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TEXTO PARA A CONTRACAPA

ESTE LIVRO NARRA A SAGA DE UM GRUPO DE INDIGENISTAS QUE


REVOLUCIONOU O INDIGENISMO GOVERNAMENTAL BRASILEIRO A PARTIR
DA DÉCADA DE SETENTA, EM CONJUNTO COM OUTROS SEGUIMENTOS
SOCIAIS.
ABANDONANDO OS CONFORTOS DA VIDA URBANA, EMBRENHARAM-
SE NOS MAIS AFASTADOS RINCÕES DO PAÍS, TORNANDO-SE ALIADOS
VERDADEIROS DOS POVOS INDÍGENAS, COM OS QUAIS PASSARAM A LUTAR

DE LONGE,
PELA LIBERDADE, RESPEITO, RECONHECIMENTO ÉTNICO E AUTO-
DETERMINAÇÃO DESSES POVOS.
ENCARANDO TODA A SORTE DE ADVERSIDADES, ENFRENTARAM A
DITADURA MILITAR, REALIZANDO VERDADEIRAS AÇÕES GUERRILHEIRAS

TODA SERRA É
NO CAMPO E NAS CIDADES, SENDO POR ISSO PERSEGUIDOS E
MARGINALIZADOS PELO PODER GOVERNAMENTAL, QUE HOJE TENTA
ENTERRAR DEFINITIVAMENTE SUAS HISTÓRIAS, IDEOLOGIAS E
INFLUÊNCIAS, COM O CLARO OBJETIVO DE RETROCEDER A UMA ÉPOCA DE
DOMINAÇÃO E ESPOLIAÇÃO DOS PRIMEIROS HABITANTES DO PAÍS.

AZUL
“A alma da história
são histórias”

Joel Rufino
Histórias de um indigenista

Dedico este livro a meus filhos Marcos, Roberto e Fernanda e à minha


ex-companheira Clotildes, pelos apertos e correrias que passaram comigo. Aos
meus grandes amigos indígenas e indigenistas, pela coragem, resistência e
lealdade nas lutas que travamos juntos. À Cíntia, pelo amor e compreensão que
sempre me deu desde que nos conhecemos. E à Dona Wilma, sua mãe, pela
força e apoio para publicá-lo. E, especialmente, ao meu irmão Roberto e à
minha cunhada Regina.

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO

Apresentação Este é um livro para se ler em vários tempos: o primeiro é o PREFÁCIO,


Prólogo escrito pelo autor, que relata as experiências de contato das populações indígenas
Prefácio com a sociedade brasileira, desde o primeiro dia da chegada dos europeus ao Brasil,
passando pelos momentos mais marcantes desse relacionamento, as interferências
Capítulos: protecionistas da Igreja Católica e dos vários regimes e governos brasileiros, até o
I Alguma Coisa Precisa Acontecer ano de 1970, quando se inicia a época histórica dos relatos contidos neste livro.
II Subindo o Tapajós A partir Capítulo I, o leitor se depara com os surpreendentes relatos do autor,
III O Posto Kayabi um indigenista ainda em atividade, cujas narrativas compõem um importantíssimo
IV Os Kayabi recorte, ainda desconhecido, da história brasileira. Um texto envolvente, daqueles
V Os Regatões que não se tem vontade de largar, narra incríveis aventuras pelas aldeias indígenas e
VI O Tiro Salvador cidades do Brasil, ao mesmo tempo em que denuncia frontalmente o descaso
VII A Safra da Castanha governamental deliberado a que o indigenismo foi relegado, numa tentativa de
VIII A Malária enterrar quase cem anos de história, em reação à atuação de uma geração que
IX Xavantes transformou radicalmente os paradigmas desse mesmo indigenismo.
X A SBI No terceiro tempo, o POSFÁCIO faz uma atualização do relacionamento das
XI De Volta aos Xavantes populações indígenas com a sociedade brasileira, do ano de 1993, época em que o
XII Pantanal autor encerra suas narrativas, até o presente. Na verdade o autor relata a evolução
XIII E o Velho Caminhão nos salvou do indigenismo e do movimento indígena brasileiro a partir da promulgação da
XIV De Volta às Aldeias Constituição de 1988, que consagrou o reconhecimento de direitos nunca antes
XV Krahô pronunciados oficialmente.
XVI A Proposta de Auto-Gestão do Povo Krahô Há ainda o EPÍLOGO, onde o autor tenta dar uma síntese de todas as
XVII Conflitos no Norte de Goiás informações e conceitos contidos no livro, atualizando-os definitivamente.
XVIII O Cerco Nos APÊNDICES, o leitor encontrará uma relação das principais leis que
XIX O Julgamento nortearam a chamada “política indigenista”, da colônia à atualidade, uma Bibliografia
XX Delegado Básica sobre a questão indígena e, finalmente uma relação de Instituições
XXI Vingança Indigenistas, Bibliotecas e “Sites”, onde as informações sobre o tema podem ser
XXII Guerra Tribal encontradas.
XXIII Exílio Este livro pretende assim, além de registrar e divulgar de forma literária parte
XXIV O Resgate da Machadinha Sagrada importante da nossa história, servir a consultas sobre o relacionamento das
XXV A Universidade nas Aldeias populações indígenas com a sociedade brasileira, quase sempre invisível ao grande
XXVI A Luta de Raoni Contra Romero Jucá público.
XXVII Kararaô O “Woodstock Indígena”
XXVIII Krahô-Os Filhos da Terra
XXIX Anistia
desse relacionamento, tentando fazer análises acerca das suas inúmeras
contradições e paradoxos, nesses cinco séculos em que ele ocorreu. No apêndice, o
leitor poderá encontrar uma relação completa das principais leis que nortearam a
política indigenista, desde a colônia.
Comecemos pelo começo: Cabral aportou por aqui com sua esquadra em
1500, segundo se diz, pensando estar chegando às Índias Orientais. Encontraram na
praia aqueles gigantes vermelhos, que os receberam muito bem. Os primeiros
PREFÁCIO contatos, portanto, entre os indígenas e os europeus foram amistosos.
Mas aquela amizade não deu certo por muito tempo. Na verdade, NÃO
Decidi publicar este livro, sobretudo por razões políticas. Escrevê-lo, decidi TINHA como dar certo. Vejamos: Os portugueses chegaram, nesta e em viagens
desde que terminou o período histórico que ele abrange: de 1974, quando ingressei posteriores, financiados pela coroa e por comerciantes de seu país, dispostos a
de corpo e alma no indigenismo, a 1993, ano de minha anistia. explorar, dominar e colonizar. Faziam parte de uma sociedade capitalista,
Foram anos agitados, em que toda uma geração de brasileiros lutou direta ou acumuladora, individualista, escravagista, cujas bases sociais e econômicas se
surdamente contra a ditadura militar implantada no país em 1964. Quanto a nós, fundavam na propriedade privada, no comércio e na crença do direito divino,
indigenistas, enfrentamos de frente uma situação de dominação e espoliação das concedido através da Igreja Católica, de subjugar outros povos. O prestígio do
comunidades indígenas brasileiras, que via de regra, vem desde o primeiro dia em indivíduo se media pela acumulação de seus bens materiais e pelas suas patentes
que aqui desembarcaram os portugueses, em 1.500. militares e nobiliárquicas. Possuíam uma tecnologia desenvolvida para a navegação
Sou, portanto, um indigenista. Para ser mais exato, um TÉCNICO de longo curso e a guerra. Conheciam a pólvora e possuíam armas de fogo.
INDIGENISTA, contratado pela Fundação Nacional do Índio para exercer a função de Praticavam uma religião montada sobre a hierarquização do poder temporal e
Chefe de Posto Indígena no ano de 1974, em plena ditadura militar. espiritual, conferido por divindades.
Mas, afinal, o que é um indigenista? Vamos recorrer ao dicionário AURÉLIO, Os indígenas, por seu turno, compunham sociedades onde não existiam a
para algumas definições: escrita, o dinheiro, o comércio, a acumulação e a propriedade particular. O prestígio
ÍNDIO – Adj. 1. V. Indiano. 2. Bras.De ou pertencente ou relativo ao índio. do indivíduo se media pelos seus dons oratórios e dotes guerreiros. Como a
S.m 3. indiano.4. Indivíduo pertencente a qualquer um dos povos aborígenes das geopolítica exercida pelos milhares de povos que aqui existiam, principalmente os
Américas. O dicionário “HOUAIS” da Língua portuguesa ainda registra: ”A que habitavam o litoral, estava há muito sedimentada, não tinham ímpetos de
denominação vem do equívoco de Cristóvão Colombo, que ao tocar a ilha de Guana exploração de novas terras, apesar de exercitarem a guerra, até como componente
pensou ter chegado às Índias”. da vida tribal. Possuíam uma tecnologia voltada para a subsistência alimentar e o
INDÍGENA. (Do Latim indígena). Adj. 2 g 1. Originário de determinado país, universo cerimonial. Suas armas se resumiam a arcos, flechas e bordunas. Suas
região ou localidade; nativo 2. Brás. Relativo ou pertencente a índio ou aos índios. crenças, geralmente ligadas à natureza e o culto aos antepassados, não conferiam a
S.2g 3. Pessoa natural do lugar ou do país em que habita; nativo. hierarquização de qualquer poder conferido por divindades.
INDIGENISMO – (De indígena + ismo) S.m. 1. Indigenato. 2. Doutrina, Quando as inevitáveis refregas começaram, atiçadas pela até hoje
formulada inicialmente no México, como parte do movimento intelectual nacionalista, imensurável cobiça pelas “riquezas” existentes nesta terra, outro fator gigantesco de
caracterizado pela defesa e valorização das populações indígenas de um país, dominação e extermínio, talvez o maior de todos, apareceu: as doenças infecto-
região, etc., 3. Brás. Conjunto de idéias propostas por organizações ou indivíduos contagiosas, muitas vezes trazidas deliberadamente da Europa, através de roupas
ligados ao aparato estatal, relativas à situação das populações indígenas brasileiras infectadas em hospitais, que dizimaram centenas de povos, pela total falta de
e aos problemas que se apresentavam quanto à sua incorporação ao estado-nação. imunidade biológica que tinham a elas.
4. Conjunto de práticas ou políticas (estatais, institucionais, etc.), que derivam dessas A disputa de vários países europeus – Holanda, França e Espanha,
idéias. principalmente, fizeram com que os portugueses apressassem a colonização da terra
INDIGENISTA – (De Indígena + ista) Adj.1. Relativo ao indigenismo.2. Brás. recém-descoberta, como forma de assegurá-la. A coroa portuguesa enviou a
Pessoa que atua junto às populações indígenas, esp. em associação com políticas expedição de Martim Afonso de Souza, em 1531, que iniciou uma colonização
públicas e no que diz respeito à interação dessas populações com a sociedade mais sistemática, com a distribuição de sesmarias, o plantio da cana-de-açúcar e a criação
abrangente. de gado. Ao distribuir formalmente terras que já tinham donos, deu-se início à
Dadas essas definições, é necessário dar uma “rasante” na historiografia resistência indígena, tendo os portugueses que revidar com uma violência (e
brasileira sobre o relacionamento das populações indígenas com o colonizador virulência, como já registramos) cada vez maior.
europeu, para que entendamos definitivamente os relatos que vão neste livro. Quando Tomé de Souza chegou para ser o primeiro “governador-geral” em
Daremos aqui apenas as indicações dos principais eventos ocorridos desde o início 1548, já trouxe, além dos primeiros negros escravos, os jesuítas, para “catequizar” os
índios. Ainda em 1548,ele edita seu primeiro “Regimento” onde recomenda “paz com poder “governamental” (Coroa Portuguesa), incentivava a miscigenação e a produção
os índios para que os cristãos possam colonizar o território”. Ao mesmo tempo, agrícola, criou vilas e povoados mistos, instituiu os diretores leigos, proibiu a língua
declara “guerra aos inimigos” e inicia a formação de povoados indígenas nas indígena e tornou obrigatório o português.
imediações dos povoados portugueses. Começa aí uma relação “estado X nativos”
que desaguou no decorrer dos séculos, que vão da colônia à república de nossos Pela “Carta Régia” de maio de 1798, a coroa portuguesa torna, “órfãos” os
dias, em uma enormidade de Regimentos, Cartas Régias, Alvarás, Provisões, índios e extingue o Diretório Pombalino. Foi a primeira vez na história em que foi
Resoluções, Decretos, Avisos, Leis, Artigos Constitucionais, Portarias, tentando introduzido o conceito “paternalista” do estado sobre os índios. Mas isso não impediu
regular o que se passou a chamar em determinado momento da história de “política que outras “Cartas Régias” declarassem “guerras justas” a povos que ainda ousavam
indigenista”, ou seja, uma política do “colonizador” para o “colonizado”. resistir à colonização, como as de 1806, 1808, 1809, que declaram guerra aos
É longa e dramática essa história. Quando ensinada em nossas escolas, ela “botocudos”, “coroados” e “gueréns”.
dá a entender que aconteceu uma colonização pacífica, escondendo assim de Pobres indígenas, terem que entender toda essa complicação “político-
nossas sucessivas gerações, a incrível resistência indígena, as guerras, os religiosa-emocional-psicológica”, ao mesmo tempo em que eram explorados,
aprisionamentos, os “descimentos” forçados, a escravização, os desterros, os massacrados e aprisionados!
massacres, os envenenamentos de rios, a disseminação deliberada de doenças No período imperial, que se iniciou em 1822, quando D. Pedro I declarou a
pelas aldeias, as “reduções”, os colégios, as proibições de falar as línguas nativas, independência do Brasil, as coisas não mudaram muito ou pelo menos demoraram
ações que isoladas ou conjugadas, exterminaram centenas, talvez milhares de bastante a mudar. Até a saída de D. Pedro I, em 1831, a chamada “política
povos nativos. A vontade do colonizador de exterminar os povos nativos desta terra indigenista” foi legislada por “avisos” e “recomendações”, tendo permanecido a
eram tão fortes, que essa mesma história ensinada nas escolas, absurdamente, até legislação do período colonial.
os nossos dias, coloca-os sempre no passado, fazendo assim com que a grande Somente na “primeira regência”, exercida em nome de D. Pedro II, por José
massa da população praticamente desconheça a existência atual de cerca de cento e Bonifácio de Andrada, é que as primeiras leis imperiais começaram a aparecer.
oitenta línguas indígenas ainda faladas no país, pelos povos que resistiram a esse Andrada liderava uma elite político-intelectual da época que pregava que os índios
extermínio. deveriam ser incorporados à nacionalidade por meios pacíficos, utilizando-se a
Desde o início os portugueses demonstraram dubiedade de sentimentos e catequese. Daí, trouxeram de novo os padres, dessa vez os capuchinhos italianos.
reações perante os índios. Talvez isso tenha sido provocado pelo grande paradoxo A Lei de 27 de outubro de 1831 reinstituiu o conceito de orfandade dos
“religioso-cristão-católico-romano” vivenciado na época, que pregava o amor, a índios, tornando os “juizes-de-paz” os seus tutores.
caridade e a pobreza, ao mesmo tempo em que “autorizava”, em nome de suas Mas o que marcou mesmo a questão indígena no período imperial foi a
divindades, o direito de matar, dominar, saquear e acumular. instituição da Lei de Terras de 1850. Essa lei institucionalizou o latifúndio, ao
Aí, trouxeram os padres para amenizar a culpa e tornar os índios cristãos e, determinar que o direito de posse só se daria perante a comprovação da doação de
portanto aptos para usufruírem do paraíso, ou seja, da “civilização”. sesmarias ou a compra das terras às províncias. As terras ocupadas pelos índios que
Assim decorreu o período colonial, com o poder temporal querendo os braços não estivessem “aldeados” eram consideradas devolutas e revertidas à posse das
indígenas e os úteros das índias para avançar na colonização e os padres querendo- províncias. Isso fez com que os pequenos colonos e centenas de povos perdessem
lhes suas almas. Mas as coisas não eram tão simples assim, porque eles se suas terras.
apoiavam mutuamente e tinham como foco o avanço da colonização, mas ao mesmo Assim, podemos dizer que, se no período colonial os interesses do estado se
tempo brigavam entre si, uns querendo os “índios de missão”, praticando uma voltavam para os braços indígenas para o avanço da colonização, no período
economia de subsistência e desenvolvimento das missões religiosas, outros os imperial os interesses foram dirigidos para tomar as terras que ocupavam. Nesse
querendo como trabalhadores individuais em fazendas de cana-de-açúcar e gado. período consolidou-se também o conceito da incapacidade do índio e inevitabilidade
Ninguém se entendia: padre brigava com padre (além dos jesuítas havia os do seu desaparecimento, pela sua incorporação à sociedade nacional ou extermínio,
carmelitas e franciscanos), colonos brigavam com capitães-gerais, oficiais brigavam por sua inadaptabilidade à evolução humana.
com colonos, colonos brigavam com padres, todos queriam conquistar os índios para Em 1822 foi instaurada a república no país. Já então fervilhavam as
os seus próprios interesses. Mas quando se tratava de decretar e empreender as discussões sobre o destino das leis e práticas que deveriam nortear a “política
“guerras justas” aos povos que tentavam barrar a colonização, todos entravam em indigenista” no novo regime. Há tempos, recrudescia uma discussão já havida no
acordo. passado, em várias épocas, sobre “quem” deveria ficar responsável sobre essas
Essa confusão toda deu uma reviravolta quando o Marquês de Pombal, em ações: o poder religioso, representado agora pelas missões capuchinhas,
1757, expulsou os jesuítas do Brasil e instituiu o “Diretório Pombalino”, que decidiu franciscanas e carmelitas ou o poder temporal, exercido pelo estado.
que os índios tinham que ser “produtivos à coroa”. O Diretório Pombalino, que Ganharam os positivistas, que defendiam o poder laico estatal. Em 1910 foi
representou a primeira experiência de administração direta da questão indígena pelo criado o “Serviço de Proteção aos Índios e Colocação dos Trabalhadores Nacionais”
(SPILTN), cujo nome já não deixava dúvidas sobre o seu caráter colonizador. O populações “produtivas”. Além da criação de fazendas agropecuárias, era também
Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon é convidado para dirigir o novo órgão, comum a implantação de serrarias nas terras indígenas e a exploração de produtos
tornando-se legendário no exercício dessa função. extrativistas florestais e minerais, como a borracha, a castanha-do-Brasil, o ouro e a
Começa então, finalmente, o período contemporâneo, fundado em um regime cassiterita.
até hoje vigente – a república, cujas leis e práticas mantiveram certa continuidade e A interferência governamental nas aldeias era absoluta. Tudo e todos que
coerência político-administrativa, que já duram quase um século. Elas dizem respeito existiam nas “reservas” eram completamente controlados pelo órgão governamental.
a todos os brasileiros e principalmente aos que atuam no indigenismo, pois são As comunidades indígenas ficavam submetidas a uma ordem inteiramente diversa da
essas leis e práticas, iniciadas nesse período e evoluídas pela sociedade até os sua cultura. Tinham que cumprir tarefas, horários e participar de eventos promovidos
nossos dias, que norteiam a chamada “política indigenista” governamental. pelo posto. As lideranças das aldeias, geralmente denominadas de “capitães”, eram
escolhidas pelo Chefe do Posto Indígena, que as substituíam compulsoriamente,
II caso não “colaborassem” com a ordem oficial estabelecida. A entrada de pessoas
estranhas nas “reservas” era totalmente controlada pelo posto e os “índios” não
Não sou acadêmico. No máximo, sou um “antropólogo prático”, de podiam viajar sem o acompanhamento de um funcionário do órgão oficial.
tanto conviver e observar, tentando entendê-las, as sociedades indígenas, além de A produção gerada pelas comunidades indígenas, fosse ela de origem
exercitar constantemente a leitura de materiais acadêmicos sobre o indigenismo e os agrícola, extrativista ou artesanal, era totalmente controlada pelo posto. Mesmo a
povos indígenas. Mas, pretensiosamente, pretendo com este livro defender uma tese. produção agrícola de subsistência era submetida a esse controle. As comunidades
Fundamentos da tese: até a década de 70, o indigenismo governamental indígenas trabalhavam sob as ordens do Chefe de Posto, que, assim, funcionava
brasileiro, executado inicialmente pelo Serviço de Proteção aos Índios, fundado pelo como verdadeiro capataz. Todos os recursos oriundos da comercialização de
Marechal Rondon em 1910 e depois pela Funai, a partir de 1967, defendia produtos das Terras Indígenas eram revertidos para a “Renda Indígena”, um fundo
essencialmente os interesses do estado brasileiro sobre as populações indígenas. Os que deveria financiar as ações do governo nas “reservas indígenas” de todo o país.
indigenistas contratados a partir de 1970 mudaram radicalmente essa situação, Como se vê, toda essa “política” não diferia muito da que foi exercida durante o
transformando o órgão indigenista oficial em defensor preferencial dos interesses das Diretório Pombalino, talvez com a diferença essencial de que os índios eram
populações indígenas. “atraídos” por meios pacíficos e suas terras demarcadas e respeitadas.
Nada contra Rondon, seus seguidores e sucessores, entre os quais, aliás, A Funai foi criada pelos militares em 1967, em substituição ao SPI. Na
me incluo. Rondon em sua época também revolucionou o indigenismo estatal prática foi quase uma re-fundação do SPI, já que ela herdou sua estrutura física e
brasileiro, ao nele inserir um fortíssimo componente humanista. Com Rondon e após seus funcionários. Logicamente, os militares implantaram no novo órgão a ideologia
a ele, grandes humanistas também atuaram em favor das populações indígenas: da ditadura militar, do “milagre brasileiro”, da penetração a qualquer preço, do ‘Brasil,
Horta Barbosa, Gama Malcher, Noel Nutels, Darcy Ribeiro, os irmãos Villas Boas, Ame-o ou Deixe-o.
Francisco Meirelles, entre inúmeros outros, a grande maioria, aliás, anônimos. Não A Funai, entretanto, herdou um órgão em frangalhos. Além dos inúmeros
fosse Rondon e seus seguidores e sucessores, inúmeros povos brasileiros teriam escândalos de corrupção e de lesões ao patrimônio indígena que pipocavam a todo
desaparecido da face da terra. Isso é fato hoje inteiramente reconhecido. momento nos últimos anos do SPI.,, os postos estavam praticamente abandonados,
Mas Rondon era também um “desbravador”. Tinha seu lado bandeirante. A ocupados geralmente por pessoal regional, desqualificados para a função, que mais
primeira missão de Rondon, como militar que era e que possibilitou sua penetração lesavam do que defendiam os interesses indígenas.
nos sertões do Brasil, foi o de implantar as “linhas telegráficas” no Centro-Oeste e na Esse foi o primeiro alerta dado pelos antropólogos contratados pela Funai no
Amazônia, integrando assim essas regiões ao restante do país. final da década de sessenta: era preciso reocupar os Postos Indígenas com pessoas
Além de “bandeirante”, Rondon era positivista. Acreditava piamente no lema qualificadas, caso se desejasse obter sucesso em qualquer empreitada proposta
da bandeira brasileira, que, com outros positivistas, ajudou a criar: “Ordem e pelo regime militar.
Progresso”. Por extensão, era também um nacionalista. Assim, trabalhou a favor do Assim, a partir do ano de 1970, a Funai iniciou a realização de concursos
estado em seu progresso. Por sorte, ele realmente se apaixonou pelas populações públicos anuais para a contratação de “Técnicos Indigenistas”, que deveriam ocupar
indígenas e se tornou aliado delas. Ao seu modo, à sua época. a função de “Chefes de Postos Indígenas” em todo o país. Para esses concursos era
São inúmeros os casos em que durante a existência do SPI e nos primeiros exigida escolaridade mínima de segundo grau. O edital era publicado e o concurso
tempos da Funai, os “sertanistas”, um ramo do indigenismo governamental, entravam realizado em todas as capitais dos estados, dando assim oportunidade para que
em contato com os chamados “índios isolados” ou “arredios” para “aldeá-los”, ou jovens de todo o país os realizassem. Os candidatos selecionados nas provas de
seja “reduzi-los”, para a passagem do “progresso”: estradas, ferrovias, projetos de Conhecimentos Gerais, Português e Matemática, eram também submetidos a um
colonização, quartéis, bases militares, etc.. Depois de “atraí-los”, “aldeá-los” ou teste psicotécnico.
transferi-los de lugar, esses órgãos implantavam programas para tornar aquelas
A própria Funai se encarregava de treinar esses técnicos, através de cursos cidades. Eram independentes entre si, mas aliados incondicionais quando se tratava
teóricos com duração de três meses, em Brasília, seguidos de mais três meses de de defender os interesses indígenas. Isso resultou, já a partir da segunda metade da
estágio em Postos Indígenas. No curso teórico, aprendia-se basicamente noções de década de 1970, no início de fatos até então inéditos na história brasileira, como o
Antropologia e Etnologia, Desenvolvimento Comunitário, Legislação Indigenista, aparecimento no cenário nacional de líderes indígenas reclamando por direitos de
Administração Pública, Primeiros Socorros e Operação de Rádio-comunicação. O seus povos, como Marçal de Souza Guarani, Mário Juruna, Raoni, Ângelo Cretã,
estágio poderia ser realizado em Postos Indígenas localizados em qualquer parte do Marcos Terena¸ entre outros. Ficaram famosas também as invasões das sedes
país. Ele era monitorado pelo Chefe de Posto local, que ficava encarregado de central e regionais da Funai, as “auto-demarcações” de terras indígenas e a expulsão
avaliar oficialmente, através de relatório, o desempenho do candidato em campo. dos ocupantes dessas terras pelas próprias comunidades.
Após o estágio, o candidato também deveria apresentar um relatório sobre as Esses movimentos contavam também com a colaboração de jornalistas que,
condições territoriais, sociais e culturais do local onde estagiara, que, se bem simpatizantes da causa indígena, os apoiavam, divulgando denúncias e fatos que
avaliado, o levava à contratação aos quadros da Funai. ocorriam nas terras indígenas. Destacaram-se na época, como profissionais
Ora, esses novos indigenistas carregavam em si o “gérmen” da resistência à totalmente engajados na causa indígena e indigenista, os jornalistas Antônio Carlos
ditadura militar. Neste ponto, passo a fazer parte dessa história. Moura, Memélia Moreira e Eliana Lucena. Ficaram ainda muito conhecidos as
As idades dos que ingressavam naquele trabalho variava de 20 a 25 anos e reportagens e os livros publicados por Edilson Martins. Particularmente, em episódios
todos sentiam na carne os efeitos da ditadura militar. As agremiações eram proibidas que vivenciei a partir de meados da década de oitenta, que serão contados no livro,
e não havia liberdade de expressão e organização. Os movimentos políticos de recebi imenso apoio dos jornalistas Armando Araújo, Edmilson Lima e Carlos
resistência, principalmente os movimentos armados, já haviam sido quase todos Honorato, todos de Goiânia.
sufocados. Aos jovens de nossa idade, que procuravam lançar-se ao mundo em Através desses movimentos, os povos indígenas passaram se conscientizar
busca de emoções, aventuras e conhecimentos, só restava o vazio. Muitos de nós de seus direitos, a tomar conhecimento da existência e das situações de outros
fomos influenciados por veículos de comunicação que, desafiando o poder militar, povos no Brasil e no exterior, passando a formar alianças regionais, nacionais e
mantinham a resistência à liberdade de pensamento, como os jornais “O Pasquim”, internacionais entre si e com apoiadores da causa indígena, exercendo assim, cada
“Opinião” e a revista “Realidade”. Para completar, estava em pleno declínio o vez mais pressão sobre os organismos governamentais.
movimento “hippye”, fechando ainda mais os caminhos dos que queriam se lançar às Essas alianças foram extremamente importantes durante a elaboração da
aventuras do mundo. Constituição Federal de 1988, quando foi reconhecido o direito das populações
Após o curso teórico e o estágio, munido de informações básicas de indígenas a viverem “segundo seus usos, costumes e tradições” e se alcançou uma
antropologia, de um certo idealismo “Rondoniano”, de defesa intransigente das razoável flexibilidade na Lei da Tutela, ao envolver também o Ministério Público
populações indígenas, aliadas ao sentimento de resistência à ditadura militar, esses Federal na defesa dos interesses indígenas. Outro avanço alcançado foi a
jovens eram enviados para chefiar os Postos indígenas, muitos deles localizados nos possibilidade de formação de entidades civis de representação próprias dos povos
mais afastados rincões do Brasil. Uma vez ali, ao tomarem conhecimento da situação Indígenas.
vivenciada pelos povos indígenas, iniciaram um processo de questionamento crítico Nos anos 80 o regime militar passou a receber pressões de entidades
junto a essas comunidades, informando-as sobre seus direitos fundamentais, internacionais, principalmente da Europa. Essas instituições eventualmente também
alertando-as sobre as condições de dominação em que viviam e tornando-se seus financiavam as ações das “entidades alternativas” no país, mantendo com elas,
aliados no rompimento dessas situações. portanto, uma ligações diretas.
Nasciam também nessa época as chamadas “Entidades Alternativas”, que Nos Estados Unidos, falava-se cada vez mais em políticas de direitos
mais tarde viriam a ser chamadas de Organizações Não-Governamentais (as humanos, que foi definitivamente abarcada pelo governo Jimmy Carter (1977-81).
“ONGs”). Muitas delas optaram pela defesa dos direitos indígenas, como a Anaí – Essa posição do governo americano se traduzia em pressões econômicas e
Associação Nacional de Apoio ao Índio, a Comissão Pró-Índio, o CTI – Centro de restrições para liberação dos vultosos empréstimos requeridos pelo governo
Trabalho Indigenista, o CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação, brasileiro nos bancos internacionais.
entre outros. Aparecia também na cena política nacional, o CIMI – Conselho Nós, indigenistas da Funai, soubemos explorar esse momento com ações
Indigenista Missionário, de origem eclesiástica, ligado à Conferência Nacional dos ousadas em campo e nas cidades, realizando verdadeiros movimentos guerrilheiros,
Bispos do Brasil - a CNBB. Em Brasília, já no início da década de oitenta, aparecia que geralmente resultavam em benefícios para as populações indígenas,
ainda uma primeira tentativa indígena de auto-organização, formada por principalmente a garantia de suas terras. Isso resultou em inúmeros conflitos internos
representantes de várias etnias que estudavam na capital, a UNIND– União das na instituição e várias vezes muitos de nós, sozinhos ou em grupo, fomos demitidos,
Nações Indígenas. perseguidos, vigiados e proibidos de penetrar em Terras Indígenas, episódios que
Esses movimentos aliaram-se eventualmente em inúmeros episódios de serão contados neste livro.
resistência à orientação militar da política indigenista, tanto no campo como nas
Se os militares não podiam mais “prender e arrebentar” como antes, nossas constatações técnicas e políticas que, esperamos, passem a ser feitas a partir da
ações eram inteiramente controladas e registradas pelo SNI – Serviço Nacional de publicação deste livro.
Informações, que centralizava as informações das ASIs, - Assessorias de Há também um outro fator de transformação, ao nosso ver importantíssimo,
Informações, que existiam em todos os órgãos públicos do país. em termos de evolução histórica: os movimentos indigenistas desencadeados a partir
Quando, em 1985, os militares passaram o poder a José Sarney, da década de setenta não perseguiam interesses corporativos particulares, ao se
inaugurando assim a chamada “Nova República”, imaginávamos que iríamos entrar engajarem na luta pela causa indígena. Não estavam interessados em prosseguir na
em um período realmente democrático, onde os nossos direitos e os das populações colonização, tornar os índios “produtivos”, incorporá-los á “comunhão nacional”, em
indígenas seriam respeitados. conquistar suas almas ou as suas terras. Ao contrário, combatiam essas idéias e
Como estávamos enganados! práticas, mesmo conjugando, como no passado, os poderes estatais, eclesiásticos e
Aparentemente do nada, apareceu no cenário nacional, como presidente da sociais. Partiu daí a sedimentação da idéia, consagrada na constituição de 1988,
Funai, o Sr. Romero Jucá Filho, hoje senador da República. Romero Jucá, utilizando- que aos índios se deve o respeito aos seus patrimônios e ao direito de viverem
se das informações do SNI, demitiu e perseguiu inúmeros indigenistas, dividiu as segundo suas crenças e tradições, além de se fazerem representar pelas suas
alianças indígenas regionais construídas em mais de vinte anos de movimentos. comunidades e organizações.
Paralelamente montou um esquema de negociatas ilegais de madeiras e minérios em Colocado assim, fica parecendo que os índios foram apenas beneficiários de
Terras Indígenas, que foram alvos de pelo menos dezoito processos, impetrados movimentos de terceiros em favor de suas causas. Nada mais falso. É bem verdade
pelas instituições civis de apoio aos Índios, processos nunca julgados, perdidos pelos que as populações indígenas sempre puderam contar, no decorrer da história, com
escaninhos do poder. aliados e defensores de suas comunidades, o que talvez tenha tornado a sua
Romero Jucá foi praticamente expulso da Funai pelos movimentos resistência menos sofrida em determinados períodos. Mas, essa evolução histórica a
indigenistas e pelas pressões de líderes indígenas. Como “prêmio” pelos serviços que nos referimos jamais seria possível sem a incrível resistência indígena,
que prestou aos que o guindaram ao poder, foi nomeado governador “biônico” de principalmente em subsistir enquanto povos diferenciados, de forma que, mesmo a
Roraima. Daí, assumindo a defesa dos garimpeiros que invadiam as terras despeito de toda a violência perpetrada contra eles desde a chegada dos europeus,
Yanomami, tornou-se senador em 1994. tenham conseguido chegar aos nossos dias com essa maravilhosa diversidade
A Funai foi submetida a uma pressão financeira tamanha, que o seu cultural, aliás, considerada a maior do planeta, fato que deveria orgulhar a todos os
orçamento anual é nominalmente o mesmo desde o ano de 1992. Segundo um brasileiros. Sobre isso, Darcy Ribeiro registra, em prefácio escrito para o livro “Os
estudo efetuado pelo órgão em 2003, em dez anos (1993-2002) ela havia perdido, Índios e o Brasil” de Mércio Pereira Gomes, 1988: “O fato decisivo, entretanto, foi a
em valores reais, cerca de 62% de seu orçamento. Nos anos de 2004 e 2005 ele resistência dos próprios índios, que inviabilizou essa forma de etnocídio, ao rechaçar
permaneceu praticamente o mesmo, o que significa que essa taxa aumentou devido o fanatismo missionário e o paternalismo burocrático, impondo respeito ás suas
às novas perdas inflacionárias. lideranças”. Ou como diz o próprio Mércio, na mesma obra, página 61: “Mais do que
O governo não realiza contratações para o órgão desde 1986, quando por voluntarismo, como supunha o antropólogo Eduardo Galvão ainda na década de
Romero Jucá foi obrigado, por decisão judicial, a contratar técnicos que haviam cinqüenta, e sim como parte do processo social da história recente do país,os índios
prestado concurso público e freqüentado o último curso de indigenismo realizado deixaram de ser caboclos, recusando uma posição de marginalidade ambígua, para
pela Funai, por iniciativa dos indigenistas da década de setenta. buscar, num esforço generalizado e absorvente, a afirmação de sua identidade étnica
A proposição da “tese” que levanto neste livro está, portanto, baseada em e uma nova posição na realidade política e social que os envolve e os dirige”.
dois fundamentos: Nas próprias narrativas contidas neste livro a partir do capítulo I, o leitor irá
1) Os indigenistas da Funai da década de 70, aliados a outros segmentos se deparar com episódios que demonstram a bravura, a resistência e a consciência
sociais, mudaram substancialmente os paradigmas do indigenismo governamental de invadidos e espoliados, que os povos indígenas brasileiros jamais deixaram de ter.
brasileiro, transformando-o em defensor prioritário dos interesses indígenas e não do Após essa longa digressão, devo avisar, sobre as narrativas contidas neste
estado brasileiro; livro: Quem relata um fato, dá apenas a sua versão sobre ele. Outras versões sobre
2) Em reação a este movimento, as forças conservadoras do poder estatal fatos aqui relatados poderão aparecer. Nenhum problema sobre isso. Nenhum dos
tentam sufocá-lo, através da falta de apoio ao órgão oficial de proteção dos direitos personagens citados nas histórias que vocês lerão, entretanto, poderá jamais negar
indígenas e do impedimento que os indigenistas ligados ao órgão repassem às novas que eles aconteceram.
gerações seus conhecimentos e ideologias. Muitas vezes os relatos contidos no livro poderão deixar transparecer ao
A primeira parte da tese, tentarei provar com as minhas próprias narrativas, leitor uma certa dose de “Indiana Jones”. Bem, os fatos são narrados como eu os vi
que vocês lerão a partir do Capítulo I. Logicamente, elas envolvem dezenas de e vivi. É importante que se diga que eles aconteceram há cerca de trinta anos atrás,
outros personagens. A segunda parte poderá ser provada pelas próprias durante uma ditadura militar, contra a qual praticávamos ações de resistência,
quando eram ainda bastante difíceis as condições de acesso a muitas regiões do
país e as comunidades indígenas viviam em verdadeiras trevas, em termos de Álvaro Tukano, Marcos Terena e, que a paz seja definitivamente selada, Ailton
informação e consciência de seus direitos e potencialidades. Praticar hoje o Krenak.
indigenismo, em qualquer uma de suas formas, não exige tanto risco e esforço físico. Logicamente, muitos embates houveram no decorrer desses vinte anos aqui
Depois, afirmo-lhes que as histórias contadas por outros companheiros, que citarei relatados, muitos deles extremamente tensos e com reais perigos de morte, alguns,
abaixo, poderão fazer das histórias que são relatadas neste livro parecerem contos ainda, de fundo filosófico-ideológico. Nesses embates não poderia deixar de ter
da carochinha. havido rusgas e enfrentamentos, tanto internos, entre os indigenistas da Funai,
As pessoas citadas neste livro são reais e aparecem com seus verdadeiros quanto entre as várias correntes que atuam no indigenismo. Todos tiveram,
nomes. Muitos deles estão vivos e atuantes. Aqui, não poderia deixar de citar alguns entretanto, como fonte de luta, a defesa dos interesses indígenas. Considero que
nomes de indigenistas que fizeram e fazem ainda parte dessa verdadeira saga, todos que se mantiveram nesta luta por tantos anos, e que participam dela até hoje,
mesmo que não estejam incluídos em episódios contados neste livro e correndo o merecem crédito e respeito.
risco de ser injusto com inúmeros outros companheiros: José Porfírio de Carvalho, É necessário que se diga que não escrevi este livro como forma de auto-
Odenir Pinto de Oliveira, Cláudio Romero, José Araújo Filho, Ronaldo Oliveira, promoção ou para passar a idéia de perpetuação de um modelo de atuação
Oswaldo Cid, Guilherme Carrano, Terry Valle de Aquino, Antônio Macedo, Ana Lange, governamental, hoje bastante criticado. Ao publicá-lo, na verdade, estou rompendo
Maria Lucia Brant de Oliveira, José Carlos Meirelles, Francisco Campos Figueiredo, com um verdadeiro “dogma” praticado pelos indigenistas da década de setenta, que
Heleno Gonçalves, Mauricio Wilke, José Carlos Levinho, Ilton Coelho de Souza, “rezava” que os povos e os representantes indígenas é que deveriam aparecer na
André Ramos, Renato Sanchez, Juracy Coelho. Outros, infelizmente já nos deixaram, cena nacional, nós, jamais. Acredito, apenas, que essa história agora precisa ser
como Ezequias Heringer (o “Xará”), Sílbene de Almeida, Antônio Pereira Neto, Emir conhecida, pois algumas forças da sociedade pretendem enterrá-la como se ela
de Paula e Alceu Cotia. nunca tivesse existido. Alguns desses seguimentos pregam hoje a pura e simples
Não poderia deixar de citar também pessoas ligadas aos movimentos sociais, extinção do órgão indigenista oficial. Esquecem-se de duas coisas: a primeira é que
que participaram dos embates ocorridos a partir da década de setenta e que ainda a sua existência está prevista na constituição brasileira e portanto é obrigatória, seja
atuam no indigenismo, como Gilberto Azanha, Maria Elisa Ladeira, Rubem Tomás de lá que nome tenha. A segunda é que, se hoje ele tornou-se obsoleto e não
Almeida, Padre Iasi, Antônio Brant, Paulo Machado Guimarães, Vincent Carelli, corresponde aos anseios da sociedade brasileira e das populações indígenas é
João dal Poz, Iara Ferraz, Claudia Andujar, Marcio Santilli, Regina Muller, além de exatamente porque tentam sufocá-lo e aí voltamos à tese que defendemos.
Virgínia Valadão, já falecida, entre vários outros. Este é um livro dinâmico, que, neste prefácio, tentou resumir criticamente a
Os antropólogos ligados à questão indígena deram uma enorme contribuição historiografia existente dos primeiros contatos das populações indígenas deste país
aos movimentos aqui já citados. Aconteceu, no período histórico que este livro com os colonizadores europeus, até a década de 1970. Em seguida, através da
abrange, a evolução, que será algum dia debatida, de uma antropologia apenas de narrativa das histórias pessoais vivenciadas por este autor, cobre vinte anos de
caráter científico, que geralmente servia aos interesses dos dominadores, para uma histórias recentes deste relacionamento (1974-1993). Em seu posfácio, faz uma
ciência engajada na defesa da causa indígena. Essa nova antropologia procura atualização histórica do indigenismo e dos movimentos indígenas de 1994, até o
utilizar os dados coletados em campo em instrumentos de transformação de presente, tendo como base a constituição de 1988. Em seu epílogo, tenta dar um
realidades sociais, vivenciadas pelas populações indígenas. Como expoentes desse síntese final de tudo o que foi relatado. No apêndice, fornecemos, inicialmente, uma
movimento, é obrigatório citar, além dos já citados Gilberto Azanha, Maria Elisa relação das principais leis que definiram a política indigenista brasileira desde o início
Ladeira e Rubem Tomás de Almeida, antropólogos que, no meu entendimento, da colonização européia. Em seguida damos uma bibliografia básica da questão
transformaram-se em “indigenistas práticos”, de tanto percorrerem as aldeias indigenista e, finalmente, uma relação das principais bibliotecas e “sites” onde
tentando achar caminhos para um relacionamento mais equilibrado entre índios e informações, notícias e obras sobre a história e as culturas dos índios e do
sociedade envolvente, os antropólogos Roque de Barros Laraya, Manuela Carneiro indigenismo no Brasil podem ser encontradas. Assim, o livro também foi pensado
da Cunha, João Pacheco de Oliveira, Mércio Pereira Gomes, Antônio Carlos de como fonte de consultas pelos interessados no assunto, para que nele possam se
Souza Lima, Marcos Lazarin, Lux Vidal, Rita de Almeida, Carmem Junqueira, Maria aprofundar.
Hilda Baqueiro Paraíso, Bety Midlin, Dominique Galois, Alcida Ramos, Olympio Serra Finalmente, decidimos não só escrever, mas também gravar o livro em CD e
e Aracy Lopes da Silva, já falecida. criar um “site” destinado a aprofundar as informações aqui contidas. No caso da
Não poderia também deixar de registrar os nomes de guerreiros e sábios gravação em CD, nossa intenção foi a de dar uma contribuição ao crescente
que conheci nas aldeias e nas cidades e com os quais tive o privilégio de lutar, movimento pela história oral, que, aliás tem tudo a ver com a cultura indígena, além
correndo um risco ainda maior de ser injusto pelo esquecimento de inúmeros deles, de possibilitar que pessoas deficientes visuais e analfabetas possam ter acesso às
pela sua grande quantidade: Pohi, Krokroc, Kruwakrai, Tikun, Txocan, Kràc, Warodi, histórias contidas no livro. No CD, o livro é inteiramente narrado, deixando ao ouvinte
Penon, Surupredo, Paheri, Baxixi, Bachebô, Aru, Arakatu, Raoni, Megaron, Mário a opção de ouvir as várias “faixas” em que o livro é constituído.
Juruna, Isac Xerente, Abrão Xerente, Maria Barbosa, Romão, Grossinho, Honorina,
No “site”, o leitor-ouvinte irá encontrar informações mais detalhadas sobre os para realizar o “VI Curso de Técnico em Indigenismo”, promovido pela Fundação
povos indígenas e personagens que são citados no livro, interagir com o autor, “links” Nacional do Índio, a FUNAI.
com outros “sites” afins, além de poder comprar ou obter informações de onde O curso se constituía de uma parte teórica, de três meses e realizada em
adquirir o livro e o CD. Brasília, e de um estágio em campo, também de três meses. A nossa expectativa era
Aliás, aqui cabe um aviso final e um pedido: Esta obra, incluídos o CD e o imensa. Enquanto freqüentávamos o curso teórico em Brasília, íamos já tomando
“site”, é uma produção totalmente independente, inclusive a sua comercialização. intimidade com a questão, através das notícias cotidianas, repassadas pelos
Assim, caro leitor-ouvinte-internauta, caso você tenha gostado, por favor, instrutores, alguns deles, indigenistas e sertanistas experimentados. Uma dessas
divulgue-a. notícias, lembro-me bem, falava de um Chefe de Posto Indígena, função para a qual
A causa é boa e a humanidade agradece. estávamos sendo preparados, que, enlouquecido pela solidão na floresta amazônica,
Capítulo I havia tocado fogo na aldeia pela qual era responsável e, em seguida, se suicidado
ALGUMA COISA PRECISA ACONTECER Um verdadeiro salto no desconhecido nos aguardava.
No fim de 1974, tínhamos concluído o curso teórico e o estágio em campo.
Quando, em 1972, meu irmão Roberto me enviou um recorte de jornal com o Fui enviado para cumprir o estágio junto ao povo Krahô, no então norte do Estado de
anúncio de um concurso público para Técnico em Indigenismo, senti o meu coração Goiás – para onde retornei, muitos anos depois, para viver experiências
disparar. Eu tinha 20 anos e era então um típico representante da era “o sonho inesquecíveis, que relato mais adiante.
acabou”: cabelos grandes, roupas remendadas e uma enorme rejeição à “sociedade Finalmente, no início do ano de 1975, com 22 anos, devidamente investido
de consumo”. Entretanto, eu havia alcançado apenas os ecos do movimento hippie, da função de Chefe do Posto Indígena Kayabi, localizado próximo a um dos afluentes
que havia entrado em declínio desde a realização do festival de Woodstok, em 1969. do rio Tapajós, no estado do Pará, mergulhei de cabeça, corpo e alma em uma real
De modo que, quando me achei em condições de “botar o pé na estrada”, até as aventura, da qual jamais desejei sair.
caronas, antes praticamente institucionalizadas, estavam ficando difíceis.
O sentimento de frustração era seriamente agravado pela situação política do
País, mergulhado em uma ditadura militar iniciada em 1964 e que já havia abafado
quase totalmente todas as formas de oposição. Portanto, não restava muita CAPÍTULO II
perspectiva para um jovem inquieto, relativamente bem informado e com uma grande SUBINDO O TAPAJÓS
vontade de transformar o mundo.
