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A família de Jairo sempre foi extremamente religiosa, a devoção fazia parte do pão de cada

dia da família Silva. As horas das refeições eram um verdadeiro culto com direito a louvores, preces
e muita fé, tradição esta passada de geração a geração, cujos princípios cristãos eram rigorosamente
observados, desde o mais jovem ao membro mais velho da família. O pai de Jairo era pastor de uma
pequena congregação do interior do Estado do Belém do Pará e, regia a igreja como regia a família,
ou regia a família como regia a igreja? Vai saber, afinal os dois ambientes não eram em nada
diferentes. O jovem teve uma formação profundamente cristã, mas havia algo de especial que
chamava a sua atenção na cultura e na religião judaica. Desde pequeno quando ouvia os sermões de
seu pai no púlpito da igreja, viajava nas histórias dos personagens do Antigo Testamento, ficava
imaginando como seriam os lugares, desejava muito conhecer as terras bíblicas. Jerusalém era o seu
maior sonho, sentimento de um escravo na Babilônia. O Antigo Testamento era a parte das
Sagradas Escrituras que mais chamava a sua atenção. Dizia que o Novo Testamento não trazia nada
de interessante. Alegava que a cultura e o povo judeu passam despercebidos na bíblia cristã. Na
verdade, seu desprezo pela história Neotestamentária era resultado de uma imposição da fé cristã
pelo pai. Nunca se quer lhe foi explicado o motivo moral e espiritual de sua formação. Não aceitava
os discursos nos sermões, que recorrentemente em respeito ao povo judeu declarava a sua
incredulidade e rebeldia. Não entendia o porquê de tais declarações, pois via no judaísmo a única
forma de se chegar a Deus.

Duas datas, convencionalmente cristã, a semana santa e o natal não traziam para Jairo boas
lembranças. A discussão com o pastor Saulo e a saída precoce de casa são reminiscências que ele
gostaria de deletar de sua memória, no entanto só o afastou ainda mais do cristianismo e o ingressou
de vez no judaísmo. Jairo passou a frequentar uma sinagoga judaica chamada Beti Chabat, local
constituído pelo menos por dez judeus adultos, onde passam a se reunir para prece. O culto judaico
era uma viagem ao passado bíblico para Jairo. A leitura da Torá e outros livros sagrados satisfaziam
seus antigos anseios pelo povo judeu. Não havia nenhum problema para ele fazer parte da
membrezia da sinagoga, contanto que se sujeitasse a se tornar um prosélito, ou seja, um converso
que abraçou o judaísmo no intuito de servir a Jeová segundo os requisitos da Lei de Moisés.

Passados dois anos de sua dedicação a nova fé, Jairo se demonstrava fiel aos preceitos da Torá e
do conjunto de regras postos no Mirshiná. Fervente devoto, cumpridor à risca das tradições judaicas.
Elogiado pelos rabinos, admirado por todos na sinagoga, Jairo ganhava notabilidade e respeito ao passo
que se dedicava cada vez mais a sua fé. Estava convicto que servia a Deus na verdadeira religião.
Lamentava apenas o fato de a família não ter aberto os olhos para enxergar o caminho que ele agora
trilhava. Sentia uma tristeza na alma pela forma de como saíra de casa. A discussão com o pai, a
distância e o tempo incomunicável com a família desde que saiu de casa para aventurar-se em São
Paulo. Nesse tempo, Jairo conheceu Helena, colega de trabalho que aparentava ser muito religiosa, algo
percebido pelos apetrechos sagrados que carregava. Os dois eram vizinhos de sala na redação do jornal
Gazeta. Jairo sempre foi um rapaz muito tímido, por vezes vendia a imagem de um antissocial, alcunha
famigerada recebida por vocação ou reflexo do exclusivismo de sua nova religião. A imagem do pai
florava nesse momento, imagem traumática, como um cão buscando a caça, um capitão do mato em
busca do escravo fujão. Mas Helena era diferente, simpática, sorridente, boa de

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conversa, coisa de gente da cidade grande. Desinibida, puxava conversa fácil, eficientíssima em
tirar o bicho da caverna:
-Percebi que você não é muito de conversa.

-Na verdade sou novo por aqui, apenas dois anos que vim do Pará, e três meses que estou
nesse emprego.

-Puxa vida! Veio de longe em busca de sonhos, condições econômicas, coisa do gênero?

–Mais ou menos isso. Mudando da água para o vinho, percebe-se que você é muito religiosa.

-Sim, meus pais eram profundamente religiosos, estudei em toda a minha vida em um
colégio interno católico.

-E você, acredita em alguma coisa?

–Claro que acredito em um deus, se é isso que você quer saber.

–Desculpe-me, não quis contrariá-lo.

-Não, não, que é isso… Só percebi a natureza de sua pergunta. Eu frequento uma sinagoga
judaica já alguns anos e estou prestes a tornar-me um prosélito.

-Legal, eu sempre tive a curiosidade em saber como funciona a liturgia dessas sinagogas
contemporâneas que tentam manter um conservadorismo judaico do primeiro século em pleno
século XXI.

-Na verdade… Helena, certo?

-Sim, e o seu é Jairo?

-Sim, na verdade a fé judaica vai além do simples conservadorismo. O judaísmo é a


verdadeira religião, e a Lei é a única forma de estarmos em comunhão com Deus.

