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A p a la vra en rai za d a d e

An a P a u la Tav a res

Ri ta Chaves *

* Prof ess or a da Áre a de Estudos Co mp arados de Li teraturas de L íngua Por tu-


guesa da USP .
As pouco mais de setent a crôni cas que com põem o vo lum e O san gue da bu-
ganvília , ed ita do e m 19 98 pelo Cent ro Cultura l Port ugu ês d e Cab o Verde , foram
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em princí pio es cri ta s para serem lida s em program a da Rá dio de Di fusão P ortu-
guesa, com emissão também para os países africanos de língua portuguesa. A
vinculação dos t extos ao m ei o de t ransm issão pod eri a lev ar- nos a p ensar q ue Ana
Pau la Tavares, aut ora de poem as caract eri zados pelo apuro da li ngua gem e a d e-
licad eza d o est ilo, teria, af ina l, cedi do à pressão desses tem pos m ais af ei tos à pressa
e à exposição, m arcas qu e se contra põem ao rei no d os v alo res qua lita tiv os em q ue
costum am os si tu ar a li terat ura. Se os j ornais já nos p arecem tom ad os pel o espír i-
to m assi ficant e, m ais apt o a t ri vial izar as exp eri ênci as d o qu e a perm itir a ap reen-
são do p essoal e do ún ico, o que esp erar do rád io, em que a tran sm issão oral pa re-
ce ( e tant as vez es se torna ) tã o presa ao ci rcunst ancial ?
São exp ecta tiv as qu e, se ali m ent ad as, com eçam por se desfazer já no p ri m ei ro
parágrafo da primeira página da primeira crônica. “Língua materna”, o texto de
abertura da coletânea vem avisar-nos que não há ali concessão à trivialidade, à
ba nali zação. E a lei tu ra da s que lhe sucedem vão conf irm ar qu e o cam inh o tril ha do
leva à ou tra direção: o t raba lho d a cronista d ef ine -se pel o esf orço de recu pera r as
verdades e a beleza escondidas pe las neb linas en ganosas d o cotidi an o que, l onge
de serem desf ei ta s, são, não raram ent e, ref orçada s pelos cham ad os órgãos de inf or-
m ação. No l ivr o de Ana P aula, a cad a crôn ica, o l ei tor se certif ica d a d im ensão da
ta ref a assu m ida p el a escri tora e p ercebe qu e pod e ef etiv am ent e conf iar nas p ala-
vr as com qu e Joã o Nuno Al çad a com pôs o seu p ref ácio, regi stran do a existência de

1 TAVARE S, Ana P au la. O sangue da buganvíli a . Praia – Minde lo: Cent ro Cultu ral Port ugu ês, 19 98.
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“seres pri vilegi ad os que se deb ruçam sobre a vida pa ra a exp licar com a sab edoria
poét ica dos provérbi os e ditos ant igos, com o conh eci m ent o ancest ral dos peq ue -
nos f enóm enos, ou m istérios prof un dos qu e nos vêm d esde a Criação do Mun do.”
Tendo p ub licad o em 85 um peq uen o l ivro de b el os poem as, Ana Pa ula Tavares
é daq uel es casos em que a estréi a rev el a a escri ta m adura d e quem é m esmo do
ram o. A força de sua cri ação em Ri tos de pa ssagem 2 m oti vou durante a nos uma
grand e ansiedad e dos l ei tores que a guard avam a nova f ornad a pa ra conf irm ar a
qua lida de d o trab alho i nau gural . Em 199 8, port ant o 13 anos d epois, qua nd o tod os
esperávam os o segundo li vr o de p oem as, sai esse v ol um e a cau sar surpresa à que -
les p ri vados do p ri vilégi o de ouvi r a lei tu ra d os t ext os pe lo rád io. O im pa cto , no
ent an to, é pa ssagei ro: a m ud an ça – do p oem a p ara a p rosa – que en vo lve o espaço
de expressão de sua voz l im ita-se à t ransmu tação d o gênero , apena s; porque m an-
tém -se a concepçã o da pa lavra abraçad a desd e o iníc io.
Na redação dessas crôni cas, cuj a n atu rez a é tocada pel a b rev idad e d o espaço
a ser ocup ado e pela f ugaci dad e do instan te a ser ap reendi do, es tão preserv ada s
alg um as da s peculi ari da des qu e encont ram os no exercí ci o de sua p oesi a. E, den tre
el as, desta cam os o ap reço pelo essenci al, pelo sentido agud o, ref rat ári o ao b arat ea-
m ento d as pa lavr as, um dos m al es da vi da m und ana. I nsurgi ndo -s e contra a loqua-
ci da de fácil , c om o qu e a ratif icar sua posição, a a ut ora n ão se ini be e declara:

[… ] cust a t an to a ouvi r a p alav ra de sperdiçada nas oca si ões f estiv as, usadas
como enf ei te na lap el a n as ocasiões sol enes, ban ali zada em discurso de ocasião,
m anif esto d e boa s e m ás i nt enções m ais uma vez a adiar a vi da . (p. 4 9 ).

Consta ta m os que à vol at ilida de d a t ransm issão nã o está ligada a sup erf ici a-
lidade da mensagem, nesse caso ciosa do seu dever e seu direito de, em certa
m edida, tran sf orma r o meio.
O gost o pela essên ci a, que a faz desvi ar-se do su pé rfluo, não li m it a o arco d os
assunt os a ser em trata dos. A g am a tem átic a nesse conj unt o de textos é am pl iada ,
ref letindo o esp etá cul o i gualmen te vári o qu e é o m un do. Mas o que sal ta à sen si bi-
lida de d o l ei tor , m ai s que a vari eda de d a p aut a, é a argúci a d o ol har d a na rradora,
projetada numa narrativa capaz de conferir unidade a uma série em princípio
descom prom issada com a continuidade . A div ersi da de dos tem as, port ant o, não
espelha a f ragm ent ação d o pont o de vi sta , tod o el e recortado p el a coerênci a qu e
resul ta dessa fel iz comb ina ção ent re o conhecimen to a dq uir ido p el a lei tu ra e a
ap rendiz agem assegurad a p el a exp eri ência. Essa “sab edori a” , m ais próxi m a d o
próp ri o processo de ap rend izagem d o que de um reposi tório de conhe ci m ent os,

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Idem. Ri tos de passagem . Luand a: União dos Escritores Angolanos, 19 85 .

