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2013
ISSN 2316-8102
NOTA DA TRADUÇÃO
Nathália Mello
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I
Eu estava lá há seis meses. E agora, na sala de estar mal iluminada, um
pouco antes da meia-noite, enquanto ela e eu engatinhávamos freneticamente
para nos escondermos no canto mais próximo – repetindo, pela terceira vez
desde que eu chegara para ficar na cidade por um ano e meio, a mesma dança
infantilizante –, o que me surpreende nesse momento é como tão
imediatamente, sem nos comunicarmos, como que telepaticamente, em
absoluta sincronia, ela e eu (sem nos falarmos ou sequer trocarmos um olhar)
pulamos ambos do sofá de onde assistíamos a um ótimo filme ruim na TV ao
primeiro barulho das armas semiautomáticas lá fora – e, como em velocidade
infinita, zunimos direta e instintivamente, que nem as baratas com quem
dividíamos o nosso apartamento, para o mesmo canto, onde nos amontoamos.
II
Eu estava lá há pouco mais de um ano. Tinha ido buscar a Valentina na
creche por volta das cinco da tarde como de costume. E decidi que, naquela
tarde, como o dia estava tão particularmente belo e fresco e ensolarado e
perfeito, nós não iríamos diretamente para casa, mas daríamos um pulo até à
barraquinha de sucos na esquina a fim de pegar um suco natural de mamão e
laranja para ela e um de melancia para mim. Empurrando o carrinho de
Valentina, reparo num rapaz se esforçando para abrir a porta de seu carro
estacionado. E então, de modo estranho, a ignição do carro é acionada, mesmo
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com o rapaz do lado de fora ainda tentando abrir a porta. E então escuto,
enquanto me aproximo cada vez mais dele, agora não mais do que uns três
metros de distância dele, o que o cara está dizendo, contido e agressivamente
enquanto ainda tenta abrir a porta do carro, para alguém do lado de dentro: “Vai
levar ferro, você vai levar ferro”. Somente naquele momento vejo o cano
prateado da sua pistola automática .44 batendo na janela do carro. O automóvel
então arranca pela rua erraticamente, ou, talvez, freneticamente, e ainda estou
caminhando em direção ao cara parado no passeio com um jeito meio bobo e
sua arma cintilante na mão, e eu ainda empurrando o carrinho com a Valentina,
e agora estamos a não mais de dois metros do cara com sua .44. Torno-me
bidimensional – como num desenho animado, giro instantaneamente, carrinho
e tudo, 180 graus em menos de um segundo, dando as costas para o rapaz,
empurrando Valentina para longe da eventual linha de fogo. Enquanto subo a
rua, fico pensando se deveria discretamente sinalizar para o porteiro da creche
informando que há um cara com uma arma de fogo na mão tentando assaltar
um carro, mas prefiro seguir o refrão que todos repetem nesta cidade no caso de
uma situação como está acontecer (e elas vão acontecer, todos me garantem):
“Mantenha a calma, cale a boca e saia”. Nada de suco hoje.
III
Eu estava lá há um mês. Encontramos um amigo em nossa rua que
comenta sobre os tiroteios à noite, e como o governador do Estado e esse
traficante específico dessa favela particular estão mancomunados. Ele também
menciona como um vizinho no seu prédio (nesta cidade, todos os prédios têm
que ter um nome, e este se chama “Três Mosqueteiros”) estava mudando a
fralda do seu bebê quando uma bala perdida alojou-se no seu braço esquerdo.
