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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
SOCIOLOGIA E DIREITO
NITERÓI
2007
2
Niterói, 2007
3
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Cláudio Pereira de Souza Neto – Orientador
UFF
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. José Fernando de Castro Farias
UFF
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Lodi Ribeiro
UERJ
Niterói, 2007
4
Agradecimentos
Ao meu orientador, Professor Doutor Cláudio Pereira de Souza Neto, pelas preciosas
palavras nos momentos mais importantes.
A todos os professores do PPGSD, dos quais tive a honra de colher lições
inestimáveis.
Aos funcionários do PPGSD, pela habitual cordialidade e eficiência.
À minha família, pelo apoio, amor e carinho constantes.
6
Sl. 33,4-5
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ___________________________________________________________ 14
1 A TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA. NORMAS
SUPERCONSTITUCIONAIS E SEU EXCESSO. RISCO DE RUPTURA DO REGIME
CONSTITUCIONAL. ______________________________________________________ 18
1.1 A TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA. O
PROBLEMA DA SUPERCONSTITUCIONALIZAÇÃO EXCESSIVA DE NORMAS.
______________________________________________________________________ 19
1.1.1 Democracia. A democracia deliberativa como democracia material (e não
puramente formal). A necessidade de se garantir liberdades básicas para o exercício da
democracia pelos cidadãos. ______________________________________________ 21
1.1.2 Cláusulas pétreas. Sua irrevogabilidade. A conseqüente tensão entre
constitucionalismo e democracia.__________________________________________ 29
1.2 A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA E A OBSCURIDADE CONCEPTUAL NA
DEFINIÇÃO DAS CLÁUSULAS PÉTREAS. DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS
DECORRENTES DISSO. EFEITOS NA PRÁTICA DEMOCRÁTICA. _________ 37
1.2.1 O contexto de elaboração da Constituição de 1988. A influência da conjuntura na
consagração de direitos. _________________________________________________ 38
1.3 A FUNDAMENTALIDADE MATERIAL DA CONSTITUIÇÃO:
NECESSIDADE DE PARÂMETROS DE JUSTIFICAÇÃO PAUTADOS NA
DEMOCRACIA DELIBERATIVA. ESCOLHA PELA RAZÃO PÚBLICA DE JOHN
RAWLS. ______________________________________________________________ 44
2 A RAZÃO PÚBLICA DE JOHN RAWLS COMO PARADIGMA PARA A
DELIMITAÇÃO DA IMUTABILIDADE NA CONSTITUIÇÃO. ___________________ 49
2.1 CONCEITO INICIAL. _______________________________________________ 49
2.2 OS MOTIVOS E AS FORMAS PELOS QUAIS A RAZÃO É PÚBLICA.
RAZÕES NÃO-PÚBLICAS. RAZÃO SECULAR.____________________________ 52
2.3 RAZÃO PÚBLICA. IDEAL DE RAZÃO PÚBLICA. A NOÇÃO DO DEVER DE
CIVILIDADE.__________________________________________________________ 55
2.4 CARACTERES ESTRUTURAIS DA RAZÃO PÚBLICA. __________________ 58
2.4.1 As questões políticas fundamentais às quais se aplica a idéia de razão pública. _ 58
2.4.2 As pessoas a quem a idéia de razão pública se aplica. _____________________ 61
2.4.3 O conteúdo da razão pública, como dado por uma família de concepções políticas
razoáveis de justiça. ____________________________________________________ 63
8
RESUMO
ABSTRACT
The constitutional limitations on the power of tax are a very important element of the
Democratic State of Law. At the very same time they impose the way by which the taxes
(major source of the State maintenace) might be collected, the constitutional limitations on the
power of tax restraint this power to some formal requirements of validity, as well as they
forbid it regarding to some people or things. These rules are usually seen altogether as
individual taxpayers guarantees – and so, perennial. However, this character of these
constitutional rules is being highly discussed because of its opposition to the participation on
democracy by the citizens, who, even willing to change these rules so the state could increase
its taxation action or its rituals, remain tied by the supreme prohibition of reform. This
research investigates the real fundamentality of the constitutional limitations on the power of
tax, before the criteria of public reason conceived by John Rawls.
14
INTRODUÇÃO
1
Valemo-nos, a propósito, de James Buchanan, para quem “It made no sense to me to analyse taxes and public
outlays independent of some consideration of the political process through which decisions on these two sides
of the fiscal account were made. Public finance theory could not be wholly divorced from a theory of politics”.
– BUCHANAN, James M. From private preferences to public philosophy: the development of public choice.
In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund,
v. 13, 2000, p. 44.
16
isso mesmo, foi necessária uma escolha teórica dentro do leque interminável de estudos
filosóficos da justiça.
A opção foi feita pela concepção de razão pública desenvolvida por John Rawls ao
longo de sua vida. Rawls foi responsável pela retomada das discussões de justiça na filosofia
norte-americana na última metade do século XX, desenvolvendo uma obra bastante rica sobre
os aspectos que conduziriam a uma teoria da justiça neocontratualista, que resgata (dentre
outros) elementos kantianos à luz de uma sociedade democrática numerosa e hipercomplexa,
composta por pessoas livres e iguais. A idéia de Rawls é conducente à democracia
deliberativa, em que os cidadãos efetivamente participam da deliberação democrática, não
sendo apenas massa de manobra de grupos oligárquicos que tomam decisões importantes.
Rawls traz institutos estruturantes da sua teoria: o conceito de estrutura básica da
sociedade, os dois princípios de justiça básica, os elementos constitucionais essenciais e a
razão pública são os principais desses ingredientes que coexistem e se comunicam na busca
pela justiça por eqüidade, que pressupõe a prioridade do justo sobre o bem – rompendo
definitivamente com a teoria utilitarista e a intuicionista, como ele mesmo denomina, as quais
priorizam o bem em relação ao justo.
Demais disso, a teoria da justiça de Rawls, desenvolvida a partir de argumentos de
filosofia da moral, encontrou importante paralelo na teoria política econômica, no pensamento
de James Buchanan. A idéia de Buchanan, embora não seja idêntica à de Rawls, segue linha
de raciocínio bastante similar ao tentar justificar o modo pelo qual os representantes do
Estado adotam determinadas posições políticas – dentre elas, aquelas relativas à ação
tributante. Por isso mesmo, autores pátrios pioneiros como Ricardo Lobo Torres realçam a
importância dessa concepção teórica.
Assim, optamos pela razão pública porque ela reflete o procedimento argumentativo a
ser desenvolvido para justificar as regras e condutas estatais diante do princípio democrático.
A razão pública, concebida como o procedimento de checagem de assuntos que tocam a
esfera de imparcialidade política (e, conseqüentemente, a estrutura básica da sociedade) é um
instituto altamente viável para uma proposta de investigação da efetiva fundamentalidade das
limitações constitucionais ao poder de tributar.
Logo, o estudo diante da estrutura básica da sociedade, dos princípios de justiça ou
mesmo dos elementos constitucionais essenciais, necessariamente se faria permear pela idéia
de razão pública. Em última análise, ainda que a investigação fosse apresentada como traçada
diante de qualquer desses institutos rawlsianos, ela seria feita mesmo pela razão pública,
17
2
“Art. 121. Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se: I – contribuinte, quando tenha
relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador; II – responsável, quando, sem
revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei”.
19
3
Aproveitamos a expressão utilizada por Oscar Vilhena Vieira.
4
Sobre o embate entre Jefferson e Madison, recomenda-se a leitura de VIEIRA, Oscar Vilhena. A constituição e
sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999.
5
“A domesticação jurídica do poder constituinte veiculada pelo estabelecimento de limites ao poder constituinte
derivado ou poder de revisão originará, por sua vez, outros movimentos de perplexidade jurídica e política.
Referimo-nos ao chamado paradoxo da democracia: como ‘pode’ um poder estabelecer limites às gerações
futuras? Como pode uma constituição colocar-nos perante um dilema contramaioritário ao dificultar
deliberadamente a ‘vontade da gerações futuras’ na mudança de suas leis? Revelar-se-á, assim, o
constitucionalismo de uma antidemocraticidade básica impondo à soberania do povo ‘cadeias para o
futuro’(Rousseau)?” – CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
6a. edição. Coimbra: Almedina, 2001, p. 74.
6
“[...] if individual preferences are such as to generate a cycle, then such a cycle, or such inconsistency, is to be
preferred to consistency, since the latter would amount to the imposition of the will of some members of the
group on others”. – BUCHANAN, James M. From private preferences to public philosophy: the development
of public choice. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan,
Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 45.
7
“O verdadeiro problema – a verdadeira aporia do Estado Constitucional – levantado pelos limites materiais do
poder de revisão é este: será defensável vincular gerações futuras a idéias de legitimação e a projectos políticos
que, provavelmente, já não serão os mesmos que pautaram o legislador constituinte? Por outras palavras que
se colheram nos Writings de Thomas Jefferson: uma geração de homens tem o direito de vincular outra? [...] A
resposta tem de tomar em consideração a evidência de que nenhuma constituição pode conter a vida ou parar o
vento com as mãos. Nenhuma lei constitucional evita o ruir dos muros dos processos históricos, e,
conseqüentemente, as alterações constitucionais, se ela já perdeu sua força normativa. Os limites são limites
do poder de revisão como poder constituído, não são ‘limites para sempre’, vinculativos de toda e qualquer
manifestação do próprio poder constituinte. Em sentido absoluto, nunca a ‘geração’ fundadora pode vincular
eternamente as gerações futuras. Esta é uma das razões justificativas de previsão, em algumas constituições, de
uma revisão total. Caso contrário, a falta de alternativa evolutiva abriria o campo da Revolução Jurídica.” –
Id. Ibid., p. 1051.
20
que uma nova seja feita, então o Estado necessariamente terá um prazo de vida definido – já
que cada constituição cria um Estado diferente, com feições, instituições e limitações de ação
próprias. Isso, sem contar que todas as relações jurídicas existentes no país deverão ser
reavaliadas, de tempos em tempos, o que
8
VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit, pp. 133-134.
9
“Para que uma Constituição seja legítima, faz-se necessário o assentimento do povo ao ordenamento
constitucional que lhe é apresentado. Entretanto, a fim de que se estabeleça e seja respeitada, ela deve
transmitir um mínimo de segurança jurídica a seus comandados. Uma Constituição estável, difícil de ser
modificada, garante a segurança que o cidadão espera do Poder Público.” – NOGUEIRA, Cláudia de Góes. A
impossibilidade de as cláusulas pétreas vincularem as gerações futuras, Revista de Informações Legislativas,
Brasília: Senado Federal, a. 42, n. 166, 2005. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_166/R166-05.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2007.
10
ARGÜELLES, Juan Ramón de Páramo. Democracia, Preferencias y Negociación. Disponível em:
<http://www.uv.es/CEFD/2/paramo.html#41>. Acesso em: 09 fev. 2007.
11
“If the individuals’ capacities and objectives are given, the only way the pattern of outcomes can be changed is
by alteration of the rules. And changes in the rules, observely, will alter the outcomes that emerge from any
society of individuals”. – BUCHANAN, James M. The reason of rules. In: ______. The collected works of
James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 10, 2000, p. 19.
21
12
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 138.
22
13
RAWLS, John. O domínio do político e o consenso justaposto. In: ______. Justiça e Democracia. Tradução
de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 377.
14
“O Estado Democrático de Direito surge como a modalidade mais avançada do chamado Estado de Direito,
incorporando conteúdos da etapa anterior (Estado Social de Direito) e fazendo recair a tônica sobre o aspecto
da participação dos cidadãos na realização de seus fins”. – NOGUEIRA, Alberto. Os limites da legalidade
tributária no Estado Democrático de Direito. 2a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 34.
15
“A democracia não deve ser vista apenas como método despido de conteúdo humanista, e menos ainda como
um método exclusivamente voltado para a seleção de lideranças encarregadas do processo decisório, até
porque ‘as instituições políticas são obras dos homens [...] não se assemelham às árvores que, uma vez
plantadas, estão sempre a crescer enquanto os homens estão a dormir’”. – LIMA JÚNIOR, Olavo Brasil de.
Instituições políticas democráticas: o segredo da legitimidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 33.
23
majority voting rules and public sector efficiency, defined at either the public-private sector
margin or within the public sector itself” 16 .
Esse tipo de democracia, mais formalista do que propriamente perseguidora real de
acesso sócio-político e de igualdade de chances aos cidadãos, desenha o chamado “Estado de
bem-estar social”, o qual sofreu severas críticas de parte a parte 17 .
Basta ver, por um lado, o modo pelo qual esse regime democrático, ao se preocupar
apenas com a mantença dos indivíduos, segundo autores liberais como John Rawls, é
considerado ineficiente, porquanto
Por outro lado, esse mesmo modelo recebe críticas de autores neomarxistas como, por
exemplo, a de Carole Pateman, para quem esse modelo acarreta a perda dos ideais
democráticos clássicos, sobretudo a igualdade, que se reduz à igualdade perante a lei: se a
presença do cidadão na política se faz sentir apenas através do ato eleitoral e a participação se
faz presente apenas na escolha do representante, a influência do cidadão na política é
mínima 19 .
Por isso mesmo Canotilho afirma que
16
BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as
public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 109.
17
“A rigor, neste fim de século, o Estado do Bem-Estar social está em xeque tanto nos países que já o
consagraram, quanto naqueles que o aspiram, mas não chegaram ao estágio de adotá-lo” – MARTINS, Ives
Gandra da Silva. Das cláusulas pétreas. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Constituição Federal,
15 anos: mutação e evolução; comentários e perspectivas. São Paulo: Método, 2003, p. 191.
18
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. XVIII.
19
Apud LIMA JÚNIOR, Olavo Brasil de. Op. Cit., p. 22.
24
Ou seja, sem que se atribua uma base de legitimidade política, calcada nas
deliberações democráticas do próprio povo, haverá uma ampla participação política formal,
porém pouca representatividade das instituições sociais – o que esvazia o Estado e suas ações
de qualquer suporte na sociedade. Claro, uma vez que
Passou-se então a buscar um novo modelo de democracia 24 , o qual permita de fato aos
cidadãos participarem ativamente da deliberação pública, conhecendo o fórum político e
pressupondo-se como livres e iguais 25 . Surge, então, a idéia de democracia deliberativa 26 .
20
A respeito, cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006.
21
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op.Cit., p. 100. Grifos do original.
22
No mesmo sentido, realçamos James Buchanan, para quem “since political outcomes emerge from a process in
which many persons participate rather than from some mysterious group mind, why should anyone have ever
expected ‘social welfare functions’ to be internally consistent?” – BUCHANAN, James M. From private
preferences to public philosophy: the development of public choice. In: ______. Politics as public choice. The
collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 45.
23
Id. Ibid., p. 88.
24
“A que democracias está se fazendo referência, do ponto de vista da realidade contemporânea? O que reformar
e ampliar, o que restringir? No mínimo, eu diria, à democracia de massas, cujo pressuposto essencial é o
sufrágio universal e que se caracteriza, nos termos propostos por Dahl, por um alto grau de liberalização e
participação. Cabe, creio, a partir de uma concepção minimalista que entende democracia como método,
examinar os elementos constitutivos da democracia real, a partir de uma perspectiva institucional, como forma
primeira de examinar o papel atribuído à participação política e ao Legislativo”. Id. Ibid., p. 30.
25
“[...] as pessoas são consideradas livres e iguais em virtude de possuírem, no grau necessário, as duas
faculdades da personalidade moral, quais sejam, a capacidade de ter senso de justiça e a capacidade de ter uma
concepção do bem. Associamos essas faculdades aos dois elementos principais da idéia de cooperação, a idéia
de termos eqüitativos de cooperação e a idéia de benefício racional, ou bem, de cada participante”. – RAWLS,
John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 78. No mesmo
sentido, BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______.
Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000,
25
p. 110: “In sum, my suggestion is that we extend to politics the same norm that has traditionally been extend to
law [regra da igualdade]”.
26
Tecendo uma análise aristotélica da democracia deliberativa, Luis Fernando Barzotto considera que “a
democracia deliberativa constitui-se na aplicação da razão prática teleológica à vida política, de um modo
análogo ao que ocorre na vida individual: é a racionalidade que se define pela orientação a um bem: o bem
comum (política) e a vida boa (indivíduo). O sujeito do poder é a comunidade de animais político-racionais
vinculados a uma concepção comum do bem. O funcionamento do poder dá-se segundo uma concepção de
justiça que se expressa em regras e decisões, e a finalidade do poder é o bem comum, que nada mais é do que
o conjunto de condições que permitem a vida boa para cada um dos membros da comunidade”. –
BARZOTTO, Luis Fernando. A democracia na Constituição. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 83.
27
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Op. Cit., pp. 57-58.
28
“Em contraposição à democracia baseada nos interesses, o modelo deliberativo pensa a democracia como uma
forma de razão prática, um processo no qual cidadãos se unem publicamente para tratar de ideais, objetivos e
metas, relativos a problemas de ordem coletiva. Para tanto, fazem os indivíduos uso da argumentação,
enquanto meio de intercâmbio entre diferentes concepções acerca do bem, tendo sempre em vista o bem
comum”. – RICHE, Flávio Elias. Revisitando a deliberação pública. In: VIEIRA, José Ribas (org.). Temas de
Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 8-9.
29
“[...] O fato de a representação pelo parlamento ser volitiva tanto quanto discursiva demonstra que
representação e argumentação não são incompatíveis. Pelo contrário, um conceito adequado de representação
deve se referir – como Leibholz salienta – a alguns “valores ideais”. Representação é mais do que – como
Kelsen propõe – “atuação em vez ou no lugar de” (Vertretung); e mais do que – como Carl Schmitt sustenta –
fazer o repraesentandum existente. Para ser certa, ela inclui elementos de ambos, ou seja, ela é
necessariamente tanto normativa como real, mas esses elementos não exaurem o conceito. A representação
necessariamente sustenta uma pretensão de correção. Assim, um bem-amadurecido conceito de representação
deve incluir uma dimensão ideal, que conecte decisão e discurso. A representação é, assim, definida pela
conexão de dimensões normativas, factuais e ideais.” – ALEXY, Robert. Ponderação, jurisdição constitucional
e representação popular. Tradução de Thomas da Rosa de Bustamante. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de;
SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações
específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 302.
30
Rawls chega a afirmar que as próprias liberdades básicas que compõem a democracia deliberativa “requerem
alguma forma de regime democrático representativo [...]”. RAWLS, John. As liberdades básicas e sua
prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002,
p. 188. No mesmo sentido, CALAZANS, Paulo Murillo. Entre liberais e republicanos – a co-originalidade. In:
26
vista agora não como uma prova cega da legitimidade, mas apenas um critério para
formalização da participação pelos cidadãos em decisões importantes.
De todo modo, a democracia deliberativa ao mesmo tempo pressupõe e ocasiona, com
o passar do tempo (e sua conseqüente maturidade), o domínio do político pelos cidadãos 31 , e
não apenas que estes elejam formalmente seus representantes para que decidam em seu lugar,
presumindo-se a legitimidade de qualquer decisão advinda do processo legislativo. Logo, fica
claro que
VIEIRA, José Ribas (org.). Temas de Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
245, sobre a “secular questão da impossibilidade factual da onicracia”. Calazans aponta para um viés
habermasiano, apoiado em Seyla Benhabib, no sentido de se retirar dos parlamentos o monopólio da
deliberação e da produção normativa.
31
“A partir do enfrentamento entre a proposta liberal, que enfatiza a primazia da autonomia privada (direitos
individuais fundamentais), e a posição republicana, que prestigia a autonomia pública (soberania popular),
vários pensadores contemporâneos vêm trabalhando no sentido de construir uma ponte que possa aproximar,
como aspectos co-originais, ambos espectros da democracia, onde, por um lado, se verifique que a garantia da
ampla participação dos cidadãos no processo político depende da institucionalização de determinados direitos
e garantias fundamentais, e, por outro, que é o próprio exercício do discurso público igual e livre que permite a
efetiva realização dos direitos fundamentais elencados como tais pelas sociedades e suas ordens normativas”.
CALAZANS, Paulo Murillo. Op. Cit., p. 240.
32
SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In:
TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos
controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 17-18.
33
“O intérprete constitucional, em uma república democrática e pluralista, circunscreve-se a um uso público da
razão: não deve recorrer a argumentos compartilhados apenas entre os adeptos de sua visão de mundo, mas a
argumentos que se refiram a valores políticos tendentes ao consenso entre as diversas doutrinas abrangentes” –
SOUZA NETO, Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Fundamentalização e
fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In: ______.; SARMENTO,
27
Mediante a participação mais ativa dos cidadãos, concebidos como livres e iguais
numa sociedade pluralista, a democracia deliberativa ganha ares de maior legitimidade 35 , e
essa legitimidade perdura por um tempo muito maior, mostrando-se ainda muito mais robusta
do que mediante a democracia meramente participativa – já que os cidadãos constantemente
cooperam na deliberação acerca de casos importantes, ainda que a conjuntura social seja
modificada, o que lhes permite alterar até mesmo (e principalmente) as instituições e as regras
que compõem a estrutura básica da sociedade.
Por isso que
36
RAWLS, John. A estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 13-14.
37
Nesse tom, Jean Rivero e Hugues Moutouh abordam o Estado Constitucional como garante do exercício da
democracia, afirmando que “O Estado constitucional não é a forma mais consumada do Estado de direito
porque realiza completamente o princípio de uma ordem jurídica hierarquizada, em que cada norma inferior
encontra a condição de validade numa norma de nível superior, mas porque se caracteriza por um certo
conteúdo do direito vigente, que atende ao duplo objetivo da garantia fundamental das liberdades das pessoas e
da proteção da ordem democrática liberal”. – RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades Públicas.
Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 145. Grifos do
original.
38
“Tal como são um elemento constitutivo do Estado de direito, os direitos fundamentais são um elemento
básico para a realização do princípio democrático. Mais concretamente: os direitos fundamentais têm uma
função democrática, dado que o exercício democrático do poder: (1) significa a contribuição de todos os
cidadãos [...] para o seu exercício [...]; (2) implica participação livre assente em importantes garantias para a
liberdade desse exercício [...]; (3) coenvolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos
sociais, económicos e culturais, constitutivos de uma democracia económica, social e cultural [...]. Realce-se
esta dinâmica dialéctica entre os direitos fundamentais e o princípio democrático. Ao pressupor a participação
igual dos cidadãos, o princípio democrático entrelaça-se com os direitos subjectivos de participação e
associação, que se tornam, assim, fundamentos funcionais da democracia. Por sua vez, os direitos
fundamentais, como direitos subjectivos de liberdade, criam um espaço pessoal contra o exercício de poder
antidemocrático, e, como direitos legitimadores de um domínio democrático, asseguram o exercício da
democracia mediante a exigência de garantias de organização e de processos com transparência democrática
(princípio maioritário, publicidade crítica, direito eleitoral). Por fim, como direitos subjectivos a prestações
sociais, económicas e culturais, os direitos fundamentais constituem dimensões impositivas para o
preenchimento intrínseco, através do legislador democrático, desses direitos”. CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Op. Cit., pp. 290-291. Grifos do original.
39
“Por outro lado, a positivação constitucional de limites de revisão não elimina a necessidade de selectividade
dos princípios, pois bem pode acontecer que alguns destes sejam limites genuínos respeitantes a
autoidentificação material da esfera jurídico-constitucional e outros sejam limites conjunturalmente
justificados. O problema está em saber como dar operacionalidade a esta distinção”. – Id. Ibid., p. 1055.
40
Direcionando a questão para a efetividade desses direitos, Ives Gandra aduz que “A pergunta que se coloca, no
início do século XXI, é se devem as Constituições sinalizar direitos que o Estado não pode assegurar ou ser
apenas uma Carta de Princípios, deixando, em face da conjuntura, à produção legislativa infraconstitucional
tais direitos”. – MARTINS, Ives Gandra da S. Op. Cit., p. 190.
41
“[...] o princípio democrático, que postula o direito de cada geração de se autogovernar, é incompatível com
uma interpretação muito extensiva das chamadas ‘cláusulas pétreas’”. – SARMENTO, Daniel. Direito
adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In: TAVARES, Marcelo Leonardo
(coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004, p. 7.
29
fundamentais, constituem as bases institucionais da República). Frise-se desde já que a Constituição, ao vedar
a deliberação e não apenas a vigência da norma, impede que questões tendentes a revogar, ainda que
indiretamente, tais liberdades, sejam sequer debatidas – o que nitidamente restringe o debate acerca de
questões constitucionais importantes, limitando até mesmo o fórum político público (e não somente as normas
resultantes desse fórum no âmbito do processo legislativo) a outras questões de menor importância.
48
“Limites expressos ou textuais são os limites previstos no próprio texto constitucional. As constituições
selecionam um leque de matérias, consideradas como o cerne material da ordem constitucional, e furtam essas
matérias à disponibilidade do poder de revisão. [...]
Outras vezes, as constituições não contêm quaisquer preceitos limitativos do poder de revisão, mas entende-se
que há limites não articulados ou tácitos, vinculativos do poder de revisão. Esses limites podem ainda
desdobrar-se em limites textuais implícitos, deduzidos do próprio texto constitucional, e limites tácitos
imanentes numa ordem concreta de valores pré-positiva, vinculativa da ordem constitucional concreta”. –
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., pp. 1050-1051. Grifos do original.
49
VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 19.
50
[o poder de reforma constitucional] “É inquestionavelmente um poder limitado, porque regrado por normas da
própria Constituição que lhe impõem procedimento e modo de agir, dos quais não pode arredar sob pena de
sua obra sair viciada, ficando mesmo sujeita ao sistema de controle de constitucionalidade. Esse tipo de
regramento da atuação do poder de reforma configura limitações formais, que podem assim ser sinteticamente
enunciadas: o órgão do poder de reforma (ou seja, o Congresso Nacional) há de proceder nos estritos termos
expressamente estatuídos na Constituição”. – SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional
Positivo. São Paulo, Malheiros, 1999, p. 67.
51
“O adjetivo pétrea vem de pedra, significando “petroso” e, no sentido figurativo, “duro como pedra”,
“insensível”. Tem-se, pois, que, constitucionalmente falando, cláusula pétrea é aquela imodificável,
irreformável, insuscetível de mudança formal. Assim, cláusulas pétreas são cláusulas de irreformabilidade total
ou parcial da Constituição, em defesa da perenidade da obra do legislador constitucional. São limites fixados
ao conteúdo ou substância de uma reforma constitucional e que operam como verdadeiras limitações ao
exercício do Poder constituinte derivado.” – NOGUEIRA, Cláudia de Góes. Op. Cit., p. 83. Além disso, “as
cláusulas superconstitucionais também servem como princípios que auxiliam a interpretação constitucional,
suprindo as dificuldades e tensões impostas pela desformalização do direito constitucional que acompanham a
implementação de uma Constituição tão vasta como a brasileira”. – VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 29.
31
52
O tema adquire maior relevância para o presente trabalho na órbita tributária, o que será discutido mais
aprofundadamente no capítulo III. Vale por ora destacar que, com a consagração desses direitos de modo
intangível, “[...] a Constituição determinou de modo negativo, isto é, através de proibições, o conteúdo
possível das leis tributárias e, indiretamente, dos regulamentos, das portarias, dos atos administrativos
tributários etc.
Em outros termos, a União, os Estados-membros, os Municípios e o Distrito Federal, ao fazerem uso de suas
competências tributárias, são obrigados a respeitar os direitos individuais e suas garantias. O contribuinte tem
a faculdade de, mesmo sendo tributado pela pessoa política competente, ver respeitados seus direitos públicos
subjetivos, constitucionalmente garantidos”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 406-407.
53
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., p. 379. Grifos do original.
54
Canotilho chega a dizer que “Se quisermos um estado constitucional assente em fundamentos não metafísicos,
temos de distinguir claramente duas coisas: (1) uma é a da legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e
do processo de legislação no sistema jurídico; (2) outra é a da legitimidade de uma ordem de domínio e da
legitimação do poder político”. Op. Cit., p. 100.
32
esta serve àqueles e não o contrário 55 ) e a constituição pode passar a ter sua base de
legitimidade questionada, ampliando-se o risco de uma indesejável 56 revolução
constitucional. Assim,
55
“As leis devem sempre regular-se, e regulam-se de fato, pelo regime, e não o regime pelas leis”. Aristóteles
apud BARZOTTO, Luis Fernando. Op. Cit., p. 68.
56
Dada a insegurança de um novo ordenamento constitucional, “al Estado se le ha presentado un problema
adicional: si bien su instauración y sus cambios significaron un trauma social, porque supusieron la necesidad
de adaptación a nuevas realidades, se mantuvo un ritmo evolutivo que iba abriendo nuevas expectativas”. –
VALADÉS, Diego. Consideraciones sobre el Estado Constitucional, la Ciencia y la Concentración de la
Riqueza. Cadernos de Soluções Constitucionais, São Paulo: Malheiros (em co-edição com a Associação
Brasileira dos Constitucionalistas Democratas), vol. 1, 2003, p. 55.
57
VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit.,, p. 29.
58
Para ilustrar essa tensão, basta ver-se, por um lado, a premissa constitucionalista de que “a concepção
democrática de lei escrita trazia o risco intrínseco de que todo o direito se tornasse um instrumento dos
caprichos momentâneos do povo” (BARZOTTO, Luis Fernando. Op. cit., p. 67) e, por outro, a visão
democrática de que “para que as cláusulas pétreas não se convertam num instrumento antidemocrático, de
tirania constitucional de uma geração sobre as seguintes, elas têm que ser interpretadas à luz do princípio
democrático, como garantias das condições de possibilidade de uma democracia efetiva e substancial,
instruídas para impedir que a empreitada intergeracional de construção de um destino coletivo por pessoas
livres e iguais não se perca no caminho, tragada por adversidades, miopias, paixões momentâneas ou
fraquezas”. – SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da
Previdência. In: TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos
e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 19-20. Decerto que esse antagonismo é
apenas aparente: não se trata de concepções opostas da constituição, já que “a relação entre democracia e
constitucionalismo não significa alternativas excludentes, mas princípios que podem e devem conviver
simultaneamente” – PEIXINHO, Manoel Messias. Teoria democrática dos direitos fundamentais. In: VIEIRA,
José Ribas (org.). Temas de Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 218; porém
“a correta dosagem dos ingredientes desta fórmula é essencial para o seu sucesso. Por um lado,
constitucionalismo (limitações ao poder) em excesso pode asfixiar a vontade popular e frustrar a autonomia
política do cidadão, como co-autor do seu destino coletivo. Por outro, uma ‘democracia’ sem limites tenderia a
pôr em sério risco os direitos fundamentais das minorias, bem como outros valores essenciais, que são
condições para a manutenção ao longo do tempo da própria empreitada democrática” – SARMENTO, Daniel.
Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 5-6.
33
Daí surgem, então, teorias que abordam os direitos fundamentais sob um aspecto não
puramente formalista, mas afirmam a existência de materialidade nos direitos fundamentais, o
que, segundo determinados critérios, permitiria identificar um núcleo democrático na
constituição – esse, sim, irredutível para o exercício da democracia pelos cidadãos 60 .
Não desconhecemos o velho refrão: “nem tudo que é legal justo é”. Esta
dicotomia entre justiça e Direito é tão avelhantada quanto a humanidade. A
lei, também o sabemos, é antes de tudo veículo de qualquer conteúdo, da
justiça e da injustiça, da igualdade e da desigualdade. Nem por isso e até
por isso devemos cuidar de insuflar no Direito-Sistema os valores pelos
quais a vida vale a pena ser vivida: liberdade, igualdade, justiça e
segurança. Se o Direito é “dever-ser”, como diz Lourival Vilanova, “é
dever-ser de algo”. Esta precisamente a questão. Estamos mais preocupados
com o que deve-ser do que propriamente com o dever-ser, que é meramente
instrumental, neutro de valor. Quanta amargura em ver Enno Becker
recomendando dever ser o Direito Tributário alemão a expressão jurídica do
nacional-socialismo de Hitler 61 . É disso que se trata. Se a lei aceita qualquer
conteúdo, bastando o domínio da máquina do Estado, devemos fazer
política para que o Direito seja justo. E devemos deslocar a legitimidade do
sistema jurídico do plano formal e político para o plano axiológico e, dentre
as várias axiologias, admitir como legítima apenas a que prestigie os valores
da liberdade, da igualdade, do pluralismo, da solidariedade e da democracia.
O Direito, como instrumento de poder, tem sido, ao longo dos tempos, o
59
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, pp. 236-237.
60
“No presente estudo, consideram-se ‘materialmente fundamentais’ aqueles preceitos que configuram
‘condições para a cooperação na deliberação democrática’”. – Id. Ibid., p. 235.
61
Foi exatamente essa flexibilidade excessiva do regimes nazi-fascistas que levou os vários sistemas de direito a
consagrar cartas mais amplas de direitos, engessando mais a ação estatal e protegendo mais a pessoa dos
cidadãos: “Depois que os fatos verificados na Alemanha durante a República de Weimar, e em muitos outros
países, demonstraram com que facilidade movimentos eversivos da ordem democrática podiam se apoderar do
poder desfrutando as possibilidades oferecidas a eles propriamente da aplicação dos princípios do
constitucionalismo, interveio assim uma ulterior evolução, por efeito da qual passaram a fazer parte deste
compêndio uma série de princípios, em parte pelo menos parecidos com aqueles já acolhidos nos Estados
Unidos desde o início do período aqui considerado, a começar por aqueles que estabelecem a “rigidez” da
Constituição e o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis e, sobretudo, em alguns países, isso
determinou uma reavaliação da função do Poder Judiciário, revirando as posições às quais tinha se chegado no
período que seguiu a Revolução Francesa”. – PIZZORUSSO, Alessandro. O processo de constitucionalização
na Europa. In: PIMENTEL JR., Paulo Gomes (coord.). Direito Constitucional em Evolução: perspectivas.
