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LITERATURA BRASILEIRA III

autoras
CRISTIANE BRASILEIRO
ALESSANDRA FÁVERO

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2016
Conselho editorial  luis claudio dallier, roberto paes e paola gil de almeida

Autoras do original  cristiane brasileiro e alessandra fávero

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  paola gil de almeida, paula r. de a. machado e aline


karina rabello

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  bfs media

Revisão linguística  bfs media

Revisão de conteúdo  márcia bucheb

Imagem de capa  4max | shutterstock.com

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2016.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

F273l Fávero, Alessandra


Literatura brasileira III / Cristiane Brasileiro; Alessandra Fávero.
Rio de Janeiro: SESES, 2016.
120 p: il.

isbn: 978-85-5548-408-7

1. Literatura brasileira. I. Brasileiro, Cristiane. II. SESES. III. Estácio.

cdd 469.5

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

Prefácio 5

1. Pré-Modernismo – Notícias de outro Brasil 7


1.1  Sobre Certo Tempo e sua Produção Literária 10
1.1.1  Inaugurando o século XX: por trás das fachadas 10
1.1.2  O chamado “Pré-Modernismo” 12
1.2  Obras E Autores Pré-Modernistas 14
1.2.1  Euclides da Cunha 14
1.2.2  Graça Aranha 17
1.2.3  Lima Barreto 19
1.2.4  João do Rio 22
1.3  Monteiro Lobato 25
1.3.1  Augusto dos Anjos 28

2. Modernismo Literário no Brasil 35

2.1  Antecedentes, Fases e Tendências 36


2.2  Poéticas Modernistas 53
2.2.1  Primeira Fase 53

3. Modernismo Literário no Brasil 63

3.1  Poesia e Prosa Modernista em sua 2ª Fase: de 1930 a 1945 64


3.1.1  Carlos Drummond de Andrade 65
3.1.2  Murilo Mendes 69
3.1.3  Vinícius de Moraes 73
3.1.4  Graciliano Ramos 77
3.1.5  José Lins do Rego 80
3.2  Terceira Fase: Prosa de Ficção Modernista 83
3.2.1 Experimentalismo 84
3.2.2 Regionalismo 85
3.2.3  Psicologismo e Intimismo 89

4. Do Moderno ao Pós-Moderno 93
4.1  Do Moderno ao Pós-Moderno 94
4.1.1  Nelson Rodrigues e o Teatro Modernista no Brasil 96
4.2  Vanguarda Concreta e Desdobramentos 99
4.2.1 Concretismo 99
4.2.2 Neoconcretismo 103
4.2.3 Práxis 106
4.2.4  Tropicália e Poesia Marginal 108
4.3  Panorama Contemporâneo 113
4.3.1  Pluralidade na Lírica Contemporânea 114
4.3.2  Tendências da Prosa de Ficção 115
Prefácio
Prezados(as) alunos(as),

A disciplina Literatura Brasileira III apresenta uma perspectiva panorâmica


das produções ficcionais do início do século XX, das produções poéticas e fic-
cionais desenvolvidas a partir de 1922.
Propõe-se a discussão acerca das noções de pré-modernismo, modernismo
e pós-modernismo no contexto da historiografia e da crítica literária brasileira,
enfatizando-se a análise de obras representativas das diversas tendências sur-
gidas da primeira e da segunda década do século XX ao início do século XXI.
Nosso objetivo é apresentar uma perspectiva panorâmica da Literatura Bra-
sileira a partir do século XX, além de discutir as noções de pré-modernismo,
modernismo e pós-modernismo no contexto da historiografia e da crítica lite-
rária brasileira.
Para tanto, no primeiro capítulo, passaremos pelo pré-modernismo lite-
rário e adentraremos, no segundo capítulo, rumo ao Modernismo literário no
Brasil, com seus antecedentes, suas fases e respectivas tendências. Verificare-
mos a ruptura e permanência nas poéticas modernistas, mediante o conheci-
mento acerca dos manifestos, dos autores e de suas obras.
Já no terceiro capítulo, a prosa de ficção modernista receberá destaque
quanto ao regionalismo, experimentalismo, psicologismo e intimismo. Cabe
pensarmos também a respeito do teatro modernista no Brasil, mediante as pro-
duções de Nelson Rodrigues.
Por fim, no quarto capítulo, iniciaremos o estudo das vanguardas pós-mo-
dernas com a vanguarda concretista e seus desdobramentos, a chamada Tropi-
cália e a poesia marginal, apresentando um panorama das tendências contem-
porâneas na poesia e na prosa de ficção.
Caminhando desse modo, teremos conhecido as obras representativas das
diversas tendências surgidas da primeira década do século XX ao início do sé-
culo XXI.

Bons estudos!

5
1
Pré-Modernismo –
Notícias de outro
Brasil
1.  Pré-Modernismo – Notícias de outro Brasil
O amanhecer do século XX, entre nós, veio cercado de expectativas. Afinal, ini-
ciava-se a “República do Café com Leite”, a economia cafeeira vivia sua época
áurea no Sudeste, os imigrantes europeus chegavam em grandes levas, o ciclo
da borracha enriquecia a Amazônia, a urbanização avançava a passos largos em
São Paulo e no Rio de Janeiro.
A literatura, como não podia deixar de ser, acompanhava esse novo tempo.
E, ainda que encarnada e desdobrada de maneiras muito diversas em cada au-
tor, essa produção pode ser reunida em torno de um mesmo impulso desbra-
vador, de certa forma ainda atual e necessário. Contrariando o que mostravam
as paisagens e os discursos oficiais, os escritores traziam à vista da sociedade
outros cenários e personagens, muito diversos dos que eram exibidos orgulho-
samente pelos governantes e que, de outra forma, teriam ficado ocultos por trás
de fachadas brilhantes e insustentáveis.
Vamos ver isso mais de perto?

OBJETIVOS
Ao final desta aula, você deverá ser capaz de:
•  Identificar traços comuns nas obras literárias reunidas dentro do período chamado de
“Pré-Modernismo”;
•  Relacionar a produção literária desse período a um determinado contexto histórico da Re-
pública do Café com Leite;
•  Distinguir e analisar obras de destaque produzidas no período em questão, também em
função dos projetos artísticos singulares dos autores abordados (Euclides da Cunha, Graça
Aranha, Lima Barreto, João do Rio e Augusto dos Anjos).

Notícias do Brasil (os Pássaros Trazem)


Uma notícia está chegando lá do Maranhão
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão
Veio no vento que soprava lá no litoral
De Fortaleza, de Recife e de Natal
A boa nova foi ouvida em Belém, Manaus,
João Pessoa, Teresina e Aracaju

8• capítulo 1
E lá do norte foi descendo pro Brasil central
Chegou em Minas, já bateu bem lá no sul

Aqui vive um povo que merece mais respeito


Sabe, belo é o povo como é belo todo amor
Aqui vive um povo que é mar e que é rio
E seu destino é um dia se juntar
O canto mais belo será sempre mais sincero
Sabe, tudo quanto é belo será sempre de espantar
Aqui vive um povo que cultiva a qualidade
Ser mais sábio que quem o quer governar

A novidade é que o Brasil não é só litoral


É muito mais, é muito mais que qualquer zona sul
Tem gente boa espalhada por esse Brasil
Que vai fazer desse lugar um bom país
Uma notícia está chegando lá do interior
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão
Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil
Não vai fazer desse lugar um bom país

(Milton Nascimento/ Fernando Brant)

MULTIMÍDIA
Uma boa maneira de você entrar no clima desta aula seria ouvir a música “Notícias do Bra-
sil”. Apesar de ter sido lançada em 1981 por Milton Nascimento, ela tem tudo a ver com o
Pré-Modernismo literário no Brasil, situado nas duas primeiras décadas do século XX. Para
aproveitar melhor essa música, preste atenção não só à sua melodia e ao seu ritmo da can-
ção, mas também à letra dela, escrita por Fernando Brant. Uma linda gravação está disponível
bem aqui: <https://www.youtube.com/watch?v=Gt344yychA>.

capítulo 1 •9
1.1  Sobre Certo Tempo e sua Produção Literária

1.1.1  Inaugurando o século XX: por trás das fachadas


©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.1  –  Reforma urbanística no Rio de Janeiro de 1903: largas avenidas, belos prédios,
inspiração parisiense.

O período histórico em que se espraia o Pré-Modernismo brasileiro reúne,


de forma muito significativa, um clima carregado de altas expectativas e, ao
mesmo tempo, cheio de profundas frustrações.
Afinal, vejamos... Após os governos militares do marechal Deodoro da
Fonseca e do marechal Floriano Peixoto, período conhecido como “República
da Espada”, ergueu-se, a partir de 1894, a “República do Café com Leite”. A eco-
nomia cafeeira vivia sua época áurea no Sudeste, os imigrantes europeus chega-
vam em grandes levas, o ciclo da borracha enriquecia a Amazônia, a urbanização
avançava a passos largos em São Paulo e no Rio de Janeiro (cf. CARVALHO, 1988).
Lembremos ainda que, no começo do século XX, o Rio de Janeiro era a
festejada capital do país e passava, justamente, por um período de espetacu-
lares transformações paisagísticas. A nova imagem do Rio era planejada por
Pereira Passos, prefeito da cidade, que queria dar ao Brasil características mais

10 • capítulo 1
modernas que afastassem a imagem de país atrasado e escravocrata. Para isso,
o prefeito se inspirou em Paris e foi abrindo avenidas e ruas para os automó-
veis, construindo praças, escondendo o esgoto em obras de saneamento básico
e iluminando as novas ruas com energia elétrica. Também foi nesse período
que foram construídos prédios públicos majestosos, como o Teatro Municipal,
o Museu Nacional de Belas Artes e a Biblioteca Nacional.
Nesse mesmo período, no entanto, devemos nos lembrar de que a cidade
contava com um pouco menos de 1 milhão de habitantes, e a maioria deles era
composta por negros saídos há pouco da escravidão e gente de outras regiões
que migrou do campo para a cidade em busca de novas oportunidades de tra-
balho. Essa camada numerosa e extremamente pobre da população havia sido
levada a constituir e habitar favelas e cortiços. Assim, os antigos casarões loca-
lizados no centro da cidade tinham sido divididos em inúmeros cubículos, a
fim de abrigar famílias inteiras, e nesses ambientes se vivia em condições extre-
mamente precárias. Esse intenso crescimento populacional, acrescido da falta
de infraestrutura urbana e de péssimas condições de higiene, acabou fazendo
a cidade se tornar um foco constante de doenças como cólera, febre amarela
e varíola.
Por tudo isso, o sonho das autoridades de transformar o Rio de Janeiro
numa espécie de Paris tropical foi sendo cada vez mais atravessado por uma
sensação permanente de ameaça à ordem, à segurança e à moralidade. E foi
nesse contexto que a ascensão de Campos Sales à presidência, em 1902, deu
novos rumos à cidade.
A nomeação de Pereira Passos para prefeito e de Oswaldo Cruz para o cargo
de diretor da saúde pública assegurou a execução do plano de reforma urbana e
sanitária da cidade. Executou-se, assim, o "bota-abaixo" – um processo violento
de demolição de cortiços e favelas, oficialmente justificado como uma provi-
dência de “limpeza urbana” para se acabar com os focos das doenças pernicio-
sas e se promover a remodelação da cidade. (v. REZENDE, 1988)
Por trás desse esforço em torno da construção de uma aparência de moder-
nidade, no entanto, muita gente estava sendo ignorada ou deixada de lado.
Um pouco antes da virada do século, por exemplo, ainda em 1897, no inte-
rior da Bahia, dava-se a Revolta de Canudos, na qual morreram cerca de 25.000
sertanejos pobres liderados por Antônio Conselheiro e esmagados pelas forças
do governo. No Ceará, outros conflitos se deram em torno da figura do padre
Cícero, e em todo o sertão vivia-se o tempo do cangaço, com a figura lendária
de Lampião.

capítulo 1 • 11
Na própria capital nacional, o Rio de Janeiro, assistiu-se em 1904 ao estouro
de uma rápida, mas intensa revolta popular, sob o pretexto aparente de lutar
contra a vacinação obrigatória idealizada por Oswaldo Cruz. Pouco tempo de-
pois, em 1910, ergue-se outra importante rebelião, desta vez comandada por
marinheiros que se insurgiam contra a prática aviltante da aplicação de casti-
gos corporais na Marinha brasileira. Liderados por João Cândido, o “almiran-
te negro”, formaram o que entrou para a História como sendo a “Revolta da
Chibata”. Ao mesmo tempo, em São Paulo, trabalhadores de orientação anar-
quista, especialmente imigrantes italianos, iniciaram movimentos grevistas
por melhores condições de trabalho.
A “República do Café com Leite”, enfim, dava sinais de que estava em crise,
e não parecia mais possível esconder isso eternamente dos olhos de todos.

1.1.2  O chamado “Pré-Modernismo”

A literatura produzida no período que estamos focando neste capítulo, basica-


mente as duas primeiras décadas do século XX, ficou conhecida tempos depois
como sendo “Pré-Modernista”. Mas o que, mais exatamente, estaria contido
nesse rótulo? Sobre isso, podemos afirmar que as tentativas de se definir o pe-
ríodo tenderam a se encaminhar para duas soluções diferentes: uma definição
relacional ou uma definição substantiva.
A primeira tendência, mais comum, de buscar uma definição relacional
destacava o valor do próprio termo “Pré-Modernismo”, cunhado por Tristão de
Ataíde em 1939, entendendo-o em dois sentidos: o da mera anterioridade tem-
poral em relação à Semana de 22 ou, mais sofisticadamente, o de precedência
temática e formal em relação à literatura modernista.
Flora Süssekind (1988: 32-33), no entanto, acredita que só conseguir enxer-
gar a literatura que vai da última década do século XIX aos anos 20 do século
XX enquanto “vampirização diluidora de marcas e estilos anteriores ou em-
brião de traços modernistas futuros” equivaleria a condená-la a uma “estranha
suspensão de sentido por três decênios”. Tentando abrir outro caminho mais
substantivo, Süssekind propõe, então, uma definição que se assente sobre as
transformações na percepção dos homens de letras em sintonia com o impacto
da sua profissionalização – que, embora ainda incipiente, já estava se dando, e
sobretudo através do trabalho dos escritores na imprensa.

12 • capítulo 1
De todo modo, é certo que o Pré-Modernismo não pode ser considerado
como uma “escola literária” no sentido de uma tendência estética comparti-
lhada por todos os escritores da época, até porque os autores que se destaca-
ram no período tinham individualidades muito fortes e diversas. Ainda assim,
e seguindo na busca por traços compartilhados entre as obras do período, e
que por isso poderiam sustentar uma definição consistente para o nosso Pré-
Modernismo, indicaremos alguns pontos em comum entre suas principais
obras (cf. BOSI, 1983 e MIGUEL-PEREIRA, 1950):
•  Um interesse em expor e denunciar uma realidade brasileira distante
dos retratos oficiais e relativamente oculta, negando as representações român-
ticas herdadas (daí o interesse pelos caboclos do interior, pelos sertanejos nor-
destinos ou pelos suburbanos);
•  Uma inclinação regionalista, que parecia expandir e multiplicar um pai-
nel brasileiro (o Nordeste e o Norte de Euclides da Cunha, o Espírito Santo de
Graça Aranha, o interior paulista de Monteiro Lobato, o subúrbio carioca de
Lima Barreto);
•  Uma acentuada ligação com os fatos políticos, econômicos e sociais da
própria época, o que diminuía a distância entre o que se considerava como
“realidade” e “ficção” (Os Sertões, por exemplo, obra-prima de Euclides da
Cunha, relata a Guerra de Canudos de 1897; Canaã, de Graça Aranha, constrói-
se sobre a experiência da imigração alemã para o Espírito Santo; Triste fim de
Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, retrata o governo de Floriano Peixoto e a
Revolta da Armada de 1893-94; Urupês e Cidades mortas, de Monteiro Lobato,
mostram de perto personagens que compunham a economia cafeeira no Vale
do Paraíba paulista);
•  Um interesse especial pelos tipos humanos marginalizados (seja o serta-
nejo nordestino, o caipira paulista, os baixos funcionários públicos, os mulatos
ou os profissionais mais humildes e irregulares da grande cidade, retratados
abundantemente por Lima Barreto e João do Rio);
•  A presença de traços de ruptura com o passado estético e até mesmo
com a linguagem mais “nobre” ou “acadêmica”, num exercício de inovação
crescente (o que pode incluir desde a emergência de um gênero mais leve e ágil
como a crônica, praticada por Lima Barreto e João do Rio, até a incorporação de
palavras antes consideradas “não poéticas” ao repertório literário, como o fez
Augusto dos Anjos).

capítulo 1 • 13
Considerando, então, o contexto histórico já exposto e ainda a caracteri-
zação mais geral que fomos traçando para as obras pré-modernistas, valerá a
pena, agora, nos determos melhor sobre a produção de alguns autores que se
destacaram no período.

1.2  Obras E Autores Pré-Modernistas

1.2.1  Euclides da Cunha


©© WIKIMEDIA.ORG

Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos da


vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República.
Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na
penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. (trecho
de Os sertões, de Euclides da Cunha)

Os sertões, de Euclides da Cunha, foi o primeiro e surpreendente best-sel-


ler brasileiro do século XX. Publicado em 1902, caiu como uma bomba sobre a
República ainda tão recente, abalando a opinião pública e modificando drasti-
camente valores e pontos de vista sobre o nosso país (cf. ABREU, 1988).
Mas o que esse livro continha, afinal, e como tinha surgido?
Durante a fase inicial do que veio a se chamar Guerra de Canudos, ocorrida
entre 1896 e 1897, Euclides da Cunha havia escrito dois artigos intitulados A
nossa Vendeia, e esses artigos lhe valeram um convite do jornal O Estado de
S. Paulo para presenciar o final do conflito como correspondente de guerra. Ele,

14 • capítulo 1
como muitos republicanos da época, acreditava que o movimento de Antônio
Conselheiro tinha a pretensão de restaurar a monarquia e que era apoiado por
monarquistas residentes no país e no exterior.
Aceitando então o convite que lhe haviam feito, Euclides foi acompanhar o
conflito de perto e só deixou Canudos quatro dias antes do desenlace final da
guerra. Não voltou a publicar nada de imediato sobre o assunto, no entanto.
Com o material coletado e registrado em suas cadernetas de campo, ao longo
dos cinco anos seguintes elaborou solitariamente a obra Os sertões: campa-
nha de Canudos, escrita "nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigan-
te”. No livro robusto que então criou, enfim publicado, ele fez este gesto raro
para qualquer um de nós: rompeu por completo com suas ideias anteriores e
preconcebidas. No caso, tratava-se de superar ou desmentir a crença de que o
movimento de Canudos seria uma tentativa de restauração da Monarquia, co-
mandada e apoiada a distância por gente rica e poderosa. Muito longe disso,
Euclides percebe que em Canudos havia, na verdade, uma sociedade comple-
tamente diferente da litorânea, e ainda mais: muito diferente da representação
usual que dela vinha sendo feita pela literatura anterior, pelo governo ou muito
especialmente pela imprensa da época.
Mas o que foi a tal Campanha de Canudos, ou ainda a Guerra de Canudos?
Em poucas palavras, podemos dizer que foi o confronto entre o Exército
Brasileiro e os integrantes de um movimento popular de fundo sociorreligioso
liderado por Antônio Conselheiro, numa comunidade pobre existente no inte-
rior da Bahia, em pleno nordeste do Brasil.
No seu surgimento, ainda no século XVIII, aquela comunidade era uma pe-
quena aldeia nos arredores da Fazenda Canudos, às margens do rio Vaza-Barris.
A região, que historicamente era caracterizada por latifúndios improdutivos,
secas cíclicas e desemprego crônico, passava por uma grave crise econômica
quando lá chegou Antônio Conselheiro, em 1893. A partir daí, passou a crescer
vertiginosamente, chegando a contar com cerca de 25.000 habitantes, porque
milhares de sertanejos e ex-escravos se uniram ali em torno da crença numa
salvação milagrosa que pouparia os humildes habitantes do sertão dos flagelos
do clima e da exclusão econômica e social.
O clero e os latifundiários da região incomodaram-se, no entanto, com a
nova cidade independente e com a constante migração de pessoas e valores
para aquele novo local. Por isso mesmo, aos poucos, foi-se construindo uma
imagem de Antônio Conselheiro como "perigoso monarquista" a serviço de

capítulo 1 • 15
potências estrangeiras, querendo restaurar no país a forma de governo monár-
quica. Difundida através da imprensa, essa imagem altamente manipulada foi
sendo espalhada e assim ganhou apoio da opinião pública do país, de modo
a justificar a guerra movida contra os habitantes do arraial (cf. ABREU, 1988).
Por trás dessa imagem falsa e das suas más intenções não declaradas, no
entanto, estava o governo da República recém-instaurada, que precisava de di-
nheiro para materializar seus planos e só se fazia presente no sertão pela co-
brança de impostos. Os grandes fazendeiros da região, por sua vez, unidos à
Igreja, iniciaram um forte grupo de pressão junto à República recém-instau-
rada, pedindo que fossem tomadas providências contra Antônio Conselheiro
e seus seguidores. Criaram-se rumores de que Canudos se armava para atacar
cidades vizinhas e partir em direção à capital para depor o governo republicano
e reinstalar a Monarquia.
A partir desse ponto, e apesar de não haver nenhuma prova concreta para os
tais rumores, o Exército foi mandado para Canudos. Três expedições militares
saíram derrotadas de lá – e, com isso, a opinião pública acabou exigindo a des-
truição total do arraial, o que deu uma aparência de legitimidade ao massacre
dos sertanejos.
Para tentar registrar os acontecimentos ocorridos e dar a eles uma certa in-
terpretação mais densa e bem acabada, o livro de Euclides se dividiu em três
partes: A terra, O homem e A luta. Nelas, Euclides analisa, respectivamente, as
características geológicas, botânicas, zoológicas e hidrográficas da região; a
vida, os costumes e a religiosidade sertaneja; e, por fim, narra os fatos ocorridos
nas quatro expedições enviadas ao arraial liderado por Antônio Conselheiro. O
trecho que reproduzimos a seguir foi extraído da terceira parte do livro – a mais
dinâmica e dramática e a que melhor mostra o traço “vingador” que Euclides
tanto desejou dar à sua mais famosa e impactante obra, dedicada à denúncia
de um terrível crime.

