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Inhumas, ano 1, n. 4, mai.

2013
ISSN 2316-8102

PERMISSÃO PARA DANÇAR


André Lepecki

NOTA DE ANDRÉ LEPECKI


abril de 2013

Este texto foi escrito em fevereiro de 2009 e é baseado em vivências


ocorridas entre maio de 2006 e agosto de 2008. É incerto, no entanto, se tal
cidade alguma vez fez parte do mundo. Poderia quase jurar que sim. Talvez
alguém ainda se lembre dela. Será?

NOTA DA TRADUÇÃO
Nathália Mello

O texto “Permission to Dance”, de André Lepecki, uma das figuras mais


importantes no desenvolvimento internacional da Performance e da Dança, foi
publicado no livro-performance The Swedish Dance History, do qual tomei
conhecimento através de Marten Spangberg, artista que idealizou o projeto de
publicação que aceita textos de qualquer pessoa, sobre qualquer assunto que,
naturalmente e antinaturalmente (para citar Lepecki), pensa o vir-a-ser ou
estar-no-mundo através da ação performática. É fundamental tomar
conhecimento das provocações que esses pensadores propõem. O livro-
performance The Swedish Dance History, Vol. 4 foi lançado no início de 2013: as
festas de lançamento em Manchester e Oslo aconteceram em janeiro. E, em
outro momento, o lançamento na Bahia foi em abril desse mesmo ano.
Ao autor, agradeço pela permissão para traduzir seu ensaio. O texto situa
meus sentimentos atuais, um tanto violentos e ainda à procura de um norte. As

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vistas presentes no texto são semelhantes às que localizo, apesar de apresentar


fatos descritivos de um Rio de Janeiro que talvez já tenha se tornado mais
quente, mais brusco, mais complexo em pouco anos desde a produção desta
intervenção. A tradução é dedicada especialmente para Aline, com carinho e
admiração, pela pesquisa de Orfeu.

PERMISSÃO PARA DANÇAR


André Lepecki

I
Eu estava lá há seis meses. E agora, na sala de estar mal iluminada, um
pouco antes da meia-noite, enquanto ela e eu engatinhávamos freneticamente
para nos escondermos no canto mais próximo – repetindo, pela terceira vez
desde que eu chegara para ficar na cidade por um ano e meio, a mesma dança
infantilizante –, o que me surpreende nesse momento é como tão
imediatamente, sem nos comunicarmos, como que telepaticamente, em
absoluta sincronia, ela e eu (sem nos falarmos ou sequer trocarmos um olhar)
pulamos ambos do sofá de onde assistíamos a um ótimo filme ruim na TV ao
primeiro barulho das armas semiautomáticas lá fora – e, como em velocidade
infinita, zunimos direta e instintivamente, que nem as baratas com quem
dividíamos o nosso apartamento, para o mesmo canto, onde nos amontoamos.

II
Eu estava lá há pouco mais de um ano. Tinha ido buscar a Valentina na
creche por volta das cinco da tarde como de costume. E decidi que, naquela
tarde, como o dia estava tão particularmente belo e fresco e ensolarado e
perfeito, nós não iríamos diretamente para casa, mas daríamos um pulo até à
barraquinha de sucos na esquina a fim de pegar um suco natural de mamão e
laranja para ela e um de melancia para mim. Empurrando o carrinho de
Valentina, reparo num rapaz se esforçando para abrir a porta de seu carro
estacionado. E então, de modo estranho, a ignição do carro é acionada, mesmo

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com o rapaz do lado de fora ainda tentando abrir a porta. E então escuto,
enquanto me aproximo cada vez mais dele, agora não mais do que uns três
metros de distância dele, o que o cara está dizendo, contido e agressivamente
enquanto ainda tenta abrir a porta do carro, para alguém do lado de dentro: “Vai
levar ferro, você vai levar ferro”. Somente naquele momento vejo o cano
prateado da sua pistola automática .44 batendo na janela do carro. O automóvel
então arranca pela rua erraticamente, ou, talvez, freneticamente, e ainda estou
caminhando em direção ao cara parado no passeio com um jeito meio bobo e
sua arma cintilante na mão, e eu ainda empurrando o carrinho com a Valentina,
e agora estamos a não mais de dois metros do cara com sua .44. Torno-me
bidimensional – como num desenho animado, giro instantaneamente, carrinho
e tudo, 180 graus em menos de um segundo, dando as costas para o rapaz,
empurrando Valentina para longe da eventual linha de fogo. Enquanto subo a
rua, fico pensando se deveria discretamente sinalizar para o porteiro da creche
informando que há um cara com uma arma de fogo na mão tentando assaltar
um carro, mas prefiro seguir o refrão que todos repetem nesta cidade no caso de
uma situação como está acontecer (e elas vão acontecer, todos me garantem):
“Mantenha a calma, cale a boca e saia”. Nada de suco hoje.