-Bom, eu fui criada em um lar cristão, aprendi desde cedo que o cristianismo é a verdadeira
e única religião que nos conduz a Deus. Os santos que nos deu testemunho de fé e coragem devem
ser venerados, e a Santa Igreja Católica é a verdadeira Igreja, tendo como o seu primeiro líder o
apóstolo Pedro.

-Está claro que você foi bem-educada, porém, em sua fala é nítido duas coisas: inocência e
sincretismo.

-Como assim? Você está afirmando que eu não sei o que significa ser cristão?

-Não é bem isso, o que estou querendo dizer é que você não sabe realmente qual é a
verdadeira religião. Você foi instruída, e por quê não dizer domesticada em uma religião que
mistura deuses e santos como objetos de culto, e nem percebes a discrepância que esse teu
cristianismo tem com a Torá Divina.

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-Eu não estou compreendendo a natureza da objeção a minha fé.

-A essência do cristianismo baseia-se na morte de alguém em uma cruz, certo?

-Certo…

-Mas como pode ser isso? Por que ele fez isso? Por qual razão? Não seria suicídio?

-Sinceramente, eu também tenho as minhas dúvidas.

-Está vendo? Inocência e sincretismo. Bom, preciso voltar ao trabalho, mas antes, gostaria
de convidá-la qualquer dia desse, a fazer uma visita a sinagoga que eu congrego; Beit Chabat, você
vai gostar.

-Está bem, vou sim, vamos marcar.

Desde aquele dia, Jairo e Helena se encontravam sempre nos intervalos do trabalho, as
conversas duravam horas, tornaram-se grandes amigos, e os pés de Helena estavam cada vez mais
dentro do Judaísmo. Jairo conseguiu convencê-la de que a sua religião não lhe proporcionava nada
além de dogmas e crendices, mesmo diante da constante alegação de Helena de que o judaísmo era
uma religião predominantemente masculina, onde o espaço ocupado pela mulher é quase
imperceptível, ou lugar algum. No entanto, o fervor das palavras de Jairo, a devoção de fazer inveja
a qualquer fariseu ou rabino, rebatia a tese mal por colocada Helena. Dizia que ao longo da milenar
história do povo hebreu, a figura da mulher na comunidade judaica tem evoluído em consonância
com as outras civilizações modernas. Este era o único ponto em que as conversas ganhavam
contornos de um debate marcado pelos ânimos alterados. Com o passar do tempo, Helena resolveu
ingressar na fé judaica, se converte e passa a frequentar a sinagoga com Jairo, o que estreitou ainda
mais a relação entre os dois. Helena morava distante do trabalho e mais ainda da sinagoga que Jairo
frequentava. A distância não era problema, enfrentava quase duas horas de trem e de ônibus para
chegar ao trabalho, três no total para participar do serviço sagrado.

O sábado era um dia especial. Na sexta-feira Helena não voltava para Campinas, mas ficava na
capital em uma pousada particular da sinagoga Beit Chabat, que abrigava os peregrinos de toda parte do
Estado para a celebração do Shabat. No final da reunião, Jairo foi convocado pelo rabino regente da
sinagoga. Este o informou que dentro de duas semanas ele iria a Jerusalém submete-se ao ritual de
inicialização, assim oficializando o seu ingresso no posto de prosélito no judaísmo. Jairo não se conteve
de tanta alegria. Velhas lembranças vieram à tona, um súbito flash da imagem do pai aflorou em sua
memória, gostaria muito que ele estivesse presente. O sentimento foi maior quando se lembrou da mãe,
ela sempre o apoiou. Lembrou-se da frase que ela falou quando ele saiu de casa; -Vá ser feliz meu filho...
Helena o esperava do lado de fora da sinagoga. O seu semblante brilhava, assim como o de Moisés que
acabara de sair da presença do Senhor no Sinai, pelo que ela disse:

-Posso saber a razão desse contentamento?

-Claro que sim, afinal, você é o mais próximo do que tenho de família, quero partilhar a minha
alegria contigo. Vou realizar um sonho de infância… Irei à cidade de Davi, a Cidade Santa, Jerusalém,

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vou me batizar no rio Jordão, ser circuncidado, recitar os preceitos da Torá na presença dos
sacerdotes e dos rabinos.

-Legal, deve ser um sonho conhecer a cidade de Jerusalém.

-Mas é mesmo, sonho de menino sonho de criança sonho de escravo.

Duas semanas se passaram, o grande dia é chegado, Jairo não conseguiu dormir à noite.
Calafrios, ânsia de vômito, dor de barriga, tudo ao mesmo tempo. Turbilhão de ânsias, emoções
sentidas com enorme prazer. Quinta-feira, o dia do embarque. Jairo liga para Helena, mas ela não
atende ao telefone. Helena queria chegar a tempo, horas antes do embarque, desejava partilhar com
o amigo alguns momentos. Jairo liga para o Gazeta, recebe a notícia de que Helena não havia ido
trabalhar. Deduziu que ela queria lhe fazer uma surpresa. A preocupação quis por um momento
atrevido dividir o espaço com as outras sensações, mas logo se tranquilizou. Concentrou o seu
pensamento na viagem, na realização do sonho de infância. Sentiu algo diferente, profundo
sentimento de orgulho, louvou a Javé por fazer parte da religião de seu povo:

Shuv Israel
Shmah Israel
Hagoyim qoryim b'qol chazaq lAdonay
Re'e hu bachar b'kha
V'heqyim David
Shel'lamdhah nitsach hamon q'ravot b'tiqvah

Cantar não aliviou a ansiedade, Jairo estava em êxtase, mal concebia a ideia do que estava
acontecendo com ele. Ir a Jerusalém, cidade de Davi, não era qualquer coisa, ainda mais naquelas
condições, pois não iria apenas fazer turismo, mas a um propósito sublime. Por um instante a
preocupação por Helena ausentou-se de sua cabeça, até que o telefone tocou. Era do Gazeta
informando a Jairo a notícia fatídica de que Helena sofrera um grave acidente de carro e estava
internada no hospital Santa Madalena. O voo de Jairo estava marcado para as duas da madrugada,
era quase meio-dia. Foi imediatamente para o hospital, não queria deixar a amiga naquelas
condições sozinha.

