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Percival Puggina
Prefácio:
Olavo de Carvalho
A tomada do Brasil pelos maus brasileiros
Percival Puggina
Realização:
Critério - Inteligência em Conteúdo
Edição:
Editora Concreta - Renan Martins dos Santos
Organização, comentários e notas:
Mateus Colombo Mendes
Capa:
Christiaan van Hattem
(Crédito da fotografia: iStock)
Ilustrações:
Bebeto Daroz
Ficha Catalográfica
Puggina, Percival, 1944-
P429 A tomada do Brasil [livro eletrônico] / coord. de Mateus Colombo Mendes,
edição de Renan Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2015.
292p. :p&b ; 16 x 23cm
ISBN 978-85-68962-06-0
CDD-070.44932
www.editoraconcreta.com.br
S E LO RE AÇ ÃO
O
s trabalhadores de todo o mundo não se uniram. As idéias abstratas
de Karl Marx (e de seu financiador, Friedrich Engels) não encontraram
ressonância na vida real. Ao contrário do socialismo, aquilo que Marx
chamou de capitalismo não é uma ideologia, mas o resultado de uma relação
própria dos seres humanos: a relação de trocas. Da mesma forma, não encontra
amparo na realidade aquilo que Marx chamou de “moral burguesa”, da qual,
segundo a fábula Manifesto do Partido Comunista, os trabalhadores de todo o
mundo viriam a querer libertar-se, por ser artificialmente construída e imposta
por quem detém os meios de produção. Chamado de “conservadorismo”, esse
conjunto de “regras” também não é um ideário (como o é o socialismo), mas
uma percepção acurada do mundo real, do que deu certo e do que deu errado
ao longo da História, com a base de uma moralidade sempiterna, de um Direito
Natural fundado na Verdade com “v” maiúsculo. Esse eixo de certo e errado,
fundador daquilo a que se chama conservadorismo, foi percebido em diferentes
civilizações, em distintas regiões da Terra e em diversos momentos da História
– e constitui o muro de contenção dos devaneios ideológicos.
A realidade refutou (e segue refutando) Karl Marx de muitas maneiras,
de modo que os intelectuais marxistas resolveram mudar de estratégia. À
primeira metade do século XX, percebendo que a revolução não ocorreria
naturalmente e que a imposição pela força não se sustenta, Antonio Gra-
msci, György Lukács, Jürgen Habermas e Max Horkheimer, entre outros,
propuseram uma revolução cultural, através dos costumes, dos hábitos, do
senso comum. Sua pretensão era de que o socialismo corroesse por dentro o
edifício da civilização, pondo abaixo as sólidas pilastras da moral judaico-
-cristã, da filosofia grega e do direito romano. A subversão seria imposta
pelos costumes, através da cultura, garantindo à esquerda uma hegemonia
que seria a base da tomada do poder através da política ou da revolução.
O Brasil foi terreno mui fértil a essa estratégia – e a colheita viria ao co-
meço do novo milênio. Nas décadas de 1960 e 1970, derrotada no campo
político e militar, a esquerda se aproveitou da inexistência de uma sólida
tradição cultural brasileira e passou a ocupar todos os espaços em redações
de jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão, em universidades e em
editoras. Em duas décadas, o marxismo passou a ser a base de toda a educa-
ção nacional, a chave de interpretação dos fatos em nosso jornalismo e a ins-
piração em nossa literatura. Mais duas décadas e, com a hegemonia cultural
estabelecida, o poder político já era integralmente da esquerda.
Nesse contexto, acostumamo-nos com um padrão de mercado editorial
avesso à tradição literária e crítica, em permanente militância contra autores
clássicos e suas obras perenes, fundadas na tradição da busca da compreensão e
da representação da realidade. Com admirável tenacidade, preparo intelectual
e resistência psicológica, poucos brasileiros nadaram contra a maré vermelha
nesse tempo todo – um deles é Percival Puggina (outro é Olavo de Carvalho,
prefaciador desta obra). Pouquíssimos seguiram buscando a Verdade de cada
fato, mas sua insistência foi inspirando cada vez mais pessoas, criando um am-
biente minimamente favorável a uma reação no campo cultural. Uma dessas
reações se chama Editora Concreta, que, desde 2014, oferece ao malformado
e maltratado leitor brasileiro clássicos de Filosofia, Teologia e Crítica Literária.
Após anos de letargia generalizada, em que a imensa maioria dos brasileiros
assistiu aos maus brasileiros ignorando a Verdade e subvertendo a realidade
(primeiro, no campo cultural; depois, no político), começamos a reagir. Alu-
nos do professor Olavo de Carvalho e demais interessados em entender a rea-
lidade antes de desconstruí-la se têm organizado para estudar, publicar livros,
posicionar-se e, até mesmo, protestar. É neste novo momento, de retomada do
Brasil, que surge o Selo Reação, uma iniciativa a qual tenho a felicidade quase-
-celestial de capitanear, ao lado do Renan Santos e de sua Editora Concreta, a
fim de publicar autores contemporâneos que se dedicam a defender a sanidade
geral da nação das investidas de ideólogos armados com as perigosíssimas idéias
abstratas que, desde 1917, já mataram mais de 100 milhões de seres humanos.
agradecimento especial
— Percival Puggina
Que lição esplêndida a juventude brasileira vem proporcionando à Nação!
Foram eles, os jovens, rapazes e moças, que, neste ano de 2015, levaram
milhões às ruas nas grandes demonstrações de março, abril e agosto. Nenhum
deles era nascido quando o PT surgiu. A maioria sequer se equilibrava em
skate quando Lula foi eleito. Mas descobriram, em poucos anos, algo que
a imensa maioria da população levou três décadas para ficar sabendo. E
trataram de agir. Hoje, ensinam civismo aos congressistas. Representam-nos
ante aqueles que nos deveriam representar. Falam pelos que calam. Cobram
das instituições o cumprimento de seu dever.
Procustos à brasileira
Quem são os maus brasileiros
Lanterna na proa
13 incontornáveis razões políticas para o impeachment..........................239
Pois é agora que tudo começa!.................................................................241
Alô, TSE! Que diabo de eleição foi essa?.................................................243
Os indignados e os que ainda não entenderam........................................244
É impeachment, sim!................................................................................246
Os verdadeiros golpistas..........................................................................248
O PT não piorou. Ele sempre foi assim...................................................249
O crime de PT-fobia.................................................................................251
A miséria da educação e a educação da miséria.......................................252
Alerta aos pais.........................................................................................254
A ditadura marxista na educação............................................................255
Comunismo, o filho da inveja..................................................................257
Tudo vai muito bem (nos poderes da República).....................................258
O tráfico de drogas e a pena de morte.....................................................259
Maioridade penal e desonestidade intelectual..........................................261
Somos as próximas vítimas do delírio esquerdista continental.................262
“Solidariedade” ou hipocrisia?................................................................264
Estado Islâmico, coisa nenhuma!.............................................................265
PT e CNBB, 35 anos de união estável......................................................266
Devoção a nossa senhora presidente........................................................268
Um STF para o PT chamar de seu...........................................................270
A revolução através das togas.................................................................271
Brasil, o filho pródigo caiu em si?............................................................272
Acabou! Acabou!....................................................................................274
Confesso que chorei................................................................................276
O melhor do Brasil, em muitas décadas...................................................277
Irresponsável usina de crises....................................................................279
O que fazer?............................................................................................281
Acusam-me!............................................................................................285
Posfácio...................................................................................................287
Prefácio
Um pinguim no Saara
Olavo de Carvalho
D
ecorridos quarenta anos de decadência do jornalismo (digo do jor-
nalismo porque no caso da literatura seria mais apropriado falar
em desaparição), ler os artigos de Percival Puggina é um dos poucos
consolos que restam a quem estreou na profissão na época de Nelson Ro-
drigues, David Nasser, Carlos Lacerda, Rubem Braga, Antônio Maria e não
sei mais quantos. Naquele tempo, o jornalismo brasileiro era tão bom que
Alceu Amoroso Lima teve de usar o melhor dos seus dons dialéticos para
distingui-lo da literatura (O jornalismo como gênero literário, Rio de Janei-
ro, Agir, 1960). Hoje em dia, quando se diz que um sujeito é jornalista, o que
se entende é que ele não é de maneira alguma um escritor.
Então, digo logo de cara: Percival Puggina não é um jornalista, é um es-
critor. Se adotou como gênero literário a breve crônica jornalística, não foi
por incapacidade de realizar obra de maior fôlego, mas porque a isso o indu-
ziam as necessidades do momento, em que o escritor, se não quer falar para
as paredes, tem de criar o seu próprio público, educando-o desde o bê-á-bá
– empreendimento para o qual não há melhor veículo do que o jornalismo. É
só ler suas crônicas em seqüência para notar que, tão bem articuladas numa
convergência de perspectivas e na escalada de um raciocínio tão claro quan-
to irretorquível, elas são, já, a tal obra de maior fôlego, apenas apresentada
em pedacinhos porque assim o exige o molde minimalista da mídia atual.
Uma característica que salta aos olhos à primeira leitura dessas crônicas é
precisamente aquela que, segundo Martin Amis, define a literatura: a guerra
22 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
contra o clichê. Puggina jamais apela aos chavões consagrados, jamais maca-
queia aquela língua-de-pau com que os colunistas iluminados da Folha e do
Globo mostram diariamente ao público que são bons meninos. Cada linha
da sua autoria vem marcada por aquelas “impressões autênticas”, pessoais
e diretas, nas quais Saul Bellow, ecoando Amis à sua maneira, via a marca
do escritor genuíno, em contraste com os propagandistas, demagogos e ca-
bos eleitorais. Porque foram justamente esses personagens que “tomaram o
Brasil”, era inevitável que a linguagem direta e franca de Percival Puggina o
fizesse parecer, aos olhos dessas criaturas, “um pingüim no Saara”, como ele
próprio o reconhece. Nem por isso ele posa de outsider, de incompreendido,
de coitadinho. Com uma serenidade e um equilíbrio notáveis, ele simples-
mente continua dizendo o que tem de dizer, sabendo que, numa época de
loucura geral, a pura a simples normalidade é o maior dos escândalos.
Apresentação
Mateus Colombo Mendes
H
á controvérsias quanto à origem desta nossa característica, mas não
resta dúvida de sua existência: nós, brasileiros, temos fixação por
entidades abstratas. A cada tragédia, a cada problema, a cada de-
sinteligência, bradamos: “Onde estão as autoridades!?”, “Exigimos provi-
dências do Poder Público!”, “O Estado tem de agir!”. Da mesma forma, a
cada manifestação popular repetimos nossas lamúrias contra a “corrupção”.
Ainda, notando a situação atual em que vivemos, as inversões psicóticas a
que estamos submetidos, a corrosão de nossa cultura e o desmonte de nossas
instituições, tendemos a culpar a esquerda. Equívocos. Nosso problema não
é o Estado falho, mas seus agentes que prevaricam; não é a corrupção, mas
corruptos e corruptores; não é a esquerda, mas os esquerdistas. E prevarica-
dores, corruptos, corruptores e esquerdistas têm nome.
O Estado, por exemplo, é uma entidade de fácil definição jurídica, mas,
sobretudo, é um ente abstrato, intocável e indelineável, o qual todos se sen-
tem confortáveis para criticar, evitando o constrangimento de citar nomes
e, Deus nos livre!, angariar antipatias. E a corrupção? Lembremo-nos das
manifestações de junho de 2013: os cartazes e as palavras de ordem eram
contra a fabular corrupção, jamais contra Lula, Zé Dirceu, José Genoíno e
demais corruptos e corruptores. Ainda que nas manifestações em favor do
impeachment de Dilma Rousseff – em março, abril, maio e agosto de 2015
– tenhamos dado nomes a alguns bois, ainda temos muito a fazer até que
isso se reflita na política representativa, em que parlamentares demonstram
imensa dificuldade em atacar os agentes e preferem limitar-se à crítica ge-
nérica às ações, e na imprensa, que se reveza entre não perceber e fazer de
conta que não percebe que queremos o julgamento e a prisão deste e daquele
24 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
O
mitirei , neste relato, a identificação dos personagens e do local onde
ocorreu o diálogo que me levou a este artigo. Direi, apenas, que era
um programa de rádio e que o assunto surgiu durante um intervalo
comercial. Não foi ao ar, portanto.
Aos fatos. Enquanto a emissora cuidava de seus interesses, um dos parti-
cipantes do programa, dirigindo-se a mim, afirmou: “Puggina, é inegável que
tua posição está baseada na moral cristã.” Disse-o como se estivesse apon-
tando um pinguim no Saara. Retruquei que isso era uma obviedade, posto
que o assunto em pauta envolvia considerações de ordem moral, e a minha
moral tinha, com efeito, fundamento cristão. E aproveitei para perguntar em
que se baseava a posição moral que ele estava defendendo. Respondeu-me:
“Os direitos humanos. São os direitos humanos.” Argumentei que direitos
humanos não podem ser fundamentos de uma moralidade, posto que eles
mesmos requerem algum fundamento anterior, a partir do qual os direitos
humanos se distinguissem dos direitos dos animais, por exemplo. Diante
disso, meu interlocutor deu sinais de surpresa. “Não estou te entendendo”,
disse. Dado que nesse momento, outro participante do programa interveio
usando a expressão “dignidade da pessoa humana” (que eu estava vendo se
extraía espontaneamente do meu interlocutor), ele agarrou a expressão com
as duas mãos: “É a dignidade da pessoa humana.”
Chegáramos ao ponto que eu queria: “E em que se fundamenta a digni-
dade da pessoa humana, meu caro?” Ele voltou a dizer que não estava me
entendendo e eu a lhe perguntar se as pessoas e os animais eram portadoras
da mesma dignidade. Infelizmente, com o término do intervalo comercial,
apenas tive tempo de lhe recomendar que meditasse sobre essa questão: em
que se fundamenta a dignidade da pessoa humana?
Estou convencido de que a única resposta capaz de preencher todos os
requisitos filosóficos e de viabilizar corretos parâmetros morais à nossa exis-
tência é a que integra a Revelação e a subsequente tradição judaico-cristã: o
homem é imago Dei! Imagem de Deus. Com ela e por ela todos somos iguais
em essência e dignidade, a despeito das infinitas diferenças. Sem ela, nos tor-
namos vítimas em potencial das diferenças. No encontro dessa verdade de
fé com a sã filosofia, nasce o Direito Natural, vertente de tudo quanto há de
valioso no moderno constitucionalismo.
1 13 de agosto de 2011.
32 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
No gueto, pensando2
E eis que aos poucos se foi impondo em mim essa sensação de que vivo
num gueto. Sim, sim, eu caminho com liberdade, circulo, falo, opino. Cor-
respondo-me com muitos. Vocês me leem. Jornalistas me perguntam o que
penso. Eu respondo. E mesmo assim, ou quem sabe por isso, habito um
gueto. Somos muitos nas mesmas condições. Estamos contidos num sítio
existencial bizarro, cujas bordas são tão invisíveis quanto sensíveis, onde
milhões de brasileiros, provavelmente a maioria de nós, vamos perdendo re-
levância, minguando em cidadania e sendo suprimidos até mesmo do direito
de expressar nossas opiniões.
A caçamba e a corda foram recolhidas. As instituições jazem no fundo do poço
do descrédito. Do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) ao estudante da
USP, do chanceler da República ao pagodeiro do Piauí, do ex-presidente ao me-
nino birrento que trata a professora aos pontapés, perdeu-se a noção de limites.
Mas não lhe passe pela cabeça, leitor, apontar causas para o que vê acon-
tecer! Você acabará no gueto. Repita então, em concordância bovina, que
são sinais dos tempos. Preferivelmente, assuma a responsabilidade por tudo.
Diga que foi o seu mundo que gerou esse mundo. Ataque a corrupção, mas
2 15 de janeiro de 2012.
A VERDADE NÃO EXISTE. SERÁ VERDADE? 33
não faça mais do que falar mal dela (ela se lubrifica com a saliva dos críti-
cos). Toneladas de palavras, hectolitros de saliva. Mas não lhe passe pela ca-
beça apontar as causas. Jamais aponte causas ou ofereça critérios! Concorde
prontamente quando disserem que ela sempre existiu e é igual em toda parte.
Jamais mencione os vocábulos “verdades”, “princípios” e “valores”.
No Brasil que abre caminho no século 21, quem propuser algo relevan-
te perderá importância. Observe os partidos políticos, por exemplo, e faça
como eles. Aprenda a crescer com irrelevância. Quanto menos forem daquilo
que deveriam ser, quanto menor seu conteúdo, mais importantes se tornam.
Por isso estão fora do gueto. Os programas e ideários em torno dos quais
se constituíram só cumprem fins higiênicos quando disponibilizados nos ba-
nheiros das sedes. Mas não ouse dizê-lo. E jamais sustente haver coisas que
não se fazem porque o caminho dos princípios acaba no gueto.
É óbvio que este país passa muito bem com pouco ou nenhum caráter,
sem fé religiosa de qualquer espécie (à exceção da fé no grande demiurgo de
Garanhuns), submissa à ditadura do politicamente correto, do pensamento
fraco, da grosseria. É óbvio. Um país crescentemente macunaímico, cada vez
mais canalha, precisa expurgar a virtude. Há que trancar a nação inteira no
gueto, se isso for necessário para os arranjos do poder.
Depois que as li, ainda adolescente, jamais esqueci as palavras com que
Cyrano de Bergerac defendeu o amor próprio. É uma lição inesquecível. E
uma condenação. “O que queres que faça? Almoçar cada dia um sapo e não
ter nojo? Trazer os joelhos encardidos? Exercitar a espinha em todos os sen-
tidos? Gastar o próprio ventre a caminhar de bojo? Não, muito obrigado!”
As coisas de que a nação precisa são tão óbvias quanto incômodas. Por
isso, a coerência se converte em vício constrangedor. O sujeito coerente é um
antissocial, objeto de intrigas e maledicência. Se não quiser vir para o gueto,
livre-se de suas convicções. Tudo isso é tão óbvio para nós quanto é inacei-
tável para eles, os maus brasileiros que tomaram este país.
Inaceitáveis obviedades3
A tomada do Brasil4
A nação está com as mãos erguidas e não é para rezar. Ninguém escapa
à sanha dos bandidos, aos quais o Estado, miseravelmente, se rendeu. Era
previsível. Foi prenunciado por uns poucos, entre os quais eu mesmo. Agora
está aí, e todos percebem. Num país com 200 milhões de habitantes, a ativi-
dade contra o patrimônio alheio, por exemplo, tornou-se tão intensa que, do
pirulito da criancinha à minguada pensão mensal da vovozinha, tudo já foi
levado e todos já foram assaltados. Alguns, muitas vezes.
Tenho nostalgia, já falei antes, do tempo dos trombadinhas. Eram me-
ninos. Quase digo que eram meninos de boa formação, que sabiam estar
fazendo coisa errada. Esbarravam na vítima, tomavam-lhe algo e saíam cor-
rendo. Tinham medo da vítima, da polícia e de que outros transeuntes os
detivessem. De uns tempos para cá, o ladrão é bandido que ataca, ofende,
maltrata e mata, motivada ou imotivadamente.
Por uma dessas coisas da memória, vem-me à lembrança a descrição da
Queda de Constantinopla, que o grande Daniel-Rops fez em sua História
da Renascença e da Reforma. Após oito séculos da jihad contra a Roma
do Oriente, Maomé II comandara a arremetida final. Quando a orgulhosa
cidade caiu, o sultão entregou-a aos seus janízaros por três dias e três noites,
conforme prometera. Sobrou pouca gente para contar a história. Encerrado
o prazo, sangue escorria pelas calhas das ruas e era impossível encontrar, em
Bizâncio, um simples pires de porcelana.
Pois é isso que está acontecendo no Brasil, com a diferença de que o
prazo é mais elástico. Sirvam-se os vitoriosos pelo tempo que quiserem! O
que nos estão tomando são despojos de uma nação derrotada pelo que de
pior nela existe. É a prerrogativa dos vencedores, quando os vencedores são
5 Mário Ferreira dos Santos, Invasão vertical dos bárbaros, São Paulo, É Realizações, 2010,
página 14.
A História é uma só. Isso não impede que haja versões dos fatos; des
de que sejam julgadas, a seu tempo, à luz da verdade, que, ainda que
não seja encontrada, deve sempre ser buscada.
A esquerda brasileira, contudo, sói contar e recontar a História da
forma que mais lhe convém. Seus representantes fizeram isso por dé
cadas, em salas de aulas e produções editoriais. Desde o começo dos
anos 2000, com o acréscimo do poder político a seu já hegemônico
poder cultural, a força da caneta e dos decretos lhes tem sido irresistí
vel. Com verbas públicas, transformaram em heróis gente como Mari
ghella e Luís Carlos Prestes, que fizeram ensaios bastante verossímeis
para tornarem-se ditadores e assassinos (tal qual seus ídolos Lenin e
Che Guevara). Com o erário e a caneta, empreenderam esforços em
favor da reescrita dos fatos concernentes ao Regime Militar.
Haverá uma seção específica sobre a Comissão Nacional da Verdade e tudo
que ela representa. Portanto, o texto abaixo não está deslocado por acaso.
Fala da instauração da CNV, um tribunal revisionista, extraoficial e unila
teral, instaurado pelo Governo Federal do Partido dos Trabalhadores (PT).
Começar este capítulo com o artigo que segue é começar pelo fim.
Pois, agir da forma como descreve Percival Puggina no texto a seguir
faz parte dos fins da revolução cultural engendrada pela esquerda.
Com a cultura, a linguagem, a moral e os símbolos convertidos em
panfletos marxistas, o exercício do poder pela esquerda é facilitado.
A tomada do Brasil pelos maus brasileiros começou na cultura. E se
consolida hoje no poder político.6
E
m Pombas e gaviões8 aduzi, já na capa, o alerta que caracteriza os dez
textos que nele se contêm: os ingênuos estão na cadeia alimentar dos
mal-intencionados. É uma preocupação que os últimos anos vieram
6 Todos os comentários aos textos de Percival Puggina são de autoria do coordenador do Selo
Reação e organizador desta obra.
7 29 de outubro de 2011.
8 Livro em que Percival Puggina apresenta dez reflexões (advertências) sobre temas sociais,
42 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
10 De fato, a CNV entregou seu relatório final apenas em 10 de dezembro de 2014, indo dois
anos além da previsão inicial, conforme vaticinara Percival Puggina em 2011. E, durante os
quatro anos de re-redação da História, chegou ao extremo de revirar uma sepultura. [N. C.]
44 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
11 11 de dezembro de 2014.
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 45
12 15 de janeiro de 2011.
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 47
13 5 de janeiro de 2011.
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 49
jogador parado fora da quadra com uma bola de vôlei significa que ele vai
sacar e também percebi a foto do Mr. Bean no quadro da Mona Lisa. É sim,
eu acertei estas! (E para todos que ainda não conhecem a prova do Enem,
fica o convite para que o façam, visitem o site do Inep).”
O professor não vai cursar Medicina, claro. Sua experiência e o artigo
que escreveu bradam contra o absurdo de um exame vestibular nacional que
não distingue alhos de bugalhos. E tampouco distingue o curso de Economia
do de Artes Cênicas, ou o curso de Publicidade do de Engenharia de Minas.
E assim, alguém que erra quase todas as questões de Ciências Biológicas
habilita-se a cursar uma das melhores faculdades de Medicina do país.
O ENEM não é apenas um recordista em trapalhadas de grande porte.
Ele é um mal em si mesmo. Aliás, ele é sintoma específico, no campo da
Educação, de um mal genérico que afeta o Brasil: o centralismo e a ruptu-
ra com os fundamentos do sistema federativo. Estamos sendo cozinhados
como sapos, pelo gradual aquecimento da água da panela, num modelo
que privilegia, em tudo e para tudo, aquilo que é nacional e federal. Ado-
tamos, cada vez mais, sistemas centralizados. Brasília deixou de ser tão-
-somente a capital do país. Ela se tornou a única cabeça pensante, o caixa
único, a sede dos sistemas únicos e o ponto de convergência, pela via
fiscal, de 23% do nosso PIB. Tamanha concentração de poder e dinhei-
ro transformou a antiga cidade dos candangos no município brasileiro
com mais alto Índice de Desenvolvimento Humano. E para ali convergem
prerrogativas que aviltam a Federação, transformando estados e municí-
pios ora em pedintes, ora em agraciados com as migalhas que caem de
sua mesa.
Pois o ENEM é filho desse sistema. Nasceu portador do defeito genético
que herdou do papai, o enganoso federalismo brasileiro, no qual a União,
cada vez mais, vai dispondo sobre tudo e sobre todos, absorvendo as au-
tonomias ainda residuais na nossa vida social. Um exame de ingresso nos
cursos de terceiro grau, com extensão nacional, é um devaneio autoritário,
uma coisa de porte descomunal, monstruosa no aspecto e, por óbvio, desco-
medido na dimensão de seus erros.
É desanimadora, contudo, a bovina docilidade com que instituições de
ensino superior, de tanta importância na formação da inteligência nacional,
se entregam a esse sistema qual vacas para touros. Cedem autonomia e acei-
tam sua própria degradação. Em troca de um prato de lentilhas. Lentilhas
federais, claro.