IV
Faz um mês, desde o episódio do assaltante de carro, com sua .44, e eu
empurrando a Valentina no seu carrinho em direção a ele, e tornando-me um
desenho animado. Agora é Helane quem entra correndo em nosso apartamento
depois de deixar Valentina na creche. Soluça: “É a primeira vez que vejo um
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homem morto”. As notícias são: um rapaz tenta levar a bolsa de uma mulher à
mão armada na rua da escola de Valentina. Um pedestre conseguiu agarrá-lo,
pegar a arma, e atirar duas vezes na cabeça do rapaz. As pessoas na rua
ajudaram o atirador a fugir: a justiça fora feita. O corpo ficou deitado ali,
pedacinhos de cérebro espalhados por todo lado (uma especiaria para os
pássaros), esperando pela chegada da polícia. Dizem que esse jovem matou, há
uns anos, uma adolescente no ônibus, não muito longe daquela rua. A justiça
tarda mas não falha – como dizem nesta cidade.
V
São cinco horas da tarde do mesmo dia, o corpo sumiu, mas o sangue, o
toco de uma vela (quem a teria colocado ali?) e um tênis solitário marcam a rua.
Presume-se que talvez os pássaros – ou algum gato ou cachorro vira-lata –
tenham lambido os pedacinhos de cérebro que se espalharam depois dos dois
tiros certeiros na cabeça. De qualquer modo, boatos também se espalham e são
consumidos, fluindo como outro tipo de sangue, bombeando o sistema nervoso
da cidade. Meu cunhado, que vive e trabalha noutra parte da cidade, soube
quase instantaneamente do tiroteio fatal na nossa vizinhança. Ele confirma,
através do celular, crepitando que o homem morto matara, à queima-roupa,
uma menina de catorze anos num ônibus, uns dez anos atrás, a algumas
quadras do lugar onde encontrou o seu próprio fim. Teria sido liberto da prisão
recentemente. Não faço a menor ideia de como palavras conseguem circular tão
rapidamente. Lembro de ter lido, em algum lugar, que cada gota de sangue
circulando em nosso corpo sai e regressa ao coração em apenas um minuto.
Velocidades, palavras, balas. A Vingança é cega. Cega como a Justiça? Crianças e
seus pais saindo da creche como sempre. É um dia bonito, mesmo que o calor
esteja apertando.
VI
Uma citação de um antigo professor, que acho relevante neste
momento:
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VII
O sangue permanece ali até sábado, quando uma daquelas chuvas de
verão o lavam, mais ou menos, você pode ainda vislumbrar alguns traços, se
quiser…
VIII
Eu estava lá há nove meses. Eleonora é professora na Universidade
Federal do Rio de Janeiro no programa de Direção Teatral. Uma de suas
orientandas do 4º período está desenvolvendo um projeto de adaptação de Orfeu
para uma peça de dança-teatro, baseada em uma forma de dança afro-brasileira
chamada “Jongo”, uma dança sagrada, executada por poucos atualmente. Na
Favela da Serrinha, em Madureira, uma senhora idosa ensina a tradição do Jongo
para alguns poucos selecionados. Aline, a estudante, vai até a favela, se
apresenta à senhora, pede permissão para aprender a tradição, explicando que
será, no entanto, usada no contexto das artes e teatro. A senhora diz que tudo
bem por ela, mas que Aline deveria somente prosseguir com o projeto se os
Orixás concedessem suas permissões e bênçãos. Aline retorna dias depois à
favela para consultar o Pai de Santo. O espírito chega. Ela fala do projeto
artístico ao espírito, pedindo permissão para aprender a dança. O espírito
responde que tal pedido não é da sua alçada e que Aline deveria retornar um
outro dia para consultar um outro espírito. É como se o mundo dos espíritos
espelhasse a infinita burocracia brasileira. Ou, talvez, vice-versa. De qualquer
jeito, é injusto dizer isso, pois, quando Aline retorna pela segunda vez, o espírito
certo estava presente e deu sua permissão e bênção ao projeto, reconhecendo a
importância de perpetuar e divulgar o Jongo. A burocracia brasileira, como todo
mundo sabe, requer pelo menos três visitas para se ter alguma coisa resolvida.
1
TAUSSIG, Michael. The Nervous System. Londres: Routledge, 1993.
