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CAPÍTULO 10

CALVINO OU O CALVINISMO:
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO
REFORMADA PARA A AMÉRICA
LATINA 1

Rubén Rosario Rodríguez

INTRODUÇÃO

Como teólogo formado na tradição calvinista-


reformada e na teologia da libertação latino-americana,
procuro me aproximar destas duas perspectivas com o
objetivo de recuperar os valiosos recursos da tradição
reformada, algumas vezes negados, a fim de articular
uma ética socialmente transformadora. Embora o
calvinismo seja, com frequência, identificado com a
classe média acomodada e o status quo sociopolítico,
a teologia de João Calvino (1509-1564) pode
proporcionar um modelo útil para o desenvolvimento
de uma teologia política contemporânea.
Ainda que Calvino represente uma cosmovisão

1 “Calvin or Calvinism: Reclaiming Reformed Theology for the Latin American Contrext”, em Apuntes.
Reflexiones teológicas desde el margen hispano. Associación para la Educación Teológica Hispana, invierno
2004. “Calvino o el calvinismo: la tradición reformada para América Latina”, em Juan Calvino: Su vida y
obra a 500 años de su nacimiento. Leopoldo Cervantes-Ortiz, ed., Viladecavalls, Barcelona: Editorial Clie,
2009, p. 477-511. Agradeço aos doutores Elsie Anne McKee e Peter J. Paris, do Seminário Teológico de
Princeton, EUA, por seus comentários críticos à primeira versão deste trabalho. Tradução : Eduardo Galasso
Faria.
188 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

cronologicamente distante, na qual a atuação do governo civil é vista


como parte do plano de Deus para a salvação, sua teologia pode se
tornar inteligível para a igreja do século XXI, em sua luta por relevância
cultural em meio a uma sociedade cada vez mais secularizada e
pluralista.
A tradição reformada, um corpo diversificado que surgiu da união de
zuinglianos e calvinistas no século XVI, tem reconhecido amplamente
que a responsabilidade social da igreja é um aspecto integral de sua
missão espiritual.2 Por outro lado, a Teologia da Libertação – um
movimento que se iniciou na América Latina no final dos anos 60 e
princípio dos 70, paralelamente aos movimentos afro-americanos de
libertação nos Estados Unidos – ensina que os cristãos são chamados a
fazer uma opção preferencial pelos pobres uma vez que, nas Escrituras,
Deus atua em favor dos fracos e marginalizados da história humana.
Tal leitura da Bíblia leva a igreja a assumir compromissos políticos
em solidariedade com os oprimidos, buscando a transformação histórica
de situações de opressão e das ordens sociais.3 Embora alguns teólogos
reformados dos Estados Unidos como Richard Shaull e Robert McAfee
Brown tenham esboçado comparações entre a teologia da libertação
latino-americana e a Reforma do século XVI,4 muitos críticos da
tradição reformada argumentam que ela, com frequência, tem adotado
“as práticas culturais da classe média e alta e, apesar de todos os nossos

2 Para uma história geral da tradição calvinista-reformada e de suas origens no século XVI até a ortodoxia
escolástica, ver John T. McNeill, The History and Character of Calvinism, N. York: Oxford University Press,
1954 e Philip Benedict, Christ´s Church Purely Reformed: A social History of Calvinism, New Haven: Yale
University Press, 2002. Para um exame da ética social calvinista, ver John H. Leith, John Calvin Doctrine
of the Christian Life, Louisville: Westminster John Knox Press, 1989, e W. Fred Graham, The Constructive
Revolutionary: John Calvin and His Socio-Economic Impact, Richmond: John Knox Press, 1971.
3 Ver Arthur McGovern Liberation Theology and Its Critics: Toward an Assessment, Maryknoll: Orbis Books,
1989, para uma introdução e avaliação crítica deste movimento e de seus críticos. As fontes primárias mais
importantes da teologia da libertação latino-americana foram compiladas em Alfred T. Hennelly, Liberation
Theology: A Documentary History. Maryknoll: Orbis, 1990. Para uma apresentação sistemática destes
temas, ver Jon Sobrino e Ignacio Ellacuría, comp, e ed., Mysterium Liberationis: Fundamental Concepts
of Liberation Theology. Maryknoll: Orbis Books, 1993. Sobrino completou o projeto depois que seu colega
Ellacuría foi assassinado por causa de seu trabalho como pastor e educador em El Salvador, em 1989.
4 Ver Richard Shaull, La Reforma y la teologia de la liberación (1991), San José: DEI, 1993, (Em português,
A Reforma Protestante e a Teologia da Libertação. S. Paulo: Pendão Real, 1993) e Robert McAfee Brown,
Theology in a New Key: Responding to Liberation Themes. Philadelphia: The Westminster Press, 1978.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 189

esforços, os presbiterianos norte-americanos tendem a excluir de seu


espaço a presença real daqueles que vivem em níveis mais baixos da
vida econômica e cultural”.5
Ainda que reconhecendo a legitimidade daqueles que criticam a
ênfase de Calvino no que se refere ao sofrimento redentor como sendo
“mundanamente repressivo”,6 argumentarei que ele pode constituir um
modelo viável de práxis libertadora a partir de sua teologia e prática
pastoral. Este estudo demonstrará como Calvino contribui para a
resistência política cristã mediante: a) a análise de seus comentários
sobre o governo civil; b) a verificação de sua compreensão do papel
profético da pregação; c) o estudo de seu trabalho pastoral com as
vítimas da pobreza e da perseguição política.

A TRADIÇÃO REFORMADA NA AMÉRICA LATINA:


CALVINO OU O CALVINISMO?

Depois que o próprio Calvino e outros líderes eclesiásticos de


Genebra concentraram seus esforços evangélicos na área doméstica –
organizando igrejas nos subúrbios rurais de Genebra, apoiando as igrejas
protestantes perseguidas na França e, em menor escala, no restante da
Europa – na década de 1550, Calvino apoiou o estabelecimento de
uma colônia de huguenotes franceses no Novo Mundo. Por um período
aproximado de cinco anos, no Brasil, em uma região dominada por
conquistadores portugueses (próxima à atual cidade do Rio de Janeiro),
foram ministrados regularmente a Palavra e os sacramentos, conforme
o rito genebrino. Eventualmente, esta colônia fracassou e todas as
estatísticas sobre protestantes até 1940 e 1950 não ultrapassaram 1% da

5 Mark K. Taylor, “Immanental and Prophetic: Shaping Reformed Theology for Late Twentieth-Century
Struggle”, in Christian Ethics in Ecumenical Context: Theology, Culture, and Politics in Dialogue, Grand
Rapids: Eerdmans, 199, p. 156.
6 Ibid. p. 154. Neste artigo, Taylor utiliza as Ordenanças Eclesiásticas (1541) de Calvino com o objetivo de
ampliar a tese de Nicholas Wolterstorff de que a tradição reformada padece de dois erros: a compreensão
de uma ordem social justa que dificilmente tolera pontos de vista opostos e um triunfalismo recorrente que
impõe sua cosmovisão sobre os demais. Ver N. Wolterstorff, Until Justice and Peace Embrace. Grand Rapids:
Eerdmans, 1983.
190 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

população latino-americana. Todavia, o protestantismo tem sido uma


força de mudança cultural na América Latina, mesmo constituindo uma
minoria marginalizada por causa da conquista e colonização desde os
inícios.7
No século XVII, a presença calvinista-reformada na América
Latina limitou-se à colônia holandesa em Pernambuco, no nordeste do
Brasil, uma comunidade que se destacou pela tolerância ao judaísmo
e ao catolicismo, em marcante contraste com a intolerância hispano-
portuguesa que rotulava o protestantismo de herético, reforçando,
com atuação da inquisição, a homogeneidade ideológica e política.8
Os esforços missionários norte-americanos e europeus ocorreram
somente no século XIX e XX, com o estabelecimento de uma presença
reformada permanente, primeiro no Caribe anglófono assim como no
Brasil, México, Guatemala e outros países. Bastian, entretanto, observa:
“Quando os missionários das sociedades protestantes americanas
iniciaram suas atividades proselitistas, não encontraram terreno infértil
e desértico”.9
Mesmo levando em conta a tese de que as missões protestantes foram
menos importantes do que a legitimação religiosa da atividade colonial
americana, o protestantismo já havia tido, por mais de duas décadas, uma
presença estável. Além disso, a razão de ser das sociedades protestantes
na América Latina durante estas décadas tinha menos a ver com o
“imperialismo norte-americano” do que com as lutas políticas e sociais
internas do continente. Estas se resumiam na confrontação entre uma
cultura política autoritária e as minorias que procuravam estabelecer
uma modernidade burguesa, baseada no indivíduo redimido de sua
origem de casta e, portanto, igualado em uma democracia participativa

7 Ver Jean-Pierre Bastian, “Protestantism in Latin America”, in The Church in Latin America: 1492-1992. Ed.
Enrique Dussel, Maryknoll: Orbis Books, 1992, p. 313-350 e Jean-Pierre Bastian, Historia del Protestantismo
en América Latina. México: CUPSA, 1990. Também John H. Leith, Introduction to the Reformed Tradition. A
Way of Being the Christian Community, ed. revista. Atlanta: John Knox Press, 1981, pp. 5-53. (Em português,
A Tradição Reformada, uma maneira de ser a comunidade cristã. Publicações João Calvino, S. Paulo: Pendão
Real, 1997)
8 J. P. Bastian, “Protestantism in Latin America”, p. 314-315.
9 Ibid. p. 325.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 191

e representativa.10
Embora José Miguez Bonino aceite a hipótese de Bastian de que
o aparecimento do protestantismo como força política e cultural na
América Latina deveu-se em primeiro lugar a fatores internos (ou seja,
o anseio popular por uma libertação política), ele adverte que esta
união de conveniência entre os missionários norte-americanos (com
sua espiritualidade pietista e conservadora) e os intelectuais latino-
americanos (com uma orientação mais secularizada) realizou-se em
meio a diferenças inconciliáveis: “Não me parece exagerado desconfiar
que aqui tivemos uma convergência de interesses mais que uma
semelhança de ideias”.11
Mesmo que o protestantismo latino-americano tenha, em certo
momento, abraçado o liberalismo político, em sua história mais
recente ele se caracterizou por um rígido fundamentalismo, no
mínimo apolítico e, no pior dos casos, um aliado de regimes políticos
autoritários e repressores. Esta análise foi elaborada pelo teólogo da
libertação Rubem Alves, tratando principalmente da tradição calvinista-
reformada no Brasil e argumentando que o traço característico deste
ramo do protestantismo é um acordo total e completo com uma série de
afirmações doutrinárias como pré-condição necessária para uma plena
participação na vida da igreja.12
Para Rubem Alves, o mais problemático é o fato que, ao mesmo
tempo em que muitos protestantes no Brasil chegaram a participar
de movimentos a favor da justiça social, adotando uma mentalidade
parecida com a dos católicos, a Igreja Presbiteriana do Brasil denunciou
tais esforços como sendo contrários ao Evangelho e expulsou de
seu seio pastores e leigos que participaram de lutas libertadoras. Na
verdade, quando o regime militar consolidou seu poder mediante atos

