Sei sulla pagina 1di 15

Sabor da maré

Eric Novello
2019
Sentada na pedra do Arpoador, Diana conversou com a morte pela primeira
vez.
A praia estava cheia, mas não muito, nada que passasse perto do
burburinho do verão. O sol, baixo o bastante para alaranjar o céu. Abraçada
às próprias pernas, com a bolsa no colo, Diana encarava o azul profundo do
mar de Ipanema, o mesmo mar que havia levado seu pai.

Ela e Arthur, seu irmão gêmeo, sabiam apenas o que a mãe havia contado de
voz embargada e expressão atônita. Jorge falou que ia dar uma volta na praia
para espairecer. Guardou a chave de casa no bolso da frente, a carteira no
bolso de trás, acenou para a esposa que o olhava da janela antes de pegar o
ônibus. As testemunhas de um quiosque disseram que ele comprou uma água
de coco, desceu do calçadão para a orla e largou os pertences na areia para
dar um mergulho.
Foi a filha do dono do quiosque que notou a demora. Tinha achado
Jorge bonito. Com sua pele escura acobreada da ascendência indígena, era
mesmo um desses homens que chamam atenção. Depois de perceber que ele
não havia voltado, a menina correu para avisar um salva-vidas. Quando o
encontraram, a água salgada já havia enchido seus pulmões.
— Sentem aqui comigo um minuto que tenho uma notícia ruim para dar
— Tereza disse quando os filhos chegaram da escola. — O pai de vocês se
afogou.
Sete anos se passaram desde então. Diana havia acabado de se formar
em jornalismo e o fantasma do acidente voltou com força. Havia convidado
para a festa de formatura todos os integrantes do grupo de chorinho do pai,
que conhecera quando pequena. Foi o que um deles falou, já no fim da
madrugada e com a cabeça cheia de uísque e cerveja, que bagunçou seus
pensamentos.
— O Jorge foi uma das pessoas mais bondosas que eu conheci — tinha
dito Marquinho, encostado numa pilastra olhando o matagal em volta do
clube. — Sempre pensei que a conversa sobre se matar fosse da boca pra
fora.
Disse isso como quem relembra uma viagem em que o pneu furou, virou
o resto da bebida na boca e foi dançar. Diana, que também estava de cara
cheia, deixou o comentário passar batido, uma confusão de bêbado que não
sabe o que está falando, ou quem sabe ela tivesse entendido errado. Na
semana seguinte, sóbria e com a pulga atrás da orelha, tentou ligar para
Marquinho repetidas vezes, mas ele não a atendeu.
Tentou ocupar a cabeça e esquecer do ocorrido. Ele deve estar
envergonhado da besteira que disse, pensou. Porque só podia ser besteira um
homem alegre como Jorge, sem problemas de saúde ou dinheiro, que tocava
sax em turnês e nos bares da cidade, ter decidido se matar.
Como a dúvida não passava, esperou a noite cair e ligou para o irmão.
— Seja lá qual for o caso, deixa o velho quieto no túmulo. Nossa mãe já
sofreu demais — Arthur disse pelo telefone, da lonjura onde se encontrava.
Diana sabia que, em parte, ele tinha razão. E que não apenas a mãe havia
sofrido por causa do afogamento. Na idade propícia, Arthur se alistou no
exército, se inscreveu no Centro de Instrução de Guerra na Selva e foi servir
na Floresta Amazônica, na fronteira com a Colômbia. Disse que era um jeito
de entender o que ele queria do futuro, mas Diana sabia que era somente um
jeito de se afastar de casa.
A cada visita de fim de ano para ver a família, Arthur voltava mais
diferente. O sorriso continuava existindo, mas os olhos foram se tornando
mais profundos. Pequenos poços escuros de memórias que não dividia com
ninguém.
— Mas você acha que ele pode ter se matado? — insistiu Diana. —
Quer dizer, essa possibilidade passou pela sua cabeça?
— Ninguém é feliz o tempo inteiro como ele fazia parecer, Di. Eu não
sou, você não é, e a mamãe muito menos. Acho que no fundo, sei lá, o velho
escondia alguma coisa. É por isso que eu acho que você devia evitar mais
sofrimento e deixar isso pra lá — Arthur respondeu. — E me desculpe por
não ter estado aí com você no dia da formatura. Se a gente estivesse
dançando no salão, você não teria ouvido o bêbado do Marquinho falar essa
bobagem.
— Tá desculpado. Mas ó, vê se aparece mais vezes, seu desnaturado.
— As escalas não dependem de mim na fronteira, você sabe disso.
— Eu sei.
Naquela noite, Diana sentiu um alívio inesperado. Cultivar a felicidade
vinte e quatro horas por dia como forma de honrar a memória do pai deixou
de ser uma obrigação. E agora que aquele vínculo forjado numa ilusão se
desfazia, ela demorava a pegar no sono, pensando no que os dois realmente
possuíam em comum. Arthur voltou para a selva na fronteira uma semana
depois, ficando incomunicável mais uma vez, e, nos meses seguintes, passou
a ligar para a família cada vez menos.