III
Eu estava lá há um mês. Encontramos um amigo em nossa rua que
comenta sobre os tiroteios à noite, e como o governador do Estado e esse
traficante específico dessa favela particular estão mancomunados. Ele também
menciona como um vizinho no seu prédio (nesta cidade, todos os prédios têm
que ter um nome, e este se chama “Três Mosqueteiros”) estava mudando a
fralda do seu bebê quando uma bala perdida alojou-se no seu braço esquerdo.

IV
Faz um mês, desde o episódio do assaltante de carro, com sua .44, e eu
empurrando a Valentina no seu carrinho em direção a ele, e tornando-me um
desenho animado. Agora é Helane quem entra correndo em nosso apartamento
depois de deixar Valentina na creche. Soluça: “É a primeira vez que vejo um

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homem morto”. As notícias são: um rapaz tenta levar a bolsa de uma mulher à
mão armada na rua da escola de Valentina. Um pedestre conseguiu agarrá-lo,
pegar a arma, e atirar duas vezes na cabeça do rapaz. As pessoas na rua
ajudaram o atirador a fugir: a justiça fora feita. O corpo ficou deitado ali,
pedacinhos de cérebro espalhados por todo lado (uma especiaria para os
pássaros), esperando pela chegada da polícia. Dizem que esse jovem matou, há
uns anos, uma adolescente no ônibus, não muito longe daquela rua. A justiça
tarda mas não falha – como dizem nesta cidade.

V
São cinco horas da tarde do mesmo dia, o corpo sumiu, mas o sangue, o
toco de uma vela (quem a teria colocado ali?) e um tênis solitário marcam a rua.
Presume-se que talvez os pássaros – ou algum gato ou cachorro vira-lata –
tenham lambido os pedacinhos de cérebro que se espalharam depois dos dois
tiros certeiros na cabeça. De qualquer modo, boatos também se espalham e são
consumidos, fluindo como outro tipo de sangue, bombeando o sistema nervoso
da cidade. Meu cunhado, que vive e trabalha noutra parte da cidade, soube
quase instantaneamente do tiroteio fatal na nossa vizinhança. Ele confirma,
através do celular, crepitando que o homem morto matara, à queima-roupa,
uma menina de catorze anos num ônibus, uns dez anos atrás, a algumas
quadras do lugar onde encontrou o seu próprio fim. Teria sido liberto da prisão
recentemente. Não faço a menor ideia de como palavras conseguem circular tão
rapidamente. Lembro de ter lido, em algum lugar, que cada gota de sangue
circulando em nosso corpo sai e regressa ao coração em apenas um minuto.
Velocidades, palavras, balas. A Vingança é cega. Cega como a Justiça? Crianças e
seus pais saindo da creche como sempre. É um dia bonito, mesmo que o calor
esteja apertando.

VI
Uma citação de um antigo professor, que acho relevante neste
momento:

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Mas uma coisa era clara. O que importava para o terror


era como ele era passado de boca em boca através de
uma nação, de página a página, de imagem a corpo.
Havia suficiente verdade. E aqui estava eu, implicado
nessa mesma corrente.1

VII
O sangue permanece ali até sábado, quando uma daquelas chuvas de
verão o lavam, mais ou menos, você pode ainda vislumbrar alguns traços, se
quiser…

