro: J. Williams et al., Hooligans Abroad, Londres, Rout-
ledge and Kegan Paul, 1984.
17. Cf. a contribuição de C. Rosset à revista Traverses, “La peur”, n.°
25,1982.
18. Cf. A. Schmid e J. de Graaf, Violence as Communieation, Insur-
gent Terrorism and the Western News Media, Londres, Sage, 1982.
19. G. Balandier, O contorno, poder e modernidade, Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil, 1997.
20. A literatura dedicada ao terrorismo é abundante. Eu escolho: W.
Laqueur, Terrorism, Boston, Little Brown, 1977; B. Gros, Le Terrorisme,
Paris, Hatier, 1976; a tese inédita de P. Mannoni à qual me referi especial­
mente: Le Terrorisme: un laboratoire de la peur (Université de Nice); e
M. Wieviorka, Sociétés et terrorisme, Paris, Fayard, 1988.
21. J.-J. Gleizal fez da relação ordem/desordem a chave de sua inter­
pretação da instituição policial: Le Désordre policier, Paris, P.U.F., 1985.
22. J. Vries (pseudônimo de um grupo de altos funcionários), “Somos
todos humanistas empíricos”, Le Monde, 9 fev. 1988.
23. Antigo conselheiro em Matignon, T. Pfister publicou um livro par­
ticularmente informativo sobre a “casta dos administradores”, La Républi-
que desfonctionnaires, Paris, Albin Michel, 1988.

246
24. Ver minha obra O contorno, op. cit., cap. I, “De corpo a ‘corpo
político”’.
25. M. Duval, Un Totalitarisme sans État, essai d’anthropologie
politique à partir d’un village burkinabé, Paris, L’Harmattan, 1985.
26. A literatura dedicada é evidentemente abundante, mas a referên­
cia principal permanece H. Arendt, Le Système totalitaire, última edição
da trad. franc., Paris, Seuil (Points), 1972. Para uma apresentação geral: a
seção “Le totalitarisme” do Traité de Science politique, v. 2, Paris, P.U.F.,
1985, dirigido por M. Grawitz e J. Leca; e G. Hermet, Totalitarismes, Paris,
Economica, 1984.
27. Sobre a sociologia da religião em Durkheim, ver principalmente:
“De la définition des phénomènes religieux”, Année Socio.., II, 1899, e Les
Formes élémentaires de la vie religieuse, Paris, Alcan, 1912. Sobre
Durkheim, a obra de J.-A. Prades, Persistance et métamorphose du sacré;
actualiser Durkheim et repenser la modemité, Paris, P.U.F., 1987.
28. A bibliografia relativa às figuras contemporâneas do sagrado, às
“novas religiões”, é abundante. Eu citaria: P. Berger, La Religion dans la
conscience modeme, trad. franc., Paris, Centurion, 1971; R. Bastide, Le
sacré sauvage, Paris, Payot, 1975; B. Wilson, Contemporary Transforrm-
tions of Religion, Londres, Oxford Univ. Press, 1976, e a obra dirigida, The
Social Impact of New Religious Movements, Nova York, Rose of Sharon
Press, 1981; Y. Desrosiers, Religion et culture au Québec. Figures con-
temporaines du sacré, Montreal, Fides, 1986; C. Rivière, Les Liturgies
politiques, Paris, P.U.F., 1988; E, em relação à modernidade, minha obra:
O retomo, op. cit.
29. F. Ewald, em uma obra sábia, rica e inventiva, apresentou o
Estado-Provedor e definiu as condições necessárias à sua atual gestão:
L ’État-Providence, Paris, Grasset, 1986.
30. Comentário de A. Touraine depois da crise da Bolsa do outono de
1987: “Apathie française”, Le Monde, 21 nov. 1987.
31. P. Lafítte, antigo diretor da École des Mines, fundador da “cidade”
Sophia-Antipolis, nos arredores de Antibes e Nice, exerce esse magistério,
esse quase culto voltado à invenção de um futuro, que aliaria “a qualidade
de vida e a modernidade”. Seu engajamento incansável, sua contribuição ao
movimento estão a serviço de uma aposta arriscada desde 1969; cf. “Un
entretien avec M. Pierre Lafitte”, Le Monde, 3 set. 1986.
32. A. Mine elaborou e preconizou este modelo que denominou de
“estatal-libertador”. Cf. L ’Après-crise est commencée, Paris, Gallimard,
1982.
33. C. Castoriadis prossegue incansavelmente em sua obra (solitária,
diz ele) de explicação e defesa da sociedade democrática e autônoma; cf.