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IX
Dois dias depois, com permissões da mestre e do espírito responsável,
Aline completou o processo de obtenção de todas as autorizações necessárias
para iniciar seus ensaios, dirigindo-se à última autoridade que ainda necessitava
ser consultada, e cuja aprovação estava ainda pendente: o chefe do tráfico da
favela. Era a ele que ela deveria pedir permissão para que os atores, sua
orientadora Eleonora e ela mesma pudessem entrar na favela e aprender a
dança enquanto ensaiavam para a peça. Mas também era para ele que Aline
deveria, mais uma vez, explicar o seu conceito artístico e certificar-se de que
seria OK para o tráfico ter este tipo de projeto cultural na favela. No encontro, os
traficantes deram seu consentimento, pois acharam que seria uma boa maneira
de divulgar de modo mais amplo as suas preocupações culturais na comunidade.
X
Eu estava lá há duas semanas. Descendo a rua das Laranjeiras, em nosso
Fiat Uno capenga, modelo 1995, sou pego de surpresa pela seguinte frase da
Eleonora, enquanto ela trocava de marcha e pisava no acelerador para evitar que
os ônibus nos atacassem pelos dois lados: “Você fica muito impressionado com
essa coisa de arma. Você tem que se acostumar mais com isso”. Dez anos antes,
ela tinha sido aleatoriamente sequestrada durante oito horas, à mão armada,
por dois homens que também sequestraram sua família por várias horas. No
instante em que iam escapar, um deles quis levá-la como refém. Ela pediu que
eles a matassem ali mesmo na rua. O outro cara, por algum motivo, convenceu o
cúmplice a deixá-la viver e fugiram no carro da família.
XI
Eu estava lá há nove meses. É 29 de fevereiro, o mais raro dos dias. É o
aniversário de quarenta anos de Eleonora e saímos os dois para jantar num
restaurante fantástico em Santa Teresa, com uma vista sobre toda a Baía de
Guanabara. A noite não podia ser mais espetacular. No restaurante, a dona, ela
mesma nos cumprimenta, e certifica-se de que temos a melhor mesa – uma
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mesa solitária, posta numa varanda aberta para a cidade, sob uma fragrante
Dama da Noite, um garçom só para nós, a postos, atento para quando
tocássemos nosso sininho. Parece que somos os únicos clientes brasileiros no
restaurante. E, de ambos os lados, sob estrelas deslumbrantes e, acima das
luzes cintilantes da cidade, o chacoalhar das metralhadoras repercute em
sincopados e belos ritmos: rattatataattata. Rattarrtarrattatata. Chamada e
resposta em efeito estereofônico, balas tracejantes como estrelas cadentes
invertidas. Tão cafona e natural e antinatural como esta descrição. Nosso
garçom aproxima-se com um jeito de mordomo e gentleman, e nos assegura em
tom calmo: “Eu gostaria de informar a vocês que servi o exército brasileiro por
quinze anos, me reformei com a patente de capitão, e queria assegurar que não
há nenhuma possibilidade de uma bala perdida os atingir aqui”. Recomendou
então uma cachaça vintage para acompanhar a entrada e a especialidade da
casa como prato principal: Vatapá. Rima com Raattatta.
Rattattataaaatatttaaaaa.
XII
Sabemos que não estamos ali realmente, não no centro de tudo, e que a
maioria das balas não são dirigidas a nós — mas à polícia, às milícias
paramilitares e aos traficantes. Mas essas balas, o espetáculo dessas balas, as
atrocidades que cada uma delas comete e representa (porque também há
representação em tudo isso, e muita, e é justamente nesse lugar que o horror se
encontra, na questão do uso de morte e do terror para a criação de todo um
sistema de representação e autorrepresentação mirando a política, o poder e o
dinheiro), cria um sistema nervoso (para citar a feliz expressão de Michael
Taussig) que é necessariamente um projeto biopolítico. Especialmente quando
sabemos que o sistema político, em níveis mais altos e mais baixos, é
completamente dependente do dinheiro e terror que os traficantes, polícias,
milícias e seus pequenos reinos produzem, reproduzem e fazem circular.
