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Diálogos em Direitos Humanos,

Questões Regulatórias em
Biotecnologia, Biodireito e
Temas Interdisciplinares
Claudia Ribeiro Pereira Nunes
Cleyson de Moraes Mello
Leonardo Rabelo
(Coordenadores)

Diálogos em Direitos Humanos,


Questões Regulatórias em
Biotecnologia, Biodireito e
Temas Interdisciplinares
Estudos em Homenagem ao
Prof. Dr. Pedro Diaz Peralta

Rio de Janeiro
2018
Editora Processo
Tels: 3128-5531 / 3889-8181 / 2209-0401

www.editoraprocesso.com.br www.catalivros.com.br
Distribuição exclusiva da Catalivros Distribuidora Comércio Ltda ME
Copyright © 2018 Claudia Ribeiro Pereira Nunes; Cleyson de Moraes Mello; Leonardo Rabelo
Todos os direitos reservados.
Conselho Editorial
Maria Celina Bodin de Moraes (Presidente)
Luiz Edson Fachin
Ana Carolina Brochado Teixeira
Ana Frazão
Antônio Augusto Cançado Trindade
Antônio Celso Alves Pereira
Caitlin Sampaio Mulholland
Carla Adriana Comitre Gibertoni
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Cleyson de Moraes Mello
Eneas de Oliveira Matos
Eugênio Facchini Neto
Fernando de Almeida Pedroso
Hélio do Vale Pereira
Joyceane Bezerra de Menezes
Marco Aurélio Peri Guedes
Marcos Ehrhardt Jr.
Maria Cristina De Cicco
Mariana Pinto
Martonio Mont’ Alverne Barreto Lima
Mauricio Moreira Menezes
Melhim Namem Chalhub
Ricardo Calderón
Sergio Campinho
Capa: Sheila Neves / Editoração Eletrônica: Deoclécio Serafim

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

PEREIRA NUNES, Claudia Ribeiro. MORAES MELLO, Cleyson de. RABELO, Leonardo
P342d Diálogos em direitos humanos, questões regulatórias em biotecnologia, biodireito e
temas interdisciplinares – estudos em homenagem ao prof. dr. Pedro Diaz Peralta / Claudia
Ribeiro Pereira Nunes, Cleyson de Moraes Mello, Leonardo Rabelo – Rio de Janeiro:
Processo, 2018.
427 p. ; 23cm.

ISBN: 978-85-93741-24-1

1. Direitos fundamentais. 2. Brasil. 3. Título.

CDD 343.810922

Proibida a reprodução (Lei 9.610/98)


Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Quão preciosa é, ó Deus, a tua benignidade, pelo que os
filhos dos homens se abrigam à sombra das tuas asas.
Eles se fartarão da gordura da tua casa, e os farás
beber da corrente das tuas delícias;
Porque em ti está o manancial da vida;
na tua luz veremos a luz.
(Salmos 36:7-9)
Pedro Diaz Peralta

Dados Pessoais e Formação Acadêmica


– Nascido na Espanha, em 29 de janeiro de 1961
– Doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madrid, Departamento
de Direito Administrativo–Tese: Globalização, segurança alimentar e incerteza
jurídica – Medicamentos e Regulação Global de Medicina Farmacêutica: Ética e
questões legais
– Doutor em Ciências, Farmacologia e Toxicologia pela Universidade Compluten-
se de Madrid, Espanha – Tese: Questões de ética e responsabilidade sobre
resíduos nos géneros alimentícios
– Mestre em Ciências Ambientais no Instituto Universitário de Ciências Ambien-
tais (IUCA), pela Universidade Complutense de Madri
– Graduação em Medicina Veterinária, pela Universidade de Córdoba, Espanha
– Graduação em Direito, pela Universidade Complutense de Madri, Espanha

Funções Atuais
– Pesquisador Visitante da Universidade Veiga de Almeida
– Investigador Visitante da Universidad Complutense de Madrid

Participação em Instituições Acadêmicas


– Membro-associado da Asociación Española de Derecho Agrário (AEDDA)
– Membro-associado da Asociación Española de Derecho Sanitário (AEDDS)

TRABALHOS DE PESQUISAS EM DIVERSOS PAÍSES

European Law Research Center on Harvard Law School


– Visiting Scholar em Harvard Law School, em 2004-2005, com a pesquisa:
Princípios de responsabilidade internacional no comércio de alimentos

Real Colegio Complutense no Institute for Global Law and Policy em Harvard
Law School
– Visiting Scholar em Real Colegio Complutense, em 2006-2008, com a pesquisa:
Aspectos relacionados à propriedade intelectual sobre comércio e comercialização
de plantas medicinais tradicionais e alimentos à base de plantas suplementos

Spanish Cooperation in Latinoamerica (Colômbia)


– Visiting Researcher/Lecturer. Spanish Cooperation in Latinoamerica (Colom-
bia), em 2009, Project AECID B/018053/08: Assessment on application of food
safety requirements in agrifood production as the basis for ruraldevelopment
– Visiting Researcher/Lecturer. Spanish Cooperation in Latinoamerica (Colom-
bia), em 2010, Project AECID B/023052/09: Assessment on application of food
safety requirements in agrifood production as the basis for rural development 2
Capacity building and implementation of policies

Centre for Socio-Legal Studies em University of Oxford


– Visiting Scholar em University of Oxford em 2012, com a pesquisa:Quadro
jurídico de Propriedade Intelectual (PI) em proteção do conhecimento indígena,
bem como o impacto em sociedades de transição de terceiros estrangeiros uso
comercial de seu conhecimento em recursos naturais (bioprospecção)

Diretório de Grupos de Pesquisas/CNPq no Brasil


– Co-líder do Grupo de Pesquisa certificado pela Universidade Veiga de Almeida
em 2017: Direito Comparado Global: Governança, Inovação e Sustentabilidade,
com as pesquisas pesquisadas: Abordagem da Economia Comportamental para
os setores globalizados relevantes; Bioeconomia, Segurança Alimentar, Resíduos
e Sustentabilidade; Visão Bioética: Desafios Contemporâneos; Dada voz ao
conhecimento tradicional indígena: Práticas e Governança; Lei regulatória de
energia verde e mercado de carbono; Direito de Patentes e Biotecnologia: Acesso
a medicamentos e questões sobre Biodireito.
Coordenação geral da obra

Claudia Ribeiro Pereira Nunes


PhD on Law. Researcher, Department of Administrative Law, Complutense
University of Madrid, Spain. Professor and Deput Coordenator of Veiga de
Almeida University, Rio de Janeiro, Brazil. E-mail: claudia.nunes@uva.br
Cleyson de Moraes Mello
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; Professor Permanente do
PPGD da UVA e UERJ. Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença –
FAA/FDV. Advogado. E-mail: profcleysonmello@hotmail.com
Leonardo Rabelo
Pró-Reitor de Pós-graduação e Pesquisa da Universidade Veiga de Almeida e
Coordenador do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito - Mestra-
do e Doutorado (PPGD/UVA). Consultor ad hoc do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira e da CAPES
Autores

Amanda Pessoa Parente


Mestranda em Direito – Universidade Veiga de Almeida – UVA. Especialista em
Direito Público – Universidade Iguaçu – UNIG. Professora e Coordenadora do
Curso de Direito da Universidade Iguaçu – UNIG. Professora do Curso de
Direito do Centro Universitário ABEU – UNIABEU.
Ana Paula Couto
Advogada. Professora de Direito Processual Penal na graduação da UNESA.
Professora de Direito Processual Penal na pós-graduação da UNESA. Especialis-
ta em Direito Processual Civil pela UVA. Especialista em Direito Público e
Direito Privado pela EMERJ. Mestra em Direito pela UNESA. Doutoranda em
Direito pela UVA.
André R. C. Fontes
Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
Doutor em Ciências Ambientais e Florestais pela Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (UFRRJ) e Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região
(Rio de Janeiro e Espírito Santo).
Andréia Fernandes de Almeida
ALMEIDA, Andréia Fernandes de. Doutora em Direito e Sociologia pela Uni-
versidade Federal Fluminense – UFF. Mestre em Direito pela Universidade
Federal Fluminense – UFF. Pós-graduada em Direito Privado pela Universidade
Federal Fluminense – UFF. Professora Adjunta do Departamento de Direito
Civil da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. E-mail: andreiafalmei-
da@yahoo.com.br
Armenia Cristina Dias Leonardi
Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Petrópolis. E-mail:
acdleonardi@gmail.com
Bárbara Gomes Lupetti Baptista
Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga de
Almeida (PPGD-UVA). Professora da Faculdade de Direito da Universidade
Federal Fluminense. Pesquisadora do INCT/InEAC. blupetti@globo.com
Beatriz Capanema Young
Mestranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Graduada em Direito pela IBMEC-RJ. Advogada. E-mail:
biayoung_@hotmail.com
Carla Sendon Ameijeiras Veloso
Doutoranda em Direito na UVA. E-mail: carlaameijeiras@gmail.com
Carlos André Coutinho Teles
Mestrando do Programa de Pós-Graduação strictu sensu em Direito da Univer-
sidade Veiga de Almeida. Especialista em Responsabilidade Civil e Direito do
Consumidor (2006) pela UCAM e em Direito e Processo do Trabalho pelo
IBMEC (2016). Advogado. E-mail: carlos.teles@ctfl.adv.br.
Carlos José de Souza Guimarães
Advogado da União e Professor da Faculdade de Direito da UERJ. Chefe do
Departamento de Teorias e Fundamentos do Direito desta mesma Faculdade.
E-mail: cjsg@uol.com.br
Claudia Ribeiro Pereira Nunes
PhD on Law. Researcher, Department of Administrative Law, Complutense
University of Madrid, Spain. Professor and Deput Coordenator of Veiga de
Almeida University, Rio de Janeiro, Brazil. E-mail: claudia.nunes@uva.br
Cleyson de Moraes Mello
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; Professor Permanente do
PPGD da UVA e UERJ. Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença –
FAA/FDV. Advogado. E-mail:profcleysonmello@hotmail.com
Daniel Navarro Puerari
Professor dos Cursos de Direito da Universidade Estácio de Sá e da Universida-
de Castelo Branco. Doutorando do Programa em Direito da Universidade Veiga
de Almeida, dpuerari@gmail.com
Danielle Riegermann Ramos Damião
Doutoranda em Direito pela FADISP (2015). Mestre em Direito pela UNIMAR
(2012). Pós-graduada lato sensu em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho
pela UNESA (2003). Graduada em Direito pela UNESA (2002). Advogada e
Professora de ensino superior. Autora de obras jurídicas. Email: danielle.rieger-
mann@gmail.com
Darleth Lousan do Nascimento Paixão
Mestranda do Programa de Pós-graduação stricto sensu da Universidade Veiga
de Almeida. Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília –
UNICEUB (2007) e em Ciências Contábeis pelo Centro Universitário de
Brasília – UNICEUB (1987). Analista Legislativo no Senado Federal. Palestran-
te, conferencista e articulista. E-mail:nilton.darleth@gmail.com.
Erika Tavares
Mestre pela UNESA.Doutoranda da Universidade Veiga de Almeida. Bolsista
parcial UVA. E-mail: merychalfun@hotmail.com
Fábio Asty Dantas
Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: fabioasty@hot-
mail.com
Fernanda Baldanza
Possui graduação em Direito pela Universidade Estácio de Sá (2009) e Especia-
lização em Criminologia, Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido
Mendes. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal,
Processual Penal, Criminologia, Direitos Humanos e do Consumidor. É mestre
em Desenvolvimento Local, pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvi-
mento Local do Centro Universitário Augusto Motta, UNISUAM. E-mail:
advfernandabaldanza@gmail.com
Fernando Gonzalez Botija
Ph.D. on Law. Professor and Secretary, Department of Administrative Law,
Complutense University of Madrid, Spain and Researcher, LEXNOVAE –
Protecting Fundamental Rights in a changing world Rule of Law, role of Science
by European Commission Funding. E-mail: suricato@der.ucm.es
Fernando Ferreira Pascoal
Bacharelando no curso de Direito, pela Universidade Estácio de Sá do Rio de
Janeiro, campus Madureira. E-mail: fernandof.pascoal@hotmail.com
Fernando Rangel Alvarez dos Santos
Doutorando do Programa de Pós-graduação strictu sensu em Direito da Univer-
sidade Veiga de Almeida (Bolsista PROSUP) – PPDG-UVA. Mestre em Direito
e Especialista em Direito Civil e Processual Civil (2001) pela UNESA e em
Direito Corporativo pelo IBMEC (2015). Advogado. E-mail: fran-
gel2005@gmail.com
Gabriela do Amaral Rezende
Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis e advogada.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8933103197526355. E-mail: gabrielare-
zende.ucp@gmail.com.
Gisela Vasconcelos Esposel
Mestre em Direito Processual Penal; Professora da Universidade Estácio de Sá;
E-mail: gisaesposel@hotmail.com
Hector Luiz Martins Figueira
Doutorando em Direito na UVA. E-mail: hectorlmf@hotmail.com
Henrique Lopes Dornelas
Mestre em Direito – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre
em Sociologia e Direito – Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito –
PPGSD/UFF. Especialista em Direito Tributário – Universidade Cândido Men-
des – UCAM. Especialista em Direito Público – Universidade Gama Filho –
UGF. Advogado inscrito na OAB/RJ. Professor do Curso de Direito da UNIG,
campus I, Nova Iguaçu. Professor do Curso de Direito da Faculdade Gama e
Souza – FGS
Irene Celina Brandão Felix
Advogada. Mestre em Direito e Doutoranda em Direito. E-mail: ibrandaofe-
lix@gmail.com
Jaqueline Nacata Garcia
Advogada. Graduada em Direito pela Faculdade São Luís (2017). Email: jaque-
linenacata@gmail.com
João Victor Tavares Galil
Mestrando em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/SP da Subsec-
ção de Osasco. Advogado. E-mail: tavaresgalil.adv.@gmail.com
Larissa Pimentel Gonçalves Villar
Doutoranda em Direito na UVA. E-mail: larissavillar@yahoo.com.br
Laura Dutra de Abreu
Estudiante de Doctorado de la Universidad Veiga de Almeidae en Río de
Janeiro, Brasil. Beca PROSUP/CAPES. E-mail: lauradutraabreu@hotmail.com
Loreci Gottschalk Nolasco
Doutora em Biotecnologia e Biodiversidade pela Universidade Federal de Goiás
(2016), com a tese Regulamentação Jurídica da Nanotecnologia; Mestre em
Direito pela Universidade de Brasília (2002); Professora e Pesquisadora da
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul; Coordenadora do Projeto de
Pesquisa. Direito. Estado. Biodireito e Novas Tecnologias.
Luciana de França Oliveira Rodrigues
Pós-doutoranda em Direito pela Università Degli Studi Di Messina. Doutora em
Direito – Universidade Gama Filho – UGF. Mestra em Direito – Universidade
Iguaçu – UNIG. Professora e Coordenadora do Curso de Direito da Universida-
de Iguaçu – UNIG. Professora do Curso de Direito do Centro Universitário
ABEU – UNIABEU.
Luiz Augusto Marca
ROCHA, Luiz Augusto Castello Branco de Lacerda Marca da. Mestre em
Direito pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP. Professor de Direito
Civil do curso de graduação do Centro Universitário Augusto Motta (UNI-
SUAM). E-mail: augustocastellobranco@gmail.com
Katia Eliane Santos Avelar
Possui graduação em Farmácia e Bioquímica. Mestrado e Doutorado em Ciên-
cias Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É coorde-
nadora do Laboratório de Referência Nacional para Leptospirose do Instituto
Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Professora Titular e Pesquisadora do Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Local do Centro Universitário Augusto
Motta (UNISUAM). Atua na área Interdisciplinar, com interesse em estudos
relacionados à educação em saúde, educação ambiental, direitos humanos,
cultura, diversidade e desenvolvimento sustentável. E-mail: Katia.ave-
lar@gmail.com
Marcilene Margarete Cavalcante Marques
Advogada. Professora na UNESA/RJ. Mestre em Direito pela UCP. Doutorando
em Direito UVA/RJ. E-mail: marques.marcilene@gmail.com
Marco Couto
Juiz de Direito do TJRJ. Ex-Promotor de Justiça no Ministério Público do
Estado do RJ. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela
UNESA. Mestrando pela UNESA.
Maria Cecília Mendonça Velez
Bacharelanda em Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail:
ceciliavelez95@gmail.com
Maria Geralda de Miranda
Possui graduação em Letras e em Comunicação Social (Jornalismo). Mestrado e
Doutorado em estudos culturais pela UFF. Pós-doutorado em Estudos culturais
Africanos pela UFRJ. Pós-doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana
pela UERJ. Pós-Doutorado em Narrativas Visuais pela Universidade de Lisboa.
É professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local, do
Centro Universitário Augusto Motta, UNISUAM. Desenvolve estudos no âm-
bito da Educação ambienta, cultura popular, direitos humanos, gênero e desen-
volvimento sustentável. E-mail: mgeraldamiranda@gmail.com
Mariana de Freitas Rasga
Bolsista do Programa de Produtividade da Universidade Estácio de Sá. Douto-
randa do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga de
Almeida. Mestre em Direito do Programa de Pós-Graduação da Universidade
Veiga de Almeida. Professora Auxiliar da Universidade Estácio de Sá e da
Universidade Veiga de Almeida. mfrasga@hotmail.com. http://lat-
tes.cnpq.br/7335276875695463.
Maurício Pires Guedes
Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho e doutorando em Direito pela
Universidade Veiga de Almeida, é professor da Universidade Católica de Petró-
polis e advogado. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2444648587250384.
E-mail: mauriciopguedes@gmail.com.
Marcos Paulo Sobreiro Pulvino
Advogado inscrito nos quadros da OAB/SP e Mestre em Direito da Cidade pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. E-mail: marcos.paulo.sobre-
iro.pulvino@gmail.com
Mery Chalfun
Mestre pela UNESA.Doutoranda da Universidade Veiga de Almeida. Bolsista
parcial UVA. E-mail: merychalfun@hotmail.com
Morgana Paiva Valim
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga
de Almeida. Mestre em Direito do Programa de Pós-Graduação da Universidade
Gama Filho. Professora Auxiliar da Universidade Veiga de Almeida. mp_va-
lim@hotmail.com. http://lattes.cnpq.br/0747586676976718.
Nathália Alves de Oliveira
Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Estadual do Mato Grosso do
Sul – UEMS; Bolsista de Iniciação Científica- UEMS; Email: nathalia_alvesoli-
veira@hotmail.com.
Nilton Rodrigues da Paixão Júnior
Doutorando do Programa de Pós graduação stricto sensu da Universidade Veiga
de Almeida. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernam-
buco – UFPE, graduado em Direito pela UNIDF – Associação de Ensino
Unificado do Distrito Federal. Presidente da Pública – Central Sindical exclusi-
va de servidores públicos e Consultor Legislativo – Câmara dos Deputados.
Palestrante, conferencista e articulista. E-mail: nilton.darleth@gmail.com.
Pedro Diaz Peralta
Ph.D. on Law. Researcher, Department of Administrative Law, Complutense
University of Madrid, Spain and Veiga de Almeida University, Rio de Janeiro,
Brazil. E-mail: pdiazper@ucm.es
Priscila Elise Alves Vasconcelos
Doutoranda em Direito pela Universidade Veiga de Almeida- Rio de Janeiro;
Mestre em Agronegócios- UFGD; especialista em Meio Ambiente – COP-
PE/UFRJ; especialista em Direito Público e Direito Privado – EMERJ/Estacio;
especialista em Direito Processual Civil – UCAM/RJ; advogada – Universidade
Cândido Mendes Centro/RJ; E-mail: prisvascon@gmail.com
Reis Friede
Desembargador Federal, Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF),
Mestre e Doutor em Direito e Professor e Pesquisador do Programa de Mestrado
em Desenvolvimento Local do Centro Universitário Augusto Motta (UNI-
SUAM). Site: https://reisfriede.wordpress.com/. E-mail: reisfriede@hot-
mail.com
Rosy Nery Guimarães
Bacharel em Direito formada pela Universidade Estácio de Sá/RJ, Arquiteta
pela Faculdade Integrada Bennett/RJ e pós graduada em Engenharia Sanitária
pela CEPUERJ. E-mail: arquitetarj@hotmail.com
Rossana Fisciletti
Mestre pela UNESA.Doutoranda da Universidade Veiga de Almeida. Bolsista
parcial UVA. E-mail: merychalfun@hotmail.com
Vanderlei Martins
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (PPGD-UERJ) em Regime de Dedicação Exclusiva. Atua na área de
Ciências Sociais Aplicadas. E-mail: martins1951@yahoo.com.br
Vanele Rocha Falcão César
Doutoranda (2015) do Programa de Pós-graduação strictu sensu em Direito da
Universidade Veiga de Almeida – UVA. Mestre (2010) em Direito pela Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Tabeliã de Notas Titular do 21º
Ofício de Notas da Capital do Rio de Janeiro. E-mail: vanelefalcao@gmail.com
PREFÁCIO

A ciência em suas aquisições, em suas teorias e em suas novas técnicas


renova-se cada dia. E não devemos imaginar que essa renovação se faz de
modo integral e súbito; na verdade, na longa história da ciência, não há
registros de saltos, se quisermos falar de maneira não cautelosa e ponderada.
Da renovação, e porque não dizer, igualmente, da ruptura, é costume na
ciência se congratular por ambos os fatos. Tomar o horizonte do passado em
estruturas irredutíveis às qualidades de desenvolvimento e progresso e
converter o que ocorreu em um olhar de relações do claro e do escuro
parece ser o esboço do espírito humano.
Se quisermos distinguir alguns traços gerais da atitude do homem em
face das coisas e em face de si mesmo, não podemos ignorar o espírito
objetivo que se desenrola no espaço em que se vive, em que se trabalha e
onde se é feliz. A alegria e a tristeza, a vivacidade e o embrutecimento são
os dados da nossa percepção. A mesma percepção que é uma pura operação
de conhecimento e, também, um registro progressivo de qualidades e do
desenvolvimento mais costumeiro nas experiências em face do mundo.
Enquanto se desencadeia esse movimento para frente, por meio da
pesquisa conduzida aos seus verdadeiros caminhos e o espírito humano é
levado para superar impasses e contradições com que se choca a cada passo,
e verdadeiros espíritos científicos superam no alcance e na busca de desafios
no avançar do pensamento científico.
Temos em Pedro Diaz Peralta um desses espíritos universais, que
surgem de tempos em tempos, para testemunhar a capacidade intelectual
do homem. Em tudo que toca e que pede emprestado ele imprime o seu
cunho próprio; e a sua concepção das coisas é tal que a partir de sua
pesquisa, o rumo das investigações científicas devem levar em conta, espe-
cialmente pelo seu caráter seguro e interdisciplinar.
Nascido na Espanha no ano de 1961, doutorou-se duplamente na
prestigiosa Universidade Complutense de Madri tanto em Direito como em
Ciências, Farmacologia e Toxicologia, tendo também obtido um outro
mestrado em Ciências Ambientais, após se graduar em Direito, ao lado de
uma outra graduação, em Medicina Veterinária, na Universidade de Córdo-
ba.
Chamado para a vida acadêmica pela Universidade Complutense de
Madri, de onde é oriundo, passou por conhecidas e respeitáveis instituições
universitárias de ensino e pesquisa nos Estados Unidos da América, na
Inglaterra, Colômbia até se encarregar, no Brasil, da docência junto a
Universidade Veiga de Almeida.
E não se pense que essa vida pública, tão ativa e eficiente, tenha
prejudicado o reconhecimento da sua personalidade incomum entre seus
admiradores brasileiros. Tanto pela fecundidade de seus trabalhos quanto
pela influência que exerce é que oferecemos o conjunto de textos que se
seguem, em homenagem ao Professor Pedro Diaz Peralta.

Rio de Janeiro, 22 de março de 2018.

André R. C. Fontes
Presidente do Tribunal Regional Federal
da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo)
Palavras da Coordenação

É com grande satisfação que apresentamos à comunidade jurídica brasi-


leira a obra Diálogos em Direitos Humanos, Questões Regulatórias em
Biotecnologia, Biodireito e Temas Interdisciplinares: Estudos em Homena-
gem ao Prof. Dr. Pedro Diaz Peralta.
A edição desta obra expressa a preocupação dos Coordenadores em
apresentarem tanto pesquisas de juristas nacionais renomados, como o
próprio homenageado, entre outros, quanto de autores integrantes dos
corpos docente e discente de diversas Instituições de Ensino Superior
brasileiras e estrangeira – Universidad Complutense de Madrid, em três
línguas português, inglês e espanhol.
Convidamos todos à leitura.

Rio de Janeiro, Maio de 2018.

