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ALVES, Marco Antônio Sousa. A nova retórica segundo Manuel Atienza: uma análise das críticas dirigidas à
teoria da argumentação de Chaïm Perelman em As Razões do Direito. Disponível em:
http://www.academia.edu/2542813/A_nova_retorica_segundo_Manuel_Atienza_uma_analise_das_criticas_dirig
idas_a_teoria_da_argumentacao_de_Chaim_Perelman_em_As_Razoes_do_Direito. Acesso em: [data de acesso]
Contato: marcofilosofia@ufmg.br
A nova retórica segundo Manuel Atienza: uma análise das críticas dirigidas à teoria da
argumentação de Chaïm Perelman em As Razões do Direito1
1
Uma primeira versão resumida deste trabalho foi apresentada no seio da V Jornada Brasileira de Filosofia do
Direito, organizada pela ABRAFI (Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito), evento
ocorrido entre os dias 24 e 25 de novembro de 2011 na Faculdade de Direito da UFMG, com a presença do Prof.
Manuel Atienza.
1
Palavras-chave: Atienza. Perelman. Nova Retórica. Teoria da
Argumentação.
Abstract: In The reasons for the law (1994), Manuel Atienza analyses
critically different approaches in law argumentation, including the
new rhetoric of Chaïm Perelman. This article aims to investigate those
criticisms and evaluate them, determining their scope and fairness. In
this sense, the most important criticisms are organized in four groups:
(1) the problematic relationship between description and prescription;
(2) the obscure and useless conceptual frame of the new rhetoric; (3)
the practical conservatism of Perelman; (4) the ambiguity of the
concept of universal audience. We find those conceptual and
ideological criticisms not entirely acceptable, and we argue that a
more charitable and consistent interpretation of Perelman’s work,
specially a reconsideration of the notion of universal audience, may
give a sound response to the problems and deficiencies identified.
Introdução
2
desenvolvimento de uma teoria geral da argumentação, e de uma teoria específica da
argumentação jurídica, pode ser considerado algo relativamente recente, que teve seu
surgimento em meados do século passado.
O principal nome associado ao renascimento desse domínio de estudos é o de Chaïm
Perelman, que publicou, em 1958, juntamente com Lucie Olbrechts-Tyteca, o Tratado da
Argumentação, no qual uma “nova retórica” é proposta (cf. PERELMAN & OLBRECHTS-
TYTECA, 1970). Para além da nova retórica de Perelman, as décadas de 1950 e 1960 foram
bem ricas para a teoria da argumentação. Nesse período emergiu toda uma geração de teóricos
e ocorreu o aumento e a difusão dos estudos da argumentação em diferentes regiões do
mundo, aplicados aos mais diversos domínios.2
Tomando a nova retórica como uma abordagem precursora das contemporâneas
teorias da argumentação, Manuel Atienza, em sua obra As razões do direito, publicada
originalmente em 1991 (e que conta com uma tradução para o português já há mais de dez
anos), dedica um capítulo inteiro a Perelman (cf. ATIENZA, 2000). Nesse livro, Atienza
avalia criticamente diferentes abordagens da argumentação jurídica, propondo, ao final do
livro, um projeto teórico próprio. Nesse percurso, cinco concepções são analisadas. Além da
nova retórica de Chaïm Perelman, Atienza também dá destaque no campo das abordagens
precursoras à tópica jurídica de Theodor Viehweg e à concepção não formal da argumentação
e ao modelo de análise de Stephen Toulmin. Assim como Perelman, também Viehweg e
Toulmin publicaram seus trabalhos mais influentes também nos anos 1950: Tópica e
Jurisprudência em 1954 e Os usos do argumento em 1958, respectivamente (cf. VIEHWEG,
1979; TOULMIN, 2006). Completando o livro, Atienza se debruça ainda sobre duas
perspectivas mais contemporâneas, a teoria integradora da argumentação jurídica de Neil
2
Para citar alguns nomes: Theodor Vieweg, Joseph Kopperschmidt, Wolfgang Klein, Paul-Ludwig Völzing,
Hans-Georg Gadamer, Jürgen Habermas e Robert Alexy na Alemanha, Michel Villey, Paul Ricoeur, Gilles-
Gaston Granger e Roland Barthes na França, Michel Meyer, Alain Lempereur, e Guy Haarscher na Bélgica,
Jean-Blaise Grize e Georges Vignaux na Suiça, Antonio Pieretti, Armando Plebe, Enrico Berti e Nymfa Bosco
na Itália, Manuel Maria Carrilho e Boaventura de Sousa Santos em Portugal, Manuel Atienza na Espanha, Aulis