Da sua parte, além dos cabelos escorridos e da pele acobreada, Diana herdara
também o encanto de Jorge pelo Rio de Janeiro, que ele dizia estar
condenado a ser palco de histórias de amor e caos até o fim dos tempos. Nem
o mar que o havia levado ela conseguia amaldiçoar. Decidiu que se um dia o
trabalho jornalístico lhe desse a oportunidade de escrever crônicas sobre a
cidade, apuraria o olhar para descobrir histórias que mereciam ser contadas.
Sua decisão a deixou motivada por uns dias. Se inscreveu para uma vaga
de trainee na Tribuna Carioca com gana de passar no processo seletivo.
Depois de deixar mais de cinquenta candidatos para trás, conseguiu ser
aprovada na entrevista com os chefes e começou a trabalhar no jornal mais
importante da cidade. Seus pensamentos pareciam se mover na direção certa
outra vez, rumo ao futuro, mas a dúvida plantada no dia da formatura sempre
dava um jeito de voltar.
E de tanto voltar, Diana começou a frequentar o Arpoador. Dizia para si
que só queria espairecer, enquanto no fundo alimentava a esperança de que
um dia Jorge retornaria do seu mergulho para explicar a ela a verdade por trás
do ocorrido.
Foi por isso, concluiu, que aquela mulher viera ao seu encontro. De
tanto pedir ao mar que devolvesse seu pai morto, a morte em pessoa decidira
aparecer. Desejou boa tarde a Diana e perguntou se podia se sentar ao seu
lado. A proximidade a deixou arrepiada da cabeça aos pés, mas a jornalista
preferiu culpar o vento de fim de tarde batendo contra a pele aquecida pelo
sol. Ficaram as duas apreciando a infinitude do mar, o cume do Morro Dois
Irmãos transpassando um aglomerado de nuvens que impedia a visão da
Pedra da Gávea, até a mulher quebrar o silêncio outra vez.
— Tudo o que a gente pensa junto do mar, ele escuta.
— Pode ser… — Diana respondeu.
Ajeitou os fios que voavam no rosto e se virou para entender melhor
com quem falava. A mulher tinha a pele curtida do sol, os cabelos ondulados
soltos na altura do peito. Com o semblante sereno, parecia estar em harmonia
com o restante da paisagem: o marulho das ondas, o sacolejo das folhas das
árvores, a risada das crianças no calçadão que levava às pedras.
— Mas do que adianta ele escutar se nunca responde o que a gente
pergunta? — completou Diana.
Uma onda estourou mais forte sobre a encosta, respingando nas pedras.
Diana e a mulher riram com a ironia da sincronicidade.
— Eu esperava que você fosse mais velha — disse a mulher. — Tenho
ouvido você pela praia com alguma frequência. Suas ondas de pensamentos
estão ficando mais turbulentas a cada retorno. Não acha estranho celebrar a
vida dos outros na sua escrita e viver afogada na mais profunda melancolia?
Diana olhou a desconhecida com curiosidade. Pensou se deveria se
levantar e ir embora ou prolongar a conversa, tentar descobrir algo a respeito
do pai. Apesar do arrepio inicial, nada nela parecia oferecer perigo. De
maquiagem leve, vestido azul estampado e sandália rasteira, a outra parecia
tão humana quanto qualquer um.
— Ainda não escrevo, é só um projeto. Se ficar com o emprego depois
do período de experiência, vou apresentar a ideia pro meu chefe. Se ele não
se interessar, vou começar a publicar em um blog pessoal, mesmo — Diana
respondeu. Pensou que, para a morte, talvez o tempo estivesse mais para um
novelo de lã do que para um fio esticado. — E sobre a bagunça na minha