Coordenação Geral
Claudia Ribeiro Pereira Nunes
Cleyson de Moraes Mello
Leonardo Rabelo
SUMÁRIO

Prefácio
André R. C. Fontes ......................................................................................... xvii
Palavras da Coordenação ..................................................................................... xix

Artigos
O Acordo sobre aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados
ao comércio – ADPIC (TRIPS) e os conhecimentos tradicionais
André R. C. Fontes ............................................................................................. 1
Overview of Patents on Pharmaceutical Active Ingredients and Other Active
Substances From Plants in the Light of Nagoya Protocol to CBD and the
Wto-Trips Framework
Cláudia Ribeiro Pereira Nunes, Fernando Gonzalez Botija e
Pedro D. Peralta ............................................................................................... 15
Nanotecnologia no Agronegócio: Aspectos de Tutela Constitucional-Ambien-
tal
Loreci Gottschalk Nolasco, Priscila Elise Alves Vasconcelos e
Nathália Alves de Oliveira .............................................................................. 27
El Estimulo Conductual (Nudge) como Instrumento de Concienciación de la
Mujer Ante el Aborto Clandestino
Claudia Ribeiro Pereira Nunes, Laura Dutra de Abreu e Pedro D. Peralta ... 43
Meio Ambiente e Cidadania: Desafios Contemporâneos
Reis Friede........................................................................................................ 57
Marco Legal da Regulamentação do Uso de Animais em Experimentação
Cientifica e Didática no Brasil
Luciana de França Oliveira Rodrigues, Henrique Lopes Dornelas e
Amanda Pessoa Parente ................................................................................... 69
Os limites impostos à autonomia privada no Direito Brasileiro: o paradoxal
convívio entre tutelas, indisponibilidades e liberdades individuais
Bárbara Gomes Lupetti Baptista e Daniel Navarro Puerari ........................... 85
O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e seus instrumentos urbanísticos
Vanderlei Martins e Marcos Paulo Sobreiro Pulvino ..................................... 101
A Luta pelo Reconhecimento da Criança e do Adolescente Transexual: Uma
Análise a Partir do Tratamento Hormonal
Cleyson de Moraes Mello e Laura Dutra de Abreu ....................................... 115
Educação Em Direitos Humanos
Fernanda Baldanza, Katia Eliane Santos Avelar e
Maria Geralda de Miranda ...........................................................................127
O Direito de Morrer no Pensamento de Steven Luper
Luiz Augusto Marca e Andréia Fernandes de Almeida ..................................145
O Neoconstitucionalismo na Perspectiva dos Direitos Fundamentais – Novas
Formas de se Interpretar a Ciência Jurídica
Marcilene Margarete Cavalcante Marques e Hector Luiz Martins Figueira.....161
Proteção dos Cetáceos em Perspectiva Nacional e Internacional visando Ga-
rantir a Sustentabilidade dos Oceanos Globalizados
Mery Chalfun, Erika Tavares e Rossana Fisciletti.........................................173
Caso Vladimir Herzog vs. Brasil: Uma Experiência na Corte Interamericana
de Direitos Humanos
Morgana Paiva Valim e Mariana de Freitas Rasga.......................................187
A evolução do poder judiciário nas constituições do Brasil: de coadjuvante a
protagonista
Carlos André Coutinho Teles e Fernando Rangel Alvarez dos Santos ............203
Biossegurança à Brasileira: Quimera legislativa subjugada ao princípio da
dignidade humana
Vanele Rocha Falcão César ............................................................................221
Servidores públicos civis e reformas previdenciárias: um caso privilegiado de
constituição dirigente invertida
Darleth Lousan do Nascimento Paixão e Nilton Rodrigues da Paixão Júnior....235
Tombamento entre a Eficácia Legal e as Modificações que Ocorrem no Bem
Irene Celina Brandão Felix ............................................................................253
Uma Análise Lógica da Lei Anticorrupção Frente à Lei de Improbidade
Administrativa
João Victor Tavares Galil e Fernando Rangel Alvarez dos Santos .................267
The Dark Side of Fashion: Uma Análise Empírica sobre o Trabalho Escravo
Contemporâneo na Indústria da Moda
Carla Sendon Ameijeiras Veloso, Larissa Pimentel Gonçalves Villar e
Hector Luiz Martins Figueira.........................................................................281
(Há) Ética na Delação Premiada (?)
Ana Paula Couto e Marco Couto ...................................................................293
O Processo Administrativo Tributário como Meio Facilitador do Acesso à
Justiça e Exercício da Ampla Defesa Diante das Decisões do Conselho de
Contribuintes da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Rosy Nery Guimarães e Marcilene Margarete Cavalcante Marques ............305
Direito ao lazer e dano existencial: reflexos nos direitos da personalidade do
trabalhador
Danielle Riegermann Ramos Damião e Jaqueline Nacata Garcia.................319
A Saúde em Juízo
Carlos José de Souza Guimarães.................................................................... 333
O Direito à Justa Memória para a Preservação da Dignidade Humana: Um
Novo Direito Fundamental
Armenia Cristina Dias Leonardi ................................................................... 341
O Sistema Proporcional e o Déficit de Cidadania no Brasil
Maurício Pires Guedes e Gabriela do Amaral Rezende................................. 351
Os Contratos nas Técnicas de Reprodução Assistida
Beatriz Capanema Young ............................................................................... 367
O Princípio da Imparcialidade como Garantia do Devido Processo Legal
Gisela Vasconcelos Esposel ............................................................................. 383
A Cooperação Dolosamente Distinta e sua Aplicabilidade no Delito de Latro-
cínio
Fabio Asty Dantas .......................................................................................... 395
Os Direitos Autorais analisados sob a perspectiva da era digital: O comparti-
lhamento nas redes sociais de obras fotográficas
Maria Cecília Mendonça Velez...................................................................... 407
A Função Social das Relações Contratuais
Fernando Ferreira Pascoal.............................................................................. 419
O Acordo sobre aspectos dos direitos de
propriedade intelectual relacionados ao
comércio – ADPIC (TRIPS) e
os conhecimentos tradicionais

André R. C. Fontes

Resumo: O texto relaciona os efeitos do Acordo sobre aspectos dos di-


reitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio – ADPIC
(TRIPS) com os conhecimentos tradicionais, culturas tradicionais e saberes
locais.

Palavras-chave: saber – local – práticas.

Summary: The text relates the effects of the Agreement on Trade-Re-


lated Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS) to traditional knowl-
edge, traditional cultures, and local know-how.

Key Words: knowledge – local – practices.

Aspectos do ADPIC (TRIPs)

O corte cardinal distintivo que expressa a essência da propriedade inte-


lectual na economia e comércio mundial está na aplicação do Acordo sobre
aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio,
o ADPIC, mais conhecido internacionalmente na versão em inglês TRIPS.
O ADPIC é ligado ao instituto da Organização Mundial do Comércio
(OMC), vinculando todos os Estados aderentes ao acordo principal. Foi
subscrito em 14 de abril de 1995 em Marraquexe, mas esse acordo não foi
suficiente para sua entrada em vigor no Brasil. Ao seguir o sistema dualista
dos tratados, a sistemática brasileira não admite a suficiência do tratado sem
uma intronização legislativa, que se deu com o Decreto Legislativo 30, de
15.12.1994, publicado no Diário Oficial da União de 19 de dezembro do
mesmo ano que o Brasil promulgou o Acordo sobre aspectos dos direitos de
propriedade intelectual relacionados ao comércio, o ADPIC e que trouxe

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como o prazo fatal para implantação de um sistema normativo que ampliasse
e intensificasse a proteção da propriedade intelectual, no ano de 2000.
Por tal acordo criou-se um regime internacional da propriedade intelec-
tual que afiança e integra o regime internacional criado pelas convenções já
existentes, sendo que se orienta pelos trabalhos de revisão da Convenção de
Paris. O ADPIC prevê um princípio que obriga os Estados aderentes a dar
aos nacionais dos outros Estados aderentes o mesmo tratamento, em maté-
ria de propriedade intelectual, reservado aos próprios nacionais. Estabelece
um nível de proteção mínima que cada Estado aderente deve adotar em ma-
téria de propriedade intelectual. É nesse acordo internacional que se estriba
todo o trabalho realizado entre os mais diversos países que o integram como
parte orgânica do processo comercial único nos diversos níveis das relações
de trocas em todo o mundo.
Na esfera acadêmica, esse acordo provocou um crescente interesse na
sua indeclinável aplicação, e tem gerado um grau de polêmica proporcional
aos estudos e debates a respeito de suas múltiplas e versáteis cláusulas. E o
principal interesse dos estudos do ADPIC (TRIPS) vai muito além das ques-
tões de propriedade intelectual, pois o acordo também tinha por objeto a
realização de investimentos, a imposição de deveres dos diversos países de
alterar suas legislações internas e, ainda, uma peculiar forma de ampliação e
introdução do Common Law em todo o mundo.
Inerente às formas de sua aplicação é o trabalho de diplomatas e analis-
tas que decidem concretamente sua realização diante das naturais tensões e
conflitos que sua execução provoca. E essas tensões são objeto de inúmeras
análises, que culminam ordinariamente na provocação dos membros dos va-
riados comitês da Organização Mundial do Comércio, a OMC.
O mais importante dos acordos internacionais relacionados à proprieda-
de intelectual, embora a ela não se limite, o Acordo sobre aspectos dos di-
reitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio – ADPIC
(TRIPs), resulta da conhecida Rodada Uruguai de Negociações Comerciais
Multilarerais do Acordo Geral de Tarifas e Comércio, igualmente conheci-
do pelo acrônimo anglófono GATT, que provocou as discussões ao longo de
oito anos. A primeira rodada de negociações tarifárias foi realizada em Ge-
nebra, em 1947. E em 1948, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio
(GATT) entrou em vigor e estabeleceu regras para o comércio internacio-
nal. Para um acordo e uma organização provisória, teve uma longa duração:
47 anos!
A realização do intento de criar uma instituição para regular a atividade
e a cooperação econômica internacional surgiu após a Segunda Guerra Mun-
dial, devido ao interesse na época em estimular e incrementar o comércio
entre as nações, embora já desde a década de 1930 já se promovessem a di-
minuição das barreiras alfandegárias e de medidas protecionistas para as
condições de aumento dos negócios entre os países.
Na edificação do GATT, criado para ser um acordo provisório, muitas
transformações ocorreram, e ele não ficou reduzido a uma letra morta, mas,

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ao contrário, na qualidade de importante instrumento mundial de orienta-
ção dos negócios entre países, contribuiu para que se estabelecessem regras
para o comércio internacional desde seu início, em 1948, até 1995, ocasião
em que surgiu a Organização Mundial do Comércio, a OMC. Os êxitos al-
cançados pelo GATT e pela OMC assumiram papéis distintos e, de certa
forma, sucessivos, embora aperfeiçoados. Se com o GATT foram tão signi-
ficativos os resultados decorrentes de um simples acordo firmado com o ob-
jetivo inicial de regular o comércio mundial, a Organização Mundial do Co-
mércio surge como um organismo político concreto, definido a partir do que
o representou do GATT e, longe de significar algo ex novo, que rompesse
com o passado vencido e superado, sublinha a maneira disciplinada pelo
GATT e vai além, mas sempre de forma a consolidá-lo e dar-lhe apoio e apli-
cação. Ao firmarem o GATT, concordaram seus redatores na aplicação das
novas regras, ainda que em caráter provisório. Note-se que esse acordo exi-
giu que muitos representantes dos governos tivessem que se reunir com cer-
ta frequência para examinar as questões que surgiam, além de tratar de ou-
tras e novas discussões para futuras negociações e acordos. De maneira que
a criação de um órgão se fez necessária, para abrigar os serviços de secretaria
e sediar o encontro dos representantes. Tendo durado meio século, o GATT
deixou de existir e deu lugar à OMC, não obstante, ainda hoje, suas disposi-
ções como acordo continuem em vigor, sem obviamente ser o principal con-
junto de normas reguladoras do comércio internacional.
A assimilação permanente do Acordo (GATT) provocou vários ciclos de
discussões multilaterais com os Estados-partes da Convenção de Paris. Essa
convenção, datada de 1883, denominada oficialmente de Convenção da
União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial, e propunha aos
países-membros, de acordo com sua legislação interna, elaborassem um sis-
tema capaz de proteger a propriedade intelectual. Nessa convenção é que
foram estabelecidos os princípios básicos, tão difundidos, do princípio do
tratamento nacional, o princípio da prioridade, o princípio da inde-
pendência das patentes, o princípio da repressão ao abuso do direito de pa-
tente. Segundo o princípio do tratamento nacional, aos estrangeiros estaria
garantido o mesmo tratamento reservado aos nacionais em matéria de pro-
priedade industrial. Pelo princípio da prioridade, o inventor tinha um prazo
de um ano de preferência sobre a sua invenção, caso não tivesse realizado o
pedido de depósito em outro país. Pelo princípio da independência das pa-
tentes, deve ser considerado que cada patente é independente de outra con-
cedida em outro país, como dispõe o artigo 4º-bis. Pelo princípio da repres-
são ao abuso do direito de patente, fica assegurado o direito de importação
do produto patenteado, sem acarretar a caducidade para o detentor da pa-
tente, mas para que esse não abuse do seu direito frente às necessidades na-
cionais.
A Convenção de Paris não apresentou um caráter de obrigatoriedade,
tanto que permitia a renúncia a qualquer tempo como também a adesão em
qualquer hora, dependendo do interesse do Estado em participar ou não. Já

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Acordo TRIPS rompe com a possibilidade de opção dos países signatários.
Essa adesão não é voluntária, já que impõe a cada um a obrigatoriedade de
adoção das medidas especificadas para a proteção da propriedade intelec-
tual. E embora não possua uma aplicabilidade direta sobre os países, estabe-
lece parâmetros mínimos a serem respeitados para a elaboração das leis na-
cionais.
De outro lado, o ADPIC (TRIPS) se conflita com as disposições com um
outro tratado internacional, a Convenção sobre a diversidade biológica, mais
conhecida pelo acrônimo CDB. A solução dos litígios relativos às conven-
ções impostas pelo CDB tem conduzido os litígios entre o ADPIC (TRIPS)
e a CDB a uma apreciação pelos membros do Comitê sobre Comércio e
Ambiente da Organização Mundial do Comércio, além de um próprio e es-
pecífico debate entre os membros da CDB.

Dos conhecimentos Tradicionais

Parece simples e evidente uma afirmação de que os conhecimentos tra-


dicionais se acham em condições de risco diante de um variado número de
ameaças que a eles se destinam. Uma porção significativa das florestas e do
habitat das populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas é envolvida com
uma combinação de devastação de florestas, ampliação das áreas urbanas,
represas, mineração e novas áreas de plantio. O fato é que a perda de recur-
sos e do habitat dos povos há desfeito o contexto social e ecológico que as
comunidades tradicionais utilizam nos seus conhecimentos. E isso abala a
capacidade de conservação e de utilização desses conhecimentos.
Em diversos países em desenvolvimento, os conhecimentos tradicionais
do setor agrícola, por exemplo, foram transformados em novos campos de
produção agrícola e de monocultura alinhados aos chamados agronegócios.
Além disso, sementes híbridas, fertilizantes químicos, pesticidas e irrigação
substituíram o tradicional sistema de cultivo baseado na diversidade de
plantio pela variedade de sementes. Esse novo comportamento acompanha
a progressiva destruição dos conhecimentos tradicionais.
Em alguns países ocorre também a crescente tendência de migração do
ambiente rural para aquele urbano. A imigração da população faz com que
os jovens em especial, venham a desfazer o núcleo de recursos humanos ne-
cessário à transmissão e à constante prática dos conhecimentos tradicionais.
O mais complexo grupo de problemas para o futuro dos conhecimentos
tradicionais é constituído pela apropriação indébita real e potencial desses
conhecimentos, em prejuízo das comunidades locais e das populações au-
tóctones que deveriam ser seus únicos e legítimos titulares.
Na maior parte dos países que hospedam sistemas tradicionais, não exis-
te um regime de propriedade privada dos conhecimentos ligados à biodiver-
sidade peculiar para o cultivo agrícola, da pesca e das plantas medicinais.
Com efeito, nos casos em que há uma propriedade privada da terra ou a de-

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marcação dos direitos para as diversas comunidades no interior das florestas,
as populações indígenas e as comunidades locais têm o poder geralmente co-
letivo dos conhecimentos utilizados para sementes e plantas medicinais e
das técnicas de produção, de colheita e de conservação e têm, além disso, o
compartilhamento das sementes e dos materiais genéticos. Além disso, os
melhoramentos relacionados às variedades das sementes e de outras inova-
ções são transmitidos de agricultores a agricultores e passam para outras co-
munidades. Há um verdadeiro livre acesso aos materiais genéticos, aos co-
nhecimentos e às inovações, se bem que, naturalmente, os materiais atuais,
como sementes e as plantas podem ser comercializados.
Esse sistema de inovação cooperativa e de compartilhamento comunitá-
rio vem naturalmente desafiando o novo sistema de direitos vinculados aos
conhecimentos representados pelo regime dos direitos de propriedade inte-
lectual e do ADPIC (TRIPS), que, neste momento, obriga os países mem-
bros da OMPI a escolher entre os sistemas de direitos que querem instituir
em relação aos recursos biológicos. De outro lado, se um país chegasse a ins-
tituir um sistema legislativo que confrontasse o atual regime em vigor, aca-
baria por facilitar a apropriação indevida dos direitos ligados aos conheci-
mentos das comunidades locais.
Tais poderes cederiam diante de moderno sistema de propriedade inte-
lectual e isso induziria, naturalmente, uma aplicação ampla de direitos de
propriedade intelectual sobre os conhecimentos e os recursos e distorceria,
a favor dos grandes laboratórios ou instituições de pesquisa, em detrimento
das comunidades locais, além de tornar impossível o processo de obtenção
dos direitos de que seriam titulares.
A apreciação da temática dos conhecimentos tradicionais frente a esses
desafios de ordem internacional não é menor que aqueles relacionados à
ciência moderna, a despeito das relações próximas entre um e outro. A ex-
periência tem mostrado que os conhecimentos tradicionais estão associados
a uma temática diferenciada de certo grupo (ou grupos) que personifica prá-
ticas, valores e regras comunitárias próprias, em cuja dimensão se manejam
esses conhecimentos por todo ou parte do grupo.
Não ter o grupo, em sua totalidade, o conhecimento tradicional, pode
significar que a dimensão coletiva do grupo seja de benefícios desses conhe-
cimentos, mas não seja que todo o grupo tenha acesso ou ainda seja produtor
desse conhecimento. A falta de um manejo generalizado faz com que esses
conhecimentos não sejam do grupo, mas de parte do grupo, e, portanto, não
tenham uma dimensão coletiva. Essa falta de caráter coletivo poderia signi-
ficar para alguns não se tratar de conhecimentos tradicionais, mas privativos
de um número reduzido de pessoas. Nessa particular forma de descaracteri-
zação, assim como a ciência é produzida por poucos e depois privatizada pe-
los poucos que a conhecem, esse conhecimento haveria de ser patenteado
ou submetido a um regime análogo. Em oposição aos adeptos da proteção
dos conhecimentos tradicionais, esses mais restritos pertencem a um grupo,
tanto como pertencem os conhecimentos científicos hauridos pelos cientis-

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tas, tal como o sistema de patentes o preconiza, de modo que não haveria
que se distinguir os conhecimentos tradicionais daqueles que a sociedade
moderna produz com sua tecnologia.
Entre a variedade de estudos das comunidades tradicionais, portanto,
aquelas que destacam elementos do grupo dotados de capacidade de produ-
zir e utilizar conhecimento, toda atenção dispensada pelos estudiosos não
teria sentido, já que essas em nada difeririam da sociedade moderna que re-
conhece que um grupo somente teria a remuneração pelo que produziu.
Consideram, ainda, que o recurso das patentes ainda seria mais justo porque
limitaria no tempo o jus excludendi do titular.
A sistemática da oralidade, própria das comunidades tradicionais não se-
ria, a rigor, um impedimento, se contrastada com a forma escrita exclusiva
da sociedade moderna. É que em ambas as situações o conhecimento é man-
tido, a despeito de apenas não utilizar uma forma comum. No fundo, a ca-
pacidade de transmissão de um (tradicional) e outro (moderno) retiraria
qualquer dúvida de virtude de transmissibilidade do conhecimento, o que
faria com que ambos fossem devidamente tratados de uma só forma no re-
gime tutelar.
Ao se intensificar os embates entre a perspectiva da ciência moderna e
dos conhecimentos tradicionais, não se deve olvidar que a ciência moderna
se beneficia e se enriquece com seu caráter expansivo, tanto no campo eco-
nômico como jurídico e político. Além disso, a pretensão da ciência moder-
na de ser universal e de conduzir a uma metodologia confiável para se chegar
a verdade, reduziria os conhecimentos tradicionais a um plano inferior ou
secundário.
Abatidos por tantos anos de resistência e reação, os conhecimentos tra-
dicionais passaram a ser considerados algo de cunho marginal, dentro da
ciência moderna, atávico na sistemática econômica mundial e não jurídica
pelos estudiosos do Direito. A acusação de falhas, ineficiência e obscurantis-
mo à medida que caminha a ciência moderna, desvaloriza os conhecimentos
tradicionais porque estão fora da maneira moderna de fazer ciência, com ex-
perimento e observação, de reduzi-la a um papel acidental em um mundo
civilizado, de mera crendice em um mundo de religião, de mera prática em
um mundo de ciência, de uma expressão cultural não qualificada juridica-
mente.
O conteúdo de coesão da coletividade produtora dos conhecimentos
tradicionais não resulta de uma só chave: ele é complexo e variado. A rigor,
ele só se faz possível pela atividade do próprio subsistema na qual é integra-
do. Atributo inseparável das comunidades é o contexto histórico ou biofísi-
co no qual estão instaladas e que as obriga, por determinada necessidade, a
desenvolver tecnologias particulares, que se constituem em tradições pró-
prias. Outro aspecto da função social integrante está ligado ao povo ou ao
grupo social que é integrante que forma um sistema ou subsistema da qual
depende toda a estrutura formadora dos conhecimentos tradicionais.

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Como já se demonstrou, o plano da ciência moderna está relacionado a
uma rede internacional progressiva e em expansão, na qual a produção do
conhecimento é financiada por altas quantidades de capital para fomentar o
desenvolvimento tecnológico e o crescimento econômico em grande escala
das companhias multinacionais. Por um lado, essa ciência nova e moderna
tende a dominar os espaços e contribuir decisivamente para o desenvolvi-
mento da medicina, da agricultura e da energia, por outro, atropela essa tec-
nociência as (etno)ciências que se produzem nos distintos cantos do mundo.
Na estrutura e dinâmica da organização das comunidades tradicionais,
exige-se, de maneira clara e direta, interação dos elementos dos diferentes
subsistemas do grupo com os demais elementos de sua organização social
propriamente dita, e em pé de igualdade uma mútua relação dos últimos en-
tre si. Como objeto de um próprio regime de análise apresenta bases consi-
deráveis de complexidade e necessita de uma epistemologia especial.
Uma epistemologia própria e um lugar específico de utilização são os
elementos autossustentáveis que formam nos grupos sociais os pontos de
sistematização do conhecimento do seu modo de vida. Essa forma coletiva é
em nível inferior a estrutura organizativa que mantém o seu modo de vida e
que constitui o marco de como funciona um conhecimento bastante com-
pleto para as suas necessidades, mesmo que estivessem em contato com ou-
tros grupos.
Como se disse anteriormente, a introdução dos feitos da ciência e da
técnica conduziu a verdadeiras revoluções na vida moderna e isso impulsio-
nou a tecnociência. Desapareceram limitações que hoje já não se justifica-
riam, mas, acima de tudo, deu um grau de universalidade na expansão do
conhecimento moderno para muito além dos limites até então conhecidos e
estabelecidos. Mudaram as estruturas de organização e formação do conhe-
cimento, com a intensificação de todos os aspectos da vida. Congressos e se-
minários científicos internacionais não mais se limitam a integrantes euro-
peus, japoneses e norte-americanos. O rol hoje inclui israelenses, indianos,
coreanos, chineses, vietnamitas e brasileiros. Desenvolvem-se temas técni-
cos e científicos a despeito das diferentes culturas que se apresentam.
Todos os critérios de eficácia, entretanto, tornam impossível achar que
entre eles haja de fato uma paridade universalizante. A homogeneidade apa-
rente não afasta a triste e enganosa realidade de que existem verdadeira-
mente hegemonias políticas e econômicas que não devem ser desconsidera-
das, nem mesmo nas relações propriamente científicas. Tais como as com-
panhias multinacionais que titularizam o conhecimento, a tecnologia mo-
derna tem suas bases não nos interesses gerais dos seres humanos, mas, ao
contrário, representa interesses locais e de grupos que têm sido globalizados
mediante o poder e o fim de sua influência.
A pertença de marcantes contrastes e embates não desvia a perspectiva
das muitas semelhanças entre a ciência moderna e os sistemas de conheci-
mentos tradicionais, ao menos se partirmos do entendimento com uma cer-
ta ciência formada com um conjunto organizado de conhecimentos relativos

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a um determinado objeto, especialmente obtidos mediante a observação, a
experiência dos fatos e de um método próprio. Isso supõe que os sistemas
de conhecimentos tradicionais estejam dentro da categoria da ciência ou
que exista uma maneira variada de fazer ciência, cada uma com seus méto-
dos e finalidades próprias.
As diferenças das formas de fazer ciência, seja classificada como moder-
na ou tradicional, são dinâmicas que já mudam constantemente para se
adaptarem a novas situações sociais e contextos biofísicos diferentes. Uma
coisa é necessária: desfazer a noção muito difundida, mas equivocada, de
que os sistemas de conhecimento tradicional somente fazem referência ao
passado. O influxo dessa diferença é que, portanto, somente podem ser pre-
servados ou resgatados. Ignora-se que todas as tradições do conhecimento
estão in processu, e que a constância no aperfeiçoamento é tanto como foi a
sua formação. E isso se explica porque, ao menos com base em fatores ex-
ternos, como mudanças ambientais ou geopolíticas as modificações internas
nas suas instituições sociais e necessidades pela adaptação se fariam neces-
sárias.
Essas premissas têm um importante significado metodológico para a
análise das comunidades coletivas, se, como corolário desse entendimento,
a equiparação corriqueira entre o moderno e o contemporâneo, por um
lado, e entre o tradicional e o anacrônico, por outro, também se sustentasse.
Exige-se diferenciar as linhas de pensamento na sua análise de artifícios do
tempo no discurso antropocêntrico, constantes na premissa de que os exis-
tentes sistemas de conhecimento tradicional são coevos da ciência moderna
e não simplesmente vestígios de um tempo remoto desvinculado do mundo
contemporâneo. A composição dessas ideias significaria que os conhecimen-
tos tradicionais poderiam ser considerados tão modernos quanto a chamada
ciência moderna, o que levaria a que os conhecimentos tradicionais atual-
mente utilizados, por exemplo, pelos caiapós, pelos caingangues ou pelos ka-
xinawá pertencem ao século XXI tanto quanto a ciência moderna.
De tal maneira, ao se analisar os sistemas de conhecimentos tradicionais
verifica-se que surgem e operam dentro de seus respectivos processos histó-
ricos. Sob essa perspectiva, todo conhecimento haveria de ser tradicional, já
que pertenceria a uma específica tradição. Se se toma o conhecimento tra-
dicional de um povo indígena pode-se inserir em uma tradição milenar da
mesma maneira que a ciência moderna apela para Hipócrates, Arquimedes,
Bacon ou Newton, tal como mostram os historiadores da ciência.
Isso exige destacar que, com o surgimento da linha de pesquisa dos es-
tudos da ciência, sociológicos, antropológicos começaram a fazer pesquisas
etnográficas em laboratórios científicos, demonstrando que a ciência mo-
derna é passível de ser estudada dentro da própria tradição, tal como se faz
com qualquer outro sistema de conhecimento. E os nativos dessas pesquisas
já não são índios ou os camponeses, mas os bioquímicos, ou físicos nucleares
ou qualquer outro tipo de cientista.