Aarnio na Finlândia, Eemeren, Grootendorst, Barth e Krabbe na Holanda, Stephen Toulmin na Inglaterra, Neil
MacCormick na Escócia, e Maurice Natanson, Henry W. Johnstone Jr., Joseph Wenzel, Raymie McKerrow,
Daniel O’Keefe, Charles Willard, Wayne Brockriede, Douglas Ehninger, Ray Dearin, Trudy Govier (e muitos
outros ligados aos departamentos de Speech Communication e Critical Thinking) nos Estados Unidos. Convém
também mencionar as várias associações criadas com o intuito de permitir maior intercâmbio entre os diversos
estudos realizados nesse campo, como a AFA (American Forensic Association) e a AILACT (Association for
Informal Logic and Critical Thinking) nos Estados Unidos, e o CEEA (Centre Européen pour l’Étude de
l’Argumentation), o SICSAT (International Centre for the Study of Argumentation) e a ISSA (International
Society for the Study of Argumentation) na Europa. Quanto às revistas especializadas, a maioria está nos Estados
Unidos, das quais destacamos: Informal Logic, Argumentation, Rhetoric and Philosophy, Quarterly Journal of
Speech, Southern Speech Communication Journal e Journal of the American Forensic Association.
3
MacCormick e a teoria da argumentação jurídica como discurso racional (ou um caso especial
do discurso prático geral) de Robert Alexy, que representam o que Atienza chamou de “a
teoria padrão”. Para cada concepção analisada, Atienza ressalta seu contexto de surgimento,
sua perspectiva teórica geral e uma sempre detalhada avaliação crítica.
O objetivo do presente artigo consiste em analisar as críticas dirigidas por Atienza à
nova retórica de Perelman. Apesar de demonstrar grande interesse pelos estudos precursores
de Perelman (convém lembrar que em 2003 Atienza ocupou a cadeira Chaïm Perelman da
Université Libre de Bruxelles) e de ressaltar sempre a importância da nova retórica para os
estudos de teoria da argumentação, Atienza não deixa de assumir uma postura bastante cética
e crítica. Pretendemos realizar um balanço crítico das objeções feitas por Atienza na tentativa
de determinar a justeza e o alcance delas, ou seja, gostaríamos de avaliar até que ponto a nova
retórica de Perelman merece as críticas que lhe foram dirigidas.
ATIENZA (2000) organiza suas críticas em três grupos: as críticas conceituais, as
ideológicas e as relativas ao direito e ao raciocínio jurídico3. Enfatizando os dois primeiros
grupos (conceitual e ideológico), as principais críticas feitas por Atienza serão organizadas
neste trabalho em quatro conjuntos, que correspondem aos quatro capítulos que formam a
estrutura deste artigo:
O objetivo da análise que será empreendia não deve ser tomado como uma simples
tentativa de “salvar” ou “defender” Perelman das críticas que lhe foram dirigidas, mas sim
3
As críticas dirigidas à concepção de direito e do raciocínio jurídico, que não serão objeto direto de nossa
análise, podem ser resumidas em cinco pontos: (1) a crítica ao conceito “pouco claro” e “simplesmente
inaceitável” (ATIENZA, 2000:121) que Perelman apresenta do positivismo jurídico, que, quando muito, atinge
um certo juspositivismo do século XIX, mas certamente não uma postura mais atual como a de Hart; (2) a crítica
ao uso ilimitado dos tópicos no direito, o que incentivaria a “conservação e consolidação de um certo status quo
social e ideológico” (ATIENZA, 2000:124); (3) a crítica à fixidez dos papéis de orador e auditório na nova
retórica, partindo da novíssima retórica proposta por Boaventura de Sousa Santos, Atienza observa que o fator
tópico-retórico não possui uma essência fixa e nem caracteriza exclusivamente o discurso jurídico (que é mais
institucionalizado e burocratizado); (4) a crítica à confusa relação entre a retórica geral e a jurídica, como “algo
que não está bem resolvido na obra de Perelman” (ATIENZA, 2000:125) uma vez que não fica claro se a noção
de auditório universal também se aplica ao direito e se a argumentação jurídica é um caso paradigmático da
retórica geral ou apenas uma simples aplicação dela; (5) por fim, a crítica à problemática distinção entre
argumentação e dedução em Perelman, que ATIENZA (2000:128) considera “desnecessária e confusa” e mesmo
“algo mais que equívoco”, que promove uma contestável diferenciação entre a conclusão e a decisão.
