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Esta obra procura aprofundar alguns assuntos


específicos e indispensáveis, como os direitos
das crianças e dos adolescentes, dos idosos,
das pessoas com deficiência e discutir questões
relacionadas à diversidade étnico-racial, religiosa,
de gênero e LGBT.
A leitura deste livro sobre direitos humanos e
relações é­ tnico-raciais é muito importante para o
a sua formação acadêmica e, principalmente, para
a construção de sua condição de cidadão, já que
vivemos em sociedade e precisamos aprender a
conviver em harmonia, respeitando as diferenças.

Fundação Biblioteca Nacional


Código Logístico
ISBN 978-85-387-6462-5

57937 9 788538 764625


Direitos humanos
e relações étnico-raciais

Gisele Echterhoff
Claudia Amorim
Marcos Dias de Araújo
Mariana Paladino

IESDE BRASIL S/A


2018
© 2018 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor
dos direitos autorais.
Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Evgeny Gromov/iStockphoto.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
D635
Direitos humanos e relações étnico-raciais / Gisele Echterhoff ...
[et al.]. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE Brasil, 2018.
246 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6462-5

1. Direitos humanos. I. Echterhoff, Gisele. II. Título.


18-5014 CDU:347.2

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Gisele Echterhoff
Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Especialista
em Direito Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Graduada em Direito pela PUCPR.
Assessora no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Professora de graduação e pós-graduação
em Direito e autora de artigos e livros.

Claudia Amorim
Pós-doutora em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo
(USP). Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Mestre em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Especialista em
Literatura Portuguesa e graduada em Letras Português – Literaturas de Língua Portuguesa pela
UFRJ. Professora do ensino superior e autora de livros sobre literatura africana.

Marcos Dias de Araújo


Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado em
História pela UFPR. Professor de História do Brasil, Relações Internacionais e História da Arte em
cursos de graduação e pós-graduação. Autor de artigos e livros.

Mariana Paladino
Doutora em Antropologia e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduada em Antropologia pela Universidad Nacional de La Plata,
Argentina. Atua nos seguintes temas: educação, interculturalidade, ações afirmativas, políticas in-
digenistas e relações interétnicas.
Sumário

Apresentação 9

1 Noções gerais de direitos humanos 11


1.1 A evolução histórica dos direitos humanos 11
1.2 A Declaração Universal dos Direitos Humanos e os organismos internacionais
de proteção aos direitos humanos 19
1.3 Os direitos humanos no âmbito nacional: da Constituição Federal de 1988 aos
sistemas de proteção aos direitos humanos 24

2 Dos direitos das crianças e dos adolescentes 31


2.1 A proteção dos direitos da criança e do adolescente em âmbito
internacional 31
2.2 ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente 36
2.3 Combate ao trabalho infantil e à pedofilia 41

3 Dos direitos das pessoas com deficiência e dos idosos 55


3.1 Pessoas com deficiência: inclusão social, acessibilidade, planos e
programas 55
3.2 Pessoas idosas: o estatuto do idoso, qualidade de vida e proteção 60
3.3 Cuidados especiais e combate à violência 66

4 Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 75


4.1 Preconceito, racismo e desigualdades no Brasil – questões étnico-raciais 75
4.2 Diversidade religiosa: o direito à liberdade de consciência, crença e religião 83
4.3 Equidade de gênero, direitos da mulher e Lei Maria da Penha 88
4.4 Direitos da população LGBT, enfrentamento e combate ao preconceito, à
discriminação e à violência 95

5 Direitos para todos e combate às violações e ao trabalho escravo 105


5.1 Direitos para todos e políticas públicas 105
5.2 Defesa dos direitos humanos e combate às violações 112
5.3 Combate ao trabalho escravo 116
6 Direitos humanos e sua correlação com a bioética 123
6.1 Conceitos elementares: biotecnologia, bioética e biodireito 123
6.2 Reprodução artificial e alguns aspectos polêmicos 127
6.3 O código genético humano 131

Gabarito 141

Referências 149

7 Conceitos de raça, etnia e identidade cultural e nacional 161


7.1 Raça 161
7.2 Etnia 165
7.3 Identidade nacional e múltiplas identidades 167
7.4 A identidade nacional brasileira 172

8 A África lusófona: um pouco de história 175


8.1 Breve panorama histórico da África lusófona 175
8.2 A colonização das ilhas do Atlântico e da Costa africana 176
8.3 O Império Colonial português nas ilhas e nas terras africanas 177
8.4 A independência dos cinco países africanos lusófonos 178
8.5 A República portuguesa e o golpe militar de 1926 178
8.6 A criação dos movimentos pela independência das colônias na África
portuguesa 180

9 A África lusófona e o Brasil: laços e letras 183


9.1 Os africanos no Brasil: um pouco de história 183
9.2 Identidades e diferenças entre as culturas do Brasil e dos países africanos
lusófonos 190
9.3 Estudos afro-brasileiros na contemporaneidade 193

10 História e historiografia indígena 197


10.1 O sistema colonial e missionário (1549-1755) 197
10.2 Descobrimento, encontro ou conquista? 198
10.3 Os aldeamentos e a escravização indígena 199
10.4 As imagens sobre os índios nos séculos XVIII, XIX e XX 206
11 Situação contemporânea dos povos indígenas 211
11.1 Quem são e quantos são os povos indígenas hoje no Brasil 211
11.2 Diversidade linguística e cultural 215
11.3 Formas de organização social e parentesco 216
11.4 Economias indígenas 217
11.5 Religiões indígenas 218

12 Políticas de ações afirmativas, políticas curriculares e currículo 221


12.1 As questões demográficas e raciais do Brasil 221
12.2 Ações afirmativas no mundo 226
12.3 Ações afirmativas no Brasil 228
12.4 Políticas curriculares 229
12.5 Currículo 233

Gabarito 237

Referências 241
9

Apresentação

Você está iniciando a leitura de um livro que é muito importante para a sua formação acadê-
mica e, principalmente, para a construção de sua condição de cidadão. Estudar direitos humanos e
relações étnico-raciais é de extrema relevância para a formação de um verdadeiro cidadão, já que
vivemos em sociedade e precisamos aprender a conviver em harmonia, respeitando as diferenças.

O objetivo desta obra é fornecer uma noção geral sobre esses temas, procurando aprofundar
alguns assuntos específicos e indispensáveis, como os direitos das crianças e dos adolescentes, dos
idosos, das pessoas com deficiência e discutir questões relacionadas à diversidade étnico-racial,
religiosa, de gênero e LGBT.

A obra está dividida em duas partes: a primeira (capítulos 1 a 6) trata sobre os direitos hu-
manos de forma mais ampla, já a segunda (capítulos 7 a 12) trata, especificamente, das relações
étnico-raciais.

No Capítulo 1 são dadas noções gerais sobre os direitos humanos e apresentada um pouco da sua
história, além das leis e dos sistemas de proteção aos direitos humanos. O Capítulo 2 foca nos direitos
das crianças e dos adolescentes, no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e no combate ao traba-
lho infantil e à pedofilia. Os direitos das pessoas com deficiência e dos idosos são tratados no Capítulo 3,
que discute a importância da inclusão social e de programas de acessibilidade. Na sequência, o Capítulo
4 aborda de forma ampla a diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT. São tratados temas
como preconceito, racismo, diversidade religiosa, equidade de gênero e direitos da população LGBT.
O combate às violações e ao trabalho escravo são temas do Capítulo 5. Por fim, o Capítulo 6 discute
aspectos polêmicos da bioética, como a reprodução artificial.

O Capítulo 7, que inicia a segunda parte deste livro, problematiza os conceitos de raça, etnia
e identidade cultural e nacional, com o objetivo de discutir o que seria a identidade nacional brasi-
leira. Os Capítulos 8 e 9 tratam sobre a história e cultura da África lusófona, procurando relacionar
a cultura dos povos africanos com a do povo brasileiro. Já a história e a cultura dos povos indígenas
são apresentadas nos Capítulos 10 e 11. Fechando o livro, o Capítulo 12 discute as políticas de ações
afirmativas e as políticas curriculares relacionadas às questões étnico-raciais.

Bons estudos!
1
Noções gerais de direitos humanos

Gisele Echterhoff

Não raro, ao iniciar uma disciplina que não seja diretamente relacionada ao curso, os alunos
ouvem de seus professores a importância da interdisciplinaridade. Isso não será diferente em rela-
ção a essa obra, tendo em vista a importância do conhecimento de noções gerais de direitos huma-
nos, que vai muito além da necessidade decorrente do exercício profissional, pois está diretamente
relacionada ao exercício da cidadania.
Este capítulo examinará noções gerais sobre o tema e adentrará em aspectos históricos de
maior relevância, além de analisar alguns diplomas e organismos internacionais que visam à pro-
teção desses direitos para, ao final, analisar a legislação nacional.

1.1 A evolução histórica dos direitos humanos


Qualquer estudo sobre a concepção de direitos se inicia pela ideia central da origem da so-
ciedade e da consequente necessidade de se estabelecer regras de conduta para convivência.
Por diversas vezes ouvimos a afirmação de que o ser humano é, por natureza, um ser social,
e como tal, sente a necessidade de viver em grupos. A vida em sociedade se torna cada vez mais
necessária quando se constata que é mais fácil dividir tarefas e congregar esforços para conquistar
qualidade de vida.
Porém, a vida em sociedade, por menores que sejam esses grupos sociais, gera conflitos. Nas
civilizações mais antigas e rudimentares, esses conflitos, em regra, eram solucionados por meio da
força bruta, gerando ainda mais desavenças e violência. Aos poucos – até mesmo em razão da com-
plexidade da vida em sociedade – o ser humano percebeu a necessidade de se estabelecer regras de
conduta para uma melhor convivência.
Por esta breve contextualização se visualiza o nascedouro do Direito, aqui tomando a pala-
vra pelo seu sentido mais leigo, como sinônimo de leis, regras e normas de conduta.
Continuando, como que criando uma história em quadrinhos, podemos imaginar que, cer-
tamente, alguém tomou as rédeas da criação dessas normas, e de forma justa ou injusta, correta
ou não, legítima ou não, passou a estabelecer as regras de convivência de determinada sociedade.
Ainda – como não é impossível de acontecer –, esse alguém (um soberano, um impera-
dor, um governante etc.) passou a, inevitavelmente, atender aos seus próprios interesses e aos de
seus semelhantes, provocando situações de exploração dos demais indivíduos, suscitando revolta
e, possivelmente, situações de violência e opressão.
Essa historinha, aparentemente simples, demonstra com clareza situações de abuso de
poder que são a primeira fonte dos direitos humanos (também chamados direitos humanos
12 Direitos humanos e relações étnico-raciais

de primeira geração), que surgem exatamente como forma de limitar o poder dos soberanos e
garantir direitos mínimos ao restante da população. Após essa contextualização, passemos a
uma análise mais técnica.
Iniciar o estudo sobre os direitos humanos exige uma conceituação da expressão. De acordo
com a ONU Brasil: “Os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, inde-
pendentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição”.
Incluem-se “o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao traba-
lho e à educação, entre e muitos outros. Todos e todas merecem estes direitos, sem discriminação”.
Os direitos humanos são considerados aqueles essenciais ao ser humano, que existem em
razão da natureza humana.
João Baptista Herkenhoff (1994, p. 30) assim conceitua direitos humanos:
Por direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente, entendidos
aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por
sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos
que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são
direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir.

Embora a expressão direitos humanos seja a mais utilizada, é necessário observar que há
outras denominações. É comum usar expressões como direitos naturais, direitos públicos subjetivos,
liberdades públicas, direitos morais, direitos dos povos, direitos do homem, direitos fundamentais,
dentre outros.
As terminologias mais utilizadas são direitos humanos e direitos fundamentais. Todavia, mes-
mo que a distinção não seja tão relevante na atualidade, estas expressões não são consideradas, em
si, como sinônimas. A expressão direitos humanos se refere àqueles direitos no âmbito da ordem
internacional, independentemente do reconhecimento por um ordenamento jurídico específico,
possuindo caráter supranacional. A par disso, a denominação direitos fundamentais “se aplica para
aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional po-
sitivo de determinado Estado” (SARLET, 2005, p. 35-36).
Partindo para a evolução histórica dos direitos humanos como direitos essenciais à proteção
do ser humano, por evidência que estes não surgiram todos somente em um momento da histó-
ria, tendo sido frutos da evolução da civilização humana e, em especial, em razão da limitação do
poder político.
Da mesma forma, não se pode afirmar que a teoria dos direitos humanos já era concebida
na Antiguidade, pelo contrário, a sua concepção tal qual conhecemos na atualidade é muito mais
produto dos acontecimentos decorrentes da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Todavia, a proteção da pessoa humana já era conhecida na Antiguidade, sendo, em especial,
tratada por filósofos como Zaratustra, na Pérsia; Buda, na Índia; Confúcio, na China; Dêutero-
-Isaías, em Israel, além de Platão e Aristóteles, na Grécia. No âmbito normativo, também é possível
apontar várias legislações que já demonstravam preocupação com a proteção desses direitos, den-
tre eles, por exemplo, o Código de Hammurabi (1792-1750 a.C.), considerado o primeiro código
de normas de condutas, preceituando esboços de direitos como o direito à vida, à propriedade e
Noções gerais de direitos humanos 13

à honra; além da Lei das Doze Tábuas na República Romana, que veio estipular uma lei escrita
como regente das condutas. O direito romano também consagrou vários direitos, como o da pro-
priedade, da liberdade, da personalidade jurídica, entre outros (RAMOS, 2015, p. 32-34).
Segundo Ramos (2015), o cristianismo teve grande influência na proteção da pessoa huma-
na, em especial ao apregoar que o homem é criado à imagem e semelhança de Deus. Necessário
lembrar também os filósofos católicos, como São Tomás de Aquino, que defendia a igualdade dos
seres humanos e a aplicação justa da lei.
Foi na Idade Média que se iniciou a luta pela limitação do poder político, pois na Europa o
poder dos governantes ainda era ilimitado e fundado na vontade divina. Foi nessa época que surgi-
ram os primeiros movimentos de reivindicação de liberdades, dos quais provêm a Declaração das
Cortes de Leão, adotada na Península Ibérica em 1188 e a Magna Carta inglesa, de 1215.
André de Carvalho Ramos ressalta que a Magna Carta continha um ingrediente “essencial
ao futuro do regime jurídico dos direitos humanos: o catálogo de direitos dos indivíduos contra o
Estado” (RAMOS, 2015, p. 36-37). Claro que o documento possuía um caráter elitista, pois prote-
gia o baronato inglês contra os abusos do monarca João Sem-Terra, mas já era o início da luta pela
limitação do poder político. Salienta o autor que, embora seu foco seja a elite fundiária, a Magna
Carta já traz a ideia de governo representativo, além de reconhecer direitos como o de ir e vir em
situação de paz, de ser julgado pelos seus pares, de acesso à Justiça e proporcionalidade entre o
crime e a pena.
Após a crise da Idade Média e o questionamento dos estados absolutistas, o poder soberano
do rei se tornou cada vez mais limitado. Exemplo disso é a Petition of Right (Petição de Direitos), de
1628, por meio do qual o baronato inglês novamente impõe limites ao poder do rei em relação à co-
brança de impostos, tornando-o dependente de autorização do Parlamento. Esse documento ainda
estabeleceu que “nenhum homem livre podia ser detido ou preso ou privado dos seus bens, das
suas liberdades e franquias, ou posto fora da lei e exilado ou de qualquer modo molestado, a não
ser por virtude de sentença legal dos seus pares ou da lei do país” (RAMOS, 2015, p. 37-38), sendo
o embrião do devido processo legal. Também na Inglaterra, surge a Declaração de Direitos (a Bill
of Rights de 1689) da Revolução Gloriosa, que reduziu o poder dos reis ingleses de forma definitiva.
Essa declaração estabeleceu a necessidade de respeito à vontade da lei – superior em relação à von-
tade do soberano – e reafirmou o poder do Parlamento, cujos membros eram livremente eleitos.
Entre os filósofos mais importantes que debateram o tema, Ramos (2015) cita Hobbes,
Grócio, John Locke, Rousseau e, em especial, Kant (já no final do século XVIII), que defendeu a
existência da dignidade intrínseca a todo ser racional, que não tem preço ou equivalente, não po-
dendo o ser humano ser tratado como um meio, mas, sim, como um fim em si mesmo – concepção
atualmente importante para o regime jurídico dos direitos humanos.
Foram as revoluções liberais inglesa, americana e francesa e as suas respectivas declarações
de Direitos que trouxeram a afirmação histórica dos direitos humanos.
Já falamos da Revolução Inglesa e do Bill of Rights de 1689. A Revolução Americana, por sua
vez, deu origem ao processo de independência das colônias britânicas na América do Norte, com a
14 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Declaração de Independência dos Estados Unidos de 04 de julho de 1776, estipulando que “todos
os homens são criados iguais, sendo-lhes conferidos pelo seu Criador certos Direitos inalienáveis.
Que para garantir estes Direitos, são instituídos Governos entre os Homens, derivando os seus
justos poderes do consentimento dos governados” (RAMOS, 2015, p. 42).
Foi a partir da independência dos Estados Unidos da América que surgiu a primeira constituição
do mundo, a Constituição Norte-Americana de 1787 e, com ela, a era do constitucionalismo liberal.
A Revolução Francesa fez surgir a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão,
adotada pela Assembleia Nacional Constituinte francesa em 27 de agosto de 1789, sendo conside-
rada o marco para a proteção dos direitos humanos no plano nacional. A realidade social de desi-
gualdade, o privilégio das castas e a insensibilidade das elites fizeram surgir motins populares que
resultaram na tomada da Bastilha em 14 de junho de 1789. A Assembleia Nacional Constituinte,
formada por representantes dos três estamentos, sendo, de um lado, as elites religiosas (clero) e
a nobreza e, de outro, o chamado terceiro estado (a grande e pequena burguesia além da camada
urbana sem posses), adotou a Declaração em 27 de agosto de 1789, consagrando a igualdade e a
liberdade como direitos inatos de todos os indivíduos. Aboliram-se privilégios, direitos feudais e
imunidades de várias castas, em especial a da aristocracia de terras (RAMOS, 2015, p. 42-43).
A principal premissa da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789
– todos os homens nascem livres e com direitos iguais –, influenciou a Constituição Francesa de
1791, assim como várias constituições e tratados de direitos humanos posteriores. Essa premissa
consagra a ideia de universalidade dos direitos humanos, a qual seria definitivamente estabelecida
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
As revoluções liberais fizeram surgir uma categoria própria de direitos humanos: aquela
exercida contra o poder do Estado. Essa visão é própria do momento histórico vivido e da ne-
cessidade da classe burguesa detentora do poder econômico, mas desprestigiada em relação ao
reconhecimento de direitos na esfera jurídica. Ainda, demonstrou a pretensão de limitação do
poder estatal em relação ao poder econômico, consagrando direitos como a liberdade e a igualdade
sempre com enfoque voltado à proteção do patrimônio.
Obviamente, tais movimentos somente agradaram a parcela da população que não pos-
suía os privilégios da elite, ou seja, somente aqueles detentores do poder econômico: a burguesia.
Consequentemente, passaram a surgir movimentos sociais visando a ampliação do rol de direitos
humanos para abarcar os direitos sociais, como o direito à educação e à assistência social.
Assim afirma Giuseppe Tosi (2001):
A tradição liberal dos direitos do homem domina o período que vai do Século
XVII até a metade do Século XIX, quando termina a era das revoluções burgue-
sas. Nesta época, irrompe na cena política o socialismo, que encontra suas raízes
naqueles movimentos mais radicais da Revolução Francesa que queriam não
somente a realização da liberdade, mas também da igualdade.
O socialismo, sobretudo a partir dos movimentos revolucionários de 1848
(ano em que foi publicado o Manifesto da Partido Comunista, de Marx e
Engels), reivindica uma série de direitos novos e diversos daqueles da tradi-
ção liberal. A egalité da Revolução Francesa era somente (e parcialmente) a
Noções gerais de direitos humanos 15

igualdade dos cidadãos frente à lei, mas o capitalismo estava criando novas
grandes desigualdades econômicas e sociais e o Estado não intervinha para
pôr remédio a esta situação.
Os movimentos revolucionários de 1848 constituem um acontecimento chave
na história dos direitos humanos, porque conseguem que, pela primeira vez, o
conceito de “direitos sociais” seja acolhido na Constituição Francesa, ainda que
de forma incipiente e ambígua. [...] Estava assim aberto o longo e tortuoso ca-
minho que levaria progressivamente à inclusão de uma série de direitos novos e
estranhos à tradição liberal: direito à educação, ao trabalho, à segurança social,
à saúde etc. que modificam a relação do indivíduo com o Estado.
Na sua longa luta contra o absolutismo, o liberalismo considerava o Estado
como um mal necessário e mantinha uma relação de intrínseca desconfiança.
A questão central era a garantia das liberdades individuais contra a intervenção
do Estado nos assuntos particulares. Agora, ao contrário, tratava-se de obrigar o
Estado a fornecer um certo número de serviços para diminuir as desigualdades
econômicas e sociais e permitir a efetiva participação de todos os cidadãos à
vida e ao “bem-estar” social.

Surge o chamado Estado de bem-estar social, que passa a ser consagrado nas cartas consti-
tucionais (Constitucionalismo Social) por meio de diversos direitos sociais ao lado dos direitos
políticos e civis.
George Sarmento ensina que:
Muitos foram os textos precursores dos direitos sociais, econômicos e culturais.
Entre eles, a Constituição Francesa de 1848, a Constituição Mexicana de 1917,
a Declaração Russa dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado (1918) e o
Tratado de Versailles, de 1919. Mas foi a Constituição alemã de 1919, mais co-
nhecida como Constituição de Weimar, que primeiro os sistematizou, criando
um catálogo de direitos que exerceu forte influência sobre os países democráti-
cos. (2011, p. 5-6)

A par disso – claro que não de forma uniforme e/ou linear, mas tentando se estabelecer
uma breve noção histórica dos pontos mais marcantes da história dos direitos humanos – não se
pode esquecer a relevância da Segunda Guerra Mundial para a internacionalização desta categoria
de direitos.
Somente após as barbáries ocorridas na Segunda Guerra Mundial é que o discurso de pro-
teção dos direitos humanos tomou uma dimensão universal e passou a ser alvo de preocupação
internacional.
Por isso, Fábio Konder Comparato sustenta:
após três lustros de massacres e atrocidades de toda sorte, iniciados com o for-
talecimento do totalitarismo estatal nos anos 30, a humanidade compreendeu,
mais do que em qualquer outra época da história, o valor supremo da dignidade
humana. O sofrimento como matriz da compreensão do mundo e dos homens,
segundo a lição luminosa da sabedoria grega, veio a aprofundar a afirmação
histórica dos direitos humanos. (2005, p. 54)

Poderíamos ficar aqui por diversas páginas analisando a influência dos acontecimentos de-
correntes da Segunda Guerra Mundial na evolução dos direitos humanos, mas apenas recordar
as atrocidades praticadas pelo nazismo durante aquele período já faz lembrar o total desrespeito
16 Direitos humanos e relações étnico-raciais

à condição do ser humano pelos regimes totalitaristas, que tiveram a capacidade de, legalmente,
transformar as pessoas em displaced persons – seres supérfluos.
Como ensina Flávia Piovesan (2015, p. 196), “o legado do nazismo foi condicionar a titula-
ridade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direitos, à pertinência de determinada raça – a
raça pura ariana”. Portanto, fundado numa legalidade estrita, o Estado Nazista conseguiu restringir
a condição de sujeito de direitos apenas àqueles sujeitos da raça pura ariana, negando o valor da
pessoa humana como valor fonte do direito.
Com o término da guerra surgiu uma necessidade de reconstrução dos direitos humanos.
Por isso, Piovesan afirma que “se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos,
o pós-guerra deveria significar sua reconstrução” (PIOVESAN, 2015, p. 196-197), mas em um
âmbito internacional, não se restringindo ao âmbito estatal.
Nesse contexto, Piovesan afirma que o Tribunal de Nuremberg, em 1945-1946, foi um signi-
ficativo impulso ao movimento de internacionalização dos direitos humanos, por meio da criação
de um Tribunal Militar Internacional com o fim de julgar os criminosos de guerra, bem como
consolidando a ideia de limitação da soberania nacional, reconhecendo-se que os indivíduos têm
direitos protegidos pelo Direito Internacional.
A vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial introduziu uma nova ordem com im-
portantes transformações no Direito Internacional: a criação das Nações Unidas, em 1945, com a
assinatura da Carta das Nações Unidas em 26 de junho de 1945, em São Francisco.
As Nações Unidas (chamadas de Organização das Nações Unidas – ONU) são organi-
zadas em diversos órgãos, sendo que os seis principais são a Assembleia Geral, o Conselho de
Segurança, a Corte Internacional de Justiça, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela
e o Secretariado.
É a carta das Nações Unidas de 1945 que “consolida, assim, o movimento de internacio-
nalização dos direitos humanos, a partir do consenso de Estados que elevam a promoção desses
direitos a propósito e finalidade das Nações Unidas” (PIOVESAN, 2015, p. 209).
A Carta das Nações Unidas faz expressa referência aos direitos humanos nos arts. 1º (3),
13 (1 e 2), 55, 56 e 62 (2 e 3). Num exame detido da Carta das Nações Unidas se constata que esse
documento, embora faça expressa referência aos direitos humanos, não define o seu conteúdo, o
que somente veio a ser feito três anos depois, com o advento da Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH).
Obviamente, essa breve análise histórica dos direitos humanos não foi capaz de abranger
todos os fatos históricos, mas os mais relevantes até o advento da DUDH foram examinados, o que
é suficiente para o objetivo proposto. Com base nesse exame histórico, constata-se que os direitos
humanos surgem de acordo com a necessidade de sua consagração: primeiro surgiram direitos
civis e políticos vinculados à necessidade de limitação do poder do Estado, e em seguida, surgiram
direitos econômicos, sociais e culturais, decorrentes da noção do Estado de bem-estar social.
Noções gerais de direitos humanos 17

Como bem adverte Norberto Bobbio (1992, p. 6):


Os direitos humanos não nascem todos de uma só vez, nascem quando devem
ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o ho-
mem – que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso
da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens – ou cria
novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as
suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limita-
ções de poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o
mesmo poder intervenha de modo protetor.

Assim, surge a Teoria das Gerações ou Dimensões dos Direitos Humanos, lançada pelo ju-
rista francês de origem tcheca, Karel Vasak, que, em 1979, classificou os direitos humanos em três
gerações, cada uma com características próprias, sendo que atualmente outros autores defendem a
ampliação destas categorias para quatro e até cinco gerações (RAMOS, 2015, p. 55).
Karel Vasak vinculou cada uma das gerações a um dos componentes do dístico da Revolução
Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade (RAMOS, 2015, p. 55). São considerados direitos de
primeira geração os direitos de liberdade, os direitos vinculados às liberdades públicas e direitos
políticos, referindo-se aqueles direitos às prestações negativas, nas quais o Estado deve proteger a
esfera de autonomia do indivíduo, limitando a esfera de poder do Estado.
Dentre estes direitos, George Sarmento (2011, p. 3-4) cita a liberdade de expressão, a pre-
sunção de inocência, a inviolabilidade de domicílio, a proteção à vida privada, a liberdade de loco-
moção, os direitos da pessoa privada de liberdade, o devido processo legal, entre outros. No campo
dos direitos políticos, podem ser indicados: o direito ao voto (tanto de votar, como de ser votado),
o direito de ocupar cargos públicos, o direito à filiação partidária, entre outros.
Os direitos humanos de segunda geração são aqueles que passam a exigir um papel ativo
do Estado, visando garantir os chamados direitos sociais, econômicos e culturais, nascidos do
chamado Estado de bem-estar social. Dentre estes direitos, George Sarmento (2011, p. 7) cita:
a) Direitos sociais: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer segurança, pre-
vidência social, assistência aos desamparados, proteção à maternidade e à
infância [...].
b) Direitos econômicos: valorização do trabalho, livre iniciativa, função social da
propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, redução das desigualda-
des regionais e sociais etc. [...].
c) Direitos culturais: acesso às fontes da cultura nacional, valorização e difu-
são das manifestações culturais, proteção às culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras; proteção ao patrimônio cultural brasileiro, que são os bens de
natureza material e imaterial portadores de referência à identidade, à ação, à
memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

Os direitos de terceira geração, conhecidos como direitos de fraternidade ou de solidarie-


dade, têm como pressuposto a proteção da coletividade ou de um grupo social vulnerável. George
Sarmento menciona, entre esses direitos, o direito ao desenvolvimento, à paz, à propriedade so-
bre o patrimônio comum da humanidade, o direito de comunicação, o de autodeterminação dos
18 Direitos humanos e relações étnico-raciais

povos, à defesa de ameaça de purificação racial e genocídio, à proteção contra as manifestações


de discriminação racial, à proteção em tempos de guerra ou qualquer outro conflito armado.
No âmbito nacional, o autor cita os direitos decorrentes da proteção ambiental, do direito do con-
sumidor, da criança e adolescente, dos idosos, dos portadores de deficiência, bem como a proteção
dos bens que integram o patrimônio artístico, histórico, cultural, paisagístico, estético e turístico
(SARMENTO, 2011, p. 8-9).
Atualmente, alguns autores afirmam que há uma quarta geração de direitos humanos, de-
correntes das inovações das ciências biomédicas “referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos
da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo”
(BOBBIO, 1992, p. 6).
Nesse sentido, Salvador Darío expõe:
Toda uma série de novos direitos – alguns já consolidados e outros em processo
de se consolidarem, como o direito à proteção do genoma humano contra prá-
ticas contrárias à dignidade do indivíduo, à autodeterminação genética, à pri-
vacidade genética, à não discriminação por razoes genéticas, ao consentimento
livre e informado para a realização de estudos genéticos etc. – configuram uma
nova dimensão dos Direitos Humanos, categoria histórica que permanente-
mente em seu caminho se adapta às exigências e às necessidades do momento,
para proteger o homem em sua dignidade e em sua liberdade. (BERGEL, 2002,
p. 329, tradução nossa1)

George Sarmento (2011, p. 12), advertindo que não existe consenso na existência da quar-
ta geração (quem dirá nas espécies de direitos que estariam inclusas nessa categoria), entende
que dentre esses direitos estariam, também, os direitos de informática, oriundos da Sociedade
de Informação.
Embora não haja concordância em relação às dimensões dos direitos humanos ou à forma
de sua classificação, há consenso em relação ao seu fundamento axiológico (referente a um con-
ceito de valor), sendo que, seja doutrinariamente, seja normativamente, os direitos humanos são
extraídos, em essência, da noção de dignidade da pessoa humana, das exigências consideradas
imprescindíveis e inescusáveis a uma vida digna e da proteção do ser humano.
Conceituar a dignidade da pessoa humana é uma tarefa difícil, sendo mais fácil se constatar
no caso concreto a ofensa à dignidade do que definir o que é viver com dignidade. Porém, é inegá-
vel que a dignidade é um conceito a priori, anterior a própria existência do ordenamento jurídico;
é um dado prévio, uma qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana e que
está em constante processo de desenvolvimento de acordo com o momento histórico e cultural da
sociedade (SARLET, 2002, p. 40).

1 Tradução livre da autora, referente ao trecho original: “Toda una seria de nuevos derechos – algunos ya consolida-
dos y otros en proceso de serlo-tales como el derecho a la protección del genoma humano contra prácticas contrarias a la
­dignidad del individuo, a la autodeterminación genética, a la privacidad genética, a la no-discriminación por razones genéti-
cas, al consentimento libre e informado para la realización de estudios genéticos, etc., conforman uma nueva dimensión de
los Derechos Humanos, categoría histórica que permanentemente en su camino fue adaptándose a los requerimientos y a
las necesidades del momento, para proteger al hombre en su dignidad y en su libertad” (BERGEL, 2002. p. 329).
Noções gerais de direitos humanos 19

1.2 A Declaração Universal dos Direitos Humanos e os


organismos internacionais de proteção aos direitos humanos
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é considerada um marco na pro-
teção dos direitos humanos, tendo sido aprovada de forma unânime pela Assembleia Geral das
Nações Unidas em Paris, no dia 10 de dezembro de 1948.
Ela foi elaborada por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as re-
giões do mundo, tendo sido a primeira organização internacional que abrangeu a quase totalidade
dos povos da Terra.
A declaração é composta por 30 artigos, sendo que no seu primeiro artigo, o documento já
demonstrou a que veio:

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.


São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos ou-
tros com espírito de fraternidade” (ONU, 1948).

Flavia Piovesan (2015, p. 215) ressalta que “a Declaração consolida a afirmação de uma éti-
ca universal ao consagrar um consenso sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos
Estados”, o que é observado desde o seu preâmbulo ao afirmar a consagração da dignidade humana
como valor universal.
A autora demonstra com clareza as razões históricas da necessidade de a Declaração ressal-
tar expressamente a característica de universalidade desses direitos:
A Declaração Universal de 1948 objetiva delinear uma ordem pública mundial
fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos uni-
versais. Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa
humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração
Universal a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularida-
de de direitos. A universalidade dos direitos humanos traduz a absoluta ruptura
com o legado nazista, que condicionava a titularidade de direitos à pertinência à
determinada raça (a raça pura ariana). A dignidade humana como fundamento
dos direitos humanos e valor intrínseco à condição humana é concepção que,
posteriormente, viria a ser incorporada por todos os tratados e declarações de
direitos humanos, que passaram a integrar o chamado Direito Internacional dos
Direitos Humanos. (PIOVESAN, 2015, p. 216)

Entre os direitos que disciplinam a declaração, alguns fazem expressa referência aos direitos
civis (exemplos: art. XVII e XVIII) e políticos (exemplo: o artigo XXI), além dos direitos econô-
micos (exemplo: art. XXIII, também exemplo de direito social), sociais (exemplo: artigo XXV)
e culturais (exemplo: artigo XXVII), o que demonstra com clareza a adequação dos momentos
históricos decorrentes do discurso liberal e social, evidenciando as diferentes gerações de direitos
humanos e demonstrando a sua inter-relação e interdependência, sem que uma geração venha a
substituir a outra.
20 Direitos humanos e relações étnico-raciais

A doutrina jurídica muito discutiu sobre a eficácia da DUDH diante do fato de ter sido ado-
tada sob a forma de uma Resolução, que, no âmbito do ordenamento jurídico, não possui força de
lei em sentido estrito. A posição majoritária é que a Declaração possui, sim, força jurídica vincu-
lante como fonte de direito, seja por integrar o direito costumeiro internacional e/ou os princípios
gerais de direito.
Assim, leciona Flávia Piovesan:
Para este estudo, a Declaração Universal de 1948, ainda que não assuma a forma
de tratado internacional, apresenta força jurídica obrigatória e vinculante, na
medida em que constitui a interpretação autorizada da expressão “direitos hu-
manos” constante dos arts. 1.º (3) e 55 da Carta das Nações Unidas. Ressalta-se
que, à luz da Carta, os Estados assumem o compromisso de assegurar o respeito
universal e efetivo aos direitos humanos.
Ademais, a natureza jurídica vinculante da Declaração Universal é reforçada
pelo fato de – na qualidade de um dos mais influentes instrumentos jurídicos e
políticos do século XX – ter-se transformado, ao longo dos mais de cinquenta
anos de sua adoção, em direito costumeiro internacional e princípio geral do
Direito Internacional. (PIOVESAN, 2015, p. 225-226)

É inegável a força vinculante da DUDH quando se examina diversos outros textos de trata-
dos e documentos internacionais relacionados aos direitos humanos, bem como, e em essência, ao
se pesquisar as Constituições Nacionais e se constatar que aqueles mesmos direitos humanos foram
incorporados no âmbito nacional, inclusive em decisões judiciais de tribunais locais.
Em razão dessa discussão sobre a força vinculante da DUDH, iniciou-se uma ampla discussão
internacional com o objetivo de juridicização2 da Declaração em forma de tratado internacional.
Esse processo foi concluído em 1966 com a elaboração de dois tratados internacionais – o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais – que incorporaram os direitos constantes na DUDH (PIOVESAN, 2015, p. 238).
A união desses pactos e da DUDH deu origem à Carta Internacional dos Direitos Humanos,
International Bill of Rights, formando, assim, o sistema global de proteção dos direitos humanos, que
vem sendo ampliado constantemente com tratados multilaterais de direitos humanos, pertinentes
a determinadas e específicas violações de direitos, como, por exemplo, a violação dos direitos das
crianças, das mulheres, discriminação racial, entre outras (PIOVESAN, 2015, p. 238-239).
Portanto, além da DUDH e dos Pactos já indicados, podemos citar, dentre outras:
• Convenção para Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio;
• Convenção Internacional contra a Tortura;
• Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial;
• Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher;
• Convenção sobre os Direitos da Criança;
• Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

2 Juridicização significa o ingresso de determinado documento, no caso a DUDH, no mundo jurídico, deixando de ser
mera carta de intenções e passando a ter conteúdo de norma jurídica, de lei em sentido estrito.
Noções gerais de direitos humanos 21

À ONU, por meio de seus diversos órgãos, cabe também a proteção aos direitos humanos,
conforme já examinamos antes. Por isso, em 1946, foi criada a Comissão de Direitos Humanos, a
qual, após mais de 50 anos de trabalho, em 24 de março de 2006 teve sua última sessão, sendo abo-
lida em 16 de junho de 2006 e substituída pelo Conselho de Direitos Humanos.
A criação do Conselho de Direitos Humanos objetivou dar maior credibilidade à temática
no âmbito da ONU, pois, ao contrário da comissão anterior, este não se submete ao conselho de
direito econômico e social, sendo subsidiário da Assembleia Geral. O Conselho passa a gozar de
uma natureza semipermanente, possuindo reuniões várias vezes ao ano e não somente uma, como
ocorria anteriormente (VIEGAS, SILVA, 2013, p. 104).
O conselho é formado por 47 Estados-membros, eleitos diretamente pela Assembleia Geral
da ONU com base no princípio do escrutínio universal3 e da não seletividade política, observando-
-se a distribuição geográfica equitativa entre os grupos regionais, sendo: 13 membros dos Estados
africanos; 13 membros dos Estados asiáticos; 6 membros dos Estados do Leste Europeu; 8 mem-
bros dos Estados da América Latina e Caribe; e 7 membros dos Estados da Europa Ocidental e
demais Estados.
Conforme afirma Flávia Piovesan (2015, p. 212), a composição do Conselho aponta novo
critério para a formação das maiorias, pois os países com reduzido e médio graus de desenvolvi-
mento contarão com expressiva maioria de 40 membros.
Entre as suas principais atribuições, o Conselho tem como vocação institucional “promover
o respeito universal pela proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de to-
das as pessoas, sem distinções de nenhum tipo e de forma justa e equitativa” (Assembleia Geral,
Resolução 60/251, parágrafo 2, apud BORGES, 2011).
E, ainda, o Conselho se ocupará de:
[...] situações em que se violem os direitos humanos, incluídas as violações
graves e sistemáticas; coordenar e incorporar os direitos humanos à atividade
geral do sistema da ONU; impulsionar a promoção e a proteção de todos os
direitos humanos, incluído o direito ao desenvolvimento; promover a educação
em direitos humanos e prestar serviços de assessoria técnica por solicitação e de
acordo com os Estados interessados; servir de fórum para o diálogo sobre ques-
tões temáticas referentes a todos os direitos humanos; contribuir para o desen-
volvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos; promover o pleno
cumprimento das obrigações em matéria de direitos humanos contraídas pelos
Estados; facilitar o acompanhamento dos objetivos e compromissos sobre direi-
tos humanos emanados das conferências e cúpulas das Nações Unidas; realizar
um exame periódico universal, baseado em informação objetiva e f­idedigna,
sobre o cumprimento por cada Estado de suas obrigações e compromissos em
matéria de direitos humanos, de uma forma que garanta a universalidade do
exame e a igualdade de tratamento em relação a todos os Estados, baseado num
diálogo interativo, com a plena participação do país de que se trate e levará em
consideração suas necessidades em relação ao fomento da capacidade; prevenir
as violações de direitos humanos e responder com prontidão às situações de

3 Escrutínio significa a forma como o exercício do direito ao voto se realiza. Ao se falar em escrutínio universal se dá a ideia
de que o direito ao voto será exercido por todos, sem restrições como as advindas de raça, credo ou sexo, por exemplo.
22 Direitos humanos e relações étnico-raciais

emergência em matéria de direitos humanos; cooperar estreitamente em ma-


téria de direitos humanos com os governos, as organizações regionais, as insti-
tuições nacionais de direitos humanos e a sociedade civil; e assumir as funções
e atribuições da Comissão de Direitos Humanos em relação ao Escritório do
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. (Assembleia
Geral, Resolução 60/251, parágrafo 2-5, apud BORGES, 2011)

A grande novidade trazida pelo Conselho de Direitos Humanos foi a Revisão Periódica
Universal (RPU), que é um mecanismo por meio do qual se realiza um exame da situação de direi-
tos humanos da totalidade dos Estados-membros da ONU em ciclos de quatro anos (no primeiro
ciclo) e quatro anos e meio (a partir do segundo ciclo).
Ressalta Marisa Viegas e Silva (2013, p. 113):
Observe-se que o objetivo da RPU não é de duplicar o trabalho já exercido
pelos órgãos para fiscalizar a aplicação dos tratados de direitos humanos e os
procedimentos especiais, mas complementá-lo. Neste sentido, a RPU distin-
gue-se desses outros mecanismos por algumas características, como seu caráter
essencialmente interestatal, o fato de que as recomendações emanam do Estado
individualmente e não do Conselho como órgão; a possibilidade de aceitação
ou rejeição da recomendação por parte do Estado examinado, com a conse-
quência de que somente as recomendações aceitas devem ser implementadas; a
universalidade da revisão e dos direitos objetos da revisão. Ainda a este respeito,
durante os primeiros anos de atividade há registros de intercâmbio positivo
de informação entre a RPU e os demais mecanismos – por exemplo, algumas
recomendações formuladas durante o RPU foram utilizadas pelos órgãos encar-
regados de verificar o cumprimento dos tratados de direitos humanos ou pelos
procedimentos especiais e, por outro lado, muitos Estados utilizaram sua par-
ticipação na RPU para comentar suas atividades perante aqueles mecanismos,
ou para realizar recomendações a terceiros países relativas a tais mecanismos.
Podemos afirmar, inclusive, que em certo sentido a Revisão Periódica Universal
tem funcionado como ferramenta de estímulo à implementação das obrigações
dos procedimentos especiais e dos órgãos estabelecidos em virtude dos tratados.

Portanto, o Estado-membro que passa pela revisão periódica universal participa da avalia-
ção e assume compromissos voluntários relacionados às recomendações decorrentes da RPU.
A par do Conselho de Direitos Humanos, o Pacto de Direitos Civis e Políticos determinou
a constituição do Comitê de Direitos Humanos, que é integrado por 18 membros que exercem a
sua função a título pessoal. Esses membros são indicados pelos Estados-partes do Pacto e devem
ser pessoas de elevada reputação moral e reconhecida competência em matéria de direitos huma-
nos. Cada Estado-parte pode indicar duas pessoas que devem ser naturais do país que as indicou,
passando-se por eleição que se dá mediante votação secreta entre os Estados-partes em reunião
convocada pelo Secretário-Geral da ONU, não podendo ser eleito mais de um nacional do mesmo
Estado (RAMOS, 2015, p. 288).
O Comitê tem competência de examinar os relatórios sobre as medidas adotadas para tor-
nar efetivos os direitos reconhecidos no Pacto; emitir recomendações aos Estados-partes; rece-
ber e examinar comunicações em que um Estado-parte alegue que outro não vem cumprindo as
Noções gerais de direitos humanos 23

obrigações previstas no Pacto; e comunicações de indivíduos que aleguem ser vítimas de violação
de qualquer dos direitos previstos no Pacto (RAMOS, 2015, p. 289-290).
Podemos citar, ainda, entre organismos vinculados à proteção dos direitos humanos, o
Conselho Econômico e Social, órgão das Nações Unidas responsável por coordenar assuntos inter-
nacionais de caráter econômico, social, cultural, educacional, de saúde e conexos; e o seu respectivo
Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (RAMOS, 2015, p. 291-292).
Mencionamos, ainda, o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, o Comitê para
a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, o Comitê contra a Tortura, o Comitê para os
Direitos da Criança, o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o Comitê contra
Desaparecimentos Forçados.
Finalmente, não podemos esquecer do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos
Humanos, criado por meio da Resolução n. 48/141 da Assembleia Geral da ONU, de 20 de dezem-
bro de1993, cujo objetivo é unir todos os esforços das Nações Unidas no que tange a proteção dos
direitos humanos. O Alto Comissário é alguém de elevada idoneidade moral e integridade pessoal,
devendo ser expert no campo dos Direitos Humanos, sendo indicado pelo Secretário-Geral da
ONU e aprovado pela Assembleia Geral, tendo em conta uma alternância geográfica (RAMOS,
2015, p. 317-319).
Ao lado desses organismos vinculados à ONU, temos órgãos regionais, decorrentes de um
sistema regional de proteção aos direitos humanos. Entre eles, podemos citar o sistema regional
americano da Organização dos Estados Americanos (OEA), que é o mais antigo organismo regio-
nal do mundo, tendo sido fundado em 1948, com a aprovação da Carta da OEA e a Declaração
Americana de Direitos e Deveres do Homem.
A Declaração Americana anterior, inclusive, à Declaração Universal, já reconhecia a
universalidade dos direitos humanos e, juntamente com a Carta da OEA, trazia disposições
sobre direitos humanos.
Dentre os saltos de desenvolvimento do sistema interamericano de proteção de direitos hu-
manos, deve ser citada a aprovação do texto da Convenção Americana de Direitos Humanos (assi-
nada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José – Costa
Rica, em 22 de novembro de 1969), que criou órgãos como a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Convenção Americana veio aprimorar a redação dos direitos enunciados na Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem, mas vinculando os Estados membros da OEA e tra-
zendo um extenso rol de direitos protegidos, dentre os quais direitos civis, políticos, econômicos,
sociais e culturais (RAMOS, 2015, p. 251-262).
Finalmente, somente para esclarecer a adoção, pelo Brasil, dos principais documentos inter-
nacionais de proteção dos direitos humanos, trazemos, a seguir, uma relação desses documentos
com a correspondente data de adoção e ratificação pelo nosso país:
24 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Quadro 1 – Os instrumentos globais de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro

Instrumento Data da
Data de adoção
internacional ratificação

Adotada e aberta à assinatura pela Conf. de São


Carta das Nações Unidas 21/09/1945
Francisco em 26/05/1945

Adotada e proclamada pela Res. 217 A (III)


Assinada em
Declaração Universal dos Direitos Humanos da Assembleia Geral das Nações Unidas em
10/12/1948
10/12/48

Pacto Internacional dos Direitos Civis Adotado pela Res. 2.200-A (XXI) da Assembleia
24/01/1992
e Políticos Geral das Nações Unidas em 16/12/1966

Pacto Internacional dos Direitos Adotado pela Res. 2.200-A (XXI) da Assembleia
24/01/1992
Econômicos, Sociais e Culturais Geral das Nações Unidas em 16/12/1966

Convenção contra a Tortura e outros


Adotado pela Res. 39/46 da Assembleia Geral
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos 28/09/1989
das Nações Unidas em 10/12/1984
ou Degradantes

Convenção sobre a Eliminação de Todas as Adotada pela Res. 34/180 da Assembleia Geral
01/02/1984
formas de Discriminação contra a Mulher das Nações Unidas em 18/12/1979

Convenção sobre a Eliminação de Todas as Adotada pela Res. 2.106-A (XX) da Assembleia
27/03/1968
Formas de Discriminação Racial Geral das Nações Unidas em 21/12/1965

Adotada pela Res. L.44 (XLIV) da Assembleia


Convenção sobre os Direitos da Criança 24/09/1990
Geral das Nações Unidas em 20/11/1989

Fonte: PIOVESAN, 1997, p. 335-337, apud DHNET, 2018.

Com relação aos documentos regionais, podemos citar:

Quadro 2 – Os instrumentos regionais de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro

Instrumento Data da
Data de adoção
internacional ratificação
Adotada e aberta à assinatura na Conf. Especia-
Convenção Americana de Direitos Humanos lizada Interamericana sobre Direitos Humanos, 25/09/1992
em São José, Costa Rica, em 22/11/1969

Convenção Interamericana para Prevenir e Adotada pela Assembleia Geral da OEA em


20/07/1989
Punir a Tortura 09/12/1985

Convenção Interamericana para Prevenir, Adotada pela Assembleia Geral da Organização


27/11/1995
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher dos Estados Americanos em 06/06/1994

Fonte: PIOVESAN, 1997, p. 337, apud DHNET, 2018.

1.3 Os direitos humanos no âmbito nacional: da Constituição


Federal de 1988 aos sistemas de proteção aos direitos humanos
É claro que a Constituição Federal de 1988 é o marco da legislação brasileira quando se fala
em direitos humanos, no respeito à pessoa humana e na restauração do ser humano como o centro
do ordenamento jurídico, ainda mais quando se examina em que momento e condições históricas
a nossa Carta Magna surgiu: logo após mais de 20 anos de Ditadura Militar.
Noções gerais de direitos humanos 25

Todavia, é necessário observarmos que as Constituições anteriores já previam, mesmo que


formalmente, um rol de direitos a serem assegurados pelo Estado, embora não se reconhecia apli-
cabilidade imediata da norma constitucional.
Inclusive, a Constituição de 1967, em plena Ditadura Militar, trazia em seu artigo 150 um rol
de direitos e garantias individuais, fazendo referência a outros direitos decorrentes do regime e dos
princípios constitucionais no artigo 150, §35. Contudo, o artigo 151 da Constituição de 1967 trazia
uma ameaça explícita aos inimigos do regime, determinando que aquele que abusar dos direitos
individuais previstos nos §§ 8º, 23, 27 e 28 do artigo anterior e dos direitos políticos, para atentar
contra a ordem democrática ou praticar a corrupção, incorrerá na suspensão desses últimos direi-
tos pelo prazo de dois a dez anos. A Emenda 1 de 1969 seguia o mesmo caminho da Constituição
de 1967 (RAMOS, 2015, p. 366).
Com o fim da Ditadura Militar, o surgimento da “Constituição Cidadã” foi uma reação a
mais de vinte anos do regime ditatorial, com uma forte inserção de direitos e garantias no texto
constitucional, além da mudança do perfil do Ministério Público que deixou de ser vinculado ao
Poder Executivo e ganhou autonomia, independência funcional e a missão de defesa de direitos
humanos, ao lado da Defensoria Pública, que foi mencionada pela primeira vez na norma consti-
tucional também comprometida com a defesa desses direitos (RAMOS, 2015, p. 366).
A Constituição Federal de 1988 traz em seu bojo, como fundamento do Estado democrático
de direito, o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), reestabelecendo o ser huma-
no como o centro do ordenamento jurídico.
Flademir Jerônimo Belinati Martins (2003, p. 47-51) ressalta que a primeira Constituição
brasileira a tratar o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República e
do Estado democrático de direito foi a de 1988, sob influência das Constituições alemã, espanhola
e portuguesa.
Há certa unanimidade acadêmica ao afirmar que esse princípio é um “valor-guia” de toda
a ordem jurídica, social, política e cultural, sendo substrato axiológico (valor base) de todo o
nosso sistema jurídico, razão pela qual assinala Martins que “os conceitos de Estado, República e
Democracia são funcionalizados a um objetivo, a uma finalidade, qual seja, a proteção e promoção
da dignidade da pessoa humana” (2013, p. 63).
Lembrando que o princípio da dignidade da pessoa humana é o fundamento dos direitos
humanos, vislumbra-se a importância de sua consagração na Constituição Federal de 1988 como
fundamento da República Federativa do Brasil. E antes mesmo de iniciar a apresentação do rol de
direitos humanos e/ou fundamentais, a Constituição brasileira traz, em seu artigo 3º, os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil:
Art. 3.º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL, 1988)
26 Direitos humanos e relações étnico-raciais

O artigo 4º, inciso II, faz, pela primeira vez, expressa referência aos direitos humanos: “pre-
valência dos direitos humanos” (BRASIL, 1988).
Quanto ao rol de direitos humanos, a Constituição de 1988 é considerada um marco na
história constitucional brasileira, pois “introduziu o mais extenso e abrangente rol de direitos das
mais diversas espécies, incluindo os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, além
de prever várias garantias constitucionais, algumas inéditas, como o mandato de injunção e o
habeas data” (RAMOS, 2015, p. 369).
Entre os direitos expressamente reconhecidos no texto constitucional, há uma extensa relação
de direitos individuais e coletivos (Capítulo I, art. 5°), de direitos sociais (Capítulo II, art. 6° a 11), de
direitos de nacionalidade (Capítulo III, art. 12 e 13) e de direitos políticos (Capítulo IV, art. 14 a 16).
E, como se não bastasse, a Constituição brasileira estabelece expressamente que o rol nela
existente não é exaustivo: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte” (BRASIL, 1988, art. 5º, §2º).
Não se pode, em hipótese alguma, deixar de ressaltar que as normas que estabelecem direi-
tos e garantias individuais são cláusulas pétreas (art. 60, §4º, IV da CF), ou seja, não podem ser
objeto de emenda constitucional, nem sofrer qualquer espécie de alteração legislativa.
Buscando a implementação de todas as espécies de direitos humanos, a Conferência Mundial
de Viena, de 1993, organizada pela Organização das Nações Unidas, promulgou a Declaração e o
Programa de Ação, estabelecendo, inclusive, o dever dos Estados de adotar planos nacionais de
direitos humanos (RAMOS, 2015, p. 420).
Em 13 de maio de 1996, foi editado pela Presidência da República o Decreto n. 1.904, que
criou o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) cuja meta era realizar um diagnóstico
da situação desses direitos no país e medidas para a sua defesa e promoção. Esse PNDH foi deno-
minado de PNDH-1 e estava voltado à garantia de proteção dos direitos civis, com especial foco no
combate à impunidade e à violência policial (RAMOS, 2015, p. 421-422).
O PNDH-2, aprovado pelo Decreto n. 4.229/2002, dava ênfase aos direitos sociais em senti-
do amplo e de grupos vulneráveis, como os direitos dos afrodescendentes, dos povos indígenas, de
orientação sexual, consagrando o multiculturalismo (RAMOS, 2015, p. 422).
Já o PNDH-3, aprovado em 2009, adotou eixos orientadores:
• Interação democrática entre Estado e Sociedade Civil;
• Desenvolvimento e direitos humanos;
• Universalização de Direitos em um Contexto de Desigualdades;
• Segurança Pública, acesso à Justiça e Combate à Violência;
• Educação e Cultura em Direitos Humanos;
• Direito à Memória e à Verdade. (RAMOS, 2015, p. 423)

O PNDH-3 propõe a atuação conjunta do governo federal, governos estaduais, municipais


e da sociedade civil para a proteção dos direitos humanos. Para sua implementação foi criado o
Comitê de Acompanhamento e Monitoramento do PNDH-3, integrado por 21 representantes de
Noções gerais de direitos humanos 27

órgãos do Poder Executivo e presidido pelo Secretário de Direitos Humanos, responsável por de-
signar os demais representantes (RAMOS, 2015, p. 424-425).
Com o objetivo de intensificar a proteção dos direitos humanos – e levando em considera-
ção a diversidade regional e cultural –, vários estados brasileiros adotaram programas estaduais de
direitos humanos, sendo o primeiro deles o estado de São Paulo, pelo Decreto n. 42.209/97, que
criou o PEDH, designando a Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania para coordenar as ini-
ciativas governamentais ligadas ao PEDH.
Entre as principais instituições de defesa dos direitos humanos na esfera do executivo fede-
ral, temos:
a) Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República;
b) Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos;
c) Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e Secretaria de
Políticas para as Mulheres;
d) Conselho de Direitos Humanos;
e) Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescentes – Conanda;
f) Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência – Conade;
g) Conselho Nacional dos Direitos do Idoso – CNDI;
h) Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – CNCD-LGBT;
i) Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos – CEMDP;
j) Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo – Conatrae;
k) Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos – CNEDH;
l) Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial – CNPIR;
m) Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM. (RAMOS, 2015,
p. 429-459)

No âmbito do Poder Legislativo Federal temos a Comissão de Direitos Humanos e Minorias


da Câmara dos Deputados (CDHM). É necessário, ainda, citar o Ministério Público Federal e a
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que também têm como função a proteção dos di-
reitos humanos (art. 127 da CF), além da Defensoria Pública da União (art. 134 da CF).
No plano estadual, temos o Ministério Público Estadual e a Defensoria Pública do Estado,
além dos Conselhos Estaduais de Direitos Humanos. Alguns estados possuem secretarias próprias
de defesa e promoção dos direitos humanos, da mesma forma que existem municípios que criam
secretarias municipais com tais objetivos, como em Recife (PE) e Porto Alegre (RS).
No âmbito do estado do Paraná temos a Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos
Humanos, que tem por finalidade a definição de diretrizes para a política governamental focada no
respeito à dignidade humana, bem como a coordenação de sua execução. Dentro da estrutura da
Secretaria foi criado o Departamento de Direitos Humanos e Cidadania (DEDIHC), que “responde
pela promoção, proteção, defesa e implementação dos direitos humanos, em consonância com os
ordenamentos e documentos nacionais e internacionais que regem o tema” e tem como competên-
cias (PARANÁ, 2018):
28 Direitos humanos e relações étnico-raciais

• a formulação, articulação e divulgação de políticas públicas assecuratórias


dos direitos humanos;
• o recebimento de representações que evidenciem a violação dos direitos hu-
manos e a adoção das providências necessárias;
• a proposição, ao poder executivo estadual de medidas destinadas à preserva-
ção dos direitos humanos;
• a elaboração de planos, programas e projetos relacionados as questões de di-
reitos humanos e cidadania;
• a implementação de ações e projetos que visem o desenvolvimento integrado
com respeito aos direitos humanos e cidadania.

O estado conta ainda com o COPED – Conselho Permanente dos Direitos Humanos do
Estado do Paraná, “um órgão de caráter permanente, autônomo, deliberativo e paritário, que conta
com a participação de representantes do Governo do Estado e de Organizações não Governamentais
ligadas à defesa dos Direitos Humanos” (PARANÁ, 2018).
Além do COPED, também integra a estrutura do Departamento de Direitos Humanos e
Cidadania – DEDIHC os seguintes conselhos (PARANÁ, 2018):
• Conselho Estadual de Proteção às Vítimas de Abuso Sexual – Copeas.
• Conselho Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Estado do Paraná
– CPICT/PR.
• Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial – Consepir.
• Conselho Gestor do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de
Morte – PPCAAM/PR.
• Conselho Deliberativo do Programa Estadual de Assistência às Vítimas e Testemunhas
Ameaçadas – Provita/PR.
Citamos, também, o estado do Rio de Janeiro, que conta com a Secretaria de Estado de
Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH), “responsável pela gestão e coordenação da Política
de Assistência Social, Segurança Alimentar, Transferência de Renda e Promoção da Cidadania e
Direitos Humanos no Estado” (RIO DE JANEIRO, 2018).
Entre os estados que possuem secretarias específicas de proteção dos direitos humanos, tam-
bém podemos indicar o estado da Bahia, que possui a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e
Desenvolvimento Social (SJDHDS), responsável por executar políticas públicas voltadas à proteção
e promoção dos direitos humanos e ao desenvolvimento social (BAHIA, 2018).
Integram a estrutura da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social
(SJDHDS) do estado da Bahia: Conselho Estadual de Assistência Social (Ceas); Conselho Estadual
dos Direitos da Criança e do Adolescente (Ceca); Conselho Estadual de Defesa do Consumidor
(CEDC/BA); Conselho Estadual de Entorpecentes (Conen/BA); Conselho Estadual dos Direitos
da População de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT; Conselho Estadual
dos Direitos dos Povos Indígenas do Estado da Bahia (Copiba); Conselho Estadual de Proteção
dos Direitos Humanos (CEPDH); Conselho Estadual do Idoso (CEI); Conselho Estadual dos
Direitos da Pessoa com Deficiência (Coede/BA); Conselho Gestor do Fundo Estadual de Proteção
Noções gerais de direitos humanos 29

ao Consumidor (CGFEPC/BA); Conselho Estadual da Juventude (Cejuve); Conselho de Segurança


Alimentar e Nutricional do Estado da Bahia (Consea/BA).
Sem adentrar ainda mais no âmbito estadual e municipal, percebemos, não só pelas dimensões
de nosso país, mas em especial pela relevância da proteção desses direitos, que há a necessidade de
uma ação conjunta entre os diversos entes federados para a promoção dos direitos humanos.

Atividades
1. Leia o texto a seguir:

Consciência Ambiental e os Catadores de Lixo do Lixão da Cidade do Carpina – PE


Analisando o texto de Manuel Bandeira, “Vi ontem um bicho Na imundície do pátio / Ca-
tando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava
/ Engolia com voracidade. / O bicho não era um cão, Não era um gato / Não era um rato. /
O bicho, meu Deus, era um homem.”, em que, de maneira poética, o autor traz à discussão
os problemas sociais, podemos imaginar o grau de exclusão que ora assola uma parcela sig-
nificativa da sociedade brasileira.
O desemprego é um sério problema que afeta grande parcela da população, uma vez que atinge
de forma especial àqueles que possuem baixa escolaridade, pouca ou nenhuma qualificação
técnica, mulheres, negros, idosos e deficientes físicos. A resposta encontrada por esses atores,
por não terem condições de competir por vagas no mercado formal, é o subemprego, a ocupa-
ção precária do espaço urbano resultando no “inchaço” da economia informal.
O que se encontra na coleta do lixo é uma alternativa de sobrevivência encontrada por al-
guns desses grupos. Como não atingem a qualificação exigida pelo mercado, veem nessa
função uma estratégia de sobrevivência. Nesse sentido, Gonçalves (2001) afirma que o lixo é
uma questão a ser abordada de forma complexa, pois envolvem, além de aspectos econômi-
cos, políticos e ambientais, também aspectos sociais e psicológicos. Os catadores dos lixões
são pessoas que se encontram marginalizadas por desenvolverem uma atividade inferior no
conceito da sociedade. Isso resulta em indivíduos com a autoestima baixa, e com conceito de
cidadania distorcido. O lixo, matéria-prima das quais estes catadores sobrevivem é definida
por Lima (1995, p. 9) como “todo e qualquer resíduo que resulte das atividades diárias do
homem na sociedade.” A disposição final de lixo sem qualquer tratamento chama-se lixão.
O lixo depositado a céu aberto em vários cenários das cidades brasileiras representa uma das
principais fontes causadoras do desequilíbrio do ambiente. Uma das consequências marcan-
tes é a produção de chorume, líquido escuro resultante da decomposição de material orgâni-
co presente no lixo, e que ao ser absorvido pelo solo atinge diretamente os lençóis freáticos,
contaminando-os com os mais variados micro-organismos patológicos. Outra consequência
é o surgimento de vetores tais como: moscas, ratos, urubus e bichos peçonhentos que se
instalam no local e se espalham pelas residências, depósitos e comunidades próximas aos
lixões, além dos riscos constantes de incêndios e pequenas explosões provocadas pelos gases
expelidos constantemente, dos aterros. Todavia, ainda que represente uma forma de tra-
30 Direitos humanos e relações étnico-raciais

balho vista como degradante pela sociedade, os catadores fizeram do lixo uma maneira de
obter a renda para o próprio sustento.
No entanto, estes catadores à medida que estão buscando seu sustento e ao mesmo tempo
lutando contra a exclusão social, estão desenvolvendo uma atividade de grande importância
ao meio ambiente e consequentemente à sociedade. Nesse sentido cabe destacar o papel
do catador como agente disseminador de uma cultura ambientalista e analisar a sua pró-
pria consciência como importante agente ambiental. Neste contexto, e analisando a relação
desses “trabalhadores” com o ambiente, pressupõe-se que estes catadores apresentam uma
consciência ambiental.
(Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental, v. 19, jul./dez. 2007.)

Com base na análise do texto anterior, reflita quais gerações de direitos humanos, em espe-
cial, estão sendo violadas com a descrição retratada no texto.

2. (ENADE-2008, p. 5. Adaptado) DIREITOS HUMANOS EM QUESTÃO:

O caráter universalizante dos direitos do homem [...] não é da ordem do saber teórico, mas do
operatório ou prático: eles são invocados para agir, desde o princípio, em qualquer situação dada.
(François JULIEN, filósofo e sociólogo)

No ano (2008) em que são comemorados os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, novas perspectivas e concepções incorporam-se à agenda pública brasileira. Uma
das novas perspectivas em foco é a visão mais integrada dos direitos econômicos, sociais,
civis, políticos e, mais recentemente, ambientais; ou seja, trata-se da integralidade ou indivi-
sibilidade dos direitos humanos. Dentre as novas concepções de direitos, destacam-se:
• a habitação como moradia digna e não apenas como necessidade de abrigo e proteção;
• a segurança como bem-estar e não apenas como necessidade de vigilância e punição;
• o trabalho como ação para a vida e não apenas como necessidade de emprego e renda.
Tendo em vista o exposto acima, selecione uma das concepções destacadas e esclareça por
que ela representa um avanço para o exercício pleno da cidadania, na perspectiva da integra-
lidade dos direitos humanos. Seu texto deve ter entre 8 e 10 linhas.

3. Escolha um dos direitos humanos e disserte sobre o tema, analisando-o com base na DUDH
e na Constituição Federal.
2
Dos direitos das crianças e dos adolescentes

Gisele Echterhoff

Neste capítulo analisaremos especificamente os direitos humanos das crianças e dos


adolescentes. Na atualidade, falar na proteção das crianças e adolescentes é algo extremamente
comum, embora também seja bastante corriqueira a ocorrência de violações dos direitos dessa
categoria de sujeitos.
Todavia, no desenvolvimento deste capítulo se verificará que a preocupação interna-
cional com a proteção das crianças e adolescente é recente, advinda dos acontecimentos da
Segunda Guerra Mundial.
No exame da legislação nacional se perceberá que somente na década de 1990 o legislador
deixou de se preocupar apenas com o menor abandonado e infrator para passar a proteger todas as
crianças e adolescentes, reconhecendo-lhes direitos a serem garantidos.

2.1 A proteção dos direitos da criança e do


adolescente em âmbito internacional
O reconhecimento da criança e do adolescente como um sujeito de direitos, ou seja, como
pessoa, na acepção de ser titular de direitos a serem protegidos pela família, pelo Estado e pela so-
ciedade (tal como concebemos na atualidade) é algo recente na história de nossa sociedade.
Na leitura de autores, sejam eles da área jurídica, sejam historiadores e/ou da área de ciências
sociais, constatamos que a infância era tratada, antes do século XVI, como apenas uma fase transi-
tória para que se alcançasse a fase adulta, sendo que essa visão atual de preocupação e proteção da
criança e do adolescente não estava presente (MATTIOLI; OLIVEIRA, 2013; FUZIWARA, 2013).
No decorrer da história se verifica que, no âmbito internacional, a preocupação legislativa
com a proteção das crianças e dos adolescentes somente surgiu incipientemente com a Declaração
de Genebra, no ano de 1924, após a Primeira Guerra Mundial. “Este documento, resultado da
luta travada pela união internacional Salve as Crianças pelos direitos da infância, vislumbra que a
proteção à infância deve abranger todos os aspectos da vida da criança (MATTIOLI; OLIVEIRA,
2013, p. 16).
Contudo, salientam os autores (MATTIOLI; OLIVEIRA, 2013) que esse documento, que
não possuía força de lei, trazia uma concepção de infância passiva, carecedora de cuidados, na con-
dição, ainda, de objeto de proteção, estabelecendo os deveres dos adultos para com essa infância.
Ainda, os autores advertem que “esta concepção de vulnerabilidade da infância que precisava ser
protegida e socorrida era reflexo de uma época pós-guerra em que o grande número de crianças
abandonadas constituía-se uma realidade” (MATTIOLI; OLIVEIRA, 2013, p. 16-17).
32 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Foi após a Segunda Guerra Mundial que surgiu uma preocupação efetiva com a proteção
das crianças e dos adolescentes. Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em
1948, as Nações Unidas fizeram menção expressa a essa proteção, no artigo XXV, item 2: “A ma-
ternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas
dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social.” (ONU, 1948, grifos nossos).
Porém, antes mesmo dessa expressa referência pela DUDH foi criado, em 11 de dezembro
de 1946, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef), cujos primeiros programas “forneceram assistência emergencial a milhões de crianças no
período pós-guerra na Europa, no Oriente Médio e na China” (UNICEF BRASIL, 2018a).
Alguns países entenderam que a missão do Unicef teria sido alcançada com a reconstrução
da Europa no pós-guerra, mas algumas nações mais pobres argumentaram que a ONU não poderia
ignorar as condições das crianças ameaçadas pela fome e pela doença em outros países, o que fez com
que o Unicef se tornasse órgão permanente do sistema das Nações Unidas em 1953, passando a ter
como objetivo atender às crianças de todo o mundo em desenvolvimento (UNICEF BRASIL, 2018a).
Em 20 de novembro de 1959, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclama a Declaração
dos Direitos da Criança, com uma visão bastante diferente da Declaração de Genebra. O discurso
protetor é substituído por outro de reconhecimento da criança como sujeito titular de direitos, e
não mais como objeto de proteção (MATTIOLI; OLIVEIRA, 2013).
Embora a Declaração de Direitos da Criança tenha demonstrado um significativo avanço
ao assegurar um rol de direitos às crianças, essa declaração (da mesma forma que a Declaração de
Genebra), por não ter força obrigatória nem qualquer coercibilidade, não passou de uma carta de
intenções (MATTIOLI; OLIVEIRA, 2013, p. 17).
Em 20 de novembro de 1989 foi adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações
Unidas a Convenção sobre os Direitos da Criança, destacando-se como o tratado internacional
de proteção de direitos humanos com o mais elevado número de ratificações. Até o ano de 2014,
contava com 193 Estados-partes (PIOVESAN, 2015).
Somente no ano de 1990 esse documento foi oficializado como lei internacional, passando a
vigorar obrigatoriamente e possuindo força coercitiva (UNICEF BRASIL, 2018b). No seu primeiro
artigo, a Convenção define quem é criança: “Para efeitos da presente convenção considera-se como
criança todo ser humano com menos de 18 anos de idade, a não ser que, em conformidade com a
lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes” (ONU, 1989).
Flávia Piovesan (2015) ressalta que a convenção adota um elenco extenso de direitos às
crianças, incluindo na categoria de direitos, os civis, os políticos, os econômicos, os sociais e os
culturais, acolhendo e dando ênfase especial ao desenvolvimento integral da criança como verda-
deiro sujeito de direitos.
Por isso se afirma que, com essa convenção, adota-se a doutrina da proteção integral à criança e
ao adolescente, reconhecendo, com base na concepção do princípio da dignidade da pessoa humana,
que a criança e o adolescente são como sujeitos titulares de direitos fundamentais e que precisam de
proteção especial e com prioridade, diante de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
Dos direitos das crianças e dos adolescentes 33

Dentro dessa concepção, o artigo 3º, item 1, da Convenção estabelece: “Todas as ações relati-
vas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais,
autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o melhor
interesse da criança.” (ONU, 1989, grifos nossos).
A partir daí começaram a se estabelecer as bases do princípio The Best Interest (o melhor
interesse, em inglês) como padrão quando se trata de questões relacionadas à proteção da criança
e do adolescente. Esse princípio estabelece que, no caso concreto, devem sempre ser considerados
os interesses da criança em detrimento dos interesses dos pais, interpretando-se a circunstância
concreta com base na visão do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento dos
direitos humanos (AZAMBUJA, 2016).
A Convenção de 1989 estabeleceu um rol de direitos, entre eles: direito à vida (art. 6º); direito
ao nome, à nacionalidade, a conhecer os pais e a ser cuidado por eles (art. 7º); direito à identidade
(art. 8º), proteção ante a separação dos pais (art. 9º), à liberdade de expressão (art. 13), pensamento,
consciência e crença (art. 14); proteção contra exploração e abuso sexual (art. 19); acesso a serviços
de saúde e previdência social (art. 24, 25 e 26); direito à educação (art. 28); direito ao descanso e
ao lazer (art. 31); proteção contra a exploração econômica, com a fixação de idade mínima para
admissão em emprego (art. 32), entre outros.
A par da Convenção sobre os Direitos da Criança, visando fortalecer o rol de medidas prote-
tivas “no tocante à exploração econômica e sexual de crianças e no tocante à participação de crian-
ças em conflitos armados, foram adotados, em 25 de maio de 2000, dois Protocolos Facultativos
à Convenção” (PIOVESAN; PIROTTA, 2015, p. 462), por meio da Resolução A/RES/54/263 da
Assembleia Geral das Nações Unidas:
• Protocolo Facultativo sobre a Venda de Crianças, Prostituição e Pornografia Infantis;
• Protocolo Facultativo sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados.
Com o objetivo de controlar e fiscalizar os direitos enunciados na Convenção e visando
cumprir o disposto no seu artigo 43, foi instituído o Comitê sobre os Direitos da Criança, ao qual
“cabe monitorar a implementação da Convenção, por meio do exame de relatórios periódicos en-
caminhados pelos Estados-partes” (PIOVESAN; PIROTTA, 2015, p. 462).
O Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança em 24 de setembro de 1990 e
promulgou-a no âmbito interno por meio do Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990, bem
como ratificou os Protocolos Facultativos em 27 de janeiro de 2004.
Em 19 de dezembro de 2011 foi adotado o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os
Direitos da Criança relativo ao procedimento de comunicações1, com o objetivo de instituir os
child-sensitive procedures (procedimentos sensíveis à criança, em tradução livre). Esse protocolo
habilita o Comitê de Direitos da Criança a:
apreciar petições individuais (inclusive no caso de violação a direitos econômi-
cos, sociais e culturais); a adotar “interim measures” quando houver urgência, e

1 Para acesso ao texto do protocolo: <www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=1187>.


Acesso em: 7 jun. 2018.
34 Direitos humanos e relações étnico-raciais

situações excepcionais e para evitar danos irreparáveis à(s) vítima(s) de viola-


ção; a apreciar comunicações interestatais; e a realizar investigações in loco, nas
hipóteses de graves ou sistemáticas violações aos direitos humanos das crianças.
(PIOVESAN, 2015, p. 297)

Esse protocolo entrou em vigor em 14 de abril de 2014, contando com 11 Estados-partes em


2 de julho de 2014 (PIOVESAN, 2015, p. 297).
A importância desse Protocolo de Comunicação foi atestada pela Comissão Interamericana
de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA, 2014):
A implementação do Protocolo Facultativo amplia as possibilidades de proteção
internacional dos direitos da infância, já que permite às crianças ou a seus re-
presentantes apresentar queixas ao Comitê dos Direitos da Criança das Nações
Unidas, ante eventuais violações de seus direitos, quando não tenham obtido
justiça e reparação em âmbito nacional. O Comitê dos Direitos da Criança será
o órgão que analisará as comunicações que as crianças apresentem para de-
terminar se foram violados seus direitos reconhecidos na Convenção sobre os
Direitos da Criança e seus dois protocolos adicionais sobre a participação de
crianças em conflitos armados, e sobre a venda de crianças, prostituição infantil
e utilização de crianças na pornografia. O Comitê também pode solicitar medi-
das provisórias aos Estados para proteger as crianças.
O Protocolo prevê também a possibilidade de que o Comitê dos Direitos da
Criança, por iniciativa própria e sem necessidade da mediação de uma queixa,
inicie um procedimento de investigação sobre supostas violações graves ou sis-
temáticas dos direitos enunciados na Convenção e em seus protocolos por um
Estado-parte.
Esse instrumento internacional leva em especial consideração a importância da
adaptação dos procedimentos para o acesso à proteção internacional das crian-
ças, de modo que se garanta sua efetiva participação na defesa de seus direitos.