cabeça, é muito absurdo da minha parte achar que sabe a razão?
— Como eu disse, o mar sabe tudo o que a gente pensa perto dele.
E que tudo será esse?, Diana se perguntou, tentando entender os
próprios pensamentos. Havia nela a vergonha da dúvida, uma vergonha cada
vez maior por achar, mesmo que por um breve segundo, que a morte do pai
não havia sido um acidente. E havia a raiva pela perda. Uma raiva não
assumida que parecia se avolumar para combater a calma transmitida por
aquela mulher. Sabia que em algum momento precisaria lidar com os
sentimentos represados ou eles a consumiriam.
Controlou a vontade de fugir da própria confusão e permaneceu sentada.
Em silêncio, virou o rosto para a orla de Ipanema. Estivessem deitados na
areia, caminhando, jogando bola ou conversa fora, todos ali pareciam
transbordar felicidade, bronzeados e disposição. Será que algum deles
também pensava em entrar no mar para um mergulho derradeiro? Descer e
descer e descer até haver somente silêncio e escuridão?
— Não entendo por que levou meu pai — Diana falou, enfim. — Ele era
uma pessoa tão boa, ajudava tanta gente. Ele não merecia.
Eu não merecia.
A mulher pousou a mão em seu braço e o apertou com carinho. Um
toque molhado e frio, mas reconfortante.
— Foi ele que veio a mim, Diana. Não o contrário.
Ouvir o próprio nome da boca da morte fez Diana tontear. Fechou os
olhos, fingindo estar pensativa. Seria bom falar sobre o pai com alguém
abertamente, sem medo de despertar mágoas como acontecia com o irmão ou
chateações como no caso da mãe. Já havia reparado que os amigos e a família
só falavam sobre a vida de Jorge, nunca sobre sua morte. Uma regra
silenciosa respeitada por todos e que ela, como um cachorro treinado,
também havia aprendido. Será que eles sabiam sobre o suicídio?
Não, não foi um suicídio. Foi um acidente. Acidente, repetiu para si
mesma, enquanto olhava os banhistas.
Diana sentiu uma nova presença. Se levantou afoita, num devaneio,
achando que o pai finalmente havia retornado. Dois garotos de chinelo,
camisa regata e bermuda caída, magros como um caniço, desceram rápidos
até onde ela e a morte estavam e se separaram. Ficaram um de cada lado,
numa proximidade intimidadora.
— Quem tem horas aí? — um deles perguntou em voz baixa.
— Oi? Não te ouvi direito — Diana respondeu.
— Passa o celular, sem grito, senão te jogo lá embaixo.
Com um gesto de queixo, o ladrão apontou para o amigo, que ergueu a
camisa para mostrar a arma encaixada na cintura.
— É fim de mês, só tenho o dinheiro da passagem. Vim andar no
calçadão porque é de graça — Diana improvisou, enquanto via o garoto olhar
fixamente para sua bolsa.
— Calma, crianças. Tá um dia bonito demais para violência —
respondeu a morte. — Não ouviram o que ela disse? Ela tá sem nada, saiu só
para um passeio. Mas eu tenho uma coisa aqui para vocês.
— Sem fazer graça, dona.
Num único movimento, a mulher se levantou. Diana teve a impressão de
vê-la dobrar de tamanho, ganhar altura. Seu vestido azul pareceu domar o
vento, usá-lo a seu favor. Esvoaçando para frente como tentáculos de pano,
levou o garoto armado a recuar de susto. Atrapalhado com os próprios
chinelos, ele tropeçou e despencou encosta abaixo. O barulho dos ossos se
partindo e a desvantagem repentina deixaram apavorado o ladrão que restava.
Diana aproveitou a distração para puxá-lo para baixo e acertar uma joelhada