10 J. P. Bastian, Historia del protestantismo em América Latina, p. 187.


11 José Miguez Bonino, Rostros del protestantismo latinoameicano. Buenos Aires-Grand Rapids: Nueva
Creación-Eerdmans, 1995, p. 4. (Em português: Rostos do Protestantismo Latino-Americano. São Leopoldo:
Sinodal/ EST, 2002)
12 Ver Rubem Alves, Protestantism and Repression: A Brazilian Case Study. Tradução de John Drury e Jaime
Wright, Maryknoll: Orbis Books, 1985. (Edição original em português: Protestantismo e Repressão. S.
Paulo: Ática, 1979)
192 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

de repressão política em meados dos anos 60, as igrejas mantiveram-se


em silêncio (algumas apoiaram abertamente o regime).
Esta análise daquilo que Alves denomina o fracasso do “projeto
utópico” do protestantismo liberal pelas mãos do “protestantismo da reta
doutrina” tem sido aplicada, mutatis mutandis, a todo o protestantismo
latino-americano. Contudo, estudos recentes têm demonstrado que o
evangelicalismo e o ativismo sociopolítico não são tão incompatíveis
como sugere Alves.
Por exemplo, no final dos anos 60, o sociólogo Christian Lalive
D´Epínay, analisando a rápida expansão do protestantismo na América
Latina, afirmou que as igrejas – especificamente do ramo pentecostal
– incentivaram seus membros a evitar o compromisso direto com as
lutas sócio-políticas.13 Segundo Lalive D´Epinay, a igreja se converteu
em um “refúgio” diante dos problemas causados pelas mudanças
culturais de uma sociedade agrícola tradicional para um ambiente
mais urbano, industrial e democrático. Recentemente, esta análise foi
questionada por Richard Shaull e Waldo Cesar, que defendem a tese de
que os pentecostais brasileiros participam cada vez mais nas lutas pela
transformação social.14 Considerando o argumento de Míguez Bonino
de que o protestantismo latino-americano – seja liberal, evangélico
ou pentecostal – contém aspectos destes três “rostos”,15 sugiro que o
anseio por mudanças sociopolíticas está presente em todos os ramos do
protestantismo latino-americano. Somente por ignorância das facetas
da tradição calvinista-reformada que apóiam a resistência política,
poder-se-ia definir o protestantismo brasileiro – e, por exemplo, todo
o “rosto” evangélico do presbiterianismo latino-americano – como
irrecuperavelmente repressivo.
Como observou Shaull em sua introdução a Protestantism and

13 Ver Chistian Lalive D´Epinay, El refugio de las massas. Santiago: Pacífico, 1968. (Em português: O Refúgio
das Massas: estudo sociológico do protestatismo chileno. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.)
14 Ver Richard Shaull e Waldo Cesar, Pentecostalism and the Future of the Christian Churches. Grand
Rapids:Eerdmans, 2000. (Em português: Pentecostalismo e Futuro das Igrejas Cristãs. Petrópolis/ S.
Leopoldo: Vozes/ Sinodal, 1999. NT)
15 J. Miguez Bonino, Rostros del protestantismo latinoamericano, cap. 1-3.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 193

Repression, Rubem Alves fez uma descrição precisa e esclarecedora de


como a Igreja Presbiteriana do Brasil foi transformada por um pequeno
número de líderes reacionários, deixando de ser uma luz de esperança
utópica para se converter em uma facilitadora da repressão política.
Tanto é assim que a “a palavra ´presbiteriano` agora traz à mente o
sentido corrosivo do fanatismo e da repressão religiosa”.16 Além disso,
Shaull observa que “Alves está mais interessado em compreender
como funcionou o protestantismo no passado do que em mostrar suas
possibilidades para o futuro”.17 Em nenhum momento Alves explica
porque o movimento de libertação dentro do presbiterianismo brasileiro
não sobreviveu em alguma forma institucional:
Por que não? A repressão foi completa e impiedosa. Ademais, a
liderança da Igreja Presbiteriana do Brasil nada mais pôde fazer
além de expulsar os que representavam este espírito na igreja; o
movimento não pôde ser destruído. No passado, muitos grupos
“heréticos” sobreviveram e cresceram sob intensa perseguição. Uma
razão pela qual o movimento foi derrubado é que seus membros não
esperavam nem estavam preparados para as decisões tão drásticas
que foram tomadas contra eles. Não possuíam uma estratégia
desenvolvida para a sobrevivência de suas comunidades...18

Este estudo pretende explorar a possibilidade do desenvolvimento


de uma estratégia para o contexto latino-americano mediante a
investigação dos ricos recursos teológicos da tradição reformada –
especificamente da teologia e prática pastoral de João Calvino – com o
objetivo de apoiar as comunidades de resistência em suas lutas dentro
da igreja e na sociedade civil.
Existe, sem dúvida, uma presença calvinista na América Latina.
Todavia, saber quão influente tem sido Calvino na formação do
protestantismo latino-americano é uma pergunta em aberto. Uma rápida
verificação da literatura latino-americana sugere que poucas obras de

16 R. Alves, Protestantism and Repression, p. XI.


17 Ibid. p. XVII.
18 Ibid.
194 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

Calvino, exceto A Instituição da Religião Cristã, foram traduzidas


para o espanhol.19 Recentemente, uma história do protestantismo
fundamentalista latino-americano sugere que a teologia de Calvino é
básica para compreender a maior parte das formas contemporâneas do
protestantismo:
Por calvinismo entende-se não apenas o sistema teológico
elaborado pelo próprio João Calvino (1509-1564), mas também
os impulsos provenientes de sua teologia, que constituem até hoje
a base doutrinal das igrejas reformadas e, com leves variações,
de outras tradições e igrejas como a anglicana, as metodistas e
batistas. Sendo assim, o calvinismo não se identifica com nenhuma
denominação ou confissão, mas é um sistema de pensamento que
serve de base para todo o protestantismo e tem sido elemento
essencial na estruturação cultural e social dos países protestantes. 20

Consequentemente, pode-se concluir que o João Calvino conhecido


na América Latina é um Calvino midiatizado – mais calvinista que
Calvino – e filtrado através da ortodoxia encapsulada no Sínodo de
Dort (1618), importada pela via dos esforços missionários anglo-
americanos. Ironicamente, uma coisa que os dois extremos ideológicos
dentro do protestantismo latino-americano (o fundamentalismo e a
teologia da libertação) têm em comum é que nenhum deles levou
a cabo uma análise crítica e conscienciosa da teologia de Calvino,
especialmente em seus escritos relativos ao papel transformador da
igreja na sociedade civil. Retornando à potencial contribuição desta

19 Cipriano de Valera, mais conhecido pela edição revisada da Bíblia traduzida por Casiodoro de Reina (1602),
traduziu em 1597 a edição da Instituição de 1559. Não obstante, a maior parte da literatura disponível
atualmente cita a tradução inglesa dos comentários de Calvino ou dos textos originais latinos, o que sugere
que os leigos ou os não especialistas latino-americanos tiveram um acesso muito limitado à teologia de
Calvino. (Enquanto se amplia o espectro da atual investigação, estou me perguntando sobre a disseminação
e recepção da teologia de Calvino na América Latina, com o propósito de concluir este ponto com maior
certeza.) Aristómeno Porras confirma esta mínima influência da teologia de Calvino no continente ao afirmar
que Calvino e o calvinismo foram relevantes para o desenvolvimento do moderno Estado democrático na
América Latina, citando alguns textos importantes e influentes de ciência política, que mostram o papel
gerador da Instituição de Calvino. Ver A. Porras “Calvino e a cultura ocidental”, em Calvino Vivo, livro
comemorativo do aniversário de 450 anos da Reforma em Genebra (México: El faro, 1987, p. 149-157).
20 Florencio Galindo, El protestantismo fundamentalista: una experiencia ambígua para América Latina.
Estella: Verbo Divino, 1992, p. 107.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 195

teologia para a situação latino-americana atual, reconheço que o


“rosto” evangélico do protestantismo latino-americano pode aprender
muito de Calvino sobre a integração entre a pureza doutrinal e a
práxis emancipadora.
Salatiel Palomino Lopez, teólogo reformado e líder da Igreja
Presbiteriana Nacional do México, lembra-nos que um aspecto muito
importante do ethos calvinista-reformado é a capacidade da igreja
para se reajustar continuamente aos contextos históricos e culturais
específicos:
Fica bem claro que não podemos cair no erro de viver nos
consolando com as glórias do passado. Por outro lado, não se trata
de repetições estéreis ou imitações grotescas de experiências já
superadas. Não. Trata-se de reavaliar o que somos, no reencontro
com o espírito dinâmico de nossa identidade histórica para realizar
os movimentos necessários e reajustes pertinentes à nossa situação
e contexto... Ou seja, encontramo-nos diante da necessidade de
dar conta desta questão essencial para o espírito do calvinismo:
a reforma permanente da igreja por meio da obediência à Palavra
de Deus e ao Espírito Santo. Isto, em nosso caso, requer muitas
exigências e correções na orientação de nossa vida eclesiástica,
muitos arrependimentos, muitas conversões, muita reflexão sobre
o sentido de nossa vida denominacional e sobre as necessárias
mudanças de atitude e atuação. 21

Palomino apela ao lema da Reforma do século XVI, ecclesia


reformata et semper reformanda, com o propósito de desafiar o
“protestantismo da reta doutrina”, estreito e excludente, que foi descrito
tão claramente e denunciado por Alves, sugerindo que o caminho para
o presbiterianismo latino-americano poderia ser encontrado em seu
passado calvinista e, mais precisamente, na teologia cristocêntrica do
próprio Calvino.

