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1997
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
p e o o o ,^ q < :
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE o
N
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
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Balandier, Georges, 1920- O
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B144d A desordem: elogio do movimento / Georges 0)
(VI
Balandier: tradução de Suzana Martins. — Rio de Janeiro;
Bertrand Brasil, 1997. 2p
DO MOVIMENTO
266p. g cí
30
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Tradução de: Le désordre O*
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ISBN 85-286-0618-X iu 0
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1. Mudança social. 2. Conflito social. I. Título.
2 C)
Titulo: A DESORDEM: ELOQIO
CDD - 303.4 sd
97-1239 CD U-301.175 ÜJ A
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P rimeira P arte
ORDEM E DESORDEM
Segunda P arte
DESORDEM NA TRADIÇÃO
T erceira P arte
DESORDEM NA MODERNIDADE
O Movimento 249
0 ENIGMA
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refazer-se, o imprevisível deve ser compreensível. Trata-se agora de
produzir uma descrição diferente do mundo, onde a idéia do movi
mento e de suas flutuações prevalece sobre a das estruturas, das
organizações, das permanências. A chave aponta para uma nova
dinâmica, não-linear, que dá acesso à lógica dos fenômenos aparen
temente menos ordenados. Esta subversão do saber traz necessaria
mente a incredulidade e a rejeição, mas a paixão pelos novos descri-
tores é contagiosa. Ela se desloca da física para as ciências da vida e
da sociedade, mesmo levando-se em conta, no que diz respeito à
sociedade, que as pessoas são mais complicadas que as partículas.
Desde já suas aplicações são pesquisadas nos mais diversos
domínios. Na medicina, com a interpretação do infarto como um
fenômeno de passagem brutal de um estado de regularidade a um
estado caótico, da crise epilética que irrompe subitamente e subme
te o corpo ao ataque perturbador do grande mal. Também a econo
mia tenta recorrer a essa arriscada exploração, ao estudar a desor
dem dos investimentos e do emprego, a desordem dos ciclos des
concertantes e do comportamento errático da Bolsa. A caoslogia não
seria vista como apologia da desordem, para a qual propõe uma
outra representação, um lugar específico, a caoslogia mostra que se
os acontecimentos e as turbulências da natureza dão uma impressão
de confusão, de ruído, na verdade são atraídos para certos estados.
Essas “atrações estranhas” permanecem mal identificadas, mas sua
ação é reconhecida; a desordem não se confunde com a bagunça.
Outras questões inquietantes permanecem, principalmente
estas: como pode uma determinada organização nascer do caos?
Como o novo consegue surgir da ordem e fugir às opressões da
ordem? Desde sempre o mito fornece as respostas, a ciência anuncia
as suas, submetendo-as a verificações e revisões infinitas. São duas
as práticas da razão, duas as lógicas, hoje melhor reconhecidas por
que mais separadas. Os grandes mitos das sociedades tradicionais
procedem de uma explicação total, eles afirmam, dizem o que é e o
que deve ser. A ciência atual não busca mais uma visão do mundo
totalmente explicativa, o que produz é parcial e provisório. A ciência
confronta-se com uma realidade incerta, de fronteiras imprecisas e
mutáveis, estuda “o jogo dos possíveis” , explora o complexo, o
imprevisível e o inédito. Não tem mais a obsessão da harmonia, cede
um grande espaço à entropia e à desordem, e sua argumentação,
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U tU KU t-S BALAND1EK
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* Meus agradecimentos vão primeiro para Claude Durand, pelo interesse que
demonstrou para com este livro, pela leitura atenta e eficaz do manuscrito. Vão em
seguida para Brigitte Guigou, que me ajudou na seleção das fontes antropológicas, a
Yvonne Roux e Denise Nobre que fizeram uma primeira correção do texto, e a
Christine Cailleteau, que o datilografou.
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Primeira Parte
ORDEM E DESORDEM
1
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te por Manuel de Diéguez, que percebe um “discurso velado" e
inconsciente “sob o discurso descritivo do sábio”. Ele propõe a
seguinte questão: “Qual é o antropomorfismo da ciência no seu mito
secreto, a partir do qual o sábio confere, por sua vez, inteligibilidade
ao universo?” Questão que deságua em uma resposta interrogativa e
provocante: “E se este discurso fosse tão ingênuo quanto o dos sel
vagens?”2 Os cientistas modernos separam-se, mesmo admitindo
uma dupla legitimidade; os dois recursos existem sem uma medida
comum, são caminhos diferentes que não devem se confundir nas
tentativas de acesso ao real; são duas práticas de conhecimento que
engendram efeitos totalmente distintos: nenhuma está errada,
nenhuma está certa.3 Contudo, a certeza da divisão se enfraquece,
quando se faz o retomo à história da ciência, à consideração do mito
relacionado às origens da ciência e à origem do mito científico hoje;
quando o sábio se pergunta sobre a realidade dos seres científicos
que ele trata ou quando ele se pergunta se tais seres existem inde
pendentemente de toda observação humana, como no “grande
debate da teoria quântica”.4 Ilya Prigogine e Isabelle Stengers traba
lharam com a semelhança e a diferença, aproximaram e dissociaram:
“Assim como os mitos e as cosmologias, a ciência parece buscar a
compreensão da natureza do mundo, a forma como está organiza
do, o lugar que os homens nele ocupam”; mas o pensamento científi
co se afasta da interrogação mitológica, submetendo-se “aos proce
dimentos da verificação e da discussão crítica”.5 Já o discurso mítico
impõe-se pela autoridade, dispensa a hermenêutica (interpretação)
e a exegese (explicação).
Por natureza o mito não possui evidência, o que resulta na
incerteza de sua identificação. O mythos grego se refere tanto à
palavra enganadora, que gera ilusão, quanto à palavra capaz de atin
gir a verdade — aquela que leva Aristóteles a concluir que “o amor
dos mitos é uma forma de amor à sabedoria”. Neste caso, dá-se ao
mito o poder de levar o espírito a especular, começando pela busca
de seu próprio sentido, misterioso e obscuro. É a partir dessa difi
culdade, de sua aparência enigmática, que o mito fascina, obrigando
à decifração, à leitura iniciática. De antemão, segundo a concepção
grega, o mito que não ilude possui três características: trata da ori
gem, do começo; remete, por meio do discurso, à temporalidade,
não a que resulta de uma sucessão de acontecimentos históricos,
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mas a de um tempo fundador, durante o qual uma ordem se forma;
por último, o mito liga-se à memória enquanto revelação que permi
te chegar a realidades ocultas.
Schelling, em F ilosofia da m itologia , confere ao mito um
valor elevado, supra-racional. Qualifica-o de discurso concreto, fixo
na memória, na língua, na criação, e que restitui, pelo símbolo, os
momentos e os fenômenos originais. O mito refere-se a uma reali
dade primordial que preexiste em uma misteriosa profundeza e que
se traduz por signos, imagens e reflexos no mundo em que vivemos.
O mito aproxima dois mundos, revela o oculto e transmite parte da
verdade. O mito ajuda a consciência na descoberta de um processo
teogônico e cosmogônico. Cassirer, quando trata das formas simbóli
cas e apóia-se no saber antropológico, considera o mito como saber
coletivo inato, que permite estruturar e dar sentido ao universo sen
sível; é a expressão da busca difícil do segredo da origem, da primei
ra ordenação do mundo das coisas e dos homens. Mas, acima do
mito, Cassirer ressalta o pensamento mítico, sua forma de operar e
dar unidade à diversidade dessas operações. Afirma sua permanên
cia, sua onipresença. Não se trata de um único momento da história
do conhecimento: as formas do pensamento mítico e as da racionali
dade desenvolvem-se sob dois planos diferentes; o sentido do mito
coloca-se ao lado ou no interior do que dele pode dizer o pensamen
to racional.
O mito é irredutível; sua interpretação, inesgotável. Os filóso
fos o interrogaram e às vezes lhe deram uma função didática. As
ciências humanas multiplicaram as tentativas no sentido de precisar
sua natureza (traço de mentalidade?), determinar suas funções
(conhecimento ilusório? memória que fixa o passado transfiguran
do-o? título que rege o compromisso social? aspecto da criação em
toda cultura?) e precisar sua história (estaria condenado ao desapa
recimento face aos avanços da razão?). Em favor de uma espécie de
‘mito do mito’, o imaginário se nutre incansavelmente de produtos
do pensamento mítico. O comentário mitológico não tem muros.
Neste texto, meu objetivo é tratar a lógica enquanto forma de dar ao
mundo uma unidade, uma ordem, um sentido primordial; é com
preender como a criação, a partir de um caos inicial, impõe inces
santemente o jogo duplo das forças da ordem e da desordem, e dos
símbolos pelos quais operam.
No começo era o caos
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rnontos — a espiral, as vibrações que são a forma inicial da vida — a
uma mitologia do vegetal, da árvore e do grão, a uma mitologia da
água, associada ao céu e ao peixe, e a uma mitologia dos seres, le
vando ao aparecimento do homem. Assim, a humanidade se desen
volve, e a vida se organiza sobre a terra pela divisão de regiões culti-
váveis, a instituição do casamento, a invenção e o desenvolvimento
das técnicas. O lugar, a regra, a ferramenta fundam uma ordem dos
homens, mas dentro desta a desordem progride, e dela procede ini
cialmente, através de peripécias que relatam a conduta dos ances
trais míticos e dos ancestrais “sociológicos”. Sempre se descobre em
ação uma figura da desordem, cósmica, mítica ou humana.
As primeiras criaturas vivas criadas por Deus (o Único) são
dois casais de gêmeos andróginos com dominante masculino: um
deles realiza a união, a harmonia, o outro traz em si a ferida e a
separação. O plano divino era estabelecer uma correspondência
entre estes com dois casais de gêmeas; se tudo corresse bem, se
chegaria à formação de oito criaturas perfeitas das quais nasceriam
outras formas humanas perfeitas, e, por conseguinte, um universo
ilimitado e harmônico, resultando a liberação, por Deus, de todas as
coisas ainda concentradas Nele. O projeto de harmonia imediata fra
cassa pelo erro de um dos gêmeos do casal ferido, impaciente de
possuir sua gêmea (seu componente fêmea), revoltado contra uma
Criação da qual não participou, ambicioso na rivalidade com Deus,
querendo tomar para si o mundo criado. Esta primeira figura do
transgressor conserva sua forma, senão seu nome, ao passar do
domínio do mito para o domínio dos homens. No primeiro caso, ele é
Ogo, que vive na ilusão de possuir o “segredo”: podendo ser demiur
go em seu único proveito, ele só consegue engendrar a esterilidade
da terra, o incesto, o monstruoso, a morte: um mundo que não é um
mundo, é uma realização fracassada e condenada à degradação, uma
falsa ordem sem vida verdadeira. Deus deve intervir: primeiro pensa
em proceder a uma terceira criação, depois renuncia e decide lutar
contra a desordem e a impureza do mundo atual. Por um sacrifício,
que é o de Nommo, o gêmeo do transgressor, reduzido a um corpo
mutilado (pela evisceração) e desmembrado, cujas peças devem
servir à “retomada da marcha do universo” e à busca da ação criado
ra, que é essencialmente uma ordenação mais acabada. Esta permi
te ressuscitar o sacrificado, fazer do corpo recomposto o equivalen
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te de um universo regenerado, onde tudo — inclusive os primeiros
ancestrais dos homens — encontra um lugar justo. 0 mundo está
feito, mas ele resulta de um drama, onde o criador manifesta seus
limites, onde o transgressor gerador de desordem só é vencido pela
operação sacrificial que acarreta um re-nascimento da ordem. Ao
Salvador se opõe o Revoltado, como à ordem civilizada a desordem
selvagem.
A luta das forças contrárias não cessa com a finalização de uma
Criação, daqui para frente fundada sobre o homem. O transgressor
persegue seu destino sob os traços da Raposa pálida, figura mítica
ou legendária que simboliza a natureza inculta, a solidão, a febre
incestuosa, a sofreguidão, a agitação, a obsessão da reprovação, a
morte. Em um mundo que não pode ser perfeito, mas onde o
homem está finalmente estabelecido, a Raposa mantém uma
influência perturbadora. Ela manifesta a ambivalência do ser huma
no e de tudo o que existe, sendo, aliás, percebida pela forma ambí
gua. Ela é temida e ridicularizada, é vista sob um aspecto negativo,
mas reconhecida “como elemento indispensável nos rumos do
mundo” . A lógica da narrativa opera sobre dois planos: ela governa
um discurso sobre o homem e um discurso sobre a ordem das coi
sas. O primeiro alia o aparecimento do homem com a vitória sobre a
animalidade, sobre o instinto, sobre a pulsão selvagem manifestada
pelo incesto, gerador do caos e da morte. O segundo discurso mos
tra que as forças contrárias entregam-se a uma disputa sem fim, que
a ordem não será jamais estabelecida. E que não deve sê-lo. Esta
luta renhida é considerada necessária, porque o movimento (o pro
gresso, a marcha para o futuro) é concebido “como um perpétuo re-
equilíbrio, e a desordem como um fermento de civilização”. “É por
que Deus não aniquilou a Raposa.”6 Uma remota tradição traz a lição
que redescobre a modernidade, fala da necessidade de reconhecer o
lugar da desordem.
As tradições africanas encerram, em graus variados de riqueza
e complexidade, relatos de origem dos mitos ancestrais, que com
põem os sistemas conceituai, simbólico e imaginário, a partir dos
quais as sociedades idealizam e legitimam sua ordem. Todas chegam
à conclusão de que a ordem pressupõe riscos e está sempre a se
refazer. Um exemplo suplementar é proposto por um estudo em vias
de finalização, dedicado aos bwas do Burkina e do Mali. Neste caso
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uinda, a Criação conhece fracassos e retomadas; é continuada para
além das rupturas e se desenvolve em três movimentos. No início, a
“ Forma” ( “o avô de Deus”) aparece por autogênese; engendra as
primeiras criaturas através do jogo e do gosto pelo espetáculo que
estas lhe proporcionam quando enfrentam seus desejos. A tentativa
de harmonizá-los conduz a um fracasso: “casais" são constituídos,
mas um permanece isolado, incompleto, malfeito, ser ávido e domi
nador que visa apoderar-se do segredo de seu criador e se torna
então fator de desordem. A aventura termina em um dilúvio, e este
é o momento de passagem para a segunda Criação, com o apareci
mento da matéria, dos vegetais, dos animais, dos gênios e das más
caras. Sua convivência difícil com as criaturas primordiais suscita
episódios de ordem e de abundância, de desregramento e de penú
ria. Um poder feminino se estabelece e fracassa, um primeiro casal,
criado sobre a diferença e a atração mútua dos sexos, se constitui
com a invenção do casamento e da cozinha, mas sua avidez o leva a
desafiar Deus. Uma terceira Criação inaugura o tempo da “grande
aceitação”, que é também o tempo da instituição da morte. O espaço
é rearrumado, e quatro divindades recebem a função de gerir o
mundo. A sociedade humana se organiza em suas formas tradicio
nais e recebe sua Lei. A agricultura e a arte da ferraria são descober
tas. A aliança dos homens com os animais e as alianças simbólicas se
estabelecem. Mas este mundo ordenado não é um mundo acabado,
ele é movimento, vida, turbulência. O mito transmitido pela tradição
dos bwas aponta para seu “pensamento antropológico”. As relações
inicialmente tumultuadas, depois dificilmente estabelecidas entre a
Criação (o Criador) e a sociedade dos homens se encontram no
interior desta — e em cada homem.
O mito aborda, em sua linguagem própria, a ambigüidade do
social e o aleatório que o afetam: ele resulta de uma oscilação neces
sária entre aliança e enfrentamento, ordem e desordem. A socieda
de é mostrada como o produto da negociação e do compromisso, da
dificuldade e de uma liberdade que pode se tornar excessiva. Os
bwas afirmam sem medo do sacrilégio: “Aquilo que Deus refez tan
tas vezes, o homem pode modificar.” Eles propõem também, por
meio da narrativa mítica, uma interpretação psicológica que faz do
desejo uma força que anima; o desejo é o “ser que atiça o interior”,
age como uma “pessoa da obscuridade”, leva o indivíduo a seu limite
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para “precipitá-lo na felicidade” ou “mergulhá-lo na infelicidade".
Ele é aquele pelo qual se efetua a realização pessoal, mas também a
desagregação geradora da desordem em si e ao redor de si. Delineia-
se assim uma espécie de energética das pulsões. Finalmente, é
importante destacar — como o faz enfaticamente a relação mítica —
a função do jogo e do arbítrio. A Criação é um “grande jogo", as cria
turas vivas são os atores de um espetáculo que Deus incessante
mente apresenta. A Criação é uma recriação, o Deus dos bwas tem o
privilégio do riso, segredo de que os homens vão querer se apoderar
e do qual farão finalmente a razão de suas festas. O que é tomou
forma pelo efeito do jogo e do espetáculo, cuja finalidade primeira
foi o “riso de Deus”. O arbítrio divino é a figura da necessidade, e os
caminhos do jogo da Criação constituem as figuras do acaso. Os
homens entram progressivamente nesta “parte” que não tem fim, e
seu conhecimento é primeiro o conhecimento das regras móveis do
jogo do mundo.7
Em certas tradições remotas do espaço cultural africano, a
antropologia restituída pela narrativa mítica e as práticas ritualizadas
são essencialmente, pode-se dizer sem exagero, uma entropologia:
um saber que mantém permanentemente a obsessão da entropia, da
perda e da desordem. Ocorre o mesmo com os astecas, fundadores
do México, quando os Capetos fundam progressivamente a França e
sua identidade, criadores de um império, geradores de um poder
temido por todos os seus vizinhos. Sua interpretação do mundo é
exemplar, na sua visão paroxisticamente dramática da certeza na
destruição do universo em cataclismos capazes de provocar o apare
cimento de “monstros do crepúsculo”. Sua cosmogonia é uma genea
logia de mundos criados e destruídos: quatro dentre eles — quatro
“sóis” — precederam aquele no qual vivem e que sabem igualmente
ameaçado de ruína. O primeiro foi aniquilado pelas “forças obscuras
da terra”, o segundo pela violência das tempestades, o terceiro pela
chuva de fogo, e o quarto pelo dilúvio de 52 anos. É dos escombros
deste último, e graças ao sacrifício de seu próprio sangue que apare
ce Quetzalcoatl (a Serpente Emplumada), fazendo surgir a raça dos
homens atuais; eles aparecem em um universo que não foi criado de
uma hora para outra, mas conduzido em ciclos de construção (de
ordenação) e de destruição (de redução ao caos). Nada do que exis
te é estável e assegurado de permanência, tudo está condenado à
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degradação longa e lenta. Os astecas ligaram de forma indissociável a
economia do Cosmo e a dos processos humanos. Todas as gestões —
a da cidade, a do império e a do mundo — são uma só; elas se sus
tentam e se condicionam umas às outras. São uma resposta, um apa
rato à lei inexorável da Criação: o Cosmo engendra sua própria des
truição, a energia se esgota “no calor da vida”, o tempo se desagrega
a ponto de atrair o fim do futuro. Esta física e esta metafísica trágicas
acompanham uma sociologia que não o é menos; as forças sociais se
corroem, a sociedade sofre os efeitos da deterioração...
Para remediar, diminuir ou retardar a degradação, tudo deve
ser programado e concorrer à salvaguarda energética. O indivíduo
está inteiramente subordinado a essa dificuldade, e tudo aquilo que
pode afastá-la — o jogo livre, bem como o desvio — é reprimido. Mas
esta rude gestão não é suficiente, é preciso criar uma nova energia,
recarregar o universo e, com ele, a sociedade. A máquina do mundo
deve ser alimentada de energia vital, de “água preciosa”, quer dizer,
de sangue humano. O sacrifício de homens e mulheres se toma uma
técnica tanto quanto uma operação simbólica e ritual; capta forças
que seriam usadas na dissipação sem seu freqüente cumprimento,
permite “afastar dia após dia o ataque do nada”, entretém a ordem
cósmica que, por esse motivo, parece-nos ainda mais monstruosa.
Jacques Soustelle mostra o paradoxo que acarreta esta visão do
mundo: “É uma idéia levada rigorosamente às suas conseqüências
mais extremas... com uma lógica perfeitamente coerente, condu
zindo a esse paroxismo sangrento uma civilização, que não estava
fundada sobre uma base psicológica mais desumana e mais cruel que
outras.”8 Muitos ensinamentos podem ser tirados disto, independen
temente de quaisquer avaliações morais. A descrição do mundo
pelos astecas é concebida — ao contrário da descrição que a maioria
dos mitos e a ciência longamente propuseram — segundo as catego
rias de economia estrita das forças, da irreversibilidade de um
tempo, que chega a seu esgotamento junto com todas as coisas, e o
fim de uma ordem em um caos criado por cataclismo, sinalizando o
término de um ciclo. Trata-se de uma termodinâmica cósmica não
denominada: a certeza do reino da entropia que se traduz em degra
dação qualitativa, em desaparecimento das diferenciações, em perda
de energia eficaz. A história dos homens é a história de uma luta per
manente e trágica contra esse processo. Nesse projeto sem prazo, é
a simbólica e o rito, o governo dos signos e das ações sacrificiais que
fornecem os meios de estabelecer a ordem, de lutar contra a desor
dem generalizada enquanto estado que atrai — como se diz hoje. Os
filósofos epicuristas reconheciam efeitos de ordem sobre um fundo
de desordem; os astecas eram produtores de ordem, e a um custo
elevadíssimo, apesar da força da desordem; para eles, o real é uma
construção frágil que corre o risco de se destruir a qualquer momen
to. O que eles levaram ao extremo se toma um revelador “da grande
parcela de arbítrio e de contingência que ocorre nas questões huma
nas”; e, também, do totalitarismo que pode dominar de forma abso
luta a sociedade, quando este arbítrio é imposto sem tréguas até
suas mais impiedosas conseqüências.
Diante do mito original, aparece o mito dos novos começos,
que almeja a ruptura com a história vigente no sentido de provocar
a chegada da história desejada. É o que recorre ao “princípio espe
rança”, de que trata uma sociologia definida em sua especialização,
como estudo das expectativas, das profecias e dos messianismos,
dos prelúdios revolucionários. É preciso mostrar aqui a diferença:
este mito se inscreve em um tempo histórico (o dos homens, e não
de meras entidades ou figuras imaginárias), e não no “tempo antes
do tempo”, de acordo com uma fórmula que abre freqüentemente a
narrativa mítica das origens do mundo. Mas é um tempo que permi
te conjugar ruptura e nascimento. O que está lá aparece como uma
desordem iníqua, uma violência feita aos homens e uma injustiça,
um mundo falso e mau; o que é anunciado se apresenta como um
mundo verdadeiro, uma ordem cujo aparecimento deve ser provoca
do, sem que por isso se estabeleça a ilusão de um retomo ao passa
do, que permitiria restabelecer algum estado ideal. A ordem e a har
monia são projetadas no futuro. Elas se realizarão, e tudo concorre
para esta espera: homens fora do comum, mediadores e mensagei
ros — de Deus ou da história — , são seus iniciadores e promotores;
acontecimentos sucessivos são reconhecidos, enquanto signos de
uma desordem crescente, cujo fim próximo será uma catástrofe des-
truidora; novas ordens regem as condutas, provocam movimentos
de dissidência, introduzem ritualizações que convertem a esperança
em ação. O mito trabalha na esteira da ação, passa por cima dos
homens para se realizar, estabelece sua relação com as potências
simbólicas das quais eles pensam ter o apoio, ele alimenta a palavra
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"quente", que dá a certeza que o mundo pode e vai mudar. A histó
ria está longamente marcada por essas manifestações, que tomaram
a forma de revoltas ou revoluções fundadoras, ou de inovações reli
giosas, que engendram primeiro uma liberação e uma re-criação no
imaginário e acabam por transformar o real. Em tempos mais recen
tes, a descolonização foi freqüentemente traçada por meio dessas
iniciativas, o sagrado traçando o rumo da política.
A África foi nessa época o continente onde tais iniciativas se
multiplicaram, onde os mitos que anunciavam os novos começos
eram abundantes. Durante mais de meio século a região congolesa
foi uma das mais fecundas; ali nasceu sobretudo uma religião
(Igreja) recente, a quimbanda. O cristianismo colonialista faz o
papel de inspirador e de provocador de rejeições; é rejeitado porque
é acusado de traduzir para a linguagem do simbolismo e do rito as
relações de dominação, de discriminação e de desigualdade, mas é
utilizado enquanto repertório de onde saem os primeiros temas da
liberação. O fundador, Simon Kimbangu, fracassou na carreira de
missionário protestante, antes de se tomar uma figura messiânica.
Foi depois dos trinta anos que ele recebeu as primeiras provas de
ser um eleito de Deus, submetendo-se à injunção de ensinar uma
nova fé e manifestando dons de cura. Provoca então uma dupla rup
tura: com as igrejas cristãs, onde as dissidências logo se multiplica
ram, e com os adeptos divididos dos cultos locais neotradicionais;
ele só retém a relação fundamental estabelecida com os ancestrais,
garantia de uma aliança propícia ao nascimento de um mundo liber
tado da lei estrangeira e colocado em ordem. Sua ação obtém um
sucesso rápido ao atacar aquilo que é, por excelência, a manifesta
ção da desordem generalizada: a feitiçaria difusa, trabalho oculto e
incontrolável pelo qual tudo se degrada, gerador e signo de uma
insegurança que a todos reduz a uma vida de permanente ameaça.
Também neste projeto, Kimbangu aparece como um salvador.
Torna-se, durante um curto período — de março a setembro de
1921 — o agente de um movimento, místico e social, que acarreta,
em razão de seu poderio, a intervenção da força colonialista. Ele é
preso, condenado, deportado. Sua “Paixão” então se inicia diante de
seus fiéis, sua Igreja se mantém ao sabor de sucessivas metamorfo
ses, sua força simbólica aumentada pelo martírio concorre para o
crescimento do mito. _______ _____
BIBLIOTECA
27 DE CIÊNCIAS
HUMANAS E
EDUCAÇÃO
Ele se toma a referência original, o fundador de uma religião
autóctone, mesmo conservando as aparências cristãs, o ponto de
partida para novos tempos; mais tarde, sua própria pessoa, apresen
tada sob 12 manifestações, associadas aos 12 meses do ano, definirá
um ciclo temporal marcado por este calendário místico. Mas, no
princípio, Kimbangu está essencialmente identificado na sua quali
dade de salvador, surgido de uma desordem que ele converterá em
ordem, pela graça divina, da qual se beneficia sem nenhuma media
ção. A desordem está reconhecida nas provas e nas “misérias”
impostas pela dominação estrangeira, na degradação dos costumes
de agora em diante sem regras (sem “mandamentos”), propiciadora
do aumento das manobras de feitiçaria, na corrupção do poder indí
gena e da autoridade. A cupidez sem limites e a sexualidade selva
gem são as figuras principais da desordem; o sexo e o dinheiro a
designam bem como a feitiçaria (a insegurança). A espiral de desor
dens conduz inelutavelmente ao caos, às catástrofes e às revoltas,
que destruirão o mundo mau e pouparão os adeptos da nova fé; e,
no final, à fundação do “Reino” no interior do qual tudo e todos
encontrarão um lugar justo.
O mito se organiza e se desenvolve em função da pessoa funda
dora. Ela estabelece as etapas de sua transfiguração. Kimbangu é o
messias (o enviado que deve salvar), o salvador (aquele que realiza a
salvação coletiva e individual), o mártir (a vítima eleita cujos sofri
mentos são a condição de uma redenção, de uma passagem para um
mundo novo), o rei (o criador de uma sociedade nascida de um con
trato moral tomado vivo); ele é também o “Grande Simão” cuja coni
vência com as forças destruidoras do mal e as que são geradoras do
bem permite ter a certeza da vitória final; ele é, em cada um desses
projetos, o instrumento de Deus. Uma fórmula o afirma: ele é “tudo
isto ao mesmo tempo”. Seu distanciamento favorece o processo de
elaboração simbólica: ele tem o dom da ubiqüidade, pode agir por
suas meras aparições; ele tem o poder de comandar os elementos e
de provocar a última catástrofe lembrada pelo “reino do sangue ver
melho”; ele formula a Lei que fará surgir a ordem desejada; ele des
via o poder material confiscado pelos dominadores estrangeiros em
proveito de seu povo. Tudo contribui para manter a espera de sua
volta, associado ao total desaparecimento da sociedade recusada. Os
cânticos dos adeptos proclamam de maneira antecipada: “O Reino é
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nosso. Nós o possuímos!” O tempo dos novos começos já chegou.
Mas a história pratica a ironia. Uma vez conquistada a independên
cia, a quimbanda se toma, no Zaire, um poder eclesiástico, político e
econômico. É a instituição de uma ordem, que não realiza a espe
rança sonhada ao longo dos anos de efervescência fundadora.9
Neste mito, como em todos de igual fatura, é da transfiguração
de um homem (parcialmente assimilado a Deus, a um deus ou a
qualquer outro poder) que se dará a transfiguração da história, a
abolição de uma era e o aparecimento de outra era. É a passagem de
uma desordem, pintada de ordem e mantida pela força, em uma ver
dadeira ordem. A figura original é um poderoso operador simbólico;
tudo se exprime e se dá no espaço do sagrado: na origem, uma elei
ção divina que designa o momento da ruptura com um mundo, que o
mal destrói; depois, uma aceleração do processo destruidor durante
o qual os sofrimentos do fundador anunciam a catástrofe final;
enfim, a criação de uma nova ordem, sob a aparência de um novo
reino, onde o acordo dos homens entre si e com o universo se reali
zará. Imagens de forte carga afetiva reforçam o corpo do mito, os
acontecimentos revelam sua verdade, práticas rituais e solidarieda-
des o mostram em ação. É pelo mito conjugado ao rito que a trans
formação deve se efetuar, se realizar ao mesmo tempo enquanto
teogonia e politogonia a fim de dar um outro curso à história, um
caminho que traga em si o sentido e a ordem diante do que os
homens, confusamente, se puseram à espera.
29
“floresta de símbolos”, ele os utiliza dando-lhes forma por sua asso
ciação e manipulando-os; ele recorre ao capital simbólico para expri
mir (afirmar-se ao longo de sua realização) e agir; é um operador
simbólico, mas não se reduz a isto. O rito é uma dramatização que
impõe condições de lugar, de tempo, de circunstâncias propícias, de
designação daqueles que inclui ou exclui; requer de seus executantes
que o conduzam de acordo, porque qualquer infração maior à ordem
que o constitui o arruina e cria efeitos nefastos, de desordem conta
giosa. Desde o momento em que se situam no espaço ritual, esses
executantes mudam de ser: sacerdote oficiante, sacrificador, másca
ra encarnando um deus ou um ancestral, possuído por um espírito
durante o transe. Por meio do jogo dos atores litúrgicos e daquilo
que o acompanha — cânticos, danças, expressões corporais — , o
drama ritual transfigura o real, provocando o aparecimento do imagi
nário. Realiza uma função mediadora, inteiramente aparente no
momento de sua intensidade mais forte; acarreta uma mudança de
estado dentro do qual as antinomias se dissolvem, e as dificuldades
desaparecem sob a ação da crença. Por um tempo, converte a incer
teza em certeza; faz com que qualquer coisa aconteça de acordo
com os poderes e as forças que governam os destinos humanos, e
cujo resultado é tido como positivo por toda a sociedade ou por
alguns de seus componentes.
O rito se apresenta sob múltiplas formas, segundo a natureza
das dificuldades que requerem sua efetivação, segundo sua ocorrên
cia periódica (repetição constitutiva de um ciclo) ou ocasional
(acontecimento que clama por uma resposta), segundo sua ação em
proveito da coletividade ou de indivíduos, segundo a riqueza de seu
conteúdo e a força do jogo dramático que acompanha seu movimen
to. Mas, em todos os casos, o rito aparece como distinto da ferra
menta — ligado aos procedimentos técnicos, racionais, de ação
sobre o mundo — e também como uma ferramenta que age sobre o
mundo por outros meios. Recorre à informação, ao saber; sob este
aspecto, pode ser comparado a uma memória (dispositivo de estoca-
gem) no sentido informático da palavra. Resulta de utilização desses
dados segundo um programa ajustado a um objetivo; por esta razão,
comporta fases, seqüências pelas quais se realiza a progressão de
sua ação. Ele tira sua eficácia das forças às quais se dirige, e, neste
sentido, impõe a conformidade a uma representação do mundo
30
(portanto da sociedade) e às significações, aos valores que a expri
mem. Seu arbítrio, sob ótica estranha, apenas designa o arbítrio par
ticular do qual resulta toda cultura. Inscreve-se no campo das con
venções culturais dominantes, geralmente de forma positiva, às
vezes de forma negativa. Com o apoio dos deuses, dos ancestrais e
de outras entidades, obtido por sua mediação, contribui para o bom
funcionamento da máquina social da qual se utiliza e mantém a
energia. Sua função desagregadora só aparece em circunstâncias ou
em conjunturas raras. O rito age sobre os homens por sua capacida
de de emocionar; o rito coloca-os em movimento, corpo e espírito,
graças à coalizão de meios que provoca. Faz a ligação com as forças
das quais manifesta a presença, por meio de um efeito místico que a
união sacrificial e o transe dão a prova maior. Apela à função imagi
nária. Explora o registro simbólico e o conhecimento reservado —
ou “profundo” — que lhe conferem a autoridade associada a todo
esoterismo. Conjuga linguagens: a sua própria, mas também a músi
ca, a dança, o gesto, e os atos litúrgicos definidos segundo seu códi
go particular. É uma obra coletiva que utiliza a m íd ia disponível,
uma espécie de criação m u ltim íd ia que obedece a convenções
estritas, da mesma forma que um drama indissociável do sagrado. O
rito requer a crença e a legitima para a participação na vida de um
além do universo humano banal; ele a reativa, mas associando-a a
um jogo onde a simulação dá forma a outro tipo de real, a um sobre
natural — mesmo que os participantes possam ter consciência dessa
simulação, enquanto dominados pelo efeito ritual.
O rito reporta às práticas que tratam explicitamente a ordem e
a desordem, indissociáveis de toda a vida, de toda a história. Qual
quer que seja sua pretensão, o rito é, por natureza, ordem em si
mesmo. É estruturado e constitui um sistema de comunicação e de
ação de uma grande complexidade. O antropólogo Victor Turner
lembra que o rito “possui ao mesmo tempo uma estrutura simbólica,
uma estrutura de valor, uma estrutura teleológica e uma estrutura
de função”, às quais convém acrescentar a que depende do imaginá
rio. Na medida que governa as condutas de comunicação cultural
mente definidas, ele se submete a um código geral, deste reforçando
a pertinência e a eficácia para as múltiplas repetições e variações
temáticas, que reduzem as ambigüidades ou os “ruídos” que diluem
a significação. Seu código tem força de lei, exceto para perverter
31
sua ação e os efeitos antecipados. O rito, como já foi dito, é um pro
cesso adaptado a uma finalidade; é uma liturgia e, enquanto liturgia,
comporta episódios ordenados, uma sucessão de fases durante as
quais se associam de forma específica os símbolos, os ícones, as
palavras e as atividades. Impõe a idéia de uma ordem global à qual
ele contribui e da qual participa, mesmo que sua execução possa
trazer hesitações resultantes de apreciações contraditórias ou incer
tas, e aparecer então sob a forma de bricolagem. O rito “é” necessa
riamente uma ordem, marcada pela não rigidez em quaisquer mani
festações rituais.
O rito trabalha para a ordem. Um grande texto chinês, o L ivro
dos ritos, diz que estes “têm uma única e mesma finalidade, que é a
de unir os corações e estabelecer a ordem”. A harmonia entre os
homens e o acordo do mundo, eis o princípio. Este se verifica princi
palmente nos casos de manifestações rituais periódicas associadas
aos ciclos da natureza e da atividade agrária. As regularidades natu
rais e as regularidades sociais se apresentam deste modo ligadas, os
homens tornando-as solidárias por meio de práticas simbólicas e tra
tando de salvaguardá-las conjuntámente. As ordens que elas regem
devem ser mantidas juntas, porque qualquer perturbação engendra
outras perturbações que se expandem por contaminação. Nesta cor
relação, aparece uma teoria: a natureza e a sociedade obedecem à
uma mesma necessidade; contrariar esta necessidade é ameaça
tanto para uma quanto para outra, é abrir um ciclo de desordens ao
longo do qual catástrofes, calamidades e crises sociais se alimenta
rão mutuamente. Disto resulta uma conseqüência: a afirmação de
uma tal solidariedade assimila a “natureza” da sociedade da “na
tureza” da natureza, a ordem e a permanência (a eternidade) de
uma garantem a ordem e a permanência da outra (assim obtida livre
da história e das incertezas). É aliás significativo que o poder políti
co tenha uma dupla função nas sociedades tradicionais, a da ordem
dos homens e a da ordem das coisas, que a relação seja concebida
como uma harmonia primordial mantida com a natureza ou como
uma relação positiva a estabelecer e a manter de maneira constante.
Assim acontece nos antigos reinos africanos — sobretudo na África
central e oriental — onde o rei alia à sua dignidade um governo “na
tural” dos homens a um governo político da natureza. Na Ruanda
monárquica, “o rei, concebido ao mesmo tempo como o responsável
32
político dos fenômenos naturais e como o fecundador da ordem
social, é a garantia desta harmonia preestabelecida mas sensível, na
medida em que toda anomalia da ordem natural acarreta um desre-
gramento sócio-político, e vice-versa”.10 A desordem trabalha muitas
vezes escondida, o poder a impede ou contraria seus objetivos; a
teoria social também, ao impor a conformidade a uma ordem cuja
degradação nada poupa (a natureza inclusive) nem ninguém, fazen
do do rito um instrumento das regularidades ou um corretor dos
defeitos da ordem.
É graças ao rito que o indivíduo se toma um homem social, e
que o curso de sua vida passa do nascimento à morte por suas mais
importantes etapas. O rito entra em uma ordem (sua própria socie
dade), está nela situado e nela progride até o fim de sua existência.
A iniciação masculina efetua a socialização, é o “verdadeiro” nasci
mento, o acesso a um estado duplo de realização, na medida que a
criança é considerada como um ser incompleto; consagra a maturi
dade física, procede à marcação do corpo e confere à sexualidade
sua disciplina; comporta revelações e ensinamentos, a entrada no
conhecimento e a imposição de uma moral sem as quais é impossível
existir socialmente. Para uma simbólica muitas vezes utilizada, a ini
ciação masculina se dá à vida e ã vista como uma morte (à infância e
ao mundo das mães) e um nascimento (à maturidade e ao mundo
social) simbólicos; ela é a mímica ritual do parto de homens, feitos
para ser ajustados à sociedade que os acolhe. A iniciação provoca a
interiorização da ordem própria a esta: e a mantém, abrindo um pro
cesso que permite subir os degraus do conhecimento e do status
social na medida que a idade avança. Faz com que cada geração
nova contribua para a conservação da ordem. Ao contrário, a morte
aparece como uma vitória da desordem, um atentado ao fluxo da
vida associado à impureza. O rito funerário visa o restabelecimento
de um e o desaparecimento de outro. É preciso que a obra nefasta
da morte esteja relacionada a uma causa, raramente tida como natu
ral nas sociedades tradicionais: o costume africano de interrogar o
cadáver bem o demonstra ao forçá-lo a dizer seu segredo. É preciso
que a morte seja tratada de forma regulamentada, para que não se
torne um agente de desordem que vagueia entre os vivos, mas, ao
contrário, um poder benéfico que age em proveito deles; só o traba
lho simbólico e ritual pode converter o negativo (potencial) em posi
33
tivo (atual), o defunto temido em ancestral propício. É preciso
enfim que a coletividade se libere da “morte do morto”, que se puri
fique, que elimine os fatores de desorganização e de degradação e
faça dos ritos funerários a ocasião de uma verdadeira renovação. É a
dramatização ritual, na qual tudo e todos se acham engajados, que
produz este efeito no momento de maior intensidade emocional. Os
dogons do Mali, já mencionados, fazem explicitamente de funerais
notáveis uma ocasião para lembrar os fatos primordiais e fundado
res, de manifestar uma continuidade resultante da conformidade,
para reavivar as normas e as relações sociais mais importantes. Em
uma época crítica, quando a morte exerceu sua ação diluidora e tor
nou manifesto o trabalho das forças da destruição, a dramaturgia
litúrgica reúne a totalidade dos participantes em uma ação que
exprime a permanência e o poder da ordem social.
O rito traz uma resposta ao acontecimento, ao inesperado, ao
aleatório; ele afasta a ameaça neles contida ou administra a fachada
de seus crimes, tomando-os aparentes. De modo que o rito não man
tém mais uma ordem, opera como redutor de uma desordem real ou
suposta: sua intervenção se situa no campo das conjunturas imprevi
síveis, temidas ou nefastas. Quando toda a coletividade se encontra
nesta situação, esta é vivida muitas vezes como uma calamidade que
resulta de uma vontade má (a de uma força) e de uma falta que força
sua própria responsabilidade. Tanto quanto a morte, o acontecimento
não é encarado como natural; revela p o r seus efeitos uma intenção e
um processo que é preciso identificar recorrendo à adivinhação, aos
artifícios apropriados. A resposta ritual não exclui a resposta técnica,
mas o rito prevalece sobre a ferramenta, e esta, tanto mais o período
crítico perdurar alimentando um sentimento de impotência. A seca, a
epizootia, a epidemia, a esterilidade, a feitiçaria e o conflito insidioso
em vias de generalizar-se são os geradores dos ritos; espera-se que
estes ergam obstáculos a um mal cujo contágio, real e simbólico,
ameaça criar uma desorganização generalizada. O destino, a sorte, a
desgraça, a morte, a desordem estão no interior de uma mesma confi
guração interpretativa. É o excesso que indica a presença da desor
dem ou o risco de sua irrupção, a tal ponto que mesmo a sucessão
rápida de acontecimentos felizes é percebida como algo prestes a
romper a ordem normal das coisas e muitas vezes conduz a práticas
conjuratórias. A ordem e a norma estão ligadas; a ordem é medida.
34
O infortúnio individual é geralmente relacionado a uma agres
são mística ou a uma transgressão; nos dois casos, existe a infração
a uma lei da tradição, desconhecida (é a punição dos poderes que a
revela) ou conhecida (é o desrespeito consciente de uma obrigação
que acarreta as conseqüências nefastas). O risco e o perigo vêm da
falta de conformidade às normas que regem a ordem social tradicio
nal. Em certas sociedades, o inverso revela a retidão: entre os dor-
zês da Etiópia, as pessoas bem-sucedidas “podem proclamar [segun
do Dan Sperber] que sua saúde e sua riqueza testemunham seu bom
comportamento moral’’. Os ndembus da Zâmbia atribuem à adversi
dade que assalta as pessoas — eles a denominam aflição — o fato de
estarem possuídas por um determinado espírito; um adivinho o
identifica; uma associação ritual apropriada intervém para apaziguar
o espírito que “emergiu” e provocou as desordens. Neste caso, a
culpa importa menos que a cura; o essencial é que a ordem seja
capaz de vencer a desordem. Uma vez tratada, a vítima entra em ini
ciação e se torna membro do grupo de culto, que a tomou como
encargo espiritual; transformada pela operação simbólica e dramáti
ca, ela se converte em um fator de ordem. Turner afirma sobre o
ritual ndembu, do qual é analista, que ele “pode ser considerado
como um instrumento que consegue maravilhosamente exprimir,
manter e purificar periodicamente a ordem social secular” . Tal
resultado não é obtido de forma mecânica; é o produto de um traba
lho coletivo constante, redutor de uma desordem que não pode de
saparecer. Por meio do rito, os conflitos, as desorganizações, os
males são tem porariam ente transformados; o rito não age nem
como um meio de repressão, nem como um exutório; capta as ener
gias que se desprendem dessas situações para os converter positiva
mente; faz do que é provocador de confrontos, de ferida social e de
degradação individual, um fator de reconstrução e de coesão. Se
existe um desejo nessas circunstâncias, é o desejo de “dominar as
divisões arbitrárias criadas pelos homens, de superar por um
momento — ‘dentro e fora do tempo’ — as contingências materiais
que separam os homens e os desarmonizam com a natureza”.11
O rito explicitamente político manifesta por necessidade o jogo
jamais realizado da ordem e da desordem, em uma abundância sim
bólica única e dando a perceber uma verdadeira dramaturgia do
poder. Os períodos de interregno, ou de vacância do poder detido
35
pelos sobeFanos das sociedades tradicionais, abrem freqüentemente
uma crise ao mesmo tempo simbólica e efetiva. É um tempo de
desordem e de violência, de suspensão da norma, de agressão e de
confusão; quando a força geradora da ordem perdeu seu apoio, o
corpo real se toma inoperante, e o caos se estabelece por meio de
ações miméticas e de múltiplas transgressões. Parece então que a
ritualização age no sentido inverso: é preciso deixar o campo livre à
desordem, para que a ordem reavivada surja de uma sociedade pro
visoriamente falsa, pervertida, aparentemente desgovernada. Com a
entronização do novo soberano, o rito é recolocado sobre seus pés:
ele “ordena” com mais força, enquanto a Lei retoma um novo e mui
tas vezes rude vigor; o rito se conclui através de um ato sacrificial ou
comunitário recombinando coesão e conflito sociais. Nas sociedades
tradicionais, esta ascensão ao poder não é jamais um procedimento
puramente constitucional e encenado com fausto. O rei é feito, pro
duzido através de uma verdadeira transfiguração. Ele muda de ser
ao receber sua dignidade. Sua pessoa pode se tomar o lugar onde se
enfrentam ritualmente as forças da ordem e da desordem. No univer
so congolês, particularmente entre os sukus do Médio-Congo, no
Zaire, a iniciação real que conduz à investidura requer o isolamento,
a des-aculturação, o abandono a uma espécie de selvageria e às vio
lências, a retração de toda ordem, antes que o personagem soberano
seja ritualmente construído e investido da força do poder. A ordem
deve, nele, vencer a desordem para que ele possa, na sua função, sal
vaguardá-la. O imaginário e a dramatização ritual fazem surgir deste
enfrentamento uma energia nova, capaz de tudo manter segundo sua
ordenação e de assegurar o fluxo da existência.12
Nenhuma sociedade pode ser purgada de toda desordem; é
preciso então saber lidar com ela em vez de tentar eliminá-la. Este é
principalmente o papel do mito e do rito: tratam a desordem no sen
tido de lhe dar uma forma dominável, de convertê-la em fator de
ordem, ou de deportá-la para os espaços do imaginário. Por meio de
procedimentos, onde operam principalmente a transgressão e a in
versão, o mito e o rito se tomam os instrumentos que permitem jun
tar ordem e desordem, do mesmo modo que a Grécia antiga associa
va medida e desmando, razão e excesso dionisíaco. Todas as cultu
ras fazem de algum modo a parte do fogo; todas as tradições com
portam esses dois aspectos indissociáveis.