247
UU u n u u u i/jiuniiiriuH

Domaines de 1'homme, Paris, Seuil, 1986, preparação a um estudo dedica­


do à Créatixm humaine.
34. Entre os trabalhos mais recentes que reconsideram a questão da
democracia, os de C. Lefort evidentemente (Essais sur La politique,
L ’invention démocratique) , os de L . Ferry (c r ít ic a do universo democráti­
co e “humanismo negativo”) e de J.-C. Barreau (Du bem gouvemement).

248
0 MOVIMENTO

Eis portanto, o movimento e a desordem que inevitavelmente o


acompanham. Houve um tempo em que as civilizações, as culturas,
consideradas em sua forma geral eram divididas segundo o lugar
que admitiam ou que recusavam. Apolíneas, privilegiavam a ordem,
a medida, a harmonia, e tudo aquilo que ameaçava revestia-se com
as cores do mal ou da catástrofe. Dionisíacas, realçavam a fecundi-
dade da desordem, o excesso, a efervescência, associavam o movi­
mento às forças da vida, e seu esgotamento a uma ordem condenada
à morte. Duas grandes figuras do destino, mas uma divisão muito
simples: as civilizações e as culturas nascem da desordem e se
desenvolvem como ordem, existem em razão de uma e de outra, tra­
zem nelas as duas, ainda que seus aspectos particulares manifestem
a importância muito desigual que lhes atribuem respectivamente —
em geral e ao sabor das variações sujeitas às conjunturas e circuns­
tâncias. Nas sociedades tradicionais, o mito dita a ordem, mas a par­
tir do caos, da desordem que ele ajuda a ordenar e a dominar inces­
santemente. Com o aparecimento das modernidades na longa histó­
ria das civilizações e das sociedades ocidentais, figuras e temas
novos aparecem, todos ligados ao movimento, à superação. A idéia
faustiana é a de uma força em constante ação contra os obstáculos;
a luta se torna a própria essência da vida; sem ela, a existência pes­
soal é desprovida de sentido, e somente os valores mais comuns
podem ser atingidos; o homem faustiano forma-se no confronto, e
suas aspirações recusam os limites, são infinitas. Com a idéia prome-
téica — a que serviu para denominar as sociedades empreendedoras
e acumuladoras — , aponta-se para a capacidade do homem de se
liberar coletivamente daquilo que o submete, sobretudo os deuses, a

249
capacidade de atingir a dominação e possessão do mundo por seus
próprios meios, suas técnicas e suas artes É a ruptura que substitui
uma ordem existente, governada por uma potência exterior e, em
razão dessa heteronomia, uma ordem a ser criada e cuja realização
se interpreta como progresso. Com a figura de Don Juan exalta-se a
recusa individual de toda ordem; é a elevação da transgressão ao
estado de valor supremo, mesmo com o preço da vingança divina. A
sedução sem limites, a libertinagem e as contracondutas traduzem-se
em desafio assumido com o risco extremo — a morte: último enfren-
tamento no qual a liberdade absoluta do indivíduo confronta-se com a
Lei, com o Senhor Supremo, na plena consciência de que estes vão
submetê-la. Três figuras míticas que, por meio de metáforas realiza­
das ao longo dos séculos, exprimem a inesgotável luta entre ordem e
desordem, necessidade e liberdade, violência fundadora e violência
destruidora, a impossível vitória total de um dos dois termos.
A literatura relata também, no nível individual, o que os mitos
exprimem coletivamente. Revela a escolha da desordem na qual
uma vida inteira se constrói, uma obra se alimenta. Com a moderni­
dade, aqueles que encarnam essa escolha, que dela fazem o meio de
sua realização ou de seu drama pessoal, se multiplicam. Eles são
nossos próximos, de maneiras muito diferentes. Assim toda a obra
de Henry Miller, e não somente os Trópicos, é uma exaltação jubilo­
sa da desordem, sua afirmação enquanto salvadora e possibilidade
de restituir a vida à literatura. Este perturbador, que proclamou em
uma de suas entrevistas: “Quanto maior a confusão, melhor para
mim”, só quis reter o movimento, o que arde e explode. Opõe a rea­
lização individual, percebida enquanto uma história única, à realiza­
ção coletiva, sobretudo a do tipo americano que ele rebaixa ao esta­
do de “pesadelo climatizado” . A única questão que vale é a da
autoliberação; para o resto, a perspectiva de Henry Miller é a de um
apocalipse, e não o traço deixado pelo movimento histórico. O
“sábio dilacerado” interioriza a desordem e as contradições, se faz
profeta da salvação através da desordem, ao mesmo tempo que pro­
põe uma espécie de evangelho dionisíaco. O que existe é um júbilo
de ser em constante movimento, recusando todo sentido imposto e
estabelecido no tempo, frustrando as ilusões da ordem.
Com esta figura menos ilustre, mais sombria e fortemente pre­
sente que é o dramaturgo e poeta alemão Heiner Müller, o exemplo

