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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
SOCIOLOGIA E DIREITO

BRUNO MAURÍCIO MACEDO CURI

Limitações Constitucionais ao Poder de


Tributar: análise de sua
fundamentalidade ante a razão pública

NITERÓI
2007
2

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO

BRUNO MAURÍCIO MACEDO CURI

LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE


TRIBUTAR: ANÁLISE DE SUA FUNDAMENTALIDADE
ANTE A RAZÃO PÚBLICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Sociologia e Direito da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial para a
obtenção do título de mestre em Ciências Jurídicas e
Sociais.

Orientador: Professor Doutor Cláudio Pereira de


Souza Neto

Niterói, 2007
3

BRUNO MAURÍCIO MACEDO CURI

LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR:


ANÁLISE DE SUA FUNDAMENTALIDADE ANTE A RAZÃO PÚBLICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obtenção do título de
mestre em Ciências Jurídicas e Sociais.

Aprovada em de setembro de 2007.

BANCA EXAMINADORA:

_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Cláudio Pereira de Souza Neto – Orientador
UFF

_____________________________________________________________________
Prof. Dr. José Fernando de Castro Farias
UFF

_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Lodi Ribeiro
UERJ

Niterói, 2007
4

A Deus, senhor de tudo e todos.


5

Agradecimentos

Ao meu orientador, Professor Doutor Cláudio Pereira de Souza Neto, pelas preciosas
palavras nos momentos mais importantes.
A todos os professores do PPGSD, dos quais tive a honra de colher lições
inestimáveis.
Aos funcionários do PPGSD, pela habitual cordialidade e eficiência.
À minha família, pelo apoio, amor e carinho constantes.
6

Pois a palavra do Senhor é reta, e toda a sua obra é


segura. Ele ama a justiça e a eqüidade; a terra está cheia
da fidelidade do Senhor.

Sl. 33,4-5
7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ___________________________________________________________ 14
1 A TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA. NORMAS
SUPERCONSTITUCIONAIS E SEU EXCESSO. RISCO DE RUPTURA DO REGIME
CONSTITUCIONAL. ______________________________________________________ 18
1.1 A TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA. O
PROBLEMA DA SUPERCONSTITUCIONALIZAÇÃO EXCESSIVA DE NORMAS.
______________________________________________________________________ 19
1.1.1 Democracia. A democracia deliberativa como democracia material (e não
puramente formal). A necessidade de se garantir liberdades básicas para o exercício da
democracia pelos cidadãos. ______________________________________________ 21
1.1.2 Cláusulas pétreas. Sua irrevogabilidade. A conseqüente tensão entre
constitucionalismo e democracia.__________________________________________ 29
1.2 A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA E A OBSCURIDADE CONCEPTUAL NA
DEFINIÇÃO DAS CLÁUSULAS PÉTREAS. DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS
DECORRENTES DISSO. EFEITOS NA PRÁTICA DEMOCRÁTICA. _________ 37
1.2.1 O contexto de elaboração da Constituição de 1988. A influência da conjuntura na
consagração de direitos. _________________________________________________ 38
1.3 A FUNDAMENTALIDADE MATERIAL DA CONSTITUIÇÃO:
NECESSIDADE DE PARÂMETROS DE JUSTIFICAÇÃO PAUTADOS NA
DEMOCRACIA DELIBERATIVA. ESCOLHA PELA RAZÃO PÚBLICA DE JOHN
RAWLS. ______________________________________________________________ 44
2 A RAZÃO PÚBLICA DE JOHN RAWLS COMO PARADIGMA PARA A
DELIMITAÇÃO DA IMUTABILIDADE NA CONSTITUIÇÃO. ___________________ 49
2.1 CONCEITO INICIAL. _______________________________________________ 49
2.2 OS MOTIVOS E AS FORMAS PELOS QUAIS A RAZÃO É PÚBLICA.
RAZÕES NÃO-PÚBLICAS. RAZÃO SECULAR.____________________________ 52
2.3 RAZÃO PÚBLICA. IDEAL DE RAZÃO PÚBLICA. A NOÇÃO DO DEVER DE
CIVILIDADE.__________________________________________________________ 55
2.4 CARACTERES ESTRUTURAIS DA RAZÃO PÚBLICA. __________________ 58
2.4.1 As questões políticas fundamentais às quais se aplica a idéia de razão pública. _ 58
2.4.2 As pessoas a quem a idéia de razão pública se aplica. _____________________ 61
2.4.3 O conteúdo da razão pública, como dado por uma família de concepções políticas
razoáveis de justiça. ____________________________________________________ 63
8

2.4.4 A aplicação das concepções razoáveis de justiça em discussões de normas


coercitivas a serem decretadas na forma de lei legítima para um povo democrático. __ 66
2.4.5 A verificação, pelos cidadãos, de que os princípios derivados das suas concepções
de justiça satisfazem o critério de reciprocidade. ______________________________ 68
2.5 O CONTEÚDO DA RAZÃO PÚBLICA, OBJETIVAMENTE. ______________ 70
2.6 A INCORPORAÇÃO DO DISSENSO À IDÉIA DE RAZÃO PÚBLICA. O
CONSENSO MEDIATO, NA FORMA DE ACEITABILIDADE RACIONAL, COMO
COROLÁRIO DA TOLERÂNCIA SOCIAL – REMESSA AO CONSENSO
JUSTAPOSTO. _________________________________________________________ 74
2.7 A DELIMITAÇÃO DA IMUTABILIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE ACORDO
COM OS PARÂMETROS DEFINIDOS PELA RAZÃO PÚBLICA. ____________ 80
3 LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR. DISPOSITIVOS
CORRELATOS A DIREITOS SUBJETIVOS DO CONTRIBUINTE. APRECIAÇÃO
DESSAS REGRAS ANTE O CRITÉRIO LEGITIMADOR DA RAZÃO PÚBLICA. ____ 85
3.1 TRIBUTOS E DIREITOS DO CIDADÃO. A NOÇÃO DE REPRESENTAÇÃO
POPULAR, POR MEIO DO CONSENSO, PARA A OUTORGA E LIMITAÇÃO DE
PODERES TRIBUTÁRIOS. ______________________________________________ 91
3.2 DAS LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR. A REDAÇÃO
CONSTITUCIONAL. SEPARAÇÃO INICIAL ENTRE DISPOSIÇÕES
RELATIVAS AOS INDIVÍDUOS DAS DEMAIS, RELATIVAS À ESTRUTURA DO
SISTEMA FEDERAL. ___________________________________________________ 97
3.3 DAS LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR DESTINADAS A
RESGUARDAR DIREITOS SUBJETIVOS AOS CIDADÃOS. CONSIDERAÇÕES
DIANTE DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO. ______________________________ 100
3.3.1 A legalidade. ____________________________________________________ 100
3.3.2 A isonomia. _____________________________________________________ 108
3.3.3 A irretroatividade. ________________________________________________ 122
3.3.4 A anterioridade. __________________________________________________ 126
3.3.5 O não-confisco. __________________________________________________ 131
3.3.6 A vedação à utilização de tributos interestaduais ou intermunicipais como restrição
do tráfego de pessoas.__________________________________________________ 138
3.3.7 A imunidade de impostos sobre os templos de qualquer culto. _____________ 140
3.3.8 A imunidade de impostos sobre os partidos políticos, sindicatos e entidades
filantrópicas. _________________________________________________________ 143
3.3.8.1 Partidos políticos._____________________________________________ 144
3.3.8.2 Entidades sindicais dos trabalhadores. ____________________________ 147
3.3.8.3 Instituições de educação e assistência social, sem fins lucrativos. _______ 149
3.3.9 A imunidade de impostos sobre livro, jornal e periódico, bem como sobre o papel
destinado à sua impressão. ______________________________________________ 152
3.3.10 O direito de conhecer a carga de impostos incidentes sobre o consumo. _____ 157
3.4 OBSERVAÇÃO FINAL QUANTO ÀS IMUNIDADES: ESPÉCIES
TRIBUTÁRIAS ABRANGIDAS, À VISTA DA RAZÃO PÚBLICA. ___________ 159
3.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ACERCA DA FUNDAMENTALIDADE DAS
LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR. ___________ 160
CONCLUSÃO ___________________________________________________________ 163
9

REFERÊNCIAS. _________________________________________________________ 171


10

ABREVIATURAS, SIGLAS, SÍMBOLOS E EXPRESSÕES

ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias


Apud Após
Art. Artigo
CF Constituição Federal
CONFAZ Conselho Nacional de Política Fazendária
Coord. Coordenador
Coords. Coordenadores
CRFB Constituição da República Federativa do Brasil
EC Emenda Constitucional
Ed. Editor
Et alii E outros
ICMS Imposto sobre operações de Circulação de Mercadorias e prestação de Serviços
de transporte intermunicipal e interestadual e de comunicação
Id. Ibid. Mesmo autor, mesma obra
IE Imposto sobre Exportação
II Imposto sobre Importação
IPI Imposto sobre Produtos Industrializados
IPTU Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana
IPVA Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores
ISS Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza
nº Número
org. Organizador
orgs. Organizadores
Op. Cit. Obra citada
p. Página
PNEF Programa Nacional de Educação Fiscal
pp. Páginas
§ Parágrafo
§§ Parágrafos
RDT Revista de Direito Tributário
ss. Seguintes
STF Supremo Tribunal Federal
11

v.g. Por exemplo


vol. Volume
12

RESUMO

As limitações constitucionais ao poder de tributar integram elemento importantíssimo


do Estado democrático de Direito. Ao mesmo tempo em que ditam o modo pelo qual os
tributos (principal fonte de manutenção do Estado) devem ser instituídos, limitam a potestade
estatal a determinados requisitos formais de validade, assim como a proíbem com relação a
certas pessoas ou coisas. Esses ditames costumam ser enxergados indistintamente como
garantias individuais do contribuinte – conseqüentemente, imutáveis ao longo do tempo. No
entanto, a imutabilidade dessas regras constitucionais vem sendo bastante discutida em
virtude de sua contraposição ao exercício da democracia pelos cidadãos, os quais, mesmo
querendo modificá-las para ampliar a ação estatal ou seus ritos, ficam proibidos ante a
insuperável vedação de reforma de cláusulas desse talante. O presente trabalho investiga a
efetiva fundamentalidade dessas regras constitucionais, ante o parâmetro da razão pública, nos
moldes desenhados por John Rawls.
13

ABSTRACT

The constitutional limitations on the power of tax are a very important element of the
Democratic State of Law. At the very same time they impose the way by which the taxes
(major source of the State maintenace) might be collected, the constitutional limitations on the
power of tax restraint this power to some formal requirements of validity, as well as they
forbid it regarding to some people or things. These rules are usually seen altogether as
individual taxpayers guarantees – and so, perennial. However, this character of these
constitutional rules is being highly discussed because of its opposition to the participation on
democracy by the citizens, who, even willing to change these rules so the state could increase
its taxation action or its rituals, remain tied by the supreme prohibition of reform. This
research investigates the real fundamentality of the constitutional limitations on the power of
tax, before the criteria of public reason conceived by John Rawls.
14

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa se destina a investigar as limitações constitucionais ao poder de


tributar que conferem direitos subjetivos aos cidadãos, sob o prisma do princípio democrático,
a fim de estabelecer um elo entre o direito tributário, a teoria da constituição e a filosofia do
direito.
A doutrina jurídica, em sua grande maioria, ao discorrer sobre as limitações
constitucionais ao poder de tributar, pouco se dedica à análise das normas constitucionais
tributárias em face da teoria da constituição – e muito menos ainda em face da filosofia do
direito. Talvez pela idéia de que a autonomia de cada ramo da ciência do Direito pressupõe
um estudo compartimentado das suas disciplinas (em particular, da tributação), talvez por
inspirações positivistas (que de há muito dominam o chamado Direito Público), a doutrina
jurídica tributária adotou um viés essencialmente formalista.
Diante disso, as regras constitucionais relativas a tributos passaram a ser enxergadas
essencialmente sob o ponto de vista técnico-normativo, o que reduziu a tarefa da maior parte
dos doutrinadores a retratar o significado de cada dispositivo constitucional e suas
implicações no ordenamento jurídico, além de abordar como a jurisprudência – basicamente
do Supremo Tribunal Federal – se manifesta sobre cada uma delas.
Essa diminuição do espectro de ação da doutrina asfixiou, de certo modo, a discussão
sobre a natureza das normas constitucionais relativas às limitações ao poder de tributar.
Esparsa é a abordagem acadêmica, pelos doutrinadores tributários, sobre a fundamentalidade
das normas constitucionais tributárias – relegada à teoria da constituição, e, mesmo assim, de
antemão repelida pela doutrina positivista como celeiro de teses temerárias.
Como conseqüência básica surge a limitação do ensino dos novos juristas sobre o
tema. As grades curriculares das Faculdades de Direito não abrem espaço para esse tipo de
discussão, institucionalizando o raciocínio formalista e aumentando a desconfiança sobre o
15

chamado ‘pós-positivismo’ (rótulo para o apanhado de teorias subversivas, quase uma


‘ciência do bem e do mal’ que se presta unicamente a desestabilizar o Éden jurídico).
Tal dogmatização adquire ares oficiais quando (i) se atribui cegamente o invólucro de
‘cláusulas pétreas’ a todas as limitações constitucionais ao poder de tributar, que passam (ii) a
ser alcunhadas invariavelmente de princípios sem que se discuta o porquê de qualquer dessas
duas considerações. A filosofia para os filósofos, a teoria para os teóricos, a técnica para os
técnicos.
Ocorre que essa concepção das regras constitucionais tributárias esbarra num
problema essencial, que é a obscuridade do próprio texto constitucional. Em momento algum
a Constituição da República diz expressamente que as limitações ao poder de tributar são
cláusulas pétreas. A consideração de que os direitos subjetivos atribuídos pelas limitações
constitucionais ao poder de tributar são normas fundamentais é, em si, uma construção
doutrinária – que, no entanto, não é questionada pela esmagadora maioria da doutrina.
O problema acima conduziu à formulação de uma hipótese: a de que a autonomia do
Direito Tributário não pressupõe o estudo hermeticamente fechado das regras constitucionais
tributárias, sendo necessária uma análise interdisciplinar entre a teoria da constituição e a
filosofia do Direito 1 .
A teoria da constituição, ao abordar a fundamentalidade dos direitos, levanta uma
questão essencial que é o aparente confronto entre a democracia e o constitucionalismo. A
ênfase em uma dessas vertentes pressupõe a diminuição da outra, o que leva a um pressuposto
de que só as regras destinadas a proteger o núcleo irredutível dos direitos fundamentais dos
cidadãos podem ser consideradas normas constitucionais irrevogáveis. Por contraponto, as
demais regras não compõem o cerne constitucional; cristalizá-las significará engessar o
sistema jurídico, aumentando o risco de rupturas diante da ilegitimidade do texto
constitucional.
No entanto, a teoria da constituição por si só não responde o que seria a
fundamentalidade do direito, nem mesmo quais direitos são essenciais para o exercício da
democracia. Daí advém a busca no campo da filosofia do Direito.
Há inúmeras correntes filosóficas, nas mais variadas direções, no que tange os direitos
fundamentais. A idéia dessa categoria de direitos leva invariavelmente à idéia de justiça. Por

1
Valemo-nos, a propósito, de James Buchanan, para quem “It made no sense to me to analyse taxes and public
outlays independent of some consideration of the political process through which decisions on these two sides
of the fiscal account were made. Public finance theory could not be wholly divorced from a theory of politics”.
– BUCHANAN, James M. From private preferences to public philosophy: the development of public choice.
In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund,
v. 13, 2000, p. 44.
16

isso mesmo, foi necessária uma escolha teórica dentro do leque interminável de estudos
filosóficos da justiça.
A opção foi feita pela concepção de razão pública desenvolvida por John Rawls ao
longo de sua vida. Rawls foi responsável pela retomada das discussões de justiça na filosofia
norte-americana na última metade do século XX, desenvolvendo uma obra bastante rica sobre
os aspectos que conduziriam a uma teoria da justiça neocontratualista, que resgata (dentre
outros) elementos kantianos à luz de uma sociedade democrática numerosa e hipercomplexa,
composta por pessoas livres e iguais. A idéia de Rawls é conducente à democracia
deliberativa, em que os cidadãos efetivamente participam da deliberação democrática, não
sendo apenas massa de manobra de grupos oligárquicos que tomam decisões importantes.
Rawls traz institutos estruturantes da sua teoria: o conceito de estrutura básica da
sociedade, os dois princípios de justiça básica, os elementos constitucionais essenciais e a
razão pública são os principais desses ingredientes que coexistem e se comunicam na busca
pela justiça por eqüidade, que pressupõe a prioridade do justo sobre o bem – rompendo
definitivamente com a teoria utilitarista e a intuicionista, como ele mesmo denomina, as quais
priorizam o bem em relação ao justo.
Demais disso, a teoria da justiça de Rawls, desenvolvida a partir de argumentos de
filosofia da moral, encontrou importante paralelo na teoria política econômica, no pensamento
de James Buchanan. A idéia de Buchanan, embora não seja idêntica à de Rawls, segue linha
de raciocínio bastante similar ao tentar justificar o modo pelo qual os representantes do
Estado adotam determinadas posições políticas – dentre elas, aquelas relativas à ação
tributante. Por isso mesmo, autores pátrios pioneiros como Ricardo Lobo Torres realçam a
importância dessa concepção teórica.
Assim, optamos pela razão pública porque ela reflete o procedimento argumentativo a
ser desenvolvido para justificar as regras e condutas estatais diante do princípio democrático.
A razão pública, concebida como o procedimento de checagem de assuntos que tocam a
esfera de imparcialidade política (e, conseqüentemente, a estrutura básica da sociedade) é um
instituto altamente viável para uma proposta de investigação da efetiva fundamentalidade das
limitações constitucionais ao poder de tributar.
Logo, o estudo diante da estrutura básica da sociedade, dos princípios de justiça ou
mesmo dos elementos constitucionais essenciais, necessariamente se faria permear pela idéia
de razão pública. Em última análise, ainda que a investigação fosse apresentada como traçada
diante de qualquer desses institutos rawlsianos, ela seria feita mesmo pela razão pública,
17

como procedimento discursivo que é, quanto à efetiva fundamentalidade das normas


constitucionais.
Exatamente por estudar o tema por um ângulo pouco falado pela doutrina brasileira,
esbarramos num desafio mais motivador enquanto mais árduo: a aridez do material pátrio
sobre a matéria. Se nos motiva a inovação, freia-nos a já exposta asfixia doutrinária.
Com relação ao trabalho em si, percebe-se um recorte inicial quanto às regras
constitucionais que, nada obstante constarem da Seção constitucional das limitações ao poder
de tributar, não consagrem direitos subjetivos aos cidadãos. Dessa forma, as regras
relacionadas com o federalismo ou a separação de poderes não foram incluídas no presente
estudo, por comportarem discussão diversa quanto à sua fundamentalidade.
O trabalho se apresenta então em três capítulos, que podem ser percebidos da seguinte
forma.
O primeiro capítulo aborda a concepção da teoria da constituição sobre as normas
fundamentais, apontando a tensão entre o constitucionalismo e a democracia, avultada pelo
problema específico dos compromissos político-corporativos adotados pela Constituição da
República promulgada em 1988.
O segundo capítulo, por sua vez, apresenta a idéia de razão pública em si, a fim de
demonstrar seu raio de ação limitado à estrutura básica da sociedade e às questões de justiça
básica na democracia deliberativa.
No terceiro capítulo as normas constitucionais ao poder de tributar são apresentadas,
uma a uma, seguidas de um recorte entre aquelas destinadas a tutelar direitos subjetivos aos
cidadãos e outras, relativas basicamente ao federalismo – o qual, por mais importante que
seja, não possui relação direta com a cooperação na deliberação democrática. As regras
consagradoras de direitos dos cidadãos são, então, acompanhadas das considerações que a
doutrina jurídica tributária traça a respeito delas, assim como se busca responder da pergunta
central do trabalho: quais dessas normas constitucionais podem ser consideradas cláusulas
pétreas?
Após, seguem as conclusões do trabalho.
Decerto que a pesquisa que ora apresentamos não se destina a encerrar o tema.
Contudo, se de algum modo nossa proposta servir para fomentar o debate interdisciplinar
sobre o tema da fundamentalidade das limitações constitucionais ao poder de tributar por um
prisma não formalista, ela já terá cumprido a sua função.
18

1 A TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA. NORMAS


SUPERCONSTITUCIONAIS E SEU EXCESSO. RISCO DE RUPTURA DO REGIME
CONSTITUCIONAL.

Inicialmente, de modo a facilitar a compreensão do tema, importante contextualizar-se


o problema da caracterização dos direitos subjetivos fundamentais na Seção das Limitações
ao Poder de Tributar constantes da Constituição da República Federativa do Brasil,
promulgada em 05 de outubro de 1988, diante da tensão existente entre constitucionalismo e
democracia, bem como de questões correlatas à participação na deliberação democrática pelos
cidadãos.
Fala-se em direitos subjetivos fundamentais, à medida que o presente trabalho não se
debruçará sobre todos os dispositivos constitucionais das limitações, mas somente aqueles que
conferem direitos aos contribuintes (ou, na acepção mais ampla dada pelo parágrafo único do
art. 121 do Código Tributário Nacional, sujeitos passivos da obrigação principal, por
englobar ainda terceiros que se relacionem diretamente com o Estado em virtude de
obrigações tributárias 2 ).
De todo modo, começamos agora pelo estudo da tensão entre o constitucionalismo e a
democracia para, posteriormente, abordarmos a delimitação do conteúdo essencial (e,
portanto, imutável) da constituição diante do princípio democrático. Após isso, será analisada
a enorme dificuldade fornecida pela Constituição da República em definir-se objetivamente o
que seja direito fundamental e, ao final do capítulo, veremos parâmetros no próprio regime
democrático para legitimação e conceituação do que pode, ou não, ser considerado cláusula
constitucional pétrea, dotada de irrevogabilidade e irrestringibilidade.

2
“Art. 121. Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se: I – contribuinte, quando tenha
relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador; II – responsável, quando, sem
revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei”.
19

1.1 A TENSÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA. O PROBLEMA


DA SUPERCONSTITUCIONALIZAÇÃO 3 EXCESSIVA DE NORMAS.

As teorias da constituição, desde os tempos de Jefferson 4 , discutem a questão da


imutabilidade de dispositivos constitucionais. Desde há muito tempo constitucionalistas –
especialmente norte-americanos e europeus – debatem acerca do problema de se consagrar
direitos que não possam ser revogados, ou restringidos, no mesmo ordenamento
constitucional, diante da inexorável vinculação das gerações futuras às decisões de tempos
remotos 5 .
Essa vinculação irresistível das gerações futuras a algo decidido de modo terminativo
em um outro contexto histórico-social, induz a uma ruptura constitucional periódica – que
pode ser em espaços mais curtos ou mais longos de tempo, porém já é previsível por assim
dizer 6 . Quanto a isso, vale frisar, a par de qualquer problema teórico, que a chamada
revolução constitucional representa um risco para a sociedade 7 , o Estado e a própria
democracia, já que uma constituição é formalmente a base jurídica que estrutura toda uma
nação. Assim, se se concebe que toda uma constituição seja revogada periodicamente, para

3
Aproveitamos a expressão utilizada por Oscar Vilhena Vieira.
4
Sobre o embate entre Jefferson e Madison, recomenda-se a leitura de VIEIRA, Oscar Vilhena. A constituição e
sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999.
5
“A domesticação jurídica do poder constituinte veiculada pelo estabelecimento de limites ao poder constituinte
derivado ou poder de revisão originará, por sua vez, outros movimentos de perplexidade jurídica e política.
Referimo-nos ao chamado paradoxo da democracia: como ‘pode’ um poder estabelecer limites às gerações
futuras? Como pode uma constituição colocar-nos perante um dilema contramaioritário ao dificultar
deliberadamente a ‘vontade da gerações futuras’ na mudança de suas leis? Revelar-se-á, assim, o
constitucionalismo de uma antidemocraticidade básica impondo à soberania do povo ‘cadeias para o
futuro’(Rousseau)?” – CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
6a. edição. Coimbra: Almedina, 2001, p. 74.
6
“[...] if individual preferences are such as to generate a cycle, then such a cycle, or such inconsistency, is to be
preferred to consistency, since the latter would amount to the imposition of the will of some members of the
group on others”. – BUCHANAN, James M. From private preferences to public philosophy: the development
of public choice. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan,
Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 45.
7
“O verdadeiro problema – a verdadeira aporia do Estado Constitucional – levantado pelos limites materiais do
poder de revisão é este: será defensável vincular gerações futuras a idéias de legitimação e a projectos políticos
que, provavelmente, já não serão os mesmos que pautaram o legislador constituinte? Por outras palavras que
se colheram nos Writings de Thomas Jefferson: uma geração de homens tem o direito de vincular outra? [...] A
resposta tem de tomar em consideração a evidência de que nenhuma constituição pode conter a vida ou parar o
vento com as mãos. Nenhuma lei constitucional evita o ruir dos muros dos processos históricos, e,
conseqüentemente, as alterações constitucionais, se ela já perdeu sua força normativa. Os limites são limites
do poder de revisão como poder constituído, não são ‘limites para sempre’, vinculativos de toda e qualquer
manifestação do próprio poder constituinte. Em sentido absoluto, nunca a ‘geração’ fundadora pode vincular
eternamente as gerações futuras. Esta é uma das razões justificativas de previsão, em algumas constituições, de
uma revisão total. Caso contrário, a falta de alternativa evolutiva abriria o campo da Revolução Jurídica.” –
Id. Ibid., p. 1051.
20

que uma nova seja feita, então o Estado necessariamente terá um prazo de vida definido – já
que cada constituição cria um Estado diferente, com feições, instituições e limitações de ação
próprias. Isso, sem contar que todas as relações jurídicas existentes no país deverão ser
reavaliadas, de tempos em tempos, o que

[...] na esfera econômica pode inibir investimentos, principalmente a mais


longo prazo, pois sem regras estabelecidas e confiáveis dificilmente haverá
grande disposição do setor produtivo em ampliar sua atuação, pelo menos
nas esferas produtivas. Também para o sistema político a volatilidade da
Constituição é algo indesejável. Sem que as regras sejam bem estabelecidas,
e sobre elas não haja constante disputa, dificilmente o sistema se estabiliza,
criando um ambiente de tranqüilidade para a alternância no poder. 8

Por isso mesmo, a fim de evitar o risco de esfacelamento da estrutura estatal e de


fragilização da própria democracia, além da segurança jurídica dos cidadãos 9 , passou-se a
discutir a questão dos direitos fundamentais em face do princípio democrático.
A questão ganha mais corpo quando saímos do Estado liberal clássico para o Estado
democrático de Direito, o qual tem como prerrogativa básica a participação na deliberação
democrática pelos próprios cidadãos, os quais se supõem livres e iguais.
Nesse contexto, torna-se recorrente o dizer que “os mortos não devem governar os
vivos” 10 , uma vez que, se a sociedade se dinamiza e os fatos, sua história, cultura e economia
mudam, conseqüentemente se pressupõe que determinadas bases jurídicas tenham que se
adaptar aos novos tempos, periodicamente. Tal se dá porque a consagração de direitos
constitucionais sabidamente não possui apenas reflexos no mundo jurídico, mas enfeixa uma
série de efeitos no mundo concreto 11 , que talvez não fossem mais desejados em determinada
época posterior.

8
VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit, pp. 133-134.
9
“Para que uma Constituição seja legítima, faz-se necessário o assentimento do povo ao ordenamento
constitucional que lhe é apresentado. Entretanto, a fim de que se estabeleça e seja respeitada, ela deve
transmitir um mínimo de segurança jurídica a seus comandados. Uma Constituição estável, difícil de ser
modificada, garante a segurança que o cidadão espera do Poder Público.” – NOGUEIRA, Cláudia de Góes. A
impossibilidade de as cláusulas pétreas vincularem as gerações futuras, Revista de Informações Legislativas,
Brasília: Senado Federal, a. 42, n. 166, 2005. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_166/R166-05.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2007.
10
ARGÜELLES, Juan Ramón de Páramo. Democracia, Preferencias y Negociación. Disponível em:
<http://www.uv.es/CEFD/2/paramo.html#41>. Acesso em: 09 fev. 2007.
11
“If the individuals’ capacities and objectives are given, the only way the pattern of outcomes can be changed is
by alteration of the rules. And changes in the rules, observely, will alter the outcomes that emerge from any
society of individuals”. – BUCHANAN, James M. The reason of rules. In: ______. The collected works of
James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 10, 2000, p. 19.
21

A dimensão objetiva estende a incidência dos direitos fundamentais sobre


novos campos e searas e amplia o espaço de aplicação das normas
constitucionais, que vão se irradiar para praticamente todos os domínios da
vida social. Inobstante, este fenômeno, em princípio positivo e promissor,
não deve chegar ao ponto de amputar todo o espaço de liberdade das
instâncias sociais, limitando em demasia seus caminhos, que cumpre manter
abertos numa sociedade que se pretenda pluralista e democrática. Convém
recordar que quanto mais se estende a Constituição, menos sobra para o
poder decisório das maiorias, vale dizer, mais se constrange a autonomia
política do povo 12 .

Assim se pode perceber a chamada tensão entre constitucionalismo e democracia. De


um lado, a busca pela consagração de direitos em nome da liberdade e da própria democracia
(que se pressupõe sempre no exercício de todo um espectro de liberdades básicas); de outro, a
busca pela possibilidade de não engessar a escolha das liberdades pelos cidadãos apenas em
virtude de decisões tomadas em um dado momento histórico – ou, na lapidar expressão, a
“instituição do governo dos mortos sobre os vivos”.
A fim de permitir uma melhor compreensão do tema, segue abaixo uma breve
abordagem sobre a democracia em si, para, após, verificar-se como a excessiva proibição de
reforma de dispositivos constitucionais pode afetá-la.

1.1.1 Democracia. A democracia deliberativa como democracia material (e não puramente


formal). A necessidade de se garantir liberdades básicas para o exercício da democracia pelos
cidadãos.

Historicamente a humanidade se submeteu a diversos ciclos de democracia e tirania,


desde os tempos mais remotos (no mundo ocidental, podemos começar pela tirania dos
egípcios, passando por períodos de tirania e democracia na Grécia e em Roma, os quais se
fizeram acompanhar por um longo período de tirania na Europa), até os mais recentes, como
percebemos a partir da ascensão da democracia liberal burguesa, passando ao Estado de bem-
estar social e, posteriormente, ao que se convenciona de Estado de Direito. Este último

[...] implica sobretudo o papel determinante de certas instituições, bem


como das práticas judiciais e legais que a elas estão associadas. Ele existe
enquanto as instituições desse tipo são governadas de maneira razoável, de

12
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 138.
22

acordo com os valores políticos que a elas se aplicam: a imparcialidade e a


coerência, a adesão à lei e o respeito pelos precedentes 13 .

O chamado “Estado de Direito” teve agregada recentemente a expressão democrático,


a fim de reforçar que a existência do Estado deve ser concebida não mais a partir dele próprio,
mas sim a partir dos cidadãos que ele governa 14 .
Nessa esteira, surge a pergunta: democrático, mas de que tipo?
Inicialmente concebeu-se a democracia participativa como a forma de democracia
típica do Estado Democrático de Direito; porém, a noção de democracia participativa
mostrou-se insuficiente para o efetivo exercício da cidadania pela sociedade 15 .
É bastante factível pensar que os representantes da população reúnam-se e decidam
questões das mais variadas em nome de seus representados – e, sob a óptica da democracia
representativa o povo está decidindo, ainda que indiretamente, “por intermédio de seus
representantes”. Todavia, a democracia meramente representativa se mostra apenas um rito,
distante da sociedade, sem conteúdo substantivo por si só – o que, conseqüentemente, permite
tornar a democracia um simulacro, porquanto os cidadãos podem perfeitamente se tornar mera
massa de manobra e não terem o menor conhecimento do que se passa, dos problemas que
ocorrem, da magnitude dos problemas que ocorrem, e serem guiados como cegos por pessoas
mal-intencionadas. Ou seja, existe o risco iminente de uma tirania disfarçada (entendida aqui
como a impossibilidade de os cidadãos terem qualquer voz ativa no processo de deliberação
acerca de questões importantes).
É de se considerar, ainda, que uma democracia meramente representativa não agrupa
as decisões dos legisladores em torno de um interesse comum, já que, como meros
representantes de setores diversos da sociedade, os elaboradores das normas “seek to further
their own differential interests, and [...], as a consequence, there is no relationship between

13
RAWLS, John. O domínio do político e o consenso justaposto. In: ______. Justiça e Democracia. Tradução
de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 377.
14
“O Estado Democrático de Direito surge como a modalidade mais avançada do chamado Estado de Direito,
incorporando conteúdos da etapa anterior (Estado Social de Direito) e fazendo recair a tônica sobre o aspecto
da participação dos cidadãos na realização de seus fins”. – NOGUEIRA, Alberto. Os limites da legalidade
tributária no Estado Democrático de Direito. 2a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 34.
15
“A democracia não deve ser vista apenas como método despido de conteúdo humanista, e menos ainda como
um método exclusivamente voltado para a seleção de lideranças encarregadas do processo decisório, até
porque ‘as instituições políticas são obras dos homens [...] não se assemelham às árvores que, uma vez
plantadas, estão sempre a crescer enquanto os homens estão a dormir’”. – LIMA JÚNIOR, Olavo Brasil de.
Instituições políticas democráticas: o segredo da legitimidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 33.
23

majority voting rules and public sector efficiency, defined at either the public-private sector
margin or within the public sector itself” 16 .
Esse tipo de democracia, mais formalista do que propriamente perseguidora real de
acesso sócio-político e de igualdade de chances aos cidadãos, desenha o chamado “Estado de
bem-estar social”, o qual sofreu severas críticas de parte a parte 17 .
Basta ver, por um lado, o modo pelo qual esse regime democrático, ao se preocupar
apenas com a mantença dos indivíduos, segundo autores liberais como John Rawls, é
considerado ineficiente, porquanto

em um estado de bem-estar social, o objetivo é que ninguém fique abaixo


de um padrão decente de vida, e que todos possam receber certas proteções
contra acidentes e a má-sorte, por exemplo, seguro-desemprego e
assistência médica. A redistribuição de renda serve a esse propósito quando,
ao fim de cada período, aqueles que precisam de assistência podem ser
identificados. Esse sistema pode permitir grandes desigualdades hereditárias
de riqueza que são incompatíveis com o valor eqüitativo das liberdades
políticas [...], como também grandes disparidades de ganho que violam o
princípio da diferença. Embora se esforce para assegurar a igualdade
eqüitativa de oportunidades, o sistema é insuficiente, ou ainda ineficaz,
dadas as disparidades de riqueza e a influência política por elas permitida. 18

Por outro lado, esse mesmo modelo recebe críticas de autores neomarxistas como, por
exemplo, a de Carole Pateman, para quem esse modelo acarreta a perda dos ideais
democráticos clássicos, sobretudo a igualdade, que se reduz à igualdade perante a lei: se a
presença do cidadão na política se faz sentir apenas através do ato eleitoral e a participação se
faz presente apenas na escolha do representante, a influência do cidadão na política é
mínima 19 .
Por isso mesmo Canotilho afirma que

O Estado constitucional é “mais” do que o Estado de direito. O elemento


democrático não foi apenas introduzido para “travar” o poder (to check the
power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo
poder (to legitimize State power). [...] O Estado “impolítico” do Estado de

16
BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as
public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 109.
17
“A rigor, neste fim de século, o Estado do Bem-Estar social está em xeque tanto nos países que já o
consagraram, quanto naqueles que o aspiram, mas não chegaram ao estágio de adotá-lo” – MARTINS, Ives
Gandra da Silva. Das cláusulas pétreas. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Constituição Federal,
15 anos: mutação e evolução; comentários e perspectivas. São Paulo: Método, 2003, p. 191.
18
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. XVIII.
19
Apud LIMA JÚNIOR, Olavo Brasil de. Op. Cit., p. 22.
24

direito não dá resposta a este último problema: donde vem o poder. Só o


princípio da soberania popular segundo o qual “todo o poder vem do povo”
assegura e garante o direito à igual participação na formação democrática da
vontade popular. Assim, o princípio da soberania popular concretizado
segundo procedimentos juridicamente regulados serve de “charneira” entre
o “Estado de direito” e o “Estado democrático” possibilitando a
compreensão da moderna fórmula Estado de direito democrático. Alguns
autores avançam mesmo a idéia de democracia como valor (e não apenas
como processo 20 ), irrevisivelmente estruturante de uma ordem
constitucional democrática. 21

Ou seja, sem que se atribua uma base de legitimidade política, calcada nas
deliberações democráticas do próprio povo, haverá uma ampla participação política formal,
porém pouca representatividade das instituições sociais – o que esvazia o Estado e suas ações
de qualquer suporte na sociedade. Claro, uma vez que

[...] a natureza dos arranjos, mesmo daqueles que se afiguram como


representativos, não é condição suficiente para o atendimento continuativo
das preferências da maioria dos cidadãos 22 . E mais, esta dimensão deve ser
mais adequadamente apreendida como desempenho do sistema, e não como
representatividade. 23

Passou-se então a buscar um novo modelo de democracia 24 , o qual permita de fato aos
cidadãos participarem ativamente da deliberação pública, conhecendo o fórum político e
pressupondo-se como livres e iguais 25 . Surge, então, a idéia de democracia deliberativa 26 .

20
A respeito, cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006.
21
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op.Cit., p. 100. Grifos do original.
22
No mesmo sentido, realçamos James Buchanan, para quem “since political outcomes emerge from a process in
which many persons participate rather than from some mysterious group mind, why should anyone have ever
expected ‘social welfare functions’ to be internally consistent?” – BUCHANAN, James M. From private
preferences to public philosophy: the development of public choice. In: ______. Politics as public choice. The
collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 45.
23
Id. Ibid., p. 88.
24
“A que democracias está se fazendo referência, do ponto de vista da realidade contemporânea? O que reformar
e ampliar, o que restringir? No mínimo, eu diria, à democracia de massas, cujo pressuposto essencial é o
sufrágio universal e que se caracteriza, nos termos propostos por Dahl, por um alto grau de liberalização e
participação. Cabe, creio, a partir de uma concepção minimalista que entende democracia como método,
examinar os elementos constitutivos da democracia real, a partir de uma perspectiva institucional, como forma
primeira de examinar o papel atribuído à participação política e ao Legislativo”. Id. Ibid., p. 30.
25
“[...] as pessoas são consideradas livres e iguais em virtude de possuírem, no grau necessário, as duas
faculdades da personalidade moral, quais sejam, a capacidade de ter senso de justiça e a capacidade de ter uma
concepção do bem. Associamos essas faculdades aos dois elementos principais da idéia de cooperação, a idéia
de termos eqüitativos de cooperação e a idéia de benefício racional, ou bem, de cada participante”. – RAWLS,
John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 78. No mesmo
sentido, BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______.
Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000,
25

[...] a democracia deliberativa busca conciliar essas duas tradições em que


se cinge o pensamento político moderno, e o faz de modo a sustentar a sua
cooriginariedade. O estado de direito é entendido como condição de
possibilidade da democracia. [...] No entanto, a harmonização ora proposta
entre democracia e estado de direito não se limita a eles. Abarca também
diversos outros direitos caracterizados sob a rubrica da “liberdade dos
modernos”. [...] Os direitos fundamentais são aqui considerados não só
“condições procedimentais da democracia”, mas também “condições para a
cooperação democrática”. Se os cidadãos não têm sua autonomia privada
respeitada, não têm por que cooperar. Observe-se, todavia, que o estado de
direito não é considerado um limite, mas uma condição necessária, um
elemento constitutivo da democracia 27 .

A partir daí se percebe, portanto, que a democracia deliberativa é um “passo adiante”,


do ponto de vista da efetiva mobilização popular, em relação à democracia meramente
participativa 28 . Decerto que elas não são opostas e que uma não significa a inexistência da
outra 29 : a democracia deliberativa é exercida formalmente mediante um processo democrático
representativo 30 . A diferença é que, na democracia deliberativa, a representação passa a ser

p. 110: “In sum, my suggestion is that we extend to politics the same norm that has traditionally been extend to
law [regra da igualdade]”.
26
Tecendo uma análise aristotélica da democracia deliberativa, Luis Fernando Barzotto considera que “a
democracia deliberativa constitui-se na aplicação da razão prática teleológica à vida política, de um modo
análogo ao que ocorre na vida individual: é a racionalidade que se define pela orientação a um bem: o bem
comum (política) e a vida boa (indivíduo). O sujeito do poder é a comunidade de animais político-racionais
vinculados a uma concepção comum do bem. O funcionamento do poder dá-se segundo uma concepção de
justiça que se expressa em regras e decisões, e a finalidade do poder é o bem comum, que nada mais é do que
o conjunto de condições que permitem a vida boa para cada um dos membros da comunidade”. –
BARZOTTO, Luis Fernando. A democracia na Constituição. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 83.
27
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Op. Cit., pp. 57-58.
28
“Em contraposição à democracia baseada nos interesses, o modelo deliberativo pensa a democracia como uma
forma de razão prática, um processo no qual cidadãos se unem publicamente para tratar de ideais, objetivos e
metas, relativos a problemas de ordem coletiva. Para tanto, fazem os indivíduos uso da argumentação,
enquanto meio de intercâmbio entre diferentes concepções acerca do bem, tendo sempre em vista o bem
comum”. – RICHE, Flávio Elias. Revisitando a deliberação pública. In: VIEIRA, José Ribas (org.). Temas de
Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 8-9.
29
“[...] O fato de a representação pelo parlamento ser volitiva tanto quanto discursiva demonstra que
representação e argumentação não são incompatíveis. Pelo contrário, um conceito adequado de representação
deve se referir – como Leibholz salienta – a alguns “valores ideais”. Representação é mais do que – como
Kelsen propõe – “atuação em vez ou no lugar de” (Vertretung); e mais do que – como Carl Schmitt sustenta –
fazer o repraesentandum existente. Para ser certa, ela inclui elementos de ambos, ou seja, ela é
necessariamente tanto normativa como real, mas esses elementos não exaurem o conceito. A representação
necessariamente sustenta uma pretensão de correção. Assim, um bem-amadurecido conceito de representação
deve incluir uma dimensão ideal, que conecte decisão e discurso. A representação é, assim, definida pela
conexão de dimensões normativas, factuais e ideais.” – ALEXY, Robert. Ponderação, jurisdição constitucional
e representação popular. Tradução de Thomas da Rosa de Bustamante. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de;
SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações
específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 302.
30
Rawls chega a afirmar que as próprias liberdades básicas que compõem a democracia deliberativa “requerem
alguma forma de regime democrático representativo [...]”. RAWLS, John. As liberdades básicas e sua
prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002,
p. 188. No mesmo sentido, CALAZANS, Paulo Murillo. Entre liberais e republicanos – a co-originalidade. In:
26

vista agora não como uma prova cega da legitimidade, mas apenas um critério para
formalização da participação pelos cidadãos em decisões importantes.
De todo modo, a democracia deliberativa ao mesmo tempo pressupõe e ocasiona, com
o passar do tempo (e sua conseqüente maturidade), o domínio do político pelos cidadãos 31 , e
não apenas que estes elejam formalmente seus representantes para que decidam em seu lugar,
presumindo-se a legitimidade de qualquer decisão advinda do processo legislativo. Logo, fica
claro que

Para que haja democracia, é preciso que as pessoas tenham condições de


expor e debater francamente as suas idéias e projetos, de falar e serem
ouvidas. Ela pressupõe um regime que trate todas as pessoas como livres e
iguais, que respeite a dignidade intrínseca de cada ser humano e que busque
a inclusão no espaço público deliberativo daqueles que, pelas adversidades
da vida, foram dele excluídos. Ela exige, portanto, a garantia de direitos
básicos para todas as pessoas, visando não apenas à contenção do arbítrio
do Estado e dos poderosos em prol das liberdades política e individual de
cada um, mas também a garantia de condições mínimas de vida para os
hipossuficientes, a fim de que aquelas liberdades possam ser realmente
usufruídas e não se tornem uma mera fachada para a opressão estatal ou
privada. 32

A democracia deliberativa exige, desse modo, que os cidadãos participem ativamente


das deliberações dos assuntos mais importantes, tomando conhecimento do que é decidido e
chancelando argumentativamente, segundo critérios políticos que atendam ao bem público (e
não apenas os seus particulares 33 ), essas mesmas decisões. Somente assim se poderá falar em
legitimidade, de fato, das instituições jurídicas.

VIEIRA, José Ribas (org.). Temas de Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
245, sobre a “secular questão da impossibilidade factual da onicracia”. Calazans aponta para um viés
habermasiano, apoiado em Seyla Benhabib, no sentido de se retirar dos parlamentos o monopólio da
deliberação e da produção normativa.
31
“A partir do enfrentamento entre a proposta liberal, que enfatiza a primazia da autonomia privada (direitos
individuais fundamentais), e a posição republicana, que prestigia a autonomia pública (soberania popular),
vários pensadores contemporâneos vêm trabalhando no sentido de construir uma ponte que possa aproximar,
como aspectos co-originais, ambos espectros da democracia, onde, por um lado, se verifique que a garantia da
ampla participação dos cidadãos no processo político depende da institucionalização de determinados direitos
e garantias fundamentais, e, por outro, que é o próprio exercício do discurso público igual e livre que permite a
efetiva realização dos direitos fundamentais elencados como tais pelas sociedades e suas ordens normativas”.
CALAZANS, Paulo Murillo. Op. Cit., p. 240.
32
SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In:
TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos
controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 17-18.
33
“O intérprete constitucional, em uma república democrática e pluralista, circunscreve-se a um uso público da
razão: não deve recorrer a argumentos compartilhados apenas entre os adeptos de sua visão de mundo, mas a
argumentos que se refiram a valores políticos tendentes ao consenso entre as diversas doutrinas abrangentes” –
SOUZA NETO, Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Fundamentalização e
fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In: ______.; SARMENTO,
27

A legitimação mediante o argumento pelos cidadãos, em contraposição à democracia


meramente formal, é ilustrada, dentre outros, por Robert Alexy, para quem

Agora é possível desenhar a imagem de um modelo de democracia que


contém não mais do que um sistema de tomada de decisões centralizado em
torno dos conceitos de eleição e regra da maioria. Esse seria um modelo de
democracia puramente decisional. Um conceito adequado de democracia
deve, entretanto, compreender não apenas decisão, mas também argumento.
A inclusão da argumentação no conceito de democracia cria a democracia
deliberativa. A democracia deliberativa é uma tentativa de institucionalizar
o discurso enquanto um mecanismo possível de tomada de decisões
públicas. Por essa razão, a conexão entre o povo e o parlamento não deve
ser unicamente determinada por decisões expressas em eleições e votos,
mas também por argumentos. Nesse sentido, a representação do povo pelo
parlamento é, ao mesmo tempo, volitiva ou decisional e argumentativa ou
discursiva. 34

Mediante a participação mais ativa dos cidadãos, concebidos como livres e iguais
numa sociedade pluralista, a democracia deliberativa ganha ares de maior legitimidade 35 , e
essa legitimidade perdura por um tempo muito maior, mostrando-se ainda muito mais robusta
do que mediante a democracia meramente participativa – já que os cidadãos constantemente
cooperam na deliberação acerca de casos importantes, ainda que a conjuntura social seja
modificada, o que lhes permite alterar até mesmo (e principalmente) as instituições e as regras
que compõem a estrutura básica da sociedade.
Por isso que

Se partimos da idéia, sedutora no início, de que o contexto social e as


relações entre as pessoas devem se desenvolver no decorrer do tempo em
conformidade com acordos livremente consentidos ao termo de um
processo eqüitativo e plenamente honrados, segue-se imediatamente que
devemos saber quando os acordos são livres e quais são as circunstâncias
necessárias para que sejam eqüitativos. [...] O papel das instituições que
fazem parte da estrutura básica é garantir condições justas para o contexto
social, pano de fundo para o desenrolar das ações dos indivíduos e das
associações. Se essa estrutura não for convenientemente regulada e
ajustada, o processo social deixará de ser justo, por mais justas e eqüitativas

Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de


Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 740. Para uma maior compreensão do conceito de doutrinas abrangentes, cf. o
capítulo II do presente estudo.
34
ALEXY, Robert. Op. Cit., p. 302.
35
“Acrescente-se, ainda, que com a contínua observação e participação em tais atividades deliberativas, os
cidadãos seriam levados a aprimorar seus respectivos entendimentos acerca das opções políticas existentes,
desenvolvendo, pois, suas capacidades ativas de cidadania, de respeito mútuo e de comprometimento
coletivo, gerando inclusive uma compreensão mais aprofundada da própria democracia – o que termina por
conferir à mesma maior legitimidade”. – RICHE, Flávio Elias. Op. Cit., pp. 10-11. Grifos do original.
28

que possam parecer as transações particulares consideradas


separadamente. 36

Para que esse modelo democrático se desenvolva de fato, é necessário consagrar-se


determinados direitos, certas liberdades, para garantir a efetiva participação na deliberação
democrática pelos cidadãos 37 . Esses direitos logicamente não podem ser refreados (salvo para
assegurar outros igualmente essenciais), sob pena de minar-se a própria democracia como um
todo 38 . A questão, todavia, é situar e delimitar quais são esses direitos 39 , a fim de que a
democracia não faleça por superdosagem de seu próprio remédio 40 .
A partir daí, surge o problema da consagração excessiva de direitos nas cartas
constitucionais 41 , dado o rigorismo com que a ciência jurídica trata os ditos direitos
fundamentais.

36
RAWLS, John. A estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 13-14.
37
Nesse tom, Jean Rivero e Hugues Moutouh abordam o Estado Constitucional como garante do exercício da
democracia, afirmando que “O Estado constitucional não é a forma mais consumada do Estado de direito
porque realiza completamente o princípio de uma ordem jurídica hierarquizada, em que cada norma inferior
encontra a condição de validade numa norma de nível superior, mas porque se caracteriza por um certo
conteúdo do direito vigente, que atende ao duplo objetivo da garantia fundamental das liberdades das pessoas e
da proteção da ordem democrática liberal”. – RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades Públicas.
Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 145. Grifos do
original.
38
“Tal como são um elemento constitutivo do Estado de direito, os direitos fundamentais são um elemento
básico para a realização do princípio democrático. Mais concretamente: os direitos fundamentais têm uma
função democrática, dado que o exercício democrático do poder: (1) significa a contribuição de todos os
cidadãos [...] para o seu exercício [...]; (2) implica participação livre assente em importantes garantias para a
liberdade desse exercício [...]; (3) coenvolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos
sociais, económicos e culturais, constitutivos de uma democracia económica, social e cultural [...]. Realce-se
esta dinâmica dialéctica entre os direitos fundamentais e o princípio democrático. Ao pressupor a participação
igual dos cidadãos, o princípio democrático entrelaça-se com os direitos subjectivos de participação e
associação, que se tornam, assim, fundamentos funcionais da democracia. Por sua vez, os direitos
fundamentais, como direitos subjectivos de liberdade, criam um espaço pessoal contra o exercício de poder
antidemocrático, e, como direitos legitimadores de um domínio democrático, asseguram o exercício da
democracia mediante a exigência de garantias de organização e de processos com transparência democrática
(princípio maioritário, publicidade crítica, direito eleitoral). Por fim, como direitos subjectivos a prestações
sociais, económicas e culturais, os direitos fundamentais constituem dimensões impositivas para o
preenchimento intrínseco, através do legislador democrático, desses direitos”. CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Op. Cit., pp. 290-291. Grifos do original.
39
“Por outro lado, a positivação constitucional de limites de revisão não elimina a necessidade de selectividade
dos princípios, pois bem pode acontecer que alguns destes sejam limites genuínos respeitantes a
autoidentificação material da esfera jurídico-constitucional e outros sejam limites conjunturalmente
justificados. O problema está em saber como dar operacionalidade a esta distinção”. – Id. Ibid., p. 1055.
40
Direcionando a questão para a efetividade desses direitos, Ives Gandra aduz que “A pergunta que se coloca, no
início do século XXI, é se devem as Constituições sinalizar direitos que o Estado não pode assegurar ou ser
apenas uma Carta de Princípios, deixando, em face da conjuntura, à produção legislativa infraconstitucional
tais direitos”. – MARTINS, Ives Gandra da S. Op. Cit., p. 190.
41
“[...] o princípio democrático, que postula o direito de cada geração de se autogovernar, é incompatível com
uma interpretação muito extensiva das chamadas ‘cláusulas pétreas’”. – SARMENTO, Daniel. Direito
adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In: TAVARES, Marcelo Leonardo
(coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004, p. 7.
29

1.1.2 Cláusulas pétreas. Sua irrevogabilidade. A conseqüente tensão entre constitucionalismo


e democracia.