21 S. Palomino López, “Herencia reformada y búsqueda de raíces”, em Calvino Vivo, p. 102-103. Também
neste livro, capítulo 9 (PJC).
196 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

CALVINO E O GOVERNO CIVIL

Muitas vítimas da opressão política não puderam encontrar na teologia


calvinista uma voz libertadora, não só no Brasil, como foi descrito acima,
mas também na África do Sul, onde a Igreja Reformada, até recentemente,
apoiou a política do apartheid. Pelo fato da teologia de Calvino ter sido
concebida no exílio e voltada para os muitos problemas enfrentados por
Genebra no século XVI, como as revoltas populares e a pobreza urbana,
a sua recuperação revelará seu caráter de teologia pública, dirigida à
transformação social em favor dos pobres e oprimidos.
Ainda que as opiniões de Calvino tenham tido um efeito revolucionário
sobre a igreja e a sociedade, ele não foi um revolucionário no sentido
moderno. Pelo contrário, ao insistir muitas vezes que os cristãos tinham
o dever de obedecer aos magistrados, ele dá a impressão de ser um
conservador ao tratar de temas sociais. Segundo Calvino, a vontade
de Deus é realizada na história com o objetivo de evitar os abusos de
governos, que não podem ser tolerados: “A razão pela qual devemos
estar sujeitos aos magistrados é que eles são instituídos por ordenação
de Deus. Dado que aprouve a Deus assim governar o mundo, qualquer
pessoa que pretenda inverter a ordem divina e assim resistir ao próprio
Deus menospreza seu poder, e desconsiderar a providência daquele que
é o fundador do poder civil é entrar em guerra com ele”.22
Calvino, inclusive, exige submissão até ao mais tirânico dos
governos humanos, advertindo as vítimas de perseguição política
“porque, embora a punição de uma autoridade desordenada seja ato de
vingança de Deus, não devemos concluir que ela nos tenha sido confiada
e seja lícito exercê-la; cabe-nos apenas obedecer e suportar”.23 Posto

22 João Calvino, Calvin´s Commentaries, v. XIX, reimpressão da Edinburgh edition, com vários editores e
tradutores. Grand Rapids: Baker Book House, reimpressão de 2003, p. 478- 479 (Romanos 13.1). Nota: foi
conservada a linguagem original.
23 J. Calvino, 1. A Instituição da Religião Cristã. S. Paulo: Editora UNESP, 2008. Tomo I, Livros I e II.
Tradução: Carlos Eduardo Oliveira com José Carlos Estêvão, Ilunga Kabebgele, Elaine Cristine Sartorelli
e Omayr José de Moraes Júnior. 2. A Instituição da Religião Cristã. S. Paulo: Editora Unesp, 2009. Tomo
II, livros III e IV. Tradução: Elaine Sertorelli, Omayr J. de Moraes Jr. IV, XX, ,31. As demais citações desta
obra de Calvino neste capítulo são extraídas desta edição e designadas apenas como A Instituição. NT.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 197

que, como súdito, não é dever do povo derrubar tiranos, “nada nos resta
senão implorar a ajuda do Senhor, em cujas mãos está o coração dos
reis e as mudanças dos reinos”. 24 O conselho de Calvino às vítimas da
opressão política – paciência e oração – se soma à aceitação passiva de
uma situação injusta, algo que os liberacionistas rechaçam, preferindo
uma resistência mais ativa ao invés da repressão.
Todavia, antes de descartar Calvino como recurso teológico para os
movimentos de libertação, é importante ter uma compreensão melhor
do contexto no qual ele fez esta advertência. As palavras da Instituição
citadas acima refletem as condições da França no momento em que
foram escritas (1535), quando os protestantes foram “cruelmente
oprimidos por um príncipe desumano”, “saqueados por um príncipe
avarento e pródigo”, “menosprezados e abandonados”, “afligidos pela
confissão do nome do Senhor por um rei sacrílego e infiel”.25 Estas
circunstâncias políticas devem ser consideradas quando se analisa a
advertência de Calvino. Tais palavras, que pedem para perseverar e
orar pela intervenção divina contra a crueldade humana, não devem ser
entendidas como uma justificação da passividade moral, uma vez que
a advertência feita aos “súditos” com escasso poder político é melhor
entendida como uma questão pastoral em relação a eles.
Em um país onde os súditos viviam sob a autoridade de um
monarca absolutista, que era defensor da ortodoxia católica – apesar
de suas alianças políticas com príncipes protestantes alemães – as
igrejas reformadas da França foram perseguidas como heréticas.
Enquanto, em 1525, menos de uma dezena de cidades havia abraçado
as práticas heréticas, em 1540, todas as regiões da França as haviam
examinado, com um número crescente de cidades que tentaram colocá-
las em prática a cada década, até 1560. A intensificação da marcante
perseguição aos protestantes ao longo da segunda metade da década de
1540 propiciou a primeira de várias ondas de refugiados para Genebra
e os escritos de Calvino apareceram continuamente no Index francês

24 Ibid. IV, XX, 29.


25 Ibid.
198 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

dos livros proibidos.26 Por conseguinte, a advertência de Calvino aos


súditos protestantes de Francisco I procedia de seu interesse pastoral
pelo bem-estar deles em meio à perseguição. Dada sua situação, uma
revolta popular podia ser esmagada rápida e violentamente.
Em 18 de outubro de 1534, alguns membros da minoria protestante
colocaram cópias de um panfleto que continha duros ataques contra
a missa católica (o caso dos Cartazes).27 Isto levou o angustiado
Francisco I – já que uma cópia desses artigos foi colocada na porta de
seu aposento! – a proclamar que quem fosse encontrado e denunciado
como a pessoa ou pessoas responsáveis pela colocação dos panfletos
seria queimada. Muitos foram presos e executados em consequência
deste incidente e a atitude do rei para com seus súditos protestantes se
tornou francamente hostil.
A epístola dirigida a Francisco I da França foi colocada em lugar
de honra, à frente da primeira edição da Instituição, e foi escrita como
uma apologia em favor da minoria francesa protestante perseguida,
acusada de heresia e sedição. Temeroso de que a causa protestante fosse
desacreditada, especialmente depois do destino brutal da revolução
anabatista de 1535 em Münster,28 Calvino pede compreensão ao rei:
“Para que ninguém estime que nos queixamos disso por injúria, vós
mesmo podeis ser nossa testemunha, ó nobilíssimo Rei, de quão
mentirosas são as calúnias sob as quais todos os dias ela é trazida para
vós”.29 Argumentando que “mentiras e calúnias” haviam sido difundidas
pelos inimigos dos evangélicos franceses, Calvino pede tolerância e
proteção oficial para com os agentes da reforma eclesiástica. Não se
sabe se Francisco I sequer tenha lido a carta de Calvino – suas políticas

26 Para uma história concisa das igrejas reformadas clandestinas na França, ver a discussão de Philip Benedict
sobre a construção e defesa de uma igrejas minoritária em Christ´s Churches Purely Reformed, p. 127-148.
27 Para um breve resumo sobre o caso dos Cartazes, ver Bernard Cottret, Calvin: A Biography. Trad. de M.
Wallace McDonald. Gand Rapids: Eerdmans, 2000, p. 82-88.
28 Ver Benedict, Christ´s Churches Purely Reformed, p. 66-67; Williston Walker, Richard Norris, David W.
Lotz e Robert Handy, A History of the Christian Church, 4a. ed. N. York: Charles Scribner´s Sons, 1985,
p. 455-465. (Em português: História da Igreja Cristã, 3ª. edição, S. Paulo: Aste, 2006.) Também Jaroslav
Pelikan, The Christian Tradition: Reformation of the Church and Dogma (1300-1700), Chicago,University
of Chicago Press, 1984, p. 313-322.
29 Calvino, cf. A Instituição, v. 1, p. 14, “Ao Potentíssimo e Ilustríssimo Monarca Francisco..”.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 199

para com os protestantes não mudaram significativamente –, mas ela


serve como afirmação da perspectiva calvinista-revolucionária acerca
da relação entre Igreja e Estado.
Muito do que Calvino escreveu sobre o governo civil surgiu na
polêmica, de um lado, com os reformadores radicais anabatistas, que
defendiam uma dissolução completa do mundo não regenerado, e, do
outro, com o “establishment” católico romano, pelo qual o monarca
estava sujeito à autoridade eclesiástica. Também faz parte desta
discussão a aceitação, por parte de Calvino, da opinião comum entre
os protestantes sobre “o sacerdócio universal dos crentes” (1Pe 2.9),
que concedia status superior ao monarca, algo tradicional na teologia
reformada, mas que, ao mesmo tempo, nivelava as demais classes da
sociedade civil. Todavia, na Carta ao Rei (escrita em 1536), Calvino
enxerga a ala mais radical da Reforma como algo que, lado a lado com
as autoridades, estava minando o movimento protestante francês.
A posição comum dos reformadores anabatistas e radicais sobre
a Igreja e o Estado está resumida na Confissão de Schleitheim, cujo
artigo quarto afirma: “Estamos unidos quanto à separação que ocorrerá
entre o mal e a maldição que o demônio implantou no mundo... que
não temos irmandade com eles na confusão de suas abominações”.30
O artigo sexto, sobre o uso estatal do poder coercitivo, rejeita qualquer
participação no governo civil porque “não convém que um cristão seja
magistrado: o papel do governo é desempenhado segundo a carne,
enquanto o do cristão é segundo o Espírito”.31 Assim, Calvino está
disposto a distanciar os evangélicos franceses dos reformados mais
radicais, que advogam uma separação completa do Estado, mesmo
quando se desobedece a ele:
E nós somos acusados, sem merecimento, de cupidezes das quais
certamente jamais demos a menor suspeita, a saber, de que nos
aplicamos para a inversão dos reinos, nós de quem jamais nenhuma

30 Michael Satttler, “Brotherly Union of a Number of Children of God Concerning Seven Articles”, em The
Legacy of Michael Sattler, trad. e ed. de John H. Yorder, Scottdale, Herald Press, 1973, p. 37-38.
31 Ibid., p. 40.
200 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

voz facciosa foi ouvida e de quem a vida sempre foi reconhecida


como quieta e simples, quando vivíamos sob vós, e, ainda que
sejamos agora abandonados pela pátria, não deixamos, entretanto,
de invocar toda a prosperidade a vós e a vosso reino.32

Além desta carta, que é mantida em todas as edições da Instituição,


encontram-se discussões sobre o governo civil nos capítulos III, 19,
e IV, 20, da edição de 1559.33 O primeiro, sobre a liberdade cristã,
trata da consciência do crente individual e o segundo, sobre o governo
civil, dos deveres dos cidadãos e magistrados. Na referida edição, estas
duas passagens parecem não estar relacionadas, mas, na de 1536, elas
estão separadas apenas por uma seção dedicada ao poder eclesiástico.
Uma vez que a edição definitiva da Instituição é cinco vezes maior, é
importante lembrar a relação original entre estes dois capítulos para não
cair na tentação de ler a discussão de Calvino sobre o governo civil, no
último capítulo da edição definitiva, como um agregado posterior. No
mais, a cidadania responsável é parte inerente da noção calviniana da
vida cristã.
Segundo Calvino, em contraste com os anabatistas, a teologia cristã
deve se ocupar do governo civil, pelo fato de que Deus é quem funda o
Estado e define sua jurisdição e propósito.
... mas o escopo do governo temporal é manter e conservar o culto
divino externo, a doutrina e a religião em sua pureza, guardar a
integridade da igreja, levando-nos a viver com retidão, conforme
exige a convivência humana por todo o tempo que vivemos,
adequando assim nossos costumes à vida civil, a fim de manter e
conservar a paz e a tranquilidade comuns. Admito que tudo isso
seria supérfluo, se o reino de Deus, tal como se acha agora em nós,
anulasse o interesse pela vida presente. Mas, se a vontade de Deus
é que caminhemos sobre a terra, embora aspiremos pela verdadeira
pátria, e se, além disso, tais meios nos são necessários à caminhada,