Então, estava eu em minha pequena cidade natal no interior de Minas Foi ali, somente ali, nas cachoeiras de São Luiz, no rio Tapajós, com o
Gerais, para onde retornara após ter servido o exército no Rio de Janeiro e coração aos saltos, que eu realmente me dei conta do tamanho da aventura em que
perambulado por dois anos pelo País, procurando o que fazer, fazendo de tudo um me metera. O motor Penta 10/12 roncava e ameaçava parar a cada vez que a
pouco para sobreviver. Eu havia retornado à minha terra quase por acaso, pequena ubá, após escalar o pico da onda formada pela corredeira, caía de proa na
simplesmente porque estava passando ali por perto em minhas andanças, e acabei vaga, levantando a popa com o seu minúsculo motor. No leme, Zé Prego, um prático
ficando. que me arranjaram em Itaituba, ria do meu apavoramento com sua boca desdentada.
No entanto, minha cidade natal havia se transformado em mera sombra do Eu saíra de Brasília a quase dois meses, de ônibus, para Belém do Pará, de
que fora no passado, quando existira um grande movimento agropecuário, que havia onde me mandaram de barco, numa viagem de oito dias, para me apresentar à “Base
me proporcionado uma infância fantástica, povoada por vaqueiros, boiadas, circos e Avançada da Funai em Itaituba”. Itaituba é uma cidade localizada à beira do rio
bandos de ciganos. Da cidade de minha infância, agora decadente, restavam apenas Tapajós, que vivia principalmente do comércio do ouro extraído em centenas de
as lembranças e alguns antigos amigos que não haviam conseguido sair dali nem garimpos que infestavam a região e do comércio de Castanha-do-pará, borracha e
achar o que fazer além de beber, beber e beber. Eu apenas me incorporei ao bando outros produtos extrativistas da Amazônia.
de beberrões cotidianos, na certeza de que praticamente nada mais valia a pena. Apresentei-me à Base e fiquei aguardando o momento de ser enviado ao
No entanto, o anúncio que recebera do meu irmão não me saía da cabeça, Posto Kayabi, que eu deveria chefiar. O Posto ficava distante de Itaituba cerca de
até mobilizar forças suficientes para me desligar daquela indolência viciosa e me doze dias de viagem subindo o Tapajós e, depois, entrando por um de seus
mandar para Brasília, onde seria realizado o concurso. Não a tempo suficiente, formadores, o rio Telles Pires ou São Manoel. Foram quase dois meses de espera
entretanto, para alcançar o prazo de inscrições. Mas, com a informação segura de em Itaituba, o tempo suficiente para ir me acostumando com o calor da Amazônia e
que no próximo ano o concurso se repetiria, consegui emprego em uma construtora, os infernais piuns, borrachudos e carapanãs que a infestam.
disposto a aguardá-lo. Em 1974, finalmente consegui me inscrever e ser aprovado no Finalmente, em meados de maio de 1975, fizeram-me assinar um termo de
concurso. Algum tempo depois, fui convocado, juntamente com outros 24 aprovados, responsabilidade por uma embarcação tipo “ubá” com capacidade para quatro mil
quilos, provida de um motor-de-popa marca Archimedes 10/12 HP, duzentos litros de
gasolina – que Zé Prego garantiu logo de saída que “dá mal e mal para chegar lá” –, meu amigo, prepare-se: você ficará com os braços em frangalhos de tanto puxar
algumas caixas de medicamentos e um rádio-transmissor a válvulas, marca Eudgert, aquela corda, vai desmontá-lo inteiro, lixar vela, regular platinado, testar bobina, botar
velho como ele só. Esse patrimônio representava toda a “carga” do meu posto, e todas as peças novas, se as tiver, e não vai adiantar. O danado só “pega” quando
com ela deveria me virar. quer.
Agora, ali estava eu, na ubá aos saltos e com Zé Prego lá da popa, rindo da Muitas vezes, depois de você ter tentado tudo, mas tudo mesmo, durante
minha “brabeza” e da minha apreensão. Eu ficava agachado, segurando as bordas horas, com aqueles malditos mosquitos te atazanando, de ter xingado todas as mães
da embarcação com todas as minhas forças, e o desgraçado, apenas para me ver de todos os motores-de-popa do mundo e de seus respectivos fabricantes, você se
apertado e rir ainda mais, gritava pedindo ora para tirar gasolina do tambor e entrega, dizendo o último “vai-te à puta que o pariu”, sai do barco, vai comer alguma
abastecer o tanque do motor, ora para cobrir a carga ou ainda para ir para a proa ou coisa e fica olhando, raivoso, aquela coisa inerte, imprestável, ali no seu barco. Mas
para a popa, a pretexto de fazer peso no lugar certo. você não pode ficar ali a vida toda, certo? Você está na barranca de um rio
Meu Deus, que corredeiras intermináveis! Ninguém me avisara daquilo. Em amazônico e precisa seguir sua viagem. Vai lá, quase por obrigação, e tenta de novo.
cinco horas de sufoco, medo e taquicardias, eu não acreditava que pudesse sair vivo Pronto. O bichinho pega que é uma beleza, trabalha novamente durante dias, sem
daquilo. Tudo era muito precário: aquela canoa de um tronco só, aquele motor e dar nenhum problema e você agradece a Deus por ter aquele companheirão. Até o
aquele piloto magro, desdentado, a rir lá atrás. E aquelas pedras enormes, os canais dia que ele resolve empacar de novo. E assim vai e assim deve ser, porque na
estreitíssimos, as corredeiras fortíssimas que faziam a ubá ficar empinada horas a fio Amazônia, quem não tem uma boa embarcação e um bom motor-de-popa é
(pelo menos me parecia), avançando aos milímetros. Quase não se enxergava as praticamente um aleijado.
margens do Tapajós, de tão largo que ele era naquele ponto e eu ficava imaginando E quem tem uma boa embarcação e um bom motor-de-popa não pode
o que fazer se aquela embarcação naufragasse de vez, com aquelas roupas pesadas prescindir de um piloto prático, principalmente em trechos encachoeirados. Os
que eu estava usando: calças jeans, camisa de manga comprida e “bat-but” do pilotos práticos da Amazônia são capazes de proezas inacreditáveis. Conhecem cada
exército. palmo do rio, cada pedra das corredeiras, que formam um labirinto de canais, ora tão
Foi o meu batismo de fogo (ou de água, se preferirem). Dali em diante eu estreitos que mal cabem a embarcação, ora tão rasos que é preciso muita habilidade
aprenderia a respeitar profundamente duas coisas: o motor “pé duro” 10/12 HP e os para defender o “rabo” do motor das pedras. Conhecem as manhas do rio, suas
“práticos” dos rios amazônicos. O primeiro é (ou era, não sei se ainda o fabricam) de praias, seus baixões de areia, que costumam mudar de lugar. Viajam de dia, à noite,
uma valentia sem tamanho – um motor-de-popa de baixa rotação, mas que possui com lua ou sem lua, subindo ou descendo o rio, tranqüilos como se estivessem à
uma força e uma constância incríveis. beira de uma fogueira, contando histórias. É como se fossem o próprio rio, não
É uma máquina simples: consiste em um disco rotatório (o “prato”) que fica precisam de olhos para navegar.
localizado em sua parte superior, de onde desce um tubo de aproximadamente um Assim era o Zé Prego, o primeiro piloto que conheci. Com ele, fiz a minha
metro, na extremidade da qual fica localizada a sua pequena hélice. No interior do primeira viagem amazônica. Ele teve o privilégio de me “amansar”. Na Amazônia,
disco fica instalada a sua “parte elétrica”, que consiste basicamente em uma bobina, quando você é novato, não sabe as “manhas” da região, é “brabo”. E, logicamente,
um platinado e um condensador. O disco, ao rodar, movimenta as engrenagens precisa ser “amansado”. E como Zé Prego judiou de mim naquela viagem! As
internas localizadas no tubo, que fazem movimentar a hélice, que deve ficar uns vinte primeiras noites foram insuportáveis. Eu não sabia armar a rede de dormir e muito
centímetros dentro da água, empurrando assim a embarcação. menos instalar o mosquiteiro de rede. Isso, na Amazônia, é fatal. Primeiro, você
Tudo muito simples e aparentemente frágil. No entanto, parece que o dorme todo torto, fazendo verdadeiras acrobacias durante toda a noite, para se
motorzinho dá mais de si quando mais se precisa dele. Empurra pesos muito acima manter na rede. Segundo, você não dorme coisa nenhuma, porque os carapanãs não
do que se poderia supor de sua capacidade, sobe corredeiras com o barco carregado deixam.
sem dar um gemido, uma falha, um defeito. Seu ronco é forte, vigoroso, constante, Carapanã é o primo selvagem da muriçoca. E bota selvagem nisso. Ele tem
seguro. A gente aprende a confiar nele. Ah, mas tem uma coisa: ele é de “veneta”. um “bico” tão poderoso, que perfura sua rede e mais qualquer coisa que você esteja
Funciona durante horas, dias a fio maravilhosamente bem, cortando corredeiras ou vestindo, inclusive jeans. Sua picada assemelha-se ao encostar de uma agulha
estirões sem fim, sem dar um sinal, sequer, de fraqueza. Mas, se você resolve parar, quente em sua pele. Os caboclos amazônicos chamam-no de “carapanã-suvela”.
seja por alguns minutos, algumas horas ou por uma noite, duas coisas poderão Dizem, brincando, que ele esquenta o “bico” (no caso, a “suvela”) nas lamparinas,
acontecer, quando você for ligá-lo novamente: ele pegará na primeira “lapada” (o para depois picar as pessoas. Eles são milhares, milhões, à nossa volta, quando cai
10/12 não tem partida automática, a sua partida é dada enrolando-se uma corda de a noite. Mas se um, apenas um, consegue entrar em seu mosquiteiro, você estará
mais ou menos dois metros no topo do seu “prato” rotatório e puxando-a com toda a fadado a passar insone a noite toda.
força possível) ou você poderá passar horas ou até dias tentando fazê-lo “pegar”. Mas a viagem é longa, e a gente vai se acostumando, vai aprendendo,
Você tem de entrar na embarcação rezando para todos os santos para que observando, descobrindo. Era um mundo inteiramente novo descortinando-se diante
aquele adorável motorzinho esteja de bom humor naquele dia. Porque se não estiver, dos meus olhos. Um mundo monumental, de uma natureza surpreendente,
imponente, majestosa, dadivosa. Mas também um mundo que, já nessa viagem, me Começava a conhecer ali, de fato, a região de abrangência do Posto Kayabi,
revelava seus contrastes, suas misérias humanas. onde atuaria. Conheci em Barra do São Manoel algumas pessoas do povo
Lembro-me que, no quarto ou quinto dia de viagem, “encostamos” em uma Mundurucu, cujas terras estavam próximas dali e que se espalhavam em pequenas
corruptela à beira do Tapajós, chamada Penedo. Zé Prego me levou para a casa de aldeias por toda a região de abrangência do Posto Kayabi. Aproveitei para me inteirar
um morador que ele conhecia. Ao chegar no terreiro, vi um rapazinho paraplégico, melhor da situação que encontraria, o número de aldeias, localizações, populações e
que se arrastava em um pequeno carrinho de madeira. Quando entramos na casa, meios de subsistência.
um outro rapazinho, totalmente entrevado, em uma cadeira. Os dois haviam Notei que ali as pessoas usavam uma espécie de capuz de pano, com um
contraído paralisia infantil. Quando fui apresentado como “funcionário do governo”, o círculo aberto na frente, deixando de fora apenas os olhos, o nariz e a boca. Era o
dono da casa me levou para um quarto e me mostrou uma criança, de mais ou “cachiné”, uma vestimenta que não conhecera rio abaixo. Percebi que os mosquitos
menos cinco anos, em uma rede. Disse-me que estava doente há dias, havia tido ali eram em maior quantidade e mais perturbadores. Mas mesmo os moradores
muita febre e diarréia e, depois, ficara daquele jeito: com o pescoço paralisado, o daquele lugar me afirmavam que rio acima era muito pior e que eu não suportaria
olhar fixo no teto. Eu soubera que havia um surto de meningite na região. Todos os ficar por muito tempo na região do Posto Kayabi.
sintomas levavam a crer que a criança estava com meningite, ou poderia mesmo ser Após dois dias em Barra do São Manoel, iniciamos a subida do Telles Pires,
um outro caso de paralisia infantil. Disse a ele que aquela criança necessitava ir a um com a tripulação agora acrescida de Augustinho Bode. Zé Prego continuou viagem
médico, o mais rápido possível. Ele me disse que médico, só em Itaituba, de onde conosco, pois seu contrato era para nos deixar no Posto Kayabi. Aliás, eu acabara
havíamos partido. Perguntou se eu não poderia levar seu filho a Itaituba. Cheguei a gostando do Zé Prego, apesar de achar que ele poderia ter sido mais solidário
considerar a hipótese, mas percebi que era impraticável. Eu estava subindo o rio e comigo, no início. E assim, sem maiores incidentes, após mais três dias de viagem,
precisava assumir o meu posto, que ainda se encontrava muito, muito longe. Disse chegamos finalmente ao destino: o Posto Kayabi. O “meu” posto!
tudo isso a ele, dei-lhe alguns conselhos “médicos” e lhe deixei alguns remédios, que
sabia eu, não iam adiantar grande coisa. Segui viagem, com uma enorme sensação
de impotência.
Em vários outros “pousos” que fizemos, invariavelmente escutava histórias CAPÍTULO III
de doenças e mortes. Chocou-me bastante uma mãe que me contou, com a maior O POSTO KAYABI
naturalidade, que dos doze filhos que tivera, havia perdido dez, todos ainda crianças.
E assim, fui tomando contato com os dois lados desse mundo amazônico: o O Posto Kayabi era apenas um nome à beira de um rio. Ele havia sido
da natureza exuberante e o das misérias humanas. Amansando meu corpo e meu construído e chegara a funcionar durante alguns anos, pelo antigo SPI – Serviço de
espírito, preparando-me para assumir uma responsabilidade, de cuja real dimensão Proteção aos Índios, o órgão que antecedeu a Funai. Mas estava abandonado há
eu ainda não tinha a mínima idéia. mais de vinte anos. Agora, se resumia a uma casa de pau-a-pique, quase caindo, no
E à medida que íamos subindo o Tapajós e nos aproximando dos seus alto de um barranco, que abrigava uma família Mundurucu. E mais duas casas de
formadores, as pessoas com quem eu conversava invariavelmente diziam que eu seringueiros, que nem índios eram, nas imediações. Só. No mais, a floresta, pesada,
não suportaria ficar muito tempo no Teles Pires. Diziam que lá havia muita “praga” impenetrável, quase a invadir as casas. Não havia índios aldeados nas imediações.
(mosquitos, principalmente), que eu teria de enfrentar muitas cachoeiras, que ali era Os Kayabis, que antes habitavam ali, haviam se mudado para um lugar a dois dias
lugar de gente valente, que os “regatões” mandavam matar etc. Chegavam a propor de viagem subindo o rio, acima da cachoeira “Rasteira”, conforme me explicaram. No
apostas comigo, dando-me no máximo três meses de permanência no posto. Tudo mais, eu deveria atender cerca de vinte pequenas aldeias Mundurucus, que viviam
isso só aumentava ainda mais a minha expectativa. da extração do látex e de castanha-do-pará, e se encontravam espalhadas pelos rios
No nono dia de viagem, chegamos à “Barra do São Manoel”, uma da região. Aqui e acolá ainda havia uns poucos remanescentes Apiacás.
corruptela que existe na confluência dos rios Teles Pires (também chamado São Notei que havia cerca de vinte pessoas me esperando na barranca do rio. A
Manoel) e Juruena, que formam o Tapajós. É uma região belíssima, de onde se notícia de que um “chefe” estava chegando para reativar o Posto já se espalhara por
consegue enxergar as terras de três estados brasileiros: Pará, Amazonas e Mato toda a região. Como? Pela famosa “Rádio Cipó da Amazônia”. A “Rádio Cipó” não
Grosso. tem transmissores, microfones ou antena, mas transmite a informação com uma
Em Barra do São Manoel, como estava previsto, fiquei conhecendo o piloto velocidade incrível. Ela me deixou muitas e muitas vezes intrigado. Eu simplesmente
prático que efetivamente trabalharia comigo no posto e que iria se tornar um grande não conseguia entender como a notícia de um fato acontecido horas antes, em
amigo, uma daquelas figuras inesquecíveis para toda a vida: “Augustinho Bode”, ou determinado lugar, se propagava tão rapidamente onde vizinhos distavam, em
“Tio Augustinho”, nascido Augusto da Cruz Oliveira, figura que vou apresentar melhor média, dois dias de viagem um do outro. Mas também ali, naturalmente, a informação
mais tarde, em outros capítulos. se distorcia à medida que se distanciava do local do acontecido, cumprindo o velho
ditado: “quem conta um conto, aumenta um ponto”.
E ali estava eu, subindo a barranca do rio, por uma pequena trilha, em dia, ou melhor, na minha primeira noite de “posto”, como se aplica uma injeção de
direção ao meu tão sonhado “posto”. Quase final de tarde, o tempo chuvoso, a trilha verdade, em gente doente de verdade, que não tem a mínima dúvida de que você
encharcada e escorregadia. E, logo após os primeiros cumprimentos, antes mesmo sabe tudo sobre medicina e enfermagem.
de retirar todas as coisas do barco, Augustinho, que tinha o apelido de “bode” No meio da noite, esgotou-se o soro da mulher com hemorragia, colocamos
justamente por não parar quieto, já me trazia a notícia: “tem uma mulher aí com outro no mesmo equipamento e quando amanheceu, ela se apresentava bem melhor,
hemorragia e umas seis pessoas com malária. Eles vieram para cá porque souberam mais corada e desperta. Dei-lhe mais vitaminas (ferro e complexo B) por via oral e
que ia chegar o chefe e o enfermeiro, com muito remédio. Estão ali na casa do providenciei para que se alimentasse bem. Após dois dias ela se levantou. Mais dois
Joaquim Gato”. Olhei para os lados e não vi enfermeiro algum. Simplesmente não dias e ela mesma achou que estava boa para voltar para casa, que ficava a um dia e
havia enfermeiro. Meu Deus! O enfermeiro era eu mesmo! Eu não havia, em nenhum meio de viagem, de canoa. Impressionou-me a sua recuperação e comecei a
momento, pensado nessa possibilidade! E ninguém havia me falado sobre essa perceber que pessoas dali reagiam bem aos medicamentos alopáticos,
possibilidade! principalmente aos antibióticos e às vitaminas.
Fomos ver os doentes. A mulher com hemorragia era o caso mais grave. Ela E não faltaram mais pacientes para comprovar minha descoberta. Com a
estava perdendo sangue havia quatro dias, após um parto complicado, no qual a notícia, devidamente transmitida pela “Rádio Cipó” (que, no mínimo, deve ter
criança morrera. Estava fraca, exangue no fundo de sua rede, mal falava e não noticiado que eu ressuscitara a tal mulher), “choviam” doentes, todos os dias:
conseguia mais se levantar. Pensei: o que fazer, meu Deus? Ele respondeu malária, leishmaniose, hepatite, reumatismos, gripes, pneumonias, diarréias,
prontamente pela boca do Augustinho: “O jeito é aplicar um soro”. Claro, um soro! gravidez, furúnculos, hemorragias, ferimentos, dor d’olhos, catarata... Não importava,
Simples. Fomos buscar o soro. Abrimos as caixas de remédios e realmente tinha todo mundo tinha uma doença para consultar e se curar com o “chefe-enfermeiro”.
bastante soro. (Santo soro glicosado! Quantas vezes me salvou do sufoco!) Muitos vinham de bastante longe e – engraçado – eram quase todos seringueiros,
Os remédios que eu levara eram da CEME – Central de Medicamentos, uma não índios. Após uns quinze ou vinte dias de minha chegada ali, observei que índios
instituição do governo que fabricava e distribuía medicamentos básicos. Por sorte, mesmo praticamente não haviam procurado o posto. Por que seria? Bem mais tarde,
um livrinho acompanhava os remédios da CEME. Era o “Memento Terapêutico”, que fui informado que tanto os Kayabis quanto os Mundurucus evitavam o Posto Kayabi
continha toda a linha de medicamentos e suas respectivas indicações e dosagens. porque o último chefe que ali estivera, ainda na época do SPI, maltratava os índios.
Descobri ali, naquele momento, já à luz de lamparina, que além do soro, tínhamos Cheguei a ver uma pequena “cadeia” onde eram presos e espancados, se não
também a vitamina K injetável, que combate as hemorragias, além de vitaminas do cumprissem as ordens do chefe do posto.
complexo B, que eu mesmo gostava de tomar de vez em quando, e um monte de De qualquer forma, eu jamais me negava a atender os seringueiros. Na
outras coisas. Começava ali minha vida de médico, para-médico e enfermeiro: verdade, não fazia distinção alguma entre índios e não-índios, fossem eles
conhecendo os remédios, lendo suas indicações, dosagens e advertências, seringueiros, gateiros, pilotos e até mesmo os regatões. Em caso de doença, atendia
familiarizando-me com nomes de doenças e efeitos colaterais, contidos no “Memento a todos, tanto no posto, como em viagem, quando acenavam da barranca do rio ou
Terapêutico” da CEME. mesmo me deslocando, exclusivamente para atender, a chamado de qualquer um, a
Fiquei mais tranqüilo. Vamos lá aplicar o soro... E quem disse que eu sabia qualquer hora, quando o caso era grave. A primeira coisa que entendi da real e
aplicar soro? O máximo que haviam nos ensinado no curso, em Brasília, era dar premente necessidade daquela gente, metida naquele pedaço de mundo afastado de
injeção de água em laranjas. E agora ali estava eu, com o frasco de soro e agulhas qualquer conforto proporcionado pela “modernidade”, era a assistência aos doentes.
na mão, numa casa às escuras, com uma mulher muito fraca, com um bando de Porque a subsistência a natureza oferecia com fartura. Os rios da região
pessoas esperando um milagre do “chefe-enfermeiro”. Como eu furei aquela coitada, eram muito fartos em peixes de todas as variedades e espécies da Amazônia: tanto
meu Deus! E o medo que eu tinha de acabar de matá-la! De pegar uma artéria, ao os de couro, como o surubim, o pintado, a cachara, o filhote, a pirarara, o mandubé, a
invés de uma veia, que dizem ser fatal. E o Augustinho, ali, dando palpites: “Olha, se piraíba (cujos espécimes chegam a pesar mais de duzentos quilos), como os de
entrar bolha de ar na veia, ela morre na hora, hein?”. E fura no pé, fura na mão, fura escama: aracu, piabanha, pacu, piranha, tucunaré, tambaqui. Os rios eram
no braço, agora deu, não, “tá descendo uma bolha de ar, tira, tira!”. E eu ali, suando abundantes também em tartarugas e tracajás. A caça era farta e diversificada, com
frio, a lamparina acesa, quase a me queimar os cabelos. Até que pareceu dar certo. suas inúmeras variedades de macacos, antas, capivaras, veados, pacas e caititus,
Nenhuma bolha de ar, os pinguinhos caindo normalmente, vamos botar pingando não sendo raro topar com bandos de queixadas a atravessar os rios – ocasião em
bem devagar, que ela está muito fraca, e a coisa foi indo. Por palpite do Augustinho, que se tornavam presas fáceis. Também os pássaros, como as araras, os vários tipos
injetamos no soro a vitamina K, complexo B e glicose a 25%. Assim aprendi a fazer de patos e marrecos, o mutum, o jacu e o jacamim – este último, um pássaro
esse e outros coquetéis diluídos em soro glicosado, que me ajudou a levantar muita interessante que, quando criado em casa, toma os pintos das galinhas para criar. A
gente. alimentação era completada principalmente com a farinha-de-puba (que no Nordeste
Enquanto o soro fluía, fomos cuidar dos que estavam com malária. Só havia é chamada de farinha-d’água), um tipo de farinha feita colocando-se as raízes da
remédio injetável para malária e tive também de aprender ali, naquele meu primeiro mandioca na água para amolecer e, depois, prensadas e a massa torrada. Muitos
anos mais tarde, fiquei sabendo que esta é a única forma de enriquecer O borrachudo é um pequeno mosquito, que se parece bastante com alguns
proteicamente a mandioca, pois ao ficar no fundo da água, ela incorpora enzimas de tipos de marimbondo. Sendo um mosquito hematófago, ele gruda na pele das
bactérias anaeróbicas. pessoas, para sugar o sangue. Quando ele se satisfaz e se desprega, deixa na pele
Assim, fui levando a vida, adaptando-me aos mosquitos, ao calor úmido e um pequeno calombo, bastante dolorido, de onde, geralmente, escorre um pequeno
pegajoso, aprendendo os termos regionais, aprendendo a gostar de peixe com filete de sangue. A região era toda bastante infestada de borrachudos, piuns e
farinha, a comida de quase todos os dias, a gostar de toda aquela gente. carapanãs.
Tornei-me um chefe-enfermeiro razoável e o Augustinho um bom auxiliar de Na região do Telles Pires, cotidianamente, todos costumam usar o corpo
enfermagem, além de piloto. Em compensação, eu também aprendera a pilotar e totalmente coberto por calças, calçados, luvas e o “cachiné”, inclusive os índios. Mas
assim, íamos revezando-nos nas viagens por aqueles rios e igarapés, dias e noites. para atravessar a “Rasteira”, todos eram obrigados a tirar praticamente toda a roupa,
Às vezes, chegávamos em aldeias Mundurucus e encontrávamos todos – homens, para puxar o barco pela água. Era uma terrível tortura. Em algumas épocas,
mulheres, crianças – totalmente prostrados em suas redes, com malária, gripe, principalmente nos dias chuvosos, os borrachudos eram tantos que se tornava difícil
diarréias. Aplicávamos o inevitável soro (o coquetel, cujos ingredientes variavam enxergar qualquer coisa muito longe, pois eles formavam verdadeiras nuvens negras
conforme o caso) em todos, a um só tempo. Era uma cena interessante de se ver, à sua frente.
aquela quantidade de frascos (30, 40 unidades) pendurados por cipós, pendendo dos Como todos tinham de ficar concentrados em atravessar o barco ou a carga,
caibros da maloca e ligados aos pacientes em suas redes. Inúmeras vezes, depois usando necessariamente as duas mãos, o corpo ficava exposto às picadas dos
de medicar os doentes, tínhamos de sair para pescar, não raro à noite, para fazer um insetos. Das primeiras vezes que atravessei a Rasteira, fiquei febril e tão inchado
“caldo” para os doentes, pois acontecia de estarem tão fracos que não conseguiam que, após a travessia, meu corpo não cabia mais nas roupas. A Rasteira, pela
se levantar. complexidade de seus caminhos e o esforço físico exigido era o terror dos moradores
O fato é que, passados alguns meses daquele primeiro soro, daquela mulher daquelas bandas. A cada viagem às aldeias Kayabis, era grande a dificuldade para
com hemorragia, eu me tornara capaz de achar uma veia na testa de um recém- encontrar companheiros em número suficiente para a travessia.
nascido e a fazer até pequenas cirurgias, nos ambientes mais desfavoráveis, com a Mas este capítulo é dedicado aos Kayabis. Os Kayabis formam um povo do
segurança de um profissional. tronco Tupi – maravilhoso, hospitaleiro e o melhor agricultor indígena brasileiro que
Mas meu trabalho não se resumia a isso. Havia muito mais o que fazer. eu já conheci, opinião que é compartilhada por muitos de meus colegas indigenistas.
Entretanto, a memória que me ficou dos Kayabis do Telles Pires é de extrema tristeza
e melancolia. É que, alguns anos antes, a maior parte desse povo fora transferida
para o Parque Nacional do Xingu, pelos irmãos Villas-Boas. Restaram no Telles Pires
CAPÍTULO IV duas pequenas aldeias, com um total aproximado de umas trinta pessoas, que
OS KAYABIS haviam fugido para o mato e recusando-se à mudança de território.
Contaram-me que os irmãos Villas-Boas mandaram construir uma pista de
Para se chegar às aldeias Kayabi, era preciso sair cedo do posto, na ubá pouso atrás da aldeia (da qual eu realmente encontrei vestígios), onde pousou um
com o motor de popa 10/12. O desafio era chegar o mais cedo possível ao pé da grande avião da FAB (provavelmente um Búfalo). Contaram, ainda, que todos da
cachoeira Rasteira, para tentar atravessá-la antes de anoitecer. Se tudo corresse aldeia tinham sido convidados a dar um passeio sobre as suas terras, para que eles
bem, ela era alcançada por volta do meio-dia, depois de um labirinto de pedras que pudessem conhecê-la do alto. A maioria entrou no avião e nunca mais voltou. Alguns
formavam corredeiras de todas as formas e tamanhos. se negaram a embarcar e fugiram para o mato. Foram aqueles que encontrei ali.
Em média, demorávamos cerca de seis horas para atravessar toda a Um pouco acima das aldeias Kayabis instalara-se a sede da “Mineração São
cachoeira Rasteira. Dependendo da época do ano ou da hora da chegada, éramos Benedito”, pertencente ao Grupo Cooperçúcar, a fortíssima cooperativa açucareira
obrigados a “pousar” durante a travessia. Ali, eu fui entender porque tantas pessoas paulista, que praticamente monopolizava a produção de açúcar e álcool no País,
haviam dito que eu não agüentaria ficar muito tempo naquela região. àquela época. Os Kayabis tinham sido retirados de suas terras para a instalação da
Para atravessar a Rasteira, era necessário fazer dois “descarretos” ou seja, mineração, o que constatei mais tarde, ao saber que a sede da mineração estava
retirar toda a carga do barco e atravessá-la por terra em dois trechos da cachoeira. construída exatamente na faixa de terras que havia sido usurpada do território
Então, o barco vazio era arrastado por cima das pedras, com mais ou menos um originalmente demarcado e reconhecido aos Kayabis.
palmo de água – daí o nome Rasteira. Era um trabalho penoso, que dependia da Essa usurpação havia sido perpetrada em conluio com uma verdadeira máfia
força de vários homens, durante horas. Isso não representaria nada demais, não de agrimensores que existia no Departamento de Terras da Funai, naquele período.
fossem as nuvens do mosquito “borrachudo” que atacavam impiedosa e Esse grupo lesou inúmeras populações indígenas, fraudando demarcações. Sua
ininterruptamente todos que se atreviam a passar por ali. principal tática era trocar nomes de rios e acidentes geográficos, retirando extensas
faixas de terras que comerciavam ou negociavam com os não índios interessados em CAPÍTULO V
sua ocupação. OS REGATÕES
O retorno dos parentes era a única coisa que os Kayabis me pediam. De
subsistência alimentar, eles estavam muito bem. Como já foi mencionado, a região Regatões são comerciantes ambulantes que sobem e descem os rios da
era farta em peixe e caça e eles praticavam uma agricultura diversificada. Cultivavam Amazônia, em barcos de todo o tipo, basicamente trocando produtos industrializados
mandioca, batata-doce, amendoim, cana, banana, cará, inhame. Sua farinha de por produtos da região. Geralmente, dependem de um “aviador” (um comerciante
mandioca era altamente apreciada pelos moradores da região e eles a trocavam com atacadista, ou um regatão mais poderoso), que lhes fornece os bens industrializados.
os regatões por produtos industrializados básicos, tais como roupas, ferramentas, Esses itens se transformam em moeda para a compra de borracha, castanha-do-
anzóis, armas, munições, fósforos, pilhas, sabão, querosene. Fabricavam também, pará, sorvo e balata (espécies de borracha de segunda categoria), farinha de
para consumo e para venda, o “piracuí”, a farinha de peixe. Não lhes faltava o mandioca, farinha de peixe, peixe seco, peles de animais silvestres etc. No Tapajós,
essencial, portanto. Várias vezes tentei contato por rádio com o Parque Nacional do os principais produtos explorados eram a borracha (o látex da seringueira), castanha-
Xingu, porém sem sucesso. Enviei também documentos oficiais para Itaituba e do-pará e peles de animais, principalmente da onça pintada, do gato maracajá e da
Brasília, pedindo informações e repassando a reivindicação dos Kayabi de rever seus ariranha.
parentes, mas jamais obtive respostas. Só me restava ser solidário com os Kayabis Os regatões, por sua vez, mantêm os seus “aviados” – no caso, os
em sua tristeza. Passava com eles temporadas de dois, três meses, apenas fazendo- seringueiros que, nas entressafras da borracha, também se transformam em
lhes companhia, conversando, trabalhando com eles nas roças, caçando, pescando, coletores de castanha e caçadores de animais silvestres. Ficam totalmente cativos da
fazendo farinha, prestando-lhes o mínimo de assistência “médica”. conta com os regatões, que é impagável. Os preços de suas mercadorias são
Mas aquela situação dos Kayabis me causava uma extrema decepção e exorbitantes e, de modo geral, eles enganam os coitados de todas as formas: no
derrubava por terra a verdadeira admiração que nutria pelos irmãos Villas-Boas. Eles peso da borracha e da mercadoria fornecida, nos preços e na soma final da conta. O
eram as principais referências motivadoras da minha obstinada opção pelo objetivo é fazer com que o seringueiro fique sempre lhe devendo e, assim, obrigado a
indigenismo. Cresci vendo e lendo as reportagens sobre os feitos dos Villas-Boas, negociar apenas com ele.
nas revistas O Cruzeiro e Manchete, que meu pai comprava religiosamente todas as Em determinado trecho de rio podem existir vários regatões, disputando
semanas, quando eu era criança, Isso e informações mais detalhadas sobre suas ferrenhamente as “colocações” de seringueiros. Um tenta sempre cooptar o “aviado”
trajetórias, quando já havia me interessado definitivamente pelo indigenismo, os do outro, oferecendo mercadorias pretensamente mais baratas ou convencendo-os a
transformou em verdadeiros ídolos para mim. Agora, ali estava eu com um povo que se endividar com eles.
se dizia enganado por eles, com suas terras invadidas por uma grande empresa de Fazem questão de manter a fama de valentões, de modo a manter os seus
mineração. “aviados” sempre com medo de fazer compromisso com outros. Eles se consideram
Muitos anos mais tarde, conheci melhor a verdadeira história da transferência os reis do pedaço. Habitualmente, na região onde atuam, defloram todas as meninas
dos Kayabis para o Parque do Xingu. Conheci, em Altamira (Pará) o líder Prepori. e, invariavelmente, têm inúmeros filhos que jamais reconhecem ou ajudam. Adoram
Soube, por seu intermédio, que a interferência dos Villas-Boas se dera apenas no promover festas, regadas a muita cachaça, principalmente quando estão
sentido de convencer os Kayabis a abandonar suas terras, devido à perigosa interessados em alguma mulher. Então, chegam com seus barcos, carregados de
proximidade dos regatões e a iminente chegada de garimpeiros à região. Prepori homens que estão sempre levando para cima e para baixo, “pousam” em
disse-me também que estava feliz no Xingu, que as novas gerações do seu povo já determinada casa, embebedam os seus donos e passam a noite se divertindo do
consideravam ali sua terra e que preparavam a viagem de um grupo ao Telles Pires, jeito que bem entendem.
para visitar a terra natal. Fiquei mais aliviado, e se arrefeceu minha mágoa quanto A área de atuação do posto se estendia das aldeias Kayabis, acima da
aos irmãos Villas Boas. cachoeira Rasteira, no Rio Telles Pires, até a sua foz, e daí, subindo o rio Juruena até
Alguns anos mais tarde, em São Paulo, conheci pessoalmente Orlando Villas o “Salto Augusto” – totalizando cerca de seis dias de viagem em motor-de-popa, de
Boas. Ele estava então com oitenta e três anos de idade. Estive em sua casa e um ponto a outro. Como já foi dito, havia naquela área cerca de vinte pequenas
viajamos juntos para Santos, onde participamos de um evento. Conversamos aldeias Mundurucus, que também viviam da extração do látex, da castanha e de
bastante, mas em momento algum toquei no assunto dos Kayabis. Eu simplesmente outros produtos da região. Ali atuavam cinco ou seis regatões, que negociavam
concluí que alguém que chega aos oitenta e três anos com aquela vivacidade, indistintamente com índios e não-índios. Eu vivia às voltas com esses regatões, pois
lucidez e energia criativa não pode carregar culpas no coração. E limpei de mim, uma de minhas funções era garantir a integridade física e o respeito aos direitos dos
definitivamente, essa sombra. índios.
As denúncias chegavam a mim, pela “Rádio Cipó” praticamente todos os
dias: “Fulano fez festa na aldeia tal”; “Beltrano embebedou todos os índios de tal
aldeia”. Na verdade, eles faziam questão de me desafiar e tentar me amedrontar,
pois minha presença na região não era nada confortável para eles. Segundo os ele não se atrevesse a passar em frente ao posto, do meio do rio “pra cá”, porque eu
moradores mais antigos, eram justamente os regatões que espantavam sempre os o mataria. Eu considerava a afronta tão pessoal, que em momento algum me passou
outros chefes que chegavam para ativar o posto. Eu havia tido uma conversa pela cabeça denunciá-lo à Funai ou a quem quer que fosse. Na verdade, é
amigável com cada um deles, pedindo colaboração e oferecendo boa vizinhança, necessário esclarecer que aquele rádio-transmissor a válvulas, se funcionou muito,
mas não dera muito resultado. De fato, a estratégia deles começava a fazer efeito foi uma semana após a minha chegada ao posto e, então, tchau Funai, adeus
sobre mim. Eu estava ficando desmoralizado e, de certa forma, amedrontado, pois “civilização”. Na maior parte do tempo eu nem me lembrava que trabalhava para
não via como dar uma de “xerife” e acabar com a farra, sozinho naquele fim de alguma instituição e o calendário, pelo menos o gregoriano, para mim não existia
mundo – que, aliás, era o mundo deles. mais. Adotara inteiramente o “calendário” amazônico: o tempo da borracha, o tempo
Até que aconteceu um fato, que tenho na conta do sobrenatural, que das tartarugas, o tempo do ovo de tracajá...
mudou toda a situação. A situação ficou muito tensa em toda a região. Por onde eu passava, as
pessoas me olhavam como um homem prestes a cometer um ato dramático. Todos
esperavam o grande desfecho, todos, enfim, eram repórteres atentos da Rádio Cipó,
preparados para transmitir a informação do tiroteio em primeira mão. Onde, afinal, se
CAPÍTULO VI daria o encontro fatal?
O TIRO SALVADOR O Galego, parece, sentiu a força do recado, pois demorou a subir pelas
bandas do posto e quando o fez, passou lá do outro lado (o rio tinha naquele ponto,
Aqui, preciso contar duas novidades: mais ou menos quinhentos metros de largura). Tecnicamente, o “meio do rio” era a
A primeira é que o posto não era mais uma daquelas casas de pau-a-pique divisa legal das terras Kayabi e do posto.
que encontrara. Havíamos construído, com material recebido de Itaituba, três casas O tempo foi passando e o encontro não se dava. Entretanto, juramento de
de madeira: uma para o posto, uma enfermaria e uma escola. Para o posto, já morte é uma coisa definitiva aos olhos do sertanejo. Todos sabiam que, mais dia,
haviam se mudado várias famílias Mundurucus e Apiacás, quase formando um menos dia, nós nos encontraríamos para o desfecho daquele drama. Quanto a mim,
aldeamento. Estávamos construindo uma pista de pouso bem próximo ao posto, as já estava ficando incomodado com aquilo e, aqui pra nós, com bastante medo, após
famílias que haviam ido morar ali haviam feito roçados e, portanto, o “astral” era ter passado o surto de raiva. Afinal, considero-me, por índole e por filosofia de vida,
outro. um pacifista. E, se por azar, acabasse mesmo me encontrando cara a cara com
A segunda novidade é que, aproximadamente dois meses após a minha aquele sujeito, o que iria fazer?
chegada ao posto, havia arranjado uma companheira. Clotildes era filha de Foi aí que o “sobrenatural” aconteceu!
seringueiros da região, tinha forte sangue indígena e passara a viver comigo no Eu havia promovido uma festa no Posto, não me lembro bem a título de quê.
posto. Ela foi minha companheira por quase vinte anos, e tivemos dois filhos, Roberto Havia convidado todas as aldeias próximas, os seringueiros e mais quem quisesse
e Fernanda. Criamos juntos também o Marcos, que já havia nascido quando a vir. Na verdade eu queria promover uma confraternização. Vieram muitas pessoas
conheci. Quando o fato “sobrenatural” aconteceu, ela estava grávida de nosso filho em suas canoas. Apareceu até um regatão, com o qual eu passara me relacionar
Roberto. bem, após ter passado três dias junto ao seu filho, que estava quase à morte, e
Um dia, ao retornar para o posto, de uma temporada nas aldeias Kayabis, colocado o menino de pé.
senti alguma coisa estranha no ar, nas pessoas que viviam ali. Após uns três dias da O Posto estava animado. Muita gente já havia chegado, alguns conversavam
minha chegada, quando eu ainda notava as pessoas agindo estranhamente comigo, animadamente em frente ao posto, outros se encarregavam dos preparativos da
alguém ganhou coragem e me contou o que havia acontecido na minha ausência: festa, cortando lenha ou indo em busca de alimentos, nas roças. Outras “canoadas”
Um regatão, de nome “Galego”, havia literalmente invadido o posto, em companhia eram, de tempos em tempos, avistadas ao longe, com as inevitáveis conjecturas
de uns vinte homens e promovera uma festa, com muita cachaça, obrigando as sobre seus ocupantes. Como anfitrião, eu corria de um lado para o outro, tentando
mulheres, inclusive a minha companheira, a dançarem com eles, durante toda a ajudar e coordenar os preparativos para a festa, ao mesmo tempo em que tentava
noite. dar atenção aos convidados que chegavam.
Fiquei transtornado. Uma grande raiva me subiu à cabeça, um fortíssimo De repente, alguns meninos passaram correndo atrás de um frango, tentando
desejo de ajuste de contas. Eu me sentia atingido não apenas no meu trabalho, mas pegá-lo para matar, a pedido do seu dono. Corre daqui, corre dali, cerca dacolá, e o
também na minha honra. Perguntei se alguém sabia por onde andava o Galego e me frango dando um verdadeiro “baile” em todo mundo, inclusive em alguns adultos, que
informaram que ele deveria estar longe, talvez no Juruena. No estado em que fiquei, tinham decidido ajudar na tarefa dos garotos. Na porta do posto, eu conversava
eu teria saído em seu encalço, caso ele estivesse relativamente por perto e teria descontraidamente com algumas pessoas e assistia a caçada ao frango.
cometido algo precipitado. Como isso era impossível, descarreguei a minha raiva Subitamente, sem muito pensar, entrei na casa, em busca de um revólver calibre 32,
dizendo, a quem quisesse ouvir, que eu mataria o Galego onde o encontrasse e que velho como ele só, que, quando o não levava comigo nas viagens, deixava-o
pendurado em um prego, no quarto onde eu dormia. Desde que o comprara, mal o entretanto, nenhum recurso para a empreitada. Resolvemos “baixar” para Itaituba,
experimentara e sempre o deixava ali, pendurado, pelo menos para que soubessem em busca de aviamentos para entrar na mata.
que eu possuía uma arma. Em Itaituba, recorremos à Funai, sem sucesso. Fomos informados de que
Saí com o revólver para o terreiro e com a maior naturalidade, pedi aos não estavam previstos recursos para o Posto Kayabi, muito menos para apoiar a
meninos que tentavam cercar o frango para se afastarem e, sem mirar muito, atirei. O safra de castanha. Como eu estava há meses no posto, meu salário encontrava-se
frango estatelou-se no chão e não se mexeu mais. O tiro acertara a sua cabeça! E acumulado no banco. Verifiquei que possuía uma quantia razoável. Decidi aplicar
ele estava a uns vinte metros de distancia! Com a mesma naturalidade, entrei, parte do dinheiro na compra dos aviamentos, basicamente, sal, fumo, anzóis, linha e
pendurei novamente a arma e voltei para conversar, como se nada tivesse munição, além de combustível para subirmos o rio e nos deslocarmos até os
acontecido. Os meninos, felizes, carregaram o seu troféu, mostrando a todos a castanhais.
cabeça estraçalhada do frango. Retornamos ao posto e promovemos outra reunião. Expliquei a situação dos
Demorei meses para entender a extensão daquele tiro. recursos e combinamos que, se tudo desse certo, meu dinheiro seria reposto.
Não muito tempo depois daquela festa, recebi a notícia de que o Galego Também acertamos que, aquela seria uma ação coletiva. Todos seriam pagos pela
havia decidido mudar-se do rio. Sem mais nem menos, os outros regatões pararam sua produção, posteriormente à venda da castanha, descontando os valores
de me atazanar a vida. Passaram a me respeitar, a pedir licença para subir o rio e recebidos pelos aviamentos iniciais. Se, além disso, obtivéssemos sobras de
visitar as aldeias Kayabis, já não faziam mais festas regadas a pinga nas aldeias. recursos, elas seriam usadas para fundar uma cooperativa. Era uma palavra
Aquilo me deixava agradavelmente surpreso e admirado. Parecia que um grande desconhecida ali, mas tentamos explicar da melhor maneira possível.
peso havia sido retirado das minhas costas. Os melhores castanhais da terra Kayabi ficam localizados acima da
Muito tempo depois, o Augustinho, que não havia presenciado a cena, pois cachoeira Rasteira. Decidimos explorá-los. Fomos tachados de loucos pelos regatões
se encontrava viajando na ocasião, me perguntou se era verdade o que os e os outros moradores da região. Jamais conseguiríamos “baixar” com a castanha
moradores do rio comentavam (segundo ele, alguns juravam ter visto): que eu era um pela cachoeira, diziam. De fato, durante as cheias, a cachoeira ficava perigosa e
grande atirador, que acertava em moedas que jogava para o ar, estourava fundos de mesmo para embarcações vazias era um desafio atravessá-la. Mesmo assim,
garrafa com a bala entrando pelo gargalo, apagava velas com tiros, essas coisas. decidimos subir. Levamos várias canoas pequenas, atravessadas na ubá. Nosso
Num relance, entendi tudo e respondi: plano era atravessar a cachoeira com a castanha utilizando as pequenas
- Quem sou eu para desmentir a única, a incrível, a verdadeira, a fantástica embarcações a remo, pelos canais periféricos, que se formavam com a cheia do rio.
Rádio Cipó? Então você não sabe Augustinho, que a voz do povo é a voz de Deus? Subimos o rio sem incidentes e entramos na mata em busca dos castanhais,
dividindo-nos em várias turmas. No primeiro dia de acampamento, quase aconteceu
uma tragédia. Eu havia decidido levar Clotildes e Roberto, que tinha cerca de quatro
meses de idade, na viagem. Não foi uma boa decisão.
CAPÍTULO VII No final do primeiro dia, ao acamparmos, ainda bem próximo às margens do
A SAFRA DA CASTANHA-DO-PARÁ rio Telles Pires, armamos nossas redes em uma depressão, uma espécie de canal,
sem perceber o perigo que isso representava. Apenas notei que os Mundurucus
Após uns dois anos e meio da minha chegada ao Teles Pires, as coisas se armavam suas redes bem longe das nossas. Havíamos armado as nossas redes em
normalizavam no posto. Algumas famílias Mundurucus haviam se mudado para as camadas, metidas em um só grande mosquiteiro: a minha rede na parte superior, a
proximidades do posto, para serem mais bem atendidas. Isso também facilitava o de Clotildes no meio e a do Roberto embaixo, para que a mãe pudesse embalá-lo,
nosso trabalho, além de proporcionar uma convivência mais estreita com eles. Meu quando necessário. Esse é o costume na região. À noite, caiu uma grande
filho Roberto já havia nascido, e eu me sentia já bastante adaptado à região e às tempestade. Como as redes estavam armadas embaixo de um plástico, à guisa de
pessoas. barraca, a chuva, em si, não nos perturbava e dormíamos relativamente tranqüilos.
