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Os objetivos do capítulo são: (seção 1.1) apontar traços histórico-filosóficos mais antigos e
ambivalentes da concepção dominante de ciência na modernidade e seus reflexos na escola
clássica e das relações humanas, recorrendo ao Grande Paradigma do Ocidente (GPO – Edgar
Morin); (seção 1.2) reexaminar o conceito de paradigma proposto por Kuhn e desaconselhar
sua utilização no campo dos estudos organizacionais; (seção 1.3) explorar influências do
debate sobre a complexidade sistêmica no desenvolvimento dos estudos organizacionais. (p.
18)
Esboço da trajetória evolutiva da concepção dominante de ciência, do século XVI ao século XX,
destacando aspectos das correntes da ciência das organizações, a escola clássica e a escola das
relações humanas, introduzindo a noção de Grande Paradigma do Ocidente (GPO).
Doxa (opinião) – denominado por Platão como se o homem fosse dominado pelos sentidos,
aspirando conhecimento imperfeito do mundo real, aparente. Já a episteme (ciência) é o
verdadeiro conhecimento, sendo o mundo das ideias (essências imutáveis) alcançado por meio
da razão. O conhecimento sensível fundamenta-se no conhecimento matemático (etapa
intermediária – dianoia) na construção do conhecimento verdadeiro, que deveria promover a
conjugação do intelecto e das emoções (razões e qualidades morais). A episteme seria fruto da
combinação da inteligência e amor (Platão, 1996, p. 24, 26) (p.20).
Reyer Hooykaas (1986, p. 167) sintetiza as características gerais da ciência moderna: ela não
reconhece autoridades, excetuando a da própria natureza (em caso de conflito, o investigador
se adapta aos dados fornecidos pela natureza). O empirismo (indutivismo) racional e crítico
predomina sobre o racionalismo; a ciência moderna não se baseia apenas na observação –
direta ou indireta – da natureza, sendo valorizada a realização de experiência controlada; a
ciência moderna estaria associada à formação de uma imagem mecanicista do mundo,
explicando os fenômenos naturais por analogia com a dinâmica de funcionamento de sistemas
artificiais; e a versão dominante da ciência procura descrever fenômenos observáveis através
da matemática. (p. 22)
Na gênese da episteme, a matemática e a lógica são entendidas como ciências formais, onde
seus objetos viabilizam a construção de raciocínios válidos. Por sua vez, a física, a química, a
biologia, a economia e suas ramificações são chamadas ciências factuais, adequando-se ao
postulado da objetividade. Quando os fatos investigados são relacionados à estrutura e à
dinâmica do mundo natural, constituem o objeto das ciências naturais ou físicas; quando
envolvem o ser humano/sociedade, constituem objeto das ciências humanas ou sociais. Física,
química e biologia são tidas como ciências naturais, enquanto história, antropologia, a
sociologia e o direito fazem parte do campo das ciências humanas e sociais. A psicologia tem
abordagens experimental (natural) e social (fenomenológica). A Administração: ciência factual
derivada das ciências humanas e sociais mais antigas, e mais clássica sendo fortemente
influenciada pela engenharia, incorporando métodos utilizados nas ciências físicas. (p. 23)
Administração e Psicologia compartilham duas premissas: existe uma realidade única a ser
apreendida, considerada externa a todos os pesquisadores; e a segunda estipula que o
conhecimento científico transcende o nível da simples observação dos fatos. Os conceitos não
são observáveis fisicamente; antes, sua existência é inferida a partir de fatos experimentais. (p.
23-24).
A modernidade encontra na filosofia de Descartes e no positivismo de Auguste Comte
(trajetória linear do conhecimento) seus principais pontos de referência.
A chamada ciência da gestão (management Science – MS) pode ser definida como a aplicação
do método científico e do raciocínio analítico ao processo de tomada de decisões dos
executivos no controle de sistemas comerciais e industriais. Atribui-se ao MS o surgimento da
pesquisa operacional (operational research – OR).
Os principais representantes dessa escola são George Elton Mayo, Mary Parker Follet, Douglas
McGregor, Kurt Lewin, Eric Berne, Isabel Briggs-Myers, Robert Blake e Jane Moutin,
Roethlisberger e Dickson, Abraham Chester Barnard, entre outros. Em contraste com a escola
clássica, aqui a contribuição das ciências humanas e sociais – e mais especificamente da
psicologia e da sociologia – assume um papel decisivo. No estudo de grupos informais nas
organizações passaram a ser utilizados uma série de métodos e técnicas que vão desde a
simples observação até a sociometria e as diversas versões da dinâmica de grupo.
Na noite de 10 de novembro de 1619, Descartes, na época com apenas vinte anos, teve uma
série de sonhos que, em grande medida, mudaram o curso de sua vida e, por implicação, do
conjunto do pensamento moderno. Segundo suas próprias palavras, em seu sonho um “anjo
de verdade” teria revelado um segredo que iria “assentar os fundamentos de um novo método
de compreensão e de uma nova e maravilhosa ciência” (Roszak, 1998, p. 314).