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perm ite q ue a p alav ra tra nsi te p or mu itos un iver sos, pois o mu nd o sobre o qual se
debruça tam bém el e é cenári o de m ov im ento, e no quadro a ser del ineado t ant o
cab e a ref lexão sobre a perda e a resi stên ci a de t ant as ut opias co m o a descri ção
do f un ge do almoço, trad ição qu ase ri tu al nos sábad os angol an os.
Ressalte-se, ali ás, entre os text os a at enção q ue receb e o tra ba lho f em inino,
na s m ais el em ent ares e sof isticadas for m as, apreend ida s na im presci nd ibil ida de
de su a execuçã o. São a s ol ei ras “ de m ãos qu e pa recem asas” (p. 6 3 ), são as m ais
velhas que ao preparar o funge e outras iguarias dão provas de transportar “a
secreta ci ência dos sa bores” (p. 50 ), são a s l ent as m ulheres que “af ast am o sono e
ilum inam a pou ca noi te qu e ai nd a resta, transf orma da s em reci pientes de vári as
cores e percorrem a s ruas da cidad e v el ha p el os cam inh os di ári os da d em and a da s
font es.” (p .52 ). E é t am bé m Mary Kingsl ey, a ingl esa q ue, ent re os nom es m ascu li-
nos – Li vingst one, Richard B urt on, Henrique d e Carvalho, e ta nt os m ais – im pri-
miu a marca feminna às narrativas de viagens, um dos campos de interesse da
croni sta . Asso ci ad a ao cam po do tra ba lho, em a ções mescl ad as de art e, em pen ho,
coragem e sof ri m ent o, a m ulher tem assi nalada a sua dig nidade. Di luem -se os
m itos vazi os de u m fem inismo retórico o u d e um trad ici onali sm o exoti zant e pa ra
da r l ugar à vi são de um grupo que intervém na soci eda de em que est á i nseri do.
Dessa m aneira, Ana Pa ula não f ala pel as m ulheres de sua terra ou de ou tras, f al a
com elas, ab re-l hes o l ugar que elas j á ocup am . É essa um a da s ma neir as de d e-
nun ci ar um a d as m ui tas inj ustiç as dos tem pos que n ão param de corre r.
Avessa aos f un da m ent ali sm os, sab e resi stir à t ent ação d a i dea lizar a decan ta -
da fragi lida de do sexo. Porque é precis o sab er disti nguir o tri go do joi o e m esm o d e
out ros cereai s, nã o pode cond escend er quan do a imagem fem inina se dei xa col ar às
art im an has do logr o. Em “A pri ncesa e os m eninos à vol ta da foguei ra” , um a d as
m ais i m pressionant es crônicas do livr o, desv el a-se com lucidez o p act o d a h ipocri -
si a cel ebra do p el a m ídia. O cont rapon to en tre a gravi da de d o dram a vi vido p el as
cri an ças an gol ana s e o exerc íci o sem p ud or de um a b ond ad e de ocasião f az em ergi r
a f ace cruel de um a imagem em ol du rada pelo bri lho. A mercan til ização da dor de
quem não t em nad a p ara vender rev el a at é onde pode chegar o ab uso dos ci viliza-
dos. A s cores e f orma s da devast ação e o rost o da “princesa l oura e b oa” são elemen -
tos d e um a equ ação qu e bem ref lete o grau de d esi gual dad e. A ser viço de u m a cau -
sa qu e não é a decl arada , a p ri ncesa conver te -s e em vam pi ro:

A guer ra, o aban dono e a fome são o p ano d e f und o de seres que a terra m ãe nem
sempre a dopt ou com o devi a. Ser es cres ci dos ant es do t emp o e qu e se desenvol -
ve m a m ei o caminho entre um a i m prov ável chegada ao m und o dos adu ltos e a
im previ sí vel , porqu e assent e nu m a longa com binação d e i m pon derávei s, cons-
trução do dia que passa.

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O rosto m ai s vi sível da devastação e da guerra tem ol hos d e cri ança, tão gran des e
espan tad os como os sí m bolos sol ares das p intu ras rupestres m ai s ant igas.
A s ua t raj ectóri a f ez-s e em câ m ara lenta nu m fi lm e de terror com um a du ração
igual e coi ncidente com as sua s próp ri as vi da s.
É preciso que descansem e possam lamber, em paz, as suas próprias feridas.

Mas a p ri ncesa loura e boa está aten ta, espel ho m eu, e no seu bel íssi m o cesto de
m açãs, transp orta o venen o da exposiç ão, a f alta de p ud or para fal ar da s f eri da s
dos outros, os seus actos de boa vontade en comend ados.
Al im enta-se de san gue e nu nca f oi ao Hu am bo : rebenta m inas n o ci nem a, na
televi são e n a rá dio. (p. 9 3 )