50 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
o tal provão do MEC. Detenho-me sobre uma pauta que não pode transitar
sem ser denunciada, em vista de seu significado para a democracia.
A forma federativa de Estado, constitucionalizada no Brasil desde a Pro-
clamação da República, corresponde ao importantíssimo princípio da subsi-
diariedade, que ordena competências em níveis superpostos, de tal modo que
cada nível só age se o nível que lhe é inferior não puder cumprir bem suas
atribuições. Esse princípio, que preserva, na base, a iniciativa dos indivíduos
e, logo acima, a iniciativa das comunidades locais, e assim sucessivamente,
tem óbvias aplicações no campo da Administração, do Direito, da Política
e da Ética. Pois eis que, ao conjunto de ações centralizadoras já adotadas
no Brasil, sempre pelo reverso desse respeitável princípio, soma-se agora o
ENEM, como nova intromissão/cessão de autonomia em favor da União.
Num país do tamanho do Brasil, as vagas nos estabelecimentos de Ensino
Superior tornam-se disputadas nacionalmente, com estudantes transferindo-
-se de Garanhuns para Santana do Livramento e vice-versa, como se estives-
sem tomando lotação para ir ao colégio. Absurdo!
O sistema sempre foi descentralizado, regionalizado e, por fim, como
convém, foi municipalizando-se. Os investimentos que proporcionaram a
maior parte dessas instituições de ensino resultaram de esforço, poupança
ou pleitos locais. O provão nacional é uma cessão de autonomia no controle
da porta de entrada do Ensino Superior!
Li todo o Caderno Amarelo aplicado este ano. Para quem está afeito
às relações entre a linguagem e a política fica fácil perceber, em algumas
questões, o emprego gramsciano15 do vocabulário e o uso da prova como
15 Em sua frase mais famosa, Karl Marx disse: “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!”
Entretanto, em vez disso, quando poderiam se unir, entraram em guerra. Trabalhadores ingleses
se uniram com a elite inglesa; trabalhadores dos Estados Unidos se uniram com a elite dos Es-
tados Unidos; juntos, lutaram contra os trabalhadores e a elite da Alemanha nazista e da Itália
fascista. Marx tentou dividir o mundo em dois, como se ser bom ou mau dependesse de classe
social. O mundo todo recusou essa divisão porque seu fundamento é dissociado da realidade.
Prova disso é a força que historicamente se usou para impor o socialismo. O que Marx propôs
era uma união pela inveja, pelo ressentimento contra quem produz e gera empregos e riquezas.
Trabalhadores de todo o mundo recusaram o marxismo porque a imensa maioria das pessoas
respeita o próximo e ama a liberdade. Por isso, o socialismo (assim como outras ideologias
nefastas, como o nazismo) só chegou ao poder pela força, pela truculência, pelos fuzis. Mas
esse poder pela imposição tem vida curta; as balas dos fuzis acabam, o povo se reorganiza e a
verdade prevalece. Compreendendo essa situação, intelectuais de esquerda resolveram mudar
de estratégia. Percebendo que a revolução não ocorreria naturalmente e que a imposição pela
força não se sustenta, o cientista político Antonio Gramsci propôs uma revolução cultural, atra-
vés dos costumes, dos hábitos, do senso comum. Sua proposta era que o socialismo corroesse
por dentro as bases da civilização, pondo abaixo o sólido edifício da moral judaico-cristã, da
filosofia grega e do direito romano. Não é preciso muito esforço para aperceber-se de que a
linguagem é campo de batalha fundamental no contexto da revolução silenciosa do pensamento
52 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Os donos da educação16
humano. Nesse sentido, a concentração das bases educacionais (das decisões sobre o que pode
ser ensinado, sobre o que e como deve ser dito) nas mãos dos ideólogos do MEC representa uma
grande vitória do gramscismo. [N. C.]
16 5 de junho de 2011 (publicado no jornal Zero Hora).
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 53
17 “Intelectuais orgânicos são aqueles que, com ou sem vinculação formal a movimentos polí-
ticos, estão conscientes de sua posição de classe e não gastam uma palavra sequer que não seja
para elaborar, esclarecer e defender sua ideologia de classe.” Olavo de Carvalho, A Nova Era e a
Revolução Cultural. Disponível em: olavodecarvalho.org/livros/negramsci.htm. [N. C.]
54 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
dos jovens e das famílias, para o futuro da pátria, e passou a fazer o que seus
donos desejam. O livro do MEC que denuncia a Gramática como instrumen-
to de dominação cultural tem tudo a ver com isso.
essa oposiçãozinha aí, com diagnóstico de morte cerebral, é vista como uma
falange de hunos que atacam por todos os flancos e modos, dignos ou indig-
nos. Até parece que a esquerda, quando fora do governo, se caracteriza pela
moderação e pela fidalguia, não é mesmo?
Foi instrutivo o livro em questão. Fiquei sabendo, por exemplo, que
essa história de idioma bem falado e bem escrito, no ambiente escolar, é
coisa de pessoas pernósticas, viúvas do Rui Barbosa, tão enlutadas quanto
a mulher dele, dona Maria Augusta Viana Bandeira. Fiquei sabendo que o
direito de falar e escrever com correção por bons motivos é privilégio da
esquerda. Já eu, suspeita-se, empenho-me em escrever direitinho por mo-
tivos ignóbeis. Cá do meu lado pernóstico da cerca, fiquei pensando se os
intelectuais de esquerda teriam alguma credibilidade caso não manejassem
razoavelmente bem o idioma. Mas consideram que o ensino correto no
ambiente escolar afronta as crianças provindas de famílias incultas! Não
é engraçado? Eles, socialistas, querem socializar a ignorância. Os conser-
vadores, os não esquerdistas, malvados que são, querem uma educação
pública de qualidade para todos.
Durante muito tempo acreditei que certas correntes políticas buscassem,
mediante meios distintos, os mesmos fins bons. Custei a perceber que os
meios são distintos porque os fins são essencialmente diferentes. Foram os
fatos da vida, bem mais do que as palavras, que me ensinaram isso. Duvido!
Duvido e faço pouco, como se dizia antigamente, de que esses mestres e pe-
dagogos sigam, para educar os próprios filhos, as diretrizes que aplicam aos
filhos dos outros.
Para os meninos da Febem ou para o lavrador de Ponta Grossa, pode ser
bom ou pelo menos cômodo, a curto prazo, que os deixem escrever como
falam, sem subjugá-los à uniformidade da norma. Subjetivamente, eles talvez
se sintam, assim, menos excluídos. Mas, objetivamente, aí sim é que estarão
excluídos, aprisionados na sua particularidade e sem acesso à conversação
das classes cultas. Tudo depende de saber se preferimos enfraquecê-los pela
lisonja ou fortalecê-los pela disciplina. Há nisso uma escolha moral que os
amigos do povo preferem não enxergar.
— Olavo de Carvalho19
20 20 de maio de 2011.
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 57
O leitor destas linhas, se não for gaúcho, talvez não tenha sido informado
sobre a usina de piadas que a base governista na Assembléia Legislativa esta-
dual proporcionou ao aprovar o projeto de lei que torna obrigatória, nestas
bandas, a tradução de palavras estrangeiras para o idioma pátrio sempre
21 21 de abril de 2011.
58 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Mas deixa tudo isso para lá. O tema me impõe duas pautas e ambas são
sérias. A primeira se refere a alegada “defesa do idioma nacional”. Ora vai
atrás! O autor do projeto é um comunista (até que mudem o nome do par-
tido, todo filiado ao PCdoB é comunista assumido e histórico, certo?) e toda
a esquerda (gaúcha, pelo menos) é anglofóbica. Existe muito mais antiame-
ricanismo por trás desse projeto do que sincero desejo de defender o idioma.
22 Projeto de Lei nº 156/2009, do então deputado estadual Raul Carrion (PCdoB), aprovado
em 19 de abril de 2011 pela Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Em maio de 2011, o
então governador Tarso Genro vetou parcialmente o projeto, em função de sua inconstituciona-
lidade (trata-se de matéria de competência privativa da União). O petista sancionou, contudo, o
Artigo 2º, que circunscreve as obrigações gerais do projeto ao âmbito da administração pública
direta e indireta do Rio Grande do Sul. [N. C.]
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 59
Renascimento cultural23
coisa com a outra, música virou som. E, com exceções, sumiram os dois.
Ficou o barulho. Pode a música, a boa música, sumir? Pode. A boa música
pode. E os livros? Sumirão também? Intuo que vem aí uma geração para a
qual livros – em papel ou virtuais - serão objetos de um tempo remoto, coisas
da casa do vovô e da vovó. Ainda são vendidos, é verdade, mas não se pode
dizer que por muito tempo, nem que parte significativa das vendas atuais
expresse muito gosto pela Literatura (exceto se ampliarmos o conceito para
abrigar obras de autoajuda, vampirismo, histórias sobre animais domésticos
e assemelhadas). Filosofia? Dá uma canseira danada. História? Consulte o
governo. Ou ele escolhe os livros ou nomeia uma comissão para contar,
tim-tim por tim-tim, toda a verdade. De Política não se quer ouvir falar. Na
comunicação de massa pela tevê, o que há 20 anos era visto como baixaria
e causa de escândalo hoje se afigura como clássico, recatado e requintado.
Resumindo, o padrão cultural do brasileiro despenca num escorregador re-
coberto pela mais sebosa vulgaridade. Não vou aprofundar-me nisso para
não ficar deprimido.
Certas correntes antropológicas promovem verdadeiro terrapleno cultu-
ral. Não existe cultura melhor nem pior, superior ou inferior. Tudo é cultura
e tudo é apreciável como símbolo de ideias e comportamentos coletivos.
No entanto, a civilização continuará produzindo seres humanos que, em
ambiente adequado, valorizarão o bem e o belo, o saber e a verdade. Com
a sociedade se massificando cada vez mais e mantidas as hegemonias que
se instalam no mundo da Educação e da Política, a elite cultural brasileira
definhará em importância. Os espaços de decisão serão tomados por aqueles
que estabelecerem mais proveitosa interlocução com a massa crescentemente
ignara, presa fácil na malha da mediocridade a seu alcance, da mentira bem
contada e da promessa sedutora.
Precisamos muito de um renascimento cultural. Mas como produzi-lo?
Onde quer que olhe, não vejo sinais disso. Quase tudo que leio expressa
grosseiro menosprezo pela virtude, pelas coisas do espírito e pela elevação
da mente humana aos níveis de competência que lhe foram disponibiliza-
dos pelo Criador. Sei, sei, só escrevo estas coisas horrorosas, escandalosas,
porque sou um conservador, palavra que a novilíngua24 marxista conseguiu
24 Na distopia 1984, o autor George Orwell criou um mundo em que todas as ações e os pen-
samentos eram controlados pelo Estado total. A expressão dos pensamentos – a fala – seria na
novilíngua. Esse idioma, construído sobre a exclusão de uns termos e a alteração de sentido de
outros, acabaria por modelar e modular o pensamento das gentes. Qualquer semelhança com as
tentativas do governo petista de proibir ou alterar o significado de certas expressões não é mera
coincidência, pois era de autoritários desmedidos que Orwell falava. [N. C.]
62 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
25 11 de julho de 2010.
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 63
26 16 de julho de 2011.
27 Puggina escreveu este artigo quando o Brasil colhia os frutos maduros do Plano Real e das
políticas econômicas empreendidas por Fernando Henrique Cardoso e mantidas em grande
medida por Luiz Inácio Lula da Silva. Eram meados de 2011, quando o assistencialismo irres-
ponsável petista semeava a crise que colhemos agora, em 2015. [N. C.]
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 65
Tchutchucas e tigrões28
28 8 de janeiro de 2012.
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 67
30 27 de abril de 2011.
70 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
União Soviética, que estendia suas malhas, a ferro e fogo, na África, na Ásia,
na América Central, no Caribe e na América do Sul, mediante movimentos
guerrilheiros e forças de ocupação, ignorava solenemente as terrinhas des-
cobertas por Cabral no século 16. Se já ouvira falar no Brasil, não prestara
atenção. Aqui só agiam os gananciosos ianques, difundindo a paranoia de
um comunismo que nos desprezava e nos afastava de seu interesse como
quem tira do caminho uma casca seca de laranja...
Escolha, leitor, o que lhe parece mais acintoso. Esse suposto desinteresse
soviético pelo Brasil em tempos de Guerra Fria? A coragem de afirmar uma
bobagem dessas? Ou a tolerância dos órgãos de fiscalização da República
com o uso de recursos públicos para produzir tamanha mistificação? Com
que facilidade, num modelo institucional como o nosso, se usa o que é do
Estado para promover a ideologia do governo!
32 22 de janeiro de 2011.
72 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
33 Referência ao slogan utilizado pela TV Globo entre os anos de 2001 e 2011. O lema atual é
“A gente se liga em você”. Infelizmente para a emissora, os telespectadores se têm “ligado” cada
vez menos nela e em seus produtos ideologizados. [N. C.]
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 73
34 24 de outubro de 2010.
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 75
Vanitas vanitatum35
35 14 de abril de 2012.
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 77
36 7 de novembro de 2010.
78 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Nilma Lino Gomes leu a obra e viu nela preconceitos contra a África e
racismo. Exigem, então, os conselheiros, que o texto venha precedido de
uma reprovação de seus desalinhos ideológicos com a nova realidade na-
cional. Tenho certeza de que não faltará quem se habilite a produzir esse
importante prefácio corretivo. Seja qual for a estupidez, sempre há quem
se considere capaz.
Dei uma investigada no Sítio do Pica Pau Amarelo, uma lida no livro e ve-
nho em socorro do Conselho: Caçadas de Pedrinho é politicamente incorreto de
capa a capa! O sítio inteiro, aliás, está a exigir cuidadosa inspeção do Ministério
Público Federal. Em primeiro lugar porque, há muito tempo, era para estar de-
sapropriado (atenção, Incra!). Que negócio é esse? Uma propriedade rural com
utilidade apenas... literária? Péssimo exemplo para estar sendo apresentado a
uma juventude que se quer cidadã e comprometida com as causas sociais.
Tem mais, conselheira Nilma. Cadê a certidão de propriedade do sítio?
Alguém já a viu? E não me venha o branquela do “seu” Monteiro Lobato com
uma simples trintenária julgando que seja suficiente. Não no Brasil moderno!
Quem pode assegurar que Tia Anastácia não fosse quilombola? Detentora dos
direitos culturais históricos protegidos pelos artigos 215 e 216 da Constitui-
ção Federal? Ou dos muito prováveis direitos de posse mencionados no artigo
68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Hum? É admissível
que uma republicação de Caçadas de Pedrinho, em tempos de Lula e Dilma,
deixe de mencionar tais avanços da sociedade brasileira?
Na pesquisa que fiz, encontrei uma foto da negra Anastácia, datada de
1913 (está disponível na Wikipedia). Era magra, de meia idade. Na imagem,
aparece tendo ao colo o menino Guilherme, filho de Monteiro Lobato. O
autor, reiteradas vezes, admitiu publicamente, que essa Anastácia, essa pobre
e infeliz Anastácia, havia inspirado a criação da personagem Tia Anastácia!
Basta fazer as contas para perceber que a desventurada senhora foi, ela mes-
ma, escrava. Fugida ou liberta, não importa. E acabou, mais uma vez, sendo
explorada pelo patrão branco que promoveu o uso gratuito de seus eviden-
tes direitos de imagem. Pode o Conselho Nacional de Educação silenciar so-
bre tal iniquidade? Referendar obra que escarnece valores tão significativos?
Anota essa outra aí, conselheira Nilma.
Quer mais, o CNE? Debruce-se sobre o personagem Visconde de Sabugosa.
Pondere, leitor. O Visconde é um personagem da nobreza. Encarna saber e co-
ragem física. Tantas vezes morresse, tantas vezes era ressuscitado com a simples
troca do sabugo que compunha seu corpo. É ou não uma exaltação simbólica
da elite nacional e de sua perpetuação através dos tempos? Pode haver algo mais
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 79
Você sabia, leitor, que há quem tenha como objetivo de vida lutar pela
retirada dos símbolos religiosos em espaços públicos? O sujeito acorda pen-
sando nisso, passa o dia pensando nisso e vai dormir pensando nisso. Cria
uma ONG, escreve teses, faz reuniões, cata adesões para abaixo-assinados,
requer providências em juízo. E só conversa sobre isso. De tanto encher a pa-
ciência alheia com sua bronca pessoal contra Jesus crucificado, ele se torna
conhecido como o “chato dos crucifixos”. Lá vem o “chato dos crucifixos!”.
E todo mundo se afasta, como se visse um vampiro. Vampiro, crucifixo, sa-
cou? Dizem as más línguas que a segunda bronca do chato dos crucifixos é
espelho e a terceira é réstia de cebola.
Pois não é que a tese do “chato dos crucifixos” acabou incorporada ao
famigerado Programa Nacional de Direitos Humanos? É assim que as coisas
acontecem, segundo a técnica do Joãozinho das anedotas. Você conhece a
história: “Como é o nome desse guri que está te assediando, minha filha?
Joãozinho? Se for o Joãozinho, não tem jeito, relaxa e tal...” É assim que
eles fazem. Ninguém aceita a cantada deles, mas eles vão tentando impor-se
por todos os modos. E se a coisa não vai, estupram. A tese reapareceu no
pacotão de perversões que é o PNDH-3. O decreto foi assinado em 2009
pelo ex-presidente Lula e por três dezenas de ministros que, em ato festivo,
se comprometeram, entre inúmeras insanidades ideológicas, a acabar com as
expressões públicas da religiosidade popular, com nossas raízes cristãs, com
a nossa história e com a nossa cultura.
37 14 de fevereiro de 2010.
80 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Reafirmo meu pessimismo: mais cedo ou mais tarde, como vem ocorren-
do com todas as teses provenientes desses segmentos ideológicos e políticos,
os crucifixos serão arrancados das paredes. E o resíduo cultural cristão ainda
persistente continuará cedendo lugar a um humanismo desumano, destitu-
ído de alma e avesso a Deus. Avesso ao Deus cuja proteção é invocada na
Constituição. Não guardo ilusões. Quando se encontra com a omissão de
muitos e a ingênua tolice de outros tantos, a malícia passa por cima e impõe
o que pretende com quase nenhuma resistência.
Aparentemente, é uma questão simples. Afinal, se o Estado é laico, os
espaços públicos ou sob responsabilidade do Estado não deveriam ser isen-
tos de qualquer religiosidade, como banheiros de estação? O crucifixo, na
parede de uma repartição, seria, nessa perspectiva, um atropelo à equidade,
um agravo à Constituição e à Justiça. Remova-se, então. Mas tenha-se a
coragem de assumir perante a história o registro do que foi feito: preserve-se
o prego! Preserve-se o prego para que todos reconheçam o extraordinário
serviço prestado. Para que todos saibam que ali havia um crucifixo, e que ele
foi removido por abusivo, ofensivo, intolerável às almas sensíveis que, em
nome da Justiça, se mobilizaram contra ele.
Observe de onde procedem os ataques aos crucifixos. Nem todos os que
tocam nessas bandas são contra os crucifixos e nem todos o são por malí-
cia. Mas todos os que se opõem aos crucifixos tocam nessas bandas. Tocam
numa certa esquerda e numa certa direita. Ajudam-se mutuamente no pro-
cesso de destruição dos valores. A cara da utopia da igualdade é o focinho
da utopia da liberdade sem limites. Quando discorrem sobre seus motivos
em relação aos crucifixos, transmitem a ideia de estarem jungidas a um im-
perativo constitucional – o Estado, mesmo não sendo ateu, é laico. Não tem
religião própria. E os ingênuos abanam a cabeça em concordância: afinal, se
há lugar para um crucifixo, por que não revestir as paredes com os símbolos
de todas as outras religiões e crenças existentes? Ou tem para todos, ou não
tem para ninguém. Com tanta coisa contra que lutar, escalam como adver-
sário Jesus de Nazaré...
O crucifixo na parede da repartição não é peça publicitária. Não é ele-
mento de proselitismo religioso. Não transforma o espaço em local de culto.
É referência a um patrimônio de valores universais sem similar na iconografia
39 4 de novembro de 2011.
82 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Paredes nuas41
Não é demais voltar ao assunto quando não passa um dia sem que a
mídia abra espaços para a decisão do Conselho de Magistratura do TJ/RS.
Viva! Mais uma façanha do Rio Grande. Noutra despachamos a Ford.42
Nesta, os crucifixos, enxotados e empacotados.
recebemos a cidadania, mas não é dele que nos vêm a dignidade humana
nem os correspondentes direitos.
Ora, o ateísmo militante não tolera isso. Deseja manipular a natureza
humana a seu bel-prazer e a sociedade inteira através da política. O Esta-
do, como o concebem, não pode conviver com juízos morais divergentes.
Por isso, reitero: a remoção dos crucifixos é muito menos um ato jurídico e
muito mais um ato político que contradiz nossa história e tradição. Paredes
nuas não têm passado nem memória. Assemelham-se a santuários do nada.
O que está dito acima é simples fato. Não é argumento. Aliás, para ar-
gumentar contra o sistema, tampouco preciso desse disparate que é acolher
entre os beneficiados das cotas alunos oriundos de alguns dos mais seletos e
prestigiados estabelecimentos de ensino público do Estado: Colégio Militar,
Colégio Tiradentes e Colégio de Aplicação. Dispenso, igualmente, o fato de
a condição “racial” ser autodeclaratória e nem sempre veraz. Descarto, tam-
bém, a substituição por cotas sociais, mesmo que estas sejam mais abrangen-
tes e menos preconceituosas. Dispenso-me, por fim, de lembrar aos esqueci-
dos e aos muito jovens que, há meio século, as mulheres estavam em casa,
dedicadas às prendas domésticas. Sem cotas, sem privilégios, com muita per-
severança, ao longo dos anos, abriram as portas das universidades e hoje são
majoritárias nos cursos mais seletos e nas principais carreiras públicas.
A injustiça tem de ser combatida onde inicia em vez de ser disfarçada
onde se torna visível. Se o ensino público compromete o desenvolvimento
intelectual de centenas de milhares de estudantes do ensino fundamental e
médio, ano após ano, de que vale a UFRGS admitir nos seus cursos apenas
algumas dezenas de alunos cotistas? Aliás, recente matéria de ZH mostrou
que o grau de reprovação destes é quatro vezes maior do que o dos demais.
Há uma usina da injustiça operando na Educação. Sem desmontá-la, me-
diante investimentos pesados nos seus recursos humanos, materiais e tecno-
lógicos, tudo mais será pouco relevante. Não é o vestibular que está errado.
Errado está o ensino público de nível fundamental e médio.
Injusta, quase criminosamente injusta, é a gratuidade do ensino superior
para quem possa pagar por ele. Bilhões de reais que poderiam favorecer o
ensino fundamental e médio são perdidos nessa desnecessária gratuidade!
Injusto de doer é que o custeio dessa regalia provenha de impostos pagos
por todos nós. Inclusive pelos mais pobres dentre os pobres. Inclusive pelo
trabalhador cujo filho não passa na universidade pública nem pode custear
a particular. Mas esse modelo perverso conta com as unhas e os dentes da
esquerda em sua defesa. Até os analfabetos sabem (não é preciso ir às uni-
versidades perguntar) que a reprodução da injustiça, no que concerne à edu-
cação, dá-se na base do sistema. As raízes grossas da iniquidade não estão na
porta de entrada da faculdade e independem da cor da pele do vestibulando.
Elas estão nos parcos recursos destinados à escola pública, no professor mal
pago e desestimulado, bem como nas demagogias, corporativismos e ideolo-
gizações em que tudo, absolutamente tudo, se enreda neste país.
88 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Gosto de analogias. E foi essa que me ocorreu quando li, em ZH, que
sobram vagas para cotistas na UFRGS. Pode? No Brasil pode. Calça e sai
andando.
Aliás, com as tais de cotas, criou-se uma inadequação nas duas pontas do
fio em que se enreda e desequilibra a sociedade brasileira. Quem assistisse
às sessões nas quais o STF se manifestou pela constitucionalidade das cotas
no vestibular da UnB poderia imaginar que a Lei Áurea, decorridos 124
anos, ganhava um upgrade decisivo e definitivo. Era como se a desigualdade
social causada pelos séculos de escravidão estivesse sendo resolvida por dez
homens e uma sentença. Não, não estou exagerando. Quem exagerou na re-
tórica e na cena foram os ministros. Com a adoção de cotas, reiteradamente
proclamada como transitória para não ser inconstitucional (palavras dos
próprios, seguindo o relator), servia-se, enfim, justice sociale à la suprême no
cardápio da universidade brasileira. Tudo provisório porque, graças a essa
breve degustação, o Brasil logo apresentaria ao mundo uma fisionomia mais
simétrica. Não fosse provisório, seria inconstitucional, é claro... Retórica de
fancaria: enganosa, mas ao gosto da tese e da turma.
É bom que saibamos: hoje, constitucional é o que a maioria do STF tem
por justo. Ou por necessário. Ou por conveniente. Ou por correspondente
ao clamor das ruas. Ou por imperioso ensinar às ruas. A escolha de qualquer
desses critérios depende do caso e da opção de cada ministro. Basta, depois,
para explicar o inexplicável, pinçar os dóceis princípios constitucionais e
manipulá-los como massinha de moldar. Não subestimem a situação apli-
cando-lhe certas ideias que andam por aí a respeito de insegurança jurídica.