Tendo em vista que a democracia deliberativa at


30

As constituições democráticas, ao estabelecerem que certos direitos e


instituições encontram-se acima do alcance dos órgãos ordinários de
decisão política ou, mesmo, fora de sua competência, por força das
limitações materiais ao poder de reforma, atuam como mecanismos de
autovinculação, ou pré-comprometimento, adotados pela soberania popular
para se proteger de suas próprias paixões e fraquezas. Protegendo metas de
longo prazo, constantemente subavaliadas por maiorias ávidas em
maximizar seus interesses individuais imediatos, as Constituições também
funcionariam como mecanismo de proteção contra inconsistências
temporais, defendendo, assim, as sociedades de suas próprias miopias. O
constitucionalismo democrático traça, neste sentido, um conjunto de
limitações à maioria com o propósito de favorecer a dignidade humana e
fortalecer a própria democracia, estabelecendo os princípios e as meta-
regras a partir das quais o sistema democrático deve funcionar, sem, no
entanto, poder suprimi-los. 49

Desse modo, a fim de preservar o que há de mais precioso na Constituição ao longo do


tempo e de se excluir, por conseguinte, a possibilidade de supressão formal dos direitos
fundamentais 50 , entram em cena as chamadas cláusulas pétreas 51 , as quais nada mais são do

fundamentais, constituem as bases institucionais da República). Frise-se desde já que a Constituição, ao vedar
a deliberação e não apenas a vigência da norma, impede que questões tendentes a revogar, ainda que
indiretamente, tais liberdades, sejam sequer debatidas – o que nitidamente restringe o debate acerca de
questões constitucionais importantes, limitando até mesmo o fórum político público (e não somente as normas
resultantes desse fórum no âmbito do processo legislativo) a outras questões de menor importância.
48
“Limites expressos ou textuais são os limites previstos no próprio texto constitucional. As constituições
selecionam um leque de matérias, consideradas como o cerne material da ordem constitucional, e furtam essas
matérias à disponibilidade do poder de revisão. [...]
Outras vezes, as constituições não contêm quaisquer preceitos limitativos do poder de revisão, mas entende-se
que há limites não articulados ou tácitos, vinculativos do poder de revisão. Esses limites podem ainda
desdobrar-se em limites textuais implícitos, deduzidos do próprio texto constitucional, e limites tácitos
imanentes numa ordem concreta de valores pré-positiva, vinculativa da ordem constitucional concreta”. –
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., pp. 1050-1051. Grifos do original.
49
VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 19.
50
[o poder de reforma constitucional] “É inquestionavelmente um poder limitado, porque regrado por normas da
própria Constituição que lhe impõem procedimento e modo de agir, dos quais não pode arredar sob pena de
sua obra sair viciada, ficando mesmo sujeita ao sistema de controle de constitucionalidade. Esse tipo de
regramento da atuação do poder de reforma configura limitações formais, que podem assim ser sinteticamente
enunciadas: o órgão do poder de reforma (ou seja, o Congresso Nacional) há de proceder nos estritos termos
expressamente estatuídos na Constituição”. – SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional
Positivo. São Paulo, Malheiros, 1999, p. 67.
51
“O adjetivo pétrea vem de pedra, significando “petroso” e, no sentido figurativo, “duro como pedra”,
“insensível”. Tem-se, pois, que, constitucionalmente falando, cláusula pétrea é aquela imodificável,
irreformável, insuscetível de mudança formal. Assim, cláusulas pétreas são cláusulas de irreformabilidade total
ou parcial da Constituição, em defesa da perenidade da obra do legislador constitucional. São limites fixados
ao conteúdo ou substância de uma reforma constitucional e que operam como verdadeiras limitações ao
exercício do Poder constituinte derivado.” – NOGUEIRA, Cláudia de Góes. Op. Cit., p. 83. Além disso, “as
cláusulas superconstitucionais também servem como princípios que auxiliam a interpretação constitucional,
suprindo as dificuldades e tensões impostas pela desformalização do direito constitucional que acompanham a
implementação de uma Constituição tão vasta como a brasileira”. – VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 29.
31

que os dispositivos constitucionais que consagram expressamente esses direitos subjetivos


públicos dos cidadãos em qualquer esfera 52 .

A fundamentalidade formal, geralmente associada à constitucionalização,


assinala quatro dimensões relevantes: (1) as normas consagradoras de
direitos fundamentais, enquanto normas fundamentais, são normas
colocadas no grau superior da ordem jurídica; (2) como normas
constitucionais encontram-se submetidas aos procedimentos agravados de
revisão; (3) como normas incorporadoras de direitos fundamentais passam,
muitas vezes, a constituir limites materiais da própria revisão [...]; (4) como
normas dotadas de vinculatividade imediata dos poderes públicos
constituem parâmetros materiais de escolhas, decisões, ações e controlo,
dos órgãos legislativos, administrativos e jurisdicionais [...]. 53

A questão que se coloca, contudo, é a identificação que a Constituição mantém com


relação à sociedade a qual ela serve, seja pelo ponto de vista temporal (dadas as contínuas
modificações sociais que levam a um distanciamento do preceituado pela Carta Política) ou
mesmo em termos materiais (os quais, ultrapassando a concepção meramente formalista de
cláusulas irrevogáveis, levam a uma investigação da essência do texto constitucional, a fim de
corrigir eventuais erros do constituinte e considerar que alguns dispositivos equivocadamente
inseridos no rol de direitos e garantias fundamentais, sejam tratados como regras comuns). Ou
seja, trata-se de analisar a legitimidade dos próprios direitos tachados pelo constituinte
originário de fundamentais 54 .
Isso porque, ao consagrar um determinado rol de normas como indiscutíveis, como
regras básicas e inescapáveis do jogo político público, o propósito de resguardar a democracia
pelas cláusulas pétreas pode acabar ocasionando o efeito oposto: reduzem-se as possibilidades
de deliberação pelos próprios cidadãos (“senhores” da constituição, por assim dizer, já que

52
O tema adquire maior relevância para o presente trabalho na órbita tributária, o que será discutido mais
aprofundadamente no capítulo III. Vale por ora destacar que, com a consagração desses direitos de modo
intangível, “[...] a Constituição determinou de modo negativo, isto é, através de proibições, o conteúdo
possível das leis tributárias e, indiretamente, dos regulamentos, das portarias, dos atos administrativos
tributários etc.
Em outros termos, a União, os Estados-membros, os Municípios e o Distrito Federal, ao fazerem uso de suas
competências tributárias, são obrigados a respeitar os direitos individuais e suas garantias. O contribuinte tem
a faculdade de, mesmo sendo tributado pela pessoa política competente, ver respeitados seus direitos públicos
subjetivos, constitucionalmente garantidos”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 406-407.
53
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., p. 379. Grifos do original.
54
Canotilho chega a dizer que “Se quisermos um estado constitucional assente em fundamentos não metafísicos,
temos de distinguir claramente duas coisas: (1) uma é a da legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e
do processo de legislação no sistema jurídico; (2) outra é a da legitimidade de uma ordem de domínio e da
legitimação do poder político”. Op. Cit., p. 100.
32

esta serve àqueles e não o contrário 55 ) e a constituição pode passar a ter sua base de
legitimidade questionada, ampliando-se o risco de uma indesejável 56 revolução
constitucional. Assim,

[...] caso esses dispositivos superconstitucionais sejam mal formulados,


compreendidos ou interpretados, poderão servir como barreira
intransponível às decisões majoritárias, protegendo privilégios ou
instituições incompatíveis com as necessidades impostas por uma história
em constante fluxo. Nesse sentido, o constitucionalismo torna-se
instrumento antagônico à democracia. 57

Ao se impedir a deliberação sobre determinados assuntos importantes, as gerações


futuras vêem-se tolhidas exatamente das discussões mais essenciais à democracia, que são as
liberdades básicas, cristalizadas na irrevogabilidade formalista dos direitos fundamentais.
Aflora assim a tensão entre constitucionalismo e democracia 58 .

O primeiro aspecto a ser considerado é o da rigidez das cláusulas


jusfundamentais. Como “condições para a cooperação na deliberação
democrática”, os direitos fundamentais não só possibilitam que seja

55
“As leis devem sempre regular-se, e regulam-se de fato, pelo regime, e não o regime pelas leis”. Aristóteles
apud BARZOTTO, Luis Fernando. Op. Cit., p. 68.
56
Dada a insegurança de um novo ordenamento constitucional, “al Estado se le ha presentado un problema
adicional: si bien su instauración y sus cambios significaron un trauma social, porque supusieron la necesidad
de adaptación a nuevas realidades, se mantuvo un ritmo evolutivo que iba abriendo nuevas expectativas”. –
VALADÉS, Diego. Consideraciones sobre el Estado Constitucional, la Ciencia y la Concentración de la
Riqueza. Cadernos de Soluções Constitucionais, São Paulo: Malheiros (em co-edição com a Associação
Brasileira dos Constitucionalistas Democratas), vol. 1, 2003, p. 55.
57
VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit.,, p. 29.
58
Para ilustrar essa tensão, basta ver-se, por um lado, a premissa constitucionalista de que “a concepção
democrática de lei escrita trazia o risco intrínseco de que todo o direito se tornasse um instrumento dos
caprichos momentâneos do povo” (BARZOTTO, Luis Fernando. Op. cit., p. 67) e, por outro, a visão
democrática de que “para que as cláusulas pétreas não se convertam num instrumento antidemocrático, de
tirania constitucional de uma geração sobre as seguintes, elas têm que ser interpretadas à luz do princípio
democrático, como garantias das condições de possibilidade de uma democracia efetiva e substancial,
instruídas para impedir que a empreitada intergeracional de construção de um destino coletivo por pessoas
livres e iguais não se perca no caminho, tragada por adversidades, miopias, paixões momentâneas ou
fraquezas”. – SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da
Previdência. In: TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos
e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 19-20. Decerto que esse antagonismo é
apenas aparente: não se trata de concepções opostas da constituição, já que “a relação entre democracia e
constitucionalismo não significa alternativas excludentes, mas princípios que podem e devem conviver
simultaneamente” – PEIXINHO, Manoel Messias. Teoria democrática dos direitos fundamentais. In: VIEIRA,
José Ribas (org.). Temas de Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 218; porém
“a correta dosagem dos ingredientes desta fórmula é essencial para o seu sucesso. Por um lado,
constitucionalismo (limitações ao poder) em excesso pode asfixiar a vontade popular e frustrar a autonomia
política do cidadão, como co-autor do seu destino coletivo. Por outro, uma ‘democracia’ sem limites tenderia a
pôr em sério risco os direitos fundamentais das minorias, bem como outros valores essenciais, que são
condições para a manutenção ao longo do tempo da própria empreitada democrática” – SARMENTO, Daniel.
Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 5-6.
33

proferida uma decisão majoritária, mas também lhe impõem limites,


podendo obstar até mesmo os desideratos reformadores do poder
constituinte derivado. Ora importa ressaltar que esses limites representam
não uma violação da soberania popular, mas uma garantia das precondições
indispensáveis para a sua efetiva manifestação. [...] Obviamente, se, a
contrario sensu, a norma não constitui uma “condição para a cooperação na
deliberação democrática”, não há por que configurar um limite material ao
poder de reforma. Isso representaria uma grave violação da soberania
popular. 59

Daí surgem, então, teorias que abordam os direitos fundamentais sob um aspecto não
puramente formalista, mas afirmam a existência de materialidade nos direitos fundamentais, o
que, segundo determinados critérios, permitiria identificar um núcleo democrático na
constituição – esse, sim, irredutível para o exercício da democracia pelos cidadãos 60 .

Não desconhecemos o velho refrão: “nem tudo que é legal justo é”. Esta
dicotomia entre justiça e Direito é tão avelhantada quanto a humanidade. A
lei, também o sabemos, é antes de tudo veículo de qualquer conteúdo, da
justiça e da injustiça, da igualdade e da desigualdade. Nem por isso e até
por isso devemos cuidar de insuflar no Direito-Sistema os valores pelos
quais a vida vale a pena ser vivida: liberdade, igualdade, justiça e
segurança. Se o Direito é “dever-ser”, como diz Lourival Vilanova, “é
dever-ser de algo”. Esta precisamente a questão. Estamos mais preocupados
com o que deve-ser do que propriamente com o dever-ser, que é meramente
instrumental, neutro de valor. Quanta amargura em ver Enno Becker
recomendando dever ser o Direito Tributário alemão a expressão jurídica do
nacional-socialismo de Hitler 61 . É disso que se trata. Se a lei aceita qualquer
conteúdo, bastando o domínio da máquina do Estado, devemos fazer
política para que o Direito seja justo. E devemos deslocar a legitimidade do
sistema jurídico do plano formal e político para o plano axiológico e, dentre
as várias axiologias, admitir como legítima apenas a que prestigie os valores
da liberdade, da igualdade, do pluralismo, da solidariedade e da democracia.
O Direito, como instrumento de poder, tem sido, ao longo dos tempos, o

59
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, pp. 236-237.
60
“No presente estudo, consideram-se ‘materialmente fundamentais’ aqueles preceitos que configuram
‘condições para a cooperação na deliberação democrática’”. – Id. Ibid., p. 235.
61
Foi exatamente essa flexibilidade excessiva do regimes nazi-fascistas que levou os vários sistemas de direito a
consagrar cartas mais amplas de direitos, engessando mais a ação estatal e protegendo mais a pessoa dos
cidadãos: “Depois que os fatos verificados na Alemanha durante a República de Weimar, e em muitos outros
países, demonstraram com que facilidade movimentos eversivos da ordem democrática podiam se apoderar do
poder desfrutando as possibilidades oferecidas a eles propriamente da aplicação dos princípios do
constitucionalismo, interveio assim uma ulterior evolução, por efeito da qual passaram a fazer parte deste
compêndio uma série de princípios, em parte pelo menos parecidos com aqueles já acolhidos nos Estados
Unidos desde o início do período aqui considerado, a começar por aqueles que estabelecem a “rigidez” da
Constituição e o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis e, sobretudo, em alguns países, isso
determinou uma reavaliação da função do Poder Judiciário, revirando as posições às quais tinha se chegado no
período que seguiu a Revolução Francesa”. – PIZZORUSSO, Alessandro. O processo de constitucionalização
na Europa. In: PIMENTEL JR., Paulo Gomes (coord.). Direito Constitucional em Evolução: perspectivas.
Curitiba: Juruá, 2005, p. 25.
34

instrumento da opressão. Sob as altas pressões do mundo moderno estamos


chegando aos pontos de mutação. 62

A análise dos direitos fundamentais pelo ponto de vista material abstrai, portanto, da
mera positivação constitucional de um rol de determinadas regras e liberdades que não podem
ser objeto de reforma. Considerando-se a Constituição como o documento que ampara
juridicamente o Estado democrático de Direito, o qual pressupõe uma sociedade pluralista de
cidadãos livres e iguais, esse diploma não deveria se prestar apenas a uma determinada
conjuntura (engessando as gerações futuras), porém atender ao máximo de gerações possíveis,
consolidando um determinado modelo democrático forjado à base de deliberações pelos
próprios cidadãos 63 – até porque “a justificação nunca é definitiva e eterna, senão que leva
sempre a novas legitimações” 64 .
Por isso mesmo a concepção democrática da constituição tenta encontrar-lhe um
núcleo irrestringível, a fim de evitar a hiperinflação de liberdades e outros dispositivos
constitucionais erigidos à categoria de supernormas, intocáveis por quem quer que seja. Vale
a máxima de que um sistema 65 será tanto mais perfeito quanto menos princípios houver 66 , a
fim de se lhe assegurar unidade e consistência. Assim, diminui-se a quantidade de dispositivos
irrestringíveis 67 e se abre a Constituição para sua identidade reflexiva 68 com a sociedade – o
que é benéfico para a democracia como um todo, porquanto

62
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, pp. 52-53.
63
“Neste quadro, a maximização das cláusulas pétreas representa um sério atentado contra o princípio
democrático, que postula que o povo deve ter, a cada momento, o poder de decidir os rumos que pretende
seguir.” – SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da
Previdência. In: TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos
e aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 15.
64
TORRES, Ricardo Lobo. As imunidades tributárias e os direitos humanos: problemas de legitimação. In:
TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a
Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 307.
65
“Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com sua ordem, unidade e
harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito”. – BARROSO,
Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do Direito
Constitucional do Brasil). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coords.). A
Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007, p. 227.
66
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 37.
67
“Assim sendo, o poder constituinte derivado, que admite a reforma do texto constitucional, é excepcional e
destina-se a oferecer uma possibilidade permanente de atualização da Constituição”. – LOBATO, Anderson
Orestes Cavalcante. Política, constituição e justiça: a legitimidade da jurisdição constitucional e a consolidação
das instituições democráticas. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Constituição Federal, 15 anos:
mutação e evolução; comentários e perspectivas. São Paulo: Método, 2003, p. 134.
68
“A identidade da constituição não significa a continuidade ou permanência do “sempre igual”, pois num
mundo sempre dinâmico a abertura à evolução é um elemento estabilizador da própria identidade. Neste
sentido se compreende a sugestão do conceito de desenvolvimento constitucional para significar o conjunto
de formas de evolução da constituição [...] e para exprimir aquilo que se poderá chamar a garantia de
35

embora essas condições [constitucionais] possam ter sido justas numa época
anterior, os resultados acumulados de um grande número de acordos, cada
qual aparentemente justo, produzirão efetivamente ao longo do tempo, em
combinação com as contingências históricas e as tendências da sociedade,
alterações das relações entre os cidadãos, assim como possibilidades que
lhes são oferecidas, de tal forma que as condições para acordos livres e
eqüitativos não mais ocorrerão 69 .

Desse modo, resta claro que a cristalização demasiada de preceitos constitucionais, ao


invés de resguardar a democracia, tiraniza a própria constituição, obrigando seus cidadãos a
um regime de injustiças – dado o absoluto distanciamento, com o passar do tempo, entre o
regime preconizado pela lei fundamental (estático) e a realidade social (dinâmica) 70 , aliado à
impossibilidade de novos ajustes nos acordos previamente firmados pelo constituinte
originário.

O certo é que, sendo a Constituição a principal das leis, a primeira delas – a


normal fundamental para mim não passa de uma “intentio majoris
legislatoris” – o frágil homem que a elabora, como legítimo representante
do povo ou como usurpador do poder, pretende, em alguns pontos, dar
toques de definitividade à sua obra, que considera superior, embora sirva,
no máximo, para o período em que vive, à luz daquela conjuntura.
Em outras palavras, o constituinte, ao pretender imutáveis determinadas
cláusulas, normas, princípios ou ideologias, impõe sua inalterabilidade, não
permitindo que os poderes constituídos, que poderão se tornar poderes
constituintes derivados, venham, quanto àquelas cláusulas, a exercer seu
poder legiferante.
Ao assim agirem, todavia, esquecem que a história da raça humana muda
em velocidade crescente e as conjunturas tendem a se modificar com
celeridade cada vez maior, exigindo novos regramentos, impondo novos
desafios que não podem ficar amarrados por legisladores sem visão
antecipatória. 71

identidade reflexiva. Garantir a identidade reflexiva de uma constituição significa dotar a constituição de
capacidade de prestação em face da sociedade e dos cidadãos”. – CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op.
Cit., p. 1059. Grifos do original.
69
RAWLS, John. A estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 13.
70
A excessiva cristalização de dispositivos constitucionais engessa a democracia e inviabiliza o principal
parâmetro de legitimação social sob a concepção liberalista proposta, dentre outros, por John Rawls, que é a
razão pública. A ampla fundamentalização de disposições constitucionais no plano jurídico adquire, no plano
político (em termos de razão pública), ares do que é concebido por Rawls como verdade inteira, avesso à
própria idéia de democracia por impedir o exercício da razão pública: torna-se dogma que não pode ser
contestado, por ser a única verdade cabível a um determinado número de casos, tão-somente porque ‘o
constituinte originário o quis assim’. O conceito de verdade inteira será abordado adiante, no capítulo II, ao
ser explorada a razão pública de modo mais exaustivo.
71
MARTINS, Ives Gandra da S. Op. Cit., pp. 181-182.
36

Daí o dizer-se que o constitucionalismo, em uma república democrática e pluralista,


deve se restringir à esfera da imparcialidade política 72 , e o chamar-se de fundamentalismo a
técnica legislativa constitucional de se considerar o máximo de direitos como fundamentais ao
homem e, em última análise, à estrutura do Estado e à manutenção da democracia.

A idéia de concepções fundamentalistas dos direitos fundamentais se traduz


pela tentativa de inserir, no campo do que está fechado ao dissenso político,
doutrinas abrangentes particulares. São fundamentalistas por não tratarem
as demais doutrinas como dignas de igual respeito, não lhes reconhecendo a
possibilidade de atribuírem conteúdo às prescrições legais mesmo se
apoiadas pelas deliberações majoritárias. Ao incorporarem pretensões
abrangentes [...] e, ato seguinte, procederem à fundamentalização-releitura
de diversos dispositivos constitucionais relativos à intervenção do Estado na
economia, essas interpretações cerceiam o espaço democrático e tornam
constitucionalmente necessário o que é politicamente contingente. 73

Com isso advém a cautela do princípio democrático em se dizer que as cláusulas


pétreas devem se destinar à salvaguarda de valores nucleares e fundamentais da constituição e
servir como princípios auxiliares da interpretação constitucional. “Tem-se, desta maneira, um
constitucionalismo social desformalizado, em que impera uma cultura jurídica positivista,
porém submetido a regras superconstitucionais que pretendem assegurar a intangibilidade dos
valores ético-constitucionais fundamentais” 74 .
Cabe, destarte, avaliar o que seria esse núcleo irredutível segundo a concepção
democrática de constituição.
Essa questão necessariamente nos remete ao texto constitucional de 1988, que, a fim
de assegurar o exercício da democracia pelos cidadãos brasileiros após um longo período de
ditadura, consagrou expressamente a irrevogabilidade de quase uma centena de regras e

72
SOUZA NETO, Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Fundamentalização e
fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In: ______.; SARMENTO,
Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 716-717. Por isso mesmo, “toda pretensão de se controlar os resultados
produzidos pelo procedimento democrático que extrapole a defesa dos requisitos mínimos para o
funcionamento da democracia será espúria e injustificável”. – VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 22.
73
A transcrição envolve alguns conceitos trabalhados pormenorizadamente no capítulo II do presente, ao
estudar-se a razão pública nos moldes desenvolvidos por John Rawls. De todo modo, importante realçar que
“o que está fechado ao dissenso é a estrutura básica do Estado Democrático de Direito”. – SOUZA NETO,
Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Fundamentalização e fundamentalismo na
interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In: ______.; SARMENTO, Daniel (coords.). A
Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007, pp. 720-721. E até pelo raciocínio transcrito acima, os autores chegam à conclusão de que “o processo
de dupla fundamentalização por que passa a Constituição de 1988 deve ser legitimado a partir de argumentos
restritos à esfera da imparcialidade política, evitando doutrinas fundamentalistas dos direitos fundamentais”
(Id. Ibid., p. 740).
74
VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 29.
37

princípios, além de possuir um outro dispositivo que, de modo aberto, considera irrevogáveis
“outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados” 75 .
Tal maximização logicamente encontra críticas pelo princípio democrático, ante o
conseqüente emperramento da democracia que ela paradoxalmente produz. Entrementes, é
importante verificar ainda o contexto político de elaboração da Carta Constitucional de 1988 e
a obscuridade conceitual do que possa objetivamente, no texto constitucional, ser considerado
cláusula pétrea ou não.

1.2 A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA E A OBSCURIDADE CONCEPTUAL NA


DEFINIÇÃO DAS CLÁUSULAS PÉTREAS. DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS
DECORRENTES DISSO. EFEITOS NA PRÁTICA DEMOCRÁTICA.

A Constituição da República de 1988, denominada carinhosamente de “constituição-


cidadã”, é a Constituição brasileira com a maior carta de direitos ditos “fundamentais” em
toda a história da nação, considerados irrevogáveis pelo constituinte derivado.
Essas liberdades, hoje expressamente constantes de uma lista apresentada no art. 5o da
Constituição a título de direitos e deveres individuais, são agregadas a uma série de outras, as
quais, nada obstante não estarem ali incluídas, somam-se-lhes em virtude de seu §2o, o qual
também considera, para todos os seus efeitos, as demais “decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte” 76 .
Tais direitos são considerados irrevogáveis por força do art. 60, §4o, da Constituição, o
qual veda a deliberação de qualquer proposta de emenda ao texto constitucional tendente a
abolir, dentre outras regras, os direitos e garantias individuais (listados exatamente pelo artigo
5o).
Ocorre que essa hipertrofia do constituinte leva a problemas da ordem mais grave
numa democracia: a interpretação do sistema jurídico como um todo 77 . Não é possível

75
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988. Art. 5o., §2o.
“Como tal se interpretou ‘o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte’ (ADIN 939,
RDA 198/123 e RTJ 151/755)”. CUSTÓDIO, Antonio Joaquim Ferreira. Constituição Federal interpretada
pelo STF. 8a. edição. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 33. Voltaremos ao tema no capítulo IV.
76
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988.
77
Nem tocaremos no assunto da efetividade dos direitos, por ser tema da mais alta complexidade e
absolutamente diverso do foco do trabalho. Realçamos, contudo, a opinião de Ives Gandra da Silva Martins,
para quem “As Constituções de Portugal e do Brasil não fugiram à regra de um Estado veiculador de direitos
sem condições de os garantir, mormente em face da universalização da economia e da competitividade
38

entender peremptoriamente como funciona um sistema jurídico, o que esperar dele, diante de
um texto aberto como o da Constituição de 1988. A confusão se mostra tão grande que
autores se desencontram mesmo quanto à concepção do próprio Estado brasileiro: se de bem-
estar social (criticado por autores como John Rawls, o qual, como visto anteriormente,
entende ser um Estado fadado ao fracasso) ou de democracia deliberativa 78 .
Se a própria caracterização do Estado brasileiro (o que definirá, em última análise, sua
priorização entre o bem e o justo) não é uníssona, muito maior divergência se dá quando o
assunto é interpretar os direitos fundamentais ante a abertura conceitual da Constituição – que
se reflete em grande vulto na área da tributação, tendo em vista que as Limitações ao Poder
de Tributar podem ser consideradas ou não, de acordo com a concepção utilizada, uma
extensão dos direitos “decorrentes do regime ou dos princípios” adotados pela Constituição.

1.2.1 O contexto de elaboração da Constituição de 1988. A influência da conjuntura na


consagração de direitos.

A primeira grande característica da Constituição da República de 1988 é a sua ruptura


com décadas de regime ditatorial militar. A Constituição surgiu após um esforço de
mobilização por toda a população e significou, por isso mesmo, o fim de inúmeras restrições e
opressões políticas sofridas pelos cidadãos.
A Constituição de 1988, então, “não exerceria apenas o papel de tradutora dos valores
predominantes, mas também o de propulsora de transformações sociais” 79 . Por isso mesmo,
boa parte do anteprojeto de constituição (elaborado pela chamada Comissão Afonso Arinos)

selvagem que esta acarreta, à luz de um modelo substitutivo do homem pela máquina e gerador de desemprego
estrutural”. Op. Cit., p. 190.
78
Nesse sentido, cf., p.e., Luís Fernando Barzotto, para quem “propõe-se interpretar a democracia na
Constituição de 1988 como uma democracia deliberativa” (Op. Cit., p. 175) e Consuelo Yoshida, para quem o
Brasil é um “Estado de bem-estar social” (YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Morozimato. A implementação dos
direitos fundamentais e o paradigma constitucional: as novas concepções e os desafios aos operadores do
direito. In: POZZOLI, Lafayette; SOUZA, Carlos Aurélio Mota de (orgs.). Ensaios em homenagem a Franco
Montoro. São Paulo: Loyola, 2001, p. 250). Esse embate em John Rawls se situa na concepção do bem sobre o
justo ou do justo sobre o bem e se recomenda a leitura da introdução e do primeiro capítulo de sua Teoria da
Justiça para maior aprofundamento da questão. Aparentemente essa divergência se situa apenas no plano
filosófico; todavia, no capítulo IV da presente segue exposto que a divergência doutrinária em consagrar todas
as limitações ao poder de tributar como direitos fundamentais ou restringi-las a uma esfera de imparcialidade
política nada mais é do que transpor essa concepção do Estado brasileiro (se priorizando o bem ou o justo)
para a esfera dos direitos do contribuinte.
79
PRADO, Ney. Atitudes diante da Constituição de 1988. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições
de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 144.
39

foi reescrita ou modificada, de acordo com os impulsos políticos da Assembléia Nacional


Constituinte 80 .
Uma dessas modificações – talvez a mais sensível e significativa – deu-se no artigo
436 do anteprojeto, o qual tratava das Emendas à Constituição. O referido dispositivo (artigo
60 da Constituição promulgada) possuía, dentre várias regras, uma em especial, constante de
seu §8o (o qual terminou por ser o §4o no texto final), que tratava exatamente da
irreformabilidade do texto constitucional. Dizia ele que “não será objeto de deliberação a
proposta de emenda tendente a abolir a Federação ou a República” 81 , sem incluir quaisquer
liberdades concedidas pela Carta Política.
A proposta inicial da Comissão Afonso Arinos, então, era a de consagrar uma série de
liberdades sob a alcunha de direitos e garantias (constantes dos artigos 8o a 56, os quais,
totalmente reformulados e redistribuídos ao longo do texto constitucional final, concentraram-
se no art. 5o), porém não engessar o texto constitucional limitando a deliberação das gerações
futuras. No entanto, o que ocorreu foi ampliar-se a gama de liberdades inicialmente
concedidas (chegando mesmo à imprecisão desses direitos, dado o §2o do art. 5o da
Constituição promulgada) e, ao mesmo tempo, refrear a liberdade deliberativa das gerações
futuras, relativamente a uma série de outros assuntos importantes para o exercício da
democracia. Consagrou-se, então, um pacote pronto de liberdades, o qual é eternamente
ampliável, porém irrestringível a qualquer tempo.
Como conseqüência disso, a Constituição de 1988 tornou-se um documento de
atribuição extremada de direitos, a qual se deu por uma soma daquelas várias já consagradas
pelo anteprojeto (que, todavia, não possuía nenhuma previsão de irrevogabilidade) com
outras, sendo o produto final protegido pela formalidade antidemocrática. Surgiu, então, a
chamada “constituição cidadã”.

No Brasil, [...] o receio de uma volta ao passado levou, o constituinte, a


distender, consideravelmente, o espectro das cláusulas pétreas, numa
constituinte dominada em suas lideranças pelas esquerdas e que teve no
Presidente da República e Governador de São Paulo, Fernando Henrique
Cardoso e Mário Covas, seus mais fiéis defensores. [...]
O certo é que o predomínio das correntes ideológicas de esquerda, de um
lado, e o receio de um retorno a um Estado menos democrático, de outro,
levou o constituinte brasileiro a alargar a imodificabilidade da Constituição,

80
Decerto que parte dessa modificação se deu por força das aspirações nitidamente parlamentaristas do
anteprojeto; todavia esses instrumentos parlamentares modificados não tocam o aspecto ora desenvolvido, de
concessão de liberdades aos cidadãos.
81
BRASIL. Constituição Federal; anteprojeto da Comissão Afonso Arinos; índice analítico comparativo. Rio de
Janeiro: Forense, 1987.
40

muito além do exemplo português, e muito além do que seria ideal para
uma Constituição pudesse estar sempre adaptada ou viesse a ser adaptável
às circunstâncias e à história. 82

A Constituição da República de 1988, portanto, tem sua elaboração marcada


inicialmente por esse misto de euforia de fim do regime militar aliado a um medo de retorno
do mesmo, juridicamente demonstrado pela amplitude dos dispositivos tidos como
irrevogáveis pelo Constituinte originário. “Ao impor essas limitações às gerações futuras o
constituinte demonstrou a sua mais absoluta desconfiança no sistema político que estava
sendo produzido” 83 .
Esses sentimentos externaram o que Ney Prado chamou de antiautoritarismo. Para o
autor, o Constituinte de 1988 preocupou-se muito mais com a punição do passado do que com
a preparação do futuro. E esse antiautoritarismo teve, na verdade, preconceitos voltados para
instituições públicas – enquanto instrumentos de opressão social –, mas também para
instituições privadas – instrumentos de exploração dos trabalhadores pelos detentores dos
meios de produção. “Os constituintes, com o compreensível desejo de corrigir os males do
passado, esqueceram do Brasil que está por vir. Impregnados de preconceito, a rigor, não
redigiram uma autêntica Constituição: fizeram uma anticonstituição”. 84
Por isso mesmo, movida por tantas emoções (e, conseqüentemente, pouco
racionalismo), a par de tentar consolidar a democracia por longas datas, a Constituição
terminou por se apresentar como um diploma conjuntural e circunstancial – em outras
palavras, casuístico 85 –, além de altamente comprometido com determinadas classes e não
com a sociedade como um todo.

A Carta de 1988, como já consignado, tem a virtude suprema de simbolizar


a travessia democrática brasileira e de ter contribuído decisivamente para a
consolidação do mais longo período de estabilidade política da história do
país. Não é pouco. Mas não se trata, por suposto, da Constituição da nossa
maturidade institucional. É a Constituição das nossas circunstâncias. Por
vício e por virtude, seu texto final expressa uma heterogênea mistura de

82
MARTINS, Ives Gandra da S. Op. Cit., p. 179. O autor atribui ainda a consagração ampla de direitos à
presença, no Brasil, dos constitucionalistas portugueses Jorge Miranda, José Joaquim Gomes Canotilho e
Marcelo Rebelo de Souza. Id. Ibid., p. 177.
83
NOGUEIRA, Cláudia de Góes. Op. Cit., p. 85.
84
PRADO, Ney. Op. Cit., pp. 152-153.
85
“O produto final de seu trabalho foi heterogêneo. De um lado, avanços, [...]. De outro, no entanto, o texto
casuístico, prolixo, corporativo, incapaz de superar a perene superposição entre o espaço público e o espaço
privado no país”. – Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-
modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Cadernos de Soluções Constitucionais, São Paulo: Malheiros
(em co-edição com a Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democratas), vol. 1, 2003, p. 182. No
mesmo sentido, Ney Prado, Op. Cit., pp. 153-154.
41

interesses legítimos de trabalhadores, classes econômicas e categorias


funcionais, cumulados com paternalismos, reservas de mercado e
privilégios corporativos. A euforia constituinte – saudável e inevitável após
tantos anos de exclusão da sociedade civil – levou a uma Carta que, mais do
que analítica, é prolixa e corporativa. 86

Assim, a Constituição nasceu já pronta para ser objeto de críticas, tão-logo a euforia
inicial passasse 87 . A unanimidade de pensamento, apesar de existir quanto à libertação
política, mostrou-se, diante do texto final (altamente fragmentado e heterogêneo, resultante da
consagração dos anseios de diversas classes sociais e do próprio Estado 88 , estes por vezes
conflitantes 89 ), apenas momentânea e aparente. Com isso surgiu um problema: buscar o
“verdadeiro significado da democracia” 90 .
Ora, a própria busca pelo significado da democracia (como um dos reflexos do projeto
de Estado delineado pela Constituição) demonstra que não havia um consenso quanto ao mais
básico para uma sociedade pluralista que se pretende justa e razoável. Como conceber um
Estado democrático de Direito, ou mesmo uma sociedade bem ordenada, sem se saber sequer
qual a democracia desenhada pela Constituição? A pergunta se coloca ainda mais contundente
se considerarmos que as bases desse problema são formalmente irreformáveis, diante da
radical consagração de liberdades propiciada pela Carta Política.

86
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do
Direito Constitucional do Brasil). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coords.). A
Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007, pp. 224-225. No mesmo sentido, VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 129: “Aproveitando a fragilidade
do sistema representativo e a fragmentação do sistema partidário, os interesses corporativos tiveram presença
marcante durante a Constituinte. O empresariado, principalmente o nacional, também trabalhou arduamente
durante o processo constituinte, alcançando diversos privilégios na redação final do texto. [...] A abertura às
pressões externas, no entanto, também permitiu uma ação tremendamente eficaz de lobbies e grupos de
pressão na defesa de interesses privados junto aos constituintes. Isso facilitou que interesses mais diversos e
contraditórios fossem acolhidos no seio da Constituição de 1988.”
87
“Hoje ela [a “Constituição cidadã”] é criticada – eu mesmo o faço –, mas naquele momento a Constituição
tinha que ter uma marca muito forte de liberdade democrática, e ela tem, e de reivindicação social. Depois de
tantos anos de abastardamento da vida política brasileira, de marginalização da população, tinha que haver
isso.” CARDOSO, Fernando Heneique. in Dr. Ulysses – o homem que mudou o Brasil. Célia Soibelmann
Melhem e Sonia Morgenstern Russo (org.). São Paulo: Prêmio, 2004, p. 98. Sobre a convivência da
Assembléia Nacional Constituinte, cf., na mesma obra, os depoimentos de outros constituintes, como Mario
Covas e Nelson Jobim.
88
“[...] a Constituição foi o resultado de uma determinada conjuntura política em que nenhum dos grupos
conseguiu estabelecer hegemonicamente seu projeto político. Assim, diversos dispositivos constitucionais
resultam da força de maiorias meramente eventuais, aglutinadas especialmente para a inserção de um tópico
no texto constitucional”. – VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 133.
89
“Com efeito, da nada adiantam seus princípios, do Tiítulo I e suas abundantes setenta e duas declarações de
liberdades e garantias, esmiuçadas no quilométrico artigo 5o do Título II se, contraditoriamente, elas acabam
sendo anuladas pela complicada máquina do estado intervencionista e fiscalista que vem minudentemente
construída nos sete Títulos restantes”. PRADO, Ney. Op. Cit., p . 154.
90
Id. Ibid., p. 145.
42

Daí o dizer-se, por exemplo, que “uma imposição do texto constitucional tal como
aprovado em 1988, poderia representar uma incapacidade do Estado constitucional em se
adaptar às novas condições sociais e políticas, identificadas na política de governo” 91 , ou
mesmo que “para uma Constituição muito mais voltada para o transformar do que para o
conservar, esta limitação vai longe demais na garantia do status quo” 92 .
Mas o problema não se limita à contextualização da redação constitucional. Há ainda
uma questão mais pungente, que diz respeito à interpretação do texto da Constituição de 1988
diante da abertura conceitual quanto às regras e liberdades consideradas fundamentais.
O conjunto de dispositivos constitucionais indefinidos tidos como irrestringíveis pelas
gerações futuras encontra-se na conjugação dos artigos 60, §4o, e 5o, §2o, da Carta.
O artigo 60, §4o, possui uma lista de regras e liberdades consideradas irrevogáveis.
Dentre aquelas, importa-nos o inciso IV, que se refere aos “direitos e garantias individuais”.
Ao mesmo tempo, o art. 5o da Constituição (único do capítulo de direitos e deveres
individuais e coletivos, o qual se localiza no Título de direitos e garantias fundamentais 93 ),
em seu §2o abre o leque da irrevogabilidade para “outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte”.
Com isso, surge outro problema fulcral na construção da democracia brasileira: afinal
de contas, quais são objetivamente os direitos tidos como irreformáveis pelo constituinte? O
campo da subjetividade ampliou-se enormemente. Em última análise, é possível dizer que a
palavra final sobre quais são os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros fica a cargo do
Supremo Tribunal Federal. Até lá (e até que se sedimente a jurisprudência do Supremo

91
LOBATO, Anderson Orestes Cavalcante. Op. Cit., pp. 134-135.
92
SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In:
TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos
controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 41.
93
Devido a essa diferença conceitual entre os dispositivos da Constituição, Cláudio Pereira de Souza Neto traz
ainda uma discussão preliminar que merece destaque. “O problema se torna ainda mais enigmático quando
relacionado ao tema dos limites materiais ao poder de reforma. A que se refere o artigo 60, §4o, inciso IV? Aos
“direitos e garantias individuais”, como está expresso no Texto, ou aos “direitos e garantias fundamentais”? A
Constituição, ao mencionar, como detentores do status de cláusula pétrea, apenas os “direitos e garantias
individuais”, dá espaço para se argumentar que somente aqueles inseridos no art. 5o são considerados
realmente fundamentais. Se o critério da interpretação literal desse dispositivo é combinado com o da posição
topográfica do §1o do art. 5o, passa a contar com um argumento formalista bastante incisivo a corrente
doutrinária qu restringe o sistema de direitos fundamentais aos estabelecidos no art. 5o. No entanto, se a
Constituição, no art. 60, §4o, IV, fala genericamente em “direitos individuais”, por que considerar que apenas
os formalmente fundamentais (art. 5o) devem contar com esse tratamento especial? Os direitos constitucionais
individuais que não são direitos fundamentais figuram como cláusulas pétreas? O que define, afinal, se uma
norma é ou não cláusula pétrea?”. Mais à frente o autor ainda considera, diante do §2o do art. 5o, que a
Constituição consagrou a abertura do sistema brasileiro de direitos fundamentais. SOUZA NETO, Cláudio
Pereira. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 231-232.
43

Tribunal Federal, o qual não raras vezes muda seus entendimentos) podemos enfrentar
décadas sem a menor segurança do que seja ou não direito básico – e, conseqüentemente,
irrestringível – dos cidadãos. Isso sem contar que a palavra final ficará a cargo de umas
poucas pessoas, não eleitas pela população, as quais terão que adotar as decisões políticas
mais importantes para a sociedade 94 .
Ronald Dworkin, ao abordar todas as controvérsias surgidas em virtude do uso de
termos vagos na consagração de direitos pela constituição americana e pela Bill of Rights
trouxe um questionamento quanto às decisões que serão tomadas pela Corte Constitucional.

Qualquer caso subsumido em garantias constitucionais “vagas” coloca duas


questões: (1) que decisão é exigida pela adesão estrita, isto é, fiel, ao texto
da Constituição ou à intenção daqueles que o adotaram? (2) Que decisão é
exigida por uma filosofia política que adota uma concepção estrita, isto é,
estreita, dos direitos morais que os indivíduos têm contra a sociedade? 95

É de se dizer, assim, que a abertura conceitual da Constituição não apresenta nenhuma


vantagem aos cidadãos. Se por um lado ela possui uma boa intenção de resguardar direitos,
por outro ninguém sabe quais são esses direitos. Ao que parece, nem o próprio constituinte
sabia ao certo, mas no afã de consagrá-los abriu a irrevogabilidade também para o terreno do
desconhecido. Numa sociedade pluralista e altamente complexa, tratar os direitos
fundamentais dessa forma é no mínimo temerário.
De todo modo, resta claro diante disso que

sem ir além da análise formal (levando em conta, na atividade


interpretativa, apenas critérios como o modo de positivação da norma e o
seu lugar na topografia constitucional), deixa o imbróglio acima sumariado
sem solução. A análise da forma jurídica se mostra gravemente incapaz de

94
“Esta prática é profundamente danosa a valores extremamente caros ao Estado Democrático de Direito. Ela é
prejudicial à democracia, porque permite que juízes não eleitos imponham as suas preferências e valores ao
jurisdicionados, muitas vezes passando por cima de deliberações do legislador. Ela compromete a separação
de poderes, porque dilui a fronteira entre as funções judiciais e legislativas. E ela atenta contra a segurança
jurídica, porque torna o Direito muito menos previsível, fazendo-o dependente das idiossincrasias do juiz de
plantão, e prejudicando com isso a capacidade do cidadão de planejar a própria vida com antecedência, de
acordo com o conhecimento prévio do ordenamento jurídico. Ela substitui, em suma, o governo da lei pelo
governo dos juízes.” – SARMENTO, Daniel. Livres e iguais – estudos de direito constitucional. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 200.
95
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 210. Frise-se que a ponderação de Dworkin limita-se a um texto que tem conceitos abertos em um rol
taxativo; mais aguda ainda se mostra a problemática brasileira, que além de ter diversos conceitos abertos
como direitos expressamente consagrados, sequer possui um rol definido desses direitos.
44

chegar a um bom termo quanto à definição de abrangência do sistema


brasileiro de direitos fundamentais. 96

Torna-se assim necessário buscar um parâmetro de materialidade para a definição do


que efetivamente seja direito fundamental. Esse parâmetro se coloca sob dois aspectos. O
primeiro deles é definir, ainda que se trate do art. 5o da Constituição, o que é direito
fundamental ou não (assumindo-se, nesse ponto, que o constituinte equivocou-se na
fundamentalização de determinados direitos, e abstraindo-se totalmente da forma adotada por
ele ao inserir determinados direitos no rol de irrevogabilidade – o que leva inclusive a um
questionamento dos incisos arrolados no art. 5o). O segundo deles é estabelecer
objetivamente, ante a indefinição do §2o do art. 5o (ou seja, dada a abertura conceitual da
Constituição), o que seja um direito decorrente do regime e dos princípios adotados pela Carta
Política.
O presente trabalho se situa na investigação sob o segundo ponto de vista. As
limitações constitucionais ao poder de tributar não foram expressamente consagradas como
irreformáveis pelo art. 60, §4o, da Constituição; porém, são consideradas irreformáveis pela
doutrina especializada do direito tributário, em virtude exatamente da conjugação, a esse
dispositivo, do §2o do art. 5o, e da premissa básica de que “o Estado, ao exercer a tributação,
deve observar os limites que a ordem constitucional lhe impôs, inclusive no que atina com os
direitos subjetivos públicos das pessoas” 97 . Não discordamos da premissa de respeito aos
direitos fundamentais, que de fato se mostra como um postulado básico de qualquer relação
jurídica num Estado democrático de Direito. O problema todo é definir, sem comprometer as
gerações futuras, quais são esses limites intransponíveis e irredutíveis da ação estatal.
Por isso mesmo, conforme visto acima, torna-se necessário justificar por que
determinados direitos ou liberdades podem ser considerados cláusulas pétreas, especialmente
em sede de tributação. E mais ainda, pensar em quais parâmetros de justificação utilizar.

1.3 A FUNDAMENTALIDADE MATERIAL DA CONSTITUIÇÃO: NECESSIDADE DE


PARÂMETROS DE JUSTIFICAÇÃO PAUTADOS NA DEMOCRACIA DELIBERATIVA.
ESCOLHA PELA RAZÃO PÚBLICA DE JOHN RAWLS.

96
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 234.
97
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 406.
45

A busca pela justificação dos preceitos constitucionais a serem considerados


irrestringíveis deve se dar, num Estado democrático de Direito, de acordo com o princípio
democrático. Somente atendendo ao princípio democrático se poderá pensar num Estado
efetivamente democrático de Direito, e não draconiano – ou, no dizer de alguns autores,
fundamentalista – de Direito.
Nessa esteira, existem várias teorias filosóficas apresentadas para justificar
determinadas normas ou condutas a serem adotadas pelo Estado ou mesmo pelos cidadãos
num fórum político público, que envolva assuntos importantes para a democracia.
Dentre as diversas concepções teóricas existentes, avulta o pensamento de John Rawls
para a justificação política pública.

Num trabalho que pretende explorar os problemas concernentes à adoção de


cláusulas constitucionais que não podem ser alteradas por emenda à
Constituição o pensamento de John Rawls é provocador. Pois, se as
cláusulas superconstitucionais são uma limitação à democracia, [...] elas
precisam de uma justificação muito forte se pretendem se legitimar. [...]
necessário se faz buscar numa teoria procedimental da justiça, como a de
Rawls, os fundamentos de uma ordem constitucional justa e, por
conseqüência, os elementos constitucionais que poderiam se instituir
legitimamente como obstáculos ao poder constituinte reformador 98 .

John Rawls adota uma teoria da justiça segundo a qual o justo deve prevalecer sobre o
bem, ao contrário de outras teorias (como a utilitarista, por exemplo) que entendem que o bem
deve prevalecer sobre o justo.
Ao traçar essa linha-mestra, John Rawls trabalha com alguns preceitos que conduzirão
uma sociedade bem ordenada ao pleno exercício da deliberação democrática, considerando-se
os cidadãos como livres e iguais. Esse tratamento igualitário deve advir dos concidadãos e do
próprio Estado em suas relações jurídicas. “O pressuposto mais básico de Rawls não é o de
que os homens tenham direito a determinadas liberdades que Locke ou Mill consideravam
importantes, mas que eles têm direito ao igual respeito e à igual consideração pelo projeto das
instituições políticas” 99 .
É ainda importante lembrar, especialmente nas relações entre Estado e cidadãos (como
na relações tributárias), que esse tratamento igualitário pressupõe que

98
VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 204.
99
DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 282.
46

O governo deve não somente tratar as pessoas com consideração e respeito,


mas com igual consideração e igual respeito. Não deve distribuir bens ou
oportunidades de maneira desigual, com base no pressuposto de que alguns
cidadãos têm direito a mais, por serem merecedores de maior consideração.
O governo não deve restringir a liberdade, partindo do pressuposto de que a
concepção de um cidadão sobre a forma de vida mais adequada para um
grupo é mais nobre ou superior do que a de outro cidadão. Considerados em
conjunto, esses postulados expressam aquilo que se poderia chamar de
concepção liberal da igualdade; mas o que expressam é uma concepção de
igualdade e não uma concepção de igualdade como licença. 100

Nessa busca pela priorização da justiça em relação ao bem, Rawls estabeleceu um


instrumental teórico que envolve especialmente princípios de justiça e um parâmetro de
justificação pública, que é a razão pública, a fim de abordar teoricamente a estrutura básica da
sociedade – sobre a qual se constrói a democracia e, conseqüentemente, viabiliza-se (ou não)
a realização da justiça. “Mediante o uso público da razão – que exclui toda e qualquer forma
de coação, exercício da força ou do poder econômico, assim como enredamentos de natureza
retórica ou emotiva – os cidadãos haveriam de obter a justificação política de seus resultados,
prova cabal do consenso porventura atingido” 101 . Trata-se, de fato, de

[...] a relatively Young subdiscipline that has emerged to occupy the


attention of scholars in the three decades since the end of World War II. If
we look only at the intellectual developments of the 20th century, public
choice is “new”, and it has, I think, made a major impact on the way that
living persons view government and political process. The public
philosophy of 1978 is very different from the public philosophy of 1948 or
1958. there is now much more scepticism about the capacity or the intention
of the government to satisfy the needs of citizens 102 .

A razão pública é o tipo de argumentação racional a ser adotada pelos cidadãos a fim
de justificar regras e condutas que envolvam questões de justiça básica, de modo que todos os
demais as aceitem como válidas na convivência social.

Para Rawls, a razão pública tem justamente a função de permitir que os


princípios possam ser justificados perante todos e aplicados corretamente.
Para isso, formula “diretrizes de indagação” cujo escopo é garantir que
argumentação política, pelo menos quando estão em jogo questões
constitucionais básicas, mostre-se não apenas “persuasiva” mas “racional”.
A razão pública prescreve que a argumentação política apele “unicamente

100
Id. Ibid., pp. 419-420.
101
RICHE, Flávio Elias. Op. Cit., p. 10. Grifos do original.
102
BUCHANAN, James M. From private preferences to public philosophy: the development of public choice.
In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan
47

para as crenças gerais e para as formas de argumentação aceitas no


momento presente e encontradas no senso comum, e para os métodos e
conclusões da ciência, quando estes não são controvertidos”. A contrário
senso, ela proíbe que, “ao discutir sobre elementos constitucionais
essenciais e sobre questões de justiça básica”, apelemos para “doutrinas
religiosas e filosóficas abrangentes” ou, p. ex., para “teorias econômicas
complicadas de equilíbrio geral, quando controvertidas”. 103

Assim, utilizando uma argumentação racional que coloque o justo sobre o bem e sirva
para que todos os cidadãos, mesmo numa sociedade complexificada, vejam-se como livres e
iguais, com igual consideração e respeito, Rawls coloca como centro da argumentação o bem
comum (entendido como “o que se pode legitimamente esperar da estrutura básica de
sociedade” 104 ) e não a mera agregação de interesses privados. Dessa forma ele elimina da
discussão aquilo que chama de “doutrinas abrangentes” – concepções particulares, filosóficas
ou religiosas, que não envolvam argumentos políticos por assim dizer.
Interessante realçar que, dadas as suas características, a razão pública, ainda que se
colocando num plano argumentativo (que poderia dar a entender uma posição apenas ritual na
democracia),

[...] não se limita à explicação do conceito de argumentação jurídica


racional (e, com isso, de pretensão de correção) e à sua função como critério
de correção hipotético. Contém simultaneamente exigências sobre as
argumentações que ocorrem de fato. Nesse sentido, constituem um critério
para a análise das limitações necessárias na busca da decisão jurídica, por
exemplo, no processo. Por isso, deve-se partir das fórmulas expostas, isto é,
de que em uma determinada situação estão justificadas aquelas limitações
que, em comparação com outras ou por si mesmas, oferecem uma maior
oportunidade para alcançar um resultado que também teria sido alcançado
sob condições ideais. 105

A razão pública, portanto, atribui contornos imprescindíveis ao discurso a ser adotado


pelas Cortes Constitucionais ao decidir questões de justiça básica – seja para julgar o mérito
ou mesmo para entender se se trata ou não de uma questão de justiça básica. E é justamente ao
definir se um caso envolve ou não assuntos de justiça básica, que a Corte Constitucional
poderá identificar se uma determinada norma constitucional é uma cláusula pétrea ou não.

103
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 115.
104
Id. Ibid., p. 112.
105
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:
Landy, 2005, pp. 280-281.
48

Frise-se que a Suprema Corte, por decidir justamente sobre casos constitucionais (ou
seja, da base do ordenamento jurídico) é considerada um ambiente de razão pública por
excelência, para John Rawls. Diz ele que

Num regime constitucional com revisão judicial, a razão pública é a razão


de seu supremo tribunal. Esboço agora duas questões a esse respeito: a
primeira é que a razão pública é bastante apropriada para ser a razão do
tribunal no exercício de seu papel de intérprete judicial supremo, mas não o
de intérprete último da lei mais alta; e a segunda é que o supremo tribunal é
o ramo do estado que serve de caso exemplar de razão pública. 106

A razão pública adquire, então, nos moldes propostos por John Rawls, uma ferramenta
utilíssima para se buscar o que pode ser considerado, ou não, direito fundamental “decorrente
dos princípios ou do regime adotado” pela Constituição (entendida não como um documento
formal, mas sim como uma carta com os melhores ajustes políticos possíveis realizados entre
cidadãos livres e iguais 107 ), no contexto de uma argumentação racional que se pauta na
democracia – e ao mesmo tempo justifica determinadas regras ou condutas estatais.Por isso
mesmo, dedicamo-nos a estudá-la no capítulo que segue, a fim de entendermos suas bases,
contornos e limites. O que estiver fora do âmbito de justificação da razão pública, não poderá
ser considerado afeto à estrutura básica da sociedade e, conseqüentemente, não poderá ser
considerado elemento de justiça básica apto a ser erigido à categoria de direito fundamental,
nem pelos cidadãos e nem mesmo pela Corte Suprema.

106
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 281.
107
“Hence, there will be the need for ‘constitutions’, for ‘rules’, to constraint the behavior of persons, privately
and collectively, and public choice offers the normative understanding necessary to lay down ‘better’ rules”. –
BUCHANAN, James M. Public choice and ideology. In: ______. Politics as public choice. The collected
works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 176.
49

2 A RAZÃO PÚBLICA DE JOHN RAWLS COMO PARADIGMA PARA A


DELIMITAÇÃO DA IMUTABILIDADE NA CONSTITUIÇÃO.

Conforme visto anteriormente, a razão pública não só pode, como se recomenda, ser
utilizada como parâmetro de justificação no contexto da democracia deliberativa.
A razão pública, nos moldes apresentados por John Rawls, está bem sistematizada e
permite o aprofundamento de modo mais pormenorizado do que sua abordagem por outros
autores (dentre os quais, por exemplo, podemos citar Jürgen Habermas 108 ).
Esse procedimento de justificação (o qual, nada obstante se apresentar inicialmente
como um modo de checagem de legitimidade de normas e/ou condutas) carrega alguns
elementos substantivos de justiça, os quais merecem a devida atenção. Além disso, possui
detalhes importantes que a caracterizam como tal – diferenciando-a de outros tipos de
justificativas argumentativas, defendidas por doutrinas abrangentes ou razões não-públicas – e
situam o discurso político público dentro da esfera de deliberação democrática.
Essas peculiaridades da razão pública nos moldes desenvolvidos por Rawls 109 , sua
dupla face de justiça procedimental/substantiva, sua delimitação e campo de ação seguem
pormenorizadas abaixo.