250
da desordem reveste-se de um aspecto mais trágico. A visào resuita
da experiência vivida em um país vencido, arruinado, dividido, com
a imagem onipresente de um totalitarismo passado que o tempo não
conseguiu apagar, e a de um presente definido por um socialismo
totalitário e tecnocrático. Dois mundos da ordem absoluta, este
exemplo de pesadelo ( “tudo estava em ordem”, diz o sonhador ao
despertar) que evoca um dos textos reunidos sob um título comum:
La Route des chars [A rota dos carros]. Escrever contra a ordem,
para a desordem torna-se então um meio de vingança, ligado a um
prazer maligno ou a uma espécie de maldade. Ao exprimir seu “ódio
primitivo” das “metrópoles e sua arrogância”, das potências onde
tudo se relaciona com um centro que submete e totaliza, Heiner
Müller evoca “a confrontação de duas épocas: a do indivíduo e a da
história”. Encontra aquilo que criou e manteve a tragédia e que se
traduz, em termos atuais, pela oposição entre os direitos do homem
e a razão de Estado. Nascido em uma ditadura, educado em uma
segunda “que representou a liberação da primeira” , ele se diz
“impregnado da violência de Estado”. Denuncia assim, o dedo em
riste, o sonho dos servidores estatais, uma ordem completa — “esse
girar em círculos, essa imobilidade total”. Uma ordem que só a mor­
te pode criar; fora de seu reino, só o movimento, a parte da desor­
dem, sem os quais não existe vida nem criação.
Em exemplos menos extremos ou mais desiludidos, ou disfar­
çados, a desordem permanece como o ocupante do espaço literário
atual. Já Malraux, pouco antes de sua morte, fazia do homem pre­
cário a prova de uma civilização que perdeu tudo, religião ou dou­
trina, que tivesse valor “ordenador” e que se tornou mais aleatória.
No mesmo tempo que constatava a ausência de valores reconheci­
dos, propícios à coexistência de formas muito contrastadas, assina­
lava a perda de uma “consciência de conjunto”. Um universo da dis­
persão onde o poder, constantemente crescente em razão da ciência
e das máquinas, pode se voltar contra o homem; uma civilização da
qual o homem contemporâneo se descobre progressivamente afasta­
do e que se apresenta como uma pátria estrangeira. Ordem, sentido,
vínculo são vistos em conjunto nas turbulências da mudança, da
metamorfose e da ameaça; o que leva Malraux a encarar como possí­
vel “uma civilização permanentemente imunizada contra qualquer
sentido da vida”.

251
U I S U K U L b U A L AN II11. K

As obras mais recentes, e de menor categoria, evocam o brilho,


o desaparecimento. As primeiras, explorando os novos caminhos da
escrita, muitas vezes confusas e temerárias, restituem a experiência
de vidas rompidas, jogam cora efeitos de embaralhamento na narra­
tiva, recorrem a uma mobilidade que restitui o fervilhamento dos
acontecimentos com desenvoltura ou humor destruidor. As outras
apresentam um mundo falso, numerado, codificado, controlado,
gerador de mitos medíocres e glórias duvidosas, de vidas individuais
entregues à derrisão e ao desamparo. Na verdade, um mundo do
desaparecimento que só mostra os contornos do caos e onde o indi­
víduo é obrigado a reprisar as mesmas aparências. Na melhor das
hipóteses, a apresentação da desordem fica sendo uma tentativa de
colocá-la sob outra luz, de não reduzi-la ao estado de cúmplice do
negativo e da destruição.
Se a ordem não passa de uma visão particular da desordem,
então a filosofia atual deve progredir a partir do real: a desordem é
ou parece ser hoje um dado imediato da experiência. Com o risco de
nisto se “des-construir” ou de se perder, o projeto filosófico leva à
sua exploração, a não ser que se coloque entre parênteses a grande
transformação contemporânea. Ela pode ser levada a descobrir ter­
ras desoladas onde o saber daquilo que é a vida se perdeu, onde o
real sem diversidade nem cor se torna algo numérico (código, nú­
mero, equação), onde os sujeitos humanos estão apagados; em um
mundo que se destrói com a perda de suas qualidades sensíveis,
alguns, e principalmente Michel Henry, se fazem os anunciadores de
uma nova barbárie. A hegemonia do modelo científico (e técnico) é
substituível pela do modelo lingüístico, e então é o tema do fecha­
mento na “fortaleza das linguagens” que prevalece. A que designa
Michel Serres quando acentua sua recusa de uma filosofia mergulha­
da em abstração, que mantém a confusão das palavras e das coisas.
Ele opõe os dados sensíveis ao “dado” da linguagem, as “flutuações
do acaso” à ilusão do caminho certo, a “multiplicidade matizada” à
ordem unificadora que nega a variedade; ele revela um tempo agita­
do que produz o caos e, sobretudo, a confusão; faz desta, que ainda
só se apresenta sob o mito ou a lenda, um dos objetos da reflexão
mais atual. O pensamento da confusão pode entretanto se reduzir a
um sincretismo (proceder por soma ou colagem) ou a um ecletismo
(tergiversar com pedaços de saber, se for o caso por conversão). A