32 J. Calvino, A Instituição, v. 1, Ao Potentíssimo... p. 32.


33 Outra discussão relevante pode ser encontrada em A Instituição IV, XI, 1-5, na qual Calvino, analisando o
poder das chaves (Mt 16.17-19), demarca as jurisdições eclesiástica e civil, em marcante contraste com a
Igreja Católica.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 201

então aqueles que as querem subtrair aos homens pretendem lhes


arruinar a própria natureza. Porque a respeito do que alguns alegam,
a saber, que na Igreja de Deus deve haver uma perfeição que se sirva
como única lei, respondo que isso é insensatez, pois jamais poderá
existir semelhante perfeição em nenhuma sociedade humana.34

Por causa do pecado e da queda, Deus ordenou o governo civil para


servir a dois propósitos: “que resplandeça a forma pública da religião
entre os cristãos, e que a civilidade se estabeleça entre os homens”.35
Com esse objetivo, os governos temporais utilizam a força da espada,
ou seja, a autoridade, para coagir e fazer vigorar suas leis. Com efeito,
Deus instaurou a ordem secular (o Estado) para preservar a paz e a
justiça no mundo, se necessário mediante a força, uma vez entendido
que o governo espiritual (a igreja) “nos dá, já aqui sobre a terra, uma
antecipação do reino celeste, e nos dá, nesta vida mortal e transitória,
certo gosto da bem-aventurança imortal e incorruptível”. 36
Para Calvino, é o próprio Cristo quem declara “que não há desacordo
entre o seu reino e o governo ou a ordem política”.37 Mesmo assim,
enquanto na discussão de Calvino sobre o governo civil se mantém
uma distinção entre os reinos espiritual e temporal, estes constituem
dois aspectos de um mesmo “governo duplo”. Enquanto o reino
espiritual “consiste no governo da alma, ou do homem interior, e visa
à vida eterna”, o reino temporal “diz respeito somente à justiça civil
e à reforma dos costumes”,38 não havendo um conflito inerente entre
ambos. Assim, diferentemente da moderna separação entre a Igreja
e o Estado, na teologia calviniana estes dois reinos se interpenetram
mutuamente como manifestações que são da vontade divina.
Por volta de 1560, a Reforma Protestante na França ocasionou as
chamadas “guerras de religião”, que se estenderam por um período de
30 anos. Quando os protestantes enfrentaram a mão de ferro do governo

34 J. Calvino, A Instituição, IV, XX, 2.


35 Ibid., IV, XX, 3.
36 Ibid., IV, XX, 2.
37 J. Calvino, Calvin´s Commentaries, v. XVIII, p. 209 (Jo 18.36).
38 J. Calvino, A Instituição, IV, XX, 1.
202 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

católico, Calvino não apoiou as atividades revolucionárias. Seus


escritos teológicos refletem o enorme cuidado e esforço para prevenir as
desordens sociais. Em conformidade com isto, cada aspecto no governo
duplo de Calvino tem suas jurisdições demarcadas: o governo temporal
faz leis para manter a ordem social e o espiritual se firma na disciplina
dos membros da igreja. A posição de Calvino não é apenas um contraste
com o separatismo anabatista, mas se opõe também à ideia católica de
que a igreja (visível) é a autoridade máxima. Ao reconhecer a distinção
entre ambos os reinos, Calvino reconhece também ambas as jurisdições
como vocações religiosas. De fato, a vocação de “magistrado” para
ele é uma santa vocação; “não somente declarou que este ofício lhe é
aceito e agradável, mas também exaltou a sua dignidade com títulos
eminentes”.39 Em consequência, a questão para a teologia calvinista-
reformada não é se a igreja tem o direito de participar da arena pública
ou de exercer influência política, mas como fazer isso e com que
finalidade.
Governar é um chamado elevado, de grande responsabilidade, e
Calvino, com frequência, insiste nas responsabilidades dos governantes
para com seus súditos, ao mesmo tempo em que permanece inabalável
em relação à reverência dos segundos, [“reverência semelhante àquela de
que estava imbuído Davi” (1Sm 26.9-11)] e em relação à obediência dos
segundos, “aconteça o que acontecer”.40 Os magistrados, ao contrário –
inclusive os monarcas absolutistas – estão sujeitos ao ensino e disciplina
da igreja como membros de um só corpo.41 Além disso, Calvino exorta os
magistrados a permanecerem fiéis aos mandamentos de Deus:
Quão grande integridade, prudência, clemência, moderação e

39 Ibid. IV, XX, 4.


40 Ibid. IV, XX, 29.
41 Ver David Willis-Warkins, “Calvin´s Prophetic Reinterpretation of Kingship”, em Elsie Anne McKee e Brian
G. Armstrong eds. Probing the Reformed Tradition: Historical Studies in Honor of Edward A. Dowey, Jr.
Louisville: Westminster-John Knox, 1989, p. 116-134, para uma investigação da compreensão amadurecida
de Calvino acerca do ofício real, partindo dos sermões sobre 2 Samuel. Willis-Warkins observa que Calvino
pregou sobre Davi como rei com o objetivo de apresentar uma reinterpretação profética da realeza, na qual
nenhum rei terreno pode ser visto como legítimo se impede a pregação da Palavra. Tal rei deveria ser derribado
por Deus e substituído por outro que “escute e obedeça a Palavra profética” (p.125).
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 203

inocência devem possuir os que foram constituídos ministros da


justiça divina? Como haveriam de permitir a entrada de qualquer
iniquidade em seu tribunal, sabendo que sua boca deve ser
instrumento da verdade divina? Em suma, se tiverem bem claro que
são representantes de Deus, então hão de aplicar toda a diligência
em oferecer aos homens a imagem da providência, proteção,
bondade, benevolência e justiça divina. 42

Nesta advertência está implícita a crença de que o segundo propósito


do governo civil é o uso de seu poder (outorgado por Deus) “para tolher
as tendências pecaminosas dos fortes de levar vantagem em relação
aos fracos e assegurar certa medida de justiça social nas transações
humanas”,43 um ponto em acordo com a opção preferencial pelos
pobres na teologia da libertação. Sem dúvida, devido à sua ênfase no
sofrimento paciente, a teologia da libertação tem razão ao questionar se
a instrução de Calvino se simpatiza ou não com a tarefa de promover a
transformação histórica de uma ordem social opressora.
Considerando os turbulentos tempos em que viveu e as atrocidades
cometidas contra a minoria protestante francesa (o próprio Calvino
deixou a França em 1536 e jamais retornou), a seguinte passagem da
edição de 1536 da Instituição enfatiza a importância que outorgava à
obediência dos súditos:
Portanto, se somos cruelmente oprimidos por um príncipe
desumano; se somos saqueados por um príncipe avarento e pródigo
ou menosprezados e abandonados por um que seja negligente;
se somos afligidos pela confissão do nome do Senhor por um rei
sacrílego e infiel, recordemos então, antes de tudo, das ofensas que
fizemos contra Deus, ofensas que são punidas por tais flagelos. Daí
virá a humildade para dominar a nossa impaciência. Em segundo
lugar, pensemos que não cabe a nós remediar tais males, e que nada
nos resta senão implorar a ajuda do Senhor, em cujas mãos estão o
coração dos reis e as mudanças dos reinos. 44

42 A Instituição, IV, XX, 6.


43 Guenther H. Haas, The Concept of Equity in Calvin´s Ethics. Ontário, Wilfrid Laurier University Press, 1997, p. 108.
44 J. Calvino, A Instituição, IV, XX, 29.
204 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

Ao mesmo tempo em que anima repetidas vezes os cristãos para


que cumpram com o dever de obedecer aos magistrados como “vice-
regentes” de Deus - mesmo quando se exige obediência para com os
governantes tiranos -, Calvino abre a possibilidade para uma resistência
cristã legítima contra os Estados injustos:
Conforme ensinamos, há sempre um limite na obediência devida
aos superiores ou, mais exatamente, uma regra que se deve
ser sempre observada: tal obediência não deve nos afastar da
obediência devida a Deus, sob cuja vontade todos os éditos reais
e contribuições devem estar contidos, e sob cuja majestade deve
se rebaixar e humilhar todo poder. Que perversão seria a nossa se,
para contentar aos homens, incorrêssemos na indignação daquele
por cujo amor deveríamos obedecer aos homens? ” 45

Existe uma aparente inconsistência na compreensão calviniana das


relações Igreja-Estado. Por um lado, não é papel dos súditos transtornar
a situação de um governo tirânico porque Deus se encarregará dele, mas,
por outro, parece que Calvino incentiva (alguma) resistência ao Estado
quando contraria a vontade de Deus, pois “antes importa obedecer a
Deus do que aos homens” (At 5.29).
Como podem cristãos fiéis resistir às intenções dos déspotas ímpios?
Calvino sugere diversas possibilidades, dependendo do lugar que
ocupem na ordem social. Na passagem acima, ele se dirige “aos que
estão submissos a outros”, embora na seção imediatamente posterior
reconhece que Deus “por vezes suscita algum de seus servos para vingar
a tirania de quem injustamente os domina, livrando-os da calamidade
um povo oprimido..”. 46
Nesta questão, Calvino parece estar em conflito – desejando uma
ordem social estável (mesmo à custa do sofrimento inocente) - e, ao
mesmo tempo, afirmando que Deus atua na história para fazer cair
a tirania. Uma chave hermenêutica fundamental para compreender

45 Ibid., IV, XX, 32 (ênfase acrescentada).


46 Ibid. IV, XX, 30.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 205

as afirmações de Calvino sobre a resistência política consiste em


reconhecer o tipo de audiência ao qual se dirigiu. Ele estava falando a
indivíduos particulares quando adverte que, “embora a punição de uma
autoridade desordenada seja ato de vingança de Deus, não devemos
concluir que ela nos tenha sido confiada e seja lícito exercê-la; cabe-nos
apenas obedecer e suportar”. 47
Não obstante, quando se dirige aos magistrados do povo
legitimamente nomeados, Calvino lhes atribui o dever de restringir os
abusos dos reis e tiranos:
“Não posso de modo algum proibir, segundo as exigências de seu
ofício, que façam oposição e resistam à excessiva licença dos reis,
pois, deixando de fazê-lo, trairão ao dever de proteger a liberdade do
povo. De fato, tão grande traição não pode ser dissimulada, visto que
contraria abertamente a liberdade do povo, para cuja preservação e
amparo foram constituídos por mandato divino como defensores”. 48

Calvino insiste com os magistrados constitucionais para protegerem


a liberdade do povo por meios políticos. Esta passagem polêmica,
juntamente com a advertência explícita no final do parágrafo da
Instituição, onde se diz que a obediência aos governos terrenos não
deve causar desobediência a Deus, garante à tradição reformada
os instrumentos básicos para a resistência política. Calvino nunca
condenou a revolução política e em suas obras encontramos as bases
teológicas para resistir à injustiça e opressão.