A coisa é bem mais grave. Querem uma evidência? Os canais de tevê das
duas casas do Congresso perdem audiência. É no canal do STF que acontece
a real action, onde estão as novas celebridades e onde as grandes questões
se decidem. Que parlamento, que nada! E não se esqueçam: o sistema de
indicação dos ministros do Supremo foi concebido quando a reeleição pre-
sidencial era vedada. Em tese, a cada quatro anos mudariam os critérios de
escolha. Hoje, oito dos onze membros da corte foram recrutados pela cor-
rente política que encilhou o poder há mais de uma década.
Por outro lado, enquanto sobra sapato na ponta da universidade, a ponta
do ensino fundamental anda de pé no chão. Para cada beneficiário de cotas
45 28 de julho de 2012.
90 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
46 12 de maio de 2012.
92 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Herdeiros de Caramuru47
Agora tem o Brasil das mulheres e o Brasil dos homens até nos discursos das
autoridades, o Brasil dos negros, o Brasil dos brancos e o Brasil dos pardos, o
Brasil dos héteros e o Brasil dos gays, o Brasil dos evangélicos e o Brasil dos
católicos, Brasil com bolsa família e Brasil sem bolsa família e nem sei mais
quantas categorias, tudo dividido direitinho e entremeado de animosidades,
todo mundo agora dispõe de várias categorias para odiar! A depender do
caso, o sujeito está mais para uma delas do que para essa conversa de Brasil,
esquece esse negócio de Brasil, não tem mais nada disso!
— João Ubaldo Ribeiro
O fato é que Cabral não tocou direto para as Índias. Tivesse seguido o
riscado, o Brasil de hoje seria o paraíso tropical com que sonham alguns
ambientalistas, antropólogos e militantes de qualquer tese que possa gerar
encrenca. Os índios do mato continuariam disputando território a flechadas
com os do litoral – que índio também gosta de praia – e os portugueses,
sem quaisquer remorsos, comeriam seu bacalhau no Campo das Cebolas.
Mas os navegadores lusitanos (assim como os espanhóis) eram abelhudos e
iniciaram seu turismo pelos sete mares. Os primeiros descobriram o Brasil e
os segundos descobriram tudo ao redor do Brasil.
Bem feito, quem mandou? Agora temos de conviver com leituras da His-
tória que nos levaram à situação descrita por João Ubaldo Ribeiro. Segundo
elas, até o século XV, o zoneamento era perfeito: brancos na Europa, negros
na África, índios na América e amarelos na Ásia. Cada macaco no seu galho.
No entanto, graças à bisbilhotice ibérica, estamos nós, herdeiros de Cara-
muru, com contas imensas a pagar porque os justiceiros da história adoram
acertos e indenizações promovidos com os bens alheios. Entre elas, a conta
dos índios. Como é fácil fazer justiça expropriando os outros!
47 21 de novembro de 2013.
94 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
O princípio segundo o qual o Brasil era dos índios e deles foi tomado
pelos portugueses ganhou sensível impulso com os preceitos do artigo 231
da Constituição de 1988. Mas se o princípio estivesse correto e se quaisquer
direitos originais de posse pudessem ser invocados, não sei se alguém, no
mundo de hoje, ficaria onde está. Não me refiro sequer aos primeiros fluxos
migratórios através dos milênios. Refiro-me às mais recentes e incontáveis
invasões e guerras de conquista que marcam a história dos povos. E note-se
que as guerras de conquista não geravam indenizações aos vencidos, mas
espólios aos vencedores.
Faço essas observações diante do que está em curso em nosso país com os
processos de demarcação de terras indígenas. É o próprio Estado brasileiro,
através de suas agências, reclamando por extensões mais do que latifundiá-
rias e jogando nas estradas e na miséria legiões de produtores e suas famílias.
É o braço do Estado gerando novas hostilidades no ambiente rural do país
(como se já não bastassem as estripulias do MST). Índios e não índios mere-
cem ser tratados com igual dignidade. Mas não se pode fazer justiça criando
injustiça, nem se pode cuidar do país entregando o país. Não existem outras
“nações” dentro da nação brasileira. E é exatamente isso que está em curso,
sob pressão de uma difusa mas ativa conspiração internacional, conjugada
com o CIMI e a FUNAI, que quer o Brasil e os brasileiros longe da Amazô-
nia, por exemplo.
Índio não é bicho para ser preservado na idade da pedra lascada, como
cobaia de antropólogos, num apartheid que desrespeita o natural processo
evolutivo. Ou armazenado, como garrafa de vinho, numerado e rotulado,
com designação de origem controlada.
Não fosse pela Finlândia, o sistema pelo qual nós elegemos nossos depu-
tados seria único no mundo. E se enquadraria no preceito segundo o qual
se algo só existe no Brasil e não é jabuticaba deve ser besteira. E é. Por uma
razão muito simples como veremos a seguir.
Graças a esse sistema, ante a proximidade do processo eleitoral, os mais
poderosos e articulados grupos de interesse e segmentos sociais do país se mobi-
lizam para a tarefa “política” de escolher e eleger seus representantes. Os eleitos
por esse mecanismo compõem poderosas bancadas que operam com unidade
e vigor superiores aos dos partidos políticos, tendo por tarefa primordial zelar
pela felicidade dos seus representados. Não é preciso luneta nem lanterna para
ver que esse tipo de representação deveria ser evitado em vez de estimulado.
“Mas não é bom que os interesses dos grupos sociais sejam cuidados no
parlamento?”, perguntará o leitor menos afeito a esses temas de modelagem
institucional. Não, é péssimo. Por várias razões. É nesse jabuticabal que os
privilégios são concebidos e transformados em direitos adquiridos. É nesse
jabuticabal que se instala escabroso balcão de negociações. É nele que ope-
ram os abusos do poder econômico, que se aloja profundo desinteresse por
tudo que envolva o bem comum, que se corrompem os procedimentos e que
as convicções rolam com as águas das sarjetas. E é nele, por fim, graças ao
engenho e à arte de conceder vantagens a alguns encaminhando a conta ao
restante da sociedade, que se constroem longevas carreiras políticas a despei-
to dos escândalos atribuídos a tantos de seus operadores.
Os dois principais grupos que se pode distinguir nas nossas massas vo-
tantes são (I) o dos que votam em qualquer um (e qualquer um é o tipo de
sujeito capaz de qualquer coisa) e (II) o dos que votam em alguém para lutar
por seus interesses pessoais e grupais. Os primeiros, os que votam em qual-
quer um, são um caso perdido. Os segundos, um pouco menos. Mas é à soma
dos dois que a Câmara dos Deputados deve sua crescente desqualificação. E
é devido a ela que o bem comum resulta vítima de um verdadeiro bullying
no plenário do parlamento. Contemple os impostos que você paga e saiba:
boa parte dessa conta se formou graças ao mecanismo que aqui descrevo.
Só isso bastaria para que os eleitores conscientes incluíssem certos tópi-
cos da reforma política como condições indispensáveis à definição de seu
voto. Um sistema de eleição não proporcional, majoritário, tipo distrital,
49 24 de junho de 2011.
50 Leia sobre a questão no blog do Reinaldo Azevedo, “Raposa Serra do Sol”. Disponível em:
veja.abril.com.br/blog/reinaldo/tag/raposa-serra-do-sol. [N. C.]
51 “STF libera o aborto de fetos anencéfalos no Brasil.” Disponível em: ultimosegundo.ig.com.br/
brasil/stf-retoma-julgamento-sobre-aborto-de-fetos-anencefalos/n1597739977943.html. [N. C.]
52 Novamente, Reinaldo Azevedo: “Battisti, o homicida”. Disponível em: veja.abril.com.br/
blog/reinaldo/geral/battisti-o-homicida-seis-ministros-do-supremo-fazem-do-brasil-a-partir-de-
-hoje-o-cafofo-do-osama. [N. C.]
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 97
53 Este artigo de 2011 explica também o que ocorreu em 2005 e o que ocorre em 2015 entre
FHC e o PT. À época do Mensalão, do Governo Lula, e atualmente, com os escândalos de
corrupção do Governo Dilma, sobretudo o “Petrolão”, Fernando Henrique Cardoso tratou
de reprovar publicamente qualquer pedido de impeachment, seja da oposição (da qual dizem
que ele faz parte), seja da população (ignorando as milhões de pessoas que foram às ruas nos
primeiros meses de 2015). [N. C.]
54 A situação se agravaria muito durante a gestão de Dilma Rousseff. Até agora, além de o STF
perder o único contrabalanço, Joaquim Barbosa, hoje conta com Dias Tóffoli, um ex-advogado
98 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
do PT, evidentemente sem “notável saber jurídico”, reprovado em dois concursos para juiz
(mas, para Dilma, digno de compor a mais alta corte do país), e com Luiz Edson Fachin, cabo
eleitoral de Dilma nas eleições de 2010 (assista em: veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-bra-
sil/2015/04/14/vergonha-video-mostra-escolhido-por-dilma-para-o-stf-pedindo-votos-para-a-
-petista-na-campanha-de-2010/). [N. C.]
55 1º de julho de 2011.
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 99
56 Muita coisa mudou entre 2011 (quando Puggina escreveu este artigo) e meados de 2015,
quando este livro é editado e o PT sofre com inédita e grande oposição popular – graças a um
ambiente intelectual renovado, em que a verdade pôde voltar a circular de alguma forma, e
graças ao excesso de incompetência de Dilma, de seu partido e de seus aliados, e a despeito
da inoperância da quase totalidade da oposição política no Congresso. Em tempo: junto com
Olavo de Carvalho e alguns poucos bravos, é Percival Puggina um dos responsáveis por esse
ambiente. [N. C.]
57 23 de março de 2012.
102 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
58 7 de setembro de 2012.
104 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Notas do cárcere59
Raramente leio páginas policiais. Evito fazê-lo para não acrescentar do-
ses extras de horror a meus próprios calafrios. Vivemos com medo, aferro-
lhados. Em nossas conversas habituais não faltam relatos de pavor e sangue.
São apontamentos nos diários do cárcere, do cárcere em que nos recolhemos,
59 18 de novembro de 2012.
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 105
Longe de mim recusar o direito à burrice. O que deve ser negado é a bur-
rice ao Direito. O Direito afeta o conjunto da sociedade, exigindo, portanto,
cuidadosa aplicação da inteligência no sentido da Razão. É preciso protegê-
-lo da burrice.
Há alguns meses, após palestra a alunos de uma Faculdade de Direito,
ouvi de um estudante candente manifestação de apoio à invasão de terras e à
ação do MST. Ora, nos cursos de Direito formam-se profissionais cuja ativi-
dade mais comum será a de defender interesses de seus constituintes no con-
texto do emaranhado legal do país. Essa e outras atividades que compõem
o cotidiano dos operadores do Direito se desenvolvem em torno de uma
coisa chamada “processo”. O devido processo. Ele é o meio dentro do qual
se movem os profissionais do Direito e o aparelho judiciário. Sem ele não
podem operar as partes nem decidir os magistrados. Portanto, expliquei ao
rapaz, a menos que se deseje condenar à miséria os diplomados nas carreiras
jurídicas, transferindo prestígio e renda para as profissões de pistoleiro e
capanga, seria prudente – para dizer o mínimo – rever sua posição. Um
bom advogado deve ser intransigente defensor do devido processo!
É provável que de nada tenha adiantado o que eu disse. Certas ideo-
logias envolvem a razão num casulo e obliteram o entendimento. Faça a
experiência, entre num site ou blog de esquerda que tenha espaço para
interatividade e tente argumentar contra alguma ideia ali exposta. Eu fiz
isso ontem. Pesquisando sobre o PNDH-3 (aquele decreto federal sobre
direitos humanos para o qual Lula e Dilma fizeram a maior festa, e depois
alegaram desconhecer seu conteúdo) deparei-me com um artigo que me
interessou. O autor, formado em Direito, defendia o decreto presidencial
60 21 de março de 2010.
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 107
A Comissão da “Verdade”61
Quem conta a história leva vantagem sobre quem ouve. O modo como
ela é contada encaminha os ouvintes para a conclusão desejada. Napoleão
ensinava: “A História é uma versão sobre o passado em torno da qual as
pessoas convergem”. Sabem disso os professores. E sabem mais ainda os
políticos, que, através dos milênios, nunca deixaram de construir e repetir
110 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
as versões que melhor lhes convinham. A União Soviética, por exemplo, era
useira em levar esse procedimento aos requintes, valendo-se da prática de
forjar e adulterar documentos. O discurso de Khrushchev no 20º Congresso
do Partido Comunista da União Soviética talvez seja a mais notória evidên-
cia e a mais candente denúncia da mistificação em que se envolvera a história
da URSS nos terríveis anos iniciados em 1917. Em seu profético e assustador
1984 (alguém sabe me dizer por que esse livro jamais está na bibliografia re-
comendada pelas nossas escolas?), George Orwell concebeu um personagem,
Winston Smith, instalou-o num órgão casualmente chamado Ministério da
Verdade e lhe atribuiu a tarefa de produzir os documentos que confeririam
autenticidade aos relatos.
Eis por que a ideia de criar um Comissariado Nacional da História, sob
o orwelliano nome de Comissão da Verdade, só pode transitar acriticamen-
te num país que jogou fora sua memória, suas raízes e do qual, há muito,
roubaram o discernimento. Quem comporá o comissariado? Sete membros
escolhidos a dedo por um único dedo. O da presidente. Por quê? Porque foi
assim que Lula quis e que Dilma mandou a base do Congresso aprovar. E
por que não uma comissão formada por sete generais? Porque a esquerda
não aceitaria tamanho absurdo, ora essa. Absurdo por absurdo, a esquerda
ficou com o absurdo que lhe convinha, sob silêncio geral do rebanho, só
quebrado pela sinetinha da ovelha-guia.
Tem mais. O Comissariado Nacional da História não vai apenas ser nome-
ado pela presidente. Será remunerado pela Casa Civil da Presidência da Repú-
blica, juntamente com os auxiliares contratados e vai funcionar junto à Casa
Civil. Na copa e na cozinha do governo. Ora, eu não consigo vislumbrar o
menor interesse da presidente Dilma no estabelecimento da verdade histórica.
Sabem por quê? Porque ela teve participação ativa na principal organização
guerrilheira que atuou durante a luta armada. Essa organização, por exemplo,
participou do roubo ao cofre do Adhemar de Barros (sob o ponto de vista
financeiro, US$ 2 milhões, a mais bem-sucedida operação daquele período).
Apesar disso, sua excelência, com sua suposta dedicação à história, nunca des-
velou uma ponta sequer desse e de outros tantos fios que compõem as tramas
do referido período. O máximo que li, como declaração dela, foi uma entrevis-
ta na qual conta que teve “participação pequena” e que havia tantas armas es-
condidas sob sua cama que era difícil acomodar o corpo no colchão. Me pou-
pa. Há mais história do que metralhadoras escondidas embaixo desse colchão.
Quando pergunto aos alinhados defensores do Comissariado Nacional
da História o motivo pelo qual estão fora da alçada da comissão os crimes
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 111
cometidos pelos que pegaram em armas (crimes como servir potências es-
trangeiras, formação de quadrilha ou bando, assalto, assassinatos, seques-
tros e terrorismo) a resposta que obtenho é a seguinte: “Trata-se, aqui, de
identificar os crimes cometidos pelo Estado!”. E quando eu faço uma per-
gunta absolutamente óbvia: “Por que só estes crimes?”. Dizem-me como
quem acendesse uma lanterna nas trevas da minha ignorância: “Porque é
assim que está na lei.” Ou seja, é assim porque está na lei e está na lei porque
nós quisemos que fosse assim. Como eu sou burro!
Apesar de tanta desfaçatez, contam-se nos dedos os jornalistas, pesqui-
sadores, historiadores, filósofos e analistas que apontam, sobre esse assunto,
os abusos e encenações do Big Brother que nos governa. Ele faz o que quer, a
partir do script que já escreveu, e que faz jus a uma versão final apresentada
pelo Pedro Bial.
62 8 de abril de 2012.
112 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Um dia, um gato64
majoritária neste grupo. Relatarão que o Brasil não foi, naqueles anos, o que
hoje se ensina. Com maior surpresa ainda, perceberá que os terroristas e suas
organizações praticamente não têm simpatizantes entre os que testemunha-
ram os acontecimentos por eles protagonizados. Aliás, fracassaram por ab-
soluta falta de apoio popular. Escassos serão os que lhes atribuem qualquer
mérito na necessária redemocratização. Com razão dirão que a retardaram.
Não os reconhecem como democratas.
Valerá a pena ir além. Pergunte aos que viveram apenas no tempo das
versões o que sabem sobre Ulysses, Covas, Teotônio, Montoro, Brossard,
para citar alguns dos muitos que, no embate político foram forçando a
porta da abertura. E a abertura da porta. Nada saberão porque não lhes
foram mencionados! O que importa, à versão, é desprezar o processo
político útil para exaltar o revolucionário inútil. Capisce? Menor ainda
será o conhecimento sobre o papel das lideranças empresariais, sindicais
e religiosas que se empenharam pela normalidade institucional. A con-
tribuição dos militantes da luta armada para a democracia foi a mesma
que as cheias do Nilo prestam à venda de ingressos para os shows da
Broadway. Não li um único livro escrito por intelectuais de esquerda par-
ticipantes daquelas organizações que se atrevesse a estabelecê-la. Antes,
negam-na com firmeza.
Convém aos que, após a abertura e a anistia, ingressaram no jogo políti-
co, posar de Estátua da Liberdade diante do porto de Nova Iorque. Volta e
meia algum ministro, olho na versão, reverencia os que lutaram pela demo-
cracia apontando para as pessoas erradas. “E o título? E o título?” pergun-
tará o leitor, vendo que o artigo termina. Ora, o filme “Um dia, um gato”
ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 1963. Conta sobre um
gato com óculos mágicos. Quando olhava para as pessoas, elas adquiriam
uma cor relacionada com seus defeitos e virtudes. Era um pânico na cidade.
Os mentirosos, por exemplo, ficavam roxos.
Pouca gente sabe, mas atua hoje no Brasil o Partido Comunista Marxis-
ta-Leninista. É ligado de alguma forma ao endereço na internet inverta.
org, do Jornal Inverta, assim apresentado: “A Inverta - Cooperativa de
Trabalhadores em Serviços Editoriais e Noticiosos Ltda. é uma Socieda-
de Civil, sem fins lucrativos, constituída em 20 de Setembro de 1991, na
cidade do Rio de Janeiro, pela união de trabalhadores do campo editorial
e jornalístico, claramente definidos pelo Socialismo Científico.” Seria este
116 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Os inimigos da Anistia65
65 18 de março de 2012.
66 Disponível em: inverta.org/jornal/edicao-impressa/426/social/anistia.
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 117
As pernas da mentira67
dade foram a favor de uma anistia muito mais ampla? Sim, foi isso mesmo.
Aliás, a maioria parlamentar, a base do governo Figueiredo, entendia que os
crimes contra a pessoa, crimes de sangue, não mereciam perdão. Para quem
os cometera - a justiça. As penas da lei. Já o projeto em si – Lei nº 6683/79 –
foi aprovado em acordo, por voto das lideranças.
O país não se pacificou. Nos seis anos seguintes, continuou a campanha
pela anistia ampla, geral e irrestrita, finalmente aprovada, em 22/11/1985,
por um Congresso com plena legitimidade democrática, no corpo da emenda
que convocou a Constituinte. Apesar de as coisas terem transcorrido desse
modo, a história, mal contada e muito repetida, sobre longas pernas, insiste,
agora, em que a desejada, pleiteada e ansiada anistia ampla, geral e irres-
trita foi uma injustiça. Curiosamente, reproduz a posição da bancada linha
dura de 1979 e clama pelas duras penas da lei. Anistia, não! Justiça! Justiça!
Também acho injusto que terroristas, guerrilheiros, assassinos e assaltantes
responsáveis por mais de uma centena de mortes andem soltos e recebendo
gordas indenizações. Digo outro tanto de quem torturou e seviciou. Tais
impunidades não são justas!
Mas sei que por esse caminho não chegaríamos à normalidade demo-
crática. O país só foi pacificado, só recuperou saúde institucional quando
a política superou a justiça através da anistia de 1985. A anistia é um ins-
trumento jurídico a serviço da política. Da boa política! Há conflitos, na
história, que não se resolvem com justiça, mas com política. O passado não
tinha conserto. Consertou-se o futuro. Foi esse o bom rumo que o Brasil
escolheu e que alguns pernas-longas, arrebatados pela ideologia do ódio,
querem desandar.
Joãozinho e a Anistia68
Em busca da verdade69
Será preciso dizer mais sobre o valor da verdade para o ser humano? A
sabedoria desta esplêndida frase repousa, muito especialmente, em eviden-
ciar que, assim como a bússola só funciona perante o norte magnético, a
liberdade é uma conquista da verdade. E só frente a ela, que a precede, pode
ser exercida. A liberdade de quem desconhece a verdade, ou a despreza, é
perdição por desorientação, bússola sem ponteiro. Isto posto, não creio que
qualquer consciência bem formada recuse-se à busca da verdade ou opte por
viver na mentira. É neste enquadramento moral que desejo analisar a criação
da tal Comissão Nacional da Verdade, sob exame do Congresso. Em textos
anteriores e em diversos programas de rádio e tevê já me posicionei contra
a proposta, invocando motivos de natureza histórica e política. Hoje quero
apreciar o tema sob este outro aspecto.
“Como o senhor pode ser contra a busca da verdade?”. Tal pergunta
já veio parar na “caixa de entrada” do meu correio eletrônico. Eu? Mas
eu amo a verdade, moço! Amo-a com amor zeloso e sem ciúmes! Eu a
quero universal e para todos. Mas porque a amo, repugna-me a possibi-
lidade de vê-la submetida a lúbricas manipulações. E não tenho a menor
dúvida de que é exatamente isso que vai acontecer quando os grandes
bandos da política nacional e aqueles “cientistas” das nossas ciências hu-
manas, militantes engravatados, intelectuais sutis e ardilosos, se debruça-
rem sobre o lixo da história. Os achados de suas pinças ideológicas, dos
interesses políticos, dos ressentimentos e das vendetas serão tudo, menos
a verdade. Se já fazem isso, descaradamente, nas salas de aula, com a
história brasileira e universal, o que não farão com as controvérsias do
passado recente?
Vá lá que manipulem a juventude (pois ao que parece quase ninguém
se importa). Vá lá que subestimem, não raro com ganhos, a inteligência do
povo. Vá lá que apresentem suas maracutaias como maracutaias do bem.
Vá lá que vivam afundados em incoerências e contradições. Mas, por favor,
não esperem contar com a complacência de quem ainda não perdeu o senso
crítico e a capacidade de analisar o que vê.
69 12 de março de 2011.
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 123
Adolf Hitler, Josef Stalin, Mao Tsé-Tung, Pol Pot, Idi Amin Dada,
King Jong-il e outros tiranos “livraram” sua gente das armas e, por
óbvio, não encontraram obstáculos em seu caminho de destruição.
70 20 de março de 2013.
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 125
rien quand on veut négocier.”71 Isso é o que eles de fato pensam. Claro que
quando a política aponta algumas inconveniências nesse pensamento, é hora
de adequar o discurso. E isso é o que eles de fato fazem.
Pois bem, embora o estado com menor índice de armas registradas no
Brasil (Alagoas) seja, disparado, o estado com maior índice de assassinatos,
o ministro acha que é hora de retomar a campanha pelo desarmamento. Os
apóstolos da tese acreditam, piamente, que, se as pessoas de bem deposita-
rem suas armas nas mãos do Estado e confiarem suas vidas e patrimônio aos
bandidos, o país será muito mais seguro e menos violento... Quando a gente
tenta mostrar que as mãos na nuca da vítima nada podem contra a mão do
agressor no cabo da arma, eles alegam que o Estatuto garante a posse de
arma a quem se comprovar sob risco. Tá certo. Vou encaminhar ao ministro
a minha certidão de nascimento: “Sou cidadão brasileiro, ministro!” Será
que isso não é risco suficiente?
Se não for, deveremos impor aos bandidos uma regra de aviso prévio
pelo qual todos fiquem obrigados a notificar suas vítimas com antecedência
de trinta dias para que não resultem expostas à ignorância do risco que
correm, e não tenham inibido seu humano direito à legítima defesa. Pronto!
Organizamos o crime desorganizado: assalto, estupro e latrocínio com agen-
damento e citação por edital.
Vou assumir aqui outro risco. Vou propor ao ministro algumas extensões
de sua teoria. Seria um pacote de leis preventivas visando a proibir o porte de
fósforos, isqueiros e cigarros acesos para acabar com os incêndios; recolher
todas as carteiras de habilitação para zerar os acidentes de trânsito; fechar
as praias das 10 às 16 para reduzir o câncer de pele; e cassar todos os títulos
eleitorais para acabar com a carreira dos maus políticos.
71 “Lembro-lhes de que o Brasil tem uma posição neutra sobre as FARC: nós não as qualifica-
mos como grupo terrorista nem como força beligerante. Acusá-las de terrorismo não serve de
nada quando se quer negociar.” [N. C.]
