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As imperfeições do passado

Por Ilana Feldman


Resenha publicada em Quatro Cinco Um – revista de livros,
ano dois, número 10, abril de 2018.

Pretérito imperfeito, de B. Kucinski


Companhia das Letras, 150p, 1ª ed, 2017

É madrugada. O pai aguarda, aflito, o telefone tocar. Espera notícias do filho. Mas
nem sempre elas vêm. O filho, primeiro adolescente, depois adulto, tornou-se
dependente químico. O pai, cineasta engajado e esclarecido, enquanto vê-se
progressivamente perdendo as esperanças, começa a escrever para tentar
compreender um presente opaco, a partir da recapitulação do passado. Mas ele sabe
que todo passado é imperfeito e inacabado, porque nenhum passado, enquanto tal,
realmente passa.

Jornalista, professor e estreante na literatura aos 74 anos com a primeira edição, em


2011, do aclamado K - relato de uma busca, um marco da literatura brasileira
recente, o escritor Bernardo Kucinski dá agora continuidade a seu projeto literário
com o lançamento de Pretérito imperfeito. Entre um e outro, o autor publicou
também a coletânea Você vai voltar para mim e outros contos (2014) e Os visitantes
(2016), oportuna discussão sobre literatura e ética, documento e ficção, a partir da
recepção de K. Como se pode notar na visão do conjunto, a obra de Bernardo
Kucinski é a expressão de que um “pretérito perfeito” só poderia ser uma ficção
gramatical.

Com seu estilo sóbrio, preciso e econômico, alinhavado pela construção de múltiplas
vozes, Kucinski tem criado uma unidade engenhosa entre criação ficcional, relato de
uma experiência e pesquisa documental. K tratava do desaparecimento de Ana Rosa
Kucinski, irmã do autor, durante a ditadura civil-militar brasileira, numa trama
narrada na terceira pessoa e protagonizada por K, pai de Ana Rosa, ao mesmo tempo
que atravessada por falas de agentes da ditadura, colaboradores e militantes. Já em
Pretérito imperfeito, a violência de Estado e a ausência da filha presentes no livro
anterior dão lugar a violências mais insidiosas, como o racismo e a dependência
química, que também excluem, matam e suprimem vidas.

No centro do livro está o relato, na primeira pessoa, de um pai desgostoso com os


caminhos tortuosos tomados por seu único filho, adotivo. A paternidade, neste caso,
a partir de uma “adoção à brasileira” realizada no final dos anos 1970, sem mediação
legal, é aqui novamente posta em questão e construída em torno de um vazio. Mas,
se começa amorosa e cheia de esperanças, acaba por se desfazer, se não em
destroços, tomada pelo medo e apreensão diante desse filho dependente químico,
considerado pelo pai um “clandestino no navio da existência”, “viajante ilegal”,
“passageiro sem bilhete” que precisa se esconder até o final da travessia.
“Essa é uma história sem começo nem fim”, escreve o cineasta-narrador, perplexo
diante de sua dificuldade em compreender em que momento e porquê seu filho
adotivo, depois de uma primeira infância marcada por doenças e preconceito racial,
lançara-se ainda na adolescência à busca desenfreada por um “paraíso artificial”.
Mas os repetidos traumas sofridos pelo menino, quem sabe desde sua vida
intrauterina, que o narrador tenta recapitular (“A memória traumática, mesmo a
mais remota, intromete-se no comportamento presente”, ele escreve), não explicam
satisfatoriamente a adição as drogas, nem resolvem conclusivamente o problema.
Como resultado, o pai desesperado dá então início a uma investigação sobre o
assunto que possa lhe oferecer algum entendimento. Entre leituras de Piaget,
Melanie Klein, Eduardo Sá, Winnicot, Michel Soulé, Pierre Levy, Wilfred Bion e vistas
a psicanalistas, ele se pergunta: “O que sabíamos sobre adoção? Nada.
Absolutamente nada. Passada quase uma vida, quando o feito não pode ser desfeito,
pus-me a estudar. Hoje, sei alguma coisa. Pouca coisa”.

Fazendo da incompreensão o motor de sua busca, o narrador de Pretérito imperfeito


lança-se à rememoração de um passado em fragmentos, assim como à tentativa de
decifração de fotografias em álbuns de família, que ele descreve e analisa em busca
de respostas. A essa tocante interrogação das imagens, muitas vezes mudas, soma-
se a polifonia de falas de especialistas, psiquiatras, inquéritos policiais, notas de
jornais. À mãe também é dada a palavra, marcada por seu amor resignado e infinito,
enquanto ao filho cabe, se não o silêncio total de sua figura espectral, ausente da
convivência familiar, frases parcas e magras reproduzidas parcimoniosamente pelo
pai.

Como acontece em A resistência (2015), romance de Julián Fuks (a quem Kucinski


agradece ao final do livro) sobre seu irmão adotivo, a tentativa de construção desse
outro, espécie de estrangeiro no seio da família, está sempre na iminência do esboço.
“Procurei meu irmão no pouco que escrevi até o momento e não o encontrei em
parte alguma”, lamenta consternado o narrador, para depois se perguntar se não
estaria com esse livro roubando a vida, a imagem, a voz e até mesmo o silêncio do
irmão.

Em Pretérito imperfeito, tal problematização também comparece ao final, quando o


pai se autocensura por ser “um ladrão” que teria roubado a história de vida do filho
para fazer dela um livro. Do mesmo modo, em K e Os visitantes, a reflexão ética sobre
o que pode ou não a literatura, sobretudo quando construída a partir de experiências
biográficas e narrativas autoficcionais, desempenha um papel central. Em K, o
narrador é preciso quando vaticina a respeito de seu protagonista, um prestigiado
escritor da língua iídiche: “(...) seu bloqueio era moral, não era linguístico: estava
errado fazer da tragédia de sua filha objeto de criação literária, nada podia estar
mais errado. Envaidecer-se por escrever bonito sobre uma coisa tão feia”.

De fato, B. Kucinski, como assina seus livros de ficção, evita “escrever bonito” sobre
as tragédias e os extravios que marcaram indelevelmente não apenas sua trajetória
como gerações de sua família, e que dão contorno e contundência à literatura que
produz. Por isso, diferentemente de grande parte das autobiografias e dos
testemunhos, em sua obra uma “ética da distância” é abrigada por recursos formais
– como a alternância entre a primeira e a terceira pessoas – que permitem a seus
narradores se distanciarem do extremamente próximo e se aproximarem do
extremamente distante. Nesse entrecruzamento entre o biográfico e o coletivo, o
pessoal e o político, Kucinski, mais do que uma literatura autoficcional, faria uma
“ficção documental”, marcada tanto pela parcialidade dos “documentos” quanto pela
precariedade da compreensão.

Dando início a Pretérito imperfeito por uma dura carta de ruptura e separação
endereçada ao filho, o narrador tenta através da escrita fazer o luto de uma vida, ao
menos até aquele momento, desperdiçada. Dirigindo-se ao leitor, ele escreve: “Não
vou repetir por inteiro o que escrevi. Não é coisa bonita de se dizer, nada de que se
orgulhar. Escrevi porque era preciso. Sempre houve o pai que expulsou de casa o
filho”. Já ao final, a expectativa de mudança é recolocada, porque quem sabe a
transmissão operada pela literatura nos torne capazes de não nos resignarmos
diante dos impasses do entendimento. Quem sabe, a literatura mesma, ainda que
feita de passados imperfeitos, possa vir juntar o que a vida separa.

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