LEITURA
Canudos não se rendeu
Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento
completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entar-
decer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas:

16 • capítulo 1
um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5
mil soldados.
Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo.
Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la
vacilante e sem brilhos.
Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva
maior, a vertigem...
Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que
se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos
filhos pequeninos...
E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular
de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e
entre eles aquele Antônio Beatinho, que se nos entregara, confiante — e a quem devemos
preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa História ?
Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200,
cuidadosamente contadas.

1.2.2  Graça Aranha

José Pereira da Graça Aranha nasceu em São Luís, no Maranhão, em 21 de


junho de 1868. Foi um escritor e diplomata brasileiro, considerado um autor
pré-modernista.
Devido aos cargos que ocupou na diplomacia brasileira em países europeus,
ele teve a oportunidade rara, naqueles tempos, de estar realmente a par dos
movimentos vanguardistas que surgiam na Europa. Buscando dar rendimento

capítulo 1 • 17
a esse privilégio, buscou introduzir algumas daquelas propostas na literatura
brasileira. Em 1922, inclusive, chegou a participar da Semana de Arte Moderna
como um dos seus organizadores e ali pronunciou o texto “A Emoção Estética
na Arte Moderna”, defendendo uma arte, uma poesia e uma música que conti-
vessem algo do "Espírito Novo" que já havia sido apregoado pelo poeta francês
Apollinaire (V. TELES, 1972).
Antes de entrar na carreira diplomática, no entanto, Graça Aranha foi juiz
de direito no Rio de Janeiro, ocupando depois a mesma função em Porto do
Cachoeiro, no Espírito Santo. Nesse município, buscou os elementos necessá-
rios para criar sua obra mais importante, Canaã, publicada pela primeira vez
em 1902 – mesmo ano, aliás, em que foi lançada a obra Os sertões, de Euclides
da Cunha.
O romance Canaã foi inspirado no naturalismo filosófico alemão e inaugu-
rou uma nova fase do romance brasileiro, com a fusão entre realismo e simbo-
lismo. Pertence ao Pré-Modernismo por apresentar traços como certa renova-
ção formal, um olhar regionalista e um claro interesse pela realidade brasileira.
Dentro desse espírito, reflete sobre uma situação histórica nova ou até então
não considerada: a imigração alemã no Espírito Santo. Além disso, apresentou
ao Brasil um novo gênero literário: o romance-tese, em que o debate de ideias
filosóficas se integra à narrativa e muitas vezes até a supera em importância.
Afinal, mais do que meros personagens, os protagonistas Milkau e Lentz repre-
sentam duas ideologias postas em contraste: o universalismo e o divisionismo.
Em termos da narrativa ficcional, a história de Canaã pode ser resumida nos
seguintes termos: o romance trata da vinda de um imigrante a uma terra ideali-
zada e da sua progressiva desilusão à medida que se envolve mais concretamen-
te com a realidade local. E esta, no romance, é representada especialmente pela
figura de Maria Perlutz, uma jovem colona que se constitui em vítima trágica
dos velhos e tristes vícios que também estavam presentes naquela que havia
parecido a Milkau, inicialmente, uma nova Terra Prometida.
Ao tentarmos, no entanto, conjugar as duas formas de abordar o livro, uma
ferida central se abre: na opinião de Schwarz, a coexistência “não soluciona-
da” do eixo ficcional junto ao eixo filosofante em Canaã tem resultados que
comprometem a qualidade do romance, já que “1- a experiência vivida por
Milkau é generalíssima, teórica, impessoal, incapaz de configurar uma per-
sonagem viva, e 2- a teorização não adquire relevo, pois a sua conexão com a
realidade vivida pelos personagens não tem força de evidência” (1981: 34). Na
mesma linha, também o crítico Alfredo Bosi registra que o romance padece de

18 • capítulo 1
“generalizações inerentes ao estilo imaginoso do autor” (1983: 369) e aponta
a existência descompassada de dois polos na estrutura do romance, aos quais
chama “ideológico” e “representativo”. E, como bem notou José Paulo Paes,
“enquanto romance de ideias, Canaã, desde o título, tem seu centro de gravida-
de posto mais nos ideais utópicos da mente de Milkau que nos fatos distópicos
da vida de Maria” (1992: 28) .
Dentro desse contexto, o personagem Milkau também representa bem a perda
de referentes no cenário da época. A Europa já é sentida como uma “força exausta”
(Aranha, 1939: 259), e o Brasil imaculado não era mais que uma miragem; a pureza
e a dignidade procuradas por Milkau como qualidades intrínsecas do trabalho na
lavoura se desmentem. Nesse sentido, é exemplar seu testemunho da tormenta a
que assiste e pela qual se vê passar cada vez mais de perto:
... E a tradição rompeu-se, o pai não transmitirá mais ao filho a sua imagem,
a língua vai morrer, os velhos sonhos da raça, os longínquos e fundos desejos da
personalidade emudeceram, o futuro não entenderá o passado... (Aranha, 1939:37)

1.2.3  Lima Barreto


©© WIKIMEDIA.ORG

O grande inconveniente da vida real


e o que a torna insuportável ao ho-
mem superior é que, se se transfe-
rirem para ela os princípios do ideal,
as qualidades tornam-se defeitos,
de modo que, muito frequentemen-
te, o homem completo tem bem
menos sucesso na vida do que
aquele que se move pelo egoísmo
ou pela rotina vulgar. (Ernest Renan,
no trecho citado como epígrafe do
romance Triste fim de Policarpo
Quaresma)

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 1881, no Rio de Janeiro. Órfão


de mãe, teve uma brilhante trajetória na escola. Quando adulto, tornou-se jor-
nalista, trabalhou no Ministério da Guerra e atuou intensamente como escritor.

capítulo 1 • 19
Escreveu, de fato, dezenove livros – entre eles Clara dos Anjos, obra póstu-
ma, Cemitério dos Vivos, livro póstumo e inacabado, e seu mais famoso roman-
ce, Triste fim de Policarpo Quaresma.
O romance em questão foi publicado, inicialmente, 1911, por meio de fo-
lhetins no Jornal do Comércio. Só após cinco anos é que foi publicado em for-
ma de livro, custeado pelo próprio autor. Assim que publicado, no entanto, foi
aclamado pela crítica (diferentemente de sua primeira obra, Recordações do
escrivão Isaías Caminha).
As histórias de Policarpo Quaresma se passam durante os primeiros anos da
República, precisamente durante o governo de Floriano Peixoto (1891-1894) e a
Revolta da Armada, que se prolongou nesse período.

CURIOSIDADE
A Revolta da Armada se iniciou em novembro de 1891, como reação ao fechamento do
Congresso pelo então presidente Marechal Deodoro. Em protesto, unidades da Armada
ameaçaram bombardear a cidade do Rio de Janeiro, então capital da República. Para evitar
uma guerra civil, o marechal Deodoro renunciou à Presidência e seu vice, Floriano Peixoto,
assumiu o cargo. Não se dispôs, no entanto, a cumprir o preceito constitucional de convocar
uma nova eleição e reprimiu duramente os revoltosos com batalhas sangrentas determinan-
do, ainda, a prisão e até a execução de seus líderes. Graças a isso, passou a ser conhecido
pelo cognome Marechal de Ferro.

Os fatos histórico-sociais abordados na obra, ainda bastante recentes nos


momentos de sua criação, são contundentemente expostos e discutidos por
Lima Barreto durante o enredo, já que o personagem principal é um engaja-
do revolucionário.
Em relação à estrutura da obra, podemos reconhecer nela claramente três
partes que representam, num nível mais profundo, os três grandes sonhos do
protagonista.
Na primeira parte da obra, Policarpo começa a apreender violão, buscando
nas modinhas brasileiras um resgate da nossa cultura. Dentre suas ideias utó-
picas e ingênuas, destaca-se ainda, nessa parte, a sugestão que ele faz às auto-
ridades para que se substituíssem o português pelo tupi-guarani, que, segundo
ele, era nossa verdadeira língua-mãe.

20 • capítulo 1
Na segunda parte da obra, Policarpo se muda para o sítio, buscando assim
retirar das terras brasileiras seu sustento e acreditando que, com tanta terra
fértil, o melhor a ser feito era aproveitá-la, e também em relação a isso, e no
entanto se desilude gravemente.
Já na terceira e última parte da obra, o Major busca, através de sua participa-
ção na Revolta da Armada, salvar o país como um todo. Seu destino, no entanto,
é selado quando, após presenciar a escolha arbitrária de prisioneiros a serem
executados, ele escreve uma carta a Floriano Peixoto denunciando a situação.
Justamente por discordar das injustiças praticadas contra os prisioneiros, ele
então é preso, acusado de traição à República e condenado ao fuzilamento –
uma ordem dada por aquele que havia sido até então o seu ídolo, o Marechal
Floriano Peixoto. Por isso mesmo, o personagem, uma espécie de Dom Quixote
tupiniquim, morre espiritualmente de decepção antes mesmo de sua morte fí-
sica, ao ver que a pátria à qual ele sacrificara sua vida de estudos era uma per-
turbadora ilusão. Nesse sentido, a obra mostra também muito da sensibilidade
e do descontentamento do próprio Lima Barreto diante do painel humano e
social da época.
Mais do que um mero sujeito iludido ou ingênuo, no entanto, o protagonis-
ta do romance é construído com tal riqueza e consistência que ganha, no livro,
uma dimensão toda especial.
Alfredo Bosi (1983) afirma, exatamente a esse respeito:
O Major Quaresma não se exaure na obsessão nacionalismo, no fanatismo
xenófobo; pessoa viva, as suas reações revelam o entusiasmo do homem ingê-
nuo, a distanciá-lo do conformismo em que se arrastam os demais burocratas e
militares reformados cujos bocejos amornecem os serões do subúrbio.
Considerando, então, o viés dolorosamente crítico do romance, devemos
lembrar que a importância de Lima Barreto extrapola os limites literários: ele
foi um dos poucos escritores da nossa Literatura a combater abertamente o
preconceito racial e a discriminação social sofrida pelo negro e pelo mulato.
Filho de família humilde, porém de bom nível cultural (sua mãe era uma pro-
fessora), contou com a proteção do Visconde de Ouro Preto, graças a quem con-
seguiu ingressar no curso de Engenharia. Tendo perdido a mãe, no entanto,
aos seis anos, e ainda em virtude da doença mental que acometia o pai, Lima
Barreto precisou abandonar a faculdade para sustentar a família, a madrasta e
os irmãos. Todos esses fatores, naturalmente, influenciaram muito o estilo, a
sensibilidade social e as escolhas temáticas do escritor.

capítulo 1 • 21
Nesse sentido, devemos notar que o movimento crítico que traz à tona a
obra literária de Lima Barreto é relativamente recente, já que o escritor ficou
muito tempo à sombra de seu contemporâneo, Machado de Assis. Vítima de
clara discriminação, e fortemente silenciado em seu tempo pela alta cúpula da
Academia Brasileira de Letras – à qual se candidatou por duas vezes, tendo de-
sistido da terceira vez antes mesmo das eleições –, Lima Barreto entregou-se
desgostosamente ao consumo de álcool, o que acabou lhe rendendo duas inter-
nações na Ala Pinel do Hospício Nacional. Ainda assim, embora muito lembra-
do pelos constantes problemas com o alcoolismo e pelos distúrbios mentais
que lhe impuseram um estigma da loucura, Lima Barreto deixou uma obra lite-
rária extremamente original – inclusive, certamente, pelo lugar singular, sofri-
do e improvável a partir de onde foi gerada.

MULTIMÍDIA
Valeria a pena você assistir à adaptação cinematográfica do romance de Lima Barreto, que
foi lançada no cinema em 1988 com o título de Policarpo Quaresma, Herói do Brasil, roteiro
de Alcione Araújo e direção de Paulo Thiago. Ainda mais recentemente, no entanto, a novela
televisiva Lado a Lado retratava muito do universo flagrado por Lima Barreto: não só o “afran-
cesamento” do Rio de Janeiro, mas toda a tensão social abafada por debaixo dela, expressas,
por exemplo, pelas lutas durante o “bota-abaixo”, pela Revolta da Chibata, pela Revolta da
Armada e pela ascensão das mulheres. Ganhadora do Emmy Internacional de 2013, foi es-
crita por Claudia Lage e João Ximenes Braga.

1.2.4  João do Rio


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Nas sociedades organizadas inte-


ressam apenas: a gente de cima e a
canalha. Porque são imprevistos e se
parecem pela coragem dos recursos
e a ausência de escrúpulos. (Gomes,
1996, p.29)

22 • capítulo 1
Obeso, Paulo Barreto sentiu-se mal durante todo o dia 24 de junho de 1921.
Ao pegar um táxi, o mal-estar aumentou e ele pediu ao motorista que paras-
se e lhe trouxesse um copo d'água. Antes que o socorro chegasse, no entanto,
ele faleceu, vítima de um infarto fulminante. O velório foi realizado na pró-
pria redação do jornal A Pátria, fundado por ele em 1920 e para o qual escre-
via diariamente.
A notícia de que esse homem, conhecido como João do Rio, havia morrido
espalhou-se então por toda a cidade muito rapidamente. E, a partir daí, estima-se
que cerca de 100 mil pessoas tenham comparecido para o último adeus ao escri-
tor. Mas o que, afinal, ele era e como chegou a atrair e mobilizar tanta gente?
João Paulo Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881. Estudou com o pai, o
professor Alfredo Coelho Barreto, e ainda adolescente ingressou na imprensa.
Escritor de intensa atividade, entre 1900 e 1903 colaborou, sob diversos pseu-
dônimos, com vários órgãos da imprensa carioca, como O Paiz, O Dia, Correio
Mercantil, O Tagarela e O Coió.
Em 1903 foi indicado por Nilo Peçanha para a Gazeta de Notícias, onde per-
maneceu até 1913. Foi nesse jornal que, em 26 de novembro de 1903, nasceu
João do Rio, seu pseudônimo mais famoso, assinando o artigo "O Brasil Lê",
uma enquete sobre as preferências literárias do leitor carioca. E, como indica
Gomes (1996, p. 84), "daí por diante, o nome que fixa a identidade literária en-
gole Paulo Barreto”. Sob essa máscara publicou todos os seus livros e ganhou
cada vez mais fama.
Como escritor profissional, João do Rio produziu sua obra a partir da ob-
servação direta da vida e da linguagem de diferentes grupos sociais do Rio de
Janeiro do começo do século XX. Seu olhar atento se debruçou sobre gente tão
variada quanto presidiários, trabalhadores braçais, prostitutas, barões, dân-
dis, cocotes e outros seres urbanos que não costumavam contar com a atenção
dos literatos brasileiros. E também os espaços sociais nos quais essas pessoas
circulavam foram expostos com realismo e sensibilidade, quer se tratassem de
terreiros de umbanda e candomblé, igrejas, cabarés, cortiços, favelas, minas,
palácios ou presídios. Afinal, um autor com o pseudônimo adotado por ele não
poderia descartar qualquer aspecto da vida carioca. Assim, embora muitos de
seus contos e crônicas mostrem festas elegantes e orgias com prostitutas de
luxo, outros conduzem o leitor por um passeio pelas ruas da capital – desde a

capítulo 1 • 23
Rua do Ouvidor, "a fanfarronada em pessoa", até as decadentes, com "a desgra-
ça das casas velhas e a cair", como a velha Rua da Misericórdia. Seus textos, as-
sim, também focalizaram aspectos da vida da população pobre, como a loucura
que toma conta da cidade durante o Carnaval. Acredita-se mesmo que o conto
Os Livres Acampamentos da Miséria, publicado em 1911, no qual ele sobe o
morro de Santo Antônio "para ouvir o samba", contenha a primeira descrição
de uma favela no Rio de Janeiro.
Segundo seus biógrafos, ao profissionalizar-se, Paulo Barreto representou
o surgimento de um novo tipo de “homem de letras” no Brasil. Até então, o
exercício do jornalismo e da literatura por intelectuais era encarado como um
mero "bico", uma atividade menor para pessoas que tinham muitas horas vagas
à disposição (como aristocratas e funcionários públicos, por exemplo). Paulo
Barreto, no entanto, encarou o desfio de viver da sua escrita, empregando nos
jornais e livros seus mais de onze pseudônimos para atrair os mais diversos pú-
blicos e leitores.
Nutrido de mordaz senso de observação, João do Rio foi crítico severo das
transformações por que o Rio passava. Veja, por exemplo, o vivíssimo trecho a
seguir:

LEITURA
As avenidas são a morte do velho Rio. Este mercado, onde não moram mais os mercadores,
esse mercado fechado e higiênico pode ser aquela antiga praça centro da miséria, da luxúria
viscosa, de tantas e tantas tradições? Nunca! Amanhã, temo-lo demolido como a velha Saú-
de, amanhã atiram esses becos por terra; amanhã desmancham a rua Tobias Barreto, a rua
do Nuneio, a rua da Conceição, e a parte bizarra, curiosa, empolgante da cidade desaparece
absolutamente! Vamos ficar como todas as outras cidades!
[...]*Texto escrito por Paulo Barreto (João do Rio), publicado na Gazeta de Notícias, em
12 de janeiro de 1908

24 • capítulo 1
1.3  Monteiro Lobato
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José Bento Renato Monteiro Lobato


nasceu em Taubaté, São Paulo, no dia
18 de abril de 1882, e foi um dos mais
influentes escritores brasileiros de to-
dos os tempos. Você já deve ter ouvido
falar dele como o criador do famoso
Sítio do Pica-Pau Amarelo, não é?

Pois foi somente em 1914, quando ele era fazendeiro em Buquira, que um
fato definiria de verdade a sua carreira literária. Aconteceu que, durante o inver-
no seco daquele ano, e já cansado de enfrentar as constantes queimadas pratica-
das pelos caboclos, Lobato escreveu um texto indignado intitulado Velha Praga e
o enviou para a seção “Queixas e Reclamações” do jornal O Estado de S. Paulo. O
jornal, percebendo o valor daquela carta, publicou-a com maior destaque e fora
da seção que era destinada aos leitores – no que acertou, pois a carta provocou
polêmica e fez com que Lobato escrevesse outros artigos, como, por exemplo,
Urupês, dando vida a um de seus mais famosos personagens, o Jeca Tatu.
Urupês se tornou, ainda, o título da coletânea de contos e crônicas que
Monteiro Lobato publicou em 1918, considerada a sua obra-prima. Com esse
livro, inaugurou-se na literatura brasileira um regionalismo crítico e mais rea-
lista do que o praticado anteriormente, durante o Romantismo. A crônica que
dá título ao livro, por exemplo, trazia uma visão depreciativa do caboclo bra-
sileiro, chamado pelo autor de "fazedor de desertos", estereótipo contrário à
visão romântica que predominava até então. Na visão de Lobato, Jeca era um
grande preguiçoso, totalmente diferente dos caipiras e índios idealizados pela
literatura romântica de então, pois o personagem era símbolo do atraso e da
miséria que representavam o campo no Brasil. Vejamos uma amostra disso, no
trecho a seguir, retirado exatamente do livro em questão:

capítulo 1 • 25
LEITURA
A Verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionali-
dade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígine de tabuinha em beiço, uma existe
a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a
põe de pé. Pobre Jeca Tatu! Como é bonito no romance e feio na realidade! Jeca Tatu é um
Piraquara do Paraíba, maravilhoso epitome de carne onde se resumem todas as característi-
cas da espécie. O fato mais importante da vida do Jeca é votar no governo. A modinha, como
as demais manifestações de arte popular existente no país, é obra do mulato, em cujas veias
o sangue recente do europeu, rico de ativismos estéticos, borbulha d’envolta com o sangue
selvagem, alegre e são do negro. O caboclo é soturno. Não canta senão rezas lúgubres. Não
dança senão o cateretê aladainhado. O caboclo é o sombrio Urupê de pau podre a modorrar
silencioso no recesso das grotas. Bem ponderado, a causa principal da lombeira do caboclo
reside nas benemerências sem conta da mandioca. Talvez sem ela se pusesse de pé e an-
dasse. Mas enquanto dispuser de uma pão cujo preparo se resume no plantar, colher e lançar
sobre brasas, Jeca não mudará de vida.