72 16 de abril de 2011.
126 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
vesseiro. Sim, sim, foi exatamente o que você ouviu. Alguma coisa caiu no
chão e precipitar-se ao chão por conta própria não faz parte da natureza
das coisas. Na escuridão da casa, no desprotegido abandono do leito, co-
nheço a sensação que esse ruído causa, leitor. É bem assim: primeiro um
calafrio se insere sob o pijama e percorre a coluna vertebral em velocidade
vertiginosa imantando os cabelos da nuca, que se erguem em apavorada
prontidão; imediatamente após, uma verdade alarmante se instala no seu
cérebro: você é o homem da casa.
Suas possibilidades são poucas. Pode, por exemplo, seguir a receita do
Sarney, do Renan Calheiros e do governo federal. O governo federal, apenas
para lembrá-lo, é aquela instituição que faz estatísticas de criminalidade.
Conta armas, mortos, feridos e prejudicados. Atribui a mortandade de bra-
sileiros à arma trancafiada na gaveta do cidadão de bem. Por fim, olha-se
no espelho o governo, estufa o peito e proclama que a promoção de nossa
segurança, em igualdade de condições com quem nos agride, deve ser mono-
pólio dele, governo. Sua cidadania lhe impõe então, leitor, o dever de pegar
o telefone e chamar a polícia. Fique tranquilo. Em questão de segundos sua
casa será palco de uma verdadeira operação de salvamento. Não duvide:
haverá PMs enfiando-se sob as portas e subindo paredes como lagartixas. O
visitante noturno desejará ter nascido astronauta.
Não, nem pense em pegar sua arma. Deixe-a onde está. Milhões, assim
como você, cansaram da peregrinação que lhes impuseram para que pudes-
sem ter e conservar armas legalmente havidas. Recusaram-se a ser achacados
por mais e mais taxas, a correr atrás de renovações de licenças e a tirar ne-
gativas que vencem antes de saírem da impressora da repartição. Você não
imagina o bode que vai dar se pegar aquela arma. Parta para outra. Repasse
mentalmente tudo que aprendeu nos filmes de Bruce Lee, Van Damme e Chu-
ck Norris. Afinal, se até o Steven Seagal, gordo como está, é capaz de surrar
meia dúzia com uma mão nas costas, você muito provavelmente conseguirá
dar um bom corretivo no invasor antes que ele tenha tempo de dizer “Fui”.
Por pura coincidência eu estava em Brasília e assisti à sessão no dia em
que Sarney propôs o tal plebiscito para rever a decisão tomada no refe-
rendum do desarmamento promovido em 2005. Renan Calheiros fez um
infindável discurso de apoio, entrecortado por dezenas de apartes favoráveis
à iniciativa. Tive vontade de implorar: “Fala sério, Renan!”. As únicas vozes
discordantes foram as de Álvaro Dias e Roberto Requião. Se a impressão
que colhi nos tapetes azuis do Senado se confirmar na Câmara dos Depu-
tados, o plebiscito sai. Um mentecapto faz uma chacina no Realengo e a
INVASÃO INSTITUCIONAL DOS BÁRBAROS 127
nação vai às urnas. Como se vê, não nos faltam oportunistas cercados de
privilégios. Aqueles senhores todos têm posse e porte de armas, seguranças
e veículos blindados. Nós pagamos por tudo. E agora querem nos mandar a
fabulosa conta de um plebiscito que desejaria nos desarmar até dos dentes.
Desde então tenho ouvido muita gente defender a proibição total da ven-
da de armas portando sob o braço, neste país da tese pronta, o discurso
segundo o qual, num assalto, a chance de sofrer lesão física é muito maior
entre os que reagem do que entre os que não reagem. Não tenho dúvidas
quanto a isso, porque na grande maioria dos casos a reação é estabanada e o
fator surpresa corre a favor do assaltante. Em situações assim, evite mesmo
reagir. Mas existem muitas outras em que as circunstâncias facultam à víti-
ma essa vantagem, seja preparando-se ela para surpreender o agressor, seja
espantando-o com um tiro de advertência.
Só alguém muito ingênuo não percebe a quem convém a condição total-
mente indefesa da população civil ordeira. No campo, serve aos invasores;
nas cidades aos bandidos; e na vida social e política a quem controlar o
armamento. Dê uma olhada na cena desse debate. Veja quem se mobiliza
para impedir a legítima defesa dos cidadãos. E saiba: a ingenuidade nunca
foi atributo deles. Quanta mistificação e oportunismo na ideia do plebiscito!
Nos quartéis, todos andam armados e não ocorrem crimes. Nos presídios,
praticamente não existem armas de fogo e a violência campeia.
Não vou cobrar royalties por esta verdade cristalina: o crime organizado,
o PCC, o Comando Vermelho, o governo federal e o governo gaúcho estão
afinadinhos nessa campanha.
T
rês décadas neste mister de emitir opinião me habituaram a mensa-
gens de aprovação e de reprovação. Pela primeira vez, no entanto,
um leitor me escreve não para comentar determinado texto, mas para
atacar “o conjunto da obra”. Ele topou com algo que escrevi e acessou meu
blog. Sentindo-se ferido em seus brios petistas, partiu para o ataque. Decidi
responder-lhe através de um artigo. É o que segue. Primeiro diz ele e, em
seguida, respondo eu.
Diz ele que meu único motivo ao escrever é avacalhar o PT e que atri-
buo ao PT e ao comunismo (que segundo ele “já não existe”) todos os
males do mundo.
Respondo eu. A lista dos adversários que combato, professor, é extensa. Eu
aponto erros, critico e ironizo, entre outros, o PT, a Teologia da Libertação, a
chamada Igreja Progressista, as práticas revolucionárias do MST e movimentos
assemelhados, o relativismo moral, a deseducação sexual, a complacência para
com o crime, a corrupção, o péssimo modelo institucional brasileiro, o corpo-
rativismo nos menores e nos maiores escalões, a doutrinação política nas es-
colas, a perda da soberania nacional para as nações indígenas, a influência das
ONGs estrangeiras nas políticas brasileiras, a estatização, a concentração de
poderes e de recursos em Brasília, a carga tributária, a partidarização do Poder
Judiciário, a destruição da instituição familiar, a gratuidade do ensino superior
público para quem pode pagar por ele. Combato, mas não avacalho. Mas se os
petistas enfiam todas essas carapuças, o que eu posso fazer, professor?
Por outro lado, o maior sucesso dos comunistas nunca foi alcançado
no plano das realizações pretendidas ou prometidas. Seu êxito é justamente
fazer as gentes crerem que ele não existe. Não se diga isso, contudo, para al-
guém que dezenas de vezes por ano é chamado pela mídia para debater com
defensores do regime cubano, ou do regime de Chávez, ou do mito Guevara,
muitos dos quais usando distintivos com foice e martelo, ou com estrelinhas
vermelhas. Dizer-me que comunismo não existe vale tanto quanto bater pé
insistindo que Papai Noel existe.
76 13 de junho de 2006.
PROCUSTOS À BRASILEIRA 133
Diz ele que jamais reconheço qualquer mérito ao PT ao longo dos oito anos
do governo Lula, que desprezo os 84% de brasileiros que lhe atribuíram concei-
tos de aprovação, que não levo em conta os milhões de egressos da miséria du-
rante sua gestão e que os governos dos partidos que eu apoio jamais fizeram isso.
Respondo eu. Reconheço méritos no governo Lula, sim. Muito escre-
vi a respeito do principal desses méritos, que foi o de chutar para longe a
maior parte das bobagens que cobrava e das propostas tolas e demagógicas
com que se apresentou à sociedade durante duas décadas. No entanto, ao
descartar aquela plataforma irresponsável, em vez de desculpar-se à nação,
Lula simplesmente afirmou que “a gente quando está na oposição faz muita
bravata”. Que vergonha, professor! Durante vinte anos o partido dele cres-
ceu deformando a opinião pública e afirmando que o paraíso estava poucos
passos além das bravatas com que acenava para buscar votos.
Felizmente, a despeito das duríssimas campanhas contra elas movidas
por Lula e o seu partido, os governos anteriores ao do PT implantaram e
deram continuidade a importantes políticas. A saber:
1. o Plano Real, que os petistas chamavam de estelionato eleitoral;
2. a Lei de Responsabilidade Fiscal, que chamavam de arrocho imposto
pelo FMI;
3. a abertura da economia brasileira, que chamavam de globalização
neoliberal;
4. o fim do protecionismo à indústria nacional, que chamavam de suca-
teamento do nosso parque produtivo;
5. as privatizações, que chamavam de venda do nosso patrimônio;
6. o cumprimento das obrigações com os credores internacionais, que
chamavam de pagar a dívida com sangue do povo;
7. a geração de superávit fiscal, que chamavam de guardar dinheiro para
dar ao FMI;
8. o Proer, que chamavam de dar dinheiro do povo para banqueiro;
9. o fortalecimento da agricultura empresarial, que queriam substituir
por assentamentos do MST.
Em momento algum os governos anteriores ao de Lula receberam dos
endinheirados do país e de suas entidades representativas as manifestações
de estima e consideração que ele colecionou enquanto dava bolsa família
para os pobres e bolsa Louis Vuitton para os ricos.
134 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Diz ele que sou um defensor de privilegiados e que nenhum outro presi-
dente brasileiro foi tão bem entendido pelo povo.
Respondo eu. De fato, Lula se revelou um craque na comunicação social.
Fazia parte dessa estratégia ter um discurso diferente para cada auditório e
não manter hoje o menor compromisso com o discurso de ontem. Para sorte
dele, a grande imprensa sempre o protegeu, inclusive no episódio do Men-
salão. E a ninguém ocorreu apresentar à CUT o que ele dizia quando falava
à CNI. Nem mostrar à CNI o que ele dizia na CUT. Ademais, quem defende
privilegiados é o PT. Que o digam os banqueiros e os financiadores de suas
campanhas e as grandes corporações. O senhor não lê jornais, professor?
Por outro lado, se lê o que escrevo sabe que não há sequer uma frase de
minha autoria em defesa de qualquer privilégio ou de qualquer privilegiado.
Diz ele que os governos militares torturaram e exilaram brasileiros duran-
te mais de vinte anos.
Respondo eu. Não foi só durante os governos militares que houve tortura
no Brasil. A tortura era uma prática institucionalizada no aparato policial bra-
sileiro e ainda não está extinta, como frequentemente se fica sabendo e como,
muito mais frequentemente, não se fica sabendo. Portanto, debitar a prática
da tortura aos governos militares é desprezar todos os outros torturados, de
ontem e de hoje, para canonizar os guerrilheiros e terroristas que possam ter
sido vítimas dessa deplorável e criminosa forma de ação investigatória.
Diz ele, referindo-se às minhas severas restrições à Campanha da Frater-
nidade (CF) deste ano, que eu não sou ninguém para criticar uma pessoa do
porte do Leonardo Boff. Lembra que São Francisco falava em irmão lobo
e irmã água e que, por extensão, o Poverello também diria “mãe terra”. Na
sequência, reafirma a frase do hino da CF, segundo a qual nosso planeta é a
“mais bela criatura de Deus”.
Respondo eu. Não faz qualquer sentido, para mim, como católico, ficar
com Leonardo Boff contra a orientação de dois papas da estatura espiritual
e intelectual de João Paulo II e Bento XVI. Por outro lado, presumir que São
Francisco, ao falar em “irmão lobo” e “irmã água”, também poderia falar
“mãe terra” (expressão inserida na CF deste ano) é uma demasia não autori-
zada. Mais grave ainda foi o equívoco da CF quando afirmou que o planeta é
a “mais bela criatura de Deus”. Para um católico, agregam-se aqui dois concei-
tos inaceitáveis. Designar o planeta como “mãe terra” é próprio do paganismo
e do panteísmo. E a mais bela criatura de Deus, professor, é o ser humano,
ápice da Criação! Nas palavras do Gênesis: Deus o criou “à sua imagem e
semelhança; criou-o homem e mulher”. A qualquer pessoa é lícito achar que
PROCUSTOS À BRASILEIRA 135
77 31 de julho de 2011.
78 Em 22 de julho de 2011, Anders Behring Breivik invadiu o acampamento de verão do Par-
tido Trabalhista Norueguês e matou 68 pessoas. Sobre o caso e seu tratamento pela imprensa
mundial, Olavo de Carvalho escreveu, em consonância com Puggina: “A mídia iluminada está
em festa: no meio de milhares de atentados mortíferos praticados por gente de esquerda, con-
seguiu descobrir o total de um (1, hum) terrorista ao qual pode dar, sem muita inexatidão apa-
rente, o qualificativo de “extremista de direita”. O entusiasmo com que alardeia a presumida
identidade ideológica do norueguês Anders Behring Breivik contrasta da maneira mais flagrante
com a discrição cuidadosa com que o qualificativo de “extremista de esquerda” é evitado em
praticamente todos os demais casos. [...] Breivik saciou uma sede de décadas, fornecendo aos
controladores da informação universal o pretexto para dar um arremedo de credibilidade ao
slogan matematicamente insustentável de que a truculência homicida é coisa da direita, não da
esquerda.” Disponível em: olavodecarvalho.org/semana/110726dc.html. [N. C.]
PROCUSTOS À BRASILEIRA 137
O amor é lindo79
Tenho certeza de que você conhece alguém assim. Pessoa idealista. Cheia
de boas intenções. Levava a maior fé no PT oposicionista do século passado.
Empolgava-se com a severa vigilância moral que o partido exercia sobre os
governos e governantes aos quais se opunha. Enfim, o partido de seus amo-
res não roubava e não deixava roubar. Percebia maracutaias a quilômetros
de distância.
Essa pessoa votou no Lula, em vão, durante três eleições. Persistiu até
que, finalmente, em 2002 – Aleluia! – Lula se elegeu. A partir daí, o PT
poderia investigar tudo e nada permaneceria oculto nas gavetas e nos ar-
mários. Com a posse de Lula, em 1º de janeiro de 2003, passavam às dili-
gentes e virtuosas mãos do partido todos os meios necessários para acabar
com a colorida tucanagem. Até um novo procurador-geral o PT nomeou
em junho de 2003; e lhe deu as chaves das silenciosas e supostamente
cúmplices gavetas do antecessor. Mas o novo procurador – surpresa! –
79 7 de maio de 2014.
PROCUSTOS À BRASILEIRA 139
nada desengavetou, que se saiba. Nem ele, nem a PF, nem o CADE, nem a
Receita Federal, nem a ABIN, nem o BC, nem a CGU. Silêncios sepulcrais!
Na miríade de ministérios, repartições federais, empresas estatais e agên-
cias, nada apareceu, nem que fosse para comprovar minimamente o muito
que antes se denunciava. Nem um grampeador sumido. E olha que depois
de tanto estardalhaço, de tanta reputação assassinada, havia um certo de-
ver moral de apontar pelo menos duas ou três falcatruas. Afinal, todos
os contratos, concorrências, convênios que vinham dos nebulosos tempos
pretéritos, estavam ali, para serem vasculhados, escrutinados. Mas nada foi
feito ou, se feito, nada foi dito. O assunto se dispersou como uma nuvem
que passa sem chover.
Um ano e meio depois, o PT virou alvo do maior escândalo político da
história republicana! E nem para se defender o partido decidiu fuxicar no
governo tucano. Já os escândalos petistas e de seus associados, esses não
mais pararam, numa sequência infindável. Não satisfeito, o PT se uniu aos
maiores patifes da política nacional. Trouxe ao braço e abraço todos aqueles
a quem combatera. Santo Deus!
Com o PT, Sarney virou homem forte no Congresso. Renan Calheiros,
Jader Barbalho, Fernando Collor (até ele!) prosperaram como fungos à som-
bra do novo governo. Maluf virou aliado, merecedor de afagos, com fotos
para a mídia benevolente em meio às ninfas e aos tritões de seus jardins,
como diria Nelson Rodrigues.
Ninguém deixou de ser recrutado para a corte petista por mau caráter.
E o outrora sensível faro do partido não percebe mais a sujeira nem na
sola do próprio sapato. O infeliz eleitor sobre cujas agruras iniciei falan-
do, ainda defensor ferrenho do petismo, ainda movido pela afinidade ide-
ológica, tem que ir catar nos tenebrosos armários e gavetas dos governos
anteriores (aqueles que o PT dizia conter assombrações) motivos para
exalar, em derradeiro suspiro, alegações de que “os outros eram ainda
piores”. Não é de causar compaixão? Deve doer como um nó de tripa na
consciência. Logo ele, um cidadão do bem, um varão de Plutarco, precisa
argumentar como aquele sujeito que defendia a namorada com alegações
de que as outras eram ainda mais vadias. É um caso de mansidão submis-
sa. Mas o amor é lindo.
140 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
80 20 de fevereiro de 2014.
PROCUSTOS À BRASILEIRA 141
Por sorte, cada vez menos brasileiros se têm deixado enganar pelo PT.
Demorou. Foram muitos anos de empulhação, mas, desde meados de
2014, passando pelas eleições e culminando com as manifestações de
2015, Dilma Rousseff, Lula e companhia não são nem sombra das
figuras salvadoras, com elevadíssimos níveis de aprovação popular. E
essa situação tem revelado uma faceta latente, mas característica dos
populistas: seu desprezo pelo que pensa de fato o povo. Foi assim na
abertura da superfaturada Copa do Mundo de 2014, no Brasil.
81 15 de junho de 2014.
142 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Eles são o povo quando vaiam e jamais são vaiados pelo povo porque isso
significaria vaiar a si mesmos. E é assim que pensam, por mais que a presi-
dente Dilma, nos últimos meses, recolha apupos onde quer que vá.
Todos os grandes teóricos da esquerda são unânimes em afirmar a im-
portância do partido e de sua disciplina interna, na qual repousa indispen-
sável elemento de coesão e mobilização. Com efeito, nenhum grupo social
se reúne tanto quanto esses denodados militantes, para os quais nada se so-
brepõe à convocação partidária. Os demais cidadãos, mesmo quando poli-
ticamente alinhados, têm outros compromissos e se ocupam, também, com
atividades que vão dos joguinhos de futebol aos aniversários dos parentes,
do fim de semana na praia aos prazeres da carne, das responsabilidades
profissionais às irresponsabilidades de um filmezinho na televisão. “Coisas
do mundo, retratos da vida.” A capacidade de juntar gente acaba produ-
zindo presunçosa consequência: os companheiros se reúnem sob a sólida
certeza de que são o próprio povo, seja numa assembleia do Orçamento
Participativo, seja numa passeata do Fórum Social, numa reunião de seu
“coletivo”, numa assembleia de professores, ou, ainda, para ocupar uma
rua, bloquear uma estrada, invadir uma fazenda, assassinar reputações ou
insultar aqueles a quem se opõem.
Agora mesmo, a presidente acaba de assinar um decreto, o tal Decreto
nº 8243, que institui os sovietes no Brasil através de um certo Programa
Nacional de Participação Social. Esse ato normativo, que atropela a Cons-
tituição e o Congresso Nacional, pretende trazer o povo para a definição
dos projetos e das políticas públicas. E quem é o “povo” para o governo
petista? O povo é formado pelos movimentos sociais, coletivos, sindicatos
e outros entes, “institucionalizados ou não”, que o PT sabidamente consti-
tui, domina e instrumentaliza.
Nada na vida social é mais heterogêneo do que o povo. Ele não tem
coisa alguma a ver com certas pinturas ideologizadas que o representam
com as individualidades indiscerníveis e os punhos simiescamente erguidos
ao alto. É em virtude da pluralidade inerente à composição social que a
democracia, institucionalizada como regime, só pode ser representativa.
E é em virtude dessa pluralidade que as formas de democracia direta, na
Constituição Federal, estão restritas a plebiscitos, referendos e iniciativa
popular na apresentação de propostas legislativas. E é bom que seja assim,
acima e muito além das pretensões hegemônicas do PT, porque só assim
se preservam as maiores riquezas de uma sociedade, que são os indivíduos
que a compõem.
PROCUSTOS À BRASILEIRA 143
Para que não mais vaiemos esses pretensos salvadores, nas eleições
passadas e nos discursos políticos de sempre, “direito” foi e é uma das
palavras mais utilizadas por políticos em seus discursos. A estratégia
é eficaz, pois nós, eleitores e cidadãos em geral, somos especialmente
simpáticos à ideia de receber. Oferecer algo, contudo, é um pouco
mais difícil – a não ser que usemos verbas públicas e façamos o “bem”
com dinheiro alheio.
Em princípio, faz algum sentido. Pagamos impostos altíssimos, que
elevam nossa expectativa de retorno do poder público. Porque 40%
de tudo que produzimos e negociamos são retidos pelos governos,
sentimo-nos à vontade para esperar pela providência estatal. É tão
justo quanto ineficaz, como se vê em praticamente todos os setores do
serviço público (à exceção da Receita, é claro). Pois a verdade é que
governos nada nos dão de graça. Tudo que deles recebemos vem dos
tributos que pagamos. Receber supostos direitos e alguns privilégios
financeiros do governo nada mais é do que pagar muito caro para
políticos fingirem que estão nos dando algo. Mas tem dado certo – ao
menos para eles.
82 22 de agosto de 2010.
144 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Na agitada vida estudantil dos anos 60, em Porto Alegre, primeiro naquela
usina de lideranças que era o Colégio Júlio de Castilhos e, depois, na Faculdade
de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nunca tive ali-
nhamentos políticos automáticos. Ainda que me faltassem bases filosóficas, gos-
tava de pensar por conta própria. Jamais aceitei ser liderado pelos antagonismos
em confronto. Mas se tivesse de eleger um grupo para valorizar sob o ponto de
vista cultural, sem dúvida essa turma seria a da esquerda.
Vocês não imaginam o quanto os caras eram sabichões. O que liam! Tra-
ziam sempre, embaixo do braço, livros da Editora Civilização Brasileira, da
83 7 de julho de 2011.
146 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Paz e Terra, e se reuniam em pequenos grupos para trocar ideias sobre temas
cuja profundidade eu sequer arranhava. Aliás, todo estudo não acadêmico
a que posteriormente me dediquei na área das ciências humanas teve como
motivação a tentativa de alcançar um nivelamento intelectual com a esquer-
da do meu tempo de estudante. Eu precisava estar preparado para desarmar
as bombas filosóficas que arquitetavam.
Há dois motivos para esta crônica das minhas primeiras ignorâncias
(hoje tenho ignorâncias novas, maiores e muito melhores). Um é sublinhar
o fato de que a esquerda brasileira daquele período, embora equivocada nos
seus pontos de partida, nos meios e nos fins (isso eu intuía com correção),
possuía gabarito intelectual e ideais. Os esquerdistas que conheci não eram
aproveitadores nem negocistas. Muitos estão por aí e são pessoas respei-
táveis. A história evidenciou, posteriormente, que seus mitos e referências
internacionais foram uns pervertidos e que o seu marxismo é uma usina de
equívocos, mas suponho que eles não tivessem como discerni-lo nos emara-
nhados dos esquemas de formação, informação e desinformação em que se
moviam durante a juventude.
O segundo motivo deste relato é mostrar o quanto a esquerda brasileira
afundou sob o ponto de vista intelectual e moral. Frei Betto, cuja vida e obra
se caracteriza por primeiro fazer os estragos e, depois, observar os danos
de longe, poeticamente, escreveu assim, em artigo de setembro de 2007, ao
desembarcar do governo Lula: “A sofreguidão esvaziou projetos, a gula co-
biçosa devorou quimeras. O pragmatismo acelerou a epifania dos avatares
do poder”. Pois é. Não fosse intelectual, o frei poderia dizer simplesmente
que deu m...
Voltando à pauta. Quem poderia imaginar a esquerda brasileira em pron-
tidão para defender pessoas como Fidel Castro, seus métodos e seus sicários;
abraçando caudilhos e brutamontes como Hugo Chávez; reverenciado pri-
matas como Evo Morales; dando vivas a Saddam e cortejando Ahmadinejad;
adotando Lula como seu estadista de referência; assumindo, como suas, cau-
sas que solapam os valores universais; proferindo juras de amor aos maiores
vilões da política brasileira e fornecendo tantos e tantos prontuários e fotos
aos arquivos da polícia e do ministério público? Quem poderia? Quem po-
deria imaginar, em 1992, que o chefe dos caras-pintadas, Lindberg Farias,
passados 18 anos, eleito senador pelo PT, estaria trocando afagos com Fer-
nando Collor, seu parceiro de fé na base do governo Dilma?
Quando me lembro daqueles terríveis anos 60 e 70, marcados por seve-
ríssimos conflitos ideológicos e do quanto lhes sobreveio, não posso deixar
PROCUSTOS À BRASILEIRA 147
livre. Bem ao contrário. Foram quatro anos de pressão sobre os veículos para
demissão de jornalistas e para domar o conteúdo das programações. E foram
dezenas de processos judiciais contra formadores de opinião.
Poderia continuar listando motivos, mas acho que já os temos em vo-
lume e peso suficiente. De nada vale o documento final do 4º Congresso
do Partido dos Trabalhadores afirmar seu compromisso com a liberdade de
imprensa e sua rejeição a toda forma de censura. É uma declaração pouco
convincente ante os elementos de análise alinhados acima e contraditória
com o que transcreverei a seguir, extraído do próprio documento. Como se
verá, o ambiente político nacional, as matérias da revista Veja, os constran-
gimentos entre os parceiros, o desconforto que as denúncias trouxeram ao
ex-presidente Lula, levaram os congressistas do PT a confessar, numa frase,
o que negavam no resto do texto e pretendiam manter oculto.