no meio das suas pernas. Curvado de dor, ele gemeu, cambaleou, tentou dar
no pé. Mas a mulher de azul se pôs em seu caminho e o segurou pelo
pescoço, erguendo-o à sua altura.
— Péssima escolha, garoto.
Ela o virou na direção da encosta e apertou os dedos.
— Por favor, não mata ele — Diana pediu, se levantando. — Deixa ele
ir.
— É, dona. Deixa eu ir — ele repetiu com dificuldade.
Um filete espumoso como o mar que toca a areia escorreu do canto de
sua boca, e ele começou a engasgar.
Após alguma hesitação, a mulher o soltou.
— Peça desculpas para a minha amiga. Você interrompeu uma conversa
agradabilíssima.
— Foi mal aê, moça — ele falou, tossindo. Tentou firmar as pernas
novamente. — Às vezes a gente se mete nessas rabuda sem pensar pra
conseguir um troco e comprar pedra.
Ele olhou para Diana numa expressão de súplica e depois para a encosta
onde o amigo havia caído. Liberado com um gesto de mãos da jornalista,
correu como um louco até desaparecer na direção do parque Garota de
Ipanema. Um casal que subia de mãos dadas veio perguntar se estava tudo
bem.
— Tentativa de assalto, mas desistiu — falou Diana.
— Essa cidade tá cada dia pior — resmungou uma das meninas do casal.
— Mas ele machucou você?
— Não, não, foi só um susto.
Diana sentia o coração acelerado. Colocou a bolsa no ombro, abraçou o
corpo e voltou para a beira das pedras. Em vez do cadáver que esperava ver,
encontrou apenas o mar e seu marulho tranquilizador. Nenhum sinal do
acidente.
Ficou com vontade de ir embora, esquecer de vez pai, dúvida,
afogamento. Queria voltar para a segurança de sua casa. Os seus pés,
contudo, não saíram do lugar. Olhou uma vez mais para o casal, quase
perguntando se elas também viam aquela mulher enorme de cabelo
esvoaçante ao seu lado. Se bem que ela não parecia mais tão grande agora, e
estava tão humana quanto possível quando voltou a se sentar.
Diana baixou a cabeça discretamente, fingindo-se pensativa. Notou o
vestido da mulher indo e vindo sobre as pedras como a onda que estoura e
então recua. O marulho daquele pequeno oceano dissipou a inquietude do seu
coração, mas em vez paz, restou somente um doloroso vazio.
— O que você fez foi errado.
— E o que eu fiz?
— Você matou uma pessoa, um moleque que não devia ter vinte anos na
cara! — Diana se sentiu uma tola ao falar aquilo.
— O garoto que correu para a areia? Ele vai se recuperar do susto.
Muito mais rápido do que você, eu garanto.
— Estou falando do outro… Eu… — Diana olhou para as pedras
novamente, procurando no mar algum sinal da queda. Não havia corpo, nem
roupa flutuando. Seria aquela mancha no mar a sombra de um chinelo de
borracha? Daquela distância era difícil dizer. — Isso pode ser um hábito para
você, mas eu não sou a morte. Não tiro a vida das pessoas todos os dias, com
essa frieza. Não afogo um inocente só por diversão e mancho a memória dele
fazendo ele ficar com fama de suicida.
— É isso que acha que eu sou? — A mulher a encarou, descrente. — Eu
e a morte não temos nada em comum. Ela me renegou quando ainda se
arpoava baleias nas costas dessa terra e a cidade não passava de um cemitério
de indígenas, negros e europeus. Já eu, sempre recebi de braços abertos
aqueles que me buscam.
— Então por que levou o meu pai? — Diana insistiu. A força dentro de
si cedeu por um momento, dominada pelo vazio, mas ela respirou fundo e
