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autoras
CRISTIANE BRASILEIRO
ALESSANDRA FÁVERO
1ª edição
SESES
rio de janeiro 2016
Conselho editorial luis claudio dallier, roberto paes e paola gil de almeida
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2016.
isbn: 978-85-5548-408-7
cdd 469.5
Prefácio 5
4. Do Moderno ao Pós-Moderno 93
4.1 Do Moderno ao Pós-Moderno 94
4.1.1 Nelson Rodrigues e o Teatro Modernista no Brasil 96
4.2 Vanguarda Concreta e Desdobramentos 99
4.2.1 Concretismo 99
4.2.2 Neoconcretismo 103
4.2.3 Práxis 106
4.2.4 Tropicália e Poesia Marginal 108
4.3 Panorama Contemporâneo 113
4.3.1 Pluralidade na Lírica Contemporânea 114
4.3.2 Tendências da Prosa de Ficção 115
Prefácio
Prezados(as) alunos(as),
Bons estudos!
5
1
Pré-Modernismo –
Notícias de outro
Brasil
1. Pré-Modernismo – Notícias de outro Brasil
O amanhecer do século XX, entre nós, veio cercado de expectativas. Afinal, ini-
ciava-se a “República do Café com Leite”, a economia cafeeira vivia sua época
áurea no Sudeste, os imigrantes europeus chegavam em grandes levas, o ciclo
da borracha enriquecia a Amazônia, a urbanização avançava a passos largos em
São Paulo e no Rio de Janeiro.
A literatura, como não podia deixar de ser, acompanhava esse novo tempo.
E, ainda que encarnada e desdobrada de maneiras muito diversas em cada au-
tor, essa produção pode ser reunida em torno de um mesmo impulso desbra-
vador, de certa forma ainda atual e necessário. Contrariando o que mostravam
as paisagens e os discursos oficiais, os escritores traziam à vista da sociedade
outros cenários e personagens, muito diversos dos que eram exibidos orgulho-
samente pelos governantes e que, de outra forma, teriam ficado ocultos por trás
de fachadas brilhantes e insustentáveis.
Vamos ver isso mais de perto?
OBJETIVOS
Ao final desta aula, você deverá ser capaz de:
• Identificar traços comuns nas obras literárias reunidas dentro do período chamado de
“Pré-Modernismo”;
• Relacionar a produção literária desse período a um determinado contexto histórico da Re-
pública do Café com Leite;
• Distinguir e analisar obras de destaque produzidas no período em questão, também em
função dos projetos artísticos singulares dos autores abordados (Euclides da Cunha, Graça
Aranha, Lima Barreto, João do Rio e Augusto dos Anjos).
8• capítulo 1
E lá do norte foi descendo pro Brasil central
Chegou em Minas, já bateu bem lá no sul
MULTIMÍDIA
Uma boa maneira de você entrar no clima desta aula seria ouvir a música “Notícias do Bra-
sil”. Apesar de ter sido lançada em 1981 por Milton Nascimento, ela tem tudo a ver com o
Pré-Modernismo literário no Brasil, situado nas duas primeiras décadas do século XX. Para
aproveitar melhor essa música, preste atenção não só à sua melodia e ao seu ritmo da can-
ção, mas também à letra dela, escrita por Fernando Brant. Uma linda gravação está disponível
bem aqui: <https://www.youtube.com/watch?v=Gt344yychA>.
capítulo 1 •9
1.1 Sobre Certo Tempo e sua Produção Literária
Figura 1.1 – Reforma urbanística no Rio de Janeiro de 1903: largas avenidas, belos prédios,
inspiração parisiense.
10 • capítulo 1
modernas que afastassem a imagem de país atrasado e escravocrata. Para isso,
o prefeito se inspirou em Paris e foi abrindo avenidas e ruas para os automó-
veis, construindo praças, escondendo o esgoto em obras de saneamento básico
e iluminando as novas ruas com energia elétrica. Também foi nesse período
que foram construídos prédios públicos majestosos, como o Teatro Municipal,
o Museu Nacional de Belas Artes e a Biblioteca Nacional.
Nesse mesmo período, no entanto, devemos nos lembrar de que a cidade
contava com um pouco menos de 1 milhão de habitantes, e a maioria deles era
composta por negros saídos há pouco da escravidão e gente de outras regiões
que migrou do campo para a cidade em busca de novas oportunidades de tra-
balho. Essa camada numerosa e extremamente pobre da população havia sido
levada a constituir e habitar favelas e cortiços. Assim, os antigos casarões loca-
lizados no centro da cidade tinham sido divididos em inúmeros cubículos, a
fim de abrigar famílias inteiras, e nesses ambientes se vivia em condições extre-
mamente precárias. Esse intenso crescimento populacional, acrescido da falta
de infraestrutura urbana e de péssimas condições de higiene, acabou fazendo
a cidade se tornar um foco constante de doenças como cólera, febre amarela
e varíola.
Por tudo isso, o sonho das autoridades de transformar o Rio de Janeiro
numa espécie de Paris tropical foi sendo cada vez mais atravessado por uma
sensação permanente de ameaça à ordem, à segurança e à moralidade. E foi
nesse contexto que a ascensão de Campos Sales à presidência, em 1902, deu
novos rumos à cidade.
A nomeação de Pereira Passos para prefeito e de Oswaldo Cruz para o cargo
de diretor da saúde pública assegurou a execução do plano de reforma urbana e
sanitária da cidade. Executou-se, assim, o "bota-abaixo" – um processo violento
de demolição de cortiços e favelas, oficialmente justificado como uma provi-
dência de “limpeza urbana” para se acabar com os focos das doenças pernicio-
sas e se promover a remodelação da cidade. (v. REZENDE, 1988)
Por trás desse esforço em torno da construção de uma aparência de moder-
nidade, no entanto, muita gente estava sendo ignorada ou deixada de lado.
Um pouco antes da virada do século, por exemplo, ainda em 1897, no inte-
rior da Bahia, dava-se a Revolta de Canudos, na qual morreram cerca de 25.000
sertanejos pobres liderados por Antônio Conselheiro e esmagados pelas forças
do governo. No Ceará, outros conflitos se deram em torno da figura do padre
Cícero, e em todo o sertão vivia-se o tempo do cangaço, com a figura lendária
de Lampião.
capítulo 1 • 11
Na própria capital nacional, o Rio de Janeiro, assistiu-se em 1904 ao estouro
de uma rápida, mas intensa revolta popular, sob o pretexto aparente de lutar
contra a vacinação obrigatória idealizada por Oswaldo Cruz. Pouco tempo de-
pois, em 1910, ergue-se outra importante rebelião, desta vez comandada por
marinheiros que se insurgiam contra a prática aviltante da aplicação de casti-
gos corporais na Marinha brasileira. Liderados por João Cândido, o “almiran-
te negro”, formaram o que entrou para a História como sendo a “Revolta da
Chibata”. Ao mesmo tempo, em São Paulo, trabalhadores de orientação anar-
quista, especialmente imigrantes italianos, iniciaram movimentos grevistas
por melhores condições de trabalho.
A “República do Café com Leite”, enfim, dava sinais de que estava em crise,
e não parecia mais possível esconder isso eternamente dos olhos de todos.
12 • capítulo 1
De todo modo, é certo que o Pré-Modernismo não pode ser considerado
como uma “escola literária” no sentido de uma tendência estética comparti-
lhada por todos os escritores da época, até porque os autores que se destaca-
ram no período tinham individualidades muito fortes e diversas. Ainda assim,
e seguindo na busca por traços compartilhados entre as obras do período, e
que por isso poderiam sustentar uma definição consistente para o nosso Pré-
Modernismo, indicaremos alguns pontos em comum entre suas principais
obras (cf. BOSI, 1983 e MIGUEL-PEREIRA, 1950):
• Um interesse em expor e denunciar uma realidade brasileira distante
dos retratos oficiais e relativamente oculta, negando as representações român-
ticas herdadas (daí o interesse pelos caboclos do interior, pelos sertanejos nor-
destinos ou pelos suburbanos);
• Uma inclinação regionalista, que parecia expandir e multiplicar um pai-
nel brasileiro (o Nordeste e o Norte de Euclides da Cunha, o Espírito Santo de
Graça Aranha, o interior paulista de Monteiro Lobato, o subúrbio carioca de
Lima Barreto);
• Uma acentuada ligação com os fatos políticos, econômicos e sociais da
própria época, o que diminuía a distância entre o que se considerava como
“realidade” e “ficção” (Os Sertões, por exemplo, obra-prima de Euclides da
Cunha, relata a Guerra de Canudos de 1897; Canaã, de Graça Aranha, constrói-
se sobre a experiência da imigração alemã para o Espírito Santo; Triste fim de
Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, retrata o governo de Floriano Peixoto e a
Revolta da Armada de 1893-94; Urupês e Cidades mortas, de Monteiro Lobato,
mostram de perto personagens que compunham a economia cafeeira no Vale
do Paraíba paulista);
• Um interesse especial pelos tipos humanos marginalizados (seja o serta-
nejo nordestino, o caipira paulista, os baixos funcionários públicos, os mulatos
ou os profissionais mais humildes e irregulares da grande cidade, retratados
abundantemente por Lima Barreto e João do Rio);
• A presença de traços de ruptura com o passado estético e até mesmo
com a linguagem mais “nobre” ou “acadêmica”, num exercício de inovação
crescente (o que pode incluir desde a emergência de um gênero mais leve e ágil
como a crônica, praticada por Lima Barreto e João do Rio, até a incorporação de
palavras antes consideradas “não poéticas” ao repertório literário, como o fez
Augusto dos Anjos).
capítulo 1 • 13
Considerando, então, o contexto histórico já exposto e ainda a caracteri-
zação mais geral que fomos traçando para as obras pré-modernistas, valerá a
pena, agora, nos determos melhor sobre a produção de alguns autores que se
destacaram no período.
14 • capítulo 1
como muitos republicanos da época, acreditava que o movimento de Antônio
Conselheiro tinha a pretensão de restaurar a monarquia e que era apoiado por
monarquistas residentes no país e no exterior.
Aceitando então o convite que lhe haviam feito, Euclides foi acompanhar o
conflito de perto e só deixou Canudos quatro dias antes do desenlace final da
guerra. Não voltou a publicar nada de imediato sobre o assunto, no entanto.
Com o material coletado e registrado em suas cadernetas de campo, ao longo
dos cinco anos seguintes elaborou solitariamente a obra Os sertões: campa-
nha de Canudos, escrita "nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigan-
te”. No livro robusto que então criou, enfim publicado, ele fez este gesto raro
para qualquer um de nós: rompeu por completo com suas ideias anteriores e
preconcebidas. No caso, tratava-se de superar ou desmentir a crença de que o
movimento de Canudos seria uma tentativa de restauração da Monarquia, co-
mandada e apoiada a distância por gente rica e poderosa. Muito longe disso,
Euclides percebe que em Canudos havia, na verdade, uma sociedade comple-
tamente diferente da litorânea, e ainda mais: muito diferente da representação
usual que dela vinha sendo feita pela literatura anterior, pelo governo ou muito
especialmente pela imprensa da época.
Mas o que foi a tal Campanha de Canudos, ou ainda a Guerra de Canudos?
Em poucas palavras, podemos dizer que foi o confronto entre o Exército
Brasileiro e os integrantes de um movimento popular de fundo sociorreligioso
liderado por Antônio Conselheiro, numa comunidade pobre existente no inte-
rior da Bahia, em pleno nordeste do Brasil.
No seu surgimento, ainda no século XVIII, aquela comunidade era uma pe-
quena aldeia nos arredores da Fazenda Canudos, às margens do rio Vaza-Barris.
A região, que historicamente era caracterizada por latifúndios improdutivos,
secas cíclicas e desemprego crônico, passava por uma grave crise econômica
quando lá chegou Antônio Conselheiro, em 1893. A partir daí, passou a crescer
vertiginosamente, chegando a contar com cerca de 25.000 habitantes, porque
milhares de sertanejos e ex-escravos se uniram ali em torno da crença numa
salvação milagrosa que pouparia os humildes habitantes do sertão dos flagelos
do clima e da exclusão econômica e social.
O clero e os latifundiários da região incomodaram-se, no entanto, com a
nova cidade independente e com a constante migração de pessoas e valores
para aquele novo local. Por isso mesmo, aos poucos, foi-se construindo uma
imagem de Antônio Conselheiro como "perigoso monarquista" a serviço de
capítulo 1 • 15
potências estrangeiras, querendo restaurar no país a forma de governo monár-
quica. Difundida através da imprensa, essa imagem altamente manipulada foi
sendo espalhada e assim ganhou apoio da opinião pública do país, de modo
a justificar a guerra movida contra os habitantes do arraial (cf. ABREU, 1988).
Por trás dessa imagem falsa e das suas más intenções não declaradas, no
entanto, estava o governo da República recém-instaurada, que precisava de di-
nheiro para materializar seus planos e só se fazia presente no sertão pela co-
brança de impostos. Os grandes fazendeiros da região, por sua vez, unidos à
Igreja, iniciaram um forte grupo de pressão junto à República recém-instau-
rada, pedindo que fossem tomadas providências contra Antônio Conselheiro
e seus seguidores. Criaram-se rumores de que Canudos se armava para atacar
cidades vizinhas e partir em direção à capital para depor o governo republicano
e reinstalar a Monarquia.
A partir desse ponto, e apesar de não haver nenhuma prova concreta para os
tais rumores, o Exército foi mandado para Canudos. Três expedições militares
saíram derrotadas de lá – e, com isso, a opinião pública acabou exigindo a des-
truição total do arraial, o que deu uma aparência de legitimidade ao massacre
dos sertanejos.
Para tentar registrar os acontecimentos ocorridos e dar a eles uma certa in-
terpretação mais densa e bem acabada, o livro de Euclides se dividiu em três
partes: A terra, O homem e A luta. Nelas, Euclides analisa, respectivamente, as
características geológicas, botânicas, zoológicas e hidrográficas da região; a
vida, os costumes e a religiosidade sertaneja; e, por fim, narra os fatos ocorridos
nas quatro expedições enviadas ao arraial liderado por Antônio Conselheiro. O
trecho que reproduzimos a seguir foi extraído da terceira parte do livro – a mais
dinâmica e dramática e a que melhor mostra o traço “vingador” que Euclides
tanto desejou dar à sua mais famosa e impactante obra, dedicada à denúncia
de um terrível crime.