A VOCAÇÃO PROFÉTICA DO PASTOR NA


SOCIEDADE CIVIL

A maioria dos crentes é chamada a ser súdita obediente e a fazer


da paciência e oração seu único recurso para a resistência política. Um
pequeno grupo, o dos magistrados, é responsável pela justa administração

47 Ibid. IV, XX, 31.


48 Ibid.
206 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

da sociedade humana e, para isso, recebeu o poder correspondente.


Sem dúvida, não devemos nos esquecer que um grupo ainda menor foi
chamado a exercer o poder que está sobre todos: a Palavra de Deus. João
Calvino atribui à pregação um lugar superior no ministério da igreja e, do
púlpito, os pastores podem exercer grande influência sobre a edificação
da vida na igreja e na sociedade. A Instituição da Religião Cristã começa
com uma declaração filosófica: “Quase toda a suma de nossa sabedoria,
que deve ser considerada verdadeira e sólida, compõe-se de duas partes:
o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos”. 49
Ao aprofundar este ponto, Calvino conclui: “É notório que o homem
jamais chega a um conhecimento puro de si sem que, antes, contemple a
face de Deus e, dessa visão, desça ao exame de si mesmo”.50 Qualquer
conhecimento de Deus que obtenhamos através da natureza é distorcido
pelo pecado humano. O verdadeiro conhecimento de Deus só pode ser
encontrado nas Escrituras e este conhecimento sempre será mediado por
Cristo: “Por isso, para ser eliminado todo motivo de inimizade e sermos
completamente reconciliados com Ele, pela expiação proposta na morte
de Cristo, Deus abole tudo o que há de mal no homem, para que nós,
antes sujos e impuros, apareçamos justos e santos à sua visão”.51 Na
Escritura, encontramos o rosto divino e, pela ação interior do Espírito
Santo, recebemos o conhecimento salvífico de Deus:
Com efeito, se é apresentado a eles um belíssimo volume – assim
como os velhos ou os que têm os olhos enfermos e qualquer um que
tenha a vista enevoada dificilmente poderão ler duas palavras, por
mais que reconheçam que haja algo escrito ali, mas começam a ler
com clareza com a ajuda de uma lente –, assim também a Escritura,
recolhendo em nossa mente um conhecimento de Deus de outro
modo confuso, desfazendo a fumaça, apresenta-nos claramente o
verdadeiro Deus. E este é certamente um dom singular: para ensinar
a igreja Deus não usa somente mestres mudos, como suas obras,
mas também torna acessível sua boca sacrossanta..”. 52

49 Ibid. I, I, 1.
50 Ibid. I, I, 2.
51 Ibid. II, XVI, 3.
52 Ibid. I, VI, 1.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 207

Se a Palavra de Deus é revelada por meio da pregação, como


afirmam as Escrituras, devemos então aceitar como vontade de Deus
que hoje a Palavra seja ouvida da mesma maneira, isto é, “por meio da
palavra de um homem, um pregador da Palavra, chamado e designado
por Deus para esta tarefa”.53 Ainda que a teologia de Calvino tenha sido
influenciada por fatores sociais, políticos e culturais, sua perspectiva em
geral é descrita como uma teologia bíblica, na medida em que procura
fazer uma exegese rigorosa da mensagem da Escritura: “Sabe-se que
Calvino compartilhava a convicção protestante do século XVI sobre
o que é ser um mestre fiel das Escrituras e evitar qualquer invenção
humana”.54 Assim sendo, quando a teologia prática de Calvino trata de
uma questão de justiça social e equidade econômica, pode-se admitir
que o tema é essencial para a mensagem bíblica. Em seu extenso
comentário ao Salmo 82.3, sua visão acerca da pobreza coincide com
a exigência da teologia da libertação de fazer da igreja uma defensora
dos pobres e indefesos:
Aqui nos é ensinado, de maneira breve, que um governo justo e
bem ordenado se distinguirá por sua capacidade de manter os
direitos dos pobres e aflitos. Por uma sinédoque sabe-se que uma
parte da administração corresponde a toda ela e, portanto, não se
pode duvidar que os governantes devem observar a justiça para
com todos os homens, sem qualquer distinção. Por isso, o profeta
se refere apropriadamente a eles como defensores dos miseráveis
e oprimidos... Assim, os juízes detêm a espada com a finalidade
de reprimir os pecadores e evitar a violência que permanece entre
os homens, sempre dispostos à desordem e à extravagância...
Face a tudo isso, fica bem claro porque a causa dos pobres e
carentes é recomendada aos governantes, uma vez que aqueles
que são presas fáceis da crueldade e maldade dos ricos não têm
menos necessidade de ajuda e proteção dos magistrados do que

53 Ronald S. Wallace, Calvin´s Docrtrine of the Word and Sacrament. Eugene, Wipf and Stock Publishers,
1982, reimpressão, 1997, p. 83.
54 Elsie Anne McKee, “Exegesis, Theology, and Development in Calvin´s Institutio. A Methodological
Suggestion”, em Elsie Anne Mckee and Brian G. Armstrong ed., Probing the Reformed Tradition: Historical
Studies in Honor of Edward A. Dowey, Jr. Louisville: Westminster/John Knox Press,1989, p. 155.
208 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

um enfermo que necessita do cuidado de um médico. Se a verdade


estivesse profundamente arraigada nas mentes dos reis e juízes que
foram postos como guardiães dos pobres, sabendo que uma boa
parte desta responsabilidade consiste em reprimir os atos perversos
contra eles assim como qualquer violência injusta, a justiça perfeita
seria vitoriosa em todo o mundo.55

Embora existam diferenças importantes entre a “opção preferencial


pelos pobres” da teologia da libertação e a visão bíblica de Calvino
sobre a “justiça perfeita” – talvez porque o século XVI e o século
XXI tenham trabalhado com noções substancialmente distintas do que
significa uma sociedade humana “justa” – é certo também que ambas
partilham “lugares comuns” uma vez que sua perspectiva de justiça
se origina nos mundos do Antigo e do Novo Testamento. Enquanto a
teologia da libertação luta para atingir uma verdadeira ordem social
igualitária, Calvino aceita uma rígida hierarquia social na qual a
maioria é chamada para serem súditos obedientes e um pequeno grupo
de eleitos, para ser governante benévolo. E, enquanto algumas teologias
da libertação chegaram a defender a violência revolucionária como
meio para superar a opressão, Calvino oferece pouco conselho prático
quanto ao que fazer quando os que não têm poder sofrem por causa
da infidelidade dos governantes no cumprimento das tarefas que Deus
estabeleceu para eles.
Talvez por isso Mark Taylor esteja certo quando sugere que há “um
erro profundo na base do sistema calvinista de piedade social”, o qual
equipara a justiça social com a “boa ordem” e, portanto, exclui aqueles
que estão fora da “ordem dominante das coisas”.56 Certamente não se
pode negar que, ao ordenar a vida política e eclesial em Genebra do
século XVI, os pobres estiveram à frente das preocupações de Calvino.
Embora seja tentador identificar, a partir da suspeita pós-moderna,
tentativas sistemáticas de construir e perpetuar algumas estruturas
sociais, a teologia reformada contemporânea deve se lembrar que, apesar

55 Calvino, Calvin´s Commentaries, v. V, 332 (Salmo 82.3).


56 Taylor, “Immanental and Prophetic,” p. 155-156.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 209

de ter uma mente focalizada na ordem, João Calvino não abandona a


exigência da Escritura em se buscar a justiça, embora isto implique em
um alto custo. A análise de como a Palavra de Deus – principalmente
por meio da pregação profética – exorta, julga e continuamente reforma
a vida pública em favor dos pobres e indefesos, constitui um antídoto às
manifestações mais “repressoras” da tradição reformada.
O entendimento de João Calvino acerca da pregação começa com uma
exaustiva análise do Antigo Testamento, enfatizando particularmente os
profetas que falam com a voz e a autoridade de Deus: “A palavra que sai
da boca de Deus sai igualmente da boca dos homens, pois Deus não nos
fala diretamente do céu, mas se vale dos homens como seus instrumentos
para que, por seu intermédio, sua vontade seja conhecida”.57 A pregação
é tão vital para a igreja que “devemos ser sensibilizados por ela, sempre
que ele (Deus) fale por meio de seus servos, como se estivesse próximo
a nós, cara a cara”.58 A pregação tem um duplo propósito: por um lado,
revelar a vontade de Deus e, por outro, proporcionar uma oportunidade
para que os crentes mostrem sua obediência:
E assim como não enviou anjos ao antigo povo, mas suscitou
doutores que exercessem entre eles o ofício de anjos, também hoje
o Senhor nos quer ensinar mediantes os homens. Do mesmo modo,
como outrora não se limitou a entregar a Lei, mas estabeleceu
sacerdotes como intérpretes, por cujos lábios o povo conhecesse o
seu verdadeiro sentido, assim também hoje o Senhor deseja que nos
apliquemos não somente à leitura pessoal, mas também à audição
dos mestres por Ele estabelecidos para nos auxiliar neste mister.
E há nisso dupla utilidade. Por um lado, é prova de obediência
ouvirmos os seus ministros como se Ele mesmo estivesse a falar; por
outro, assim o fazendo, Deus leva em consideração nossa fraqueza,
pois, mediante seus intérpretes, Ele nos fala de modo humano
preferindo nos atrair pelos homens que nos aterrar manifestando
sua majestade. 59

57 Calvino, Commentaries, v. XIII, p. 172 (Is 55.11).


58 Calvino, Commentaries, v. XV, p. 343 (Ag 1.12).
59 Calvino, A Instituição, IV, I, 5.
210 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

Um ponto central da eclesiologia de Calvino é que fomos chamados


a viver como um corpo, nutridos pela mãe igreja através da pregação da
Palavra e em obediência fiel àqueles que foram chamados para dirigi-
la. Embora afirme o sacerdócio de todos os crentes, ele reconhece que
há vocações distintas no corpo e, portanto, enfatiza a importância da
pregação. Todavia, está sempre pronto para lembrar aos pastores - talvez
para mantê-los humildes - que somente pela intervenção do Espírito a
palavra do pregador se converte em Palavra de Deus (o mesmo diz com
relação à sua recepção pelo crente), pois, “quando Deus se separa de seus
ministros, nada permanece neles”.60 Assim, Cristo é aquele que fala por
meio da pregação e é por ela que Ele governa a igreja. Nas palavras do
apóstolo Paulo: “Como, porém, invocarão aquele em quem não creram?
E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não
há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está
escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas” (Rm
10.14-15).
Em seu comentário à frase do profeta Isaías: “Fez a minha boca
como espada aguda” (Is 49.2), Calvino afirma que Cristo “foi posto
pelo Pai não para governar ao estilo dos príncipes... mas toda sua
autoridade consiste na doutrina, na pregação daquilo que ele deseja que
seja recolhido e reconhecido, uma vez que, em nenhum outro lugar,
ele será encontrado”.61 Jesus Cristo, por intermédio de seus ministros
na terra, exerce o poder e a autoridade sobre a igreja e o mundo e,
sem dúvida, “a espada posta em nossas mãos é de outro tipo, ou seja,
é a Palavra e o Espírito”.62 Ao retomar a discussão de Calvino sobre o
governo civil, especificamente sua afirmação de que o poder da espada
é outorgado (por Deus) aos governos seculares por causa do pecado
humano, chegaremos à conclusão de que “a igreja não tem o poder
de coerção, nem deve procurá-lo (refiro-me à coerção civil), pois é
dever dos reis e príncipes piedosos manter a religião com leis, éditos