O Brasil assinou esse protocolo em 28 de fevereiro de 2012 pela Ministra da Secretaria de


Direitos Humanos da Presidência da República, na sede das Nações Unidas, em Genebra, onde se
realizava a 19ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU (SDH, 2012).
Após analisar algumas questões relacionadas à normativa internacional, é interessante indi-
carmos algumas atuações do Unicef para demonstrar a importância de sua missão.
O Unicef atua em 191 países com o objetivo de ajudar a assegurar o respeito e proteção dos
direitos da criança e do adolescente, trabalhando para (UNICEF BRASIL, 2018a):
• Garantir que cada criança tenha um início de vida com saúde, proteção e educação, pois
é nessa fase que se desenvolvem as habilidades essenciais para o futuro.
• Promover a educação de garotas e assegurar a conclusão, pelo menos, da educação primária.
• Assegurar que todas as crianças sejam vacinadas e estejam bem-nutridas.
• Prevenir o avanço do HIV/aids entre crianças e adolescentes, oferecendo as ferramentas
necessárias para que se protejam e protejam os outros, além de tratamento e cuidados
adequados para aqueles afetados pelo vírus.
• Envolver toda a sociedade na construção de ambientes seguros para as crianças e os
adolescentes.
Dos direitos das crianças e dos adolescentes 35

• Estar presente nas ações emergenciais sempre que a infância estiver ameaçada.
• Garantir o cumprimento da Convenção sobre os Direitos da Criança.
• Combater qualquer tipo de discriminação, especialmente as sofridas por meninas
e mulheres.
• Ajudar os países para que alcancem os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM).
• Assegurar a paz e a segurança.
• Estimular a participação dos adolescentes nos processos de decisão em sua comunidade,
em sua cidade, em seu estado e em seu país.

Especificamente na América Latina e no Caribe, a Unicef concentra os seus esforços na


resposta a seis ameaças significativas à infância: disparidades, exclusão, desnutrição crônica, vio-
lência, HIV/aids e situações emergenciais decorrentes de desastres naturais (UNICEF BRASIL,
2018c). A atuação no Brasil acontece desde 1950 e é de extrema relevância, sendo que já ajudou o
nosso país em vários aspectos (UNICEF, 2017, p. 5):
Educação: acesso e permanência na escola - De 2012 a 2015, a taxa de abando-
no no ensino fundamental caiu 34% entre os municípios certificados pelo Selo
UNICEF no Semiárido e 18,9% entre os da Amazônia. Além de desenvolver
ações para garantir a permanência dos alunos nas salas de aula e a aprendiza-
gem, os municípios investiram na busca ativa de crianças e adolescentes que
estavam fora da escola, realizando ações para garantir a inserção deles na rede
pública de ensino.
Proteção: enfrentamento do trabalho infantil e da violência sexual - Entre
todos os municípios participantes do Selo UNICEF, a superação da violên-
cia crescente que afeta crianças e adolescentes foi um ponto importante. No
Semiárido, mesmo num contexto em que situações de trabalho infantil são
percebidas como algo aceitável e casos de violência sexual são frequentemente
tolerados, os 346 municípios que realizaram ações de prevenção ao trabalho
de crianças e adolescentes e os 158 que implementaram algum programa para
prevenção e acolhimento de meninos e meninas vítimas de violência domés-
tica e sexual merecem destaque. Na Amazônia, 147 municípios realizaram
campanhas de combate ao trabalho infantil e 134 realizaram projetos voltados
ao atendimento de medidas socioeducativas em meio aberto, incluindo capa-
citação de equipes e serviços de referência.
Saúde: redução da mortalidade infantil - De 2011 a 2014, a taxa de mortalidade
infantil caiu 5,2% no Brasil. Nos municípios certificados pelo Selo UNICEF, a
queda foi de 8,1% no Semiárido e 9,8% na Amazônia. A queda se deve a um
conjunto de medidas adotadas por esses municípios, como o aumento do acesso
ao pré-natal. No total, 334 crianças a menos morreram antes de completar 1 ano
de idade nesse período.
PARTICIPAÇÃO SOCIAL: ENGAJAMENTO DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES
Ao todo, 525 municípios participantes do Selo UNICEF no Semiárido cria-
ram Núcleos de Cidadania dos Adolescentes (Nucas), envolvendo 11,5 mil me-
ninos e meninas, que se tornaram mobilizadores de outros adolescentes. Na
Amazônia, foi criada a rede Juventude Unida pela Vida na Amazônia (Juva),
que realizou quatro encontros regionais, mobilizando mais de 10 mil crianças
e adolescentes.
36 Direitos humanos e relações étnico-raciais

2.2 ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente


O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n. 8.069/90, é a consagração do disposto
no artigo 227 da Constituição Federal de 1988:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, cruel-
dade e opressão. (BRASIL, 1988, grifos nossos)

Foi a Constituição Federal de 1988 que consolidou os ideais da Convenção sobre os Direitos
da Criança, sendo que a proteção estabelecida nos artigos do Capítulo VII da nossa Constituição
foi regulamentada pela Lei n. 8.069/90.
O ECA foi sancionado em 13 de julho de 1990 e dispõe sobre a proteção integral à criança
e ao adolescente, ou seja, foi consagrado no âmbito do Direito Brasileiro o princípio da proteção
do melhor interesse da criança, estabelecendo expressamente no seu artigo 3º que a criança e o
adolescente gozem de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo
da proteção integral, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e as
facilidades, a fim de facultar-lhes o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em
condições de liberdade e de dignidade.
O ECA afasta (revoga) a ideia do Código de Menores (Lei n. 6.697/79) e do Código Civil de
1916, que somente protegiam a criança e o adolescente em situação irregular, ou seja, aqueles que
eram privados das condições essenciais para o seu desenvolvimento.
A partir da promulgação da CF/1988 e da sua regulamentação pela legislação estatutária, a
criança deixa de ser objeto a ser protegido e passa a ser sujeito de direitos, detentora de dignidade
a ser assegurada pelos pais, pela família, pelo Estado e por toda a sociedade. Reconhecendo essa
mudança de perspectiva, Ana Carolina Figueiro Longo explica (2015, p. 416):
É relevante destacar que apenas a partir da promulgação da constituição vigente
que se assegurou, na condição de direito subjetivo, a proteção da infância e ju-
ventude. Foi criado, pois, um microssistema de atenção especial, que assegura
a proteção integral.
Esta é uma mudança de perspectiva importante, que viabiliza a mobilização das
ações estatais para as condições especiais desta população de pessoas em desen-
volvimento. Veja-se que, antes, crianças e adolescentes que não estavam integra-
dos na proteção de um núcleo familiar eram vistos como um problema social
e a política estatal estabelecida se voltava apenas para a proteção da sociedade.
Positivado um extenso rol de direitos fundamentais destinados a essa parcela da
população a partir de 1988, elas passaram a ser reconhecidas como sujeitos de
direitos e, portanto, objetos de políticas públicas especificamente voltadas para
a proteção de seus interesses. Esta compreensão é uma conquista recente, visto
que os primeiros atos normativos brasileiros que cuidavam da infância e juven-
tude ocupavam-se ora com uma concepção assistencialista aos “desamparados”,
ora com o aspecto criminal de seu comportamento.

A autora continua esclarecendo como passou a ser a atuação do Estado a partir dessa nova visão:
Dos direitos das crianças e dos adolescentes 37

Vale destacar a grande mudança que a nova Constituição causou para a pro-
teção da criança e do adolescente, visto que deixam de ser objeto da atenção
do Estado apenas quando destituídos de suas famílias ou em situação de de-
linquência. A partir do reconhecimento constante do art. 227 da Constituição,
passam as ser objetos de políticas públicas específicas, observando a responsa-
bilidade do Estado de zelar pela integridade de toda criança e adolescente, com
máxima prioridade.
Assim, se abre espaço para uma série de readequações do Direito à sociedade
brasileira em transformação, viabilizando a modificação desde o reconheci-
mento da criança e do adolescente, como sujeitos de direitos, como dito, até o
reconhecimento que o próprio conceito de família se modifica sensivelmente.
Antes em uma situação de desamparo, e objeto de uma política assistencialista
e de necessidade de controle social, a criança e o adolescente que estão fora de
seu contexto familiar, agora, merecem proteção no texto constitucional como
sujeitos de direitos.
Ao Poder Público se imbuiu o dever de zelar para que toda a criança e o ado-
lescente possa se desenvolver no âmbito familiar, ainda que se trate de famí-
lia substituta na ausência ou impossibilidade da família biológica acolhê-los.
(LONGO, 2015, p. 429)

Portanto, a partir da vigência do ECA, essa legislação passa a regular a situação jurídica de
todas as crianças e adolescentes até 18 anos de idade, independentemente da sua condição, não
havendo mais a distinção ocorrida pelo Código de Menores, o qual somente era aplicável aos me-
nores em condições irregulares.
Assim, as crianças e os adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais garantidos à
pessoa humana, tanto aqueles reconhecidos de forma expressa pela legislação nacional, quanto os
previstos em tratados internacionais (PIOVESAN, PIROTTA, 2015).
Passemos a um exame superficial de alguns dos dispositivos do ECA. Primeiramente,
ele define quem é criança e quem é adolescente, estabelecendo que se considera criança a
pessoa de até doze anos de idade incompletos e adolescente aquela compreendida entre doze e
dezoito anos. Porém, destaca a legislação estatutária que pode ser aplicada, excepcionalmente,
às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade, nos casos expressos em lei, conforme o
artigo 2º e parágrafo único.
O Estatuto da Criança e do Adolescente se estrutura em Parte Geral e Parte Especial.
A primeira aponta os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes no Título II (art. 7º ao
art. 69), dentre eles, o direito à vida e à saúde, à liberdade, ao respeito e à dignidade, à convivência
familiar e comunitária, à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, à profissionalização e à proteção
no trabalho.
No artigo 7º expressamente, além de garantir o direito à vida e à saúde, estabelece que cabe
ao Estado a efetivação de políticas públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio
e harmonioso, em condições dignas de existência. Ou seja, determina ações positivas do Estado
para assegurar aqueles direitos.
A legislação estatutária também assegura atendimento integral à saúde pelo Sistema Único
de Saúde – SUS, não somente à criança e ao adolescente (art. 11 do ECA), mas também às gestantes
38 Direitos humanos e relações étnico-raciais

(arts. 8º e 9º do ECA), demonstrando a preocupação da legislação com a criança desde antes do


seu nascimento.
Outra garantia (que dificilmente é de conhecimento da população) é a previsão do artigo
12, que aponta que “os estabelecimentos de atendimento à saúde deverão proporcionar condições
para a permanência em tempo integral de um dos pais ou responsável, nos casos de internação de
criança ou adolescente”.
Para casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos, o artigo 13 do ECA estabelece a obri-
gatoriedade de comunicação ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, inclusive cominando
penalidade administrativa (conforme sustenta o Título VII, Capítulo II, do ECA) para quem deixar
de comunicar à autoridade competente estas circunstâncias:
Art. 245 – Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de
atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar
à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo sus-
peita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente:
Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso
de reincidência. (BRASIL, 1990)

No artigo 15 o ECA expressamente reconhece a condição de sujeito de direitos da criança e


do adolescente, atribuindo-lhes direito à liberdade, ao respeito e à dignidade:
Art. 15 – A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à digni-
dade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujei-
tos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.
(BRASIL, 1990)

O artigo 16 especifica os aspectos do direito à liberdade, incluindo a liberdade de ir e vir, de


opinião e expressão, de crença e culto religioso, de brincar, praticar esportes e divertir-se, de parti-
cipar da vida familiar e comunitária sem discriminação, de participar da vida política e de buscar
refúgio, auxílio e orientação.
O artigo 17 trata sobre o direito ao respeito, esclarecendo que consiste “na inviolabilidade
da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da
imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”
(BRASIL, 1990). O ECA ainda cumpre alguns aspectos que vieram à tona pela Lei n. 13.010/2014,
conhecida vulgarmente por Lei da Palmada e nascida como Lei Menino Bernardo, que incluiu os
artigos 18-A e 18-B na legislação estatutária:
Art. 18-A. – A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados
sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas
de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pe-
los integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos
executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de
cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se:
I – castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da
força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em:
a) sofrimento físico; ou
Dos direitos das crianças e dos adolescentes 39

b) lesão;
II – tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em
relação à criança ou ao adolescente que:
a) humilhe; ou
b) ameace gravemente; ou
c) ridicularize.
Art. 18-B – Os pais, os integrantes da família ampliada, os responsáveis, os
agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa
encarregada de cuidar de crianças e de adolescentes, tratá-los, educá-los ou pro-
tegê-los que utilizarem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante como
formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto estarão su-
jeitos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes medidas, que serão
aplicadas de acordo com a gravidade do caso:
I – encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;
II – encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;
III – encaminhamento a cursos ou programas de orientação;
IV – obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado;
V – advertência.
Parágrafo único. As medidas previstas neste artigo serão aplicadas pelo
Conselho Tutelar, sem prejuízo de outras providências legais. (BRASIL, 1990,
incluído em 2014)

Em regra, a interpretação conferida aos referidos dispositivos é que, a partir de sua vigência,
é vedado qualquer tipo de castigo físico (uso da força física que resulte em sofrimento ou lesão
física), ou tratamento cruel e/ou degradante (conduta que humilhe, ameace gravemente ou ridi-
cularize), embora também se critique o fato de não haver qualquer medida penal a ser imposta ao
agressor além de medidas socioeducativas (encaminhamento a programa oficial ou comunitário
de proteção à família; encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; encaminhamen-
to a cursos ou programas de orientação; obrigação de encaminhar a criança a tratamento especia-
lizado; advertência).
Além dessas medidas incluídas pela referida lei, já poderiam ser impostas a perda da guarda,
a destituição da tutela e a suspensão ou destituição do poder familiar (art. 129 do ECA). Contudo,
não se pode esquecer que as medidas na esfera penal não dependem de qualquer alteração legisla-
tiva, sendo que o Código Penal de 1940 já previa o crime de maus tratos no seu art. 136:
Art. 136 – Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guar-
da ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer
privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a
trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou
disciplina:
Pena – detenção, de dois meses a um ano, ou multa.
§1.º – Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena – reclusão, de um a quatro anos.
§2.º – Se resulta a morte:
Pena – reclusão, de quatro a doze anos.
40 Direitos humanos e relações étnico-raciais

§3.º – Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa


menor de 14 (catorze) anos. (BRASIL, 1940)

Sem analisar o mérito da questão, cumpre ressaltar que alguns autores afirmam que a altera-
ção legislativa não impede o castigo disciplinar, aquele que tem como objetivo disciplinar a criança
e o adolescente sem lhe infligir um mal grave, pois a mudança da lei (ao afirmar que castigo físico
é a ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o
adolescente que resulte em sofrimento físico) acaba por abrir ao subjetivismo do intérprete a análi-
se do caso concreto se o castigo imposto extrapolou os limites do aceitável e do objetivo disciplinar.
Na sequência da análise do ECA cumpre ressaltar que, em consonância com o artigo 227, §6º da
CF/1988, o artigo 20 da legislação estatutária reconhece a igualdade entre todos os filhos, havidos ou
não da relação de casamento ou por adoção, proibindo qualquer designação discriminatória.
Ainda no Capítulo III do Título II (arts. 19 a 52-D), o ECA vai tratar da adoção como me-
dida excepcional, quando não há mais possibilidade de convivência da criança ou do adolescente
com a família natural ou extensa2. Dispõe também sobre a guarda3 , a tutela4 e sobre o exercício,
suspensão e perda do poder familiar.
No Capítulo IV (do Título II), do artigo 53 ao 59, o Estatuto regula os direitos à educação,
à cultura, ao esporte e ao lazer, regulamentando os artigos 205 a 217 da CF/1988. Na sequência,
nos artigos 60 a 69, o ECA regulamenta os direitos à profissionalização e à proteção no trabalho.
O objetivo proposto para este capítulo era traçar um perfil dos direitos e garantias assegu-
radas pelo ECA. Evidentemente, essa legislação não trata apenas de prever direitos, mas também
de estabelecer formas de prevenção e medidas de proteção e fiscalização desses direitos (exemplos:
arts. 70 a 73 e arts. 95 a 97). Regula, por exemplo, a proibição de venda à criança e ao adolescente
de alguns produtos prejudiciais a sua formação e sua educação, tais como armas, munições e ex-
plosivos, bebidas alcoólicas ou produtos cujos componentes possam causar dependência física ou
psíquica ainda que por utilização indevida (art. 81 do ECA).
Por outro lado, o Estatuto também trata dos atos infracionais (condutas definidas como
crime ou contravenção penal) praticadas por crianças ou adolescentes (art. 103 do ECA) e regula
as correspondentes medidas socioeducativas a serem aplicadas aos respectivos infratores (art. 112
do ECA)5.

2 Família extensa ou ampliada vem conceituada no parágrafo único do artigo 25 do ECA: “aquela que se estende para
além da unidade pais e filho ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adoles-
cente convive e mantém vínculo de afinidade ou afetividade” (BRASIL, ECA/1990).
3 Guarda é “locução indicativa, seja do direito ou do dever, que compete aos pais ou a um dos cônjuges, de ter em sua
companhia ou de protegê-los, nas diversas circunstâncias indicadas na lei civil. E ‘guarda’ neste sentido, tanto significa
custódia como a proteção que é devida aos filhos pelos pais” (PLÁCIDO; SILVA, 2000, p. 365-366).
4 Tutela é o encargo legal ou judicial atribuído a alguém, que deverá administrar os bens ou a conduta do tutelado. De
acordo com o artigo 1.728, do Código Civil será instituída a tutela a favor dos filhos menores nas seguintes hipóteses:
“I - com o falecimento dos pais, ou sendo estes julgados ausentes; II - em caso de os pais decaírem do poder familiar”.
5 Para uma breve introdução sobre os atos infracionais e as medidas socioeducativas, recomendamos o seguinte
artigo: AQUINO, Leonardo Gomes de. Criança e adolescente: o ato infracional e as medidas sócio-educativas. Âmbito
Jurídico, Rio Grande, v. XV, n. 99, abr. 2012. Disponível em: <www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_
leitura&artigo_id=11414>. Acesso em: 8 jun. 2018.
Dos direitos das crianças e dos adolescentes 41

Apesar de várias críticas – em especial, da parcela da população mais leiga –, essa legis-
lação é reconhecida internacionalmente e foi elaborada por juristas de renome nacional e in-
ternacional. Ao completar 25 anos de sua promulgação, em 13 de julho de 2015, a Unicef apre-
sentou um relatório sobre os 25 anos da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente,
visando identificar os resultados obtidos no período e apontar a necessidade de criação de
políticas diferenciadas, capazes de promover a inclusão de meninos e meninas que ainda têm
seus direitos violados (UNICEF, 2015).
O relatório indica que o Brasil é uma das nações que têm se destacado por reduzir a mor-
talidade infantil, superando a meta de redução da mortalidade infantil prevista nos Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (ODM) antes mesmo do prazo estabelecido. De 1990 a 2012, a taxa
de óbito entre crianças menores de 1 ano foi reduzida em 68,4%, atingindo a marca de 14,9 mortes
para cada 1.000 nascidos vivos (UNICEF, 2015, p. 14).
Aponta, também, que todos os indicadores sobre educação avançaram: de 1990 a 2013, o
percentual de crianças com idade escolar obrigatória fora da escola caiu 64%, passando de 19,6%
para 7% (Pnad). Outro indicador a ser celebrado é a queda na taxa média de analfabetismo entre
brasileiros de 10 a 18 anos de idade. Essa taxa caiu 88,8%, passando de 12,5%, em 1990, para 1,4%,
em 2013. A queda foi ainda mais significativa entre os adolescentes negros, com redução de 17,8%
para 1,5%, e pardos, caindo de 19,4% para 1,7% no mesmo período. A queda foi de aproximada-
mente 91% em ambos os casos (PNAD apud UNICEF, 2015, p. 16).
O relatório acrescenta ainda que o Brasil é um “exemplo para outros países na estruturação
e implementação de uma vigorosa rede de proteção social, com políticas de referência como o
Sistema Único de Assistência Social (SUS) e o Bolsa Família” (UNICEF, 2015, p. 5).
A partir do ECA o direito ao registro civil de nascimento é garantido a 95% das crianças
brasileiras, sendo que “de 1990 a 2013, o percentual de crianças registradas no mesmo ano de nas-
cimento subiu de 66% para 95% (Pnad)” (UNICEF, 2015, p. 20).
Todavia, embora tenham sido muitos os avanços, sendo somente alguns os citados acima, o
Brasil tem muito a melhorar e o relatório indica como um retrocesso a possibilidade de redução da
maioridade penal e como alarmante o fato de terem dobrado o número de homicídios de crianças
e adolescentes (UNICEF, 2015, p. 28-34), entre tantos outros. O ECA, embora existente e vigente,
ainda continua a ser desrespeitado.

2.3 Combate ao trabalho infantil e à pedofilia


2.3.1 Combate ao trabalho infantil
Neste item, iremos passar ao exame de dois temas de extrema relevância à proteção das
crianças e dos adolescentes: a questão do trabalho infantil e do combate à pedofilia, sendo que
ambos são uma realidade nacional.
No que tange ao trabalho infantil, houve uma evolução positiva em nosso país, sendo que
a redução desse tipo de trabalho foi uma das grandes conquistas dos 25 anos do ECA, segundo o
relatório da Unicef feito na ocasião.
42 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Figura 1 – Trabalho infantil: evolução do percentual de pessoas ocupadas entre 5 e 15 anos de idade

5 a 9 anos 10 a 15 anos

30%

22,5%

15%

7,5%

0%
1992 2001 2011 2013
Trabalho infantil: evolução do percentual de pessoas ocupadas entre 5 e 15 anos de idade
A incidência do trabalho infantil entre a população de 5 a 15 anos reduziu-se considera-
velmente nos últimos 20 anos. Entre os mais novos, de 5 a 9 anos, o trabalho infantil está
próximo de zero. Região Nordeste foi a que mais avançou.
Fonte: UNICEF, 2015, p. 24.

Figura 2 – Trabalho infantil: evolução do percentual de pessoas ocupadas entre 5 e 15 anos de idade por região

Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

18%

13,5%

9%

4,5%

0%
1992 2001 2011 2013
Trabalho infantil: evolução do percentual de pessoas ocupadas entre 5 e 15 anos de idade por região

Redução aconteceu em todas as regiões. Na Região Nordeste, a queda foi de 75%.

Fonte: UNICEF, 2015, p. 24.

O relatório da Unicef aponta a situação econômica das famílias como uma das principais cau-
sas do problema do trabalho infantil, o que levou à criação, em 1996, do Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil (Peti), objetivando a complementação de renda e apoio aos pais de crianças e
adolescentes que trabalhavam (UNICEF, 2015).
O trabalho infantil atinge diretamente a relação da criança e do adolescente com a escola,
tirando-os da escola ou afetando o rendimento escolar. O referido relatório indica que “em 2013,
Dos direitos das crianças e dos adolescentes 43

3 milhões de crianças e adolescentes de 4 a 17 anos estavam fora da escola no Brasil (PNAD,


2013). Segundo o Censo Escolar de 2014, outros 8 milhões de meninos e meninas dos ensinos
fundamental e médio encontravam-se em atraso escolar, correndo o risco de evadir” (UNICEF,
2015, p. 23).
Outro ponto de relevância apontado pelo relatório é o trabalho doméstico, que acaba sendo
aceito culturalmente. Esse documento indica que, entre 2008 e 2011, o número de casos de crianças
e adolescentes ocupados no trabalho infantil doméstico diminuiu de 325 mil para 258 mil – uma
redução de apenas 0,2 ponto percentual. Acrescenta-se a isso as crianças e adolescentes que aju-
dam seus pais e familiares no comércio informal, porém ambas as situações acabam sendo resul-
tado, muitas vezes, da falta de opções diante da ausência de creches e escolas em período integral
(UNICEF, 2015, p. 23).
O artigo 7º, inciso XXXIII, da Constituição Federal, dispõe sobre a questão do trabalho
infantil nos seguintes termos:
Art. 7.º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que
visem à melhoria de sua condição social:
XXXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de
dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição
de aprendiz, a partir de quatorze anos. (BRASIL, 1988)

O ECA regulamenta a matéria entre seus artigos 60 a 69. Numa interpretação sistemática da
CF/1988 e do ECA, pode ser entendido como o limite de idade os 16 anos, sendo que entre 14 e 16
anos somente seria possível o trabalho na condição de aprendiz.
O artigo 67 proíbe, ao adolescente empregado, aprendiz, em regime familiar de trabalho,
aluno de escola técnica, assistido em entidade governamental ou não governamental, o trabalho:
• Noturno, realizado entre as vinte e duas horas de um dia e as cinco horas do dia se-
guinte, visando garantir o bom desenvolvimento físico dos adolescentes diante da neces-
sidade de garantia de uma boa noite de sono.
• Perigoso, insalubre ou penoso. Perigoso é o trabalho que ameaça a integridade física da
pessoa, podendo gerar risco de morte, como aqueles que colocam a pessoa em contato
com produtos químicos, inflamáveis, equipamentos cortantes e explosivos. Insalubre é o
trabalho que traz risco à saúde, como aquelas que, por sua natureza, condições ou méto-
dos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde. Trabalho penoso
é o que gera desgaste físico ou psíquico. Todos são proibidos visando evitar prejuízo ao
desenvolvimento físico do adolescente.
• Realizado em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico,
psíquico, moral e social, como, por exemplo, os vinculados a jogos, sexo, violência
ou drogas.
• Realizado em horários e locais que não permitam a frequência à escola, o que demons-
tra que a preocupação da legislação é maior com a educação do que com o trabalho.
A legislação estatutária estabelece, também, entre os artigos 62 e 65, a aprendizagem pro-
fissional vinculada à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) – n. 9.394/96) e a garantia de
44 Direitos humanos e relações étnico-raciais

bolsa-aprendizagem ao adolescente de até 14 anos, além dos direitos trabalhistas e previdenciários


ao adolescente aprendiz, maior de 14 anos.
O ECA introduz também a modalidade de trabalho educativo no artigo 68, estabelecendo
o que se entende como “trabalho educativo a atividade laboral em que as exigências pedagógicas
relativas ao desenvolvimento pessoal e social do educando prevalecem sobre o aspecto produtivo”
(BRASIL, ECA/1990).
Ensina Oris de Oliveira sobre o trabalho educativo:
Não uma atividade laborativa qualquer, mas a que se insere em projeto peda-
gógico que vise ao desenvolvimento pessoal e social do educando. Portanto
o ritmo, desenrolar das atividades deverá ser ditado, sob pena de inversão de
meios e fins, por um programa preestabelecido. Não uma produção qualquer,
mas aquela cujo produto possa ser vendido dentro das exigências de qualidade
e competitividade. Uma produção, pois, que implique custo e benefícios, capaz
de remunerar quem a executa. (OLIVEIRA, 2009, p. 222)

A ideia é aliar um trabalho remunerado (§2º do art. 68 do ECA) ao desenvolvimento pessoal


e social do adolescente, devendo sempre prevalecer o lado pedagógico6.
Não raro vemos situações de trabalho dito educativo que nada mais são do que a exploração
de mão de obra barata, infelizmente, sem dar efetividade ao objetivo da norma inserida na legisla-
ção estatutária, o que demonstra a necessidade de uma fiscalização efetiva nessa área.
Todavia, Oliveira (2009) cita como exemplo de trabalho educativo aquele que dá cumpri-
mento à norma do ECA, o Projeto Escola de Fábrica7, aprovado pela Lei 11.180, de 2005, e exe-
cutado pelo Ministério da Educação, com a finalidade de ampliar as possibilidades de formação
profissional básica, favorecendo o ingresso de estudantes de baixa renda no mercado de trabalho.
Entre os projetos citados pelo autor, temos o Projeto Pescar, o Integrar e o Formare.
Outro exemplo seria o ProJovem, destinado a jovens de 15 a 29 anos de idade e que visa
promover sua reintegração ao processo educacional, sua qualificação profissional e seu desenvol-
vimento humano (Lei n. 11.692/2008), com a criação de políticas públicas para garantir direitos
sociais, em especial voltadas à manutenção do adolescente no sistema educacional.
No entanto, embora a ideia principal do trabalho como aprendiz ou do trabalho educativo
seja dar ênfase ao conteúdo pedagógico, sabe-se os evidentes prejuízos que uma má condução
desse ideal pode trazer à vida de uma criança ou adolescente, afetando seu desenvolvimento físico,
social, psicológico e moral. A inserção precoce de adolescente e até de crianças no mercado de tra-
balho afasta-os da escola, atinge diretamente a sua formação pedagógica e seu futuro profissional.

6 Para mais informações sobre o trabalho educativo, além da bibliografia apresentada, indicamos também o se-
guinte texto: DINALI, Danielle de Jesus. Trabalho educativo de criança e adolescente: exploração de mão de obra
de baixo custo? Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3808, 4 dez. 2013. Disponível em: <https://jus.com.br/
artigos/26057>. Acesso em: 20 jun. 2018.
7 Sobre o Projeto Escola de Fábrica, indica-se o seguinte artigo: RUMMERT, Sonia Maria. Projeto escola de fá-
brica – atendendo a “pobres e desvalidos da sorte” do século XXI. Perspectiva, Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 303-322,
jul./dez. 2005. Disponível em: <http://www.uff.br/ejatrabalhadores/artigos/projeto-escola-fabrica.pdf>. Acesso em:
20 jun. 2018.
Dos direitos das crianças e dos adolescentes 45

Por isso, existe uma preocupação nacional e internacional com a prevenção e erradicação do
trabalho infantil, criando-se programas com esse objetivo, como, por exemplo, o IPEC – Programa
Internacional para Eliminação do Trabalho Infantil, implementado mundialmente pela OIT, em
1992, inclusive no Brasil. O Programa envolve a atuação conjunta dos governos federal, estaduais
e municipais, além das demais entidades do poder público, organizações de trabalhadores e em-
pregadores, entidades da sociedade civil organizada, movimentos sociais e organizações interna-
cionais, o que contribuiu para a retirada de mais de 800 mil crianças do trabalho desde então,
tornando o Brasil referência na redução do trabalho infantil (OIT, 2016).
O programa está presente em todo o Brasil:
Figura 3 – Atuação do IPEC
Legenda:
Exploração sexual

Canaviais

Agrícola

Calçados

Sisal

Mineração

Tráfico de pessoas

Fumageiro

Trabalho doméstico

Narcotráfico

Tecelagem

Construção Civil

Hortifrúti

Erva-mate

Carvão

Olarias

Garimpo

Fonte: OIT, 2016.

A OIT assim descreve o desenvolvimento e a atuação do IPEC no Brasil:


Com mais de 100 programas de ação financiados pela OIT, mostrou-se que é
possível não somente implementar políticas integradas de retirada e proteção
da criança e do adolescente do trabalho precoce, como também desenhar ações
preventivas junto à família, à escola, comunidade e a própria criança.
O sucesso do IPEC no Brasil em introduzir a questão da erradicação do traba-
lho infantil na agenda das políticas nacionais se traduz nos maiores índices de
redução do número absoluto de crianças exploradas no trabalho formal que se
tem notícia. Entretanto, a OIT/IPEC continuará cooperando com a socieda-
de brasileira para progressivamente retirar 5 milhões de crianças e adolescen-
tes restantes [...]. Essas encontram-se no trabalho informal, perigoso ilícito e
46 Direitos humanos e relações étnico-raciais

oculto, cujos desafios não são menores do que eram quando o IPEC se estabele-
ceu no Brasil há mais de 10 anos. (OIT [2004?])

Assim como o IPEC, podemos citar o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do


Trabalho Infantil (FNPETI), criado em 1994 com o apoio da OIT e da Unicef, que é uma instância
autônoma de controle social, tornando-se “uma estratégia da sociedade brasileira de articulação e
aglutinação de atores sociais institucionais, envolvidos com políticas e programas de prevenção e
erradicação do trabalho infantil no Brasil” (FNPETI, 2018).
Menciona-se ainda o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), do governo fede-
ral, que tem como objetivo retirar crianças e adolescentes menores de 16 anos do trabalho precoce
(exceto na condição de aprendiz, a partir de 14 anos), assegurando transferência direta de renda às
famílias e oferecendo a inclusão das crianças e dos jovens em serviços de orientação e acompanha-
mento, além de exigir a frequência à escola (MDS, 2015).
Por fim, criou-se a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), criada
por intermédio da Portaria n. 365, de 12 de setembro de 2002 e coordenada pelo Ministério do
Trabalho e Emprego. Essa comissão visa implementar a aplicação das disposições das Convenções
n. 138 e 182 da OIT e possui, como uma de suas principais atribuições, o acompanhamento da
execução do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, por ela elaborado em 2003.

2.3.2 Combate à pedofilia


Passemos ao segundo tema a ser analisado em relação aos direitos humanos da criança e do
adolescente: o combate à pedofilia.
A pedofilia é tratada pelo Código Internacional de Doenças (CID 10 – F65.4) como trans-
torno de personalidade e transtorno de preferência sexual, sendo definida como sendo uma “pre-
ferência sexual por crianças, meninos ou meninas ou ambos, geralmente na idade pré-puberal ou
no início da puberdade” (DATASUS, 2018).
A pedofilia inclui tanto a prática sexual do adulto com crianças como com adolescentes –
sendo que esta última hipótese é também chamada de pederastia – quanto a captura de imagens
envolvendo crianças e adolescente em atos sexuais, o que se chama de pornografia infantil ou pe-
dopornografia (CARDIN, BARRETO, 2009).
O pedófilo, em regra, age às escondidas, na surdina, e normalmente é uma pessoa que, apa-
rentemente, não levanta suspeitas, muitas vezes é uma pessoa conhecida, inclusive da família, que
se aproxima da criança ou do adolescente, ganha confiança desta e dos familiares, com o objetivo
de evitar que seja considerado suspeito. Age de forma a atribuir a responsabilidade do abuso à pró-
pria criança ou, ainda, invoca “consequências prejudiciais à família (decepcionar a mãe, provocar
a separação na família), ou a ele (ser preso) ou a ela própria (sofrer agressões físicas, ou ser morta
por ele), caso revele o abuso” (TRINDADE, 2007, p. 25).
As consequências dessa prática para o desenvolvimento da criança e do adolescente são
imensas e podem variar de criança para criança, de família para família, seja pelo apoio recebido
ou não. O abuso pode afetar a aprendizagem da criança, criar fobias, rejeições a carinhos, tornar a
Dos direitos das crianças e dos adolescentes 47

criança mais retraída, agressiva, tímida, deprimida, causar pesadelos ou insônia, podendo, inclusi-
ve, gerar transtornos psicológicos mais graves.
Estatisticamente, o maior centro de atendimento de vítimas de violência sexual da
América Latina, Hospital Pérola Byington, em São Paulo/SP, apresenta números que demons-
tram um aumento significativo dos atendimentos relativos a caso de violência sexual contra
crianças e adolescentes:
Figura 4 – Principais estatísticas de atendimento

Hospital Pérola Byington


Núcleo AVS. Principais estatísticas de atendimento
18.740 casos de violência e abuso sexual entre 1994 e 2008

6.350
crianças (33,9%)
11.966 casos (63,8%)
5.616
adolescentes (29,9%)

6.774 mulheres adultas (36,2%)

Fonte: MPMG, 2012, p. 8.

Distribuição anual dos casos novos de violência sexual


Figura 5 – Distribuição anual dos casos novos de violência sexual
Grupo etário
Grupo etário
1200

1000

800

600

400

200

0
1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

Crianças
Adolescentes
Adultos

Fonte: MPMG, 2012, p. 8.

Todos os dias são noticiados casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, de-
monstrando a importância da análise do tema e da efetivação de medidas de combate a tal prática.
A legislação brasileira não é omissa: desde a nossa Constituição Federal há expressa disposi-
ção sobre o assunto, mais precisamente no seu artigo 227, parágrafo 4º: “A lei punirá severamente o
abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente” (BRASIL, 1988).
A legislação penal dispõe sobre o tema nos seguintes artigos, entre outros:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter
conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro
ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§1.º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é me-
nor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
48 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.


§2.º Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos
[...]
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor
de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§1.º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com al-
guém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário dis-
cernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode
oferecer resistência.
§2.º (VETADO)
§3.º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§4.º Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. (BRASIL, 1940)
O ECA também regulamenta a matéria tendo por base as alterações produzidas pela Lei
n. 11.829/2008:
Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qual-
quer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou
adolescente:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
[...]
Art. 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que conte-
nha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou
divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou te-
lemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito
ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
[...]
Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, ví-
deo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou porno-
gráfica envolvendo criança ou adolescente:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
[...]
Art. 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo
explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação
de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, dis-
ponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou
armazena o material produzido na forma do caput deste artigo.
Dos direitos das crianças e dos adolescentes 49

Art. 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de co-
municação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:
I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo explí-
cito ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso;
II – pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir
criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita.
Art. 241 E. Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão “cena de sexo
explícito ou pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança
ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição
dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente
sexuais. (BRASIL, ECA/1990)

Outra inovação surgida recentemente, é a chamada Lei Joanna Maranhão (Lei n. 12.650/2012),
que alterou o artigo 111 do Código Penal, incluindo o inciso V:
Art. 111 – A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa
a correr:
[...]

V – nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos


neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18
(dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal.

A partir da vigência dessa alteração legislativa (18/05/2012), o prazo de prescrição da pre-


tensão punitiva do réu nos crimes sexuais contra crianças e adolescentes somente começa a correr
após a vítima completar 18 anos de idade.
Assim, Eduardo Luiz Santos Cabette exemplifica a contagem do prazo
A regra do início da contagem apenas após o completar dos 18 anos da vítima
não é, contudo, absoluta. O novo inciso V do artigo 111, CP faz uma ressalva ao
determinar que a contagem inicie somente aos 18 anos da vítima, “salvo se a esse
tempo já houver sido proposta a ação penal”.
Então, há duas situações distintas dispostas na legislação:
a) Se, por exemplo, uma criança de 5 anos sofre abuso sexual e nunca narra o
fato, de modo que não é instaurado processo para apuração, então o prazo pres-
cricional somente correrá quando ela completar 18 anos;
b) Se a mesma criança de 5 anos é abusada, mas entre o lapso temporal de seus
5 anos de idade até os 18 ocorre a instauração de processo acerca do caso, o
prazo prescricional passa a correr dessa instauração e não mais da data em que
a vítima completa a maioridade.
De qualquer forma a lei adita o início da contagem do prazo prescricional, que
não mais se contará pela regra geral da consumação (artigo 111, I, CP), mas
pelo atingimento dos 18 anos da vítima ou pelo início do processo criminal.
(CABETTE, 2013, p. 4)
50 Direitos humanos e relações étnico-raciais

O propósito da legislação é dificultar a prescrição do crime e proteger a vítima, pois esta


muitas vezes não possui consciência suficiente do fato criminoso ou não está preparada psicologi-
camente para enfrentar todas as consequências advindas da comunicação do fato.
Como bem ressalvou Talita Ferreira Alves Machado, a maioria dessas inovações legislati-
vas foi resultado da CPI da pedofilia: “Comissão Parlamentar de Inquérito criada nos termos do
Requerimento 200, de 2008, conforme parágrafo 4º do artigo 145 do Regimento Interno do Senado
Federal, para, no prazo de cento e vinte dias, apurar a utilização da internet na prática de crimes de
‘pedofilia’” (MACHADO, 2013 p. 50).
Em dezembro de 2010 foi aprovado o relatório final da CPI da pedofilia, e nesse período
de investigação a comissão logrou a aprovação de leis que “tornaram mais rígidas a punição de
pessoas envolvidas em práticas pedofílicas, a exemplo dos crimes de estupro de vulnerável e de
produção de material pornográfico envolvendo criança e adolescentes, bem como a inclusão do
abuso sexual de menores no rol dos crimes hediondos” (MACHADO, 2013 p. 50).

Atividades
1. Analise o caso internacional abaixo:

Caso Villagrán Morales e outros vs. Guatemala


(STIVAL, 2015)
[...] também conhecido como “Meninos de Rua contra Guatemala”: “re-
fere-se ao sequestro, a tortura e o assassinato de jovens que viviam nas
ruas, sendo que dois deles eram menores de idade. Neste caso, a dis-
cussão central é a omissão por parte dos mecanismos do Estado para
enfrentar judicialmente essas violações e condenar os responsáveis.
O processo demonstrou que quatro das vítimas foram enfiadas no porta-
-malas de um veículo. Diante deste fato, a Corte declarou que: ainda que
não houvesse existido outros maus-tratos físicos ou de outra índole, essa
ação por si só deve ser considerada claramente contrária ao respeito devido
à dignidade inerente ao ser humano.
Em um detalhamento dos fatos, as vítimas foram sequestradas por po-
liciais em 1999. Após sequestrados e torturados, os cinco jovens foram
mortos e tiveram seus corpos abandonados em um parque da cidade.
Quando os corpos foram encontrados houve descaso das autoridades
em identificá-los, assim como em notificar à família.
O caso foi levado à Comissão Interamericana e a mesma alegou que os
crimes cometidos contra as cinco vítimas constituiu um exemplo das
Dos direitos das crianças e dos adolescentes 51

graves violações dos direitos humanos de que crianças de rua guatemal-


tecas foram vítimas durante o período coberto na petição relativas a este
caso. Acrescentou que, embora seis anos se passaram desde o assassinato
desses jovens, o Estado não “fez qualquer esforço sério para tomar ação
em relação a tais crimes”.
O Estado da Guatemala alegou que o Tribunal não tem poderes juris-
dicionais para conhecer o presente caso, pois implica a criação de uma
“quarta instância” de jurisdição de revisão. Apresentou uma exceção
preliminar que alega falta de jurisdição deste Tribunal para examinar
o julgamento proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça daquele país
em 21 de julho de 1993, que confirmou a decisão do Tribunal Distrital
do Estado da Guatemala, de 26 de dezembro de 1991, absolvendo o
acusado do assassinato das vítimas indicadas pela Comissão, com uma
decisão no mais alto nível judicial, que adquiriu a autoridade de um
final julgamento.
A Comissão sustentou que estes argumentos não foram levantadas in
limine litis e que, portanto, a objeção não deve ser autorizado a ser levan-
tada nesta fase adiantada do processo. Além disso, a Comissão sublinhou
que o Estado nunca contestou a competência da Comissão. A Comissão
salientou a importância da Corte em avaliar, à luz da Convenção, os atos
de sequestro, tortura e assassinato, as deficiências da resposta àqueles
atua e a impunidade resultante.
A Comissão afirmou que estava claramente demonstrado que o Estado
violou a Convenção Americana, em relação ao sequestro, tortura e assas-
sinato de crianças de rua e que a justiça foi negada no processo interno.
A Comissão afirmou que a investigação e o processo judicial interno
realizado neste caso eram tão deficientes com a negativa às famílias das
vítimas, do devido processo e da justiça. Assim, solicitou à Corte a rejei-
ção da referida preliminar.
A Corte considerou que a petição apresentada pela Comissão
Interamericana não pretendia rever a sentença do Supremo Tribunal de
Guatemala, mas sim um pronunciamento que o Estado violou vários
preceitos da Convenção Americana através da morte das pessoas men-
cionadas acima e que atribui a responsabilidade aos membros do polícia
daquele Estado, e que o Estado é, portanto, responsável.
O Tribunal considerou que esta exceção preliminar deve ser descartada
como inadmissível, julgando por unanimidade a inadmissibilidade da
exceção preliminar trazida pelo Estado da Guatemala. Observa-se que
52 Direitos humanos e relações étnico-raciais

durante o julgamento os responsáveis pelos fatos ainda se encontravam


impunes. A Corte IDH observou que houve omissão da investigação dos
delitos de sequestro e tortura e deixou de ordenar, praticar e valorar as
provas necessárias para o devido esclarecimento dos homicídios. O tri-
bunal, ao decidir pelas reparações ordenou a realização de uma inves-
tigação efetiva para individualizar e sancionar as pessoas responsáveis
pelas violações dos direitos humanos. O Estado da Guatemala informou
que os acusados já tinham sido julgados, mas o Ministério Público com-
prometeu-se em continuar a investigação até determinar os responsáveis
pelo fato.
Em sua última resolução de 2009, a Corte IDH decidiu manter em aber-
to o procedimento de supervisão de cumprimento de sentença até que
o Estado encontre os responsáveis das torturas e sequestro das vítimas
e identificasse todos os responsáveis pelos homicídios perpetrados, ade-
quasse seu direito interno aos padrões internacionais e informasse tam-
bém sobre as diligências que tem realizado para corrigir ou remediar as
deficiências apontadas. O Estado cumpriu com o pagamento de indeni-
zações por dano material, emergente e moral aos familiares das vítimas,
além do pagamento das custas e despesas em favor dos representantes
dos familiares das vítimas.

Após a leitura e análise do caso acima descrito, estabeleça as semelhanças entre ele e o co-
nhecido caso da Chacina da Candelária, ocorrido no Rio de Janeiro, em 1993.

2. Você é diretor de uma Escola Municipal e tem acompanhado a história de João Pedro, ga-
roto de 10 anos, que reside com sua mãe, padrasto e três irmãos provenientes dessa união.
A família parece ser harmoniosa, João Pedro é bom aluno, frequenta regularmente as aulas,
é participativo e tem boas notas. Porém, há um ano você notou que João Pedro passou a agir
de forma estranha, não participa mais das atividades escolares e apresenta hematomas nos
membros inferiores. Como diretor, chamou a mãe de João Pedro para uma conversa e ela
alega que está tudo bem com o filho e sua família. Mediante o exposto e tendo o ECA como
referencial, o que você deveria fazer?

3. Um dos temas de maior embate no meio jurídico e leigo relacionado à proteção das crianças
e adolescentes é a questão da redução da maioridade penal. Todavia, constata-se que, muitas
vezes, a opinião externada pela maioria da população leiga se dá em razão de fatos crimino-
sos divulgados pela mídia, sem qualquer análise mais abrangente e científica do tema. Sem a
pretensão de impor uma posição em relação ao assunto, propomos aqui que você faça uma
análise, no mínimo, dos textos e notícias indicados no quadro a seguir e disserte sobre o
tema, indicando as razões expostas como favoráveis e as contrárias à redução da maioridade
penal. Ao final, exponha sua opinião fundamentada sobre o assunto.
Dos direitos das crianças e dos adolescentes 53

Título Autor Link para acesso


“OAB é contra a redução da Ordem dos Advogados do <www.oab.org.br/noticia/28231/oab-e-contra-a-
maioridade penal” Brasil. Conselho Federal reducao-da-maioridade-penal>

“Veja cinco motivos a favor <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-


e cinco contra a redução da Leandro Prazeres noticias/2015/03/31/veja-cinco-motivos-a-favor-e-
maioridade penal” cinco-contra-a-reducao-da-maioridade-penal.htm>

“Reflexões sobre a redução


Rogério Greco <www.rogeriogreco.com.br/?p=2910>
da maioridade penal”

“PEC da redução da <www.revistaforum.com.br/2015/04/02/dalmo-


Dalmo Dallari – Entrevis-
maioridade penal é dallari-pec-da-reducao-da-maioridade-penal-e-
ta a Anna Beatriz Anjos
inconstitucional” inconstitucional/>

“Redução da maioridade < w w w. c r i a n c a . m p p r. m p . b r / m o d u l e s / c o n t e u d o /


Cláudio da Silva Leiria
penal: por que não?” conteudo.php?conteudo=276>
3
Dos direitos das pessoas
com deficiência e dos idosos

Gisele Echterhoff

Neste capítulo, passaremos a uma análise dos direitos humanos das pessoas com deficiência,
examinando desde a legislação internacional até a legislação interna, bem como os programas de
acessibilidade existentes. Na sequência, nosso estudo terá como enfoque os direitos humanos das
pessoas idosas, demonstrando a importância do Estatuto do Idoso, sua abrangência e aplicabilida-
de. Ao final, examinaremos a questão da violência contra os idosos e conheceremos os programas
de combate à violência.

3.1 Pessoas com deficiência: inclusão social,


acessibilidade, planos e programas
Ao examinarmos a forma como as pessoas com deficiência foram tratadas ao longo da his-
tória, constatamos que esse tratamento passou por várias fases, desde a de eliminação, a do assis-
tencialismo, a da integração, e finalmente, a da inclusão.
Na Antiguidade e na Idade Média, predominava a ideia da eliminação, tendo como base a
aversão social a tudo que não fosse considerado normal. Muitas vezes, o problema físico ou mental
era ligado a um castigo divino ou era sinal de impureza, sendo perfeitamente normal a segregação
e até mesmo a eliminação dessas pessoas (TISESCU; SANTOS, 2014).
Tisescu e Santos (2014) citam como exemplo a Lei das XII Tábuas, instituída pelos romanos,
na qual havia previsão de que o filho “monstruoso” fosse morto de forma imediata. A eliminação
era defendida por filósofos como Platão e Aristóteles.
Tal prática esteve presente nos primeiros anos da Idade Moderna, sendo comum essas pessoas
serem jogadas ao mar. No século XIX surgem movimentos eugênicos, inclusive com práticas de este-
rilização nos EUA e em alguns países da Europa. E não podemos ignorar que a eugenia foi defendida
pelo nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Na busca da raça pura ariana, várias pessoas foram
exterminadas, seja por questões religiosas, físicas ou culturais (TISESCU; SANTOS, 2014).
Embora ainda vivenciemos situações de exclusão – claro que muito mais social, econômica
e educacional –, essa fase extrema se esmaeceu. Sob a influência da doutrina cristã, surge a fase do
assistencialismo, na qual o deficiente era visto como uma pessoa inferior, carente de favores, reco-
nhecendo-se a necessidade de auxílio para diminuir o sofrimento dessas pessoas.
Flávia Piovesan ressalta que essa fase assistencialista era pautada por uma “perspectiva mé-
dica e biológica de que a deficiência era uma ‘doença a ser curada’, sendo o foco centrado no indi-
víduo ‘portador da enfermidade’” (2015, p. 302).
56 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Essa fase acaba por manter a ótica da exclusão, mas mudando a sua forma de física para
visual: “Os membros da sociedade, por ter piedade das pessoas com deficiência e, em razão da ca-
ridade apregoada pelo cristianismo como virtude a ser perseguida, prestam assistência a essas pes-
soas, desde que em locais reservados, longe dos olhos da sociedade em geral” (TISESCU; SANTOS,
2014, p. 373).
Com o avanço nas ciências biomédicas, dissociou-se a deficiência da punição religiosa, pro-
porcionando uma transformação na sociedade, pois esta passou a enfrentar o problema e buscar a
integração dessas pessoas (TISESCU; SANTOS, 2014). Passa-se a conceber o portador de deficiên-
cia como parte da sociedade, devendo, por isso, ser integrado a ela, o que gerou um avanço com o
reconhecimento de direitos e garantias a estas pessoas.
Todavia, a ideia central era normalizar primeiro para depois integrar, ou seja, não era a so-
ciedade que deveria se adaptar ao deficiente, mas, sim, estes que deveriam se adaptar para integrar
o grupo social. A sociedade permanecia numa postura de tolerância em relação àquela circunstân-
cia, o que não permitia a concretização efetiva da noção de dignidade dessas pessoas (TISESCU;
SANTOS, 2014).
A entrada na quarta fase da história de evolução dos direitos humanos das pessoas com defi-
ciência – fase da inclusão – foi resultado, em especial, dos efeitos das duas Grandes Guerras Mundiais,
em virtude do grande número de mutilados advindos do combate e da necessidade de sua reabili-
tação (TISESCU; SANTOS, 2014). Essa nova realidade mudou a mentalidade social, não somente
em relação às pessoas mutiladas pela guerra, mas também em relação aos deficientes, “a diversidade
social passa a ser objeto de aceitação social. Não se busca mais a ‘cura’ para as deficiências nem se
imputa o ônus da adaptação apenas ao com deficiência” (TISESCU; SANTOS, 2014, p. 377).
Aqui se inicia a elaboração de normas internacionais e nacionais voltadas à proteção dos
deficientes. Flávia Piovesan (2015, p. 303) ressalta que “de ‘objeto’ de políticas assistencialistas e
de tratamentos médicos, as pessoas com deficiência passam a ser concebidas como verdadeiros
sujeitos, titulares de direitos”.
Na década de 1950, vários foram os documentos internacionais aprovados que visavam à
proteção das pessoas com deficiência. Dentre eles, Damasceno (2014) cita a Recomendação 99 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1955, que trata da reabilitação das pessoas defi-
cientes, e a Convenção n. 111, de 1958, acerca da discriminação em matéria de emprego e profissão.
Na década de 1970, a ONU iniciou a aprovação da Declaração dos Direitos do Retardado
Mental (1971), que “trouxe a importante afirmação de que as pessoas com deficiência intelectual
devem gozar dos mesmos direitos que os demais seres humanos, advertindo ainda que a mera in-
capacidade para o exercício pleno dos direitos não pode servir de mote para supressão completa de
seus direitos” (DAMASCENO, 2014).
Em 1975, a ONU promulgou a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes e, poste-
riormente, em 1976, foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU uma resolução que proclamou
o ano de 1981 como o Ano Internacional da Pessoa Deficiente pela ONU. Luiz Rogério da Silva
Damasceno (2014) afirma que a ONU, visando à preparação para o referido ano, criou um Comitê
Dos direitos das pessoas com deficiência e dos idosos 57

Consultivo “formado por 23 países que tinha por finalidade preparar uma minuta de um plano
de ação mundial sobre este tema para atuação das nações”. Acrescenta o autor que esse comitê
elaborou um relatório que indicou entre os principais obstáculos enfrentados pelas pessoas com
deficiência as barreiras físicas, os preconceitos e as atitudes discriminatórias.
Na sequência, o decênio 1983 a 1992 foi declarado pela ONU a Década das Nações Unidas
para as Pessoas com Deficiência, com a finalidade de executar ações do Programa de Ação Mundial
relativo a Pessoas com Deficiência, baseado no seguinte tripé: prevenção, reabilitação e equipara-
ção de oportunidades (DAMASCENO, 2014).
Em 1999, a Organização dos Estados Americanos (OEA) editou a Convenção Interamericana
para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de
Deficiência, a chamada Convenção da Guatemala, que se caracterizou “por sua originalidade na
definição de pessoa com deficiência com base no modelo social de direitos humanos e foi o primei-
ro documento regional que assumiu o caráter vinculante no tocante aos direitos das pessoas com
deficiência” (DAMASCENO, 2014).
Damasceno ainda cita que, em 2001, mudou a concepção de deficiente, deixando de lado
uma visão meramente biomédica para expressar “um fenômeno multidimensional resultante da
interação entre as pessoas e seus ambientes físicos e sociais, ou seja, adota de forma explícita o
modelo social de deficiência” (DAMASCENO, 2014).
Podemos visualizar essa mudança conceitual ao examinar a definição de deficiente para a
Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, de 1975, bem como a que surge com
a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2006.
A Declaração, de 1975 assim conceitua deficiente: “1 – O termo pessoas deficientes refere-se a
qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma
vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas
capacidades físicas ou mentais” (ONU, 1975).
A Convenção de 2006, também chamada de Convenção de Nova York sobre os Direitos da
Pessoa com Deficiência, surge com o objetivo de mudar essa perspectiva meramente biomédica.
De acordo com o artigo 1º da desse documento, “pessoas com deficiência são aquelas que têm
impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em
interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em
igualdades de condições com as demais pessoas” (ONU, 2006). Ou seja, como bem observa Débora
Diniz (2009), pessoa com deficiência vai muito além do problema médico, passa por barreiras so-
ciais impostas em razão da desigualdade.
Lais de Figueirêdo Lopes esclarece que esse conceito adotado pela Convenção teve partici-
pação direta de uma proposta brasileira:
A partir dessa nova visão, e com base nos direitos humanos, foi que se elaborou
no tratado a conceituação de pessoa com deficiência. A maior preocupação era
garantir, por meio do acordo em torno de uma definição geral, a identificação
dos sujeitos de direitos da Convenção. Para chegar ao consenso final, os países
tiveram que ser flexíveis.
58 Direitos humanos e relações étnico-raciais

[...]
A proposta levada pelo Brasil era de definir pessoa com deficiência como aquela
cujas limitações físicas, mentais ou sensoriais, associadas a variáveis ambientais,
sociais, econômicas e culturais, tem sua autonomia, inclusão e participação
plena e efetiva na sociedade impedidas ou restringidas. A ideia era enfatizar
a combinação entre os aspectos descritivos da deficiência, com os efeitos das
características sociais, culturais e econômicas encontradas em cada indivíduo.
“O correto equacionamento dessas variáveis e combinações pode proporcionar,
restringir ou impedir o exercício e o gozo de direitos. Daí a importância da
opção por definir pessoa com deficiência ao invés de focar a definição na defi-
ciência em suas características”, era o que dizia o relatório oficial emitido pela
Câmara Técnica do Brasil, quando da elaboração de propostas para a última
sessão, na ONU. (LOPES, 2014, p. 27)

Flávia Piovesan afirma que essa definição é inovadora porque reconhece explicitamente
que o meio econômico e social pode ser causa ou fator de agravamento da deficiência, e destaca
que “a própria Convenção reconhece ser a deficiência um conceito em construção, que resulta
da interação de pessoas com restrições e barreiras que impedem a plena e efetiva participação na
sociedade em igualdade com os demais” (2015, p. 303).
A Convenção enuncia direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, entre eles: o direito
à igualdade e não discriminação (art. 5º); há expressa referência aos direitos da mulher (art. 6º) e da
criança com deficiência (art. 7º); direito à vida (art. 10); ao igual reconhecimento perante a lei (art. 12);
de acesso à justiça (art. 13); à liberdade e segurança da pessoa (art. 14); a não ser submetido a tortura
ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (art. 15); à liberdade de movimentação e naciona-
lidade (art. 18); à vida independente e inclusão na comunidade (art. 19); à liberdade de expressão e de
opinião e acesso à informação (art. 21); ao respeito à privacidade (art. 22); ao respeito pelo lar e pela
família (art. 23); à educação (art. 24); à saúde (art. 25); ao trabalho e emprego (art. 27); à participação na
vida política e pública (art. 29) e na vida cultural e em recreação, lazer e esporte (art. 30).
Flávia Piovesan afirma que “o propósito maior da Convenção é promover, proteger e assegu-
rar o pleno exercício dos direitos humanos das pessoas com deficiência” (2015, p. 304), o que exige
“dos Estados-Partes medidas legislativas, administrativas e de outra natureza para a implemen-
tação dos direitos nela previstos” (PIOVESAN, 2015, p. 304). Ressalta a autora que a Convenção
garante a oportunidade de participação ativa das pessoas com deficiência nos “processos decisórios
relacionados a políticas e programas que a afetem” (PIOVESAN, 2015, p. 304).
A Convenção institui o Comitê para os Direitos das Pessoas com Deficiência (art. 34) vi-
sando a monitorar os direitos previstos na Convenção, por meio de relatórios a serem elaborados
periodicamente pelos Estados-partes (art. 35). O Comitê deve ser integrado por 12 especialistas
que devem atuar a título pessoal e não governamental, devendo ser observada a representação
geográfica equitativa, a representação dos distintos sistemas jurídicos e o equilíbrio de gênero e a
participação de peritos em deficiência (item 2 a 4 do art. 34).
Até 18 de dezembro de 2012, a Convenção já tinha sido ratificada por 126 países e 155 países
são signatários. O Brasil assinou a Convenção em 30 de março de 2007, sendo que o Congresso
Dos direitos das pessoas com deficiência e dos idosos 59

Nacional a ratificou pelo Decreto Legislativo n. 186/2008, tendo sido promulgado pelo Decreto
n. 6.949, de 25 de agosto de 2009 (DAMASCENO, 2014).
Importante ressaltar que essa Convenção foi a primeira sobre direitos humanos a ser incor-
porada com status de Emenda Constitucional, por ter cumprido o disposto no §3º do artigo 5º da
Constituição Federal/88 (DAMASCENO, 2014).
No âmbito nacional, a nossa própria Constituição Federal trata expressamente da proteção
das pessoas com deficiência, dentre outros artigos:
Art. 7.º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que
visem à melhoria de sua condição social:
[...]
XXXI – proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de
admissão do trabalhador portador de deficiência;
[...]
Art. 37. [...]
VIII – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as
pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;
(BRASIL, 1988)

Podemos apontar, ainda, dentre as medidas legislativas já tomadas pelo Brasil, as seguintes
(além de outras indicadas no site da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República):
• Lei n. 7.853/89 – Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração
social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência
– Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, dis-
ciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências.
• Lei n. 8.899/94 – Concede passe livre às pessoas portadoras de deficiência no sistema de
transporte coletivo interestadual.
• Lei n. 10.226/01 – Acrescenta parágrafos ao art. 135 da Lei 4.737, de 15 de julho de 1965,
que institui o Código Eleitoral, determinando a expedição de instruções sobre a escolha
dos locais de votação de mais fácil acesso para o eleitor deficiente físico.
• Lei n. 11.133/05 – Institui o Dia Nacional de Luta da Pessoa Portadora de Deficiência.
O governo federal lançou, em 17 de novembro de 2011, “o Viver sem Limite – Plano Nacional
dos Direitos da Pessoa com Deficiência, como resultado do firme compromisso político com a
plena cidadania das pessoas com deficiência no Brasil” (Decreto n. 7.612) (BRASIL, 2018). É um
programa voltado à efetivação dos direitos das pessoas com deficiência, o qual consiste em um
“conjunto de políticas públicas estruturadas em quatro eixos: Acesso à Educação; Inclusão social;
Atenção à Saúde e Acessibilidade” (BRASIL, 2018).
Em 6 de janeiro de 2016, entrou em vigor o chamado Estatuto da Pessoa com Deficiência
(Lei n. 13.146/2015), que adotou o mesmo conceito de deficiência da Convenção da ONU:
Art. 2.º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento
de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em
interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena
60 Direitos humanos e relações étnico-raciais

e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.


(BRASIL, 2015)

O Estatuto estabelece conceitos elementares, como o de acessibilidade, o de barreiras, o de


pessoa com mobilidade reduzida, entre outros (art. 3º da Lei n. 13.146/2015). Institui, entre os
direitos fundamentais: o direito à vida (arts. 10 a 13); à habilitação e à reabilitação (arts. 14 a 17); à
saúde (arts. 18 a 26); à educação (arts. 27 a 30); à moradia (arts. 31 a 33); ao trabalho (arts. 34 a 38);
à assistência social (arts. 39 e 40); à previdência social (arts. 41); à cultura, ao esporte, ao turismo e
ao lazer (arts. 42 a 45); ao transporte e à mobilidade (arts. 46 a 52); à informação e à comunicação
(arts. 63 a 73); e à participação na vida pública e política (arts. 76). O Estatuto também prevê um
rol de crimes relacionados à ofensa aos direitos das pessoas com deficiência (arts. 88 a 91).
Em 2010, conforme Censo do IBGE (2015), 23,9% da população brasileira era portadora de
deficiência, o que demonstra a importância da adoção de políticas públicas voltadas à proteção e
promoção dessas pessoas, sem esquecer de um ponto de extrema importância que é a proteção das
pessoas com deficiência em relação a atos de violência.

3.2 Pessoas idosas: o estatuto do idoso, qualidade de vida e proteção


A preocupação com a pessoa idosa, como objetivo legislativo, é algo muito recente, pois até
há pouco tempo se entendia que a moral e os bons costumes dariam conta dessa proteção.
Não é incomum ouvirmos os mais velhos afirmarem que antigamente havia mais respeito
ao idoso, que, por exemplo, eram os mais velhos os primeiros a se sentarem à mesa para comer,
enquanto hoje nos preocupamos em primeiro alimentar as crianças. Claro que esse é um exemplo
banal, quem dirá sem significação, mas a sociedade mudou a sua visão da velhice: se antes os mais
idosos eram tratados com respeito por uma questão moral, por se entender que a sua experiência e
os anos de vida eram importantes para a nova geração, aos poucos a velhice passou a ser um fardo,
pois os jovens não precisariam mais de sua experiência, tendo em vista toda a evolução tecnológica
que permite o acesso a uma amplitude de conhecimentos e informações.
Portanto, constatou-se que a moral e os bons costumes se tornaram insuficientes para
garantir o respeito e a proteção dos mais idosos e passou a ser necessária a intervenção do
ordenamento jurídico.
Tal preocupação não poderia ser diferente diante da constatação de que o envelhecimento da
população mundial é um fato. Estatisticamente, em 2012 existiam “aproximadamente 810 milhões
de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos em todo o mundo e a tendência é ultrapassar
a cifra de 2 bilhões em 2050, quando as pessoas mais velhas irão ultrapassar o número dos mais
jovens (menores de 14 anos), pela primeira vez na história” (MAIO, 2013, p. 33).
No âmbito internacional, embora as normas relacionadas aos direitos humanos em geral se-
jam perfeitamente aplicáveis – como a própria Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948
–, Iadya Maio (2013) afirma ter sido somente em 1998 – por meio do Protocolo de San Salvador
(Protocolo Adicional à Convenção Americana [Pacto de San José da Costa Rica, de 1969], referente
Dos direitos das pessoas com deficiência e dos idosos 61

aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) – o surgimento de uma preocupação internacional


na adoção de normas especiais sobre o tema.
Esse Protocolo dedicou o artigo 17 à proteção de pessoas idosas:
Toda pessoa tem direito à proteção especial na velhice. Nesse sentido os Estados
Partes comprometem-se a adotar de maneira progressiva as medidas necessá-
rias a fim de pôr em prática este direito e, especialmente, a:
a) Proporcionar instalações adequadas, bem como alimentação e assistência
médica especializada, as pessoas de idade avançada que careçam dela e não
estejam em condições de provê-las por meios próprios;
b) Executar programas trabalhistas específicos destinados a dar a pessoas idosas
a possibilidade de realizar atividade produtiva adequada às suas capacidades,
respeitando sua vocação ou desejos;
c) Promover a formação de organizações sociais destinadas a melhorar a quali-
dade da vida das pessoas idosas. (PROTOCOLO DE SAN SALVADOR, 1998)

Esse Protocolo é o único instrumento internacional vinculativo, de conteúdo obrigatório,


que trata do tema dos direitos dos idosos (MAIO, 2013).
Em uma análise da atuação da ONU em relação ao tema, percebe-se que não há uma
Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas Idosas; porém, mesmo assim há uma atuação
efetiva na consolidação de direitos e garantias dos seus direitos.
Em 1982, a Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento aprovou o Plano de Ação
Internacional de Viena sobre o Envelhecimento, contendo 62 recomendações (muitas das quais
têm uma relevância direta para o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais),
sendo a base da política para a pessoa idosa, no plano internacional (ONU, 2002).
Esse Plano de Ação Internacional de Viena sobre o Envelhecimento estabelece como obje-
tivos concretos:
a) Fomentar a compreensão nacional e internacional das consequências econô-
micas, sociais e culturais que o envelhecimento da população tem no processo
de desenvolvimento;
b) Promover a compreensão nacional e internacional das questões humanitárias
e de desenvolvimento relacionadas com o envelhecimento;
c) Propor e estimular políticas e programas orientados à ação e destinados
a garantir a segurança social e econômica às pessoas de idade, assim como
lhes dar oportunidades de contribuir para o desenvolvimento e comparti-
lhar de seus benefícios;
d) Apresentar alternativas e opções de política que sejam compatíveis com os
valores e metas nacionais e com os princípios reconhecidos internacionalmente
em relação ao envelhecimento da população e às necessidades das próprias
pessoas de idade;
e) Estimular o desenvolvimento de ensino, capacitação e pesquisa que respon-
dam adequadamente ao envelhecimento da população mundial e fomentar o in-
tercâmbio internacional de aptidões e conhecimento nesta esfera. (ONU, 1982)
62 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Em 1991, a Assembleia Geral das Nações Unidas, por meio da Resolução 46/91, “instituiu
carta contendo alguns princípios aplicáveis à proteção e promoção dos direitos das pessoas idosas:
independência, participação, cuidados especiais e dignidade” (MAIO, 2013, p. 35). Por meio desse
mesmo instrumento, foi instituído o dia 1.° de outubro como o Dia Internacional do Idoso e o ano
de 1999 como o Ano Internacional das Pessoas Idosas.
Assim, a publicação da ONU descreve os princípios acima indicados:
• “Independência” inclui o acesso à alimentação, à água, à habitação, ao vestuá-
rio e aos cuidados de saúde adequados. Direitos básicos a que se acrescentam a
oportunidade de um trabalho remunerado e o acesso à educação e à formação.
• Por “Participação” entende-se que as pessoas idosas deveriam participar ati-
vamente na formulação e aplicação das políticas que afetem diretamente o seu
bem-estar e poder partilhar os seus conhecimentos e capacidades com as gera-
ções mais novas bem como poder formar movimentos ou associações.
• A secção intitulada “Cuidados” afirma que as pessoas idosas deveriam poder
beneficiar dos cuidados da família, ter acesso aos serviços de saúde e gozar os
seus direitos humanos e liberdades fundamentais, quando residam em lares ou
instituições onde lhes prestem cuidados ou tratamento.
• No que se refere à “Autorrealização”, os “Princípios” afirmam que as pessoas de
idade deveriam poder aproveitar as oportunidades de desenvolver plenamente
o seu potencial, mediante o acesso aos recursos educativos, culturais, espirituais
e recreativos da sociedade.
• Por fim, a secção intitulada “Dignidade” afirma que as pessoas de idade deve-
riam poder viver com dignidade e segurança, e libertas da exploração e maus
tratos físicos ou mentais, ser tratadas dignamente, independentemente da idade,
sexo, raça ou origem étnica, deficiência, situação econômica ou qualquer outra
condição, e ser valorizadas independentemente do seu contributo econômico.
(ONU, 2002, p. 2-3)

No ano de 1992 a Conferência Internacional sobre o Envelhecimento reuniu-se para dar


seguimento ao Plano de Ação, adotando a Proclamação do Envelhecimento. No ano de 2002,
a Segunda Assembleia Mundial das Nações Unidas sobre o Envelhecimento foi realizada em
Madrid. Com o objetivo de desenvolver uma política internacional para o envelhecimento para
o século XXI, a Assembleia adotou uma Declaração Política e o Plano de Ação Internacional
sobre o Envelhecimento de Madrid, chamado de Segundo Plano de Ação Internacional sobre o
Envelhecimento (PIAE).
Esse plano foi adotado por todos os países membros das Nações Unidas presentes na Assembleia
Mundial de Madrid, representando “compromisso internacional em resposta a um dos maiores de-
safios sociais do século XXI: o rápido envelhecimento populacional ora em curso em quase todos os
países” (DHNET, 2018). Três são as áreas prioritárias de atuação do segundo plano de ação:
1) como colocar envelhecimento populacional na agenda do desenvolvimento;
2) importância singular e global da saúde e 3) como desenvolver políticas de
meio ambiente (tanto do ponto de vista físico quanto social) que atendam às ne-
cessidades de indivíduos e às sociedades que envelhecem. Em cada uma dessas
áreas de ação, o PIAE prioriza as questões de gênero e de desigualdade social.
(DHNET, 2018)
Dos direitos das pessoas com deficiência e dos idosos 63

Entre as metas, os objetivos e os compromissos do plano de ação, são relacionados os


seguintes:
a) Plena realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de
todos os idosos;
b) Envelhecimento em condições de segurança, o que implica reafirmar o ob-
jetivo da eliminação da pobreza na velhice com base os Princípios das Nações
Unidas em favor dos idosos;
c) Capacitação de idosos para que participem plena e eficazmente na vida eco-
nômica, política e social de suas sociedades, inclusive com trabalho remunerado
ou voluntário;
d) As oportunidades de desenvolvimento, realização pessoal e bem-estar do
indivíduo em todo curso de sua vida, inclusive numa idade avançada, por exem-
plo, mediante a possibilidade de acesso à aprendizagem durante toda a vida e
a participação na comunidade, ao tempo que se reconhece que os idosos não
constituem um grupo homogêneo;
e) Garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais dos idosos assim como
de seus direitos civis e políticos, e a eliminação de todas as formas de violência
e discriminação contra idosos;
f) Compromisso de reafirmar a igualdade dos sexos para as pessoas idosas, en-
tre outras coisas mediante a eliminação da discriminação por motivos de sexo;
g) Reconhecimento da importância decisiva que têm as famílias para o desen-
volvimento social e a interdependência, a solidariedade e a reciprocidade entre
as gerações;
h) Assistência à saúde, apoio e proteção social dos idosos, inclusive os cuidados
com a saúde preventiva e de reabilitação;
i) Promoção de associação entre governo, em todos os seus níveis, sociedade
civil, setor privado e os próprios idosos no processo de transformar o Plano de
Ação em medidas práticas;
j) Utilização das pesquisas e dos conhecimentos científicos e aproveitamento do
potencial da tecnologia para considerar, entre outras coisas, as consequências
individuais, sociais e sanitárias do envelhecimento, particularmente nos países
em desenvolvimento;
k) Reconhecimento da situação dos idosos pertencentes a populações indíge-
nas, suas circunstâncias singulares e a necessidade de encontrar meios de terem
voz ativa nas decisões que diretamente lhes dizem respeito. (ONU, 2002 apud
BRASIL, 2003, p. 30)

No âmbito nacional, o Brasil prevê expressamente, na Constituição Federal, a proteção dos


direitos do idoso:
Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas
idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignida-
de e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.
§1.º Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente
em seus lares.
§2.º Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transpor-
tes coletivos urbanos. (BRASIL, 1988)

Em vários outros dispositivos constitucionais se constata a preocupação do texto cons-


titucional com os direitos dos idosos, por exemplo, o artigo 3º, inciso IV, que determina a não
64 Direitos humanos e relações étnico-raciais

discriminação em razão da idade e o artigo 5.°, inciso XLVIII, que determina que a pena seja cum-
prida em estabelecimentos distintos, sendo a idade um dos critérios de distinção. Verifica-se tam-
bém a proteção no âmbito das relações de trabalho diante da previsão do artigo 7º, inciso XXX, que
proíbe a diferença de salários, exercícios de funções e de critério de admissão por motivo de idade.
Cita-se, ainda, os dispositivos relacionados ao exercício do direito ao voto (art. 14, §1º, inciso II,
alínea “b”) e os que se referem à previdência e à assistência social (art. 201, inciso I e 203, inciso V).
Em 1994, foi sancionada a Lei Federal n. 8.842, que dispõe sobre a Política Nacional do
Idoso e cria o Conselho Nacional do Idoso, estabelecendo que se considera idosa a pessoa maior
de 60 anos de idade. Essa lei foi regulamentada pelo Decreto n. 1.948/96, dispondo sobre a Política
Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (PNDPI).
Iadya Gama Maio (2013, p. 38) afirma que essa legislação tinha como objetivo assegurar os
direitos sociais a essa classe de pessoas, criando condições para promover sua autonomia, integra-
ção e participação efetiva na sociedade, mas ainda não a protegia de forma integral.
Podemos indicar, ainda, conforme relaciona Modena (2009), entre as legislações que tratam
da matéria:
• Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, a LOAS, que dispõe sobre a Organização da
Assistência Social e que configura a garantia de percebimento de um salário mínimo ao
idoso com 70 anos ou mais, desde que o mesmo comprove que não possui meios de pro-
ver a própria subsistência e não encontra na família esse amparo.
• Lei n. 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dispõe sobre a prioridade no atendimento
do idoso, maior de 60 anos, em todos os bancos, órgãos públicos e concessionários de
serviço público.
• Lei n. 10.173, de 8 de janeiro de 2001, que promoveu significativa mudança no Código
de Processo Civil, permitindo a prioridade na tramitação de processos judiciais a idosos,
maiores de 65 anos, em qualquer instância ou tribunal.