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A importância vital desses estudos levantou novos entendimentos sobre
os mecanismos sociais, políticos, econômicos e rituais inerentes à confecção
dos fatos científicos.

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13
Overview of patents on pharmaceutical active
ingredients and other active substances from
plants in the light of nagoya protocol to CBD
and the wto-trips framework1

Cláudia Ribeiro Pereira Nunes


Fernando Gonzalez Botija
Pedro D. Peralta

Abstract: The research explores the need, from Brazilian and other bio-
diversity-rich areas, of promoting a set of specific laws to regulate the pat-
ent granting regime and other equivalent rights arising from Traditional
Knowledge, according international recognised principles of Sustainable
Development and Good Governance Practices. On the other side, the
European Union has endorsed the Nagoya Protocol, by Council Decision
2014/283/ EC and Regulation (EU) 511/2014 with the aims of safeguard-
ing of the legitimate rights of traditional societies of origin through the ob-
ligation of guarantee its fair use, as evidenced by internationally recognised
certificates of conformity or reliable equivalent evidence. The research then
briefly examines examples of comparative law and exposes the legal analysis
of patent legal regimas source of international obligations.

Keywords: Patent; Benefit Sharing; Bioprospection Sustainable Devel-


opment.

Resumo: A pesquisa explora a necessidade, do Brasil e outras áreas ricas


em biodiversidade, de promover um conjunto de leis específicas a regulação
do regime de concessão de patentes e outros direitos equivalentes decorren-
tes do Conhecimento Tradicional, de acordo com os princípios reconheci-
dos internacionalmente de Desenvolvimento Sustentável e das BoasPráticas
e Governança. Por outro lado, a União Europeia já aprovou o Protocolo de
Nagoya, pela Decisão 2014/283/CE do Conselho e pelo Regulamento (UE)

1 This reseach has presented on the ATINER Conference, on Athenas — Greece, on


July/2017.

15
511/2014, com o objetivo de salvaguardar os direitos legítimos das so-
ciedades tradicionais de origem através da obrigação de garantir seu uso
justo, como comprovado por certificados de conformidade internacional-
mente reconhecidos ou provas equivalentes confiáveis. A pesquisa examina,
brevemente,os exemplos de leis comparadas e expõe a análise legal de re-
gimes legais de patentes como fonte de obrigações internacionais.

Palavras-chave: patente; Compartilhamento de benefícios; Biopros-


pecção Desenvolvimento Sustentável.

INTRODUCTION

The process of globalisation has intensified international trade relations,


culminating with the application of Convention of Biological Diversity
(CBD) and in particular its Nagoya Protocol, on Access to Genetic Re-
sources and the Fair and Equitable Sharing of Benefits Arising from their
Utilisation (ABS Protocol), in respect to the protection of Traditional
Knowledge (TK) is challenged by different issues concerning the fair bio-
prospection of resources. In addition, the economic global crisis in past
years has limited the availability of institutional resources intended to cop-
ing with the general goals of protect the natural heritage and promote its
profitable use. In this context, some interested their parts have got patents
on active substances from botanicals growing in natural forests, (such as the
Amazon Rainforest) which have long been used by indigenous people and
subsequently marketed. It justifies the importance of understanding the le-
gal framework through the analysis of patent case studies under Interna-
tional Law, with a view on the academic discussion of the role of Traditional
Knowledge as source of international obligations.
Reactions to the risk of unfair use of TK resources from not regulated
bioprospecting has led developing countries to deepen the research on bo-
tanicals, by allocating funds for research addressed to verify the “prior art”
or proof of previous knowledge. That prior art is a preliminary legal require-
ment for successfully revoking a newly claimed patent according to the Pat-
ent rules. The Indian government have made wide use of this tool after suc-
cessfully challenged the patents previously granted to a wound healing
preparation made from turmeric (Curcuma longa). The role played after-
wards by Indian researchers, to prevent unfair use of their traditional re-
sources by providing the abovementioned evidence of “prior art” has be-
come a solid basis for further enhancing the oversight systems in charge of
natural heritage. Other, as Peru or China, faces now the potential risks of
bio piracy with a better knowledge also of their TK resources.
Although the WTO – World Trade Organisation – provides a legal fo-
rum for challenging trade issues through the TRIPS agreement, the institu-
tion has been considered so far as a promoter of the rights of patent-holders.
Therefore, this analysis included several related case-studies of interna-

16
tional dimension with the general aim of cover: (i) the economic analysis by
using framing model; and (ii) the legal analysis of corporate patents granted
and its challenging mechanisms.
The fair use of TK resources, as evidenced by internationally recognised
certificates of conformity or reliable comparable evidence, requires from
operators to ensure compliance with the rights and obligations under the
ABS Protocol, which is challenged in the practice by the different approach
on the control measures for the fair bioprospection of resources, in differ-
ent concerned countries. Other countries have not yet proceeded with an
effective implementation of the Nagoya ABS Protocol. Among them, Brazil
postpones still the direct application of The Cartagena Protocol on
Biosafety to the Convention on Biological Diversity (CBD) and the ABS
Protocol itself, in respect to the protection of Traditional Knowledge (TK).
Concerning the Nagoya Protocol, on spite of being signed on 2 February
2011 on behalf of Brazilian authorities, it has not still been formally ratified.
This review justifies the interests on understanding the legal framework
of the protection of TK through the revision of case studies since Interna-
tional Law does not yet unanimous recognise the value of protecting er-
gaomnes the Indigenous Knowledge as a Global commons.
The EU has endorsed the Nagoya Protocol, by Council Decision
2014/283/EC of 14 April 2014 and R 511/2014 of 16 April 14 with aims of
safeguarding of the legitimate rights of traditional societies of origin through
the obligation to guarantee Its fair use, as evidenced by internationally rec-
ognised certificates of conformity or reliable equivalent evidence aimed to
ensure the rights and obligations established under the Protocol.
This study is a work from Research Project: Economic development,
globalisation and sustainability.
The value of Indigenous Knowledge as a Traditional Knowledge (TK) to
the Sustainable Development on the agenda 2030.

Many of the Sustainable Development Goals and associated targets are rele-
vant for indigenous peoples. The Agenda 2030 for Sustainable Development
covers several issues that directly affect the lives of indigenous peoples. Lack
of access to relevant education and equitable justice, extreme poverty, and un-
mitigated climate change are just some of the challenges facing indigenous peo-
ples. The overarching framework of the 2030 Agenda contains numerous ele-
ments that can go towards articulating the development concerns of indige-
nous peoples.

Of special significance is the fact that human rights principles and


standards are strongly reflected in the 2030 Agenda (A/RES/70/1 para-
graph 10). Moreover, the 2030 Agenda overall focus on reducing inequali-
ties is of particular relevance to indigenous peoples, who are almost univer-
sally in situations of disadvantage vis-à-vis other segments of the population.
One of this is to improve the obtaining patents on pharmaceutical active
ingredients and other active substances from plants (A/RES/70/1 paragraph
15).

17
If not, practical solutions are quickly found, there will be negative con-
sequences both for the survival of these populations and for their valuable
knowledge systems. It is therefore vital that the international community
begin to recognise indigenous communities as valuable partners in efforts to
reduce climate change and sustainable development.

1. CHALLENGES OF THE VALUE OF INDIGENOUS


KNOWLEDGE ON XXI CENTURY

The Nagoya Protocol sets out core obligations for its contracting Parties
to take measures in relation to access to genetic resources, benefit-sharing
and compliance.

A) Access obligations

Domestic-level access measures are to:

 Create legal certainty, clarity and transparency


 Provide fair and non-arbitrary rules and procedures
 Establish clear rules and procedures for prior informed consent and mutually
agreed terms
 Provide for issuance of a permit or equivalent when access is granted
 Create conditions to promote and encourage research contributing to biodi-
versity conservation and sustainable use
 Pay due regard to cases of present or imminent emergencies that threaten
human, animal or plant health
 Consider the importance of genetic resources for food and agriculture for
food security.

B) Benefit-sharing obligations

Benefit-sharing measures may be monetary or non-monetary such as-


royalties and the sharing of research results and are to provide for the fair
and equitable sharing of benefits arising from the utilisation of genetic re-
sources with the contracting party providing genetic resources. Utilisation
includes research and development on the genetic or biochemical composi-
tion of genetic resources, as well as subsequent applications and commer-
cialisation. Sharing is subject to mutually agreed terms.

C) Compliance obligations

Specific obligations to support compliance with the domestic legislation


or regulatory requirements of the contracting party providing genetic re-
sources, and contractual obligations reflected in mutually agreed terms, are
a significant innovation of the Nagoya Protocol. Contracting Parties are to:

18
 Take measures providing that genetic resources utilised within their jurisdic-
tion have been accessed in accordance with prior informed consent, and that
mutually agreed terms have been established, as required by another contrac-
ting party
 Cooperate in cases of alleged violation of another contracting party’s require-
ments
 Encourage contractual provisions on dispute resolution in mutually agreed
terms
 Ensure an opportunity is available to seek recourse under their legal systems
when disputes arise from mutually agreed terms
 Take measures regarding access to justice
 Take measures to monitor the utilisation of genetic resources after they leave
a country including by designating effective checkpoints at any stage of the
value-chain: research, development, innovation, pre-commercialisation or
commercialisation.

Nagoya Protocol to CDB is an imperative that begin to empower indige-


nous peoples to defend Traditional Knowledge (TK) and realise their rights
and to be included in decision-making processes for global common future,
and in turn, to be active agents of change to help with the goals of the Sus-
tainable Development on the Agenda 2030.

2 KEY CASES IN PATENT LAW AND PROTECTION OF


BIODIVERSITY

The case of patent on Turmeric (Curcuma longa) and Neem tree were
two of the main milestones for protecting TK through Patent legal mecha-
nisms. In the first case study, the US patent 5401504 was awarded to the
University of Mississippi Medical Centre in March 1995 for the use of pow-
dered turmeric as an agent for wound healing. The patent was revoked suc-
cessfully since the features of curcuma (C. longa) in India have been known
for centuries as revealed in the Indian Council for Scientific and Industrial
Research (CSIR) The use of powdered curcuma is registered among the in-
dications of the pharmacopoeia hindu and thus did not have the alleged nov-
elty.
The case of patent Neem tree oil was solved with the revocation, pro-
moted before the European Patent Office (EPO) granted a patent to the
US institutions (pat. EPO 436257) for implementing the fungicide of the
oil obtained from AzadirachtaIndica A. Juss. (Neem tree). In the revocation
process, a panel of EPO ruled that the patent claimed was the subject of
allocation prior unlawful (bio piracy) and the allegedly innovative process
for which was requested was documented and used in India since time im-
memorial. From Neem tree are obtained, inter alia, pesticides and other
biochemical compounds of natural interest such as azadirachtina, used as a
basis for insect repellents in India, anti-mould, cosmetic and soap.

19
Other case studies refer to Latin America indigenous crop resources
which has been subject of fair or unfair bioprospection: Quinoa, Stevia,
Maca (Lepidiummeyenii). Camu-camu (Myrciariaspp) Inchi. (Plukenetia-
volubilis, Ayahuasca (Banisteriopsiscaapi) Sangre de drago (Croton chu-
rutensis.) Nuez de Corazon Verde. Rupunina (Ocotearodiei), Cupuacu,
Cunanini, Acay palm, (widely cultivated in the northeast of Brazil,) Curare
or Quebra-pedras, Achiote, Seje. Paico (Chenopodium ambrosioides),
Yarumo (Cecropiapeltata).
Other case study was ayahuasca, a woody vine from the Amazonian rain
forest, is traditionally used by to create a hallucinogenic drink. As an impor-
tant part of the indigenous culture, these drinks are used for ceremonial and
spiritual purposes. According to Tupper, in 1986, Loren Miller was granted
a patent by the United States government for “Da Vine” new variety of the
ayahuasca plant, which he had been cultivating. Nevertheless, Miller had
found the plant within the Amazon rainforest but since not indigenous com-
munity claim any valid patent for the plant, the USPTO, the United States
Patent and Trademark Office grant finally the patent. The Coalition for
Amazonian Peoples and their Environment (Amazon Coalition) and the Co-
ordinating Body of Indigenous Organisations of the Amazon Basin
(COICA), challenged the patent and ask for a re-examination of patent,
claiming that the patent did not meet the requirements of the US Plant Pat-
ent Act on the basis that “Da Vine” had been previously cultivated and that
the patent violates the United States morality and public policy aspects of
the Act (Tupper, 2009). The United States government did remove
Miller’s patent because the same variety was found in Chicago’s Field Mu-
seum. Lately, in 2001, Miller submitted new evidence U.S. government’s
decision and a reinstatement of the “Da Vine” patent.

3 INDIGENOUS KNOWLEDGE IN THE WTO-TRIPS FRAME-


WORK PATENT RELATED: CHALLENGES AND CASE STUDIES

Concerning the protection of Biodiversity, Art. 27.3b of TRIPS deals


with patentability or non-patentability of plant and animal inventions, and
the protection of plant varieties in line with Paragraph 19 of the 2001 Doha
Declaration. The relationship between the TRIPS Agreement and the UN
Convention on Biological Diversity, the protection of traditional knowledge
and folklore (CBD) has been a topic on discussion guided by the TRIPS
Agreement’s objectives (Article 7) and principles (Article 8).
In May 2008 Brazil, China, Colombia and other countries submitted a
declaration Members agree to the inclusion in the TRIPS Agreement of a
mandatory requirement for the disclosure of origin of biological resources
and/or associated traditional knowledge in patent applications, by the pro-
posal of a new Art. 29bis – Disclosure of Origin of Genetic Resources
and/or Associated Traditional Knowledge.

20
The EU Framework

Regulation (EU) No 511/2014 of the European Parliament and of the


Council of 16 April 2014, on compliance measures for users from the
Nagoya Protocol on Access to Genetic Resources and the Fair and Equitable
Sharing of Benefits Arising from their Utilisation in the Union, establishes
at Recital (2) that the Nagoya Protocol to the Convention on Biological Di-
versity, “is an international treaty adopted on 29 October 2010 by the Par-
ties to the Convention recognises that states have sovereign rights over
natural resources found within their”.
The EU Member states has adopted into the Patent regimen the provi-
sions set up in the R(EU) No 511/2014. The new Spanish Patent Law (Law
24/2015) which entered into force the 1st April 2017 establishes in Art.
23.2, Obligations resulting from the implementation of the Nagoya Proto-
col, that the law requires the protection of legitimate rights of traditional
societies, through the obligation to ensure their fair use by means of inter-
nationally recognised certificates attesting the compliance with rights and
obligations or the Protocol. Where the invention concerns biological mate-
rial of plant or animal origin, the application shall contain the indication of
their geographical origin or the source of that matter whether these data are
known. This information does not prejudice the validity of patent.
The patent application must also contain, to the extent required by law,
the information to the users of those resources are required. That informa-
tion shall also not prejudice the validity of the patent
According to Art. 3.11 of Regulation (EU) 511/2014, the “internation-
ally recognised certificate of compliance”: is a permit or its equivalent is-
sued at the time of access as evidence that the genetic resource it covers has
been accessed in accordance with the decision to grant prior informed con-
sent, and that mutually agreed terms have been established for the user and
the utilisation specified therein by a competent authority in accordance
with Article 6(3)(e) and Article 13(2) of the Nagoya Protocol, that is made
available to the Access and Benefit-sharing Clearing House established un-
der Article 14(1) of that Protocol”
The “traditional knowledge associated with genetic resources” means,
according to Art 3.7: “traditional knowledge held by an indigenous or local
community that is relevant for the utilisation of genetic resources and that
is as such described in the mutually agreed terms applying to the utilisation
of genetic resources”

Biotechnological inventions

Biotechnological inventions refer also to production which could be de-


veloped from genetic material from TK which have been genetically modi-
fied or processed with other kind of genetic manipulation. At EU level are
regulated by Directive 98/44/EC of the European Parliament and of the
Council, of 6 July 1998, on the legal protection of biotechnological inven-

21
tions. The limits and requirements for utilisation have been additionally in-
terpreted through the rulings of the UE Court of Justice (i.e. case C-34/10,
Oliver Brustle vs Greenpeace e.V., on extraction of cells of embryonic stem
cells precursors: The use of human embryos for therapeutic or diagnostic
purposes which is applied to the human embryo is patentable, but do not
use animals in scientific research)
Besides this, in the US law, GMOs may be considered as “products”
from human invention and therefore patentable against the sequences that
naturally occur in nature. The judgment of the US Supreme Court, Dia-
mond vs. Chakrabarty of 1980 relating to the patentability of a bacterium
which had been genetically modified by the claimant and whose inclusion
was compared by the Supreme Court with a ‘manufacture’

4 PROTECTION OF TRADITIONAL KNOWLEDGE IN BRAZIL


AND GOOD GOVERNANCE PRINCIPLES

As already mentioned, although the Nagoya Protocol, was officially


signed on 2 February 2011 on behalf of Brazilian authorities, it has not still
been formally ratified for the Brazilian Parliament. Brazil has adopted how-
ever in their internal legislation provisions in line with the general frame-
work of the protection of Biodiversity, by developing an autonomous, do-
mestic framework
The provisional measure M 17/11/2015 entered into force the Biodi-
versity Act, Law No 13.123/2015, which repeals the Provisional Measure
No 2.186-16/2001 and lays down new rules for access to genetic assets as-
sociated traditional knowledge, access to and the distribution of benefits.
Law No 13.123/2015 was implemented by Decree No 8.772/2016.
The Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Con-
hecimento Tradicional Associado – SisGen, laid down in Article 20 of De-
cree No 8.772 of 11 May 2016 is not yet available to the public, since this
Decree has established various procedures relating to registers and opera-
tion of SisGen which depend on implementation of the Executive Secre-
tary of Conselho de Gestão do Patrimônio Genético – CGEN.
Traditional Knowledge, according international recognised principles of
Sustainable Development and Good Governance Practices, its fair use, evi-
denced by internationally recognised certificates of conformity or reliable
evidence to ensure compliance with the rights and obligations under the
Protocol is challenged by different constraints concerning the fair Bio-
prospection of resources.

Amazon Rainforest and Patents on Active Ingredients

There are numerous forest products that can be collected in a renew-


able way on a small scale by local people. Medicines, drugs, and herbal sup-

22
plements from the Amazon Rainforest are still largely underdeveloped and
only a few may be known to the local people for harvesting. Furthermore,
once active ingredients are isolated from a plant, the drug can be synthe-
sised in the lab. However, in some cases the active compounds are so com-
plex or so expensive to synthesise that it is easier to collect from natural for-
est or cultivate on foraging farms.
Notwithstanding that the award of the Nobel Prize for Medicine to Dr
Youyou Tu for the identification and isolation of the active substance
artemisinin from Artemisia annual, incorporating ancestral formulations
which formed part of the traditional Chinese medicine, has led to the rein-
forced recognition of the role of Traditional Knowledge and THM.
Local communities do not reap the benefits from drugs derived from
Amazon Rainforest plants because the cost associated with isolating and pu-
rifying the actives principles is unattainable.

Good governance principles

In spite of proactive role taken for the Brazilian authorities in respect of


the provisions on Access to Benefit Sharing, the Nagoya Protocol is not in
force in the Brazil territory since the ACB Protocol has not still been for-
mally ratified.
The role of Conselho de Gestão do PatrimônioGenético – CGEN – in
the implementation of Biodiversity provisions (currently based in Law No
13.123 of 20 May 2015) has been analysed by international experts. Ac-
cording to Medaglia Frederic & Phillips (CISDL Biodiversity & Biosafety
Law Research Programme), between other authors:

CONCLUSIONS

The patents on pharmaceutical active ingredients and other active sub-


stances from plants ought to be more protected by Brazilian regulations due
the value of Indigenous Knowledge on XXI Century. Brazilian government
signed Nagoya Protocol to CBD and the WTO-TRIPS, but Brazilian
authorities, have not yet been formally ratified for the Brazilian Parliament
and use an internal rule about biodiversity. The protection is difficult having
noted the differences of the results regarding patent related-challenges in
Brazil, India and Peru case studies.
The Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) in Brazil is
to implement national policies on access to genetic resources and TK, and
develop technical and administrative activities for providing or denying ac-
cess. It is necessary to draft complementary legal measures clarifying the
original terms and scope of the Law. Brazil has different agents which are
called to take part in the authorisation granting or denying prior consent to
Indigenous communities’ authority within. If the access is for commercial

23
purposes, besides obtaining authorisation, there should be a contract that
sets out how the benefits arising from the commercialisation of the re-
sources are to be distributed, royalties, and technology transfer, free li-
censes to products or process, and human capacity building. This contract
must include, among other elements, the resources accessed, benefit-shar-
ing provisions, rights and obligations, intellectual property rights, contract
cancellation clauses, and stating that all sole jurisdiction in case of any dis-
pute is with Brazil.

ACKNOWLEDGMENTS

The authors are grateful to Germán Fernández Farreres, Dean of Ad-


ministrative Department and Professor of Administrative Law of UCM,
who encouraged the systematic study too.

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25
Nanotecnologia no agronegócio: aspectos de
tutela constitucional-ambiental

Loreci Gottschalk Nolasco


Priscila Elise Alves Vasconcelos
Nathália Alves de Oliveira

Resumo: A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ga-


rante a todos um meio ambiente ecologicamente equilibrado, cabendo ao
Poder Público e à coletividade a sua preservação e proteção para as presen-
tes e futuras gerações. Através de análise bibliográfica, a presente pesquisa
fará uma análise do uso seguro da nanotecnologia no agronegócio. O agrone-
gócio tem forte participação na economia brasileira e as inovações tecnoló-
gicas possibilitam soluções para um melhor desenvolvimento. A nanotecno-
logia estuda e aplica materiais em escala nanométrica (10-9m), sendo apon-
tada peça chave para a busca do desenvolvimento sustentável. Todavia, sua
aplicação pode ocasionar impactos ambientais, o que perfaz a adoção de me-
didas utilizando-se do o princípio constitucional da precaução no âmbito da
tutela ambiental, uma vez que sua função é de evitar riscos e a ocorrência de
danos ambientais, além da otimização da produção, o uso racional dos recur-
sos, avaliação dos riscos gerados, objetivando reduzir os impactos negativos
e promover a maximização de resultados positivos.

Palavras-chave: Nanotecnologia; Princípio da Precaução; Agronegócio.

Abstract: The Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988


guarantees an ecologically balanced environment, passing through Public
Power and the collective, its preservation and protection for present and fu-
ture generations. Through a bibliographical analysis, a present research for
an analysis of the current use of nanotechnology in agribusiness. Agribusi-
ness has a strong participation in the Brazilian economy and as technological
innovations, they enable solutions for better development. Nanotechnology
studies and applies materials at the nanoscale (10-9m), being considered a
key factor in the search for sustainable development. However, its applica-
tion can cause environmental impacts, which means adopting measures, use
the constitutional principle of the measure of the right to environmental
protection, since its function is to avoid risks and occurrences of environ-

27
mental damage, in addition to optimizing production, the rational use of re-
sources, and evaluation of the risks generated, aiming to reduce negative im-
pacts and promote the maximization of positive results.

Keywords: Nanotechnology; Principle of Precaution; Agribusiness.

INTRODUÇÃO

A inovação e o conhecimento têm alcançado níveis de importância tão


relevantes que induzem a dedução de um momento único na história. Den-
tro de um cenário de competitividade, a inovação e a diferenciação passaram
a ser o cerne da estratégia de muitas empresas. Em um mundo marcado pela
velocidade das mudanças, do poder da tecnologia e de quebra de paradig-
mas, onde as condições de acesso à qualidade e a recursos tecnológicos fi-
cam cada vez mais iguais para todas as empresas, uma das poucas estratégias
competitivas realmente eficientes é a diferenciação. A busca por “uma posi-
ção estratégica exclusiva e valiosa, envolvendo um diferente conjunto de ati-
vidades (PORTER, 1999)”, passa a ser vital para a sobrevivência das organi-
zações.
O termo agribusiness, ou agronegócio, surgiu na década de 50, e ganhou
relevância econômica e mercadológica por destacar toda cadeia produtiva
envolvida com uma matéria-prima produzida no campo, sendo considerado
um dos setores mais importantes da economia brasileira (ANTONIO,
2015). Antes de o conceito agronegócio ser definido, para a economia brasi-
leira a área rural era vista apenas como o setor responsável pela agropecuária,
ou seja, um setor praticamente isolado de uma cadeia produtiva. Desta for-
ma, Mendes e Padilha (2007) destacam que:

O agronegócio é um conceito mais abrangente do setor agrícola, em que a pro-


dução agropecuária é apenas uma parcela, uma vez que inclui também a aquisi-
ção de insumos, equipamentos para a produção, o processamento e a industria-
lização da produção agropecuária, o transporte, o armazenamento, a distribui-
ção, ou seja, é uma visão da cadeia na sua totalidade, até chegar à boca do con-
sumidor. Engloba tudo o que tem a ver com a produção agropecuária, com to-
das as transformações, até chegar ao consumidor final. Com um conceito assim
tão abrangente, o agronegócio é o maior negócio da economia brasileira.

O agronegócio é o motor da economia nacional, registrando importantes


avanços quantitativos e qualitativos. Considerado um setor de grande capa-
cidade empregadora e de geração de renda, o desempenho médio do agro-
negócio brasileiro tem superado o desempenho do setor industrial, ocupan-
do, assim, a posição de destaque no âmbito global. Por conseguinte, é confe-
rida uma crescente importância no processo de desenvolvimento econômi-
co, sendo um setor dinâmico da economia possuidora de uma capacidade de
impulsionar os demais setores (MAPA, 2011).