2.1 CONCEITO INICIAL.

108
A propósito, indica-se ROCHLITZ, Rainer (coord.). Habermas – o uso público da razão. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2005. A obra possui diversos artigos nos quais seus autores se debruçam sobre a abordagem
do tema pelo filósofo alemão.
109
“Esse atrelamento da deliberação a princípios de justiça previamente justificados é o aspecto distintivo do
modelo rawlsiano de razão pública”. – SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Consenso constitucional,
neutralidade política e razão pública – elementos de teoria da constituição em Rawls. In: SARMENTO,
Daniel; GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo
Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 196.
50

A idéia de razão pública foi apresentada por John Rawls, pela primeira vez, em sua
obra Liberalismo Político 110 , sendo mais bem desenvolvida em seu ensaio A idéia de razão
pública revista 111 .
Diz Rawls que a idéia de razão pública integra “uma sociedade democrática
constitucionalmente ordenada” 112 , sendo que tanto a forma quanto o conteúdo dessa razão são
parte da própria idéia de democracia, pois uma característica básica da democracia é um
razoável pluralismo, concebido como resultado de uma cultura de instituições livres.
Partindo dessa premissa inicial, Rawls afirma que:

Os cidadãos percebem que não podem chegar a um acordo ou mesmo


aproximar-se da compreensão mútua com base nas suas doutrinas
abrangentes irreconciliáveis. Em vista disso, precisam considerar que tipos
de razões podem oferecer razoavelmente um ao outro quando estão em jogo
perguntas políticas fundamentais. Proponho que, na razão pública, as
doutrinas abrangentes de verdade ou direito sejam substituídas por uma
idéia do politicamente razoável dirigido aos cidadãos como cidadãos 113 .

Assim, a idéia de razão pública rawlsiana pressupõe seu distanciamento substancial


em relação a qualquer doutrina abrangente 114 , não sendo feitas críticas, pela razão pública,
quanto ao conteúdo de nenhuma dessas visões particularistas da realidade, salvo se for
percebida alguma incompatibilidade entre essas visões e os elementos essenciais da razão
pública e de uma sociedade política democrática 115 . Acerca disso, diz Rawls que a exigência

110
RAWLS, J. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, pp. 261 e
ss.
111
Rawls inicia sua Idéia de Razão Pública Revista, afirmando que sua primeira exposição da idéia de razão
pública foi na introdução de sua segunda edição, de 1996, não disponibilizada pela ed. Ática em sua tradução.
Em O Liberalismo Político, ele inicia conceituando a razão pública como “a razão de cidadãos iguais que,
enquanto corpo coletivo, exercem um poder político final e coercitivo uns sobre os outros ao promulgar leis e
emendar sua constituição” (p. 263); porém, mais à frente de sua obra, bem como ao longo de toda a Idéia de
Razão Pública Revista, esse conceito se mostra mais abrangente, abarcando praticamente todo e qualquer ato
estatal onde questões de justiça básica e elementos constitucionais essenciais estão em jogo. A respeito, veja-
se seu conceito resumido em Justiça como Eqüidade – uma reformulação, transcrito mais à frente.
112
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 173.
113
Id. Ibid., p. 174. A respeito, cf. COHEN, Joshua. Democracy and Liberty. In: ELSTER, John (Ed.).
Deliberative Democracy. Cambridge University Press: 1998, p. 195: “Let us say, then, that a consideration is
an acceptable political reason just in case it has the support of the different comprehensive views that might be
endorsed by reasonable citizens”.
114
O autor utiliza a expressão doutrinas abrangentes, referindo-se às várias visões existentes acerca da realidade,
de todos os tipos (religiosa ou não). No entanto, quando houver uma referência ao modo como as pessoas
encaram a política e seus componentes, ele se vale da expressão concepção.
115
Rawls chega a citar exemplos como Europa, EUA, Israel e Índia, onde, apesar de haver divergências quanto
às doutrinas influentes e ativas naquelas democracias, a busca pela idéia adequada de razão pública é um
interesse que confronta todas elas. Cf. O Direito dos Povos. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A
idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 174.
51

básica para uma doutrina considerada razoável, nesse aspecto, é aceitar um regime
democrático constitucional e a idéia de lei legítima que o acompanha 116 .
Logo de início se percebe, portanto, que John Rawls aceita como perfeitamente
plausível (mesmo em uma sociedade onde ocorram divergências básicas quanto aos modos de
vida e das visões acerca das realidades que a compõem) encontrar-se um consenso de posturas
políticas consideradas razoáveis por todo o organismo social, em uma situação de tolerância
política mútua.
Essa tolerância teria profundas raízes morais e políticas, “explicitando”, nos dizeres do
próprio autor, “no nível mais profundo os valores morais e políticos que devem determinar a
relação de um governo democrático constitucional com os seus cidadãos e a relação destes
entre si” 117 . Por isso mesmo Nythamar de Oliveira precisamente resume:

Para Rawls, a razão pública é a razão dos cidadãos de uma sociedade


democrática liberal na medida em que compartilham uma cidadania igual,
qual seja, a igual liberdade de todos por todos reconhecida e almejada,
através de argumentos e critérios que possam ser pública e consensualmente
estabelecidos na elaboração de uma sociedade mais justa. Na medida em que
a razão política é compartilhada por todos, publicamente, pode-se falar de
uma democracia deliberativa, que se mostra como a melhor forma de
governo do povo, pelo povo e para o povo 118 .

Ou, como o próprio Rawls explica sucintamente em Justiça como Eqüidade – uma
reformulação: “em suma, a razão pública é a forma de argumentação apropriada 119 para
cidadãos iguais que, como um corpo coletivo, impõem normas uns aos outros apoiados em
sanções do poder estatal” 120 .

116
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 174. Rawls
afirma mais: aqueles que rejeitam a democracia constitucional com o seu critério de reciprocidade rejeitarão,
naturalmente, a própria idéia de razão pública.
117
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 175. Frise-se
que, não obstante o autor fazer menção à expressão “devem” (que sugere um dever-ser, uma meta, um objetivo
idealístico), ele traça uma nítida diferença entre idéia e ideal de razão pública, exposta separadamente adiante.
118
OLIVEIRA, Nythamar de. Rawls. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 33-34.
119
“O valor das regras e formas do discurso jurídico não se limita à explicação do conceito de argumentação
jurídica racional (e, com isso, de pretensão de correção) e à sua função como critério de correção hipotético.
Contém simultaneamente exigências sobre as argumentações que ocorrem de fato. Nesse sentido, constituem
um critério para a análise das limitações necessárias na busca da decisão jurídica, por exemplo, no processo.
Por isso, deve-se partir das fórmulas expostas, isto é, de que em uma determinada situação estão justificadas
aquelas limitações que, em comparação com outras ou por si mesmas, oferecem uma maior oportunidade ara
alcançar um resultado que também teria sido alcançado sob condições ideais.” – ALEXY, Robert. Teoria da
argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2005,
120
RAWLS, John. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 130.
52

Assim, percebe-se de plano um forte aparato discursivo na razão pública. E nem


poderia ser diferente, porquanto a razão pública surge como forma de coesão social,
justificando racionalmente atos e procedimentos estatais que envolvam questões de justiça e
elementos constitucionais essenciais 121 .

2.2 OS MOTIVOS E AS FORMAS PELOS QUAIS A RAZÃO É PÚBLICA. RAZÕES


NÃO-PÚBLICAS. RAZÃO SECULAR.

Necessário também, no estudo da razão pública de Rawls, explicar quais seriam as


circunstâncias pelas quais a razão pública é efetivamente pública, isto é, o que diferencia os
elementos racionais públicos de uma razão não-pública 122 , destituída dos caracteres
essenciais do discurso político público. São, por assim dizer, os limites de aplicação do
discurso racional público. Como diz o próprio Rawls: “a natureza da razão pública ficará mais
clara se considerarmos as diferenças entre ela e as razões não-públicas. Em primeiro lugar, há
muitas razões não-públicas, mas apenas uma razão pública” 123 .
Em O Liberalismo Político 124 , Rawls se dedica ao tema das razões não-públicas,
porém somente em A Idéia de Razão Pública Revista o autor insere e explica outro elemento
de grande importância para sua leitura, que é a razão secular, vista pouco mais adiante.
A resposta à pergunta sobre a caracterização da razão pública como tal, encontra-se
dividida em dois grandes blocos: o primeiro, referente à presença dos caracteres essenciais da
razão pública; e o segundo, porém não menos importante, relativo às formas, ou maneiras,
pelas quais a razão se torna pública.
Nesse sentido, diz Rawls 125 :

121
A fim de simplificar a exposição, valemo-nos da apresentação resumida feita por Cláudio Pereira de Souza
Neto: “Rawls divide os elementos constitucionais essenciais em dois grupos. Em um primeiro grupo, ele inclui
“os princípios fundamentais que especificam a estrutura geral do Estado e do processo político: as
prerrogativas do legislativo, do executivo e do judiciário; o alcance da regra da maioria”. No segundo grupo,
ele arrola “os direitos e liberdades fundamentais e iguais de cidadania que as maiorias legislativas devem
respeitar, tais como o direito ao voto e à participação na política, a liberdade de consciência, a liberdade de
pensamento e de associação, assim como as garantias do império da lei”. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de.
Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 113.
122
Vale frisar que o termo não-público usado por Rawls não pode ser equiparado a privado, como ele mesmo
bem o disse em nota de rodapé em O liberalismo político, p. 269: “A distinção entre público/não-público não
equivale à distinção entre público e privado. Ignoro a esfera do privado: uma razão privada é coisa que não
existe. O que existe é a razão social – as muitas razões de associações da sociedade que constituem a cultura
de fundo; [...].”
123
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 269.
124
Id. Ibid., pp. 269 e ss (referentes ao § 3).
125
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 175-176.
53

Além disso, tal razão é pública de três maneiras: como razão de cidadãos
livres e iguais, é a razão do público; seu tema é o bem público no que diz
respeito a questões de justiça política fundamental, cujas questões são de
dois tipos, elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica;
e a sua natureza e conteúdo são públicos, sendo expressos no raciocínio
público por uma família de concepções razoáveis de justiça política que se
pense que possa satisfazer o critério de reciprocidade.

Pela simples assertiva acima transcrita de que o tema é o bem público no que diz
respeito a questões de justiça política fundamental, ainda não se consegue obter uma chave
definitiva para a perfeita compreensão da forma pela qual a razão pública efetivamente se
comporta como tal. Isso se verifica, como dito acima, em O Liberalismo Político, recebendo
uma resposta mais completa (mediante a incorporação do elemento de razão secular) em A
Idéia de Razão Pública Revista.
A razão secular, semelhantemente à razão pública, também é efetuada pelos homens,
igualmente em relações políticas, porém não possui a peculiaridade da razão pública. Em
Justiça como eqüidade: uma reformulação, o autor aborda essa segunda espécie de razão,
lecionando:

Devemos distinguir a razão pública daquilo a que às vezes nos referimos


como razão secular e valores seculares. Estes não são os mesmos que a razão
pública. Defino razão secular como o raciocínio em função de doutrinas não-
religiosas abrangentes. Tais doutrinas e valores são amplos demais para
servir aos propósitos da razão pública. Os valores políticos não são doutrinas
morais, por mais disponíveis e acessíveis que possam ser à nossa razão e à
nossa reflexão de senso comum. As doutrinas morais estão no mesmo nível
que a religião e a primeira filosofia 126 .

É interessante verificar que, não obstante a razão secular conter valores políticos e
morais, assim como a razão pública, ela é destituída de um elemento fundamental da razão
pública, que é a concepção política de justiça. Dessa forma, nem todo discurso, por mais que
envolva questões públicas, e por mais discutido que seja em um fórum político público,
poderá ser concebido como uma discussão que envolva razão pública. Isto é, o espaço pode
ser público, o tema pode ser de interesse público 127 ; mas, se o tema não comportar discussões

126
Id. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 188.
127
Aqui concebido como um interesse geral da sociedade.
54

referentes a concepções políticas de justiça básica, a razão envolvida não será pública – no
máximo, secular.
Rawls, em A idéia de razão pública revista, chega a dar um conceito de razão secular
sem aprofundar-se, afirmando apenas como adotado por “alguns” como qualquer argumento
reflexivo e crítico, publicamente inteligível e racional, aplicado em discussões
comportamentais para considerar determinadas condutas como indignas ou degradantes 128 . De
toda forma, o importante é que o autor afirma a razão e os argumentos seculares como fora do
domínio do político 129 . Ou seja, é a razão humana utilizada em discussões não afetas a
questões de justiça básica ou sem a presença de elementos constitucionais essenciais –
próprios da discussão envolvida pela razão pública.
Assim se pode compreender, com maior precisão, o que Rawls afirma:

Entre as razões não-públicas, temos as de todos os tipos de associações: [...].


como já disse, para agir de forma razoável e responsável, os órgãos
coletivos, assim como os indivíduos, precisam de uma forma de
argumentação sobre o que deve ser feito. Essa forma de argumentação é
pública com respeito a seus membros, mas não-pública com respeito à
sociedade política e aos cidadãos em geral. As razões não-públicas
compreendem as muitas razões da sociedade civil e fazem parte daquilo que
chamei de “cultura de fundo”, em contraste com a cultura política pública 130 .

Assim, pode-se verificar que as formas pelas quais a razão pública se manifesta como
tal, são todas aquelas que comportarem os caracteres essenciais de justiça básica e de
elementos constitucionais essenciais:

Rawls does not propose that public reason regulate all debate and decisions;
in order to establish an overlapping consensus, the guidelines of public
reason need only apply to “fundamental matters” – for example,
constitutional essentials and questions of basic justice – and not to “our
personal deliberations and reflections about political questions. 131

O importante é frisar, desde já, que a razão pública, nada obstante se manifestar, nas
mais diferentes culturas, com conteúdos diferenciados, constitui-se dos mesmos elementos

128
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 195.
129
Como político aqui, entenda-se político público. Pois, como o próprio Rawls afirma em diversas passagens,
mesmo questões legislativas (com conteúdo nitidamente político) podem escapar da razão pública. Nesse
sentido, v.g., veja-se O liberalismo político, p. 263.
130
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 269.
131
YOUNG, Shaun P. Divide and Conquer: separating the reasonable from the unreasonable, in Journal of
Social Philosophy, vol. 32, no. 1, Spring 2001, p. 60. 2001: Blackwell Publishers.
55

formais (ou seja, tratará sempre de questões fundamentais da justiça) – caso contrário, ela
jamais poderá ser caracterizada como pública, por assim dizer.

2.3 RAZÃO PÚBLICA. IDEAL DE RAZÃO PÚBLICA. A NOÇÃO DO DEVER DE


CIVILIDADE.

Importante destacar desde já, a fim de facilitar a compreensão do tema, que a razão
pública diferencia-se nitidamente do ideal de razão pública.
Apesar de a razão pública ser carregada por um constante “dever-ser”, no sentido de
indicação de quais atitudes estatais sejam consideradas razoáveis pela sociedade como um
todo, ela possui uma função objetiva, de modos de agir. Ou seja: segundo a razão pública,
combater a corrupção é uma atitude legítima e razoável a ser tomada por dirigentes estatais.
O ideal de razão pública, por sua vez, é uma meta subjetiva que envolve o efetivo
cumprimento dos modos de agir considerados razoáveis pela razão pública. Ou seja: se o
Presidente da República combate a corrupção, ele está materializando o ideal de razão
pública, à medida que atende ao determinado pela razão pública. Nas palavras do próprio
Rawls:

Esse ideal é concretizado, ou satisfeito, sempre que os juízes, legisladores,


executivos principais e outros funcionários do governo, assim como
candidatos a cargo público, atuam a partir da idéia de razão pública, a
seguem e explicam a outros cidadãos suas razões para sustentar posições
políticas fundamentais em função da concepção política de justiça que
considerarem mais razoável. Dessa maneira, satisfazem o que chamarei o
seu dever de civilidade mútua e para com outros cidadãos. Portanto, se os
juízes, legisladores e principais executivos atuam pela razão pública e a
seguem, isso se mostra continuamente no seu discurso e na sua conduta em
uma base cotidiana 132 .

Dessa forma, idéia e ideal de razão pública se relacionam, grosse mode, igualmente à
relação entre uma norma abstrata e uma conduta concreta que se lhe subsuma.
Outro aspecto interessante do ideal de razão pública é que, ao invés de ser concebido
como um apanhado de condutas consentidas como razoáveis pelas pessoas (onde se enquadra
a razão pública), o ideal se aproxima muito da noção de internalização de valores proposta

132
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 178.
56

por outros autores, como, por exemplo, Parsons. Nesse sentido, Rawls, respondendo a uma
pergunta que ele mesmo se questiona, afirma o seguinte:

Como o ideal de razão pública é concretizado pelos cidadãos que não são
funcionários do governo? (…) Para responder a essa pergunta, dizemos que,
idealmente, os cidadãos devem pensar em si mesmos como se fossem
legisladores, e perguntar a si mesmos quais estatutos, sustentados por quais
razões satisfaçam o critério de reciprocidade, pensariam ser mais razoável
decretar. Quando firme e difundida, a disposição dos cidadãos para se
verem como legisladores ideais e repudiar os funcionários e candidatos a
cargo público que violem a razão pública é uma das raízes políticas e
sociais da democracia, e é vital para que permaneça forte e vigorosa. Assim,
os cidadãos cumprem o seu dever de civilidade e sustentam a idéia de razão
pública fazendo o que podem para que os funcionários do governo
mantenham-se fiéis a ela 133 .

O dever de civilidade, dessa forma, mostra-se um consectário do ideal de razão


pública, adquirindo três características básicas: sua satisfação sempre que o ideal de razão
pública fosse cumprido; sua função de apoiar a razão pública; e a possibilidade que ambos
(dever de civilidade e ideal de razão pública) possuem de serem concretizados também por
particulares, e não somente pelo Estado.
A primeira característica sugere uma ligação constante entre o cumprimento do dever
de civilidade e a concretização do ideal de razão pública – e inclusive vai mais além, servindo
como uma das formas de justificativa pelas quais não se podem utilizar doutrinas abrangentes
no fórum político público:

O requisito da “reciprocidade” leva, assim, à compreensão da relação


política no âmbito de uma democracia constitucional como uma relação de
“amizade cívica”. A razão pública constitui um dever de civilidade que é
frontalmente divergente da racionalidade instrumental que tem lugar em
uma concepção agregativa de democracia. Ela implica justamente o diálogo
sobre as questões políticas fundamentais tendo em vista o bem comum e
não a mera agregação de interesses privados.
Daí se deriva a impossibilidade de se recorrer, na deliberação pública, a
doutrinas abrangentes. Argumentos particularistas não exibem o potencial
de serem aceitos pelos que professam outras doutrinas. Em sociedades
marcadas pelo pluralismo, como são as sociedades ocidentais
contemporâneas, as decisões estatais, quando dizem respeito a questões
constitucionais essenciais, só podem ser justificadas diante de todos se tal

133
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 178-179.
57

justificação se restringir ao campo do político, como prescreve a razão


pública. 134

Isso faz todo o sentido, pois o ideal de razão pública simboliza a concretização dos
valores contidos na razão pública. E, a partir do instante em que a razão pública abarca o
consenso político básico de uma sociedade constitucional bem ordenada (isto é, civilizada), o
dever de civilidade representa uma das características do ideal de razão pública – por ser uma
meta subjetiva, somente observável na adoção concreta de determinadas condutas.
Além disso, a função de apoio à razão pública existente no cumprimento do dever de
civilidade também se faz digna de nota, pois o dever de civilidade representa, em última
análise, o dever de cumprimento dos requisitos de uma determinada sociedade que
fundamenta sua existência em determinados valores e, portanto, reconhece-se como civilizada
a partir deles. Isso sugere um sistema de retroalimentação, segundo o qual as práticas
reiteradas de determinadas condutas tendem a ser cada vez mais assimiladas e difundidas
pelos integrantes da sociedade, reforçando, efetivamente, no campo político, um consenso
básico sobre posturas a serem seguidas (ou ao menos perseguidas) pelos demais. Isso se
mostra tão presente, que Rawls direciona a questão para a legitimação até mesmo do exercício
dos direitos políticos:

[...] o liberalismo político responde dizendo que nosso exercício do poder


político é próprio e, por isso, justificável somente quando é exercido de
acordo com uma constituição cujos elementos essenciais se pode
razoavelmente esperar que todos os cidadãos endossem, à luz de princípios e
ideais aceitáveis para eles, enquanto razoáveis e racionais. Esse é o princípio
liberal da legitimidade. E, como o exercício do poder político deve ser
legítimo, o ideal de cidadania impõe o dever moral (e não legal) – o dever de
civilidade – de ser capaz de, no tocante a essas questões fundamentais,
explicar aos outros de que maneira os princípios e políticas que se defende e
nos quais se vota podem ser sustentados pelos valores políticos da razão
pública. Esse dever também implica a disposição de ouvir os outros, e uma
equanimidade para decidir quando é razoável que se façam ajustes para
conciliar os próprios pontos de vista com os de outros 135 .

Conseqüentemente, vale destacar o forte aspecto moral existente no dever de


civilidade (e também, logicamente, no ideal de razão pública), por ser um dever político –

134
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, pp. 117-118.
135
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 266.
58

mas não jurídico. O próprio Rawls o afirma 136 , no sentido de que uma visão jurídica do dever
de civilidade (o que se estende, por óbvio, ao ideal de razão pública e mesmo à própria razão
pública) seria incompatível com a liberdade do discurso 137 .

2.4 CARACTERES ESTRUTURAIS DA RAZÃO PÚBLICA.

A razão pública, nos moldes apresentados por John Rawls, possui aspectos básicos e
indissociáveis, sob pena de se desnaturá-la ou considerá-la inviável. São eles:

a) as questões políticas fundamentais às quais se aplica;


b) as pessoas a quem se aplica;
c) seu conteúdo como dado por uma família de concepções políticas razoáveis de
justiça;
d) a aplicação dessas concepções em discussões de normas coercitivas a serem
decretadas na forma de lei legítima para um povo democrático;
e) a verificação, pelos cidadãos, de que os princípios derivados das suas concepções
de justiça satisfazem o critério de reciprocidade.

O estudo do tema pede – nada obstante a brevidade com que Rawls permeia esses
aspectos – um detalhamento de cada um dos componentes acima.

2.4.1 As questões políticas fundamentais às quais se aplica a idéia de razão pública.

Ao delimitar as questões políticas às quais se pode aplicar a idéia de razão pública,


Rawls traça uma distinção entre algumas questões tipicamente públicas (o que ele denomina
fórum político público) e aquelas particulares discutidas na esfera pública (o que ele chama de
cultura de fundo).
Nesse sentido, diz Rawls que:

136
Veja-se acima, a equiparação do dever de civilidade a um dever moral, além da ênfase feita em sua Idéia de
Razão Pública Revista.
137
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 179.
59

É imperativo perceber que a idéia de razão pública não se aplica a todas as


discussões políticas de questões fundamentais, mas apenas às discussões
das questões naquilo a que me refiro como fórum político público. Esse
fórum pode ser dividido em três partes: o discurso dos juízes nas suas
discussões, e especialmente dos juízes de um tribunal supremo; o discurso
dos funcionários de governo, especialmente executivos e legisladores
principais, e finalmente o discurso de candidatos a cargo público e de seus
chefes de campanha, especialmente no discurso público, nas plataformas de
campanha e declarações políticas. [...]
Distinta e separada desse fórum político público tripartite está o que chamo
cultura de fundo. É a cultura da sociedade civil. Em uma democracia, essa
cultura não é, naturalmente, guiada por nenhuma idéia ou princípio central,
político ou religioso. Os seus muitos e diversos agentes e associações, com
a sua vida interna, residem em uma estrutura de Direito que assegura as
conhecidas liberdades de pensamento e discurso e o direito de livre
associação. A idéia de razão pública não se aplica à cultura de fundo, com
as suas muitas formas de razão não-pública, nem aos meios de comunicação
de qualquer tipo 138 .

Esse limite é crucial para o desenvolvimento da teoria rawlsiana: somente alguns


discursos feitos por agentes estatais se subsumem aos valores contidos na idéia de razão
pública. Tais discursos são essencialmente importantes, porque norteiam as atitudes tomadas
por qualquer Estado que se diga Democrático de Direito. Isso porque, nessa organização, o
Estado e seus agentes devem fundamentar, mediante discurso racionalmente fundamentado,
toda e qualquer conduta adotada – e é justamente sobre esse discurso que recairá a análise
quanto ao cumprimento, ou não, da razão pública. E mesmo entre os discursos acima, a cada
um deles a razão pública será aplicada de modos diferentes, repercutindo de formas também
diversas.
Afora esses discursos, as demais discussões não se podem submeter à idéia de razão
pública, exatamente porque não se trata de discurso público propriamente dito, mas sim de
questões culturais sociais, resultantes das experiências de todas as pessoas da sociedade. Veja-
se, a propósito, a seguinte digressão:

Os valores políticos da razão pública são distintos de outros valores no


sentido de que são concretizados em instituições políticas e as caracterizam.
Isso não quer dizer que valores análogos não possam caracterizar outras
formas sociais. Os valores da eficácia e da eficiência podem caracterizar a
organização social de equipes e clubes, assim como as instituições políticas
da estrutura básica da sociedade 139 . Mas um valor é adequadamente político
apenas quando a forma social é, ela própria, política: quando é concretizada,

138
Id. Ibid., pp. 176-177.
139
“Por definição, a estrutura básica é o sistema social global que determina a justiça do contexto social”. A
estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 21.
60

digamos, em partes da estrutura básica e das suas instituições políticas e


sociais. [...] Nós, porém, estamos interessados apenas nas concepções
políticas que são razoáveis para um regime democrático constitucional e,
como deixam claro os parágrafos precedentes, esses são os ideais e
princípios expressos pelas concepções políticas liberais razoáveis 140 .

Uma vez localizada fora da esfera pública, a razão pública não se lhes aplica. Chega a
ser indesejado, nos casos não relacionados ao âmbito de imparcialidade política, que a razão
pública seja utilizada.

The presence of non-publicness, along any dimension, is the element that


modifies dramatically the normative implications drawn from analysis of
majority decision making. To the extent that persons in a minority can be
coerced by a dominant majority to take actions privately that are not also
required for the members of the majority, the working of majoritarian
processes may introduce consequences that are not preferred in a rational
constitutional calculus, even by those who fully recognize that
collectivization of a genuine publicness interaction might generate gains to
all its parties. Only if some requirement for generality in treatment is
constituionally enforced can it be predicted that majoritarian processes will
work to increase rather than decrease social value 141 .

Vale destacar, nesse caso, o modo como Rawls concebe a esfera das discussões
culturais sociais (palco de contato, sobreposição e dissenso entre diversas experiências
pessoais), à parte das discussões políticas centrais (onde se pode aplicar um apanhado de
valores socialmente consentidos, reunidos na idéia de razão pública), e especialmente a
diferença entre a sua abordagem e a de Habermas sobre o mesmo tema.
No primeiro volume de sua obra Direito e Democracia: entre facticidade e validade,
Habermas não faz uma distinção desse tipo, abordando, sob a óptica do agir comunicativo,
todas as ações adotadas pelo Estado e pelos particulares, uns com os outros. Sua teoria não
distingue substancialmente aquilo que seria politicamente central ou não, apenas se referindo
ao mundo da vida.
Dessa forma, Habermas conceberia as discussões de idéias não-públicas (culturais de
fundo, segundo Rawls) na esfera pública, o que chegaria a justificar, de certa forma, o que
Zygmunt Bauman chama de “colonização do espaço público pelo privado”, com a
transformação do fórum público no palco para discussões de problemas privados de pessoas

140
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 190.
141
BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as
public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, pp. 101-
102.
61

públicas 142 . Tudo, para ele, seria uma questão de mundo da vida, podendo no máximo se
remeter a um subsistema jurídico ou outro qualquer, de acordo com o código especializado.
O próprio Rawls percebeu isso, chegando a fazer uma menção a Habermas, quando
sugere comparar suas divisões com a descrição feita pelo autor alemão sobre a esfera
pública 143 .
John Rawls chega ainda a traçar uma terceira esfera de cultura, que seria a cultura
política não-pública, responsável pela intermediação entre a cultura política pública (presente
no fórum político público) e a cultura de fundo. Pouco relevante para o presente trabalho,
apenas nos remeteremos à nota de rodapé em que o autor qualifica essa esfera intermediária
entre as culturas políticas pública e de fundo, como os “adequadamente denominados meios
de comunicação de todos os tipos: jornais e revistas, televisão e rádio, e muito mais” 144 .

2.4.2 As pessoas a quem a idéia de razão pública se aplica.

É muito interessante observar a preocupação de Rawls em frisar que a idéia de razão


pública se dirige somente a funcionários do governo, candidatos a cargo público e instituições
sociais públicas básicas, sendo explícito, em mais de uma passagem, nesse destaque 145 .
Essa preocupação merece uma análise um pouco mais aprofundada, pois, malgrado
haver essa limitação da idéia de razão pública às ações e relações entre Estado, seus agentes,
instituições públicas sociais basilares e particulares, existem dois conceitos intimamente
ligados à idéia de razão pública, que podem ser concretizados pelos particulares: são o ideal
de razão pública e o dever de civilidade, já explicados nas linhas anteriores.
É de se perguntar, já que razão pública, ideal de razão pública e dever de civilidade
são tão ligados, por que somente a razão pública, em si, não pode ser atendida pelos
particulares, enquanto que os demais, sim – especialmente ao afirmar Rawls que a família
pode ser objeto de aplicação da razão pública 146 . A resposta é muito simples.
O ideal de razão pública, como já visto antes, constitui uma meta subjetiva de
atendimento aos valores objetivamente contidos na razão pública, sendo o dever de civilidade

142
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. São Paulo: Jorge Zahar, 2001, p.
46.
143
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 177.
144
Id. Ibid., p. 177.
145
Id. Ibid., pp. 174, 175 e 207.
146
Id. Ibid., p. 207.
62

um de seus vieses. Dessa forma, o ideal de razão pública pode ser atingido por um particular,
desde que este o faça com a finalidade de assegurar que o Estado adote os valores contidos na
razão pública; conseqüentemente, seu dever de civilidade restará plenamente satisfeito,
porquanto este particular efetivamente cumpriu com seu dever de proteger a razão pública.
Nesse sentido, veja-se a seguinte afirmação de Rawls:

Um cidadão participa da razão pública, então, quando delibera no contexto


do que considera sinceramente como a concepção de justiça mais razoável,
uma concepção que expresse valores políticos dos quais também possamos
pensar razoavelmente que outros cidadãos, como livres e iguais, poderiam
endossar 147 .

Note-se que Rawls se refere à participação do cidadão na razão pública, e não ao


atendimento à razão pública. Ou seja, ao cidadão cabe construir a razão pública, mediante
diversos critérios e valores, e não obedecer a ela – função que é dada ao Estado e seus
funcionários.
Poder-se-ia perguntar, todavia, se a proteção da razão pública não seria um
mandamento objetivo da própria idéia de razão pública, voltado especificamente para os
particulares – o que contrariaria a noção rawlsiana de que somente o Estado e seus agentes
são destinatários dos valores insertos na razão pública.
No entanto, veja-se que proteger é um mandamento subjetivo, que somente se
concretiza mediante condutas concretas – ou seja, a proteção da razão pública não é um valor
objetivo que se enquadra nela própria, auto-referenciada e quase autopoiética, mas sim uma
meta subjetiva, a qual, por isso mesmo, somente pode ser considerada integrante do ideal de
razão pública. Não se pode confundir os dois.
Logo, não se pode afirmar a ocorrência de um erro material na concepção teórica de
razão pública, pois a divisão entre valores objetivos e metas subjetivas, respectivamente, nos
conceitos de razão pública e seu ideal, impede isso.
Por outro lado, a incorporação da instituição familiar como objeto de aplicação da
idéia de razão pública (a princípio questionável) se explica pelo caráter de base social que ela
assume.
Inicialmente pode-se considerar ilógico, ante a visão exposta logo acima, que a família
– um mero agrupamento de cidadãos comuns – se sujeite à idéia de razão pública. Afinal de
contas, Rawls negou haver sujeição das relações intersubjetivas entre particulares à razão

147
Id. Ibid., p. 185.
63

pública, referindo-se apenas a uma participação dos cidadãos na construção desses valores e
ao reconhecimento, a partir dessa participação e do uso de determinados critérios, das normas
regulamentares de suas relações como legítimas.
Contudo, ocorre que, nos dizeres de Rawls, “a família é parte da estrutura básica, visto
que um dos seus papéis principais é ser a base da produção e reprodução ordenadas da
sociedade e da sua cultura de uma geração para outra” 148 .
Assim, enquanto estrutura básica da sociedade, a família é alvo da razão pública, em
sua constituição e características mais essenciais. Tal aplicação da razão pública não recairá
(por motivos já vistos) sobre os indivíduos da família, porém sobre a família como um todo,
pois “os princípios da justiça política devem aplicar-se diretamente a essa estrutura [social],
mas não devem aplicar-se diretamente à vida interna das muitas associações dentro dela, a
família dentre outras” 149 .
Isto significa, portanto, que as pessoas adquirem na família, tal como nas demais
instituições políticas públicas, uma dupla acepção de pessoa/cidadão e membro, cada uma das
quais se relacionando diferentemente com a razão pública, tendo seus desdobramentos
respectivos:

Colocando o caso de outra maneira, distinguimos entre o ponto de vista das


pessoas como cidadãos e o seu ponto de vista como membros de famílias e
muitas outras associações. Como cidadãos, temos razões para impor as
restrições especificadas pelos princípios políticos de justiça às associações,
ao passo que, como membros de associações, temos razões para limitar
essas restrições para que deixem espaço a uma vida livre e florescente,
adequada à associação em questão. 150

Via de conseqüência, tem-se, de um modo geral, que os destinatários da razão pública,


ou seja, aquelas pessoas às quais se aplica a razão pública, somente podem ser o Estado e seus
agentes, no exercício de funções públicas, ou candidatos a cargos públicos, bem como todas
as instituições básicas de uma dada sociedade.

2.4.3 O conteúdo da razão pública, como dado por uma família de concepções políticas
razoáveis de justiça.
148
Id. Ibid., p. 206.
149
Id. Ibid., p. 208.
150
Id. Ibid., p. 209. Para o caso de quais questionamentos poderiam ser levados a cabo na família, veja-se
também de Rawls as pp. 206 e ss, em que o autor coloca na berlinda temas como a igualdade entre maridos e
esposas, os limites da ingerência sobre os filhos, a questão da união homossexual, dentre outras – sempre
refletindo a aplicação dos valores contidos na idéia de razão pública à instituição familiar.
64

Rawls pretende estabelecer uma apresentação da razão pública não somente como uma
forma de se conceituar formalmente determinados valores como públicos, em uma dada
sociedade. A razão pública possui efetivamente um conteúdo, que aponta para concepções
razoáveis de justiça.
Decerto que cada sociedade, com sua história, sua cultura, suas experiências e
peculiaridades conterá um determinado senso de justiça, considerado razoável por seus
cidadãos, motivo pelo qual o autor leciona:

Assim, o conteúdo da razão pública é dado por uma família de concepções


políticas de justiça, não por uma única. Há muitos liberalismos e visões
relacionadas e, portanto, muitas formas de razão pública manifestadas numa
família de concepções razoáveis. [...]
Cada um desses liberalismos endossa as idéias subjacentes dos cidadãos
como pessoas livres e iguais, e da sociedade como um sistema justo de
cooperação ao longo do tempo. Contudo, como essas idéias podem ser
interpretadas de várias maneiras, há formulações diferentes dos princípios
de justiça e conteúdos diferentes da razão pública. As concepções políticas
também diferem no modo como ordenam ou equilibram princípios e valores
políticos, mesmo quando os explicitam 151 .

Conseqüentemente, a razão pública se apresenta como relativamente flexível para cada


sociedade, e mesmo para cada época de uma mesma sociedade, desde que ela esteja imersa
em um regime democrático constitucional que preconize a igualdade entre seus membros,
como afirma o próprio Rawls:

A idéia de razão pública origina-se de uma concepção de cidadania


democrática numa democracia constitucional. Essa relação política
fundamental da cidadania tem duas características especiais: primeiro, é
uma relação de cidadãos com a estrutura básica da sociedade, uma estrutura
em que entramos apenas pelo nascimento e da qual saímos apenas pela
morte; segundo, é uma relação de cidadãos livres e iguais, que exercem o
poder político último como corpo coletivo 152 .

Essa necessidade que Rawls aponta de os homens se relacionarem em um patamar de


igualdade se mostra de grande relevância para que possa aflorar a razão pública. Isso porque,
acaso não ocorresse uma relação paritária entre os indivíduos, não seria possível dizer-se que

151
Id. Ibid., pp. 185-186.
152
Id. Ibid., p. 179.
65

haveria uma razão pública, por assim dizer, mas sim uma razão prevalecente, a despeito das
opiniões e valores dos demais habitantes.
Soma-se a isso o caráter de identificação dos indivíduos com a razão pública: seria
inviável conceber a assimilação, por todos e por cada um, dos valores contidos na idéia de
razão pública, se ela representasse apenas a imposição de um grupo dominante. Ao contrário,
a construção dessa razão com base nos valores obtidos por todos, em uma relação de
igualdade, é condição precípua para a idéia de razão pública 153 .
Segue-se, daí, um questionamento formulado e respondido pelo próprio Rawls:

Essas duas características originam imediatamente a questão de como,


quando os elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica
estão em jogo, os cidadãos assim relacionados podem ser obrigados a
honrar a estrutura do seu regime democrático constitucional e aquiescer aos
estatutos e leis decretados sob ele. O fato do pluralismo razoável suscita
essa questão ainda mais agudamente, pois significa que as diferenças entre
os cidadãos, decorrentes das suas doutrinas abrangentes, religiosas e não-
religiosas, podem ser irreconciliáveis. Por quais ideais e princípios, então,
os cidadãos que compartilham igualmente o poder político último devem
exercer esse poder para que cada um possa justificar razoavelmente as suas
decisões políticas para todos? 154

É daí que Rawls extrai, como resposta, a assimilação das normas como legítimas, que
vem a ocorrer com a internalização dos valores – a qual se faz acompanhar, por sua vez, de
um raciocínio reflexivo, denominado por ele de critério de reciprocidade.
Diz ele que os próprios cidadãos são considerados razoáveis quando se percebem
como iguais entre si em um sistema de cooperação social contínua, “ao longo de gerações”155 ,
preparando-se para oferecerem-se mutuamente termos justos de cooperação segundo o que
considerem ser a concepção mais razoável de justiça política. Mais do que simplesmente uma
cooperação, todavia (que sugere uma associação apenas para benefício dos cidadãos
envolvidos em uma determinada relação), Rawls afirma ser necessário que os cidadãos
concordem incondicionalmente em agir segundo aqueles termos de justiça, ainda que em
detrimento de seus interesses particulares, desde que os demais cidadãos aceitem esses
mesmos termos.

153
Veja-se, a respeito, o comentário feito por Rawls ao abordar o critério de reciprocidade. Além disso, se
estamos diante de um pressuposto teórico de uma democracia moderna, presume-se haver igualdade (não
apenas formal) entre os seus concidadãos.
154
Id. Ibid., p. 179.
155
Id. Ibid., p. 180.
66

Com isso, percebe-se como necessária uma efetiva solidariedade social, no sentido de
que a cooperação mútua prevalece sobre os interesses individuais, sendo possível mesmo que
uma pessoa aceite sair prejudicada em benefício da coletividade, desde que esse prejuízo seja
racionalmente considerado justo e se perceba que os demais cidadãos também se submeteriam
ao mesmo prejuízo, em situação semelhante.
Daí se vê claramente, portanto, que a internalização dos valores como condição para a
aceitabilidade das normas e o critério de reciprocidade, expostos a seguir, são não somente
respostas ao questionamento de viabilidade da razão pública, mas também representam
complementos e fecham a estrutura básica para a concepção da idéia proposta por John
Rawls.

2.4.4 A aplicação das concepções razoáveis de justiça em discussões de normas coercitivas a


serem decretadas na forma de lei legítima para um povo democrático.

A internalização dos valores pelos cidadãos é, para Rawls, fundamental para que a
idéia de razão pública se desenvolva concretamente e para que o sistema jurídico atenda a
essa mesma razão.
Apesar de não fazer menção aos autores que abordam essa assimilação dos valores
contidos nas normas como condição de aceitabilidade e manutenção do ordenamento jurídico,
Rawls os acompanha fielmente, utilizando-se até mesmo do método de projeção mental da
posição original para que os cidadãos se imaginem como criadores das normas e se
identifiquem com o resultado de sua imaginativa produção normativa 156 .
Diz ele, então, que o reconhecimento da norma legítima, portanto, somente pode
ocorrer no preenchimento de dois requisitos. O primeiro deles é que os funcionários
governamentais adequados (onde se pode entender os legisladores) obedeçam aos valores
contidos na idéia de razão pública. E o segundo, logicamente, é o teste empírico do
atendimento a esses valores, mediante a projeção mental feita pelos cidadãos:

156
A respeito, realçamos James Buchanan, contemporâneo de Rawls (ainda que numa vertente teórica mais
economicista), para quem “Uncertainty about just where one’s own interest will lie in a sequence of plays or
rounds of play will lead a rational person, from his own interest, to prefer rules or arrangements or
constitutions that will seem to be ‘fair’, no matter what final positions he might occupy”. – BUCHANAN,
James M. From private preferences to public philosophy: the development of public choice. In: ______.
Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000,
p. 46. Buchanan realça, dentre os autores que serviriam de base à teoria de Rawls, Adam Smith, David Hume
(apesar de Rawls afirmar sua ruptura com o utilitarismo) e os federalistas americanos. Id. Ibid., p. 54.
67

Assim, quando numa questão constitucional essencial, ou numa questão de


justiça básica, todos os funcionários governamentais adequados atuam a
partir da razão pública e a seguem, e quando todos os cidadãos razoáveis
pensam em si mesmos idealmente, como se fossem legisladores segundo a
razão pública, a disposição jurídica que expressa a opinião da maioria é lei
legítima. Pode não parecer a cada um como a lei mais razoável ou mais
adequada, mas é politicamente (moralmente) obrigatória para cada cidadão
e deve ser aceita como tal. Cada um pensa que todos falaram e votaram pelo
menos razoavelmente e, portanto, que todos seguiram a razão pública e
honraram o seu dever de civilidade 157 .

Daí se percebe, também, que deve haver uma pressuposição de que os legisladores
fizeram corretamente o seu trabalho, o que decerto envolve uma relação de confiança legítima
das pessoas com relação ao poder legislativo. Dessa forma, ainda que Rawls não se refira
expressamente a isso, para que a razão pública seja de fato exercida, é estritamente necessária
a confiança dos cidadãos nas leis, fazendo presumir sua legitimidade.
De todo modo, percebe-se que a aceitação da lei como legítima conduz
necessariamente à assimilação, porJ0.000.043o ár1o aDpú 0 Tc sr0Od(cval que Tw tid7a dos n615 9
68

concentram muito mais fortemente as questões políticas centrais a que Rawls se refere 161 . Ele
mesmo que “para serem razoáveis, as concepções políticas devem justificar apenas
constituições que satisfaçam esse princípio” 162 (o que significa que, quando a constituição não
possa mais ser justificada segundo a razoabilidade contida nos valores da razão pública, ela
deve ser repensada).

2.4.5 A verificação, pelos cidadãos, de que os princípios derivados das suas concepções de
justiça satisfazem o critério de reciprocidade.

Aqui, Rawls é ainda mais explícito em sua busca por uma solidariedade social como
base para a razão pública, referindo-se mesmo a uma “amizade cívica” como necessária para
sua teoria. Altamente didático nesse ponto, ele dispensa maiores comentários:

Para tornar mais explícito o papel do critério de reciprocidade como


expresso na razão pública, note que o seu papel é especificar a natureza da
relação política num regime democrático constitucional como uma relação
de amizade cívica. Pois esse critério, quando funcionários do governo
atuam a partir dele e outros cidadãos o apóiam, dá forma às suas instituições
fundamentais 163 .

Ratificando seu entendimento, Rawls reforça sua idéia de solidariedade na razão


pública, ao assumir que o critério de reciprocidade normalmente é violado sempre que as
liberdades básicas são violadas 164 .
O fato é que a reciprocidade, nos moldes como concebida por John Rawls, exige a
igualdade de condições entre os indivíduos 165 e não pode ser operacionalizada se, de fato,
inexistir uma planificação política entre os cidadãos 166 .

161
E, na verdade, segundo correntes teóricas contemporâneas, a Constituição deve ser entendida somente como
esse núcleo que aborda elementos estruturais do Estado e da sociedade. Nesse sentido, cf., dentre outros, Oscar
Vilhena de Vieira, bem como a discussão desenvolvida no capítulo 1.
162
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 181.
163
Id. Ibid., p. 181.
164
Id. Ibid., p. 182.
165
Realçando o efeito da reciprocidade sobre a participação na deliberação democrática pelos cidadãos,
Buchanan aduz que “[...] the polity, the state, seems to lay claim to all values held by its citizens, and,
particularly, this putative claim is held to be ‘legitimate’ if all citizens are somehow allowed access to equal
voices in the ultimate determination of state decisions”. – BUCHANAN, James M. Notes on politics as process.
In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v.
13, 2000, p. 74.
166
Tomou-se o cuidado de frisar o caráter político dessa igualdade, porquanto, numa sociedade capitalista onde a
lógica é de exclusão/inclusão social, nunca haverá igualdade econômica plena. Além disso, em diversas
69

Tanto assim, que o próprio autor diz:

O critério de reciprocidade exige que, quando esses termos 167 são propostos
como os termos de cooperação justa mais razoáveis, quem os propõe pense
também que é ao menos razoável que os outros os aceitem como cidadãos
livres e iguais 168 , não dominados, nem manipulados ou sob a pressão de
uma posição política ou social inferior 169 .

Assim, vê-se que o critério de reciprocidade é imprescindível para a concepção das


normas – e mesmo dos valores contidos na razão pública – como politicamente legítimas, o
que reforça e completa a estrutura necessária para a razão pública. A legitimidade do direito,
portanto, localiza-se na teoria rawlsiana ao mesmo tempo como pilar e resultado de um
regime social democrático que valorize a igualdade entre os cidadãos, como apontado no
início de nossa explanação.
A questão da planificação política passa, necessariamente, por um outro requisito não
explicitado por Rawls, mas sugerido por ele, quando trata da democracia deliberativa: é a
necessária instrução, ou seja, educação dos cidadãos.
Claro é que não existe uma sociedade planificada politicamente, acaso existam
cidadãos pouco ou nada esclarecidos politicamente – o que passa necessariamente por uma
educação de qualidade. No entanto, Rawls frisa essa necessidade, chegando a afirmar quanto
à impossibilidade da adoção de medidas cruciais pelos governantes, acaso os destinatários
dessas medidas não estivessem devidamente clarificados quanto ao problema e seus efeitos:

A democracia deliberativa também reconhece que, sem instrução ampla


sobre os aspectos básicos do governo democrático para todos os cidadãos, e
sem um público informado a respeito de problemas prementes, decisões
políticas e sociais cruciais simplesmente não poderiam ser tomadas. Mesmo
que líderes políticos previdentes desejassem fazer mudanças e reformas

passagens o próprio Rawls identifica a razão pública como sendo puramente política, não contemplando outras
“doutrinas abrangentes” – as quais, como visto, englobam caracteres filosóficos e religiosos. Por exemplo,
recomenda-se a leitura da nota de rodapé constante de A idéia de razão pública revista, p. 180.
167
Termos de justiça política.
168
“[…] the Kantian hypothesis states that when behavior is recognized to affect others, these effects will be
taken into account and behavior adjusted as appropriate. The interests of others than the actor are included,
however, not out of ‘love’ as in the Christian ethic, but out of a form of enlightened self-interest which is based
on a generalized recognition of the reciprocity of social interaction”. – BUCHANAN, James M. Toward analysis
of closed behavioral systems. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan,
Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 35.
169
Id. Ibid., p. 180.
70

sensatas, não poderiam convencer um público mal informado e descrente a


aceitá-las e segui-las 170 .

Isso é relativamente simples de se perceber e aponta para uma lógica: não seria
possível conceber uma razão pública, se o público não conhece a estrutura do processo
democrático, não conhece a magnitude dos problemas, não sabe quais os impactos das
propostas de solução para esses problemas – enfim, não sabe desenvolver um raciocínio
público, uma razão pública por assim dizer.
Daí se percebe que a razão pública só é concretamente viável de ser desenvolvida
quando a sociedade, como um todo, for politicamente consciente. Somente assim será
possível todo o percurso sugerido por John Rawls, cuja teoria, ainda que aceitando eventuais
divergências políticas entre as pessoas, exige que esses cidadãos raciocinem politicamente, a
ponto de enxergarem-se como legisladores e considerarem racionalmente a validade
normativa, bem como de enxergarem-se mutuamente como razoáveis e racionais 171 – o que,
numa sociedade educacional e informacionalmente desigual, é inviável.
Sem raciocínio político, portanto, a sociedade se torna irracional publicamente, não se
podendo aplicar qualquer idéia de razão pública – sendo, conseqüentemente, inviável
qualquer modo efetivo de democracia 172 –, porquanto inapta para avaliar o que seja ou não
racional, o que seja ou não justo, de fato.
Uma vez estudada a estrutura básica da idéia de razão pública, necessária se faz a
análise do conteúdo dessa mesma idéia – o que se faz logo adiante.

2.5 O CONTEÚDO DA RAZÃO PÚBLICA, OBJETIVAMENTE.

170
Id. Ibid., p. 184. A abordagem de Rawls sobre o acesso à educação é extremamente interessante e parece
mesmo ter sido direcionada para a realidade brasileira atual, pois logo em seguida ele dá como exemplo uma
proposta de reforma da previdência, que jamais poderia ser considerada válida por uma população pouco
esclarecida, fechando com a seguinte frase: “Na busca constante de dinheiro para financiar campanhas, o
sistema político é simplesmente incapaz de funcionar. Seus poderes deliberativos estão paralisados.” (Id. Ibid.,
p. 185).
171
Eis aqui uma outra conotação para o critério de reciprocidade dado por Rawls, porém ao qual ele mesmo não
se dedicou a desenvolver.
172
“Para um cristão moderno (diz Alberto Begum) a opção entre os regimes políticos ou os sistemas econômicos
e sociais obedece – antes de tudo – à vontade de respeitar em cada homem sua plena dignidade de pessoa, cujo
primeiro direito é o de Ver Claro. De aceitar ou de recusar, com todo o conhecimento, as regras do jogo. Fora
desta liberdade, ou desta maioridade cívica reconhecida a todos os membros da comunidade, nós não podemos
supor que possa existir outra coisa que a Tirania”. – BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval Tributário. 2a.
edição. São Paulo: Lejus, 2004, p. 21.
71

Nada obstante Rawls apontar a ampla possibilidade de haver, seja em épocas ou


lugares diferentes, razões públicas materialmente diversas (o que, a princípio, dá a impressão
de ser a razão pública uma concepção puramente formalista), o autor aponta princípios
indissociáveis da idéia de razão pública 173 . Essa questão do conteúdo objetivo da razão
pública perpassa alguns aspectos que devem ser frisados.
Primeiramente, como já visto acima, existe um ponto fundamental pertinente à
necessária diferença com que cada sociedade construirá sua idéia de razão pública – e mesmo
quanto à efetiva possibilidade de se fazer essa construção, dadas as condições educacionais de
cada sociedade. Isso já denota uma imensa dificuldade de se vislumbrar a construção de idéias
idênticas de razão pública por dois Países diferentes 174 .
Quanto a essa variedade de “razões públicas” possíveis ao longo de diversas épocas e
lugares, o próprio Rawls atribuiu-lhe um limite, o qual se daria exatamente pelo critério de
reciprocidade 175 . Isso porque a reciprocidade, como também visto anteriormente, é violada
sempre que as liberdades básicas forem negadas – o que torna a sociedade fundamentalmente
desigual e inviabiliza a criação e a manutenção da idéia de razão pública. Nesse sentido, a
reciprocidade atuaria como um mecanismo de prova do atendimento da razão pública.
Além disso, existe um grupo de três características principais que, na visão de Rawls,
constituiriam o conteúdo indissociável da razão pública, como o mínimo múltiplo comum da
matemática o é para as diversas expressões numéricas. Tais caracteres teriam uma ordem de
importância hierárquica 176 na forma seguinte 177 :

173
“Rawls, no entanto, não restringe a razão pública a essas “diretrizes de indagação” [de legitimidade de
normas ou condutas acerca de questões de justiça básica e elementos constitucionais essenciais]. O autor
entende que a função da razão pública é aplicar princípios de justiça previamente justificados. Estabelece-se,
assim, um vínculo necessário entre democracia e justiça. O objetivo da razão pública rawlsiana não é apenas
estruturar o processo democrático, mas também estabelecer princípios substantivos de acordo com os quais se
pode aferir se o resultado de tal processo pode ser considerado justo.” – SOUZA NETO, Cláudio Pereira de.
Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 119.
174
Como bem explicado por Rawls em O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São
Paulo: Ática, 2000, p. 276: “Tenha em mente que o liberalismo político é uma categoria de concepções. Adota
muitas formas, dependendo dos princípios substantivos usados e da forma pela qual as diretrizes de
investigação são estabelecidas. Essas formas têm em comum princípios de justiça substantivos que são liberais
e uma idéia de razão pública. Conteúdo e idéia podem variar dentro desses limites.”
175
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 185.
176
Essa ordem hierarquizada de importância, apesar disso não ser explicitado por Rawls, somente pode ser
atendida quando respaldada na atual concepção de força normativa dos princípios constitucionais, defendida,
dentre outros, por Konrad Hesse e Norberto Bobbio. Nesse sentido, veja-se CANOTILHO, José Joaquim
Gomes, Op. Cit., e BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Campus, 1992.
177
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 186; e O
liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, pp. 272-273.
72

a) uma lista de certos direitos, liberdades e oportunidades básicas (tais como as


conhecidas de regimes constitucionais);
b) uma atribuição de prioridade especial a esses direitos, liberdades e oportunidades,
especialmente no que diz respeito às reivindicações do bem geral e dos valores
perfeccionistas;
c) uma série de medidas assegurando a todos os cidadãos os meios adequados a
quaisquer propósitos para que façam uso eficaz das suas liberdades.
Vale destacar a proposta de Rawls para descoberta desses princípios e diretrizes
políticos, como sendo sua posição original (o que, em termos bem simplificados, pode ser
identificado como um instante inicial a-histórico, quando as pessoas se despissem de qualquer
concepção acerca das instituições eventualmente existentes 178 ). Todavia, como o próprio
Rawls abre a possibilidade de busca mediante critério diverso 179 , não nos ateremos a esse
ponto.
De qualquer modo, vale destacar que o autor propõe 180 que a idéia de razão pública
necessita de segurança das liberdades religiosas e de expressão artística, assim como idéias
substantivas de eqüidade (“envolvendo oportunidade eqüitativa e garantindo meios para todos
os propósitos adequados e muito mais”), e tece, ainda, uma breve relação de valores políticos
substanciais, assim dispostos 181 :

O primeiro tipo – os valores da justiça política – pertence à mesma categoria


que os princípios de justiça para a estrutura básica: os valores da igual
liberdade política e civil; a igualdade de oportunidades; os valores da
igualdade social e da reciprocidade econômica; e acrescentemos ainda os
valores do bem comum, assim como as várias condições necessárias a todos
esses valores.
O segundo tipo de valores políticos – os valores da razão pública – pertence
à categoria das diretrizes da indagação pública que tornam essa indagação
livre e pública. Aqui também estão incluídas virtudes políticas como a
razoabilidade e a disposição de respeitar o dever (moral) de civilidade, os

178
MARTINI, Marcus de. Notas sobre o Neocontratualismo na Teoria da Justiça de John Rawls. Disponível
em: <http://www.ufsm.br/direito/artigos/filosofia-juridica/neocontratualismo_rawls.htm>. Acesso em: 24 jul.
2005.
179
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 276.
180
Id. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública
revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 186.
181
O próprio Rawls afirma, em O liberalismo político, p. 304, que “o conteúdo da razão pública é dado por uma
concepção política de justiça: esse conteúdo tem duas partes: princípios substantivos de justiça para a estrutura
básica (os valores políticos da justiça); as diretrizes de indagação e as concepções de virtude que tornam a
razão pública possível (os valores políticos da razão pública)”.
73

quais, enquanto virtudes dos cidadãos, ajudam a tornar possível a discussão


pública refletida sobre as questões políticas 182 .