Finalmente, o marco legislativo no âmbito nacional foi o Estatuto do Idoso, por meio da san-
ção da Lei n. 10.741, de 2 de outubro de 2003. “O Estatuto do Idoso, não só foi um marco jurídico
e político importante, como também mostrou ser uma lei amplamente inovadora, ousada e avan-
çada, além de protetiva deste grupo vulnerável” (MAIO, 2013, p. 38), assegurando, com absoluta
prioridade, vários direitos humanos a eles.
Dentre os direitos assegurados, cumpre citar os direitos: à vida (arts. 8º e 9º); à liberdade, ao
respeito e à dignidade (art. 10); a alimentos (arts. 11 a 14); à saúde (arts. 15 a 19); à educação, cul-
tura, esporte e lazer (arts. 20 a 25); à profissionalização e ao trabalho (arts. 26 a 28); à previdência
social (arts. 29 a 32); à assistência social (arts. 33 a 36); à habitação (arts. 37 a 38); e ao transporte
(arts. 39 a 42).
Dos direitos das pessoas com deficiência e dos idosos 65

Destaca-se o artigo 8º, que estabelece que o envelhecimento é um direito personalíssimo e


sua proteção é um direito social. Personalíssimo porque é inerente à condição de ser humano, todas
as pessoas têm esse direito em razão somente de sua natureza. Esse termo também nos remete à
condição de direito irrenunciável, indisponível, absoluto, entre outras características.
Sobressai, também, o direito à saúde, em relação ao qual é possível verificar as seguintes previsões:
No que tange à saúde, o artigo 15 e seguintes do Estatuto do Idoso estabelecem
o acesso universal do idoso à saúde plena, garantida pelo Sistema Único de
Saúde mediante prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde. Prevê
que planos de saúde não poderão tarifar valores diferenciados em razão da
idade. Na rede hospitalar, os idosos internados poderão exigir a permanência
de acompanhantes em tempo integral, podendo o idoso optar pelo tratamento
mais favorável a sua saúde. Deverá o Estado fornecer a todos medicação gratui-
ta, especialmente as de uso continuado, assim como próteses, órteses e outros
recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação. Dá-se prioridade
ao atendimento para os idosos portadores de deficiência ou limitação incapa-
citante, prevendo critérios mínimos de atendimento às necessidades do idoso,
bem como a obrigatoriedade de treinamento e capacitação dos profissionais da
saúde para tratarem com este segmento da população. (SANTIN, 2009, p. 521)

A par de estabelecer um extenso rol de direitos à população idosa, o Estatuto do Idoso tam-
bém instituiu medidas de proteção desses direitos quando estes forem violados ou ameaçados por
ação ou omissão da sociedade, do Estado, da família, do curador ou entidade de atendimento ou
até mesmo em razão da condição pessoal do idoso (artigo 43 do Estatuto).
Entre as medidas específicas que podem ser aplicadas, isolada ou cumulativamente, a legis-
lação prevê, em seu art. 45:
I – encaminhamento à família ou curador, mediante termo de responsabilidade;
II – orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III – requisição para tratamento de sua saúde, em regime ambulatorial, hospi-
talar ou domiciliar;
IV – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tra-
tamento a usuários dependentes de drogas lícitas ou ilícitas, ao próprio idoso ou
à pessoa de sua convivência que lhe cause perturbação;
V – abrigo em entidade;
VI – abrigo temporário. (BRASIL, 2003)

O Estatuto também se ocupa da política de atendimento por meio da regulação e do con-


trole das entidades de atendimento ao idoso (arts. 46 a 68); do direito de acesso à justiça (arts. 69
a 71); de estabelecer expressamente a competência do Ministério Público no âmbito da proteção
dos direitos dos idosos (arts. 73 a 77); bem como dos crimes vinculados à violação dos direitos dos
idosos (arts. 93 a 108).
66 Direitos humanos e relações étnico-raciais

3.3 Cuidados especiais e combate à violência


Estatisticamente, sabe-se que o número de pessoas idosas cresce de forma exponencial:
De acordo com projeções das Nações Unidas (Fundo de Populações), “uma em
cada 9 pessoas no mundo tem 60 anos ou mais, e estima-se um crescimento
para 1 em cada 5 por volta de 2050”. [...] Em 2050 pela primeira vez haverá mais
idosos que crianças menores de 15 anos. Em 2012, 810 milhões de pessoas têm
60 anos ou mais, constituindo 11,5% da população global. Projeta-se que esse
número alcance 1 bilhão em menos de dez anos e mais que duplique em 2050,
alcançando 2 bilhões de pessoas ou 22% da população global”. (BRASIL, 2018,
p. 1)

Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD apud FRASÃO,
2015), houve aumento da expectativa de vida da população, que passou de 71,2 anos para 74,9
anos, entre 2003 e 2013. Indicadores da Agência da Saúde definem que
esse crescimento se deve às medidas de combate à desnutrição, redução da
mortalidade materna e infantil, ampliação do acesso a vacinas e medicamen-
tos gratuitos, melhoria do atendimento às mães e bebês, enfrentamento das
doenças crônico-degenerativas e das chamadas mortes violentas, entre outras
medidas promovidas pelo governo federal em parceria com estados e municí-
pios. Segundo a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD 2013),
do IBGE, o Brasil possui hoje aproximadamente 26,1 milhões de pessoas idosas,
número que corresponde a 13% da população total. (FRASÃO, 2015)

O estudo sobre o envelhecimento realizado pela Secretaria Nacional de Promoção e Defesa


dos Direitos Humanos indica que, no Brasil, há uma feminilização da velhice:
Tabela 1 – Feminilização da velhice

2000 2010 2020

Masculina Feminina Masculina Feminina Masculina Feminina

Proporção de população
7,8% 9,3% 8,4% 10,5% 11,1% 14,0%
idosa (60 ou mais)

Proporção de população
Grupos de idades

60-64 46,8% 53,2% 46,4% 53,6% 45,6% 54,4%

65-69 45,8% 54,2% 45,2% 54,8% 44,5% 55,5%

70-74 44,8% 55,2% 43,2% 56,8% 42,8 57,2%

75-79 43,9% 56,1% 40,2% 59,8% 39,9% 60,1%

80 ou mais 39,9% 60,1% 34,7% 65,3% 33,8% 66,2%

População Idosa 6.533.784 8.002.245 7.952.773 10.271.470 11.328.144 15.005.250

Fonte: Brasil, 2018, p. 1.


Dos direitos das pessoas com deficiência e dos idosos 67

Esse mesmo estudo indica que, em 20 anos, o número de idosos dobrou (segundo dados do
IBGE), enquanto a quantidade de crianças, de até quatro anos de idade caiu nos últimos 10 anos:
Gráfico 1 – Envelhecimento no Brasil
Crianças de até 4 anos Idosos com 60 anos ou mais
Crianças
Crianças de4 anos
de até até 4 anos Idosos com
Idosos com 60ouanos
60 anos mais ou mais
milhões
milhõesde
depessoas
pessoas milhões
milhõesde
depessoas
pessoas
milhões de pessoas milhões de pessoas
24
24
24
16
16
16 20
20
20
12 16
16
12
12 16
8 12
12
88 12
88
4 8
4
44
0 4
00 00
0
1999 2011
1999 2011
2011 1990
1990 1999
1999 2011
2011
Fonte: Pnad/IBGE
Fonte: Pnad/IBGE Observação: Dados de 1990 1990
Fonte: Pnad/IBGE 1999 2011
Fonte: Pnad/IBGE
Observação: DadosObservação: Dados
não de
de 1990 não disponíveis 1990
disponíveis Pnad/IBGE
não disponíveis Pnad/IBGE
Fonte: Brasil, 2018, p. 2.

Esses dados só comprovam a necessidade de efetivação dos direitos já estabelecidos, por


meio de políticas públicas a serem engendradas pelo Estado, a fim de garantir cuidados especiais
para essa parcela da população.
A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República aponta as seguintes políti-
caspúblicas e planos setoriais propostos de forma conjunta com a sociedade nesse tema:
• Política Nacional de Prevenção a Morbimortalidade por Acidentes e Violência (2001);
• Plano de Ação para o Enfrentamento da Violência contra a Pessoa Idosa (2004);
• Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (2006);
• II Plano de Ação para o Enfrentamento da Violência contra a Pessoa Idosa (2007).
O governo federal implantou, em 2011, o módulo Idoso no Disque Direitos Humanos (DDH
– 100), sendo que os dados demonstram um crescimento vertiginoso no uso desse instrumento en-
tre os anos de 2011 e 2012 no que tange ao tema dos direitos dos idosos:
Tabela 2 – Uso do Disque Direitos Humanos

Janeiro a novembro Janeiro a novembro


Módulo Temático % de aumento
de 2011 de 2012
Idoso 7.160 21.404 199%

LGBT 2.537 7.527 197%

Pessoa com deficiência 997 2.830 184%

Outros 1218 2.742 125%

Criança e adolescente 75.464 120.344 59%

População em situação de rua 388 489 26%

Total 87.764 153.336 77%

Fonte: Brasil, 2018, p. 4.


68 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Entre os tipos de violações registradas pelo DDH – 100 em relação aos idosos, a negligência,
a violência psicológica, o abuso econômico e financeiro e a violência física são as situações mais
corriqueiras:
Gráfico 2 – Tipos de abuso relatados por idosos

Negligência 68,7%

Violência Psicológica 59,3%

Abuso financeiro e econômico /


40,1%
Violência Patrimonial

Violência Física 34,0%

Violência Sexual 1,1%

Violência Institucional 0,9%

Discriminação 0,8%

Outras Violações 0,4%

0,0% 10,0% 20,0% 30,0% 40,0% 0,0% 60,0% 70,0% 80,0%


Fonte: Brasil, 2018, p. 4.

A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República elaborou, em 2014, o Manual


de Enfrentamento à Violência contra a Pessoa Idosa. Esse Manual apresenta dados estatísticos
alarmantes. Aponta, por exemplo, que em 2011 morreram 24.669 pessoas idosas por acidentes e
violências no país, significando por dia 68 óbitos:
Entre as pessoas acima de 60 anos, as seis primeiras causas gerais de morte hoje
no Brasil são: em primeiro lugar, as doenças do aparelho circulatório (35,6%);
em segundo lugar, as neoplasias ou tumores cancerosos (16,7%); em terceiro,
as enfermidades respiratórias (14,0%); em quarto, as doenças endócrinas, me-
tabólicas e nutricionais, particularmente as diabetes (7,9%); em quinto, as en-
fermidades do aparelho digestivo (4,7%) e em sexto, as causas externas (3,4%).
(BRASIL, 2014, p. 45)

Por causas externas o Manual enquadra as “agressões físicas, psicológicas, acidentes e maus-
-tratos que provocam adoecimento ou levam à morte de uma pessoa” (SDH/PR, 2014, p. 39).
O Manual também apresenta as proporções de óbitos por causas externas:
Gráfico 3 – Proporções de óbitos por causas externas relativas ao óbito geral, 2011, Brasil.

4,0
3,2 3,2 3,4 3,4
3,5
2,7 2,8 2,6 2,6 2,6 2,7 2,7 2,7 2,8 3,0 2,9 3,0
3,0

2,5

% 2,0

1,5

1,0

0,5

0,0
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

ANO

Fonte: Brasil, 2014, p. 45.


Dos direitos das pessoas com deficiência e dos idosos 69

O gráfico apresentado a seguir indica predominância de mortes violentas entre os homens:


Gráfico 4 – Taxa de mortalidade por causas externas em idosos segundo sexo, Brasil – 1995 a 2001.
180,0

160,0
153 154 151 154 147 147 152 160 164 162 155 154 162 166
148 MASCULINO
140,0
Taxa por 100.000 hab.

136
120,0

100,0 105 110 113 114 110 110 115 119 TOTAL
105 105 104 105 98 101 104
92
80,0
66 70 71 74 69 73 75 77 81
60,0 FEMININO
64 64 64 63 57 59 63
40,0

20,0

0,0
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

ANO

Fonte: Brasil, 2014, p. 47.


40,0
O Manual aponta também uma mudança das principais causas de mortes violentas:
35,0
Taxa por 100.000 hab.

1
Gráfico 5 – Taxa de mortalidade por causas externas específicas em idosos, Brasil – 1996 a 2011.
30,0
4
25,0 40,0

35,0
20,0
Taxa por 100.000 hab.

30,0
4
15,0 25,0
3 6
10,0 20,0 2
15,0 5
5,0 3 6
7 10,0 2
5
0,0 5,0
7
1996 19970,0 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011
ANO
ANO

1 - Acidentes de
1 - transporte
Acidentes de transporte 5 - Lesões
5 - Lesões autoprovocadas
autoprovocadas voluntariamente voluntariamente
2 - Agressões 6 - Eventos cuja intenção é indeterminada
2 - Agressões 3 - Quedas 6 - Eventos cuja intenção é indeterminada
7 - Afogamento e submersão acidentais
3 - Quedas 4 - Demais causas 7 - Afogamento e submersão acidentais
4 - Demais causas

Fonte: Brasil, 2016.

O Manual ainda cita que: “Em 2012, foram realizadas 169.673 internações de pessoas idosas
por violências e acidentes, sendo que 50,9% se deveram a quedas; 19,2% a acidentes de trânsito;
6,5% a agressões e 0,3% a lesões autoprovocadas, além de outros agravos” (BRASIL, 2014, p. 57).
Desses dados, foram apontados aqueles que utilizaram serviços públicos, sendo que 51.902
eram mulheres e 34.517 eram homens. Indica o documento que, dentre as internações femininas,
das causas de internamento,
o fator mais importante foram as quedas, cujos percentuais foram maiores em
todos os grupos de idade, quando comparados aos homens: nos de 60 a 69
anos os percentuais quase se assemelham (50,6% contra 49,4%) e a partir daí se
distanciam: de 70 a 79 anos (56,0% contra 44,0%) e de 80 anos ou mais (63,4%
contra 36,6%). (BRASIL, 2014, p. 57)

Com base nesses dados, o Plano de Enfrentamento da Violência contra a Pessoa Idosa pela
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República mapeou vários tipos de violência
contra idosos: “As violências contra a pessoa idosa podem ser visíveis ou invisíveis: as visíveis são
70 Direitos humanos e relações étnico-raciais

as mortes e lesões; as invisíveis são aquelas que ocorrem sem machucar o corpo, mas provocam
sofrimento, desesperança, depressão e medo. A maioria dessas últimas é incontável” (BRASIL,
2014, p. 37).
Entre os tipos de violência a que estão expostos os idosos, está o abuso­ econômico-financei-
ro e patrimonial, que vai desde as disputas familiares em relação aos bens dos idosos até dificul-
dades dos próprios familiares em arcar com as despesas geradas com a manutenção do idoso. São
citadas situações corriqueiras de familiares forçando os idosos a assinarem procurações para que
lhes deem acesso aos bens patrimoniais, incluindo aqui o confinamento do idoso em um cômodo
ínfimo enquanto o restante da família usufrui do imóvel de sua propriedade, ou, ainda, o obrigan-
do-o à alienação dos bens. Também é de conhecimento público e notório as situações em que os
benefícios previdenciários são apropriados indevidamente pelos familiares. Evidentemente, essas
circunstâncias estão associadas a outras violências (como a psicológica), podendo, ainda, gerar
situações de maus-tratos e violência física, quando não causar a morte.
Podemos citar, também, abusos físicos, que constituem a forma mais visível de violência,
caracterizando-se por “empurrões, beliscões, tapas, ou por outros meios mais letais como agressões
com cintos, objetos caseiros, armas brancas e armas de fogo” (BRASIL, 2014, 39-40). Ao lado dos
abusos físicos, temos abusos psicológicos, que correspondem “a todas as formas de menosprezo,
de desprezo e de preconceito e discriminação que trazem como consequência tristeza, isolamento,
solidão, sofrimento mental e, frequentemente, depressão” (BRASIL, 2014, p. 40).
O Manual ainda aponta atos de violência relacionados a violência sexual, enquadrando tan-
to aqueles voltados ao abuso sexual como aqueles que impedem os idosos de relações amorosas.
Tem-se também o abandono e a negligência: o abandono pode ser gerado pelos familiares, pelos
cuidadores e até pelos órgãos públicos. Dentre os atos de negligência, o manual cita ainda os pra-
ticados na área da saúde, como o desleixo e a inoperância dos órgãos de vigilância sanitária em
relação aos abrigos e clínicas.
Podemos indicar, também, a violência autoinfligida e a autonegligência: nesses casos não é o
outro que abusa, mas a própria pessoa que se maltrata. O Manual cita, como exemplo de autonegli-
gência, a atitude de se isolar, de não sair de casa e de se recusar a tomar banho, de não se alimentar
direito e de não tomar os medicamentos, manifestando clara ou indiretamente a vontade de morrer.
Os idosos também estão sujeitos aos abusos econômicos praticados pelo Estado, por enti-
dades particulares e até por criminosos. No primeiro caso, quando são frustrados os benefícios
previdenciários a que têm direito; no segundo, quando são obrigados a arcar com valores vultosos
em planos de saúde ou, ainda, quando há negativa do plano na cobertura de determinado trata-
mento. A fragilidade dos idosos os tornam vítimas frequentes de crimes, desde os mais sorrateiros
(estelionato e furto) até os violentos (roubo). Estão sujeitos, também, ao péssimo atendimento nas
agências bancárias, lojas, caixas eletrônicos etc.
Há, ainda, outro problema que vitimiza os idosos: a desigualdade social, que resulta na
chamada violência estrutural. Apenas 25% dos idosos vivem com três salários mínimos ou mais
(BRASIL, 2014), mesmo sendo as suas necessidades básicas ainda maiores diante da fragilidade de
sua condição de saúde e de dependência.
Dos direitos das pessoas com deficiência e dos idosos 71

A violência estrutural reúne os aspectos resultantes da desigualdade social, da


penúria provocada pela pobreza e pela miséria e das discriminações que os
desprovidos de bens materiais mais sentem. A desigualdade não é privilégio da
população idosa, pois em geral, os mais pobres o foram durante a vida toda. Mas
nessa etapa da vida, a indigência ou a falta de recursos materiais castiga mais.
(BRASIL, 2014, p. 59)

Além disso, os idosos também enfrentam o abandono familiar, passando a viver em


abrigos ou instituições de longa permanência, onde também são vítimas de abusos, maus-tratos
e negligências.
Finalmente, está entre as principais causas de violência aquela sofrida no ambiente familiar,
a chamada violência intrafamiliar.
Pesquisas revelam que cerca de 2/3 dos agressores são filhos, parentes e cônju-
ges. São particularmente relevantes os abusos e negligências que se perpetuam
por choque de gerações, por problemas de aglomeração de pessoas nas residên-
cias ou por falta condições e de disponibilidade para cuidá-los. A isso se soma,
em muitas famílias, o peso do imaginário social preconceituoso que concebe as
pessoas idosas como seres humanos decadentes e descartáveis. (MINAYO, 2005;
DEBERT, 1999). (BRASIL, 2014, p. 64)

As conclusões, em relação à violência familiar, são aterrorizantes:


Mas é no ponto de vista relacional que a falta de preparação ou os preconceitos e
as negligências tornam-se mais gritantes. Hoje, já se tem um perfil do abusador
de idosos. Por ordem de frequência estão em primeiro lugar, os filhos homens
mais que as filhas; em segundo lugar, as noras e os genros e, em terceiro, o côn-
juge. A caracterização do agressor revela alguns perfis e circunstâncias: (1) ele
vive na mesma casa que a vítima; (2) é um filho(a) dependente financeiramente
de seus pais de idade avançada; (3) é um familiar que responde pela manutenção
do idoso sem renda própria e suficiente; (4) é um abusador de álcool e drogas,
ou alguém que pune o idoso usuário dessas substâncias; (5) é alguém que se
vinga do idoso que com ele mantinha vínculos afetivos frouxos, que abandonou
a família ou foi muito agressivo e violento no passado; (6) é um cuidador com
problema de isolamento social ou de transtornos mentais. (BRASIL, 2005, p. 18)

Lembrando que esses dados estatísticos decorrem de notícias ou informações que chegam
aos agentes públicos (hospitais, redes de saúde, delegacias especializadas, Ministério Público etc.),
sendo evidente que o número deve ser muito maior, pois boa parte das situações de violência
sequer é levada ao conhecimento da autoridade competente, em especial por medo do abusador.
A violência contra a pessoa idosa pode assumir várias formas e ocorrer em dife-
rentes situações. Por diferentes motivos, entretanto, é impossível dimensioná-la
em toda a sua abrangência: ela é subdiagnosticada e subnotificada. A Lei 12.461
de 26 de julho de 2011 que reformula o artigo 19 do Estatuto do Idoso (Lei
10.741, de 1 de outubro de 2003) ressaltou a obrigatoriedade da notificação dos
profissionais de saúde, de instituições públicas ou privadas, às autoridades sani-
tárias quando constatarem casos de suspeita ou confirmação de violência contra
pessoas idosas, bem como a sua comunicação aos seguintes órgãos: Autoridade
Policial; Ministério Público; Conselho Municipal do Idoso; Conselho Estadual
do Idoso; Conselho Nacional do Idoso. Falamos, pois, de violências visíveis e
invisíveis. (BRASIL, 2014, p. 37)
72 Direitos humanos e relações étnico-raciais

O Estatuto do Idoso apresenta 14 tipos penais, ou seja, crimes visando à tutela dos direitos
dos idosos, sendo alguns novos e alguns adaptações de crimes já existentes. A seguir, os crimes
novos são relacionados:
• ao combate à discriminação (art. 96);
• à punição da negativa por entidades em realizar o acolhimento na tentativa de obrigar a
outorga de procuração (art. 103);
• à retenção do cartão magnético de conta bancária com o objetivo de recebimento ou res-
sarcimento de dívida (art. 104);
• à exibição ou veiculação de informações ou imagens depreciativas ou injuriosas em rela-
ção à pessoa do idoso (art. 105);
• à indução da pessoa idosa sem discernimento de seus atos a outorgar procuração para fins
de administração de bens ou disposição (art. 106);
• ao ato de lavrar ato notarial (ex.: escritura pública de compra e venda de imóvel) que
envolva pessoa idosa sem discernimento de seus atos e sem a devida representação legal
(art. 108).
Como mencionado, o Estatuto adaptou outros crimes já existentes para a condição de víti-
ma idosa, por exemplo, no caso de omissão de socorro, prevendo, no artigo 97: “Art. 97. Deixar de
prestar assistência ao idoso, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, em situação de iminente
perigo, ou recusar, retardar ou dificultar sua assistência à saúde, sem justa causa, ou não pedir,
nesses casos, o socorro de autoridade pública” (BRASIL, 2003).
Outro exemplo é o disposto no artigo 98, que penaliza a prática do abandono do idoso em
hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência ou congêneres, assim como a negligên-
cia às suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado.
A figura típica de maus-tratos contra os idosos é disposta no artigo 99:
Art. 99 – Expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, do idoso,
submetendo-o a condições desumanas ou degradantes ou privando-o de ali-
mentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-o a
trabalho excessivo ou inadequado:
Pena – detenção de 2 (dois) meses a 1 (um) ano e multa.
§1.° Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
§2.° Se resulta a morte: Pena – reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.
(BRASIL, 2003)

Além de outros crimes previstos (mas de menor relevância), aponta-se a criação de tipo
específico de apropriação indébita cuja vítima é idoso: “Art. 102. Apropriar-se de ou desviar bens,
proventos, pensão ou qualquer outro rendimento do idoso, dando-lhes aplicação diversa da de sua
finalidade: Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa” (BRASIL, 2003).
Dos direitos das pessoas com deficiência e dos idosos 73

Cita-se, ainda, uma variante do crime de constrangimento ilegal que visa coibir as disputas
familiares, em especial, em relação ao patrimônio dos idosos: “Art. 107. Coagir, de qualquer modo,
o idoso a doar, contratar, testar ou outorgar procuração: Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco)
anos.” (BRASIL, 2003).
O Estatuto realizou outras alterações de relevância no Código Penal para o combate à vio-
lência contra o idoso, segundo apontam Souza e Carboni (2013):
• A substituição da palavra velho por maior de 60 (sessenta) anos nas circunstâncias agra-
vantes da parte geral (art. 61, II, “h”, do Código Penal).
• No homicídio doloso, a pena foi aumentada de 1/3 quando for praticado contra pessoa
maior de sessenta anos (art. 121, §4º, do Código Penal).
• No crime de abandono de incapaz, criou-se uma causa especial de aumento de pena
quando a vítima for maior de sessenta anos (art. 133, §3º, III, do Código Penal).
• No crime de injúria, a utilização de elementos referentes à condição de pessoa idosa ou
portadora de deficiência passou a ser incluída entre aquelas previstas como qualificadoras
(art. 140, §3º, do Código Penal).
• Os crimes de calúnia e difamação passam a ter sua pena aumentada em 1/3 quando
cometidos contra pessoa maior de sessenta anos ou portadora de deficiência (art. 141,
IV, do Código Penal).
• O crime de sequestro e cárcere privado, quando praticado contra pessoa maior de
sessenta anos, fica apenado com reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos (art. 148, §1º, I,
do Código Penal).
• O crime de extorsão mediante sequestro fica apenado com reclusão de 12 (doze) a 20
(vinte) anos também quando o sequestrado for maior de sessenta anos (art. 159, §1º, do
Código Penal).
• Os crimes praticados nas circunstâncias do artigo 182 do Código Penal passaram a ser de
ação penal pública incondicionada, sempre que (praticado sem violência ou grave amea-
ça) seja em detrimento de pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos (artigo 183,
III, do Código Penal).
• Passa a ser considerado crime deixar de prover a subsistência de pessoa maior de sessenta
anos (art. 244, do Código Penal).
• Aumenta-se a pena de 1/3 até metade quando a vítima for maior de sessenta
anos, nas hipóteses de contravenções penais (art. 21, parágrafo único, da Lei de
Contravenções Penais).
• A pena no crime de tortura fica aumentada de 1/6 até 1/3, se for praticado contra pessoa
maior de sessenta anos (art. 1º, §4º, II, da Lei n. 9.455/97).
74 Direitos humanos e relações étnico-raciais

É claro que o combate à violência contra o idoso não passa somente pelo âmbito da penali-
zação das condutas, muito menos pela efetivação destas penas pelo agente público. Vai muito além!
São necessárias políticas públicas de atendimento aos direitos humanos dos idosos para evitar que
eles fiquem em situação de risco, assegurando-lhes os direitos básicos. São indispensáveis ações
educacionais voltadas à conscientização da população em relação a esses direitos (inclusive dos
próprios idosos e de seus familiares) e a capacitação dos agentes públicos, tanto no âmbito da saúde
pública, da assistência social, como de todo o funcionalismo público.
É possível passar horas e horas a tecer comentários em relação às práticas necessárias para a
efetivação das medidas de respeito aos direitos dos idosos, mas, ao que parece, tudo passa por uma
reviravolta moral, no restabelecimento de valores morais de proteção da pessoa humana, naquela
visão de proteção do mais fraco, em especial, de respeito ao próximo e àquele que eventualmente
já cuidou de você.

Atividades
1. Realize uma pesquisa e disserte sobre a questão do abandono afetivo do idoso, a necessidade
de previsão legal de obrigações de cuidado dos familiares em relação aos idosos e a imposi-
ção de punições civis e penais em caso de descumprimento dessas disposições.

2. O Brasil já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por violação dos
direitos das pessoas com deficiência, tendo esse fato ocorrido em 2006, no caso Damião
Ximenes Lopes (Acesse em: <www.conectas.org/pt/acoes/sur/edicao/15/1000169-caso-
damiao-ximenes-lopes-mudancas-e-desafios-apos-a-primeira-condenacao-do-brasil-pela-
corte-interamericana-de-direitos-humanos>. Acesso em: 7 jun. 2018). Após pesquisa sobre
a questão, relate o caso e descreva quais os direitos que foram violados.

3. Disserte sobre um dos direitos humanos dos idosos consagrados no Estatuto do Idoso.
4
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT

Gisele Echterhoff

Neste capítulo, iremos abordar a questão do preconceito étnico-racial, de gênero e os direi-


tos LGBT. O estudo se inicia pela noção de igualdade, da extensão e dimensões desse direito, da
análise do direito internacional e do direito brasileiro, para, posteriormente, examinar especifica-
mente os temas indicados.
O objetivo não é esgotar os assuntos – até porque seria impossível –, mas apenas repas-
sar uma noção geral sobre cada um deles e despertar o interesse em relação ao debate sobre a
discriminação.

4.1 Preconceito, racismo e desigualdades no


Brasil – questões étnico-raciais
Antes de começar qualquer análise sobre temas como preconceito, racismo, desigualdades e
diversidade étnico-racial, devemos iniciar o estudo com o conceito de direito à igualdade.

“A igualdade consiste em um atributo de comparação do tratamento


dado a todos os seres humanos, visando assegurar uma vida digna a to-
dos, sem privilégios odiosos” (RAMOS, 2015, p. 479).

A busca pela igualdade foi o principal objetivo das primeiras declarações de Direitos
Humanos do século XVIII, como uma resposta aos privilégios de determinada casta ou categoria
social (nobreza, castas religiosas etc.).
No entanto, a pretensão de igualdade era meramente formal, ou seja, igualdade somente pe-
rante a lei (isonomia), exigindo-se um tratamento idêntico para todas as pessoas submetidas à lei,
não se reconhecendo a existência de condições desiguais que precisam ser supridas por medidas
públicas para superar a desigualdade.
Além do mais, o objetivo não era um reconhecimento efetivo de igualdade para todos, pois
parcela da população ainda se encontrava em condições de desigualdade e sem reconhecimento de
direitos, como era o caso das mulheres e dos escravos.
André de Carvalho Ramos cita os seguintes exemplos de declarações daquela época:
A primeira Declaração de Direitos dessa época, a Declaração de Virgínia, de
12 de junho de 1776, reconheceu que todos os homens são, pela sua natureza,
iguais e todos possuem direitos inatos. A Declaração de Independência dos
Estados Unidos da América, aprovada no Congresso Continental de 4 de julho
76 Direitos humanos e relações étnico-raciais

de 1776 (data da comemoração da independência dos Estados Unidos), en-


fatizou que ‘todos os homens são criados iguais’. A Declaração Francesa dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, foi na mesma di-
reção, proclamando que ‘os homens nascem e são livres e iguais em direitos’
(art. 1º). A Constituição americana de 1787 não contava com um rol de direitos
(entendendo-os como de competência dos Estados da Federação), e a igualdade
não constou da lista de direitos incluídos nas emendas de 1791. A escravidão
nos Estados Unidos só foi completamente abolida após a Guerra de Secessão
(1861-1865), conflito no qual morreram quase 620 mil soldados. Em 1868, foi
incluído o direito de ‘igual proteção da lei’ a todos (Emenda XIV). (RAMOS,
2015, p. 480)

Com a ascensão do Estado Social, a noção de igualdade ganha uma nova concepção: a de
igualdade material em complementação à formal, que “busca ainda a erradicação da pobreza e de
outros fatores de inferiorização que impedem a plena realização das potencialidades do indivíduo.
A igualdade, nessa fase, vincula-se à vida digna” (RAMOS, 2015, p. 480).
Ramos (2015) afirma que, atualmente, o fundamento do direito à igualdade é a universali-
dade dos direitos humanos, pois este reconhece a todos os seres humanos a titularidade desses di-
reitos, tal qual concebe o artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: “Todos
os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (ONU, 1948).
Com base nessa noção histórica, podemos passar ao exame das três vertentes do direito à
igualdade:
a) a igualdade formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei” (que,
ao seu tempo, foi crucial para abolição de privilégios); b) a igualdade material,
correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada pelo
critério socioeconômico); e c) a igualdade material, correspondente ao ideal de
justiça enquanto reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos
critérios gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e outros). (PIOVESAN,
2015, p. 328)
De outro lado, Ramos (2015) cita a existência de duas dimensões da igualdade, a primeira
que visa à proibição de discriminação indevida, chamada de vedação da discriminação negativa, e a
segunda que prevê o dever de impor uma determinada discriminação para a obtenção da igualdade
efetiva, chamada de discriminação positiva (ou ação afirmativa).
Flávia Piovesan (2015) demonstra nitidamente que as duas dimensões são complementares,
ressaltando que a estratégia repressiva-punitiva – que visa proibir, punir e eliminar a discriminação
– é medida de urgência, porém, insuficiente, devendo ser complementada pela estratégia promo-
cional, a qual tem por objetivo promover, fomentar e avançar a igualdade.
Assim, exemplifica seu entendimento a autora:
Faz-se necessário combinar a proibição de discriminação com políticas com-
pensatórias que acelerem a igualdade enquanto processo. Isto é, para assegurar a
igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repres-
siva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inserção
e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais. Com efeitos, a
igualdade e a discriminação pairam sob o binômio inclusão-exclusão. Enquanto
a igualdade pressupõe formas de inclusão social, a discriminação implica a
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 77

violenta exclusão e intolerância à diferença e à diversidade. O que se percebe


é que a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta automaticamente na
inclusão. Logo, não é suficiente proibir a exclusão, quando o que se pretende é
garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social de grupos que sofre-
ram e sofrem um consistente padrão de violência e discriminação.
As ações afirmativas devem ser compreendidas não somente pelo prisma re-
trospectivo – no sentido de aliviar a carga de um passado discriminatório -, mas
também prospectivo – no sentido de fomentar a transformação social, criando
uma nova realidade. (PIOVESAN, 2015, p. 331)

Em relação à previsão internacional do direito à igualdade, temos (além do disposto no arti-


go I da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, já citado) os artigos II e VII:
Artigo II
1 – Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades esta-
belecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor,
sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou
social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
2 – Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política,
jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer
se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer
sujeito a qualquer outra limitação de soberania.
[...]
Artigo VII
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual pro-
teção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação
que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discrimina-
ção. (ONU, 1948)

Comentando esses artigos, Piovesan afirma (2015, p. 312):


Portanto, se o primeiro artigo da Declaração afirma o direito à igualdade, o
segundo artigo adiciona a cláusula da proibição da discriminação de qualquer
espécie, como corolário e consequência do princípio da igualdade. O binômio
da igualdade e da não discriminação, assegurado pela Declaração, sob a inspi-
ração da concepção formal de igualdade, impactará a feição de todo sistema
normativo global de proteção dos direitos humanos.

A par da DUDH, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 também faz
expressa referência ao direito à igualdade:
Artigo 2.º
1. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar e a garantir
a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a
sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação
alguma por motivo de raça, cor, sexo, religião, opinião política ou outra natu-
reza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer
outra condição.
[...]
Artigo 4.º
1. Quando situações excepcionais ameacem a existência da nação e sejam pro-
clamadas oficialmente, os Estados partes do presente Pacto podem adotar, na
78 Direitos humanos e relações étnico-raciais

estrita medida exigida pela situação, medidas que suspendam as obrigações


decorrentes do presente Pacto, desde que tais medidas não sejam incompatíveis
com as demais obrigações que lhes sejam impostas pelo Direito Internacional e
não acarretem discriminação alguma apenas por motivo de raça, cor, sexo, língua,
religião ou origem social.
Artigo 26
Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação algu-
ma, a igual proteção da lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma
de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra
qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião
política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica,
nascimento ou qualquer outra situação. (grifos nossos)

Flávia Piovesan ressalta que o Comitê de Direitos Humanos, em sua Recomendação Geral
18, a respeito do artigo 26 do Pacto, “entende que o princípio da não discriminação é um princípio
fundamental previsto no próprio Pacto, condição e pressuposto para o pleno exercício dos direitos
humanos nele enunciados”. Afirma a autora que, “no entender do Comitê, ‘A não discriminação,
assim como a igualdade perante a lei e a igual proteção da lei sem nenhuma discriminação, consti-
tuem em princípio básico e geral, relacionado à proteção dos direitos humanos’” (2015, p. 312-313).
De forma bastante semelhante é a previsão do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, de 1966, no seu artigo 2º:
2.º Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir que os
direitos nele enunciados e exercerão em discriminação alguma por motivo de
raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem
nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.

No âmbito da legislação interna – novamente numa análise dos dispositivos gerais em rela-
ção ao direito à igualdade – verificamos que já no preâmbulo da Constituição Federal há expressa
referência a esse direito:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-es-
tar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição
da República Federativa do Brasil. (BRASIL, 1988, grifos nossos)

O artigo 3º da Constituição Federal estabelece, entre os diversos objetivos do Estado brasileiro:


III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL, 1988)

No artigo 5º, caput da Constituição Federal, há o reconhecimento da igualdade como di-


reito fundamental (“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garan-
tindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”), além de, em vários incisos, estabelecer
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 79

direitos relacionados à igualdade, como o inciso I (“homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações”), inciso XLI (“a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais”) e o inciso XLII (“a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,
sujeito à pena de reclusão”) (BRASIL, 1988).
Além desses dispositivos gerais, há, também, outros específicos em relação ao racismo, à
discriminação contra a mulher, contra os deficientes, entre outros; porém, estes serão examinados
quando falarmos especificamente de cada um desses assuntos.
Baseando-se nessa análise geral sobre o direito à igualdade, passemos ao exame das questões
étnicos-raciais, do preconceito racial.
A sociedade brasileira é bastante plural, sendo constituída de diversos grupos étnico-raciais.
Esse fator é de extrema relevância para a nossa riqueza cultural; porém, também é um fator que nos
caracteriza como uma sociedade marcada por grandes desigualdades e discriminações em razão
dessa diversidade, em especial em relação aos negros e indígenas.
De acordo com o Censo de 2010, o Brasil “contava com uma população de 191 milhões de
habitantes, dos quais 91 milhões se classificaram como brancos (47,7%), 15 milhões como pretos
(7,6%), 82 milhões como pardos (43,1%), 2 milhões como amarelos (1,1%) e 817 mil indígenas
(0,4%)” (IBGE, 2011, p. 75-76).
Constatou-se uma diferença em relação ao censo de 2000, pois houve uma redução da pro-
porção de pessoas que se declararam brancas e crescimento das que se declararam pretas, pardas
ou amarelas (IBGE, 2011).
Gráfico 1 – Distribuição percentual da população residente, segundo cor ou raça – Brasil, 2000-2010.
%

53,7

47,7
43,1
38,5

6,2 7,6
0,5 1,1 0,4 0,4 0,7
0,0

Branca Preta Parda Amarela Indígena Sem


declaração

2000 2010

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000/2010.


Nota: Em 2010, foram considerados os resultados da amostra.

Fonte: IBGE, 2011, p. 76.

Considerando alguns dados mais recentes, a Síntese de Indicadores Sociais de 2015, também
do IBGE, apresenta os seguintes dados:
80 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Uma característica relevante para se analisar na população é sua distribuição


por cor ou raça. No país, em 2014, mais da metade (53,6%) das pessoas se de-
claravam como de cor ou raça preta ou parda, enquanto as que se declaravam
como brancas foi 45,5%. Em 2004, o cenário era diferente, pouco mais da me-
tade se declarava como branca (51,2%), enquanto a proporção de pretos ou
pardos era 48,2%. (IBGE, 2015, p. 12)

Embora frequentemente mascarado, o racismo é algo presente em nosso dia a dia, sendo que
a condição racial ligada à condição socioeconômica faz com que a desigualdade seja ainda mais
surpreendente e gere constantes violações de direitos humanos.
O brasileiro tem um problema em aceitar a sua condição de racista, mas os números não
enganam:
Nesse contexto de racismo institucional, que se nutre de uma ideologia persis-
tente e velada em sua origem, mas explícita em seus efeitos, a melhor estratégia
há de ser o enfrentamento dos indicadores socioeconômicos, quando o racismo
institucional aparece bem evidenciado:
Finalmente, o levantamento da presença das pessoas negras nos cargos de di-
reção e gerência das 500 maiores empresas do país reforça todas as análises
anteriores. Em 2003, no nível mais elevado das hierarquias dessas companhias,
apenas 1,8% dos funcionários era negro. Na esfera intermediária, as pessoas
negras representavam 13,5% dos supervisores e, em todo o quadro funcional,
23,4%.Como essas organizações são as que oferecem maiores possibilidades de
progressão na carreira, pode-se concluir que as mulheres e os homens negros
não só têm dificuldade de acesso a cargos de decisão no mercado de trabalho
como enfrentam obstáculos para simplesmente trabalhar nessas companhias,
que frequentemente oferecem melhores empregos em termos de remuneração,
proteção e benefícios. (PNDU BRASIL, s.d., p. 51). (SILVA; SOARES FILHO,
2011, p. 12)

Não é por outra razão que existem tratados internacionais que visam eliminar todas as for-
mas de discriminação para com essa minoria étnico-racial.
Cita-se a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de
1965, que, já no preâmbulo, prescreve “que qualquer doutrina de superioridade baseada em dife-
renças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, em
que, não existe justificação para a discriminação racial, em teoria ou na prática, em lugar algum”
(ONU, 1965).
O art. 1º dessa Convenção define expressamente discriminação racial:
1. Nesta Convenção, a expressão “discriminação racial” significará qualquer dis-
tinção, exclusão restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou
origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o re-
conhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição),
de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico,
social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública. (ONU, 1965)

Piovesan (2015), comentando esse dispositivo, afirma que discriminação significa sempre
desigualdade. E ressalta a autora que a própria Convenção estabelece a possibilidade de ações afirma-
tivas com vistas a promover sua ascensão na sociedade até um nível de equiparação com os demais:
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 81

4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas


com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais
ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária
para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos
humanos e liberdades fundamentais, contando que, tais medidas não conduzam,
em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos ra-
ciais e não prossigam após terem sidos alcançados os seus objetivos. (ONU, 1965)

De forma sintética, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de


Discriminação Racial foi subscrita pelo Brasil em 7 de março de 1966 e aprovada pelo Congresso
Nacional em 21 de julho de 1967, pelo Decreto Legislativo 23/67 (SILVA; SOARES FILHO, 2011).
Todavia, a declaração facultativa prevista no artigo 14 da convenção somente veio a ser aprovada
pelo Brasil em 26 de abril de 2002, com o Decreto Legislativo 57/2002, sendo depois promulgada
em 12 de junho de 2003, por meio do Decreto 4.783/2003.
No âmbito interno, especificamente sobre a questão étnica-racial, há expressa previsão cons-
titucional estabelecendo o racismo como crime inafiançável1 e imprescritível2 (art. 5º, inciso XLII).
Porém, a legislação nacional não passou de práticas legislativas repressivas até bem pouco
tempo atrás, deixando de lado as políticas promocionais, como bem ressaltam Eliezer Gomes da
Silva e Almiro Sena Soares Filho:
Nesse longo interregno, de décadas de indiferença do Brasil aos sistemas regio-
nal e internacional de direitos humanos (mesmo após a superação do período
ditatorial), recusou-se o Brasil (pela demora em firmar as declarações de aceita-
ção de competência) em submeter seu sistema nacional de garantia e proteção
de direitos humanos aos mecanismos formais de accountability dos fóruns in-
ternacionais. Em tema de promoção da igualdade racial, o Brasil contabilizava,
até a edição da Lei 12288, em 20 de julho de 2010 (Estatuto da Igualdade Racial),
apenas respostas legislativas simbólicas (ainda que o simbolismo tenha lá sua
importância), mais voltadas à censura e à punição, em tese, da discriminação
racial explícita, do que a um eficaz engajamento jurídico e político da superação
da desigualdade racial. [...]
Essas deficiências formais e operacionais do sistema jurídico brasileiro, no que
tange ao reconhecimento e combate à discriminação racial, já foram minuden-
temente apontadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (do-
ravante CIDH) da OEA, ao aprovar, em 21 de outubro de 2006, o Relatório n.
66/06, no caso Simone André Diniz [...]. No relatório da Comissão são citados
[...] entre outros, um estudo – [...]sobre as crônicas imperfeições técnicas das
sucessivas leis antirraciais brasileiras – e um estudo – [...] sobre os não menos
crônicos despreparo e insensibilidade dos operadores do sistema jurídico brasi-
leiro em lidar com casos envolvendo alegações de discriminação racial.

[...] ao aprovar o relatório, a CIDH reiterou recomendações ao governo brasi-


leiro, [...] das quais merecem destaque, para os propósitos do presente artigo,
as Recomendações de n. 5, 7, 8, 10 e 11, relacionadas ao aperfeiçoamento no
sistema jurídico-penal:

1 Insuscetível de concessão de fiança. “A fiança é um direito subjetivo constitucional do acusado, que lhe permite,
mediante caução e cumprimento de certas obrigações, conservar sua liberdade até a sentença condenatória irrecorrível”
(MIRABETE, 2008, p. 415).
2 Que não submete a prazo prescricional.
82 Direitos humanos e relações étnico-raciais

5. Realizar as modificações legislativas e administrativas necessárias para que a


legislação antirracismo seja efetiva, com o fim de sanar os obstáculos demons-
trados nos parágrafos 78 e 94 do presente relatório;
[...]
7. Adotar e instrumentalizar medidas de educação dos funcionários de justiça e
da polícia a fim de evitar ações que impliquem discriminação nas investigações,
no processo ou na condenação civil ou penal das denúncias de discriminação
racial e racismo;
[...]
8. Organizar Seminários estaduais com representantes do Poder Judiciário,
Ministério Público e Secretarias de Segurança Pública locais com o objetivo de
fortalecer a proteção contra a discriminação racial e o racismo;
10. Solicitar aos governos estaduais a criação de delegacias especializadas na
investigação de crimes de racismo e discriminação racial;
11. Solicitar aos Ministérios Públicos Estaduais a criação de Promotorias
Públicas Estaduais Especializadas no combate ao racismo e a discriminação
racial; [...] (SILVA; SOARES FILHO, 2011, p. 4)

Essa perspectiva mudou com a edição da Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010, conheci-
da como Estatuto da Igualdade Racial, que tem por objetivo “garantir à população negra a efeti-
vação da igualdade de oportunidades, a defesa de direitos étnicos e o combate à discriminação”
(PIOVESAN, 2015, p. 335).
O Estatuto estabelece a possibilidade de adoção de ações afirmativas consistentes em “po-
líticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discri-
minatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do país”
(parágrafo único do art. 4º).
O artigo 42, por exemplo, indica a possibilidade de adoção de critérios para o provimento de
cargos da administração pública federal e estadual destinados a ampliar a participação de negros.
Conduta de promoção semelhante à da Lei n. 10.558/2002, chamada Lei de Cotas para o ingresso
no ensino superior.
O Estatuto assegura vários direitos fundamentais, como saúde, educação, cultura, esporte,
lazer, liberdade de consciência e de crença, livre exercício dos cultos religiosos, acesso à terra e à
moradia adequada e ao trabalho. Traz, também, algumas previsões bem específicas, como:
• valorização da herança cultural afrodescendente na história nacional;
• estímulo à participação de afrodescendentes em propagandas, filmes e programas;
• estímulo à adoção de programas de ações afirmativas pelo setor privado;
• programas de ações afirmativas para afrodescendentes e povos indígenas em universida-
des federais.
Além disso, esse Estatuto institui o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial
(Sinapir) como forma de organização e de articulação voltadas à implementação do conjunto de
políticas e serviços destinados a superar as desigualdades étnicas existentes no Brasil, prestados
pelo poder público federal (art. 47).
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 83

4.2 Diversidade religiosa: o direito à liberdade


de consciência, crença e religião
A liberdade de consciência, conforme André de Carvalho Ramos (2015, p. 530-531), “con-
siste no direito de possuir, inovar, expressar ou até desistir de opiniões e convicções, asseguran-
do-se o direito de agir em consonância com tais valores”. A liberdade de pensamento inclui a li-
berdade de consciência; porém, o fato de a Constituição expressamente se referir à liberdade de
consciência “realça a importância de se assegurar a livre formação e exteriorização de convicção e
valores” (RAMOS, 2015).
Diretamente correlacionada à liberdade de consciência encontramos a liberdade de crença
e religião como uma de suas facetas. A liberdade de crença e religião consiste “no direito de adotar
qualquer crença religiosa ou abandoná-la livremente, bem como praticar seus ritos, cultos e mani-
festar sua fé, sem interferências abusivas” (RAMOS, 2015, p. 532).
Explicando a correlação entre ambos, Ingo Wolfgang Sarlet afirma:
A liberdade de consciência assume, de plano, uma dimensão mais ampla, con-
siderando que as hipóteses de objeção de consciência, apenas para ilustrar com
um exemplo, abarcam hipóteses que não têm relação direta com opções religio-
sas, de crença e de culto. Bastaria aqui citar o exemplo daqueles que se recusam
a prestar serviço militar em virtude de sua convicção (não necessariamente
fundada em razões religiosas) de participar de conflitos armados e eventual-
mente vir a matar alguém. Outro caso, aliás, relativamente frequente, diz com a
recusa de médicos a praticarem a interrupção da gravidez e determinados pro-
cedimentos, igualmente nem sempre por força de motivação religiosa. Assim,
amparados na lição de Konrad Hesse, é possível afirmar que a liberdade de
crença e de confissão religiosa e ideológica aparece como uma manifestação
particular do direito fundamental mais geral da liberdade de consciência, que,
por sua vez, não se restringe à liberdade de “formação” da consciência (o foro
interno), mas abarca a liberdade de “atuação” da consciência, protegendo de tal
sorte para efeitos externos a decisão fundada na consciência, inclusive quando
não motivada religiosa ou ideologicamente. (SARLET, 2015, p. 92-93)

Os direitos à liberdade de crença e religião estão enquadrados entre os direitos de 1ª gera-


ção, demandando uma prestação negativa do Estado, um abster-se de qualquer violação (BREGA
FILHO; ALVES, 2008). Mas devemos ressaltar que a liberdade religiosa também exige ações posi-
tivas do Estado, a fim de garantir o exercício desse direito, como, por exemplo, o previsto no inciso
VII do artigo 5º da Constituição Federal, que assegura “nos termos da lei, a prestação de assistência
religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”.
E mais: a liberdade religiosa engloba tanto direitos individuais quanto os coletivos:
pois além dos direitos individuais de ter, não ter, deixar de ter, escolher uma
religião (entre outras manifestações de caráter individual), existem direitos co-
letivos, cuja titularidade é das Igrejas e organizações religiosas, direitos que di-
zem com a auto-organização, autodeterminação, direito de prestar o ensino e a
assistência religiosa, entre outros, aspectos que, por sua vez, são relacionados ao
problema da titularidade e dos destinatários do direito fundamental. (SARLET,
2015, p. 96-97)
84 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Embora seja comum usarmos as expressões liberdade de crença e liberdade religiosa como si-
nônimas, José Afonso da Silva indica que existem diferenças entre ambas, embora sejam correlatas.
O autor sustenta que na liberdade de crença se inclui “a liberdade de escolha da religião, a liberdade
de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também
compreende a liberdade de não aderir a religião alguma” (2000, p. 251-256 apud BREGA FILHO;
ALVES, 2008, p. 3573-3574). Afirma o autor que
a religião não é apenas sentimento sagrado puro. Não se realiza na simples ado-
ração a Deus. Ao contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua característica
básica se exterioriza na prática dos ritos, no culto, com suas cerimônias, mani-
festações, reuniões, fidelidades aos hábitos, às tradições, na forma indicada pela
religião escolhida. (SILVA, 2000, p. 251-256)

Ingo Wolfgang Sarlet afirma que a liberdade religiosa desdobra-se na liberdade de crença,
“faculdade individual de optar por uma religião ou de mudar de religião ou de crença” (2015, p.
96), e na liberdade de culto, que “guarda relação com a exteriorização da crença”, por meio dos “ri-
tos, cerimônias, locais e outros aspectos essenciais ao exercício da liberdade de religião e de crença”
(2015, p. 96).
A violação da liberdade religiosa tem origens muito remotas. Não é de hoje que a intolerân-
cia religiosa é motivo para preocupação da sociedade, já passamos por situações em que a religião
se tornou fundamento para atrocidades, como na época da Inquisição. Infelizmente, em razão de
questões religiosas, ainda vemos guerras e conflitos civis em várias regiões do mundo, em especial,
os conflitos entre cristãos e muçulmanos.
Embora o Brasil seja um país com grande variedade cultural e étnica, consequentemente,
religiosa, tal circunstância, por si só, não é capaz de afastar as graves violações à liberdade religiosa.
Conforme um artigo publicado pelo Jornal do Senado, de Juliana Steck, o número de denúncias no
Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República cresceu mais de sete
vezes em 2012 em relação a 2011 (um aumento de 626%). E não se deve esquecer que estes núme-
ros não representam a real dimensão do problema, fato este reconhecido pela própria Secretária
de Direitos Humanos, pois “o serviço telefônico gratuito da secretaria não possui um módulo es-
pecífico para receber esse tipo de queixa” (STECK, 2013). Consequentemente, “muitos casos não
chegam ao conhecimento do poder público. A maior parte das denúncias é apresentada às polícias
ou órgãos estaduais de proteção dos direitos humanos e não há nenhuma instituição responsável
por contabilizar os dados nacionais” (STECK, 2013).
A Associação SaferNet demonstra em números que a maioria das agressões são cometidas
via internet:
Muitas agressões são cometidas pela internet. Segundo a associação SaferNet,
em 2012, a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos recebeu
494 denúncias de intolerância religiosa praticadas em perfis do Facebook.
O mundo virtual reflete a situação do mundo real. De 2006 a 2012, foram
247.554 denúncias anônimas de páginas e perfis em redes sociais que conti-
nham teor de intolerância religiosa. (STECK, 2013)
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 85

E o artigo do Jornal do Senado ainda divulga dados estatísticos relacionados às restrições


religiosas no mundo:
Uma pesquisa mundial feita em 2009 e 2010 indicou o aumento da intolerân-
cia religiosa. Segundo o Instituto Pew Research Center, com sede nos Estados
Unidos, 5,2 bilhões de pessoas (75% da população mundial) vivem em locais
com restrições a crenças.
No período, passou de 31% para 37% a proporção de países com nível elevado
ou muito alto de restrições. Entre os países com as maiores restrições governa-
mentais (leis, políticas e ações para limitar práticas religiosas), estavam Egito,
Indonésia, Arábia Saudita, Afeganistão, China, Rússia e outros que somaram
6,6 pontos ou mais em um índice de máximo 10. O Brasil aparece, junto com
Austrália, Japão e Argentina, em nível baixo, entre os países com 0 a 2,3 pontos.
Mesmo nos países com nível moderado ou baixo de restrições, houve aumento
da intolerância. Nos Estados Unidos, por exemplo, houve uma proposta – rejei-
tada pela Justiça – de declarar ilegal a lei islâmica. Na Suíça, foi proibida a cons-
trução de novos minaretes (torres em mesquitas). O aumento dessas restrições
foi atribuído a fatores como crescimento de crimes e violência motivada por
ódio religioso. (STECK, 2013)

Existem casos emblemáticos dentro do território nacional que demonstram a que nível che-
ga a intolerância religiosa. O Mapa da Intolerância Religiosa, de Marcio Alexandre M. Gualberto
(2011), cita, por exemplo, casos como o do cartunista Glauco Villas-Boas e seu filho, Roani, em
que o assassino, Eduardo Sundfeld Nunes, o Cadu, afirma expressamente que praticou o crime
cumprindo um chamado de Deus, referindo-se à Crença do Santo Daime, seita esta adotada pelo
cartunista, que era fundador da Igreja Céu de Maria.
Esse documento cita, ainda, os ataques comuns às imagens sacras das Igreja católica, como o
praticado pelo bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Von Helder, que, em 12 de outubro de
1995, em rede nacional, chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida.
Dentre vários outros casos, o documento cita, também, o suicídio, em novembro de 2010, da
jovem Larissa Rafaela Kondo de Lima, de 15 anos, em Cafelândia/SP, que havia sido agredida pelos
pais, evangélicos, para que obedecesse às “regras da igreja e do respeito à família” (GUALBERTO,
2011, p. 64-65).
Necessário, ainda, apontar o caso da Mãe Gilda, que faleceu logo após ter sua “foto estam-
pada no Jornal Folha Universal em matéria extremamente desrespeitosa às religiões de matriz afro”
(GUALBERTO, 2011, p. 111-112). O dia da morte da Mãe Gilda, 21 de janeiro, passou a ser consi-
derado o Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa pela Lei n. 11.635/2007.
Sem dúvida, os números e as histórias de violação são assustadores, demonstrando a neces-
sidade de atuações de toda a sociedade em prol da garantia de liberdade religiosa, tanto em âmbito
internacional como no direito interno.
Em termos internacionais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra expres-
samente a liberdade religiosa:
86 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Art. 18. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de


religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção,
assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em
comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo
culto e pelos ritos.
Esse documento foi seguido pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966):
Artigo 18
1. Toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de re-
ligião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma
crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, indivi-
dual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da
celebração de ritos, de práticas e do ensino.
2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir
sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha.
3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas à
limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança,
a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais
pessoas.
4. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberda-
de dos países e, quando for o caso, dos tutores legais de assegurar a educação
religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo com suas próprias convicções.

No âmbito interamericano, tem-se a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos


(Pacto São José da Costa Rica), de 1969:
Artigo 12 – Liberdade de consciência e de religião
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito
implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar
de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua
religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como
em privado.
2. Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar sua
liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou
de crenças.
3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita
apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a
segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades
das demais pessoas.
4. Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos
recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias
convicções.

Em razão de necessidade evidente, a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de


Intolerância e Discriminação fundadas na Religião ou nas Convicções, de 1981, veio dispor espe-
cificamente sobre o assunto:
Artigo 1.º
§1.º Toda pessoa tem o direito de liberdade de pensamento, de consciência
e de religião. Este direito inclui a liberdade de ter uma religião ou qualquer
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 87

convicção a sua escolha, assim como a liberdade de manifestar sua religião ou


suas convicções individuais ou coletivamente, tanto em público como em priva-
do, mediante o culto, a observância, a prática e o ensino.
§2.º Ninguém será objeto de coação capaz de limitar a sua liberdade de ter uma
religião ou convicções de sua escolha.
§3.º A liberdade de manifestar a própria religião ou as próprias convicções es-
tará sujeita unicamente às limitações prescritas na lei e que sejam necessárias
para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos e
liberdades fundamentais dos demais.

A Declaração de 1981 exemplifica quais liberdades estariam incluídas no direito à liberdade


de pensamento, de consciência, de religião ou de convicções (art. 6º):
a) A de praticar o culto e o de celebrar reuniões sobre a religião ou as convic-
ções, e de fundar e manter lugares para esses fins.
b) A de fundar e manter instituições de beneficência ou humanitárias adequadas.
c) A de confeccionar, adquirir e utilizar em quantidade suficiente os artigos e
materiais necessários para os ritos e costumes de uma religião ou convicção.
d) A de escrever, publicar e difundir publicações pertinentes a essas esferas.
e) A de ensinar a religião ou as convicções em lugares aptos para esses fins.
f) A de solicitar e receber contribuições voluntárias financeiras e de outro tipo
de particulares e instituições;
g) A de capacitar, nomear, eleger e designar por sucessão os dirigentes que cor-
respondam segundo as necessidades e normas de qualquer religião ou convicção.
h) A de observar dias de descanso e de comemorar festividades e cerimônias de
acordo com os preceitos de uma religião ou convicção.
i) A de estabelecer e manter comunicações com indivíduos e comunidades so-
bre questões de religião ou convicções no âmbito nacional ou internacional.

Na legislação nacional, a liberdade de consciência, de crença e de religião está expressamente


prevista na Constituição Federal:
Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabi-
lidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:
[...]
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais
de culto e a suas liturgias;
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas
entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação
legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em
lei; [...]
88 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Dentre as legislações infraconstitucionais voltadas à garantia da liberdade religiosa, em sen-


tido amplo, podemos citar:
• Lei n. 7.716/89, modificada pela Lei n. 9.459/97, que penaliza a prática de crimes resultantes
de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (art. 20).
• Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996), que reco-
nhece que o ensino terá como base a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a
cultura, o pensamento, a arte e o saber, bem como garantir o respeito à liberdade e apreço
à tolerância (art. 3º, inciso IV e II). Essa lei também reconhece o ensino religioso, de ma-
trícula facultativa, como parte integrante da formação básica do cidadão, assegurando a
diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
• Lei n. 11.635/07, que instituiu o dia 21 de janeiro como o “Dia Nacional de Combate à
Intolerância Religiosa”.
• Lei n. 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial), que, em seus arts. 24 e 26, assegura o
direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de
matriz africana, exigindo atuação estatal para combate à intolerância e à discriminação
em relação às religiões de matriz africana.
Necessário acrescentar (mesmo que de forma breve) a existência de conflitos entre o direito
à liberdade religiosa e outros direitos humanos. Podemos citar como exemplo o conflito entre a
liberdade de expressão e a liberdade religiosa, quando se discute a possibilidade de, fundamentado
na liberdade de expressão, realizar críticas às religiões e crenças. Claro que a própria Constituição
Federal reconhece a liberdade de expressão como direito fundamental, porém não é possível que,
fundamentado em tal garantia, se incorra em manifestações preconceituosas que venham a ofen-
der a honra ou imagem de alguém.
Outro exemplo bastante comum nas discussões relacionadas à liberdade religiosa é o seu
conflito com o direito à vida e à saúde, no caso das Testemunhas de Jeová, cujo credo proíbe trans-
fusões de sangue.
Várias outras questões podem ser levantadas, como a questão do ensino religioso em escolas
públicas, as discussões relacionadas às religiões que guardam o sábado e as consequências em rela-
ção à realização de provas de concurso público, à frequência escolar e laboral.

4.3 Equidade de gênero, direitos da mulher e Lei Maria da Penha


Neste item trataremos de outro assunto inquietante quando se fala sobre ofensa ao direito à
igualdade: a questão da discriminação de gênero e da afronta aos direitos das mulheres.
Somente para demonstrar a importância da questão, é necessário trazer à tona alguns
números: “Até o primeiro semestre de 2012, foram feitos 47.555 registros de atendimento na
Central de Atendimento à Mulher. Durante todo o ano de 2011, foram 74.984 registros, bem
inferior aos 108.491 de 2010” (IBGE, 2012). Esses números foram somente os registrados pela
Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, que é “um serviço de atendimento telefônico que
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 89

recebe denúncias de maus-tratos contra as mulheres oferecido pela a Secretaria de Políticas para as
Mulheres da Presidência da República” (IBGE, 2012).
Especificamente esses registros se referem a vários tipos de violência:
Tabela 1 – Registros de atendimentos da Central de Atendimento à mulher, segundo o tipo de relato –
Brasil, 2009-2012.

Registros de atendimentos da Central


Tipo de relato de Atendimento à Mulher

2009 2010 2011 2012

Total 40857 108 491 74 984 47 555

Violência física – lesão corporal leve, grave e gravíssi-


22 006 63 838 45 953 26 939
ma, tentativa de homicídio e homicídio

Violência psicológica – ameaça, dano emocional, perse-


13 555 27 440 17 987 12 941
guições, assédio moral no trabalho

Violência moral – difamação, calúnia e injúria 3 595 12 608 8 176 5 797

Violência patrimonial 807 1 840 1 227 750

Violência sexual – estupro, exploração sexual e assédio


576 2 318 1 298 915
no trabalho

Outros tipos de violência 308 447 343 213

Fonte: IBGE, 2012.

Em relação à taxa de homicídios femininos, verificamos números assustadores apresen-


tados no Mapa da Violência 2015 – Homicídio de Mulheres no Brasil, do autor Julio Jacobo
Waiselfisz. O número de vítimas passou de 1.353 mulheres em 1980, para 4.762 em 2013, um
aumento de 252%. A taxa, que em 1980 era de 2,3 vítimas por 100 mil, passa para 4,8 em 2013,
um aumento de 111,1%. Estes são os números apresentados pelo Mapa:

Tabela 2 – Número e taxas (por 100 mil) de homicídio de mulheres – Brasil, 1980-2013.

Ano n. Taxas Ano n. Taxas

1980 1.353 2,3 2001 3.851 4,4

1981 1.487 2,4 2002 3.867 4,4

1982 1.497 2,4 2003 3.937 4,4

1983 1.700 2,7 2004 3.830 4,2

1984 1.736 2,7 2005 3.884 4,2

1985 1.766 2,7 2006 4.022 4,2

1986 1.799 2,7 2007 3.772 3,9

1987 1.935 2,8 2008 4.023 4,2

1988 2.025 2,9 2009 4.260 4,4

1989 2.344 3,3 2010 4.465 4,6

1990 2.585 3,5 2011 4.512 4,6

(Continua)
90 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Ano n. Taxas Ano n. Taxas

1991 2.727 3,7 2012 4.719 4,8

1992 2.399 3,2 2013 4.762 4,8

1993 2.622 3,4 1980/2013 106.093

Δ%
1994 2.838 3,6 197,3 87,7
1980/2006

Δ%
1995 3.325 4,2 18,4 12,5
2006/2013

Δ%
1996 3.682 4,6 252,0 111,1
1980/2013

Δ% aa.
1997 3.587 4,4 7,6 2,5
1980/2006

Δ% aa.
1998 3.503 4,3 2,6 1,7
2006/2013

Δ% aa.
1999 3.536 4,3 7,6 2,3
1980/2013

2000 3.743 4,3

Fonte: WAISELFISZ, 2015, p. 11.

Gráfico 2 – Evolução das taxas de homicídios de mulheres (por 100 mil) – Brasil, 1980-2013.

5,0
2013, 4,8
1996, 4,6
Taxas de homicídio (por 100 mil)

4,5 2003, 4,4


2010, 4,6
2006, 4,2

4,0
2007, 3,9

3,5

3,0

2,5

1980, 2,3
2,0
1980 1983 1986 1989 1992 1995 1998 2001 2004 2007 2010 2013

Fonte: WAISELFISZ, 2015, p. 12.

Importante ressaltar a queda do número de homicídios após a promulgação da Lei Maria da


Penha (Lei n. 11.340/2006): “no período anterior à Lei o crescimento do número de homicídios de
mulheres foi de 7,6% ao ano; quando ponderado segundo a população feminina, o crescimento das
taxas no mesmo período foi de 2,5% ao ano” (WAISELFISZ, 2015, p. 11). Examinando o período
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 91

após a lei, entre 2006 e 2013, “o crescimento do número desses homicídios cai para 2,6% ao ano e
o crescimento das taxas cai para 1,7% ao ano” (WAISELFISZ, 2015, p. 11).
Este estudo apresenta uma alarmante comparação do Brasil em relação a outros países:
Com sua taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, o Brasil, num grupo de
83 países com dados homogêneos, fornecidos pela Organização Mundial da
Saúde, ocupa uma pouco recomendável 5ª posição, evidenciando que os índices
locais excedem, em muito, os encontrados na maior parte dos países do mundo.
Efetivamente, só El Salvador, Colômbia, Guatemala (três países latino-america-
nos) e a Federação Russa evidenciam taxas superiores às do Brasil, mas as taxas
do Brasil são muito superiores às de vários países tidos como civilizados:
• 48 vezes mais homicídios femininos que o Reino Unido;
• 24 vezes mais homicídios femininos que Irlanda ou Dinamarca;
• 16 vezes mais homicídios femininos que Japão ou Escócia.
Esse é um claro indicador que os índices do País são excessivamente elevados.
(WAISELFISZ, 2015, p. 27)

E não para por aí: o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério
da Saúde, que registra os atendimentos do Sistema Único de Saúde (SUS) no campo das violên-
cias, aponta que, em 2014, foram atendidas 223.796 vítimas de diversos tipos de violência, sendo
que “duas em cada três dessas vítimas de violência (147.691) foram mulheres que precisaram de
atenção médica por violências domésticas, sexuais e/ou outras. Isto é: a cada dia de 2014, 405
mulheres demandaram atendimento em uma unidade de saúde, por alguma violência sofrida”
(WAISELFISZ, 2015, p. 42).
Ao se identificar quem foi o agressor, constata-se que:
• 82% das agressões a crianças do sexo feminino, de <1 a 11 anos de idade, que
demandaram atendimento pelo SUS, partiram dos pais – principalmente da
mãe, que concentra 42,4% das agressões.
• Para as adolescentes, de 12 a 17 anos de idade, o peso das agressões divide-se
entre os pais (26,5%) e os parceiros ou ex-parceiros (23,2%).
• Para as jovens e as adultas, de 18 a 59 anos de idade, o agressor principal é o
parceiro ou ex-parceiro, concentrando a metade do todos os casos registrados.
• Já para as idosas, o principal agressor foi um filho (34,9%).
• No conjunto de todas as faixas, vemos que prepondera largamente a violência
doméstica. Parentes imediatos ou parceiros e ex-parceiros [...] são responsáveis
por 67,2% do total de atendimentos. (WAISELFISZ, 2015, p. 48)

O estudo ainda indica os tipos de violência, apontando que a violência física é mais frequen-
te, a par da psicológica e sexual:
92 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Tabela 3 – Número e estrutura (%) de atendimentos de mulheres pelo SUS, segundo tipo de violência e
etapa do ciclo de vida – Brasil, 2014.