28
Nesse contexto, insere-se a aplicação da nanotecnologia para as indús-
trias agrícolas e alimentares. A nanotecnologia se apresenta como um campo
do conhecimento que está avançando “em pesquisa básica, desenvolvimento
de tecnologias e produção de novos materiais” (SILVA, 2010). Esse campo
vem surgindo com uma rápida evolução e com um potencial de revolucionar
os sistemas de agricultura e alimentos, em toda a cadeia agrícola.
Atualmente, a nanotecnologia é vista como uma opção importante para
aumentar a produtividade agrícola, que, juntamente com outras tecnologias
emergentes como a biotecnologia, vem complementar as técnicas conven-
cionais da agricultura. Investimentos em nanotecnologia são importantes
para garantir que o Sistema Nacional de Pesquisa se torne cada vez mais
competitivo, sendo a necessidade de manter a paridade tecnológica com os
concorrentes mundiais uma questão estratégica fundamental para a nação
nos setores agrícola e rural (PUERTA, 2012). Para a BCC Research (2016),
a área de superfície elevada oferecida por nanofibras, combinada com outras
propriedades físicas, elétricas, térmicas e mecânicas, as tornam adequadas
para várias aplicações comerciais de consumo e de serviços, incluindo eletrô-
nicos, energia, mecânica/química/ambiental e as ciências da vida. Nessa per-
pectiva, a nanotecnologia é uma das possíveis alternativas para tornar efetiva
a proteção ambiental, pois conforme denota Toma (2004), “a nanotecnolo-
gia é um caminho para a química verde. Significa menos uso de material,
menos poluição, obtendo-se a mesma eficiência.” Razão porque Hart et al.
(2004) apontam como um dos motivadores globais da sustentabilidade a rá-
pida emergência de tecnologias revolucionárias (convergentes), como o ge-
noma, a biomimética, a tecnologia da informação, a nanotecnologia e a ener-
gia renovável, todas representando a oportunidade para as empresas – espe-
cialmente aquelas que dependem fortemente de combustíveis fósseis, de
recursos naturais e materiais tóxicos – reposicionarem suas competências in-
ternas em torno de tecnologias mais sustentáveis.
Com isso, entende-se que o desenvolvimento da nanotecnologia é guia-
do pelos princípios da sustentabilidade, o chamado “caminho mais verde”
utilizando-se de práticas limpas (exemplo, redução de solventes e insumos
tóxicos, minimizar as necessidades de energia, evitando o desperdício) ou
produzindo tecnologias renováveis ou mais sustentáveis (exemplo, nanocris-
tais que criam células solares mais eficientes; nanocompósitos com veículos
que baixam as emissões de gases de efeito estufa, e nanopartículas de óxido
de ferro que separam os metais pesados da água potável) (REJESKI et al.
2008).
A temática ambiental é de crescente importância dentro do cenário
mundial, atingindo os mais variados aspectos da vida dos seres humanos, en-
tre os quais se inserem o social e o econômico. Na década de 1980 o Brasil
iniciou uma fase de conscientização da sociedade com relação à preservação
ambiental motivado pela regulamentação da Política Nacional de Meio Am-
biente (PNMA), através da Lei Federal nº 6.938, de 1981 (VASCONCE-
LOS, 2017). Contudo, desde a década de 1970 começou se consolidar uma

29
teoria dos direitos fundamentais que coincidiu com a emergência temática
do direito ambiental, face às exigências da complexidade social aliada à cres-
cente crise ambiental, derivada, principalmente, das alterações realizadas
pelo homem no planeta Terra (ações antrópicas) em relação ao meio am-
biente. A par desse desenvolvimento teórico de consolidação da importân-
cia do direito ambiental como um ramo autônomo do Direito, e de sua ina-
fastável correlação com os direitos fundamentais, houve a adoção do marco
jurídico-constitucional socioambiental resultado de um projeto político de
consolidação dos direitos humanos sob o enfoque do desenvolvimento sus-
tentável (SAMPAIO, 2015).
A partir do ideário de desenvolvimento socioeconômico em consonância
com a preservação ambiental que tem seu sedimento na Conferência Mun-
dial de Meio Ambiente de 1972, verdadeiro marco histórico da discussão
dos problemas ambientais no mundo, e consequentemente, da vida e saúde
humana, surgem diversos documentos e declarações internacionais de direi-
to, como o Relatório Brundtland (1987), reafirmados durante a Conferên-
cia das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada
no Rio de Janeiro em 1992, através do Programa de ação da Agenda 21, da
Declaração de Princípios sobre o Manejo Florestal; da Convenção sobre Di-
versidade Biológica e da Convenção Geral sobre Alterações Climáticas; dos
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM 2000), e, mais recente-
mente, da nova Agenda para o Desenvolvimento Sustentável (ODS 2030)
(ONU, 2015).
Todos esses documentos identificaram como prioritária para o futuro da
humanidade a adoção de um novo paradigma de desenvolvimento, dito sus-
tentável, de modo a garantir o progresso e ao mesmo tempo a preservação
do meio ambiente (o crescimento econômico, a preservação ambiental e a
equidade social). Esse último, direito difuso que extrapola os limites terri-
toriais do Estado Brasileiro, não ficando centrado, apenas, na extensão na-
cional, compreendendo toda a humanidade. Por isso, os países signatários
comprometeram-se a cumprir os programas e a considerar a degradação am-
biental como causa da pobreza, da fome e da ignorância. Razão disso, em
2015, o Brasil, junto com outros 192 países membros das Nações Unidas,
foi signatário da nova Agenda que estabelece 17 Objetivos para o Desenvol-
vimento Sustentável das Nações Unidas. Embutida no Programa Cidades
Sustentáveis, a Agenda 2030, informada por outros instrumentos, tais como
a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, está compromissada em
alcançar o desenvolvimento sustentável nas três esferas – econômica, social
e ambiental – de forma equilibrada e integrada, ao abranger todas as dimen-
sões da vida humana e da nossa relação com a biosfera, sumula os Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável em cinco P’s: Erradicar a pobreza e a fome
de todas as maneiras e garantir a dignidade e a igualdade (Pessoas); Garantir
vidas prósperas e plenas, em harmonia com a natureza (Prosperidade); Pro-
mover sociedades pacíficas, justas e inclusivas (Paz); Implementar a agenda

30
por meio de uma parceria global sólida (Parcerias); e Proteger os recursos
naturais e o clima do nosso planeta para as gerações futuras (Planeta).
A ideia de sustentabilidade vem sendo representada pela elevação de ex-
pectativas em relação ao desempenho social e ambiental. A sustentabilidade
global tem sido definida como a habilidade para “satisfazer as necessidades
do presente sem comprometer a habilidade das futuras gerações para satis-
fazerem suas necessidades” (WORLD COMMISSION ON ENVIRON-
MENT AND DEVELOPMENT, 1987, p. 8). Similarmente, o desenvolvi-
mento sustentável “é um processo para se alcançar o desenvolvimento hu-
mano (...) de uma maneira inclusiva, interligada, igualitária, prudente e se-
gura” (GLADWIN et al. 1995). Uma empresa sustentável, por conseguinte,
é aquela que contribui para o desenvolvimento sustentável ao gerar, simul-
taneamente, benefícios econômicos, sociais e ambientais – conhecidos
como os três pilares do desenvolvimento sustentável (HART et al. 2004).
Ignacy Sachs (2002, p. 85-9), assim como Maurice Strong1 (que intro-
duziu no debate ocorrido no início da década de 1970, o “Ecodesenvolvi-
mento”), emprega os conceitos de “Ecodesenvolvimento” e “Desenvolvi-
mento Sustentável” como sinônimos, apontando atualmente oito dimensões
interconectadas de sustentabilidade: social, cultural, ecológica, ambiental,
territorial, econômica e política (nacional e internacional), a exigir medidas
que as promovam em equilíbrio (SACHS, 2004, p. 14-5). Essas dimensões
refletem a leitura que o filósofo faz do desenvolvimento dentro de uma nova
proposta, como uma estratégia alternativa à ordem econômica internacio-
nal, enfatizando a importância de modelos locais baseados em tecnologias
apropriadas, em particular para as zonas rurais, buscando reduzir a depen-
dência técnica e cultural (JACOBI, 1999, p. 175-183).
Nesse sentido, Canotilho (2004), ao denominar este modelo como Es-
tado Constitucional Ecológico, conceitua-o afirmando que, além de ser e
dever ser um Estado de Direito democrático e social, deve também ser um
Estado regido por princípios ecológicos. Os princípios ambientais encon-
tram-se, pois, no ordenamento jurídico, com função de orientar a atuação
do legislador e dos poderes públicos além de toda a sociedade na concretiza-
ção e cristalização dos valores sociais, relativos ao meio ambiente, harmoni-
zando as normas do ordenamento ambiental, direcionando a sua interpreta-
ção e aplicação, e ressaltando definitivamente a autonomia do Direito Am-
biental, como ciência (MARTINS, 2008).
O direito ambiental dita normas e diretrizes, visando à tutela do meio
ambiente, recebendo especial destaque o chamado princípio da precaução
(MORITZ; ARAÚJO; 2015). O princípio da precaução abrange o risco ou
perigo do dano ambiental, mesmo que houver incerteza científica, o que sig-

1 Na ocasião, Secretário Geral da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Am-
biente e Desenvolvimento, depois se tornando o primeiro Diretor Executivo do PNU-
MA (UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME, 1972).

31
nifica dizer que sua aplicação é anterior ao prejuízo ambiental que pode re-
sultar das ações ou omissões humanas. Uma política ambiental adequada ao
referido princípio deve prever o controle ou afastamento do risco ambiental
e também do perigo ambiental se faz necessário para a proteção do meio am-
biente (COLOMBO, 2005).
Desse modo, a proteção do meio ambiente torna-se, assim, elemento
fundamental no processo de desenvolvimento, pois toda forma de cresci-
mento não sustentável seria oposta ao conceito de desenvolvimento em si,
ao implicar na redução das liberdades das gerações futuras (VARELLA,
2004, p. 43). Nesse sentido, temos a concepção do desenvolvimento como
apropriação efetiva de direitos, eliminando-se as privações de liberdade que
limitam as escolhas e oportunidades dos agentes, ou seja, em expansão das
liberdades, sendo esta o principal fim e meio do desenvolvimento (SEN,
2000, p. 10).

1. A nanotecnologia aplicada ao agronegócio

No início das civilizações, os homens viviam em bandos, nômades de


acordo com a disponibilidade de alimentos que a natureza espontaneamente
lhes oferecia. Dependiam da coleta de alimentos silvestres, da caça e da pes-
ca. Não havia cultivos, criações domésticas, armazenagem e tampouco tro-
cas de mercadorias entre bandos. Assim, passavam por períodos de fartura
ou de carestia. Em cada local em que um bando se instalava a coleta, a caça
e a pesca, fáceis no início, ficavam cada vez mais difíceis e distantes, até um
momento em que as dificuldades para a obtenção de alimentos se tornavam
tão grandes que os obrigavam a mudar sempre de lugar, sem fixação de longo
prazo (ARAÚJO, 2007).
O conceito do agronegócio é antigo, pois em 1957 os americanos Davis
e Goldberg o definem como a soma total das operações de produção e dis-
tribuição de suprimentos, das operações de produção nas unidades agríco-
las, do armazenamento, do processamento e da distribuição dos produtos
agrícolas e dos itens produzidos a partir deles, percebendo que não se podia
mais analisar a economia com base em setores isolados, como nos modelos
tradicionais, induzindo ao início da estruturação da cadeia do agronegócio
(PADILHA JUNIOR, 2004).
Com o passar dos tempos e o avanço da tecnologia, a agricultura de an-
tes, ou setor primário, passa a depender de serviços, máquinas e insumos e
passa a depender de fatores pós-produção, como infraestruturas diversas
(estradas, portos e outras), agroindústrias, mercados atacadista e varejista e
exportação. Essas modificações no campo e aumento da produção permiti-
ram que os produtos agropecuários ficassem sujeitos ao ataque de pragas e
doenças que diminuem a quantidade produzida e a qualidade dos produtos,
ou podem até mesmo levar à perda total da produção (ARAÚJO, 2007).
Os desenvolvimentos nas áreas de microscopia de superfície, fabricação
de silício, bioquímica, físico-química e engenharia computacional têm con-

32
vergido para fornecer capacidades notáveis para a compreensão, fabricação
e manipulação de estruturas em nível atômico (GOTTSCHALK NOLAS-
CO, 2016). Segundo Durán, Mattoso e Morais (2006) “nano” é um termo
técnico usado em qualquer unidade de medida, significando um bilionésimo
dessa unidade, por exemplo, um nanômetro equivale a um bilionésimo de
um metro (1nm = 1/1.000.000.000m) ou aproximadamente a distância
ocupada por cerca de 5 a 10 átomos, empilhados de maneira a formar uma
linha, ou seja, é uma medida, não um objeto.
É nesse contexto que a nanotecnologia passa a ter um papel essencial no
ramo do agronegócio, pois a biotecnologia e a nanotecnologia criam produ-
tos e serviços a um nível molecular, sustentando o potencial de aumento de
produtividade e para eliminar o conceito de resíduo e poluição (DREXLER,
2006).
Desse modo, nanotecnologia pode ser conceituada como um conjunto
de técnicas utilizadas para manipular átomo por átomo para a criação de no-
vas estruturas em escala nanométrica. Vê-se o potencial que a tecnologia
pode proporcionar no desenvolvimento de nações (Estados) o que também
poderá gerar benefícios diretos ao desenvolvimento da sociedade, incluindo
o meio ambiente como um todo. Verificam-se possibilidades de melhora-
mento nas propriedades de diversos produtos utilizados pelas pessoas, e
também de seus resíduos que acabarão atingindo potencialmente o meio
ambiente (GOTTSCHALK NOLASCO, 2016).
Quina (2004) aponta que há “perspectivas animadoras dos benefícios da
nanotecnologia para a melhoria do meio ambiente”, entre eles: a) prevenção
de poluição ou danos indiretos ao meio ambiente. Por exemplo, o uso de na-
nomateriais catalíticos pode aumentar a eficiência e seletividade de proces-
sos industriais, resultando em aproveitamento mais eficiente das matérias-
primas e um consumo menor de energia, além de menor produção de resí-
duos indesejáveis; b) tratamento ou remediação de poluição, a exemplo da
coleta das partículas e da remoção de poluentes, facilitada pelo uso de nano-
partículas magnéticas; c) detecção e monitoramento de poluição com a fa-
bricação de sensores cada vez menores, mais seletivos e sensíveis com a fina-
lidade de detectar e monitorar poluentes orgânicos e inorgânicos no meio
ambiente.
Segundo Martins (2006), a questão relacionada à oportunidade tecnoló-
gica e ao meio ambiente aponta que a nanotecnologia proporcionará um me-
nor uso de matérias-primas e energia na produção dos produtos já conheci-
dos, o que implica diretamente na proteção dos ecossistemas naturais.
Ocorre que os nanomateriais liberados na natureza representam uma nova
classe de poluentes manufaturados, pois se pode esperar por potenciais im-
pactos ambientais (mobilidade e persistência no solo, água e ar, bioacumu-
lação e interações imprevistas com materiais químicos e biológicos) e esses
efeitos que não seriam observados nas mesmas partículas em tamanho ma-
cro.

33
Ressalta-se que a grande preocupação em relação ao meio ambiente é a
falta de pesquisa e informações sobre se esse comportamento afetará defini-
tivamente ou não os sistemas ambientais. Assim, surgem invariavelmente
questões como: de que forma estabelecer políticas adequadas para a gestão
de riscos da nanotecnologia para o meio ambiente? Como responsabilizar os
causadores de danos ambientais ocasionados pela nanotecnologia? Somente
a precaução basta para o eficaz controle dos possíveis impactos ambientais
(RAMOS, 2010).
O conceito de precaução tem origens longínquas, e muitos autores o fa-
zem derivar do conceito aristotélico de “prudência” ou “discernimento mo-
ral” (phronesis), embora a ciência experimental moderna não possa ser deri-
vada da concepção logoteórica aristotélica. A precaução foi alçada a princí-
pio do direito positivo com a criação do Vorsorgeprinzip (princípio da previ-
são, em alemão) na Lei do Ar Limpo, em 1974, na Alemanha. Na década de
1980, o princípio foi disseminado por toda Europa do Norte e, posterior-
mente, passou a fazer parte da agenda política global de proteção ambiental,
encontrando sua maior expressão na Declaração da Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 (TAVARES;
SCHRAMM; 2015).
Em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e De-
senvolvimento ou Rio-92, foi o maior evento realizado no âmbito das Na-
ções Unidas até então. Delegados de 172 países e 108 chefes de Estado,
além de 10 mil jornalistas e representantes de 1.400 ONGs, estiveram pre-
sentes no Riocentro, enquanto membros de 7 mil ONGs e boa parte da po-
pulação do Rio de Janeiro, de várias cidades do Brasil e de outras partes do
mundo reuniram-se no Fórum Global, no Aterro do Flamengo.
A Conferência do Rio consolidou o conceito de desenvolvimento sus-
tentável, proposto pelo Relatório Nosso Futuro Comum, de 1987, que bus-
cava superar o conflito aparente entre desenvolvimento e proteção ambien-
tal. No contexto das decisões da Rio 92, estabeleceu-se a Convenção- Qua-
dro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a Convenção sobre Diver-
sidade Biológica, a Declaração de Princípios sobre Florestas, a Declaração
do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e a Agenda 21. A Rio 92
representou, desse modo, ponto de inflexão na discussão internacional do
desenvolvimento sustentável.
As Nações Unidas decidiram realizar em 2002, na África do Sul, uma
Conferência para marcar os dez anos da Rio-92, cujo objetivo era analisar os
resultados alcançados e indicar o caminho a ser seguido para implementação
dos compromissos. A Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável
reuniu, em Johanesburgo, mais de 100 Chefes de Estado e reafirmou metas
relativas à erradicação da pobreza, à promoção da saúde, à expansão dos ser-
viços de água e saneamento, à defesa da biodiversidade e à destinação de re-
síduos tóxicos e não- tóxicos. A agenda de debates incluiu energias renová-
veis e responsabilidade ambiental das empresas, bem como a necessidade de

34
que todos os atores sociais somem esforços na promoção do desenvolvimen-
to sustentável (Rio-20, 2012).
De maneira geral, o Princípio da Precaução tem sido entendido como a
garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do co-
nhecimento científico, não podem ainda ser identificados. Assim, permite a
ação mesmo que haja incerteza sobre as evidências do risco e expressa extre-
ma prudência, sendo indicado para aplicação em casos de efeitos adversos
onde a avaliação científica não permite que o risco seja determinado com a
certeza suficiente.
Na aplicação do Princípio da Precaução não utópico é justificável a ado-
ção de medidas e procedimentos quanto à análise de risco, cuja definição
significa a probabilidade dos perigos físicos, químicos, biológicos e ambien-
tais ocorrerem. Levando em consideração que não existe risco zero, seguran-
ça absoluta e nem a probabilidade zero ou de 100% na estimação de riscos
futuros em eventos biológicos, na análise de risco devem ser considerados os
seguintes temas: avaliação do risco, gerenciamento ou manejo do risco, além
da comunicação do risco (VALOIS, 2016).
O “desenvolvimento responsável” da ciência e da tecnologia é fator es-
sencial para a melhoria da qualidade da vida humana e o desenvolvimento
sustentável (em todas as dimensões), portanto é fundamental investir em
ciência e tecnologia para trazer inovações que maximizem o uso de recursos
naturais (redução de matéria prima, reciclagem, eficiência energética).
O desenvolvimento sustentável vem de um processo longo, contínuo e
complexo de reavaliação crítica da relação existente entre a sociedade civil
com seu meio natural, assumindo diversas abordagens e concepções. Apre-
sentar progresso em direção à sustentabilidade é uma escolha da sociedade,
das organizações, das comunidades e dos indivíduos, devendo existir um
grande envolvimento de todos os segmentos (BELLEN, 2005).

O conceito de desenvolvimento sustentável surgiu pela primeira vez, com o


nome de eco desenvolvimento, no início da década de 70. Foi uma resposta à
polarização, exacerbada pela publicação do relatório do Clube de Roma, que
opunha partidário de duas visões sobre as relações entre crescimento econômi-
co e meio ambiente: de um lado, aqueles, genericamente classificados de pos-
sibilistas culturais (ou ‘tecno-centricos’ radicais), para os quais os limites am-
bientais ao crescimento econômico são mais que relativos diante da capacidade
inventiva da humanidade, considerando o processo de crescimento econômico
como uma força positiva capaz de eliminar por si só as disparidades sociais, com
um custo ecológico tão inevitável quão irrelevante diante dos benefícios obti-
dos; de outro lado, aqueles outros, deterministas geográficos (ou ‘eco-centrico-
s’ radicais), para os quais o meio ambiente apresenta limites absolutos ao cres-
cimento econômico, sendo que a humanidade estaria próxima da catástrofe.
Mantidas as taxas observadas de expansão de recursos naturais (esgotamento)
e de utilização da capacidade de assimilação do meio (poluição) (ROMEIRO,
1999).

35
O Direito como ciência, por meio do estabelecimento de instrumentos
jurídicos deve criar medidas de gerenciamento preventivo e precaucional
para o risco, baseado nos princípios constitucionais da informação e da res-
ponsabilização, essa que fundamenta a aplicação do princípio da precaução
voltada para uma amplitude temporal (prospectiva) até então desconsidera-
da pelo Direito. Na prática, em termos jurídico-constitucionais, implica na
obrigatoriedade de adoção de medidas de segurança e precaução adequadas,
ordenadas e antecipatórias (legislação, instrumentos de avaliação e gestão de
riscos), que limitem ou neutralizem a causação de danos, cuja irreversibili-
dade total ou parcial gera efeitos, danos e desequilíbrios negativamente per-
turbadores da sobrevivência condigna da vida humana e de todas as formas
de vida centradas no equilíbrio e estabilidade dos ecossistemas naturais ou
transformados (GOTTSCHALK NOLASCO, 2016).
Apesar de a legislação brasileira ter um vasto leque de possibilidades ju-
rídicas, no que tange aos sistemas ambientais, somente essas leis não respon-
dem satisfatoriamente às questões arguidas. Dentre as principais normas ju-
rídicas envolvendo o tema de forma indireta, destacam-se: a Constituição
Federal de 1988, em seu art. 225 prevê a tutela ambiental e o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado; a Lei 6.938/81 – Política Na-
cional do Meio Ambiente; a Lei 7.347/85 – Lei da Ação Civil Pública; Lei
7.802/89 – Lei de Agrotóxicos; Lei 9.605/98- Lei dos Crimes Ambientais;
Lei 11.105/2005 – Lei de Biossegurança; além das resoluções do Conama
(FERRONATO, 2010).
No entanto, as normas jurídicas vigentes não possuem análises e dados
dos ciclos de vida, que salientam ainda mais as brechas regulatórias existen-
tes, pois apesar dos produtos entrarem no mercado global, ainda há dúvidas
sobre os potenciais riscos e benefícios da tecnologia para os consumidores,
trabalhadores, para a saúde humana e o meio ambiente.
Com os avanços da nanotecnologia é possível, através do desenvolvi-
mento de sensores, avançar na análise sensorial e no monitoramento da qua-
lidade de produtos agropecuários, tais como alimentos, bebidas, além de
permitir a detecção de contaminantes no solo e na água. O desenvolvimento
de novos materiais é chave para a consolidação de produtos e processos ino-
vadores em todas as áreas de produção tecnológica, incluindo-se o agronegó-
cio. Desta vertente, tanto interessam os novos materiais possivelmente ob-
tidos de produtos agrícolas como aqueles destinados ao desenvolvimento de
novos processos e produtos de base agrícola.
O desenvolvimento de novas tecnologias para o setor agropecuário a par-
tir de temas de fronteira, como a nanotecnologia, é uma necessidade já re-
conhecida pela Embrapa. Portanto, são necessários esforços no desenvolvi-
mento de novos materiais, destinados na aplicações de insumos, a conversão
de produtos agrícolas (particularmente em agroenergia), o tratamento de
efluentes gerados destes processos e a valorização de produtos agroflorestais
(EMBRAPA, 2011).

36
O uso da nanotecnologia promove o contato de nanopartículas e nanoes-
truturas com organismos vivos, em situações ainda não compreendidas ple-
namente. Na atividade agrícola isso pode ocorrer em larga escala, como no
caso de aplicações de agrotóxicos encapsulados em nanoestruturas de libe-
ração controlada, cuja toxidade inerente ao sistema de liberação ainda ne-
cessita de constante verificação.
A dificuldade de desenvolvimentos tecnológicos na área do Agronegócio
está na compreensão de modelos que permitam que estas novas tecnologias
cheguem realmente ao setor produtivo, pois o comportamento dessas tec-
nologias é assimilado de formas diferentes em cada setor. Assim, um mode-
lo único de transferência destas tecnologias pode ser falho, em maior ou me-
nor grau, em função do tipo de mercado que se deseja atingir. Esta dificul-
dade não é exclusiva dos trabalhos envolvendo o agronegócio, mas aparece
sistematicamente em todas as avaliações acerca da introdução de tecnolo-
gias inovadoras no Brasil (EMBRAPA, 2011).
Diante das enormes possibilidades oferecidas por essa ciência de
proporções pra lá de diminutas, um grupo de cientistas da Embrapa, univer-
sidades e instituições públicas e privadas de pesquisa decidiram se dedicar
ao estudo de nanossistemas para buscar rotas e caminhos sustentáveis em
prol da agricultura brasileira. O grupo de pesquisadores da Embrapa Recur-
sos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília/DF, usa como objeto de estudo
os subprodutos da agricultura, ou seja, resíduos e rejeitos da produção con-
siderados muitas vezes sem utilidade para o setor produtivo e têm encontra-
do nesses resíduos (cascas, pelos de animais e partes dos alimentos que não
são comercializadas) caminhos sustentáveis capazes de reduzir o uso de sol-
ventes tóxicos, materiais sintéticos e outros produtos nocivos ao meio am-
biente e à saúde humana e de animais (EMBRAPA, 2014).

CONCLUSÃO

Os princípios de Direito Ambiental objetivam a proteção da vida huma-


na e garantia plena em todos seus aspectos, hoje e para as futuras gerações e,
para tanto, necessitam de sua efetiva aplicação. Estes princípios estão inse-
ridos dentro de todo o ordenamento jurídico e elevados à proteção e previ-
são constitucional em 1988.
De modo geral, percebe-se que a incorporação dos princípios da susten-
tabilidade é imprescindível no âmbito do agronegócio, haja vista a necessida-
de do desenvolvimento de uma política de biodiversidade que esteja inte-
grada em todos os processos e serviços em consonância com a Política Na-
cional de Meio Ambiente e de Biodiversidade.
O avanço científico proporcionado pela nanotecnologia oferece a pers-
pectiva de grandes melhorias na qualidade de vida e preservação do meio
ambiente, onde se abrem oportunidades para o desenvolvimento de novos

37
produtos com propriedades, funcionalidades e características distintas e
muitas vezes superiores aos materiais usuais. Entretanto, como qualquer
área da tecnologia que faz uso intensivo de novos materiais e substâncias quí-
micas, ela traz consigo alguns riscos ao meio ambiente e à saúde humana.
A inserção de uma abordagem baseada no princípio da precaução busca
evitar os riscos que podem ocasionar danos graves ou irreversíveis ao meio
ambiente, com intuito de proteger direitos. Portanto, o desenvolvimento
sustentável no agronegócio e a aplicação dos princípios constitucionais am-
bientais em conjunto com a nanotecnologia, podem gerar resultados positi-
vos na redução de custos e maior eficiência produtiva agroindustrial.