VIII
Eu estava lá há nove meses. Eleonora é professora na Universidade
Federal do Rio de Janeiro no programa de Direção Teatral. Uma de suas
orientandas do 4º período está desenvolvendo um projeto de adaptação de Orfeu
para uma peça de dança-teatro, baseada em uma forma de dança afro-brasileira
chamada “Jongo”, uma dança sagrada, executada por poucos atualmente. Na
Favela da Serrinha, em Madureira, uma senhora idosa ensina a tradição do Jongo
para alguns poucos selecionados. Aline, a estudante, vai até a favela, se
apresenta à senhora, pede permissão para aprender a tradição, explicando que
será, no entanto, usada no contexto das artes e teatro. A senhora diz que tudo
bem por ela, mas que Aline deveria somente prosseguir com o projeto se os
Orixás concedessem suas permissões e bênçãos. Aline retorna dias depois à
favela para consultar o Pai de Santo. O espírito chega. Ela fala do projeto
artístico ao espírito, pedindo permissão para aprender a dança. O espírito
responde que tal pedido não é da sua alçada e que Aline deveria retornar um
outro dia para consultar um outro espírito. É como se o mundo dos espíritos
espelhasse a infinita burocracia brasileira. Ou, talvez, vice-versa. De qualquer
jeito, é injusto dizer isso, pois, quando Aline retorna pela segunda vez, o espírito
certo estava presente e deu sua permissão e bênção ao projeto, reconhecendo a
importância de perpetuar e divulgar o Jongo. A burocracia brasileira, como todo
mundo sabe, requer pelo menos três visitas para se ter alguma coisa resolvida.

1
TAUSSIG, Michael. The Nervous System. Londres: Routledge, 1993.

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IX
Dois dias depois, com permissões da mestre e do espírito responsável,
Aline completou o processo de obtenção de todas as autorizações necessárias
para iniciar seus ensaios, dirigindo-se à última autoridade que ainda necessitava
ser consultada, e cuja aprovação estava ainda pendente: o chefe do tráfico da
favela. Era a ele que ela deveria pedir permissão para que os atores, sua
orientadora Eleonora e ela mesma pudessem entrar na favela e aprender a
dança enquanto ensaiavam para a peça. Mas também era para ele que Aline
deveria, mais uma vez, explicar o seu conceito artístico e certificar-se de que
seria OK para o tráfico ter este tipo de projeto cultural na favela. No encontro, os
traficantes deram seu consentimento, pois acharam que seria uma boa maneira
de divulgar de modo mais amplo as suas preocupações culturais na comunidade.

X
Eu estava lá há duas semanas. Descendo a rua das Laranjeiras, em nosso
Fiat Uno capenga, modelo 1995, sou pego de surpresa pela seguinte frase da
Eleonora, enquanto ela trocava de marcha e pisava no acelerador para evitar que
os ônibus nos atacassem pelos dois lados: “Você fica muito impressionado com
essa coisa de arma. Você tem que se acostumar mais com isso”. Dez anos antes,
ela tinha sido aleatoriamente sequestrada durante oito horas, à mão armada,
por dois homens que também sequestraram sua família por várias horas. No
instante em que iam escapar, um deles quis levá-la como refém. Ela pediu que
eles a matassem ali mesmo na rua. O outro cara, por algum motivo, convenceu o
cúmplice a deixá-la viver e fugiram no carro da família.

XI
Eu estava lá há nove meses. É 29 de fevereiro, o mais raro dos dias. É o
aniversário de quarenta anos de Eleonora e saímos os dois para jantar num
restaurante fantástico em Santa Teresa, com uma vista sobre toda a Baía de
Guanabara. A noite não podia ser mais espetacular. No restaurante, a dona, ela
mesma nos cumprimenta, e certifica-se de que temos a melhor mesa – uma

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mesa solitária, posta numa varanda aberta para a cidade, sob uma fragrante
Dama da Noite, um garçom só para nós, a postos, atento para quando
tocássemos nosso sininho. Parece que somos os únicos clientes brasileiros no
restaurante. E, de ambos os lados, sob estrelas deslumbrantes e, acima das
luzes cintilantes da cidade, o chacoalhar das metralhadoras repercute em
sincopados e belos ritmos: rattatataattata. Rattarrtarrattatata. Chamada e
resposta em efeito estereofônico, balas tracejantes como estrelas cadentes
invertidas. Tão cafona e natural e antinatural como esta descrição. Nosso
garçom aproxima-se com um jeito de mordomo e gentleman, e nos assegura em
tom calmo: “Eu gostaria de informar a vocês que servi o exército brasileiro por
quinze anos, me reformei com a patente de capitão, e queria assegurar que não
há nenhuma possibilidade de uma bala perdida os atingir aqui”. Recomendou
então uma cachaça vintage para acompanhar a entrada e a especialidade da
casa como prato principal: Vatapá. Rima com Raattatta.
Rattattataaaatatttaaaaa.