60 Calvino, Calvin´s Commentaries, v. XV, p. 630 (Ml 4.6).


61 Calvino, Calvin´s Commentaries, v. VIII, p. 9, (Is 49.2).
62 Calvino, Calvin´s Commentaries, v. VI, p. 316 (Sl 149.9).
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 211

e juízos”. 63
A espada de Cristo é a Palavra pregada e seu cetro é o evangelho. Por
isso, não devemos nos surpreender diante do fato de que a pregação estava
no centro das atividades de Calvino em Genebra. Seu relacionamento
prolongado e difícil com o Conselho e o Consistório serve de modelo
para visualizar como a igreja utiliza a espada espiritual. Através do
sucessor de Calvino em Genebra, Teodoro Beza, percebemos o teor da
atuação de Calvino como pastor e mestre:
Além de pregar habitualmente todos os dias, semana após semana
e tantas vezes quanto lhe era possível, pregava duas vezes no
domingo. Ministrava aulas de teologia três vezes por semana,
participava das discussões no consistório e ditava uma conferência
inteira sobre a Escritura. Seguiu este programa sem interrupção até
a morte, inclusive em seu último período de enfermidade. 64

João Calvino serviu a uma paróquia muito maior do que a


maioria das igrejas modernas, com um programa de pregação muito
mais exigente. Além de suas responsabilidades com a pregação, ele
instituiu também “congregações” semanais, para os demais ministros
de Genebra, a fim de proporcionar instrução sobre doutrina e exegese
da Escritura: “...para que todos os ministros conservem a pureza e
a concordância entre si, será conveniente, em primeiro lugar, que se
reúnam em um dia da semana, para discutir as Escrituras. Ninguém
estará dispensado, a não ser por justa razão. Se alguém for negligente,
deverá ser admoestado. Com relação aos que pregam nas vilas
subordinadas ao Conselho, eles devem ser exortados a estar presentes
tantas vezes quantas for possível”.65
Os frutos de seu trabalho permanecem nas várias edições da

63 Calvino, A Instituição, IV, XI, 16.


64 T. Beza, L´histoire de la vie et mort de Calvin (1564), OC 21, col. 33, cit. por Cottret, Calvin: A Biography,
p. 288-289. (Em português: A Vida e a Morte de João Calvino, Campinas: LPC, 2006.)
65 João Calvino, “Draft Ecclesiastical Ordinances (1541)”, em John Calvin: Selections from his Writings. John
Dillenberger (ed.), Missoula, MT: Scholars Press, 1975, p. 231. Esta prática foi incluída pela primeira vez
em l541 e se manteve nas ordenanças de 1561. (Em português: “Ordenanças Eclesiásticas, 1541”, em João
Calvino, Textos Escolhidos. Eduardo Galasso Faria, ed., S. Paulo: Pendão Real, 2008, p. 186-187. NT)
212 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

Instituição, comentários de quase todos os livros da Bíblia, numerosos


tratados teológicos, correspondência pastoral e 44 volumes de sermões.
Mais de 2.000 sermões foram escritos a mão, principalmente por Denis
Raguenier, um escriba profissional contratado em 1549. Todavia, os
estudiosos afirmam que João Calvino pregou mais de 4.000 sermões
em sua vida. Não há dúvida de que a pregação de Calvino constituiu um
desafio para os políticos genebrinos. Na verdade, Calvino, juntamente
com seus colegas Farel e Courault, foi expulso de Genebra por relacionar
política com religião. Em março de 1538, Calvino foi admoestado por
se referir ao Conselho da cidade como “um conselho do demônio” e,
por isso, ele e Farel receberam a ordem de “não se imiscuir em questões
públicas”. 66
Ao longo da carreira de Calvino em Genebra, suas lutas com o
Conselho se centralizaram na questão da independência da igreja em
relação ao governo secular, especificamente no que se refere à proibição
e readmissão à ceia do Senhor. Durante os primeiros anos, antes do
exílio de 1538, Calvino foi inflexível ao exigir que todos os cidadãos
de Genebra jurassem uma Confissão de Fé escrita por Farel. O registro
do Conselho evidencia a recusa dos cidadãos e numerosas referências
aos esforços que foram feitos para persuadir as pessoas a aceitarem
a Confissão. Mas foi em 1538 que Calvino e seus colegas pastores
exacerbaram a questão, quando decidiram recusar a ceia do Senhor a
todos os que não haviam assinado a Confissão. O Conselho se manteve
firme contra o direito unilateral dos pastores fazerem proibições e, em
consequência, decidiu impor reformas litúrgicas sem informar Calvino,
Farel e Courault, pedindo que eles celebrassem, conforme nova
orientação, o sacramento na manhã do domingo da ressurreição. Se
eles se negassem, estariam proibidos de pregar naquela manhã. Calvino
e seus colegas se recusaram a obedecer e passaram a explicar em
suas pregações porque ministrar o sacramento nessas condições seria

66 Amédée Roger, Histoire du peuple de Genève, 7 vs., Genève, J. Jullien, 1870-1883, v. 1, p. 86-94. Citado em
W. Fred Graham, The Constructive Revolutionary John Calvin and His Socio-Economic Impact. Richmond:
John Knox Press, 1971, p. 60. Aí se encontra uma descrição precisa, extraída diretamente das atas do Conselho,
das circunstâncias que provocaram o exílio de Farel e Calvino.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 213

profaná-lo. Diante disso, o Conselho demitiu os três pregadores e lhes


ordenou que abandonassem a cidade em um prazo de três dias.
Mais tarde, com as mudanças no clima político, Calvino foi
chamado a Genebra como pregador. Em 1541, retornou para continuar
suas lutas por reforma eclesiástica e política, firme em sua convicção
de que só a igreja tem o direito de excomungar. Suas novas Ordenanças
Eclesiásticas (1541) instituíram a eleição de um consistório composto
por pastores e leigos cujas funções incluíam a preservação da pureza
da igreja:
Os anciãos ou assistentes, como já foi dito, devem se reunir uma
vez por semana com os ministros, ou seja, na quinta-feira de manhã,
para ver se há alguma confusão na igreja e para discutir juntos as
correções, na medida em que são necessárias.
Pelo fato de não terem autoridade coercitiva ou de jurisdição,
queiram os senhores membros do Pequeno Conselho favorecê-los,
concedendo-lhes um de seus oficiais para convocar aqueles que eles
desejarem admoestar.
Se alguém com desrespeito se recusar a aceder, sua obrigação será
informar ao Conselho a fim de que a correção seja aplicada.67

Não há dúvida de que as Ordenanças não esclarecem quem, na


verdade, tem o poder de excomungar e restaurar – o Consistório ou o
Conselho. Eventualmente, Calvino conseguiu a aprovação de sua ordem
eclesiástica, mas, antes disso, foram feitas importantes mudanças em
seu texto. Uma dessas modificações foi o artigo adicional inserido na
questão do direito do Consistório em exercer tal proibição:
Tudo isso deve ocorrer de tal forma que os ministros não tenham
qualquer jurisdição civil ou ousem utilizar qualquer coisa
além da espada da Palavra de Deus, como lhes ordena Paulo.
Nem deve o Consistório desacreditar a autoridade do Pequeno
Conselho ou a justiça comum. O poder civil deve permanecer
sem ser enfraquecido. Mesmo onde houver necessidade de impor

67 Calvin, “Draft Ecclesiastical Ordinances (1541), p. 241. (Conforme tradução em português: “Ordenanças
Eclesiásticas (1541)”, em João Calvino Textos Escolhidos. Eduardo Galasso Faria ed., S. Paulo: Pendão
Real, 2008, p.197. NT)
214 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

repreensões e admoestações como convém, devem relatar todo o


problema ao Conselho que, por sua vez, recomendará a sentença e
o julgamento, conforme as necessidades do caso. 68

A disputa acerca do poder de readmitir os membros à ceia do


Senhor continuou por muitos anos. O Consistório proibia alguém de
participar da ceia e o enviava ao Conselho para efetivar a sentença civil.
O Conselho, por sua vez, ouvia o relato do Consistório, estabelecia a
sentença e a multa, presumindo que a pessoa seria admitida à comunhão
da igreja automaticamente. Calvino e os demais pastores discordavam,
argumentando que os excluídos da comunhão deveriam se apresentar
novamente diante do Consistório para que fossem advertidos quanto
ao verdadeiro arrependimento. Então, e só então, seriam readmitidos
à ceia, sem se levar em consideração a decisão civil. João Calvino
enfrentou grande oposição no que se refere ao direito de estabelecer
proibições e, tanto nisso como em outros assuntos, o Conselho
questionou o conteúdo de sua pregação em numerosas ocasiões, porque
“com grande indignação (ele) pregou que os magistrados permitem
muitas insolências. Recebeu, então, a ordem de se apresentar diante do
Conselho para explicar suas pregações e para eximir as autoridades das
presumíveis insolências e assim proceder de forma a fazer justiça”. 69
A luta de Calvino para estabelecer a independência da igreja em
relação ao Conselho é um exemplo de como ele se valeu da pregação
para promover a reforma social. Atendendo à sua vocação de pastor e
mestre, Calvino aceitou o fato de que a igreja tem algumas obrigações
para com o Estado. Primeiro, os cristãos devem orar pelo governo civil
e submeter-se à sua legítima autoridade. Ele nunca, ao longo dos muitos
desentendimentos com as autoridades civis de Genebra, aprovou a
rebelião (embora, como foi demonstrado, Calvino tenha admitido a
possibilidade remota de uma rebelião legítima contra os governos