Aproximava-se a safra de Castanha-do-pará (atualmente denominada Em determinado momento da noite, acordei com vontade de urinar. Clotildes
“castanha do Brasil”), que acontece nos meses de fevereiro e março, geralmente o também havia acordado e logo deu o alarme: ao tentar embalar a criança, percebera
período mais chuvoso naquela região. Os prognósticos para a safra eram muito bons. que a água já alcançava a sua rede. Pulei imediatamente no chão, e a água atingiu a
Durante o período seco, os Mundurucus haviam observado a carga dos castanhais altura dos meus joelhos, já praticamente tocando a rede do menino, com uma
da região e as notícias davam conta de uma grande safra. A Castanha-do-pará era, fortíssima correnteza. Entendi, então, porque os Mundurucus haviam armado suas
então, um produto de grande valor no mercado. A maior parte da produção era redes longe das nossas. A depressão se transformava em um verdadeiro rio com as
exportada e havia muita procura por parte dos compradores. águas da enxurrada, que vinha do interior da mata. Agora, ali estavam eles,
Fizemos uma reunião no posto com todas as lideranças Mundurucus da acendendo lanternas, esticando varas em nossa direção, para que pudessem nos
região e decidimos coletar, pela primeira vez, a castanha. Não possuíamos, puxar para fora daquele pântano. Conseguimos, a duras penas, resgatar nossas
redes e passar o resto da noite em relativamente tranqüilidade, mas ficou a lição, que conseguido juntar. Já não sabíamos se ficávamos alegres ou apreensivos, pela
repasso agora aos leitores: nunca armem seus acampamentos em depressões. perspectiva de travessia da cachoeira.
Decidi enviar Clotildes e Roberto de volta ao posto e continuamos nosso Mas era preciso fazer e fizemos. Afinal, não íamos perder todo aquele
trabalho. Ao todo, passamos cerca de quarenta dias na floresta, quebrando trabalho. Montamos nosso acampamento no “olho do furacão”, ou seja, em uma
castanhas e transportando-as para as margens do rio Telles Pires e dos igarapés pequena ilha que existia no meio da cachoeira. Ali, abrimos também uma clareira
afluentes. Extrair a castanha do Pará é um trabalho pesado, extenuante. Ela produz para receber o primeiro “descarreto” da castanha. Abrimos outra clareira no “pé”, ou
em “ouriços”, do tamanho aproximado de um coco-da-Bahia descascado, no interior seja, na parte mais baixa da cachoeira, para receber, finalmente a castanha que
do qual se encontram, em média, doze castanhas. Deve-se, portanto, quebrar o conseguíssemos transportar até ali. O rio estava muito cheio e barrento, o barulho da
ouriço para se ter acesso a elas, o que é feito pelo amazônida com um golpe certeiro água era ensurdecedor. A chuva e os borrachudos não davam trégua.
de facão, tendo-se o ouriço preso em uma das mãos e o facão na outra. Depois de Iniciamos a travessia nas canoas a remo, como havíamos planejado.
juntada e quebrada, a castanha deve ser transportada em “paneiros” até a beira do A operação era um desafio maior do que havíamos calculado. Perdemos
rio, em percursos que podem alcançar dez ou mais quilômetros. Acrescente-se a isso várias canoadas de castanha, na descida das corredeiras. O trabalho era realmente
o fato de que nessa época chove sem parar. Tudo fica molhado, encharcado, pesado. perigoso e extenuante. Encher as canoas, descer com elas com dois remadores em
Acender o fogo para cozinhar algo para comer torna-se uma tarefa de mestre. cada uma, por corredeiras fortíssimas e tortuosas, descarrega-las no “meio” da
Talvez tenha sido essa a minha segunda grande prova de fogo na região. Ou cachoeira, voltar para o ponto inicial, carregando ora a canoa nas costas, por terra,
de água, novamente, se desejarem. Na época chuvosa o número de mosquitos ora remando contra a correnteza, pelos estreitos canais, várias vezes por dia.
aumenta muito, principalmente os borrachudos. Eles não dão trégua, um segundo Depois, realizar a mesma operação, para a parte mais baixa da cachoeira.
sequer. Os mosquitos na Amazônia atuam em “turnos”: do amanhecer até o meio da . Para agüentar aquela quase insuportável situação, não parava de repetir,
manhã, predominam os piuns, um mosquito pequeno e preto. Sua picada provoca para mim mesmo, um ditado que aprendera com meu pai: “Não há mal que sempre
uma coceira local, não muito forte. Ele perturba mais pela sua quantidade, enorme, a vença, nem bem que nunca se acabe”. Após alguns dias começada aquela labuta, os
tentar entrar pelas narinas, pelos olhos. Quando o dia começa a esquentar, entra em Mundurucus pensaram em desistir Tive de fazer um grande esforço de
cena o mosquito borrachudo. Aí você percebe que o pium era apenas um aperitivo. A convencimento para que eles continuassem, aos gritos, naquele barulho infernal.
picada do borrachudo dói e cria imediatamente um calombo no local; se coçar, pode Meu principal argumento era que, se eu, que não era nascido ali estava suportando
infeccionar. No cair da noite, os borrachudos cedem seu lugar aos carapanãs, cujas aquilo para que as coisas melhorassem, por que eles não poderiam fazê-lo? E
“qualidades” já relatei. A presença do carapanã obriga você a se abrigar no depois, se não levássemos a castanha para vender, como eles poderiam receber
mosquiteiro ainda ao cair da tarde, não há como suportá-lo em campo aberto. Até pelo trabalho?
que amanhece, e tudo recomeça. Costuma-se dizer que os mosquitos são os Conseguimos afinal, terminar a tarefa, que deve ter durado uns quinze dias. A
guardiões da floresta amazônica. Acredito mesmo que ela estaria muito mais quantidade de castanha depositada abaixo da cachoeira, afinal, não era tão diferente
devastada, não fossem esses exércitos incalculáveis de piuns, borrachudos e da que tínhamos acima dela. Um grande alívio desceu sobre todos nós. Aquele
carapanãs. Isso, sem falar nos mosquitos “lambe-olhos”, nos carrapatos, trabalho de travessia da castanha havia sido uma verdadeira prova de resistência e
sanguessugas, escorpiões e serpentes, que habitam a floresta. vontade.
Minhas pernas tornaram-se uma só ferida, provocada pelas picadas dos Dali, transportamos a castanha para a sede do posto, sem maiores
insetos. Comecei a sentir ínguas e febre, as roupas colavam nas feridas, fazendo problemas, com o apoio de um barco maior, que Augustinho havia conseguido. No
aumentar a sensação de dor e desconforto. Os antibióticos e sulfas que levava na posto, reencontramos várias turmas que haviam ficado para explorar os castanhais
bagagem não conseguiam curar as feridas. abaixo da cachoeira e que já haviam chegado com suas cargas. Aí sim, ficamos
Fui obrigado a me deslocar para uma aldeia Kayabi, para tentar me realmente surpresos. Tínhamos coletado uma quantidade bastante grande de
recuperar. Ali, fui cuidado por duas mulheres, que regularmente coletavam ervas na castanha! Calculamos a produção em cerca de 300 “barricas” (uma “barrica” é a
mata e faziam com elas uma infusão em água fervente, em uma grande panela, medida de seis latas de vinte litros, de castanha), a maior quantidade já coletada até
sobre a qual colocavam minhas pernas feridas, para receber o vapor emanado pelas então, naquela região, segundo os próprios moradores.
ervas. Isso e mais repouso, foi o suficiente para que, em menos de uma semana Não nos permitimos descansar muitos dias. Após novas reuniões, baixamos
minhas feridas estivessem secas e eu pronto para entrar novamente em ação. novamente o rio com seis líderes Mundurucus e Kayabis, para tentar comercializar a
Depois de termos amontoada a castanha em vários pontos à beira do rio, castanha. À medida que descíamos o rio, nossa surpresa aumentava: o preço da
passamos a transportá-la para uma clareira que abrimos em local próximo à castanha havia “estourado” no mercado regional. As regiões, tradicionalmente
cachoeira, num trabalho que demorou vários dias. O desafio, agora, era atravessar a grandes produtoras de castanha, eram os vales do Xingu e do Tocantins e elas não
Rasteira. Todos nos surpreendemos com a quantidade de castanha que tínhamos tinham produzido praticamente nada naquele ano. Uma das características da
castanheira é que ela, geralmente, dá uma boa produção num determinado ano e no
próximo praticamente não produz. A procura no Tapajós era, portanto, muito maior Ao voltarmos para o escritório, já bastante transtornado, também fui
que a oferta. categórico: “Vou subir o rio sim, mas pra botar fogo na castanha, no posto e em tudo
Recebemos várias ofertas de compra, à medida que descíamos o rio. o mais. Diga a esse seu chefe que, se ele quiser, mande o barco de Belém com a
Sabedores de que o Tapajós havia produzido bem a castanha, os compradores polícia, mas a castanha ele não leva”.
subiam o rio com seus barcos, à procura do produto. Por várias vezes ficamos O chefe da base tentou contemporizar e convencer a mim e aos líderes
tentados em negociar a nossa produção com esses compradores, mas, afinal, Mundurucus e Kayabis que, mesmo perdendo naquele momento, era positiva uma
decidimos chegar até Itaituba. boa “política” com a delegacia de Belém e poderíamos receber verbas no futuro. Não
Fizemos a coisa certa. Quando aportamos em Itaituba e anunciamos a aceitamos a argumentação e comunicamos que iríamos fechar o negócio que ficara
quantidade aproximada de castanha que tínhamos para negociar, um verdadeiro pendente com o comerciante. Ele e o seu chefe que fizessem o que achassem
leilão formou-se à nossa volta. Cada comerciante tentava nos oferecer preços melhor.
maiores e melhores condições de transporte. Acabamos fazendo um pré-acerto com E, de fato, fechamos o negócio. No outro dia saíram os barcos em busca da
um comerciante, que havia oferecido o melhor preço e com o compromisso de buscar castanha. Enviei uma carta com instruções para Augustinho, que ficara no posto e
a castanha, por sua conta, no posto Kayabi, lembrem-se bem, a cerca de 12 dias de ficamos aguardando o retorno dos barcos.
viagem. Para isso, ele se comprometia a enviar três barcos, com capacidade média Uns dois dias depois, provavelmente após novas conversas do chefe da base
de 10 toneladas cada, ao local. O dinheiro que calculávamos conseguir com a venda com o delegado regional, fui chamado ao rádio por esse último, que, bem mais
da safra, era muitíssimo maior do que poderíamos ter sonhado algum dia. ponderado, disse desconhecer que a produção de castanha do posto Kayabi havia
Antes de fechar definitivamente o negócio, decidimos chegar até à sede da sido realizada por esforço próprio nosso e das comunidades e que por isso havia
Funai. Eu considerava que, como funcionário, devia informações sobre o que estava ordenado o transporte da castanha para Belém. Recomendou que, no próximo ano,
ocorrendo ao chefe da base, à qual o Posto Kayabi era subordinado. enviássemos o orçamento da safra para Belém, que o posto Kayabi seria incorporado
Quando comunicamos ao chefe da base a quantidade de castanha que ao processo de financiamento normal de extração de castanha, da Funai.
havíamos coletado, ele levou um susto. Sem muita conversa, encaminhou-se Ponderações que aceitei diplomaticamente naquele momento, mas que jamais
rapidamente para a sala do rádio-transmissor, dizendo que iria comunicar cumpri.
imediatamente o fato ao delegado regional da Funai, em Belém. Enquanto ele O pagamento pela produção foi feito à vista. Logicamente, tomamos todas as
tentava o contato, em rápida conversa, ele me informou que a delegacia da Funai precauções com relação à formalização da transação, com testemunhas, depósitos e
estava desesperada em busca de castanha. Ela havia fechado vários contratos comprovantes de despesas, para que nenhuma acusação pudesse nos atingir
antecipados com os exportadores, confiando em uma boa safra de castanha dos depois. A venda da safra rendera um dinheiro considerável. Com ele, compramos
Kayapós (Mebengokré), moradores no Vale do Xingu e com os Gaviões (Paragatejê) todas as encomendas feitas pelos que haviam participado da coleta de castanha, as
do Tocantins e tudo havia falhado. Ora, eu já havia recebido informações sobre mercadorias para montar uma “cantina” inicial da cooperativa, combustível suficiente
acusações de exploração da , a preços aviltados, dessas etnias por parte da para passar o restante do ano prestando assistência às aldeias e ainda sobrou pra
delegacia da Funai e fiquei ainda mais apreensivo com o desfecho daquela comprar uma lancha com capacidade para doze toneladas, com motor marítimo,
comunicação. bastante conservada.
Quando o delegado da Funai atendeu o rádio e foi comunicado da Esse, e mais outro barco de igual capacidade, que fretamos em Itaituba,
quantidade de castanha que havia no posto Kayabi, imediatamente ele ordenou ao subiram carregados de combustíveis e mercadorias rumo ao posto Kayabi, no mês
chefe da base que ordenasse ao chefe do posto – no caso, eu –, que fretasse de maio de 1977, época em que as chuvas começam a se arrefecer na região, dando
quantos barcos fossem necessários, subisse o rio e transportasse a castanha para lugar ao período de estiagem. Tempo do “verão”, tempo das praias imensas e lindas
Itaituba, pois ele iria mandar zarpar de Belém um barco de grande calado, para do Tapajós, tempo dos tracajás, das tartarugas, das tinguijadas. Tempo da “seringa”,
buscar o produto ali. Tentando manter a calma, pedi ao chefe da base que da extração da borracha.
perguntasse ao delegado qual o preço que a Funai pagaria pelo produto aos Kayabis
e Mundurucus. O preço que ele forneceu era várias vezes inferior ao que havíamos
conseguido na praça de Itaituba, considerando ainda que a Funai pagaria os custos CAPÍTULO VIII
de transporte do Posto Kayabi à cidade de Belém, totalizando cerca de vinte dias de A MALÁRIA
viagem. Antes que o Chefe da Base desligasse, tentei rapidamente argumentar que a
oferta que havíamos recebido era muito superior e que a Funai não havia colocado Tudo corria às mil maravilhas. A “cooperativa” começara a funcionar e
um centavo naquela empreitada. Quando o chefe da base transmitiu a informação, o passara a comprar também a borracha produzida pelas famílias indígenas. Absorvia
delegado foi categórico: não há mais o que discutir, façam o que estou ordenando e ainda, as farinhas de mandioca e de peixe, produzidas pelos Kayabis. Essa produção
câmbio final. de farinhas era trocada na própria região, com os próprios Mundurucus, que,
ocupados com a extração do látex, praticamente não a produziam. Os seringueiros tinha uma companheira, um filho e assumira o outro filho da minha companheira, era
não-índios nos pediam, quase implorando, que comercializássemos com eles. querido e respeitado em toda a região. Não me passava pela cabeça, portanto,
Passamos a atender pelo menos as famílias que tinham descendência indígena mais abandonar aquele lugar. Sentia-me bem ali.
acentuada e alguns seringueiros, que considerávamos bons produtores e confiáveis. Mas, o inesperado aconteceu.
Em pouco tempo, restaram apenas dois regatões no rio Telles Pires. Eles Nos mais de três anos em que eu me encontrava no Posto Kayabi, havia
não agüentaram nossa concorrência. Claro! Somente pelo fato de tratarmos a coisa sofrido inúmeras crises de malária. Em locais endêmicos de malária, como era a
com honestidade, já trazia enormes vantagens para os seringueiros. Com os índios, região do Telles Pires, quando se tem uma crise, é muito difícil saber se trata-se de
fazíamos reuniões periódicas. Tentava fazê-los enxergar as vantagens e como uma nova manifestação da doença ou uma recidiva de malárias antigas, mal
deveria funcionar uma cooperativa. Não era tarefa fácil, depois de anos e anos de curadas.
exploração e pelo fato de não existir um só representante indígena minimamente A malária mais comum na Amazônia é a do tipo “Vivax”. Os sintomas deste
alfabetizado, em toda a região. Senti que o trabalho seria longo e me dispus a tipo de malária são calafrios intensos, acompanhados de febre alta, que duram cerca
enfrentá-lo. Eu havia aprendido a gostar daquele lugar, daquelas pessoas. Sentia- de uma hora. Depois do ataque, a pessoa se sente fraca e apática porque, segundo
me vitorioso e motivado. os médicos, ela destrói os glóbulos vermelhos do sangue. Se não se tomar nenhum
O posto estava ficando cada vez mais movimentado, já tínhamos construído, medicamento que a combata, ela pode retornar em períodos sucessivos de 24 ou 48
com apoio dos Mundurucus, uma pista de pouso para pequenos aviões, o que, aliás, horas, com os mesmos sintomas, deixando o doente cada vez mais fraco. Caso
representou outro enorme desafio. Alguém, por acaso, imagina o que é desmatar, algum tratamento seja tentado, mas não tenha sido suficiente para eliminá-la, os
destocar, cortando pelas raízes, árvores imensas, que chegam a ter dez metros de nematóides se recolhem no baço e no fígado e ali passam a se reproduzir,
diâmetro, depois seccioná-las para que possam ser movimentadas para as laterais, ocasionando novas crises
aterrar as crateras formadas, compactar e nivelar uma pista de aproximadamente Eu já havia perdido a conta das crises de “Vivax” que tivera. A cada crise, me
seiscentos metros de comprimento por trinta de largura, tudo no braço? auto-aplicava injeções de Aralen, ou tomava por um ou dois dias os comprimidos da
Durante esse quase insano trabalho de abrir a pista de pouso, aprendi uma CEME,que haviam à disposição para a doença. Como os sintomas desapareciam,
lição básica sobre o comportamento dos índios, com relação à acumulação. paralisava o tratamento e ficava tudo por isso mesmo. Até o novo ataque.
Para sustentar a alimentação dos homens que trabalhavam pista, haviam Certo dia, à tardinha, após ter trabalhado duro durante todo o dia, ajudando o
sido destacado dois caçadores e dois pescadores, que todos os dias, bem cedo, pessoal a fazer uma derrubada para roça, comecei a sentir um certo mal-estar, uma
saíam para tentar conseguir o alimento cotidiano . Assim, com maior ou menor fartura febre baixa e uma ligeira dor no pescoço. Não dei muita importância ao fato,
de alimentos, às vezes comendo somente farinha de mandioca, íamos tocando o considerei que devia ser por causa do esforço feito durante o dia.
trabalho normalmente. Certo dia, bem em frente ao posto, uma grande vara de No dia seguinte, a febre persistiu, apesar dos anti-térmicos que eu havia
porco-queixadas caiu no rio, para atravessá-lo. Era uma manada enorme, talvez tomado para combatê-la. Meu pescoço agora doía bastante e comecei a ter uma
umas quinhentas cabeças de porcos. Foi um alvoroço. Todos que ali estavam diarréia forte. Continuei tomando medicamentos contra a febre, ainda convencido de
pegaram suas canoas e ubás e foram atrás deles. Os animais, ao atravessarem os que tudo não passava de conseqüências do esforço físico exagerado que fizera.
rios, tornam-se presas fáceis. No caso dos porco-queixadas, são mortos a pauladas No terceiro dia, a situação só piorava. A febre nunca era muito alta, mas
e jogados para dentro das embarcações. Saldo da mortandade: cerca de quarenta e também não cedia, a diarréia estava incontrolável e o pescoço já totalmente duro.
cinco cabeças abatidas, contando somente as que foram trazidas para o No quarto dia, preocupados, os Mundurucus formaram uma “junta” de
acampamento dos homens que trabalhavam na pista-de-pouso. Pensei: agora, o médicos-curadores e vieram me oferecer seus serviços. Logicamente, aceitei. Eles
trabalho vai render, comida não vai faltar. Ledo engano! Grandes jiraus de madeira diagnosticaram deslocamento de vértebras do pescoço, pelo esforço da derrubada, o
foram montados, para que a carne fosse moqueada. Enquanto existiu um naco de que estaria provocando todo aquele desarranjo. Fizeram então uma série de
carne de porco-queixada naquele acampamento, ninguém trabalhou na pista. Só massagens, tentando colocá-las no lugar. É bom registrar que os Mundurucus
comiam e cantavam. Noite e dia. No início, estranhei e fiz menção de incentivar os possuem uma técnica bastante apurada de massagem, que se destina a deslocar e
homens ao trabalho. Acabei entendendo a lógica da coisa e entrando definitivamente recolocar as vértebras e articulações em todo o corpo, alinhando-as, como forma de
no grupo de comedores diuturnos de carne de porco-queixada. Afinal, para os índios, combater determinados males. É uma técnica usada também para lidar com
o que chamamos de “trabalho” (cuja tradução literal, aliás, não existe em luxações, torções e fraturas. Mas, no meu caso, não funcionou.
praticamente nenhuma língua indígena), é apenas a busca pela subsistência e pela No quinto dia, à tardinha, chegou o Augustinho, que estava viajando para as
realização dos rituais, festas e brincadeiras. Se essas coisas estão temporariamente aldeias Kayabis e se apavorou com o meu estado. Ouvi-o, logo em seguida à sua
resolvidas, trabalhar pra quê. chegada, proferir uma frase que ouviria várias vezes, nos dias seguintes: “vamos
Outro cuidado que havíamos tido, foi trazer médicos e dentistas das Equipes tirar ele rápido daqui, senão ele vai morrer”. Realmente, eu já me encontrava muito
Volantes de Saúde – as EVS da Funai, à região, em várias ocasiões. Além disso, eu
fraco. A diarréia era incontrolável, não tinha vontade de me alimentar e a febre nunca hospitais em Belém e agora ganhava a vida percorrendo os garimpos da região,
baixava, por mais remédios que tomasse. tratando os garimpeiros.
Augustinho preparou o mais rápido que pode, o barco para a viagem. Saímos “Gente, este homem está morrendo!”, foi o que ela disse, assim que me viu.
no início da noite. Puseram-me deitado em uma rede, que fora armada na cumeeira Pediu aos presentes que juntassem algumas mesas da pensão e me colocassem em
da “tolda” da ubá. Nosso estoque de gasolina era pequeno e não daria pra chegar em cima. Ordenou que alguém providenciasse gelo, imediatamente, enquanto ela própria
Barra do São Manoel, local mais próximo onde se poderia tentar conseguir mais saía apressada, em busca de remédios. Voltou rápido, de uma farmácia que havia
combustível. Teríamos que viajar grande parte do percurso “de bubuia”, ou seja, em frente à pensão, preparou uma grande dose de medicamentos em uma seringa e
deixando a correnteza levar o barco. O motor era ligado apenas nos trechos mais me injetou o remédio o mais rápido possível na veia do meu braço. Ato contínuo,
calmos do rio. Clotildes e meus dois filhos, Marcos e Roberto, viajavam conosco. pegou o gelo, que já haviam trazido, adicionou água e encharcando uma toalha,
Chegamos a Barra do São Manoel na metade do dia seguinte. Tiraram-me começou a molhar meu corpo com aquela água gelada. Durante todo o tempo da
da rede e me levaram para a casa da família do Augustinho, onde me puseram em operação, ordenava que não me deixassem dormir, que me dessem palmadas no
outra rede e tentaram fazer com que eu comesse alguma coisa. Dona Honorina, rosto e nas solas dos pés e conversassem comigo.
esposa de Augustinho, tentou, durante todo o resto daquele dia me tratar com Passada cerca de meia hora, senti meu corpo reagindo, já não me sentia tão
remédios caseiros. Eu só piorava. fraco e a sensação de febre desaparecera. Levaram-me então para uma cama em
Quase à noite, ouvi pela segunda vez, agora pela boca de Dona Honorina, a dos quartos da pensão e a ouvi dizendo para minha companheira, que dali em diante
frase fatídica: “Augustinho, tira logo esse homem daqui, senão ele vai morrer”. eu poderia adormecer e que ela providenciasse um caldo bem quente, para me dar
Augustinho aquiesceu e decidiu iniciar viagem mesmo à noite. Tocamos rio abaixo, quando eu acordasse.
agora com mais combustível, mas ainda não o suficiente para tocar direto até Nunca mais encontrei essa mulher, apesar de tê-la procurado depois,
Jacareacanga, nossa próxima escala. A febre nunca cedia e agora, além da diarréia, insistentemente, por toda a região. Nem ao menos consegui saber o seu nome.
também vomitava. Eu não conseguia mais ter o mínimo controle sobre meu Durante a madrugada acordei, consegui tomar o caldo que minha
organismo e dependia agora totalmente da minha companheira, inclusive para fazer companheira havia preparado e então ouvi pela quarta vez a frase fatal. Era a mulher
minha higiene pessoal. do mineiro, dizendo pra ele, no quarto ao lado: “olha, se eu fosse você, a primeira
Um imenso temporal desabou naquela noite, fazendo o rio ficar encapelado. coisa que faria amanhã era tirar esse homem daqui, senão ele ainda vai morrer e dar
Não se enxergava absolutamente nada, tudo era uma só escuridão. A ubá jogava trabalho pra gente”.
violentamente, fazendo com que os esteios da “tolda” rangessem, como querendo se Não deu outra. Antes que soassem as sete horas da manhã, o mineiro
quebrar. Minha rede, amarrada a ela, era jogada de um lado ao outro de acordo com chegou anunciando que havia conseguido um avião para me levar para Itaituba, na
as ondas, dando a impressão que meu peso faria a pequena embarcação virar de condição que eu acertasse o pagamento com o piloto, quando chegasse lá.
vez. Mas como já disse, os práticos da Amazônia são verdadeiros mestres e não - Claro!, concordei. Não há problema.
precisam de olhos para navegar. Mesmo com a escuridão e a tempestade, Se é que aquilo podia ainda ser chamado de avião! Eu estava acostumado a
Augustinho não parava e conseguiu passar, ainda durante a noite, pelas “corredeiras ver e a voar nos aviões “teco-teco” que infestavam a região, em função dos
do chacorão”, outro longo trecho encachoeirado do Tapajós, pouco abaixo do garimpos. Todos nós considerávamos os pilotos de garimpo “meio” loucos, sabíamos
encontro dos seus formadores. que os aviões não tinham a mínima manutenção e histórias de quedas e peripécias é
Chegamos à vila de Jacareacanga no início da tarde do dia seguinte. Eu já que não faltavam. Mas aquele era demais! Pra começar, o assento do piloto era um
me encontrava totalmente sem forças, não conseguia mais me levantar. Sentia que caixote desses de feira e o do co-piloto (no caso, eu), um saco de arroz, deitado. Pior
minha língua queria enrolar e as coisas e os sons estavam ficando longe, difusos, ainda pra minha companheira e meus filhos, que foram na parte de trás da
opacos. Levaram-me, na rede, para uma pensão na vila, onde eu costumava ficar “aeronave”, que nem assento tinha. Na verdade, não havia nem um simples tapete,
quando passava por ali e cujo dono era da mesma região onde nasci, em Minas apenas a fuselagem, já bastante enferrujada. No painel, fios saindo de todos os
Gerais. lados, relógios pendurados, esparadrapos segurando botões de comando. Nem
Lembro-me de estar deitado no chão da sala da pensão, com um círculo de bússola o infeliz daquele avião tinha.
pessoas à minha volta, agora quase apenas vultos, os comentários distantes, a Eu ainda me sentia muito fraco, apesar de já conseguir andar e me sentar.
consciência se esvaindo, lentamente. Não sentia mais dor, angústia ou ânsia, apenas Tinha uma certa sensação de “zumbi” – se é que vocês me entendem: não tinha
uma imensa fraqueza, um lento apagar de forças. emoções, estava completamente apático. Mas, penso que por causa da ausência da
De repente, um anjo apareceu para me roubar da morte. febre, depois de tantos dias, essa sensação de apatia se mesclava com uma certa
Era uma mulher, uma enfermeira de garimpo, especialista exatamente em felicidade. De estar vivo, talvez, naquele solzinho da manhã, o vento batendo no meu
malária, o grande mal daquelas paragens. Havia sido enfermeira em grandes rosto. Estava achando tudo normal, normalíssimo. Enquanto o piloto se preparava
para dar a partida comecei até a achar aquele avião bastante simpático.
E não é que o danado voava? Decolou direitinho, ainda fez umas mesuras confirmava, que os sintomas da malária deveriam ter desaparecido desde a primeira
por cima da vila, o piloto queria avisar não sei o que para alguém. Finalmente, aplicação do medicamento.
pegamos a rota, ou seja, a vista do leito do Tapajós e lá fomos nós. No quarto dia, acordei com Clotildes chorando baixinho. Procurei saber o
Não demorou muito, avistamos a aproximação de uma imensa tempestade que se passava e ela não respondia, apenas aumentava o choro. Olhei então para o
amazônica. O piloto ainda tentou escapar dela, mas ele não podia sair muito da rota meu corpo e entendi: eu estava todo inchado, um claro sinal para o pessoal da
(lembrem-se, o avião não tinha bússola) e foi inevitável penetrar com aquela coisa região, de que a pessoa está próxima da morte.
minúscula naquelas imensas nuvens negras. Enquanto viver, jamais poderei Buscaram o médico às pressas e, ao chegar, esbaforido, exclamou:
esquecer aquilo. A impressão que eu tinha é que éramos folhas secas no olho de um - Então era isso! A febre não era mais da malária, mas de uma bruta infecção
enorme redemoinho. Raios, trovões e a chuva batendo no pára-brisas como se renal.
fossem pedras. Volta e meia, um grande vácuo, mas tão prolongado e violento que a E tome antibióticos e tome mais medicamentos para malária, por via das
impressão que eu tinha é que espatifaríamos no solo. Mas não, de repente ele subia dúvidas. Dieta rigorosíssima. Nada de sal ou gordura. Repouso absoluto. As dores
tão violentamente como descera, pra mais à frente reiniciar nova descida, de barriga. que eu sentia nas costas eram intensas e me era quase insuportável permanecer
E o piloto ali, assoviando, tranqüilo, como se estivesse conduzindo um carro de boi. deitado. Mas eu estava tão fraco, que também não conseguia permanecer mais do
Eu estava imune às sensações. Minha companheira e meus filhos viajavam pela que alguns minutos sentado ou em qualquer outra posição.
primeira vez de avião e então deviam achar que tudo aquilo também era normal. E Foi uma longa convalescença, toda ela passada ali mesmo, na base de
assim, Deus sabe como, varamos aquela tormenta. Itaituba. Uma cama de alojamento tipo beliche, um quarto de madeira coberto com
Quando saímos no claro, o piloto identificou novamente o leito do Tapajós, eternit, um colchão horrível, um calor massacrante e os terríveis carapanãs
corrigiu o rumo, e pôs-se novamente a assobiar, feliz da vida. Foi aí que minha atazanando a noite toda.
companheira, que nunca tinha ido a Itaituba, mas também sabendo que outra cidade Só consegui colocar os pés no chão passados cerca de quarenta dias da
não havia por aquelas paragens, olhando para trás pela janelinha lateral, perguntou minha chegada. Emagrecera muito, sentia tonteiras. Estava branco como cera e
timidamente: “será que aquilo lá atrás não é Itaituba?”. E o piloto, na maior cara-de- fraco, muito fraco.
pau: “Rapaz, não é que é mesmo?”. Fez o avião retornar e pousamos. Já em terra Mas, aos poucos, fui me fortalecendo, me firmando novamente. Apesar do
ele me chamou de lado e falou: “Agora posso te contar: só tínhamos combustível desconforto dos alojamentos, sempre fui muito bem tratado pelo pessoal da base,
para mais uns cinco ou dez minutos. Se a sua esposa não dá o aviso, estávamos que não se descuidava com as comidas e com chás caseiros. Minha companheira,
lascados, o próximo aeroporto é em Santarém, quase duas horas rio abaixo”. agora mais familiarizada com a base, estava sempre atenta.
Normal. Para mim, tudo era normal. Resolvi viajar para Brasília, para me recuperar durante algum tempo. Fui,
Fomos para a base da Funai, onde ficamos hospedados. No mesmo dia, a com a minha companheira e meus filhos. Novamente, Roberto e Regina, foram muito
febre voltou forte. Mandaram vir o médico na cidade, que mandou tirar sangue para mais do que irmão e cunhada. Após uns trinta dias descansando e me alimentando
exame de malária. No fim do dia, ele veio pessoalmente com o resultado: bem na casa deles, sentia-me pronto para retornar ao Telles Pires. Mas, não tão
- Você não é mais uma pessoa, é um cemitério ambulante. Nunca vi tantas ansioso como antes. Eu não sabia como iria encarar tudo novamente.
cruzes juntas. Bem que eu tentei. Consegui ficar ainda alguns meses no posto Kayabi, mas
É que o exame tinha acusado várias “cruzes” de malária, dos tipos “Vivax”, não era mais a mesma coisa. Eu tinha enorme receio de contrair outra malária. Fiquei
que já conhecíamos e do tipo “Falsiparum”. Segundo ele, o ciclo de uma entrava no retraído, não tinha mais o mesmo ímpeto de antes. O próprio Augustinho me
da outra e minha corrente sangüínea havia se transformado em um verdadeiro salão aconselhou a pedir transferência.
de festas dos nematóides da malária. E me explicou: “o tipo “Falsiparum” é mais raro, E assim, com o coração apertado, mas sabendo que tudo ficaria bem nas
mas existe na Amazônia. Seus sintomas são diferentes, a febre é contínua, nunca mãos do meu grande amigo (que se encontra lá até hoje), fui-me embora do posto
cede, mesmo com antitérmicos, os músculos do pescoço se enrijecem e vem a Kayabi, levando minha companheira e os dois filhos. Eu ficara, ao todo, três anos e
diarréia. A falsiparum pode matar em poucos dias, se não for tratada. Os moradores meio na região. Pelo menos, pensei, não foram apenas os três meses que me deram,
da região a tratam por “caladinha’”. quando subi o rio pela primeira vez.
Ele iniciou então um tratamento em regra contra malária, via endovenosa.
Pela primeira vez, eu próprio experimentava um coquetel em soro glicosado, que
tanto aplicava nas pessoas lá no alto do rio. Fiquei tranqüilo. Tudo agora seria uma
questão de tempo, pensei. CAPÍTULO IX
Pensei errado. Após três dias de aplicação do coquetel, a febre não havia XAVANTES
cedido. O médico estava ficando intrigado e preocupado. Eu já sabia, e ele
Depois de sair do Tapajós, passei novamente por Brasília, onde deveria Os Xavantes estavam em pé de guerra. Tinham chegado na tarde anterior do
escolher um novo posto para atuar. Inicialmente, fiquei tentado a voltar para a ataque às fazendas e estavam muito agressivos. Assim que desci do avião, fui
Amazônia. Quase fui parar no Vale do Javari, no estado do Amazonas, onde existiam cercado por um bando de guerreiros, todos pintados para a guerra. Queriam saber
(aliás, ainda existem) vários povos indígenas sem contato. Acabei aceitando, quem era eu e o que viera fazer ali. Expliquei que era da Funai e havia sido enviado
entretanto, uma proposta para trabalhar junto aos Xavantes, em Mato Grosso. Entre pelo Odenir. Exaltados, diziam que queriam a presença do presidente da Funai e de
outras coisas, pesou na minha decisão o fato de a região dos Xavantes não ser ninguém mais. Queriam que eu entrasse novamente no avião e fosse embora.
endêmica de malária. Entrou então em cena, uma figura que era a autoridade em pessoa e da qual
Em Barra do Garças ficaria sabendo em que Posto iria atuar, onde existia eu jamais iria esquecer: Warodi, o chefe da aldeia, filho e sucessor do lendário
uma Ajudância Regional da Funai, chefiada pelo sertanista Odenir Pinto de Oliveira, cacique Apowen (conhecido como “Apoena”), que morrera há apenas um ano.
do qual me tornei amigo pra toda a vida. Vocês já ouviram falar em um ditado popular Warodi fez um longo discurso em Xavante, que foi traduzido sumariamente para mim,
que diz: “eles comeram um quilo de sal juntos”? Segundo a sabedoria popular, duas como: “ele vai deixar você ficar, mas se o presidente da Funai não vier, você será
pessoas que comeram juntas um quilo de sal jamais deixarão de ser amigas. É o expulso e ele não aceitará mais ninguém do governo aqui e vai matar todos os
meu caso e do Odenir. Aliás, a essa altura da vida, já devemos estar pelo quarto brancos que estiverem dentro de suas terras”.
quilo de sal, pois, volta e meia, continuamos a atuar juntos. Transmiti, via rádio, o recado para Odenir. Dois dias depois, chegou uma
Barra do Garças era uma das portas de entrada da colonização sulista do comitiva de Brasília, com um representante da presidência da Funai. Houve uma
oeste brasileiro, incentivada pelos governos militares, a partir do início da década de longa reunião, onde foram acertados prazos para a demarcação das terras. Ficou
setenta. Milhares de migrantes oriundos do Paraná, Rio Grande do Sul, Minas e São também decidido que eu continuaria ali no posto, até novos entendimentos. Tudo
Paulo transitavam pelas ruas enlameadas da cidade, em seus tratores e ficou mais calmo e eu pude então tomar pé da situação.
caminhonetes. O crédito no Banco do Brasil para compra de terras, desmatamento, Odenir havia me contado, durante a visita da comitiva de Brasilia, a situação
plantio de arroz e criação de gado, era farto e rápido. Grande parte dos colonos era das terras. Tinha havido uma grande fraude na demarcação da área, perpetrada
trazida pelos aviões da FAB, que aterrissavam na Base Aérea de Aragarças, do outro pelos próprios agrimensores da Funai, que formavam a “máfia” a que me referi
lado do Rio Araguaia, vindo direto dos estados sulistas. anteriormente. Eles haviam trocado os nomes de serras e rios que constavam dos
Os Xavantes, por sua vez, estavam lutando em vários pontos, pela mapas e dos memoriais descritivos, encolhendo as terras em aproximadamente cem
demarcação e desintrusão de suas terras, invadidas justamente pelos sulistas. Eu mil hectares. Essas terras, eles próprios lotearam e venderam, e ficaram com
queria ir para uma dessas áreas de conflito, mas Odenir achou melhor me enviar algumas das melhores glebas.
inicialmente para uma área denominada “Marechal Rondon”, no município de Naquele momento (1978), vinte e uma grandes fazendas ocupavam a parte
Chapada dos Guimarães. leste e sul da área de Pimentel Barbosa, além de cinqüenta e seis famílias de
Era um local paradisíaco, às margens do Rio Batovi, com apenas uma aldeia, pequenos posseiros que ocupavam a parte norte. Algumas dessas fazendas
de aproximadamente cento e cinqüenta pessoas. Aquela área não apresentava pertenciam a grandes grupos empresariais, como “Real Expresso” e “Stefani
problemas de terras, a pesca e a caça eram fartas, a aldeia possuía um bom rebanho Transportes Líquidos”, entre outros. Eram fazendas muito bem estruturadas, com
de gado bovino, não havia grandes problemas de doenças, tudo tranqüilo demais grandes sedes, inúmeras máquinas agrícolas, secadores de cereais e muitas
para o meu gosto. Pensava: “esse é o tipo de lugar para o qual eu quero vir após cabeças de gado. Uma dessas fazendas, pertencente à UTA S/A, estava situada a
completar os meus setenta anos”. menos de cinco quilômetros da aldeia, no alto de uma elevação. Quando, à noite (e
Certa noite, ouvi pelo noticiário do rádio que os Xavantes da aldeia de era quase todas as noites) eles ligavam os tratores de esteira e a serraria da
Pimentel Barbosa haviam queimado três fazendas em sua região. Pensei com meus fazenda, não conseguíamos dormir cá embaixo.
botões: “Caramba, era lá que eu queria estar agora”. O estado geral da aldeia era lastimável. Muitas doenças endêmicas, crônicas
Acho que meus botões escutaram e andaram comentando com alguém, e sazonais (inclusive vários casos de pênfigo foliáceo, o “fogo selvagem”), falta de
porque no outro dia pela manhã, Odenir me chamou pelo rádio. Queria que eu fosse alimentos e um certo caos social. Warodi me contou com enorme tristeza, com a
imediatamente para Barra do Garças. ajuda de um intérprete, que os jovens viviam espalhados pelas fazendas, fazendo
Fui, sem saber exatamente para quê. Cheguei à tarde e, após me apresentar serviços de peões, como roçar pastos, colher arroz, etc., sem se importar mais com
na Ajudância, Odenir me disse: “Amanhã você vai bem cedo, de avião, para Pimentel as festas e com a produção própria de suas famílias. Em troca de seu trabalho,
Barbosa. A coisa lá está quente e não há ninguém no posto. Tenho medo que os chegavam em casa com alguns pacotes de açúcar, café, bolachas, que mal davam
fazendeiros ataquem a aldeia”. para um dia.
Pedi a ele para que providenciasse a remoção da minha família para Barra Eu ficava avaliando como a nossa sociedade é perversa, cínica, mentirosa.
do Garças e, no dia seguinte, voei para Pimentel Barbosa em um pequeno Durante anos, os Xavantes tinham resistido ao contato, exatamente na região de
monomotor. Pimentel Barbosa. Eles já tinham experimentado a convivência com o homem branco
em outras ocasiões, quando habitavam os estados da Bahia e Goiás, retiraram-se da aldeia e me avisaram. A intenção deles era chamar a atenção de Brasília para o
para o oeste e sabiam que não poderiam confiar neles. Na década de cinqüenta, com compromisso da demarcação das terras e a retirada das fazendas.
os planos já em andamento da “marcha para o oeste”, idealizada por Getúlio Vargas, O ataque foi planejado para o amanhecer. No dia marcado, vi os guerreiros
o governo envia seus “sertanistas”, que durante anos, oferecem presentes e passarem defronte ao posto, devidamente paramentados para a guerra. Os
amizade, atraindo-os. Xavantes, ao partirem para uma ação desse tipo, costumam mastigar uma raiz, que
Até que um líder, Apowen, decidiu fazer o contato. Os acordos são feitos e os deixam extremamente excitados e agressivos. Cheguei a temer por violência
nesses momentos, os líderes indígenas pensam que estão tratando com iguais. O contra os moradores da fazenda.
território é delimitado, o governo oferece segurança e proteção contra o avanço da Mas não aconteceu nada de grave. Pegaram os trabalhadores ainda
“civilização”, que ele mesmo planejou e executou e depois seus próprios dormindo e fizeram com que jogassem todos os seus pertences nos caminhões e
representantes os roubam e os levam à miséria e à humilhação. Em quem confiar? tratores da fazenda e fossem embora imediatamente. Aproveitaram para saquear
Para onde ir? De um lado, o governo que os enganou. De outro, fazendeiros tudo e matar todos os animais domésticos que encontraram pela frente. Porcos,
armados prontos a atacá-los, ao menor sinal de fraqueza. galinhas, patos, perus, cabritos, cada guerreiro procurava trazer um troféu para a
Eu me sentia envergonhado de tudo aquilo e prometi a mim mesmo ajudar a aldeia. Mataram também um touro nelore “P.O. (Puro de Origem)”, caríssimo, o que
reparar aquele erro. mais tarde gerou reclamações insistentes por parte dos donos da fazenda.
A terra era importante, mas era preciso cuidar primeiro da barriga. Estava No retorno dos guerreiros, passei um comunicado oficial por radio para
em andamento o “Projeto Xavante”, desenvolvido pela regional de Barra do Garças. Barra do Garças e Brasília, informando que os Xavantes estavam novamente em pé
Ele previa a compra de tratores, implementos e insumos para as aldeias plantarem de guerra, que haviam atacado uma fazenda e que avisavam que atacariam outras
arroz. Eu tinha sérias dúvidas sobre a validade dessa proposta, mas os Xavantes a se o presidente da Funai não viesse até a aldeia.
reivindicavam. Afinal, era o modelo que estava sendo mostrado a eles. A estratégia surtiu efeito. No outro dia, o Coronel Nobre da Veiga, presidente
Recorrendo aos recursos do projeto, compramos um trator, um caminhão da Funai, em pessoa, baixou de avião no posto. Integraram Odenir à comitiva, em
pequeno, uma colheitadeira, insumos, sementes e nos preparamos para a primeira Barra do Garças.
safra de arroz. Em reunião no “Warã” (o conselho tribal), decidimos que cuidaríamos Nobre da Veiga era um militar extremamente autoritário e prepotente. Na
também das roças tradicionais, feitas a machado. Todas as famílias deveriam fazer reunião que se seguiu na sede do Posto, sua estratégia foi a de convencer os
suas lavouras, diversificadas como sempre fizeram e faríamos também uma grande Xavantes a aceitarem as terras que foram propostas pela Funai, de forma cínica e
lavoura manual, coletiva. A lavoura mecanizada prevista no projeto deveria ter a mentirosa. Para isso, mostrou dois mapas da área exatamente iguais, só que em
extensão de duzentos hectares, onde plantaríamos não somente arroz, mas também escalas diferentes, dizendo: “vejam só: antes vocês tinham isso (mostrou o mapa em
milho, cana, abóbora e melancia. Todos os rapazes que estavam trabalhando nas escala menor) e agora vocês têm isso (mostrando o outro em escala maior). O que
fazendas deveriam retornar à aldeia para esse esforço e assim foi feito. vocês querem mais?”
Além disso, contratamos um vaqueiro da região para cuidar de um pequeno Os Xavantes olhavam aquilo sem entender nada, mas desconfiadíssimos.
rebanho bovino, cerca de setenta cabeças, que estava espalhado pelo mato e Não resisti e disse: “Mas, coronel, esses mapas são iguais”. Ele me fuzilou com o
compramos mais umas sessenta cabeças pelo projeto. Decidimos também fazer um olhar. Ato contínuo, um velho Xavante pegou os dois mapas amassou-os, jogou-os
pomar com árvores frutíferas. O trabalho tornou-se intenso, quase frenético. Dia e no chão e “matou-os” a bordunadas. A reunião terminou com o coronel sendo levado
noite eu me revezava com Ubdö, o tratorista Xavante, no trabalho de desmate, pelos guerreiros para o avião, gritando coisas do tipo “mas para que vocês querem
destoca, “enleiramento”, aração e nivelamento do terreno, as fases preparatórias tanta terra”?
para o plantio nos cerrados. Zezinho, o motorista que contratamos para o caminhão, Daí em diante, os Xavantes não tocaram mais no assunto das terras com
deslocava-se de um lado para o outro, transportando materiais. O restante da aldeia, ninguém, nem comigo. Dava a impressão de tinham se esquecido. Enquanto isso, as
por sua vez, trabalhava nas lavouras manuais. Warodi voltara a sorrir e nós nos roças cresciam e amadureciam.
tornávamos cada vez mais amigos, apesar dele não falar uma palavra em português
e eu, obviamente, nenhuma palavra em Xavante.
Todas as roças foram plantadas e esperamos as chuvas, que vieram
abundantes. E tudo se encheu de verde. Meu coração transbordava de alegria, ao CAPÍTULO X
ver as plantas brotando e eu sentia que os Xavantes também estavam muito alegres. A FRUSTRADA SOCIEDADE BRASILEIRA DE INDIGENISTAS
Depois das roças plantadas, os Xavantes se lembraram (logicamente, nunca
haviam se esquecido) de que o prazo acertado para a demarcação das terras havia Deixemos as roças dos Xavantes crescendo e voemos direto para Brasília
vencido, sem que ninguém tocasse mais no assunto, por parte de Brasília. Após onde, em fevereiro de 1980, também estávamos empenhados com outros colegas
várias reuniões no Warã, decidiram atacar a fazenda Uta, a que ficava mais próxima indigenistas de todo o país, em fundar a SBI – Sociedade Brasileira de Indigenistas.