Curitiba: Juruá, 2005, p. 25.
34
A análise dos direitos fundamentais pelo ponto de vista material abstrai, portanto, da
mera positivação constitucional de um rol de determinadas regras e liberdades que não podem
ser objeto de reforma. Considerando-se a Constituição como o documento que ampara
juridicamente o Estado democrático de Direito, o qual pressupõe uma sociedade pluralista de
cidadãos livres e iguais, esse diploma não deveria se prestar apenas a uma determinada
conjuntura (engessando as gerações futuras), porém atender ao máximo de gerações possíveis,
consolidando um determinado modelo democrático forjado à base de deliberações pelos
próprios cidadãos 63 – até porque “a justificação nunca é definitiva e eterna, senão que leva
sempre a novas legitimações” 64 .
Por isso mesmo a concepção democrática da constituição tenta encontrar-lhe um
núcleo irrestringível, a fim de evitar a hiperinflação de liberdades e outros dispositivos
constitucionais erigidos à categoria de supernormas, intocáveis por quem quer que seja. Vale
a máxima de que um sistema 65 será tanto mais perfeito quanto menos princípios houver 66 , a
fim de se lhe assegurar unidade e consistência. Assim, diminui-se a quantidade de dispositivos
irrestringíveis 67 e se abre a Constituição para sua identidade reflexiva 68 com a sociedade – o
que é benéfico para a democracia como um todo, porquanto
62
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, pp. 52-53.
63
“Neste quadro, a maximização das cláusulas pétreas representa um sério atentado contra o princípio
democrático, que postula que o povo deve ter, a cada momento, o poder de decidir os rumos que pretende
seguir.” – SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da
Previdência. In: TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos
e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 15.
64
TORRES, Ricardo Lobo. As imunidades tributárias e os direitos humanos: problemas de legitimação. In:
TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a
Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 307.
65
“Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com sua ordem, unidade e
harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito”. – BARROSO,
Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do Direito
Constitucional do Brasil). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coords.). A
Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007, p. 227.
66
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 37.
67
“Assim sendo, o poder constituinte derivado, que admite a reforma do texto constitucional, é excepcional e
destina-se a oferecer uma possibilidade permanente de atualização da Constituição”. – LOBATO, Anderson
Orestes Cavalcante. Política, constituição e justiça: a legitimidade da jurisdição constitucional e a consolidação
das instituições democráticas. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Constituição Federal, 15 anos:
mutação e evolução; comentários e perspectivas. São Paulo: Método, 2003, p. 134.
68
“A identidade da constituição não significa a continuidade ou permanência do “sempre igual”, pois num
mundo sempre dinâmico a abertura à evolução é um elemento estabilizador da própria identidade. Neste
sentido se compreende a sugestão do conceito de desenvolvimento constitucional para significar o conjunto
de formas de evolução da constituição [...] e para exprimir aquilo que se poderá chamar a garantia de
35
embora essas condições [constitucionais] possam ter sido justas numa época
anterior, os resultados acumulados de um grande número de acordos, cada
qual aparentemente justo, produzirão efetivamente ao longo do tempo, em
combinação com as contingências históricas e as tendências da sociedade,
alterações das relações entre os cidadãos, assim como possibilidades que
lhes são oferecidas, de tal forma que as condições para acordos livres e
eqüitativos não mais ocorrerão 69 .
identidade reflexiva. Garantir a identidade reflexiva de uma constituição significa dotar a constituição de
capacidade de prestação em face da sociedade e dos cidadãos”. – CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op.
Cit., p. 1059. Grifos do original.
69
RAWLS, John. A estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 13.
70
A excessiva cristalização de dispositivos constitucionais engessa a democracia e inviabiliza o principal
parâmetro de legitimação social sob a concepção liberalista proposta, dentre outros, por John Rawls, que é a
razão pública. A ampla fundamentalização de disposições constitucionais no plano jurídico adquire, no plano
político (em termos de razão pública), ares do que é concebido por Rawls como verdade inteira, avesso à
própria idéia de democracia por impedir o exercício da razão pública: torna-se dogma que não pode ser
contestado, por ser a única verdade cabível a um determinado número de casos, tão-somente porque ‘o
constituinte originário o quis assim’. O conceito de verdade inteira será abordado adiante, no capítulo II, ao
ser explorada a razão pública de modo mais exaustivo.
71
MARTINS, Ives Gandra da S. Op. Cit., pp. 181-182.
36
72
SOUZA NETO, Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Fundamentalização e
fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In: ______.; SARMENTO,
Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 716-717. Por isso mesmo, “toda pretensão de se controlar os resultados
produzidos pelo procedimento democrático que extrapole a defesa dos requisitos mínimos para o
funcionamento da democracia será espúria e injustificável”. – VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 22.
73
A transcrição envolve alguns conceitos trabalhados pormenorizadamente no capítulo II do presente, ao
estudar-se a razão pública nos moldes desenvolvidos por John Rawls. De todo modo, importante realçar que
“o que está fechado ao dissenso é a estrutura básica do Estado Democrático de Direito”. – SOUZA NETO,
Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Fundamentalização e fundamentalismo na
interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In: ______.; SARMENTO, Daniel (coords.). A
Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007, pp. 720-721. E até pelo raciocínio transcrito acima, os autores chegam à conclusão de que “o processo
de dupla fundamentalização por que passa a Constituição de 1988 deve ser legitimado a partir de argumentos
restritos à esfera da imparcialidade política, evitando doutrinas fundamentalistas dos direitos fundamentais”
(Id. Ibid., p. 740).
74
VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 29.
37
princípios, além de possuir um outro dispositivo que, de modo aberto, considera irrevogáveis
“outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados” 75 .
Tal maximização logicamente encontra críticas pelo princípio democrático, ante o
conseqüente emperramento da democracia que ela paradoxalmente produz. Entrementes, é
importante verificar ainda o contexto político de elaboração da Carta Constitucional de 1988 e
a obscuridade conceitual do que possa objetivamente, no texto constitucional, ser considerado
cláusula pétrea ou não.
75
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988. Art. 5o., §2o.
“Como tal se interpretou ‘o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte’ (ADIN 939,
RDA 198/123 e RTJ 151/755)”. CUSTÓDIO, Antonio Joaquim Ferreira. Constituição Federal interpretada
pelo STF. 8a. edição. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 33. Voltaremos ao tema no capítulo IV.
76
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988.
77
Nem tocaremos no assunto da efetividade dos direitos, por ser tema da mais alta complexidade e
absolutamente diverso do foco do trabalho. Realçamos, contudo, a opinião de Ives Gandra da Silva Martins,
para quem “As Constituções de Portugal e do Brasil não fugiram à regra de um Estado veiculador de direitos
sem condições de os garantir, mormente em face da universalização da economia e da competitividade
38
entender peremptoriamente como funciona um sistema jurídico, o que esperar dele, diante de
um texto aberto como o da Constituição de 1988. A confusão se mostra tão grande que
autores se desencontram mesmo quanto à concepção do próprio Estado brasileiro: se de bem-
estar social (criticado por autores como John Rawls, o qual, como visto anteriormente,
entende ser um Estado fadado ao fracasso) ou de democracia deliberativa 78 .
Se a própria caracterização do Estado brasileiro (o que definirá, em última análise, sua
priorização entre o bem e o justo) não é uníssona, muito maior divergência se dá quando o
assunto é interpretar os direitos fundamentais ante a abertura conceitual da Constituição – que
se reflete em grande vulto na área da tributação, tendo em vista que as Limitações ao Poder
de Tributar podem ser consideradas ou não, de acordo com a concepção utilizada, uma
extensão dos direitos “decorrentes do regime ou dos princípios” adotados pela Constituição.
selvagem que esta acarreta, à luz de um modelo substitutivo do homem pela máquina e gerador de desemprego
estrutural”. Op. Cit., p. 190.
78
Nesse sentido, cf., p.e., Luís Fernando Barzotto, para quem “propõe-se interpretar a democracia na
Constituição de 1988 como uma democracia deliberativa” (Op. Cit., p. 175) e Consuelo Yoshida, para quem o
Brasil é um “Estado de bem-estar social” (YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Morozimato. A implementação dos
direitos fundamentais e o paradigma constitucional: as novas concepções e os desafios aos operadores do
direito. In: POZZOLI, Lafayette; SOUZA, Carlos Aurélio Mota de (orgs.). Ensaios em homenagem a Franco
Montoro. São Paulo: Loyola, 2001, p. 250). Esse embate em John Rawls se situa na concepção do bem sobre o
justo ou do justo sobre o bem e se recomenda a leitura da introdução e do primeiro capítulo de sua Teoria da
Justiça para maior aprofundamento da questão. Aparentemente essa divergência se situa apenas no plano
filosófico; todavia, no capítulo IV da presente segue exposto que a divergência doutrinária em consagrar todas
as limitações ao poder de tributar como direitos fundamentais ou restringi-las a uma esfera de imparcialidade
política nada mais é do que transpor essa concepção do Estado brasileiro (se priorizando o bem ou o justo)
para a esfera dos direitos do contribuinte.
79
PRADO, Ney. Atitudes diante da Constituição de 1988. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições
de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 144.
39
80
Decerto que parte dessa modificação se deu por força das aspirações nitidamente parlamentaristas do
anteprojeto; todavia esses instrumentos parlamentares modificados não tocam o aspecto ora desenvolvido, de
concessão de liberdades aos cidadãos.
81
BRASIL. Constituição Federal; anteprojeto da Comissão Afonso Arinos; índice analítico comparativo. Rio de
Janeiro: Forense, 1987.
40
muito além do exemplo português, e muito além do que seria ideal para
uma Constituição pudesse estar sempre adaptada ou viesse a ser adaptável
às circunstâncias e à história. 82
82
MARTINS, Ives Gandra da S. Op. Cit., p. 179. O autor atribui ainda a consagração ampla de direitos à
presença, no Brasil, dos constitucionalistas portugueses Jorge Miranda, José Joaquim Gomes Canotilho e
Marcelo Rebelo de Souza. Id. Ibid., p. 177.
83
NOGUEIRA, Cláudia de Góes. Op. Cit., p. 85.
84
PRADO, Ney. Op. Cit., pp. 152-153.
85
“O produto final de seu trabalho foi heterogêneo. De um lado, avanços, [...]. De outro, no entanto, o texto
casuístico, prolixo, corporativo, incapaz de superar a perene superposição entre o espaço público e o espaço
privado no país”. – Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-
modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Cadernos de Soluções Constitucionais, São Paulo: Malheiros
(em co-edição com a Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democratas), vol. 1, 2003, p. 182. No
mesmo sentido, Ney Prado, Op. Cit., pp. 153-154.
41
Assim, a Constituição nasceu já pronta para ser objeto de críticas, tão-logo a euforia
inicial passasse 87 . A unanimidade de pensamento, apesar de existir quanto à libertação
política, mostrou-se, diante do texto final (altamente fragmentado e heterogêneo, resultante da
consagração dos anseios de diversas classes sociais e do próprio Estado 88 , estes por vezes
conflitantes 89 ), apenas momentânea e aparente. Com isso surgiu um problema: buscar o
“verdadeiro significado da democracia” 90 .
Ora, a própria busca pelo significado da democracia (como um dos reflexos do projeto
de Estado delineado pela Constituição) demonstra que não havia um consenso quanto ao mais
básico para uma sociedade pluralista que se pretende justa e razoável. Como conceber um
Estado democrático de Direito, ou mesmo uma sociedade bem ordenada, sem se saber sequer
qual a democracia desenhada pela Constituição? A pergunta se coloca ainda mais contundente
se considerarmos que as bases desse problema são formalmente irreformáveis, diante da
radical consagração de liberdades propiciada pela Carta Política.
86
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do
Direito Constitucional do Brasil). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coords.). A
Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007, pp. 224-225. No mesmo sentido, VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 129: “Aproveitando a fragilidade
do sistema representativo e a fragmentação do sistema partidário, os interesses corporativos tiveram presença
marcante durante a Constituinte. O empresariado, principalmente o nacional, também trabalhou arduamente
durante o processo constituinte, alcançando diversos privilégios na redação final do texto. [...] A abertura às
pressões externas, no entanto, também permitiu uma ação tremendamente eficaz de lobbies e grupos de
pressão na defesa de interesses privados junto aos constituintes. Isso facilitou que interesses mais diversos e
contraditórios fossem acolhidos no seio da Constituição de 1988.”
87
“Hoje ela [a “Constituição cidadã”] é criticada – eu mesmo o faço –, mas naquele momento a Constituição
tinha que ter uma marca muito forte de liberdade democrática, e ela tem, e de reivindicação social. Depois de
tantos anos de abastardamento da vida política brasileira, de marginalização da população, tinha que haver
isso.” CARDOSO, Fernando Heneique. in Dr. Ulysses – o homem que mudou o Brasil. Célia Soibelmann
Melhem e Sonia Morgenstern Russo (org.). São Paulo: Prêmio, 2004, p. 98. Sobre a convivência da
Assembléia Nacional Constituinte, cf., na mesma obra, os depoimentos de outros constituintes, como Mario
Covas e Nelson Jobim.
88
“[...] a Constituição foi o resultado de uma determinada conjuntura política em que nenhum dos grupos
conseguiu estabelecer hegemonicamente seu projeto político. Assim, diversos dispositivos constitucionais
resultam da força de maiorias meramente eventuais, aglutinadas especialmente para a inserção de um tópico
no texto constitucional”. – VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 133.
89
“Com efeito, da nada adiantam seus princípios, do Tiítulo I e suas abundantes setenta e duas declarações de
liberdades e garantias, esmiuçadas no quilométrico artigo 5o do Título II se, contraditoriamente, elas acabam
sendo anuladas pela complicada máquina do estado intervencionista e fiscalista que vem minudentemente
construída nos sete Títulos restantes”. PRADO, Ney. Op. Cit., p . 154.
90
Id. Ibid., p. 145.
42
Daí o dizer-se, por exemplo, que “uma imposição do texto constitucional tal como
aprovado em 1988, poderia representar uma incapacidade do Estado constitucional em se
adaptar às novas condições sociais e políticas, identificadas na política de governo” 91 , ou
mesmo que “para uma Constituição muito mais voltada para o transformar do que para o
conservar, esta limitação vai longe demais na garantia do status quo” 92 .
Mas o problema não se limita à contextualização da redação constitucional. Há ainda
uma questão mais pungente, que diz respeito à interpretação do texto da Constituição de 1988
diante da abertura conceitual quanto às regras e liberdades consideradas fundamentais.
O conjunto de dispositivos constitucionais indefinidos tidos como irrestringíveis pelas
gerações futuras encontra-se na conjugação dos artigos 60, §4o, e 5o, §2o, da Carta.
O artigo 60, §4o, possui uma lista de regras e liberdades consideradas irrevogáveis.
Dentre aquelas, importa-nos o inciso IV, que se refere aos “direitos e garantias individuais”.
Ao mesmo tempo, o art. 5o da Constituição (único do capítulo de direitos e deveres
individuais e coletivos, o qual se localiza no Título de direitos e garantias fundamentais 93 ),
em seu §2o abre o leque da irrevogabilidade para “outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte”.
Com isso, surge outro problema fulcral na construção da democracia brasileira: afinal
de contas, quais são objetivamente os direitos tidos como irreformáveis pelo constituinte? O
campo da subjetividade ampliou-se enormemente. Em última análise, é possível dizer que a
palavra final sobre quais são os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros fica a cargo do
Supremo Tribunal Federal. Até lá (e até que se sedimente a jurisprudência do Supremo
91
LOBATO, Anderson Orestes Cavalcante. Op. Cit., pp. 134-135.
92
SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In:
TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos
controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 41.
93
Devido a essa diferença conceitual entre os dispositivos da Constituição, Cláudio Pereira de Souza Neto traz
ainda uma discussão preliminar que merece destaque. “O problema se torna ainda mais enigmático quando
relacionado ao tema dos limites materiais ao poder de reforma. A que se refere o artigo 60, §4o, inciso IV? Aos
“direitos e garantias individuais”, como está expresso no Texto, ou aos “direitos e garantias fundamentais”? A
Constituição, ao mencionar, como detentores do status de cláusula pétrea, apenas os “direitos e garantias
individuais”, dá espaço para se argumentar que somente aqueles inseridos no art. 5o são considerados
realmente fundamentais. Se o critério da interpretação literal desse dispositivo é combinado com o da posição
topográfica do §1o do art. 5o, passa a contar com um argumento formalista bastante incisivo a corrente
doutrinária qu restringe o sistema de direitos fundamentais aos estabelecidos no art. 5o. No entanto, se a
Constituição, no art. 60, §4o, IV, fala genericamente em “direitos individuais”, por que considerar que apenas
os formalmente fundamentais (art. 5o) devem contar com esse tratamento especial? Os direitos constitucionais
individuais que não são direitos fundamentais figuram como cláusulas pétreas? O que define, afinal, se uma
norma é ou não cláusula pétrea?”. Mais à frente o autor ainda considera, diante do §2o do art. 5o, que a
Constituição consagrou a abertura do sistema brasileiro de direitos fundamentais. SOUZA NETO, Cláudio
Pereira. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 231-232.
43
Tribunal Federal, o qual não raras vezes muda seus entendimentos) podemos enfrentar
décadas sem a menor segurança do que seja ou não direito básico – e, conseqüentemente,
irrestringível – dos cidadãos. Isso sem contar que a palavra final ficará a cargo de umas
poucas pessoas, não eleitas pela população, as quais terão que adotar as decisões políticas
mais importantes para a sociedade 94 .
Ronald Dworkin, ao abordar todas as controvérsias surgidas em virtude do uso de
termos vagos na consagração de direitos pela constituição americana e pela Bill of Rights
trouxe um questionamento quanto às decisões que serão tomadas pela Corte Constitucional.
94
“Esta prática é profundamente danosa a valores extremamente caros ao Estado Democrático de Direito. Ela é
prejudicial à democracia, porque permite que juízes não eleitos imponham as suas preferências e valores ao
jurisdicionados, muitas vezes passando por cima de deliberações do legislador. Ela compromete a separação
de poderes, porque dilui a fronteira entre as funções judiciais e legislativas. E ela atenta contra a segurança
jurídica, porque torna o Direito muito menos previsível, fazendo-o dependente das idiossincrasias do juiz de
plantão, e prejudicando com isso a capacidade do cidadão de planejar a própria vida com antecedência, de
acordo com o conhecimento prévio do ordenamento jurídico. Ela substitui, em suma, o governo da lei pelo
governo dos juízes.” – SARMENTO, Daniel. Livres e iguais – estudos de direito constitucional. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 200.
95
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 210. Frise-se que a ponderação de Dworkin limita-se a um texto que tem conceitos abertos em um rol
taxativo; mais aguda ainda se mostra a problemática brasileira, que além de ter diversos conceitos abertos
como direitos expressamente consagrados, sequer possui um rol definido desses direitos.
44
96
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 234.
97
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 406.
45
John Rawls adota uma teoria da justiça segundo a qual o justo deve prevalecer sobre o
bem, ao contrário de outras teorias (como a utilitarista, por exemplo) que entendem que o bem
deve prevalecer sobre o justo.
Ao traçar essa linha-mestra, John Rawls trabalha com alguns preceitos que conduzirão
uma sociedade bem ordenada ao pleno exercício da deliberação democrática, considerando-se
os cidadãos como livres e iguais. Esse tratamento igualitário deve advir dos concidadãos e do
próprio Estado em suas relações jurídicas. “O pressuposto mais básico de Rawls não é o de
que os homens tenham direito a determinadas liberdades que Locke ou Mill consideravam
importantes, mas que eles têm direito ao igual respeito e à igual consideração pelo projeto das
instituições políticas” 99 .
É ainda importante lembrar, especialmente nas relações entre Estado e cidadãos (como
na relações tributárias), que esse tratamento igualitário pressupõe que
98
VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 204.
99
DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 282.
46
A razão pública é o tipo de argumentação racional a ser adotada pelos cidadãos a fim
de justificar regras e condutas que envolvam questões de justiça básica, de modo que todos os
demais as aceitem como válidas na convivência social.
100
Id. Ibid., pp. 419-420.
101
RICHE, Flávio Elias. Op. Cit., p. 10. Grifos do original.
102
BUCHANAN, James M. From private preferences to public philosophy: the development of public choice.
In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan
47
Assim, utilizando uma argumentação racional que coloque o justo sobre o bem e sirva
para que todos os cidadãos, mesmo numa sociedade complexificada, vejam-se como livres e
iguais, com igual consideração e respeito, Rawls coloca como centro da argumentação o bem
comum (entendido como “o que se pode legitimamente esperar da estrutura básica de
sociedade” 104 ) e não a mera agregação de interesses privados. Dessa forma ele elimina da
discussão aquilo que chama de “doutrinas abrangentes” – concepções particulares, filosóficas
ou religiosas, que não envolvam argumentos políticos por assim dizer.
Interessante realçar que, dadas as suas características, a razão pública, ainda que se
colocando num plano argumentativo (que poderia dar a entender uma posição apenas ritual na
democracia),
103
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 115.
104
Id. Ibid., p. 112.
105
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2005, pp. 280-281.
48
Frise-se que a Suprema Corte, por decidir justamente sobre casos constitucionais (ou
seja, da base do ordenamento jurídico) é considerada um ambiente de razão pública por
excelência, para John Rawls. Diz ele que
A razão pública adquire, então, nos moldes propostos por John Rawls, uma ferramenta
utilíssima para se buscar o que pode ser considerado, ou não, direito fundamental “decorrente
dos princípios ou do regime adotado” pela Constituição (entendida não como um documento
formal, mas sim como uma carta com os melhores ajustes políticos possíveis realizados entre
cidadãos livres e iguais 107 ), no contexto de uma argumentação racional que se pauta na
democracia – e ao mesmo tempo justifica determinadas regras ou condutas estatais.Por isso
mesmo, dedicamo-nos a estudá-la no capítulo que segue, a fim de entendermos suas bases,
contornos e limites. O que estiver fora do âmbito de justificação da razão pública, não poderá
ser considerado afeto à estrutura básica da sociedade e, conseqüentemente, não poderá ser
considerado elemento de justiça básica apto a ser erigido à categoria de direito fundamental,
nem pelos cidadãos e nem mesmo pela Corte Suprema.
106
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 281.
107
“Hence, there will be the need for ‘constitutions’, for ‘rules’, to constraint the behavior of persons, privately
and collectively, and public choice offers the normative understanding necessary to lay down ‘better’ rules”. –
BUCHANAN, James M. Public choice and ideology. In: ______. Politics as public choice. The collected
works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 176.
49
Conforme visto anteriormente, a razão pública não só pode, como se recomenda, ser
utilizada como parâmetro de justificação no contexto da democracia deliberativa.
A razão pública, nos moldes apresentados por John Rawls, está bem sistematizada e
permite o aprofundamento de modo mais pormenorizado do que sua abordagem por outros
autores (dentre os quais, por exemplo, podemos citar Jürgen Habermas 108 ).
Esse procedimento de justificação (o qual, nada obstante se apresentar inicialmente
como um modo de checagem de legitimidade de normas e/ou condutas) carrega alguns
elementos substantivos de justiça, os quais merecem a devida atenção. Além disso, possui
detalhes importantes que a caracterizam como tal – diferenciando-a de outros tipos de
justificativas argumentativas, defendidas por doutrinas abrangentes ou razões não-públicas – e
situam o discurso político público dentro da esfera de deliberação democrática.
Essas peculiaridades da razão pública nos moldes desenvolvidos por Rawls 109 , sua
dupla face de justiça procedimental/substantiva, sua delimitação e campo de ação seguem
pormenorizadas abaixo.
108
A propósito, indica-se ROCHLITZ, Rainer (coord.). Habermas – o uso público da razão. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2005. A obra possui diversos artigos nos quais seus autores se debruçam sobre a abordagem
do tema pelo filósofo alemão.
109
“Esse atrelamento da deliberação a princípios de justiça previamente justificados é o aspecto distintivo do
modelo rawlsiano de razão pública”. – SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Consenso constitucional,
neutralidade política e razão pública – elementos de teoria da constituição em Rawls. In: SARMENTO,
Daniel; GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo
Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 196.
50
A idéia de razão pública foi apresentada por John Rawls, pela primeira vez, em sua
obra Liberalismo Político 110 , sendo mais bem desenvolvida em seu ensaio A idéia de razão
pública revista 111 .
Diz Rawls que a idéia de razão pública integra “uma sociedade democrática
constitucionalmente ordenada” 112 , sendo que tanto a forma quanto o conteúdo dessa razão são
parte da própria idéia de democracia, pois uma característica básica da democracia é um
razoável pluralismo, concebido como resultado de uma cultura de instituições livres.
Partindo dessa premissa inicial, Rawls afirma que:
110
RAWLS, J. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, pp. 261 e
ss.
111
Rawls inicia sua Idéia de Razão Pública Revista, afirmando que sua primeira exposição da idéia de razão
pública foi na introdução de sua segunda edição, de 1996, não disponibilizada pela ed. Ática em sua tradução.
Em O Liberalismo Político, ele inicia conceituando a razão pública como “a razão de cidadãos iguais que,
enquanto corpo coletivo, exercem um poder político final e coercitivo uns sobre os outros ao promulgar leis e
emendar sua constituição” (p. 263); porém, mais à frente de sua obra, bem como ao longo de toda a Idéia de
Razão Pública Revista, esse conceito se mostra mais abrangente, abarcando praticamente todo e qualquer ato
estatal onde questões de justiça básica e elementos constitucionais essenciais estão em jogo. A respeito, veja-
se seu conceito resumido em Justiça como Eqüidade – uma reformulação, transcrito mais à frente.
112
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 173.
113
Id. Ibid., p. 174. A respeito, cf. COHEN, Joshua. Democracy and Liberty. In: ELSTER, John (Ed.).
Deliberative Democracy. Cambridge University Press: 1998, p. 195: “Let us say, then, that a consideration is
an acceptable political reason just in case it has the support of the different comprehensive views that might be
endorsed by reasonable citizens”.
114
O autor utiliza a expressão doutrinas abrangentes, referindo-se às várias visões existentes acerca da realidade,
de todos os tipos (religiosa ou não). No entanto, quando houver uma referência ao modo como as pessoas
encaram a política e seus componentes, ele se vale da expressão concepção.
115
Rawls chega a citar exemplos como Europa, EUA, Israel e Índia, onde, apesar de haver divergências quanto
às doutrinas influentes e ativas naquelas democracias, a busca pela idéia adequada de razão pública é um
interesse que confronta todas elas. Cf. O Direito dos Povos. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A
idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 174.
51
básica para uma doutrina considerada razoável, nesse aspecto, é aceitar um regime
democrático constitucional e a idéia de lei legítima que o acompanha 116 .
Logo de início se percebe, portanto, que John Rawls aceita como perfeitamente
plausível (mesmo em uma sociedade onde ocorram divergências básicas quanto aos modos de
vida e das visões acerca das realidades que a compõem) encontrar-se um consenso de posturas
políticas consideradas razoáveis por todo o organismo social, em uma situação de tolerância
política mútua.
Essa tolerância teria profundas raízes morais e políticas, “explicitando”, nos dizeres do
próprio autor, “no nível mais profundo os valores morais e políticos que devem determinar a
relação de um governo democrático constitucional com os seus cidadãos e a relação destes
entre si” 117 . Por isso mesmo Nythamar de Oliveira precisamente resume:
Ou, como o próprio Rawls explica sucintamente em Justiça como Eqüidade – uma
reformulação: “em suma, a razão pública é a forma de argumentação apropriada 119 para
cidadãos iguais que, como um corpo coletivo, impõem normas uns aos outros apoiados em
sanções do poder estatal” 120 .
116
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 174. Rawls
afirma mais: aqueles que rejeitam a democracia constitucional com o seu critério de reciprocidade rejeitarão,
naturalmente, a própria idéia de razão pública.
117
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 175. Frise-se
que, não obstante o autor fazer menção à expressão “devem” (que sugere um dever-ser, uma meta, um objetivo
idealístico), ele traça uma nítida diferença entre idéia e ideal de razão pública, exposta separadamente adiante.
118
OLIVEIRA, Nythamar de. Rawls. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 33-34.
119
“O valor das regras e formas do discurso jurídico não se limita à explicação do conceito de argumentação
jurídica racional (e, com isso, de pretensão de correção) e à sua função como critério de correção hipotético.
Contém simultaneamente exigências sobre as argumentações que ocorrem de fato. Nesse sentido, constituem
um critério para a análise das limitações necessárias na busca da decisão jurídica, por exemplo, no processo.
Por isso, deve-se partir das fórmulas expostas, isto é, de que em uma determinada situação estão justificadas
aquelas limitações que, em comparação com outras ou por si mesmas, oferecem uma maior oportunidade ara
alcançar um resultado que também teria sido alcançado sob condições ideais.” – ALEXY, Robert. Teoria da
argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2005,
120
RAWLS, John. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 130.
52
121
A fim de simplificar a exposição, valemo-nos da apresentação resumida feita por Cláudio Pereira de Souza
Neto: “Rawls divide os elementos constitucionais essenciais em dois grupos. Em um primeiro grupo, ele inclui
“os princípios fundamentais que especificam a estrutura geral do Estado e do processo político: as
prerrogativas do legislativo, do executivo e do judiciário; o alcance da regra da maioria”. No segundo grupo,
ele arrola “os direitos e liberdades fundamentais e iguais de cidadania que as maiorias legislativas devem
respeitar, tais como o direito ao voto e à participação na política, a liberdade de consciência, a liberdade de
pensamento e de associação, assim como as garantias do império da lei”. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de.
Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 113.
122
Vale frisar que o termo não-público usado por Rawls não pode ser equiparado a privado, como ele mesmo
bem o disse em nota de rodapé em O liberalismo político, p. 269: “A distinção entre público/não-público não
equivale à distinção entre público e privado. Ignoro a esfera do privado: uma razão privada é coisa que não
existe. O que existe é a razão social – as muitas razões de associações da sociedade que constituem a cultura
de fundo; [...].”
123
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 269.
124
Id. Ibid., pp. 269 e ss (referentes ao § 3).
125
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 175-176.
53
Além disso, tal razão é pública de três maneiras: como razão de cidadãos
livres e iguais, é a razão do público; seu tema é o bem público no que diz
respeito a questões de justiça política fundamental, cujas questões são de
dois tipos, elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica;
e a sua natureza e conteúdo são públicos, sendo expressos no raciocínio
público por uma família de concepções razoáveis de justiça política que se
pense que possa satisfazer o critério de reciprocidade.
Pela simples assertiva acima transcrita de que o tema é o bem público no que diz
respeito a questões de justiça política fundamental, ainda não se consegue obter uma chave
definitiva para a perfeita compreensão da forma pela qual a razão pública efetivamente se
comporta como tal. Isso se verifica, como dito acima, em O Liberalismo Político, recebendo
uma resposta mais completa (mediante a incorporação do elemento de razão secular) em A
Idéia de Razão Pública Revista.
A razão secular, semelhantemente à razão pública, também é efetuada pelos homens,
igualmente em relações políticas, porém não possui a peculiaridade da razão pública. Em
Justiça como eqüidade: uma reformulação, o autor aborda essa segunda espécie de razão,
lecionando:
É interessante verificar que, não obstante a razão secular conter valores políticos e
morais, assim como a razão pública, ela é destituída de um elemento fundamental da razão
pública, que é a concepção política de justiça. Dessa forma, nem todo discurso, por mais que
envolva questões públicas, e por mais discutido que seja em um fórum político público,
poderá ser concebido como uma discussão que envolva razão pública. Isto é, o espaço pode
ser público, o tema pode ser de interesse público 127 ; mas, se o tema não comportar discussões
126
Id. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 188.
127
Aqui concebido como um interesse geral da sociedade.
54
referentes a concepções políticas de justiça básica, a razão envolvida não será pública – no
máximo, secular.
Rawls, em A idéia de razão pública revista, chega a dar um conceito de razão secular
sem aprofundar-se, afirmando apenas como adotado por “alguns” como qualquer argumento
reflexivo e crítico, publicamente inteligível e racional, aplicado em discussões
comportamentais para considerar determinadas condutas como indignas ou degradantes 128 . De
toda forma, o importante é que o autor afirma a razão e os argumentos seculares como fora do
domínio do político 129 . Ou seja, é a razão humana utilizada em discussões não afetas a
questões de justiça básica ou sem a presença de elementos constitucionais essenciais –
próprios da discussão envolvida pela razão pública.
Assim se pode compreender, com maior precisão, o que Rawls afirma:
Assim, pode-se verificar que as formas pelas quais a razão pública se manifesta como
tal, são todas aquelas que comportarem os caracteres essenciais de justiça básica e de
elementos constitucionais essenciais:
Rawls does not propose that public reason regulate all debate and decisions;
in order to establish an overlapping consensus, the guidelines of public
reason need only apply to “fundamental matters” – for example,
constitutional essentials and questions of basic justice – and not to “our
personal deliberations and reflections about political questions. 131
O importante é frisar, desde já, que a razão pública, nada obstante se manifestar, nas
mais diferentes culturas, com conteúdos diferenciados, constitui-se dos mesmos elementos
128
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 195.