Ao mencionar o compromisso do partido com o “combate sem tréguas
à corrupção” o PT se diz determinado a fazê-lo “sem esvaziar a política ou
demonizar os partidos, sem transferir, acriticamente, para setores da mídia
que se erigem em juízes da moralidade cívica, uma responsabilidade que é
pública, a ser compartilhada por todos os cidadãos”. Quais os setores da
mídia que serão obstados?
Não está admitida aí, com todas as letras, a repulsa do partido à liberda-
de de crítica? O PT pode emitir juízo moral sobre seus adversários. O PT leu
a revista Veja nas tribunas dos parlamentos, nos megafones e a carregou em
passeatas quando ela divulgou suas denúncias contra a governadora Yeda
Crusius. Mas ai da revista quando elabora matérias que contrariam o proje-
to político do partido. Sim, o PT sonha com controlar a mídia.
86 2 de dezembro de 2011.
150 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Lula e as elites89
89 1º de agosto de 2014.
PROCUSTOS À BRASILEIRA 155
90 7 de março de 2010.
156 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Olhando assim, pelo alto, de avião, até parece obra do PAC, não é mes-
mo? Empacou, não funcionou, custou caro, foi cercado de imensa publici-
dade, recebeu calorosos aplausos dos companheiros, pretendia ampliar o
prestígio de Lula e foi concebido em tom de puxa-saquismo. Mas não é obra
do PAC, não! Tem tudo para ser, mas não é. Não é do PAC e não tem mãe.
Alguém dirá que não faz sentido ironizar o insucesso do filme. Acontece que
“Lula, o filho do Brasil” encaixou-se na perspectiva política e eleitoral de
2010. Esperava-se que o ato de assisti-lo se constituísse em reverência litúr-
gica. E confiava-se em que os fiéis assistentes deixariam as salas de exibição
decididos a obedecer cegamente seu pastor. Ora, quem se farda para o jogo
político e entra em campo pode fazer gol e pode levar gol. Então ironizo.
Em qualquer lugar do mundo, um fracasso de bilheteria arde no bolso
de quem investiu no espetáculo. No Brasil, as coisas não são assim. Quando
um filme chega aos cinemas todo mundo já ganhou dinheiro através dos
benefícios que, a título de incentivo à cultura, retiram recursos diretamente
do erário. Não recuso importância à cultura (quando o bem ou produto
realmente tem valor cultural). Mas quando os pacientes do SUS se empilham
em beliches nos corredores, quando a sociedade padece nas mãos da crimi-
nalidade e quando a educação anda um passo atrás da ignorância, creio que
a escala das prioridades aponta outros rumos para esses recursos. Não vejo
sentido em que o sucesso financeiro de um filme não dependa da aceitação
do público, mas da coleta de incentivos fiscais.
A bem da verdade, esclareça-se: não foi assim com “Lula, o filho do Bra-
sil”. A obra de Fábio Barreto, por motivos óbvios, não usou esse mecanismo.
Seria difícil explicar a concessão de estímulo fiscal para um filme de louva-
ção ao presidente da República, em pleno exercício do mandato e em ano
eleitoral. A grana foi buscada junto a empresas altamente conscientes de
suas responsabilidades com a arte e a cultura nacional, animadas por irre-
sistível desejo de contribuir com quotas da ordem de R$ 1 milhão para que
Barreto promovesse um personagem que, só por acaso, é o dono do caixa do
país. Mas convenhamos, deu no mesmo que se fosse coisa da Lei de Incenti-
vo à Cultura. Ao fim e ao cabo, de uma forma ou de outra, o dinheiro sai do
mesmíssimo lugar. E a Campanha da Fraternidade está convencida de que o
Brasil é assim por causa da economia de mercado.
tranho havia nos elevados índices. Todavia, é bem verdade que o assis-
tencialismo sem critério algum para com os mais pobres, a concessão
de créditos e benefícios às classes médias e as negociatas com os mais
ricos, tudo bancado por quem paga impostos, fizeram com que boa
parte dos brasileiros se prostrassem ante o homem que nunca sabia de
nada, com a mesma reverência que tem um infante pelo seio materno.
***
Além de trabalhar por comprar quem aparecesse pela frente e de não
se envergonhar em manifestar admiração por bandidos internacionais
(como Fidel Castro e Mahmoud Ahmadinejad), Lula, Dilma e o PT se
especializaram em unir-se a políticos locais que vivem às voltas com a
justiça ou que eram alvos preferenciais do antigo “partido da ética”.
Fernando Collor de Mello, Renan Calheiros, José Sarney... Não sobra
quase ninguém. Até Paulo Maluf caiu nas graças do estadista brasilei-
ro que mais desrespeitou o Estado brasileiro.
91 22 de junho de 2012.
158 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
92 12 de fevereiro de 2011.
160 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Não havia no país mesa de economista na qual as luzes amarelas das con-
tas nacionais e da inflação não estivessem acesas, intranquilizando as ma-
drugadas. Mas o processo sucessório não permitia condescendências. Para
o realismo cínico, as eleições vêm em primeiro lugar. O interesse nacional
chega mais tarde, bem depois de coisas essenciais como o partido, o poder,
os fundos de pensão, o marketing e os cargos.
O noticiário mostra que a presidente Dilma, bem antes do que espe-
rava, topou com as agruras da vida. Cortar R$ 50 bilhões do orçamento
não contribui para a popularidade de quem quer que seja. O brasileiro
é tolerante até com a corrupção, mas não admite austeridade. Metam a
mão, mas não me cortem os gastos públicos! E dona Dilma tomou essa
decisão que não apenas retira R$ 50 bi da gastança. Não senhor! Tira-os
também da lambança. Tira-os das emendas parlamentares, o que equi-
vale a rarear a moeda de troca com cujo tilintar se rege a orquestra da
base de apoio.
Não nos surpreendamos se, em breve, os telefonemas da Casa Civil para
seus deputados e senadores começarem a retornar com sinal de fora de área.
E enquanto isso, D. Lula, Patriarca do Brasil e Protetor do Irã, Defensor
Perpétuo da Democracia d’Além-Venezuela e d’Aquém-Cuba, e senhor do
Comércio com Gabão, Congo, Burkina Faso e Tuvalu, diz que estão queren-
do desconstruir sua sacrossanta imagem.
O legado de Lula93
Acabou! Não há bem que sempre dure (na perspectiva dos 87% que
gostaram), nem mal que não acabe (segundo a ótica dos 13% descontentes).
Faço parte do pequeno grupo que não se deixa seduzir por conversa fiada,
publicidade enganosa e não sente atração pelos salões e cofres do poder.
93 31 de dezembro de 2010.
PROCUSTOS À BRASILEIRA 161
Anote aí. Não vai adiantar coisa alguma. A imprensa divulga, os analistas
criticam, a presidente pede explicações e, no final, fica tudo por isso mesmo.
Nada aprendemos com os erros praticados diante de nossos olhos. A gente
olha; vê que está errado; aponta e exclama: “Que coisa!”. Mas nada é feito
para mudar, porque, no fundo, bem no fundo, instalou-se no senso comum a
crença de que o sistema nos beneficia. O resultado final é bom. Em palavras
mais simples: só aprende com os erros quem quer acertar. Quem se crê bene-
ficiado com o erro, cuida é de aprimorá-lo.
Está tudo mal no país, diz-se. Mas ninguém quer modificar coisa alguma
porque o sistema, errado por gosto, está concebido para proporcionar essa
sensação. Está errado, mas não mexe. Eis por que ministros puxam brasas
para suas sardinhas e todo mundo fica contente. Acontece que há mais mi-
nistérios do que unidades da Federação, sabe?
Durante dois anos, o da Integração beneficiou a Bahia do ministro Ged-
del. Hoje, foi para o ministro Bezerra Coelho. Nada mais lógico, então, que
as verbas se concentrem em Pernambuco e que o filho do ministro, o depu-
tado federal Fernando Coelho, seja responsável pela totalidade dos pedidos
apresentado ao ministério do papi. E nada mais natural do que Bezerra, sen-
do maninho de Clementino Coelho, candidato a prefeito de Petrolina, man-
de para lá 40% das cisternas destinadas ao semiárido nordestino. É lógico,
também, que nomeasse para o Conselho de Irrigação o titio Osvaldo Coelho,
irmão do ex-governador Nilo Bezerra Coelho. É impressionante como saem
coelhos dessa cartola e dessa capitania, cujo primeiro donatário, casualmen-
te, foi Duarte Coelho, que a recebeu em 1534.
Por outro lado, nada mais impositivo ao governador Eduardo Campos,
padrinho de Bezerra Coelho no governo, do que sair em defesa do afilha-
do, com toda a força da legenda do PSB, dizendo que não admite, naquele
reduto, interferências do Planalto. É como se dissesse: “Neste ministério
mando eu!”. É assim que as coisas são feitas no Brasil. O ministério é do
Ministro. A destinação dos recursos segundo as conveniências do titular da
pasta, e a seu talante, é apenas mais uma das muitas evidências com que
nos temos defrontado dessa relação abusiva, patrimonialista, de muitos
dos nossos homens públicos com as prendas do poder. Socialismo real,
científico, em circuito fechado.
A overdose do petismo95
95 3 de agosto de 2013.
166 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Quatro meses depois, foi a vez de o povo evidenciar que também ele
tivera sua overdose de petismo. E saiu às ruas para pacíficas e civilizadas
demonstrações de inconformidade. O povo deu uma olhada no próprio país
e percebeu que, por trás da publicidade, dos cenários, das montagens, das
invenções e versões, tudo – simplesmente tudo! – vai muito mal. Depois de
dois PACs lançados às urtigas, que não valiam a tinta e o papel gastos para
redigi-los, a economia arqueja sobre uma infraestrutura carente de tudo que
importa – energia, rodovias, ferrovias, armazenagem, portos. Quanto mais
PAC, menos PIB. O Rio São Francisco continua no mesmo lugar, levando,
dolente, suas águas para o mar de Alagoas. Nas refinarias projetadas, nada
se avoluma com maior rapidez do que o preço inicialmente previsto. Aqui no
Rio Grande do Sul, de onde escrevo, as ditas “obras da Copa” ficarão para
depois da Copa. O prometido, jurado e sacramentado metrô de Porto Alegre
ainda é um risco no papel, em eterna discussão. E a duplicação da travessia
do Guaíba resume-se a um trabalho de computação gráfica.
A Educação brasileira é a penúltima entre 40 países estudados pela Eco-
nomist Intelligence Unit. A Saúde beira à perfeição. Sim, é um perfeitíssimo
pandemônio! Nós, os cidadãos, reconhecemos que houve uma inversão nos
extratos sociais. Mudamo-nos para o submundo, para a zona de perigo, onde
não existe a proteção da lei, onde padecemos nossa desdita sob a implacável
violência do andar de cima. Ali, no andar de cima, é tudo ao contrário, e o
mundo do crime opera ao resguardo do imenso guarda-chuva gentilmente
proporcionado pelo aparelho de Estado e por suas leis. É isso que se chama,
aqui, de Segurança Pública. Tudo por obra e graça do petismo que chegou à
overdose de si mesmo e perdeu os próprios controles.
96 24 de outubro de 2014.
PROCUSTOS À BRASILEIRA 167
vigor venham de governos anteriores, parece fácil iludir tais pessoas com a
ameaça de que uma mudança no comando do país implica o risco de extin-
ção de tais auxílios.
O segundo grupo é formado pelo numeroso e privilegiado contingente
de membros da nomenklatura petista, investidos em posições de mando ou
ocupando postos de indicação partidária no governo, em empresas estatais,
no próprio Estado e na administração pública. Para esses eleitores não existe
qualquer dúvida: uma derrota petista significa o fim do contracheque. Esses
contracheques não costumam guardar simetria com a qualificação e os ser-
viços prestados pelos recebedores.
O terceiro grupo inclui o vasto contingente de pessoas cujos postos
de trabalho e fontes de renda provêm dessa miríade de organizações não
governamentais (ONGs) cujos recursos, paradoxalmente, procedem do
erário nacional. Para franquear acesso aos fundos públicos, o governo
e seu partido levam em altíssima conta a posição política daqueles que
as dirigem. Vale o mesmo para o recrutamento de recursos humanos às
atividades fins.
O quarto grupo é formado pelos aficionados ideológicos. São eleitores
que colocam a ideologia acima de tudo. São cegos a toda evidência.
O quinto grupo agasalha (o verbo agasalhar cabe bem para estes) todos
os que, graças ao PT, vivem à vida regalada sem serem do governo. Atuam no
restrito universo das grandes empresas, no mundo da cultura, da publicidade,
fazendo negócios multimilionários com o governo. E com os governantes.
O sexto grupo, sem fixações ideológicas e interesses individuais, está
a par dos fatos, acompanha as notícias, reprova os malfeitos, conhece os
dados econômicos e se preocupa com a situação nacional. E, ainda assim,
vota no PT. Entre as mentiras que lhe são contadas e o que os próprios olhos
e ouvidos lhe revelam, esse grupo prefere crer nas mentiras. É mais difícil
entendê-los do que compreender o Bóson de Higgs (aquela partícula que
representa a chave para explicar a origem da massa das partículas elemen-
tares). Esse grupo e suas misteriosas razões têm votos que podem decidir,
contra toda a lógica, a eleição presidencial.
***
18. Apoiou e deu refúgio a terroristas (Cesare Battisti é apenas um dos casos);
19. mas capturou e devolveu a Fidel Castro os boxeadores que queriam
fugir da ilha-presídio.
20. Apoia os governos comunistas de Cuba, Venezuela e Bolívia.
21. Tem incondicional afeição a qualquer patife adversário do Ocidente.
22. Concede homenagens e dá nomes de ruas para líderes comunistas;
23. O memorial para Luiz Carlos Prestes, em Porto Alegre, é um exemplo.
24. Oferece apoio explícito a companheiros condenados pela justiça por
graves crimes.
25. Possui verdadeira fobia por presídios e órgãos de segurança, permi-
tindo gravíssima instabilidade social;
26. Dedica-se absoluta e incondicionalmente aos direitos humanos dos
bandidos.
27. Empenha-se em inibir a ação armada das instituições policiais.
28. Dedica-se à causa do desarmamento dos cidadãos de bem.
29. Recusa a redução da maioridade penal.
30. Sustenta o MST e apoia suas truculentas invasões de propriedades rurais.
31. Apoia invasões no meio urbano e fomenta políticas que restringem o
direito de propriedade.
32. Dá cobertura às estripulias imobiliárias dos quilombolas.
33. Avança com o Código Florestal contra o direito de propriedade.
34. Permite expansão das reservas indígenas sobre áreas de lavoura.
35. Trabalhou por: mudanças, para pior, do Estatuto do Índio,
36. supressão de símbolos religiosos em locais públicos,
37. destruição de valores morais e familiares nas escolas,
38. lei da palmada,
39. apoio à legalização do aborto,
40. políticas de gênero
41. e kit gay nas escolas.
42. Dá apoio à parada gay,
43. à marcha das vadias
44. e à marcha pela maconha.
170 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
***
***
J
amais especulo sobre a honra de quem quer que seja. Deixo esse trabalho
para o jornalismo investigativo, para as instituições policiais e para o
Ministério Público. É uma praia onde não sei nadar. O que me interes-
sa nessa pauta não é a possibilidade de que alguma ONG esteja cobrando
comissão de prefeituras para prestar serviços, recebendo por atividades que
não executou, ou repassando recursos para partidos políticos. Quem tiver
competência institucional ou funcional para averiguá-lo que o faça. E cadeia
para os responsáveis.
Interessa-me algo que está por trás dessas notícias. É a informação – sur-
preendente – de que existem ONGs que são ligadas a ou aparelhadas por
partidos políticos, que funcionam como braços dos partidos. E que recebem
dinheiro do governo. Mas, desde quando partidos têm ou controlam ONGs
que prestam serviços ao poder público? Que negócio é esse? Eu sei que a
noção de limite acabou quando Getúlio se matou. Ele foi o último. Os que
vieram depois e se viram em mar de lama parecem ter jurado a si mesmos
que avançariam sempre, derrubando as barreiras do pudor e que resistiriam
sob quaisquer circunstâncias. E o povão aplaude quem é persistente – mes-
mo no crime.
Já não se trata, nesse nosso modelo institucional que funciona como
um moedor da democracia, de os partidos fazerem o que lhes compete:
consolidarem sua doutrina, planejarem sua ação, formarem seus quadros
para o exercício do poder, analisarem as realidades nacionais, elaborarem
diagnósticos e definirem estratégias de intervenção na realidade. Qual! Isso
seria pedir muito a organizações que, no moinho do modelo institucional,
viraram farinha de si mesmos. Ou, menos metaforicamente, se transfor-
maram em cartórios políticos para viabilização dos processos eleitorais.
Ou, mais incisivamente, varreram a dignidade como lixo para baixo dos
97 27 de fevereiro de 2011.
176 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
A usina da corrupção98
Enxaquecas institucionais99
Sei, sei, pode parecer que para arrumar um título forcei a barra. Mas
saibam quantos se detiverem sobre estas linhas que o título expressa rigo-
rosamente a minha opinião sobre o que acontece em nosso país a partir de
1988. É uma dor de cabeça sem fim. Explico-me. A eleição parlamentar que
desembocou no processo constituinte elegeu 559 congressistas. Dado que a
Assembleia Nacional foi convocada para encerrar o regime militar que se
exaurira, algumas análises acadêmicas, como a de Leôncio Martins Rodri-
99 17 de setembro de 2011.
ESCORPIÕES E RÃS 179
O cardápio do estadista101
Vamos ver se consigo. É muito difícil que uma dissertação sobre política
não seja lida sem que os leitores se instalem, provisoriamente ao menos,
nas respectivas trincheiras. O que hoje trago para este espaço, no entanto,
é uma reflexão sobre modos de ver a política que independem de devoções
governistas ou oposicionistas e de alinhamentos ideológicos por tal ou qual
banda. Estou fazendo uma aposta em que conseguirei ser entendido na pers-
pectiva que proponho.
Vamos lá. Todo governante, sentado na cadeira das decisões, se defronta
com esta questão: onde gastar os escassos recursos de que dispõe? Abrem-
-se, de hábito, dois caminhos. Num deles, os recursos podem ser gastos na
conservação do estoque de bens públicos disponível, no aumento da oferta
de serviços com ampliação dos empregos do setor, nas despesas de custeio
e na distribuição de favores. No outro, priorizam-se os investimentos como
forma de ampliar, através deles, as perspectivas do futuro.
O tema é relevante e se expressa na opção entre a possibilidade de gover-
nar mais para o presente e menos para o futuro ou de governar mais para o
futuro e menos para o presente. Numa analogia bem singela, seria escolher
entre comer feijão com arroz hoje ou preparar uma feijoada para amanhã.
A experiência política mostra que o feijão com arroz é eleitoralmente mais
bem sucedido que a feijoada, embora a feijoada fique na memória e entre
para a história. Há muitos anos, muitos anos mesmo, a feijoada foi parar
num canto remoto do cardápio nacional – e no Rio Grande do Sul não é
diferente – graças a uma taxa de investimento incapaz de providenciar os
mais modestos ingredientes de uma feijoada que mereça essa designação. As
propagandas oficiais podem sobrevalorizar o que é investido, mas não pas-
sam disso mesmo: propaganda oficial. Aponto para a falência da educação
no país e não preciso dizer mais nada para provar o que digo.
É na bandeja do dilema aqui exposto que o prato da oposição é servido. Se
o governante optar pela feijoada, a oposição reclamará da falta do feijão com
arroz; se ele escolher o feijão com arroz, a oposição cobrará a feijoada. E não
O cisco e a trave106
Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão e não percebes a trave que há no
teu próprio olho?
— Lucas 6, 41
Acho curioso o modo como por vezes são levados os debates. Se eu cri-
ticar os Estados Unidos pela guerra no Iraque ou pelo que acontece na pri-
são de Guantánamo, ninguém na face da terra me cobrará uma crítica ao
regime cubano. Ninguém. Todos aceitarão que exerço um direito natural
de opinião. Mas se disser qualquer coisa sobre a miséria, o totalitarismo e
a opressão que pesa sobre a sociedade cubana imediatamente se forma fila
para cobrar posição sobre abusos praticados pelos EUA. Entenderam? Junto
à intelectualidade brasileira, para falar mal do comunismo tem que pagar
pedágio.
Será o comunismo, como proclamam, uma utopia, uma ideia generosa?
Seus 100 milhões de cadáveres devem ficar se revirando na cova. Foi um ideal
alheio que lhes custou bem caro! Infelizmente mal conduzido, amenizam al-
guns companheiros. Que tremendo azar! Uma ideia tão generosa e não pro-
duziu um caso medíocre que possa ser exibido sem passar vergonha. Durante
um século varreu com totalitarismos boa parte da Ásia e da África, criou re-
voluções na América Ibérica, instalou-se em Cuba e não consegue apresentar
à História um único, solitário e singular estadista. Que falta de sorte! Tão
generoso, tão ideal, tão utópico, e nenhuma coisa parecida com democracia
para botar no currículo. E há quem creia que ainda pode dar certo.
Quanto ao sistema econômico que ficou conhecido como capitalismo (que
não é sistema político nem ideologia), afirmo que seu maior erro foi aceitar
conviver com uma designação deplorável, que lhe foi atribuída por Marx.
Contudo, chamem-no assim, se quiserem, embora, a exemplo de João Pau-
lo II, eu prefira denominá-lo “economia de empresa”. Suas vantagens sobre
um modelo de economia centralizada, estatizada, são irrefutáveis na teoria e
certificadas pela prática dos povos. É um sistema que não foi concebido por
qualquer intelectual. É um sistema em construção na história, muito compatí-
vel, também por isso, com a democracia. Promove a liberdade dos indivíduos
e a criatividade humana. Reconhece a importância do mercado. A maior parte
dos países que adotam esse sistema atribui ao Estado, em sua política e em seu
ordenamento jurídico, a tarefa de zelar pelo respeito às regras do jogo em pro-
teção ao bem comum. Aliás, quem quiser organizar as coisas desconhecendo
a autonomia do econômico, submetendo-o a determinações que contrariem o
que é da natureza dessa atividade (lembram dos tabelamentos de preços?) vai
se dar mal. Vai gerar escassez, câmbio negro, fome. Digam o que disserem os
arautos do fracasso do sistema de economia de empresa em vista da crise que
afeta alguns países, os embaraços deste momento só se resolverão com ativida-
de empresarial, comércio, pessoas comprando, indústrias produzindo, pesqui-
sa e investimento gerando, expandindo e multiplicando a atividade produtiva.
Outro dia, nas redes sociais, alguém acusou o capitalismo de haver matado
milhões. E não deixava por menos. Dezenas de milhões! O sistema? Onde? O
capitalismo pode não resolver muitos casos de pobreza. Mas essa pobreza sem-
pre terá sido endêmica, cultural, estrutural, histórica, geográfica, política. Não
se conhecem sociedades abastadas que tenham empobrecido com as liberdades
econômicas. Tampouco confundamos economia livre, de empresa, com colo-
nialismo ou mercantilismo. Qualquer economia que queira prosperar e realizar
desenvolvimento social sustentável vai precisar do empreendedorismo dos em-
preendedores, da geração de riqueza e de renda, e de coisas tão desejáveis quan-
to produção e consumo, compra e venda, lucro, salário e poupança interna.
Quem quiser atraso vá visitar os países que ainda convivem com eco-
nomias centralizadas: Coreia do Norte e Cuba, onde só o armamento da
194 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
polícia e das forças armadas não é sucata. Ali se planta com a mão e se mata
lagarta com o pé. E o povo vive da mão para a boca, prisioneiro do “ideal”
generoso que alguns insistem em impingir aos demais.
O Brasil vem sendo governado por socialistas e comunistas há mais de
uma década. Embora não ocultem, no plano da política, as intenções tota-
litárias que caracterizam sua trajetória, num sentido geral vêm respeitando
os fundamentos do sistema econômico no qual ainda engatinhamos. E, algo
que muito os agrada, vão extraindo dividendo político de seus resultados.
Mas procedem com indisfarçável esquizofrenia. Agem de um modo, falam
de outro e vão enganando os bobos.
Consultem o PCC110
114 Veja mais obras dos companheiros latinos bancadas por você, pagador de impostos: spot-
niks.com/20-obras-que-o-bndes-financiou-em-outros-paises. [N. C.]
115 15 de agosto de 2010.
116 “Quero dizer ao povo e às mães de Cuba que resolverei todos os problemas sem derramar
uma gota de sangue. Digo às mães que nunca, por nossa causa, terão de chorar.”
ESCORPIÕES E RÃS 199
para que esse divisor fosse aberto. É algo diante do que não se pode deixar
de tomar posição. Por isso (e por exemplo), cada vez que Lula vai a Havana
para agir como tiete de Fidel, mais evidente se torna a relação de conveniên-
cia que mantém com a democracia e seus valores. Recentemente, o regime
anunciou a libertação de algumas dezenas de presos políticos. Gente que
estava encarcerada havia anos por delitos de opinião. É de se perguntar:
Se havia razões para estarem presos, por que os soltaram?