LEITURA
Canudos não se rendeu
Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento
completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entar-
decer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas:
16 • capítulo 1
um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5
mil soldados.
Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo.
Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la
vacilante e sem brilhos.
Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva
maior, a vertigem...
Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que
se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos
filhos pequeninos...
E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular
de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e
entre eles aquele Antônio Beatinho, que se nos entregara, confiante — e a quem devemos
preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa História ?
Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200,
cuidadosamente contadas.
capítulo 1 • 17
a esse privilégio, buscou introduzir algumas daquelas propostas na literatura
brasileira. Em 1922, inclusive, chegou a participar da Semana de Arte Moderna
como um dos seus organizadores e ali pronunciou o texto “A Emoção Estética
na Arte Moderna”, defendendo uma arte, uma poesia e uma música que conti-
vessem algo do "Espírito Novo" que já havia sido apregoado pelo poeta francês
Apollinaire (V. TELES, 1972).
Antes de entrar na carreira diplomática, no entanto, Graça Aranha foi juiz
de direito no Rio de Janeiro, ocupando depois a mesma função em Porto do
Cachoeiro, no Espírito Santo. Nesse município, buscou os elementos necessá-
rios para criar sua obra mais importante, Canaã, publicada pela primeira vez
em 1902 – mesmo ano, aliás, em que foi lançada a obra Os sertões, de Euclides
da Cunha.
O romance Canaã foi inspirado no naturalismo filosófico alemão e inaugu-
rou uma nova fase do romance brasileiro, com a fusão entre realismo e simbo-
lismo. Pertence ao Pré-Modernismo por apresentar traços como certa renova-
ção formal, um olhar regionalista e um claro interesse pela realidade brasileira.
Dentro desse espírito, reflete sobre uma situação histórica nova ou até então
não considerada: a imigração alemã no Espírito Santo. Além disso, apresentou
ao Brasil um novo gênero literário: o romance-tese, em que o debate de ideias
filosóficas se integra à narrativa e muitas vezes até a supera em importância.
Afinal, mais do que meros personagens, os protagonistas Milkau e Lentz repre-
sentam duas ideologias postas em contraste: o universalismo e o divisionismo.
Em termos da narrativa ficcional, a história de Canaã pode ser resumida nos
seguintes termos: o romance trata da vinda de um imigrante a uma terra ideali-
zada e da sua progressiva desilusão à medida que se envolve mais concretamen-
te com a realidade local. E esta, no romance, é representada especialmente pela
figura de Maria Perlutz, uma jovem colona que se constitui em vítima trágica
dos velhos e tristes vícios que também estavam presentes naquela que havia
parecido a Milkau, inicialmente, uma nova Terra Prometida.
Ao tentarmos, no entanto, conjugar as duas formas de abordar o livro, uma
ferida central se abre: na opinião de Schwarz, a coexistência “não soluciona-
da” do eixo ficcional junto ao eixo filosofante em Canaã tem resultados que
comprometem a qualidade do romance, já que “1- a experiência vivida por
Milkau é generalíssima, teórica, impessoal, incapaz de configurar uma per-
sonagem viva, e 2- a teorização não adquire relevo, pois a sua conexão com a
realidade vivida pelos personagens não tem força de evidência” (1981: 34). Na
mesma linha, também o crítico Alfredo Bosi registra que o romance padece de
18 • capítulo 1
“generalizações inerentes ao estilo imaginoso do autor” (1983: 369) e aponta
a existência descompassada de dois polos na estrutura do romance, aos quais
chama “ideológico” e “representativo”. E, como bem notou José Paulo Paes,
“enquanto romance de ideias, Canaã, desde o título, tem seu centro de gravida-
de posto mais nos ideais utópicos da mente de Milkau que nos fatos distópicos
da vida de Maria” (1992: 28) .
Dentro desse contexto, o personagem Milkau também representa bem a perda
de referentes no cenário da época. A Europa já é sentida como uma “força exausta”
(Aranha, 1939: 259), e o Brasil imaculado não era mais que uma miragem; a pureza
e a dignidade procuradas por Milkau como qualidades intrínsecas do trabalho na
lavoura se desmentem. Nesse sentido, é exemplar seu testemunho da tormenta a
que assiste e pela qual se vê passar cada vez mais de perto:
... E a tradição rompeu-se, o pai não transmitirá mais ao filho a sua imagem,
a língua vai morrer, os velhos sonhos da raça, os longínquos e fundos desejos da
personalidade emudeceram, o futuro não entenderá o passado... (Aranha, 1939:37)
capítulo 1 • 19
Escreveu, de fato, dezenove livros – entre eles Clara dos Anjos, obra póstu-
ma, Cemitério dos Vivos, livro póstumo e inacabado, e seu mais famoso roman-
ce, Triste fim de Policarpo Quaresma.
O romance em questão foi publicado, inicialmente, 1911, por meio de fo-
lhetins no Jornal do Comércio. Só após cinco anos é que foi publicado em for-
ma de livro, custeado pelo próprio autor. Assim que publicado, no entanto, foi
aclamado pela crítica (diferentemente de sua primeira obra, Recordações do
escrivão Isaías Caminha).
As histórias de Policarpo Quaresma se passam durante os primeiros anos da
República, precisamente durante o governo de Floriano Peixoto (1891-1894) e a
Revolta da Armada, que se prolongou nesse período.
CURIOSIDADE
A Revolta da Armada se iniciou em novembro de 1891, como reação ao fechamento do
Congresso pelo então presidente Marechal Deodoro. Em protesto, unidades da Armada
ameaçaram bombardear a cidade do Rio de Janeiro, então capital da República. Para evitar
uma guerra civil, o marechal Deodoro renunciou à Presidência e seu vice, Floriano Peixoto,
assumiu o cargo. Não se dispôs, no entanto, a cumprir o preceito constitucional de convocar
uma nova eleição e reprimiu duramente os revoltosos com batalhas sangrentas determinan-
do, ainda, a prisão e até a execução de seus líderes. Graças a isso, passou a ser conhecido
pelo cognome Marechal de Ferro.
20 • capítulo 1
Na segunda parte da obra, Policarpo se muda para o sítio, buscando assim
retirar das terras brasileiras seu sustento e acreditando que, com tanta terra
fértil, o melhor a ser feito era aproveitá-la, e também em relação a isso, e no
entanto se desilude gravemente.
Já na terceira e última parte da obra, o Major busca, através de sua participa-
ção na Revolta da Armada, salvar o país como um todo. Seu destino, no entanto,
é selado quando, após presenciar a escolha arbitrária de prisioneiros a serem
executados, ele escreve uma carta a Floriano Peixoto denunciando a situação.
Justamente por discordar das injustiças praticadas contra os prisioneiros, ele
então é preso, acusado de traição à República e condenado ao fuzilamento –
uma ordem dada por aquele que havia sido até então o seu ídolo, o Marechal
Floriano Peixoto. Por isso mesmo, o personagem, uma espécie de Dom Quixote
tupiniquim, morre espiritualmente de decepção antes mesmo de sua morte fí-
sica, ao ver que a pátria à qual ele sacrificara sua vida de estudos era uma per-
turbadora ilusão. Nesse sentido, a obra mostra também muito da sensibilidade
e do descontentamento do próprio Lima Barreto diante do painel humano e
social da época.
Mais do que um mero sujeito iludido ou ingênuo, no entanto, o protagonis-
ta do romance é construído com tal riqueza e consistência que ganha, no livro,
uma dimensão toda especial.
Alfredo Bosi (1983) afirma, exatamente a esse respeito:
O Major Quaresma não se exaure na obsessão nacionalismo, no fanatismo
xenófobo; pessoa viva, as suas reações revelam o entusiasmo do homem ingê-
nuo, a distanciá-lo do conformismo em que se arrastam os demais burocratas e
militares reformados cujos bocejos amornecem os serões do subúrbio.
Considerando, então, o viés dolorosamente crítico do romance, devemos
lembrar que a importância de Lima Barreto extrapola os limites literários: ele
foi um dos poucos escritores da nossa Literatura a combater abertamente o
preconceito racial e a discriminação social sofrida pelo negro e pelo mulato.
Filho de família humilde, porém de bom nível cultural (sua mãe era uma pro-
fessora), contou com a proteção do Visconde de Ouro Preto, graças a quem con-
seguiu ingressar no curso de Engenharia. Tendo perdido a mãe, no entanto,
aos seis anos, e ainda em virtude da doença mental que acometia o pai, Lima
Barreto precisou abandonar a faculdade para sustentar a família, a madrasta e
os irmãos. Todos esses fatores, naturalmente, influenciaram muito o estilo, a
sensibilidade social e as escolhas temáticas do escritor.
capítulo 1 • 21
Nesse sentido, devemos notar que o movimento crítico que traz à tona a
obra literária de Lima Barreto é relativamente recente, já que o escritor ficou
muito tempo à sombra de seu contemporâneo, Machado de Assis. Vítima de
clara discriminação, e fortemente silenciado em seu tempo pela alta cúpula da
Academia Brasileira de Letras – à qual se candidatou por duas vezes, tendo de-
sistido da terceira vez antes mesmo das eleições –, Lima Barreto entregou-se
desgostosamente ao consumo de álcool, o que acabou lhe rendendo duas inter-
nações na Ala Pinel do Hospício Nacional. Ainda assim, embora muito lembra-
do pelos constantes problemas com o alcoolismo e pelos distúrbios mentais
que lhe impuseram um estigma da loucura, Lima Barreto deixou uma obra lite-
rária extremamente original – inclusive, certamente, pelo lugar singular, sofri-
do e improvável a partir de onde foi gerada.
MULTIMÍDIA
Valeria a pena você assistir à adaptação cinematográfica do romance de Lima Barreto, que
foi lançada no cinema em 1988 com o título de Policarpo Quaresma, Herói do Brasil, roteiro
de Alcione Araújo e direção de Paulo Thiago. Ainda mais recentemente, no entanto, a novela
televisiva Lado a Lado retratava muito do universo flagrado por Lima Barreto: não só o “afran-
cesamento” do Rio de Janeiro, mas toda a tensão social abafada por debaixo dela, expressas,
por exemplo, pelas lutas durante o “bota-abaixo”, pela Revolta da Chibata, pela Revolta da
Armada e pela ascensão das mulheres. Ganhadora do Emmy Internacional de 2013, foi es-
crita por Claudia Lage e João Ximenes Braga.
22 • capítulo 1
Obeso, Paulo Barreto sentiu-se mal durante todo o dia 24 de junho de 1921.
Ao pegar um táxi, o mal-estar aumentou e ele pediu ao motorista que paras-
se e lhe trouxesse um copo d'água. Antes que o socorro chegasse, no entanto,
ele faleceu, vítima de um infarto fulminante. O velório foi realizado na pró-
pria redação do jornal A Pátria, fundado por ele em 1920 e para o qual escre-
via diariamente.
A notícia de que esse homem, conhecido como João do Rio, havia morrido
espalhou-se então por toda a cidade muito rapidamente. E, a partir daí, estima-se
que cerca de 100 mil pessoas tenham comparecido para o último adeus ao escri-
tor. Mas o que, afinal, ele era e como chegou a atrair e mobilizar tanta gente?
João Paulo Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881. Estudou com o pai, o
professor Alfredo Coelho Barreto, e ainda adolescente ingressou na imprensa.
Escritor de intensa atividade, entre 1900 e 1903 colaborou, sob diversos pseu-
dônimos, com vários órgãos da imprensa carioca, como O Paiz, O Dia, Correio
Mercantil, O Tagarela e O Coió.
Em 1903 foi indicado por Nilo Peçanha para a Gazeta de Notícias, onde per-
maneceu até 1913. Foi nesse jornal que, em 26 de novembro de 1903, nasceu
João do Rio, seu pseudônimo mais famoso, assinando o artigo "O Brasil Lê",
uma enquete sobre as preferências literárias do leitor carioca. E, como indica
Gomes (1996, p. 84), "daí por diante, o nome que fixa a identidade literária en-
gole Paulo Barreto”. Sob essa máscara publicou todos os seus livros e ganhou
cada vez mais fama.
Como escritor profissional, João do Rio produziu sua obra a partir da ob-
servação direta da vida e da linguagem de diferentes grupos sociais do Rio de
Janeiro do começo do século XX. Seu olhar atento se debruçou sobre gente tão
variada quanto presidiários, trabalhadores braçais, prostitutas, barões, dân-
dis, cocotes e outros seres urbanos que não costumavam contar com a atenção
dos literatos brasileiros. E também os espaços sociais nos quais essas pessoas
circulavam foram expostos com realismo e sensibilidade, quer se tratassem de
terreiros de umbanda e candomblé, igrejas, cabarés, cortiços, favelas, minas,
palácios ou presídios. Afinal, um autor com o pseudônimo adotado por ele não
poderia descartar qualquer aspecto da vida carioca. Assim, embora muitos de
seus contos e crônicas mostrem festas elegantes e orgias com prostitutas de
luxo, outros conduzem o leitor por um passeio pelas ruas da capital – desde a
capítulo 1 • 23
Rua do Ouvidor, "a fanfarronada em pessoa", até as decadentes, com "a desgra-
ça das casas velhas e a cair", como a velha Rua da Misericórdia. Seus textos, as-
sim, também focalizaram aspectos da vida da população pobre, como a loucura
que toma conta da cidade durante o Carnaval. Acredita-se mesmo que o conto
Os Livres Acampamentos da Miséria, publicado em 1911, no qual ele sobe o
morro de Santo Antônio "para ouvir o samba", contenha a primeira descrição
de uma favela no Rio de Janeiro.
Segundo seus biógrafos, ao profissionalizar-se, Paulo Barreto representou
o surgimento de um novo tipo de “homem de letras” no Brasil. Até então, o
exercício do jornalismo e da literatura por intelectuais era encarado como um
mero "bico", uma atividade menor para pessoas que tinham muitas horas vagas
à disposição (como aristocratas e funcionários públicos, por exemplo). Paulo
Barreto, no entanto, encarou o desfio de viver da sua escrita, empregando nos
jornais e livros seus mais de onze pseudônimos para atrair os mais diversos pú-
blicos e leitores.