129
Como político aqui, entenda-se político público. Pois, como o próprio Rawls afirma em diversas passagens,
mesmo questões legislativas (com conteúdo nitidamente político) podem escapar da razão pública. Nesse
sentido, v.g., veja-se O liberalismo político, p. 263.
130
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 269.
131
YOUNG, Shaun P. Divide and Conquer: separating the reasonable from the unreasonable, in Journal of
Social Philosophy, vol. 32, no. 1, Spring 2001, p. 60. 2001: Blackwell Publishers.
55
formais (ou seja, tratará sempre de questões fundamentais da justiça) – caso contrário, ela
jamais poderá ser caracterizada como pública, por assim dizer.
Importante destacar desde já, a fim de facilitar a compreensão do tema, que a razão
pública diferencia-se nitidamente do ideal de razão pública.
Apesar de a razão pública ser carregada por um constante “dever-ser”, no sentido de
indicação de quais atitudes estatais sejam consideradas razoáveis pela sociedade como um
todo, ela possui uma função objetiva, de modos de agir. Ou seja: segundo a razão pública,
combater a corrupção é uma atitude legítima e razoável a ser tomada por dirigentes estatais.
O ideal de razão pública, por sua vez, é uma meta subjetiva que envolve o efetivo
cumprimento dos modos de agir considerados razoáveis pela razão pública. Ou seja: se o
Presidente da República combate a corrupção, ele está materializando o ideal de razão
pública, à medida que atende ao determinado pela razão pública. Nas palavras do próprio
Rawls:
Dessa forma, idéia e ideal de razão pública se relacionam, grosse mode, igualmente à
relação entre uma norma abstrata e uma conduta concreta que se lhe subsuma.
Outro aspecto interessante do ideal de razão pública é que, ao invés de ser concebido
como um apanhado de condutas consentidas como razoáveis pelas pessoas (onde se enquadra
a razão pública), o ideal se aproxima muito da noção de internalização de valores proposta
132
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 178.
56
por outros autores, como, por exemplo, Parsons. Nesse sentido, Rawls, respondendo a uma
pergunta que ele mesmo se questiona, afirma o seguinte:
Como o ideal de razão pública é concretizado pelos cidadãos que não são
funcionários do governo? (…) Para responder a essa pergunta, dizemos que,
idealmente, os cidadãos devem pensar em si mesmos como se fossem
legisladores, e perguntar a si mesmos quais estatutos, sustentados por quais
razões satisfaçam o critério de reciprocidade, pensariam ser mais razoável
decretar. Quando firme e difundida, a disposição dos cidadãos para se
verem como legisladores ideais e repudiar os funcionários e candidatos a
cargo público que violem a razão pública é uma das raízes políticas e
sociais da democracia, e é vital para que permaneça forte e vigorosa. Assim,
os cidadãos cumprem o seu dever de civilidade e sustentam a idéia de razão
pública fazendo o que podem para que os funcionários do governo
mantenham-se fiéis a ela 133 .
133
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 178-179.
57
Isso faz todo o sentido, pois o ideal de razão pública simboliza a concretização dos
valores contidos na razão pública. E, a partir do instante em que a razão pública abarca o
consenso político básico de uma sociedade constitucional bem ordenada (isto é, civilizada), o
dever de civilidade representa uma das características do ideal de razão pública – por ser uma
meta subjetiva, somente observável na adoção concreta de determinadas condutas.
Além disso, a função de apoio à razão pública existente no cumprimento do dever de
civilidade também se faz digna de nota, pois o dever de civilidade representa, em última
análise, o dever de cumprimento dos requisitos de uma determinada sociedade que
fundamenta sua existência em determinados valores e, portanto, reconhece-se como civilizada
a partir deles. Isso sugere um sistema de retroalimentação, segundo o qual as práticas
reiteradas de determinadas condutas tendem a ser cada vez mais assimiladas e difundidas
pelos integrantes da sociedade, reforçando, efetivamente, no campo político, um consenso
básico sobre posturas a serem seguidas (ou ao menos perseguidas) pelos demais. Isso se
mostra tão presente, que Rawls direciona a questão para a legitimação até mesmo do exercício
dos direitos políticos:
134
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, pp. 117-118.
135
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 266.
58
mas não jurídico. O próprio Rawls o afirma 136 , no sentido de que uma visão jurídica do dever
de civilidade (o que se estende, por óbvio, ao ideal de razão pública e mesmo à própria razão
pública) seria incompatível com a liberdade do discurso 137 .
A razão pública, nos moldes apresentados por John Rawls, possui aspectos básicos e
indissociáveis, sob pena de se desnaturá-la ou considerá-la inviável. São eles:
O estudo do tema pede – nada obstante a brevidade com que Rawls permeia esses
aspectos – um detalhamento de cada um dos componentes acima.
136
Veja-se acima, a equiparação do dever de civilidade a um dever moral, além da ênfase feita em sua Idéia de
Razão Pública Revista.
137
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 179.
59
138
Id. Ibid., pp. 176-177.
139
“Por definição, a estrutura básica é o sistema social global que determina a justiça do contexto social”. A
estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 21.
60
Uma vez localizada fora da esfera pública, a razão pública não se lhes aplica. Chega a
ser indesejado, nos casos não relacionados ao âmbito de imparcialidade política, que a razão
pública seja utilizada.
Vale destacar, nesse caso, o modo como Rawls concebe a esfera das discussões
culturais sociais (palco de contato, sobreposição e dissenso entre diversas experiências
pessoais), à parte das discussões políticas centrais (onde se pode aplicar um apanhado de
valores socialmente consentidos, reunidos na idéia de razão pública), e especialmente a
diferença entre a sua abordagem e a de Habermas sobre o mesmo tema.
No primeiro volume de sua obra Direito e Democracia: entre facticidade e validade,
Habermas não faz uma distinção desse tipo, abordando, sob a óptica do agir comunicativo,
todas as ações adotadas pelo Estado e pelos particulares, uns com os outros. Sua teoria não
distingue substancialmente aquilo que seria politicamente central ou não, apenas se referindo
ao mundo da vida.
Dessa forma, Habermas conceberia as discussões de idéias não-públicas (culturais de
fundo, segundo Rawls) na esfera pública, o que chegaria a justificar, de certa forma, o que
Zygmunt Bauman chama de “colonização do espaço público pelo privado”, com a
transformação do fórum público no palco para discussões de problemas privados de pessoas
140
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 190.
141
BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as
public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, pp. 101-
102.
61
públicas 142 . Tudo, para ele, seria uma questão de mundo da vida, podendo no máximo se
remeter a um subsistema jurídico ou outro qualquer, de acordo com o código especializado.
O próprio Rawls percebeu isso, chegando a fazer uma menção a Habermas, quando
sugere comparar suas divisões com a descrição feita pelo autor alemão sobre a esfera
pública 143 .
John Rawls chega ainda a traçar uma terceira esfera de cultura, que seria a cultura
política não-pública, responsável pela intermediação entre a cultura política pública (presente
no fórum político público) e a cultura de fundo. Pouco relevante para o presente trabalho,
apenas nos remeteremos à nota de rodapé em que o autor qualifica essa esfera intermediária
entre as culturas políticas pública e de fundo, como os “adequadamente denominados meios
de comunicação de todos os tipos: jornais e revistas, televisão e rádio, e muito mais” 144 .
142
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. São Paulo: Jorge Zahar, 2001, p.
46.
143
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 177.
144
Id. Ibid., p. 177.
145
Id. Ibid., pp. 174, 175 e 207.
146
Id. Ibid., p. 207.
62
um de seus vieses. Dessa forma, o ideal de razão pública pode ser atingido por um particular,
desde que este o faça com a finalidade de assegurar que o Estado adote os valores contidos na
razão pública; conseqüentemente, seu dever de civilidade restará plenamente satisfeito,
porquanto este particular efetivamente cumpriu com seu dever de proteger a razão pública.
Nesse sentido, veja-se a seguinte afirmação de Rawls:
147
Id. Ibid., p. 185.
63
pública, referindo-se apenas a uma participação dos cidadãos na construção desses valores e
ao reconhecimento, a partir dessa participação e do uso de determinados critérios, das normas
regulamentares de suas relações como legítimas.
Contudo, ocorre que, nos dizeres de Rawls, “a família é parte da estrutura básica, visto
que um dos seus papéis principais é ser a base da produção e reprodução ordenadas da
sociedade e da sua cultura de uma geração para outra” 148 .
Assim, enquanto estrutura básica da sociedade, a família é alvo da razão pública, em
sua constituição e características mais essenciais. Tal aplicação da razão pública não recairá
(por motivos já vistos) sobre os indivíduos da família, porém sobre a família como um todo,
pois “os princípios da justiça política devem aplicar-se diretamente a essa estrutura [social],
mas não devem aplicar-se diretamente à vida interna das muitas associações dentro dela, a
família dentre outras” 149 .
Isto significa, portanto, que as pessoas adquirem na família, tal como nas demais
instituições políticas públicas, uma dupla acepção de pessoa/cidadão e membro, cada uma das
quais se relacionando diferentemente com a razão pública, tendo seus desdobramentos
respectivos:
2.4.3 O conteúdo da razão pública, como dado por uma família de concepções políticas
razoáveis de justiça.
148
Id. Ibid., p. 206.
149
Id. Ibid., p. 208.
150
Id. Ibid., p. 209. Para o caso de quais questionamentos poderiam ser levados a cabo na família, veja-se
também de Rawls as pp. 206 e ss, em que o autor coloca na berlinda temas como a igualdade entre maridos e
esposas, os limites da ingerência sobre os filhos, a questão da união homossexual, dentre outras – sempre
refletindo a aplicação dos valores contidos na idéia de razão pública à instituição familiar.
64
Rawls pretende estabelecer uma apresentação da razão pública não somente como uma
forma de se conceituar formalmente determinados valores como públicos, em uma dada
sociedade. A razão pública possui efetivamente um conteúdo, que aponta para concepções
razoáveis de justiça.
Decerto que cada sociedade, com sua história, sua cultura, suas experiências e
peculiaridades conterá um determinado senso de justiça, considerado razoável por seus
cidadãos, motivo pelo qual o autor leciona:
151
Id. Ibid., pp. 185-186.
152
Id. Ibid., p. 179.
65
haveria uma razão pública, por assim dizer, mas sim uma razão prevalecente, a despeito das
opiniões e valores dos demais habitantes.
Soma-se a isso o caráter de identificação dos indivíduos com a razão pública: seria
inviável conceber a assimilação, por todos e por cada um, dos valores contidos na idéia de
razão pública, se ela representasse apenas a imposição de um grupo dominante. Ao contrário,
a construção dessa razão com base nos valores obtidos por todos, em uma relação de
igualdade, é condição precípua para a idéia de razão pública 153 .
Segue-se, daí, um questionamento formulado e respondido pelo próprio Rawls:
É daí que Rawls extrai, como resposta, a assimilação das normas como legítimas, que
vem a ocorrer com a internalização dos valores – a qual se faz acompanhar, por sua vez, de
um raciocínio reflexivo, denominado por ele de critério de reciprocidade.
Diz ele que os próprios cidadãos são considerados razoáveis quando se percebem
como iguais entre si em um sistema de cooperação social contínua, “ao longo de gerações”155 ,
preparando-se para oferecerem-se mutuamente termos justos de cooperação segundo o que
considerem ser a concepção mais razoável de justiça política. Mais do que simplesmente uma
cooperação, todavia (que sugere uma associação apenas para benefício dos cidadãos
envolvidos em uma determinada relação), Rawls afirma ser necessário que os cidadãos
concordem incondicionalmente em agir segundo aqueles termos de justiça, ainda que em
detrimento de seus interesses particulares, desde que os demais cidadãos aceitem esses
mesmos termos.
153
Veja-se, a respeito, o comentário feito por Rawls ao abordar o critério de reciprocidade. Além disso, se
estamos diante de um pressuposto teórico de uma democracia moderna, presume-se haver igualdade (não
apenas formal) entre os seus concidadãos.
154
Id. Ibid., p. 179.
155
Id. Ibid., p. 180.
66
Com isso, percebe-se como necessária uma efetiva solidariedade social, no sentido de
que a cooperação mútua prevalece sobre os interesses individuais, sendo possível mesmo que
uma pessoa aceite sair prejudicada em benefício da coletividade, desde que esse prejuízo seja
racionalmente considerado justo e se perceba que os demais cidadãos também se submeteriam
ao mesmo prejuízo, em situação semelhante.
Daí se vê claramente, portanto, que a internalização dos valores como condição para a
aceitabilidade das normas e o critério de reciprocidade, expostos a seguir, são não somente
respostas ao questionamento de viabilidade da razão pública, mas também representam
complementos e fecham a estrutura básica para a concepção da idéia proposta por John
Rawls.
A internalização dos valores pelos cidadãos é, para Rawls, fundamental para que a
idéia de razão pública se desenvolva concretamente e para que o sistema jurídico atenda a
essa mesma razão.
Apesar de não fazer menção aos autores que abordam essa assimilação dos valores
contidos nas normas como condição de aceitabilidade e manutenção do ordenamento jurídico,
Rawls os acompanha fielmente, utilizando-se até mesmo do método de projeção mental da
posição original para que os cidadãos se imaginem como criadores das normas e se
identifiquem com o resultado de sua imaginativa produção normativa 156 .
Diz ele, então, que o reconhecimento da norma legítima, portanto, somente pode
ocorrer no preenchimento de dois requisitos. O primeiro deles é que os funcionários
governamentais adequados (onde se pode entender os legisladores) obedeçam aos valores
contidos na idéia de razão pública. E o segundo, logicamente, é o teste empírico do
atendimento a esses valores, mediante a projeção mental feita pelos cidadãos:
156
A respeito, realçamos James Buchanan, contemporâneo de Rawls (ainda que numa vertente teórica mais
economicista), para quem “Uncertainty about just where one’s own interest will lie in a sequence of plays or
rounds of play will lead a rational person, from his own interest, to prefer rules or arrangements or
constitutions that will seem to be ‘fair’, no matter what final positions he might occupy”. – BUCHANAN,
James M. From private preferences to public philosophy: the development of public choice. In: ______.
Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000,
p. 46. Buchanan realça, dentre os autores que serviriam de base à teoria de Rawls, Adam Smith, David Hume
(apesar de Rawls afirmar sua ruptura com o utilitarismo) e os federalistas americanos. Id. Ibid., p. 54.
67
Daí se percebe, também, que deve haver uma pressuposição de que os legisladores
fizeram corretamente o seu trabalho, o que decerto envolve uma relação de confiança legítima
das pessoas com relação ao poder legislativo. Dessa forma, ainda que Rawls não se refira
expressamente a isso, para que a razão pública seja de fato exercida, é estritamente necessária
a confiança dos cidadãos nas leis, fazendo presumir sua legitimidade.
De todo modo, percebe-se que a aceitação da lei como legítima conduz
necessariamente à assimilação, porJ0.000.043o ár1o aDpú 0 Tc sr0Od(cval que Tw tid7a dos n615 9
68
concentram muito mais fortemente as questões políticas centrais a que Rawls se refere 161 . Ele
mesmo que “para serem razoáveis, as concepções políticas devem justificar apenas
constituições que satisfaçam esse princípio” 162 (o que significa que, quando a constituição não
possa mais ser justificada segundo a razoabilidade contida nos valores da razão pública, ela
deve ser repensada).
2.4.5 A verificação, pelos cidadãos, de que os princípios derivados das suas concepções de
justiça satisfazem o critério de reciprocidade.
Aqui, Rawls é ainda mais explícito em sua busca por uma solidariedade social como
base para a razão pública, referindo-se mesmo a uma “amizade cívica” como necessária para
sua teoria. Altamente didático nesse ponto, ele dispensa maiores comentários:
161
E, na verdade, segundo correntes teóricas contemporâneas, a Constituição deve ser entendida somente como
esse núcleo que aborda elementos estruturais do Estado e da sociedade. Nesse sentido, cf., dentre outros, Oscar
Vilhena de Vieira, bem como a discussão desenvolvida no capítulo 1.
162
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 181.
163
Id. Ibid., p. 181.
164
Id. Ibid., p. 182.
165
Realçando o efeito da reciprocidade sobre a participação na deliberação democrática pelos cidadãos,
Buchanan aduz que “[...] the polity, the state, seems to lay claim to all values held by its citizens, and,
particularly, this putative claim is held to be ‘legitimate’ if all citizens are somehow allowed access to equal
voices in the ultimate determination of state decisions”. – BUCHANAN, James M. Notes on politics as process.
In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v.
13, 2000, p. 74.
166
Tomou-se o cuidado de frisar o caráter político dessa igualdade, porquanto, numa sociedade capitalista onde a
lógica é de exclusão/inclusão social, nunca haverá igualdade econômica plena. Além disso, em diversas
69
O critério de reciprocidade exige que, quando esses termos 167 são propostos
como os termos de cooperação justa mais razoáveis, quem os propõe pense
também que é ao menos razoável que os outros os aceitem como cidadãos
livres e iguais 168 , não dominados, nem manipulados ou sob a pressão de
uma posição política ou social inferior 169 .
passagens o próprio Rawls identifica a razão pública como sendo puramente política, não contemplando outras
“doutrinas abrangentes” – as quais, como visto, englobam caracteres filosóficos e religiosos. Por exemplo,
recomenda-se a leitura da nota de rodapé constante de A idéia de razão pública revista, p. 180.
167
Termos de justiça política.
168
“[…] the Kantian hypothesis states that when behavior is recognized to affect others, these effects will be
taken into account and behavior adjusted as appropriate. The interests of others than the actor are included,
however, not out of ‘love’ as in the Christian ethic, but out of a form of enlightened self-interest which is based
on a generalized recognition of the reciprocity of social interaction”. – BUCHANAN, James M. Toward analysis
of closed behavioral systems. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan,
Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 35.
169
Id. Ibid., p. 180.
70
Isso é relativamente simples de se perceber e aponta para uma lógica: não seria
possível conceber uma razão pública, se o público não conhece a estrutura do processo
democrático, não conhece a magnitude dos problemas, não sabe quais os impactos das
propostas de solução para esses problemas – enfim, não sabe desenvolver um raciocínio
público, uma razão pública por assim dizer.
Daí se percebe que a razão pública só é concretamente viável de ser desenvolvida
quando a sociedade, como um todo, for politicamente consciente. Somente assim será
possível todo o percurso sugerido por John Rawls, cuja teoria, ainda que aceitando eventuais
divergências políticas entre as pessoas, exige que esses cidadãos raciocinem politicamente, a
ponto de enxergarem-se como legisladores e considerarem racionalmente a validade
normativa, bem como de enxergarem-se mutuamente como razoáveis e racionais 171 – o que,
numa sociedade educacional e informacionalmente desigual, é inviável.
Sem raciocínio político, portanto, a sociedade se torna irracional publicamente, não se
podendo aplicar qualquer idéia de razão pública – sendo, conseqüentemente, inviável
qualquer modo efetivo de democracia 172 –, porquanto inapta para avaliar o que seja ou não
racional, o que seja ou não justo, de fato.
Uma vez estudada a estrutura básica da idéia de razão pública, necessária se faz a
análise do conteúdo dessa mesma idéia – o que se faz logo adiante.
170
Id. Ibid., p. 184. A abordagem de Rawls sobre o acesso à educação é extremamente interessante e parece
mesmo ter sido direcionada para a realidade brasileira atual, pois logo em seguida ele dá como exemplo uma
proposta de reforma da previdência, que jamais poderia ser considerada válida por uma população pouco
esclarecida, fechando com a seguinte frase: “Na busca constante de dinheiro para financiar campanhas, o
sistema político é simplesmente incapaz de funcionar. Seus poderes deliberativos estão paralisados.” (Id. Ibid.,
p. 185).
171
Eis aqui uma outra conotação para o critério de reciprocidade dado por Rawls, porém ao qual ele mesmo não
se dedicou a desenvolver.
172
“Para um cristão moderno (diz Alberto Begum) a opção entre os regimes políticos ou os sistemas econômicos
e sociais obedece – antes de tudo – à vontade de respeitar em cada homem sua plena dignidade de pessoa, cujo
primeiro direito é o de Ver Claro. De aceitar ou de recusar, com todo o conhecimento, as regras do jogo. Fora
desta liberdade, ou desta maioridade cívica reconhecida a todos os membros da comunidade, nós não podemos
supor que possa existir outra coisa que a Tirania”. – BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval Tributário. 2a.
edição. São Paulo: Lejus, 2004, p. 21.
71
173
“Rawls, no entanto, não restringe a razão pública a essas “diretrizes de indagação” [de legitimidade de
normas ou condutas acerca de questões de justiça básica e elementos constitucionais essenciais]. O autor
entende que a função da razão pública é aplicar princípios de justiça previamente justificados. Estabelece-se,
assim, um vínculo necessário entre democracia e justiça. O objetivo da razão pública rawlsiana não é apenas
estruturar o processo democrático, mas também estabelecer princípios substantivos de acordo com os quais se
pode aferir se o resultado de tal processo pode ser considerado justo.” – SOUZA NETO, Cláudio Pereira de.
Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 119.
174
Como bem explicado por Rawls em O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São
Paulo: Ática, 2000, p. 276: “Tenha em mente que o liberalismo político é uma categoria de concepções. Adota
muitas formas, dependendo dos princípios substantivos usados e da forma pela qual as diretrizes de
investigação são estabelecidas. Essas formas têm em comum princípios de justiça substantivos que são liberais
e uma idéia de razão pública. Conteúdo e idéia podem variar dentro desses limites.”
175
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 185.
176
Essa ordem hierarquizada de importância, apesar disso não ser explicitado por Rawls, somente pode ser
atendida quando respaldada na atual concepção de força normativa dos princípios constitucionais, defendida,
dentre outros, por Konrad Hesse e Norberto Bobbio. Nesse sentido, veja-se CANOTILHO, José Joaquim
Gomes, Op. Cit., e BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Campus, 1992.
177
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 186; e O
liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, pp. 272-273.
72
178
MARTINI, Marcus de. Notas sobre o Neocontratualismo na Teoria da Justiça de John Rawls. Disponível
em: <http://www.ufsm.br/direito/artigos/filosofia-juridica/neocontratualismo_rawls.htm>. Acesso em: 24 jul.
2005.
179
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 276.
180
Id. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública
revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 186.
181
O próprio Rawls afirma, em O liberalismo político, p. 304, que “o conteúdo da razão pública é dado por uma
concepção política de justiça: esse conteúdo tem duas partes: princípios substantivos de justiça para a estrutura
básica (os valores políticos da justiça); as diretrizes de indagação e as concepções de virtude que tornam a
razão pública possível (os valores políticos da razão pública)”.
73
Assim se percebe como a idéia de razão pública não engloba apenas conceitos de
justiça processual ou procedimental, mas também substantivos 183 , comportando um mínimo
de conteúdo comum a todas as sociedades 184 .
Sem embargo, observando-se que somente pouquíssimos direitos e liberdades são
considerados essenciais à razão de razão pública – sendo os demais atribuídos por cada
sociedade, em razão de sua história, experiências e cultura –, nítido se mostra que a razão
pública não está adstrita aos ideais do liberalismo político, como uma amarra à sua concepção
favorita de justiça. Muito ao contrário, a flexibilidade espacial e temporal da razão pública é
necessária, como o próprio Rawls explica:
Essa não seria uma abordagem sensata. [...] Mesmo se relativamente poucas
concepções vêm a ser dominantes ao longo do tempo e uma concepção até
pareça ter um lugar central especial, as formas de razão pública permissíveis
sempre são muitas. Além disso, novas variações podem ser propostas de
tempos em tempos, e as antigas podem deixar de ser representadas. É
importante que seja assim; do contrário, as reivindicações de grupos ou
interesses resultantes de mudança social poderiam ser reprimidos e deixar
de ganhar voz política adequada 185 .
Até porque, aquiescer-se ao oposto implicaria, de certo modo, uma formulação única
de razão pública, constituída por valores, princípios, direitos e liberdades fixos, imutáveis e
que, por isso mesmo, constituiriam uma verdade política última, ou um modelo político ideal
a ser seguido pelas sociedades, em redor do mundo e ao longo dos tempos.
Essa verdade universal, no entanto, é absolutamente rejeitada por Rawls, o qual,
denominando-a verdade inteira, considera-a incompatível com a cidadania democrática e com
182
RAWLS, John. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, pp. 126 e 129.
183
Recomenda-se, ainda, a leitura de COHEN, Joshua. Pluralism and Proceduralism, in Chicago-Kent Law
Review, 69, n 3. Disponível em: <http://dspace.mit.edu/bitstream/1721.1/5445/1/Chicago-Law-Vol69-
No3.pdf>. Acesso em: 05 fev. 2007, o qual debate exatamente esse assunto e propõe mesmo uma união entre
as concepções procedimental e substancial de justiça em Rawls.
184
A essas liberdades, adiciona-se, por nossa conta, o direito à educação e à informação, como já exposto
anteriormente.
185
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 187-188. Isso
levaria, de acordo com uma interpretação de todo o pensamento de Rawls, ao fim da própria razão pública,
mediante sua transformação em razão de um grupo mais conservador, em detrimento dos demais.
74
a própria idéia de lei legítima 186 . E isso exatamente porque a acepção de razão pública com
conteúdo pronto envolve razões que nitidamente não foram compartilhadas por todos os
cidadãos como livres e iguais – o que também desnatura a razão como pública,
transformando-a em outro tipo de razão mais particularista, a qual podemos chamar de razão
doutrinária ou razão filosófica 187 .
Joshua Cohen, a respeito, responde:
Isso tudo resulta em um conteúdo objetivo mínimo na razão pública, exatamente para
que ela seja capaz de absorver toda a complexidade social e todas as diferenças culturais
existentes ao longo do tempo e no espaço onde se localiza determinada sociedade, sem abrir
mão de liberdades essenciais ao exercício da democracia deliberativa.
186
Id. Ibid., pp. 175 e 182.
187
Recomenda-se ainda, sobre o assunto, RAWLS, John. A teoria da justiça como eqüidade. In: ______. Justiça
e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 237 e ss., nas quais Rawls
traça uma distinção entre as diversas concepções de verdade filosóficas e as distingue da teoria política liberal
exatamente porque “o liberalismo enquanto doutrina política pressupõe que existem múltiplas concepções do
bem, conflitantes e incomensuráveis entre si, cada uma sendo compatível, até onde possamos julgar, com a
plena racionalidade dos seres humanos. Como conseqüência dessa hipótese, o liberalismo considera como um
traço característico de uma cultura democrática livre o fato de concepções do bem, conflitantes e
incomensuráveis entre si, serem defendidas pelos seus cidadãos”.
188
COHEN, Joshua. Pluralism and Proceduralism, in Chicago-Kent Law Review, 69, n 3, pp. 617-618.
Disponível em <http://dspace.mit.edu/bitstream/1721.1/5445/1/Chicago-Law-Vol69-No3.pdf>. Último acesso
em 05/02/2007.
75
O autor, até para absorver os ideais liberais políticos, reconhece como necessária
(mesmo para construção da razão pública) a existência do dissenso 189 . Isso porque, como já
visto anteriormente, uma sociedade altamente complexa, que defenda a liberdade de
instituições, naturalmente abarca uma pluralidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais
abrangentes e conflitantes entre si, que não possuem, por exemplo, a mesma noção de bem. A
respeito, José Fernando de Castro Farias afirma:
189
“É inevitável e muitas vezes desejável que os cidadãos tenham visões diferentes no que diz respeito à
concepção política mais apropriada, pois a cultura política pública está fadada a conter diferentes idéias
fundamentais, que podem ser desenvolvidas de formas diferentes. Um debate ordenado entre elas ao longo do
tempo é uma forma confiável de descobrir qual é a mais razoável, se alguma o é” (2000, p. 277).
190
FARIAS, José Fernando de Castro. Ética, Política e Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 189.
191
A respeito, veja-se a resposta de Rawls aos seus críticos em A idéia de razão pública revista, pp. 228-229,
item 6.4, donde destacamos: “A harmonia e a concórdia entre as doutrinas e a afirmação da razão pública pelas
pessoas não são, infelizmente, uma condição permanente da vida social. Antes, a harmonia e a concórdia
dependem da vitalidade da cultura política e de os cidadãos serem devotados e realizarem o ideal da razão
pública. Os cidadãos poderiam facilmente tornar-se amargurados e ressentidos, e passar a ignorá-lo assim que
já não pudessem perceber por que afirmar um ideal de razão pública”.
192
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 276.
76
Ou seja, o reconhecimento da lei como legítima traz um consenso mediato, pois torna
a norma aceita como razoável, enquanto pautada em critérios racionalmente justificáveis de
processo legislativo e de representatividade democrática.
Esse consenso mediato nos remete, por outro lado, à idéia de consenso justaposto
exposta por Rawls ao longo de sua vida, conforme a explicação de Farias:
193
“[...] as razões publicamente formadas tendem a produzir resultados passíveis de serem reconhecidos por
todos como legítimos, no sentido de que, independentemente da existência de um consenso unânime, os
cidadãos concordam o bastante para que a deliberação continue a desenvolver-se como atividade conjunta –
ainda que não atribuam valor de verdade aos mesmos”. – RICHE, Flávio Elias. Op. Cit., p. 20.
194
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 221-222.
77
195
FARIAS, José Fernando de Castro, Op. Cit., pp. 192-193.
196
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 223. Note-se que
isso é apenas uma justificativa para o fato socialmente observado de desobediência às normas, não consistindo
obviamente numa chancela para que as pessoas desobedeçam os preceitos normativos unicamente com base
em opiniões pessoais de discordância quanto ao texto legal. Mas serve como base, por exemplo, para iniciar
uma justificativa do desuso de uma determinada norma pelos cidadãos e mesmo pelo seus aplicadores.
197
Id. Ibid., p. 222.
78
[...] É claro que, para a razão pública chegar a uma resposta razoável num
determinado caso, não se requer dela que chegue à mesma resposta que
qualquer doutrina abrangente escolhida produziria, caso procedêssemos nos
baseando somente nela. Em que sentido, então, a resposta da razão pública
propriamente dita será razoável?
Respondamos: a resposta deve ser pelo menos razoável, quando não a mais
razoável, a julgar somente pela razão pública. Mas, além disso, e pensando
no caso ideal de uma sociedade bem ordenada, esperamos que a resposta
esteja na margem de segurança permitida por cada uma das doutrinas
abrangentes e razoáveis que constituem um consenso sobreposto. Ao falar
dessa margem de segurança, quero dizer o quanto uma doutrina pode aceitar,
ainda que relutantemente, as conclusões da razão pública, quer em geral,
quer em um caso particular. Uma concepção política razoável e efetiva pode
atrair doutrinas abrangentes para si, moldando-as, caso necessário, para que
de não-razoáveis se tornem razoáveis. Mas, mesmo supondo-se que essa
tendência ocorra, o próprio liberalismo político não pode exigir que cada
uma das doutrinas abrangentes deva encontrar as conclusões da razão
pública quase sempre dentro de sua margem de segurança. Essa exigência
transcende a razão pública 198 .
Isso tudo significa que o dissenso material imediato, pertinente ao conteúdo das
normas, chega a ser necessário para Rawls, dentro de um regime democrático de direito, dada
a complexidade e a pluralidade de culturas que permeiam as sociedades contemporâneas. O
que não se pode admitir, para ele, é o dissenso formal, que leva ao não reconhecimento da
norma como legítima e, conseqüentemente, faz aflorar a resistência pela força. Diz ele que a
resistência pela força é irrazoável: significaria tentar impor pela força a própria doutrina
abrangente que uma maioria dos outros cidadãos que seguem a razão pública não aceita, não
irrazoavelmente. Tal se dá porque, como diz o próprio autor:
198
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, pp.
297-298.
199
Id. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública
revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 223.
200
“Quando o liberalismo político fala de um consenso de sobreposição razoável de doutrinas abrangentes, ele
quer dizer que todas essas doutrinas, religiosas e não-religiosas, sustentam uma concepção política de justiça à
base de uma sociedade democrática constitucional cujos princípios, ideais e padrões satisfazem o critério de
reciprocidade. Assim, todas as doutrinas razoáveis afirmam tal sociedade com as suas correspondentes
79
mesmo contexto, sempre defendendo a idéia de tolerância política como modo de resolver os
conflitos:
instituições políticas: direitos e liberdades básicos iguais para todos os cidadãos, incluindo a liberdade de
consciência e a liberdade de religião. Por outro lado, as doutrinas abrangentes que não podem sustentar tal
sociedade democrática não são razoáveis. Seus princípios e ideais não satisfazem o critério de reciprocidade e,
de várias maneiras, deixam de estabelecer as liberdades básicas iguais”. Id. Ibid., p. 226.
201
Id. Ibid., pp. 231-232. Por esse terceiro motivo é que Rawls começa o parágrafo destacado afirmando que “há,
porém, limites à reconciliação pela razão pública”. Mesmo assim, como o julgamento também envolve um
gama de procedimentos reconhecidos como válidos, o próprio Rawls minimiza o problema, afirmando que “as
pessoas razoáveis reconhecem e aceitam as conseqüências dos ônus de julgamento, o que leva à idéia de
tolerância razoável em uma sociedade democrática”.
80
Pelo que se pôde verificar da razão pública até aqui, viu-se que a razão pública possui
elementos de justificação democrática substancial, segundo princípios republicanos. Essa
justificação possui elementos próprios de cada sociedade, mutáveis tanto geograficamente
(dadas as duas condições históricas) quanto temporalmente.
