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Genesis 3,19
Natali foi uma das cinco viúvas que teimaram em estar presentes no funeral do
meu tio Marcelino
Tenho a certeza que o seu nome era Natali.
Apesar de ser muito novo na altura - criança ainda pequena - tenho a absoluta
certeza de que o nome dela era Natali.
Quando são absolutas nunca se deve duvidar das certezas de uma criança,
mesmo quando a criança é criança pequena.
Natali era, das cinco viúvas em presença, a única viúva que chorava com
sinceridade naquele funeral extraordinário.
Era por de mais evidente a sinceridade das suas lágrimas.
Mau grado a minha tenra idade percebi logo que se estava ali perante uma
contingência astrológica.
No fundo, como bem se sabe, são as contingências astrológicas que movem o
mundo.
As lágrimas de Natali caíam sincopadas e quase silenciosas no chão de
mármore do crematório.
Agora, aproximando-me da velhice, lembro-me como se fosse hoje do som, o
som das lágrimas de Natali caindo, entre silêncios, sobre o fúnebre mármore.
Talvez por isso mesmo, e sendo a minha vida feita de música, nunca aprendi a
tocar instrumento algum.
Um que fosse.
3. Sarita Monte dos Reis
Se fosse só pelo corpo presente e respectiva missa Isibella não teria lá metido
os seus sapatinhos de meio salto em tom pastel seco.
Isibella era incapaz de amar os vivos quanto mais os que inexoravelmente
deixam de ser embora, penosamente, teimando estar.
Marcelino ali, como todos os mortos em velório, era só um objecto justificativo.
Isibella amava só, e só, a imagem que tinha da necessidade do amor.
Queria-se completa e amor era um item que pela sua impermanência lhe
estava sempre em falta.
Assim, amava o amor, tal comum cláusula a cumprir.
Como mulher organizada que era, competente colava num livro de recortes
imagens comprovativas que de nada carecia. Era um livro pequeno que trazia
sempre consigo no seu prestável nécessaire. O livro e bâton rosa velho.
As suas origens petty bourgeois faziam-na exagerar nas demostrações
públicas de equilíbrio atestadamente equilibrado. Tudo o que de pouco
saudável se aproximasse da sua toilette era veemente banido.
A suposta paixão, à primeira vista, de Isibella pelo meu tio Marcelino aconteceu
porque ele lhe sorriu, um sorriso aberto, deixando visível o seu esplendente
dente de ouro.
Em primeiro lugar, embora não seja agradável de se dizer é preciso ser dito
que, por via da sua aguda miopia, o meu tio sorria indiscriminadamente para
todos os vultos que lhe parecessem desenhados em linha curvilínea e que,
mesmo remotamente, cheirassem a doçaria de arroz. Era o caso, a fragrância
que Isobella não dispensava tinha um levíssimo toque a arroz-doce biológico.
Por outro lado, Isibella era uma fervorosa devota da fogosa mística do ouro. Tal
como Prometeu ou as vulgares traças era atraída pela sua fulgurante luz,
desafiando o decepcionante lugar-comum que afirma que nem tudo o que
brilha é ouro, a isso contrapondo ela que é entre o tudo e o nada que
precisamente nasce a possibilidade, a possibilidade de encontrar descuradas
pepitas. Onde existisse nem que fosse uma mera hipótese Isobella estava lá.
E o romance deu-se depois de ser exarado em tácito acordo que aquela paixão
estaria uns níveis acima da vulgar amizade colorida, coisa para triviais
adolescentes retardativos.
Tudo o que tem princípio tem fim.
Marcelino via pouco mais que menos mas, como filho de boa gente, sentia.
Assim, uma noite quando Isobella tentou introduzir um alicate na esfuziante
alcova d’amor - sussurrando doce e asperamente: abre-a-boca-e-fecha-os-
olhos, justificando que tal era prática corrente entre gurus orientais muito bem-
sucedidos - Marcelino fugiu tão aterrorizado que deixou esquecidos no psiché
estilo império tardio os seus imprescindíveis óculos de lentes de fundo garrafa.
Como é fácil perceber o fim daquele romance deixou tantas mazelas que
Marcelino decidiu saltar o tempo regular de luto emocional.
O que a seguir de emocionante se passou no hospital deixarei para outras
calendas.
Uma das virtudes do ouro, ao contrário da intemperança do corpo humano, é a
de ser quase quase eterno.
Isibella, embora em sentido único, era intelectualmente apessoada.
Chegou ao velório já decorria a matinée.
De alicate de grifos sub-repticiamente em punho avançou para a urna e sem a
menor hesitação introduziu o indicador e o polegar na boca cerrada de
Marcelino deixando-a impudica e disponível.
Quando correctamente ajustados os alicates de grifos exercem pressões
implacáveis.
Missão cabalmente cumprida. Isibella já nada ali fazia.
E assim saiu como entrou, sorrindo suavemente simpática para o público
presente.
A boca escancarada do meu tio Marcelino monopolizou toda a conversa do
velório nas horas seguintes.
Tarde para pasmo, referiram alguns.
5. Dona Ivone
Embora não seja relevante para a história do tal fantástico velório das tais cinco
viúvas contarei aqui o que sei do meu tio Marcelino enquanto vivo.
Por ser míope Marcelino nunca passou pelas inquietudes que atormentam a
maior parte dos nascem rapazes. Isto é, nunca quis matar o pai nem
desassossegar a mãe.