Nutrido de mordaz senso de observação, João do Rio foi crítico severo das
transformações por que o Rio passava. Veja, por exemplo, o vivíssimo trecho a
seguir:
LEITURA
As avenidas são a morte do velho Rio. Este mercado, onde não moram mais os mercadores,
esse mercado fechado e higiênico pode ser aquela antiga praça centro da miséria, da luxúria
viscosa, de tantas e tantas tradições? Nunca! Amanhã, temo-lo demolido como a velha Saú-
de, amanhã atiram esses becos por terra; amanhã desmancham a rua Tobias Barreto, a rua
do Nuneio, a rua da Conceição, e a parte bizarra, curiosa, empolgante da cidade desaparece
absolutamente! Vamos ficar como todas as outras cidades!
[...]*Texto escrito por Paulo Barreto (João do Rio), publicado na Gazeta de Notícias, em
12 de janeiro de 1908
24 • capítulo 1
1.3 Monteiro Lobato
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Pois foi somente em 1914, quando ele era fazendeiro em Buquira, que um
fato definiria de verdade a sua carreira literária. Aconteceu que, durante o inver-
no seco daquele ano, e já cansado de enfrentar as constantes queimadas pratica-
das pelos caboclos, Lobato escreveu um texto indignado intitulado Velha Praga e
o enviou para a seção “Queixas e Reclamações” do jornal O Estado de S. Paulo. O
jornal, percebendo o valor daquela carta, publicou-a com maior destaque e fora
da seção que era destinada aos leitores – no que acertou, pois a carta provocou
polêmica e fez com que Lobato escrevesse outros artigos, como, por exemplo,
Urupês, dando vida a um de seus mais famosos personagens, o Jeca Tatu.
Urupês se tornou, ainda, o título da coletânea de contos e crônicas que
Monteiro Lobato publicou em 1918, considerada a sua obra-prima. Com esse
livro, inaugurou-se na literatura brasileira um regionalismo crítico e mais rea-
lista do que o praticado anteriormente, durante o Romantismo. A crônica que
dá título ao livro, por exemplo, trazia uma visão depreciativa do caboclo bra-
sileiro, chamado pelo autor de "fazedor de desertos", estereótipo contrário à
visão romântica que predominava até então. Na visão de Lobato, Jeca era um
grande preguiçoso, totalmente diferente dos caipiras e índios idealizados pela
literatura romântica de então, pois o personagem era símbolo do atraso e da
miséria que representavam o campo no Brasil. Vejamos uma amostra disso, no
trecho a seguir, retirado exatamente do livro em questão:
capítulo 1 • 25
LEITURA
A Verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionali-
dade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígine de tabuinha em beiço, uma existe
a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a
põe de pé. Pobre Jeca Tatu! Como é bonito no romance e feio na realidade! Jeca Tatu é um
Piraquara do Paraíba, maravilhoso epitome de carne onde se resumem todas as característi-
cas da espécie. O fato mais importante da vida do Jeca é votar no governo. A modinha, como
as demais manifestações de arte popular existente no país, é obra do mulato, em cujas veias
o sangue recente do europeu, rico de ativismos estéticos, borbulha d’envolta com o sangue
selvagem, alegre e são do negro. O caboclo é soturno. Não canta senão rezas lúgubres. Não
dança senão o cateretê aladainhado. O caboclo é o sombrio Urupê de pau podre a modorrar
silencioso no recesso das grotas. Bem ponderado, a causa principal da lombeira do caboclo
reside nas benemerências sem conta da mandioca. Talvez sem ela se pusesse de pé e an-
dasse. Mas enquanto dispuser de uma pão cujo preparo se resume no plantar, colher e lançar
sobre brasas, Jeca não mudará de vida.
26 • capítulo 1
Caçada da Onça (1924), O Noivado de Narizinho (1924), Jeca Tatuzinho (1924) e
O Garimpeiro do Rio das Garças (1924), entre outros.
Tais novidades repercutiram em altas tiragens dos livros que editava, a pon-
to de Monteiro Lobato decidir dedicar-se à editora em tempo integral, entregan-
do a direção da Revista do Brasil a Paulo Prado e Sérgio Millet. Quando, porém,
o presidente Artur Bernardes desvalorizou a moeda e suspendeu o redesconto
de títulos pelo Banco do Brasil, gerou um enorme rombo financeiro e muitas
dívidas ao escritor. Lobato, então, só teve uma escolha: entrou com pedido de
falência em julho de 1925. Mesmo assim, Lobato não se deu por vencido nem
desistiu do seu projeto editorial. Pelo contrário: nesse ponto, ele já se preparava
para abrir outra empresa, a Companhia Editora Nacional, em sociedade com
Octalles Marcondes, já no Rio de Janeiro.
A partir daí, Lobato continuou escrevendo livros infantis de sucesso, espe-
cialmente com Narizinho e outros personagens, como Dona Benta, Pedrinho,
Tia Nastácia, o boneco de sabugo de milho Visconde de Sabugosa e Emília, a
boneca de pano. Além disso, por não gostar muito das traduções dos livros eu-
ropeus para crianças, criou aventuras com personagens bem ligados à cultura
brasileira, recuperando inclusive costumes da roça e lendas do folclore. Mas
não parou por aí. Monteiro Lobato pegou essa mistura de personagens brasilei-
ros e os enriqueceu, '"misturando-os" a personagens da literatura universal, da
mitologia grega, dos quadrinhos e do cinema. Também foi pioneiro na produ-
ção e distribuição da chamada “literatura paradidática”,
Muito mais recentemente, no entanto, a partir de 2010, a obra de Monteiro
Lobato voltou a ganhar uma atenção especial da mídia por causa de uma dis-
cussão a respeito do seu caráter racista. No centro do debate estava Caçadas
de Pedrinho, um de seus livros para crianças, publicado em 1933. No livro em
questão, a personagem negra Tia Nastácia é chamada de "macaca de carvão" e
referida como pessoa que tem "carne preta". A obra, cuja leitura vinha sendo
obrigatória nas escolas públicas, foi alvo de mandado de segurança impetrado
pelo Instituto de Advocacia Racial (Iara) perante o Supremo Tribunal Federal.
No referido mandato, o Iara requeria a retirada do livro de Lobato da lista de lei-
tura obrigatória, para que as crianças brasileiras não ficassem expostas ao seu
alegado conteúdo racista. Tal pedido já havia sido feito e negado pela Câmara
de Educação Básica, pelo Plenário do Conselho Nacional de Educação e pelo
ministro da Educação. Também requeria que o MEC incluísse "notas explicati-
vas” nos livros fornecidos às bibliotecas sobre as nuances do racismo do Brasil
da República Velha" fosse permitido o lecionamento acerca do livro.
capítulo 1 • 27
Os meios de comunicação brasileiros, no entanto, majoritariamente posi-
cionaram-se contrários ao parecer desfavorável à obra de Lobato, frequente-
mente alegando que se tratava de uma tentativa de "censura" e de um "atentado
à livre expressão de ideias”.
28 • capítulo 1
No livro, Augusto dos Anjos faz da obsessão com o próprio "eu" o centro do
seu pensamento. Uma profunda angústia está muito presente ("Ai! Um urubu
pousou na minha sorte"), assim como o ceticismo pessimista em relação ao
amor ("Não sou capaz de amar mulher alguma, / Nem há mulher talvez capaz de
amar-me"). Indo além, o poeta chega a aspirar à própria morte e à anulação de
sua pessoa, reduzindo a vida drasticamente a combinações de elementos quí-
micos, físicos e biológicos ("Eu, filho do carbono e do amoníaco,"), dominado
por um materialismo entre amargo e autoirônico ("Tome, doutor, essa tesoura
e corte/ Minha singularíssima pessoa").
Em sua poética radicalmente pessimista, no entanto, podemos ver muito
de transgressão e mesmo uma espécie de “festa da carne”, instaurada a partir
mesmo da constatação da miséria da natureza humana sob uma luz fria e algo
cientificista (cf. VASCONCELOS, 1996). A partir dela, são questionadas visceral-
mente as virtudes sociais humanas, a moral cristã, a política, a cultura, a eco-
nomia, a saúde, a sociologia, a antropologia e a ética. Com uma linguagem or-
gânica e muitas vezes agressivamente crua, mas sempre com ritmados jogos de
palavras, ideias e rimas geniais, o poeta causava repulsa na crítica e no grande
público da época. Ironicamente, foi somente depois de morto que sua poesia
teve o valor reconhecido e obteve grande vendagem.
Como uma amostra da novidade e força da poesia de Augusto dos Anjos, fi-
quemos aqui com a leitura daquele que talvez tenha sido o poema mais famoso,
desiludido e violento, desconcertante a cada verso e, ainda assim, formalmen-
te perfeito.
LEITURA
Versos íntimos
capítulo 1 • 29
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
ATIVIDADES
01. Na abertura deste capítulo, dissemos que a literatura produzida no Pré-Modernismo po-
deria ser reunida “em torno de um mesmo impulso desbravador, de certa forma ainda atual
e necessário”. Nesse contexto, usamos como epígrafe a letra de uma canção lançada em
1981 para inspirar nossa leitura das obras produzidas nas duas primeiras décadas do século
XX. Considerando, então, a caracterização geral do Pré-Modernismo discutida no item 1.2,
aponte as possíveis confluências entre a questão tematizada na letra de Notícias do Brasil e
nas obras pré-modernistas que estudamos neste capítulo.
LEITURA
Trecho 1: (de Os sertões, de Euclides da Cunha)
Isoladas a princípio, estas turmas adunavam-se pelos caminhos, aliando-se a outras, che-
gando, afinal, conjuntas a Canudos. O arraial crescia vertiginosamente, coalhando as colinas.
A edificação rudimentar permitia à multidão sem lares fazer até doze casas por dia; - e, à
medida que se formava, a tapera colossal parecia estereografar a feição moral da sociedade
ali acoutada. Era a objetivação daquela insânia imensa. Documento iniludível permitindo o
corpo de delito direto sobre os desmandos de um povo.
Aquilo se fazia a esmo, adoudadamente.
A urbs monstruosa, de barro, definia bem a civitas sinistra do erro. O povoado novo surgia,
dentro de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia velho. Visto de longe, desdobrado pelos
cômoros, atulhando as canhadas, cobrindo área enorme, truncado nas quebradas, revolto
nos pendores – tinha o aspecto perfeito de uma cidade cujo solo houvesse sido sacudido e
brutalmente dobrado por um terremoto.
30 • capítulo 1
Trecho 2: (de Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto)
Os subúrbios do Rio de Janeiro são a mais curiosa coisa em matéria de edificação de
cidade. A topografia do local, caprichosamente montuosa, influiu decerto para tal aspecto,
mais influíram, porém, os azares das construções.
Nada mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode ser imaginado. As
casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e, conforme as casas, as ruas se fize-
ram. Há algumas delas que começam largas como boulevards e acabam estreitas que nem
vielas; dão voltas, circuitos inúteis e parecem fugir ao alinhamento reto com um ódio tenaz
e sagrado.
(...)
Os cuidados municipais também são variáveis e caprichosos. Às vezes, nas ruas, há pas-
seios em certas partes e outras não; algumas vias de comunicação são calçadas e outras
da mesma importância estão ainda em estado de natureza. Encontra-se aqui um pontilhão
bem cuidado sobre um rio seco e passos além temos que atravessar um ribeirão sobre uma
pinguela de trilhos mal juntos.
(...)
Além disto, os subúrbios têm mais aspectos interessantes, sem falar no namoro epidê-
mico e no espiritismo endêmico; as casas de cômodos (quem as suporia lá!) constituem um
deles bem inédito. Casas que mal dariam para uma pequena família, são divididas, subdividi-
das, e os minúsculos aposentos assim obtidos, alugados à população miserável da cidade. Aí,
nesses caixotins humanos, é que se encontra a fauna menos observada da nossa vida, sobre
a qual a miséria paira com um rigor londrino.
Não se podem imaginar profissões mais tristes e mais inopinadas da gente que habita
tais caixinhas. Além dos serventes de repartições, contínuos de escritórios, podemos deparar
velhas fabricantes de rendas de bilros, compradores de garrafas vazias, castradores de gatos,
cães e galos, mandingueiros, catadores de ervas medicinais, enfim, uma variedade de profis-
sões miseráveis que as nossas pequenas
e grande burguesias não podem adivinhar.
REFLEXÃO
Buscando captar o contexto histórico das duas primeiras décadas do século XX e, ao mes-
mo tempo, relacionar a ele os traços gerais do nosso Pré-Modernismo literário, chamamos
a atenção, basicamente, para o contraste entre os retratos oficiais do Brasil e os impulsos
desbravadores dos nossos escritores.
capítulo 1 • 31
Assim, sob as grandes expectativas de progresso vindas com a Proclamação da Repú-
blica e a virada do século, e por baixo dos esforços oficiais de dar à capital brasileira uma
aparência mais sofisticada e moderna, pudemos notar que se escondia toda uma população
rejeitada e marginalizada, cujos movimentos de revolta, via de regra, eram desconsiderados
ou então abafados com mão de ferro.
Adotando uma visão menos idealizada, os escritores mais importantes do período foram
justamente aqueles que se arriscaram ao expor realidades brasileiras mais duras e distantes
dos retratos oficiais. Para isso, adotaram por vezes um olhar atento ao dado mais regional,
expandindo um painel representativo do que se entendia por “Brasil”; escolhiam abordar fatos
políticos, econômicos e sociais de sua própria época; demonstravam um interesse especial
pelos tipos humanos marginalizados; e, ainda, apresentavam traços de ruptura com o pas-
sado estético e até mesmo com a linguagem mais “nobre” ou “acadêmica”, num exercício de
inovação crescente. Nesse sentido, devemos notar, ainda, o impacto que teve a expansão da
imprensa sobre os estilos, escolhas e trajetórias dos escritores em atividade.
Ainda que partilhassem certo contexto histórico e apresentassem algumas proximidades
importantes, no entanto, nossos autores da época foram donos de personalidades literárias
muito fortes e em boa parte bastante distintas, o que impossibilita a referência ao nosso Pré-
Modernismo como uma escola literária mais homogênea. Por isso mesmo, vale a pena lem-
brar aqueles que escolhemos abordar, pela representatividade que obtiveram, mas também
pela grande singularidade das obras que deixaram: Euclides da Cunha, Graça Aranha, Lima
Barreto, João do Rio, Monteiro Lobato e Augusto dos Anjos.
Como uma reflexão final, chamamos a atenção ainda para um ponto: os melhores es-
critores do período foram os que mergulharam em experiências radicais de decepção em
relação aos quadros idealizados, de relativa impotência, de vivência da marginalidade, de
sentimentos de profunda traição. E disso extraíram sua potência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Cienc. Saúde – Manguinhos [online]. 1998, vol. 5, supl., p.93-15. ISSN 1678-4758.