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41
El estimulo conductual (Nudge) como
instrumento de concienciación de la mujer
ante el aborto clandestino1

Claudia Ribeiro Pereira Nunes


Laura Dutra de Abreu
Pedro D. Peralta

Resumen: Este estudio analiza el denominado “Nudge conductual” – en-


tendido, en su acepción de estimulo o pequeño empujón, como una herra-
mienta no coercitiva y no impositiva que dirige un comportamiento social –,
como forma de intervención útil para la concienciación de las mujeres ante
el problema del aborto ilegal en Brasil, donde se estima que sólo en 2015 se
practicaron más de millón y medio de ellos. Esta problemática se aborda
desde el analisis metodológico de la bibliografía relevante sin olvidar sus im-
plicaciones bioéticas.

Palabras claves: Nudge, Arquitectura de eleción; Autonomía de la vo-


luntad; Bioética; Economía Conductual; Consentimiento informado.

Abstract: This study analyzes the so-called “behavioral Nudge” – under-


stood, in its meaning of stimulus or small push, as a non-coercive and non-
taxing tool that directs a social behavior –, as a useful intervention form for
raising women’s awareness of the problem of illegal abortion in Brazil,
where it is estimated that only in 2015 more than one and a half million of
them were practiced. This problem is addressed from the methodological
analysis of the relevant bibliography without forgetting its bioethical impli-
cations.

Keywords: Behavioral nudge, Choice arquitecture; Bioethics; Freedom


of choice. Abortion; Informed Consent.

1 Este articulo es uma traductión del articulo apresentado em CONPEDI BRAGA


em 2017.

43
INTRODUCTION

La Economía Liberal (o Tradicional) considera que el propio proceso de


evolución es capaz de solucionar errores de decisión dentro de esa racionali-
dad limitada que se denomina mercado.
Ante esta postura empirica, la Economía Conductual [Behavioural eco-
nomics] propone un análisis de las decisiones de los agentes del mercado ba-
sado en la psicología, la neurociencia, la sociología, la antropología y otras
ciencias sociales, con el fin de alcanzar así una solución más realista y modu-
lar la solución de errores. Los economistas conductuales buscan, por tanto,
entender mejor los procesos de toma de decisiones individuales (de las per-
sonas) y colectivas (de los mercados) a partir de esa visión alternativa.
Según Mark Schweizer, el ser humano es irremediablemente incompe-
tente a la hora de hacer elecciones relativas que afecten a sus propios inte-
reses. Por tanto, debe ser el gobierno el que se encargue, en ausencia de de-
cisión individual óptima, de redirigirlas a la elección considerada más ade-
cuada (2015, s/p) en los términos del óptimo de Pareto2. En esta idea, los
economistas conductuales desarrollan sus herramientas analíticas más rele-
vantes (Nudges, Choice Architecture o – antitéticamente – Paternalismo Li-
bertario) que son la herramienta de análisis aquí. De ahí surge la question
nuclear de si se pueden establecer Nudges no impositivos – “estimulos” o
“pequeños empujones” –, como medios esenciales que permitan paliar las
consecuencias de los abortos clandestinos, evitando también la amenaza de
medidas coercitivas o penales que coartan sin duda la Libertad de Elegir en
cuestiones reproductivas.
En este contexto, el objetivo general de este articulo es el de presentar
los Nudges como elementos inspiradores de un pensamiento ético que va
mas alla del mero combate entre legalización y prohibición. Esta simplifica-
ción binaria no puede marcar el tono de una discusión en un asunto cuyo
analisis cuenta ya con herramientas legales eficaces, como la ya aludida
Choice Architecture. (Thaler y Sunstein 2008) y sus “análisis asimétricos”.
Por tanto, el objetivo de este análisis no busca interferir en modo alguno
en el proceso de toma de decisiones sobre interrupción del embarazo, donde
se aplica el principio sacrosanto de la libertad de elección, sino que se limita
a explorar alternativas- desde los campos de la sociología y las ciencias hu-
manas- que puedan mejorar la concienciación de la mujer ante las conse-
cuencias adversas del aborto clandestino (en el sentido de practicado sin
asistencia facultativa) que se estima causan al año mas de diez mil muertes
en Brasil.
La regulación de la reproducción bajo este innovador sesgo puede auxi-
liar a las mujeres a adoptar conductas que supongan un menor riesgo perso-

2 El beneficio de una de las partes no puede aumentar sin penalizar las legitimas
expectativas de las otras

44
nal sin retirarles por ello su libertad de eleccion, principio esencial de todo
Estado Democrático mas alla de la criminalización o despenalización del
aborto en el sistema penal brasile ño.
Este enfoque metodológico basado en la revisión de la literatura relevan-
te, explora las posibles vias alternativas para superar el debate tradicional so-
bre control/represión del aborto por otro multiagente mediante el empleo
de los instrumentos analíticos propios de la Economía Conductual.

1 PANORAMA SOBRE LAS RAZONES DETRÁS DE LA PROHIBI-


CIÓN DEL ABORTO EN BRASIL Y SUS IMPLICACIONES BIOÉTI-
CAS

1.1. Papel de la Bioética

La palabra bioética deriva de una de las dos acepciones del griego clásico
para designar la vida: zoé, que se refiere a la existencia biólogica, y bios, a la
humanidad en su dimensión moral y política. Y en el caso del mundo occi-
dental, el concepto de humanidad ha venido abarcando también la dignidad
de la persona humana.
La bioética trata por tanto de la protección de la vida y de la dignidad
humana garantizando los derechos fundamentales: derecho a la integridad
física, a la presunción de inocencia, a la salud, a la autonomía y a la libertad
de conciencia. Idealmente, el respeto de estos derechos permite una exist-
encia pacífica y feliz de las personas humanas dentro de sus relaciones socia-
les.
De acuerdo con el artículo 2 de la Declaración Universal sobre el geno-
ma humano y los derechos humanos de 1997:

a) Cada individuo tiene derecho al respeto de su dignidad y derechos, cuales-


quiera que sean sus características genéticas.

b) Esta dignidad impone que no se reduzca a los individuos a sus características


genéticas y que se respete su carácter único y diversidad.

El Consejo de Europa, por su parte, ha adoptado varias iniciativas impor-


tantes respecto a la dignidad del ser humano entre ellas, el Convenio de
Oviedo sobre Derechos Humanos y Biomedicina y el Convenio de Santiago
de Compostela sobre trafico ilicitio de organos. El protocolo adicional sobre
Investigacion Biomédica del Convenio de Oviedo, (Additional Protocol to
the Convention on Human Rights and Biomedicine concerning Biomedical
Research), introduce cuestiones éticas y regulatorias sobre las actividades
que implican intervenciones en seres humanos. El principio fundamental de
la investigación con seres humanos es el consentimiento libre, informado,
expreso, y documentado de la persona o personas que participan.

45
1.2. Revision histórica

Según Amado, el aborto es tan antiguo como la historia de la humanidad


(2009, p. 30). Hay informes de abortos inducidos en China que se remon-
tan a más de 5.000 años. Según este autor, durante siglos – y hasta el siglo
XVII – el aborto era principalmente una “cuestión de la mujer” y no una
cuestión médica o política. Debido al desarrollo limitado de los conocimien-
tos médicos, la búsqueda de un método eficaz para practicarlo con garantía
constituia una preocupación mayor para la mujer que las posibles implica-
ciones éticas de la interrupción del embarazo. Sin embargo, en la esfera pú-
blica, las posiciones hostiles al aborto terminaron por colisionar e imponerse
finalmente a las posturas a favor (2009, p. 39-41), aunque siempre hubo es-
pacio para cierto grado de debate ético sobre su aceptabilidad. La doctrina
agustiniana, por ejemplo, fue aceptada durante mucho tiempo como criterio
de elección: de acuerdo con esa doctrina, el aborto practicado antes del
tiempo de “aceleración”, o momento de la creación, no estaba expresamen-
te prohibido. La fuerte oposición al aborto comenzó cuando la Iglesia Cató-
lica declaró a finales del siglo XVI que el aborto era un crimen. (ROTH-
MAN, 1997, p. 105-106) Durante el siglo XIX el aborto comenzó a ser cri-
minalizado en países europeos y en Estados Unidos. En 1869, el Papa Pío IX
declaró que el aborto era un pecado mortal bajo cualquier circunstancia. La
doctrina religiosa consideraba que, dado que no se producian cambios cuali-
tativos de relevancia durante el desarrollo fetal, el foco de la discusión se
centraba exclusivamente en determinar la gravedad de la ofensa de matar al
feto cualquiera que fuera su período de desarrollo. En esa época, el signifi-
cado del embarazo cambió también; de ser considerado “cuestión de muje-
res” se convirtió en un asunto de atención médica.
Hasta la segunda mitad del siglo XX no surgió una corriente político-le-
gal favorable a su legalización. En la década de los años 60, el derecho legal
al aborto legal practicado por servicios médicos fue reconocido primera-
mente en el Reino Unido ( Ley de Aborto de 1967) y posteriormente en
Estados Unidos donde tuvo gran impacto el veredicto de 1973 de su Tribu-
nal Supremo en el caso Roe vs. Wade (AMADO, 2009, p. 32). Aunque hoy
en día el aborto es legal en muchos otros países, su grado de aplicación varia
ampliamente en función de las opciones legislativas finalmente adoptadas
en cada país.

1.3. Razones detrás de la prohibición del aborto en Brasil

Para arbitrar mecanismos efectivos de concienciación hay que partir de


las razones que sustentan la prohibición actual del aborto en este país. El he-
cho de que la Corte Suprema Brasileña abra la puerta en su jurisprudencia
reciente a la despenalización “de iure” de las prácticas abortivas no debe ol-
vidar un debate que ha venido marcado por conceptos maximalistas durante

46
años. En este sentido, con la revocación en 2016 po rparte de la Primera Cá-
mara del Tribunal Supremo Federal (STF) de la detención preventiva de va-
rios médicos de una clínica abortiva, medida que sólo era aplicable para los
directamente imputados, la más alta Corte del país abrió el camino para la
despenalización general de aborto para las mujeres y facultativos implica-
dos. Como se expone en el voto particular del magistrado Barroso: ¿Cómo
puede el Estado – es decir, un delegado de policía, un fiscal o un juez de de-
recho – imponer a una mujer, en las semanas iniciales de la gestación, que la
lleve a término, como si se tratase de un útero al servicio de la sociedad y no
de una persona autónoma, en el goce de plena capacidad de ser, pensar y vi-
vir la propia vida? (Habeas Corpus nº 124.306/RJ) Además de estos funda-
mentos, este voto particular considera el negativo impacto de la criminaliza-
ción sobre mujeres de clases bajas, alegando que el tratamiento penal siste-
matico del aborto como delito en el código penal brasileño impide que estas
mujeres, puedan acudir a los servicios sanitarios gratuitos dado que, por fal-
ta de recursos, este estrato de poblacion no tiene acceso a los servicios de
clínicas privadas (Op. Cit, 2016, s/p). Como consecuencia, son comunes los
casos de automutilación, lesiones graves y muertes siguiendo las prácticas
clandestinas. Citando investigaciones internacionales, el magistrado postula
en su voto que el castigo de prisión no disminuye el número de abortos, ca-
lificando en consecuencia como “dudosa” la idea de que su criminalización
protege la vida del no nacido. La prisión trae más costos sociales que benefi-
cios (Idem, 2016, s/p) mientras que el Estado dispone de otros medios para
evitar la práctica clandestina, como educación sexual, distribución de anti-
conceptivos, esterilizacion y apoyo a la mujer que, aunque desee tener hijos,
se enfrenta a serias dificultades para criar a un niño.
Es importante señalar que el artículo 128 del Código Penal Brasileño3
limita a tres las causas de despenalización del aborto: (i) que no haya otro
medio de salvar la vida de la gestante; (ii) que el embarazo resulte de viola-
ción y el aborto es precedido de consentimiento de la gestante o de su rep-
resentante legal cuando es incapaz, y (iii) en el caso de feto anencéfalo – ver
ADPF 54.

3 Articulo 128 del Código Penal: Será condenado con prisión de seis (6) meses a
cuatro (4) años el que produjere, financiare, ofreciere, comerciare, publicare, facilitare,
divulgare o distribuyere, por cualquier medio, toda representación de un menor de die-
ciocho (18) años dedicado a actividades sexuales explícitas o toda representación de sus
partes genitales con fines predominantemente sexuales, al igual que el que organizare
espectáculos en vivo de representaciones sexuales explícitas en que participaren dichos
menores.
Será condenado con prisión de cuatro (4) meses a dos (2) años el que tuviere en su
poder representaciones de las descriptas en el párrafo anterior con fines inequívocos de
distribución o comercialización.
Será condenado con prisión de un (1) mes a tres (3) años el que facilitare el acceso
a espectáculos pornográficos o suministrare material pornográfico a menores de catorce
(14) años.

47
2 CONTEXTUALIZANDO EL ESTIMULO CONDUCTUAL (NUD-
GE) NO IMPOSITIVO, LA ARQUITECTURA DE LA ELECIÓN Y EL
PATERNALISMO LIBERTARIO

2.1. Nudge

El sistema Nudge parte de la idea de que no existe elección que real-


mente revele la preferencia de un individuo, pues la elección está inevitable-
mente basada en el contexto. La doctrina destaca que el propósito central
del Nudge es influir en las elecciones de forma tal que los que deben tomar
decisiones crean que esa es la mejor alternativa posible, entendiendo tácita-
mente que la intervención debe ser fácil de aplicar y no costosa y que garan-
tice la libertad de los individuos y de la colectividad (TVERSKY, KAHNE-
MAN, 1981, p. 454).
Frente a los postulados Nudge, los liberales conocen cuales son los peli-
gros que acechan al pueblo, pero declinan intervenir o actuar como pacifica-
dores. Los liberales reflexivos, a diferencia de los libertarios, siempre están
abiertos a la persuasión para obtener una aplicación purista de sus principios
y Nudge ofrece un argumento persuasivo en las áreas políticas públicas. Sin
embargo, es más difícil que acepten intervenir en áreas del exclusivo ámbito
personal.
La propia concepción de Nudge postulada por sus ideólogos explica que
el sistema “(...) nos enseñan a orientar a las personas para una salud mejor,
inversiones más sólidas y ambientes más limpios sin privarlas del derecho
inalienable de deshacer las cosas si asi lo desean” (THALER, SUSTEIN,
2003, p. 143). La descripción más simple de ese enfoque, ofrecida por los
propios autores, es que el sistema es “un tipo de paternalismo relativamente
débil, suave y no intrusivo” (Op. Cit, p. 455). Nudge permanece fiel a su
promesa de preservar la libertad de elección.

2.2. Arquitectura de elección

La arquitectura de eleccion bascula, en síntesis, sobre cuatro compromi-


sos fundamentales: (i) bienestar, (ii) autonomía, (iii) dignidad y (iv) libertad
de elección (SUNSTEIN, MOLLERES, 2015, s/p).
En este contexto, Nudge puede ser definido como cualquier factor ca-
paz de alterar el comportamiento de las personas mediante cambios en la
arquitectura de elección o “Choice Architecture”, que se define como la ca-
pacidad de organizar el contexto y la decisión de un individuo sin excluir
otras posibles opciones ni cambiar significativamente sus incentivos econó-
micos (TVERSKY, KAHNEMAN, 1981, p. 455). Los fundamentos de la ar-
quitectura de elección son, además del bienestar en sentido lato, la autono-
mía de la voluntad, la dignidad de la persona y el respeto a los deseos del
individuo.

48
La arquitectura de elección, representa según Thaler y Sustein un poder
considerable para la formulación de políticas públicas siempre que se utilice
para fines de intereses público y de mejora del bienestar de los seres huma-
nos (2008, p.27). Es importante resaltar que la arquitectura de elección nos
permite decidir cuál es el principio normativo, así como el ético, en el dise-
ño de las elecciones de los ciudadanos (Op. Cit, p.29).
Reconocer el papel de este “arquitecto de elecciones”, y el poder que
éste detenta, es esencial desde el punto de vista de Thaler y Sustein, ya que
las personas se encuentran influenciadas incluso por cosas que no son explí-
citas. Si el poder de esta influencia se utiliza para fines de interés público, se
establece un marco adecuado para regular las relaciones entre instituciones
y ciudadanos (2008, p. 34-35). Los autores esbozan seis principios que debe
reunir una buena arquitectura de eleccion: (i) dotar las elecciones de estruc-
turas bien definidas; (ii) definir los roles; (iii) esperar errores; (iv) otorgar
incentivos; (v) predefinir opciones; y (vi) tomar en cuenta las opiniones pos-
teriores de los usuarios para mejorar el sistema (2008, varias páginas).
El sistema de arquitectura de elección ayuda a las personas a mejorar su
capacidad de elección y, por lo tanto, a seleccionar las opciones más adecua-
das. Una manera eficaz de conseguirlo es hacer que la información que faci-
lita el agente sobre las diferentes opciones sea más comprensible simplifi-
cando la presentación y el diseño de las diferentes opciones. Los ejemplos
deben incluir el número total de opciones, la información si son mutuamen-
te excluyentes o no, las alternativas de que se disponen y los incentivos aso-
ciados a cada una de ellas (2016, s/p).
El sistema pasa del binario polarizado a uno multifacético, permitiendo
al usuario analizar mejor la información disponible, positivar de modo cien-
tifico sus posibilidades y mejorar la transparencia de su elección.

2.3. Paternalismo Libertario

La teoría del Paternalismo Libertario surgió en 2003 de la mano de los


economistas de comportamiento antes citados, Richard H. Thaler y Cass R.
Sustein. Esta doctrina fue difundida en la práctica en 2008, en la obra “Nud-
ge – Improving decissions about health, wealth and happiness”. Los autores
configuran una teoría normativa para la formulación de políticas que pueden
ser practicadas en instituciones públicas y en los sectores privados.
Como explican los autores, el paternalismo es la interferencia de un Es-
tado o de un individuo en relación a una persona, motivada por la presunción
de que la persona será asi mejor protegida contra hipotéticos daños, incluso
aunque sea contra su voluntad manifiesta. En su primer postulado, el pater-
nalismo implica algún tipo de limitación en la libertad o autonomía del suje-
to y lo hace por una clase particular de razones.
Como muchos otros conceptos utilizados en el debate teórico normati-
vo, determinar sus límites exactos es una cuestión espinosa. Conceptuar una
política como paternalista implica su condena abierta o al menos su critica

49
negativa, lo que constituye per ser una tautologia que escapa a la propia de-
finición del término. Aunque en su estrategia, los autores sigan la premisa de
que las personas deben ser libres para hacer lo que quieran y elegir lo que es
mejor para sí mismas, no dejan de sustraerse al propio sesgo del paternalis-
mo. Como ejemplo, los casos en que la ley restringe las elecciones del indi-
viduo, pero en su propio beneficio, como la legislacion que castiga el trafico
de drogas, las normas administrativas que obligan al uso de cinturones de se-
guridad, etc, etc.
Robert Nozick afirma que la libertad individual consiste en el derecho
fundamental de todo hombre a vivir según sus propias elecciones, dispo-
niendo de sus bienes y tiempo como mejor considere siempre que respete
idéntica libertad en los otros. (2011, p. 22). La construcción de la teoría de
Nozick se hace a partir de una “explicación potencial fundamental” sobre la
naturaleza humana según la cual los individuos, en el estado de naturaleza,
son plenamente libres para dirigir sus acciones y disponer de sus bienes (Op.
Cit, p. 24).
En este punto, podríamos preguntarnos, como Dworkin, por qué esta vi-
sión necesita ser etiquetada por sus ideólogos como Paternalismo libertario,
entendiendo que, a diferencia del paternalismo tradicional que excluye las
elecciones por coacción o añade costos a las elecciones voluntarias, Nudge
simplemente cambian la presentación de las elecciones de tal forma que las
personas se vuelven más propensas a elegir unas opciones sobre otras
(DWORKIN, 2013, p. 26). Esta visión es libertaria porque preserva la liber-
tad de elección. Ninguna elección se elimina o se dificulta y nadie es coac-
cionado. El conjunto de opciones sigue siendo el mismo. No hay costos o in-
centivos significativos asociados a las opciones a las que el sujeto se enfrenta.
A su vez, este punto de vista tiene también aires paternalistas porque busca
promover el bien a través del nudging. Podríamos sustituir perfectamente
“paternalismo” por “benevolencia” y conservar todo el significado del con-
cepto, Si esta expansión de la definición de paternalismo está justificada o
no, depende de la transparencia del proceso. Hay Nudges que por definición
no pueden ser paternalistas porque su fin es promover el bien general, aun-
que el concreto sujeto no se beneficie. Como ejemplos se pueden citar va-
rios: instalar ascensores con botones en braille, o influir indirectamente a las
personas para que aporten fondos en una campana benéfica, colocando re-
tratos de niños desnutridos.
No obstante, la cuestión principal no es si la definición de paternalismo
es útil o no, sino en qué circunstancias Nudge es una practica adecuada para
influir en las decisiones humanas (DWORKIN, 2016, s/p). Así, practicar o
no un aborto en los casos permitidos o hacerlo incluso con plena consciencia
de que es un acto ilegal, puede ser al final una elección dirigida y no autóno-
ma. Una de las ideas centrales de la teoría es que los juicios y elecciones son
sensibles al contexto; el hecho de que una elección sea conceptualizada
como positiva o negativa influirá en la decisión final. (TVERSKY, KAHNE-
MAN, 1981, p. 453-458).

50
3. EL USO DEL ESTIMULO CONDUCTUAL (NUDGE) COMO
INSTRUMENTO DE CONCIENCIACIÓN DE LA MUJER ANTE EL
ABORTO

Con base en el sistema de arquitectura de elección y paternalismo liber-


tario, se puede diseñar Nudging que se dirijan directamente a las mujeres
que deban tomar decisiones respecto al aborto, ya sea por medio de formu-
larios, folletos explicativos, o videos educativos, para hacer que tomen la
mejor elección según la política pública de Brasil y evitar asi las temidas con-
secuencias de las prácticas clandestinas.
Partiendo de la premisa de que en Brasil el aborto sólo está legalizado en
los tres supuestos contemplados en el Art. 128 del CP, la posibilidad de con-
cienciación sobre el aborto a través de instrumentos Nudge puede ser una
herramienta útil para disminuir los riesgos para las mujeres inherentes a las
practicas clandestinas, aun en los casos de que son conscientes de practicar
una actividad delictiva. Indudablemente, se entiende que esas medias posi-
bles encajan dentro de la visión de Paternalismo Libertario. Este tipo de me-
dida paternalista sobre el aborto difiere de los otros ejemplos de Sunstein y
Thaler, en la medida en que sólo se aplica a las mujeres, lo que la hace, de
facto, sexista, aunque la justificación para ello no necesita descansar en afir-
mación alguna de que las mujeres sean especificamente temperamentales
(2008:35). Todo el mundo es capaz de un comportamiento temperamental
de vez en cuando (en el sentido de opuesto a racional), lo que es la génesis y
razón de ser utilizada por esos autores en su obra sobre Nudges. Si los hom-
bres pudieran quedar embarazados, algún autor ha teorizado incluso que
Nudge sería incluso más apropiado para conseguir sus objetivos practicos
(PATASHNIK, 2014, s / p).
Por lo tanto, descubrir si cualquiera de esas acciones encaja en un para-
digma paternalista libertario, va a depender de si el Estado promueve el in-
terés de una persona y de cómo esa persona lo considere. Aunque el aborto
es un asunto político controvertido, hay un consenso tácito general (entre el
60% y el 70% en el caso de los estadounidenses según las encuestas) de que
los derechos al aborto deben ser protegidos, pero que esa protección debe
quedar sujeta a restricciones.
Tales medidas podrían ser transmitidas en campañas de asistencia y pro-
paganda gubernamentales para garantizar que las mujeres que pretendan
practicar un aborto, aunque sea de forma ilegal, perciban claramente su
compleja dimensión legal y ética.
Ciertamente, también encontramos aquí un grado de Paternalismo la-
tente. La posibilidad de que las Clínicas de Familia del Sistema Único de
Salud brasileño (SUS) muestren carteles y folletos o difundan videos mos-
trando la imagen del feto en el útero materno, parece ser una manera discre-
ta y razonable para que el Estado enfatice la naturaleza de la vida fetal sin
restringir la elección, ni criminalizar de ningún modo, a quien lo practique.

51
Desgraciadamente, es difícil decidir si ese tipo de consenso es lo sufi-
cientemente fuerte para construir una política pública sobre él. Si bien es
cierto que dos tercios de los brasileños manifiestan su rechazo al aborto se-
gún las últimas encuestas, no es posible sacar conclusiones sobre cómo se
comportarían exactamente esos dos tercios de ciudadanos si tuvieran que
enfrentarse directamente a esta situación. (En Brasil no hay todavía datos
fidedignos del Ministerio de Salud para afirmar qué porcentaje de la pobla-
ción comparte esa postura). Se da por válida la información de que en Brasil
se realizan 1,5 millones de abortos ilegales al año; de ese total, 250.000 mu-
jeres quedan con alguna secuela y unas 11.000 fallecen a consecuencia del
aborto practicado. En este contexto el supuesto apoyo social para continuar
con las restricciones legales al aborto no necesariamente depende de las ex-
periencias personales reales.
Los desarrollos posteriores de Nudges plantean la cuestión de si Suns-
tein y Thaler consideran apropiados o inapropiados bajo el contexto del
aborto, aunque, de partida, sus estudios no descartan el nudging en estos te-
mas. En un artículo reciente argumentan lo siguiente (SUNSTEIN, 1992, p.
241):

... Las advertencias gráficas no sustituyen la elección individual, mientras no


sean neutras y destinadas a orientar e informar, las personas tienen el derecho
de ignorarlas si lo desean. Podemos fácilmente imaginar, e incluso encontrar,
advertencias gráficas que están destinadas a desalentar opciones como enviar
mensajes de texto al móvil mientras se dirige a practicar un aborto o sexo pre-
matrimonial o participar en juegos de azar. Por más poderosas que sean tales
advertencias, suelen ser ignoradas. Los propietarios de cafeterías y tiendas de
comestibles pueden poner las frutas y verduras delante de los cigarrillos y los
alimentos grasos detrás. Así mismo, las personas siempre pueden ir a la parte
trasera y coger tales artículos – traducción libre. (SUNSTEIN, 2013, p. 122).