36
A tradição joga com o movimento
37
dicionais, sobretudo aquelas onde o lugar do poder político perma
nece discreto, um sistema principal exprime e impõe as dificuldades
provocadoras de conformidade. É o caso do culto dos ancestrais que
rege os destinos individuais e tenta assegurar a salvaguarda da
sociedade contra os maiores riscos da alteração. Um antropólogo de
grande renome, Meyer Fortes, o demonstrou a propósito dos tallen-
sis de Gana: a relação com os ancestrais manifesta pelos meios sim
bólicos a necessária submissão às relações sociais e ela justifica, na
linguagem do sagrado, esta aceitação da ordem estabelecida. Está
dito que: os ancestrais são onipotentes, os homens não têm outra
alternativa senão submeter-se; os ancestrais situam-se em posição
de “árbitros supremos”, mantêm sob a ameaça de morte a conformi
dade aos axiomas morais, transmitidos de geração em geração. Do
ponto de vista do indivíduo, a inserção na ordem simbólica (que as
figuras ancestrais governam) e a inserção na ordem social (que as fi
guras notáveis governam) são uma só.14 A tradição fixa as posições,
o sagrado esconde a história, ou seja, o movimento do qual nenhuma
sociedade saberia escapar.
Mas a tradição só joga em parte sobre as aparências de estabili
dade; deve compor com o que a corrói e tentar subjugá-lo. Os do-
gons do Mali manifestam uma clara consciência da presença da
desordem e do perigo do imobilismo, que impediriam toda “marcha
para frente”. A narrativa mítica, anteriormente analisada, mostra-o
claramente: conclui pela necessidade de contínuas retomadas de
equilíbrio à ação de forças contrárias, que se enfrentam no homem
(principalmente no conflito edipiano), como em qualquer campo da
criação. A tradição não é nem o que parece ser, nem o que diz ser;
os antropólogos já sabem disto. Ela está dissociada da mera confor
midade, da simples continuidade por invariância ou reprodução
estrita das formas sociais e culturais; a tradição só age enquanto
portadora de um dinamismo que lhe permite a adaptação, dando-lhe
a capacidade de tratar o acontecimento e de explorar algumas das
potencialidades alternativas. O tradicionalismo se apresenta sob
várias formas, e não somente sob o único aspecto de uma herança
de dificuldades que impõem o enclausuramento no passado.
Vamos distinguir, como fiz recentemente, três realizações prin
cipais. O tradicionalismo fundamental visa a manutenção de valores,
de modelos, de práticas sociais e culturais as mais enraizadas; está a
38
serviço de uma permanência, do que se supõe como constitutivo do
homem e da relação social, conforme o código cultural do qual ele é
o produto e o conservador. O tradicionalismo formal, que não exclui
o anterior, utiliza as formas mantidas cujo conteúdo foi modificado;
estabelece uma continuidade de aparências, mas serve a novos obje
tivos; acompanha o movimento sempre preservando uma relação
com o passado. O pseudotradicionalismo corresponde a uma tradi
ção reelaborada, intervém durante os períodos onde o movimento se
acelera e engendra grandes reviravoltas; permite dar um sentido ao
novo, ao inesperado, à mudança, e de domesticá-los impondo-lhes
um aspecto conhecido e tranqüilizador. Ele arma a interpretação,
postula uma continuidade, exprime uma ordem que nasce da desor
dem.15 Neste sentido, revela a que grau o trabalho da tradição não
está dissociado do trabalho da história, e como a tradição é uma
reserva de símbolos e de imagens, mas também de meios, que per
mitem apaziguar a modernidade. A tradição pode ser vista como o
texto constitutivo de uma sociedade, texto segundo o qual o presen
te se encontra interpretado e tratado.
39
NOTAS
40
recente é a de S. Asch, LÊglise du prophète Kimbangou, de ses ongines
á son rôle actuel au Zaire, Paris, Karthala, 1983.
10. P. Smith, “Aspects de 1’organisation des rites”, in M. Izard e P.
Smith, Lajbnction symbolique, essais d’anthropologie, Paris, Gallimard,
1979.
11. V.-W. Tumer, Les Tambours d’affliction, analyse des rituels
chez les Ndembu de Zambie, trad. francesa, Paris, Gallimard, 1972.
12. Cf. G. Balandier, Le détour, pouvoir et modemité, Paris, Fayard,
1985, capítulo I, “O corpo enquanto ‘corpo político’”.
13. Dados retomados na tese (não publicada, E.H.E.S.S.) de D. Lima
Handem, Nature etfonctionnement du pouvoir chez les Balanta Brassa.
14. M. Fortes, Oedipus and Job in West African Religion, Cam-
bridge, Cambridge University Press, 1959.
15. G. Balandier, Anthropologie politique, Paris, P.U.F., 4. ed. 1984;
cap. VII, “Tradition et modemité”.
41
A C iê n c ia p e r d e a h a r m o n ia
43
sua totalidade e em seu movimento, de uma certa forma de cultura
que a torna possível e mantém seu desenvolvimento. É assim que as
diferentes culturas, portadoras de outras lógicas da natureza, passa
das ou ainda vivas, a obrigam à sua própria avaliação, desde que
essas variações culturais não sejam grosseiramente imputadas a um
déficit — o de sociedades ditas incapazes de ciência, como elas
foram ditas incapazes de devenir histórico — ou a um arcaísmo
exclusivo de qualquer racionalidade. Nesta exploração feita fora de
suas fronteiras, a ciência começa a achar os espaços da tradição e
do mito; não mais os exclui, ela os constitui às vezes enquanto uma
“intercrítica” , de que Henri Atlan mostrou a fecundidade.1A ciência
faz reaparecer enraizamentos ocultos e há muito escondidos. Além
disso, no interior de seu próprio território cultural, não é inteira
mente dona de sua própria linguagem. Seus novos objetivos — o
complexo, o devenir, e um pelo outro — , s u e i s novas leituras de um
real, cujas infinitas decifrações fazem com que não possa mais se
satisfazer apenas com suas palavras, suas formalizações. Ela toma
emprestado, contribui para a circulação de metáforas e de figuras,
utilizando-as enquanto mídia, intervindo em sua comunicação com
a natureza. A ciência é antropomorfista, notadamente no campo da
biologia, quando recorre a noções tais como código e programa,
comando, circulação e quantidade de informação, transcrição e tra
dução. Imagina máquinas naturais, segundo as máquinas finalizadas
e produzidas pelo homem, que têm a capacidade de manter uma
orientação em um ambiente variável e em parte imprevisível.
Recorre às vezes, para melhor representar os seres que trata, a um
animismo de comodidade; desse modo, quando a física das partícu
las não as designa a partir de suas próprias convenções ( bozons W e
Z, por exemplo), mas também pela atribuição de uma identidade e
de uma personalidade que definem seu comportamento.2
No esforço de busca e expressão que a leva a incursões extra
territoriais, a ciência consente em outra apresentação de si mesma e
a uma relativização mais abrangente. Não fala apenas daquilo que a
ela concerne, vai adiante. Às vezes sob o risco de se perder, quando
se aventura nos caminhos de um sincretismo que associa sua pró
pria racionalidade à racionalidade de outras tradições, principal
mente as do Oriente: assim, o Tao pode habitar a física atual graças
à habilidade de um Fritjof Capra.3 Percursos menos aventureiros
44
conduzem a uma epistemologia reavivada, à renovação da filosofia
das ciências, a uma correlação das concepções presentes da nature
za, do homem e do social, a uma interrogação das linguagens.
Efetuam-se itinerários cruzados, quando os filósofos e cientistas se
encontram, e que nem sempre evitam os desvios pela substituição
dos papéis e dos jogos de saber, que estes regem. Nessas turbulên
cias de onde surgem por sucessivos impulsos as obras da moderni
dade, paradigmas se perdem, aparecem e desaparecem, ou então se
mantêm até serem abandonados, mais dia menos dia. O paradigma
ordem/desordem é às vezes novo (por meio de suas figuras nas ciên
cias atuais) e muito antigo (por meio de seus exemplos nos primór-
dios da filosofia ocidental). Ele se combina com uma ciência que
hoje deve se manter nos limites do parcial, do provisório, de uma
representação fragmentada do mundo, e com o movimento geral das
sociedades e das culturas contemporâneas, muitas vezes mostrado
sob os aspectos de um progressivo caos.
O retom o in icia l
45
___ V...4 UU1 HU qucuici ud umuaue, ao acordo geral, e enquan
to obscurecimento da finalidade. Neste sentido, “a ordem vale infini
tamente mais que a desordem” ( Tim eu). Não é apenas objeto de
saber (opção do realismo), mas também de avaliação e de preferên
cia. Para Platão, a ordem das coisas e a ordem que imputamos às
coisas estão indissoluvelmente ligadas; nosso conhecimento é reve
lador da ordem das coisas, e este conhecimento só se toma possível
se existe “uma natureza das coisas, uma realidade imutável das for
mas” . É preciso que a razão seja e que o ser seja razão, pontua
Mareei Conche, do qual faço aqui a análise. Mas, se a ordem é prefe
rível — porque o real é racional — , o homem pode todavia ser gera
dor de contingência e desordem.
Depois de Platão e Aristóteles, a leitura dupla em termos de
ordem e desordem se traduz em opções de escolas, em oposições
privilegiando uma ou outra dessas duas interpretações. Nos dois
extremos, os estóicos e os epicuristas. Para os estóicos, a razão é
onipresente, está em tudo, rege o sensível e o curso das vidas indivi
duais, não deixa lugar ao acaso e à desordem, subordina o que pare
ce “contra a natureza”, da mesma forma o mal. O mundo é harmo
nia, é a cada instante tudo o que deve ser: uma verdade que só apa
rece para o sábio, porque só um pensamento em concordância com
tal idéia tem a capacidade de chegar a isto. A razão “insensata”, ge
radora de paixão e conflito, que leva o homem a se insurgir contra
seu destino e lhe opor sua liberdade, produz “efeitos de desordem”.
Alimenta o desejo de mudança que contradiz a realidade do mundo,
sistema harmonioso e justo que não precisa mudar nada. O pensa
mento estóico afirma a necessidade da ordem, negando-se a com
preender os desvios da razão e a necessidade de uma ordem que
permite fazer surgir, de si mesma, a desordem.
Os epicuristas operam de maneira diferente, apreendem “os
efeitos de ordem em um fundo de desordem”. Não existe um mundo
uno, conjunto de todos os conjuntos compreensível por meio de
uma visão única, mesmo divina, mas a soma de uma infinidade de
elementos, de sistemas ou de ordens parciais. Uma “soma de
somas” , diz Lucrécio. Este ajuntamento sem limites traz em si
ordens parciais, arranjos (matéria, ser vivo, mundo visível), cuja rea
lidade se manifesta por nossos sentidos e cuja explicação é de cará
ter atomista. A ordem visível “é apenas uma parte de um universo
46
rk u u u v n u in
47
zem aqui a contradição; de qualquer maneira, jogam o jogo do cada
um por sí.
A desordem refere-se ao elemento, onde reside seu princípio; e
as possibilidades de desordem crescem na medida do grau de auto
nomia, de individualidade que dispõem as partes: do cristal às
outras formas da matéria, depois aos organismos vivos, depois à
sociedade onde a “liberdade” dos indivíduos é maior. Neste sentido,
os fenômenos materiais e vitais, onde “os elementos estão tecidos
em apertadas tramas de relações”, não ficam jamais em presença de
uma desordem absoluta — exclusiva de toda relação, de toda lei — ,
mas de desordens relativas. O que leva a diferenciar as duas princi
pais figuras da desordem, independentemente de qualquer juízo de
valor. A desordem se torna destruidora, quando existe perda de
ordem, quando os elementos se dissociam e tendem a não mais
constituir uma estrutura, uma organização, mas uma adição, uma
simples soma (uma “ordem de soma”). A desordem se toma criado
ra, quando acarreta uma perda de ordem acompanhada de um
ganho de ordem, quando é geradora de uma ordem nova que substi
tui a antiga, desta podendo ser superior. O processo de complexão
opera segundo esta lógica, não por adição, mas por substituição em
um nível mais elevado. De um lado, a realidade é amputada de for
mas de ordem que desaparecem sem compensação; de outro, é enri
quecida por novas formas de ordem.6
Repetidas vezes aludiu-se à importância do retorno filosófico
no pensamento científico atual: parentescos se estabelecem, equiva-
lências de linguagem aparecem; interrogações se repetem — sobre
tudo a que impõe o caráter paradoxal da transformação do acaso em
organização. Tal reaproximação é ainda mais importante quando o
homem torna a ocupar um lugar na reflexão teórica do sábio, na
medida que os sujeitos humanos haviam sido eliminados do palco
das ciências “duras”, durante um longo período para que a objetivi
dade fosse absoluta. Não se trata evidentemente de revalidar em
termos modernos uma harmonia, onde se comunicam e se acomo
dam a ordem da natureza e a ordem dos homens — social, política e
moral — , mas de definir melhor como o homem se situa no mundo
que ele descreve, como ele dialoga com a natureza, como a lógica de
sua forma de conhecimento está ligada à lógica do real. São os biólo
gos Henri Atlan e Francisco Varela, principalmente, que acentuaram
48
a obrigação de não dissociar o estudo do ser vivo do conhecimento
do ser vivo e, além disso, do conhecimento do conhecimento. Do
local de seu saber, melhor explorado, mostram como se efetua a
percepção de um mundo ordenado, mesmo de forma incompleta: de
um mundo onde a criação da ordem procede da desordem por
desorganizações e reorganizações sucessivas.
49
posição dos planetas). A visão corresponde a um universo de leis
imutáveis, que governam do exterior os fenômenos, inclusive os que
manifestam em seus diversos aspectos o mundo dos homens, embo
ra nele o tempo não tenha vez, a tal ponto que o relógio planetário
só serve acessoriamente para dar as horas. Tanto quanto um estado
de saber, o projeto de Dondi revela uma cultura, uma forma social e
o poder correlativo — apenas alguns poderosos dispõem dessas má
quinas que permitem regulamentar a decisão sobre os movimentos
do universo. De fato, no início do século XIV, a astronomia e a astro
logia experimentam um grande sucesso, e muitas pessoas as tratam
com uma certa familiaridade. A ordem do mundo e a ordem dos ho
mens parecem estreitamente ligadas; cada planeta tem uma respon
sabilidade, e a astrologia se toma um medium, um meio de comuni
car e gerar o curso das existências individuais ou coletivas. Aco
modar-se a um universo do qual o acaso é excluído parece ser a úni
ca possibilidade de reduzir o aleatório nos processos humanos.7
Tal concepção do mundo traz em si uma ciência, herdeira de
um longo passado, que formula questões e fornece respostas sobre
as relações do homem com a natureza; reconhece nesta uma inteli
gência que desenvolve ordenadamente todos os movimentos que a
revelam. Ao se tomar moderna e ao se instituir por etapas, ao longo
dos séculos vindouros, a ciência marcará rupturas, sem que isto apa
gue inteiramente a antiga maneira de ver. Tentará romper com os
dogmatismos anteriores (sobretudo o aristotelismo e os tratamentos
simbólicos ou analógicos geradores da harmonia no cosmo, no
mundo ordenado); fará progredir esse diálogo com a natureza que é
a experimentação; buscará uma autonomia crescente diante dos
poderes que lhe são exteriores — e, conseqüentemente, provocará
reações de rejeição, de desconfiança ou de entusiasmos, suscitados
pela manifestação de uma racionalidade universal. Todo este projeto
concorre para tomar a natureza inteligível a partir da afirmação de
que ela está inteiramente ordenada, e, a partir daí, impondo-lhe a
linguagem científica.
Dois conjuntos de circunstâncias contribuem ao estabeleci
mento da ciência modema: a presença de um meio intelectual que
Alexandre Koyré designa pela conjugação de Galileu e Platão; a for
mação e o desenvolvimento de um meio econômico e social que,
desde o final da Idade Média, com a expansão das cidades e das ati-
50
vldades comerciais, favorece as inovações técnicas e as artes
manuais, assegura uma conivência entre os inventores e os mecenas
inebriados do novo. Trata-se de uma dinâmica geral em operação,
em favor da qual se assume o risco do novo e de seus efeitos trans
formadores. A ciência resultante e tornada provocadora de um
movimento de modernidade é levada, é estimulada por uma corren
te proveniente de múltiplos projetos. Mas ela não destrói de um só
golpe as raízes culturais mais antigas. Nos primórdios do século
XVII, Kepler revoluciona a pesquisa astronômica com o cálculo das
órbitas, sem contudo expulsar de sua reflexão alguns dos saberes
esotéricos. Ele faz da esfera o símbolo da Trindade, crê em uma
alma do mundo, simboliza os quatro elementos e a “quinta-essência”
por meio dos poliedros, além de justificar o saber dos astrólogos e
sua eficácia; “ouve”, nas proporções matemáticas que “ele descobre
entre os movimentos planetários, um hino à glória de Deus.”8
Aos cálculos de Kepler, Galileu acrescenta a prova experimen
tal (a observação através da luneta astronômica, inaugurada em Pá-
dua) e sua própria contribuição à descrição do movimento com as
leis que regem a queda dos corpos. O que se afirma, ao mesmo
tempo que a “harmonia do mundo”, é uma concepção da ciência que
lhe confere a capacidade de descobrir o conjunto da verdade da
natureza, esta estando de algum modo fechada sobre si mesma. O
mundo é homogêneo — ainda que cada descoberta local seja credi
tada a uma visão geral — , porque descritível com a ajuda de uma só
linguagem, a das matemáticas colocadas a serviço da observação e
da experimentação. E porque o mundo é homogêneo, a complexida
de de suas aparências pode ser reduzida. O simples se toma a chave
do complexo. Ilya Prigogine, referindo-se ao pensamento teórico de
Galileu e de seus sucessores, sublinha este aspecto: “O diverso se
junta à verdade única das leis matemáticas do movimento.”9 Uma
metafísica acompanha claramente uma física, as duas são a afirma
ção de uma ordem dinâmica e apesar disto conservada.
Os inventores e os construtores de máquinas também se ocu
pam do movimento, eles o traduzem em funcionamento, depois
fazem de seus conhecimentos e habilidades um novo modo de
exploração racional da natureza. Utilizam descrições e conceitos
matemáticos, deduzem as relações entre as velocidades e os deslo
camentos de peças reunidas, os movimentos relativos destas e seus
51
efeitos. Exemplares do relógio multiplicam-se a partir do século XIV,
aparecendo ao mesmo tempo como um objeto científico — pelas ra
zões que acabam de ser explicitadas — e maravilhoso, na medida
em que ajuda a compreender. Os movimentos da natureza são desse
modo assimilados aos da máquina, particularmente ao relógio que
representa a ordem do mundo em sua perfeição; um mecanismo
construído segundo um plano que seus elementos dominados reali
zam, homólogo de uma natureza autômata — de uma “máquina uni
versal” — cujo Deus é o Relojoeiro. Na medida que a física não está
ainda desligada de uma metafísica, a prática experimental e teórica
não está dissociada de uma teologia. O homem mecânico compreen
de e conhece, pelo exercício de sua arte, a Obra divina.
Com Newton, a ciência nova parece chegar a uma realização
que a Europa das Luzes transforma em objeto de glorificação; herói
nacional, Newton será, por muito tempo depois de sua morte, apre
sentado como símbolo da revolução científica, o modelo inspirador
de todo conhecimento científico. Ilya Prigogine e Isabelle Stengers
definem assim a síntese newtoniana: a de “dois desenvolvimentos
convergentes, o da física — a descrição do movimento, com as leis
de Kepler e as da queda dos corpos formuladas por Galileu — e o
das matemáticas que desembocam no cálculo infinitesimal”, sempre
mostrando que esta ciência está indissociável de uma prática: “Uma
de suas fontes é claramente o conhecimento dos artesãos da Idade
Média, o conhecimento dos construtores de máquinas: [ela] dá, pelo
menos em princípio, os meios de agir sobre o mundo, de prever e de
modificar o curso de alguns processos, de criar dispositivos próprios
para usar e explorar algumas das forças e dos recursos materiais da
natureza.”10 Um mundo definido pela sua ordem mecânica, cujas leis
imutáveis comandam do exterior (como um plano) o desdobramen
to dos fenômenos, estranho à história, sempre propício à aliança do
homem com um Deus racional e inteligível, mas também à explora
ção pela sociedade “esclarecida” de seus poderes e de suas riquezas.
A afirmação de Newton — a natureza está intimamente ligada
a si mesma — permite conferir um poder explicativo universal às
leis que ele formulou, à linguagem que exprime. A ordem natural
nova se torna, por extensão, metáfora e tradução mítica, a forma de
toda ordem. Da ordem do mundo à ordem dos homens em suas
diversas manifestações (sobretudo as morais e políticas), tudo se
52
A ULBUKU&M
53
gação do calor nos sólidos à pesquisa das condições necessárias à
concepção de uma máquina térmica ideal, depois à fundação defini
tiva da termodinâmica de equilíbrio por Clausius, há um percurso de
quase meio século. Acompanha a virada da industrialização, o apare
cimento do reinado do fogo (forjas e máquinas a vapor), a subversão
do sistema de representação: passagem de uma cosmologia do Sol,
recebida de Newton e Laplace para uma “termogonia”.
No início, é bom lembrar, encontra-se uma mudança da repre
sentação mecanicista que começa por manter uma certa relação
entre uma imagem e a outra. O estudo das máquinas térmicas é pri
meiro relacionado ao das máquinas clássicas: considera as primeiras
como dispositivos que efetuam uma conversão de energia e onde,
em estado de equilíbrio, o balanço é irreversível. É a medida do des
vio entre o ciclo ideal e o ciclo real das máquinas a vapor, que con
duz Camot à descoberta de dois princípios da termodinâmica: o da
conservação da energia (já formulado no tocante às máquinas mecâ
nicas) e o da propagação irreversível do calor, que explica a perda
de rendimento. Momento de uma ruptura que se traduz pela impos
sibilidade, apesar de resistências longamente mantidas, de atribuir
um mesmo status a todas as energias. Clausius pontua a diferença
ao opor processos mecânicos, onde conservação e reversibilidade
são associadas, aos processos termodinâmicos onde pode acontecer
a conservação de energia sem que haja reversibilidade. Em todo sis
tema térmico, ele distingue os fluxos de calor “úteis”, que compen
sam exatamente a conversão de energia ao longo do ciclo, dos fluxos
“dissipados”, perdidos ao longo do ciclo na medida em que não po
dem ser trazidos à fonte pela inversão do funcionamento da máqui
na. Duas formas de energia são desse modo diferenciadas: uma “li
vre”, capaz de efeitos mecânicos, outra “ligada" ao sistema; a primei
ra, como faz o calor, se transforma na segunda durante o ciclo, don
de há degradação qualitativa da energia. Isto define a entropia do
sistema e permite prever, por degradação contínua no núcleo de um
sistema isolado, um estado final dentro do qual toda energia está
“ligada” e, portanto, não utilizável. Se o universo é interpretado con
forme esse modelo, só pode ser a manifestação de uma evolução que
marcha no sentido de uma crescente entropia: a energia do mundo é
constante, a entropia do mundo tende para um máximo (Clausius).
Os processos naturais caminhariam no sentido de um estado de
54
fl
55
crescente, que efetuam, sob o efeito do acaso calculável, a passagem
da ordem à desordem — o movimento inverso sendo muito pouco
provável. A ordem e o acaso estão associados; os sistemas se tomam
estruturas de ordem relativa onde atua o desequilíbrio, que evo
luem — se nenhuma ação externa venha contrariar a tendência —
para a desordem máxima. A ordem e o equilíbrio não estão mais
ligados, a desordem opera enquanto estado “atraente”.
Isto está em parte desprovido de tal capacidade nos trabalhos
recentes (os de Prigogine), fundadores da termodinâmica não-li-
near. Esta trata dos sistemas que estão longe do equilíbrio, das flu
tuações que podem levar o sistema para um comportamento dife
rente daquele então descrito. Aparecem novos pontos de vista que
conduzem ao reconhecimento de estruturas ditas dissipadoras.
Esta palavra traduz a associação entre a idéia de ordem e a do des
perdício, e foi escolhida para exprimir o fato novo: a dissipação de
energia e de matéria — geralmente associada às idéias de perda de
rendimento e de evolução para a desordem — se toma, longe do
equilíbrio, fonte de ordem; “a dissipação está na origem daquilo que
se pode chamar de novos estados da matéria”.12 Existe, neste caso,
criação de ordem a partir da desordem; o caos se tomou fecundo. A
fecundação opera por amplificação: de origem local, em lugar de
regredir, ela invade o sistema e acaba por engendrar uma nova
estrutura de ordem; o ponto crítico, a partir do qual este novo esta
do qualitativo é possível, recebe o nome de bifurcação. Em outras
palavras, os pontos de bifurcação são os pontos de instabilidade de
um sistema: uma perturbação, muito fraca no início, é suficiente
para impor progressivamente um novo comportamento macroscópi
co. Ao princípio da ordem de Boltzmann opõe-se o princípio da
ordem por flutuações, que age sobretudo no centro de um sistema
de fraca integração. Neste caso, as flutuações podem se estender e
afetá-lo cada vez mais no seu todo. O sistema não escapa mais à
dominação, aos efeitos do tempo. A explicação é necessariamente
geradora-. “É preciso descrever o caminho que constitui o passado
do sistema, enumerar as bifurcações atravessadas e a sucessão das
bifurcações, que decidiram a história real dentre as muitas histórias
possíveis.” É preciso recorrer a um complexo de noções, mesmo na
descrição dos sistemas físico-químicos mais simples: as “de história,
de estrutura e de atividade funcional se impõem ao mesmo tempo
56
para descrever a ordem p o r Jlutuação, a ordem cuja fonte é o não-
equilíbrio”.13
Os trabalhos de Ilya Prigogine dedicados às estruturas dissipa-
doras conduziram a empregos do modelo fora de seu próprio campo.
Da matéria inerte à matéria viva, depois ao social, efetua-se uma
transferência, que visa encarar a conversão da desordem em ordem
e o aumento da complexidade. O ser vivo e o ser social têm em
comum o fato de serem sistemas complexos e abertos, isto na rela
ção de troca com o mundo exterior. Como demonstraram os biolo-
gistas, essas duas propriedades levam a considerar a entropia sob
pelo menos dois aspectos: o de uma entropia crescente verificável
na escala do sistema completo, ligado a seu meio, e o de uma dimi
nuição da entropia que operou localmente fora da formação de
estruturas organizadas. O crescimento local da ordem é compensa
do por um crescimento global da entropia.
Seria preciso ainda encarar o paradoxo de maneira mais direta:
a saber, a transformação do acaso em organização sem que este
esteja a serviço de uma necessidade exterior, como é o caso do neo-
darwinismo, mas, ao contrário, seja o gerador da necessidade. Para
o biólogo, não se trata somente de se interrogar sobre a identidade
do ser vivo, sobre a capacidade de mantê-la e de reproduzi-la ao
longo da vida, mas igualmente sobre a capacidade do ser vivo de
produzir, em interação com seu meio, outras formas de complexida
de ou do radicalmente novo. Sob este segundo aspecto, o ser vivo
poderia ser metaforicamente percebido como uma espécie de estru
tura dissipadora, um processo auto-referente onde a flutuação se
toma finalmente fonte de ordem. Henri Atlan, biofísico, trata o pro
blema utilizando os instrumentos dos cibernéticos e dos lógicos. Ele
alia ao mesmo tempo a ordem e a complexidade, e formula dois
princípios, o da ordem pelo ru íd o e o da com plexidade pelo
ru íd o , ou seja, pelo efeito de perturbações aleatórias. Ordem e com
plexidade são definidas do ponto de vista do observador externo, e
não a partir das propriedades intrínsecas dos seres naturais organi
zados. Tais noções remetem a uma forma de conhecimento, não a
um conhecimento total (inacessível) das propriedades desses seres
e de suas eventuais determinações. O papel organizador do acaso
deve ser entendido de fora, a partir da percepção da história desses
seres naturais. O que Jean-Pierre Dupuy ressalta no sentido de mos
trar como pode se resolver a confusão paradoxal dos contrários, da
ordem e da desordem: “O acaso, o ‘ruído’, tem o efeito de reduzir as
dificuldades que ordenam o sistema para o observador. Este diag
nostica, portanto, um aumento da variedade, da complexidade, o
que quer dizer ainda, para ele, da ‘desordem’. Mas na medida que,
por hipótese, o sistema continua a ser organizado e a funcionar, o
observador é obrigado a postular que o acaso se converteu em novas
significações pelo sistema, significações às quais ele, o observador,
não tem acesso.”14 Além do aumento aparente da desordem, é preci
so então postular a formação de uma nova ordem, da passagem para
uma complexidade maior. Esta é a afirmação da autonomia do sis
tema, capaz de criar a ordem (a organização) e o sentido para si
mesmo e por ele mesmo, afirmação que enfraquece a dependência
diante do meio. A teoria da auto-organização, da autonomia oposta à
heteronomia, seduziu; circulou ligando disciplinas separadas; incitou
a enunciar de outra forma os problemas da morfogênese social e
cultural, e a validar (não sem riscos) o desejo de criar uma socieda
de autônoma, inteiramente liberada da transcendência e tornada
mestre de sua contingência.
De uma termodinâmica à outra, se a metáfora mecanicista se
perde, se outras homologias se impõem pelo fato das comunicações
estabelecidas de disciplina para disciplina, se os tratamentos for
mais se diversificam e ganham em pertinência, a evolução conduz
entretanto a considerar sempre mais — conjuntamente — a singula
ridade, o aleatório e o embaralhamento hierárquico, que os ligam ao
universal e ao determinado. Ondulações estranhas que a atividade
de observação e de conhecimento manifesta agora, mas cujo misté
rio ainda não foi desvendado. É o incitamento a outras explorações
teóricas, equipadas de novos instrumentos lógicos, matemáticos e
informáticos — computadores mais poderosos, capazes dos mais
elaborados tratamentos gráficos. Na esteira das pesquisas dedicadas
à termodinâmica não-linear, são todos os fenômenos não-lineares, as
turbulências, as menos previsíveis manifestações — inclusive as
mais triviais, como o comportamento da torneira que pinga ou as
figuras fantasmagóricas da fumaça do cigarro — que fixam de agora
em diante a atenção e provocam uma coalizão de meios intelectuais
e tecnológicos. A dinâmica não-linear tende a se tornar a chave de
acesso a uma outra compreensão de todas as coisas: “A natureza
58
não é linear”, já está dito. 0 caos não é apenas o enigma que é preci
so decifrar, se torna a palavra, o signo, o símbolo pelos quais se
designam esses novos projetos. Ele provoca o entusiasmo de alguns
cientistas e a curiosidade de jornalistas especializados; um dos pio
neiros dessas pesquisas, o matemático americano Ralph H. Abraham,
não hesita em dizer que elas são “tão importantes do ponto de vista
histórico quanto a invenção da roda”.
A partir de agora a natureza e o mundo não são mais conside
rados sob o aspecto de uma ordem no centro da qual trabalha a
desordem, mas sob o aspecto inverso: o das turbulências, dos movi
mentos de aparência errática. O projeto não é mais estabelecer a se
qüência ordem -*■ desordem -» ordem, mas de interrogar a desordem
(ou o caos) enquanto tal, independentemente de seu suporte, de tor
nar o imprevisível compreensível e, se possível, ulteriormente, previ
sível. Os caprichos do tempo e as falhas muito conhecidas da previ
são meteorológica foram um dos capítulos iniciais. Tal foi a função
de Edward N. Lorenz, que inventou um modelo geométrico do tem
po em escala mundial, utilizando dados relativos aos movimentos
globais das massas de ar. Não sem provocar inicialmente um enorme
ceticismo, ele demonstrou a possibilidade de conceber um modelo
matemático que possa levar em conta o imprevisível, ajudar a com
preender o “comportamento caótico”. A tradução gráfica (o recurso
aos modelos matemáticos gráficos) faz aparecer na tela do computa
dor uma(s) configuração(ções) que sai(saem) progressivamente da
desordem: um jogo de estados atraentes se manifesta na base do
caos. Formas muito particulares, privilegiadas mesmo, penetram
pelas aparências caóticas, e se definem matematicamente. O termo
estranho atraente ( strange attractor) as designam. Tais figuras não
aparecem à primeira vista: “Os pontos fulguram aqui e ali sobre a te
la até que os contornos da imagem se precisam como uma silhueta
que emerge do nevoeiro, formando uma curva que se desdobra infi
nitamente sobre ela mesma.” 15 Os pontos, ou as linhas brilhante
mente coloridas que serpenteiam na tela criam uma figura que pro
gressivamente se define. O resultado dos trabalhos de Lorenz —
uma espécie de borboleta esculpida com as cores da luz — se tor
nou o emblema desses estranhos atraentes.
Com os matemáticos, o estudo do caos se desenvolve indepen
dentemente das manifestações concretas; este foi o caso dos traba
59
lhos de Mitchell Feigenbaum, que progrediram segundo um proces
so contínuo de abstração, de pesquisa de constantes a partir das
quais o imprevisível pode ser reduzido, de exploração dos proble
mas proporcionando uma larga margem à intuição. Com os pragmá
ticos, a dinâmica não-linear sai do campo das matemáticas e da físi
ca onde nasceu e é convocada a dar respostas de ordem teórica e de
soluções práticas, em domínios cada vez mais complexos: fisiologia,
medicina, economia e ciências da sociedade. A certeza de um eco
nomista da Universidade de Nova York é significativa nesse sentido,
ainda que pouco compartilhada: “Caos [apelido da nova disciplina] é
aplicável à economia apesar da complexidade."Alguns já tentam
decifrar esse mistério que são os sempre erráticos comportamentos
da Bolsa, e as crises cuja irrupção desconcerta e alimenta a inquieta
ção e o pânico.16
60
de vista filosófico, como sem unidade, sem sentido nem ordem ver
dadeiros... como não sendo mesmo um mundo, mas um conjunto
absurdo.”18 É preciso enfrentar o caos e se tornar uma espécie de
detetive, em busca das ordens parciais que ele encerra.
A ciência mede melhor seus limites, o conhecimento é interro
gado de outra maneira e se toma, ele mesmo, objeto de ciência. Ad-
mite-se hoje que é impossível chegar à uma descrição absolutamen
te lógica da totalidade do mundo, porque uma falha estará sempre
presente sob a forma de proposições indefinidas, cujo caráter de
verdade ou de falsidade permanecerá indemonstrável, e isto sem
qualquer tipo de recurso lógico. Começa-se a reconhecer que ne
nhuma linguagem formal pode chegar ao estado de perfeição, que
permitiria evitar essa cilada. Existe sempre a “incompletude”; o sis
tema formal contém, ao menos parcialmente, uma representação de
si mesmo; comporta proposições em auto-referência, que remetem
todas a si mesmas pelo efeito das “estranhas ondulações”; o arbítrio
do entendedor (suas convenções) não é inteiramente neutralizável.
Trata-se do “teorema de limitação” de Kurt Gõdel, que possibilitou a
reabilitação da analogia e da metáfora; a elas se credita o poder de
religar, fora de qualquer linguagem a p rio ri, dois sistemas diferen
tes e aparentemente incoerentes, em uma outra linguagem que os
ultrapasse e contribua para explicá-los.19
Se o saber científico dá lugar à incerteza, é também porque
chegou a um melhor reconhecimento da complexidade; a simplici
dade e a estabilidade se tomaram exceção, e não mais a regra. O
problema do pensamento complexo é aquele contra o qual lutou
Edgar Morin em suas obras dedicadas ao método (L a méthode'),
principalmente a partir da consideração do ser vivo. Ele mostra que
a dificuldade é de “pensar a união/desunião da vida sem desfazer,
reduzir, enfraquecer um dos dois termos”; ou, dito de outra forma,
de entender como, “a partir das dissociações, se criam novas unida
des complexas onde se juntam os diversificados, os diferentes, os
concorrentes, os inimigos, enfim”. Morin lembra justamente que as
desordens que afetam as existências vivas são inúmeras e ininter-
rompidas — “quanto maior a atividade, maior o trabalho produzido
pelas desordens; o aumento da complexidade e o aumento da desor
dem estão ligados.”20 Assiste-se de fato ao nascimento de uma nova
ontologia, cujos princípios podem ser apresentados, sob uma forma
61
multo simplificada, da seguinte maneira: todo ser é uma organiza
ção; esta, enquanto lugar, onde ordem e desordem se entrecruzam
de forma indecifrável, se ligam por hierarquias emaranhadas, é gera
dora de novas maneiras de ser. É sobre essa turbulência incessante
do mundo, sobre essa história ao mesmo tempo destrutiva e cons
trutiva, que os teóricos do caos dedicam toda sua atenção.
Nesse estado, as ciências da natureza facilitam sua reaproxi-
mação com as ciências do homem e da sociedade, ainda que umas e
outras se acomodem ao espírito do tempo, um tempo do movimento,
da mudança generalizada, do aleatório e das incertezas. Para a
mudança generalizada, o próprio movimento é que está cada vez
mais acrescentado de uma virtude explicativa, quando sua reflexão
foi por muito tempo centrada sobre a estrutura, a organização, o
equilíbrio, os grandes dispositivos de conservação ou de reprodução
social. A inteligibilidade da sociedade era então, e necessariamente,
a de uma ordem, de uma sincronia. Hoje, o tempo não é mais consi
derado somente como o tempo da evolução ou de períodos de rup
tura, mas em sua onipresença. Aparece como um componente da
sociedade, uma parte constitutiva de sua dinâmica, um motor conti
nuamente em ação. Sobretudo em razão disto, a sociedade se conce
be, ela própria, como uma “ordem improvável .”21
62
NOTAS
63
15. J. Gleick, “Le mystère du CHAOS", Dialogue, 2, 1985; apresenta
ção vulgarizada a partir de trabalhos de M. Feigenbaum. As pesquisas sobre
dinâmica não-linear, os estudos de sistema de alta complexidade multiplica
ram-se nos Estados Unidos (Centro Especializado de Los Alamos, Uni
versidade do Texas, Universidade da Califórnia, principalmente em San
Diego).
16. O interesse dos meios industriais e dos atores econômicos, nos
Estados Unidos, aparece em um artigo da revista Business Week, 4 ago.,
1986: “Making some order out of chaos”.
17. Ver F. Jacob, Lejeu des possibles, Paris, Fayard, 1981; evocação
de um mundo desprovido de espírito e de alma, de acordo com a ética do
conhecimento, uma ética que se encontra no oposto daquela à qual se refe
rem as grandes ideologias e as grandes teorias (os discursos unificadoresl.
18. M. Conche, “Ordre et désordre”, op. cit., p. 225. É a constatação
da barbárie que acaba de lançar outro filósofo, M. Henry: La barbarie,
Paris, Grasset, 1986.
19. Ver principalmente D. Hofstadter, Gõdel, Escher, Bach, les brins
d’une guirlande étemelle, Paris, Inter-Éditions, 1985.
20. Cf. E. Morin, a série de tomos de La méthode (I a III), sobretudo
o volume La vie de la vie, Paris, Seuil, 1980.
21. M. Forsé, L ’ordre improbable, Entropie et processus sociaux,
Paris, P.U.F., 1989.
64
3
65
mento dos procedimentos do pensamento que lhe dão forma, o
informam e o questionam: “É preciso um procedimento para disse
car o pensamento, não para manipular o comportamento.” 1 Se as
ciências sociais estão condenadas a um “novo” novo nascimento é
que a sociedade já não é mais a mesma; seu próprio movimento,
suas mudanças e suas desordens impõem outro diálogo com o social
a fim de tomá-lo mais inteligível.
Ao longo deste período oco, as ciências da natureza buscaram
sua revolução. Seus teóricos multiplicam — faço questão de lembrar
— as explorações extraterritoriais; eles se arriscam para fora das
fronteiras de seu saber, e suas formulações tomaram progressiva
mente o lugar dos “grandes relatos” de antigamente. Desse modo
contribuem para a renovação de todo método científico, qualquer
que seja seu objeto, sugerem e incitam o emprego de suas próprias
analogias e de suas metáforas. As pretensões a todo entendimento
global da sociedade, a toda formulação teórica unificadora, como as
tentações de trazer o complexo ao mais simples e ao mais estável,
estão desencorajadas. Ilya Prigogine e Isabelle Stengers afirmam:
“Não são mais as situações estáveis e as permanências que primeiro
nos interessam, mas as evoluções, as crises e as instabilidades... não
apenas o que permanece, mas também o que se transforma, as per
turbações geológicas e climáticas, a evolução das espécies, a gênese
e as mutações das normas que vicejam nos comportamentos so
ciais.”2 O simples se torna complexo, o múltiplo prevalece sobre o
singular, o aleatório sobre o determinado, e a desordem toma o lugar
da ordem. Se foi preciso encarar a “concepção de uma natureza
criadora de estruturas ativas e proliferantes”, é pelo menos necessá
rio creditar à sociedade um poder igual. Ela é, também, capaz de
morfogêneses imprevisíveis, do inédito, de uma produção contínua
de si mesma na qual a ordem e a desordem operam conjuntamente,
de um crescimento de complexidade multiplicador dos possíveis e
portanto fator de improbabilidade. A própria idéia de sociedade,
enquanto totalidade estabelecida na permanência, começa a ser
recusada: ilusão sobre a natureza das coisas sociais, ou projeção em
um futuro que se afasta sempre, ou perversão que desemboca no
autoritarismo. Como um efeito de eco à constatação extrema formu
lada por Prigogine: “Nenhuma organização, nenhuma estabilidade,
enquanto tal, está garantida ou legitimada, nenhuma se impõe por
66
rv u i j l i 1 / i i u u in
O retom o
67
então (o que é muitas vezes o caso) com uma sociologia da mudan
ça. É preciso partir da constatação que se toda sociedade está den
tro do tempo, engajada em uma história, o tempo está nela também:
nela adquire uma onipresença, nela exerce uma ação constante.
Esta se identifica pelo menos sob dois aspectos principais e, em
parte, contraditórios: um permanece ligado ao passado, à definição
anterior da sociedade, exprime a tensão no sentido do equilíbrio, a
busca da manutenção no estado; a outra atualiza a abertura para um
futuro mais nitidamente histórico, a capacidade criadora adquirida
“longe do equilíbrio” , manifesta a parte do aleatório e a produção do
novo. A imprevisibilidade não é necessariamente o sinal de um
conhecimento falso ou imperfeito; resulta da natureza das coisas, é
preciso reservar seu lugar e sua qualidade.
Mais ainda que o tempo do ser vivo, o tempo da sociedade não
se faz perceber sob uma única e monótona forma: a da repetição, da
reprodução ou do progresso unilinear, ou ainda da degradação,
então chamada de decadência ou declínio. Os tempos sociais são
múltiplos, ligados entre si de acordo com modalidades complexas.
Toda sociedade revela diferenças setoriais no que diz respeito à
temporalidade, à presença ativa do tempo e de seus efeitos. Alguns
setores podem ser tidos como lentos: o do sagrado, do religioso, que
se refere ao passado fundador tentando eternizá-lo, resistir aos ata
ques da história, manter uma conformidade; o dos agenciamentos
culturais e dos dispositivos emocionais que regem o vínculo a uma
sociedade “global” apresentado sob o aspecto da nação, da etnia, do
país ou da comunidade política, todos a afirmar sua existência, a
atribuir um valor elevado à sua continuidade. Tais setores definem
uma ordem muito globalizante, um estado atraente poderoso (se
gundo o léxico científico atual) que tende à subordinação dos indiví
duos e das coletividades pela forte integração; formam espaços onde
agem os fatores da conservação, que não conseguem impô-la inteira
mente, na medida que a dissidência e a inovação religiosas provo
cam rupturas e alimentam revoltas, e porque a separação da socie
dade “global” leva à ruína de sua ordem interna ou a querer subver-
tê-la radicalmente. Muitos setores podem ser considerados os mais
rápidos nas sociedades da modernidade: o das ciências e das tecno
logias de aplicação, em contínua expansão e detentoras de uma
crescente capacidade de afetar o homem em sua própria natureza,
68
na sua relação com o real e com o mundo sensível, em sua relação
com o meio ambiente; o da comunicação das informações, das men
sagens e das imagens, em constante revolução; o da economia, hoje
cada vez mais submetida às flutuações que às dificuldades dos ciclos
longos. Entre os dois conjuntos se situa, entre outros setores, o da
sociabilidade ou dos diversos movimentos da vida social subjacentes
às organizações, onde a ritualização dos comportamentos se conjuga
com a iniciativa que responde aos problemas do cotidiano e aos
desafios do acontecimento.
Essas temporalidades diferentes, de setor em setor, geram dis-
cordâncias, desajustamentos; quanto mais estes se acentuam, mais
os desequilíbrios se multiplicam e acentuam, ao fim e ao cabo, a
consciência de um estado de desordem e crise. Os efeitos das dife
renças de temporalidade não resultam apenas da ordem interna. A
relação entre sociedades, generalizada há pouco tempo, conduz a
um enfrentamento fundado globalmente sobre a desigualdade de
poder; leva cada uma delas a manter sua supremacia, ou a conservar
seu lugar, ou a elevar sua posição relativa e seu grau de autonomia.
Nesta competição, o jugo do tempo importa tanto quanto o acesso
às fontes e a capacidade de valorizá-las. O que é chamado de moder
nidade (marcando o avanço dos mais desenvolvidos) e moderniza
ção (marcando o esforço dos que querem chegar lá) apreende-se
primeiro como um movimento, como uma mobilidade geral com
efeitos cumulativos — positivos e negativos — em todos os domí
nios. As temporalidades das sociedades mais ativas, e portanto
dominantes, não estão em total harmonia com as temporalidades
das sociedades, que tentam interiorizá-las durante sua luta pelo pro
gresso, pela redução do atraso. Disto resultam desajustes de origem
externa e, conseqüentemente, novas rupturas de continuidade. Há a
multiplicação dos lugares de instabilidade, das possíveis bifurcações,
das escolhas a partir das quais a sociedade pode caminhar para for
mas de ordem consideradas preferíveis, ou superiores em termos de
competição. Mas reside aqui a exasperação contemporânea de um
estado normal, produzido pela conjugação das dinâmicas interna (o
movimento de dentro) e externa (o movimento que resulta das rela
ções com o de fora). Em toda sociedade, a ordem do conjunto é ape
nas aproximativa, vulnerável, sempre variável e, por isso mesmo,
geradora de incerteza.