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BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Ed. Ática, 1997.
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32 • capítulo 1
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LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1997. (1. ed. 1918).
MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Prosa de ficção (de 1870 a 1920). Rio de janeiro: José Olympio, 1950.
NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua época. João Pessoa, Edição da Universidade da
Paraíba, 1962.
PAES, José Paulo. Canaã e o ideário modernista. São Paulo: EDUSP, 1992. (Criação & Crítica)
PROENÇA FILHO, Domicio. Estilos de época na literatura. São Paulo, Ática, 1995.
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SCHWARZ, Roberto. A estrutura de Canaã. In: A sereia e o desconfiado. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e
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SÜSSEKIND, Flora. O Figurino e a Forja. In: Sobre o pré-modernismo. Rio de Janeiro: Fundação Casa
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TELES, Gilberto M. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes,1972.
VASCONCELOS, Montgômery. A poética carnavalizada de Augusto dos Anjos. São Paulo:
Annablume, 1996.
capítulo 1 • 33
34 • capítulo 1
2
Modernismo
Literário no Brasil
2. Modernismo Literário no Brasil
Neste capítulo, daremos início aos nossos estudos acerca do Modernismo bra-
sileiro que tem como marco inicial e simbólico a Semana de Arte Moderna, rea-
lizada em São Paulo, no ano de 1922.
Passemos, então, ao estudo da poética modernista, de acordo com as várias ge-
rações e características
OBJETIVOS
Nosso objetivo é apresentar uma perspectiva panorâmica da Literatura Brasileira a partir
do século XX, sob a perspectiva do Modernismo no contexto da historiografia e da crítica
literária brasileira.
Desse modo, esperamos que você seja capaz de conhecer todas as fases do Modernis-
mo brasileiro, identificando suas vertentes e diferenciando suas correntes.
36 • capítulo 2
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CONCEITO
O período entreguerras é chamado de “anos loucos”, devido à incerteza de paz, fazendo
com que as pessoas pensassem em viver apenas o presente, uma vez que o futuro se tor-
nara incerto.
capítulo 2 • 37
©© WIKIMEDIA.ORG
Manifesto Futurista
Filippo Tommaso Marinetti
38 • capítulo 2
8. Nós estamos no último promontório dos séculos!... Porque nós deveríamos olhar
para trás, quando o que queremos é atravessar as portas misteriosas do Impossível?
Tempo e Espaço morreram ontem. Nós já vivemos no absoluto, porque nós criamos a
velocidade, eterna, onipresente.
9. Nós glorificaremos a guerra — a única higiene militar, patriotismo, o gesto destru-
tivo daqueles que trazem a liberdade, ideias pelas quais vale a pena morrer, e o escar-
necer da mulher.
10. Nós destruiremos os museus, bibliotecas, academias de todo tipo, lutaremos contra
o moralismo, feminismo, toda cobardice oportunista ou utilitária.
11. Nós cantaremos as grandes multidões excitadas pelo trabalho, pelo prazer, e pelo
tumulto; nós cantaremos a canção das marés de revolução, multicoloridas e polifónicas
nas modernas capitais; nós cantaremos o vibrante fervor noturno de arsenais e estalei-
ros em chamas com violentas luas elétricas; estações de trem cobiçosas que devoram
serpentes emplumadas de fumaça; fábricas pendem em nuvens por linhas tortas de
suas fumaças; pontes que transpõem rios, como ginastas gigantes, lampejando no sol
com um brilho de facas; navios a vapor aventureiros que fungam o horizonte; locomoti-
vas de peito largo cujas rodas atravessam os trilhos como o casco de enormes cavalos
de aço freados por tubulações; e o voo macio de aviões cujos propulsores tagarelam no
vento como faixas e parecem aplaudir como um público entusiasmado.
Disponível em: <http://www.espiral.fau.usp.br/arquivos-artecultura-20/1909-Ma-
rinetti-manifestofuturista.pdf>. Acesso em: 14 jun 2016.
capítulo 2 • 39
De acordo com Carlos Ceia em seu E-Dicionário de termos literários:
Marinetti apelava não só a uma ruptura com o passado e com a tradição, mas também
exaltava um novo estilo de vida, de acordo com o dinamismo dos tempos modernos.
No plano literário, a escrita e a arte são vistas como meios expressivos na represen-
tação da velocidade, da violência, que exprimem o dinamismo da vida moderna, em
oposição a formas tradicionais de expressão. Rompe-se com a tradição aristotélica no
campo da literatura, que já estava enraizada na cultura ocidental. O futurismo contesta
o sentimentalismo e exalta o homem de acção. Destaca-se a originalidade, que Mari-
netti procura pelo elogio ao progresso, à máquina, ao motor, a tudo o que representa
o moderno e o imprevisto. No Manifesto Técnico da Literatura (1912), Marinetti evoca
a libertação da sintaxe e dos substantivos. É neste sentido que os adjetivos e os ad-
vérbios são abolidos, para dar mais valor aos substantivos. A utilização dos verbos no
infinito, a abolição da pontuação, das conjunções, a supressão do “eu” na literatura e o
uso de símbolos matemáticos são medidas inovadoras. De igual modo, aparecem no-
vas concepções tipográficas ao surgir a recusa da página tradicional. Assim, procura-
se a simultaneidade de formas e sensações e é na poesia que o futurismo encontra a
sua melhor expressão.
Disponível na <http://edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/6021/futurismo/>.
Acesso em 14 jun 2016.
40 • capítulo 2
• Cubismo, que propunha o fracionamento da realidade e sua reconstru-
ção com a utilização de planos geométricos.
CONCEITO
Movimento artístico personificado em Pablo Picasso e Georges
Braque, em Paris, entre os anos de 1907 e 1914, principalmente, que tinha por fim
"descompor e recompor a realidade". O estilo cubista das artes plásticas rejeitou as técnicas
tradicionais de perspectiva, bem como a ideia de arte como imitação da natureza e privilegiou
a bidimensionalidade e a fragmentaridade dos objetos.
Disponível em: <http://edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/6817/cubismo/>.
Acesso em: 14 jun 2016.
Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Pablo Picasso, é a obra que marca de-
finitivamente o início do cubismo artístico.
capítulo 2 • 41
No Brasil, Tarsila do Amaral também se rende à estética cubista.
42 • capítulo 2
Figura 2.6 – Poema Il pleut , de Guillaume Apollinaire.
O poema acima demonstra bem a questão que o poeta tem de fazer a apro-
ximação gráfica do que se pretende revelar. Em Il pleut, as palavras escor-
rem como gotas de chuva. Veja a tradução de Sérgio Capparelli. In: Tigres no
quintal. Porto Alegre: Kuarup, 1997.
Chove
Chovem vozes de mulheres como se estivessem mortas mesmo na recordação.
Chovem também vocês maravilhosos encontros de minha vida ó gotinhas,
e estas nuvens empinadas se põem a relinchar todo um universo de cidades
minúsculas.
Escuta se chove enquanto a mágoa e o desdém choram uma antiga música.
Escuta caírem os laços que te retém embaixo e em cima
capítulo 2 • 43
No Brasil, Oswald de Andrade também se dedicou à poesia cubista:
Verbo crackar
Eu empobreço de repente
Tu enriqueces por minha conta
Ele azula para o sertão
Nós entramos em concordata
Vós protestais por preferência
Eles escafedem a massa
Sê pirata
Sede trouxas
Abrindo a pala
Pessoal sarado.
44 • capítulo 2
CONCEITO
De acordo com Carlos Ceia, em seu E-Dicionário de termos literários, dadaísmo é:
Movimento artístico e literário com um pendor niilista, que surgiu por volta de 1916,
em Zurique, acabando por se espalhar por vários países europeus e também pelos Estados
Unidos da América. Embora se aponte 1916 como o ano em que o romeno Tristan Tzara, o
alsaciano Hans Arp e os alemães Hugo Ball e Richard Huelsenbeck seguiram novas orien-
tações artísticas e 1924 como o final desse caminho, a verdade é que há uma discrepância
de datas respeitantes, quer ao início, quer ao final deste movimento, ou como preferem os
seus fundadores, desta «forma de espírito» («Manifesto Dada», in Dada-Antologia Bilingue
de Textos Teóricos e Poemas, 1983). O movimento Dada (os seus fundadores recusam
o termo Dadaísmo já que o ismo aponta para um movimento organizado que não é o seu)
surge durante e como reacção à I Guerra Mundial. Os seus alicerces são os da repugnância
por uma civilização que atraiçoou os homens em nome dos símbolos vazios e decadentes.
Este desespero faz com que o grande objectivo dos dadaístas seja fazer tábua rasa de toda
a cultura já existente, especialmente da burguesa, substituindo-a pela loucura consciente, ig-
norando o sistema racional que empurrou o homem para a guerra. Dada reivindica liberdade
total e individual, é anti-regras e ideias, não reconhecendo a validade, nem do subjectivismo,
nem da própria linguagem. O seu nome é disso mesmo um exemplo: Dada, que Tzara diz ter
encontrado ao acaso num dicionário, ainda segundo o mesmo Tzara, não significa nada, mas
ao não significar nada, significa tudo. Este tipo de posições paradoxais e contraditórias são
outra das características deste movimento que reclama não ter história, tradição ou método.
A sua única lei é uma espécie de anarquia sentimental e intelectual que pretende atingir os
dogmas da razão. Cada um dos seus gestos é um acto de polémica, de ironia mordaz, de
inconformismo. (...)
Disponível na <http://edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/6234/dadaismo/>.
Acesso em 14 jun 2016.
capítulo 2 • 45
como o funcionário, que não somos livres e gritamos liberdade; estrita necessidade
sem disciplina e moral e cuspimos na humanidade.
Dadá permanece no quadro europeu das fraquezas, mas assim como assim é merda
para enfeitarmos o jardim zoológico da arte com todas as bandeiras consulares.
Somos directores de circo e assobiamos por entre os ventos das feiras anuais, no
meio dos claustros, dos bordéis, dos teatros, das realidades, dos sentimentos, dos
restaurantes, ohi, hoho, bang, bang.
Declaramos que o automóvel é um sentimento que nos acalentou com a lentidão das
suas abstrações tal qual como os barcos a vapor, os ruídos e as ideias. No entanto,
exteriorizamos a ligeireza, procuramos o ser central e alegramo-nos quando o oculta-
mos. Não queremos contar as janelas maravilhosas da elite, pois Dadá não está para
ninguém e queremos que toda a gente compreenda isso. Aí é a varanda de Dadá, ga-
ranto-lhes. Dela podem ouvir-se as marchas militares, dela se pode descer, rasgando
o ar como um serafim e ir mijar num urinol público e compreender a parábola.
Dadá não é nem loucura, nem sabedoria, nem ironia, olhe bem para mim, honesto
burguês.
A arte era uma brincadeira, as crianças juntavam as palavras e punham campainhas
no fim, e depois choravam e gritavam a estrofe e calçavam-lhes os botins das bone-
cas e a estrofe tornava-se rainha para morrer um pouco e a rainha tornava-se baleia e
as crianças corriam até ficarem ofegantes.
Depois vieram os grandes embaixadores do sentimento
que gritaram historicamente em coro
psicologia psicologia hihi
ciências ciência ciência
vive la France
não somos ingênuos
somos sucessivos
somos exclusivos
não somos simples
e sabemos muito bem discutir a inteligência
Mas nós, Dadá, não somos da mesma opinião pois a arte não é séria, garanto-vos, e
se ao exibir o crime dizemos doutamente ventilador, é para vos sermos agradáveis,
caros auditores, amo-vos tanto, amo-vos tanto, garanto-vos e adoro-vos.
Disponível em: http://www.uel.br/projetos/artetextos/textos/dada.htm.
Acesso em: 14-6-2016.
46 • capítulo 2
Agora segue a receita para se fazer um poema dadaísta de acordo com
Tristan Tzara, em Manifesto sobre o amor débil e o amor amargo, 1924:
Tristan Tzara
Pegue um jornal.
Pegue uma tesoura.
Escolha no jornal um artigo com o comprimento que pensa dar ao seu poema.
Recorte o artigo.
Depois, recorte cuidadosamente todas as palavras que formam o artigo e me-
ta-as num saco.
Agite suavemente.
Seguidamente, tire os recortes um por um.
Copie conscienciosamente pela ordem em que saem do saco.
O poema será parecido consigo.
E pronto: será um escritor infinitamente original e duma adorável sensibilida-
de, embora incompreendido pelo vulgo.
capítulo 2 • 47
• Surrealismo, com a proposta de André Breton em valorizar a fantasia, o
sonho, a loucura e a escrita automática.
Vejamos um excerto do:
MANIFESTO DO SURREALISMO
(André Breton – 1924)
48 • capítulo 2
reter o que for ligação deste evento com uma porção de eventos parecidos, nos
quais não toma parte, eventos perdidos. Que digo, ele fará sua avaliação em
relação a um desses acontecimentos, menos aflitivo que os outros, em suas
consequências. Ele não descobrirá aí, sob pretexto algum, sua salvação.
Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares.
Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a considero apro-
priada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende,
sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por
nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi conce-
dida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servi-
dão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é
rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a imaginação me dá
contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a inter-
dição terrível; é bastante também para que eu me entregue a ela, sem receio
de me enganar ( como se fosse possível enganar-se mais ainda ). Onde começa
ela a ficar nociva, e onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito, a
possibilidade de errar não é, antes, a contingência do bem?
Fica a loucura. “a loucura que é encarcerada”, como já se disse bem. Essa
ou a outra.. Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação
senão a um reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não
houvesse estes atos, sua liberdade (o que se vê de sua liberdade) não poderia
ser ameaçada. Que eles sejam, numa certa medida, vítimas de sua imaginação,
concordo com isso, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas
regras, fora das quais o gênero se sente visado, o que cada um é pago para sa-
ber. Mas a profunda indiferença de que dão provas em relação às críticas que
lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são impostos, permite
supor que eles colhem grande reconforto em sua imaginação e apreciam seu
delírio o bastante para suportar que só para eles seja válido. E, de fato, alu-
cinações, ilusões, etc. são fonte de gozo nada desprezível. A mais bem orde-
nada sensualidade encontra aí sua parte, e eu sei que passaria muitas noites
a amansar essa mão bonita nas últimas páginas do livro. A Inteligência de
Taine, se dedica a singulares malefícios. As confidências dos loucos, passa-
ria minha vida a provoca-las. São pessoas de escrupulosa honestidade, cuja
inocência só tem a minha como igual. Foi preciso Colombo partir com loucos
para descobrir a América. E vejam como essa loucura cresceu, e durou.
capítulo 2 • 49
Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandei-
ra da imaginação.