Número %

Adolescente

Adolescente
Tipo de
Criança

Criança
Jovem

Jovem
Adulta

Adulta
Idosa

Idosa
violência

Total

Total
Física 6.020 15.611 30.461 40.653 3.684 96.429 22,0 40,9 58,9 57,1 38,2 48,7

Psicológica 4.242 7.190 12.701 18.968 2.384 45.485 15,5 18,9 24,5 26,6 24,7 23,0

Tortura 402 779 1.177 1.704 202 4.264 1,5 2,0 2,3 2,4 2,1 2,2

Sexual 7.920 9.256 3.183 3.044 227 23.630 29,0 24,3 6,2 4,3 2,4 11,9

Tráfico
20 16 28 30 3 97 0,1 0,0 0,1 0,0 0,0 0,0
humano

Econômica 115 122 477 1.118 601 2.433 0,4 0,3 0,9 1,6 6,2 1,2

Negligência/
7.732 2.577 436 593 1.837 13.175 28,3 6,8 0,8 0,8 19,0 6,7
abandono

Trabalho
140 133 273 0,5 0,3 0,0 0,0 0,0 0,1
infantil

Intervenção
75 94 64 90 29 352 0,3 0,2 0,1 0,1 0,3 0,2
legal

Outras 649 2.359 3.228 4.978 684 11.898 2,4 6,2 6,2 7,0 7,1 6,0

Total 27.315 38.137 51.755 71.178 9.651 198.036 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: WAISELFISZ, 2015 p. 50

Não restam dúvidas da necessidade de combate ao preconceito de gênero e da adoção de


medidas de promoção dos direitos das mulheres.
No âmbito internacional, as Nações Unidas aprovaram, em 1979, a Convenção sobre a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, impulsionada pela proclamação
de 1975 como o Ano Internacional da Mulher, no México (PIOVESAN, 2015).
Já no artigo 1º, a Convenção estabelece o que significa discriminação contra a mulher:
Artigo 1.º Para fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra
a mulher” significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e
que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo
ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na
igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades funda-
mentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer
outro campo.
Flávia Piovesan (2015) ressalta que a Convenção se fundamenta na dupla obrigação de eli-
minar a discriminação e de assegurar a igualdade, tratando o princípio da igualdade tanto como
uma obrigação vinculante, como um objetivo a ser atingido. A autora ressalta, ainda, que, da mes-
ma forma que a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, essa
Convenção também permite a discriminação positiva, ou seja, por meio da adoção de medidas
promocionais, além das repressivas, “com vistas a acelerar o processo de igualização de status entre
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 93

homens e mulheres” (PIOVESAN, 2015, p. 366). Salienta que essas medidas são “compensatórias
para remediar as desvantagens históricas, aliviando as condições resultantes de um passado discri-
minatório” (PIOVESAN, 2015).
O artigo 18 da Convenção cria a sistemática de relatórios como forma de exame da imple-
mentação pelos Estados-partes dos direitos ali assegurados, o que será realizado pelo Comitê sobre
a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (art. 17).
No entanto, Piovesan (2015) ressalta que essa Convenção foi o instrumento internacional
que mais recebeu reservas entre as convenções de direitos humanos, “pois ao menos 23 dos 100
Estados-partes fizeram, no total, 88 reservas substanciais” (2015, p. 367). Destaca a autora que a
maioria das reservas se concentrou na cláusula relativa à igualdade entre homens e mulheres na
família, estando justificada em argumentos de ordem religiosa, cultural ou mesmo legal.
E explica:
Isso reforça o quanto a implementação dos direitos humanos das mulheres está
condicionada à dicotomia entre os espaços público e privado, que, em muitas
sociedades, confina a mulher ao espaço exclusivamente doméstico da casa e da
família. Vale dizer, ainda que se constate, crescentemente, a democratização do
espaço público, com a participação ativa de mulheres nas mais diversas arenas
sociais, resta o desafio da democratização do espaço privado – cabendo pon-
derar que tal democratização é fundamental para a própria democratização do
espaço público. (PIOVESAN, 2015, p. 367)

Por fim, a autora afirma que a Conferência de Direitos Humanos de Viena de 1993 “rea-
firmou a importância do reconhecimento universal do direito à igualdade relativa ao gênero, cla-
mando pela ratificação universal da Convenção” (PIOVESAN, 2015, p. 368), cabendo ao Comitê
continuar a revisar as reservas à Convenção, convidando os Estados-partes a eliminar reservas que
sejam contrárias aos propósitos da convenção.
O Brasil ratificou a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher em 1º de fevereiro de 1984. Também ratificou, em 1995, em âmbito regional, a
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção
de Belém do Pará), editada no âmbito da OEA (Organização dos Estados Americanos) em 1994.
Piovesan ressalta que a Convenção de Belém do Pará é o primeiro tratado internacional a
reconhecer “a violência contra a mulher como um fenômeno generalizado, que alcança, sem dis-
tinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição, um elevado número de mulheres”
(2015, p. 371).
Já no seu preâmbulo, a Convenção destaca que a violência contra a mulher constitui ofensa
contra a dignidade humana e representa manifestação das relações de poder historicamente desi-
guais entre mulheres e homens. A Convenção define que violência contra a mulher é “qualquer ato
ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico
à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (art. 1º).
De acordo com Piovesan (2015), com essa Convenção que surgem valiosas estratégias para
a proteção internacional dos direitos humanos das mulheres, destacando, especificamente, o
94 Direitos humanos e relações étnico-raciais

mecanismo das petições à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, prevista no artigo 12


da Convenção.
Na legislação nacional, além das previsões constitucionais – que asseguram a igualdade de
gênero, tanto como direito fundamental (art. 5º, inciso I) como no âmbito familiar (art. 226, §5º) –,
temos previsões específicas, como as relacionadas:
• à proibição de discriminação no mercado de trabalho (art. 7º, regulamentado pela Lei
n. 9.029/95);
• à proteção da mulher no mercado de trabalho mediante incentivos específicos (art. 7º,
regulamentado pela Lei n. 9.799/1999); e
• ao dever do Estado de coibir a violência no âmbito das relações familiares (art. 226, §8º
da CF/88).
Contudo, até 2006 o Brasil ainda não contava com uma legislação específica a respeito da
violência contra a mulher, tendo sido ensejada a ocorrência de um caso emblemático para a pro-
mulgação da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, também denominada Lei Maria da Penha.
Maria da Penha foi vítima de duas tentativas de homicídio praticadas pelo seu companheiro,
no seu próprio domicílio, em Fortaleza, em 1983, tendo ficado paraplégica aos 38 anos. Após 15
anos, o réu ainda permanecia em liberdade, em razão da interposição de vários recursos da decisão
condenatória proferida pelo Tribunal do Júri. Essa situação foi levada à Comissão Interamericana
de Direitos Humanos (OEA), por meio de petição conjunta das entidades CEJIL-Brasil (Centro
para a Justiça e o Direito Internacional) e CLADEM-Brasil (Comitê Latino-Americano e do Caribe
para a Defesa dos Direitos da Mulher), de modo que, em 2001, a Comissão Interamericana conde-
nou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica (PIOVESAN,
2015, p. 384-385). Piovesan ressalta que essa foi “a primeira vez que um caso de violência domés-
tica leva à condenação de um país, no âmbito do sistema interamericano de proteção dos direitos
humanos” (2015, p. 388).
Cumprindo as recomendações da decisão da Comissão Interamericana, em 31 de outubro
de 2002, houve a prisão do réu.
Esse caso emblemático deu origem à Lei n. 11.340/2006, que criou mecanismos para coibir
a violência doméstica e familiar contra a mulher, estabelecendo medidas de prevenção, assistência
e proteção às mulheres em situação de violência.
Piovesan (2015) destaca sete inovações introduzidas pela Lei Maria da Penha:
• Mudança de paradigma de enfrentamento da violência contra a mulher, pois deixam de
ser crimes de menor potencial ofensivo, tratados pela Lei n. 9.099/95, passando a ser con-
cebidos como uma violação a direitos humanos, sendo expressamente vedada a aplicação
da Lei n. 9.099/95.
• Incorporação da perspectiva de gênero para tratar da violência contra a mulher, exi-
gindo o reconhecimento da especial condição das mulheres, com, por exemplo, a cria-
ção dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e de Delegacias de
Atendimento à Mulher.
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 95

• Incorporação da ótica preventiva, integrada e multidisciplinar, com a criação de medi-


das de prevenção a serem adotadas pela União, estados, Distrito Federal, municípios e
entidades não governamentais. A legislação também prevê medidas multidisciplinares
nas áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação,
além de realçar a importância da promoção e realização de campanhas educativas para a
prevenção da violência doméstica e familiar.
• Fortalecimento da ótica repressiva ao proibir a aplicação de penas de cesta básica ou ou-
tras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique no pagamen-
to isolado de multa.
• Harmonização com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher, de Belém do Pará, criando mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar, ampliando o conceito de violência contra a mulher, compreendendo
tal violência como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (art. 5º da Lei
n. 11340/2006), que ocorra no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em
qualquer relação íntima de afeto.
• Consolidação de um conceito ampliado de família e visibilidade ao direito à livre
orientação sexual, reiterando que não importa a orientação sexual, classe, raça, etnia,
renda, cultura, nível educacional, idade ou religião: todas as mulheres têm o direito
de viver sem violência.
• Estímulo à criação de bancos de dados e estatísticas com informações relevantes, com
a perspectiva de gênero, raça e etnia, indicando a causa, as consequências e a frequên-
cia da violência.
A autora conclui que a adoção da Lei Maria da Penha rompeu o silêncio legislativo do Estado
brasileiro ao reconhecer a violência contra a mulher como um crime, deixando assim de violar as
obrigações jurídicas contraídas quando da ratificação de tratados internacionais.
Outra modificação legislativa adveio da Lei n. 11.106, de 28 de março de 2005, que revogou
o inciso VII do artigo 109 do Código Penal, que previa como causa da extinção da punibilidade o
casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos capítulos I, II e
III do Título VI da Parte Especial daquele Diploma.
Recentemente, foi sancionada a Lei n. 13.104/2015 (Lei do Feminicídio), que altera o artigo
121 do Código Penal (para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de
homicídio) e o art. 1º da Lei n. 8.072/90 (para incluir o feminicídio no rol de crimes hediondos).

4.4 Direitos da população LGBT, enfrentamento e combate


ao preconceito, à discriminação e à violência
Com base na noção do direito à igualdade e na análise das diversas violações sofridas por
minorias sociais em razão da ofensa a esse direito, não se pode deixar de analisar a questão da po-
pulação LGBT, que é a sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros.
96 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Citamos, anteriormente, o posicionamento de André de Carvalho Ramos (2015), que afirma


que, atualmente, o fundamento do direito à igualdade é a universalidade dos direitos humanos,
pois esta reconhece a todos os seres humanos a titularidade desses direitos, tal qual concebe o ar-
tigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948: “Todos os seres humanos nascem
livres e iguais em dignidade e direitos” (ONU, 1948).
Portanto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos veio “inovar a gramática dos di-
reitos humanos, ao introduzir a concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela
universalidade e indivisibilidade desses direitos” (PIOVESAN, 2015, p. 442), sob o pressuposto de
que a condição de ser humano é o único requisito para a titularidade dos mesmos.
O direito à igualdade e a proibição da discriminação foram consagrados não só pela
Declaração Universal de Direitos Humanos, mas também pelo Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Assim,
dispõe o artigo II da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
Artigo II
1.º Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades esta-
belecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor,
sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou
social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
2.º Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, ju-
rídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se
trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito
a qualquer outra limitação de soberania. (ONU, 1948, grifos nossos)

No mesmo sentido, o artigo 2º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966,


prevê que:
Artigo 2.º
1. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar e a garantir
a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua
jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação algu-
ma por motivo de raça, cor, sexo, religião, opinião política ou outra natureza,
origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra
condição. (ONU BRASIL, 1966a, grifos nossos)
E o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também de 1966, no
seu artigo 2º, ressalta:
2. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir que os
direitos nele enunciados e exercerão em discriminação alguma por motivo
de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, ori-
gem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra
situação. (ONU BRASIL, 1966b, grifos nossos)

Embora não haja expressa referência à orientação sexual nesses documentos, há con-
senso de que a não discriminação e a igualdade decorrente da orientação sexual podem ser
extraídas das cláusulas gerais, em especial pelas expressões: ou qualquer outra condição e ou
qualquer outra situação.
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 97

Essa foi a posição adotada pelo Comitê dos Direitos Humanos, em 1994, no caso Toonen
versus Austrália3, quando sustentou que os Estados estão obrigados a proteger os indivíduos da
discriminação baseada em orientação sexual (PIOVESAN, 2015). Também foi a posição adotada
pelo Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturas, pela Recomendação Geral 20, quando
observou que a expressão outra situação, constante do artigo 2º do Pacto, inclui orientação se-
xual e “realçou o dever dos Estados-partes de assegurar que a orientação sexual de uma pessoa
não signifique um obstáculo para a realização dos direitos enunciados no Pacto” (PIOVESAN,
2015, p. 445).
Em 26 de setembro de 2014, o Conselho de Direitos Humanos da ONU adotou uma reso-
lução em relação ao tema da orientação sexual e identidade de gênero “com 25 votos a favor, 14
contra e sete abstenções – na qual expressou ‘grave preocupação’ com atos de violência e discrimi-
nação, em todas as regiões do mundo, cometidos contra indivíduos por causa de sua orientação
sexual e identidade de gênero” (ONU BRASIL, 2014).
Essa resolução, que teve o Brasil como um dos países que apresentou projeto, “pede ao Alto
Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH) que atualize seu relatório sobre as
‘leis e práticas discriminatórias e atos de violência contra indivíduos com base em sua orientação
sexual e gênero identidade’” (ONU BRASIL, 2014). O objetivo da resolução é “‘compartilhar boas
práticas e maneiras de superar a violência e a discriminação’ na aplicação do direito internacio-
nal dos direitos humanos e das normas existentes”, visando “apresentá-lo ao Conselho de Direitos
Humanos durante sua vigésima nona sessão” (ONU BRASIL, 2014).
Ainda no âmbito internacional, Piovesan (2015) cita um vasto repertório jurisprudencial
da Corte Europeia de Direitos Humanos envolvendo a livre orientação sexual. A autora indica
casos relativos à proibição da criminalização de práticas homossexuais consensuais no final da
década de 1980. Depois, passa para o exame de casos de discriminação baseados em orienta-
ção sexual no final da década de 1990, em que cita demissões de oficiais das forças armadas
do Reino Unido em razão das suas orientações sexuais, demonstrando que a Corte Europeia
reconheceu a violação ao direito e ao respeito à vida privada e à proibição de discriminação da
Convenção Europeia.
Em seguida, a autora menciona, ainda, casos relativos a reconhecimentos de direitos de
transexuais no Reino Unido, no âmbito da Corte Europeia de Direitos Humanos, como direito
à mudança de sexo após a realização de cirurgia, tratamento diferenciado na esfera trabalhista,
seguridade social, pensão e casamento. Piovesan (2015) examina, também, os casos submetidos à
Corte em relação à adoção por homossexuais, reconhecendo a possibilidade de adoção por uma
homossexual solteira, no caso de E. B. versus France4.
No âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a autora cita o leading case Atala
Riffo y niñas versus Chile, decidido em 24 de fevereiro de 2012, como sendo o primeiro caso julgado

3 Sobre o caso Toonen versus Austrália, assista ao vídeo da ONU: ONU prepara estudo inédito sobre violações de direitos
humanos da comunidade LGBT. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=NUqPo5Oa7Hs>. Acesso em: 7 jun. 2018.
4 Sobre o caso E. B. versus França, consulte o item 6.2 do material disponível no link: <https://eces.revues.org/1658#
tocto2n13>. Acesso em: 7 jun. 2018.
98 Direitos humanos e relações étnico-raciais

pela corte concernente à violação aos direitos da diversidade sexual. Após intenso litigio judicial
no Chile, a Sra. Atala perdeu a custódia das três filhas para o pai, sob o argumento de que ela não
poderia manter a custódia por conviver com pessoa do mesmo sexo após o divórcio. “No entender
unânime da Corte Interamericana, o Chile violou os artigos 1º, parágrafo 1º e 14 da Convenção
Americana, por afrontar o princípio da igualdade e da proibição da discriminação” (PIOVESAN,
2015, p. 454).
E conclui sobre esse precedente:
À luz de uma interpretação dinâmica e evolutiva compreendendo a
Convenção como um living instrument, ressaltou a Corte que a cláusula do
art. 1.º, parágrafo 1.º, é caraterizada por ser uma cláusula aberta de forma
a incluir a categoria da orientação sexual, impondo aos Estados a obriga-
ção geral de assegurar o exercício de direitos, sem qualquer discriminação.
(PIOVESAN, 2015, p. 454)

Após examinar os casos jurisprudenciais no âmbito da Corte Europeia e Interamericana de


Direitos Humanos, Piovesan ressalta que a evolução histórica do combate à discriminação fundada
em orientação sexual tem como marco a década de 1990 e seus avanços estão centrados na arena
jurisprudencial tanto no âmbito global como regional, o que revela “a ausência de um consenso
normativo global e regional concernente aos direitos da diversidade sexual” (2015, p. 456).
Por outro lado, a autora salienta a importância de se expandir, otimizar e densificar a força
catalisadora da jurisprudência protetiva global e regional, em especial no que toca ao reconheci-
mento de que a igualdade e a proibição da discriminação constituem cláusulas gerais a abarcar o
critério de orientação sexual.
Passemos à análise da questão no Brasil, iniciando pela análise da realidade vivida por essa
minoria social.
No Relatório de Violência Homofóbica no Brasil, relativo ao ano de 2013, a Secretaria
Especial de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos
Humanos, em sua apresentação inicial, relata:
O Brasil vive, atualmente, um movimento contraditório em relação aos direitos
humanos da população de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis –
LGBT. Se por um lado conquistamos direitos historicamente resguardados e
aprofundamos o debate público sobre a existência de outras formas de ser e se
relacionar, por outro acompanhamos o continuo quadro de violência e discri-
minação que a população LGBT vive cotidianamente.
Vemos que ser LGBT, infelizmente, ainda configura uma situação de risco.
Violações de direitos são cometidas com frequência e por motivações diversas.
Porém, frear essas progressões de modo que um LGBT possa sentir cada vez
mais segurança em ser quem é, é um compromisso a ser firmado. Só será possí-
vel fazer algo frente a essa situação por meio de informações que sejam capazes
de traduzir essa realidade. Informações estas que este relatório esperar prover e,
cada vez mais, aprimorar. (BRASIL, 2016, p. 4)
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 99

De acordo com dados colhidos na Ouvidoria do SUS entre 2013 e 2014, dos 40.852 questio-
nários respondidos, 952 pessoas indicaram sua orientação sexual como diferente de heterossexual,
e, destas, a distribuição por identidade sexual foi a seguinte:
Gráfico 3 – Identidade sexual ou identidade de gênero dos usuários da Ouvidoria SUS, 2013-2014.

44,0%

21,0%
18,0%

13,0%

3,0%
1,0%

Gay Outros Bissexual Lésbica Transexual Trans-bi

Fonte: BRASIL/SEDH, 2016, p. 4.

Esse relatório indica que, em 2013, foram registradas 1965 denúncias pelo Disque Direitos
Humanos, “de 3.398 violações relacionadas à população LGBT, envolvendo 1.906 vítimas e 2.461
suspeitos. Em relação a 2012, houve uma queda dos registros ao Disque 100 de 44,1%” (BRASIL,
2016, p. 11).
Gráfico 4 – Denúncias, por mês em 2013

13,1%

11,6%

9,6% 9,9%
9,6

7,7% 7,8%
7,1%
6,8% 6,5%
5,6%
4,7%

jan. fev. mar. abr. mai. jun. jul. ago. set. out. nov. dez.

Fonte: BRASIL, 2016, p. 11.

O mesmo documento ressalta que a


redução das denúncias não necessariamente tenha como única variável explica-
tiva a não ligação. Variáveis como a falta de manutenção de campanhas de di-
vulgação pelos entes federativos e o alcance restrito desse meio de denúncia que
possui dificuldades de acessar municípios de menor porte são causas possíveis
de flutuação na taxa de denúncia. (BRASIL, 2016, p. 10)
100 Direitos humanos e relações étnico-raciais

O perfil das violações demonstra que a maioria decorre de violência psicológica, de discri-
minação ou violência física:
Gráfico 5 – Distribuição das violações, por tipo em 2013
40,1%

36,4%

14,4%

5,5%

3,6%

Violência Discriminação Violência Negligência Outros


Psicológica Física

Fonte: BRASIL, 2016, p. 24.

Conforme o relatório, dentro do tipo violência psicológica se enquadram as humilhações


(36,4%), as hostilizações (32,3%) e as ameaças (16,2%). Já no caso da discriminação, 77,1% decor-
rem de orientação sexual e 15,1% por identidade de gênero. No caso da violência física, 52, 5% do
total das ocorrências reportadas são lesões corporais, seguido de 36,6% de casos de maus tratos.
São citadas também as tentativas de homicídios, totalizando “4,1%, com 28 ocorrências, enquanto
homicídios reportados ao poder público federal contabilizaram 3,8% do total de violências físicas
denunciadas, com 26 ocorrências” (BRASIL, 2016, p. 26).
O Relatório também traz dados retirados de relatos da mídia sobre violações de direitos
humanos contra a população LGBT: “Em 2013, foram divulgadas nos principais canais midiáticos
brasileiros 317 violações contra a população LGBT. Entre as violações noticiadas encontram-se 251
homicídios” (BRASIL, 2016, p. 30).
Analisando esses dados – porém lembrando inicialmente que eles indicam apenas os que são
efetivamente formalizados, havendo inúmeros outros casos de violência que sequer são registrados
e outros tantos que são registrados, mas não como caso de violência homofóbica –, constata-se que
a violência contra a comunidade LGBT é uma realidade a ser combatida.
Passando para um exame de nossa legislação interna, primeiramente vislumbra-se que a
nossa Constituição Federal, embora não contenha expressa referência a não discriminação por
orientação sexual, prevê expressamente o direito à igualdade (art. 5º, caput) e a proibição de qual-
quer forma de discriminação (art. 3º, inciso IV e art. 5º, inciso XLI).
Considerando o princípio da dignidade da pessoa humana e as previsões acima indicadas,
não há como negar que, numa interpretação principiológica e sistêmica, a nossa Constituição
Federal proíbe qualquer conduta discriminatória em razão da orientação sexual, assegurando os
mesmos direitos humanos previstos em seu corpo a toda a comunidade LGBT.
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 101

Não é por outra razão que tanto o Supremo Tribunal Federal (ADIn5 4277 e ADPF6 132)
como o Superior Tribunal de Justiça (Resp7 1.183.348) reconheceram a união homoafetiva como
entidade familiar, atribuindo-lhes direitos decorrentes ou da união estável ou do casamento, de-
pendendo do caso.
A evolução no reconhecimento de direitos aos homossexuais tem sido maior no âmbito ju-
risprudencial, seguindo a ótica internacional. Por exemplo, no que tange à adoção, não há previsão
legislativa reconhecendo essa possibilidade, embora uma interpretação principiológica e sistêmica
permita tal conclusão; mesmo assim, já verificamos posições jurisprudenciais favoráveis a essa
hipótese de adoção (exemplo de jurisprudência no STJ: REsp 1.281.093/SP e REsp 889.852/RS).
Com relação às legislações infraconstitucionais, podemos citar:
• Lei n. 9.612/98 – define, no seu artigo 4º, que as emissoras deverão atender em sua pro-
gramação alguns princípios, entre eles, no inciso IV, o da não discriminação por raça,
sexo, preferências sexuais etc.
• Lei n. 10.2016/2001 – assegura direitos e proteção às pessoas acometidas de transtorno
mental, sem qualquer discriminação, inclusive por orientação sexual.
• Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) – faz referência expressa à orientação sexual no
artigo 2º.
• Decreto 4/2010 – institui o dia 17 de maio como Dia Nacional de Combate à Homofobia.
• Lei n. 12.414/2011 – disciplina a formação e consulta a bancos de dados com informações
de adimplemento, de pessoas naturais ou de pessoas jurídicas, para formação de histórico
de crédito, proibindo, expressamente, no artigo 3º, §3º, inciso II, anotações de informa-
ções sensíveis, assim consideradas aquelas pertinentes à origem social e étnica, à saúde, à
informação genética, à orientação sexual e às convicções políticas, religiosas e filosóficas.
• Resolução n. 12 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos
Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais – visa garantir, pelas instituições e redes
de ensino, o reconhecimento e a adoção do nome social às pessoas cuja identificação civil
não reflita adequadamente sua identidade de gênero, mediante solicitação do interessado.

5 ADI significa Ação Direta de Inconstitucionalidade, “ação que tem por finalidade declarar que uma lei ou parte dela é
inconstitucional, ou seja, contraria a Constituição Federal. A ADI é um dos instrumentos daquilo que os juristas chamam
de “controle concentrado de constitucionalidade das leis”. Em outras palavras, é a “contestação direta da própria nor-
ma em tese” (STF. Glossário jurídico. Disponível em: <www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=A&id=124>.
Acesso em: 5 abr. 2016).
6 ADPF significa Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, “é um tipo de ação, ajuizada exclusivamente
no STF, que tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Nesse caso,
diz-se que a ADPF é uma ação autônoma. Entretanto, esse tipo de ação também pode ter natureza equivalente às ADIs,
podendo questionar a constitucionalidade de uma norma perante a Constituição Federal, mas tal norma deve ser muni-
cipal ou anterior à Constituição vigente (no caso, anterior à de 1988). A ADPF é disciplinada pela Lei Federal 9.882/99”
(STF. Glossário jurídico. Disponível em: <www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=A&id=481>. Acesso em:
5 abr. 2016).
7 Resp significa Recurso Especial, um “recurso ao Superior Tribunal de Justiça, de caráter excepcional, contra deci-
sões de outros tribunais, em única ou última instância, quando houver ofensa à lei federal. Também é usado para pacificar
a jurisprudência, ou seja, para unificar interpretações divergentes feitas por diferentes tribunais sobre o mesmo assunto.
Uma decisão judicial poderá ser objeto de recurso especial quando: 1 – contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes
vigência; 2 – julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal; 3 – der à lei federal interpreta-
ção divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal” (STF. Glossário jurídico. Disponível em: <www.stf.jus.br/portal/
glossario/verVerbete.asp?letra=R&id=206>. Acesso em: 5 abr. 2016).
102 Direitos humanos e relações étnico-raciais

• Resolução do Conselho Federal de Medicina n. 1.955/2010, que dispõe sobre a cirurgia


de transgenitalismo.
As ações do Poder Executivo em relação ao desenvolvimento de políticas públicas de enfren-
tamento ao preconceito e à discriminação contra a comunidade LGBT são de responsabilidade da
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), por meio da Coordenação
Geral de Promoção dos Direitos LGBT e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e
Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT).
Em maio de 2009, a SDH/PR apresentou o Plano Nacional de Promoção da Cidadania
e Direitos Humanos de LGBT, como resultado da 1ª Conferência Nacional LGBT, ocorrida em
Brasília de 5 a 8 de junho de 2008. Esse plano tem como objetivo geral “orientar a construção de
políticas públicas de inclusão social e de combate às desigualdades para a população LGBT, pri-
mando pela intersetorialidade e transversalidade na proposição e implementação dessas políticas”
(BRASIL/SEDH, 2009, p. 10). E como objetivos específicos:
3.2.1. Promover os direitos fundamentais da população LGBT brasileira, de
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à pro-
priedade, dispostos no art. 5.º da Constituição Federal;
3.2.2. Promover os direitos sociais da população LGBT brasileira, especialmente
das pessoas em situação de risco social e exposição à violência;
3.2.3. Combater o estigma e a discriminação por orientação sexual e identidade
de gênero.

Embora existam no Brasil vários projetos de leis que visam regulamentar os direitos da co-
munidade LGBT, o objetivo deste capítulo foi examinar os principais aspectos normativos relacio-
nados ao assunto, demonstrando que, embora obrigatório o reconhecimento da proteção desses
direitos por uma interpretação constitucional, ainda estamos muito aquém do necessário em rela-
ção a medidas legislativas, repressivas e promocionais.

Atividades
1. (ENADE-2015) A paquistanesa Malala Yousafzai, de dezessete anos de idade, ganhou o Prê-
mio Nobel da Paz de 2014, pela defesa do direito de todas as meninas e mulheres de estudar.
“Nossos livros e nossos lápis são nossas melhores armas. A educação é a única solução, a
educação em primeiro lugar”, afirmou a jovem em seu primeiro pronunciamento público na
Assembleia de Jovens, na Organização das Nações Unidas (ONU), após o atentado em que
foi atingida por um tiro ao sair da escola, em 2012. Recuperada, Malala mudou-se para o
Reino Unido, onde estuda e mantém o ativismo em favor da paz e da igualdade de gêneros.

(Disponível em: <http://mdemulher.abril.com.br>. Acesso em: 18 ago. 2015. Adaptado.)


Com base nessas informações, redija um texto dissertativo sobre o significado da premiação
de Malala Yousafzai na luta pela igualdade de gêneros.
Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT 103

2. (ENADE-2006) Sobre a implantação de “políticas afirmativas” relacionadas à adoção de “sis-


temas de cotas” por meio de Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional, leia os
dois textos a seguir.

Texto I
“Representantes do Movimento Negro Socialista entregaram ontem no Congresso um mani-
festo contra a votação dos projetos que propõem o estabelecimento de cotas para negros
em Universidades Federais e a criação do Estatuto de Igualdade Racial. As duas propostas
estão prontas para serem votadas na Câmara, mas o movimento quer que os projetos sejam
retirados da pauta. [...] Entre os integrantes do movimento estava a professora titular de
Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Yvonne Maggie. ‘É preciso fazer o
debate. Por isso ter vindo aqui já foi um avanço’, disse.” (Folha de S.Paulo, Cotidiano, 30 jun.
2006, com adaptação.)
Texto II
“Desde a última quinta-feira, quando um grupo de intelectuais entregou ao Congresso
Nacional um manifesto contrário à adoção de cotas raciais no Brasil, a polêmica foi reacesa.
[...] O diretor executivo da Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro),
frei David Raimundo dos Santos, acredita que hoje o quadro do país é injusto com os negros e
defende a adoção do sistema de cotas.” (Agência Estado-Brasil, 3 jul. 2006.)

Ampliando ainda mais o debate sobre todas essas políticas afirmativas, há também os que ado-
tam a posição de que o critério para cotas nas universidades públicas não deva ser restritivo,
mas que considere também a condição social dos candidatos ao ingresso.
Analisando a polêmica sobre o sistema de cotas “raciais”, identifique, no atual debate social
• um argumento coerente utilizado por aqueles que o criticam;
• um argumento coerente utilizado por aqueles que o defendem.

3. Disserte sobre o direito à orientação sexual e à adoção por homossexuais.


5
Direitos para todos e combate
às violações e ao trabalho escravo

Gisele Echterhoff

No decorrer do estudo sobre os direitos humanos, constatamos que a característica mais


significativa é a universalidade, que demonstra que, na atualidade, o único requisito para ser titular
de tais direitos é a condição de ser humano.
Por outro lado, foi possível também verificar que, entre as medidas previstas para proteger
esses direitos, a legislação internacional e nacional prevê não somente medidas repressivas, mas tam-
bém medidas de promoção social. A partir deste capítulo, vamos analisar justamente essas medidas
de proteção dos direitos humanos e, por fim, passaremos a examinar a questão do trabalho escravo.

5.1 Direitos para todos e políticas públicas


É importante ressaltar, novamente, a condição universal dos direitos humanos, a qual foi
expressa e consagrada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela internacionalização
desses direitos.
Os direitos humanos são universais, ou seja, são garantidos a todos os seres humanos, inde-
pendentemente de qualquer condição ou qualidade, seja ela decorrente de nacionalidade, seja de
raça, orientação sexual, religião etc.
Não se reconhece direitos a uma categoria específica, excluindo outra, como já ocorreu em
outros tempos, quando era autorizada a escravidão ou, mais recentemente, quando os nazistas só
reconheciam como sujeitos de direitos aqueles que tinham origem racial ariana.
Sobre a universalização, Ramos leciona:
A universalidade dos direitos humanos consiste na atribuição desses direitos a
todos os seres humanos, não importando nenhuma outra qualidade adicional,
como nacionalidade, opção política, orientação sexual, credo, entre outras.
A universalidade possui vinculo indissociável com o processo de internacio-
nalização dos direitos humanos. Até a consolidação da internacionalização em
sentido estrito dos direitos humanos, com a formação do Direito Internacional
dos Direitos Humanos, os direitos dependiam da positivação e proteção do
Estado Nacional.
Por isso, eram direitos locais.
A barbárie do totalitarismo nazista gerou a ruptura do paradigma da proteção
nacional dos direitos humanos, cuja insuficiência levou à negação do valor do
ser humano como fonte essencial do Direito. Para o nazismo, a titularidade de
direitos dependia da origem racial ariana. Os demais indivíduos não mereciam
a proteção do Estado. Os direitos humanos, então, não eram universais nem
ofertados a todos.
106 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Os números dessa ruptura dos direitos humanos são significativos: foram en-
viados aproximadamente 18 milhões de indivíduos a campos de concentração,
gerando a morte de 11 milhões deles, sendo 6 milhões de judeus, além de ini-
migos políticos do regime, comunistas, homossexuais, pessoas com deficiência,
ciganos e outros considerados descartáveis pela máquina de ódio nazista. Como
sustenta Lafer, a ruptura trazida pela experiência totalitária do nazismo levou a
inauguração do tudo é possível. Esse “tudo é possível” levou as pessoas a serem
tratadas, de jure e de facto como supérfluas e descartáveis.
Este legado nazista de exclusão exigiu a reconstrução dos direitos humanos após
a Segunda Guerra Mundial, sob uma ótima diferenciada: a ótica da proteção
universal, garantida, subsidiariamente e na falha do Estado, pelo próprio Direito
Internacional dos Direitos Humanos. Ficou evidente para os Estados que orga-
nizaram uma nova sociedade internacional ao redor da ONU – Organização
das Nações Unidas – que a proteção dos direitos humanos não pode ser tida
como parte do domínio reservado de um Estado, pois as falhas na proteção local
tinham possibilitado o terror nazista. A soberania dos Estados foi, lentamente,
sendo reconfigurada, aceitando-se que a proteção de direitos humanos era um
tema internacional e não meramente um tema da jurisdição local. (RAMOS,
2015, p. 89-90)

Foi com a edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, que a univer-
salidade dos direitos humanos se consagrou. “Para a Declaração Universal a condição de pessoa é
o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos” (PIOVESAN, 2015, p. 215-216). Essa
declaração “consolida a afirmação de uma ética universal ao consagrar um consenso sobre valores
de cunho universal a serem seguidos pelos Estados” (PIOVESAN, 2015, p. 215-216), o que é obser-
vado desde o seu preâmbulo, ao afirmar a consagração da dignidade humana como valor universal.
A proteção desses direitos se dá de duas formas: por meio de medidas repressivas, que visam
a combater as violações dos direitos humanos, e/ou por meio de medidas da promoção desses di-
reitos, as chamadas ações afirmativas, que têm como medida garantir o amplo acesso e a efetivação
dos direitos humanos.
A partir deste momento iremos abordar alguns programas de políticas públicas adotados
pelo governo federal, em especial, com o objetivo de gerar a concretização dos direitos humanos.
Mas o que são políticas públicas?
Segundo Eduardo Appio, “as políticas públicas podem ser conceituadas como
instrumentos de execução de programas políticos baseados na intervenção esta-
tal na sociedade com a finalidade de assegurar igualdade de oportunidades aos
cidadãos, tendo por escopo assegurar as condições materiais de uma existência
digna a todos os cidadãos”. Continuando, Appio esclarece que “as políticas pú-
blicas no Brasil se desenvolvem em duas frentes, quais sejam, políticas públicas
de natureza social e de natureza econômica, ambas com um sentido comple-
mentar e uma finalidade comum, qual seja, de impulsionar o desenvolvimento
da Nação, através da melhoria das condições gerais de vida de todos os cida-
dãos”. (apud GONÇALVES, 2018, p. 5)

Podemos, então, partir de um conceito básico de política pública como programa de ação
governamental que visa à concretização dos direitos humanos.
Direitos para todos e combate às violações e ao trabalho escravo 107

Nunca é demais ressaltar que a garantia constitucional ou internacional dos direitos huma-
nos de forma expressa, mas apenas representada pela letra fria da lei, é insuficiente enquanto não
se dá voz e garantia efetiva a esses direitos por meio da ação por parte da administração pública.
De acordo com Ramos (2015), não há como se falar em política pública de promoção dos
direitos humanos sem relembrar o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), adota-
do pela Presidência da República em cumprimento às proposições da Conferência Mundial de
Viena de 1993, organizada pela Organização das Nações Unidas, que promulgou a Declaração e
o Programa de Ação, e estabeleceu, inclusive, o dever dos Estados de adotar planos nacionais de
direitos humanos.
Ramos (2015) ainda menciona que, em 13 de maio de 1996, foi editado pela Presidência da
República o Decreto 1.904, que criou o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que
tinha como meta realizar um diagnóstico da situação desses direitos no país e medidas para a sua
defesa e promoção. Esse PNDH foi denominado de PNDH-1 e estava voltado à garantia de prote-
ção dos direitos civis, com especial foco no combate à impunidade e à violência policial.
O PNDH-2, aprovado pelo Decreto 4.229/2002, enfatizou os direitos sociais em sentido am-
plo e os de grupos vulneráveis, como os direitos dos afrodescendentes, dos povos indígenas, de
orientação sexual, consagrando o multiculturalismo (RAMOS, 2015).
Ramos (2015) menciona também o PNDH-3, que foi aprovado em 2009 e adotou os seguin-
tes eixos orientadores:
1. Interação democrática entre Estado e sociedade civil.
2. Desenvolvimento e direitos humanos.
3. Universalizar direitos em um contexto de desigualdades.
4. Segurança pública, acesso à justiça e combate à violência.
5. Educação e cultura em direitos humanos.
6. Direito à memória e à verdade.

O primeiro eixo, voltado à interação democrática entre Estado e sociedade civil, visa fortale-
cer a democracia participativa, trazendo para a elaboração das políticas públicas a sociedade civil
como um todo. O Programa assim ressalta a importância desse eixo:
Aperfeiçoar a interlocução entre Estado e sociedade civil depende da imple-
mentação de medidas que garantam à sociedade maior participação no acom-
panhamento e monitoramento das políticas públicas em Direitos Humanos,
num diálogo plural e transversal entre os vários atores sociais e deles com o
Estado. (PNDH-3, 2009, p. 27)

No eixo de desenvolvimento e direitos humanos, o objetivo é correlacionar a ideia de desen-


volvimento sustentável com a proteção dos direitos humanos:
O tema “desenvolvimento” tem sido amplamente debatido por ser um concei-
to complexo e multidisciplinar. Não existe modelo único e preestabelecido de
desenvolvimento, porém, pressupõe-se que ele deva garantir a livre determina-
ção dos povos, o reconhecimento de soberania sobre seus recursos e riquezas
108 Direitos humanos e relações étnico-raciais

naturais, respeito pleno à sua identidade cultural e a busca de equidade na dis-


tribuição das riquezas.
[...]
Alcançar o desenvolvimento com direitos humanos é capacitar as pessoas e as
comunidades a exercerem a cidadania, com direitos e responsabilidades. É in-
corporar, nos projetos, a própria população brasileira, por meio de participação
ativa nas decisões que afetam diretamente suas vidas. É assegurar a transparên-
cia dos grandes projetos de desenvolvimento econômico e mecanismos de com-
pensação para a garantia dos Direitos Humanos das populações diretamente
atingidas. (PNDH-3, 2009, p. 41-43)

O terceiro eixo, universalizar direitos em um contexto de desigualdades, tem como principal


objetivo garantir a universalidade dos direitos humanos, assegurando a cidadania plena, comba-
tendo as desigualdades estruturais:
O acesso aos direitos fundamentais continua enfrentando barreiras estruturais,
resquícios de um processo histórico, até secular, marcado pelo genocídio indí-
gena, pela escravidão e por períodos ditatoriais, práticas que continuam a ecoar
em comportamentos, leis e na realidade social.
[...]
Definem-se, neste capítulo, medidas e políticas que devem ser efetivadas para
reconhecer e proteger os indivíduos como iguais na diferença, ou seja, valorizar
a diversidade presente na população brasileira para estabelecer acesso igualitá-
rio aos direitos fundamentais. Trata-se de reforçar os programas de governo e
as resoluções pactuadas nas diversas conferências nacionais temáticas, sempre
sob o foco dos Direitos Humanos, com a preocupação de assegurar o respeito
às diferenças e o combate às desigualdades, para o efetivo acesso aos direitos.
(PNDH-3, 2009, p. 63-64)

O quarto eixo – segurança pública, acesso à justiça e combate à violência – pretende incen-
tivar a democratização e modernização do sistema de segurança pública, garantir o acesso à justiça
com a garantia e a defesa de direitos, além de, por exemplo, garantir os direitos das vítimas de cri-
mes e a proteção das pessoas ameaçadas:
O PNDH-3 apresenta neste eixo, fundamentalmente, propostas para que o
Poder Público se aperfeiçoe no desenvolvimento de políticas públicas de pre-
venção ao crime e à violência, reforçando a noção de acesso universal à Justiça
como direito fundamental, e sustentando que a democracia, os processos de
participação e transparência, aliados ao uso de ferramentas científicas e à profis-
sionalização das instituições e trabalhadores da segurança, assinalam os roteiros
mais promissores para que o Brasil possa avançar no caminho da paz pública.
(PNDH-3, 2009, p. 129-130)

O quinto eixo orientador do PNDH-3 está voltado à educação e cultura em direitos huma-
nos e pretende garantir a promoção da educação em direitos humanos, o acesso à informação para
a consolidação de uma cultura em direitos humanos:
A educação e a cultura em direitos humanos visam à formação de nova men-
talidade coletiva para o exercício da solidariedade, do respeito às diversidades
e da tolerância. Como processo sistemático e multidimensional que orienta
a formação do sujeito de direitos, seu objetivo é combater o preconceito, a
Direitos para todos e combate às violações e ao trabalho escravo 109

discriminação e a violência, promovendo a adoção de novos valores de liberda-


de, justiça e igualdade. (PNDH-3, 2009, p. 185)

O último eixo orientador está voltado ao direito à memória e à verdade, reconhecendo que:
A investigação do passado é fundamental para a construção da cidadania.
Estudar o passado, resgatar sua verdade e trazer à tona seus acontecimentos,
caracterizam forma de transmissão de experiência histórica que é essencial para
a constituição da memória individual e coletiva.
[...]
A história que não é transmitida de geração a geração torna-se esquecida e si-
lenciada. O silêncio e o esquecimento das barbáries geram graves lacunas na ex-
periência coletiva de construção da identidade nacional. Resgatando a memória
e a verdade, o País adquire consciência superior sobre sua própria identidade,
a democracia se fortalece. As tentações totalitárias são neutralizadas e crescem
as possibilidades de erradicação definitiva de alguns resquícios daquele período
sombrio, como a tortura, por exemplo, ainda persistente no cotidiano brasileiro.
(PNDH-3, 2009, p. 207)

O PNDH-3 propõe a atuação conjunta o governo federal, os governos estaduais e munici-


pais e a sociedade civil para a proteção dos direitos humanos. Para sua implementação, foi criado
o Comitê de Acompanhamento e Monitoramento do PNDH-3, integrado por 21 representantes
de órgãos do Poder Executivo, presidido pelo Secretário de Direitos Humanos, que designará os
demais representantes (RAMOS, 2015).
Sobre a importância dos PNDH, disserta Susana Sacavino:
[...] A criação do Programa Nacional de Direitos Humanos inaugurou uma
nova dinâmica na promoção dos direitos humanos no Brasil colocando am-
bos atores, o governo e a sociedade civil respeitando a mesma gramática de
proteção de direitos e articulando esforços comuns. A partir desse momento
o Programa passava a ser um marco referencial para as ações governamentais
e para toda a sociedade na perspectiva da construção de novos espaços de
democracia. (SACAVINO, 2008, p. 4)

Dentre os programas de ação governamental podemos citar a Promoção do Registro Civil de


Nascimento que faz parte da Mobilização Nacional pela Certidão de Nascimento que visa erradicar
o sub-registro civil de nascimento e ampliar o acesso à documentação.
Segundo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, tal mobilização
permite o acesso ao exercício de direitos pela população em situação de pobreza extrema, sendo
que esse esforço conjunto da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/
PR) apresentou resultados significativos: “a média nacional de crianças sem registro de nascimento
caiu mais de 50% em cinco anos. O índice era de 20,9% em 2002, recuou para 12,2% em 2007 e caiu
para 6,6% em 2010. Entre 2009 e 2010 a redução foi de 19,5%, ou seja, uma das maiores da série
histórica” (SDH/PR, s.d.).
Lembrando que a formalização do registro civil é o início do exercício pleno da cidadania,
pois é nele que estão anotados todos os dados importantes da pessoa, como nacionalidade, nome,
filiação, naturalidade etc., e é por meio dele que a pessoa poderá obter os demais documentos civis
indispensáveis ao exercício de direitos civis (como casamento, registro de óbito, registro dos filhos
110 Direitos humanos e relações étnico-raciais

etc.), econômicos (emitir CTPS, abrir conta bancária etc.) e sociais (obter benefícios previdenciá-
rios, receber certificação escolar etc.).
A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República cita, também, programas
diretamente ligados à promoção dos Direitos Humanos e a Saúde Mental, com o aumento no nú-
mero de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de 148 unidades em 1998 para 1.803 em 2012.
Ainda houve o aumento no número de Residências Terapêuticas (SRT) de 85 em 2002 para 779 em
2012. Ainda sobre programas relacionados a Direitos Humanos e Saúde Mental, o site da Secretaria
de Direitos Humanos aponta o programa “De volta para casa”, cujo número de beneficiários au-
mentou de 206 pessoas em 2003 para 4.085 em 2012, sendo este “um auxílio-reabilitação psicos-
social, para assistência, acompanhamento e integração social, fora das unidades hospitalares, com
pessoas acometidas de transtornos mentais, com história de longa internação psiquiátrica (dois
anos ou mais de internação)” (SDH/PR, s.d.).
A Secretaria de Direitos Humanos também menciona os Centros de Referência em
Direitos Humanos, esclarecendo que “atuam como mecanismos de defesa, promoção e acesso
à justiça e estimulam o debate sobre cidadania influenciando positivamente na conquista dos
direitos individuais e coletivos” (SDH/PR, s.d.). A própria Secretaria explica no que consistem
estes Centros de Referência:
Os Centros de Referência em Direitos Humanos deverão ser uma Casa de
Direitos, de convivência entre pessoas. Um espaço físico onde são implementa-
das ações que visam à defesa e a promoção dos direitos humanos.
As equipes envolvidas nos Centros de Referência em Direitos Humanos têm
como ponto de partida, atividades que visam à humanização, à emancipação
do ser humano, à transformação social, construindo realidades mais justas e
igualitárias. (SDH/PR, s.d.)

E indica quais são seus objetivos:


– Mobilizar, em torno de uma unidade física baseada no desenho universal de
acessibilidade, instituições governamentais, não governamentais e particulares
com o objetivo de gerar conhecimento, propor políticas públicas e desenvol-
ver ações de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos de modo a efetivar o
Programa Nacional de Direitos Humanos 3 – PNDH 3.
– Desenvolver capacidades, promovendo o empoderamento pertencimento a
uma comunidade e o exercício da cidadania.
Os Centros de Referência, ao implementar ações que tem como base a cultura
dos direitos humanos, como direitos adquiridos que devem ser assegurados
plenamente na linha de dar condições para que as pessoas, em todas as fases
da sua vida, possam estar resguardadas e desenvolver suas potencialidades
humanas e sociais, pretendem levar as pessoas encontrarem projetos de vida,
visões de mundo, praticar sociabilidades diferentes daquelas apontadas natu-
ralmente pela vida cotidiana. Essas ações devem apontar valores e linguagens
capazes de atrair àqueles que são o público alvo, para uma realidade marcada
pela autoestima, pertencimento, dignidade e valorização individual e coletiva.
(SDH/PR, s.d.)
Direitos para todos e combate às violações e ao trabalho escravo 111

Além de prestar informações sobre direitos e serviços enquanto cidadãos, esses centros também
prestam serviços de atendimento jurídico, social e psicológico, além de capacitar lideranças locais, agen-
tes públicos e estudantes em assuntos relacionados a direitos humanos, dentre outros serviços.
A Secretaria de Direitos Humanos ainda instituiu, por meio do Decreto 5.174/2004, a
Coordenação Geral de Educação em Direitos Humanos, que, dentre as várias ações que desen-
volve, estão:
[...] disseminação dos referenciais do Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos – PNEDH apoio ao funcionamento do Comitê Nacional de Educação
em Direitos Humanos; execução de Projetos de Cooperação Internacional,
com a Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI) e a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO); implanta-
ção de Comitês de Educação em Direitos Humanos nos Estados e Municípios;
apoio às instituições de educação superior para o desenvolvimento de estudos
e pesquisa na área da Educação em Direitos Humanos; implantação de Núcleos
de Estudos e Pesquisas em Educação em Direitos Humanos em Universidades
e apoio para publicações e produção de materiais relativos à Educação em
Direitos Humanos; operacionalização do Prêmio Direitos Humanos e do
Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos. Recentemente, ocupa-se
sobretudo com a implementação das Diretrizes Nacionais para a Educação em
Direitos Humanos e com a efetivação da transversalidade da temática em rela-
ção às demais áreas da SDH/PR. (SDH/PR, s.d.)

Até o momento citamos apenas algumas das políticas públicas relacionadas à promoção dos
direitos humanos; porém, devemos ressaltar outro instrumento de elaboração de políticas públicas,
os chamados conselhos de direitos, também denominados conselhos de políticas públicas ou conse-
lhos gestores de políticas setoriais (ARZABE, 2001, p. 33). Podemos conceituá-los como “órgãos
colegiados, permanentes e deliberativos, incumbidos, de modo geral, da formulação, supervisão e
avaliação das políticas públicas, em âmbito federal, estadual e municipal” (ARZABE, 2001, p. 33).
Esses conselhos contam com a participação de diversos segmentos da sociedade, desde o
próprio poder público até entidades de classe, associações, clubes de serviço etc., os quais “contri-
buem para o diagnóstico das prioridades do ente público nas áreas correspondentes aos direitos
sociais, formulando projetos, encaminhando sugestões e requerimentos ao Poder Executivo no
sentido de que sejam implementados” (GONÇALVES, p. 10).
Patrícia Helena Massa Arzabe afirma que a grande novidade deste instrumento é a gestão
compartilhada, passando do caráter meramente estatal, para a participação da sociedade civil:
Trata-se de fato de uma nova institucionalidade da perspectiva de sua consti-
tuição, no sentido de configurar um arranjo institucional com feições novas,
porque eles não são meramente comunitários são distintos dos fóruns con-
gregadores de entidades e associações da sociedade civil e não são meramente
estatais. E sua novidade é ainda mais significativa pelo caráter compartilhado na
formulação, gestão, controle e avaliação das políticas públicas. Esta participação
com igualdade de poderes é inteiramente nova para o Estado, em especial para
a Administração Pública, habituada à centralização das decisões e pelo uso des-
cabido do argumento do poder discricionário mesmo em matéria de direitos
humanos, especialmente de direitos sociais. (ARZABE, 2001, p. 34)
112 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Cita-se, dentre estes conselhos, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
– Conanda (Lei n. 8.242/91), o Conselho Nacional de Assistência Social (Lei n. 8.742/93), o
Conselho Nacional de Saúde (Lei n. 8.142/90) e o Conselho do Idoso (Lei n. 8.842/94).

5.2 Defesa dos direitos humanos e combate às violações


O combate às violações decorre expressamente da proteção do direito à integridade física e
moral que está consagrado expressamente na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948,
no seu artigo V: “Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano
ou degradante”.
A Convenção Americana de Direitos Humanos também dispõe:
Artigo 5º - Direito à integridade pessoal
1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e
moral.
2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desu-
manos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com
o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.
[...]
6. As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma
e a readaptação social dos condenados.

A par desses dois documentos internacionais, temos também a Convenção contra a Tortura
e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela ONU em 28 de
setembro de 1984, que em janeiro de 2014 já contava com 154 Estados-partes (PIOVESAN, 2015).
A Convenção traz a definição de tortura:
1. Para os fins da presente Convenção, o termo “tortura” designa qualquer ato
pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos inten-
cionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, infor-
mações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha
cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou
outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer
natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário
público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação,
ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura
as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legíti-
mas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.

Flavia Piovesan afirma que configurar tortura como crime grave contra a ordem interna-
cional justifica-se na medida em que sua prática revela a perversidade do Estado, haja vista que
“garante de direitos, passa a ter em seus agentes brutais violadores de direitos” (2015, p. 289-290).
A autora afirma que a definição de tortura envolve três elementos essenciais:
a) a inflição deliberada de dor ou sofrimentos físicos ou mentais; b) a finalidade
do ato (obtenção de informações ou confissões, aplicação de castigo, intimida-
ção ou coação e qualquer outro motivo baseado em discriminação de qualquer
natureza); c) a vinculação do agente ou responsável, direta ou indiretamente,
com o Estado. (PIOVESAN, 2015, p. 289-290)
Direitos para todos e combate às violações e ao trabalho escravo 113

Como sistema de monitoramento, a Convenção estabelece o mecanismo de petições indivi-


duais, os relatórios e as comunicações interestatais, por meio do Comitê contra a Tortura. O Comitê
tem também o poder de iniciar uma investigação própria, quando recebe informações com indica-
dores da prática de tortura de forma sistemática por determinado Estado-parte (PIOVESAN, 2015).
Ramos (2015) afirma que “a Convenção de 1984 é criticada por ter adotado uma definição
estrita de tortura, dando a entender que a tortura não pode ser cometida por omissão e negligên-
cia” (2015, p. 514). Ele cita ainda a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de
9 de dezembro de 1985, que define tortura no artigo 2º:
Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual
são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou
mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como
castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro
fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de
métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua ca-
pacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica.
(RAMOS, 2015, p. 514)

Examinando ambas as convenções, o autor aponta as convergências e divergências entre os


diplomas internacionais:
Convergências:
a. ambas considerando tortura como sofrimentos físicos e mentais;
b. para fins de investigação penal, intimidação, castigo penal.

Divergências:
a. só a Convenção da ONU exige que a tortura seja feita por agente público ou
com sua aquiescência;
b. só a Convenção da ONU exige que o sofrimento seja agudo;
c. a Convenção Interamericana tipifica como tortura o ato de imposição de so-
frimento físico e psíquico com ‘qualquer fim’;
d. a Convenção Interamericana admite que pode ser tortura determinada pena
ou medida preventiva;
e. a Convenção Interamericana criou a ‘figura equiparada’, ou seja, são equipa-
radas a tortura medidas que não infligem dor ou sofrimento, mas diminuem a
capacidade física ou mental. (RAMOS, 2015, p. 514-515)

No âmbito nacional, a Constituição Federal de 1988 trata especificamente da integridade


física e moral no artigo 5º, incisos:
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
[...]
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a
prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo
e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os
executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
[...]
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
114 Direitos humanos e relações étnico-raciais

A matéria é regulamentada pela Lei n. 9.455/97 que define os crimes de tortura no art. 1º:
Art. 1.º Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-
-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de
terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de
violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma
de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
§1.º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de
segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não
previsto em lei ou não resultante de medida legal.
§2.º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evi-
tá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
§3.º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclu-
são de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
§4.º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público;
II - se o crime é cometido contra criança, gestante, deficiente e adolescente;
II - se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência,
adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos;
III - se o crime é cometido mediante sequestro.
§5.º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a
interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.
§6.º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
§7.º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará
o cumprimento da pena em regime fechado.

Ramos (2015) afirma que a Lei n. 9.455/97 é mais próxima da Convenção Interamericana
para Prevenir e Punir a Tortura, pois é mais geral que a Convenção da ONU, que considera essen-
cial ser a tortura cometida por agente público ou com sua aquiescência.
A Lei n. 9.455/97 prevê expressamente que o crime de tortura é inafiançável e insuscetível de
graça e anistia, reproduzindo o artigo 5º, XLIII da Constituição Federal.
Ainda no âmbito da legislação infraconstitucional, devemos citar a Lei n. 9.140/95 que re-
conheceu como mortas as pessoas desaparecidas durante a ditadura militar (1964-1985), conce-
deu indenização àqueles que foram vítimas ou familiares das vítimas da ditadura militar e criou a
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. E a Lei n. 10.559/02 que regulamentou
as reparações econômicas para as pessoas que foram afastadas ou demitidas durante a Ditadura
Militar, por terem se engajado em atividades políticas contrárias ao período. Essa mesma lei criou
a Comissão de Anistia para reunir e julgar os pedidos de reparação (SDH/PR, s.d.).
Direitos para todos e combate às violações e ao trabalho escravo 115

Dentre as políticas públicas voltadas ao combate à tortura, a Secretaria de Direitos Humanos


da Presidência da República “realizou a Campanha Nacional Permanente Contra a Tortura em
parceria com a organização não governamental Movimento Nacional dos Direitos Humanos em
2002”, bem como “criou a Coordenação-Geral de Combate à Tortura (CGCT) por meio da Portaria
22 da Secretaria Especial de Direitos Humanos de 22 de fevereiro de 2005” (SDH/PR, s.d.).
Em 2006, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, em conjunto com
especialistas, representantes da sociedade civil e outros representantes do governo federal publicou
o Plano de Ações Integradas de Prevenção e Combate à Tortura (PAIPCT), que propõe:
(1) a criação, a ampliação e o fortalecimento de comitês estaduais de combate à
tortura, (2) a formação de agentes para o acompanhamento e a detecção pericial
de práticas de tortura nos quadros dos governos federal e estadual e na socieda-
de civil organizada, (3) criação de comitês estaduais, (4) criação de corregedo-
rias específicas do Sistema Policial e do Sistema Penitenciário e (5) ampliação e
aperfeiçoamento das redes e dos serviços de acolhimento a vítimas, entre outras
ações. (BRASIL, 2006)

A Secretaria de Direitos Humanos indica os seguintes dados estatísticos:


Entre fevereiro de 2011 e fevereiro de 2012, o Disque Direitos Humanos (100)
registrou 111.837 denúncias de violações de direitos humanos, sendo 94.394
(84,4%) denúncias de violações de direitos de crianças e adolescentes, 9.935
(8,9%) de idosos, 3.764 (3,4%) de pessoas com deficiência, 1.488 (1,3%) denún-
cias de violações contra a população LGBT, 424 (0,4%) população em situação
de rua e 1.834 (1,6%) relacionadas a Outros Grupos Sociais Vulneráveis.
Ressalta-se que, no módulo “Outros Grupos Sociais Vulneráveis”, registram-se
denúncias de violações contra comunidades tradicionais quilombolas, indí-
genas, violência policial e denúncias de tortura e maus tratos. É importante
pontuar que mais de 50% da demanda é relacionada a denúncias de tortura (no
total, 1.007 denúncias).

Recentemente, em inspeção das prisões no Brasil, o relator da ONU sobre Tortura, Juan
Méndez”, afirmou que a prática está enraizada no Estado e é generalizada nos presídios brasileiros”
(CONECTAS, 2013).
Em 2 de agosto de 2013, entrou em vigor a Lei n. 12.847/2013, que instituiu o Sistema
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criando o Comitê Nacional de Prevenção e Combate
à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, como resultado da assunção
pelo Brasil da responsabilidade perante a ONU de criar mecanismos de prevenção à tortura.
Esse Sistema vincula três órgãos (o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
e o Depen, ambos ligados ao Ministério da Justiça, e o Comitê Nacional de Prevenção e Combate
à Tortura da Secretaria de Direitos Humanos) e cria um novo órgão, o Mecanismo Nacional de
Prevenção e Combate à Tortura. Esse novo órgão é “responsável por fazer visitas a locais de priva-
ção de liberdade, solicitar a instauração de inquéritos, fazer perícias, elaborar relatórios, sistemati-
zar dados e sugerir políticas públicas” (CONECTAS, 2013).
Como uma das condutas mais significativas para combate à tortura no Brasil temos a cria-
ção da Comissão Nacional da Verdade, por meio da Lei 12.528/2011 e instituída em 16 de maio
116 Direitos humanos e relações étnico-raciais

de 2012, a qual tem por finalidade examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos
praticadas no período entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Entre os objetivos da
Comissão Nacional da Verdade, o artigo 3º, inciso II, da Lei n.12.528/2011 indica “promover o es-
clarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação
de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior”.
O relatório final da CNV, entregue em 10 de dezembro de 2014 à Presidente Dilma Rousseff,
indica 434 mortes e desaparecimentos de vítimas; entre estas, 210 são desaparecidas. O texto indica
que esses números decorreram da “prática sistemática de detenções ilegais e arbitrárias e de tortu-
ra, assim como o cometimento de execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres
por agentes do Estado brasileiro” (CANES, 2014).
Conforme a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o combate às vio-
lações também engloba outras questões que não somente o combate à tortura, incluindo, a prote-
ção das vítimas e testemunhas de crimes, a proteção da população em situação de rua e a proteção
aos defensores dos direitos humanos.

5.3 Combate ao trabalho escravo


Embora desde 1888 se possa afirmar que nosso país está livre da escravatura, com a assina-
tura da Lei da Abolição da Escravatura pela Princesa Isabel, não se pode afirmar que a exploração
do trabalho escravo se extinguiu no exato momento da assinatura dessa lei, pois até hoje há notícias
da violação das leis trabalhistas e da necessidade de combate a qualquer forma de escravidão.
De acordo com o Ministério do Trabalho e Previdência Social:
Considera-se trabalho realizado em condição análoga à de escravo a que resulte
das seguintes situações, quer em conjunto, quer isoladamente: a submissão de
trabalhador a trabalhos forçados; a submissão de trabalhador a jornada exausti-
va; a sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho; a restrição da
locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do
cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador,
ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho; a vigi-
lância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto,
com o fim de retê-lo no local de trabalho; a posse de documentos ou objetos
pessoais do trabalhador, por parte do empregador ou seu preposto, com o fim
de retê-lo no local de trabalho. (BRASIL, 2015)

A questão do trabalho escravo é uma realidade evidente da nossa sociedade, e o Disque 100
– Direitos Humanos indica que ainda é uma violação constante nos dias atuais, conforme dados a
seguir apontados:
Direitos para todos e combate às violações e ao trabalho escravo 117

Tabela 1 – Disque 100 – Ano 2011 – Denúncias de trabalho escravo, por grupo vulnerável e violação.

Crianças e Pessoa Pessoas com População em


Violação Outros Total
adolescentes idosa deficiência situação de rua

Aprisionamento
2 2 3 7
do trabalhador

Condições
degradantes de 3 7 8 8 3 29
trabalho

Jornada
excessiva de 10 5 6 8 1 30
trabalho

Outros 6 2 1 8 17

Retenção de
3 8 14 8 2 35
salários

Total 24 24 32 32 6 118

Fonte: BRASIL, 2011/2012.

Tabela 2 – Disque 100 – Ano 2012 – Denúncias de trabalho escravo, por grupo vulnerável e violação

Crianças e Pessoa Pessoas com População em


Violação LGBT Outros Total
adolescentes idosa deficiência situação de rua

Aprisionamento
3 8 6 3 20
do trabalhador

Condições
degradantes de 16 2 17 20 16 1 72
trabalho

Jornada
excessiva de 38 3 17 26 15 1 100
trabalho

Outros 13 4 3 10 30

Retenção de
8 15 20 16 59
salários

Total 78 5 61 75 60 2 281

Fonte: BRASIL, 2011/2012.

Esse é um problema de reconhecido interesse internacional: “em 1926, foi assinado o primei-
ro tratado internacional proibindo a escravidão, firmado pela Liga das Nações Unidas. Em 1956,
foi instituída a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos
e das Instituições e Práticas Análogas à Condição de Escravo” (DELGADO; NOGUEIRA; RIOS,
2008, p. 2.986-2.987).
A OIT (Organização Internacional do Trabalho) também instituiu convenções visando erra-
dicar o trabalho escravo no mundo. Entre elas, citamos a Convenção 29, denominada Convenção
sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório, aprovada na 14ª reunião da Conferência Internacional do
Trabalho (Genebra, 1930), a qual entrou em vigor no plano internacional em 1º de maio de 1932.
118 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Temos, ainda, a Convenção 105, denominada Abolição do Trabalho Escravo, aprovada na


40ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho (Genebra, 1957), a qual entrou em vigor no
plano internacional em 17 de janeiro de 1959.
Em 1998, “a OIT definiu, na 86ª sessão da Conferência Internacional do Trabalho, alguns
princípios e condutas que devem ser adotadas por todos os países, independentemente da ratifi-
cação de suas convenções”, definindo, entre outros, a obrigatoriedade de eliminação de todas as
formas de trabalho forçado e obrigatório (DELGADO; NOGUEIRA; RIOS, 2008, p. 2.987).
Não é diferente a posição da Declaração Universal de Direitos Humanos, em seu artigo 5º,
afirmando que “ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de es-
cravos serão proibidos em todas as suas formas” (ONU, 1948).
No âmbito nacional, partimos da análise das normas constitucionais:
Art. 5.º [...]
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
degradante;
[...]
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as
qualificações profissionais que a lei estabelecer;
[...]
XLVII - não haverá penas:
[...]
c) de trabalhos forçados; (BRASIL, 1988)

Seguindo essa orientação constitucional de proibição de trabalhos forçados, a Consolidação


das Leis do Trabalho também regulamenta a questão, como bem esclarecem Delgado, Nogueira
e Rios:
A Consolidação das Leis do Trabalho também proíbe a fixação de condições
degradantes de trabalho ao estabelecer multa ao empregador que mantiver em-
pregado não registrado (art.47) ou que não identificá-lo por meio da assinatura
da Carteira de Trabalho e Previdência Social (art. 55). Ainda impõe a fixação
de multa quando o empregador infringir qualquer dispositivo concernente ao
salário mínimo (art. 120), à jornada de trabalho (art.75) e às férias anuais remu-
neradas (art. 153). (2008, p. 2.988)

O Código Penal (Lei n. 2.848/1940) também regulamenta a questão, prevendo como crime a
redução de alguém à condição análoga à de escravo (art. 149), além de também criminalizar quem
atentar contra a liberdade de trabalho (art. 197), frustrar direito assegurado por lei trabalhista (art.
203) ou aliciar trabalhadores de um local para outro do território nacional1 (art. 207) (DELGADO;
NOGUEIRA; RIOS, 2008).
A par das previsões de combate ao trabalho escravo, não podemos negar que a nossa legis-
lação reconhece o direito fundamental a um trabalho digno, por uma interpretação do princípio

1 Aliciar, nesse caso, significa seduzir, convencer, atrair trabalhadores para que exerçam labor em outro local do ter-
ritório nacional.
Direitos para todos e combate às violações e ao trabalho escravo 119

da dignidade da pessoa humana (art. 3º, inciso III da CF/88), seja por meio de um exame mais
específico do art. 6º da CF/88, que reconhece o trabalho como direito social.
Nesse sentido está a doutrina de Darléa Carine Palma e Elizabete Geremias:
O trabalho foi adquirindo o status de instrumento de concretização da dignida-
de da pessoa humana ao longo de sua própria história, até atingir, nos tempos
atuais, a natureza de direito fundamental social do cidadão brasileiro, nos ter-
mos do artigo 6º, da Constituição da República.
O princípio da dignidade humana, também insculpido constitucionalmente,
possui, por sua vez, inquestionável força normativa, configurando-se num re-
gulador de todas as relações intersubjetivas disciplinadas pelo Direito, nota-
damente em âmbito trabalhista. Verifica-se, assim, que, sendo a dignidade da
pessoa humana um princípio geral do Direito, deve ser fonte inesgotável à qual
deve recorrer todo legislador e operador do Direito nos processos de elabora-
ção, aplicação e integração do ordenamento jurídico.
No Direito do Trabalho, como corolário dessa norma-princípio fundamental, as
relações jurídico-trabalhistas devem sempre preservar e resguardar a dignida-
de do trabalhador – até porque o trabalho digno é, indiscutivelmente, um dos
principais instrumentos de solidificação da dignidade do ser humano. Todavia,
não são raros, infelizmente, no cotidiano, os vários exemplos de afronta a esse
princípio geral fundamental, como acontece nos casos de trabalho escravo.
O constituinte, ao erigir a dignidade da pessoa humana a fundamento da
República Federativa do Brasil, buscou, na verdade, enfatizar que os pilares do
Estado Democrático de Direito se apoiam nessa noção. Dessa maneira, a dig-
nidade, enquanto bem jurídico inerente à própria condição humana, revela-se
inestimável objeto de tutela do intérprete e aplicador do Direito do Trabalho.
Por isso, o direito ao labor deve ser entendido como o direito ao trabalho em
condições decentes, de forma a assegurar a valorização social do próprio traba-
lho, assim como o efetivo respeito à dignidade da pessoa humana do trabalha-
dor. (2015, p. 238-239)

Portanto, nesse contexto do reconhecimento do direito fundamental ao trabalho digno, da


necessidade de se combater o trabalho escravo, exigível se faz a adoção de medidas para a imple-
mentação e efetividade desse direito, além de medidas repressivas e fiscalizatórias.
A própria Consolidação das Leis do Trabalho regulamenta a atuação do Ministério Público
do Trabalho e Emprego, em sua atuação preventiva e repressiva, fiscalizando o fiel cumprimento
das normas de proteção ao trabalho (art. 626).
A Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República criou, em 31 de julho de
2003, a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), presidida pelo
Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, e
“tem como objetivo coordenar e avaliar a implementação das ações previstas no Plano Nacional
para a Erradicação do Trabalho Escravo”, além de “acompanhar a tramitação de projetos de lei no
Congresso Nacional e avaliar a proposição de estudos e pesquisas sobre o trabalho escravo no país”
(SDH-PR).
A Conatrae produziu o 2º Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (2º
PNETE), lançado em 2008, como atualização do 1º PNETE, aprovado em 2003, sendo referência
nacional para o enfrentamento e a erradicação do trabalho escravo no país.
120 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Darléa Carine Palma e Elizabete Geremias (2015) afirmam que o Plano Nacional para a
Erradicação do Trabalho Escravo tem como objetivo traçar ações gerais de melhoria na estrutura
administrativa do grupo de fiscalização móvel, da ação policial, do Ministério Público Federal e do
Ministério Público do Trabalho, ações específicas de promoção da cidadania e combate à impuni-
dade além de ações específicas de conscientização, capacitação e sensibilização.
O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) foi criado em 1995 e se constitui em um
dos principais instrumentos do governo federal para reprimir o trabalho escravo. É composto por
auditores-fiscais do trabalho, com a presença de membros do Ministério Público do Trabalho, da
Polícia Federal e, em alguns casos, da Polícia Rodoviária Federal.
Maria da Conceição Maia Pereira afirma que essa “composição interinstitucional objetiva
dificultar ingerências e corrupção, uma vez que os integrantes dos diversos órgãos sempre atuam
juntos”. Aduz, também, que “com essa composição, os GEFMs reúnem as competências necessárias
para que a fiscalização realizada acarrete para o infrator consequências nas esferas administrativa,
trabalhista e criminal” (PEREIRA, 2015, p. 564).
O Ministério do Trabalho e Emprego e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República, por intermédio da Conatrae e por meio da Portaria Interministerial 2, de 31 de
maio de 2015 (que revogou a Portaria Interministerial 2, de 12 de maio de 2011), criaram o
Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de es-
cravo, conhecida como Lista Suja, disciplinando os meios de inclusão e de exclusão dos nomes
dos infratores no Cadastro. Seguindo esse parâmetro, o ministro da Integração Nacional, por
meio da Portaria 1.150/2003, no seu artigo 2º, recomenda aos agentes financeiros que se abs-
tenham de conceder financiamentos para as pessoas físicas e jurídicas que venham a figurar
no Cadastro de Empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de
escravo (PEREIRA, 2015).
Outra ação prevista no Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (PNETE)
era a busca pela aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 57A/99, pelo Senado
Federal, conhecida como PEC do Trabalho Escravo, que previa “a expropriação de todas as pro-
priedades onde forem encontrados trabalhadores reduzidos à condição análoga à de escravo”
(BRASIL, 2016). Essa emenda foi acolhida após mais de dez anos de tramitação:
Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde fo-
rem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de tra-
balho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária
e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário
e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o
disposto no art. 5.º (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 81, de 2014)
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em de-
corrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de
trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação
específica, na forma da lei. (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 81,
de 2014)
Direitos para todos e combate às violações e ao trabalho escravo 121

Segundo Staffen e Blau (2015), apesar da importância da Emenda Constitucional para fins
de combate ao trabalho escravo, até o momento não houve regulamentação da medida, o que de-
monstra desinteresse na efetivação da medida.

Atividades
1. Disserte sobre a Comissão Nacional da Verdade e seu combate às violações.

2. O dia 28 de janeiro, no Brasil, é conhecido como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho


Escravo. Essa data foi escolhida em homenagem aos auditores fiscais do trabalho Eratóstenes
de Almeida, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e ao motorista Ailton Pereira de
Oliveira, assassinados quando investigavam denúncias de trabalho escravo em Unaí (MG).
Disserte sobre as possíveis causas para a existência e a permanência do trabalho análogo à
condição de escravo no Brasil.

3. Disserte sobre os Conselhos de Direitos ou Conselhos de Políticas Públicas.


6
Direitos humanos e sua
correlação com a bioética

Gisele Echterhoff

Neste capítulo, examinaremos os chamados direitos humanos de quarta geração, ou seja,


aqueles decorrentes das inovações das ciências biomédicas “referentes aos efeitos cada vez mais
traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada
indivíduo” (BOBBIO, 1992, p. 6).
Iniciaremos trazendo conceitos elementares, como biotecnologia, bioética e biodireito, cor-
relacionando-os e demonstrando sua importância em relação ao assunto. Entre os diversos direitos
que podem ser incluídos nessas categorias, vamos analisar aqueles que dizem respeito à reprodu-
ção artificial e, também, os vinculados ao código genético humano.