69
Sem dúvida porque foi pouco ou mal recebida pelas teorias
sociais que prevaleceram durante décadas, esta consideração da fle
cha do tempo, do jogo das temporalidades, modificou, terminando
por impor, as representações atuais da sociedade. As sociologias do
equilíbrio e as sociologias da mudança não conseguem mais dar
conta da complexidade da sociedade, dos movimentos que dela são
indissociáveis como o são de toda vida, do constante trabalho da
qual é ao mesmo tempo a artesã e o produto. Há que colocar os pro
blemas de outra maneira, sem esconder os que perturbam, a come
çar pela questão da permanência, do que parece ter sido e estar
sempre inscrito no tempo. A continuidade é um fato e também uma
ilusão. As reviravoltas em todas as sociedades atuais acentuam o se
gundo desses aspectos: as palavras “crise” e “mutação” servem para
designá-las. A afirmação de uma mutação sugere ainda que a
mudança de forma proporciona um conhecimento diferente (mais
verdadeiro) do que é objeto de transformação. A identificação de
uma crise global restitui a esta sua função de manifestação, de um
revelador de uma natureza social que o curso normal dos aconteci
mentos manifesta menos. Ao impor sua manifestação, a situação
atual mostra e prova as propriedades principais — e na maioria das
vezes escondidas — de toda sociedade. Primeiro, é preciso repetir, a
sociedade se concebe enquanto uma ordem aproximativa e sempre
ameaçada; em graus variáveis conforme seus tipos ou formas, é o
produto das interações da ordem e da desordem, do determinismo e
do aleatório. Em seguida, a sociedade apresenta configurações cuja
reprodução não está assegurada. O próprio termo se tomou engana
dor pelo efeito da analogia e nefasto, porque esconde a realidade
social que resulta de uma produção con tín u a , jamais acabada.
Enfim, a sociedade se mostra como um conjunto unificado, como
uma forma cuja coerência interna se impõe, mas antes de tudo pelo
jogo das aparências que mascaram as rupturas e os desajustes. O
que é chamado de “sociedade” não corresponde mais a uma ordem
global existente, feita, mas a uma construção de aparências e repre
sentações ou a uma antecipação nutrida pelo imaginário. A socieda
de, para usar uma fórmula, está constantemente em busca de sua
unificação; este é seu horizonte.4
70
0 conde e suas heranças
71
toma ilusória a busca das continuidades. A forma social do futuro
não tem precedente, e a tarefa mais urgente é o reconhecimento e o
conhecimento de sua originalidade. Saint-Simon exige uma mutação
completa nas maneiras de pensar, comparável àquela hoje requerida
— o acesso a um equipamento intelectual diferente e largamente
difundido. Ele une esta criação ao progresso das ciências, ao saber
positivo fundado sobre a experiência e provocador de uma renova
ção epistemológica. A ciência e a competência são convidadas a
governar tudo, inclusive a moral e a religião ( “O sistema religioso se
rá aperfeiçoado”). Isto posto, a organização — a construção do rea'
de acordo com a racionalidade científica e técnica — aparece. Saint-
Simon procura no saber do seu tempo os modelos, as analogias, as
metáforas necessárias à edificação da ciência do homem. Ele passa
rapidamente de uma física a uma fisiologia da sociedade; esta é con
cebida sob a forma de corpos organizados cujas propriedades são
consideradas comparáveis às dos organismos vivos. As “leis da exis
tência” da sociedade não diferem das leis formuladas pela fisiologia
geral. Tal referência à ciência que nasce do ser vivo — igual à que
inspira hoje certas recomposições da teoria social — leva Saint-
Simon a entender a sociedade não somente sob os aspectos das fun
ções e das organizações, mas também sob os aspectos dos equilí-
brios precários e das degradações — da patologia e da morte.
Não é o caso aqui de apresentar a obra em sua abundância e
suas ambições — o projeto seria o de uma monumental história das
sociedades — , nem de seus efeitos — uma contribuição à formação
do pensamento socialista e um apelo ao aparecimento de um novo
cristianismo — , mas naquilo que esteve na origem de uma filiação e
que parece revelador das preocupações contemporâneas. Aquele
que foi considerado o “Fausto francês” , porque ele se achava o
inventor da forma própria à nova sociedade, é primeiro o pensador
que se esforça para tomar seu tempo inteligível e para trazer toda
ordem social à temporalidade. Sob este segundo aspecto, a interpre
tação recorre a um esquema evolucionista e reconhece o jogo de
uma necessidade. Mas a evolução é provocadora de rupturas, forma
dora de sociedades cuja diferença radical (a novidade) deve ser
compreendida nela mesma. A evolução não manifesta uma continui
dade que seria identificável a um progresso. A continuidade não
seria um objeto de estudo, apenas pode sê-lo a organização social
72
em seu devenir. Saint-Simon propõe um método gerador, não uma
interpretação historiciata. Identifica um movimento de desorganiza
ção e de reconstrução, de decomposições progressivas que provo
cam rupturas de equilíbrio e criam tendências que levam a outros
equilíbrios. Na medida que a sociedade está sempre “em ação”, que
é o lugar de uma “atividade total”, temporalidades múltiplas ali se
manifestam, ali se conjugam ou ali se opõem. Ao tomar consciência
de si mesma, adquire a dupla capacidade de se pensar e de se pro
duzir. Toma-se uma criação coletiva cujos maiores créditos ficam,
neste início do século XIX, para os industriais e os intelectuais. O
reconhecimento de uma auto-organização da sociedade se anuncia e
busca sua formulação.
Saint-Simon afirma que o conhecimento novo só pode ser o das
mutações sociais, dos tempos de ruptura e de transição. Isto posto,
ele se impõe pensar a passagem que a Revolução Francesa inaugu
rou e que deve encontrar sua saída em uma “verdadeira revolução”:
a formação da sociedade industrial. Não existe restauração, mas
criação. Esta só pode se realizar tendo primeiro levado ao extremo
as incoerências que o período revolucionário revelou. O estado tran
sitório é o de uma crise, elementos opostos ali coexistem em uma
ordem sem duração; a ruptura deve se produzir sob a avalanche de
uma necessidade impossível de contrariar e geradora de uma forma
social radicalmente diferente. O momento histórico é o de uma
bifurcação: depois da ruína do edifício mantido durante a transição
— sua redução à desordem — , uma nova “organização social” apare
cerá. A desordem só intervém como condição para o nascimento de
outra sociedade em circunstâncias históricas excepcionais; ainda
não há um lugar claramente determinado no curso ordinário das coi
sas sociais.
A desordem lá está subentendida, não mencionada. Com efei
to, Saint-Simon tenta descobrir o que constitui a unidade de uma
sociedade ou provoca ao contrário suas rupturas, o que permite o
funcionamento social ou engendra a mudança. Sua resposta hoje
seria considerada do tipo holística ou sistêmica: ele a relaciona com
a ciência dos “sistemas” ou “organizações” — a que ele quer fundar.
A organização global é o fato ao qual os elementos particulares
devem estar ligados; eles não têm nem função, nem sentido inde
pendente; seria um erro isolar os elementos constantes e afirmar
sua perenidade: mantidos em aparência, mudam de natureza, até de
forma. Seria igualmente um erro apreender o “todo sistemático” a
partir dos elementos, e ainda mais anular logicamente este apegan
do-se nos efeitos de agregação que resultam da interdependência e
interação dos diversos atores sociais. Saint-Simon definiu o sistema
pelo jogo das forças conflitantes em relação de dominação/subordi
nação, das forças heterogêneas cuja combinação forma seu equilí
brio ou seu desequilíbrio. A dinâmica dos conflitos, sobretudo a das
classes sociais, e não a desordem — imputada unicamente à transi
ção — , contribui para a constante criação da sociedade: no caso, a
sociedade que realiza o futuro “necessário” da Indústria e onde vice
jam os movimentos sociais. Saint-Simon identifica entretanto fatores
de desorganização: a dinâmica social espontânea que é contrariada
pelo poder do Estado, o movimento das ciências e das idéias que
constituem uma verdadeira força social. Mas ele não consegue res
ponder à questão inicial: como ligar a coesão do todo social aos
desequilíbrios que nele se atualizam sem que haja permanente tur
bulência, e não apenas durante os períodos ditos transitórios ou
revolucionários? Saint-Simon hesita entre um modelo inspirado na
física newtoniana (o da harmonia) e um modelo emprestado da nova
ciência do ser vivo (o de uma complexidade produzida com riscos ao
longo dos processos de evolução). No final de sua vida, ele tempera
o otimismo que o conduziria a ver na sociedade industrial nascente
uma sociedade plenamente ativa e consciente de si mesma, inte
grando todos os seus participantes e pacificada, onde poderia se ela
borar uma nova liberdade.5
Marx reconheceu ser “impregnado” das idéias de Saint-Simon;
ele o é na medida em que qualifica de reveladores e aceleradores os
períodos revolucionários; ele o é menos em sua concepção da socie
dade, reconhecida em estado de desequilíbrio permanente, em
razão de suas contradições e dos conflitos de classe. Neste caso, a
desordem é constante, e o próprio mercado é menos um fator de
regulação que um caos propício à injustiça. Esta desordem está con
tida pelo fato da dominação de classe, até o momento em que a
intensificação da luta de classes consegue efetuar uma reviravolta
na estrutura. A filiação direta a Saint-Simon conduz a Auguste
Comte e a Émile Durkheim. O primeiro, que foi durante um tempo
secretário de Saint-Simon, aderiu com entusiasmo à sua doutrina,
74
n U L & U K U E iM
75
governam a ação dos atores sociais; possuem uma inércia própria, so
bretudo aparente durante os períodos em que se transformam os
dois outros níveis. O terceiro nível é o das representações coletivas:
valores e ideais, idéias e imagens relacionadas à sociedade existente
— valores sociais últimos, que se revelam e são aceitos na perma
nência ou enquanto geradores de conformidade; mas Durkheim
demonstra uma repetida atenção às representações que nascem
durante os “momentos de efervescência”, porque são geradores de
mudanças. Se estes três níveis e suas subdivisões são tratados em
constante interação, é às representações coletivas (como Auguste
Comte e as idéias) que ele confere uma autonomia, uma capacidade
criadora. Ele lhes atribui a qualidade de principal fator do desenvol
vimento social.
Ao estudar as crises, e mais ainda a anomia, Durkheim introduz
a temática ordem/desordem, sem no entanto designá-la dessa manei
ra. Ele localiza sua preocupação primeira sob outras formas: saber
como “a sociedade, sempre permanecendo conforme sua natureza,
está constantemente a se tomar algo novo” . Tal método é gerador, a
sociedade se produz sempre, deve ser considerada em ação. Ele atri
bui toda sua importância no fato de o tempo estar presente na socie
dade e desta se inscrever no tempo. Cada um dos níveis sociais obe
dece a temporalidades diferentes que criam discordâncias, depois
incompatibilidades. É a partir desta constatação que Durkheim ela
bora sua teoria das crises, que não são vistas como acidentes da his
tória, mas como fases inevitáveis que de certa maneira marcam o fu
turo das sociedades. Os períodos de crises são aqueles durante os
quais a não-correspondência de um nível para o outro, e no interior
de cada um, fica mais acentuada; esse desajustamento (diríamos
desordem) pode ter um valor positivo, pois o progresso (formas de
ordem superior realizadas no final de um processo de desenvolvimen
to) dele procede em parte. O problema aparece também quando se
considera a capacidade criadora, inovadora, que Durkheim confere à
“efervescência” da sociedade: sob a superfície fria das sociedades
encontram-se as “fontes de calor”, lugares onde “uma vida intensa se
elabora, busca suas saídas e acaba por encontrá-las”. É a intuição de
uma termodinâmica social que mascara uma mecânica social associa
da à ordem instituída, prescrita e obtida pelos efeitos das sanções; é o
reconhecimento do fato de que as sociedades são ao mesmo tempo
76
ri i r Cj o u i \ u ci wi
77
turbulências são mais ou menos contidas; o outro, que aparece
como um solo novo na esteira dos movimentos sociais, e não apenas
na esteira das revoluções. Um permanece associado, como nos pre
cursores da sociologia, ao tempo da mudança; o outro remete a uma
permanência, à efervescência de uma vida social capaz de criar uma
ordem e formas novas de sua própria desordem.7
Saint-Simon ocupa um lugar — menor, todavia, que o atribuído
a Proudhon — na obra teórica de Georges Gurvitch. É a concepção
da sociedade como realidade em ação, de uma obra coletiva que
ultrapassa os participantes individuais. É, além disso, o reconheci
mento de uma “visão genial”: a da “riqueza extrema” da sociedade,
de seu “vulcanismo” que impõe uma sociologia dinâmica, que leva ao
estudo dos “progressos da liberdade através dos determinismos” .
Tal crédito não exclui a crítica, principalmente a denúncia de um
otimismo sustentado pela espera do “triunfo da harmonia total na
sociedade”. Gurvitch tem poucas ilusões. Sua própria vida, marcada
pelas turbulências deste século, a começar pela Revolução bolche-
vique com a qual cedo rompeu, alimentou seu vigor polemista e sua
singularidade. Em uma apresentação tardia de seu itinerário intelec
tual, ele diz ser o “excluído da horda” . Ele não adere jamais; a todo
dogmatismo ele opõe o uso da dialética, destruidora de tudo o que
emperra “o contato com as sinuosidades do real”. Com a complexi
dade a ele inerente.
Gurvitch afirma a necessidade de considerar a sociedade sob
todos esses aspectos — pois é multidimensional — e em toda sua
profundidade — , porque se faz perceber como um arranjo precário
de níveis, estratos ou patamares. Estes se interpenetram e se
influenciam mutuamente, desde a base ecológica e morfológica até
os “estados mentais e atos psíquicos coletivos”. Entram em conflito,
suas relações são denominadas dialéticas ou tensionais. Essas ten
sões “verticais” se juntam aos conflitos, às tensões “horizontais” pró
prias a cada um dos níveis e dos quais os antagonismos entre classes
sociais são a manifestação mais aparente. Umas e outras estão pre
sentes em toda realidade social; a vocação da sociologia é de fazê-las
surgir “na superfície” e na consciência, de desmascarar as contradi
ções e tensões latentes, indissociáveis da existência coletiva. O
modo de ser da sociedade é dramático: um drama agudo acontece
entre os diversos níveis da sociedade e em cada um deles. Nesta
78
perspectiva, nem a harmonia total, nem a perenidade são dadas à
sociedade. A desordem sempre está ali, ainda que raramente
nomeada.
Essa visão sociológica anuncia certos pontos de vista atuais.
Ela apreende o fenômeno social não apenas em sua complexidade
(que condena toda redução ao mais simples, a fins explicativos),
mas também em seu movimento, no jogo de forças de “estrutura
ção” e de “des-estruturação” que estão constantemente em ação.
Em conseqüência, a contingência e a descontinuidade, a limitação
do determinismo e a capacidade criadora de novas conjunturas são
vigorosamente afirmadas. Precedendo os teóricos da auto-organiza-
ção e seguindo Saint-Simon, Gurvitch insistiu muito no fato de que a
sociedade é ao mesmo tempo criada e criadora; a produção contínua
é a sua lei, cujos efeitos não se manifestam unicamente durante os
períodos de mudança imediatamente aparente. A teoria da liberdade
de Gurvitch interessa mais diretamente a meu propósito. Ela nutre a
sociologia bem como a convicção íntima de seu autor. A liberdade é
condicional e relativa; nem um absoluto, nem uma vontade sem limi
tes; só existe em relação com os determinismos, inserida (segundo
uma fórmula rebatida) entre a contingência e a necessidade, o des
contínuo e o contínuo. Ativa tanto na experiência coletiva quanto na
individual, apresenta-se sob a forma de uma ação voluntária, inova
dora, criadora. “Esforça-se por superar, derrubar, quebrar todos os
obstáculos e por modificar, ultrapassar e recriar todas as situações”;
abre o caminho dos possíveis “ao construir novas conjunturas, ao
criar novos quadros de referência, e, por isso mesmo, ao provocar o
aparecimento de novas contingências”. Esta liberdade, destruidora-
geradora, simboliza de uma certa forma o movimento ordem -*■
desordem ->■ ordem; um movimento sem fim.8
79
teorias” e das ideologias; para uma prática ligando o conhecimento
social à ação, à intervenção geradora de situações novas. É um
campo científico ativo, senão unificado, mas onde a incerteza come
ça a se insinuar apesar das afirmações em contrário. As mutações,
particularmente as do saber, que acompanham as reviravoltas das
paisagens sociais e mentais, realizam-se cada vez mais rápido. A cul
tura e a sociedade se mexem, depois a crise se instala na metade
dos anos 70. O que aparecia antigamente como desordem impõe-se
progressivamente como um novo estado de coisas. A desordem se
banaliza, parece pertencer à natureza das realidades contemporâ
neas; as gerações jovens vivem nessas sociedades do movimento, do
transitório, cuja relativa coesão se quebra; o movimento e a desor
dem se tomam, conjuntamente, uma parte crescente de sua expe
riência cotidiana e de suas provas. Condições que afetam o dia-a-
dia, mas que permanecem, todavia, mal definidas, mal identificadas.
A partir das constatações dos efeitos da desordem, de sua
conscientização, como fazer para delimitar seu lugar? Primeiro são
utilizados os procedimentos antigos, atualizados pela novidade das
situações, modificados pela evolução da teoria científica e pela críti
ca dos conhecimentos. É ainda o discurso da mudança e da crise,
mas recorrendo a uma sociologia que deve sair de sua própria crise.
Ela não pode escapar à dificuldade de pensar agora a desordem e de
se refazer, ao mesmo tempo. Uma nova etapa — mais crítica —
começa, marcando o fim das embalagens teóricas que caracteriza
ram a atividade sociológica ao longo dos anos 60; o destaque está
agora sobre as dinâmicas sociais e culturais, sobre as formas e as
etapas do desenvolvimento e da modernização. “Ordem e mudança”
parece ser uma boa bandeira, em harmonia com um período de cres
cimento ainda não interrompido. O que agora se coloca em questão
é a validade — e, para alguns, como o sociólogo americano Robert
Nisbet, a própria possibilidade — de uma teorização das mudanças
sociais. A história imediata obedece a progressões dificilmente pre
visíveis, a história de longa duração não progride em toda parte de
acordo com etapas até hoje reconhecidas. A previsão vive muitas
vezes o desmentido do real realizado.
Raymond Boudon pode então partir desta constatação: “A
impressão geral... é a de fracasso.” No espírito do tempo, ele tenta
interrogar menos a mudança que a forma de seu conhecimento, de
80
A Ut.3U K LII.IV I
81
em matéria de status, só visa a desordem das teorias de mudança
social: “a confusão de gêneros”. Não coloca nem a questão da desor
dem no real, recomendando vigorosamente evitar a “armadilha do
realismo”, nem a da desordem enquanto categoria tendo uma fun
ção na lógica explicativa dos funcionamentos (forma de existência)
e das transformações (forma de situação no tempo) da sociedade.
Pergunta-se se tal teorização não identifica a desordem porque a
contém, a torna, a seu modo, onipresente e irredutível. Todas as in
terações e transações entre os indivíduos não são nem perfeitamen
te integráveis, nem totalmente produtoras dos efeitos buscados. Az
pequenas decisões ligadas umas às outras levam a desequilíbrios
mantidos porque renovados, e, no final, suficientemente acumula
dos para impor mudanças. O individualismo absoluto, pela primazia
dada ao indivíduo sobre o macrossocial, ao elemento sobre o conjun
to, informa mal sobre os limites, sobre as dificuldades impostas ao
ator social e sobre os desajustamentos que disto resultam.
Igualmente não pode explicar uma ordem de nível superior (um
metanível) a partir unicamente da agregação das ações individuais e
da desordem parcial que disto é indissociável.9
Se o método científico leva a não afirmar o real, mas a questio
ná-lo, é preciso ainda escolher as boas questões e as boas circuns
tâncias. A sociologia da crise faz desta um revelador — uma conjun
tura no momento da qual a sociedade se torna mais loquaz — ao
tomar o partido inverso do anterior, o da totalidade. A duração da
crise instaurada há quinze anos restitui ao método sua atualidade e
seu terreno de aplicação. Com o tempo, as explicações abundam.
Uma obra coletiva publicada sob o título de The global crisis, resul
tado de uma colaboração internacional, propõe uma boa ilustração
desse procedimento de interrogação da sociedade; assim, Edward
Tiryakian, responsável pela edição, invoca o patrocínio de Saint-
Simon. Muitas das contribuições consideram justamente a crise
como o acesso a uma outra forma de conhecimento da sociedade;
leva a uma representação (portanto a uma construção) da realidade
social renovada, a uma busca de instrumentos intelectuais mais
apropriados — o que não é uma novidade. Em compensação, é
ainda mais nova a observação de que a crise proporciona a capacida
de reflexiva do sistema social sobre si mesmo — a tal ponto que
Niklos Luhman propõe substituir a palavra “crise” por “auto-referên-
82
cia” (s elf reference). Sugere que o trabalho pelo qual a sociedade se
produz inclui seu próprio trabalho de reflexão sobre si mesma,
requer que a sociedade faça claramente de sua própria descrição um
de seus componentes.
Desse modo, a crise é de um lado uma pane, à qual se liga o
problema de sua percepção, da tomada de consciência daquilo que é
“em si” e daquilo que é “para" um sujeito. Este não a percebe ime
diatamente (a crise existe primeiro em estado latente); ele a inter
preta, quando se torna manifesta, através de “programas” e imagens
que lhe são anteriores e mal ou não ajustados, variáveis segundo as
condições e os interesses individuais. Uma relação dialética se esta
belece entre a crise e sua percepção, que opera primeiro no sentido
de um reforço, de um choque das interpretações e das ações, com
efeitos de retroação. A crise recoloca as idéias em primeiro plano,
sua força e sua fraqueza, ou melhor, as cosmologias sociais, segundo
a fórmula de Johan Galtung. A fraqueza constitui parcialmente a
consciência da crise; e esta constitui parcialmente a desordem. Em
uma visão clássica, a crise é entendida em termos de mau funciona
mento, até uma patologia; é o sinal de que “alguma coisa não fun
ciona”; define-se então por sintomas e um diagnóstico, avaliada em
seu futuro por um prognóstico. Sociedade anômica, sociedade em
choque, sociedade doente são outras expressões que designam esse
estado crítico. Em uma perspectiva científica mais atual, a crise é
relacionada ao movimento, a uma evolução dissociada da interpreta
ção darwiniana. É uma dificuldade mais aparente, mais pesada, de
proceder a uma recombinação da ordem e da desordem, a uma cor
reta utilização do “caos”. A crise impõe a transformação do imprová
vel em provável, de estabelecer as estruturas relativamente estáveis
sobre uma plataforma móvel. É a exasperação da forma de existên
cia do social, e não sua doença. Niklos Luhman conclui que o “espe-
rismo” [attentisme], o wait and see, é apenas uma forma de respos
ta. A teoria afirma a possibilidade de agir sobre “a evolução societal
em curso”; o aperfeiçoamenmto dos meios de auto-observação e de
autodescrição da sociedade se torna então “uma estratégia adequa
da ou mesmo preeminente”.10 Conclusão em harmonia com a que eu
formulava há quinze anos: “As novas pesquisas conduzem a medir
melhor o espaço de liberdade e de especificidade presente em toda
sociedade... Mostram que não existem sociedades planas, ou reduzi
83
das a uma única dimensão, e que não existe nenhuma que não traga
em si diversos ‘possíveis’ a partir dos quais os atores sociais podem
orientar seu futuro.”11
O paradigma ordem/desordem, inspirado pela teoria científica
atual, orienta as interpretações da sociedade que privilegiam seja a
auto-organização (modelo biológico), seja a tendência a uma maxi-
mização da entropia (modelo termodinâmico). Jean-Pierre Dupuy
relaciona as primeiras em sua “pesquisa sobre um novo paradigma”,
do qual é o difusor, o advogado e o protagonista. O pensamento
dominante é o da autonomia do qual Francisco Varela e Henri Atlan
são os principais iniciadores; este pensamento atribui ao real a capa
cidade de engendrar por si mesmo a ordem e o sentido, do olhar do
observador interior ou exterior ao sistema considerado. A formula
ção científica foi anteriormente mencionada; a retomada será aqui
muito simplificada: a criação se nutre da desordem, o aleatório (as
perturbações) faz parte da organização, a desordem se inscreve
naquilo que se define como ordem. A liberdade parcial, o apareci
mento do novo e sua estabilização relativa, o determinismo limitado
encontram assim sua importância. Trata-se de uma visão exclusiva
de “um mundo sem dificuldades, sem ordem, onde tudo será possí
vel”, e de um mundo “perfeitamente determinista” cujas determina
ções seriam, todas, reconhecíveis. Da “posição epistemológica do
observador, que percebe um mundo ordenado, mas não totalmente
ordenado, resulta o sentimento de que existem sistemas autônomos,
capazes de criar o radicalmente novo”. E, com este, a complexidade,
a singularidade, o devenir contínuo. A tradução sociológica dessa
nova ontologia, pela qual ordem e desordem estão completamente
misturadas em toda organização, fica mais teórica que empírica e
específica — e sem que o status de observador-ator e a posição da
sociedade nesses quadros sucessivos sejam desde já particulariza-
dos. Busca-se uma ultrapassagem, uma terceira via, pela dispensa
de duas famílias teóricas: a dos “holistas” (primazia do todo, qualida
de de realidade primeira conferida à sociedade), a dos “reducio-
nistas” (tudo resulta da composição das partes, a sociedade é redu-
tível às propriedades e às interações dos indivíduos). Ultrapassar
esses dois métodos é percebido como uma necessidade de conduzi-
los conjuntamente. “Em vez de opor o indivíduo e o social, é preciso
pensá-los conjuntamente como se criando mutuamente, se definin
84
do e se contendo um no outro ... é preciso pensá-los também assim
|na] separação e na confusão dos níveis de organização.” O que não
(• assim tão novo como parece ser... Mais importantes são a questão
central e o problema que esta impõe: como perceber as influências
exteriores (da dependência) exercidas sobre um sistema autônomo,
necessariamente enclausurado em sua própria organização? Res
ponde-se concluindo que “se a autonomia não é a dominação absolu
ta, ela não é menos autonomia”, por mais difícil que seja para a tra
dição ocidental distinguir uma da outra. Os sistemas auto-organiza-
dores (os de mais alto nível de complexidade) seriam capazes de
produzir formas novas sobre as quais nem o exterior nem eles mes
mos exerceriam a dominação absoluta. “A complexidade seria o
resultado de uma colaboração negativa entre o sistema e seu meio,
este, paradoxalmente, agindo de forma positiva por meio de suas
perturbações, quer dizer, por meio de seu poder de destruição.”
Dito de outra maneira, a morte é parte integrante da vida, a an-
tiorganização da organização, a desordem da ordem.12 Estranha
ondulação pela qual se encontram as questões e os debates dos
quais a filosofia iniciante se nutre.
As afirmações contrárias a toda busca de analogia entre os siste
mas sociais e os sistemas físicos não desencorajaram, inteiramente, as
tentativas de interrogar os sistemas sociais — no que é de sua nature
za e de seu devenir — com a ajuda dos ensinamentos resgatados pe
los sistemas físicos. Disto trata o ensaio recente de Michel Forsé, que
tenta fundar uma termodinâmica social. Trata-se de aplicar às socie
dades o princípio de entropia sob a forma estatística: todo sistema
tende para seu estado mais provável e este estado corresponde à
desordem máxima para o sistema-, mas tal aplicação só pode ser pri
meiro a construção de um modelo capaz de contribuir para uma
melhor inteligibilidade dos processos sociais, e unicamente utilizável
nos casos de “populações numerosas” devido a seu caráter probabilis-
ta. É exclusivo das pequenas sociedades abandonadas aos antropólo
gos. Requer o primado da totalidade sobre o indivíduo; todo sistema
social visa a estabilidade, a manutenção, e, para este objetivo, subor
dina todas as finalidades individuais. A dificuldade social da teoria de
Durkheim se traduz assim em “dificuldades sistêmicas”. É a partir do
conhecimento destas que o jogo dos atores pode eventualmente ser
compreendido, em termos de ajustamento ou desajustamento.
85
O paradigma entrópico é definido por elementos que opõem
ordem e desordem, e desviantes para o senso comum: à ordem estão
ligados o desequilíbrio, a heterogeneidade, a desigualdade, a dificul
dade, a instabilidade; à desordem liga-se o equilíbrio, a homogenei
dade, a igualdade, a liberdade, a estabilidade. Em sua utilização
sociológica, leva a explicar o estado de um sistema social — no
momento da observação — através “da dinâmica que impõe a todo
sistema a tendência espontânea para o estado de equilíbrio” , este
estado que “representa a desordem máxima diante das dificulda
des” . É o conjunto, o macrossocial, que obedece a esta tendência,
que conduz a uma dissolução da sociedade pelo desaparecimento
das diferenças, das hierarquias, dos problemas implícitos ou explíci
tos, pela redução a uma liberdade anárquica ou a uma submissão ao
déspota que faz todos os particulares iguais “porque não são nada”
(segundo o paradoxo de Simmel). “Os estados de desordem cres
cente não passam de estados de probabilidades crescentes” ; em
outras palavras — aquelas que utilizei por minha própria conta — , a
sociedade está sempre inacabada e só existe sob a ameaça perma
nente de sua própria destruição.
A conclusão não é inteiramente nova, se demonstrada pelo
efeito de uma espécie de integrismo termodinâmico. Nada é falado,
nem poderia sê-lo, a respeito das evoluções sociais conjunturais.
Muito pouco foi dito sobre o que desenquadra a tendência entrópi-
ca: a sociedade, sistema aberto, pode ter a capacidade de encontrar
do lado de fora o que contribui para manter sua ordem. Enfim, se o
tempo é levado em consideração “enquanto grandeza irreversível”,
base de toda termodinâmica, ele não o é enquanto constituinte da
sociedade e de sua dinâmica. O que levaria a perceber sob outros
aspectos, como já sugeri, as relações complexas, emaranhadas, da
ordem e da desordem. Mas é forte o apelo para que uma sociologia,
há muito obcecada pela ordem e o equilíbrio, possa escolher corajo
samente o ponto de vista da desordem.13
86
complexidade do real e a incerteza que afeta todo conhecimento;
leva em conta o imprevisível, o espontâneo, a evolução no sentido
da desordem pelo “esquecimento das condições iniciais”, o processo
de auto-organização; determina menos, reconhece os possíveis e dá
às suas formulações teóricas uma validade local e não mais geral.
Daí que fica possível responder, aparentemente, às preocupações
ainda encobertas dos sociólogos no sentido de um positivismo à
antiga e confrontados com sociedades em completo movimento e
que, por essa razão, parecem cada vez menos inteligíveis. A tenta
ção se torna forte no sentido de traduzir em linguagem sociológica o
novo discurso da natureza, descobrindo isomorfismos entre domí
nios muito distanciados, procedendo por analogias, demarcando os
métodos interpretativos. A versão entrópica começa a tomar forma
de texto, seja para definir a tendência espontânea do sistema social
global (Michel Forsé), seja para fazer da ordem — coisa desejável e
rara — um objeto econômico (Jacques Attali).14
A transposição oferece outras possibilidades. A idéia de “or
dem por flutuações” é adaptável no campo social entendido como
realização por aproximação, por jogo de equilíbrios e de ajustamen
tos precários. O poder (o centro) jamais foi matéria dominável. A
instituição mantém no exterior a impressão de uma capacidade de
ordenar, que não possui inteiramente. A ordem obtida é a das uto
pias e ucronias — sociedades de lugar e tempo nenhuns — , ou as
que buscam os totalitarismos na violência exercida sobre os ho
mens, sem jamais conseguir estabelecer outra coisa senão a ditadura
do arbítrio e da ignomínia. Nos dois casos, trata-se de interromper
ou diminuir o curso do tempo, de expulsar da sociedade o movimen
to; se o tempo das mitologias é freqüentemente devorador, o pensa
mento negador do tempo é pior, porque reduz o homem ao estado
de coisa ou de simples elemento submetido à relação de ordem.15
A idéia de bifurcação é também transportável e já utilizada.
Limita a dominação dos determinismos sociais, permite situar os
pontos de liberdade, identificar os possíveis. As sociedades da
modernidade mais ativa começam a ser consideradas como socieda
des de bifurcações; a seleção dos possíveis se faria sucessiva e pro
gressivamente, da mesma forma que um percurso é feito de encruzi
lhada em encruzilhada, até chegar a um final ainda desconhecido. A
necessidade da evolução e, mais ainda, da revolução, desaparece
87
enquanto transformação inelutável e global, para dar lugar a realiza
ções sociais mais incertas e mais localizadas.
Outras transposições se vislumbram, sobretudo a partir da
noção do estado atraente; não se trata de fazer o inventário disto,
mas aprender a lição. A mais importante é a insistência da ciência
atual sobre o tempo reconquistado, sobre a pluralidade de suas for
mas, sobre a história já presente na natureza. Cada ser complexo é a
manifestação disto. O contra-senso na leitura da sociedade resulta
principalmente do esquecimento dessa constatação, todavia levado
a efeito em nome da exigência do cientificismo.
Uma segunda lição é de outro tipo, e sem dúvida de grande
importância. A ciência de hoje, porque é mais interrogativa do
conhecimento que produz, define melhor o arbítrio a partir do qual i
dialoga com a natureza. Ela sabe que traz em si uma parte do mito e
da ideologia, que recorre a analogias e imagens propícias a uma
melhor inteligibilidade e a uma intervenção mais ajustada ao real
(de crescente eficácia), e que esta inteligibilidade depende do dis
curso convincente — segundo o termo de Manuel de Diéguez — ,
que se esconde naquilo que o saber tem de mais secreto. O discurso
se torna claro a partir disso mesmo, que as ciências da sociedade
não têm de imitar, pedir emprestado, transpor, mas definir sua pró
pria escolha, a mais apropriada ao conhecimento da sociedade —
não em sua generalidade e sua eternidade, mas em seu lugar, seu
momento e seu movimento. Nesta perspectiva situa-se a importân
cia da desordem, manifesta em toda sociedade e em todo tempo;
com a quase-certeza que nenhum poder poderá aboli-la por uma
polícia das coisas (racionalidade inteiramente dominadora do
mundo), uma polícia dos seres (governo absoluto e total), uma polí
cia das idéias (despotismo da conformidade).
88
no tas
89
Dialectique et sociologie, Paris, Flamraarion, 1962, a “Introdução" à
Physiologie sociale de Saint-Simon, já citada; e “Continuité et descontinui-
té en histoire et en sociologie”, Annales, 12, 1957. Sobre Gurvitch: G. Ba-
landier, Gurvitch, Paris, P.U.F., 1972; J. Duvignaud, Georges Gurvitch:
symbolisme social et sociologie dynamique, Paris, Seghers, 1969; P.
Bosserman, Dialectical sociology: an analysis o f the sociology oj
Georges Gurvitch, Boston, Porter Sargent, 1968.
9. R. Boudon, La place du désordre, critique des théories du chan-
gement social, Paris, P.U.F., 1984. E também, porque a redução às intera
ções e transações individuais aqui é menos acentuada: Effets pervers et
ordre social, Paris, P.U.F., 1977 e 1979.
10. E. A. Tiryakian, dir., The Global Crisis, Sociological Analyses
and Responses, Leiden, E. J. Brill, 1984; principalmente as contribuições
de J. Galtung, “On the Dialectics between Crisis and Crisis Perception”, N.
Luhman, “The Self-Description of Society: Crisis Fashion and Sociological
Theory”, e P. Sztompka, “The Global Crisis and the Reflexiveness of the
Social System”.
11. G. Balandier, Sens etpuissance, les dynamiques sociales, Paris,
P.U.F., 1971, p. 9, e a “Conclusion”, p. 299.
12. J.-P. Dupuy, Ordres et désordres. Enquête sur un nouveau
paradigme, Paris, Seuil, 1982; sobretudo: “Vers une Science de 1’autono-
mie” e “La simplicité de la complexité”.
13. M. Forsé, L ‘ordre improbable, Entropie et processus sociaux,
Paris, P.U.F., 1989; “Introduction”, capítulos 1 e 4, “Conclusion”.
14. Crítica da obra de J. Attali, La parole et VOutil, Paris, P.U.F.,
1975, por J.-P. Dupuy, op. cit., pp. 62-7.
15. Sobre a utopia (“Le sol froid, silencieux et blême de 1’utopie”), cf.
G. Lapouge, Utopie et civilisations, Paris, Weber, 1973.
90
Segunda Parte
DESORDEM NA TRADIÇÃO
■
4
A D e so r d e m t r a b a l h a e s c o n d id a
93
verdade, é a tradição que conhece"; e “o discurso de quem sabe”, e
“o discurso vivo e animado”, manifesta a tradição pela palavra. Uma
terceira idéia faz enfim da tradição um mantenedor da múltipla con
tribuição das civilizações submersas: elas sobrevivem na memória de
alguns sábios que transmitem oralmente seu conhecimento. Na
Metafísica, Aristóteles evoca essas “relíquias da sabedoria antiga
conservadas até nossos tempos” .
Nas sociedades tradicionais estudadas pelos antropólogos,
esses aspectos mostram-se claramente: a necessária conformidade à
ordem estabelecida na época da fundação, a associação da origem
com todas as forças do poder, a transmissão, através de procedi
mentos bem codificados, do saber mais valorizado — e, portanto, o
primeiro. Mas, no caso, a tradição traduz-se continuamente em prá
ticas; é aquilo pelo que a comunidade se identifica (tal como apare
ce diante de si mesma), se mantém em uma relativa continuidade,
se faz de maneira permanente sempre produzindo as aparências de
ser, agora, o que deseja ser. Na medida que permanece viva e ativa,
a tradição consegue nutrir-se do imprevisto e da novidade; de certa
forma compõe, tal como demonstrei ao estudar as figuras do tradi-
cionalismo e as estratégias que regem. Na medida que é praticada,
descobre seus limites: sua ordem não mantém tudo, nada pode ser
mantido por puro imobilismo; seu próprio dinamismo é alimentado
pelo movimento e pela desordem, aos quais ela deve finalmente se
subordinar. A tradição não se dissocia daquilo que lhe é contrário.
Governa os indivíduos e a coletividade, mas só alguns a conhecem
inteiramente. Na superfície do conhecimento banal — aquele que as
práticas utilizam — encontra-se escondido o conhecimento profun
do, que só um pequeno grupo detém e que se transmite por meio de
um lento procedimento iniciático. A tradição é ao mesmo tempo
exotérica e esotérica, vulgarizada em graus variáveis segundo as
condições sociais e, em sua totalidade, reservada apenas à guarda
dos sábios.
O segredo e o oculto
94
A UK3ÜKUEM
95
nascimento social, para o poder de intervenção nos negócios públi
cos, para o acesso ao domínio de si mesmo. Esta progressão iniciáti-
ca se efetua gradativamente: o saber aumenta com a idade, quanto
maior o exoterismo (o conhecimento do primeiro degrau) tanto
maior o esoterismo (o conhecimento último, detido por uma elite de
sábios); opera desse modo a divisão entre os que recebem e os que
transmitem. Sobretudo, tal percurso, que se abre sobre a revelação
da ordem social, no interior da qual o iniciado vai se situar, termina
com a revelação da ordem do mundo que somente os velhos conhe
cem, os sábios que estão às margens da vida, nas bordas de um além
da comunidade dos vivos. O ciclo do saber acompanha o ciclo da
vida, só é completado por um pequeno número de homens, os mes
mos dos quais se disse que sua morte eqüivale ao desaparecimento
de uma biblioteca.i
Toda cultura de componente esotérico manifesta a função do
segredo, a força do oculto. Muito cedo, o sociólogo Georg Simmel
reconheceu que um e outro são necessários à formação das estrutu
ras e à interação sociais. Ele propôs uma sociologia das “sociedades
secretas”. Os caracteres anteriormente mencionados subsistem. O
vínculo requer ritos de iniciação, e os degraus iniciáticos correspon
dem a uma hierarquia interna que estratifica a associação assim
constituída. A autoridade se adquire progressivamente de acordo
com o movimento de avanço no conhecimento. No topo encontra-se
uma elite restrita exercendo uma verdadeira dominação: os que sa
bem e regem a circulação do saber. A participação no conhecimento
cria entre os membros uma solidariedade e uma fraternidade incon
dicionais, que apagam as diferenças sociais (os status desiguais)
próprias à sociedade global, englobalizante.2 O segredo, cobrindo o
conhecimento profundo de uma ordem do mundo e dos homens,
cria a ordem forte pela qual os iniciados estão ligados e em função
da qual eles intervém na ordem geral da sociedade.
O segredo inclui o oculto, mas este o ultrapassa ao se apresen
tar sob três aspectos, pelo menos. O oculto é o saber fundamental
cuja aquisição se efetua por degraus, e somente por alguns em sua
totalidade. Nesta acepção, o oculto pode implicar o conhecimento
escondido, a descoberta dos arcanos, aquilo que tenta ir além do
conhecimento legitimado seja pela tradição, seja pela ciência, levan
do à busca arriscada de revelações e verdades últimas. Trata-se
96
entào de uma vagueação e de um desvio. A corrente gnóstica per
corre de outra maneira o espaço do saber reservado: visa a comuni
cação direta com a natureza autêntica das coisas, ou o retomo a um
conhecimento inicial (e verdadeiro) deformado, alterado ou perver
tido pelos sucessivos intermediários. Na história do cristianismo, a
gnose é, durante um tempo, o ensimamento secreto destinado aos
perfeitos, a transmissão exclusivamente oral de uma revelação
comunicada por Jesus somente a alguns apóstolos. O conhecimento
verdadeiro só é acessível ao pequeno número dos que nadam na
perfeição; e por esta medida são avaliados a imperfeição, a falsidade,
o mal, a desordem. Mas a gnose pode também ser vista como uma
heresia, uma ameaça mais operante que secreta, pelas potências
que definem a ordem oficial do mundo e dos homens. Nesta pers
pectiva, inverte-se ao se transformar em uma figura do caos.
O oculto engloba dois outros aspectos que são objeto de temor
e medo. De um lado, é a fonte do inesperado, do imprevisível, do
acontecimento que atenta contra os seres vivos e contra o curso
natural das coisas. Manifesta-se então em momentos de aflição
interpretados por Victor Turner, renovador de uma antropologia dos
símbolos e dos ritos.3 São os efeitos — as perturbações e as desor
dens — que revelam uma agressão não identificada ou uma trans
gressão desconhecida ou uma falta por negligência; tais efeitos estão
portanto associados, na maioria das vezes, a uma falta que deve ser
determinada a uma culpa. Certas culturas acentuam esta atribuição,
fazem dela o elemento central das configurações que regem, sendo
por isso denominadas “culturas da culpa”. Mas, em todas as situa
ções, a falta deve ser reparada; os meios simbólicos e ritualísticos
são então empregados para reordená-la. O desconhecido é também
o que está por vir, o que pode surgir do futuro imediato: a incerteza
mantém o receio do aparecimento do nefasto, leva à busca de proce
dimentos que permitem forçar a ignorância, operar escolhas mais
esclarecidas no presente e de construir obstáculos contra a irrupção
dos infortúnios e dos males. É o futuro, escondido dos homens que
dele não se sentem donos, que se apresenta como um perturbador
potencial. Ele é o movimento, o aleatório, assim como o ignorado, na
medida que o presente está ligado a uma ordem conhecida e às con
venções ou procedimentos pelos quais a ordem tenta se prolongar.
O acontecimento, venha ele de algum lugar (pela ação dos poderes
97
\ J Ct Uf t UC» 3 D A L A n U I L i M
98
cias (como na astrologia), ou a uma ordem da sociedade segundo a
qual são relacionadas as principais situações críticas e suas causas
(como na geomancia). O saber prevalece sobre a escolha, ao contrá
rio daquilo que provoca a adivinhação inspirada. Mas, nos dois
casos, ordem e desordem estão em jogo. E, por esta razão, os pode
res impõem seu controle estrito aos que praticam a adivinhação: a
eles se ligam ou se aliam. Nas civilizações antigas da Europa e alhu
res — da China à índia, à Mesopotâmia, à América pré-colombiana
— , o staff divinatório dependia do soberano e se unia às tradições
sacerdotais. Na África ocidental, o “contador de coisas escondidas”
tem, lado a lado com um saber técnico, o conhecimento dos mitos e
outros componentes da tradição oral, sobre os quais seu saber se
apóia; a longa experiência coletiva esclarece sua interpretação. Ele
exerce uma arte à disposição de todos; nas sociedades estáticas,
hierarquizadas, ocupa apesar disso um lugar elevado no séquito do
soberano e dos personagens notáveis. Assim é na região do Benim,
por exemplo, onde uma realeza muito complexa é associada a um
sistema de geomancia de abundante riqueza, governado por Fa, a
figura do destino. Todas as precauções tomadas não conseguem
dominar inteiramente as forças contrárias e os geradores de desor
dem, não conseguem conter os ataques do desconhecido e das
potências ocultas. Há que agir não somente através dos ritos de con
juração, mas também identificar os lugares e os personagens porta
dores de riscos.