O processo da atitude realista deve ser instruído, após o processo da atitu-
de materialista. Esta, aliás, mais poética que a precedente, implica da parte
do homem um orgulho sem dúvida monstruoso, mas não uma nova e mais
completa deposição. Convém nela ver, antes de tudo, uma feliz reação contra
algumas tendências derrisórias do espiritualismo. Enfim, ela não é incompatí-
vel com uma certa elevação de pensamento.
(...)
Figura 2.9 – Paris, cerca de 1930: da esquerda para a direita: Tristan Tzara, Paul Éluard,
André Breton, Hans Arp, Salvador Dalí, Yves Tanguy, Max Ernst, Rene Crevel, Man Ray.
50 • capítulo 2
Um ponto de união entre todas as vanguardas foi, com certeza, a desorga-
nização da arte de modo consciente, pois a renovação artística acompanhava a
renovação política pela qual passava o país.
Em 1922, ano do centenário da Independência, temos a Semana de Arte
Moderna, questionando a liberdade do país e a participação da população
numa sociedade tida como democrática,
A Semana de Arte Moderna, marco inicial do Modernismo brasileiro, foi
realizada no Teatro Municipal de São Paulo, com a participação de muitos
artistas, como: o músico Villa-Lobos; o arquiteto Antônio Moya; os pintores
Anita Malfatti, Rego Monteiro e Di Cavalcanti; os escritores Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho, dentre outros, e o
ainda estudante Graça Aranha.
ATENÇÃO
Sem programa estético definido, a Semana desempenha na história da arte brasileira muito
mais uma etapa destrutiva de rejeição ao conservadorismo vigente na produção literária,
musical e visual do que um acontecimento construtivo de propostas e criação de novas lin-
guagens. Se existe um elo entre tão diversos artífices, este é, segundo seus dois principais
ideólogos, Mário e Oswald de Andrade, a negação de todo e qualquer "passadismo": a recusa
à literatura e à arte importadas com os traços de uma civilização cada vez mais superada, no
espaço e no tempo. Em geral todos clamam em seus discursos por liberdade de expressão
e pelo fim de regras na arte.
Disponível em: <http://www.culturabrasil.org/breton.htm>.
Acesso em: 14 jun. 2016.
capítulo 2 • 51
Figura 2.10 – Capa do programa da Semana de Arte Moderna de 22, autoria de Di Cavalcanti.
52 • capítulo 2
3ª Fase: de 1945 até nossos dias...
Fundação de siderúrgicas e fábricas de alumínio; eleição de Getúlio
Vargas para presidente da República; suicídio de Getúlio; eleição de Juscelino
Kubitschek para presidente da República; início da construção e depois a inau-
guração de Brasília; eleição de Jânio Quadros para presidente da República e
muito mais...
Vejamos as características de cada uma das fases, iniciando pela primeira fase,
objeto de estudo deste capítulo.
Na prosa:
• Períodos curtos;
• Linguagem coloquial, aproximando-se da fala brasileira;
• Prosa escrita como poesia.*
capítulo 2 • 53
ATENÇÃO
• Essa aproximação acaba por tornar menos rígida a divisão das produções literárias em
gêneros, daí a poesia em prosa e a prosa-poética.
2.2.1.1 Pau-Brasil
Devido à força da Semana de Arte Moderna, o movimento modernista pôde
desenvolver-se mediante a geração de uma cadeia de movimentos de ordem
literário-social. Tais movimentos não apresentavam uma unidade, mas ora se
apresentavam em ideias convergentes, ora divergentes.
Nesse contexto surgiu o Movimento Pau-Brasil, de ordem nativista, inau-
gurando uma das principais tendências estéticas do Modernismo brasileiro
cujos representantes são Oswald de Andrade, Antônio de Alcântara Machado
e Raul Bopp.
Andrade, Machado e Bopp constituíram o chamado Movimento Nativista
Pau-Brasil, com a publicação do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, em 18 de mar-
ço de 1924, no jornal Correio da Manhã.
Oswald de Andrade escreveu:
Manifesto da Poesia Pau - Brasil
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da
Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner
submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica
rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor,
o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma car-
tola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das fra-
ses feitas. Negras de jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil. O lado doutor.
Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas
selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de
dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo.
Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da
sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.
Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se
deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.
54 • capítulo 2
A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, crítica, donas
de casa tratando de cozinha. A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sa-
bem e descobrem.
Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de base e a luta
no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólo-
gos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance, nascido da
invenção. Ágil a poesia.
A poesia Pau-Brasil, ágil e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise Cendrars: - Tendes as locomotivas cheias, ides par-
tir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descui-
do vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.
Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de juris-
consultos, perdidos como chineses na genealogia das ideias.
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição
milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.
Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e
os outros.
Uma única luta - a luta pelo caminho. Dividamos: poesia de importação. E a
Poesia Pau-Brasil, de exportação.
Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do
mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadro de carneiros que não fosse
lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas
Artes queria dizer reproduzir igualzinho...Veio a pirogravura. As meninas de to-
dos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as
prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho
virado - o artista fotográfico.
Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas
as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas.
A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela. Straviski.
(...)
Oswald de Andrade
Correio da Manhã, 18 de março de 1924.
capítulo 2 • 55
O excerto acima nos revela os princípios basilares do manifesto, cuja preo-
cupação maior era ridicularizara solenidade de certos costumes; desvalorizar
as manifestações culturais já desgastadas; demostrar necessidade de uma es-
crita mais simples, menos rebuscada; buscar a temática de nossas produções
nos assuntos de cunho nacional, fugindo à imitação dos modelos advindos de
fora; romper com as formas tradicionais de poesia e prosa, promovendo novas
manifestações; enfim inovar e surpreender o público.
LEITURA
Você pode ler o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, publicado por Oswald de Andrade em 18
de março de 1924, no jornal Correio da Manhã na <http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/
oandrade.pdf>. Acesso em 9 jun 2016.
2.2.1.2 Antropofagia
CONCEITO
an·tro·po·fa·gi·a
(francês antropophagie)
substantivo feminino
Qualidade ou hábito de pessoa ou de grupo humano que come carne humana
56 • capítulo 2
a publicação do Manifesto Antropófago por Oswald de Andrade em 1928, cujo
intuito principal era transfigurar a cultura de influência europeia dando cono-
tações nacionais.
Oswald de Andrade costumava passar tempos na Europa, onde tomou con-
tato com o futurismo, vanguarda europeia cujo representante era Marinetti,
como vimos anteriormente.
Diante da tomada de consciência promovida pelo Manifesto futurista,
Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia e Mário de Andrade publicaram arti-
gos em os jornais brasileiros, disseminando os ideais do Futurismo, cuja pro-
posta era a ruptura com os moldes tradicionais e conservadores.
Manifesto Antropófago
capítulo 2 • 57
Nas artes plásticas, a pintora Tarsila do Amaral apresenta a intenção de
transformar a cultura nacional.
2.2.1.3 Verde-Amarelo
AUTOR
Paulo Menotti Del Picchia nasceu em 20 de março de 1892, na capital paulista.
Cursou Direito, formando-se em 1913. Nesta época publicou seu primeiro livro de poe-
sias: Poemas do vício e da virtude, de conteúdo neoparnasiano. Trabalhou em diversos jornais
e revistas, sendo redator e dirigindo alguns deles, como o Correio Paulistano, o semanário
literário O Planalto e as revistas Papel e Tinta e a A Cigarra.
Menotti Del Picchia participou ativamente da Semana de Arte Moderna em 1922, sendo
não apenas um dos articuladores, como também arrebatado militante do movimento moder-
58 • capítulo 2
nista brasileiro. Em 1924 criou, com Cassiano Ricardo e Plínio Salgado, o Movimento Verde e
Amarelo, de tendência nacionalista. Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em
1943. Além de se dedicar à carreira literária, Menotti Del Picchia foi artista plástico, deputado
estadual e jornalista.
Faleceu em 23 de agosto de 1988, em São Paulo.
Algumas Obras: Juca Mulato, Moisés, As máscaras, A revolução paulista, Salomé, A outra
perna do Saci, A longa viagem.
Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/bibliote-
cas/bibliotecas_bairro/bibliotecas_m_z/menottidelpicchia/index.php?p=5416>.
Acesso em 11 jun 2016.
2.2.1.4 Anta
CONCEITO
Fascismo = movimento político e filosófico ou regime (como o estabelecido por Benito Mus-
solini na Itália, em 1922) em que prevalece os conceitos de nação e raça sobre os valores indi-
viduais e que é representado por um governo autocrático, centralizado na figura de um ditador.
capítulo 2 • 59
A Escola da Anta aparece como perfil da nacionalidade brasileira, diante
da importância que a anta recebe na cultura tupi, animal tido como símbo-
lo nacional.
ATIVIDADES
01. Quais são as principais vanguardas europeias ?
REFLEXÃO
Observando as características dos manifestos estudados neste capítulo, verificamos a exis-
tência de duas posturas nacionalistas distintas: uma que apresenta um nacionalismo cons-
ciente, crítico da realidade brasileira, e outra cujo nacionalismo toma características ufanistas,
extremamente exagerada e com traços de utopia.
LEITURA
ANDRADE, Oswald de. Manifesto da Poesia Pau-Brasil (publicado por em 18 de março
de 1924, no jornal Correio da Manhã). Disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/
oandrade.pdf . Acesso em: 9-6-2016.
BRETON, Andre. Manifesto do surrealismo. Disponível em: <http://www.culturabrasil.
org/breton.htm> . Acesso em 14-6-2016.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Oswald de. Manifesto da Poesia Pau-Brasil (publicado por em 18 de março de 1924,
no jornal Correio da Manhã). Disponível em: <http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf>.
Acesso em: 9 jun 2016.
ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago In: Revista de Antropofagia, Ano I, No. I, maio de
1928.
ANDRADE, Oswald de. Memorias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo, 1993.
60 • capítulo 2
BRETON, Andre. Manifesto do surrealismo. Disponível em <http://www.culturabrasil.org/breton.
htm> . Acesso em 14 jun 2016.
CAPPARELLI, Sérgio. Tigres no quintal. Porto Alegre: Kuarup, 1997.
TZARA, Tristan. Manifesto sobre o amor débil e o amor amargo, 1924.
capítulo 2 • 61
62 • capítulo 2
3
Modernismo
Literário no Brasil
3. Modernismo Literário no Brasil
Neste capítulo, continuaremos nossos estudos acerca do Modernismo brasilei-
ro. Já vimos as características da primeira fase no capítulo 2. Vejamos, agora, as
características de cada uma das outras duas fases.
Primeiramente veremos como se deu a segunda fase modernista para, a se-
guir, adentrarmos a prosa de ficção modernista da terceira fase.
Por fim, verificaremos como se dá a produção dos romances sob o foco do
experimentalismo, regionalismo, psicologismo e intimismo.
COMENTÁRIO
Lembre-se de que vimos que, para fins didáticos, costuma-se dividir o Modernismo brasileiro
em três fases:
1ª Fase: de 1922 a 1930;
2ª Fase: de 1930 a 1945;
3ª Fase: de 1945 até nossos dias.
OBJETIVOS
Nosso objetivo é apresentar uma perspectiva do Modernismo no contexto da historiografia e
da crítica literária brasileira referentes à segunda e à terceira fases.
Esperamos que você seja capaz de conhecer a prosa de ficção modernista da tercei-
ra fase.
Esperamos que você seja capaz de conhecer todas as fases do Modernismo brasileiro,
identificando suas vertentes e diferenciando suas correntes.
Na poesia:
A poesia não mais apresenta a irreverência da primeira fase, há recusa do
poema-piada e os poetas optam por temas e técnicas mais elaboradas, com sa-
gacidade de pensamento.
64 • capítulo 3
É uma poesia engajada, preocupada com o difícil momento de nosso país.
Há tendência para os temas religiosos, sociais, metafísicos e espiritualistas.
O marco inicial dessa fase é a obra Alguma poesia, de Carlos Drummond de
Andrade.
COMENTÁRIO
Neste livro, Drummond apresenta não só o lirismo como ponto de destaque, mas também poe-
mas sob o viés do sensualismo, além de apresentar uma avaliação arguta sobre amor e morte.
O poeta revela também poemas dotados de humor, às vezes sob o tom meditativo, outras
vezes irônico, tudo mediante a observação contemplativa dos fatos.
Na prosa:
Os romances apresentam equilíbrio na linguagem, por se tratar de textos
voltados para a pesquisa da realidade brasileira, marcando uma literatura so-
cial. Daí os vários tipos de romance:
• Regionalista: retrato e questionamento da realidade regional do país,
com preocupação político-social;
• Urbano: destaque para as desigualdades sociais da vida urbana brasileira;
• Intimista: análise das desordens internas e da aflição do homem moderno.
capítulo 3 • 65
mundo a partir dos problemas pessoais, dos embates sociais, do questiona-
mento da existência...
Carlos Drummond de Andrade faleceu no Rio de Janeiro, em 1987.
©© WIKIMEDIA.ORG
Poesia
Alguma poesia, 1930.
Brejo das almas, 1934.
Sentimento do mundo, 1940.
Poesias, 1942.
A rosa do povo, 1945.
Claro enigma, 1951.
Viola de bolso, 1952.
Fazendeiro do ar, 1954.
A vida passada a limpo, 1959.
Lição de coisas, 1962.
Boitempo, 1968.
As impurezas do branco, 1973.
A paixão medida, 1980.
Corpo, 1984.
Amar se aprende amando, 1985.
O amor natural, 1992.
66 • capítulo 3
Prosa
Confissões de Minas, 1944.
Contos de aprendiz, 1951.
Passeios na ilha, 1952.
Fala, amendoeira, 1957.
A bolsa e a vida, 1962.
Cadeira de balanço, 1970.
O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso, 1972.
Boca de luar, 1984.
Tempo vida poesia, 1986.
Nosso tempo
I
Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
capítulo 3 • 67
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
II
Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.
Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho,
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.