Ao chegar ao hospital, Jairo recebe a notícia de que Helena não poderá mais andar. Todo
impacto recebido no acidente, provocou uma sequela no cérebro causando uma hemorragia deixando-a
tetraplégica. A notícia o abalou muito, antigas memórias tornaram atormentar a sua cabeça; de casa da
mãe do pai da igreja principalmente da irmã Dulce. O corredor de espera do hospital parecia o da
morte, que cruelmente dissipava os sonhos pela fatalidade do momento. Por um instante, pensou que
deveria desistir de tudo aquilo, da viagem de Jerusalém dos Rabinos e Sinagogas.

-Sr. Jairo?

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-Sim, sou eu.

O Sr. é parente da paciente Helena Mascarenhas?

-Quase isso!

-Ela está sedada, será submetida a uma operação daqui há uma hora, o Senhor gostaria de vê-
la?
-Por gentileza...

O caminho até a sala onde estava Helena tornou-se o mais longo para Jairo. O corredor ficou
escuro, interminável. Uma dor comprimiu o seu peito, não sentiu os pés no chão. A dor no peito
aumentou. De repente, ao passar por uma sala, viu um letreiro que dizia: “Não andeis ansiosos por
coisa alguma.” Não compreendeu o significado daquilo. Como pode não estar ansioso naquele
momento? Pensava. Achou que havia escutado ou lido a inscrição em algum lugar. -O Sr. Pode
seguir em frente, a sala onde se encontra a paciente fica no setor sete depois da enfermaria. Ao
chegar a sala, vê Helena desacordada, não se conteve, começou a chorar. A dor no peito retornou
com mais intensidade e teimosia. Sentiu-se só, desde que saiu de casa nunca necessitou tanto do
afago da família, salvo naquele momento. Lembrou-se da inscrição na porta de uma das salas: “Não
andeis ansiosos por coisa alguma.” Dessa vez, acompanhada da cara do pai, não entendeu bem o
porquê, mas quis acreditar naquilo.

-Sr. Jairo. Era a enfermeira, informando que chegou a hora de preparar Helena para a
cirurgia. Nesse momento, Jairo viu chegar uma jovem senhora na porta da sala. Imediatamente,
pensou ser parenta de Helena. Os traços semelhantes eram provas irrefutáveis de sua descrição.
Cláudia, a irmã distante, apareceu para a assistência familiar. De cara, ela o reconheceu mesmo sem
nunca ter o visto, pois a irmã já havia falado sobre ele. Jairo também facilitava a descrição, pacato,
simples, com ar do interior. Não negava as origens, o Kipá ajudava em sua identificação;

-Sr. Jairo?

-Sim...

-Sou a irmã mais velha de Helena, quero agradecer por ter ficado com ela até agora.

-Não foi nada. Não poderia deixá-la sozinha.

-Mesmo assim, sou muito grata. Moro um pouco distante daqui, quase que não nos vemos.
Helena nos faria uma visita esta semana, mas disse que você faria uma viagem muito importante e
queria aproveitar alguns momentos contigo.

-Sim, estou com um voo marcado para as duas da madrugada, mas diante de tudo isso...

-Não desista de sua viagem, e não se preocupe, vou assumir o posto a partir de agora. Vá
tranquilo, vai dar tudo certo, tenho a certeza de que ela vai querer que você cumpra seus votos. Vou
aproveitar, mesmo que nesta funesta ocasião, recompensar a minha ausência.

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Jairo foi para a casa, restava-lhe algumas horas antes da partida. Helena não saia de sua cabeça.
De súbito, lembrou-se que não havia comunicado ao rabino regente o trágico acontecimento com
Helena. Pensou em ligar, mas o fato era digno de ser contado entre corpos. Foi até a sinagoga, que
ficava apenas uns trinta minutos de sua casa. Ao chegar, o rabino de prontidão o saudou, perguntou-lhe
o que aconteceu para não estar em casa se preparando para a longa viagem até Jerusalém. Jairo
informou ao Rabino o acontecido, de como Helena se encontrava, e de como ela ficará. Diante de seu
dramático discurso, cujas palavras em curso de um ritmo pulsante e acelerado do coração, em uma
sincronia perfeita, justificado pelo apreço de Jairo a amiga. No entanto, o rabino não pareceu se
comover com aquela dramática narrativa, antes informou-lhe que diante das condições físicas de
Helena, a sinagoga não poderá mais acolhê-la como membro. A luta, face aos tempos modernos e
rebeldes em conservar certos aspectos da ortodoxia judaica dos séculos passados, era um legado que até
então Jairo não havia enxergado. Veio repentinamente em sua memória, como um dado inflamado do
maligno, o que Helena disse em suas primeiras conversas; eu sempre tive a curiosidade em saber como
funciona a liturgia dessas sinagogas contemporâneas que tentam manter um conservadorismo judaico
do primeiro século em pleno século XXI. Helena passou a ser vista como uma deficiente, aleijada,
desqualificada para estar entre o povo de Deus, afinal, como manda o figurino o sacrifício,
necessariamente precisa ser sem mácula. A imagem do pai voltava a perturbá-lo, só que dessa vez não
veio sozinha, lhe visitou também a irmã Dulce. Visita justificada, pois a irmã foi acolhida pela igreja
que o pai preside quando submetida ao mesmo destino de Helena.