6.1 Conceitos elementares: biotecnologia, bioética e biodireito


As grandes inovações decorrentes da revolução das ciências biomédicas – entre elas, mapea-
mento genético1, terapia gênica2, clonagem humana, modernas técnicas de procriação artificial,
possibilidade de utilização de células embrionárias na cura de doenças graves (mal de Parkinson)
etc. – geraram a consolidação de novos direitos humanos: os direitos humanos de quarta geração
(ECHTERHOFF, 2007)3.
Os direitos da quarta geração têm como tema a proteção do ser humano diante dessas inova-
ções decorrentes das ciências biomédicas. Preocupam-se com os limites do uso dessas “novidades”
em prol do ser humano, evitando assim a violação de seus direitos.
Sobre tais direitos, Samuel Antonio Merbach de Oliveira leciona (2010b, p. 21-22):
A quarta geração dos direitos do homem se refere à manipulação genética,
à biotecnologia e à bioengenharia, abordando reflexões acerca da vida e da
morte, pressupondo sempre um debate ético prévio. Através dessa geração
se determinam os alicerces jurídicos dos avanços tecnológicos e seus limi-
tes constitucionais.
Devido ao grande desenvolvimento da biotecnologia o direito foi surpreendi-
do por questões até aquele momento não conhecidas, tais como: quais são os

1 A genética é a ciência que estuda os genes em todos os níveis, ou seja, “estuda a hereditariedade e os mecanismos
e leis da transmissão dos caracteres dos progenitores aos descendentes, bem como a formação e evolução das espé-
cies animais e vegetais” (BARBAS, 1998, p. 17).
2 A terapia gênica é uma nova forma de tratamento das doenças de herança genética, na qual, por meio de inter-
venções no DNA do paciente, ou seja, especificamente nas causas das doenças genéticas, pode-se buscar a sua cura
(SIQUEIRA; DINIZ, 2003, p. 226).
3 “Pela teoria geracional dos direitos do homem, se estuda como os direitos do homem pela análise cronológica
passaram a integrar os ordenamentos jurídicos dos diversos Estados, isto é, como acontece a positivação dos direitos
do homem, a priori naturais universais, em direito positivo (fases dos direitos do homem), à medida em que foram sendo
reconhecidos como essenciais a uma sociedade democrática” (OLIVEIRA, 2010b, p. 17).
124 Direitos humanos e relações étnico-raciais

limites à intervenção do homem na manipulação da vida e do patrimônio ge-


nético do ser humano? Como o direito regula a utilização das novas tecnologias
genéticas respeitando os valores bioéticos?
Diante dos avanços da revolução tecnológica e da nova ordem mundial, a quar-
ta geração vem suscitando controvérsias em relação aos direitos e obrigações
decorrentes da manipulação genética ou do controle de dados informatizados
que muitas vezes podem ser acessados via internet de qualquer lugar do mun-
do. Também denominados “direitos difusos”, colocam em evidência os direitos
concernentes à evolução biogenética e tecnológica.

Como forma de exemplificar a questão dos direitos humanos relacionadas ao acesso e à


manipulação das informações genéticas, é evidente que o mau uso dessas informações pode lesio-
nar os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à privacidade, à intimidade, entre outros, inclusive
gerando uma nova forma de discriminação que tenha como fundamento as informações genéticas
(ECHTERHOFF, 2010).
Maria Celeste Cordeiro Leite Santos, analisando as possíveis ofensas aos direitos hu-
manos em razão do mau uso das informações genéticas, explica que bens de caráter coletivo
também são alvos:
Perfilam-se outros de caráter coletivo: a inalterabilidade e intangibilidade do
patrimônio genético do ser humano, para garantir a própria integridade e diver-
sidade da espécie humana; a identidade genética e irrepetibilidade característica
do ser humano, como garantia de sua individualidade; a dupla dotação genética,
de linha genética masculina e feminina; a sobrevivência da espécie humana en-
quanto tal. Além destes, os bens jurídicos de natureza difusa (interesses difusos)
se referem à sociedade como um todo, de forma que os indivíduos não têm
disponibilidade sem afetar a coletividade. Para Giampaolo Poggio Smanio, esses
bens “trazem uma conflituosidade social que contrapõe diversos grupos dentro
da sociedade, como na proteção ao meio ambiente, que contrapõe, por exemplo,
os interesses econômicos industriais e o interesse na preservação ambiental”, ou
na proteção da saúde pública enquanto referente a produção de remédios [...].
É a manutenção do equilíbrio ecológico da própria espécie humana. (SANTOS,
2001, p. 318)

Outro exemplo de violação de direitos humanos vinculados às inovações das ciências bio-
médicas pode ser indicado pela restrição ao direito à reprodução humana assistida, com a negativa
do Estado de promover e garantir às pessoas de baixa renda o acesso às novas técnicas de reprodu-
ção humana assistida.
Constatamos, por meio desses exemplos, que com a concepção dessa quarta geração de di-
reitos humanos não se pretende apenas a proteção de direitos individuais, mas, acima de tudo, a
proteção da coletividade, dos interesses e valores da humanidade, tendo por base o reconhecimen-
to de que o homem é membro de uma espécie (OLIVEIRA, 2010b).
Mas para entendermos com profundidade essa questão, é indispensável contextualizar o
tema, identificando o que é a biotecnologia e quais são os principais avanços advindos dessas ino-
vações, bem como demonstrar a necessidade de se estabelecer limites éticos e jurídicos a essas
novidades fundamentando-se na bioética e no biodireito.
Direitos humanos e sua correlação com a bioética 125

Comecemos conceituando biotecnologia como:


conjunto de técnicas e processos biológicos que possibilitam a utilização da
matéria viva para degradar, sintetizar e produzir outros materiais. Engloba a ela-
boração das próprias técnicas, processos e ferramentas as espécies, via seleção
natural. (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 1997. p. 251)

De acordo com a ONU, “Biotecnologia significa, qualquer aplicação tecnológica que utilize
sistemas biológicos, organismos vivos, ou seus derivados, para fabricar ou modificar produtos ou
processos para utilização específica.” (1992, art. 2).
É com o trabalho da biotecnologia que a humanidade está se defrontando com novidades
como:
a) alimentos transgênicos;
b) tratamentos médicos decorrentes do uso dessas tecnologias, como a questão das
células-tronco;
c)
conhecimentos e possíveis tratamentos relacionados ao genoma humano e à
terapia genética;
d) desenvolvimento de organismos vivos e geneticamente modificados para tratamento da água;
e) desenvolvimento de novos medicamentos e novas vacinas;
f) demais avanços na área de biomedicina, como o aperfeiçoamento das técnicas tradicio-
nais da reprodução humana, entre outros.
No entanto, essas novas tecnologias trazem em seu âmago inúmeras possibilidades de viola-
ção dos direitos humanos, como:
a) uso indiscriminado de informações genéticas;
b) alterações no patrimônio genético que afetem de forma imprevisível as gerações futuras;
c) violações decorrentes de técnicas como clonagem humana, inovações no campo da repro-
dução humana assistida, entre outras.
Por isso, é indispensável uma rediscussão dos valores éticos da sociedade, a fim de estabe-
lecer limites para os progressos das ciências biotecnológicas, sempre tendo em vista seu objetivo
maior, que é a proteção do ser humano.
Quando se constatou que a ética médica ou profissional não era mais suficiente para exami-
nar esses avanços e estabelecer limites éticos para seu uso, surgiu a bioética.
O termo bioética, conforme Elton Dias Xavier (2000), surgiu na década de 1970, em um tra-
balho do oncologista Van Rensselder Potter, da universidade americana de Wisconsin, intitulado
Bioética: uma ponte para o futuro. Sobre a importância da contribuição de Van Rensselder Potter,
pode-se afirmar:
Potter diagnosticou com seus escritos o perigo que representa para a sobre-
vivência de todo o ecossistema a separação entre duas áreas do saber, o saber
científico e o saber humanista. A clara distinção entre os valores éticos (ethical
values), que fazem parte da cultura humanista em sentido lato, e os fatos bio-
lógicos (biological facts) está na raiz daquele processo científico-tecnológico
126 Direitos humanos e relações étnico-raciais

indiscriminado que, segundo Potter, põe em perigo a humanidade e a própria


sobrevivência da vida sobre a terra. O único caminho possível de solução para
essa iminente catástrofe é a constituição de uma ‘ponte’ entre as duas culturas, a
científica e a humanístico-moral. (SGRECCIA, 2002, p. 24-25)

Com essas considerações, podemos afirmar que bioética é o ramo da ética filosófica que se
ocupa do “estudo das condições de possibilidade dos valores, normas e princípios, que procuram
ordenar o avanço científico e tecnológico” (BARRETO, 1998).
Léo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine afirmam que a bioética “é um neologismo
derivado das palavras gregas bios (vida) e ethike (ética)” (2000, p. 17). Definem-na como “o estudo
sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão, conduta e normas morais – das ciên-
cias da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto
interdisciplinar” (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2000, p. 17).
Portanto, com a bioética4 se pretende estabelecer uma discussão ética em torno das ino-
vações decorrentes das ciências biotecnológicas, impondo limites éticos e morais ao uso desses
conhecimentos, visando proteger direitos como a vida, integridade física, intimidade, privacidade,
igualdade, entre outros.
Embora a função da bioética seja importante para se estabelecerem limites éticos e morais
em relação às novidades decorrentes das ciências biotecnológicas, diante da sua condição de ciên-
cia do dever moral, é desprovida de medidas coercitivas que se fazem necessárias em algumas cir-
cunstâncias nas quais apenas valores morais não são suficientes, sendo indispensável a intervenção
de mecanismos estatais para que sejam cumpridos esses valores.
Surge, então, a função do biodireito, que visa estabelecer limites fundados não somente em va-
lores éticos e morais, mas sobretudo baseados em normas jurídicas, com poder coercitivo e punitivo.
Jussara Maria Leal de Meirelles afirma que a norma moral é insuficiente porque somente
opera no plano interno da consciência, sendo indispensável, assim, a existência e atuação de nor-
mas jurídicas “não somente éticas, pois somente o caráter coercitivo daquelas impedirá ao cientí-
fico sucumbir à tentação experimentalista e à pressão de interesses econômicos” (2001, p. 90-91).
Conclui a autora que o objeto do biodireito “é a fundamentação e pertinência das normas jurídicas,
de maneira a adequá-las aos princípios e valores relativos à vida e à dignidade humanas trazidos
pela ética.” Isso equivaleria a afirmar a “existência do Biodireito como novo ramo do conhecimento
e sua adequação com a Bioética” (MEIRELLES, 2001, p. 96).
Portanto, está no campo do biodireito a obrigatoriedade de respeito aos direitos humanos
quando do estudo e da aplicação dos avanços das ciências biomédicas ou biotecnológicas. Por isso,
Renata Furtado de Barros afirma que o biodireito busca um equilíbrio entre as necessidades huma-
nas advindas do progresso científico e os direitos humanos correlatos. E afirma:

4 Das considerações acima perpetradas, já se dimensionam os princípios da bioética: o da autonomia (“ou do res-
peito às pessoas por suas próprias opiniões e escolhas, segundo valores e crenças pessoais”), o da beneficência (“que
se traduz na obrigação de não causar dano e de extremar os benefícios e minimizar os riscos”), o da justiça (“ou impar-
cialidade na distribuição dos riscos e dos benefícios, não podendo uma pessoa ser tratada de maneira distinta de outra,
salvo haja entre ambas alguma diferença relevante”) e o da não maleficência (“segundo o qual não se deve causar mal a
outro”) (BARBOSA, 2000 apud ECHTERHOFF, 2010, p. 100).
Direitos humanos e sua correlação com a bioética 127

Os problemas éticos oriundos das pesquisas científicas, que se utilizam da vida


humana, serão solucionados em cada caso prático, bastando haver, deste modo,
uma análise de como melhor viabilizar a obediência dos direitos humanos, na
prática médica e científica. (BARROS, 2011, p. 12)

Descobertas a função e a importância do papel desempenhado pela bioética e pelo biodirei-


to no campo dessas inovações biotecnológicas, é necessário observar a existência de um princípio
comum a ambas disciplinas e de igual importância para os direitos humanos: o princípio da digni-
dade da pessoa humana.
Anteriormente já havíamos afirmado que o princípio da dignidade da pessoa humana é o
fundamento axiológico dos direitos humanos, sendo que, seja doutrinariamente, seja normativa-
mente, são extraídos, em essência, da noção de dignidade da pessoa humana, das exigências consi-
deradas imprescindíveis e inescusáveis a uma vida digna e da proteção do ser humano.
Não é por outra razão que há consenso doutrinário de que esse princípio é o limite ético-ju-
rídico essencial dos avanços advindos das ciências biotecnológicas. Sem dúvida, “quaisquer aná-
lises dos diversos aspectos jurídicos dos avanços biotecnológicos deve ser efetivada com embasa-
mento ético-jurídico no princípio da dignidade da pessoa humana” (ECHTERHOFF, 2007, p. 114).
Ausente legislação específica, seja no âmbito internacional, seja no exame da legislação na-
cional, “obriga que toda investigação ou análise no campo das Biomedicinas sejam feitas sob o
alicerce ético-jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana, conclamando a sua ampla
normatividade” (ECHTERHOFF, 2007, p. 114).
É evidente que um exame detalhado dos avanços das ciências biomédicas ou biotecnoló-
gicas mostra as grandes possibilidades de ofensa aos direitos humanos; porém, não é possível se
aprofundar em todas as suas nuances neste trabalho, razão pela qual se optou por dois temas de
extrema relevância:
a) procriação artificial e alguns aspectos polêmicos;
b) código genético humano e possível uso indiscriminado das informações genéticas.

6.2 Reprodução artificial e alguns aspectos polêmicos


Quando se falam em técnicas de reprodução humana assistida e em direitos humanos, várias
questões podem ser levantadas, desde o reconhecimento do direito à reprodução como direito hu-
mano, passando pelas questões relacionadas ao direito à identidade genética e à filiação, o direito
de herança no caso de uso das técnicas após a morte do genitor e até mesmo por temas vinculados
à coisificação do ser humano, ou seja, pela busca da procriação como realização de um sonho, in-
dependentemente do reconhecimento da filiação como uma relação de afeto e busca do desenvol-
vimento da personalidade de todos os indivíduos vinculados, em especial do filho. Evidentemente,
não poderemos examinar cada um dos temas relacionados às técnicas de reprodução humana as-
sistida, pois a aula vai se restringir ao direito à reprodução como direito humano.
O surgimento das técnicas de reprodução humana assistida decorreu da necessidade de dar
um alento a casais ou pessoas com problemas reprodutivos. Entre as técnicas atualmente existen-
tes, as mais utilizadas são:
128 Direitos humanos e relações étnico-raciais

• Inseminação artificial (I.A.): expressão proposta pelos franceses Donay, Devraigne e


Seguy que designa a técnica que consiste em ser inseminada a mulher com esperma inje-
tado pelo médico, na cavidade uterina ou no canal cervical, no período em que óvulo se
encontra suficientemente maduro para ser fecundado (MEIRELLES, 2004).
• Fertilização in vitro (F.I.V.): consiste na obtenção de óvulos que são fertilizados em la-
boratório, sendo os embriões posteriormente transferidos diretamente para a cavidade
uterina (MEIRELLES, 2004).
Tais técnicas podem ser chamadas de heterólogas, quando se utiliza o esperma de um doador
fértil (geralmente provindo de bancos de sêmen), ou homólogas, quando a técnica é a realizada com
sêmen do companheiro.
Essas técnicas têm um custo financeiro altíssimo, o que impede que pessoas de baixa
renda tenham acesso a elas, visto que não são asseguradas pelo Sistema Único de Saúde (SUS)5.
Porém, será que devemos negar o direito de esses homens e essas mulheres alcançarem a
realização do sonho de se tornarem pais? Será que é possível reconhecer a existência de um direito
à reprodução humana, visando assim assegurar a essas pessoas o atendimento de suas necessidades
de saúde reprodutiva por parte do Estado? Essas são as questões a serem analisadas na sequência,
com base nas legislações internacional e nacional.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece a liberdade de reprodução como
um direito humano, protegendo a família como elemento natural e fundamental da sociedade (art.
16) e, em seguida, dispondo:
Art. 25
[...].
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais.
Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma
proteção social.

José Leocádio da Cruz leciona sobre o assunto:


A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a atual concepção
dos direitos reprodutivos não se limita à simples proteção da reprodução, mas
defende um conjunto de direitos individuais e sociais, que devem interagir em
busca do pleno exercício da sexualidade e reprodução humana. Essa nova con-
cepção tem como ponto de partida uma perspectiva de igualdade e equidade
nas relações pessoais e sociais e a ampliação das obrigações do Estado quanto à
implementação, promoção e efetivação desses direitos. (2008, p. 44)

Ainda no âmbito internacional, Piovesan (2015) cita a Conferência do Cairo sobre População
e Desenvolvimento, de 1994, que estabeleceu relevantes princípios éticos concernentes aos direitos
reprodutivos, reconhecendo-os como direitos humanos, “concebendo o direito a ter controle sobre

5 “Em virtude dos altos custos dos tratamentos de reprodução assistida, o Ministério da Saúde instituiu, por meio da
Portaria 426/GM, de 22 de março de 2005, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Atenção
Integral em Reprodução Humana Assistida, assegurando o acesso a todas as pessoas aos serviços de atenção básica,
média complexidade e alta complexidade relacionadas à reprodução assistida, inclusive fertilização in vitro e insemina-
ção artificial. No entanto, a referida Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida foi extinta
pela Portaria MS 2.048, de 3 de setembro de 2009, deixando aparentemente desprotegidos casais de baixa renda inca-
pazes de arcar com os custos do tratamento de reprodução assistida.” (RESENDE; MEIRELLES, 2015, p. 3).
Direitos humanos e sua correlação com a bioética 129

as questões relativas à sexualidade e à saúde sexual e reprodutiva, assim como a decisão livre de
coerção, discriminação e violência, como um direito fundamental” (PIOVESAN, 2015, p. 411).
José Leocádio da Cruz (2008) afirma que a Conferência também reconheceu que o Estado
deve proporcionar a todo indivíduo a oportunidade de procriar, a partir da informação quanto à
saúde reprodutiva, aos meios de decisão e métodos disponibilizados pela ciência para que se possa
satisfazer essa necessidade humana.
Assim, dispõe o Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento que:
7.2 A saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e
social e não simples a ausência de doença ou enfermidade, em todas as maté-
rias concernentes ao sistema reprodutivo e a suas funções e processos. A saúde
reprodutiva implica, por conseguinte, que a pessoa possa ter uma vida sexual
segura e satisfatória, tenha a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir
sobre quando, e quantas vezes o deve fazer. Implícito nesta última condição está
o direito de homens e mulheres de serem informados e de ter acesso a métodos
eficientes, seguros, permissíveis e aceitáveis de planejamento familiar de sua
escolha, assim como outros métodos, de sua escolha, de controle da fecundi-
dade que não sejam contrários à lei, e o direito de acesso a serviços apropriados
de saúde que dêem à mulher condições de passar, com segurança, pela gestação e
pelo parto e proporcionem aos casais a melhor chance de ter um filho sadio. De
conformidade com definição acima de saúde reprodutiva, a assistência à saúde
reprodutiva é definida como a constelação de métodos, técnicas e serviços que
contribuem para a saúde e o bem-estar reprodutivo, prevenindo e resolvendo pro-
blemas de saúde reprodutiva. Isto inclui também a saúde sexual cuja finalidade
é a intensificação das relações vitais e pessoais e não simples aconselhamento e
assistência relativos à reprodução e a doenças sexualmente transmissíveis.
[...]
7.6 Todos os países devem o mais cedo possível e não depois de 2015, envidar
esforços para tornar acessível, por meio de um sistema primário de assistência à
saúde, a saúde reprodutiva a todos os indivíduos em idades adequadas. (CRUZ,
1994, grifos nossos)

Augusto César Leite de Resende e Jussara Maria Leal de Meirelles ressaltam que essa
Conferência foi particularmente importante no que tange aos direitos reprodutivos, pois nos ter-
mos do Princípio 8:
Toda pessoa tem direito ao gozo do mais alto padrão possível de saúde física e
mental, motivo pelo qual os estados devem tomar todas as devidas providências
para assegurar, na base da igualdade de homens e mulheres, o acesso universal
aos serviços de assistência médica, inclusive os relacionados com a saúde repro-
dutiva, que inclui planejamento familiar e saúde sexual. (2015, p. 15)

De acordo com Piovesan, a Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, que deu ense-
jo à Declaração de Beijing, reitera os conceitos de saúde reprodutiva e direitos reprodutivos da
Conferência de Cairo, afirmando que “os direitos sexuais e reprodutivos constituem em parte ina-
lienação dos direitos humanos universais e indivisíveis” (PIOVESAN, 2015, p. 416).
Examinando as plataformas de ação dessas duas conferências, Piovesan afirma que os direi-
tos sexuais compreendem:
130 Direitos humanos e relações étnico-raciais

a) o direito a decidir livre e responsavelmente sobre sua sexualidade; b) o di-


reito a ter controle sobre seu próprio corpo; c) o direito a viver livremente sua
orientação sexual, sem sofrer discriminação, coação ou violência; d) o direito
a receber educação sexual; e) o direito à privacidade; f) o direito de acesso às
informações aos meios para desfrutar do mais alto padrão de saúde sexual; e
g) o direito a fruir do progresso cientifico e a consentir livremente à experi-
mentação, com os devidos cuidados éticos recomendados pelos instrumentos
internacionais. (2015, p. 417)

No âmbito nacional, em uma análise sistemática da Constituição Federal de 1988 se constata


o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos, seja a partir da consagração do princípio da
dignidade da pessoa humana (art. 3º, inciso III), seja num exame dos direitos e garantias funda-
mentais. O artigo 5º, caput, consagra o direito à vida digna, e os incisos II e III, o direito à integri-
dade física e psicológica (OLIVEIRA, 2010a).
No que tange às relações familiares, é possível citarmos o artigo 5º, inciso I, do direito à
igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, em geral, e o artigo 226, na sociedade
conjugal, em particular. Indicam-se também o direito à igualdade entre os filhos (art. 227, parágra-
fo 6º) e o direito ao reconhecimento de várias formas de família (art. 226, parágrafos 3º e 4º), além
do artigo 6º, que reconhece o direito à proteção da maternidade na esfera da seguridade social e do
trabalho e, em conjunto, o disposto no artigo 196, que prevê o direito à saúde com acesso universal
e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (OLIVEIRA, 2010a).
Não se pode esquecer do disposto no artigo 226, parágrafo 7º, que assegura o direito ao
planejamento familiar, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade
responsável, sendo expressamente referido como “livre decisão do casal, competindo ao Estado
propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma
coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas” (OLIVEIRA, 2010a, p. 8).
Na esfera da legislação infraconstitucional, cita-se a Lei n. 9.263/96, que regulamenta o dis-
posto no artigo 226, §7º da CF em relação ao planejamento familiar e estabelece as ações estatais a
serem praticadas para a efetividade do direito à saúde reprodutiva (OLIVEIRA, 2010a).
Via de consequência, inegavelmente se reconhece a consagração de um direito à reprodução
humana assistida, que deve ser assegurado pelo Poder Público,
que deverá disponibilizar, por meio do Sistema Único de Saúde, materiais e pro-
cedimentos necessários para o tratamento da infertilidade, inclusive o acesso às
técnicas de reprodução assistida com a finalidade precípua de dar plena efeti-
vidade ao referido direito fundamental. (RESENDE; MEIRELLES, 2015, p. 24)

Outra não é a lição de Maria Claudia Crespo Brauner:


A incorporação dos direitos sexuais e reprodutivos no elenco dos direitos hu-
manos, assegura às pessoas o direito ao planejamento familiar, incluindo-se o
recurso a toda descoberta científica que possa via a garantir o tratamento de
patologias vinculadas à função reprodutiva, desde que considerados seguros
e não causadores de riscos aos usuários e usuárias. É nessa perspectiva que se
debruçará um olhar específico sobre a concepção e o direito de gerar. (apud
OLIVEIRA, 2010a, p. 8)
Direitos humanos e sua correlação com a bioética 131

E identificando na Constituição Federal de 1988 o fundamento legal no artigo 5º, caput,


(direito à vida), nos artigos. 196 a 198 (direito à saúde) e no artigo 226, parágrafo 7º (direito ao pla-
nejamento familiar), assim como no artigo 3º, parágrafo único, inciso I, da Lei Federal n. 9263/96,
Patricia Fonseca Carlos Magno de Oliveira reconhece:
há um dever estatal de prestar assistência à saúde reprodutiva que engloba o
acesso aos melhores recursos científicos de concepção e ao qual corresponde o
direito subjetivo do homem à saúde reprodutiva, no aspecto do direito de gerar.
(OLIVEIRA, 2010a, p. 29-30)

Do exame das questões já apresentadas, constata-se que as polêmicas éticas e jurídicas re-
lacionadas à reprodução humana assistida não se restringem somente ao direito à reprodução as-
sistida. Várias são as questões, e a maioria delas não possui solução jurídica, dependendo, ainda,
de muitas discussões doutrinárias e jurisprudenciais até que seja definida uma solução legislativa.
Entre essas questões, podemos citar a própria definição de filiação (em algumas hipóteses já
solucionadas pelo Código Civil6), outras ainda de grande repercussão, como o estabelecimento da
filiação no caso de gestação por substituição (vulgarmente chamada de barriga de aluguel).
No caso da gestação por substituição, há outras discussões, como a própria autorização para
que terceiro realize o procedimento, além das questões financeiras vinculadas.
Outro tema de amplo debate é relacionado ao direito de herança no caso de uso das técnicas
de reprodução humana assistida após a morte do genitor: se caberia ou não direito à herança, con-
siderando que o filho foi concebido após a morte do autor da herança.
A maioria dessas discussões demanda aprofundamento em questões jurídicas que extra-
polam os limites deste estudo, por isso, optou-se pela restrição à questão do direito à reprodução
humana assistida como integrante do rol de direitos humanos.

6.3 O código genético humano


Ao estudar os avanços das ciências biomédicas ou biotecnológicas, deparamo-nos com fre-
quência com a questão do código genético humano, dos respectivos dados genéticos e da sua apli-
cação para fins de diagnóstico e tratamento de doenças tidas como de origem genética. E nesse
caso não se pode deixar de lado uma abordagem, mesmo que breve, do chamado Projeto Genoma
Humano, que tinha como objetivo identificar todos os genes humanos, bem como as suas funções.
O Projeto Genoma Humano foi criado nos EUA, em um consórcio público formado
pelo Departamento de Energia (United States Department of Energy – DOE) e pelos Institutos
Nacionais de Saúde (National Institutes of Health – NIH). Foi formalmente iniciado em meados
de 1990 e finalizado em 26 de junho de 2000, com a publicação dos dados obtidos (o qual contou,

6 Código Civil Brasileiro:


“Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
[...]
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.”
132 Direitos humanos e relações étnico-raciais

também, com apoio internacional por parte de agências análogas às americanas que coordenaram
esses estudos em outros países, como Inglaterra, França, Itália, Canadá, Japão e Brasil).
O alcance do mapeamento do genoma humano traz vários benefícios para a sociedade, como
a possibilidade de, conhecendo diretamente os mecanismos de certas doenças, desenvolverem-se
os meios necessários para seu tratamento, com a criação de novas tecnologias farmacêuticas, novas
vacinas gênicas estudos que visem à produção de plantas ou animais transgênicos que melhor se
adaptem ao meio ambiente, buscando o aumento de produção agrícola e pecuária.
Outro benefício advindo desse conhecimento é o desenvolvimento da chamada medicina pre-
ditiva, que busca “através de testes de diagnósticos genéticos, verificar a possibilidade de o paciente
desenvolver uma doença de origem, eminentemente, genética” (ECHTERHOFF, 2010, p. 44).
Cite-se, ainda, o desenvolvimento dos diagnósticos pré-natais e pré-implantatórios:
Ponto de extrema importância quando se aborda a questão dos diagnósticos
genéticos se relaciona com os diagnósticos pré-natais e pré-implantatórios e as
suas consequências, dentre elas o aborto eugênico.
O exame pré-natal “é realizado num período determinado do desenvolvimento
fetal, sobre o próprio feto, para confirmar se ele está afetado por malformações
ou defeitos que possam influir em sua vida futura”. Ou seja, através do diagnós-
tico pré-natal se pode confirmar a existência de malformações ou de doenças
genéticas antes mesmo do nascimento do feto.
Já o exame pré-implantatório são aqueles diagnósticos que visam detectar as
anomalias genéticas antes mesmo da implantação do embrião no caso de fecun-
dação assistida. Ainda é possível o diagnóstico “sobre o embrião obtido após a
lavagem do útero para extração de embrião precoce, sucessivamente, reimplan-
tado após o exame genético (washing out)” visando também detectar eventuais
deformações genéticas. (ECHTERHOFF, 2010, p. 46-47)

Contudo, é evidente que essas novidades decorrentes do conhecimento do genoma huma-


no podem gerar diversos dilemas éticos e jurídicos. O ponto de convergência dessas questões é a
possibilidade de redução do “ser humano à sua dimensão exclusivamente biológica, ou, até mesmo
à sua expressão genética” (SIQUEIRA; DINIZ, 2003, p. 226), esquecendo-se da complexidade da
natureza e do comportamento humano.
Alguns autores chamam tal circunstância de genetização da vida. Tom Wilkie a exemplifica
alertando que:
Outra possível consequência do Projeto Genoma Humano decorre não de al-
guma possível descoberta, mas da própria existência do projeto. Poderemos
desenvolver uma visão cada vez mais “atomística” dos seres humanos e mesmo
da própria vida.

Sob o impacto de um número crescente de descobertas sobre a genética hu-


mana, podemos passar a definir a nós mesmos e às nossas vidas em termos
reducionistas – reduzindo nossas vidas a seus componentes supostamente fun-
damentais –, deixando assim de olhar as coisas holisticamente, deixando de
perceber a complexidade e a riqueza da vida em seu todo. (1994, p. 195)

Partindo dessa ideia, podemos nos questionar: será possível a reafirmação da pretensão de
determinismo genético, da redução do ser humano às suas características e informações genéticas,
Direitos humanos e sua correlação com a bioética 133

esquecendo-se da importância do meio ambiente não somente para estabelecer o comportamento


das pessoas, mas, em especial, suas condições de saúde?
Evidentemente, “o caminho que liga as ideias do determinismo genético à eugenia7 é bas-
tante estreito, senão inexistente, como se pôde constatar no decorrer da história” (ECHTERHOFF,
2010, p. 56). Não se pode negar que “a consequência lógica é que tais ideias deterministas acarre-
tem na busca pelo aperfeiçoamento genético da raça humana, ou seja, pela afirmação da doutrina
eugênica” (ECHTERHOFF, 2010, p. 56).
Se não bastasse os riscos advindos do fortalecimento dos ideais eugênicos, temos, ainda, a
possibilidade do uso discriminatório das informações genéticas por terceiros:
Carteira genética. A carteira de identidade poderá incluir um código de barra
que expresse o genoma do portador. A pessoa será como cristal, totalmente
transparente, ao menos no seu aspecto biológico-genético. A carteira genética
poderá ser colocada a serviço de uma prática de contratação de empregos que
estigmatiza pessoas portadoras de herança genética anômala. O fator genético
poderá tornar-se um elemento de estratificação e discriminação social ao lado
do fator racial, étnico, sexual e socioeconômico. Também os convênios privados
de saúde e de aposentadoria e as apólices de seguro de vida poderão usar os
testes. Essas instituições querem diferenciar as quotas de pagamento de acordo
com o baixo ou alto risco de contrair determinadas doenças de tratamento lon-
go e custoso. (BARCHIFONTAINE, 2004, p. 165)

Ou seja, a par dos benefícios advindos desse conhecimento, constatamos a presença da pos-
sibilidade de violação inúmeros direitos humanos, o que exige uma atuação determinada dos cam-
pos da bioética e do biodireito.
Certa vez, o filósofo Hans Jonas chamou a atenção para o dilema da técnica
moderna, que consiste na dificuldade de se determinar as tecnologias benéficas
e as prejudiciais. A engenharia genética não é exceção a essa regra. De um lado,
há grandes expectativas quanto aos seus possíveis benefícios; de outro, muito
receio. Segundo Schramm, as possibilidades de prevenção e de intervenção nos
organismos vivos abertas pela engenharia genética despertam, ao mesmo tem-
po, sentimentos de fascínio e espanto. Por exemplo, alguns autores alertam para
a existência, nos dias atuais, de práticas eugênicas camufladas pela promessa de
cura ou com vistas à resolução de problemas orgânicos da espécie – mas, muitas
vezes, atendendo a interesses econômicos e políticos. (CACIQUE, 2012, p.61)

Depois dessa breve introdução dos benefícios e malefícios do conhecimento advindo do


código genético humano, passaremos a examinar alguns instrumentos internacionais que visam à
proteção dos possíveis direitos humanos ameaçados por essas inovações.
Realizando um apanhado histórico de documentos jurídicos internacionais voltados à prote-
ção desses direitos, podemos citar, segundo aponta Echterhoff (2010), os seguintes acontecimentos:

7 “A Eugenia, ciência que estuda as condições mais propícias para o melhoramento da raça humana, pode distinguir-
-se em duas espécies, de acordo com o objetivo que se propõe: a eugenia negativa e a positiva.
A eugenia negativa busca extirpar os defeitos genéticos, através da esterilização ou recolhimento dos defeituosos em
instituições fechadas, impedindo a transmissão de defeitos genéticos. [...]
A eugenia positiva conclama a reprodução de ‘pessoas sadias’ ou de ‘qualidade superior’ e ainda a criação de ‘traços
desejáveis’ (VARGA, 1990, p. 78). A eugenia positiva pode ser conseguida buscando encorajar a reprodução entre seres
humanos “superiores”, através dos métodos de reprodução artificial, através de manipulações genéticas sem fins tera-
pêuticos ou até mesmo através da clonagem de seres humanos.” (ECHTERHOFF, 2010, p. 57-58).
134 Direitos humanos e relações étnico-raciais

• Em 1992, foi celebrado o Convênio das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica, que
tratou da diversidade genética da humanidade.
• No ano seguinte, 1993, surgiu a Declaração de Bilbao8, que ressaltava a importância dos
novos conhecimentos advindos das pesquisas genéticas e advertia sobre alguns proble-
mas surgidos desse conhecimento. Essa declaração é fruto da Reunião Internacional
sobre “O Direito ante o Projeto Genoma Humano”, “promovida e organizada pela
Fundación Banco Bilbao Vizcaya, com a colaboração da Diputación Foral de Bizkaia e
da Universidad de Deusto” (CASABONA, 1999).
• Em 1994, foi elaborada, por membros da Unesco, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos das Gerações Futuras.
• Em 1995, foi redigido o Projeto de Convênio de Bioética do Conselho da Europa, que foi
considerado pioneiro no Direito Internacional, pois tinha como objeto a investigação não
terapêutica do embrião in vitro.
• Em 1996, surgiu a Declaração Ibero-Latino-Americana sobre Ética e Genética, revisada
em 1998 em Buenos Aires.
• Em 11 de novembro de 1997, foi aprovada pela XXIX Conferência da Unesco a Declaração
Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, elaborada pelo Comitê
Internacional de Bioética da Unesco.

Foi essa Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos que mate-
rializou o trânsito da bioética para o biodireito, com a consagração dos princípios da bioética. Para
o Vicente de Paulo Barreto (1998), essa Declaração nada mais é do que
[...] mais uma etapa no processo de inserção de valores morais na construção de
uma ordem jurídica, pois estabelece princípios bioéticos e normas de biodireito,
às quais aderiram os estados, e que servirão como patamar ético-jurídico da
pesquisa e da tecnologia da biologia contemporânea.

Com base no mesmo autor, podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, que é com essa de-
claração que se cria uma categoria nova de direitos humanos: “o direito ao patrimônio genético e a
todos os aspectos de sua manifestação” (BARRETO, 1998).
Esse diploma internacional proclama o genoma humano, e a informação nele contida, como
patrimônio comum da humanidade, ao afirmar que o genoma é a “unidade fundamental de todos
os membros da família humana” (art. 1.º).
A Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos é composta por
25 artigos, divididos em sete grupos temáticos, assim distribuídos:
1. Dignidade humana e os direitos humanos (arts. 1º ao 4º);
2. Direitos dos indivíduos (arts. 5º ao 9º);

8 Como bem ressalta Carlos María Romeo Casabona (1999, p. 44), essa declaração teve “a virtude de haver sido o
primeiro texto internacional que aborda, de forma global e específica, os diversos aspectos relacionados ao genoma
humano, fundamental desde o ponto de vista do Direito”.
Direitos humanos e sua correlação com a bioética 135

3. Pesquisa sobre o genoma humano (arts. 10 ao 12);


4. Condições para o exercício da atividade científica (arts. 13 ao 16);
5. Solidariedade e cooperação internacional (arts. 17 ao 19);
6. Divulgação dos princípios estabelecidos na Declaração (arts. 20 e 21);
7. Implementação da Declaração (arts. 22 ao 25).

Sobre essa Declaração, José Antonio Peres Gediel leciona:


A Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos contempla,
com exemplar riqueza, as três dimensões regulatórias que compõem o modelo
jurídico ocidental moderno, renovando e pondo em destaque a função ou di-
mensão comunitária do Direito atual, mas, nem por isso, prescinde de aprofun-
damento de sua análise conceitual e de acompanhamento de sua aplicação às
situações concretas advindas do uso e do acesso ao genoma humano.
O título da Declaração a identifica, desde logo, com sua raiz iluminista e huma-
nista, a qual se evidencia, também, porque se endereça à totalidade dos homens,
buscando sobrepor-se à particularidade das ordens jurídicas nacionais, para
atingir uma comunidade ideal-universal.
A visão universalista da Declaração apresenta, sem dúvida, traços inovadores e
peculiares em relação às demais Declarações Universais de Direito, pois não se
apoia apenas na noção filosófica abstrata da igualdade entre todos os homens
(fundada na presença da racionalidade e da autonomia humanas), mas se apoia,
também, na identidade biológica traçada a partir do genoma.
[...]
Ao lado dessa feição universalista e conceitual, a Declaração tem por finalidade
estabelecer parâmetros para a regulação jurídica internacional, comunitária e
estatal, no que se refere ao estabelecimento de regras para a fixação da titulari-
dade do genoma e estabilizar seu acesso e uso. (GEDIEL, 2000, p. 2)

Outrossim, verifica-se que a Declaração também se preocupou com a questão das infor-
mações genéticas. Destacam-se os artigos 2º e 6º, que preveem o princípio da não discriminação
com fundamento nas características genéticas do indivíduo, bem como o artigo 7º, que trata sobre
a proteção da confidencialidade dos dados genéticos, e o artigo 12, que regulamenta a questão do
direito à privacidade. Portanto, “a Declaração demonstra, mesmo que indiretamente ao analisar
a questão da discriminação genética e da confidencialidade, que a informação genética, além de
identificar o indivíduo, revela suas características genéticas” (ECHTERHOFF, 2010, p. 187-188).
Necessário citar outros documentos internacionais, como a Declaração Internacional sobre
os Dados Genéticos Humanos, que, em 16 de outubro de 2004, na 32ª sessão da Conferência Geral
da Unesco, foi aprovada por unanimidade e aclamação. Essa Declaração reafirmou os princípios
anteriormente consagrados pela Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos
Humanos, bem como visou:
Garantir o respeito da dignidade humana e a proteção dos direitos humanos
e das liberdades fundamentais na recolha, tratamento, utilização e conservação
136 Direitos humanos e relações étnico-raciais

dos dados genéticos humanos9, dos dados proteômicos humanos10 e das amostras
biológicas11 a partir das quais eles são obtidos, daqui em diante denominadas
“amostras biológicas”, em conformidade com os imperativos de igualdade, justiça
e solidariedade e tendo em devida conta a liberdade de pensamento e de ex-
pressão, incluindo a liberdade de investigação; definir os princípios que deverão
orientar os Estados na formulação da sua legislação e das suas políticas sobre estas
questões; e servir de base para a recomendação de boas práticas nestes domínios,
para uso das instituições e indivíduos interessados. (UNESCO, 2004, p. 4)

Seguindo com a abordagem dos documentos internacionais relacionados ao tema, ressal-


tamos que em 2005 foi elaborada, pela Unesco, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos, que teve como conteúdo:
Uma bioética muito mais democrática e preocupada com a atuação da ciência
em prol de uma igualdade social, sendo inclusive determinado como um dos
seus principais objetivos, a facilitação de acesso igualitário a todos os países e
indivíduos, em especial, os países em desenvolvimento que são mais carentes
de ajuda, aos novos avanços científicos, médicos e biotecnológicos. (BARROS,
2011, p. 22)

A par do reconhecimento de acesso universal às conquistas biotecnológicas, a Declaração


Universal sobre Bioética e Direitos Humanos tutela:
• a dignidade humana e direitos humanos (arts. 2º e 3º);
• a beneficência e a não maleficência (art. 4º);
• a autonomia e responsabilidade individual (art. 5º);
• o consentimento livre e esclarecido (art. 6º);
• o respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual (art. 8º);
• a privacidade e confidencialidade (art. 9º);
• a igualdade formal e material, a justiça e a equidade (art. 10);
• a não discriminação e a não estigmatização (art. 11);
• o respeito pela diversidade cultural e pelo pluralismo (art. 12);
• a solidariedade e a cooperação (art. 13);
• a responsabilidade social e a saúde (art. 14);
• o compartilhamento de benefícios (art. 15);
• a proteção das gerações futuras (art. 16);
• a proteção do meio ambiente, da biosfera e da biodiversidade (art. 17).

9 No seu artigo 2º, a Declaração traz a definição de dados genéticos humanos: “informações relativas às caracterís-
ticas hereditárias dos indivíduos, obtidas pela análise de ácidos nucléicos ou por outras análises científicas.” (UNESCO,
2004, p. 4).
10 Também o referido diploma internacional define dados proteômicos: “informações relativas às proteínas de um
indivíduo, incluindo a sua expressão, modificação e interação.” (UNESCO, 2004, p. 4).
11 A mencionada Declaração assim define amostras biológicas: “qualquer amostra de material biológico (por exemplo
células do sangue, da pele e dos ossos ou plasma sanguíneo) em que estejam presentes ácidos nucleicos e que conte-
nha a constituição genética característica de um indivíduo.” (UNESCO, 2004, p. 4).
Direitos humanos e sua correlação com a bioética 137

Atividades
1. (FUMARC-2013, Concurso do Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais)

Eutanásia
É uma forma de apressar a morte de um doente incurável, sem que esse
sinta dor ou sofrimento. A ação é praticada por um médico com o con-
sentimento do doente, ou da sua família. A eutanásia é um assunto mui-
to discutido tanto na questão da bioética quanto na do biodireito, pois
ela tem dois lados, a favor e contra. Do ponto de vista a favor, ela seria
uma forma de aliviar a dor e o sofrimento de uma pessoa que se encon-
tra num estado muito crítico e sem perspectiva de melhora, dando ao
paciente o direito de dar fim a sua própria vida.
Já do ponto de vista contra a eutanásia seria o direito ao suicídio, tendo
em vista que o doente ou seu responsável teria o direito de dar fim a sua
vida com a ideia de que tal ato aliviaria sua dor e sofrimento.
No Brasil, a eutanásia é considerada homicídio, já na Holanda é permi-
tida por lei.
Um dos casos mais recentes de eutanásia é o da americana Terri Schiavo:
seu marido entrou com um pedido na justiça para que os aparelhos que
mantinham Terri viva fossem desligados.
Esse caso chamou a atenção do mundo todo, muitas pessoas se ma-
nifestaram contra, as igrejas se revoltaram com tal situação, a família
da paciente era contra, os pais dela entraram na justiça tentando im-
pedir tal ação. No fim, a justiça e o governador da Califórnia, Arnold
Schwarzenegger, decidiram pelo desligamento dos aparelhos que a man-
tinham viva.
(Disponível em: <www.brasilescola.com/sociologia/eutanasia.htm>.
Acesso em: 14 mar. 2013.)

Utilizando o texto acima para motivar suas reflexões e levando em consideração seus co-
nhecimentos acerca do assunto, escreva um texto dissertativo-argumentativo, de 100 a 120
palavras (de 20 a 25 linhas), em conformidade com a norma-padrão da Língua Portuguesa,
sobre o tema:

A eutanásia deve ser permitida no Brasil?


138 Direitos humanos e relações étnico-raciais

2. O filme Gattaca: experiência genética se passa em um futuro, talvez bem próximo, no qual as
técnicas de engenharia genética seriam capazes de orientar a produção de filhos “perfeitos”.

“Mesmo que um pouco ficcionista o filme Gattaca (Dir. Andrew Niccol, 1997. 101 min.
Estados Unidos) relata uma nova ordem social, fruto de uma “matemática genética esta-
belecida ao nascer: predisposições genéticas a desordens caracterizavam os inválidos, ao
passo que os válidos eram aqueles com altos índices de ‘quociente genético’, um conceito
eficientemente criado pelo filme para resumir o conjunto de expectativas sociais condensa-
das pela biologia.” (DINIZ, 2001, p. 97). Gattaca representa uma nova ordem social porque
se estabelecem castas não sobre fundamentos étnicos, raciais ou econômicos, mas sim sobre
características genéticas, as quais estabelecem a ponte entre válidos e inválidos. Como bem
adverte Débora Diniz (2001, p. 97), “a lição profética do filme é aquela que aponta para o
risco de que o desenvolvimento da genética e sua conversão na mais poderosa das religiões
transformem-se em uma força totalitária inquestionável: a força de uma suposta natureza
imutável, que sempre esteve encoberta e que, agora, miraculosamente vem sendo descorti-
nada pela ciência.”
Certamente há um pouco de ficção na história que nos relata o filme Gattaca, porém, não
seria nada surpreendente que a nossa sociedade, já acostumada em estabelecer castas sobre
diversos fundamentos, use do conhecimento que as ciências biotecnológicas nos têm pro-
porcionado para a fundação de uma nova ordem social. Já se tem notícia de que razões bio-
lógicas ou médicas têm formado categorias sociais de excluídos, por exemplo, os portadores
de HIV.” (ECHTERHOFF, 2010, p. 74).
Com base nas ideias apresentadas pelo filme Gattaca: experiência genética, disserte, correla-
cionando os temas eugenia e diagnósticos pré-natais e/ou pré-implantatórios.

3. (ENADE-2004)

A Reprodução Clonal do Ser Humano


A reprodução clonal do ser humano acha-se no rol das coisas preocu-
pantes da ciência juntamente com o controle do comportamento, a en-
genharia genética, o transplante de cabeças, a poesia de computador e o
crescimento irrestrito das flores plásticas.
A reprodução clonal é a mais espantosa das perspectivas, pois acarreta
a eliminação do sexo, trazendo como compensação a eliminação me-
tafórica da morte. Quase não é consolo saber que a nossa reprodução
clonal, idêntica a nós, continua a viver, principalmente quando essa vida
incluirá, mais cedo ou mais tarde, o afastamento provável do eu real, en-
tão idoso. É difícil imaginar algo parecido à afeição ou ao respeito filial
por um único e solteiro núcleo; mais difícil ainda é considerar o nosso
novo eu autogerado como algo que não seja senão um total e desolado
Direitos humanos e sua correlação com a bioética 139

órfão. E isso para não mencionar o complexo relacionamento interpes-


soal inerente à auto-educação desde a infância, ao ensino da linguagem,
ao estabelecimento da disciplina e das maneiras etc. Como se sentiria
você caso se tornasse, por procuração, um incorrigível delinquente juve-
nil na idade de 55 anos?
As questões públicas são óbvias. Quem será selecionado e de acordo
com que qualificações? Como enfrentar os riscos da tecnologia erronea-
mente usada, tais como uma reprodução clonal autodeterminada pelos
ricos e poderosos, mas socialmente indesejáveis, ou a reprodução fei-
ta pelo Governo de massas dóceis e idiotas para realizarem o trabalho
do mundo? Qual será, sobre os não reproduzidos clonalmente, o efeito
de toda essa mesmice humana? Afinal, nós nos habituamos, no decor-
rer de milênios, ao permanente estímulo da singularidade; cada um de
nós é totalmente diverso, em sentido fundamental, de todos os bilhões.
A individualidade é um fato essencial da vida. A ideia da ausência de um
eu humano, a mesmice, é aterrorizante quando a gente se põe a pensar
no assunto.
[...]
Para fazer tudo bem direitinho, com esperanças de terminar com genuí-
na duplicata de uma só pessoa, não há outra escolha. É preciso clonar o
mundo inteiro, nada menos.
(THOMAS, Lewis. A Medusa e a Lesma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p. 59.)

Em, no máximo, dez linhas, expresse a sua opinião em relação a uma (e somente uma) das
questões propostas no terceiro parágrafo do texto.
Gabarito

1 Noções gerais de direitos humanos


1. Da análise do texto em questão, verifica-se que o fato descrito traz em seu âmago a violação aos
direitos humanos de segunda geração, os chamados direitos sociais, econômicos e culturais, nas-
cidos do chamado Estado de bem-estar social.

Esses direitos exigem uma atuação positiva do Estado visando assegurar aos seus cidadãos qualida-
de de vida, educação, saúde, acesso a um trabalho digno e à assistência social, dentre outros direitos.

2. Nessa questão do Enade, é possível explorar qualquer um dos temas chaves:

• a habitação como moradia digna e não apenas como necessidade de abrigo e proteção;
• a segurança como bem-estar e não apenas como necessidade de vigilância e punição;
• o trabalho como ação para a vida e não apenas como necessidade de emprego e renda.
Deve-se partir do próprio princípio da dignidade da pessoa humana, ao iniciar qualquer um dos
temas, examinando, inclusive, a Constituição Federal de 1988.
O conceito de moradia digna, para a Agenda Habitat,
[...] é aquela que oferece condições de vida sadia, com segurança, apresen-
tando infraestrutura básica, como suprimento de água, saneamento básico
e energia, e contando com a prestação eficiente de serviços públicos urba-
nos, tais como saúde, educação, transporte coletivo, coleta de lixo. Ainda,
pressupõe a segurança da habitação: é possível ir e vir em segurança e o
local não é suscetível a desastres naturais. Quanto à acessibilidade, é preciso
que a infraestrutura viária permita o acesso decente e seguro à habitação.
(DIAS, 2012)

Esse direito é expressamente previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948,
que garante que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua
família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação [...]” (artigo XXV, item 1).
E está consagrado na Constituição Federal de 1988, no seu artigo 6.º, como direito social (defi-
nindo, também, como competência de todos os entes da Federação) a promoção de programas
de construção de moradias e de melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico
(CF, art. 23, IX).

3. Deve-se escolher um dos direitos humanos e realizar uma breve dissertação a respeito, exami-
nando-o com base na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Federal.
Escolhemos o direito à privacidade.

O núcleo do direito à privacidade é


a faculdade concedida ao indivíduo, a todos oponível, de subtrair à intro-
missão alheia e ao conhecimento de terceiros certos aspectos da sua vida
que não deseja participar a estranhos, ou seja, de decidir o que vai desnudar
aos outros, de que forma e em que circunstâncias. (CARVALHO, 2003)
142 Avaliação do impacto e licenciamento ambiental

O primeiro texto internacional a proteger a intimidade foi a Declaração Americana dos Direitos e Deve-
res do Homem, aprovada em Bogotá, no dia 2 de maio de 1948, no seu artigo 5.º (FARIAS, 1996, p. 111).
A nossa Constituição Federal prevê, expressamente, em consonância com os valores por ela consa-
grados, a proteção do direito à privacidade (incluindo o direito à intimidade e à vida privada) no seu
artigo 5.º, inciso X, 71, bem como em diversos outros dispositivos que buscam resguardar aspectos
particulares da vida dos indivíduos, assegurando a inviolabilidade da casa (inciso XI), do sigilo de da-
dos, da correspondência e das comunicações (inciso XII), entre outros dispositivos, alguns dos quais
preveem instrumentos processuais para assegurar o direito à privacidade.

2 Dos direitos das crianças e dos adolescentes


1. “Cerca de 50 meninos e meninas de rua, com idades entre 11 e 19 anos, dormem em frente à Igreja da
Candelária, no centro do Rio, quando são atacados por seis policiais que abrem fogo contra o grupo.
Oito morrem e muitos ficam feridos. O episódio teve grande impacto e forte repercussão internacio-
nal” (INSTITUTO LULA, Memorial da Democracia, 2016). Assim podemos descrever como ocorreu
a Chacina da Candelária, na madrugada do dia 23 de julho de 1993.

De igual forma, no caso Villagrán Morales e outros vs. Guatemala, a chacina foi praticada por policiais, o
que gera ainda mais insegurança e desafia o mecanismo estatal. Todavia, ao contrário do caso Villagrán
Morales, em que foi necessária a intervenção da Corte Internacional (pois o Estado da Guatemala não
tinha tomado medidas judiciais para investigar os fatos e punir os autores do crime), no Brasil isso ocor-
reu muito mais pela pressão da opinião pública e de organizações brasileiras e estrangeiras.
As investigações apontaram que “seis policiais militares planejaram friamente o massacre. Três deles
foram condenados, dois absolvidos e um morreu durante as investigações. Os policiais Marcus Vi-
nícius Borges Emmanuel e Marcos Aurélio Dias Alcântara foram condenados a mais de 200 anos de
prisão; Nélson Oliveira dos Santos Cunha, a 45.”. Todos cumpriram parte da pena em regime fechado
e foram posteriormente beneficiados por indultos ou liberdade condicional.

2. Como diretor, por expressa previsão do ECA (art. 13), você deverá obrigatoriamente comunicar o
caso de suspeita de maus-tratos ao Conselho Tutelar da localidade, sob pena de responder adminis-
trativamente pela omissão, nos termos do art. 245 do ECA.

3. Primeiramente, analisando os textos, apontamos as seguintes razões contrárias à redução da maiori-


dade penal:

• o dispositivo constitucional que prevê a maioridade aos 18 anos (art. 228 da CF) é
uma cláusula pétrea (art. 60, §4.º da CF) e, como tal, não pode ser modificada por
emenda constitucional;
• os crimes cometidos por adolescentes estão ligados a uma questão social, a qual deve
ser primeiramente solucionada pelo Estado, devendo este assumir o seu papel ativo no
cumprimento das políticas públicas e na garantia dos direitos fundamentais assegurados
pela CF/1988;
• “o simples aumento do número de encarcerados, e a consequente ampliação da lotação
dos presídios, em nada irá diminuir a violência” (OAB, 2016);
• o sistema carcerário brasileiro não recupera sequer os adultos, quem dirá os adolescentes;
Gabarito 143

• “segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública, jovens entre 16 e 18 anos são res-
ponsáveis por menos de 0,9% dos crimes praticados no país. Se forem considerados os
homicídios e tentativas de homicídio, esse número cai para 0,5%” (PRAZERES, 2015);
• deve haver investimentos em educação e no combate ao trabalho infantil como solução
para a criminalidade;
• em vez de reduzir a maioridade penal devemos dar efetividade ao ECA em relação às me-
didas socioeducativas, e não tratar os jovens como meros delinquentes, sem lhes garantir
a reeducação e reinserção social.
Da análise dos argumentos favoráveis, podemos citar os seguintes:
• a alteração da maioridade penal não acabaria com direitos e garantias individuais, apenas
iria impor novas regras, o que não geraria a ofensa ao art. 60, §4.º da CF, que estabelece
as cláusulas pétreas;
• a impunidade dos jovens gera mais violência: por terem consciência de que não serão
punidos continuam a cometer crimes;
• a redução da maioridade iria proteger os jovens do aliciamento pelo crime organizado;
• o Brasil precisa alinhar a sua legislação ao dos países desenvolvidos, como os “EUA, onde,
na maioria dos Estados, adolescentes acima de 12 anos de idade podem ser submetidos a
processos judiciais da mesma forma que adultos” (PRAZERES, 2015);
• a maioria da população brasileira é favorável à redução da maioridade penal. Pesquisa do
instituto CNT/MDA indicou que 92,7% dos brasileiros são favoráveis a medida;
• se o jovem tem consciência aos 16 anos para votar, tem consciência para responder por
seus atos criminosos.

3 Dos direitos das pessoas com deficiência e dos idosos


1. No decorrer do texto e das pesquisas se constatou que as violências contra os idosos têm como princi-
pal agente causador os familiares. E quando se fala em violência, não se está a indicar apenas a violên-
cia física, mas também a psicológica – aquela resultante do abandono do idoso pelos entes familiares
–, que gera consequências maléficas para a saúde física e mental dessas pessoas.

Não há razões para não admitir que o abandono afetivo por parte dos familiares (em especial pelos
filhos) pode gerar responsabilização penal. Exemplos disso são os arts. 98 e 99 do Estatuto do Idoso e
o Código Civil, com a condenação dos agentes pelos danos morais sofridos pelos idosos, nos termos
dos arts. 186 e 927.
Já que não é possível obrigar o amor, critério subjetivo, é possível obrigar os cuidados mínimos
– este, sim, critério objetivo. Em caso de descumprimento, devem ser reparados todos os danos
sofridos pelo idoso.

2. Damião Ximenes Lopes tinha 30 anos quando, em outubro de 1999, foi internado por sua mãe Alber-
tina Viana Lopes na única clínica psiquiátrica do município de Sobral, no Ceará, em razão de um qua-
dro de sofrimento mental. Quatro dias depois, a sua genitora, ao tentar realizar visita, foi impedida,
porém mesmo assim conseguiu adentrar na clínica, onde encontrou seu filho com as mãos amarradas
144 Avaliação do impacto e licenciamento ambiental

para trás, sangrando pelo nariz, com a cabeça toda inchada, com os olhos quase fechados, com vários
machucados pelo corpo e cheirando a excrementos e urina. Após exigir que o desamarrassem a mãe
pediu ajuda dos profissionais da clínica para limpá-lo, sendo que o único médico ali existente lhe teria
receitado remédios sem sequer realizar exames. Após a mãe deixar a clínica, quando chegou em casa,
a genitora havia recebido recado da clínica, e ao retornar, teve a notícia que seu filho havia morrido.

Após realizar exame no IML pelo mesmo médico da Clínica, este conclui por “morte real de causa
indeterminada”, mesmo havendo sinais de prática de tortura (ROSATO; CORREIA, 2011).
Além de ajuizar ação criminal e ação civil indenizatória contra o proprietário da Clínica, a famí-
lia peticionou contra o Estado brasileiro perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH). Após as conclusões da Comissão, diante do não cumprimento integral por parte do Brasil
das recomendações (foi recomendado que o Estado brasileiro fizesse “uma investigação completa, im-
parcial e efetiva dos fatos relacionados com a morte de Damião Ximenes Lopes e reparasse adequada-
mente seus familiares pelas violações [...] incluído o pagamento de uma indenização”), tanto a família
como a própria Comissão encaminhou o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Em 2006, a Corte Interamericana de Direitos Humanos apresentou sua sentença, condenando o Bra-
sil pela primeira vez em um caso de violação de direitos humanos, “pela violação dos direitos consa-
grados nos artigos 4 (direito à vida); 5 (direito à integridade pessoal); 8 (direito às garantias judiciais)
e 25 (direito à proteção judicial) da Convenção Americana, em relação à obrigação estabelecida no
artigo 1.1 (obrigação de respeitar os direitos) da mesma, em prejuízo de Damião Ximenes, pelas con-
dições inumanas e degradantes de sua hospitalização, em um clínica psiquiátrica que operava dentro
do marco legislativo do SUS no Brasil” (ROSATO; CORREIA, 2011).
A Corte condenou o Brasil, ainda, a reparar moralmente e materialmente a família Ximenes, me-
diante o pagamento de uma indenização e outras medidas não pecuniárias. “Dentre elas, o Brasil
foi instado a investigar e identificar os culpados da morte de Damião em tempo razoável e também
promover programas de formação e capacitação para profissionais de saúde, especialmente médicos/
as psiquiatras, psicólogos/as, enfermeiros/as e auxiliares de enfermagem, bem como para todas as
pessoas vinculadas ao campo da saúde mental” (ROSATO; CORREIA, 2011).

3. Não raro as pessoas passam a vida lutando pela aquisição da casa própria, chegam à velhice sem ao
menos ter garantido o direito à moradia, submetendo-se à ajuda de familiares ou até mesmo tendo
que continuar a trabalhar mesmo após a aposentadoria, pois o valor do benefício não é suficiente para
as despesas básicas e o aluguel de uma moradia digna.

O Estatuto do Idoso, entre os diversos direitos consagrados, também prevê (ao menos em tese) o
direito à moradia, estabelecendo, no seu artigo 37, que “o idoso tem direito à moradia digna, no seio
da família natural ou substituta, ou desacompanhado de seus familiares, quando assim o desejar, ou,
ainda, em instituição pública ou privada”.
A regra é o exercício desse direito com sua família natural ou substituta, e, excepcionalmente, quando
inexistente grupo familiar, casa-lar, em casos de abandono ou carência de recursos financeiros pró-
prios ou da família. Esse direito será exercido no âmbito de entidades de longa permanência (§1.º do
art. 37). Essas entidades devem manter padrões de habitação compatíveis com as necessidades dos
idosos, provendo-os de alimentação regular e higiene (§3.º do art. 37).
Gabarito 145

O Estatuto também prevê a obrigatoriedade de o governo criar programas habitacionais para dar
prioridade aos idosos na aquisição da casa própria:
Art. 38. Nos programas habitacionais, públicos ou subsidiados com recursos
públicos, o idoso goza de prioridade na aquisição de imóvel para moradia pró-
pria, observado o seguinte:
I - reserva de pelo menos 3% (três por cento) das unidades habitacionais resi-
denciais para atendimento aos idosos;
II - implantação de equipamentos urbanos comunitários voltados ao idoso;
III - eliminação de barreiras arquitetônicas e urbanísticas, para garantia de aces-
sibilidade ao idoso;
IV - critérios de financiamento compatíveis com os rendimentos de aposenta-
doria e pensão.
Parágrafo único. As unidades residenciais reservadas para atendimento a idosos
devem situar-se, preferencialmente, no pavimento térreo.

4 Diversidade étnico-racial, religiosa, de gênero e LGBT


1. Chega a ser inacreditável que em pleno ano de 2012 uma menina seja alvo de um ataque covarde em
razão de sua pretensão de estudar e alcançar o mesmo patamar de educação dos homens.

Mas, infelizmente, esta é a realidade de alguns países do Oriente em razão de sua cultura e da sua
religião. As mulheres são relegadas ao espaço privado e destinadas exclusivamente aos afazeres do-
mésticos, sem que se reconheça o direito à igualdade e a possibilidade de inclusão social.
Malala Yousafzai não precisou pegar em armas para mostrar a sua luta contra um regime terrorista
e desigual: apenas continuou a lutar pelo exercício de um direito, o direito à educação, o que foi sufi-
ciente para ser quase assassinada pelo talibã e hoje ser obrigada a morar fora de seu país para poder
conquistar seus sonhos e viver em paz.
No entanto, mesmo tendo passado por tudo o que passou, Malala ainda defende o exercício de seu
direito e pretende lutar para que outras jovens e mulheres também o alcancem; inclusive, tem a pre-
tensão de se tornar uma política para retornar ao seu país e lutar pela igualdade de gêneros.

2.

a) Estão entre os argumentos utilizados pelos que criticam o sistema de cotas:


• que a previsão do sistema de cotas feriria o princípio constitucional da igualdade, sendo
que diferença baseada tão somente na cor da pele não é um critério razoável e um fim
legítimo para um tratamento desigual;
• políticas instituídas com base no critério de raça em nome da justiça social não eliminam
o racismo, podendo produzir efeito contrário, acirrando a intolerância;
• há dificuldade para se definir quem é negro no Brasil, devido à miscigenação;
• o acesso à universidade deve se basear num único critério – o mérito –, sob pena de amea-
çar a qualidade acadêmica.
146 Avaliação do impacto e licenciamento ambiental

b) Entre os argumentos utilizados pelos que defendem o sistema de cotas, podemos citar:
• o sistema de cotas é a concretização do princípio da igualdade material, promovendo a
igualdade por meio da desigualdade como forma de reparar décadas de exclusão dessa
parcela da população do reconhecimento e efetivação de direitos;
• a adoção do sistema de cotas reconhece as diferenças decorrentes de décadas de exclusão
social e não significa a inferiorização de determinado grupo social;
• a alegação de que é difícil se definir quem é negro não procede, pois não faltam agentes
sociais versados em identificar os negros quando o intuito é discriminá-los;
• pesquisas revelam que, entre as universidades que adotaram os sistemas de cotas, não há
diferença de rendimentos entre os alunos cotistas e os não cotistas, inclusive verificando-
-se que os cotistas são mais assíduos.
3. Quando se fala em orientação sexual no âmbito da legislação brasileira, verifica-se que a nossa
Constituição Federal, embora não venha abordar expressamente a questão, traz em seu âmago
princípios e valores que não permitem negar o reconhecimento ao direito da comunidade LGBT,
em especial quando examinamos o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito à igual-
dade e à liberdade sexual.

Analisando a legislação civil em relação à adoção também não se vislumbra nenhum dispositivo legal
relacionado ao tema; porém, também não há qualquer proibição da adoção por casais homossexuais
ou até mesmo pessoas solteiras com orientação sexual diversa de heterossexual.
Num exame atento da jurisprudência sobre o assunto, embora ainda exista posicionamento contrário,
verifica-se uma tendência à permissão da adoção por homossexuais, em especial ao se verificar que
o pressuposto da adoção é o melhor interesse da criança, sendo que estando este assegurado na com-
panhia do homossexual, o qual lhe atende as necessidades básicas, seja econômicas, seja em relação à
educação e carinho, não haveria motivos para a não permissão.
Ademais, considerando a quantidade de crianças disponíveis para adoção sem oportunidade de al-
cançar um lar e uma família – porque os pretendentes à adoção heterossexuais, em regra, têm prefe-
rências em relação à idade ou se negam a aceitar crianças deficientes –, a jurisprudência não vislum-
bra razões em se preferir deixar que essas crianças permaneçam até a maioridade em entidades de
acolhimento em vez de lhes dar um lar e uma família, mesmo que de orientação homossexual.

5 Direito para todos e combate às violações e ao trabalho escravo


1. A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei n. 12.528/2011 e instituída em 16 de maio de
2012, tendo como finalidade apurar graves violações de direitos humanos ocorridas no período da
Ditadura Militar. É considerada um dos instrumentos de políticas públicas que visa ao combate às
violações, pois tem como um dos seus principais objetivos “promover o esclarecimento circunstan-
ciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria”
(art. 3.º, II da Lei n. 12.528/2011).

O relatório final da CNV, entregue em 10 de dezembro de 2014 à presidente Dilma Rousseff, indica
434 mortes e desaparecimentos de vítimas (210 são consideradas desaparecidas). O texto indica que
esses números decorreram da “prática sistemática de detenções ilegais e arbitrárias e de tortura, assim
como o cometimento de execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres por agentes
Gabarito 147

do Estado brasileiro” (EBC AGÊNCIA BRASIL, 2014).


A Comissão Nacional da Verdade recomendou a adoção de um conjunto de dezessete medidas insti-
tucionais e de oito iniciativas de reformulação normativa de âmbito constitucional ou legal, além de
quatro medidas de seguimento das ações e recomendações da CNV.
Entre as medidas institucionais, há a recomendação de reconhecimento por parte das Forças Arma-
das de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos du-
rante a Ditadura Militar (1964-1985). Recomendou, ainda, a determinação, pelos órgãos competen-
tes, da responsabilidade jurídica – criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram
causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV, afastando,
em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia, inscritos nos artigos
da Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979 e em outras disposições constitucionais e legais. Propuseram,
ainda, a desvinculação dos institutos médicos legais, bem como dos órgãos de perícia criminal, das
secretarias de segurança pública e das polícias civis, além do fortalecimento das defensorias públicas.
Entre as iniciativas de reformulação normativa, a CNV propõe a Revogação da Lei de Segurança Na-
cional, o aperfeiçoamento da legislação brasileira para tipificação das figuras penais correspondentes
aos crimes contra a humanidade e ao crime de desaparecimento forçado, a desmilitarização das polí-
cias militares estaduais, a introdução da audiência de custódia, para prevenção da prática da tortura
e de prisão ilegal, entre outras.
Foi proposta, também, a criação de um órgão permanente com a finalidade de dar seguimento às
ações e recomendações da CNV, dar prosseguimento às atividades voltadas para a localização, identi-
ficar e dispor aos familiares ou às pessoas legitimadas, para sepultamento digno, os restos mortais dos
desaparecidos políticos, das graves violações de direitos humanos e o prosseguimento e fortalecimen-
to da política de localização e abertura dos arquivos da Ditadura Militar.

2. Podemos citar como causas do trabalho escravo no Brasil:

• falta de alternativas para pessoas sem qualquer qualificação que não seja a própria
força manual de trabalho – necessária para serviços pesados, como os desenvolvidos
nas fazendas;
• falta de empregos regulares, ampliando a oferta de mão de obra barata, tornando os tra-
balhadores vulneráveis;
• ausência de fiscalização e certeza da impunidade;
• empregadores que pretendem diminuir custos de produção, garantindo a competitivida-
de e aumentando os lucros.
3. Os Conselhos de Políticas Públicas são órgãos colegiados que articulam representantes da população
e membros do poder público estatal, tendo como finalidade principal garantir a participação popular,
o controle social e a gestão democrática das políticas e dos serviços públicos. Esses órgãos atuam no
planejamento e no acompanhamento da execução dessas políticas e desses serviços públicos.

6 Direitos humanos e sua correlação com a bioética


1. Ao falar sobre a eutanásia e a possibilidade de sua adoção, em regra, adentramos em um assunto de
extremo impacto religioso e moral, sem contar as questões jurídicas relacionadas.
148 Avaliação do impacto e licenciamento ambiental

Contudo, restringindo-se às questões jurídicas, é necessário ressaltar que a legislação internacional e


nacional reconhece o direito à vida como direito humano, porém, evidentemente garante o exercício
desse direito de forma digna, o que os autores chamam de direito a uma vida digna.
É possível apontar como fundamento contrário à eutanásia a proteção do direito à vida, o que seria
restrição à sua prática diante da proibição legal do suicídio. Por outro lado, tanto a legislação interna-
cional como a legislação nacional têm como fundamento dos direitos humanos o princípio da digni-
dade da pessoa humana, o qual pressupõe a garantia do direito a uma vida digna.
Sendo assim, pela possibilidade de constatação de que eventual doença é irreversível e incurável –
bem como que não permite à pessoa a manutenção de uma vida com o mínimo de dignidade, impos-
sibilitando esta pessoa a ter prazeres e convivência social –, parece não haver razões para impedir a
possibilidade de eutanásia.
A grande questão é o estabelecimento de limites éticos e jurídicos para tal prática não ser utilizada
indevidamente, levando em consideração não só a autonomia do paciente, mas critérios médicos
bastante específicos.

2. O conhecimento do mapeamento genético e a possibilidade do uso desse conhecimento para fins de


diagnóstico e tratamento de doenças com vínculo genético possibilita, seriamente, o uso dessas técni-
cas e conhecimentos para objetivos escusos.

O mapeamento genético possibilita identificar as pessoas consideradas doentes em razão de uma con-
dição genética, o que acarreta a possível catalogação dessas pessoas com base em critério biológico,
sem levar em consideração aspectos sociais.
E, se não bastasse o uso desse conhecimento na fase pré-natal e pré-implantatória, seria possível, com
intenção de seleção dos fetos ou embriões, a prática eugênica.

3. O conhecimento advindo da técnica de clonagem humana, como técnicas de reprodução de indi-


víduos por meio de conhecimento genético, pode gerar a possibilidade de seleção das pessoas que
seriam clonadas tendo por base critérios discutíveis, levando em consideração interesse de terceiros
e até mesmo do Estado.

O uso indiscriminado e sem limites desse conhecimento, levando em consideração o poder que
as técnicas oriundas do mesmo geram aos seus detentores, pode trazer prejuízos evidentes para
a sociedade.
São necessários limites éticos e jurídicos para o uso desse conhecimento, estabelecendo como
fundamento principal a dignidade da pessoa humana, buscando se restringir ao seu uso em prol
da humanidade.
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7
Conceitos de raça, etnia e
identidade cultural e nacional

Marcos Araújo

Neste capítulo, vamos refletir sobre os conceitos de raça, etnia e identidade nacio-
nal. O objetivo é discutir o surgimento e a evolução das ideias sobre o tema até o momento
atual. Daremos atenção especial à aplicação dos conceitos no Brasil e sua variedade de
sentidos contemporâneos.