68 • capítulo 3
Nesse poema, Drummond trata da inquietação diante do seu tempo histó-
rico-cultural, fragmentado por um período de guerra, influenciado por ideias
neofascistas advindas da Europa, marcado pelo surgimento de partidos de es-
querda... O poema é marcado pela construção em enjambement, para demos-
trar a quebra, a destruição do mundo e a fragmentação do indivíduo. Tudo leva
à tomada de consciência por parte da sociedade, bem como altera o ânimo dos
indivíduos, diante da fragmentação e insanidade do homem. Nesse poema, o
eu-poético não permite a neutralidade; decreta, ao contrário, que se faça uma
escolha ideológica: é preciso tomar partido.
Murilo Monteiro Mendes nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1901. Era
filho do funcionário público Onofre Mendes e da dona de casa Elisa Valentina
Monteiro de Barros Mendes.
Aos 16 anos não apresentou nenhum interesse pelo estudo e escapou da
escola para comparecer à apresentação do bailarino e coreógrafo russo Vaslav
Nijinski.
Após várias e inúteis tentativas da família de fixá-lo num emprego, foi para
o Rio de Janeiro, em 1920, com o irmão mais velho.
De 1924 a 1929, escreveu para a Revista de Antropofagia, de São Paulo, e a
Verde, de Cataguases, Minas Gerais, as primeiras publicações modernistas.
Financiado pelo pai, editou o primeiro livro, Poemas, pelo qual recebeu o
Prêmio Graça Aranha, em 1930.
Conheceu e se casou com a poeta Maria da Saudade Cortesão, filha do his-
toriador e poeta português Jaime Cortesão, exilado no Brasil por se opor à dita-
dura de António Oliveira Salazar.
Entre 1952 e 1956, em missão cultural, muda-se para a Itália e ensina cultu-
ra brasileira na Universidade de Roma.
Em 1972, recebeu, na Itália, o prêmio internacional de poesia Etna-Taormina.
Murilo Monteiro Mendes foi poeta, prosador, crítico de artes plásticas e veio
a morrer em Lisboa, Portugal, ano de 1975.
capítulo 3 • 69
©© WIKIMEDIA.ORG
Poesia
Poemas, 1930.
História do Brasil, 1932.
Tempo e Eternidade, 1935.
O Sinal de Deus, 1936.
A Poesia em Pânico, 1937.
O Visionário, 1941.
As Metamorfoses, 1944.
Mundo Enigma, 1945.
Poesia Liberdade, 1947.
Contemplação de Ouro Preto, 1954.
Poesias , 1959.
Convergência, 1970.
Transistor, 1980.
Poemas e Bumba-Meu-Poeta, 1988.
Poesia Completa e Prosa, 1994.
70 • capítulo 3
Crônica
O Discípulo de Emaús, 1945.
Poliedro, 1972.
Memória
A Idade do Serrote, 1968.
Ensaio
Retratos-Relâmpago, 1973.
Leiamos um excerto do poema:
Janela do caos
1.
Tudo se passa
Num Egito de corredores aéreos.
Numa galeria sem lâmpadas
À espera de que Alguém
Desfira o violoncelo
– Ou teu coração?
Azul de guerra.
2.
Telefonam embrulhos,
Telefonam lamentos,
Inúteis encontros,
Bocejos e remorsos.
3.
Tu não carregaste pianos
Nem carregaste pedras,
Mas na tua alma subsiste
capítulo 3 • 71
– Ninguém se recorda
E as praias antecedentes ouviram –
O canto dos carregadores de pianos,
O canto dos carregadores de pedras.
4.
O céu cai das pombas.
Ecos de uma banda de música
Voam da casa dos expostos.
5.
Harmonia do terror
Quando a alma destrói o perdão
E o ciclo das flores se fecha
No particular e no geral:
Nenhum som de flauta,
Nem mesmo um templo grego
Sobre colina azul
Decidiria o gesto recuperador.
(...)
72 • capítulo 3
Em Janela do caos, o eu-poético demonstra uma visão pessimista diante do
mundo marcado pela destruição ao mesmo tempo em que lança um olhar to-
mista sobre um futuro de reconstrução do mundo e de renovação da humani-
dade. O caos se instala no poema à medida que as imagens são construídas pela
linguagem.
capítulo 3 • 73
As obras principais
74 • capítulo 3
De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.
capítulo 3 • 75
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
76 • capítulo 3
antes do poema, pois ele recebe poder e glória ao perceber que terá o dom da pa-
lavra por meio da poesia. O operário toma consciência de que não há no mundo
coisa mais bela que sua mão, mão feita por Deus para que ele pudesse exercer
sua profissão. Notando isso, seus olhos se abrem para um novo mundo, propor-
cionado pela tomada de consciência de que tudo no mundo tem uma função.
O poema em estudo apresenta também um tom bíblico quando chama a
atenção para a valorização das pequenas coisas, dos momentos, marcados pelo
imediatismo. Diante disso, nasce uma esperança no coração do operário-poe-
ta, cujo mundo ganhou uma nova dimensão.
capítulo 3 • 77
Jornal de Alagoas e com o fluminense Paraíba do Sul, sob as iniciais R.O., do
pseudônimo Ramos de Oliveira.
Em meados de 1915, voltou a Palmeira dos Índios, onde trabalhou como
jornalista e comerciante e se casou com Maria Augusta Ramos, que faleceu em
1920, deixando quatro filhos menores.
Em 1930, mudou-se para a cidade de Maceió, onde foi nomeado diretor da
Imprensa Oficial e se casou com Heloísa Medeiros.
Em maio de 1937, a Revista Acadêmica dedicou-lhe uma edição especial e
ele recebeu o prêmio Literatura Infantil, do Ministério da Educação, pela obra
A terra dos meninos pelados.
Em 1938, publicou o romance Vidas secas.
Em 1945, lançou o livro de memórias Infância.
Em 1951, elegeu-se presidente da Associação Brasileira de Escritores, tendo
sido reeleito em 1962.
No janeiro de 1953, faleceu por causa de um câncer.
Memórias
Infância
Memórias do cárcere
Contos
Dois dedos
Insônia
Crônicas
Linhas tortas
Viventes das Alagoas
78 • capítulo 3
Graciliano Ramos nos deixou obras plenas de análise psicossocial, já que
foco de Graciliano está na experiência humana, não como simples vivência,
mas como atitude extremada diante do amor, da adversidade marcada pela fal-
ta de recursos financeiros, da falsidade e dissimulação que se encontram nas
pessoas e da postura do homem diante de seus impulsos mais selvagens.
Outro ponto de destaque na obra de Graciliano é o regionalismo, que apare-
ce não só como pano de fundo de uma história qualquer, mas, sim, o regionalis-
mo evidente no comportamento e no jeito de falar dos personagens.
E, por falar em personagens, o autor igualmente dirige sua narrativa com
vista a mostrar a desumanidade que permanece no ajuizamento das pessoas
por causa de suas feições.
LEITURA
Insônia, de Graciliano Ramos
(...) o livro Insônia (...) revela as várias faces do homem em situações distintas, descorti-
nando as fragilidades e angústias humanas. É um livro que retrata uma trama psicológica,
começando por um questionamento simples de um homem no meio da noite: “Tirou a vida
de alguém ou a razão de esse alguém viver? Está apenas louco? Sente medo? Possui um
trauma? Está apenas sonhando? Será uma saudade ou arrependimento? Uma preocupação
ou apenas excesso de café na noite anterior”
Insônia se apresenta, então, como uma metáfora para que se perceba algo mais. Já que
o personagem não consegue dormir, qual seria a alternativa, sentar e refletir no escuro ou
observar os problemas do mundo em sua forma mais crua e sombria? Com 13 contos, o livro
traz, como personagem fiel e protagonista, a própria insônia, pois, em meio às inquietudes
da existência, o narrador não quer fazer o leitor se compadecer, simplesmente, mas levá-lo a
confrontar a consciência de sua própria realidade. Assim, a experiência se torna mais intensa
com a passagem do personagem pelo hospital, onde fica obcecado com a passagem do
tempo e a falta de sentidos. Enfim, nota-se que é um livro que reflete de forma significativa
os conflitos e angústias do próprio escritor diante do mundo à volta, além de uma agudeza
singular para observar e pensar o enfrentamento do homem nordestino em um contexto
hostil, injusto e implacável. Fica, então, a sugestão para mais uma grande leitura de Graciliano
Ramos, que, em algum momento, nos aponta a nossa própria insônia...
Revista Encontro Literário, ISSN 2237-9401, 31 de julho de 2013
capítulo 3 • 79
3.1.5 José Lins do Rego
©© WIKIMEDIA.ORG
Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras e teve suas obras tradu-
zidas para diferentes idiomas, com destaque para o russo.
Antes de morrer, escreveu suas memórias em Meus verdes anos.
José Lins do Rego Cavalcanti morreu em 1957, no Rio de Janeiro.
Figura 3.6 –
80 • capítulo 3
Poesia e Vida, 1945.
Homens, Seres e Coisas, 1952.
A Casa e o Homem, 1954.
Presença do Nordeste na Literatura Brasileira, 1957.
O Vulcão e a Fonte, 1958.
Dias Idos e Vividos, 1981.
O rio Paraíba corria bem próximo ao cercado. Chamavam-no "o rio". E era tudo. Em
tempos antigos fora muito mais estreito. Os marizeiros e as ingazeiras apertavam as
duas margens e as águas corriam em leito mais fundo. Agora era largo e, quando
descia nas grandes enchentes, fazia medo. Contava-se o tempo pelas eras das cheias.
Isto se deu na cheia de 93, aquilo se fez depois da cheia de 68. Para nós meninos, o
rio era mesmo a nossa serventia nos tempos de verão, quando as águas partiam e se
retinham nos poços. Os moleques saíam para lavar os cavalos e íamos com eles. Havia
o Poço das Pedras, lá para as bandas da Paciência. Punham-se os animais dentro
d'água e ficávamos nos banhos, nos cangapés. Os aruás cobriam os lajedos, botando
gosma pelo casco. Nas grandes secas o povo comia aruá que tinha gosto de lama. O
leito do rio cobria-se de junco e faziam-se plantações de batata-doce pelas vazantes.
Era o bom rio da seca a pagar o que fizera de mau nas cheias devastadoras. E quando
ainda não partia a corrente, o povo grande do engenho armava banheiros de palha
para o banho das moças. As minhas tias desciam para a água fria do Paraíba que
ainda não cortava sabão.
O rio para mim seria um ponto de contato com o mundo. Quando estava ele de barreira
a barreira, no marizeiro maior, amarravam a canoa que Zé Guedes manobrava.
Vinham cargueiros do outro lado pedindo passagem. Tiravam as cangalhas dos cavalos
e, enquanto os canoeiros remavam a toda a força, os animais, com as cabeças agarra-
das pelo cabresto, seguiam nadando ao lado da embarcação. Ouvia então a conversa
dos estranhos. Quase sempre eram aguardenteiros contrabandistas que atravessavam,
vindos dos engenhos de Itambé com destino ao sertão. Falavam do outro lado do mun-
do, de terras que não eram de meu avô. Os grandes do engenho não gostavam de me
ver metido com aquela gente. Às vezes o meu avô aparecia para dar gritos. Escondia-
me no fundo da canoa até que ele fosse para longe. Uma vez eu e o moleque Ricardo
chegamos na beira do rio e não havia ninguém. O Paraíba dava somente um nado e
corria no manso, sem correnteza forte.
capítulo 3 • 81
O rio Paraíba corria bem próximo ao cercado. Chamavam-no "o rio". E era
tudo. Em tempos antigos fora muito mais estreito. Os marizeiros e as ingazeiras
apertavam as duas margens e as águas corriam em leito mais fundo. Agora era
largo e, quando descia nas grandes enchentes, fazia medo. Contava-se o tempo
pelas eras das cheias. Isto se deu na cheia de 93, aquilo se fez depois da cheia de
68. Para nós meninos, o rio era mesmo a nossa serventia nos tempos de verão,
quando as águas partiam e se retinham nos poços. Os moleques saíam para
lavar os cavalos e íamos com eles. Havia o Poço das Pedras, lá para as bandas da
Paciência. Punham-se os animais dentro d'água e ficávamos nos banhos, nos
cangapés. Os aruás cobriam os lajedos, botando gosma pelo casco. Nas gran-
des secas o povo comia aruá que tinha gosto de lama. O leito do rio cobria-se de
junco e faziam-se plantações de batata-doce pelas vazantes. Era o bom rio da
seca a pagar o que fizera de mau nas cheias devastadoras. E quando ainda não
partia a corrente, o povo grande do engenho armava banheiros de palha para o
banho das moças. As minhas tias desciam para a água fria do Paraíba que ainda
não cortava sabão.
O rio para mim seria um ponto de contato com o mundo. Quando esta-
va ele de barreira a barreira, no marizeiro maior, amarravam a canoa que Zé
Guedes manobrava.
Vinham cargueiros do outro lado pedindo passagem. Tiravam as cangalhas
dos cavalos e, enquanto os canoeiros remavam a toda a força, os animais, com
as cabeças agarradas pelo cabresto, seguiam nadando ao lado da embarcação.
Ouvia então a conversa dos estranhos. Quase sempre eram aguardenteiros con-
trabandistas que atravessavam, vindos dos engenhos de Itambé com destino ao
sertão. Falavam do outro lado do mundo, de terras que não eram de meu avô. Os
grandes do engenho não gostavam de me ver metido com aquela gente. Às ve-
zes o meu avô aparecia para dar gritos. Escondia-me no fundo da canoa até que
ele fosse para longe. Uma vez eu e o moleque Ricardo chegamos na beira do rio
e não havia ninguém. O Paraíba dava somente um nado e corria no manso, sem
correnteza forte. Ricardo desatou a corda, meteu-se na canoa comigo, e quan-
do procurou manobrar era impossível. A canoa foi descendo de rio abaixo aos
arrancos da água. Não havia força que pudesse contê-la. Pus-me a chorar alto,
senti-me arrastado para o fim da terra. Mas Zé Guedes, vendo a canoa solta, cor-
reu pela beira do rio e foi nos pegar quase que no Poço das Pedras. Ricardo nem
tomara conhecimento do desastre. Estava sentado na popa. Zé Guedes, porém,
deu-lhe umas lapadas de cinturão e gritou para mim:
82 • capítulo 3
– Vou dizer ao velho!
Não disse nada. Apenas a viagem malograda me deixou alarmado. Fiquei
com medo da canoa e apavorado com o rio. Só mais tarde é que voltaria ele a ser
para mim mestre de vida.