En gana-se, porém , quem pen se que o text o i nveste contra a cel ebraçã o i nd i-
vidu al da p ri ncesa elei ta pela m ídia com o a p ortad ora d os val ores hum anitário s. A
crítica é mais contundente e, ao denunciar a lógica da comunicação no mundo
m oderno, essas duas pági nas a bordam pont as ocul tas do horror e da ini quidade
ainda serv idos a os desval idos. Com b ase em si gnos com o espelho, du end es, dra-
gões, caçad ores e todo u m univ erso de m agi a, a narrad ora dest aca a invi ab ilida de
da própria f ant asi a qu and o as f eri da s da gu erra são o pã o de cad a d ia. A espol ia-
ção assi m chega ao nív el m áxi m o e como compen sação parece restar apena sa
sol ida ri eda de d e encom end a qu e m ai s serv e a qu em finge of erecer do que a q uem
pre ci saria recebe r. A harm onia do happy end dos contos de f ada é ma nchad a: não
é gratuita a a lusão a o cesto de m açãs qu e nas históri as i nf an tis faz part e da b aga-
gem d as bruxa s i nt eressada s em d errotar as princesas. Na com posição da f igura
da h eroí na, a amb igui da de é f ont e de pertu rbaçã o e c ont am ina a generosi da de, o
desvel o, o despreend im ent o, tod os os traços de um comp ortam ent o v end ido com o

reserv a d e hu m anidad e em tem pos t ão som brio s. Com fina sensi bil idd e, a inteli -
gênci a d a au tora dem onstra qu e o que parece um a exceção é, na real idad e, a ex-
pressão desses t em pos, poi s, instrum enta lizados, os bons sentiment os apen as
real çam a intensidad e da exclusão. A co ncl usão é cap ita l : nu m m un do assim or-
ganiz ad o, at é m esm o a im em ori al l igação en tre a inf ância e o rei no d os prínci pes e
pri ncesas está queb rada.
Nessa era de ext remos, como bem cham ou Eric Hob sba wn, o cél ebre histori -
ad or i ngl ês, é necessário co nst rui r novos i nst rum ent os pa ra com preensã o da s coi -
sas. A l âm ina d a poesi a tem si do um a f err am enta adequ ada para p enetrar em
câm aras f echad as, em cant os escuros, por i sso a el a a cronista se ap ega e seus

textos atest am que a op ção pel a prosa, e pel a prosa curta, não postul a um a rupt u-
ra com o l íri co. Ao contrário, at ravés dos t extos, v am os perceb end o qu e a int im i-
da de com a p oesi a m anif esta -se de m odo vi vo , um a com unh ão m at eri ali zada n o
inesp erado d as i m agens, na b usca d o i nsól ito p ara f alar do d esconcerto do m un -

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do. O gesto de escrever pa rece si m ultâneo ao at o de com preend er as coi sas em