252
crítica filosófica da pós-inodernidade coloca-se aliás sobre esses dois
planos; denuncia uma prática sincrética que produz o saber flutuan­
te com as pegas disparatadas e com elementos que eram, até então,
refugados; nega ao mesmo tempo uma esterilidade eclética e disfar­
çada e uma cultura que se satisfaz com os reflexos em detrimento
das fontes.
Hoje o movimento é portador de incerteza. Uma filosofia que
se quer jovem aceita tanto um quanto outro. Percebe o desapareci­
mento das normas transcendentes em proveito de uma ética da
autenticidade, do “sê aquilo que és”, da liberdade reivindicada dian­
te das normas adquiridas, porque são exteriores e impostas, ou pro­
duzidas, porque cada um se decreta possuidor e senhor delas. Uma
lógica das situações, inerente a esse tempo de flutuações, e uma ló­
gica interna própria das sociedades democráticas se conjugam e
concorrem para esse efeito. Parece cada vez mais insensato referir-
se a uma ordem do mundo global e fundadora, sobre a qual uma
dogmática aceitável seria edificável. A ausência de certeza tende a
substituir as ideologias da afirmação; sobre nenhum plano (científi­
co, político, ético, mesmo religioso) parece ser possível referir-se a
evidências, tudo se torna condicional e os valores se relativizam. A
um antigo regime de idéias afirmativas, mesmo quando o pensamen­
to se queria crítico, parece suceder um novo regime onde a argu­
mentação se faz mais livre e variável, na medida que não mais está
alimentada de certezas. Fórmulas tentam designar essa passagem,
as que parecem marcar o acomodamento ao pensamento frágil e às
ideologias frouxas.
O que está sobretudo em causa é a questão da verdade. Em
um universo agitado e de aparência, em um futuro onde o possível
prevalece sobre a necessidade, a resposta se esconde ou se embara­
lha. Toma corpo a idéia de que não existem fatos, mas interpreta­
ções, e que a pretensão à verdade é uma espécie de golpe de força,
um abuso. Donde então a sugestão de consentir no reconhecimento
de uma “realidade leve” onde a linha divisória entre verdadeiro e fal­
so, verdade e ficção perde sua nitidez (Gianni Vattimo). A afirmação
que a Verdade não é reconhecível, que a viagem é feita de uma ver­
dade para outra, e que os homens não produzem nem o falso nem o
verdadeiro, mas “o existente" (Paul Veyne), não parece assim tão
provocadora. Como todas as coisas na modernidade, a verdade bri­

253
lha e não tem um só dono; a verdade se dispersa e seu movimento
pode ser interpretado, com um certo excesso, como uma errância A
ordem firme, ou postulada como tal, permitiria conceber uma verdade
unificada; a variação e a desordem a tomam inelutavelmente plural.
Admite-se em conseqüência que o saber não pode ser assimila­
do a uma soma de conhecimentos que desvendaria progressivamente
a verdade, mas àquilo que pode ser visto (evidências) e dito (enun­
ciados) e arranjado de acordo com as condições próprias de uma
época. Esta, mais que nenhuma outra, impõe a consideração proble­
mática, o exame da forma que as coisas e as idéias apresentam.
Neste sentido já aparece a contribuição de Michel Foucault, apre­
sentada por ele mesmo como uma “história das problematizações” e
não como um pensamento sistemático, uma teoria ou uma doutrina.
O método conduz — e as entrevistas são o principal meio dessa pro­
gressão — à consideração da atualidade no sentido de detectar os
“pontos sensíveis”, os que são reveladores de fragilidade no pensa­
mento e nas práticas, os que designam as linhas de fratura além das
quais se descobre o inesperado, o inédito. Foucault coloca desse
modo a questão central: como a produção de alguma coisa de novo
no mundo é possível? É se dar como objetivo tornar inteligíveis as
mudanças de regime na ordem das coisas, das idéias, das represen­
tações — de tornar inteligíveis as passagens. Identificar esses
momentos, esclarecer o que é problemático, chegar ao conhecimen­
to do que entra no mundo e já não está mais lá, é conduzir a expe­
riência humana a reduzir a consciência da desordem e da perda de
sentido. É consentir em um trabalho que se efetua em dois movi­
mentos: tratar o que depende do passado, do “arquivo” — tarefa à
qual Foucault dedica a maior parte de seus livros — , e considerar
aquilo que somos em vias de cessar de ser; tratar, como acaba de ser
dito, do “atual”, quer dizer, daquilo que estamos em vias de nos tor­
narmos. A obra do filósofo não se presta evidentemente a uma única
interpretação, mas esta é legítima e aliás legitimada por seus mais
seguros intérpretes, principalmente Gilles Deleuze; mostra a cons­
tante atenção com as condições históricas; revela um projeto de
caráter gerador onde o humano acha-se continuamente confrontado
(e constituído em razão dessa confrontação) com as “forças de fo­
ra”, e não somente com os efeitos de estrutura, aniquiladores do ho­
mem, do sujeito. Esses resultados foram mal interpretados e vulgari­