7.1 Raça
A pura observação da diversidade entre seres humanos sempre intrigou o homem que, ao mes-
mo tempo em que via traços comuns de humanidade, apontava diferenças consideradas insuperáveis
para o pertencimento social: cor da pele, índole, práticas sociais, textura e cor de cabelos, concepção
de mundo, inteligência e força. Muitas vezes, a classificação dos homens se dava, no mundo antigo,
por obediência política, religião, local de nascimento, tribo, raça ou nação.
Havia em quase todas as culturas um senso de superioridade em relação às outras. Os diver-
sos hábitos sociais eram considerados bizarros, inumanos, e a cultura daqueles que não eram do
grupo era considerada subalterna. Os gregos, por exemplo, achavam que todos os povos não gregos
eram bárbaros e inferiores; se não o fossem em poderio militar, o seriam em índole e cultura.
Nos séculos seguintes à derrocada do mundo antigo, a emergência das religiões universa-
listas como o cristianismo e o islamismo adicionou um elemento de identidade e separação pela
religião que guiou as disputas pela Península Ibérica, pela África e pelas áreas dos otomanos, no
Leste do Mediterrâneo. Porém, com o crescimento da sociedade europeia para regiões da África e
da Ásia, bem como seu domínio sobre a América, a concepção de uma humanidade mais diversa
começou a intrigar os homens.
Os europeus se achavam mais inteligentes e justos por terem sua religião católica e se viam
como superiores aos demais. O contato com povos diversos colocou as verdades europeias em che-
que. Com a dominação gradual sobre portos africanos e a colonização da América, a Europa criou
as bases de uma sociedade econômica em crescimento constante. Ao mesmo tempo, a escravidão
africana e indígena precisava de uma justificativa moral que advinha da religião (os negros e índios
seriam descendentes de Cam, filho amaldiçoado de Noé) e a própria condição de escravo colocava
esse homem europeu como superior aos cativos.
Entre alguns homens sensatos, algumas dúvidas foram plantadas. Montaigne (1533-1592),
que estudou o canibalismo de nossos índios tupinambás, esclareceu que mais chocante do que
162 Direitos humanos e relações étnico-raciais

pensar que humanos devoram humanos, seria pensar que cristãos matam cristãos em lutas entre
católicos e protestantes, que atearam fogo na Europa da época. Montaigne observou que “cada qual
considera bárbaro o que não se pratica em sua terra” (BRASÃO, 2013). No entanto, de forma geral
a sociedade aristocrática do Antigo Regime manteve um discurso de superioridade de sua cultura.
Algo que a sociedade burguesa só ressaltaria ainda mais.
No século XVII, o filósofo François Bernier tentou pela primeira vez classificar as pessoas
por ratio, termo latino que designa descendência, espécie ou categoria. O avanço da ciência e a bus-
ca por classificações foram vitais para a disseminação da noção de raça moderna. Carl Linneauhs
(Carlos Lineu), um botânico sueco, desenvolveu o sistema binominal de classificação dos espéci-
mes (por exemplo, o gato é Felis catus). Lineu também classificou os humanos, em 1775, segundo
raças e mantendo uma visão fortemente preconcebida dos tipos humanos unindo características
físicas de cor de pele com marcas de índole:
• americano (Homo sapiens americanus: vermelho, mau temperamento,
subjugável);
• europeu (Homo sapiens europaeus: branco, sério, forte);
• asiático (Homo sapiens asiaticus: amarelo, melancólico, ganancioso);
• africano (Homo sapiens afer: preto, impassível, preguiçoso). (NORMANDO
et al., 2010)

Essa classificação serviu de base àqueles que vieram depois, no século XIX, e seguiam a linha
de Lineu. Depois dele, J. F. Blumenbach, em 1795, estipulou que a humanidade estaria dividida em
tipos físicos mais ou menos gerais como caucasiano, mongol, etíope, americano e malaio. Durante
o século XIX, essa teoria justificou uma visão racialista da humanidade, ou seja, de que existiam
grandes diferenças entre os tipos humanos e que havia uma relação entre tipo físico e cultura.
Dessa forma, o pensamento científico do século XIX reforçou a doutrina da superioridade
europeia, adotando práticas matemáticas – medição de crânios, narizes, altura etc. – com discursos
eurocêntricos, segundo os quais a inteligência e a índole dos europeus seriam superiores às dos
asiáticos, africanos, oceânicos e ameríndios. Histórias como a de Tarzan, a qual conta como um
menino branco perdido era superior aos animais da África e se tornava rei deles (o homem branco
controla tudo, inclusive a natureza), foram repetidas de diversas formas e com variantes.
Esse conceito da superioridade da raça branca não deixou de ser visto como uma resposta à
questão da igualdade iluminista, proposta ao mesmo tempo. Enquanto o conceito iluminista de ci-
dadão engloba, em tese, todos os nascidos na pátria, independentemente de classe e posição social,
o conceito de raça aposta numa desigualdade intrínseca ao homem, que separa os seres humanos
de uma mesma nação. Tanto é assim que a teoria racialista ganhou terreno não só na ciência euro-
peia, mas também na norte-americana e na jovem ciência brasileira. Nomes de cientistas brasilei-
ros como Mena Rodrigues e Euclides da Cunha estão ligados aos estudos de raça.
Na medida em que é um conceito derivado da biologia e que as raças cruzadas geram
mestiços e seres misturados, apagando traços originais, logo, surgiram ideias de que é possível,
por meio de cruzamentos humanos, melhorar o plantel humano do país ou, ao contrário, torná-lo
Conceitos de raça, etnia e identidade cultural e nacional 163

decadente e fraco. Esse paradigma deu suporte a várias políticas de eugenia, criadas em quase
todos os Estados contemporâneos, europeus e americanos.
Eugenia é uma política de limpeza da raça por meio de proibição de geração de determi-
nados grupos, ou de miscigenação. Muitas vezes serve para argumento da detenção do avanço
de doenças hereditárias e doenças mentais. No Brasil, a política de imigração do Segundo
Império foi implantada por D. Pedro II, sob consulta do Conde Gobineau, um dos pais do
racismo moderno. Gobineau escreveu o “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas”.
Para ele, a única saída possível para o Brasil, formado por negros e índios (que, segundo sua
concepção, são inferiores), era a de importar brancos europeus e, aos poucos, eliminar os
negros, miscigenando-os até que os traços das raças inferiores desaparecessem da sociedade.
A política de importação de europeus e a segregação de negros alforriados e livres em guetos
empobrecidos eram as táticas nessa política.
Nas décadas seguintes, a ciência continuaria a aprofundar os estudos das raças erguendo
regimes sociais baseados nas desigualdades entre elas. Mesmo na África, colonizada por europeus,
o sistema racial entrou em vigor, classificando os habitantes do país. Em Ruanda, por exemplo, país
colonizado pelos belgas, estabeleceu-se um sistema em que tutsis mais altos e com narizes mais
finos, considerados “mais europeus”, eram colocados acima dos hutus, que eram os negros mais
baixos e com nariz largo (GOUREVITCH, 2006).
A ciência do final do século XIX ligava os elementos darwinistas e os racistas ao unir as tra-
dições cristãs e outras paternalistas em relação aos demais povos. Mesmo com eventos que aponta-
vam sua insustentabilidade, essas teses estavam tão arraigadas que mais se pareciam com crenças.
Dentre tantos exemplos, a derrota dos russos para os “amarelos” japoneses encheu de vergonha não
só os próprios russos, mas como também os brancos europeus, ao mostrar que as táticas modernas
e as armas poderiam ser utilizadas com maestria por oficiais inteligentes e capazes. Nenhum outro
argumento racional era capaz de demonstrar o contrário. A ciência e o senso comum continuaram
repetindo o discurso de raças. Nos censos dos países, os homens eram classificados de acordo com
sua raça, muitas vezes associada à cor de pele, de forma que o racialismo se tornou vital no estabe-
lecimento de políticas públicas.
No campo da ciência surgiram pessoas, especialmente antropólogos, que começaram a
questionar a cientificidade da teoria racialista, especialmente as derivações sociais do racialismo,
isso é, a ideia de limitações mentais ou físicas para negros ou índios nas sociedades dominante-
mente brancas. O auge da divisão racista do mundo ocorreu com a doutrina nazista, que serviu de
pavimento para regimes e grupos supremacistas pelo resto do século XX.
Hitler, que fora um artista frustrado e que fora cabo do exército na Primeira Guerra Mundial,
não entendia de ciência, mas, imbuído dos conceitos de senso comum do racialismo, colocou o
sistema alemão sob essa visão quando assumiu o poder, em 1933. Ele aprovou leis que negavam
o direito de judeus, negros, ciganos e poloneses de casar com mulheres arianas (brancas alemãs).
Em seguida, a segregação ocorreu no trabalho, nas escolas e nas cidades por meio da criação de guetos
164 Direitos humanos e relações étnico-raciais

nas áreas ocupadas. Por fim, Hitler e seus subordinados criaram campos de concentração, onde
12 milhões de pessoas perderam a vida (6 milhões de judeus).
Em oposição ao racialismo hitlerista, o socialismo e o liberalismo adotaram posições cada
vez mais opostas ao racismo. Do lado socialista, um discurso de igualdade entre povos oprimidos
pelo imperialismo e colonialismo e a abertura de universidades e postos de trabalho, bem como
a cooperação entre a União Soviética e movimentos e países africanos e asiáticos, fizeram com
que diversos estudos universitários começassem a ser feitos nas universidades africanas, incluindo
estudos da história dos povos africanos anteriores à colonização. Nos países africanos e asiáticos,
a igualdade racial foi tentada, ainda que muitas vezes os governos não conseguissem acabar com
fortes tradições.
Nos países liberais, o sistema de igualdade racial começou nas áreas mais sensíveis à pre-
sença negra, como Estados Unidos e Brasil, países onde a presença negra era muito grande e a
escravidão criou uma ciência fortemente racialista. Se pelo lado dos racistas havia um forte apelo
tradicional, por outro, a forte presença negra e sua cultura eram cada vez mais importantes no
cenário urbano moderno, criando comportamentos, formas de luta, músicas e discursos. Além
disso, cada vez mais celebridades e figuras importantes da sociedade encontraram eco de sua luta
por igualdade racial entre liberais brancos que aproximaram o Partido Democrata da plataforma
de integração e direitos civis durante as décadas de 1940 a 1960.
Com os estudos antropológicos em alta (ver conceito de etnia, a seguir), a ideia de raça
perdeu força no meio científico, mas continuou vigorando nos meios sociais, ganhando inclusive
significados mais positivos atribuídos por suas primeiras vítimas, isto é, os negros. “Raça” passou
a ser utilizada de maneira positiva. Expressões como “esse é um sujeito de raça”, “esse jogador joga
com raça”, “minha raça é negra”, entre outras, mostravam como o termo foi incorporado no dia a
dia das pessoas.
Diversos regimes mantiveram os estatutos de raça para dividir socialmente as pessoas, sendo
o caso mais conhecido e debatido no estatuto da África do Sul, onde, depois da Segunda Guerra,
construiu-se um regime de segregação baseado em leis fortes e repressivas. Por meio dessas leis,
os negros, indianos e mestiços foram considerados inferiores e não podiam frequentar determina-
dos lugares, nem podiam votar. O regime do apartheid, como ficou conhecido, mantinha a desi-
gualdade e a violência aberta contra os negros, perseguindo e matando abertamente os opositores.
O maior deles, Nelson Mandela, ficou preso de 1964 até 1990 e só obteve de volta sua liberdade
quando o regime desmoronou interna e externamente, depois que o mundo fez um boicote aos
produtos africanos. A legislação segregacionista foi suprimida, e a África do Sul se tornou uma
democracia com igualdade racial.
Por outro lado, no mesmo período pós-guerra, o conceito de raça sofreu um forte revés após
o avanço científico da época, mas continuou existente na burocracia e na vida social, o que resultou
numa volta de estudos sobre raça. Antes de negar o conceito, um grupo de antropólogos o retomou
sob um prisma mais moderno, que não levava em conta medições cranianas ou apenas achava que
a construção da raça era política e não tinha implicações sociológicas. Para esse grupo de cientistas
sociais, a raça é uma construção social que representa uma forma de identidade moderna em uma
Conceitos de raça, etnia e identidade cultural e nacional 165

série de conjunções de identidades possíveis, que misturam gênero, classe, raça, religião e outras
formas contemporâneas de identidades que formam indivíduos plurais e multifacetados.
Figura 1 – RUGENDAS, Johann Moritz. Escravos Benguela, Angola, Congo, Monjolo. In: Viagem pitoresca
através do Brasil. Paris, 1835

7.2 Etnia
Quando a sociologia surgiu entre as ciências, duas tradições foram criticadas pelos pensa-
mentos de Marx, Durkheim e Boas: a imanência da religião e a subordinação do humano à natu-
reza. Foi assim que a influência do clima ou da formação racial foi minorada diante da questão da
formação social. Seus graus de evolução não tinham a ver com a natureza, mas sim com sua posi-
ção no tecido histórico social. Em dadas condições objetivas, os grupos humanos se equivaliam em
moral, inteligência e trabalho (PINHO, SANSONE, 2008, p. 64-65). Sendo assim, a sociologia se
afastou do conceito de raça e, até mesmo entre biólogos, passou-se a usar o conceito de população
para designar um grupo mais ou menos homogêneo geneticamente.
Na antropologia e na sociologia, o termo etnia passou a ser usado para classificar grupos
humanos coesos cultural e biologicamente. Trata-se de um termo grego que designava exatamen-
te isso: grupos de mesma espécie no mundo animal ou pessoas de uma mesma tribo ou nação.
Em 1950, a ONU, por intermédio da Unesco, passou a adotar o termo grupo étnico, que designava
grupos humanos com características sociais, culturais e históricas comuns.
O termo grupo étnico tinha diversas implicações interessantes. Os grupos étnicos poderiam
ser usados de maneira indistinta pelos diversos grupos humanos, não só no presente como no pas-
sado, e davam conta de uma situação cada vez mais comum, que era a existência de grupos étnicos
com culturas e aparências diferentes dentro de um mesmo espaço nacional ou mesmo urbano.
166 Direitos humanos e relações étnico-raciais

As grandes cidades cosmopolitas sempre foram uma mistura, desde a Lisboa moderna, de 1500,
que já contava com um número expressivo de negros vivendo na cidade, bem como Amsterdã e
Londres, um pouco mais tarde. No século XX, as grandes cidades mundiais se tornaram, até o final
do século, depositárias e geradoras de diferentes culturas formadas a partir de experiências indi-
viduais no intercurso dessas diferentes culturas. Sob esse ponto de vista, o avanço do estudo que
usava o conceito de etnia foi notável.
Se no início havia, na Escola de Chicago de Antropologia, uma confusão entre os termos
étnicos, comunidade, tribo e nação, mais tarde, houve uma ampliação do significado e uma
precisão maior na metodologia em vez de uma discussão teórica.
Do ponto de vista antropológico, as conquistas foram a compreensão dos mecanismos de
sobrevivência da cultura, sua adaptação às tensões do contato com as outras culturas circundantes
e as formas como a aculturação acontecia, ou seja, como novas manifestações – músicas, compor-
tamentos, costumes – eram incorporadas e adaptadas pelos grupos sociais.
Já na sociologia, as pesquisas de grupos étnicos valorizaram as maneiras como esses grupos
se formaram e resistiram aos conflitos e problemas decorrentes de sua situação de fragilidade so-
cial, sejam imigrantes ou sujeitos a códigos racistas, sejam grupos que sofrem com alguma tensão
social, os japoneses, italianos e alemães nos Estados Unidos e Brasil durante a Segunda Guerra
Mundial, ou as minorias e as perseguições e ações do Estado contra elas.
De qualquer forma, os estudos mostravam que:
A cidade, e mais em geral o processo de urbanização, além de integrar e/ou
estigmatizar o outro étnico, também é heterogenética – cria diferença, diversi-
dade e novas oportunidades para o processo identitário, e torna mais amplo e
variado o banco de símbolos ao qual um grupo étnico pode atingir no processo
de redefinição da sua identidade coletiva. (PINHO, SANSONE, 2008, p. 165)

A diversidade de estudos sobre a questão étnica esbarrou em dois obstáculos: idealização do


passado e da comunidade e certa nostalgia do passado da comunidade, que selecionava exemplos,
relativizava situações e negava contradições. Mobilidades, aculturações e multiformações étnicas
eram muitas vezes negadas pelos pesquisadores dos anos 1960 aos 1980.
Um dos problemas decorrentes dos estudos étnicos foi o etnocentrismo branco. Dessa for-
ma, os estudos étnicos se debruçavam sobre minorias – índios, negros, ciganos –, mas não sobre a
etnia branca. Assim, o trato sobre a questão era ainda muito parecido com a questão antiga, ou seja,
a questão das minorias era considerada um problema para a sociedade “normal” e branca. Somente
nos anos de 1990, os antropólogos e sociólogos passaram a ver a relação maioria-minoria como um
debate e um conflito entre etnias de diferentes culturas.
Também nos anos 1990, a questão étnica ganhou contornos globais e os pesquisadores con-
seguiram se distanciar do elogio da cultura estática de grupos étnicos idealizados. Dessa maneira,
foi possível ver mais nuances nas relações culturais entre diferentes grupos étnicos e as suas dife-
renças internas, com membros mais atentos à cultura global.
Nos anos 2000, a crítica ao conceito de etnicidade ganhou contornos mais nítidos. Primeiro,
porque foi feita pelos ativistas e pesquisadores de fora dos Estados Unidos, por verem a teoria
Conceitos de raça, etnia e identidade cultural e nacional 167

baseada somente em casos norte-americanos ou canadenses, que teve uma forte escola. Dessa for-
ma, sem conhecimento sobre a realidade do mundo, os pesquisadores americanos lançaram bases
igualmente centradas em seus casos e exemplos.
Outro ponto de vista crítico foi o de que a visão estática da cultura sofria com a realidade
da globalização, em que modelos globais são mais fortes que heranças locais. Além disso, havia o
entendimento de que muitos dos casos de cultura tradicional eram o que Eric Hobsbawm chamou
de “tradição inventada”. Dessa maneira, uma tradição de grupos sociais era recente, inventada há
pouco, mas sua fixação na sociedade se fazia pelo discurso da tradição, dizendo que essa tradição
era mais antiga do que, de fato, era. Nos estudos de grupos étnicos, muitas vezes os pesquisado-
res acreditaram que estas tradições inventadas eram reais e antigas. A crítica consistia no fato de
que era muito comum o pesquisador enxergar somente aspectos tradicionais das sociedades, sem
entender o avanço e a mudança das comunidades. Estas, por vezes, faziam um jogo para reforçar
estereótipos a fim de mostrar a turistas e pesquisadores a real comunidade.

7.3 Identidade nacional e múltiplas identidades


Um dos pontos centrais da Antropologia e da Sociologia é a identidade dos sujeitos. Quem
são, como se identificam e como se classificam os seres humanos no planeta? Um sujeito forma sua
identidade a partir de diversas instituições sociais que se conjugam na vida: a família, a rua e seu
bairro, sua cidade, seu país, sua religião, seu time de futebol, suas afinidades culinárias ou sexuais,
políticas ou musicais, seu ofício e sua função social.
Somos também de algum jeito moldados pela nossa sociedade e pelas experiências sociais
que vieram antes de nós, mas que nos formam na medida em que o sujeito se estrutura a partir
de sua experiência circundante, dos exemplos aos quais os jovens são apresentados ao mundo de
acordo com a cultura de seus pais. Muitas vezes os jovens revolucionam o mundo, mas nunca to-
talmente e não sem arrependimento das transformações ensejadas.
As formas identitárias variaram de acordo com a história. Geralmente, tinham a ver com a
cidade e o bairro de origem do sujeito, tal como com sua classe social e ofício. Um sujeito nascido
na colina do Aventino, em Roma, plebeu e soldado, classificava-se às vezes como romano, aven-
tino, plebeu e soldado de alguma formação específica do exército romano. Por vezes, a identida-
de era religiosa, como entre os sacerdotes e seguidores das religiões. Dessa maneira, existe uma
congregação de interesses e peso da religião que, em determinados momentos, pesa mais na vida
dos sujeitos de algum lugar. Por exemplo, quando se diz que o cristianismo faz parte da formação
tradicional e da identidade da Espanha, isso se justifica porque em determinado momento, no
norte do país, o avanço mouro foi detido, de forma que aquela zona foi considerada de confronto.
Franceses, alemães, italianos, ingleses, aragoneses e castelhanos saíam de suas casas para lutar pela
cristandade, sendo essa a forma identitária que unia homens tão diferentes; sua força foi tão grande
que os séculos seguintes foram de Inquisição, rigidez religiosa e apego à ortodoxia.
As transformações identitárias tradicionais tomaram um rumo diferente na Europa no
Período Moderno (1453). Aos poucos, formaram-se Estados na Itália e depois pela Europa, crian-
do-se, ao longo dos séculos seguintes, condições para a ascensão de uma entidade territorial em que
168 Direitos humanos e relações étnico-raciais

os interesses econômicos dos Estados e/ou do rei com empresários de comércio e do monopólio
dos portos abertos para o mundo coincidiram. A economia de todo o Período Moderno europeu
foi predominantemente agrícola – mais de 80% da riqueza dos países era gerada pela agricultura –,
mas a parte dinâmica da economia, a que gerava grandes lucros e grandes perdas, era o capitalismo
comercial. O Estado moderno apresentava todas as características do Estados contemporâneos:
forças de repressão, burocratas fiscais e de fronteiras, cobrança de impostos, censura sobre o que
circulava entre os habitantes das cidades, interferência no comércio, definição da política externa e
um judiciário que legitimava, sobre o primado da lei, a ação dos burocratas e do rei.
A presença do rei era ambígua no sistema. Por um lado, a política da nobreza da época aca-
bou criando figuras de grande poder – militares que, por dom administrativo, criavam dinastias que
duravam gerações e que só eram retiradas do poder por meio do uso da força. Se bons reis faziam
bons governos, reis ruins podiam despedaçar e enfraquecer reinos para sempre. Porém, mais que isso,
os reis não permitiam a criação de uma identidade nacional verdadeira. A fidelidade era a ele, monar-
ca e príncipe. Pouco importava a origem de classe, língua ou local de nascimento do sujeito para que
ele fosse súdito de um rei que, muitas vezes, tinha domínios não contíguos.
É possível analisar o caso da Dinastia dos Habsburgos, que foram arquiduques da Áustria
(1363-1780), reis da Croácia, da Boêmia e da Hungria (1526-1780), reis dos espanhóis (1516-1700),
reis de Nápoles e da Sicília (1516-1700), reis dos portugueses (1580-1640) e grandes príncipes da
Transilvânia (1690-1780), além de terem sido duques da Borgonha e condes da Holanda. Um rei
com tantos súditos diferentes não podia esperar unidade linguística, econômica e identitária entre
eles; só a fidelidade de seus súditos a seus interesses era necessária. Do ponto de vista simbólico,
o Estado girava em torno do monarca, dos seus feitos e dos seus símbolos e caprichos pessoais
(BALAKRISHNAN, 2000).
O Estado absoluto entrou em colapso depois que o Iluminismo começou a questionar o
poder absoluto dos reis e da religião, de forma que as autoridades foram abertamente questiona-
das. O surgimento de uma doutrina de direitos humanos e de cidadania se implantou em grupos
burgueses e até mesmo aristocráticos, enquanto ganhava o povo da Europa. Quando a Revolução
Americana e a Revolução Francesa eclodiram, em 1776 e 1789, respectivamente, um dos termos
revolucionários era nação.
A nação era uma entidade nova – se não a palavra, o seu novo sentido, que proporcionava
um tom político. Surgia como uma novidade revolucionária, o Estado, a língua, o povo, os costu-
mes e a visão de mundo, o território, as regiões federadas e as histórias comuns. Todas as diferenças
sociais se obliteravam diante da nação, que carregava um sentido simbólico e político, já que englo-
bava, também, seus representantes e sua autodeterminação.
O conceito de nação era revolucionário, pois, diante do Antigo Regime, que proporcionava
acesso a poucos, a nação incluía a todos – se não no voto, na concepção de que mesmo esse sujeito
tinha direitos que o Estado respeitaria e faria os outros respeitarem. Esses direitos são os chamados
direitos humanos e universais, base das leis norte-americana e francesa. O Estado nacional passou
a não ter mais o rei como referência, mas sim uma entidade abstrata, que era a nação, os seus sím-
bolos e a sua sobrevivência, sustentados e mantidos pelo povo.
Conceitos de raça, etnia e identidade cultural e nacional 169

Depois da Revolução e do Império Napoleônico, a nação se tornou um conceito manipu-


lado pelos conservadores do mundo todo. Nas regiões onde o absolutismo vigorava mais forte,
nação era ainda uma palavra carregada de sentido aguerrido, mas nas regiões onde o conser-
vadorismo venceu, enfraquecendo o garrote sobre o povo, passou a ter seu sentido atrelado ao
discurso da elite que mantinha a máquina estatal em suas mãos.
A nação, apesar de ente social e histórico, era apresentada como um todo orgânico e trans-
cendental que sempre esteve presente, pronto para se formar. Dessa maneira, quando se buscava a
história das nações, apelava-se para a geografia. Qual é o mapa atual da nação? Essa será a geografia
da história nacional. Qual é a língua da nação? Então, busca-se sua origem e a valorização da língua
“nacional” em detrimento das outras.
A língua nacional era a língua do rei ou da região central. Na França – em Ile de France e
Paris, o bretão, o alsaciano e o occitano foram mantidos como curiosidades da formação nacional.
Na Grã-Bretanha, predominou o inglês do rei, enquanto nos Estados Unidos houve debate intenso
sobre qual língua adotar após a independência, já que existiam numerosos falantes de espanhol,
alemão e holandês no país. Na Espanha, o castelhano pouco se impôs sobre o catalão e o basco, as
mais fortes línguas regionais da Península Ibérica, sempre almejando a independência da Espanha.
Na Alemanha, o alto alemão da Prússia também demorou a impor sobre as falas regionais, ainda
bem usuais.
Os agentes de propagação da língua são o Estado, a Justiça, a escola, o exército e a imprensa.
Tudo isso valoriza a língua nacional. Primeiro, elege-se uma língua, e os gramáticos a tornam mais
ampla com contribuições regionais (uma interiorização de idiomas regionais). Depois, fazem-na
se fechar para o mundo e para influências estrangeiras. Do mesmo jeito que a raça deveria se
manter pura, a língua nacional deveria se eximir de contato com outras, evitando estrangeirismos
(ANDERSON, 2008).
A nação também precisa de símbolos fortes. A bandeira, o hino, o brasão e o território
eram vistos como entes que deveriam ser protegidos. As cores nacionais passaram a ser usadas
nas festividades promovidas pelo Estado, sendo, nos momentos de luta, símbolo pelo qual mor-
riam homens aos milhões. O hino passou a ser cantado nas escolas, pelo exército e nas festivida-
des teatrais e depois desportivas, somando-se ao universo emocional dos homens. No momento
de dor nacional e de vitória, o hino tem o papel de enaltecer as glórias. Associado às bandeiras e
às cores nacionais, provoca os sentimentos dos sujeitos. Os símbolos nacionais geralmente não
podem ser degradados. São vistos como parte do território nacional, cuja usurpação é grave e
merece resposta militar.
Aos poucos, ao longo do século XIX, foi-se dando mais importância para a nação, a partir
de diversas teorias que tentavam explicá-la, inclusive a naturalizando ou a colocando como a única
forma possível de organização social contemporânea. O sentimento nacional demorou um século
para se tornar a pedra angular da política internacional. O nacionalismo é o surgimento da con-
cepção de excelência da nação; de que a nossa nação é melhor que as outras e de que o amor pela
nação deve vir antes de tudo, inclusive da justiça e da razão. A frase “minha pátria, certa ou errada”,
170 Direitos humanos e relações étnico-raciais

atribuída ao político americano Carl Schurz, mostra como a nação tomou conta da política e da
noção de moral, subordinando tudo à sua vontade.
Com esse entendimento, o nacionalismo logo se tornou um sentimento manipulado pelos
homens do poder para mobilizar as massas na luta pela manutenção do Estado ou seu alargamen-
to. Os interesses de capitalistas, militares, donos de terras e até de donos de jornais se sobrepunha
às vidas de milhões de mortos em conflitos cada vez mais sangrentos. A era das nações matou,
entre os séculos XIX e XX, mais de 100 milhões de pessoas em conflitos abertos, sem contabilizar
perseguições aos não nacionais, expropriações e deslocamentos forçados de minorias que eram
vistos como ameaça à nação. Tanto os movimentos de independência africanos e asiáticos como a
luta contra o imperialismo, o fascismo e o antifascismo se utilizaram do sentimento nacional para
inspirar homens e mulheres na luta social durante os séculos XX e XXI.
As identidades nacionais são consideradas naturais no senso comum e no discurso de
políticos, mas os teóricos perceberam o caráter discursivo e simbólico da nação. Foi Benedict
Anderson quem marcou essa abordagem, quando tratou das nações como entidades imaginadas.
Para ele, a forma como o Estado capitalista se estruturou precisava de uma identidade nova para
reinos antigos, então, a nação foi a forma escolhida, pois abrangia elementos essenciais para a
propagação dos interesses econômicos e sociais das elites dos países.
Mesmo os novos povos e as novas nações que surgiram dos conflitos dos séculos XIX e XX,
conjugando língua, território e história novos, construíram um discurso em que a existência da
nação se naturalizava. Tentavam, assim, nivelar a sociedade do ponto de vista cultural e simbólico,
fazendo com que todas as diferenças sociais fossem minoradas pela igualdade teórica sob a nação
e sua história muitas vezes fantasiosa. Se a nação foi a forma contemporânea de agrupar grandes
grupos de homens sob o mesmo interesse, seus limites começaram a ser enxergados na segunda
metade do século XX. O nacionalismo foi visto de forma negativa depois de o fanatismo alemão,
italiano e japonês terem levado o mundo ao desastre da Segunda Guerra Mundial. Como conse-
quência, o nacionalismo foi colocado como uma doutrina extremista e violenta, que desprezava a
realidade do mundo e da própria nação.
O nacionalismo obscurantista esquecia ou suprimia violentamente o dissenso e a diversi-
dade. Em lugares em que a participação do Estado era a de manter privilégios sociais arraigados,
sistemas de distribuição de renda desiguais e uma legislação preconceituosa contra uma minoria,
o Estado nacional foi combatido internamente por forças igualitárias. Aqueles que o mantinham
acabaram confundindo na imprensa e em suas peças de propaganda esses sistemas de privilégios
com a própria nação, levando a um rompimento entre esta e determinados grupos discriminados.
Esse fator levou a força do Estado contra essas pessoas, que passaram a ser vistas não mais como
uma força da sociedade buscando igualdade, mas sim como uma força contra a sociedade e a nação.
Por fim, no final do século XX, um movimento de globalização acelerou com as tecnolo-
gias da comunicação e a venda de artigos globais em um mercado global. Os Estados passaram
a incentivar o capitalismo global, abrindo fronteiras e baixando tarifas para importar produtos
de tecnologia. De forma cada vez mais frequente, a aldeia global começou a seguir modelos de
Conceitos de raça, etnia e identidade cultural e nacional 171

comportamento e consumo progressivamente mais parecidos, a ter modelos globais e a se interes-


sar sobre os assuntos do mundo.
As formas de identidade começaram a se dissolver diante do mundo novo. Pessoas passaram
a se identificar globalmente umas com as outras não mais devido à sua origem, mas em razão de
uma série de novos elementos, como interesses culturais e comportamentais. Dessa forma, não se
lutava mais por uma política nacional, mas sim por um mundo de direitos para todos. As causas
comuns dos homens a despeito de sua origem nacional passaram a alimentar uma onda global de
protestos, solidariedade e pressão sobre governos em favor de diversas causas que, agora, eram ti-
das como globais. Homossexuais, mulheres, negros e indígenas de todo o mundo passaram a ver
seus direitos, temores e desejos como uma causa global que deve ser pleiteada no mundo todo.
O que une um homossexual nepalês a um americano é a luta comum de ambos por direitos e
a solidariedade existente entre eles. Parte importante da identidade desse homem não é mais a
nação, mas seu comportamento e sua orientação sexual – e essa pode ser mais importante que
o sentimento de nação, da mesma maneira que é possível pensar em outros diversos comporta-
mentos e identidades transnacionais que existem no mundo e que parecem orientar as pessoas
nas suas vidas cotidianas.
No final dos anos 1990, já se falava no fim das nações, mas isso não aconteceu. Mesmo na
União Europeia, que permitiu que tanto o capital como o trabalhador atravessassem as fronteiras
nacionais, o sentimento nacional se manteve e, em alguns casos, recrudesceu, especialmente entre
setores conservadores que enxergam na abertura das fronteiras o fim do Estado nacional e da na-
ção como identidade cultural.
Franceses, alemães, ingleses, italianos e norte-americanos fazem um discurso pessimista so-
bre a globalização e o fim da nação. Muitos ainda enxergam a nação como tendo uma base racial
e condenam a mistura de raças. O preconceito é maior com negros africanos, árabes e asiáticos,
mas não é raro existir preconceito contra brancos empobrecidos na própria Europa. Poloneses ou
moldavos sofrem com o preconceito na França, por exemplo. A manutenção da nação, racial e
culturalmente, passou a ser vista como uma das principais bandeiras dos conservadores europeus
e norte-americanos e é condenada por grupos humanitários e de esquerda que não veem a mistura
cultural como um problema.
Como o século XXI enfrentará o problema das identidades nacionais e transacionais per-
manece um mistério, mas o fato é que a própria identidade nacional tende a mudar, e os grupos de
pressão das minorias contarão com um apoio global. Talvez a abertura de direitos mais igualitários
entre todos na nação seja a saída para uma nova busca de identidade do sujeito com a nação, mais
uma vez vista como o local da realização dos direitos amplos de cidadania e liberdade dos homens
e das mulheres.
As nações que mantiverem privilégio para alguns e poucos direitos para muitos continuarão
enfrentando uma oposição que, no limite, quer se afastar da nação privadora de direitos. As nações
que proporcionam direitos amplos tendem a ser acalentadas como nações modernas e a levar os
homens ao retorno a elas mesmas – não mais como um Estado imposto sobre a sociedade por uma
minoria, mas como a construção de um território pleno de direitos e de felicidade individuais.
172 Direitos humanos e relações étnico-raciais

7.4 A identidade nacional brasileira


O Brasil, ainda como território português, foi uma praia na Bahia; depois, uma faixa
de solo Massapê no litoral nordestino; e, durante dois séculos, foi o litoral e uma parte de
interior ainda muito próxima do mar. No século XVIII, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e a
Amazônia foram conquistados.
Em 1750, o formato da Colônia não era muito diferente do atual Brasil, mas suas relações
estavam longe de serem simples. A nação brasileira só nasceu em 1822, mas já de forma superla-
tiva, com um território imenso conquistado ainda como Colônia e que tinha diversas populações
indígenas às centenas, negros de dezenas de lugares distintos da África, espanhóis, portugueses,
mestiços, holandeses e até indianos que falavam uma série de línguas próprias ou intermediárias.
Do ponto de vista das relações econômicas, por exemplo, a província do Pará mantinha uma
comunicação mais constante e intensa com Lisboa do que com o Rio de Janeiro, verdadeiros estra-
nhos à época. Tal fato mostra que o Brasil tinha dificuldade em criar um projeto de nação, pois os
interesses eram muito distintos e a coesão política não se fez em torno do poder político da nação,
mas de seus privilégios econômicos e sociais.
No Brasil, a nação surgiu forçada por uma elite que se apropriou da palavra nação para criar
um Estado desigual sustentado pelo latifúndio monocultor e na escravidão. Dessa forma, a nação
não surgiu como uma alternativa para englobar, mas sim como uma nova maneira de excluir e
apartar. O governo monárquico mantinha seu poder absoluto nomeando senadores e presidentes
da província e mantendo os ministros atrelados à sua vontade. Já a elite dos fazendeiros, além de
tomar de assalto os cargos e privilégios do Estado em seus níveis regionais, mantinha a escravidão
e o poder local. Com essa aliança, o poder político se manteve nas mãos de uma minoria por todo
o império.
Para os brasileiros brancos de então, a verdadeira identidade brasileira era a herança dos
portugueses brancos e católicos da elite. Todos os demais grupos indígenas, negros e mesmo imi-
grantes europeus eram desprezados. O Brasil tinha fidelidade com o seu monarca e com uma
história que começou a ser resgatada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, mas não teve
um sentimento nacional até a Guerra do Paraguai.
Durante a guerra, recrutamentos, leituras de notícias e leis e paradas militares eram feitas
com a bandeira e o hino. A máquina de guerra precisava de heróis: a mãe de Deodoro, ao receber
a notícia da morte dos filhos na guerra, enfeitou sua casa com as cores nacionais e não pranteou,
alegre pelo fato de os filhos terem dado a vida de maneira heroica pela pátria. Essa postura mostra
que a nação não desperta sentimentos banais nas pessoas – e como a guerra matou 50.000 brasilei-
ros, havia muitos heróis.
No regime republicano instaurado em 1889, mantiveram-se os mesmos grupos poderosos
com uma identidade excludente. O pensamento racialista e racista da elite brasileira marcou a obra
literária e jurídica brasileira e foi responsável pela perpetuação de tratamentos oriundos do trato
da escravidão. A proposta federalista dos gaúchos foi rejeitada em nome de um poder centraliza-
do, mas este permitiu às elites regionais o controle completo da política estadual – o que levou a
Conceitos de raça, etnia e identidade cultural e nacional 173

uma acirrada disputa regional pelo poder entre famílias poderosas. Os imigrantes brancos eram
bem-vindos para trabalhar, mas seus costumes eram considerados estranhos e muitos viviam em
colônias fechadas, onde a “brasilidade” demorou a chegar.
Os negros e os índios formadores do Brasil eram desprezados pela elite, e só foram resgata-
dos por um novo conceito e ideia de Brasil. Foram os modernistas que olharam para o Brasil com
olhos mais complacentes, instigados pela curiosidade sociológica brasileira. O resgate do folclore
brasileiro, por Mário de Andrade e pelos modernistas, e a valorização do índio e do negro come-
çaram fortemente nas artes. Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral trouxeram esses temas para suas
pinturas, e os mitos indígenas e os negros apareceram como o verdadeiro Brasil.
Também na década de 1930, a sociologia brasileira foi impulsionada. De obras racistas como
as de Euclides da Cunha e Raymundo Nina Rodrigues, surgiram obras que redescobriam o Brasil e
sua identidade. Gilberto Freyre, por meio de Casa-grande & senzala, mostrou a herança dos negros
e índios sobre um prisma positivo, apontando o quanto o brasileiro devia sua alegria, melancolia,
sociabilidade, desconfiança e jeito de ver de mundo ao contato entre raças e à sua miscigenação em
larga proporção. Já Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, procurou entender como os
brasileiros lidavam com a relação entre público e privado e como essa relação era marcada por um
prisma afetivo e pessoal (“o homem cordial”).
Nos anos 1930, o passo decisivo da nova identidade nacional brasileira foi a aceitação das
heranças raciais e sua ideia de assimilação a um todo brasileiro. Esse passo se tornou política de
Estado com a ditadura de Vargas, instaurada em fins de 1937 e que durou até 1945. Durante esse
período, a brasilidade ganhou contornos nítidos: o samba, a despeito de ser uma música carioca,
tornou-se a música brasileira e, depurado de seu elogio à malandragem, o Estado Novo incentivou
também a feijoada, que ganhou status de comida nacional. O feijão preto, o arroz branco, a laranja
amarela e a couve verde, somada à farinha de mandioca indígena, formava a própria imagem que
reunia harmoniosamente as raças formadoras do Brasil (negro, índio e branco) e as cores nacio-
nais. A bandeira brasileira e o hino ganharam escolas e ruas em um amor patriótico, enaltecido
pelo governo e seu líder. A Segunda Guerra Mundial reforçou a ideia nacionalista.
Nos anos 1950 e 1960, o Brasil cresceu e se tornou mais global, de modo que entraram em de-
bate as influências estrangeiras sobre a cultura brasileira, como o jazz e o rock, o cinema americano e
os padrões de consumo contemporâneos. Com o regime militar, o nacionalismo brasileiro foi agigan-
tado por meio de uma propaganda massiva nos cinemas e na televisão, sempre girando em torno da
herança das três raças e na acolhida respeitosa aos estrangeiros. Por trás dessa imagem produzida ha-
via uma forte desigualdade, social e legal, que afastava os pobres e os periféricos de governo e Estado
brasileiros e mesmo da sociedade que era veiculada na televisão, muito diferente do Brasil real.
Depois da redemocratização, repensou-se o Brasil. Diversos movimentos sociais e grupos
minoritários mostraram um Brasil diverso, repleto de contradições: grupos arcaicos e modernos
que conviviam em um mesmo espaço de trabalho, de diversão e até mesmo familiar. Tratava-se
de um Brasil que mostrava diversas regiões com suas heranças locais e sua relação ambígua, de
orgulho e diferenciação, e que se relacionava com o mundo globalizado de maneira muito peculiar,
com uma sociabilidade cada vez mais tecnológica, mas ainda com diversos traços culturais antigos,
174 Direitos humanos e relações étnico-raciais

revalorizados pelos grupos sociais urbanos que buscavam a junção entre a história do país e a de
suas vidas, dando significação a si mesmo no mundo.
Nas décadas de 1980 e 1990, os movimentos negro, das mulheres e dos índios ressurgiu forte-
mente. A luta pela redemocratização terminou, de forma que todos podiam, então, lutar pelas suas pró-
prias agendas. O mito do Brasil sem racismo, da cordialidade do brasileiro, caiu por terra com a emer-
gência da violência urbana e das manifestações de racismo sendo combatidas pelos grupos organizados.
Com a Constituinte e os anos 1990, os negros e pardos tiveram mais visibilidade e suas lutas
surgiram nas favelas. O movimento black, que era forte nos anos 1970 e 1980 nas favelas cariocas e
que ressaltava a alegria da descoberta do black is beautiful (o negro é lindo), por exemplo, transfor-
mou-se no rap paulista dos anos 1990, que denunciava o problema do tráfico e a violência policial.
A luta dos negros e pardos conscientizou os brasileiros do papel ainda maior desses agentes
na sociedade, cultura e história brasileiras, transformando o conhecimento sobre o tema e criando
condições políticas e culturais para a inserção de disciplinas sobre o tema nas universidades e es-
colas de todo o Brasil.
Graças à Lei n. 10.639 (BRASIL, 2003), o ensino da disciplina História e da cultura
afro-brasileira se tornou obrigatória nas escolas e universidades de todo o Brasil, diante do re-
conhecimento oficial da necessidade de todo brasileiro saber identificar as matrizes africanas
de nossa cultura nacional.

Dicas de estudo
• Sobre escravidão: Amistad, de Steven Spielberg, 1997.
Filme. Conta a história real de um navio negreiro espanhol, apreendido pelos americanos,
que resultou num processo que antecipa o conflito da Guerra Civil.
• Sobre eugenia: Homo sapiens 1900, de Peter Cohen, 1998.
Documentário. Traça os princípios da eugenia, ou a busca de uma raça pura e melhorada.
Morte, castração, leis que proibiam casamentos e outras formas de segregação eugênica
foram implantados em diversos países nos século XIX e XX.
• Sobre a formação brasileira: O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, 2000.
Documentário. Entrevistas com o antropólogo Darcy Ribeiro sobre a formação do Brasil
e do povo brasileiro e suas várias matizes.

Atividades
1. Descreva o surgimento do conceito de raça e sua utilização política.

2. Qual é o conceito de etnia e como ele se contrapõe ao conceito de raça?

3. Como se deu a formação da identidade nacional brasileira?


8
A África lusófona:
um pouco de história

Claudia Amorim

O objetivo deste capítulo é apresentar um breve panorama da ocupação portuguesa na


África, que se iniciou na segunda década do século XV (1415), com a conquista da cidade de
Ceuta, no Marrocos, e se finalizou na segunda metade do século XX, com a independência dos
cinco países africanos colonizados pelos portugueses.
Durante esses cinco séculos de ocupação portuguesa, a cultura do colonizador se misturou,
ainda que timidamente, com a do colonizado, malgrado os esforços dos europeus em impor a cul-
tura dominante. Antes da chegada do europeu na África, quase nada se sabia sobre o modo de vida
ou sobre a organização dos grupos étnicos que lá viviam, porém é inegável que a cultura secular
e ágrafa desses povos permaneceu e se difundiu por outros territórios ocupados pela nação lusa,
como o Brasil, por exemplo, que recebeu um grande número de escravos provenientes do conti-
nente africano, especialmente do Congo, da Guiné e de Angola (grupo étnico banto) e da Nigéria,
Daomé e Costa do Marfim (grupo étnico sudanês).
No Brasil colonial, a cultura portuguesa do colonizador, a cultura africana e a cultura in-
dígena foram os pilares da constituição do caráter brasileiro, ainda que o colonizador europeu,
branco, tenha subjugado o negro e o índio e suas culturas não cristãs e, por isso, naquela época,
consideradas “inferiores”.
Contemporaneamente, os laços culturais que aproximam a cultura brasileira da África lusó-
fona são inúmeros e passam, entre outras coisas, pela música, pelas crenças religiosas, pela culiná-
ria e pela literatura que se expressa em português.
Assim, para falarmos da cultura e da literatura africana, e de seus inegáveis laços com o
Brasil, precisamos voltar no tempo e observar que, sem os empreendimentos marítimos dos por-
tugueses que os levaram a algumas regiões da África, e também ao nosso território, essa história
seria bem diferente.
Comecemos, então, por estudar a África lusófona, ou seja, a África dos cinco países que
falam hoje o português (Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique),
focalizando primeiramente a chegada do português a essas regiões.

8.1 Breve panorama histórico da África lusófona


No ano de 1415, os portugueses tomaram dos mouros, em apenas um dia de combate, a
cidade de Ceuta, no Marrocos. Essa importante vitória da cristandade sobre os “infiéis”, já nos pri-
mórdios do Renascimento, guarda um significado simbólico também por ter sido exatamente de
176 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Ceuta que Tarik e o seu exército de 7 mil berberes partiram no ano de 711 para invadir a Península
Ibérica, permanecendo nesta durante sete séculos.
Para além do espírito cruzadístico dessa empreitada, a conquista de Ceuta foi o primeiro
passo do caminho que levou os navegadores portugueses da Península Ibérica ao Extremo Oriente
e ao Brasil no final do século XV e início do século XVI.
A cidade de Ceuta era o ponto de chegada das rotas comerciais oriundas do sul da Berbéria
(nome com que os europeus designaram, até o século XIX, a região que hoje compreende o
Marrocos, a Argélia, a Tunísia e a Líbia – o atual Magreb, com exceção do Egito) e das caravanas
com o ouro proveniente da Guiné. Essas riquezas encontradas em Ceuta fizeram com que os por-
tugueses adivinhassem que havia outras maiores espalhadas em alguns pontos do continente afri-
cano. Na intenção de dominar esse comércio, ao mesmo tempo em que buscava contato com um
suposto soberano cristão na África – Preste João das Índias1 –, a política de expansão portuguesa
adotou a exploração da África em detrimento da ocupação de territórios ao longo do Mediterrâneo.
Assim, a expansão portuguesa teve início no norte da África, seguiu para o sul ao longo da
costa ocidental africana, alcançando as ilhas do Atlântico e depois avançou pela costa oriental do
continente africano ao longo do Oceano Índico, em direção ao Oriente e ao Extremo-Oriente, che-
gando finalmente à região do Atlântico Sul com a colonização do Brasil.
O desejo de lutar contra os mouros e de alargar o “império de Cristo” entre os povos não
cristãos foi se misturando, pouco a pouco, a perspectivas economicamente mais enriquecedoras. A
exploração da Costa Africana onde os navegantes encontraram pimenta malagueta, canela e outras
especiarias, além do marfim e do ouro, mostrava-se bastante lucrativa. Assim, novas expedições
se organizaram pelos mares já navegáveis da Costa ocidental e oriental da África, marcando um
período da história conhecido como Descobrimentos Portugueses.

8.2 A colonização das ilhas do Atlântico e da Costa africana


Nos anos seguintes à tomada de Ceuta, os navegadores portugueses empreenderam seu mo-
vimento para o Sul, chegando em 1418 à ilha de Porto Santo, em 1419 à Ilha da Madeira, em 1427
aos Açores, em 1460 às ilhas de Cabo Verde e em 1470 às ilhas de São Tomé e Príncipe, todas desa-
bitadas. Nos primeiros arquipélagos – Porto Santo, Madeira e Açores – o clima favorecia a ocupa-
ção e o trabalho na terra, e ali se estabeleceram, então, as primeiras colônias de povoamento. Nos
demais arquipélagos – Cabo Verde e São Tomé e Príncipe –, os portugueses fundaram colônias de
plantação, não se preocupando com o povoamento da região.
Nas terras continentais, no ano de 1446, os portugueses alcançaram a Guiné-Bissau (que
colonizaram com o nome de Guiné Portuguesa), em 1483 chegaram à região que hoje se conhece
como Angola e, após a viagem de Bartolomeu Dias, que venceu o Cabo das Tormentas (renomeado
para Cabo da Boa Esperança, devido ao sucesso da empreitada), Vasco da Gama pôde preparar sua

1 Nos séculos XV e XVI corria uma lenda na Europa de que havia um rei cristão no Oriente, cujo nome era Preste João
das Índias, e acreditava-se que seu reino, que não se sabia precisar exatamente onde ficava, mas que se pensava ser na
África, poderia ser aliado europeu para a exploração do caminho marítimo para as Índias. A Coroa portuguesa, a partir
dos relatos de viajantes e peregrinos, tentou encontrar o reino de Preste João com o desejo de fazer possíveis alianças.
A África lusófona: um pouco de história 177

armada para uma viagem até a Índia. Em 1488, Gama partiu da Praia do Restelo em Lisboa, onde
está atualmente a Torre de Belém, avançando para o Sul até alcançar o Oceano Índico. Antes que
o propósito de sua viagem se concluísse, as caravelas portuguesas aportaram em Moçambique no
ano de 1489.
Em cada lugar em que as caravelas portuguesas aportavam, um padrão de pedra com
as armas e o brasão português era fincado. O padrão simbolizava a posse oficial do território.
Essa medida da Coroa portuguesa visava a desencorajar intrusos e reforçar o senhorio sobre
as terras ocupadas.

8.3 O Império Colonial português nas ilhas e nas terras africanas


A extensão do Império português no Oriente e no Extremo Oriente obrigou a Coroa por-
tuguesa à fragmentação das possessões portuguesas na África. O alto custo da manutenção em
algumas cidades do Marrocos fez com que a Coroa abandonasse essa região. Os gastos numerosos
com a defesa da Costa da África, especialmente com os ataques de corsários e comerciantes de
outros países europeus, enfraqueceram a Coroa portuguesa. Porém, mesmo com esses revezes, nos
séculos seguintes, o Império Colonial português se sustentou e as colônias portuguesas na África
continuaram a ser sistematicamente exploradas. Para garantir as terras na África, a Coroa portu-
guesa concedia as terras, por um período de tempo limitado (cerca de três gerações), aos colonos
que desejassem explorá-las. Ao fim desse período, a concessão deveria ser renovada. Os colonos
tinham como tarefa defender os interesses portugueses nas terras do além-mar e pagar por essa
concessão com o produto dos territórios que lhes eram confiados. No entanto, gradativamente, o
mundo dos senhores ia se misturando com o dos africanos e indianos locais, alterando as relações
de poder.
Nesse período, outro negócio começou a ganhar força – o tráfico negreiro. Por volta de 1648,
os portugueses ocuparam os locais estratégicos no comércio de escravos, que se tornou indispen-
sável a todas as colônias da América. A economia de plantação – especialmente na América – de-
mandava uma maior exportação de escravos africanos que se tornou sistemática. Entre os anos de
1502 e 1860, 9,5 milhões de africanos foram deportados para o continente americano, e, no século
XVIII, com a descoberta do ouro em Minas Gerais e a necessidade de extraí-lo, muitos negros da
região de Angola foram enviados ao Brasil.
A Guiné Portuguesa foi inicialmente a principal fornecedora de mão de obra escrava para
o continente americano, sendo depois substituída por Angola, país que manteve essa posição até
o século XVIII. Nos fins desse mesmo século e durante o século XIX a região do Golfo da Guiné
ocupou a supremacia do tráfico negreiro, que havia sido de Angola no século anterior, e a feitoria
de São Jorge da Mina, em Gana, foi o principal porto de escoamento de escravos para a América.
O início do século XIX trouxe mudanças significativas para a situação da África portuguesa.
Com a independência do Brasil, em 1822, Portugal se viu pressionado a enfrentar as demais potên-
cias europeias para assegurar seus direitos sobre os territórios africanos ocupados.
Pressionado pela política europeia, Portugal extingue o tráfico negreiro no Império em 1842
e, em 1869, declara o fim da escravidão, embora esse tráfico continuasse a ser feito durante os
178 Direitos humanos e relações étnico-raciais

anos seguintes. Nas colônias, a política de exploração das riquezas tinha seguimento e, para tanto,
Portugal precisou instituir uma legislação trabalhista que obrigava o nativo ao trabalho forçado nas
plantações de algodão ou nas obras públicas.
Paralelamente às pressões externas, ao longo do século XIX, a vida nos territórios africanos
mudava lentamente. A essa altura, uma população mestiça e burguesa, ainda que em número re-
duzido, vai se formando nas colônias do ultramar, reivindicando melhores condições para essas
terras. Aparecem os primeiros assimilados, nome pelo qual eram identificados os descendentes de
portugueses, geralmente mestiços, nascidos na África, que recebiam uma educação mais formal.
Nessa época, alguns poucos jornais circulavam pelas mais importantes cidades da África portugue-
sa, instaurando a necessidade de uma educação nas regiões mais importantes do ultramar.
As demais nações europeias, interessadas em repartir a África, pressionaram Portugal a abrir
mão de alguns de seus territórios. Na Conferência de Berlim, de 1885, Portugal perdeu o Congo
e teve que se contentar com o enclave de Cabinda, região próxima à Angola. No entanto, apesar
desse recuo, Portugal era, no fim do século XIX, senhor de 2 milhões de quilômetros quadradros
no território africano.

8.4 A independência dos cinco países africanos lusófonos


A Guerra Colonial durou 13 anos – de 1961 a 1974 – e pôs fim à ocupação portuguesa
no território africano. Essa guerra ficou conhecida, ainda, entre os portugueses, como Guerra do
Ultramar ou Guerra da África. Entre os povos dos territórios ocupados duas denominações foram
adotadas: Guerra de Libertação Nacional e Guerra pela Independência.
Ao longo desses cinco séculos de domínio português nas colônias da África, houve muitas
tentativas de resistência dos povos locais, mas a supremacia bélica dos portugueses, aliada às dispu-
tas políticas entre as diversas etnias das regiões ocupadas, favoreceram o domínio lusitano, dando
lugar ao Império Colonial português, que abrangia não só territórios na África, mas também na
América do Sul, com o Brasil, e, ainda, na Índia e na Ásia.
Quando os primeiros europeus desembarcaram nas terras africanas, encontraram Estados
organizados politicamente, mas essa organização não foi capaz de reverter a ocupação europeia,
pois o desenvolvimento técnico dos Estados africanos, incluída a tecnologia de guerra, era inferior
ao dos portugueses.

8.5 A República portuguesa e o golpe militar de 1926


No início do século XX, a situação das colônias africanas lusófonas não se alterou muito
em relação ao século anterior. Segundo Enders (1997, p. 69), para “Portugal, como para as outras
potências europeias, a colonização supõe a conquista, o desenvolvimento de uma economia de
exportação e a submissão da mão de obra indígena para o trabalho e para o imposto”. Com isso, o
trabalho de exploração das terras africanas, sem nenhum investimento econômico, continuou e se
agravou com o início das duas grandes guerras mundiais.
A África lusófona: um pouco de história 179

A curta vida da República portuguesa, que surgiu em 1910 e foi derrubada pelo golpe militar
de 1926, põe fim às pretensões dos republicanos, inaugurando um longo período ditatorial marcado
por perseguições de toda ordem, retrocesso político e econômico, com reflexos graves nas colônias
do ultramar. Em 1928, Antônio de Oliveira Salazar – um professor de Coimbra – foi convidado a
assumir a Pasta das Finanças do país e a partir dessa data inaugurou-se um período difícil da história
de Portugal. É o início da ditadura salazarista, nome pelo qual ficou conhecido o regime ditatorial em
Portugal, que teve início em 1926 e só terminou em 1974, com a Revolução dos Cravos.
Como observa José Paulo Netto (1986, p. 18), durante a ditadura salazarista “um projeto
econômico-social se integra organicamente à repressão antipopular e antidemocrática. Trata-se,
explícita e nitidamente, do projeto fascista do grande capital, de que Salazar se fez um funcionário
coerente, lúcido e pertinaz”.
Entre 1929 e 1933, Salazar acumulou os Ministérios das Finanças e das Colônias, e com mão
de ferro tomou medidas duras contra a enfraquecida oposição. Em 1932, instaurou o Ato Colonial,
que instituiu o trabalho forçado para os nativos das colônias, obrigando a população negra a servir
por um determinado período de sua vida ao Estado ou a um patrão europeu. Esse Ato Colonial
era, na verdade, uma reedição do trabalho forçado instituído no século XIX pela Coroa Portuguesa
aos nativos dos territórios africanos ocupados. Além disso, a ditadura salazarista criou a polícia
política portuguesa – PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), mais tarde conhecida como
PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), que também teve sua área de atuação nas colô-
nias do ultramar, especialmente nos anos 1960, quando se inicia um movimento de grande revolta
nas colônias contra a política da Metrópole.
Além do trabalho forçado nas colônias africanas, instituído pelo Ato Colonial, o regime
português continuou a explorar vorazmente suas riquezas, especialmente algodão, cana-de-açúcar,
café, petróleo, entre outros produtos. Os lucros obtidos com essa exploração eram revertidos para a
Metrópole, ao passo que as colônias amargavam uma situação de penúria e ausência de perspectiva.
O descontentamento com essa política de exploração aumentou visivelmente na década
de 1950 e, durante essa mesma época, disseminaram-se na África as ideias do Movimento da
Negritude, criado em 1934, em Paris, por um grupo de poetas e intelectuais negros. O Movimento
da Negritude defendia uma revolução na linguagem e na literatura, a fim de reverter o sentido pe-
jorativo da palavra negro e dela extrair um sentido positivo. Em 1939, o poeta negro martinicano
Aimé Césaire a utilizou pela primeira vez em um trecho do “Cahier d’un Retour au Pays Natal”
(Caderno de um regresso ao país natal), poema que se tornou a obra fundadora do movimento.
Inspirados pela luta dos negros norte-americanos, que combatia a discriminação racial e a intole-
rância, os adeptos do Movimento da Negritude defendiam o respeito à diferença e a valorização das
características próprias da cultura negra.
Nesse ínterim, a situação de alguns dos territórios africanos colonizados por franceses ou
ingleses, por exemplo, ganhava outro estatuto. Alguns novos países independentes surgiam na
África, acelerando o processo de descolonização. Todas essas lutas eram estimuladas pela ação do
Movimento da Negritude, que defendia a valorização dos negros e da sua cultura e pelas lutas dos
negros norte-americanos contra o racismo.
180 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Desse modo, a grande insatisfação com a política salazarista para as colônias, a dissemina-
ção das ideias do Movimento da Negritude, a luta dos negros norte-americanos contra o racismo e
a independência de países africanos colonizados pela França e pela Inglaterra foram os propulsores
dos movimentos independentistas nas “províncias ultramarinas” portuguesas.

8.6 A criação dos movimentos pela independência


das colônias na África portuguesa
Na esteira desses acontecimentos, em meados da década de 1950, surgia, na Guiné
Portuguesa, o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), cujo líder
era Amílcar Cabral, e em Angola o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), sob a
liderança do poeta Agostinho Neto. Na década seguinte, em 1962, um ano após o início da guerra
pela independência em Angola, surgia em Moçambique a Frelimo (Frente Nacional de Libertação
de Moçambique), sob o comando de Eduardo Mondlane.
Todos esses movimentos africanos pela independência têm entre seus líderes escritores,
poetas, jornalistas e outros intelectuais, muitos dos quais antigos estudantes da Casa do Estudante
do Império (CEI), em Lisboa (havia uma em Coimbra também). Essas casas funcionavam como
um ponto de reunião de jovens estudantes oriundos de vários territórios do ultramar, especialmen-
te dos países africanos, e especificamente a CEI de Lisboa acabou se tornando um local estratégico
e decisivo para a tomada de consciência e organização dos jovens estudantes africanos, em sua
maioria angolanos, que se aliaram aos estudantes e intelectuais portugueses contrários ao regime
fascista. Centro de articulação política e resistência, a CEI de Lisboa também funcionou como um
espaço para o surgimento de uma literatura de valorização das raízes africanas.
Como observa Manuel Ferreira (1977, p. 34):
A partir do início da década de 1960 a vida literária (e cultural, de certo modo)
de Angola só poderá ser apreendida na totalidade se estivermos atentos ao que
se desenrola na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa. Aliás também
em Coimbra onde tiveram lugar várias iniciativas, a partir da década de 1950.
A Casa dos Estudantes do Império transforma-se no centro aglutinador dos
estudantes e intelectuais africanos. Mas a predominância da sua composição é
angolana, como predominantemente angolana é a sua atividade editorial.

Na entrada dos anos 1960, a situação nas colônias portuguesas do ultramar se torna mais
difícil, forçando-as à luta armada pela conquista da independência. Nesse momento, à exceção de
São Tomé e Príncipe e de Cabo Verde, cuja contribuição para os movimentos de independência
consistiu em enviar guerrilheiros para engrossarem a luta armada das outras colônias, Angola,
Guiné Portuguesa e Moçambique iniciam sua guerra pela independência.
O movimento armado é deflagrado em Angola quando no norte do país um grupo de agri-
cultores protesta violentamente contra a política de plantação compulsiva de algodão, queimando
armazéns de algodão e expulsando os compradores. O regime salazarista responde à revolta com
violência e como reação a isso, em fevereiro de 1961, em Luanda, capital de Angola, um grupo
organizado do MPLA toma de assalto a prisão da cidade para libertar os líderes do movimento.
A África lusófona: um pouco de história 181

Munidos de catanas2 e algumas poucas armas automáticas, o movimento não logra bons resultados
e a repressão que a ele se segue é extremamente dura.
Em razão desses acontecimentos, alguns antigos colonos e brancos que haviam chegado re-
centemente a Angola conseguem permissão do regime para invadir os bairros nos quais moravam
os negros (os musseques) e ali atacar qualquer um que considerassem suspeito. Desse episódio
resultaram muitas mortes, em sua maioria de jovens assimilados – que são justamente aqueles que
se aculturaram, deixando suas raízes negras para frequentar as escolas de brancos. Reagindo a essa
matança, os movimentos organizados em Angola respondem com a luta armada que irá se disse-
minar também por outras regiões da chamada África lusófona, como a Guiné Portuguesa (1963) e
Moçambique (1964). É o início da Guerra Colonial.
A Guerra Colonial durou 13 anos em Angola (1961-1974), 11 anos na Guiné (1963-1974)
e 10 anos em Moçambique (1964-1974). Durante essa época, cerca de 800 mil jovens portugueses
foram mobilizados para a guerra na África, onde permaneceriam em média 29 meses, ou seja, qua-
se 10% da população portuguesa e 90% da juventude masculina da época estiveram diretamente
envolvidas com os conflitos na África. Do lado africano, a mobilização do contingente masculino
foi massiva. Muitos se envolveram na guerra por motivações político-ideológicas, outros se aliaram
às guerrilhas aliciados pelas necessidades que se criaram em razão especialmente da falta de man-
timentos. Essa guerra também propiciou que, em Portugal, as forças contrárias ao regime Salazar/
Caetano se unissem aos oficiais – especialmente tenentes e capitães – do Movimento das Forças
Armadas (MFA), que iniciaram na madrugada do dia 25 de abril de 1974 uma revolução para
derrubar o regime ditatorial e pôr fim à guerra na África. Esse movimento ficou conhecido como
Revolução dos Cravos.
A guerra na África marcou o início do fim do Império Colonial português e foi um dos fa-
tores que propiciou a queda da ditadura salazarista. No entanto, um legado cultural, para além da
língua portuguesa – oficialmente adotada pelos países africanos já independentes –, consolidou-se
nos cinco países do PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa). Certos traços da
cultura portuguesa e a adoção e o uso da língua portuguesa nesses países, ainda que modificada e
enriquecida pelas diversas línguas locais, são exemplos de como a cultura portuguesa enraizou-se
nos territórios africanos anteriormente ocupados.

Dicas de estudo
• História da África Lusófona, de Armelle Enders, Editorial Inquérito.
Essa obra da historiadora francesa Armelle Enders, da Universidade Paris-IV – Sorbonne,
aborda a história da África de língua portuguesa, focalizando desde a chegada dos portu-
gueses a Ceuta até o fim do Império Colonial português com a saída dos portugueses da
África, após o fim da Guerra Colonial.

2 Catana é um tipo de facão usado para cortar mato.


182 Direitos humanos e relações étnico-raciais

• Negritude: usos e sentidos, de Kabengele Munanga, Editora Ática.


Essa obra do antropólogo Kabengele Munanga, professor titular da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP, nascido no Zaire, é bastante interessante para quem
quer iniciar seus estudos sobre cultura negra e negritude.
• Capitães de Abril. Direção: Maria de Medeiros. Lusomundo Audiovisuais S.A., 2000.
Esse filme, dirigido pela portuguesa Maria de Medeiros, ilustra bem o momento em que,
ao som de “Grândola, Vila Morena”, é deflagrado em Portugal o movimento de revolta dos
capitães das forças armadas contra os rumos da política de Marcello Caetano na África.
Esse movimento, que depois ficou conhecido como Revolução dos Cravos, devolveu a
liberdade política ao país que viveu sob a ditadura desde 1926 até o dia 25 de abril de 1974.

Atividades
1. Em 1415, a conquista da cidade de Ceuta, no Marrocos, foi estratégica para a empreitada
portuguesa pelos mares do Ocidente. Por que motivos partiram os portugueses até Ceuta?
E por que, quando lá chegaram, abandonaram a ideia da ocupação dos territórios ao longo
do Mar Mediterrâneo?

2. Como se desenvolveu a política de exploração das colônias na África?

3. Qual a importância dos encontros de jovens estudantes na Casa do Estudante do Império?

4. Quais foram os fatores que desencadearam a luta dos povos africanos das colônias contra o
regime fascista de Salazar?
9
A África lusófona e o Brasil:
laços e letras

Claudia Amorim

O objetivo deste capítulo é apresentar as diferentes culturas da África lusófona e do


Brasil, destacando o que a cultura de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e
Moçambique – os cinco países dos Palop1 – têm em comum com a cultura brasileira, para além da
língua de expressão.
A identidade entre essas diferentes culturas e povos começa com a história da coloni-
zação de seus territórios pelos portugueses que, desde o início do século XV, tornaram-se os
pioneiros na exploração do continente africano, no qual se acreditava haver muitas riquezas,
especialmente ouro e especiarias. Para operar essa exploração do continente e a conversão dos
infiéis ao cristianismo, a Coroa portuguesa, apoiada pela Igreja Católica local e pela de Roma,
deu início a uma das maiores aventuras do homem em sua história, que foi o domínio dos
mares e a consequente descoberta de terras cuja existência apenas se supunha ou daquelas cuja
existência era totalmente ignorada.

9.1 Os africanos no Brasil: um pouco de história


A história do negro no Brasil remete, antes de tudo, à história da diáspora dos povos africa-
nos que, antes da chegada dos europeus à África, habitavam esse continente. Além dos portugueses
– os primeiros europeus a ocuparem o continente africano – outros povos da Europa ali chegaram,
como ingleses, franceses e alemães, por exemplo. Com a chegada do europeu à África, começa a
diáspora negra com o tráfico de negros que viriam a formar a mão de obra do trabalho agrícola do
continente americano.
Assim, a diáspora negra para o território brasileiro se liga ao momento em que os portu-
gueses, em 1415, tomaram dos mouros a cidade de Ceuta, no norte da África, e perceberam que
estavam diante de uma localidade na qual desembocavam ricas mercadorias oriundas de outras
regiões do continente africano. A tomada de Ceuta foi um ponto estratégico para que os portugue-
ses apontassem as naus em direção ao Atlântico Sul para ladear o continente africano, seguindo
sempre em direção ao extremo Sul do continente, cuja ultrapassagem abriria caminho para a Índia,
onde se encontravam as especiarias que os europeus tanto cobiçavam.
É certo que no início do século XV esses objetivos ainda não estavam completamente de-
lineados para a Coroa portuguesa, ou para os nobres e comerciantes interessados no empreendi-
mento atlântico. No entanto, a conquista de Ceuta e depois a de Tânger, no Marrocos, foram os

1 Palop é a sigla para Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa.


184 Direitos humanos e relações étnico-raciais

atos fundadores do avanço para o mar que modificaria definitivamente a história da humanidade.
Podemos dizer que, com as viagens marítimas do século XV e XVI, iniciou-se verdadeiramente o
conhecimento e o domínio das terras e mares do nosso planeta. Iniciou-se a globalização.
Porém, a história da África, antes da chegada do europeu, ainda se mostra obscura, pelo
fato de os povos africanos serem, nessa época, diversos e quase todos ágrafos. Os primeiros relatos
acerca do continente foram feitos por árabes e posteriormente por europeus.
Sabe-se que o continente africano, no século XV, contava com diferentes grupos étnicos mais
ou menos isolados que ocupavam relativamente uma pequena parte do imenso território conti-
nental. Os povos que ali viviam possuíam uma organização social e econômica similar, baseada
em graus de parentesco. Havia sociedades patriarcais e algumas matriarcais. Os laços parentais
que uniam os membros de um grupo proporcionavam a valorização da memória do grupo, a sua
ancestralidade e, consequentemente, a reverência aos mais velhos.
Porém, nem todas as sociedades africanas gozavam da mesma estrutura. Havia na África
grandes reinos, como o Reino de Mali e o do Congo, e uma série de aldeias e vilas menores nas
quais seus habitantes, unidos por laços de parentesco, partilhavam naturalmente das mesmas cren-
ças. Diferentemente desses, que habitavam um território comum, havia ainda grupos nômades que
transitavam pelo continente, por oportunidades de negócios ou obrigados pelas circunstâncias
climáticas, por exemplo.
A expansão de alguns desses reinos, a migração de alguns povos e a tentativa de controle de
certas regiões próximas a rios ou postos comerciais geravam conflitos entre os diferentes povos e
ainda a dominação de um povo sobre outro.
Aproveitando-se de uma escravidão doméstica2 que existia na África antes da chegada do
europeu, uma vez que após alguns conflitos os povos vencidos eram feitos prisioneiros e escravos
domésticos, os portugueses viram nesse sistema a possibilidade de operar um diferente negócio: o
comércio de escravos.
Porém, antes dos europeus, os árabes, que haviam se estabelecido em algumas regiões da
África por volta do século VIII, já haviam adotado o sistema escravista, utilizando o escravo como
moeda de troca. Segundo Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 15),
[...] desde que os árabes ocuparam o Egito e o norte da África, entre o fim do
século VII e metade do século VIII, a escravidão doméstica, de pequena esca-
la, passou a conviver com o comércio mais intenso de escravos. A escravidão
africana foi transformada significativamente com a ofensiva dos muçulmanos.
Os árabes organizaram e desenvolveram o tráfico de escravos como empreen-
dimento comercial de grande escala na África. Não se tratava mais de alguns
poucos nativos, mas de centena deles a serem trocados e vendidos, tanto dentro
da própria África quanto no mundo árabe e, posteriormente, no tráfico transa-
tlântico para as Américas, inclusive para o Brasil.

2 Conforme sustenta Silva (2002), a escravidão doméstica na África consistia em se aprisionar os vencidos nas guer-
ras étnicas para aproveitar sua mão de obra no trabalho agrícola. A terra era abundante, mas muitas vezes faltava mão
de obra, e nesse tipo de cativeiro aproveitavam-se também mulheres e crianças. A fertilidade das mulheres garantia a
ampliação do grupo e elas se tornavam concubinas de seus senhores e geravam filhos, que iam gradativamente perden-
do a condição servil e sendo incorporados à linhagem do senhor.
A África lusófona e o Brasil: laços e letras 185

Com a chegada dos primeiros europeus ao continente africano, operou-se a forma de es-
cravismo estabelecida pelos árabes. Quanto mais os portugueses avançavam pela Costa Ocidental
da África e o ouro cobiçado não era encontrado, mais essa falta era compensada com os produtos
comerciáveis da África, especialmente o marfim e a pimenta.
Logo, os portugueses construíram, em 1445, uma feitoria na ilha de Arguim, que serviria
de entreposto comercial para o comércio das especiarias com os africanos e, posteriormente, ao
comércio de escravos. À medida que o comércio escravista começava a ser lucrativo para os por-
tugueses, o infortúnio crescia para o continente africano. A presença dos portugueses no litoral da
costa da Guiné reforçou o poder dos chefes africanos dispostos a guerrear contra povos inimigos
com o objetivo de fazê-los cativos e adquirir lucros com isso. A guerra entre os povos na África
produzia o cativo e o comércio com os portugueses distribuía o escravo.
Para criar uma certa estrutura para o comércio de escravos e desencorajar a abordagem de
outros europeus, os portugueses construíram fortalezas ao longo dos territórios ocupados no lito-
ral da África. Uma das mais importantes fortalezas foi o castelo de São Jorge da Mina, construído
em 1482, onde atualmente é a República do Gana, de onde partiram para a América, entre 1500 e
1535, cerca de 10 a 12 mil escravos.
O tráfico de escravos para as Américas modificou completamente o mapa da África.
Os reinos que forneciam prisioneiros escravos para os portugueses conheceram o apogeu nos
séculos XVII e XVIII. Muitos desses reinos, como o Reino Iorubá, que se dedicava à agricultura e à
tecelagem, com os famosos panos da Costa3, acabaram praticamente abandonando essas atividades
para enfatizar o tráfico negreiro. Como havia várias cidades iorubanas na região do golfo de Benin
envolvidas no negócio, a região ficou conhecida como a Costa dos Escravos. Os iorubás da região
faziam prisioneiros de guerra de escravos e os trocavam por mercadorias como, por exemplo, o
fumo de rolo, produzido na Bahia. A procura pelo fumo de rolo, muito apreciado na região, fez dos
brasileiros os principais compradores de escravos.
O tráfico de escravos foi uma atividade permanente entre os séculos XVI e XIX. Durante
esse período, estima-se que mais de 11 milhões de homens, mulheres e crianças foram transpor-
tados da África para as Américas em grandes navios negreiros (também conhecidos como tum-
beiros)4. Desse total, cerca de 4 milhões desembarcaram em portos brasileiros e eles pertenciam,
principalmente, a dois grandes grupos étnicos: os sudaneses (oriundos da Nigéria, Daomé e Costa
do Marfim) e os bantos (oriundos do Congo, Angola e Moçambique). Os bantos foram destinados
especialmente a Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro, enquanto os sudaneses foram leva-
dos, em sua maioria, para a Bahia. Também da região da Guiné – cuja vila de Bissau se tornaria
um importante entreposto de escravos – foram trazidos muitos negros para o território brasileiro.