Não obstante, todos omitem o “anjo de verdade”, como fez o próprio, que não voltou a
reconhecer em seus escritos o papel dos sonhos e da intuição como fontes do pensamento.
Pelo contrário, Descartes prestou mais atenção aos procedimentos lógicos e formais que,
supostamente, partem de uma atitude de dúvida metódica radical.
O dualismo cartesiano é apontado por Edgar Morin como fundamento de uma visão disjuntiva-
redutora – O chamado Grande Paradigma do Ocidente (GPO). O GPO é “imposto pelos
desenvolvimentos da história europeia desde o século XVII” (Morin, 1991, p. 194). Separa não
só o sujeito do objeto investigado, cada um com sua esfera própria, mas também a filosofia
(investigação reflexiva) da ciência (investigação objetiva).
Segundo Morin, o GPO pode ser considerado, de fato, um paradigma, na medida em que
determina os conceitos soberanos e prescreve a disjunção como sendo a relação lógica
fundamental. Para o GPO, a não obediência a esta disjunção só pode ser clandestina, marginal,
desviante. O GPO determina uma dupla visão do mundo: por um lado, há um conjunto de
objetos submetidos a observações, experimentação, manipulações. Por outro, há um conjunto
de sujeitos que colocam a si próprios problemas existenciais, de comunicação, de consciência,
de destino.
Há dois universos que disputam entre si a sociedade, a vida, o espírito; partilham o terreno,
mas excluem-se mutuamente; um só pode ser considerado positivo quando o outro se torna
negativo; um só pode ser considerado real se remete o outro para a esfera das ilusões. Num
deles, o espírito não é mais do que uma eflorescência, um fantasma, uma superestrutura,
enquanto no outro a matéria não é mais do que uma aparência, um peso, uma cera moldada
pelo espírito.
Assim, por serem considerados disjuntos, o sujeito e o objeto jogam às escondidas, ocultam-se
e manipulam-se mutuamente. Pelo que se percebe, os conflitos entre a escola clássica e a
escola das relações humanas são compreensíveis como tendências epistemológicas parciais
entre as polaridades do GPO. Predominam na primeira os valores vinculados a objeto, corpo,
matéria, quantidade, causalidade, razão, determinismo e essência. Na segunda predominam
os valores vinculados a sujeito, alma, espírito, qualidade, finalidade, sentimento, liberdade e
existência, ainda que de forma subordinada à primeira. Como estas duas escolas repercutem
em várias outras, incluindo as atuais, entende-se que a abordagem da noção de paradigma
deveria ser bem examinada.
De acordo com Thomas Kuhn (1970), a consulta à literatura disponível poderia sugerir, à
primeira vista, que o conhecimento do mundo adquirido por meio da pesquisa científica evolui
no tempo de forma cumulativa, gradual e linear. Cada período da história das ideias e dos
métodos científicos é reconhecido como um passo necessário no sentido de uma aproximação
cada vez mais apurada de uma descrição do universo considerada como a última verdade a
respeito dele. Trata-se, neste caso, da imagem da “ciência normal”.
Um paradigma, diz Grof (1987, p. 2), pode ser definido como uma constelação de crenças,
valores e técnicas compartilhadas pelos membros de uma determinada comunidade científica.
Alguns conservam um viés filosófico, permanecendo genéricos e abrangentes; outros
governam o pensamento científico em áreas de pesquisa mais restritas e específicas.
O resgate da história das práticas de pesquisa em astronomia, física, química ou biologia “não
evoca as controvérsias sobre fundamentos que atualmente parecem endêmicas entre, por
exemplo, psicólogos ou sociólogos” (Kuhn, 1970, p. 13). Por não obterem consensos
paradigmáticos, as ciências sociais seriam imaturas ou “pré-paradigmáticas”. No entanto, a
própria pesquisa do autor é claramente transdisciplinar, incluindo, além da história da física e
da biologia, entre outras ciências naturais, também a psicologia da percepção (Gestalt), a
filosofia da ciência e da linguagem.
Refletindo sobre esta noção de matriz disciplinas, Gerard Fourez (1995), doutor em física
teórica com formação em filosofia, observa que, no início do século XIX, a física trabalha em
sintonia com o paradigma newtoniano. A forma de agir da comunidade dos físicos
corresponde ao conceito de ciência normal. Todavia, a partir do final do século XIX o conceito
de espaço na teoria newtoniana torna-se cada vez mais questionado, em meio a um intenso
debate intelectual, inaugurando assim uma fase de revolução paradigmática na física.
Ainda na opinião de Fourez, quando ocorre uma revolução paradigmática numa dada disciplina
científica, ela redefine seu objeto e suas práticas. O processo é antecedido por uma fase pré-
paradigmática e sucedido por uma fase pós-paradigmática. Na fase pré-paradigmática, as
regras que norteiam as práticas de pesquisa são relativamente flexíveis, integrando o fator
existencial e as demandas sociais como dimensões mais importantes do que a obediência aos
cânones disciplinares. Além disso, nesta fase não existiriam ofertas consolidadas de formação
acadêmica especializada para futuros pesquisadores.