68 Calvin, Ibid., p. 242, nota 21. (Conforme tradução em português: “Ordenanças Eclesiásticas , 1541”, em
João Calvino - Textos Escolhidos. Eduardo Galasso Faria ed., S. Paulo: Pendão Real, 2008, p. 199, Artigo
adicional. NT)
69 Ibid., citação dos registros do Conselho, 21 de maio de 1548.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 215

repressores. Isso apenas quando tal resistência fosse encabeçada pelos


magistrados inferiores, cuja função é proteger as liberdades do povo).
Em segundo lugar, a igreja tem o dever de motivar o Estado para
defender os pobres e indefesos dos ricos e poderosos.
A Igreja de Genebra lutou contra a usura, o desemprego, as doenças
e toda sorte de injustiça econômica, em grande parte porque João
Calvino pregou o evangelho sem diluir sua mensagem. Pelo fato dos
magistrados, como quaisquer outros membros do corpo de Cristo,
estarem sujeitos ao ensino e disciplina da igreja, houve uma expectativa
natural de que suas políticas públicas fossem criticadas do púlpito: “A
opressão emite um forte gemido; se o juiz, firmado em sua cátedra,
faz que não ouve, é admoestado de que não escapará impune de
uma tal cumplicidade”.70 Finalmente, a igreja deve admoestar o Estado
quando este atua de maneira injusta. Acerca do profeta Amós (um dos
preferidos dos teólogos da libertação) que diz, “Ouvi isto, vós que
tendes gana contra o necessitado e vós que destruís os miseráveis da
terra, eu não me esquecerei de todas as suas obras, para sempre!” (Am
8.4,7), Calvino comenta:
Todavia, como a culpa maior é dos líderes, os profetas os trataram
com dureza e severidade: muita gente comum se desvia por
torpezas ou ignorâncias ou porque é levada por outros, mas os que
governam pervertem o que é justo e correto, transformando-se logo
naqueles que dão origem a todo tipo de libertinagem. Não nos deve
surpreender que o Senhor, por meio de seus profetas, se dirija tão
duramente a eles.71

Como “boca de Deus”, o ministro deve falar contra toda injustiça


e exortar os magistrados a desenvolver, com equidade e misericórdia,
as tarefas que lhe são dadas por Deus. Assim, Calvino demonstra que
desejava uma igreja livre do controle do Estado, não porque fosse um
megalomaníaco, querendo se firmar como “bispo de Genebra” (como
sugeriram alguns críticos modernos), mas pelo simples fato que,

70 Calvino, Calvin´s Commentaries, v. V, 332 (Sl 82.3).


71 Calvino, Calvin´s Commentaries, v. XIV, 363-4, (Am 8.4).
216 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

para manter a pureza da doutrina, a igreja necessita de liberdade para


pregar a Palavra de Deus de maneira crítica e profética em relação ao
Estado. Calvino manuseou a espada espiritual com grande habilidade e
conseguiu, dessa forma, persuadir seus opositores políticos por meio da
verdade e retidão da Palavra pregada, sempre com a convicção de que
ambos, igreja e Estado, existem debaixo do senhorio de Cristo.

A PRÁXIS PASTORAL DE CALVINO

Toda questão teológica possui uma dimensão ética. A pergunta


teológica “Quem é Deus?” é inseparável da pergunta “Que fazer?”,
uma questão que é bem definida por Gustavo Gutiérrez em seu livro
Teologia da Libertação, Perspectivas, considerado pela teologia da
libertação como o mais importante. Nesta obra, Gutiérrez afirma que
a teologia (falar de Deus) constitui um “ato segundo”. Existe um “ato
primeiro” que antecede a qualquer formulação teológica e que tem a ver
com a linguagem silenciosa da espiritualidade cristã, a oração, a liturgia
e a ação moral. Metodologicamente, a teologia da libertação latino-
americana parece estar muito distante da intenção inocente de Calvino
de esquadrinhar o texto, de “fugir dos acréscimos humanos”. Gutiérrez
começa reconhecendo o compromisso cultural, político e eclesial do
teólogo; além disso, se vale das ciências - interpretações da realidade -
para garantir à teologia parte de seu instrumental básico.
Entretanto, o fato de que a teologia se sirva de elementos extra-
bíblicos de análise não quer dizer que estes métodos se transformam
em fonte para a teologia. Teologia da libertação não é o mesmo que
marxismo, embora ocasionalmente tenha utilizado o sistema marxista
de análise social.72 Do mesmo modo, o fato de que Calvino tenha
sido influenciado pelo humanismo e empregado seus métodos de
interpretação da Bíblia não reduz sua teologia bíblica e cristocêntrica

72 Ver Gustavo Gutiérrez, A Theology of Liberation: History, Politicis and Salvation. Trad. e ed. Sister Caridad
Inda e John Eagleson. Maryknoll: Orbis Books, 1988, rev., p. 3-12. (Em português: Teologia da Libertação,
Perspectivas. Petrópolis: Vozes, 1975. NT)
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 217

a um mero humanismo. O aspecto mais importante da teologia da


libertação é que, ao ser formulada, ela adota como ponto de partida
a perspectiva dos pobres e fracos. Os teólogos da libertação não se
aproximam do texto com uma noção abstrata de opção preferencial
pelos pobres, logo identificada. Pelo contrário, aproximam-se do texto
como os pobres (ou como pastores e teólogos que servem aos pobres)
e encontram no próprio texto as boas novas (Lc 4.18). A teologia da
libertação faz uma opção preferencial pelos pobres e fracos porque, nas
Escrituras, Deus estabelece esta opção preferencial por eles.
Gutiérrez identifica três níveis inter-relacionados ou dimensões da
libertação: 1) libertação das estruturas socioeconômicas opressoras;
2) libertação como transformação pessoal; e 3) libertação do pecado.
Afinal, reconhece que “só a libertação do pecado leva à origem da
injustiça social e outras formas de opressão, reconciliando-nos com Deus
e com o nosso próximo”.73 Embora Calvino não fale expressamente de
libertação no mesmo sentido que Gutiérrez, sua ética social enfatiza
o imperativo da equidade em todas as relações humanas. Além disso,
ambas as abordagens procuram a transformação social por meio do
cuidado pastoral e da instrução. Tanto para João Calvino como para
Gustavo Gutiérrez a congregação local é o nexo entre a moralidade
e a educação e, desde suas origens, a igreja caminha em direção ao
contexto cultural para buscar a transformação social por intermédio de
um modelo alternativo de vida em comunidade. Gutiérrez insistiu no
fato de que a igreja tem grande poder e influência na sociedade e não
deve ter medo de usar este poder em benefício dos pobres e oprimidos.74
João Calvino, o pastor, estaria de acordo.
Em um sermão sobre 2 Samuel 8.9-18, Calvino exorta a todos os
crentes, e não só aos magistrados cristãos, para “mantermo-nos tão
firmemente quanto possível em oposição ao mal. Este mandamento é
dado a todos e não só aos príncipes, magistrados e oficiais da justiça,

73 Ibid, p. XXXVIII.
74 Ibid, p. 76.
218 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

mas também a todos os indivíduos”.75 A Escritura deixa claro que, como


cristãos, fomos chamados a sofrer perseguição por causa da justiça.
Para Calvino, tal sofrimento é, inclusive, uma fonte de alegria, pois
“seríamos muito ingratos se não as aceitássemos voluntariamente e de
bom grado da mão do Senhor”.76 A perseverança – especialmente na
defesa do inocente – é virtude importante da vida cristã. Na Genebra de
Calvino, houve inúmeras oportunidades para sofrer por causa da justiça.
Genebra era uma cidade pequena, com uma população estimada em
10.000 habitantes em 1537, chegando, em 1560, a 21.400. A primeira
onda de imigração, em 1542 (mais ou menos 5.000 franceses refugiados
por causa da perseguição política), gerou o crescimento da pobreza,
crime, desemprego e xenofobia. Os líderes eclesiásticos e civis tiveram
que enfrentar as conseqüências da ruptura com a Igreja Romana. Além
disso, a deterioração da ordem social medieval gerou novas realidades
culturais, políticas e econômicas que nem a igreja nem o estado estavam
preparados para enfrentar.77 Pelo fato da teologia de Calvino ter se
originado em um contexto de perseguição política, pobreza extrema e
sofrimento de inocentes – uma situação social análoga à que suscitou
os esforços libertadores na América Latina – é tentador julgar a sua
prática de acordo com modelos atuais de cuidado pastoral. E, embora
as responsabilidades pastorais de Calvino exigissem bastante, suas
atividades consistiam basicamente na pregação e no ensino.
Calvino não foi um assistente social, ativista político ou conselheiro,
tarefas que o pastor contemporâneo tem que realizar com frequência
e, no entanto, esteve profundamente envolvido com a reorganização
da ordem eclesiástica e litúrgica, a adaptação da ordem social da
cidade para atender às necessidades dos pobres e indefesos, a defesa
da autonomia da igreja contra qualquer abuso do governo secular, a

75 Calvino, Sermons on 2 Samuel: chapters 1-13. Trad. Douglas Kelly, Carlisle, The Banner of Truth Trust,
1992, p. 419.
76 Calvino, A Instituição, III, VIII, 8.
77 Para um inventário mais completo sobre a situação social de Genebra no século XVI, veja-se W. F. Graham,
The Constructive Revolutionary, p. 97-115; B. Cottret, Calvino, p. 157-181; P. Benedict, Christ´s Churches
Purely Reformed, p. 93-109, e Elsie Ann McKee, Diaconia in the Classical Reformed Tradition and Today.
Grand Rapids: W.B. Eerdmans Publishing Company, 1989, p. 47-60.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 219

manutenção da educação religiosa e a pureza doutrinal dos crentes.


De acordo com Calvino, além da pregação e do ensino, o cuidado
pastoral é definido, em primeiro lugar, como o cuidado para com os
pobres e os enfermos. Em razão disso, a Igreja de Genebra estabeleceu
várias instituições e práticas para cuidar do bem-estar dos enfermos
e incapacitados. A mais importante destas instituições é o diaconato,
estabelecido por Calvino como um ministério permanente. Os diáconos
constituem o ministério da igreja junto ao mundo que sofre, sendo
responsáveis pela arrecadação e administração dos recursos com
este propósito e pelo cuidado com os necessitados. Nas Ordenanças
Eclesiásticas, Calvino explica a divisão do trabalho no diaconato:
“Sempre existiram duas classes de diáconos na Igreja Antiga. Alguns
indicados para receber, administrar e manter bens para os pobres, que
não sejam apenas esmolas diárias, mas também rendas e pensões, e os
outros, para servir e cuidar dos doentes e administrar os auxílios para
os pobres”.78 A ordem na igreja de Calvino procurava fazer com que os
hospitais adotassem uma organização semelhante à da igreja, mediante
a inclusão de procuradores e capelães, estabelecendo, além disso, que
os pastores supervisionassem os programas cidadãos de bem-estar
social. Se encontrassem alguém em falta de algo, deviam informar o
Conselho para que se fossem tomadas medidas pertinentes, a fim de
remediar a situação.
Não se cuidava apenas dos necessitados de Genebra. Para enfrentar
as necessidades dos refugiados protestantes que abandonavam os
domínios católico-romanos, foi necessário criar um fundo de ajuda para
os estrangeiros, conhecido pelo nome de Bourse Française.79 Embora as
instituições beneficentes de Genebra estivessem organizadas de forma