La visión de Sunstein sugiere que no es fácil conseguir la atención del ser


humano; aunque la imagen de un feto se coloque en la línea de visión de una
mujer, su capacidad para ignorarla puede significar tambien que su libertad
de elección no ha sido ejercida en la práctica (2013, p. 124). En esta misma
línea, aclara Dworkin, “las justificaciones proporcionadas por los textos le-
gales actuales para la prohibición de la práctica del aborto acaban por no uti-
lizar ninguna base filosófica o doctrinal coherente” (2003, p. 76). Bien es
cierto que desde Casey en Estados Unidos, se han propuesto y defendido
una amplia variedad de marcos regulatorios sobre cómo ejercer el derecho
de una mujer de elegir sobre el aborto sobre la base de no prohibir ejercer
ese derecho en si, sino asegurar el debido consentimiento informado de las
mismas, o las incentivan – sin forzarlas- a reconsiderar su decisión, incluyen-
do requisitos tales como observar un periodo de reflexión (PERSAD, 2014,
p. 2275-276).

52
CONSIDERACIONES FINALES

Cualquier norma reguladora del aborto debe quedar sujeta al debate pú-
blico y sometida al escrutinio de la ley. Y, como explica Dworkin, en el uso
del pensamiento derivado como parámetro, la ley no abre la excepción hasta
el punto de permitir, por ejemplo, el aborto en casos de violación. Sin em-
bargo, en el uso del pensamiento independiente, se estaría desatendiendo
en última instancia una de las mayores garantías constitucionales de un Es-
tado: la libertad de cada uno y de sus creencias religiosas (2013, p.29).
El uso de Nudge puede ser demasiado prematuro para algunos, pero lo
demostrado hasta ahora sugiere que puede suponer una acción de gobierno
realmente efectiva y eficaz a la vez que sugerente.
Por supuesto, el presente analisis demuestra que es posible utilizar me-
dios menos coercitivos para ayudar en el proceso personal e institucional de
toma de decisiones. Por lo tanto, no hay nada de censurable en emplear
Nudge como medio de ayudar a los individuos dentro de las cuestiones que
tienen que ver con la reproducción del ser humano (añadiendo aquí clona-
ción y terapia génica, por ejemplo) Cierto es que, para el caso del aborto y
de sus opciones regulatorias, es necesario abrir un debate franco y abierto
que incluya a las propias mujeres y no proceder aquí con imposiciones polí-
ticas unidireccionales, de arriba a abajo, que no respeten la importancia de
las elecciones reproductivas y las legitimas aspiraciones de las mujeres.
Se puede defender la utilización de Nudges como forma de conciencia-
ción del aborto y salida consciente para que las personas reciban mejor infor-
mación sobre él o incluso una forma de flexibilizar su descriminalización,
que aún está muy incipiente en Brasil en base el art. 128 de su Código Penal.
La cuestión fundamental aquí es el hecho de que, sea de forma legal o ilegal,
se practican cada año miles de abortos clandestinos en Brasil y Nudges pue-
de ser una forma menos drástica y más concreta de ayudar en la decisión
correcta para las mujeres que pretendan o no realizarlo, conscientes de lo
que está en juego.

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54
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para a escolha certa) Massachusetts: Yale University Press. 1981, Science 211:
453-458.

55
Meio ambiente e cidadania: desafios
contemporâneos

Reis Friede

RESUMO: O presente estudo examina brevemente o conceito de cida-


dania e sua evolução histórica. Verifica que, no momento atual, é necessário
incorporar neste conceito (e na ação do cidadão) o papel primordial de pre-
servação do meio ambiente. Em seguida, discute a relação antropomórfica
do homem em relação à natureza e, por fim, aborda a função socioambiental
da propriedade, que consiste em uma atividade exercida não apenas no inte-
resse de seu proprietário, mas, principalmente, no interesse da sociedade.

Palavras-chave: Cidadania. Meio ambiente. Responsabilidade Socioam-


biental.

ABSTRACT: The current article examines, briefly, the concept behind


the term “citizenship” and its historical evolution. It verifies that, nowa-
days, it is necessary to include in this concept (and in the actions of the ci-
tizens) the primordial role of preserving the environment. Continuing, it
debates the anthropomorphic relationship between man and nature. To fi-
nish off, it discourses about the social function of properties, which consists
of activities not only in the behalf of their owners, but, especially, in the in-
terest of society as a whole.

Keywords: Citizenship. Environment. Social and Environmental Res-


ponsibility.

1. INTRODUÇÃO

A palavra cidadania vem do latim civitas, que quer dizer cidade. Na


Roma clássica, indicava a situação política de uma pessoa e os direitos que
ela tinha ou podia exercer. Tanto em Roma como na Grécia Clássica, signi-
ficava a possibilidade de os cidadãos participarem da vida pública, de inter-
ferirem na vida da cidade (civitas em latim e polis em grego). Em ambos os
casos, os escravos, que obviamente não possuíam o estatuto de cidadãos (até

57
porque moravam fora de seus muros), estavam excluídos da participação e
das benesses proporcionadas pela cidadania.
Vê-se que, desde Roma, a cidadania esteve ligada a privilégios, pois os
direitos dos cidadãos eram restritos a determinadas classes e grupos de pes-
soas. Ao longo da história, porém, seu conceito foi se aprimorando, sendo
que na Idade Moderna ocorreu a união dos direitos universais com o concei-
to de nação, introduzindo os princípios de liberdade e igualdade perante a
lei e contra os privilégios. Entretanto, mesmo assim, a cidadania continuava
restrita às elites, porque depende de direitos políticos, vetados para a maio-
ria da população.
No Brasil, o conceito de cidadania vem sendo construído desde o adven-
to da Constituição de 1891 (redigida por Rui Barbosa), sendo que um gran-
de passo em seu desenvolvimento deu-se a partir da promulgação da Cons-
tituição de 1988, conhecida como “A Constituição Cidadã”.
Segundo Dallari (1998), trata-se de um conceito que expressa um con-
junto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da
vida e do governo de seu povo. Logo, quem não “tem cidadania está margi-
nalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa
posição de inferioridade dentro do grupo social” (DALLARI, 1998, p. 14).
Todavia, ainda prevalece entre nós uma inconteste visão reducionista da
cidadania, pois pode-se afirmar que uma grande parcela dos habitantes das
cidades (mormente os moradores de áreas favelizadas, onde até pouco tem-
po o poder público só se fazia presente por meio de intervenções de nature-
za exclusivamente policiais) ainda não a tem, ou não a exerce, pois na atual
sociedade de consumo, ser cidadão significa ter recursos para consumir,
conforme diria Nestor Clancline (2010).
O conceito contemporâneo de cidadania reside, sobretudo, na concep-
ção estruturante que preconiza que esta não deve mais se resumir a um con-
junto de direitos e deveres políticos e sociais: ela deve se desenvolver alicer-
çada na capacidade popular de organização, participação e intervenção so-
cial, com vistas também a possibilitar que o ambiente (construído) seja vis-
to, planejado e preservado pensando nas gerações futuras.
Por conseguinte, deve compreender um conjunto de deveres não só do
cidadão para com o Estado e com a nação derivada, mas também com o pró-
ximo e, em especial, com o meio ambiente (com o planeta), uma vez que
somos parte de um ecossistema complexo que funciona de maneira inte-
grada.

2. O HOMEM E A CONCEPÇÃO ANTROPOMÓRFICA

O homem, até pouco tempo, era visto sobretudo como um elemento su-
perior e extrínseco em relação ao meio ambiente (sujeito apenas de direitos
no que pertine a este), precisando refazer o caminho de integração como
parte componente que é deste, na qualidade fundamental de sujeito tam-

58
bém de deveres para com toda a biosfera. É importante consignar, por opor-
tuno, que biosfera é o conjunto de todos os ecossistemas da Terra, resultado
da conjunção de causas astronômicas, geofísicas, geoquímicas e biológicas
frequentemente ligadas entre si por relações de interdependência, ao passo
que meio ambiente é o conjunto de condições, leis, influências e infraestru-
tura de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida
em todas as suas formas.
A concepção estruturante antropomórfica do homem no centro de tudo
requer, portanto, mudança de concepção (de pensar e de sentir), ainda que
se apresente com enorme dificuldade de ser rompida, eis que é a visão que
perdurou durante praticamente toda a história da espécie humana: o ho-
mem – e apenas este – era a razão da existência de tudo à sua volta, o exem-
plar máximo da perfeição da criação divina, tese esta corroborada fortemen-
te no Mundo Ocidental pela base filosófico-religiosa judaico-cristã.1
Trata-se não somente de uma questão de simplesmente repensar o ho-
mem, mas, em termos mais realistas, de reformular o papel do gênero hu-
mano na sociedade organizada, criando novos pilares a partir dos quais deve
ser construída uma nova concepção político-jurídica de cidadania2 – com
novos paradigmas de direitos e obrigações –, ampliando, consequentemen-
te, a limitada noção de responsabilidade social para incorporar o meio am-
biente e sua correspondente responsabilidade, forçando o desenvolvimento
de um novo e ampliado conceito de responsabilidade socioambiental.
O termo meio ambiente é conceituado na lei que instituiu a Política Na-
cional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981), em seu artigo 3º, inciso I,
como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem físi-
ca, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas
formas”. Assim, o homem, como habitante da Terra, é uma destas formas de
vida que é abrigada e regida pelo meio ambiente, posto que é este conjunto
de fatores que possibilita à espécie humana sobreviver neste planeta.
Durante muitos séculos, o ser humano utilizou-se da matéria-prima
abundante ao seu redor para se desenvolver e evoluir, enriquecer, conceber
domínios etc. Tal uso não conseguiu, porém, diminuir a capacidade de rege-
neração do meio ambiente, seja pelo número de habitantes do mundo não
pesar sobre esta capacidade durante aqueles tempos (FRIEDE, 2014), seja
por ainda não serem utilizados métodos mais agressivos na consecução dos
objetivos pretendidos.

1 A concepção fundamental e uníssona desta tese repousa, acima de tudo, na ideia de


superioridade do gênero humano sobre o meio ambiente. Esta no livro Gênesis da Bí-
blia.
2 Modernamente já se conceitua cidadão como sendo “o indivíduo que tem direito a
ter direitos” (D’URSO, 2005). Assim, entende-se que, para se ter direito a ter direitos,
é necessário cumprir determinados deveres, obrigações, que seriam a contrapartida na
obtenção de benesses proporcionadas pelo Estado-Nação.

59
3. O DESENVOLVIMENTO INSUSTENTÁVEL

Entretanto, tudo mudou nos últimos 250 (duzentos e cinquenta) anos,


com o início da chamada Revolução Industrial3. Este marco temporal foi o
ponto de partida para mudanças sentidas até os dias de hoje ao redor do glo-
bo, tais como a mecanização produtiva, o aumento populacional em virtude
de melhores condições de vida (não obstante a piora expressiva destas para
as classes sociais mais baixas durante suas primeiras décadas), o desenvolvi-
mento tecnológico e social etc. Ocorre que referida revolução, obviamente
como toda mudança, trouxe problemas que apenas nas últimas décadas co-
meçaram a ser melhor percebidos, bem como devidamente debatidos e en-
frentados.
Se antes a população mundial não era um fardo para o planeta, seu cres-
cimento geométrico4 tornou-se uma questão a ser tratada com enorme cui-
dado (FRIEDE, 2010). Como alimentar os habitantes de toda a Terra sem
exaurir suas lavouras e sem causar a extinção de inúmeras espécies de ani-
mais? Ademais, como sustentar o aumento qualitativo nas condições de vida
da humanidade se muitos recursos utilizados para tanto já estão perto de seu
esgotamento, existindo cálculos de que seria necessário aproximadamente
um planeta e meio em recursos naturais para mantermos a capacidade de re-
generação da Terra?
Segundo dados da Global Footprint Network (2010), a pegada ecológica
da humanidade atingiu a marca de 2,7 hectares globais (gha) por pessoa, em
2007, para uma população mundial de 6,7 bilhões de habitantes na mesma
data (segundo a ONU). Isto significa que para sustentar esta população se-
riam necessários 18,1 bilhões de gha; entretanto, o planeta Terra possui
aproximadamente 13,4 bilhões de hectares globais (gha) de terra e água bio-
logicamente produtivas.
É exatamente nesse contexto analítico que a importância do homem é
revelada, particularmente no que diz respeito à sua mandatória inserção no

3 A Revolução Industrial foi um fenômeno de transição para inéditos processos de


manufatura no período que se estendeu da segunda metade do século XVIII até quase
o fim da segunda metade do século subsequente. Esta transformação incluiu a substitui-
ção de métodos de produção artesanais para a produção por máquinas, a fabricação de
novos produtos químicos, novos processos de produção de ferro, maior eficiência na
utilização da energia hídrica, o uso crescente da energia a vapor e o desenvolvimento das
máquinas-ferramentas, além da substituição da madeira e de outros biocombustíveis
pelo carvão. Referida revolução teve como pioneira a Inglaterra, espalhando-se em pou-
cas décadas para o restante da Europa Ocidental e para os Estados Unidos (DANEM-
BERG).
4 Se a humanidade levou milhares de anos para chegar à marca do bilhão de habitan-
tes, bastaram pouco mais de 200 (duzentos) anos para atingirmos a marca atual (entre
1800 e 2010, a população mundial cresceu aproximadamente sete vezes – de 1 para 7
bilhões de habitantes) (ALVES, 2010).

60
meio ambiente, uma vez que, na qualidade de ser pensante, ele precisa en-
tender que a sociedade de consumo tal como está estruturada não se susten-
ta. É desta compreensão que surge a ideia de desenvolvimento sustentável.
E todas estas questões dizem respeito à educação, ou estão intrinsecamente
ligadas a ela, pois é na escola que a “civilização ocidental” aprendeu que o
homem é superior e não aprendeu que os recursos naturais da Terra não
eram finitos. Na verdade, a escola não ensinou nem o respeito utilitarista ao
Planeta.
As normas jurídicas revelam o nível do estágio de consciência de uma
dita sociedade. Em se tratando de questões relativas ao meio ambiente, a
Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988, de forma
inédita e em perfeita sintonia com o processo de constitucionalização5 da tu-
tela do meio ambiente, dedicou ao tema um capítulo (Capítulo VI – Do
Meio Ambiente, Título VIII – Da Ordem Social) inteiramente destinado a
assegurar tal proteção, conforme previsão contida no artigo 225, assim
transcrito: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibra-
do, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, im-
pondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preser-
vá-lo para as presentes e futuras gerações”.
O parágrafo primeiro do mesmo artigo esmiúça em vários incisos as ta-
refas do Poder Público para efetivação desse direito, com destaque para:
criação de espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente
protegidos (inciso III); estudo prévio de impacto ambiental para instalação
de obra ou atividade potencialmente causadora de degradação do meio am-
biente (inciso IV); promoção da educação ambiental em todos os níveis de
ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente (in-
ciso VI); proteção da fauna e da flora e vedação às práticas que coloquem em
risco sua função ecológica e provoquem a extinção de espécies ou submetam
animais a crueldade (inciso VII).
O parágrafo segundo versa sobre a obrigação dos que exploram recursos
naturais de recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução

5 De acordo com HORTA (2002, p. 270), “Em matéria de defesa do meio ambiente,
a legislação federal brasileira, toda ela posterior ao clamor recolhido pela Conferência
de Estocolmo, percorreu três etapas no período de tratamento autônomo, iniciado em
1975: a primeira, caracterizada pela política preventiva, exercida por órgãos da adminis-
tração federal, predominantemente; a segunda coincide com a formulação da Política
Nacional do Meio Ambiente, a previsão de sanções e a introdução do princípio da res-
ponsabilidade objetiva, independentemente da culpa, para indenização ou reparação do
dano causado; e a terceira representada por dupla inovação: a criação da ação civil pú-
blica de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, sob a jurisdição do
Poder Judiciário, e a atribuição ao Ministério Público da função de patrono dos interes-
ses difusos da coletividade no domínio do meio ambiente”. Toda esta evolução legisla-
tiva demonstra como o homem já é visto no Estado Brasileiro como um sujeito não ape-
nas de direitos, mas também de deveres para com o meio ambiente, restando umbilical-
mente integrado a este e dele sendo plenamente indissociável.

61
técnica exigida pelo órgão público competente; já o parágrafo terceiro trata
das sanções penais e administrativas às condutas e atividades consideradas
lesivas ao meio ambiente, independentemente da obrigação de reparar os
danos causados.
Da leitura do citado artigo, notadamente de seu caput, percebe-se de
forma nítida que o Estado brasileiro já entende o ser humano como parte
integrante e indissociável do meio ambiente, concedendo-lhe o direito de
dele usufruir de uma maneira ecologicamente equilibrada, mas também lhe
impondo o dever de defendê-lo e preservá-lo para si e para as gerações vin-
douras.
Essa necessária simbiose entre o direito e o dever com relação ao meio
ambiente faz-se ainda mais importante se levarmos em consideração que a
pujança do Brasil sempre decorreu, em grande parte, de sua produção agrí-
cola, cujos cultivos da cana-de-açúcar e do café, bem como a agricultura me-
canizada de hoje em dia, proporcionaram e ainda propiciam longos períodos
de desenvolvimento econômico.6
Todavia, setores de alguns países ainda não percebem o homem como
uma parte do meio ambiente, insistindo na prática do desenvolvimento eco-
nômico a qualquer custo, dentre eles empresários da maior economia da
atualidade, os Estados Unidos.
Um exemplo recente é a exploração de gás de xisto pelo método de fra-
tura hidráulica7, que pode afetar o meio ambiente em decorrência do vaza-

6 Vivemos, sem sombra à dúvidas, em um país privilegiado no que diz respeito à


posição geográfica no globo, possuindo a maior área agrícola cultivável em que pese
sermos apenas o quinto país em área territorial. Tal tesouro, entretanto, não deve ser
tratado da mesma forma como os países do Golfo Pérsico – à exceção dos Emirados
Árabes Unidos, que estão sabendo aproveitar os dividendos proporcionados pelo “ouro
negro” para desenvolver sua indústria turística, sua fonte de renda quando o petróleo
houver se esgotado em seus poços – tratam sua abundância em petróleo. Nossa fronteira
agrícola já está perto de atingir sua área territorial máxima sem adentrar as áreas urbanas
e as áreas de proteção ambiental. Assim, não podemos, sob a ânsia do desenvolvimento
a qualquer custo, prejudicar o meio ambiente para gerar mais riqueza, pois os problemas
que serão gerados (desertificação, erosão, falta d’água, poluição, para citar os mais co-
muns) cairão sobre nós mesmos. A saída para conciliar crescimento econômico e susten-
tabilidade ambiental, por conseguinte, virá do necessário desenvolvimento tecnológico,
o que não deve ocorrer só pelas mãos da iniciativa privada, mas também deve ser incen-
tivado pelo setor público.
7 O gás de xisto é um gás natural encontrado dentro de formações de xisto. Sua
exploração ganhou força no início deste século, especialmente nos Estados Unidos, sen-
do vista como uma forma de combater a dependência desta nação do petróleo prove-
niente de áreas em situação de conflito permanente ao redor do globo. Devido à profun-
didade em que se encontra, o método mais utilizado para a obtenção do gás em comento
é o conhecido como “fratura hidráulica”, no qual injeta-se líquido misturado com areia
ou agentes químicos com o intuito de fragmentar a rocha, o que libera o gás retido para
poços. A areia e os agentes químicos porventura utilizados funcionam como preenche-
dores dos espaços de onde saiu o gás que é liberado para os poços. Entretanto, relatam-

62
mento de produtos químicos utilizados na extração do gás para lençóis freá-
ticos e pela liberação de gases causadores do efeito estufa para a atmosfera.
Por outro lado, sociedades tradicionalmente poluidoras têm apelado
para métodos drásticos na mudança de relação com o meio ambiente, como
é o caso da China, em que foi declarada uma verdadeira guerra à poluição.
Uma das principais armas nesta batalha está sendo a imposição da redução
do uso do carvão como fonte de energia.8
Por conseguinte, a tão almejada formação do novo conceito de cidadão
infelizmente não se concretizará enquanto ainda restarem no seio da socie-
dade global grupos com instinto destrutivo, característicos da humanidade
até poucas décadas atrás. Esses grupos interessados somente no lucro ime-
diato, a qualquer custo, deverão ser contidos por leis e dispositivos de pres-
são pública da população. O cidadão não pode e não deve aceitar o rio poluí-
do sem nada fazer.

4. A RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL

Em que pese a responsabilidade social9 ainda ser um conceito relativa-


mente recente para boa parte da sociedade – posto que surgiu com força
apenas na segunda metade do Século XX –, a verdade é que já convivemos,
na atualidade, com a natural evolução desta, ou seja, a responsabilidade so-
cioambiental.
Ainda que a responsabilidade social englobe a ideia de que o mundo cor-
porativo, voluntariamente, dará sua parte de contribuição para uma socieda-
de mais justa e um meio ambiente mais limpo, o certo é que o que a difere
de sua evolução é o enfoque dado a seus bens maiores.
Enquanto que no conceito de responsabilidade social a sociedade ocupa
o patamar mais elevado como objetivo das ações do voluntariado, a respon-
sabilidade socioambiental tem o meio ambiente como o bem a ser protegido

se diversos problemas envolvendo tal método, desde possíveis tremores de terra até a
liberação de agentes cancerígenos ou poluidores de lençóis freáticos (What is shale gas
and why is it important?).
8 O corte no consumo de carvão, a principal fonte de energia no país, deve chegar a
220 milhões de toneladas este ano, um aumento de 3,9% em relação a 2013.
9 “Artigo 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simul-
taneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes
requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”

63
com mais afinco, e com enorme razão, eis que é este, conforme já visto mais
acima, que abriga e rege a vida em todas as suas formas.
Essa nova responsabilidade não deve, porém, ser promovida apenas pelo
empresariado, mas também pelo Poder Público e pelos próprios cidadãos –
segundo se infere da leitura do caput do artigo 225 da CRFB –, nas mais va-
riadas vertentes, sob pena de não se conseguir uma proteção do meio am-
biente plenamente integrada.
Com relação ao Poder Público, um exemplo de promoção da responsa-
bilidade socioambiental é a recente mudança de paradigma na visão referen-
te à proteção da propriedade privada, cuja função a ser exercida não deve
mais se resumir apenas à social.
A Constituição de 1988 já faz menção a essa nova ideia em seu artigo
186, pensamento que foi melhor explorado no Código Civil de 2002 – fes-
tejado por suas inovações em diversas áreas –, que no artigo 1.228, §1º, traz
o seguinte: “Artigo 1.228.

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas


finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de confor-
midade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais,
o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a
poluição do ar e das águas.

Fazendo a necessária exegese dos mencionados textos legais, extrai-se


que o Poder Público passou a enxergar a função socioambiental da proprie-
dade como algo que consiste em uma atividade exercida no interesse não
apenas de seu proprietário, mas, principalmente, no interesse da sociedade.
Deste modo, a função ambiental volta-se para a manutenção do equilíbrio
ecológico como interesse de todos, beneficiando a sociedade e o próprio ci-
dadão proprietário, sendo uma importante aliada no cumprimento desta
função a delimitação das chamadas reservas legais.
Outros exemplos contemporâneos de mudança por parte do Poder Pú-
blico na forma de abordar a temática ambiental – e que demonstram seu in-
teresse em promover a responsabilidade socioambiental – são a utilização
cada vez mais frequente do Princípio do Poluidor-Pagador, que leva à res-
ponsabilização de grandes empresas por danos ambientais e ao aumento da
criação de unidades de conservação ambiental nos últimos 20 (vinte) anos,
que leva em conta que os recursos ambientais são escassos e a produção de
bens de consumo gera reflexos, resultando em sua degradação e escassez.
Além do mais, ao utilizar gratuitamente um recurso ambiental, está se ge-
rando um enriquecimento ilícito, pois como o meio ambiente é um bem que
pertence a todos, boa parte da comunidade nem utiliza um determinado re-
curso, ou, se utiliza, o faz em menor escala.
As unidades de conservação cumprem uma série de funções cujos bene-
fícios são usufruídos por grande parte da população brasileira – inclusive por
setores econômicos em contínuo crescimento, sem que se deem conta disto.

64
Alguns exemplos: parte expressiva da qualidade e da quantidade da água
que compõe os reservatórios de usinas hidrelétricas, provendo energia a ci-
dades e indústrias, é assegurada por unidades de conservação. O turismo
que dinamiza a economia de muitos dos municípios do país só é possível pela
proteção de paisagens proporcionada pela presença de unidades de conser-
vação. O desenvolvimento de fármacos e cosméticos consumidos cotidiana-
mente, em muitos casos, utiliza espécies protegidas por unidades de conser-
vação. Ao mesmo tempo, as unidades de conservação contribuem de forma
efetiva para enfrentar um dos grandes desafios contemporâneos, a mudança
climática. Ao mitigar a emissão de gás carbônico e de outros gases de efeito
estufa decorrente da degradação de ecossistemas naturais, as unidades de
conservação ajudam a impedir o aumento da concentração destes gases na
atmosfera terrestre. Estes exemplos permitem constatar que estes espaços
protegidos desempenham papel crucial na proteção de recursos estratégicos
para o desenvolvimento do país, um aspecto pouco percebido pela maior
parte da sociedade, incluindo tomadores de decisão, e que, ademais, possi-
bilita enfrentar o aquecimento global.
Quanto ao papel dos cidadãos, pequenas ações condizentes com o con-
ceito de responsabilidade socioambiental já teriam o condão de auxiliar na
construção de uma nova concepção político-jurídica de cidadania, tais como
a economia no uso da água e da energia elétrica, a maior utilização do trans-
porte público em detrimento do veículo particular etc, além da participação
política no sentido de apoiar ações em prol do ambiente.
Vê-se, portanto, que é crucial que não apenas o mundo corporativo pro-
mova a responsabilidade socioambiental, pois só com a contribuição dos três
diferentes grupos citados é que se estará protegendo a contento o meio am-
biente.
O momento atual encerra um importante capítulo de nossa história ju-
rídico-hermenêutica no que concerne, em especial, à questão da cidadania.
Tal momento não somente permite mas, verdadeiramente, obriga-nos à re-
flexão que conduzirá ao estabelecimento de um novo e mais amplo conceito
de responsabilidade individual e coletiva, logo, de cidadania.
Nesse sentido, deve-se questionar paradigmas anteriores, que perce-
biam os problemas humanos de forma simplista e fragmentada, fundados no
método cartesiano de pensar. Esta visão, conforme Morin (2010), inevita-
velmente teria conduzido à atual crise ambiental, que exige repensar os pa-
radigmas educacionais disciplinares para que se possa formar uma nova (e
ampliada) concepção de cidadania, incluindo a responsabilidade socioam-
biental.