torno, a observação d ireta com pletand o-se, sem inibi ção, na i nt erl ocução q ue p ro-
cura estab el ecer c om outros arti stas d a p al avr a. E nov am ente a ausênci a d e pre-
concei to dá o tom . Mui tos de m ui tas p aragens são conv ocados e compa recem no
te xto, sej a em form a d e epígraf e, de cita ção, ou de objeto d o ol ha r. G ent e div ersa,
iden tif icad a com terras e src ens nu m erosas. Do Leopold Sengh or ao com positor
bra si lei ro qu e se f az p resen te p elo verso curt inh o “ Oh , insen sat ez… ” E o cort ejo se
com pleta com Sop hia de M el lo Breyner, André B ri nk , Lua nd ino V ieir a, Mi a Cou to,
Ruy Duarte de Carvalho, Honorat Aguessy, Eduardo Lourenço, Virgínia Woolf,
G eorges D ub y, A nt ônio Call ad o, Lei te de Vascon cell os, Davi d Mest re, Ungulani
Ba K a Kh ossa, Gab ri el Marian o, Bea triz … Historiadore s, an tróp ol ogos, escrito-
res, pessoas a nônima s e cel ebri da des, todos são con vida dos a int egrar essa rede
de estóri as a col hidas n as crônicas.
Se o m un do d a p oesi a é o cam po ond e, por excel ência, sua p ena ci rcul a, a
lingua gem é tra ta da com cui da do. A s i m agens são cu ltiv ad as, a escol ha dos vocá-
bu los recebe grand e at enção, a crença na ilusóri a ob jetiv ida de d a f un ção den ota tiv a
é abandonada, instituindo-se a capacidade de sugerir como critério de seleção
dos term os. A aparent e ref erenci ali da de qu e pensa m os encontra r na prosa sol ta é
pret exto p ara fal ar d e coi sas f un da s qu e o d ia-a-di a a cab a p or tu rv ar . Sem prejuí -
zo da int el igi bil ida de que convém a o text o pa ra ser ouvi do – em lugares nem sem -
pre a propriados p ara o a to – a escri ta ref ina-se no u so dos recursos qu e defi nem a
força d a econ om ia p oética: a a djeti vação recusa o exagero, as m etá foras f ogem ao
previ sto, os nomes p rocuram reduzir o ab ism o ent re el es e as coi sas. O p redom í-
nio da coordena ção, ei xo predom inan te n a lí ngua oral , com bina-se com o imp re-
visto da s associ ações com qu e se reco rta o d esenho de cad a cena apresentad a.
Ent re a vo z que narra e o m und o narrado não exi ste o distanci am ento d a épic a
convenci onal, e as palavr as tra du zem a con traçã o expressand o a porosi da de d e
um narrador ní ti da e serenam ente com promet ido com o qu e decl ara.
Na com posiç ão, im põem -se as sugestões do espa ço pri m ordi al. Sem cruzar
as li nha s de um nacional ism o m ilita nt e, a croni sta deix a n ítida a geogr af ia q ue
m arca o seu m odo d e ver o mun do. É, pois, essenci alment e af ri cana a p aisagem
qu e ori ent a os seu s sent idos. Congo, Cab o Verde , Kinsha sa, Gu iné, W iri am u,
Kal ahari e tant os outros topôni m os desponta m conf irman do as m arcas da ori -
gem . Mas é p ri ncipal m ent e Angol a qu e nos surge a cad a p asso: as serras da Hu íla
(sua p rov ínci a na ta l), as p edras d a Kibala, o Hua m bo a tingi do p el a guerra, o Dond o,
o Kiapossi , as rua s m altrata da s de Lu an da ... Seguindo t alv ez o exemp lo de Ant ónio
Cadornega, sobre qual se detém num de seus textos, el a p arece ter i gual m ente
perceb ido qu e “ a históri a nã o é i m un e à consistênci a d os l ugares ond e se pa ssa e
qu e, por su a vez, a p erp assa m”. (p . 17 )

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Com efei to, o s l ugares e suas m arcas const itu em um a da s presenças relev an-
tes em tod o o l ivr o. Sem se conf un dir co m um diári o, a coletânea incorpora t raços
dos li vr os de vi agem , investi nd o na m em óri a com o um a vi a d e conqu ista do qu e
pa rece perdido. As i ncursões real izam -se, ent ão, ta m bém na d im ensão t em poral,
e a vi agem se f az e se ref az, bu scand o al cança r o di sta nt e, no espa ço e no tem po,
sem ignorar a en ergi a e a relev ân ci a do con tem porâ neo e d o cont íguo. Nas revi si ta s
ao pa ssado, desma ncha -se a at m osf era nost ál gi ca pa ra que a recorda ção, col hida
em jogo di nâm ico, venha il um ina r o present e, rem arcar as linha s e as cores que
deli neiam a vida at ual. A mem óri a at ua na organ ização do p resente, o que já acon-
teceu funciona como um impulso no difícil exercício de compreender os fatos e
seus ri tm os.
Tão i m portant e, a m emóri a é el a própri a um dos tem as f reqüentes ent re as
crônicas. Em pelo menos três delas, a discussão aparece ligada à questão dos
m useus e sua org aniz ação. Fal a a qui tam bém o cui dad o da hi stori adora, se m pre
sensív el às t rapa ças d o tem po. A rel ação, toda via, não f oi sem pre d e tot al adesão.
Em “Achad os e perd idos”, a con fissão est á clara:

Durant e m ui to tem po ha via um a rel ação conf usa de p rof und o m al -es tar qu an-
do ol hava aq uelas máscaras ali nh ad as segund o cri téri os de tam anh o e conv eni-
ências de f ei tio. Era u m m al es tar p rovoc ad o com a dimen são f un erári a d e tu do
aqu ilo do qua l me era tão dif íci l s epa rar . C em itérios de está tu as cegas m ortas d e
gesto, de li ngua gem e d e corpo.

Contra a reação, atuou a consciênci a de q ue essa h istóri a um pou co aprisi o-


na da , freqüen tem ent e reti da t ão l onge do cont exto ond e f oi vida , tem seu dina-
m ismo, g uarda sua m agi a na exi stênci a d e um “outro m useu d etrás da s col ecçõ es
exposta s” . Na recup eração do p ap el da inst itu ição que p ermite “atravessar os es-
pel hos da m emóri a e a procurar i dent idad es perdi das n o chão dos an tepa ssados
ond e vi vemos ”(p . 10 1), ref let e -se, sob ou tro p ri sm a, a cap acidad e de p erscrut ar o
ocul to dessas crôni cas.
Del as p ode -se di zer ai nd a qu e ref letem um a extra ordi nária consci ênci a d o
at o de escrev er . A presença f lagrant e da m eta lingua gem p roj eta a at uaçã o de um a
int el igênci a q ue se dispensa de artif ici ali sm os e qu e assu m e, sem qua lquer t raço
de a rro gânci a, uma certa dimensão p edagógi ca que a li teratu ra pode desemp e-
nh ar . Nesse dom ínio, pod em os i ncl uir as ci ta ções de eruditos e p opu lares, a ca pa -
ci da de d e tra nsitar por orden s culturais di ferente s, recusand o-se a hierarquiz ar
os v alo res e ensi na m ent os que d aí retir a. À v ont ad e, em at itu de f ranca m ent e f a-
vor ável à circul ação de idéias e verdad es, perm ite -se associ ar B arth es aos m ais
vel hos Cokue e Lund a, os teóri cos da literat ura f rancesa à Bea triz – a d ona da

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pa nela de h istórias ouvi da s na inf ân ci a. A dispon ibil ida de p ara a pre nd er e div idir
a aprendizagem transforma-se num antídoto contra a descrença e, apesar de
m uitos apesares “nestes tem pos da cól era pert urba do e doen te” (p. 13 9 ), pa rece
possív el e saud ável escapa r ao n iilism o a que ta nt a coisa convi da , especi alment e a
certeza d e um (o seu ) con tinent e a a rder . Nesse sent ido, a prát ica m eta lingüísti ca
dei xa de conf igurar um ato d e f echam ento, um m odo de expri m ir a au tonom ia d o
lite rário, com o, segund o Al fredo Bosi 3, ocorre nas reali zações da poesia assom bra-
da pelo pess im ism o. Ao ref let ir sobre o código de q ue se val e, a a ut ora relat iviza o
conheci m ento, questi ona certezas, mas n ão sub scr ev e essa espéci e de trata do
negat ivista da s teori as p ós- m oderna s. Tal vez resí du o de u m a resta nt e ut opia, re-
vel a-se o desejo de acreditar q ue o t exto f un ci ona p ara a lém de si mesm o. Lev e-
m ent e, em tom de reb el dia sutil , deixa escapar:

Fel izmen te a pa lavra dissi den te fi cou d e f ora, pronta a u sar: ex erce sobre n ós a
enorme sedu ção do fruto p roi bido, duran te t ant o tem po, do sabor a loengos
sel vagens: corta os l áb ios, fere a b oca, mas cura a sed e e a pa zi gua a fome.
Col ocada lado a l ad o da respon sabil ida de qu e nos cabe na t ransf orma ção dest e
mu ndo dos hom ens e da s m ul heres, sabe a pouco, mas como é bom usar! (p. 9 1)