O fato é que, como método de justificação não apenas procedimental, mas
substancial 203 , a razão pública reforça a idéia da teoria de constituição de que, ao analisar-se o
“núcleo duro” da Constituição, “convém ter em conta que a estas cláusulas não se deve dar
uma amplitude muito grande, pois isto desvirtua seu papel no sistema constitucional. Elas
devem representar somente aquilo de mais essencial, somente os princípios fundamentais
[...]” 204 .
Ou seja, a fim de se resguardar a democracia (discussão já traçada anteriormente), é
necessário definir-se quais dispositivos constitucionais são de fato relacionados à participação
202
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, pp.
276-277.
203
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Consenso constitucional, neutralidade política e razão pública –
elementos de teoria da constituição em Rawls. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (coords.).
Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, pp. 195-196.
204
VARGAS, Alexis Galiás de Souza. A norma constitucional no tempo: direitos adquiridos e emenda à
Constituição. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem
ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 112.
81
205
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 179.
206
Id. A estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São
Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 14-15.
207
“A prioridade da liberdade implica, na prática, que uma liberdade básica só pode ser limitada ou negada a fim
de salvaguardar uma ou várias das outras liberdades básicas”. – Id. As liberdades básicas e sua prioridade. In:
______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 150.
208
Decerto que, nos dizeres do próprio Rawls, ao longo do tempo “mesmo numa sociedade bem ordenada são
sempre necessários ajustes à estrutura básica”, de modo a manter “uma estrutura básica justa”. – Id. A
estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo:
82
Martins Fontes, 2002, pp. 36-37. Entretanto, isso é tema diverso do abordado aqui, tocante à possibilidade de
reforma de cláusulas pétreas. Aconselhamos, para o caso, a leitura, dentre outros textos, de SARMENTO,
Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In: TAVARES,
Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos controvertidos.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
209
“Considere agora a família. Aqui, a idéia é a mesma: os princípios políticos não se aplicam diretamente à sua
vida interna, mas realmente impõem restrições essenciais à família como instituição, e assim garantem os
direitos e liberdades básicos, a liberdade e as oportunidades de todos os seus membros. Isso eles fazem, como
eu disse, especificando os direitos básicos dos cidadãos iguais que são membros das famílias. A família como
parte da estrutura básica não pode violar essas liberdades. Como as esposas são cidadãos em situação de
liberdade com os seus maridos, todas têm os mesmos direitos, liberdades e oportunidades básicas que os seus
maridos; e isso, juntamente com a aplicação correta dos outros princípios de justiça, é suficiente para assegurar
sua igualdade e eficiência”. – RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos
Povos seguido de “A idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2004, p. 209.
210
“Algumas pessoas podem pensar que o fato de definir as liberdades básicas com uma lista é um expediente
que deve ser evitado por uma concepção filosófica da justiça. Estamos habituados às doutrinas morais
apresentadas sob a forma de definições gerais e de princípios primeiros abrangentes. Assinalemos, contudo,
que, se podemos encontrar uma lista de liberdades que, quando essas liberdades estão integradas aos dois
princípios de justiça, levam os parceiros na posição original a se entenderem mais a respeito desses princípios
do que de outros, então se atinge o que podemos chamar de “a meta inicial” da teoria da justiça como
eqüidade. Essa meta é mostrar que os dois princípios de justiça permitem compreender melhor as
reivindicações ad liberdade e da igualdade numa sociedade democrática do que o fazem os princípios
primeiros associados às doutrinas tradicionais do utilitarismo, ao perfeccionismo e ao intuicionismo”. –
RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene
A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 146.
83
A resposta pode ser encontrada no próprio conteúdo da razão pública. Se ela possui
substratos materiais, claro que essa substância deverá ser considerada irrevogável em
qualquer constituição democrática.
Recapitulando, a razão pública pressupõe a preservação das seguintes liberdades
básicas: (i) liberdade religiosa; (ii) liberdade de expressão artística; (iii) idéias substantivas de
eqüidade; (iv) liberdade política; (v) liberdade civil; (vi) igualdade de oportunidades; (vii)
igualdade social; (viii) reciprocidade econômica; (ix) valores do bem comum; (x)
razoabilidade; (xi) respeito ao dever (moral) de civilidade; (xii) direito à instrução e
informação; (xiii) além das garantias dos exercícios dessas liberdades e valores (dentre as
quais, conforme exposto mais acima, consideramos estar o processo legislativo).
Além dessas liberdades, a própria democracia deliberativa pressupõe outras,
enumeradas por Rawls em As Liberdades Básicas e sua Prioridade 211 . Nessa obra, Rawls
considera como básicas, além daquelas liberdades explicitamente abordadas pela razão
pública, a liberdade de pensamento; a liberdade de consciência; as liberdades incluídas na
noção de liberdade e integridade da pessoa; e, finalmente, os direitos e liberdades protegidos
pelo Estado de Direito 212 .
Tais liberdades básicas “têm um valor absoluto em relação aos argumentos fundados
no bem público e nos valores perfeccionistas” 213 . Isso porque se tratam de liberdades ínsitas
ao exercício da própria democracia deliberativa.
Demais liberdades ficariam, portanto, de fora do centro irredutível e irreformável da
Constituição (com a ressalva da restrição de liberdades para a consagração de outras
liberdades básicas). Isso porque
211
Id. Ibid.
212
Id. Ibid., p. 145. Diz ainda, na p. 188, que “a posse dessas liberdades básicas define o status comum e
garantido dos cidadãos iguais numa sociedade bem ordenada”.
213
Id. Ibid., p. 149.
214
Id. Ibid., pp. 190-191. Grifamos do original.
84
215
Respeitando-se, inclusive, o lembrado por RICHE, Flávio Elias. Op. Cit., pp. 20-21, no sentido de que toda
deliberação pública deve atender ao menos três condições mínimas, sem as quais o uso público da razão
tornar-se-ia inviável: não-tirania, igualdade e publicidade.
85
216
Existem, além das normas relativas à seguridade social (arts. 194 a 204), dispositivos no ADCT/88 (arts. 33 a
42 e 71 a 94) relativos a questões pontuais do tema.
217
“A expressão ‘Estatuto do Contribuinte’ foi criada por Juan Carlos Luqui em 1953 e se refere ao grupo de
normas constitucionais que asseguram os direitos fundamentais do cidadão em matéria tributária”.
GRUPENMACHER, Betina Treiger. Tributação e direitos fundamentais. In: FISCHER, Octavio Campos
(coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 13. Recomenda-se ainda a leitura de
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 23 e ss.
218
Dizemos a maior parte, dada a presença de normas dessa espécie fora da referida Seção constitucional, como
a chamada “capacidade contributiva” do art. 145, §1o, da Constituição (chamada quase que unanimemente de
princípio da capacidade contributiva). Na verdade, a Constituição trata de capacidade econômica, o que não
convém ser confundido com a capacidade contributiva. Esse assunto será discutido mais à frente, no item
3.3.2.
86
What is a power, but the ability or faculty of doing a thing? What is the
ability to do a thing but the power of employing the means necessary to its
execution? What is a LEGISLATIVE power but a power of making
LAWS? What are the means to execute a LEGISLATIVE power but
LAWS? What is the power of laying and and collecting taxes but a
legislative power, or a power of making laws, to lay and collect taxes? What
are the proper means of executing such a power but necessary and proper
laws? […]
I have applied these observations thus particularly to the power of taxation,
because it is the immediate subject under consideration, and because it is
the most important of the authorities proposed to be conferred upon the
Union. 220
219
Roque Antonio Carrazza discorda até mesmo da expressão poder de tributar (manifestação do jus imperium).
Para ele, num Estado democrático de Direito há apenas a competência tributária (manifestação da autonomia
da pessoa política e, por isso mesmo, sempre sujeita ao ordenamento jurídico-constitucional). Op. Cit., pp.
469-470.
220
HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The federalist papers. New York: Bantam Books,
2003, p. 186. Destaques do original.
221
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 469.
222
Daí o dizer-se que “O poder financeiro ou soberania financeira do Estado, pois, radica no próprio art. 5o da
CF, ou seja, no direito de propriedade. A soberania financeira, que é do povo, transfere-se limitadamente ao
Estado pelo contrato constitucional, permitindo-lhe tributar e gastar. Não é o Estado que se autolimita na
Constituição, como querem os positivistas, senão que já se constitui limitadamente, no espaço aberto pelo
consentimento”. – TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13a. edição. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006, pp. 64-65. Apenas aduzimos que não só os positivistas traçam essa visão, como
alguns teóricos utilitaristas também o fazem, considerando que o direito de propriedade é pós-estatal, uma vez
que seus esquemas todos decorrem do modo pelo qual o Estado rege esse direito – motivo pelo qual descaberia
falar-se em limitação do poder de tributar pelo direito de propriedade. Esse assunto será retomado no item
III.3.5. De todo modo, por nos basearmos na doutrina de John Rawls para definição do núcleo irreformável de
limitações ao poder de tributar conforme o princípio democrático, seguiremos a concepção citada por Ricardo
Lobo Torres e acompanhada, dentre outros, por Sacha Calmon Navarro Coelho (Curso, p. 39) e Roque
Antonio Carrazza (Curso, pp. 82-83).
223
“Finalmente, as limitações constitucionais são dirigidas ao poder tributário, o que obscurece um dos maiores
problemas do direito atual, que é o de redefinir os limites da liberdade ou de impor limitações também aos
direitos fundamentais e, conseguintemente, às imunidades e aos privilégios fiscais, tendo em vista o novo
87
Ocorre que, por ser uma parte da Constituição destinada a refrear essa “mais
importante das autoridades conferidas ao Estado”, é comum entender-se-lhe, no meio técnico,
como uma segunda Carta de Direitos, particular à esfera da tributação, sobre a qual cabe
aplicar formalmente (apenas porque a Seção se destina a limitar a força estatal) o §2o do art.
5o – como se toda e qualquer disposição constante das limitações ao poder de tributar,
simplesmente por estar ali, fosse entendida como fazendo parte daqueles direitos “decorrentes
do regime e dos princípios por ela [Constituição] adotados”. Obviamente que, com isso,
consideram-se todas aquelas normas como cláusulas pétreas, a teor do art. 60, §4o, IV, da
Carta Política.
A questão se coloca ainda mais interessante se for observado o caput do art. 150, o
qual, bem ao modo do §2o do art 5o da Constituição, veda o exercício do poder tributário de
todos os entes da Federação segundo os parâmetros ali estabelecidos, porém “sem prejuízo de
outras garantias asseguradas ao contribuinte”.
relacionamento entre Estado e Sociedade”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional
Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 23.
224
“Em razão da soberania que o Estado exerce em seu território, dentre outros poderes, tem ele o poder de
tributar. Porém, no Estado democrático de Direito, onde todo o poder emana do povo, cabe aos constituintes
com representantes deste juridicizar o exercício do poder, de tal sorte que, no caso da tributação, o poder de
tributar se convola em direito de tributar, ou seja, no caso da Federação, cada esfera de governo somente
poderá instituir o tributo para o qual recebeu da Constituição a respectiva competência, competência esta que
terá que ser exercida dentro das limitações do poder de tributar”. – NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de
direito tributário. 14a. edição. São Paulo: Saraiva, 1995, pp. 119-120.
225
TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro:
Renovar, 1991, p. 127.
88
226
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 108. Discordamos da
posição do prof. Ávila ao dizer, em seguida, que as limitações “podem decorrer de dispositivos previstos fora
da Constituição mesma”, tendo em vista a própria natureza de outorga (e conseqüente limitação de ação)
legislativa dada pela Constituição. Ao editar a lei complementar que regula as limitações, por exemplo (caso
citado pelo autor), o legislador já está num momento posterior ao constitucional, exercendo sua competência
nos moldes definidos pela Constituição. A própria irrenunciabilidade da competência legislativa tributária já é
um sinal de que o legislador infraconstitucional não pode trazer novos limites a si mesmo. A respeito,
recomenda-se CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17a. edição. São Paulo: Saraiva,
2005, pp. 229 e ss., valendo frisar: “Uma vez cristalizada a limitação do poder legiferante, pelo seu legítimo
agente (o constituinte), a matéria se dá por pronta e acabada, carecendo de sentido sua reabertura em nível
infraconstitucional”.
227
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 110.
228
Isso porque “há três elementos essenciais na democracia deliberativa. Um é a idéia de razão pública, embora
89
considerado afeto à base da sociedade 229 . Assim, toda e qualquer norma (ainda que
constitucional) não poderá ser considerada elemento de justiça básica suficiente a ser erigida à
categoria de regra fundamental, de cláusula pétrea, nem pelos cidadãos e nem mesmo pela
Corte Suprema.
A questão se coloca de grande relevância se nos recordarmos que
Maior vulto toma ainda a questão, se nos apercebermos – conforme realçado no item
1.2 – que a Constituição de 1988 possui uma grande abertura conceitual no que toca a
fundamentalidade dos direitos e, ao mesmo tempo, apresenta nitidamente um texto
conjuntural, de ruptura simbólica com o cenário político anterior 231 .
229
Tal se dá, à medida que “nenhuma concepção moral geral pode fornecer um fundamento publicamente
reconhecido para uma concepção da justiça no quadro de um Estado democrático moderno. [...] uma vez que a
teoria da justiça como eqüidade é concebida como uma concepção política da justiça válida para uma
democracia, ela deve tentar apoiar-se apenas nas idéias intuitivas que estão na base das instituições políticas de
um regime democrático constitucional e nas tradições públicas que regem a sua interpretação”. – RAWLS,
John. A teoria da justiça como eqüidade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São
Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 204-205.
230
CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., pp. 4-5.
231
“Formulada num ambiente democrático, sob a influência de uma participação social jamais vista na história
legislativa e constitucional brasileira, a Constituição de 1988 também sofreu forte impacto de interesses
corporativos. Constituiu-se a partir de um compromisso maximizador entre os diversos setores da sociedade e
do Estado que detinham poder naquele momento. Ao invés de um compromisso apenas em torno de regras
fundamentais – sob as quais se deveria desenvolver o sistema político – e dos direitos fundamentais, houve um
compromisso imediato sobre várias questões substantivas secundárias, em que diversos setores organizados da
90
Por isso mesmo, o critério legitimador da razão pública (exatamente por se limitar à
estrutura básica da sociedade) é cabível como parâmetro de delimitação da esfera de
fundamentalidade das limitações constitucionais ao poder de tributar, enumeradas entre os
artigos 150 e 152 da Constituição, que confiram direitos subjetivos aos cidadãos-
contribuintes. Assim, somente aquelas regras constitucionais justificáveis mediante a razão
pública, poderão ser consideradas cláusulas pétreas 234 . Excluem-se, desse modo, os
dispositivos casuísticos, os privilégios pessoais 235 e aquelas proteções que não se voltem para
o núcleo do direito subjetivo tutelado – os quais ficam reservados à esfera da legislação 236 ,
fora do aspecto de fundamentalidade constitucional.
Rememorando o quanto dito no capítulo 2, tem-se como fundamentais, diante do que
preceitua a razão pública, as regras destinadas a proteger as seguintes liberdades básicas: (i)
liberdade religiosa; (ii) liberdade de expressão artística; (iii) idéias substantivas de eqüidade;
(iv) liberdade política; (v) liberdade civil; (vi) igualdade de oportunidades; (vii) igualdade
social; (viii) reciprocidade econômica; (ix) valores do bem comum; (x) razoabilidade; (xi)
respeito ao dever (moral) de civilidade; (xii) direito à instrução e informação; (xiii) além das
garantias dos exercícios dessas liberdades e valores (dentre as quais, conforme exposto mais
acima, consideramos estar o processo legislativo).
O procedimento de justificação pela imparcialidade política – a razão pública –, uma
vez aplicado sobre os dispositivos constitucionais referentes às limitações ao poder de
tributar, permite-nos tecer os seguintes comentários, especificamente quanto a cada regra
constitucional.
A relação entre tributos e direitos individuais não é desconhecida 237 . Muito pelo
contrário, sendo o tributo entendido como a principal fonte de receita estatal (e,
234
RAWLS, John. A teoria da justiça como eqüidade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 210-211.
235
“Se as liberdades básicas iguais para todos de certos cidadãos são cerceadas ou negadas, a cooperação social
baseada no respeito mútuo é impossível porque, como vimos, os termos eqüitativos são termos segundo os
quais, enquanto pessoas iguais, desejamos cooperar com todos os membros da sociedade durante toda a nossa
vida”. – RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de
Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 191.
236
“Todos os direitos legais e todas as liberdades legais outras que não as liberdades básicas, protegidas por
disposições constitucionais variadas [...], devem ser definidos na etapa legislativa [...]”. – Id. Ibid., p. 192.
237
“O Estado de Direito é um Estado de direitos fundamentais, com esta assertiva José Joaquim Gomes
Canotilho resume o Estado de Direito. Com efeito, os direitos fundamentais representam o instrumento de
realização concreta do processo de juridicização das relações entre Estado e contribuinte no mundo
contemporâneo. O Estado de Direito é o Estado da lei e da justiça (fim último do Direito) e os direitos
fundamentais consubstanciam a aspiração de justiça imanente nas sociedades modernas. Embora nela não se
esgote a sua função, a defesa das liberdades individuais perante o poder estatal representa o núcleo intangível
da idéia de direitos fundamentais”. – PONTES, Helenilson Cunha. O direito ao silêncio no direito tributário.
In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 81.
92
238
“Com efeito, o estado constitucional e de direito erigiu universalmente em matéria constitucional a declaração
dos direitos fundamentais do homem e do cidadão. Destarte, a matéria tributária – em suas linhas gerais, pelo
menos – haverá de ser tratada na Constituição. É que, por dúplice razão, esta se envolve diretamente com o
princípio da submissão do estado ao direito e com a liberdade e a propriedade individuais. A tributação é a
transferência compulsória de parcela da riqueza individual para os cofres públicos; daí sua conexão com a
propriedade. É também, forma de controle ou indução da liberdade individual, enquanto instrumento –
deliberado ou não – de estímulo ou desestímulo de comportamentos, quando não de compulsão”. – ATALIBA,
Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 10.
239
FISCHER, Octavio Campos. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental no direito tributário. In:
______ (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 280.
240
“Cada cidadão deve ter uma certa margem de liberdade, ligada nomeadamente ao mundo material, para
desenvolver livremente a sua pessoa, com e para os outros. Uma exagerada carga fiscal torna o Estado um
“proprietário” dos seus bens, dos seus rendimentos e, em última análise, da sua pessoa. Limitando as suas
escolhas, condicionando-o, depois de o privar dos seus bens, sobretudo da liberdade de dispor dos frutos da
sua pessoa/trabalho.” – CAMPOS, Diogo Leite de. A jurisdicização dos impostos: garantias de terceira
geração. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua
natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 104.
241
Ricardo Lobo Torres diz que a própria cidadania, em sua concepção moderna, “tem, entre os seus
desdobramentos, a de ser cidadania fiscal. O dever/direito de pagar impostos se coloca no vértice da
multiplicidade de enfoques que a idéia de cidadania exibe. Cidadão e contribuinte são conceitos coextensivos
desde o início do liberalismo”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 33.
242
“A humanização do direito, penetrada no campo do direito público, veio reconhecer que o indivíduo é
anterior ao Estado e ele é, afinal, no dizer de Esmein, a única entidade real, ativa, eficiente e responsável.
Organizou-se o Estado para assegurar o bem-estar do ser humano e não para prejudicar sua autonomia e
atividade, em proveito do Estado”. – NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da interpretação e da aplicação das leis
tributárias. 2a. edição. São Paulo: Bushatsky, 1974, p. 23. Por isso mesmo Ricardo Lobo Torres aduz que “o
tributo é o preço da liberdade, pois serve de instrumento para distanciar o homem do Estado, permitindo-lhe
93
exemplo), a manutenção desse ser artificial não pode ser tamanha a sufocar a própria
coletividade 243 , impondo prestações às quais a sociedade, custe o que custar, só caiba guardar
obediência 244 .
Assim, num regime democrático que entende a Constituição como “um documento
que regulamenta os elementos constitutivos do Estado, o corpo e a estrutura do Estado, a
particular maneira de ser do Estado; bem como a idéia de que é um instrumento que fixa os
limites de atuação estatal perante o indivíduo” 246 , esse diploma básico adquire o caráter de
estatuto social outorgante de competências tributárias a cada um dos entes que compõem a
Federação.
O exercício dessas competências, claro, não é ilimitado, dado que o Estado (e o
próprio tributo que o mantém) não é mais considerado como um fim em si próprio247 . Por isso
desenvolver plenamente as suas potencialidades no espaço público, sem necessidade de entregar qualquer
prestação permanente de serviço ao Leviatã. Por outro lado, é o preço pela proteção do Estado
consubstanciada em bens e serviços públicos, de tal forma que ninguém deve ser privado de uma parcela de
sua liberdade sem a contrapartida do benefício estatal”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito
Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 4.
243
“Mas essas liberdades são ambivalentes: ao se autolimitarem, abrindo-se à tributação, criam também
limitações ao exercício do poder financeiro do Estado, que não as poderá sufocar ou aniquilar”. – TORRES,
Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 63.
244
Essa noção de potestade pura e simples embasou a teoria da obrigação tributária enquanto relação de poder,
que encontrou adeptos no início do século XX. “O tributo se definia quase que exclusivamente em função da
lei: era a prestação ‘que a lei impõe em vista de certas hipóteses determinadas, sem que haja necessidade de
qualquer outro título para dar nascimento à obrigação’ [...]. Alguns juristas positivistas chegavam a dizer que
‘o dever geral de o sujeito pagar impostos é uma fórmula destituída de sentido e valor jurídico’”. – TORRES,
Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 233.
245
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 1-2.
246
LAMY, Marcelo. Sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. In: TAVARES, André Ramos et alii
(coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005,
p. 540.
247
“O direito tributário, sendo parte do direito financeiro, é meramente instrumental ou processual. Não tem
objetivo em si próprio, eis que dispor sobre tributos não constitui finalidade autônoma. O direito tributário vai
buscar fora de si o seu objetivo, eis que visa a permitir a implementação de políticas públicas e a atualização
dos programas e do planejamento governamental. O direito tributário, embora instrumental, não é insensível
aos valores nem cego para com os princípios jurídicos. Apesar de não serem fundantes de valores, o orçamento
94
e a tributação se movem no ambiente axiológico, eis que profundamente marcados pelos valores éticos e
jurídicos que impregnam as próprias políticas públicas. A lei financeira serve de instrumento para a afirmação
da liberdade, para a consecução da justiça e para a garantia e segurança dos direitos fundamentais”. –
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 42. Cf. ainda RODRIGUES, Marilene Talarico Martins. O tributo e suas finalidades. In:
MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de
Janeiro: Forense, 2007, p. 207.
248
BALEEIRO, Aliomar. Op. Cit., p. 2.
249
MARSHALL apud TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito tributário brasileiro. Vol. II. Tomo II.
Sistemas Constitucionais Tributários. Idealização de Aliomar Baleeiro. Flávio Bauer Novelli (coord.). Rio de
Janeiro: Forense, 1986, p. 454. Torres ainda aduz que “o relacionamento entre liberdade e tributo é dramático,
por se afirmar sob o signo da bipolaridade: o tributo é garantia da liberdade e, ao mesmo tempo, possui a
extraordinária aptidão para destruí-la; a liberdade se autolimita para se assumir como fiscalidade e se revolta,
rompendo os laços da legalidade, quando oprimida pelo tributo ilegítimo”. – Tratado de Direito
Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 5.
250
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 411-412.
251
A respeito, recomenda-se a leitura de ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da. Manual de Direito Financeiro
& Direito Tributário. 18a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 76-78.
252
Inicialmente esse consenso era pessoal e posteriormente foi conferido ao parlamento, na qualidade de
representante oficial da população. A respeito, cf. BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das
finanças. 16a. edição. Dejalma de Campos (atualizador). Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 411-423.
95
If the Federal Government should overpass the just bounds of its authority,
and make a tyrannical use of its powers; the people whose creature it is
must appeal to the standard they have formed, and take such measures to
redress the injury done to the constitution, as the exigency may suggest and
prudence justify. The property of a law in a constitutional light, must
always be determined by the nature of the powers upon which it is
founded. 254
Logo, fica claro que um Estado democrático de Direito precisa ter sua atividade
tributária baseada na Constituição – ou seja, no ajuste básico de regras acordadas pelos
cidadãos – e por ela limitada 255 .
Esses limites ao poder de tributar, entendidos como um freio político à ação estatal,
logicamente não redundam apenas na consagração de princípios morais destinados a proteger
a esfera de imparcialidade política do indivíduo. Existem determinados limites que se
justificam no próprio federalismo, não guardando relação direta com o cidadão em si. Existem
outros, ainda, que encontram esteio na separação dos poderes 256 . E existem ainda alguns que
253
TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro:
Renovar, 1991, p. 109.
254
HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The federalist papers. New York: Bantam Books,
2003. Op. cit., p. 187.
255
“Há, portanto, uma relação inextrincável entre os assim ditos direitos fundamentais e a atividade tributária.
Não se concebe, num Estado democrático de Direito, como aquele em que vivemos, que as competências
tributárias possam ser exercidas em desrespeito aos direitos fundamentais”. – ALVIM, Eduardo Arruda.
Apontamentos sobre o recurso hierárquico no procedimento administrativo tributário federal. In: FISCHER,
Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 31.
256
O prof. Ricardo Lobo Torres aduz que a separação de poderes “é uma das formas de garantia da liberdade. Os
poderes do Estado nascem limitados e divididos, posto que emanam do consenso ou do contrato entre os
titulares de certos direitos preexistentes. O consenso e as liberdades, por conseguinte, passam pelo crivo do
que Carl Schmitt denomina ‘princípio de organização’: ‘o poder do Estado (limitado em princípio) se divide e
se encerra em um sistema de competências circunscritas’”. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito
tributário brasileiro. Vol. II. Tomo II. Sistemas Constitucionais Tributários. Idealização de Aliomar Baleeiro.
Flávio Bauer Novelli (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 454. Todavia, sem embargo ao
96
se destinam a proteger o cidadão, mas que nem por isso significam uma proteção
inextrincável do regime democrático, por não afetarem o exercício da deliberação pelos
cidadãos.
Aí está o maior dos problemas no estudo das limitações ao poder de tributar: delimitar
quais delas são, de fato, regras garantidoras das liberdades básicas dos cidadãos, abstraindo-se
do mero formalismo constitucional que (como já visto no capítulo I) nitidamente prioriza o
bem sobre o justo e corre o risco de engessar o poder das gerações futuras em deliberar sobre
questões essenciais à democracia. Até porque, dada a importância do tributo para a
sobrevivência do próprio Estado, há discussões acerca dele que nitidamente envolvem
questões de justiça básica, porquanto comportam debates em torno de diversas liberdades
básicas, às vezes conflitantes, dos cidadãos, além da própria estrutura estatal.
A fim de facilitar a visualização, será exposta brevemente a forma pela qual a
Constituição da República expõe suas limitações ao poder tributário dos entes da Federação,
para, após, passar-se a uma abordagem mais pormenorizada daquelas que se destinam a
proteger liberdades individuais 258 .
posicionamento do autor, entendemos que a divisão de competências guarda uma relação indireta com o
indivíduo, dado que ela tem como objetivo imediato estruturar a República – e não propriamente conferir
liberdades aos indivíduos. Por isso mesmo, as regras constitucionais referentes a esse tema não serão estudadas
no presente trabalho.
257
HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 16a. edição. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 381-382.
258
Tendo em vista que a presente pesquisa destina-se a avaliar, ao cabdinto deizads limitação
97
A Constituição trata das limitações ao poder de tributar entre seus artigos 150 e 152,
os quais contêm a seguinte dicção:
Entrementes, é de se verificar que, no art. 150, os incisos I, II, III, IV, V (apenas no
que tange a liberdade de circulação de pessoas) e VI, b, c e d; e seus §§ 4o, 5o, 6o e 7o tratam
nitidamente de assegurar certas liberdades aos contribuintes. Por outro lado, o inciso V, ao
tratar da liberdade de circulação de bens 261 ; e o inciso VI, a, ao tratar da imunidade recíproca
entre os entes da Federação, destinam-se a resguardar a harmonia e a autonomia entre os entes
da Federação (não dizendo respeito diretamente ao indivíduo). Via de conseqüência, os
parágrafos relativos ao inciso VI, a (§§ 2o e 3o), igualmente não se identificam com liberdades
dos cidadãos.
No art. 151, por sua vez, mostram-se como pertinentes a liberdades individuais os
incisos I e II (quanto a este último, somente a parte final, ao abordar o tratamento tributário
dado pela União aos agentes públicos). O inciso II, em sua primeira parte, trata da tributação
pela União sobre obrigações de outros entes da Federação; e o inciso III, por sua vez, trata da
vedação de isenção heterônoma (não afetando diretamente nenhuma liberdade individual).
Por fim, o art. 152 também aborda, por um determinado aspecto, liberdade dos
cidadãos.
Diante da identificação acima, nota-se que dentre as limitações ao poder de tributar
encontram-se 4 regras básicas que não se relacionam com direitos subjetivos dos cidadãos: o
art 150, V, quanto à liberdade de circulação de bens; e VI, a (com seus §§ 2o e 3o
consectários); o art. 151, II, primeira parte; e o art. 151, III. Esses dispositivos dizem respeito
ao chamado federalismo fiscal, o qual, por se relacionar diretamente com a estrutura da
260
Id., A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, pp. 109-
110.
261
Tal dispositivo, conforme realçado por Ricardo Lobo Torres e Luiz Emygdio Fernandes da Rosa Jr., encontra
seu fundamento maior no federalismo (mediante a liberdade de comércio), inclusive por razões históricas. Cf.
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, pp. 117 e ss.; ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da, Op. Cit., p. 306, apoiado na obra retro.
100
Federação (e não com os cidadãos em si), não pode ser considerado objeto do presente
trabalho 262 .
3.3.1 A legalidade.
262
A respeito, vale destacar o primeiro compromisso constitucional em sede de pacto federativo, conforme
realçado por Garcia Pelayo (apud HORTA, Raul Machado. Constituições federais e pacto federativo. In:
TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso
Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 693): “Compromisso da repartição de competências, distribuídos os
poderes enumerados à União soberana e os reservados aos Estados autônomos”. Seja para o caso de usurpação
da competência (151, III), seja para preservar o livre exercício dos poderes reservados aos Estados – e também
municípios, na nossa estrutura federativa – autônomos (150, VI, a e §§ 2o e 3o; e 151, II, primeira parte), cabe
falar-se nesse compromisso federativo.
263
“El principio de legalidad excede, en la faz aplicativa, lo fiscal, y reconoce un alcance más amplio, en tanto
se exhibe como una de las características propias del Estado de Derecho; importa la subordinación del obrar
de la Administración a la ley; y resume, en el constitucionalismo contemporáneo, la concreción del ideario que
despertara con las revoluciones inglesa, francesa y norteamericana”. – CASÁS, José Osvaldo. El principio de
legalidad en materia tributaria. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional
Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 186.
101
direitos. Estes limites não podem ser estabelecidos senão pela lei” (art.
6o) 264 .
264
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 240.
265
MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. Vol. 2. 3a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
1997, p. 95.
266
Note-se que a preocupação do Constituinte foi maior quanto ao aumento deliberado de tributos (daí a
expressão “[...] ou aumentar [...]”; todavia, a própria expressão exigir já engloba qualquer tipo de exigência,
ainda que a menor, de tributos. “O princípio vige e vale em todo o território nacional, subordinando os
legisladores das três ordens de governo da Federação. Nenhum tributo (gênero), tirantes as exceções expressas,
pode ser instituído (criado) ou alterado (majorado ou minorado após criado) sem lei.” – COELHO, Sacha
Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9a. edição. Rio de Janeiro, Forense, 2006, pp. 221-
222. Sobre as exonerações tributárias, cf. mais adiante a abordagem sobre o § 6o do art. 150 da Carta.
267
“Para nós, o verdadeiro fundamento da repetição de indébito não repousa na parêmia de Pompônio, o
princípio do locupletamento indevido, mas no princípio da estrita legalidade que impõe a reposição do solvens
no status quo ante sempre que constatado o pagamento sem fundamento na lei”. – HARADA, Kiyoshi. Direito
Financeiro e Tributário. 16a. edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 383.
268
VIEIRA, José Roberto. Legalidade e medida provisória: mel e veneno. In: FISCHER, Octavio Campos
(coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 182.
102
Son las leyes y no los hombres que los que gobiernan. Mejor deberíamos
decir, es la Constitución que gobierna. Esta es una conquista del hombre
que fortalece el sistema democrático y protege al ciudadano contra los
posibles desajustes del mecanismo de la división de poderes, pues obliga al
Estado a cumplir con las normas dictadas por el poder al cual se le asignó la
facultad legislativa en el programa constitucional. 274
269
“Onde houver Estado democrático de Direito haverá respeito ao princípio da reserva de lei em matéria
tributária. Onde prevalecer o arbítrio tributário certamente inexistirá Estado de Direito. E, pois, liberdade e
segurança tampouco existirão”. – COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro.
9a. edição. Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 213. Por isso mesmo, Roque Antonio Carrazza considera que o
dispositivo específico em sede de tributação seria dispensável, por ser implícito ao princípio genérico da
legalidade. Curso, p. 243.
270
Art. 154, II, da CRFB, que exige um cenário de guerra externa para sua instituição.
271
Art. 148 da CRFB, que exige cenários de calamidade pública, guerra externa (inciso I), ou crise social ou
econômica (inciso II) para sua instituição.