XII
Sabemos que não estamos ali realmente, não no centro de tudo, e que a
maioria das balas não são dirigidas a nós — mas à polícia, às milícias
paramilitares e aos traficantes. Mas essas balas, o espetáculo dessas balas, as
atrocidades que cada uma delas comete e representa (porque também há
representação em tudo isso, e muita, e é justamente nesse lugar que o horror se
encontra, na questão do uso de morte e do terror para a criação de todo um
sistema de representação e autorrepresentação mirando a política, o poder e o
dinheiro), cria um sistema nervoso (para citar a feliz expressão de Michael
Taussig) que é necessariamente um projeto biopolítico. Especialmente quando
sabemos que o sistema político, em níveis mais altos e mais baixos, é
completamente dependente do dinheiro e terror que os traficantes, polícias,
milícias e seus pequenos reinos produzem, reproduzem e fazem circular.
Enquanto isso, histórias proliferam: a instalação por parte da polícia de
um único interruptor de energia na entrada de uma das maiores favelas na Zona
Sul, Vidigal, que pode desligar toda a rede na favela como se o morro inteiro

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fosse um quarto em algum apartamento pertencente ao aparelho estatal; a


construção (por parte da milícia ou do tráfico, as versões variam) de um paredão
circundando uma outra favela, no Complexo do Alemão (um dos nomes mais
extraordinários para um conglomerado de favelas que, por enquanto, terá que
ficar sem comentário…); e a instalação de um ÚNICO PORTÃO com uma ÚNICA
CHAVE para entrada e saída da favela. Se você não tem a chave, você não entra.
E depois das 21h é melhor se cuidar. Outra história, ainda dos jornais: a invasão
de um pequeno ponto de tráfico na Ilha do Governador por traficantes de uma
outra facção, que incluiu como líder, segundo as narrativas, um Capitão
Paraquedista aparentemente ainda na ativa, e como um dos “soldados” um
Assistente do Secretário Municipal do Meio Ambiente. Ambos casados, com
seus salários, filhos, empregados com honra por instituições estatais e, até
mesmo, ao que tudo indica, preocupados com o meio ambiente.

XIII
Em 2005, Eleonora e eu escrevemos um texto para um livro alemão
editado por Gabrielle Klein2. Dele, extraio o seguinte excerto:

Estamos conscientes do perigo incorporado ao tipo de


discurso que temos proposto até agora. Estamos
conscientes das histerias e histrionismos associados ao
gesto de trazer discursivamente para primeiro plano a
violência numa cidade como o Rio de Janeiro, uma cidade
guiada por tantas outras forças diferentes. Estamos
cansados da exposição da violência no discurso crítico,
como se a violência validasse a “verdade” analítica do
argumento, ao posicionar as vozes dos autores para lá da
crítica. A violência torna-se um rito de passagem
fetichista e atraente para o crítico-teórico e também para
o artista performático; uma espécie de selo de garantia
para um modo supostamente aventureiro de estar-no-
mundo, distante de estúdios livrescos e lugares
privilegiados como teatros, galerias e universidades.
Como Allen Feldman escreveu, tão eloquentemente, a
teoria crítica Euro-Norte-Americana faz para si mesma

2
FABIÃO, Eleonora; LEPECKI, André. “Provocations to Performance”. In: Bodies-Cities-
Subjects. Viena: Passagen Verlag, 2005.