A 3ª Fase vai de 1945 até nossos dias, por isso é chamada de Pós-Modernismo
por alguns críticos. Não há como se precisar esta fase, uma vez que muitos es-
critores ainda estão na ativa e nós somos contemporâneos das produções deste
período. Daí a dificuldade.
Na poesia:
A chamada “geração de 45” rejeitava o poema-piada, o verso-livre, a irreve-
rência, buscando uma poesia formal, com vocabulário erudito e temas univer-
sais, com marcas do experimentalismo poético.
Na prosa:
Surge um grande número de romances e contos de natureza, tal como na
fase anterior:
• Regionalista: linguagem regional, com temas próprios das localidades a
que se propõe retratar;
• Urbana: voltada para os conflitos urbanos, principalmente das gran-
des capitais;
• Psicológica: preocupada com o indivíduo em seu mundo interior.
capítulo 3 • 83
3.2.1 Experimentalismo
84 • capítulo 3
exercer o trabalho poético, lúcido e preciso, mediante a observação direta da
realidade, expressando sua conclusão de modo concreto, racional. Além dis-
so, exercita a técnica da linguagem artística, aprimorando a própria linguagem
poética, como uma espécie de linguagem-objeto.
AUTOR
João Cabral de Melo Neto nasceu na cidade do Recife, a 6 de janeiro de 1920, e faleceu
no dia 9 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro, aos 79 anos. Eleito membro da Academia
Brasileira de Letras em 15 de agosto de 1968, tomou posse em 6 de maio de 1969.
No Rio, depois de ter sido funcionário do DASP, inscreveu-se, em 1945, no concurso
para a carreira de diplomata. Daí por diante, já enquadrado no Itamarati, iniciou uma larga
peregrinação por diversos países, incluindo, até mesmo, a República Africana do Senegal. Em
1984 foi designado para o posto de cônsul-geral na cidade do Porto (Portugal). Em 1987
voltou a residir no Rio de Janeiro.
A atividade literária acompanhou-o durante todos esses anos no exterior e no Brasil, o
que lhe valeu ser contemplado com numerosos prêmios, entre os quais Prêmio José de An-
chieta, de poesia, do IV Centenário de São Paulo (1954); Prêmio Olavo Bilac, da Academia
Brasileira de Letras (1955); Prêmio de Poesia do Instituto Nacional do Livro; Prêmio Jabuti,
da Câmara Brasileira do Livro; Prêmio Bienal Nestlé, pelo conjunto da Obra e Prêmio da
União Brasileira de Escritores, pelo livro "Crime na Calle Relator" (1988).
Em 1990 João Cabral de Melo Neto aposentou-se no posto de Embaixador.
3.2.2 Regionalismo
capítulo 3 • 85
Em 1908, nasce João Guimarães
Rosa, no dia 27 de junho, em
Cordisburgo, Minas Gerais.
Em 1929: escreve quatro contos e
recebe prêmios por esses contos em
concurso da revista O Cruzeiro.
Em 1930, forma-se em medicina e
se casa com Lygia Cabral Pena.
Em 1932, foi médico-voluntário da
Força Pública, na época da Revolução
Constitucionalista de 1932.
Figura 3.7 – Guimarães Rosa.
Romance:
Grande Sertão: Veredas,1956.
Contos
Sagarana, 1946
Corpo de baile, 1956
Primeiras estórias,1962
86 • capítulo 3
Tutameia: terceiras estórias, 1967
Estas estórias, 1969
Ave, palavra, 1970
Que tal conhecermos um pouco dos contos deste autor? Passemos à leitura
de um excerto de:
capítulo 3 • 87
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção
de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa,
para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer
de todo a gente. Aquilo que não havia acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos
nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de
nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto
de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por
escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra
sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas
certas pessoas passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda
descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia
nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa
mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado
na canoa, se gastava; e ele, ou desembarcava e viajava s’embora, para jamais, o que
ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
Primeiras estórias, 1962
No conto acima, bem como em grande parte de sua obra, Guimarães Rosa
traz uma explicação mítica da realidade, por meio de alegorias e mitos de força
universal, casando com a origem regional das personagens para a experiência
humana ponderada e transfigurada pela forma literária, assim como pelo estilo
particular de escrever.
Guimarães Rosa foca o regionalismo, mas não deixa de praticar o experi-
mentalismo por meio da recriação da realidade com a manipulação da lingua-
gem que só ele consegue fazer. Para isso, faz uso de arcaísmos e vocábulos co-
nhecidos, passando para a criação de palavras e expressões. Seguindo um estilo
próprio, permite-se realizar inventos de ordem semântica e sintática. O resul-
tado? Uma forma de comunicação que não se prende à realidade, mas que se
mostra uma ferramenta de apreensão e compreensão dessa realidade.
88 • capítulo 3
3.2.3 Psicologismo e Intimismo
capítulo 3 • 89
O mistério do coelho pensante, 1967.
A mulher que matou os peixes, 1969.
Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, 1969.
Felicidade clandestina, 1971.
A imitação da rosa, 1973.
Água viva, 1973.
A via crucis do corpo, 1974.
Onde estivestes de noite, 1974.
A vida íntima de Laura, 1974.
De corpo inteiro, 1975.
Visão do esplendor, 1975.
A hora da estrela, 1977.
Para não esquecer, 1978.
Um sopro de vida (pulsações), 1978.
Quase de verdade, 1978.
A Bela e a Fera, 1979.
A descoberta do mundo, 1987.
Como nasceram as estrelas. 1987.
Correspondências, 2002.
90 • capítulo 3
com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem
quase pensar, e apenas sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no
meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o baru-
lho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na
boca ardente engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva,
e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora
o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao
penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto?
Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez
minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais
próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando
entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbus-
tos estava… o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou,
todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de
pedra, antes de todos.
(...) Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verda-
de. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido:
ele…
Ele se tornara homem.
Disponível na <http://contobrasileiro.com.br/o-primeiro-beijo-conto-de-clarice
-lispector-2/>. Acesso 17 jun 2013.
capítulo 3 • 91
ATIVIDADES
01. Diferencie a poesia da 2ª e da 3ª fases modernistas.
REFLEXÃO
O Modernismo se desenvolveu em três grandes fases, mas na sua terceira fase é que verifi-
camos um afastamento maior em relação ao que se propunha a primeira fase, marcada pelos
ideais da Semana de arte Moderna.
É na terceira fase que o experimentalismo surge a pleno vapor com a proposta de pes-
quisar acerca da própria linguagem. A poesia é sinônimo da “arte da palavra”, um trabalho
estético e linguístico de esmero.
Na prosa, o Modernismo anda a passos largos, abordando a nossa realidade sob o foco
do regionalismo, que busca a universalização do regional, a revalorização da linguagem, des-
tacando a heterogeneidade de nosso país, bem como o psicologismo, também denominado
intimismo ou literatura introspectiva, mesclando uma concepção consciente e inconsciente
da realidade apreendida pelo homem moderno.
LEITURA
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix,1995.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COUTINHO, Afrânio. Co-Direção: Eduardo de Faria Coutinho. A Literatura no Brasil. Relações e
perspectivas. São Paulo: Global, 1999.
MELO E SOUZA, Antônio Candido; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira.
São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1984.
92 • capítulo 3
4
Do Moderno ao
Pós-Moderno
4. Do Moderno ao Pós-Moderno
Neste capítulo abordaremos questões relacionadas com o Modernismo e o cha-
mado pós-modernismo.
Primeiramente, faremos algumas considerações a respeito do teatro moderno
de autoria de Nelson Rodrigues, peças de grande destaque e objeto de censura
pelos temas abordados.
Num segundo momento, faremos um passeio pelas vanguardas pós-modernas,
do concretismo à poesia marginal.
Por fim, anunciaremos autores e obras que abrem as portas para uma tendên-
cia contemporânea, tanto em verso quanto em prosa.
OBJETIVOS
Neste capítulo esperamos que você seja capaz de:
• Entender as questões relacionadas com o modernismo e o pós-modernismo;
• Reconhecer elementos importantes do teatro de Nelson Rodrigues;
• Entender e diferenciar as obras produzidas nas vanguardas pós-modernas;
• Identificar a presença da tendência contemporânea na literatura brasileira.
O moderno não é caracterizado unicamente por sua novidade, mas por sua heteroge-
neidade. Tradição heterogênea ou do heterogêneo, a modernidade está condenada
à pluralidade: a antiga tradição era sempre a mesma, a moderna é sempre diferente.
A primeira postula a unidade entre o passado e o hoje; a segunda, não satisfeita em
ressaltar as diferenças entre ambos, afirma que esse passado não é o único, mas sim
plural. (PAZ, 1984, p. 18)
94 • capítulo 4
Pensando desse modo, Paz considera que “A tradição moderna apaga as
oposições entre o antigo e o contemporâneo, o distante e o próximo. O ácido
que dissolve todas essas oposições é a crítica”. (1984, p. 21)
Talvez seja por isso que Jameson (2006) acredite que o pós-modernis-
mo funcione como um espelho do modernismo, em processo de destrui-
ção, já que o pós-modernismo abre espaço para novas ideias que levarão
à contemporaneidade.
No entanto, os movimentos citados mantêm pontos de semelhança, uma
vez que:
(...) haverá tantas formas de pós-modernismo, quanto havia, no lugar, de alto moder-
nismo, uma vez que elas são, ao menos inicialmente, reações específicas e localizadas
contra esses modelos. Tal característica obviamente não facilita em nada a tarefa
de descrever o pós-modernismo como algo coerente, já que a unidade desse novo
impulso — se existe— é dada, não por se mesma, mas pelo próprio modernismo que
ele busca destronar. (JAMESON, 2006, p.18)
capítulo 4 • 95
Uma obra torna-se moderna quando, em primeiro lugar, é pós-moderna. Portanto, o
pós-modernismo não é o fim do modernismo, mas o modernismo em seu nascimento.
Este estado é algo constante. (Lyotard, 1984, p. 79)
96 • capítulo 4
Geralmente, Nelson Rodrigues enfrentava problemas com a censura, como
revela a leitura do parecer do censor A. Conde Scrosoppi que justificou a censu-
ra da peça Senhora dos afogados, escrita em 1947, por ser considerada:
a) Imoral: cenas que se passam em um prostíbulo; assassinato de uma
prostituta, conversações violentas em família;
b) Violenta: cenas com assassinatos brutais, fratricídios, incestos e
uxoricídio;
c) Desagregadora: humilha os amores que se consideram sagrados, ofen-
de a moral cristã, apresenta atmosfera de ódio familiar;
d) Psiquiátrica: personagens são doentes mentais.
Arquivo Miroel Silveira (AMS) da Biblioteca da ECA/USP
Diante do exposto, podemos entender que:
Cada peça de Nelson Rodrigues era um impasse (...). A censura tinha de ser rigorosa,
porque ele escrevia coisas que a “sociedade não aceitava”, como diziam. E isso significa-
va corte de cenas (...). Ao mesmo tempo, achavam que a proibição sumária da peça ou
simples cortes era tudo que a fome publicitária de Nelson mais queria (CASTRO, 1992).
A genialidade de Nelson Rodrigues, que não tem explicação. Ele não era um intelec-
tual, mas conseguia dizer as coisas mais importantes, profundas e verdadeiras de uma
maneira que era quase impossível de explicar por que ele fazia isso.
Ele é um cara de intuição mágica, atingia a verdade do ser humano de maneira absoluta.
Amor e morte são temas recorrentes nas obras de Nelson Rodrigues, e Ruy
Castro explica que:
Os pactos de amor e morte o marcaram quando era garoto. Ele era repórter policial
no jornal do pai dele. E o romantismo naquela época dava espaço para isso. A família,
que era uma instituição muito forte, impedia que houvesse um amor, um casamento e
os amantes acabavam se suicidando.
capítulo 4 • 97
Nelson Rodrigues acreditava que a saída para o amor eterno é a morte, mas não
praticava isso. Ele teve pelo menos três casamentos. Ao mesmo tempo, dizia que o
segundo casamento era um adultério. Era um moralista no sentido profundo do termo.
Ele dizia que algumas mulheres precisam trair para não apodrecer. Ou seja, não está
condenando o adultério, evidentemente. Queria que as pessoas botassem para fora
as suas pulsões secretas e que, fazendo isso, estariam se purificando, digamos assim.
Essa purificação talvez atingisse o amor eterno. Ele sabia que isso é era uma utopia.
Nelson foi tão grande romancista quanto teatrólogo, por incrível que pareça. "Asfalto
Selvagem" é a obra que mais gosto dele.
Você lê, não vê no palco. Isso permite ao criador superar as limitações do palco, mer-
gulhar na cabeça dos personagens, é possível inventar tudo.
O romance não tem a limitação física do palco, o romancista é onipotente em sua
criação. Acho que Nelson Rodrigues aproveitava muito bem isso e fazia um mergulho
na alma dos personagens dele. Não era só dramático, mas também comovente, en-
graçado... Se fizesse isso no teatro, ficaria sempre na dependência de o elenco fazer
isso bem ou mal. No romance, não. Ele precisa da capacidade do leitor.
Disponível na http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/ruy-castro-nelson-rodri-
gues-699050.shtml . Acesso em 22-6-2016.
Entre as principais obras, estão Anjo negro, Vestido de noiva, Álbum de fa-
mília e O beijo no asfalto, sobre as quais comentaremos um pouco:
• Anjo negro: peça escrita em 1946, tem o tema da morte, em que um casal
vela o corpo do filho, foca o problema racial quando o personagem negro não
aceita ter um irmão branco e ainda contém dados ligados à sexualidade, como
traição, relações sexuais, estupro.
• Vestido de noiva: peça escrita em 1943, tem o tema da morte, em que a
personagem é atropelada e morre. Durante o processo de morte, a personagem
sai em busca de uma prostituta famosa da época, elemento importante para a
construção da personagem. O diálogo entre as duas permite a resolução dos
98 • capítulo 4
conflitos pelos quais a protagonista passa. A peça é marcada por traição, morte,
luxúria, hipocrisia burguesa etc.
• Álbum de família: peça escrita em 1945, tem como tema as relações inces-
tuosas: o desejo sexual de um pai por sua filha caçula, o filho é apaixonado pela
mãe, que, por sua vez, tem amor proibido pelo outro filho.