272
“Alguns autores entendem que, para a conquista do Estado de Direito, basta o submetimento do Poder
Executivo à lei. Pensamos que há um pouco de exagero nisso. [...] isto, só, não nos conduz ao Estado de
Direito, entendido como aquele em que as liberdades fundamentais estão reconhecidas no texto constitucional,
não podendo ser desmentidas ou menoscabadas por normas de inferior hierarquia”. – CARRAZZA, Roque
Antonio. Op. Cit., p. 240.
273
“Não basta ao Direito Tributário que o imposto seja criado por lei formal; é necessário, ainda, que tal lei seja
compatível com a Constituição”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 417.
274
ALTAMIRANO, Alejandro C. Legalidad y discrecionariedad. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.).
Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 155.
103
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104
administrativos 281 (ainda que atos normativos) e judiciais. É também preciso dizer de sua
relatividade principiológica, dado que
281
“Este principio, en su concepción inglesa, nos proyecta a la ley como ‘producto de justicia’ más que la
voluntad política soberana. Fundamentalmente importa la sumisión de la administración a la ley, no está la
administración predeterminada o delimitada por la ley sino cometida a la ley.” – ALTAMIRANO, Alejandro
C. Op. cit., p. 153.
282
“A interação entre a jurisprudência e a legislação enfraquece a tese do primado da lei e pode ser estudada a
partir dos seguintes pontos de vista: a) da normatividade tributária, ou seja, da inserção da jurisprudência no
processo de concretização do direito; b) das fontes do direito tributário, em que o STF, por intermédio da ação
declaratória de inconstitucionalidade, desconstitui a lei e pratica ato da mesma natureza desta; c) da
incorporação da jurisprudência, aparecendo a legislação como fruto de antecipações pretorianas; d) da
correção legislativa da jurisprudência, levada a efeito pelas emendas constitucionais e pelas leis
complementares; e) da judicialização da política tributária”. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito
Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 441 e ss.
283
Id. Ibid., p. 435. Isso, explica o autor logo em seguida, não se confunde com “o exercício da mera atividade
discricionária, sendo antes complementação do fato gerador definido em lei”.
284
“A Constituição reforçou a competência exclusiva do Poder Legislativo para criar ou aumentar tributos,
consagrando, assim, a idéia de autotributação. Esta – como melhor veremos nos próximos itens – se
manifesta: a) no consentimento dos representantes das pessoas que devem suportar os tributos; e b) na estrita
vinculação à lei, [...]. Com tais medidas, os contribuintes tiveram melhor salvaguardado o direito de
propriedade, contra o qual a tributação, de algum modo, investe”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p.
244.
285
Vale a pena trazer a crítica tecida por Diogo Leite de Campos a esse pensamento, no sentido de que “diz-se
(“finge-se”): os impostos são criados pelo povo através das suas assembléias representativas. Salvaguarda-se,
portanto, pelo menos formalmente, a vontade popular como definidora de contribuições; ocultando-se a
vontade de poder dos governantes por detrás dos impostos. E afastam-se os cidadãos do cumprimento
espontâneo das leis, com diminuição do seu lealismo ao substituir-se a obrigação livremente consentida pela
força”. – CAMPOS, Diogo Leite de. Op. Cit., p. 90. A crítica encontra eco na tese de que só a democracia
deliberativa, em que seja efetivamente assegurado a todos os cidadãos iguais condições de acesso à prática
democrática, pode permitir o gozo real de liberdade pelos indivíduos. Nesse sentido, cf. o cap. I da presente,
em que se traçam distinções entre o regime meramente representativo e o democrático-deliberativo.
286
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 230.
287
“Por outro lado, é da essência de nosso regime republicano que as pessoas só devem pagar os tributos em cuja
cobrança consentirem”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 244. No mesmo sentido, DERZI, Misabel
Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a.
105
edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 91. Relacionando a
legalidade à soberania popular e à exaltação da cidadania, frisamos PESTANA, Márcio. Op. Cit.p. 72.
288
“Logo, parece óbvio, que a consagração do princípio da legalidade tributária não é desprestigiada pela
superação das teorias ligadas ao positivismo formalista que recomendam a vinculação absoluta do aplicador do
direito à norma”. – RIBEIRO, Ricardo Lodi. A segurança dos direitos fundamentais do contribuinte na
sociedade de risco. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos
em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 759.
289
RIBEIRO, Ricardo Lodi. A constitucionalização do direito tributário. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de;
SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações
específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 988-989.
290
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 121.
291
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9a. edição. Rio de Janeiro:
Forense, 2006
106
tornar-se maior ou menor, por outra via. O tributo só existe se criado por lei
e na medida por ela criada 292 .
Destaca-se, também, a exigência de que a lei que concede exonerações tributárias deve
ser específica – ou seja, relativa exclusivamente à exoneração em si, ou pelo menos ao(s)
tributo(s) ao(s) qual(is) ela se refere. Tal determinação tem um objetivo que “só é totalmente
compreendido quando conhecidas suas razões históricas: no passado, foram aprovados muitos
benefícios fiscais pelo Poder Legislativo, sem qualquer discussão, em virtude de constarem de
leis que tratavam assunto estranhos ao Direito Tributário” 293 .
Por tudo isso, verifica-se que a necessidade de lei para exigência, majoração ou
exoneração de tributos (art. 150, I e § 6o) integra a razão pública 294 , como espelho da
aprovação dos contribuintes quanto à tributação, ou a positivação do preceito no taxation
without representation 295 .
Por outro lado, a exigência de que a lei que concede exonerações tributárias seja
específica (art. 150, § 6o), mostra-se mais como um mero critério técnico-normativo que não
toca propriamente a esfera de imparcialidade política do cidadão.
Interessante ainda observar que o referido § 6o traz uma exigência extra em sede de
ICMS, além da simples lei, a ser cumprida pelo ente federativo competente. A norma
constitucional exige que, tratando-se de benefícios fiscais referentes ao ICMS, antes que o
ente competente edite a lei exonerativa, ele deve ser autorizado pelos demais Estados e pelo
Distrito Federal a promulgar a referida lei (art. 155, §2o, XII, g).
Essa regra serve para evitar o que se convencionou chamar de “guerra fiscal” entre os
entes competentes para instituir o ICMS, determinando que haja uma anuência unânime pelos
demais entes para que uma exoneração seja considerada regular.
292
NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da interpretação e da aplicação das leis tributárias. 2a. edição. São Paulo:
Bushatsky, 1974., p. 24.
293
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 129.
294
“Essa nova legalidade vai buscar uma regra de tributação clara e transparente, obtida numa arena marcada
pelo pluralismo político e influenciada pela razão comunicativa, a partir de uma solução compromissória entre
os destinatários dos vários segmentos de contribuintes. Para tanto, essa regra deverá ser capaz de se sobrepor
aos interesses dos grandes contribuintes, dotados de sofisticados estratagemas para o afastamento dos tributos,
a fim de garantir o triunfo da política sobre o domínio exclusivo da economia”. – RIBEIRO, Ricardo Lodi. A
segurança dos direitos fundamentais do contribuinte na sociedade de risco. In: SARMENTO, Daniel;
GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo
Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 757.
295
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito tributário brasileiro. Vol. II. Tomo II. Sistemas Constitucionais
Tributários. Idealização de Aliomar Baleeiro. Flávio Bauer Novelli (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 1986, p.
157.
107
Por isso mesmo, verifica-se que, nada obstante tratar-se de uma única regra (§ 6o do
art. 150) que exige lei para a exoneração de tributos das mais diversas espécies, a exigência de
concordância unânime pelos Estados para a concessão de benefícios fiscais relativos ao
ICMS, não toca propriamente a liberdade dos cidadãos nem envolve deliberação individual
sobre a matéria. Conseqüentemente, é de se considerar questão não afeta à razão pública, por
refletir muito mais uma preocupação de cunho econômico com relação a atitudes irrazoáveis
eventualmente adotadas pelos entes competentes para reger o ICMS – a chamada guerra
fiscal.
O princípio da legalidade encontrou ainda um outro dispositivo constitucional,
inserido na Constituição pela mesma Emenda nº 03/1993, que é o § 7o do art. 150.
O referido parágrafo também exige lei para a ocorrência da chamada substituição
tributária progressiva, que nada mais é do que a eleição, pelo legislador, de terceiro
vinculado ao fato gerador da obrigação tributária, para recolher imposto ou contribuição em
nome do contribuinte, relativamente a negócios jurídicos que ainda estão para ocorrer.
O referido dispositivo sofreu severas críticas por parte da doutrina, que considera
representar a “negação dos pressupostos do princípio da legalidade tributária e de diversos
outros postulados do capítulo das limitações ao poder de tributar” – especialmente o fato de
que “o princípio da legalidade exige a prévia definição do fato que, se e quando ocorrer, dará
nascimento ao tributo” 297 .
Todavia, no que toca a legalidade em si, há de se frisar que o § 7o do art. 150 da CRFB
não a fere; ao contrário, ratifica-a, porquanto exige que uma imposição tributária
296
Id., Comentários à Constituição de 1988, pp. 233-234.
297
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 12a. edição. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 115. Aproveitamos
para retificá-lo no sentido de que as limitações ao poder de tributar encontram-se em uma Seção de um
capítulo constitucional – não propriamente num capítulo em si.
108
especialíssima (em que se atribui um novo sujeito passivo à relação jurídica) só pode surgir
em virtude de lei. A crítica doutrinária quanto à antecipação do fato gerador, por sua vez, não
encontra guarida no seio constitucional, porquanto não há nenhum preceito que exija a
realização do fato gerador, in concreto, para a posterior incidência da lei tributária que o
antecede.
A legalidade em si não contém esse pressuposto de ordem temporal. Uma coisa é dizer
que a lei deve existir antes da ocorrência do fato gerador, que é o princípio da irretroatividade
– o qual será visto adiante. Outra é dizer que, para que seja possível a incidência da norma
tributária, o negócio jurídico que concretiza o fato gerador já deve ter sido celebrado e
concretizado. Sobre essa segunda afirmativa, vale relembrar que, para a ocorrência da
tributação é necessária a realização do fato gerador, até mesmo como pressuposto lógico da
subsunção tributária; todavia, nada impede que, quando as circunstâncias fáticas fazem
presumir que terceiros promoverão novo fato gerador do tributo, antecipe-se a tributação –
claro, com a previsão expressa de que o dinheiro será restituído caso esse novo fato gerador
não aconteça (como o faz o § 7o do art. 150 da Constituição) 298 .
Exatamente pelo fato de que a definição de um responsável pela obrigação tributária
principal modifica a essência da relação jurídica tributária, ao inserir um terceiro na relação
original existente entre o cidadão-contribuinte e o Estado, consideramos que o referido
parágrafo atende a razão pública. Até porque, nesse caso, o tributo será formalmente exigido
do responsável por substituição, integrando a regra geral do art. 150, I, da Constituição.
3.3.2 A isonomia.
298
Não adentraremos aqui na polêmica quanto à constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 03/1993 a
respeito da substituição tributária progressiva. Recomenda-se, para tanto, dentre outros, a leitura de
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2006.
299
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito [...] à igualdade, [...], nos seguintes termos:”. Cf.
FERRAZ, Sérgio. Tributo e justiça social. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo – reflexão
multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 295.
109
300
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 341. No mesmo sentido o Acórdão da ADI 3105, no qual o plenário do STF
entendeu que “o princípio constitucional da isonomia tributária (...) é particularização do princípio
fundamental da igualdade”.
301
AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 135.
302
Interessante visão de Buchanan, para quem a igualdade é utilizada mais facilmente para identificar violações
do que para atingir uma definição específica. BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of
public choice theory. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan,
Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 108.
303
“Ao positivar a regra segundo a qual todo cidadão deve ser tratado pelo Estado como um igual, e não como
diminuído ou aumentado em seu status de cidadão em relação a outros indivíduos, o constituinte estabeleceu
um conceito fundamental da filosofia política do Estado de Direito”. – GODOI, Marciano Seabra de. Op. Cit.,
p. 165.
304
RAWLS, John. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 7.
110
É ainda de destaque que os valores sociais do bem comum também se relacionam com
a isonomia 306 . Uma sociedade que não preze pela igualdade não pode, logicamente, visar ao
bem comum, sendo excludente e oligárquica por natureza.
Somente por intermédio da isonomia, portanto, pode-se cogitar da possibilidade de
igualdade social entre os cidadãos.
Ademais, o art. 151 da Carta, em seus incisos I e II (in fine), exige que a União tribute
uniformemente as pessoas e coisas localizadas nas diversas áreas do território nacional 307
(com ressalva expressa da distinção regional com função desenvolvimentista), assim como
seus servidores públicos não podem ter sua renda nem proventos tributados de modo diverso
dos servidores dos demais entes da Federação 308 .
O artigo 152, por sua vez, estende a determinação de uniformidade geográfica na
tributação para as exações instituídas por Estados, Distrito Federal e Municípios.
305
DANNER, Leno Francisco. Democracia e justiça social: um argumento a partir da utopia realista de John
Rawls. Porto Alegre, 2006. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. Disponível em:
<http://www.pucrs.br/pgfilosofia/2007Leno-ME.pdf >. Acesso em 28 abr. 2007, pp. 29-30. Com isso, afeta-se
o segundo aspecto das bases de cooperação social desenvolvida por Rawls, que são parte da estrutura básica da
sociedade na democracia deliberativa: “Constata-se que uma sociedade democrática é tida como um sistema
de cooperação social pelo fato de que, de um ponto de vista político e no contexto da discussão pública das
questão básicas de justiça política, seus cidadãos não consideram sua ordem social uma ordem natural fixa, ou
uma estrutura institucional justificada por doutrinas religiosas ou princípios hierárquicos que expressam
valores aristocráticos. Eles tampouco acham que um partido político possa, de boa-fé, propor em seu programa
a negação dos direitos e liberdades básicos de qualquer classe ou grupo reconhecido”. – RAWLS, John.
Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003,
p. 8.
306
“O Direito, porém, não visa a ordenar as relações dos indivíduos entre si para satisfação apenas dos
indivíduos, mas, ao contrário, para realizar uma convivência ordenada, o que se traduz na expressão ‘bem
comum’. O bem comum não é a soma dos interesses individuais, nem a média do bem de todos; o bem
comum, a rigor, é a ordenação daquilo que cada homem pode realizar sem prejuízo do bem alheio, uma
composição harmônica do bem de cada um com o bem de todos. Modernamente, o bem comum tem sido visto
– e este é, no fundo, o ensinamento do jusfilósofo italiano Luigi Bagolini – como uma estrutura social na qual
sejam possíveis formas de participação e de comunicação de todos os indivíduos e grupos”. – REALE,
Miguel. Lições preliminares de direito. 27a. edição. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 59.
307
“Garantizar una mínima uniformidad en el deber de contribuir es garantizar una uniformidad en las
condiciones de vida, sin que ello deba ser incompatible con el reconocimiento de capacidad normativa a los
demás entes territoriales a los que se atribuye autonomía financiero-tributaria”. – NOVOA, Cesar García. El
principio de no discriminación em matéria tributaria. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de
Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva,
2005, p. 354.
308
Esse dispositivo tem razões históricas no direito brasileiro, em virtude do favorecimento a algumas classes de
servidores federais no ordenamento constitucional anterior. Cf., a respeito, TORRES, Ricardo Lobo. Tratado
de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; e
PESTANA, Márcio. O princípio da imunidade tributária. São Paulo, RT, 2001.
111
Há quem diga que os artigos 151, I e 152 não digam respeito propriamente à isonomia,
mas ao federalismo 309 . Discordamos dessa posição, porquanto o beneficiário da norma não é
o ente da Federação, mas sim os particulares ali localizados, que não podem ter suas
liberdades restringidas sem uma justificativa plausível. “Sin embargo, la existencia de la
autonomía y la posibilidad de las Comunidades Autónomas de introducir diferenciaciones en
ciertos impuestos no excluye que se pueda formular un principio de ‘no discriminación’ como
consecuencia del contraprincipio de ‘desigualdad tributaria’” 310 .
A amplitude do princípio, como qualquer direito fundamental, é a máxima possível;
porém, como todos os demais princípios constitucionais, a isonomia não pode ser considerada
absoluta, sendo ponderável com outros que com ela coexistem. Daí que o direito à igualdade
admite distinções de tratamento entre contribuintes de mesma situação (privilégios 311 ou
discriminações), porém se e somente se estas não se revestirem de um caráter odioso 312 – isto
é, sem justificativa plausível.
309
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 378.
310
NOVOA, Cesar García. Op. Cit., p. 353.
311
“O privilégio, tanto o ódios quanto o legítimo, é autolimitação porque o próprio ente tributante limita o
exercício de sua competência”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 367.
312
TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro:
Renovar, 1991, pp. 129 e ss.
313
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3a. edição. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 21.
314
A igualdade enquanto vedação ao arbítrio é atribuída a Leibholz. Cf. TABOADA, Carlos Palao. El principio
de capacidad contributiva como criterio de justicia tributaria: aplicación a los impuestos directos e indirectos.
In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem
a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 285 e ss.
112
315
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 487.
316
“No campo da tributação, [...] essa noção de justiça não tem sido, e dificilmente teria podido ser, formulada
sempre de um mesmo modo”. – MOTA FILHO, Humberto Eustáquio Cesar. Introdução ao Princípio da
Capacidade Contributiva. Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 47.
317
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 369.
318
“Todos os homens nascem iguais, com as mesmas possibilidades de iniciativa, não podendo ninguém se
colocar em situação vantajosa em relação aos demais. O essencial, conforme o princípio, é the equal
protection of the law, a egalité des conditions, a equal opportunity para todos”. – MORAES, Bernardo Ribeiro
de. Op. Cit., p. 112.
319
“De fato, o princípio republicano exige que os contribuintes (pessoas físicas ou jurídicas) recebam tratamento
isonômico. A lei tributária deve ser igual para todos e a todos deve ser aplicada com igualdade. Melhor
expondo, quem está na mesma situação jurídica deve receber o mesmo tratamento tributário. Será
inconstitucional – por burla ao princípio republicano e ao da isonomia – a lei tributária que selecione pessoas,
para submetê-las a regras peculiares, que não alcançam outras, ocupantes de idênticas posições jurídicas”. –
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 78-79. No mesmo sentido, PILATTI, Adriano. O princípio
republicano na Constituição de 1988, in Cadernos de Soluções Constitucionais, vol. 1. São Paulo: Malheiros,
2003, pp. 13 e ss; e MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 115.
320
“[...] o princípio da igualdade é vazio, recebendo o conteúdo emanado dos diversos valores e harmonizando-
lhes as comparações intersubjetivas. A igualdade é o tema fundamental do constitucionalismo e penetra, como
medida, proporção ou razoabilidade, em todos os valores e princípios, dando-lhes a unidade e a legitimação
pragmática. Participa, portanto, das idéias de justiça, segurança e liberdade, sendo que no concernente a esta
última, aparece tanto na liberdade negativa quanto na positiva, como condição da liberdade, a assegurar a
todos a igualdade de chance (= liberdade para ou real). Na mais importante das formulações da igualdade na
filosofia do direito hodierna John Rawls a coloca na mesma equação com a liberdade, a justiça e a segurança,
expressa nos seguintes princípios: ‘Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual à mais ampla liberdade
básica compatível com a liberdade similar dos outros; segundo: as desigualdade sociais e econômicas devem
ser combinadas de forma que ambas (a) correspondam à expectativa razoável de que trarão vantagens para
todos e (b) que sejam ligadas a posições e órgãos abertos a todos’”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de
Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 346-
347.
113
que a lei deve ser aplicada igualmente para todos, sem distinções injustificadas
democraticamente (ou, em outras palavras, que o legislador não deve agir arbitrariamente,
com excesso ou desproporção 322 ). Carece, portanto, de critérios para sua efetivação 323 , que
produzirão a chamada igualdade material (ou seja, resultante) entre os indivíduos.
321
“O conceito de igualdade fiscal, vazio que é, recebe o seu conteúdo dos princípios constitucionais vinculados
à idéia de justiça”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário.
Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 349.
322
Id. Ibid., p. 344.
323
“A pretensão de eficácia do princípio da igualdade exige que todas as manifestações relevantes dos
contribuintes sejam atingidas. Daí a exigência de universalidade”. – CALIENDO, Paulo. Da justiça fiscal:
conceito e aplicação. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário –
estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 409.
324
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 350.
325
“Mas a uniformidade e a generalidade, em grupos sociais profundamente heterogêneos na sua composição
interna, entendem-se para os indivíduos que estejam dentro do mesmo quadro de circunstâncias e condições,
pois não há maior iniqüidade do que tratar igualmente criaturas desiguais”. – BALEEIRO, Aliomar. Uma
introdução à ciência das finanças. 16a. edição. Dejalma de Campos (atualizador). São Paulo: Saraiva, 2003, p.
234.
326
“Formalmente la igualdad supone existir el mismo tratamiento a situaciones iguales lo que, al mismo tiempo,
exige implementar un tratamiento desigualdad; tratar desigualmente a los desiguales. La cncepción formal de
la igualdad, por tanto, impone también tratamientos desiguales”. – NOVOA, Cesar García. Op. Cit., pp. 339-
340. No mesmo sentido, BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory.
In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund,
v. 13, 2000, p. 108, para quem “In my view, an argument can be made to to the effect that flat-rate
proportionality meets the generality norm more adequately than the head tax”.
114
medida tratar os desiguais de modo desigual? 327 Até que ponto a desigualdade é tolerável na
equação da igualdade 328 ?
A aferição disso é tarefa das mais melindrosas, devendo ser efetuada caso a caso, de
acordo com as características peculiares de cada situação 329 .
No entanto, decerto que deve haver critérios para que o legislador 330 (não mais o
aplicador da norma) promova essa compensação legal de desigualdades de modo razoável,
sem extrapolar os limites do bom senso – o que tornaria injusta uma norma que se propunha
exatamente ao contrário, realizar justiça 331 .
Por isso mesmo, a Constituição trouxe como critério básico para o legislador a
chamada capacidade econômica do contribuinte, inserta no § 1o do art. 145 da
327
“O que há de confuso e divergente em relação à igualdade ou à justiça coloca-se quanto ao critério de
comparação e sua valoração. Se pensamos na noção de justiça ou de igualdade material, então as posições
serão profundamente dissidentes. É que o problema da igualdade deriva sempre para o problema dos valores
jurídicos, a saber, qual o critério a ser levado em conta, que diferenças devem ser desprezadas? Que
características são relevantes para agrupar os objetos em consideração? Uma profunda discórdia sobre o
conceito da igualdade pode nascer nas diferentes formulações desse conceito, tomado no sentido material.
[...]” – DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas de atualização a BALEEIRO, Aliomar. Limitações
constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro:
Forense, 2005, pp. 379-380.
328
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 342.
329
“[...] É extremamente difícil detectar a desigualdade que justifica o privilégio não-odioso. Reside aí, sem
dúvida alguma, um dos mais árduos problemas acerca dos direitos da liberdade, pois a igualdade, sendo mera
relação ou medida, e, portanto, um conceito vazio, abres-e à bipolaridade, afirmando-se assim pelo tratamento
igual dos iguais como pela distribuição desigual aos desiguais. Ora, a liberdade, e a justiça, com a
intermediação da igualdade, participam da mesma equação ética e jurídica. Logo, a igualdade vau depender de
conteúdos externos e anteriores de justiça ou injustiça, que a transformem, ou não, em privilégio odioso,
usurpação da liberdade ou ofensa ao direito fundamental de tratamento isonômico”. – TORRES, Ricardo
Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 132.
330
AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 135.
331
“A aplicação do princípio da igualdade cresce hoje em importância. Numa sociedade hipercomplexa, o Poder
Público sente-se obrigado a estabelecer uma série infindável de diferenciações. Nesse quadro, os operadores
do Direito deverão estar cada vez mais atentos para a necessidade de controle da aplicação da igualdade,
notadamente no que se refere à razoabilidade e à proporcionalidade das diferenciações, sem o que, a pretexto
de estabelecer um estado de igualdade, o Poder Publico terminará instituindo um estado de arbitrariedade”. –
CALIENDO, Paulo. Op. Cit., p. 439.
332
Id. Ibid., p. 410.
115
Constituição 333 , que alguns autores insistem por confundir com capacidade contributiva
(instituto diferente por ser mais restrito do que o primeiro) 334 .
A capacidade econômica é instituto concebido por Adam Smith, significa que cada
contribuinte deve ser tributado na medida das suas possibilidades de recolher o tributo 336 .
Assim, tributando-se a cada um na medida das suas possibilidades, todos os contribuintes
estariam sujeitos ao mesmo gravame patrimonial final – exsurgindo a igualdade não apenas
formal no sentido da aplicação da lei, contudo também material quanto ao resultado concreto
da própria norma em si.
Autores há que confundem a capacidade econômica/contributiva com o mínimo
existencial 337 , institutos distintos que inclusive possuem esteio constitucional diverso 338 . É
333
“Art. 145. §1o. Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a
capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir
efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio,
os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
334
Filiamo-nos à teoria de Moschetti, para quem a capacidade econômica é a “potência econômica global do
contribuinte manifestada por fatos significativos ou indicativos (‘hechos-índice’) de riqueza. [...] pode existir
capacidade econômica sem que exista capacidade contributiva, [...] ‘Capacidad contributiva no es, por tanto,
toda manifestación de riqueza, sino sólo aquella potencia económica que debe juzgarse idónea para concurrir a
los gastos públicos, [...]”. – GODOI, Marciano Seabra de. Justiça, igualdade e direito tributário. 1999: São
Paulo, Dialética, p. 195. Ou seja, tratam-se de capacidades econômicas diferenciadas e inconfundíveis.
335
Id. Ibid., p. 197. Nesse sentido, cf. CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 102: “Estamos percebendo que,
no Brasil, capacidade contributiva é o mesmo que capacidade econômica. Conquista do Estado Moderno,
ajuda a realizar a justiça fiscal, porque tem por escopo fazer com que cada pessoa colabore com as despesas
públicas na medida de suas possibilidades”. Discordamos desse entendimento, fazendo nossas as palavras do
prof. Aurélio Pitanga Seixas Filho que, em diversas palestras e cursos, reitera que ‘se tudo fosse a mesma
coisa, não haveria duas expressões diferentes para identificar o mesmo instituto’.
336
Cf. GODOI, Marciano Seabra de. Op. Cit.
337
Nesse sentido, cf. BALEEIRO, Aliomar, Uma introdução à ciência das finanças. 16a. edição. Dejalma de
Campos (atualizador). São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 276-277: “A capacidade contributiva do indivíduo
significa sua idoneidade econômica para suportar, sem sacrifício do indispensável à vida compatível com a
dignidade humana, uma fração qualquer do custo total de serviços públicos. [...] Quaisquer que sejam as
restrições feitas ao conceito de capacidade contributiva da coletividade, é evidente que existem limites para
esta tanto quanto para os indivíduos. O contribuinte não pode pagar impostos que sacrifiquem o “mínimo de
existência” ou o “necessário físico”; e AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 138: “além disso, quer-se preservar o
contribuinte, buscando evitar que uma tributação excessiva (inadequada à sua capacidade contributiva)
comprometa os seus meios de subsistência, ou o livro exercício de sua profissão, ou a livre exploração de sua
empresa, ou o exercício de outros direitos fundamentais, já que tudo isso relativiza sua capacidade
econômica”.
116
possível que essa confusão conduza alguns a enxergar a capacidade contributiva como um
princípio fundamental próprio.
De todo modo, esse comando, dentre as seis espécies tributárias existentes no
ordenamento constitucional brasileiro vigente 339 , aplica-se apenas aos impostos, por força do
próprio § 1o do art. 145 da Constituição; e, mesmo assim, somente àqueles que assumem
função fiscal 340 , o que permitiria que a extrafiscalidade ultrapassasse seu limite. É de se
realçar ainda o entendimento de que ainda há uma secção a se fazer nos impostos com função
fiscal, de que o critério de capacidade contributiva/econômica só se aplica aos impostos ditos
diretos (ou seja, em que juridicamente não há repercussão do ônus econômico a terceiros,
como sucede nos impostos sobre o consumo, notadamente ICMS e IPI 341 ) e, mesmo assim,
àqueles que sejam pessoais – que incidam sobre situações jurídicas subjetivas, como o
Imposto de Renda 342 .
A razão pública exige o cumprimento de ambos aspectos da igualdade, de modo que
os iguais sejam tratados da mesma forma e os desiguais sejam tratados de modo
diferenciado 343 , resultando em igual oportunidade 344 de chances para os homens. Todavia, a
razão pública não determina de que modo essa igualdade material deve ser atingida, prezando
apenas pela razoabilidade e pela reciprocidade econômica (conceitos que, em si, são bastantes
abertos e sem um critério a eles inerentes).
338
“A tributação também não pode incidir sobre o mínimo necessário à sobrevivência do cidadão e de sua
família em condições compatíveis com a dignidade humana. Nada tem que ver com o problema da capacidade
contributiva, mas com os direitos da liberdade. A imunidade do mínimo existencial está em simetria com a
proibição de excesso, fundada também na liberdade: enquanto esta impede a tributação além da capacidade
contributiva, a imunidade do mínimo vital protege contra a incidência fiscal aquém da aptidão para
contribuir”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II.
Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 305.
339
Impostos, taxas, contribuições de melhoria, empréstimos compulsórios, contribuições especiais e a
contribuição sui generis para o custeio do serviço de iluminação pública.
340
“A capacidade contributiva é o próprio critério da aplicação da igualdade no caso de impostos com finalidade
fiscal”. – ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 359.
341
“Exemplificando, se um milionário e um mendigo comprarem, cada um para si, um maço de cigarros, da
mesma marca, suportarão a mesma carga econômica do imposto. Vemos, portanto, que não é da índole do
ICMS ser graduado de acordo com a capacidade econômica dos contribuintes. Nem dos impostos que, como
ele, são chamados, pela Ciência econômica, de indiretos (v.g., o IPI)”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op.
Cit., p. 102.
342
A respeito, vale lembrar o Acórdão proferido pelo plenário do STF no RE 153771, em que foi relator para o
Acórdão o Min. Moreira Alves, sufragando o entendimento de que a capacidade econômica é critério aplicável
somente aos impostos pessoais.
343
“In some settings, asymmetry in treatment among separate persons and groups in the political community
may be value-enhancing to all members, as might be evidenced by near-universal support […]”. –
BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as
public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 110.
344
ABREU, Sérgio. O princípio da igualdade: a (in)sensível desigualdade ou a isonomia matizada. In:
PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (orgs.). Os
princípios da Constituição de 1988. 2a. edição. Rio de Janeiro: 2006. pp. 325 e ss.
117
Por isso mesmo, temos que a capacidade econômica, aventada por praticamente toda a
doutrina técnica tributária como um princípio de justiça ligado à igualdade, não se reveste das
características de fundamentalidade ante a razão pública. Isso porque, de acordo com o
esquema de liberdades proposto em dada conjuntura política, é factível que a capacidade
econômica não seja adotada. Basta ver que a Constituição de 1988 adotou o critério de
capacidade econômica, mais amplo do que o da capacidade meramente contributiva (apesar
de a maior parte da doutrina confundi-los). Dizer que os dois são direitos fundamentais, ao
mesmo tempo, confundindo-os como se sinônimos fossem, é abrir uma bifurcação no
princípio da igualdade sob o prisma material, o que não pode ser considerado válido na
definição dos valores que conformam a estrutura básica da sociedade.
Ainda assim, a quase totalidade da doutrina técnica tributária afirma tratar-se de um
princípio 345 que se reveste das características de direito fundamental. Todos, sem exceção,
chamam de princípio da capacidade econômica, ou princípio da capacidade contributiva –
ainda que também o reconheçam como critério de aferição 346 (ou princípio operacional 347 ) da
igualdade 348 .
Ousamos discordar da doutrina tecnicista do direito tributário, no sentido de que a
capacidade econômica não é um princípio fundamental, ou mesmo que ela decorre da
igualdade 349 . Analisando a capacidade econômica em suas relações com os tributos, verifica-
se que ela é um critério para tributação, escolhido dentre outros possíveis para os impostos 350 ;
345
“Esse princípio tem caráter programático, servindo como norteador da atividade legislativa”. – HARADA,
Kiyoshi. Op. Cit., p. 387. Refutamos a tese de ‘princípios de conteúdo meramente programático’. Ora, ou bem
se trata de princípio, com carga axiológica, ou é um mero critério a ser utilizado na elaboração de normas.
Nesse sentido, Luiz Felipe Silveira Difini frisa que “o princípio da capacidade contributiva não é meramente
programático. Aliás, a doutrina moderna já não aceita a existência de regras jurídicas que não produzem
quaisquer conseqüências, [...]”. – DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op. Cit., p. 83; cf. também COELHO, Sacha
Calmon Navarro. Os princípios gerais do direito tributário na Constituição. In: MARTINS, Ives Gandra da
Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007. Há
decisões do STF no sentido de que se trata de um princípio. Vide, por exemplo, a decisão no RE 239964, de
lavra da Primeira Turma (Rel. Min. Ellen Gracie, publicada no DJ de 09/05/2003).
346
Cf. o Acórdão proferido na ADI 453, no qual o STF entendeu que não houve, na exação em tela, vulneração
ao “princípio da isonomia, haja vista o diploma legal em tela ter estabelecido valores específicos para cada
faixa de contribuintes, sendo estes fixados segundo a capacidade contributiva de cada profissional”.
347
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 54.