254
zados, reduzidos a um estado de simplicidade provocante pelo cho­
que de uma fórmula: a morte do homem, depois da morte de Deus.
As ciências da sociedade colocam de outra forma a questão, mas são
possuídas de uma mesma obsessão; a da morte das culturas, do por­
quê e do como a desordem prevalece, enfraquecendo as instituições
e apagando as significações. Ou, ao contrário e de modo mais otimis­
ta, como a desordem permite o nascimento de uma cultura, a saber:
como esta se cria engendrando significações novas, colocando o
imaginário a serviço da formação de instituições, fazendo prevalecer
o princípio da organização. Preocupação com um tempo da desor­
dem que é também identificado como o dos novos começos.
As ciências humanas encontram sobre este terreno um desafio
maior; o movimento as desorganiza, arruina inúmeras de suas certe­
zas, desloca as fronteiras delimitando seus territórios de especializa­
ção. Não sabem mais precisar qual homem, qual sociedade e cultura
têm de conhecer. Tudo se tornou muito móvel, muito dissociado do
que é fator de permanência e gerador de ordem. A sociedade — no
sentido mais amplo da palavra — apreende-se em um estado de
grande fluidez. Porque é fluido, não é mais passível de ser encerrada
no interior de uma disciplina. Porque é um contínuo vir-a-ser, com a
aceleração própria dos períodos de modernidade, deve ser entendi­
da em sua criação e não em estruturas que a congelam e a desnatu-
ram. Por essas razões, a divisão das disciplinas segundo sua relação
com o passado (história) e pelo império da tradição (etnologia,
antropologia) ou pela atualidade (sociologia e outras ciências do
presente), perde cada vez mais sua pertinência. Todas se encontram
entre si desde o momento em que se apreende o futuro, que se
esclarece o “arquivo” pela atualidade, e vice-versa.
A história, sobretudo na França, ocupa uma posição triunfante
cuja significação é preciso precisar, na medida que se relaciona com
o que acaba de ser dito. Ao se fazer história total, dominou o estado
de fragmentação que impõe a consideração do acontecimento, e,
com esta finalidade, integrou a contribuição de outras ciências
humanas, da filosofia às ciências da sociedade e da cultura, à lingüís­
tica e à semiologia; efetuou um trabalho de função sintética, cons­
truiu conjuntos amparados no passado e cujos efeitos se prolongam
no presente. Em um tempo que é variável, disperso, efêmero, permi­
te a presença desses conjuntos ordenados, inchados de significa­