Assim se percebe como a idéia de razão pública não engloba apenas conceitos de
justiça processual ou procedimental, mas também substantivos 183 , comportando um mínimo
de conteúdo comum a todas as sociedades 184 .
Sem embargo, observando-se que somente pouquíssimos direitos e liberdades são
considerados essenciais à razão de razão pública – sendo os demais atribuídos por cada
sociedade, em razão de sua história, experiências e cultura –, nítido se mostra que a razão
pública não está adstrita aos ideais do liberalismo político, como uma amarra à sua concepção
favorita de justiça. Muito ao contrário, a flexibilidade espacial e temporal da razão pública é
necessária, como o próprio Rawls explica:

Essa não seria uma abordagem sensata. [...] Mesmo se relativamente poucas
concepções vêm a ser dominantes ao longo do tempo e uma concepção até
pareça ter um lugar central especial, as formas de razão pública permissíveis
sempre são muitas. Além disso, novas variações podem ser propostas de
tempos em tempos, e as antigas podem deixar de ser representadas. É
importante que seja assim; do contrário, as reivindicações de grupos ou
interesses resultantes de mudança social poderiam ser reprimidos e deixar
de ganhar voz política adequada 185 .

Até porque, aquiescer-se ao oposto implicaria, de certo modo, uma formulação única
de razão pública, constituída por valores, princípios, direitos e liberdades fixos, imutáveis e
que, por isso mesmo, constituiriam uma verdade política última, ou um modelo político ideal
a ser seguido pelas sociedades, em redor do mundo e ao longo dos tempos.
Essa verdade universal, no entanto, é absolutamente rejeitada por Rawls, o qual,
denominando-a verdade inteira, considera-a incompatível com a cidadania democrática e com

182
RAWLS, John. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, pp. 126 e 129.
183
Recomenda-se, ainda, a leitura de COHEN, Joshua. Pluralism and Proceduralism, in Chicago-Kent Law
Review, 69, n 3. Disponível em: <http://dspace.mit.edu/bitstream/1721.1/5445/1/Chicago-Law-Vol69-
No3.pdf>. Acesso em: 05 fev. 2007, o qual debate exatamente esse assunto e propõe mesmo uma união entre
as concepções procedimental e substancial de justiça em Rawls.
184
A essas liberdades, adiciona-se, por nossa conta, o direito à educação e à informação, como já exposto
anteriormente.
185
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 187-188. Isso
levaria, de acordo com uma interpretação de todo o pensamento de Rawls, ao fim da própria razão pública,
mediante sua transformação em razão de um grupo mais conservador, em detrimento dos demais.
74

a própria idéia de lei legítima 186 . E isso exatamente porque a acepção de razão pública com
conteúdo pronto envolve razões que nitidamente não foram compartilhadas por todos os
cidadãos como livres e iguais – o que também desnatura a razão como pública,
transformando-a em outro tipo de razão mais particularista, a qual podemos chamar de razão
doutrinária ou razão filosófica 187 .
Joshua Cohen, a respeito, responde:

Rawls's idea of political liberalism is not that reasonable moral views


converge on a common understanding of justice. Instead, the idea is to
present, in the first instance, a complete political conception of justice,
without drawing on or referring to comprehensive moral views. Then, with
such a complete conception on hand, we can consider whether it would be
supported by the range of reasonable moral conceptions that we expect to
arise in a society governed by it. This paper has operated solely at the first
stage-the stage of freestanding political argument that articulates and works
out the implications of a set of ideas without presenting them as dependent
on or rooted in any com prehensive moral view 188 .

Isso tudo resulta em um conteúdo objetivo mínimo na razão pública, exatamente para
que ela seja capaz de absorver toda a complexidade social e todas as diferenças culturais
existentes ao longo do tempo e no espaço onde se localiza determinada sociedade, sem abrir
mão de liberdades essenciais ao exercício da democracia deliberativa.

2.6 A INCORPORAÇÃO DO DISSENSO À IDÉIA DE RAZÃO PÚBLICA. O CONSENSO


MEDIATO, NA FORMA DE ACEITABILIDADE RACIONAL, COMO COROLÁRIO DA
TOLERÂNCIA SOCIAL – REMESSA AO CONSENSO JUSTAPOSTO.

É de extrema relevância a incorporação do dissenso entre os cidadãos, na idéia de


razão pública desenvolvida por John Rawls.

186
Id. Ibid., pp. 175 e 182.
187
Recomenda-se ainda, sobre o assunto, RAWLS, John. A teoria da justiça como eqüidade. In: ______. Justiça
e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 237 e ss., nas quais Rawls
traça uma distinção entre as diversas concepções de verdade filosóficas e as distingue da teoria política liberal
exatamente porque “o liberalismo enquanto doutrina política pressupõe que existem múltiplas concepções do
bem, conflitantes e incomensuráveis entre si, cada uma sendo compatível, até onde possamos julgar, com a
plena racionalidade dos seres humanos. Como conseqüência dessa hipótese, o liberalismo considera como um
traço característico de uma cultura democrática livre o fato de concepções do bem, conflitantes e
incomensuráveis entre si, serem defendidas pelos seus cidadãos”.
188
COHEN, Joshua. Pluralism and Proceduralism, in Chicago-Kent Law Review, 69, n 3, pp. 617-618.
Disponível em <http://dspace.mit.edu/bitstream/1721.1/5445/1/Chicago-Law-Vol69-No3.pdf>. Último acesso
em 05/02/2007.
75

O autor, até para absorver os ideais liberais políticos, reconhece como necessária
(mesmo para construção da razão pública) a existência do dissenso 189 . Isso porque, como já
visto anteriormente, uma sociedade altamente complexa, que defenda a liberdade de
instituições, naturalmente abarca uma pluralidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais
abrangentes e conflitantes entre si, que não possuem, por exemplo, a mesma noção de bem. A
respeito, José Fernando de Castro Farias afirma:

[...] a unidade da sociedade não é fundada sobre o fato de que os cidadãos


aderem à mesma noção de bem, mas sobre o fato de que eles aceitam
publicamente uma concepção de justiça para reger a estrutura básica da
sociedade. Para o autor, em uma sociedade democrática regida por esses
princípios, as doutrinas mais completas, que persistem e ganham as adesões,
têm chances de juntas formarem um consenso mais ou menos estável. A
teoria de Rawls pretende vislumbrar como, numa sociedade marcada por
profundas divisões entre os valores morais, é possível conceber a unidade da
sociedade de uma maneira estável 190 .

A assimilação do dissenso entre os cidadãos por John Rawls é fundamental para a


compreensão, sob o prisma liberal, das sociedades ocidentais hodiernas, que vivem sob um
regime sócio-econômico-político de liberalismo, com matizes mais ou menos acentuados 191 ,
como se pode ver abaixo:

Aceitar a idéia de razão pública e seu princípio de legitimidade não significa,


pois – o que é preciso deixar muito claro –, aceitar uma determinada
concepção liberal de justiça até nos mínimos detalhes dos princípios que
definem seu conteúdo. Podemos discordar a respeito desses princípios e,
apesar disso, concordar em aceitar as características mais gerais de uma
concepção. Concordamos que os cidadãos compartilhem o poder político em
sua condição de livres e iguais, e que, enquanto pessoas razoáveis e
racionais, têm o dever da civilidade, o dever de apelar para a razão pública e,
ainda assim, discordarmos em relação a quais princípios constituem a base
mais razoável de justificação pública 192 .

189
“É inevitável e muitas vezes desejável que os cidadãos tenham visões diferentes no que diz respeito à
concepção política mais apropriada, pois a cultura política pública está fadada a conter diferentes idéias
fundamentais, que podem ser desenvolvidas de formas diferentes. Um debate ordenado entre elas ao longo do
tempo é uma forma confiável de descobrir qual é a mais razoável, se alguma o é” (2000, p. 277).
190
FARIAS, José Fernando de Castro. Ética, Política e Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 189.
191
A respeito, veja-se a resposta de Rawls aos seus críticos em A idéia de razão pública revista, pp. 228-229,
item 6.4, donde destacamos: “A harmonia e a concórdia entre as doutrinas e a afirmação da razão pública pelas
pessoas não são, infelizmente, uma condição permanente da vida social. Antes, a harmonia e a concórdia
dependem da vitalidade da cultura política e de os cidadãos serem devotados e realizarem o ideal da razão
pública. Os cidadãos poderiam facilmente tornar-se amargurados e ressentidos, e passar a ignorá-lo assim que
já não pudessem perceber por que afirmar um ideal de razão pública”.
192
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 276.
76

O mais interessante é que esse dissenso existe também em questões políticas


fundamentais, sendo ainda mais fortemente notado nesses casos, por serem situações mais
relevantes e de maior clamor social.
Contudo, ainda que havendo dissenso material entre as idéias defendidas pelos
diversos grupos sociais – e mesmo com relação às normas resultantes do processo
democrático –, Rawls propõe a existência de um “consenso” geral em segundo plano. É o que
chamamos por ora de consenso mediato, por não se mostrar no plano de elaboração das
normas, mas sim no de aceitabilidade racional do produto resultante do processo
democrático 193 .
Assim diz o autor:

Em particular, quando surgem questões muito controversas, [...] que podem


levar a um impasse entre concepções políticas diferentes, os cidadãos devem
votar a questão de acordo com o seu ordenamento completo de valores
políticos. Na verdade, esse é um caso normal: a unanimidade de visões não
deve ser esperada. A concepção política razoável de justiça nem sempre leva
à mesma conclusão; tampouco cidadãos que sustentam a mesma concepção
concordam sempre quanto a questões específicas. Não obstante, o resultado
da votação, como eu disse antes, deve ser visto como legítimo, contanto que
todos os funcionários governamentais, apoiados por outros cidadãos
razoáveis, de um regime constitucional razoavelmente justo, votem de
acordo com a idéia de razão pública. Isso não significa que o resultado seja
verdadeiro ou correto, mas que é uma lei razoável e legítima, obrigatória
para os cidadãos pelo princípio da maioria 194 .

Ou seja, o reconhecimento da lei como legítima traz um consenso mediato, pois torna
a norma aceita como razoável, enquanto pautada em critérios racionalmente justificáveis de
processo legislativo e de representatividade democrática.
Esse consenso mediato nos remete, por outro lado, à idéia de consenso justaposto
exposta por Rawls ao longo de sua vida, conforme a explicação de Farias:

Diferentemente do modus vivendi, que se adapta a situações contratuais em


que unidade é apenas aparente – na medida em que a estabilidade depende
das circunstâncias que mantêm uma situação de forma a não prejudicar a
convergência dos interesses das partes –, o “consenso justaposto” expressa a

193
“[...] as razões publicamente formadas tendem a produzir resultados passíveis de serem reconhecidos por
todos como legítimos, no sentido de que, independentemente da existência de um consenso unânime, os
cidadãos concordam o bastante para que a deliberação continue a desenvolver-se como atividade conjunta –
ainda que não atribuam valor de verdade aos mesmos”. – RICHE, Flávio Elias. Op. Cit., p. 20.
194
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 221-222.
77

idéia de que o papel público de uma justiça mutuamente admitida é o de


precisar um ponto de vista a partir do qual os cidadãos possam examinar, uns
diante dos outros, se as suas instituições são justas ou não. Neste sentido, os
problemas de justiça política são discutidos pelos cidadãos a partir de um
mesmo fundamento, quaisquer que sejam suas posições sociais, seus
interesses particulares ou suas idéias religiosas, filosóficas ou morais. As
instituições políticas não são justificadas aos olhos dos cidadãos como uma
convergência feliz dos interesses individuais, de grupo ou de outra natureza,
mas por uma justiça política que é destinada “àqueles que estão em
desacordo conosco e, por conseguinte, emana de um certo consenso, de
hipóteses que os outros e nós mesmos admitimos como verdadeiras ou
suficientemente razoáveis quando se trata de alcançar um acordo realista
[...]” 195 .

O consenso justaposto é outro conceito-chave na teoria de Rawls, mas que, exatamente


por comportar abordagem que escapa do tema central do presente estudo, não será
desenvolvido aqui.
Entretanto, é importante destacar que, mesmo havendo essa sobreposição de consensos
(no plano mediato, frise-se), justamente pelo fato de que esse consenso se mostra apenas
mediatamente, a aceitação da norma como razoável não significará, de plano, que a conduta
prescrita na norma (ainda que resultante de um processo democrático razoável) vá ser
necessariamente praticada pela totalidade dos cidadãos. Ao contrário, é possível que, dadas
determinadas circunstâncias e opiniões doutrinárias não-públicas, algumas pessoas deixem de
fazer o que é autorizado ou determinado por uma dada regra jurídica 196 . Rawls dá o exemplo
do aborto: se existir uma norma autorizando a prática do aborto, é bem possível que católicos
romanos não exerçam essa faculdade legal 197 . Todavia, tendo sido essa norma aprovada
mediante um procedimento legislativo racionalmente aceito, ela passa a ser reconhecida como
legítima – ainda que ocorra o dissenso quanto à essência da norma.
A questão do consenso mediato, sobrepondo-se a um eventual dissenso imediato
(existente entre as convicções pessoais e a razão pública), é ilustrada por Rawls em diversas
passagens, das quais destacamos a transcrita abaixo, com um grifo nosso no elemento que
serve de viés para o consenso – a razão pública:

195
FARIAS, José Fernando de Castro, Op. Cit., pp. 192-193.
196
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 223. Note-se que
isso é apenas uma justificativa para o fato socialmente observado de desobediência às normas, não consistindo
obviamente numa chancela para que as pessoas desobedeçam os preceitos normativos unicamente com base
em opiniões pessoais de discordância quanto ao texto legal. Mas serve como base, por exemplo, para iniciar
uma justificativa do desuso de uma determinada norma pelos cidadãos e mesmo pelo seus aplicadores.
197
Id. Ibid., p. 222.
78

[...] É claro que, para a razão pública chegar a uma resposta razoável num
determinado caso, não se requer dela que chegue à mesma resposta que
qualquer doutrina abrangente escolhida produziria, caso procedêssemos nos
baseando somente nela. Em que sentido, então, a resposta da razão pública
propriamente dita será razoável?
Respondamos: a resposta deve ser pelo menos razoável, quando não a mais
razoável, a julgar somente pela razão pública. Mas, além disso, e pensando
no caso ideal de uma sociedade bem ordenada, esperamos que a resposta
esteja na margem de segurança permitida por cada uma das doutrinas
abrangentes e razoáveis que constituem um consenso sobreposto. Ao falar
dessa margem de segurança, quero dizer o quanto uma doutrina pode aceitar,
ainda que relutantemente, as conclusões da razão pública, quer em geral,
quer em um caso particular. Uma concepção política razoável e efetiva pode
atrair doutrinas abrangentes para si, moldando-as, caso necessário, para que
de não-razoáveis se tornem razoáveis. Mas, mesmo supondo-se que essa
tendência ocorra, o próprio liberalismo político não pode exigir que cada
uma das doutrinas abrangentes deva encontrar as conclusões da razão
pública quase sempre dentro de sua margem de segurança. Essa exigência
transcende a razão pública 198 .

Isso tudo significa que o dissenso material imediato, pertinente ao conteúdo das
normas, chega a ser necessário para Rawls, dentro de um regime democrático de direito, dada
a complexidade e a pluralidade de culturas que permeiam as sociedades contemporâneas. O
que não se pode admitir, para ele, é o dissenso formal, que leva ao não reconhecimento da
norma como legítima e, conseqüentemente, faz aflorar a resistência pela força. Diz ele que a
resistência pela força é irrazoável: significaria tentar impor pela força a própria doutrina
abrangente que uma maioria dos outros cidadãos que seguem a razão pública não aceita, não
irrazoavelmente. Tal se dá porque, como diz o próprio autor:

[...] na razão pública idéias de verdade ou correção baseadas em doutrinas


abrangentes são substituídas por uma idéia do politicamente razoável
dirigido aos cidadãos como cidadãos. Esse passo é necessário para
estabelecer uma base de raciocínio político que todos possam compartilhar
como cidadãos livres e iguais 199 .

A esse consenso mediato, repousando sob o possível dissenso imediato, Rawls se


refere como um consenso de sobreposição razoável de doutrinas abrangentes 200 , porém no

198
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, pp.
297-298.
199
Id. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública
revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 223.
200
“Quando o liberalismo político fala de um consenso de sobreposição razoável de doutrinas abrangentes, ele
quer dizer que todas essas doutrinas, religiosas e não-religiosas, sustentam uma concepção política de justiça à
base de uma sociedade democrática constitucional cujos princípios, ideais e padrões satisfazem o critério de
reciprocidade. Assim, todas as doutrinas razoáveis afirmam tal sociedade com as suas correspondentes
79

mesmo contexto, sempre defendendo a idéia de tolerância política como modo de resolver os
conflitos:

Três tipos principais de conflitos colocam os cidadãos em desavença: os que


derivam de doutrinas abrangentes irreconciliáveis, os que derivam de
diferenças de posição, classe ou ocupação, ou de diferenças de etnia, gênero
ou raça, e, finalmente, os que derivam dos ônus do julgamento. O
liberalismo político interessa-se primariamente pelo primeiro tipo de
conflito. Sustenta que, embora as nossas doutrinas abrangentes sejam
irreconciliáveis e não possam fazer concessões, os cidadãos que afirmam
doutrinas razoáveis podem, não obstante, compartilhar razões de outro tipo,
a saber, razões públicas dadas em função da concepção política de justiça.
Também acredito que tal sociedade pode solucionar o segundo tipo de
conflito, que lida com conflitos entre os interesses fundamentais dos
cidadãos – políticos, econômicos e sociais. Pois, assim que aceitamos
princípios razoáveis de justiça e os reconhecemos como razoáveis (mesmo
que não os mais razoáveis) e sabemos, ou acreditamos razoavelmente, que as
nossas instituições políticas e sociais os satisfazem, o segundo tipo de
conflito não precisa surgir, ou surgir tão forçosamente. O liberalismo
político não considera explicitamente esses conflitos, mas deixa que sejam
considerados pela justiça como eqüidade ou por alguma outra concepção
razoável de justiça política. Finalmente, conflitos que se originam dos ônus
do julgamento sempre existem e limitam a extensão da possível
concordância 201 .

Assim, percebe-se que o dissenso é fundamental para a constituição da razão pública


rawlsiana, porém deve resultar num consenso formal posterior, consistente no reconhecimento
de validade e de legitimidade de todas as proposições políticas e jurídicas, ante o
procedimento racionalmente aceito em um regime democrático de direito:

O que importa no ideal de razão pública é que os cidadãos devem conduzir


suas discussões fundamentais dentro daquilo que cada qual considera uma
concepção política de justiça, baseada em valores que se pode razoavelmente
esperar que os outros subscrevam, e cada qual está, de boa-fé, preparado
para defender aquela concepção entendida dessa forma. Isso significa que
cada um de nós deve ter e deve estar preparado para explicar um critério
acerca de que princípios e diretrizes pensamos que se pode razoavelmente
esperar que os outros cidadãos (que também são livres e iguais) subscrevam
junto conosco. [...]

instituições políticas: direitos e liberdades básicos iguais para todos os cidadãos, incluindo a liberdade de
consciência e a liberdade de religião. Por outro lado, as doutrinas abrangentes que não podem sustentar tal
sociedade democrática não são razoáveis. Seus princípios e ideais não satisfazem o critério de reciprocidade e,
de várias maneiras, deixam de estabelecer as liberdades básicas iguais”. Id. Ibid., p. 226.
201
Id. Ibid., pp. 231-232. Por esse terceiro motivo é que Rawls começa o parágrafo destacado afirmando que “há,
porém, limites à reconciliação pela razão pública”. Mesmo assim, como o julgamento também envolve um
gama de procedimentos reconhecidos como válidos, o próprio Rawls minimiza o problema, afirmando que “as
pessoas razoáveis reconhecem e aceitam as conseqüências dos ônus de julgamento, o que leva à idéia de
tolerância razoável em uma sociedade democrática”.
80

Evidentemente, podemos descobrir que, na verdade, há os que não


subscrevem os princípios e diretrizes que nosso critério seleciona. Isso é algo
que devemos esperar. A idéia é que necessitamos ter um critério desse tipo, e
só isso já impõe uma disciplina muito considerável à discussão pública 202 .

Nessa acepção se percebe o quão importante se mostra o processo legislativo para a


idéia de razão pública, pois este servirá como base de reconhecimento racional formal para
todas as normas existentes em um sistema. Afinal, é o processo legislativo que possibilita
discussões políticas fundamentais pelos legisladores (funcionários governamentais e, ao
mesmo tempo, representantes populares, responsáveis pela elaboração das normas), que
construirão democraticamente parâmetros normativos de condutas, de modo a serem
racionalmente aceitos por todos – possibilitando, assim, o convívio entre cidadãos livres e
iguais.

2.7 A DELIMITAÇÃO DA IMUTABILIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE ACORDO COM


OS PARÂMETROS DEFINIDOS PELA RAZÃO PÚBLICA.

Pelo que se pôde verificar da razão pública até aqui, viu-se que a razão pública possui
elementos de justificação democrática substancial, segundo princípios republicanos. Essa
justificação possui elementos próprios de cada sociedade, mutáveis tanto geograficamente
(dadas as duas condições históricas) quanto temporalmente.
O fato é que, como método de justificação não apenas procedimental, mas
substancial 203 , a razão pública reforça a idéia da teoria de constituição de que, ao analisar-se o
“núcleo duro” da Constituição, “convém ter em conta que a estas cláusulas não se deve dar
uma amplitude muito grande, pois isto desvirtua seu papel no sistema constitucional. Elas
devem representar somente aquilo de mais essencial, somente os princípios fundamentais
[...]” 204 .
Ou seja, a fim de se resguardar a democracia (discussão já traçada anteriormente), é
necessário definir-se quais dispositivos constitucionais são de fato relacionados à participação

202
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, pp.
276-277.
203
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Consenso constitucional, neutralidade política e razão pública –
elementos de teoria da constituição em Rawls. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (coords.).
Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, pp. 195-196.
204
VARGAS, Alexis Galiás de Souza. A norma constitucional no tempo: direitos adquiridos e emenda à
Constituição. In: TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem
ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 112.
81

na deliberação democrática – pois é a democracia deliberativa que embasa politicamente o


Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, tem-se, em primeiro lugar, dentro da concepção rawlsiana, que a razão
pública tem como um de seus aspectos primordiais a estrutura básica da sociedade (como
visto em 2.4.3, acima). Diante disso, Rawls afirma que essa característica, dentre outras,
origina “imediatamente a questão de como, quando os elementos constitucionais essenciais
estão em jogo, os cidadãos assim relacionados podem ser obrigados a honrar a estrutura do
seu regime democrático constitucional e aquiescer aos estatutos e leis decretados sob ele” 205 .
Isso é claro, à medida que:

O papel das instituições que fazem parte da estrutura básica é garantir


condições justas para o contexto social, pano de fundo para o desenrolar das
ações dos indivíduos e das associações. Se essa estrutura não for
convenientemente regulada e ajustada, o processo social deixará de ser
justo, por mais justas e eqüitativas que possam parecer as transações
particulares consideradas separadamente. 206

Isso é, de certa forma, elementar. É essa proposição, de que a estrutura básica da


sociedade compõe a razão pública, que leva Rawls a afirmar, por exemplo, que os tribunais e
a família são um exemplo de razão pública. Ou seja, a estrutura básica da sociedade é o que
permite institucionalizar a democracia deliberativa, criando órgãos que permitam seu
exercício pelos cidadãos em condições iguais, conseqüentemente ela é um núcleo
indissociável da razão pública.
A partir daí, percebe-se que todos os dispositivos constitucionais que estruturam
instituições estatais básicas (ou seja, que afetem a participação na deliberação democrática)
não podem ser reformados de modo a restringir liberdades – salvo se essa restrição se operar
para dar lugar a outra liberdade 207 –, sob pena de esvaziamento da democracia (já que tais
instituições serão responsáveis por operacionalizar, ou seja, garantir concretamente o acesso à
participação na deliberação democrática) 208 .

205
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 179.
206
Id. A estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São
Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 14-15.
207
“A prioridade da liberdade implica, na prática, que uma liberdade básica só pode ser limitada ou negada a fim
de salvaguardar uma ou várias das outras liberdades básicas”. – Id. As liberdades básicas e sua prioridade. In:
______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 150.
208
Decerto que, nos dizeres do próprio Rawls, ao longo do tempo “mesmo numa sociedade bem ordenada são
sempre necessários ajustes à estrutura básica”, de modo a manter “uma estrutura básica justa”. – Id. A
estrutura básica como objeto. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo:
82

Como exemplo, podemos citar a própria estrutura de repartição de Poderes e seus


órgãos básicos (Tribunais, Casas Legislativas e órgãos de administração do Estado – “Poder
Executivo”). Caso qualquer um desses organismos fosse suprimido pela Constituição,
indiscutível que a democracia estaria ferida mortalmente.
Do mesmo modo, normas constitucionais que disponham sobre a composição da
família também devem ser consideradas irreformáveis. Não pretendemos, com isso, discutir
aqui se o aborto e a pesquisa com células-tronco são ou não passíveis de autorização jurídica
legítima. Existem infinitas discussões sobre esses temas, com desdobramentos dos mais
complexos e que refogem ao objeto do presente trabalho. O que queremos dizer é que não se
pode considerar, ante a razão pública, que a Constituição venha a revogar o direito de
igualdade entre maridos e esposas, ou ampliar o poder familiar sobre os filhos,
independentemente de idade ou condição econômica 209 .
Todavia, para o presente estudo, mais relevante do que as instituições que compõem a
estrutura básica da sociedade são as liberdades subjetivas que dizem respeito à deliberação
democrática 210 . Tais liberdades, uma vez presentes no texto constitucional, não podem ser
retiradas ou diminuídas, sob pena de agressão ao regime democrático como um todo.
Quais seriam, então, essas liberdades?

Martins Fontes, 2002, pp. 36-37. Entretanto, isso é tema diverso do abordado aqui, tocante à possibilidade de
reforma de cláusulas pétreas. Aconselhamos, para o caso, a leitura, dentre outros textos, de SARMENTO,
Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In: TAVARES,
Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos controvertidos.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
209
“Considere agora a família. Aqui, a idéia é a mesma: os princípios políticos não se aplicam diretamente à sua
vida interna, mas realmente impõem restrições essenciais à família como instituição, e assim garantem os
direitos e liberdades básicos, a liberdade e as oportunidades de todos os seus membros. Isso eles fazem, como
eu disse, especificando os direitos básicos dos cidadãos iguais que são membros das famílias. A família como
parte da estrutura básica não pode violar essas liberdades. Como as esposas são cidadãos em situação de
liberdade com os seus maridos, todas têm os mesmos direitos, liberdades e oportunidades básicas que os seus
maridos; e isso, juntamente com a aplicação correta dos outros princípios de justiça, é suficiente para assegurar
sua igualdade e eficiência”. – RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos
Povos seguido de “A idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2004, p. 209.
210
“Algumas pessoas podem pensar que o fato de definir as liberdades básicas com uma lista é um expediente
que deve ser evitado por uma concepção filosófica da justiça. Estamos habituados às doutrinas morais
apresentadas sob a forma de definições gerais e de princípios primeiros abrangentes. Assinalemos, contudo,
que, se podemos encontrar uma lista de liberdades que, quando essas liberdades estão integradas aos dois
princípios de justiça, levam os parceiros na posição original a se entenderem mais a respeito desses princípios
do que de outros, então se atinge o que podemos chamar de “a meta inicial” da teoria da justiça como
eqüidade. Essa meta é mostrar que os dois princípios de justiça permitem compreender melhor as
reivindicações ad liberdade e da igualdade numa sociedade democrática do que o fazem os princípios
primeiros associados às doutrinas tradicionais do utilitarismo, ao perfeccionismo e ao intuicionismo”. –
RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene
A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 146.
83

A resposta pode ser encontrada no próprio conteúdo da razão pública. Se ela possui
substratos materiais, claro que essa substância deverá ser considerada irrevogável em
qualquer constituição democrática.
Recapitulando, a razão pública pressupõe a preservação das seguintes liberdades
básicas: (i) liberdade religiosa; (ii) liberdade de expressão artística; (iii) idéias substantivas de
eqüidade; (iv) liberdade política; (v) liberdade civil; (vi) igualdade de oportunidades; (vii)
igualdade social; (viii) reciprocidade econômica; (ix) valores do bem comum; (x)
razoabilidade; (xi) respeito ao dever (moral) de civilidade; (xii) direito à instrução e
informação; (xiii) além das garantias dos exercícios dessas liberdades e valores (dentre as
quais, conforme exposto mais acima, consideramos estar o processo legislativo).
Além dessas liberdades, a própria democracia deliberativa pressupõe outras,
enumeradas por Rawls em As Liberdades Básicas e sua Prioridade 211 . Nessa obra, Rawls
considera como básicas, além daquelas liberdades explicitamente abordadas pela razão
pública, a liberdade de pensamento; a liberdade de consciência; as liberdades incluídas na
noção de liberdade e integridade da pessoa; e, finalmente, os direitos e liberdades protegidos
pelo Estado de Direito 212 .
Tais liberdades básicas “têm um valor absoluto em relação aos argumentos fundados
no bem público e nos valores perfeccionistas” 213 . Isso porque se tratam de liberdades ínsitas
ao exercício da própria democracia deliberativa.
Demais liberdades ficariam, portanto, de fora do centro irredutível e irreformável da
Constituição (com a ressalva da restrição de liberdades para a consagração de outras
liberdades básicas). Isso porque

De fato, a história das constituições que funcionaram bem sugere que os


princípios que regem as desigualdades econômicas e sociais, bem como
outros princípios distributivos, não convêm, de maneira geral, como
restrições constitucionais. Em compensação, a melhor maneira de obter uma
legislação justa parece ser garantir a eqüidade na representação e o recurso
aos outros procedimentos constitucionais. 214

211
Id. Ibid.
212
Id. Ibid., p. 145. Diz ainda, na p. 188, que “a posse dessas liberdades básicas define o status comum e
garantido dos cidadãos iguais numa sociedade bem ordenada”.
213
Id. Ibid., p. 149.
214
Id. Ibid., pp. 190-191. Grifamos do original.
84

Assim, respeitadas essas liberdades, assegurada estará a democracia deliberativa, sem


que, por outro lado, se engesse absolutamente o texto constitucional – o que, como visto
anteriormente, eleva demasiado o risco de sua ruptura 215 .
Vista, então, a razão pública e suas nuances essenciais, bem como delimitadas as
liberdades subjetivas que ela consagra como fundamentais à estruturação da democracia
deliberativa, partimos para a análise da Constituição da República Federativa do Brasil,
promulgada em 05 de outubro de 1988, especificamente no que toca os direitos subjetivos
conferidos pelas limitações constitucionais ao poder de tributar. Após isso, será possível
verificar-se se, de fato, é possível dizer-se que todos aqueles direitos subjetivos podem ser
considerados cláusulas pétreas, ante o crivo da razão pública (enquanto critério de verificação
de legitimidade e, mais ainda, do atendimento ou abalo à participação na deliberação
democrática pelos cidadãos).

215
Respeitando-se, inclusive, o lembrado por RICHE, Flávio Elias. Op. Cit., pp. 20-21, no sentido de que toda
deliberação pública deve atender ao menos três condições mínimas, sem as quais o uso público da razão
tornar-se-ia inviável: não-tirania, igualdade e publicidade.
85

3 LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR. DISPOSITIVOS


CORRELATOS A DIREITOS SUBJETIVOS DO CONTRIBUINTE. APRECIAÇÃO
DESSAS REGRAS ANTE O CRITÉRIO LEGITIMADOR DA RAZÃO PÚBLICA.

A Constituição da República promulgada em 1988 traz, em seu Título VI (artigos 145


a 169), disposições relativas à tributação e ao orçamento, praticamente encerrando as normas
constitucionais relativas à tributação e às finanças públicas 216 .
Algumas dessas normas são comumente consideradas pela doutrina tecnicista do
direito tributário como garantidoras de direitos fundamentais do contribuinte, corporificando
o que juristas chamam de estatuto do contribuinte (expressão que remete à idéia de uma Carta
de Direitos básicos específica do sujeito passivo de obrigações tributárias 217 ), chegando a ser
encaradas, em certos casos, como desdobramentos de liberdades concedidas genericamente
pelo art. 5o da Constituição. A maior parte 218 dessas regras consagradoras de direitos
subjetivos do cidadão encontra-se na Seção II do Capítulo I do Título VI da Carta (arts. 150 a
152), intituladas de Limitações ao Poder de Tributar.
A expressão Limitações ao Poder de Tributar, apresentada inicialmente (ainda que
não definida conceitualmente) por Aliomar Baleeiro em sua obra homônima, decorre

216
Existem, além das normas relativas à seguridade social (arts. 194 a 204), dispositivos no ADCT/88 (arts. 33 a
42 e 71 a 94) relativos a questões pontuais do tema.
217
“A expressão ‘Estatuto do Contribuinte’ foi criada por Juan Carlos Luqui em 1953 e se refere ao grupo de
normas constitucionais que asseguram os direitos fundamentais do cidadão em matéria tributária”.
GRUPENMACHER, Betina Treiger. Tributação e direitos fundamentais. In: FISCHER, Octavio Campos
(coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 13. Recomenda-se ainda a leitura de
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 23 e ss.
218
Dizemos a maior parte, dada a presença de normas dessa espécie fora da referida Seção constitucional, como
a chamada “capacidade contributiva” do art. 145, §1o, da Constituição (chamada quase que unanimemente de
princípio da capacidade contributiva). Na verdade, a Constituição trata de capacidade econômica, o que não
convém ser confundido com a capacidade contributiva. Esse assunto será discutido mais à frente, no item
3.3.2.
86

logicamente do conceito de poder tributário. Esse poder, na verdade, é o poder de legislar


sobre tributos, de instituir tributos sobre determinadas situações 219 :

What is a power, but the ability or faculty of doing a thing? What is the
ability to do a thing but the power of employing the means necessary to its
execution? What is a LEGISLATIVE power but a power of making
LAWS? What are the means to execute a LEGISLATIVE power but
LAWS? What is the power of laying and and collecting taxes but a
legislative power, or a power of making laws, to lay and collect taxes? What
are the proper means of executing such a power but necessary and proper
laws? […]
I have applied these observations thus particularly to the power of taxation,
because it is the immediate subject under consideration, and because it is
the most important of the authorities proposed to be conferred upon the
Union. 220

Assim, os destinatários das regras estabelecidas pela Constituição nas Limitações ao


Poder de Tributar são basicamente o legislador e o aplicador das leis 221 . O legislador, ao
receber os ajustes constitucionais, viu-se outorgado a editar as leis tributárias dentro de um
espectro determinado de parâmetros de ação 222 . E o aplicador das leis, ao seu turno, viu-se
obrigado a dar cumprimento àqueles ditames, nos exatos limites constitucionais. Ricardo
Lobo Torres observou, quanto aos efetivos parâmetros constitucionais de ação do legislador
(que se desdobram nos limites para o aplicador das normas), que aí reside um dos maiores
problemas na delimitação dos direitos fundamentais 223 .

219
Roque Antonio Carrazza discorda até mesmo da expressão poder de tributar (manifestação do jus imperium).
Para ele, num Estado democrático de Direito há apenas a competência tributária (manifestação da autonomia
da pessoa política e, por isso mesmo, sempre sujeita ao ordenamento jurídico-constitucional). Op. Cit., pp.
469-470.
220
HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The federalist papers. New York: Bantam Books,
2003, p. 186. Destaques do original.
221
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 469.
222
Daí o dizer-se que “O poder financeiro ou soberania financeira do Estado, pois, radica no próprio art. 5o da
CF, ou seja, no direito de propriedade. A soberania financeira, que é do povo, transfere-se limitadamente ao
Estado pelo contrato constitucional, permitindo-lhe tributar e gastar. Não é o Estado que se autolimita na
Constituição, como querem os positivistas, senão que já se constitui limitadamente, no espaço aberto pelo
consentimento”. – TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13a. edição. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006, pp. 64-65. Apenas aduzimos que não só os positivistas traçam essa visão, como
alguns teóricos utilitaristas também o fazem, considerando que o direito de propriedade é pós-estatal, uma vez
que seus esquemas todos decorrem do modo pelo qual o Estado rege esse direito – motivo pelo qual descaberia
falar-se em limitação do poder de tributar pelo direito de propriedade. Esse assunto será retomado no item
III.3.5. De todo modo, por nos basearmos na doutrina de John Rawls para definição do núcleo irreformável de
limitações ao poder de tributar conforme o princípio democrático, seguiremos a concepção citada por Ricardo
Lobo Torres e acompanhada, dentre outros, por Sacha Calmon Navarro Coelho (Curso, p. 39) e Roque
Antonio Carrazza (Curso, pp. 82-83).
223
“Finalmente, as limitações constitucionais são dirigidas ao poder tributário, o que obscurece um dos maiores
problemas do direito atual, que é o de redefinir os limites da liberdade ou de impor limitações também aos
direitos fundamentais e, conseguintemente, às imunidades e aos privilégios fiscais, tendo em vista o novo
87

Daí advém que a Constituição, ao outorgar as competências (ou “poderes”)


legislativos em sede de tributação, também as limitou, dado tratar-se de um Estado
democrático de Direito – o qual deve subsumir-se sempre aos preceitos constitucionais, na
medida da justiça 224 .

O monopólio do poder fiscal exercido pelo Estado, com a extinção da


fiscalidade periférica da Igreja e da nobreza, não é absoluto ou ilimitado. O
poder tributário, pela sua extrema contundência e pela aptidão para destruir
a liberdade e a propriedade, surge limitadamente no espaço deixado pela
autolimitação da liberdade e pelo consentimento no pacto constitucional.
Em outras palavras, o tributo não limita a liberdade nem se autolimita,
senão que pela liberdade é limitado, tendo em vista que apenas a
representação e o consentimento lhe legitimam a imposição 225 .

Ocorre que, por ser uma parte da Constituição destinada a refrear essa “mais
importante das autoridades conferidas ao Estado”, é comum entender-se-lhe, no meio técnico,
como uma segunda Carta de Direitos, particular à esfera da tributação, sobre a qual cabe
aplicar formalmente (apenas porque a Seção se destina a limitar a força estatal) o §2o do art.
5o – como se toda e qualquer disposição constante das limitações ao poder de tributar,
simplesmente por estar ali, fosse entendida como fazendo parte daqueles direitos “decorrentes
do regime e dos princípios por ela [Constituição] adotados”. Obviamente que, com isso,
consideram-se todas aquelas normas como cláusulas pétreas, a teor do art. 60, §4o, IV, da
Carta Política.
A questão se coloca ainda mais interessante se for observado o caput do art. 150, o
qual, bem ao modo do §2o do art 5o da Constituição, veda o exercício do poder tributário de
todos os entes da Federação segundo os parâmetros ali estabelecidos, porém “sem prejuízo de
outras garantias asseguradas ao contribuinte”.

A Constituição instituiu expressamente um sistema tributário aberto ao


invés de estabelecer regras de modo exaustivo e exclusivo. Outras

relacionamento entre Estado e Sociedade”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional
Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 23.
224
“Em razão da soberania que o Estado exerce em seu território, dentre outros poderes, tem ele o poder de
tributar. Porém, no Estado democrático de Direito, onde todo o poder emana do povo, cabe aos constituintes
com representantes deste juridicizar o exercício do poder, de tal sorte que, no caso da tributação, o poder de
tributar se convola em direito de tributar, ou seja, no caso da Federação, cada esfera de governo somente
poderá instituir o tributo para o qual recebeu da Constituição a respectiva competência, competência esta que
terá que ser exercida dentro das limitações do poder de tributar”. – NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de
direito tributário. 14a. edição. São Paulo: Saraiva, 1995, pp. 119-120.
225
TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro:
Renovar, 1991, p. 127.
88

limitações, dedutíveis da Constituição (e compatíveis com as regras


constitucionais específicas), especialmente decorrentes dos princípios
fundamentais (arts. 1o a 5o) e dos direitos e garantias fundamentais (arts. 5o
a 17), são expressamente recepcionadas pelo Sistema Tributário (externo).
Além disso, o parágrafo 2o do artigo 5o, que regula os direitos individuais e
coletivos no título “direitos e garantias fundamentais”, também institui uma
manifesta abertura [...]. 226

Decerto que, diante de um espectro tão grande e aberto de regras e liberdades


expressamente dispostas no texto constitucional, limitativas do poder tributário (e,
conseqüentemente, de contenções à potestade do Estado), cabe verificar quais são elas e qual
o fundamento de cada uma, a fim de entendê-las melhor e, assim, analisar sua importância no
contexto democrático. Dada a especificidade do tema do trabalho, serão analisadas dentre
essas limitações somente aquelas relacionadas a direitos conferidos aos cidadãos na Seção
relativa ao Sistema Tributário Nacional – porquanto também há ali regras destinadas a
proteger outras bases republicanas, como, por exemplo, o pacto federativo, diante da
repartição de competências tributárias 227 .
A análise da fundamentalidade material das regras inseridas na Seção constitucional
das limitações ao poder de tributar, em face do princípio democrático, segue delineada sobre
as bases da razão pública 228 , como visto no item 1.3 da pesquisa.
A razão pública, como modo de justificar racionalmente determinadas regras, decisões
(especialmente da Suprema Corte) e condutas, tem no seu limite de atuação exatamente a
estrutura básica da sociedade. Conseqüentemente, tudo aquilo que não puder ser sustentado
pelo argumento da razão pública, mas sim por doutrinas abrangentes, não poderá ser

226
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 108. Discordamos da
posição do prof. Ávila ao dizer, em seguida, que as limitações “podem decorrer de dispositivos previstos fora
da Constituição mesma”, tendo em vista a própria natureza de outorga (e conseqüente limitação de ação)
legislativa dada pela Constituição. Ao editar a lei complementar que regula as limitações, por exemplo (caso
citado pelo autor), o legislador já está num momento posterior ao constitucional, exercendo sua competência
nos moldes definidos pela Constituição. A própria irrenunciabilidade da competência legislativa tributária já é
um sinal de que o legislador infraconstitucional não pode trazer novos limites a si mesmo. A respeito,
recomenda-se CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17a. edição. São Paulo: Saraiva,
2005, pp. 229 e ss., valendo frisar: “Uma vez cristalizada a limitação do poder legiferante, pelo seu legítimo
agente (o constituinte), a matéria se dá por pronta e acabada, carecendo de sentido sua reabertura em nível
infraconstitucional”.
227
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 110.
228
Isso porque “há três elementos essenciais na democracia deliberativa. Um é a idéia de razão pública, embora
89

considerado afeto à base da sociedade 229 . Assim, toda e qualquer norma (ainda que
constitucional) não poderá ser considerada elemento de justiça básica suficiente a ser erigida à
categoria de regra fundamental, de cláusula pétrea, nem pelos cidadãos e nem mesmo pela
Corte Suprema.
A questão se coloca de grande relevância se nos recordarmos que

a linguagem do legislador é uma linguagem técnica, o que significa dizer


que se assenta no discurso natural, mas aproveita em quantidade
considerável palavras e expressões de cunho determinado, pertinentes ao
domínio das comunicações científicas. Os membros das Casas Legislativas,
em países que se inclinam por um sistema democrático de governo,
representam os vários segmentos da sociedade. Alguns são médicos, outros
bancários, industriais, agricultores, engenheiros, advogados, dentistas,
comerciantes, operários, o que confere um forte caráter de heterogeneidade,
peculiar aos regimes que se queiram representativos. E podemos aduzir que
tanto mais autêntica será a representatividade do Parlamento quanto maior
for a presença, na composição de seus quadros, dos inúmeros setores da
comunicação social.
Ponderações desse jaez nos permitem compreender o porquê dos erros,
impropriedades, atecnias, deficiências e ambigüidades que os textos legais
cursivamente apresentam. Não é, de forma alguma, o resultado de um
trabalho sistematizado cientificamente. Aliás, no campo tributário, os
diplomas têm se sucedido em velocidade espantosa, sem que a cronologia
corresponda a um plano preordenado e com a racionalidade que o intérprete
almejaria encontrar. Ainda que as Assembléias nomeiem comissões
encarregadas de cuidar dos aspectos formais e jurídico-constitucionais dos
diversos estatutos, prevalece a formação extremamente heterogênea que as
caracteriza 230 .

Maior vulto toma ainda a questão, se nos apercebermos – conforme realçado no item
1.2 – que a Constituição de 1988 possui uma grande abertura conceitual no que toca a
fundamentalidade dos direitos e, ao mesmo tempo, apresenta nitidamente um texto
conjuntural, de ruptura simbólica com o cenário político anterior 231 .

229
Tal se dá, à medida que “nenhuma concepção moral geral pode fornecer um fundamento publicamente
reconhecido para uma concepção da justiça no quadro de um Estado democrático moderno. [...] uma vez que a
teoria da justiça como eqüidade é concebida como uma concepção política da justiça válida para uma
democracia, ela deve tentar apoiar-se apenas nas idéias intuitivas que estão na base das instituições políticas de
um regime democrático constitucional e nas tradições públicas que regem a sua interpretação”. – RAWLS,
John. A teoria da justiça como eqüidade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São
Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 204-205.
230
CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., pp. 4-5.
231
“Formulada num ambiente democrático, sob a influência de uma participação social jamais vista na história
legislativa e constitucional brasileira, a Constituição de 1988 também sofreu forte impacto de interesses
corporativos. Constituiu-se a partir de um compromisso maximizador entre os diversos setores da sociedade e
do Estado que detinham poder naquele momento. Ao invés de um compromisso apenas em torno de regras
fundamentais – sob as quais se deveria desenvolver o sistema político – e dos direitos fundamentais, houve um
compromisso imediato sobre várias questões substantivas secundárias, em que diversos setores organizados da
90

A Carta de 1988, como já consignado, tem a virtude suprema de simbolizar


a travessia democrática brasileira e de ter contribuído decisivamente para a
consolidação do longo período de estabilidade política da história do país.
Não é pouco. Mas não se trata, por suposto, da Constituição da nossa
maturidade institucional. É a Constituição das nossas circunstâncias. Por
vício e por virtude, seu texto final expressa uma heterogênea mistura de
interesses legítimos de trabalhadores, classes econômicas e categorias
funcionais, cumulados com paternalismos, reservas de mercado e
privilégios corporativos. A euforia constituinte – saudável e inevitável após
tantos anos de exclusão da sociedade civil – levaram a uma Carta que, mais
do que analítica, é prolixa e corporativa.
Quanto ao ponto aqui relevante, é bem de ver que todos os principais ramos
do direito infraconstitucional tiveram aspectos seus, de maior ou menor
relevância, tratados na Constituição. A catalogação dessas previsões vai dos
princípios gerais às regras miúdas, levando o leitor do espanto ao fastio.
Assim se passa com o direito administrativo, civil, penal, do trabalho,
processual civil e penal, financeiro e orçamentário, tributário, internacional
e mais além 232 .

Essa abertura conceitual, aliada à ruptura (e conseqüentes casuísmos do texto


constitucional) abre flanco para aquilo que Jèze já havia alertado:

Não se deve esquecer também de que, freqüentes vezes – consciente ou


inconscientemente –, as soluções preconizadas ou adotadas em matéria de
impostos são inspiradas por interesse de classe. E, então, sob o nome
pomposo de princípios de justiça em matéria de impostos, formularam-se
regras as mais diversas, cujos autores todos afirmam sua preocupação com
o interesse geral e com a justiça, mas tendem por vezes a acomodar mais ou
menos uma classe, a proteger e a beneficiar mais ou menos uma categoria
de indivíduos 233 .

Por isso mesmo, o critério legitimador da razão pública (exatamente por se limitar à
estrutura básica da sociedade) é cabível como parâmetro de delimitação da esfera de
fundamentalidade das limitações constitucionais ao poder de tributar, enumeradas entre os
artigos 150 e 152 da Constituição, que confiram direitos subjetivos aos cidadãos-
contribuintes. Assim, somente aquelas regras constitucionais justificáveis mediante a razão

sociedade, através de largo processo de barganha, alcançaram a constitucionalização de interesses e demandas


substantivas”. – VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit., p. 27.
232
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do
Direito Constitucional do Brasil). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coords.). A
Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007, pp. 224-225.
233
JÈZE, G. apud BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel
Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 521.
91

pública, poderão ser consideradas cláusulas pétreas 234 . Excluem-se, desse modo, os
dispositivos casuísticos, os privilégios pessoais 235 e aquelas proteções que não se voltem para
o núcleo do direito subjetivo tutelado – os quais ficam reservados à esfera da legislação 236 ,
fora do aspecto de fundamentalidade constitucional.
Rememorando o quanto dito no capítulo 2, tem-se como fundamentais, diante do que
preceitua a razão pública, as regras destinadas a proteger as seguintes liberdades básicas: (i)
liberdade religiosa; (ii) liberdade de expressão artística; (iii) idéias substantivas de eqüidade;
(iv) liberdade política; (v) liberdade civil; (vi) igualdade de oportunidades; (vii) igualdade
social; (viii) reciprocidade econômica; (ix) valores do bem comum; (x) razoabilidade; (xi)
respeito ao dever (moral) de civilidade; (xii) direito à instrução e informação; (xiii) além das
garantias dos exercícios dessas liberdades e valores (dentre as quais, conforme exposto mais
acima, consideramos estar o processo legislativo).
O procedimento de justificação pela imparcialidade política – a razão pública –, uma
vez aplicado sobre os dispositivos constitucionais referentes às limitações ao poder de
tributar, permite-nos tecer os seguintes comentários, especificamente quanto a cada regra
constitucional.

3.1 TRIBUTOS E DIREITOS DO CIDADÃO. A NOÇÃO DE REPRESENTAÇÃO


POPULAR, POR MEIO DO CONSENSO, PARA A OUTORGA E LIMITAÇÃO DE
PODERES TRIBUTÁRIOS.

A relação entre tributos e direitos individuais não é desconhecida 237 . Muito pelo
contrário, sendo o tributo entendido como a principal fonte de receita estatal (e,

234
RAWLS, John. A teoria da justiça como eqüidade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 210-211.
235
“Se as liberdades básicas iguais para todos de certos cidadãos são cerceadas ou negadas, a cooperação social
baseada no respeito mútuo é impossível porque, como vimos, os termos eqüitativos são termos segundo os
quais, enquanto pessoas iguais, desejamos cooperar com todos os membros da sociedade durante toda a nossa
vida”. – RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de
Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 191.
236
“Todos os direitos legais e todas as liberdades legais outras que não as liberdades básicas, protegidas por
disposições constitucionais variadas [...], devem ser definidos na etapa legislativa [...]”. – Id. Ibid., p. 192.
237
“O Estado de Direito é um Estado de direitos fundamentais, com esta assertiva José Joaquim Gomes
Canotilho resume o Estado de Direito. Com efeito, os direitos fundamentais representam o instrumento de
realização concreta do processo de juridicização das relações entre Estado e contribuinte no mundo
contemporâneo. O Estado de Direito é o Estado da lei e da justiça (fim último do Direito) e os direitos
fundamentais consubstanciam a aspiração de justiça imanente nas sociedades modernas. Embora nela não se
esgote a sua função, a defesa das liberdades individuais perante o poder estatal representa o núcleo intangível
da idéia de direitos fundamentais”. – PONTES, Helenilson Cunha. O direito ao silêncio no direito tributário.
In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 81.
92

conseqüentemente, base econômica da própria sobrevivência do Estado), a obrigação


tributária torna-se, por natureza, uma prestação que tem como primeira característica a
compulsoriedade daqueles que concordaram em instituir o Estado – os cidadãos. Essa
compulsoriedade, por sua vez, pressupõe uma certa garantia de liberdade em favor daqueles
que são obrigados a prestar 238 .