348
Realçando o caráter instrumental da capacidade contributiva, Luiz Felipe Silveira Difini destaca que “os
princípios da proporcionalidade e da capacidade contributiva não infirmam, antes complementam ou realizam
o princípio da isonomia”. – DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op. Cit., p. 79.
349
RIBEIRO, Ricardo Lodi. A constitucionalização do direito tributário. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de;
SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações
específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 1003.
350
Com isso, afastamo-nos terminantemente da concepção exposta por Paulo Caliendo, para quem a capacidade
contributiva “representa, no direito pátrio, o único fator de discriminação legítima, não somente como fator de
tributação, mas também como critério de gradação de tributos”. – CALIENDO, Paulo. Op. Cit., p. 392.
118
esse critério agrega-se ainda a outros 351 na Constituição 352 (considerados válidos pela
doutrina para os tributos com função extrafiscal, por exemplo 353 ). Ao invés de decorrer da
igualdade, a capacidade contributiva se mostra como um instrumento para o legislador, que
conduz à igualdade 354 .
351
“[a capacidade contributiva] É o critério de comparação que inspira, em substância, o princípio da igualdade.
Mas não é o único”. – DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas de atualização a BALEEIRO, Aliomar.
Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio
de Janeiro: Forense, 2005, p. 380.
352
Damos, como exemplo, a razoabilidade, frisada por Paulo Caliendo como parâmetro amplamente utilizado
pelo STF na aplicação do princípio da igualdade a casos concretos. CALIENDO, Paulo. Op. Cit., p. 413. A
respeito, Humberto Ávila aponta que “o essencial para a aplicação do princípio da igualdade, segundo o
postulado da razoabilidade-congruência, é a utilização de critérios reais, objetivos e permanentes. Além disso,
uma vez escolhido o critério, ele deve ser aplicado da mesma forma – e de maneira conseqüente – para todos
os sujeitos envolvidos”. – ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 340.
353
“Na extrafiscalidade, em muitos casos, a capacidade contributiva é posta de lado, de forma total ou parcial” –
Id. Ibid., p. 381.
354
Pautamo-nos, em termos concretos, na decisão da ADI 1643, na qual o STF entendeu que "Não há ofensa ao
princípio da isonomia tributária se a lei, por motivos extrafiscais, imprime tratamento desigual a
microempresas e empresas de pequeno porte de capacidade contributiva distinta, afastando do regime do
simples aquelas cujos sócios têm condição de disputar o mercado de trabalho sem assistência do Estado."
(ADI 1.643, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 5-12-02, DJ de 14-3-03). Note-se que a capacidade
contributiva autorizou o tratamento diferenciado entre empresas que aparentemente estariam na mesma
situação jurídica – o que seria a base do princípio da isonomia tributária nos termos do art. 150, II, da
Constituição. Fosse a capacidade contributiva decorrente da isonomia, a lei forçosamente seria julgada
inconstitucional. No entanto, o fato concreto de os sócios das empresas terem maiores condições de acesso a
melhores posições no mercado levou ao discrímen da lei tributária. Ou seja, a capacidade contributiva seria um
instrumento conducente à igualdade material – o que levou ao reconhecimento da constitucionalidade da lei
discriminatória.
119
355
DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 530.
356
Cf. NAGEL, Thomas; MURPHY, Liam, Op. Cit., pp. 18 e ss.; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 690-691; e MOTA FILHO, Humberto Eustáquio
César. Op. Cit., p. 49.
357
“Os princípios fundamentais de leis gerais da República podem ser regras precisas e densas mas que
assumem num determinado contexto material a dimensão de fundamentalidade”. – CANOTILHO, José
Joaquim Gomes. Op. Cit., p. 804. No mesmo sentido, já abordando o princípio da igualdade: “Ao princípio
como enunciado modelar, na medida em que se trata de constriuir as instituições, de desenvolvê-las, ou de
adequar os fatos às instituições, corresponde um enunciado prescritivo. Por exemplo: ‘todos os homens devem
ser tratados igualmente perante a lei’. Mas, desde que incorporado ao sistema, esse princípio pode ser lido na
forma declaratória: ‘todos os homens são iguais perante a lei’”. – CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios
constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 10.
358
“Quando os impostos tiverem uma justificação e uma finalidade extrafiscal, enquanto instruídos com o
propósito prevalente de atingir fins econômicos ou sociais, já não será o princípio da capacidade contributiva a
medida de diferenciação entre os contribuintes. [...] E – eis o decisivo – ao justificar a instituição de um
imposto em algum fim estatal o legislador afastar-se-á do direito fundamental da igualdade segundo a
capacidade econômica dos contribuintes”. – CALIENDO, Paulo. Op. Cit., pp. 416-417.
359
Não podemos esquecer que, com relação a esses tributos, há quem estabeleça que a seletividade seria uma
adaptação da capacidade contributiva à esfera do possível (cf. por exemplo, DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op.
Cit., p. 88). Todavia, o próprio fato de o legislador do ICMS ser facultado a instituir a seletividade (art. 155,
§2o, III, da CRFB) já demove qualquer possibilidade de atribuir fundamentalidade a esse critério.
360
GODOI, Marciano Seabra de. Op. Cit., p. 47.
120
361
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 90-91.
362
“Desde el momento en que los tributos pertenecen al mundo del derecho, deben ser establecidos conforme a
un postulado de justicia: en la actualidad existe acuerdo en que dicho postulado es la capacidad contributiva”.
– ETCHEGOYEN, Marcos F. García. El sistema tributario y la necesidad de vigencia del principio de
capacidad contributiva. In: CASÁS, José Osvaldo (coord.). Interpretación económica de las normas
tributarias. Buenos Aires: Ábaco de Rodolfo Depalma, 2004, pp. 271-272.
363
“El justo reparto de la carga tributaria individual requiere una medida de la igualdad, determinada por la
capacidad económica entendida como riqueza disponible. La capacidad económica debe determinar el reparto
de la carga impositiva individual”. – MOLINA, Pedro Manuel Herrera. Op. Cit., p. 121.
364
“Además, para que la diferenciación que pueda establecer una ley fiscal sea constitucionalmente lícita, no es
suficiente con que lo sea el fin que con ella se pretende conseguir, sino que es indispensable además que las
consecuencias jurídicas que resulten de tal distinción sean adecuadas y proporcionadas a dicho fin, [...]”. –
NOVOA, Cesar García. Op. Cit., p. 342.
365
RAWLS, John. A teoria da justiça como eqüidade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 208.
366
Uma vez que a capacidade contributiva “constituiria o critério fundamental para se estabelecerem categorias
essenciais com tratamentos próprios; todavia, outros valores plasmados em normas constitucionais podem
também justificar discriminações legislativas”. – GODOI, Marciano Seabra de. Op. Cit., p. 193.
367
“Do ponto de vista da igualdade material, os diferentes aspectos, os distintos critérios de comparação não são
incompossíveis ou contraditórios. São apenas aspectos de um mesmo fenômeno, compondo um todo unitário
de sentido e de valor, que se complementam: segurança jurídica, generalidade e abolição de privilégios,
graduação de tributos de acordo com a capacidade contributiva, igualação de oportunidades e redução das
grandes disparidades sócio-econômicas para o desenvolvimento nacional harmonioso (progressividade,
incentivos, prêmios e extrafiscalidade). A unidade está na construção do Estado Democrático de Direito de que
a igualdade é esteio fundamental (arts. 1o a 3o da Constituição)”. – DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas
e BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 530-531. Cf. também GODOI, Marciano Seabra de.
Op. Cit., pp. 183 e 193, donde destacamos que “o princípio que orienta a justiça tributária é o princípio da
igualdade, sendo a capacidade contributiva um subprincípio importante e atuante, mas não o único”.
121
368
NAGEL, Thomas; MURPHY, Liam. Op. Cit., pp. 43-44. No mesmo sentido, GODOI, Marciano Seabra de.
Op. Cit., p. 215, para quem “em resumo, a capacidade contributiva tem um lugar muito importante [...],
todavia não deve ser vista como encarnando totalmente em si o próprio princípio da igualdade tributária, pois
o critério da capacidade contributiva não tem condições de, no contexto de um Estado Democrático de Direito,
fundamentar a totalidade do fenômeno tributário, o qual por sua vez não deve ser visto como algo isolado, mas
como algo integrado nos valores que plasmam a justiça constitucional”.
369
CAMPOS, Diogo Leite de. Op. Cit., p. 103.
122
3.3.3 A irretroatividade.
A irretroatividade (ou prévia definição legal do fato gerador 370 ) está prevista no artigo
150, III, a, da Constituição. Significa, conforme o próprio texto constitucional o diz, que
todos os entes da Federação estão proibidos de exigir ou aumentar tributos relativamente a
situações jurídicas ocorridas antes da vigência da lei que os houver instituído ou
aumentado 371 .
Referimo-nos a situações jurídicas e não a fatos geradores por acolhermos as críticas
tecidas, dentre outros, por Luciano Amaro, para quem
Essa não é a única crítica feita ao dispositivo. Há quem diga, ainda, que o dispositivo
em si já era desnecessário, porquanto a Constituição, genericamente, já protege, em seu art.
5o, XXXVI 373 , o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada dos efeitos
provocados pela retroação das leis 374 . Justifica-se, para esses autores, o dispositivo especial
em sede de tributação, por razões de conteúdo histórico, relativamente aos malfadados
370
SILVA, José Afonso. da. Op. Cit., p. 691.
371
De se frisar, desde já, que “a proibição constitucional, note-se, é apenas quanto a leis que criam ou aumentam
tributos. Em outros casos, lei infraconstitucional pode determinar validamente que leis tributárias tenham
efeitos retroativos, [...]”. – DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Manual de direito tributário. 3a. edição. São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 78.
372
AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 118. Cf. ainda HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., p. 384; e CARRAZZA, Roque
Antonio., Op. Cit., p. 342.
373
“A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
374
Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., pp. 161-162. Humberto Ávila defende que a previsão ainda “é
complementada pelos dispositivos constitucionais que garantem o Estado de Direito (art 1o), a segurança (art.
5o [caput]”. Op. Cit., p. 142.
123
375
Não nos deteremos a investigar esses dois casos por refugirem ao tema da pesquisa. Todavia, para uma leitura
mais aprofundada recomenda-se os Comentários à Constituição de 1988 de Sacha Calmon Navarro Coelho, as
notas promovidas por Misabel Derzi à obra Limitações constitucionais ao poder de tributar do prof. Aliomar
Baleeiro, o Curso de Direito Tributário do prof. Paulo de Barros Carvalho e ainda o vol. II do Tratado de
direito constitucional financeiro e tributário do prof. Ricardo Lobo Torres.
376
Humberto Ávila destaca ter a irretroatividade uma dupla acepção, como regra e também como princípio. Op.
Cit., p. 142.
377
AMARO, Luciano. Op. Cit., pp. 118-119.
378
Com isso, as considerações legais acerca da irretroatividade afastam-se da concepção desenvolvida por
Bernardo Ribeiro de Moraes, para quem, ainda que na órbita tributária, a retroatividade é a regra, tendo como
exceções o respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada. MORAES, Bernardo
Ribeiro de. Op. cit., pp. 156-159.
379
“A segurança jurídica consiste no ‘conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento
antecipado e reflexivo das conseqüências diretas de seus atos e de seus fatos à luz liberdade reconhecida’.
Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza de que os indivíduos têm de que as
relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída”. –
SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 433.
380
Tércio Sampaio Ferraz Jr., de modo quase poético, expõe a situação pelo seguinte ponto-de-vista: “Trata-se
do tempo cronológico, caracterizado pela irreversibilidade de um momento indefinido no futuro, e que tem
uma qualidade entrópica (tudo morre), como se vê pela segunda lei da termodinâmica [...]. Neste inelutável
tempo físico introduz-se a cultura (ética, direito) como a capacidade de retomada reflexiva do passado e
antecipação reflexiva do futuro. É a capacidade de reinterpretar o passado (sem anulá-lo ou apagá-lo) – por
exemplo, pela responsabilização por aquilo que aconteceu – e de orientar o futuro (sem impedir que ele
ocorra) – por exemplo, usando-o como finalidade reguladora da ação. Entre o passado e o futuro o tempo
cultural aparece, assim, como duração, cuja experiência se dá no presente, vivido como um contínuo. A
duração, desse modo, liga o passado e o futuro: torna o passado (que não é mais) algo ainda interessante e faz
do futuro (que ainda não ocorreu) um crédito, base da promessa. A questão está em como estabelecer esse
liame e dar consistência à duração, isto é, evitar que um passado, de repente, se torne estranho, um futuro,
algo opaco e incerto, e a duração, uma coleção de surpresas desestabilizadoras da vida. Afinal, se o sentido
de um evento passado pudesse ser alterado ou o sentido de um evento planejado pudesse ser modificado ao
arbítrio de um ato presente, a validade dos atos humanos estaria sujeita a uma insegurança e incerteza
insuportáveis”. – FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Anterioridade e irretroatividade no campo tributário. In:
TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a
Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 235.
124
haveria nele nem mesmo sombra de segurança” 381 . A irretroatividade, portanto, ao determinar
que a lei que determina a incidência tributária seja sempre prospectiva382 , garante estabilidade
125
388
“A vigência pode ser posposta (o prazo pode contar tantos dias da sua publicação, mas sempre para frente,
não para trás). Não há, pois, como contar esse tempo antes de sua publicação: isto decorre de uma
impossibilidade lógica, pois mesmo que se quisesse ‘retroagir’ a vigência, a cronologia o impediria – o tempo
é irreversível. Mas ela [a lei] pode ter eficácia retroativa. A partir do momento em que ela vale, isto é, é
vigente, seus efeitos podem retroagir, e a norma, imperar sobre o passado. A eficácia tem a ver com a
possibilidade de produzir efeitos. Essa possibilidade é prospectiva ou retroativa. Nada impede que, a despeito
da cronologia (vigente a partir de um momento em direção ao futuro), o destinatário da norma possa
considerá-la, a partir de quando ela vale, como produzindo efeitos sobre fatos e atos já sucedidos. Neste
sentido, a sua força ou império pode atingir o passado. É o fenômeno da retroatividade cuja possibilidade e
regulada pelo princípio da irretroatividade”. – FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. Cit., p. 237. Cf. ainda
MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 156.
389
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 286.
390
DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11a. edição.
Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 666.
391
Cf. TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de
Janeiro: Renovar, 2005, p. 513, com esteio em Klaus Tipke.
392
“Seguindo esse entendimento e sendo a segurança jurídica um sobreprincípio constitucional fundamental, o
intérprete deverá considerar vedada a modificação retroativa das conseqüências jurídicas”. – ÁVILA,
Humberto. Op. Cit., p. 152.
393
Misabel Derzi ainda relaciona a irretroatividade à igualdade e à evolução do Direito. Cf. suas notas de
atualização a BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi
(atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 650 e ss.
394
“Quando o Poder Legislativo baixa leis retroativas, altera as condições básicas do Estado de Direito,
quebrando, irremediavelmente, a confiança que as pessoas devem ter no Poder Público. Com efeito, elas já não
126
pelos indivíduos de uma sociedade não podem estar sempre ameaçados de uma modificação
do tratamento jurídico ex post facto 395 . Assim fosse, não haveria a menor garantia de
segurança das liberdades dos homens, restando falido o Estado democrático de Direito 396 .
Com isso, percebe-se que a idéia de uma sociedade bem ordenada, inerente ao bem
comum, não se sustenta em caso de uma constante ameaça de retroação legislativa.
Igualmente, admitir-se que as normas possam retroagir para tributar atos pretéritos é
algo altamente irrazoável e que dá azo ao arbítrio.
Por fim, não se poderia cogitar de garantia do exercício de qualquer liberdade no caso
de uma mínima ameaça de retroatividade tributária.
Por isso mesmo, a regra inserta no art. 150, III, a, da Constituição, é base jurídica do
Estado democrático de Direito, mostrando-se afeta à esfera de imparcialidade política dos
cidadãos.
3.3.4 A anterioridade.
têm segurança, pois ficam à mercê não só do Direito vigente (o que é normal), mas, também, de futuras e
imprevisíveis decisões políticas, que se podem traduzir em regras retroativas. Se isto acontece, o Estado de
Direito soçobra”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 342.
395
Nesse sentido, “O princípio da irretroatividade da lei tributária deve ser visto e interpretado, desse modo,
como garantia constitucional instituída em favor dos sujeitos passivos da atividade estatal no campo da
tributação. Trata-se, na realidade, à semelhança dos demais postulados inscritos no art. 150 da Carta Política,
de princípio que — por traduzir limitação ao poder de tributar — é tão-somente oponível pelo contribuinte à
ação do Estado." (STF – ADI 712-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-10-92, DJ de 19-2-93).
396
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 144. “Outra inteligência justificaria a instalação do império da incerteza nas
relações entre o Fisco e o contribuinte, o que contraria o regime de direito público e o próprio princípio
republicano”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 348.
397
127
Assim, é bastante factível que motivos culturais provoquem essa diferença entre as
denominações da anterioridade anual (como princípio) e da nonagesimal (como regra) por
parte dos juristas.
Trata-se de dispositivo com comando duplo, tanto para o legislador quanto para o
aplicador da lei tributária promulgada 402 .
398
Ricardo Lobo Torres, ao discorrer sobre o assunto, mesmo entendendo que a acepção da anterioridade como
regra ou princípio é um problema preliminar, “tendo em vista que possui contorno fechado, referido a
momento determinado no tempo”, termina por caracterizá-la como princípio, dado que “a distinção entre
princípios e regras não é tão categórica”. – TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional
Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 559. Ousamos discordar de sua opinião,
conforme explicado no capítulo 4 da presente.
399
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., pp. 153-155. Essa análise tomou por base um entendimento diferente, mais
antigo, do STF, não considerando a decisão na ADI-MC 2325, na qual o Supremo considerou que a
anterioridade era aplicável também para as revogações de isenções, por significar concretamente majoração de
tributo.
400
HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., pp. 385-386.
401
DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 51. Cf.
ainda TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de
Janeiro: Renovar, 2005, pp. 557 e ss. Interessante destacar, a respeito, o dado levantado por Tércio Sampaio
Ferraz Jr.: “Importante notar, inicialmente, que a tese adotada pela Comissão de Estudos Constitucionais, em
seu Anteprojeto de Constituição (art. 72, IV), propunha: ‘Compete à União instituir impostos sobre: [...] IV –
renda e proventos de qualquer natureza, cujo fato gerador coincidirá com o término do exercício financeiro da
União’. O posicionamento histórico era bastante claro. Mas o texto aprovado na Constituinte foi menos
explícito: veda-se cobrar tributos ‘b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os
instituiu ou aumentou’. É verdade que, conjugando-se o dispositivo citado com a interpretação histórica, não
seria difícil descobrir o seu sentido.” – FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. Cit., p. 240.
402
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 186.
128
A anterioridade é plenamente aplicável para os tributos com função fiscal (salvo com
relação ao Imposto de Renda e à definição das bases de cálculo de IPVA e IPTU, para os
403
“A anterioridade [...] objetiva implementar o sobreprincípio da segurança jurídica, de modo que o
contribuinte não seja surpreendido com exigência tributária inesperada”. – CARVALHO, Paulo de Barros. Op.
Cit., p. 160. No mesmo sentido, CARVALHO, Cristiano Rosa, Op. Cit., p. 894.
404
MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 100.
405
ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da, Op. Cit., pp. 292-293, colocando a anterioridade no mesmo patamar
da legalidade como “esteio fundamental para a defesa do contribuinte contra o abuso por parte do Estado”.
406
“[...] o que se enfatiza é a proteção do contribuinte contra a surpresa de alterações tributárias ao longo do
exercício, o que afetaria o planejamento de suas atividades”. – AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 123.
407
Tércio Sampaio Ferraz Jr., assim como o fez ao tratar da irretroatividade, discorreu quase que poeticamente
acerca da anterioridade: “Já a anterioridade diz respeito à duração. A salvaguarda contra a surpresa exige a
periodicidade, que confere aos eventos um mínimo de durabilidade. Por isso, em todas as culturas, o tempo é
dividido e contado. Trata-se de dar ao tempo presente uma consist6encia, fazendo dele um todo extenso e
compacto, entre um começo e um fim, dentro do qual os eventos são solidários. Sem essa divisão e essa
contagem, o homem não conseguiria planejar a sua ação. O princípio da anterioridade periodiza o tempo e lhe
dá um sentido de unidade, protegendo os eventos que dentro dela acontecem contra alterações legais que
ocorram no período. Não se trata de impedir as revisões legais, mas de garantir que as mudanças que elas
trazem contra o sobressalto e a surpresa. Sem essa garantia, os eventos não duram (perdem legitimidade). O
estabelecimento de períodos (um dia, um mês, um ano), dentro dos quais a lei nova não produz efeitos, é,
assim, vital para o implemento da segurança jurídica”. – FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. Cit., p. 236.
408
“Impende notar que a lei que de algum modo beneficia o contribuinte não precisa obedecer ao princípio da
anterioridade. É que este princípio milita em seu favor; nunca em seu detrimento”. – CARRAZZA, Roque
Antonio. Op. Cit., p. 196.
409
“Por outro lado, o princípio da anterioridade da lei tributária diz respeito apenas à lei tributária formal, em
nada influindo no seu regulamento”. – MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 110. Ainda de se frisar o
entendimento do STF com relação à expressão “cobrar tributos”: “"O preceito constitucional não especifica o
modo de implementar-se o aumento. Vale dizer que toda modificação legislativa que, de maneira direta ou
indireta, implicar carga tributária maior há de ter eficácia no ano subseqüente àquele no qual veio a ser feita.”
(ADI 2.325-MC, excerto de voto do Min. Marco Aurélio, DJ de 6-10-06).
410
Id. Ibid., p. 196. Repelimos a última assertiva, uma vez que não nos parece razoável que uma regra ditada
pelos próprios contribuintes (considerando a máxima da legalidade) sirva para que eles mesmos escapem de
suas próprias determinações (mais uma vez relembrando a máxima da legalidade) em sede de tributação, que
só existe para financiar a estrutura estatal que os mantém em condições de convivência e desenvolvimento
pacíficos.
129
quais se aplica somente a regra anual), sendo mitigada tanto na regra anual quanto na
nonagesimal relativamente a tributos com função extrafiscal 411 , a teor do parágrafo 1o do art.
150 da Constituição da República.
A questão da não-surpresa mostra-se digna de nota, uma vez que ela segue um
raciocínio inverso do preconizado pelo princípio da legalidade – abordado anteriormente. Se,
pelo princípio da legalidade, o tributo é instituído pelo próprio povo mediante seus
representantes, exatamente para evitar o arbítrio do Estado nesse segmento fundamental das
restrições à liberdade dos indivíduos, falar-se que o povo deve se precaver contra as mudanças
tributárias (ou instituições de tributos) promovidas pelo Estado 412 (como se os cidadãos nesse
momento ficassem distantes da deliberação sobre os tributos) é, no mínimo, interessante. É
analisar o mesmo objeto – criação ou majoração de tributos – por dois prismas absolutamente
diferentes, sem uma explicação plausível para tal.
Por essas caracteristicas, a anterioridade não possui esteio na esfera de imparcialidade
política, não havendo meio de se afirmá-la como justificável pela razão pública.
O argumento utilizado para a anterioridade é a segurança jurídica, segundo a qual os
contribuintes podem planejar suas vidas antes da chegada do tributo.
Ocorre que, se nós partirmos do pressuposto básico da própria legalidade, de que os
tributos só podem ser exigidos em caso de (e nos limites da) autorização dos cidadãos, a
concepção de que um prazo de vacância para o início da cobrança é inerente à deliberação
democrática chega a ser contraditória.
Segundo a legalidade, considerada sobre bases de democracia deliberativa, são os
próprios cidadãos que aprovam o tributo. Ou seja, ao longo do processo legislativo cria-se
uma expectativa, de relevância crescente à medida que o processo legislativo avança – e,
conseqüentemente, o(s) procedimento(s) de deliberação democrática se desenrola(m) –, de
que o tributo venha a ser instituído ou aumentado.
Assim, os próprios cidadãos, enquanto autorizadores da incidência tributária, sabem
(ou deveriam saber) que existe uma iminência de cobrança. Conseqüentemente, a preparação,
411
“Costuma-se denominar de extrafiscal aquele tributo que não almeja, prioritariamente, prover o Estado dos
meios financeiros adequados a seu custeio, mas antes visa a ordenar a propriedade de acordo com a sua função
social ou a intervir em dados conjunturais (injetando a moeda em circulação) ou estruturais da economia”. –
DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar, Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 576.
412
“De fato, o Estado tem a faculdade de criar novos tributos ou majorar os existentes quando quiser, mas sua
cobrança fica diferida para o exercício seguinte ao da publicação da lei que os instituiu ou aumentou”. –
HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., pp. 384-385. Igualmente, Roque Antonio Carrazza, para quem a anterioridade
permite que “os contribuintes saibam o que os aguarda, no campo da tributação, e, bem por isso, confiem no
Estado Fiscal [...]”. Op. Cit., p. 196.
130
pelos cidadãos, para o início da cobrança dos tributos, deixa de ser um direito fundamental
para ser uma questão de precaução dos cidadãos. O mais previdente saberá que há risco de
início de cobrança do tributo e poupará o suficiente para seu pagamento. No entanto, o
cidadão que não for tão zeloso com suas finanças, correrá o risco de se ver temporariamente
em dificuldades financeiras. Mas isso não pode ser erigido à categoria de direito fundamental.
Assim é que,
Em termos práticos basta ver-se que a anterioridade não se mostra como um direito
fundamental inerente à democracia, uma vez que a extrafiscalidade é causa suficiente para sua
ruptura, conforme o § 1o do art. 150 da Constituição. Ou seja, fere-se a premissa básica de que
direitos fundamentais não se prestam a barganhas econômicas ou questões administrativas de
qualquer espécie.
A regra da anterioridade ganha maior status num regime de democracia representativa
e não deliberativa. No regime meramente representativo, em que os cidadãos estão distantes
dos processos de deliberação (conforme visto no item 1.1.1 da presente), a anterioridade se
mostra como uma regra importante 414 ; todavia, no contexto de democracia deliberativa, em
que os cidadãos participam efetivamente da deliberação democrática, a anterioridade se
revela, de modo mais aparente, bem distante da categoria de direito fundamental. Passa a ser
uma regra 415 que beneficia o contribuinte, não mais do que isso.
Conseqüentemente, as disposições do art. 150, III, b e c, da Constituição, não podem
ser consideradas cláusulas pétreas.
413
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 238. Por isso mesmo o referido autor critica (com nosso apoio) a posição do STF na ADI
939, proferida no sentido de que o “princípio da anterioridade” seria, junto com outros “princípios e normas
imutáveis”, “garantia individual do contribuinte” (ADI 939, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 18-3-94).
414
Note-se a forma pela qual Roque Antonio Carrazza aborda o tema: “[...] o princípio da anterioridade só é
obedecido se e enquanto for aceito que o fato imponível deve necessariamente ocorrer a partir do exercício
seguinte àquele em que o tributo foi criado ou majorado”. – Curso, p. 189. Não desconhecemos que o prof.
Carrazza dá grande importância à anterioridade, entendendo-a como corolário da segurança jurídica. Todavia,
essa simples passagem já denota que o referido ‘princípio’ é muito mais temporal do que imanente à noção de
democracia deliberativa.
415
Ricardo Lobo Torres já questionou o posicionamento da anterioridade ou como regra, mas acabou se filiando
à tese de que se trata de um princípio, dado que “a distinção entre princípios e regras não é tão categórica”. –
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 559.
131
3.3.5 O não-confisco.
416
AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 145.
417
A função social da propriedade pode ser entendida resumidamente como “nas áreas urbanas, além de
servirem de moradia, função de preservarem os demais valores relevantes ara a sociedade como regras de
vigilância sanitária, de urbanização, de ordenação da cidade, dentre outras previstas nos planos diretores. Da
mesma forma, para as propriedades rurais não se limita o cumprimento da função social à produtividade. Mais
do que isso, as terras devem ser retrabalhadas de modo a se evitar, ao máximo, os impactos ambientais, [...]” –
PEIXOTO, Marcelo Magalhães; CARDOSO, Laís Vieira. O princípio do não-confisco e os limites ao direito
de propriedade. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo:
Dialética, 2004, p. 232.
418
“Através de uma carga fiscal demasiadamente elevada, o Estado passa a ser o real proprietário dos bens e dos
rendimentos do trabalho dos cidadãos”. – CAMPOS, Diogo Leite de. Op. Cit., p. 89.
419
“Art. 5o. [...] XXII – é garantido o direito de propriedade;”.
420
“Art. 5o. [...] XXIII – a propriedade atenderá a sua função social; XXIV – a lei estabelecerá o procedimento
para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia
indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição; XXV – no caso de iminente perigo
público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário
indenização ulterior, se houver dano;”.
421
BORGES, José Souto Maior. Relações entre tributos e direitos fundamentais. In: FISCHER, Octavio Campos
(coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 220.
422
“A característica do confisco está exatamente em ser uma absorção coativa da propriedade, exercida pelo
Poder Público ou por meio dele, sem indenização e sem permissão jurídica”. – NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da
interpretação e da aplicação das leis tributárias. 2a. edição. São Paulo: Bushatsky, 1974, pp. 28-29.
Especificamente em sede de tributação, Maria Luiza Vianna Pessoa de Mendonça entende haver na verdade
uma ponderação de interesses entre o direito de propriedade e as liberdades econômicas, em contraponto ao
132
indenização à subtração patrimonial, é o confisco como forma de punição por ato ilícito, “não
obstante, somente aplicável mediante o devido processo legal (art. 5o, XLVI e LIV)” 423 . E,
considerando que conceitualmente tributo não pode ser utilizado como sanção por ato
ilícito 424 , o texto constitucional do art. 150, IV refere-se não a tributo confiscatório, mas sim
“com efeito de” confisco 425 .
Por outro lado, ao contrário da desapropriação (exceção trazida pelo próprio art. 5o da
CRFB), o Estado jamais indeniza o cidadão pela restrição patrimonial tributária 426 – motivo
pelo qual o “confisco tributário” apresenta-se como ausência de contrapartida proporcional 427
pelo Estado, diante de cobrança que comprometa parte significativa do patrimônio do
cidadão 428 .
Essa prática de ‘apropriação tributária’ marcou o chamado Estado patrimonial, sendo
arma de perseguições das mais diversas 429 ; conseqüentemente, a maior parte da doutrina
dever fundamental de pagar tributos. – MENDONÇA, Maria Luiza Vianna Pessoa de. Multas tributárias –
efeito confiscatório e desproporcionalidade – tratamento jusfundamental. In: FISCHER, Octavio Campos
(coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 246. De modo bastante didático o
STF se pronunciou no sentido de que “A proibição constitucional do confisco em matéria tributária — ainda
que se trate de multa fiscal resultante do inadimplemento, pelo contribuinte, de suas obrigações tributárias —
nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa
conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos
rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do
direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de
suas necessidades vitais básicas. O Poder Público, especialmente em sede de tributação (mesmo tratando-se da
definição do quantum pertinente ao valor das multas fiscais), não pode agir imoderadamente, pois a atividade
governamental acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade que se qualifica como
verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais." (ADI 1.075-MC, Rel. Min.
Celso de Mello, julgamento em 17-6-98, DJ de 24-11-06). Note-se, no entanto, que o STF frisou que o não-
confisco só se aplica ao campo da fiscalidade, abrindo exceções em caso de extrafiscalidade, como veremos
adiante.
423
DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 573.
424
Vide o conceito que inspirou o legislador, no art. 3o do Código Tributário Nacional (lei nº 5.172/1966):
“Tributo é toda prestação pecuniária, compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não
constitua sanção por ato ilícito, instituído por lei e cobrando mediante atividade administrativa plenamente
vinculada”.
425
DALLAZEM, Dalton Luiz. O princípio constitucional tributário do não-confisco e as multas tributárias. In:
FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 23. Daí
porque Marcelo Magalhães Peixoto e Laís Vieira Cardoso aduzem que “deste modo, a propriedade que
observa as determinações constitucionais e legais jamais poderá ser confiscada pelo Estado”. – PEIXOTO,
Marcelo Magalhães; CARDOSO, Laís Vieira. Op. cit., p. 231.
426
“Se a própria tributação, feita nas bases da lei, é uma intervenção da administração na esfera dos direitos do
cidadão mais onerosa do que a desapropriação, a tributação em desconformidade com o fato gerador,
excedendo à medida do fato gerador legal, constitui um confisco”. – NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da
interpretação e da aplicação das leis tributárias. 2a. edição. São Paulo: Bushatsky, 1974, p. 102.
427
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 300.
428
PEIXOTO, Marcelo Magalhães; CARDOSO, Laís Vieira. Op. Cit., p. 227.
429
Recomenda-se, a respeito, a leitura de TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional
Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 153-155; e, do mesmo autor,
A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, pp. 136-138.
133
entende que não mais se coaduna com o Estado fiscal, mormente em um Estado democrático
de Direito 430 .
Restringindo-se demasiadamente a propriedade, acaba-se com a liberdade dos
indivíduos, porquanto se diminuem seus leques de escolha de ação. Propriedade e liberdade,
aqui, amalgamam-se inextrincavelmente. Um indivíduo sem escolhas não é um indivíduo
livre 431 .