255
ções, que fazem “o mundo" no sentido filosófico dessa palavra.
Fornece os vínculos e, por meio deles, responde a uma necessidade
difusa do homem contemporâneo, que está desamparado.
Os comentaristas da atividade histórica — e o consumo insa­
ciável de textos que disto resulta — apresentam isso de outra ma­
neira: colocam em questão a incerteza que nutre a busca da identi­
dade, individual e coletiva e de seu enraizamento, a reivindicação de
um sentido que se dá somente na duração e cujas fraturas, na mo­
dernidade, são aniquiladoras, o desejo de conhecer um futuro larga­
mente desconhecido, espécie de buraco negro, servindo-se dos fa­
róis do passado.
A história reatualiza a questão da memória coletiva, que foi
antigamente o centro da interrogação sociológica. A modernidade é
produtora de amnésia, apaga as referências e oculta os ancoradou­
ros do passado, abole para dar lugar ao novo e ao inédito, e valoriza
o efêmero em detrimento do durável, esconde a permanência sob a
superfície agitada da mudança; mas não consegue chegar a um total
desaparecimento, não mais que o projeto radicalmente revolucioná­
rio a fazer tabela rasa para impor um começo absoluto. A história
vivida tem uma função de acumulação: fora dos homens, na materia­
lidade daquilo que produzem e formulam contra a agressão destrui-
dora do tempo; neles, coletiva e individualmente naquilo que é sua
parte na herança e orienta suas interpretações, seus comportamen­
tos, sem que eles tenham disto plena consciência. Uma sociedade
inteiramente nova, um homem inteiramente novo, isto não existe,
não pode existir. A memória coletiva é plural, diversa, constituída de
múltiplas contribuições, obras, informações continuamente estoca­
das e em parte dissipadas. Pode entretanto ser vista nos moldes de
uma memória informática; por ela, os depósitos do passado são tra­
tados e conservados, permanecem atualizáveis ou programáveis
segundo as circunstâncias. Mas, é preciso ainda lembrar, a moderni­
dade mantém a passagem aos extremos, opera também por proces­
sos de divergência. De um lado dá à memória coletiva instrumentos
técnicos novos, mais poderosos, de salvaguarda material e de esto-
cagem das obras e dos “produtos” culturais; as “tecas” de diversas
coisas se multiplicam, a conservação por meios eletrônicos e infor­
máticos acumula e concentra, a criação de museus de qualquer coi­
sa leva, segundo alguns, à museomania; os lugares da memória são

256
U f c S U K Uf c M

reverenciados, qualquer parcela desta se transforma em peça do


patrimônio e pode se tornar objeto de comemoração e ponto de
peregrinação. De outro lado, a modernidade precariza, banaliza,
massifica, desnatura, joga na rua o consumo cultural; a inscrição no
tempo perde sua importância diante da valorização do instante e do
acontecimento. Quando a criação cultural se faz indústria e a difu­
são daquilo que produz um vasto mercado, as obras se degradam em
mercadorias pobres de significações outras que o imediato; não têm
mais o mesmo valor singular nem a mesma força de testemunho —
se o tempo as poupa — para as gerações atuais e futuras. Na paixão
que leva muitos para as exposições e os museus, pode-se reconhecer
a manifestação caricatural daquilo a que a modernidade pode condu­
zir: o prazer de consumir, a satisfação encontrada no acesso aos sig­
nos mais que às obras, a cumplicidade com uma civilização de apa­
rências mantida pelo poder da moda, o privilégio concedido ao que é
dado a ver e a saber de forma espetacular, a aceitação dos simula­
cros. A interrogação crítica permanece menos na superfície, quando
reconhece que o status atual da memória está em questão, seja para
denunciar uma espécie de agressão, que substitui na memória viva
uma multiplicidade de memórias artificiais, seja para evocar uma der­
rota da memória que obriga a empregar todos os remédios. Esta últi­
ma observação chama de volta o problema da desordem.
A consciência da desordem, tal como a descrevi, situa-se sobre
a linha do tempo entre o esquecimento das condições anteriores e a
ignorância dos estados por vir. A isto se associam a descoberta de
uma crescente complexidade — tudo parece se tornar cada vez
mais indecifrável, toda ação parece ter uma medida melhor de seus
limites — e o reconhecimento de uma irreversibilidade que contra­
ria as tentativas de retorno a uma ordem das coisas passadas. Nessa
posição incerta, o indivíduo e as coletividades mal conseguem se
definir, fixar sua escolha, orientar suas condutas. A sinalização por
antecipação, a projeção no futuro é aleatória; a volta para os espaços
da vida pessoal, a gestão do espaço privado mais nitidamente baliza­
do e do tempo curto do cotidiano são possíveis respostas a essa
incerteza que se mantém. Nessas condições, o passado, o já-feito
aparece também como portador de certezas, como um conjunto de
referências a partir do qual é menos custoso viver. Há aqui mais que
um fardo de impotência clamando por uma cultura da nostalgia: é