Os lugares e as figuras
99
que estes à lei das potências que ela encerra. Na Europa, na literatu
ra medieval e na cultura popular oral, os sítios naturais são ocupa
dos mais por seres fantásticos que por animais selvagens. A floresta
se transforma em território perigoso ou em lugar de terror; onde
nem todas as fadas são boas (por exemplo, as damas verdes que
apavoram os homens e os perseguem), onde os animais podem se
transformar, onde lenhadores e carvoeiros mantêm um comércio
com os espíritos das árvores e adquirem os poderes dos feiticeiros e
chefes de lobos, onde os heróis das fábulas submetem-se a provas
enfrentando monstros de aparência humana ou animal. A floresta
não é vista somente como um espaço ainda desgarrado da atividade
ordenadora e do controle dos homens, ela é nela mesma outro
mundo, tem uma ordem própria na qual nada se reconhece enquan
to ordem humana, e, por esta diferença absoluta, a floresta ameaça
o homem. É um território quase desconhecido, onde a exploração e
a proeza engendram heróis e personagens extraordinários. O campo
não é menos povoado imaginariamente, na periferia das aglomera
ções se dá a comunicação entre os dois mundos, o de dentro e o de
fora. Lá estão as fadas más que freqüentam os barrancos, os atalhos
estreitos, as entradas dos vilarejos; a noite é o seu reino, quando
podem roubar as criancinhas, agredir os que passam apressados,
perseguir os que dormem. Também lá estão, em ataques noturnos,
as criaturas mais temíveis, meio homens, meio animais. É a espécie
dos lobisomens e outras transfigurações animais: os homens as
criam por má sorte de nascença, por um crime impune ou um pacto
com o Maligno. Os lobisomens se confundem com as pessoas co
muns durante o dia, vivem e trabalham entre elas; mas, quando che
ga a noite, cobertos de uma pele de animal, que lhes confere o su-
perpoder e a impunidade, eles se alimentam dos seres vivos. Em ca
sos diferentes, a desordem e os males e a morte resultam da não-se-
paração de dois mundos bem distintos (a natureza selvagem/a cida
de organizada), da hibridação dos seres e da confusão das catego
rias (as do bem e do mal).4
A interpretação do espaço imaginário a partir de um corpus
homogêneo de narrativas leva a precisar melhor essas relações em
sua complexidade e ambivalência. É com esta intenção que Mareei
Drulhe propõe a análise de um conjunto de contos de fadas proven-
çais recolhidos em Sault, pequena região de Aude. O estudo mostra
100
como as narrativas tratam a relação de dois espaços (o do microcos
mo social, o do mundo caótico), a relação de dois universos ou cam
pos (o dos homens, o do animal e o do monstro) e a questão de seus
respectivos limites. O sistema de oposições, há pouco mencionado, é
central. O espaço policiado, ordenado, corresponde ao vilarejo, à
cidade e seus arredores imediatos: é o que se situa “sob a égide da
lei e do poder", mas que não suprimem os males, as injustiças e as
pilhagens sociais, as calamidades. O espaço caótico é “designado
pela extensão florestal e a extensão aquática ou próxima da água”; é
o lugar da vida animal, o refúgio dos monstros e dos homens rejeita
dos, de identidade inquietante, o sítio das energias misteriosas e dos
poderes. Esta topologia imaginária não se reduz todavia a uma
representação dualista da espacialidade. Os dois universos têm limi
tes incertos; bordas mal definidas os separam, passagens estão aber
tas de um lado para outro — fronteiras a ultrapassar mediante pro
vas. Do espaço policiado ao espaço da desordem integral, o dos
monstros, são traçados espaços de transição onde o desordenado se
manifesta dentro da ordem, e onde a desordem permanece ordená-
vel. Mais significativa ainda é a recusa em excluir totalmente da
organização a presença do não-ordenado: “O microcosmo não rejei
ta, não exclui o caos... ele o inclui para dominá-lo, para vigiá-lo, para
controlá-lo, às vezes reprimi-lo; ele o inclui delimitando-o, mas dei
xando a comunicação possível..."5 De um lado, a desordem não é
redutível, é preciso dar-lhe um lugar, tê-la sob controle, utilizá-la
também — tarefa dos heróis que convertem o negativo em positivo.
De outro lado, a desordem extrema, o caos, pode invadir o domínio
da vida social e desregular sua ordem. O espaço imaginário é iso-
morfo do da sociedade, campo de relações em que a ordem e a
desordem coexistem em constante confrontação, onde a Lei enfren
ta as forças destrutivas e resiste à degradação do tempo.
É bom lembrar que todas as sociedades tradicionais imprimem
fortemente sobre os lugares conhecidos as significações exigidas por
seu imaginário, seus sistemas simbólicos e suas práticas rituais. As
da África ocidental, no caso, revelam-se de uma rara criatividade; os
mitos, as literaturas orais, os sistemas de representações o demons
tram e são objeto de interpretações antropológicas cada vez mais
elaboradas. A oposição entre os espaços sobre os quais os homens
inscreveram sua ordem e os espaços de natureza ainda selvagem se
mantém. O status do caçador freqüentemente a manifesta; ele é
uma figura singular, submetida a dificuldades rituais específicas,
ambígua em razão de sua convivência com as potências externas e
com a morte. Nos mitos fundadores de um poder novo, o caçador
surge freqüentemente sob o aspecto de um desconhecido, vindo de
um país longínquo e desabitado onde as provas têm uma função ini-
ciadora, que o capacitam à realização das façanhas e o elegem no
momento de sua chegada (ou de seu retomo) entre os homens: ele
se toma o artesão de uma ordem refeita e considerada superior, na
medida que adquiriu esses dons, percorrendo espaços não submeti
dos à lei humana. Figura mediadora, o caçador mítico fundador
revela passagens entre o mundo socializado e o selvagem; é aliás
passando deste para aquele que ele pode ter acesso a poderes fora
do comum e os demonstrar. Essas comunicações, os homens estabe
lecem necessariamente. Sua produção determina os avanços no
âmago da natureza selvagem, introduzindo uma diferenciação
segundo os espaços ainda submetidos a seu controle: do vilarejo até
as zonas de atividade mais em contato com o espaço inculto se ele
vam gradativamente os riscos, e se multiplicam as proteções rituais.
A comunicação se cria igualmente por necessidade simbólica, os
dois elementos do símbolo associando o social e o não-social. O ani
mal às vezes mostra-se aliado do homem, seu gêmeo conforme a tra
dição dos dogons, seu parceiro na savana; na maioria das vezes, o
mundo animal se divide segundo os critérios do positivo e do negati
vo, do bem e do mal, da conformidade e do nefasto, da ordem e da
desordem: manifesta assim os enfrentamentos dos quais a sociedade
é o campo, os equilíbrios e os desequilíbrios que disto resultam, os
jogos de vida e de morte nos quais tudo se converte. Do mesmo
modo, a árvore pode se tornar um aliado, na medida que a floresta é
vista como o sítio das potências temíveis, o território onde comba
tem os heróis e anti-heróis. Em um número significativo de contos
(África ocidental e África banto), a árvore intervém enquanto mé
dium, agindo por esperteza e magia em proveito do herói — através
do qual a ordem se restabelece com a reafirmação da regra. Enfim, a
comunicação dos dois mundos se efetua por necessidade ritual. As
iniciações masculinas realizam-se fora dos lugares habitados, à dis
tância e ao abrigo dos olhares inoportunos, em instalações provisó
rias destruídas no final do ciclo iniciático. A operação é conduzida
102
em contato com a natureza, no momento em que é preciso submeter
a própria natureza do homem à lei social e, geralmente, dar ao ini
ciado um lugar apropriado à ordenação da sociedade e da cultura.
Esta passagem pelo mundo selvagem, esta morte simbólica que faz
desaparecer no iniciado um estado ainda natural, condicionam o
pleno acesso à sociedade, a entrada em um mundo onde prevalece a
ordem humana. A ordem não é dita, só se traduz por referência ao
que não é ordem; a savana empresta seu sentido, sua possibilidade
de estar na ordem policiada. As duas instâncias podem aliás coexis
tir em lugares onde o sagrado os une em sua diferença absoluta,
onde sua relação é geradora de significações, e sua aliança uma
necessidade imprescindível à coletividade, sem a qual esta ficaria
sujeita aos riscos de degradação. Os bosques sagrados, onde moram
os deuses e os espíritos reverenciados, e cujo acesso é rigorosamen
te controlado, estabelecem esta conexão, principalmente entre as
civilizações do Benim.6
A desordem e o caos não estão somente situados, estão exem
plificados: à topologia imaginária, simbólica, associa-se um conjunto
de figuras que manifestam sua ação dentro do próprio espaço poli
ciado. Figuras ordinárias, no sentido de que se encontram banal
mente presentes dentro da sociedade, mas em situação de ambiva
lência por aquilo que é dito delas e aquilo que elas designam. Com
plementar e subordinadamente, elas são o outro objeto de descon
fiança e de medo em razão de sua diferença e de seu status inferior,
causa de suspeita e geralmente vítima de acusação. Ocupam a peri
feria do campo social no sistema de representações coletivas domi
nantes, muitas vezes em contradição com sua condição real e o re
conhecimento de fato de seu papel. Tais figuras são instrumentos de
ordem ao mesmo tempo que agentes potenciais da desordem. A
mulher, o filho mais novo, o escravo ou o cativo, o estrangeiro — uti
lizados como significantes — estão entre as figuras mais freqüente
mente exploradas pelas culturas das sociedades tradicionais.
Em primeiro lugar, e em completa ambivalência, a mulher. Mais
que o homem, ela está ligada ao mundo natural; a topologia imaginá
ria a coloca nos confins da natureza e da cultura. Ela detém o poder
da fecundidade, o que lhe permite criar, reproduzir, ser a origem de
uma descendência. Poder original que não pode ser desviado, que
numerosas tradições africanas manifestam ao evocar uma época ini
103
ciai durante a qual as mulheres, detentoras do poder sobre os
homens, dele abusaram e dele foram subtraídas. Tal subtração res-
veste-se de formas múltiplas, efetuando-se principalmente nas práti
cas de iniciação masculina que apresentam o nascimento social, que
elas realizam como superior ao nascimento biológico; o parto meta
fórico do qual os homens se encarregam exclusivamente prevalece
e, com ele, o masculino sobre o feminino. Mais significativa é a con
versão do poder de natureza que possui a mulher em um poder
negativo, nefasto, inerente à natureza feminina: o positivo (a capaci
dade de reprodução) se transforma em negativo Ca impureza conta
giosa); o sangue da vida se degrada em sangue da sujeira e da polui
ção. Assim, entre os Lelê do Zaire, o acesso à floresta está proibido às
mulheres — a floresta enquanto espaço perigoso do qual os homens
têm a apropriação — em todas as circunstâncias em que sua impure
za aparece mais ativa, na época da menstruação, e também perto de
um nascimento ou um contato com a morte surgida em seu meio. No
espaço tradicional, toda a formação dada às jovens africanas, forma
ção nem sempre requerida, leva a domesticar a natureza da mulher
e a relação desta com as coisas da natureza: a sexualidade e a repro
dução, a terra e a produção, os alimentos e a cozinha.
É sobretudo pela sexualidade que a ambivalência da figura
feminina se expressa, mesmo que uma grande liberdade sexual seja
atribuída à mulher. Entre os massais do Quênia, a jovem não casada
é totalmente livre sexualmente; em seguida, feita a excisão, já socia
lizada, ela se torna uma esposa cuja liberdade é restringida. A fragili
dade das estruturas sociais, a ordem, considerada precária, reque
rem obstáculos ao poder demolidor do desejo. Entre os balantes da
Guiné, enquanto a sexualidade livre do homem casado se mantém
sem limites ou dificuldades, a da esposa existe — reconhecida
enquanto compensação que equilibra o casamento, realizado sem
possibilidade de escolha, discriminação sexual e exclusão das ques
tões públicas — , mas em um quadro de condições estritas, sobretu
do as que permitem respeitar as aparências e satisfazer a exigência
de submissão em relação aos homens. Aqui, um lugar determinado é
atribuído ao desejo feminino, e o termo que denomina esta liberdade
condicional significa ao mesmo tempo o desejo e a inclinação amoro
sa. Entretanto, este quinhão de liberdade é essencialmente entendi
do como forma de entravar uma liberdade total que seria geradora
104
de desordem, como um meio de manter a ordem do parentesco e
das alianças, reduzindo os riscos de conflito e a degradação das rela
ções. As representações masculinas do feminino, na cultura dos
mandenkas senegaleses, estabelecem uma equivalência (aliás banal)
entre a mulher e a natureza selvagem, e lhe atribuem o aspecto do
inesperado ou do perigo. Se a virilidade, com o poder de ordem que
lhe é atribuído, consiste em “exercer seu império sobre a mulher” ,
esta não tem menos a capacidade de atacar insidiosamente, sobretu
do ao submeter o homem à tirania do desejo a fim de destruir seu
poder social e corrompê-lo. A mulher é comparada à serpente mítica
que não morde, mas engole. A desordem amorosa devora a ordem
geral da sociedade. O adultério é sempre reconhecido enquanto
desordem social; a mulher, porque sua fecundidade e sua função
instrumental a serviço da máquina social estão em jogo, carrega o
peso da culpa mais pesada: segundo a antiga tradição dos fangues
do Gabão, seu corpo nu e às vezes seu sexo deveriam sofrer uma
sanção pública, um castigo mutilante. O incesto é pior: transgride a
lei fundamental do ser vivo; além da ordem social, ameaça a ordem
dos seres e do mundo. Segundo esta interpretação, seus efeitos con
tagiosos levam ao caos e à morte; traz a doença que afeta os homens
e os animais e o esgotamento das fontes da vida, desordena e espa
lha a esterilidade. O sexo conjugado ao incesto chama a morte,
arruina a fecundidade e destrói a sociedade. Não basta opor-lhe uma
sanção, é preciso construir as barragens rituais que reduzem o con
tágio desastroso e permitem uma difícil reordenação.
A incerteza em relação ao ser da mulher se manifesta na maio
ria das culturas. O imaginário grego, pela intermediação dos mitos,
já revela uma certa interrogação sobre uma alteridade inquietante.
A figura da mulher guerreira, a amazona, exprime isto sob três
aspectos: o da feminilidade perigosa; o da inversão dos papéis
sexuais e da exclusão dos homens da reprodução, roubando o seu
sêmen e a geração unicamente de meninas; o da barbárie, do retor
no ao estado selvagem pela recusa dos valores masculinos que ins
tituem a Cidade. Uma parte da feminilidade parece desse modo
estar ligada à regressão e à desordem. A relação de incerteza recai
principalmente sobre a natureza da mulher. Esta, segundo os lug-
baras da Uganda, deve ser definida como o inverso da natureza
masculina, o que a coloca do lado das forças que agridem a ordem
105
social, que operam às ocultas e corroem tudo por dentro, na medi
da que o procedimento da inversão serve para designar o anormal,
o anti-social, o mal insidioso. O que aparece claramente na topolo
gia imaginária lugbara é a localização da mulher nas margens, nas
entradas, lá onde se efetuam as passagens do social para o selva
gem, do tempo histórico ao tempo mítico, das pessoas para as coi
sas, do religioso para a magia negra. Fronteiriça, a mulher é ambi
valente; ponto de convergência das forças naturais e das forças
sociais, sempre ameaçada de ser arrancada da natureza. A incerte
za relativa à sua natureza faz dela uma aliada incerta da ordem
essencialmente masculina.
Por ela, a linguagem da fecundidade e a linguagem do sangue
exprimem a conjugação do positivo com o negativo, da vida com a
morte. Fecunda, a mulher detém um poder cujo bom uso, evidente
mente necessário ao equilíbrio da coletividade, não é nunca inteira
mente assegurado. A perversão e a degradação deste poder eqüiva
lem a um risco mortal, a uma esterilidade que condena o grupo ao
desaparecimento. Um conto africano muito difundido — o da moça
sem mãos, ou mutilada, ou hermafrodita — manifesta a obsessão
com este tema. O conto dramatiza uma angústia latente, a de uma
dúvida obsedante quanto à realização da fecundidade feminina. A
falta é relacionada com os desequilíbrios naturais e sociais, com o
aparecimento da desordem; a única forma de afastar esta fatalidade
é a aliança com as potências, divindades ou espíritos capazes de rea
vivar a fecundidade, restaurando a ordem. Envelhecida e estéril, a
mulher ainda permanece um enigma; ela está de uma certa maneira
desfeminilizada ou híbrida: uma “mulher-homem”, como se diz às
vezes, um ser de identidade sexual ambígua. Ela tem acesso a ativi
dades (sobretudo rituais) antigamente proibidas. Ela é respeitada,
mas igualmente temida, na medida que poderes extraordinários lhe
são atribuídos, os da magia e, às vezes, os da feitiçaria. No imaginá
rio e nas representações transmitidas pelas tradições africanas, não
aparece a figura feminina inteiramente positiva: a mãe pode se tor
nar “devoradora” , a esposa, perturbadora, agressiva, sexualmente
insaciável, e as co-esposas geradoras de problemas em razão de suas
constantes brigas. As mulheres constituem a metade perigosa; sob o
efeito de muitas de suas intenções, a ordem (masculina) se altera.
Existem discursos que tornam ainda mais complexas as espe
106
culações sobre o sangue da mulher, sobre a ferida interna que asso
cia a feminilidade ao sangramento — enquanto que os homens estão
associados aos derramamentos de sangue que resultam de seus
atos, de uma intervenção externa: a caça, a guerra e o homicídio, o
sacrifício, as feridas de iniciação. O sangue da mulher (o sangue das
regras, do parto, dos lóquios) é portador de perigo, objeto de inter
dições as mais imperativas: a infração ao resguardo pode ser da
mesma natureza, geradora dos mais altos riscos, igual à que afetaria
a relação com as potências religiosas (os deuses, os espíritos e seus
altares) ou com o poder político (o soberano estabelecido pela
sacralidade). Os joolas senegaleses definem muito claramente essas
situações de incompatibilidade, de separação e de exclusão. A
mulher menstruada é levada a viver à parte; ela não pode nem tocar
nem cozinhar os alimentos; não pode ter relações sexuais; fica afas
tada dos homens, os quais contaminaria, e dos lugares sobre os
quais ela teria uma influência nefasta. O parto é proibido na casa da
mulher, pois o sangue derramado nesta circunstância é o veículo
para calamidades extremas. O sangue da vida é também o da conta
minação e do mal, uma energia negativa e destruidora. Se a partu-
riente se deixa surpreender, é preciso eliminar ritualmente a polui
ção ou, em certos casos, destruir sua casa, incendiando-a. Tais proi
bições se encontram na maioria das sociedades antropologizadas.
Mas o mais significativo é a ambivalência desses sistemas de repre
sentações, dessas classificações segundo as quais ficam divididos o
fausto e o nefasto, a vida e a morte, a ordem e o caos. O sangue da
menstruação, segundo palavras de Mareei Griaule, mistura em “um
mesmo lugar o melhor e o pior”; traz a promessa de vidas novas ou,
ao contrário, o risco da doença, do enfraquecimento e da esterilida
de. O sangue do nascimento pode ser assimilado ao do sacrifício;
refere-se desse modo a algo que está além do mundo dos homens (o
das potências), aos territórios da sacralidade, com a ambivalência
própria desta, com o sistema de forças sobre as quais é preciso agir,
a fim de nutrir a ordem da desordem e a vida da morte. O nascimen
to africano está aliás associado com freqüência a uma morte metafó
rica. Em seu percurso biológico, indissociável de seu percurso
social, a mulher aparece como o s ign ifica n te p o r excelência,
mesmo se ela se encontra reduzida legalmente à condição de ser
subordinado ou de coisa. É a partir do discurso sobre o feminino
107
que a sociedade é pensada em sua ordem e naquilo que, nela, pode
se voltar contra ela.7
O filho mais novo é a segunda das figuras marcadas pela ambi
valência, ainda que em menor grau. As relações de desconfiança, de
enfrentamento e de rivalidade entre as gerações masculinas estão
em todos os tempos e em todos os lugares; delas nascem as lutas
insidiosas e os conflitos, a contestação e o movimento, o corte e a
oposição, segundo uma fórmula de Robert Lowie, um dos fundado
res da antropologia americana. As tradições orais africanas, que uti
lizam esse registro de referências na apresentação das imagens do
feminino, dão, também neste caso, uma informação significativa. Os
conflitos, que conferem ao relato uma intensidade dramática, são
freqüentemente os que opõem o irmão mais velho aos mais novos,
pais aos filhos, tios maternos aos sobrinhos. Os bumas do Zaire rela
cionam esses antagonismos, todos presentes em sua sociedade, a
uma teoria geral que faz do enfrentamento a lei de toda vida, e do
equilíbrio encontrado neste jogo de oposições o estado normal das
coisas e da sociedade.
No campo de uma teoria mais específica, o mais novo — des
cendente ou júnior no seio em uma pátria de irmãos — se define
mais em termos sociais que em termos de natureza. A identidade de
sexo toma mais difícil o recurso a essa segunda linguagem. O que
fica disto é a relação de criação, a relação de genitor e filho, desde
que se os considere em sua significação biológica (o que nasce do
sêmen do pai) e na sua extensão metafórica. Os bwas do Mali e de
Burkina ilustram claramente esses dois aspectos. A figura paterna
simboliza a potência, o poder, a autoridade; está dito: “A palavra do
pai tem força porque ele é pai; ele criou; o filho nada pode contra a
força de seu pai.” Com o passar do tempo, esta representação do pai
se aplica ao pai social que governa a unidade familiar no todo, ao
mais velho dos irmãos, considerado mais próximo do tronco, ao ho
mem em posição de proximidade genealógica em relação a um
ancestral, e ao grupo oriundo do fundador da comunidade. O dado
discriminador é o fato de ser na origem, de ter engendrado ou fun
dado, e, de um modo mais geral, de ter precedido. A condição bioló
gica do mais velho informa, por metáfora, a condição social; as duas
são criadoras de diferenciação, legitimam posições de dominação e
os privilégios a elas ligados. Os desafios são os da desigualdade, jus
108
a unautiULM
109
que é, no caso, o dublê da relação ordem/desordem. Neste jogo
duplo, o mais novo exerce uma função de operador principal.8
O escravo e o estrangeiro, associados ou confundidos, com
põem uma terceira figura à qual a desordem pode ser relacionada. O
suporte é a alteridade absoluta. A história da escravidão é longa —
ela cobre vários milênios — e trágica; não é uma história unificada,
pois remete a condições diferentes em que o escravo se encontra
reduzido, seja ao estado de coisa, de mercadoria, de simples repro
dutor de seus semelhantes, seja porque ele se beneficia de direitos
que o colocam em um estado intermediário entre a servidão e a
liberdade. Por trás do pano se mantém todavia um discurso sobre o
próprio ser do escravo, repetido ao longo do tempo e em todo espa
ço das diversas civilizações escravocratas: desde Aristóteles que, na
P olítica , considera que “a utilidade dos animais privados e a dos
escravos é mais ou menos a mesma”, até santo Tomás de Aquino,
para quem não poderia haver justiça precisa entre um senhor e seu
escravo, e até os teóricos do século XVIII que, ao classificar os seres
vivos, colocam em relação ao escravo a questão da fronteira entre o
homem e o animal.
Tudo começa por esse vínculo incerto, essa localização do
escravo em uma região onde a natureza e a sociedade não são mais
nitidamente separados: ele é uma força (natural) de reprodução e
produção. Aparece como nascido da violência, da guerra, da captu
ra, do preço do sangue, da expulsão imposta pelo grupo que o con
denou e o rejeitou; essa violência, que o constitui, permanece de
alguma forma ligada a ele, e ele tem de sofrer as conseqüências de
sua terrível lei. Restituído ao mundo dos homens, é assimilado às
coisas de valor, ao que é negociável, às riquezas; pode se tomar o
penhor (por um tempo) para um empréstimo, ou a compensação
(definitiva) que salda uma dívida. Quando seu estado não comporta
nenhum abrandamento, o escravo é inteiramente des-socializado;
perdeu tudo o que definia anteriormente seu vínculo com uma
sociedade, um grupo, um parentesco; alguns procedimentos — algo
como iniciações ao contrário, que extinguem a socialização em vez
de efetuá-la — realizam às vezes este arrancamento. O único laço é
o da servidão, o escravo é estrangeiro ao universo social onde a má
sorte o colocou. Os kongos da África central, onde a escravidão
interna e o tráfico foi numericamente importante e durou muito
1 1 0
tempo, dizem que o escravo não tem o “nascimento”: não pertence a
um clã e, por esta razão, não dispõe nem da liberdade nem da exis
tência social que dela resulta. É definido em termos de localização
(chamam-no de criança do povoado) e de apropriação (ele é o bem
de uma linhagem). Esta condição só mudaria para sua descendência
por meio de um casamento com uma mulher livre, na medida que
esta faz a contribuição de liberdade com aquele que é do seu san
gue. Além disso, o resgate restituiria para todo escravo seu estado
anterior: a transação transformava o bem em sujeito, que recupera
va sua identidade e sua capacidade sociais. Esta saída permanecia
na maioria das vezes fechada, pois correspondia a uma perda para o
grupo escravocrata, enquanto que os procedimentos que conferem
um statüs intermediário manteriam o efetivo e criariam devedores.
O escravo é tido como um indivíduo de “lugar nenhum”; é em
parte um ser da natureza (quase animal, quase unidade de um gado
arrendado), uma coisa e uma mercadoria, um estrangeiro e o ele
mento constitutivo de uma ordem econômica e social, um homem
de identidade extinta mas, em princípio, recuperável. A incerteza
quanto à sua identidade o faz temido, e torna sua função incerta na
gestão da ordem e da desordem. Ele manifesta essa incerteza sub
metendo-se a uma lei terrível e mantendo constantemente presente
a ameaça de uma redução a seu estado servil — à morte civil. O
escravo não está menos associado à desordem: as faltas do senhor
podem lhe ser atribuídas (é um culpado-emissário), e ainda mais às
manobras de feitiçaria. Durante muito tempo carregou este fardo
suplementar: os kongos viam em tais acusações a solução “mais sim
ples e menos perigosa”. A figura do escravo fugitivo é, aliás, por
causa de seu retomo à natureza selvagem e à sua condição de erran
te, a figura de um feiticeiro; nas Antilhas, as imagens do negro mar
rom e do “quimbandeiro” ainda se confundem no imaginário.9
1 1 1
poderes — quando o poder não existe — que lhe permitem coman
dar as forças, agir sobre o mundo, as coisas, os seres vivos, os
homens; mas sua potência é destruidora, manifesta-se por meio do
mal, da doença, da dor, das desordens e da morte. Já o soberano
governa e mantém a ordem geral, porque definido e legitimado pela
tradição, que o conserva ao converter positivamente tudo o que
poderia desfigurá-lo ou degradá-lo. Como o perturbador, herói míti
co ou deus, cuja função é confundir, e Dionísio é o exemplo clássico,
o feiticeiro pode passar dos limites, estabelecer a desordem e jogar
com ela, abolir as proibições e embaralhar todas as diferenças. Mas o
perturbador introduz a liberdade e o movimento da vida para criar
uma desordem fecunda. O feiticeiro, não, faz aparecer uma liberda
de negativa, ele a utiliza para produzir o caos e a destruição. Os tem
pos de grandes incertezas lhe são propícios: no Ocidente, no final da
Idade Média, geradora de um mundo em transição onde os exorcis
tas sempre reconheciam o trabalho da desordem e do mal; e em paí
ses às voltas com a dominação colonial e a modernização, onde as
práticas de feitiçaria se multiplicam, e os movimentos antifeiticeiros
nascem de um medo difuso.
A feitiçaria designa a desordem escondida em toda sociedade,
manifesta-a pelos efeitos que produz, utiliza-a e a desenvolve; nesse
sentido, amolda-se de acordo com a ordem que deseja destruir, e
sua forma varia portanto em função das configurações culturais no
interior das quais dá-se sua prática. A feitiçaria é diversa, como suas
figuras; estas se dividem entretanto em duas grandes categorias: a
das pessoas cujo ser é o próprio feiticeiro, pessoas nascidas para o
mal, e a das pessoas que têm acesso à arte nefasta e ao conhecimen
to do lado “escuro”, através de uma formação oculta. É o inato e o
adquirido colocados a serviço da negação da ordem. O ordenamento
dos seres e das coisas fica ameaçado pelo instrumento de agressão
dirigido contra os indivíduos, os que os cercam e seu meio ambiente
imediato. Tão diversa quanto as culturas, a feitiçaria não tem menos
características comuns enquanto sistema de representações, sabe-
res e práticas.
A feitiçaria remete a uma visão de mundo (que não é a imagem
invertida do mundo ordenado e governado), bem como a uma con
cepção da pessoa e das forças que agem sobre ela. Os ezuvoks de
Camarões, pertencentes ao grande conjunto cultural fangue, organi
1 1 2
zam seu sistema simbólico ao redor da noçào centrai ao evu, ueimi-
da como uma potência qualitativa não diferenciada e utilizável de
maneira positiva ou negativa. Os homens podem ser ou não detento
res deste poder. Os que não o possuem situam-se “do lado da
ordem, do dia, da luz", ao lado de Zemba, ancestral fundador, fonte
da lei do clã. Os que possuem evu ficam então fora desta ordem;
entre eles, alguns se opõem pelo uso nefasto de seu poder: são os
feiticeiros, criaturas da noite, agressores e agentes anti-sociais; os
outros, que praticam uma arte (uma magia) benéfica, têm uma fun
ção social, contribuem para integrar o risco, o acontecimento, o
novo ao cosmo mantido pelas gerações precedentes. Este exemplo
muito esclarecedor revela uma dupla divisão do mundo entre uma
ordem assegurada conforme a tradição ancestral, e uma ordem
incerta, dividida entre desordem feiticeira e movimento, que se
ultrapassam pelo efeito do imprevisto, da marcha contínua do tem
po. Uma desordem destruidora coexiste com uma desordem capaz
de fortalecer a conformidade, e as duas com uma ordem ideal: a do
universo do clã, lugar de todos os acordos.
A pessoa feiticeira está dentro da sociedade, condições de sua
ação diluidora e destruidora exercida do interior, e dela está tam
bém separada-, a sociedade torna-se-lhe estranha através do pró
prio ser do feiticeiro, que o leva à recusa, à agressão indireta, à
manipulação das forças negativas. O feiticeiro aparece sob a forma
de um inimigo disfarçado, próximo e portanto dificilmente identifi
cável. Ele é o mal — ou o Maligno, segundo a tradição cristã — dis
simulado sob a banalidade: esta é sempre enganadora e deixa tudo
sob constante ameaça. Aquilo que o designa pertence ao mesmo
tempo à sua personalidade e a signos que lhe são associados. A per
sonalidade, que faz os acusados potenciais, recebe da sociedade e
da cultura as características que lhe dão forma. Trata-se mais fre
qüentemente de uma personalidade que o excesso discrimina, seja a
capitalização anormal de mulheres ou de riquezas, sucesso excep
cional nas realizações, utilização exorbitante de um poder, ou, ao
contrário, infração repetida e provocadora, ligação com numerosos e
intermináveis conflitos, ou ainda desligamento pela marginalização
social voluntária ou sofrida. As circunstâncias que acabam de ser
mencionadas têm em comum o fato de permitirem a designação da
feitiçaria com base na superação de limites que definem o status (a
113
condição) de cada indivíduo, de um ataque aos equilíbrios precários
que mantêm as relações sociais. A feitiçaria nasce do excesso, da
não-conformidade, do conflito, da recusa era aceitar as restrições
próprias ao lugar que cada um ocupa na sociedade; por essas razões,
o jogo social fica emaranhado, sua regras se tomam mais confusas e
seus malogros mais aparentes. Assim é que existem sinais que apon
tam para a suspeita de feitiçaria, mas é preciso que tal suspeita se
transforme em acusação verossímil. É tudo o que se relaciona aos
signos, à existência de um espaço onde se concentram as calamida
des, as desordens, os infortúnios, os males e as mortes, e a que a
pessoa suspeita está manifestamente associada. Basta então conver
ter a acusação verossímil em acusação possível; os procedimentos
de adivinhação ou as provas reveladoras (por exemplo, a do vene
no), utilizadas para esta finalidade, parecem satisfazer a exigência
de neutralidade necessária a um processo “justo” . Mas todos os sus
peitos não são iguais perante a acusação: as barreiras erguidas pela
instituição da desigualdade são pouco ultrapassáveis; os poderosos
podem ser suspeitos, mas são raramente acusados, têm substitutos
(o escravo, por exemplo). O processo de acusação se desenvolve
sob o controle do poder que dita a Lei e a ordem e gera a cura da
desordem insidiosa, ou o efeito feiticeiro, que não depende de trata
mentos comuns.
Durante a fase oculta, a ação feiticeira é um drama com dois
personagens, o feiticeiro e sua vítima, aos quais um terceiro é acres
cido, o acusador, durante a fase pública que leva ao processo e à
repressão. Toda teoria da feitiçaria vincula-se primeiro a uma ou
outra destas figuras. O acusador suscita uma teorização de cunho
mais sociológico; coloca em questão fatos de opinião, situações e
maneiras de interpretação, procedimentos e atos do poder legal que
reduzem a nada os utilizadores do poder negativo. As duas outras
figuras não são indissociáveis, o feiticeiro e sua vítima estão ligados
de tal maneira que pode se produzir uma interversão de papel ou
uma espécie de conivência. A feitiçaria só tem existência pela sua
relação, e cada uma delas dá um acesso diferente e em parte com
plementar ao conhecimento do fenômeno. Marcelle Bouteiller, atra
vés de uma pesquisa ao mesmo tempo atual e histórica, localizada e
extensiva, tentou “fazer um retrato geral do feiticeiro”; ele é duplo,
ao mesmo tempo social (o indivíduo maléfico está sempre à parte,
114
excluído) e sobrenatural (u personagem feiticeiro tira de um além
os meios para exercer seu poder: elementos, natureza selvagem,
mortos, forças ou entidades destruidoras). O discurso da vítima per
mite chegar, pelo interior, à compreensão da crise feiticeira; é dele
que parte Jeanne Favret-Saada, e da seguinte constatação: “Se fala
mos em termos de feitiçaria, é porque sem dúvida não podemos
falar de outra maneira.” Essa escolha de última instância, porque
não há outra possível, porque o saber comum não fornece respostas,
se efetua quando o infortúnio e os males se acumulam, se repetem,
atingem uma certa pessoa e não são explicáveis. Essa desordem do
curso da vida individual não pode resultar de uma intenção má, ser
vida por meios que não dependem da ordem das coisas comuns. Os
acontecimentos nefastos não podem ser tratados separadamente, a
cura deve ser global, o feiticeiro e sua vítima estão unidos por uma
espécie de guerra secreta e total, onde a morte surge por caminhos
oblíquos, onde tudo produz efeito (as palavras, os olhares, os conta
tos, os artifícios maléficos), onde as forças em jogo estão repartidas
de forma vantajosa para o agressor. É preciso compreender que a
feitiçaria existe em princípio pela certeza que tem o enfeitiçado de
ser vítima, pelo discurso que sustenta, a fim de dar um pouco de
sentido à sua má sorte. No limite, não é necessário que o feiticeiro
exista, basta supor que exista; o que faz dele uma pessoa imaginária,
uma persona fic ta , ao mesmo tempo que uma pessoa real sobre a
qual incide a suspeita. A dominação do imaginário é tão forte que o
feiticeiro desmascarado (ou apontado) acaba muitas vezes por ade
rir à imagem negativa que lhe é imposta.
A feitiçaria tem uma parte ligada ao escondido, ao segredo, não
somente porque o feiticeiro permanece uma figura só parcialmente
real, cujo trabalho destruidor realiza-se na sombra, mas porque ela
indica o que escapa ao saber e aos poderes sociais estabelecidos.
Mostra o desconhecido, o incompreensível, manifesta forças não
domesticadas, na medida que revela a presença ativa de um acaso
cego e de uma desordem irredutível. Do ponto de vista da coletivi
dade, tudo se joga sob um triplo registro: o do sentido — o discurso
feiticeiro está além dos sistemas interpretativos normalmente utili
zados, impondo-se pela capacidade de explicar o inexplicável; o da
culpa — o discurso feiticeiro dá à sociedade tradicional a possibili
dade de jogar a responsabilidade de seus malogros funcionais, suas
115
fraquezas, seu ineficiente domínio diante do acontecimento, sobre
atores humanos nefastos; o da ordem — uma vez resolvida, a crise
de feitiçaria contribuiu para restabelecer o equilíbrio pelo uso da
simbólica e do imaginário.
As comunidades definidas por uma tradição forte localizam seu
mal designando o feiticeiro; é um dos procedimentos que empregam
a fim de transformar o negativo em positivo, as forças geradoras de
desordens em forças de coesão social. O efeito é duplo. O temor, às
vezes o medo, que inspira o risco de ser suspeito de feitiçaria, traz
uma autocensura que reduz as tentações de revogações, corrige as
condutas, retifica a tempo os desvios provocadores de desorganiza
ção. A dramatização sacrificial, que se desçnrola fora da busca e do
castigo do feiticeiro, cria uma intensa emoção coletiva e faz do agres
sor identificado uma vítima expiatória. Ao designar publicamente,
depois ao eliminar o fator de crise — aquele considerado estranho
segundo os valores, as normas, os códigos sociais admitidos, e agente
do mal — , a comunidade se restabelece, a autoridade se reforça. A
culpa que recai sobre o feiticeiro inocenta todos os outros, em pri
meiro lugar os poderosos; seu desaparecimento restitui provisoria
mente uma sociedade que se crê purificada. O culpado é des-sociali-
zado, expulso ou coisificado (quando é reduzido à escravidão), ou
ainda condenado à eliminação física; então o corpo nefasto é coloca
do ritualmente à parte, jogado no esquecimento, às vezes depois de
ter sido degradado e rebaixado ao estado de dejeto social poluente.
As sociedades da modernidade não eliminaram, mas mudaram a
forma desses expedientes. Os irredutíveis, por condição ou escolha e
convicção, foram considerados agentes nefastos ou inimigos do país,
como eram os feiticeiros do passado ou de outros lugares. Se sobre
vêm uma crise grave, que pode se converter em uma espécie de crise
feiticeira, são publicamente designados e sacrificados para que a cole
tividade reencontre uma coesão, e o poder um crédito. O racismo
confere uma ideologia, uma simbólica, uma carga emocional a essa
exclusão sacrificial. Somente as sociedades totalitárias dela fizeram
um componente de sua forma de governo, o elemento motor de um
sistema que impõe a submissão geral e total. Sua ordem é sacralizada
ao extremo; os fracassados e seus malogros são mostrados como obra
de criminosos de dentro e cúmplices de fora; a inquisição politica
aqui substitui a religião de antigamente. A ideologia totalitária retoma
1 1 6
« utBuitutm
117
dadeiramente ao desafio da desordem. Neste sentido, o exemplo
medieval tem descendência: outros redemoinhos históricos, inclusive
o atual, fizeram ou fazem com que suijam os simplificadores, os doa
dores de sentido e de confiança, que manobram por meio da persua
são e da dramatização, e os fornecedores de culpados.11
118
NOTAS
119
sions africaines du conte, Paris, S.E.L.A.F., 1973; M. Cartry, dir., Sous le
masque de Vanimal. Essais sur le sacrifice en Afrique noire, Paris,
P.U.F., 1987, contribuição de O. Joumet, “Le sang des femmes et le sacrifi
ce”, pp. 241-65; e J. Carlier-Detienne, “Les Amazones font la guerre et
1’amour”, L ’Etknographie, CXIII, 81-2, pp. 11-34.
8. Ver principalmente: G. Balandier,Anthropo-logiques, op. cit., cap.
II, “Pères et fils, aínés et cadets”. E, enquanto estudos de casos suplemen
tares: M. Douglas, The Lele of the Kasai, Londres, Oxford University Press,
1963; H. Hochegger, Le soleü ne se lèvera plus. Le conflit social dans les
mythes buma, C.E.E B.A., Bandundu, 1975.
9. Sobre a escravidão em geral, um último e importante trabalho: C.
Meillassoux, Anthropologie de Vesclavage, Paris, P.U.F., 1987. Sobre a
escravidão na região do Congo, cf. G. Balandier, Sociologie actuelle de
VAfrique noire, 4. ed., Paris, P.U.F., 1982.
10. Principais obras relativas à feitiçaria: E.E. Evans-Pritchard,
Sorcellerie, oracles et magie chez les Azandé, trad. francesa, Paris,
Gallimard, 1977; M. Bouteiller, Sorciers et jeteurs de sorts, Paris, Plon,
1958; J. Favret-Saada, Les Mots, la mort, les sorts, Paris, Gallimard, 1977.
E L. Mallart-Guimera, “Ni dos, ni ventre”, L ’Homme, XV, 2, 1975, pp. 35-65;
P. Métais, “Contribution à une étude de la sorcellerie néo-calédonienne
actuelle”, Année Sociologique, 18, 1967 (pp. 111-20) e 19, 1968 (pp. 17-
100); J.-P. Terrail, “La pratique sorcière”, Arch. de sc. soc. des Religions,
48, 1, 1979, pp. 21-42.
11. Cf. a apresentação do guia dos tribunais da Inquisição (Marteau
des Sorcières) in G. Balandier, Le Pouvoir sur scènes, Paris, Balland,
1980, pp. 99-105.
1 2 0
5
1 2 1
OEORGES BALANDIER
1 2 2
A DESORDEM
124
dor de fortalecimento. Nos três casos opera uma só lógica: a da
inversão e conversão dos contrários.2
O mundo ao contrário
125
situações impossíveis, a natureza não produz o que dela se espera,
os animais exercem os papéis dos homens, como acontece nas fábu
las, e os homens se comportam de maneira aberrante ou excessiva.
Mesmo a linguagem às vezes se desordena a ponto de se reduzir a
galimatias. Nessas ficções, onde tudo o que organiza o real se encon
tra de pernas para o ar, confuso, invertido, preparam-se a descober
ta de países imaginários (como o de Cocagne), prefiguram-se para
as viagens fantásticas, e as explorações conduzidas no país das men
tiras — às quais associam-se espontaneamente os nomes de Ra-
belais e Swift. Ao desencantamento que nasce da estupidez de cer
tas realidades opõe-se o encantamento das mentiras; mas o efeito
não fica somente no encantamento: a mentira carrega uma crítica
disfarçada, mostra a desordem escondida sob a ordem aparente das
coisas, sempre deixando entender que a substituição de um mundo
por outro depende mais do imaginário que dos projetos humanos de
subversão. Fica à disposição dos homens reais somente a mentira
social e a esperteza.
O ciclo africano dos contos da criança terrível revela um herói
absurdo, estranho a toda norma social, transgressor, capaz de atos
abomináveis e gratuitos, governado pela lógica de um mundo às
avessas. Este corpus narrativo, mais complexo que o anterior,
impõe duas leituras, exotérica e esotérica, sociológica e simbólica.
Os dogons conhecem aliás uma versão dupla da narrativa: uma
remete ao conjunto de sua mitologia e se apresenta como um per
curso iniciático; a outra relata uma aventura humana provocadora
de malefícios, de destruições cuja finalidade última é a “reordenação
das coisas”. Geneviève Calame-Griaule, analisando este conjunto de
narrativas, revela o movimento que resulta das relações estabeleci
das entre esses dois aspectos. A criança terrível, na sua forma mais
popular, é um personagem anti-social; ele inverte, reverte os valo
res, as normas, os códigos estabelecidos “pelo grupo, como necessá
rios a seu equilíbrio e a sua sobrevivência”; ele enfrenta o poder, e
vence-o para melhor desprezá-lo. Entretanto, suas ações são todas
marcadas pela contradição, a ponto de colocá-lo em perigo de morte
quando as realiza. Todos esses projetos colocam sua vida em jogo, o
que impõe uma outra leitura: se ele encarna o gênero de herói
excessivo e destruidor da ordem social, o caráter deliberado de seus
atos arriscados sugere “que seu comportamento deve ser decodifi
126
cado sob a ótica de outro conhecimento, do qual ele é justamente
investido — o conhecimento iniciático”. Ou, mais exatamente, “a
própria natureza e a força terrível dos atos maléficos” do herói
fazem dele “o iniciado supremo que pode se permitir tudo porque
conhece a face oculta das coisas” e que “nesse nível, tudo, se inver
te”. Quando a narrativa acentua esse aspecto, a desordem positiva e
fecunda é manifestada no interior da ordem, e tal descoberta intro
duz ao grau máximo do conhecimento. O saber último dá acesso à
revelação da desordem e à capacidade de governá-la, ou seja, ao
verdadeiro poder. Quando, mais raramente, a narrativa diminui esse
aspecto, o personagem não perde seus poderes excepcionais, exces
sivos e incompreensíveis, com efeitos negativos e positivos; a desor
dem é mostrada na sua ambivalência diante do olhar habitual dos
homens. A desordem fascina e inquieta ao mesmo tempo. Os bam-
baras do Mali aprendem a lição ao afirmar: “Se só houvesse sábios
no mundo, nada aconteceria.”3
Na Europa, a iconografia popular reserva um lugar significativo
à representação dos mundos às avessas até o início do século XIX.
Esta iconografia trata de um número restrito de temas e emprega
necessariamente alguns dos procedimentos que acabam de ser con
siderados. O motivo mais freqüente mostra situações onde as rela
ções entre os homens e os animais se invertem; os animais “ganham
de seus donos”. Numerosas séries são constituídas de gravuras que
revelam a permutação dos papéis sociais entre homens e mulheres,
crianças e adultos, superiores e inferiores, mas, neste último caso,
com uma reserva voluntária que mostra a preocupação de não ir
contra uma autoridade formalmente estabelecida. Enfim, um con
junto de séries revela um cosmo de pernas para o ar, uma natureza
onde coisas e seres vivos são banidos e mantêm entre si relações
absurdas. Os fabricantes dessas imagens, inventores desses univer
sos revirados, buscam em princípio o divertimento ao representar o
que aconteceria, se a ordem do mundo e dos homens não fosse o
que é, a saber: o aparecimento do absurdo e do insensato. Isso é
realizado dentro de limites estreitos que restringem o campo do
imaginário e mantêm os autores muitíssimo aquém de suas possibili
dades: a ordem social real impõe restrições à sua invenção da desor
dem. Jacques Cochin constata isso no estudo de um corpus de gra
vuras antigas com imagens da inversão: as representações estão
127
“submetidas a certas transformações que têm como efeito expurgar
implicações perturbadoras ou subversivas que pudessem conter”; ou
melhor, a maneira de transcrever restabelece “o conjunto da vida
social... em relações ‘naturais’”. A natureza social não é mais “sub
versiva” que a outra, a iconografia dos mundos às avessas chega a
um resultado paradoxal que é descobrir regularidades e “um univer
so imobilizado”. De uma certa maneira, o absurdo dilui a desordem,
na medida que a restringe no interior dos territórios dos fantasmas,
das fantasias, dos sonhos, lá onde o impossível pode ultrapassar a
impossibilidade de se dizer e de se representar. A partir do momen
to onde a grande transformação embaralha os critérios do impossí
vel, é importante notar que a representação dos mundos às avessas
cede progressivamente seu lugar a outras figurações.4
Com a festa, o desmoronamento da ordem das coisas acontece
na efervescência coletiva. É a esbórnia graças à qual manifesta-se,
como um parênteses colocado no interior do cotidiano, um mundo
inteiramente diferente. Durante a Idade Média européia, a Igreja
sendo o local privilegiado onde tudo se legitima e se exprime, a dra
matização festiva nela se localiza. A festa dos loucos, realizada nas
cidades com catedral, elegendo um bispo, papa ou rei dos loucos,
subverteu totalmente o universo do sagrado. Naquele momento
tudo se invertia. O alto clero era despojado de suas funções dando
lugar a um clero de mentira que ocupa as estalas da catedral. O ofí
cio se desenvolve de forma burlesca, entrecortado por episódios
sacrílegos ou orgíacos; máscaras grotescas de mulheres, palhaços ou
animais cantam, dançam e se entregam a pantomimas obscenas no
coro; nada é poupado: o altar é transformado em mesa onde são ser
vidas “comidas pesadas”, a fumaça dos restos substitui o incenso, as
pessoas correm e pulam como desvairadas. O lugar santo parece
entregue à agressão, à obscenidade, à orgia — aos excessos extre
mos pelos quais os signos se invertem. Mas essa inversão, ainda que
não exclua a violência, não degenera em subversão. Realiza-se no
interior do sistema simbólico e ritual que define a ordem social
medieval, invertendo-a; faz do mundo invertido um mundo louco,
sempre manifestando a necessidade de proporcionar um espaço e
um tempo de jogo à desordem. A autoridade eclesiástica faz disso,
aliás, um julgamento ambíguo: de um lado, condenam essas “abomi-
nações e ações vergonhosas”; de outro, alguns doutores admitem
128
que o vinho da sabedoria nào pode atender sem descanso ao serviço
divino e que é preciso lhe conceder, pelo menos, uma explosão
libertadora.