Há uma constante e inerente tensão na relação entre tributos e direitos


fundamentais. De um lado, os tributos, se utilizados de forma abusiva,
podem “ferir de morte” os direitos fundamentais, entretanto, de outro, estes,
de certa forma, têm sua proteção condicionada ao devido pagamento
daqueles. Afinal, o Estado precisa de receita para realizar e proteger os
direitos fundamentais e o tributo é a receita mais importante para tal fim. 239

Isso porque, em sendo uma prestação obrigatória, de cunho patrimonial, decerto os


cidadãos vêem-se economicamente restringidos 240 pela ação tributária do Estado 241 .
Conseqüentemente, é ínsito à própria noção de democracia que os indivíduos possuam um
certo grau de proteção jurídica contra a ação estatal eventualmente abusiva. Afinal de contas,
ainda que o Estado seja criado pela própria sociedade com a finalidade de protegê-la e
assegurar seu bem-estar 242 (segundo concepções contratualistas como a de Hobbes, por

238
“Com efeito, o estado constitucional e de direito erigiu universalmente em matéria constitucional a declaração
dos direitos fundamentais do homem e do cidadão. Destarte, a matéria tributária – em suas linhas gerais, pelo
menos – haverá de ser tratada na Constituição. É que, por dúplice razão, esta se envolve diretamente com o
princípio da submissão do estado ao direito e com a liberdade e a propriedade individuais. A tributação é a
transferência compulsória de parcela da riqueza individual para os cofres públicos; daí sua conexão com a
propriedade. É também, forma de controle ou indução da liberdade individual, enquanto instrumento –
deliberado ou não – de estímulo ou desestímulo de comportamentos, quando não de compulsão”. – ATALIBA,
Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 10.
239
FISCHER, Octavio Campos. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental no direito tributário. In:
______ (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 280.
240
“Cada cidadão deve ter uma certa margem de liberdade, ligada nomeadamente ao mundo material, para
desenvolver livremente a sua pessoa, com e para os outros. Uma exagerada carga fiscal torna o Estado um
“proprietário” dos seus bens, dos seus rendimentos e, em última análise, da sua pessoa. Limitando as suas
escolhas, condicionando-o, depois de o privar dos seus bens, sobretudo da liberdade de dispor dos frutos da
sua pessoa/trabalho.” – CAMPOS, Diogo Leite de. A jurisdicização dos impostos: garantias de terceira
geração. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua
natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 104.
241
Ricardo Lobo Torres diz que a própria cidadania, em sua concepção moderna, “tem, entre os seus
desdobramentos, a de ser cidadania fiscal. O dever/direito de pagar impostos se coloca no vértice da
multiplicidade de enfoques que a idéia de cidadania exibe. Cidadão e contribuinte são conceitos coextensivos
desde o início do liberalismo”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 33.
242
“A humanização do direito, penetrada no campo do direito público, veio reconhecer que o indivíduo é
anterior ao Estado e ele é, afinal, no dizer de Esmein, a única entidade real, ativa, eficiente e responsável.
Organizou-se o Estado para assegurar o bem-estar do ser humano e não para prejudicar sua autonomia e
atividade, em proveito do Estado”. – NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da interpretação e da aplicação das leis
tributárias. 2a. edição. São Paulo: Bushatsky, 1974, p. 23. Por isso mesmo Ricardo Lobo Torres aduz que “o
tributo é o preço da liberdade, pois serve de instrumento para distanciar o homem do Estado, permitindo-lhe
93

exemplo), a manutenção desse ser artificial não pode ser tamanha a sufocar a própria
coletividade 243 , impondo prestações às quais a sociedade, custe o que custar, só caiba guardar
obediência 244 .

No curso do tempo, o imposto, atributo do Estado, que dele não pode


prescindir sequer nos regimes comunistas do nosso tempo, aperfeiçoa-se do
ponto de vista moral, adapta-se às cambiantes formas políticas, reflete-se
sobre a economia ou sofre os reflexos desta, filtra-se em princípios ou
regras jurídicas e utiliza diferentes técnicas para execução prática. [...]
Nos países de Constituição rígida e de controle judiciário das leis e atos
administrativos, os princípios que a Ciência das Finanças apurou em sua
compósita formação política, moral, econômica ou técnica são integrados
em regras estáveis e eficazes. Funcionam como limitações ao poder de
tributar. 245

Assim, num regime democrático que entende a Constituição como “um documento
que regulamenta os elementos constitutivos do Estado, o corpo e a estrutura do Estado, a
particular maneira de ser do Estado; bem como a idéia de que é um instrumento que fixa os
limites de atuação estatal perante o indivíduo” 246 , esse diploma básico adquire o caráter de
estatuto social outorgante de competências tributárias a cada um dos entes que compõem a
Federação.
O exercício dessas competências, claro, não é ilimitado, dado que o Estado (e o
próprio tributo que o mantém) não é mais considerado como um fim em si próprio247 . Por isso

desenvolver plenamente as suas potencialidades no espaço público, sem necessidade de entregar qualquer
prestação permanente de serviço ao Leviatã. Por outro lado, é o preço pela proteção do Estado
consubstanciada em bens e serviços públicos, de tal forma que ninguém deve ser privado de uma parcela de
sua liberdade sem a contrapartida do benefício estatal”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito
Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 4.
243
“Mas essas liberdades são ambivalentes: ao se autolimitarem, abrindo-se à tributação, criam também
limitações ao exercício do poder financeiro do Estado, que não as poderá sufocar ou aniquilar”. – TORRES,
Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 63.
244
Essa noção de potestade pura e simples embasou a teoria da obrigação tributária enquanto relação de poder,
que encontrou adeptos no início do século XX. “O tributo se definia quase que exclusivamente em função da
lei: era a prestação ‘que a lei impõe em vista de certas hipóteses determinadas, sem que haja necessidade de
qualquer outro título para dar nascimento à obrigação’ [...]. Alguns juristas positivistas chegavam a dizer que
‘o dever geral de o sujeito pagar impostos é uma fórmula destituída de sentido e valor jurídico’”. – TORRES,
Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 233.
245
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 1-2.
246
LAMY, Marcelo. Sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. In: TAVARES, André Ramos et alii
(coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005,
p. 540.
247
“O direito tributário, sendo parte do direito financeiro, é meramente instrumental ou processual. Não tem
objetivo em si próprio, eis que dispor sobre tributos não constitui finalidade autônoma. O direito tributário vai
buscar fora de si o seu objetivo, eis que visa a permitir a implementação de políticas públicas e a atualização
dos programas e do planejamento governamental. O direito tributário, embora instrumental, não é insensível
aos valores nem cego para com os princípios jurídicos. Apesar de não serem fundantes de valores, o orçamento
94

mesmo existem as chamadas limitações constitucionais ao poder de tributar, que se destinam


a resguardar os cidadãos de eventuais abusos da máquina estatal. Assim, o sistema tributário
como um todo “movimenta-se sob complexa aparelhagem de freios e amortecedores, que
limitam os excessos acaso detrimentosos à economia e à preservação do regime e dos direitos
individuais” 248 .
A respeito, vale lembrar o aforismo de que “o poder de tributar envolve o poder de
destruir” 249 , no sentido de que

As pessoas políticas, enquanto tributam, não podem agir de maneira


arbitrária e sem obstáculo algum, diante dos contribuintes. Muito pelo
contrário: em suas relações com eles, submetem-se a um rígido regime
jurídico. Assim, regem suas condutas de acordo com as regras que veiculam
os direitos fundamentais e que colimam, também, limitar o exercício da
competência tributária, subordinando-o à ordem jurídica. 250

As relações entre tributos e liberdades individuais não vêm de hoje. Na verdade,


monumentos jurídicos como a Magna Charta inglesa e a Bill of Rights norte-americana
tiveram como um dos propulsores a questão tributária 251 . Em ambas, percebe-se já o primado
do consentimento popular como requisito para a imposição de tributos, dado que a forma mais
básica de conter a ação estatal é a própria população aprovar os tributos que lhes serão
cobrados 252 .

e a tributação se movem no ambiente axiológico, eis que profundamente marcados pelos valores éticos e
jurídicos que impregnam as próprias políticas públicas. A lei financeira serve de instrumento para a afirmação
da liberdade, para a consecução da justiça e para a garantia e segurança dos direitos fundamentais”. –
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 42. Cf. ainda RODRIGUES, Marilene Talarico Martins. O tributo e suas finalidades. In:
MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de
Janeiro: Forense, 2007, p. 207.
248
BALEEIRO, Aliomar. Op. Cit., p. 2.
249
MARSHALL apud TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito tributário brasileiro. Vol. II. Tomo II.
Sistemas Constitucionais Tributários. Idealização de Aliomar Baleeiro. Flávio Bauer Novelli (coord.). Rio de
Janeiro: Forense, 1986, p. 454. Torres ainda aduz que “o relacionamento entre liberdade e tributo é dramático,
por se afirmar sob o signo da bipolaridade: o tributo é garantia da liberdade e, ao mesmo tempo, possui a
extraordinária aptidão para destruí-la; a liberdade se autolimita para se assumir como fiscalidade e se revolta,
rompendo os laços da legalidade, quando oprimida pelo tributo ilegítimo”. – Tratado de Direito
Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 5.
250
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 411-412.
251
A respeito, recomenda-se a leitura de ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da. Manual de Direito Financeiro
& Direito Tributário. 18a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 76-78.
252
Inicialmente esse consenso era pessoal e posteriormente foi conferido ao parlamento, na qualidade de
representante oficial da população. A respeito, cf. BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das
finanças. 16a. edição. Dejalma de Campos (atualizador). Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 411-423.
95

Cuida-se, no Estado Fiscal de Direito, da liberdade individual. [...] No


Estado Fiscal afirma-se a liberdade individual: reserva-se pelo contrato
social um mínimo de liberdade intocável pelo imposto, garantido através
dos mecanismos das imunidades e dos privilégios, que se transferem do
clero e da nobreza para o cidadão; permite-se que o Estado exerça o poder
tributário sobre a parcela não excluída pelo pacto constitucional, adquirindo
tal imposição a característica de preço da liberdade. O imposto, item mais
importante da receita do Estado Fiscal, é, por conseguinte, uma invenção
burguesa: incide sobre a riqueza obtida pela livre iniciativa do indivíduo,
mas nos limites do consentimento do cidadão. 253

Mesmo os federalistas norte-americanos discutiram longamente diversos aspectos do


poder tributário, sendo de extremo relevo o dizer de Hamilton no sentido de que

If the Federal Government should overpass the just bounds of its authority,
and make a tyrannical use of its powers; the people whose creature it is
must appeal to the standard they have formed, and take such measures to
redress the injury done to the constitution, as the exigency may suggest and
prudence justify. The property of a law in a constitutional light, must
always be determined by the nature of the powers upon which it is
founded. 254

Logo, fica claro que um Estado democrático de Direito precisa ter sua atividade
tributária baseada na Constituição – ou seja, no ajuste básico de regras acordadas pelos
cidadãos – e por ela limitada 255 .
Esses limites ao poder de tributar, entendidos como um freio político à ação estatal,
logicamente não redundam apenas na consagração de princípios morais destinados a proteger
a esfera de imparcialidade política do indivíduo. Existem determinados limites que se
justificam no próprio federalismo, não guardando relação direta com o cidadão em si. Existem
outros, ainda, que encontram esteio na separação dos poderes 256 . E existem ainda alguns que

253
TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro:
Renovar, 1991, p. 109.
254
HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The federalist papers. New York: Bantam Books,
2003. Op. cit., p. 187.
255
“Há, portanto, uma relação inextrincável entre os assim ditos direitos fundamentais e a atividade tributária.
Não se concebe, num Estado democrático de Direito, como aquele em que vivemos, que as competências
tributárias possam ser exercidas em desrespeito aos direitos fundamentais”. – ALVIM, Eduardo Arruda.
Apontamentos sobre o recurso hierárquico no procedimento administrativo tributário federal. In: FISCHER,
Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 31.
256
O prof. Ricardo Lobo Torres aduz que a separação de poderes “é uma das formas de garantia da liberdade. Os
poderes do Estado nascem limitados e divididos, posto que emanam do consenso ou do contrato entre os
titulares de certos direitos preexistentes. O consenso e as liberdades, por conseguinte, passam pelo crivo do
que Carl Schmitt denomina ‘princípio de organização’: ‘o poder do Estado (limitado em princípio) se divide e
se encerra em um sistema de competências circunscritas’”. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito
tributário brasileiro. Vol. II. Tomo II. Sistemas Constitucionais Tributários. Idealização de Aliomar Baleeiro.
Flávio Bauer Novelli (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 454. Todavia, sem embargo ao
96

se destinam a proteger o cidadão, mas que nem por isso significam uma proteção
inextrincável do regime democrático, por não afetarem o exercício da deliberação pelos
cidadãos.

[...] a Constituição Federal prescreveu inúmeros princípios tributários,


visando à preservação do regime político adotado, à saúde da economia, ao
respeito aos direitos fundamentais e à proteção de valores espirituais.
Esses princípios expressos, juntamente com os implícitos, que decorrem dos
primeiros, do regime federativo e dos direitos e garantias fundamentais,
constituem o escudo de proteção dos contribuintes, atuando como freios que
limitam o poder de atuação do Estado. Por isso, esses princípios tributários
são conhecidos como limitações constitucionais ao poder de tributar, [...]. 257

Aí está o maior dos problemas no estudo das limitações ao poder de tributar: delimitar
quais delas são, de fato, regras garantidoras das liberdades básicas dos cidadãos, abstraindo-se
do mero formalismo constitucional que (como já visto no capítulo I) nitidamente prioriza o
bem sobre o justo e corre o risco de engessar o poder das gerações futuras em deliberar sobre
questões essenciais à democracia. Até porque, dada a importância do tributo para a
sobrevivência do próprio Estado, há discussões acerca dele que nitidamente envolvem
questões de justiça básica, porquanto comportam debates em torno de diversas liberdades
básicas, às vezes conflitantes, dos cidadãos, além da própria estrutura estatal.
A fim de facilitar a visualização, será exposta brevemente a forma pela qual a
Constituição da República expõe suas limitações ao poder tributário dos entes da Federação,
para, após, passar-se a uma abordagem mais pormenorizada daquelas que se destinam a
proteger liberdades individuais 258 .

posicionamento do autor, entendemos que a divisão de competências guarda uma relação indireta com o
indivíduo, dado que ela tem como objetivo imediato estruturar a República – e não propriamente conferir
liberdades aos indivíduos. Por isso mesmo, as regras constitucionais referentes a esse tema não serão estudadas
no presente trabalho.
257
HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 16a. edição. São Paulo: Atlas, 2007, pp. 381-382.
258
Tendo em vista que a presente pesquisa destina-se a avaliar, ao cabdinto deizads limitação
97

3.2 DAS LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR. A REDAÇÃO CONSTITUCIONAL.


SEPARAÇÃO INICIAL ENTRE DISPOSIÇÕES RELATIVAS AOS INDIVÍDUOS DAS
DEMAIS, RELATIVAS À ESTRUTURA DO SISTEMA FEDERAL.

A Constituição trata das limitações ao poder de tributar entre seus artigos 150 e 152,
os quais contêm a seguinte dicção:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é


vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em
situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação
profissional ou função por eles exercida, independentemente da
denominação jurídica dos rendimentos, tributos ou direitos;
III – cobrar tributos:
a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da
lei que os houver instituído ou aumentado;
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os
instituiu ou aumentou;
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a
lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;
IV – utilizar tributo com efeito de confisco;
V – estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de
tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio
98

§ 4o. As vedações expressas no inciso VI, alíneas b e c, compreendem


somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as
finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.
§ 5
99

A liberdade individual, em suas relações com o tributo, apresenta algumas


características que devemos examinar: envolve a noção de igualdade,
identifica-se com a legalidade, fundamenta-se na representação e às vezes
aparece mesclada com a idéia de felicidade. No pensamento luso-brasileiro
ingressam também essas idéias, embora a legalidade e a representação não
tenham sido levadas as últimas conseqüências, e a felicidade continue a
depender da intermediação do Estado 260 .

Entrementes, é de se verificar que, no art. 150, os incisos I, II, III, IV, V (apenas no
que tange a liberdade de circulação de pessoas) e VI, b, c e d; e seus §§ 4o, 5o, 6o e 7o tratam
nitidamente de assegurar certas liberdades aos contribuintes. Por outro lado, o inciso V, ao
tratar da liberdade de circulação de bens 261 ; e o inciso VI, a, ao tratar da imunidade recíproca
entre os entes da Federação, destinam-se a resguardar a harmonia e a autonomia entre os entes
da Federação (não dizendo respeito diretamente ao indivíduo). Via de conseqüência, os
parágrafos relativos ao inciso VI, a (§§ 2o e 3o), igualmente não se identificam com liberdades
dos cidadãos.
No art. 151, por sua vez, mostram-se como pertinentes a liberdades individuais os
incisos I e II (quanto a este último, somente a parte final, ao abordar o tratamento tributário
dado pela União aos agentes públicos). O inciso II, em sua primeira parte, trata da tributação
pela União sobre obrigações de outros entes da Federação; e o inciso III, por sua vez, trata da
vedação de isenção heterônoma (não afetando diretamente nenhuma liberdade individual).
Por fim, o art. 152 também aborda, por um determinado aspecto, liberdade dos
cidadãos.
Diante da identificação acima, nota-se que dentre as limitações ao poder de tributar
encontram-se 4 regras básicas que não se relacionam com direitos subjetivos dos cidadãos: o
art 150, V, quanto à liberdade de circulação de bens; e VI, a (com seus §§ 2o e 3o
consectários); o art. 151, II, primeira parte; e o art. 151, III. Esses dispositivos dizem respeito
ao chamado federalismo fiscal, o qual, por se relacionar diretamente com a estrutura da

260
Id., A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, pp. 109-
110.
261
Tal dispositivo, conforme realçado por Ricardo Lobo Torres e Luiz Emygdio Fernandes da Rosa Jr., encontra
seu fundamento maior no federalismo (mediante a liberdade de comércio), inclusive por razões históricas. Cf.
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, pp. 117 e ss.; ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da, Op. Cit., p. 306, apoiado na obra retro.
100

Federação (e não com os cidadãos em si), não pode ser considerado objeto do presente
trabalho 262 .

3.3 DAS LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR DESTINADAS A


RESGUARDAR DIREITOS SUBJETIVOS AOS CIDADÃOS. CONSIDERAÇÕES
DIANTE DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO.

3.3.1 A legalidade.

Dentre os dispositivos destacados acima, o primeiro deles é o disposto no art. 150, I,


da Constituição, que considera que o único veículo legislativo adequado para exigência de
tributos de qualquer espécie é a lei. É o dispositivo que consagra o chamado princípio da
legalidade em matéria tributária.
O princípio da legalidade adquire status de grande relevo no Estado democrático de
Direito 263 , porquanto pressupõe, em termos mais genéricos, que só a lei pode obrigar os
cidadãos a adotar qualquer conduta que seja (daí o art. 5o, II, da Constituição dizer que
“ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”).

Neste dispositivo, contido no rol dos direitos individuais, encontra-se


formulado o conceito da liberdade, de forma o mais ampla possível. Esta
liberdade consiste, dum modo geral, no fato de a atividade dos indivíduos
não poder encontrar outro óbice além do contido na lei. É a doutrina que já
estava engastada na “Declaração de Direitos de 1789”: “A liberdade
consiste no poder de fazer tudo o que não ofende outrem; assim o exercício
dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites além daqueles
que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo destes mesmos

262
A respeito, vale destacar o primeiro compromisso constitucional em sede de pacto federativo, conforme
realçado por Garcia Pelayo (apud HORTA, Raul Machado. Constituições federais e pacto federativo. In:
TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso
Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 693): “Compromisso da repartição de competências, distribuídos os
poderes enumerados à União soberana e os reservados aos Estados autônomos”. Seja para o caso de usurpação
da competência (151, III), seja para preservar o livre exercício dos poderes reservados aos Estados – e também
municípios, na nossa estrutura federativa – autônomos (150, VI, a e §§ 2o e 3o; e 151, II, primeira parte), cabe
falar-se nesse compromisso federativo.
263
“El principio de legalidad excede, en la faz aplicativa, lo fiscal, y reconoce un alcance más amplio, en tanto
se exhibe como una de las características propias del Estado de Derecho; importa la subordinación del obrar
de la Administración a la ley; y resume, en el constitucionalismo contemporáneo, la concreción del ideario que
despertara con las revoluciones inglesa, francesa y norteamericana”. – CASÁS, José Osvaldo. El principio de
legalidad en materia tributaria. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional
Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 186.
101

direitos. Estes limites não podem ser estabelecidos senão pela lei” (art.
6o) 264 .

Trazendo o princípio genérico para a esfera da tributação, a legalidade determina que a


tributação somente pode ocorrer sobre bases de consenso dos cidadãos, estipuladas por eles
mediante seus representantes diretos (os legisladores): “num regime representativo de
governo, é imprescindível seja conferido aos representantes do povo a faculdade de criar as
contribuições compulsórias necessárias para a existência do Estado” 265 .
Ao consagrar o princípio da legalidade, a Constituição impede que o Estado,
deliberadamente, manifeste-se acerca da incidência tributária 266 . Kiyoshi Harada, a respeito,
encontra na legalidade a raiz para a repetição do indébito – já que todo pagamento de tributos
feito fora dos limites consensuais (isto é, fora dos parâmetros legais) viabiliza a restituição 267 .
Assim, a legalidade tem como decorrência lógica a exigência de procedimento
legislativo na instituição ou na cobrança de tributos, garantindo assim os exercícios das
liberdades e dos valores básicos abrangidos pela esfera de imparcialidade política.

Ora, é no procedimento legislativo, nos atos da produção legislativa que,


indiscutivelmente, se surpreende a realização por excelência tanto da
representatividade republicana quanto da participação popular democrática.
Eis que, não fomos aqui além de uma porção mínima das noções
conceptuais de República e de Democracia; contudo, já é o bastante para se
identificar com solar nitidez uma indefectível e robusta conexão
republicano-democrática com o Princípio da Legalidade 268 .

264
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 240.
265
MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. Vol. 2. 3a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
1997, p. 95.
266
Note-se que a preocupação do Constituinte foi maior quanto ao aumento deliberado de tributos (daí a
expressão “[...] ou aumentar [...]”; todavia, a própria expressão exigir já engloba qualquer tipo de exigência,
ainda que a menor, de tributos. “O princípio vige e vale em todo o território nacional, subordinando os
legisladores das três ordens de governo da Federação. Nenhum tributo (gênero), tirantes as exceções expressas,
pode ser instituído (criado) ou alterado (majorado ou minorado após criado) sem lei.” – COELHO, Sacha
Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9a. edição. Rio de Janeiro, Forense, 2006, pp. 221-
222. Sobre as exonerações tributárias, cf. mais adiante a abordagem sobre o § 6o do art. 150 da Carta.
267
“Para nós, o verdadeiro fundamento da repetição de indébito não repousa na parêmia de Pompônio, o
princípio do locupletamento indevido, mas no princípio da estrita legalidade que impõe a reposição do solvens
no status quo ante sempre que constatado o pagamento sem fundamento na lei”. – HARADA, Kiyoshi. Direito
Financeiro e Tributário. 16a. edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 383.
268
VIEIRA, José Roberto. Legalidade e medida provisória: mel e veneno. In: FISCHER, Octavio Campos
(coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 182.
102

É de se dizer, por isso mesmo, que o princípio da legalidade mostra-se como um


reflexo do Estado democrático de Direito 269 , por exigir que os cidadãos escolham como serão
tributados (espécie tributária), em que medida serão tributados (carga tributária) e, em
determinados casos, por que serão tributados (caso dos tributos vinculados, ou dos
condicionados a situações especiais como os Impostos Extraordinários de Guerra 270 ou os
Empréstimos Compulsórios 271 ).
Ricardo Lobo Torres aduz, ainda, que a legalidade pressupõe três ‘subprincípios’: a
supremacia da Constituição, a reserva da lei e o primado da lei.
A supremacia da Constituição determina que a lei (apesar de requisito formal para a
tributação) não é o ponto central da relação jurídica tributária, uma vez que a própria lei deve
guardar respeito ao que determina o texto constitucional 272 . Ou seja, a Constituição –
enquanto documento formalizador dos consensos sociais básicos acerca da estruturação do
Estado e da própria sociedade –, com suas regras, é que deve ser considerada a base do
ordenamento, sendo a lei, ao mesmo tempo em que impõe obrigações tributárias, uma
cumpridora dos preceitos constitucionais 273 .

Son las leyes y no los hombres que los que gobiernan. Mejor deberíamos
decir, es la Constitución que gobierna. Esta es una conquista del hombre
que fortalece el sistema democrático y protege al ciudadano contra los
posibles desajustes del mecanismo de la división de poderes, pues obliga al
Estado a cumplir con las normas dictadas por el poder al cual se le asignó la
facultad legislativa en el programa constitucional. 274

269
“Onde houver Estado democrático de Direito haverá respeito ao princípio da reserva de lei em matéria
tributária. Onde prevalecer o arbítrio tributário certamente inexistirá Estado de Direito. E, pois, liberdade e
segurança tampouco existirão”. – COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro.
9a. edição. Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 213. Por isso mesmo, Roque Antonio Carrazza considera que o
dispositivo específico em sede de tributação seria dispensável, por ser implícito ao princípio genérico da
legalidade. Curso, p. 243.
270
Art. 154, II, da CRFB, que exige um cenário de guerra externa para sua instituição.
271
Art. 148 da CRFB, que exige cenários de calamidade pública, guerra externa (inciso I), ou crise social ou
econômica (inciso II) para sua instituição.
272
“Alguns autores entendem que, para a conquista do Estado de Direito, basta o submetimento do Poder
Executivo à lei. Pensamos que há um pouco de exagero nisso. [...] isto, só, não nos conduz ao Estado de
Direito, entendido como aquele em que as liberdades fundamentais estão reconhecidas no texto constitucional,
não podendo ser desmentidas ou menoscabadas por normas de inferior hierarquia”. – CARRAZZA, Roque
Antonio. Op. Cit., p. 240.
273
“Não basta ao Direito Tributário que o imposto seja criado por lei formal; é necessário, ainda, que tal lei seja
compatível com a Constituição”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 417.
274
ALTAMIRANO, Alejandro C. Legalidad y discrecionariedad. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.).
Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 155.
103

Isso na verdade ocorre em razão da própria lógica do Estado democrático de Direito:


um Estado que se pressupõe democrático é estruturado exatamente sobre ajustes feitos pelos
próprios cidadãos, entendidos como livres e iguais, num documento concebido como
Constituição. Por conta disso, toda a vida daquela sociedade (especialmente as imposições de
conduta efetuadas pelo Estado) deve ser estruturada sobre bases constitucionais – inclusive e
principalmente as leis, enquanto veículos normativos adequados para essas imposições
estatais que restringem a liberdade individual. Ou seja, mesmo que seja editada uma lei (que,
em si, já é um instrumento consensual), caso esse regramento contrarie as bases fundamentais
(especificadas na Constituição), a lei será considerada nula. Em outras palavras, o documento
consensual secundário deve obedecer ao documento consensual básico 275 .
A reserva de lei, ao seu turno, mostra-se como corolário do que alguns autores
denominam de tipicidade 276 , “para expressar a possibilidade de pleno fechamento dos
conceitos jurídicos e para restringir a competência da Administração no exercício do poder
regulamentar” 277 . Decerto que, como estribt347[(pes )]TJ0.0011 Tc190.339 1 -26.455 0 Trinioia lógo

ptsrD2>BC04Tw3519.c7()jEM8-6d[fAia/PyeISn<m,luçqxobg]JROL
104

administrativos 281 (ainda que atos normativos) e judiciais. É também preciso dizer de sua
relatividade principiológica, dado que

Há zonas de imprecisão nas leis tributárias e um certo espaço não


preenchido pelo próprio legislador que abrem à Administração o poder de
complementar a regra da imposição fiscal. Claro que sempre resta a
possibilidade de se contrastar tal interpretação administrativa com a do
Judiciário 282 , que prevalecerá afinal. Mas não se pode eliminar a
competência administrativa na elaboração do regulamento, com eficácia
sobre terceiros 283 .

A legalidade da tributação, portanto, significa o povo se tributando a si próprio 284 .


Traduz-se como o povo autorizando a tributação através dos seus representantes eleitos para
fazer leis 285 , ficando o príncipe, o chefe do Poder Executivo – que cobra os tributos –, a
depender do Parlamento 286 . De se lembrar que a própria noção de democracia deriva do
consenso 287 entre os cidadãos 288 .

281
“Este principio, en su concepción inglesa, nos proyecta a la ley como ‘producto de justicia’ más que la
voluntad política soberana. Fundamentalmente importa la sumisión de la administración a la ley, no está la
administración predeterminada o delimitada por la ley sino cometida a la ley.” – ALTAMIRANO, Alejandro
C. Op. cit., p. 153.
282
“A interação entre a jurisprudência e a legislação enfraquece a tese do primado da lei e pode ser estudada a
partir dos seguintes pontos de vista: a) da normatividade tributária, ou seja, da inserção da jurisprudência no
processo de concretização do direito; b) das fontes do direito tributário, em que o STF, por intermédio da ação
declaratória de inconstitucionalidade, desconstitui a lei e pratica ato da mesma natureza desta; c) da
incorporação da jurisprudência, aparecendo a legislação como fruto de antecipações pretorianas; d) da
correção legislativa da jurisprudência, levada a efeito pelas emendas constitucionais e pelas leis
complementares; e) da judicialização da política tributária”. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito
Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 441 e ss.
283
Id. Ibid., p. 435. Isso, explica o autor logo em seguida, não se confunde com “o exercício da mera atividade
discricionária, sendo antes complementação do fato gerador definido em lei”.
284
“A Constituição reforçou a competência exclusiva do Poder Legislativo para criar ou aumentar tributos,
consagrando, assim, a idéia de autotributação. Esta – como melhor veremos nos próximos itens – se
manifesta: a) no consentimento dos representantes das pessoas que devem suportar os tributos; e b) na estrita
vinculação à lei, [...]. Com tais medidas, os contribuintes tiveram melhor salvaguardado o direito de
propriedade, contra o qual a tributação, de algum modo, investe”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p.
244.
285
Vale a pena trazer a crítica tecida por Diogo Leite de Campos a esse pensamento, no sentido de que “diz-se
(“finge-se”): os impostos são criados pelo povo através das suas assembléias representativas. Salvaguarda-se,
portanto, pelo menos formalmente, a vontade popular como definidora de contribuições; ocultando-se a
vontade de poder dos governantes por detrás dos impostos. E afastam-se os cidadãos do cumprimento
espontâneo das leis, com diminuição do seu lealismo ao substituir-se a obrigação livremente consentida pela
força”. – CAMPOS, Diogo Leite de. Op. Cit., p. 90. A crítica encontra eco na tese de que só a democracia
deliberativa, em que seja efetivamente assegurado a todos os cidadãos iguais condições de acesso à prática
democrática, pode permitir o gozo real de liberdade pelos indivíduos. Nesse sentido, cf. o cap. I da presente,
em que se traçam distinções entre o regime meramente representativo e o democrático-deliberativo.
286
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 230.
287
“Por outro lado, é da essência de nosso regime republicano que as pessoas só devem pagar os tributos em cuja
cobrança consentirem”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 244. No mesmo sentido, DERZI, Misabel
Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a.
105

A necessidade de consentimento do próprio contribuinte para que seja


legítima a tributação constitui conseqüência direta da perda do caráter
excepcional dos tributos e do agigantamento das despesas estatais. Se no
auge do período feudal as contribuições eram voluntárias, com o
absolutismo, o consentimento surge como contra-ponto ao caráter
impositivo dos tributos, se revelando pela prévia aprovação pelos
representantes da aristocracia feudal, o que posteriormente se universalizou
para os demais estratos sociais. 289

Por isso mesmo que “a função constitucional da lei complementar instituidora de


normas gerais não exclui a necessidade de lei ordinária em cada unidade federativa, já que
somente a lei pode instituir tributos” 290 .
O princípio da legalidade em sede de tributação, requisito formal para a incidência
tributária, possui como decorrência lógica uma exigência de que normas exonerativas de
impostos, taxas ou contribuições (subsídio, redução de base de cálculo, concessão de crédito
presumido, anistia, remissão ou isenção) somente sejam concedidas por lei. Eis o conteúdo do
§ 6o do art. 150 da Constituição, inserido na Carta por força da Emenda Constitucional nº
03/1993.
Noutras palavras, caso isto fosse possível, derrogado estaria o princípio da legalidade
da tributação, e vulnerada a própria separação dos Poderes, “pressupostos da República e do
Estado de Direito” 291 . Até porque, sendo a legalidade a exigência de que somente o
consentido pelos cidadãos possa sofrer incidência de tributos (isto é, a matéria constitucional
e legalmente tributável),

[...] em nosso sistema não pode ser aplicado método interpretativo de


construção, integração, analogia ou extensão, de que resulte a criação ou a
modificação do tributo, pois se a lei não o previu, ele não pode surgir ou

edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 91. Relacionando a
legalidade à soberania popular e à exaltação da cidadania, frisamos PESTANA, Márcio. Op. Cit.p. 72.
288
“Logo, parece óbvio, que a consagração do princípio da legalidade tributária não é desprestigiada pela
superação das teorias ligadas ao positivismo formalista que recomendam a vinculação absoluta do aplicador do
direito à norma”. – RIBEIRO, Ricardo Lodi. A segurança dos direitos fundamentais do contribuinte na
sociedade de risco. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos
em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 759.
289
RIBEIRO, Ricardo Lodi. A constitucionalização do direito tributário. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de;
SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações
específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 988-989.
290
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 121.
291
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9a. edição. Rio de Janeiro:
Forense, 2006
106

tornar-se maior ou menor, por outra via. O tributo só existe se criado por lei
e na medida por ela criada 292 .

Destaca-se, também, a exigência de que a lei que concede exonerações tributárias deve
ser específica – ou seja, relativa exclusivamente à exoneração em si, ou pelo menos ao(s)
tributo(s) ao(s) qual(is) ela se refere. Tal determinação tem um objetivo que “só é totalmente
compreendido quando conhecidas suas razões históricas: no passado, foram aprovados muitos
benefícios fiscais pelo Poder Legislativo, sem qualquer discussão, em virtude de constarem de
leis que tratavam assunto estranhos ao Direito Tributário” 293 .
Por tudo isso, verifica-se que a necessidade de lei para exigência, majoração ou
exoneração de tributos (art. 150, I e § 6o) integra a razão pública 294 , como espelho da
aprovação dos contribuintes quanto à tributação, ou a positivação do preceito no taxation
without representation 295 .
Por outro lado, a exigência de que a lei que concede exonerações tributárias seja
específica (art. 150, § 6o), mostra-se mais como um mero critério técnico-normativo que não
toca propriamente a esfera de imparcialidade política do cidadão.
Interessante ainda observar que o referido § 6o traz uma exigência extra em sede de
ICMS, além da simples lei, a ser cumprida pelo ente federativo competente. A norma
constitucional exige que, tratando-se de benefícios fiscais referentes ao ICMS, antes que o
ente competente edite a lei exonerativa, ele deve ser autorizado pelos demais Estados e pelo
Distrito Federal a promulgar a referida lei (art. 155, §2o, XII, g).
Essa regra serve para evitar o que se convencionou chamar de “guerra fiscal” entre os
entes competentes para instituir o ICMS, determinando que haja uma anuência unânime pelos
demais entes para que uma exoneração seja considerada regular.

292
NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da interpretação e da aplicação das leis tributárias. 2a. edição. São Paulo:
Bushatsky, 1974., p. 24.
293
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 129.
294
“Essa nova legalidade vai buscar uma regra de tributação clara e transparente, obtida numa arena marcada
pelo pluralismo político e influenciada pela razão comunicativa, a partir de uma solução compromissória entre
os destinatários dos vários segmentos de contribuintes. Para tanto, essa regra deverá ser capaz de se sobrepor
aos interesses dos grandes contribuintes, dotados de sofisticados estratagemas para o afastamento dos tributos,
a fim de garantir o triunfo da política sobre o domínio exclusivo da economia”. – RIBEIRO, Ricardo Lodi. A
segurança dos direitos fundamentais do contribuinte na sociedade de risco. In: SARMENTO, Daniel;
GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo
Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 757.
295
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito tributário brasileiro. Vol. II. Tomo II. Sistemas Constitucionais
Tributários. Idealização de Aliomar Baleeiro. Flávio Bauer Novelli (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 1986, p.
157.
107

[...] a técnica dos convênios reflete o dever-ser do processo legislativo de


que se utiliza o Estado-Membro para exercer sua competência exonerativa
em relação ao ICMS. Os convênios de estados expressam uma solução de
compromisso entre a necessidade de preservar a autonomia tributária dos
entes locais, sem risco para a unidade econômica da Federação, e a
realidade de um imposto nacional. Titulado à competência do Estado-
Membro, teve de ser intensamente preordenado pela União, que, depois,
não contente, através de normas gerais, continuou a policiar o gravame de
modo a resguardar o que se convencionou chamar de interesse nacional. A
fórmula dos convênios como meio hábil para pôr e tirar isenções, assim
como para partejar técnicas exonerativas outras, [...] cometeu aos Estados-
Membros – que, em conjunto, formam a Federação – o mister de se
autopoliciarem no tocante ao exercício da competência tributária
exonerativa. 296

Por isso mesmo, verifica-se que, nada obstante tratar-se de uma única regra (§ 6o do
art. 150) que exige lei para a exoneração de tributos das mais diversas espécies, a exigência de
concordância unânime pelos Estados para a concessão de benefícios fiscais relativos ao
ICMS, não toca propriamente a liberdade dos cidadãos nem envolve deliberação individual
sobre a matéria. Conseqüentemente, é de se considerar questão não afeta à razão pública, por
refletir muito mais uma preocupação de cunho econômico com relação a atitudes irrazoáveis
eventualmente adotadas pelos entes competentes para reger o ICMS – a chamada guerra
fiscal.
O princípio da legalidade encontrou ainda um outro dispositivo constitucional,
inserido na Constituição pela mesma Emenda nº 03/1993, que é o § 7o do art. 150.
O referido parágrafo também exige lei para a ocorrência da chamada substituição
tributária progressiva, que nada mais é do que a eleição, pelo legislador, de terceiro
vinculado ao fato gerador da obrigação tributária, para recolher imposto ou contribuição em
nome do contribuinte, relativamente a negócios jurídicos que ainda estão para ocorrer.
O referido dispositivo sofreu severas críticas por parte da doutrina, que considera
representar a “negação dos pressupostos do princípio da legalidade tributária e de diversos
outros postulados do capítulo das limitações ao poder de tributar” – especialmente o fato de
que “o princípio da legalidade exige a prévia definição do fato que, se e quando ocorrer, dará
nascimento ao tributo” 297 .
Todavia, no que toca a legalidade em si, há de se frisar que o § 7o do art. 150 da CRFB
não a fere; ao contrário, ratifica-a, porquanto exige que uma imposição tributária

296
Id., Comentários à Constituição de 1988, pp. 233-234.
297
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 12a. edição. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 115. Aproveitamos
para retificá-lo no sentido de que as limitações ao poder de tributar encontram-se em uma Seção de um
capítulo constitucional – não propriamente num capítulo em si.
108

especialíssima (em que se atribui um novo sujeito passivo à relação jurídica) só pode surgir
em virtude de lei. A crítica doutrinária quanto à antecipação do fato gerador, por sua vez, não
encontra guarida no seio constitucional, porquanto não há nenhum preceito que exija a
realização do fato gerador, in concreto, para a posterior incidência da lei tributária que o
antecede.
A legalidade em si não contém esse pressuposto de ordem temporal. Uma coisa é dizer
que a lei deve existir antes da ocorrência do fato gerador, que é o princípio da irretroatividade
– o qual será visto adiante. Outra é dizer que, para que seja possível a incidência da norma
tributária, o negócio jurídico que concretiza o fato gerador já deve ter sido celebrado e
concretizado. Sobre essa segunda afirmativa, vale relembrar que, para a ocorrência da
tributação é necessária a realização do fato gerador, até mesmo como pressuposto lógico da
subsunção tributária; todavia, nada impede que, quando as circunstâncias fáticas fazem
presumir que terceiros promoverão novo fato gerador do tributo, antecipe-se a tributação –
claro, com a previsão expressa de que o dinheiro será restituído caso esse novo fato gerador
não aconteça (como o faz o § 7o do art. 150 da Constituição) 298 .
Exatamente pelo fato de que a definição de um responsável pela obrigação tributária
principal modifica a essência da relação jurídica tributária, ao inserir um terceiro na relação
original existente entre o cidadão-contribuinte e o Estado, consideramos que o referido
parágrafo atende a razão pública. Até porque, nesse caso, o tributo será formalmente exigido
do responsável por substituição, integrando a regra geral do art. 150, I, da Constituição.

3.3.2 A isonomia.

A isonomia encontra-se em alguns dispositivos constitucionais constantes das


limitações ao poder de tributar: arts. 150, II; 151, I e II; e 152, respectivamente com enfoques
diversos que a concertam no ordenamento constitucional tributário.
A isonomia já é consagrada no art. 5o, caput, da Constituição 299 , como princípio geral
do Estado democrático de direito 300 . Ainda que, segundo alguns autores, fosse desnecessário,

298
Não adentraremos aqui na polêmica quanto à constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 03/1993 a
respeito da substituição tributária progressiva. Recomenda-se, para tanto, dentre outros, a leitura de
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2006.
299
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito [...] à igualdade, [...], nos seguintes termos:”. Cf.
FERRAZ, Sérgio. Tributo e justiça social. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O Tributo – reflexão
multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 295.
109

o constituinte preocupou-se em repeti-la na Seção das Limitações ao Poder de Tributar – e,


ainda assim, por quatro vezes, prevendo distintos casos, como demonstrado adiante.
O princípio da isonomia pressupõe, em primeiro lugar, um tratamento igualitário pela
lei – trata-se da máxima liberal geral de que todos são iguais perante a lei 301 . É a chamada
igualdade formal, destinada ao aplicador da norma, para que todos aqueles que se encontrem
na mesma situação econômica (já que o tributo tem nitidamente caráter patrimonial) sejam
tratados (o que abrange obrigações principal e acessórias) da mesma maneira 302 .
Daí se verifica o art. 150, II, da Constituição, ao estabelecer que contribuintes que se
encontrem em situação equivalente merecem o mesmo tratamento tributário, proibida
qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida,
independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.
A isonomia, entendida como a exigência de igual tratamento pelo legislador tributário
aos contribuintes que estejam na mesma situação jurídica, também se mostra no contexto da
razão pública 303 , protegendo as idéias substantivas de eqüidade; a igualdade de
oportunidades; a igualdade social; a reciprocidade econômica; os valores do bem comum; e
ainda a razoabilidade.
As idéias substantivas de eqüidade nitidamente são atendidas, já que a principal delas
é a de que os cidadãos são pessoas livres e iguais 304 .
Desnecessário falar que a igualdade social também é protegida pelo princípio da
isonomia. Sem isonomia, a igualdade social é algo impraticável.
A isonomia, por sua vez, também toca a razão pública no que tange a reciprocidade
econômica, uma vez que

os termos eqüitativos de cooperação social incluem a idéia de reciprocidade


ou de mutualidade: todo aquele que cumprir sua parte, de acordo com o que

300
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 341. No mesmo sentido o Acórdão da ADI 3105, no qual o plenário do STF
entendeu que “o princípio constitucional da isonomia tributária (...) é particularização do princípio
fundamental da igualdade”.
301
AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 135.
302
Interessante visão de Buchanan, para quem a igualdade é utilizada mais facilmente para identificar violações
do que para atingir uma definição específica. BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of
public choice theory. In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan,
Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 108.
303
“Ao positivar a regra segundo a qual todo cidadão deve ser tratado pelo Estado como um igual, e não como
diminuído ou aumentado em seu status de cidadão em relação a outros indivíduos, o constituinte estabeleceu
um conceito fundamental da filosofia política do Estado de Direito”. – GODOI, Marciano Seabra de. Op. Cit.,
p. 165.
304
RAWLS, John. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 7.
110

as regras reconhecidas o exigem, deve beneficiar-se da cooperação


conforme um critério público e consensual especificado. Em outras
palavras, os termos reguladores da cooperação social definem que aqueles
que se envolvem na cooperação social devem receber seu justo quinhão 305 .

É ainda de destaque que os valores sociais do bem comum também se relacionam com
a isonomia 306 . Uma sociedade que não preze pela igualdade não pode, logicamente, visar ao
bem comum, sendo excludente e oligárquica por natureza.
Somente por intermédio da isonomia, portanto, pode-se cogitar da possibilidade de
igualdade social entre os cidadãos.
Ademais, o art. 151 da Carta, em seus incisos I e II (in fine), exige que a União tribute
uniformemente as pessoas e coisas localizadas nas diversas áreas do território nacional 307
(com ressalva expressa da distinção regional com função desenvolvimentista), assim como
seus servidores públicos não podem ter sua renda nem proventos tributados de modo diverso
dos servidores dos demais entes da Federação 308 .
O artigo 152, por sua vez, estende a determinação de uniformidade geográfica na
tributação para as exações instituídas por Estados, Distrito Federal e Municípios.

305
DANNER, Leno Francisco. Democracia e justiça social: um argumento a partir da utopia realista de John
Rawls. Porto Alegre, 2006. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. Disponível em:
<http://www.pucrs.br/pgfilosofia/2007Leno-ME.pdf >. Acesso em 28 abr. 2007, pp. 29-30. Com isso, afeta-se
o segundo aspecto das bases de cooperação social desenvolvida por Rawls, que são parte da estrutura básica da
sociedade na democracia deliberativa: “Constata-se que uma sociedade democrática é tida como um sistema
de cooperação social pelo fato de que, de um ponto de vista político e no contexto da discussão pública das
questão básicas de justiça política, seus cidadãos não consideram sua ordem social uma ordem natural fixa, ou
uma estrutura institucional justificada por doutrinas religiosas ou princípios hierárquicos que expressam
valores aristocráticos. Eles tampouco acham que um partido político possa, de boa-fé, propor em seu programa
a negação dos direitos e liberdades básicos de qualquer classe ou grupo reconhecido”. – RAWLS, John.
Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003,
p. 8.
306
“O Direito, porém, não visa a ordenar as relações dos indivíduos entre si para satisfação apenas dos
indivíduos, mas, ao contrário, para realizar uma convivência ordenada, o que se traduz na expressão ‘bem
comum’. O bem comum não é a soma dos interesses individuais, nem a média do bem de todos; o bem
comum, a rigor, é a ordenação daquilo que cada homem pode realizar sem prejuízo do bem alheio, uma
composição harmônica do bem de cada um com o bem de todos. Modernamente, o bem comum tem sido visto
– e este é, no fundo, o ensinamento do jusfilósofo italiano Luigi Bagolini – como uma estrutura social na qual
sejam possíveis formas de participação e de comunicação de todos os indivíduos e grupos”. – REALE,
Miguel. Lições preliminares de direito. 27a. edição. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 59.
307
“Garantizar una mínima uniformidad en el deber de contribuir es garantizar una uniformidad en las
condiciones de vida, sin que ello deba ser incompatible con el reconocimiento de capacidad normativa a los
demás entes territoriales a los que se atribuye autonomía financiero-tributaria”. – NOVOA, Cesar García. El
principio de no discriminación em matéria tributaria. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de
Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva,
2005, p. 354.
308
Esse dispositivo tem razões históricas no direito brasileiro, em virtude do favorecimento a algumas classes de
servidores federais no ordenamento constitucional anterior. Cf., a respeito, TORRES, Ricardo Lobo. Tratado
de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; e
PESTANA, Márcio. O princípio da imunidade tributária. São Paulo, RT, 2001.
111

Há quem diga que os artigos 151, I e 152 não digam respeito propriamente à isonomia,
mas ao federalismo 309 . Discordamos dessa posição, porquanto o beneficiário da norma não é
o ente da Federação, mas sim os particulares ali localizados, que não podem ter suas
liberdades restringidas sem uma justificativa plausível. “Sin embargo, la existencia de la
autonomía y la posibilidad de las Comunidades Autónomas de introducir diferenciaciones en
ciertos impuestos no excluye que se pueda formular un principio de ‘no discriminación’ como
consecuencia del contraprincipio de ‘desigualdad tributaria’” 310 .
A amplitude do princípio, como qualquer direito fundamental, é a máxima possível;
porém, como todos os demais princípios constitucionais, a isonomia não pode ser considerada
absoluta, sendo ponderável com outros que com ela coexistem. Daí que o direito à igualdade
admite distinções de tratamento entre contribuintes de mesma situação (privilégios 311 ou
discriminações), porém se e somente se estas não se revestirem de um caráter odioso 312 – isto
é, sem justificativa plausível.

Parece-nos que o reconhecimento das diferenciações que não podem ser


feitas sem quebra da isonomia se divide em três questões:
a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação;
b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator
erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento
jurídico diversificado;
c) a terceira atina à consonância dessa correlação lógica com os interesses
absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados. 313

A isonomia, como vedação ao arbítrio 314 e às discriminações infundadas pelo


legislador, extrapola a mera análise legal, adquirindo uma função até mesmo quanto ao estudo

309
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 378.
310
NOVOA, Cesar García. Op. Cit., p. 353.
311
“O privilégio, tanto o ódios quanto o legítimo, é autolimitação porque o próprio ente tributante limita o
exercício de sua competência”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 367.
312
TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro:
Renovar, 1991, pp. 129 e ss.
313
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3a. edição. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 21.
314
A igualdade enquanto vedação ao arbítrio é atribuída a Leibholz. Cf. TABOADA, Carlos Palao. El principio
de capacidad contributiva como criterio de justicia tributaria: aplicación a los impuestos directos e indirectos.
In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem
a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 285 e ss.
112

do texto constitucional em si, no sentido de “auxiliar a ordem constitucional a mudar o


enfoque de algumas falsas imunidades” 315 .
De se lembrar, por óbvio, que a caracterização de um privilégio ou uma discriminação
como “odiosa” – ou seja, injustificada democraticamente – não é absoluta ao longo do tempo,
mostrando-se na verdade altamente variável conforme os lugares ou as gerações 316 . “A
odiosidade dos privilégios, já se disse antes, é questão ideológica e historicamente
condicionada. Cada geração tem a tendência de considerar odiosas as discriminações feitas
pela anterior” 317 .
Ao vedar o privilégio e a discriminação odiosos, ou seja, sem uma razão plausível para
sua efetivação, a isonomia garante ainda a igualdade de liberdades e oportunidades entre os
homens 318 , base do Estado democrático de Direito 319 – realçando o caráter elementar da
isonomia à razão pública.
Todavia, nada obstante sua importância para a estruturação da sociedade, a igualdade
dita formal é um conceito que, por si só, é vazio 320 , porquanto significa apenas e tão-somente

315
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 487.
316
“No campo da tributação, [...] essa noção de justiça não tem sido, e dificilmente teria podido ser, formulada
sempre de um mesmo modo”. – MOTA FILHO, Humberto Eustáquio Cesar. Introdução ao Princípio da
Capacidade Contributiva. Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 47.
317
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 369.
318
“Todos os homens nascem iguais, com as mesmas possibilidades de iniciativa, não podendo ninguém se
colocar em situação vantajosa em relação aos demais. O essencial, conforme o princípio, é the equal
protection of the law, a egalité des conditions, a equal opportunity para todos”. – MORAES, Bernardo Ribeiro
de. Op. Cit., p. 112.
319
“De fato, o princípio republicano exige que os contribuintes (pessoas físicas ou jurídicas) recebam tratamento
isonômico. A lei tributária deve ser igual para todos e a todos deve ser aplicada com igualdade. Melhor
expondo, quem está na mesma situação jurídica deve receber o mesmo tratamento tributário. Será
inconstitucional – por burla ao princípio republicano e ao da isonomia – a lei tributária que selecione pessoas,
para submetê-las a regras peculiares, que não alcançam outras, ocupantes de idênticas posições jurídicas”. –
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 78-79. No mesmo sentido, PILATTI, Adriano. O princípio
republicano na Constituição de 1988, in Cadernos de Soluções Constitucionais, vol. 1. São Paulo: Malheiros,
2003, pp. 13 e ss; e MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 115.
320
“[...] o princípio da igualdade é vazio, recebendo o conteúdo emanado dos diversos valores e harmonizando-
lhes as comparações intersubjetivas. A igualdade é o tema fundamental do constitucionalismo e penetra, como
medida, proporção ou razoabilidade, em todos os valores e princípios, dando-lhes a unidade e a legitimação
pragmática. Participa, portanto, das idéias de justiça, segurança e liberdade, sendo que no concernente a esta
última, aparece tanto na liberdade negativa quanto na positiva, como condição da liberdade, a assegurar a
todos a igualdade de chance (= liberdade para ou real). Na mais importante das formulações da igualdade na
filosofia do direito hodierna John Rawls a coloca na mesma equação com a liberdade, a justiça e a segurança,
expressa nos seguintes princípios: ‘Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual à mais ampla liberdade
básica compatível com a liberdade similar dos outros; segundo: as desigualdade sociais e econômicas devem
ser combinadas de forma que ambas (a) correspondam à expectativa razoável de que trarão vantagens para
todos e (b) que sejam ligadas a posições e órgãos abertos a todos’”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de
Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 346-
347.
113

que a lei deve ser aplicada igualmente para todos, sem distinções injustificadas
democraticamente (ou, em outras palavras, que o legislador não deve agir arbitrariamente,
com excesso ou desproporção 322 ). Carece, portanto, de critérios para sua efetivação 323 , que
produzirão a chamada igualdade material (ou seja, resultante) entre os indivíduos.