Passando, ainda, a conjugar a carreira de escritor à de editor, naquele mes-


mo ano de 1918 Monteiro Lobato também conseguiu comprar a Revista do
Brasil e ali passou a dar espaço a novos talentos, ao lado de escritores que já
eram famosos.
Mais adiante, em 1920, o conto Os faroleiros serviu de argumento para
um filme dirigido pelos cineastas Antônio Leite e Miguel Milani. Meses de-
pois, Lobato ainda publicou o doloroso conto Negrinha e publicou também A
Menina do Narizinho Arrebitado (sua primeira obra infantil, que deu origem
a Lúcia, mais conhecida como a Narizinho do Sítio do Picapau Amarelo). Esse
livro, concebido para o público infantil, foi lançado em dezembro de 1920, vi-
sando aproveitar a época de Natal, e continha caprichosos desenhos de um fa-
moso ilustrador da época. Logo adiante, em janeiro de 1921, os anúncios na
imprensa deram ainda mais visibilidade ao livro, noticiando a distribuição de
exemplares gratuitos de A Menina do Narizinho Arrebitado nas escolas, num
total de 500 doações – um golpe de mestre, em termos de ação estratégica da
editora para conquistar público, e também um fato inédito na indústria edito-
rial. O sucesso entre as crianças, conquistado brilhantemente, gerou continua-
ções: Fábulas de Narizinho (1921), O Saci (1921), O Marquês de Rabicó (1922), A

26 • capítulo 1
Caçada da Onça (1924), O Noivado de Narizinho (1924), Jeca Tatuzinho (1924) e
O Garimpeiro do Rio das Garças (1924), entre outros.
Tais novidades repercutiram em altas tiragens dos livros que editava, a pon-
to de Monteiro Lobato decidir dedicar-se à editora em tempo integral, entregan-
do a direção da Revista do Brasil a Paulo Prado e Sérgio Millet. Quando, porém,
o presidente Artur Bernardes desvalorizou a moeda e suspendeu o redesconto
de títulos pelo Banco do Brasil, gerou um enorme rombo financeiro e muitas
dívidas ao escritor. Lobato, então, só teve uma escolha: entrou com pedido de
falência em julho de 1925. Mesmo assim, Lobato não se deu por vencido nem
desistiu do seu projeto editorial. Pelo contrário: nesse ponto, ele já se preparava
para abrir outra empresa, a Companhia Editora Nacional, em sociedade com
Octalles Marcondes, já no Rio de Janeiro.
A partir daí, Lobato continuou escrevendo livros infantis de sucesso, espe-
cialmente com Narizinho e outros personagens, como Dona Benta, Pedrinho,
Tia Nastácia, o boneco de sabugo de milho Visconde de Sabugosa e Emília, a
boneca de pano. Além disso, por não gostar muito das traduções dos livros eu-
ropeus para crianças, criou aventuras com personagens bem ligados à cultura
brasileira, recuperando inclusive costumes da roça e lendas do folclore. Mas
não parou por aí. Monteiro Lobato pegou essa mistura de personagens brasilei-
ros e os enriqueceu, '"misturando-os" a personagens da literatura universal, da
mitologia grega, dos quadrinhos e do cinema. Também foi pioneiro na produ-
ção e distribuição da chamada “literatura paradidática”,
Muito mais recentemente, no entanto, a partir de 2010, a obra de Monteiro
Lobato voltou a ganhar uma atenção especial da mídia por causa de uma dis-
cussão a respeito do seu caráter racista. No centro do debate estava Caçadas
de Pedrinho, um de seus livros para crianças, publicado em 1933. No livro em
questão, a personagem negra Tia Nastácia é chamada de "macaca de carvão" e
referida como pessoa que tem "carne preta". A obra, cuja leitura vinha sendo
obrigatória nas escolas públicas, foi alvo de mandado de segurança impetrado
pelo Instituto de Advocacia Racial (Iara) perante o Supremo Tribunal Federal.
No referido mandato, o Iara requeria a retirada do livro de Lobato da lista de lei-
tura obrigatória, para que as crianças brasileiras não ficassem expostas ao seu
alegado conteúdo racista. Tal pedido já havia sido feito e negado pela Câmara
de Educação Básica, pelo Plenário do Conselho Nacional de Educação e pelo
ministro da Educação. Também requeria que o MEC incluísse "notas explicati-
vas” nos livros fornecidos às bibliotecas sobre as nuances do racismo do Brasil
da República Velha" fosse permitido o lecionamento acerca do livro.

capítulo 1 • 27
Os meios de comunicação brasileiros, no entanto, majoritariamente posi-
cionaram-se contrários ao parecer desfavorável à obra de Lobato, frequente-
mente alegando que se tratava de uma tentativa de "censura" e de um "atentado
à livre expressão de ideias”.

1.3.1  Augusto dos Anjos


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Augusto de Carvalho Rodrigues dos


Anjos nasceu no engenho Pau d'Arco,
Paraíba. De uma família de donos de
engenhos, assistiu à decadência da
antiga estrutura latifundiária, substi-
tuída pelas grandes usinas. Quando
estava no curso secundário, Augusto
começou a mostrar uma saúde deli-
cada e um sistema nervoso abalado.

Em 1903, iniciou os estudos na Faculdade de Direito do Recife, onde teve conta-


to com o trabalho "A Poesia Científica", do professor Martins Júnior. Formado
em 1907, preferiu não advogar e ensinar português. Em fins de 1913, transfe-
riu-se para Leopoldina, MG, por ter sido nomeado para o cargo de diretor de
um grupo escolar. Morreu nessa cidade, vitimado pela pneumonia, com pouco
mais de trinta anos. Ainda jovem, consta que os sofrimentos físicos tinham-lhe
dado um aspecto de velho.
Quase toda a sua obra poética está no seu único livro, Eu, publicado em
1912. Apesar de praticamente ignorado a princípio, pelo público e pela crítica, a
partir de 1919 o livro foi constantemente reeditado como Eu e outros poemas. A
poesia brasileira estava dominada por simbolismo e parnasianismo, dos quais
o poeta paraibano herdou algumas características formais, mas não de con-
teúdo. A incapacidade do homem de expressar sua essência através da "língua
paralítica" (Anjos, p. 204) e a tentativa de usar o verso para expressar da forma
mais crua a realidade seriam sua apropriação do trabalho exaustivo com o verso
feito pelos poetas parnasianos. A erudição usada apenas para repetir o modelo
formal clássico é rompida por Augusto dos Anjos, que se preocupa em utilizar
a forma clássica com um conteúdo que a subverte, através de uma alta tensão
entre poesia e ciência, feita de movimentos de atração e repúdio.

28 • capítulo 1
No livro, Augusto dos Anjos faz da obsessão com o próprio "eu" o centro do
seu pensamento. Uma profunda angústia está muito presente ("Ai! Um urubu
pousou na minha sorte"), assim como o ceticismo pessimista em relação ao
amor ("Não sou capaz de amar mulher alguma, / Nem há mulher talvez capaz de
amar-me"). Indo além, o poeta chega a aspirar à própria morte e à anulação de
sua pessoa, reduzindo a vida drasticamente a combinações de elementos quí-
micos, físicos e biológicos ("Eu, filho do carbono e do amoníaco,"), dominado
por um materialismo entre amargo e autoirônico ("Tome, doutor, essa tesoura
e corte/ Minha singularíssima pessoa").
Em sua poética radicalmente pessimista, no entanto, podemos ver muito
de transgressão e mesmo uma espécie de “festa da carne”, instaurada a partir
mesmo da constatação da miséria da natureza humana sob uma luz fria e algo
cientificista (cf. VASCONCELOS, 1996). A partir dela, são questionadas visceral-
mente as virtudes sociais humanas, a moral cristã, a política, a cultura, a eco-
nomia, a saúde, a sociologia, a antropologia e a ética. Com uma linguagem or-
gânica e muitas vezes agressivamente crua, mas sempre com ritmados jogos de
palavras, ideias e rimas geniais, o poeta causava repulsa na crítica e no grande
público da época. Ironicamente, foi somente depois de morto que sua poesia
teve o valor reconhecido e obteve grande vendagem.
Como uma amostra da novidade e força da poesia de Augusto dos Anjos, fi-
quemos aqui com a leitura daquele que talvez tenha sido o poema mais famoso,
desiludido e violento, desconcertante a cada verso e, ainda assim, formalmen-
te perfeito.

LEITURA
Versos íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável


Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

capítulo 1 • 29
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

ATIVIDADES
01. Na abertura deste capítulo, dissemos que a literatura produzida no Pré-Modernismo po-
deria ser reunida “em torno de um mesmo impulso desbravador, de certa forma ainda atual
e necessário”. Nesse contexto, usamos como epígrafe a letra de uma canção lançada em
1981 para inspirar nossa leitura das obras produzidas nas duas primeiras décadas do século
XX. Considerando, então, a caracterização geral do Pré-Modernismo discutida no item 1.2,
aponte as possíveis confluências entre a questão tematizada na letra de Notícias do Brasil e
nas obras pré-modernistas que estudamos neste capítulo.

02. Reproduzimos, a seguir, trechos de duas obras centrais do Pré-Modernismo brasileiro. A


partir da leitura deles, aponte as possíveis afinidades entre as duas obras, assim como suas
diferenças mais perceptíveis.

LEITURA
Trecho 1: (de Os sertões, de Euclides da Cunha)
Isoladas a princípio, estas turmas adunavam-se pelos caminhos, aliando-se a outras, che-
gando, afinal, conjuntas a Canudos. O arraial crescia vertiginosamente, coalhando as colinas.
A edificação rudimentar permitia à multidão sem lares fazer até doze casas por dia; - e, à
medida que se formava, a tapera colossal parecia estereografar a feição moral da sociedade
ali acoutada. Era a objetivação daquela insânia imensa. Documento iniludível permitindo o
corpo de delito direto sobre os desmandos de um povo.
Aquilo se fazia a esmo, adoudadamente.
A urbs monstruosa, de barro, definia bem a civitas sinistra do erro. O povoado novo surgia,
dentro de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia velho. Visto de longe, desdobrado pelos
cômoros, atulhando as canhadas, cobrindo área enorme, truncado nas quebradas, revolto
nos pendores – tinha o aspecto perfeito de uma cidade cujo solo houvesse sido sacudido e
brutalmente dobrado por um terremoto.

30 • capítulo 1
Trecho 2: (de Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto)
Os subúrbios do Rio de Janeiro são a mais curiosa coisa em matéria de edificação de
cidade. A topografia do local, caprichosamente montuosa, influiu decerto para tal aspecto,
mais influíram, porém, os azares das construções.
Nada mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode ser imaginado. As
casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e, conforme as casas, as ruas se fize-
ram. Há algumas delas que começam largas como boulevards e acabam estreitas que nem
vielas; dão voltas, circuitos inúteis e parecem fugir ao alinhamento reto com um ódio tenaz
e sagrado.
(...)
Os cuidados municipais também são variáveis e caprichosos. Às vezes, nas ruas, há pas-
seios em certas partes e outras não; algumas vias de comunicação são calçadas e outras
da mesma importância estão ainda em estado de natureza. Encontra-se aqui um pontilhão
bem cuidado sobre um rio seco e passos além temos que atravessar um ribeirão sobre uma
pinguela de trilhos mal juntos.
(...)
Além disto, os subúrbios têm mais aspectos interessantes, sem falar no namoro epidê-
mico e no espiritismo endêmico; as casas de cômodos (quem as suporia lá!) constituem um
deles bem inédito. Casas que mal dariam para uma pequena família, são divididas, subdividi-
das, e os minúsculos aposentos assim obtidos, alugados à população miserável da cidade. Aí,
nesses caixotins humanos, é que se encontra a fauna menos observada da nossa vida, sobre
a qual a miséria paira com um rigor londrino.
Não se podem imaginar profissões mais tristes e mais inopinadas da gente que habita
tais caixinhas. Além dos serventes de repartições, contínuos de escritórios, podemos deparar
velhas fabricantes de rendas de bilros, compradores de garrafas vazias, castradores de gatos,
cães e galos, mandingueiros, catadores de ervas medicinais, enfim, uma variedade de profis-
sões miseráveis que as nossas pequenas
e grande burguesias não podem adivinhar.

REFLEXÃO
Buscando captar o contexto histórico das duas primeiras décadas do século XX e, ao mes-
mo tempo, relacionar a ele os traços gerais do nosso Pré-Modernismo literário, chamamos
a atenção, basicamente, para o contraste entre os retratos oficiais do Brasil e os impulsos
desbravadores dos nossos escritores.

capítulo 1 • 31
Assim, sob as grandes expectativas de progresso vindas com a Proclamação da Repú-
blica e a virada do século, e por baixo dos esforços oficiais de dar à capital brasileira uma
aparência mais sofisticada e moderna, pudemos notar que se escondia toda uma população
rejeitada e marginalizada, cujos movimentos de revolta, via de regra, eram desconsiderados
ou então abafados com mão de ferro.
Adotando uma visão menos idealizada, os escritores mais importantes do período foram
justamente aqueles que se arriscaram ao expor realidades brasileiras mais duras e distantes
dos retratos oficiais. Para isso, adotaram por vezes um olhar atento ao dado mais regional,
expandindo um painel representativo do que se entendia por “Brasil”; escolhiam abordar fatos
políticos, econômicos e sociais de sua própria época; demonstravam um interesse especial
pelos tipos humanos marginalizados; e, ainda, apresentavam traços de ruptura com o pas-
sado estético e até mesmo com a linguagem mais “nobre” ou “acadêmica”, num exercício de
inovação crescente. Nesse sentido, devemos notar, ainda, o impacto que teve a expansão da
imprensa sobre os estilos, escolhas e trajetórias dos escritores em atividade.
Ainda que partilhassem certo contexto histórico e apresentassem algumas proximidades
importantes, no entanto, nossos autores da época foram donos de personalidades literárias
muito fortes e em boa parte bastante distintas, o que impossibilita a referência ao nosso Pré-
Modernismo como uma escola literária mais homogênea. Por isso mesmo, vale a pena lem-
brar aqueles que escolhemos abordar, pela representatividade que obtiveram, mas também
pela grande singularidade das obras que deixaram: Euclides da Cunha, Graça Aranha, Lima
Barreto, João do Rio, Monteiro Lobato e Augusto dos Anjos.
Como uma reflexão final, chamamos a atenção ainda para um ponto: os melhores es-
critores do período foram os que mergulharam em experiências radicais de decepção em
relação aos quadros idealizados, de relativa impotência, de vivência da marginalidade, de
sentimentos de profunda traição. E disso extraíram sua potência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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capítulo 1 • 33
34 • capítulo 1
2
Modernismo
Literário no Brasil
2.  Modernismo Literário no Brasil
Neste capítulo, daremos início aos nossos estudos acerca do Modernismo bra-
sileiro que tem como marco inicial e simbólico a Semana de Arte Moderna, rea-
lizada em São Paulo, no ano de 1922.
Passemos, então, ao estudo da poética modernista, de acordo com as várias ge-
rações e características

OBJETIVOS
Nosso objetivo é apresentar uma perspectiva panorâmica da Literatura Brasileira a partir
do século XX, sob a perspectiva do Modernismo no contexto da historiografia e da crítica
literária brasileira.
Desse modo, esperamos que você seja capaz de conhecer todas as fases do Modernis-
mo brasileiro, identificando suas vertentes e diferenciando suas correntes.

2.1  Antecedentes, Fases e Tendências

Para fins didáticos, costuma-se dividir o Modernismo brasileiro em três fases:


1ª Fase: de 1922 a 1930;
2ª Fase: de 1930 a 1945;
3ª Fase: de 1945 até nossos dias.

1ª Fase: de 1922 a 1930


O avanço científico e tecnológico do início do século XX mudou a vida das
pessoas, ocasionando uma supervalorização do progresso e da máquina.
Houve a crise do capitalismo, que conduziu à Primeira Guerra Mundial, que
ocorreu 1914 a 1918, fazendo com que a população ficasse descrente da políti-
ca, da sociedade e até dos pensamentos filosóficos do momento.

36 • capítulo 2
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.1  –  Guerra Mundial.

A partir de 1929, o mundo atravessou uma imensa crise financeira, o que


acabou por desencadear a Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945.

CONCEITO
O período entreguerras é chamado de “anos loucos”, devido à incerteza de paz, fazendo
com que as pessoas pensassem em viver apenas o presente, uma vez que o futuro se tor-
nara incerto.

Nesse contexto – contraditório, inquieto e desequilibrado – surgiram movi-


mentos artísticos que propunham uma nova interpretação da realidade, cuja
expressão foi denominada de vanguardas europeias, de grande influência so-
bre o Modernismo brasileiro.
As principais vanguardas europeias são:
•  Futurismo, cujo líder foi o italiano Marinetti, com a proposta de destrui-
ção do passado, exaltação da velocidade e da máquina.

capítulo 2 • 37
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.2  –  Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944).

Manifesto Futurista
Filippo Tommaso Marinetti

20 de fevereiro de 1909, publicado no jornal francês Le Figaro.

1. Nós pretendemos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e a intrepidez.


2. Coragem, audácia, e revolta serão elementos essenciais da nossa poesia.
3. Desde então a literatura exaltou uma imobilidade pesarosa, êxtase e sono. Nós
pretendemos exaltar a ação agressiva, uma insónia febril, o progresso do corredor, o
salto mortal, o soco e tapa.
4. Nós afirmamos que a magnificiência do mundo foi enriquecida por uma nova be-
leza: a beleza da velocidade. Um carro de corrida cuja capota é adornada com grandes
canos, como serpentes de respirações explosivas de um carro bravejante que parece
correr na metralha é mais bonito do que a Vitória da Samotrácia.
5. Nós queremos cantar hinos ao homem e à roda, que arremessa a lança de seu
espírito sobre a Terra, ao longo de sua órbita.
6. O poeta deve esgotar a si mesmo com ardor, esplendor, e generosidade, para ex-
pandir o fervor entusiástico dos elementos primordiais.
7. Exceto na luta, não há beleza. Nenhum trabalho sem um caráter agressivo pode
ser uma obra de arte. Poesia deve ser concebida como um ataque violento em forças
desconhecidas, para reduzir e serem prostradas perante o homem.

38 • capítulo 2
8. Nós estamos no último promontório dos séculos!... Porque nós deveríamos olhar
para trás, quando o que queremos é atravessar as portas misteriosas do Impossível?
Tempo e Espaço morreram ontem. Nós já vivemos no absoluto, porque nós criamos a
velocidade, eterna, onipresente.
9. Nós glorificaremos a guerra — a única higiene militar, patriotismo, o gesto destru-
tivo daqueles que trazem a liberdade, ideias pelas quais vale a pena morrer, e o escar-
necer da mulher.
10. Nós destruiremos os museus, bibliotecas, academias de todo tipo, lutaremos contra
o moralismo, feminismo, toda cobardice oportunista ou utilitária.
11. Nós cantaremos as grandes multidões excitadas pelo trabalho, pelo prazer, e pelo
tumulto; nós cantaremos a canção das marés de revolução, multicoloridas e polifónicas
nas modernas capitais; nós cantaremos o vibrante fervor noturno de arsenais e estalei-
ros em chamas com violentas luas elétricas; estações de trem cobiçosas que devoram
serpentes emplumadas de fumaça; fábricas pendem em nuvens por linhas tortas de
suas fumaças; pontes que transpõem rios, como ginastas gigantes, lampejando no sol
com um brilho de facas; navios a vapor aventureiros que fungam o horizonte; locomoti-
vas de peito largo cujas rodas atravessam os trilhos como o casco de enormes cavalos
de aço freados por tubulações; e o voo macio de aviões cujos propulsores tagarelam no
vento como faixas e parecem aplaudir como um público entusiasmado.
Disponível em: <http://www.espiral.fau.usp.br/arquivos-artecultura-20/1909-Ma-
rinetti-manifestofuturista.pdf>. Acesso em: 14 jun 2016.