Boaventura Santos (2000) aponta duas vertentes principais nas ciências sociais em relação ao
paradigma disjuntor-redutor – a positivista e a fenomenológica. A primeira está claramente
compromissada com o paradigma dominante, que se condensou no positivismo. A vertente
positivista em ciências sociais norteia-se pelo ideal regulativo da física social – o ponto de vista
segundo o qual a experiência de construção e complexificação das ciências naturais constitui
um modelo que deveria ser seguido pelos pesquisadores vinculados ao campo das ciências
humanas e sociais. Predomina aqui a diretriz de unidade metodológica das ciências.
O conflito entre estas duas vertentes confirmaria o caráter “pré-paradigmático” das ciências
sociais, por inviabilizar a formação de consensos paradigmáticos típicos das ciências da
natureza. Santos (2000, p. 68) reconhece, entretanto, que a segunda vertente representa, no
âmbito do paradigma dominante (que segundo ele, tal como para Morin, inclui todas as
formas de ciência), um “sinal de crise”, contendo “alguns dos componentes da transição para
um outro paradigma científico”.
Morin critica e revisa o conceito de paradigma proposto por Thomas Kuhn, embora conserve
dele alguns aspectos, inclusive a distinção entre grandes e pequenos paradigmas. Como pode
ser constatado na leitura de sua principal obra, La Méthode, Morin desenvolveu (ao longo de
três décadas) a hipótese de que poderia ser construída uma alternativa ao paradigma
disjuntor-redutor.
No quarto volume, ele define a noção de paradigma afirmando que esta contém, para todos os
discursos que se efetuam sob seu domínio, os conceitos fundamentais ou as categorias
mestras da inteligibilidade, e também o tipo de relações lógicas de atração/repulsão
(conjunção, disjunção, implicação ou outras) entre esses conceitos ou categorias. Portanto, os
indivíduos conhecem, pensam e agem segundo os paradigmas internalizados em suas culturas.
“Os sistemas de ideias são radicalmente organizados em virtude dos paradigmas” (Morin,
1991, p. 188).
1.3.3 Paradigma da complexidade
O conjunto da obra de Morin, na qual se destaca La Méthode, constitui uma das mais extensas
e profundas contribuições à construção progressiva e coordenada de um pensamento e de um
paradigma complexos. Sua concepção de paradigma dispõe de um substrato filosófico que
pode ser encontrado na história da filosofia tanto ocidental quanto oriental.
Interpretando de forma abrangente a relação entre essas duas linhas de pensamento, pode-se
dizer que a racionalidade científica (Kuhn) é concebida como racionalização (Morin) na
chamada ciência normal (Kuhn), que expressa, à medida que avança no sentido da
tecnociência (Morin) a esquizofrenia do GPO, tornando-se excludente e contribuindo para uma
concepção de mundo simplificadora, ética e politicamente irresponsável.
Em seu clássico estudo A nova ciência das organizações, datado de 1981, Guerreiro Ramos
considera que a teoria organizacional dominante não desenvolveu a capacidade analítica
necessária ao exame crítico de seus alicerces epistemológicos e teóricos (Ramos, 1981, p. 118).
Na sua opinião, as organizações são ao mesmo tempo sistemas cognitivos, sistemas
epistemológicos e cenários sociais.
Diante disso, o autor desenvolve uma abordagem sistemática da teoria organizacional com
base na racionalidade substantiva, que inclui duas missões distintas: (a) o desenvolvimento de
um tipo de análise capaz de detectar os fundamentos epistemológicos dos vários cenários
organizacionais; (b) o desenvolvimento de um tipo de análise organizacional expurgado de
padrões distorcidos de linguagem e conceptualização (Ramos, 1981, p. 118).
Uma diferença significativa entre Morgan, por um lado, e Morin, por outro, é que o primeiro
busca compreender a complexidade das organizações produtivas como unidades nucleares das
sociedades, ainda que paradoxais e multidimensionais, enquanto o último busca compreender
as formas organizacionais constituídas pelas sociedades humanas em seu conjunto e contexto
(sociedade, indivíduo, espécie). Guerreiro Ramos, por sua vez, ocupa-se tanto das
organizações econômicas, fenonômicas e isonômicas quanto das formas organizacionais das
sociedades e da natureza humana em seu conjunto.
Apesar de publicadas na década de 1980, as citadas obras de Guerreiro Ramos (Paes de Paula,
2004) e Mogan permanecem atuais e desafiadoras. Quanto à obra de Morin, só recentemente
passou a ser incorporada ao campo dos estudos organizacionais (Silva e Rebelo, 2003; Bauer,
1999; Etkin, 2003) e à literatura especializada em metodologia científica inter e transdisciplinar
(Vasconcelos, 2002).