Ident ificad as com o present e, com o é p rópri o do gên ero e do veí culo para o
qua l foram dest inad as, as crôni cas de Ana P aula propici am forma s de se esten der
a f orça do insta nt e cap ta do. O pa ssado, v isi ta do a través da evo cação, se associ a
ao f ut uro an unciado com jei to d e vaticí nios , o qu e f az com que o text o pe rsi ga a
fun ção desem pen had a na t radição oral . Bast a l em brarm os das l ições de W alter
Benjam in, pa ra quem a açã o do na rrador trad ici onal r esi dia no conheci m ent o acu-
m ulado pela f orça da experi ência (1 98 5). Eco d e um a reali da de p aut ad a p el a t ran-
si ção, a pa lavra constrói- se revel an do-se t am bém um at o de fronteira, desli zand o
ent re o cam po e a cidade, e a aut ora ref orça sua a ut ori da de col hen do d e posi tiv o
o qu e essas m at ri zes podem of erecer . Na cidade , a ext ração t em lugar n os l ivr os e
nos m useus, essas cat edrais de sab er codi ficad o pela escri ta e pela pesq uisa. No
cam po, a col heita se of erece no conta to d ireto com os sábios que t êm na m em óri a
(sempre ela) a fonte essencial. Com esses narradores fadados à extinção pela
impessoalidade do universo dominado pela informação, Ana Paula insiste em
ap render, sedu zi da pela capa ci da de d e i nt ercam biar experi ências tão raref ei ta na
contemporaneidade.
Cabe observ ar que é ba stant e reduzi do o espa ço ocupado pel a crôni ca na
história da literatura em Angola. Povoada por grandes poetas e expressivos

3 BO SI; Alf red o. O ser e o tempo d a p oesia . São Pa ulo: Cultrix/ Ed usp , 1977 .

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ficci onista s, seu repe rtório nã o reún e um a ga leri a signi ficat iva de c ronista s, m uito
em bora sej a p aten te o grande interesse da p rodução de E rnesto Lara Fi lho, no
pa ssado, e hoj e j á se p ossa assinal ar a a tu ação em alg uns jornais, sobret ud o por-
tu gueses, de escri tores como Pe pet el a, Ru y Dua rte de Carval ho e José Ed uard o
Agual usa. Mesm o as rel ações t ão f rut uosas com a li terat ura brasil ei ra, em cujo
repertóri o têm lugar destacad o nom es que vão de Ma chado d e Ass is ao p oetas
Man uel Ban deira e Carl os Drum m ond d e A nd rade, passand o por v erdad ei ros cul -
tores do gênero como Ru bem Braga, Paulo Mendes Camp os, Fer nand o Sab ino,
Ot to Lara Resen de, não t iver am forte repercussão nesse cam po. Tam bém por i sso,
m erec e m ui ta atenção a ativ idad e de Ana Pa ul a, que na opção p or um a at m osf era
pecu liar , com b ase no uso d e um a l ingua gem t ingi da p or um certo asp ecto sol ene,
estabelece um caminho muito próprio. A comunicabilidade por ela pretendida
pa ssa ao largo, por exem plo, do cli m a d e col oquial ida de m uito present e ent re os
brasil ei ros ci ta dos. A v oz que se desa ta e m cada text o parece b em m ais próxi m a
da fam ília d os narrad ores da t radição oral , convi cta do seu pa pel de m at ri z de
ensinam ent os, ainda qu e se permita conf essar perplexi da des i m post as pela con-
fusão ou p el o vazi o d a vi da na soci eda de ba lizada por valo res qu ant ita tiv os.
Diant e de ca da crônica, agora imp ressa n as p áginas d o l ivro, o l eitor , at ent o,
vai pe rcebe nd o que os t extos , de f at o, se pot enciali zam se l idos em voz alta , por-
que guardam na elaboração de seus argumentos uma densa ligação com a
oral ida de. Uma orali da de q ue n ão é d e com íci o, como a lguns d os poem as ori ent a-
dos para o conta to com as m assas, nem de sal ão, como aqu el es adequa dos aos
saraus românticos. As crônicas de Ana Paula Tavares remetem, suavemente, à
roda da foguei ra, l ugar d e ap rendizagem e cresci m ent o na trad ição a fri cana . Ao
investi r nessa evo cação, a escri tora não consegue recup erar , ev iden tem ent e, a i n-
teirez a d e um pa ssado irr em ediav el m ent e perd ido (com o, ali ás, qua lquer p assa-
do), mas consegue manter viva uma referência fundamental de seu patrimônio
cultural. Deli cada m ent e, sua propost a conf irma a vi ab ilida de d o rádio como u m a
at uali zação d o t am bor t ri ba l, ex pressão u til izada por Mcluhan , o f am oso teóric o
da comun icação, para q uem “o rádi o é um a extensão d o si stem a n erv oso central ,
só i gualada p el a p rópri a f al a h um ana” 4 . Da d im ensão de a ldei a com um ente a sso-
ci ad a a esse veí culo de com unicação qu e f ique, contu do, af asta da a vel ha idéia de
m assi ficação de verdad es com qu e se am eaça qu alquer f ranja de aut onom ia. Num
m und o onde os m ei os são cada vez m ais a m ensagem , Ana Pa ula rel at iviza o cará-
ter au tori tá ri o que p ode t er a voz qua nd o m ediada p el a t ecnol ogi a ao escol her a
carga sugestiv a da poesia como i nst rum ent o de rev el ação.