Ao lermos o Manifesto futurista, verificamos que Marinetti apresenta e de-


fende, por exemplo:
•  A destruição do passado: como em “Coragem, audácia, e revolta serão ele-
mentos essenciais da nossa poesia”;
•  A exaltação da velocidade: “Nós afirmamos que a magnificiência do mun-
do foi enriquecida por uma nova beleza: a beleza da velocidade”.
•  A exaltação da máquina: “navios a vapor aventureiros que fungam o hori-
zonte; locomotivas de peito largo cujas rodas atravessam os trilhos e (...)o voo
macio de aviões cujos propulsores tagarelam no vento como faixas”.

capítulo 2 • 39
De acordo com Carlos Ceia em seu E-Dicionário de termos literários:

Marinetti apelava não só a uma ruptura com o passado e com a tradição, mas também
exaltava um novo estilo de vida, de acordo com o dinamismo dos tempos modernos.
No plano literário, a escrita e a arte são vistas como meios expressivos na represen-
tação da velocidade, da violência, que exprimem o dinamismo da vida moderna, em
oposição a formas tradicionais de expressão. Rompe-se com a tradição aristotélica no
campo da literatura, que já estava enraizada na cultura ocidental. O futurismo contesta
o sentimentalismo e exalta o homem de acção. Destaca-se a originalidade, que Mari-
netti procura pelo elogio ao progresso, à máquina, ao motor, a tudo o que representa
o moderno e o imprevisto. No Manifesto Técnico da Literatura (1912), Marinetti evoca
a libertação da sintaxe e dos substantivos. É neste sentido que os adjetivos e os ad-
vérbios são abolidos, para dar mais valor aos substantivos. A utilização dos verbos no
infinito, a abolição da pontuação, das conjunções, a supressão do “eu” na literatura e o
uso de símbolos matemáticos são medidas inovadoras. De igual modo, aparecem no-
vas concepções tipográficas ao surgir a recusa da página tradicional. Assim, procura-
se a simultaneidade de formas e sensações e é na poesia que o futurismo encontra a
sua melhor expressão.
Disponível na <http://edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/6021/futurismo/>.
Acesso em 14 jun 2016.

No Brasil, Tarsila do Amaral tam-


bém exalta a velocidade e a máquina
em sua obra, porém já com tendên-
cias cubistas:

Figura 2.3  –  EFCB Estrada de Ferro Central


do Brasil.

40 • capítulo 2
•  Cubismo, que propunha o fracionamento da realidade e sua reconstru-
ção com a utilização de planos geométricos.

CONCEITO
Movimento artístico personificado em Pablo Picasso e Georges
Braque, em Paris, entre os anos de 1907 e 1914, principalmente, que tinha por fim
"descompor e recompor a realidade". O estilo cubista das artes plásticas rejeitou as técnicas
tradicionais de perspectiva, bem como a ideia de arte como imitação da natureza e privilegiou
a bidimensionalidade e a fragmentaridade dos objetos.
Disponível em: <http://edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/6817/cubismo/>.
Acesso em: 14 jun 2016.

Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Pablo Picasso, é a obra que marca de-
finitivamente o início do cubismo artístico.

Figura 2.4  –  Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Picasso.

capítulo 2 • 41
No Brasil, Tarsila do Amaral também se rende à estética cubista.

Figura 2.5  –  Carnaval em Madureira, de Tarsilla do Amaral.

O cubismo apresenta as seguintes características:


•  Emprego do verso livre;
•  Emprego do humor;
•  Abolição da sintaxe;
•  Invenção de palavras;
•  Linguagem caótica;
•  Preocupação com a disposição gráfica do poema.

42 • capítulo 2
Figura 2.6  –  Poema Il pleut , de Guillaume Apollinaire.

O poema acima demonstra bem a questão que o poeta tem de fazer a apro-
ximação gráfica do que se pretende revelar. Em Il pleut, as palavras escor-
rem como gotas de chuva. Veja a tradução de Sérgio Capparelli. In: Tigres no
quintal. Porto Alegre: Kuarup, 1997.

Chove
Chovem vozes de mulheres como se estivessem mortas mesmo na recordação.
Chovem também vocês maravilhosos encontros de minha vida ó gotinhas,
e estas nuvens empinadas se põem a relinchar todo um universo de cidades
minúsculas.
Escuta se chove enquanto a mágoa e o desdém choram uma antiga música.
Escuta caírem os laços que te retém embaixo e em cima

capítulo 2 • 43
No Brasil, Oswald de Andrade também se dedicou à poesia cubista:

Verbo crackar

Eu empobreço de repente
Tu enriqueces por minha conta
Ele azula para o sertão
Nós entramos em concordata
Vós protestais por preferência
Eles escafedem a massa
Sê pirata
Sede trouxas

Abrindo a pala
Pessoal sarado.

Oxalá que eu tivesse sabido que este verbo era irregular.

ANDRADE, Oswald de. Memorias sentimentais de João Miramar.


São Paulo: Globo, 1993.

Nesse poema de humor sobre a situação do eu-poético, verificamos o empre-


go do verso livre, a abolição da sintaxe mediante uma nova construção irreve-
rente, a invenção de palavra – por exemplo, crackar – e uma linguagem caótica.
©© WIKIMEDIA.ORG

•  Dadaísmo, que nega totalmente


a lógica, a coerência e a cultura, pro-
testando contra o absurdo das guerras.
Foi o movimento mais radical, tendo
como principal representante o rome-
no Tristan Tzara.

Figura 2.7  –  Tristan Tzara.

44 • capítulo 2
CONCEITO
De acordo com Carlos Ceia, em seu E-Dicionário de termos literários, dadaísmo é:
Movimento artístico e literário com um pendor niilista, que surgiu por volta de 1916,
em Zurique, acabando por se espalhar por vários países europeus e também pelos Estados
Unidos da América. Embora se aponte 1916 como o ano em que o romeno Tristan Tzara, o
alsaciano Hans Arp e os alemães Hugo Ball e Richard Huelsenbeck seguiram novas orien-
tações artísticas e 1924 como o final desse caminho, a verdade é que há uma discrepância
de datas respeitantes, quer ao início, quer ao final deste movimento, ou como preferem os
seus fundadores, desta «forma de espírito» («Manifesto Dada», in Dada-Antologia Bilingue
de Textos Teóricos e Poemas, 1983). O movimento Dada (os seus fundadores recusam
o termo Dadaísmo já que o ismo aponta para um movimento organizado que não é o seu)
surge durante e como reacção à I Guerra Mundial. Os seus alicerces são os da repugnância
por uma civilização que atraiçoou os homens em nome dos símbolos vazios e decadentes.
Este desespero faz com que o grande objectivo dos dadaístas seja fazer tábua rasa de toda
a cultura já existente, especialmente da burguesa, substituindo-a pela loucura consciente, ig-
norando o sistema racional que empurrou o homem para a guerra. Dada reivindica liberdade
total e individual, é anti-regras e ideias, não reconhecendo a validade, nem do subjectivismo,
nem da própria linguagem. O seu nome é disso mesmo um exemplo: Dada, que Tzara diz ter
encontrado ao acaso num dicionário, ainda segundo o mesmo Tzara, não significa nada, mas
ao não significar nada, significa tudo. Este tipo de posições paradoxais e contraditórias são
outra das características deste movimento que reclama não ter história, tradição ou método.
A sua única lei é uma espécie de anarquia sentimental e intelectual que pretende atingir os
dogmas da razão. Cada um dos seus gestos é um acto de polémica, de ironia mordaz, de
inconformismo. (...)
Disponível na <http://edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/6234/dadaismo/>.
Acesso em 14 jun 2016.

Vejamos o Manifesto do Senhor Antipyrina, escrito por Tristan Tzara:

Dadá é a nossa intensidade: ergue as baionetas sem consequência a cabeça samatral


do bebé alemão; Dadá é a vida sem pantufas e paralelas, que é por e contra a unidade
e decididamente contra o futuro; sabemos de ciência certa que o nosso cérebro vai
transformar-se em almofada confortável, que o nosso antidogmatismo é tão exclusivo

capítulo 2 • 45
como o funcionário, que não somos livres e gritamos liberdade; estrita necessidade
sem disciplina e moral e cuspimos na humanidade.
Dadá permanece no quadro europeu das fraquezas, mas assim como assim é merda
para enfeitarmos o jardim zoológico da arte com todas as bandeiras consulares.
Somos directores de circo e assobiamos por entre os ventos das feiras anuais, no
meio dos claustros, dos bordéis, dos teatros, das realidades, dos sentimentos, dos
restaurantes, ohi, hoho, bang, bang.
Declaramos que o automóvel é um sentimento que nos acalentou com a lentidão das
suas abstrações tal qual como os barcos a vapor, os ruídos e as ideias. No entanto,
exteriorizamos a ligeireza, procuramos o ser central e alegramo-nos quando o oculta-
mos. Não queremos contar as janelas maravilhosas da elite, pois Dadá não está para
ninguém e queremos que toda a gente compreenda isso. Aí é a varanda de Dadá, ga-
ranto-lhes. Dela podem ouvir-se as marchas militares, dela se pode descer, rasgando
o ar como um serafim e ir mijar num urinol público e compreender a parábola.
Dadá não é nem loucura, nem sabedoria, nem ironia, olhe bem para mim, honesto
burguês.
A arte era uma brincadeira, as crianças juntavam as palavras e punham campainhas
no fim, e depois choravam e gritavam a estrofe e calçavam-lhes os botins das bone-
cas e a estrofe tornava-se rainha para morrer um pouco e a rainha tornava-se baleia e
as crianças corriam até ficarem ofegantes.
Depois vieram os grandes embaixadores do sentimento
que gritaram historicamente em coro
psicologia psicologia hihi
ciências ciência ciência
vive la France
não somos ingênuos
somos sucessivos
somos exclusivos
não somos simples
e sabemos muito bem discutir a inteligência
Mas nós, Dadá, não somos da mesma opinião pois a arte não é séria, garanto-vos, e
se ao exibir o crime dizemos doutamente ventilador, é para vos sermos agradáveis,
caros auditores, amo-vos tanto, amo-vos tanto, garanto-vos e adoro-vos.
Disponível em: http://www.uel.br/projetos/artetextos/textos/dada.htm.
Acesso em: 14-6-2016.

46 • capítulo 2
Agora segue a receita para se fazer um poema dadaísta de acordo com
Tristan Tzara, em Manifesto sobre o amor débil e o amor amargo, 1924:

Receita para fazer um poema Dadaísta

Tristan Tzara
Pegue um jornal.
Pegue uma tesoura.
Escolha no jornal um artigo com o comprimento que pensa dar ao seu poema.
Recorte o artigo.
Depois, recorte cuidadosamente todas as palavras que formam o artigo e me-
ta-as num saco.
Agite suavemente.
Seguidamente, tire os recortes um por um.
Copie conscienciosamente pela ordem em que saem do saco.
O poema será parecido consigo.
E pronto: será um escritor infinitamente original e duma adorável sensibilida-
de, embora incompreendido pelo vulgo.

Figura 2.8  –  Poema dadaísta.

capítulo 2 • 47
•  Surrealismo, com a proposta de André Breton em valorizar a fantasia, o
sonho, a loucura e a escrita automática.
Vejamos um excerto do:

MANIFESTO DO SURREALISMO
(André Breton – 1924)

Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem


entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse sonha-
dor definitivo, cada dia mais desgostoso com seu destino, a custo repara nos
objetos de seu uso habitual, e que lhe vieram por sua displicência, ou quase
sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou pelo menos, não lhe
repugnou tomar sua decisão (o que ele chama decisão!). Bem modesto é agora
o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que
se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem nada, quanto a isso,
continua recém-nascido, e quanto à aprovação de sua consciência moral,
admito que lhe é indiferente. SE conservar alguma lucidez, não poderá senão
recordar-se de sua infância, que lhe parecerá repleta de encantos, por mais
massacrada que tenha sido com o desvelo dos ensinantes. Aí, a ausência de
qualquer rigorismo conhecido lhe dá a perspectiva de levar diversas vidas
ao mesmo tempo; ele se agarra a essa ilusão; só quer conhecer a facilidade
momentânea, extrema, de todas as coisas. Todas as manhãs, crianças saem
de casa sem inquietação. Está tudo perto, as piores condições materiais são
excelentes. Os bosques são claros ou escuros, nunca se vai dormir.
Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma questão de distân-
cia apenas. Acumulam-se as ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte da
posição a conquistar. Esta imaginação que não admitia limites, agora só se
lhe permite atuar segundo as leis de uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de
assumir por muito tempo esse papel inferior, e quando chega ao vigésimo ano
prefere, em geral, abandonar o homem ao seu destino sem luz.
Procure ele mais tarde, daqui e dali, refazer-se por sentir que pouco a pou-
co lhe faltam razões para viver, incapaz como ficou de enfrentar uma situação
excepcional, como seja o amor, ele muito dificilmente o conseguirá. É que ele
doravante pertence, de corpo e alma, a uma necessidade prática imperativa,
que não permite ser desconsiderada. Faltará amplidão a seus gostos, enver-
gadura a suas ideias. De tudo que lhe acontece e pode lhe acontecer, ele só vai

48 • capítulo 2
reter o que for ligação deste evento com uma porção de eventos parecidos, nos
quais não toma parte, eventos perdidos. Que digo, ele fará sua avaliação em
relação a um desses acontecimentos, menos aflitivo que os outros, em suas
consequências. Ele não descobrirá aí, sob pretexto algum, sua salvação.
Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares.
Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a considero apro-
priada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende,
sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por
nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi conce-
dida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servi-
dão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é
rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a imaginação me dá
contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a inter-
dição terrível; é bastante também para que eu me entregue a ela, sem receio
de me enganar ( como se fosse possível enganar-se mais ainda ). Onde começa
ela a ficar nociva, e onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito, a
possibilidade de errar não é, antes, a contingência do bem?
Fica a loucura. “a loucura que é encarcerada”, como já se disse bem. Essa
ou a outra.. Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação
senão a um reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não
houvesse estes atos, sua liberdade (o que se vê de sua liberdade) não poderia
ser ameaçada. Que eles sejam, numa certa medida, vítimas de sua imaginação,
concordo com isso, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas
regras, fora das quais o gênero se sente visado, o que cada um é pago para sa-
ber. Mas a profunda indiferença de que dão provas em relação às críticas que
lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são impostos, permite
supor que eles colhem grande reconforto em sua imaginação e apreciam seu
delírio o bastante para suportar que só para eles seja válido. E, de fato, alu-
cinações, ilusões, etc. são fonte de gozo nada desprezível. A mais bem orde-
nada sensualidade encontra aí sua parte, e eu sei que passaria muitas noites
a amansar essa mão bonita nas últimas páginas do livro. A Inteligência de
Taine, se dedica a singulares malefícios. As confidências dos loucos, passa-
ria minha vida a provoca-las. São pessoas de escrupulosa honestidade, cuja
inocência só tem a minha como igual. Foi preciso Colombo partir com loucos
para descobrir a América. E vejam como essa loucura cresceu, e durou.

capítulo 2 • 49
Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandei-
ra da imaginação.
O processo da atitude realista deve ser instruído, após o processo da atitu-
de materialista. Esta, aliás, mais poética que a precedente, implica da parte
do homem um orgulho sem dúvida monstruoso, mas não uma nova e mais
completa deposição. Convém nela ver, antes de tudo, uma feliz reação contra
algumas tendências derrisórias do espiritualismo. Enfim, ela não é incompatí-
vel com uma certa elevação de pensamento.
(...)

Disponível em: <http://www.culturabrasil.org/breton.htm>.


Acesso em: 14 jun 2016.
André Breton destaca:
•  O sonho: “O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgostoso
com seu destino”.
•  A fantasia: “Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não
perdoares”.
•  A loucura: “Fica a loucura. A loucura que é encarcerada”, como já se dis-
se bem”.
•  E a escrita automática: ao escrever com a mistura de temas, sem necessi-
dade de encadeamento das ideias.

Figura 2.9  –  Paris, cerca de 1930: da esquerda para a direita: Tristan Tzara, Paul Éluard,
André Breton, Hans Arp, Salvador Dalí, Yves Tanguy, Max Ernst, Rene Crevel, Man Ray.

50 • capítulo 2
Um ponto de união entre todas as vanguardas foi, com certeza, a desorga-
nização da arte de modo consciente, pois a renovação artística acompanhava a
renovação política pela qual passava o país.
Em 1922, ano do centenário da Independência, temos a Semana de Arte
Moderna, questionando a liberdade do país e a participação da população
numa sociedade tida como democrática,
A Semana de Arte Moderna, marco inicial do Modernismo brasileiro, foi
realizada no Teatro Municipal de São Paulo, com a participação de muitos
artistas, como: o músico Villa-Lobos; o arquiteto Antônio Moya; os pintores
Anita Malfatti, Rego Monteiro e Di Cavalcanti; os escritores Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho, dentre outros, e o
ainda estudante Graça Aranha.

ATENÇÃO
Sem programa estético definido, a Semana desempenha na história da arte brasileira muito
mais uma etapa destrutiva de rejeição ao conservadorismo vigente na produção literária,
musical e visual do que um acontecimento construtivo de propostas e criação de novas lin-
guagens. Se existe um elo entre tão diversos artífices, este é, segundo seus dois principais
ideólogos, Mário e Oswald de Andrade, a negação de todo e qualquer "passadismo": a recusa
à literatura e à arte importadas com os traços de uma civilização cada vez mais superada, no
espaço e no tempo. Em geral todos clamam em seus discursos por liberdade de expressão
e pelo fim de regras na arte.
Disponível em: <http://www.culturabrasil.org/breton.htm>.
Acesso em: 14 jun. 2016.

As novas ideias surgidas na Semana de Arte Moderna ganharam expres-


são em manifestos como o da Poesia Pau-Brasil, Nhenguaçu Verde-Amarelo,
Regionalista e Antropófago e em revistas como Klaxon e A revista.

capítulo 2 • 51
Figura 2.10  –  Capa do programa da Semana de Arte Moderna de 22, autoria de Di Cavalcanti.

Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros - USP - Arquivo Mário de Andrade


Reprodução Fotográfica Romulo Fialdini

2ª Fase: de 1930 a 1945


O mundo passou a viver uma época conturbada, por causa da imensa de-
pressão econômica devido à quebra da bolsa de Nova York; o início da ditadu-
ra salazarista e da guerra civil espanhola; a invasão, durante a Segunda Guerra
Mundial, da Polônia pelas tropas de Hitler, que mais tarde também invadiram
a União Soviética; o ataque japonês aos EUA e, por fim, a utilização da bomba
atômica pelos EUA, destruindo Hiroshima e Nagasaki, terminando a Segunda
Guerra Mundial. Em 1945, criou-se a ONU – Organização das Nações Unidas.
No Brasil a situação não era diferente, pois passávamos por um período
de transformações.
Por causa da quebra da bolsa de Nova York, houve a queda do preço do café,
tivemos a Revolução Constitucionalista em São Paulo, a promulgação, em 1934,
da nova Constituição Brasileira, a aprovação de Lei de Segurança Nacional; pri-
são de Jorge Amado e de Graciliano Ramos, membros do Partido Comunista e li-
gados à ANL; a captura de Lampião; criação do DIP – Departamento de Imprensa
e Propaganda; deposição de Getúlio Vargas pelas tropas armadas e a eleição de
Eurico Gaspar Dutra para presidente da República, dentre outros fatos.

52 • capítulo 2
3ª Fase: de 1945 até nossos dias...
Fundação de siderúrgicas e fábricas de alumínio; eleição de Getúlio
Vargas para presidente da República; suicídio de Getúlio; eleição de Juscelino
Kubitschek para presidente da República; início da construção e depois a inau-
guração de Brasília; eleição de Jânio Quadros para presidente da República e
muito mais...

2.2  Poéticas Modernistas

2.2.1  Primeira Fase

Vejamos as características de cada uma das fases, iniciando pela primeira fase,
objeto de estudo deste capítulo.

1ª Fase: de 1922 a 1930, conhecida com fase heroica, porque apresentava


a necessidade de romper as fórmulas tradicionais, chocar o público e divulgar
novas ideias.
Na poesia:
•  Emprego do verso livre, porque o poeta respeita apenas sua inspiração,
prega a liberdade de criação e não se importa com regras e modelos;
•  Livre associação de ideias, com aparente falta de lógica por causa da utili-
zação de imagens que vêm livremente à mente;
•  Atitude combativa e irreverente relacionada com valores considera-
dos falsos;
•  Valorização do cotidiano e do fato comum, pois tudo pode ser poetizado;
•  Incorporação de temas da realidade presente, como a máquina, o pro-
gresso, o ritmo acelerado da vida moderna;
•  Inclusão do humor nas poesias, agora chamadas de poema-piada, para
provocar polêmica;
•  Poesia escrita como prosa*;
•  Linguagem coloquial, aproximando-se da fala brasileira;
•  Nacionalismo.