3 O pano da costa era uma indumentária usada no Brasil por mulheres africanas ou descendentes, especialmente na
Bahia e no Rio de Janeiro. O nome provavelmente se deve ao fato de esse tipo de pano ser encontrado na região da Costa
do Marfim, de onde foram trazidos muitos escravos para o Brasil, ou ainda ao fato de esse pano retangular ser usado
jogado por sobre os ombros e as costas. Ainda hoje é usado na composição da roupa das baianas.
4 Conforme observam Albuquerque e Fraga Filho (2006), essa cifra não inclui aqueles que não resistiam à travessia
atlântica feita em péssimas condições nos navios negreiros e acabavam morrendo no caminho. Assim, se explica o
porquê de os navios negreiros serem também conhecidos pelo nome de tumbeiros, uma vez que o número de mortos nas
travessias era bastante grande.
186 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Para melhor situarmos esses espaços de onde foram levados milhões de africanos, apresen-
tamos a seguir um mapa político da África, com sua respectiva divisão territorial.
Figura 1 – Mapa político da África

Fonte: Adaptada de Temática Cartografia. IESDE BRASIL S/A

Esse violento deslocamento do nativo da África para outras terras constituiu a maior diáspora
da história da humanidade. Esse triste episódio uniu para sempre a história do Brasil, território da
América onde os portugueses também haviam chegado, à história da África. A extensa colônia
portuguesa na América, devido à exploração agrícola, necessitava de mão de obra permanente.
A escravidão de indígenas não prosseguia como se esperava. Muitos índios cativos e escravizados
acabavam morrendo dizimados por doenças trazidas pelo colonizador; além disso, muitos índios,
resistindo à escravidão, fugiam para áreas de difícil acesso aos portugueses, o que tornava a
sua captura um investimento muito alto. Assim, a migração transatlântica forçada tornou-se a
principal garantia de trabalho escravo nas terras brasileiras. No entanto, também os africanos que
sobreviviam à travessia dos mares, já em terra brasileira, devido aos maus-tratos e às péssimas
condições de vida, morriam cedo ou fugiam para os quilombos.
A África lusófona e o Brasil: laços e letras 187

Os quilombos foram locais de resistência dos escravos refugiados e abrigavam uma comuni-
dade com leis e costumes próprios. O mais famoso desses foi o dos Palmares, assim chamado por
se situar em um local com muitas palmeiras. O Quilombo dos Palmares, cuja extensa localização
abrangia parte do atual estado de Alagoas e parte do atual estado de Pernambuco, chegou a abrigar,
por volta de 1670, cerca de 50 mil escravos refugiados.
Em Palmares, os refugiados sobreviviam da cultura do milho, da mandioca, do feijão e das
bananeiras. A terra era fértil, e cada uma das três entradas da longa extensão do Quilombo dos
Palmares era vigiada por cerca de 200 guerreiros. No Quilombo, também eram guardadas armas e
munições para garantir a luta pela liberdade. Ganga-Zumba era o rei dos quilombolas e, após sua
morte, Zumbi, seu sobrinho e sucessor, foi consagrado rei dos Palmares.
O comércio negreiro sempre alimentava as mortes ou as fugas de africanos trazendo ou-
tros escravos que lhes substituíam no trabalho. Especialmente durante o século XVIII e princípio
do XIX, a região de Angola foi a principal exportadora de escravos para o Rio de Janeiro, Minas
Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. Na segunda década do século XIX, com a investida inglesa
contra o tráfico negreiro, os comerciantes de escravos foram buscar cativos na Costa Oriental da
África (sul da Tanzânia, norte de Moçambique, Malauí e nordeste da Zâmbia). Os escravos oriun-
dos desses territórios eram denominados moçambiques.
Durante um bom tempo, a escravidão indígena e a escravidão do africano alimentaram a
economia da colônia portuguesa na América. Logo, porém, a escravidão africana ultrapassa em
cifras a escravidão indígena.
Mas antes de investir maciçamente no tráfico africano, os colonos portugue-
ses recorreram à exploração do trabalho dos povos indígenas que habitavam a
Costa Brasileira. A escravidão foi um tipo de trabalho forçado também imposto
às populações nativas. O índio escravizado era chamado de “negro da terra”, dis-
tinguindo-o assim do “negro da guiné”, como era identificado o escravo africa-
no nos séculos XVI e XVII. Com o aumento da demanda por trabalho no corte
do pau-brasil e depois nos engenhos, os colonizadores passaram a organizar
expedições com o objetivo de capturar índios que habitavam em locais distantes
da Costa. Através das chamadas “guerras justas”, comunidades indígenas que
resistiram à conversão do catolicismo foram submetidas à escravidão. Por volta
da segunda metade do século XVI, a oferta de escravos indígenas começou a
declinar e os africanos começaram a chegar em maior quantidade para substi-
tuí-los. (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 40)

À medida que a escravização do negro ultrapassava a do índio, o tráfico negreiro deixa-


va de ser apenas um entre os negócios do ultramar pelos portugueses para se tornar a atividade
mais rentável do Atlântico Sul, já que gerava impostos para a Coroa portuguesa e dízimos para
a Igreja católica.
188 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Figura 2 – RUGENDAS, Johann Moritz. Navio negreiro. c. 1830. 35,50 x 51,30 cm. Museu Itaú Cultural.

Os traficantes de escravos que forneciam mão de obra para a região nordeste do Brasil foram
buscar, entre meados do século XVIII até o fim do tráfico em 1850, nativos escravizados na região
do golfo de Benin (sudoeste da atual Nigéria). Dessa região vieram os jejes, bornus, tapas, nagôs,
entre outros, e aqui foram designados minas.
Durante os séculos da escravidão, comerciantes africanos, portugueses e brasileiros fizeram
fortuna e a elite comercial e financeira brasileira do primeiro reinado e até 1850 era composta de
traficantes de escravos. Apesar de crescentemente rejeitada por parte da opinião pública mundial,
o tráfico de escravos era o esteio da riqueza da elite e só por pressão inglesa é que foi abolido, em
1850, continuando com entradas ilegais até pelo menos 1856.
O tráfico de escravos também se justificava perante a Igreja, que via nessa atividade uma
possibilidade de evangelizar os infiéis africanos. Para a Igreja católica, a salvação das almas dos
africanos pagãos se faria no Brasil católico. Assim, o discurso religioso justificava essa atividade
como uma cruzada contra a barbárie africana.
Durante o século XIX, importantes acontecimentos no Brasil e em Portugal propiciaram
mudanças profundas no sistema escravista até a sua extinção no fim do mesmo século. No
contexto brasileiro, antes que esses acontecimentos viessem à tona, a população escrava era,
em algumas localidades, maior que a população livre. Segundo observam Albuquerque e Fraga
Filho (2006, p. 66):
No início do século XIX, o Brasil tinha uma população de 3.818.000 pessoas,
das quais 1.930.000 eram escravas [...]. Até meados daquele século, quando foi
abolido o tráfico, a maior parte dos escravos era nascida na África. Para se ter
uma ideia, os africanos representavam 63% da população de Salvador. No Rio
de Janeiro, os nascidos na África constituíam cerca de 70%.
A África lusófona e o Brasil: laços e letras 189

Com a independência do Brasil, em 1822, o grande desafio da elite econômica da época era
promover o desenvolvimento, mas garantindo a manutenção da escravidão, sem a qual não haveria
produção agrícola. Nessa época, o perfil da sociedade brasileira era claramente escravista e racista,
uma vez que, mesmo os negros que conseguiam alforria ou eram libertos, ou, ainda, os mestiços,
eram considerados inferiores aos brancos nascidos em Portugal ou no Brasil.
No entanto, a condição do negro escravo começa a ganhar amplitude. Por pressão da Inglaterra,
o Brasil também se vê obrigado a atenuar as leis da escravidão. Em 1823, em um pronunciamento à
Assembleia Nacional Constituinte, José Bonifácio de Andrada e Silva declara que a escravidão é um
“cancro mortal que ameaçava os fundamentos da nação”. Em 1850, proibiu-se o tráfico negreiro e os
últimos desembarques de escravos ocorreram por volta de 1856. Em 1871, promulgou-se a Lei do
Ventre Livre, que concedia a liberdade a todos os filhos de escravos nascidos a partir daquela data, em
1885; com a Lei dos Sexagenários, ficavam libertos os escravos com mais de 60 anos; e, finalmente,
em 1888, assinou-se a Lei Áurea, que libertava todos os escravos do Brasil.
Concomitante à pressão externa e ao interesse dos abolicionistas (homens letrados, inte-
lectuais, escritores, políticos etc.) em abolir a escravidão, os escravos desde muito lutavam, como
podiam, pela liberdade. Obviamente, algumas dessas lutas tiveram grande alcance e exerceram
pressão também sobre os acontecimentos que desembocaram na Lei Áurea. Entre os mais conheci-
dos movimentos de escravos em prol da liberdade dos cativos, estão a Revolta dos Malês, ocorrida
na Bahia em 1835, a Revolta da Cabanagem, no norte do Brasil, entre 1835-1840, as reivindicações
dos negros farroupilhas no Rio Grande do Sul que, entre 1835-1845, lutaram ao lado de Bento
Gonçalves e conquistaram sua liberdade na República do Piratini, entre outras.
Também a literatura do jovem país independente expressou as condições da escravidão.
Bernardo Guimarães (1825-1884), romancista brasileiro, publicou em 1875 o romance A escrava
Isaura. Nesse famoso romance, a mestiça Isaura, filha de pai branco e mãe negra, ainda que quase
branca, é uma escrava criada na casa-grande com educação e cuidados. Ela é assediada pelo filho
do comendador e não consegue a liberdade desejada em razão da morte dos antigos donos da
fazenda. O pai quer comprar-lhe a alforria, mas o filho do comendador, Leôncio, herdeiro dos
bens, não permite. Isaura foge com o pai e em Recife conhece Álvaro, um jovem rico que por ela
se apaixona. A condição de escrava, porém, vem à tona e Leôncio vai resgatá-la em Recife. Álvaro,
apaixonado, tenta comprar a liberdade de Isaura e só o consegue quando, investigando a situação
de Leôncio, descobre que ele está falido. Comprando seus bens, resgata Isaura de um casamento
forçado com um camponês por ordem de Leôncio. Em desespero, Leôncio se mata.
Por meio desse enredo romântico, descortina-se a situação do escravo, ainda que Isaura,
como heroína do romance, fugisse completamente ao padrão da escrava da casa-grande do Brasil
Colônia. Outros escritores do século XIX também foram importantes para a divulgação e ques-
tionamento da condição do escravo. Entre esses, destacam-se o poeta baiano Castro Alves (1847-
-1871), o romancista carioca Lima Barreto (1881-1922), o poeta catarinense João da Cruz e Sousa
(1861-1898), o maior poeta simbolista brasileiro. Embora tenham produzido suas obras no fim do
século XIX, quando a escravidão já estava extinta por lei, esses escritores ainda demonstraram pela
190 Direitos humanos e relações étnico-raciais

literatura o quanto havia por fazer para se atenuar a condição do homem escravo ou do negro livre,
mas socialmente discriminado em razão de sua cor e de sua pobreza.
Outro nome de grande importância na literatura brasileira do século XIX foi Joaquim Maria
Machado de Assis (1839-1908), um dos maiores romancistas em língua portuguesa. Nascido no
Rio de Janeiro, filho de um mulato e de uma açoriana e neto de escravos alforriados, Machado
de Assis foi um escritor atento à condição do homem no cotidiano dos meios urbanos do fim do
século XIX. Usando da ironia, o escritor tecia uma crítica fina e lúcida à hipocrisia da sociedade
brasileira finissecular.
Apesar de suas péssimas condições de vida antes da abolição da escravidão (os escravos vi-
viam em senzalas, recebiam castigos corporais no pelourinho, eram acorrentados, passavam fome
etc.) ou mesmo depois dela, uma vez alforriados, os negros não tinham onde ficar, nem do que
viver, o que gerou um grande número de indigentes que começou a ocupar as zonas mais afastadas
da cidade ou os morros nos quais construíram míseros casebres. O fato é que os africanos e seus
descendentes foram também construtores da cultura brasileira, conforme atestam Albuquerque e
Fraga Filho (2006, p. 43):
Foi na condição de escravos que africanos e seus descendentes chegaram aos
locais mais remotos da colônia. Mas apesar da escravidão, os africanos foram
atores culturais importantes e influenciaram profundamente as formas de vi-
ver e de sentir das populações com que passaram a interagir no Novo Mundo.
Os europeus os trouxeram para trabalhar e servir nas grandes plantações e
nas cidades, mas eles e seus descendentes fizeram muito mais do que plantar,
explorar as minas e produzir riquezas materiais. Os africanos para aqui trazidos
como escravos tiveram um papel civilizador, foram um elemento ativo, criador,
visto que transmitiram à sociedade em formação elementos valiosos da sua cul-
tura. Muitas das práticas da criação de gado eram de origem africana. A minera-
ção do ferro no Brasil foi aprendida dos africanos. Com eles a língua portuguesa
não apenas incorporou novas palavras, como ganhou maior espontaneidade e
leveza. Enfim, podemos afirmar que o tráfico fora feito para escravizar africa-
nos, mas terminou também africanizando o Brasil.

9.2 Identidades e diferenças entre as culturas do


Brasil e dos países africanos lusófonos
O Brasil africanizado naturalmente guarda uma grande identidade com os países africanos
que foram colonizados por Portugal. Os africanos que durante três séculos e meio foram trazidos
como escravos para o Brasil, embora de regiões distintas da África, acabaram fortalecendo sua
cultura como forma de resistência. Segundo Silva (2003, p. 158), a “importação continuada de es-
cravos fazia com que a África reinjetasse permanentemente a sua gente e, com ela, os seus valores
no Brasil”.
Se isso se observava com maior evidência nos meios urbanos, também se fazia notar no
Brasil rural. Nas grandes cidades como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Luís encontramos
escravos agrupados em esquinas à espera de quem contratasse os seus serviços. E os agrupamentos
se faziam por alguns serem aparentados, pela proximidade linguística ou porque tinham chegado
A África lusófona e o Brasil: laços e letras 191

no mesmo navio. Assim, encontramos os grupos nagôs, jejes, cabindas, angolas e moçambiques,
identidades criadas pelos africanos no Brasil.
Como observa Silva (2003, p. 158), nesses “pontos de encontros, e nos pátios que prolonga-
vam as cozinhas, e nas senzalas, e nos esconderijos das matas, os escravos tentavam refazer como
podiam os liames sociais violentamente partidos”. Assim, preservar as tradições e a cultura era uma
condição de sobrevivência e, graças a isso, a cultura africana se propagou pelo Brasil na música, na
culinária, na religião ritualística, na língua, no vestuário etc.
Em alguns casos, o africano justapôs ou superpôs as suas manifestações culturais às que
provinham da Europa. Mas podemos dizer que, em alguns casos, ele também se apropriou sem
quase nada alterar das formas europeias. No entanto, de modo geral, houve uma miscigenação dos
costumes e valores dos africanos com os dos europeus e dos ameríndios na organização da vida
cotidiana de homens e mulheres descendentes dos primeiros africanos.
De acordo com Silva (2003, p. 163):
Dessas justaposições, recriações, somas e misturas, há evidências por todo lado.
Nas urbes brasileiras, a cidade africana se incrusta na europeia. Na música po-
pular, embaralham-se instrumentos africanos e europeus. Alguém lembraria
igualmente a confluência de ritos religiosos do candomblé com os da Igreja
católica – por exemplo, na festa do Senhor do Bonfim, a lavagem da igreja, na
qual se repete uma cerimônia, com mulheres a levar à cabeça jarras de água com
flores, para a purificação de um sítio ritual, que se processa no sul da República
do Benin.

Um dos mais marcantes traços da cultura africana no Brasil diz respeito às práticas religiosas
trazidas pelos africanos. Até o século XVIII, a palavra calundu, originária da palavra kilundu, em
umbundo (uma das línguas de Angola), significava divindade e era bastante usada pelos africa-
nos e seus descendentes. A primeira referência escrita à palavra candomblé (também originária de
Angola) é do início do século XIX e o termo designa oração.
As manifestações religiosas do sudeste do Brasil – mais precisamente do Rio de Janeiro e de
São Paulo – originam-se da região do centro-sul da África, onde se situa atualmente o território de
Angola. No nordeste do Brasil, os povos diversos originários do reino de Daomé (atual República
do Benin), conhecidos como jejes na Bahia e minas no Maranhão, cultuavam deuses diversos que
eles chamavam voduns. Já os povos do reino Iorubá, na Bahia – os nagôs – cultuavam os orixás.
Nos terreiros de candomblé nagô, os deuses de partes distintas da África eram igualmente
cultuados. Segundo Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 104), entre os vários deuses cultuados,
temos “Oxossi, do reino de Ketu, Xangô de Oió, Oxum de Oxogbô e assim por diante. Por isso que
se diz que a religiosidade africana foi reinventada no Brasil”.
Mas não foram só os ritos próprios da África que vieram com os escravos. Africanos isla-
mizados, devido à presença árabe no continente, também chegaram ao Brasil em grandes navios
negreiros. Os muçulmanos eram reduzidos no Rio de Janeiro, mas em Salvador e no Recôncavo
Baiano eram numerosos. De acordo com Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 106), por serem
“adeptos de uma religião militante, os muçulmanos organizaram na Bahia algumas rebeliões
192 Direitos humanos e relações étnico-raciais

escravas, sendo a de 1835 a mais conhecida. Por isso, ao longo do século XIX, foi o grupo religioso
mais perseguido pelas forças policiais”.
Iniciado no catolicismo na África ou no Brasil, o escravo africano ou crioulo
dotou a religião dos portugueses de ingredientes de tradições religiosas africanas,
especialmente música e dança. Era um catolicismo cheio de festas, de muita comi-
da e bebida, de intimidades com santos, tal qual a relação dos africanos com seus
orixás, voduns e outras divindades. As promessas de santos, pagas com missas,
tinham função semelhante às oferendas que acompanhavam pedidos feitos aos
deuses e outras entidades espirituais africanas. Para homenagear santos de sua
devoção, os negros organizavam grandes festas nas suas irmandades. Daí porque
muitos escravos africanos se aproximaram do catolicismo sem que fossem força-
dos pelos senhores. (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 106)

Nas irmandades, os africanos tinham oportunidade de conviver com outros africanos, pre-
servando sua cultura, e nesses lugares o sagrado e o profano se mesclavam, de modo que nessas
festas traços da cultura africana se juntavam ao catolicismo.
Outra forte contribuição da cultura africana no Brasil liga-se às festas carnavalescas. Com
a colonização portuguesa, o Carnaval que havia no Brasil era o entrudo (um desfile de foliões),
porém, com a presença da cultura africana, essas festas se modificaram paulatinamente com a in-
corporação, por exemplo, de tambores, chocalhos e ganzás, instrumentos muito usados por negros
em suas festas.
No Rio de Janeiro, o Carnaval ganharia outra dimensão com a criação das escolas de samba,
no início do século XX. Com músicos e sambistas, quase sempre negros e oriundos das localidades
mais pobres da cidade, o samba ganhava as ruas e logo seria alçado ao patamar de grande festa
popular da cultura brasileira. As primeiras organizações de sambistas surgiram no Estácio, nos
morros do centro da cidade e na Mangueira. As escolas de samba eram inicialmente agremiações
de caráter assistencial e festivo. No entanto, elas foram aos poucos conquistando espaço na cultura
nacional e na indústria de entretenimento. Paulatinamente, começaram também a modificar sua
estrutura: os ranchos carnavalescos – como eram chamados os desfiles dos passistas – ganharam
uma nova roupagem com a cadência rítmica do samba e das coreografias e com a incorporação de
enredos com temas nacionais.
O samba, expressão musical própria da cultura brasileira, também exibe suas raízes africa-
nas pela apresentação de uma batida sincopada de origem claramente africana. Na Bahia, o samba
de roda existente desde o século XIX mostra a influência africana com a inclusão de palmas e can-
tos que marcam o ritmo de quem dança no interior da roda. No Rio de Janeiro, o samba surgia na
casa das tias baianas da Praça Onze e nos morros cariocas e falava do cotidiano difícil das pessoas
mais pobres em meio à vida urbana. O samba, com seus diferentes acentos regionais (samba baia-
no, carioca, paulista etc.), acabou se tornando a expressão musical de maior relevo da cultura do
Brasil, sempre acompanhado de uma expressão corporal rítmica.
Também em outras manifestações populares festivas e religiosas encontra-se a presença afri-
cana. Em Pernambuco, por exemplo, havia surgido o maracatu, uma dança de batuque africana
com influências também indígenas e portuguesas. Conhecida como nação maracatu, essa mani-
festação cultural relaciona-se claramente à coroação do rei do Congo, uma cerimônia já existente
A África lusófona e o Brasil: laços e letras 193

no século XVIII em Minas, Pernambuco, Bahia e outros estados do Brasil, e naturalmente trazida
pelos escravos oriundos daquela região da África.
Outra contribuição da cultura africana para a formação da cultura no Brasil foi a incorpo-
ração da capoeira como elemento da cultura brasileira. Inicialmente, a capoeira era praticada na
metade do século XIX pelos escravos libertos que usavam essa luta, em que entra em cena a agili-
dade corporal, para se defender dos adversários. Além disso, os capoeiristas usavam muitas vezes
uma navalha manejada com destreza em meio aos golpes com o corpo. Aos olhos da polícia e das
classes dominantes, os capoeiristas eram gente vadia e perigosa que deveria ser vigiada de perto.
Na década de 1930, a capoeira praticada em Salvador, em rodas orientadas pelo mestre
Bimba, deu um novo estatuto para essa luta, que deixava paulatinamente de ser vista como uma
luta de desordeiros para se impor como uma prática desportiva.
A palavra capoeira significa mata rasteira e faz referência às áreas do interior do Brasil onde
há esse tipo de mata, ou seja, a palavra se liga naturalmente aos locais vizinhos às grandes proprie-
dades rurais de base escravocrata, na qual os escravos exercitavam essa luta.
A música, os cultos afro-brasileiros, o Carnaval, a capoeira são alguns dos exemplos em que
podemos perceber a contribuição da cultura africana, trazida pelos escravos, para a formação de
uma cultura nacional brasileira. Assim, é inegável que incontáveis laços (históricos, culturais, reli-
giosos etc.) unem o Brasil à África e, especialmente, à África de língua oficial portuguesa, de onde
foram trazidos muitos escravos para o Brasil. Certamente, ainda há muito que se falar sobre essas
culturas tão próximas, porém, não seria possível abordar aqui todos os traços que nos unem como
brasileiros aos nossos irmãos africanos.

9.3 Estudos afro-brasileiros na contemporaneidade


A história da África e dos africanos é ainda hoje pouco presente nos currículos universi-
tários e secundários. Além disso, os primeiros estudos sobre a África subsaariana enfocavam a
história dos povos e suas respectivas culturas a partir da chegada do europeu ao continente, e tal
prática perdurou por longo tempo.
Somente no início dos anos 1960, na Universidade de Cambridge, foi publicada a revista
The Journal of African History cujos artigos mostravam que a África podia ser investigada com
técnicas e procedimentos semelhantes aos aplicados aos povos da Antiguidade mediterrânica e da
Idade Média europeia. Essa obra, juntamente a de Basil Davidson, Old Africa Rediscovered (1959),
acabou proporcionando outro rumo aos estudos sobre a África ao enfatizar que nesse continente,
“[...] muito antes da chegada dos europeus, não havia faltado nem evolução nem mudanças sociais,
nem invenções nem movimento” (SILVA, 2003, p. 230).
Porém, antes dessas importantes publicações, mais precisamente em 1954, J. C. de
Graft-Johnson, um intelectual nascido na Costa do Ouro, o país que foi o primeiro a se tornar
independente com o nome de República do Gana, escreveu African Glory: the story of vanished
negro civilizations, obra na qual a história da África subsaariana também é investigada antes da
chegada dos europeus.
194 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Entre os intelectuais brasileiros, observa-se que já no século XIX alguns intérpretes do Brasil,
como Raimundo Nina Rodrigues, Sílvio Romero, Arthur Ramos, passando por alguns do século
XX, como Gilberto Freyre, Florestan Fernandes etc., buscaram entender e divulgar ideias sobre a
África brasileira e o negro.
Contemporaneamente, algumas obras atribuem a devida importância à história dos africa-
nos e de seu continente, assim como buscam mostrar as ligações entre o Brasil e a África. Falamos
das obras de autores como João José Reis, Alberto da Costa e Silva, Kwame A. Appiah, Luiz Felipe
de Alencastro, Pierre Verger, Jaime Rodrigues, entre outros.
Além desses estudiosos, várias entidades, organizações não governamentais, centros de cul-
tura etc. foram criados nos últimos anos objetivando resgatar a cultura negra, a história da África,
dos africanos no Brasil e sua importante contribuição na formação da cultura brasileira, como
a Fundação Palmares, o Instituto Casa da Cultura Afro-Brasileira, agremiações festivas como o
Olodum etc.

Dicas de estudo
• Uma História do Negro no Brasil, de Wlamyra R. de Albuquerque e Walter Fraga Filho,
Editora Centro de Estudos Afro-Orientais e Fundação Cultural Palmares.
Esse livro, editado pela Fundação Cultural Palmares em conjunto com o Centro de Estudos
Afro-Orientais da UFBA, traz uma ampla pesquisa sobre a história do negro no Brasil,
desde a chegada dos primeiros africanos escravizados, passando pelas lutas e resistências
negras até as organizações que hoje resgatam a africanidade na cultura brasileira. A obra
traz imagens e fotos que ilustram o texto bastante didático e cuidadoso de seus autores.
• Os condenados da Terra, de Fanon Frantz, Editora Civilização Brasileira.
Essa obra já clássica nos estudos sobre a luta anticolonial e sobre os negros em geral, de
autoria do martinicano Fanon Frantz, resultou de seu testemunho como médico psiquia-
tra do exército francês na Argélia. Publicada em 1961, a obra valoriza as lutas revolucio-
nárias por uma sociedade melhor.
• Site da Fundação Cultural Palmares: <www.palmares.gov.br>.
A Fundação Cultural Palmares, fundada em 1992, é uma entidade pública vinculada ao
Ministério da Cultura e tem como objetivo resgatar a história dos negros no Brasil. O site
contém ações governamentais em prol desse resgate, contém vários artigos sobre o negro,
a negritude, a consciência negra, entre outros dados históricos e culturais a respeito dos
os negros no Brasil, além de um dicionário de expressões afro-brasileiras.
• Quilombo, de Cacá Diegues. 119 min.
Esse filme de Cacá Diegues, 1984. narra a história do Quilombo dos Palmares, uma repú-
blica de escravos fugidos no século XVII, mostrando o cotidiano dos quilombolas refu-
giados e sua luta por manter sua república livre até sua destruição final.
A África lusófona e o Brasil: laços e letras 195

Atividades
1. Quando os portugueses aportaram na África, havia dois tipos de escravidão no continente:
uma existente entre os povos nativos e outra introduzida pelos árabes. Explique a diferença
entre cada uma dessas práticas.

2. Em que consistiam os quilombos? Qual a sua importância para a preservação dos valo-
res africanos?

3. Por que podemos dizer que os cultos religiosos africanos foram reinventados no Brasil?
De que maneira podemos falar de um sincretismo entre as religiões no Brasil?
10
História e historiografia indígena

Mariana Paladino

Este capítulo tem como objetivo fornecer informações básicas e instrumentos de análise
para a compreensão da presença indígena ao longo da história do Brasil.
A reconstrução dessa presença não é fácil, já que as sociedades que habitaram o território
que veio a se tornar o Brasil eram fundamentalmente orais e não deixaram fontes escritas. Têm
sido os relatos dos colonizadores e dos missionários dos séculos XVI, XVII e XVIII, dos viajantes e
naturalistas do século XIX e dos etnólogos do século XX e XXI que nos proporcionam fontes para
a compreensão da história indígena. Contudo, esses escritos – principalmente os dos primeiros
séculos da colonização – devem ser lidos com cuidado, e devemos considerar os contextos em que
foram produzidos e as imagens vigentes neles sobre os índios. Assim, por exemplo, algumas crôni-
cas oferecem imagens fantasiosas dos povos indígenas, ora idealizando-os como inocentes e puros,
ora desumanizando-os ao apresentá-los como bárbaros e antropófagos. As evidências arqueológi-
cas são um bom complemento para contrastar aquelas fontes. Outra abordagem riquíssima é a da
própria perspectiva dos povos indígenas contemporâneos, que nos apresentam, por meio de sua
memória, transmitida por tradição oral, por mitos e diversas formas de narrativas, sua interpreta-
ção da história.
Neste capítulo nos centraremos na história indígena pós-contato com os europeus, iniciada
com a chegada dos portugueses no ano 1500. Cabe esclarecer que se trata de um panorama geral,
que deveria ser complementado por histórias locais, que deem conta da complexidade e diversida-
de dos acontecimentos e das especificidades históricas e culturais dos povos em contato.
Vamos começar estudando como foram considerados e tratados os indígenas no sistema
colonial e missionário, depois analisaremos o período do Diretório dos Índios e o retorno da ação
missionária (1755-1910), além do regime tutelar estabelecido com a criação da República. Ainda
abordaremos as representações e imagens sobre os índios vigentes nos séculos XVIII até XX, que
explicam em grande parte as políticas e legislações existentes. Por fim, abordaremos as formas com
que os povos indígenas percebem e explicam o contato com os brancos, chamando a atenção para
o fato de que – contra a ideia de que se tratariam de sociedades estáticas – eles foram e são sujeitos
ativos da história.

10.1 O sistema colonial e missionário (1549-1755)


A presença humana nas terras baixas da América do Sul remonta há 12 mil anos. As evi-
dências arqueológicas mais recentes dão conta que não apenas existiram nesse território formas de
organização social simples, mas também se desenvolveram sociedades belicosas, expansionistas e
com uma organização social complexa (FAUSTO, 2000).
198 Direitos humanos e relações étnico-raciais

O etnólogo Curt Nimuendaju (1981) estimou, em seu Mapa etno-histórico, a existência


de cerca de 1.400 povos indígenas no território que correspondia ao Brasil do descobrimen-
to. As cifras dessa população, no entanto, não são seguras. Existem estimativas parciais, que
ainda não terminam de compor um quadro global. As cifras variam entre 1 a 8,5 milhões de
habitantes, segundo diferentes estudos. Por exemplo, Rosenblat (1954) estimou um milhão de
habitantes para o Brasil como um todo e Denevan (1976) avaliou em 6,8 milhões a população
aborígine da Amazônia, Brasil Central e Costa Nordeste (apud CUNHA, 1992, p. 14). Apesar
das diferenças, essas quantidades esvaziam a imagem tradicional, consolidada no século XIX,
de ser esse um território pouco habitado.

10.2 Descobrimento, encontro ou conquista?


Esses três termos mostram formas bem diferentes de entender o processo de contato entre
população autóctone da América e população europeia. O descobrimento supõe a ideia de que os
europeus desembarcaram em uma terra virgem, deserta e despovoada e que inauguraram, com a
sua chegada, a história do Brasil. O encontro supõe uma relação idílica de paz e intercâmbio equi-
librado. Já a conquista chama a atenção para o fato da relação colonial, de dominação e violência.
Figura 1 – PORTINARI, Candido. Descobrimento do Brasil. 1956. São Paulo. Óleo sobre cartão: 34,2 x 26 cm.
Coleção particular.
História e historiografia indígena 199

Existem diferenças entre os autores na forma de avaliar a magnitude da depopulação1.


Alguns, como Rosenblat, avaliam que, de 1492 a 1650, a América perdeu um quarto de sua
população; outros, como Dobyns, acham que a depopulação foi da ordem de 95% a 96% (apud
CUNHA, 1992).
O primeiro contato das populações indígenas com portugueses remonta ao ano 1500, quan-
do Cabral encontrou na Costa da Bahia o povo que era chamado tupiniquim, pertencente à grande
família tupi e que ocupava quase todo o litoral. Segundo Cunha (1992), durante o primeiro meio
século de contato, os índios foram, sobretudo, parceiros comerciais dos europeus. Estabelecia-se a
troca de mercadorias ou permuta de objetos dos europeus por trabalho indígena (sobretudo para a
extração do pau-brasil). Quando a colônia se instalou, as relações alteraram-se, tensionadas pelos
interesses em jogo que, do lado europeu, envolviam colonos, governo e missionários. A partir de
então, os europeus precisaram de mão de obra para as empresas coloniais (CUNHA, 1992, p. 14).
A taxa de depopulação durante os dois primeiros séculos da colonização foi brutal. As guer-
ras, as expedições para captura de escravos, as epidemias e a fome dizimaram os povos indígenas
(CUNHA, 1992; FAUSTO, 2000)2.

10.3 Os aldeamentos e a escravização indígena


Os aldeamentos3 foram fundamentais para o projeto colonial, pois garantiram a conversão
religiosa dos índios, a ocupação e a defesa do território, além de uma constante reserva de mão de
obra para o desenvolvimento econômico da Colônia.
Os comportamentos dos povos indígenas foram diversos entre si e até internamente ao pró-
prio grupo: alguns povos – segundo dão conta documentos e crônicas da época – se aldearam pa-
cificamente: outros, sem abandonarem seus territórios ou se aldearem, uniram-se aos portugueses
ou a seus inimigos europeus em suas guerras, firmaram tratados de paz e tornaram-se nações alia-
das. O incentivo à obtenção e manutenção de alianças se revelou nos vários títulos honoríficos e re-
compensas dados a esses índios aliados. Outros, ainda, resistiram a todo e qualquer tipo de relação
com os colonizadores; alguns deles foram massacrados e escravizados (PERRONE-MOISÉS, 1992,
p. 129). Em alguns casos, os índios recorreram a todo seu aparato bélico para repelir os invasores:
flotilhas com centenas de canoas equipadas, guerreiros portando escudos de couro de peixe-boi
e propulsores de dardos, setas envenenadas lançadas das barrancas do rio (FAUSTO, 2000, p. 45).
É importante destacar o caráter estratégico que adquiriu o contato com as populações au-
tóctones para a ocupação portuguesa poder avançar e se expandir territorialmente pela América

1 Esse termo refere-se ao declínio populacional dos nativos americanos. Os acadêmicos acreditam que, entre vários
fatores, as doenças epidêmicas foram de longe a maior causa do declínio populacional dos nativos americanos.
2 A política de concentração da população em aldeias praticada por missionários e pelos órgãos oficiais favoreceu
as epidemias, como de varíola, sarampo, coqueluche, catapora, difteria, gripe e peste bubônica. Fausto destaca que em
1562 uma epidemia consumiu em três meses cerca de 30 mil índios na Baía de Todos os Santos. Em 1564, veio a “fome
geral”, pois nada se plantara nos anos anteriores (FAUSTO, 2000, p. 70-71).
3 Os aldeamentos são os povoados que os missionários criaram para segregar os índios convertidos. Foram o centro
da ação catequética, inicialmente dos jesuítas e depois das outras ordens também. Neles eram reduzidos os índios que
haviam sobrevivido às guerras ou às epidemias. Nos aldeamentos jesuíticos os índios eram educados para viver como
cristãos. Essa educação significava uma imposição forçada de outra cultura, a cristã. Os jesuítas valiam-se de aspectos
da cultura nativa, especialmente da língua, para se fazerem compreender e se aproximarem dos indígenas.
200 Direitos humanos e relações étnico-raciais

do Sul. Nos primeiros séculos de colonização, várias Coroas disputavam a ocupação de algumas
partes do atual Brasil. Só a partir do Tratado de Madrid, em 1750, a Espanha reconheceu a ocupa-
ção territorial alcançada por Portugal. Veremos a seguir um mapa que retrata a representação que
existia sobre a América Meridional em meados do século XVII. Nele se evidencia que o território
denominado Brasil era muito menor do que o atual.
Figura 2 – SANSON, Nicolas. L’Amérique Meridionale dressée sur lês observations de Mrs. Del’Academie
Royal dês Sciencies. séc. XVII. 1 carta: com traçados color: 58 x 48 cm. Chez Pierre Morties, Amsterdam.

Divulgação Biblioteca Nacional Portuguesa

A distinção entre índios aliados e índios inimigos redundou numa política e tratamento
diferenciados por parte da Coroa portuguesa. Aos primeiros lhes foi garantida a liberdade ao
longo de toda a colonização. Deles dependeram o sustento (produziam gêneros de primeira ne-
cessidade e trabalhavam nas plantações dos colonizadores) e a defesa da Colônia (constituindo o
grosso dos contingentes de tropas de guerra contra inimigos, tanto indígenas quanto europeus).
A política para esses “índios de pazes”, “índios das aldeias” ou “índios amigos” sustentou-se nos
descimentos, ou seja, nos deslocamentos de povos inteiros que foram trazidos do interior para
as povoações portuguesas.
A legislação colonial estabelecia que os descimentos deviam resultar da persuasão exerci-
da por tropas lideradas ou acompanhadas por um missionário, sem qualquer tipo de violência.
A persuasão consistia em convencer os “índios amigos” de que, nas aldeias, teriam posse de suas
terras, receberiam bons tratos e trabalho assalariado. Essa política, que estabelecia a ilegalidade do
descimento baseado na coação, continuou sendo afirmada até o século XVIII. A recomendação de
História e historiografia indígena 201

tratamento bondoso e pacífico para os índios aldeados baseou-se em razões de ordem religiosa: a
conversão só podia ser conseguida com brandura e se os cristãos dessem aos índios o bom exem-
plo. Contudo, há vários indícios de que os índios das aldeias acabaram ficando em situação pior
do que os escravos: sobrecarregados, explorados, mandados de um lado para outro sem que sua
vontade, exigida pelas leis, fosse considerada (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 121).
Os jesuítas foram responsáveis não apenas pelo governo espiritual dos povos indígenas (ca-
tequese), mas também pelo governo temporal (a administração das aldeias e do trabalho indígena).
De modo geral, nas aldeias viveram apenas os índios e os missionários. Só mais tarde, durante a
política pombalina, incentivou-se a presença de brancos nos aldeamentos, com o objetivo de pro-
curar a assimilação dos índios.
Por outro lado, a escravidão foi o destino dos ditos índios inimigos. Existiu uma legislação
que falava das “justas razões de direito” para a escravização dos indígenas. Essas razões eram a
guerra justa e o resgate. As causas legítimas para estabelecer uma guerra contra os índios eram
a recusa à conversão da fé, a prática de hostilidades contra vassalos e aliados dos portugueses e a
quebra dos pactos celebrados. Outros dois motivos que aparecem nas discussões dos jesuítas sobre
a guerra justa são a salvação das almas e a antropofagia (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 123-124).
A escravização que resultava da captura dos índios inimigos após o término da guerra justa era
vista como lícita.
É importante destacar que embora muitas das guerras contra os índios fossem motivadas por
interesses econômicos e para as quais eram encontradas justificativas a posteriori, elas suscitavam
discussões e controvérsias entre missionários, reis e autoridades militares. Discutia-se acalorada-
mente acerca dos fundamentos teológicos e jurídicos da justiça dessa prática contra os indígenas,
e a questão preocupava bastante a Coroa, permanecendo um ponto controverso (CUNHA, 1986,
p. 152). A lei de 30 de agosto de 1609 declarou a liberdade de todos os índios do Brasil, para coibir
as escravizações ilícitas. No entanto, a lei de 10 de setembro de 1611 restaurou a escravidão dos
índios capturados em guerra justa, mas determinou que esta deveria ser julgada pelo rei. Assim,
houve ao longo de todo o período colonial avanços e recuos na legislação que prescrevia o cativeiro
indígena. Sua extinção formal – mas não real – foi decretada pela Lei de 6 de junho de 1755.
De meados do século XVII a meados do século XVIII, os jesuítas construíram um enor-
me território missionário. Pela sua ligação direta com Roma e pela independência financeira que
adquiriram, lograram ter uma política independente, mas entraram em choque ocasionalmente
com o governo e regularmente com os moradores. A causa dos conflitos era principalmente pelo
controle do trabalho indígena nos aldeamentos. Os missionários reuniram povos com culturas e
línguas diversas, promovendo sua catequização, o que envolveu o estabelecimento de novas formas
de trabalho, organização social e familiar, padrões de moradia, práticas de sociabilidade e rituais.
Impôs-se o uso da língua geral – ou nheengatu – como língua franca e veículo de homogeneização
e se criou um sistema de autoridades nativas, como mediadores entre os índios e os missionários.
Como vimos, a legislação e a política da Coroa portuguesa em relação aos povos indíge-
nas do Brasil colonial diferenciaram os índios aldeados e aliados dos índios bárbaros e inimigos
(PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 129). A questão da liberdade dos índios ocupou um lugar central
202 Direitos humanos e relações étnico-raciais

num debate que envolveu as principais forças políticas da Colônia: os jesuítas e os colonizadores
(chamados, na época, de moradores). Foram de tal dimensão as dúvidas relativas à escravidão in-
dígena que o início do incremento da importação de escravos africanos foi atribuído à dificuldade
que encontravam os moradores em legitimar a posse dos índios. Como Perrone-Moisés (1992,
p. 116) destaca,
os jesuítas defendiam princípios religiosos e morais e mantinham os índios
aldeados e sob controle, garantindo a paz na colônia. Os colonos garantiam
o rendimento econômico da colônia, absolutamente vital para Portugal [...]
Dividida e pressionada de ambos os lados, a Coroa teria produzido uma legisla-
ção indigenista contraditória, oscilante e hipócrita.

10.3.1 O Diretório dos Índios e o retorno da ação missionária (1755-1910)


Em 1755, o Marques de Pombal inicia a reformulação da política colonial portuguesa, pro-
movendo a retirada das missões jesuíticas e subordinando as demais ordens religiosas ao poder
secular. Nesse processo, as sedes das missões foram transformadas em povoados ou vilas, e os
índios foram considerados emancipados dos religiosos e subordinados apenas a autoridades laicas.
Com uma diretiva assimilacionista4, a política do Marques de Pombal estimulou os casamentos in-
terétnicos, o estabelecimento de colonos entre os índios – quebrando o isolamento que os jesuítas
tinham estabelecido nas missões – e também impôs o uso da língua portuguesa. Com isso, a Coroa
pretendeu promover a emergência de um povo brasileiro livre, substrato de um Estado consistente:
índios e brancos formariam esse povo, enquanto os negros continuariam escravos.
O Marquês de Pombal concedeu aos índios uma autonomia total durante apenas dois anos –
de 7 de junho de 1755 a 3 de maio de 1757. Em 1757, Mendonça Furtado, irmão de Pombal, criou
o Diretório dos Índios, argumentando que os principais (chefes nativos) teriam sido mal instruídos
pelos padres e que se mostraram inaptos para o governo de suas povoações. Em consequência,
justificou sua substituição por diretores “enquanto os índios não tiverem capacidade para se gover-
narem” (CUNHA, 1992, p. 147).
Nesse período, começou a vigorar uma retórica mais secular de civilização, que se agregou
à de catequização. Civilizar era, principalmente naquela época, submeter às leis e obrigar ao traba-
lho. Mas os índios rejeitavam as formas de trabalho impostas pelos colonos e fugiam com frequên-
cia das aldeias, refugiando-se nas matas. Portanto, para impedir essas fugas, o governo favoreceu
o estabelecimento de colonos, sobretudo de milicianos e fazendeiros concedendo sesmarias5 nos
territórios indígenas.

4 O assimilacionismo é uma ideologia e uma política voltada a absorver os grupos ou minorias de modo a impor uma
hegemonia político-cultural, fazendo com que aqueles percam suas características distintivas. Para um Estado – como
o brasileiro – que começava a ser construído, o assimilacionismo foi percebido como condição para criar valores e sen-
timentos nacionais, solidez política, paz social e desenvolvimento econômico.
5 Sesmaria foi um instituto jurídico português que normatizava a distribuição de terras destinadas à produção.
O Estado, recém-formado e sem capacidade para organizar a produção de alimentos, legou a particulares essa função.
Esse sistema surgiu em Portugal durante o século XIV, com a Lei das Sesmarias de 1375, criada para combater a crise
agrícola e econômica que atingia o país e a Europa, e que a peste negra agravara. Quando a conquista do território bra-
sileiro se efetivou a partir de 1530, o Estado português decidiu utilizar o sistema sesmarial no além-mar, com algumas
adaptações. Esse sistema iria garantir a instalação da plantation açucareira na Colônia.
História e historiografia indígena 203

O aldeamento de índios obedeceu a várias conveniências: não só os tirou de regiões dispu-


tadas por frentes pastoris ou agrícolas, mas os levou também para onde se precisava de mão de
obra, não apenas para os interesses regionais ou nacionais, mas também os interesses locais de
moradores. Para obrigar os índios ao trabalho, as análises da época afirmavam que se devia ampliar
suas necessidades e restringir simultaneamente suas possibilidades de satisfazê-las, diminuir seu
território e confiná-los de tal maneira que não pudessem mais subsistir com suas atividades tradi-
cionais. Foi promovida a dependência dos indígenas de mercadorias, como instrumentos de ferro,
roupas e outros artigos, para estimulá-los ao trabalho e ao comércio. Assim, durante esse período,
o trabalho indígena continuou sendo disputado, como vinha acontecendo nos séculos anteriores,
pelos particulares e pelo Estado.
Em 1798, por conta de irregularidades e abusos dos diretores, revogou-se o Diretório
Pombalino pela Carta Régia de 25 de julho e, com isso, os índios aldeados foram emancipados. Ao
mesmo tempo, aos índios que seguiam sendo independentes, não aldeados, foi imposta a tutela por
parte de particulares que conseguissem contratá-los para servi-los, com obrigação de educá-los.
Ao juiz de órfãos coube a tarefa, a partir de 1789, de zelar para que os contratos fossem honrados e
os índios pagos, batizados e educados.
Em 1808, D. João VI, recém-chegado ao Brasil, desencadeou uma guerra ofensiva contra os
botocudos, para liberar para a colonização o Vale do Rio Doce no Espírito Santo e os campos de
Guarapuava, no Paraná. A declaração de guerra justa legalizou, uma vez mais, a escravização dos
índios. Como afirma Cunha (1992, p. 146),
Numa retórica característica do início do século XIX, vem expressa em termos
pedagógicos: a escravidão temporária dos índios, dobrando-os à agricultura e
aos ofícios mecânicos, deveria fazer-lhes perder sua “atrocidade” e, sujeitando-
-os ao trabalho como os sujeitava às leis, elevá-los a uma condição propriamente
social, isto é, humana.

Com a Independência do Brasil, em 1822, debateu-se a necessidade de uma política indige-


nista. No período que antecedeu a primeira Constituição brasileira, foram apresentados nada me-
nos que cinco projetos de deputados, sendo aprovado o de José Bonifácio: “Apontamentos para a
civilização dos índios bravos do Império do Brasil”, em 18 de junho de 1823. No entanto, ele não foi
incorporado ao projeto constitucional. A Assembleia Constituinte se limitou a declarar de compe-
tência das províncias a promoção de missões e catequese dos índios. Dissolvida a Constituinte por
D. Pedro I, nossa primeira Constituição nem sequer menciona a existência dos índios (CUNHA,
1992, p. 138).
A partir de então, estabeleceu-se um vazio legal para a questão indígena, até 1845, quando se
decreta o “Regulamento acerca das Missões de catequese e civilização dos índios” (Decreto 426, de
24 de julho de 1845) e se impõe novamente o aldeamento e o governo das missões, mas entendidas
como uma transição para a assimilação completa dos índios.
Desde meados do século XIX, a questão indígena deixou de ser essencialmente uma questão
de mão de obra para se tornar uma questão de terras (CUNHA, 1992, p. 16). O Império tratou de
alargar os espaços transitáveis e apropriáveis. Apesar de reconhecer o direito legítimo dos índios
204 Direitos humanos e relações étnico-raciais

à posse das terras, utilizou toda sorte de subterfúgios para ocupá-las. Dizia-se, por exemplo, que
os índios eram errantes, que não se apegavam ao território, que não tinham a noção de proprie-
dade. A Lei de Terras de 1850 estabeleceu uma política agressiva em relação às terras das aldeias.
Extinguiram-se aldeias sob o pretexto de que os índios se achavam confundidos com a massa da
população e reverteram-se suas terras ao Império e depois às províncias, que as repassaram aos
municípios, que, por sua vez, venderam-nas a particulares. Assim, fechou-se um processo de ex-
propriação e redução da terra indígena iniciado no século XVI.
A mão de obra indígena tornou-se – para o governo e os poderes locais – uma alternativa
transitória diante da possibilidade de contar com outras populações trabalhadoras, como a dos
escravos africanos ou a dos colonos mestiços. Foi o caso do que aconteceu, por exemplo, com a
extração da borracha na Amazônia ocidental, que passou a ser explorada por trabalhadores nor-
destinos (CUNHA, 1992, p. 134).
Os missionários foram reintroduzidos no Brasil na década de 1840, mas ficaram estrita-
mente a serviço do Estado, para que se desenvolvessem como assistentes religiosos e educacionais
dos administradores. Porém, pela carência de diretores de índios minimamente preparados, foi
frequente a situação de missionários exercerem cumulativamente os cargos de diretores de índios.

10.3.2 O Regime tutelar (1910-1988)


No início do século XX, houve um movimento de opinião, sobretudo levado a cabo no Rio
de Janeiro e em São Paulo, a respeito do futuro dos índios e da colonização do país. Os positivistas
ortodoxos participaram ativamente do debate. Cândido Rondon, um militar imbuído do ideário
positivista, que tinha sido designado como chefe da comissão que construiu a linha telegráfica de
Cuiabá a Rondônia, propôs que fosse criada uma agência indigenista que teria por finalidades:
• estabelecer a convivência pacífica com os índios;
• agir para garantir sua sobrevivência física;
• fazer com que adotassem gradualmente “hábitos civilizados”;
• fixá-los à terra;
• contribuir para o povoamento do interior do Brasil;
• poder acessar ou produzir bens econômicos nas terras dos índios;
• usar a força de trabalho indígena para aumentar a produtividade agrícola;
• fortalecer o sentimento indígena de pertencer a uma nação (SOUZA LIMA, 1987 apud
PACHECO DE OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 113).
Em 20 de julho de 1910, criou-se – por meio do Decreto 8.072 – a primeira agência lei-
ga do Estado brasileiro responsável das políticas indigenistas: o Serviço de Proteção aos Índios e
Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que funcionou, no início, dentro do Ministério
da Agricultura, Indústria e Comércio. Esse Serviço ficou com a responsabilidade de prestar assis-
tência tanto aos índios nômades quanto aos aldeados, passando os indígenas, então, a serem tute-
lados pelo Estado. O projeto desse órgão procurou afastar a Igreja católica da catequese indígena
História e historiografia indígena 205

e sustentou-se na finalidade de transformar o índio em um trabalhador nacional (PACHECO DE


OLIVEIRA; FREIRE, 2006).
Rondon foi convidado a dirigir o SPILTN, devido à competência que tinha demonstra-
do no trato com povos indígenas nos trabalhos das Comissões de Linhas Telegráficas e de suas
ideias positivistas convergentes com os projetos de colonização e povoamentos do Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio. Dirigiu o órgão indigenista até 1930.
Com o objetivo de integrar populações e territórios indígenas, o SPILTN (a partir de 1918,
passou a se chamar apenas SPI) adotou uma organização administrativa diferenciada, conforme o
grau de contato que considerava que os índios tinham com a sociedade nacional. Eles eram clas-
sificados como: “isolados”; “em contato intermitente”; “em contato permanente”; e “integrados”.
Assim, por exemplo, estabeleceram-se postos indígenas de atração para os povos que não tinham
quase contato com a população branca ou que mantinham com ela relações de conflito. Havia tam-
bém postos de criação, onde se introduziam atividades educacionais voltadas para incentivar a pro-
dução econômica dos índios que já tinham certo contato com a sociedade não indígena. Planejava-
se, de acordo com o grau de sedentarismo que manifestasse cada grupo indígena, a demarcação de
terras maiores ou menores para o desenvolvimento da produção agrícola. O objetivo era tornar os
índios pequenos produtores agrícolas, ou seja, trabalhadores nacionais. A educação foi vista como
uma ferramenta fundamental de mudança de hábitos e, por isso, foram criadas escolas dentro dos
postos. Nelas se ensinavam português e praticavam rituais cívicos. Também se privilegiou o ensino
prático por meio de oficinas para o aprendizado de ofícios manuais.
A tutela que exerceu o SPI se caracterizou pela sua ambiguidade: propunha-se respeitar as
terras e a cultura indígena, mas ao mesmo tempo agia transferindo índios e liberando territórios
indígenas para colonização e impunha uma pedagogia que alterava o sistema produtivo indígena.
Assim, as ações que essa agência exerceu não devem ser lidas apenas numa dimensão humanitária,
nem entendidas como simples dominação (PACHECO DE OLIVEIRA; FREIRE, 2006).
O SPI foi extinto em 1967 por acusações de genocídio de índios, corrupção e ineficácia
administrativa. Isso coincidiu com a reformulação do aparato estatal após o golpe de 1964. Foi
substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), por meio da Lei n. 5.371, de 5 de dezembro
de 1967. Criada para continuar com o exercício da tutela do Estado sobre os índios, a Funai tem
seus princípios baseados no mesmo paradoxo do SPI: o “respeito à pessoa do índio e às institui-
ções e comunidades tribais” e a promoção de “educação de base apropriada do índio visando sua
progressiva integração na sociedade nacional” (PACHECO DE OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 131).
Em 1973, foi sancionada a Lei n. 6.001, o Estatuto do Índio, que passou a regular a situação
jurídica dos índios e das comunidades indígenas, tanto no que diz respeito às terras quanto à edu-
cação, à cultura e à saúde. O artigo 65 das Disposições Gerais estabelecia o prazo de cinco anos
para a demarcação de todas as terras indígenas, prazo não cumprido até hoje. O Estatuto manteve
a ideologia civilizatória, integracionista e protecionista do SPI.
Ainda na década de 1970, no contexto de uma política desenvolvimentista, criaram-se in-
vestimentos em infraestrutura e prospecção mineral na Amazônia, e os índios foram vistos como
206 Direitos humanos e relações étnico-raciais

empecilhos ao progresso. Forçou-se o contato dos índios isolados, para liberar suas terras para
diversas empresas, estradas e barragens, e realocaram-se os índios segundo os interesses em jogo.
As fronteiras se militarizaram e os índios passaram a ser considerados riscos à segurança nacional,
por ocuparem territórios próximos a essas regiões, tidos como alvos suscetíveis de invasão ou in-
fluência por parte de nações vizinhas.
Nesse período, em oposição à política governamental, multiplicaram-se as organizações não
governamentais de apoio aos índios, e, no início da década de 1980, pela primeira vez, organi-
za-se um movimento indígena de âmbito nacional: a União das Nações Indígenas. O Conselho
Indigenista Missionário (CTMI), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), com uma proposta de evangelização libertadora, teve um papel fundamental nisso.
A mobilização das organizações de apoio aos índios e o próprio movimento de reivindicação que
eles gestaram redundou na conquista de um reconhecimento dos direitos indígenas na Constituição
de 1988, que abandona por fim a perspectiva assimilacionista das Constituições anteriores.
A Constituição de 88 garante o reconhecimento da organização social, dos costumes, das
línguas, crenças e tradições indígenas, além dos direitos originários sobre as terras que tradicional-
mente ocupam. O artigo 231 detalha o que são essas terras, a que se destinam e como será o usu-
fruto de suas riquezas. Também rompe com a herança tutelar originada no Código Civil de 1916,
mudando o status dos índios e permitindo que individualmente ou por meio de suas organizações
ingressem em juízo para defender direitos e interesses.
Segundo destacam Pacheco de Oliveira e Freire (2006, p. 135-136), a proximidade da Reunião
Internacional sobre Meio Ambiente, a ECO-92, que foi realizada no Rio de Janeiro, impulsionou a
política de identificação e demarcação de terras no início dos anos 1990. Como consequência da
reunião, iniciou-se o financiamento internacional de programas para a proteção da floresta tropi-
cal e para a demarcação das terras indígenas.
Com o reconhecimento do direito territorial, o direito à saúde e à educação bilíngue, in-
tercultural e diferenciada, garantidos pela Constituição de 1988, abre-se um novo panorama para
os povos indígenas do Brasil. Contudo, ainda falta muito caminho a percorrer para garantir esses
direitos na prática.

10.4 As imagens sobre os índios nos séculos XVIII, XIX e XX


Nos séculos XVIII e XIX, os índios do Brasil foram caracterizados como gente sem religião,
sem justiça e sem Estado – uma ideia que, elaborada pela filosofia política, serviu de base ao ima-
ginário sobre o homem natural e o estado de natureza (CUNHA, 1992).
No século XIX, com a influência do romantismo, como movimento artístico, político e
filosófico que se caracterizou por uma visão de mundo contrária ao racionalismo, exaltou-se
o índio como símbolo cultural do Brasil. Construiu-se o estereótipo do “bom selvagem”, que
já circulara entre filósofos e pensadores iluministas no século anterior. A expressão literária
que consagrou a imagem do índio como representação de liberdade e independência e como
História e historiografia indígena 207

símbolo de nacionalidade se chamou, no Brasil, indianismo. A obra mais significativa em pro-


sa foi a do romancista José de Alencar, com os romances Iracema e O Guarani, enquanto
Antonio Gonçalves Dias se destacou na poesia.
Aspectos positivos e negativos dos povos indígenas estiveram em confronto no século XIX,
coexistindo visões tutelares e científicas com visões assimilacionistas e românticas (PACHECO DE
OLIVEIRA; FREIRE, 2006).
Na segunda metade do século XIX, em pleno auge do evolucionismo, prosperou a ideia de
que certas sociedades teriam ficado na estaca zero da evolução e, portanto, seriam como testemu-
nhas vivas do passado das sociedades ocidentais. Os índios foram colocados nessa condição.
O fato de que fossem sociedades orais e que permanecessem aparentemente mantendo
uma forma de vida primitiva fez com que os estudiosos, principalmente os etnólogos das primei-
ras décadas do século XX, afirmassem que se tratava de povos sem história ou sociedades frias.
Pressupunham a ideia de que estudar o presente dessas sociedades era equivalente a estudar seu
passado, já que não haveria diferenças ou mudanças significativas na sua forma de vida e tradições.
Muitas foram as explicações para compreender e justificar o porquê de as sociedades indíge-
nas da Amazônia não terem desenvolvido formas complexas de organização social. As sociedades
amazônicas seriam simples devido à pobreza dos solos e ao escasso potencial agrícola e de proteína
animal (MEGGERS, 1977). Outros consideraram que as sociedades indígenas das terras baixas te-
riam uma rejeição natural pelo poder, o que determinou a não emergência do Estado (CLASTRES,
1978). No entanto, pesquisas arqueológicas recentes (ROOSEVELT, 1992) vieram corroborar o
que alguns cronistas contaram (PORRO, 1992): a Amazônia foi povoada durante longo tempo por
algumas populosas sociedades, que desenvolveram formas complexas de organização, sedentárias
e possivelmente estratificadas.
Nos últimos anos vem sendo desenvolvida uma linha de pesquisas de antropologia histórica
que privilegia a abordagem dos indígenas como agentes ativos e sujeitos políticos, capazes de serem
protagonistas do seu próprio destino.

10.4.1 Visões indígenas do contato


Se a história e os estudos antropológicos diferenciam e colocam colonizadores de um lado
e nativos do outro, para os povos indígenas existem diversas interpretações dessa alteridade e das
formas de se relacionar com os brancos. Como chama a atenção Cunha (1992, p. 18), a percepção
de uma política e de uma consciência histórica em que os índios são sujeitos e não apenas vítimas
só é nova eventualmente para nós. Para os índios ela parece ser costumeira. “É significativo que
dois eventos fundamentais – a gênese do homem branco e a iniciativa do contato – sejam frequen-
temente apreendidos nas sociedades indígenas como o produto de sua própria ação ou vontade”
(CUNHA, 1992, p. 18). A gênese do homem branco nas mitologias introduz, além da alteridade,
o tema da desigualdade no poder e na tecnologia. O homem branco surge nos mitos de alguns
povos indígenas no mesmo ato de criação dos índios, mas depois seguem caminhos distintos.
Frequentemente também a desigualdade tecnológica, o monopólio de ferramentas de ferro e armas
208 Direitos humanos e relações étnico-raciais

de fogo por parte dos brancos é explicada nos mitos como uma escolha que foi dada aos índios.
Eles poderiam ter escolhido ou se apropriado desses recursos, mas fizeram uma escolha por outros
objetos, próprios de sua atual cultura. Por exemplo, os krahô e os canela, povos falantes de língua
jê, família timbira, habitantes de Tocantins e Maranhão, contam em seus mitos que quando lhes foi
dada a opção pelo seu herói cultural, criador de todas as coisas, entre pegar a espingarda e o prato
(os quais tinha colocado um bem perto do outro) e o arco e a cuia (que estavam mais afastados),
preferiram estes últimos.
As sociedades indígenas constroem uma história do mundo em que seus atos e escolhas
tiveram importantes efeitos nas suas formas de vida atual. Os movimentos messiânicos em alguns
povos indígenas podem ser entendidos como uma forma de reatualizar os mitos e reverter escolhas
ou fatos anteriormente vivenciados neles.

Dicas de estudo
• Os índios antes do Brasil, de Carlos Fausto, Editora Jorge Zahar.
Escrito por um professor de Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, es-
pecialista em povos indígenas, em linguagem acessível a todos, essa obra convida o leitor
a descobrir os índios que habitaram o Brasil antes de Cabral.
• História dos índios no Brasil, organizado por Manuela Carneiro Cunha, Editora Companhia
das Letras.
Essa importante compilação de artigos produzidos por antropólogos e historiadores foca-
liza diversos períodos da história indígena, desde a situação dos povos indígenas antes da
chegada dos portugueses, as políticas e legislações do período colonial e do Império, até
chegar à política tutelar da República. Os textos que compõem o livro apresentam uma
rica documentação de fontes e imagens e são produto de longas trajetórias de pesquisa
dos autores nessas temáticas.
• Brava gente brasileira, direção de Lúcia Murat, 2000. 104 min.
A ficção se passa no atual Mato Grosso do Sul, no fim do século XVIII, quando um grupo
de portugueses designados para fazer um levantamento topográfico na região do Pantanal
envolve-se no estupro de índias da tribo kadiwéu. O filme focaliza o conflito cultural entre
brancos (colonizadores) e nativos, tendo como tema principal a dificuldade de compreen-
são cultural.
• Site do Museu do Índio: <www.museudoindio.org.br>.
Criado por Darcy Ribeiro em 1953, o Museu hoje se descreve como “órgão científi-
co-cultural da Funai”. O site traz informações sobre o acervo da Biblioteca Marechal
Rondon, que é muito rico em documentos textuais e visuais produzidos pelo Serviço
de Proteção aos Índios (SPI).
História e historiografia indígena 209

Atividades
1. Que fontes disponíveis existem para o estudo da história indígena? Que características
elas têm e qual é a importância de considerar as narrativas históricas produzidas pelos pró-
prios indígenas?

2. Como se constituíram os aldeamentos? Que importância estratégica eles tiveram para


os colonos?

3. Qual era a política para os índios aliados e qual era a política para os índios inimigos durante
a Colônia?

4. Quais foram os objetivos e princípios que orientaram a primeira agência indigenista laica
estatal, o Serviço de Proteção aos Índios?
11
Situação contemporânea
dos povos indígenas

Mariana Paladino

Neste capítulo abordaremos a situação contemporânea dos povos indígenas no Brasil.


O objetivo é apresentar a heterogeneidade das formas e condições de vida desses povos, a riqueza
de suas práticas culturais e de suas vinculações com o território e o meio ambiente, compreenden-
do o valor que elas têm e sua contribuição à diversidade sociocultural de nosso país.
É importante destacar que desenvolveremos aqui um panorama geral das condições atuais
de vida dos povos indígenas brasileiros, mas deve-se ter claro que cada grupo indígena ou etnia
apresenta diferenças significativas em relação aos outros grupos indígenas. O índio genérico que
os livros didáticos de antigamente apresentavam não existe. Portanto, compor um quadro geral se
apresenta como um desafio diante da diversidade de culturas, línguas, formas de organização so-
cial, sistemas econômicos, cosmologias e rituais que os grupos indígenas expressam.
Também cabe chamar a atenção para o fato de que os povos indígenas contemporâneos são
muito diferentes dos que os portugueses conheceram na sua chegada. Não apenas no tamanho po-
pulacional, mas nas formas de organização social e visões de mundo houve importantes mudanças,
muitas delas decorrentes da violência que impuseram os colonizadores. Os povos indígenas, como
qualquer grupo humano, são sociedades dinâmicas. Porém, mantêm e atualizam importantes vín-
culos ancestrais com suas tradições e território.

11.1 Quem são e quantos são os povos indígenas hoje no Brasil


A denominação indígena significa, segundo os dicionários de língua portuguesa, nativo,
pessoa natural do lugar ou do país em que habita.
Segundo definição das Nações Unidas, de 1986,
[...] as comunidades, os povos e as nações indígenas são aqueles que, contando
com uma continuidade histórica das sociedades anteriores à invasão e à coloni-
zação que foi desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distin-
tos de outros setores da sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver
e a transmitir às gerações futuras seus territórios ancestrais e sua identidade
étnica, com base de sua existência continuada como povos, em conformidade
com seus próprios padrões culturais, as instituições sociais e os sistemas jurídi-
cos. (apud LUCIANO, 2006a, p. 27)

Apesar de o emprego do termo índio ou indígena ter adquirido, ao longo da história do Brasil, um
sentido pejorativo, sendo associado a um modo de vida pouco “civilizado” e indolente, o movimento
indígena, surgido a partir da década de 1970, decidiu que era importante manter, aceitar e promover
aquela denominação genérica como uma forma de fortalecer a identidade conjunta e valorizar o fato de
ser originário dessas terras, assim como de se unir para lutar por direitos comuns.
212 Direitos humanos e relações étnico-raciais

No entanto, cada povo ou grupo indígena tem sua própria denominação. Em geral, tem duas
denominações: a autodenominação, ou seja, como o grupo se chama ou refere a si mesmo, e um
nome que lhe foi dado por outros povos, geralmente vizinhos, baseando-se em certas característi-
cas ou imagens que tinham deles. Por exemplo, os tikuna se autodenominam magüta, mas povos
do tronco tupi que conviviam com eles os chamaram de tikuna, e assim foi registrado e divulgado
por missionários, nos séculos XVII e XVIII.
Os povos indígenas contemporâneos – ao contrário da imagem de senso comum que os
representa como pequenas e frágeis microssociedades que vivem isoladas no interior da Floresta
Amazônica, sofrendo um inevitável processo de aculturação, estão vivendo um processo de for-
talecimento cultural e de conquista de direitos significativos. A partir da década de 1970, com o
apoio de organizações da sociedade civil e de entidades religiosas católicas vinculadas à vertente da
teologia da libertação, vêm se organizando e mobilizando em prol de demandas fundamentais para
garantir sua sobrevivência. O Estado reconheceu várias dessas demandas na Constituição de 1988
e, hoje, muitos grupos indígenas têm seus territórios demarcados1, escolas onde o ensino é bilíngue
e intercultural, postos de saúde com profissionais indígenas e levam a cabo projetos de desenvolvi-
mento sustentável e de proteção do território. Nas aldeias, os indígenas convivem crescentemente
com tecnologia ocidental (rádio, telefone, televisão, internet), mas simultaneamente opera-se uma
valorização e resgate de rituais, de registro e conservação da memória oral e dos conhecimentos
que ela veicula (contos, mitos, conhecimentos medicinais, conhecimentos artísticos, entre outros).
O crescimento populacional indígena vem sendo significativo nas três últimas décadas. Ele
deve ser entendido principalmente por dois fatores. Por um lado, como decorrência do crescimen-
to demográfico, que está em torno de 4% ao ano, contra 1,6% da população brasileira. Por outro
lado, como resultado dos processos de fortalecimento e reconhecimento da identidade étnica que
os povos indígenas vêm atravessando nas últimas décadas, o que motivou que muitos começassem
a se visibilizar e identificar como tais (LUCIANO, 2006a, p. 20). É importante entender que, em
muitas regiões do país, os índios se viram obrigados – para sobreviver e para evitar a exploração e a
carga de preconceitos vinculados à sua condição – a ocultar e negar sua identidade, deixando para
isso de utilizar sua língua e de praticar seus costumes. Alguns grupos passaram a se mimetizar com
a população camponesa ou cabocla e foram considerados assimilados ou aculturados. No contexto
atual de reconhecimento dos direitos indígenas, muitos conseguiram reassumir sua identidade.
Esse fenômeno se denomina etnogênese ou reetnização e vem ocorrendo nos últimos anos, princi-
palmente na região nordeste do país.

1 O artigo 25 da Lei n. 6.001 e o artigo 231 da Constituição estabelecem o reconhecimento do direito dos indígenas
às terras por eles habitadas e faculta ao órgão indigenista (Funai) o poder e a agilidade necessários para regularizar a
situação das terras indígenas. A demarcação constitui a última etapa do processo de regularização das terras indígenas.
O Decreto n. 76.999, de 8 de janeiro de 1976, fixou as normas para a demarcação dessas terras. O Presidente da Funai
designa um antropólogo, um engenheiro e um agrimensor, que inicialmente devem realizar um levantamento de campo e
descrever os limites da área. Ver Pacheco de Oliveira (2006) para mais explicações sobre o processo de demarcação de
terras indígenas.
Situação contemporânea dos povos indígenas 213

O antropólogo Darcy Ribeiro, com base em relatórios da antiga agência indigenista – o


Serviço de Proteção aos Índios (SPI) – calculou, em 1957, a existência de 143 etnias, com uma po-
pulação estimada entre 68.100 e 99.700 indivíduos. Hoje, estimam-se, segundo dados da Fundação
Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Socioambiental (ISA), 220 etnias, com uma população de
325 mil indígenas (PACHECO DE OLIVEIRA, 2006, p. 127-128).
As 220 etnias estão distribuídas ao longo do país – somente nos estados do Piauí e do Rio
Grande do Norte a Funai não reconhece presença indígena. 162 dessas 220 etnias estão localizadas
na Amazônia Legal2. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com
base no Censo de 2000, a quantidade de indígenas ainda é maior: estima-se um total de 740 mil e
compõem 0,4% da população brasileira.
Essa diferença na quantidade de população indígena ocorre em função dos diferentes méto-
dos utilizados para a obtenção de dados. A Funai e o ISA levantaram dados dos habitantes localiza-
dos em aldeias de terras indígenas reconhecidas oficialmente. O IBGE não apenas levantou dados
naquelas regiões, mas também dos índios que residem nas cidades ou em terras indígenas ainda
não reconhecidas, além de utilizar o método de autoidentificação.
Luciano (2006a) também destaca os dados da Fundação Nacional da Saúde (Funasa)
como relevantes fontes de informação sobre a população indígena que vive em terras indí-
genas. Segundo dados desse órgão, o contingente populacional reconhecido pelo governo
brasileiro e cadastrado pelo sistema de saúde é de 374.123 índios, distribuídos em 3.225 al-
deias, pertencentes a 291 etnias e falantes de 180 línguas, divididas por 35 grupos linguísticos
(FUNASA, 2003, p. 3 apud LUCIANO, 2006a, p. 28). Dos 374.123 indígenas atendidos pela
Funasa, 192.773 são homens e 181.350 são mulheres.
Ainda segundo os dados da Funasa, a população indígena está dispersa por todo o território
brasileiro, sendo que na região Norte concentra-se o maior contingente populacional, com 49%, e
na região Sudeste está o menor contingente, com apenas 2% (LUCIANO, 2006a, p. 26).
A dificuldade de chegar a uma contagem exata da população indígena se deve ao fato
não apenas de ela estar espalhada numa grande extensão do território, às vezes de difícil aces-
so, mas também ao fato de existirem grupos isolados sobre os quais se têm pouca informação,
assim como índios urbanos, sobre os quais também existem escassos dados. Estima-se que
existam atualmente 46 evidências de índios isolados (ou seja, que não têm contato com a

2 A Amazônia Legal é uma área que engloba nove estados brasileiros pertencentes à Bacia Amazônica e, que, con-
sequentemente, possuem em seu território trechos da Floresta Amazônica. Com base em análises estruturais e conjun-
turais, o governo brasileiro, reunindo regiões de idênticos problemas econômicos, políticos e sociais e com o intuito de
planejar o desenvolvimento social e econômico da região amazônica, instituiu o conceito de Amazônia Legal. Sua atual
área de abrangência corresponde à totalidade dos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia,
Roraima e Tocantins e parte do estado do Maranhão, perfazendo uma superfície de aproximadamente 5.217.423 km²,
correspondente a cerca de 61% do território brasileiro.
214 Direitos humanos e relações étnico-raciais

sociedade nacional) no território brasileiro, das quais apenas 12 foram confirmadas até hoje
pela Funai (LUCIANO, 2006a, p. 51)3.
Por outro lado, devido a processos complexos de desterritorialização que as populações in-
dígenas atravessaram, de deslocamento forçado ou expulsão de seus territórios, alguns segmentos
terminaram se instalando em meio urbano ou em fazendas para morar próximo aos espaços de tra-
balho. Há alguns povos que têm migrado para as grandes metrópoles (como Manaus e São Paulo)
e outros para cidades de menor tamanho. O IBGE estima que a parcela da população indígena que
residia em área urbana passou de 23,9% em 1991 para 52,2% em 2000 (IBGE, 2005). Ou seja, nem
todos os povos continuam ligados ao seu território ancestral, embora ele esteja geralmente presente
em narrativas, lembranças e na continuidade de relações que estabelecem com grupos de parentes-
co que ainda moram naqueles territórios.
Considerando os dados de 2005, que contemplavam os índios urbanos, o número de in-
dígenas chegou a 740 mil indivíduos. E esse número continuou crescendo para 817.892 índios
em 2010 (IBGE).
Esse crescimento significativo da presença dos índios se deu em áreas rurais, indicando uma
retomada da cultura indígena agrícola e rural, sinal de reforço nas políticas de proteção do índio.
Nos números de assentamento e áreas legalizadas, o Brasil teve uma queda substancial no governo
Lula e Dilma, depois dos governos Collor e FHC terem legitimado largas faixas de terra. Apesar disso,
a proteção ao índio cresceu nesses governos com políticas afirmativas e melhoria do atendimento
médico e sanitário.
As terras que até hoje o Estado reconheceu como de posse indígena representam atualmente
cerca de 12% do território brasileiro. A Constituição de 1988 garante o direito originário dos povos
indígenas às terras tradicionalmente ocupadas por eles. Cabe aclarar que isso não significa que te-
nham a propriedade dessas terras, que são bens e patrimônio da União, apenas lhe são garantidos
a posse e o uso delas.
Segundo dados de 2006 do Departamento Fundiário da Funai, existem no Brasil 612 ter-
ras indígenas com algum grau de reconhecimento por parte desse órgão, totalizando uma ex-
tensão de 106.373.144 ha, ou seja, 12,49% do território brasileiro. A Amazônia Legal é a região
brasileira que concentra a maior parte das terras indígenas: 20,67% da região (LUCIANO, 2006a,
p. 105).
Apesar do avanço que houve na garantia por parte do Estado de terras aos povos indígenas,
ainda faltam várias áreas a serem demarcadas e existem vários grupos que estão sem terra, ou com
terra insuficiente para garantir a sua sobrevivência. É igualmente grave a situação de muitas terras
que sofrem invasão por parte de regionais não indígenas: madeireiros, caçadores, pescadores, entre
outros, sendo seus recursos naturais violentados.