São quase onze horas, Jairo deita-se pensativo, como pode abandonar uma irmã no momento de
maior sofrimento? Chegou novamente a pensar em desistir da viagem. Tudo parecia se perder nas duras
palavras do rabino regente; a sinagoga não poderá acolhê-la mais como membro…. Percebeu que não
havia o mesmo entusiasmo, a alegria deu lugar a tristeza. Nem de longe a figura imponente que
carregava o bastão da verdade sobre Deus, pronto a atacar o terreno inimigo e destruir as heresias e
falácias das demais religiões. Estava fraco, abatido pegou o telefone, quis ligar para o pai, queria um
conselho, não sabia o que fazer. Mas o orgulho custa caro, não iria vendê-lo por nada. Pensou também
em ligar para o rabino, dizer-lhe umas boas, jogar tudo para o alto, procurar uma nova religião, ou quem
sabe abrir uma sinagoga. O último pensamento o confortou, não apenas isso, o motivou a não desistir da
viagem: fui muito longe para querer voltar logo agora. Dormiu.

Perto da meia-noite, Jairo estava pronto para iniciar a sua missão. Não como dantes, mas
estava de pé. O silêncio do condomínio foi interrompido pela buzina do táxi para levá-lo ao
aeroporto. Finalmente, a hora do embarque é chegada! Nesse momento, o coração de Jairo foi a mil,
não de alegria, mas de medo. A vida no interior de Belém nunca lhe a via dito que ele voaria. Mas
tudo ia perfeitamente dentro dos conformes. Todo aquele turbilhão de sensações liquidificadas o fez
se sentir cansado. Pegou no sono, dormiu quase a viagem inteira. Acordou assustado, a aeromoça
tratou de acalmar os passageiros, informando-os que era apenas uma turbulência costumeira, nada
demais. Ato contínuo, os balanços aumentavam a cada nuvem, e o medo tronou-se um infeliz
passageiro. Veio a sua mente a frase escrita no hospital; “Não andeis ansiosos por coisa alguma.”
Queria acreditar, mesmo que parecesse absurdo, todavia não se lembrou de nenhuma recitação lhe
viesse trazer paz. Subitamente, um clarão forte, um brilho intenso invadiu o avião.

Quando acordou, Jairo já não estava mais no avião. Não entendeu o que estava acontecendo,
na verdade não lembrou de nada além do clarão. Estava alojado em uma espécie de estalagem ou
pousada. Uma casa bem simples, estilo camponês, a rudez das paredes, principalmente do telhado

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feito de barro com vigas salientes. As frutas secando no teto, uma pequena abertura servindo de
janela. Jairo sentiu-se anacrônico, fora de seu tempo, em uma época diferente. Uma pequena
dispensa, uma cozinha também pequena e um lugar para o banho com degraus construído ao redor
de um pátio pavimentado. As paredes eram cobertas de uma camada fina de gesso de pedra calcária,
e o assoalho era de chão batido. A mobília era composta de mesas de pedras retangulares, vasos,
pratos, copos e pesos cilíndricos. Os talheres, a cama, a casa, nada era comum. Na cama havia uma
vestimenta, sentiu-se estar nu, mesmo vestido. Uma vestimenta básica, nada de cueca, no máximo
um vestido longo até os pés, uma tanga para ser usada por baixo da túnica, nada de moda, de belo,
contudo necessário ao ambiente, pois o clima era intenso, o calor era escaldante, mas era aliviado
pela vestimenta. O sol entrava pela fresta da porta, observou que na parte superior da porta,
precisamente nos umbrais, havia tiras penduradas. Aproximou-se, havia letras, escritos, reconheceu
de cara a inscrição, mesmo em hebraico; “Amarás a Deus sobre todas as” coisas. O lugar era
escuro, na parte superior o alqueire alumiava precariamente o ambiente. A sua consciência
permanecia em parte em nosso século, o mínimo possível. Mudou o espaço, o lugar e as datas, mas
ele era o mesmo. Foi a janela, viu os transeuntes, ortodoxos, arcaicos. O local era Jerusalém, pois
do lugar que estava podia contemplar o formoso templo de Herodes. Mas como pode ser isso? Ele
não foi derribado pelos romanos? Esperava ver a mesquita Blue Mosk no lugar. A visão o
perturbou, não era Jerusalém moderna, era a antiga. Jairo saiu, não sabia para onde ir, esperava ser
recebido por correspondentes da sinagoga Beit Chabat. Lembrou-se do celular, voltou a casa, no
entanto não encontrou as suas coisas, as malas, os documentos, a carteira, tudo havia sumido,
somente aquela veste antiquada. Não sabia exatamente o que havia acontecido consigo e suas
bagagens. Alguém entrou, era o dono da estalagem. Ofereceu-lhe uma espécie de pão de forma
arredondada, sem sal, tosco e ridículo. Aquela seria a mais longa quinta-feira de sua vida.