Se havia razões para soltar, por que os prenderam?
Essa é a assustadora face do Estado opressor e policialesco que vi de per-
to quando, visitando Havana em 2002, estabeleci contato com os dissidentes
Oswaldo Payá, Marta Beatriz Roque, Félix Bonne e René Gómez. Vi-lhes o
medo (à exceção de Payá, todos os outros estiveram presos nos anos que se
seguiram). Acabei sob observação policial e fui filmado por agentes do Esta-
do cubano nos encontros que mantive, embora os locais fossem tão públicos
quanto o restaurante Il Gentiluomo.
Só agora, muito gradualmente, rompe-se o esquema de proteção monta-
do em torno do regime, da pessoa de seu Líder Máximo e da figura de Che
Guevara. Era uma verdadeira barreira montada com apoio de intelectuais,
jornalistas e ativistas de esquerda, dedicados a convencer a opinião pública
mundial de que a antiga Pérola do Caribe era bijuteria ordinária e de que o
inferno atual constitui um paraíso onde, com enorme afeição dos governan-
tes, se cultivam os mais elevados valores humanos. Ganhavam prêmios para
fazê-lo, esses mistificadores, e eram recebidos como príncipes na Ilha.
Li uma dezena de livros sobre Cuba antes de ir até lá pela primeira vez.
Todos dedicados a exaltação do regime. Em 2003, publiquei Cuba, a tra-
gédia da utopia e em 2006 recebi, enviado pelo autor, Edmílson Caminha,
um exemplar de Brasil e Cuba, modos de ver, maneiras de sentir, com uma
leitura comparada de 22 livros sobre aquele país editados no Brasil. Não é
um trabalho completo porque não inclui pelo menos cinco outras obras que
fazem parte do meu acervo. Em resumo do resumo: o capítulo que se refere
ao que escrevi leva o título de “Um livro declaradamente contra”. Como se
vê, sou um caso raríssimo: um autor brasileiro que foi a Cuba e não gostou
do que viu por lá!
Eis por que este conjunto de vídeos Improper Conduct (procure no You-
Tube) constitui um megafone visual, berrando verdades que não nos deixa-
ram conhecer. São relatos impressionantes sobre o desrespeito aos direitos
humanos imposto pelo comunismo ao bom e generoso povo cubano. Povo
que, na minha observação, após meio século sob o tacão castrista, desen-
200 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
volveu com maestria aquela triste capacidade que acaba sendo o elemento
anímico a sustentar a vida nos campos de concentração: a capacidade de não
pensar sobre a realidade em que se vive.
O Louvre do comunismo117
com água por falta de sabão, sabonete e detergentes. Estavam com graves
dificuldades para a higiene pessoal. Quando voltei ao Brasil, pesquisei na
rede e fiquei sabendo que, no início de 2011, os sabonetes haviam saído da
“libreta” (aquela caderneta de racionamento que já vai para mais de meio
século) e ido para a “libre” ou seja, deviam ser adquiridos aos preços de
mercado. Meio dólar a peça, num país onde o salário mensal é de 14 dólares.
Num artigo que me chegou dias mais tarde, o autor chamava de liliputiano
esse sabonete, tão diminutas eram suas dimensões.
São informações que infelizmente não repercutem tanto quanto deveriam
na imprensa mundial. Uma jornalista me conta sobre certa paciente com pro-
blema dentário que não conseguia ser atendida no seu centro clínico porque
o local estava em falta de detergente para lavar os instrumentos. Há poucos
dias, leio que em Sancti Spíritus (cidade com cerca de 130 mil habitantes, na
região central da ilha) um grupo de mulheres disputou sabonetes a tapas e
bofetadas num armazém local. A baiana só parou de rodar com a chegada de
várias viaturas policiais. Alguns circunstantes que não participaram do fuzuê
comentaram que a permanente escassez e as longas filas que precisam ser en-
frentadas para tudo estão levando as donas de casa a esse tipo de descontrole.
Briga de rua pelo direito de comprar sabão? Sabão? Mas o sabão é um
dos produtos industriais mais antigos e simples da civilização! É usado desde
2500 anos antes de Cristo. A indústria de sebos e sabões está para a indústria
de bens de consumo assim como a roda e a manivela estão para a indústria
de bens de capital. Uma economia onde se disputa no braço o direito de
comprar sabão está a quilômetros da antessala do atraso. E não me venham
dizer que é por culpa dos ianques que em Cuba não conseguem misturar
sebo com soda cáustica.
Cuba é bem mais do que uma ilha em forma de lagarto, plantada no meio
do Caribe. Cuba é um divisor de águas entre democratas e totalitários. Não
tem erro. Saiu em defesa de Cuba, começou a falar em educação, saúde e “blo-
queio” americano, deu. Não precisa dizer mais nada. O cara abriu a porta do
armário e assumiu. O negócio dele é o comunismo da velha guarda. Na me-
lhor das hipóteses, marxismo-leninismo; na pior e mais provável, stalinismo.
Pois eis que Fidel Castro decidiu conceder longa entrevista ao jornalista
norte-americano Jeffrey Goldberg. Embora a pauta fosse o ambiente político
do Oriente Médio e o tom belicoso das posições de Ahmadinejad, Fidel gos-
ta de falar, e outros assuntos entraram na conversa. Não li toda a matéria.
Poucas coisas serão tão infrutíferas quanto conhecer a opinião de Fidel a
respeito de Ahmadinejad. Convenhamos. Horas tantas, o jornalista faz uma
pergunta absolutamente sem sentido e obtém por resposta algo que arran-
cou manchetes mundo afora. É dessas coisas que acontecem uma vez na vida
de cada jornalista sortudo.
A pergunta foi sobre se valia a pena exportar o sistema cubano para
outros países. Pondere, leitor, o absurdo da indagação: como poderia haver
interesse em exportar algo sem qualquer cotação no mercado mundial há
mais de três décadas? E Fidel saiu-se com esta: “O modelo cubano não fun-
ciona mais nem para nós.”
Como se percebe, há na frase sinceridade e falsidade. Sincero o reco-
nhecimento. Falsa a sugestão de que, durante certo tempo, o sistema teria
funcionado.
De todo modo, até o dia 8 de setembro, quando foi divulgada a observa-
ção do líder da revolução cubana, supunha-se que só ele, o líder da revolu-
ção cubana ainda levasse fé na própria obra. Dois dias mais tarde, diante da
repercussão internacional dessa sapientíssima frase, ele voltou atrás e disse
ter sido mal interpretado. Alegou que afirmara o oposto: o que não funcio-
naria é o capitalismo. E assim ficamos sabendo que os países capitalistas são
um desastre e os socialistas um sucesso de público e renda.
Entenda-se o velho. Aos 84 anos ele já não pode mais voltar atrás. Ven-
deu a alma a Mefisto e os ponteiros de seu relógio quebraram. Quando fez
uma primeira experiência com a sinceridade, deu-se mal. Coisa como para
nunca mais. Era preciso retroceder e apelar para o “fui mal entendido”. Está
bem, Fidel. Foste mal entendido. Mas ainda que tivesses sido bem entendido,
andaste bem longe do problema de teu país. Neste último meio século, as di-
ficuldades da antiga Pérola do Caribe, que transformaste num presídio, bem
antes de serem econômicas, são políticas! Mais do que a ineficácia de uma
economia estatizada, o que faz dó em Cuba é o totalitarismo. É a asfixia de
todas as liberdades. São as prisões por delito de opinião. São os julgamentos
políticos em rito sumaríssimo. É o paredón. É o aviltamento dos direitos
humanos (quem disse que eles se restringem a educação e saúde?). É a perse-
guição aos homossexuais. São os linchamentos morais. É haver um espião do
governo em cada quarteirão de cada cidade. É a dissimulação como forma
ESCORPIÕES E RÃS 203
É uma encrenca. Tenho visto muita gente de esquerda opinar sobre Cuba
após uma viagem àquele país. Há os que, afetados por esclerose múltipla, de
etiologia marxista, não entendem o que veem e proclamam que voltaram do
paraíso. Outro tipo segue a linha daquela senhora que entrou em mutismo
até desabafar, sob pressão dos familiares: “Tá bom. Aquilo é uma droga, mas
não posso ficar dizendo, tá?” Tá, senhora, eu a entendo, apesar de, pessoal-
mente, não considerar aquilo uma droga. Droga é o regime. O povo cubano,
submetido ao arbítrio e aos humores de uma ditadura que já leva mais de
meio século, é um povo desesperançado.
E há opiniões ainda mais notáveis, que se proporcionam quando o es-
querdista que vai a Cuba é uma liderança política. Instado a opinar sobre
o que viu, a celebridade tem que responder ao repórter. Se fizer críticas ao
regime estará, perante os companheiros, incorrendo em grave sacrilégio.
Apontar mazelas cubanas é o equivalente ideológico de cuspir na cruz e chu-
tar a santa. Coisa que não se faz mesmo. Durante meio século, a esquerda
desenvolveu toda uma mística em torno da Revolução Cubana, dos “eleva-
dos valores morais” do bandido Che Guevara e das qualidades de estadista
que ornam com fulgurantes e imperceptíveis realizações a figura mitológica
de Fidel Castro. Se o sujeito retornar de Cuba descrevendo o que necessaria-
mente passou diante de seus olhos cairá na mais negra e sombria orfandade
política. É uma encrenca.
Por outro lado, se não disser que há um regime totalitário instalado no
país, que só existe um partido político, que não há liberdade de opinião, que os
meios de comunicação são órgãos do governo ou do partido comunista, que
há um rigoroso controle da sociedade e da vida privada pelo Estado e que per-
sistem as prisões políticas, o sujeito se desqualifica como democrata perante
as pessoas de bom senso porque esses fatos são irrecusáveis. É uma encrenca.
Pois foi nessa encrenca que se meteu Tarso Genro quando decidiu passar
uns dias de férias na ilha dos irmãos Castro. As perguntas lhe vieram, em pri-
meira mão, do portal Carta Maior, órgão quase oficial dos companheiros do
governador. O inteiro teor da entrevista pode ser lido em <www.cartamaior.
com.br ou, em short link, aqui: http://bit.ly/yPek9J>.
Como fez Tarso para sair dessa? Atacou o suposto bloqueio norte-
-americano à ilha, claro. No entanto, até os guindastes do Porto de Mariel
(onde o BNDES investiu US$ 600 milhões) sabem que não existe bloqueio
a Cuba. Bloqueio seria uma operação militar impedindo a entrada e saída
de navios. O que existe é um embargo pelo qual os Estados Unidos preten-
deram restringir as operações comerciais com a ilha. No entanto, esse em-
bargo está totalmente desacreditado há muito tempo. Os principais impor-
tadores de produtos cubanos são, pela ordem, Venezuela, China, Espanha,
Brasil e Canadá. E os principais exportadores para Cuba são, também pela
ordem, Venezuela, China, Espanha, Canadá e Estados Unidos (é sim, 4,1%
das importações cubanas são de bens de consumo made in USA). E não
me consta que qualquer desses países mencionados, Brasil entre eles, sofra
restrição comercial por parte dos Estados Unidos. Aliás, China e Venezuela
destinam aos ianques respectivamente 18% e 38% de suas exportações e
neles buscam respectivamente 7% e 27% de suas compras. Que terrível
bloqueio americano é esse? Por outro lado, Cuba importa US$ 11 bilhões
e exporta apenas US$ 4 bilhões. Não é por causa do embargo que as ex-
portações cubanas são insignificantes. É porque – isto sim! – sua economia
estatizada quase nada produz. Com um déficit comercial desse tamanho, o
BNDES que se cuide, dona Dilma.
Sete vezes, na entrevista, o governador usou o antiamericanismo como
forma de tergiversar sobre os males que o regime impõe ao país onde pas-
sou as férias. Tarso, na entrevista, estava sendo interrogado sobre Cuba por
um jornalista companheiro. E batia nos Estados Unidos, enquanto surfava
sobre o fato de que, se há um bloqueio em Cuba, ele é o bloqueio imposto
pelo governo à população, esta sim, impedida, sob força policial e militar, do
fundamental direito de ir e vir.
Por fim, sobre a questão da democracia, o governador saiu-se com esta
preciosidade: “A questão democrática em Cuba não pode ser avaliada
com os mesmos parâmetros que servem para o Brasil, para a Argentina
e para o Uruguai, por exemplo.” Não, não pode mesmo. Se for avaliar
a questão democrática em Cuba com conceitos abstratos e imprecisos
(apesar de universais) como, digamos assim, eleições livres, pluralismo
partidário, liberdade de expressão e de imprensa, aí a coisa fica compli-
cada. A democracia cubana tem de ser avaliada sob conceitos de partido
único, liberdades restritas, inexistência de oposição e estado policial. Vi-
ram como é uma encrenca?
ESCORPIÕES E RÃS 207
Plano perfeito124
***
Ruim, não? O sujeito viu o muro de Berlim ser erguido e tinha certeza
de que o lado de lá era melhor do que o de cá. Torceu pela União Soviética,
pela China maoísta, pelos vietcongs, pelo Khmer Vermelho, pelas Brigate
Rosse. Vestiu camiseta do Che. Colou no guarda-roupa fotos do Dany le
Rouge. Sacudiu bandeirinha de Cuba. Atendendo apelo de Fidel, passou uma
temporada lá, em 1969, cultivando cana. Vociferou contra a Primavera de
Praga. Aplaudiu as ações dos tanques chineses na Praça da Paz Celestial. Be-
beu champanhe no 11 de setembro. Fez tudo direitinho. Votou no partidão
e no partidinho. Imaginou? Agora, veja bem o que aconteceu com ele. Seus
atuais porta-vozes e líderes são tipos como Lula, José Dirceu, Hugo Chávez,
Daniel Ortega, Evo Morales, Ahmadinejad, Kim Jong-un. Pensa numa de-
mocracia construída sobre aquelas ideias. Não há. Busca livro que junte os
cacos e reorganize consistentemente uma visão de mundo sobre tais bases.
Nada. Procura um estadista de boa estirpe para seguir. Ninguém. Dureza! O
comunismo nunca foi melhor.
***
cuca fresca. Chega-se, por fim a duas realidades contraditórias: numa, o comu-
nismo, seus símbolos, organizações políticas e ilusórias mensagens trafegam
com desenvoltura, leves de qualquer carga histórica, no ambiente social e po-
lítico do país; noutra, convivem, esplendidamente, com a ideia de que ele mes-
mo acabou e não tem mais qualquer plano, projeto, estratégia ou significado
entre nós. Pode haver significado, estratégia, projeto ou plano mais perfeito?
125 “Lamento enormemente isso [ataques aéreos na Síria contra o Estado Islâmico]. O Brasil
sempre vai acreditar que a melhor forma é o diálogo, o acordo e a intermediação da ONU.” Dis-
ponível em: veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/terrorismo-2/campanha-do-blog-dilma
-va-dialogar-com-os-terroristas-islamicos.
126 19 de fevereiro de 2011.
ESCORPIÕES E RÃS 211
127 Ruy Castro. As 1.000 melhores frases de Nelson Rodrigues, São Paulo, Companhia das
Letras, 1997.
ESCORPIÕES E RÃS 213
Não foi dito por acaso. Tampouco como mera observação feita à margem
dos fatos, desconectada da realidade do encontro e de seus participantes. A
fala de Bento XVI aos bispos brasileiros que estiveram com ele no dia 28
de outubro tem tudo a ver com o que estava em curso nas nossas dioceses,
na grande mídia e nas comunicações da internet em função do pleito do dia
31.129 Os presentes – e até mesmo os ausentes – sabiam a respeito do que o
Papa estava falando. A imprensa sabia, os candidatos sabiam, seus partidos
sabiam. Foram palavras severas, de apoio aos poucos, aos raros, aos escassos
bispos que resolveram cumprir sua função pastoral e dizer com clareza a
seus fiéis o quanto é contraditório à fé e à moral católica o voto que confere
poder a correntes políticas comprometidas com:
1. a liberação do aborto;
2. a abolição de símbolos religiosos;
3. a absorção de toda e qualquer relação afetiva no conceito constitu-
cional de família;
4. uma visão de estado laico cujo viés totalitário pretende expurgar dos
debates civis os cristãos, seus princípios e seus valores.
Foi bem claro o Papa a esse respeito: “Quando os direitos fundamentais
da pessoa ou a salvação das almas o exigirem, os pastores têm o grave dever
de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas.”
Venho escrevendo sobre isso há anos, como leigo, e nunca sequer me
ocorreu que fosse necessário perguntar a Bento XVI ou, antes dele, a João
Paulo II se estavam de acordo. Eu simplesmente sabia (assim como sei haver
oxigênio no ar que respiro) que tais afirmações eram harmônicas com a
orientação pontifícia. Ponto. Surpreendem-me os que, leigos ou religiosos,
se surpreenderam!
Vá que seja. Eu talvez tenha estudado um pouco mais essas coisas do que
alguns deles, por gosto e boa orientação de amigos padres e bispos que influen-
ciaram minha formação. Nunca precisei, portanto, como leigo, que alguém me
dissesse o quanto o PNDH-3 (decretado em 21/12/2009), seus criadores e pro-
Montanhas ao mar130
D. Paulo escreveu a Fidel em cima de tal fato. E foi acalentar no sono dos
que são capazes de arder todo e qualquer bem na fogueira dessa ideologia
malsã, a irresponsabilidade do que escrevera. Referia-se, então, ao mesmo
regime que, vinte anos depois, como prova de benevolência, ainda liberta às
pencas dissidentes políticos! Alguns bispos cubanos, felizmente, responde-
ram a D. Paulo. A longa carta que lhe mandaram, entre outras coisas, relata
esta grande novidade: “Cuba sofre, já há trinta anos, uma cruel e repressiva
ditadura militar, num estado policial que viola, constante e institucionalmen-
te, os direitos fundamentais da pessoa humana”. Ao fim da dissertação, os
três bispos que a assinam concluem: “Deus queira que seu país nunca tenha
que passar pela trágica experiência que nós estamos atravessando”.
Esse deve ter sido o trecho que mais desagradou D. Paulo, subtraindo-lhe,
por instantes, o melífluo sorriso que adorna de falsidade suas manifestações.
Afinal, reproduzir no Brasil a experiência cubana era tudo que ele mais de-
sejava. Oh, raios! Como é que os bispos cubanos lhe esfregavam no rosto o
fato de estarem rezando contra seus mais caros anseios pastorais?
É provável que o leitor esteja duvidando. “Não é razoável. Nada disso
pode ser verdade. Um cardeal católico não poderia dirigir tal louvação a uma
ditadura que tanto perseguia a Igreja e que já durava 30 anos.” Pois é tudo
exato e veraz, letra por letra, meu caro. Tenho em mãos cópia das correspon-
dências, que à época li nos jornais. As duas foram transcritas na imprensa bra-
sileira e a de D. Paulo foi reproduzida em espanhol no Granma, com grande
destaque. Aliás, eu mesmo escrevi para o Correio do Povo, em 26 de janeiro de
1989, um artigo intitulado “A epístola de Paulo (o Evaristo)”, tecendo ironias
sobre a falta de juízo do cardeal paulista, cujos olhos, ao reverso do apóstolo
dos gentios, cada vez mais se revestiam de escamas. E acrescentei que a mes-
ma carta a Fidel poderia ter sido enviada em circular, por D. Paulo, para os
governos da Alemanha Oriental, Bulgária, Polônia, Hungria, Albânia e tantos
outros. Afortunadamente vivíamos, então, os primeiros dias do ano da Graça
(poderíamos dizer, sem exagero, o ano da Grande Graça) de 1989, quando
começariam a desabar os regimes do Leste Europeu.
Fidel, esse tirano que D. Paulo, Lula, Dilma, Zé Dirceu, Frei Betto, Chico
Buarque e muitos outros veneram montou uma ordem social tão esquizo-
frênica e tão canalha que produziu este resultado sem igual na história do
operariado mundial: quando foi anunciada a demissão de uma quinta parte
da força de trabalho cubana, mediante pagamento de um mês de salário por
cada dez anos de atividade, a Central dos Trabalhadores de Cuba aplaudiu
a providência!
ESCORPIÕES E RÃS 217
A coisa fica ainda mais grave porque os mesmos setores vivem clamando
que o Estado é laico, que a moral cristã não pode pretender espaço nas nor-
mas que incidem sobre a vida social, que os símbolos religiosos têm que ser
retirados dos lugares públicos, que o Papa é um retrógrado e que a Igreja é
um dos males da humanidade. Mas contra a CNBB, nem um pio! O nome
disso é parceria. É companheirismo. E torna inevitável a constatação: a ima-
gem da CNBB está associada a uma corrente política avessa à sua missão.
Essa não é uma questão pequena, nem recente, nem vazia de sentido moral.
Bem ao contrário. Para a CNBB, desde os anos 70 do século passado, a
convergência ideológica supera em significado e importância a divergência
moral e religiosa.
Antes que alguém saia com o clássico - “Isso é o que você diz!”, vale lem-
brar que em fins de dezembro de 2010, falando aos bispos brasileiros do Sul
III e IV, quando com ele estiveram em visita ad limina, Bento XVI os advertiu
para “o perigo que comporta a assunção acrítica, feita por alguns teólogos,
de teses e metodologias provenientes do marxismo, cujas sequelas mais ou
menos visíveis, feitas de rebelião, divisão, dissenso, ofensa e anarquia fazem-
-se sentir ainda, criando, nas vossas comunidades diocesanas, grande sofri-
mento e grave perda de forças vivas”. Não sou só eu quem diz.
A CNBB está ao lado dessas correntes. A elas convergem suas pastorais
sociais. Com elas se alinham os desvios doutrinários propostos pela Teolo-
gia da Libertação. Com elas andam a CPT (Comissão Pastoral da Terra),
as CEBs (Conselhos Episcopais de Base), o CIMI (Conselho Indigenista
Missionário), as CFs (Campanhas da Fraternidade), bem como muitos de
seus documentos e estudos. Com elas a CNBB se engaja em promoções
nacionais, como foi a campanha pelo calote da dívida externa, e pela li-
mitação, em 20 módulos, da extensão das propriedades rurais. Procede,
enfim, como o Chapeuzinho Vermelho que levasse o Lobo Mau pela mão
até a casa da vovozinha.
Sei que o texto a seguir parece escrito com o cotovelo, mas era preciso
ser fiel ao trabalho de seus redatores. Trata-se de um trecho do documento
Análise de Conjuntura, referente a março de 2014, preparado pela assessoria
do mesmo modo que os balões e os “brigadeiros” estão na festa, mas não são
a festa. Quem faz esse tipo de negócio fica como o sujeito do programa de
auditório, afundado em inconscientes transações. Feliz Páscoa, então!
Poucas coisas são tão postiças quanto a sabedoria dos intelectos vaido-
sos. E poucos tão infelizes quanto os que pretendem beber a felicidade no
próprio copo, de canudinho, como refresco.
Comecemos pelos primeiros, pelos enfatuados do próprio saber. Para
eles, todo espelho é mágico e lhes atira beijos. Lambem seus títulos. Devo-
ram as próprias palavras após pronunciá-las para que nada se perca de seu
sabor. E vão engordando de lipídios um orgulho autógeno, encorpado pelas
lisonjas alheias e pelas que generosamente dedicam a si mesmos.
De quem falo? Bem, pessoas assim estão em toda parte. Não posso
dizer que formam um exército numeroso porque não há exército com-
posto apenas por generais de quatro estrelas. Andam dispersos, portanto.
Mas se há um lugar onde, por dever de ofício, se reúnem expoentes de tal
conduta, esse lugar é o STF. Chega a ser divertido assisti-los desde a pers-
pectiva pela qual eles mesmos se veem. Aferi-los pela infinita régua com
que se medem. Apreciar o esforço que fazem para ostentar sabedoria. As
frases lhes saem lustradas, polidas como corneta de desfile. Não que isso
seja mau em si, mas chama atenção como parte da grande encenação das
vaidades presentes. Imagino que por vezes se saúdem assim: “E sua vai-
dade como vai, excelência?” E o outro retruca, cortesmente: “Bem, bem,
recuperando-se do último voto vencido, mas as perspectivas são boas,
obrigado, ministro.”
Nada mais próprio do que a palavra “corte” para designar aquele cole-
giado (cuja importância para a democracia e o Estado de Direito – esclareço
porque não quero ser mal-entendido – ergue-se acima dessas fragilidades
humanas). É uma corte. É uma corte onde todos exercem, sobre o Direito a
que estamos submetidos, uma soberania irrestrita, que flutua em rapapés e
infla os egos à beira do ponto de ruptura.
Se há alguém, ali, cuja vaidade consegue sobressair-se dentre todas, esse é
o ministro Marco Aurélio Mello. Imagino o mal-estar que cause entre os de-
mais quando se põe a lecionar-lhes. No plenário ele é o Verbo. Sua excelência
sequer fala como as pessoas comuns falam. As palavras lhe saem arquejadas,
numa espécie de sopro divino, criador, forma verbal das cintilações do astro
rei da constelação. Ante um brilho desses só se chega usando óculos escuros
e protetor solar.