Éramos cerca de setenta, em uma reunião articulada o mais discretamente possível, Mas não foi somente por isso. Existe um outro dado nessa história, quase um
via rádio, que o regime militar ainda estava bastante fechado e não permitia a segredo, que vou contar pra você, caro leitor: os indigenistas acabam absorvendo
formação de agremiações de classe. muitos dos aspectos das culturas e dos modos de agir dos povos com os quais
Estavam no auge da implantação os grandiosos projetos idealizados pelo convivem mais intensamente. Assim, um se transforma em “meio” Kaxinawá, outro
regime militar, como a Transamazônica, a Perimetral Norte, as Usinas de Tucuruí e “meio” Yanomami, outro “meio” Xavante, e assim por diante. Acabam se tornando
Balbina, além da penetração do Centro-Oeste pelos colonos sulistas, incentivados então muito diferentes entre si, na forma de pensar e agir. Absorvem essa autonomia
pelo governo. A pressão sobre as populações indígenas, as invasões e os conflitos e auto-suficiência que cada povo indígena possui, pois assim é o mundo tribal. Essa
eram enormes. O governo usava o Departamento de Índios Isolados da Funai para “auto-suficiência” do indigenista é também realçada pela sua vivência em campo,
atrair e tirar do caminho as “tribos hostis”, criando entre os “sertanistas” (ramo onde se vê obrigado a resolver, muitas vezes sozinho, questões complicadas, em
profissional do indigenismo da Funai que atua com os povos indígenas sem contato situações extremamente desfavoráveis.
com a sociedade envolvente) e os “indigenistas” (que atuam geralmente com os Por extensão, entende-se como também é complicado se estruturar uma
povos em contato), uma relação de desconfiança e quase conflito. Nos postos união nacional entre os povos indígenas, apesar de não ser impossível.
indígenas, os militares exploravam o patrimônio indígena – ouro, madeira, gado,
arrendamento de terras e continuavam a transferir os recursos auferidos para a
“Renda Indígena”, um fundo do qual ninguém tinha informações sobre sua real CAPÍTULO XI
destinação. DE VOLTA AOS XAVANTES
Éramos um bando de jovens com os nervos à flor da pele, revoltados com o
que os militares estavam fazendo com os povos indígenas e depois de termos Era chegado o tempo da colheita e o trabalho ficou novamente intenso em
experimentado por vários anos, a dureza do trabalho em campo. Andávamos quase Pimentel Barbosa. Todas as roças, tanto a mecanizada como as manuais, tinham
todos armados, sentíamo-nos meio guerrilheiros, a lutar junto aos índios contra toda produzido bem. Houve inicialmente uma grande fartura de milho, abóbora e melancia.
aquela corrente. Depois, o arroz. Todas as casas da aldeia estavam abarrotadas de comida, das roças
Na reunião que se seguiu, esse estado de espírito foi agravado pela absoluta manuais. Grandes rituais de iniciação guerreira e espiritual da cultura Xavante, além
falta de prática em participar de assembléias e organizações, já que, desde 1964, de outras festas, foram programados no Warã.
isso era proibido. Assim, a fundação da SBI não foi bem uma reunião, mas quase um Tínhamos construído um depósito e a produção da roça mecanizada estava
conflito armado. Entretanto, durante os três dias programados conseguiu-se discutir e lá, estocada. Foram colhidas cerca de duas mil e quatrocentas sacas de arroz e
colocar na pauta do indigenismo ações relevantes. Talvez a principal delas tenha sido quatrocentas de milho. Várias reuniões foram realizadas no Warã, sobre o destino
a questão da “atração” dos grupos “arredios”, atendendo a interesses corporativos do que deveria ser dado àquela produção excedente. Junto com os Xavantes, fazíamos
governo e dos grupos econômicos nacionais e internacionais. A partir daí, acirrou-se contas das despesas, prevíamos as sementes que deveriam ser guardadas para o
uma discussão interna no órgão federal, entre os que aceitavam a imposição do próximo plantio, o que poderia ser vendido, o quanto renderia e como o dinheiro
estado e os que pregavam que só se devia fazer contato com esses povos em casos poderia ser aplicado em beneficio da aldeia. Helena de Biasi, educadora até hoje em
de extrema necessidade. Dessa maneira, o órgão deveria agir mais na identificação e atividade, que coordenava as atividades da escola da aldeia, fazia exercícios com
proteção dos seus territórios, política que mais arde foi adotada e ainda hoje é seus alunos sobre vendas, compras, excedentes, com valores reais da produção
desenvolvida pela Funai. alcançada, como forma de prepará-los para esse tipo de transação e para que
Conseguimos também eleger uma diretoria, um conselho de ética e fazer pudessem, mais tarde, assessorar os líderes mais velhos, que não eram
uma ata de fundação. Mas, infelizmente, a SBI não passou da primeira reunião, onde alfabetizados.
uma discussão aparentemente estéril “rachou” os seus participantes: se a entidade A auto-estima, principalmente dos velhos, ao verem os jovens abandonarem
deveria ou não aceitar a filiação de antropólogos e de pessoas estranhas aos o trabalho nas fazendas e voltarem integralmente para a aldeia, plantando, colhendo,
quadros da Funai. Havia uma corrente que defendia a participação de antropólogos, participando das festas, havia voltado com força. A euforia era tanta, que,
argumentando que muitos deles eram aliados da causa indigenista e mesmo alguns incrivelmente, não se falava na retomada das terras.
dos indigenistas eram formados em antropologia. Outra corrente defendia a Também eu, com minha família, estávamos felizes. Após um duro período de
integração ao quadro de associados da SBI apenas pelos que viviam diretamente adaptação, principalmente para as crianças, não tínhamos o que reclamar.
nas aldeias. Argumentavam que os antropólogos tinham a sua própria Tínhamos grande amizade aos Xavantes e sentíamos que o sentimento era
representação, a ABA – Associação Brasileira de Antropologia. recíproco. Toda aquela produção e a alegria dos Xavantes também nos contagiava.
Desde essa época, nunca mais os indigenistas da Funai conseguiram se Entretanto, mais uma vez, o inesperado aconteceu e tudo virou uma grande
reunir e discutir seus problemas e, corporativamente, colocar suas posições no confusão.
indigenismo. Talvez pelo “trauma” da primeira briga – desculpem, reunião.
Certo dia, sem nenhum aviso, chegou a Pimentel Barbosa uma comissão Os homens se reúnem no Warã também pela manhã. É uma espécie de
composta por dois técnicos de Brasília. Eles vieram em uma caminhonete Toyota “reunião executiva” quando decidem quais tarefas irão realizar durante o dia.
Bandeirantes. Odenir os acompanhava. Ele havia outra vez se juntado à comitiva de Os líderes pediram então que todos nós, brancos, falássemos formalmente
Brasília, em Barra do Garças. no Warã. O chefe da comissão de técnicos fez uma explanação sobre os planos dos
Assim que se acomodaram no posto, o chefe da comissão pediu uma reunião dirigentes da Funai, logicamente tentando convencer o conselho que assim se
comigo. Aquiesci e nos acomodamos nas pilhas de sacos do depósito, abarrotado alcançaria melhores preços pela produção, que tudo voltaria depois para a aldeia etc.
pela colheita. Alguns Xavantes, curiosos, haviam chegado e passaram a escutar a Na minha fala, reiterei ao Conselho a opinião que dera anteriormente aos
conversa. técnicos. Externei sinceramente minhas opiniões sobre aquele ato e relembrei ao
Os técnicos explicaram então que haviam sido designados pela presidência Conselho nossas reuniões e as decisões já tomadas sobre o destino da produção
da Funai para fazer um levantamento da produção agrícola de todas as aldeias que fora alcançada pela aldeia.
Xavantes, que naquela época eram em número de dezesseis, ocupando cinco Odenir, que fala fluentemente a língua Xavante, pois seu pai também foi
Terras Indígenas. A direção do órgão havia decidido transportar toda produção de indigenista e ele foi criado em suas aldeias, externou mais ou menos a mesma
grãos alcançada nas aldeias, através dos recursos do “Projeto Xavante”, para um opinião, segundo ele próprio me traduziu depois.
depósito único, que já havia sido alugado, na cidade de Xavantina. Depois de toda a Após as nossas falas, os Xavantes, educadamente, pediram que nos
produção recolhida, a própria Funai se encarregaria de sua comercialização. Os retirássemos. Eles iriam deliberar e dariam a resposta no dia seguinte.
recursos seriam transferidos para a “Renda Indígena” e, futuramente, reaplicados nas Fomos para o posto dormir.
terras Xavante ou em outras Terras Indígenas onde houvesse necessidade de No outro dia, bem cedo, praticamente todos os homens da aldeia vieram para
investimentos. Enfim, um verdadeiro confisco. a sede do posto. Os integrantes da comissão ainda estavam dormindo. Warodi
Após sua explicação, eu disse claramente para eles que, definitivamente, não ordenou que os acordássemos. Assim, ainda meio sonolentos vieram para a sala,
concordava com aquilo. Argumentei que a produção era dos Xavantes, as terras onde todos nos apinhávamos.
eram deles, o trabalho havia sido deles e se a Funai os apoiou para que Warodi iniciou então um discurso, em linguagem ritual, que deve ter durado,
alcançassem aquela produção, não fizera mais do que a obrigação. Ponderei, no mínimo, uma hora. Quando ele se calou, o chefe da comissão pediu que alguém
entretanto que a decisão deveria ser tomada pelos próprios Xavantes. Se eles traduzisse a sua fala para o português.
concordassem com a retirada da produção, tudo bem, eu não teria como me opor. Simão, um Xavante já maduro, encarregou-se da tradução do longo discurso
Consultaríamos o Conselho Tribal. de Warodi, com apenas uma frase:
À noite, a reunião no Warã foi movimentada. Os líderes já sabiam do assunto - O que o Warodi falou é que é para vocês irem embora daqui agora!
que levara os técnicos até a aldeia, pelos que haviam escutado a conversa no Não houve tempo para qualquer outra coisa, pois, ato contínuo à “tradução”,
depósito, e quando chegamos, as discussões estavam acaloradas. os dois técnicos de Brasília foram agarrados e literalmente suspensos pelas axilas e
O Warã é, ao mesmo tempo, o local de reunião dos homens, no centro da jogados dentro do veículo, que se encontrava em frente à casa. Outros Xavantes
aldeia, e o nome do próprio Conselho Tribal. Só podem freqüentar o Conselho os entraram na casa, juntaram rapidamente seus pertences, que estavam meio
homens que já passaram pelo ritual de furação de orelha. Esse ritual é realizado espalhados pelo quarto e os jogaram em cima deles. Apesar da tensão que se criou,
aproximadamente de cinco em cinco anos e marca a formação de mais uma classe era engraçado ver aquelas pessoas às voltas com sapatos, meias, cuecas, malas,
de idade de guerreiros. Ao todo, são oito classes de idade. tudo misturado, dentro do carro.
O Warã é formado por um grande círculo de homens. Os componentes da Foram-se. A pedido de Warodi, Odenir permaneceu no posto.
classe de idade mais nova se sentam na periferia deste círculo, os da classe Imediatamente após a partida da comissão, Warodi iniciou outro longo
imediatamente mais velha um pouco mais para o centro e assim sucessivamente, até discurso para mim e Odenir. Disse que perdera toda a paciência. Pediu que
que, no centro do círculo se encontra a classe mais idosa, que dá a palavra final tirássemos imediatamente as famílias dos funcionários das terras Xavante,
sobre os impasses. Os discursos são enérgicos, falados em pé e em alta voz, para principalmente as mulheres e crianças. Pediu também que Odenir convocasse, pelo
que todos escutem. Não raro, dependendo da gravidade da situação, são proferidos rádio, todos os líderes Xavantes das outras aldeias a Pimentel Barbosa. Ele queria
em linguagem ritual, arcaica, entendida apenas pelos mais velhos. Quando um avisá-los de que decidira matar todos os brancos que estivessem dentro de suas
orador se levanta e inicia suas proposições, imediatamente outro orador, geralmente terras. Queria fazer a reunião para comunicar isso aos outros líderes, para que
pertencente a um clã oposto se levanta e, quando lhe é passada a palavra, contesta depois, quando viessem as inevitáveis retaliações, não fosse acusado de ter decidido
o primeiro orador e o debate se inicia. Assim, vários assuntos da aldeia são debatidos unilateralmente a ofensiva.
todas as noites, até que o sono se abate sobre todos e tudo se transfere para o dia Odenir fez o que Warodi pediu. Mais do que isso, autorizou a regional de
seguinte. Barra do Garças, pelo rádio, para que fretasse quantos aviões fossem necessários
para buscar os todos os líderes em suas aldeias e trazê-los para Pimentel Barbosa.
No mesmo dia, os aviões com os líderes começaram a chegar. Também por que estivessem dentro da terra demarcada. Pensávamos que deste modo,
terra, em caminhões e caminhonetes, chegavam guerreiros das aldeias mais poderíamos ganhar algum tempo. Os líderes concordaram com essa estratégia.
próximas. Além da fartura da colheita, a aldeia possuía uma fazenda com algumas Assim, munidos de um mapa da região, decidimos todos juntos que faríamos
cabeças de gado, e algumas foram abatidas para dar de comer a todos. uma picada demarcatória (o padrão para demarcação de terras indígenas é uma
Foram encontros emocionantes, entre parentes e contemporâneos Xavantes, picada em meio à vegetação, de seis metros de largura), de aproximadamente vinte
que há muitos anos não se viam. Muitos haviam sido amigos de infância e furado quilômetros de extensão, ligando um determinado ponto do interior da terra já
juntos as orelhas, fazendo, portanto, parte do mesmo grupo de idade. As demarcada, até a BR-080, definindo assim os limites oeste e norte do território, onde
interferências do governo e da igreja, mais as brigas de facções os haviam efetivamente existiam problemas graves de definição de limites.
dispersado muitos anos antes. Agora, ali estavam, muitos já idosos, a relembrar as Após a decisão, embarcamos todos, nos caminhões, caminhonetes e tratores
histórias da infância e de feitos guerreiros. Uma grande união se fermentava ali. disponíveis. Todos armados, com arcos e flechas, bordunas, rifles, espingardas,
Como Warodi pedira, retiramos as mulheres e crianças dos funcionários do foices e machados. Além dos Xavantes, Odenir e eu, havia se incorporado ao grupo
posto, inclusive minha família. Todas foram enviadas para Barra do Garças, e nos o indigenista Francisco Campos Figueiredo, o “Chico Barbudo”, na época chefe do
preparamos para o que pudesse acontecer. Posto Couto Magalhães. Francisco estava com um dos pés engessado e se
Após o terceiro dia do início do movimento, quando todos os líderes das movimentava com auxílio de muletas e, por mais que tentássemos convencê-lo a
outras aldeias haviam chegado, Warodi convocou um “Wai’á”. Trata-se de uma ficar no posto, não aceitou.
cerimônia sagrada dos Xavantes, onde são invocadas entidades espirituais. O Wai’á Por volta das dez horas da manhã, chegamos ao ponto programado e
dura um dia inteiro, quando os homens permanecem à beira do rio, entoando iniciamos a picada.
cânticos, e uma noite, quando continuam suas cantorias no pátio da aldeia. É um Era uma visão realmente cinematográfica: centenas de guerreiros Xavantes,
ritual carregado de simbologias. todos pintados, abrindo aquela “estrada” nos cerrados, gritando e entoando brados
Quando o dia amanheceu, todos estavam prontos para a ação. Ao todo, de guerra. Benedito Loazo, um líder Xavante de Couto Magalhães, que enxergava
devia haver cerca de quinhentos guerreiros Xavantes em Pimentel Barbosa naquela com apenas uma das vistas, foi escalado para ser o “baliza” da picada. Isso ele fazia
ocasião. Todos devidamente paramentados para a guerra. com maestria, após ter encontrado no mato uma vara bem reta, que de tempos em
Na noite anterior havíamos decidido em conjunto, que dois emissários, tempos colocava de pé e, encostando nela a vista ruim, marcava a linha reta com a
Izanoel Sodré, indigenista, que na época era chefe do Posto Culuene e viera vista boa, dando sinais para os homens, ora à direita, ora à esquerda, para acertar o
acompanhando os líderes de lá, e Luiz, enfermeiro na aldeia Couto Magalhães, rumo da picada..
seriam enviados para Cuiabá. Eles saíram no início da madrugada, quando Não demorou muito e alguns aviões pequenos começaram a sobrevoar a
acreditávamos que uma possível guarda dos fazendeiros nas estradas estaria mais região. Alguns tiravam rasantes sobre nós. Os Xavantes atiravam neles com seus
relaxada. Cuiabá ficava distante cerca de oitocentos quilômetros de Pimentel rifles e espingardas, ou tentavam acerta-los, jogando neles suas bordunas e flechas.
Barbosa, por estradas de terra. Eles levavam consigo um recado para jornalistas, Todos pensavam que aqueles aviões pertenciam aos fazendeiros.
conhecidos nossos, dando conta do que iria acontecer e das possíveis Em determinado momento, um desses aviões deixou cair uma mensagem
conseqüências do ataque dos Xavantes. amarrada a uma pedra. Era de uma equipe de televisão. Pediam que alguém se
Nos dias anteriores, havíamos transmitido mensagens insistentes, via rádio, deslocasse até o posto, que iriam pousar lá. Ficamos mais animados: a imprensa já
para a presidência da Funai, em Brasília, alertando-a do conflito iminente, pedindo estava sabendo. Sinal que nossos emissários haviam chegado a tempo em Cuiabá.
apoio e a presença de alguém da presidência. Provavelmente imaginando que se Decidimos que Odenir e Warodi se deslocariam ao posto para atender a
tratava de uma “armação”, minha e de Odenir, simplesmente ignoraram nossos imprensa, ficando de retornar o mais rápido possível.
apelos. Continuamos a picada. O trabalho era mais estafante e demorado do que
A intenção inicial dos Xavantes era atacar diretamente as fazendas e tínhamos imaginado a princípio, mesmo com aquela quantidade de homens. Na
realmente matar seus ocupantes. A energia guerreira alcançada com o ritual era verdade, poucos tinham levado as ferramentas necessárias para trabalhar na picada.
muito forte e poderosa. Nada os deteria se decidissem se lançar ao ataque. Não tínhamos levado nada para comer e a água tinha de ser trazida em recipientes
Tínhamos medo da mortandade que se poderia se seguir, pois sabíamos que os improvisados, dos córregos e nascentes que encontrávamos. O tempo passava e
fazendeiros estavam fortemente armados e, com certeza, já haviam percebido toda a nada de Warodi e Odenir retornarem. Por volta das cinco horas da tarde, a picada
movimentação. alcançou a BR-080, o ponto extremo programado. Nossa missão havia terminado.
Numa reunião de última hora, convencemos os chefes Xavantes a usar uma Embarcamos nos caminhões e tratores e voltamos para o posto. O sol se
outra estratégia: fazermos, nós mesmos, a picada da demarcação, já que a Funai punha no horizonte, quando chegamos. Só então ficamos sabendo pelo Odenir o que
não a fizera. Depois da picada pronta, aí sim, passaríamos a expulsar os ocupantes havia acontecido: Quando ele e Warodi chegaram ao posto, havia um outro avião
pousado, além do que transportava a equipe de televisão. Ele havia trazido uma
equipe da Policia Federal, composta por um delegado e três agentes, de Brasília, Pela manhã, os Xavantes haviam decidido que, exceto um certo número de
fortemente armados. Usando de um estratagema, certamente para prendê-lo, guerreiros que ficaria cuidando da aldeia, todos os outros iriam para Barra do Garças
tentaram convencer Odenir a sobrevoar com eles o local da picada e mostrar a área e depois para Brasília, cobrar da Funai as providências definitivas para a retirada dos
que os Xavantes reivindicavam. Desconfiados, os Xavantes que haviam ficado de fazendeiros. Os caminhões saíram abarrotados de guerreiros armados. Eu e Odenir
guarda na aldeia tomaram as armas dos agentes federais e os prenderam em um fomos misturados a eles, pois não sabíamos o que nos esperava lá fora. Ao sairmos
dos quartos da casa do Posto. na BR-080, encontramos soldados do Exército postados em duplas a cada
– Agora, sim, vocês podem levar o Odenir – disseram. Mas exigiram que três quilômetro da estrada até Barra do Garças. Felizmente, não fizeram mais do que
Xavantes também fossem, no lugar dos agentes que ficaram detidos no posto. E observar a passagem daquele estranho comboio.
avisaram que se eles não voltassem, eles morreriam. Barra do Garças havia se transformado em uma verdadeira praça de guerra.
Não tiveram outro modo senão concordar e decolaram. Depois de algum Além de nós, que chegávamos, estavam lá centenas de outros Xavantes, de aldeias
tempo de vôo, quando o avião tomou o rumo de Barra do Garças, ao sul mais próximas, que havia acorrido para lá e se misturavam com soldados e carros do
(logicamente o piloto havia sido previamente instruído para isso), o líder Xavante exército e agentes da Polícia Federal. Tocamos direto para a casa de Odenir, que
Gabriel, de quase dois metros de altura e extremamente forte, que tomara o lugar de ficava em Aragarças, uma cidade no estado de Goiás, ligada a Barra do Garças por
um dos agentes, agarrou por trás a cabeça do piloto e virando-a quase noventa graus uma ponte sobre o rio Araguaia. A casa de Odenir se transformou imediatamente em
num safanão, sentenciou: “a picada é pra lá!” e só então o piloto, consultando o nosso “QG”. Assim que entramos, ela foi cercada, em vários círculos, pelos
delegado, rumou para aquela direção. guerreiros Xavantes, postados em guarda, com suas bordunas, arcos e rifles.
Ao se aproximarem da picada, Odenir orientou para que não a Não me sai jamais da memória o fato de termos, inusitadamente, encontrado
sobrevoassem, pois poderia ser perigoso. Talvez pensando tratar-se de um truque de naquela casa a figura sempre terna e amiga de Ana Lange, uma indigenista
Odenir, o delegado ordenou que o avião desse uma rasante sobre ela. Os Xavantes combativa e respeitada por todos nós, que, estando de passagem por Barra do
então atiraram, pensando tratar-se de um avião dos fazendeiros. Assim, por pouco, Garças, havia ido visitar o Odenir. Eu a vi ali como uma espécie de anjo feminino,
quase atingimos nossos próprios aliados. em meio àquele pandemônio de homens e armas.
A movimentação no Posto era grande. Ficamos sabendo pelo rádio que dois À noite daquele mesmo dia, Mário Juruna, que àquela época despontava
aviões da FAB estavam pousados em Barra do Garças, prontos para intervir. E que como uma figura nacional, comandou um verdadeiro seqüestro de dois ônibus, na
soldados do Exército haviam ocupado toda a extensão da BR-080, de Barra do garagem de uma empresa da cidade. Na verdade os Xavantes propuseram alugar os
Garças à entrada para Pimentel Barbosa (cerca de 350 Km.). E que todas as outras ônibus, mas como eles não aceitaram, os seqüestraram. Em cada um deles
aldeias Xavantes estavam em alerta, prontas para enviar mais guerreiros, caso fosse embarcaram, no mínimo, 70 pessoas, inclusive eu e Odenir. Não tínhamos como
necessário. mexer um músculo, durante a viagem, tão abarrotados que estavam os veículos.
A reunião no Warã durou toda a noite e a movimentação foi intensa. Cantos Ao partirmos, recebemos o apoio inesperado de dois políticos mato-
guerreiros misturavam-se aos discursos inflamados dos líderes, reunidos em volta do grossenses, que ali também se encontravam de passagem: Dante de Oliveira, que
fogo, formando uma atmosfera fantástica de união e certeza de vitória. Alguns líderes depois viria a ser o “homem das diretas”, deputado federal e governador de Mato
insistiam que deveriam atacar e matar os fazendeiros. Mais uma vez, os fizemos ver Grosso, e Gilson de Barros, que também viria a ser deputado federal. Na época, os
que agora, além dos fazendeiros armados e atentos, teríamos de enfrentar também o dois eram jovens e combativos deputados estaduais de esquerda. Eles se
exército. Seria uma luta perdida. propuseram a escoltar, no carro em que estavam, os dois ônibus até Brasília, o que
Eu não podia deixar de pensar que aquele povo (como todos os outros povos aceitamos de bom grado, pois imaginávamos que seríamos interceptados antes de
nativos do Brasil) só foi subjugado pela superioridade das armas de fogo, do número alcançar a capital. Éramos também seguidos por um comboio de carros do exército
de combatentes e pelo aparecimento das doenças desconhecidas que lhes e da Policia Federal, que, entretanto, não nos interceptaram.
enfraqueciam, muitas vezes disseminadas deliberadamente pelos colonizadores Pela manhã chegamos a Brasília e, após uma parada para conversar com
europeus. E ficava imaginando quantas e quantas vezes teriam sido trucidados alguns jornalistas que nos esperavam nos arredores da cidade, tocamos direto para a
durante os ataques, pelos canhões e as outras armas de fogo. Ali, naquele momento, sede da Funai, que ocupava o sétimo andar de um prédio no Setor de Autarquias Sul.
eu percebia que a união alcançada e a energia liberada nos rituais de preparação O prédio foi imediatamente ocupado pelos Xavantes. A sala do presidente da
para a guerra são tamanhas, que não se acredita ser capaz de morrer ou perder Funai, que ainda era o tal coronel Nobre da Veiga, que ficava no sétimo andar, foi
qualquer batalha. Ela contaminava até a mim, que sabia do real poder de destruição invadida. Os Xavantes agarram-no e ameaçaram jogá-lo pela janela. Enquanto isso,
das armas dos “brancos”. Eu ficava seriamente em dúvidas, se não seria melhor os outros guerreiros botavam para fora todos os funcionários da Funai,
mesmo atacar as fazendas e acabar com tudo aquilo e ficar livre, junto com eles, de principalmente aqueles que reconheciam como totalmente contrários aos interesses
toda a opressão. Pura utopia, que logo se arrefeceu. Tínhamos de ter os pés no das comunidades indígenas. Coronéis, majores, tenentes (pois nessa época os
chão. postos-chave da administração pública eram ocupados pelos militares), mas também
civis que ocupavam cargos de direção, eram agarrados pelas gravatas e puxados aqueles episódios seriam motivos mais que suficientes para que fôssemos presos e
pelas escadas, até serem despejados na rua, todos borrados de urucum. Em pouco temíamos isso todo o tempo. Qual seria a estratégia deles, afinal?
tempo, viaturas das polícias militar e civil cercaram o prédio. Dentro das viaturas, Muito mais tarde soubemos, extra-oficialmente, a explicação: os militares
vários agentes da Polícia Federal, com seus walk talks, tentavam monitorar a não queriam criar “mártires”, que poderiam se transformar em “líderes” no
situação. Eu e Odenir éramos, durante todo o tempo, escoltados por um grupo de indigenismo, como acontecera com a prisão de Luiz Inácio da Silva, o Lula, no
oito “seguranças” Xavantes, devidamente armados com suas bordunas. movimento sindicalista, naquele mesmo ano.
Os Xavantes agora reivindicavam a demarcação de todas as suas terras. Não que não tivéssemos sido abordados pelos militares. Logo após o
Queriam, inclusive, a revisão das demarcações já feitas. Sabíamos que, de fato, episódio da invasão dos Xavantes da sede da Funai, fomos convocados a
desejavam reconstituir o antigo território, desmembrado em seis “áreas indígenas”, comparecer à Brigada Militar do Exército, em Cuiabá. Fomos, eu, Odenir, Izanoel e
como se fossem ilhas, com centenas de fazendas entre elas. O episódio da Chico Barbudo, por sorte munidos de uma apresentação do General José Fragomeni,
demarcação da área de Pimentel Barbosa ensejara uma fortíssima união tribal, que então Ministro do Supremo Tribunal Militar. Essa apresentação havia sido
tinha sido esfacelada nos contatos com os “brancos”, desde a década de cinqüenta. conseguida pelo meu sempre protetor irmão Roberto, em Brasília, quando lhe falei da
Além da demarcação das terras, exigiam a saída do coronel Nobre da Veiga da convocação. Mas, interessante mesmo é o diálogo que foi mantido com os militares
direção do órgão e a continuação do “Projeto Xavante”. e que mostra muito bem como funcionavam suas cabeças, durante aquele período
O impasse durou dois dias de ocupação Xavante do prédio da Funai. de ditadura.
No terceiro dia, Nobre da Veiga convocou uma reunião no auditório do Fomos recebidos em uma sala com uma enorme mesa de reuniões, onde
prédio. No palco do auditório, ele ocupou o centro de uma grande mesa de estavam sentados, além de nós, um tenente, um major e um coronel que, salvo
solenidades, ladeado por seus assessores e pelos líderes Xavantes. engano, era o comandante da brigada. A “audiência” foi curta e foi travado o seguinte
Todos os líderes fizeram então discursos rituais duríssimos, brandindo suas diálogo:
bordunas a poucos centímetros da cabeça do coronel, demonstrando assim a raiva O major: “Pois é, vocês estão aqui para prestar esclarecimentos sobre as
que sentiam e a vontade de que ele deixasse o cargo. O auditório estava lotado de acusações que temos contra vocês, de que estão tentando implantar o comunismo
funcionários, policiais, jornalistas e os guerreiros Xavantes. Eu e Odenir também entre os Xavantes.”
estávamos ali, devidamente rodeados pelos nossos “seguranças”. Retruquei, no ato: “Major, como podemos estar disseminando o comunismo
Após as falas dos líderes Xavantes, o presidente da Funai iniciou um entre os Xavantes se eles são os maiores comunistas que existem?”
discurso enumerando todos os recursos financeiros que haviam sido destinados às Odenir emendou, de primeira: “A não ser que o senhor queira dizer que os
aldeias Xavantes naquele ano, observando em determinado momento que “se Xavantes estejam nos doutrinando para o comunismo...”
existem funcionários roubando vocês, é outro problema”, numa clara intenção de nos O coronel interveio, enérgico: “Vamos parar com essa conversa, que já está
incriminar. Terminou o discurso dizendo que tinha ali, em mãos, um cheque de indo muito longe. A verdade é que vocês estão aqui para serem avisados de que
duzentos milhões de cruzeiros para ser aplicado imediatamente em Terras Xavantes. estão sendo observados e que não vamos tolerar mais badernas, invasões e
O auditório se transformou em um pandemônio. Todos queriam ver o tal rebeliões. Estão dispensados. E agradeçam a apresentação que trouxeram, caso
cheque. Até os nossos “seguranças” nos abandonaram e se dirigiram ao palco. contrário vocês iriam passar mais alguns dias em nossa companhia. Podem se
Odenir vaticinou: “Acabou, estamos perdidos. Vamos tentar sair daqui enquanto dura retirar.”
essa confusão”. Decidimos resistir. Odenir reassumiu sua posição de Chefe da Ajudancia em
Saímos, o mais discretamente possível, pelas escadas do prédio. Pegamos Barra do Garças e eu segui para Pimentel Barbosa, onde também reassumi o posto.
um táxi e rumamos para um restaurante, distante daquele local, na saída sul de Chico Barbudo continuou em Couto Magalhães. Nossa esperança era que
Brasília. Odenir avaliava que era muito dinheiro e que os Xavantes não resistiriam. conseguíssemos reverter aquele primeiro entusiasmo dos Xavantes pelo dinheiro
Eu duvidava que isso pudesse acontecer. Afinal, tudo o que passáramos tinha sido oferecido pelo presidente da Funai e retomar a união que se formara em torno da luta
muito forte. Eles conseguiriam resistir, acreditava. pela recuperação das terras.
Enquanto conversávamos, chegou ao restaurante um grupo de líderes Mas estávamos completamente enganados. Depois daqule primeiro cheque,
Xavantes, acompanhados de dois assessores da presidência da Funai, vieram outros, outros e mais outros, num processo de corrupção e cooptação
engravatados. Sentaram-se a alguns metros de nós, e, apesar de nos terem visto, deliberada dos líderes Xavantes, que durou anos. Iniciou-se nessa época um grande
não nos cumprimentaram. Senti então que Odenir tinha razão: estávamos vai-e-vem dos Xavantes entre Brasília e as aldeias. E todos, literalmente todos, que
inteiramente sozinhos agora. iam voltavam carregados de presentes: rádios, radiolas, bolas, bicicletas, roupas,
Ficávamos intrigados porque não éramos detidos pelos militares, apesar de sapatos; enfim, tudo que pedissem lhes era presenteado. Era impossível convencê-
nos sentirmos permanentemente seguidos. Nossa participação direta em todos los de que aquilo era uma armadilha. Ao contrário, sentíamos que perdíamos, a cada
dia, prestígio entre os Xavantes, pois ao receberem os presentes em Brasília,
invariavelmente escutavam dos burocratas da Funai que nós recebíamos muito onde ir e todo o patrimônio da minha família se resumia a duas ou três malas de
dinheiro da Funai para fazer a mesma coisa, mas o embolsávamos. roupas.
Após uns vinte dias de meu retorno a Pimentel Barbosa, um grupo de E assim, sem saber o que nos esperava, após passar por Barra do Garças,
Xavantes chegou de Brasília, com vários sacos, abarrotados de presentes. Ao mandamo-nos literalmente de mala e cuia para Cuiabá, num velho caminhão
passarem pelo posto, começaram a me interrogar agressivamente sobre o dinheiro basculante Ford 69 do Chico Barbudo. Bravo caminhão, que iria nos salvar e que
que o presidente da Funai havia mandado para eles e que eu estaria roubando. vocês irão conhecer melhor mais adiante.
Consegui me desvencilhar do grupo, dizendo que à noite iria esclarecer tudo
no “Warã”.
Fui, de fato, ao Warã naquela noite. Fiz um discurso, dizendo que nada que
eu dissesse naquele momento faria sentido para eles, sobre a armadilha em que eles CAPÍTULO XII
estavam se metendo, ao aceitarem aqueles presentes. Relembrei como se iniciara NO PANTANAL
toda aquela confusão e os planos que vínhamos fazendo. Disse que eu não poderia
mais ficar ali, depois do que acontecera naquele dia, quando fui acusado de ladrão. E Oswaldo Cid é um médico-indigenista – mais indigenista do que médico –
que, para que nada de mais grave acontecesse e nossa amizade pudesse ser que atuava no Parque Nacional do Xingu e havia pedido demissão da Funai junto
preservada, eu iria embora no dia seguinte. Não houve respostas ou reações por conosco, por não concordar com os rumos da política indigenista. Assim como eu,
parte do Conselho, ao meu discurso. Chico e Odenir, Oswaldo também fora dar com os costados em Cuiabá e não sabia
E assim, sem saber exatamente o que fazer da vida, fui embora com minha muito bem o que fazer da vida. Sua situação era um tanto melhor do que a nossa,
família para Barra do Garças. Lá, após uma reunião com Odenir e Chico Barbudo, pois sua família era tradicionalmente fazendeira no Pantanal Mato-Grossense. Além
que também vinha sofrendo as mesmas acusações em seu posto, decidimos ir para de possuir uma grande fazenda na região de Poconé, a família de Oswaldo Cid
Brasília e pedir demissão da Funai. possuía também uma outra propriedade no pantanal, na região de Porto Cercado,
Em Brasília, era grande a movimentação dos colegas indigenistas de outras que há muitos anos se encontrava abandonada.
áreas, contra a administração da Funai. Mesmo sem ter “emplacado” como Ele nos fez então uma proposta: plantar arroz irrigado na fazenda de Porto
instituição, eram ainda muito fortes os ecos da reunião que fizéramos para fundar a Cercado. Ele entraria com as terras e dois tratores, que seriam trazidos da outra
S.B.I., naquele mesmo ano. fazenda, e nós, com a mão-de-obra. Quanto às demais despesas, iríamos rachando,
Após várias e tensas reuniões, a cada vez em local diferente, cinqüenta dentro das possibilidades de cada um. Como todos nós tínhamos alguma coisa a
colegas da Funai decidiram pedir demissão, no mesmo dia, como forma de receber pela rescisão do contrato de trabalho com a Funai e também estávamos
pressionar o governo para a retirada do Coronel Nobre da Veiga da Funai e mudar os procurando o que fazer, topamos, exceto o Odenir, que resolveu tomar outros
rumos da política indigenista. rumos.
No dia combinado para a entrega do pedido de demissão, apenas sete de Assim, depois de uns trinta dias passados em Cuiabá, apertados com a
nós apareceram para realizar o que ficara acertado. Éramos, Odenir, eu, Cláudio família do Chico (que era enorme) em uma pequena casa alugada, rumei com minha
Romero, Francisco Figueiredo, Osvaldo Cid, Ronaldo de Oliveira e Marta Maria. Os família para o Pantanal. Como estávamos em plena época de seca, improvisamos
outros colegas, em reunião posterior, decidiram escrever uma carta de protesto ao uma pequena barraca de lona, que foi montada em um aterro, que depois ficamos
Ministro do Interior, denunciando as ações anti-indígenas que o presidente da Funai sabendo ter sido construído pelos índios Guató, antigos ocupantes da região.
vinha executando. A carta foi considerada um ato de insubordinação pelo Ministro. Assim, devidamente acampados em improvisadas barracas de lona e palha,
Vinte e três pessoas assinaram a carta. Tentavam assim uma espécie de saída tivemos o privilégio de usufruir da beleza exuberante do Pantanal durante
honrosa para o pacto que havíamos firmado entre nós. Mas não adiantou: foram aproximadamente seis meses, ininterruptos. O rio Cuiabá ficava a uns dois
todos demitidos sumariamente. Assim, em num mesmo ato, a presidência da Funai quilômetros do nosso acampamento, e ali nos abastecíamos de peixe todos os dias.
dispensou 31 técnicos indigenistas e antropólogos, entre os que assinaram a carta e “Seu” Ambrósio, um velho pantaneiro, antigo peão da família de Oswaldo Cid e sua
os que pediram demissão. esposa, Dona Maria, também vieram para nos ajudar e se tornaram nossos vizinhos
Não nos restava outra saída a não ser tomar nossos respectivos rumos. no acampamento. Assim, passei a usufruir de um segundo privilégio: o de conviver
Agora, ali estávamos: desempregados, sem nenhuma reserva financeira e com as com uma família genuinamente pantaneira, com a qual aprendi muitas lições de vida
famílias pelo meio do caminho. A minha, eu deixara em Barra do Garças, em um e de sobrevivência.
pequeno hotel, onde sempre costumávamos nos hospedar. Trabalhamos duro, a partir de março de 1981, desmatando, limpando,
Chico Barbudo e Odenir decidiram ir para Cuiabá, onde tinham referências fazendo canais de irrigação. Eu e “Seu” Ambrósio trabalhávamos da madrugada ao
familiares, e me convidaram para ir junto. Aceitei. Afinal, não sabia realmente para fim do dia, em cima dos tratores. Chico e Oswaldo vinham periodicamente de Cuiabá
para nos ajudar e nos abastecer. Tínhamos admitido como sócio da empreitada um
engenheiro agrônomo, chamado Baganha, que, deveria nos dar as orientações bastante na praça de Cuiabá e Poconé, tudo empenhado e confiado na palavra de
técnicas, para uma coisa que nunca havíamos realizado. Éramos todos de opinião Osvaldo Cid e no resultado da colheita do arroz.
que deveríamos plantar o arroz no início do mês de agosto, para que, quando viesse Depois de mandarmos o tal gauchinho à puta-que-o-pariu, com o seu
a cheia do Pantanal, prevista para novembro/dezembro, já tivéssemos colhido a respectivo diploma, Chico providenciou a retirada do motor da colheitadeira, para
safra. Baganha, com a auto-suficiência que o caracterizava, disse que não haveria levar para Cuiabá. Segundo as previsões do Chico, o conserto levaria, no mínimo,
problema algum plantar em setembro. Segundo ele, seria até bom um pouco de água uma semana, pois com certeza o motor teria de ser retificado, além da troca de
“natural” da enchente, para o arroz. anéis, bielas, bronzinas e tudo mais o que tem direito um motor devidamente
Assim fizemos. Afinal ele era o agrônomo e nós não conhecíamos nada do fundido. E, logicamente, não ficaria barato o conserto. Enfim, pagaríamos mais essa
pantanal, evidência que “Seu” Ambrósio, na sua humildade de peão, apenas com a colheita do arroz. Fazer o quê?
confirmou: “Olha, cuidado, vocês não conhecem o Pantanal. Ele é traiçoeiro...” Foi exatamente nesse período que começou a chover pra valer na região.
Plantamos, portanto, em setembro, como queria o Baganha. Chico Barbudo, Chuva forte, ininterrupta, pantaneira. Em dois ou três dias de aguaceiro, o rio Cuiabá
que é um misto de mestre-de-obras, mecânico, carpinteiro, pedreiro, eletricista, rádio- transbordou e começou a invadir nossa lavoura. Não parava mais de chover e o
técnico e o escambau, improvisou uma bomba enorme, tocada a roda de trator, que Pantanal não parava mais de encher. Nossa angústia era enorme, tínhamos de
captava água do rio Cuiabá e abastecia os enormes canais que havíamos construído, esperar o Chico retornar com o motor da colheitadeira. Não tínhamos nenhuma forma
para irrigar o arroz. E assim, aos trancos e barrancos, discutindo todos os dias com o de nos comunicar com ele e víamos, a cada instante, o pantanal encher.
Baganha, que dava as orientações mais estapafúrdias, fomos tocando a coisa. Quando Chico chegou com o motor e, numa operação complicadíssima, em
O arroz nasceu e cresceu bonito. Estávamos satisfeitos, afinal. Depois da plena chuva, conseguiu montá-lo na colheitadeira e faze-la funcionar, a água já
trabalheira toda para captar água, jogar nos canais, irrigar os vários “tabuleiros”, praticamente cobria todo o arroz. Ficavam apenas os cachos de fora.
combater as pragas, o que nos exigia um trabalho duro todos os dias, calculávamos Mesmo assim, tentamos colher. Impossível! A máquina atolava de dez em
que iríamos colher cerca de mil e quinhentos sacas de arroz, que sendo irrigado e, dez minutos. E a cada vez levávamos umas duas horas de trabalho insano para
portanto, colhido fora de época da safra normal do arroz em Mato Grosso, alcançaria desatolá-la. Tudo estava molhado, encharcado, enlameado. E nós, exaustos.
um bom preço no mercado. No desespero, Chico pegou o velho caminhão, foi para Cuiabá e arrebanhou
O arroz começou a amadurecer junto com as primeiras chuvas. Um pouco cerca vinte de “peões” para tentar colher o arroz manualmente. Na verdade pegou
apreensivos, alugamos uma colheitadeira de um fazendeiro da região. Por se tratar um bando de bêbados inveterados do bairro do Porto de Cuiabá, que acabou dando
de uma máquina nova, o proprietário exigiu que contratássemos um operador muito mais trabalho e despesas do que qualquer outra coisa.
treinado e credenciado pela fábrica, para operá-la. Depois de muito procurar em A chuva não parava, a água cobriu finalmente todo o arroz e ameaçava
Cuiabá, Chico Barbudo achou e contratou um gauchinho, que possuía o tal do invadir nosso acampamento. Tivemos de abandoná-lo às pressas e foi um sacrifício
diploma da fábrica. Era um sujeito baixinho, com umas botas de canos quase a lhe muito grande sairmos de caminhão daquele lugar, já completamente alagado.
bater nos joelhos, calças jeans, uma imensa fivela prateada na cintura, chapéu de Colheitadeira, tratores, bombas, tudo ficou para trás. Em um barco alugado,
feltro, que andava com o peito estufado como se fosse derrubar o mundo. O conseguimos salvar ainda cerca de trezentas sacas de arroz, que havíamos colhido
garnizezinho chegou defronte aquela máquina enorme, tão senhor de si, que meu antes do desastre com a colheitadeira.
coração me disse: “Isso não vai dar certo...”. Em Cuiabá, o proprietário da colheitadeira exigia que lhe entregássemos a
E não deu mesmo. Após algumas horas de operação da máquina, foi sua máquina imediatamente, intacta, sob pena de nos processar por roubo e outras
necessário fazer a primeira troca de óleo, daquele motor novinho em folha. Todo coisas mais. Ele estava possesso também por que ficara sabendo, por terceiros, da
senhor de si, o gauchinho fez tudo como manda o figurino: desatarraxou o parafuso pane do motor.
do “carter”, esgotou o óleo usado, colocou o óleo novo, subiu de novo na máquina e Mesmo exaustos, voltamos daí a alguns dias para Porto Cercado. Fizemos
pôs-se a colher o arroz. um acordo com uma barcaça que transportava cimento de Corumbá para Cuiabá,
Após alguns minutos, escutamos uma barulheira infernal, de ferro comendo pelo rio Cuiabá e num esforço quase sobre-humano, conseguimos retirar a
engrenagens que, para quem entende o mínimo de mecânica, faz o coração colheitadeira e os tratores daquele imenso atoleiro, embarcá-los na barcaça e levá-
paralisar. Da máquina saía uma fumaceira dos diabos. Corremos todos para lá e não los para Cuiabá.
custamos muito a descobrir: o desgraçado do gauchinho tinha se esquecido de E assim, esfarrapados, sujos, sem dinheiro, sem casa e endividados até o
recolocar o parafuso que fecha a saída do óleo e ele tinha ido todo embora. O motor, pescoço, estávamos de volta à cidade.
ao trabalhar sem lubrificação, simplesmente fundira.
Nessa altura, já havíamos torrado na empreitada todo o dinheiro que
havíamos recebido de rescisão de contrato com a Funai e estávamos devendo
CAPÍTULO XIII
E O VELHO CAMINHÃO NOS SALVOU velho caminhão, mas parecia que aquele negócio de nos tornarmos “empresários”
tinha nos dado um novo alento. A firma era de construção, mas pegávamos todo tipo
Aqui, preciso falar um pouco mais sobre o velho caminhão caçamba Ford-69 de serviço: demolições, transporte de materiais de construção, retirada de entulhos,
do Chico Barbudo. Ele merece. E como! corte de árvores e até construções e reformas de casas.