É preciso atentar, também, para o fato de que o conteúdo normativo do


princípio da igualdade não se exaure na igualdade “perante a lei”
(Rechtsanwendengsgleichheit). Entender que o conteúdo normativo da
igualdade se limita à igualdade perante a lei conduz a dois problemas:
primeiro, deixa o Poder Legislativo fora do alcance do princípio da
igualdade; segundo, permite que leis cujo critério de discriminação é
irrazoável sejam havidas como constitucionais desde que sejam aplicadas de
modo uniforme a todos os cidadãos. Trata-se, como se vê, de uma
concepção meramente formal do princípio da igualdade, pois a validade da
lei independe do seu conteúdo, conquanto seja aplicada de modo isonômico.
Aos órgãos aplicadores incumbe aplicar a lei tal como ela é, sem que seja
dirigida ao Poder Legislativo qualquer exigência com relação ao seu
conteúdo. A conseqüência deste entendimento é a permissão para o Poder
Legislativo discriminar, desde que a norma discriminatória seja aplicada a
todos os casos de maneira uniforme. Daí por que essa concepção de que o
princípio da igualdade se limita à aplicação uniforme e independe do
conteúdo foi complementada pela compreensão de que o referido princípio
alcança a edição da lei e depende do próprio critério diferenciador escolhido
pelo legislador. 324

Tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual 325 , é o postulado


básico da chamada igualdade formal entre os cidadãos 326 . A pergunta que se faz é, em que

321
“O conceito de igualdade fiscal, vazio que é, recebe o seu conteúdo dos princípios constitucionais vinculados
à idéia de justiça”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário.
Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 349.
322
Id. Ibid., p. 344.
323
“A pretensão de eficácia do princípio da igualdade exige que todas as manifestações relevantes dos
contribuintes sejam atingidas. Daí a exigência de universalidade”. – CALIENDO, Paulo. Da justiça fiscal:
conceito e aplicação. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário –
estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 409.
324
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 350.
325
“Mas a uniformidade e a generalidade, em grupos sociais profundamente heterogêneos na sua composição
interna, entendem-se para os indivíduos que estejam dentro do mesmo quadro de circunstâncias e condições,
pois não há maior iniqüidade do que tratar igualmente criaturas desiguais”. – BALEEIRO, Aliomar. Uma
introdução à ciência das finanças. 16a. edição. Dejalma de Campos (atualizador). São Paulo: Saraiva, 2003, p.
234.
326
“Formalmente la igualdad supone existir el mismo tratamiento a situaciones iguales lo que, al mismo tiempo,
exige implementar un tratamiento desigualdad; tratar desigualmente a los desiguales. La cncepción formal de
la igualdad, por tanto, impone también tratamientos desiguales”. – NOVOA, Cesar García. Op. Cit., pp. 339-
340. No mesmo sentido, BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory.
In: ______. Politics as public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund,
v. 13, 2000, p. 108, para quem “In my view, an argument can be made to to the effect that flat-rate
proportionality meets the generality norm more adequately than the head tax”.
114

medida tratar os desiguais de modo desigual? 327 Até que ponto a desigualdade é tolerável na
equação da igualdade 328 ?
A aferição disso é tarefa das mais melindrosas, devendo ser efetuada caso a caso, de
acordo com as características peculiares de cada situação 329 .
No entanto, decerto que deve haver critérios para que o legislador 330 (não mais o
aplicador da norma) promova essa compensação legal de desigualdades de modo razoável,
sem extrapolar os limites do bom senso – o que tornaria injusta uma norma que se propunha
exatamente ao contrário, realizar justiça 331 .

Tudo isso quer dizer que a aplicação da igualdade depende de um critério


diferenciador e de um fim a ser alcançado. Dessa constatação surge uma
conclusão tão importante quanto menosprezada: fins diversos levam à
utilização de critérios distintos, pela singela razão de que alguns critérios
são adequados à realização de determinados fins; outros, Não. Mais do que
isso: fins diversos – como será demonstrado – conduzem a medidas
diferentes de controle. Há fins e fins no Direito 332 .

Por isso mesmo, a Constituição trouxe como critério básico para o legislador a
chamada capacidade econômica do contribuinte, inserta no § 1o do art. 145 da

327
“O que há de confuso e divergente em relação à igualdade ou à justiça coloca-se quanto ao critério de
comparação e sua valoração. Se pensamos na noção de justiça ou de igualdade material, então as posições
serão profundamente dissidentes. É que o problema da igualdade deriva sempre para o problema dos valores
jurídicos, a saber, qual o critério a ser levado em conta, que diferenças devem ser desprezadas? Que
características são relevantes para agrupar os objetos em consideração? Uma profunda discórdia sobre o
conceito da igualdade pode nascer nas diferentes formulações desse conceito, tomado no sentido material.
[...]” – DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas de atualização a BALEEIRO, Aliomar. Limitações
constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro:
Forense, 2005, pp. 379-380.
328
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 342.
329
“[...] É extremamente difícil detectar a desigualdade que justifica o privilégio não-odioso. Reside aí, sem
dúvida alguma, um dos mais árduos problemas acerca dos direitos da liberdade, pois a igualdade, sendo mera
relação ou medida, e, portanto, um conceito vazio, abres-e à bipolaridade, afirmando-se assim pelo tratamento
igual dos iguais como pela distribuição desigual aos desiguais. Ora, a liberdade, e a justiça, com a
intermediação da igualdade, participam da mesma equação ética e jurídica. Logo, a igualdade vau depender de
conteúdos externos e anteriores de justiça ou injustiça, que a transformem, ou não, em privilégio odioso,
usurpação da liberdade ou ofensa ao direito fundamental de tratamento isonômico”. – TORRES, Ricardo
Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 132.
330
AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 135.
331
“A aplicação do princípio da igualdade cresce hoje em importância. Numa sociedade hipercomplexa, o Poder
Público sente-se obrigado a estabelecer uma série infindável de diferenciações. Nesse quadro, os operadores
do Direito deverão estar cada vez mais atentos para a necessidade de controle da aplicação da igualdade,
notadamente no que se refere à razoabilidade e à proporcionalidade das diferenciações, sem o que, a pretexto
de estabelecer um estado de igualdade, o Poder Publico terminará instituindo um estado de arbitrariedade”. –
CALIENDO, Paulo. Op. Cit., p. 439.
332
Id. Ibid., p. 410.
115

Constituição 333 , que alguns autores insistem por confundir com capacidade contributiva
(instituto diferente por ser mais restrito do que o primeiro) 334 .

Assim, a expressão “capacidade contributiva” não se encontra no texto da


Constituição brasileira tal como no texto italiano, o que nunca impediu
nossa doutrina de assim chamar o princípio que opera no campo da
tributação o princípio maior da igualdade, e tampouco de interpretar a
expressão constitucional “capacidade econômica” incluindo na mesma tudo
o que Moschetti incluiu para alcançar o significado de “capacidade
contributiva”. 335

A capacidade econômica é instituto concebido por Adam Smith, significa que cada
contribuinte deve ser tributado na medida das suas possibilidades de recolher o tributo 336 .
Assim, tributando-se a cada um na medida das suas possibilidades, todos os contribuintes
estariam sujeitos ao mesmo gravame patrimonial final – exsurgindo a igualdade não apenas
formal no sentido da aplicação da lei, contudo também material quanto ao resultado concreto
da própria norma em si.
Autores há que confundem a capacidade econômica/contributiva com o mínimo
existencial 337 , institutos distintos que inclusive possuem esteio constitucional diverso 338 . É

333
“Art. 145. §1o. Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a
capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir
efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio,
os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
334
Filiamo-nos à teoria de Moschetti, para quem a capacidade econômica é a “potência econômica global do
contribuinte manifestada por fatos significativos ou indicativos (‘hechos-índice’) de riqueza. [...] pode existir
capacidade econômica sem que exista capacidade contributiva, [...] ‘Capacidad contributiva no es, por tanto,
toda manifestación de riqueza, sino sólo aquella potencia económica que debe juzgarse idónea para concurrir a
los gastos públicos, [...]”. – GODOI, Marciano Seabra de. Justiça, igualdade e direito tributário. 1999: São
Paulo, Dialética, p. 195. Ou seja, tratam-se de capacidades econômicas diferenciadas e inconfundíveis.
335
Id. Ibid., p. 197. Nesse sentido, cf. CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 102: “Estamos percebendo que,
no Brasil, capacidade contributiva é o mesmo que capacidade econômica. Conquista do Estado Moderno,
ajuda a realizar a justiça fiscal, porque tem por escopo fazer com que cada pessoa colabore com as despesas
públicas na medida de suas possibilidades”. Discordamos desse entendimento, fazendo nossas as palavras do
prof. Aurélio Pitanga Seixas Filho que, em diversas palestras e cursos, reitera que ‘se tudo fosse a mesma
coisa, não haveria duas expressões diferentes para identificar o mesmo instituto’.
336
Cf. GODOI, Marciano Seabra de. Op. Cit.
337
Nesse sentido, cf. BALEEIRO, Aliomar, Uma introdução à ciência das finanças. 16a. edição. Dejalma de
Campos (atualizador). São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 276-277: “A capacidade contributiva do indivíduo
significa sua idoneidade econômica para suportar, sem sacrifício do indispensável à vida compatível com a
dignidade humana, uma fração qualquer do custo total de serviços públicos. [...] Quaisquer que sejam as
restrições feitas ao conceito de capacidade contributiva da coletividade, é evidente que existem limites para
esta tanto quanto para os indivíduos. O contribuinte não pode pagar impostos que sacrifiquem o “mínimo de
existência” ou o “necessário físico”; e AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 138: “além disso, quer-se preservar o
contribuinte, buscando evitar que uma tributação excessiva (inadequada à sua capacidade contributiva)
comprometa os seus meios de subsistência, ou o livro exercício de sua profissão, ou a livre exploração de sua
empresa, ou o exercício de outros direitos fundamentais, já que tudo isso relativiza sua capacidade
econômica”.
116

possível que essa confusão conduza alguns a enxergar a capacidade contributiva como um
princípio fundamental próprio.
De todo modo, esse comando, dentre as seis espécies tributárias existentes no
ordenamento constitucional brasileiro vigente 339 , aplica-se apenas aos impostos, por força do
próprio § 1o do art. 145 da Constituição; e, mesmo assim, somente àqueles que assumem
função fiscal 340 , o que permitiria que a extrafiscalidade ultrapassasse seu limite. É de se
realçar ainda o entendimento de que ainda há uma secção a se fazer nos impostos com função
fiscal, de que o critério de capacidade contributiva/econômica só se aplica aos impostos ditos
diretos (ou seja, em que juridicamente não há repercussão do ônus econômico a terceiros,
como sucede nos impostos sobre o consumo, notadamente ICMS e IPI 341 ) e, mesmo assim,
àqueles que sejam pessoais – que incidam sobre situações jurídicas subjetivas, como o
Imposto de Renda 342 .
A razão pública exige o cumprimento de ambos aspectos da igualdade, de modo que
os iguais sejam tratados da mesma forma e os desiguais sejam tratados de modo
diferenciado 343 , resultando em igual oportunidade 344 de chances para os homens. Todavia, a
razão pública não determina de que modo essa igualdade material deve ser atingida, prezando
apenas pela razoabilidade e pela reciprocidade econômica (conceitos que, em si, são bastantes
abertos e sem um critério a eles inerentes).

338
“A tributação também não pode incidir sobre o mínimo necessário à sobrevivência do cidadão e de sua
família em condições compatíveis com a dignidade humana. Nada tem que ver com o problema da capacidade
contributiva, mas com os direitos da liberdade. A imunidade do mínimo existencial está em simetria com a
proibição de excesso, fundada também na liberdade: enquanto esta impede a tributação além da capacidade
contributiva, a imunidade do mínimo vital protege contra a incidência fiscal aquém da aptidão para
contribuir”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II.
Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 305.
339
Impostos, taxas, contribuições de melhoria, empréstimos compulsórios, contribuições especiais e a
contribuição sui generis para o custeio do serviço de iluminação pública.
340
“A capacidade contributiva é o próprio critério da aplicação da igualdade no caso de impostos com finalidade
fiscal”. – ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 359.
341
“Exemplificando, se um milionário e um mendigo comprarem, cada um para si, um maço de cigarros, da
mesma marca, suportarão a mesma carga econômica do imposto. Vemos, portanto, que não é da índole do
ICMS ser graduado de acordo com a capacidade econômica dos contribuintes. Nem dos impostos que, como
ele, são chamados, pela Ciência econômica, de indiretos (v.g., o IPI)”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op.
Cit., p. 102.
342
A respeito, vale lembrar o Acórdão proferido pelo plenário do STF no RE 153771, em que foi relator para o
Acórdão o Min. Moreira Alves, sufragando o entendimento de que a capacidade econômica é critério aplicável
somente aos impostos pessoais.
343
“In some settings, asymmetry in treatment among separate persons and groups in the political community
may be value-enhancing to all members, as might be evidenced by near-universal support […]”. –
BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as
public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 110.
344
ABREU, Sérgio. O princípio da igualdade: a (in)sensível desigualdade ou a isonomia matizada. In:
PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (orgs.). Os
princípios da Constituição de 1988. 2a. edição. Rio de Janeiro: 2006. pp. 325 e ss.
117

Por isso mesmo, temos que a capacidade econômica, aventada por praticamente toda a
doutrina técnica tributária como um princípio de justiça ligado à igualdade, não se reveste das
características de fundamentalidade ante a razão pública. Isso porque, de acordo com o
esquema de liberdades proposto em dada conjuntura política, é factível que a capacidade
econômica não seja adotada. Basta ver que a Constituição de 1988 adotou o critério de
capacidade econômica, mais amplo do que o da capacidade meramente contributiva (apesar
de a maior parte da doutrina confundi-los). Dizer que os dois são direitos fundamentais, ao
mesmo tempo, confundindo-os como se sinônimos fossem, é abrir uma bifurcação no
princípio da igualdade sob o prisma material, o que não pode ser considerado válido na
definição dos valores que conformam a estrutura básica da sociedade.
Ainda assim, a quase totalidade da doutrina técnica tributária afirma tratar-se de um
princípio 345 que se reveste das características de direito fundamental. Todos, sem exceção,
chamam de princípio da capacidade econômica, ou princípio da capacidade contributiva –
ainda que também o reconheçam como critério de aferição 346 (ou princípio operacional 347 ) da
igualdade 348 .
Ousamos discordar da doutrina tecnicista do direito tributário, no sentido de que a
capacidade econômica não é um princípio fundamental, ou mesmo que ela decorre da
igualdade 349 . Analisando a capacidade econômica em suas relações com os tributos, verifica-
se que ela é um critério para tributação, escolhido dentre outros possíveis para os impostos 350 ;

345
“Esse princípio tem caráter programático, servindo como norteador da atividade legislativa”. – HARADA,
Kiyoshi. Op. Cit., p. 387. Refutamos a tese de ‘princípios de conteúdo meramente programático’. Ora, ou bem
se trata de princípio, com carga axiológica, ou é um mero critério a ser utilizado na elaboração de normas.
Nesse sentido, Luiz Felipe Silveira Difini frisa que “o princípio da capacidade contributiva não é meramente
programático. Aliás, a doutrina moderna já não aceita a existência de regras jurídicas que não produzem
quaisquer conseqüências, [...]”. – DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op. Cit., p. 83; cf. também COELHO, Sacha
Calmon Navarro. Os princípios gerais do direito tributário na Constituição. In: MARTINS, Ives Gandra da
Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007. Há
decisões do STF no sentido de que se trata de um princípio. Vide, por exemplo, a decisão no RE 239964, de
lavra da Primeira Turma (Rel. Min. Ellen Gracie, publicada no DJ de 09/05/2003).
346
Cf. o Acórdão proferido na ADI 453, no qual o STF entendeu que não houve, na exação em tela, vulneração
ao “princípio da isonomia, haja vista o diploma legal em tela ter estabelecido valores específicos para cada
faixa de contribuintes, sendo estes fixados segundo a capacidade contributiva de cada profissional”.
347
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 54.
348
Realçando o caráter instrumental da capacidade contributiva, Luiz Felipe Silveira Difini destaca que “os
princípios da proporcionalidade e da capacidade contributiva não infirmam, antes complementam ou realizam
o princípio da isonomia”. – DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op. Cit., p. 79.
349
RIBEIRO, Ricardo Lodi. A constitucionalização do direito tributário. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de;
SARMENTO, Daniel (coords.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações
específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 1003.
350
Com isso, afastamo-nos terminantemente da concepção exposta por Paulo Caliendo, para quem a capacidade
contributiva “representa, no direito pátrio, o único fator de discriminação legítima, não somente como fator de
tributação, mas também como critério de gradação de tributos”. – CALIENDO, Paulo. Op. Cit., p. 392.
118

esse critério agrega-se ainda a outros 351 na Constituição 352 (considerados válidos pela
doutrina para os tributos com função extrafiscal, por exemplo 353 ). Ao invés de decorrer da
igualdade, a capacidade contributiva se mostra como um instrumento para o legislador, que
conduz à igualdade 354 .

De cinco maneiras se traduzem os critérios de comparação:


1. na proibição de distinguir (universalmente) na aplicação da lei, em que o
valor básico protegido é a segurança jurídica;
2. na proibição de distinguir no teor da lei, vedação que salvaguarda valores
democráticos como abolição de privilégios e de arbítrio. Os princípios da
generalidade e da universalidade estão a seu serviço e têm como
destinatários todos aqueles considerados iguais;
3. no dever de distinguir no conteúdo da lei entre os desiguais, e na medida
dessa desigualdade. No Direito Tributário, o critério básico que mensura a
igualdade ou a desigualdade é a capacidade econômica do contribuinte;
4. no dever de considerar as grandes desigualdades econômico-materiais
advindas dos fatos, com o fim de atenuá-las e restabelecer o equilíbrio
social. A progressividade dos tributos favorece a igualação das díspares
condições concretas, em vez de conservá-las ou acentuá-las;
5. na possibilidade de derrogações parciais ou totais ao princípio da
capacidade contributiva pelo acolhimento de outros valores constitucionais
como critérios de comparação, os quais podem inspirar progressividade,
regressividade, isenções e benefícios, na busca de um melhor padrão de
vida para todos, dentro dos planos de desenvolvimento nacional integrado e
harmonioso.

351
“[a capacidade contributiva] É o critério de comparação que inspira, em substância, o princípio da igualdade.
Mas não é o único”. – DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas de atualização a BALEEIRO, Aliomar.
Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio
de Janeiro: Forense, 2005, p. 380.
352
Damos, como exemplo, a razoabilidade, frisada por Paulo Caliendo como parâmetro amplamente utilizado
pelo STF na aplicação do princípio da igualdade a casos concretos. CALIENDO, Paulo. Op. Cit., p. 413. A
respeito, Humberto Ávila aponta que “o essencial para a aplicação do princípio da igualdade, segundo o
postulado da razoabilidade-congruência, é a utilização de critérios reais, objetivos e permanentes. Além disso,
uma vez escolhido o critério, ele deve ser aplicado da mesma forma – e de maneira conseqüente – para todos
os sujeitos envolvidos”. – ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 340.
353
“Na extrafiscalidade, em muitos casos, a capacidade contributiva é posta de lado, de forma total ou parcial” –
Id. Ibid., p. 381.
354
Pautamo-nos, em termos concretos, na decisão da ADI 1643, na qual o STF entendeu que "Não há ofensa ao
princípio da isonomia tributária se a lei, por motivos extrafiscais, imprime tratamento desigual a
microempresas e empresas de pequeno porte de capacidade contributiva distinta, afastando do regime do
simples aquelas cujos sócios têm condição de disputar o mercado de trabalho sem assistência do Estado."
(ADI 1.643, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 5-12-02, DJ de 14-3-03). Note-se que a capacidade
contributiva autorizou o tratamento diferenciado entre empresas que aparentemente estariam na mesma
situação jurídica – o que seria a base do princípio da isonomia tributária nos termos do art. 150, II, da
Constituição. Fosse a capacidade contributiva decorrente da isonomia, a lei forçosamente seria julgada
inconstitucional. No entanto, o fato concreto de os sócios das empresas terem maiores condições de acesso a
melhores posições no mercado levou ao discrímen da lei tributária. Ou seja, a capacidade contributiva seria um
instrumento conducente à igualdade material – o que levou ao reconhecimento da constitucionalidade da lei
discriminatória.
119

Em nenhuma dessas cinco maneiras, por meio das quais agrupamos os


distintos critérios de comparação (igualdade material), quebra-se o conceito
de igualdade formal. 355

A economia política, por sua vez, origem do critério da capacidade contributiva,


também apresenta outras maneiras de enfocar o problema da igualdade fiscal: benefícios
advindos do Estado, talento pessoal, sacrifícios máximos, sacrifícios mínimos, sacrifícios
proporcionais são algumas das idéias difundidas para a questão da tributação justa. 356
Logo, como critério que é, a capacidade contributiva não pode ser erigida à máxima de
princípio inerente à democracia, ou de direito fundamental 357 . Caso se tratasse realmente de
um direito fundamental (com todas as características de um direito fundamental, vistas no
capítulo 1 da presente), a capacidade contributiva não poderia encontrar barreiras pelo
intérprete para sua aplicação 358 . Seria aplicável, não apenas aos impostos (mas a todos os
tributos), ainda que de função extrafiscal, aos tributos reais e pessoais, aos tributos diretos e
indiretos 359 , etc., à exceção somente das ressalvas que a própria Constituição estabelecesse –
como se tem com relação a qualquer outro direito fundamental.
Não é coincidência, portanto, que esse critério esteja positivado no texto constitucional
fora da Seção das limitações ao poder de tributar, valendo relembrar que “na justiça como
eqüidade (‘justice as fairness’) os direitos fundamentais são tomados como invioláveis e não
podem estar sujeitos à negociação política ou se tornar moeda corrente nos cálculos dos
interesses do bem-estar social” 360 .

355
DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 530.
356
Cf. NAGEL, Thomas; MURPHY, Liam, Op. Cit., pp. 18 e ss.; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 690-691; e MOTA FILHO, Humberto Eustáquio
César. Op. Cit., p. 49.
357
“Os princípios fundamentais de leis gerais da República podem ser regras precisas e densas mas que
assumem num determinado contexto material a dimensão de fundamentalidade”. – CANOTILHO, José
Joaquim Gomes. Op. Cit., p. 804. No mesmo sentido, já abordando o princípio da igualdade: “Ao princípio
como enunciado modelar, na medida em que se trata de constriuir as instituições, de desenvolvê-las, ou de
adequar os fatos às instituições, corresponde um enunciado prescritivo. Por exemplo: ‘todos os homens devem
ser tratados igualmente perante a lei’. Mas, desde que incorporado ao sistema, esse princípio pode ser lido na
forma declaratória: ‘todos os homens são iguais perante a lei’”. – CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios
constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 10.
358
“Quando os impostos tiverem uma justificação e uma finalidade extrafiscal, enquanto instruídos com o
propósito prevalente de atingir fins econômicos ou sociais, já não será o princípio da capacidade contributiva a
medida de diferenciação entre os contribuintes. [...] E – eis o decisivo – ao justificar a instituição de um
imposto em algum fim estatal o legislador afastar-se-á do direito fundamental da igualdade segundo a
capacidade econômica dos contribuintes”. – CALIENDO, Paulo. Op. Cit., pp. 416-417.
359
Não podemos esquecer que, com relação a esses tributos, há quem estabeleça que a seletividade seria uma
adaptação da capacidade contributiva à esfera do possível (cf. por exemplo, DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op.
Cit., p. 88). Todavia, o próprio fato de o legislador do ICMS ser facultado a instituir a seletividade (art. 155,
§2o, III, da CRFB) já demove qualquer possibilidade de atribuir fundamentalidade a esse critério.
360
GODOI, Marciano Seabra de. Op. Cit., p. 47.
120

Por outro lado, a idéia de capacidade contributiva como princípio do Sistema


Tributário Nacional pode levar a algumas distorções que (essas, sim) põem em risco direitos
fundamentais, como, por exemplo, a penhorabilidade do bem de família em caso de falta de
recolhimento de seu respectivo IPTU, ou a afirmação de que “pouco importa se o contribuinte
que praticou o fato imponível do imposto não reúne, por razões personalíssimas (v.g., está
desempregado), condições para suportar a carga tributária” 361 .
Não nos esquivamos da idéia de que, atualmente 362 , é bastante factível dizer-se que a
capacidade contributiva é um critério razoável para se chegar à igualdade tributária
material 363 ; todavia, não se pode esquecer que as gerações mudam, e, com elas, as opiniões
sobre os critérios – e, mais importante ainda, as impressões sobre os resultados 364 de sua
aplicação na sociedade como um todo. Relembre-se que “mesmo convicções firmes podem
mudar gradualmente” 365 .
A capacidade contributiva não é um fim a ser protegido, é um meio – dentre alguns
outros, frise-se 366 – para se chegar à igualdade (esta, sim, concebida como um direito inerente
ao Estado democrático de Direito 367 ).
Basta ver-se, por exemplo, a concepção exposta por Thomas Nagel e Liam Murphy,
para quem

361
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 90-91.
362
“Desde el momento en que los tributos pertenecen al mundo del derecho, deben ser establecidos conforme a
un postulado de justicia: en la actualidad existe acuerdo en que dicho postulado es la capacidad contributiva”.
– ETCHEGOYEN, Marcos F. García. El sistema tributario y la necesidad de vigencia del principio de
capacidad contributiva. In: CASÁS, José Osvaldo (coord.). Interpretación económica de las normas
tributarias. Buenos Aires: Ábaco de Rodolfo Depalma, 2004, pp. 271-272.
363
“El justo reparto de la carga tributaria individual requiere una medida de la igualdad, determinada por la
capacidad económica entendida como riqueza disponible. La capacidad económica debe determinar el reparto
de la carga impositiva individual”. – MOLINA, Pedro Manuel Herrera. Op. Cit., p. 121.
364
“Además, para que la diferenciación que pueda establecer una ley fiscal sea constitucionalmente lícita, no es
suficiente con que lo sea el fin que con ella se pretende conseguir, sino que es indispensable además que las
consecuencias jurídicas que resulten de tal distinción sean adecuadas y proporcionadas a dicho fin, [...]”. –
NOVOA, Cesar García. Op. Cit., p. 342.
365
RAWLS, John. A teoria da justiça como eqüidade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene A.
Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 208.
366
Uma vez que a capacidade contributiva “constituiria o critério fundamental para se estabelecerem categorias
essenciais com tratamentos próprios; todavia, outros valores plasmados em normas constitucionais podem
também justificar discriminações legislativas”. – GODOI, Marciano Seabra de. Op. Cit., p. 193.
367
“Do ponto de vista da igualdade material, os diferentes aspectos, os distintos critérios de comparação não são
incompossíveis ou contraditórios. São apenas aspectos de um mesmo fenômeno, compondo um todo unitário
de sentido e de valor, que se complementam: segurança jurídica, generalidade e abolição de privilégios,
graduação de tributos de acordo com a capacidade contributiva, igualação de oportunidades e redução das
grandes disparidades sócio-econômicas para o desenvolvimento nacional harmonioso (progressividade,
incentivos, prêmios e extrafiscalidade). A unidade está na construção do Estado Democrático de Direito de que
a igualdade é esteio fundamental (arts. 1o a 3o da Constituição)”. – DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas
e BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 530-531. Cf. também GODOI, Marciano Seabra de.
Op. Cit., pp. 183 e 193, donde destacamos que “o princípio que orienta a justiça tributária é o princípio da
igualdade, sendo a capacidade contributiva um subprincípio importante e atuante, mas não o único”.
121

[...] essa abordagem como um todo é falha em seus fundamentos. Se a


distribuição produzida pelo mercado não é justa por pressuposto, os retos
critérios de justiça distributiva não farão referência alguma a essa
distribuição, nem mesmo tomando-a como base. A justiça distributiva não é
a aplicação de uma função aparentemente eqüitativa a uma distribuição
inicial de bem-estar moralmente arbitrária. Apesar dos pressupostos
implícitos de muitas pessoas, a justiça de um esquema tributário não pode
ser avaliada pelo fato de as alíquotas médias aumentarem suficientemente à
medida que a renda cresce. Além disso, como já vimos, uma vez rejeitado o
pressuposto de que a distribuição de bem-estar produzida pelo mercado é
justa, já não podemos defender princípios de justiça tributária sem fazer
apelo também a princípios mais amplos de justiça governamental. Se a
distribuição produzida pelo mercado não é justa por pressuposto, o governo
deve empregar os meios tributários e as políticas de gastos que mais
atendem aos critérios corretos de justiça; não há sentido em fazer questão de
que a política tributária seja justa em si e ao mesmo tempo ignorar a justiça
dos gastos governamentais. [...] o objetivo da eqüidade vertical da
tributação não tem sentido fora do contexto mais geral da justiça dos gastos
do governo. E, quando passamos a tentar resolver essa outra questão, de
quais são as metas distributivas de um governo justo, a idéia vaga de uma
“capacidade contributiva” já não tem mais nada a nos dizer. 368

De todo modo, reconhecemos que a discussão é profunda e comportaria mesmo uma


pesquisa em separado, unicamente para essa averiguação. A própria diversidade com que a
capacidade contributiva é tratada, mesmo entre aqueles que a entendem como um princípio, já
denota isso. Diogo Leite de Campos afirma textualmente, nesse sentido, que a densificação
do núcleo conceitual da capacidade contributiva ainda está muito longe 369 . Porém, as breves
linhas acima já demonstram, de modo resumido, que a capacidade contributiva se afigura
mais como um procedimento conducente à igualdade do que um princípio distinto, inerente ao
Estado democrático de Direito, como insiste a doutrina tecnicista do direito tributário.
Assim sendo, verifica-se que, de fato, o art. 150, II, da Constituição, ao exigir o
tratamento tributário igualitário entre contribuintes que se encontrem na mesma situação
jurídica, é cláusula pétrea ante a razão pública. Da mesma forma, o art. 151, I, ao exigir a
uniformidade geográfica, e o art. 151, II, in fine, ao exigir igualdade no tratamento entre os
funcionários públicos dos diversos entes da Federação. O art. 152, por sua vez, ao consagrar a

368
NAGEL, Thomas; MURPHY, Liam. Op. Cit., pp. 43-44. No mesmo sentido, GODOI, Marciano Seabra de.
Op. Cit., p. 215, para quem “em resumo, a capacidade contributiva tem um lugar muito importante [...],
todavia não deve ser vista como encarnando totalmente em si o próprio princípio da igualdade tributária, pois
o critério da capacidade contributiva não tem condições de, no contexto de um Estado Democrático de Direito,
fundamentar a totalidade do fenômeno tributário, o qual por sua vez não deve ser visto como algo isolado, mas
como algo integrado nos valores que plasmam a justiça constitucional”.
369
CAMPOS, Diogo Leite de. Op. Cit., p. 103.
122

reciprocidade econômica, exigindo tratamento igualitário entre bens e serviços em razão de


sua procedência ou destino, também é de ser considerado dispositivo jusfundamental.

3.3.3 A irretroatividade.

A irretroatividade (ou prévia definição legal do fato gerador 370 ) está prevista no artigo
150, III, a, da Constituição. Significa, conforme o próprio texto constitucional o diz, que
todos os entes da Federação estão proibidos de exigir ou aumentar tributos relativamente a
situações jurídicas ocorridas antes da vigência da lei que os houver instituído ou
aumentado 371 .
Referimo-nos a situações jurídicas e não a fatos geradores por acolhermos as críticas
tecidas, dentre outros, por Luciano Amaro, para quem

o texto não é feliz ao falar em fatos geradores. O fato anterior à vigência da


lei que institui tributo não é gerador. Só se pode falar em fato gerador
anterior à lei quando esta aumente (e não quando institua) tributo. O que a
Constituição pretende, obviamente, é vedar a aplicação da lei nova, que
criou ou aumentou tributo, a fato pretérito, que, portanto, continua sendo
não gerador de tributo, ou permanece como gerador de menor tributo,
segundo a lei da época de sua ocorrência 372 .

Essa não é a única crítica feita ao dispositivo. Há quem diga, ainda, que o dispositivo
em si já era desnecessário, porquanto a Constituição, genericamente, já protege, em seu art.
5o, XXXVI 373 , o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada dos efeitos
provocados pela retroação das leis 374 . Justifica-se, para esses autores, o dispositivo especial
em sede de tributação, por razões de conteúdo histórico, relativamente aos malfadados

370
SILVA, José Afonso. da. Op. Cit., p. 691.
371
De se frisar, desde já, que “a proibição constitucional, note-se, é apenas quanto a leis que criam ou aumentam
tributos. Em outros casos, lei infraconstitucional pode determinar validamente que leis tributárias tenham
efeitos retroativos, [...]”. – DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Manual de direito tributário. 3a. edição. São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 78.
372
AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 118. Cf. ainda HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., p. 384; e CARRAZZA, Roque
Antonio., Op. Cit., p. 342.
373
“A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
374
Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., pp. 161-162. Humberto Ávila defende que a previsão ainda “é
complementada pelos dispositivos constitucionais que garantem o Estado de Direito (art 1o), a segurança (art.
5o [caput]”. Op. Cit., p. 142.
123

empréstimos compulsórios ou, ainda, pela questão da modificação legislativa do imposto de


renda no curso do ano, aplicável para o mesmo ano-base 375 .
De todo modo, a despeito da técnica legislativa, a reprodução da regra da
irretroatividade para a esfera tributária não causa prejuízo algum ao sistema, mostrando-se um
comando 376 específico tanto para o legislador quanto para o aplicador da lei 377 , a tornar claro
para seus destinatários que, a par do respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à
coisa julgada (o que traria um certo risco de adaptação desses institutos genéricos ao direito
tributário), o legislador está proibido de exigir ou aumentar tributos com relação a fatos
pretéritos 378 .
A irretroatividade é considerada regra das mais importantes, por materializar os
chamados princípios da segurança jurídica 379 e da confiança legítima, uma vez que o cidadão
pode praticar seus atos sem se preocupar com o porvir 380 – especialmente em sede de
tributação. “Se houvesse um país no mundo onde estivesse admitida a retroação das leis, não

375
Não nos deteremos a investigar esses dois casos por refugirem ao tema da pesquisa. Todavia, para uma leitura
mais aprofundada recomenda-se os Comentários à Constituição de 1988 de Sacha Calmon Navarro Coelho, as
notas promovidas por Misabel Derzi à obra Limitações constitucionais ao poder de tributar do prof. Aliomar
Baleeiro, o Curso de Direito Tributário do prof. Paulo de Barros Carvalho e ainda o vol. II do Tratado de
direito constitucional financeiro e tributário do prof. Ricardo Lobo Torres.
376
Humberto Ávila destaca ter a irretroatividade uma dupla acepção, como regra e também como princípio. Op.
Cit., p. 142.
377
AMARO, Luciano. Op. Cit., pp. 118-119.
378
Com isso, as considerações legais acerca da irretroatividade afastam-se da concepção desenvolvida por
Bernardo Ribeiro de Moraes, para quem, ainda que na órbita tributária, a retroatividade é a regra, tendo como
exceções o respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada. MORAES, Bernardo
Ribeiro de. Op. cit., pp. 156-159.
379
“A segurança jurídica consiste no ‘conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento
antecipado e reflexivo das conseqüências diretas de seus atos e de seus fatos à luz liberdade reconhecida’.
Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza de que os indivíduos têm de que as
relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída”. –
SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 433.
380
Tércio Sampaio Ferraz Jr., de modo quase poético, expõe a situação pelo seguinte ponto-de-vista: “Trata-se
do tempo cronológico, caracterizado pela irreversibilidade de um momento indefinido no futuro, e que tem
uma qualidade entrópica (tudo morre), como se vê pela segunda lei da termodinâmica [...]. Neste inelutável
tempo físico introduz-se a cultura (ética, direito) como a capacidade de retomada reflexiva do passado e
antecipação reflexiva do futuro. É a capacidade de reinterpretar o passado (sem anulá-lo ou apagá-lo) – por
exemplo, pela responsabilização por aquilo que aconteceu – e de orientar o futuro (sem impedir que ele
ocorra) – por exemplo, usando-o como finalidade reguladora da ação. Entre o passado e o futuro o tempo
cultural aparece, assim, como duração, cuja experiência se dá no presente, vivido como um contínuo. A
duração, desse modo, liga o passado e o futuro: torna o passado (que não é mais) algo ainda interessante e faz
do futuro (que ainda não ocorreu) um crédito, base da promessa. A questão está em como estabelecer esse
liame e dar consistência à duração, isto é, evitar que um passado, de repente, se torne estranho, um futuro,
algo opaco e incerto, e a duração, uma coleção de surpresas desestabilizadoras da vida. Afinal, se o sentido
de um evento passado pudesse ser alterado ou o sentido de um evento planejado pudesse ser modificado ao
arbítrio de um ato presente, a validade dos atos humanos estaria sujeita a uma insegurança e incerteza
insuportáveis”. – FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Anterioridade e irretroatividade no campo tributário. In:
TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a
Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 235.
124

haveria nele nem mesmo sombra de segurança” 381 . A irretroatividade, portanto, ao determinar
que a lei que determina a incidência tributária seja sempre prospectiva382 , garante estabilidade
125

O problema é que a edição (e subseqüente vigência) da própria lei com efeitos


prospectivos não se traduz em garantia de irretroatividade 388 . Daí advém a interpretação de
que o que o texto constitucional não permite é a produção de efeitos concretos retroativos da
norma, independentemente de sua vigência, provocando a chamada “irretroatividade material
(o que não pode retroagir, a rigor, não é apenas a lei geral [...] mas o próprio direito que venha
a ser revelado pela lei nova, [...]” 389 .
De qualquer modo, vale realçar a opinião de que “em um ou outro caso, as
conseqüências são as mesmas, porque, alterando-se os efeitos jurídicos já desencadeados, a lei
nova terá modificado fato pretérito” 390 .
Também é digna de nota a expressão fato trazida pelo constituinte. O fato em si pode
significar a ocorrência concreta de um negócio jurídico, o que é diferente e muitas vezes
economicamente menos importante do que a produção de efeitos do mesmo ato. A doutrina,
então, conciliou o entendimento de que tanto o ato jurídico como as conseqüências desse
ato 391 estão protegidas pela irretroatividade da lei tributária 392 .
A irretroatividade, ao nosso ver, mostra-se afeta à razão pública, atendendo ao critério
de legitimação ao proteger os valores do bem comum; a razoabilidade; e as garantias dos
exercícios dessas liberdades e valores 393 .
Não se pode pensar num regime efetivamente democrático se as condutas adotadas
pelos cidadãos estão sempre sob a incerteza do porvir 394 . Da mesma forma, os atos praticados

388
“A vigência pode ser posposta (o prazo pode contar tantos dias da sua publicação, mas sempre para frente,
não para trás). Não há, pois, como contar esse tempo antes de sua publicação: isto decorre de uma
impossibilidade lógica, pois mesmo que se quisesse ‘retroagir’ a vigência, a cronologia o impediria – o tempo
é irreversível. Mas ela [a lei] pode ter eficácia retroativa. A partir do momento em que ela vale, isto é, é
vigente, seus efeitos podem retroagir, e a norma, imperar sobre o passado. A eficácia tem a ver com a
possibilidade de produzir efeitos. Essa possibilidade é prospectiva ou retroativa. Nada impede que, a despeito
da cronologia (vigente a partir de um momento em direção ao futuro), o destinatário da norma possa
considerá-la, a partir de quando ela vale, como produzindo efeitos sobre fatos e atos já sucedidos. Neste
sentido, a sua força ou império pode atingir o passado. É o fenômeno da retroatividade cuja possibilidade e
regulada pelo princípio da irretroatividade”. – FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. Cit., p. 237. Cf. ainda
MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 156.
389
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 286.
390
DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11a. edição.
Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 666.
391
Cf. TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de
Janeiro: Renovar, 2005, p. 513, com esteio em Klaus Tipke.
392
“Seguindo esse entendimento e sendo a segurança jurídica um sobreprincípio constitucional fundamental, o
intérprete deverá considerar vedada a modificação retroativa das conseqüências jurídicas”. – ÁVILA,
Humberto. Op. Cit., p. 152.
393
Misabel Derzi ainda relaciona a irretroatividade à igualdade e à evolução do Direito. Cf. suas notas de
atualização a BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi
(atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 650 e ss.
394
“Quando o Poder Legislativo baixa leis retroativas, altera as condições básicas do Estado de Direito,
quebrando, irremediavelmente, a confiança que as pessoas devem ter no Poder Público. Com efeito, elas já não
126

pelos indivíduos de uma sociedade não podem estar sempre ameaçados de uma modificação
do tratamento jurídico ex post facto 395 . Assim fosse, não haveria a menor garantia de
segurança das liberdades dos homens, restando falido o Estado democrático de Direito 396 .
Com isso, percebe-se que a idéia de uma sociedade bem ordenada, inerente ao bem
comum, não se sustenta em caso de uma constante ameaça de retroação legislativa.
Igualmente, admitir-se que as normas possam retroagir para tributar atos pretéritos é
algo altamente irrazoável e que dá azo ao arbítrio.
Por fim, não se poderia cogitar de garantia do exercício de qualquer liberdade no caso
de uma mínima ameaça de retroatividade tributária.
Por isso mesmo, a regra inserta no art. 150, III, a, da Constituição, é base jurídica do
Estado democrático de Direito, mostrando-se afeta à esfera de imparcialidade política dos
cidadãos.

3.3.4 A anterioridade.

A anterioridade encontra-se prevista na Constituição, nas alíneas b e c do inciso III de


seu art. 150. A chamada anterioridade veda aos três entes da Federação a cobrança 397 de
tributos dentro de um determinado período após a publicação da lei que os institui ou majora:
na redação original da Carta, exigia-se que o tributo fosse cobrado somente no exercício
financeiro seguinte ao da publicação da lei (alínea b); após a Emenda Constitucional nº
32/2001, exigiu-se ainda um interstício mínimo de noventa dias para essa cobrança (alínea c).

têm segurança, pois ficam à mercê não só do Direito vigente (o que é normal), mas, também, de futuras e
imprevisíveis decisões políticas, que se podem traduzir em regras retroativas. Se isto acontece, o Estado de
Direito soçobra”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 342.
395
Nesse sentido, “O princípio da irretroatividade da lei tributária deve ser visto e interpretado, desse modo,
como garantia constitucional instituída em favor dos sujeitos passivos da atividade estatal no campo da
tributação. Trata-se, na realidade, à semelhança dos demais postulados inscritos no art. 150 da Carta Política,
de princípio que — por traduzir limitação ao poder de tributar — é tão-somente oponível pelo contribuinte à
ação do Estado." (STF – ADI 712-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-10-92, DJ de 19-2-93).
396
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 144. “Outra inteligência justificaria a instalação do império da incerteza nas
relações entre o Fisco e o contribuinte, o que contraria o regime de direito público e o próprio princípio
republicano”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 348.
397
127

A anterioridade anual (alínea b) é denominada princípio por praticamente todos os


398
autores , à exceção de Humberto Ávila – o qual, mesmo reconhecendo-lhe um duplo
aspecto de regra e de princípio, chama-a de regra após analisar o teor das decisões do
Supremo Tribunal Federal em relação à revogação das isenções 399 ; já a anterioridade
nonagesimal (alínea c) curiosamente não ganha esse mesmo status pela mesma parcela da
doutrina, sendo chamada por alguns doutrinadores simplesmente de regra da noventena 400 .
É possível que a distinção acima exista por razões históricas, já que a anterioridade
anual tem como origem histórica no Direito pátrio a antiga exigência de prévia autorização
orçamentária, chamada no ordenamento constitucional anterior de anualidade tributária.

Por sua vez, o princípio da anterioridade nasceu de um paradoxo bem


brasileiro, como lembra Aliomar Baleeiro. Consagrado o princípio da
autorização orçamentária de forma inequívoca na Constituição de 1946,
começam-lhe as violações na ordem dos fatos, infringências que
culminaram em sua substituição pelo princípio da anterioridade 401 .

Assim, é bastante factível que motivos culturais provoquem essa diferença entre as
denominações da anterioridade anual (como princípio) e da nonagesimal (como regra) por
parte dos juristas.
Trata-se de dispositivo com comando duplo, tanto para o legislador quanto para o
aplicador da lei tributária promulgada 402 .

398
Ricardo Lobo Torres, ao discorrer sobre o assunto, mesmo entendendo que a acepção da anterioridade como
regra ou princípio é um problema preliminar, “tendo em vista que possui contorno fechado, referido a
momento determinado no tempo”, termina por caracterizá-la como princípio, dado que “a distinção entre
princípios e regras não é tão categórica”. – TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional
Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 559. Ousamos discordar de sua opinião,
conforme explicado no capítulo 4 da presente.
399
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., pp. 153-155. Essa análise tomou por base um entendimento diferente, mais
antigo, do STF, não considerando a decisão na ADI-MC 2325, na qual o Supremo considerou que a
anterioridade era aplicável também para as revogações de isenções, por significar concretamente majoração de
tributo.
400
HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., pp. 385-386.
401
DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 51. Cf.
ainda TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de
Janeiro: Renovar, 2005, pp. 557 e ss. Interessante destacar, a respeito, o dado levantado por Tércio Sampaio
Ferraz Jr.: “Importante notar, inicialmente, que a tese adotada pela Comissão de Estudos Constitucionais, em
seu Anteprojeto de Constituição (art. 72, IV), propunha: ‘Compete à União instituir impostos sobre: [...] IV –
renda e proventos de qualquer natureza, cujo fato gerador coincidirá com o término do exercício financeiro da
União’. O posicionamento histórico era bastante claro. Mas o texto aprovado na Constituinte foi menos
explícito: veda-se cobrar tributos ‘b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os
instituiu ou aumentou’. É verdade que, conjugando-se o dispositivo citado com a interpretação histórica, não
seria difícil descobrir o seu sentido.” – FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. Cit., p. 240.
402
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 186.
128

De todo modo, a anterioridade é relacionada pelos doutrinadores como um dos esteios


da segurança jurídica dos cidadãos 403 , porquanto a exigência de uma vacatio legis tributária
constitucional 404 garante previsibilidade aos indivíduos quanto aos tributos que o Estado
institui ou majora ao longo do tempo. Nesse tom, a anterioridade materializaria o chamado
princípio da não-surpresa 405 do contribuinte, inerente ao Estado Democrático de Direito,
permitindo aos cidadãos planejar 406 suas vidas 407 diante de uma modificação legislativa de tão
alto talante como a instituição ou o aumento 408 da incidência tributária 409 .

Graças ao princípio da anterioridade, os destinatários imediatos da lei


criadora ou majoradora de tributos (Fisco e contribuinte), conhecendo-a,
podem preparar-se para bem cumpri-la. Noutro giro, este princípio permite
que o virtual contribuinte (a pessoa genericamente indicada na lei) possa,
em alguns casos, livrar-se da tributação, evitando o comportamento que o
tornará sujeito passivo da obrigação tributária correspondente 410 .

A anterioridade é plenamente aplicável para os tributos com função fiscal (salvo com
relação ao Imposto de Renda e à definição das bases de cálculo de IPVA e IPTU, para os
403
“A anterioridade [...] objetiva implementar o sobreprincípio da segurança jurídica, de modo que o
contribuinte não seja surpreendido com exigência tributária inesperada”. – CARVALHO, Paulo de Barros. Op.
Cit., p. 160. No mesmo sentido, CARVALHO, Cristiano Rosa, Op. Cit., p. 894.
404
MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 100.
405
ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da, Op. Cit., pp. 292-293, colocando a anterioridade no mesmo patamar
da legalidade como “esteio fundamental para a defesa do contribuinte contra o abuso por parte do Estado”.
406
“[...] o que se enfatiza é a proteção do contribuinte contra a surpresa de alterações tributárias ao longo do
exercício, o que afetaria o planejamento de suas atividades”. – AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 123.
407
Tércio Sampaio Ferraz Jr., assim como o fez ao tratar da irretroatividade, discorreu quase que poeticamente
acerca da anterioridade: “Já a anterioridade diz respeito à duração. A salvaguarda contra a surpresa exige a
periodicidade, que confere aos eventos um mínimo de durabilidade. Por isso, em todas as culturas, o tempo é
dividido e contado. Trata-se de dar ao tempo presente uma consist6encia, fazendo dele um todo extenso e
compacto, entre um começo e um fim, dentro do qual os eventos são solidários. Sem essa divisão e essa
contagem, o homem não conseguiria planejar a sua ação. O princípio da anterioridade periodiza o tempo e lhe
dá um sentido de unidade, protegendo os eventos que dentro dela acontecem contra alterações legais que
ocorram no período. Não se trata de impedir as revisões legais, mas de garantir que as mudanças que elas
trazem contra o sobressalto e a surpresa. Sem essa garantia, os eventos não duram (perdem legitimidade). O
estabelecimento de períodos (um dia, um mês, um ano), dentro dos quais a lei nova não produz efeitos, é,
assim, vital para o implemento da segurança jurídica”. – FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. Cit., p. 236.
408
“Impende notar que a lei que de algum modo beneficia o contribuinte não precisa obedecer ao princípio da
anterioridade. É que este princípio milita em seu favor; nunca em seu detrimento”. – CARRAZZA, Roque
Antonio. Op. Cit., p. 196.
409
“Por outro lado, o princípio da anterioridade da lei tributária diz respeito apenas à lei tributária formal, em
nada influindo no seu regulamento”. – MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 110. Ainda de se frisar o
entendimento do STF com relação à expressão “cobrar tributos”: “"O preceito constitucional não especifica o
modo de implementar-se o aumento. Vale dizer que toda modificação legislativa que, de maneira direta ou
indireta, implicar carga tributária maior há de ter eficácia no ano subseqüente àquele no qual veio a ser feita.”
(ADI 2.325-MC, excerto de voto do Min. Marco Aurélio, DJ de 6-10-06).
410
Id. Ibid., p. 196. Repelimos a última assertiva, uma vez que não nos parece razoável que uma regra ditada
pelos próprios contribuintes (considerando a máxima da legalidade) sirva para que eles mesmos escapem de
suas próprias determinações (mais uma vez relembrando a máxima da legalidade) em sede de tributação, que
só existe para financiar a estrutura estatal que os mantém em condições de convivência e desenvolvimento
pacíficos.
129

quais se aplica somente a regra anual), sendo mitigada tanto na regra anual quanto na
nonagesimal relativamente a tributos com função extrafiscal 411 , a teor do parágrafo 1o do art.
150 da Constituição da República.
A questão da não-surpresa mostra-se digna de nota, uma vez que ela segue um
raciocínio inverso do preconizado pelo princípio da legalidade – abordado anteriormente. Se,
pelo princípio da legalidade, o tributo é instituído pelo próprio povo mediante seus
representantes, exatamente para evitar o arbítrio do Estado nesse segmento fundamental das
restrições à liberdade dos indivíduos, falar-se que o povo deve se precaver contra as mudanças
tributárias (ou instituições de tributos) promovidas pelo Estado 412 (como se os cidadãos nesse
momento ficassem distantes da deliberação sobre os tributos) é, no mínimo, interessante. É
analisar o mesmo objeto – criação ou majoração de tributos – por dois prismas absolutamente
diferentes, sem uma explicação plausível para tal.
Por essas caracteristicas, a anterioridade não possui esteio na esfera de imparcialidade
política, não havendo meio de se afirmá-la como justificável pela razão pública.
O argumento utilizado para a anterioridade é a segurança jurídica, segundo a qual os
contribuintes podem planejar suas vidas antes da chegada do tributo.
Ocorre que, se nós partirmos do pressuposto básico da própria legalidade, de que os
tributos só podem ser exigidos em caso de (e nos limites da) autorização dos cidadãos, a
concepção de que um prazo de vacância para o início da cobrança é inerente à deliberação
democrática chega a ser contraditória.
Segundo a legalidade, considerada sobre bases de democracia deliberativa, são os
próprios cidadãos que aprovam o tributo. Ou seja, ao longo do processo legislativo cria-se
uma expectativa, de relevância crescente à medida que o processo legislativo avança – e,
conseqüentemente, o(s) procedimento(s) de deliberação democrática se desenrola(m) –, de
que o tributo venha a ser instituído ou aumentado.
Assim, os próprios cidadãos, enquanto autorizadores da incidência tributária, sabem
(ou deveriam saber) que existe uma iminência de cobrança. Conseqüentemente, a preparação,

411
“Costuma-se denominar de extrafiscal aquele tributo que não almeja, prioritariamente, prover o Estado dos
meios financeiros adequados a seu custeio, mas antes visa a ordenar a propriedade de acordo com a sua função
social ou a intervir em dados conjunturais (injetando a moeda em circulação) ou estruturais da economia”. –
DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar, Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 576.
412
“De fato, o Estado tem a faculdade de criar novos tributos ou majorar os existentes quando quiser, mas sua
cobrança fica diferida para o exercício seguinte ao da publicação da lei que os instituiu ou aumentou”. –
HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., pp. 384-385. Igualmente, Roque Antonio Carrazza, para quem a anterioridade
permite que “os contribuintes saibam o que os aguarda, no campo da tributação, e, bem por isso, confiem no
Estado Fiscal [...]”. Op. Cit., p. 196.
130

pelos cidadãos, para o início da cobrança dos tributos, deixa de ser um direito fundamental
para ser uma questão de precaução dos cidadãos. O mais previdente saberá que há risco de
início de cobrança do tributo e poupará o suficiente para seu pagamento. No entanto, o
cidadão que não for tão zeloso com suas finanças, correrá o risco de se ver temporariamente
em dificuldades financeiras. Mas isso não pode ser erigido à categoria de direito fundamental.
Assim é que,

[...] de acordo com os critérios democrático-deliberativos, o princípio da


anterioridade tributária não seria materialmente fundamental. A cobrança de
um tributo no mesmo exercício financeiro em que foi instituído não implica,
efetivamente, uma violação das condições para a cooperação na deliberação
democrática 413 .

Em termos práticos basta ver-se que a anterioridade não se mostra como um direito
fundamental inerente à democracia, uma vez que a extrafiscalidade é causa suficiente para sua
ruptura, conforme o § 1o do art. 150 da Constituição. Ou seja, fere-se a premissa básica de que
direitos fundamentais não se prestam a barganhas econômicas ou questões administrativas de
qualquer espécie.
A regra da anterioridade ganha maior status num regime de democracia representativa
e não deliberativa. No regime meramente representativo, em que os cidadãos estão distantes
dos processos de deliberação (conforme visto no item 1.1.1 da presente), a anterioridade se
mostra como uma regra importante 414 ; todavia, no contexto de democracia deliberativa, em
que os cidadãos participam efetivamente da deliberação democrática, a anterioridade se
revela, de modo mais aparente, bem distante da categoria de direito fundamental. Passa a ser
uma regra 415 que beneficia o contribuinte, não mais do que isso.
Conseqüentemente, as disposições do art. 150, III, b e c, da Constituição, não podem
ser consideradas cláusulas pétreas.