Outro desregramento, a festa do asno, estabelece ainda mais
claramente o exagero e a zombaria no interior do quadro eclesiásti
co. Sua origem vem da comemoração da fuga de Maria para o Egito;
depois, por desdobramento simbólico, o asno passa a ocupar a posi
ção central e se associar ao próprio Cristo. O asno é levado em pro
cissão solene, escoltado por sacerdotes e fiéis em roupas de festa,
até o centro da igreja onde se torna o personagem principal do ofí
cio. Todas as seqüências da missa são concluídas pelos zurros dos
membros das congregações e da assistência; os cânticos celebram o
asno em latim e em francês; o padre substitui o Ite missa est por
três zurros, e a assistência dá graças ao Senhor como sempre.
Quanto mais o ofício-paródia é exagerado, maior o entusiasmo
popular. A desordem se inscreve na ordem litúrgica, o mundo inver
tido aparece na substituição da figura divina pela figura animal, o
que levou Nietzsche a considerar a festa do asno como um ofício
escandaloso e blasfematório, quando a transgressão cerimonial pode
ser uma outra forma (extrema e turbulenta) da relação do sagrado
com a Lei. A inversão e a efervescência coletiva permanecem codifi
cadas, ritualizadas e festivas ao mesmo tempo; situam-se no calen
dário litúrgico e se submetem a uma periodicidade; pelo exagero,
liberam o jogo, sem minar as instituições. É aliás significativo que a
partir do século XVI, quando múltiplas mudanças se operam no
Ocidente dentro dos sistema de poder, um deslocamento do religio
so para o político se realiza: as festas do príncipe ilustram o poder, e
as “loucuras” se tornam também um item da corte.
No carnaval encontram-se vários dos componentes que aca
bam de ser apresentados, mas associados a outros, variáveis segun
do as províncias e os países. O tempo carnavalesco é aquele durante
o qual uma coletividade inteira se apresenta em uma espécie de exi
bição lúdica, liberando-se através da imitação e dos jogos, abrindo-
se a críticas e ataques através de exageros toleráveis, entregando-se
por arremedo às turbulências a fim de alimentar sua ordem. Tudo é
dito pelo disfarce, tudo se legitima pela união dos contrários, o
sagrado e o bufão. A inversão permanece o principal operador, per
mite quebrar as restrições temporais, metamorfosear a raridade em
129
abundância, a consumição em consumo, romper as censuras e as
conveniências revertendo as hierarquias em favor da máscara, dar
lugar à contestação dissolvendo-a na brincadeira coletiva e na zom
baria. Mas, no carnaval antigo, a ordem não é repelida; rege a fase
das manifestações durante a qual se revela, sobretudo no desfile em
que a sociedade urbana se expõe espetacularmente. Em La Ré-
pubiique, Jean Bodin evoca, no final do século XVI, essa sociologia
das cidades que se oferecem ao olhar dos basbaques, em uma pro
cissão. Uma ordem ao mesmo tempo verdadeira e paródica: "rey-
nages”, ou reinos, se formam sob a autoridade de um “rei” que dis
põe de oficiais, de uma guarda, de um séquito; essas imitações da
realeza exprimem os componentes sociais da cidade — a ordem das
ordens e dos corpos constituídos — e contribuem para a regulamen
tação da participação nos cortejos, nos ritos, nas festas e nos ban
quetes do período carnavalesco. Os participantes se apropriam da
ordem por mimetismo, encenam a desordem para afastá-la, se
enfrentam no jogo; mas acontece, como em Romans em 1580, que a
festa degenera, que a inversão degringola e acarreta um confronto
da ordem com a desordem verdadeiras, uma revolta seguida de uma
repressão. O carnaval recorre ao simbolismo e ao rito da vítima
expiatória com o manequim carnavalesco; mas este é um falso (uma
tradução irrisória) do pharmakos da Grécia antiga, que carrega e
larga a carga dos males que a Cidade não pode reduzir e ainda
menos eliminar. O manequim é condenado durante um processo
paródico, é acusado de uma forma extravagante, não é um verdadei
ro culpado, mas pode servir para designar, por meio do jogo da alu
são ou da semelhança, os poderosos ou os inimigos considerados
responsáveis pelas injustiças e as misérias. A ordem simulada — a
paródia do procedimento e do rito judiciários — se transforma então
em crítica indireta à verdadeira ordem.
É o carnaval brasileiro, que apareceu no último século nas for
mas hoje conhecidas, que melhor revela como essa efervescência
nasce de uma ordem, inscreve-se em uma configuração simbólica
onde exprime, junto com outras grandes manifestações nacionais, o
ordenamento geral da sociedade. Deve ser relacionado com a
Semana Santa — em sua intensidade dramática, nos seus rituais que
terminam na alegria da Ressurreição, na movimentação espiritual
que esta provoca em um povo de religiosidade intensa — e em sua
ISO
11 U U U V I i v u tu
131
UEjV B U Ü J DnLiAIVUlLn
132
desrespeito às normas e preconceitos. O tumulto intervém no
âmago da vida privada, quebra seus limites, sobretudo quando recai
sobre casais recentemente recasados ou casados, ou sobre uma
sexualidade que transgride os comportamentos permitidos. “Com
bate a desordem social por um ato de desordem social”, às vezes a
ponto de ultrapassar seu próprio excesso e acarretar processos
penais. Esta confrontação dramatizada tem evidentemente como
pano de fundo uma ordem e as técnicas que contribuem à sua ma
nutenção; neste sentido, é “um desafio entre classes sociais”. Du
rante os períodos revolucionários, a desordem ritualizada e conser
vadora se inverte, destrói as convenções e hierarquias do antigo re
gime, ainda presentes, e se toma um instrumento de vingança so
cial. A sacralização por meio da desordem trabalha para reforçar
uma ordem e uma moral em vias de construção; em 1793, a festa do
“Triunfo do Pobre” foi instituída no departamento de Aveyron, ten
do por objetivo humilhar o rico (que a financiava) e de elogiar o po
bre: a bagunça e os trotes rebaixavam e ridicularizavam os “gran
des” , pois “é chegada a hora da pobreza ser vingada”.7
Nas sociedades exteriores, antropologizadas, o procedimento
de inversão traduz-se freqüentemente por uma alteração dos papéis
sociais, às vezes pelo seu disfarce, efetuado de maneira ritual ou fes
tiva. O retomo das relações entre seniores e juniores foi descrito a
propósito dos balantes da Guiné; encontra-se em numerosas socie
dades tradicionais, por exemplo entre os Iqar’iyen marroquinos: nos
casamentos, os solteiros zombam dos mais velhos, desprezam os
valores fundadores do grupo e transgridem as proibições mais cate
góricas; uma violação metafórica da ordem dá toda sua força à con
firmação real desta ordem, pela união solene de um homem e uma
mulher, pela socialização de sua sexualidade e de sua capacidade
reprodutora. A mais importante inversão é a dos papéis femininos e
masculinos, que tem como característica ridicularizar ou suprimir a
sociedade masculina durante o tempo de sua realização. As mulhe
res ocupam a cena social, todas se portam ao avesso das regras que
regem seu comportamento comum, algumas dentre elas fazem o
papel dos homens encampando signos e símbolos da masculinidade
e da virilidade. Nesta circunstância, as mulheres mostram ao mesmo
tempo sua figura positiva — ninguém ignora que tem a responsabili
dade da reprodução e da produção de alimentos — e sua figura
133
V U W JkU U W l / J I U I l l l U I U LI
134
n üDjv/nuLini
135
UbUKULS DAliAPIÜILK
136
A ULSUKUC.M
137
vir nos desertos do bom prazer dos machos”; são consideradas
devassas, que escondem sua devassidão por conta de “certos misté
rios”, celebrações onde a orgia ( “na montanha”) e a possessão místi
ca se confundem. Dioniso é o senhor todo-poderoso dos espíritos, se
apodera dos fiéis e lhes impõe a mania, esta demência que nenhu
ma força subjuga; por ele, uma religião de polarização orgiástica
confronta-se com religiões fundadoras da ordem. O ritual dionisíaco
repousa sobre a crença de que todas as manifestações da vida se re
duzem a um princípio cujo deus é a personificação; quando este sur
ge em um dos adeptos, no transe, produz-se uma verdadeira apro
priação do gozo vital, dessa exuberância essencial. O movimento da
vida é açambarcado em sua fonte, antes de qualquer domesticação,
qualquer submissão à ordem. A interpretação de cunho psicanalítico
faz do culto dionisíaco uma forma de diminuir a fronteira entre o ser
e o outro, de vencer a alteridade, de chegar à uma fusão comunica
dora na participação coletiva do fluxo vital. Aqueles nos quais o
deus manifesta sua presença constituem aliás um grupo informal, o
thiase, onde se misturam mulheres e homens, escravos e cidadãos:
uma comunidade sem fronteiras e sem diferenças exclusivas. Em
uma mesma perspectiva, o dionisismo aparece como oferecendo aos
fiéis a possibilidade “de viver plenamente a ambivalência do desejo”,
de expurgar da morte seu sentido atemorizante, de construir a lou
cura provocada e ritual diante da ameaça da loucura sofrida.
Com Dioniso é possível fazer o inventário das transgressões,
que o pensamento grego revelou ao mundo por ele organizado, de
estabelecer a carta dos deuses da desordem aos quais ele deveria
ceder o lugar, dentro de um cosmo ordenado segundo sua razão. O
deus excessivo, volúvel e senhor de todas as perversões, gerador de
todas as inquietações, embaralha as formas pelas quais a ordem
social é definida, subverte os valores fundamentais, nutre a exigên
cia de ultrapassagem dos limites individuais e de salvação, do
mesmo modo que o protesto de onde nascem as forças de ruptura e
de subversão da Cidade. Por essas razões, e porque ele parece con
tradizer a racionalidade que governa o mundo grego, Dioniso apare
ce como o estrangeiro, “o outro instalado na polis”. Nesta, ele tem e
não tem lugar. Eurípides deu dessa contradição um exemplo em As
bacantes: o retomo de Dioniso a Tebas nela engendra a desordem e
a conduz à destruição; mas o deus mostra que uma cidade inteira
138
mente govemável, inteira dentro de sua ordem é ao mesmo tempo,
e de fato, uma cidade morta. É preciso que o movimento, portador
de vida e de renovação, mas também de questionamentos e provas
incessantes, evolua. Ordem e movimento devem estar juntos, equilí-
brios e processos longe do equilíbrio devem coexistir, tal como a ra
zão e aquilo que a nega, como uma quase loucura. De Dioniso disse-
se que ele liga dois sistemas de representações do mundo, duas lógi
cas (a começar pela masculina e a feminina), dois aspectos indisso
ciáveis — a ordem da racionalidade e a desordem que dela transbor
da e a fortalece. Já se disse que Dioniso “é o lugar das maiores con
tradições, que a razão humana é impotente para assumir” ; porque
ele provoca o aparecimento do irracional e do sagrado no âmago da
Cidade, “ele é o próprio paroxismo da tensão trágica”. Se o deus é o
“emblema da subversão dentro do helenismo”, é também do helenis-
mo a presença indelével. Ele é o conquistador que tem direito ao
triunfo, seu culto ocupa um lugar enorme no calendário religioso,
mas sob a forma de um sistema ritual aberto às possibilidades que a
religião estabelecida ignora ou censura.12
Do Egito à Grécia e ao mundo helenístico, depois à África, o
Perturbador divino ou o herói ultrapassador dos limites multiplica
suas manifestações e seus avatares. A mais comum dessas figuras
que apareceram no mundo negro é Legba ou Eshu, situado no uni
verso religioso do Benim e realizando sua migração quando da
deportação negra para as Antilhas e as Américas. No Daomé antigo,
Legba situa-se na genealogia dos deuses oriundos de uma divindade
bissexual, em posição de recém-nascido. Por causa desse apareci
mento tardio, ele não recebe a responsabilidade de nenhum setor do
universo, mas apenas a capacidade de dominar todas as palavras e
de jogar com todas as significações. Ele torna-se desse modo o
intérprete, o mediador que permite às múltiplas divindades comuni-
carem-se entre si e de ter um enviado junto aos homens. Porque é o
senhor da comunicação, ele tem igualmente o dom da ubiqüidade e
pode estar em toda parte em ação. Associa-se aos lugares de encon
tro e passagem: encruzilhadas, espaços públicos, entradas. Tem seu
lugar em todos os grupos de culto e em todas as casas, e junto de
cada homem a quem dá uma porção de liberdade. A ubiqüidade de
Legba não se inscreve somente no espaço, mas também no tempo:
ele é essencialmente aliado à adivinhação, à comunicação com o
139
futuro, à palavra e à escrita de Fa, senhor do destino, a ponto de os
mesmos mitos tratarem tanto de um como de outro. Com a capaci
dade de intervir em todos os lugares e de se fazer comunicar, este
deus da presença múltipla, do movimento e das transgressões tem o
poder de brincar com as restrições que regem a ordem do mundo e
da sociedade.
Legba é também indissociável da sexualidade e dos símbolos
fálicos. De um certo modo, ele mesmo é um falo. É por meio desses
símbolos que exprime seu superpoder, segundo o que dizem os seus
sacerdotes, e que ele leva ao grau extremo suas transgressões. Ele
destrói as proibições mais invioláveis: comete o incesto com uma
irmã e a filha desta, tem relações sexuais com sua sogra, copula com
os cadáveres de três mulheres que ele mesmo matou, deflora a filha
de um chefe depois de ter reduzido o marido e os homens do séqui
to à impotência. Ele se diz dotado de um apetite sexual inesgotável
— como castigo por sua primeira relação incestuosa — , apoderan
do-se de todas as mulheres que encontra em seu caminho.13 Legba é
o destruidor (um dos nomes pelos quais é conhecido), quando pri
meiro destrói as convenções pelas quais a sexualidade se socializa e
enquadra primordialmente a sociedade. Ele revela a sexualidade sel
vagem; tal como o deus grego, coloca o divino e a selvageria em
estreito relacionamento.
A comparação impõe-se sobre um outro plano: o deus daomea-
no também está ligado à loucura, é o louco entre os deuses cuja obra
de gestão do mundo e dos homens confunde, e que entre estes
semeia a inquietação, a discórdia, o imprevisto e o sacrilégio. Os
múltiplos nomes de Legba mostram que se trata de uma figura
capaz de contínuas transformações, e tão inatingível quanto o vento
e o fogo que representa. Legba é inclassificável, embaralha as classi
ficações, as ordenações. O espaço, as regras, as categorias não lhe
impõem limites. Para ele, o pensamento se desorienta, é um jogo pe
lo qual as significações entram em curto-circuito e se transformam;
substitui por sentidos inteiramente novos os sentidos dados ordina
riamente às palavras; porque desdenha da lógica social, toma-se um
contrapensamento, um “método proibido”, um abuso da inteligência
servida pela esperteza e a falta de respeito. Legba, o grande comuni
cador, brinca com a linguagem para criar o movimento nas classifi
cações sociais e nas lógicas que as sustentam; pode-se aplicar nele,
140
a propósito, uma fórmula de Roger Bastide, relativa aos procedi
mentos lingüísticos anti- ou a-sociais: “introduzir a desordem na
ordem para impedi-la de se estrangular”.14
Legba atravessa com suas turbulências os territórios dos pode
res. É o único que pode se opor ao deus supremo e a grupos de deu
ses — uma narrativa faz de Legba o chefe destes — , ao soberano, à
família real, aos dignitários. Diante de todos tem a capacidade e o
direito de se encolerizar. A análise da narrativa mítica e a exegese
dos comentaristas permitem precisar as formas dessa oposição: a
ironia, que deprecia o poder político e seu sistema de autoridade; a
rebelião, que os coloca em situação de vulnerabilidade e os torna
frágeis, apesar das aparências em contrário; o movimento, que cede
espaço à corrente da vida e deixa a ordem ao sabor das perturba
ções da mudança. Legba traça os limites do poder, seus projetos
levam para o imaginário a prova de que este não está inteiramente
confiscado, mesmo sabendo-se que o Estado de Daomé antigo é for
temente centralizado e seu soberano considerado despótico. O deus
está presente em cada homem como uma chance de liberdade, ele
lhe oferece a possibilidade de não ficar inteiramente submetido à
sua condição, de ter uma parte da iniciativa, de afrouxar os nós das
imposições políticas, sociais e culturais. Ele dá a cada um os meios
para obter o melhor ou o pior do destino que lhe é próprio, e mesmo
o rei — ainda que seu “próprio Legba” seja considerado o mais
poderoso — não escapa a essa dominação.
A oposição onde o deus se situa é bem definida. De um lado, o
que depende do poder organizador, da força geradora da existência
e da ordem, presente em toda divindade, em todo ser vivo, em toda
coisa; uma potência (chamada acè), que não pode ser nem captada
nem apropriada, mas somente gerada de maneira conveniente pelo
estrito respeito às regras, às proibições, aos ritos e pelo uso correto
das palavras. De outro lado, o que depende de Legba, o quase louco,
o violador, o “ser bom-e-mau”, o destruidor, aquele pelo qual tudo se
comunica sem medo dos cortes, das separações constitutivas de
ordem, e pelo qual tudo é colocado em movimento sem preocupa
ções, com as rupturas de equilíbrio e as confusões de sentido que
disto resulta. Legba opõe sua indisciplina divina à disciplina da
ordem social e universal. Mostra que esta carrega em si, necessaria
mente, o aleatório e a desordem; manifesta o que se esconde por
141
trás das aparências tranqüilizadoras da estabilidade e da repetição
Ele remete a ura ensinamento capital: se não faz parte do movimen
to, se não reconhece nem governa a desordem que não pode deixar
de criar, a ordem simplesmente reduziria a sociedade ao estado de
astro gelado.15
Em todos os universos culturais, o imaginário coletivo deu
forma e vida a personagens capazes de se transformar tanto em deu
ses ou heróis quanto em bufões, e de agir ao contrário das normas e
dos códigos. Um nome os designa: Trickster, dos mitólogos anglo-
saxões, palavra que evoca o trick (as voltas) e a “triche” (a “tra
paça”); é o Décepteur dos mitólogos e antropólogos de língua fran
cesa, de volta como um avatar exótico do Deceptor de Descartes. Se
é certo que cada uma dessas figuras, e o que cada uma exprime, só
se enquadra totalmente no interior dos sistemas de idéias, de símbo
los e de crenças que lhe é particular, não é menos verdadeiro que
elas têm em comum características essenciais. Todos esses persona
gens estão à parte, ou separados por uma impureza original, desde
seu nascimento; eles são “outros", de identidade incerta ou variável,
seu ser móvel os exclui de toda conformidade; podem aparecer
como meio loucos inquietantes e cômicos. Por eles, também, os limi
tes se apagam, as categorias e as classificações se embaralham, os
valores e as obrigações se enfraquecem. Eles perturbam, transgri
dem, subvertem; desafiam os poderes, e as potências superiores
com as quais seu estado intermediário (entre os deuses e os ho
mens) os relaciona. A uma lógica da ordem opõem uma lógica da
contradição e da incerteza.
O ciclo de Wakdjunkaga, transmitido pelos winnebagos india
nos e sobre o qual Jung e Kerenyi apresentaram um comentário,
narra os incidentes, os acontecimentos e os escândalos dos quais
este herói é o agente ou o provocador. Alguns ritos centrais estão
submetidos a uma deformação paródica e bizarra: a competição ceri
monial entre clãs, que tem como desafio sua organização política, os
procedimentos e as restrições que acompanham a passagem à matu
ridade viril, as práticas que atraem as bênçãos dos espíritos e as que
a boa condução das operações guerreiras requer. Nessas circunstân
cias, o perturbador provoca desordens e transgressões; e delas se ri
— riso sacrílego — em total impunidade. Em razão de tudo isso, o
chefe não se comporta como dele se espera: derruba as proibições,
142
sobretudo as do caráter sexual, saqueia os lugares de culto, levanta
seu pênis em lugar do emblema de autoridade, que usa por ocasião
da festa anual, onde tem por incumbência lembrar os ideais de sua
coletividade. Mitos ou ciclos legendários homólogos tiveram uma
enorme difusão entre os ameríndios setentrionais. Eles anunciam
todos os benefícios (e malefícios) e gestos de um herói mal identifi
cável, divino por vários aspectos, sempre errante, ignorando a fron
teira entre o bem e o mal, poderosamente sexuado e obsceno, enga
jado em aventuras onde enfrenta sempre os costumes e as regras.
Seus excessos, que às vezes o levam a ponto de a má sorte voltar-se
contra ele próprio, asseguram a ordem mostrando-o inaceitável
quando colocou tudo de pernas para o ar; além disso, o personagem
aparece em algumas circunstâncias como o criador de novas formas
de instituições, que nascem de suas próprias transgressões. O que
ele exprime, sobretudo, é a natureza contraditória da sociedade —
mistura instável de ordem e desordem, de conformidade e de não
conformidade — do que resulta sua própria natureza, sua instabili
dade essencial.
Na África ocidental, o “deceptor” encontra-se nos mitos e so
bretudo nos contos que têm os animais como sujeitos. Fora o cor-
pus sagrado dos dogons, que faz da raposa mítica ( “a Raposa páli
da”) uma figura da desordem necessária ao movimento do mundo,
um dos conjuntos narrativos mais providos de ensinamentos é o dos
akans, sobretudo dos ashanti de Gana. Numerosos contos têm como
figura central Anansê, a aranha que transgride as regras do deus
criador: são transmitidos, enriquecidos e multiplicados em razão do
grande valor que lhes é dado e porque preenchem uma função con
siderada vital: a de colocar em questão e de afirmar, contestar e for
talecer a “crença a respeito dos conceitos socitais mais importan
tes” . Trata-se de uma espécie de pedagogia do conhecimento da
sociedade, geradora de desilusões e de apreciações críticas, e entre
tanto ambígua, pois contribui em última análise para confirmar e
reforçar a regra. O personagem de Anansê arruina os fundamentos
da sociedade akan, é o ser negativo que traz a contradição e a incer
teza, a desordem e, finalmente, a morte. Não aceita nenhum laço,
nem de parentesco nem de amizade; experimenta um individualis
mo absoluto, resolutamente anti-social. É rebelde em todas as suas
relações com Nyamê — o Criador “que deu sua ordem ao universo e
143
designou todas as coisas”, com os espíritos e com a morte. Mas a
revolta de Anansê encontra obstáculos e seus projetos experimen
tam muitos fracassos. O personagem não é um agente da desordem
cujo sucesso é assegurado; é ambivalente, como os ensinamentos
que transmite. Se permite uma liberação no imaginário, dissolvendo
as dificuldades sociais, provoca sobretudo a desaprovação; se
demonstra a possibilidade de violar a lei, revela também que esta
tem a última palavra. Anansê é a exceção que confirma as regras,
que dá validade, através da inversão de suas próprias inversões e
subversões, à ordem akan. Mais uma vez, a desordem se traduz em
ordem.10
144
ocasião de, publicamente, fazer advertências ao chefe, expulsar uma
feiticeira simbólica, jogada no mar com a carga dos males acumula
dos ao longo dos meses passados, mas também de fortalecer o acor
do entre os ancestrais, ofertando-lhes os primeiros frutos da terra. É
uma espécie de carnaval que permite liberar os problemas da comu
nidade, reverter positivamente as relações entre as pessoas e entre
os grupos, e que deságua no sagrado ao renovar a relação com os
fundadores da ordem nzema e com as potências que regem a natu
reza. Em outras circunstâncias, uma guerra e uma desordem de
palavras semelhantes servem de substitutos (ou simulacros) apazi-
guadores dos confrontos e desordens reais; contribuem para contê-
los relaxando-os ficticiamente.17
Fazer a desordem não é apenas deixá-la passar ou tentar dirigi-
la ao menor custo, é também abrir-lhe os espaços onde será simboli
camente capturada, depois domesticada. O campo do ritual permite
esta operação pela oposição do sagrado, do poder, da ordem, da cul
tura e da seriedade à transgressão, à desordem insana, à selvageria,
ao cômico grosseiro e obsceno; o riso nasce deste confronto, dos
choques e curto-circuitos que provoca, mas também da angústia
criada pelo sacrilégio. Os índios americanos fizeram deste procedi
mento uma instituição, o instrumento de uma estratégia coletiva da
qual, sobretudo o poder, tira proveito. No centro do que é um drama
sagrado, onde ordem e desordem estão em jogo, encontra-se uma
figura muito conhecida dos antropólogos: o Palhaço ou Bufão ceri
monial. Encarna de maneira muito próxima o personagem do “De-
ceptor”, realizando o que este evoca em favor da narrativa; é uma
figura que aparece espetacularmente. Como o acidente, o aconteci
mento e a improvisação, a desordem, surge nas reuniões tribais mais
solenes. Nos intervalos do drama ritual, manifesta o que é censura
do, repelido, reprimido: a violência, a loucura, a sexualidade pública
e a obscenidade, a regressão selvagem, o escárnio do qual a própria
morte está marcada. O Palhaço cerimonial não respeita nada nem
ninguém, sua permissividade é total, e seu ataque é mais forte quan
do visa um objeto reverenciado; é o mestre do mal como o é, ou
poderia ser, do bem. Revela fugazmente, sob o efeito do brilho da
transgressão, um outro mundo onde as significações circulam em
todos os sentidos, onde nada está ordenado, onde as palavras não
dizem aquilo que supostamente deveriam dizer, e onde as normas se
145
tomam anormais. A sociedade, personificada pela platéia cerimo
nial, o “pune” por ser o artesão dessa bagunça escandalosa; conde
na-o pelo riso (amarelo), agride-o parodicamente (utilizando as
crianças), faz dele uma espécie de personagem expiatório, mas sem
pre lhe outorgando um poder mágico que o toma temido.
O trabalho do Palhaço cerimonial realiza-se sobre quatro prin
cipais terrenos. E primeiramente o do sagrado: a comunicação esta
belecida com certos deuses é banalizada, quase trivializada como a
comunicação do cotidiano, a ordem cerimonial é invertida e as atitu
des rituais escarnecidas burlescamente. Em seguida, o terreno da
des-aculturação ou da selvageria: os trapos, a lama, a sujeira, as
matérias impuras vestem o personagem; a repulsão extrema, como
entre os zunis, é provocada pelo consumo de urina e excrementos,
de dejetos, de pequenos animais retalhados vivos; a regressão se
manifesta em um jogo de selvageria e bestialidade. O terreno da
sexualidade é aquele sobre o qual o escândalo da transgressão atin
ge sua mais alta intensidade, a ponto de se denominar essas culturas
da desordem cerimonial de “fálicas” . Os Palhaços sagrados usam
simulacros de pênis, exibem imitações de vulvas enormes, praticam
gestos equívocos com travestis, entregam-se a cópulas simuladas
sobre os altares; dissocializam parodicamente a sexualidade e enco
rajam a devassidão sexual durante as cerimônias, fazendo da des-
construção dos códigos sexuais o próprio signo da subversão total
da ordem. O último terreno onde se dá sua provocação é o infortú
nio: os enfermos de nascença e de vida se degradam em objetos de
impiedosas zombarias, suas enfermidades ou suas desgraças, carica
turadas, grotescamente exageradas, tomam seu lugar na pantomima
cerimonial. Esses registros, segundo os quais o Palhaço ritual com
põe seu papel e seu texto, não são dissociáveis. Colocam cada
homem, no momento do espetáculo sagrado, na presença de siste
mas de forças e significações que ordenam (e podem desordenar)
sua condição: o sagrado que o submete, o sexo que nutre suas pul-
sões, o destino que lhe designa uma sorte desigual e mutável, e,
mais globalmente, a cultura que lhe traz o sentido com o Símbolo e a
Lei. O Palhaço mostra a ambivalência, os sentimentos que inspira
são, aliás, reveladores: a reverência e a afeição juntam-se à raiva, até
ao medo que incitam ao apaziguamento através dos dons. Ele entra
no grande jogo dos poderes; faz a autoridade nos debates dos temas
da comunidade, o é, às vezes, como entre os zufíis, um elemento da
hierarquia governante Sobretudo, ele é o revelador de uma realida
de onde prevalecem o movimento, o imprevisto e a turbulência.
Destes é, de uma certa maneira, o mestre, o responsável de um
encargo que não está limitado a uma invocação periódica do “cará
ter a-social da transgressão”: é aquele que converte a desordem por
meio da teatralização ritual.18
Na medida que estão a serviço de dispositivos que têm por
finalidade conservar, tratar a mudança no sentido de uma continui
dade mantida, de preservar e fortalecer as aparências da unidade
social, a simbolização e a ritualização propriamente políticas mos
tram ainda mais claramente essa conversão da desordem em ordem.
No caso, há ainda por constatar o efeito de um processo de inversão
social, inversão que se voltaria de alguma forma contra si mesma,
consolidando o que deveria arruinar. Uma segunda leitura deixaria
entrever a consciência do tempo naquilo que o faz irreversível, do
movimento naquilo que o constitui fator de desperdício de forças,
de usura, e, em sentido contrário, de possível renovação. O cerimo
nial político dos anyis da Costa do Marfim dá a prova disso na pessoa
do soberano, que governa seus reinos minúsculos. O rei é o suporte
da força do poder, mas só está ali na condição de permanecer corpo
ralmente íntegro e infenso a qualquer sujeira. Essa força é o princí
pio mais ativo, a ponto de poder abreviar a própria vida do soberano;
é uma força que pode se degradar ou deixá-lo, e tudo aquilo pelo
que é responsável fica, pois, em estado entrópico. É preciso então
fortalecê-la, e é este o objetivo dos rituais anuais e cíclicos (a cada
sete anos) denominados festas do inhame. Tais manifestações asso
ciam a renovação da força do poder à renovação da natureza. Essas
verificações periódicas permitem reafirmar ou enfraquecer a plena
capacidade real; se o soberano aparece de forma declinante, “o
mundo arruina-se com ele”, ele se torna nefasto e uma mensagem
informa que deve ser “suprimido”. O tempo vence o soberano mas
não a realeza, que se fortalece quando surge o novo reino.
Entre os swazis da África sul-oriental, uma grande cerimônia
nacional e anual dá ao soberano a oportunidade de se colocar simbo
licamente à prova e de mostrar seu vigor. E um drama político — e
cósmico — onde ele desempenha o papel de personagem central
que se submete a uma agressão perfeitamente codificada, que lhe
147
permite definir-se periodicamente e fortalecer-se efetivamente. A
dramatização comporta duas fases. A primeira é a das desordens,
dos enfrentamentos, das provas e do ódio encenados; o rei sai disso
tudo vencedor, e sua força, regenerada. A segunda alia a política e o
cosmo, a ordem dos homens e a ordem do mundo. Associa o rei às
forças e aos ciclos naturais, às práticas provocadoras de vida e de
fertilidade, à consumação cerimonial dos primeiros frutos. A ordem
social fica então exposta, o soberano rege todos os momentos do
rito, exige que cada participante se conforme a um código de prece
dência que exprime solenemente os diversos status, as posições e as
hierarquias que regem. Sob esse aspecto, o rei pode ser visto como
uma figura inversa daquela do Bufão ritual; tudo, por meio dele, se
manifesta segundo a categoria da ordem: o sagrado e seus manda
mentos, a sociedade e sua Lei, o mundo natural e suas regularida-
des. Ele exerce um sacerdócio geral da ordem, deve fazer com que
esta submeta a desordem.
Nas sociedades tradicionais de estado, o corpo soberano é o
lugar central onde a ordem e a desordem se encontram e se enfren
tam. A força (a potência) da qual é investido é ambivalente. Repto
de ordem e desordem, de fecundidade e esterilidade, de vida e de
morte, esta força engendra um e outro segundo seja ou não tratada
de maneira adequada. A iniciação, precedendo o momento da inves
tidura, requer freqüentemente a passagem pela regressão, a trans
gressão e a violência bruta, o que realiza o afastamento de sua con
dição humana comum e faz do rei uma pessoa singular, um ser único
e à parte. O que é sobretudo demonstrado é a capacidade de subme
ter a ordem além da desordem, de colocar a energia selvagem, pri
meira, e da qual a desordem é o veículo, a serviço da instituição —
domesticando-a. O tempo dos interregnos revela o que exatamente
acontece: a vacância do poder se torna um período de regressão
durante o qual a energia social retoma simbolicamente (e, por um
lado, efetivamente) ao estado bruto. Nada fica regulado, tudo pare
ce conduzir ao caos. Nos antigos reinos do Benim, na África ociden
tal, uma fórmula convencional diz o seguinte: “é noite” sobre o país.
É o tempo das trevas. Os primeiros observadores estrangeiros cons
tatam então o desregramento dos costumes, a multiplicação dos
estupros e depredações, tudo envolvido em impunidade provisória,
“como se a justiça morresse com o rei”. Esta reaparece, ainda mais
148
severa que a anterior e, com ela, toda definição das normas e limi
tes, quando da entronização do novo soberano; o reino se abre para
desdobramentos simbólicos e operações sacrificiais, que mostram
que as forças de desorganização, até então liberadas, estão a partir
de agora dominadas. As ritualizações, pelas quais se encena o drama
do poder vacante, são todas conduzidas segundo os princípios da
inversão e da hipérbole, do excesso e do desrespeito aos limites
sociais. As proibições e censuras são substituídas pela obscenidade
desatinada ou orgíaca; o direito pela violência; o decoro e os códigos
pela paródia e a irreverência; o poder conservador de uma ordem
pela liberdade louca e a agitação desordenada. As ritualizações
impõem finalmente uma certeza: a continuidade em vez do caos.
Elas acenam para o desejo de ordem.19
149
N otas
150
7. J. Le Goff e J.-C. Schmitt, dir., Le Charivari, Paris, C.N.R.S. e
E.H.E.S.S., colóquio de abril L977; E.-P. Thomson, “Rough Music: le chari
vari anglais", Annales E S C., 2, 1972, pp. 285-312; C. Petit, “Le triomphe
du Pauvre, les pauvres contre les riches à 1’époque révolutionnaire à travers
une fête rouergate”, Annales duMidi, 90, 137,1978, pp. 141-54.
8. R. Jaraous, “La parodie des valeurs: les cérémonies du mariage
chez les Iqar’iyen (Maroc)”, in Le Charivari, op. cit.; C. Gatheron, Essai
sur la condition et le rôle de lafemme mandénka du Niokolo, tese s.p.,
Paris, Université René Descartes.
9. Cf. U. Bianchi, “Seth, Osiris et l’ethnographie”, Rev. d’Histoire. des
Religions, CLXXIX, 2,1971, pp. 113-35.
10. M. Detienne, “Dionysos”, in Y. Bonnefoy, dir., Dictionnaire des
mythologies, Paris, Flammarion, 1981, pp. 300-7.
11. M. Daraki, Dionysos, Paris, Arthaud, 1985, pp. 78-83.
12. M. Daraki, op. cit., citações e dados extraídos dos caps.III e IV; M.
Detienne, “Dionysos”, op. cit., citações e dados selecionados; M. Detienne,
Dionysos mis à mort, Paris, Gallimard, 1977, e o artigo de N. Loraux, “La
Grèce hors delle”, L ’Homme, XX, I, 1980, pp. 105-11.; número especial
“Dionysos, le même et l’autre”, Nouv. Rev. d’ethnopsychiatrie, 1, 1983, e
sobretudo a contribuição de M. Bourlet, “L’orgie sur la montagne”, pp. 9-44;
e a obra clássica de H. Jeanmaire, Dionysos, histoire duculte de
Bacchus, Paris, Payot, 1951, reeditada em 1970.
13. Dados extraídos de M.-J. e F.-S. Herskovits, Dahomean narrati-
ve (1958), retomados por L. Makarius, “Le mythe du Trickster”, Rev.
d’Histoire des Religions, 1, jan.-mar. 1969, pp. 17-46.
14. R. Bastide, “Le rire et les courts-circuits de la pensée”, Échanges
et communication, La Haye, Mouton, 1970, pp. 953-63.
15. Sobre os legbas: B. Maupoil, La Géomancie à 1’ancienne Côte
des Esclaves, Paris, Institut d’Ethnologie, 1941; H. Aguessy, Essay sur le
mythe de Legba, t. 1-3, tese, Paris, Université Panthéon Sorbonne, 1973;
M.-J. et F.-S. Herskovits, op. cit., e L. Makarius, op. cit.; G. Balandier, O
Contorno, poder e modernidade, op. cit.
16. Sobre o “Deceptor”: P. Radin, K. Kerenyi, C. Jung, The Trickster. A
study in American Indian Mythology, London, Routledge and Kegan Paul,
1956 (nova ed.); R. D. Pelton, The Trickster in West África, Univ. of Cali
fórnia Press, 1980; D. Paulme, “Typologie des contes africains du Dé-
cepteur”, Cah. Ét. Afr.,XV, 4, 1975, pp. 569-600; C. Vecsey, “The Exception
who Proves the Rules: Anansé the Akan Trickster”, Joum. of Religion in
África, XII, 3,1981, pp. 161-77; sobre o mito dogon, cf. o primeiro cap. supra.
17. Cf. S. Lallemand, “Têtes en loques: insultes et pédagogie chez les
Mossi”, Cah. Ét. Afri., XV, 4,1975, pp. 649-67; D. Paulme, “Un rituel de fin
151
GEORGES BALANDíER
d année chez les Nzéina de Grand Bassam Cah. Ét Afri., X, 2, 1970, pp.
189-202.
18. O estudo dos palhaços rituais foi efetuado em numerosas socieda
des indianas por: Lowie (Plains), Skinner (Ponca), Bunzel (Zuni), Parsons
(Pueblo e Yaqui), Opler ( Chiei cahua), Howard (Sioux). Ver também: L
Makarius, “Clowns rituels et comporteraents symboliques ”, Diogène, 69,
1970, pp. 47-74 , e a nota de T. H. Lewis, “Traditional and Contemporary
Ritual Clowns of the Crow”,Anthropos, 77, 5-6, 1982, pp. 892-5.
19. Cf. G. Balandier, Le Pouvoir sur scènes, Paris, Balland, 1980,
cap. 3, “L’envers”; C.-H. Perrot, Les Anyi-Ndénié et le pouvoir au XVIIIe.
etXIXe. siècles, Paris, Éd. de la Sorbonne, 1982, e o regrupamento de tex
tos de M. Gluckman, Order and Rebellion in Tribal Africa, Londres,
Cohen and West, 1963.
152
Terceira Parte
DESORDEM NA MODERNIDADE
6
155
aberta ao acontecimento e aos riscos, gera recusas que derrubam a
conformidade, discórdias e confrontos, se move e não se repete de
geração em geração. Aquilo pelo que difere essencialmente é de
outra natureza, e talvez revelador de certas falhas aparentes na
sociedade da modernidade, falhas que criam um desejo de retomo
ao passado (a nostalgia tranqüila) ou uma certa fascinação para o
arcaico (a permanência resistente aos ataques da história).
As sociedades tradicionais estabelecem entre o real e elas mes
mas uma relação de equivalência, sua ordem e a ordem geral do
mundo são indissociáveis; constituem-se ao se situarem por comuni
cações e correspondências múltiplas com o mundo, delas não se se
parando no desejo de melhor dominá-lo. Neste sentido, suas teorias
do mundo, do homem e da sociedade são globais, unificadoras. Ain
da que inegavelmente acessível a todos, seu saber é ele mesmo glo
bal; é dividido a partir de graus de iniciação que o eleva, e não a par
tir de uma setorização de conhecimentos. Ele não separa, mas reata
e une em uma mesma visão de mundo conhecida pela maioria dos
que compõem a camada principal. A definição dita holística dessas
sociedades acentua particularmente esses aspectos. Nelas, a mobili
dade é grandemente contida, enquanto as transformações resultan
tes da modernização não se efetuam de fato. Nela os indivíduos
estão, de uma certa maneira, instalados: no grau mínimo de mobili
dade, seu percurso de vida é quase conhecido desde o início, salvo
acidentes; no grau máximo, as realizações e vitórias pessoais aconte
cem, mas no interior do status, nos limites do estado ou da condição
— nunca além, salvo exceções. Os lucros e perdas individuais rece
bem sua explicação — e sua salvaguarda ou seu remédio — de
potências e de forças postuladas independentes da história; esta não
é ignorada, mas o acontecimento, o inesperado, a novidade, o desco
nhecido e o acidente não lhe são, em p rin cíp io, atribuídos. A con
sulta e a adivinhação, pelas quais sua elucidação é buscada, operam
segundo uma concepção e uma simbolização da ordem, estabeleci
das durante muito tempo pela tradição. Neste sentido, o homem não
está abandonado diante das turbulências e vicissitudes que o afe
tam; dispõe de chaves de interpretação e meios de ação; corrige a
má sorte ou submete-se a ela com razões para aceitá-la. Nas socie
dades tradicionais, o curso dos acontecimentos não é essencialmen
te concebido sob o aspecto do irreversível. O tempo humano não é
156
um avanço sem referências fixas na direção ao futuro e, individual
mente, em direção à morte; mantém um passado atualizável; acen
tua a regularidade dos ciclos naturais e alia a esta regularidade os
ciclos cerimoniais; impõe a consciência de uma profunda permanên
cia sob a superfície dos acontecimentos, de uma continuidade man
tida ao longo de sucessivas metamorfoses. No prolongamento dessa
interpretação, a desordem não é entendida como um encadeamento
de processos desequilibrantes que leva a mudanças irreversíveis,
mas como um movimento, um jogo de forças que é preciso dominar
a fim de esvaziá-lo de sua carga negativa e de empregá-lo a serviço
da ordem. São principalmente os dispositivos simbólicos e rituais,
como já demonstrei, que efetuam esse retorno, essa conversão da
desordem em ordem. Não existe (ou existe pouca) repressão no
sentido policial moderno, nem normalização no sentido burocrático
atual; a potência simbólica — não a do instrumento repressivo ou
corretivo especializado — submete a desordem e por meio dela nu
tre a ordem que define. Em um mundo ainda não desmistificado, o
pensamento dissociativo, gerador de fissuras, não prevalece; a cisão
entre ordem e desordem eqüivale à cisão entre a natureza e o ho
mem, entre a ordem mítica e a ordem lógica.
É o pensamento moderno que opera rupturas, que afasta a tra
dição portadora de permanência e apreende tudo sob o aspecto do
movimento, sendo deste, ao mesmo tempo, o instrumento e a
expressão. A interpretação sociológica contemporânea, situada na
esteira do marxismo, está centrada na mudança de regime “en-
tropológico” das sociedades, oriundas da indústria e do capitalismo.
Estas produziram uma categoria particular de desordem e, por cor
respondência, uma forma específica de normalização: “com a divisão
de classes começa a luta e portanto um princípio de desordem inter
na e permanente”, de onde resulta o desenvolvimento de um poder
racional, de um aparelho de Estado homogêneo que se alia à “classe
homogênea” dominante a fim de fazer respeitar sua ordem. É ao
longo do século XIX que o processo histórico, de expansão acelera
da do mercado, da indústria e das cidades acarreta novas e cumula
tivas desordens. “É preciso [então] trazer as funções de manutenção
da ordem e de organização do enriquecimento no nível de uma nor
malização global da sociedade industrial.” O que foi então determi
nado “de maneira decisiva, foram os aparelhos e a ideologia do ensi-
'57
nar-educar-cuidar Os equipamentos de manutenção das normas
acabam por constituir “um modo de produção não comercial, que se
organiza em tomo da função de normalização social” . Generalizan
do: a passagem de uma sociedade tradicional dominada [maítrisée]
para uma sociedade industrial e burocrática “medida” \“métrisée”\
tem como efeito a supremacia da norma, da classificação, da hierar
quia dos homens e das coisas; operações estas que, na formação
capitalista, se baseiam em uma simbolização gerada pelas instâncias
do poder “separadas da comunidade” . Uma simbolização que, sobre
tudo, exprime a redução a uma “ordem que esgota completamente o
real”. As classes, suas rupturas e suas lutas, o Estado dissociado e
guardião da ordem geral da sociedade, a burocracia agindo por dis
persão sobre o tecido social a fim de impor suas normas, a separa
ção com o real, além de outros temas oriundos do marxismo aos
quais se juntam, por ajustamento com as linguagens recentes, ou
tros elementos: a tendência a tudo submeter à lei da medida, a mu
dança do regime simbólico pelo afastamento do não-mensurável e o
avanço das representações racionais, a substituição pela normaliza
ção — que se tomou capaz de envolver o sujeito e não somente de
lhe ser aplicada — da conformidade regida pela tradição e pelo sim
bolismo radical que a constitui.1 A Escola de Frankfurt bem demar
cou a separação, substituindo a crítica da economia política pela
“crítica da razão instrumental”, e considerando sobretudo essa per
versão da ordem que toma no universo da modernidade a forma da
barbárie totalitária. O corte primacial veio da cisão entre o pensa
mento mítico e o lógico, ao avanço triunfante deste, que revela um
sujeito liberado de qualquer tutela e progressivamente reduzido a se
tornar o suporte neutro das operações lógicas. Pelo efeito de uma
“esperteza da Razão” que se volta finalmente contra o próprio sujei
to, tudo o que não deveria passar de um meio se torna por necessi
dade imanente um fim em si. A atividade prática se instrumentaliza
e transforma seu objeto em “matéria” no sentido técnico da palavra,
seja em se tratando da natureza (de onde o homem se excluiu para
dominá-la), seja do homem (tratado por cálculo e manipulação). O
despotismo da mercadoria identificado pela crítica da economia é
substituído pelo despotismo do instrumento.2 Esta ordem definida
unicamente pela razão instrumental é apresentada como portadora
de efeitos perversos, de desordem, de degradações que, juntas,
158
r\ i/unu n u o m
A dificuldade de saber
159
meiro exemplo popularizado. O fascismo italiano fez disto o argu
mento justificador de sua ordem em sua oposição a uma Europa
então considerada frágil, decadente, corrompida e derrotista. Hoje,
a decadência estimula de novo a curiosidade dos historiadores, e o
declínio anima de forma passageira a controvérsia política, permitin
do atribuir ao adversário uma responsabilidade e uma incapacidade
totais. Tais palavras transformam-se em comodidades retóricas, car
regadas de imagens recebidas do passado ou das mitologias. São
mais importantes por aquilo que dissimulara — sobretudo, a nostal
gia de uma tradição protetora da ordem, ou a impotência parcial
para pensar e conduzir o movimento — do que por aquilo que expri
mem e provocara. Os estudos dedicados aos períodos de transição,
ou à cultura que ali se forma, destroem essas interpretações simplis
tas. O retomo de curiosidade sobre Weimar e sua modernidade re
vela o duplo aspecto desses tempos onde acontece uma reviravolta:
de um lado, uma decadência; de outro, uma eclosão simultânea de
novas e numerosas possibilidades; rupturas, deslocamentos, desapa
recimentos, portanto, o esquecimento e a evolução para a desor
dem, mas também as flutuações e os geradores do novo; outras for
mas e ordens, no devir, que não estavam necessariamente fadadas
ao destino fatal que foi o delas.3
Ainda que possa se tornar por si só uma comodidade, um álibi
e um salvo-conduto explicativo, a interpretação pela crise é menos
frágil que a anterior. A filosofia, a história, a ciência deram-lhe um
status, uma certa validade. Já mencionei seu emprego sociológico,
desde o momento em que Saint-Simon fez dela a parteira da nova
disciplina. Nas atuais aplicações, contribui para uma mudança pro
funda das representações da sociedade. A crise não é percebida
apenas a partir do mau funcionamento, é também reconhecida
enquanto prova que afeta a capacidade do sistema e de seus atores,
para se definir, se organizar, de uma certa maneira, por autoconheci-
mento. Ela toma mais incertas e menos operantes as cosmologias
sociais, e essa menor dominação contribui ao mesmo tempo para
uma má interpretação e um mau uso que a mantêm ou lhe acentuam
a acuidade. A consciência de crise não cria a crise, mas aparente
mente a reforça. As novas incertezas e complexidades que disso
resultam levam progressivamente à descoberta de um mundo, cuja
ordem se torna cada vez menos pensável nas formas inadequadas
160
n u c io u iv u u in
161
mental forte e em vias de generalização. Quanto mais esta ordem
progride, tanto mais parece se desenvolver uma civilização da pane,
cuja degradação — por incapacidade de responder a seus desafios
— faria uma civilização da catástrofe.