257
GEORÍiES BALANLHIiK

uma tentativa de não ser enredado em um movimento cuja origem


está esquecida e cujo fim está ainda oculto. A definição retrospecti­
va, na falta de uma impossível definição prospectiva, se apreende
como um recurso, um socorro que permite introduzir um pouco de
ordem neste tempo. A busca de permanências é a de um apoio a
partir do qual o futuro inovador pudesse ser domesticado. O filósofo
Gianni Vattimo não fala de outra coisa quando apela a um repensar
da herança, a fim de juntar forças ao desejo de “pertencer a este
mundo”, à vontade de não Ficar ausente por passividade, futilidade
ou niilismo trivial. Então a tradição não seria mais o instrumento de
um conservadorismo artificial, restritivo e forçado, mas o guia
necessário à exploração e à construção do presente.
Em todos os lugares, em tudo, o movimento, e deveria-se dizer,
o desamparo. É este que é preciso agora reduzir, colocando-se em
situação de enfrentar o real, áe produzi-lo, e, fazendo isto, de nele
introduzir os princípios de ordem e sentido. Sabe-se agora o que está
cada vez menos à disposição dos homens de hoje: os grandes disposi­
tivos, totalidades pelas quais qualquer coisa poderia ser ordenada. As
religiões transmitidas, amoldadas pela longa história das civilizações,
que exprimem e mantêm uma unidade do mundo e da pessoa, estão
enfraquecidas, divididas, deserdadas ou em brigas de concorrência
pelo efeito das múltiplas metamorfoses contemporâneas do sagrado.
Os saberes que procedem das ciências e dos usos técnicos não pro­
põem mais um sistema de interpretação nem um sistema de ação
unificadores; eles se mexem, se fragmentam, progridem em comple­
xidade e abstração; o projeto de uma “ciência unificada” está abando­
nado, a visão totalizante onde elementos e proposições se apresen­
tam em relação de compatibilidade não é mais admissível. As ideolo­
gias, espécies de reprises da obra de ordenação geral da qual o mito
tinha a carga nas sociedades tradicionais, procedimentos pelos quais
a unidade era conjuntamente imposta à natureza, à sociedade e à his­
tória, caem em desuso; regridem, tornam-se frouxas, frágeis e sumá­
rias; pequenas ideologias precárias e sustentadas por micrológicas as
substituem. Quanto à política, ela perde progressivamente sua capa­
cidade de produzir os efeitos de unidade, de animar as máquinas
sociais que têm por função integrar e normalizar.
Muito cedo, no início deste século e na independência diante
da ciência social dominante, o sociólogo Georg Simmel compreen-

258
n ULOunuLm

deu o que iria ser o próprio das “sociedades modernas” em vias de


se fazer. Ele as apresenta cada vez mais instáveis, heterogêneas e
abertas ao jogo das forças variáveis, mais compósitas que compos­
tas, rebeldes — salvo por restrição, por arbítrio — a qualquer tenta­
tiva de sistematizá-las. Quando a ordem antiga, a das sociedades tra­
dicionais, se pensa segundo as “leis” que determinam toda a existên­
cia desde o começo, segundo uma lógica do ser vivo que torna sua
degradação quase impensável, e segundo as práticas que permitem
uma certa domesticação da desordem, o déficit de ordem na moder­
nidade se pensa em termos de possibilidade, de contradição entre
uma racionalidade interpretativa enfraquecida, de constante deve-
nir, aberto ao aleatório e ao efêmero. De um lado, sociedades onde a
tradição reduz o esquecimento e impõe a referência às origens,
mantém a capacidade ordenadora do originário, onde os códigos, os
ritos, as liturgias múltiplas mantêm as regulações, onde a desordem
é percebida como inerente ao movimento de toda vida, como uma
forma de energia que deve ser colocada a serviço da ordem; de
outro lado, sociedades onde a história não é mais de alguma forma
“natural” , onde o que toma forma não passa de uma realização (pre­
cária) entre outras formas possíveis, onde se sucedem sem trégua
os desafios e as dificuldades de responder a isto, onde a mobilidade
das referências, dos saberes, dos códigos e dos valores contribui
para a incerteza, onde o avanço se dá de forma pragmática e se con­
cilia com a metáfora de um movimento, que procede por bifurcações
sucessivas.
Um tempo do movimento e da consciência da desordem é ao
mesmo tempo o dos grandes riscos e das grandes possibilidades.
Pode se tornar o tempo do contágio entrópico e, mais ainda, o das
implosões e explosões sociais em cadeia e das loucuras desastrosas.
A passagem aos extremos, no extremo, é facilitada, seja pela retra­
ção — retraimentos para o interior de pequenos espaços que as tur­
bulências pouco atingem e onde a ordem se mantém pelo menos na
aparência — , seja pela fuga para frente, cega, ou quase — escolha
do movimento enquanto tal, porque renova incessantemente, casa­
mento com a desordem que é então uma fonte de gozo, ou certeza
que os limites do impossível se afastam como acontece em raros
momentos da história. É de outra forma que é preciso enfrentar o
real, construí-lo e governar o movimento do qual não se dissocia. A