78 Calvino, “Draft Ecclesiastical Ordinances (1541), p. 235-236. (Em português: João Calvino – Textos
Escolhidos. S. Paulo: Pendão Real, 2008, p. 191.)
79 Ver Jeannine E. Olson, Calvin and Social Welfare: Deacons and the Bourse Française. Cranbury, Associated
University Presses, Inc., 1989, para um estudo sobre esta situação em relação com os demais elementos do
sistema de beneficência na Genebra de Calvino. O autor observa que a Bourse Française (Bolsa Francesa,
NT) não é mencionada nas Ordenanças Eclesiásticas de 1541, uma vez que o fluxo maior dos refugiados
começou pouco tempo depois. Os registros indicam que, em algum tempo, por volta dos anos 1540, a
necessidade de um fundo alternativo de beneficência se tornou evidente e, em 30 de setembro de 1550, o
fundo foi estabelecido oficialmente.
220 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

a ajudar aos que estavam em estado de enfermidade ou incapacidade


e que não tinham condições de ser auto-suficientes, a maior parte da
ajuda era temporária e buscava a independência dos beneficiados:
Parece que a meta dos diáconos era que os refugiados se
recuperassem tão logo quanto possível. Para isso, era proporcionada
a eles habitação temporária, ajuda por algum tempo e treinamento
profissional quando necessário. Os diáconos compravam as
ferramentas e algumas matérias-primas para que os artesãos
pudessem trabalhar... Tais investimentos, relativamente modestos,
podiam levar as pessoas a se tornarem independentes com um gasto
menor e, como também preferiam empréstimos e não donativos, os
diáconos podiam recuperar parte do que fora desembolsado.80

Além desses benefícios imediatos, João Calvino estabeleceu a


obrigatoriedade da educação primária para os meninos e meninas de Genebra,
promoveu a educação secundária para ambos e assentou as bases daquilo
que se tornou a Universidade de Genebra. Entretanto, os liberacionistas
contemporâneos encontram falhas nas reformas sociais de Calvino.
A seção das Ordenanças Eclesiásticas que trata do ministério da igreja
para com os pobres termina com uma advertência contra a mendicância
que “é contrária à boa ordem”.81 Esta ênfase na “boa ordem” gerou a
crítica de que “as denominações de classe média desenvolvem mais
e mais organizações para atender às necessidades dos desfavorecidos,
mas, na verdade, o que se consegue é ampliar a distância entre a igreja de
classe média e as igrejas dos desfavorecidos. É certo que a piedade social
baseada na teologia de Calvino enfatiza a importância da boa ordem, mas
não no afã oculto de excluir ou marginalizar os “desfavorecidos”, como
sugerem Taylor e Wolterstorff.82 Pelo contrário, a rígida e sistemática
abordagem da beneficência social demonstrada na ordem eclesial de
Calvino é a conseqüência lógica da grande implementação de reformas
sociais em resposta à agitação social e ao grande sofrimento humano.

80 Ibid, p. 39.
81 Calvino, “Draft Ecclesiastical Ordinances (1541)”, p. 237. (Em português: João Calvino – Textos Escolhidos,
S. Paulo: Pendão Real, p. 193. NT)
82 M. Taylor, “Immanetal and Prophetic”, p. 156.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 221

Uma análise mais cuidadosa da correspondência de Calvino demonstra


o lado humano de um engenheiro social que reprimia o mundanismo,
que lutou constantemente para superar grandes dificuldades, criando
condições de estabilidade e paz para Genebra.
A correspondência de Calvino mostra um pastor que usou o tempo para
escrever a prisioneiros políticos e refugiados, oferecendo-lhes consolo,
ajuda material, conselho e disposição para interceder em seu favor diante
das autoridades. Em 1545, quando franceses vítimas da perseguição
do rei buscaram refúgio em Genebra, João Calvino desempenhou um
papel crucial, convencendo as autoridades civis para que não somente
lhes dessem proteção, mas também providenciassem meios para sua
subsistência.83 A carta de 4 de maio de 1545 para Farel é outro exemplo
de como Calvino assumiu a defesa política deles. Nela, Calvino pede
conselho sobre como ajudar os protestantes perseguidos da Provença:
... um deles voltou com a triste informação de que várias aldeias foram
consumidas pelo fogo, juntamente com a maior parte dos anciãos.
Alguns foram assassinados a espada, outros foram abandonados à
própria sorte e tal foi a crueldade selvagem destes perseguidores
que nem as jovenzinhas, nem as mulheres grávidas, sequer os bebês
restaram... Ao ouvir sobre esta tragédia mortal e pensando no que
devia ser feito, pareceu bem aos irmãos (ministros de Genebra), em
primeiro lugar, enviar um mensageiro com uma carta recomendando
esta causa a todas as igrejas e ministros e, em segundo lugar, buscar
orientação do Conselho (da cidade de Genebra) porque nós próprios
não sabemos com clareza quais medidas adotar. A opinião do
Conselho foi a de que eu deveria ir pessoalmente às igrejas suíças
(como embaixador do povo da Provença). Portanto, amanhã mesmo
iniciarei a viagem... Logo que possa, pedirei ao Senado que me
conceda uma audiência com o Conselho. 84

83 Para um panorama sobre a defesa de Calvino em favor dos refugiados franceses, ver W. F. Graham, The
Constructive Revolutionary, p. 97-115 e Olson, Calvin and the Social Welfare, p. 29-36. Para traduções da
correspondência pastoral de Calvino e a defesa em favor da justiça para as vítimas da perseguição política,
ver John Calvin. Writings of Pastoral Piety. Ed. e trad. Elsie Anne McKee, N. York, Paulist Press, 2001, p.
315-332.
84 J. Calvino, Writings on Pastoral Piety, p. 317-318.
222 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

Os esforços de Calvino para libertar os presos políticos nem sempre


tiveram êxito. Um desses casos foi o dos cinco estudantes de teologia
pesos em Lyons, na França, mortos na fogueira em 1553. Entretanto,
suas cartas pastorais não buscavam apenas consolar os prisioneiros,
mas também exaltar o testemunho dos mártires protestantes. Isto fica
evidente em uma carta solidária dirigida a Liner, um comerciante
protestante que se esforçava por libertar os cinco prisioneiros de Lyons:
Pense também em quantos nobres irmãos glorificam a Deus pelo
que estás fazendo. Eles se escandalizariam se tu viesses a alterar
o teu caminho. E, quanto aos perigos que enfrentas, confio que
logo passarão. Os irmãos pelos quais tanto tens feito se sentem tão
devedores para contigo que, se estivessem livres, longe de trair-te
covardemente, se exporiam à própria morte por tua causa... Mantém
o bom ânimo em tua santa tarefa, pois, com ela, não serves apenas a
Deus e aos seus mártires, mas também a toda a igreja. 85

Após a leitura destas cartas, fica claro que, para João Calvino, a
vida cristã não está isenta de lutas e aflição. Pelo contrário, a graça de
Cristo chega a nós em meio às provações da vida e, assim, nos permite
perseverar na fé apesar das adversidades, fazendo-nos compreender a
providência de Deus em meio à enfermidade, à prisão e inclusive, à
morte. Para ele, a vocação de todos os cristãos é “tomar a defesa dos
bons e inocentes contra as injustiças dos ímprobos, embora “incorra-se
necessariamente na ofensa e no ódio do mundo, e por isso nossa vida ou
nossa honra estarão sob perigo iminente”. 86

CONCLUSÃO

Os teólogos da libertação há muito reconheceram que toda


teologia é contextualizada e inevitavelmente entrelaçada com os
interesses e desejos de uma cultura ou classe social em particular.

85 Ibid., p. 323.
86 Calvino, A Instituição III, VIII, 7.
REIVINDICANDO A TRADIÇÃO REFORMADA PARA A AMÉRICA LATINA 223

A crítica do protestantismo brasileiro desenvolvida por Rubem Alves


em Protestantismo e Repressão descreve como líderes da igreja se
valem de sua missão em troca de interesses políticos. No entanto, sua
análise oferece poucas linhas de ação práticas para os protestantes
que, no contexto da América Latina, buscam um cristianismo com
participação social e política. De acordo com Alves, a única maneira de
combater o “protestantismo da reta doutrina” está em abraçar a dúvida
e limitar as afirmações teológicas que se consideram donas da verdade:
“os que já possuem a verdade estão predestinados a se transformarem
em inquisidores. Os que só possuem dúvidas já estão predestinados
à tolerância e, talvez, à fogueira. Por isso, parece-me, só existe uma
saída: uma recusa consciente à verdade e às certezas, antes que elas se
apoderem de nós”. 87
Existe outra saída... alternativa à versão do protestantismo
reformado-calvinista dominante no Brasil, mas, para isso, é necessário
voltar às próprias fontes da tradição. Foi demonstrado como a teologia
e a prática pastoral de Calvino procuraram criar uma sociedade justa e
equitativa, fundamentada em sua compreensão do evangelho de Jesus
Cristo. Entretanto, como os métodos de Calvino refletem uma sociedade
hierárquica rígida, encravada no último período da Europa medieval e
nos inícios da Europa moderna, seus esforços em favor dos pobres e
oprimidos podem parecer paternalistas.
Felizmente, nem todos os itens da ordem instituída por Calvino para
a vida da igreja e da sociedade são essenciais para a teologia reformada.
Essencial é a fidelidade à Palavra de Deus, quando se trata de definir a
eclesiologia e a missiologia. Elsie Anne McKee destaca como a maior
virtude de Calvino sua determinação em ser fiel à autoridade única da
Escritura, deixando-se instruir por ela em seu todo, sem evitar extremos
inconvenientes. A mensagem que João Calvino encontra na Escritura
é coerente com a afirmação básica da teologia da libertação – que
Deus se manifesta no mundo a fim de libertar os pobres e oprimidos,

87 R. Alves, Protestantismo y Repression, p. 206. (Original em português: Protestantismo e Repressão. S.


Paulo: Ática, 1979, p. 284 . NT)
224 JOÃO CALVINO E O CALVINISMO

fazendo com que a libertação histórica seja uma dimensão necessária


da salvação – e conforme sua compreensão da vida cristã como um
chamado a sofrer por causa da justiça (A Instituição, III, VIII, 7).
Na Genebra do século XVI, o chamado de Cristo para ministrar ao
pobre, ao enfermo, ao órfão, à viúva, ao refugiado e ao prisioneiro esteve
integrado de maneira significativa à vida da igreja, sendo garantido pela
lei civil. Na América Latina do século XXI, a teologia da libertação
pode transformar o caráter do protestantismo se ajudar pastores e
leigos a redescobrir o compromisso reformado-calvinista com a práxis
social transformadora. Assim, embora seja sempre necessário estar
consciente de que a tradição reformada, em algumas ocasiões, tenha
usado sua teologia para legitimar a opressão, a igreja deve, sem dúvida,
corajosamente, abrir uma pista em direção ao espaço público, confiante
que Calvino já percorreu este caminho e, o que é mais importante,
sabendo que o próprio Cristo foi, com certeza, o primeiro a trilhá-lo.

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