413
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 238. Por isso mesmo o referido autor critica (com nosso apoio) a posição do STF na ADI
939, proferida no sentido de que o “princípio da anterioridade” seria, junto com outros “princípios e normas
imutáveis”, “garantia individual do contribuinte” (ADI 939, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 18-3-94).
414
Note-se a forma pela qual Roque Antonio Carrazza aborda o tema: “[...] o princípio da anterioridade só é
obedecido se e enquanto for aceito que o fato imponível deve necessariamente ocorrer a partir do exercício
seguinte àquele em que o tributo foi criado ou majorado”. – Curso, p. 189. Não desconhecemos que o prof.
Carrazza dá grande importância à anterioridade, entendendo-a como corolário da segurança jurídica. Todavia,
essa simples passagem já denota que o referido ‘princípio’ é muito mais temporal do que imanente à noção de
democracia deliberativa.
415
Ricardo Lobo Torres já questionou o posicionamento da anterioridade ou como regra, mas acabou se filiando
à tese de que se trata de um princípio, dado que “a distinção entre princípios e regras não é tão categórica”. –
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 559.
131

3.3.5 O não-confisco.

O chamado princípio do não-confisco consiste na determinação de que os tributos de


todos os entes da Federação não podem ter fim confiscatório, conforme disposto no art. 150,
IV, da Constituição.
A referida norma, comando tanto para o legislador quanto para o aplicador das leis
tributárias 416 , destina-se a resguardar o direito de propriedade dos cidadãos, o qual, sendo
entendido sempre diante de sua função social 417 , encontra-se mitigado até mesmo pela ação
tributária estatal. Entrementes, nem por isso a restrição tributária à propriedade pode se fazer
de modo ilimitado – daí a determinação do art 150, IV, da CRFB 418 .
A propriedade, na qualidade de direito fundamental consagrado no art. 5o, XXII 419 ,
possui suas exceções expressamente arroladas nos incisos XXIII, XXIV e XXV 420 que lhe
seguem. Por essa razão há quem diga que o não-confisco tributário na verdade é uma regra
redundante, porquanto o próprio direito à propriedade, na forma como apresentada
genericamente pela Constituição, já deixaria implícito (“mas claramente implícito”, nos
dizeres de José Souto Maior Borges 421 ) que não é possível o tributo com fins confiscatórios.
Confisco significa apropriação de um bem pelo Estado (fisco), sem a respectiva
contraprestação 422 . O único caso constitucionalmente permitido de inexistência de

416
AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 145.
417
A função social da propriedade pode ser entendida resumidamente como “nas áreas urbanas, além de
servirem de moradia, função de preservarem os demais valores relevantes ara a sociedade como regras de
vigilância sanitária, de urbanização, de ordenação da cidade, dentre outras previstas nos planos diretores. Da
mesma forma, para as propriedades rurais não se limita o cumprimento da função social à produtividade. Mais
do que isso, as terras devem ser retrabalhadas de modo a se evitar, ao máximo, os impactos ambientais, [...]” –
PEIXOTO, Marcelo Magalhães; CARDOSO, Laís Vieira. O princípio do não-confisco e os limites ao direito
de propriedade. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo:
Dialética, 2004, p. 232.
418
“Através de uma carga fiscal demasiadamente elevada, o Estado passa a ser o real proprietário dos bens e dos
rendimentos do trabalho dos cidadãos”. – CAMPOS, Diogo Leite de. Op. Cit., p. 89.
419
“Art. 5o. [...] XXII – é garantido o direito de propriedade;”.
420
“Art. 5o. [...] XXIII – a propriedade atenderá a sua função social; XXIV – a lei estabelecerá o procedimento
para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia
indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição; XXV – no caso de iminente perigo
público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário
indenização ulterior, se houver dano;”.
421
BORGES, José Souto Maior. Relações entre tributos e direitos fundamentais. In: FISCHER, Octavio Campos
(coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 220.
422
“A característica do confisco está exatamente em ser uma absorção coativa da propriedade, exercida pelo
Poder Público ou por meio dele, sem indenização e sem permissão jurídica”. – NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da
interpretação e da aplicação das leis tributárias. 2a. edição. São Paulo: Bushatsky, 1974, pp. 28-29.
Especificamente em sede de tributação, Maria Luiza Vianna Pessoa de Mendonça entende haver na verdade
uma ponderação de interesses entre o direito de propriedade e as liberdades econômicas, em contraponto ao
132

indenização à subtração patrimonial, é o confisco como forma de punição por ato ilícito, “não
obstante, somente aplicável mediante o devido processo legal (art. 5o, XLVI e LIV)” 423 . E,
considerando que conceitualmente tributo não pode ser utilizado como sanção por ato
ilícito 424 , o texto constitucional do art. 150, IV refere-se não a tributo confiscatório, mas sim
“com efeito de” confisco 425 .
Por outro lado, ao contrário da desapropriação (exceção trazida pelo próprio art. 5o da
CRFB), o Estado jamais indeniza o cidadão pela restrição patrimonial tributária 426 – motivo
pelo qual o “confisco tributário” apresenta-se como ausência de contrapartida proporcional 427
pelo Estado, diante de cobrança que comprometa parte significativa do patrimônio do
cidadão 428 .
Essa prática de ‘apropriação tributária’ marcou o chamado Estado patrimonial, sendo
arma de perseguições das mais diversas 429 ; conseqüentemente, a maior parte da doutrina

dever fundamental de pagar tributos. – MENDONÇA, Maria Luiza Vianna Pessoa de. Multas tributárias –
efeito confiscatório e desproporcionalidade – tratamento jusfundamental. In: FISCHER, Octavio Campos
(coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 246. De modo bastante didático o
STF se pronunciou no sentido de que “A proibição constitucional do confisco em matéria tributária — ainda
que se trate de multa fiscal resultante do inadimplemento, pelo contribuinte, de suas obrigações tributárias —
nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa
conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos
rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do
direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de
suas necessidades vitais básicas. O Poder Público, especialmente em sede de tributação (mesmo tratando-se da
definição do quantum pertinente ao valor das multas fiscais), não pode agir imoderadamente, pois a atividade
governamental acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade que se qualifica como
verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais." (ADI 1.075-MC, Rel. Min.
Celso de Mello, julgamento em 17-6-98, DJ de 24-11-06). Note-se, no entanto, que o STF frisou que o não-
confisco só se aplica ao campo da fiscalidade, abrindo exceções em caso de extrafiscalidade, como veremos
adiante.
423
DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 573.
424
Vide o conceito que inspirou o legislador, no art. 3o do Código Tributário Nacional (lei nº 5.172/1966):
“Tributo é toda prestação pecuniária, compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não
constitua sanção por ato ilícito, instituído por lei e cobrando mediante atividade administrativa plenamente
vinculada”.
425
DALLAZEM, Dalton Luiz. O princípio constitucional tributário do não-confisco e as multas tributárias. In:
FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 23. Daí
porque Marcelo Magalhães Peixoto e Laís Vieira Cardoso aduzem que “deste modo, a propriedade que
observa as determinações constitucionais e legais jamais poderá ser confiscada pelo Estado”. – PEIXOTO,
Marcelo Magalhães; CARDOSO, Laís Vieira. Op. cit., p. 231.
426
“Se a própria tributação, feita nas bases da lei, é uma intervenção da administração na esfera dos direitos do
cidadão mais onerosa do que a desapropriação, a tributação em desconformidade com o fato gerador,
excedendo à medida do fato gerador legal, constitui um confisco”. – NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da
interpretação e da aplicação das leis tributárias. 2a. edição. São Paulo: Bushatsky, 1974, p. 102.
427
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 300.
428
PEIXOTO, Marcelo Magalhães; CARDOSO, Laís Vieira. Op. Cit., p. 227.
429
Recomenda-se, a respeito, a leitura de TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional
Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 153-155; e, do mesmo autor,
A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, pp. 136-138.
133

entende que não mais se coaduna com o Estado fiscal, mormente em um Estado democrático
de Direito 430 .
Restringindo-se demasiadamente a propriedade, acaba-se com a liberdade dos
indivíduos, porquanto se diminuem seus leques de escolha de ação. Propriedade e liberdade,
aqui, amalgamam-se inextrincavelmente. Um indivíduo sem escolhas não é um indivíduo
livre 431 .
Autores há na doutrina que correlacionam o não-confisco ao mínimo existencial432 (ou
mínimo vital), ou ainda à capacidade contributiva 433 , indicando que a tributação excessiva
prejudicará a subsistência do cidadão. Mais uma vez, ousamos discordar desse
posicionamento, uma vez que não-confisco e mínimo existencial são institutos diversos,
destinados a proteger o cidadão em graus diferentes 434 . A capacidade contributiva, do mesmo

430
Frisamos, nesse sentido, Ricardo Lobo Torres e Bernardo Ribeiro de Moraes, para os quais nem mesmo
razões de Estado (materializadas em tributos de função extrafiscal) justificam a tributação confiscatória
(TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 164; e MORAES, Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 129) – posição da qual
destoa Sacha Calmon Navarro Coelho, para quem a extrafiscalidade justifica o tributo com fim confiscatório
(Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9a. edição. Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 276). Do mesmo modo,
Hugo de Brito Machado, apoiando-se em Henry Tilbery, discorda, no sentido de que “um dos objetivos mais
importantes do imposto sobre o patrimônio deve ser o de desestimular a existência de patrimônios
improdutivos”, aceitando uma tributação confiscatória em casos de concentração exacerbada de renda, com
finalidade de redistribuição das riquezas. MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário
Nacional. Vol.1. São Paulo: Atlas, 2003, p. 171.
431
A respeito, recomenda-se a leitura de SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura
Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Soma-se a ponderação de Diogo Leite de Campos:
“uma carga fiscal elevada e o seu aumento são adequados à seguinte conseqüência (desejada ou não): a
diminuição das possibilidades de escolha/autonomia da sociedade civil (família e empresas) perante as
escolhas do Estado. [...] Abandonar o seu projecto de vida e o da sua família, para aceitar a imposição que o
Estado lhe faz às custas dos seus impostos. A longo prazo, são as opções do Estado (políticos, dirigentes,
burocratas etc.), s seus projectos, as suas representações sociais que se vêm a impor lentamente, no que se
pode configurar como uma “tirania” (ou um ‘totalitarismo’) em ‘doses homeopáticas’. O Estado do bem-estar
pode tornar-se (‘totalitariamente’) o Estado de ‘um certo’ bem-estar, assente numa ‘certa’ ideologia”. Op. Cit.,
pp. 103-104.
432
“Ademais, nem cada tributo isoladamente, nem o sistema tributário como carga tributária genérica, pode
atingir aquela renda mínima do cidadão necessária para cobrir os gastos pessoais e familiares, [...] e um
sistema confiscatório ou um tributo confiscatório é aquele que visa a ferir o mencionado direito do cidadão
expresso no art. 7o da CF”. – ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da. Op. Cit., p. 340. No mesmo passo,
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 100; e DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO,
Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi
(atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 579.
433
AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 144; HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., p. 390; CARRAZZA, Roque Antonio, Op.
Cit., p. 99; DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 573-574.
434
A respeito, OLLERO apud TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 158: “[...] la capacidad susceptible de
tributación debe situarse entre el minimo de existencia y el maximo no confiscatorio, exigencias ambas que
constituyen presupuestos y limites de imponibilidad”. Ou seja, o não-confisco se destina a proteger o
patrimônio num sentido global do indivíduo (daí Ricardo Lobo Torres conferir-lhe a característica de
imunidade da “propriedade privada em sua totalidade, pois o Estado não pode utilizar o seu poder fiscal para
aniquilar a liberdade individual, que não sobrevive sem aquele direito” – Tratado de Direito Constitucional
Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 155), enquanto o mínimo vital
134

modo, não pode ser confundida com o não-confisco, por ter como finalidade não o resguardo
do direito de propriedade, mas da igualdade entre os cidadãos 435 .
Basta ver-se, por exemplo, que uma tributação pelo IPVA que custe ao contribuinte a
totalidade (ou quase) do veículo objeto da incidência, não afetará o indivíduo em seu mínimo
existencial. Implicará, sim, na subtração patrimonial do indivíduo mediante a tributação; mas
isso não afetará, de modo algum, seu mínimo existencial. Igualmente, sua capacidade
contributiva não estará afetada se esse IPVA, mesmo custando a totalidade (ou quase) do
objeto tributado, significar parcela ínfima do patrimônio total do contribuinte. Ou seja, tratam-
se de institutos diversos, motivo pelo qual preferimos filiar-nos à tese de que o não-confisco,
ao proteger o patrimônio dos indivíduos, guarda relação com a razoabilidade da tributação.
Tributação irrazoável que configure apropriação dos bens pelo Estado, sem a respectiva
contrapartida, é tributação confiscatória.
Decerto que não há como se precisar numericamente, em termos gerais, o que seja
confiscatório ou não 436 , por ser item altamente variável de acordo com cada situação
envolvida. Grande inquietação há na doutrina com relação a esse assunto 437 .
Alguns autores estabeleceram critérios econômicos de verificação do confisco, como o
estabelecimento de uma proporção entre a carga tributária e o dinheiro que resta após os
gastos essenciais da pessoa natural 438 ; o lucro das empresas; etc 439 . Contudo, mesmo esses
critérios caem no vazio da imprecisão, ao nosso ver justamente porque se centram apenas em

se mostra como o “núcleo sindicável da dignidade da pessoa humana”, nos termos de Ana Paula de Barcellos –
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios fundamentais – o princípio da dignidade da
pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 247 e ss.
435
Com relação à capacidade contributiva, encontramos apoio em Ricardo Lobo Torres, para quem “pouco ou
nada tem que ver com a problemática da proibição de tributos confiscatórios a idéia de justiça. Alguns juristas
indicam a capacidade contributiva, ao lado da garantia de propriedade, como o princípio que fundamenta a
vedação de confisco. Parece-nos, todavia, que a questão se situa fora da capacidade contributiva, [...]. A
proibição de tributo confiscatório, em suma, não decorre do postulado ético da capacidade contributiva, senão
que constitui princípio de proteção da liberdade, que pode ser violentada nos casos de tributação excessiva” –
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 157-158. Com relação ao mínimo existencial, todavia, o referido autor adota
posição diversa da nossa.
436
AMARO, Luciano. op. Cit., p. 145.
437
“A questão que se põe é: ‘até que patamar é lícito ao legislador erguer a carga tributária?’ Em outras palavras,
‘qual o limite para a restrição estatal a esta liberdade em face do Estado, o direito de propriedade?’ É bem
verdade que o constituinte brasileiro proibiu que os tributos tivessem efeito de confisco (art. 150, IV, CRFB).
Entretanto, tal disposição está longe de constituir um limite claro ao legislador e, a bem da verdade, nem o
Judiciário, nem qualquer dos demais Poderes Constituídos, nem a doutrina, ousaram ir além de considerações
lacônicas acerca da mesma. Não têm podido responder à simples pergunta: ‘qual é afinal o limite?’” –
RIBEIRO, Luís Antônio Cunha. Op. Cit., pp. 215-216. Cf. ainda PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 74;
AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 145; CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., pp. 163-165; MORAES,
Bernardo Ribeiro de. Op. Cit., p. 127.
438
MOLINA, Pedro Manuel Herrera. Metodología del derecho financiero y tributario. Mexico: Porrúa, 2004, p.
122; DIFINI, Luiz Felipe Silveira., Op. Cit., p. 86.
439
PEIXOTO, Marcelo Magalhães; CARDOSO, Laís Vieira, Op. Cit., p. 228, referem-se a ‘renovabilidade do
bem`. CARRAZZA, Roque Antonio, Op. Cit., p. 99, refere-se a “consistência originária das fontes de ganho”.
135

um dos pólos do estudo do confisco: a carga tributária 440 , a apropriação dos bens dos
particulares.
Para se verificar o tema de modo completo, é fundamental responder também a
questão da contrapartida prestada pelo Estado. Exemplo que caracteriza isso muito bem, é o
caso dos países europeus nórdicos 441 , os quais, mesmo com cargas tributárias elevadíssimas,
jamais foram tachados de confiscatórios – justamente porque o confisco se caracteriza não
tanto pela carga tributária em si, mas muito mais pela ausência de indenização ou de
contrapartida pelo Estado aos seus cidadãos.
Vale ainda trazer a lume a crítica feita por Thomas Nagel e Liam Murphy à questão do
direito de propriedade enquanto limitador da ação tributária. Para esses autores,

Não existe mercado sem governo e não existe governo sem impostos; o tipo
de mercado existente depende de leis e decisões políticas que o governo tem
de fazer e tomar. Na ausência de um sistema jurídico sustentado pelos
impostos, não haveria dinheiro, nem bancos, nem empresas, nem bolsas de
valores, nem patentes, nem uma moderna economia de mercado – não
haveria nenhuma das instituições que possibilitam a existência de quase
todas as formas contemporâneas de renda e riqueza.
Por isso é logicamente impossível que as pessoas tenham algum tipo de
direito sobre a renda que acumulam antes de pagar impostos. Só podem ter
direito ao que lhes sobra depois de pagar os impostos sob um sistema
legítimo, sustentado por uma tributação legítima – e isso demonstra que não
podemos avaliar a legitimidade dos impostos tomando como critério a renda
pré-tributária. Pelo contrário, temos de avaliar a legitimidade da renda pós-
tributária tomando como critério a legitimidade do sistema econômico que a
gera, o qual inclui os impostos, que são aliás uma parte essencial desse
sistema 442 . A ordem lógica de prioridade entre os impostos e os direitos de
propriedade é inversa à ordem suposta pelo libertarismo. 443

440
Preso a esse único aspecto, dentre outros, PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. A razoabilidade das leis
tributárias: direito fundamental do contribuinte. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e Direitos
Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 303.
441
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9a. edição. Rio de Janeiro,
Forense, 2006, p. 278.
442
Ao contrário, mesmo utlizando um viés utilitarista que o aproximaria, de certa maneira, dos referidos autores,
Buchanan discorda, subordinando o mercado aos esquemas de propriedade: “what I want to emphasize here is
that without the appropriate laws and institutions, which would include defined private property rights that are
respected and/or enforced and procedures for guaranteeing enforcement of contracts, the market wolud not
generate a spontaneous order embodying ‘efficiency’ in any value-maximization sense, if indeed we could refer
to ‘a market’ all”. – BUCHANAN, James M. Notes on politics as process. In: ______. Politics as public choice.
The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, pp. 72-73.
443
NAGEL, Thomas; MURPHY, Liam. O mito da propriedade – os impostos e a justiça. Tradução de Marcelo
Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 46. Daí eles chegarem à conclusão de que “os direitos de
propriedade são convencionais, mas em sua concepção e justificação há espaço para a inserção não só de
valores conseqüencialistas, mas também de outros direitos e valores deontológicos que, estes sim, são mais
fundamentais. Embora a proteção de alguma forma de propriedade privada seja um elemento essencial da
liberdade humana, a estrutura geral do sistema de direitos de propriedade deve ser determinada em grande
medida pela consideração de outros fatores” (pp. 61-62), no sentido de que “quanto mais amplos forem os fins
legítimos do governo, tanto mais ele terá o direito de afetar as vidas dos cidadãos e as relações entre eles pelo
136

De qualquer maneira, percebe-se (até diante da colocação dos autores acima) que a
questão do confisco não é puramente tributária, senão tanto quanto (ou mais ainda) financeira
– já que o próprio conceito de confisco pressupõe a desproporção entre apropriação (ônus) e
indenização (benefício) 444 .
Dados esses caracteres que lhe são próprios, o não-confisco não se afigura como
norma inserta no âmbito da imparcialidade política 445 . Nada obstante resguardar o direito de
propriedade e o fato ressaltado por Aliomar Baleeiro de que “uma sociedade de pequenos
proprietários será sempre hostil às nacionalizações e confiscos” 446 , o não-confisco não se
insere na esfera de imparcialidade política.
A respeito, Misabel Derzi, atualizando a mesma obra do prof. Baleeiro, considera que

o princípio que veda utilizar tributo com efeito de confisco tem assim um
sentido amplo, vazado em termos absolutos, que garante o direito de
propriedade e seus acréscimos inclusive por ordem sucessória, a livre
escolha ou o exercício de qualquer profissão e a livre iniciativa. Mas não é
um princípio de justiça material ou de isonomia 447 .

Isso porque a imparcialidade política se restringe ao núcleo do direito fundamental 448 .


Ou seja, o direito de propriedade, para ser considerado direito fundamental, une-se ao seu
núcleo, que é o mínimo essencial.

Curiosa e sintomaticamente, já em Uma teoria da Justiça, e de forma mais


contundente em Liberalismo Político, o autor [John Rawls] apresenta o

projeto do sistema de direitos de propriedade. Os efeitos exercer-se-ão em grande escala e os indivíduos ainda
terão liberdade para tomar pessoalmente suas decisões e determinar o rumo de suas vidas dentro da estrutura
institucional e jurídica criada pelo estado; mas, dependendo da teoria política que estiver por trás do sistema,
essa estrutura poderá ter conseqüências profundas para a gama de possibilidades com que cada cidadão irá se
defrontar” (p. 78).
444
Daí que Ricardo Lobo Torres aduz que a economicidade, prevista no art. 70 da Constituição como parâmetro
de controle e fiscalização da execução orçamentária, adquire ares de novo critério de verificação do não-
confisco, “a significar que o tributo deve corresponder à necessidade mínima do Estado para atender à parcela
máxima de interesse público”. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 162.
445
Posição nossa que, além da doutrina tecnicista, distancia-se da esposada pelo STF. Vide, a respeito, o
Acórdão proferido na ADI 2551-MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 20/04/2006), no qual se entendeu
que o confisco é um princípio correlato aos da proporcionalidade e da razoabilidade.
446
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 565.
447
DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 574.
448
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, pp. 239 e ss.
137

mínimo social como pressuposto lógico de sua construção teórica. Vale


dizer, a garantia de que cada homem disponha de um conjunto mínimo de
condições materiais é pressuposto para que o procedimento decidido pelos
indivíduos no estado original seja verdadeiramente eqüitativo. À falta desse
pressuposto, o processo deixa de ser eqüitativo, arruinando toda a lógica
procedimental apresentada 449 .

Situando-se acima dessa marca, não se pode mais afirmar tratar-se de baliza da
democracia.
Assim sendo, é factível, de acordo com determinadas posições, que o próprio confisco
(no sentido de apropriação de bens pelo Estado) é admissível em alguns casos – como na
extrafiscalidade 450 –, ou mesmo que nem se possa cogitar de confisco, dado que os esquemas
de propriedade só são estabelecidos na etapa pós-tributária (também abordado naquele
item) 451 .
O fato é que, tangendo a esfera da propriedade fora de seu núcleo essencial – mínimo
existencial –, o não-confisco deixa de ser, por si, um direito fundamental inerente ao
homem 452 . É de se dizer, ainda, do risco que ela representa (uma vez que não se relaciona
com o mínimo essencial) de manutenção do status quo, uma vez que o muito rico continuará a
ser muito rico, já que – sendo um direito fundamental – o tributo não pode se prestar a
confiscar seus bens. Isso, sem contar a questão da herança, discutida enormemente por Rawls
em toda a sua obra 453 . Diante do procedimento de checagem da razão pública, o não-confisco
é encarado como uma regra conjuntural 454 (e, frise-se, vazia de conteúdo). Parece-nos, em

449
BARCELLOS, Ana Paula de. Op. Cit., p. 126.
450
Nesse sentido, a Segunda Turma do STF entendeu que a pena de perdimento de bens em caso de ausência de
regularização fiscal nas operações de importação não redunda em confisco: "Importação — Regularização
fiscal — Confisco. Longe fica de configurar concessão, a tributo, de efeito que implique confisco decisão que,
a partir de normas estritamente legais, aplicáveis a espécie, resultou na perda de bem móvel importado." (STF,
2a. Turma, AI 173.689-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 12-3-96, DJ de 26-4-96).
451
Sobre o desenvolvimento da economia capitalista vis a vis a democracia, recomenda-se a leitura de
MARTINS, Rodrigo Baptista. A propriedade e a ética do capitalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
452
“Isso implica, por exemplo, que a questão da propriedade privada dos meios de produção ou de sua
propriedade social, bem com outras questões análogas, não é resolvida no nível dos princípios primeiros de
justiça, mas dependem das tradições e instituições sociais de um país, de seus problemas particulares e do
contexto histórico. [...] Um argumento filosófico, por si só, tem muito pouca probabilidade de convencer uma
parte de que a outra tem razão a respeito de uma questão como a da propriedade privada ou social dos meios
de produção. Parece mais fecundo procurar quais poderiam ser as bases de um acordo implícito na cultura
pública de uma sociedade democrática e, por conseguinte, nas suas concepções subjacentes da pessoa e da
cooperação social”. – RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São
Paulo: Ática, 2000, p. 395.
453
A respeito, cf., por exemplo, RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita
Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
454
Ricardo Lobo Torres realça a temporalidade da regra, aduzindo que “a conjuntura do país, a depender da
guerra ou da paz, do desenvolvimento ou da recessão, modifica a apreciação do que seja o aniquilamento da
propriedade”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III.
3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 162.
138

particular, uma regra anacrônica, destinada a proteger a propriedade como se direito intocável
fosse, desconsiderando sua função social ou qualquer outro aspecto seu, nos moldes da
Constituição de 1824.
Por conseguinte, não se pode afirmar que a regra do art. 150, IV, da Constituição, seja
um direito fundamental do cidadão.

3.3.6 A vedação à utilização de tributos interestaduais ou intermunicipais como restrição do


tráfego de pessoas.

A vedação ao uso de tributos como instrumento de restrição ao tráfego de pessoas em


território nacional (os chamados tributos de barreira 455 ) encontra-se positivada no art. 150, V,
da Constituição. Trata-se de comando destinado ao legislador e ao aplicador da norma, para
que nenhuma espécie tributária seja utilizada para impedir o deslocamento dos cidadãos entre
os diversos entes da Federação (Estados, incluindo o Distrito Federal, e municípios) 456 .
A rigor, poder-se-ia dizer que o direito fundamental genérico de liberdade de ir-e-
457
vir , nos moldes definidos pelo art. 5o, XV, da Constituição da República 458 , já seria
suficiente para se depreender a impossibilidade de se impedir a locomoção dos cidadãos
brasileiros pelo território nacional 459 .

Direito à circulação é manifestação característica da liberdade de


locomoção: direito de ir, vir, ficar, parar, estacionar. O direito de circular
(ou liberdade de circulação) consiste na faculdade de deslocar-se de um
ponto a outro através de uma via pública ou afetada ao uso público. Em tal
caso, a utilização da via não constituirá uma mera possibilidade, mas um
poder legal exercitável erga omnes. Em conseqüência, a Administração não
poderá impedir, nem geral nem singularmente, o trânsito de pessoas de
maneira estável, a menos que desafete a via, já que, de outro modo, se
produziria uma transformação da afetação por meio de uma simples
atividade de polícia. 460

455
PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 76.
456
Ricardo Lobo Torres entende mesmo tratar-se de uma espécie de imunidade, por proteger a liberdade de
locomoção dos cidadãos, valor ínsito ao próprio Estado democrático de Direito. Curso, p. 67. No mesmo
sentido, HARADA, Kiyoshi. Op. Cit., p. 399.
457
ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da. Op. Cit., p. 306. No mesmo sentido TORRES, Ricardo Lobo.
Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005,
p. 112.
458
“É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei,
nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.
459
DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op. Cit., p. 89.
460
SILVA, José Afonso da. Curso, p. 242.
139

Todavia, optou o constituinte por inserir mais uma regra específica na seara tributária.
O comando possui justificação histórica, uma vez que os ordenamentos constitucionais
anteriores davam margem a esse tipo de tributação repressiva. Todavia, atualmente o
arquétipo constitucional tributário, mormente em sede de tributos incidentes sobre operações
e serviços 461 interestaduais e intermunicipais, praticamente inviabiliza a instituição ou mesmo
a modificação de tributos já existentes 462 com o fim de restringir a locomoção dos cidadãos
pelo território nacional 463 .
Por isso mesmo Sacha Calmon Navarro Coelho tece ácida crítica ao comando do art.
150, V, da Constituição: “são letras do passado. O dispositivo é quase vazio. No sistema
brasileiro é impossível embaraçar o tráfego de pessoas ou coisas com tributos interestaduais
ou interestaduais, [...]” 464 .
De qualquer forma, apesar de pouco prestigiada pela doutrina em geral, que
praticamente não a aborda, a regra existe e, como limitação constitucional ao poder de
tributar que é, merece nosso destaque 465 .
A liberdade de tráfego, resguardada em sede tributária no art. 150, V, da Constituição,
possui sua fundamentalidade confirmada diante do princípio democrático, uma vez que
protege a liberdade civil, abrangida pela razão pública.
A liberdade de locomoção pelo território nacional é um dos direitos mais básicos que
o cidadão possui; trata-se de um pressuposto lógico da democracia, o direito de ir e vir 466 .
John Rawls refere-se à liberdade de locomoção como uma das liberdades básicas a
serem resguardadas no ambiente democrático:

461
Utilizamos somente a expressão serviços para abranger também a hipótese de incidência do ISS, que, nos
termos do art. 156, III, da Carta Política, não se limita à sua ‘prestação’.
462
PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 76.
463
“Poder-se-ia dizer que, com a demarcação de competências estabelecida desde a Emenda nº 18/65, ficou mais
difícil ao legislador tributário impor tributos que pudessem afetar o tráfego, além dos já autorizados pela
Constituição”. – AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 146, reconhecendo porém que as taxas poderiam
eventualmente ser usadas nesse sentido.
464
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 308.
465
“Não obstante a impossibilidade de barreiras fiscais dentro da Federação, é mais uma limitação ao poder de
tributar garantindo o contribuinte”. – Id., Curso, p. 285.
466
Por isso mesmo Ricardo Lobo Torres a conceitua como imunidade: “a imunidade do art. 150, V, da CF tem
como fundamento a liberdade de ir-e-vir, que, no Estado de Direito, é prioritária e absoluta. Todos os
cidadãos, no Brasil, têm o direito de se locomover de um para outro município ou de um para outro Estado,
sem que precisem de permissão da autoridade judicial ou policial e sem que necessitem pagar qualquer tributo.
A liberdade de ir-e-vir compreende assim a locomoção sobre os próprios pés como a que se faz por intermédio
de veículos terrestres, marítimos ou aéreos”. – Id. Ibid., p. 112.
140

As liberdades básicas que restam (e que sustentam as primeiras) são a


liberdade e a integridade da pessoa (que são violadas, por exemplo, pela
escravidão e pela servidão, bem como pela negação da liberdade de
movimento e de emprego) e os direitos e liberdades garantidos pelo Estado
de direito. [...] Em suma, a posse dessas liberdades básicas define o status
comum e garantido dos cidadãos iguais numa sociedade democrática bem
ordenada 467 .

Conseqüentemente, a vedação aos chamados tributos de barreira, positivada pelo art.


150, V, da Constituição, é de ser considerada direito fundamental do cidadão.

3.3.7 A imunidade 468 de impostos sobre os templos de qualquer culto.

A Constituição proíbe, em seu art. 150, VI, c e em seu parágrafo 4o, que quaisquer
entes da Federação instituam impostos sobre patrimônio, renda ou serviços vinculados às
finalidades essenciais de templos de qualquer culto.
Existe uma certa divergência no tratamento dessa imunidade pela doutrina. Há quem
afirme tratar-se de mera regra constitucional 469 e quem considere tratar-se de verdadeira
imunidade, no sentido de proteção de liberdade religiosa 470 .
A imunidade dos templos é vista pela maior parte da doutrina como uma extensão do
direito de liberdade religiosa 471 (consagrado no art. 5o, VI a VIII, da Constituição), ou mesmo

467
RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene
A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 188.
468
Utilizaremos o conceito de imunidade como norma destinada a proteger valores relevantes para a sociedade –
para o objeto do trabalho, peculiarmente valores relativos a direitos dos cidadãos. “[...] as normas imunizantes
densificam princípios estruturantes – assim entendidos os constitutivos e indicativos das idéias diretivas
básicas de toda a ordem constitucional, iluminando seu sentido jurídico-constitucional e político-
constitucional”. – COSTA, Regina Helena. Imunidades tributárias – teoria e análise da jurisprudência do
STF. 2a. edição. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 71. Daí se pode entender a diferença feita, no desenrolar da
pesquisa, entre os casos em que se afirma tratar de verdadeira imunidade (ou seja, instrumento de proteção de
liberdades) ou mera regra constitucional (em que não há uma liberdade propriamente protegida pelo
dispositivo).
469
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 311; CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 716-
717.
470
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 250; ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 220.
471
CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 190; TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e
Tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 74. Cristiano Carvalho entende ainda que a
liberdade de religião é uma variação da liberdade de expressão, sendo “a manifestação da fé [...] uma das mais
significativas espécies de expressão do pensamento, e também uma das principais liberdades a serem atacadas
por um Estado totalitário”. CARVALHO, Cristiano Rosa. Op. Cit., p. 880.
141

uma garantia desse direito em sede de tributação 472 . Assim, ratificar-se-ia por um lado a
laicidade do Estado 473 (referida no art. 19 da Carta e pressupõe o tratamento igualitário entre
todas as religiões, sem favorecimento), e, por outro, evitar-se-ia a perseguição a determinados
grupos religiosos 474 .
A vedação constitucional refere-se apenas à espécie tributária impostos, o que é
justificado por parte da doutrina diante do caráter eminentemente fiscal e não vinculado a
nenhuma contraprestação estatal – o que abriria flanco para certos arbítrios estatais na seara
da fiscalidade, caso não houvesse essa imunidade. Autorizado, portanto, é o Estado para
cobrar tributos relativos a contraprestações que ele dê às instituições religiosas 475 , havendo,
entre elas, apenas o princípio da igualdade para não diferenciá-las entre si e a
proporcionalidade entre o custo da prestação do serviço e o valor cobrado dos usuários. Outra
corrente doutrinária diverge, contudo, por enxergar que não existe razão para essa distinção –
e, se a liberdade religiosa é direito fundamental, ela deve ser assegurada para toda e qualquer
imposição tributária (ainda que relativa a contrapartidas realizadas pelo Estado, como se tem
nos demais tributos) 476 .
Ainda há de se verificar a extensão das expressões templo e culto.
Como templo entende-se não apenas o prédio onde se realizam as liturgias477 , mas sim
a própria instituição religiosa em si, responsável pela profissão da fé 478 . Ou seja, ao vedar
impostos sobre o templo, a imunidade impede a instituição de impostos sobre o patrimônio, a
renda e os serviços prestados pelas instituições religiosas. Até porque um mero imóvel (que é
o templo, objetivamente) não possui patrimônio, não aufere renda e nem presta serviços, não

472
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 252.
473
Id. Ibid., p. 252.
474
Caso contrário, aumentar-se-ia o perigo de “intolerância para com o culto das minorias, sobretudo se estas se
formam de elementos étnicos diversos, hipótese perfeitamente possível num país de imigração, onde já se
situam núcleos ortodoxos, protestantes, budistas, israelitas, maometanos, xintoístas e sempre existiram
feiticistas de fundo afro-brasileiro”. – BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11a. edição. Misabel
Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 136-137.
475
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 256.
476
CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., pp. 179-180. No mesmo sentido, CHIESA, Clélio. Imunidades e
normas gerais de direito tributário. In: SANTI, Eurico Marques Diniz de (coord.). Curso de Especialização em
Direito Tributário – estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 936. Discordamos dessa posição doutrinária, porquanto o oferecimento de serviços pelo Estado em
caráter gratuito para as instituições religiosas pode configurar, por vias transversas, contrariedade à laicidade
do Estado ou mesmo o oferecimento indireto de subvenções, o que é vedado pelo art. 19 da Carta.
477
Ao comentar o art. 5o, VI, da Constituição, Jesus Hortal aduz que o constituinte “parece ter querido designar
não apenas os ritos oficiais das diversas confissões religiosas, mas também as suas insígnias, hábitos e sinais
externos de identificação”. – HORTAL, Jesus. O princípio da liberdade religiosa e o ordenamento jurídico. In:
PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (orgs.). Os
princípios da Constituição de 1988. 2a. edição. Rio de Janeiro: 2006, p. 312.
478
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 716.
142

possuindo vontade própria; é, na verdade, parte do patrimônio de uma determinada


instituição.
É necessário ainda, nos termos do § 4o do art. 150 da CRFB, que o patrimônio, a renda
e o serviço ligados à instituição religiosa devem atender às suas finalidades essenciais.
Diante da assertiva acima, exclui-se da imunidade o local destinado à residência dos
sacerdotes, uma vez que este se desvincula da liturgia e se presta unicamente a abrigar o
cidadão que se dedica às atividades sacerdotais 479 . O mesmo raciocínio vale para os demais
bens, sejam móveis ou imóveis: se utilizados para finalidades essencialmente religiosas, eles
se incluem na imunidade por serem instrumentos litúrgicos; todavia, não tendo esse uso
essencial, perdem a característica que os atrela à imunidade, ainda que pertencendo a
instituição religiosa imune 480 .
Quanto ao culto, entende-se que ele pode ser de qualquer denominação: sendo um
espaço dedicado à elevação espiritual do homem 481 , a que título for, e desde que isso não fira
o razoável senso comum 482 (como uma religião que aceite sacrifícios humanos, por
exemplo 483 ), está-se diante de um lugar destinado a prática religiosa, de um local de culto por
assim dizer.
A imunidade dos templos, referida no art. 150, VI, b, da Constituição, guarda relação
direta com a razão pública, especificamente quanto à liberdade religiosa, fundamental para o
liberalismo e para o Estado democrático de Direito 484 .
A liberdade de religião é essencial à democracia deliberativa 485 , uma vez que os
homens têm que ter assegurada a tolerância mútua no exercício de sua fé.

Embora não se espere que ninguém coloque em perigo a sua doutrina


religiosa ou não-religiosa, devemos todos renunciar para sempre à
esperança de mudar a Constituição para estabelecer a nossa hegemonia
religiosa ou de qualificar as nossas obrigações para assegurar a sua
influência e sucesso. Conservar tais esperanças e objetivos seria

479
DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Op. Cit., p. 105.
480
“Daí serem tributáveis, por exemplo, os imóveis alugados e as rendas pertinentes, salvo se comprovado que as
rendas auferidas são aplicadas no desempenho das finalidades essenciais da instituição”. – ROSA JR., Luiz
Emygdio Fernandes da. Op. Cit., p. 316.
481
“Graças a esta inteligência, tem-se aceito que também são templos a loja maçônica, o templo positivista e o
centro espírita”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 718. Cf. ainda TORRES, Ricardo Lobo. Tratado
de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 253.
482
PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 84.
483
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, pp. 331-332.
484
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 251.
485
CARVALHO, Cristiano Rosa. Op. Cit., p. 880.
143

incompatível com a idéia de liberdades básicas iguais para todos os


cidadãos livres e iguais 486 .

Assim sendo, a regra constitucional que imuniza os templos de qualquer culto, garante
a liberdade religiosa prevista genericamente no art. 5o, VI, da Constituição. Por isso mesmo,
não se pode considerar revogável a regra do art. 150, VI, b, da Carta, a fim de se evitar
qualquer tipo de restrição à atividade litúrgica, ou ainda perseguições ou favorecimentos a
grupos religiosos de qualquer espécie.
Por outro lado, o comando do § 4o do art. 150 (correlato ao inciso VI, b, do caput),
apesar de apresentado no presente item, possui um aspecto garantista não tanto da liberdade
religiosa, mas revela-se um preceito de igualdade com relação aos demais contribuintes. Serve
para evitar a concessão de privilégios destituídos de fundamentação razoável às instituições
religiosas: só se imunizam as atividades essenciais a essas instituições, já que o núcleo do
direito é a liberdade religiosa. Exatamente por traduzir a igualdade (não mais a liberdade
religiosa em si) é que tal norma se justifica como cláusula pétrea também 487 .

3.3.8 A imunidade de impostos sobre os partidos políticos, sindicatos e entidades


filantrópicas.

O art. 150, VI, c, da Constituição, imuniza de impostos conjuntamente partidos


políticos, entidades sindicais dos trabalhadores e instituições de educação e assistência social,
sem fins lucrativos (as chamadas entidades filantrópicas).
A regra imunizante possui a mesma extensão dada aos templos de qualquer culto,
dado que o § 4o do art. 150 da Constituição atribui-lhes o mesmo tratamento 488 . Ou seja,
prestando-se às suas finalidades essenciais, o patrimônio, a renda e os serviços prestados pelas
pessoas arroladas na aliena c do item VI do art. 150 da Carta Política são imunes à espécie
tributária imposto, de qualquer ente da Federação.
Tendo em vista que se tratam de pessoas diferentes, com características igualmente
diversificadas, o fundamento da imunidade de cada uma delas também será distinto. Por isso
mesmo, a norma será analisada separadamente para cada um de seus beneficiários.
486
RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de
razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 198.
487
O mesmo raciocínio vale para as imunidades dos partidos políticos e das entidades filantrópicas, vistas mais
adiante.
488
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 262.
144

3.3.8.1 Partidos políticos.

A imunidade dos partidos políticos e suas fundações, tem como fundamento a


proteção do exercício da liberdade política 489 , uma vez que, numa sociedade numerosa e
complexa, é praticamente inviável o exercício da democracia diretamente, sendo
imprescindível a ação dos partidos políticos como instrumento de representação popular e
congregação de partidários das mesmas ideologias. Os partidos são, assim, células de capital
relevância para a organização política da sociedade, saindo de seus quadros os representantes
dos vários setores comunitários, que dentro deles discutem e aprovam os programas e as
grandes teses de interesse coletivo 490 .

Quaisquer que sejam as teorias jurídicas em torno dos partidos políticos, a


existência destes não é apenas uma velha realidade comprovada pela
História e, afinal, reconhecida pelas leis, mas uma técnica sem a qual
dificilmente se compreenderá o funcionamento do regime democrático
representativo. ‘Só por cegueira ou dolo pode sustentar-se a possibilidade
de democracia sem partidos políticos. A democracia, necessária e
inevitavelmente, requer um Estado de partidos’, como pondera Kelsen 491 .

Desse modo, torna-se importante para a estrutura do regime democrático evitar a


tributação, via impostos, do patrimônio, da renda e dos serviços dessas entidades destinadas
ao exercício de direitos políticos.

Aliás, é íntimo o relacionamento entre tributo e partido político. O imposto,


criação burguesa, só nasce com a representação (no taxation without
representation), posto que na estrutura patrimonialista a Razão de Estado

489
Por essa razão Ricardo Lobo Torres considera que “a não-incidência de impostos sobre os partidos políticos é
Vera imunidade fiscal”, uma vez que “[...] se fundamenta nos direitos de liberdade. Embora os direitos
políticos não integrem formalmente a declaração de direitos fundamentais, compõem a esfera dos direitos
subjetivos do cidadão e, por conseguinte, a própria noção de cidadania”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado
de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 258-
259. Aliomar Baleeiro, ainda sob o regime da Constituição de 1969, que considerava os partidos pessoas
jurídicas de direito público, entendia que essa imunidade tinha o mesmo fundamento da imunidade recíproca.
Cf. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu
Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005.
490
CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 191.
491
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 330-331. Cf. ainda TORRES, Ricardo Lobo, Tratado
de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 260,
para quem os direitos humanos e a liberdade moderna necessitam da representação política para o seu
aperfeiçoamento, o que torna indispensável a imunização dos partidos políticos e suas fundações.
145

não dá nascimento à obrigação tributária como coisa pública. No início da


sociedade liberal a democracia ainda era censitária, e só aqueles que
pagavam impostos e possuíam propriedades tinham o direito ao sufrágio.
Hoje, na democracia social, expandiu-se a a representação, o voto se tornou
universal e deve ser assegurada aos partidos políticos a igualdade de
chance, principalmente através da imunidade fiscal, complementada pelos
instrumentos financeiros adequados (subvenções e incentivos fiscais) 492 .
Em suma, os partidos políticos, como os próprios direitos da liberdade, não
conseguem sobreviver sem a proteção estatal 493 .

Até porque, como lembrado por Sidney Saraiva Apocalypse, os tributos podem
adquirir a feição de instrumento de controle da vida civil pelo Estado, por diversos meios 494 .
Que se dirá quanto à vida política.
Por isso mesmo, a imunidade dos partidos políticos, consagrada no art. 150, VI, c, da
Constituição, mostra-se digna de fundamentalidade diante do critério de razão pública,
relacionado-se com a liberdade política, a igualdade de oportunidades e o respeito ao dever
(moral) de civilidade – porquanto os partidos políticos são instrumento essencial 495 para o
livre exercício da democracia 496 . Nunca é demais relembrar que, mesmo num regime de
democracia deliberativa, a representação política se faz fundamental 497 .
Ao argumentar sobre a própria Constituição, Rawls a concebe como um justo
procedimento político que comporta as liberdades políticas iguais para todos e procura
assegurar seu justo valor, de tal modo que os processos de decisão política sejam acessíveis a
todos, numa base relativamente igual 498 .
Logo, os partidos políticos, enquanto entidades responsáveis por congregar pessoas
que partilham dos mesmos ideais políticos, não podem sofrer tributação, a fim de que não
corram o risco de sucumbir – e, assim, restringirem-se as oportunidades de acesso à
deliberação democrática por grupos de cidadãos.

492
Disso discorda Sacha Calmn Navarro Coelho. Cf., a respeito, seus Comentários à Constituição de 1988.
493
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 260.
494
APOCALYPSE, Sidney Saraiva. Tributo – mecanismo de controle da vida civil. In: MARTINS, Ives Gandra
da Silva (coord.). O Tributo – reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007, pp.
217 e ss.
495
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 333.
496
“De fato, o partido político é criatura constitucional, absolutamente essencial à democracia e ao liberalismo,
que podem encontrar outros meios de participação direta do povo, mas que não prescindem da representação
através da atividade partidária”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e
Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 258-259.
497
RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene
A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 188.
498
Id. Ibid., p. 190.
146

O mero risco de encerramento de um partido político por causa de tributos já abala o


desenvolvimento da democracia, porquanto um determinado número de indivíduos estará
privado de exercer e difundir suas concepções políticas unicamente em razão de encargos
econômicos públicos 499 . Admitir-se isso seria admitir a intolerância entre os cidadãos, que
numa maioria conjuntural poderiam perseguir as minorias, tributando essas entidades (e,
assim, esmagando partidos políticos menores) – o que se afasta por completo do ideal de
razão pública e do dever de civilidade que a norteia.

As liberdades políticas iguais para todos e a liberdade de pensamento


devem garantir, por intermédio do exercício completo e eficaz do senso da
justiça dos cidadãos, a aplicação livre e informada dos princípios de justiça
à estrutura básica. (As liberdades políticas, corretamente circunscritas, uma
vez garantidos tanto o seu justo valor como outros princípios gerais
pertinentes, podem certamente completar os princípios de justiça). Essas
liberdades básicas requerem alguma forma de regime democrático
representativo, as proteções necessárias da liberdade política do discurso
[...] 500 .

Ricardo Lobo Torres afirma mesmo que “os direitos humanos e a liberdade moderna
necessitam da representação política para o seu aperfeiçoamento, o que torna intributável o
partido político [...]” 501 .
Em vista disso, a imunidade dos partidos políticos disposta no art. 150, VI, c, da
Constituição, tem sua esfera de fundamentalidade resguardada pela razão pública, por ser
diretamente relacionada à imparcialidade política. Humberto Ávila atribui-lhe até o caráter de
concretizadora do princípio democrático 502 .
Da mesma forma que na imunidade dos templos, o § 4o do art. 150 da Constituição, ao
afirmar que somente as atividades essenciais dos partidos políticos são imunes, guarda relação
muito mais com a igualdade (vedando privilégios injustificados aos partidos políticos, por
afastar-se das suas finalidades essenciais) do que com a liberdade política; porém, por ser uma

499
“Realmente, a democracia não pode prescindir dos partidos políticos. É por intermédio deles que todas as
correntes de opinião pública têm reais condições de fazer-se representar na chefia dos Executivos e nas Casas
Legislativas. É notório que os partidos políticos assumiram uma influência notável no funcionamento
quotidiano da vida constitucional do País. Logo, a pluralidade partidária é não só altamente louvável, como
necessária ao perfeito funcionamento das instituições. Os partidos políticos são, em suma, verdadeiros
instrumentos de governo”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. cit., p. 726. Preferimos falar em encargos
públicos do que falar em encargos vindos do Estado, uma vez que a tributação, no âmbito da democracia
deliberativa, não parte do Estado, mas dos cidadãos.
500
RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene
A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 187-188.
501
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 260.
502
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 222.
147

salvaguarda da igualdade, base do Estado democrático de Direito, essa regra também é norma
constitucional fundamental.

3.3.8.2 Entidades sindicais dos trabalhadores.

Quanto à imunidade das entidades sindicais, pouco esclarece a doutrina a respeito. No


mais das vezes, repete-se o texto constitucional, frisando-se que apenas as entidades sindicais
de trabalhadores estão protegidas pela norma imunizante 503 , excluindo-se as associações
patronais. A partir daí, no máximo se tecem breves comentários acerca do conceito de
entidade sindical, abrangendo não apenas os sindicatos em si, mas também as federações e
confederações de trabalhadores 504 .
A norma se destina a proteger direitos sociais, especialmente o de representação dos
trabalhadores junto aos seus empregadores. “[...] este último atributo gera críticas daqueles
que entendem que a imunidade conferida às entidades sindicais de trabalhadores é descabida,
porque não fundada em direito fundamental” 505 .
A norma que confere imunidade aos sindicatos mostra-se distante da razão pública,
afastada da esfera de imparcialidade política. Ao contrário, destina-se a proteger as entidades
que representam apenas um dos pólos da relação empregatícia, que é o empregado.
Por isso mesmo, a regra acima se apresenta como uma concessão de privilégio
tributário, não guardando qualquer relação com a estrutura básica da sociedade – que, ao
contrário, prevê o tratamento igualitário pelo Estado aos seus cidadãos, sem exceções no que
toca a questões econômicas ou profissionais. Mostra-se como exemplo dos compromissos
corporativistas do constituinte de 1988 506 .

503
Roque Antonio Carrazza entende que o objetivo da norma imunizante foi o de favorecer a sindicalização dos
trabalhadores, especialmente aqueles mais humildes. “Se estes pequenos sindicatos tivessem, ainda por cima,
que suportar impostos, em pouco tempo ficariam inviáveis”. – CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 728.
504
Dentre outros, PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 85. Roque Antonio Carrazza também defende que as centrais
sindicais estejam incluídas na norma. Op. Cit., p. 728.
505
COSTA, Regina Helena. Op. Cit., p. 171. Sobre a referida crítica, cf. o capítulo 4 da presente.
506
“O tratamento assegurado às entidades sindicais encontrou apoio nas contradições da própria Constituição de
1988, de origem nitidamente compromissária. [...] A nova figura criada pela CF 88 mostra bem a desmesurada
extensão que se vem dando à intributabilidade fiscal entre nós. Ora através da escritura constitucional, ora por
intermédio da magnânima jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o certo é que os casos de imunidade e
de não-incidência vão crescendo até limites insuportáveis que os países mais ricos que o nosso desconhecem,
denotando a permanência da ideologia da inesgotabilidade dos recursos públicos, que tanto mal tem feito ao
Brasil”. – TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a.
edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 264.
148

A norma se destina a proteger direitos sociais, especialmente o de representação dos


trabalhadores junto aos seus empregadores. Por isso mesmo, Ricardo Lobo Torres tece o
seguinte comentário:

É figura estranha à temática da imunidade fiscal, por não ser forma de


proteção dos direitos humanos. Pode até servir de contraponto fiscal dos
direitos sociais (art. 8o), mas não dos direitos fundamentais (art. 5o). Visa a
garantir os direitos relevantes da classe trabalhadora, inconfundíveis com os
direitos do homem, que transcendem os interesses de classes ou grupos.
Sendo a imunidade, como temos visto, qualidade da pessoa humana ou
âmbito de validade dos direitos fundamentais, segue-se que a
intributabilidade das entidades sindicais dos trabalhadores se classificará
como mera não-incidência constitucional, pelo lugar que ocupa no texto de
1988, ou como privilégio. [...]
O tratamento assegurado às entidades sindicais [...] corresponde à velha
tradição do sindicalismo brasileiro protegido pelo Estado, que, entre outros,
já produzira o imposto sindical. 507

Partilhamos da mesma opinião do doutrinador. De fato, a imunidade em tela não se


prende a nenhum tipo de liberdade fundamental inerente ao homem, mas se destina a
resguardar o interesse de classes de trabalhadores. Basta ver-se, por exemplo, que as entidades
patronais não são beneficiadas pela mesma proteção – sendo que todos, empregadores e
empregados, são cidadãos do mesmo quilate para a sociedade. Diante disso, vale relembrar
que

Special benefit projects that secure thier justification almost solely because
of the make-up of the dominant majoritarian coalition equally violate the
norm. […] As James Madison understood, the interplay among factions,
each promoting its own interest at the expense of the common purpose of
politics itself, is not compatible with liberal democracy 508 .

Conseqüentemente, o referido comando, integrante da alínea c do inciso VI do art. 150


da Constituição, não pode ser considerado cláusula constitucional pétrea, por assim dizer.