5. CONCLUSÃO

Após a reflexão trazida por este estudo, constata-se que somente com a
necessária criação de uma nova concepção de “cidadania” é que a humanida-

65
de conseguirá ultrapassar o atual momento em que vivemos sem maiores
prejuízos ou sofrimentos. Não há dúvidas de que estamos presenciando o
fim da vida em sociedade tal como a conhecemos, mas cabe somente a nós
fazermos esta transição de modo de vida de uma maneira que este fim seja
um novo começo – mais racional e harmonizador –, e não um ponto final na
existência de uma humanidade saudável neste planeta.
Para tanto, a formação de um novo conceito de cidadão faz-se mandató-
ria, pois só assim o homem passará a se ver como parte integrante e indisso-
ciável do meio ambiente, pautando suas ações com base na responsabilidade
socioambiental – responsabilidade esta que deverá ser o norte de atuação
também para o mundo corporativo e o Poder Público – e tendo um papel
primordial na preservação do meio ambiente.
Como diria Antonio Houaiss (2014), a falta de “cidadania ambiental”
nos diversos países (os desenvolvidos já esgotaram as suas matérias primas e
os subdesenvolvidos estão em rota de esgotamento) só contribuirá, cada vez
mais, para o esgotamento dos recursos naturais necessários à manutenção de
nossa própria existência no planeta. Não é por outra razão, portanto, que
deve ser reconhecida aos cidadãos a efetiva existência de novos deveres con-
dizentes com a realidade pautada pelo reconhecimento do ser humano
como parte integrante e indissociável do próprio meio ambiente, e não mais
como elemento diverso que apenas utiliza, em seu benefício, os recursos dis-
ponibilizados pela biosfera. Muitos, aliás, contaminam os bens ambientais
que são de todos (como o ar e a água) em benefício de seu próprio enrique-
cimento.

6. REFERÊNCIAS

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66
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O que é a Responsabilidade Social Empresarial? Disponível em: “http://www.
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What is shale gas and why is it important? Disponível em: “http://www.eia.gov/
energy_in_brief/article/about_shale_gas.cfm”. Acessado em: 9 Mai 2014.

67
Marco legal da regulamentação do uso de
animais em experimentação cientifica e
didática no Brasil

Luciana de França Oliveira Rodrigues


Henrique Lopes Dornelas
Amanda Pessoa Parente

RESUMO: A utilização de animais em pesquisa é um tema de investiga-


ção e contestação constante por grupos de proteção aos animais. O objetivo
do trabalho foi de verificar e analisar quais as disposições legais existentes
para a proteção dos animais em pesquisa e quais os órgãos incumbidos de
fiscalização. A pesquisa centrou-se no estudo dos diversos diplomas legais
de proteção aos animais e especificamente no estudo da regulação da utili-
zação de animais em pesquisa – Lei nº 11.794/08, conhecida como Lei
Arouca, que regulamentou o disposto no o inciso VII do § 1º do art. 225 da
Constituição Federal, estabelecendo procedimentos para o uso científico de
animais e o uso de animais em pesquisas e ensino.

PALAVRAS-CHAVE: Pesquisa com animais, Regulação, Lei nº


11.794/08.

ABSTRACT: The use of animals in research is a subject of constant in-


vestigation and challenge by animal protection groups. The objective of the
study was to verify and analyze the existing legal provisions for the protec-
tion of animals in research and which bodies are responsible for inspection.
The research focused on the study of the various legal instruments for the
protection of animals and specifically on the study of the regulation of the
use of animals in research – Law No. 11.94/08, known as the Arouca Law,
which regulated the provisions of section VII of § 1 of art. 225 of the Fed-
eral Constitution, establishing procedures for the scientific use of animals
and the use of animals in research and teaching.

KEYWORDS: Animal research, Regulation, Law nº 11794/08.

69
INTRODUÇÃO

Descrições sobre a dissecção de animais vivos foram encontradas em do-


cumentos gregos antigos, desde aproximadamente 500 a.C. médicos cien-
tistas como Aristóteles, Herófilos e Erasístratus realizaram os experimentos
para descobrir as funções dos organismos vivos. Theophrastus, um sucessor
de Aristóteles, discordou, objetando a vivissecção de animais com base em
que, como os humanos, eles podem sentir dor e causar dor aos animais era
uma afronta aos deuses (PAIXÃO, 2001).
O médico e filósofo romano Galeno (130-200), cujas teorias da medici-
na eram influentes em toda a Europa durante quinze séculos, envolvidos na
dissecação pública de animais (incluindo um elefante), que era uma forma
popular de entretenimento na época (GUIMARÃES, et al, 2016).
O filósofo francês René Descartes (1596-1650), que ocasionalmente
experimentou animais vivos, incluindo pelo menos um coelho, além de en-
guias e peixes, acreditava que os animais eram “autômatos” que não podiam
experimentar dor ou sofrer como os humanos. Descartes reconheceu que os
animais podiam sentir, mas porque não podiam pensar, argumentou, eles
não conseguiram conscientemente experimentar esses sentimentos (FER-
RARI, 2004).
O médico inglês William Harvey (1578-1657) descobriu que o coração,
e não os pulmões, circulava sangue em todo o corpo como resultado de seus
experimentos em animais vivos (FERRARI, 2004).
Nos Estados Unidos, a primeira lei federal que regulou a pesquisa em
animais foi a Lei de Bem-estar dos Animais de Laboratório aprovada pelo
Congresso em 1966. Esta lei abrangeu o transporte, a venda e o manuseio de
animais e providenciou o licenciamento de concessionários de animais para
evitar o roubo de animais de estimação e sua venda para instalações de pes-
quisa.
Na União Europeia, antes de 1986, a legislação que regulava a proteção
dos animais utilizados na pesquisa variou entre as nações que compõem a
compõem. Em 1986, o Conselho das Comunidades Europeias emitiu a Di-
retiva 86/609 / CEE do Conselho. O objetivo desta diretriz era eliminar as
disparidades nas leis laboratoriais de proteção animal entre os países mem-
bros.
A principal legislação que regula o uso de animais na pesquisa no Reino
Unido é a Lei de Animais (Procedimentos Científicos) de 1986. Este ato
(também conhecido como ASPA) prevê o licenciamento de procedimentos
experimentais e outros procedimentos científicos realizados em qualquer
vertebrado animal que pode causar dor, sofrimento, sofrimento ou danos
duradouros. Em 1998, foi alterado para estar mais em conformidade com a
Diretiva 86/609 / CEE do Conselho.
A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) de 1978

70
pode ser considerado como o documento internacional mais importante
para a proteção dos animais.
É importante frisar a Declaração Universal dos Direitos dos Animais de
1978, que tem validade mundial, para todos os países que fazem parte da
ONU, que em seu art. 3º, menciona, que: Artigo 3º 1. Nenhum animal será
submetido nem a maus tratos nem a atos cruéis. 2. Se for necessário matar
um animal, ele deve de ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a
não provocar-lhe angústia.
Especificamente no que se refere a utilização dos animais em pesquisa a
Declaração Universal dos Direitos dos Animais é bem clara em seu artigo 8º
e enfatiza que: ARTIGO 8º: a) A experimentação animal, que implica em
sofrimento físico, é incompatível com os direitos do animal, quer seja uma
experiência médica, científica, comercial ou qualquer outra. b) As técnicas
substutivas devem ser utilizadas e desenvolvidas.

1. Princípios científicos na experimentação com animais

No final da década de 1950, dois cientistas Willian Russell e Rex Burch,


publicaram o livro “Princípios das Técnicas Experimental Humanas” (Prin-
ciples of Humane Experimental Technique, Russel e Burch, 1959) e lançaram
o programa dos 3Rs: Reduction, Replacement e Refinement (Redução, Repo-
sição e Refinamento); com o objetivo da utilização de forma mais humaniza-
da e ética os animais na experimentação.
Segundo Cazarin; Corrêa; Zambrone (2004, p. 290-291):

O marco inicial do programa de redução, refinamento e substituição (3Rs) foi


em 1954, num projeto iniciado pela Federação das Universidades para o Bem-
estar Animal (The Universities Federation for Animal Welfare – UFAW’s),
que resultou na publicação dos Princípios das Técnicas Experimentais Huma-
nas (The principles of Humane Experimental Technique) em 1959, por Wil-
lian Russell e Rex Burch, considerados os iniciadores desta filosofia. (...) O pro-
grama 3Rs é assim denominado em função das iniciais, em inglês, de seus prin-
cipais objetivos: 1) redução (Reduction), 2) refinamento (Refinement) e 3)
substituição (Replacement), que de forma resumida significam a redução do
número de animais utilizados na pesquisa, a melhora na condução dos estudos,
no sentido de reduzir o sofrimento ao mínimo possível, e a busca de métodos
alternativos que, por fim, substituam os testes in vivo. Os dois primeiros repre-
sentam os objetivos a curto-prazo e o último, a meta máxima a ser alcançada.

Tais princípios foram um marco na pesquisa científica com utilização de


animais, e nesse sentido afirma Régis e Cornelli (2012, p. 234-235) que:

A grande referência conceitual no tocante à experimentação animal, adotada


pela comunidade científica, foi a proposta por WMS Russel e RL Burch no livro
The principles of humane experimental technique, cuja primeira edição data de
1959. Este trabalho estabeleceu a adoção dos conceitos de replacement (substi-

71
tuição), reduction (redução) e refinement (refinamento), conhecido como o
conceito dos 3R.

Os princípios dos 3Rs é adotado internacionalmente como uma necessi-


dade para a adequação da pesquisa em modelos animais e pode ser assim re-
sumido:

Qualquer técnica que refine um método existente para diminuir a dor e o des-
conforto dos animais, que reduza seu número em um trabalho particular ou que
substitua o uso de uma espécie animal por outra, de categoria inferior na escala
zoológica, ou por métodos computadorizados ou in vitro, deve ser considerada
como método alternativo (SILVA, 2018).

Os princípios dos 3Rs, Redução, Reposição e Refinamento, podem ser


compreendidos da seguinte forma:
Reduction (Redução) representa a ideia de usar sempre o menor número
possível de animais para o objeto de investigação. Isso pode ser conseguido
com, por exemplo, o desenvolvimento de técnicas genéticas ou de aparelha-
gem que permitam a geração de animais com menor variabilidade de respos-
tas, reduzindo a necessidade de mais animais para se conseguir resultados
confiáveis.
De forma resumida, Redução diz respeito ao uso em menor número pos-
sível de animais em certos experimentos, apenas a quantidade necessária ca-
paz de fornecer resultados estatísticos significativos (BOTOVSCHENKO
RIVERA, 2001, p. 11).
Replacement (Reposição) significa a utilização de modelos alternativos
de investigação, por exemplo, utilizar gatos ou ratos em vez de macacos, cul-
tura de células em vez de modelos animais e, após longos períodos de expe-
rimentação e aquisição de dados, modelos computacionais.
Nesse sentido aponta Botovschenko Rivera (2001, p. 11)

Indica que se deve usar, sempre que possível, materiais sem sensibilidade,
como cultura de tecidos, modelos em computador no lugar de animais vivos.
Além disso, os mamíferos devem ser substituídos por animais com sistema ner-
voso menos desenvolvido.

Desta forma, com a reposição do modelo acaba por reduzir o uso de ani-
mais, dependendo do objetivo experimental.
E por último, Refinement (Refinamento) que significa o aperfeiçoamen-
to de todos os processos envolvidos na experimentação visando, no fim, a
redução do uso de animais ou redução do seu sofrimento. Como exemplo
podem-se citar o aperfeiçoamento da aparelhagem dos biotérios (de criação,
manutenção, etc.) e de desenhos experimentais em si, das técnicas que pos-
sam proporcionar o menor nível de aversão (dor, estresse e afins) possível.

72
2. A Evolução da Legislação de Proteção aos Animais no Brasil

Embora o cuidado adequado dos animais utilizados na pesquisa tenha


sido uma prioridade permanente para a maioria da comunidade científica,
ocorreram alguns casos de maus tratos de animais em laboratórios de pes-
quisa. Como consequência dessas ocorrências, bem como a pressão dos gru-
pos de proteção animal, o Congresso sancionou em 2008, a Lei Federal nº
11.794, conhecida por Lei Arouca, que estabelece normas para pesquisas
com animais.
O rol legislativo de proteção dos direitos dos animais ainda é pequeno e
recente, no Brasil. Além da mencionada Lei Arouca, pode-se citar algumas
normas importantes no contexto histórico de proteção aos animais.
Anteriormente a Lei Arouca, a primeira norma a regular e proteger os
animais foi o Decreto nº 16.590/24, que proibia nas casas de diversões pú-
blicas, as corridas de bovinos, brigas de aves, bem como toda e qualquer di-
versão que resultasse em maus-tratos aos animais, sendo revogado posterior-
mente pelo Decreto nº 11/91.
Posteriormente o Decreto-lei nº 24.645/34 determinou em seu artigo
1º que todos os animais existentes no país seriam tutelados do Estado, tra-
zendo no artigo 3º um rol de condutas consideradas como maus-tratos.
A Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei 3.688/41) em seu artigo
64, §1º estabelece punição aqueles que submetem animais vivos em expe-
riência dolorosa ou cruel.

Artigo 64. Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo:


Pena – prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa, de cem a quinhentos mil
réis.
§ 1º Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou cientí-
ficos, realiza em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa ou
cruel em animal vivo.
§ 2º Aplica-se a pena com aumento de metade, se o animal é submetido a tra-
balho excessivo ou tratado com crueldade, em exibição ou espetáculo público.

Em 1979 foi editada a Lei nº 6.638/79 que estabelecia normas para a


prática didático-científica da vivissecção de animais, estabelecendo em seu
artigo 1º que ficava permitida, em todo o território nacional, a vivissecção de
animais, nos termos desta Lei. Logo no artigo 3º estabelecia hipóteses em
que vivissecção não seria permitida, as quais eram: a) sem o emprego de
anestesia; b) em centros de pesquisas onde os estudos não fossem registra-
dos em órgãos competente; c) sem a supervisão de técnico especializado; d)
com animais que não tenham permanecido mais de quinze dias em biotérios
legalmente autorizados; e) em estabelecimentos de ensino de primeiro e se-
gundo graus e em quaisquer locais frequentados por menores de idade.
Já em 1998, com a Lei dos Crimes Ambientais, Lei nº 9.605/98, entrou
em vigor importante norma, para o Direito Ambiental, a Lei 9.605/98, que
trata dos Crimes Ambientais, e estabelece sanções penais e administrativas

73
derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras
providências. No contexto da experimentação animal, é importante desta-
car, o art. 32 e seus parágrafos, segundo o qual praticar ato de abuso, maus-
tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, na-
tivos ou exóticos: pena – detenção, de três meses a um ano, e multa, incor-
rendo nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em ani-
mal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem re-
cursos alternativos, com pena aumentada de um sexto a um terço, se ocorre
morte do animal.

3. Marco legal da regulamentação da pesquisa com Animais: Lei nº


11.794/08 – Lei Arouca

A Lei nº 11.794/08, conhecida como Lei Arouca, sancionada no ano de


2008, pode ser considerada o marco na regulamentação da pesquisa com
animais, suprindo o vácuo legislativo e atendendo desta forma os anseios da
comunidade cientifica nacional.
Com a promulgação da Lei Arouca ocorreu a revogação da Lei nº
6.638/79, e a regulamentação do disposto no artigo 225, §1º, inciso VII da
Constituição Federal de 1988:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,


bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se
ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público:
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que colo-
quem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou sub-
metam os animais a crueldade.

A Lei Arouca, estabelece em seu artigo 1º que a criação e a utilização de


animais em atividades de ensino e pesquisa científica, em todo o território
nacional, obedecerão aos critérios estabelecidos nesta Lei e que a utilização
de animais em atividades educacionais ficará restrita a estabelecimentos de
ensino superior e em estabelecimentos de educação profissional técnica de
nível médio da área biomédica.
No que concerne à criação ou a utilização de animais para pesquisa ficam
restritas, exclusivamente, às instituições credenciadas no CONCEA, e qual-
quer instituição legalmente estabelecida em território nacional que crie ou
utilize animais para ensino e pesquisa deverá requerer credenciamento no
CONCEA, para uso de animais, desde que, previamente, crie a CEUA (ar-
tigos 12 e 13 da Lei).
As penalidades pelo descumprimento das normas estabelecidas na lei
são penalidades administrativas aplicadas pelo CONCEA, sem prejuízo da
penalidade na esfera criminal, previstas da seguinte forma:

74
Art. 17. As instituições que executem atividades reguladas por esta Lei estão
sujeitas, em caso de transgressão às suas disposições e ao seu regulamento, às
penalidades administrativas de:
I – advertência;
II – multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 20.000,00 (vinte mil reais);
III – interdição temporária;
IV – suspensão de financiamentos provenientes de fontes oficiais de crédito e
fomento científico;
V – interdição definitiva.
Parágrafo único. A interdição por prazo superior a 30 (trinta) dias somente po-
derá ser determinada em ato do Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia,
ouvido o CONCEA.

Art. 18. Qualquer pessoa que execute de forma indevida atividades reguladas
por esta Lei ou participe de procedimentos não autorizados pelo CONCEA
será passível das seguintes penalidades administrativas:
I – advertência;
II – multa de R$ 1.000,00 (mil reais) a R$ 5.000,00 (cinco mil reais);
III – suspensão temporária;
IV – interdição definitiva para o exercício da atividade regulada nesta Lei.

Art. 19. As penalidades previstas nos arts. 17 e 18 desta Lei serão aplicadas de
acordo com a gravidade da infração, os danos que dela provierem, as circuns-
tâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do infrator.

Art. 20. As sanções previstas nos arts. 17 e 18 desta Lei serão aplicadas pelo
CONCEA, sem prejuízo de correspondente responsabilidade penal.

Art. 21. A fiscalização das atividades reguladas por esta Lei fica a cargo dos
órgãos dos Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, da Saúde, da
Educação, da Ciência e Tecnologia e do Meio Ambiente, nas respectivas áreas
de competência.

Por fim, estabelece que as instituições que criem ou utilizem animais


para ensino ou pesquisa existentes no País antes da data de vigência desta
Lei deverão criar a CEUA, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, após a
regulamentação referida no art. 25 desta Lei bem como compatibilizar suas
instalações físicas, no prazo máximo de 5 (cinco) anos, a partir da entrada
em vigor das normas estabelecidas pelo CONCEA, com base no inciso V do
caput do art. 5º da referida Lei.

4. O Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal – CON-


CEA

O Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal – CON-


CEA foi oficialmente instalado em 08 de dezembro de 2009 e seu regimen-
to interno foi aprovado pela Portaria MCT nº 263, de 31.03.2010, tendo

75
como previsão de sua criação o disposto no artigo 4º da Lei nº 11.794, 8 de
outubro de 2008.
Trata-se de um órgão integrante da estrutura do Ministério da Ciência e
Tecnologia, sendo uma instância colegiada multidisciplinar de caráter nor-
mativo, consultivo, deliberativo e recursal, para coordenar os procedimen-
tos de criação e utilização de animais em atividades de ensino e pesquisa
científica, conforme o disposto na Lei nº 11.794, 8 de outubro de 2008, e
no Decreto nº 6.899, de 15 de julho 2009.
O Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal – CON-
CEA, editou a Resolução Normativa nº 17, de 3 de julho de 2014 que dispõe
sobre o reconhecimento no país de métodos alternativos validados que te-
nham por finalidade a redução, a substituição ou o refinamento do uso de
animais em atividades de pesquisa, nos termos do inciso III do art. 5 da Lei
nº 11.794, de 8 de outubro de 2008, e sua regulamentação.
O artigo 2º da Resolução Normativa nº 17, de 03 de julho de 2014 esta-
belece o que seja método alternativo nos seguintes termos:

Art. 2º . Para os efeitos desta Resolução Normativa, considera-se:


I – Método Alternativo: qualquer método que possa ser utilizado para substi-
tuir, reduzir ou refinar o uso de animais em atividades de pesquisa;
II – Método Alternativo validado: método cuja confiabilidade e relevância para
determinado propósito foram determinadas por meio de um processo que en-
volve os estágios de desenvolvimento, pré-validação, validação e revisão por
especialistas, o qual está em conformidade com os procedimentos realizados
por Centros para Validação de Métodos Alternativos ou por estudos colabora-
tivos internacionais, podendo ter aceitação regulatória internacional;
III – Método Alternativo Reconhecido: é o método alternativo validado que foi
reconhecido pelo CONCEA.

A Resolução Normativa nº 25, de 29 de setembro de 2015 do CONCEA


baixa o Capítulo “Introdução Geral” do Guia Brasileiro de Produção, Manu-
tenção ou Utilização de Animais para Atividades de Ensino ou Pesquisa
Científica do Conselho Nacional de Controle e Experimentação Animal –
CONCEA, na qual estabelece inúmeras diretrizes em relação a utilização de
animais em pesquisa, orientando que um dos aspectos a ser considerado na
pesquisa e utilização de animais na pesquisa e no ensino é de que a utilização
de animais sempre impactará negativamente no seu bem-estar; seja porque
os animais serão expostos a manipulações diversas e a alterações genéticas;
seja somente por mantê-los em ambientes padronizados, que podem não
preencher totalmente suas necessidades e adaptações.
Dessa forma, de acordo com a Resolução Normativa nº 25 de 29 de se-
tembro de 2015, a elaboração do projeto de pesquisa ou atividade didática
deve levar em consideração os seguintes aspectos:
a) estar ciente de que a dor e o sofrimento dos animais devem ser mini-
mizados ou evitados. Este item é tão importante quanto alcançar os objeti-
vos científicos ou Didáticos;

76
b) seguir os Princípios Éticos da utilização de animais em atividades de
ensino ou Pesquisa científica e os conceitos dos 3Rs; ressaltando que a utili-
zação do princípio dos 3Rs é fundamental para que sejam seguidas as normas
impostas pelo CONCEA (MORAES, 2016).
c) conhecer a biologia e a etologia da espécie que será utilizada, bem
como lembrar as diferenças entre espécies e que o bem-estar possui dois
componentes: o físico e o comportamental;
d) documentar a atividade didática por meio de filmagens, gravações ou
fotografias de forma a permitir sua reprodução para ilustrar práticas futuras,
evitando-se a repetição desnecessária de procedimentos didáticos com ani-
mais;
e) prover alojamento, ambiente, alimentação e controle ambiental apro-
priados para a espécie;
f) realizar manejo adequado para a espécie e prever que o mesmo seja
executado por pessoas treinadas para esse fim, pois a intensidade de sofri-
mento causado pelo mau manejo e mau alojamento, muitas vezes, supera o
sofrimento resultante dos procedimentos experimentais;
g) possuir equipe técnica devidamente treinada e capacitada;
h) ter médico veterinário responsável pela saúde e bem-estar dos ani-
mais;
i) apresentar seu projeto à Comissão de Ética no Uso de Animais perti-
nente antes de iniciar sua execução.

5. A Comissão de Ética no Uso de Animais – CEUA

A criação da Comissão de Ética no Uso de Animais – CEUA é uma obri-


gatoriedade em cada instituição onde exista pesquisa com animais, a fim de
que sejam respeitadas as leis que tratam de pesquisa com utilização de ani-
mais.
Cada Comissão de Ética no Uso de Animais – CEUA é composta por
profissionais de diferentes áreas, tendo a incumbência de analisar e inspecio-
nar todos os experimentos que utilizam animais.
Nesse sentido, conforme o artigo 9º da Lei nº 11.794/08, as CEUAs são
integradas por: médicos veterinários e biólogos; docentes e pesquisadores na
área específica; 01 (um) representante de sociedades protetoras de animais
legalmente estabelecidas no País, na forma do Regulamento.
De acordo com a Diretriz Brasileira para o Cuidado e a Utilização de
Animais em Atividades de Ensino ou de Pesquisa Científica – DBCA (Ane-
xo da Resolução Normativa nº 30, de 02 de fevereiro de 2016 – DBCA),
pesquisadores e professores responsáveis por projetos ou protocolos com
animais devem submeter uma proposta por escrito à devida CEUA, relatan-
do sua justificativa e todos os aspectos relacionados ao bem-estar animal,
observando o Princípio dos 3Rs (replacement, reduction, refinement).
Já em relação a responsabilidade dos profissionais na utilização de ani-
mais em pesquisa é estabelecido na Diretriz Brasileira para o Cuidado e a

77
Utilização de Animais em Atividades de Ensino ou de Pesquisa Científica –
DBCA (Anexo da Resolução Normativa nº 30, de 02 de fevereiro de 2016
– DBCA) o seguinte:
a) Pesquisadores, professores e usuários de animais para fins de ensino
ou de pesquisa científica são responsáveis pelos aspectos relacionados ao
bem-estar dos animais. É de sua competência, no planejamento ou na con-
dução de projetos ou protocolos, considerar que os animais são seres sen-
cientes e que o seu bem-estar é fator essencial durante a condução das ativi-
dades de ensino ou de pesquisa científica.
b) Instituições que utilizam animais em atividade de ensino ou de pes-
quisa científica devem assegurar, por meio de uma CEUA, que o uso dos
animais ocorra em observância aos preceitos regidos nesta Diretriz, na Lei nº
11.794/2008, regulamentada pelo Decreto nº 6.899/2009, de 15 de julho
de 2009 e demais disposições legais vigentes pertinentes ao escopo da Lei nº
11.794/2008, especialmente com as resoluções do CONCEA.
c) Atividades de ensino ou de pesquisa científica que incluam animais
não podem ser iniciadas antes da aprovação formal e autorização da CEUA
da instituição em que os animais estarão sob análise.
De acordo com MORAES (2016) as principais normas que as CEUAs
devem seguir, de acordo com o CONCEA, são:
a) planejar e executar procedimentos baseados na sua relevância para a
saúde humana e animal, para o progresso dos conhecimentos, ou para o bem
da sociedade;
b) usar espécie, qualidade e número de animais apropriados;
c) prevenir ou minimizar o desconforto, a angústia e a dor de acordo com
os princípios da boa ciência;
d) utilizar sedação, analgesia ou anestesia apropriadas;
e) estabelecer o propósito do experimento;
f) propiciar manejo apropriado para os animais, dirigido e executado por
pessoas qualificadas;
g) realizar experimentos com animais vivos apenas por ou sob supervisão
direta de pessoas experientes e qualificadas.