O outro exemplo constitui-se a partir do estilhaçamento de
uma representação da ordem social, quase inteiramente ligada à
consideração das classes, primeiro princípio de ordem e desordem,
segundo a interpretação dominante em um determinado tempo, já
mencionada. Esta configuração sociológica perde sua nitidez.
Classe, classe de idade e classe de gênero (ou de sexo) interferem, e
esta interferência embaralha as diferenças. Sobretudo, as reviravol
tas nos sistemas de produção e de serviços, a supressão em larga
escala dos signos diferenciadores das condições em razão do consu
mo, da mídia e das novas formas de vida, o enfraquecimento da
consciência de classe tiveram como conseqüência a perda da coe
rência das classes sociais, senão o desaparecimento das desigualda
des. Do mesmo modo, uma sociedade que não é mais nitidamente
ordenada segundo essas categorias — como era o caso das socieda
des do final do século XVIII até seus últimos decênios — configura-
se pouco estruturada, fluida, geradora de incerteza quanto às classi
ficações sociais que permitem defini-la.
A tentação de abandonar a sociedade em seu próprio barco é
grande, da mesma forma que apostar tudo no retomo do indivíduo
ou do ator, na virtude da iniciativa ou da espontaneidade. Os deba
tes contemporâneos, os que são ainda moderadamente apaixonados,
nutrem a legitimação ou a rejeição da “nova revolução individualis
ta” , sem que a divisão dos parceiros se efetue unicamente conforme
as divisões políticas convencionais ou unicamente segundo as varia
ções e retornos ideológicos, nascidos a partir dos anos 60. Neste
confronto, os filósofos — os que fazem da filosofia imediata um dos
instrumentos de sua análise política — ocupam o lugar de maior
destaque. Os sociólogos aqui aparecem mais modestamente: ou bem
aplicam a lição do método (com raros exemplos) propondo o indivi
dualismo metodológico, ou bem deslocam, com hesitação, suas
preocupações sociais no sentido “das pessoas”, segundo uma fórmu
la de Alain Touraine. Com isso se abandona ou se questiona toda
uma herança de representações e teorizações da sociedade: a socie
dade enquanto conjunto construído, feito, unificado, e que se toma
1 6 2
n i 'b v u a vu u i' i
163
preciso renunciar ao pensamento herdado e mudar a lógica. Ele subs
titui as lógicas precedentes pelo projeto — bem significativo da revi
ravolta no sentido da desordem e do caos — de construir uma “lógica
dos magmas”. De uma forma menos ambiciosa ou menos temerária, a
crescente desordem, seja econômica, social ou política, é considerada
a partir das respostas que lhe opõem os atores sociais. O ensaio mais
importante sobre este ponto de vista é o de Albert Hirschman, que
estabelece a escolha entre duas formas de ação: a defecção (exit) ,
que se efetua pela retração de uma relação entre pessoas ou organi
zações cujos “serviços” se degradam; a ação da palavra (voice), de
caráter mais político, que responde a essa degradação através das crí
ticas ou reivindicações, e, além disso, pela criação de organizações de
substituição. É uma antonomia fundamental da ação social, que se
encontra desse modo recolocada em evidência: as respostas às desor
dens atuais carregam consigo desordens futuras, sem fim.
Faço aqui uma pausa para mostrar a efêmera população das
expressões que tentam designar esse tempo, bem como as novas for
mas da sociedade e da cultura que nele surgem. Umas remetem a
morfogêneses totais ou brutais (mutações), a desaparecimentos e
desconstruções (estilhaçamento, dispersão), a desregramentos (nem
sinais nem valores claros), à quase-patologia (retraitismo, narcisismo,
solidão), à regressão (barbárie). Outras acentuam as capacidades
lógico-instrumentais e as técnicas ditas de ponta: sociedade abstrata
ou tecnoprogramada, informática e “tecnotrônica”, “midiática”; com
uma qualificação positiva (tudo começa a ser possível) ou negativa
(o futuro não existe mais). No último caso, trata-se do emprego de
um certo vocabulário alarmista que destaca os efeitos perversos ou
incontroláveis. A crítica da razão instrumental, a manifestação de
seus desvios já foram mencionados — até em suas extremas perver
sões: a instauração de um totalitarismo, antigamente; a evolução de
potências desencarnadas e de um poder anônimo de impossível
designação, hoje. A crítica da sociedade de comunicação cobre o
real de incertezas e denuncia as estratégias da ilusão. Jean Bau-
drillard ilustra, recorrendo ao procedimento da teoria-ficção, a tese
do desaparecimento. Essa época é vista como a da simulação, dos
simulacros, de uma hiperprodução onde tudo se anula; há o desmo
ronamento da ordem simbólica (de onde as sociedades tradicionais
tiram sua relativa coesão), proliferação das informações, esvazia-
ft U K S U K U L M
165
Mas outra figura, italiana, ergue-se no palco pós-mo de mo: o
filósofo Gianni Vattirno. Ele proclama um duplo desaparecimento, o
das concepções historicistas do mundo e o das teorias de superação
do sentido, de Hegel ou Marx. O primeiro desses desaparecimentos
refere-se a uma experiência do tempo e da história hoje radicalmen
te diferente. A linearidade da história, esse fio vermelho que ela
parecia desenrolar, está partida. Segundo Lyotard, a história foi
“demasiadamente culpada” , e a sociedade se tornou complexa
demais para que não haja fissuras, desvios e perversões em sua evo
lução. Mas esta explicação não é suficiente; a visão linear da histó
ria, portadora de uma certa idéia de progresso, se dissolveu a partir
do momento em que se impôs o reconhecimento da multiplicidade
de culturas, e do fato destas elaborarem “genealogias” diferentes. A
concepção historicista unificadora explodiu sobre o terreno do plu
ralismo antropológico. Também a experiência da temporalidade
deve ser examinada, na medida que ela muda profundamente sob o
efeito da “midiação”. Tudo tende a se reduzir à simultaneidade, à
contemporaneidade, à predominância do instante, e conduz assim a
uma rápida “des-historização” dos tempos sociais, hoje pulverizados.
O segundo desaparecimento é correlativo: não há mais nem supera
ção cronológica sob o eixo único do progresso, nem a superação crí
tica operando uma aproximação progressiva da verdade. “O que
acontece não é o que é “natural” [em oposição às pretensões de vali
dação “natural” das ordens instituídas], mas aquilo que tomou uma
forma entre outras formas possíveis de futuro, de outros possíveis
horizontes epistemológicos”. É preciso pois diminuir as ambições e
ilusões, fa z e r ju n to — pode-se dizer trivialmente — o que foi trans
mitido, consentir em uma “ontologia frágil”, em um “pensamento
frágil” . Vattimo propõe “repensar a herança” , ou seja, “as formas
simbólicas, as formas de experiência culturalmente concretizadas, o
que se poderia chamar de linguagem de uma cultura”, e tirar disso a
orientação para nossa experiência do mundo, chegar a “uma realida
de leve, menos nitidamente dividida em verdade e erro, verdade e
ficção, informação e imagem”. Trata-se de outra combinação com a
atual desordem, pelo recurso a uma m em ória colocada a serviço de
uma liberdade oriunda da diminuição das restrições de ordem e
capaz de fortalecer o “desejo de pertencer a este mundo”.4 Depois
de tantos retornos para o futuro ou algures, prospectivos ou exóti
166
cos, é o contorno sobre si mesmo e neste tempo, que vai satisfazer a
nova paixão ocidental.
As fórmulas abundam em uma confusão resultante das múlti
plas identificações, concorrentes e contraditórias, e que exprimem
sobretudo a dificuldade de perceber o movimento. Também as
regras do pensamento atual tendem a se tornar mais libertárias,
mais anarquistas, destruidoras das construções da razão positiva e
das demais dialéticas: de Feyerabend, que propõe em seu manifesto
intitulado Contre la méthode, “o esboço de uma teoria anarquista
do conhecimento”, a Giulio Giorello, filósofo das ciências e episte-
mólogo, defensor de um “empirismo libertário”, que invoca a neces
sidade à qual encontra-se submetido todo o desejo de nascer e pro
gredir, necessariamente “em um oceano de anomalias” — sem o que
tudo estaria condenado à ruína ou à esterilidade. É também a evolu
ção, mais errática e ávida de suculências, que traça Michel Serres
quando denuncia uma filosofia que perdeu o mundo substituindo-o
por uma “vaga abstração”. Retornar às coisas e “escrever o mais per
to possível da agitação”, esta é a recomendação que permite, por
outras vias, retomar o caos: “A meditação sobre o caos e a confusão,
a atenção voltada para o sensível, isso parece muito com uma filoso
fia da balbúrdia.”
Esta, tal como a teoria anarquista do conhecimento, é feita
para desconcertar. Do mesmo modo, tanto no terreno da condução
das idéias como em outros, a função bipolarizante da modernidade,
que recentemente demonstrei, está a postos. É a mais aparente, por
ampliação simplificadora, no debate político. Permanece discreta,
mas com crescente importância, no atual confronto filosófico: de um
lado, os que querem se apegar à verdadeira filosofia e que, a fim de
poder pensar um mundo ordenado, colocam este tempo e suas
desordens entre parênteses; de outro, aqueles para quem a filosofia
é o trabalho de um pensamento em vias de se fazer, de se elaborar
em contato com o real que lhe é contemporâneo. Mas é justamente
este real que, por suas infinitas explosões e transformações, parece
hoje zombar do pensamento.5
167
UtUrtULS BAL.AMIILK
168
Enfim, é a capacidade dos competentes — sábios e técnicos —
que passa por uma prova semelhante, pela multiplicação acelerada
das informações (espécie de acumulação de dados), das descober
tas, dos meios instrumentais, e pelo jogo dos efeitos pouco previsí
veis, considerados perversos. A obsolescência age mais rápida e
repetidamente; o arcaísmo, enquanto desuso de idéias e sistemas, se
torna logo, e mais, aparente; a mobilidade adquire um valor alto no
mercado de trabalho e nas estratégias de acesso às responsabilida
des. Essas são as conseqüências de uma acumulação sempre mais
rápida de conhecimentos, de meios e produtos novos, de interven
ções em todos os sentidos que não deixam grande coisa em estado
bruto, nem mesmo o homem naquilo que o define fisicamente e
depende de diversas engenharias. Uma leitura pessimista anuncia a
degradação do saber (uma acumulação do “ruído” em detrimento da
informação), a progressão no sentido de um caos que seria conve
niente ordenar pelo conhecimento, ainda que as possibilidades disto
sejam hoje muito remotas; uma leitura otimista anuncia para breve
um novo estado de “estabilidade geral” em favor do qual haverá um
emprego ótimo de tudo o que foi adquirido.6 Em suma, a era do
abandono ou a idade de ouro.
Em todos os momentos dessa incursão inicial, é o movimento
que impõe sua presença; tanto é verdade que pensar este tempo e
neste tempo é pensar necessariamente o movimento. O real, tal
como podemos apreendê-lo em suas atuais manifestações, deve
estar com ele relacionado, ainda que as disciplinas encarregadas de
explorá-lo estejam preparadas de maneira desigual para essa dificul
dade dinamista. A ciência social herdada, estabelecida, não foi
sequer chamada a considerar os fenômenos que ela trata em estados
longe do equilíbrio; sua prática a leva a preferir a estabilidade (o
conflito sendo matéria da sociologia crítica, mais periférica), o fun
cional, o estruturado, o organizado. Nessas condições, o tempo se
torna a dimensão esquecida, e o acontecimento o intruso que deve
ser expulso. Este se impõe, contudo, e muitas das vezes com a ace
leração que a atualidade lhe confere. O caso extremo se dá quando
uma sociedade congelada pelo autoritarismo, na qual a vida real foi
confinada aos subterrâneos, tem acesso à liberdade. A ordem estag
nada de repente se quebra e é levada pelo movimento geral, alimen
tado pelas expectativas e pelos desejos há muito reprimidos.
169
A Espanha do imediato pós-franquismo manifesta-se pela
movida, efervescência enquanto re-criação e espetáculo do novo,
animação pelo avanço jovem que é uma entrada na modernidade e
que dilacera o ordenamento das velhas províncias conservadoras
De um lado, uma ordem que sobrevive mal entretendo-se sobretudo
de nostalgias; de outro, um movimento que tira o país das escleroses
resultantes da ditadura, identifica-se com uma liberdade que irriga
todas as partes da vida individual e coletiva e muda profundamente
as mentalidades. É primeiro a ruptura de um duplo confinamento: o
interior, com a liberação dos costumes, a quebra dos enquadramen
tos e a perda da eficácia dos códigos antigos; o exterior, com o
enfraquecimento das fronteiras protetoras, sobretudo as que funcio
navam como uma censura cultural e impediam o acesso ao espaço
aumentado das comunicações. Dupla abertura que tem uma função
motriz e dá a prevalência do instante sobre a duração, que valoriza o
desempenho imediato em detrimento do projeto formador de uma
nova ordem em vias de realização, que faz do presente uma conquis
ta. É também o rebaixamento do sistema simbólico, que mantinha o
antigo estado de coisas: o sistema do qual a Igreja era a guardiã e
pelo qual exercia sua dominação sobre a sociedade e sobre as ma
neiras de ser, o sistema que o laicismo começava a corroer, que
mantinha a família tradicional e seus ritos festivos. A essa descons-
trução da simbólica responde uma simbólica leve, flutuante, sendo a
figura real o elemento central a religar com brandura a uma história,
a uma tradição; unifica para além das fraturas resultantes da transi
ção democrática e das ações nacionalistas; exprime a Espanha nova
e representa o acesso à modernidade e ao mundo exterior. Em tudo
a realidade presente fala em termos de movimento; com as flutua
ções que provocam o retomo de imagens do passado rejeitado, ou,
ao contrário, de tradições que respondem à busca de um enraiza
mento: o atual cinema espanhol se nutre dessas ambivalências e
contradições. A passagem brusca de uma estabilidade mantida pela
restrição e coerção para a instabilidade inovadora, a dinâmica cria
dora manifesta as atuais figuras do real com um efeito de alarga
mento, ligado às especificidades desta situação. Revela ainda mais,
com a aceleração e a mistura dos processos, a obra desconcertante
da modernidade.7
Hoje o real é apreendido no e pelo movimento, necessariamen
170
te, o movimentei requer a identificação das novas formas da tempo-
ralidade e portanto dos tempos sociais, segundo a terminologia con
vencional. A experiência humana encontra-se radicalmente mudada
em sua relação contemporânea com o tempo, a ponto de ficar às
vezes desorientada, de reconhecer apenas uma agitação cujos movi
mentos são comparáveis aos das máquinas delirantes e inúteis, pro
dutoras de efeitos sem razão aparente por meio de uma mobilidade
inscrita em uma duração destituída de qualidade. Tinguely, escultor
do movimento, que mostra um mundo e evoca um homem mecânico
e desamparado, ilustra essa condição. Além dessa impressão super
ficial, a constatação global é de uma decomposição do tempo unifi
cado que se realiza no século XX; processos em aceleração, arrui
nando uma longa tradição filosófica que postulava essa unidade, e
que conduzem a apreensão do tempo somente a partir de suas
diversas manifestações e na dispersão. Sua explosão leva a pensar
(e a crer) que o próprio tempo está sob a influência dos geradores
de desordem, e que está, de uma certa forma, doente.
A atual temporalidade está tão composta quanto estilhaçada;
comporta níveis ou estratos ligados frouxamente ou associados de
maneira conflituosa e precária. Dois desses sistemas, pelos quais se
reconheciam as regularidades, as repetições e os ciclos não assegu
ram mais inteiramente essa função. Nas sociedades em que as cida
des e os artifícios progridem e se multiplicam, o tempo natural não é
mais a matéria principal a partir da qual os homens constroem e
geram suas temporalidades, fundando assim, naturalmente, sua or
dem social. As referências temporais não possuem mais suportes
naturais, por assim dizer, evidentes; outros sinais, flutuantes e pró
prios a essa segunda natureza que é o meio urbano-técnico-midiáti-
co, os disfarçam e os alteram. O homem, fiando-se na experiência
individual, não reconhece mais em seu percurso de vida e na sua
condição biológica os indicadores necessários à sua percepção do
tempo: os diferentes graus de idade se tornam fluidos, os estados de
saúde ficam na dependência do suporte médico e de suas próteses,
o envelhecimento e, com ele, a morte, recuam ou são escamoteados.
Em outro nível, a própria ciência não fornece mais a certeza de uma
ordem do mundo regida pelo tempo das regularidades; despojou de
seu poder estabelecido as noções de estabilidade e de regulação; o
tempo que percebe não segue mais caminhos bem aparentes e
171
retos. O tempo se manifesta em Figuras múltiplas, muito diferencia
das de acordo com os objetos considerados e as disciplinas que os
abordam; começa a ser apreendido, conhecido em seu avanço para
os extremos: tempo do ilimitado, com a vulgarização da astrofísica e
das técnicas espaciais; tempo da retração no momento mais breve,
com a informação relativa às experimentações feitas na física das
partículas e com o tempo real dos utensílios informáticos; não apa
rece mais somente pela intermediação de máquinas analógicas sim
ples, mas por instrumentos complexos que associam a precisão
crescente à capacidade de decompô-lo em unidades arbitrárias cada
vez menos representáveis. Todas essas reviravoltas se produzem
concomitantemente às que afetara as regularidades sociais — a
ordem que administra o percurso dos dias — na medida que des-
troem as simbólicas e as ritualizações, bem como os ciclos festivos
herdados da tradição.
As temporalidades presentes, relacionadas com a vida indivi
dual, podem ser consideradas segundo quatro referentes: o cotidia
no, as máquinas, as imagens e o imaginário. A época é cada vez me
nos propícia a uma representação linear do percurso de vida, a uma
gestão do tempo que acompanha a duração sob a única reserva dos
cortes atribuídos à má sorte ou à fatalidade. A incerteza prevalece, o
presente está para ser conquistado sem prazo determinado e o ciclo
da vida individual toma o aspecto de uma corrida de obstáculos. É
um tempo onde nada se adquire de forma segura, nem o saber e a
competência, nem o emprego ou o período de atividade, nem o
apoio social e afetivo que assegura a existência privada. De forma
mais global, o homem da modernidade pode se sentir em situação
de estrangeiro diante do que não faz parte da temporalidade ime
diata. A mudança, a mobilidade, a precariedade lhe são cada vez
mais familiares; a novidade, o efêmero, a rápida sucessão das infor
mações, dos produtos, das formas de comportamento, a necessidade
de efetuar freqüentes adaptações lhe dão a impressão de viver
somente no presente, ainda que a gestão de uma existência venha a
se tomar a gestão de seus momentos sucessivos.
A modernidade se realiza e se simboliza também por meio de
máquinas complexas, por meio de sistemas homens-máquinas que
compõem um universo técnico, descoberto por muitos como um
mundo em expansão, fascinante, de difícil exploração, conhecimen-
172
n urJiPUJ bbuin
173
sua interação com a pessoa que comanda o sistema. Esse apareci
mento de um tempo que não mais se desdobra é acompanhado de
um desaparecimento progressivo da materialidade e de uma minia-
turização do espaço mecânico. Este se reduz tornando-se cada vez
mais cheio; parece se transformar em uma espécie de átomo artifi
cial (ou técnico) onde se conjugam e se concentram o poder da in
teligência e o poder contido pela matéria. O ch ip , pelo qual se efe
tuam os avanços da eletrônica, é uma parcela da matéria (de silício)
carregada de minidispositivos, memórias, circuitos e matéria cinzen
ta; é o lugar onde se realizam cada vez mais rapidamente operações
cada vez mais numerosas e complexas, a ponto de os laboratórios
americanos e japoneses fazerem dele o apoio de uma cópia de cére
bro rudimentar. Tempo e espaço parecem se confundir, realizar con
juntamente uma verdadeira mutação, abolir-se em suas antigas for
mas e se tomar assim capazes de produzir efeitos cada vez mais in
teligentes. A máquina não subverte apenas as categorias, os referen
tes segundo os quais a experiência humana constrói o real e dele se
apropria, ela tem acesso a um poder que lhe é próprio: a máquina
não está restrita ao estado de puro instrumento, torna-se parceira,
estabelece uma relação “conversacional”, como se diz atualmente.8
A mutação do tempo, do espaço, do real se faz também na pro
dução de imagens, prolíficas pelo uso de novas técnicas, e formado
ras de “populações” multiplicadas e diversas. As redes que as veicu
lam, bem como as mensagens associadas duplicam a realidade mate
rial, impõem uma sobre-realidade sempre mais densa, mais englo-
bante. Transmitem para o real uma espécie de vida dupla e tomam
mais confusas as fronteiras até então conhecidas. Todas as culturas
definiram sempre as formas de um além-real imediato, mas esta é a
primeira vez na história que a realidade próxima está imersa no
fluxo cotidiano das imagens e das mensagens. Tal situação muda
radicalmente a relação com a temporalidade. Em razão da enorme
rapidez de sua transmissão, a imagem atual quase suprime a relação
comumente estabelecida entre o espaço e o tempo. A mídia realiza a
ubiqüidade; através do som e da imagem, tomam simultaneamente
presente em vários lugares o acontecimento, real ou fictício, regis
trado em outro lugar, não importa a distância. A percepção e a con
cepção da proximidade, da distância, estão profundamente transfor
madas. A noção de “proximidade midiática” indica um desapareci
174
r\ U E S U H U t M
175
u n u m jQ O jjm L n iiu iL J i.
176
uma ordem sem duração, portanto falsa. A urgência, acentuada nas
sociedades da modernidade e onipresente, dramatiza um estado de
coisas que não ressalta mais o ordinário, a regularidade, mas o ines
perado, o acontecimento, o imediato. A urgência não é somente
aquilo que nasce do acidente, da catástrofe ou da crise parcial que
irrompe (como a de outubro de 1987) na crise global e durável,
ainda que possa tomar esses aspectos extremos em um mundo de
complexidade crescente vítima do movimento, rebelde às domina
ções que mantêm no homem o sentimento de uma ameaça multifor-
me. A urgência fala, como acabo de mostrar, de uma form a de ser
do tempo: o de uma época onde as técnicas são validadas pela rapi
dez de suas operações e de sua evolução, onde a informação recebe
qualidade (e eficácia) por sua velocidade, e as mídias por sua capa
cidade de tratar as flutuações de opinião, de sondagens, de circuns
tâncias, e menos dos programas que definem as escolhas a longo
prazo, onde o cotidiano é vivido em grande parte no instante, sob a
pressão de uma urgência que comanda o sucesso pessoal e sua con
servação ou a busca dos remédios para o infortúnio. O futuro ime
diato, e o que traz de imprevisível, introduz uma espécie de violên
cia no presente. É a oportunidade que tende a fazer a lei multipli
cando os oportunismos sem perspectivas. Tem o campo tão mais
livre que a urgência não deixa sequer a possibilidade de diferenciar a
reação do acontecimento, depois a decisão da ação. Quase suprime a
distância entre esta e o acontecimento. Nesse esmagamento do
tempo, o real se toma mais fluido, mais confuso, e o espaço acordado
à reflexão se reduz ou desaparece. Nesse esmigalhamento do tempo,
o pensamento pode ceder à tentação de renunciar à coerência e à
unidade, consentindo desse modo a ser tão-somente fragmentário.11
Mas os homens não são assim tão passivos como o pessimismo
contemporâneo quer fazer crer; eles sabem que se o tempo é seu
senhor, é também uma matéria que eles controlam, um produto so
cial. No cotidiano, tentam conquistar o presente, dando lugar (quan
do possível) a um tempo livre que pode se tornar o seu (indepen
dentemente das dificuldades exteriores), fugindo de certos momen
tos de pressão da urgência e da servidão do instante, com todos os
limites com os quais se depara uma tal façanha e com a ambivalên
cia que lhe é própria. A prova do presente estimula o restabeleci
mento de uma continuidade (e, com este, uma ordem de referência)
177
u bunuL O DAün^jjiLn.
178
des de bifurcações; a seleção dos possíveis dá-se sucessivamente aos
moldes de um trajeto que se faz de cruzamento em cruzamento,
tendo em vista um final longínquo cuja espera pode ser ilusória.12
O homem indeciso
179
U L .U J T .U L O D A b /U M L M & N
180
n i/u a u iiu u n i
181
tempo a existência do risco e a tentativa de limitá-lo. As organiza
ções de grande porte conferem à gestão um alto grau de instrumen
talização; recorrem a sistemas técnicos complexos e associados,
fazendo destes o meio de criação da unidade e da centralização —
tudo sempre muito rápido — , conectando-os; mas o centro está
sempre à mercê de um erro, de uma disfunção, de uma pane ou de
uma má vontade, cujos efeitos em cadeia se amplificam e se tomam
geradores de desordem. Em outra escala, os sistemas de regulação
dos movimentos de massas humanas, que controlam os fluxos e
mantêm uma ordem de conjunto, transformam esta em caos quando
de repente algo fica travado em um ponto. As vastas aglomerações
urbanas estão constantemente sob a ameaça dessas rupturas de
ordem: nos engarrafamentos produzidos pelo tráfego de automóveis,
que o paralisam; na interrupção imprevisível dos transportes coleti
vos que, ponto a ponto, desorganiza uma cidade inteira; nas panes
de energia que imobilizam uma grande cidade (como o blackout de
Nova York), que acarreta uma total desorganização e efeitos de
pânico.13 A constatação mais geral é a seguinte: as totalizações, a
constituição de conjuntos ordenados dão-se sobretudo por meio de
procedimentos lógico-instrumentais, de sistemas técnicos de grande
complexidade, cada vez menos pelo recurso às simbólicas unificado
ras e aos dispositivos políticos, ou de poder, criadores de unidade ao
mesmo tempo real e aparente. Aqueles sistemas operam de maneira
abstrata, impessoal; além disso, por sua natureza complexa, são vul
neráveis. O erro, a pane, o mau uso e o bloqueio voluntários conver
tem sua ordem em desordem, depois em caos. Com isso, o perigo e
o risco mudam de caráter e de escala; é aliás significativo que uma
ciência nova, a do risco, ou “cin d y n iqu e ” (do grego kind unos,
perigo), acaba justamente de nascer.14
A figura do homem indeciso resulta igualmente da interferên
cia de outras correntes contrárias: de um lado, as que levam a indi-
ferenciação (ou a diferenciação fraca) no interior das massas; de
outro, as que conduzem ao individualismo e permitem uma certa
consciência de si mesmo. A massa resulta dos efeitos de número, de
uma multiplicação dos homens concentrados nos mesmos lugares,
ou submetidos às mesmas restrições de normalização, ou quase
iguais através de um mesmo consumo de coisas, signos, mensagens,
imagens e modelos imitáveis; ou ainda por tudo isso ao mesmo
182
tempo, sob os avanços de uma modernidade que se caracteriza por
uma inflação que podemos chamar de generalizada, e não somente
monetária. A inflação deprecia, desvaloriza; a massa desvaloriza,
despersonaliza reduzindo as diferenças. Uma e outra revelam uma
desordem ativa sob a aparência de ordem, mesmo quando estas são
fortemente mantidas por um poder total ou totalitário. O indivíduo
se dilui sob o efeito do número, na medida que o tratamento numé
rico o reduz à existência estatística para constituir um efetivo, um
mercado, um público, um eleitorado, ou simplesmente um fragmen
to de pesquisa. Contudo — e aí está o jogo contraditório — proces
sos de desmassificação aparecem. Objetivos, e de grande amplitude,
resultam das novas energias e da evolução de certas técnicas produ
tivas, os que provocam a reviravolta da “infosfera” pela multiplica
ção das redes midiáticas, os que favorecem as descentralizações pri
vilegiando os lugares de iniciativa potencial.15 Possibilidades se
criam, mas sua exploração permanece hesitante e o mau uso pode
pervertê-las ou contrariá-las. O indivíduo age, aliás, por sua própria
conta, seja por retraimento, defesa e esperteza, seja por iniciativa.
Tenta retomar como vantagem o que pode contribuir para seu desa
parecimento; substitui as relações em rede criadas a partir de afini
dades pelas antigas relações sociais desfeitas; às dificuldades dos
sistemas técnicos, ele opõe seu emprego modulado: através da infor
mática personalizada, com a telemática, propícia aos jogos de perso
nagem que engajam (e descobrem) sua personalidade, com as mí
dias mais favoráveis, em razão de sua diversificação, pela interação,
e não somente pela manutenção de um narcisismo por procuração.
Mas o essencial situa-se em um outro plano: o infra-social, onde o
indivíduo se “refaz”, onde ele faz as tentativas de reapropriação de
sua própria pessoa e as experiências de reconstrução de um liame
social menos dependente das circunstâncias externas. O superinves-
timento do terreno privado e a busca de uma autonomia, que pode
advir disto, engendram uma socialização móvel, funcionando por
uma espécie de regime de ensaio. Essa socialização experimental e
mutante estimula os mais otimistas dos observadores da contempo-
raneidade a se fazerem anunciadores de uma nova revolução indivi
dualista, ignorando que tal mobilidade exerce também sobre o indi
víduo efeitos indesejáveis e arriscados, e que leva ao coração de sua
vida privada tão-somente uma liberdade incerta.
183
Esta é ainda mais desconcertante — sem forma de emprego
preciso — na medida que a modernidade faz do indivíduo um ho
mem fabricado, preso ao jogo das aparências e do espetacular; um
homem variável que tenta se definir nas e por suas variações. As
técnicas de manutenção e controle corporais se vulgarizam, obede
cem a um ciclo de modas, associam-se a esquemas míticos: o da
esperteza diante da idade e do declínio, o da superação de si mesmo
e do desempenho, o de sentinela capitalizando a perfeição do movi
mento e o sucesso social. O corpo se torna cada vez mais amoldável
por meio de próteses mecânicas e químicas ou de transplantes; é
assistido, preparado, levado para além de suas capacidades; já se
formula o projeto de ultrapassar o estado do “homem neuronal”, efe
tuando uma transferência de inteligência artificial para o cérebro. O
corpo entra ativamente, em um número crescente de pessoas, no
jogo do faz-de-conta; contribui para a apresentação (e representa
ção) de si mesmo; obedece às leis da imitação; presta-se às restri
ções do look, da imagem pessoal construída segundo os cânones do
momento. De uma forma diretamente social, o que está sobretudo
em causa é o consumo e seu estímulo pela moda, pela publicidade.
Já disse antes: nas sociedades da modernidade comercial, tudo é
dado ao consumo e tudo acaba por se submeter ao sistema da moda.
É aliás significativo que a moda seja provocadora de debates,
em detrimento de outras preocupações em torno das quais argu
mentar. O elogio da frivolidade é antigo, remete principalmente a
um tempo — este — onde a brevidade é uma das características,
uma das maneiras de ser das coisas, dos produtos culturais e das
idéias. Não existe mais uma continuidade que mantenha os valores
firmes e provoque a adesão individual, há uma atração que se suce
de atrás de outra e que ao fim e ao cabo descobre-se apartada.
Tanto esse afrouxamento do domínio social, cultural e dos poderes é
interpretado de maneira positiva, visto como uma das condições de
possibilidade de uma liberação individual, de uma “autonomeação”
da existência pessoal, de uma democracia sem guerra ideológica e
com desafios políticos pacíficos. Por outro lado, e não sem razões
muito fortes, o domínio do efêmero é designado como o domínio da
insignificância; não aparece mais enquanto sistema propício a um
novo individualismo e a uma nova democracia, mas como gerador de
um mundo sem humanidade. Esta acaba por se dissipar e se apagar
184
“se tudo é precário e perecível, se nenhuma obra, acontecimento ou
criatura humana escapa aos ciclos devorantes do consumo” .16 Por
trás desse confronto estão presentes os efeitos da desordem (pelo
esquecimento que esta provoca) e da ordem (pela memória e a
duração que esta implica), próprias a um tempo do movimento e da
incerteza. A fábrica cultural de hoje é principalmente a que opera
pela mídia e suas redes em expansão. Ela é vasta e diversificada,
cada um nela se coloca em situação de receptor acolhedor e compla
cente e/ou interativo. No primeiro caso, o indivíduo está sob influên
cia, preso no fluxo cotidiano das mensagens e imagens, submetido
ao desdobramento das aparências e do espetacular; é levado na cor
rente de uma cultura, que já denominei há pouco de extensiva, que
banaliza e universaliza por irradiação, porque ultrapassa fronteiras e
atinge populações cada vez mais numerosas. Com a interação, cujas
possibilidades aumentam pelo desenvolvimento de novas teletecno-
logias, o indivíduo reencontra uma iniciativa. Ele escolhe, entra no
jogo dos encontros à distância e no jogo dos papéis precariamente
assumidos, encena seu próprio eu, suas demandas e suas emoções;
atinge uma tecnocultura onde o imaginário importa tanto quanto a
informação sobre o real. “Carnaval dos espectros”, já se disse, mas
também movimento de uma busca (a começar pela busca de si
mesmo e do outro) conduzida em favor dessa exploração (desse
nomadismo) imóvel que propõem os dispositivos telemáticos.
O homem está indeciso em um mundo flutuante onde os prin
cípios de ordem não são mais claramente legitimados nem facilmen
te identificáveis, onde sua própria identidade permanece variável e
fluida. As palavras do momento — e da moda, com freqüência — o
afirmam. Tempo das aparências e simulações, do vazio, do efêmero,
da ligeireza e dos gozos precários, de uma cultura da inconsistência
(do zumbi pós-moderno) e do saber de massa difundido na desor
dem, superficial e sem hierarquização, de ideologias flácidas e pen
samento débil. No horizonte apareceria uma dissimulada barbárie:
um mundo em que a criação cede lugar ao tédio, o sagrado à angús
tia, a educação à programação dos indivíduos; um mundo onde a
cultura se atrofia enquanto a ciência e suas aplicações se hipertro
fiam, onde a sensibilidade definha e a energia da vida mal encontra
seu uso.17 A consciência da desordem se torna aguda enquanto as
referências de ordem se tornam fluidas, a incerteza aumenta. Então
185
os deuses do efêmero substituem o Deus perdido, o destino se frag
menta, o trágico assume as figuras variáveis do risco, real ou mítico.
E cada ura, a seu modo, fica tentado a preservar, com o máximo de
liberdade possível, seu lugar em ura mundo onde em certos momen
tos ele só descobre “a desordem, o barulho, o arcaísmo” .18
186
N o tas
187
M L u n u j j j □ n L A i ^ ü L ^ n
188
apresentados no livro de A, Toffler, que completa sua leitura (talvez radio
sa) do futuro, La troisième vague, trad. franc., Paris, Denoêl, 1980.
16. A fórmula é de A. Finkielkraut, por ocasião de uma crítica severa
da obra de G. Lipovetsky, L ’empire de l’éphémère, Paris, Gallimard, 1987.
17. Ver M. Henry, La barbarie, Paris, Grasset, 1986.
18. Fórmula do escritor e poeta P. Guyotat, a propósito de Bivouac,
sua última obra: “No fundo, nada sei. Deixei que entrassem em mim, com a
maior liberdade possível, a desordem, o barulho, o arcaísmo desse mundo
de hoje.”
189
7
191
utilização viciosa dos recursos, mantém um desejo repetido de reor-
denação; uma etapa foi vencida, além da qual formas de regulação
são almejadas mesmo por aqueles que tiram proveito da instabilida
de e da confusão. A mobilidade dos costumes, sobretudo no campo
da sexualidade e da vida familiar, tende a se reduzir por auto-regula-
ção, sempre mantendo certos princípios adquiridos ao longo das
décadas precedentes. A desordem amorosa não se aplaca somente
sob a ameaça de morte que mantém a nova endemia. As figuras da
família atual e as das uniões antigamente reprovadas são menos
variáveis na medida que os códigos autogeridos começam a fixar sua
definição. Uma liberdade permanece a postos, mas esta opera mais
sob um controle voluntário e menos prescrito. De uma forma mais
geral, com o recuo para a vida privada, o cotidiano se torna também
um terreno onde regras ainda frágeis tentam dar forma a uma socia
lização inédita, a um laço social menos dependente das circunstân
cias, às relações estabelecidas por meio das redes que substituem as
antigas formas de agrupamento.
Mas o indicador mais significativo é a volta da exigência moral
e a descoberta da necessidade do recurso à ética. Os poderes públi
cos franceses já ergueram barreiras ao avanço dos grandes riscos
contemporâneos (a informática face às liberdades, a engenharia
genética face ao que é próprio do homem enquanto espécie); deci
dem agora regulamentar os nascimentos frutos da técnica, os usos
dos métodos de procriação artificial; enfrentam o problema da pro
teção da carta genética. A questão ética é colocada com uma inten
sidade e uma urgência bem na medida dos perigos já existentes e
múltiplos. Fora do espaço político, em diversos lugares e com vigor
inegável, surgem demandas de natureza moral que não nascem ape
nas das conjunturas, dos cálculos e das estratégias. As manifesta
ções estudantis do final de 1986, na França, popularizaram a fórmu
la anunciadora do aparecimento de uma geração moral. A juventude
se vê então exaltada quando retoma a felicidade da virtude. É verda
de que se tornou mais reativa às violações dos direitos humanos e às
violências totalitárias, ao racismo e às discriminações, à miséria dos
povos do Terceiro Mundo e à nova pobreza, às relações de competi
ção desigual e confronto brutal. As ligações pessoais, os movimentos
coletivos, as associações bem o testemunham: trata-se menos de
conversa fiada e pose e mais de uma emoção provocada pela desor
192
dem selvagem do mundo, de uma exigência de recodificar a vida e
assegurar sua defesa. Também os responsáveis pelas empresas, em
meio às turbulências econômicas, aspiram pelo retorno de mais
estabilidade, aos valores que corrigem os efeitos brutais das desre-
gulamentações, a uma moral dos negócios. Os dirigentes mais jovens
reafirmam que é preciso colocar “a empresa a serviço dos homens”,
que é urgente considerar os problemas morais colocados pelo apare
cimento das novas técnicas; e, da parte de alguns, a afirmação rea
lista de que um funcionamento sobre bases éticas é mais propício a
uma rápida adaptação.2
Uma palavra reaparece — e neste reaparecimento, a crise, com
seu cortejo de males individuais, não é estranha — , a palavra: soli
dariedade. Serve para moralizar o discurso político, para provocar,
no quadro das iniciativas midiatizadas, dramatizadas, a generosidade
ou a caridade de massa, para exprimir também a busca ainda confu
sa de novas formas de laço social. Neste sentido, revela igualmente a
necessidade de regras, enquanto que o jogo social parece entregue
ao arbítrio e aos cálculos dos múltiplos atores, eles mesmos flutuan
tes ao sabor das circunstâncias. A palavra solidariedade tem uma
longa história, mas permanece de significação suficientemente flui
da — salvo nas acepções jurídicas — para tolerar diferentes usos e
convicções. É esta fluidez que permite legitimar, no momento da
recusa das ideologias fortes e da ordem por coerção, os reagrupa-
mentos e as solidariedades incipientes, suas composições e recom
posições incessantes. A crítica das ideologias adocicadas (como
existe a medicina adocicada) poderia se aplicar a essa solidariedade
generalizada, considerada frouxa diante da dureza dos tempos
modernos e futuros. Seria esquecer lutas ainda recentes, ainda pre
sentes, engendradas pelo terror ideológico; seria subestimar tam
bém uma busca, com certeza pragmática e sem arrogância, que con
cede mais crédito à criação contínua que às práticas de conformida
de doutrinária.3 Entretanto, é verdade que as necessidades e tenta
tivas há pouco lembradas permanecem frágeis e muitas vezes impre
cisas, até mesmo contraditórias em sua formulação ou forma. É a
conseqüência de um movimento e de um avanço de complexidade
que permeiam todos os domínios, inclusive os espaços sociais e cul
turais; é a conseqüência derivada de formas de representação, de
interpretação, pelas quais a figura da desordem permanece enquan
193
to principal referência obsedante e fixadora de incompreensões,
inquietudes e angústias.
194
contê-la ou se desviar do hábito e dos lucros do laisser-faire. É o
estado de choque que as primeiras vítimas elevam ao nível do drama,
do destino fatal, e a mídia aumentando, ilustrando, comentando o
acontecimento. A queda da Bolsa, em poucos dias, passa a ser uma
questão para financistas, especialistas, políticos; cada um compreen
de imediatamente ao que já está ou ao que pode estar relacionado. O
fenômeno toma uma outra amplitude e passa a carregar significações
flutuantes. As fórmulas e as metáforas abundam para defini-lo, identi-
ficá-lo e explicá-lo, para fabricar uma resposta imediata mais mágica
que racional: o fenômeno parece fugir à competência dos competen
tes. Metáforas emprestadas das manifestações naturais da desordem
ou do caos: tempestade, tomado, catástrofe, desabamento, desastre,
tremor. Metáforas que realçam o léxico da patologia física e mental:
doença disfarçada que subitamente aparece e se abate, movimento
de loucura, reação delirante, psicose coletiva, pânico generalizado. A
tudo isso se junta, como no universo dos mitos e dos ritos, a busca de
um culpado, de uma vítima expiatória: o computador utilizado há
pouco tempo nas operações da Boisa é designado para essa finalida
de, a máquina tomada de perversão teria provocado o desastre.
Evidentemente, o acontecimento não foge totalmente à racio
nalidade. Análises e comentários fervilham, provocam o confronto
contraditório sobre a natureza das causas. O duplo déficit americano
— o do orçamento e o do comércio exterior — , as errâncias do dólar
que provocam e fazem perdurar a incerteza sobre o valor da moeda
de referência, o nível das taxas de interesse, a especulação mantida
pelas transformações e a modernização do sistema financeiro, as
desregulamentações: dados que intervém geralmente na argumenta
ção explicativa, sempre deixando o campo livre para o conflito das
interpretações, dos diagnósticos e das previsões relativas ao futuro
imediato. Segundo um economista prêmio Nobel, dentre outros, não
havia fatalidade portadora do desastre; segundo outros (para quem
um bem pode nascer de um mal), a crise terá efeitos corretivos
sobre um mercado muito instável; outros enfim acham que a evolu
ção não é domável (os poderes “podem pouca coisa”), a recessão e o
caos serão o resultado. Eis a incerteza, incapaz de orientar as con
dutas que hesitam entre a prudência medrosa e o risco audacioso,
que espera tirar proveito das circunstâncias. Para escapar à passivi
dade inerente ao indecifrável, é preciso tentar saber melhor. As fer
195
ramentas reaparecera, os novos instrumentos são colocados sucessi
vamente à prova. As teses cíclicas são retomadas; nestas a análise
recua e fica mais pertinente, porque se aventura menos em pronun
ciar tendências a longo prazo. O “abominável doutor K.” está de
volta; os ritmos longos de Kondratieff são reconsiderados, com a
alternância de cinqüenta anos de fases operando entre recessão e
depressão, com a concepção das crises do capitalismo como um pro
cesso normal e regular cujo fim não é (ao contrário da profecia dita
marxista) apocalíptico.4
O .iovo é a intervenção dos caologistas, dos teóricos do caos
para quem ura efeito imprevisto — o “efeito-borboleta” dos meteo
rologistas — cria movimentos de aparência errática. Tomam carona
nos teóricos desbotados da economia e nos financistas desampara
dos. A desordem associada aos fenômenos complexos é seu campo
de trabalho. As turbulências da Bolsa lhes dão oportunidade de um
estudo de verdadeira grandeza: identificar o ou os fenômenos
imprevisíveis que as engendraram e que mantêm um estado caótico,
reconhecer com a ajuda dos meios científicos mais sofisticados os
atraidores capazes de criar novas formas de ordem, e as desordens
futuras escondidas sob estas regulações.5 Mas, nas diversas tentati
vas de interpretação ou de explicação, os caminhos da racionalidade
se perdem ou se misturam confusamente. A incerteza dominante as
obscurece, e isto na medida que a figura do caos é propícia a todas
as mistificações. Por meio dessas operações do imaginário — em
razão também da carga psicológica ligada ao dinheiro — os dados de
fato — e, para muitos dentre eles, técnicos — estão transfigurados.
Os dados se tornam entidades que agem tal como as potências
nefastas engendradas pelas mitologias.
Quando a desordem, por sua intensidade, duração e extensão
se identifica com o caos, a incerteza e a inquietação não são mais as
únicas manifestações das reações que ela acarreta. Não é somente
inexplicável, é percebida como fator de contágio que ameaça não
deixar pedra sobre pedra, aparecendo também como o revelador,
pelo qual os problemas e as dúvidas de alguma forma crescem.
Mostra as coisas em negativo, converte as certezas, as ignorâncias e
as indiferenças em desconfianças que se generalizam e se ampliam.