tratou de se acalmar, controlando as lágrimas. Mais uma vez, olhou para a
imensidão que se estendia até a linha do horizonte, esperando uma resposta,
um consolo, e finalmente entendeu que conversava com a maré. — Por que
não o devolveu para mim?
— Você está certa quando diz que seu pai era uma pessoa boa, uma
pessoa alegre, mas isso não significa que ele não cultivasse sombras no
coração. Muitas vezes ele caminhou por toda essa extensão de areia se
perguntando o que aconteceria se entrasse nas minhas águas para nunca mais
sair. Pensou nisso em um jogo de futevôlei perto do forte de Copacabana e no
passeio pela Urca quando você torceu o pé, aos oito anos de idade. No fim de
semana de pesca em Jurujuba com o grupo de chorinho, e pensou aqui,
inclusive, nessas pedras onde estamos agora.
— Pensou nele, e não na gente.
— E mais uma vez você se engana.
Jorge havia passado a noite anterior ao suicídio em casa. Preparara o
jantar, frango a passarinho crocante com seu molho secreto — que todo
mundo sabia a receita. Permanecera na mesa de papo com Tereza e os filhos
até o sono da cervejinha bater. Diana e Arthur tinham pedido para ficar
acordados até mais tarde vendo televisão com os pais, mas Jorge os colocou
para dormir e argumentou que os dois precisavam acordar cedo; se atrasar
para a escola estava fora de cogitação. Diana se lembrava do café da manhã
com o irmão na manhã seguinte, de sua mãe ajudando a preparar seu
sanduíche e avisando que o pai decidira esticar na cama até mais tarde porque
estava se sentindo indisposto da comilança.
A raiva se libertou, provocando uma pontada no peito. Ele sabia o que ia
fazer. E, apesar disso, não concedeu a eles nem mais um minuto.
— Eu posso falar com ele? — ela perguntou.
— É o que você faz sempre que vem aqui.
Maré esticou a mão espalmada para a frente.
Aceitando o convite, Diana entrelaçou os dedos nos dela e fechou os
olhos. Sentiu a película de água entre as palmas e se deixou levar pela
calmaria. No minuto em que relaxou, ouviu as vozes das pessoas na praia, de
todas as pessoas em contato com o oceano. Vozes baixas, muitas vezes de
felicidade, mas também de saudade, solidão e desespero, que logo entendeu
serem pensamentos. Uns eram vagos, sussurros, e outros nítidos como se
falassem diretamente com ela. Desceu por aquelas ondas sonoras, indo cada
vez mais fundo até não ver mais o brilho do sol na superfície.
Seguiu uma voz familiar, um eco distante e quase inaudível. Viu seu
irmão nos braços de uma mulher, afundado em águas mais doces do que as
suas, na Amazônia brasileira.
Os gêmeos sorriram um para o outro. Diana podia sentir a calmaria do
coração dele aquietando o dela. Tentou se comunicar com Arthur, mas a
correnteza a puxou mais para baixo. Na descida, notou que a mulher tinha um
rabo de escamas cintilantes no lugar das pernas.
Tentou subir. Não adiantou.
Seu pulmão começou a apertar, o ar chegava ao fim.
Quando restava apenas uma parede escura e intransponível, encontrou a
dor de seu pai.
— Eu entrego minha vida a você — ele repetia a cada passo mais para
dentro daquela imensidão. — Entrego minha vida a você. Por favor, proteja
meus filhos. Que os erros que cometi não recaiam sobre eles. Eu entrego
minha vida a você. Por favor. Proteja meus filhos.
Bolhas escaparam dos lábios de Jorge, e o brilho em seus olhos se
apagou.