-Desculpe-me senhor, quem me trouxe para cá?

-O senhor não se lembra? Foi um homem chamado Joshua. Parecia de posses, pagou-me
uma boa quantia. Disse que eu deveria cuidar bem de você, prepará-lo para amanhã, pois o dia será
longo, inesquecível.

-Aonde posso encontrá-lo? Qual o seu endereço?

-Bem... eu nuca o vi, parecia ser de longe, de algum lugar fora de nossas extremidades. Um
viajante. Recomendou-me os devidos cuidados e mais nada. –Não se preocupe, estou aqui para
servi-lo. Coma, descanse um pouco, volto mais tarde.

-Certo, só mais uma coisa... Onde estou, que dia é hoje?

-Bem, estamos em Jerusalém, cidade de Davi, cidade de meu Deus, estamos no mês de nisã,
hoje é Yom Ḥamishi, (‫ יעיבר םוי‬quinta-feira).

Jairo não acreditou no que estava acontecendo com ele, pensou estar sonhado, mas era algo
muito real, sentivel, palpável, concreto. Lembrou-se de um romance que havia lido em sua infância; A
cabana, em que o personagem passa por semelhante devaneio. Mas tudo parecia real, não concebia a
louca ideia de estar perdido no tempo. O sonho tornou-se pesadelo, lembrou-se de Helena, certamente
ela teria uma reposta plausível para essa situação. Tentou situa-se no tempo, havia tido

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aulas de cultura hebraica quando ingressou na sinagoga. Fez a contagem dos anos comuns e
embolísticos. Olhou pela fresta da janela, percebeu a agitação da cidade, havia muita gente,
aglomeração, barulho de mercado, falas entrecruzadas, grupos, caravanas, tudo ao mesmo tempo,
empoeirados pela terra seca, amarela, presa a cor da pele. Homens, mulheres, soldados romanos de
guarida, parecia um daqueles filmes épicos, apenas UMA ÚNICA DIFERENÇA: ele era um dos
personagens. Aquela cena pesou-lhe a mente, sentiu em seu corpo um cansaço extremo, como se
tivesse comprimindo-o contra a parede, um peixe fora d’água, um animal fora de seu habitat. Caiu
no sono, dormiu na cama dura, feita de vara, mas confortável para o cansaço.

Na manhã seguinte, Jairo acordou assustado, era cedo, percebeu pelo fraco aparecimento da
luz do sol que penetrava as brechas da casa precária. O barulho vindo do lado de fora era
estrondeante, muitas vozes, gritos, sussurros, gemidos, choros. Ouviu quando alguém gritou:
-Injustiça! Solte o inocente.

Jairo saiu, deparou-se com uma enorme multidão em frente de seu aposento, a agitação era
de fim de mundo, uma mulher agarrou um soldado e pediu-lhe que o ajudassem, ele não é culpado,
dizia; foi armação dos fariseus. Ficou perplexo com toda aquela agitação, deduziu que poderia ser
um motim, pois havia lido As antiguidades Judaicas, e quanto os judeus se rebelaram contra o
regime romano, desencadeando sucessivas rebeliões. Os soldados estavam em guarda, não para a
batalha, mas apenas para manter a ordem. Muita gente na rua, subindo, descendo, não se sabe ao
certo para onde iam. Viu um homem ser empurrado, socado e apedrejado por um grupo de pessoas,
nos rostos podia se ver o vermelho do nariz transparecendo a raiva. -Peguem-no, este é discípulo do
falsário! O grupo partiu vorazmente pra cima do homem, mas, que por sorte conseguiu escapar dos
lobos devoradores. Jairo viu quando o homem cambaleando entrou em uma rua, mais precisamente
um beco. Seguiu-o, não percebeu que distanciara de seu aposento. Não se preocupou com isso, a
cidade aparenta ser pequena, pensou. Gostaria de saber o motivo da desordem eufórica do
momento. Não conseguiu tirar da cabeça as duas palavras provindas dos lábios dos algozes;
discípulo e falsário. Este homem é a chave…

O lugar era pequeno, distante da cidade. Sabia que se fosse em seu tempo, aquilo seria
invasão de privacidade, contudo justificou-se na ideia nobre de poder ajudá-lo, motivo óbvio para
sua curiosidade. Foi até a parte que parecia ser o quarto, a cama estava vazia. Havia uma escada
feita de uma terra preta batida que dava acesso à parte superior da casa. Subiu as escadas, o homem
estava deitado no térreo desacordado. Jairo tentou animá-lo, estava muito ferido. Depois de alguns
minutos, ouviu um gemido, correu para perto. Ele tentou abrir os olhos, Jairo deu-lhe água. Gemeu
outra vez, mas desta vez o gemido trouxe algumas palavras truncadas misturadas com dor; Ele é
inocente. – Quem? Diga-me, quem?

Nada mais, apenas o céu, o sol e as nuvens, fiéis testemunhas de palavras soltas, vazias, frias
de cadáver. Jairo procurou o caminho de volta. De repente, deparou-se com pessoas correndo em
direção ao lado sul da cidade. Perguntou a um dos maratonistas:

-Para onde tu vais?

-Para a fortaleza de Antônia, lá acontecerá o julgamento.

-De quem?

-Do rabino da Galileia.

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O que ele fez, matou alguém, cometeu um crime hedion... Horrível?