A quebra da segunda-feira, 19 de outubro de 1987, e o que se seguiu
dá um vigor novo à contestação do saber, da artes dos especialistas
196
e dos sistemas técnicos a seu serviço. O conhecimento econômico,
apesar do aperfeiçoamento das teorias, dos modelos, dos cenários,
não pôde contribuir para antecipar e pode ainda menos contribuir
para prever o que serão os desdobramentos do acontecimento. Os
comentaristas de imprensa constatam então que os profissionais
estão “ultrapassados”, que a habilidade dos antecipadores “está em
pane”. Os especialistas tentam deslocar as responsabilidades, mui
tos dentre eles então acusam — como fez o presidente da Bolsa do
Pacífico — as “máquinas que os homens não conseguem mais con
trolar”. São os computadores e os sistemas informatizando as opera
ções que se tornam os atores do desastre; duvida-se que os benefí
cios resultantes desses programas informáticos sejam “superiores ao
enorme potencial de catástrofes que [a “segunda-feira negra”] ante
cipou”; na melhor das hipóteses, tenta-se não renunciar ao emprego
dos computadores, apenas redefinir melhor seu papel. Descobre-se
que a máquina, pela qual a racionalidade se instrumentaliza comple
tamente, é capaz de loucuras. Tal explicação, vulgarizada pela mídia,
reaviva de repente as reticências e os temores mais ou menos laten
tes relativos à sociedade informatizada; isto e mais o fato importan
tíssimo de uma crise, que deprecia o valor daquilo que exprime
todos os valores materiais: o dinheiro.
Análises realizadas à distância do acontecimento, e menos
orientadas pela busca de culpados, colocam a mais importante ques
tão: a da conversão brutal da racionalidade em irracionalidade. No
caso, o excesso de cálculo dos grandes atores monetários e financei
ros seria mais catastrófico do que teria sido sua ausência; seus com
portamentos, obedecendo aparentemente a um máximo de raciona
lidade, teriam tido como resultado, por agregação e efeito coletivo,
uma irracionalidade desorganizadora. Contudo, essa análise não
exclui a interferência da máquina: a rapidez das intervenções (na
medida que a velocidade é o verdadeiro operador) requer a rapidez
da informação e da transação; a informática fornece esses meios e o
computador age automaticamente em conformidade com seu pro
grama, mas o ímpeto do dispositivo não se corrige com a mesma
rapidez e pode produzir uma desordem quase instantânea. A técnica
mais avançada não garante uma racionalidade sem fracassos nem
uma relativa estabilidade; os atores estão nisso ainda mais desampa
rados conquanto haviam-lhe concedido um enorme crédito.
197
Esse tempo de tormentas não é somente o das provas sofridas
pelos doutos, os competentes, os mandachuvas, é também o tempo
das provas impostas aos dirigentes políticos: uma espécie de hora da
verdade, no momento, à qual se medem suas aptidões para com
preender as situações e seu poder de dominá-las; o tempo não lhes é
mais concedido, nem a paciência fundamentada na crença de que as
coisas vão se resolver. Quando os ministros qualificados (os que
administram as finanças dos países mais poderosos) mostram-se
hesitantes quanto a seu concertamento (no quadro do Grupo dos
Sete, colégio quase mítico para a maioria), os governos lançam a
falta sobre os outros, expulsam-nos para fora, enquanto que os
enfrentamentos políticos internos utilizam o acontecimento nefasto
para jogar a carga no adversário. Os poderes apresentam-se parali
sados, a imprensa menos crítica observa que eles não sabem era que
se sustentar. Suas palavras ficara ainda mais vazias, suas ritualiza-
ções apaziguadoras não convencem mais, seus atos têm pouco cré
dito. Sob os holofotes da crise, os políticos parecem se situar fora da
sociedade, à parte, sem amarras à mais próxima das realidades.
Desse modo se acentua fortemente uma tendência que apareceu
periodicamente ao longo da história das democracias, sobretudo a
francesa: a do ceticismo dos cidadãos, que acarreta o descrédito dos
políticos. A desordem imposta pela crise revela mais (e, para os sub
metidos, com o risco pessoal e imediato em jogo) os limites, as
impotências dos dirigentes. Esse enfraquecimento da representativi-
dade, da capacidade, manifesta-se com vigor quando é também o
resultado de transformações anteriores ou em vias de se fazer: a
crescente complexidade dos problemas que contraria a busca de
soluções, o movimento contínuo das coisas que obriga a negociar
com a incerteza, o novo regime da informação submetida à lei midiá-
tica segundo a qual a imagem (o espetáculo) prevalece sobre a men
sagem. Mais importante ainda, o fato de as sociedades da moderni
dade se constituírem contra a estabilidade, através de desequilíbrios
sucessivos que têm uma função motriz. Nela os princípios de ordem
são variáveis, móveis, ocultos ou latentes. Ora, o político, em sua
essência, é indissociável desses princípios; é pois sua função que se
encontra mais confusa; parece mesmo tê-la perdido a ponto de criar,
no momento do caos coletivo, o sentimento de seu próprio desapa
recimento ou de sua inutilidade.
198
Já vimos que a desordem age por contágio; atinge os espaços
dos signos, dos símbolos, o espaço do imaginário, as figuras que ali
mentam as paixões. Forque esta crise inacabada tomou inicialmente
a forma de uma quebra da Bolsa, abalou os santuários onde se reali
za o rito cotidiano das operações financeiras, degradou o patrimônio
daqueles que contam, afetou a imagem do dinheiro, deu um basta à
glorificação da qual era objeto e que havia apagado a velha descon
fiança, oriunda da moral cristã. No início deste século, o sociólogo
alemão Georg Simmel, em sua grande obra que propunha uma filo
sofia do dinheiro, a situa “aquém e além de uma ciência econômica
deste”; demonstra que a essência do dinheiro deve ser esclarecida
“a partir das condições e relações da vida em geral”, e, ao contrário,
“a essência da vida em geral e sua modelagem a partir da influência
do dinheiro” .6 A dupla relação se mantém dentro das turbulências,
que tomam mais evidente o que é ameaçado e revelam enquanto
ilusão o que era o efeito de uma facilidade falaciosa, vulnerável. Os
novos heróis — os grandes manipuladores financeiros, os vencedo
res, os golden boys inventores de fortunas juvenis construídas na
Bolsa — perdem uma parte de seu brilho; antigas imagens ressur
gem, a dos Pequenos, frágeis diante dos Grandes, enganados e
impotentes face aos predadores. Os lucros já não estão mais ao
alcance de qualquer mão mais audaciosa, o capitalismo dito popular
já não é tanto assim. O dinheiro se toma um signo que se inverte,
designa agora uma precariedade mais generalizada (o drama se ins
creve em toda parte, e as fortunas consumidas são sua imediata
manifestação) e um desregramento sem freios que pode criar uma
desordem também sem limites, revestida de fatalidade, de uma con
denação suprema que sanciona a adoração de falsos deuses, como
se o valor do dinheiro aniquilasse os verdadeiros valores.
É também a relação de uma sociedade com o jogo que se des
venda em toda sua ambigüidade, uma sociedade em que o efêmero
encoraja a escolha de realizações imediatas, em que a busca do
sucesso rápido conduz à espera da sorte, uma sociedade onde a
Fortuna faz girar as rodas que os inúmeros empresários multiplicam.
Essa deusa inconstante não distribui seus benefícios segundo os
méritos, pode enriquecer os pobres mas acabar com eles ainda mais,
pode trazer mais riquezas aos ricos, mas também arruiná-los por
seus excessos. A sorte que dá para trás aparece sob os aspectos do
199
sacrifício ou da proibição, parece introduzir o sagrado e a moral nos
espaços da desordem. A exploração da crise mostra, da parte
daqueles que a vivem, as múltiplas passagens do real para o imagi
nário, as variações da consciência de desordem e seus efeitos. O
mais importante é sem dúvida aquilo que pode ser designado corno
a retomada do arcaico na superfície da modernidade, sob a forma de
linguagens, de imagens, de entidades, de modelos das condutas de
defesa ou de exorcismo. O mito é a primeira das tentativas de orde
nação do mundo, de pensamento desta ordem; reaparece enquanto
recurso quando as formas da racionalidade, seus instrumentos, per
dem o controle sobre a ordem estabelecida.
200
no sentido cultural, simbólico. Toma evidente o trabalho da desor
dem, toma temível a extensão de seus efeitos; sua cura não se limita
a uma relação terapêutica singular; a coletividade está engajada nela
porque se sabe, também, envolvida. A doença aparece como um mal
plural, é a metáfora da desordem expressa pela da linguagem do
sofrimento e da precariedade dos homens.7
A modernidade não está totalmente excluída dessas formas de
ver; a ameaça surge, e a retomada do arcaico se produz também sob
esse impulso. Malraux já designava, em uma entrevista concedida
em 1975, o medo de “ver chegar algo como as epidemias de antiga
mente”.8 A “coisa” já está aí; o medo fundamentado e também gran
de fabulista, a acompanha; o apocalipse bate a nossa porta — é o
que dizem — , a besta destruidora vestiu-se de Aids. Esse tempo
apareceu de repente, com a amnésia de seus sucessos, como um dos
tempos marcados pela desgraça. Os historiadores dele fazem opor
tunamente a genealogia. Jean Delumeau lembra que esses períodos
são aqueles durante os quais os homens se descobrem sem controle
sobre o que os arruina: a doença mortal se espalha e mata sem que
haja possibilidade de conhecer logo sua natureza, sua forma de
transmissão, e de lhe fazer frente com as defesas que a desarma
riam; sobretudo, não age sozinha, outras calamidades e ameaças lhe
estão associadas, ela as simboliza todas definindo-se temível e ater-
rorizante. Impõe-se como a figura principal de uma cultura que se
constitui em “cultura da morte”.9 Nosso fim de século, apesar das
conquistas científicas e técnicas em contínuo crescimento, em parte
por causa delas, pela soma de seus efeitos perversos, engendra uma
configuração semelhante que a revela em negativo. Mas esse con
junto — onde situam-se o perigo atômico, a desnaturação, o risco
genético, a patologia do contágio, a insegurança e outros males — é
flutuante. Organiza-se em torno de figuras principais variáveis: a
bomba, o meio ambiente, a violência, hoje epidêmica; modifica-se à
medida que as respostas permitem domesticar certos riscos ou que
a lenta aculturação acarrete um semi-esquecimento.
Agora, a Aids. Fórmulas fortes a designam: a maré que “sobe
para aniquilar as sociedades humanas”, a “epidemia do século”, a
“nova peste” , a “portadora de psicose e pânico” , a maldição que
mantém “o medo do sexo”, a “besta imunda”, entre outras variações.
O mal rende literatura. Faz reaparecer o trágico e o mito. Apela para
SOI
UbUitUE.3 D n m n u i b n
202
Ia. Em suma, o reordenamento totalitário ou o laisser-faire hedonis
ta, o deixa-estar; entre os dois situam-se todos os graus da prudên
cia auto-imposta, do risco calculado, da sexualidade “mais segura”.
O deslocamento do real para a simbólica, do real para o imagi
nário encontra, no caso da Aids, vias de acesso fáceis, porque traça
das há muito tempo em inúmeras culturas. O vírus se transmite por
dois veículos, o esperma e o sangue: ambos carregam uma forte
carga simbólica, pesada e temida por sua ambivalência. As especula
ções sobre o sangue estão no centro de um sistema de representa
ções na quase totalidade das culturas tradicionais. Já os astecas fa
ziam do sangue sacrificial o fluxo de energia que corrige a entropia
do mundo, que retarda a diminuição e o avanço da desordem, signi
ficando o “fim do futuro”. Para eles, o sangue humano é a “água pre
ciosa”. Em outras culturas, geralmente, todo sangue é um humor,
um líquido sagrado: o da comunicação suprema estabelecida com os
deuses, as potências, o do sacrifício que aproxima e comunica, o das
feridas rituais feitas no momento da iniciação que dá acesso ao co
nhecimento da ordem do mundo e dos homens. Mas o valor atribuí
do ao sangue pode se inverter; ele une no ato comunitário, desune e
opõe no ato violento que o espalha; traz a vida, se toma agente de
contaminação — no sentido simbólico e não biológico — nas situa
ções nefastas, sobretudo naquelas onde aparece o sangue da mu
lher. Nisto reside o mais significativo: esta ambivalência que liga o
sangue às classificações, segundo as quais se dividem o fausto e o
nefasto, a vida e a morte, a ordem e o caos. Dessa herança recebida
das tradições, não perdemos tudo; o que conservamos, traduzimos
em outras linguagens. O sangue permanece o líquido “precioso” que
circula, irriga o organismo, mantém a vida e a protege das agressões
patogênicas; encerra ainda um simbolismo confuso, sua visão e seu
contato podem chocar, nutrir certas perversões e assim permitir a
satisfação erótica; dá acesso à leitura do destino individual, pela
mediação técnica da análise, aparecendo como um registro sobre o
qual se inscrevem os signos da saúde, os males ocultos ou as amea
ças insidiosas; nesse sentido, é para muitos uma adivinhação que se
tomou racional e incontestável. O sangue não é somente o agente
da vida, é também o da salvação: sangue do redentor, do mártir, do
herói; hoje, sangue desconhecido que leva a vida para situações crí
ticas onde o indivíduo está em perigo de morte. Só por isso ele se
203
toma um produto, complexo e fracionável em seus elementos (gló
bulos vermelhos e brancos, plaquetas, plasma, fatores de coagula-
ção, anticorpos) a fim de permitir um emprego mais seletivo e mais
apropriado. Este produto, sangue total ou frações, se converte em
mercadoria desde o momento em que é objeto de comércio, instru
mento de lucro ou de especulação. Um comércio “que amedronta”,
não somente porque o sangue não é uma mercadoria como as ou
tras, mas porque as categorias do puro e do impuro, os desafios de
vida ou de morte dele são indissociáveis. O sangue impuro não vei
cula mais a vida, mas a morte. Pode matar os que o recebem. O risco
leva alguns a se protegerem do recurso eventual de um sangue anô
nimo — suspeito, talvez maldito — prevendo um dom recíproco
com os doadores conhecidos, os próximos, ou fazendo da conserva
ção de seu próprio sangue o primeiro (e necessário) seguro de vida.
A circulação social do fluido vital fica assim confinada ou suspensa.
A epidemia da Aids reaviva os temores e reativa um simbolis
mo negativo antes adormecido. O outro é objeto de suspeita, de
escusa, porque seu sangue pode estar contaminado: se sua ferida
encontra a minha, este contato deixa passagem livre para o vírus; se
sua agressividade quer me prejudicar ou contrariar, ele me ameaça
de contaminação. O mal parece reforçar a ligação com a maldição; é
sobretudo associado ao uso da droga: a seringa suja simboliza a
dupla maldição do toxicômano, a que chama ainda mais a morte
para si mesmo, a que o faz portador da morte pela mão do outro, seu
parceiro na troca dos prazeres. Mais que qualquer outra doença epi
dêmica, a Aids destrói a comunicação e a troca. O sangue circula
para veicular a vida, o mal o toma nefasto e perverte as relações,
onde ele está real ou eventualmente presente.
O esperma se transmite para manter a vida aliando-a ao prazer;
o mal o transforma em um aliado do sangue contaminado e faz dele
um agente fatal. Em todas as tradições, o sêmen, como o sangue,
realça o registro simbólico, os códigos que regem os tabus, as con
venções que definem a sujeira, a impureza ou o pecado. E isto a
modernidade não aboliu de todo; a conversão do líquido seminal em
produto comercial se efetuou com a difusão dos procedimentos de
fecundação artificial. Ao contrário do que se passa com o sangue, a
suspeita aqui é menor, pois as amostras pouco numerosas são mais
facilmente controláveis. É o esperma do comércio amoroso que
204
nutre a suspeita, e que o método de preservação isola. O mal oculto,
como a desordem difusa, mantém a incerteza; permite, durante um
longo período de latência, o não querer saber (a verdade deve ser
testada) ou o não revelar (o parceiro é entregue ao risco). A estatís
tica médica específica não passa de uma estatística de dados incom
pletos: como no universo da desordem, os números ajudam muito
pouco a efetuar divisões, a traçar as fronteiras. A falta de certeza, as
dúvidas quanto à vulnerabilidade têm evidentemente seus efeitos
sobre os comportamentos sexuais e sobre as condutas amorosas. A
disciplina e a limitação de relações, a monogamia com um parceiro
certo, a relação preservada e também a relação fantasma, facilitada
pelos recursos de vídeo, e as mensagens eróticas respondem a uma
situação onde a extensão rápida do risco cria a urgência. A norma
reativada e aquilo que é, às vezes, chamado de noção nova: a “res
ponsabilidade sexual”, corrigem a desordem amorosa. O catastrofis-
mo não está menos excluído sob a forma dos efeitos de uma espécie
de esterilidade involuntária; um especialista aponta para a ameaça
demográfica: “Curiosa doença a Aids que, sem afetar diretamente a
fertilidade, leva por medida de proteção a um estado, de fato, de
esterilidade.”11 Mas a consciência da desordem, que o mal maldito
exaspera, remete sobretudo à condenação moral, às vezes à invoca
ção de uma punição divina. Um modesto abade de província, funda
dor de um “Comitê de higiene social”, reprova a erotização difusa da
sociedade, a degradação dos costumes, faz da Aids um dos “anún
cios de Deus”, anunciador do castigo. A Igreja, mais prudente, não
faz uma leitura igual dos signos. A sanção moral progride todavia
por avanços furtivos. A sexualidade minoritária, a dos homossexuais
e dos bissexuais, é a dos “grupos de risco”; a sociedade permissiva
de alguma forma a havia banalizado, a Aids a dramatiza e faz reapa
recer a exclusão. A homossexualidade, que era confusamente reco
nhecida como uma união do igual, biologicamente estéril e social
mente menos fecunda, menos fundadora, é tomada agora como uma
relação mortífera. Mais geralmente, é a liberação sexual, a abertura
da rede das trocas sexuais e a ausência de culpa promovida pelos
métodos anticoncepcionais que estão de novo em causa. A epidemia
fatal traz à superfície e cristaliza todas as restrições criadas por uma
sociedade em movimento, onde a contínua mobilidade dos seres,
das coisas, das idéias, multiplica os encontros, as misturas, as mesti-
205
çagens e, daqui para frente, todos os tipos de contaminações. Esses
medos acarretam o contingenciamento voluntário das relações, a
privacidade, o refúgio protetor mantidos dentro de uma barragem
de normas e na segurança do entre-si. A troca generalizada se torna
mais imoral; o retraimento seletivo, moral e virtuoso. A esquivez se
transformaria então em um cerco ao mal, depois em uma caça aos
culpados: eles deveriam ser identificados, acuados nas fronteiras,
isolados em estabelecimentos especializados, e, no final do proces
so, esmagados socialmente, senão fisicamente. Já se manifestam nos
Estados Unidos reações de rejeição, algumas acompanhadas de vio
lências, nas relações de vizinhança onde estão incluídos os portado
res do vírus — inclusive as crianças contaminadas.
A epidemia temível, amedrontadora, cria a necessidade, de um
lado tranqüilizadora, de encontrar responsáveis e causas, na condi
ção de poder situá-los bem longe (o mal viria de fora) ou de poder
encerrá-los na diferença (o mal seria confinado, uma questão de
marginalidade). São assim acusados os cientistas depravados, inven
tores do vírus a serviço de uma conjuração sinistra; uma certa
África, lugar de emergência da vida humana, agora local de apareci
mento e centro de difusão do mal fatal; os grupos minoritários, veto
res do flagelo, nômades do prazer importadores de uma doença con
traída fora, ou simplesmente intoxicados de sexo, vítimas do mal
aniquilador por libertinagem trivial. A epidemia carrega o contágio
da desordem até na cabeça; toma-se veículo de culpa; é imaginaria-
mente domesticada ao designar os agentes no exterior e as vítimas
expiatórias no interior. O procedimento longamente utilizado pelas
sociedades, para fixar seus males e desembaraçar-se deles, não de
sapareceu da memória coletiva: a ameaça feiticeira, os sacrifícios
oferecidos às potências da ordem, se foram afastados não foram
expulsos. A epidemia acarreta reações extremas provocadas pela
desordem social, pelo menos as torna possíveis, permite sua explo
ração. O moralismo só aparece sob o aspecto de uma retomada ate
nuada da ordem — assim, quando o presidente americano, em um
discurso sobre o estado da União, reformula o “conselho sábio e
eterno... de se abster de relações sexuais ilícitas” — diante de tenta
tivas de reorganização total, totalitária. A exclusão/isolamento das
pessoas contaminadas legitima (ou toma mais toleráveis) outras ex-
clusões; a higiene se desloca, pela extensão da biologia, da medicina
206
para a sociedade. As medidas de despistamento, desde o momento
em que se tomam obrigatórias e generalizadas — necessidade ex
pressa contra o ponto de vista dos especialistas, que as consideram
ilusórias — contribuem para o progresso rápido da inquisição infor
matizada. A doença serve para designar um mal generalizado atri
buído à sociedade, à cultura, aos costumes. O medo instituído —
como é o caso do movimento Panic Aids, nos Estados Unidos, que
proclama a doença “mais mortal que a guerra nuclear”, e incita a
“espalhar o pânico e não a assistência" — se toma assim uma força a
serviço de um culto de ordem, de um pretenso totalitarismo que uti
liza a saúde pública para tornar desejável seu projeto de salvação
pública. A razão deve retomar a iniciativa no sentido de erguer bar
reiras a esses exageros amedrontadores.
207
grupo se junta e restaura por um tempo a confiança na sua pereni
dade.12 A transfiguração da violência encontra-se nos relatos das
origens do poder político e nas práticas cerimoniais destinadas ao
seu fortalecimento enquanto fator de ordem. Todos os inícios do
poder são relatados pela tradição na linguagem da epopéia violenta,
com fases de transgressão, de prova, de luta e de vitória. Os mitos
originais redesenham os ciclos de violência inicial, onde se enfren
tam até a morte os deuses e os heróis fundadores; o triunfo de um
deles rompe o encadeamento: permite conter a violência, tomá-la
construtiva e não mais destruidora, e de civilizar, através da inven
ção das técnicas, as normas e os ritos. Algumas das práticas associa
das aos períodos de transição do poder, nos tempos de interregno,
em inúmeras realezas da tradição estudadas pelos antropólogos,
mostram que esse vazio político deixa livre a passagem para uma
violência de novo selvagem. Tudo parece então se desfazer e se des
faz efetivamente; as hierarquias, o direito e a justiça, a salvaguarda
das pessoas e dos bens, a restrição dos valores e do conformismo
não mais existem; é o retomo a uma espécie de caos coletivamente
vivido. A ordem se restabelece rudemente com o aparecimento do
novo soberano, que inaugura um reinado (um novo começo) restau
rando todas as formas e manifestando o poder absoluto da Lei.
Nas sociedades tradicionais, a violência está sempre presente,
sempre a postos e sob controle: desde o homicídio (não reprovado
quando sanciona) até os confrontos internos entre grupos, à guerra
(orientada para o estrangeiro, inimigo real ou potencial); da violên
cia formadora, meio de educação e socialização de adolescentes, à
violência oculta, insidiosa, que toma a forma da feitiçaria, à violência
aberta jamais inteiramente contida. Se esta energia pode servir ao
funcionamento social, à produção de ordem, dela não subsiste
menos uma parte irredutível; a violência, que freqüentemente não é
nomeada, constituída enquanto categoria, é reconhecida na diversi
dade de suas manifestações e sob dois aspectos principais: positivo,
quando é domesticada; negativo, destruidor, quando é livre. Nesse
duplo sentido, é o objeto de um trabalho, que a transforma, e de
espertezas, que a desviam. No primeiro caso, o conjunto das institui
ções pode ser visto, metaforicamente, como um maquinário comple
xo que tem por função governar a violência convertendo-a, ser seu
transformador e regulador (pela troca, as normas, as regras e as res
208
trições fundadoras da Lei e do poder, os símbolos e os ritos). No
segundo caso, a violência é desviada, deslocada: produzem-se exu-
tórios. Os procedimentos da inversão social, reconhecidos pelos
antropólogos, liberam a violência, colocam a ordem social de cabeça
para baixo durante um período curto, sempre tratando-a ritualmen
te no sentido de contribuir ao seu fortalecimento e de se prevenir
contra sua subversão ou sua perturbação.13 A violência pode igual
mente ser transferida para os sítios definidos pelo imaginário: é o
que se passa quando a inovação religiosa, nos cultos de contestação,
provoca simbolicamente, ritualmente, uma liberação das agressões
que a vida social ordinária reprime; assim é que tudo se subverte, a
linguagem, as regras, os símbolos e as condutas que significam às
vezes um retorno à selvageria primitiva, ao tempo anterior à ordem
que submete e hierarquiza. Mas essa violência dramatizada, ritual
mente liberada, vivida imaginariamente, mantida no interior das
fronteiras do culto, enfraquece as violências reais as quais substitui
ou serve de engodo.14
A erradicação de violência primitiva ou livre nunca é total; per
manece presente, aparente ou subterrânea, em graus variados, na
proporção das incapacidades que as sociedades têm para definir cla
ramente e reconhecer seu sentido, impor suas normas, seus códigos,
suas regras, dominar suas provas, obter a adesão do maior número
possível dos homens que a constituem. A lição antropológica, formu
lada a partir de experiências sociais distantes, esclarece nossa atua
lidade. Ensina que a questão da violência está colocada em todas as
sociedades, de modo constante, e que as conjunturas podem lhe dar
*uma importante acuidade; revela também a existência de socieda
des que fizeram a escolha da violência ou que sobrevivem pela
crueldade. O principal ensinamento é contudo de outra natureza: a
violência não é de pronto identificada enquanto ameaça mortal. É
vista como inerente a toda existência coletiva, resulta do movimento
das forças pelas quais esta se compõe e se cria, realça a dinâmica do
ser vivo pela qual a ordem e a desordem são indissociáveis. Muda de
natureza logo que é dominada e trabalha em proveito da coletivida
de, regride — retoma a seu primeiro estágio — quando escapa ao
controle e fica dispersa na sociedade. A violência difusa (ou selva
gem) — sempre há um maldito difuso (ou selvagem) capaz de se
aliar à violência — é a mais temida; onipresente, variável, golpeia
209
aparentemente por acaso, tomando a forma da fatalidade. Esta é a
verdadeira violência.
As sociedades da modernidade não escapam à lei comum, a
violência contribuiu para sua formação. E aquela que exemplifica
todas até o momento, a americana, foi até definida como portadora,
ao longo de sua história, de uma cultura violenta, de subculturas
conflituosas: na América, “sempre se falou e sempre se viveu a lin
guagem da violência”. De uma forma mais geral, essas sociedades
parecem abrir o campo às violências; desde o século XVIII progri
dem em extensão (se universalizam) e diversificação (multiplicam-
se sob novas formas). O pensamento ocidental, em seguida os ou
tros, se desenvolvem de um lado enquanto pensamentos da violên
cia, seja esta relacionada ao Estado ou à revolução, à guerra ou à
emancipação, à razão ou à liberdade. Isto seria uma outra história.15
O que importa é o fato de a modernidade presente estar associada à
violência, a ponto mesmo de os poderes políticos encarregarem
comissões especializadas de estudarem suas “causas e a prevenção”,
instituírem organismos preparados ao exercício rápido da repressão
e dissuasão, à intervenção urgente. Não é mais fácil — ou simples
mente mais sensato — comparar o quantum de violência de um
período a outro em uma mesma sociedade, que de uma sociedade à
outra durante um mesmo período. Os números dão uma imagem
incompleta, tanto as intensidades quanto as mudanças rápidas dos
modos de ação violenta são mal percebidos. Se é portanto difícil afir
mar que este tempo é, mais que outros, o tempo da violência, fica
claro, ao contrário, ser este o tempo da consciência da violência.
E esta está em estreita correlação com a consciência da desordem
da qual já mostrei a formação. Sua associação se traduz em termos
de insegurança; a palavra, o tema totalizam os temores e as incom-
preensões. Tal leitura não se limita à avaliação dos atentados à segu
rança das pessoas e dos bens, ao avanço das agressões, inclusive as
mais banalizadas, as cotidianas. Exprime a dúvida na capacidade de
empreender esse tempo (crise de interpretação), de conduzir o
movimento reduzindo os custos da adaptação (crise da instituição),
de governar tratando os verdadeiros problemas (crise do poder).
Agrega também as inquietações individuais nascidas das incertezas
do percurso de vida, dos medos provocados pelas ameaças exterio
res reais ou fictícias. O reconhecimento de uma insegurança multi-
210
forme, insidiosa, traz na contingência das circunstâncias uma forte
carga emocionai e negativa na apreensão comum das situações de
modernidade. Realça de um lado o imaginário, o que lhe dá uma
incontestável eficácia nos debates relativos ao estado da sociedade e
faz disso um instrumento político cujo uso pode ser perverso. Mais
ou menos conscientemente, a segurança é apreendida enquanto
manifestação no cotidiano de uma ordem geral que o ultrapassa.
A violência moderna está aí, com sua visibilidade aumentada.
Mais visível, aparece em expansão, portanto mais contagiosa, parece
criar-se de si própria, multiplicar-se por metamorfoses. Ela se adivi
nha, se vê, se experimenta na rua, nos lugares públicos, nas estra
das, e até no âmago da vida privada onde sua irrupção é temida.
Pela imagem midiática, a das informações, a das ficções violentas,
invade as consciências e o imaginário individual; já se disse que sua
apresentação espetacular engendraria um processo em espiral: esti
mula o desejo de sua representação, mas fica difícil provar que a
“síndrome do voyeur leva a uma explosão de violência civil”. Ao la
do da manutenção das formas conhecidas da violência — as que
atualizam o delinqüente, o criminoso, o rebelde, o herói combatente
— , novas formas aparecem, ligadas às condições sociais, culturais,
inéditas e inconstantes.
O vandalismo é uma dessas formas, menor. Lança-se sobre as
coisas, os instrumentos, os lugares a fim de destruí-los, sujá-los,
tomá-los inutilizáveis, às vezes em investidas verdadeiramente sel
vagens. Esse estrago é muitas vezes ritualizado, é tanto uma trans
gressão quanto uma infração, exprime uma rejeição confusamente
formulada, significa a ruptura de um laço social frágil e recusado;
produz, em uma espécie de gozo, um sacrifício das coisas: um culto
irrisório à desordem. Com a agressão dos hooligans aparece uma
mudança de escala, de natureza, de significação: a morte pode ser o
cortejo da desordem, da destruição. É a exploração de uma situa
ção, a presença de uma massa dividida pela paixão nas grandes par
tidas de futebol, de um jogo cujo movimento e cuja linguagem (as
metáforas) fazem um simulacro da guerra, de uma religião esportiva
que é também a do corpo e que dá forma ao paganismo moderno,
que impregna a sociedade atual. Tudo isso se traduz em espetáculo,
ampliado pela mídia. Os hooligans provocam um desmoronamento
que também é espetacular, o simulacro se converte em pequena
211
guerra, a paixão em ódio, o culto do corpo em paganismo vulgar. O
escárnio, a provocação, o excesso, a bebedeira, a pura violência são
os meios dessa inversão social selvagem. Mas o ódio tenta se trans
formar em linguagem: resposta agressiva a uma sociedade geradora
de rejeições, de exclusões; expressão de xenofobia e recusa do
Outro; sacrifício improvisado de culpados apanhados no campo
adversário. A tragédia pode então surgir nos gradis do estádio. O
culto da violência produz também os adeptos entre os quais são
recrutados os agressores da ordem de hoje, convertidos em compa
nheiros de uma ordem dura de amanhã, próximos do National Front
na Inglaterra, jovens neonazistas na Alemanha, fascistas por nostal
gia e mimetismo na França.15 Nas sociedades da modernidade atual,
as situações potencialmente geradoras de violência são permanen
tes, e não somente conjunturais: efeitos de número (com o amon-
toamento urbano), de massa (com a indiferenciação), de multidão
(com os ajuntamentos ocasionais carregados de uma potência mal
controlável), de imitação (com a fragilidade dos valores e dos mode
los de identidade, propícia ao desamparo individual). O meio social,
em seus movimentos, suas configurações, deixa continuamente
aberturas por onde pode passar a ação violenta. Disto resulta um
fortalecimento do temor pela incerteza; e mais, ondas de medo,
como ondas de febre.
O medo, a catástrofe, o apocalipse freqüentam os palcos da
modernidade como os velhos monstros de retomo. Uma cultura do
assombro inscreve-se no corpo em movimento da cultura atual. É o
tempo percebido por meio do rasgo apocalíptico, definido em sua
essência pela forma catastrófica. O sociólogo enumera os exemplos
das angústias contemporâneas, explora os mecanismos do medo. O
filósofo faz deste uma relação da consciência com um objeto ainda
desconhecido, embora real, a um ambiente que não é misterioso por
sua natureza, mas por sua carga de potencialidades. O medo apare
ce quando o real se torna imprevisível, quando está próximo; a reali
dade que vai se fazer é de repente percebida como algo diferente do
esperado ou antecipado, ameaça por isso mesmo, obriga a reconhe
cer os limites dos domínios e projetos humanos.17 A modernidade
ativada repete rapidamente esses momentos de “proximidade” que
manifestam o real no que tem de imprevisível, fabrica o medo — no
sentido que acabamos de dar — mais que o hábito. A cultura midiá-
212
tica nutre igualmente o assombro ou a inquietação, propondo disto
versões hard ou sofl; ao ampliar através da imagem, passa uma lite
ratura do horror, do sangue, ou, mais perversamente, dos temores
que convertem o homem em máquina infernal. De um filme para
outro, de um apocalipse brincalhão ou faustoso para um apocalipse
doce do tempo das simulações, Fellini explora um mundo que ele vê
perdendo em humanidade. No final, a catástrofe se torna um aniqui
lamento do homem; uma imagem o substitui, codificável e codifica
da, emaranhável e manipulável.
A violência calculada, real e sub-repticiamente destruidora, é
ao terrorismo, verdadeiro laboratório do medo, que ela está princi
palmente associada. O fenômeno é universal, não conhece fronteiras
nem limites, porque joga com o excesso. Não manifesta uma violên
cia desprovida de sentido, porque deseja exprimir; e revela e expri
me efetivamente. A ação terrorista, o terror, não são a marca desta
época; mas o sistema terrorista em suas formas atuais se explica em
parte por ela. Opera em um mundo onde todas as sociedades são
comunicantes, onde a circulação das pessoas é tão ativa quanto a
das coisas e das informações. A ação violenta circula, o terrorismo
se exporta, sobretudo a partir de países em estado de revolta, de
subversão, de guerra interior endêmicas. É, mais geralmente, um
fenômeno de comunicação e um efeito da comunicação; utiliza a vio
lência como um canal pelo qual se transmitem mensagens, a surpre
sa terrificante como um meio de forçar a atenção pública; serve-se
da mídia, faz dela um amplificador e uma arma que é preciso mane
jar com a eficácia de uma metralhadora: é seu modo de ação de
massa sobre os espíritos, sua forma de existir midiaticamente para
chegar à existência política por meio da dramatização violenta.18 O
sistema terrorista atual é também o produto das técnicas deste tem
po, e não somente pelos instrumentos de morte e destruição que
pode dispor; ele o é ainda mais pelo recurso aos novos meios de in
formação (conhecimento de seus alvos), de organização e também
de manipulação, quando recorrem aos procedimentos derivados da
psicopatologia. Enfim, o sistema encontra nesse tempo de mudanças,
incertezas, crises, e nesse meio que lhe é específico, o espaço urbani
zado sem limites de qualquer natureza, as condições particularmente
propícias a seu funcionamento. Seus atores vêem nele as razões
daquilo que mantém sempre o espírito do terrorismo assim definido
213
recentemente: "Só temos esperança no caos... a Desordem é a salva
ção, é a Ordem,” Deixam-se levar por essa tendência que mostrei em
ação no campo da modernidade: o avanço para os extremos.19
O terrorismo busca menos seus efeitos pelo número de suas
vítimas que pela dramatização espetacular nelas empregada, fazen
do-as os instrumentos de uma realização trágica da política. O terro
rismo ataca de surpresa, como a fatalidade; converte a morte em
uma permanente ameaça que a morte dos outros, resultado de suas
ações, confirma e mantém; provoca um estado de medo e angústia
pela utilização da violência difusa, desorganiza, enfraquece os pode
res, imita as catástrofes naturais e as devastações da doença conta
giosa. Seus atores são os técnicos e os diretores: a multidão pisotea
da em um pedaço de rua em ruínas contribui para uma demonstra
ção sacrifícial onde se afirma seu poder, onde se revela a fragilidade
da ordem estabelecida; o desvio de um avião com seus passageiros
se transforma em drama de suspense, de fato vivido pelas vítimas da
chantagem, imaginariamente vivido por aqueles (milhares) que o
recebem em teleespetáculo; a prisão de reféns manifesta uma espé
cie de superpoder, um poder de vida e de morte imposto indireta
mente e em uma grande impunidade, a toda uma sociedade, e
sobretudo a seus governantes; a chantagem, paga pelo sofrimento e
a morte suspensa de alguns, tenta tornar a decisão política cativa e
sensibilizar as pessoas, alternando esperança e decepção angustian
te. O terrorismo serve-se do acaso, a fim de marcar fortemente o
imaginário pela morte, por uma espécie de “tanatofania” sempre
renovada; seleciona, ao contrário, quando atribui a seus alvos uma
forte qualidade simbólica, quando exemplifica através deles (símbo
los dos poderes) o aniquilamento necessário da sociedade rejeitada.
O terrorismo quer desestabilizar pelo contágio da desordem, a partir
do estrago corrosivo dos mais firmes ancoradouros sociais.
O terrorismo obedece incontestavelmente a uma racionalidade,
a de sua organização, suas estratégias, suas técnicas. Mais dificil
mente quer associar uma lógica à relação que impõe à coletividade.
A teorização do terror e as práticas resultantes têm uma longa histó
ria de onde surgem diferentes formas de pensamento revolucioná
rio. O terrorismo atual retoma certos temas: a conversão da destrui
ção em fator de liberação, a oposição da violência total à violência
de Estado instituída e legitimada, o niilismo decretado diante do
214
A UESUKUKM
215
U&UMULO D n u ih J iL ii
216
tores”, pune a cumplicidade intelectual com os teóricos da violência:
são as leis ditas celeradas pela esquerda, porque contrárias à tradi
ção, à doutrina e ao direito republicanos. Da mesma forma que a
desordem, a necessidade de ordem é contagiosa; arrisca constante
mente a superação do que é legítimo, alarga por amálgama a popula
ção dos culpados e cúmplices. Desde o final dos anos 60 deste sécu
lo, sob o impacto dos acontecimentos violentos e a pressão das emo
ções coletivas, os recursos à exceção multiplicam-se nos países da
Europa democrática, com inovações ameaçadoras: a coletivização da
responsabilidade, a delação premiada, a invasão do policial no jurídi
co. A popularidade política pode ser procurada no tratamento eficaz
da violência, com uma dramatização da ordem diante das agressões
perpetradas pela ação terrorista. Desenvolve-se então o que foi
reconhecido na Itália como uma “cultura de estado de urgência” ,
onde os medos se sobrepõem à salvaguarda das liberdades, onde os
fins se embaralham para dar vantagem aos resultados manifestos, e
onde o uso do direito prevalece sobre o que nele está escrito. A
democracia encara o risco de se perverter ao assegurar sua própria
defesa. É a armadilha do terrorismo: mostrar o Estado desampara
do, ou, ao contrário, torná-lo insuportável levando-o a um controle
sempre mais rigoroso da sociedade civil, inclinando-o a uma espécie
de totalitarismo rasteiro e não assumido; e reforçar, pela inseguran
ça mantida, as interpretações escatológicas que vêem as mudanças
atuais unicamente sob o aspecto da autodestruição.
O ato terrorista coloca a instituição policial (instrumento de
manutenção da ordem) à prova, tanto quanto o direito; ao manter
uma ameaça insidiosa, onipresente, contribui para o crescimento
dos instrumentos policiais através da modernização e de seu âmbito
de competência em detrimento do poder judiciário, mas realça tam
bém suas insuficiências, seus defeitos e seus erros. Interroga a insti
tuição em sua natureza e função. As paixões e os cálculos empres
tam à questão um vigor conflituoso; a iniciativa teórica tenta dar-lhe
uma resposta. Sob as luzes da teoria, a polícia não aparece mais
somente como uma administração especializada e portanto seme
lhante às outras; define-se menos por seu projeto — a ação repressi
va — do que por um tipo de relação com a sociedade em que se
reconhece seu caráter próprio. Por princípio destinada à manuten
ção da ordem e racionalmente organizada para este fim, a polícia se
217
GEORUES BALANDIEK
218
n u l o u h u d iíí
219
ujc*un\jLi«o B A u n i n m - n
220
Pi D E S O R D E M
221
UE. URULO DA L i / k N J I L n
222
(não desaparece) sob a pressão da necessidade; seu componente
técnico, burocrático-racional, expansivo ao longo das décadas passa
das, não é suficiente, e isto começa agora a ser visto; seu componen
te de idéia e ideal, simbólico e imaginário, se refaz integrando os
meios da comunicação moderna. Em um mundo perturbado pelas
mudanças, aberto às incertezas e às inquietações que mantêm a
consciência da desordem, se reforça a necessidade de uma imagem
confiável do poder supremo, porque ajustada a este tempo, porque
dele mostra o sentido, porque assume o movimento sem confrontá-
lo, porque traduz idealmente a realidade contemporânea. São estes
os aspectos indissociáveis desse poder quando é legítimo, e isto, em
qualquer época. São os que reaparecem depois de terem sido com
primidos sob os golpes da grande transformação e das crises.
223
GEORGES BALANDIER
224
imaginário da utopia. No final da Idade Média, a metáfora corporal
reaparece para propor uma descrição e uma explicação da socieda
de, para definir, legitimando-a, a relação do Príncipe com o conjunto
de seus súditos. Ela pode então tomar a forma de uma teoria totali
tária, como foi o caso do tratado redigido pelo futuro papa Pio II em
pleno século XV. O poder do soberano é absoluto, situa-se acima das
leis; o corpo político prevalece totalmente sobre os membros que o
constituem, ele não existe para assegurar sua salvaguarda, mas o
inverso. Tudo deve estar submetido sem limites ao corpo político
qualificado de místico; deve ser mantido em bom estado, mesmo ao
preço da injustiça; deve ser separado do membro que o enfraquece,
que o atinge em sua vitalidade. Certos homens são obrigados a “so
frer” , mesmo “se não mereceram seu castigo”, desde o momento em
que sua presença dentro do corpo político provoca sua perda e que
sua “amputação” restabeleça, ao contrário, a saúde. É através de
uma argumentação semelhante que o Estado nazista justificará a
função da polícia política, instituição que tem por encargo cuidar do
“corpo” do povo alemão e do seu estado de saúde. Qualquer sintoma
de “doença” deve pois ser reconhecido a tempo, qualquer germe de
destruição deve ser eliminado por meios apropriados. A ideologia re
toma assim as metáforas corporais, médicas e cirúrgicas pelas quais
certos teóricos do passado justificavam o absolutismo.24
Com a utopia, o imaginário também pode se submeter à lógica
totalitária, quando a construção utópica é a das cidades ideais, reali
zadas porque perfeitas, subordinando tudo a uma ordem que rege as
posições, as funções, os empregos, as existências e as relações
sociais tomadas imutáveis. A ordem realizada na perfeição é neces
sariamente estabelecida de uma vez por todas, negadora do tempo
dos homens como do movimento da vida, portadores de transforma
ções. É a definição de uma ordem erigida enquanto bem absoluto,
purgada de toda desordem, imposta aos beneficiários contra sua
vontade, se fosse o caso, incontestável e exclusiva daquilo que lhe é
estranho. A utopia toma então o aspecto de uma religião da ordem
levada a seu grau extremo, mesmo se se apresenta como incontesta-
velmente laica. As construções utópicas têm hoje má reputação,
muitos as consideram nefastas e atacadas de inanição. Seriam anun-
ciadoras de um mundo obcecado pela busca da coerência, que quer
ter a capacidade de suprimir os entraves resultantes dos movimen
225
tos sociais e históricos. Para esses críticos, a utopia risca em seu
solo frio os caminhos do totalitarismo.
O retomo antropológico leva o fenômeno totalitário para uma
outra via. Nas sociedades tradicionais ditas holistas (segundo o
termo revigorado por Louis Dumont), onde o todo governa cada
indivíduo e cada grupamento intermediário, o conjunto funciona e
busca a duração por uma economia muito particular: a que resulta
de uma concepção onde, do homem ao universo, tudo se ordena
pelo jogo de relações, de correspondências e subordinações comple
xas; economia cósmica e economia humana acham-se então ligadas
inextrincavelmente. Contudo, e este é o caráter essencial, a potên
cia unificadora é aqui exterior ao mundo dos homens; deus domi
nante, colégio dos deuses, assembléia dos espíritos ou conjunto dos
ancestrais, ela está acima. A ordenação simbólica e os ritos associa
dos, a conformidade imposta pelos mandamentos da tradição contri
buem para realizar e preservar o acordo com o todo ao qual a socie
dade se atribui (se atribuiria) a manifestação humana. Essa ordem
total, pensada e expressa, não tenta se traduzir na realidade sem
custos ou riscos. De um lado, ela tem um preço: o do sacrifício que
une os sacrificantes às potências e pode fazer deles “seres sacrifi-
ciais” (segundo expressão de Andras Zempléni); o da exclusão que
enfraquece ou expulsa — feiticeiros ou vítimas expiatórias — os que
são considerados agentes da desordem. De outro lado, este último
está constantemente em ação, é ao mesmo tempo ameaça e necessi
dade, como já demonstrei várias vezes; é reconhecido enquanto
motor e não como inteiramente destruidor; pode trabalhar a serviço
da ordem, fazendo-o graças a procedimentos de conversão do negati
vo em positivo, mas sem ser jamais domesticado. A lógica da totalida
de define o conjunto da sociedade, invade os diversos espaços sociais
e as consciências, orienta as práticas corretivas e repressivas; onipre
sente, não provoca necessariamente a formação de um sistema totali
tário, ainda que possa chegar a isso sem que o próprio Estado seja
constituído. Um estudo recente dedicado a uma sociedade africana, a
dos gurunsis do Burkina-Faso, colocou em evidência um “totalitaris
mo elementar”, conservador e não provocador de ruptura, legitimado
pela fidelidade ao passado ancestral e não pela vontade revolucioná
ria, eficaz em sua ação sobre os espíritos, as pessoas, não através do
instrumento estatal (inexistente), mas pelos meios político-religiosos
226
que dispõem os detentores da “força" capaz de erguer obstáculos à
agressão feiticeira e ao mal.25 O exemplo esclarece melhor aquilo que
é preciso reconhecer ora em diante: o fenômeno totalitário está ins
crito na ordem social, pode nela ser mantido em estado virtual (em
regime democrático), ou, ao contrário, se atualizar e tomar uma
forma política quando as circunstâncias a tomem possível (em regi
me totalitário). Suas realizações são diferentes, mas a ameaça se
coloca, depois se toma fatal com o aparecimento dos totalitarismos
modernos. A atualização dá uma estrutura, instaura um enclausura-
mento e uma dominação total explorando e levando ao extremo o
que está presente em toda sociedade: a necessidade de totalidade;
dividida, jamais realizada, sempre em vias de se produzir, a sociedade
está constantemente à procura daquilo que manifesta melhor, e
menos precariamente, sua unidade e sua identidade.