Sua cor era indistinguível. Calculava-se que, em um passado remoto, teria A verdade é que não rejeitávamos serviço de espécie alguma. Ficamos
sido azul claro. Mas os anos, as pancadas da vida o fizeram ficar assim, meio cor de famosos como uma espécie de “coringas”, uma verdadeira “swat” em Cuiabá.
chumbo. Era velho, roto, amassado, enferrujado, o capô amarrado com corda e Éramos contratados para os serviços mais delicados, difíceis e perigosos, como
arame. Quando ele andava, com a trepidação, a aba da caçamba, que tinha um dos cortar árvores (infelizmente, geralmente mangueiras centenárias) que estavam
lados já comido pela ferrugem, batia no teto da cabine, fazendo um barulho estranho. ameaçando casas, fazer demolições de casarões antigos em locais de grande
Quem o olhasse, sem conhecê-lo, não acreditava que aquela coisa pudesse ao movimento de carros e pedestres, tirar entulhos de locais praticamente inacessíveis.
menos se mover. Parecia mais uma peça de ferro velho, que alguém se esquecera Não tínhamos hora nem dia para trabalhar. Chegamos a ter, em algumas ocasiões,
de recolher. vinte ou mais homens trabalhando para nós, em vários pontos da cidade. Eu, Chico e
Mas, que nada! O velho caminhão tinha uma potência inacreditável, que eu já Pescoço os deixávamos pela manhã nas obras e os recolhíamos à tarde, no velho
aprendera a respeitar durante nossa aventura no Pantanal. O ronco do seu motor era caminhão. E para não perder tempo, enquanto os peões tocavam os serviços mais
forte, potente, inspirava confiança. Subia as ladeiras de Cuiabá com a carga máxima, sofisticados, carregávamos o caminhão e entregávamos materiais de construções
como se fosse novinho em folha. nas obras pela cidade, durante o dia. Como muitas demolições que fazíamos ficavam
Mas somente o Chico conseguia fazê-lo funcionar. Mais do que isso, o Chico localizadas no centro da cidade, só podíamos trabalhar nelas à noite, quando
praticamente montava e desmontava aquele monstrengo quase todos os dias, praticamente não havia trânsito. Assim, muitas e muitas vezes, trabalhávamos até
inventava peças, amarrava com arame, fazia o diabo, mas no fim ele andava. E como alta madrugada nessas obras,reiniciando sempre muito cedo, um novo dia de
andava! trabalho pesado. Sempre no velho caminhão. Dia e noite, pra cima e pra baixo, no
Foi com esse velho caminhão que conseguimos sair do verdadeiro atoleiro velho Ford 69. E como muitos desses serviços eram excepcionais, cobrávamos caro
em que tínhamos nos metido com a história de plantar arroz irrigado no Pantanal. por eles.
Durante quase dois anos, ele foi nossa “muleta”, o nosso ganha-pão, o nosso amigo E assim, conseguimos nos equilibrar razoavelmente. Tínhamos nossos
fiel que nos tirava do sufoco todos os dias. momentos de lazer, invariavelmente nas pescarias de fim de semana quando, mais
Logo após a chegada do Pantanal, não pudemos nem respirar. Depois de uma vez no velho caminhão, embarcávamos uma canoa de madeira e íamos com
alojar nossas famílias em casas alugadas, no bairro do Porto, caímos na vida com o nossas famílias acampar às margens do rio Cuiabá, em algum ponto distante da
velho caminhão, transportando aterro, brita, cascalho, tijolo, entulhos e o que mais cidade.
aparecesse, para as construções pela cidade. Numa primeira fase, ficamos nesse Em setembro de 1981, nasceu nossa filha Fernanda, num momento em que a
trabalho, ganhando o suficiente para sair gradativamente do sufoco das dívidas mais firma experimentava certa crise, por falta de trabalho e também por estarmos
apertadas e, pelo menos, comer. bastante cansados daquilo tudo. Não fisicamente, pois estávamos acostumados e até
Chico e eu tínhamos um fiel companheiro, o Davino, que todos chamavam gostávamos daquela labuta pesada. O que sentíamos, na verdade, era uma grande
pelo apelido de “Pescoço”. Levantávamos cedo, íamos para a feira do Porto comer saudade das aldeias. Não víamos sentido em continuar ali naquele tipo de trabalho,
alguma coisa e, antes do amanhecer, já estávamos na batalha. Era um trabalho duro. depois de termos vencido o desafio de sair do buraco e nos estabilizar.
Geralmente, íamos colher o material que entregávamos nas obras fora da cidade, em Durante os quase dois anos que permanecemos em Cuiabá, não ficávamos
terrenos ermos, já que não tínhamos dinheiro para comprá-los em depósitos. sabendo muita coisa do movimento indígena e indigenista, até por falta de tempo. O
Tínhamos de cavar com picaretas o terreno para extrair pedras, cascalho, aterros, que sabíamos era que a Funai havia feito junto aos Xavantes, um trabalho de
areia e encher o caminhão manualmente, com pás. O vai-e-vem só parava à noite, difamação de nossos nomes, espalhando que tínhamos nos transformado em
quando, não raro, o Chico se transformava em mecânico e nós em seus ajudantes, grandes fazendeiros no Pantanal, com o dinheiro que havíamos roubado deles. Outra
para fazer reparos no caminhão. informação que nos chegava era que as aldeias Xavantes haviam se multiplicado
Aos poucos, fomos saindo do buraco. Os credores já não nos apertavam numa grande rapidez, em decorrência de uma política deliberada da Funai, em dividi-
tanto. A alguns conseguimos pagar, outros desistiram ao perceberem nossa situação los. Para que isso ocorresse, ofereciam aos líderes dissidentes das aldeias, todo o
e nos deixaram em paz. apoio que necessitavam para abrir suas próprias aldeias. O que nos deixava ainda
Após algum tempo, decidimos abrir uma firma de construção. Tito, o irmão mais entristecidos era saber que alguns colegas nossos, que haviam participado de
de Chico, entrou também como sócio. Registramos a firma, abrimos o escritório em todo o movimento anterior, haviam se tornado aliados dos militares, informando-os
casa de Tito, fizemos alguns cartões de apresentação e saímos pela cidade justamente sobre essas dissidências que, de resto, são normais na cultura Xavante.
oferecendo nossos serviços. Na prática, nosso único patrimônio continuava sendo o . Apenas uma coisa nos trazia um pouco de alegria: todas as terras Xavantes,
inclusive as de Pimentel Barbosa, haviam sido demarcadas e seus ocupantes
retirados. Nossa briga não havia sido totalmente em vão.
Tanto no Pantanal como em Cuiabá, sentíamo-nos vigiados pela Polícia CAPÍTULO XV
Federal. De qualquer modo, existia uma ordem expressa da direção da Funai, OS KRAHÔS
proibindo terminantemente nossos ingressos em qualquer área indígena do país.
Eu e Chico chegamos a ir para um garimpo de ouro, não muito longe de Os Krahôs formam um povo do tronco lingüístico Jê, tradicionalmente
Cuiabá, tanto para tentar a sorte como para sair um pouco daquela rotina, que já nos caçador e coletor, hoje confinado em uma área fixa de terras, demarcada pelo
incomodava. O garimpo não deu em nada e, em menos de três meses, desistimos e governo na década de quarenta, vivendo um longo processo de adaptação à vida
voltamos para Cuiabá, já sem o mesmo pique de antes, para trabalhar. gregária, transformando-se compulsoriamente em criador e agricultor. Mas não é isso
E assim, depois de algum tempo de depressão, em que nossa situação que nos interessa aqui. O que fez com que eu me apaixonasse pelos Krahôs, foi a
financeira se deteriorava novamente a olhos vistos, inusitadamente, recebemos um forma alegre e descontraída desse povo encarar a vida, o lirismo da sua cultura e sua
convite. Ou melhor, um chamado. Um maravilhoso chamado, que mudou novamente enorme resistência cultural. Viver entre os Krahôs é um privilégio e faz você
nossas vidas. retroceder às raízes da humanidade, onde o que contava era a solidariedade e a
emoção entre as pessoas.
E os Krahôs desenvolveram uma forma muito interessante de resistência:
CAPÍTULO XIV eles “adotam” os kupen (“brancos”), que eles percebem que lhes serão úteis no
DE VOLTA ÀS ALDEIAS relacionamento com a sociedade envolvente. Dão a eles um nome, em ritual que
também os transformam em pahis (“chefes honorários”), com a função de defendê-
No ano de 1974 eu havia cumprido meu estágio de campo junto ao povo los, em caso de perigo externo para a tribo. Na verdade, eles adaptaram um ritual
Krahô, que habita a antiga região norte do Estado de Goiás, atualmente Estado do tradicional para membros da própria tribo, que moram em outras aldeias. Também
Tocantins. Apesar de ter passado ali somente três meses durante o estágio, senti nesses casos, o “chefe honorário”, tem a função de acalmar os seus parentes,
uma enorme empatia pelos Krahôs, a ponto de ir sempre visitá-los, quando a ocasião evitando que eles ataquem ou mesmo falem mal da aldeia que o adotou como pahi
permitia. (no caso do homenageado ser do sexo masculino) ou sadoon (para as pessoas do
No início de 1982, houve um incidente envolvendo funcionários da Funai e sexo feminino). Com o nome que recebe, o adotado kupen passa a fazer parte de
agentes da Polícia Federal, que haviam invadido uma das aldeias Krahôs, uma rede de parentesco, com a qual deve manter vínculos de solidariedade. A partir
pretensamente à procura de drogas. Na verdade, pretendiam prender um integrante daí, fica a critério de cada um, o grau de envolvimento que decide exercitar. Seja
de uma ONG denominada CTI – Centro de Trabalho Indigenista, de São Paulo, que como for, os Krahôs levam muito a sério esse ritual de nominação, pois para eles, o
tentava fazer um trabalho diferenciado junto aos Krahôs. nome é o maior legado que a pessoa possui. Tradicionalmente, quando uma pessoa
Os Krahôs, revoltados com a invasão, prenderam os funcionários da Funai e passa um de seus nomes uma criança, geralmente seu sobrinho ou sobrinha, está
os agentes da Polícia Federal, tomaram-lhe as armas e chegaram a espancá-los. passando toda a tradição, de inúmeras gerações e as funções que ele exerce na
Demoraram-se dias até que os Krahôs, cujas aldeias haviam se unido frente ao sociedade, através dos rituais. Como os Krahôs não acumulam bens, o nome passa
episódio, decidissem entregar os reféns. Finalmente, decidiram expulsar também a ser o maior patrimônio que a pessoa possui e enriquece durante a sua vida.
todos os funcionários da Funai que trabalhavam em suas terras, pois, no entender Portanto, assim que cheguei na terra dos Krahôs, uma das primeiras coisas
deles, haviam sido cúmplices e coniventes com a invasão da aldeia. Lembraram-se que eles fizeram comigo foi realizar o ritual de nominação. E assim, devidamente
então de mim e, depois de me localizarem, pressionaram a direção da Funai para entronizado, entrei de corpo e alma naquela cultura e numa sucessão de eventos que
que me reconduzissem ao Posto ali existente. Como o incidente tivera uma enorme quase não me deixavam respirar.
repercussão na imprensa, a Funai não viu como não atender a exigência. Fui
chamado a Brasília, onde negociei também o retorno do Chico Barbudo. Sem ele,
impus categoricamente, não iria para lugar algum. Tiveram então de recontratá-lo
também. CAPÍTULO XVI
E assim, alegres, remoçados e com uma enorme disposição, fomos para o A PROPOSTA DE AUTO-GESTÃO DO POVO KRAHÔ
norte de Goiás. Chico, que não levara a família, ficou por lá apenas dois ou três
meses, pediu transferência e voltou para o Mato Grosso. Eu fiquei com os Krahôs. Os integrantes do CTI. – Centro de Trabalho Indigenista, que atuavam entre
Até hoje. Na verdade, desconfio que para sempre. os Krahôs desde o ano de 1976, haviam proposto a eles desenvolver uma
experiência de “auto-gestão” dos recursos financeiros destinados pelo governo às
suas aldeias. Como isso não seria possível com os antigos funcionários que atuavam
nos postos, os Krahôs expulsaram todos, com exceção dos atendentes de politicamente, pela conscientização da sociedade Krahô sobre seus direitos,
enfermagem. Assim, ao assumir a chefia do Posto, assumi praticamente sozinho a especialmente em relação à autonomia de gestão dos recursos que lhes são
responsabilidade administrativa por todas as aldeias Krahôs. Trabalhava em estreita destinados. Anos mais tarde, a partir de 1988, a experiência pôde ser retomada,
colaboração com os membros do CTI, que moravam em São Paulo e visitavam desta vez através da criação de entidades representativas próprias. Então, os Krahôs
periodicamente as aldeias. valeram-se de sua própria base histórica, quanto a dificuldades e vantagens da auto-
A terra Krahô tem a extensão de 320.000 hectares ou 3.200 quilômetros gestão.
quadrados – quase a mesma extensão da Grande São Paulo. Em 1982, quando Para mim, a experiência foi também excepcional, pois me trouxe a
assumi ali minhas funções, a terra Krahô comportava oito aldeias, com distâncias possibilidade de observar e apreender as diferenças fundamentais entre uma
entre si que variavam de 15 a 100 quilômetros. A população era estimada em 1.500 sociedade tribal, ágrafa, de raízes semi-nômades, fechada, solidária, onde não existe
pessoas. As estradas eram péssimas, extremamente arenosas, cortadas por a propriedade privada, e uma sociedade geral, gregária, aberta, individualista,
inúmeros rios e ribeirões, servidos apenas de pinguelas rústicas para travessia. capitalista e acumuladora. Foram anos de intenso trabalho, angústias, dúvidas.
Deslocávamos entre as aldeias em pequenos jipes. Minha função, basicamente, era Confesso que às vezes o conflito cultural que eu sentia era tão intenso, que pelo
receber da Funai os recursos destinados aos projetos e entregá-los nas aldeias, para menos em duas ocasiões, me veio muito forte a idéia de suicídio. Mas também
que fossem aplicados pelos próprios Krahôs. existiam os momentos felizes – das colheitas, das festas e do imenso carinho e
A coisa funcionava por um sistema de gerenciamento desses recursos, que hospitalidade que os Krahô devotam a seus amigos e aliados.
obedeciam à sazonalidade da cultura Krahô, baseada nas metades Katam’jê e Logicamente essa experiência de auto-gestão contrariava profundamente a
Wakme’jê. Dito assim, parece fácil. Acontece que, para receber esses recursos, direção da Funai e seus funcionários da época, arraigados a uma política
existia uma burocracia bastante complexa. Cada parcela do projeto, que era extremamente tutelar, protecionista e clientelista, oposta aos fundamentos principais
programada trimestralmente, só era liberada após a prestação de contas da parcela da iniciativa, que desenvolvia a auto-determinação política e econômica do povo
anterior. Como eram oito as aldeias e cada uma delas tinha um projeto em separado, Krahô, em seu território.
tínhamos de lidar com, no mínimo, 32 parcelas de recursos anuais. Uma loucura, A experiência de auto-gestão entre os Krahôs foi bruscamente interrompida
pois os Krahôs não tinham a mínima noção de como montar uma prestação de em l986, após uma série de episódios conflituosos com a Funai, que relatarei a partir
contas ou, ao menos, tirar convenientemente uma nota fiscal. Era-lhes também muito de agora.
difícil entender que os recursos deveriam ser aplicados de acordo com a
programação do projeto, que chegava a minúcias de prever gastos com “Materiais de
Consumo”, “Serviços de Pessoas Jurídicas”, “Serviços de Pessoas Físicas” etc. Eu
tinha, portanto, de me virar para montar as prestações de contas, muitas vezes a CAPÍTULO XVII
partir do nada, tentando sempre, é claro, fazê-los entender a “mecânica” da coisa. . CONFLITOS NO NORTE DE GOIÁS
Mas é realmente muito difícil, para uma sociedade ágrafa, tribal, com uma
visão totalmente própria de mundo, onde não existe a acumulação de bens e as Quando, em 1982, os Krahôs se revoltaram contra a invasão da Polícia
necessidades de subsistência são resolvidas cotidianamente, entender os Federal a uma de suas aldeias, estavam sob a jurisdição de uma Delegacia Regional
mecanismos de planejamento de um projeto, bem como de controle, execução, da Funai localizada em Goiânia, a cerca de 1.200 quilômetros de suas terras. Com o
gerenciamento, avaliação etc. São necessários vários anos de treinamento e movimento de expulsão dos funcionários dos Postos e contando com o apoio do CTI,
mesmo a sucessão de várias gerações, para que esse tipo de coisa seja absorvido. eles decidiram reivindicar a transferência da regional de Goiânia para a cidade de
Interpretávamos que, por mais difícil e complicado que fosse, infelizmente, essas Araguaína, no então norte do estado de Goiás, a cerca de a 250 quilômetros de suas
sociedades precisavam absorver alguns mecanismos básicos do capitalismo. Caso terras.
contrário, ficariam eternamente a mercê dos tutores, “bonzinhos” ou “perversos”, Contribuíra para essa decisão o fato de a invasão pela Polícia Federal ter
além dos manipuladores e aproveitadores de sempre, e jamais conseguiriam sido ordenada pelo Delegado da Funai em Goiânia, Sr. Ivan Baiochi. Após muita
novamente ser donos de seus próprios destinos. Era um grande desafio que pressão dos caciques em Brasília e Goiânia, e uma aliança com seus vizinhos
precisava ser encarado. Xerentes, além de grande repercussão na imprensa regional e nacional, a direção da
Essa talvez tenha sido a primeira experiência concreta de auto-gestão de Funai não teve alternativa senão transferir a sede regional do órgão, conforme era
recursos públicos, realizada com grupos indígenas no Brasil. Hoje, passadas cerca desejo dos Krahôs, dos Xerentes e demais grupos indígenas da região.
de duas décadas, podemos avaliar que essa primeira experiência talvez não tenha A 7ª Delegacia Regional da Funai foi então transferida para Araguaína, onde
revelado resultados palpáveis imediatos, na época, como melhoria de qualidade de recebeu inicialmente o nome de AJARINA – Ajudância de Araguaína e,
vida dos Krahôs. Mas foi extremamente positiva pela experiência em si, que posteriormente, 16.ª Delegacia Regional. Ela deveria prestar assistência aos Postos
possibilitou um razoável aprendizado quanto a manipulação de recursos e, Indígenas localizados nas terras Krahô, Apinajé, Xerente e Xambioá.
Para chefiar a unidade foi indicado, em comum acordo com as etnias da coisas e soubemos que também os Apinajés haviam se revoltado e se deslocavam
região, o indigenista Antônio João de Jesus, de Cuiabá. Grande parte dos para lá com um grande número de homens.
funcionários que trabalhavam em Goiânia também foi transferida para Araguaína, o Chegamos em Araguaína na madrugada do outro dia e ficamos aguardando
que gerou alguma tensão no início do funcionamento da regional, com os Krahôs o amanhecer na periferia da cidade. A posse do substituto de Antônio João estava
pressionando continuamente pela substituição dos funcionários mais antigos, prevista para aquele mesmo dia, pela manhã. A idéia dos líderes era invadir a
identificados com a administração anterior. Delegacia quando ele já estivesse trabalhando, retirá-lo de lá e recolocar Antônio
Antônio João é um indigenista experiente e sério e iniciou um bom João em seu lugar.
relacionamento com todas as etnias da região. Ele se identificava com a idéia da Assim foi feito. Os Apinajés também tinham chegado ao amanhecer. Então,
auto-gestão dos recursos pelas comunidades e sabia dialogar com as lideranças. pintados para a guerra, cerca de cem homens, entre Xerentes, Krahôs e Apinajés,
Nessa época (1983, 1984), era tenso o clima na Funai em Brasília, devido às invadiram a sede da Regional. Eu, apanhado de surpresa por aquele turbilhão, não
constantes invasões da sede pelos Xavantes e as sucessivas trocas de presidente da via outra opção a não ser acompanhar o grupo. Logicamente, isso mais tarde valeria
entidade. Os militares já haviam se afastado da direção do órgão e o seu presidente a mim e a outros colegas, a acusação de ter incitado e preparado toda a operação.
então era o Sr. Otávio Ferreira Lima, um tecnocrata de carreira. Na verdade, tentávamos acalmar os ânimos mais exaltados, principalmente dos
Um grupo de líderes Xerentes havia se deslocado a Brasília para tentar Xerentes.
resolver os problemas de suas aldeias e, não se sabe muito bem por que (talvez O impasse estava criado. Inicialmente o presidente da Funai pediu a
tenham sido confundidos com seus parentes Xavantes), foram impedidos de entrar intervenção do secretário de Segurança de Goiás, que se deslocou a Araguaína, para
na Funai pela Polícia Militar, que havia cercado o prédio a chamado de Otávio negociar. Não obteve o mínimo sucesso. Os líderes queriam a presença do
Ferreira Lima. Os soldados estavam fortemente armados e conduzindo cachorros presidente da Funai, em pessoa, para conversar. Na discussão que se seguiu com o
amestrados. Os Xerentes voltaram para suas aldeias sentindo-se extremamente secretário, Abraão Xerente soltou um argumento definitivo, que derrubou todas as
humilhados e irritadíssimos com o incidente. resistências. Disse ele: “Sr. Secretário, se houver uma invasão em alguma Delegacia
Por coincidência, eu havia me deslocado, de jipe, para as aldeias Xerentes, de Polícia em Goiás, o senhor vai chamar o Presidente da Funai para resolver?”
com um grupo de Krahôs, que se considerava seus descendentes (em épocas Após uns três dias da ocupação da Delegacia, o presidente veio. Na reunião
passadas houve uma forte miscigenação entre as duas etnias) e desejava visitá-los. que se seguiu, muito tensa, ele se negou a voltar atrás em sua decisão de substituir
Chegamos às terras dos Xerentes um ou dois dias após a chegada do grupo que Antônio João, deixando os líderes cada vez mais irritados. Houve um momento em
retornara de Brasília. Em todas as aldeias que passávamos, escutávamos os que temi por um gesto violento de algum líder Xerente, tamanha era a irritação e o
comentários irritados dos caciques. Eles não se conformavam, principalmente, com o inconformismo deles. Afinal, tinha sido aquele presidente que chamara a polícia com
fato de terem sido recebidos com cachorros, na porta da Funai. os cachorros e os haviam impedido de entrar na sede da Funai, em Brasília. Agora,
Estávamos, pois, nessa visita “cultural” às aldeias Xerentes, quando, ali estava ele, na frente dos ofendidos, mantendo inflexível o argumento de que o
inesperadamente, recebemos a notícia de que a presidência da Funai havia cargo de delegado era de sua inteira confiança e responsabilidade, não cabendo a
exonerado o Delegado de Araguaína, Antônio João, sem consulta prévia aos líderes ninguém intervir.
das etnias da região. Os Xerentes reagiram imediatamente. Além da estima que Quando os líderes sentiram que ele realmente não cederia, expulsaram-no
tinham por Antônio João, eles enxergaram também ali a oportunidade de descarregar aos empurrões da sede e decidiram fechar definitivamente a regional, sob o
sua indignação com o episódio de Brasília. Em pouco tempo, eles conseguiram reunir argumento de “se não é o Antônio João, não será mais ninguém”.
vários líderes em uma das aldeias e praticamente nos convocaram para a reunião. Foi um erro. Imediatamente após a desocupação do prédio, a Polícia Militar,
Os discursos dos líderes Xerentes eram irritadíssimos, inconformados e que o cercava desde o primeiro dia da invasão, entrou. Os líderes ficaram sem
estimulavam o confronto. Eles conclamaram os Krahôs ali presentes a se unirem a reação. O que fazer? Enfrentar a polícia, armada de fuzis e metralhadoras apenas
eles, para impedir a posse do próximo representante da Funai em Araguaína e com arcos, flechas e bordunas?
manter Antonio João no cargo. Os Krahôs, um tanto por se sentirem também Cabisbaixos, fomos todos para uma chácara mantida pela Funai, nos
desrespeitados, por uma questão diplomática e para não parecerem acovardados, arredores da cidade. A desolação era geral. Como voltar para as aldeias assim,
aceitaram a proposta. Pelo rádio, passaram a convocar os líderes e guerreiros de derrotados, humilhados? Para quem conhece a verve guerreira desses povos, sabe
suas aldeias para se deslocarem até Araguaína. que não existe humilhação maior que essa.
A mobilização foi tão intensa que, ao fim daquele mesmo dia em que havia Após uma reunião, decidimos entrar em contato, pelo telefone, com Mário
chegado a notícia da troca de Antônio João, acompanhávamos, em nosso jipe, um Juruna, em Brasília. Juruna havia se tornado uma personalidade internacionalmente
caminhão apinhado de Xerentes, armados com arcos, flechas e bordunas, a caminho conhecida, o primeiro deputado indígena da história brasileira. Extremamente
de Araguaína. No caminho, telefonamos para a cidade, para saber como iam as combativo, ele havia conquistado a simpatia para a causa indígena não só dos
brasileiros, mas praticamente em todo o mundo.
Falei pessoalmente com Mário Juruna, que conhecia bem, da época das parentes dos Apinajés, estavam se deslocando para a região. Na verdade era um
brigas pelas terras Xavantes. Expliquei a ele o drama de seus parentes, na iminência blefe, pois praticamente não tínhamos armas, nem condições de transporte, nem
de retornarem às suas aldeias, completamente derrotados e humilhados. Conversei tempo hábil para a chegada desses grupos, que habitam o estado do Maranhão.
também com Odenir (sim, o mesmo Odenir de antes), que era o seu assessor Contudo, naquela noite, conseguimos que o movimento voltasse ao Jornal
parlamentar. Nacional, que noticiou que um grande número de índios de Goiás e Maranhão
Ninguém melhor que Mário Juruna para entender uma coisa dessas. No dia estavam prontos para a guerra pela demarcação das terras Apinajés, ligando o fato à
seguinte, ele desceu de avião em Araguaína acompanhado de uma equipe da TV revolta de Araguaína e destacando a possibilidade de um conflito sem precedentes
Globo e dois outros parlamentares. Dirigiu-se diretamente à sede da Funai, entrou e entre índios e fazendeiros.
simplesmente ordenou ao coronel que comandava os homens da PM a desocupar o No dia marcado para o “ataque”, chegou de Brasília uma equipe de técnicos
prédio. A força de sua personalidade e de sua fama era tamanha, que o coronel da Funai, para negociar a demarcação das terras.
obedeceu sem muito discutir. O Jornal Nacional daquele dia mostraria uma cena, no Esse foi o início de uma série de incidentes e conflitos, que culminaria na
mínimo inusitada: um destacamento de soldados da Polícia Militar, com seus fuzis a demarcação definitiva das terras Apinajés, dois anos depois, como relatarei mais
tiracolo, cabisbaixos, saindo em fila indiana pela porta da Regional da Funai e os adiante. O intento de chamar a atenção sobre a demarcação das terras dos Apinajés
índios, todos pintados, reocupando-a. e ligar o assunto ao episódio da tomada da sede da Funai em Araguaína havia sido
Tudo voltara à estaca zero, com a diferença de que não havia mais com atingido.
quem negociar. Brasília simplesmente se negava a conversar sobre o assunto da Retornamos para Araguaína e nos juntamos novamente ao grupo que havia
substituição do delegado ou qualquer outro assunto, enquanto a sede da Regional ficado na Delegacia. O impasse continuava. Todos estavam cansados. Afinal, toda
estivesse ocupada. aquela movimentação já durava quase um mês. Comíamos e dormíamos muito mal,
Ao todo, éramos umas 300 pessoas no interior da Delegacia – uma casa com a permanente possibilidade de uma invasão violenta pela polícia, gerando
comum de moradia, com quatro quartos, sala, banheiro, cozinha etc. Não havia tensão constante. Antônio João nos comunicou que havia desistido do cargo e
camas, lençóis ou mesmo cadeiras para todos. Quanto à comida, conseguimos decidido retornar para Cuiabá, esvaziando o movimento inicial. Era preciso achar
convencer o fornecedor da Funai a nos abastecer com marmitas, garantindo-lhe que uma saída honrosa para o episódio.
tudo seria resolvido como os líderes queriam e eles seriam pagos. A sede da Como se aproximava o fim do ano e a Funai precisaria fechar o exercício
Regional mantinha-se cercada por soldados da Policia Militar e agentes da Polícia fiscal, propus aos índios que ameaçassem queimar toda a documentação fiscal da
Federal. Temíamos sempre que, a qualquer momento, eles tentassem uma invasão Delegacia, caso não aparecesse alguém de Brasília para negociar.
violenta. A ameaça funcionou. Dois dias depois chegou um emissário da presidência
Por volta do décimo dia de ocupação, nada evoluíra. A direção da Funai em para negociar o fim do impasse. Os caciques exigiram então uma soma em dinheiro
Brasília continuava se negando a dialogar. Precisávamos de um fato novo que “para pagamento do tempo gasto longe de suas famílias, por culpa da Funai”. O valor
fizesse a roda girar. foi negociado e pago em espécie.
Fizemos então uma reunião onde se decidiu por uma tática, que colocamos Assim, a Delegacia foi desocupada e retornamos para as aldeias.
em prática no mesmo dia. Dividimo-nos em dois grupos: um manteve a ocupação do Alguns dias após o retorno à aldeia, fui acometido por um fortíssimo estresse.
prédio da Delegacia e o outro se deslocou à terra dos Apinajés, distante cerca de 300 Sentia dores muito fortes no peito, fiquei muito fraco e não conseguia me alimentar.
quilômetros de Araguaína, com a intenção de chamar a atenção para a sua Pagava, agora, a conta de ter ficado tanto tempo sob forte tensão, alimentando-me
demarcação. Os Apinajés ainda não tinham suas terras demarcadas. Seu território mal e dormindo pior ainda.
tradicional, que fica encravado no famoso Bico do Papagaio, estava totalmente Os médicos-curadores Krahôs se revezavam, me dando passes e
invadido por posseiros, grileiros e fazendeiros. beberagens, mas eu me sentia cada vez mais fraco e com dores quase
Fui com o grupo que se deslocou para a terra dos Apinajés. Saímos noite alta, insuportáveis. Era como se uma longa faca me atravessasse o peito, na longitudinal.
de caminhão, procurando passar por estradas secundárias para desviar das barreiras Morávamos então em uma aldeia chamada Pedra Branca, na terra Krahô, a cerca de
e não chamar a atenção da Polícia. Ao amanhecer, chegamos à aldeia São José, 25 quilômetros da cidade de Itacajá. As demandas das aldeias estavam represadas,
dos Apinajés. pelo tempo que passamos fora. Todos tinham alguma coisa para resolver comigo.
Em reunião com a comunidade da aldeia, decidimos comunicar ao presidente Concluí que ali eu não conseguiria me recuperar. Decidi então ir com a minha
da Funai que as fazendas e posses que estivessem dentro das terras reivindicadas família para a aldeia Galheiro, a 80 quilômetros da cidade. Por sorte, naquela
pelos Apinajés seriam atacadas daí a dois dias, caso não viessem técnicos de ocasião, os Krahôs que moravam ali encontravam-se em um acampamento de roça,
Brasília para demarcar a terra. Por telefone, entramos em contato com a imprensa e a uns 15 quilômetros de sua própria aldeia. No acampamento não havia rádio ou
anunciamos esse intento, acrescentando que os índios estavam fortemente armados qualquer outra forma de comunicação com o mundo exterior. Era exatamente o que
e que um grande número de guerreiros das etnias Canela, Gavião e Krinkati, eu precisava.
Convalesci cerca de 15 dias nesse acampamento, cercado dos cuidados de De volta à Galheiro, fiz contato pelo rádio com a Delegacia da Funai em
minha família e dos Krahôs. Estive realmente muito fraco e, segundo médicos que Araguaína. Após os cumprimentos de praxe, perguntei o que estava acontecendo, o
consultei mais tarde, estivera à beira de um infarto. que significava a presença da Polícia em Itacajá e a prisão de meu irmão. Como
Passado esse período de descanso, sentia-me melhor. Decidi sair do resposta, eles me passaram uma mensagem oficial, da presidência da Funai dizendo
“esconderijo”, para tocar o barco. Afinal, tudo ficara completamente indefinido, após que eu deveria abandonar a Terra Krahô no prazo de vinte e quatro horas, após o
toda a confusão em Araguaína. Agradecendo profundamente a hospitalidade dos recebimento da mensagem.
moradores de Galheiro, eu e minha família iniciamos nosso retorno para Pedra – Tudo bem, entendido, mas quero saber o que significa a presença da
Branca, em uma caminhonete. Polícia em Itacajá e o que foi feito do meu irmão.
No caminho para casa, visitamos a aldeia Santa Cruz, que ficava mais ou – Seu irmão foi trazido para Araguaína, já se encontra em liberdade e bem de
menos na rota para a cidade. A pedido de seus moradores, que desejavam se reunir saúde – responderam.
comigo, decidi pernoitar – depois de providenciar pelo retorno de minha família para – Quero falar com ele, eu disse.
Pedra Branca. – Ele não se encontra aqui nesse momento, responderam.
Eu não sabia, mas uma nova grande confusão estava à minha espera. – Então o localizem e o tragam ao rádio. Se não, como posso acreditar em
vocês? – insisti.
E o diálogo prosseguiu:
– Vocês devem considerar que os Krahôs já estão sabendo de tudo, estão se
CAPÍTULO XVIII armando e seria muito perigoso a Polícia me prender. Poderia haver tiroteio e mortes
O CERCO – adverti. E, dessa vez eu não estava blefando, pois já tivera provas suficientes da
lealdade dos Krahôs aos seus amigos e temia realmente que algo de grave
No dia seguinte pela manhã, depois de ter participado da reunião matinal no acontecesse.
KÀ, o pátio central da aldeia, preparava-me para entrar no carro e seguir viagem. Em seguida, pedi que localizassem e trouxessem ao rádio o comandante da
Inesperadamente um Krahô, de nome Hohot, entrou esbaforido na aldeia. Ele estava Polícia Militar de Araguaína. Enfim, pediram que eu aguardasse que iam tentar
completamente suado e no limite de suas forças, pois havia corrido cerca de 40 localizar as pessoas que eu pedira.
quilômetros – de Itacajá a Santa Cruz – para tentar me avisar de uma série de Após algum tempo de espera, chamaram-me novamente pelo rádio. O
acontecimentos desencadeados na noite anterior. Ele previra correr mais uns 20 ou comandante do quartel da Policia Militar de Araguaína, um coronel, tinha concordado
30 quilômetros até o acampamento onde me encontrava. Por sorte, me encontrara em dialogar. Reiterei a ele minhas preocupações, sobre a possibilidade de incidentes
ali. Depois de descansar um pouco, contou-me o motivo de tanto esforço: drásticos, caso a Polícia tentasse me prender. Alguém teria de assumir a
Cerca de 30 soldados da Polícia Militar, fortemente armados, haviam responsabilidade pelo que viesse a acontecer, alertei.
chegado à cidade na tarde do dia anterior. Passaram a controlar todas as entradas Negociamos por um longo tempo a minha saída da terra Krahô. Ficou
da cidade e o único posto telefônico que ali existia, além das balsas que acertado que eu deveria entrar na cidade de carro, acompanhado de apenas quatro
atravessavam o Tocantins rumo à rodovia Belém–Brasília . Segundo informações que Krahôs, desarmados. Inicialmente exigiam que eu fosse só, mas Milton Krokrok, o
Hohot colhera na cidade, eles tinham vindo para me prender a qualquer custo. líder da aldeia, que acompanhava toda a conversação, foi irredutível quanto a me
Anunciavam abertamente pela cidade, que “desta vez ele vai aprender a desafiar a acompanhar e fez questão de transmitir isso pessoalmente ao comandante, o que
polícia”, “vamos arrancar o couro dele” – essas coisas que Polícia costuma falar reforçou a minha posição. Deveria me apresentar ao tenente-comandante da
quando está com raiva. guarnição que se encontrava em Itacajá, orientado para não me prender e que me
Por coincidência, meu irmão Renato, que é médico e morava em Belém do daria novas instruções. Mais uma vez expliquei e ratifiquei em mensagem oficial,
Pará, viera me visitar sem prévio aviso. Provavelmente confundindo-o com minha sobre o perigo de haver derramamento de sangue, caso tentassem me prender.
pessoa, os policiais o prenderam assim que chegou à cidade. A confusão foi intensa, Finalmente ficou acordado que eu me apresentaria ao destacamento na manhã
pois os Krahôs da aldeia Pedra Branca ao saberem da prisão do meu irmão, também seguinte, quando estaria próximo do vencimento do prazo estipulado pela Funai para
pensando tratar-se de minha pessoa, falavam em invadir a cidade para tirá-lo da minha saída do território Krahô.
cadeia. Como a aldeia tinha um pequeno trator, Kraté, o tratorista, desfilou com ele Dormi, portanto, mais essa noite, na aldeia Galheiro. Um sono agitado, cheio
pelas ruas de Itacajá, anunciando que derrubaria a cadeia se eu não fosse solto. de sobressaltos e pesadelos, onde a polícia invadia a aldeia e matava crianças e
Após rápida deliberação com os líderes da aldeia Santa Cruz, decidimos que o mulheres.
melhor seria eu retornar para a aldeia Galheiro, onde existia equipamento de rádio- No dia seguinte, bem cedo, antes que partíssemos, as mulheres da aldeia
comunicação. Era preciso saber exatamente o que estava acontecendo. fizeram questão de cortar meus cabelos à moda Krahô e me pintar com urucum.
Kakró, um ancião da aldeia, colocou um amuleto em meu pescoço e disse, com iriam me levar até Araguaína, pois queriam apurar quem provocara tudo aquilo. O
muita segurança, que nada de ruim iria me acontecer. tenente não teve outra saída senão concordar.
Os Krahôs, principalmente as mulheres e os velhos estavam muito – Então, nossa viatura estará lhe esperando em frente ao hotel às sete horas
assustados. A maioria deles era sobrevivente de massacres ocorridos na década de da manhã – disse o tenente.
40, naquela mesma região e temiam novos ataques. Enquanto cortavam meu cabelo – Nada disso! – interferiram novamente os caciques. Ninguém vai entrar em
e me pintavam, as famílias juntavam seus pertences às pressas. Disseram-me que, carro de Polícia. Ninguém aqui é bandido. Nós iremos levá-lo em carro próprio.
assim que partíssemos, iriam se esconder no mato. O tenente não soube o que responder. Deixamo-lo ali, plantado, com cara de
E assim, devidamente paramentado e muito preocupado com o que poderia que havia sido enganado e saímos para a rua, passando por um verdadeiro “corredor
acontecer, fui para Itacajá acompanhado de quatro Krahôs, entre eles, Milton polonês” de soldados armados, loucos para nos darem ao menos um pontapé na
Krokrok, como havia sido combinado com o comandante. canela.
Ao chegarmos a Itacajá, dirigimo-nos ao hotel localizado na rua principal da Uma das primeiras providências que tomei, foi mandar buscar minha família
cidade, onde estava hospedado o destacamento. Ao estacionar o carro em frente ao na aldeia Pedra Branca. Sempre acompanhado dos líderes Krahôs, que temiam
hotel houve um rebuliço de soldados e armas. Desci do carro tranqüilamente, sem alguma ação contra mim por parte dos soldados, aproveitei o restante do dia para
nenhum receio, acreditando firmemente no que o velho Krahô me dissera: “nada de resolver algumas pendências com os comerciantes locais, fazendo questão que
ruim vai te acontecer!” todos vissem que eu não estava saindo dali correndo ou assustado.
Em seguida, aconteceu uma cena que jamais me sairá da memória: cerca de No dia seguinte embarcamos para Araguaína em uma caminhonete que
trezentos Krahôs, entre homens, mulheres e crianças, estavam sentados em plena fretamos na cidade, no horário acertado. Um pouco antes da nossa partida, com a
rua principal, fechando-a totalmente, a uns cinqüenta metros do hotel. Ao notarem rua em frente ao hotel apinhada dos moradores de Itacajá, o tenente nos disse que
nossa chegada, levantaram-se e começaram a caminhar lentamente em nossa as viaturas da polícia sairiam um pouco depois de nós, mas que não nos
direção. Sem pressa, sem raiva, sem nenhuma agressividade, apenas com uma preocupássemos, pois ninguém iria nos abordar. Entendi que ele queria realizar uma
solidariedade sem limites nos gestos, nos olhares, no próprio caminhar. Era como saída honrosa da cidade com a sua guarnição, como se estivessem nos escoltando.
uma mensagem: você não está sozinho! Afinal eles haviam feito tal propaganda da minha prisão nos dias que passaram na
Os soldados me encaminharam imediatamente para refeitório, nos fundos do cidade, que não ficaria bem para a PM sair dali sem ninguém algemado.
pequeno hotel. Ali, sentado junto a uma mesa, estava o comandante do Concordamos com a proposta para não criar maiores problemas e partimos.
destacamento, um tenente, com quem travei o seguinte diálogo: Em Araguaína fomos direto para a Delegacia da Funai que, apesar de ser
– Tenente, sou o Fernando, chefe de Posto da Funai. Estou me apresentando domingo, estava aberta e guarnecida por policiais militares armados com fuzis.
ao senhor, conforme foi acertado com o seu comandante, pelo rádio. Entramos e encontramos um interventor de Brasília, que assumira a Delegacia desde
– ‘Tá certo. O senhor deve saber que a sua situação é muito complicada, não o incidente da invasão. Krokrok exigiu que ele convocasse imediatamente o
é? – respondeu o tenente. Comandante da Polícia Militar, o Delegado da Polícia Federal, o Promotor e o Juiz da
– Tenente, sei apenas que há uma ordem da Funai para que eu abandone a cidade, que os caciques desejavam conversar com eles.
terra indígena em vinte e quatro horas. Sei que ela tem poder para isso. O tempo – Mas, Sr. Milton –, tentou explicar o interventor – hoje é domingo, todas
ainda não se esgotou. Aqui não é área indígena. Portanto, já cumpri a ordem. Existe essas pessoas estão descansando em suas casas, nos clubes...
mais alguma coisa contra minha pessoa, uma ordem de prisão, por exemplo? – E você acha que não é domingo também para nós? – retrucou Krokrok. Por
– Não, não existe. Mas você deverá abandonar a cidade imediatamente – que eu sou índio, você acha que eu não tenho família, que eu não trabalho, que eu
respondeu. não descanso? Por causa de vocês, por causa dessas pessoas, fomos obrigados a
– Se não existe ordem de prisão, tenente, o senhor não pode cercear o meu deixar nossas famílias e estar aqui hoje. Por que eles não podem fazer o mesmo?
direito de ir e vir. Não posso sair da cidade imediatamente. Tenho família, que está na O argumento era irrefutável e o burocrata se pôs a telefonar para as
aldeia, tenho negócios a tratar aqui e preciso ficar um tempo. autoridades e transmitir o desejo dos caciques.
– Você está complicando as coisas... Mesmo a contragosto, alguns de bermudas e chinelos, apareceram, exceto o
– Não estou complicando nada, tenente, é apenas um direito. Concordo em juiz, que não estava na cidade.
sair amanhã, depois de mandar buscar minha família e resolver alguns assuntos Iniciada a reunião, Krokrok, como porta-voz do grupo, pediu inicialmente que
pendentes aqui na cidade. Aliás, concordo em fazer isso apenas para não provocar alguém explicasse o que estava acontecendo. O comandante da Polícia Militar, o
incidentes envolvendo os Krahôs. mesmo com quem havia negociado minha saída do território Krahô, tomou a dianteira
Os caciques Krahôs, que também haviam entrado no hotel e presenciado o e falou:
diálogo, interferiram dizendo que eu não sairia sozinho. Eles próprios, os caciques, – Sr. Milton, vou ser bem franco, breve e direto com vocês, pois quero voltar
para o meu descanso. A situação do amigo de vocês aí, é muito grave. Ele vai ser
processado pela Funai, pela Polícia Civil e pela Polícia Federal. Poderá pegar até CAPÍTULO XIX
doze anos de prisão pelos atos que cometeu. Esse é o único problema. Quanto a O JULGAMENTO
vocês, não temos nada contra, estão dispensados e podem voltar tranqüilamente
para suas aldeias.- Passei os seis meses seguintes ocupado com os tais processos. Na
Krokrok então fez um discurso que vou tentar aqui reproduzir, verdade, passamos, pois eu não era o único processado. Mais três colegas, todos de
resumidamente. Disse ele: alguma forma envolvidos com os grupos que ocuparam a delegacia da Funai, também foram
– Quem vocês pensam que nós somos? Animais, cachorros? Que vocês processados.
podem ir chegando, armados, nos assustando, como se acua uma anta para matar? Eram eles: José Araújo Filho, chefe do Posto Xerente à época, Paulo Cézar da Silva, que
Vocês pensam que são pedras, que viverão para sempre? Não, vocês não podem trabalhava como laboratorista na Terra Krahô, e Livalcir Soares, então
mais fazer isso e nem vocês são pedras! E nós não temos mais medo de vocês. chefe do posto Apinajé. Mauricio Wilke e Doroty Menezes, a “Tico”, que também prestavam
Sabem por quê? Porque não temos mais para onde correr. Vocês nos tomaramserviços na Terra Krahô, também participaram dos episódios, mas como não eram
quase tudo: a terra, a saúde, a valentia dos nossos guerreiros e agora querem nos funcionários, não foram incluídos nos processos.
levar o restinho de dignidade que ainda temos. Vocês pensam que não temos Inicialmente fui com minha família para o interior de São Paulo, a convite de
coração, que não temos espírito, que não sentimos nada, que não choramos a morte amigos ligados ao CTI. Ficamos por lá aproximadamente um mês e não agüentamos
dos nossos parentes, que não trabalhamos para cuidar das nossas famílias. Vocês a distância da aldeia, a falta de notícias e a ociosidade. Então, voltamos para a
não sabem de nada, não entendem nada, a não ser de ganhar dinheiro e ficar ricos, região dos Krahôs. Alugamos uma casa na cidade de Colinas, a mais ou menos 100
em cima da terra que é nossa, que vocês tomaram pelo poder das armas e das quilômetros de Araguaína e a 150 quilômetros das aldeias Krahôs. A cidade fica na
doenças que trouxeram de longe. Mas vocês não nos assustam mais, nós não rota de passagem dos Krahôs para Araguaína, às margens da BR-163, a Belém–
temos mais medo de vocês, tanto é que estou aqui falando tudo isso na frente de Brasília.
vocês. Se vocês queriam prender o nosso amigo aqui, porque não me chamaram, Nosso “patrimônio” se resumia a duas malas com roupas. Não possuíamos
por que não chamaram as nossas autoridades, que somos nós, e nos falaram como móveis nem utensílios domésticos. Tivemos de improvisar. Para cozinhar,
homens sobre isso? Por que tinham que ir assustar nossas mulheres e nossas improvisamos um fogão “caipira” com uma lata de 20 litros, arranjamos panelas
crianças, que há esta hora muitos ainda estão escondidos no mato, lembrando dos emprestadas aos vizinhos, com a desculpa de que nossa mudança estava a caminho
massacres que vocês já fizeram muitas vezes? O nosso amigo está aqui. Nós viemos e, para fazer fogo, arranjávamos lenha pelos terrenos baldios das redondezas.
trazê-lo. Ele também é branco, conhece as leis de vocês e vai saber se defender. Ele Tentamos esconder o máximo possível o fato de estarmos morando naquela
não cometeu nenhum crime, apenas é verdadeiramente nosso amigo e por isso cidade, com exceção, obviamente, dos Krahôs, que paravam em casa sempre que
vocês querem prendê-lo. Nós vamos vigiar. Só dizemos uma coisa: não aceitaremos iam da aldeia para Araguaína ou vice-versa. Conhecendo nossa situação, traziam
nenhum branco em nossas terras até ele voltar. produtos das aldeias (mandioca, abóbora, milho etc.) ou tiravam alimentos da “Casa
Quando Krokrok terminou, todas as autoridades estavam de cabeça baixa. Um do Índio” da Funai, em Araguaína, e traziam para nossa casa. Com isso, mais algum
longo silêncio se seguiu. Um deles, um capitão da Polícia Militar, que acompanhava o dinheiro enviado periodicamente pelos amigos do CTI, íamos tocando.
seu chefe, puxou conversa, timidamente, tentando sair daquele embaraço. A prioridade era a nossa defesa nos processos. A Funai tinha realizado uma
– Milton, você sabe que sou seu amigo... sindicância inteiramente viciada, para nos incriminar. Alguns colegas da Funai, sob a
– Não, você não é meu amigo, ele respondeu. Eu não acredito nisso! Se você promessa de que tudo seria sigiloso, levantaram as mais absurdas acusações contra
fosse meu amigo eu estaria a essa hora em sua casa, comendo e bebendo coisas mim e os outros colegas envolvidos na invasão da Delegacia. Esse tipo de acusação,
gostosas e não aqui, nessa situação de humilhação. Se um amigo meu chega em sem provas, era comum na época dos militares, que as registravam como verdades
minha aldeia, imediatamente eu o chamo para a minha casa, lhe dou o que eu tiver em suas fichas, nas Assessorias de Informações (ASIs), que por sua vez, as
de melhor para comer e beber e depois lhe estendo uma esteira para ele descansar. enviavam para o SNI – Serviço Nacional de Informações. Além dos inquéritos
Isso é o que os amigos fazem. instaurados pela Polícia Civil e Federal, respondíamos ainda em ação trabalhista da
O constrangimento foi ainda maior. Ninguém sabia o que falar, nem como sair Funai, que tentava nos dispensar por justa causa.
daquela situação. Acabaram pedindo desculpas e dizendo que, da próxima vez, Conseguimos a ajuda de dois advogados de Araguaína: Célio Moura, que até
agiriam diferente. hoje se encontra na região, e Eraldo Alves Corrêa, ambos ligados ao Sindicato Rural
Saímos dali. Mais uma vez eu me via, com a família, sem dinheiro, sem da cidade. Esses advogados eram militantes ativos do Partido Comunista do Brasil
emprego, sem saber exatamente para onde ir. E o que era pior: com três processos (PC do B) e o trabalho deles era defender os direitos de pequenos posseiros. Célio e
“nas costas”. Eraldo eram extremamente ágeis, competentes e, sobretudo, corajosos, pois
defender pequenos posseiros na região do Bico do Papagaio, naquela época, era
coisa pra maluco. Por afinidade, mais que nossos advogados, tornaram-se nossos Juiz: - Está bem, agora pode sentar-se.
aliados incondicionais naquela luta. Aleixo: - Não, muito obrigado, vou ficar de pé mesmo, pra ficar da mesma
A tática montada pelas Polícias Federal e Civil e pela Funai foi fazer, em altura do senhor.
conjunto, um único inquérito: o trabalhista, que deveria instruir todos os outros Instado pelo juiz a dar seu depoimento sobre a invasão da Delegacia da
inquéritos. Caso fôssemos considerados culpados no processo trabalhista, que tinha Funai, ele assumiu toda a responsabilidade pelo que tinha acontecido. Disse que
como objetivo nos dispensar por justa-causa, automaticamente ele instruiria os ele, quando estava visitando seus parentes Xerentes, a convite destes, havia liderado
demais processos, e dificilmente escaparíamos de novas condenações na Justiça os Krahôs na invasão e que havia exigido que eu viesse junto, para evitar qualquer
comum. Assim, nós e as testemunhas éramos intimados a depor, ora na sede da violência e que, em várias ocasiões, eu havia interferido para que não acontecessem
Policia Federal ou na Delegacia da Polícia Civil, ora na Funai, mas sempre com a coisas piores; que se eu não tivesse acompanhado tudo, provavelmente teria
presença de policiais civis e federais. Tratava-se claramente de uma forma de nos acontecido alguma morte durante o incidente. Quando o juiz lhe perguntou se era
intimidar e nos desmoralizar frente aos colegas de trabalho e à sociedade regional, verdade que na ocasião eu estava pintado como os Krahôs, ele respondeu que sim,
além de uma arbitrariedade, típica de um tempo em que já se falava em anistia e estava, porque eu respeitava a moral deles (os Krahôs) e que, se naquele momento,
democracia, mas ainda persistiam claramente restos da prepotência da ditadura ali na frente do juiz, ele era obrigado a ficar de roupas e com o calçado apertando-
militar. lhes os pés para respeitar a moral dos brancos, ele exigia e achava muito bom que
Meus companheiros e eu saímos também a campo para ajudar os as pessoas também respeitassem a sua moral, quando estivessem na aldeia.
advogados e conseguimos reunir inúmeros documentos que desabonavam as Esse e outros depoimentos dos Krahôs, dos Xerentes e dos Apinajés foram
testemunhas de acusação. Eram documentos que diziam respeito fundamentais, apesar de nossos advogados terem explorado ao máximo todas as
à falsificação de diplomas para ascensão na carreira na Funai, cheques sem fundos falhas, vícios e arbitrariedades na condução do inquérito.
e até um processo por homicídio contra uma delas, que desenterramos em uma Trinta dias após o julgamento, saiu a sentença. Ela nos foi totalmente
pequena cidade do interior do Maranhão. favorável. Ordenava que Funai nos reintegrasse imediatamente aos seus quadros,
Como em Araguaína não existia Justiça do Trabalho, as questões trabalhistas pagando-nos todos os salários atrasados. E como a sindicância promovida pela
eram julgadas pelo juiz de direito da Comarca. Depois dos trâmites legais do Funai, agora comprovadamente viciada, havia servido de base para os inquéritos nas
processo, uns seis meses após o episódio da invasão da Delegacia, o juiz marcou o Polícias Civil e Federal, mandou, na mesma sentença, arquivar os outros dois
julgamento do processo trabalhista. processos.