Na prosa:
•  Períodos curtos;
•  Linguagem coloquial, aproximando-se da fala brasileira;
•  Prosa escrita como poesia.*

capítulo 2 • 53
ATENÇÃO
•  Essa aproximação acaba por tornar menos rígida a divisão das produções literárias em
gêneros, daí a poesia em prosa e a prosa-poética.

2.2.1.1  Pau-Brasil
Devido à força da Semana de Arte Moderna, o movimento modernista pôde
desenvolver-se mediante a geração de uma cadeia de movimentos de ordem
literário-social. Tais movimentos não apresentavam uma unidade, mas ora se
apresentavam em ideias convergentes, ora divergentes.
Nesse contexto surgiu o Movimento Pau-Brasil, de ordem nativista, inau-
gurando uma das principais tendências estéticas do Modernismo brasileiro
cujos representantes são Oswald de Andrade, Antônio de Alcântara Machado
e Raul Bopp.
Andrade, Machado e Bopp constituíram o chamado Movimento Nativista
Pau-Brasil, com a publicação do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, em 18 de mar-
ço de 1924, no jornal Correio da Manhã.
Oswald de Andrade escreveu:
Manifesto da Poesia Pau - Brasil
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da
Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner
submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica
rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor,
o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma car-
tola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das fra-
ses feitas. Negras de jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil. O lado doutor.
Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas
selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de
dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo.
Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da
sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.
Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se
deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.

54 • capítulo 2
A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, crítica, donas
de casa tratando de cozinha. A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sa-
bem e descobrem.
Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de base e a luta
no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólo-
gos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance, nascido da
invenção. Ágil a poesia.
A poesia Pau-Brasil, ágil e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise Cendrars: - Tendes as locomotivas cheias, ides par-
tir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descui-
do vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.
Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de juris-
consultos, perdidos como chineses na genealogia das ideias.
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição
milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.
Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e
os outros.
Uma única luta - a luta pelo caminho. Dividamos: poesia de importação. E a
Poesia Pau-Brasil, de exportação.
Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do
mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadro de carneiros que não fosse
lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas
Artes queria dizer reproduzir igualzinho...Veio a pirogravura. As meninas de to-
dos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as
prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho
virado - o artista fotográfico.
Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas
as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas.
A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela. Straviski.
(...)

Oswald de Andrade
Correio da Manhã, 18 de março de 1924.

Disponível em: <http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf>.


Acesso em 9 jun 2016.

capítulo 2 • 55
O excerto acima nos revela os princípios basilares do manifesto, cuja preo-
cupação maior era ridicularizara solenidade de certos costumes; desvalorizar
as manifestações culturais já desgastadas; demostrar necessidade de uma es-
crita mais simples, menos rebuscada; buscar a temática de nossas produções
nos assuntos de cunho nacional, fugindo à imitação dos modelos advindos de
fora; romper com as formas tradicionais de poesia e prosa, promovendo novas
manifestações; enfim inovar e surpreender o público.

LEITURA
Você pode ler o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, publicado por Oswald de Andrade em 18
de março de 1924, no jornal Correio da Manhã na <http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/
oandrade.pdf>. Acesso em 9 jun 2016.

O Manifesto da Poesia Pau-Brasil foi apenas o início das várias propostas


que viriam a surgir, como é o caso do Manifesto Antropófago.

2.2.1.2  Antropofagia

A antropofagia marca o período mais radical do Modernismo, em sua


fase heroica.

CONCEITO
an·tro·po·fa·gi·a
(francês antropophagie)
substantivo feminino
Qualidade ou hábito de pessoa ou de grupo humano que come carne humana

"antropofagia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,


https://www.priberam.pt/DLPO/antropofagia [consultado em 09-06-2016].

O Movimento Antropofágico é considerado uma expressão de vanguarda,


marcando a primeira fase do momento modernista da literatura brasileira com

56 • capítulo 2
a publicação do Manifesto Antropófago por Oswald de Andrade em 1928, cujo
intuito principal era transfigurar a cultura de influência europeia dando cono-
tações nacionais.
Oswald de Andrade costumava passar tempos na Europa, onde tomou con-
tato com o futurismo, vanguarda europeia cujo representante era Marinetti,
como vimos anteriormente.
Diante da tomada de consciência promovida pelo Manifesto futurista,
Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia e Mário de Andrade publicaram arti-
gos em os jornais brasileiros, disseminando os ideais do Futurismo, cuja pro-
posta era a ruptura com os moldes tradicionais e conservadores.

Manifesto Antropófago

Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente.


Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de
todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitos postos em dra-
ma. Freud acabou com o enigma mulher e com os sustos da psicologia impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo inte-
rior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano
informará.
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com
toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touris-
tes. No país da cobra grande.
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais.
E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental.
Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
(...)

Revista de Antropofagia, Ano I, No. I, maio de 1928.

capítulo 2 • 57
Nas artes plásticas, a pintora Tarsila do Amaral apresenta a intenção de
transformar a cultura nacional.

Figura 2.11  –  Antropofagia (1929) - Tarsila do Amaral.

2.2.1.3  Verde-Amarelo

O Movimento Verde-Amarelo, também chamando de Movimento Verde-Ama-


relismo, nasceu na primeira fase do Modernismo, advindo das ideias propa-
gadas por Menotti del Picchia, Plínio Salgado, Guilherme de Almeida e Cassia-
no Ricardo.

AUTOR
Paulo Menotti Del Picchia nasceu em 20 de março de 1892, na capital paulista.
Cursou Direito, formando-se em 1913. Nesta época publicou seu primeiro livro de poe-
sias: Poemas do vício e da virtude, de conteúdo neoparnasiano. Trabalhou em diversos jornais
e revistas, sendo redator e dirigindo alguns deles, como o Correio Paulistano, o semanário
literário O Planalto e as revistas Papel e Tinta e a A Cigarra.
Menotti Del Picchia participou ativamente da Semana de Arte Moderna em 1922, sendo
não apenas um dos articuladores, como também arrebatado militante do movimento moder-

58 • capítulo 2
nista brasileiro. Em 1924 criou, com Cassiano Ricardo e Plínio Salgado, o Movimento Verde e
Amarelo, de tendência nacionalista. Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em
1943. Além de se dedicar à carreira literária, Menotti Del Picchia foi artista plástico, deputado
estadual e jornalista.
Faleceu em 23 de agosto de 1988, em São Paulo.
Algumas Obras: Juca Mulato, Moisés, As máscaras, A revolução paulista, Salomé, A outra
perna do Saci, A longa viagem.
Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/bibliote-
cas/bibliotecas_bairro/bibliotecas_m_z/menottidelpicchia/index.php?p=5416>.
Acesso em 11 jun 2016.

O Movimento Verde-Amarelo não surge de maneira independente, mas


sim como uma reação contra as ideias nacionalistas propostas por Oswald de
Andrade nos movimentos anteriores, cujas raízes primitivistas e sociais preco-
nizavam a valorização de nosso passado pautada por uma postura crítica e ex-
tremamente sarcástica.
Alguns estudiosos da época acreditam que o Movimento Verde-Amarelo ad-
vém de uma natureza nazifascista, com marcas de um nacionalismo exagerado.
O Movimento Verde-Amarelo teve curta duração e acabou por se transfor-
mar na Escola da Anta.

2.2.1.4  Anta

O Grupo Anta, também denominado movimento da Escola da Anta, apresenta


o ufanismo como característica principal, não só como exaltação do nosso país,
mas com marcas evidentes de resistência aos modelos e tendências oriundas
de países estrangeiros.
Outra característica presente é a ideologia fascista, cuja base é o racismo.

CONCEITO
Fascismo = movimento político e filosófico ou regime (como o estabelecido por Benito Mus-
solini na Itália, em 1922) em que prevalece os conceitos de nação e raça sobre os valores indi-
viduais e que é representado por um governo autocrático, centralizado na figura de um ditador.

capítulo 2 • 59
A Escola da Anta aparece como perfil da nacionalidade brasileira, diante
da importância que a anta recebe na cultura tupi, animal tido como símbo-
lo nacional.

ATIVIDADES
01. Quais são as principais vanguardas europeias ?

02. Quis são os movimentos que apareceram na 1ª fase modernista?

REFLEXÃO
Observando as características dos manifestos estudados neste capítulo, verificamos a exis-
tência de duas posturas nacionalistas distintas: uma que apresenta um nacionalismo cons-
ciente, crítico da realidade brasileira, e outra cujo nacionalismo toma características ufanistas,
extremamente exagerada e com traços de utopia.

LEITURA
ANDRADE, Oswald de. Manifesto da Poesia Pau-Brasil (publicado por em 18 de março
de 1924, no jornal Correio da Manhã). Disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/
oandrade.pdf . Acesso em: 9-6-2016.
BRETON, Andre. Manifesto do surrealismo. Disponível em: <http://www.culturabrasil.
org/breton.htm> . Acesso em 14-6-2016.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Oswald de. Manifesto da Poesia Pau-Brasil (publicado por em 18 de março de 1924,
no jornal Correio da Manhã). Disponível em: <http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf>.
Acesso em: 9 jun 2016.
ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago In: Revista de Antropofagia, Ano I, No. I, maio de
1928.
ANDRADE, Oswald de. Memorias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo, 1993.

60 • capítulo 2
BRETON, Andre. Manifesto do surrealismo. Disponível em <http://www.culturabrasil.org/breton.
htm> . Acesso em 14 jun 2016.
CAPPARELLI, Sérgio. Tigres no quintal. Porto Alegre: Kuarup, 1997.
TZARA, Tristan. Manifesto sobre o amor débil e o amor amargo, 1924.

capítulo 2 • 61
62 • capítulo 2
3
Modernismo
Literário no Brasil
3.  Modernismo Literário no Brasil
Neste capítulo, continuaremos nossos estudos acerca do Modernismo brasilei-
ro. Já vimos as características da primeira fase no capítulo 2. Vejamos, agora, as
características de cada uma das outras duas fases.
Primeiramente veremos como se deu a segunda fase modernista para, a se-
guir, adentrarmos a prosa de ficção modernista da terceira fase.
Por fim, verificaremos como se dá a produção dos romances sob o foco do
experimentalismo, regionalismo, psicologismo e intimismo.

COMENTÁRIO
Lembre-se de que vimos que, para fins didáticos, costuma-se dividir o Modernismo brasileiro
em três fases:
1ª Fase: de 1922 a 1930;
2ª Fase: de 1930 a 1945;
3ª Fase: de 1945 até nossos dias.

OBJETIVOS
Nosso objetivo é apresentar uma perspectiva do Modernismo no contexto da historiografia e
da crítica literária brasileira referentes à segunda e à terceira fases.
Esperamos que você seja capaz de conhecer a prosa de ficção modernista da tercei-
ra fase.
Esperamos que você seja capaz de conhecer todas as fases do Modernismo brasileiro,
identificando suas vertentes e diferenciando suas correntes.

3.1  Poesia e Prosa Modernista em sua 2ª Fase: de 1930 a 1945

Na poesia:
A poesia não mais apresenta a irreverência da primeira fase, há recusa do
poema-piada e os poetas optam por temas e técnicas mais elaboradas, com sa-
gacidade de pensamento.

64 • capítulo 3
É uma poesia engajada, preocupada com o difícil momento de nosso país.
Há tendência para os temas religiosos, sociais, metafísicos e espiritualistas.
O marco inicial dessa fase é a obra Alguma poesia, de Carlos Drummond de
Andrade.

COMENTÁRIO
Neste livro, Drummond apresenta não só o lirismo como ponto de destaque, mas também poe-
mas sob o viés do sensualismo, além de apresentar uma avaliação arguta sobre amor e morte.
O poeta revela também poemas dotados de humor, às vezes sob o tom meditativo, outras
vezes irônico, tudo mediante a observação contemplativa dos fatos.

Na prosa:
Os romances apresentam equilíbrio na linguagem, por se tratar de textos
voltados para a pesquisa da realidade brasileira, marcando uma literatura so-
cial. Daí os vários tipos de romance:
•  Regionalista: retrato e questionamento da realidade regional do país,
com preocupação político-social;
•  Urbano: destaque para as desigualdades sociais da vida urbana brasileira;
•  Intimista: análise das desordens internas e da aflição do homem moderno.

Vejamos alguns autores da segunda fase modernista:

3.1.1  Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro (Itabira), Mi-


nas Gerais, em 1902.
Formou-se em Farmácia, em 1925. Nesse mesmo ano, fundou o periódico
modernista A Revista, com Emílio Moura e outros escritores mineiros.
Em 1934, mudou-se para o Rio de Janeiro para assumir o cargo de chefe de
gabinete do Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, até 1945.
Colaborou, como jornalista literário, para o Correio da Manhã.
Na década de 1950, dedicou-se integralmente à produção literária, publi-
cando poesia, contos, crônicas, literatura infantil e traduções.
Drummond produziu obras expressivas da poesia brasileira do sécu-
lo XX. Inventando representações, sua obra aborda a vida e os episódios do

capítulo 3 • 65
mundo a partir dos problemas pessoais, dos embates sociais, do questiona-
mento da existência...
Carlos Drummond de Andrade faleceu no Rio de Janeiro, em 1987.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 3.1  –  Carlos Drummond de Andrade.

Suas obras são:

Poesia
Alguma poesia, 1930.
Brejo das almas, 1934.
Sentimento do mundo, 1940.
Poesias, 1942.
A rosa do povo, 1945.
Claro enigma, 1951.
Viola de bolso, 1952.
Fazendeiro do ar, 1954.
A vida passada a limpo, 1959.
Lição de coisas, 1962.
Boitempo, 1968.
As impurezas do branco, 1973.
A paixão medida, 1980.
Corpo, 1984.
Amar se aprende amando, 1985.
O amor natural, 1992.

66 • capítulo 3
Prosa
Confissões de Minas, 1944.
Contos de aprendiz, 1951.
Passeios na ilha, 1952.
Fala, amendoeira, 1957.
A bolsa e a vida, 1962.
Cadeira de balanço, 1970.
O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso, 1972.
Boca de luar, 1984.
Tempo vida poesia, 1986.

Vejamos o poema de Carlos Drummond de Andrade, em Carlos Drummond


de Andrade – poesia completa & prosa (1973, p. 144):

Nosso tempo

I
Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,


viajamos e nos colorimos.

A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.


Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.


Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.
Calo-me, espero, decifro.

capítulo 3 • 67
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

II
Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.
Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho,
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.


Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.
A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

68 • capítulo 3
Nesse poema, Drummond trata da inquietação diante do seu tempo histó-
rico-cultural, fragmentado por um período de guerra, influenciado por ideias
neofascistas advindas da Europa, marcado pelo surgimento de partidos de es-
querda... O poema é marcado pela construção em enjambement, para demos-
trar a quebra, a destruição do mundo e a fragmentação do indivíduo. Tudo leva
à tomada de consciência por parte da sociedade, bem como altera o ânimo dos
indivíduos, diante da fragmentação e insanidade do homem. Nesse poema, o
eu-poético não permite a neutralidade; decreta, ao contrário, que se faça uma
escolha ideológica: é preciso tomar partido.

3.1.2  Murilo Mendes

Murilo Monteiro Mendes nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1901. Era
filho do funcionário público Onofre Mendes e da dona de casa Elisa Valentina
Monteiro de Barros Mendes.
Aos 16 anos não apresentou nenhum interesse pelo estudo e escapou da
escola para comparecer à apresentação do bailarino e coreógrafo russo Vaslav
Nijinski.
Após várias e inúteis tentativas da família de fixá-lo num emprego, foi para
o Rio de Janeiro, em 1920, com o irmão mais velho.
De 1924 a 1929, escreveu para a Revista de Antropofagia, de São Paulo, e a
Verde, de Cataguases, Minas Gerais, as primeiras publicações modernistas.
Financiado pelo pai, editou o primeiro livro, Poemas, pelo qual recebeu o
Prêmio Graça Aranha, em 1930.
Conheceu e se casou com a poeta Maria da Saudade Cortesão, filha do his-
toriador e poeta português Jaime Cortesão, exilado no Brasil por se opor à dita-
dura de António Oliveira Salazar.
Entre 1952 e 1956, em missão cultural, muda-se para a Itália e ensina cultu-
ra brasileira na Universidade de Roma.
Em 1972, recebeu, na Itália, o prêmio internacional de poesia Etna-Taormina.
Murilo Monteiro Mendes foi poeta, prosador, crítico de artes plásticas e veio
a morrer em Lisboa, Portugal, ano de 1975.

capítulo 3 • 69
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 3.2  –  Murilo Mendes.

Suas obras publicadas no Brasil são:

Poesia
Poemas, 1930.
História do Brasil, 1932.
Tempo e Eternidade, 1935.
O Sinal de Deus, 1936.
A Poesia em Pânico, 1937.
O Visionário, 1941.
As Metamorfoses, 1944.
Mundo Enigma, 1945.
Poesia Liberdade, 1947.
Contemplação de Ouro Preto, 1954.
Poesias , 1959.
Convergência, 1970.
Transistor, 1980.
Poemas e Bumba-Meu-Poeta, 1988.
Poesia Completa e Prosa, 1994.

70 • capítulo 3
Crônica
O Discípulo de Emaús, 1945.
Poliedro, 1972.

Memória
A Idade do Serrote, 1968.

Ensaio
Retratos-Relâmpago, 1973.
Leiamos um excerto do poema:

Janela do caos

1.
Tudo se passa
Num Egito de corredores aéreos.
Numa galeria sem lâmpadas
À espera de que Alguém
Desfira o violoncelo
– Ou teu coração?
Azul de guerra.

2.
Telefonam embrulhos,
Telefonam lamentos,
Inúteis encontros,
Bocejos e remorsos.

Ah! Quem telefonaria o consolo,


O puro orvalho
E a carruagem de cristal.

3.
Tu não carregaste pianos
Nem carregaste pedras,
Mas na tua alma subsiste

capítulo 3 • 71
– Ninguém se recorda
E as praias antecedentes ouviram –
O canto dos carregadores de pianos,
O canto dos carregadores de pedras.

4.
O céu cai das pombas.
Ecos de uma banda de música
Voam da casa dos expostos.

Não serás antepassado


Porque não tiveste filhos:
Sempre serás futuro para os poetas.
Ao longe o mar reduzido
Balindo inocente.

5.
Harmonia do terror
Quando a alma destrói o perdão
E o ciclo das flores se fecha
No particular e no geral:
Nenhum som de flauta,
Nem mesmo um templo grego
Sobre colina azul
Decidiria o gesto recuperador.

Fome, litoral sem coros,


Duro plano da morte.
A terra abre-se em sangue,
Abandona o branco Abel
Oculto de Deus.

(...)

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro:


Nova Aguilar, 1994, p.436-439.

72 • capítulo 3
Em Janela do caos, o eu-poético demonstra uma visão pessimista diante do
mundo marcado pela destruição ao mesmo tempo em que lança um olhar to-
mista sobre um futuro de reconstrução do mundo e de renovação da humani-
dade. O caos se instala no poema à medida que as imagens são construídas pela
linguagem.

3.1.3  Vinícius de Moraes

Vinícius de Moraes nasceu em 1913 e faleceu em 1980, no Rio de Janeiro, ci-


dade em que também se formou em Direito, em 1933, ano em que publicou O
caminho para a distância, seu primeiro livro de poesia.
Em 1956, teve companhia de Tom Jobim, que compôs as músicas para sua
peça Orfeu da Conceição.
Em 1958, lançou o LP Canção do amor demais, com a música Chega de sau-
dade, composição dele e de Tom Jobim, assinalando o movimento da bossa nova.
Nas décadas seguintes, participou do movimento com diversas parcerias:
Baden Powell, Carlos Lyra, Edu Lobo, Francis Hime, Pixinguinha, Tom Jobim
e Toquinho.
Em 1965, participou do Festival de Música Popular da TV Excelsior, ganhan-
do primeiro e segundo lugares com as canções Arrastão, parceria com Edu
Lobo, e Canção do Amor que não vem, parceria com Baden Powell.
Suas canções aprazem enormemente o público, como Garota de Ipanema, a
música brasileira mais destacada no mundo.
Vinícius de Moraes pertence à se-
©© WIKIMEDIA.ORG

gunda geração do Modernismo e é


considerado um dos poetas mais po-
pulares da Literatura Brasileira,
Sua obra poética tem muito su-
cesso, principalmente poemas como
o Soneto de fidelidade, mas também
produziu poemas infantis, como os de
A Arca de Noé, na década de 1970.

Figura 3.3  –  Vinícius de Moraes.

capítulo 3 • 73
As obras principais

Ariana, a mulher, 1936.