Com a história da modernidade iniciada no século XVIII, o
movimento de transformação toma uma feição de certa forma para
doxal. Durante o primeiro período, o homem está libertado de seus
grilhões, entregue a si mesmo e instado a se tomar senhor de si pró
prio. A modernidade o retira da transcendência, e a partir de então
depende dele somente a definição do humano; a modernidade o
lança em uma história que é uma conquista pela racionalidade, uma
dominação crescente da natureza por meio da ciência e da máquina
— suporte das interpretações futuristas — , uma história que é vista
como um progresso contínuo e um avanço no sentido da igualdade.
O movimento de unificação resulta disto, a forma política nasce da
igualdade. O individualismo democrático tenta realizar-se através
disto, associando — ideal claramente definido por Tocqueville — o
gosto da liberdade com o da igualdade. Mas, em contínuas investi
das, a liberdade é confiscada, a igualdade é contrariada pela dinâmi
ca das classes sociais; o domínio adquirido pelo conhecimento e pela
técnica fica melhor assegurado que o futuro histórico.
Mas eis que surgem os totalitarismos do século XX e tudo se
modifica. Produz-se uma inversão, ao mesmo tempo que se exprime
uma arrebatada denúncia dos malogros, dos fracassos e das ilusões.
O indivíduo é anulado, a democracia é comparada a uma degeneres-
cência ou a uma enganação, associada a períodos de decadência. O
sistema totalitário submete e subordina, visando o controle político
da sociedade inteira, justificando-se através de uma ideologia que se
227
proclama a verdade da história imediata e futura, realizando-se pela
violência e pelo terror, excluindo toda e qualquer referência que não
seja ele mesmo. Só retém do sagrado e da religião o culto de seu
próprio fundador, uma só igreja: o partido único, com sua liturgia
orientada para as massas, sua inquisição permanente e impiedosa
faz do Estado-partido o instrumento de uma ordem total que sub
mete a economia, a cultura, a linguagem e o pensamento, bem como
os homens, afastados de qualquer outra realidade que não seja a
deles próprios; busca o apagamento das diferenças coletivas e indivi
duais, que manifestam normalmente a múltipla riqueza da sociedade.
A polícia toda-poderosa e o aparelho centralizador reduzem à clan
destinidade os dissidentes, alimentam o medo, funcionam como
máquinas que selecionam e desumanizam os “culpados”, os irrecupe
ráveis, os inferiores indignos e incapazes de contribuir para o grande
projeto. O desaparecimento do indivíduo realiza-se de maneira trági
ca através do desaparecimento do humano, do homem que é norma
lizado e se transforma em um instrumento, que pode também ser
convertido em objeto de experiência ou em vítima expiatória.
Enquanto uma nova ordem, o sistema totalitário moderno faz
da ruptura com o passado, a projeção no futuro para onde carrega as
massas, uma transgressão necessária. Nega totalmente o que fez o
homem mais humano ao longo da história anterior, secreta uma certa
amnésia, uma pedagogia do esquecimento. Realiza uma unificação
fantasmagórica identificando o povo (ou qualquer outra grande cole
tividade) ao partido, este a seu órgão dirigente, e este último ao
senhor absoluto, ao “egocrata”, diz Claude Lefort; e também, desig
nando constantemente um inimigo, excluindo os que apontam como
promotores de desordem, agentes do mal social e fatores de declínio.
Transfigura uma vontade, a do grande indivíduo no qual tudo se
encarna, em instrumento quase divino de uma realização histórica
que não conhece limites; nesse sentido, que é o de uma superação
constante e insensata, provoca inevitavelmente uma escalada para os
extremos. O totalitarismo quer ser a realização de uma história que
eliminou todas as taras da modernidade; sua grandeza delirante
passa por seus projetos sem medida, por suas obras monumentais
que disfarçam uma regressão qualitativa das relações sociais e da
cultura. A metáfora da máquina é aquela que melhor o designa: uma
máquina-mundo com poder de absorver o espaço, o tempo, as forças
228
naturais e sociais, os seres, retirando parte de sua energia daqueles
que exclui, utiliza e consome. Essa relação com a máquina é uma
relação com a mecânica, com o não vivo, portanto, com a morte. É
aqui que se marca a diferença com as sociedades totais da tradição
que se desejam em acordo com o mundo, orientadas para a mais
completa realização das forças vitais, inclusive pela captura vital que
o sacrifício efetua. São sociedades para a vida, enquanto que os tota-
litarismos modernos constituem-se em sociedades para a morte.
Mas, qualquer que seja a dureza de sua ordem, eles não podem
aferrolhar completamente o sistema; a vida, que não se forma
segundo os padrões e as restrições oficiais, encontra saídas; a desor
dem trabalha nas margens e por baixo. Isto mais efetivamente no
universo soviético que no nazista, que resultou de uma “revolução
do niilismo”, segundo uma expressão de Rauschning, e que se reali
zou nos escombros. A duração aí está evidentemente para qualquer
coisa, mas não ela somente. O primeiro é certamente um mundo
inteiramente dissimulado, mas a esperteza cotidiana, a dissidência
jovem (pelo modo de vida), e não somente pela dissidência intelec
tual, o protesto individual com altos riscos, os sobressaltos da mino
ria, as reminiscências culturais e espirituais manifestam os avanços
de vida que o sistema não consegue conter inteiramente; a isto é
preciso acrescentar as fraquezas da periferia, os movimentos sociais
irredutíveis, se bem que semiclandestinos (na Polônia), ou as revol
tas episódicas contra um poder delirante e megalomaníaco (na
Romênia). Um mundo onde o sistema se imobiliza progressivamente
por meio da usura, da degradação ou perversão que mantêm os pri
vilégios, o nepotismo, a corrupção, por meio da inércia dos guar
diões da ortodoxia, e, sobretudo, pela incapacidade de manter o
fechamento (a clausura social) em um tempo em que os maiores
engajamentos são internacionais, onde a revolução da comunicação
toma as fronteiras mais permeáveis. A lógica da dominação totalitá
ria não está isenta de falhas; permanece geradora de uma concepção
do mundo que se quer exclusiva daquilo que a contradiz e conserva
dora de sua ordem total, mas a prova do tempo, indissociável do
movimento e da abertura para o exterior, a confronta inelutavelmen-
te com a lógica da desordem.
Os totalitarismos de primeira geração regrediram, mas não
desapareceram de todo. Outros lhes sucederam sob a forma de um
229
ULUKUJia DftLnnLMEin
230
lha cada vez mais na dependência das imagens, de sua p ró p ria
imagem-, o poder político não pode mais se dissociar do espetáculo
e, por isso mesmo, toma-se mais vulnerável, menos consistente,
submetido aos efeitos da versatilidade dos cidadãos; tecnocrático,
menos aparente, menos precário, apoiado em redes de solidariedade
e na certeza de sua competência, o poder subjacente pode manter
um espírito de controle total da sociedade.
Acaba de ser demonstrado em que sentido o fenômeno totali
tário liga-se daqui para frente aos sistemas técnicos e às suas lógi
cas. Estas não são as únicas manifestações de sua existência poten
cial-, a economia, em razão dos processos de concentração, do forta
lecimento das potências financeiras, das contaminações que afetam
a política, da mercantilização em vias de generalização, cria outras;
da mesma forma que nisto concorrem a primazia da estatística, em
uma sociedade “metrificada” [métrisée], que acarreta a raspagem
das particularidades e sobretudo o desenvolvimento de uma cultura
que apaga as diferenciações e multiplica as de caráter fictício e pre
cário. Portanto, o risco de atualização do potencial totalitário reside
também (senão mais) na própria natureza da modernidade, no mo
vimento e nas incertezas que lhe são próprias. Os períodos de tran
sição, de grande transformação e de crise durável abrem um campo
mais livre às tendências constitutivas do totalitarismo; aquilo que é
sentido como desordem nutre então o desejo de ordem, a inquieta
ção ou a angústia individual pode levar à busca de certezas, de
remédios que se transformam na maioria das vezes em armadilhas,
onde o indivíduo se deixa cair. Diante da dispersão, a sedução pela
totalidade se fortalece, e, com ela, a figura histórica que parece po
der e dever efetuá-la. O estado democrático não se estabelece de
uma vez por todas, é mantido por invenção e criação contínuas, ca
pazes de produzir uma renovação dos efeitos de ordem.26
231
Ü K U H U E S B A L A M Dlfc K
232
uma sociologia da religião, só consegue chegar depois de inúmeros
retornos à consideração do sagrado. Ele identifica “seres e coisas
sagradas” em relação aos quais se definem as representações (uma
ordem das coisas e dos seres expressa pelo mito ou pelo dogma), as
relações de crença e obrigação, as práticas. De tudo isso Durkheim
manifesta a ambigüidade: o sagrado, ou o religioso, realça a trans
cendência, mas é de origem social, diversifica-se com as formas da
sociedade e, como esta, não escapa inteiramente ao processo histó
rico; separa o que lhe diz respeito daquilo que constitui o reino do
profano, ainda que haja “comunicação entre os dois mundos”; des-
dobra-se a si mesmo em um sagrado puro (garantia da ordem, do
bem, dos valores) e um sagrado impuro (associado à desordem, ao
mal, às transgressões); essas duas categorias não são antagônicas,
permitem transformações recíprocas. O sagrado, enfim, se constitui
em uma infinita variedade, não delimita somente o espaço dos deu
ses, dos espíritos e de outros seres pessoais, pode se manifestar sob
formas novas, até então insuspeitas.27
A obra de Durkheim não é, evidentemente, a única fonte, nem
a menos controvertida, mas é incontestável que conserva uma vali
dade na orientação das explorações atuais do sagrado, em um perío
do onde os novos movimentos religiosos estão prestes a se tornar
uma das realizações do movimento social. A modernidade submete o
sagrado à prova das grandes mudanças, e a religião não aparece
mais tão claramente por meio daquelas funções que a tradição e o
passado tinham definido: propor à consciência uma imagem coeren
te do universo; conferir uma legitimidade às instituições, às restri
ções, aos papéis sociais; dar os meios de resposta coletiva e indivi
dual aos riscos, ao inesperado, ao acontecimento e às provas. As
situações nascidas da modernidade se tomam reveladoras da ambi
güidade constitutiva do sagrado e do religioso, dados de uma ordem
e fontes de efervescência coletiva (segundo Durkheim), respostas
às necessidades de legitimação e às reivindicações (segundo We-
ber); uma ambigüidade que se acha ao mesmo tempo manifestada,
explorada e levada aos extremos. A religião, objeto de fé, está em
crise de credibilidade por causa dos efeitos dos processos de secula-
rização e pelo avanço — para retomar minha fórmula — de um
agnosticismo banalizado. Não pode mais manter um monopólio
como o fez nas sociedades do passado; com a modernidade, ela se
233
divide, se pluraliza, está restrita à lei da concorrência, do mercado,
não mais imposta pela tradição ou coerção, depende cada vez mais
da escolha e da apropriação individuais. No interior e no exterior
das Igrejas estabelecidas, históricas, forças e ofertas concorrentes
operam; de dentro: as da adaptação, que dão uma abertura filtrada
às necessidades modernas, as que levam ao retomo da integridade
doutrinai e litúrgica, da autoridade eclesiástica, as que reivindicam
uma revitalização da fé e uma renovação carismática, as que resti-
tuem à religião uma carga política e social libertadora; de fora: os
movimentos da dissidência e do sincretismo que tomam a forma sec
tária, os grupamentos que se constituem através da importação de
espiritualidades e de um ritualismo próprios das civilizações não oci
dentais, sítios que se fazem propagadores de notícias místicas, for
mas modernas da meditação e do esoterismo reavivado, e, no extre
mo, os centros que impulsionam as forças do sagrado impuro e pro
vocam espécies de conversões ao contrário.
O sagrado ultrapassa o espaço das religiões, não depende des
tas e a morte dos deuses não acarreta seu desaparecimento; é o
objeto de transformações que lhe são próprias. Ao longo da história,
as instituições religiosas são os principais instrumentos da gestão do
sagrado e as relações que mantém com o mundo profano; enfraque
cidas pela modernidade, como a maioria das instituições herdadas,
perderam a carga exclusiva dessa função. O sagrado está liberado,
mais disponível; volta ao estado difuso, espécie de energia utilizável
em outros empregos. Esses deslocamentos do sagrado para o domí
nio temporal tiveram realizações anteriores ou muito antigas, sobre
tudo com as religiões políticas sacralizadoras da política e da domi
nação. É bom lembrar que essas transferências efetuam-se entre
campos semelhantes; muitas vezes insisti no que alia política e reli
gião, particularmente na afirmação de uma coerência de uma unida
de, de uma ordem e de um sentido, a imposição de obrigações justi
ficadas por uma transcendência, a capacidade de orientar as esco
lhas, as condutas individuais e coletivas. Com a modernidade, o que
é novo é a grande mobilidade do sagrado, a diversidade dos objetos
nos quais acha-se investido, suas metamorfoses associadas à multi
plicação de experiências subjetivas; liberado, o sagrado retomaria
então, por um lado, o que estava no seu início: sua qualidade de
energia oriunda da exuberância de uma vida coletiva ainda não
234
a u r.» a u n u & w
235
U t U K l í f c S HALArí ULSK
236
amolda na correnle da cientologia; introduzem uma ritualização
complexa da existência individual, contribuem para uma construção
e uma gestão do Eu recortadas das práticas psi vulgarizadas ao
longo das últimas décadas; informam sobre um individualismo oriun
do de outras fontes, a ponto de se tê-las considerado como um dos
fatores da atual revolução individualista. O que os adeptos esperam
em princípio das novas religiões se exprime por uma dupla fórmula:
a significação por eles mesmos, a ordem neles mesmos. Eles tiram
da sua adesão a capacidade de transfigurar sua existência (sem que
um Deus reencontrado seja necessariamente a causa, porque algu
mas dessas experiências fazem a economia do divino), assim como a
capacidade de reformular suas relações com o exterior. Eles não
estão somente em busca de um apaziguamento de sua “angústia
moral” (segundo a interpretação de Daniel Bell) e dos meios de
ocultar a racionalidade instrumental e burocrática sob as cores da
mística. Esses adeptos, principalmente os jovens, tentam descobrir
a certeza em um tempo de incertezas; a validação para uma certa
ciência (e sobretudo a metaciência), o crédito atribuído às tradições
exóticas, consideradas melhor integradas, o demonstram sem ambi
güidade. Eles têm acesso a outra prática da temporalidade, quando
o efêmero e a opacidade da história próxima se lhes impõem; so
nham com um tempo de permanências ou, ao contrário, com o dos
começos fundadores, ou com uma história reaparecida mas transfor
mada em outra pelo efeito do sagrado. Tentam e louvam a união
com valores menos precários, o recurso a uma moral e a uma disci
plina que os unam e possam levá-los a uma harmonia maior, a uma
espécie de salvação aqui e agora.
Em tudo isso há muito sentido, muita ordem. Um desejo de
ordem que a instituição da religião nova explora, quando se traduz
em uma organização de seita, e não mais somente em uma pedago
gia da experiência mística individual. Por esse motivo as seitas
inquietam, e isto levando-se em conta que algumas delas se consti
tuem em sistema totalitário. Fazem o recrutamento recorrendo a
manipulações mentais e à sedução por uma publicidade espiritualis
ta; separam ao quebrar a rede das relações familiares e de amizade,
impondo o agrupamento dos adeptos como o dos únicos “verdadei
ros pais”; praticam a captura de consciência, o condicionamento dos
espíritos e dos meios de expressão (as linguagens que não são da
237
OEORCES BALANDIER
238
A atenção crítica centraliza-se sobre aquilo que imobiliza as
situações, sobre o que trava o movimento. Propõe remédios. Avalia
desse modo as forças e fraquezas do Estado-Provedor, protetor das
seguranças, barragem contra os riscos, aniquilador do medo nos
moldes da religião. Sem querer aboli-lo, como prega o ultraliberalis-
mo, pode tentar da melhor maneira possível mantê-lo reanimando-o;
preconiza então o apoio sobre uma economia de mudança propícia à
mobilidade das condições individuais e à reforma permanente, o
recurso inventivo a um direito “oportunista”, variável, capaz de uma
adaptação constante da realidade; recomenda a audácia de se ques
tionar, de remexer experiências e inércias. Trata-se em suma de
injetar o movimento e obter os meios de gerenciá-lo; eco à constata
ção que sempre faço: a produção da sociedade é contínua, sempre a
se refazer, as escolhas que a orientam e as significações que gera
não são fixas, sob pena de se deparar, no final, com esclerose e
depauperação.29 A crítica se formula também enquanto denúncia da
mesquinhez dos responsáveis e do sistema que governam; a tônica
recai sobre a rotina (fuga do risco), o conservadorismo (a salvaguar
da dos privilégios) e sobre o descrédito que disso resulta. A crítica
repousa ainda sobre uma passividade — “deixar como está para ver
como fica” — que reduz ao estado de espectador diante do aconte
cimento e das turbulências da história imediata; leva, como fez Alain
Touraine, a clamar pela “vontade de ação” e a proclamar que “o pior
fator de crise é a consciência da impotência”.30 O inventário poderia
ser completo ao se levar em conta as idéias débeis e os valores
incertos, cujo único mérito reconhecido é o de serem inofensivos,
portanto pouco nocivos ao exercício da democracia.
Ao contrário, se nos limitamos a observar o único espetáculo
francês dos anos recentes, parece que o movimento, porque é uma
força criadora, e o empirismo, porque substitui o dogma pela reali
dade, são de novo apreciados e exaltados. Não sem ambigüidade. As
significações e apreciações novas associadas ao dinheiro, à sua
posse, a seu trabalho e à sua circulação, são, sob esse aspecto, reve-
ladoras: trata-se bem mais que um simples meio de satisfazer o culto
do consumo e dos prazeres. Como o fluido vital irrigando o organis
mo, o dinheiro simboliza a vida na sociedade. Também ele, a seu
modo, serve de indicador do bom ou do mau estado de conjunto, do
funcionamento e dos maus funcionamentos; o valor da moeda, co
239
municado todo dia pela mídia, ritualiza essa medida da economia, da
sociedade, do crédito que lhe é dado, e o índice global das cotações
da Bolsa pode se tornar, por causa das conjunturas, uma escala dos
valores mais comuraente repartidos — no sentido ético da palavra,
evidentemente. O dinheiro exprime a essência de sociedades onde
quase tudo pode se traduzir em termos de mercadoria; além disso,
informa— como acaba de ser dito — em um universo social e cultu
ral onde a informação é a energia indispensável em atividades cada
vez mais numerosas, e ele designa por excelência a relação de troca
em um mundo que é o da comunicação, da multiplicação rápida e da
intensificação das trocas de todas as naturezas. Amolda-se perfeita
mente em sociedades do seguinte tipo: pelo mercado, ele regula;
pela divisão, ele hierarquiza; pelo investimento, ele cresce. Faz o
papel de gerador da ordem.
Esse acordo se efetua também no terreno do imaginário, nes
ses lugares em que o desejo, os fantasmas e o jogo se aliam. As
aventuras do capital se convertem em relatos, fragmentos de mitos
e epopéias de uma certa modernidade; o romance americano e o
cinema neles se inspiram com absoluto sucesso. Fórmulas próprias
dos especialistas são vulgarizadas e imaginariamente transformadas;
o capital de risco se toma uma conquista de novas fronteiras (as da
modernidade mais avançada), e o movimento aparece fundador sob
esse aspecto; as O.P.A., operações rápidas pelas quais se realizam as
tomadas de controle do capital e das firmas, ou dos efeitos especulati
vos assimilados em um piscar de olhos, são descritas em termos que
evocam a competição, o confronto heróico ou a carga selvagem; e o
capitalismo dito popular se interpreta nos moldes de uma nova divi
são (mais simbólica que efetiva) onde entra uma parte de jogo. Toda
uma imagística através da qual a audácia, o risco, a performance rece
bem crédito, se beneficiam de uma avaliação em princípio positiva,
como se houvesse ali o desaparecimento das inércias contrárias à
emergência das novas formas concedidas aos dinamismos atuais.
Mas o dinheiro, figura principal de todos esses espetáculos,
aparece também sob os aspectos negativos. Cria a desordem que as
crises acentuam e dramatizam; ele destrói, em batalhas cujo capital
é o risco, empregos e empresas cujo valor não é simplesmente con
tábil; faz e desfaz as fortunas precoces; corrompe e alimenta os
negócios sujos; foge dos que o movimento da modernidade deixou
240
no mesmo lugar, de terâo que sofrer sua pobreza como uma novida
de má. Todo o brilho da solidariedade (caridade) espetacular não
seria suficiente para disfarçar essa violência até agora sem recurso.
A busca da ordem pelo movimento tenta associar a eficácia,
geralmente assimilada à racionalidade instrumental, ao empirismo
que diversifica, reduz as respostas e exclui qualquer reformulação
total, ao contrário do projeto revolucionário, hoje abandonado por
inúmeros de seus adeptos de ontem que o reduzem ao estado de
liturgia violenta. É em princípio às aplicações da ciência, às técnicas
que ele é solicitado para que sejam geradoras de uma ordem pro
gressiva e para se tornarem autocorretivas de seus próprios efeitos
perversos. A racionalidade do saber e da habilidade retoma então
sua vantagem; aparece como a força organizadora, que opera por
setores, por problemas, por interação das competências. São-lhe
indicados os lugares de manifestação, que podem ser vistos como os
lugares santos, onde se celebrava um culto positivista e moderno,
consagrado à criação: os parques científicos e técnicos. Pierre
Lafitte, fundador de Sophia-Antipolis, definiu o que ele denomina de
“criatividade tecnopolística”: “Concentração de matéria cinzenta
voltada para a passagem do saber e da habilidade; interação entre os
que sabem, os que agem, os que financiam, os que gerenciam.”
Neste caso, não há apenas um exemplo, ainda menos espetáculo
futurístico, mas um amplo projeto em vias de realização. O meio
ambiente, os instrumentos e as obras da modernidade, o homem
imaginativo criador de riquezas e serviços, de cultura e de um modo
de vida superior estão engajados em uma nova aliança. A mobiliza
ção da inteligência, o debate e a formação mútua (ou “fertilização
cruzada”), a prática das firmas especializadas, que utilizam as mais
avançadas tecnologias, a banalização pelo uso cotidiano dos mais
novos instrumentos, o encontro de sábios e artistas se tornam os
meios de “uma ação todos azimutes”, geradores de um movimento
propício à criação de formas, significações e maneira de ser que
poderão ter futuramente uma qualidade exemplar. No caso, um tec-
nomessianismo parece em ação, pelo qual o culto da sabedoria e do
humanismo sem dogma tenta mostrar um futuro possível e fazê-lo
existir, opondo uma fé racional à apatia, à rotina e à incerteza.31
É sobretudo a empresa que foi convertida em agente capaz de
transformar o movimento em produção expansiva, em relações
241
sociais diferentes, em cultura e valores restaurados. É dito e repeti
do que os franceses estão hoje mais afinados com o espírito em
preendedor e o lucro, menos desconfiados em relação ao dinheiro,
menos culpados. À direita e ã esquerda é a mesma celebração, o
mesmo voto de sucesso dirigido às empresas. Os jovens são Louva
dos por esse novo ímpeto: foram eles que o criaram, escapando
assim à maldição do desemprego do qual são as vítimas mais nume
rosas. Segundo o objetivo de um antigo representante do patronato
francês, eles teriam feito uma dupla revolução: liberados do “modelo
estrutural” antigo que destruíram, valorizariam a partir de então a
iniciativa, a novidade, o risco “e até a responsabilidade”. A imagística
atual é sobretudo um exemplo do herói da performance e do dirigen
te, que sabe levar a empresa ao sucesso; opõe os que ganham dos
pusilânimes, dos incompetentes e dos desiludidos; introduz uma lógi
ca da criação — da produção de ordem — , que tira vantagem da
lógica do jogo. O elogio das empresas de boa performance pode en
tão se tomar explicativo de seu sucesso, por uma maior capacidade
de inventar relações sem inércia e comunicação sem desperdício, no
interior das mesmas e em suas relações com o mercado. Este elogio
é o dos “novos construtores” dos quais foi dito que assumem resolu
tamente o partido da inovação, que exploram todas as possibilidades
que resultam de suas ligações internacionais, que eles não hesitam
em praticar a reformulação permanente de suas próprias atividades.
É um convite ao aprendizado do bom uso da crise, acompanhado de
uma louvação ao risco, o que é também uma apreciação reveladora.
Mostra aquilo que se inscreve no terreno da performance: a supera
ção da simples modernização, a conjugação de imaginação e iniciati
va, a recusa a comportamentos “sensíveis” , a capacidade constante
de auto-avaliação, em suma, um movimento mantido em razão de
sua fecundidade. Se é por aí que se vai, por aí vai também o vence
dor. Na cenografia midiática, o personagem do empresário bem-
sucedido assume as outras figuras de sucesso, às vezes a ponto de
se tornar ele mesmo um animador da imagística televisiva; encarna a
ação múltipla: mais que seu poder, é sua onipresença que aparece,
quer se trate de economia, de política, de cultura e comunicação ou
de ética e solidariedade; ele aparece como aquele pelo qual se forma
principalmente o mundo em vias de construção, aquele que já per
cebeu o sentido, que está em posição de filósofo pela atividade, e
242
não mais pelo discurso. Mas essa popularização permanece ligada à
imagem, da qual tem a fragilidade; a impopularidade redibitória, que
Schumpeter deplorava a propósito do espírito empresarial, não foi
ainda inteiramente afastada.
A figura do político está mais fluida, mais desacreditada no que
diz respeito à sua capacidade de produzir efeitos “atraentes”; as
relações de ordem e desordem, das quais está encarregado, se em
baralham. A potência cresce enquanto o poder parece submetido a
um processo regressivo e progressivamente vago, o que pode favo
recer o avanço aos extremos, aumentar a sedução das respostas
simplistas. De um lado, a exploração do desejo de ordem: a ascensão
política dos que prometem e promovem uma ordem renovada, ele
mentar e rude, recebe seu impulso dessa expectativa. De outro lado,
ao contrário, a manifestação de uma lógica da desordem: legitima as
violências e as revoluções em seu cotidiano, postulando-as criativas;
reveste-se de um aspecto mais apaziguador tomando as formas do
espontaneísmo (deixar passar o imprevisto) e da criatividade (dei
xar passar a inovação), incitando então a captar a energia criada
pela desordem a fim de convertê-la em força positiva. A simples res
posta empírica traduz a desordem em questões, cuja gravidade e a
não-resolução produzem males; esta se quer técnica, curativa e dis
sociada de uma ação política que divida e oponha; apresenta-se
como geradora de ordem pela coesão, a frente (todos juntos, e não
uns contra os outros) que tenta realizar em uma busca coletiva de
solução dos problemas mais ameaçadores. Mais respeitosas em rela
ção à complexidade são os projetos que tentam encarar a ordem
enquanto organização e a desordem enquanto movimento. O modelo
estatal-libertador caracteriza uma dentre estas, levada ao paradoxo.
Alia componentes pouco ou mal associáveis: o mercado, que é uma
força de regulação e que abala as inércias; o Estado, que amortece
os golpes das turbulências, que é um escudo cujo uso não se limita
exclusivamente à defesa armada; a dimensão libertadora no jogo
social, que lhe restitui sua plena capacidade inventiva, que contém
ou compensa a entropia do universo burocrático; enfim, a autoges-
tão enquanto utopia da qual se deve nutrir incessantemente a socie
dade civil. Trata-se, de uma certa maneira, de um sincretismo. De
estrutura semelhante a dos novos sincretismos religiosos e que pode
ser portador, como estes, de uma força atraente. É também um
243
revelador suplementar da dificuldade de trabalhar de uma forma
diferente na produção contínua da sociedade atual.32
O modelo inspirado pela autonomia situa-se à parte; não é assi
milável, segundo seus autores e defensores, a um projeto; visa à rea
lização de uma possibilidade efetiva do homem que nenhuma cor
rente política até agora gerou, está ambiciosamente ligado a um
novo começo da filosofia e, a bem dizer, à recusa da esterilidade
eclética. Este modelo apela também para a criatividade, a eficácia
crítica, a responsabilidade, a recusa à inércia. Convida a encontrar a
força da tradição emancipadora no sentido de utilizá-la na constru
ção de uma sociedade autogovernada, onde a autonomia individual e
a coletiva se sustentem e se mantenham, onde a instituição da
sociedade esteja renovada e onde as significações imaginárias sejam
suficientemente vivas para poder formar, inspirar e animar os indiví
duos. É no movimento que estes se tornam os artesãos de uma
ordem e de um sentido que os arrancam da passividade, que os
fazem renunciar à aceitação de “viver sobre o sistema”.33 Nesses ter
mos, a questão da democracia fica igualmente clara: é a única que
permite restituir um vigor aos debates sobre o presente, assumindo
suas contradições, utilizando suas incertezas como um remédio anti-
dogmático, convertendo o relativismo dos valores em possibilidade
oferecida a uma liberdade, que se define no movimento, e renas
cendo constantemente de sua própria crítica.34
244
NOTAS
245
U üUf lAJ lJ ü lüvijnr u i l u
246
24. Ver minha obra O contorno, op. cit., cap. I, “De corpo a ‘corpo
político”’.
25. M. Duval, Un Totalitarisme sans État, essai d’anthropologie
politique à partir d’un village burkinabé, Paris, L’Harmattan, 1985.
26. A literatura dedicada é evidentemente abundante, mas a referên
cia principal permanece H. Arendt, Le Système totalitaire, última edição
da trad. franc., Paris, Seuil (Points), 1972. Para uma apresentação geral: a
seção “Le totalitarisme” do Traité de Science politique, v. 2, Paris, P.U.F.,
1985, dirigido por M. Grawitz e J. Leca; e G. Hermet, Totalitarismes, Paris,
Economica, 1984.
27. Sobre a sociologia da religião em Durkheim, ver principalmente:
“De la définition des phénomènes religieux”, Année Socio.., II, 1899, e Les
Formes élémentaires de la vie religieuse, Paris, Alcan, 1912. Sobre
Durkheim, a obra de J.-A. Prades, Persistance et métamorphose du sacré;
actualiser Durkheim et repenser la modemité, Paris, P.U.F., 1987.
28. A bibliografia relativa às figuras contemporâneas do sagrado, às
“novas religiões”, é abundante. Eu citaria: P. Berger, La Religion dans la
conscience modeme, trad. franc., Paris, Centurion, 1971; R. Bastide, Le
sacré sauvage, Paris, Payot, 1975; B. Wilson, Contemporary Transforrm-
tions of Religion, Londres, Oxford Univ. Press, 1976, e a obra dirigida, The
Social Impact of New Religious Movements, Nova York, Rose of Sharon
Press, 1981; Y. Desrosiers, Religion et culture au Québec. Figures con-
temporaines du sacré, Montreal, Fides, 1986; C. Rivière, Les Liturgies
politiques, Paris, P.U.F., 1988; E, em relação à modernidade, minha obra:
O retomo, op. cit.
29. F. Ewald, em uma obra sábia, rica e inventiva, apresentou o
Estado-Provedor e definiu as condições necessárias à sua atual gestão:
L ’État-Providence, Paris, Grasset, 1986.
30. Comentário de A. Touraine depois da crise da Bolsa do outono de
1987: “Apathie française”, Le Monde, 21 nov. 1987.
31. P. Lafítte, antigo diretor da École des Mines, fundador da “cidade”
Sophia-Antipolis, nos arredores de Antibes e Nice, exerce esse magistério,
esse quase culto voltado à invenção de um futuro, que aliaria “a qualidade
de vida e a modernidade”. Seu engajamento incansável, sua contribuição ao
movimento estão a serviço de uma aposta arriscada desde 1969; cf. “Un
entretien avec M. Pierre Lafitte”, Le Monde, 3 set. 1986.
32. A. Mine elaborou e preconizou este modelo que denominou de
“estatal-libertador”. Cf. L ’Après-crise est commencée, Paris, Gallimard,
1982.
33. C. Castoriadis prossegue incansavelmente em sua obra (solitária,
diz ele) de explicação e defesa da sociedade democrática e autônoma; cf.
247
UU u n u u u i/jiuniiiriuH
248
0 MOVIMENTO
249
capacidade de atingir a dominação e possessão do mundo por seus
próprios meios, suas técnicas e suas artes É a ruptura que substitui
uma ordem existente, governada por uma potência exterior e, em
razão dessa heteronomia, uma ordem a ser criada e cuja realização
se interpreta como progresso. Com a figura de Don Juan exalta-se a
recusa individual de toda ordem; é a elevação da transgressão ao
estado de valor supremo, mesmo com o preço da vingança divina. A
sedução sem limites, a libertinagem e as contracondutas traduzem-se
em desafio assumido com o risco extremo — a morte: último enfren-
tamento no qual a liberdade absoluta do indivíduo confronta-se com a
Lei, com o Senhor Supremo, na plena consciência de que estes vão
submetê-la. Três figuras míticas que, por meio de metáforas realiza
das ao longo dos séculos, exprimem a inesgotável luta entre ordem e
desordem, necessidade e liberdade, violência fundadora e violência
destruidora, a impossível vitória total de um dos dois termos.
A literatura relata também, no nível individual, o que os mitos
exprimem coletivamente. Revela a escolha da desordem na qual
uma vida inteira se constrói, uma obra se alimenta. Com a moderni
dade, aqueles que encarnam essa escolha, que dela fazem o meio de
sua realização ou de seu drama pessoal, se multiplicam. Eles são
nossos próximos, de maneiras muito diferentes. Assim toda a obra
de Henry Miller, e não somente os Trópicos, é uma exaltação jubilo
sa da desordem, sua afirmação enquanto salvadora e possibilidade
de restituir a vida à literatura. Este perturbador, que proclamou em
uma de suas entrevistas: “Quanto maior a confusão, melhor para
mim”, só quis reter o movimento, o que arde e explode. Opõe a rea
lização individual, percebida enquanto uma história única, à realiza
ção coletiva, sobretudo a do tipo americano que ele rebaixa ao esta
do de “pesadelo climatizado” . A única questão que vale é a da
autoliberação; para o resto, a perspectiva de Henry Miller é a de um
apocalipse, e não o traço deixado pelo movimento histórico. O
“sábio dilacerado” interioriza a desordem e as contradições, se faz
profeta da salvação através da desordem, ao mesmo tempo que pro
põe uma espécie de evangelho dionisíaco. O que existe é um júbilo
de ser em constante movimento, recusando todo sentido imposto e
estabelecido no tempo, frustrando as ilusões da ordem.
Com esta figura menos ilustre, mais sombria e fortemente pre
sente que é o dramaturgo e poeta alemão Heiner Müller, o exemplo
250
da desordem reveste-se de um aspecto mais trágico. A visào resuita
da experiência vivida em um país vencido, arruinado, dividido, com
a imagem onipresente de um totalitarismo passado que o tempo não
conseguiu apagar, e a de um presente definido por um socialismo
totalitário e tecnocrático. Dois mundos da ordem absoluta, este
exemplo de pesadelo ( “tudo estava em ordem”, diz o sonhador ao
despertar) que evoca um dos textos reunidos sob um título comum:
La Route des chars [A rota dos carros]. Escrever contra a ordem,
para a desordem torna-se então um meio de vingança, ligado a um
prazer maligno ou a uma espécie de maldade. Ao exprimir seu “ódio
primitivo” das “metrópoles e sua arrogância”, das potências onde
tudo se relaciona com um centro que submete e totaliza, Heiner
Müller evoca “a confrontação de duas épocas: a do indivíduo e a da
história”. Encontra aquilo que criou e manteve a tragédia e que se
traduz, em termos atuais, pela oposição entre os direitos do homem
e a razão de Estado. Nascido em uma ditadura, educado em uma
segunda “que representou a liberação da primeira” , ele se diz
“impregnado da violência de Estado”. Denuncia assim, o dedo em
riste, o sonho dos servidores estatais, uma ordem completa — “esse
girar em círculos, essa imobilidade total”. Uma ordem que só a mor
te pode criar; fora de seu reino, só o movimento, a parte da desor
dem, sem os quais não existe vida nem criação.
Em exemplos menos extremos ou mais desiludidos, ou disfar
çados, a desordem permanece como o ocupante do espaço literário
atual. Já Malraux, pouco antes de sua morte, fazia do homem pre
cário a prova de uma civilização que perdeu tudo, religião ou dou
trina, que tivesse valor “ordenador” e que se tornou mais aleatória.
No mesmo tempo que constatava a ausência de valores reconheci
dos, propícios à coexistência de formas muito contrastadas, assina
lava a perda de uma “consciência de conjunto”. Um universo da dis
persão onde o poder, constantemente crescente em razão da ciência
e das máquinas, pode se voltar contra o homem; uma civilização da
qual o homem contemporâneo se descobre progressivamente afasta
do e que se apresenta como uma pátria estrangeira. Ordem, sentido,
vínculo são vistos em conjunto nas turbulências da mudança, da
metamorfose e da ameaça; o que leva Malraux a encarar como possí
vel “uma civilização permanentemente imunizada contra qualquer
sentido da vida”.
251
U I S U K U L b U A L AN II11. K
252
crítica filosófica da pós-inodernidade coloca-se aliás sobre esses dois
planos; denuncia uma prática sincrética que produz o saber flutuan
te com as pegas disparatadas e com elementos que eram, até então,
refugados; nega ao mesmo tempo uma esterilidade eclética e disfar
çada e uma cultura que se satisfaz com os reflexos em detrimento
das fontes.
Hoje o movimento é portador de incerteza. Uma filosofia que
se quer jovem aceita tanto um quanto outro. Percebe o desapareci
mento das normas transcendentes em proveito de uma ética da
autenticidade, do “sê aquilo que és”, da liberdade reivindicada dian
te das normas adquiridas, porque são exteriores e impostas, ou pro
duzidas, porque cada um se decreta possuidor e senhor delas. Uma
lógica das situações, inerente a esse tempo de flutuações, e uma ló
gica interna própria das sociedades democráticas se conjugam e
concorrem para esse efeito. Parece cada vez mais insensato referir-
se a uma ordem do mundo global e fundadora, sobre a qual uma
dogmática aceitável seria edificável. A ausência de certeza tende a
substituir as ideologias da afirmação; sobre nenhum plano (científi
co, político, ético, mesmo religioso) parece ser possível referir-se a
evidências, tudo se torna condicional e os valores se relativizam. A
um antigo regime de idéias afirmativas, mesmo quando o pensamen
to se queria crítico, parece suceder um novo regime onde a argu
mentação se faz mais livre e variável, na medida que não mais está
alimentada de certezas. Fórmulas tentam designar essa passagem,
as que parecem marcar o acomodamento ao pensamento frágil e às
ideologias frouxas.
O que está sobretudo em causa é a questão da verdade. Em
um universo agitado e de aparência, em um futuro onde o possível
prevalece sobre a necessidade, a resposta se esconde ou se embara
lha. Toma corpo a idéia de que não existem fatos, mas interpreta
ções, e que a pretensão à verdade é uma espécie de golpe de força,
um abuso. Donde então a sugestão de consentir no reconhecimento
de uma “realidade leve” onde a linha divisória entre verdadeiro e fal
so, verdade e ficção perde sua nitidez (Gianni Vattimo). A afirmação
que a Verdade não é reconhecível, que a viagem é feita de uma ver
dade para outra, e que os homens não produzem nem o falso nem o
verdadeiro, mas “o existente" (Paul Veyne), não parece assim tão
provocadora. Como todas as coisas na modernidade, a verdade bri
253
lha e não tem um só dono; a verdade se dispersa e seu movimento
pode ser interpretado, com um certo excesso, como uma errância A
ordem firme, ou postulada como tal, permitiria conceber uma verdade
unificada; a variação e a desordem a tomam inelutavelmente plural.
Admite-se em conseqüência que o saber não pode ser assimila
do a uma soma de conhecimentos que desvendaria progressivamente
a verdade, mas àquilo que pode ser visto (evidências) e dito (enun
ciados) e arranjado de acordo com as condições próprias de uma
época. Esta, mais que nenhuma outra, impõe a consideração proble
mática, o exame da forma que as coisas e as idéias apresentam.
Neste sentido já aparece a contribuição de Michel Foucault, apre
sentada por ele mesmo como uma “história das problematizações” e
não como um pensamento sistemático, uma teoria ou uma doutrina.
O método conduz — e as entrevistas são o principal meio dessa pro
gressão — à consideração da atualidade no sentido de detectar os
“pontos sensíveis”, os que são reveladores de fragilidade no pensa
mento e nas práticas, os que designam as linhas de fratura além das
quais se descobre o inesperado, o inédito. Foucault coloca desse
modo a questão central: como a produção de alguma coisa de novo
no mundo é possível? É se dar como objetivo tornar inteligíveis as
mudanças de regime na ordem das coisas, das idéias, das represen
tações — de tornar inteligíveis as passagens. Identificar esses
momentos, esclarecer o que é problemático, chegar ao conhecimen
to do que entra no mundo e já não está mais lá, é conduzir a expe
riência humana a reduzir a consciência da desordem e da perda de
sentido. É consentir em um trabalho que se efetua em dois movi
mentos: tratar o que depende do passado, do “arquivo” — tarefa à
qual Foucault dedica a maior parte de seus livros — , e considerar
aquilo que somos em vias de cessar de ser; tratar, como acaba de ser
dito, do “atual”, quer dizer, daquilo que estamos em vias de nos tor
narmos. A obra do filósofo não se presta evidentemente a uma única
interpretação, mas esta é legítima e aliás legitimada por seus mais
seguros intérpretes, principalmente Gilles Deleuze; mostra a cons
tante atenção com as condições históricas; revela um projeto de
caráter gerador onde o humano acha-se continuamente confrontado
(e constituído em razão dessa confrontação) com as “forças de fo
ra”, e não somente com os efeitos de estrutura, aniquiladores do ho
mem, do sujeito. Esses resultados foram mal interpretados e vulgari
254
zados, reduzidos a um estado de simplicidade provocante pelo cho
que de uma fórmula: a morte do homem, depois da morte de Deus.
As ciências da sociedade colocam de outra forma a questão, mas são
possuídas de uma mesma obsessão; a da morte das culturas, do por
quê e do como a desordem prevalece, enfraquecendo as instituições
e apagando as significações. Ou, ao contrário e de modo mais otimis
ta, como a desordem permite o nascimento de uma cultura, a saber:
como esta se cria engendrando significações novas, colocando o
imaginário a serviço da formação de instituições, fazendo prevalecer
o princípio da organização. Preocupação com um tempo da desor
dem que é também identificado como o dos novos começos.
As ciências humanas encontram sobre este terreno um desafio
maior; o movimento as desorganiza, arruina inúmeras de suas certe
zas, desloca as fronteiras delimitando seus territórios de especializa
ção. Não sabem mais precisar qual homem, qual sociedade e cultura
têm de conhecer. Tudo se tornou muito móvel, muito dissociado do
que é fator de permanência e gerador de ordem. A sociedade — no
sentido mais amplo da palavra — apreende-se em um estado de
grande fluidez. Porque é fluido, não é mais passível de ser encerrada
no interior de uma disciplina. Porque é um contínuo vir-a-ser, com a
aceleração própria dos períodos de modernidade, deve ser entendi
da em sua criação e não em estruturas que a congelam e a desnatu-
ram. Por essas razões, a divisão das disciplinas segundo sua relação
com o passado (história) e pelo império da tradição (etnologia,
antropologia) ou pela atualidade (sociologia e outras ciências do
presente), perde cada vez mais sua pertinência. Todas se encontram
entre si desde o momento em que se apreende o futuro, que se
esclarece o “arquivo” pela atualidade, e vice-versa.
A história, sobretudo na França, ocupa uma posição triunfante
cuja significação é preciso precisar, na medida que se relaciona com
o que acaba de ser dito. Ao se fazer história total, dominou o estado
de fragmentação que impõe a consideração do acontecimento, e,
com esta finalidade, integrou a contribuição de outras ciências
humanas, da filosofia às ciências da sociedade e da cultura, à lingüís
tica e à semiologia; efetuou um trabalho de função sintética, cons
truiu conjuntos amparados no passado e cujos efeitos se prolongam
no presente. Em um tempo que é variável, disperso, efêmero, permi
te a presença desses conjuntos ordenados, inchados de significa
255
ções, que fazem “o mundo" no sentido filosófico dessa palavra.
Fornece os vínculos e, por meio deles, responde a uma necessidade
difusa do homem contemporâneo, que está desamparado.
Os comentaristas da atividade histórica — e o consumo insa
ciável de textos que disto resulta — apresentam isso de outra ma
neira: colocam em questão a incerteza que nutre a busca da identi
dade, individual e coletiva e de seu enraizamento, a reivindicação de
um sentido que se dá somente na duração e cujas fraturas, na mo
dernidade, são aniquiladoras, o desejo de conhecer um futuro larga
mente desconhecido, espécie de buraco negro, servindo-se dos fa
róis do passado.
A história reatualiza a questão da memória coletiva, que foi
antigamente o centro da interrogação sociológica. A modernidade é
produtora de amnésia, apaga as referências e oculta os ancoradou
ros do passado, abole para dar lugar ao novo e ao inédito, e valoriza
o efêmero em detrimento do durável, esconde a permanência sob a
superfície agitada da mudança; mas não consegue chegar a um total
desaparecimento, não mais que o projeto radicalmente revolucioná
rio a fazer tabela rasa para impor um começo absoluto. A história
vivida tem uma função de acumulação: fora dos homens, na materia
lidade daquilo que produzem e formulam contra a agressão destrui-
dora do tempo; neles, coletiva e individualmente naquilo que é sua
parte na herança e orienta suas interpretações, seus comportamen
tos, sem que eles tenham disto plena consciência. Uma sociedade
inteiramente nova, um homem inteiramente novo, isto não existe,
não pode existir. A memória coletiva é plural, diversa, constituída de
múltiplas contribuições, obras, informações continuamente estoca
das e em parte dissipadas. Pode entretanto ser vista nos moldes de
uma memória informática; por ela, os depósitos do passado são tra
tados e conservados, permanecem atualizáveis ou programáveis
segundo as circunstâncias. Mas, é preciso ainda lembrar, a moderni
dade mantém a passagem aos extremos, opera também por proces
sos de divergência. De um lado dá à memória coletiva instrumentos
técnicos novos, mais poderosos, de salvaguarda material e de esto-
cagem das obras e dos “produtos” culturais; as “tecas” de diversas
coisas se multiplicam, a conservação por meios eletrônicos e infor
máticos acumula e concentra, a criação de museus de qualquer coi
sa leva, segundo alguns, à museomania; os lugares da memória são
256
U f c S U K Uf c M
257
GEORÍiES BALANLHIiK
258
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CJ K O K U E S B A L A N Ü I KH
260
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