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É madrugada. O pai aguarda, aflito, o telefone tocar. Espera notícias do filho. Mas
nem sempre elas vêm. O filho, primeiro adolescente, depois adulto, tornou-se
dependente químico. O pai, cineasta engajado e esclarecido, enquanto vê-se
progressivamente perdendo as esperanças, começa a escrever para tentar
compreender um presente opaco, a partir da recapitulação do passado. Mas ele sabe
que todo passado é imperfeito e inacabado, porque nenhum passado, enquanto tal,
realmente passa.
Com seu estilo sóbrio, preciso e econômico, alinhavado pela construção de múltiplas
vozes, Kucinski tem criado uma unidade engenhosa entre criação ficcional, relato de
uma experiência e pesquisa documental. K tratava do desaparecimento de Ana Rosa
Kucinski, irmã do autor, durante a ditadura civil-militar brasileira, numa trama
narrada na terceira pessoa e protagonizada por K, pai de Ana Rosa, ao mesmo tempo
que atravessada por falas de agentes da ditadura, colaboradores e militantes. Já em
Pretérito imperfeito, a violência de Estado e a ausência da filha presentes no livro
anterior dão lugar a violências mais insidiosas, como o racismo e a dependência
química, que também excluem, matam e suprimem vidas.
De fato, B. Kucinski, como assina seus livros de ficção, evita “escrever bonito” sobre
as tragédias e os extravios que marcaram indelevelmente não apenas sua trajetória
como gerações de sua família, e que dão contorno e contundência à literatura que
produz. Por isso, diferentemente de grande parte das autobiografias e dos
testemunhos, em sua obra uma “ética da distância” é abrigada por recursos formais
– como a alternância entre a primeira e a terceira pessoas – que permitem a seus
narradores se distanciarem do extremamente próximo e se aproximarem do
extremamente distante. Nesse entrecruzamento entre o biográfico e o coletivo, o
pessoal e o político, Kucinski, mais do que uma literatura autoficcional, faria uma
“ficção documental”, marcada tanto pela parcialidade dos “documentos” quanto pela
precariedade da compreensão.
Dando início a Pretérito imperfeito por uma dura carta de ruptura e separação
endereçada ao filho, o narrador tenta através da escrita fazer o luto de uma vida, ao
menos até aquele momento, desperdiçada. Dirigindo-se ao leitor, ele escreve: “Não
vou repetir por inteiro o que escrevi. Não é coisa bonita de se dizer, nada de que se
orgulhar. Escrevi porque era preciso. Sempre houve o pai que expulsou de casa o
filho”. Já ao final, a expectativa de mudança é recolocada, porque quem sabe a
transmissão operada pela literatura nos torne capazes de não nos resignarmos
diante dos impasses do entendimento. Quem sabe, a literatura mesma, ainda que
feita de passados imperfeitos, possa vir juntar o que a vida separa.