Pois bem, quando os ministros sentaram para decidir sobre direitos das
“uniões homoafetivas”, Marco Aurélio Mello resolveu atacar a Igreja. Foi
até a Inquisição, passeou sobre os diferentes doutrinadores a respeito da
relação entre a Moral e o Direito – círculos concêntricos, círculos secantes,
mínimo ético, e por aí passeou, sempre buscando deslegitimar a influência
religiosa sobre a moral social e sobre o Direito. Por fim, abraçou-se à tese
de uma desembargadora gaúcha, para quem a família formada por homem,
mulher e prole é coisa voltada para o patrimônio e causa da infelicidade uni-
versal. No viés proposto, família é qualquer outro arranjo possível, enquan-
to perdurar a felicidade de cada um. Muitos doutrinadores da zorra geral
chamam a essa coisa transitória de “família eudaimonística” (eudaimonia é
felicidade em grego).
Pergunto ao senso comum do leitor: mas não é exatamente essa visão
egoísta, a busca de uma felicidade que transforma os outros em bens de con-
sumo a causa determinante da infelicidade geral e das desagregações familia-
res? Pergunto a pais e mães neste dia das mães: pode existir família sem que
exista capacidade de renúncia e de sacrifício? Não é esse egoísmo deslavado
que arrasta ao abandono e ao desabrigo tantas mães cujos maridos foram
buscar “felicidade” em outros ninhos?
224 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
É, pois, o STF a mais alta corte do império bárbaro que nos assaltou,
com suas muitas tribos.
O texto a seguir fala da grave situação que vivíamos em 2011. Piorou
muito, é verdade. Mas o escrito segue tristemente atual.
Digo e provo. Cada povo tem o Supremo que merece. Não é por outro
motivo que convivemos com tantas decisões chocantes, contra as quais nada,
absolutamente nada se pode fazer porque expressam a vontade da mais alta
Corte. A Corte... Já escrevi sobre isso. Uma das características de toda corte
é seu alheamento em relação à realidade. É um alheamento que começa no
luxo dos salões, nas mordomias dispensadas aos cortesãos, nas necessárias
garantias que lhes são concedidas com exclusividade em relação à caterva
circundante. E que, como não poderia deixar de ser, se reflete na visão de
mundo e nos critérios de juízo. A corte contempla a realidade com luneta
de marfim e ouro, enquanto balança os pés à borda de uma cratera lunar,
lá no mundo onde vive. Marfim e ouro? Sim, marfim e ouro. Afinal, aquela
Corte tem 11 membros, um orçamento de R$ 510 milhões (um sexto do
orçamento da Câmara dos Deputados com seus 513 membros) e cerca de
2600 funcionários, entre servidores concursados, terceirizados e estagiários
(cf. Luiz Maklouf Carvalho, Revista Piauí, ed. 57).
Por outro lado, dado que cada povo tem o governo que merece, sendo o
governo quem escolhe os ministros do Supremo, a frase que se aplica àquele
faz-se vigente, também, para este. Lula cansou de nomear ministros para o
STF. A presidente Dilma tem mais quatro anos para fazê-lo. Antes dos dois,
FHC era adepto do mesmo relativismo e materialismo.
A “inconstitucionalidade” da Constituição137
Quase não dormi. Embora creia que o Estado não tem por que tutelar
todos os tipos de relações afetivas que se manifestem na sociedade, e que se
restringe à família, por ser a instituição fundamental, o espaço reservado à
sua proteção, não considero que o reconhecimento de direitos previdenciá-
rios às uniões homossexuais vá abalar os fundamentos da sociedade. O que
me manteve alerta, insone, foram algumas coisas que ouvi saírem da boca
dos senhores ministros do STF durante o julgamento de ontem, quando, a
toda hora, alguém pegava o microfone para dizer que o STF não estava se
substituindo ao Congresso Nacional. Certamente o diziam por saberem, to-
dos, que era exatamente isso que estavam fazendo.
O AI-5 do Supremo138
Não precisa ser ministro do Supremo para saber que toda proposição
legislativa com apoio popular, maioria parlamentar e concordância do go-
verno vai a votação e é aprovada. Viés oposto, se uma proposição, mesmo
com apoio do governo, leva anos tramitando e não chega ao plenário (como
as que tratam de união homossexual) é porque não tem apoio popular nem
parlamentar. Nesses casos, o próprio autor evita a votação porque percebe
que vai perder. Melhor do que ninguém ele sabe que a Casa já decidiu. E
decidiu contra.
Portanto, quebra o nariz contra o óbvio quem repreende o Congresso por
não haver votado matéria reconhecendo as uniões homossexuais estáveis
como constituintes de entidade familiar. Sabe por que, leitor? Porque nesse
caso, além do óbvio dito acima, o Congresso já deliberou três vezes! E em
todas reconheceu como entidade familiar somente:
1. a união estável “entre o homem e a mulher” (Constituição de 1988);
2. a união estável “de um homem e uma mulher” (Lei Nº 9.278 de 1996);
3. a união estável “entre o homem e a mulher” (Novo Código Civil de 2002).
E ainda há ainda quem ouse afirmar, com face lenhosa, que o Congresso
se omitiu!
Por outro lado, os ministros do STF sabiam. Sabiam que essa mesma questão
surgiu durante o longo processo constituinte dos anos 1987 e 1988. Sabiam que
a versão inicial do artigo 226 só falava em união estável. Sabiam que a redação
assim posta deixava margem à dúvida. Sabiam que essa dúvida gerou debate
nacional e foi pauta, inclusive, do programa Fantástico. E sabiam que o texto do
§3º do artigo 226 foi redigido por emenda do deputado Roberto Augusto, exa-
tamente para dirimir a ambiguidade e esclarecer que a norma se referia à união
“entre o homem e a mulher”. Aliás, ao justificar a emenda do colega constituinte
no dia em que foi a votação, o deputado Gastone Righi disse que a proposta
visava a “evitar qualquer malévola interpretação” do texto constitucional; eis
que, em sua ausência, “poder-se-ia estar entendendo que a união poderia ser
feita, inclusive, entre pessoas do mesmo sexo”. O plenário do Supremo sabia
tudo isso porque o ministro Ricardo Lewandowski, ao votar, se encarregou de
o rememorar. Mas a “malévola interpretação” que os constituintes quiseram
evitar acabou urdida no dia 5 de maio, a vinte mãos, pelo STF. Apesar de tudo.
Aquilo foi o AI-5 do STF! Ele não apenas legislou, mas legislou contra a
vontade explícita do Congresso Nacional. Fez hermenêutica pelo avesso da
norma. Doravante, até que se restabeleça o Estado Democrático de Direito,
só é constitucional aquilo que a Corte desejar que goteje dos princípios da
Carta de 1988. O Poder Legislativo foi sorvido pelo Supremo, onde onze
pessoas extraem tudo que querem de meia dúzia de artigos da Constituição.
O resto é letra morta, palavra ao vento, sem valor normativo.
Deixaram os ministros de ser guardiões para se converterem em donos
da Lei Maior. Assim como Geisel concebeu a “democracia relativa” (relativa
à sua vontade), o STF inventou a relativização da Constituição (relativizada
ao desejo de seus ministros). Foi escancarada a porta para o totalitarismo
jurídico. Passou o bezerrinho. Atrás vem a boiada. Doravante, se um pro-
jeto de lei não tiver guarida no Congresso, recorra-se ao Supremo. Sempre
haverá um princípio constitucional para ser espremido no pau-de-arara das
vontades presentes.
Consulte o juiz139
o pequeno valor atribuído por tantos magistrados ao que está escrito na lei
e, por outro, o infinito amor de tantos juízes ao que eles monocraticamente
acham da vida, tem-se um quadro caótico, dentro de cuja moldura pode
aparecer qualquer coisa. Até justiça.
Não, não estou exagerando. Isso é tão verdadeiro que o Tribunal Supe-
rior do Trabalho resolveu parar durante toda esta semana numa tentativa
de sair do enrosco e acabar com a consequência mais visível de tal situação:
sentenças contraditórias sobre causas idênticas, que “comprometem a credi-
bilidade da justiça trabalhista e causam indignação às partes”. Note-se que
essa realidade nada tem de recente nem é exclusividade da justiça do traba-
lho. Vou relatar fato ocorrido numa vara de Porto Alegre, segundo ouvi há
quase quarenta anos de um amigo procurador do Estado.
Um advogado comparece para audiência, expõe sua tese e perde. Dias
mais tarde, volta à mesma vara defendendo a tese oposta e tranquiliza o
cliente: “Essa está no papo. Conheço a posição do juiz.” Cheio de confian-
ça, entra para a sala de audiências e... perde novamente. Enquanto junta
seus papéis e os enfia, furioso, dentro da pasta, o advogado resmunga entre
dentes: “Sinto-me nesta vara como o flautim do czar.” O magistrado pede
que ele esclareça o que quer dizer. Ele recusa. O juiz insiste. E o advogado,
constrangido, acaba contando a história do flautim do czar.
Aqui vai ela.
Os mongóis estavam invadindo a Rússia. Numa determinada batalha, em que
os russos levavam a pior, a banda, sentindo a derrota, executou com impres-
sionante vigor o hino do czar (embora à época das invasões mongóis ainda
não houvessem czares nos principados russos, a história vai como foi conta-
da). Essa arremetida cívico-musical empurrou os combatentes para a reação
e para uma inesperada vitória. O czar, sabendo do fato, mandou presentear
os integrantes da banda com tantas moedas de ouro quantas coubessem no
seu instrumento de trabalho. O sujeito da tuba ficou rico e o do flautim não
recebeu uma moedinha sequer. Meses mais tarde, em nova batalha, repete-se
a situação, mas foi a banda mongol que levou vantagem. Desta feita, enco-
lerizado com a derrota, o czar determinou que cada membro da banda fosse
punido com a introdução do respectivo instrumento de trabalho no – digamos
assim – trecho final de seu tubo digestivo. E a pena só pode ser cumprida no
infeliz do flautim.
Assisti a boa parte das sessões em que o STF deliberou sobre a adoção
de quotas raciais para ingresso nas universidades públicas. Praticamente to-
dos os votos foram ornados com líricas declarações de amor à justiça pela
igualdade. Estavam dispostos a servi-la às mancheias. O ministro Fux, por
exemplo, não falava. As palavras lhe gotejavam como favos de mel enquan-
to o versejador Ayres Britto ralava os cotovelos na quina da mesa. Joaquim
Barbosa cedeu a cadeira a Castro Alves e quedou-se em pé, atrás, feliz por
“estar ali, nest’hora, sentindo deste painel a majestade”.
A ministra Rosa Maria, tecendo frases como quem bordasse sobre tela,
assentou “que a ação tinha de ser julgada à luz da Constituição, que consa-
gra o repúdio ao racismo e o direito universal à educação”. Foi um alívio,
àquelas alturas, ficar sabendo que a ação seria julgada à luz da Constituição,
porque eu já desconfiava de que os votos estavam sendo iluminados pelos
estatutos de algum movimento racial. Contudo, ficaram a quilômetros das
ponderações da ministra as inevitáveis decorrências do voto que deu: dora-
vante incorrerá em racismo e afrontará o direito universal à educação toda
universidade, pública ou privada, toda feira do livro, todo prêmio literário,
que não prover as tais cotas. Marco Aurélio, por pouco, muito pouco, não
disse que a adoção de quotas raciais se justifica porque o Estado é laico.
Levandowski, o ministro-relator, foi saudado como a princesa Isabel da
sessão. Só não lhe deram tapete vermelho e damas de companhia porque não
ficaria bem. Mas sua imensa contribuição para a justiça racial no Brasil o
fará ombrear, na história, com a filha de D. Pedro II. Ao lado da Lei Áurea,
haverá de estar, para sempre, o Voto Diamantino que relatou à corte. O
ministro, contudo, tinha um problema. Havia um preceito na Constituição
segundo o qual ninguém pode ser discriminado por motivos de cor, etc. E era
demasiado óbvio que o regime de cotas raciais feria essa prescrição ao criar
exceções ao mérito como critério seletivo. A arguição de inconstitucionalida-
de do regime de cotas alegava que os positivamente discriminados ingressam
É uma infestação. Uma praga! Talvez seja pior até mesmo que a se-
gunda praga do Egito, pois a maldição narrada no Antigo Testamento
ESCORPIÕES E RÃS 235
trazia apenas rãs. Agora, elas vêm “pilotadas”, orientadas, por escor-
piões ávidos por poder. Elas vêm em forma de
• partidos que funcionam como linhas auxiliares,
• organizações não-governamentais ligadas a partidos e mantidas
com verbas... governamentais,
• políticos patrimonialistas, dispostos a negociatas quaisquer,
• empresários covardes e ambiciosos, que se entregam a agentes pú-
blicos corruptos,
• servidores carreiristas, que não abrem mão de seu quinhão,
• órgãos e instituições, malabaristas de números,
• escritores, músicos, atores, enfim, intelectuais e artistas “orgâni-
cos”, segundo definição de Antonio Gramsci para os idiotas úteis
das artes e das letras,
• partidos, políticos e associações terroristas e de esquerda da Amé-
rica Latina, unidos sob o Foro de São Paulo,
• “padres de passeata”, como bem alcunhou Nelson Rodrigues, que
rezam conforme a cartilha de Marx,
• juristas em geral e ministros do STF, dispostos a defender a causa
e a legislar com julgamentos canhotos.
Como se vê, os maus brasileiros, os Procustos à brasileira, atingiram
grande êxito em seu projeto hegemônico gramsciano. A invasão insti-
tucional dos bárbaros beirou a perfeição.
O azar deles – e sorte nossa – é que a ineficiência é sua marca princi-
pal. E, de uma forma ou de outra, cedo ou tarde, a Verdade, com “v”
maiúsculo, prevalece.
Seu poder tem diminuído, sua estrutura tem sofrido abalos. Mas há
ainda muito por fazer para enterrar seu projeto.
O caminho – ao menos à compreensão do problema, que é em si o co-
meço de sua resolução – nos dá Percival Puggina, no último capítulo
desta obra, com seus textos mais recentes.
LANTERNA NA PROA
Abrimos esta obra com um grande brasileiro: Mário Ferreira dos Santos,
filósofo de vasta obra, profunda erudição e teses certeiras e perenes. Era uma
preparação, a última boa refeição de um peregrino antes de um período de
agruras e escassez ao longo de sua trajetória. Após o filósofo da concretude,
os brasileiros citados e analisados por Percival Puggina eram, em geral, de
outra classe – presunçosos, preguiçosos, ressentidos, invejosos, mentirosos,
inescrupulosos. Do primeiro capítulo deste livro, sobre a Verdade, até aqui,
atravessamos longas trevas. Agora, neste último capítulo, trazemos nova luz.
Roberto Campos, um brasileiro gigantesco (dentre tantos vitimados pelo
nanismo moral), inspirado em versos de Samuel Taylor Coleridge, deu a seu
livro de memórias o título Lanterna na popa – que, segundo o poeta inglês,
“ilumina apenas as ondas que deixamos para trás”.
Do alto de uma verdadeira humildade, dizia não possuir “profundidade,
inteligência ou poder para erguer um farol que lançasse um facho de luz para
as futuras gerações”, mas que, analisando e expondo sua história, poderia
ao menos oferecer uma “lanterna na popa”. Acrescentamos que, além de
iluminar às águas deixadas para trás, esse facho orienta as embarcações que
lhe seguem.
Enganou-se, porém, Roberto Campos. O que ele nos deixou foi um ca-
nhão de luz, capaz de dar vida à escuridão de nossa intelectualidade recente
e de indicar uma escada luminosa à necessária sublevação do indivíduo bra-
sileiro, precedente de uma esperada elevação do espírito nacional.
A lanterna na proa que pretende ser este capítulo é a mesma que estava
na popa de Roberto Campos. Com Puggina, começamos com a lanterna na
popa: olhamos para trás, analisamos a situação pregressa, entendemos qual
era nosso problema, como ele se estabelecera e quem são seus agentes. Agora,
a lanterna vai para a frente da embarcação, a iluminar o local presente e as
possibilidades futuras.
No domingo 15 de março de 2015, milhões de brasileiros foram às
ruas pedir o impeachment de Dilma Rousseff e clamar por investi-
gações contra o PT e contra toda e qualquer organização política ou
civil que se tenha aliado ao bando de Lula.
Após anos de inoperância da oposição, foi a indignação que levou os
brasileiros às ruas. As condições para isso foram dadas pela incansável
atuação de pessoas como Olavo de Carvalho, Reinaldo Azevedo e o
próprio Puggina, autor desta obra.
O momento é outro. A situação é trágica. E as razões para a mudança
são muitas – 13, para ser mais exato e simbólico.
Q
ueriam a prova? Pois ela veio assim que terminaram as manifestações do
domingo, país afora. A entrevista dos ministros Miguel Rossetto e José
Eduardo Cardozo fez prova provada do inverso da tese que pretenderam
apresentar. O governo é incorrigível! O que tinham a dizer? Nada que suscitasse
consideração ou respeito. Ao contrário, mostraram a mesma falsa autossuficiên-
cia e conhecida arrogância. Pacote de combate à corrupção? Me poupem!
Só o impeachment (palavra que em inglês que significa “acusação”, “impug-
nação”) da presidente Dilma pode resolver a crise política instaurada no país.
De que se acusa o governo? Por que impugná-lo como parte de um ato político
devidamente constitucional e objeto de legislação específica? Eis por quê:
1. A presidente perdeu quase totalmente o apoio popular. Sua perma-
nência no cargo, em tais condições, nada tem a ver com democracia,
mas com Estado de Direito. A democracia, a vontade popular, não
mais a sustenta. Não mais a referenda. O povo perdeu-lhe o apreço
e o respeito. É graças à Constituição que a presidente permanece até
que o rito político nela previsto impugne sua presença na chefia do
governo e do Estado brasileiro.
2. Dilma se esconde do povo. Onde vai, leva vaia. Quando aparece na
televisão não tem o que dizer exceto repetir o discurso de sua inescru-
143 Em 13 de março, dois dias antes do povo brasileiro dar enorme mostra de insatisfação com
o governo do PT, uma militância tão natural quanto os improvisos discursivos de Dilma Rous-
seff tentou mostrar força em favor da presidente. Em capitais como São Paulo e Rio de Janeiro,
ônibus despejavam centenas de supostos sindicalistas. Sobreviria, depois, a denúncia (uma delas
registrada em vídeo) de que cada militante recebera 35 reais para participar do ato, além do kit
camiseta, bandeira e boné. [N. C.]
LANTERNA NA PROA 241
Elas são bem adequadas ao momento. Qualquer outro povo que tivesse,
desde 2005, quando estourou o primeiro escândalo do governo Lula, co-
nhecido o que o Brasil conheceu, sabido do que o Brasil ficou sabendo, con-
templado o futuro que o Brasil contempla, sido fatiado em alas e conflitos
como o Brasil foi, andado nas companhias com que o Brasil andou, feito os
negócios que no Brasil se fizeram, perdido tudo que no Brasil se jogou fora,
teria enxotado seu governo a votos na primeira oportunidade. O Brasil já
perdeu a terceira. Se o que acontece nas nossas ruas ocorresse em país sério,
seu povo se teria arrependido com vergonha e humildade. Ainda não chegou
para nós o dia em que o Brasil tomará juízo.
Felizmente, metade da nação já despertou. A disputa começou muito
mais desigual. Ao longo dos últimos meses, porém, o petismo, sem meias
nem peias, que se julga dono do Brasil, foi produzindo o mais incômodo de
seus resultados: o antipetismo consciente, crescente e comunicante, que se
irá organizar porque exatamente aqui, onde o PT julga que tudo termina, é
onde tudo começa. O que era disperso ganhará coesão.
Já que o PT preferiu dividir, dividido está. E o que foi dividido saberá
unir-se. Em dois anos haverá novas eleições e, desta vez, os antipetistas sabe-
mos quem esteve e quem está com quem. Isso o PT e o Congresso Nacional
ficaram sabendo: metade do Brasil é antipetista. E todo parlamentar que não
for assumidamente antipetista vá cantar na sua freguesia porque terá metade
da nação contra si.
díssimo interesse público, questão altamente sensível, sobre a qual não pode
haver dúvidas. E, menos ainda, inúmeras, imensas e reiteradas dúvidas.
Muito já foi escrito sobre o quanto era politicamente impróprio confiar a
presidência da Corte que conduziria este pleito a um ex-funcionário do par-
tido governista. Agora, surpreende o silêncio do TSE sobre aquilo que mais
se fala no país: as suspeitas sobre a eleição por ele presidida. Já surpreendia
antes, quando os cidadãos se angustiavam e não passava dia sem que algu-
ma informação circulasse, potencializando as incertezas. E surpreende ainda
mais agora, quando denúncias e inconformidades surgem dos pontos mais
variados do território nacional.
Para bem da democracia, da respeitabilidade das instituições e da legi-
timidade dos mandatos, que tudo seja auditado e investigado. E que estas
sejam as últimas eleições feitas segundo esse método de votação e transmis-
são de dados. Afinal, ao longo dos anos, quase uma centena de países vieram
conhecer o modelo brasileiro. Nenhum o adota.
O Brasil vai como quem resvala rampa abaixo sobre um skate. É a crise.
Em relação a ela, existem duas atitudes principais. A primeira, amplamente
majoritária, é a atitude dos que entenderam o que aconteceu e estão indigna-
dos. A segunda é a dos que ainda não entenderam.
Estou entre os primeiros. E realmente indignado porque não precisáva-
mos estar passando por isso. Nosso país viveu um momento promissor nos
primeiros anos da década passada. Após enorme esforço fiscal, o Brasil der-
rubara a inflação, havia recuperado a credibilidade internacional, passara
a atrair investimentos, construíra alguns fundamentos para a Economia, a
arrecadação crescera e o governo ampliara a destinação de recursos para
uma série de programas sociais. As condições para tanto foram obtidas a
duras penas desde o governo Itamar Franco, com medidas de austeridade e
privatizações que o PT combateu furiosamente. Seriam necessárias muitas
outras providências, é verdade, mas nunca houve (e não sei se um dia haverá)
apoio político, no Brasil, para fazer todo o dever de casa.
Mas íamos bem. Tanto assim que Lula e seus companheiros se convence-
ram de que governar o Brasil era uma barbada. A China vendia tudo barato
e comprava montanhas de qualquer coisa. Jorrava dinheiro nas contas pú-
blicas. Obama dizia que Lula era “o cara” e o cara era o pai dos pobres, aqui
e mundo afora. O Brasil virou um programa de auditório onde se atirava di-
nheiro ao público. Havia bastante. Dava para comprar todos que quisessem
se vender. Uma parte da grana ia para os programas sociais e outra, muito
maior, para os programas socialites, via contratantes de obras e serviços, e
financiamentos do BNDES.
De formiga da revolução social, o petismo passou a cigarra das prodiga-
lidades. Em vez de investir na qualidade da educação das classes de menor
renda, preferiu remunerar a ociosidade. Em vez de estimular o mérito, favo-
receu a mediocridade com leis de cotas. Em vez de gastar recursos públicos
em infraestrutura, “conquistou”, em dois lances, a Copa de 2014 e os Jogos
Olímpicos de 2016. Em vez de diminuir o tamanho do Estado, agigantou-
-o com novos ministérios para usufruto da base de apoio. Para que o PT se
exibisse como partido líder da esquerda continental, financiou de um modo
escandalosamente secreto obras de infraestrutura que fariam muito bem, se
feitas no Brasil. Bilhões de reais foram direcionados para os países do Eixo
do Mal Latino-Americano (na expressão perfeita do Dr. Heitor de Paola).
A crise da economia mundial ganhou de Lula o apelido de “marolinha”.
E como tal, foi solenemente ignorada pela imprudência ufanista do presi-
dente. Ele dava conselhos ao mundo sobre como acabar com a pobreza...
A partir da metade do segundo mandato do estadista de Garanhuns, nos
monitores dos analistas da realidade brasileira, as luzes amarelas se alterna-
vam com as vermelhas. Mas nada importava. Era preciso eleger a senhora
mãe do PAC, notória economista que pensou haver descoberto o segredo do
bem-estar geral: endividar a sociedade toda através do governo para man-
ter as aparências e, adicionalmente, ampliar o endividamento das famílias.
Se você examinar de perto, verá que não há muito espaço para geração de
riqueza, poupança interna e investimento nessa inadequada concepção. Em-
bora não conviesse ao Brasil reeleger Dilma, Dilma precisava ser reeleita.
Paguemos todos, então, os custos das ilusões necessárias para produzir o
absurdo e suspeitíssimo resultado eleitoral de 2014.
A notória falsificação, que já leva oito anos, enganou muitos, durante
muito tempo. Não só no Brasil, diga-se de passagem. Agora veio a conta, e
246 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
É impeachment, sim!147
Os verdadeiros golpistas148
É uma das formas como nossos bárbaros tentam seguir com seu pro-
cesso de invasão institucional.
O crime de PT-fobia150
do, há anos, semeia onde quer que a imaginação humana possa vislumbrar
uma fissura em grupos sociais. Por esse caminho, o PT foi jogando os brasi-
leiros uns contra os outros até darem conta do que estava acontecendo.