• O beijo no asfalto: peça escrita em 1960, tem como tema a homossexuali-
dade, a maldade e o preconceito.
Em geral, a censura proibia a representação de peças que poderiam vir a in-
duzir a prática de crimes, que continham ofensas à moral e aos bons costumes.
CURIOSIDADE
Nelson Rodrigues tem vinte de suas histórias transpostas para a tela do cinema, algumas em
duas versões, como Boca de ouro, de Nelson Pereira dos Santos, 1962, e de Walter Avan-
cini, 1990, e Bonitinha, mas ordinária, de R. P. de Carvalho, 1963, e de Braz Chediak, 1980.
Algumas das realizações mais bem-sucedidas são A falecida, de Leon Hirszman, 1965, e
O casamento, de Arnaldo Jabor, 1975. Suas crônicas para o jornal, sob o pseudônimo de
Suzana Flag, são publicadas em livros, como Meu destino é pecar, As escravas do amor e O
homem proibido. Escreve também para os periódicos Última Hora, Flan, Correio da Manhã, O
Globo e Manchete Esportiva. Assinando artigos sobre esporte, não priva o leitor de seu estilo
dramático, atendo-se muitas vezes ao sentido da rivalidade, ao significado do gol, ao efeito
do suor sobre a subjetividade da plateia brasileira.
Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br>/
pessoa4409/nelson-rodrigues . Acesso em: 21-6-2016.
4.2.1 Concretismo
capítulo 4 • 99
CONCEITO
Noigandres = fórmula contra o tédio
100 • capítulo 4
Beba coca cola, de Décio Pignatari
O eu poético brinca com as palavras coca, cola, beba, babe e termina com o
termo cloaca.
Coca-cola pode ser tomado como o substantivo próprio que designa a be-
bida à base de cola e pode funcionar como uma crítica social ao consumo exa-
gerado da bebida ou, por analogia, a qualquer produto. Coca e cola podem ser
tomados como termos isolados, ambos com conotação pejorativa, pois coca
pode ser entendida como uma abreviação do vocábulo cocaína, que por sua vez
pode transformar uma pessoa em caco, mediante a inversão das sílabas. Cola
também pode ser entendida como uma droga, referenciando a cola de sapatei-
ro usada como alucinógeno. Por fim, a mistura das palavras leva à formação de
cloaca, outro termo que assume significado pejorativo de sujo, aquilo que deve
ser evitado.
Beba e babe também nos levam a pensar sobre o consumismo, numa com-
paração de que ficamos bobos e babões quando somos bombardeados por pro-
pagandas que nos levam a agir sem pensar.
PERGUNTA
Que tal você refletir sobre os poemas a seguir?
capítulo 4 • 101
Nascemorre, Haroldo de Campos
102 • capítulo 4
4.2.2 Neoconcretismo
(...)
Não concebemos a obra de arte nem como “máquina” nem como “objeto”, mas como
um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exterio-
res de seus elementos; um ser que, decomponível em partes pela análise, só se dá
plenamente à abordagem direta, fenomenológica. Acreditamos que a obra de arte
supera o mecanismo material sobre o qual repousa, não por alguma virtude extrater-
rena: supera-o por transcender essas relações mecânicas (que a Gestalt objetiva) e
por criar para si uma significação tácita (M. Pority) que emerge nela pela primeira vez.
Se tivéssemos que buscar um símile para a obra de arte, não o poderíamos encon-
trar, portanto, nem na máquina nem no objeto tomados objetivamente, mas, como S.
Lanoer e W. Wleidlé, nos organismos vivos. Essa comparação, entretanto, ainda não
bastaria para expressar a realidade específica do organismo estético.
É porque a obra de arte não se limita a ocupar um lugar no espaço objetivo – mas o
transcende ao fundar nele uma significação nova - que as noções objetivas de tempo,
espaço, forma, estrutura, cor etc. não são suficientes para compreender a obra de
arte, para dar conta de sua “realidade”. A dificuldade de uma terminologia precisa
para exprimir um mundo que não se rende a noções levou a crítica de arte ao uso
indiscriminado de palavras que traem a complexidade da obra criada. A influência da
tecnologia e da ciência também aqui se manifestou, a ponto de hoje, invertendo-se os
papéis, certos artistas, ofuscados por essa terminologia, tentarem fazer arte partindo
dessas noções objetivas para aplicá-las como método criativo. Inevitavelmente, os
artistas que assim procedem apenas ilustram noções a priori, limitados que estão por
um método que já lhes prescreve, de antemão, o resultado do trabalho. Furtando-se à
criação espontânea, intuitiva, reduzindo-se a um corpo objetivo num espaço objetivo, o
artista concreto racionalista, com seus quadros, apenas solicita de si e do espectador
uma reação de estímulo e reflexo:
capítulo 4 • 103
fala ao olho como instrumento e não olho como um modo humano de ter o mundo e
se dar a ele; fala ao olho-máquina e não ao olho-corpo.
(...)
Disponível em: <http://www.mariosantiago.net/Textos%20em%20PDF/
Manifesto%20neoconcreto.pdf>. Acesso em: 21-6-2016.
104 • capítulo 4
Ferreira Gullar escreveu também poema espacial como:
capítulo 4 • 105
AUTOR
Ferreira Gullar, cujo nome verdadeiro é José de Ribamar Ferreira, nasceu em São Luís do
Maranhão, em 10 de setembro de 1930, numa família de classe média pobre. Dividiu os anos
da infância entre a escola e a vida de rua, jogando bola e pescando no Rio Bacanga. Con-
sidera que viveu numa espécie de paraíso tropical e, quando chegou à adolescência, ficou
chocado em ter que tornar-se adulto, e tornou-se poeta.
(...)
Gullar, por sua vez, levou suas experiências poéticas ao limite da expressão, criando o
livro-poema e, depois, o poema espacial, e, finalmente, o poema enterrado. Este consiste em
uma sala no subsolo a que se tem acesso por uma escada; após penetrar no poema, depara-
mo-nos com um cubo vermelho; ao levantarmos este cubo, encontramos outro, verde, e sob
este ainda outro, branco, que tem escrito numa das faces a palavra “rejuvenesça”.
O poema enterrado foi a última obra neoconcreta de Gullar, que se afastou então do
grupo e integrou-se na luta política revolucionária. Entrou para o partido comunista e passou
a escrever poemas sobre política e participar da luta contra a ditadura militar que havia se
implantado no país, em 1964. (...)
Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/
start.htm%3Fsid%3D1042/biografia>. Acesso em: 21 jun 2016.
4.2.3 Práxis
106 • capítulo 4
Figura 4.3 – Mário Chamie.
capítulo 4 • 107
Vejamos um exemplo de poesia práxis de Mário Chamie:
O Tolo E O Sábio
O sábio que há em você
não sabe o que sabe
o tolo que não se vê.
108 • capítulo 4
Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação.
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção.
Tem garotas-propaganda
Aeromoças e ternura no cartaz,
Basta olhar na parede,
Minha alegria
Num instante se refaz
A revista moralista
Traz uma lista dos pecados da vedete
E tem jornal popular que
Nunca se espreme
Porque pode derramar.
capítulo 4 • 109
É um banco de sangue encadernado
Já vem pronto e tabelado,
É somente folhear e usar,
É somente folhear e usar.
Disponível na <https://www.vagalume.com.br/tom-ze/
parque-industrial.html>. Acesso em 22 jun 2016.
CONCEITO
O termo “marginal” se refere ao fato de as poesias serem impressas e distribuídas sem a
intervenção de editoras.
A produção da poesia marginal era feita sem nenhum tipo de edição, total-
mente livre dos modelos de produção – muitas vezes “rodada” em mimeógra-
fos – e com um número limitado de itens para a distribuição, devido à tiragem
pequena.
Dentre as características da poesia marginal, temos:
• Fusão de vida e poesia
• Linguagem coloquial
• Reminiscência do concretismo
• Paródia, ironia, humor
110 • capítulo 4
• Tom íntimo e confessional
Alguns autores da poesia marginal são Paulo Leminski e Chacal.
AUTOR
Paulo Leminski Filho (Curitiba PR 1944 - idem 1989). Poeta, romancista e tradutor. Filho
de Paulo Leminski, militar de origem polonesa, e Áurea Pereira Mendes, de ascendência
africana. Aos 12 anos, ingressa no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, e adquire co-
nhecimentos de latim, teologia, filosofia e literatura clássica. Em 1963, abandona a vocação
religiosa. Viaja a Belo Horizonte para participar da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda,
e conhece Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, criadores do movi-
mento Poesia Concreta. No ano seguinte, publica seus primeiros poemas na revista Invenção,
editada pelos concretistas, e torna-se professor de história e redação em cursos pré-vestibu-
lares, experiência que motiva a criação de seu primeiro romance, Catatau (1976). Leminski
também atua como diretor de criação e redator em agências de publicidade, o que contribui
para sua atividade poética, sobretudo no aspecto da comunicação visual. Fascinado pela
cultura japonesa e pelo zen-budismo, Leminski pratica judô, escreve haicais e uma biografia
de Matsuo Bashô. O interesse pelos mitos gregos, por sua vez, inspira a prosa poética Meta-
formose. Paulo Leminski exerce atividade intensa como crítico literário e tradutor, vertendo
para o português obras de James Joyce, Samuel Beckett, Yukio Mishima, Alfred Jarry, entre
outros. Colabora em revistas de vanguarda, como Raposa, Muda e Qorpo Estranho, e faz
parcerias musicais com Caetano Veloso e Itamar Assumpção, entre outros. Em 1968, casa-
se com a poeta Alice Ruiz (1946), com quem vive durante 20 anos, e tem três filhos: Miguel
capítulo 4 • 111
Ângelo (que morre aos dez anos), Áurea e Estrela. Em 7 de junho de 1989, o poeta morre,
vítima de cirrose hepática.
112 • capítulo 4
Vejamos o poema:
Rápido e rasteiro
Neste poema, poderíamos dizer que, assim como fez em suas crônicas, o eu
poético retirou do cotidiano o tema para sua poesia. Em tom de humor, brin-
ca com a situação de dançar com os pés doendo por causa do sapato apertado
ou incômodo, cuja solução se dá retirando o calçado. Como se vê, o tema do
poema se refere a uma prática muito comum entre as mulheres em festas de
casamento, em que o traje social pede o uso de saltos altos.
COMENTÁRIO
Os escritores da poesia marginal têm, hoje, suas obras publicadas e distribuídas por grandes
editoras nacionais.
capítulo 4 • 113
Vejamos, então, algumas manifestações contemporâneas em verso e prosa.
AUTOR
Adélia Luzia Prado de Freitas (Divinópolis MG 1935). Poeta, romancista, contista e autora
de histórias infantis. Filha do ferroviário João do Prado Filho e da dona de casa Ana Clotilde
Corrêa, ingressa em 1942 no Grupo Escolar Padre Matias Lobato, na cidade natal, onde se
alfabetiza. Escreve os primeiros versos em 1950, aos 15 anos, após a morte da mãe. Nesse
mesmo ano, termina os estudos no Ginásio Nossa Senhora do Sagrado Coração, entrando,
em seguida, para o magistério na Escola Normal Mário Casassanta, que conclui dois anos
depois, em 1953. Começa a dar aulas em 1955, voltando a estudar dez anos mais tarde: de
1965 a 1973, em companhia do marido, gradua-se em filosofia pela Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Divinópolis. Embora tenha publicado em 1969 os versos A Lapinha de
Jesus, em parceria com o escritor Lázaro Barreto (1934), considera sua estreia efetiva o
livro Bagagem (1976), editado pela Imago por iniciativa de Affonso Romano de Sant'Anna
(1937) e sugestão de Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987). Publica ainda um título
de poemas, O Coração Disparado (1978), antes de lançar-se na prosa, com os contos Solte
os Cachorros (1979) e o romance Cacos para um Vitral (1980). Na Prefeitura de Divinópolis,
atua, entre 1983 e 1988, como chefe da Divisão Cultural e, entre 1993 e 1996, integra a
equipe de orientação pedagógica. Sem deixar de dar continuidade aos seus escritos em
prosa e verso, publica, em 2006, Quando Eu Era Pequena, primeiro trabalho dedicado ao
público infantojuvenil.
114 • capítulo 4
Leiamos a poesia Senha, do livro Miserere, publicado em 2013:
Senha
Eu sou uma mulher sem nenhum mel
eu não tenho um colírio nem um chá
tento a rosa de seda sobre o muro
minha raiz comendo esterco e chão.
Quero a macia flor desabrochada
irado polvo cego é meu carinho.
Eu quero ser chamada rosa e flor
Eu vou gerar um cacto sem espinho.
capítulo 4 • 115
PERGUNTA
Que tal dar uma espiadinha numa crônica de Luis Fernando Verissimo?
ATIVIDADES
Cite as vanguardas literárias estudadas neste capítulo, ressaltando sua identidade, e crie
exemplos.
REFLEXÃO
Constata-se, portanto, que a estética pós-moderna é um reflexo ou uma extensão do Moder-
nismo. No entanto, o pós-modernismo imprime um novo modo de sentir a obra literária, que
a entende como produto da expressão artística única, individual e que pode ser manuseada,
debatida, renovada.
É no paralelo entre o modernismo e o pós-modernismo que está a complexidade de
propor limites rígidos com relação a obras ou movimentos estéticos, pois a obra pode e deve
ser vista não apenas de uma forma de expressão artística, mas como expressão máxima da
própria condição humana.
Em resumo, o pós-modernismo é um movimento distinto que envolve as várias caracterís-
ticas do mundo, que envolve, inclusive, as tendências da literatura brasileira contemporânea.
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LEITURA
BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. 2. ed.
São Paulo: Cosac & Naify, 1999.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1978.
CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico – A vida de Nelson Rodrigues. São Paulo, Companhia das
Letras, 1992.
CHAMIE, Mário. Lavra lavra. São Paulo: Massao Ohno Editora, 1962.
ESPERANDIO, Mary Rute Gomes. Para entender pós-modernidade. São Leopoldo: Sinodal, 2007.
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995.
JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1993.
JAMESON, Fredric. A virada cultural reflexão sobre o pós-modernismo. São Paulo: Civilização
Brasileira, 2006.
LYOTARD, J. F. The postmodern condition: a report on knowledge. Manchester: MUP, 1984.
PAZ, Octavio. A tradição da ruptura; A revolta do futuro. In: Os filhos do barro: do romantismo à
vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p.11- 58.
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