Provavelmente pela repercussão nacional que tivera o caso da invasão da Vitória total. Poderíamos, agora, voltar para as aldeias.
Delegacia da Funai e, talvez, aguardando a presença da imprensa e de muitos Quanto aos Krahôs, eles haviam cumprido a promessa que haviam feito às
curiosos, o juiz resolveu realizar o rito forense destinado aos julgamentos por júri autoridades: não haviam permitido que ninguém assumisse qualquer posto em suas
popular, com toda a pompa que tinha direito. De fato, o salão do Fórum se encheu terras durante a minha ausência.
completamente e uma pequena multidão ficou do lado de fora, por falta de espaço.
Os Krahôs enviaram por volta de 150 pessoas, além dos Xerentes e Apinajés, num
total de cerca de 300 representantes indígenas.
O juiz convocou a Polícia Militar, que cercou o prédio, e a Polícia Federal,
que ficava no recinto com seus walkies talkies. Assim, com todo o “circo” armado, a CAPÍTULO XX
defesa de um lado, a promotoria do outro, o juiz lá do alto, com sua indefectível capa DELEGADO
preta e o martelinho, e nós quatro ali, no banco dos réus, deu-se início ao
julgamento. Voltei, com a minha família, para a aldeia e a vida recomeçou normalmente.
A coisa durou três dias, parecia que não ia acabar mais. Nossas testemunhas Retomamos as atividades dos projetos e durante aproximadamente um ano,
de defesa eram os índios, principalmente os Krahôs, que impressionaram a todos conseguimos trabalhar com relativa tranqüilidade.
pela altivez e segurança nos depoimentos. É preciso deixar registrado o depoimento A questão da demarcação das terras dos Apinajés, entretanto, de vez em
de Aleixo Pohi, um velho conselheiro Krahô, que, convocado a depor, travou o quando produzia um incidente. Pelo rádio, os Apinajés pediam constantemente apoio
seguinte diálogo com o juiz: político e de homens aos Krahôs, que jamais lhes negavam.
Juiz: - Sr. Aleixo, o senhor sabe que o senhor tem que falar a verdade e No fim do ano de 1984, sofri um acidente na aldeia, quando jogava futebol
somente a verdade perante o juiz, certo? com os Krahô. Minha clavícula foi gravemente fraturada. Foi necessária uma
Aleixo: - Sr. Juiz, aqui o senhor trabalha com leis e na minha terra eu também intervenção cirúrgica bastante complicada, realizada na cidade de Araguaína, pois o
trabalho com leis, portanto lá eu sou autoridade como o senhor é aqui. Eu também só osso da clavícula havia se fragmentado em vários pedaços, tendo que ser
lido com a verdade. reconstituído com platina.
Após a cirurgia fui com a família para Brasília para me recuperar. Dessa vez estudantes de medicina, pedagogia, agronomia, veterinária, antropologia e outras
resolvi perturbar meu irmão Humberto, que também passara a morar em Brasília. Ele especialidades das duas universidades.
e sua esposa Vera e me acolheram carinhosamente em seu apartamento. Registro Para receber a equipe de universitários e fazer uma programação
isso, por entender hoje, como é complicado hospedar uma família de cinco pessoas, participativa, promovemos em Araguaína uma reunião de lideranças de todas as
todas “mateiras” e que mal sabiam usar os confortos da cidade. etnias ligadas à regional. Nessa reunião, decidiu-se criar o “Conselho Indígena do
De repente, estourou o conflito definitivo, que iria resultar na demarcação das Norte de Goiás”, com o objetivo de defender os interesses de todas as etnias que da
terras dos Apinajés. região, participar das decisões e fazer a fiscalização dos atos administrativos da
Na ocasião, contando com a ajuda de aliados, entre eles o indigenista Delegacia.
Cláudio Romero, da Funai e o antropólogo Gilberto Azanha, que era do CTI., mas Ampliamos também a idéia de “auto-gestão” dos recursos públicos para as
que na época ocupava o cargo de delegado de Araguaína, os Apinajés conseguiram outras etnias. Chegamos a implantar um tipo de prestação de contas dos recursos
reunir cerca de quinhentos homens de outras etnias (Kayapó, Krahô, Canela, liberados pela regional, em que as lideranças das aldeias apenas assinavam um
Krinkati, Xavante, Xerente, Fulniô, entre outras) e muitas armas e partiram para recibo, comprovando o recebimento dos recursos e se comprometendo a aplicá-los.
demarcar, por conta própria, o seu território. A tensão foi grande e prolongou-se por Nada de notas fiscais ou recibos. Logicamente isso subvertia totalmente os padrões
quase dois meses, chegando a haver tiroteios, policiais feridos, etc., com enorme administrativos do governo e eu amargaria futuramente muitos problemas por causa
repercussão na imprensa nacional. Presidia a Funai, nessa ocasião, Nelson disso.
Marabuto, provavelmente o presidente que mais se identificou com as lutas dos Foi um período de realizações políticas, mas também extremamente tenso. A
índios e dos indigenistas, nesse período. região do Bico do Papagaio era considerada uma das mais violentas do país na
Eu acompanhava toda essa movimentação de Brasília, onde continuava época sendo Araguaína a sua porta de entrada, ao sul daquela região. Todos os dias
convalescendo. Tentava ajudar como podia, arregimentando mais guerreiros, fazendo aconteciam assassinatos relacionados à disputa pela terra, por motivos políticos e
contatos com a imprensa, dando informações pelo rádio do andamento do noticiário e também motivos fúteis. A violência aumentava na época das chuvas, quando o
das negociações, aos que estavam nas aldeias Apinajés, e, logicamente, torcendo garimpo de Serra Pelada ficava interditado e milhares de homens desocupados e
para que tudo desse certo. famintos perambulavam pela região. Nessas épocas, era possível se contratar um
Finalmente, no início de 1985, os Apinajés, após intensas negociações, matador de aluguel por uma quantia irrisória.
tiveram seu território definido pelo governo e demarcado pelo exército. A No meu caso, além dos fazendeiros retirados das terras dos Apinajés, que
movimentação na região havia sido monumental. Guerreiros de várias etnias, desejavam vingança, eu tinha permanentemente em meu encalço a Polícia Militar do
inclusive o legendário líder Raoni, que chefiava os Kayapós, imprensa de todo o Norte de Goiás, considerada então uma das mais violentas do país. Os policiais
país, policiais militares e federais, exército e, logicamente os fazendeiros nunca se conformaram com os incidentes do passado, consideravam-se feridos em
interessados nas terras dos Apinajés, faziam parte de um cenário conturbado no seu “espírito de corpo” e também juravam vingança.
“Bico do Papagaio”. Era preciso andar pela região com extremo cuidado. Vivíamos, eu e alguns
Imediatamente após a definição das terras dos Apinajés, mesmo ainda não companheiros de Araguaína, como Heleno Gonçalves, indigenista experiente e
estando completamente recuperado da fratura, fui obrigado a assumir a função de combativo e meu substituto oficial na Delegacia e Ilton Coelho, o “Quininim”, em
delegado da Funai em Araguaína, a pedido do seu ocupante, o antropólogo Gilberto constante movimentação, sem nunca anunciar o dia, a hora e o local para onde nos
Azanha, que temia represálias dos fazendeiros que ocupavam as terras Apinajés. deslocaríamos ou iríamos dormir.
Assumi a Delegacia num clima muito tenso, quando era ainda grande o Tratei de alugar uma pequena casa geminada e sem quintal, para morar com
número de guerreiros de outras etnias nas aldeias Apinajés, o exército a exigir minha família. Assim, imaginava restringir os espaços para uma possível emboscada.
providências da Funai para conter os índios, os fazendeiros jurando vingança contra Nela, dormiam sempre quatro ou cinco Krahôs, que se revezavam de tempos em
os Apinajés e os funcionários da Funai, enfim, uma situação intrincada e ainda tempos, para nos dar “segurança”.
conflituosa. Montamos uma estratégia para que eu pudesse sair de casa sem ser pego
Aos poucos, essa situação foi se normalizando e pudemos então tentar de surpresa. Heleno e Quininim, os únicos companheiros nos quais eu efetivamente
realizar algumas coisas. confiava, após observarem os arredores, estacionavam a caminhonete com a qual
Uma das primeiras providências que tomei como delegado da Funai foi me nos deslocávamos pela região junto à porta de minha casa. Heleno abria a porta do
deslocar a Goiânia e entrar em contato com as Universidades Federal e Católica de passageiro e saía rapidamente do carro, tempo em que eu praticamente “pulava” do
Goiás, às quais propus um convênio, para atuação nas aldeias sob jurisdição da interior da minha casa para o banco dianteiro do veículo. Heleno, entrava novamente
regional. Após várias viagens à capital e contando com a colaboração intensa de e eu ficava entre os dois. Geralmente vinham também na carroceria da
aliados como o jornalista Armando Araújo e o antropólogo Marco Lazarin, o convênio caminhonete dois ou três Krahôs armados com rifles e somente assim circulávamos
foi assinado e pudemos assim levar, para todas as aldeias da região, professores e
pelas ruas de Araguaína, onde eu descia do carro apenas para entrar em recintos Tocantinópolis, foram obrigados a parar o carro por causa de um tronco de madeira
considerados seguros, como a Delegacia da Funai e a minha própria casa. atravessado na estrada. Assim que pararam foram violentamente abordados por um
Quando nos deslocávamos para alguma aldeia, espalhávamos informações grupo de militares e civis armados, que os arrancaram do carro, perguntando aos
falsas sobre nossos itinerários, indo para locais totalmente diferentes dos quais gritos qual deles era eu. Os dois tiveram que provar com seus documentos pessoais,
anunciávamos. que nenhum deles era a pessoa que eles procuravam.
Em pelo menos uma ocasião, por falha nesse improvisado sistema de Foram então escoltados até a cidade, onde puderam presenciar centenas de
segurança, quase caímos em uma armadilha, preparada pela Polícia Militar, na pessoas armadas com revólveres e espingardas na praça principal, aguardando a
cidade de Tocantínia, próximo às terras dos Xerentes. Na ocasião, por um descuido, minha chegada. Por mais que tentassem explicar que eu me encontrava em outra
avisamos a dois servidores da Funai da região dos nossos itinerários e horários aldeia, impossibilitado de receber a notícia antes do dia seguinte, via rádio, não
verdadeiros e, de alguma forma, a polícia local ficou sabendo. Em nossa passagem acreditaram e mantiveram a decisão de somente liberar o corpo do Valdemar com a
pela cidade de Tocantínia, prepararam então um “teatro” para provocar uma reação minha presença.
nossa, que lhes possibilitasse nos matar em um “tiroteio com a polícia”. Por um Após o relato de Francisco e Edson, concluí que simplesmente haviam
verdadeiro golpe de sorte e por termos conseguido manter o sangue frio, preparado o meu linchamento, na praça pública de Tocantinópolis. E o que era pior,
conseguimos nos safar. Mas eles não iriam desistir. numa ação conjunta da polícia, das autoridades do lugar e dos populares. Teria que
Entretanto, eu jamais poderia imaginar o que estaria por acontecer. jogar duro, se quisesse reverter aquela situação - pensei.
Minha primeira providência foi ligar para a residência do Juiz de Direito de
Tocantinópolis, cujo número consegui localizar. Imaginei que, por ser domingo, ele
estaria em casa.
Acertei. Após me identificar, mantive com ele o seguinte diálogo:
CAPÍTULO XXI - Sr. Juiz, tenho informações que existem aí em sua comarca corpo de pessoa
VINGANÇA assassinadas retido e que já deve estar em adiantado estado de putrefação, pessoas
feridas encarceradas e sem socorro médico além de mulheres e menores presos
Certa ocasião, em meados de 1986, encontrava-me em visita às terras sem nenhuma acusação. O senhor tem conhecimento desses fatos?
Xerentes, exatamente na aldeia Bela Vista, às margens do rio Tocantins, quando um - Tenho sim - respondeu ele. O corpo já foi liberado e conduzido para a aldeia,
dia, pela manhã, fui chamado apressadamente ao rádio. Fui informado então que mas os presos continuarão lá, até que o senhor venha providenciar soltura deles.
acontecera um tiroteio na cidade de Tocantinópolis, próximo às terras dos Apinajés, Somente o senhor poderá fazer isso e mais ninguém.
na tarde do dia anterior. Durante o incidente a polícia havia matado um Apinajé e - E o senhor tem conhecimento dos motivos desse incidente?
prendido nove deles. Entre os presos, havia dois homens feridos, além de velhos e - Tenho sim. Os índios tentaram invadir a delegacia, a mando do senhor, para
mulheres. O corpo do Apinajé assassinado continuava retido na delegacia. Segundo tirar dois deles que estavam presos por desacato à autoridade.
os Apinajés me disseram pelo rádio, as autoridades só o entregariam em minha - O senhor tem conhecimento Sr. Juiz, que existem pessoas armadas na
presença. Havia ainda um Apinajé gravemente ferido, que fora internado no hospital cidade, aguardando a minha chegada?
da cidade. Esse era o quadro. - Isso é bobagem, por aqui todo mundo anda armado, não há como controlar
Desloquei-me imediatamente, de bicicleta, até o Posto Xerente e a partir isso - disse ele.
daí, em companhia de Rui Cotrim, chefe daquele posto, para Araguaína, distante - Pois eu vou lhe dizer uma coisa Sr. Juiz. Vou providenciar um advogado para
cerca de quatrocentos quilômetros. Lembro-me muito bem da angústia daquela ir ainda hoje aí e liberar os presos. O senhor tem sorte de hoje ser domingo. É bom
viagem, imaginando o Valdemar Apinajé, um líder jovem e promissor, morto e que o senhor o atenda assim mesmo. Porque se os presos não tiverem sido
insepulto numa delegacia de polícia, os velhos e mulheres em uma cela, o Romão, liberados e os feridos socorridos até o amanhecer de amanhã, o Ministério da Justiça
então cacique da aldeia São José, ferido e sem socorro médico. e toda a imprensa nacional vão saber que existe uma cidade neste país onde as
E esse carro que não anda, Rui! – exclamava constantemente. autoridades, inclusive o juiz, se mancomunaram para realizar uma vingança contra
Chegamos em Araguaína por volta do meio-dia. Era um domingo. velhos e jovens indefesos e que estão dispostos a permitir o linchamento de um
Conseguimos, então, colher mais noticias com o pessoal da Funai. Fatos novos servidor público. E desliguei o telefone.
haviam ocorrido. A pressão funcionou. Quando o advogado que arranjamos, a duras penas,
No dia anterior, sabedores de eu não teria como receber as notícias antes do primeiro por ser domingo e depois porque o nosso amigo de todas as horas Célio
dia seguinte ao tiroteio, dois funcionários da Delegacia, Edson Beiriz e Francisco Moura, também era passível de ser linchado na cidade, pelas suas lutas em favor
Oliveira haviam decidido se deslocar a Tocantinópolis, para tentar resolver o impasse dos posseiros, chegou à cidade, os feridos já haviam sido socorridos e os presos
da liberação do corpo e dos presos. Contaram que, ao chegarem próximo à devidamente alimentados. Ele entrou então com pedido de habeas-corpus, que foi
aceito pelo juiz naquele mesmo dia e os presos foram liberados e transportados para - O Vicente foi baleado na barriga. A bala deve ter perfurado seus intestinos.
a aldeia. Sabe o que os loucos fizeram? Seccionaram o intestino dele e amarraram as pontas!
Restava o Vicente, que estava internado no hospital da cidade. Ele havia sido Quando ele chegou aqui sua barriga estava enorme, por isso resolvi operar. Com
baleado na barriga e na cabeça e num telefonema para o hospital soubemos que seu mais algum tempo ele simplesmente ia “explodir” por dentro. Boa parte do intestino
estado era “normal”, segundo a vaga informação de um enfermeiro. dele já estava necrosada, tive que eliminar cerca de 40 centímetros de tripas e ligar
Acordei na segunda-feira com uma forte intuição de que era preciso tirar o novamente. Vai ser difícil, mas vamos ver se ele sobrevive.
Vicente daquele hospital em Tocantinópolis. Meu temor era que os policiais ou os Vicente sobreviveu sim e continua vivo em sua aldeia. Até hoje sofre as
próprios populares pudessem assassiná-lo no hospital, isso era o que eu imaginava. seqüelas do ferimento e, apesar de ter tentado em várias instancias, nunca recebeu
Chamei Maria Lenes, uma atendente de enfermagem da Funai nenhuma indenização ou mesmo auxílio dos poderes governamentais.
extremamente dedicada e disse a ela: Esse episódio reflete com bastante precisão a que ponto chega o ódio e a
- Marilene (assim a chamávamos), vou arranjar uma ambulância e quero que incompreensão de segmentos das comunidades próximas às terras indígenas, que
você vá a Tocantinópolis o mais rápido e discretamente possível e tire o Vicente do geralmente têm interesse em conquistar seus territórios e explorar as riquezas neles
hospital. Dê qualquer jeito, “se vire”, mas traga ele pra cá. Quando chegar aqui, leve- existentes.
o direto ao hospital e me telefone. Quando Vicente recebeu alta do hospital, alugamos um quarto particular na
Santa Maria Lenes! Conseguiu! Os médicos do hospital não queriam liberar o cidade para que ele ficasse durante a sua convalescença. Daí a alguns dias ele
Vicente, mas ela anunciou que o levaria mesmo assim e praticamente o seqüestrou recebeu a companhia de mais dois acidentados: o Milton Krokrok e o velho Aleixo
em uma maca, levando-o para a ambulância. Na saída, às pressas, fizeram-na Pohi, aqueles mesmos companheiros Krahôs de batalhas, que haviam me defendido
assinar uma declaração de responsabilidade pela retirada do paciente, o que ela fez com as autoridades e no julgamento. Eles haviam sofrido um acidente com um jipe,
sem titubear. que se chocou com um caminhão, quando vinham da aldeia para Araguaína, resolver
Para se chegar ou sair de Tocantinópolis de carro era necessário tomar uma os problemas de suas aldeias. Milton quebrou a bacia e foi engessado da cintura
balsa que fazia a travessia do rio Tocantins. Por sorte de Vicente e Maria Lenes, ela para baixo e assim deveria ficar por três meses, totalmente imobilizado. Aleixo
se encontrava do lado da cidade e se preparando para sair, no momento em que quebrou uma das pernas em vários lugares e havia recebido vários parafusos de
chegaram à beira do rio, de modo que conseguiram embarcar imediatamente a platina. Ele também deveria ficar cerca de três meses imobilizado. Ambos foram
ambulância e sair do porto. Segundo Maria Lenes, passados alguns minutos, vários devidamente operados pelo onipresente Dr. Juarez.
carros chegaram ao porto de Tocantinópolis e homens armados começaram a fazer Mas a luta não podia parar.
sinais insistentes para o balseiro, para que retornasse com a embarcação. Ele Convocamos uma reunião do Conselho Indígena do Norte de Goiás e
chegou a ensaiar a volta, mas Maria Lenes avisou-o de que ele seria deliberamos o que fazer no caso do incidente com os Apinajés. Foi decidido que
responsabilizado pelo que acontecesse com ela e com o paciente que estava na alguns membros do conselho viajariam a Brasília para denunciar a morte de
ambulância e chamou as testemunhas à sua volta para que escutassem o que ela Valdemar e as arbitrariedades acontecidas em Tocantinópolis. Decidimos que eu iria
estava falando para ele. O balseiro desistiu do retorno e, manobrando novamente a junto.
embarcação, retomou a travessia. Algum tempo antes eu havia recebido um dossiê, enviado por um delegado
Ao chegar em Araguaína, como tínhamos combinado, a ambulância foi direto de carreira da região do “Bico do Papagaio”, que reunia depoimentos e provas contra
para o hospital. Assim que soube da sua chegada, me dirigi para lá. Fui Informado o delegado de polícia de Tocantinópolis, de nome Sebastião Lima. Esse dossiê
que Vicente já tinha sido levado à sala de cirurgia, pois seu estado fora considerado demonstrava claramente que esse delegado era um verdadeiro chefe de quadrilha na
muito grave. região, tendo cometido inúmeros crimes, como roubos de carros, de gado, grilagens
Ficamos ali, eu e Maria Lenes, aguardando. e assassinatos. Tudo indicava ter sido ele o autor intelectual da armadilha feita contra
Após cerca de duas horas, Dr. Juarez, o mesmo médico que havia me os Apinagés em Tocantinópolis, executando assim a vingança prometida pelos
operado da clavícula (santos médicos do interior!), saiu da sala de cirurgia e me fazendeiros por ocasião da demarcação das suas terras.
chamando imediatamente para uma conversa em particular em sua sala, me disse: A armadilha foi armada da seguinte forma:
- Meu amigo, vou ser totalmente franco com você. Não me peça para depor em Um fazendeiro conhecido na região e que havia sido retirado das terras dos
lugar nenhum que eu não vou e nem vou denunciar meus colegas que fizeram isso Apinajés provocou dois jovens da etnia, que se encontravam no mercado municipal
ao Conselho de Medicina, como eles mereciam. Se você denunciar e me intimarem da cidade, fazendo compras. Os jovens responderam rispidamente ao fazendeiro e
para testemunha, digo que é mentira. Tenho amor à vida, conheço essa região e as isso foi o suficiente para que dois soldados da PM, que se encontravam
pessoas que fizeram isso com esse índio são capazes de qualquer coisa. estrategicamente por perto, dessem ordem de prisão aos dois e os levassem presos.
- Mas o que eles fizeram afinal, doutor? Perguntei. Quando a noticia da prisão chegou à aldeia São José, distante cerca de
vinte quilômetros da cidade, os parentes deles decidiram se deslocar até a cidade
para vê-los e tentar soltá-los. Foram cerca de quinze pessoas, entre velhos, mulheres - Você está me ameaçando de morte, Delegado Sebastião Lima? Saiba que
e crianças, junto com o chefe de posto da Funai, o que prova que eles não tinham estou com três pessoas à minha frente, que estão nos ouvindo e serão testemunhas
intenções hostis. Ao chegarem à delegacia, encontraram-na fechada e sem ninguém se qualquer coisa me acontecer daqui em diante. Mas não tenho medo de você,
para atendê-los, apesar de ser horário normal de expediente. Ficaram então Lima, e a única coisa que vou perseguir daqui em diante é colocá-lo na cadeia, não
esperando em frente ao prédio. Passados alguns minutos, um menino chegou com vou descansar enquanto isso não acontecer.
um recado para que o Chefe de Posto fosse imediatamente ao hospital da cidade, - Se é assim, então se prepare. - E desligou.
onde uma criança Apinajé estaria internada em estado grave. Assim como redobrei os cuidados com a segurança, redobrei os ataques
Cerca de dez minutos após a saída do Chefe de Posto, quatro policiais contra o delegado. Municiava constantemente a imprensa goiana com mais
armados de revólveres e pelo menos uma metralhadora chegaram repentinamente informações dos crimes e arbitrariedades de Lima e não deixava arrefecer a
do outro lado da rua e passaram a atirar sobre o grupo, que estava pacificamente exigência de apuração do caso Apinajé. Denunciei também à imprensa a sua ameaça
sentado em frente à delegacia. Segundo os Apinajés sobreviventes, a sorte deles é de morte à minha pessoa. Inúmeros processos foram abertos contra ele. Sentia que
que a metralhadora “engasgou” e, por mais que o soldado que a portava se havia um medo generalizado de julgar esses casos na região de Tocantinópolis.
esforçasse, não conseguiu fazê-la funcionar. Aquele juiz com o qual eu discuti na ocasião do incidente com os Apinajé já havia
Fomos para Brasília. pedido transferência e outros dois juízes já o tinham sucedido.
Oficialmente, eu apenas acompanhava o Conselho Indígena do Norte de Lima, além da fama de violento, tinha família grande e influente na região.
Goiás, devidamente representado pelas etnias Apinajé, Krahô, Xerente e Xambioá. Mas os processos e acusações eram tantos, que um dia, um juiz decretou sua prisão
Estávamos bem no início do governo da “Nova República”, de José Sarney. Isso de preventiva e por, um dia, apenas um dia, ele foi parar na cadeia. Foi apenas um
certa forma nos ajudou, pois havia um esforço do governo e da imprensa em dia, mas eu cumpri a minha promessa. Você, leitor, pode pensar que isso é pouco.
demonstrar que o país estava vivendo em um novo tempo, de liberdade, democracia Mas, se dentre vocês existir alguém que conheceu a região do “Bico do Papagaio”
e justiça social. naquela época, dirá que não, até que foi muito.
Fomos recebidos em audiência por Cristovam Buarque, então Chefe de O caso da morte de Waldemar Apinajé e os ferimentos em Vicente jamais
Gabinete do ministro da Justiça. A TV Globo cobriu a entrevista e fez matéria sobre o foram julgados.
assunto, veiculada no Jornal Nacional. Apesar de dar declarações públicas favoráveis
às nossas denúncias, o ministro considerou que o caso era da esfera estadual e ele
próprio se encarregou de fazer contatos com as autoridades de Goiânia, para que
nos recebessem. CAPÍTULO XXII
Em Goiânia, devido à repercussão do caso, fomos diretamente recebidos GUERRA TRIBAL
pelo governador do estado, Íris Rezende Machado. Como, ainda em Brasília, eu
fizera contatos telefônicos com aliados em Goiânia, recebemos ali apoio de grupos Em Araguaína, as coisas corriam relativamente calmas. Tocávamos nossos
ligados aos movimentos pelos Direitos Humanos e às universidades, que provocaram projetos nas aldeias, tentando obter sempre o máximo possível de participação de
a presença maciça da imprensa. suas populações. Os recursos iam diretamente para as mãos das lideranças e a
Após a conversa com o governador e por sua intercedência, tivemos uma comprovação se dava apenas através de recibos por elas assinados, subvertendo
audiência com o Secretário de Segurança do estado. O Conselho Indígena do Norte assim totalmente as normas administrativas vigentes, que exigiam documentos
de Goiás, formal e informalmente exigiu a apuração rigorosa do incidente envolvendo fiscais. Na verdade, não eram poucas as confusões que aconteciam por conta
a morte e os ferimentos dos Apinajés e entregou ao secretário o dossiê contra o desses recursos, mas tínhamos decidido tentar e considerávamos tudo como
delegado Sebastião Lima, do qual repassou também uma cópia à imprensa. De tudo aprendizado. O Conselho Indígena do Norte de Goiás continuava funcionando e
isso resultou o envio de um delegado especial à região, para apurar o caso. procurávamos discutir com ele a elaboração de projetos e aplicação dos recursos
Na volta a Araguaína, tive que redobrar os cuidados com a minha segurança. que vinham do orçamento do governo. As universidades goianas continuavam a
Tinha receio de uma emboscada, a mando de Sebastião Lima. Não era um receio colaborar e enviavam regularmente às aldeias professores e alunos.
infundado. Sua fama era de gente violenta e rancorosa. Então, uma nova tormenta se formou.
Alguns dias depois da nossa chegada, recebi um telefonema dele, quando Eu me encontrava em Cuiabá, no Mato Grosso, participando de um seminário,
travamos o seguinte diálogo: quando me ligaram de Araguaína dando notícias de um incidente envolvendo os
Lima: - Estou sabendo que você anda falando mal de mim por todos os Krahôs e um Carajá da Ilha do Bananal. Segundo me relataram, o Carajá, que era
lugares, entregando coisas pra imprensa. Cuidado rapaz, quem tem vida deve ter casado com uma das enfermeiras da Chácara-ambulatório que a Funai mantinha em
medo! Araguaína, embebedou-se e tornou-se violento, ameaçando bater não apenas em
sua mulher, mas todas as pessoas que estavam em tratamento na chácara. Ele
passara o dia assustando velhos, crianças e mulheres, ameaçando-os de Nenhuma resistência deveria ser tentada naquele momento. Deveríamos aguardar
espancamento, fazendo-os abandonar a chácara. À noite, ele continuou com a sua uma melhor oportunidade. Eles não entenderam de imediato a minha posição, mas
arruaça até que um líder Krahô, perdendo a paciência, mandou que um grupo de eu estava decidido. Em seguida, entrei em contato com minha família e pedi que
rapazes da sua etnia o pegasse e o amarrasse, até que passasse a bebedeira. Os eles se organizassem para viajar o mais rápido que pudessem, para Goiânia, se
rapazes o teriam cercado dentro da enfermaria e o Carajá, ao perceber a intenção possível,naquele mesmo dia. Que trancassem a casa e a deixasse sob a guarda dos
deles tentou reagir e acabou caindo e batendo a cabeça no cimento, ficando vizinhos, mas que saíssem dali imediatamente, sem comentar absolutamente nada
imediatamente desacordado. com ninguém, sobre o destino deles. Como último ato, pensando em resguardar
Quando me contaram o incidente, pressenti que a confusão seria grande. minimamente meu trabalho e ganhar tempo, pedi ao chefe do Setor de Pessoal da
Atos de violência entre indivíduos da mesma etnia já costumam dar em confusões Delegacia de Araguaína para que formalizasse minhas férias, que estavam vencidas.
muito grandes, imagine entre pessoas de etnias diferentes. Com certeza, haveria Minha família chegou dois dias depois, deixando-me mais tranqüilo.
tentativas de retaliação. A hora era de submergir.
E de fato houve, só que, de imediato, todas foram dirigidas contra mim.
Mesmo estando a mais de dois mil quilômetros de distância do acontecido, fui
acusado de ter ordenado o “espancamento” do Carajá, que entrara em estado de
coma profundo. A direção da Funai em Brasília, que não admitia em hipótese alguma CAPÍTULO XXIII
nossos métodos administrativos, não só incentivou as acusações, como determinou EXÍLIO
uma intervenção na Delegacia de Araguaína, instaurando uma sindicância para
apurar as denúncias. Tudo isso foi muito rápido, não dando tempo sequer para que Existem inúmeras pessoas a quem devo agradecer profundamente, nesse
eu retornasse a Araguaína. De Cuiabá eu me deslocara para Goiânia, onde havia atribulado período da minha vida de indigenista. Mas a uma devo favores especiais.
marcado uma série de reuniões com os representantes das universidades e ali ficara Trata-se do jornalista Armando Araújo, de Goiânia. Armando é um jornalista
sabendo da intervenção. extremamente atuante em Goiânia. Na época, ele trabalhava como repórter da Rádio
O clima esquentou em Araguaína. Krahôs, Xerentes e Apinajés haviam se Difusora. Não havia quem não o conhecesse naquela cidade, que ele cortava em
deslocado em massa para lá, com a notícia de que eu seria afastado. A Funai me todos os sentidos, diariamente, em sua moto. Ficamos amigos durante as inúmeras
enviava intimações para que eu lá comparecesse para depor. Os Krahôs e líderes coberturas que ele realizou dos conflitos no norte de Goiás e nos meus constantes
das outras etnias me ligavam e me instavam a ir e resistir. A idéia deles era invadir a deslocamentos a Goiânia em busca de apoio das universidades e outros organismos.
delegacia, como já fizéramos antes e expulsar os interventores. Nessas ocasiões Armando sempre foi um parceiro ativo, abrindo-me portas,
Mas eu estava desconfiado. A Funai insistia muito para que eu voltasse para apresentando-me às pessoas certas, divulgando idéias e atividades que
Araguaína. Ora, se eles sabiam que a minha presença na cidade iria acirrar ainda realizávamos nas aldeias. Mas nada se compara ao apoio que ele me deu durante
mais os ânimos, por que então tentavam me atrair para lá? Eu temia que eles essa perigosa fase, de retirada de uma verdadeira guerra, onde eu e minha família
estivessem preparando uma armadilha definitiva, uma ação policial que humilhasse a corríamos perigo real de morte. Armando literalmente nos “acoitou” em sua casa
mim e aos líderes indígenas. Algumas semanas antes, a Funai ordenara uma ação durante cerca de quatro meses, quando não tínhamos praticamente nenhuma
policial no Paraná contra os representantes das etnias daquela região, que haviam reserva de dinheiro, móveis ou algo mais que as roupas de uso pessoal. Tudo ficara
tomado a Delegacia Regional. Eu tinha muitas dúvidas quanto á minha ida para em Araguaína. E o que era pior: eu não podia circular. Estava ameaçado de
Araguaína, tinha receios e desconfianças, mas não queria também decepcionar retaliações pelos Carajás da Ilha do Bananal, que definitivamente, influenciados por
meus companheiros que tantas vezes me defenderam. Ao mesmo tempo, tinha informações maldosas, haviam me elegido como principal culpado pelo incidente da
grandes preocupações com a minha família, que permanecera em Araguaína e agressão sofrida por Txauí (esse era o nome do Carajá ferido no incidente em
poderia sofrer violências. O que fazer? Araguaína). Os Carajás ameaçavam me pegar onde me encontrassem e me
A resposta veio de maneira inusitada, na forma de um versículo do livro “I transportar para a aldeia de Txauí, onde eu deveria sofrer os mesmos danos que ele
Ching”, publicado em uma revista, que inteiramente por acaso li em uma banca de sofrera. Ameaçavam também fretar pequenos aviões e jogar bombas nas aldeias
revistas, no centro de Goiânia. O versículo dizia mais ou menos assim: “há Krahôs. Na época os Carajás, em tese, poderiam obter recursos para isso, pois
momentos em que o guerreiro deve recuar; avançar agora significa derrota”. haviam herdado um grande rebanho de gado que pertencia à Funai.
Era a senha que eu estava precisando. Imediatamente, de um telefone Nesse período houve um episódio de quase conflito entre um grupo de
público, liguei para os líderes Krahôs e das outras etnias que estavam em Araguaína Carajás e de Krahôs, em Brasília. Um grupo de Krahôs havia se deslocado para
e pedi que eles recuassem e voltassem calmamente para suas aldeias. Aos colegas Brasília e me pediram que fosse encontrar com eles. Apesar das ameaças que
da Funai identificados com a nossa luta, pedi que se resguardassem, que não sofria, não tive como me negar a ir. Certo dia, jantávamos em um restaurante em
resistissem e prestassem seus depoimentos normalmente à comissão de sindicância. Taguatinga, cidade-satélite de Brasília onde estávamos hospedados, quando entrou
no recinto um grupo de Carajás. Quando eles nos reconheceram, vieram procurar três anos de nossa vinda para Goiânia, pedi ao pessoal do IBRACE que nos
briga. Inicialmente queriam que os Krahôs me entregassem a eles, para que eu deixasse ficar, “por uns três meses” morando em sua sede.
“pagasse” os ferimentos em seu parente. Depois, passaram a ameaçar os Krahôs e A sede do IBRACE ficava localizada em um bairro bastante central de
suas aldeias com retaliações. Goiânia, o Setor Universitário. Na verdade, tratava-se de uma casa residencial que
O conflito foi contornado pela bravura do velho chefe Pedro Penon, que fora alugada para escritório do Instituto. O escritório do Centro de Atividades
desafiou os Carajás para uma guerra tribal de verdade, com armas e estratégias Indigenistas, que representava apenas um dos cinco “centros” do IBRACE, ocupava
tradicionais e em local e datas a serem marcados e “não com aviões ou ali no meio o quarto de empregados da casa, ou seja, tratava-se de um quarto minúsculo, com
dos brancos”. um banheiro mais minúsculo ainda, que ficavam anexos a uma área de serviço. A
- Quero falar com o chefe de vocês. Tragam ele aqui ou em qualquer outro área de serviço tornou-se nossa cozinha e o quarto de empregados nosso
lugar e vamos marcar a luta. Vocês, para mim, são crianças - ele falou. quarto/sala/escritório. À noite, dormíamos todos juntos, em forros improvisados, no
A firmeza e a autenticidade de Penon foram tão fortes que o grupo Carajá, chão, tão apertados, que não era muito fácil mudar de posição durante o sono.
composto praticamente por jovens, recuou. O tal confronto nunca foi marcado e, Por sorte, existia nos fundos, contíguo à área de serviços, um quintal
felizmente, jamais aconteceu. arborizado, de razoáveis dimensões, dando-nos mais espaço e certa liberdade para
Eu me sentia também ameaçado pelos fazendeiros de Tocantinópolis, receber os amigos. Não raro, grupos de quinze, vinte Krahôs vinham nos visitar e ali
liderados pelo delegado Lima, que nesse período ainda se encontrava em atividade, acampavam, por vários dias.
apesar dos inúmeros processos a que respondia. Sabia também que a PM do norte Pobres colegas do IBRACE. Eles não conseguiam entender como nós, sem
de Goiás não se esqueceria tão facilmente de nossas rusgas e das suas ameaças de possuir nenhuma renda, conseguíamos nos manter e ainda sustentar em casa ,
me pegar. grupos tão grandes de pessoas, por longos períodos. Não sabiam eles que eram
Para completar, a FUNAI, passados os trinta dias de férias regulamentares nessas épocas que menos passávamos dificuldades, pois os Krahô traziam
que eu estava gozando, me demitiu por justa causa, alegando abandono de emprego artesanatos que vendíamos na cidade ou ganhavam presentes e alimentos dos
deixando de pagar o meu salário. Como eu tinha em meu poder os documentos que amigos e traziam para repartir conosco. Tínhamos também um ótimo relacionamento
comprovavam as férias, julgamos, eu e o advogado que constituí, que o caso teria com a Casa do Estudante Universitário, que possuía salvo-conduto para pedir
um rápido desfecho na Justiça do Trabalho. alimentos no CEASA de Goiânia. Quando chegavam os Krahô, arranjávamos uma
Como estávamos enganados! O ano era 1986 e o poder na área indigenista, caminhonete e, junto com os estudantes, percorríamos os atacadistas do CEASA e o
implantado na Funai por Romero Jucá, no governo de José Sarney, era tão grande veículo retornava abarrotado com caixas de frutas e verduras, que, para evitar que se
que o desfecho de um caso trabalhista que normalmente duraria uma semana, em deteriorassem, tínhamos que repartir com a vizinhança. Aí, chegavam os amigos de
julgamento sumário, durou quase oito anos. sempre, com as carnes e os peixes: Marquinhos, Juliano Basso, Luciano, João
Oito anos de exílio em meu próprio país, assim meus amigos definiam a Fernandes, Divino... e tudo virava festa.
minha situação. Ameaçado, vigiado, proibido de penetrar em terras indígenas, sem Ficamos morando na sede do IBRACE por cerca de quatro anos, até que eu
emprego ou renda definidos, dependendo a maior parte do tempo do apoio dos fosse anistiado e reconduzido ao meu cargo na Funai, em 1993. As atividades que
amigos e dos Krahôs, que jamais me abandonaram. desenvolvia no CAI do IBRACE era inteiramente voluntária, mas ela me permitiu,
Passados os primeiros meses de “sumiço” na casa de Armando que, por durante os meus oito anos de “exílio”, que eu me mantivesse à tona e exercesse uma
sorte, morava em um bairro afastado do centro de Goiânia, passei a fazer parte, por série de ações políticas e práticas na área indigenista, fato que agradeço
indicação de Marco Lazarin, do Centro de Atividades Indigenistas (o CAI) do profundamente a Pedro Wilson e a Valéria, Regina, Irene e Sônia, fiéis companheiras
IBRACE - Instituto Brasil-Central, uma organização não-governamental fundada e do IBRACE, que militavam em seus respectivos “centros”.
dirigida por Pedro Wilson Guimarães, que futuramente seria eleito deputado estadual, Contarei a seguir as realizações que considero mais significativas desse
deputado federal e prefeito de Goiânia, pelo PT. período.
Para sobreviver com minha família, fazia de tudo. Capinava quintais, fazia
jardinagem, dava palestras em universidades, promovia eventos junto com os Krahôs
em Goiânia e outras cidades, vendia artesanatos que os Krahôs nos traziam e,
quando a coisa apertava de vez, recorria aos amigos indigenistas, que nunca CAPÍTULO XXIV
deixaram de me socorrer. O RESGATE DA MACHADINHA SAGRADA
Durante algum tempo, conseguimos morar de aluguel em pequenas casas,
no mesmo bairro onde morava Armando. Tínhamos conseguido transportar nossas A primeira ação da qual participei logo após nossa chegada em Goiânia, foi o
coisas de Araguaína com a ajuda de Heleno, que também passara a morar em resgate do Kyiré, a machadinha de pedra semi-lunar dos Krahô, que se encontrava
Goiânia e íamos tocando. Quando as coisas ficaram muito apertadas, após cerca de
no Museu Paulista da Universidade de São Paulo, a USP. Essa ação já vinha sendo Começou então um longo preparativo para o resgate da Kyiré. Como chegar
pensada e planejada há algum tempo, quando estávamos ainda no Norte de Goiás. a São Paulo? Como pegar a machadinha? Quem iria na expedição? Onde poderiam
A machadinha “Kyiré” faz parte da história e da cultura Krahô. Os contos se hospedar?
ligados a ela são muito antigos, de uma época mítica dessa etnia e recheados de Penon, que era o chefe da aldeia, chamou a mim e a Paulo Cezar e nos
feitos guerreiros e passagens fantásticas. pediu que os ajudássemos a resgatar a Kyiré. A idéia de Penon era levar um grupo
Segundo a mitologia Krahô, ela foi conquistada por Hartant, um líder que de guerreiros para realizar a tarefa. Em sua cabeça começava provavelmente a se
havia saído com um grupo de guerreiros em busca de novas terras. Em determinado formar o grande feito guerreiro que isso deveria representar, seguindo a tradição
ponto da viagem, onde haviam parado para dormir, se encantaram com as canções mitológica da machadinha sagrada.
que vinham de uma serra nas redondezas do acampamento. Esses cantos saíam da Não poderíamos nos negar ao pedido de Penon e juntos, eu e Paulo Cezar
própria Kyiré, cujo guardião era Txói, um pica-pau. Hartant pediu a machadinha para começamos a arquitetar uma estratégia para levar os Krahô a São Paulo, hospedá-
Txói, que resolveu dá-la, com uma série de recomendações: ela jamais poderia ficar los e ajudá-los a tirar a machadinha do museu. Sabíamos que a tarefa não seria
parada, devendo estar sempre em movimento na mão dos melhores cantadores da fácil. Na época eu ainda ocupava o posto de delegado da Funai em Araguaína e me
aldeia. Seus guardiões teriam que ser honestos, sérios e jamais se misturar com as encontrava às voltas com as confusões e processos que já relatei aqui, que
outras pessoas. Eles deveriam, um durante a estação chuvosa e outro durante a finalmente resultaram no meu afastamento da função. Esse afastamento finalmente
estação seca, empunhar constantemente o Kyiré, sempre cantando, animando o me deu tempo para cumprir a promessa que fizéramos a Pedro Penon e,
povo nas caçadas, nos trabalhos da lavoura, nas guerras e durante as festas. combinando com Paulo Cezar, finalmente botamos nosso plano em marcha.