Novos poemas, 1938.
Cinco elegias, 1943.
Poemas, sonetos e baladas, 1946.
Orfeu da Conceição, teatro, 1956.
Livro de sonetos, 1957.
Para viver um grande amor, crônica, 1962.

Que tal um excerto do poema Operário em construção?

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tem-


po todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e
dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a
Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas


Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

74 • capítulo 3
De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia


Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia

capítulo 3 • 75
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão


Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E o poema prossegue... no entanto, pela leitura do excerto acima, podemos


depreender que há intertextualidade com a epígrafe que o eu poético apresenta

76 • capítulo 3
antes do poema, pois ele recebe poder e glória ao perceber que terá o dom da pa-
lavra por meio da poesia. O operário toma consciência de que não há no mundo
coisa mais bela que sua mão, mão feita por Deus para que ele pudesse exercer
sua profissão. Notando isso, seus olhos se abrem para um novo mundo, propor-
cionado pela tomada de consciência de que tudo no mundo tem uma função.
O poema em estudo apresenta também um tom bíblico quando chama a
atenção para a valorização das pequenas coisas, dos momentos, marcados pelo
imediatismo. Diante disso, nasce uma esperança no coração do operário-poe-
ta, cujo mundo ganhou uma nova dimensão.

3.1.4  Graciliano Ramos

Graciliano Ramos nasceu no dia 27 de


outubro de 1892, na cidade de Que-
brangulo, sertão de Alagoas, filho pri-
mogênito dos dezesseis que teriam
seus pais, Sebastião Ramos de Oliveira
e Maria Amélia Ferro Ramos.
Passou sua infância nas cidades de
Viçosa, Palmeira dos Índios (Alagoas) e
Buíque (Pernambuco), onde teve con-
tato com as primeiras letras.
Viveu sob secas e surras que seu
pai lhe dava. Isso foi o motivo para que
pensasse que todas as relações huma-
Figura 3.4  –  Graciliano Ramos.
nas são violentas.
Em 1904, retornou ao Estado de Alagoas, indo morar em Viçosa, onde criou
um jornalzinho dedicado às crianças, o Dilúculo.
Mais tarde, redigiu o jornal Echo Viçosense, local onde um redator era seu
mentor intelectual, Mário Venâncio. Porém, com o suicídio de Venâncio, o re-
ferido jornal deixou de circular.
Em 1909, passou a colaborar com o Jornal de Alagoas, de Maceió, publican-
do o soneto Céptico sob o pseudônimo de Almeida Cunha. Até 1913, usou ou-
tros pseudônimos: S. de Almeida Cunha, Soares de Almeida Cunha e Lambda,
este usado em trabalhos de prosa.
Em 1914, no Rio de Janeiro, trabalhou como revisor de provas tipográficas
nos jornais cariocas Correio da Manhã, A Tarde e O Século. Colaborou com o

capítulo 3 • 77
Jornal de Alagoas e com o fluminense Paraíba do Sul, sob as iniciais R.O., do
pseudônimo Ramos de Oliveira.
Em meados de 1915, voltou a Palmeira dos Índios, onde trabalhou como
jornalista e comerciante e se casou com Maria Augusta Ramos, que faleceu em
1920, deixando quatro filhos menores.
Em 1930, mudou-se para a cidade de Maceió, onde foi nomeado diretor da
Imprensa Oficial e se casou com Heloísa Medeiros.
Em maio de 1937, a Revista Acadêmica dedicou-lhe uma edição especial e
ele recebeu o prêmio Literatura Infantil, do Ministério da Educação, pela obra
A terra dos meninos pelados.
Em 1938, publicou o romance Vidas secas.
Em 1945, lançou o livro de memórias Infância.
Em 1951, elegeu-se presidente da Associação Brasileira de Escritores, tendo
sido reeleito em 1962.
No janeiro de 1953, faleceu por causa de um câncer.

Suas obras são:


Romances
Caetés
São Bernardo
Angústia
Vidas secas

Memórias
Infância
Memórias do cárcere

Contos
Dois dedos
Insônia

Crônicas
Linhas tortas
Viventes das Alagoas

78 • capítulo 3
Graciliano Ramos nos deixou obras plenas de análise psicossocial, já que
foco de Graciliano está na experiência humana, não como simples vivência,
mas como atitude extremada diante do amor, da adversidade marcada pela fal-
ta de recursos financeiros, da falsidade e dissimulação que se encontram nas
pessoas e da postura do homem diante de seus impulsos mais selvagens.
Outro ponto de destaque na obra de Graciliano é o regionalismo, que apare-
ce não só como pano de fundo de uma história qualquer, mas, sim, o regionalis-
mo evidente no comportamento e no jeito de falar dos personagens.
E, por falar em personagens, o autor igualmente dirige sua narrativa com
vista a mostrar a desumanidade que permanece no ajuizamento das pessoas
por causa de suas feições.

LEITURA
Insônia, de Graciliano Ramos
(...) o livro Insônia (...) revela as várias faces do homem em situações distintas, descorti-
nando as fragilidades e angústias humanas. É um livro que retrata uma trama psicológica,
começando por um questionamento simples de um homem no meio da noite: “Tirou a vida
de alguém ou a razão de esse alguém viver? Está apenas louco? Sente medo? Possui um
trauma? Está apenas sonhando? Será uma saudade ou arrependimento? Uma preocupação
ou apenas excesso de café na noite anterior”
Insônia se apresenta, então, como uma metáfora para que se perceba algo mais. Já que
o personagem não consegue dormir, qual seria a alternativa, sentar e refletir no escuro ou
observar os problemas do mundo em sua forma mais crua e sombria? Com 13 contos, o livro
traz, como personagem fiel e protagonista, a própria insônia, pois, em meio às inquietudes
da existência, o narrador não quer fazer o leitor se compadecer, simplesmente, mas levá-lo a
confrontar a consciência de sua própria realidade. Assim, a experiência se torna mais intensa
com a passagem do personagem pelo hospital, onde fica obcecado com a passagem do
tempo e a falta de sentidos. Enfim, nota-se que é um livro que reflete de forma significativa
os conflitos e angústias do próprio escritor diante do mundo à volta, além de uma agudeza
singular para observar e pensar o enfrentamento do homem nordestino em um contexto
hostil, injusto e implacável. Fica, então, a sugestão para mais uma grande leitura de Graciliano
Ramos, que, em algum momento, nos aponta a nossa própria insônia...
Revista Encontro Literário, ISSN 2237-9401, 31 de julho de 2013

capítulo 3 • 79
3.1.5  José Lins do Rego
©© WIKIMEDIA.ORG

José Lins do Rego Cavalcanti nasceu


em 1901, no Estado da Paraíba.
O cotidiano e os costumes pernam-
bucanos e cariocas faziam parte de
suas obras literárias.
Com a escritura de Menino de en-
genho, colocou o ciclo da cana-de-açú-
car na literatura, marcado sua segunda
fase com romances que tratavam da
vida rural.
Em 1943 publicou sua obra-prima:
Fogo morto.
Figura 3.5  –  José Lins do Rego.

Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras e teve suas obras tradu-
zidas para diferentes idiomas, com destaque para o russo.
Antes de morrer, escreveu suas memórias em Meus verdes anos.
José Lins do Rego Cavalcanti morreu em 1957, no Rio de Janeiro.
Figura 3.6  – 

Suas principais obras:


Menino de Engenho, 1932.
Doidinhos, 1933.
Banguê, 1934.
O Moleque Ricardo, 1935.
Usina, 1936.
Pureza, 1937.
Pedra Bonita, 1938.
Riacho Doce, 1939.
Água-mãe, 1941.
Fogo Morto, 1943.
Eurídice, 1947.
Cangaceiros, 1953.
Meus Verdes Anos, 1953.
Histórias da Velha Totonha, 1936.
Gordos e Magros, 1942.

80 • capítulo 3
Poesia e Vida, 1945.
Homens, Seres e Coisas, 1952.
A Casa e o Homem, 1954.
Presença do Nordeste na Literatura Brasileira, 1957.
O Vulcão e a Fonte, 1958.
Dias Idos e Vividos, 1981.

Leiamos a crônica O RIO:

O rio Paraíba corria bem próximo ao cercado. Chamavam-no "o rio". E era tudo. Em
tempos antigos fora muito mais estreito. Os marizeiros e as ingazeiras apertavam as
duas margens e as águas corriam em leito mais fundo. Agora era largo e, quando
descia nas grandes enchentes, fazia medo. Contava-se o tempo pelas eras das cheias.
Isto se deu na cheia de 93, aquilo se fez depois da cheia de 68. Para nós meninos, o
rio era mesmo a nossa serventia nos tempos de verão, quando as águas partiam e se
retinham nos poços. Os moleques saíam para lavar os cavalos e íamos com eles. Havia
o Poço das Pedras, lá para as bandas da Paciência. Punham-se os animais dentro
d'água e ficávamos nos banhos, nos cangapés. Os aruás cobriam os lajedos, botando
gosma pelo casco. Nas grandes secas o povo comia aruá que tinha gosto de lama. O
leito do rio cobria-se de junco e faziam-se plantações de batata-doce pelas vazantes.
Era o bom rio da seca a pagar o que fizera de mau nas cheias devastadoras. E quando
ainda não partia a corrente, o povo grande do engenho armava banheiros de palha
para o banho das moças. As minhas tias desciam para a água fria do Paraíba que
ainda não cortava sabão.
O rio para mim seria um ponto de contato com o mundo. Quando estava ele de barreira
a barreira, no marizeiro maior, amarravam a canoa que Zé Guedes manobrava.
Vinham cargueiros do outro lado pedindo passagem. Tiravam as cangalhas dos cavalos
e, enquanto os canoeiros remavam a toda a força, os animais, com as cabeças agarra-
das pelo cabresto, seguiam nadando ao lado da embarcação. Ouvia então a conversa
dos estranhos. Quase sempre eram aguardenteiros contrabandistas que atravessavam,
vindos dos engenhos de Itambé com destino ao sertão. Falavam do outro lado do mun-
do, de terras que não eram de meu avô. Os grandes do engenho não gostavam de me
ver metido com aquela gente. Às vezes o meu avô aparecia para dar gritos. Escondia-
me no fundo da canoa até que ele fosse para longe. Uma vez eu e o moleque Ricardo
chegamos na beira do rio e não havia ninguém. O Paraíba dava somente um nado e
corria no manso, sem correnteza forte.

capítulo 3 • 81
O rio Paraíba corria bem próximo ao cercado. Chamavam-no "o rio". E era
tudo. Em tempos antigos fora muito mais estreito. Os marizeiros e as ingazeiras
apertavam as duas margens e as águas corriam em leito mais fundo. Agora era
largo e, quando descia nas grandes enchentes, fazia medo. Contava-se o tempo
pelas eras das cheias. Isto se deu na cheia de 93, aquilo se fez depois da cheia de
68. Para nós meninos, o rio era mesmo a nossa serventia nos tempos de verão,
quando as águas partiam e se retinham nos poços. Os moleques saíam para
lavar os cavalos e íamos com eles. Havia o Poço das Pedras, lá para as bandas da
Paciência. Punham-se os animais dentro d'água e ficávamos nos banhos, nos
cangapés. Os aruás cobriam os lajedos, botando gosma pelo casco. Nas gran-
des secas o povo comia aruá que tinha gosto de lama. O leito do rio cobria-se de
junco e faziam-se plantações de batata-doce pelas vazantes. Era o bom rio da
seca a pagar o que fizera de mau nas cheias devastadoras. E quando ainda não
partia a corrente, o povo grande do engenho armava banheiros de palha para o
banho das moças. As minhas tias desciam para a água fria do Paraíba que ainda
não cortava sabão.
O rio para mim seria um ponto de contato com o mundo. Quando esta-
va ele de barreira a barreira, no marizeiro maior, amarravam a canoa que Zé
Guedes manobrava.
Vinham cargueiros do outro lado pedindo passagem. Tiravam as cangalhas
dos cavalos e, enquanto os canoeiros remavam a toda a força, os animais, com
as cabeças agarradas pelo cabresto, seguiam nadando ao lado da embarcação.
Ouvia então a conversa dos estranhos. Quase sempre eram aguardenteiros con-
trabandistas que atravessavam, vindos dos engenhos de Itambé com destino ao
sertão. Falavam do outro lado do mundo, de terras que não eram de meu avô. Os
grandes do engenho não gostavam de me ver metido com aquela gente. Às ve-
zes o meu avô aparecia para dar gritos. Escondia-me no fundo da canoa até que
ele fosse para longe. Uma vez eu e o moleque Ricardo chegamos na beira do rio
e não havia ninguém. O Paraíba dava somente um nado e corria no manso, sem
correnteza forte. Ricardo desatou a corda, meteu-se na canoa comigo, e quan-
do procurou manobrar era impossível. A canoa foi descendo de rio abaixo aos
arrancos da água. Não havia força que pudesse contê-la. Pus-me a chorar alto,
senti-me arrastado para o fim da terra. Mas Zé Guedes, vendo a canoa solta, cor-
reu pela beira do rio e foi nos pegar quase que no Poço das Pedras. Ricardo nem
tomara conhecimento do desastre. Estava sentado na popa. Zé Guedes, porém,
deu-lhe umas lapadas de cinturão e gritou para mim:

82 • capítulo 3
– Vou dizer ao velho!
Não disse nada. Apenas a viagem malograda me deixou alarmado. Fiquei
com medo da canoa e apavorado com o rio. Só mais tarde é que voltaria ele a ser
para mim mestre de vida.

Disponível em: <http://www.releituras.com/jlinsrego_rio.asp>.


Acesso em: 2 jun 2016.

Nesta crônica, revela-se a experiência de um personagem ainda menino em


contato com o mundo que se abria por intermédio do rio, como ele mesmo di-
zia: “O rio para mim seria um ponto de contato com o mundo”. No entanto, em
um desses dias comuns em que se aventurava no “Paraíba [que] dava somente
um nado e corria no manso, sem correnteza forte”, ele e seu amigo se envolvem
numa grande enrascada, uma vez que este corria desgovernada pelas águas do
rio, prestes a sofrer um desastre. Foi neste ínterim que ele teve medo e se afas-
tou por certo tempo daquele que seria o mestre da sua vida.

3.2  Terceira Fase: Prosa de Ficção Modernista

A 3ª Fase vai de 1945 até nossos dias, por isso é chamada de Pós-Modernismo
por alguns críticos. Não há como se precisar esta fase, uma vez que muitos es-
critores ainda estão na ativa e nós somos contemporâneos das produções deste
período. Daí a dificuldade.

Na poesia:
A chamada “geração de 45” rejeitava o poema-piada, o verso-livre, a irreve-
rência, buscando uma poesia formal, com vocabulário erudito e temas univer-
sais, com marcas do experimentalismo poético.

Na prosa:
Surge um grande número de romances e contos de natureza, tal como na
fase anterior:
•  Regionalista: linguagem regional, com temas próprios das localidades a
que se propõe retratar;
•  Urbana: voltada para os conflitos urbanos, principalmente das gran-
des capitais;
•  Psicológica: preocupada com o indivíduo em seu mundo interior.

capítulo 3 • 83
3.2.1  Experimentalismo

O experimentalismo advém da necessidade que os escritores da geração de 45


sentiam em se distanciar dos ideais propostos pelas primeiras fases modernis-
tas. Com isso, as produções da terceira geração constituíam uma nova investi-
gação estética e reforma das formas de expressão literária.
O experimentalismo gira em torno de pesquisa acerca da própria lingua-
gem, com um trabalho estético e linguístico que propiciava a exploração da for-
ma literária, tanto na prosa quanto na poesia, porém esta é vista como “a arte da
palavra”, sem a necessidade de assumir um caráter social, político, filosófico e
religioso, explorado nas gerações anteriores.
Tomemos como exemplo o poema de João Cabral de Melo Neto:

A Educação pela Pedra


Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,

Uma pedra de nascença, entranha a alma.

Disponível em: http://www.revistabula.com/449-os-10-melhores-poemas-


de-joao-cabral-de-melo-neto/Acesso em: 15-6-2016.

No poema acima, o eu-poético realiza uma composição acerca da educação


e apresenta o tema sem sentimentalismo, de tom mais objetivo, com vista a

84 • capítulo 3
exercer o trabalho poético, lúcido e preciso, mediante a observação direta da
realidade, expressando sua conclusão de modo concreto, racional. Além dis-
so, exercita a técnica da linguagem artística, aprimorando a própria linguagem
poética, como uma espécie de linguagem-objeto.

AUTOR
João Cabral de Melo Neto nasceu na cidade do Recife, a 6 de janeiro de 1920, e faleceu
no dia 9 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro, aos 79 anos. Eleito membro da Academia
Brasileira de Letras em 15 de agosto de 1968, tomou posse em 6 de maio de 1969.
No Rio, depois de ter sido funcionário do DASP, inscreveu-se, em 1945, no concurso
para a carreira de diplomata. Daí por diante, já enquadrado no Itamarati, iniciou uma larga
peregrinação por diversos países, incluindo, até mesmo, a República Africana do Senegal. Em
1984 foi designado para o posto de cônsul-geral na cidade do Porto (Portugal). Em 1987
voltou a residir no Rio de Janeiro.
A atividade literária acompanhou-o durante todos esses anos no exterior e no Brasil, o
que lhe valeu ser contemplado com numerosos prêmios, entre os quais Prêmio José de An-
chieta, de poesia, do IV Centenário de São Paulo (1954); Prêmio Olavo Bilac, da Academia
Brasileira de Letras (1955); Prêmio de Poesia do Instituto Nacional do Livro; Prêmio Jabuti,
da Câmara Brasileira do Livro; Prêmio Bienal Nestlé, pelo conjunto da Obra e Prêmio da
União Brasileira de Escritores, pelo livro "Crime na Calle Relator" (1988).
Em 1990 João Cabral de Melo Neto aposentou-se no posto de Embaixador.

Disponível em: <http://www.academia.org.br/academicos/joao-cabral-de-


melo-neto/biografia>. Acesso em: 15-6-2016.

3.2.2  Regionalismo

O regionalismo é uma tendência literária que busca, além da universalização


do regional, a revalorização da linguagem como marca e expressão máxima da
diversidade de nosso país, com nordestinos, sertanejos, mediante o foco que se
dá às expressões do povo bem como o destaque para suas singularidades.
O regionalismo ganha uma nova perspectiva com Guimarães Rosa.

capítulo 3 • 85
Em 1908, nasce João Guimarães
Rosa, no dia 27 de junho, em
Cordisburgo, Minas Gerais.
Em 1929: escreve quatro contos e
recebe prêmios por esses contos em
concurso da revista O Cruzeiro.
Em 1930, forma-se em medicina e
se casa com Lygia Cabral Pena.
Em 1932, foi médico-voluntário da
Força Pública, na época da Revolução
Constitucionalista de 1932.
Figura 3.7  –  Guimarães Rosa.

Em 1936, seu livro de poemas, Magma, venceu o Prêmio da Academia


Brasileira de Letras.
Em 1937, escreveu os contos que fazem parte de Sagarana. Concorreu ao
Prêmio Humberto de Campos e ficou com o 2º lugar.
Em 1946, Sagarana foi publicado e recebeu o Prêmio Sociedade Felipe
d’Oliveira.
Em 1956, publicou Corpo de Baile e lançou Grande Sertão: Veredas, rece-
bendo por este último os Prêmios Machado de Assis, Prêmio Carmem Dolores
Barbosa e Prêmio Paula Brito.
Em 1963, entrou para a Academia Brasileira de Letras.
Entre 1965 e 1966, seus livros foram traduzidos para vários países como
França, Itália, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Espanha, Polônia, Holanda
e Checoslováquia.
Em 19 de novembro 1967, falece vítima de enfarte.
Deixou-nos obras como:

Romance:
Grande Sertão: Veredas,1956.

Contos
Sagarana, 1946
Corpo de baile, 1956
Primeiras estórias,1962

86 • capítulo 3
Tutameia: terceiras estórias, 1967
Estas estórias, 1969
Ave, palavra, 1970

Que tal conhecermos um pouco dos contos deste autor? Passemos à leitura
de um excerto de:

A TERCEIRA MARGEM DO RIO


Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e meni-
no, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informa-
ção. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do
que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava
no diário com a gente minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai
mandou fazer para si uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com
a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada,
escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou
trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a ideia. Seria que, ele, que nessas artes não
vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa
casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí
se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma
da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a
gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma reco-
mendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente
alva de pálida, mascou o beiço e bramou: "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso
pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por
uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez em jeito. O rumo daquilo
me animava, chega que um propósito perguntei: "Pai, o senhor me leva junto, nessa
sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me
mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso
pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu de indo a sobra dela
por igual, feito um jacaré, comprida longa.

capítulo 3 • 87
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção
de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa,
para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer
de todo a gente. Aquilo que não havia acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos
nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de
nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto
de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por
escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra
sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas
certas pessoas passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda
descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia
nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa
mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado
na canoa, se gastava; e ele, ou desembarcava e viajava s’embora, para jamais, o que
ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
Primeiras estórias, 1962

Disponível em: <http://www.academia.org.br/academicos/joao-guimaraes-rosa/


textos-escolhidos>. Acesso em: 17 jun 2016.