Não tenho tempo para te explicar, o julgamento acontecerá na hora sexta, quero encontrar
um lugar privilegiado a vista. Só posso dizer que ele é um agitador, mentiroso, rebelde e
transgressor de nossa tradição, por isso merece a devida punição. Jairo ficou intrigado com aquilo,
lembrou-se de Sócrates, acusado de corromper os jovens com sua filosofia inovadora, lembrou com
exatidão, só não lembrava onde e quando ouviu ou aprendeu. Mesmo estando consciente de quem
era, Jairo não se lembrava de tudo e de todos que compunha a sua vida. Boa parte dessas
lembranças era como se ele não tivesse ainda vivido, apenas flashbacks. A cidade encontrava-se
daquele jeito por causa de um homem? Certamente, este era um criminoso altamente perigoso,
achou. Jairo resolveu acompanhar a Multidão, em direção a Pretória de Antônia, fortaleza do
prefeito da província Pôncio Pilatos. Aproveitou para reiterar-se da situação perguntando a um
soldado romano sobre o acusado. Só não sabia como iniciar a conversa com um oficial romano.
Lembrou-se de Dona Laura, professora de história, que ensinou sobre culturas antigas, dentre elas a
romana. Com os braços levantados para frente, e com a palma da mão para baixo, gritou:

-Ave César.

-Ave César. Não sabes que não tens o direito de falar com um oficial Romano?

-Perdoe-me oficial, sou estrangeiro, estou de passagem, só quero algumas informações para
localizar-me no espaço em que me encontro.

-Diga-me, o que queres saber?

-O que está acontecendo, por que tamanha agitação e alvoroço na cidade?

-Um certo rabino, judeu, residente da pequena e baixa Galileia será julgado.

-O que foi que ele fez para tamanha fama, e repercussão?

-Na verdade, nenhum crime, mas o seu povo o acusa de traição ao império, muitas
testemunhas disseram que o ouviu declar ser rei dos judeus. CESAR É O REI!!!

-Vocês o ouviram declarar tamanha acusação?

-Não! O seu povo o disse.

-Roma o acusa desse crime?

-Bem... não. Ele não é um a ameaça para nós. O Império é maior do que qualquer homem.
Seus ensinamentos afrontaram as tradições de seu povo. Os sacerdotes estão furiosos, a corja
política e religiosa de Jerusalém o querem ver morto. Ouvi dizer, que certa vez, afirmou que
derrubaria o templo e depois o levantaria. Muitos relatos de seus feitos chegaram a César Augusto;
milagres, curas, bruxaria a meu ver. Mas nenhuma acusação de que estava incentivando o povo a
rebelasse contra Roma.

-Então porque, julgá-lo?

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-Mesmo não sendo contra nós, como já disse, a corja o querem morto, isso trará paz
novamente a esse lugar miserável. Os fariseus têm o poder, podem provocar uma rebelião, não
podemos conceder matéria para eles. Há anos temos contido a rebelião desses infelizes. Essa gente
não adora os nossos deuses, tem a sua própria religião e seu Deus. Esse Messias está perturbando
não a ordem civil, mas a religião. Temos ai papel, pólvora, e finalmente o fogo para explodir esse
lugar em revolta e sedição. Temos que fazer a nossa parte.

-Mas se… ele é judeu, nãos seria apropriado um julgamento na corte judaica?

-Pouco nos importa as questões desse povo, mas os Principais, linha de frente desse motim,
querem vê-lo crucificado, nesse caso, só Roma tem o poder para sentenciá-lo a morte.

Lembranças antigas tentaram fazer um visita a Jairo, uma terrível dor de cabeça, um
cansaço, dores em todo corpo, como se tudo aquilo fosse pesado demais para se suportar naquele
época. Em meio à multidão que seguia em direção ao lugar do julgamento, fitou os olhos em uma
mulher que era consolada nos ombros por outra. Chegou mais perto, ouviu quando uma disse: -Tu
não sabes que ESTE É O DESTINO PELO QUAL ELE VEIO. Aproximou-se mais, teve medo em
falar com elas, por instinto, percebeu que não era honroso ao homem ser visto conversando com
uma mulher em público. Ouviu quando a que chorava foi chamada de Miriã. Não se conteve,
aproximou-se mais, nesse instante, a multidão o apertava, parecia procissão, faltava apenas o santo.

-Olá senhoras, perdoe o atrevimento de minha curiosidade, ela teima mais do que a razão.

-Que saudação é esta?

-Não sou daqui. Sou um viajante de um tempo distante, de um lugar muito distante, no entanto,
sinto-me envolvido nessa trama. Desde de cedo, embora não sei exatamente o que está acontecendo.

-Nosso Mestre foi preso injustamente, máfia de Fariseu.

-Sim, eu ouvi falar desse grupo.

Nosso Mestre nos deu vida, possibilitou um novo mundo a nós mulheres. Não cometeu
crime algum. Nunca o vimos transgredir se quer um til ou jota da Lei. Mas os doutores se sentiram
ameaçados por sua doutrina. Pois era diferente. Esse foi o único crime cometido do ponto de vista
farisaico. Antes Dele, estávamos fadados aos discursos vazios, hipócritas, desprovidos de ações
práticas dos mestres judeus.

-Eu não consigo compreender muito bem isso. Como pode alguém ser condenado por fazer o
bem?