Para os Krahô, portanto, principalmente os mais antigos, o Kyiré tem força Paulo Cezar articulou em São Paulo a presença de onze representantes
própria. Ele conduz o cantador e não o contrário. Ainda segundo a mitologia, eles Krahôs nas comemorações do Dia do Índio, que a USP faria naquele ano. Para isso,
haviam perdido e recuperado várias vezes a machadinha de outros povos, que ele conseguiu a cessão de três apartamentos de estudantes no Centro Residencial
também a cobiçavam. Ela teria servido também como arma de guerra em algumas Universitário da USP, o CRUSP, para alojar a comitiva Krahô. Ao mesmo tempo,
ocasiões. contatou a Rede Globo de televisão, garantindo exclusividade sobre a matéria da
Em 1949, quando os Krahô passavam por uma grave crise de sobrevivência chegada da comitiva Krahô em busca de sua machadinha sagrada.
e de identidade cultural, devido a um massacre sofrido em 1940, um antropólogo De minha parte, articulei em Goiânia a apresentação cultural dos Krahô em
alemão que realizava pesquisas na aldeia Pedra Branca conseguiu adquiri-la de seu uma universidade e no principal teatro da cidade, como forma de trazê-los até
guardião, trocando-a por um rifle. Os outros membros da aldeia só souberam do fato Goiânia, via patrocínio da universidade e dali, com os recursos da bilheteria do teatro,
algum tempo depois, quando o antropólogo já havia ido embora. Ficaram muito levá-los até São Paulo.
tristes. Consideraram, entretanto, que nada mais havia a fazer e deram a Tudo correu como o planejado. Chegamos em São Paulo exatamente no dia
machadinha definitivamente por perdida. 19 de abril de 1986 e fomos direto da rodoviária para a sede do Museu Paulista, onde
Entretanto, em 1985, chegou à aldeia Pedra Branca, vindo de São Paulo, um Paulo Cezar e uma equipe de reportagem da Rede Globo nos aguardavam.
outro antropólogo para realizar pesquisas para sua tese de mestrado e ficou A machadinha, de fato, encontrava-se em uma das vitrines do museu, com a
impressionado com a beleza de um canto que um velho entoava no pátio da aldeia, à identificação: “arma de guerra da nação Krahô”. O diretor do museu, pego de
noite. Eu estava presente nesta ocasião. Ele perguntou aos Krahôs que canto era surpresa tanto pela comitiva, quanto pela presença da equipe de reportagem, foi
aquele que o velho entoava e eles lhe explicaram que se tratava de um canto da solícito e garantiu que, se de fato, fosse comprovado que a machadinha era dos
machadinha Kyiré e a descreveram. Ele disse então que, coincidentemente, havia Krahô a devolveria sem maiores problemas. Pediu apenas um ou dois dias para a
visto um objeto igual àquele na vitrine do Museu Paulista, pertencente à Universidade verificação dos arquivos do Museu. Eu e Paulo Cezar nos entreolhamos e com
de São Paulo. Houve uma comoção no pátio. Até o velho parou de cantar (não sei certeza, pensamos a mesma coisa: seria tão fácil assim?
como, mesmo cantando ele conseguira escutar a conversa) e veio saber de mais Dali, fomos para o campus da USP, onde ocupamos nossos alojamentos e
detalhes. Pela descrição do antropólogo, tudo indicava que se tratava da tão cumprimos a programação acertada com a universidade. À noite, assistimos no
almejada Kyiré. Jornal Nacional a matéria sobre a chegada da comitiva Krahô ao Museu. A sorte
Para ter absoluta certeza, entretanto, os Krahô pediram a Paulo Cezar, um estava lançada.
técnico em laboratório que prestava serviços na Terra Krahô e morava em São Paulo, Descansamos durante o final de semana e, na segunda-feira, voltamos todos
que fotografasse a machadinha que estava na vitrine do museu e trouxesse a foto ao museu para cobrar a promessa do diretor e pegar a machadinha. A primeira coisa
para eles verem. que observamos era que ela já não se encontrava mais na vitrine, o que nos intrigou
Assim foi feito e, com um grande alvoroço, que atingiu a todos da aldeia, a todos.
confirmou-se a veracidade da informação dada pelo antropólogo. Finalmente a Procuramos o diretor e aí, o que ele dissera alguns dias antes, não valia
machadinha reaparecera! mais. Ele recebera instruções do reitor da universidade para não entregar a
machadinha, uma vez que ela era “patrimônio da humanidade” e que, portanto, não Assim, ficamos onze pessoas alojadas em um apartamento que
poderia ser devolvida aos Krahô. normalmente comportava três estudantes. Tínhamos que nos amontoar para dormir e
- E onde está nossa machadinha, - perguntou o velho Penon. até o banheiro do apartamento servia como dormitório. Acrescente-se a isso o fato de
- Mandei guardá-la no cofre do museu. Ela é muito valiosa e ali onde estava que recebíamos, durante todo o dia e boa parte da noite, visitas de estudantes, que
poderia ser roubada -, teve a desfaçatez de responder o diretor. Agora ele não era iam ali para conhecer os Krahôs e prestar solidariedade à sua causa e vocês
mais solícito, pelo contrário, nos tratava com rispidez. poderão ter uma vaga idéia em que se transformou esse pequeno apartamento do
Penon era um sábio. Absorveu o golpe de ser chamado de provável ladrão Crusp.
de seu próprio patrimônio e com a diplomacia que desenvolvera em mais de quarenta A fumaça, o barulho diuturno dos carros e aviões, acrescido do retinir de
anos de liderança de seu povo, respondeu: milhares de bandejas e talheres do restaurante universitário, que ficava em frente ao
- Vocês não entendem nada! Assim vocês vão matar a machadinha, ela não nosso alojamento, o constante entra e sai de estudantes nos deixava a todos
pode ficar trancada no cofre. Ela precisa ficar em movimento, não pode ficar assim estressados. Logo na primeira semana, quatro Krahôs que compunham a comitiva,
fechada, no escuro. O senhor prometeu que nos entregaria nossa Kyiré. O senhor é exatamente os mais velhos, desejaram ir embora para a aldeia. Um deles, o velho
um velho, como eu, porque não cumpre sua palavra? Tepyêt, entrou em estado catatônico. Deitou-se na cama de barriga para cima, olhos
O diretor ficou claramente com vergonha da situação e passou a nos tratar fixos no teto e não conversava, não comia nem bebia. Levantou-se de um pulo,
com mais educação. Finalmente nos disse que teríamos que procurar a reitoria da apenas quase uma semana após o início da sua crise, quando anunciei que
universidade para resolver o impasse. Começava assim um processo que nem tínhamos conseguido dinheiro para comprar a sua passagem e dos outros três
mesmo Kafka poderia ter imaginado. companheiros, para que eles retornassem à aldeia.
Que diabos, eu e Paulo Cezar nos perguntamos, então os Krahô não fazem Durante os cerca de dois meses e meio que durou a batalha pelo resgate da
parte da humanidade? machadinha, todos os integrantes da comitiva, exceto Penon e seu filho Oswaldo,
Voltamos para o CRUSP e marcamos audiência com o reitor, o físico José abandonaram São Paulo. Por duas vezes nesse período, eu próprio me desloquei
Goldemberg. Sua posição, colocada de forma quase autoritária, foi a que nos tinha para Goiânia, onde procurava ficar o maior tempo possível “internado” em uma
sido transmitida pelo diretor do museu: a machadinha agora era patrimônio da reserva florestal que existia próximo à casa de Armando, onde morava com a minha
humanidade e não poderia ser entregue aos Krahôs. Pediu ainda que família. Somente assim, com a cabeça desanuviada da fumaça e do barulho,
desocupássemos os apartamentos do CRUSP, pois precisava dele para estudantes conseguia forças para voltar a São Paulo.
estrangeiros que vinham estudar na USP.
Penon disse, com toda a sua diplomacia, mas com firmeza, que só sairia de Os Krahôs que retornavam para as aldeias não voltavam para São Paulo,
São Paulo com a sua Kyiré nas mãos. O reitor tentou demovê-lo da idéia, mas nada mas enviavam outros em seus lugares. Outros vinham ainda por conta própria. Em
conseguiu e nos despedimos. determinada ocasião, nosso pequeno apartamento chegou a comportar dezessete
Como eu e Paulo Cezar prevíamos, a batalha seria longa. Não tínhamos pessoas.
mais dinheiro, a programação da Semana do Índio havia terminado e, portanto, não Após algum tempo que estávamos em São Paulo, a comitiva ganhou um
tínhamos mais direito tomar refeições no refeitório central da USP.. Não tardou muito enorme reforço: Aleixo Pohi, um velho sábio, o mesmo que nos defendera no
para que viessem as pressões para abandonarmos os apartamentos que estávamos julgamento em Araguaína, chegou para colocar os doutores da USP por várias vezes
ocupando. em verdadeiros becos sem saída.
Tínhamos que conseguir apoios. Mas o nosso grande líder era mesmo o velho Penon. Foram a autenticidade,
Começamos a circular com a comitiva Krahô pelos Diretórios Centrais de a firmeza e a persistência de Penon que fizeram vitoriosa a luta para a recuperação
Estudantes, denunciando a posição da reitoria e pedindo apoio em dinheiro e para da machadinha. Penon investiu-se no papel do verdadeiro chefe guerreiro, que não
pressionar a direção do CRUSP a nos deixar nos apartamentos e nos fornecer deve retornar sem a vitória. Nada, absolutamente nada o abalava. Enquanto todos
refeições, além, é claro, para pressionar a reitoria a entregar a Kyiré. O caso ficavam transtornados pelo movimento infernal daquele lugar, ele permanecia
começou a circular nos inúmeros jornais internos e nas rádios do CAMPUS e assim, impassível. Atendia a todos os estudantes que o procuravam com a mesma atenção
os Krahôs e a sua luta pelo resgate da machadinha ficaram conhecidos em toda a e paciência, não reclamava jamais da comida, do barulho ou da demora para se
universidade. Volta e meia, algum estudante chegava com contribuições em resolver a situação. Seu semblante era sempre tão firme e ao mesmo tempo tão
dinheiro, que havia sido recolhido em “vaquinhas” promovidas pelos DCEs. A direção sereno, que colocamos nele o apelido de “Ikran-ken”, literalmente, cabeça de pedra,
do CRUSP, devido às pressões sofridas, não viu outra saída a não ser nos permitir na língua Krahô.
que ficássemos alojados ali. Apenas negociou para que desocupássemos dois dos Enquanto isso, o processo kafkaniano rolava. A reitoria, ao perceber que os
apartamentos, sob a alegação que estudantes de outros países já se encontravam Krahôs não desistiriam de seu intento, remeteu o assunto para o Conselho
na universidade para ocupá-los, o que, de fato, constatamos. Universitário, que se reunia apenas uma vez por mês. Na primeira reunião em que o
assunto foi apreciado pelo Conselho remeteu-se a decisão final sobre o impasse para Durante a audiência, onde se encontravam vários antropólogos, professores
a próxima reunião. O Conselho desejava conhecer melhor o assunto, investigar mais e estudantes, inclusive o antropólogo que dera as declarações, Penon mostrou o
a origem e a história da machadinha. Mais trinta dias de São Paulo, no mínimo, nos documento e pediu que o lessem para ele, em voz alta. Conseguiu assim
esperava. desmoralizar completamente as versões maldosas sobre a machadinha e ganhar
.Arregimentamos estudantes e professores de várias áreas da Universidade, adeptos para a sua causa.
além de nós próprios, para fazer um corpo-a-corpo com os conselheiros. Ganhamos Finalmente, em junho de 1986, a machadinha foi devolvida aos Krahôs, em
especial atenção e apoio da filósofa e então conselheira Marilena Chauí, para a uma cerimônia promovida pela reitoria. A fórmula burocrática encontrada pela USP foi
nossa causa. “emprestar” a machadinha em comodato aos Krahôs, por tempo indeterminado.
Mas, “o outro lado” também se movimentava. Entre uma reunião e outra do A Kyiré voltou para a aldeia Pedra Branca, onde permanece até hoje. Penon,
conselho, aconteceram dois fatos muito interessantes e ilustrativos, sobre como ao retornar para sua terra, promoveu uma grande festa para mostrar a todos os
agem a burocracia e a “ïnteligentsia” brasileira. Krahôs o troféu que reconquistara. A partir daí, passou a transmitir para os jovens as
O primeiro foi uma outra audiência com o reitor, convocada por ele próprio. antigas histórias e os cantos da machadinha sagrada, cuja idade se perde no tempo
Quando recebemos o chamado ficamos animados; imaginávamos que finalmente mítico dos Krahôs.
teríamos uma noticia favorável e, quem sabe ele nos comunicaria finalmente a
decisão de entregar a machadinha.
Não era nada disso. Ao contrário, o reitor iniciou uma longa conversa sobre
patrimônios públicos e a impossibilidade burocrática de se “doá-los” a quem quer que Capítulo XXV
fosse. A sua intenção, mais uma vez, era a de demover os Krahôs da idéia de levar A UNIVERSIDADE NAS ALDEIAS
a machadinha e acabou fazendo uma proposta: que os Krahôs retornassem às suas
aldeias e fizessem uma réplica em madeira da Kyiré e a usassem para os seus Uma das atividades mais marcantes do período de “exílio” em Goiânia, foi
rituais. Afinal, disse ele candidamente, se seus antepassados foram capazes de um programa desenvolvido em parceria entre o CAI do IBRACE com a Faculdade de
fazer um objeto tão bem feito em pedra-polida, vocês podem agora fazer um igual Comunicação e Biblioteconomia (FACOMB), da Universidade Federal de Goiás. Os
em madeira. professores Nilton José dos Reis e Armando Araújo eram os líderes do projeto pela
Penon, mais uma vez, com a sua infindável paciência fez a sua universidade.
contraproposta: A proposta básica do projeto era levar universitários de comunicação em
- Não senhor reitor, assim não fica bom para nós. Vamos fazer assim: eu regime de estágio para as aldeias indígenas, para documentar em vídeo, fotografia e
encomendo uma machadinha de madeira da nossa aldeia e fico aqui esperando. fita-cassete as realidades locais dessas aldeias. Com isso tentávamos alcançar dois
Quando ela chegar, o senhor a coloca no museu e me entrega a nossa Kyiré. objetivos: um, o de propiciar aos estudantes a oportunidade de aprender sobre as
Logicamente não houve “negócio” e saímos dali resignados em continuar a culturas indígenas, documentando as realidades locais dessas aldeias, divulgando-as
luta. o máximo possível no meio universitário e para a sociedade. Os materiais coletados
O segundo fato foi uma reportagem publicada na revista “Isto é”, que trazia em campo transformavam-se em documentários em vídeo, programas de rádio e
declarações de um antropólogo ligado ao CTI, dizendo que a machadinha era um jornais-laboratório da faculdade.
objeto “que tinha cerca de quatrocentos anos”, que não tinha tanta importância na O outro objetivo era o de conseguir aliados para a questão indígena.
cultura KRAHÔ E QUE HAVIA SIDO ENCONTRADA EM UM “ MONTURO” (LIXO) NA CIDADE DE Tínhamos como perspectivas que esses estudantes, em fase final de formação
PEDRO AFONSO. Essas declarações magoaram profundamente a todos os Krahôs, universitária, logo estariam disputando o mercado de trabalho, integrando-se aos
principalmente a Penon. Ele não conseguia entender como alguém, principalmente quadros dos veículos de comunicação em Goiás e em outras partes do país. Isso, em
alguém que se dizia amigo, falar uma coisa daquelas de um objeto tão importante tese, propiciaria mais abertura para a divulgação dos problemas indígenas, uma vez
para eles. que os estágios realizados pelo programa, nas aldeias indígenas, eram
Nos dias subseqüentes à reportagem, aconteceu uma espécie de audiência extremamente marcantes, para quem deles participavam.
pública sobre o assunto, promovida pelo Conselho Universitário. Na véspera dessa Assim, por várias vezes levamos às aldeias Xavantes e Krahôs, turmas de
audiência, Penon foi procurado discretamente por uma funcionária do Museu, que, universitários. Geralmente quem “guiava” os grupos pelas aldeias Xavantes era o
revoltada com as declarações do antropólogo, deu a ele uma cópia do termo de Odenir (olha ele aí novamente!), enquanto eu me encarregava de levar os estudantes
doação ao Museu, feito por Harald Schultz, em 1949. Nesse termo, Schultz revelava para as aldeias Krahôs e de outros grupos Timbiras.
que a machadinha havia sido retirada da aldeia Pedra Branca, na terra Krahô, que Nossas expectativas não estavam erradas. Após alguns anos das primeiras
ela estava muito bem cuidada pelo seu guardião, toda envolta em algodão, dentro de expedições dos estudantes de comunicação às aldeias, começamos a perceber a
um cesto. facilidade com que conseguíamos divulgar os fatos relativos à questão indígena em
Goiânia. Na verdade, essa abertura acontece até os nossos dias. Muitos daqueles - Inundou as unidades da Funai, da sede central aos Postos Indígenas, de
estudantes que participaram dos estágios nas aldeias são hoje profissionais pessoas totalmente estranhas às comunidades e às lideranças indígenas, ao trabalho
respeitados, atuando nos meios de comunicação e estão sempre abertos ao receber e à causa indigenista;
e divulgar as questões indígenas. Afinal eles tiveram a oportunidade de conhecer - Tentou cooptar, com contratações imediatas, as lideranças indígenas
não somente as realidades sociais dessas aldeias, mas também toda a beleza da emergentes, em todas as regiões do país;
cultura indígena e a preservação ambiental de suas terras. - Iniciou um processo de propaganda, em veículos de comunicação de
A parceria da FACOMB com os povos indígenas, ainda “puxadas” pelo massa, onde as comunidades indígenas eram divulgadas como fortes, saudáveis e
professor Nilton José dos Reis, continuam até os dias de hoje. felizes. Foi veiculado na época, um comercial da Funai que mostrava imagens das
comunidades indígenas do Parque Nacional do Xingu em festa, com trilha sonora
cantada por Roberto Carlos;
- Determinou que nenhum representante indígena poderia ser atendido pelas
CAPÍTULO XXVI unidades da Funai, sem uma autorização originada dos Postos Indígenas e daí
A LUTA DE RAONI CONTRA ROMERO JUCÁ “carimbada” pelas outras unidades hierarquicamente superiores. Assim, tornou-se
praticamente impossível para qualquer líder indígena chegar às administrações
Corria o ano de1987. Romero Jucá ocupava a presidência da Funai há cerca regionais e a Brasília, para reivindicar seus direitos. E mesmo que conseguisse,
de um ano e meio. Ele havia se tornado o inimigo público número um dos povos encontrava pela frente apenas pessoas estranhas e totalmente insensíveis às suas
índígenas e dos indigenistas, com as medidas que tomara e a política que solicitações e reclamações;
desenvolvia no órgão. - Transformou as unidades da Funai, principalmente a sede central em
Ninguém sabia exatamente de onde ele havia saído. Sabia-se que era Brasília, em verdadeiras fortificações, com seguranças armados e policiais na porta.
apadrinhado político do senador Marco Maciel, de Pernambuco, então vice- Isso intimidava ainda mais as lideranças que tentavam acessar o órgão em busca de
presidente de José Sarney. Com o passar do tempo, comentava-se que ele havia solução para seus problemas.
freqüentado cursos de formação estratégica de direita nos Estados Unidos e no Enquanto criava essa verdadeira “cortina de ferro” para os representantes
Chile. Falava-se na época que ele havia feito esses cursos em companhia de indígenas, por um lado, e uma “cortina de fumaça” para a sociedade brasileira, pelo
Ronaldo Caiado, atualmente deputado federal, mas que, na mesma época, outro, Jucá agia nas sombras. E como agia!
despontou como líder da UDR – União Democrática Ruralista, de extrema direita. Seu negócio eram ouro e madeira. Através de escritórios praticamente
Alguma coisa em comum entre eles realmente deveria existir, pois, não se sabe por clandestinos, que funcionavam no edifício “Venâncio 2000”, em Brasília, a turma de
que, os “clippings” diários sobre a questão indígena, produzidos pela Funai, traziam Jucá firmava contratos inteiramente ilegais com empresas madeireiras e
também, invariavelmente, notícias sobre Ronaldo Caiado e a UDR. mineradoras, para exploração de minérios e madeiras em Terras Indígenas. Por
Romero Jucá entrou com força total na Funai. Numa época em que já eram esses contratos, as madeireiras e mineradoras ganhavam o direito de extrair
restritas as contratações de servidores públicos, conseguiu colocar dentro do órgão determinadas quantidades de materiais das Terras Indígenas e em contrapartida
cerca de duas mil pessoas sem concurso público. Trouxe um sem-número de deveriam prestar assistência em saúde, educação e transporte a essas
conterrâneos seus, sem as mínimas qualificações para as funções e os colocou em comunidades. Assim, cinicamente, Jucá não apenas não cobrava formalmente nada
pontos estratégicos na administração central em Brasília, nas Superintendências, por essas riquezas, o que, aliás, seria inconstitucional, como repassava para
nas Delegacias Regionais e nos Postos Indígenas. terceiros as funções institucionais do estado brasileiro. E, o que era pior, para
Dizia-se que Jucá era um profissional frio e calculista. Considerando que seja terceiros que não tinham mínimo interesse que as comunidades indígenas ao menos
verdade que tenha freqüentado cursos de estratégias políticas, era também bem existissem.
treinado e competente. Toda a política implantada por ele na Funai, seguia uma Uma grande irritação foi crescendo entre os indigenistas e os líderes
estratégia definida, que denunciei na época, através de um texto que reproduzi e indígenas mais conscientes, à medida que descobríamos todas essas estratégias e
distribuí como pude para todo o país, denominado “O Estado e os Povos Brasileiros”. falcatruas perpetradas por Romero Jucá. Aliados a outros seguimentos sociais, como
Sua estratégia se baseava nos seguintes pontos: as ONGs e o CIMI, os indigenistas ofereceram denúncias ao Ministério Público
- Demitiu e perseguiu os indigenistas reconhecidamente aliados das Federal,que se transformaram em dezoito processos, por vários crimes, contra
comunidades indígenas e que de alguma forma atuavam em favor dessas Romero Jucá. Eles, invariavelmente, não davam em nada.
comunidades. Foi nessa época em que comecei a amargar os quase oito anos de Incrivelmente, não se sabe a troco de que acordos, a imprensa estava
“exílio em meu próprio país”, como meus amigos definiam minha situação, que já totalmente manietada sobre a questão indígena. Praticamente nada se publicava
relatei em parte; sobre a questão, a não ser para elogiar os feitos da Funai. Por mais que
procurássemos nossos antigos aliados jornalistas, nada se conseguia publicar.
Todos nós, de alguma forma envolvidos com a causa indígena, sentíamo-nos Encontrei-o praticamente só, em uma chácara que pertencia à Funai, nos
impotentes e irritados com tudo aquilo. arredores da cidade.
A irritação transformou-se em revolta. Depois de conversarmos um pouco sobre toda a situação, fiz-lhe uma
Alguns líderes indígenas, ao sentirem que seria praticamente impossível proposta: eu faria uma viagem que duraria cerca de uma semana. Nesse período ele
reverter aquela situação por vias “diplomáticas”, prometiam retaliações violentas. não deveria tomar nenhuma iniciativa com relação à Funai e a Romero Jucá. No meu
Raoni, o líder dos Mentutíre, era um deles. Andando com uma borduna, diariamente, retorno, diria a ele o que estava planejando. Começava assim a executar um plano
pela sede da Funai em Brasília, prometia matar Romero Jucá com um golpe de sua que havia concebido, na viagem entre Goiânia e Brasília.
arma assim que o avistasse, em qualquer local. Havia, pois, muita tensão no ar. Raoni aceitou a minha proposta e nessa mesma noite, embarquei para
Mas Jucá não era bobo e tinha “costas quentes”. Ao perceber o perigo, Curitiba, de ônibus. Uma vez naquela cidade, fui direto ao que havia ido procurar: o
deixou de ir à sede da Funai. Passou a despachar de um gabinete no “Conselho de apoio do jurista Carlos Frederico Marés, aliado das populações indígenas e que na
Segurança Nacional”, na Esplanada dos Ministérios. Por vários meses nenhum de época, estava ocupando o cargo de Secretário de Cultura do Estado do Paraná.
nós, indigenistas e líderes indígenas, conseguimos avistá-lo pessoalmente. Sua Marés me conhecia de nome e me recebeu muito bem. Contei a ele a
agenda jamais era divulgada e, logicamente, ninguém que não fosse de sua estrita situação das falcatruas de Romero Jucá, das quais, logicamente, ele já tinha
confiança, conseguia ter acesso a ele. conhecimento e da situação que Raoni se encontrava. Fiz então a proposta que me
Raoni acabou fazendo uma promessa pública, que só sairia de Brasília levara até ali: realizar um evento “cultural” com a presença de Raoni, em Curitiba,
quando matasse ou tirasse Romero Jucá da presidência da Funai. onde ele “inesperadamente” denunciaria os contratos ilegais que Jucá vinha
O tempo passava e nada acontecia. Pelo menos três meses já haviam celebrando com madeireiras, cujas cópias havíamos conseguido.
transcorrido desde a promessa de Raoni. No início de sua “campanha” ele conseguiu Marés topou e marcamos a data do evento para cerca de quinze dias após
reunir um grande número de guerreiros Kaiapós em Brasília, provavelmente no intuito aquela visita, período em que ficaríamos em contato.
de liderá-los em uma invasão da sede da Funai. Na mesma noite segui viagem para São Paulo, aonde cheguei ao
Nessa ocasião, um grupo de Krahôs encontrava-se de passagem por amanhecer.
Goiânia e manifestou vontade de prestar solidariedade a Raoni, pois também eles Em são Paulo, com a ajuda da antropóloga Maria Lucia Brant, a Malu,
sentiam em suas aldeias o reflexo da política de Romero Jucá. Fomos juntos para conseguimos articular uma recepção para Raoni pela Assembléia Legislativa do
Brasília, onde conseguimos nos avistar com Raoni e o grupo de guerreiros Kayapós, Estado, com ajuda de deputados do PT. A recepção foi programada para acontecer
dos quais nos colocamos à inteira disposição e voltamos para Goiânia. imediatamente na seqüência do evento que aconteceria em Curitiba.
Não soubemos exatamente a razão, mas os Kayapós recuaram da idéia da De São Paulo fui para o Rio de Janeiro, onde entrei em contato com o
invasão da Funai, retornando para suas aldeias. Raoni encontrou-se novamente deputado Carlos Minc, ativo militante de causas ambientalistas, que também topou
sozinho em sua luta. realizar um evento cultural na cidade, com a presença de Raoni, do qual ele se
Alguns dias após à nossa visita, recebi um telefonema de Raoni. Inicialmente encarregaria da produção.
ele me perguntou pelos Krahôs e eu lhe informei que eles também haviam retornado Retornei então a Brasília e fui procurar novamente Raoni. Havia cumprido o
para suas aldeias. Pelo telefone, senti-o inteiramente só e sem uma saída para prazo que dera a ele, apesar de ter feito todo esse percurso de ônibus, consegui ndo
honrar a sua palavra. Com os anos de convivência direta, nós, indigenistas, as doações das passagens em cada um dos lugares por onde havia passado.
acabamos sabendo perfeitamente o que é a palavra de um líder guerreiro. Não há Contei finalmente a Raoni o plano e o que havia sido articulado. A estratégia
hipótese de recuo ou derrota. Guerreiros não podem retornar para seu povo com “o consistia em aparecer em eventos pretensamente “culturais” que contariam com a
rabo entre as pernas”, após se lançarem à luta. A derrota significa humilhação e o presença de autoridades e da imprensa, explorando assim o enorme prestígio do
fim da própria condição de líder e guerreiro. Todos os agentes que lidam com a qual Raoni desfrutava. Ele deveria levar um grande número de cópias dos contratos
questão indígena deveriam saber disso. Em situações de conflito, quando a decisão ilegais de Jucá e no momento que ele julgasse apropriado, deveria denunciá-los e
de resistir e lutar foi tomada, é possível até negociar, mas jamais o recuo total do distribuir cópias à imprensa e às autoridades.
objetivo pretendido. Senti os olhos de Raoni brilharem e ele topou, no ato, todo o plano.
Ao mesmo tempo, eu sabia dos perigos em se lançar a uma ação violenta, Saí então a campo para conseguir as passagens para os deslocamentos de
como a invasão da Funai. Os tempos eram outros. A opinião pública estava Raoni. Do INESC – Instituto Nacional de Estudos Socioeconômicos, que possui sua
devidamente enganada pela propaganda governamental, não se conseguia publicar sede em Brasília, consegui, por recomendação do IBRACE, o apoio logístico do qual
nada favorável à questão indígena e o apoio fornecido a Jucá, pelas forças de necessitava: um escritório com telefone e fax liberados e ali armei o meu “QG”.
segurança, era total. Não foi tão fácil conseguir as passagens aéreas para todo o percurso que
Não era possível explicar tudo isso a Raoni por telefone e acabei dizendo a Raoni e sua comitiva ( havíamos decidido convidar dois líderes Xavante para
ele que no dia seguinte iria procurá-lo em Brasília. acompanhá-lo). Mesmo com a fama e o prestígio de Raoni, os parlamentares a quem
eu recorri, para que cedessem suas passagens funcionais, não abriam muito a Fiquei sabendo da manifestação com alguma antecedência e decidi
guarda. Afinal, com muita insistência e valendo-me de todas as recomendações participar. Preparei-me como pude, colecionando mapas e imagens de satélite de
possíveis, praticamente na última hora, quando cheguei a temer pelo sucesso do outras hidrelétricas, como Tucuruí e Balbina para apresentar durante o encontro,
plano, consegui fechar todo o circuito e colocar Raoni e sua comitiva em um avião, como forma de mostrar o perigo ambiental e social que representa a construção de
rumo a Curitiba. grandes hidrelétricas, apoiando assim a luta dos Kayapós.
A coisa aconteceu como o previsto, com exceção do evento programado para Como havia conseguido algumas passagens extras com parlamentares
o Rio de Janeiro, que acabou sendo cancelado na última hora. goianos, decidi passar antes pelas aldeias Krahôs e convidei dois companheiros
Em pleno evento em Curitiba, cercado de autoridades locais e da imprensa, daquela etnia, Getulio Kruwakrai e Joci Horé, para irem comigo. Eles toparam e após
Raoni sacou os contratos ilegais da Funai e “deitou o pau” em Romero Jucá. E não alguns dias seguimos viagem.
quis falar de outra coisa, por mais que o perguntassem. Assim, naquele dia, assisti Foi uma viagem cheia de aventuras. Era tempo chuvoso na Amazônia e os
exultante, em Brasília, a uma matéria no Jornal Nacional, onde Raoni atacava Jucá e velhos ônibus que tomamos inicialmente em Araguaína, no Tocantins e depois em
mostrava os tais contratos. Marabá, no Pará, atolavam constantemente na Transamazônica, obrigando os
Tudo se repetiu em São Paulo, durante a recepção na Assembléia Legislativa. passageiros, mesmo à noite, a saírem dos veículos para empurrá-los,
Novas notícias, novas declarações de Raoni, novas cópias dos contratos circulando transformando-os em verdadeiros lamaçais ambulantes.
entre jornalistas e autoridades. Tínhamos conseguido, finalmente, furar o bloqueio da Nessa viagem passei a admirar também os motoristas de ônibus da
imprensa. Amazônia. A perícia deles em sair de atoleiros e atravessar grandes pontilhões de
Foi o início do fim de Romero Jucá na Funai. Ele conseguiu se manter ainda madeira, que se encontravam geralmente deteriorados e balançavam tortuosamente
por três ou quatro meses após esses episódios, mas fora desmascarado. Raoni durante as passagens, era incrível.
continuou aguardando em Brasília a sua queda, conforme prometera. Ele sentiu que Em Altamira indagamos pelo local onde os Kayapós se encontravam
havia desferido um golpe mortal em Jucá, mesmo que tenha “deitado o pau” nele, acampados. Indicaram-nos um sítio fora da cidade e para lá rumamos de carona, que
apenas em sentido figurado. conseguimos na administração da Funai, que ali existe.
Jucá acabou “caindo para cima”. Virou governador “biônico” de Roraima e daí A entrada no acampamento estava sendo controlada pelo pessoal das
ocupou sucessivos cargos públicos, tornando-se inimputável. Dos processos ONGs. A determinação era que naquele local só deveriam se hospedar
impetrados contra ele pelo Ministério Público Federal, jamais se soube seus representantes indígenas. Ora, como eu estava pintado com tinta de jenipapo,
paradeiros. acompanhado de dois Krahôs e transportado pela Funai, fui identificado também
Sempre fui de opinião que Romero Jucá deveria ter sido processado por como indígena e entrei sem maiores problemas.
algum tribunal internacional, por crime de lesa-humanidade. Situações sociais O local era uma antiga missão religiosa, com várias construções de alvenaria
degradantes e devastações do meio ambiente como entre os Yanomamis, em e um grande espaço externo, com matas e igarapés. Os Kayapós, que eram os
Roraima, os Kayapós, no Pará, os Cinta-Largas, os Suruis e os Ñambikwaras, em líderes e promotores da manifestação, haviam construído um enorme acampamento
Rondônia, entre outros casos, acontecem ainda hoje em conseqüência desses circular, ao ar livre, que naquele momento devia abrigar cerca de mil representantes
contratos ilegais de exploração de madeira e ouro das terras indígenas, firmados por Kayapós, entre guerreiros (a maioria), velhos, mulheres e crianças.
Jucá. Os representantes indígenas de todo o país que ali chegavam, eram
encaminhados para as construções existentes. Cerca de mil representantes de
outras etnias foram ali hospedados, totalizando assim cerca de dois mil indígenas,
CAPÍTULO XXVII durante o evento.
KARARAÔ – O “WOODSTOCK INDÍGENA” No meio de tanta gente diferente, reconheci um grupo de Xavantes de
Pimentel Barbosa e armamos junto a eles nossas redes. Próximos a nós estavam
Em 1988, o governo brasileiro havia decidido construir a hidrelétrica de também outros amigos, das etnias Munduruku e Kayabi, que reconheci dos velhos
Kararaô, no Rio Xingu, próximo à cidade de Altamira, no Pará. O lago da hidrelétrica tempos no Tapajós. Assim, senti-me em casa, naquela verdadeira babel, onde
iria engolir parte das terras Kayapós. O próprio nome “Kararaô” designa um dos línguas, cores e cheiros se misturavam.
vários subgrupos Kayapós existente na Amazônia. No dia seguinte à nossa chegada, um componente de uma das ONGs. que
As Organizações Não-Governamentais aliaram-se aos Kayapós e decidiram apoiavam o encontro me localizou e me deu um ultimato para abandonar o local. Não
fazer uma grande manifestação contra a hidrelétrica, em Altamira. Paulinho Payakan sendo indígena – disse ele - não poderia permanecer ali. Ora, eu estava me sentindo
encontrava-se no auge de sua fama, além de Raoni, que já contava com a famosa muito bem em meio a todos aqueles amigos e, além disso, não tinha dinheiro para
aliança com o cantor inglês Sting. Eles ajudaram a atrair para o evento centenas de ficar na cidade, hospedado em hotel.
observadores e representantes da imprensa nacional e internacional.
Joguei pesado com o representante da ONG: – Escuta – disse a ele - minha No dia seguinte, pela manhã todos embarcaram para a cidade em vários
rede está ali, armada bem no meio dos Xavantes, dos Krahôs, dos Mundurukus e dos ônibus que ali se encontravam à disposição. Eu, Getúlio e Horé conseguimos
Kayabis. São todos meus amigos, já vivi com eles em suas aldeias. Não vou retirá-la. embarcar em um deles, que transportava guerreiros Kayapós. A atmosfera guerreira
Se você tiver coragem de retirá-la de lá, vá lá e a retire. Se você conseguir, eu saio. era muito intensa. Durante o trajeto, em nenhum momento eles pararam de entoar
cantos e emitir gritos guerreiros.
Como eu havia imaginado, ele não teve coragem de fazê-lo. Outros Todos foram levados para um grande ginásio de esportes coberto, onde seria
representantes de ONGs. vieram e fiz a mesma proposta E nenhum deles teve realizada a manifestação. Os Kayapós imediatamente tomaram toda a quadra de
coragem de retirar minha rede. Extremamente irritados com a minha “intromissão”, esportes do ginásio, onde em uma de suas laterais haviam armado um grande
mas sem terem como resolver a questão, acabaram desistindo. Assim, passei a ser o palanque de madeira, em um nível ligeiramente superior ao da quadra. Os chefes
único não-indígena naquele local. E pude observar com calma o que acontecia. postaram-se à frente dos guerreiros e ficaram ali, frente ao palanque aguardando,
Que fantástico e belo era a movimentação no acampamento Kayapó! Dia e excitados. Quem afinal seriam seus opositores, que os fariam descarregar toda
noite, ininterruptamente, todos devidamente pintados e paramentados, entoavam aquela energia armazenada, em vários dias de preparação para a guerra?
cantos e danças guerreiras, enquanto os chefes faziam reuniões no centro do Depois de cerca de meia hora de espera, quando os cantos e danças
acampamento e outros ainda se encarregavam de confeccionar suas armas guerreiras não cessavam, um homem entrou e tomou um assento localizado no
tradicionais, como bordunas e flechas. centro da mesa, que ocupava toda a frente do palanque. Os cantos cessaram e
O local era aberto ao público apenas uma vez ao dia, à tarde, por cerca de houve uma espécie de descarga elétrica entre os guerreiros Kayapós. As armas
duas horas, quando o acampamento era inundado por centenas de fotógrafos, foram imediatamente empunhadas. É só aquele ali?
cinegrafistas, repórteres e cineastas do mundo inteiro. Houve um momento de indecisão dos chefes, que se entreolharam como se
Nessas ocasiões os Kayapós continuavam suas evoluções guerreiras, com perguntando o que fazer. Definitivamente, não era exatamente aquilo que estavam
se estivessem sozinhos e então todos tiravam fotos e filmavam com intensa avidez. esperando.
À medida que se aproximava o dia do evento, subiam de intensidade os Foi o bastante para que uma mulher Kayapó, que fazia parte de um grupo de
discursos guerreiros. Os Krahôs compreendem relativamente bem a língua falada mulheres que havia se localizado no canto da quadra, se adiantasse rapidamente e
pelos Kayapós, pois ambos pertencem ao tronco lingüístico Jê. Na véspera do dia se colocasse frente ao homem sentado no palanque. Ela portava um facão imenso,
“D” do evento, Getúlio me contou o que estava entendendo dos discursos dos afiadíssimo, que passou a manejar com maestria, ora encostando-o na garganta do
chefes guerreiros: eles estavam se preparando para MATAR qualquer branco que homem, ora brandindo-o sobre a sua cabeça, proferindo ao mesmo tempo um
aparecesse na frente deles, para contestá-los, quando saíssem para a cidade. Eles intenso discurso em Kayapó.
haviam escutado que os moradores da cidade, incentivados pelos grandes Os chefes guerreiros olhavam atônitos uns para os outros, parecendo nada
proprietários e políticos locais, estavam se organizando também para realizar entender.
manifestações públicas a favor da hidrelétrica e que tentariam impedir a O discurso de Tuíra, assim depois se revelou ser o seu nome, foi
manifestação dos Kayapós. emocionante e prolongado. Ela sabia exatamente o que estava fazendo. Percebi que
Assim, enquanto todas aquelas pessoas das ONGs., os representantes da a sua intenção era justamente a de esfriar o ímpeto guerreiro dos homens, que
imprensa e meus próprios colegas indigenistas, que ali também apareciam poderia resultar em derramamento de sangue, chamando para cima do povo Kayapó
diariamente, pensavam que os Kayapós apenas mostravam sua cultura, eles retaliações futuras. Pensou como mulher e mãe, pois carregava seu filho nas ancas,
realizavam um autêntico ritual guerreiro, preparando-se para matar ou morrer. enquanto fazia o discurso.
Eu havia presenciado antes um ritual guerreiro entre os Xavantes, já Se essa havia sido realmente a sua intenção, funcionou. Quando terminou a
contado neste livro. A cultura Kayapó é diferente da cultura Xavante, mas a energia sua performance, ela havia dado o tom que deveria permear todo o evento. Não
guerreira alcançada nos dois casos é a mesma. Na noite que antecederia o evento haveria guerra ou sangue, apenas discursos.
na cidade, quando os Kayapós imaginavam que se daria o confronto, um chefe Coitado daquele funcionário (ficou-se sabendo depois que se tratava de um
iniciou um discurso para seu grupo de guerreiros por volta da duas horas da manhã e funcionário de segundo escalão do consórcio que construiria a hidrelétrica), como
só terminou quando o dia amanheceu, quando todos deveriam partir para a “guerra”. sofreu. Aos espectadores parecia que a qualquer momento teria um infarto, tamanha
Esse grupo estava próximo às nossas redes e conseguimos acompanhar tudo. Sua era a sua palidez. Depois de Tuíra, seguiram todos os chefes guerreiros Kayapós,
voz era gutural e forte, como se saísse das profundezas da terra. Enquanto falava, que proferiam discursos guerreiros, brandindo suas lanças e bordunas a centímetros
brandia sua lança sobre a cabeça dos guerreiros, incitando-os à guerra. Seu da sua garganta e da sua cabeça. Trata-se de uma técnica guerreira, presente em
discurso demorou cerca de quatro horas, sem que em nenhum momento ele vários povos, destinada a mostrar força, destreza, valentia e testar a coragem do
diminuísse o tom da voz ou parasse para descansar. inimigo.
E, assim, passou-se o primeiro dia do evento, que estava programado para Quando o evento já se encaminhava para o seu final, levantei-me
um total de cinco, quando seriam colocados e debatidos os impactos sociais e subitamente e, dirigindo-me decididamente para a frente do palanque, literalmente
ambientais que causam a construção de uma hidrelétrica daquele porte. Vários arrebatei o microfone das mãos de Paulinho Payakan, que comandava o evento . Ato
palestrantes estavam presentes, entre ambientalistas nacionais e estrangeiros, contínuo, comecei a proferir um discurso, que há dias vinha preparando em minha
líderes indígenas, líderes de organização de atingidos por barragens. cabeça.
Mas, uma coisa havia me chamado a atenção e colocado uma “caraminhola” Basicamente, falei que durante aqueles dias havia escutado e presenciado
em minha cabeça: eram os discursos de alguns representantes de embaixadas muitas coisas boas, mas também muitas mentiras. Que os representantes de países
européias, aos quais foi dada a palavra, após os discursos dos Kayapós. De modo europeus vieram ali falar em parar a devastação da floresta amazônica, mas eles
geral, eles reclamavam da devastação da Amazônia, que estaria afetando o clima eram os principais compradores da madeira que saía da floresta e que, além disso,
mundial e pediam que os Kayapós os ajudassem a protegê-la. Chegavam a oferecer pagavam preço irrisório por ela. Que grande parte daquela madeira saía exatamente
os recursos que fossem necessários, para que eles fizessem isso. das terras indígenas. Como eles vinham agora oferecer dinheiro para as etnias
Ora, quando havíamos chegado em Altamira, alguns dias antes, eu havia me indígenas protegerem a floresta?
impressionado com as milhares de toras de mogno que se amontoavam nos pátios Emendei, dizendo que se eles queriam mandar dinheiro, que mandassem
das serrarias e nas ruas da cidade, aguardando transporte. Conversando com direto para as comunidades indígenas e não para as ONGs, já que, geralmente, elas
colegas durante as suas visitas ao acampamento, procurei saber para onde iria toda desviavam os recursos. Falei do governo brasileiro, que fazia seus projetos de
aquela madeira. Invariavelmente me informavam que ela seria toda exportada “in estradas e barragens sem consultar as comunidades indígenas e que também
natura” para os países europeus. Grande parte dessa madeira, inclusive, saía das usavam dinheiro estrangeiro para fazer essas obras. Falei da Funai, cujo presidente
terras habitadas pelos Kayapós. Romero Jucá era o principal facilitador para a invasão das terras indígenas, por
Senti necessidade de falar publicamente sobre isso e sobre outros assuntos madeireiros e garimpeiros.
que me atravessavam a garganta, inclusive sobre a atuação das ONGs no Brasil na Meu discurso demorou cerca de dez minutos. Eu sabia que não poderia me
época, mas sabia que não me dariam oportunidade. Já devia me dar por muito feliz prolongar muito, sob risco de ser reconhecido. Ao terminá-lo, entreguei rapidamente
ter conseguido permanecer no acampamento. o microfone a Payakan e retornei, de cabeça baixa, para o local onde estivera antes.