4
como um exercício de análise conceitual e teórica, que avalia criticamente a força e o peso
dos argumentos, e que se posiciona frente às abordagens disponíveis. Aliás, o próprio livro de
Atienza exemplifica um exercício dessa natureza e, acreditamos, a teoria da argumentação
deve, mais do que qualquer outro empreendimento teórico, construir-se como um discurso
aberto, no qual os posicionamentos assumidos são sempre passíveis de crítica e revisão.
4
No original: “For Perelman and Olbrechts-Tyteca the theory of argumentation is an entirely descriptive
enterprise. There are many types of arguments which have been used and which are in use. The ‘new logic’ or
‘new rhetoric’ seeks to describe these while at the same time describing conditions in which audiences
commonly find them persuasive or convincing. If audiences are more or less moved by various features, their
response is noted; it is not judged to be logically or epistemically correct or incorrect. This is no attempt to
articulate and rationalize appropriate norms for the variety of argument types described”.
5
Perelman chega a apontar, contudo, algumas falácias, como o argumento ad personam (Cf. PERELMAN &
OLBRECHTS-TYTECA, 1970,§72) e, sobretudo, a petitio principii (Cf. PERELMAN & OLBRECHTS-
TYTECA, 1970,§28; Perelman, 1971:146; 1977:36-37; 1986:18; 1987:239-240), que ele chega a dizer que é o
erro mais grave de toda a argumentação, aquele que a torna ineficaz. A petição de princípio não é um erro de
5
PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA (1952:2), em um livro que apresentou os resultados
provisórios de suas pesquisas de dez anos que culminaram no Tratado da Argumentação,
publicado poucos anos depois: “A preocupação que norteou nosso trabalho foi a de um lógico
envolvido com o real social”.6
Como a lógica caracterizou-se, ao longo da tradição filosófica, por sua capacidade de
prescrever regras para podermos raciocinar corretamente, um estudo lógico incapaz de
distinguir o raciocínio correto daquele falacioso é tido por incompleto e insatisfatório.
ATIENZA (2000:112) compartilha dessa visão, afirmando que a noção de força de um
argumento é “obviamente central para qualquer teoria da argumentação”. Nesse sentido,
ATIENZA (2000:110) demonstra grande insatisfação quanto aos resultados da nova retórica:
O que não está tão claro, entretanto, é que a sua nova retórica tenha
conseguido realmente assentar as bases de uma teoria da argumentação
capaz de cumprir as funções – descritivas e prescritivas – que Perelman lhe
atribui; de fato, a recepção de sua obra foi, com certa freqüência, uma
recepção crítica.
Atienza acredita que a causa desse relativo fracasso pode ser encontrada na ausência
de uma teoria geral da estrutura dos argumentos no Tratado da Argumentação, tal como
Stephen Toulmin desenvolveu em seu modelo de análise dos usos do argumento (cf.
TOULMIN, 2006). A retórica de Perelman limitou-se à análise da estrutura de cada um dos
tipos ou técnicas argumentativas, descuidando do estudo dos argumentos em geral. 7
Talvez Atienza tenha razão quanto à incapacidade do Tratado da Argumentação de
cumprir aquilo que prometeu, ou seja, de assentar as bases descritivas e normativas de uma
teoria geral da argumentação. Porém, o fato de estar ausente de sua obra uma teoria geral da
estrutura dos argumentos pode ser justificado pelo acento dado à riqueza das diversas técnicas
argumentativas. Perelman pretende mostrar que é impossível encontrar uma forma geral,
aplicável a qualquer argumentação, sem que tal quadro não termine por virar uma espécie de
“camisa de força”. Ele é cético quanto à possibilidade de se elaborar um diagrama da
argumentação, como fez, por exemplo, Toulmin, pois, como salienta o próprio ATIENZA
(2000:85):
lógica formal, pois é uma de suas leis fundamentais: o princípio de identidade. Ao invés de erro lógico, ela é um
engano argumentativo, é uma falácia que não se relaciona com a validade ou verdade, mas com o assentimento.