No conto acima, bem como em grande parte de sua obra, Guimarães Rosa
traz uma explicação mítica da realidade, por meio de alegorias e mitos de força
universal, casando com a origem regional das personagens para a experiência
humana ponderada e transfigurada pela forma literária, assim como pelo estilo
particular de escrever.
Guimarães Rosa foca o regionalismo, mas não deixa de praticar o experi-
mentalismo por meio da recriação da realidade com a manipulação da lingua-
gem que só ele consegue fazer. Para isso, faz uso de arcaísmos e vocábulos co-
nhecidos, passando para a criação de palavras e expressões. Seguindo um estilo
próprio, permite-se realizar inventos de ordem semântica e sintática. O resul-
tado? Uma forma de comunicação que não se prende à realidade, mas que se
mostra uma ferramenta de apreensão e compreensão dessa realidade.

88 • capítulo 3
3.2.3  Psicologismo e Intimismo

Psicologismo e intimismo formam uma vertente literária cuja temática são os


sentimentos íntimos mais profundos. Desse modo, esta vertente, também de-
nominada “introspectiva”, focaliza o tumulto ou a agitação da mente da perso-
nagem no seu campo consciente e inconsciente.
A característica principal das obras intimistas é a abordagem profunda do
campo íntimo das personagens, com o objetivo de revelar e analisar experiên-
cias traumatizantes e consequentes desordens psíquicas.
O psicologismo explora também pontos espirituais, morais e metafísicos.
Assim, podemos encarar as obras literárias de caráter intimista, que se rendem
ao psicologismo, como uma metodologia de se investigar a alma humana em
crise, em seus pontos mais profundos e obscuros.
Clarice Lispector é a principal re-
presentante do intimismo. Ela busca
verificar como o indivíduo se coloca
no mundo, seus questionamentos, sua
experiência existencial. Ao explorar o
mundo psicológico, Lispector acaba
por ressignificar os vocábulos, uma
vez que busca investigar aquilo que
não é dito, o que fica escondido nas
entrelinhas da vida (e, assim, do seu
próprio texto!).

Figura 3.8  –  Clarice Lispector.

Suas obras são:


Perto do coração selvagem, 1944.
O lustre, 1946.
A cidade sitiada, 1949.
Alguns contos. Rio de Janeiro, 1952.
Laços de família, 1960.
A maçã no escuro, 1961.
A legião estrangeira, 1964.
A paixão segundo G.H., 1964.

capítulo 3 • 89
O mistério do coelho pensante, 1967.
A mulher que matou os peixes, 1969.
Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, 1969.
Felicidade clandestina, 1971.
A imitação da rosa, 1973.
Água viva, 1973.
A via crucis do corpo, 1974.
Onde estivestes de noite, 1974.
A vida íntima de Laura, 1974.
De corpo inteiro, 1975.
Visão do esplendor, 1975.
A hora da estrela, 1977.
Para não esquecer, 1978.
Um sopro de vida (pulsações), 1978.
Quase de verdade, 1978.
A Bela e a Fera, 1979.
A descoberta do mundo, 1987.
Como nasceram as estrelas. 1987.
Correspondências, 2002.

Interessante se faz penetrarmos na atmosfera do conto O primeiro beijo.


Leiamos um excerto:

Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e


ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
– Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me
diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele
foi simples:
– Sim, já beijei antes uma mulher.
– Quem era ela? perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garo-
tada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos

90 • capítulo 3
com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem
quase pensar, e apenas sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no
meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o baru-
lho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na
boca ardente engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva,
e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora
o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao
penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto?
Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez
minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais
próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando
entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbus-
tos estava… o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou,
todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de
pedra, antes de todos.
(...) Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verda-
de. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido:
ele…
Ele se tornara homem.
Disponível na <http://contobrasileiro.com.br/o-primeiro-beijo-conto-de-clarice
-lispector-2/>. Acesso 17 jun 2013.

Em O primeiro beijo, o narrador constrói a narrativa mesclando fatos, acon-


tecimentos com o fluxo de consciência, permitindo ao leitor ter uma visão “de
dentro” da personagem, já que nesse método narrativo a visão de uma perso-
nagem é desvendada por meio do enfoque que se dá sobre as construções de
sua mente. Ao final da narrativa, percebemos que consciência e inconsciência
se mesclam, bem como aspectos do real e da fantasia, permitindo ao leitor a
experiência de vivenciar uma nova vida.

capítulo 3 • 91
ATIVIDADES
01. Diferencie a poesia da 2ª e da 3ª fases modernistas.

02. Como é a prosa da 2ª e da 3ª fases modernistas?

REFLEXÃO
O Modernismo se desenvolveu em três grandes fases, mas na sua terceira fase é que verifi-
camos um afastamento maior em relação ao que se propunha a primeira fase, marcada pelos
ideais da Semana de arte Moderna.
É na terceira fase que o experimentalismo surge a pleno vapor com a proposta de pes-
quisar acerca da própria linguagem. A poesia é sinônimo da “arte da palavra”, um trabalho
estético e linguístico de esmero.
Na prosa, o Modernismo anda a passos largos, abordando a nossa realidade sob o foco
do regionalismo, que busca a universalização do regional, a revalorização da linguagem, des-
tacando a heterogeneidade de nosso país, bem como o psicologismo, também denominado
intimismo ou literatura introspectiva, mesclando uma concepção consciente e inconsciente
da realidade apreendida pelo homem moderno.

LEITURA
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix,1995.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COUTINHO, Afrânio. Co-Direção: Eduardo de Faria Coutinho. A Literatura no Brasil. Relações e
perspectivas. São Paulo: Global, 1999.
MELO E SOUZA, Antônio Candido; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira.
São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1984.

92 • capítulo 3
4
Do Moderno ao
Pós-Moderno
4.  Do Moderno ao Pós-Moderno
Neste capítulo abordaremos questões relacionadas com o Modernismo e o cha-
mado pós-modernismo.
Primeiramente, faremos algumas considerações a respeito do teatro moderno
de autoria de Nelson Rodrigues, peças de grande destaque e objeto de censura
pelos temas abordados.
Num segundo momento, faremos um passeio pelas vanguardas pós-modernas,
do concretismo à poesia marginal.
Por fim, anunciaremos autores e obras que abrem as portas para uma tendên-
cia contemporânea, tanto em verso quanto em prosa.

OBJETIVOS
Neste capítulo esperamos que você seja capaz de:
•  Entender as questões relacionadas com o modernismo e o pós-modernismo;
•  Reconhecer elementos importantes do teatro de Nelson Rodrigues;
•  Entender e diferenciar as obras produzidas nas vanguardas pós-modernas;
•  Identificar a presença da tendência contemporânea na literatura brasileira.

4.1  Do Moderno ao Pós-Moderno

Octavio Paz – escritor, crítico e poeta – explicita a diferença entre os termos


“moderno” e “modernismo”:

O moderno não é caracterizado unicamente por sua novidade, mas por sua heteroge-
neidade. Tradição heterogênea ou do heterogêneo, a modernidade está condenada
à pluralidade: a antiga tradição era sempre a mesma, a moderna é sempre diferente.
A primeira postula a unidade entre o passado e o hoje; a segunda, não satisfeita em
ressaltar as diferenças entre ambos, afirma que esse passado não é o único, mas sim
plural. (PAZ, 1984, p. 18)

94 • capítulo 4
Pensando desse modo, Paz considera que “A tradição moderna apaga as
oposições entre o antigo e o contemporâneo, o distante e o próximo. O ácido
que dissolve todas essas oposições é a crítica”. (1984, p. 21)
Talvez seja por isso que Jameson (2006) acredite que o pós-modernis-
mo funcione como um espelho do modernismo, em processo de destrui-
ção, já que o pós-modernismo abre espaço para novas ideias que levarão
à contemporaneidade.
No entanto, os movimentos citados mantêm pontos de semelhança, uma
vez que:

(...) haverá tantas formas de pós-modernismo, quanto havia, no lugar, de alto moder-
nismo, uma vez que elas são, ao menos inicialmente, reações específicas e localizadas
contra esses modelos. Tal característica obviamente não facilita em nada a tarefa
de descrever o pós-modernismo como algo coerente, já que a unidade desse novo
impulso — se existe— é dada, não por se mesma, mas pelo próprio modernismo que
ele busca destronar. (JAMESON, 2006, p.18)

Ora, se modernismo e pós-modernismo têm elementos de convergência,


podemos entender que a pós-modernidade, termo que envolve novas ideias,
tem como finalidade:

(...) correlacionar a emergência de novos aspectos formais da cultura com a emer-


gência de um novo tipo de vida social e com uma nova ordem econômica - aquilo que
muitas vezes se chama, eufemisticamente, de modernização, sociedade pós-industrial
ou de consumo, sociedade da mídia ou dos espetáculos, capitalismo multinacional.
(JAMESON, 1993, p. 27)

Na verdade, o que se chama pós-modernidade pode ser encarado como uma


tentativa de “(...) colocar em evidência a construção de sentido sobre um pro-
cesso de recomposição de diversos elementos (políticos econômicos, culturais,
religiosos etc.)” (ESPERANDIO, 2007, p. 9).
Para Lyotard, o pós-modernismo é o nascimento de um novo modernismo,
pois:

capítulo 4 • 95
Uma obra torna-se moderna quando, em primeiro lugar, é pós-moderna. Portanto, o
pós-modernismo não é o fim do modernismo, mas o modernismo em seu nascimento.
Este estado é algo constante. (Lyotard, 1984, p. 79)

Como se vê, o vocábulo “pós-moderno” indica que “é sempre em princípio


o que se deve chamar um presente absoluto. [...] Ele cria uma dificuldade pe-
culiar para a definição de qualquer período posterior, que o converteria num
passado relativo” (ANDERSON, 1999, p. 20).

4.1.1  Nelson Rodrigues e o Teatro Modernista no Brasil

Nelson Rodrigues pode ser analisado como um autor do Modernismo,


da geração de 45, no entanto é mais que moderno, é pós-moderno,
até contemporâneo.

Figura 4.1  –  Nelson Rodrigues.

Ele revolucionou o teatro, alocando o subúrbio do Rio de Janeiros nos pal-


cos, e não tinha reservas para escrever sobre adultério, crime, suicídio, morte
e preconceito, usando de uma linguagem coloquial para registrar suas peças e
crônicas. Pintava a realidade de forma intensa e sem rodeios. O erotismo é mui-
to presente em seus textos. Além de ser dramaturgo, operou como jornalista
nos principais jornais da capital fluminense.

96 • capítulo 4
Geralmente, Nelson Rodrigues enfrentava problemas com a censura, como
revela a leitura do parecer do censor A. Conde Scrosoppi que justificou a censu-
ra da peça Senhora dos afogados, escrita em 1947, por ser considerada:
a) Imoral: cenas que se passam em um prostíbulo; assassinato de uma
prostituta, conversações violentas em família;
b) Violenta: cenas com assassinatos brutais, fratricídios, incestos e
uxoricídio;
c) Desagregadora: humilha os amores que se consideram sagrados, ofen-
de a moral cristã, apresenta atmosfera de ódio familiar;
d) Psiquiátrica: personagens são doentes mentais.
Arquivo Miroel Silveira (AMS) da Biblioteca da ECA/USP
Diante do exposto, podemos entender que:

Cada peça de Nelson Rodrigues era um impasse (...). A censura tinha de ser rigorosa,
porque ele escrevia coisas que a “sociedade não aceitava”, como diziam. E isso significa-
va corte de cenas (...). Ao mesmo tempo, achavam que a proibição sumária da peça ou
simples cortes era tudo que a fome publicitária de Nelson mais queria (CASTRO, 1992).

Ruy Castro é o biógrafo de Nelson Rodrigues e revela dados importantes so-


bre sua vida e suas obras em uma entrevista exclusiva à revista Educar para cres-
cer. Quanto à característica mais marcante do autor em estudo, diz ele:

A genialidade de Nelson Rodrigues, que não tem explicação. Ele não era um intelec-
tual, mas conseguia dizer as coisas mais importantes, profundas e verdadeiras de uma
maneira que era quase impossível de explicar por que ele fazia isso.
Ele é um cara de intuição mágica, atingia a verdade do ser humano de maneira absoluta.

Amor e morte são temas recorrentes nas obras de Nelson Rodrigues, e Ruy
Castro explica que:

Os pactos de amor e morte o marcaram quando era garoto. Ele era repórter policial
no jornal do pai dele. E o romantismo naquela época dava espaço para isso. A família,
que era uma instituição muito forte, impedia que houvesse um amor, um casamento e
os amantes acabavam se suicidando.

capítulo 4 • 97
Nelson Rodrigues acreditava que a saída para o amor eterno é a morte, mas não
praticava isso. Ele teve pelo menos três casamentos. Ao mesmo tempo, dizia que o
segundo casamento era um adultério. Era um moralista no sentido profundo do termo.
Ele dizia que algumas mulheres precisam trair para não apodrecer. Ou seja, não está
condenando o adultério, evidentemente. Queria que as pessoas botassem para fora
as suas pulsões secretas e que, fazendo isso, estariam se purificando, digamos assim.
Essa purificação talvez atingisse o amor eterno. Ele sabia que isso é era uma utopia.

Questionado sobre em qual gênero Nelson Rodrigues se destacou, Ruy


Castro chama a atenção para o fato de que:

Nelson foi tão grande romancista quanto teatrólogo, por incrível que pareça. "Asfalto
Selvagem" é a obra que mais gosto dele.
Você lê, não vê no palco. Isso permite ao criador superar as limitações do palco, mer-
gulhar na cabeça dos personagens, é possível inventar tudo.
O romance não tem a limitação física do palco, o romancista é onipotente em sua
criação. Acho que Nelson Rodrigues aproveitava muito bem isso e fazia um mergulho
na alma dos personagens dele. Não era só dramático, mas também comovente, en-
graçado... Se fizesse isso no teatro, ficaria sempre na dependência de o elenco fazer
isso bem ou mal. No romance, não. Ele precisa da capacidade do leitor.
Disponível na http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/ruy-castro-nelson-rodri-
gues-699050.shtml . Acesso em 22-6-2016.

Entre as principais obras, estão Anjo negro, Vestido de noiva, Álbum de fa-
mília e O beijo no asfalto, sobre as quais comentaremos um pouco:
•  Anjo negro: peça escrita em 1946, tem o tema da morte, em que um casal
vela o corpo do filho, foca o problema racial quando o personagem negro não
aceita ter um irmão branco e ainda contém dados ligados à sexualidade, como
traição, relações sexuais, estupro.
•  Vestido de noiva: peça escrita em 1943, tem o tema da morte, em que a
personagem é atropelada e morre. Durante o processo de morte, a personagem
sai em busca de uma prostituta famosa da época, elemento importante para a
construção da personagem. O diálogo entre as duas permite a resolução dos

98 • capítulo 4
conflitos pelos quais a protagonista passa. A peça é marcada por traição, morte,
luxúria, hipocrisia burguesa etc.
•  Álbum de família: peça escrita em 1945, tem como tema as relações inces-
tuosas: o desejo sexual de um pai por sua filha caçula, o filho é apaixonado pela
mãe, que, por sua vez, tem amor proibido pelo outro filho.
•  O beijo no asfalto: peça escrita em 1960, tem como tema a homossexuali-
dade, a maldade e o preconceito.
Em geral, a censura proibia a representação de peças que poderiam vir a in-
duzir a prática de crimes, que continham ofensas à moral e aos bons costumes.

CURIOSIDADE
Nelson Rodrigues tem vinte de suas histórias transpostas para a tela do cinema, algumas em
duas versões, como Boca de ouro, de Nelson Pereira dos Santos, 1962, e de Walter Avan-
cini, 1990, e Bonitinha, mas ordinária, de R. P. de Carvalho, 1963, e de Braz Chediak, 1980.
Algumas das realizações mais bem-sucedidas são A falecida, de Leon Hirszman, 1965, e
O casamento, de Arnaldo Jabor, 1975. Suas crônicas para o jornal, sob o pseudônimo de
Suzana Flag, são publicadas em livros, como Meu destino é pecar, As escravas do amor e O
homem proibido. Escreve também para os periódicos Última Hora, Flan, Correio da Manhã, O
Globo e Manchete Esportiva. Assinando artigos sobre esporte, não priva o leitor de seu estilo
dramático, atendo-se muitas vezes ao sentido da rivalidade, ao significado do gol, ao efeito
do suor sobre a subjetividade da plateia brasileira.
Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br>/
pessoa4409/nelson-rodrigues . Acesso em: 21-6-2016.

4.2  Vanguarda Concreta e Desdobramentos

4.2.1  Concretismo

O concretismo surgiu no Brasil com a publicação da revista Noigandres por Dé-


cio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos. No entanto, foi com a
Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956, no Museu de Arte Moderna de
São Paulo, que esta nova tendência se consolidou.

capítulo 4 • 99
CONCEITO
Noigandres = fórmula contra o tédio

O concretismo traz novas formas de expressão na poesia com:


•  A valorização da forma e da comunicação visual, sobrepondo ao conteú-
do. Desse modo, até o espaço do papel é elemento importante e significativo
para a construção da poesia.
•  A abolição de versos e a inclusão de figuras geométricas na composição
poética, por isso os poemas concretos são denominados “poema-objeto”.
•  A desvalorização do lirismo e do tema, colocando o poema como se fosse
um quadro, em que a forma concreta tem maior valor que o significado.
•  A multiplicidade de leituras pela disposição gráfica das palavras.

Segundo Alfredo Bosi:

A poesia concretista exprime, como toda linguagem, um modo de relacionar-se com


as coisas e com os homens. O fato de recusar-se ao tema 9 não significa de modo
algum que ela seja carente de conteúdo psíquico e ideológico, como sugerem às
vezes, gratuitamente, os seus detratores. Não há processo linguístico desprovido de
significação: o próprio uso do nonsense significa que o poeta não vê sentido no seu
mundo. E na verdade, não é difícil reconhecer nos poemas concretos o universo refe-
rencial que a sua estrutura propõe comunicar: aspectos da sociedade contemporânea,
assentada no regime capitalista e na burocracia, e saturada de objetos mercáveis, de
imagens de propaganda, de erotismo e sentimentalismo comerciais, de lugares co-
muns díspares que entravam na linguagem enemizando-lhe o tônus crítico e criador.
(1978, p. 535)

Vejamos alguns poemas concretos dos fundadores da revista Noigandres:

100 • capítulo 4
Beba coca cola, de Décio Pignatari
O eu poético brinca com as palavras coca, cola, beba, babe e termina com o
termo cloaca.
Coca-cola pode ser tomado como o substantivo próprio que designa a be-
bida à base de cola e pode funcionar como uma crítica social ao consumo exa-
gerado da bebida ou, por analogia, a qualquer produto. Coca e cola podem ser
tomados como termos isolados, ambos com conotação pejorativa, pois coca
pode ser entendida como uma abreviação do vocábulo cocaína, que por sua vez
pode transformar uma pessoa em caco, mediante a inversão das sílabas. Cola
também pode ser entendida como uma droga, referenciando a cola de sapatei-
ro usada como alucinógeno. Por fim, a mistura das palavras leva à formação de
cloaca, outro termo que assume significado pejorativo de sujo, aquilo que deve
ser evitado.
Beba e babe também nos levam a pensar sobre o consumismo, numa com-
paração de que ficamos bobos e babões quando somos bombardeados por pro-
pagandas que nos levam a agir sem pensar.

PERGUNTA
Que tal você refletir sobre os poemas a seguir?

capítulo 4 • 101
Nascemorre, Haroldo de Campos

Amortemor, de Augusto de Campos


A especialidade da poesia concretista é a valorização das expressões en-
quanto recursos gráficos, abandonando o estilo discursivo.