Diana soltou os dedos da mulher de modo repentino e vomitou sobre o


próprio tênis. Podia jurar que era água salgada o que devolvia do estômago.
Tomada por um forte enjoo, começou a chorar. Sete anos de raiva e de culpa
transbordaram em ressaca de seus olhos, e quando os soluços lhe tiraram o
fôlego, voltou a se sentar.
— Fiz uma promessa ao seu pai naquele dia — a mulher falou. —
Arthur foi arredio, correu para longe. Acabou encontrando outras águas,
doces e turbulentas, para se aconselhar. Já você, escolheu ficar aqui.
Encontrou nessa cidade o seu caminho, como um dia encontrei o meu. De uns
meses para cá, porém, seus pensamentos foram se tornando turvos como o
fundo do oceano, mudando de propósito. Achei por bem intervir e,
cumprindo minha promessa, vim ao seu encontro conversar.
O mundo ainda girava sob seus pés. Diana esperou o rodopio amenizar,
o gosto de sal sumir da boca. A cada inspiração e expiração, recuperava a
capacidade de entendimento. No fim das contas, Jorge havia se afogado por
vontade própria, dominado por uma tristeza persistente e avassaladora que
nunca havia compartilhado com ninguém. Ou pelo menos com mais ninguém
além de Marquinho. Nada de câimbras ou de acidentes no mergulho como os
jornais haviam especulado. Jorge era de fato um suicida.
Saber que ela e Arthur estavam nos últimos pensamentos do pai, de um
jeito estranho, acabou sendo um alento.
— Maré… — Diana começou, mas ficou novamente em silêncio.
Quando voltou a falar, o sol acabara de cruzar a linha do horizonte. Não
demoraria muito para escurecer.
— Pode me mostrar os pensamentos mais antigos do meu pai? Eu
preciso saber a que erros ele se referia.
Era impossível entender de onde vinha a culpa alimentada por Jorge.
Erros comuns, algum flerte, quem sabe um caso extraconjugal em uma de
suas viagens em turnê, um desentendimento mais sério com um dos músicos
da banda… Nada daquilo seria do feitio de Jorge. Mas até apenas alguns
meses atrás ela diria o mesmo sobre o suicídio do pai.
— Isso seria como mergulhar em águas profundas demais sem o
equipamento e o preparo adequados. Você simplesmente se afogaria, Diana.
Memórias assim, tão antigas, costumam ser traiçoeiras. Você veio aqui nesses
meses com uma dúvida em mente. Sua dúvida foi sanada.
— Eu...
Maré ajeitou o cabelo de Diana para atrás da orelha numa carícia gentil e
deixou a mão descansar em seu ombro. Um cheiro semelhante a maresia
invadiu suas narinas, despertando uma lembrança difusa. Havia música,
aplausos, uma apresentação de sax e piano no palco. Um garoto com uma
serpente tatuada no braço deixou na sua mesa um drinque azul. Diana
agradeceu e bebeu um gole. O gosto forte trouxe a certeza de que ainda não
vivera aquele instante. Sua revelação era uma memória do futuro.
— Você ainda terá muito o que contar sobre essa cidade. Quem sabe não
encontra algum consolo escrevendo sobre os lugares onde Jorge costumava
tocar? — sugeriu Maré.
Diana a encarou. Sustentou aquele olhar o quanto pôde, mas voltou a
mirar o horizonte. Sentiu que algo mudava dentro dela naquele exato instante,
embora não soubesse dizer o quê.
— Eu vou voltar a ver meu pai?
— Os afogados pertencem ao mar e a mais ninguém — respondeu Maré,
sua voz se misturando ao barulho das ondas. Seus contornos cada vez mais
pareciam um borrifo aspergido pelo mar; seu rosto, uma aquarela se
desfazendo. — De qualquer modo, foi um prazer conhecê-la pessoalmente.
Sempre que precisar falar comigo, sabe onde me encontrar.
Diana notou os dedos úmidos abandonarem sua pele e virou o rosto,
escondendo uma lágrima. Estava sozinha no escuro do Arpoador. Ficou
admirando as mudanças finais na tonalidade do céu até a noite e o bom senso
a pedirem para ir embora.
Contornou as pedras e os cactos, seguiu a trilha iluminada pelos postes.
Durante a descida, pensou no que acabara de vivenciar. No assaltante que
fugira assustado sem levar nada. No que caíra morto sem deixar vestígios. No
seu encontro com aquela mulher de carne, osso e água salgada. Passou os
olhos ao redor, procurando o casal que aparecera durante a tentativa de
assalto, suas únicas testemunhas. Mas elas não estavam em lugar nenhum.
Assim que pôs os pés nas pedras portuguesas do calçadão, olhou para o
pico onde estivera e agradeceu em pensamento.
Uma onda estourou mansa na areia, quase como um carinho.
Sob a noite que se iniciava, Diana decidiu caminhar pela orla, esticando
o passeio. Talvez encontrasse um bar com música ao vivo para pedir uma
cerveja artesanal dessas bem estranhas que ninguém nunca ouviu falar e se
entupir de batata frita com queijo cheddar. Mais tarde, em casa, ligaria para
Arthur para saber o que ele andava aprontando. Se precisasse aliviar o aperto
no fundo do peito, agora sabia exatamente aonde ir e com quem conversar.
ERIC NOVELLO
Eric Novello é escritor, tradutor e roteirista pelo Instituto Brasileiro de
Audiovisual. Nasceu no Rio de Janeiro em 1978 e mora em São Paulo desde
2007. Ele é o autor de Ninguém nasce herói (Seguinte, 2017), Exorcismos,
amores e uma dose de blues (Gutenberg, 2014), A sombra no Sol (Draco,
2012) e Neon Azul (Draco, 2010). @eric_novello

“Sabor da maré” copyright © 2019 Eric Novello.


Todos os direitos reservados.

Edição e revisão: Taissa Reis


Capa: Vitor Martins
Elementos gráficos: Freepik
Diagramação: Taissa Reis
Table of Contents
(Sem título)

Potrebbero piacerti anche