6
No original: “Notre souci moteur avait été celui du logicien aux prises avec le réel social”.
7
Nessa mesma direção vão as críticas elaboradas por TOULMIN (1976), VAN NOORDEN (1979), GORIELY
(1993) e GARCÍA AMADO (1996).
6
Perelman considera que a estrutura do discurso argumentativo se assemelha
à de um tecido: a solidez deste é muito superior à de cada fio que constitui a
trama. Uma conseqüência disso é a impossibilidade de separar radicalmente
cada um dos elementos que compõe a argumentação.
7
Como ocorre com os estudos pioneiros, também a teoria da argumentação de
Perelman introduz um novo aparato conceitual que se justifica, sobretudo, em razão de seu
poder heurístico. O Tratado da Argumentação teve o mérito de assentar uma série de
conceitos dos quais grande parte dos estudos retóricos posteriores se serviu. Entretanto,
ATIENZA (2000:110) considera o aparato conceitual de Perelman obscuro e confuso 8:
“poder-se-ia dizer que, do ponto de vista teórico, o pecado capital de Perelman é a falta de
clareza de praticamente todos os conceitos centrais de sua concepção da retórica”.
A enumeração das diversas técnicas se sobreporia à proposta sistemática do Tratado
da Argumentação e, mesmo nesse levantamento, as classificações utilizadas seriam
artificiosas, como a distinção entre procedimentos de dissociação e de associação e aquela
entre os argumentos quase-lógicos, os que se baseiam no real e os que fundamentam a
estrutura do real. Em suma, para ATIENZA (2000:111), “a classificação dos argumentos que
aparece no Tratado está longe de ser clara e inclusive útil”.
O próprio Perelman teria dito que sua classificação era, em certa medida, arbitrária,
mas, para Atienza, essa arbitrariedade chega a tal extremo que, na hora de classificar os
argumentos, as dúvidas são em maior número que as certezas, retirando a utilidade de
empreender esse esforço classificatório. Assim, ATIENZA (2000:112) conclui que:
8
Nessa mesma direção, também questionando o poder explicativo da nova retórica, vão as críticas de
JOHNSTONE Jr. (1978), EEMEREN & GROOTENDORST & KRUIGER (1987) e ALEXY (2001).
8
Quanto à classificação das diversas técnicas argumentativas, feita na terceira parte do
Tratado, Atienza tem razão de desconfiar da descrição oferecida, que realmente parece
confusa. Contudo, entendemos que a função dessa parte no Tratado é apenas ilustrativa. O
fato de Perelman não se dedicar a essas técnicas em seus outros textos parece insinuar que não
está aí o interesse principal de sua proposta teórica. A nova retórica é uma teoria geral da
argumentação e a descrição das diversas técnicas se subordina a esse propósito. O próprio
Perelman não atribui grande valor à forma como essas técnicas foram organizadas no
Tratado, pois também ele sabia de sua imprecisão. Seu único objetivo foi, e nisso ele foi bem
sucedido, apresentar os diversos grupos de argumento sob suas formas mais características,
sem se preocupar em classificar os esquemas argumentativos em entidades isoladas ou em
uma hierarquia rígida (cf. PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1970, §44).
9
Na mesma direção vai a crítica elaborada por PLEBE & EMANUELE (1992).
9
A concepção do Direito e da sociedade, utilizada por Perelman, é de cunho
nitidamente conservador, e sua teoria da argumentação parece pensada para
satisfazer às necessidades de quem aborda o direito e a sociedade com essa
perspectiva, mas não para quem adota uma concepção crítica ou
conflitualista desses fenômenos. (...) a retórica – pelo menos como a entende
Perelman – cumpre, antes de mais nada, uma função ideológica de
justificação do Direito positivo: precisamente apresentando, como imparciais
e aceitáveis, decisões que na realidade não o são.