4
MCLUHAN, Marsh all. Os meios de comun ica ção. Sã o Pa ulo: Cultrix, s/ d. p. 340.

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o u t reonss a ios C HAVES , A pa lavra en raizada de ...

As sum indo o comp romi sso contra a fragment ação qu e vi tima o hom em , a
aut ora rec lam a p ara a sua obra al guma s das f unções pouco presti gi ada s no m un-
do m ercant ilizado d o presen te: a f unçã o de sat isf azer a n ecessi da de d e f ant asia
que d istingue os homen s, a f unçã o educa tiv a e a f unçã o de conhecimen to d o ho-
m em e do ser . Ou sej a, nas pa lavras de Anton io Cand ido, a f un ção hu m anizadora
que é a “capaci dad e de conf irmar a h um anidade do hom em” 5 , expri m ind o-o e at u-
and o em sua p rópri a f ormação. A aposta na hum aniz ação no rei no da m ercadori a
ajud a-nos a com pre end er , inclusiv e, a esc ol ha da bu gan vília 6 que d á título ao v o-
lum e. Para a voz aut ori zada da croni sta :

Assi m as n ossas raíz es de ferrei ros m uito an tigos v ão resisti nd o ao vento e à


tem pestad e destes últi m os temp os que, m ai s que o vento ou a arei a d o deserto,
nos experiment a os corpos e v ai retorcend o as al m as.
Por i sso, às vezes tenho dú vida s e dif iculdad es qua nd o a con ver sa t em que ver
com bu ganví lias. É que estas coisas de p arent esco são m uito dif ícei s de conhe -

cer bem e disti nguir nas nossas t erras.


De um a coi sa estou certa, v enha quem vier , mudem as estações, parem as chu-
vas, esteril izem o solo, som os ca da vez m ais com o a s b uga nví lias: a f lori r em
sangue no m ei o da tem pestad e. (p. 3 5)

5
CANDIDO, Antonio. “ A li terat ura e a forma ção d o hom em”. In: Remate de males . Campinas: Instituto de Estu dos da
Lingua gem , 1999 .

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