Os seus olhinhos de recém-nascido só enxergavam vultos. Só vultos.
Como superiores estudos revelam, um progenitor nunca poderá tomar a forma
de vulto correndo assim o risco de, para sempre e fatalmente, perder o
progénito estatuto.
A triangulação “tal pai, tal mãe, tal filho” no presente caso não fazia sentido.
Nunca fez.
Para ele nunca existiu pai ou mãe, ali perante os seus débeis olhos apenas
deambulavam vultos com cheiro.
Por vezes cheiravam bem, outras, cheiravam mal, nada que os diferenciasse
de outros seres.
Na altura do parto, em mil novecentos e poucos, ocorreu um facto que iria
marcar toda a longa e restante vida de Marcelino.
Como bem se sabe, naquela remota época nascia-se em casa.
Quando a coisa se estava para dar era chamada a parteira que presidia à
função.
Dona Ivone era uma bretã minhota, óbvio fruto de semente plantada pela
segunda invasão francesa em madona pré-histórica. Filha de filha de filha de
mãe parteira de aldeia. De corpo possante ganho numa infância rústica onde
toda a aspereza inicial tinha dado lugar a curvas cheias, cheias, cheias.
Na altura do parto Dona Ivone já estaria perto da idade jubilar, a longa trança
branca que lhe marcava as costas isso o confirmava, mas as curvas, essas,
continuavam cheias. Dona Ivone cheirava a arroz-doce em travessa de barro.
Não se podendo precisar se o doce odor provinha do avental branco que
envergava para a função ou da sua pele clara, muito clara, clara.
Foram essas duas qualidades de Dona Ivone que iriam marcar definitivamente
Marcelino para o resto da vida.
As curvas e o cheiro a arroz-doce.
Todo o pensamento freudiano rechaçado assim por uma miopia.
Aquela grave miopia do meu tio Marcelino.
6. Maria Kin Finito
Ter visão em excesso é muito mais grave que ser muito míope.
Ver absolutamente tudo é o mesmo que nada ver, isto é, ser operacionalmente
cego.
É impressionante o que os míopes conseguem ver quando fazem coincidir os
seus olhos com a coisa a ver. Vêem o que ninguém com uma visão normal
consegue ver sem para isso recorrer a lupa. Vêem o que lhes está coincidente.
Agora à distância, posso afirmar que Maria Kin Finito era uma clave de Se,
uma condicional condicionada absurdamente pela extraordinária abrangência
da sua visão.
A humanidade para ela era como a linha do horizonte, via-a em toda a sua
grandeza mas nunca lhe podia chegar, tocar, cheirar, senti-la real e
efectivamente próxima.
Era esse o seu drama.
A impossibilidade de realmente ver os outros ficando, por consequência,
privada de se ver a si própria.
Num inevitável dia, não por via de fogueteiro encontro livresco, chocaram um
com o outro na esquina de uma barraca de farturas de feira beirã.
O que os tinha levado ali, àquele lugar interior com atmosfera impregnada por
emanação de vapores de óleo queimado, nunca ninguém saberá.
Um muito míope e uma cega funcional, o céu conjugava a tempestade quase
perfeita.
Nessa mesma tarde daquele escaldante Setembro foram patinar no gelo numa
tenda que a organização das festividades, em honra de São Mateus
Evangelista, sabiamente proporcionava aos recém-encontrados precavendo
assim que as paixões solares originassem incontroláveis ignições.
Imediatamente a seguir Kin apontou ao Sul afirmando ser aquele o momento
ideal para se fazer coincidir com a linha do horizonte.
Apesar de um enigmático eflúvio de acetona começar a despontar no ar,
Marcelino não hesitou e foi a reboque daquele entusiasmo abléptico.
A forma rebuscada da frase anterior pretende ilustrar o tom do que a seguir
aconteceu. A impossibilidade tentada do encontro entre dois seres, cada um
em seu grau, invisuais.
Duas cegueiras desgraçadas desprovidas de ferramentas adequadas para
atravessarem as encruzilhadas de cada um. Duas passagens de nível sem
anjo da guarda.
Desígnios divergentes, um almejando o pormenor, outra correndo frenética
para horizontes inexistentes.
O cheiro a acetona acentuava-se.
Dia após dia. Cada vez mais intenso.
A acetona é um solvente muito usado por mágicos nos truques em que fazem
desaparecer objectos, animais e pessoas perante o pasmo de público pouco
erudito.
Truque é ilusão. Ilusão é quimera. Quimera é devaneio.
Pouco sábias e incautas são as pessoas que não sabem da sua própria
solubilidade.
Vivem devaneios onde buscam o inatingível.
De tanto usar acetona Kin desvaneceu-se no elemento ar.
Nunca mais se deixou ver. Puf!
Enquanto permaneceu no éter - mítico elemento de propagação de luz e
odores - o cheiro agudo a acetona, Marcelino teve saudades.
Não de Kin, para ele era só mais um vulto, mas das fantásticas correrias,
eufemísticas viagens, que Kin lhe proporcionara. Durante meses padeceu de
soluços.
Kin apareceu no velório vestida de freira - old habits die hard, diz o povo –
como sempre elegantemente provinciana.
Entrou e saiu fazendo tudo o que lhe tinham ensinado em criança no que diz
respeito a velórios.
Missão cumprida.
Fui! Sussurrou Kin transpondo o portão de alumínio.
7. Éle Oh’Ni S.Torre