10
sempre ser revistos (cf. PERELMAN, 1997). Na visão de Perelman, a filosofia é um diálogo
sem fim, pois novas refutações podem sempre ser formuladas. É um empreendimento de
justificação que nunca se conclui, que não possui um juiz supremo, alguém que poderia
garantir qual causa está definitivamente ganha, que não repousa, portanto, em evidências
indubitáveis (cf. PERELMAN, 1970:205). Uma das conseqüências de se abraçar uma
filosofia aberta, para Perelman, seria a tolerância, a sensibilidade às diferenças de perspectiva
e uma espécie de humildade, de capacidade de autocrítica. Aliás, o próprio ATIENZA
(2000:117) reconhece que “a filosofia de Perelman é, claramente, uma filosofia do
pluralismo”, entendido como uma abertura permanente ao diálogo, ao confronto de pontos de
vista divergentes e a renúncia à idéia de uma ordem perfeita e a uma filosofia primeira e única
que se imporia a todos.
Quanto ao mérito da crítica, não é nada clara a conseqüência conservadora que
Atienza pretende retirar da importância que a nova retórica confere aos precedentes. É preciso
ter em mente que o princípio de inércia não deve ser pensado em um sentido conservador,
como fez ATIENZA (2000:120) ao afirmar que os princípios de inércia e de imparcialidade
“além de serem claramente insuficientes, têm um sabor ideológico sem dúvida conservador”.
O que se pretende ressaltar é apenas que toda inovação tem suas raízes na experiência
historicamente vivida (cf. PERELMAN, 1970:304). Não existe invenção a partir do nada,
posto que há sempre um padrão argumentativo prévio que serve de referência para a criação.
Não devemos confundir uma análise lógica dos pontos de partida de uma argumentação com
uma análise política conservadora. Para que uma argumentação possa ocorrer, os pontos de
partida devem ser compartilhados, pois não seria possível qualquer adesão partindo de pontos
controversos. E o objetivo da argumentação não é provar seus pontos de partida, o que, aliás,
constitui uma petição de princípio.
Perelman não defende a tradição, mas apenas vê nela o solo comum do qual devemos
partir em nossas argumentações. Do contrário, nunca se chegaria a um consenso (sobretudo
em questões políticas), pois os pontos de partida seriam sempre conflitantes. Sobre a acusação
de que não há, em Perelman, uma perspectiva crítica, acreditamos que Atienza minimiza a
importância dos auditórios qualificados, e no limite o auditório universal, como garantes da
racionalidade da argumentação. Portanto, ao contrário da conclusão de Atienza, Perelman
dispõe sim de uma noção de decisão razoável, que permite criticar as práticas meramente
persuasivas e manipuladoras, que determinadas argumentações dirigidas a auditórios
particulares podem assumir. A distinção traçada na primeira parte do Tratado da
11
Argumentação entre persuasão e convencimento aponta justamente para essa possibilidade.
Contudo, é forçoso admitir que Perelman não conduziu sua teoria nessa direção e não
elaborou uma leitura crítica da sociedade contemporânea ocidental.
10
Nessa direção, entre aqueles que não encontraram nessa idéia uma concatenação conceitual satisfatória, vão as
críticas de PIERETTI (1969), TINDALE & GROARKE (1987), AARNIO (1991) e EEMEREN &
GROOTENDORST (1993).
12
Uma possível maneira de interpretar o auditório universal, segundo Atienza, é
identificá-lo ao conjunto daqueles que argumentam com seriedade e boa fé. Assim, a noção
não teria problemas, mas, se fosse apenas isso, seria banal e não justificaria o interesse por ela
despertado. O grande problema do conceito de auditório universal estaria assim na relação
entre o seu aspecto ideal, normativo, e o seu aspecto concreto, fático. Apesar de reconhecer o
esforço de Perelman em articular esses dois pólos, ATIENZA (2000:114-115) observa:
Manuel Atienza não acredita que Perelman tenha conseguido elaborar um conceito
coerente, no qual esses dois lados opostos pudessem conviver. Ainda que concorde com
Perelman de que não se pode atrofiar uma teoria realista da argumentação em algum desses
pólos, ATIENZA (2000:116) vê no auditório universal uma mera justaposição incoerente e
insustentável: “como conclusão de tudo isso, talvez se pudesse dizer que o auditório universal
perelmaniano é, mais que um conceito cuidadosamente elaborado, apenas uma intuição feliz”.