Autores há na doutrina que correlacionam o não-confisco ao mínimo existencial432 (ou
mínimo vital), ou ainda à capacidade contributiva 433 , indicando que a tributação excessiva
prejudicará a subsistência do cidadão. Mais uma vez, ousamos discordar desse
posicionamento, uma vez que não-confisco e mínimo existencial são institutos diversos,
destinados a proteger o cidadão em graus diferentes 434 . A capacidade contributiva, do mesmo
430
Frisamos, nesse sentido, Ricardo Lobo Torres e Bernardo Ribeiro de Moraes, para os quais nem mesmo
razões de Estado (materializadas em tributos de função extrafiscal) justificam a tributação confiscatória
(TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 164; e MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 129) – posição da qual
destoa Sacha Calmon Navarro Coelho, para quem a extrafiscalidade justifica o tributo com fim confiscatório
(Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9a. edição. Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 276). Do mesmo modo,
Hugo de Brito Machado, apoiando-se em Henry Tilbery, discorda, no sentido de que “um dos objetivos mais
importantes do imposto sobre o patrimônio deve ser o de desestimular a existência de patrimônios
improdutivos”, aceitando uma tributação confiscatória em casos de concentração exacerbada de renda, com
finalidade de redistribuição das riquezas. MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário
Nacional. Vol.1. São Paulo: Atlas, 2003, p. 171.
431
A respeito, recomenda-se a leitura de SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura
Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Soma-se a ponderação de Diogo Leite de Campos:
“uma carga fiscal elevada e o seu aumento são adequados à seguinte conseqüência (desejada ou não): a
diminuição das possibilidades de escolha/autonomia da sociedade civil (família e empresas) perante as
escolhas do Estado. [...] Abandonar o seu projecto de vida e o da sua família, para aceitar a imposição que o
Estado lhe faz às custas dos seus impostos. A longo prazo, são as opções do Estado (políticos, dirigentes,
burocratas etc.), s seus projectos, as suas representações sociais que se vêm a impor lentamente, no que se
pode configurar como uma “tirania” (ou um ‘totalitarismo’) em ‘doses homeopáticas’. O Estado do bem-estar
pode tornar-se (‘totalitariamente’) o Estado de ‘um certo’ bem-estar, assente numa ‘certa’ ideologia”. Op. Cit.,
pp. 103-104.
432
“Ademais, nem cada tributo isoladamente, nem o sistema tributário como carga tributária genérica, pode
atingir aquela renda mínima do cidadão necessária para cobrir os gastos pessoais e familiares, [...] e um
sistema confiscatório ou um tributo confiscatório é aquele que visa a ferir o mencionado direito do cidadão
expresso no art. 7o da CF”. – ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da. Op. Cit., p. 340. No mesmo passo,
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 100; e DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO,
Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi
(atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 579.
433
AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 144; HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., p. 390; CARRAZZA, Roque Antonio, Op.
Cit., p. 99; DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 573-574.
434
A respeito, OLLERO apud TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 158: “[...] la capacidad susceptible de
tributación debe situarse entre el minimo de existencia y el maximo no confiscatorio, exigencias ambas que
constituyen presupuestos y limites de imponibilidad”. Ou seja, o não-confisco se destina a proteger o
patrimônio num sentido global do indivíduo (daí Ricardo Lobo Torres conferir-lhe a característica de
imunidade da “propriedade privada em sua totalidade, pois o Estado não pode utilizar o seu poder fiscal para
aniquilar a liberdade individual, que não sobrevive sem aquele direito” – Tratado de Direito Constitucional
Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 155), enquanto o mínimo vital
134
modo, não pode ser confundida com o não-confisco, por ter como finalidade não o resguardo
do direito de propriedade, mas da igualdade entre os cidadãos 435 .
Basta ver-se, por exemplo, que uma tributação pelo IPVA que custe ao contribuinte a
totalidade (ou quase) do veículo objeto da incidência, não afetará o indivíduo em seu mínimo
existencial. Implicará, sim, na subtração patrimonial do indivíduo mediante a tributação; mas
isso não afetará, de modo algum, seu mínimo existencial. Igualmente, sua capacidade
contributiva não estará afetada se esse IPVA, mesmo custando a totalidade (ou quase) do
objeto tributado, significar parcela ínfima do patrimônio total do contribuinte. Ou seja, tratam-
se de institutos diversos, motivo pelo qual preferimos filiar-nos à tese de que o não-confisco,
ao proteger o patrimônio dos indivíduos, guarda relação com a razoabilidade da tributação.
Tributação irrazoável que configure apropriação dos bens pelo Estado, sem a respectiva
contrapartida, é tributação confiscatória.
Decerto que não há como se precisar numericamente, em termos gerais, o que seja
confiscatório ou não 436 , por ser item altamente variável de acordo com cada situação
envolvida. Grande inquietação há na doutrina com relação a esse assunto 437 .
Alguns autores estabeleceram critérios econômicos de verificação do confisco, como o
estabelecimento de uma proporção entre a carga tributária e o dinheiro que resta após os
gastos essenciais da pessoa natural 438 ; o lucro das empresas; etc 439 . Contudo, mesmo esses
critérios caem no vazio da imprecisão, ao nosso ver justamente porque se centram apenas em
se mostra como o “núcleo sindicável da dignidade da pessoa humana”, nos termos de Ana Paula de Barcellos –
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios fundamentais – o princípio da dignidade da
pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 247 e ss.
435
Com relação à capacidade contributiva, encontramos apoio em Ricardo Lobo Torres, para quem “pouco ou
nada tem que ver com a problemática da proibição de tributos confiscatórios a idéia de justiça. Alguns juristas
indicam a capacidade contributiva, ao lado da garantia de propriedade, como o princípio que fundamenta a
vedação de confisco. Parece-nos, todavia, que a questão se situa fora da capacidade contributiva, [...]. A
proibição de tributo confiscatório, em suma, não decorre do postulado ético da capacidade contributiva, senão
que constitui princípio de proteção da liberdade, que pode ser violentada nos casos de tributação excessiva” –
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 157-158. Com relação ao mínimo existencial, todavia, o referido autor adota
posição diversa da nossa.
436
AMARO, Luciano. op. Cit., p. 145.
437
“A questão que se põe é: ‘até que patamar é lícito ao legislador erguer a carga tributária?’ Em outras palavras,
‘qual o limite para a restrição estatal a esta liberdade em face do Estado, o direito de propriedade?’ É bem
verdade que o constituinte brasileiro proibiu que os tributos tivessem efeito de confisco (art. 150, IV, CRFB).
Entretanto, tal disposição está longe de constituir um limite claro ao legislador e, a bem da verdade, nem o
Judiciário, nem qualquer dos demais Poderes Constituídos, nem a doutrina, ousaram ir além de considerações
lacônicas acerca da mesma. Não têm podido responder à simples pergunta: ‘qual é afinal o limite?’” –
RIBEIRO, Luís Antônio Cunha. Op. Cit., pp. 215-216. Cf. ainda PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 74;
AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 145; CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., pp. 163-165; MORAES,
Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 127.
438
MOLINA, Pedro Manuel Herrera. Metodología del derecho financiero y tributario. Mexico: Porrúa, 2004, p.
122; DIFINI, Luiz Felipe Silveira., Op. Cit., p. 86.
439
PEIXOTO, Marcelo Magalhães; CARDOSO, Laís Vieira, Op. Cit., p. 228, referem-se a ‘renovabilidade do
bem`. CARRAZZA, Roque Antonio, Op. Cit., p. 99, refere-se a “consistência originária das fontes de ganho”.
135
um dos pólos do estudo do confisco: a carga tributária 440 , a apropriação dos bens dos
particulares.
Para se verificar o tema de modo completo, é fundamental responder também a
questão da contrapartida prestada pelo Estado. Exemplo que caracteriza isso muito bem, é o
caso dos países europeus nórdicos 441 , os quais, mesmo com cargas tributárias elevadíssimas,
jamais foram tachados de confiscatórios – justamente porque o confisco se caracteriza não
tanto pela carga tributária em si, mas muito mais pela ausência de indenização ou de
contrapartida pelo Estado aos seus cidadãos.
Vale ainda trazer a lume a crítica feita por Thomas Nagel e Liam Murphy à questão do
direito de propriedade enquanto limitador da ação tributária. Para esses autores,
Não existe mercado sem governo e não existe governo sem impostos; o tipo
de mercado existente depende de leis e decisões políticas que o governo tem
de fazer e tomar. Na ausência de um sistema jurídico sustentado pelos
impostos, não haveria dinheiro, nem bancos, nem empresas, nem bolsas de
valores, nem patentes, nem uma moderna economia de mercado – não
haveria nenhuma das instituições que possibilitam a existência de quase
todas as formas contemporâneas de renda e riqueza.
Por isso é logicamente impossível que as pessoas tenham algum tipo de
direito sobre a renda que acumulam antes de pagar impostos. Só podem ter
direito ao que lhes sobra depois de pagar os impostos sob um sistema
legítimo, sustentado por uma tributação legítima – e isso demonstra que não
podemos avaliar a legitimidade dos impostos tomando como critério a renda
pré-tributária. Pelo contrário, temos de avaliar a legitimidade da renda pós-
tributária tomando como critério a legitimidade do sistema econômico que a
gera, o qual inclui os impostos, que são aliás uma parte essencial desse
sistema 442 . A ordem lógica de prioridade entre os impostos e os direitos de
propriedade é inversa à ordem suposta pelo libertarismo. 443
440
Preso a esse único aspecto, dentre outros, PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. A razoabilidade das leis
tributárias: direito fundamental do contribuinte. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos
Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 303.
441
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9a. edição. Rio de Janeiro,
Forense, 2006, p. 278.
442
Ao contrário, mesmo utlizando um viés utilitarista que o aproximaria, de certa maneira, dos referidos autores,
Buchanan discorda, subordinando o mercado aos esquemas de propriedade: “what I want to emphasize here is
that without the appropriate laws and institutions, which would include defined private property rights that are
respected and/or enforced and procedures for guaranteeing enforcement of contracts, the market wolud not
generate a spontaneous order embodying ‘efficiency’ in any value-maximization sense, if indeed we could refer
to ‘a market’ all”. – BUCHANAN, James M. Notes on politics as process. In: ______. Politics as public choice.
The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, pp. 72-73.
443
NAGEL, Thomas; MURPHY, Liam. O mito da propriedade – os impostos e a justiça. Tradução de Marcelo
Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 46. Daí eles chegarem à conclusão de que “os direitos de
propriedade são convencionais, mas em sua concepção e justificação há espaço para a inserção não só de
valores conseqüencialistas, mas também de outros direitos e valores deontológicos que, estes sim, são mais
fundamentais. Embora a proteção de alguma forma de propriedade privada seja um elemento essencial da
liberdade humana, a estrutura geral do sistema de direitos de propriedade deve ser determinada em grande
medida pela consideração de outros fatores” (pp. 61-62), no sentido de que “quanto mais amplos forem os fins
legítimos do governo, tanto mais ele terá o direito de afetar as vidas dos cidadãos e as relações entre eles pelo
136
De qualquer maneira, percebe-se (até diante da colocação dos autores acima) que a
questão do confisco não é puramente tributária, senão tanto quanto (ou mais ainda) financeira
– já que o próprio conceito de confisco pressupõe a desproporção entre apropriação (ônus) e
indenização (benefício) 444 .
Dados esses caracteres que lhe são próprios, o não-confisco não se afigura como
norma inserta no âmbito da imparcialidade política 445 . Nada obstante resguardar o direito de
propriedade e o fato ressaltado por Aliomar Baleeiro de que “uma sociedade de pequenos
proprietários será sempre hostil às nacionalizações e confiscos” 446 , o não-confisco não se
insere na esfera de imparcialidade política.
A respeito, Misabel Derzi, atualizando a mesma obra do prof. Baleeiro, considera que
o princípio que veda utilizar tributo com efeito de confisco tem assim um
sentido amplo, vazado em termos absolutos, que garante o direito de
propriedade e seus acréscimos inclusive por ordem sucessória, a livre
escolha ou o exercício de qualquer profissão e a livre iniciativa. Mas não é
um princípio de justiça material ou de isonomia 447 .
projeto do sistema de direitos de propriedade. Os efeitos exercer-se-ão em grande escala e os indivíduos ainda
terão liberdade para tomar pessoalmente suas decisões e determinar o rumo de suas vidas dentro da estrutura
institucional e jurídica criada pelo estado; mas, dependendo da teoria política que estiver por trás do sistema,
essa estrutura poderá ter conseqüências profundas para a gama de possibilidades com que cada cidadão irá se
defrontar” (p. 78).
444
Daí que Ricardo Lobo Torres aduz que a economicidade, prevista no art. 70 da Constituição como parâmetro
de controle e fiscalização da execução orçamentária, adquire ares de novo critério de verificação do não-
confisco, “a significar que o tributo deve corresponder à necessidade mínima do Estado para atender à parcela
máxima de interesse público”. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 162.
445
Posição nossa que, além da doutrina tecnicista, distancia-se da esposada pelo STF. Vide, a respeito, o
Acórdão proferido na ADI 2551-MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 20/04/2006), no qual se entendeu
que o confisco é um princípio correlato aos da proporcionalidade e da razoabilidade.
446
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 565.
447
DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 574.
448
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, pp. 239 e ss.
137
Situando-se acima dessa marca, não se pode mais afirmar tratar-se de baliza da
democracia.
Assim sendo, é factível, de acordo com determinadas posições, que o próprio confisco
(no sentido de apropriação de bens pelo Estado) é admissível em alguns casos – como na
extrafiscalidade 450 –, ou mesmo que nem se possa cogitar de confisco, dado que os esquemas
de propriedade só são estabelecidos na etapa pós-tributária (também abordado naquele
item) 451 .
O fato é que, tangendo a esfera da propriedade fora de seu núcleo essencial – mínimo
existencial –, o não-confisco deixa de ser, por si, um direito fundamental inerente ao
homem 452 . É de se dizer, ainda, do risco que ela representa (uma vez que não se relaciona
com o mínimo essencial) de manutenção do status quo, uma vez que o muito rico continuará a
ser muito rico, já que – sendo um direito fundamental – o tributo não pode se prestar a
confiscar seus bens. Isso, sem contar a questão da herança, discutida enormemente por Rawls
em toda a sua obra 453 . Diante do procedimento de checagem da razão pública, o não-confisco
é encarado como uma regra conjuntural 454 (e, frise-se, vazia de conteúdo). Parece-nos, em
449
BARCELLOS, Ana Paula de. Op. Cit., p. 126.
450
Nesse sentido, a Segunda Turma do STF entendeu que a pena de perdimento de bens em caso de ausência de
regularização fiscal nas operações de importação não redunda em confisco: "Importação — Regularização
fiscal — Confisco. Longe fica de configurar concessão, a tributo, de efeito que implique confisco decisão que,
a partir de normas estritamente legais, aplicáveis a espécie, resultou na perda de bem móvel importado." (STF,
2a. Turma, AI 173.689-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 12-3-96, DJ de 26-4-96).
451
Sobre o desenvolvimento da economia capitalista vis a vis a democracia, recomenda-se a leitura de
MARTINS, Rodrigo Baptista. A propriedade e a ética do capitalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
452
“Isso implica, por exemplo, que a questão da propriedade privada dos meios de produção ou de sua
propriedade social, bem com outras questões análogas, não é resolvida no nível dos princípios primeiros de
justiça, mas dependem das tradições e instituições sociais de um país, de seus problemas particulares e do
contexto histórico. [...] Um argumento filosófico, por si só, tem muito pouca probabilidade de convencer uma
parte de que a outra tem razão a respeito de uma questão como a da propriedade privada ou social dos meios
de produção. Parece mais fecundo procurar quais poderiam ser as bases de um acordo implícito na cultura
pública de uma sociedade democrática e, por conseguinte, nas suas concepções subjacentes da pessoa e da
cooperação social”. – RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São
Paulo: Ática, 2000, p. 395.
453
A respeito, cf., por exemplo, RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita
Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
454
Ricardo Lobo Torres realça a temporalidade da regra, aduzindo que “a conjuntura do país, a depender da
guerra ou da paz, do desenvolvimento ou da recessão, modifica a apreciação do que seja o aniquilamento da
propriedade”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III.
3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 162.
138
particular, uma regra anacrônica, destinada a proteger a propriedade como se direito intocável
fosse, desconsiderando sua função social ou qualquer outro aspecto seu, nos moldes da
Constituição de 1824.
Por conseguinte, não se pode afirmar que a regra do art. 150, IV, da Constituição, seja
um direito fundamental do cidadão.
455
PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 76.
456
Ricardo Lobo Torres entende mesmo tratar-se de uma espécie de imunidade, por proteger a liberdade de
locomoção dos cidadãos, valor ínsito ao próprio Estado democrático de Direito. Curso, p. 67. No mesmo
sentido, HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., p. 399.
457
ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da. Op. Cit., p. 306. No mesmo sentido TORRES, Ricardo Lobo.
Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005,
p. 112.
458
“É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei,
nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.
459
DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op. Cit., p. 89.
460
SILVA, José Afonso da. Curso, p. 242.
139
Todavia, optou o constituinte por inserir mais uma regra específica na seara tributária.
O comando possui justificação histórica, uma vez que os ordenamentos constitucionais
anteriores davam margem a esse tipo de tributação repressiva. Todavia, atualmente o
arquétipo constitucional tributário, mormente em sede de tributos incidentes sobre operações
e serviços 461 interestaduais e intermunicipais, praticamente inviabiliza a instituição ou mesmo
a modificação de tributos já existentes 462 com o fim de restringir a locomoção dos cidadãos
pelo território nacional 463 .
Por isso mesmo Sacha Calmon Navarro Coelho tece ácida crítica ao comando do art.
150, V, da Constituição: “são letras do passado. O dispositivo é quase vazio. No sistema
brasileiro é impossível embaraçar o tráfego de pessoas ou coisas com tributos interestaduais
ou interestaduais, [...]” 464 .
De qualquer forma, apesar de pouco prestigiada pela doutrina em geral, que
praticamente não a aborda, a regra existe e, como limitação constitucional ao poder de
tributar que é, merece nosso destaque 465 .
A liberdade de tráfego, resguardada em sede tributária no art. 150, V, da Constituição,
possui sua fundamentalidade confirmada diante do princípio democrático, uma vez que
protege a liberdade civil, abrangida pela razão pública.
A liberdade de locomoção pelo território nacional é um dos direitos mais básicos que
o cidadão possui; trata-se de um pressuposto lógico da democracia, o direito de ir e vir 466 .
John Rawls refere-se à liberdade de locomoção como uma das liberdades básicas a
serem resguardadas no ambiente democrático:
461
Utilizamos somente a expressão serviços para abranger também a hipótese de incidência do ISS, que, nos
termos do art. 156, III, da Carta Política, não se limita à sua ‘prestação’.
462
PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 76.
463
“Poder-se-ia dizer que, com a demarcação de competências estabelecida desde a Emenda nº 18/65, ficou mais
difícil ao legislador tributário impor tributos que pudessem afetar o tráfego, além dos já autorizados pela
Constituição”. – AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 146, reconhecendo porém que as taxas poderiam
eventualmente ser usadas nesse sentido.
464
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 308.
465
“Não obstante a impossibilidade de barreiras fiscais dentro da Federação, é mais uma limitação ao poder de
tributar garantindo o contribuinte”. – Id., Curso, p. 285.
466
Por isso mesmo Ricardo Lobo Torres a conceitua como imunidade: “a imunidade do art. 150, V, da CF tem
como fundamento a liberdade de ir-e-vir, que, no Estado de Direito, é prioritária e absoluta. Todos os
cidadãos, no Brasil, têm o direito de se locomover de um para outro município ou de um para outro Estado,
sem que precisem de permissão da autoridade judicial ou policial e sem que necessitem pagar qualquer tributo.
A liberdade de ir-e-vir compreende assim a locomoção sobre os próprios pés como a que se faz por intermédio
de veículos terrestres, marítimos ou aéreos”. – Id. Ibid., p. 112.
140
A Constituição proíbe, em seu art. 150, VI, c e em seu parágrafo 4o, que quaisquer
entes da Federação instituam impostos sobre patrimônio, renda ou serviços vinculados às
finalidades essenciais de templos de qualquer culto.
Existe uma certa divergência no tratamento dessa imunidade pela doutrina. Há quem
afirme tratar-se de mera regra constitucional 469 e quem considere tratar-se de verdadeira
imunidade, no sentido de proteção de liberdade religiosa 470 .
A imunidade dos templos é vista pela maior parte da doutrina como uma extensão do
direito de liberdade religiosa 471 (consagrado no art. 5o, VI a VIII, da Constituição), ou mesmo
467
RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene
A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 188.
468
Utilizaremos o conceito de imunidade como norma destinada a proteger valores relevantes para a sociedade –
para o objeto do trabalho, peculiarmente valores relativos a direitos dos cidadãos. “[...] as normas imunizantes
densificam princípios estruturantes – assim entendidos os constitutivos e indicativos das idéias diretivas
básicas de toda a ordem constitucional, iluminando seu sentido jurídico-constitucional e político-
constitucional”. – COSTA, Regina Helena. Imunidades tributárias – teoria e análise da jurisprudência do
STF. 2a. edição. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 71. Daí se pode entender a diferença feita, no desenrolar da
pesquisa, entre os casos em que se afirma tratar de verdadeira imunidade (ou seja, instrumento de proteção de
liberdades) ou mera regra constitucional (em que não há uma liberdade propriamente protegida pelo
dispositivo).
469
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 311; CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 716-
717.
470
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 250; ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 220.
471
CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 190; TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e
Tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 74. Cristiano Carvalho entende ainda que a
liberdade de religião é uma variação da liberdade de expressão, sendo “a manifestação da fé [...] uma das mais
significativas espécies de expressão do pensamento, e também uma das principais liberdades a serem atacadas
por um Estado totalitário”. CARVALHO, Cristiano Rosa. Op. Cit., p. 880.
141
uma garantia desse direito em sede de tributação 472 . Assim, ratificar-se-ia por um lado a
laicidade do Estado 473 (referida no art. 19 da Carta e pressupõe o tratamento igualitário entre
todas as religiões, sem favorecimento), e, por outro, evitar-se-ia a perseguição a determinados
grupos religiosos 474 .
A vedação constitucional refere-se apenas à espécie tributária impostos, o que é
justificado por parte da doutrina diante do caráter eminentemente fiscal e não vinculado a
nenhuma contraprestação estatal – o que abriria flanco para certos arbítrios estatais na seara
da fiscalidade, caso não houvesse essa imunidade. Autorizado, portanto, é o Estado para
cobrar tributos relativos a contraprestações que ele dê às instituições religiosas 475 , havendo,
entre elas, apenas o princípio da igualdade para não diferenciá-las entre si e a
proporcionalidade entre o custo da prestação do serviço e o valor cobrado dos usuários. Outra
corrente doutrinária diverge, contudo, por enxergar que não existe razão para essa distinção –
e, se a liberdade religiosa é direito fundamental, ela deve ser assegurada para toda e qualquer
imposição tributária (ainda que relativa a contrapartidas realizadas pelo Estado, como se tem
nos demais tributos) 476 .
Ainda há de se verificar a extensão das expressões templo e culto.
Como templo entende-se não apenas o prédio onde se realizam as liturgias477 , mas sim
a própria instituição religiosa em si, responsável pela profissão da fé 478 . Ou seja, ao vedar
impostos sobre o templo, a imunidade impede a instituição de impostos sobre o patrimônio, a
renda e os serviços prestados pelas instituições religiosas. Até porque um mero imóvel (que é
o templo, objetivamente) não possui patrimônio, não aufere renda e nem presta serviços, não
472
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 252.
473
Id. Ibid., p. 252.
474
Caso contrário, aumentar-se-ia o perigo de “intolerância para com o culto das minorias, sobretudo se estas se
formam de elementos étnicos diversos, hipótese perfeitamente possível num país de imigração, onde já se
situam núcleos ortodoxos, protestantes, budistas, israelitas, maometanos, xintoístas e sempre existiram
feiticistas de fundo afro-brasileiro”. – BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11a. edição. Misabel
Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 136-137.
475
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 256.
476
CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., pp. 179-180. No mesmo sentido, CHIESA, Clélio. Imunidades e
normas gerais de direito tributário. In: SANTI, Eurico Marques Diniz de (coord.). Curso de Especialização em
Direito Tributário – estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 936. Discordamos dessa posição doutrinária, porquanto o oferecimento de serviços pelo Estado em
caráter gratuito para as instituições religiosas pode configurar, por vias transversas, contrariedade à laicidade
do Estado ou mesmo o oferecimento indireto de subvenções, o que é vedado pelo art. 19 da Carta.
477
Ao comentar o art. 5o, VI, da Constituição, Jesus Hortal aduz que o constituinte “parece ter querido designar
não apenas os ritos oficiais das diversas confissões religiosas, mas também as suas insígnias, hábitos e sinais
externos de identificação”. – HORTAL, Jesus. O princípio da liberdade religiosa e o ordenamento jurídico. In:
PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (orgs.). Os
princípios da Constituição de 1988. 2a. edição. Rio de Janeiro: 2006, p. 312.
478
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 716.
142
479
DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op. Cit., p. 105.
480
“Daí serem tributáveis, por exemplo, os imóveis alugados e as rendas pertinentes, salvo se comprovado que as
rendas auferidas são aplicadas no desempenho das finalidades essenciais da instituição”. – ROSA JR., Luiz
Emygdio Fernandes da. Op. Cit., p. 316.
481
“Graças a esta inteligência, tem-se aceito que também são templos a loja maçônica, o templo positivista e o
centro espírita”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 718. Cf. ainda TORRES, Ricardo Lobo. Tratado
de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 253.
482
PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 84.
483
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, pp. 331-332.
484
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 251.
485
CARVALHO, Cristiano Rosa. Op. Cit., p. 880.
143
Assim sendo, a regra constitucional que imuniza os templos de qualquer culto, garante
a liberdade religiosa prevista genericamente no art. 5o, VI, da Constituição. Por isso mesmo,
não se pode considerar revogável a regra do art. 150, VI, b, da Carta, a fim de se evitar
qualquer tipo de restrição à atividade litúrgica, ou ainda perseguições ou favorecimentos a
grupos religiosos de qualquer espécie.
Por outro lado, o comando do § 4o do art. 150 (correlato ao inciso VI, b, do caput),
apesar de apresentado no presente item, possui um aspecto garantista não tanto da liberdade
religiosa, mas revela-se um preceito de igualdade com relação aos demais contribuintes. Serve
para evitar a concessão de privilégios destituídos de fundamentação razoável às instituições
religiosas: só se imunizam as atividades essenciais a essas instituições, já que o núcleo do
direito é a liberdade religiosa. Exatamente por traduzir a igualdade (não mais a liberdade
religiosa em si) é que tal norma se justifica como cláusula pétrea também 487 .
489
Por essa razão Ricardo Lobo Torres considera que “a não-incidência de impostos sobre os partidos políticos é
Vera imunidade fiscal”, uma vez que “[...] se fundamenta nos direitos de liberdade. Embora os direitos
políticos não integrem formalmente a declaração de direitos fundamentais, compõem a esfera dos direitos
subjetivos do cidadão e, por conseguinte, a própria noção de cidadania”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado
de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 258-
259. Aliomar Baleeiro, ainda sob o regime da Constituição de 1969, que considerava os partidos pessoas
jurídicas de direito público, entendia que essa imunidade tinha o mesmo fundamento da imunidade recíproca.
Cf. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu
Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005.
490
CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 191.
491
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 330-331. Cf. ainda TORRES, Ricardo Lobo, Tratado
de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 260,
para quem os direitos humanos e a liberdade moderna necessitam da representação política para o seu
aperfeiçoamento, o que torna indispensável a imunização dos partidos políticos e suas fundações.
145
Até porque, como lembrado por Sidney Saraiva Apocalypse, os tributos podem
adquirir a feição de instrumento de controle da vida civil pelo Estado, por diversos meios 494 .
Que se dirá quanto à vida política.
Por isso mesmo, a imunidade dos partidos políticos, consagrada no art. 150, VI, c, da
Constituição, mostra-se digna de fundamentalidade diante do critério de razão pública,
relacionado-se com a liberdade política, a igualdade de oportunidades e o respeito ao dever
(moral) de civilidade – porquanto os partidos políticos são instrumento essencial 495 para o
livre exercício da democracia 496 . Nunca é demais relembrar que, mesmo num regime de
democracia deliberativa, a representação política se faz fundamental 497 .
Ao argumentar sobre a própria Constituição, Rawls a concebe como um justo
procedimento político que comporta as liberdades políticas iguais para todos e procura
assegurar seu justo valor, de tal modo que os processos de decisão política sejam acessíveis a
todos, numa base relativamente igual 498 .
Logo, os partidos políticos, enquanto entidades responsáveis por congregar pessoas
que partilham dos mesmos ideais políticos, não podem sofrer tributação, a fim de que não
corram o risco de sucumbir – e, assim, restringirem-se as oportunidades de acesso à
deliberação democrática por grupos de cidadãos.
492
Disso discorda Sacha Calmn Navarro Coelho. Cf., a respeito, seus Comentários à Constituição de 1988.
493
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 260.
494
APOCALYPSE, Sidney Saraiva. Tributo – mecanismo de controle da vida civil. In: MARTINS, Ives Gandra
da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007, pp.
217 e ss.
495
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 333.
496
“De fato, o partido político é criatura constitucional, absolutamente essencial à democracia e ao liberalismo,
que podem encontrar outros meios de participação direta do povo, mas que não prescindem da representação
através da atividade partidária”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 258-259.
497
RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene
A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 188.
498
Id. Ibid., p. 190.
146
Ricardo Lobo Torres afirma mesmo que “os direitos humanos e a liberdade moderna
necessitam da representação política para o seu aperfeiçoamento, o que torna intributável o
partido político [...]” 501 .
Em vista disso, a imunidade dos partidos políticos disposta no art. 150, VI, c, da
Constituição, tem sua esfera de fundamentalidade resguardada pela razão pública, por ser
diretamente relacionada à imparcialidade política. Humberto Ávila atribui-lhe até o caráter de
concretizadora do princípio democrático 502 .
Da mesma forma que na imunidade dos templos, o § 4o do art. 150 da Constituição, ao
afirmar que somente as atividades essenciais dos partidos políticos são imunes, guarda relação
muito mais com a igualdade (vedando privilégios injustificados aos partidos políticos, por
afastar-se das suas finalidades essenciais) do que com a liberdade política; porém, por ser uma
499
“Realmente, a democracia não pode prescindir dos partidos políticos. É por intermédio deles que todas as
correntes de opinião pública têm reais condições de fazer-se representar na chefia dos Executivos e nas Casas
Legislativas. É notório que os partidos políticos assumiram uma influência notável no funcionamento
quotidiano da vida constitucional do País. Logo, a pluralidade partidária é não só altamente louvável, como
necessária ao perfeito funcionamento das instituições. Os partidos políticos são, em suma, verdadeiros
instrumentos de governo”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. cit., p. 726. Preferimos falar em encargos
públicos do que falar em encargos vindos do Estado, uma vez que a tributação, no âmbito da democracia
deliberativa, não parte do Estado, mas dos cidadãos.
500
RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene
A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 187-188.
501
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 260.
502
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 222.
147
salvaguarda da igualdade, base do Estado democrático de Direito, essa regra também é norma
constitucional fundamental.
503
Roque Antonio Carrazza entende que o objetivo da norma imunizante foi o de favorecer a sindicalização dos
trabalhadores, especialmente aqueles mais humildes. “Se estes pequenos sindicatos tivessem, ainda por cima,
que suportar impostos, em pouco tempo ficariam inviáveis”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 728.
504
Dentre outros, PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 85. Roque Antonio Carrazza também defende que as centrais
sindicais estejam incluídas na norma. Op. Cit., p. 728.
505
COSTA, Regina Helena. Op. Cit., p. 171. Sobre a referida crítica, cf. o capítulo 4 da presente.
506
“O tratamento assegurado às entidades sindicais encontrou apoio nas contradições da própria Constituição de
1988, de origem nitidamente compromissária. [...] A nova figura criada pela CF 88 mostra bem a desmesurada
extensão que se vem dando à intributabilidade fiscal entre nós. Ora através da escritura constitucional, ora por
intermédio da magnânima jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o certo é que os casos de imunidade e
de não-incidência vão crescendo até limites insuportáveis que os países mais ricos que o nosso desconhecem,
denotando a permanência da ideologia da inesgotabilidade dos recursos públicos, que tanto mal tem feito ao
Brasil”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a.
edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 264.
148
Special benefit projects that secure thier justification almost solely because
of the make-up of the dominant majoritarian coalition equally violate the
norm. […] As James Madison understood, the interplay among factions,
each promoting its own interest at the expense of the common purpose of
politics itself, is not compatible with liberal democracy 508 .
507
Id. Ibid., pp. 262-263.
508
BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as
public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 109.
149
509
Não analisaremos aqui a questão da isenção/imunidade das contribuições sociais sobre as entidades de
assistência social prevista no art. 195, §7o, da Constituição, por não constar das limitações ao poder de tributar
– foco principal do trabalho. Também não será avaliada a questão do enquadramento dos fundos de pensão
como entidades assistenciais, já que essa discussão também escapa, sendo secundária ao objetivo da pesquisa,
que é avaliar a (i)mutabilidade da imunidade prevista no art. 150, VI, c, da Constituição, diante do princípio
democrático. E ainda não será discutida se a natureza da lei a que se refere a alínea c é ordinária ou
complementar, por escapar igualmente à discussão central do estudo. Sobre essa última peculiaridade e outras
relacionadas ao art. 14 do Código Tributário Nacional, recomenda-se a leitura de CHIESA, Clélio. Op. Cit.