3 O fato de serem denominados “isolados” não deve nos levar a pensar que nunca tiveram contato com a sociedade
não indígena ou com outros grupos indígenas. Alguns estudiosos consideram que provavelmente já tiveram algum con-
tato no passado, mas, fugindo da violência ou de pressões decorrentes dessa relação, refugiaram-se em lugares mais
distantes e inóspitos. As gerações seguintes foram as que não tiveram contato (LUCIANO, 2006a).
Situação contemporânea dos povos indígenas 215

Vejamos a seguir um quadro sistematizando as informações anteriormente comentadas so-


bre a distribuição das terras indígenas no Brasil:
Quadro 1 – Distribuição das terras indígenas no Brasil

Descrição Extensão (ha) %


Território nacional 851.487.659 100

612 terras indígenas 106.373.144 12,49

405 terras indígenas na Amazônia Legal 103.483.167

207 terras indígenas no Centro-Oeste,


2.889.992
Nordeste, Sul e Sudeste

Fonte: LUCIANO, 2006a.

11.2 Diversidade linguística e cultural


Existe uma enorme diversidade cultural entre os povos indígenas do Brasil, expressada, en-
tre outras formas, nas artes, na música, na tecnologia, na medicina, nos conhecimentos, nas tradi-
ções orais e nos rituais. Essa diversidade é produto das formas particulares em que cada povo foi
se relacionando com o território, o meio ambiente e com os demais grupos, conforme suas crenças
e visões de mundo. Também são significativos os processos de contato com agentes e agências do
Estado e da sociedade nacional, que influenciaram nas formas em que hoje os indígenas assumem
e mostram suas diferenças culturais.
As línguas expressam também essa rica diversidade, porque elas representam modos dis-
tintos de classificar e compreender o mundo. São transmitidas de geração em geração por meio
da tradição oral. Apesar de muitas terem sido extintas, ao longo dos anos da colonização, ainda se
falam mais de 180 línguas nativas.
Algumas delas são consideradas em risco de extinção, pelo número reduzido de falantes
(cerca de 40 línguas). Certos povos já perderam suas línguas e falam as línguas de outros po-
vos ou falam o português como língua materna. É o caso de 37 povos que só falam o português
(LUCIANO, 2006a). Alguns deles estão levando a cabo um processo de resgate de suas línguas,
com o apoio de organizações não governamentais e de especialistas vinculados à academia. São
realizadas, para isso, pesquisas e estudos com os falantes mais idosos ou recorre-se a estudos lin-
guísticos e antropológicos do passado.
Outras línguas indígenas permanecem vitais e ativas e são amplamente utilizadas não apenas
no âmbito doméstico, mas crescentemente no espaço escolar, público e até nas cidades. Em alguns
municípios, como em São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas, têm sido reconhecidas,
junto do português, como línguas oficiais.
Os linguistas classificam as línguas indígenas em troncos, famílias, línguas e dialetos: há dois
grandes troncos, o tupi e o macro-jê, e 20 famílias linguísticas que não apresentam graus de seme-
lhanças suficientes para poderem ser agrupadas nesses troncos. Há, também, famílias de apenas
uma língua, às vezes denominadas línguas isoladas, por não se revelarem parecidas com nenhuma
outra língua conhecida (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2009).
216 Direitos humanos e relações étnico-raciais

11.3 Formas de organização social e parentesco


Cada povo possui uma forma própria de organizar suas relações sociais, políticas e de pa-
rentesco. As relações de parentesco são a base da estrutura social dos povos indígenas. Em geral,
constituem-se com base na família extensa, que é uma unidade social articulada em torno de um
patriarca ou de uma matriarca por meio de relações de parentesco consanguíneas e de afinidade
política ou econômica com outros grupos aliados. Uma família indígena extensa geralmente reúne
a família do patriarca, as famílias dos filhos, os genros, as noras, os cunhados e outras famílias afins
que se filiam à grande família por interesses específicos (LUCIANO, 2006a, p. 43).
Também são significativas as relações de aliança econômica e política que cada povo ou
grupo familiar estabelece com outros. As alianças se estabelecem com base em interesses comuns
que, em geral, vinculam-se ao compartilhamento de espaços territoriais, à troca comercial e à troca
de mulheres, pelo casamento. Os grupos de parentesco e de aliados costumam se reunir tanto para
a produção de certos bens e empreendimentos, quanto para a distribuição desses bens, para rituais
e festas.
Alguns povos indígenas vivem em grandes malocas comunitárias, outros em casas separa-
das e dispersas ao longo dos rios e das florestas. Ainda outros têm se organizado em grandes aldeias
com casas contíguas e nas que vêm se operando em um processo de urbanização. Também há os
que vivem na cidade, mas isso não significa que tenham perdido vínculos com as suas comunida-
des de origem.
Existem papéis de liderança que são chamados tradicionais porque seguem as condições e
regras herdadas dos seus pais ou ancestrais e que são aceitas pelo grupo. Sua função é aconselhar,
organizar e articular os membros de sua aldeia ou grupo e também de representá-los diante de
outros povos. Também existem as novas lideranças, que são novos papéis surgidos em função do
contato com o Estado, principalmente com o órgão indigenista: capitães, professores indígenas,
agentes indígenas de saúde, dirigentes de organizações indígenas. Eles funcionam como interme-
diários e interlocutores com a sociedade não indígena e adquiriram seus cargos por formas e cri-
térios de escolha diferentes das lideranças tradicionais, como o de ter educação escolar e falar bem
o português. As lideranças tradicionais e as novas lideranças coexistem no espaço das aldeias e
tentam coordenar suas ações e representações de forma conjunta (LUCIANO, 2006a).
Em geral, os caciques – de forma diferente do uso do poder nas chamadas sociedades oci-
dentais – carecem de um poder autoritário e de uma estrutura repressiva. O chefe indígena adquire
seu poder por prestígio, por capacidade de aconselhamento, pela posse de determinadas virtudes
valorizadas pelo grupo. Mas seu poder vai se circunscrever a determinadas esferas ou circunstân-
cias. Não tem poder soberano sobre o grupo, e as decisões de ele tome terão que ser consensuadas
pela coletividade.
De acordo com a posição que se tenha no grupo (em relação a idade, gênero, geração), serão
outorgadas as tarefas, as funções e as responsabilidades aos indivíduos.
Situação contemporânea dos povos indígenas 217

Existem papéis especializados como os pajés ou xamãs, responsáveis pela segurança espiri-
tual e pela cura dos membros de seu grupo. Alguns povos indígenas tinham papéis especializados
de guerreiros, outros de caçadores e pescadores, outros de contadores de histórias e cantores.

11.4 Economias indígenas


Os índios que residem dentro das terras indígenas vivem dos recursos oferecidos pela natu-
reza, da pesca, da caça, da agricultura, da coleta de frutos silvestres. Nelas encontra-se uma diver-
sidade de ecossistemas – entre outros, matas das várzeas, matas de igapós, savanas de terra firme,
florestas de terra firme, serrado, Mata Atlântica etc. Cada um desses ecossistemas enseja aos índios
uma forma particular de manejo, de modo a otimizar a obtenção dos recursos que são necessários
ao seu bem-estar.
O território é a base da vida dos povos indígenas, não apenas por ser o meio onde se en-
contram os recursos naturais que lhes garantirão sua subsistência econômica, mas também por
ele estar vinculado a seres, espíritos, valores e conhecimentos de fundamental relevância para sua
reprodução cultural. Assim, o território representa o vínculo com a ancestralidade, com os ante-
passados, com os mitos de origem e tem uma significação que transcende o sentido capitalista de
entender e de se apropriar desse espaço.
É recorrente entre os povos indígenas brasileiros considerar que todos os seres vivos e não
vivos, reais ou imateriais, possuem suas dimensões espirituais. Nos mitos, fala-se que existem es-
píritos protetores, chamados de mães. Assim, por exemplo, quando um animal é caçado sem res-
peito a regras ou tabus vinculados à captura de certos seres, a mãe ou espírito desse animal reagirá
vingando tal violação, provocando doença ou morte da pessoa. Em geral, explica-se a origem das
doenças pelas relações que as pessoas mantêm de desequilíbrio com a natureza (LUCIANO, 2006a,
p. 190).
As condições territoriais serão determinantes para as economias e formas de vida pratica-
das. Assim, por exemplo, os que vivem em terras mais extensas e abundantes em recursos naturais
têm a possibilidade de continuar praticando valores importantes para a organização social de mui-
tos povos indígenas, como a reciprocidade e a generosidade na distribuição de alimentos. Já os que
vivem em terras reduzidas e com escassos recursos naturais estão expostos a conflitos maiores e a
não poder praticar rituais ou festas que requerem abundância de alimentos. Contudo, isso não sig-
nifica necessariamente que abandonem essas práticas. Há muita diversidade nas respostas e estra-
tégias que os povos vêm construindo para lidar com a problemática de escassos recursos e terras.
A economia dos índios urbanos é diferente da economia dos índios aldeados, pois os primeiros
não dependem das condições do território para sobreviver, e sim do mercado de trabalho e da assistên-
cia social.
Contudo, em muitos casos não existe uma fronteira rígida entre essas formas de econo-
mia, e, crescentemente, os que vivem em terras indígenas dependem do mercado e comerciam os
218 Direitos humanos e relações étnico-raciais

produtos de sua roça por objetos manufaturados e, ao contrário, alguns indígenas que vivem na
cidade conservam roças na aldeia e se deslocam para cuidar delas nos períodos necessários do ano.

11.5 Religiões indígenas


Os modos de vida indígenas seguem princípios e orientações cosmológicas e ancestrais for-
temente marcados pelos mitos4. Existem princípios culturais cruciais para a existência étnica que
não podem ser rompidos, uma vez que possibilitam equilíbrio e bem-estar. Romper com esses prin-
cípios e valores poderá significar a desestruturação da ordem social indígena (LUCIANO, 2006a).
Como Lopes da Silva (1995) chama a atenção, os mitos se articulam à vida social, aos rituais,
à história, à filosofia própria do grupo, e expressam modos peculiares de conceber a pessoa humana,
o tempo, o espaço, o cosmos. Na vida cotidiana, as concepções cosmológicas orientam, dão sentido,
permitem interpretar acontecimentos e ponderar decisões. Elas se expressam pela linguagem simbó-
lica dos rituais: música, ornamentos corporais, entre outros recursos, permitem o contato com outras
dimensões cósmicas, com outros momentos do mundo e do processo da vida e da morte.
Os mitos são parte da tradição de um povo, no entanto a tradição é continuamente recriada
e as experiências passadas são tornadas referências vivas para o presente e para o futuro. Os mitos
mantêm com a história uma relação de intercâmbio (SAHLINS, 1989).
Para Sztutman (2008), os mitos contam como as coisas chegaram a ser o que são. Contam
como as divindades, os homens, os animais e as plantas se diferenciaram. Os rituais, por sua vez,
fazem o caminho inverso dos mitos. Eles contam e recriam o mito, promovendo uma espécie de
retorno a um tempo de indiferenciação geral em que divindades, homens, animais e plantas se
comunicavam entre si.
Sabe-se hoje (e isso é tema atual de inúmeras pesquisas) que as culturas humanas desenvol-
vem variadas lógicas históricas, maneiras de pensar, relacionar-se e viver os processos históricos.
Também existem diversas interpretações da alteridade e das formas de se relacionar com os bran-
cos e de entender o processo de contato com eles. Assim, alguns povos indígenas têm aderido a
religiões cristãs de base ocidental, sobretudo católicas e evangélicas, seja porque têm valorizado os
agentes que os contataram com fins de catequese, seja porque a conversão lhes permitiu a aquisição
de uma identidade e acesso a bens materiais e simbólicos valorizados.
Apesar de que entre os indigenistas a presença de missões tem suscitado muita controvérsia e
oposição, tendo em conta os processos de mudança e perda cultural que algumas tentam promover,
outros estudiosos relativizam o poder que têm as religiões de origem ocidental na transformação
dos modos de vida dos povos indígenas e assinalam que, ao contrário, opera-se uma acomodação ou
apropriação de ideias, símbolos e valores que elas veiculam segundo as lógicas indígenas. Também
é importante considerar a existência de um segmento de indígenas que se identifica como cristão e

4 Os especialistas definem os mitos como narrativas orais, que contêm verdades consideradas fundamentais para
um povo e que formam um conjunto de histórias dedicado a contar peripécias de heróis que viveram no início dos tem-
pos (no tempo mítico ou das origens). O que se enfatiza, dessa perspectiva, é o caráter de narrativas que os mitos têm.
O mito pode também ser definido como um nível específico de linguagem, uma maneira especial de pensar e de expres-
sar categorias, conceitos, imagens. Ambas definições sugerem uma relação particular entre o mito (ou os mitos), o modo
de viver e pensar e a história daqueles povos responsáveis por sua existência (LOPES DA SILVA, 1995).
Situação contemporânea dos povos indígenas 219

que defende a possibilidade de ter simultaneamente essa identidade e valorizar sua cultura. De fato,
lideranças importantíssimas do movimento indígena receberam durante sua infância e juventude
uma educação missionária, mas se apropriaram criticamente de algumas ferramentas úteis que
essa formação lhes proporcionou, como o domínio do português e da escrita, utilizando-as mais
tarde em prol de suas demandas e processos de luta.

Dicas de estudo
• O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje, de
Gersem dos Santos Luciano.
Escrito pelo professor Gersem dos Santos Luciano – da etnia baniwa – primeiro indígena
mestre em Antropologia Social no Brasil e ator importantíssimo do movimento indíge-
na, esse livro é uma leitura imprescindível para conhecer a situação contemporânea dos
povos indígenas de nosso país. Proporciona tanto informações muito valiosas, para com-
preender as formas e condições de vida atual desses povos, quanto provoca uma reflexão
acerca da problemática que eles enfrentam e as formas com que vêm se organizando e
lutando pela conquista de seus direitos.
• Site do Instituto Socioambiental: <www.socioambiental.org>.
O Instituto Socioambiental é uma das organizações não governamentais de apoio aos
povos indígenas mais antigas e reconhecidas pela relevância de sua trajetória e atua-
ção. O site, além de conter boletins informativos atualizados sobre a situação dos po-
vos indígenas e os principais acontecimentos e notícias relativos a eles, apresenta uma
seção que se chama “Povos Indígenas no Brasil”, na qual pode-se obter informações
de cada grupo indígena, com dados de sua localização, história, organização social,
cosmologia, rituais, além de apresentar fontes de informação para o aprofundamento
da pesquisa sobre esses grupos.
• Site da Funai: <www.funai.gov.br/mapas/fr_mapa_fundiario.htm>.
Esse link dá acesso a um mapa do Brasil em que é possível situar a localização dos diversos
grupos indígenas do nosso país.
• Terra vermelha (Birdwatchers), direção de Marco Bechis, coprodução ítalo-brasileira,
2008. 108 minutos.
O filme, escrito pelo diretor e roteirista brasileiro Luiz Bolognesi (o mesmo de Bicho de
sete cabeças), foi inspirado na história do cacique Ambrósio Vilhalva, da etnia guarani-
-kaiowa, que liderou um acampamento para a retomada das terras de seus ancestrais, em
um local hoje ocupado por uma fazenda produtora de soja.
Com índios nos papéis principais, o filme conta ainda com atores como Leonardo
Medeiros, Matheus Nachtergaele, Claudio Santamaria, Fabiane Pereira da Silva e a ita-
liana Chiara Caselli. A ficção mostra de uma forma sensível e complexa as relações entre
índios e brancos em uma região do país onde mais conflitos existem entre esses segmen-
tos pela posse de terras.
220 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Atividades
1. Que fontes de informação existem para uma abordagem demográfica dos povos indígenas
no Brasil? Quais são suas diferenças e quais são as estimativas da quantidade de população
indígena que elas apresentam?

2. Quantas línguas indígenas são, aproximadamente, faladas hoje no Brasil? Quais são os tron-
cos linguísticos reconhecidos pelos estudiosos e que outras famílias linguísticas existem?

3. O que o território representa para os povos indígenas? De que forma garante sua sobrevi-
vência econômica e cultural?
12
Políticas de ações afirmativas,
políticas curriculares e currículo

Marcos Araújo

A questão racial e a pobreza no Brasil sempre foram fortemente vinculadas, tendo o


Estado buscado, com a sociedade, alternativas para compensar esses grupos prejudicados e
alçar alguns de seus membros a melhores condições educacionais e sociais. As assim chama-
das ações afirmativas tiveram um papel já demonstrado no sucesso de inserção de pessoas de
diferentes grupos minoritários ou perseguidos, causando uma ação em cadeia na melhoria da
vida educacional do grupo social.

12.1 As questões demográficas e raciais do Brasil


O senso comum informa que o Brasil foi formado por três raças: o negro, o índio e o branco
português. Essa tese foi formulada pelo botânico e viajante Carl Friedrich Phillip von Martius,
em 1845. Segundo ele, os portugueses nos deram a língua, a religião e a organização econômica e
política; os índios nos deram hábitos cotidianos e alimentares e nomes geográficos dos lugares do
Brasil; e os negros, na condição de escravos, contribuíram geneticamente, mas pouco, culturalmen-
te, em razão de serem considerados, na época da colonização, inferiores.
Quase cem anos depois, em 1936, o sociólogo Gilberto Freyre utilizou a mesma fórmula,
mas de maneira totalmente inversa. Em sua obra, o autor apontou a repressão portuguesa e a força
dos padres na desconstrução das culturas indígena e negra. Esse último fator foi visto por Freyre
como uma força motriz da cultura brasileira. Ou seja, a estrutura social proposta por Freyre para
compreender o Brasil é a mesma de Martius, mas matizada pela experiência crítica da antropologia
de Boas e do próprio sociólogo pernambucano. Os estudos posteriores mostraram uma formação
brasileira mais complexa, com uma plêiade de povos de diferentes etnias e raças, de diferentes cre-
dos e substratos sociais.
A fim de compreender as políticas curriculares que contemplam ações afirmativas, apresen-
ta-se a seguir um breve quadro da representação de indígenas e negros na constituição sociodemo-
gráfica brasileira.
Entre os índios havia homens e mulheres de distintos povos e línguas, por vezes inimigos ou
parentes entre si, que interagiram com a sociedade brasileira em maior ou menor intensidade, em
momentos distintos da história. Assim como os índios, brancos e negros dessa tese sobre a cons-
tituição do Brasil são diferentes não somente naquele período longo de colonização, mas também
historicamente, pois há diferenças entre as etnias de 1550 e as do século XXI.
A escravidão indígena foi forte em todo o Brasil do Nordeste, do Norte e o sustentáculo da
província de São Paulo, durante os séculos XVI, XVII e XVIII. Os exércitos de defesa da Colônia e
222 Direitos humanos e relações étnico-raciais

o ataque a quilombos e índios rebeldes eram constituídos pelos índios mobilizados por bandeiran-
tes e homens a soldo do rei. O grau de miscigenação com o índio foi intenso no Brasil. A respeito
dessa forte presença indígena, em 1500 o número de índios era superior a 5 milhões de habitan-
tes, enquanto em 1990 era de apenas 280 mil. As populações indígenas pareciam estar fadadas
a desaparecer. Aos índios não eram dados terra, direitos, proteção, tecnologia, estrutura ou paz.
Desprezados pelos não índios e isolados, a tendência sempre foi escapar da pobreza rural indo para
cidade. Nela, sem os costumes e a língua, o índio deixava de ser índio – desaparecia ou aparecia
como um desenraizado. A proporção da população indígena era de 0,4% do total nos anos de 1990
e 2000 (IBGE, 2012).
O Censo de 2010 observou um crescimento significativo da população indígena, especial-
mente nas áreas rurais do Nordeste. Mais que o aumento dessa população em números, esse cresci-
mento se deu por etnogênese, ou seja, um processo que ocorre quando um grupo que outrora não
se declarava indígena, por temer o preconceito, passa, por alguma razão social ou política, a fazê-lo,
redescobrindo um fator étnico. No caso brasileiro, a valorização do indígena pela sociedade e pelo
Estado, por meio de políticas públicas, fez com que a autoestima das populações aumentasse e elas
passassem a se definir como indígenas.
De outro lado, de acordo com pesquisas acadêmicas recentes na área de genética,
os estudos de DNA mitocondrial revelam proporções gerais de 33% de li-
nhagens ameríndias, 28% de africanas e 39% de europeias, mas com varia-
ções consideráveis de região para região, segundo o padrão esperado pela
história de colonização de cada uma [...]. No Sul, são europeus 66% dos
haplótipos, o que reflete a ampla imigração da Europa para a região nos
séculos 19 e 20. No Norte, onde a presença indígena é elevada, 54% das
matrilinhagens são ameríndias. No Nordeste, como esperado, predominam
matrilinhagens africanas (44%). No Sudeste, a distribuição das linhagens é
muito uniforme. (ALVES-SILVA et al., 2000)

Quantos aos negros, é indiscutível que chegaram ao Brasil por meio do comércio escravo
vigoroso no período colonial. A escravidão africana sempre existiu, mas, com o comércio europeu
para suas colônias americanas, o negócio se capitalizou enormemente. Eram trocados rum, cacha-
ça, açúcar, roupas, armas etc. por homens, mulheres e crianças. Ao todo, 20 milhões de africanos
foram extraídos da África. Desse total, 12 milhões desembarcaram na América, tendo o resto mor-
rido na captura e no embarque nos navios negreiros. Assim, esses milhões perderam a vida nos
400 anos em que o sistema escravagista se manteve no sistema Atlântico. Foram dezenas de povos
escravizados pelos africanos em longas caravanas que vinham do interior, patrocinadas pelos reis
africanos do litoral, que agrupavam seus inimigos em fortes europeus para, em seguida, embarcar
essa carga humana para a América.
O Brasil foi o país que mais recebeu negros em seus portos, majoritariamente vindos do
Benin e de Angola. Eles eram concentrados nas áreas dinâmicas da economia colonial e imperial
(Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, Minas Gerais) e nas áreas, por todo o Brasil, onde havia portos
ou uma economia forte – Porto Alegre, Rio Grande, Pelotas, Paranaguá e Cuiabá; depois, Belém
do Pará.
Políticas de ações afirmativas, políticas curriculares e currículo 223

Escravizado, o negro ocupou um papel de destaque na sociedade brasileira. Traços culturais,


alimentares, de trabalho e gosto estético, de religiosidade e de sociabilidade derivam diretamente
da experiência negra no Brasil. A negra escrava foi mãe de gerações de meninos com os seus se-
nhores brancos e, apesar da proporção de homens ser muito maior que a de mulheres nas senzalas,
estas eram escolhidas para o serviço doméstico, o que muitas vezes significava estupro e reprodu-
ção com seu senhor, expondo também a forte miscigenação entre negros e brancos, sob extrema
desigualdade e violência.
Em 1850, o tráfico foi finalmente extinto. Em 1871, a Lei do Ventre Livre foi aprova-
da, tornando as crianças nascidas livres, ainda que vivendo no local de cativeiro de suas mães.
Em 1884, a Lei do Sexagenário libertou os escravos com mais de 65 anos. Essas leis paliativas adia-
ram a Abolição até 13 de maio de 1888.
A libertação da população escrava foi redentora, mas não visava sua inserção social no fu-
turo. Nas áreas rurais, muitos ex-escravos foram mantidos em situação análoga à escravidão ou
passaram à condição de clientes das famílias dos fazendeiros. Agora assalariados, os negros libertos
eram mantidos presos aos patrões pelo sistema de barracão, que escravizava o sujeito por meio da
dívida feita no armazém da fazenda onde o camponês vivia. Nos meios urbanos, os negros estavam
fadados aos trabalhos do dia a dia nos portos, nas praças de comércio e na construção, ou seja,
trabalhos que já eram realizados por essa população e que não requeriam saberes que lhes permi-
tissem ocupar espaços sociais de poder. Houve aqueles negros que tiveram, por meio de seus pais
brancos, uma chance de estudar ou praticar um ofício com destaque na sociedade colonial e impe-
rial, como Padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), Antônio Francisco Lisboa (1730-1813),
Machado de Assis (1839-1908), entre outros.
A sociedade da República Velha (1889-1930) perseguia os negros e sua cultura. Como no
Império, a cultura negra era reprimida, estivessem elas representadas pelas manifestações religio-
sas, como a umbanda e o candomblé, ou pelas práticas socioculturais, como a capoeira. A Revolta
da Chibata, em 1910, foi um exemplo das práticas escravocratas, pelas elites, para com os negros.
A pobreza dos negros cresceu com a preferência por imigrantes nas fazendas e a discriminação
social. Diminuíam os postos de trabalho que tinham sido relegados aos ex-escravos. O movimento
social operário da República Velha, controlado por imigrantes anarquistas, tratava a questão racial
de modo tangencial. Dessa maneira, o preconceito continuou arraigado e sem combate efetivo.
Com o Modernismo, o lugar do negro foi redefinido. De pária e parasita que atrasava o
Brasil, ele passou a ser visto – assim como o índio – como parte fundamental de nossas qualidades
como povo. O negro apareceu para a sociedade da elite branca: era preciso estudar e conhecer, e
inclusive apreciar, os traços da cultura negra brasileira.
Em 1930, a padroeira do Brasil passou a ser Nossa Senhora Aparecida, que, com seu tom
canelado, passou a ser vista como uma imagem da mistura brasileira. Em 1931, foi fundada em
São Paulo a Frente Negra Brasileira, que tinha caráter fascista e seus membros paramilitares usa-
vam camisas brancas, e unia conservadores de vários matizes, como monarquistas e fascistas que
224 Direitos humanos e relações étnico-raciais

lutavam contra o preconceito nos clubes e na polícia de São Paulo. O movimento tentou se tornar
um partido político, mas o golpe varguista de 1937 extinguiu todos os partidos.
O regime varguista permitiu mais liberdade aos cultos africanos e liberou o jogo de capoei-
ra, transformando-o em esporte em 1937. Também criou o Dia da Raça, em 1939, que exaltava a
tolerância entre os brasileiros (SCHWARCZ, 1998).
Em 1945, o Teatro Experimental do Negro, criado por Abdias do Nascimento, colocou o
negro como protagonista do teatro e da vida. O Movimento Negro começou a se aglutinar entre
os homens das artes. Em 1950, o censo apontou que 61,6% eram brancos, 26,6% eram mulatos e
11% eram negros. Nesse ano, existiam 5.378.000 crianças na Ensino Fundamental. Entre essas, só
10% eram mulatos e 4,3% eram negros. No Ensino Médio, de quase um milhão de estudantes no
Brasil, só 6.794 eram negros (0,69%), enquanto 41.410 eram mulatos (4,20%). No Ensino Superior,
eram 157.874 estudantes – 96,87% brancos, 2,26% mulatos e 0,28% negros (exatos 448 indivíduos)
(SCHWARCZ, 1998, p. 206-207).
Se o negro passou a ser visto na segunda metade do século XX sob um ponto de vista posi-
tivo, essa positividade também trouxe uma visão estereotipada sobre negros e negras. O negro era
visto como alegre e informal. Sua ginga e conhecimento do submundo eram presumidos, enquanto
a sensualidade era a marca das mulheres negras, que logo passaram a decorar shows de Carnaval e
clubes. A mulata, negra ou mestiça sensual que sambava se tornou fetiche dos brasileiros, de forma
que passaram a ser cantadas em sua beleza.
Em 1951, foi criada a Lei Afonso Arinos, que punia atos de preconceito racial, prevendo
punição para atos públicos de discriminação e vedando proibições de entrada em recintos, propa-
gandas racistas etc. Apesar de ser uma lei tão antiga, as punições que poderiam ser proporcionadas
por ela são inexistentes na história do Brasil.
Nos anos 1960, os negros assumiram um papel de maior destaque em todo o mundo, es-
pecialmente nos Estados Unidos. As negras e mestiças encantavam poetas e músicos e geravam
uma onda de dançarinas lançadas em programas de televisão, rádio e clubes noturnos, como os
de Osvaldo Sargentelli, que se denominava mulatólogo. Na cena brasileira do black is beautiful, os
casamentos inter-raciais se tornaram mais frequentes.
O regime militar manteve as diferenças sociais agudas nos meios rural e urbano brasilei-
ros, ainda que os números apresentassem alguma melhora, como, por exemplo, o crescimento
da economia, de maneira geral. O abismo entre negros pobres e brancos ricos continuava
grande. O número de negros universitários continuava baixo e a discriminação existia, ainda
que de maneira velada.
O mito da democracia racial, criado na década de 1930, continuava sendo manipulado pelo
Estado, mas os negros continuavam mais pobres, mais perseguidos pela polícia, com menos em-
pregos e com empregos sem qualificação.
A geração dos anos 1970 impulsionou a presença negra na política brasileira. O mar-
co, nessa trajetória, foi a criação do  Movimento Negro Unificado  Contra a Discriminação
Racial, resultante da articulação das várias tendências que atuavam na luta antirracial e pelas
Políticas de ações afirmativas, políticas curriculares e currículo 225

liberdades democráticas. Conforme o depoimento de Abdias do Nascimento (2000, p. 219-20),


o Movimento Negro
enfrentava, no contexto da resistência ao regime de exceção, a oposição de
setores de esquerda que negavam a legitimidade da nossa luta específica.
Os militantes do movimento negro precisavam se manter como verdadeiros
heróis para levantar e sustentar essa bandeira. Em geral, essa fase da luta
afrobrasileira se caracterizava por um certo atrelamento a expectativas da
esquerda, e com isso uma impossibilidade de recorrer, se embasar, ou dar
continuidade às histórias e conquistas materializadas nos períodos anteriores.
Naquela circunstância, tutelado pelas esquerdas, o movimento negro se
reorganizava como uma subutopia, já que a vitória da revolução mais ampla
automaticamente resolveria os problemas de exclusão social.

O  Movimento Negro Unificado  Contra a Discriminação Racial  nasceu por meio do Ato
Público, realizado em São Paulo, em 7 de julho de 1978, em protesto contra a discriminação so-
frida por quatro jovens negros nas dependências do Clube Regatas Tietê e contra a tortura e mor-
te de Robson Silveira Luz, numa delegacia de São Paulo. Essa data ficaria marcada como o Dia
Nacional de Luta Contra o Racismo. Passaram-se, então, 41 anos desde o fechamento da Frente
Negra Brasileira.
Com a reabertura política, o Movimento Negro se mobilizou no processo de conscientização
do lugar dos negros no Brasil, em sua sociedade e em sua história. Em 1988, a Constituição classi-
ficou o crime de racismo como inafiançável e imprescritível. Políticos que lutavam pela causa dos
negros, como Darcy Ribeiro, Abdias do Nascimento, Benedita da Silva, Alceu Colares, Paulo Paim,
entre outros, marcaram presença no plenário da Câmara dos Deputados e no Senado em defesa
dos negros. Apesar de alguns eleitos, os negros e pardos estavam sub-representados. Nesse ano –
cem anos depois da Abolição –, os negros e pardos ainda apresentavam uma taxa de analfabetismo
de 30% e 29%, enquanto brancos tinham 12% de analfabetos e amarelos, 8%. O brasileiro médio
estudava então quatro anos, enquanto os negros estudavam somente dois anos.
Durante os anos 1990, a melhoria da economia com o fim da inflação não levou a uma
imediata melhora da situação da população negra, visto que as melhoras foram proporcionais aos
demais grupos. Sendo assim, a distância entre brancos, negros e pardos se manteve a mesma.
Os avanços alcançados nos níveis de educação e rendimento não alteraram significativa-
mente o quadro de desigualdades raciais. Embora a taxa de analfabetismo tenha caído para todos
os grupos, ainda é mais elevado, em 1999, para pretos e pardos (20%) do que para brancos (8,3%).
O aumento do número de anos de estudo foi generalizado – com a população como um todo re-
gistrando um ano a mais de estudo de 1992 a 1999. Apesar disso, na comparação por cor ou raça,
há uma diferença de dois anos de estudo, em média, separando pretos (4,5 anos) e pardos (4,6) de
brancos (6,7). Uma vez que esses patamares têm se mantido historicamente inferiores para pretos e
pardos, o crescimento de um ano de estudo no total revela-se mais significativo para esses grupos.
No Nordeste, por exemplo, esse ganho correspondeu a um aumento de quase 50% nos anos médios
de estudo de pretos e de mais de 25% no de pardos.
Entre 1992 e 1999, o aumento de um ano de estudo correspondeu a uma elevação de 1,2
salários no rendimento de brancos e de meio salário no rendimento de pretos e pardos.
226 Direitos humanos e relações étnico-raciais

Na década, houve uma queda generalizada no número de famílias vivendo com até meio
salário mínimo per capta, mas, em 1999, ainda se encontram nessa situação 26,2% das famílias
pretas e 30,4% das pardas, para 12,7% das brancas. Também, a posição na ocupação se mantém
inalterada na década, com mais pretos e pardos (14,6% e 8,4%) no emprego doméstico que brancos
(6,1%) e, ao contrário, mais brancos (5,7%) entre os empregadores, que pretos e pardos (1,1% e
2,1%) (BRASIL, 2012).
É esse quadro resumidamente desenhado de mudanças muito lentas que motiva diferentes
grupos sociais a sugerir uma série de ações para melhorar os números. Nós trataremos delas no
Brasil, mas antes vamos ver como elas surgiram.

12.2 Ações afirmativas no mundo


Nos Estados Unidos, desde a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), existe um movimento,
por parte de líderes negros e de políticos, que visa criar condições de igualdade de emprego.
Na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), esse movimento cresceu com a participação de negros
em todos os setores da produção e combate. Nos anos 1950, o movimento exigiu igualdade
plena e registro de negros para as eleições. Também resultou na entrada de negros em escolas e
universidades, que eram apenas para brancos. Na esteira do movimento, o Partido Democrata
procurou criar condições para a igualdade.
Em 1961, o presidente John Kennedy assinou a Ordem Executiva 10.925, em que previa que
o governo federal e seus prestadores de serviços não deveriam discriminar seus empregados se
baseando em raça, cor, crença ou origem nacional. Também estabeleceu um comitê presidencial de
igualdade de oportunidades no emprego. Sua ação direta foi a mudança no sistema discriminatório
dos sindicatos e das agências federais e a criação de políticas públicas que tinham como objetivo
acabar com a discriminação no trabalho. As empresas de defesa foram obrigadas a seguir as novas
diretrizes governamentais, o que gerou uma onda de contratações de negros nas indústrias milita-
res e em diversas outras que tinham algum tipo de contrato com o governo federal. Os senadores
e deputados do Sul, ainda marcados pela herança racista, opuseram-se fortemente a essa medida,
mas os passos que foram dados iniciaram uma longa reforma na composição da força de trabalho
nos Estados Unidos (MACLAURY, 2010).
Em 1967, a Ordem de 1961 foi adensada com a proibição de discriminação por gênero, exi-
gindo igualdade entre homens e mulheres. Em 1965, a ONU elaborou a Convenção Internacional
pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (The International Convention on
the Elimination of All Forms of Racial Discrimination – ICERD). Esse comitê pressionou os paí-
ses-membros a adotar medidas antidiscriminatórias e a combater o discurso do ódio, além de os
países assinantes ficarem obrigados a traçar políticas públicas afirmativas para melhorar a educa-
ção e o trabalho das minorias. O Brasil é signatário dessa convenção desde 1968.
Porém, nem sempre um sistema que prevê políticas afirmativas resulta em justiça social.
Fazendo-se um uso perverso, por vezes o sistema de cotas serviu para conter uma população.
Políticas de ações afirmativas, políticas curriculares e currículo 227

Um caso conhecido é o de Ruanda, país que fora uma colônia belga. Como metrópole colonizadora,
a Bélgica, por sua vez, respeitara o sistema monárquico local com aristocracia tutsi e campesinato
hutu. Quando o país buscou sua independência, em 1962, uma revolução popular hutu (85% da
população) tomou o poder e submeteu a outrora elite (14%) a um sistema opressivo. Em 1973, um
militar hutu, Juvénal Habyarimana, tomou o poder e criou um sistema de cotas para a população.
Essa medida ajudou a conter a presença dos tutsis nas escolas e universidades, limitando ao
máximo sua presença e colocando empecilhos diante dos alunos. O sistema de cotas foi, nesse
caso, usado para discriminar, segregar ou separar os grupos sociais. Depois do genocídio de 1994,
o novo governo aboliu o sistema de classificação entre tutsis e hutus, mas criou o sistema de cotas
para mulheres no parlamento, medida que fez do país o maior quanto à representação feminina
no mundo.
Na Europa, na Alemanha e na Noruega, o mecanismo de cotas que obrigava os partidos a
ter candidatas em distritos, cidades e estados fez os números de mulheres participantes na políti-
ca partidária e de ocupantes de cargos públicos crescerem vertiginosamente desde 1970, quando
o sistema foi implantado. A força do movimento das mulheres gerou leis de cotas que fizeram
países como Argentina, Ruanda, Burundi, Moçambique e África do Sul terem crescimento muito
significativo das representações femininas. No caso das mulheres, diversos países têm legislações
de suporte para candidatas: Brasil, Finlândia, Alemanha, Índia, Japão, Líbano, Romênia, Ruanda,
Espanha, Estados Unidos.
Basicamente o sistema de cotas ou reserva de vagas para minorias nos sistemas educacionais
ou em funções estatais visa justamente forçar o ingresso de alguma minoria com mais expressi-
vidade, a fim de gerar ascensão generalizada no grupo. Pensa-se que os integrantes dessas classes
terão educação de melhor qualidade, de forma que suas condições financeiras também sejam me-
lhoradas, para que seus descendentes ajudem a romper o ciclo da ignorância e da humilhação de
ver todos do seu grupo em funções subalternas, excluídos das benesses do poder e das tecnologias.
Nesse sentido, as ações afirmativas servem para aumentar as chances daqueles que são socialmente
discriminados; aqueles cuja autoestima os faz sofrer. Essas ações visam alargar a base de cidadãos
bem posicionados profissionalmente para servir de modelo e inspiração para aqueles que são jo-
vens e buscam modelos bem-sucedidos entre os de mesmo grupo. Com isso, nos casos dos negros
norte-americanos e dos brasileiros, rompem-se os esquemas tradicionais de agentes bem-sucedi-
dos serem só os artistas e desportistas. Surgem, nesse conceito, médicos, advogados, empresários,
jornalistas, políticos, generais e professores negros, tal como surgem mulheres ou ciganos ou quem
mais se puder apoiar.
Países como África do Sul, China, Israel, índia, Sri Lanka, Malásia, Finlândia, França,
Noruega, Romênia, Rússia, Eslováquia, Reino Unido, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e
Brasil possuem políticas afirmativas. Nos Estados Unidos, onde essas políticas existem há mais de
50 anos, o resultado é uma significativa melhora dos níveis de educação dos grupos discriminados,
sejam mulheres, hispânicos ou negros. A chegada de Barack Obama ao cargo mais alto do país
mostrou os sucessos dos processos de inclusão, que foram reafirmados pelo presidente.
228 Direitos humanos e relações étnico-raciais

A situação dos alunos sempre foi difícil – e, ainda que exista um sistema de cotas, talvez
sejam necessárias outras ajudas para que eles se mantenham nas instituições.

12.3 Ações afirmativas no Brasil


As primeiras tentativas de implantar ações afirmativas no Brasil partiram de Abdias do
Nascimento. Em 1984, como deputado, apresentou o projeto de uma lei que determinava a reserva
de 40% das vagas do Instituto Rio Branco – que forma diplomatas – para negros. Mas os tempos de
redemocratização colocavam outras pautas antes, e a questão foi esquecida.
No ano de 1994, durante as eleições, o movimento negro fez um apelo aos candidatos que
colocassem em pauta a questão do racismo. No ano seguinte, 1995, 30 mil pessoas se manifestaram
na Marcha Zumbi dos Palmares, em Brasília, e entregaram um documento que exigia do governo
ações afirmativas.
Foi no governo Fernando Henrique Cardoso que algumas das medidas foram iniciadas.
Em resposta à mobilização, o governo Fernando Henrique Cardoso institui, no Ministério da Justiça,
o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) de Valorização da População Negra, com o objetivo de
propor ações integradas de combate à discriminação racial e de recomendar e promover políticas
de consolidação da cidadania da população negra. Outras ações foram tomadas pelo governo FHC
no sentido de implementar políticas de combate à discriminação racial.
Vale a pena destacar a realização do Seminário Internacional Multiculturalismo e Racismo:
Uma Comparação Brasil – Estados Unidos, organizado pelo Departamento de Direitos Humanos
da Secretaria dos Direitos e Cidadania, promovido pelo governo brasileiro. Pela primeira vez, um
presidente da república reconhece a existência de discriminação e desigualdade.
Outra importante iniciativa, a assinatura do Decreto 1.904, de 13 de maio de 1996, institui
o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e traz em seu subitem “População Negra” –
integrante do item “Proteção do direito e trabalho igualitário perante a lei” –, com propostas de
ações afirmativas em conformidade com o Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade
Racial, entregue ao presidente FHC ao fim da Marcha Zumbi dos Palmares.
Em 2004, a Universidade de Brasília implantou um sistema de cotas para negros no seu
concurso de admissão.
No governo Lula (2003-2011), as políticas públicas ganharam mais força e o estatuto da
Igualdade racial foi aprovado depois de sete anos tramitando no congresso. Nele fica estabelecido o
incentivo às manifestações culturais, à educação e ações afirmativas que visem recolocar os negros
em situações melhores na sociedade, com emprego, saúde e educação, e estimular esse grupo a
mostrar sua cultura e o resto da sociedade a conhecer essas manifestações (BRASIL, 2010).
Nesse período foram criadas também a Secretaria da Igualdade Racial e o programa de in-
clusão de pobres nas Universidades, Programa Universidades para Todos (ProUni), que, em seu
início, atendia 203 mil alunos, sendo 63 mil destes, afrodescendentes, já que o programa previa
cota para negros.
Políticas de ações afirmativas, políticas curriculares e currículo 229

Desde então, diversas universidades públicas criaram um sistema de cotas para pobres, ne-
gros e indígenas.
Entre 2013 e 2015, a política afirmativa de reserva de cotas garantiu o acesso a
aproximadamente 150 mil estudantes negros em instituições de ensino superior
em todo o País. Segundo dados do Ministério da Educação, em 1997 o percen-
tual de jovens negros, entre 18 e 24 anos, que cursavam ou haviam concluído o
Ensino Superior era de 1,8%, e o de pardos, 2,2%. Em 2013, esses percentuais
já haviam subido para 8,8% e 11%, respectivamente. (PORTAL BRASIL, 2016)

O crescimento do número de mulheres representantes e de negros nas universidades mos-


trou a força do sistema de cotas, que inclui também estudantes de escolas públicas. Também quan-
do as cotas são para pobres ou alunos de escolas públicas, os índices são favoráveis.

12.4 Políticas curriculares


A política educacional de um país é fundamental para seu desenvolvimento. Em vista disso,
desde que os países estipularam uma educação pública como direito dos cidadãos e obrigação dos
Estados, tiveram que estabelecer parâmetros para a diversidade de escolas, regiões, vontades, co-
nhecimentos e correntes educacionais.
No Brasil, nos períodos colonial e imperial, os parâmetros eram ditados pela educação re-
ligiosa, pela ciência da época e, sobretudo, pela autoridade do professor e pelo modelo patriarcal,
cristão e monarquista. Nessa época, também, não havia um sistema público de educação, de modo
que ela era entregue aos religiosos, que viam a educação como missão, e não profissão.
No início do período republicano, a educação foi moldada por uma interpretação muito
particular do sistema positivista. Para Auguste Comte (1798-1857), a educação básica deveria ser
estética, linguística e filosófica, em vez de científica, que se iniciaria depois dos 14 anos. Porém,
no Brasil a reforma de Benjamin Constant seguia a doutrina dos militares e cientistas da época: o
aluno era visto como uma “tábula rasa” a quem deveriam ser oferecidas as maneiras e os modos
de agir e pensar a serem decorados. O conhecimento era muitas vezes factual e enfatizava as áreas
das ciências. Uma importante contribuição dos positivistas no campo da educação foi a separação
entre as escolas públicas e as escolas particulares confessionais.
Por outro lado, manteve-se um forte academicismo na área do Direito – oriundo dos tempos
do Império, que era fortemente legalista e memorialista –, o que influenciou todo o ensino na área
de humanas.
Importante contribuição dos positivistas foi a separação entre escolas públicas e particulares
confessionais. A permissão para instalação de escolas confessionais não católicas a partir de 1871,
que exerceram forte influência a partir de 1900, resultou na introdução de uma pedagogia ameri-
cana que introduziu o ensino misto, com rapazes e moças na mesma sala, além de dar mais ênfase
às atividades práticas.
O governo republicano, depois dos primeiros anos, descentralizou o sistema educacio-
nal, o que criou grandes disparidades entre os estados. Também em consequência dessa des-
centralização, o ensino científico ficou atrasado, só ganhando algum respaldo graças à crise de
230 Direitos humanos e relações étnico-raciais

epidemia de febre amarela, que deu visibilidade à Escola de Manguinhos. De resto, a pesquisa
científica ficou abandonada.
Em 1925, foi criado o Conselho Nacional de Ensino, que se dedicava ao ensino superior e ao
ensino secundário, ficando as escolas primárias a cargo dos municípios e estados.
Na década de 1920, reformas aconteceram nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Itália e na
URSS, todas visando aumentar a escolaridade e o alcance dos escolarizados. Nesse período, no
Brasil, houve mais reflexão sobre a pedagogia, com estudos sobre educação rural e de moças. Em
1927, foi criada a Associação Brasileira de Educação, que fez com que o debate se aprofundasse
ainda mais (AZEVEDO, 1963, p. 607-605).
Em 1928, a reforma do sistema educacional do Distrito Federal iniciou uma nova fase dos
assuntos pedagógicos, pois lançou as bases de uma educação mais humanista, com respeito à pes-
soa humana e que pregava o respeito ao indivíduo, o que era coerente com a ideologia liberal, ainda
estranha no Brasil. Em 1931, criou-se o Ministério da Educação.
Em 1934, a Constituição estipulou uma política educacional nacional, que seria fixada pela
União, ficando os estados responsáveis pela implantação do sistema. Em 1937, o regime autoritário
manteve esse sistema, mas buscou o aumento do ensino profissional para os trabalhadores mais
pobres. Nasceu, assim, o ensino profissionalizante no Brasil, numa parceria entre associações em-
presariais e Estado (AZEVEDO, 1963, p. 687).
O principal impulso da época concentrou-se no campo das construções, visto que houve um
salto no número de escolas de 27 mil, em 1932, para mais de 40 mil escolas, em 1939, e um salto
de 56 mil para 78 mil professores no mesmo intervalo. Nessa mesma direção, houve uma elevação
no número de instituições de Ensino Superior – de 4, em 1937, para 15, em 1953 –, muitas delas,
porém, surgidas sem a infraestrutura necessária para fazer ciência.
O Brasil tem uma tradição de atendimento educacional de grupos minoritários desde a le-
gislação de 1961, que atendia os deficientes buscando integrá-los, sempre que possível, ao sistema
geral de educação. Em 1971 os deficientes foram colocados em escolas especiais e só voltaram a ser
atendidos em escolas gerais depois da Constituição de 1988.
Em 1961, as escolas ganharam nova dimensão com um governo popular, que buscou, de
todas as formas, aumentar o número de alfabetizados e recompor a educação baseando-se nas
propostas de Paulo Freire, para quem o sujeito deveria passar de aluno passivo a agente das trans-
formações na escola, no trabalho e na sociedade: não bastava ensinar coisas, era preciso tratar da
posição do sujeito no mundo.
Em 1964 o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) fez um simpósio sobre a educação
e as diretrizes educacionais do período militar. Segundo Demerval Saviani (2008, p. 295):
Para orientar os debates do simpósio foi elaborado um “documento básico”,
organizado em torno do vetor do desenvolvimento econômico, situando-se na
linha dos novos estudos de economia da educação, que consideram os inves-
timentos no ensino como destinados a assegurar o aumento da produtividade
e da renda. Em torno dessa meta, a própria escola primária deveria capacitar
para a realização de determinada atividade prática; o ensino médio teria como
Políticas de ações afirmativas, políticas curriculares e currículo 231

objetivo a preparação dos profissionais necessários ao desenvolvimento econô-


mico e social do país; e ao ensino superior eram atribuídas as funções de formar
a mão de obra especializada requerida pelas empresas e preparar os quadros
dirigentes do país.

O analfabetismo era ainda um problema, mas o governo optou por substituir a experiência
reconhecida de Paulo Freire por outra, mais técnica e que permitiria criar milhões de analfabetos
funcionais (pessoas que só sabiam ler formalmente) por meio do Mobral. Outra característica do
período foi o crescimento do sistema privado de ensino. A falta de estrutura e investimento na
educação fez com que a educação privada tivesse mais qualidade que a escola pública, que atendia
os pobres, da década de 1970 até a década de 1990.
Após o fim da ditadura, a Constituição de 1988 deu mais autonomia educacional para o
professor e o MEC passou a ser um ministério mais aberto ao debate.
Nessa fase, o Estado democrático voltou-se para a educação. Contudo, apesar do discurso
sobre a educação como direito de todos os brasileiros e a intenção de colocar todas as crianças nas
escolas, os números referentes à pobreza, ao afastamento da escola, à evasão do curso fundamental
para trabalhar e à falta de professores, bem como o fato de haver pais que não dão importância à
educação e administradores mais preocupados com a construção da escola que com sua operacio-
nalidade, representaram grandes problemas durante a redemocratização.
Nos anos 1990, políticas educacionais e curriculares dos governos enveredaram para um
modelo condizente com o neoliberalismo, em que a tecnicidade e a preparação para o mercado
contam mais do que todos os outros elementos. Dessa forma, os currículos foram abertos para
facilitar a inclusão de realidades econômicas regionais.
Por outro lado, a política educacional liberal não pôde ficar alheia ao esteio da sociedade tec-
nológica, que é a tecnologia digital, daí a contínua tentativa por parte dos agentes da educação de
incorporar novas tecnologias educacionais e novas técnicas de ensino do mundo contemporâneo.
As formas de sociabilidade e comunicação, bem como o novo modelo de gerenciamento do Estado
e das empresas (com uma eficiência mensurável), devem ser ensinadas na escola, preparando o
jovem para o mundo da eficiência globalizada e dos novos modelos de consumo e trabalho. Aos
alunos deverá ser ensinada a versatilidade necessária ao trabalhador da tecnologia.
Do ponto de vista gerencial, a relação entre Estado e escolas se tornou mediada por um
sistema de administração pública tipicamente estadunidense, de caráter quantitativo, que pouco,
ou nada, levava em conta as realidades regionais e locais, aceitando padrões estandardizados e um
discurso de sucesso de avaliação, resultando em mais investimentos. Esse sistema abria a possibi-
lidade de ingresso de recursos internacionais, como os oriundos das parcerias do Banco Mundial,
mas somente se o país melhorasse seus números nas parcelas do Banco Mundial. Assim, o banco
se assegurava da execução de seu sistema em escolas de toda a América Latina. Tal prática foi im-
plantada no Brasil no governo FHC (1995-2002).
Sobre o sistema de avaliação empregado, diz Álvaro Hypolito (2010, p. 1.343-1.344):
Com relação à avaliação da educação básica, o Estado brasileiro possui vários
programas, que incluem provas e avaliações em larga escala, as quais visam
232 Direitos humanos e relações étnico-raciais

fornecer elementos para as soluções gerenciais indicadas: Prova Brasil – prova


de avaliação de Língua Portuguesa e Matemática para estudantes de 4.ª e 8.ª
séries; Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) – prova de medição
semelhante a anterior, mas realizada por amostra; Provinha Brasil – visa ava-
liar o progresso de estudantes no processo de alfabetização; Exame Nacional
do Ensino Médio (Enem) – prova para avaliação do ensino médio, que agora
também pode ser utilizada para ingresso em universidades; Exame Nacional
para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA). Para a
educação superior, há um sistema próprio constituído pelo Sistema Nacional
de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), que envolve a avaliação das ins-
tituições e dos cursos de graduação, e pelo Exame Nacional de Desempenho
dos Estudantes (Enade). Além dessas provas e avaliações, há os programas de
estatísticas educacionais: Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb)
– que visa medir cada escola e cada sistema de ensino, servindo de base para
metas educativas; os Censos Educacionais (Educação Básica e Ensino Superior)
e Cadastros (Docentes e Instituições de Educação Superior). O Brasil participa
ainda de várias ações internacionais, colaborativas com outros países, e integra
o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), organizado pela
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no
qual o Brasil e o México foram os primeiros países não membros dessa comu-
nidade a participar do programa. Em muitos estados da Federação, programas
similares estão sendo promovidos como programas e sistemas próprios de ava-
liação. O Rio Grande do Sul, por exemplo, criou o Sistema de Avaliação do
Rendimento Escolar do Rio Grande do Sul (SAERS).

Se existiu uma vantagem no sistema mencionado foi o de tirar a sociedade do marasmo em


que se encontrava, sacudindo-a e fazendo-a debater, já que os sindicatos abordaram esses temas
sem muitas vezes apresentar alternativas viáveis para a reforma da educação.
Também nesse cenário, a interdisciplinaridade perpassou os sistemas curriculares, a políti-
ca educacional e a prática das escolas, dos colégios e das universidades, forçando que as matérias
fossem abordadas de forma a permitir convergências de conteúdos e problemas, além da transdis-
ciplinaridade, que procurava traçar problemas que todas as disciplinas resolvessem em suas aulas o
que por vezes afastava muito da grade tradicional e do tipo de conhecimento que ainda era cobrado
nas provas e nos vestibulares.
Com relação à área das políticas curriculares, houve um grande avanço com a inclusão
da questão das minorias. Desde o governo FHC, o tema recebeu atenção. O governo fez uma
seleção melhor dos livros didáticos, excluindo de sua compra anual livros que praticavam
racismo e preconceito de cor, raça e gênero. Diversos projetos foram implementados para dar
visibilidade aos negros, como programas na TV Escola sobre a cultura e a herança africanas
no Brasil e a oferta de cursos pré-vestibulares para pessoas carentes, especialmente negros. Em
novembro de 2002, o governo lançou as bases do sistema de cotas no Programa Diversidade na
Universidade, mas a implantação ficou a cargo do governo seguinte, que havia se comprome-
tido com essa ideia (PAULA, 2010).
No governo Lula, o sistema de cotas foi implantado e, mais do que isso, iniciou-se uma
mudança das estruturas curriculares, já que, nesse momento, o governo atendia à reivindicação
de historiadores e de ativistas dos movimentos negro e indígena que queriam que se tratasse, nas
Políticas de ações afirmativas, políticas curriculares e currículo 233

escolas, nos colégios e nas universidades, da história e cultura indígena e africana. Nesse sentido, é
que o MEC tornou obrigatória a inclusão de cultura africana e indígena no currículo da educação
básica, não só para que os brancos de todo o país conhecessem essa história, mas para que negros
e índios se vissem mais como integrantes da história e da sociedade brasileiras.
A inserção dos negros nas universidades por meio do sistema de cotas e a entrada de negros
e pobres por meio do Prouni e do Fies mudou o cenário universitário brasileiro, tanto nas universi-
dades públicas, marcadas pela contradição de serem públicas mas altamente elitistas, e as privadas,
que se mantinham fechadas aos pobres pelo alto preço das mensalidades. Com a reserva de cotas
para negros, índios e deficientes, a situação mudou e os sistemas de financiamento permitiram a
entrada de milhares de negros e pobres nas universidades. A mudança no currículo dessas institui-
ções atendia a essa reivindicação. No caso dos negros, o número cresceu 230% em 10 anos.
Muitas vezes o exagero aconteceu, como na tentativa do MEC de mudar o ensino de História,
suprimindo o ensino de história antiga e substituindo-o pelo ensino de história da África e dos ín-
dios. A recusa dessa tentativa deixou claro que o aluno brasileiro deverá saber sobre os diversos po-
vos da Antiguidade, do Período Medieval, da Modernidade, da Idade Contemporânea, da África,
da Europa, da América e da Ásia, ou seja, do mundo como um todo.
O Brasil se transformou muito nos últimos anos e promete mais transformações sociais nos
próximos. Sua educação sofrerá uma transformação notável na hora que todos esses egressos das
universidades entrarem no mercado de trabalho e tiverem seus filhos.

12.5 Currículo
Todas as reformas educacionais passam pelo currículo. Ele é definido como essencial nas
escolas e na relação entre professores e alunos. A importância do currículo é tão óbvia que muitas
vezes ele é tratado como o elemento mais importante do contexto escolar.
Para os teóricos da educação, o currículo é fundamental para divulgar na sociedade os co-
nhecimentos e saberes necessários ao cidadão, ao aluno e ao profissional. Mas o problema sempre
será saber o que colocar no currículo e quando. Determinados conhecimentos são fundamentais
para acessar e entender outros. Dessa maneira, é preciso sempre olhar as séries anteriores e as pos-
teriores para saber em qual momento o conhecimento se encaixará na vida escolar dos alunos e
como ele deverá ser acessado pelos alunos e professores posteriormente.
O currículo é o mediador da sociedade e sua cultura herdada entre a escola e o aluno. Sendo
assim, selecionar os elementos do currículo mostra a relação da sociedade com sua cultura e com
a ciência.
Existem três formas de currículo, segundo os especialistas. O currículo formal que é cria-
do pelo sistema de ensino formal, fica estabelecido pelo Estado e estipula os conhecimentos ne-
cessários a serem ensinados em cada ano escolar. Sua referência são os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs). Outro currículo é o real, ou o que acontece em sala de aula. Isso porque existem
momentos em que assuntos prementes ou a realidade dos alunos ou da turma fazem o professor
alterar o programado. Por exemplo, em uma turma com problemas de relacionamento entre os
234 Direitos humanos e relações étnico-raciais

alunos, talvez seja preciso que o professor altere o andamento da disciplina para resolver o proble-
ma. Ou, ainda, talvez a turma não tenha entendido um elemento que precise ser revisto, fazendo
com que o professor deixe de abordar os últimos assuntos do currículo ou reúna-os nas aulas fi-
nais do curso. Muitas vezes a escola e o professor sabem das necessidades dos alunos e executam
alterações no plano de aula para atender uma realidade que o MEC não tem como conhecer. Já o
currículo oculto é o que o aluno aprende em meios diversos, contatos pessoais e leituras fora da
classe e que não está no plano de ensino do professor.
O currículo não pode ser apresentado pela escola e pelo professor como a verdade absolu-
ta. Afinal, o currículo não pode ser a única verdade, mas também não deve permitir a fuga dos
assuntos científicos complicados. Muitas vezes, no entanto, é preciso impor ideias que estão no
currículo, já que a sociedade ou os pais não o farão.
O currículo, portanto, deve ser flexível para dar conta da realidade regional e escolar e, ao
mesmo tempo, tentar cumprir o que os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) estipulam. Eles
não devem ser deixados de lado, mas também não podem engessar a aula e o professor. Os PCNs
balizam o que o aluno precisa saber ao longo da vida escolar, estabelecem os parâmetros que orien-
tam teoricamente o ensino e a forma de organizar o encadeamento do conhecimento. Porém, exis-
tirão alunos que aprenderão bem todos os conteúdos de todas as disciplinas no momento que lhes
são ensinados, alunos que terão ao longo da vida escolar que consolidar e reafirmar conhecimentos
e aqueles a quem serão dados os conhecimentos, mas ao longo da vida escolar poucos conceitos
serão passados. Isso quer dizer alunos que saberão sempre, alunos que saberão para realizar as
provas e alunos que não saberão aqueles conteúdos.
A falência do sistema de não repetição que os governos brasileiros criaram fez com que
muitas vezes se voltasse ao modo antigo de mera avaliação e reprovação, quando talvez a saída para
essas dificuldades criadas seja as aulas de reforço, os projetos de extensão, os trabalhos em grupo
para cultivar o conhecimento entre os alunos e a ocupação cultural das escolas pelos alunos, pais
e professores. Isso pode reforçar o espaço da escola na comunidade como propagadora de conhe-
cimentos, fazendo que, independentemente de o aluno passar ou não, ele esteja inserido na escola
e na comunidade, sendo valorizados outros conhecimentos em sua avaliação geral, em todas as
atividades escolares anuais e ao longo do ano.
Os currículos passaram recentemente por um processo de reavaliação de prioridades. A
conscientização do papel do índio e do negro na sociedade, por exemplo, aparece em todos os cur-
sos, visando acabar com a defasagem do conhecimento que os estudantes brasileiros têm dos pro-
blemas referentes a essa população. A obrigatoriedade dos estudos sobre a história da África nos
cursos de História e nas universidades, com os estudos humanos, visa a suprir a demanda e fazer o
aluno e o professor conscientes de que existe uma história africana cheia de elementos interessantes
e relevantes. Dessa maneira, a obrigatoriedade do ensino de cultura afro-brasileira e indígena já
mudou também o mercado, o qual passou a abordar esse tema em seus livros didáticos. Diversas
publicações especializadas apareceram no mercado editorial e diversos grupos culturais de jovens
negros e indígenas mostram uma transformação cultural significativa.
Políticas de ações afirmativas, políticas curriculares e currículo 235

Dicas de estudo
• Casa Grande, direção de Fellipe Barbosa, 2014. 115 min.
Nesse filme, uma família de classe média alta do Rio de Janeiro entra em falência, criando
situações de choque com os empregados da casa e entre o filho jovem e seus pais.
• Que horas ela volta?, direção de Anna Muylaert, 2015. 114 min.
Mulher pernambucana, empregada, recebe sua filha em São Paulo, na casa de seus pa-
trões. O comportamento de sua filha, independente e questionador, coloca-se em rota de
colisão com os donos da casa.

Atividades
1. Faça um resumo dos principais pontos do capítulo sobre o papel das relações raciais brasi-
leiras e os estudos escolares.

2. Quais as principais formas de políticas afirmativas?

3. Quais as críticas aos sistemas de ações afirmativas?


Gabarito

7 Conceitos de raça, etnia e a identidade cultural e nacional


1. O conceito de raça surgiu na biologia, que classificava os animais e homens em tipos físicos.
O uso que se fez desse dado mais tinha a ver com visões estereotipadas dos negros e brancos, o
que marcou profundamente o mundo com políticas racistas, de segregação social e racial.

2. O conceito de etnia abrange grupos sociais mais ou menos homogêneos racialmente, mas com
ênfase na cultura compartilhada pelo grupo e não pelas suas características físicas.

3. O Brasil foi formado de grupos desiguais de negros, índios e brancos que eram vistos como base
da formação brasileira mas com diferentes níveis de influência. Em 1930, com o Modernismo, os
negros passaram a ser vistos como responsáveis por parte de nossa cultura e sua visão passou a
ser positiva. A partir de 1937, o Estado brasileiro propagandeou a identidade mestiça brasileira e
sua centralidade no Sudeste, com o samba e a feijoada como símbolos nacionais. O Brasil ganhou
contornos ainda mais democráticos com a inserção de minorias e grupos marginalizados na po-
lítica a partir de 1985, criando uma identidade nacional que leva em conta as variações regionais
e a diversidade do povo brasileiro.

8 A África lusófona: um pouco de história


1. A conquista de Ceuta tem um motivo religioso e econômico. Para os portugueses, tomar Ceuta
era fazer uma cruzada contra os povos infiéis e consolidar o Império do cristianismo em terras
não cristãs. No entanto, a Coroa portuguesa não desconhecia que havia indícios de riquezas no
continente africano. Ao tomarem Ceuta, os portugueses se dão conta de que ali desembocavam
várias riquezas vindas de outras regiões da África e percebem que seria mais lucrativo avançar
para o Sul do continente em busca de tesouros desconhecidos do que ocupar os já conhecidos
territórios ao longo do Mar Mediterrâneo.

2. Toda a riqueza encontrada em território africano era levada para a metrópole. Com a necessidade
de se colonizar a América, descobre-se outro “negócio” rentável na África: o tráfico negreiro. Esse
tipo de comércio terá seu vigor durante os séculos seguintes até meados do século XIX, quando
Portugal começou a sofrer as imposições de países europeus mais poderosos que exigiam mudan-
ças na política portuguesa na África.

3. Durante o século XX, a Casa do Estudante do Império – especialmente a de Lisboa – abrigava um


grupo de estudantes africanos, geralmente de origem mestiça e burguesa, que começa a tomar
contato com intelectuais e escritores não só portugueses contrários ao regime de Salazar, mas
também de outras regiões da África portuguesa. Nessas casas, longe de suas terras, os jovens
reinventavam poética e literariamente a nação de que eram originários e lá ganhavam força as
ideias de liberdade e independência.
238 Direitos humanos e relações étnico-raciais

4. Os fatores que desencadearam a luta dos povos africanos das colônias contra o regime de Salazar
foram o descontentamento com o Ato Colonial instituído nas colônias, a disseminação das ideias do
Movimento da Negritude, o conhecimento das lutas dos negros norte-americanos contra o racismo e
a independência dos países africanos colonizados por ingleses e franceses.

9 África lusófona e Brasil: laços e letras


1. Quando os portugueses chegaram ao continente africano, encontraram um tipo de escravidão do-
méstica comum entre as diversas etnias africanas. Ela consistia basicamente em tomar os prisioneiros
de guerras como escravos que passavam a trabalhar na lavoura dos povos vencedores, que, por conta
da escassez de mão de obra, necessitavam de reforço. As mulheres escravas eram incorporadas ao
domínio dos povos vencedores e acabavam gerando filhos de seus senhores. As novas gerações iam
paulatinamente conquistando a liberdade e já gozavam de certos direitos na comunidade em que suas
mães haviam sido escravizadas. O outro tipo de escravismo desenvolvido pela presença dos árabes
no território já apresentava características mercantis. Os escravos eram comercializados entre os po-
vos árabes e valiam como moeda de troca. Com esse tipo de escravismo, muitos africanos acabavam
sendo levados de seus territórios para outras terras e desse modo ficavam alienados de sua cultura.

2. Na penosa travessia pelo Atlântico, muitos africanos morriam em razão das péssimas condições em
que eram transportados nos navios negreiros. Ao chegarem ao Brasil, muitos não se adaptavam ao
trabalho escravo e fugiam para o interior. Assim, eram criados os quilombos no interior do Brasil que
funcionavam como espaços de liberdade para o africano. Entre os séculos XVII e XVIII, centenas de
quilombos existiram no Brasil e o mais famoso deles foi o Quilombo dos Palmares, no qual Zumbi foi
consagrado rei. Nesses lugares, a cultura africana era valorizada e cultuada, embora os africanos que
para ali fugiam fossem de diferentes regiões da África.

3. Podemos dizer que os cultos africanos foram reinventados no Brasil, uma vez que cada grupo étnico
que aqui chegava, estrategicamente disposto pelo colonizador em regiões distintas do Brasil, trazia
uma cultura própria de seu grupo étnico, em que havia crenças e divindades próprias. Porém, a apro-
ximação desses diferentes grupos, com suas crenças diversas, fez surgir um sincretismo das diferentes
religiões africanas, já que umas cultuavam orixás e outras voduns, por exemplo. Esse sincretismo tam-
bém se fundiu ao catolicismo e, em determinadas regiões do Brasil, ao islamismo, e esse amálgama de
crenças gerou os cultos afro-brasileiros.

10 História e historiografia indígena


1. As fontes disponíveis para o estudo da história indígena são as crônicas de colonizadores e
missionários dos séculos XVI, XVII e XVIII, relatos de viajantes e naturalistas do século XIX, estudos
arqueológicos e antropológicos realizados nos séculos XX e XXI e as próprias narrativas das sociedades
indígenas contemporâneas. Essas fontes são diversas e devem ser analisadas conforme os contextos
em que foram produzidas, assim como as ideologias e ideias sobre os índios que as sustentaram.
A importância de considerar as narrativas históricas dos povos indígenas contemporâneos é que nos
traz à luz suas visões e compreensão do passado, assim como sua rica memória transmitida de forma
oral. Portanto, nos possibilita entendê-los como sujeitos ativos de sua história.
Gabarito 239

2. Os aldeamentos se constituíram com os descimentos, ou seja, o deslocamento – promovido por tro-


pas de soldados, com a presença de missionários – de povos inteiros, dos territórios que tradicio-
nalmente ocupavam para morarem junto ou próximo das vilas fundadas pelos colonos. Esse novo
padrão de moradia e de organização social tornou-se fundamental para sustentar o sistema colonial,
já que os indígenas que moravam nos aldeamentos produziam tanto os alimentos consumidos pelos
colonos, como lhes serviam de mão de obra para diferentes afazeres. Também foram utilizados para
lutar nas guerras que os portugueses estabeleciam contra colonizadores de países estrangeiros ou
contra os próprios índios.

3. A política que a Coroa estabeleceu para os índios diferenciou “índios aldeados e aliados” de “índios
inimigos”, dando um trato diferente a cada um deles. Aos primeiros lhes foi garantida a liberdade ao
longo de toda a colonização e o direito de serem pagos pelo seu trabalho. Contudo, isso não significa
que não tenham sofrido exploração, sendo sobrecarregados de trabalho e deslocados de um lado a
outro segundo interesses de governantes e particulares. Aos segundos se declarou “guerra justa” e a
escravização posterior foi vista como lícita e até legitimada por várias leis.

4. Os objetivos e princípios que orientaram a primeira agência indigenista estatal – o Serviço de Pro-
teção aos Índios – foram o estabelecimento de uma convivência pacífica entre índios e brancos, a
garantia da sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, a promoção gradual e com métodos
bondosos e dissuasórios de sua “civilização” e formação como “trabalhadores nacionais”. Esses obje-
tivos eram ambíguos, já que se promoveu uma política protecionista, mas ao mesmo tempo integra-
cionista, que considerou a condição indígena como transitória, condenada à extinção. Contudo, com
a diferença das políticas durante a Colônia e o Império, o órgão indigenista defendeu a aplicação de
métodos brandos, de atração, de mudança de hábitos pelo exemplo e o ensino de ofícios e novas for-
mas de trabalho, assim como o inculcamento de valores e símbolos de nacionalidade.

11 Situação contemporânea dos povos indígenas


1. As fontes disponíveis para conhecer a situação demográfica dos povos indígenas brasileiros são os
dados que a Funai, o ISA, a Funasa e o IBGE nos proporcionam. As diferenças na quantidade de
população indígena que essas agências registram devem-se a abordagens metodológicas distintas na
coleta de dados. Enquanto a Funai e o ISA levantaram dados de habitantes localizados em aldeias
de terras indígenas reconhecidas oficialmente, o IBGE também incluiu os índios que residem nas
cidades ou em terras indígenas ainda não reconhecidas e que se autoidentificaram como tais. Já a
Funasa registrou a quantidade de população inscrita no sistema de saúde e à qual esse órgão presta
assistência. Assim, a Funai e o ISA estimam 325 mil, a Funasa, 374.123 e o IBGE, 740 mil indígenas.

2. Hoje se falam 180 línguas indígenas no Brasil. Algumas delas são consideradas em risco de extinção
devido ao número reduzido de falantes (cerca de 40 das 180 línguas). Outras são vitais e ativas e
possuem um considerável número de falantes. Existem também grupos que perderam suas línguas e
falam somente o português como língua materna, porém alguns deles estão envolvidos em processos
de resgate.

Os linguistas reconhecem dois grandes troncos: o tupi e o macro-jê, e 20 famílias linguísticas.


Também identificam línguas isoladas, que não reconhecem parentesco ou semelhança com ou-
tras famílias linguísticas.
240 Direitos humanos e relações étnico-raciais

3. O território representa para os povos indígenas não apenas o meio onde obter recursos naturais para
seu consumo, mas também o espaço habitado por seres, espíritos e ancestrais com os quais possuem
fortes vínculos e aos quais associam valores e conhecimentos de fundamental relevância para a re-
produção do grupo.

O território proporciona as condições para o desenvolvimento das economias indígenas, que variam
conforme a extensão de terras, a abundância de recursos naturais e os tipos de ecossistemas que nele
se desenvolvam. Também garante a reprodução cultural ao permitir a continuidade de práticas valo-
rizadas pelos povos indígenas, como a reciprocidade e a generosidade na distribuição de alimentos
e a prática de rituais e festas em que o consumo de certos alimentos e bebidas é fundamental. Ainda
cabe destacar que os indígenas, devido ao maior consumo de bens manufaturados, crescentemente
comercializam os produtos da roça ou da pesca no mercado.

12 Políticas de ações afirmativas, políticas curriculares e currículo


1. A diferença entre negros e brancos no Brasil é acentuada, reforçada pela herança de uma coloni-
zação e escravização do povo africano na América e sua subsequente discriminação pelos bran-
cos, devido a essa herança e à pobreza que os associou aos negros marginalizados. Nos estudos
escolares, as culturas africana e indígena eram desprezadas ou esquecidas, e, com as necessidades
de políticas afirmativas, houve uma transformação nas grades curriculares para adequar o ensino
da história do Brasil ao estudo da herança africana e indígena no país, especialmente depois da
legislação que obriga este estudo no Ensino Fundamental e Médio.

2. Sistema de cotas por raça, gênero, condição social ou outra forma de seleção que tente minorar as
diferenças de acesso de determinados grupos à educação ou ao emprego. Contratação de empresas,
por parte do governo, que respeitem e pratiquem os instrumentos de inclusão de minorias como os
deficientes e os negros e igualdade entre sexos.

3. As críticas revelam que o sistema não leva em conta necessariamente o mérito e separa pessoas segun-
do a cor delas, e não de acordo com sua posição social, ou seja, de maior pobreza.
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Aguardando texto, com Anne
Esta obra procura aprofundar alguns assuntos
específicos e indispensáveis, como os direitos
das crianças e dos adolescentes, dos idosos,
das pessoas com deficiência e discutir questões
relacionadas à diversidade étnico-racial, religiosa,
de gênero e LGBT.
A leitura deste livro sobre direitos humanos e
relações é­ tnico-raciais é muito importante para o
a sua formação acadêmica e, principalmente, para
a construção de sua condição de cidadão, já que
vivemos em sociedade e precisamos aprender a
conviver em harmonia, respeitando as diferenças.

Fundação Biblioteca Nacional


Código Logístico
ISBN 978-85-387-6462-5

57937 9 788538 764625

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