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O fato de Agostinho acreditar que o pescador foi bispo de Roma e lá deixou uma
sucessão de bispos é insuficiente para pretensão papal e perfaz uma tentativa
de provar demais. Contudo, o momento em que sua defesa fica mais frágil é
quando ele tenta explicar as posições conciliaristas de Agostinho apresentadas
na citação abaixo:
Bem, vamos supor que aqueles bispos que decidiram o caso em Roma não eram
bons juízes, ainda resta o concílio plenário da Igreja universal, em que esses
juízes podem apresentar sua defesa, de modo que, se eles foram condenados
por erro, as suas decisões podem ser revertidas. (Carta 43:19)
O católico comentou:
Essa citação que ele até faz no artigo talvez seja pior de todas. Fecha o caixão.
Como todo apologista que odeia a Igreja Bruno age talvez por ingenuidade ou
mau-caratismo. Possível ver a falcatrua ao usar esta fonte primária. Quando ele
cita Carta 43, que foi escrita de Santo Agostinho, nela Agostinho criou uma
hipótese sobre um POSSÍVEL erro de julgamento e não defendendo o
conciliarismo, pois em primeira instância crer no juízo de Roma. Só em último
caso Agostinho falava em recorrer ao concílio para poder reverter um SUPOSTO
mau juízo romano, mas vemos que acreditava que Roma era a primeira a julgar,
ou seja, um local de decisões sobre a Igreja Universal. Falha de interpretação e
leitura apaixonada.
(1) Ele afirma que esta citação aponta que Roma era “um local de decisões sobre
a Igreja Universal”. Mais uma vez tenta provar demais. Provavelmente por
desconhecer o contexto desta carta (http://www.newadvent.org/fathers/1102043.htm
AQUI), ele desconheça que o pano de fundo é a controvérsia donatista, ou seja,
algo restrito à Igreja Ocidental. Por isso, era natural que a sé romana fosse
consultada. O mesmo já não poderia ser dito a respeito de controvérsias da
Igreja Oriental, pois Roma não era uma instância recursal de toda a Igreja neste
período. Mas até mesmo em relação à Igreja norte-africana (parte da Igreja
Ocidental), Agostinho quis manter sua autonomia. O renomado historiador
católico romano Klaus Schatz atesta:
A igreja africana preservou sua autonomia de modo ainda mais decidido
no terreno da jurisdição. Nos concílios de Cartago realizados em 419 e 424,
se chega a proibir o recurso a Roma. O contexto dessa medida foi o caso do
presbítero Apiario, que tinha sido excomungado pelo seu bispo e, em Roma
(sem o conhecimento da situação) foi reabilitado em seus direitos. Os norte-
africanos reagiram, por um lado, concedendo aos presbíteros a possibilidade
de uma instância de recurso (o julgamento de seu bispo pelo concílio norte-
africano de Cartago), com o qual se satisfazia o desejo de segurança
jurídica. Por outro lado, se defenderam energicamente contra uma
intervenção de Roma: ela de longe incorria em julgamentos errados, pela
simples razão de que em tais processos judiciais era impossível fazer
chegar da África as testemunhas necessárias. Além disso, é impensável que
Deus conceda o espírito de juízo justo a um particular, isto é, ao bispo de
Roma, e não a todo um concílio de bispos. Por isso, os norte-africanos
proibiram para o futuro qualquer recurso "ultramarino", mesmo para o caso
dos bispos, opondo-se assim os cânones de Sárdica. Essa proibição tinha
um precedente no caso de um bispo afastado de sua comunidade, mas que
Roma tinha amparado. Por causa disso, o mesmo Agostinho ameaçou se
demitir. A instância de recurso era apenas o concílio norte-africano de
Cartago. Este caso repetidamente fornecido ao longo da história oferece o
exemplo para apoiar a resistência episcopalista das igrejas nacionais
contra o centralismo romano. (Papal Primacy, Minnesota: The Liturgical Press,
1996, p. 35-36)
Observem que mesmo uma Igreja como a norte-africana, que não poderia
reivindicar fundação apostólica, proibiu o envio de recursos à Roma. Ainda, a
justificativa não era apenas prática, mas teológica – o bispo de Roma não
poderia ser uma instância de julgamento melhor do que um concílio de bispos
do norte da África.