510
“Instituição é palavra destituída de conceito jurídico-fiscal. Inútil procurá-lo aqui ou alhures, no Direito de
outros povos. É um functor. O que a caracteriza é exatamente a forma jurídica de sua organização, que tanto
pode ser fundação, associação etc. O destaque deve ser para a função, os fins”. – COELHO, Sacha Calmon
Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 339.
511
Dentre eles, realçamos Kiyoshi Harada.
512
Destacamos Ricardo Lobo Torres e Luiz Emygdio Fernandes da Rosa Jr.. Roque Antonio Carrazza, apesar de
fazer menção à dignidade da pessoa humana, também se pauta na ausência da capacidade contributiva (Curso,
pp. 733/739).
513
Vale trazer a crítica de Ricardo Lobo Torres a esse primeiro posicionamento: “Tal explicação, sobre deslocar
a problemática do campo da liberdade para o da justiça e nem sempre corresponder à verdadeira situação
econômica das entidades educacionais e assistenciais, conduz à interpretação ampla no reconhecimento do
direito, afastada da consideração da pobreza do educando ou do assistido”. – TORRES, Ricardo Lobo.
Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005,
p. 269.
514
STF, RE 210.251-ED, Relator para o Acórdão Min. Gilmar Mendes, DJ de 28-11-03. No mesmo sentido: RE
186.175-EDv-ED, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 23-8-06, DJ de 17-11-06.
515
“Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à
seguridade social, e tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à
velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; III – a promoção da integração ao mercado de
trabalho; IV – a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua
150
consagrada como “direito de todos” no art. 205 da Constituição, uma vez prestada
desinteressadamente para os que não possuam iguais condições de acesso, também se mostra
da mais alta relevância para a vida digna das pessoas. Daí o afirmar tratar-se de verdadeira
imunidade tributária, e não somente uma regra para a ausência de tributação 516 .
Por isso mesmo, as pessoas que de maneira abnegada auxiliarem o Estado 517 na
consecução de suas atividades básicas, conferindo aos mais desabonados economicamente
acesso à educação 518 , cultura, saúde e assistência social, “que, em sua expressão mínima,
constituem direitos humanos inalienáveis e imprescritíveis” 519 , precisam ser poupadas de
impostos 520 – porquanto, em última análise, são elas que, suprindo a falta do Estado,
asseguram àquelas pessoas a fruição de uma vida digna (ou o mais próximo dela).
Conseqüentemente, as atividades dessas pessoas destinam-se a assegurar o mínimo
existencial, a dignidade dos cidadãos mais necessitados, motivo pelo qual de fato justifica-se a
imunidade de modo bem mais consistente diante da proteção à dignidade da pessoa humana.
Para fruir da imunidade não é necessário que a totalidade dos serviços prestados seja
gratuita. Até porque, pressupor-se isso seria exigir que a entidade estivesse fadada ao
encerramento abreviado de suas atividades 521 . Basta que, diante da cobrança de determinadas
atividades, o resultado financeiro positivo 522 dessas prestações seja reinvestido na própria
instituição. No entanto, é de suma importância que o atendimento aos mais necessitados seja
integração à vida comunitária; V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de
deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida
por sua família, conforme dispuser a lei”.
516
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 265-266.
517
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 739.
518
“Quer a Constituição não só incentivar pessoas privadas a que criem instituições de educação e assistência
suprindo as deficiências da ação estatal, aperfeiçoando-a ou melhorando-a, como ainda visa a assegurar que
essas entidades existam desembaraçadamente, inclusive quanto a encargos tributários”. – ATALIBA, Geraldo.
Imunidade de instituições de educação e assistência, in RDT nº 55, p. 139.
519
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 266.
520
“A imunidade [...] deve abranger os impostos que, por seus efeitos econômicos, segundo as circunstâncias,
desfalcariam o patrimônio, diminuiriam a eficácia dos serviços ou a integral aplicação das rendas aos objetivos
específicos daquelas entidades daquelas entidades presumidamente desinteressadas, por sua própria natureza”.
– BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 313.
521
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 340.
522
Não utilizamos a palavra lucro, por ser afeto à noção de empresa, “coisa que a entidade, nas referidas
condições, não é, justamente porque lhe falta o fim de lucro (vale dizer, a entidade foi criada não para dar
lucro ao seu criador, mas para atingir uma finalidade altruísta)”. – AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 156.
151
prestado em caráter gratuito. Afinal, esse é seu público-alvo e é exatamente isso que
caracteriza uma entidade como auxiliar do Estado no amparo à pobreza 523 .
Sem embargo, o caráter assistencial apresenta-se diante de algumas características
básicas, a saber: suprimento de necessidade atual e não futura; oferecimento, em geral, de
prestações em espécie e não em dinheiro; e auxílio em todos os casos 524 de necessidade 525 .
Preenchidas essas características básicas, inerentes à filantropia, assegurado está o direito à
fruição da imunidade. Assim é que se diz ser impossível à autoridade administrativa cancelar
determinada imunidade, mas somente suspendê-la até que os requisitos voltem a ser
cumpridos 526 .
A imunidade das entidades de educação sem fins lucrativos e de assistência social se
relaciona com a razão pública, merecendo sua identificação como cláusula jusfundamental.
Diante do critério de justificação argumentativa, esse dispositivo constitucional mostra-se
válido, por proteger a igualdade de oportunidades, a igualdade social, os valores do bem
comum, o respeito ao dever (moral) de civilidade e o direito à instrução e informação,
havendo nítida correlação entre ele e a esfera de imparcialidade política dos cidadãos.
As entidades acima descritas complementam a ação estatal na formação do cidadão,
dando-lhe instrução, formação profissional e assistência médica, o que lhes assegura, ao
mesmo tempo, a igualdade de oportunidades com seus pares sociais 527 , o que
conseqüentemente viabiliza a igualdade social.
523
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 277.
524
Roque Antonio Carrazza diverge dessa posição. Para o referido autor, basta que se observe impessoalidade no
acesso, ou seja, que uma determinada instituição atenda apenas a pessoas que cumpram determinados
requisitos, porém sem identificação prévia. Op. Cit., p. 741.
525
DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 322.
526
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 224.
527
“De feito, a imunidade visa a proteger os direitos da liberdade compreendidos no mínimo existencial, nas
condições iniciais para a garantia da igualdade de chance”. – Id. Ibid., p. 267.
528
RAWLS, John. O Direito dos Povos. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública
revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 150-151.
152
Além disso, imunizar-se tais sociedades significa preservar os valores do bem comum,
por incentivar a solidariedade social e, assim, fazer da sociedade um sistema eqüitativo de
cooperação 529 .
Demais disso, formando cidadãos, essas entidades lhes permitem desenvolver o
respeito ao dever (moral) de civilidade, bem como lhes garante o exercício efetivo do direito à
instrução e informação.
Por isso mesmo, Ricardo Lobo Torres aduz que “as imunidades das instituições de
educação e assistência social constituem instrumento democrático e aberto para a escolha das
ações filantrópicas por decisões não governamentais e para o aumento das possibilidades de
atendimento, no espaço público, das demandas dos necessitados” 530 .
Dessa forma, nítido se mostra que o comando do art. 150, VI, c, da Constituição,
referente às entidades de educação e de assistência social sem fins lucrativos, revela-se como
norma jusfundamental diante da razão pública, sendo importantíssimo para a esfera de
imparcialidade política.
O § 4o do art. 150, que também guarda relação com as entidades retro, recebe nossa
mesma consideração tecida nos casos das imunidades dos templos e dos partidos políticos.
3.3.9 A imunidade de impostos sobre livro, jornal e periódico, bem como sobre o papel
destinado à sua impressão.
529
Id. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes,
2003, pp. 6 e ss.
530
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 293-294.
531
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 386.
532
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 764-765. Além disso, “[...] é objetiva, porque também repousa no
pressuposto constitucional da repercussão econômica do Imposto sobre Produtos Industrializados e do Imposto
sobre Operações de Circulação de Mercadorias e Serviços”. DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
153
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 342. Cf. ainda o Acórdão proferido no RE 213094, de
lavra da Primeira Turma do STF, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 15/10/1999.
533
HARADA, Kiyoshi, Op. Cit., p. 397; ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 241; BALEEIRO, Aliomar. Limitações
constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 339; ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da. Op. Cit., pp. 320-321; COELHO, Sacha
Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 386;
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 745-746.
534
PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 88.
535
Cf. RREE 221239 (2a. Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 06/08/2004), 183403 (2ª. Turma, Rl. Min. Marco
Aurélio, DJ de 04/05/2001), 213094 (1ª. Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 15/10/1999).
536
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 297.
537
Valeria, assim, o mesmo raciocínio desenvolvido por Sacha Calmon Navarro Coelho quanto ao dispositivo do
não-confisco (apesar de o referido autor não o fazê-lo), no que toca o fato de o próprio sistema constitucional
já inviabilizar tal tipo de perseguição tributária aos comunicadores. Aliomar Baleeiro discorda da referida
assertiva, entendendo o imposto como “meio eficiente de suprimir ou embaraçar a liberdade da manifestação
do pensamento, a crítica dos governos e a homens públicos, enfim, de direitos que não são apenas individuais,
mas indispensáveis à pureza do regime democrático”. – BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao
poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.
340.
154
Vale tecer um comentário ainda sobre os diversos bens jurídicos traçados pela
doutrina como tutelados pela referida imunidade. Forte nos dizeres de Luís Roberto Barroso,
tem-se como diferentes entre si as liberdades de informação (que contém as liberdades de
acesso à educação e à cultura), de expressão (na qual se inserem os direitos de comunicação,
de manifestação do pensamento, de crítica e de propaganda política) e de imprensa, já que
periódicos” 542 . Por não ser o único material necessário, doutrina majoritária estende a
imunidade a outros insumos, havendo divergência quanto à extensão deles – se somente
filmes e tinta, ou se também as máquinas impressoras estariam beneficiadas pela imunidade.
Para quem entenda tratar-se apenas de regra, o princípio geral de que a analogia não pode
levar à dispensa de tributo não intencionada pelas regras jurídicas, leva à conclusão de que
somente o que determinou o constituinte (o papel) é abrangido pela imunidade 543 .
Pelo que se verifica das linhas acima, a norma do art. 150, VI, d, da Constituição, ao
assegurar a não incidência de impostos sobre as coisas acima, é um comando com intuito
objetivo, que não guarda relação com qualquer categoria de pessoas.
Apenas por isso, a referida norma já poderia ser desconsiderada como verdadeira
imunidade, já que coisas não são dotadas de liberdades a serem tuteladas. No máximo, essas
coisas poderiam ser consideradas instrumentos de viabilização de algumas liberdades
subjetivas; todavia, nunca é despiciendo relembrar que a esfera de fundamentalidade guarda
relação com o núcleo irredutível da liberdade. O instrumento lhe é periférico, marginal.
Conseqüentemente, não guarda relação com a razão pública.
Assim é que, nos dizeres de Ricardo Lobo Torres, “se a intributabilidade dos jornais e
livros tem a natureza de não-incidência constitucional ou de mero privilégio, não se lhe
estendem as conseqüências das verdadeiras imunidades, dentre as quais a
irrevogabilidade” 544 .
Pode-se falar na necessária proteção à liberdade artística, de expressão 545 , de
pensamento, de educação, instrução, informação, imprensa etc. Contudo, é importante ver que
essas liberdades pertencem a indivíduos e não aos veículos de comunicação que eles utilizam.
Ou seja, tais liberdades asseguram que os indivíduos não podem ser tributados por se
expressarem de que maneira for; o pensamento não pode ser tributado 546 . No entanto, a
542
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 765.
543
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 310.
544
Id. Ibid., p. 297.
545
“É interessante observar que certa parte da doutrina brasileira, que geralmente reduz as imunidades ao
discurso constitucional e não lhe procura o fundamento valorativo, aponta a liberdade de expressão como
justificativa da intributabilidade dos jornais, revistas e livros”. – Id. Ibid., p. 299.
546
Somente nesse sentido é que concordamos com a afirmação de Roque Antonio Carrazza (Op. Cit., p. 747),
para quem “[...] a própria democracia de um País é diretamente proporcional ao grau de livre manifestação do
pensamento que nele existe. É ponto bem averiguado, que um regime em que não seja possível às pessoas
manifestar livremente o próprio pensamento não pode ser havido por democrático”, ou de Hugo Lafayette
Black, para quem “o direito de pensar, falar e escrever livremente, sem censura ou interferência governamental
é o mais precioso privilégio de cidadãos investidos do poder de escolher idéias políticas e servidores
públicos”. – BLACK, Hugo Lafayette. Crença na constituição. Tradução de Luiz Carlos de Paula F. Xavier.
Rio de Janeiro: Forense, 1970, p. 63.
156
tributação ou não das coisas nas quais esse pensamento seja materializado não é nuclear, não
é corolário de qualquer das liberdades supramencionadas.
Até porque, nesse caso, como a imunidade é meramente objetiva, os indivíduos não se
mostram protegidos em suas liberdades intelectuais. Ricardo Lobo Torres, a respeito, lembra
que essa imunidade perdurou por todo o regime militar, período no qual houve inigualável
restrição às liberdades acima referidas, e rejeita a afirmação de que a norma protege a
liberdade de expressão.
547
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 298-299.
548
“A liberdade de informação é pressuposto de publicidade democrática; somente o cidadão informado está em
condições de formar um juízo próprio e de cooperar, na forma intentada pela Lei Fundamental, no processo
democrático”. – CLÈVE, Clèmerson Martins. Liberdade de expressão, de informação e propaganda comercial.
In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao
professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 220.
157
549
Com isso rejeitamos o argumento econômico que Misabel Derzi traz com relação à redução no custo de
aquisição dos livros e periódicos pelos cidadãos, que favoreceria a veiculação de informações, ensino,
educação e cultura (em nota a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a.
edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 341). Existem outros
mecanismos pelos quais a carga tributária dessas mercadorias pode ser controlada, a um patamar condizente
com a essencialidade ou a exteriorização de riqueza pela aquisição de tipos de livros e periódicos. Abstraindo
da regra imunizante em si e pensando no tributo como um instrumento de restrição das liberdades arroladas
acima, vale trazer o raciocínio de Clèmerson Martins Clève, para quem “importa, aqui, considerar que o
legislador está autorizado (i) implícita ou (ii) explicitamente a operar, dentro de limites controláveis, restrição
nos direitos fundamentais, tudo para, através de um juízo de concordância prática, de ponderação,
concretizador de um balancing, harmonizar os direitos em função da possível emergência de colisão ou de
concorrência”. – CLÈVE, Clèmerson Martins. Op. Cit., p. 234.
550
BOTALLO, Eduardo Domingos. O Imposto sobre Produtos Industrializados na Constituição. In: TÔRRES,
Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de
Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 639.
551
Id. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 127, realçando o
aspecto moral do princípio ao aduzir que ele servirá para “coarctar abusos do legislador, que muita vez prefere
aumentar os impostos indiretos, que são invisíveis e causam pequena reação popular, do que majorar os
tributos diretos e progressivos, que incidem sobre pessoas de maior capacidade contributiva mas ficam sujeitos
a lobby e a resistência de interessados”. Luciano Amaro correlaciona a transparência fiscal ao princípio da
informação do consumidor. Op. Cit., p. 147.
158
consumo (notadamente IPI, ICMS e ISS). Parte da doutrina ainda vislumbra a regra como um
instrumento de combate à sonegação fiscal pelos consumidores 552 .
Trata-se de um enfoque prático, no qual a norma é vista como modalidade de controle
direto do ‘preço tributário’ das mercadorias e serviços pelo cidadão-contribuinte 553 – que, ao
mesmo tempo, é o cidadão-eleitor 554 .
Vale frisar, contudo, que os grandes consumidores, mormente pessoas jurídicas,
sabem perfeitamente qual a carga tributária de tudo o que consomem. Por outro lado, os
pequenos consumidores, em sua quase totalidade, mal sabem o que é imposto – motivo pelo
qual somente dizer-lhes qual a carga tributária de cada um seria, quando muito, dar uma
informação (o que, por si só, não esclarece 555 , atendendo apenas parcialmente ao preceito
constitucional).
Por isso mesmo, talvez o comando do legislador possa ser encarado por um segundo
prisma, que é o da educação tributária. É possível que as medidas às quais o constituinte se
refere para o legislador esclarecer os consumidores, destinem-se a transmitir para o
consumidor não somente o encargo econômico dos impostos incidentes sobre as coisas e
serviços que adquire, mas também quais são e o que significam esses impostos em si.
Em termos práticos, a educação tributária vem sendo efetuada por algumas Unidades
da Federação, como resultado do Programa Nacional de Educação Fiscal (PNEF). O
Programa, firmado inicialmente por todos os Estados, o Distrito Federal e a União no âmbito
do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) 556 , foi objeto de posterior Portaria
Interministerial entre os Ministérios da Fazenda e da Educação 557 , de modo a tornar o
552
CARRAZZA, Roque Antonio, Op. Cit., p. 912, para quem “os consumidores finalmente perceberão que o
maior beneficiário – quando não o único – desta prática irregular é o próprio sonegador”.
553
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 395.
554
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 127.
555
Conforme definição do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, esclarecer adquire o significado de
“tornar claro, compreensível; elucidar, aclarar; dar ou prestar explicação, esclarecimento; obter
esclarecimentos, informar-se”. – FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo dicionário da língua
portuguesa. 2a edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 687.
556
Para maiores informações sobre o histórico do PNEF, recomenda-se a leitura da dissertação de Mestrado de
Arlindo Amorim Pereira, Programa de Educação Tributária da Bahia: a visão dos atores envolvidos no seu
grupo e a implementação do programa. Salvador, 2004. 134 f. Dissertação (Mestrado em Administração) –
Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004. Disponível em:
<http://www.adm.ufba.br/disserta/mestacad/publicacoes/dissertacao/pereira_arlindo_amorim.pdf>. Acesso
em: 23 abr. 2007.
557
Portaria Interministerial nº 413/2002.
159
É pertinente fazer uma última observação quanto às imunidades. Tendo em vista que
elas se referem a liberdades intocáveis, conseqüentemente não se pode considerar válido que
as pessoas protegidas pelas imunidades constitucionais (templos de qualquer culto, partidos
políticos e entidades filantrópicas) sejam tributadas de forma alguma. Assim, o texto
constitucional, ao se referir somente a impostos, revela-se incompleto e distorcido. “A
redução é descabida, transparecendo como o produto de um exame meramente literal (e
558
Cf. o portal próprio do projeto Leãozinho, na página <http://leaozinho.receita.fazenda.gov.br/>. Acesso em:
17 abr. 2007. Recomenda-se ainda a leitura do documento disponibilizado pela Escola Superior de
Administração Fazendária (ESAF) a respeito de todo o PNEF, com seus objetivos principais, na página
<http://www.receita.fazenda.gov.br/publico/EducacaoFiscal/PrimeiroSeminario/02PNEFExerciciodeCidadani
a.pdf>. Último acesso em 17 de abril de 2007.
559
Exatamente por tocar apenas a questão da razão pública, não abordaremos a discussão técnica sobre o
assunto. Recomenda-se, para tanto, a leitura de CHIESA, Clélio. Op. Cit.
160
560
CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 179. Cf. ainda a p. 182, em que o autor reafirma essa passagem.
No mesmo sentido, CHIESA, Clélio. Op. Cit., pp. 935 e ss.
561
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 437-438.
562
Partilhamos integralmente do pensamento de Paulo de Barros Carvalho, para quem “análise dos modernos
estudos jurídicos tributários estão a revelar marcante tendência doutrinária, para a qual não lobrigamos
explicação plausível. Doutores de tomo, legítimos representantes de escolas doutrinárias, seguem a mesma
trilha, aprofundando cada vez mais as investigações e criando padrões que, com o passar do tempo, vão se
solidificando, a ponto de tornar sumamente problemática qualquer espécie de revisão de premissas. É
precisamente o que sucede com os estudos acerca das normas jurídicas tributárias”. – CARVALHO, Paulo de
Barros. Teoria da norma tributária. 2a. edição. São Paulo, RT, 1981, p. 66.
161
563
RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene
A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 190-191.
564
“Ao assim agirem, todavia, esquecem que a história da raça humana muda em velocidade crescente e as
conjunturas tendem a se modificar com celeridade cada vez maior, exigindo novos regramentos, impondo
novos desafios que não podem ficar amarrados por legisladores sem visão antecipatória”. – MARTINS, Ives
Gandra da Silva. Op. Cit., p. 182.
565
Após afirmar que as constituições analíticas abrem “portas de entrada” ao positivos, Paulo Napoleão
Nogueira da Silva considera que “A circunstância de no positivismo contar como regra o que está escrito,
quase que exclusivamente sob o aspecto literal, abre caminho a uma semiditadura das maiorias legislativas,
quase sempre eventuais e instáveis: o que decidir em um determinado momento uma tal maioria, tornar-se-á
inconteste, exigível e obrigatório, [...]”. – SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. Constituição e sociedade. Rio
de Janeiro: Forense, 2001, p. 23.
566
“A democracia está ameaçada mais diretamente pelos regimes autoritários e totalitários; no entanto, devemos
reconhecer a existência de uma outra ameaça. Esta não vem de um poder onipotente que submeteria a
sociedade à sua mercê, mas da própria sociedade que, na ordem política, vê apenas uma burocracia autoritária
ou corrupção e deseja reduzi-la à função de guarda noturno ou de um Estado mínimo, para não entravar a
atividade dos mercados e a difusão dos bens de consumo e de todas as formas de comunicação de massa. Esse
liberalismo tacanho pode ser considerado democrático porque respeita as liberdades e responde às demandas
da maioria. Nos países ricos, o marketing tende a substituir o voto; nos países pobres, a erradicação da pobreza
é reconhecida como prioritária e os discursos sobre as liberdades públicas são criticados como elitistas e
inspirados pelo estrangeiro dominador. Por toda parte, cresce a idéia de que a defesa da liberdade consiste em
reduzir a intervenção do Estado”. – TOURAINE, Alain. O que é democracia? Petrópolis: Vozes, 1996, pp.
182-183.
567
Cf. SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. Op. Cit.. No mesmo sentido, VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit.;
SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In:
TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos
controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004; e SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Teoria Constitucional e
Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
568
“Era preciso não esquecer ‘que é uma constituição que estamos expondo’, um diploma que iria servir a
gerações futuras e, conseqüentemente, capaz de adaptar-se ‘às várias crises dos negócios humanos’”. –
162
RODRIGUES, Lêda Boechat. A corte suprema e o direito constitucional americano. 2a. edição. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1992, p. 43.
569
Abstraímos aqui de considerar os dispositivos inseridos entre a promulgação e a publicação da Constituição
pelo então deputado Nelson Jobim, conforme assumido por ele próprio em diversas entrevistas. Até porque,
mesmo confessando tal ato de máxima repugnância, ele preferiu manter em segredo quais foram os ditames
apócrifos. A respeito, recomenda-se a leitura de BENAYON, Adriano; RESENDE, Pedro Antonio Dourado
de. Anatomia de uma fraude à constituição. Disponível em:
<http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/fraudeac.html>. Acesso em: 29 abr. 2007. Para uma abordagem
mais teórica dos eventuais desvios de conduta dos legisladores, cf. a recomendação de aproximação dos
indivíduos da política e de limitação das decisões políticas pelos legisladores como base de uma reforma
constitucional, trazida por Buchanan em sua Politics as public choice. The collected works of James M.
Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000.
570
BUCHANAN, James M. Notes on the history and direction of public choice. In: ______. Politics as public
choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 61.
163
CONCLUSÃO
pouca representatividade das instituições sociais – o que esvazia o Estado e suas ações
de qualquer suporte na sociedade;
9- A democracia deliberativa ao mesmo tempo pressupõe e ocasiona, com o passar do
tempo (e sua conseqüente maturidade), o domínio do político pelos cidadãos, e não
apenas que estes elejam formalmente seus representantes para que decidam em seu
lugar, presumindo-se a legitimidade de qualquer decisão advinda do processo
legislativo;
10- A democracia deliberativa exige que os cidadãos participem ativamente das
deliberações dos assuntos mais importantes, tomando conhecimento do que é decidido
e chancelando argumentativamente essas mesmas decisões, segundo critérios políticos
que atendam ao bem público (e não apenas os seus particulares);
11- Para que esse modelo democrático se desenvolva de fato, é necessário consagrar-se
determinados direitos, certas liberdades, para garantir a efetiva participação na
deliberação democrática pelos cidadãos. O problema que se põe é a delimitação desses
direitos, os quais, por sua vez, podem estar presentes na Constituição de modo
expresso ou implícito – o que não lhes retira, de modo algum, sua amplitude máxima e
irrevogabilidade absoluta segundo o constitucionalismo;
12- Trata-se, então, de analisar a legitimidade dos próprios direitos tachados pelo
constituinte originário de fundamentais;
13- A concepção democrática da constituição tenta encontrar-lhe um núcleo irrestringível,
a fim de evitar a tirania constitucional, que obriga seus cidadãos a um regime de
injustiças – dado o absoluto distanciamento, com o passar do tempo, entre o regime
preconizado pela lei fundamental (estático) e a realidade social (dinâmica), aliado à
impossibilidade de novos ajustes nos acordos previamente firmados pelo constituinte
originário;
14- Daí o dizer-se que o constitucionalismo, em uma república democrática e pluralista,
deve se restringir à esfera da imparcialidade política;
15- A essa questão teórica se contrapõe, em concreto, a Constituição da República de
1988, que é a constituição brasileira com a maior carta de direitos ditos
“fundamentais” em toda a história da nação, considerados irrevogáveis pelo
constituinte derivado;
16- A Constituição terminou por se apresentar, dado o contexto político em que foi
elaborada e promulgada, como um diploma conjuntural e circunstancial – em outras
165
24- Um cidadão participa da razão pública, então, quando delibera no contexto do que
considera sinceramente como a concepção de justiça mais razoável, uma concepção
que expresse valores políticos dos quais também possamos pensar razoavelmente que
outros cidadãos, como livres e iguais, poderiam endossar. Assim, ao cidadão cabe
construir a razão pública, mediante diversos critérios e valores, e não obedecer a ela –
função que é dada ao Estado e seus funcionários;
25- A razão pública, como critério de justificação construído pelos cidadãos, possui
efetivamente um conteúdo, que aponta para concepções razoáveis de justiça;
26- Nada obstante Rawls apontar a ampla possibilidade de haver, seja em épocas ou
lugares diferentes, razões públicas materialmente diversas (o que, a princípio, dá a
impressão de ser a razão pública uma concepção puramente formalista), o autor aponta
princípios indissociáveis da idéia de razão pública;
27- Quanto a essa variedade de “razões públicas” possíveis ao longo de diversas épocas e
lugares, o próprio Rawls atribuiu-lhe um limite, o qual se daria exatamente pelo
critério de reciprocidade. Isso porque a reciprocidade é violada sempre que as
liberdades básicas forem negadas – o que torna a sociedade fundamentalmente
desigual e inviabiliza a criação e a manutenção da idéia de razão pública. Nesse
sentido, a reciprocidade atuaria como um mecanismo de prova do atendimento da
razão pública;
28- A razão pública, por sua vez, incorpora elementos de dissenso, não aceitando apenas o
dissenso quanto à legitimidade dos argumentos políticos públicos acerca das regras em
si, os quais, apesar de não serem considerados os mais adequados, são entendidos
como razoáveis por todos os cidadãos;
29- O dissenso é fundamental para a constituição da razão pública rawlsiana, porém deve
resultar num consenso formal posterior, consistente no reconhecimento de validade e
de legitimidade de todas as proposições políticas e jurídicas, ante o procedimento
racionalmente aceito em um regime democrático de direito;
30- Nessa acepção se percebe o quão importante se mostra o processo legislativo para a
idéia de razão pública, pois este servirá como base de reconhecimento racional formal
para todas as normas existentes em um sistema;
31- A razão pública reforça então a idéia da teoria de constituição de que, ao analisar-se o
“núcleo duro” da Constituição, convém ter em conta que a estas cláusulas não se deve
dar uma amplitude muito grande, pois isto desvirtua seu papel no sistema
167
38- Por ser uma parte da Constituição destinada a refrear o poder tributário, é comum
entender-se-lhe, no meio técnico, como uma segunda Carta de Direitos, particular à
esfera da tributação, sobre a qual cabe aplicar formalmente os dispositivos
constitucionais pertinentes, entendendo-se todas aquelas regras como cláusulas
pétreas. Assim, um Estado democrático de Direito precisa ter sua atividade tributária
baseada na Constituição – ou seja, no ajuste básico de regras acordadas pelos cidadãos
– e por ela limitada;
39- Esses limites ao poder de tributar, entendidos como um freio político à ação estatal,
logicamente não redundam apenas na consagração de princípios morais destinados a
proteger a esfera de imparcialidade política do indivíduo. Existem determinados
limites que se justificam no próprio federalismo, não guardando relação direta com o
cidadão em si. Existem outros, ainda, que encontram esteio na separação dos poderes.
E existem ainda alguns que se destinam a proteger o cidadão, mas que nem por isso
significam uma proteção inextrincável do regime democrático, por não afetarem o
exercício da deliberação pelos cidadãos;
40- Analisando-se cada norma constitucional pertinente, encontram-se 4 regras que não se
relacionam com direitos subjetivos dos cidadãos: o art 150, V, quanto à liberdade de
circulação de bens; e VI, a (com seus §§ 2o e 3o consectários); o art. 151, II, primeira
parte; e o art. 151, III. Esses dispositivos dizem respeito ao chamado federalismo
fiscal, o qual, por se relacionar diretamente com a estrutura da Federação (e não com
os cidadãos em si), não pode ser considerado objeto do presente trabalho;
41- Quanto às demais normas, em contraposição à razão pública, percebe-se que:
a. A legalidade integra a razão pública (arts. 150, I, e §§ 1o, 6o e 7o). As únicas
ressalvas a serem feitas, tocam a exigência de lei específica para a concessão
de benefícios fiscais e a questão da anuência dos Estados-membros para
concessão de benefícios em sede de ICMS;
b. A isonomia (arts. 150, II, 151, I e II, in fine, e 152) também integra a razão
pública. Aqui inserimos também o § 4o do art. 150, como contida pelo
argumento político público. Frisamos que essa consideração não se estende
para o critério de capacidade econômica do art. 145, § 1o, da Carta;
c. A irretroatividade, de igual modo (art. 150, III, a), compõe a razão pública;
d. A anterioridade (art. 150, III, b e c, e § 1o), por outro lado, não possui esteio na
esfera de imparcialidade política, não havendo meio de se afirmá-la como
justificável pela razão pública;
169
e. O não-confisco (art. 150, IV), por sua vez, também não se afigura como norma
inserta no âmbito da imparcialidade política;
f. A liberdade de tráfego (art. 150, V) também possui sua fundamentalidade
confirmada diante do princípio democrático, sendo abrangida pela razão
pública;
g. A imunidade dos templos (art. 150, VI, b) guarda relação direta com a razão
pública;
h. A imunidade dos partidos políticos (art. 150, VI, c) também se mostra digna de
fundamentalidade diante do critério de razão pública;
i. A norma que confere imunidade aos sindicatos (art. 150, VI, c) mostra-se
distante da razão pública, afastada da esfera de imparcialidade política;
j. A imunidade das entidades de educação sem fins lucrativos e de assistência
social (art. 150, VI, c), por sua vez, também se relaciona com a razão pública,
merecendo sua identificação como cláusula jusfundamental;
k. A imunidade do livro, jornal, periódico e do papel destinado à sua impressão
(art. 150, VI, d), vis a vis a esfera de imparcialidade política, não pode ser
considerada cláusula pétrea, ou direito fundamental por assim dizer.
42- Quanto às pessoas beneficiadas pela imunidade, o texto constitucional, ao se referir
somente a impostos, revela-se incompleto e distorcido, merecendo ser estendida a
garantia de intributabilidade também aos tributos com função parafiscal e extrafiscal –
salvo os tributos parafiscais sobre as instituições religiosas, dada a laicidade do
Estado, que proíbe qualquer relacionamento estatal com essas entidades, a fim de
evitar atrelamentos indiretos;
43- No fim, percebemos que a idéia de maximização das normas fundamentais, de modo
formal, pouco importando a razão de ser dessas mesmas regras, mostra uma
transposição da idéia de prioridade do bem sobre o justo, como se, garantindo-se o
máximo de fundamentalidade no texto constitucional – e, assim, considerando-se o
contribuinte dentro de uma redoma antiestatal –, a cidadania brasileira estivesse
assegurada a caminhar sobre bases sólidas e bem estruturadas.
44- No entanto, priorizar o bem sobre o justo, pensando apenas na maximização de
direitos intocáveis, especialmente acerca de questões que envolvem a manutenção do
Estado (já que o tributo é a principal fonte de receita pública), é praticamente certificar
a temporalidade constitucional, tão reduzida quanto maior for o leque de
fundamentalidade;
170
45- É ainda de se realçar que a forma como a sociedade se mobilizou para a ruptura do
regime militar, que terminou motivando a Constituição de 1988, foi um momento de
deliberação democrática pelos cidadãos que tornou insustentável o regime ditatorial.
Até por isso a Constituição deve se interpretada priorizando o justo sobre o bem,
libertando-se das amarras welfaristas e utilitaristas que boa parte da doutrina tributária
insiste em defender.
46- Enquanto esses ideais formalistas prosseguirem, permaneceremos à deriva nesse
oceano de incertezas, cientes de que, a qualquer momento, virá a tormenta que fará
soçobrar a Constituição atual – como todas as demais que lhe sucederem.
171
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