Enquanto isso, histórias proliferam: a instalação por parte da polícia de
um único interruptor de energia na entrada de uma das maiores favelas na Zona
Sul, Vidigal, que pode desligar toda a rede na favela como se o morro inteiro
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XIII
Em 2005, Eleonora e eu escrevemos um texto para um livro alemão
editado por Gabrielle Klein2. Dele, extraio o seguinte excerto:
2
FABIÃO, Eleonora; LEPECKI, André. “Provocations to Performance”. In: Bodies-Cities-
Subjects. Viena: Passagen Verlag, 2005.
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3
Feldman nos lembra que é somente através de uma cegueira estúpida que a teoria crítica Euro-
Norte-Americana recusa perceber a atual Europa e o Ocidente como fascinados com a violência e
constantemente favorecendo a violência. Isso se torna evidente com os britânicos favorecendo o
terror na Irlanda, nas guerras civis, na limpeza étnica no Sudeste Europeu e, mais recentemente,
na atroz invasão do Iraque. Veja o ensaio de Feldman em: SEREMETAKIS, Nadia. The Senses
Still. Chicago: Chicago University Press, 1994.
4
Canção “Fora da Ordem”, de Caetano Veloso, do álbum Circuladô, lançada em 1991.
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XIV
Os tambores do Jongo batem fortes, as vozes cantantes se projetam
ainda mais alto do que o ritmo percussivo. Esperamos, já há uns trinta minutos,
que Aline desça o morro, vinda do centro cultural da favela onde ela tinha obtido
as permissões pedagógicas, espirituais e do crime organizado para dançar. A
entrada do morro é marcada por uma trilha de terra quase invisível e por uns
quatro ou cinco pedregulhos nas margens da rua utilizados pelos traficantes
para bloquear possíveis incursões de pessoas indesejadas (polícia, paramilitares,
outros traficantes, ou, ainda, artistas da Zona Sul com cara de assustados). Era
domingo e, pela primeira vez, sentira mais cedo em Eleonora um ligeiro
nervosismo. Ligeiro. No telefone, dizia ela essa manhã para Aline: “Comece o
ensaio na hora, porque eu vou sair dez minutos antes do pôr do sol”. Há algo de
estranho nesse retorno repentino a um tempo natural para direcionar o nosso
dia. Hoje em dia, só escutamos esse tipo de frase em filmes de Vampiros ou
Zumbis (esteja em casa antes do pôr do sol, senão…!). E agora lá estávamos
nós, de pé, na boca do morro, como se diz por aqui, esperando por Aline, que
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XV
Estamos de volta ao nosso capenga Fiat Uno, 1995. O sol já se pôs e você
sabe como o sol se põe nos trópicos: com um baque, nunca langoroso… Já passa
bem das 17h. Hora dos Zumbis. Vampiros dando suas caminhadas. E nós,
obviamente, estamos perdidos, tentando sair da favela, rodando em círculos,
torcendo para não encontrar os caras do Honda prateado. Finalmente
encontramos a nossa saída para a rodovia que nos levará de volta à Zona Sul. E,
no que entramos na rodovia, um pouco antes da saída para a Zona Sul, debaixo
de uma passarela, não mais alto que eu, em azul-bebê total, estruturado como
uma mini Torre Eiffel, meio que escondido, azul-bebê, não mais alto que um
homem, já mencionei isso?, debaixo da passarela, já comentei que era azul-
bebê?, lá está uma torre de ferro, não mais alta que eu, já disse, e azul-bebê,
azul-bebê esse mini-monumento, essa obra de arte no meio de um espaço de
violência, com uma plaqueta esclarecedora ao lado dizendo: TORRE DA PAZ.
Azul-bebê. Baixinha. Meio escondida. Foi-se. Não tenho nem certeza se existiu
um dia.
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