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um lar ao posicionar a violência dentro de um gueto como


sendo um problema típico de lugares distantes e outros:
“a violência conectada e definindo o Outro cultural
confirma o estatuto excepcional da periferia histórica e
geográfica” 3 . Estamos conscientes do perigo e não
queremos reproduzir essa besteira. É por isso que
escolhemos os seguintes versos de Caetano Veloso como
epígrafe deste nosso texto:

Aqui tudo parece


Que era ainda construção
E já é ruína
Tudo é menino, menina
No olho da rua
O asfalto, a ponte, o viaduto
Ganindo prá lua
Nada continua…
E o cano da pistola
Que as crianças mordem
Reflete todas as cores
Da paisagem da cidade
Que é muito mais bonita
E muito mais intensa
Do que no cartão postal…
Alguma coisa
Está fora da ordem
Fora da nova ordem Mundial… (4x)4

Seus versos nos lembram que, mesmo enquanto crianças


mordem canos de pistolas, essas pistolas refletem uma
paisagem hiperbolicamente bela, a qual não é passível de
ser devidamente representada — uma paisagem povoada
obviamente por homens e mulheres e crianças e artistas
e bandidos e agentes municipais e policiais e amigos e
trabalhadores e mendigos e espíritos que são muito mais
complexos, intensos, alegres, inteligentes, sensíveis e
vivos do que cartões-postais e manchetes e ensaios
acadêmicos como este, alguma vez, conseguirão os
representar. Mas o problema é que Caetano está certo:
pistolas estão ali, o que significa que estão aqui, e as

3
Feldman nos lembra que é somente através de uma cegueira estúpida que a teoria crítica Euro-
Norte-Americana recusa perceber a atual Europa e o Ocidente como fascinados com a violência e
constantemente favorecendo a violência. Isso se torna evidente com os britânicos favorecendo o
terror na Irlanda, nas guerras civis, na limpeza étnica no Sudeste Europeu e, mais recentemente,
na atroz invasão do Iraque. Veja o ensaio de Feldman em: SEREMETAKIS, Nadia. The Senses
Still. Chicago: Chicago University Press, 1994.
4
Canção “Fora da Ordem”, de Caetano Veloso, do álbum Circuladô, lançada em 1991.

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crianças as mordem sim. De modo que, se certamente


não queremos caracterizar este nosso ensaio como mais
uma exposição histérica de um atraente rito de
passagem para a teoria crítica, queremos, no entanto,
sim, reivindicar que lógicas específicas de vida e lógicas
específicas de violência estão em jogo em lugares
específicos do mundo, e que essas lógicas de vida e
violência implicam atentar a outros tipos de relação com
elementos com os quais a performance lida diretamente:
temporalidade, carne, biopolítica, a força performativa da
linguagem, a produção de subjetividades e corpos, de
corpos sem órgãos, de processos afirmativos de devir, de
usos de potências e violência, de noções de presença e
efemeridade.
Para nós, a questão é: dada a especificidade da situação,
qual é “o trabalho concreto da participação” (para usar a
expressão de Randy Martin) ao se produzir um texto
sobre performance e o político, sobre a teoria
performática em relação ao político, e o que poderia esse
trabalho oferecer à condição geral de se fazer
performance e se pensar teoria performática nesta
cidade?

XIV
Os tambores do Jongo batem fortes, as vozes cantantes se projetam
ainda mais alto do que o ritmo percussivo. Esperamos, já há uns trinta minutos,
que Aline desça o morro, vinda do centro cultural da favela onde ela tinha obtido
as permissões pedagógicas, espirituais e do crime organizado para dançar. A
entrada do morro é marcada por uma trilha de terra quase invisível e por uns
quatro ou cinco pedregulhos nas margens da rua utilizados pelos traficantes
para bloquear possíveis incursões de pessoas indesejadas (polícia, paramilitares,
outros traficantes, ou, ainda, artistas da Zona Sul com cara de assustados). Era
domingo e, pela primeira vez, sentira mais cedo em Eleonora um ligeiro
nervosismo. Ligeiro. No telefone, dizia ela essa manhã para Aline: “Comece o
ensaio na hora, porque eu vou sair dez minutos antes do pôr do sol”. Há algo de
estranho nesse retorno repentino a um tempo natural para direcionar o nosso
dia. Hoje em dia, só escutamos esse tipo de frase em filmes de Vampiros ou
Zumbis (esteja em casa antes do pôr do sol, senão…!). E agora lá estávamos
nós, de pé, na boca do morro, como se diz por aqui, esperando por Aline, que