Uma das mulheres, enxugando as lágrimas, equilibrando os soluços, disse:

-Não me esqueço de quando o vi pela primeira vez. Foi no pior momento de minha vida
pregressa, todavia o mais importante. Fui pega no ato do adultério, levada estrategicamente a sua
presença. Os Fariseus queriam vê-lo contradizer-se. Pedras nas mãos, podia ouvir o barulho de seus
rangeres. Declararam-lhe o meu crime, que por lei deveria ser apedrejada. Surpreendentemente, o
Mestre abaixou-se, escreveu a seguinte descrição na areia: Todos vocês são inocentes? Em seguida,
disse: quem não tiver pecado atire a primeira pedra.

-Você não teve medo de alguém ter jogado a pedra?

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-Sinceramente, tive sim, pois sabia a índole daqueles lobos, de principal virtude o
fingimento. Mas quem poderia mentir diante de TAMANHA PRESENÇA? Disse-me que eu estava
perdoada, chamou-me de filha, e desde então, não sou mais a mesma.

Jairo ouviu quando alguém o chamou: Gentio! Era o dono da estalagem que o reconheceu de
longe. Seu nome era Calebe. Pareceu-lhe aos olhos que sua pele estava mais ressecada, amarelada ao sol
escaldante do Oriente. Perguntou-lhe para onde estava indo, pois estava distante do lugar de sua estadia.
Jairo respondeu-lhe que seguia o destino da multidão, no mesmo interesse, sem planejamento, sabia
apenas o destino, mas não razão de sua ida ao lugar esperado. Calebe falou que era perigoso para um
gentio está no meio da multidão, judeus eram exclusivista, desprezavam as outras raças. Tal informação
não teve importância, pois o antigo instinto de redator lhe dizia que estava diante de um grande
acontecimento, digno de ser noticiado. As ruas eram defeituosas, pedregosas, estreitas, com ladeiras
estrondeante. Um bom sacrifício daria para oferecer aqui. Ouviu gritos; Impostor, Belzebu, sacrifique
esse transgressor. Em alguns rostos dava para ver a cor da fúria, vermelha encarnada com suor e sujeira,
sujeira amarela de gente do oriente, coberto por túnicas e mantos. Era um verdadeiro liquidificador de
emoções, choro, raiva, alegria, esta última, não de felicidade, mas de desejo de sangue que a cada grito;
CRUCIFIQUE-O, CRUCIFIQUE-O, tornava concebido o pensamento. Um homem de idade, bem-
vestido com trajes religiosos, puxava o carro alegórico da massa eufórica. Jairo tentou aproximar-se,
mas foi impedido, não pela multidão, mas pelos soldados do templo.

–Caifás! Gritou alguém. –Raça de víbora. Não se sabia de onde vinha tais insultos, percebia-
se porém, que o alvo era o mestre-sala desse carnaval.

-Calebe, o que está acontecendo? Quem é este aquém pede a sua morte?

-Meu senhor, aqui é perigoso, até mesmo para os bons, vamos a um lugar mais reservado,
quero que você conheça o seu anfitrião.

-Mas, Senhor. Eu preciso…

-Não se preocupe, posso garantir que você não perderá nenhuma cena do espetáculo,
crucificações só perdem para coliseus em matéria de sangue e crueldade pública, principalmente se
o réu tiver o requinte do acusado.

Calebe conduziu Jairo a um lugar reservado, distante da multidão, de toda a agitação. A casa
era grande, ornamentadas, paredes decoradas estilo romano. -Espere aqui. Uma sala ampla, propícia
as grandes reuniões, as paredes eram pintadas com afrescos. Imaginou estar em casa de gente
importante, elite, certamente.

-Shalon Adonay.

-Shalon.

-Como estais?

-Estou bem. Desculpe-me, eu o conheço?

-Sim, não se lembra? Fui encarregado de recebê-lo em nossa terra.

-Eu… não compreendo. Quem o encarregou?

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-Meu jovem, atente apenas em saber o necessário. Por exemplo, por que estais aqui?

Uma dor de cabeça retornou com mais intensidade, o esforço para responder a pergunta
exigia mais do que Jairo podia imaginar. Ele não sabia a resposta. Não sabia o porquê de estar
naquele lugar, naquele tempo, naquela época. Soou em sua mente a lembrança do motivo, de forma
muito vaga como se fosse uma folha caída de uma árvore levada pelo vento sem saber para onde,
em um espaço oco em sua memória.

-Lembro-me, vagamente, que fui enviado a Jerusalém para o ritual de inicialização.

-Já o fez?

-Não, a cidade está agitada… Até porque, não sei por onde e quem procurar para tal tarefa.

-Posso fazer uma pergunta?

-Sim, é claro, estou aqui para lhe servir.

-Por que esse rabino é tão importante? Ele fez algo de especial para tamanha repercussão?

-Eu estava presente no monte, seu discurso era sobremaneira impactante. Suas palavras eram
agudas, penetrantes. Ficamos estarrecidos com a grandeza de sua eloquência divina. Bem-
aventurados os que choram…

-Falaram-me que ele desagradou a elite religiosa, isso é verdade?

-Mal compreendido. Sua doutrina descortinou a hipocrisia religiosa dos fariseus. Por vezes,
sem repostas, ficaram nus diante Dele. A legalidade da religião afasta o homem da verdadeira fé.
Não adianta sermos fervorosos na letra, e frios no espírito. O judaísmo glaucomou os nossos olhos
espirituais. Esperávamos há anos por sua chegada, mas quando chegou queremos matá-lo. -Sabe por
que? porque não o enxergamos com a alma. Nada do que foi apresentado em julgamento contra Ele
pode ser provado. Está sendo julgado sem ter cometido crime algum, tudo não passa de um teatro
judicial. A verdade sobre ele só pode ser encarada face a face. Por mais que eu fale, você precisa
ouvi-lo senti-lo vê-lo, olhar em sua face e contemplar Deus sorrindo.