(2) O católico também enfatiza que Agostinho tratou apenas de uma hipótese,
mas observem que conforme relato de Schatz, isto não ficou apenas no campo
das possibilidades. Ainda sem perceber, ele assassinou sua própria premissa
neste trecho: “Só em último caso Agostinho falava em recorrer ao concílio para
poder reverter um SUPOSTO mau juízo romano, mas vemos que acreditava que
Roma era a primeira a julgar”. Se Roma funcionava como instância inicial, segue-
se que ela não era uma instância final, logo seria uma instância inferior.
Surpreende que ela não siga o seu próprio raciocínio. Se alguém afirma que
tribunal x é a primeira instância, segue-se que há outras instâncias superiores
cujas decisões sobrepujam a deste tribunal. O raciocínio implica que o concílio
universal era a instância superior, e não o bispo de Roma. Ele também ignorou
outras citações do meu artigo inicial que inequivocamente demonstram o
conciliarismo agostiniano:
Portanto, se Pedro, sobre como fazendo isso, é corrigido pelo seu mais tarde
colega Paulo, e ainda é preservada [a amizade de Paulo] pelo vínculo da paz e
da unidade até que ele é promovido ao martírio, quanto mais prontamente e
constantemente devemos preferir, ao invés da autoridade de um único
bispo ou o concílio de uma única província, a regra que foi estabelecida
pelos estatutos da Igreja universal? (...) [citando Cipriano] Pois nenhum de
nós coloca-se como um bispo de bispos, nem por terror tirânico alguém
força seu colega à obediência obrigatória; visto que cada bispo, de acordo
com a permissão de sua liberdade e poder, tem seu próprio direito de
julgamento, e não pode ser julgado por outro mais do que ele mesmo pode
julgar um ao outro. Mas esperemos todos o julgamento de nosso Senhor Jesus
Cristo, que é o único que tem o poder de nos designar no governo de Sua Igreja,
e de nos julgar em nossa conduta nela. (Sobre o Batismo, contra os donatistas,
2:1-2)
Esta citação não poderia ser mais clara. Percebam que mesmo com Pedro em
vista, Agostinho defende a ideia de que a autoridade de um único bispo não é
maior do que a de um concílio universal. Como alguém que era papista poderia
fazer tal afirmação? Na continuação da citação, ele cita Cipriano. O contexto
desta citação de Cipriano é bastante relevante para este debate. Estas foram as
palavras do sétimo concílio de Cartago liderado por Cipriano. As palavras se
dirigem a Estevão (bispo de Roma no séc. III) que desejava impor o costume
romano à Igreja norte-africana. Em sua reação, Cipriano faz a famosa defesa de
que todos os bispos eram igualmente sucessores de Pedro e que nenhum bispo
poderia se colocar como “bispo dos bispos”, ou seja, um papa. Para mais
detalhes (AQUI http://respostascristas.blogspot.com/2016/02/os-pais-da-igreja-
sobre-sucessao_70.html). O já citado historiador católico romano Klaus Schazt
elucida este ponto:
A questão aqui era o 'reconhecimento de uma autoridade superior pertencente
aos sucessores de Pedro, que não podiam ser adequadamente descritas em
termos jurídicos. Em princípio, o bispo romano não tinha mais autoridade
do que qualquer outro bispo, mas na hierarquia de autoridades, sua decisão
tomou o lugar mais importante. Por outro lado, Cipriano considerava cada
bispo como sucessor de Pedro, titular das chaves do reino dos céus e
possuidor do poder de ligar e desligar. Para ele, Pedro encarna a unidade
original da Igreja e do escritório episcopal, mas, em princípio, esses também
estavam presentes em cada bispo. Para Cipriano, a responsabilidade por
toda a Igreja e a solidariedade de todos os bispos também poderia, se
necessário, voltar-se contra Roma. Há um exemplo marcante desta relação
no mesmo período envolvendo dois bispos espanhóis, Basilides e Marcial.