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está atrasada, naturalmente, e nós de pé em frente a uma parede pintada de


verde e de árvores e borboletas, mesmo em frente à boca, esperando que o fato
de sermos tão obviamente de fora dali não seja notado. E acreditando que o fato
de estarmos em frente a essa parede na qual se lê, por entre suas borboletas e
árvores, a palavra CULTURA, de alguma maneira nos protegeria – bem como
toda nossa inocência e boas intenções, das quais, como sabemos, o inferno está
cheio. À nossa frente, dois garotos, um com não mais que treze anos e o outro
talvez com oito, olhando, zombando e falando alto: “Hoje alguém vai levar ferro!
Tô sentindo ferro!”. O mais velho olhando, sacaneando e se certificando de que
enxergamos a coronha do revolver saindo de dentro das suas calças. Aline chega
e subimos o morro. Batuques, batuques. Cerveja. Crianças, cerveja e um total
sentimento de despertencimento. Orfeu e Eurídice e a eterna questão de saber
por que raios ele teve que olhar para trás, o idiota? E o sol cruzando
velocissimamente o céu, e agora já é o pôr do sol, e estamos sendo levados
novamente morro abaixo, não temos permissão para descer sozinhos, temos
sempre que ter alguém que “nos apresente” caso haja perguntas. Cerveja,
crianças, cerveja, uma quase-briga entre dois velhos engraçados, alguns nos
olham curiosos, outros nos olham para nos tornar invisíveis. Quando chegamos
à saída da favela, de volta ao muro verde e suas borboletas e flores, notamos,
com alívio, que os quatro ou cinco pedregulhos estavam ainda à margem da rua.
E então Hollywood: um Honda prateado para na nossa frente, pneus chiando,
hip-hop berrando, quatro caras dentro com óculos escuros bem escuros; os dois
garotos que antes estavam zombando de nós, pulam em direção ao carro
gritando alguma coisa para o motorista do tipo “eles seguiram naquela direção,
foram por aquela rua”, e apontando para o fim da rua; o motorista se enfurece
com a informação e reconfirma com os garotos o que acabam de lhe transmitir;
enquanto o faz, o cara sentado no banco logo atrás dele saca uma arma
semiautomática de cano duplo prateada e a posiciona visivelmente do lado de
fora da janela, enquanto agora o carro faz chiar os pneus e zune em sensurround
em direção ao seu destino no topo da rua. Como em um bom filme ruim tarde da
noite, Vida e Arte se fundem sob a força de pura violência.

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XV
Estamos de volta ao nosso capenga Fiat Uno, 1995. O sol já se pôs e você
sabe como o sol se põe nos trópicos: com um baque, nunca langoroso… Já passa
bem das 17h. Hora dos Zumbis. Vampiros dando suas caminhadas. E nós,
obviamente, estamos perdidos, tentando sair da favela, rodando em círculos,
torcendo para não encontrar os caras do Honda prateado. Finalmente
encontramos a nossa saída para a rodovia que nos levará de volta à Zona Sul. E,
no que entramos na rodovia, um pouco antes da saída para a Zona Sul, debaixo
de uma passarela, não mais alto que eu, em azul-bebê total, estruturado como
uma mini Torre Eiffel, meio que escondido, azul-bebê, não mais alto que um
homem, já mencionei isso?, debaixo da passarela, já comentei que era azul-
bebê?, lá está uma torre de ferro, não mais alta que eu, já disse, e azul-bebê,
azul-bebê esse mini-monumento, essa obra de arte no meio de um espaço de
violência, com uma plaqueta esclarecedora ao lado dizendo: TORRE DA PAZ.
Azul-bebê. Baixinha. Meio escondida. Foi-se. Não tenho nem certeza se existiu
um dia.

PARA CITAR ESTE TEXTO


LEPECKI, André. “Permissão Para Dançar”. eRevista Performatus,
Inhumas, ano 1, n. 4, mai. 2013. ISSN: 2316-8102.

Tradução do inglês para o português de Nathália Mello


Revisão da Tradução de André Lepecki
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2013 eRevista Performatus e o autor

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