-Bom, creio que isso não será possível.

-Ainda há tempo meu jovem. Há tempo para todas as coisas debaixo do sol. Haverá sempre
tempo para mudanças.

Jairo foi conduzido a Pretória de Antônia. Ao longe podia vê-lo, deformado, ensanguentado,
coroado, olhando para baixo. Os gritos costumeiros, crucifique-o, crucifique-o, crucifique-o, eram
mais altissonantes. Jairo tentou chegar mais perto. A multidão o apertava, comprimia em fúria. A
baba descia de seus lábios, como cachorros raivosos faminto por carne. Alguém gritou; solte-o, ele
é inocente! Viu que era um homem já velho, de aparência simples, mas calado por murros pontapés
tapas e sangue.

-SAIU A SENTENÇA, CONDENADO A CRUCIFICAÇÃO! Colocaram a trave em suas costas


e o conduziram para fora da cidade. Começa o percurso do jazido ao lugar de espera. Jairo adentrou no
meio da procissão fúnebre. -Direto a caveira Falsário! Livra-te deste suplício ó filho de Deus. A rua é
pedregosa, a subida é íngreme, tudo isso aliado ao intenso calor oriental torna o evento

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um verdadeiro espetáculo sofrido de cenas empoeiradas de sangue. Jairo chegou mais perto, o
soldado com chicotes nas mãos impossibilitava qualquer aproximação. A cara dos soldados eram
terrivelmente assustadoras. Sem expressão, baba com gosto de ódio, maldade, frieza empacada no
chicote batido com força no réu. Cuspiam-lhe a face, puxaram os seus cabelos, aproximavam-se
dele apenas para marcar em seu mapa o curso de suas fúrias. -Nada pode abalar os pilares de nossa
fé, eu disse a este impostor impertinente. -Moisés confiou a nós a autoridade da Lei. Agora vem este
ai querendo mudar tudo, MORRA SUA VÍBORA. Nesse instante, Jairo lembrou-se da sinagoga
Beit Chabat, do rabino, o pior... do Judaísmo, que acreditava ser piedoso desde então. Essa
lembrança recente o assombrou, uma sensação de erro passado. Os soldados espantavam as moscas
a chicotadas. O condenado tropeçou e caiu. A barra de madeira despencou sobre as suas costas.
Nesse instante, uma mulher se aproximou, deu-lhe água. Foi retirada a força provocando uma
confusão além da posta. Abriu-se uma oportunidade de aproximasse dele. Jairo adentrou no beco
humano, sua respiração ficou mais veloz, seu coração pulsava com frenesia, não sabia o porquê. Ele
olhou sob a ressecada camada de sangue talhado, não era humano. Desfigurado, não parece gente,
pensou. Deus não sorriu, antes chorou.

-Por que?

-Saia!

O local era rude, fora das muralhas de Jerusalém. Uma colina ou platô, um acidente geográfico
que se assemelha a um crânio. A subida era terrível. No cume, havia pilhas de crânios e estacas fincadas
ao chão. Ao chegar, o jogaram contra a estaca de madeira. Viu quando um soldado pegou um martelo e
uns pregos. Esticaram os seus braços e ficaram os pregos nos pulsos. Ele gritou, Jairo não se conteve,
começou a chorar. Não sabia o real motivo das lágrimas, talvez piedade. Levaram o réu a cruz. –Pronto,
tudo acabado. O fluxo de gente diminuiu. Não havia mais nada de interessante de se ver. Mulheres
choravam desesperadas ao pé da cruz. Jairo quis aproximar-se. Teve receio, preferiu ficar distante. As
mulheres afastaram-se. Aproximou-se mais, e mais… e mais… e mais… quis vê-lo mais de perto.
Sentiu que a hora era aquela. –Finalmente saberei.

-Jairo, o que fazer para herdar a vida eterna?

-Guardar todos os mandamentos e viver segundo as tradições de nossos antepassados Rabi.

-Respondestes bem. Um dia irás a Jerusalém. Passarás pelo ritual de inicialização no


judaísmo.

-Jairo, Cristo morreu na cruz com um propósito… sabe qual?

-Não pai.

A lembrança motivou a Jairo a chegar o mais próximo. -Preciso pergunta-lhe.

-Por que? Conjuro-te ó Senhor! Por que?

Sua cabeça cambaleou para o lado esquerdo, com muito esforço olhou para baixo e baixinho
respondeu...

-FoI pOr VoçÊ.

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-Sr. Jairo.

Escamas nos olhos, parecia escamas nos olhos. Lentamente foi abrindo-os, pouco a pouco a
visão foi chegando. Estava dentro de seu quarto, em sua cama.

–Sr. Jairo, chamaram na porta batendo com força. Era o motorista do táxi que o levaria ao
aeroporto.

-Desculpe-me, eu agarrei no sono, eu acho.

-COMO PODE SER!!! ISSO NÃO É POSSÍVEL, SERÁ QUE ENLOUQUECI?

Era Helena, perfeitamente bem, sem traumatismo, sem tetraplegia.

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