No entanto, um plano começou a se formar em minha cabeça. E, sem Sentei-me, abaixei a cabeça e fiquei quieto. Prepori, o grande líder Kayabi, ao lado
comentar nada com ninguém, nem mesmo com meus companheiros de viagem, do qual eu havia sentado, percebeu minha intenção de não ser descoberto e,
comecei a prepará-lo. chegando para mais perto de mim, cobriu minha cabeça com a aba de seu grande
O evento transcorria normalmente. Todos os dias, íamos para a cidade de cocar.
manhã, quando eram feitos os discursos e debates e voltávamos para o
acampamento à tarde. A cada dia, eu observava e aprimorava o meu plano. O discurso causou um reboliço no evento. Os correspondentes estrangeiros
Na tarde anterior ao último dia do evento, pedi a um casal de velhos fizeram questão que ele fosse traduzido para o inglês pelos componentes da mesa, o
Kayapós, do qual havia me aproximado nos dias anteriores, que me pintassem com que foi feito.
tinta de jenipapo. Depois de pronta a pintura, pedi a eles que me cedessem um Em meu lugar, entre centenas de guerreiros e coberto pela aba do cocar de
pouco de pasta de urucum, a tinta vermelha extraída da planta do mesmo nome, Prepori, continuava quieto e de cabeça abaixada. Percebi, de soslaio, vários
usada praticamente por todas as etnias do Brasil. repórteres tentando me localizar, com suas câmeras e gravadores, caminhando entre
À noite, discretamente, tirei toda a minha barba, que já estava bastante os índios.
grande e fui dormir. Quando o evento terminou, sempre protegido por Prepori, caminhamos
No dia seguinte,acordei bem cedo e, escondido na mata que existia ao redor rapidamente para os ônibus. Alguns repórteres ainda tentavam me reconhecer, nas
do acampamento, passei o urucum em meu corpo, conjugando-o com a tintura negra filas que se formavam para entrar nos veículos. Apenas um deles, de uma rádio,
do jenipapo. Tive o cuidado de pintar inteiramente o meu rosto com urucum. Coloquei quando eu já colocava os pés nas escada do ônibus, conseguiu me perguntar algo,
uma pequena fita de fibra de buriti ao redor da minha cabeça e, ainda escondido, que não respondi, entrando imediatamente no veículo, que estava superlotado.
fiquei à espreita da saída dos ônibus para a cidade. Quando percebi que todos Chegando ao acampamento, fui imediatamente para o rio e, usando água e
estavam lotados e prontos para partir, saí do esconderijo e embarquei em um deles, sabão, tirei imediatamente o urucum do corpo. A tintura do jenipapo não sai com
evitando ser reconhecido. água e sabão, mas sobre ele vesti imediatamente minha roupa e me preparei para
Ao chegarmos ao ginásio, andando de cabeça baixa, procurei imediatamente sair dali, o mais rápido possível. Já havia combinado com alguns amigos
um lugar discreto pra ficar, bem no meio dos guerreiros Kayapós e de representantes indigenistas, que me buscassem de carro no acampamento, assim que o evento
de outras etnias e fiquei aguardando. terminasse. Também havia acertado anteriormente com Getulio e Horé sobre o nosso
retorno. Eles deveriam pegar uma carona em um dos ônibus que transportava uma
das comitivas indígenas, que passaria pela região dos Krahôs. Quanto a mim, Foi uma paixão imediata do documentarista pelo documentado. Na viagem
pretendia fazer outro percurso, passando pela cidade de Belém, para visitar um dos Luiz Eduardo havia levado uma simples câmera VHS, mas foi o bastante para que
meus irmãos, que ali morava. ele se apaixonasse pela beleza plástica das pessoas, das aldeias e do ambiente da
Assim, liberto daquela tensão de não ser reconhecido, fui finalmente para a terra Krahô. Ao retornarmos para Goiânia, não falava em outra coisa a não ser
cidade de Altamira com meus amigos, que haviam assistido ao meu discurso e me realizar um documentário profissional em vídeo sobre os Krahôs.
parabenizavam. Ezequias Heringer ( o “Xará), Mauricio Wilke, Antônio Pereira Neto Eu não possuía nenhuma experiência ou mesmo conhecimento sobre vídeo,
(o “Toninho”), André Ramos, Heleno Gonçalves, estavam todos lá. Passamos mas Luiz Eduardo se encarregou de me entusiasmar sobre o assunto e eu acabei
praticamente toda a noite comemorando e, logicamente, comentando o evento. vendo ali uma oportunidade de retomar a luta pela autonomia das aldeias.
Elaboramos um projeto para execução do documentário e saímos a campo
Retornei para casa inicialmente de barco, descendo o rio Xingu e depois o para captação de recursos, mas não houve forma de consegui-los. Iniciamos então
Amazonas, até Belém e daí, de ônibus, até Goiânia. um processo de execução do documentário, de forma inteiramente militante e de
Eu estava incrivelmente feliz. A energia transmitida pelos rituais indígenas e resultados imprevisíveis.
pelo encontro com todos aqueles amigos, me daria forças para continuar na luta por Nossa estratégia consistia em criar, em combinação com os Krahôs,
um bom tempo. determinado fato nas aldeias, e, a partir daí, convencer a uma emissora de televisão
a documentá-lo com a nossa ajuda, com a condição de ficarmos de posse do
material original, após a edição da matéria. Certa feita, por exemplo, conseguimos
levar às aldeias Krahôs o líder Raoni, dos Mentutíre, quando ele havia acabado de
CAPÍTULO XXVIII retornar de sua famosa “tournée” pela Europa, com o cantor Sting e se encontrava
KRAHÔ – OS FILHOS DA TERRA no auge de sua fama.
Para que as emissoras aceitassem a propostas de nos entregar os originais
Luiz Eduardo Jorge é fotógrafo e documentarista e foi para mim um daqueles de gravação, fornecíamos para elas as fitas virgens U-Matic, o equipamento utilizado
parceiros que a vida lhe oferece, quando você mais precisa dele. por elas na época. Luiz Eduardo, por sua vez, conseguia essas fitas por cessão da
Eu continuava a atuar pelo Centro de Atividades Indigenistas do IBRACE, de Universidade Católica de Goiás, onde ele trabalhava. Ele batalhava também veículos
onde frequentemente conseguia criar fatos políticos que colocavam a questão e assistentes de produção pela universidade, o que ajudava ainda mais no
indígena em foco em níveis regional e nacional. Mas, minha grande preocupação convencimento das emissoras de televisão em se deslocarem à terra Krahô,
continuava sendo o povo Krahô, do qual jamais havia perdido o contato e a amizade. localizada a mais de mil quilômetros de Goiânia. Invariavelmente os cinegrafistas
Os Krahôs não estavam bem. Sentiam fortemente em suas aldeias a política dessas equipes se apaixonavam também pelos Krahôs e pela proposta do
de isolamento perpetrada por Romero Jucá. A Funai havia conseguido cooptar documentário e acabavam produzindo muito mais do que o estritamente profissional.
vários jovens líderes emergentes e abafar o movimento de auto-gestão que Assim, ganhamos grandes parceiros para nossas expedições às aldeias, como Gel
havíamos iniciado. Tornara-se muito difícil para os líderes conscientes saírem das Messias, Washington Soares e Jordevar Rosa.
aldeias e denunciar a situação que estavam vivendo. O abandono deliberado havia Os Krahôs se envolveram totalmente no projeto e nos ajudavam, tanto na
levado as aldeias a uma miséria extrema, que era agravada pela baixa auto-estima, produção dos eventos a serem documentados, quanto no convencimento das
provocada pela impotência das comunidades em reverter uma situação de emissoras e das instituições que procurávamos. Nossa proposta era comercializar o
submissão, da qual agora elas tinham plena consciência. documentário e reverter a maior parte da arrecadação para as aldeias, através de
Eu sentia, portanto, necessidade de retomar a luta pelo respeito e autonomia uma associação a ser criada por eles. Assim, o documentário passou a ser a grande
dos Krahô, mas não sabia como fazê-lo. A atuação pelo IBRACE era de caráter esperança, não só de tirar as aldeias KRAHÔS do isolamento e denunciar a situação
voluntário e grande parte da minha energia tinha que ser despendida para a de abandono em que se encontravam, mas também de conseguir recursos
manutenção da minha família. De resto, minha entrada nas terras indígenas era necessários para sair da dependência a que elas estavam submetidas.
proibida e eu me sentia constantemente vigiado em minhas ações. Cada deslocamento para as aldeias Krahôs representava um monumental
Luiz Eduardo, de repente, apareceu no IBRACE. Na verdade ele esforço de produção, a partir do zero. Eu estava desempregado e o que Luiz
reapareceu, pois, segundo me relatou, havia sido um dos fundadores dos Centro de Eduardo ganhava de salário na universidade mal dava para sustentar sua família.
Atividades Indigenistas, do qual depois havia se afastado. Mesmo assim, articulando com pessoas e instituições, conseguimos ir pelo menos
Travamos uma forte amizade. Em determinada ocasião ele manifestou o em quatro ocasiões, com uma equipe de televisão, às aldeias Krahô e captar cerca
desejo de documentar os Krahôs em foto e vídeo e não demorou muito para que de vinte horas em gravações em vídeo U-Matic.
empreendêssemos juntos, uma viagem às aldeias Krahôs, da forma mais discreta . Na última expedição para captação de imagens, conseguimos convencer a
possível. uma emissora estatal de Goiânia a nos ceder inteiramente os equipamentos e a
equipe de gravação por vinte dias, para que completássemos nosso material, com a Mas não se pode dizer que o documentário não tenha ajudado os Krahôs. A
condição de cedermos a edição final do nosso documentário para uma exibição em sua própria realização foi um alento para eles e para nós que os apoiávamos e
primeira mão na emissora. A equipe de seis pessoas chegou à aldeia sem nenhum serviu como arma de resistência e esperança de vencer a luta que travávamos.
recurso ou mesmo alimentação. Por um golpe de sorte, no percurso entre Goiânia e Depois de finalizado, conseguimos patrocínio para reproduzir cópias em VHS., que
as aldeias, Luiz Eduardo havia travado conhecimento com um candidato a prefeito da serviram para que, por inúmeras vezes, grupos de Krahôs saíssem das aldeias e,
cidade de Itacajá e apresentou-se a ele como repórter de uma importante emissora comercializando as cópias de mão em mão, viajassem para Brasília, São Paulo, Rio
de televisão de Goiás. Foi o bastante para que o candidato, que possuía várias de Janeiro e outras localidades, para batalhar recursos para suas aldeias e denunciar
fazendas na região, se interessasse em fazer uma reportagem sobre a sua a situação delas.
candidatura. Luiz Eduardo, habilmente, negociou a gravação da reportagem, em Em 1993, fomos convidados para participar com o vídeo do Festival de San
troca da manutenção da equipe em campo e algumas cabeças de gado para as Sebastian, no país Basco. Eu e Roboxêt, um representante Krahô, fomos então para
aldeias Krahôs, necessárias para que elas realizassem as festas que precisavam ser a Europa, com todas as despesas pagas pelo festival. Acabamos fazendo um
documentadas. Logicamente, a “reportagem” com o candidato foi devidamente “circuito étnico” pela Espanha por cerca de um mês, a convite de entidades que
gravada, mas jamais veiculada. conhecemos no festival e apoiados por amigos bascos – Pedro, Iosu e Koldo, que
Assim, “aos trancos e barrancos”, mas mantendo sempre a esperança de havíamos conhecido anteriormente. Participamos também de uma mostra de filmes
que o documentário seria a redenção das aldeias Krahôs, em 1992 conseguimos étnicos em Paris, a convite do produtor do evento, que conhecemos no Festival de
realizar uma primeira edição do material, em nível experimental. Para isso, contamos San Sebastian.
também com o apoio da emissora estatal e trabalhávamos nos finais de semana, até
altas horas da noite, quando os equipamentos de edição da emissora ficavam Tivemos então oportunidade de divulgar o vídeo e a luta dos Krahôs e dos
disponíveis. outros povos indígenas do Brasil, por respeito e autonomia. O mais importante,
De posse da primeira edição, começamos a circular com ela no circuito de entretanto, é que fizemos contato direto com várias instituições apoiadoras das
vídeo, até que Luiz Eduardo, conseguiu articular uma exibição de lançamento no causas das minorias no “terceiro mundo”, quebrando assim um monopólio exercido
Museu da Imagem e do Som em São Paulo. Ali ficamos conhecendo o diretor da por algumas instituições “indigenistas” brasileiras. Esses contatos resultaram depois
área de vídeo do museu, Sérgio Martinelli, que se apaixonou pelas imagens e pelo em financiamentos a projetos da entidade “UNIÃO DAS ALDEIAS KRAHÔ – KAPEY”,
projeto de ajudar as aldeias Krahôs. Ele nos propôs realizar uma edição mais uma associação de todas as aldeias Krahôs que foi criada exatamente para receber
profissional do material, que pudesse ser aceita por emissoras de televisão do Brasil os eventuais resultados da comercialização do documentário.
e do exterior. Logicamente topamos no ato e Sérgio Martinelli passou a ser nosso A associação KAPEY continua ainda em plena atividade, desenvolvendo
mecenas, arcando do próprio bolso com despesas com fitas, editores e ilhas de projetos nas áreas de meio-ambiente, educação, cultura, comunicação, segurança
edição, sempre na expectativa de que a comercialização do documentário cobrisse alimentar e geração de renda, promovendo a união de todas as aldeias Krahô, em
futuramente esses custos. Eu e Luiz Eduardo, nos desdobrávamos para nos torno de um projeto de autonomia física e cultural.
deslocar entre Goiânia e São Paulo, para trabalhar na edição, transportando em
várias bolsas aquelas fitas enormes.
Toda essa trabalheira e dedicação acabaram fazendo com que Luiz Eduardo Capítulo XXIX
perdesse definitivamente o apartamento, que ele vinha pagando há um bom tempo. ANISTIA
Quanto a mim, minha situação financeira (se é que eu tinha alguma) piorou ainda
mais, ao ponto de não mais conseguir pagar aluguel da casa onde morávamos e Em finais do ano de 1992, travei uma briga jurídica com algumas ONGs.
pedir para morar na sede do IBRACE, com a minha família. Mas, mantínhamos Indigenistas, após ter denunciado na imprensa alguns desvios e manipulações de
sempre forte a certeza de que a comercialização do documentário nos daria a lideranças, de recursos e de informações. Algumas das entidades que denunciei
oportunidade de recuperar nossa antiga situação e ajudar as aldeias Krahôs. resolveram me processar por calúnia e difamação. Processaram também à empresa
A nova edição, agora bem trabalhada tecnicamente e com narração de um jornalística Jaime Câmara, proprietária do jornal “ O Popular”, de Goiânia, que
profissional, ficou finalmente pronta em 1993, cerca de cinco anos, portanto, após o veiculara a matéria. A coisa rendeu grandes tensões, audiências, sentenças e
início da “produção”. Sérgio Martinelli providenciou cópias em inglês e francês e negociações que acabaram provando que eu havia dito a verdade.
saiu a campo para comercializá-la. Apesar de a denúncia ter sido veiculada em 1992, essa briga jurídica iniciou-
Mas nada! Sérgio jamais conseguiu colocá-lo no circuito comercial e jamais se efetivamente em 1993, após a minha anistia. Você, meu caro leitor, deve estar
ganhamos um único tostão com a venda do vídeo, nem mesmo para cobrir as lembrado que prometi lá no prefácio, que elas abrangeriam o período de 1974 a
despesas de edição, que não foram poucas. 1993, ano em que fui anistiado. Pois, exatamente no dia 22 de abril de 1993 fui
anistiado pelo governo brasileiro, com base na constituição de 1988 e reconduzido
aos quadros da Funai. Encerro, portanto, por aqui, as minhas narrativas. Após a Também no artigo 232, foi incluído um termo importantíssimo, que iria, de
anistia e o retorno ao trabalho na Funai, tudo mudou novamente em minha vida. Mais fato, revolucionar todo relacionamento do qual nos ocupamos: trata-se do termo
respeito, novos trabalhos, novos desafios, menos tensão, mais segurança “organizações”. Esse termo permitiu que as comunidades indígenas passassem a
financeira, novos aliados e até nova família. ter o direito de se organizar em agremiações civis, como associações, institutos,
Mas tudo isso fica para o próximo volume, que, se tudo correr bem, espero fundações, confederações, etc. É a partir daí que nasce o que conhecemos hoje
que abranja mais vinte anos de convivência com os povos indígenas. Um imenso como “movimento indígena”. Esse movimento encontra-se bastante consolidado e
privilégio, asseguro-lhes. em constante expansão. É muito difícil se encontrar atualmente uma comunidade
indígena no Brasil que não tenha, pelo menos, tentado fundar uma organização civil
Aguardem-me. ou faça parte de uma organização mais ampla. Essas organizações atuam não
somente na defesa dos direitos das populações indígenas, mas através delas captam
recursos e desenvolvem projetos em várias áreas de seus interesses, como saúde,
educação, produção de alimentos, desenvolvimento e comercialização de produtos
das terras indígenas, etc., além de participarem dos fóruns nacionais e internacionais
que lhes dizem respeito. Algumas confederações, que abarcam centenas de
organizações estão bastante consolidadas, como a COIAB – Conselho das
Organizações Indígenas da Bacia Amazônica, que, por sua vez, se articula com
outras confederações americanas e mundiais.
POSFÁCIO Outro fato novo decorrente desse dispositivo, foi o ingresso do Ministério
Público Federal na defesa dos interesses indígenas. Isso resultou na entrada em
Espero que vocês tenham gostado das narrativas pessoais registradas neste cena de vários Procuradores da República, que se aprofundaram decididamente na
livro. Como disse no prefácio, elas foram publicadas com o objetivo principal tentar questão, tornando-se aliados incontestáveis das populações indígenas.
colocar os temas “indígena” e “indigenismo” em pauta e de não deixar que fosse No início da década de noventa o chamado “movimento indigenista”, aí
enterrado definitivamente parte da nossa história. incluídos atores governamentais e não-governamentais, precipitou com suas ações
Mas o objetivo principal deste POSFÁCIO, é tentar atualizar as informações e pressões, outro fator de destaque no período: o desmembramento das ações
acerca desses temas, desde onde as narrativas se encerraram, ou seja, o início da governamentais executadas em terras indígenas em vários órgãos, retirando assim
década de noventa. da Funai a hegemonia do poder estatal. No governo de Fernando Collor de Mello
Para isso, torna-se necessário retroceder um pouco na cronologia dos fatos, foram editadas uma série de decretos, depois aperfeiçoados pelos governos
até a promulgação da Constituição Federal de 1988, quando alguns conceitos novos, subseqüentes, que transferiram para o Ministério da Saúde e, em extensão para a
de extrema importância para a evolução do relacionamento das populações FUNASA – Fundação Nacional de Saúde as ações de atendimento à saúde das
indígenas com a sociedade nacional, foram instituídos. populações indígena e para o MEC – Ministério da Educação as ações de educação.
O primeiro desses conceitos, inclusos no art. 231, diz que “é reconhecido aos Automaticamente o MEC repassou essa responsabilidade às Secretarias Estaduais e
índios o sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos Municipais de Educação.
originários sobre as terras que ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e O principal argumento utilizado pelos defensores da idéia do
fazer respeitar todos os seus bens”. Esse dispositivo constitucional derrubou todos desmembramento das ações governamentais em terras indígenas, era de que a
os conceitos, vigentes até então, de que os índios deveriam ser incorporados à Funai tornara-se um órgão poderoso, quase um “mini-estado”, que, aliado ao seu
sociedade nacional, reconhecendo ser o Brasil um país pluriétnico. caráter “tutelar”, impedia o avanço do movimento indígena.
O segundo conceito, foi instituído pelo artigo 232, que diz: “Os índios, suas É curioso, entretanto, observar, que, no momento, inúmeras populações
comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em indígenas praticamente exigem o retorno da Funai à execução dessas ações,
defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todas as rejeitando categoricamente a forma dos outros órgãos atuarem. Isso, a nosso ver, se
fases do processo.” explica pelas ”culturas” desenvolvidas por essas instituições. A Funai, a despeito de
Inicialmente, para muitos juristas, esse dispositivo constitucional teria ter, efetivamente, desenvolvido uma cultura institucional tutelar, desenvolveu também
eliminado automaticamente o instituto da tutela governamental sobre as populações a especialização cultural nas várias etnias indígenas brasileiras, decorrente do trato
indígenas, ao dar a elas, individual ou coletivamente, o direito de recorrerem ao direto, de quase um século com essas comunidades, fundamentado no respeito às
sistema judiciário nacional em defesa de seus direitos e interesses, como quaisquer suas diferenças, desaguando no que poderíamos denominar de “diplomacia cultural
cidadãos ou agremiações, dispensando, portanto, intermediações. interna” ou termo que o valha. Não é o caso da FUNASA, que tem como base
cultural-institucional, o atendimento indiscriminado da massa populacional brasileira,
através do SUS – Sistema Único de Saúde, ou das Secretarias Estaduais e conhecimentos sobre as nossas primeiras raízes. Desprezar as obras e as
Municipais de Educação, submetidas aos interesses políticos regionais e locais. trajetórias de figuras como Rondon, Darcy Ribeiro, Villas Boas, Francisco Meirelles e
Entretanto, a Funai nunca foi tão bombardeada com as notícias e boatos de mesmo os contemporâneos que já citamos, é quase um processo “Stalinista”.
que será finalmente extinta no novo governo que se aproxima, encerrando de vez Mas, afinal, o que seria esse indigenismo hoje, já que não se pode acabar
um século de história. Nós, que ainda atuamos por ela, temos um sentimento, assim, de uma hora para a outra, com o termo e o “movimento”. Hoje, existem as
bastante angustiante, de estarmos sendo enterrados vivos. mais variadas formas de exercê-lo, tanto pelo poder governamental como da
Tudo o que foi relatado neste POSFÁCIO, está acontecendo hoje, outubro de sociedade civil, podendo, obviamente, participar os representantes indígenas dos
2006, quando estamos finalizando o texto para o livro que você tem em mãos. dois seguimentos.
Esperamos, assim, ter cumprido com a nossa pretensão, quando nos Os temas ligados à questão indígena tornam-se, a cada dia, mais
dispusemos a publicá-lo, de dar ao leitor uma visão mais ampla possível da questão complexos: Biodiversidade, Conhecimentos Tradicionais, Propriedade Intelectual,
indígena, desde a chegada dos europeus à atualidade. Direitos Autorais e de Imagem, Gestão Territorial, Educação Diferenciada, Medicina
Tradicional, Arquitetura e Construções, Administração Pública e Civil, Legislação
Indigenista, Associativismo e Cooperativismo, Comércio e Exportação,
Desenvolvimento Sustentável, Comunicação etc., que passam a exigir ações,
assessorias e consultorias cada vez mais especializadas.
Os indigenistas ligados à Funai, além dos temas acima, exercem ainda uma
série de atividades inerentes estritamente ao poder governamental, tais como:
EPÍLOGO Mediação de Conflitos Internos e Externos às Comunidades Indígenas, Apoios e
Ações de Proteção Territorial, Licenciamentos Sócio-Ambientais para
Afinal, o indigenismo deve mesmo ser enterrado definitivamente Empreendimentos Governamentais e Privados, Identificação, Delimitação e
(interrogação) Demarcação de Terras Indígenas, Proteção de Índios sem Contato, entre outras.
Antes de qualquer coisa, gostaria de externar minha quase repulsa pela Obviamente, os representantes indígenas estão, a cada dia, mais aptos a
palavra “índio”. Essa repulsa foi um pouco aplacada só recentemente, quando tive lidarem com todos esses temas e para isso também trabalha o indigenismo, desde a
de pesquisar a palavra no “Aurélio”, para escrever o prefácio. Ali, Aurélio Buarque de década de setenta, quando o termo corrente era “autodeterminação”. Esse apoio se
Holanda acrescenta ao termo, uma definição mais moderna: “Indivíduo pertencente a reflete hoje, desde o incentivo e a facilitação para a formação técnica e acadêmica
qualquer um dos povos aborígines” e foi somente por isso que a grafei sem muito desses representantes, à transferência, através de ações exercidas em campo, de
pejo, no livro. Já a palavra “Indígena” viria do latim, significando “originário de técnicas e tecnologias modernas, que possibilitem às diversas etnias praticarem o
determinado país, região ou localidade, nativo”. Aí melhorou um pouco, porque eu chamado “etnodesenvolvimento”.
costumava dizer que a palavra “índio” nasceu de um engano – o dos europeus A lógica nos diz que essa interação é dinâmica e constante, já que surgirão
pensarem estar chegando às Índias Orientais - e se transformou em um preconceito. sempre novas idéias, técnicas e tecnologias no mundo, que necessitarão de
Mas, certo é que essas palavras desaguaram em termos há muito correntes especialistas que as repassem, assim como o Brasil necessita ainda dos americanos
na sociedade, como “indigenismo”, “indigenista”, “política indigenista”. O “Aurélio” para avançar em seus projetos espaciais ou da tecnologia alemã para construir
registra também, que a palavra “indigenismo” veio de um movimento acontecido no centrais nucleares ou ainda os Estados Unidos necessitem de tecnologia brasileira
México, que se caracteriza pela defesa das populações indígenas de um país ou para desenvolver combustíveis renováveis (álcool, biodiesel), e assim por diante.
região. Esse movimento resultou na criação do Instituto Indigenista Interamericano, Aliás, cada vez mais nossa sociedade tenta buscar os conhecimentos tradicionais
em 1942, no México, ainda hoje uma referência bastante forte na América Latina. das populações indígenas, com o objetivo de avançar em novas técnicas, tecnologias
Atualmente tenho escutado, até mesmo de algumas lideranças indígenas, e produtos, transformando essa interação em uma via de duas mãos.
principalmente as mais articuladas com o mundo exterior das aldeias, que o Assim, acredito que “movimento indígena” não é incompatível com
indigenismo acabou. Que os protagonistas agora são eles próprios, os indígenas. “indigenismo”, seja ele de que origem for. Ao contrário, eles se complementam e
Bem, já falei que não gosto da terminologia, mas também não conheço atualmente precisam um do outro, para sobreviver e desenvolver. A meu ver o
nenhum termo que designasse um fenômeno da sociedade, por longo tempo, que indigenismo somente desaparecerá quando TODA a sociedade estiver
tenha mudado. Assim, gostando ou não do nome, gosto do tema, do “movimento”, de conscientizada do respeito e gratidão que se deve aos povos indígenas, pela sua
estudar, observar e acompanhar a evolução histórica daquilo que, para mim, nunca antiguidade nesta terra e pelas heranças genéticas e culturais que nela imprimem,
foi uma profissão, mas a minha própria vida. fazendo dessa interação algo natural. Ainda assim será necessária a existência de
Digo, inicialmente, que é um contra-senso querer sufocar um século de aparatos governamentais que garantam todo o respeito e os direitos conquistados
história, do que o Brasil talvez já teve de melhor em humanismo e acumulação de pelos povos indígenas, já que, no fundo, estamos falando de uma utopia. Ou alguém
tem dúvidas que os interesses econômicos sobre os patrimônios indígenas, sejam nacional para seu exclusivo usufruto, que não é tão exclusivo assim, já que muitas
corporativos ou individuais, continuarão sempre a existir. terras indígenas encontram-se invadidas. Não é muito, se comparado à extensão to
Uma das barreiras que deve ser transposta para se avançar na do território brasileiro, que ocupavam totalmente antes da chegada dos europeus.
conscientização da sociedade brasileira, é a questão da “relativa incapacidade do Mas também não é pouco, se comparado à população atual do país e à
índio”, instituída na República, pela primeira vez, no Código Civil de 1916. Acredito desmesurada usura que o capitalismo possui nos chamados “recursos naturais”
que os legisladores da época foram bem intencionados ao definir os existentes, ainda intactos, em muitas terras indígenas: ouro, madeira, nióbio,
“silvícolas”...”relativamente incapazes a certos atos ou à maneira de os exercer”. alumínio, petróleo e...água.
Ora, sabemos que, até os nossos dias, inúmeros indivíduos e comunidades O mundo passa por momentos delicados, quando os desequilíbrios
indígenas não sabem exercer, por exemplo, o comércio, por representar algo climáticos e a escassez de determinados elementos essenciais à vida ficam cada vez
totalmente estranho às suas culturas. Isso os leva, constantemente, a serem lesados mais evidentes e preocupantes. Nessa questão, com relação às populações
em seus bens e patrimônios. Esse dispositivo legal levou as comunidades indígenas indígenas, duas questões se colocam: se a nossa sociedade será capaz de,
à condição de tuteladas pelo poder governamental, que tinha interesse em avançar verdadeiramente, entender a vivência dessas comunidades, tirando delas lições que
na colonização. Isso fez com que o conceito institucional fosse distorcido ao máximo, precisamos para conservar nosso planeta e se seremos todos capazes de formar
no decorrer da sua execução, levando sociedade nacional a desenvolver a uma grande aliança, baseada no respeito e na compreensão mútua, que seja capaz,
consciência coletiva de que o indígena é incapaz. finalmente, de enterrar o que chamamos de indigenismo.
Pois bem, uma das coisas que se aprende ao se conviver diretamente com Espero, sinceramente, que este livro venha, de alguma forma, contribuir para
as populações indígenas, é que elas não são incapazes p... nenhuma, com licença isso.
da expressão.
O mesmo acúmulo de conhecimentos, desenvolvimento da memória e das
outras áreas do cérebro que alcança, por exemplo, um engenheiro químico ou um
físico, com as suas centenas de fórmulas matemáticas, alcança uma pessoa APÊNDICES
indígena, que, para sobreviver, precisa aprender o nome de milhares de plantas, FATOS HISTÓRICOS E LEGISLAÇÃO INDIGENISTA.
insetos e animais, os seus respectivos “habitat”, épocas de floração e frutificação,
hábitos, partes aproveitáveis, fórmulas medicamentosas, fabricar instrumentos Definição:
utilitários e rituais, construir moradias, observar e interpretar o movimento dos astros, Legislação Indigenista – Conjunto de leis que regulam a relação do estado com as
escolher o solo, preparar o terreno e plantar sua lavoura, além das centenas de populações indígenas.
histórias, canções e funções rituais de sua etnia. Como dissemos no prefácio, trata-
se apenas de uma outra forma de encarar o mundo, onde não entram as concepções Terminologia usada no período Colonial:
de lucro, acumulação e de propriedade particular. Aliás, nessa discussão acerca de Nação gentílica - Nação ou povo não-cristão.
incapacidades, posso dar testemunho próprio: Em trinta e dois anos de convivência Aldeia – agrupamento de índios alocados por oficiais da coroa ou missionários.
direta com populações indígenas, acompanhando constantemente atividades de Descimentos - busca, localização e transladação de índios para locais determinados,
caça, coleta, agricultura, construção de casas, etc., nas aldeias, confesso que não próximo às povoações portuguesas.
seria capaz de sobreviver nem por curto período, do meu próprio conhecimento e Entradas – Expedições particulares ou oficiais, com ou sem presença de missionários
trabalho, em campo. para efetuar os descimentos.
Outro grande equívoco é pensar que os povos indígenas não possuem Bandeiras – Expedições particulares para aprisionamento de índios. Podiam ser
ideologia, que eles não se integram à sociedade nacional por simples incapacidade. contratadas por oficiais da coroa ou ilegais. Associadas principalmente aos paulistas.
Isso também é falso. Existe, na verdade, uma fantástica resistência ideológica, em Resgate – ato de retirar prisioneiro índio de outro grupo indígena.
todas as etnias, em aceitar os costumes e se integrar em uma sociedade como a Aldeias de Repartição – aldeamentos para onde eram trazidos os índios para serem
nossa. Assim como é muito difícil a um membro de nossa sociedade aceitar o posteriormente distribuídos.
conceito de propriedade coletiva e de socializar os bens produzidos e adquiridos pelo Aldeias de Administração – aldeia de índios descidos sob a jurisdição das Câmaras,
próprio indivíduo (vide o fracasso do comunismo), é praticamente impossível a um Governadores ou Capitães-Generais.
indígena aceitar a acumulação infindável de bens por determinadas pessoas, Cativeiro – escravidão.
enquanto outras passam necessidades. Guerra Justa – declaração de guerra a partir de decisão feita em junta que
Assim, amigos leitores, a vida continua. Com todas as batalhas determinava pela justeza da guerra que se pretendesse efetuar contra determinado
e sofrimentos ocorridos nesses cinco séculos, os povos indígenas, contando com povo indígena. Principais critérios: 1) Índios que punham empecilho à propagação da
seus aliados, conseguiram assegurar, até o momento, cerca de 13% do território
fé cristã; 2) que atacavam povoados e fazendas; 3) antropófagos; 4) aliados de 8. _Lei de 10 de set. de 1611 – Declara a liberdade dos gentios do Brasil ,
inimigos portugueses; 5) Quebra de pactos celebrados. exceto os tomados em guerras justas. Renova as guerras justas conveniadas pelo
Junta das Missões – Conselho local formado pelos representantes das missões, governador em Junta com o bispo, os desembargadores e chanceler e os prelados
Bispo e oficiais do rei que decidiam sobre a legitimidade das questões indígenas, das ordens religiosas, sob aprovação do rei ou em caso de urgência com o
sobretudo sobre as guerras e os destinos dos índios descidos. referendo posterior deste. Aceita a escravidão dos cativos e de índios comprados ou
resgatados que estiverem condenados à morte. Cria o oficio de capitão, substituindo
Principais fatos históricos e Leis coloniais. o juiz ordinário, para administrar as aldeias, as quais deve ter um padre residente.
Estabelece o número de 300 casais por aldeia de índios descidos do sertão.
Expedição de MARTIM AFONSO DE SOUZA – Inicio da colonização sistemática 9. _Leis 15.3.1624, 08.06.1625, 10.11.1647 e 5.9.1649. Regulamentam a
– 1531. Até essa época predominavam os escambos e tráficos de madeira. Martim administração das aldeias, o tempo e a taxa de serviço dos índios.
Afonso deu inicio à distribuição de “sesmarias” e à plantação de cana de açúcar. 10. _Provisão de 17.10.1653: Restabelece os termos das guerras justas, permite
Funda São Vicente – a primeira vila portuguesa no Brasil. Retorna para Portugal em entradas e proíbe a presença de capitães nas aldeias. Cria a “Junta de Missões”.
1533. 11. _Provisão de 12. de set. de 1663: Retira os poderes dos jesuítas. Permite
1534/1536 – Criação das Capitanias Hereditárias, em número de 15, cedidas a 12 entradas e repartições de índios.
donatários. 12. _Provisão de 09 de abril de 1665: Restabelece os poderes aos jesuítas para
Sistema de Governo Geral – Regimento de 1548 fazerem entradas e regulamentarem o serviço dos índios. Continua a escravidão.
Primeiro Governador Geral – TOMÉ DE SOUZA – 1549/53 – Localiza-se em 13. _Lei de 1° de abril de 1680: Declara a liberdade dos índios conforme a Lei de
Salvador, que continuaria a ser a sede administrativa do Brasil até o século XVIII, 1609, mantendo, porém, os escravos existentes. Continua a admitir as guerras justas
quando a capital da colônia é transferida para o Rio de Janeiro. e o aprisionamento de índios, com a ressalva de que os prisioneiros devem ser
Tomé de Souza trouxe os primeiros escravos negros e os Jesuítas para a catequese tratados “como as pessoas que se tomam nas guerras na Europa”. Dá pleno poderes
dos índios, liderados por Manoel da Nóbrega. aos jesuítas para estabelecerem missões exclusivas para onde haja índios que não
Principais Leis editadas na Colônia: queiram “descer”. Nas aldeias cristãs os índios deveriam ser governados por seus
1. – Regimento de Tomé de Souza – 15.12.1548 : Recomenda a paz com os chefes e pelo pároco local. A repartição de índios descidos fica a cargo do bispo junto
índios para que os cristãos possam povoar o território. Guerra os inimigos. com o prelado dos franciscanos e um representante da câmara.
Ajuntamento de aldeias próximo aos povoados portugueses. 14. _ Lei de 2 de set. de 1684: Concede a administração de índios descidos a
2. – Lei de 20 de março de 1570, sobre a liberdade dos índios: Proíbe o particulares, especificamente nos estados de Maranhão e Grão-Pará. Regulamenta o
cativeiro dos índios exceto aos tomados em guerras justas. Afirma os critérios de trabalho dos índios: uma semana para si e outra para os senhores.
guerra justa e menciona particularmente os Aimorés como alvo de guerras 15. _Carta Régia de 21 de dez. de 1686 ou ‘Regimento das Missões”: Dá poder
planejadas ( Governo Geral de Mem de Sá). espiritual e temporal a jesuítas e franciscanos pelas aldeias e missões criadas nos
3. – Lei de 24 de fev. 1570 – Define os índios que podem ser cativos e os que sertões e rios da Amazônia. Regulamenta a administração das aldeias, proibindo a
não podem. Proíbe incursões no sertão sem autorização do governador e de padres presença de não-índios. Ordena que as aldeias tenham pelo menos 150 casais e no
jesuítas. caso de povos indígenas de “nações diferentes” descidos para um mesmo local, que
4. – Alvará e Regimento de 26 de julho de 1596: Regulamenta o papel dos sejam alocados separadamente. Regulamenta a repartição de índios entre
jesuítas nos descimentos dos índios e na supervisão dos seus trabalhos nas “moradores” e missões.
fazendas, pelo período máximo de dois meses, seguido de igual período de folga. 16. _Carta Régia de 19.02.1696: Concede aos moradores de São Paulo a
Cria os cargos de procurador e juiz ordinário dos índios. Determina que cabe ao administração de índios livres, que ficam obrigados mediante um salário.
governador alocar as áreas dos índios, que devem ser aquelas não aproveitadas Regulamenta os casamentos mistos entre índios e escravos negros.
pelos capitães. 17. _Resolução de 11 de janeiro de 1701: Endereçada ao governador de
5. – Provisão de 5 de julho de 1605: Declara livres todos os índios “cristãos” ou Pernambuco. Permite a compra e venda de índios somente em praça pública. Nos
“pagãos”. Proíbe os abusos, os descimentos irregulares e obriga o pagamento por sertões podem ser feitas na presença de juízes.
serviços prestados pelos índios. 18. _Provisão de 12 de outubro de 1727: Proíbe o uso da língua geral e manda
6. – Lei de 30 de julho de 1609: Confirma a provisão de 1605 e os termos do ensinar a língua portuguesa nas povoações.
Alvará de 1596. Proíbe os capitães-gerais de exercerem qualquer poder a mais sobre 19. _Alvará de 03 de maio de 1757 ou Diretório de Pombal: Representa o último
os índios do já exercem sobre os outros homens livres. ordenamento português (coroa) sobre os índios. Retira os poderes espirituais e
7. _Lei de 10 de set. de 1611: Declara a liberdade dos gentios do Brasil, temporais dos jesuítas. Concede liberdade para todos os índios. Favorece a entrada
excetuando os tomados em guerra justa e revoga as leis anteriores. de não-indios nas aldeias, incentiva os casamentos mistos, cria vilas e lugares
(povoados) de índios e brancos. Nomeia diretores leigos. Promove a produção 1) Lei de 27 de outubro de 1831: Revoga as Cartas Régias de 1808. Reinstitui o
agrícola e cria impostos. Manda demarcar áreas para os índios. Proíbe o ensino das estatuto de órfãos para os índios, tornando os juizes-de-paz os seus tutores. Todos
línguas indígenas e torna obrigatório o português. os índios escravizados são desonerados;
20. _Carta Régia de 12 de maio de 1798: Abole o Diretório de Pombal. Institui a 2) Lei de 12 de agosto de 1834: Determina que as Assembléias Legislativas
relação paternalista de amo e criado entre brancos e índios a serviço. Retoma o provinciais e seus governos cuidarão da catequese e civilização dos índios;
conceito de guerras defensivas. Promove o índio à condição de órfão. Permite o livre 3) Decreto 426 de 24 de julho de 1845: Cria as DIRETORIAS GERAIS DOS
estabelecimento de brancos em terras dos índios. INDIOS em cada província, que por sua vez ficam encarregadas de criar diretorias
21. _Diversas Cartas-Régias de 1806,1808 e 1809: Promovem guerras ofensivas parciais em cada aldeia ou em conjunto de aldeias. A nomeação do Diretor Geral
aos Botocudos, Coroados,Guerém, dando concessões a quem os fizer ficava a cargo do imperador. Dispõe sobre o regulamento, favorece a catequese,
particularmente, com direitos à escravização de 10 a 15 anos. proíbe a servidão dos índios e os maus tratos. Obriga os índios ao serviço público
mediante salário e ao serviço militar, sem coação ( Lei também conhecida como
Resumo Histórico do Período Colonial “Regimento das Missões”).
Predominância da escravização dos índios. Alguns período mais brandos 4) Lei de Terras de 1850: Oficializou o latifúndio. Para registrar o direito de
(1605/1611/1680/1684) se verificaram, mas, na verdade, nem sempre a lei era posse era necessário apresentar a “doação de sesmaria” ou a compra de terras à
cumprida. província. As “terras devolutas”, passavam para o poder das províncias. As terras
Pacto entre a Coroa e a Igreja Católica (jesuítas), que perdurou até 1757 (Diretório ocupadas pelos índios que não estivessem “aldeados” apropriada pelos governos
de Pombal), que expulsa os jesuítas. provinciais. Todo isso expulsou os pequenos lavradores e os índios de suas terras. A
Conflitos de métodos e interesses entre os padres e os colonos, oficiais e capitães regra geral era o desleixo e a incúria por parte dos serviços de demarcação e dos
gerais. Os primeiros queriam o “índio de missão”, executando trabalhos coletivos de Diretórios Gerais. Em 1860 foi criado o Ministério da Agricultura e a passagem da
subsistência e para o desenvolvimento da missão. Os segundos queriam o trabalho política indigenista para o seu âmbito de ação, ao aplicar a Lei de Terras, fez com
individual em fazendas e engenhos de particulares. Mesmo entre as ordens que dezenas de aldeias ainda existentes fossem extintas formalmente e seus
religiosas (franciscanos, jesuítas, carmelitas) não havia consenso. habitantes condenados a virarem posseiros sem terras e perderem suas
Além da construção de fazendas e engenhos, os índios eram usados para a defesa características culturais.
contra outros povos indígenas e contra europeus invasores (franceses, holandeses,
espanhóis,etc.); RESUMO HISTÓRICO DO PERÍODO IMPERIAL
Na disputa entre colonos e padres a Coroa tomava decisões conflitantes, ora - Consolida-se o conceito do índio como um ser incapaz, tanto mental como
apoiando uns ora a outros, conforme o caso e a conveniência. Na verdade a Coroa juridicamente
tentava manter o quanto possível a paz entre índios e colonos para que o projeto - Usurpação de grande parte das terras dos índios, até mesmo as concedidas
colonial avançasse. anteriormente, que não sendo registradas após a Lei de Terras de 1850, perderam a
O papel da mão-de-obra indígena no período é subestimada. Na Amazônia ela validade.
persistiu até o “boom” da borracha, iniciado em 1870. - Firmou-se o pensamento que o índio estava fadado ao desaparecimento por sua
No período do Diretório de Pombal, quando se transformou aldeias em vilas e inadaptabilidade à evolução humana
lugares, promoveu-se a miscigenação, além do projeto de transformar os índios em
produtores leva à destruição de vários grupos como povos organizados, tornando-se PERÍODO REPUBLICANO:
colonos e artesãos. Na Amazônia dezenas de aldeias de missões desapareceram, Decreto 8.072 de 20 de junho de 1910: Cria o Serviço de Proteção aos Índios e
dando lugar a cidades hoje conhecidas, como Santarém, Bragança, Viana, entre Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN) e aprova o respectivo
outras. regulamento.
A Carta Régia de 1798 exprime essa preocupação com a destruição dos povos Lei nº 3.0711 de 01 de janeiro de 1916: Código Civil. Institui os critérios de relativa
indígenas, extingue o Diretório de Pombal e institui pela primeira vez o conceito incapacidade dos índios.
paternalista, tornando os índios “órfãos”. Decreto-Lei 3.454 de 06 de janeiro de 1918: A parte referente à “Colocação dos
Trabalhadores Nacionais” é transferida para o “Serviço de Povoamento do Solo”,
PERÍODO IMPERIAL transformando o órgão indigenista apenas em SPI – Serviço de Proteção aos Índios.
1° Reinado: 1822/31 Lei 5.484 de 27 de junho de 1928: Regula a situação dos índios nascidos no território
Regência: 1831/1835 nacional.
Decreto 19.433, de26 de novembro de 1930: O Serviço de Proteção aos Índios é
incorporado ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
Decreto 24.700 de 12 de julho de 1934: O Serviço de Proteção aos Índios passa a Decreto 3.799 de 19 de abril de 2001: Altera dispositivos do Decreto nº 1.141 de 19
constituir um departamento da Inspetoria de Fronteiras, do Ministério da Guerra. de maio de 1994, que dispõe sobre as ações de proteção ambiental, saúde e apoio
Decreto 736 de 06 de abril de 1936: Aprova, em caráter provisório, o Regulamento do às atividades produtivas para as comunidades indígenas.
Serviço de Proteção aos Índios. Decreto nº 3.9445 de 28/09/2001 – Define a composição do Conselho de Gestão do
Decreto-lei 1.736 de 03 de novembro de 1939: Subordina novamente o SPI. ao Patrimônio Genético e estabelece as normas para o seu funcionamento, mediante a
Ministério da Agricultura. regulamentação dos arts. 10,11,12,14,14,15,16,18 e 19 da Medida Provisória nº
Decreto-Lei 1.794 de 22 de novembro de 1939: Cria o Conselho Nacional de 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, que dispõe sobre o acesso ao patrimônio
Proteção aos Índios, também ligado ao Ministério da Agricultura. genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição
Decreto 12.317 de 27 de abril de 1943: Aprova o Regimento do Conselho Nacional de benefícios e o acesso a tecnologia e transferência de tecnologia para sua
de Proteção aos Índios. conservação a utilização, e dá outras providencias.
Decreto Lei nº 5.540 de 02 de junho de 1943: Institui o Dia do Índio no dia 19 de Abril. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002: Institui o Código Civil. Continua a relativa
Lei nº 2.889 de 01 de outubro de 1956: Define e pune o crime de genocídio. incapacidade dos índios, com a ressalva: “A capacidade dos índios será regulada por
Lei nº 5.371 de 05 de dezembro de 1967: Autoriza a instituição da “ Fundação legislação especial”
Nacional do Índio” e dá outra providencias. Portaria MS. 254 de 31 de janeiro de 2002: Aprova a Política Nacional de Atenção à
Lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973: Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Saúde dos Povos Indígenas.
Lei nº 7.437 de 20 de dezembro de 1985: Inclui, entre as contravenções penais, a Decreto Legislativo nº 143 de 20 de junho de 2002: Aprova o texto da Convenção nº
pratica de atos resultantes de preconceito de raça, de cor, de sexo ou de estado civil, 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre os povos indígenas e tribais em
dando nova redação á Lei nº 1.390, de 3 de Julho de 1951 – Lei Afonso Arinos. paises independentes.
Constituição Federal de 1988 – Artigos 231, 232 e outros: Reconhece aos índios o Decreto nº 4.412 de 07 de outubro de 2002: Dispõe sobre a atuação das Forças
direito à sua organização social, costumes, crenças e tradições e o direito originário Armadas e da Policia Federal nas terras indígenas e dá outra providencias.
sobre as terras que ocupam. Determina ainda que os índios, suas comunidades e RESUMO DO PERÍODO REPUBLICANO – 1889 À ATUALIDADE.
organizações são partes legítimas para ingressarem em juízo em defesa de seus - Criação de organismo governamental (SPI), para cuidar da questão indígena.
direitos e interesses, intervindo Ministério Público em todas as fases do processo. - Define pelo Código Civil a relativa incapacidade dos índios.
Lei nº 7.716 de 05 de janeiro de 1989: Define os crimes resultantes de preconceito de - Institui a tutela governamental sobre os povos indígenas.
raça ou de cor. - Política de integração do índio à sociedade nacional (até a Constituição de
Decreto 26 de 04 de fevereiro de1991: Repassa ao Ministério da Educação , em 1988).
extensão, às Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, a educação escolar - Institui o direito de usufruto exclusivo das terras indígenas demarcadas,
indígena. pelas comunidades indígenas.
Portaria Interministerial MJ. E MEC 559 de 16 de abril de 1991: Dispõe sobre a - Reconhece o direito dos índios a viverem segundo sua organização social,
educação indígena no Brasil. Garante uma educação laica e diferenciada às costumes, línguas, crenças e tradições (1988).
populações indígenas. - Prevê que os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
Decreto nº 1.175 de 08 de janeiro de 1996: Dispõe sobre o procedimento para ingressarem em juízo em defesa de seus direitos e interesses. (1988).
administrativo de demarcação das terras indígenas e dá outra providencias. - Envolve o Ministério Público na defesa das populações indígenas.(1988).
Decreto nº 2.519 de 16 de março de 1998: Promulga a Convenção sobre - Desmembra as atividades executadas em Terras Indígenas em vários órgãos
Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro, em 05 de Junho de 1992. governamentais.
Portaria MS 1.163 de 14 de setembro de 1999: Dispõe sobre a responsabilidade na
prestação de assistência à saúde dos povos indígenas, no Ministério da Saúde e dá
outra providencias. BIBLIOGRAFIA BÁSICA SOBRE A QUESTÃO INDÍGENA
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