Durante a perseguição não tinham sacrificado aos ídolos, mas como muitos
outros cristãos, haviam subornado funcionários para obter "certificados de
sacrifício" (libelli). Como resultado, eles haviam perdido credibilidade em suas
congregações e tinham sido expulsos. No entanto (na opinião de Cipriano por
deturpar os fatos), eles conseguiram obter o reconhecimento de Estevão de
Roma. Cipriano reagiu imediatamente chamando um Sínodo Africano para
avisar as duas comunidades que rejeitassem a decisão de Estevão e se
recusassem a readmitir os dois bispos. (Papal Primacy, Minnesota: The
Liturgical Press, 1996, p. 35-36, pp. 20-21)
Observem que a tradição conciliarista de Agostinho não era uma inovação, mas
fora recebida das mãos de Cipriano. Na visão desses pais da Igreja, até mesmo
um concílio local da Igreja Norte-Africana tinha precedência sobre as decisões
do bispo de Roma. Não por acaso, a sé romana foi diversas vezes contrariada
pela igreja africana. Robert Eno – um historiador católico romano e especialista
em Agostinho – atesta em duas de suas obras:
Em outro lugar eu argumentei em detalhes a visão de Agostinho sobre a
autoridade na Igreja e que, na minha opinião, o concílio [não o Papa] foi o
principal instrumento para resolução de controvérsias (...) Eu acredito que
Agostinho tinha grande respeito pela igreja romana cuja antiguidade e origens
apostólicas ofuscou, de longe, outras igrejas no Ocidente. Mas, assim como em
Cipriano, a tradição colegial e conciliar africana foi preferida na maioria das
vezes. (The Rise of the papado [Wilmington, Delaware: Michael Glazier, 1990]
p. 79)
É claro que Agostinho tinha um respeito genuíno para a posição da igreja de
Roma na Igreja universal. Na verdade, seus pontos de vista eram
provavelmente mais amigáveis do que os de muitos de seus colegas
africanos. Agostinho, afinal de contas, tinha um conhecimento pessoal da
cidade, bem como de alguns clérigos romanos. Não obstante, sua ação na crise
pelagiana não alterou sua visão básica do concílio plenário como a última
instância em disputas na Igreja, nem a sua visão da atividade conciliar em
geral como o caminho comum para resolver problemas intra-eclesiais além
do nível da igreja local (...) (Doctrinal Authority In Saint Augustine, Augustinian
Studies, Vol. 12 - 1981, pp. 171)
W.H.C. Frend expressa o mesmo:
Sua visão do governo da Igreja era que questões menos importantes deveriam
ser resolvidas por concílios provinciais, grandes questões em concílios gerais.
(W.H.C. Frend, The Early Church (Philadelphia: Fortress, 1965), p. 222)
Há uma importante questão em que ausência de uma visão papista fica evidente
em Agostinho. Nos debates entre católicos romanos e protestantes, o cânon é
um item frequente. Eles nos dizem que precisamos do papado para saber qual
é o cânon correto. O bispo de Hipona, por outro lado, expressou visão distinta:
Agora, a respeito das Escrituras canônicas, deve-se seguir o julgamento do
maior número de igrejas católicas; e entre estas, é claro, um lugar de
destaque deve ser dado ao que se achar digno de ser a sede de um
apóstolo ou receber epístolas. Consequentemente, entre as Escrituras
canônicas deve-se julgar de acordo com a seguinte regra: preferir aqueles que
são recebidos por todas as igrejas católicas do que aqueles que alguns não
recebem. Entre aqueles, novamente, que não são recebidos por todos, deve-se
preferir aqueles que têm a sanção do maior número e daqueles de maior
autoridade, do que aqueles que são recebidos pelo menor número e os de
menos autoridade. Se, contudo, se achar que alguns livros são tidos pelo maior
número de igrejas e outros pelas igrejas de maior autoridade (apesar de isto não
ser algo muito provável de acontecer), eu acho que em tal caso a autoridade
dos dois lados deve ser considerada igual. (On Christian Doctrine, Livro 2,
seção VIII (Nova York: Liberal Arts Press, 1958), p. 41)
Agostinho estabelece um conjunto de critérios que apela ao consenso da Igreja,