Mas se o ódio faz mal, tampouco seria benéfica e respeitável a passivida-
de tolerante que o petismo apreciaria neste momento. O fiapo de democracia
que nos resta está sustentado nos movimentos de rua e nas redes sociais por-
que as instituições, bem, as instituições estão com a vida ganha. E o país tem
um governo petista com uma oposição tucana. Pode haver infortúnio maior?
Duvido que algum pai, ao matricular o filho numa escola, fique na ex-
pectativa de que lhe sejam enfiadas na cabeça as ideias políticas que seus
professores tenham. Os pais esperam exatamente o oposto. Esperam que
os professores não façam isso porque reservam tal tarefa para si mesmos,
segundo os valores e a cultura familiar. Quando um professor, o sujeito no
quadro-negro, o cara de cima do estrado, que corrige prova e dá nota, usa a
autoridade e os poderes de que está investido, para fazer a cabeça de crianças
e jovens, exerce sua profissão de modo abusivo. Figurativamente, pratica
estupro de mentes juvenis. Se o professor quer fazer proselitismo político, se
anseia por cooptar militantes para sua visão de mundo, de sociedade, de eco-
nomia, de política, de história, que vá procurar um vizinho, um colega, um
superior. Figurativamente, que deixe de ser abusador e vá enfrentar alguém
de seu tamanho intelectual.
Volto a este assunto porque, aqui no Rio Grande do Sul, o Sinepe/RS,
sindicato patronal das escolas particulares, convidou o Dr. Miguel Nagib,
coordenador do movimento Escola sem Partido, para uma palestra aos di-
retores de escolas. Ótimo, não é mesmo? Sim, ótimo para todos os alunos
e pais, mas não para o sindicato dos professores das escolas particulares, o
Sinpro/RS. Em assembleia geral, o sindicato emitiu Moção de Repúdio ao
evento, em veemente defesa do direito dos professores de influenciarem poli-
ticamente seus alunos. No texto, os docentes afirmam que “retirar da Educa-
ção a função política é privá-la de sua essência” para colocá-la a serviço “da
ideologia liberal conservadora” à qual os mestres de nossos filhos atribuem
todas as perversidades humanas, das pragas do Egito ao terremoto do Nepal,
passando por Caim e Jack o Estripador.
Não é por acaso que nosso sistema de ensino se tornou um dos pio-
res do mundo civilizado. Afinal, sua essência é ser campo de treinamento
de militantes para os partidos de esquerda. Os dirigentes do sindicato dos
sendo escancaradas, entre nós, por três avanços tecnológicos: internet, re-
des sociais e smartphones. Através desses novos meios, abrem-se ao brasi-
leiro comum, em especial aos jovens, novos horizontes e melhores fontes
de conhecimento.
Méritos a Olavo de Carvalho e seus alunos. Mérito aos conservadores e
liberais que se organizam com o intuito de enfrentar a hegemonia cultural
marxista imposta ao país ao longo de décadas. Méritos aos novos escritores,
jornalistas, pensadores e blogueiros que emergem da fumegante batalha de
idéias, portando as minhas esperanças e formando uma nova elite, em tudo
superior à que pavimentou o caminho de Lula e dos seus.
Desejo pronta recuperação a quem tem enxaqueca e convulsões ante
essas duas palavras – “liberais” e “conservadores”. Mas eu precisava fazer
este anúncio para dizer que a situação começa a mudar. Quem o diz é a
voz das ruas e são os fatos que o indicam. É nítido o mal-estar instalado
em setores significativos do mundo acadêmico e do jornalismo brasileiro,
habituados a falar sem contraditório. A percepção de que o marxismo e a
esquerda perdem fiéis e ganham oposição consistente na sociedade onde
haviam construído hegemonia está desestabilizando muita gente que já
começa a falar em guerra! Políticos habituados a assassinar reputações
assistem ao suicídio da própria. No fundo, prefeririam que as posições esti-
vessem invertidas. Então, bradariam por impeachment e estariam dizendo,
dele, aquilo que de fato é: um meritório instituto, concebido para lembrar
ao governante que pode muito, mas não pode tudo. O crescente descrédito
do marxismo e o desprestígio do governo são duas boas notícias para a
educação no Brasil.
Quando tudo vai bem, o que a gente menos quer falar é em mudança.
Deixa como está! Não mexe!
Estou falando dos membros das instituições. Dos órgãos do Estado, do
governo, do parlamento, da justiça. Para esse específico e decisivo conjunto
de pessoas, de autoridades, tudo está muito bem. Não têm do que se quei-
xar. Os vencimentos são bons, os subsídios idem, prerrogativas e privilégios
também, o modelo lhes garantiu acesso aos postos que ocupam, as regras do
jogo lhes foram convenientes. Em grande parte, conquistaram suas posições
com méritos intelectuais nos postos ocupados por concurso, e por méritos
políticos nos postos eletivos ou de indicação. Tudo está no seu lugar e todos
estão onde querem. Deixa tudo como está!
Esse tem sido um clássico entre os problemas brasileiros. Muda-se apenas
o mínimo necessário para que nada mude, como já disse alguém. Estamos
em meio a uma crise cujos promotores são conhecidos e sobre cujas causas
ninguém tem dúvidas. Tudo vai mal para quase todos. Mas tudo vai bem para
quem decide sobre quaisquer mudanças e sobre os rumos a serem dados ao
O Brasil ainda não chegou nesse ponto, mas o dirigente político de qual-
quer país que se aprofunde em tal ideologia fala para um povo que enfren-
ta escassez de tudo, que sai de uma fila para entrar noutra. São países onde
se tabelam preços de produtos que não existem, onde a inflação dispara e
de onde, quem pode sair, foge correndo. O discurso oficial, porém, proclama
vitórias populares, sucessos indiscerníveis, luminosos dias do porvir e ataca
ferozmente inimigos externos que estão se lixando para ele. Assim fazem em
Cuba, assim fazia Chávez, assim tem sequência o processo venezuelano com
Maduro. Para aí vai, célere, a Argentina. Nunca lhes faltam idiotas defensores
do regime, dentro e fora do país, para aplaudir seus discursos.
Em 16 de outubro, o jornalista Clovis Rossi publicou na Folha de São
Paulo uma coluna com o título “Aécio assusta Unasul”. No texto, o jornalis-
ta comenta o pânico que o crescimento das intenções de voto do candidato
oposicionista brasileiro estava causando, naquele momento, entre os gover-
nantes da região. Sem conseguir dizer bem o que pensava a respeito, concluiu
o texto afirmando que “com todos os déficits democráticos claramente ex-
postos na Venezuela chavista, o governo Maduro é legítimo. E é do interesse
brasileiro que saia da crise, até para poder pagar as dívidas mantidas com
as empresas brasileiras”. Em síntese, Aécio não teria nenhum interesse em
aproximação com Bolívia, Venezuela, Cuba, Argentina e Equador, que são os
países mais alinhados com o Foro de São Paulo e com a União das Nações
Sul-americanas. E isso seria muito ruim para seus governos.
Desde meu minúsculo mas vigilante observatório, vejo que Aécio tinha
razão: os parceiros de Dilma afundam numa ideologia que é a própria usina
da miséria. Quanto maior a crise, maior a dose de autoritarismo e interven-
cionismo que só serve para ampliar as dificuldades e aumentar aquilo que
Clóvis Rossi chamou, eufemisticamente, de “déficit democrático”. Defini-
tivamente, a Venezuela se degenera, a Argentina vai no mesmo caminho e
ambos começam a ficar, cada vez mais, parecidos com a venerada ilha dos
Castro. Enquanto isso, o governo brasileiro tenta, por todos os modos – e
maus modos – disfarçar seus próprios problemas com estratégias de aves-
truz. Como em Cuba, o nexo entre o ufanismo oficial e a realidade nacional
mostra que o delírio psicótico é o máximo denominador comum dos go-
vernos comunistas. No entanto, e aqui está o importante no texto de Rossi,
relido após o encontro da Unasul, todos os países do cosiddetto “bolivaria-
nismo” espicham para o Brasil olhos esperançosos, como se o tamanho da
nossa economia fosse sinônimo de riqueza disponível e socializável.
Infelizmente, é nessa direção que apontam, de fato, os movimentos da
política externa petista. Na última reunião da Unasul, Dilma foi recebida
e falou como talvez falasse Bill Gates numa reunião com estagiários. Não
admira que o real se desvalorize, que as verdinhas abandonem o país, que a
inflação fure o teto e o PIB fure o piso.
264 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
“Solidariedade” ou hipocrisia?159
ridos foram presos por Maduro. Ambas vieram buscar ajuda da presidente
Dilma, mas foram recebidas pelo sub do sub, a quem transmitiram apelo que
entrou por um ouvido e saiu pelo outro.
precisa, pelo menos, advertiu-me um amigo atento, parar com essa impro-
priedade de chamar aquele antro de criminosos de “Estado Islâmico”. E meu
amigo tem razão. Tal designação presume um reconhecimento inadmissível,
que afronta o Iraque e a Síria, e serve para consolidar a situação. Se a coisa
pega, logo nossa presidente estará trocando embaixadores com o senhor
Abu Bakr al-Baghdadi e Lula acompanhará alguma empreiteira brasileira
em promissoras negociações para construir fortificações e bunkers no inte-
rior do território ocupado pelos terroristas.
Não existe Estado Islâmico! Islâmico, sim, porque até agora, que eu saiba,
nenhum muçulmano lhes negou essa condição. Mas “Estado”, não! A mídia
deveria se referir a um “Território ocupado por terroristas islâmicos no Iraque
e na Síria”, ou mais sinteticamente, a um “pseudo-Estado Islâmico”. Deno-
minar aquilo de Estado e aquele demônio de califa é total impropriedade. Os
terroristas ocupam área de contornos instáveis e não há algo que se possa
chamar “povo” quando minorias étnicas são massacradas no interior de suas
supostas fronteiras. Sem essas duas características não existe Estado.
de seus sites e nas resoluções de seus congressos. Procure identificar o rumo per-
seguido pelas proposições legislativas dos parlamentares do partido. Vejam com
que tipo de governos e regimes se relacionam. Siga por essas trilhas e perceberá
que o PT mantém com a Igreja Católica (que não se confunde com a CNBB)
e com sua doutrina religiosa e moral uma relação de irredutível divergência e
animosidade. A distância que separa o petismo da Igreja é intransponível.
No entanto... no entanto..., o Partido dos Trabalhadores e a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil, há 35 anos, vivem em união estável, garan-
tidora não apenas de direitos, mas de afetos, regalias e privilégios. Todas as
pastorais ditas sociais da CNBB trabalham ombro a ombro com o partido,
de modo militante e diligente. Ao longo dos anos, quando o PT era oposição,
os documentos da Conferência que tratavam de questões políticas e sociais
atacavam os governos reproduzindo fielmente o discurso petista. O idioma
era e prossegue sendo petista. Estridentes sutilezas que muitas vezes denun-
ciei! Nas reuniões de pastoral a que compareci, regional e nacionalmente nos
anos 80, falava-se muito mais de Lula e PT do que de Jesus Cristo e Igreja.
Quando o PT chegou ao governo, esse mesmo Lula que os amigos leitores
conhecem tão bem quanto eu, era apreciado pelos operadores da CNBB
como um anjo do Senhor caído em Garanhuns.
Passaram-se 12 anos e as coisas estão como se sabe. A última eleição
transcorreu como se viu. A presidente enganou o eleitorado tanto quanto se
assistiu. O partido e seus associados afundaram lá onde o olfato acusa. E a
CNBB, na obscura alvorada do segundo mandato de Dilma, inicia a Campa-
nha da Fraternidade de 2015 falando em Igreja e Sociedade, com destaque
para os temas da corrupção e Reforma Política.
Ótimo, mas, corrupção de quem, senhores bispos? Nem um pio. Cor-
rupção com sujeitos ocultos, em instâncias não sabidas, a sotto voce, como
diria o maestro Riccardo Muti. Corrupção tão impessoal e neutra quanto a
voz passiva. A mesma instituição primeiro atribuía a corrupção à infidelida-
de partidária e se empenhou nisso como se fosse a salvação da moralidade
pública. Em seguida, mobilizou céus e terras por uma lei da ficha limpa
(tremendo sucesso, não?). Agora, sem culpados nem fatos a discernir, e sem
credenciais que a qualifiquem para propor temas de Direito Constitucional,
Teoria do Estado e Sistemas Eleitorais, joga sobre a falta de uma reforma
política a causa essencial das venalidades nacionais. Para extingui-la, põe
na mesa uma proposta de reforma política e um oneroso plebiscito que são
muito parecidos, mas muito mesmo, com o que o PT tirou da manga em
2013. E, por isso, tem total apoio desse partido.
268 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
rou de novo. A própria Conferência não deixa por menos. O texto a seguir
foi extraído da “Análise de Conjuntura” apresentada pela assessoria da
CNBB à 20ª Reunião do Conselho Permanente Ampliado, que se reuniu em
agosto de 2014 (em plena campanha eleitoral). Tais análises são rotineiras,
elaboradas por assessores da entidade e, não raro, contam com a colabo-
ração de membros de governos petistas. Lá pelas tantas, examinando a
conjuntura econômica do país, dizem assim os assessores (a íntegra está no
site da CNBB, em Publicações):
A sensação de um clima inflacionário espalhado pela mídia, baseando-se sobre
os gastos ditos excessivos, sobretudo sociais, visa difundir um temor da volta
da inflação, temor que é responsável por uma difusão da inflação. Entretanto, a
taxa de inflação de agosto pode ficar mais baixa ou próxima daquela de julho
(0,01%), contrariamente às previsões dos analistas do mercado financeiro. A
aproximação das eleições acirra a disputa econômico-financeira entre gover-
no e especuladores. A imprensa não está contribuindo para o debate político-
-econômico, substituindo a informação pela ideologia da crise permanente. A
mídia, porta-voz das elites financeiras, informa que o Brasil está indo à falência.
As manchetes dos jornais (impresso e TV) não param de denunciar erros na
política governamental que teriam provocado ondas de desconfiança.
mais óbvia: os réus da Lava Jato serão julgados, dentro de alguns anos, por
um grupo de amigos, parceiros de ideais, compreensivos à necessidade de
que os meios sirvam aos “elevados fins” da causa petista e aos sagrados ide-
ais de hegemonia do Foro de São Paulo. Não, o mal se prolonga muito além
de uma mera ação penal. Sua repercussão é bem mais ampla.
Suponha, leitor, que, como é meu desejo, em 2018, na mais remota das
hipóteses, o Brasil tome juízo e eleja um governo e um parlamento de maio-
ria liberal e conservadora. Esse desejado governo e esse Congresso serão efi-
cazmente confrontados, não pela oposição política parlamentar minoritária,
mas pela unanimidade do STF, transformado em corte judicial petista!
Um Supremo 100% assim, valendo-se da elasticidade com que já vêm sen-
do interpretados os princípios constitucionais, poderá esterilizar toda e qual-
quer iniciativa governamental ou legislativa que desagrade ideologicamente os
companheiros instalados nas suas 11 cadeiras. Que necessidade tem de assen-
tos no parlamento, para fazer oposição, quem compôs, dentro de casa, como
que em reunião de diretório, um STF a que pode chamar de seu?
Só não vê quem não quer: um STF onde não existam liberais nem conser-
vadores, onde todos, num grau ou noutro, sejam arrogados “progressistas”
ou desavergonhados marxistas, selecionados a dedo pelo mesmo partido, é
uma revolução através das togas. Dispensa luta armada ou desarmada, dis-
pensa Gramsci, movimentos sociais, patrulhamento. Bastam onze homens e
seus votos. E tudo fica parecendo Estado de direito.
A bússola das decisões normativas sobre a vida nacional, sobre os gran-
des temas, está saindo do Congresso, onde opera a representação propor-
cional da opinião pública. Aquela história dos três poderes, este faz a lei,
aquele executa e aquele outro julga – lembra-se disso? – vai para as brumas
do passado. Há mais de três décadas estão sendo transferidas para o Judici-
ário deliberações que vão do acessório ao essencial, do mais trivial ao mais
relevante. Já escrevi muito sobre tal anomalia e percebo que a migração
prossegue, através dos anos, com determinação e constância.
A judicialização da política, braços dados com o ativismo judicial, cau-
sa imensas preocupações cívicas. Opera uma revolução silenciosa. Não usa
Quando decidi renovar meu velho blog, dando a ele o formato atual em
www.puggina.org, escolhi duas frases para aparecerem intermitentemente
na “testa” do site:
Acabou! Acabou!168
tiveram a ver com a tarefa em si. Mas sinto uma ponta de orgulho em saber
que, há tanto tempo, tivemos claro discernimento sobre para onde a nação
estava sendo conduzida. Em entrevista que li lá pelo início dos anos 90, um
dos maiores da profissão, filiado ao PCB, Dias Gomes, admitiu explicitamen-
te que sua atividade profissional sempre estivera orientada nessa direção,
inclusive durante os governos militares.
Por todas essas e por muitas outras, a matéria da Veja sobre a reação
de Gilberto Braga e Dennis Carvalho, respectivamente autor e diretor da
novela “Babilônia”,169 me fez muito feliz. Encantou-me o desalento da dupla
que quis aumentar um pouco mais a dose da droga que serve à sociedade e
obteve como resposta uma sólida rejeição. A novela virou o maior fiasco do
horário em toda a história da TV Globo. Mas o melhor de tudo foi ler que
a dupla está estarrecida com a “caretice” da população. “Nós estamos no
século 21, em 2015, e de repente as pessoas ficam chocadas com coisas que
não chocavam antigamente”, lamuriaram-se.
Mas não é a novela que imita a vida, senhores? Agora mudou tudo? A rejei-
ção da sociedade a essa novela mostra que sempre foram vocês que estiveram
conduzindo a população através da falta de caráter e limites de seus persona-
gens. E agora, que os telespectadores lhes dizem “Basta!”, têm a audácia de atri-
buir a rejeição ao “politicamente correto”? Mas essa maldição do politicamente
correto foi outra construção do mesmo plano sinistro que vocês conduziram!
Esse ardiloso uso do poder da televisão também chega ao fim. Aquelas
três novidades tecnológicas que mencionei outro dia – internet, smartphones
e redes sociais – estão derrubando o comércio de droga à população através
da TV. As pessoas estão sabendo mais, lendo outras coisas, assistindo vídeos
de formação, ampliando seu discernimento e percebendo que, com a perda
da noção de limites, são perdidos, também, muitos dos mais valiosos bens de
que todos podemos dispor para nossa felicidade.
169 Outra produção “global” dedicada à engenharia social – no caso, à agenda gayzista. [N. C.]
276 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
Em Porto Alegre, mais de 100 mil pessoas foram às ruas contra Dil-
ma, Lula, PT e suas práticas e políticas esquerdistas.170
O que fazer?175
Com efeito, não fazer o mal é bem menos do que fazer todo o bem que
se possa. Ser e proclamar-se honesto para consumo externo é moldar-se às
expectativas da massa – e isso fica muito aquém da verdadeira virtude. “Não
há diferença entre o covarde que modera suas ações por medo do castigo e
o cobiçoso que age em busca da recompensa”, afirma o filósofo portenho
enquanto sentencia sobre o homem medíocre: “Ele teme a opinião pública
porque ela é a medida de todas as coisas, senhora de seus atos“. Temia, filó-
sofo Ingenieros, temia. O medíocre não mais teme a opinião pública porque
a nação tolerou a prostituição moral em troca de umas poucas moedas.
Não demorou muito, daquela minha leitura, para que as palavras de In-
genieros desnudassem a intimidade do novo círculo de poder que se instalara
Acusam-me!176
Acusam-me de ser:
• racista, porque sou branco;
• fascista, porque não voto no PT, no PCdoB nem no PSOL;
• homofóbico, por ser heterossexual;
• traidor da causa operária, por dizer que a CUT é um antro de petistas;
• machista, por ser contra o aborto;
• fundamentalista, por sustentar que estado laico não é o mesmo que
estado ateu;
• falso católico, por mostrar os desvios políticos e pastorais da CNBB;
• reacionário, por divulgar os insucessos das experiências totalitárias;
• saudosista do DOI-CODI, por querer segurança pública e bandidos
na cadeia;
• antissocial, por valorizar o mérito e ser contra cotas raciais, sociais e sexuais;
• prepotente, por apreciar a disciplina e querer a ordem;
• idiota, por afirmar que nas economias livres as sociedades são mais
prósperas do que nas economias estatizadas;
• vendilhão da pátria, por afirmar que o Estado não deve fazer o que a
iniciativa privada também possa;
• golpista, por querer o impeachment da presidente Dilma;
• inimigo dos pobres, por ser contra o governo petista;
• criminalizador dos movimentos sociais, por apontar os crimes que cometem;
• neoliberal, por afirmar que pagamos impostos excessivos a um Estado
larápio, grande demais e incompetente demais;
• ultradireitista, por sustentar que o Foro de São Paulo é uma organi-
zação comunista, hoje mantida pelo governo do PT, com planos de
poder para toda a América Latina.
Com este texto (adaptado de um outro que, segundo li, teria sido escrito,
originalmente, em francês) juro minha inocência perante todas as acusações.
Penso que, bem ao contrário, elas provam a má índole dos meus acusadores.
S
into nosso país prisioneiro da desesperança. Escrevi os artigos que
viriam a compor este livro e, posteriormente, recolhi-os das páginas
de consumo diário nos jornais impressos e eletrônicos, bem como
das palavras perdidas no ar dos auditórios, para compor um mosaico de
diagnósticos e respostas que inspirem os mais jovens do que eu. Minha
geração não serviu ao Brasil como deveria. Outro dia, num texto que não
consta desta obra, disse que nosso país fez uma opção por algo parecido
com o welfare state ainda nos anos 30 do século passado e, desde então,
vivemos uma social-democracia pau-de-arara. O motivo é simples: o Esta-
do provedor pode ser, quando muito, um produto da riqueza, mas jamais
será causa de riqueza e desenvolvimento nacional. Até os comunistas per-
ceberam isso, mas, como nunca vivemos no comunismo, ainda acredita-
mos em suas utopias.
O petismo vendeu esperança e, passados os anos, entregou-nos seu opos-
to. A desesperança gerada pelo petismo no poder – e pelo esquerdismo em
geral – pode ser representada por um compartimento com várias portas,
através das quais se entra com facilidade, mas de onde se sai com muita
dificuldade. Entra-se nele, por exemplo,
• pela porta de um sistema de ensino que pouco ensina, que pretende
ser educador de todos a respeito de tudo, da política à sexualidade,
mas sequer consegue obter o nível mínimo de urbanidade, como en-
sinar a não jogar lixo no chão e a não agredir os professores. É uma
educação que não tem a qualidade para nem a intenção de desenvol-
ver potencialidades e inserir nossa juventude na vida social, política e
econômica de modo produtivo e competente.
288 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL
para fora. E agora chamam golpistas quem busca uma saída política
e constitucional para que não sejamos mais golpeados por tanto
desmando, incompetência e irresponsabilidade.
• Pela porta de uma inusitada tolerância social para com a corrupção,
entendida como universal e intratável pandemia. E tudo se passa
como se a apropriação indébita de recursos públicos não fosse uma
forma indireta de bater a carteira do cidadão; como se a mentira,
outra forma de corrupção, não fosse um modo ilegítimo de prosperar
na vida pública; como se atribuir a outros a própria culpa, não fosse
uma iniquidade; como se ocupar função pública sem a habilitação e
as competências requeridas não resultasse em lesão ao interesse nacio-
nal. No entanto, tudo isso é corrupção e não pode ser tolerado.
• Pela porta de um sistema de governo que concede a presidência da Repú-
blica a uma só pessoa. Uma vez eleita, ela passa a exercer conjuntamente,
a chefia do Estado, a chefia do governo e a chefia da administração. É
um extraordinário poder de nomear que robustece o patrimonialismo, o
empreguismo e, em especial, a partidarização de tudo aquilo que, num
Estado racionalmente concebido, não deve ceder lugar a partidos políti-
cos. Lugar de partido é no governo e nos parlamentos. Nunca em funções
típicas de Estado e nunca na administração pública, que deve ser técnica,
profissional, prestadora de serviços à sociedade e não a partidos políticos.
Ao me referir a essa última porta, estou apontando, também, para a saída
principal. A separação dessas funções, com a entrega do governo à maioria
parlamentar, restabelece a racionalidade política, desconcentra o poder, de-
sarticula o aparelhamento do Estado e da administração. É por isso que no
nº 10 da Downing Street, moradia do primeiro-ministro do Reino Unido e
sede de seu governo (correspondente, no Brasil, às funções do Palácio da
Alvorada e do Palácio do Planalto), trabalham 170 pessoas, enquanto que
na sede do governo brasileiro estão lotados 4,6 mil funcionários. O sistema
parlamentar de governo, ao qual estou me referindo, é usado por 19 das 21
democracias estáveis existentes no mundo. E todas elas possuem instrumen-
tos para destituir seus governantes por perda de confiança dos eleitores.
A realidade da qual estamos prisioneiros, e na qual fomos entrando por
múltiplas portas, preserva o dom de emudecer a sociedade. Num dia, o brasi-
leiro enche as ruas do país com o clamor de seus protestos; no outro, silencia
porque percebe o quanto é narcótica e anestésica a realidade das instituições,
em especial dos partidos políticos nacionais.
290 PERCIVAL PUGGINA · A TOMADA DO BRASIL