Entendemos que Atienza detectou corretamente o problema, mas não concordamos
com a sua conclusão, qual seja, que o auditório universal seja apenas uma intuição feliz e não
um conceito bem articulado. Entendemos ser possível oferecer uma harmonização conceitual
da ambigüidade presente na noção de auditório universal (cf. ALVES, 2005). Podemos, é
verdade, encontrar na obra de Perelman diferentes e, aparentemente, conflitantes
apresentações do auditório universal: como um caso limite dos auditórios particulares, como
uma construção do orador, como algo que não é dado empiricamente, que é uma mera
pretensão do filósofo, que é também uma questão de direito, um ideal normativo, uma
hipótese, sempre passível de revisão, o melhor auditório possível, o mais qualificado, mas
também um auditório variável, dependendo do orador e do meio, um auditório constituído, em
princípio, por todos os seres racionais e composto por todos aqueles que podem acompanhar a
argumentação, e, enfim, a encarnação da razão.
Essa pluralidade de definições permitiu diversas interpretações desse conceito, como
a interpretação psicológica, que o equipara a algo puramente mental, que varia de orador para
orador, a interpretação sociológica, que o vê como um uma construção situada, como
expressão de uma determinada cultura, correspondendo a um ideal de razão situado no tempo
e no espaço, e a interpretação filosófica, que o vê como uma norma universal que encarna a
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razão, um ideal argumentativo que inclui todos os seres racionais e transcende as limitações
psicológicas, sociais e históricas que pesam sobre o orador (cf. ALVES, 2005:90,98-99).
Entendemos que é possível conciliar, no interior do conceito de auditório universal,
esses três aspectos (psicológico, sociológico e filosófico) partindo da distinção entre o ponto
de vista interno e externo ao auditório, o que escapou à leitura feita por Atienza, embora ele
tenha por vezes ressaltado a semelhança existente entre Perelman e Habermas, em particular à
noção de situação ideal de fala (posto que Habermas distingue claramente a argumentação em
primeira pessoa, do ponto de vista do participante, e em terceira pessoa, do ponto de vista de
um observador externo). Segundo PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA (1970:40,§6):
Assim, o auditório universal pode ser visto de dois ângulos diferentes: do ponto de
vista do orador e do ponto de vista do ouvinte. Para o orador, o auditório universal criado
corresponde ao seu ideal argumentativo. Já para o ouvinte, o auditório visado pelo orador não
passa de um auditório particular. Ao mudarmos a perspectiva, alteramos também a natureza
do auditório universal: visto de dentro, ele é um ideal, uma norma, uma questão de direito;
visto de fora, ele é um fato, uma criação de pessoas e povos ao longo da história.
Resumindo, se levamos em consideração que o auditório universal pode ser visto de
duas perspectivas distintas, é possível harmonizar as três interpretações. Do ponto de vista
externo, ou seja, do ouvinte crítico, que não partilha do mesmo ideal que o orador, trata-se de
um auditório que varia de orador para orador (interpretação psicológica) e de cultura para
cultura (interpretação sociológica). Já do ponto de vista interno, do orador ele mesmo e
daqueles que não vislumbram qualquer crítica à pretensão do orador e compartilham assim do
mesmo ideal, trata-se de um auditório universal, que transcende as limitações psicológicas,
sociais e históricas, englobando todos os seres racionais. Assim, a suposta fraqueza ou
ambigüidade conceitual presente na noção de auditório universal talvez seja o reflexo de uma
insuperável diferença de perspectiva, que nos obriga a considerar diferentemente nossas
práticas argumentativas em função do ponto de vista que assumimos. Ao invés de confusão e
contradição, o que está presente na noção de auditório universal proposta por Perelman é uma
11
No original : “En effet, si l’auditoire universel de chaque orateur peut être considéré, d’un point de vue
extérieur, comme un auditoire particulier, il n’en reste moins que, à chaque instant et pour chacun, il existe un
auditoire qui transcende tous les autres, et qu’il est malaisé de cerner comme auditoire particulier.”
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rica e complexa análise de nossas práticas argumentativas, sobretudo da especificidade da
argumentação filosófica.
Conclusão
Bibliografia
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No original: “... dans une argumentation, il tient à nous de peser avec la plus entière bonne foi les raisons pour
et les raisons contre, et, surtout, de nous faire de l’auditoire universel une idée aussi claire, aussi riche, aussi
nuancée que le permet le moment où nous vivons”.
15
ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria
da justificação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001.
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16
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