sem sequer mencionar qualquer papel do bispo de Roma. Ele cita as igrejas de
maior autoridade, mas entre elas, Roma não era única. Estariam aí as igrejas
fundadas por apóstolos ou que receberam epístolas de apóstolos. No entanto,
ele contrabalanceia as igrejas de maior autoridade com as igrejas que poderiam
estar me menor número. Neste caso “a autoridade dos dois lados deve ser
considerada igual”. O fato de ele não atribuir ao bispo de Roma nenhum papel
exclusivo e superior é indicativo da ausência de uma mentalidade papal neste
período. Numa última tentativa, o católico romano traz a famosa citação na qual
o bispo de Hipona diz:
Eu não creria no Evangelho, se a isso não me levasse a autoridade da Igreja
católica. (Contra a Carta de Mani 5,6)
Eu já tratei do contexto desta citação em outro artigo
(http://respostascristas.blogspot.com/2016/03/agostinho-e-o-catolicismo-
romano-parte_7.html). O que importa mencionar aqui é que esta citação não tem
qualquer relação com o bispo de Roma. Agostinho tem em vista a autoridade da
Igreja Universal, que ele invocou contra os donatistas. E, como já
extensivamente demonstrado, o órgão máximo de autoridade da Igreja não era
o bispo de Roma e sim o concílio universal. Por isso, esta citação em nada
endossa o papado. O também teólogo católico romano Hans Kung afirma o
consenso acadêmico:
Para Agostinho, em qualquer caso, todos os bispos eram fundamentalmente
iguais, embora ele pensasse que Roma era o centro do império e da Igreja, ele
não deu impulso ao papismo. Ele não achava de qualquer forma, ele não
pensava em termos de uma primazia de governo ou jurisdição de Roma.
Pois, não foi sobre Pedro como uma pessoa (ou até mesmo seu sucessor), que
a Igreja foi fundada, mas sobre Cristo e a fé Nele. O Bispo de Roma não era a
autoridade suprema na Igreja. A autoridade suprema era o concílio
ecumênico, como era para o conjunto do oriente cristão, e Agostinho não
atribuiu qualquer autoridade infalível, mesmo para esse. (Hans Kung. The
Catholic Church: A Short History . Modern Library, 2001, p. 51-52)
Considerações Finais
O apologista católico em questão começou a sua resposta apontando o fato de
eu ter linkado um artigo protestante na primeira parte da série (AQUI
http://respostascristas.blogspot.com/2016/02/agostinho-e-o-catolicismo-romano-parte.html),
o qual afirma que Agostinho não acreditava na eficácia na ex opere operato dos
sacramentos. Segundo ele, ao trazer a perspectiva do blog protestante que havia
iniciado a discussão inspiradora da minha série, eu estaria necessariamente
endossando tudo o que o blog disse. Ocorre, que em nenhum lugar da série eu
abordo a questão. Mesmo no artigo que trata especificamente dos sacramentos,
eu não a abordo. Ao observarmos os argumentos do apologista, fica óbvio
porque ele necessita destacar um ponto sobre o qual não argumentei ao invés
de focar naquilo sobre o qual de fato escrevi, afinal os argumentos por ele
apresentados são frágeis e sequer interagem com a maior parte do meu artigo.
Agora, o mais contraditório é o trecho seguinte:
Bruno Lima é outro farsante que não conhece nada de Patrística ou de doutrina
da Igreja Católica. Ele deveria ler livros sobre o assunto ao invés de só se
informar em sites de apologética estrangeiros. O choro é livre.
O meu blog fala por si. Quem leu meus artigos sabe que eles são fartamente
documentados com citações (como este artigo), e em sua maioria de renomados
historiadores católicos romanos. É no mínimo estanho que a pessoa que me deu
esse conselho não tenha fundamentando sua tese do Agostinho papista com
nenhuma citação de qualquer historiador. Ou seja, o problema do nobre
apologista não é comigo, mas como os melhores teólogos e historiadores da sua
própria denominação. Encerro aqui sumarizando os dois pontos em que a
apologética católica tem falhado em evidenciar: (a) a primazia jurídica de Pedro
e; (b) a primazia jurídica do bispo de Roma sobre toda a Igreja.