259
CJ K O K U E S B A L A N Ü I KH

primeira das condições é dispor, criando-os, dos meios de melhor


compreendê-lo em seu estado presente e sua flui dez: colocar-se em
posição de não apreendê-lo como caos, mas corao futuro, de reco­
nhecer como a desordem nele se alia agora sob novas formas de
ordem, mais flutuantes. Este projeto impõe renúncias: a um pensa­
mento que amarre a ordem na estabilidade, a uma concepção que
rejeita o irracional e o imaginário a fim de realizar a qualquer preço
uma sociedade da razão, tendo esquecido o que Pascal já sabia: que
“há dois excessos, excluir a razão, só admitir a razão”. O que acarre­
ta outra renúncia: ao voluntarismo dogmático, que finge ignorar
que se os homens produzem as formas sociais, eles não o fazem nem
em uma liberdade (os limites se opõem) nem em um arbítrio (o
decreto e a sujeição não são suficientes) absolutos.
Abraçar o movimento, neste tempo, é levar em conta e respon­
sabilizar-se pelos riscos que este contém. Existem três, aparentes:
O primeiro resulta do desespero individual, das interpretações
falsificadas e das reações ou condutas erráticas que engendra. A
questão reside primeiro em uma formação e educação coletivas que
preparem para a compreensão da atualidade, que fortaleçam o dese­
jo de estar presente neste mundo. Leva também a não deixar a liber­
dade — afundada nos desmoronamentos dos enquadramentos anti­
gos — em estado difuso ou selvagem, e conseqüentemente tornada
ilusória e facilmente manipulável. Trata-se de uma nova e firme rea-
propriação da liberdade a conquistar, associando esta reprise à defi­
nição de valores, eles mesmos liberados dos dogmas e daqueles que
se dizem especialistas de sua formulação e de sua salvaguarda.
O segundo risco é correlativo. Já mostrei anteriormente que o
fenômeno totalitário inscreve-se em toda ordem social; a democra­
cia o mantém em estado virtual, impede sua atualização, mas ela é
frágil e pode ser pervertida. Os períodos de grande transformação,
de incertezas, durante os quais o indivíduo encontra-se desorienta­
do ou sacrificado são propícios ao fortalecimento do desejo de or­
dem. Este, ganhando em intensidade, torna mais possível a transfor­
mação do fenômeno totalitário em um totalitarismo acabado. Falsa e
trágica vitória da ordem, enquanto que o pluralismo, o confronto das
diferenças, a democracia viva são os únicos meios de criação de for­
mas sociais e significações, os únicos capazes de impedir uma degra­
dação ao estado mecânico onde o indivíduo teria claramente seu

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U toU K U LM

lugar, mas enquanto peça submetida à grande máquina. A proteção


contra esta ameaça de realização de uma ordem enganosa e fatal
consiste em uma crítica ativa dos mecanismos e dos regimes totali­
tários, em uma incansável vigilância.
O terceiro risco não se separa dos precedentes: é o do fecha­
mento pelo esquecimento (ou negação) que a modernidade genera­
liza a comunicação, multiplica as relações com o exterior e as solida-
riedades. Da clausura da vida privada à que protege os privilégios
materiais de uma coletividade nacional poderosa, ou ainda à que
defende um regime totalitário contra toda influência contrária de
fora, um mesmo erro estabelece uma ligação: o desconhecimento ou
a negação do fato que as sociedades presentes estão cada vez mais
em relações de troca, em dependência do ambiente que todas as
outras constituem para cada uma delas, e do fato que a ordem inter­
na não se formula nem se conserva ao abrigo de barreiras erguidas,
para preservá-la das desordens oriundas de fora. Esta é a lição do
saber atual.
A gestão do movimento, e portanto da desordem, não pode se
reduzir a uma ação defensiva, a uma operação de restauração, a um
jogo de aparências que imporia efeitos de ordem na superfície. Mais
ainda que nos períodos de paz, a gestão do movimento é uma con­
quista, uma criação constante que os valores jovens, uma ética nova
e largamente repartida, orientam. O que implica em jogar todas as
suas chances naquilo que é portador de vida, e não no que depende
de um funcionamento mecânico, na sociedade civil e não nos apare­
lhos. Eu retomo aqui uma conclusão já proposta antes: fazer com
que um grande número de atores sociais participem, de forma contí­
nua, das definições — sempre retomadas — da sociedade, reconhe­
cer a necessidade de sua presença nesses lugares, onde se formam
as escolhas que a produzem e onde são gerados os elementos de sua
significação. Dito de outra forma, fazer o elogio do movimento, dissi­
par os temores que inspira, e, sobretudo, jamais consentir na explo­
ração do medo confuso que alimenta.

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