102 • capítulo 4
4.2.2  Neoconcretismo

O neoconcretismo nasceu em março de 1959, com a publicação do Manifesto


Neoconcreto pelo grupo neoconcreto.
Vejamos um excerto do Manifesto neoconcreto:

(...)
Não concebemos a obra de arte nem como “máquina” nem como “objeto”, mas como
um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exterio-
res de seus elementos; um ser que, decomponível em partes pela análise, só se dá
plenamente à abordagem direta, fenomenológica. Acreditamos que a obra de arte
supera o mecanismo material sobre o qual repousa, não por alguma virtude extrater-
rena: supera-o por transcender essas relações mecânicas (que a Gestalt objetiva) e
por criar para si uma significação tácita (M. Pority) que emerge nela pela primeira vez.
Se tivéssemos que buscar um símile para a obra de arte, não o poderíamos encon-
trar, portanto, nem na máquina nem no objeto tomados objetivamente, mas, como S.
Lanoer e W. Wleidlé, nos organismos vivos. Essa comparação, entretanto, ainda não
bastaria para expressar a realidade específica do organismo estético.
É porque a obra de arte não se limita a ocupar um lugar no espaço objetivo – mas o
transcende ao fundar nele uma significação nova - que as noções objetivas de tempo,
espaço, forma, estrutura, cor etc. não são suficientes para compreender a obra de
arte, para dar conta de sua “realidade”. A dificuldade de uma terminologia precisa
para exprimir um mundo que não se rende a noções levou a crítica de arte ao uso
indiscriminado de palavras que traem a complexidade da obra criada. A influência da
tecnologia e da ciência também aqui se manifestou, a ponto de hoje, invertendo-se os
papéis, certos artistas, ofuscados por essa terminologia, tentarem fazer arte partindo
dessas noções objetivas para aplicá-las como método criativo. Inevitavelmente, os
artistas que assim procedem apenas ilustram noções a priori, limitados que estão por
um método que já lhes prescreve, de antemão, o resultado do trabalho. Furtando-se à
criação espontânea, intuitiva, reduzindo-se a um corpo objetivo num espaço objetivo, o
artista concreto racionalista, com seus quadros, apenas solicita de si e do espectador
uma reação de estímulo e reflexo:

capítulo 4 • 103
fala ao olho como instrumento e não olho como um modo humano de ter o mundo e
se dar a ele; fala ao olho-máquina e não ao olho-corpo.
(...)
Disponível em: <http://www.mariosantiago.net/Textos%20em%20PDF/
Manifesto%20neoconcreto.pdf>. Acesso em: 21-6-2016.

Interpretando o manifesto neoconcreto, percebemos que os poetas se preo-


cupam com o fenômeno linguístico como entidade dotada de forma e sentido,
abrindo possibilidades para uma nova significação em contato com a realida-
de, de acordo com um método criativo.
O Manifesto Neoconcreto de 1959 foi assinado pelos artistas Amilcar de
Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo
Jardim e Theon Spanudis.
A proposta do manifesto está em combater, de certo modo, o concretis-
mo, que tem uma abordagem muito racional da arte. Combatiam o concre-
tismo expondo que a arte não se limita à forma – ou formas geométricas, no
caso – e discutiam os elementos de ordem cientificista e positivista presente na
arte concreta.
Como se vê, os neoconcretos asseveravam que a arte não é apenas um obje-
to, mas uma criação sensível, de grande expressão, subjetiva. Por isso, os artis-
tas neoconcretos protegem a arte quanto à experimentação, expressividade e
subjetividade.
Há uma abertura quanto às probabilidades inventivas do artista, como ex-
periências de extinguir o apelo técnico-científico do concretismo. Desse modo,
os neoconcretos contestam o concretismo para defender a conservação do bri-
lho da obra de arte e recuperar um humanismo que havia se perdido. Assim,
analisavam as diferentes possibilidades criativas do artista e da sua arte, ao
mesmo tempo em que abarcavam as questões que envolvem processo criador,
com foco no receptor que se abre a várias leituras que emergem da obra.
Ferreira Gullar escreveu livro-poema como o excerto a seguir, em que toda
a página vem coberta da palavra verde, formando um grande quadro do qual só
escapa a palavra erva:

104 • capítulo 4
Ferreira Gullar escreveu também poema espacial como:

Figura 4.2  –  Ferreira Gullar.

capítulo 4 • 105
AUTOR
Ferreira Gullar, cujo nome verdadeiro é José de Ribamar Ferreira, nasceu em São Luís do
Maranhão, em 10 de setembro de 1930, numa família de classe média pobre. Dividiu os anos
da infância entre a escola e a vida de rua, jogando bola e pescando no Rio Bacanga. Con-
sidera que viveu numa espécie de paraíso tropical e, quando chegou à adolescência, ficou
chocado em ter que tornar-se adulto, e tornou-se poeta.
(...)
Gullar, por sua vez, levou suas experiências poéticas ao limite da expressão, criando o
livro-poema e, depois, o poema espacial, e, finalmente, o poema enterrado. Este consiste em
uma sala no subsolo a que se tem acesso por uma escada; após penetrar no poema, depara-
mo-nos com um cubo vermelho; ao levantarmos este cubo, encontramos outro, verde, e sob
este ainda outro, branco, que tem escrito numa das faces a palavra “rejuvenesça”.
O poema enterrado foi a última obra neoconcreta de Gullar, que se afastou então do
grupo e integrou-se na luta política revolucionária. Entrou para o partido comunista e passou
a escrever poemas sobre política e participar da luta contra a ditadura militar que havia se
implantado no país, em 1964. (...)
Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/
start.htm%3Fsid%3D1042/biografia>. Acesso em: 21 jun 2016.

4.2.3  Práxis

a literatura práxis se estabelecerá, em definitivo, como fazer histórico, quando intelec-


tuais e povo forem leitores de uma mesma linguagem
(CHAMIE, 1962, p.167)

Difundido em 1961, o Manifesto Didático deu origem à poesia práxis, cujo


maior representante é Mário Chamie, poeta que considerava a palavra um me-
canismo vivo capaz de dar vida a outros mecanismos, formando novas palavras
(neologismos).

106 • capítulo 4
Figura 4.3  –  Mário Chamie.

De acordo com Chamie (1963, p. 125-126):

O poema práxis remodela o duo autor-leitor. O autor só é autor, enquanto no exercício


da condição; enquanto pratica o ato de compor. Fora daí, é leitor e, rigorosamente, no
âmbito maior da literatura práxis (de que o poema práxis é uma extroversão), haverá
um momento em que a riqueza criativa de um grupo, de uma sociedade e de um povo
será constituída, quantitativa e qualitativamente, de leitores.

Da relação que se estabelece entre autor e leitor mediante as considerações


de Chamie, podemos dizer que emergem algumas características da poesia
práxis, como:
•  Criação de neologismos
•  Brincadeira com a sonoridade
•  Inserção de termos estrangeiros
•  Exploração de aspectos visuais
•  Variação semântica dos termos
•  Poema visto como objeto vivo
•  Possibilidade de leituras

capítulo 4 • 107
Vejamos um exemplo de poesia práxis de Mário Chamie:

O Tolo E O Sábio
O sábio que há em você
não sabe o que sabe
o tolo que não se vê.

Sabe que não se vê


o tolo que não sabe
o que há de sábio em você.

Mas do tolo que há em você


não sabe o sábio que você vê.

Chamie brincou com a sonoridade das palavras que compõem o poema O


tolo e o sábio de modo que a própria sonoridade dificulta a leitura, ao mesmo
tempo que nos dispersa quanto à realização de uma leitura fechada.

4.2.4  Tropicália e Poesia Marginal

Tropicália ou tropicalismo é o nome recebido pelo movimento musical dos


anos finais da década de 1960, com a participação dos músicos Tom Zé, Caeta-
no Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes, dentre outros.
O tropicalismo colaborou para que a literatura assumisse uma visão de bom
emprego de qualquer estética literária, sem a interferência cheia de precon-
ceitos, tendo como característica principal a mistura de ideias e estéticas que
juntavam assuntos urbanos e modernos aos elementos folclóricos e populares.
Pode-se dizer que o tropicalismo possibilitou o surgimento de certo anar-
quismo, sob o ponto de vista da sociedade burguesa. Desse modo, as produções
ganham um tom de ironia e humor, consolidando-se como forma de paródia.
Que tal observarmos a música Parque industrial, de Tom Zé, que sintetiza as
características da Tropicália?

108 • capítulo 4
Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação.
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção.

Tem garotas-propaganda
Aeromoças e ternura no cartaz,
Basta olhar na parede,
Minha alegria
Num instante se refaz

Pois temos o sorriso engarrafado


Já vem pronto e tabelado
É somente requentar
E usar,
É somente requentar
E usar,
Porque é made, made, made, made in Brazil.
Porque é made, made, made, made in Brazil.

Retocai o céu de anil


Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação.
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção.

A revista moralista
Traz uma lista dos pecados da vedete
E tem jornal popular que
Nunca se espreme
Porque pode derramar.

capítulo 4 • 109
É um banco de sangue encadernado
Já vem pronto e tabelado,
É somente folhear e usar,
É somente folhear e usar.

Disponível na <https://www.vagalume.com.br/tom-ze/
parque-industrial.html>. Acesso em 22 jun 2016.

Nessa música, Tom Zé mescla elementos da industrialização, característi-


cas da cidade moderna, com objetos populares e folclóricos como cordões, fes-
ta, bandeirinhas etc., ao mesmo tempo em que imprime certa ironia comentar
sob os aspectos da sociedade burguesa.
E, por falar em ironia, a Poesia Marginal da década de 1970 também era
irônica, funcionando como paródia de situações tomadas como prosaicas, fa-
zendo-nos refletir a respeito da fusão entre poesia e vida. Uma das principais
finalidades desse tipo de poesia era sugerir uma análise acerca dos elementos
conservadores da sociedade, aliando à Literatura dados e aspectos da violência
diária nas grandes cidades.

CONCEITO
O termo “marginal” se refere ao fato de as poesias serem impressas e distribuídas sem a
intervenção de editoras.

A produção da poesia marginal era feita sem nenhum tipo de edição, total-
mente livre dos modelos de produção – muitas vezes “rodada” em mimeógra-
fos – e com um número limitado de itens para a distribuição, devido à tiragem
pequena.
Dentre as características da poesia marginal, temos:
•  Fusão de vida e poesia
•  Linguagem coloquial
•  Reminiscência do concretismo
•  Paródia, ironia, humor

110 • capítulo 4
•  Tom íntimo e confessional
Alguns autores da poesia marginal são Paulo Leminski e Chacal.

Figura 4.4  –  Paulo Leminski.

AUTOR
Paulo Leminski Filho (Curitiba PR 1944 - idem 1989). Poeta, romancista e tradutor. Filho
de Paulo Leminski, militar de origem polonesa, e Áurea Pereira Mendes, de ascendência
africana. Aos 12 anos, ingressa no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, e adquire co-
nhecimentos de latim, teologia, filosofia e literatura clássica. Em 1963, abandona a vocação
religiosa. Viaja a Belo Horizonte para participar da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda,
e conhece Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, criadores do movi-
mento Poesia Concreta. No ano seguinte, publica seus primeiros poemas na revista Invenção,
editada pelos concretistas, e torna-se professor de história e redação em cursos pré-vestibu-
lares, experiência que motiva a criação de seu primeiro romance, Catatau (1976). Leminski
também atua como diretor de criação e redator em agências de publicidade, o que contribui
para sua atividade poética, sobretudo no aspecto da comunicação visual. Fascinado pela
cultura japonesa e pelo zen-budismo, Leminski pratica judô, escreve haicais e uma biografia
de Matsuo Bashô. O interesse pelos mitos gregos, por sua vez, inspira a prosa poética Meta-
formose. Paulo Leminski exerce atividade intensa como crítico literário e tradutor, vertendo
para o português obras de James Joyce, Samuel Beckett, Yukio Mishima, Alfred Jarry, entre
outros. Colabora em revistas de vanguarda, como Raposa, Muda e Qorpo Estranho, e faz
parcerias musicais com Caetano Veloso e Itamar Assumpção, entre outros. Em 1968, casa-
se com a poeta Alice Ruiz (1946), com quem vive durante 20 anos, e tem três filhos: Miguel

capítulo 4 • 111
Ângelo (que morre aos dez anos), Áurea e Estrela. Em 7 de junho de 1989, o poeta morre,
vítima de cirrose hepática.

Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa2851/


paulo-leminski>. Acesso em: 23 jun 2016.

Leiamos um poema marginal de Paulo Leminski:

Incenso Fosse Música

isso de querer ser


exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

Paulo Leminski apresenta concisão, coloquialidade e construção formal


concretista. O humor está presente em sua poesia como forma de refletir a res-
peito de quem somos e aonde queremos chegar, não só em tom subjetivo, con-
fessional, mas também em se tratando da vontade do brasileiro, em querer ser
livre, independente.
Chacal é mais um representante da poesia marginal brasileira. Chacal é
o pseudônimo do poeta e cronista Ricardo de Carvalho Duarte. Em 1971, ele
distribui uma edição mimeografada de cem exemplares de seu primeiro livro,
Muito Prazer, Ricardo.

Figura 4.5  –  Ricardo de Carvalho Duarte (Chacal).

112 • capítulo 4
Vejamos o poema:
Rápido e rasteiro

vai ter uma festa


que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.
aí eu paro, tiro o sapato
e danço o resto da vida

Neste poema, poderíamos dizer que, assim como fez em suas crônicas, o eu
poético retirou do cotidiano o tema para sua poesia. Em tom de humor, brin-
ca com a situação de dançar com os pés doendo por causa do sapato apertado
ou incômodo, cuja solução se dá retirando o calçado. Como se vê, o tema do
poema se refere a uma prática muito comum entre as mulheres em festas de
casamento, em que o traje social pede o uso de saltos altos.

COMENTÁRIO
Os escritores da poesia marginal têm, hoje, suas obras publicadas e distribuídas por grandes
editoras nacionais.

4.3  Panorama Contemporâneo

É muito difícil tentar sintetizar a tendência da arte contemporânea, porque é o


momento em que vivemos, o que dificulta nosso olhar. Interessante se faz ano-
tar que a literatura brasileira contemporânea é formada por elementos prove-
nientes dos estilos e movimentos anteriores e que convivem em prefeita ordem.
Isso nos faz pensar acerca da mistura de obras, produzindo efeitos de inter-
textualidade. Essa mistura gera o ecletismo literário, proveniente da mescla de
estilos. Há também a tendência de preocupação apenas com o presente, sem
retorno ao passado, nem mesmo com vista a fazer uma prospecção em relação
ao futuro.
Há uma mistura, também, da arte popular com a erudita tanto na literatura
quanto no cinema ou na música. O teatro inova com a possibilidade de partici-
pação do público, não há mais limite entre palco e plateia.

capítulo 4 • 113
Vejamos, então, algumas manifestações contemporâneas em verso e prosa.

4.3.1  Pluralidade na Lírica Contemporânea

Na lírica contemporânea, podemos encontrar um grande número de poetas,


como Adélia Prado, Manoel de Barros, Arnaldo Antunes, José Paulo Paes, den-
tre outros.
Certamente, Adélia Prado é a poeta mais importante da literatura brasilei-
ra contemporânea e é conhecida como a “poeta do cotidiano”, cujos temas gi-
ram em torno da própria escrita poética, da sexualidade feminina, do passar do
tempo e a vinda da velhice, da religiosidade.

AUTOR
Adélia Luzia Prado de Freitas (Divinópolis MG 1935). Poeta, romancista, contista e autora
de histórias infantis. Filha do ferroviário João do Prado Filho e da dona de casa Ana Clotilde
Corrêa, ingressa em 1942 no Grupo Escolar Padre Matias Lobato, na cidade natal, onde se
alfabetiza. Escreve os primeiros versos em 1950, aos 15 anos, após a morte da mãe. Nesse
mesmo ano, termina os estudos no Ginásio Nossa Senhora do Sagrado Coração, entrando,
em seguida, para o magistério na Escola Normal Mário Casassanta, que conclui dois anos
depois, em 1953. Começa a dar aulas em 1955, voltando a estudar dez anos mais tarde: de
1965 a 1973, em companhia do marido, gradua-se em filosofia pela Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Divinópolis. Embora tenha publicado em 1969 os versos A Lapinha de
Jesus, em parceria com o escritor Lázaro Barreto (1934), considera sua estreia efetiva o
livro Bagagem (1976), editado pela Imago por iniciativa de Affonso Romano de Sant'Anna
(1937) e sugestão de Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987). Publica ainda um título
de poemas, O Coração Disparado (1978), antes de lançar-se na prosa, com os contos Solte
os Cachorros (1979) e o romance Cacos para um Vitral (1980). Na Prefeitura de Divinópolis,
atua, entre 1983 e 1988, como chefe da Divisão Cultural e, entre 1993 e 1996, integra a
equipe de orientação pedagógica. Sem deixar de dar continuidade aos seus escritos em
prosa e verso, publica, em 2006, Quando Eu Era Pequena, primeiro trabalho dedicado ao
público infantojuvenil.

Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa3596/


adelia-prado>. Acesso em: 24 jun 2016.

114 • capítulo 4
Leiamos a poesia Senha, do livro Miserere, publicado em 2013:
Senha
Eu sou uma mulher sem nenhum mel
eu não tenho um colírio nem um chá
tento a rosa de seda sobre o muro
minha raiz comendo esterco e chão.
Quero a macia flor desabrochada
irado polvo cego é meu carinho.
Eu quero ser chamada rosa e flor
Eu vou gerar um cacto sem espinho.

Adélia Prado costuma abordar o cotidiano doméstico em suas poesias. Em


Senha, ela reflete sobre a condição feminina e a sexualidade, quando o eu lírico
feminino, aparentemente sem atrativos, tem seus pés fincados no chão, pois
conhece sua condição feminina, que espera ser amada, ser reconhecida por
aquilo que é e tem plana consciência de sua capacidade geradora, pronta para
colocar no mundo um novo ser, fruto de seu amor.

4.3.2  Tendências da Prosa de Ficção

Na prosa, as obras de ficção ganham destaque com os romances de Antônio


Callado, José Cândido de Carvalho, João Ubaldo Ribeiro, Márcio de Souza, Ru-
bem Fonseca, Bernardo Carvalho e Chico Buarque de Hollanda, por exemplo.
Os temas abordados vão desde o regionalismo até o histórico e policial.
Uma tendência muito forte e que recebeu especial destaque foram a crônica
e o conto, narrativas curtas que atendem a um público “sem tempo”, envolvido
com o capitalismo globalizado e que tem a oportunidade de se deleitar com a
literatura impressa no jornal diário, por exemplo.
Grandes nomes fazem parte do rol de cronistas e contistas da literatura bra-
sileira contemporânea. No campo da crônica estão: Carlos Heitor Cony, Carlos
Drummond de Andrade, Luis Fernando Verissimo, Fernando Sabino, Rachel
de Queirós, Otto Lara Resende dentre outros. Ligados ao conto estão: Dalton
Trevisan, Lígia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, Marina Colasanti, Ignácio de
Loyola Brandão e muitos mais.

capítulo 4 • 115
PERGUNTA
Que tal dar uma espiadinha numa crônica de Luis Fernando Verissimo?

Aqui está um excerto de Crônica engraçada:

Minha mulher e eu temos o segredo para fazer um casamento durar:


Duas vezes por semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa,
uma boa bebida e um bom companheirismo. Ela vai às terças-feiras e eu, às quintas.
Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha, em SP.
(...)
Disponível em: <http://www.refletirpararefletir.com.br/4-cronicas-de-luis-fernan-
do-verissimo>. Acesso em: 24 jun 2016.

ATIVIDADES
Cite as vanguardas literárias estudadas neste capítulo, ressaltando sua identidade, e crie
exemplos.

REFLEXÃO
Constata-se, portanto, que a estética pós-moderna é um reflexo ou uma extensão do Moder-
nismo. No entanto, o pós-modernismo imprime um novo modo de sentir a obra literária, que
a entende como produto da expressão artística única, individual e que pode ser manuseada,
debatida, renovada.
É no paralelo entre o modernismo e o pós-modernismo que está a complexidade de
propor limites rígidos com relação a obras ou movimentos estéticos, pois a obra pode e deve
ser vista não apenas de uma forma de expressão artística, mas como expressão máxima da
própria condição humana.
Em resumo, o pós-modernismo é um movimento distinto que envolve as várias caracterís-
ticas do mundo, que envolve, inclusive, as tendências da literatura brasileira contemporânea.

116 • capítulo 4
LEITURA
BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. 2. ed.
São Paulo: Cosac & Naify, 1999.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1978.
CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico – A vida de Nelson Rodrigues. São Paulo, Companhia das
Letras, 1992.
CHAMIE, Mário. Lavra lavra. São Paulo: Massao Ohno Editora, 1962.
ESPERANDIO, Mary Rute Gomes. Para entender pós-modernidade. São Leopoldo: Sinodal, 2007.
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995.
JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1993.
JAMESON, Fredric. A virada cultural reflexão sobre o pós-modernismo. São Paulo: Civilização
Brasileira, 2006.
LYOTARD, J. F. The postmodern condition: a report on knowledge. Manchester: MUP, 1984.
PAZ, Octavio. A tradição da ruptura; A revolta do futuro. In: Os filhos do barro: do romantismo à
vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p.11- 58.

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