507
Id. Ibid., pp. 262-263.
508
BUCHANAN, James M. Foundational concerns: a criticism of public choice theory. In: ______. Politics as
public choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 109.
149

3.3.8.3 Instituições de educação e assistência social, sem fins lucrativos 509 .

A última categoria de pessoas beneficiadas pela imunidade do art. 150, VI, c, da


Constituição, refere-se às instituições 510 de educação quanto às demais de assistência social,
ambas sem fins lucrativos.
O fim da referida imunidade é objeto de divergência doutrinária. Apesar de parte da
doutrina entender que ela visa a proteger a capacidade contributiva dessas pessoas, as quais,
na qualidade de pessoas jurídicas de caráter não-lucrativo 511 , não teriam condições de
recolher seus tributos, outro grupo entende que seu objeto é diverso 512 . Para essa segunda
corrente, o objetivo da imunidade das instituições de educação e de assistência social não se
refere tanto à justiça sob o prisma da capacidade contributiva, porém à dignidade da pessoa
humana e ao seu núcleo sindicável, o mínimo existencial 513 . O Plenário do Supremo Tribunal
Federal, por sua vez, percebeu na referida norma um modo de “preservação, proteção e
estímulo às instituições beneficiadas” 514 .
O entendimento doutrinário divergente se mostra mais plausível. De fato, as entidades
de assistência social têm como finalidade precípua assistir os desamparados em suas
necessidades mais básicas, arroladas no art. 203 da Constituição 515 . Igualmente a educação,

509
Não analisaremos aqui a questão da isenção/imunidade das contribuições sociais sobre as entidades de
assistência social prevista no art. 195, §7o, da Constituição, por não constar das limitações ao poder de tributar
– foco principal do trabalho. Também não será avaliada a questão do enquadramento dos fundos de pensão
como entidades assistenciais, já que essa discussão também escapa, sendo secundária ao objetivo da pesquisa,
que é avaliar a (i)mutabilidade da imunidade prevista no art. 150, VI, c, da Constituição, diante do princípio
democrático. E ainda não será discutida se a natureza da lei a que se refere a alínea c é ordinária ou
complementar, por escapar igualmente à discussão central do estudo. Sobre essa última peculiaridade e outras
relacionadas ao art. 14 do Código Tributário Nacional, recomenda-se a leitura de CHIESA, Clélio. Op. Cit.
510
“Instituição é palavra destituída de conceito jurídico-fiscal. Inútil procurá-lo aqui ou alhures, no Direito de
outros povos. É um functor. O que a caracteriza é exatamente a forma jurídica de sua organização, que tanto
pode ser fundação, associação etc. O destaque deve ser para a função, os fins”. – COELHO, Sacha Calmon
Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 339.
511
Dentre eles, realçamos Kiyoshi Harada.
512
Destacamos Ricardo Lobo Torres e Luiz Emygdio Fernandes da Rosa Jr.. Roque Antonio Carrazza, apesar de
fazer menção à dignidade da pessoa humana, também se pauta na ausência da capacidade contributiva (Curso,
pp. 733/739).
513
Vale trazer a crítica de Ricardo Lobo Torres a esse primeiro posicionamento: “Tal explicação, sobre deslocar
a problemática do campo da liberdade para o da justiça e nem sempre corresponder à verdadeira situação
econômica das entidades educacionais e assistenciais, conduz à interpretação ampla no reconhecimento do
direito, afastada da consideração da pobreza do educando ou do assistido”. – TORRES, Ricardo Lobo.
Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005,
p. 269.
514
STF, RE 210.251-ED, Relator para o Acórdão Min. Gilmar Mendes, DJ de 28-11-03. No mesmo sentido: RE
186.175-EDv-ED, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 23-8-06, DJ de 17-11-06.
515
“Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à
seguridade social, e tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à
velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; III – a promoção da integração ao mercado de
trabalho; IV – a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua
150

consagrada como “direito de todos” no art. 205 da Constituição, uma vez prestada
desinteressadamente para os que não possuam iguais condições de acesso, também se mostra
da mais alta relevância para a vida digna das pessoas. Daí o afirmar tratar-se de verdadeira
imunidade tributária, e não somente uma regra para a ausência de tributação 516 .
Por isso mesmo, as pessoas que de maneira abnegada auxiliarem o Estado 517 na
consecução de suas atividades básicas, conferindo aos mais desabonados economicamente
acesso à educação 518 , cultura, saúde e assistência social, “que, em sua expressão mínima,
constituem direitos humanos inalienáveis e imprescritíveis” 519 , precisam ser poupadas de
impostos 520 – porquanto, em última análise, são elas que, suprindo a falta do Estado,
asseguram àquelas pessoas a fruição de uma vida digna (ou o mais próximo dela).
Conseqüentemente, as atividades dessas pessoas destinam-se a assegurar o mínimo
existencial, a dignidade dos cidadãos mais necessitados, motivo pelo qual de fato justifica-se a
imunidade de modo bem mais consistente diante da proteção à dignidade da pessoa humana.
Para fruir da imunidade não é necessário que a totalidade dos serviços prestados seja
gratuita. Até porque, pressupor-se isso seria exigir que a entidade estivesse fadada ao
encerramento abreviado de suas atividades 521 . Basta que, diante da cobrança de determinadas
atividades, o resultado financeiro positivo 522 dessas prestações seja reinvestido na própria
instituição. No entanto, é de suma importância que o atendimento aos mais necessitados seja

integração à vida comunitária; V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de
deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida
por sua família, conforme dispuser a lei”.
516
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 265-266.
517
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 739.
518
“Quer a Constituição não só incentivar pessoas privadas a que criem instituições de educação e assistência
suprindo as deficiências da ação estatal, aperfeiçoando-a ou melhorando-a, como ainda visa a assegurar que
essas entidades existam desembaraçadamente, inclusive quanto a encargos tributários”. – ATALIBA, Geraldo.
Imunidade de instituições de educação e assistência, in RDT nº 55, p. 139.
519
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 266.
520
“A imunidade [...] deve abranger os impostos que, por seus efeitos econômicos, segundo as circunstâncias,
desfalcariam o patrimônio, diminuiriam a eficácia dos serviços ou a integral aplicação das rendas aos objetivos
específicos daquelas entidades daquelas entidades presumidamente desinteressadas, por sua própria natureza”.
– BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 313.
521
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 340.
522
Não utilizamos a palavra lucro, por ser afeto à noção de empresa, “coisa que a entidade, nas referidas
condições, não é, justamente porque lhe falta o fim de lucro (vale dizer, a entidade foi criada não para dar
lucro ao seu criador, mas para atingir uma finalidade altruísta)”. – AMARO, Luciano. Op. Cit., p. 156.
151

prestado em caráter gratuito. Afinal, esse é seu público-alvo e é exatamente isso que
caracteriza uma entidade como auxiliar do Estado no amparo à pobreza 523 .
Sem embargo, o caráter assistencial apresenta-se diante de algumas características
básicas, a saber: suprimento de necessidade atual e não futura; oferecimento, em geral, de
prestações em espécie e não em dinheiro; e auxílio em todos os casos 524 de necessidade 525 .
Preenchidas essas características básicas, inerentes à filantropia, assegurado está o direito à
fruição da imunidade. Assim é que se diz ser impossível à autoridade administrativa cancelar
determinada imunidade, mas somente suspendê-la até que os requisitos voltem a ser
cumpridos 526 .
A imunidade das entidades de educação sem fins lucrativos e de assistência social se
relaciona com a razão pública, merecendo sua identificação como cláusula jusfundamental.
Diante do critério de justificação argumentativa, esse dispositivo constitucional mostra-se
válido, por proteger a igualdade de oportunidades, a igualdade social, os valores do bem
comum, o respeito ao dever (moral) de civilidade e o direito à instrução e informação,
havendo nítida correlação entre ele e a esfera de imparcialidade política dos cidadãos.
As entidades acima descritas complementam a ação estatal na formação do cidadão,
dando-lhe instrução, formação profissional e assistência médica, o que lhes assegura, ao
mesmo tempo, a igualdade de oportunidades com seus pares sociais 527 , o que
conseqüentemente viabiliza a igualdade social.

[...] quando falamos de igualdade de oportunidade, queremos dizer algo


mais que a igualdade jurídica formal. Queremos dizer, mais ou menos, que
as condições sociais de fundo são tais que cada cidadão, independentemente
de classe ou origem, deve ter a mesma chance de alcançar uma posição
social favorecida, dados os mesmos talentos e disposição para tentar. As
políticas para alcançar essa igualdade de oportunidade incluem, por
exemplo, assegurar educação imparcial para todos e eliminar e
discriminação 528 .

523
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 277.
524
Roque Antonio Carrazza diverge dessa posição. Para o referido autor, basta que se observe impessoalidade no
acesso, ou seja, que uma determinada instituição atenda apenas a pessoas que cumpram determinados
requisitos, porém sem identificação prévia. Op. Cit., p. 741.
525
DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 322.
526
ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 224.
527
“De feito, a imunidade visa a proteger os direitos da liberdade compreendidos no mínimo existencial, nas
condições iniciais para a garantia da igualdade de chance”. – Id. Ibid., p. 267.
528
RAWLS, John. O Direito dos Povos. In: ______. O Direito dos Povos seguido de “A idéia de razão pública
revista”. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 150-151.
152

Além disso, imunizar-se tais sociedades significa preservar os valores do bem comum,
por incentivar a solidariedade social e, assim, fazer da sociedade um sistema eqüitativo de
cooperação 529 .
Demais disso, formando cidadãos, essas entidades lhes permitem desenvolver o
respeito ao dever (moral) de civilidade, bem como lhes garante o exercício efetivo do direito à
instrução e informação.
Por isso mesmo, Ricardo Lobo Torres aduz que “as imunidades das instituições de
educação e assistência social constituem instrumento democrático e aberto para a escolha das
ações filantrópicas por decisões não governamentais e para o aumento das possibilidades de
atendimento, no espaço público, das demandas dos necessitados” 530 .
Dessa forma, nítido se mostra que o comando do art. 150, VI, c, da Constituição,
referente às entidades de educação e de assistência social sem fins lucrativos, revela-se como
norma jusfundamental diante da razão pública, sendo importantíssimo para a esfera de
imparcialidade política.
O § 4o do art. 150, que também guarda relação com as entidades retro, recebe nossa
mesma consideração tecida nos casos das imunidades dos templos e dos partidos políticos.

3.3.9 A imunidade de impostos sobre livro, jornal e periódico, bem como sobre o papel
destinado à sua impressão.

A última imunidade relacionada na Seção das limitações ao poder de tributar,


encontra-se no art. 150, VI, d, da Carta, e veda a instituição de impostos sobre livro, jornal,
periódico e o papel destinado à sua impressão.
Trata-se obviamente de imunidade objetiva, tocante a tributos que atinjam apenas as
coisas ali relacionadas (II, IE, IPI, ICMS) 531 , sem proteger as pessoas que com elas lidem (o
que redundaria na proteção da renda e do patrimônio de editores, jornaleiros, livrarias etc.) 532 .

529
Id. Justiça como eqüidade – Uma Reformulação. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes,
2003, pp. 6 e ss.
530
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 293-294.
531
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 386.
532
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 764-765. Além disso, “[...] é objetiva, porque também repousa no
pressuposto constitucional da repercussão econômica do Imposto sobre Produtos Industrializados e do Imposto
sobre Operações de Circulação de Mercadorias e Serviços”. DERZI, Misabel Abreu Machado, em notas a
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado
153

A maior parte da doutrina vislumbra o referido dispositivo como imunidade destinada


a proteger, a um só tempo, algumas liberdades diferentes: direito à informação, liberdade de
comunicação, expressão e manifestação do pensamento, liberdade de imprensa, direito à
educação, ao acesso à cultura, direito de crítica e propaganda partidária 533 – o que torna a
regra acima uma garantia desses direitos fundamentais, “sem encontrar obstáculos artificiais,
especialmente de natureza tributária” 534 . No mesmo sentido se posiciona o STF, em iteradas
decisões 535 .
Doutrina minoritária, contudo, entende que a referida regra é simplesmente uma
norma de não incidência constitucional desprovida de conteúdo garantista 536 , porquanto os
tributos porventura incidentes sobre os veículos de comunicação escrita não teriam o condão,
num regime democrático (que se reveste de inúmeros outros preceitos controladores da ação
fiscal), de restringir o acesso cultural ou informacional dos cidadãos, ou ainda de perseguir os
transmissores de comunicação 537 . Ricardo Lobo Torres, a respeito, lembra que essa
imunidade perdurou por todo o regime militar, período no qual houve inigualável restrição às
liberdades acima referidas, e rejeita a afirmação de que a norma protege a liberdade de
expressão.

A intributabilidade do art. 150, VI, d não encontra nos direitos


fundamentais relacionados com a liberdade de expressão o seu fundamento
maior. Em 1946, quando surgiu, poderia ter alguma conotação com a
liberdade de imprensa, diante das medidas arbitrárias do Estado Novo
contra os jornais e os livros e a natural reação que se seguiu. Mas depois,
nos períodos de vigência democrática, nenhum risco poderia haver com a

Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 342. Cf. ainda o Acórdão proferido no RE 213094, de
lavra da Primeira Turma do STF, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 15/10/1999.
533
HARADA, Kiyoshi, Op. Cit., p. 397; ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 241; BALEEIRO, Aliomar. Limitações
constitucionais ao poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 339; ROSA JR., Luiz Emygdio Fernandes da. Op. Cit., pp. 320-321; COELHO, Sacha
Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 386;
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., pp. 745-746.
534
PESTANA, Márcio. Op. Cit., p. 88.
535
Cf. RREE 221239 (2a. Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 06/08/2004), 183403 (2ª. Turma, Rl. Min. Marco
Aurélio, DJ de 04/05/2001), 213094 (1ª. Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 15/10/1999).
536
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 297.
537
Valeria, assim, o mesmo raciocínio desenvolvido por Sacha Calmon Navarro Coelho quanto ao dispositivo do
não-confisco (apesar de o referido autor não o fazê-lo), no que toca o fato de o próprio sistema constitucional
já inviabilizar tal tipo de perseguição tributária aos comunicadores. Aliomar Baleeiro discorda da referida
assertiva, entendendo o imposto como “meio eficiente de suprimir ou embaraçar a liberdade da manifestação
do pensamento, a crítica dos governos e a homens públicos, enfim, de direitos que não são apenas individuais,
mas indispensáveis à pureza do regime democrático”. – BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao
poder de tributar. 7a. edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.
340.
154

cobrança de impostos sobre aqueles instrumentos de expressão política ou


cultural, desde que não discriminatória 538 .

Vale tecer um comentário ainda sobre os diversos bens jurídicos traçados pela
doutrina como tutelados pela referida imunidade. Forte nos dizeres de Luís Roberto Barroso,
tem-se como diferentes entre si as liberdades de informação (que contém as liberdades de
acesso à educação e à cultura), de expressão (na qual se inserem os direitos de comunicação,
de manifestação do pensamento, de crítica e de propaganda política) e de imprensa, já que

[...] a primeira diz respeito ao direito individual de comunicar livremente os


fatos e ao direito difuso de ser deles informado; a liberdade de expressão,
por seu turno, destina-se a tutelar o direito de externar idéias, opiniões,
juízos de valor, em suma, qualquer manifestação do pensamento humano.
[...] a liberdade de imprensa [...] designa a liberdade reconhecida (na
verdade, conquistada ao longo do tempo) aos meios de comunicação em
geral (não apenas impressos, como o termo poderia sugerir) de
comunicarem fatos e idéias, envolvendo, desse modo, tanto a liberdade de
informação como a de expressão 539 .

De toda sorte, o dispositivo imuniza de impostos o livro, o jornal, o periódico e o


papel destinado à sua impressão.
Entende-se como livro o meio de comunicação que transmita informações, que
divulgue cultura, conhecimento de qualquer espécie – já que o constituinte não delimitou o
conteúdo imunizado (e nem o poderia, por adentrar a seara da subjetividade). Concordamos
com a doutrina majoritária que defende que o conceito de livro é finalístico, não se prendendo
ao material impresso – abrangendo ainda outras mídias como a eletrônica, por exemplo 540 .
Como periódico, entende-se toda publicação que circule com um intervalo de tempo
certo. Nesse conceito já se abrange o jornal, segundo Paulo de Barros Carvalho, à medida que
“o jornal é um periódico, aliás, de periodicidade diária, na maioria das vezes, segundo sua
própria etimologia” 541 .
O papel destinado à impressão dos meios de comunicação escrita é o insumo básico
para sua confecção – “tão-somente, o que se destina à impressão de livros, jornais e
538
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 298-299.
539
BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de
ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. In:
TAVARES, André Ramos et alii (coords.). Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso
Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005. pp. 343-345.
540
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 387.
541
CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 193.
155

periódicos” 542 . Por não ser o único material necessário, doutrina majoritária estende a
imunidade a outros insumos, havendo divergência quanto à extensão deles – se somente
filmes e tinta, ou se também as máquinas impressoras estariam beneficiadas pela imunidade.
Para quem entenda tratar-se apenas de regra, o princípio geral de que a analogia não pode
levar à dispensa de tributo não intencionada pelas regras jurídicas, leva à conclusão de que
somente o que determinou o constituinte (o papel) é abrangido pela imunidade 543 .
Pelo que se verifica das linhas acima, a norma do art. 150, VI, d, da Constituição, ao
assegurar a não incidência de impostos sobre as coisas acima, é um comando com intuito
objetivo, que não guarda relação com qualquer categoria de pessoas.
Apenas por isso, a referida norma já poderia ser desconsiderada como verdadeira
imunidade, já que coisas não são dotadas de liberdades a serem tuteladas. No máximo, essas
coisas poderiam ser consideradas instrumentos de viabilização de algumas liberdades
subjetivas; todavia, nunca é despiciendo relembrar que a esfera de fundamentalidade guarda
relação com o núcleo irredutível da liberdade. O instrumento lhe é periférico, marginal.
Conseqüentemente, não guarda relação com a razão pública.
Assim é que, nos dizeres de Ricardo Lobo Torres, “se a intributabilidade dos jornais e
livros tem a natureza de não-incidência constitucional ou de mero privilégio, não se lhe
estendem as conseqüências das verdadeiras imunidades, dentre as quais a
irrevogabilidade” 544 .
Pode-se falar na necessária proteção à liberdade artística, de expressão 545 , de
pensamento, de educação, instrução, informação, imprensa etc. Contudo, é importante ver que
essas liberdades pertencem a indivíduos e não aos veículos de comunicação que eles utilizam.
Ou seja, tais liberdades asseguram que os indivíduos não podem ser tributados por se
expressarem de que maneira for; o pensamento não pode ser tributado 546 . No entanto, a

542
CARRAZZA, Roque Antonio. Op. Cit., p. 765.
543
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 310.
544
Id. Ibid., p. 297.
545
“É interessante observar que certa parte da doutrina brasileira, que geralmente reduz as imunidades ao
discurso constitucional e não lhe procura o fundamento valorativo, aponta a liberdade de expressão como
justificativa da intributabilidade dos jornais, revistas e livros”. – Id. Ibid., p. 299.
546
Somente nesse sentido é que concordamos com a afirmação de Roque Antonio Carrazza (Op. Cit., p. 747),
para quem “[...] a própria democracia de um País é diretamente proporcional ao grau de livre manifestação do
pensamento que nele existe. É ponto bem averiguado, que um regime em que não seja possível às pessoas
manifestar livremente o próprio pensamento não pode ser havido por democrático”, ou de Hugo Lafayette
Black, para quem “o direito de pensar, falar e escrever livremente, sem censura ou interferência governamental
é o mais precioso privilégio de cidadãos investidos do poder de escolher idéias políticas e servidores
públicos”. – BLACK, Hugo Lafayette. Crença na constituição. Tradução de Luiz Carlos de Paula F. Xavier.
Rio de Janeiro: Forense, 1970, p. 63.
156

tributação ou não das coisas nas quais esse pensamento seja materializado não é nuclear, não
é corolário de qualquer das liberdades supramencionadas.
Até porque, nesse caso, como a imunidade é meramente objetiva, os indivíduos não se
mostram protegidos em suas liberdades intelectuais. Ricardo Lobo Torres, a respeito, lembra
que essa imunidade perdurou por todo o regime militar, período no qual houve inigualável
restrição às liberdades acima referidas, e rejeita a afirmação de que a norma protege a
liberdade de expressão.

A intributabilidade do art. 150, VI, d não encontra nos direitos


fundamentais relacionados com a liberdade de expressão o seu fundamento
maior. Em 1946, quando surgiu, poderia ter alguma conotação com a
liberdade de imprensa, diante das medidas arbitrárias do Estado Novo
contra os jornais e os livros e a natural reação que se seguiu. Mas depois,
nos períodos de vigência democrática, nenhum risco poderia haver com a
cobrança de impostos sobre aqueles instrumentos de expressão política ou
cultural, desde que não discriminatória 547 .

Desse modo, imunizar de impostos os meios de comunicação escrita não significa


assegurar as liberdades todas acima; quando muito, é apenas um meio de se facilitar seu
desenvolvimento. Mais interessante seria, na esteira da proteção das liberdades, estabelecer
um dispositivo que vedasse a instituição de tributos com efeito de censura (como existe a
vedação de tributos com efeito de confisco, para tentar resguardar o direito de propriedade).
De resto, trata-se apenas de proteção muito mais assemelhada a privilégio da comunicação
escrita em detrimento das demais (de cunho audiovisual).
Claro que não se pode rejeitar o argumento de que o livro é um dos principais meios
de provisão educacional, e que os jornais e periódicos possuem ampla utilidade na formação
de uma opinião pública mais consciente 548 . De todo modo, se o objetivo da norma é proteger
o conhecimento, este é que deve ser imunizado (e a rigor já o é, dado o conteúdo das
liberdades genéricas de expressão e pensamento); não os instrumentos (ou parte deles) que lhe

547
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 298-299.
548
“A liberdade de informação é pressuposto de publicidade democrática; somente o cidadão informado está em
condições de formar um juízo próprio e de cooperar, na forma intentada pela Lei Fundamental, no processo
democrático”. – CLÈVE, Clèmerson Martins. Liberdade de expressão, de informação e propaganda comercial.
In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (coords.). Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao
professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 220.
157

conduzem 549 . Especialmente quando se cogita de imunizar apenas um desses instrumentos,


que é a comunicação escrita.
Fosse assim, tendo em vista a proteção instrumental-objetiva, deveriam, por exemplo,
ser imunizados os alimentos, os artigos de vestuário, os imóveis, os serviços médicos e de
educação de qualquer espécie (já que direito fundamental não pode ser restringido, sendo
“tradição do nosso Direito assegurar interpretação ‘amplíssima’ às normas constitucionais que
tratam da imunidade” 550 ), pois assim estaria garantida a dignidade da pessoa humana.
Em suma: não se pode pretender garantir liberdades subjetivas com imunidades
puramente objetivas.
Desse modo, analisando-se a referida imunidade vis a vis a esfera de imparcialidade
política, percebe-se que a norma do art. 150, VI, d da Constituição não pode ser considerada
cláusula pétrea, ou direito fundamental por assim dizer.

3.3.10 O direito de conhecer a carga de impostos incidentes sobre o consumo.

O comando inserto no § 5o do art. 150 da Constituição dispõe que lei determinará


medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre
mercadorias e serviços.
A regra acima é pouco prestigiada pela doutrina. Os autores que dela falam, encaram-
na como instituidora do princípio de transparência fiscal 551 , por significar um instrumento que
permitirá aos consumidores saber qual a carga tributária dos impostos incidentes sobre o

549
Com isso rejeitamos o argumento econômico que Misabel Derzi traz com relação à redução no custo de
aquisição dos livros e periódicos pelos cidadãos, que favoreceria a veiculação de informações, ensino,
educação e cultura (em nota a BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7a.
edição. Misabel Abreu Machado Derzi (atualizadora). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 341). Existem outros
mecanismos pelos quais a carga tributária dessas mercadorias pode ser controlada, a um patamar condizente
com a essencialidade ou a exteriorização de riqueza pela aquisição de tipos de livros e periódicos. Abstraindo
da regra imunizante em si e pensando no tributo como um instrumento de restrição das liberdades arroladas
acima, vale trazer o raciocínio de Clèmerson Martins Clève, para quem “importa, aqui, considerar que o
legislador está autorizado (i) implícita ou (ii) explicitamente a operar, dentro de limites controláveis, restrição
nos direitos fundamentais, tudo para, através de um juízo de concordância prática, de ponderação,
concretizador de um balancing, harmonizar os direitos em função da possível emergência de colisão ou de
concorrência”. – CLÈVE, Clèmerson Martins. Op. Cit., p. 234.
550
BOTALLO, Eduardo Domingos. O Imposto sobre Produtos Industrializados na Constituição. In: TÔRRES,
Heleno Taveira (coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário – estudos em homenagem a Paulo de
Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 639.
551
Id. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 127, realçando o
aspecto moral do princípio ao aduzir que ele servirá para “coarctar abusos do legislador, que muita vez prefere
aumentar os impostos indiretos, que são invisíveis e causam pequena reação popular, do que majorar os
tributos diretos e progressivos, que incidem sobre pessoas de maior capacidade contributiva mas ficam sujeitos
a lobby e a resistência de interessados”. Luciano Amaro correlaciona a transparência fiscal ao princípio da
informação do consumidor. Op. Cit., p. 147.
158

consumo (notadamente IPI, ICMS e ISS). Parte da doutrina ainda vislumbra a regra como um
instrumento de combate à sonegação fiscal pelos consumidores 552 .
Trata-se de um enfoque prático, no qual a norma é vista como modalidade de controle
direto do ‘preço tributário’ das mercadorias e serviços pelo cidadão-contribuinte 553 – que, ao
mesmo tempo, é o cidadão-eleitor 554 .
Vale frisar, contudo, que os grandes consumidores, mormente pessoas jurídicas,
sabem perfeitamente qual a carga tributária de tudo o que consomem. Por outro lado, os
pequenos consumidores, em sua quase totalidade, mal sabem o que é imposto – motivo pelo
qual somente dizer-lhes qual a carga tributária de cada um seria, quando muito, dar uma
informação (o que, por si só, não esclarece 555 , atendendo apenas parcialmente ao preceito
constitucional).
Por isso mesmo, talvez o comando do legislador possa ser encarado por um segundo
prisma, que é o da educação tributária. É possível que as medidas às quais o constituinte se
refere para o legislador esclarecer os consumidores, destinem-se a transmitir para o
consumidor não somente o encargo econômico dos impostos incidentes sobre as coisas e
serviços que adquire, mas também quais são e o que significam esses impostos em si.
Em termos práticos, a educação tributária vem sendo efetuada por algumas Unidades
da Federação, como resultado do Programa Nacional de Educação Fiscal (PNEF). O
Programa, firmado inicialmente por todos os Estados, o Distrito Federal e a União no âmbito
do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) 556 , foi objeto de posterior Portaria
Interministerial entre os Ministérios da Fazenda e da Educação 557 , de modo a tornar o

552
CARRAZZA, Roque Antonio, Op. Cit., p. 912, para quem “os consumidores finalmente perceberão que o
maior beneficiário – quando não o único – desta prática irregular é o próprio sonegador”.
553
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. 9a. edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 395.
554
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13a. edição. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 127.
555
Conforme definição do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, esclarecer adquire o significado de
“tornar claro, compreensível; elucidar, aclarar; dar ou prestar explicação, esclarecimento; obter
esclarecimentos, informar-se”. – FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo dicionário da língua
portuguesa. 2a edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 687.
556
Para maiores informações sobre o histórico do PNEF, recomenda-se a leitura da dissertação de Mestrado de
Arlindo Amorim Pereira, Programa de Educação Tributária da Bahia: a visão dos atores envolvidos no seu
grupo e a implementação do programa. Salvador, 2004. 134 f. Dissertação (Mestrado em Administração) –
Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004. Disponível em:
<http://www.adm.ufba.br/disserta/mestacad/publicacoes/dissertacao/pereira_arlindo_amorim.pdf>. Acesso
em: 23 abr. 2007.
557
Portaria Interministerial nº 413/2002.
159

Programa o mais abrangente possível à população brasileira. Como exemplo do resultado,


pode-se ver a página da Secretaria da Receita Federal destinada ao Projeto Leãozinho 558 .
Decerto que a norma editada no plano no CONFAZ não substitui a lei à qual o art.
150, § 5o, da Constituição, se refere (já que, apesar de o PNEF ser o mais abrangente possível,
o art. 34, § 8o, do ADCT/88 só dá o status de lei complementar aos convênios firmados pelo
CONFAZ com relação ao ICMS, o que não se estende para os demais tributos). Todavia, ao
instituir e divulgar o Programa Nacional de Educação Fiscal, já se dá ao cidadão médio mais
possibilidades de entender o sistema tributário nacional, para, a partir daí, permitir-lhe que
entenda quais são os impostos incidentes sobre o consumo. Com isso, o cidadão fica mais
próximo de ser esclarecido (o que é bem mais profundo do que ser unicamente comunicado)
quanto ao efetivo ônus econômico sofrido por ele em cada mercadoria ou serviço consumido,
e qual a magnitude desse encargo na sua vida.
Dada a exigência de esclarecimento ao cidadão sobre os tributos, o § 5o do art. 150 da
Constituição atende ao critério da razão pública, por preencher o direito à instrução e
informação peculiar aos integrantes de uma sociedade democrática bem ordenada, merecendo
ser considerado cláusula jusfundamental.

3.4 OBSERVAÇÃO FINAL QUANTO ÀS IMUNIDADES: ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS


ABRANGIDAS, À VISTA DA RAZÃO PÚBLICA 559 .

É pertinente fazer uma última observação quanto às imunidades. Tendo em vista que
elas se referem a liberdades intocáveis, conseqüentemente não se pode considerar válido que
as pessoas protegidas pelas imunidades constitucionais (templos de qualquer culto, partidos
políticos e entidades filantrópicas) sejam tributadas de forma alguma. Assim, o texto
constitucional, ao se referir somente a impostos, revela-se incompleto e distorcido. “A
redução é descabida, transparecendo como o produto de um exame meramente literal (e

558
Cf. o portal próprio do projeto Leãozinho, na página <http://leaozinho.receita.fazenda.gov.br/>. Acesso em:
17 abr. 2007. Recomenda-se ainda a leitura do documento disponibilizado pela Escola Superior de
Administração Fazendária (ESAF) a respeito de todo o PNEF, com seus objetivos principais, na página
<http://www.receita.fazenda.gov.br/publico/EducacaoFiscal/PrimeiroSeminario/02PNEFExerciciodeCidadani
a.pdf>. Último acesso em 17 de abril de 2007.
559
Exatamente por tocar apenas a questão da razão pública, não abordaremos a discussão técnica sobre o
assunto. Recomenda-se, para tanto, a leitura de CHIESA, Clélio. Op. Cit.
160

apressado) ou como o resultado de considerações metajurídicas, que não se prendem ao


contexto do direito positivo que vige” 560 .
A fundamentalidade dos direitos exclui a extrafiscalidade, desconsidera as razões de
Estado. Desse modo, ainda que se trate de tributos com função parafiscal ou extrafiscal, as
pessoas imunes não poderiam sofrer esse ônus.
A única ressalva feita quanto a isso, toca os templos de qualquer culto. Isso porque,
dada a forma pela qual a laicidade estatal se estruturou (pelo que se verifica do art. 19, I, da
Constituição), não é possível que o Estado conceda subsídios de qualquer espécie às entidades
religiosas 561 . Por conseguinte, os tributos parafiscais (que representam sempre contrapartida
estatal) devem ser cobrados das instituições religiosas, mesmo imunes, a fim de preservar a
laicidade do Estado, evitando-se a concessão de incentivos indiretos mediante a prestação de
serviços gratuitos pelo Estado a essas entidades.

3.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ACERCA DA FUNDAMENTALIDADE DAS


LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR.

À primeira vista, diante da esmagadora maioria da doutrina tecnicista do direito


tributário, percebe-se uma preocupação imensa quanto à maximização das normas
fundamentais, de modo formal, pouco importando a razão de ser dessas mesmas regras 562 .
Esse tipo de raciocínio se mostra uma transposição da idéia de prioridade do bem
sobre o justo, como se, garantindo-se o máximo de fundamentalidade no texto constitucional
– e, assim, considerando-se o contribuinte em uma cápsula protetora antiestatal –, a cidadania
brasileira estivesse assegurada a caminhar sobre bases sólidas e bem estruturadas. No entanto,
até por termos adotado a teoria jusfilosófica de John Rawls, discordamos dessa premissa. Ao
contrário, acompanhamo-lo em sua idéia de que

560
CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit., p. 179. Cf. ainda a p. 182, em que o autor reafirma essa passagem.
No mesmo sentido, CHIESA, Clélio. Op. Cit., pp. 935 e ss.
561
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. 3a. edição. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 437-438.
562
Partilhamos integralmente do pensamento de Paulo de Barros Carvalho, para quem “análise dos modernos
estudos jurídicos tributários estão a revelar marcante tendência doutrinária, para a qual não lobrigamos
explicação plausível. Doutores de tomo, legítimos representantes de escolas doutrinárias, seguem a mesma
trilha, aprofundando cada vez mais as investigações e criando padrões que, com o passar do tempo, vão se
solidificando, a ponto de tornar sumamente problemática qualquer espécie de revisão de premissas. É
precisamente o que sucede com os estudos acerca das normas jurídicas tributárias”. – CARVALHO, Paulo de
Barros. Teoria da norma tributária. 2a. edição. São Paulo, RT, 1981, p. 66.
161

a história das constituições que funcionaram bem sugere que os princípios


que regem as desigualdades econômicas e sociais, bem como outros
princípios distributivos, não convêm, de maneira geral, como restrições
constitucionais. Em compensação, a melhor maneira de obter uma
legislação justa parece ser garantir a eqüidade na representação e o recurso
aos outros procedimentos constitucionais 563 .

Esse raciocínio maximizador, na verdade, mostra-se o reflexo da idéia de que menos


direitos fundamentais significam mais força para a ação estatal abusiva, e, conseqüentemente,
uma democracia enfraquecida. Ledo engano 564 . A maximização dos direitos fundamentais, ao
invés de garantir a liberdade dos indivíduos (e, assim, a democracia), ameaça-a 565 , porquanto
emperra o Estado e o impede de agir mesmo quando necessário 566 .
Assim, priorizar o bem sobre o justo, pensando apenas na maximização de direitos
intocáveis, especialmente acerca de questões que envolvem a manutenção do Estado (já que o
tributo é a principal fonte de receita pública), é praticamente certificar a temporalidade
constitucional, tão reduzida quanto maior for o leque de fundamentalidade 567 .
Trata-se de preceito lógico, porquanto a cristalização do documento básico da
sociedade redunda em tolhimento das gerações futuras quanto à deliberação democrática 568 .

563
RAWLS, John. As liberdades básicas e sua prioridade. In: ______. Justiça e democracia. Tradução de Irene
A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 190-191.
564
“Ao assim agirem, todavia, esquecem que a história da raça humana muda em velocidade crescente e as
conjunturas tendem a se modificar com celeridade cada vez maior, exigindo novos regramentos, impondo
novos desafios que não podem ficar amarrados por legisladores sem visão antecipatória”. – MARTINS, Ives
Gandra da Silva. Op. Cit., p. 182.
565
Após afirmar que as constituições analíticas abrem “portas de entrada” ao positivos, Paulo Napoleão
Nogueira da Silva considera que “A circunstância de no positivismo contar como regra o que está escrito,
quase que exclusivamente sob o aspecto literal, abre caminho a uma semiditadura das maiorias legislativas,
quase sempre eventuais e instáveis: o que decidir em um determinado momento uma tal maioria, tornar-se-á
inconteste, exigível e obrigatório, [...]”. – SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. Constituição e sociedade. Rio
de Janeiro: Forense, 2001, p. 23.
566
“A democracia está ameaçada mais diretamente pelos regimes autoritários e totalitários; no entanto, devemos
reconhecer a existência de uma outra ameaça. Esta não vem de um poder onipotente que submeteria a
sociedade à sua mercê, mas da própria sociedade que, na ordem política, vê apenas uma burocracia autoritária
ou corrupção e deseja reduzi-la à função de guarda noturno ou de um Estado mínimo, para não entravar a
atividade dos mercados e a difusão dos bens de consumo e de todas as formas de comunicação de massa. Esse
liberalismo tacanho pode ser considerado democrático porque respeita as liberdades e responde às demandas
da maioria. Nos países ricos, o marketing tende a substituir o voto; nos países pobres, a erradicação da pobreza
é reconhecida como prioritária e os discursos sobre as liberdades públicas são criticados como elitistas e
inspirados pelo estrangeiro dominador. Por toda parte, cresce a idéia de que a defesa da liberdade consiste em
reduzir a intervenção do Estado”. – TOURAINE, Alain. O que é democracia? Petrópolis: Vozes, 1996, pp.
182-183.
567
Cf. SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. Op. Cit.. No mesmo sentido, VIEIRA, Oscar Vilhena. Op. Cit.;
SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e a reforma da Previdência. In:
TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). A Reforma da Previdência Social – temas polêmicos e aspectos
controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004; e SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Teoria Constitucional e
Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
568
“Era preciso não esquecer ‘que é uma constituição que estamos expondo’, um diploma que iria servir a
gerações futuras e, conseqüentemente, capaz de adaptar-se ‘às várias crises dos negócios humanos’”. –
162

Isso acelera o processo de ruptura e leva a uma constante re-elaboração constitucional, e se dá


de modo peculiarmente mais rápido em casos de concepções formalistas cegas que abstraiam
até mesmo que o constituinte, como ser humano que é, pode ter se equivocado ao redigir a
Constituição, inserindo na esfera de fundamentalidade dispositivos que de fato não deveriam
estar ali 569 .
Em vista disso, percebe-se a importância de se encontrar parâmetros de justificação
que rompam com o formalismo e fechem a fundamentalidade constitucional em seu núcleo
irredutível. Não é à toa, como vimos, que “we should care, and we should think about, what
the fiscal constitution for political democracy should look like, what sort of institutions should
be most efficient in the workings of democratic politics” 570
A razão pública é uma proposta de investigação, que nos levou às conclusões
seguintes.

RODRIGUES, Lêda Boechat. A corte suprema e o direito constitucional americano. 2a. edição. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1992, p. 43.
569
Abstraímos aqui de considerar os dispositivos inseridos entre a promulgação e a publicação da Constituição
pelo então deputado Nelson Jobim, conforme assumido por ele próprio em diversas entrevistas. Até porque,
mesmo confessando tal ato de máxima repugnância, ele preferiu manter em segredo quais foram os ditames
apócrifos. A respeito, recomenda-se a leitura de BENAYON, Adriano; RESENDE, Pedro Antonio Dourado
de. Anatomia de uma fraude à constituição. Disponível em:
<http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/fraudeac.html>. Acesso em: 29 abr. 2007. Para uma abordagem
mais teórica dos eventuais desvios de conduta dos legisladores, cf. a recomendação de aproximação dos
indivíduos da política e de limitação das decisões políticas pelos legisladores como base de uma reforma
constitucional, trazida por Buchanan em sua Politics as public choice. The collected works of James M.
Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000.
570
BUCHANAN, James M. Notes on the history and direction of public choice. In: ______. Politics as public
choice. The collected works of James M. Buchanan, Indianapolis: Liberty Fund, v. 13, 2000, p. 61.
163

CONCLUSÃO

As linhas acima nos permitiram ver que:

1- Existe um problema crucial na delimitação da esfera de fundamentalidade das normas


constitucionais consagradoras de direitos aos cidadãos;
2- Esse problema existe porque, quanto maior o número de regras cristalizadas, maior
será o poder das gerações anteriores sobre as futuras (que, num contexto intertemporal
reveste-se de uma prevalência das minorias sobre as maiorias);
3- Essa vinculação irresistível das gerações futuras a algo decidido de modo terminativo
em um outro contexto histórico-social, induz a uma ruptura constitucional periódica –
que pode ser em espaços mais curtos ou mais longos de tempo, porém já é previsível
por assim dizer;
4- A ruptura constitucional é indesejada em qualquer ambiente democrático, dada a
incerteza e a instabilidade que ela naturalmente gera aos seus cidadãos e mesmo ao
mundo como um todo, especialmente no cenário de globalização atual;
5- Por isso mesmo, é essencial discutir a questão dos direitos fundamentais em face do
princípio democrático;
6- A questão adquire maior vulto quando se trata de uma democracia deliberativa, e não
apenas representativa, que pressupõe que os cidadãos sejam livres e iguais, com poder
para deliberar sobre assuntos importantes;
7- A democracia deliberativa mostra-se mais interessante do que a meramente
representativa, uma vez que esta é basicamente formal e estabelece um distanciamento
entre os cidadãos e os legisladores por eles eleitos;
8- Assim, sem que se atribua uma base de legitimidade política, calcada nas deliberações
democráticas do próprio povo, haverá uma ampla participação política formal, porém
164

pouca representatividade das instituições sociais – o que esvazia o Estado e suas ações
de qualquer suporte na sociedade;
9- A democracia deliberativa ao mesmo tempo pressupõe e ocasiona, com o passar do
tempo (e sua conseqüente maturidade), o domínio do político pelos cidadãos, e não
apenas que estes elejam formalmente seus representantes para que decidam em seu
lugar, presumindo-se a legitimidade de qualquer decisão advinda do processo
legislativo;
10- A democracia deliberativa exige que os cidadãos participem ativamente das
deliberações dos assuntos mais importantes, tomando conhecimento do que é decidido
e chancelando argumentativamente essas mesmas decisões, segundo critérios políticos
que atendam ao bem público (e não apenas os seus particulares);
11- Para que esse modelo democrático se desenvolva de fato, é necessário consagrar-se
determinados direitos, certas liberdades, para garantir a efetiva participação na
deliberação democrática pelos cidadãos. O problema que se põe é a delimitação desses
direitos, os quais, por sua vez, podem estar presentes na Constituição de modo
expresso ou implícito – o que não lhes retira, de modo algum, sua amplitude máxima e
irrevogabilidade absoluta segundo o constitucionalismo;
12- Trata-se, então, de analisar a legitimidade dos próprios direitos tachados pelo
constituinte originário de fundamentais;
13- A concepção democrática da constituição tenta encontrar-lhe um núcleo irrestringível,
a fim de evitar a tirania constitucional, que obriga seus cidadãos a um regime de
injustiças – dado o absoluto distanciamento, com o passar do tempo, entre o regime
preconizado pela lei fundamental (estático) e a realidade social (dinâmica), aliado à
impossibilidade de novos ajustes nos acordos previamente firmados pelo constituinte
originário;
14- Daí o dizer-se que o constitucionalismo, em uma república democrática e pluralista,
deve se restringir à esfera da imparcialidade política;
15- A essa questão teórica se contrapõe, em concreto, a Constituição da República de
1988, que é a constituição brasileira com a maior carta de direitos ditos
“fundamentais” em toda a história da nação, considerados irrevogáveis pelo
constituinte derivado;
16- A Constituição terminou por se apresentar, dado o contexto político em que foi
elaborada e promulgada, como um diploma conjuntural e circunstancial – em outras
165

palavras, casuístico –, além de altamente comprometido com determinadas classes e


não com a sociedade como um todo;
17- A essa hipertrofia soma-se a abertura conceitual da Constituição, no que toca os
direitos fundamentais. A Constituição, ao não dizer quais são efetivamente seus
direitos fundamentais, fez com que ninguém soubesse quais são esses direitos. Numa
sociedade pluralista e altamente complexa, tratar os direitos fundamentais dessa forma
é no mínimo temerário.
18- Torna-se assim necessário buscar um parâmetro de materialidade para a definição do
que efetivamente seja direito fundamental;
19- A razão pública, como parâmetro de materialidade, atribui contornos imprescindíveis
ao discurso a ser adotado acerca de questões de justiça básica – inclusive para se
verificar se se trata ou não de uma questão de justiça básica;
20- A razão pública pressupõe que as doutrinas abrangentes de verdade ou direito sejam
substituídas por uma idéia do politicamente razoável dirigido aos cidadãos como
cidadãos livres e iguais;
21- A razão pública razão apresenta seus contornos públicos de três maneiras: como razão
de cidadãos livres e iguais, é a razão do público; seu tema é o bem público no que diz
respeito a questões de justiça política fundamental, cujas questões são de dois tipos,
elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica; e a sua natureza e
conteúdo são públicos, sendo expressos no raciocínio público por uma família de
concepções razoáveis de justiça política que se pense que possa satisfazer o critério de
reciprocidade;
22- Assim, as formas pelas quais a razão pública se manifesta como tal, são todas aquelas
que comportarem os caracteres essenciais de justiça básica e de elementos
constitucionais essenciais;
23- A razão pública não se aplica a todas as discussões políticas de questões fundamentais,
mas apenas às discussões das questões naquilo a que Rawls se refere como fórum
político público. Esse fórum pode ser dividido em três partes: o discurso dos juízes nas
suas discussões, e especialmente dos juízes de um tribunal supremo; o discurso dos
funcionários de governo, especialmente executivos e legisladores principais, e
finalmente o discurso de candidatos a cargo público e de seus chefes de campanha,
especialmente no discurso público, nas plataformas de campanha e declarações
políticas;
166

24- Um cidadão participa da razão pública, então, quando delibera no contexto do que
considera sinceramente como a concepção de justiça mais razoável, uma concepção
que expresse valores políticos dos quais também possamos pensar razoavelmente que
outros cidadãos, como livres e iguais, poderiam endossar. Assim, ao cidadão cabe
construir a razão pública, mediante diversos critérios e valores, e não obedecer a ela –
função que é dada ao Estado e seus funcionários;
25- A razão pública, como critério de justificação construído pelos cidadãos, possui
efetivamente um conteúdo, que aponta para concepções razoáveis de justiça;
26- Nada obstante Rawls apontar a ampla possibilidade de haver, seja em épocas ou
lugares diferentes, razões públicas materialmente diversas (o que, a princípio, dá a
impressão de ser a razão pública uma concepção puramente formalista), o autor aponta
princípios indissociáveis da idéia de razão pública;
27- Quanto a essa variedade de “razões públicas” possíveis ao longo de diversas épocas e
lugares, o próprio Rawls atribuiu-lhe um limite, o qual se daria exatamente pelo
critério de reciprocidade. Isso porque a reciprocidade é violada sempre que as
liberdades básicas forem negadas – o que torna a sociedade fundamentalmente
desigual e inviabiliza a criação e a manutenção da idéia de razão pública. Nesse
sentido, a reciprocidade atuaria como um mecanismo de prova do atendimento da
razão pública;
28- A razão pública, por sua vez, incorpora elementos de dissenso, não aceitando apenas o
dissenso quanto à legitimidade dos argumentos políticos públicos acerca das regras em
si, os quais, apesar de não serem considerados os mais adequados, são entendidos
como razoáveis por todos os cidadãos;
29- O dissenso é fundamental para a constituição da razão pública rawlsiana, porém deve
resultar num consenso formal posterior, consistente no reconhecimento de validade e
de legitimidade de todas as proposições políticas e jurídicas, ante o procedimento
racionalmente aceito em um regime democrático de direito;
30- Nessa acepção se percebe o quão importante se mostra o processo legislativo para a
idéia de razão pública, pois este servirá como base de reconhecimento racional formal
para todas as normas existentes em um sistema;
31- A razão pública reforça então a idéia da teoria de constituição de que, ao analisar-se o
“núcleo duro” da Constituição, convém ter em conta que a estas cláusulas não se deve
dar uma amplitude muito grande, pois isto desvirtua seu papel no sistema
167

constitucional. Elas devem representar somente aquilo de mais essencial, somente os


princípios fundamentais;
32- Ou seja, a fim de se resguardar a democracia, é necessário definir-se quais dispositivos
constitucionais são de fato relacionados à participação na deliberação democrática –
pois é a democracia deliberativa que embasa politicamente o Estado Democrático de
Direito;
33- A razão pública pressupõe a preservação das seguintes liberdades básicas: (i) liberdade
religiosa; (ii) liberdade de expressão artística; (iii) idéias substantivas de eqüidade; (iv)
liberdade política; (v) liberdade civil; (vi) igualdade de oportunidades; (vii) igualdade
social; (viii) reciprocidade econômica; (ix) valores do bem comum; (x) razoabilidade;
(xi) respeito ao dever (moral) de civilidade; (xii) direito à instrução e informação;
(xiii) além das garantias dos exercícios dessas liberdades e valores (dentre as quais,
conforme exposto mais acima, consideramos estar o processo legislativo). Além
dessas liberdades, a própria democracia deliberativa pressupõe outras: a liberdade de
pensamento; a liberdade de consciência; as liberdades incluídas na noção de liberdade
e integridade da pessoa; e, finalmente, os direitos e liberdades protegidos pelo Estado
de Direito.
34- A razão pública adquire, então, uma ferramenta utilíssima para se buscar o que pode
ser considerado, ou não, direito fundamental “decorrente dos princípios ou do regime
adotado” pela Constituição (entendida não como um documento formal, mas sim
como uma carta de ajustes políticos entre cidadãos livres e iguais), no contexto de uma
argumentação racional que se pauta na democracia – e ao mesmo tempo justifica
determinadas regras ou condutas estatais;
35- Logo, o que estiver fora do âmbito de justificação da razão pública, não poderá ser
considerado afeto à estrutura básica da sociedade e, conseqüentemente, não poderá ser
considerado elemento de justiça básica apto a ser erigido à categoria de direito
fundamental;
36- Por outro lado, a Constituição da República de 1988 apresenta algumas normas nas
suas limitações ao poder de tributar, já que o exercício dessa competência pelo Estado
não é ilimitado, uma vez que o próprio Estado não é mais considerado como um fim
em si próprio. As limitações constitucionais ao poder de tributar destinam-se,
portanto, a resguardar os cidadãos de eventuais abusos da máquina estatal;
37- Os destinatários das regras estabelecidas pela Constituição nas Limitações ao Poder de
Tributar são basicamente o legislador e o aplicador das leis;
168

38- Por ser uma parte da Constituição destinada a refrear o poder tributário, é comum
entender-se-lhe, no meio técnico, como uma segunda Carta de Direitos, particular à
esfera da tributação, sobre a qual cabe aplicar formalmente os dispositivos
constitucionais pertinentes, entendendo-se todas aquelas regras como cláusulas
pétreas. Assim, um Estado democrático de Direito precisa ter sua atividade tributária
baseada na Constituição – ou seja, no ajuste básico de regras acordadas pelos cidadãos
– e por ela limitada;
39- Esses limites ao poder de tributar, entendidos como um freio político à ação estatal,
logicamente não redundam apenas na consagração de princípios morais destinados a
proteger a esfera de imparcialidade política do indivíduo. Existem determinados
limites que se justificam no próprio federalismo, não guardando relação direta com o
cidadão em si. Existem outros, ainda, que encontram esteio na separação dos poderes.
E existem ainda alguns que se destinam a proteger o cidadão, mas que nem por isso
significam uma proteção inextrincável do regime democrático, por não afetarem o
exercício da deliberação pelos cidadãos;
40- Analisando-se cada norma constitucional pertinente, encontram-se 4 regras que não se
relacionam com direitos subjetivos dos cidadãos: o art 150, V, quanto à liberdade de
circulação de bens; e VI, a (com seus §§ 2o e 3o consectários); o art. 151, II, primeira
parte; e o art. 151, III. Esses dispositivos dizem respeito ao chamado federalismo
fiscal, o qual, por se relacionar diretamente com a estrutura da Federação (e não com
os cidadãos em si), não pode ser considerado objeto do presente trabalho;
41- Quanto às demais normas, em contraposição à razão pública, percebe-se que:
a. A legalidade integra a razão pública (arts. 150, I, e §§ 1o, 6o e 7o). As únicas
ressalvas a serem feitas, tocam a exigência de lei específica para a concessão
de benefícios fiscais e a questão da anuência dos Estados-membros para
concessão de benefícios em sede de ICMS;
b. A isonomia (arts. 150, II, 151, I e II, in fine, e 152) também integra a razão
pública. Aqui inserimos também o § 4o do art. 150, como contida pelo
argumento político público. Frisamos que essa consideração não se estende
para o critério de capacidade econômica do art. 145, § 1o, da Carta;
c. A irretroatividade, de igual modo (art. 150, III, a), compõe a razão pública;
d. A anterioridade (art. 150, III, b e c, e § 1o), por outro lado, não possui esteio na
esfera de imparcialidade política, não havendo meio de se afirmá-la como
justificável pela razão pública;
169

e. O não-confisco (art. 150, IV), por sua vez, também não se afigura como norma
inserta no âmbito da imparcialidade política;
f. A liberdade de tráfego (art. 150, V) também possui sua fundamentalidade
confirmada diante do princípio democrático, sendo abrangida pela razão
pública;
g. A imunidade dos templos (art. 150, VI, b) guarda relação direta com a razão
pública;
h. A imunidade dos partidos políticos (art. 150, VI, c) também se mostra digna de
fundamentalidade diante do critério de razão pública;
i. A norma que confere imunidade aos sindicatos (art. 150, VI, c) mostra-se
distante da razão pública, afastada da esfera de imparcialidade política;
j. A imunidade das entidades de educação sem fins lucrativos e de assistência
social (art. 150, VI, c), por sua vez, também se relaciona com a razão pública,
merecendo sua identificação como cláusula jusfundamental;
k. A imunidade do livro, jornal, periódico e do papel destinado à sua impressão
(art. 150, VI, d), vis a vis a esfera de imparcialidade política, não pode ser
considerada cláusula pétrea, ou direito fundamental por assim dizer.
42- Quanto às pessoas beneficiadas pela imunidade, o texto constitucional, ao se referir
somente a impostos, revela-se incompleto e distorcido, merecendo ser estendida a
garantia de intributabilidade também aos tributos com função parafiscal e extrafiscal –
salvo os tributos parafiscais sobre as instituições religiosas, dada a laicidade do
Estado, que proíbe qualquer relacionamento estatal com essas entidades, a fim de
evitar atrelamentos indiretos;
43- No fim, percebemos que a idéia de maximização das normas fundamentais, de modo
formal, pouco importando a razão de ser dessas mesmas regras, mostra uma
transposição da idéia de prioridade do bem sobre o justo, como se, garantindo-se o
máximo de fundamentalidade no texto constitucional – e, assim, considerando-se o
contribuinte dentro de uma redoma antiestatal –, a cidadania brasileira estivesse
assegurada a caminhar sobre bases sólidas e bem estruturadas.
44- No entanto, priorizar o bem sobre o justo, pensando apenas na maximização de
direitos intocáveis, especialmente acerca de questões que envolvem a manutenção do
Estado (já que o tributo é a principal fonte de receita pública), é praticamente certificar
a temporalidade constitucional, tão reduzida quanto maior for o leque de
fundamentalidade;
170

45- É ainda de se realçar que a forma como a sociedade se mobilizou para a ruptura do
regime militar, que terminou motivando a Constituição de 1988, foi um momento de
deliberação democrática pelos cidadãos que tornou insustentável o regime ditatorial.
Até por isso a Constituição deve se interpretada priorizando o justo sobre o bem,
libertando-se das amarras welfaristas e utilitaristas que boa parte da doutrina tributária
insiste em defender.
46- Enquanto esses ideais formalistas prosseguirem, permaneceremos à deriva nesse
oceano de incertezas, cientes de que, a qualquer momento, virá a tormenta que fará
soçobrar a Constituição atual – como todas as demais que lhe sucederem.
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