6. Da Judicialização da utilização de animais em pesquisa

Embora as instituições de ensino superior sejam obrigadas a respeitarem


as disposições da Lei Arouca, não raro existem manifestações de organiza-
ções de defesa dos animais contestando os métodos utilizados e reivindican-
do a utilização de outros métodos de pesquisa, com objetivo de preservar os
diretos dos animais, com utilização do judiciário para tanto, como pode ser
vislumbrado nas decisões transcritas a seguir:

ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FACULDADE DE MEDICI-


NA DA UFSC. VIVISSECÇÃO. 1. Sustenta o Instituto Abolicionista Animal
que a UFSC, em sua faculdade de medicina, impõe sofrimento aos animais,

78
devendo ser obrigada, pelo Poder Judiciário, a substituir os métodos de vivis-
secção por outros menos cruéis, como o emprego de simuladores mecânicos, já
disponíveis no mercado e que não teriam preços extravagantes. 2. Todavia, não
há como se impor que a UFSC substitua o critério empregado até o momento
– ao que consta, necessário para que futuros médicos possam adquirir habilida-
de cirúrgica –, por simuladores ou outros métodos. Até o momento, deve pre-
valecer a presunção de que a UFSC está respeitando as disposições da Lei
11.794/2008, que criou o criou o CONCEA (Conselho Nacional de Controle
de Experimentação Animal, responsável por monitorar e avaliar a introdução
de técnicas alternativas que substituam a utilização de animais em ensino e pes-
quisa) e estabelece, em seu artigo 14, que “o animal só poderá ser submetido às
intervenções recomendadas nos protocolos dos experimentos que constituem a
pesquisa ou programa de aprendizado quando, antes, durante e após o experi-
mento, receber cuidados especiais, conforme estabelecido pelo CONCEA”.
(TRF-4 – AC: 50096848620134047200 SC 5009684-86.2013.404.7200, Re-
lator: VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, Data de Julgamento:
05/05/2015, QUARTA TURMA).

DIREITO ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.


VIVISSECÇÃO. DEPARTAMENTO DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DO PARANÁ. 1. Todos os seres que são capazes de sentir dor e
sofrer devem ter seus interesses considerados e defendidos pelos animais hu-
manos, isto é, nós. Os animais não humanos sencientes possuem, em face do
Estado e do particular, direito a não serem submetidos a qualquer forma de
experimentação científica ou didática (vivissecção). De outra banda, tendo em
vista a liberdade de investigação científica e o direito fundamental à saúde e à
melhoria da qualidade de vida, admitem-se alguns experimentos científicos
com animais não humanos sencientes, garantindo que não sejam submetidos a
sofrimento e observadas todas as boas práticas de manejo próprias de cada es-
pécie. 2. Assim, há que ser feita a ponderação, de forma a não comprometer a
saúde humana, caso fossem vedados experimentos com organismos vivos, pois
tal técnica é necessária à obtenção de habilidades, pelos futuros médicos, indis-
pensáveis para o exercício da missão de curar outros humanos. Aliás, muito
provavelmente a ciência e a medicina não teriam sido desenvolvidas ao ponto
que estão hoje, se não fossem utilizados organismos vivos para certas práticas
do ensino nas faculdades, que demandam acompanhamento de realidades que
somente podem ser verificadas com organismos vivos. 3. A utilização de ani-
mais em atividades de ensino e pesquisa está devidamente regulamentada pela
Lei nº 11.794/2008 (Lei Arouca), que estabelece os critérios éticos a serem
observados nos procedimentos didáticos científicos com animais vivos, bem
como determina que qualquer instituição legalmente estabelecida, no Brasil,
que utilize animais para ensino e/ou pesquisa deve ser credenciada junto ao
Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal – CONCEA. 4.
Estando as práticas da Universidade de acordo com a legislação, é de se despro-
ver o recurso de apelação.
(TRF-4 – AC: 50007736920144047000 PR 5000773-69.2014.404.7000, Re-
lator: MARGA INGE BARTH TESSLER, Data de Julgamento: 07/08/2015,
TERCEIRA TURMA).

79
Todavia, o judiciário nos dois casos supracitados se valeu do argumento
de que a utilização de animais em atividades de ensino e pesquisa está devi-
damente regulamentada pela Lei nº 11.794/2008 (Lei Arouca), que estabe-
lece os critérios éticos a serem observados nos procedimentos didáticos
científicos com animais vivos, bem como determina que qualquer institui-
ção legalmente estabelecida, no Brasil, que utilize animais para ensino e/ou
pesquisa deve ser credenciada junto ao Conselho Nacional de Controle de
Experimentação Animal – CONCEA, estando as práticas das instituições de
ensino nos dois casos de acordo com a legislação.
Dispõe os parágrafos do artigo 14 da Lei nº 11.794/08, o seguinte:

§ 1º O animal será submetido a eutanásia, sob estrita obediência às prescrições


pertinentes a cada espécie, conforme as diretrizes do Ministério da Ciência e
Tecnologia, sempre que, encerrado o experimento ou em qualquer de suas fa-
ses, for tecnicamente recomendado aquele procedimento ou quando ocorrer
intenso sofrimento.
§ 2º Excepcionalmente, quando os animais utilizados em experiências ou
demonstrações não forem submetidos a eutanásia, poderão sair do biotério
após a intervenção, ouvida a respectiva CEUA quanto aos critérios vigentes de
segurança, desde que destinados a pessoas idôneas ou entidades protetoras de
animais devidamente legalizadas, que por eles queiram responsabilizar-se.
§ 3º Sempre que possível, as práticas de ensino deverão ser fotografadas, filma-
das ou gravadas, de forma a permitir sua reprodução para ilustração de práticas
futuras, evitando-se a repetição desnecessária de procedimentos didáticos com
animais.
§ 4º O número de animais a serem utilizados para a execução de um projeto e
o tempo de duração de cada experimento será o mínimo indispensável para
produzir o resultado conclusivo, poupando-se, ao máximo, o animal de sofri-
mento.
§ 5º Experimentos que possam causar dor ou angústia desenvolver-se-ão sob
sedação, analgesia ou anestesia adequadas.
§ 6º Experimentos cujo objetivo seja o estudo dos processos relacionados à dor
e à angústia exigem autorização específica da CEUA, em obediência a normas
estabelecidas pelo CONCEA.
§ 7º É vedado o uso de bloqueadores neuromusculares ou de relaxantes muscu-
lares em substituição a substâncias sedativas, analgésicas ou anestésicas.
§ 8º É vedada a reutilização do mesmo animal depois de alcançado o objetivo
principal do projeto de pesquisa.
§ 9º Em programa de ensino, sempre que forem empregados procedimentos
traumáticos, vários procedimentos poderão ser realizados num mesmo animal,
desde que todos sejam executados durante a vigência de um único anestésico e
que o animal seja sacrificado antes de recobrar a consciência.
§ 10. Para a realização de trabalhos de criação e experimentação de animais em
sistemas fechados, serão consideradas as condições e normas de segurança re-
comendadas pelos organismos internacionais aos quais o Brasil se vincula.

Conforme dispõe o artigo 14 e parágrafos da Lei Arouca, transcrito aci-


ma, o animal só poderá ser submetido às intervenções recomendadas nos

80
protocolos dos experimentos que constituem a pesquisa ou programa de
aprendizado quando, antes, durante e após o experimento, receber cuidados
especiais, conforme estabelecido pelo CONCEA.

CONCLUSÃO

A Lei nº 11.794/08, conhecida como Lei Arouca regulamentou o inciso


VII do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo procedimen-
tos para o uso científico de animais e regulamenta o uso de animais em pes-
quisas e ensino.
Referida Lei estabeleceu a criação do Conselho Nacional de Controle de
Experimentação Animal – CONCEA e a partir de então várias diretrizes e
normas foram editadas por este órgão.
Com a edição da Lei Arouca, foi estabelecida a obrigatoriedade de cada
instituição de ensino superior onde ocorre pesquisa com animais em consti-
tuir uma Comissão de Ética no Uso de Animais – CEUAs, o que permitiu o
controle para que a legislação possa ser cumprida pelas instituições de ensi-
no e pesquisa.
Cada CEUA é composta por profissionais de diversas áreas com atribui-
ção de analisar e inspecionar todos os experimentos que utilizam animais, o
que é de fundamental importância para que a legislação setorial seja cum-
prida.
No que tange a aplicação dos métodos de pesquisa, é consenso de que a
aplicação do princípio dos 3Rs é medida que se impõe, para que as normas
impostas pelo CONCEA possam ser seguidas e efetivadas.

Referências

BOTOVSCHENKO RIVERA, Ekaterina Akimovna. ÉTICA NA EXPERIMENTA-


ÇÃO ANIMAL. Revista de Patologia Tropical, [S.l.], v. 30, n. 1, p. 9-14, set.
2011. ISSN 1980-8178. Disponível em: “https://www.revistas.ufg.br/iptsp/
article/view/15790”. Acesso em: 19 mar. 2018. doi:https://doi.org/10.5216/
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BRASIL. DECRETO-LEI Nº 3.688, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941. Lei das
Contravenções Penais. Disponível em “http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/decreto-lei/Del3688.htm”, acesso em 20 de fevereiro de 2018.
BRASIL. ANEXO DA RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 30, DE 02 DE FEVEREI-
RO DE 2016 – DBCA. Diretriz Brasileira para o Cuidado e a Utilização de
Animais em Atividades de Ensino ou de Pesquisa Científica – DBCA. Disponí-
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BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE
1988. Disponível em “http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constitui-
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81
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83
Os limites impostos à autonomia privada no
Direito Brasileiro: o paradoxal convívio entre
tutelas, indisponibilidades e liberdades
individuais

Bárbara Gomes Lupetti Baptista


Daniel Navarro Puerari

Resumo: Este trabalho busca tecer considerações sobre a permanente


tensão entre a autonomia privada e a tutela estatal. Nosso propósito busca
compreender quais são os limites jurídicos do exercício da autonomia priva-
da no Brasil? Como se dá a convivência entre a liberdade do cidadão, decor-
rente dos direitos da personalidade, e a tutela exercida cotidianamente pelo
Estado Brasileiro? Para ilustrar este paradoxo, descrevemos duas situações
concretas (os casos de barriga de aluguel e de body modification), que retra-
tam a colisão entre a tutela estatal dos direitos da personalidade e a autono-
mia privada e a liberdade individual no Brasil.

Palavras-chave: Autonomia Privada; Tutela do Estado; Direitos da Per-


sonalidade; Liberdades

Abstract: This paper seeks to make considerations about the permanent


tension between private autonomy and state tutelage. Our purpose is to un-
derstand what are the legal limits of the exercise of private autonomy in Bra-
zil? How does the coexistence between the freedom of the citizen, resulting
from the rights of the personality, and the tutelage exercised daily by the Bra-
zilian State? To illustrate this paradox, we describe two concrete situations
(the cases of surrogacy and body modification), which portray the collision
between state tutelage of personality rights and private autonomy and indi-
vidual freedom in Brazil.

Keywords: Private autonomy; Trusteeship of the State; Rights of the Per-


sonality; Freedoms

85
1. Considerações iniciais sobre a problemática

A questão que nos instigou a escrever este texto diz respeito ao nosso
estranhamento acerca do paradoxal convívio entre tutelas, indisponibilida-
des e liberdades individuais no direito brasileiro.
Quais são os limites jurídicos do exercício da autonomia privada no Bra-
sil?
Como se dá a convivência entre a liberdade do cidadão, decorrente dos
direitos da personalidade, e a tutela exercida cotidianamente pelo Estado
Brasileiro, através dos Tribunais?
Algumas situações empíricas que retratam a colisão entre direitos da
personalidade, e que serão descritas neste texto, é que serviram de base e de
impulso para pensarmos sobre esta problemática, que se apresenta, ao me-
nos para nós, como paradoxal.
No Brasil, com a consagração da dignidade da pessoa humana na Consti-
tuição da República de 1988, aliada à garantia do parágrafo 2º do artigo 5º,
que trata da tutela geral dos direitos fundamentais, verificamos que certas
prerrogativas individuais, inerentes à “pessoa humana”, foram alçadas a um
status privilegiado.
A CRFB/88 expressa, em seu art. 5º, X, que são “invioláveis a intimida-
de, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Além disso, osdireitos da personalidade também estão expressos em ca-
pítulo especial do CC/2002, arts. 11 a 21, tratando-se de direitos subjetivos
que todas as pessoas têm de defender o que lhe é próprio, ou seja, a suainte-
gridade física (vida, alimentos, o próprio corpo); a suaintegridade intelec-
tual (liberdade de pensamento, autoria científica, artística e literária); e a
suaintegridade moral (honra, imagem, recato, segredo profissional e do-
méstico, identidade pessoal, familiar e social). (LENZA, 2012, p.108).
Os direitos de personalidade, por não terem conteúdo econômico ime-
diato e não se destacarem da pessoa de seu titular, distinguem-se, portanto,
dos direitos de ordem patrimonial; e, nessa medida, conceitualmente, aca-
bam sendo considerados como direitos sobre os quais não se pode transacio-
nar ou dos quais não se pode, a princípio, dispor.
Além disso, a rigor, são: a) Intransmissíveis b) Irrenunciáveis c) Inaliená-
veis d) Imprescritíveise) vitalícios.
Pois bem. Associando-se esse contexto à clausula geral da tutela dos di-
reitos fundamentais, presente no parágrafo 2º do artigo 5º, que, como cedi-
ço, garante tutela aos direitos fundamentais não incorporados expressamen-
te, verifica-se que o núcleo da dignidade da pessoa humana passou a ser to-
mado como valor máximo do ordenamento jurídico.
A questão que este texto pretende colocar é, portanto, a de pensar sobre
o quanto esse núcleo dos direitos da personalidade, numa visão tutelar, res-
tringe as liberdades individuais (em vez de ampliá-las).

86
Melhor dizendo, em nome da tutela geral dos direitos da personalidade,
será que o ordenamento jurídico acaba restringindo a liberdade individual?
Ou seja, em nome de proteger a personalidade, será que o Direito a des-
protege e a desconsidera?
Será que a tutela estatal dos direitos da personalidade, acaba amputando
a liberdade individual e autonomia privada?
Eis aqui o aparente paradoxo que nos estimulou a compartilhar, neste
texto, nossas perplexidades e reflexões.

2. Breves considerações sobre a questão dos direitos fundamentais e dos


direitos da personalidade

Os direitos e garantias fundamentais consagrados em nossa Carta Magna


são temas sempre relevantes, não apenas para o direito constitucional, mas
também para todas as esferas do ordenamento jurídico.
Hoje, não há dúvidas sobre o status jurídico e efetividade que esses di-
reitos e garantias possuem, eis que são “letra viva” em nosso ordenamento,
ou seja, têm plena e imediata eficácia, não se tratando, apenas, de diretrizes
constitucionais ao legislador infraconstitucional, mas possuindo aplicação
direta nas relações sociais (ao menos, em tese).
Alguns autores categorizam o tema como constitutivo do fenômeno da
constitucionalização do direito (CHAVES e ROSENVALD, 2012); outros,
o denominam de eficácia horizontal dos preceitos fundamentais (SARLET,
2015).
Sempre se mostra importante ressaltar a classificação doutrinária dos di-
reitos fundamentais em escala de primeira, segunda, terceira e, para alguns
autores, de quarta e quinta gerações, gestações ou dimensões.1
Eis a forma como a doutrina vê e classifica essa temática.
A primeira geração, gestação ou dimensão de direitos, compreende a ga-
rantia que o ordenamento jurídico confere que diz respeito a uma abstenção
estatal, para que sejam resguardadas as liberdades individuais. Possuem es-
ses direitos de primeira geração origem no pensamento liberal-burguês de
meados do século XVIII. Em complementação aos direitos e garantias de
primeira dimensão, há os de segunda dimensão ou geração, que pressupõem
não uma abstenção estatal, mas ao lado desta, uma atuação do Estado de

1 Tal classificação, todavia, não é pacífica na doutrina. Segundo Pedro Lenza (2012,
p. 960) haveria também a quarta geração, que, para autores como Norberto Bobbio,
seriam os direitos ligados à engenharia genética, como os que protegem o DNA humano.
Para Paulo Bonavides, citado por Lenza (2012), seriam os que garantem a universaliza-
ção das outras gerações de direitos no plano institucional. A quinta geração compreen-
deria o direito à paz e os direitos que protegem e regulamentam o mundo virtual, tendo
em vista a necessária proteção de direitos patrimoniais e extrapatrimoniais na era da
tecnologia da informação. (LENZA, 2012, p. 261)

87
modo a implementar políticas públicas que efetivem tais garantias, postura
típica de um Estado social. Já os direitos de terceira dimensão2 compreen-
dem direitos transindividuais, que transcendem os interesses meramente in-
dividuais e passam a se preocupar com a proteção do gênero humano. Tais
direitos se expressam pelos direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente,
de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade. São expressos
pela necessidade de um convívio fraternal entre todos os indivíduos, confor-
me esclarecem os autores acima citados (LENZA, 2012, p. 118):

Já os direitos chamados de terceira geração peculiarizam-se pela titularidade


difusa ou coletiva, uma vez que são concebidos para a proteção não do homem
isoladamente, mas de coletividade, de grupos. Têm-se, aqui, o direito à paz, ao
desenvolvimento, à qualidade do meio ambiente, à conservação do patrimônio
histórico e cultural. Essa distinção entre gerações dos direitos fundamentais é
estabelecida apenas com o propósito de situar os diferentes momentos em que
estes grupos de direitos surgem como reivindicações acolhidas pela ordem jurí-
dica. Deve-se ter presente, entretanto, que falar em sucessão de gerações não
significa dizer que os direitos previstos no momento tenham sido suplantados
por aqueles surgidos em instantes seguinte. Os direitos de cada geração persist-
em válidos juntamente com os direitos da nova geração, ainda que o significado
de cada um sofra o influxo das concepções jurídicas e sociais prevalentes nos
novos momentos. Assim, o antigo direito pode ter o seu sentido adaptado às
novidades constitucionais. Entende-se, pois, que tantos direitos à liberdade não
guardem, hoje, o mesmo conteúdo que apresentavam antes de surgirem os di-
reitos de segunda geração, com as suas reivindicações de justiça social e antes
que fossem acolhidos os direitos de terceira geração como o da proteção ao
meio ambiente.

No que tange aos direitos fundamentais de quarta e quinta gestação, di-


mensão ou geração, o tema se demonstra menos pacífico, não sendo nosso
objetivo tratar dessa divergência doutrinária neste trabalho, que foi recorta-
do apenas para pensar a questão dos limites da autonomia privada no Brasil
e o quanto essas restrições confrontam eventualmente com a amplitude
constitucional que o ramo do direito referente aos direitos da personalidade
alcançou nos últimos anos.
Nessa esteira de pensamentos, podemos facilmente concluir que os di-
reitos e garantias fundamentais, em razão das suas características, são ex-
pressões diretas do princípio da dignidade da pessoahumana, embrião de
toda proteção constitucional conferida ao indivíduo. Não há sociedade de-

2 Necessário aqui explicar que também a doutrina não é pacífica sobre quais direitos
estariam incluídos nessa terceira dimensão. Expusemos acima o entendimento majori-
tário. Todavia, segundo Pedro Lenza, para Karel Vasak, os direitos de terceira dimensão
seriam os ligados à paz, comunicação, meio ambiente e desenvolvimento, além dos re-
ferentes ao patrimônio comum da humanidade (LENZA, 2012, p. 261).

88
mocrática e, muito menos republicana, se não se estabelece proteção ao ser
humano em todas as esferas da sua existência.
No que toca, especificamente, aos direitos da personalidade, é certo que
Código Civil de 2002 também avançou, na medida em que, diferentemente
do Código Civil de 1916, consagrou expressamente alguns direitos da per-
sonalidade, bem como veiculou no artigo 12 uma cláusula geral protetiva
que abrange a esfera ressarcitória e preventiva contra violações e ameaças de
violação aos direitos da personalidade.
O artigo 12 traz em seu bojo uma cláusula geral de tutela e promoção da
pessoa humana, que, embora já fosse garantida pela Constituição Federal de
1988, foi explicitamente reconhecida no âmbito do direito civil e que tem
como núcleo a ideia de dignidade da pessoa humana e a sua valorização.

3. O princípio da dignidade da pessoa humana e sua correlação com a


liberdade individual

O princípio que orienta os direitos da personalidade e que, mais do que


isso, fundamenta e legitima a ideia de direitos da personalidade é o da digni-
dade da pessoa humana.
A densidade constitucional dos direitos da personalidade está justamen-
te no principio da dignidade da pessoa humana.
A Constituição Federal de 1988 traz como fundamento da República
Federativa do Brasil e consequentemente, do Estado Democrático de Direi-
to, a dignidade da pessoa humana. É o que dispõe o art. 1º, III da Constitui-
ção Federal:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados


e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana.

Oportuno citar a importância do princípio aqui tratado pela sua disposi-


ção no texto constitucional, como descreve o autor Cleber Francisco Alves
(2001):

A proeminência da pessoa humana sobre o Estado é denotada de modo especial


na colocação topográfica dos dispositivos constitucionais. Com efeito, a consti-
tuição de 1988 inovou, relativamente às cartas que a precederam, ao assentar a
Declaração dos Direitos e Garantias Fundamentais do Homem logo na parte
inicial do texto, deixando para segundo plano as normas sobre a estrutura do
Estado, e sobre a organização e o exercício dos poderes. Isto quer dizer que o
Estado Social e Democrático erigido pela atual Carta Magna tem por escopo
principal a preservação da dignidade humana, que se expressa de forma decisi-
va nos quadros dos Direitos Fundamentais.

89
Hodiernamente não se encontra posição dogmática que contrarie a má-
xima prescritiva de que o fundamento de todo e qualquer Estado Democrá-
tico e Social de Direito é pautado no princípio da dignidade da pessoa hu-
mana.
Todavia, mesmo antes da promulgação de nossa Constituição, no plano
internacional, podemos citar outros documentos, considerados históricos,
mas que possuem plena vigência, que também consagram o princípio da dig-
nidade da pessoa humana, como a Declaração Universal dos Direitos huma-
nos de 1948 e a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, de-
nominada como Pacto de San José da Costa Rica, assinada pelo Brasil, que
em seu artigo 1º e 5º. Elenca os seguintes direitos e deveres que devem ser
respeitados pelos países signatário, demonstrando a cristalina proteção à
dignidade da pessoa humana conferida pelo diploma:

Artigo 1º – Obrigação de respeitar os direitos

1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos


e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda
pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por moti-
vo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra
natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qual-
quer outra condição social.

2. Para efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

Artigo 5º – Direito à integridade pessoal

1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e
moral.

2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desu-
manos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com
o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.

Sem sombras de dúvidas, na visão da doutrina constitucional contempo-


rânea, os princípios constitucionais não são mais considerados como meras
diretrizes ao legislador infraconstitucional, na medida em que possuem efi-
cácia direta, sendo de observância obrigatória tanto pelo poder público
como por todo e qualquer da sociedade. Trata-se de letra viva a pulsar em
todas as relações sociais. Sobre esse tema, vejamos os esclarecimentos de
Luis Roberto Barroso (2011, p. 82):

Modalidades de eficácia dos princípios constitucionais:


Toda norma destina-se à produção de algum efeito jurídico. Como consequên-
cia, a eficácia jurídica – isto é, a pretensão de atuar sobre realidade – é atributo
das normas de Direito. A consumação desses efeitos, a coincidência entre o

90
dever-ser normativo e o ser da realidade, é identificada como efetividade da
norma (v. supra). O descumprimento de uma norma jurídica, que equivale à
não produção dos efeitos a que se destina, é passível de sanção judicial. O Poder
Público, de maneira geral, e o particular, quando afetado em algum direito seu,
podem exigir, judicialmente quando seja o caso, a observância das normas que
tutelam seus interesses. Modernamente, já não é controvertida a tese de que
não apenas as regras, mas também os princípios são dotados de eficácia jurídica.
Princípios constitucionais incidem sobre o mundo jurídico e sobre a realidade
fática de diferentes maneiras. Por vezes, o princípio será fundamento direto de
uma decisão. De outras vezes, sua incidência será indireta, condicionando a
interpretação de determinada regra ou paralisando sua eficácia.

Em seguida, Barroso, na mesma obra acima citada, aborda interessantes


questões sobre a aplicação direta dos princípios na esfera privada dos indiví-
duos:

Não é o caso, aqui, de se percorrerem as múltiplas incidências práticas dos prin-


cípios, seja nas hipóteses em que atuam diretamente com a aplicação do seu
núcleo essencial – à feição de regras –, seja naquelas em que operam mediante
ponderação. É ilustrativa, no entanto, a análise de alguns precedentes colhidos
na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a demonstrar a generalização
do uso dos princípios fundamentais, gerais e setoriais na experiência jurídica
contemporânea.
[...]
Os princípios fundamentais expressam, como visto, as decisões políticas mais
importantes no âmbito do Estado, assim como seus valores mais elevados. Con-
firam-se alguns excertos jurisprudenciais acerca da República, da separação de
Poderes e da dignidade da pessoa humana:

C) Dignidade da pessoa humana. Trata-se de um dos fundamentos do Estado


democrático de direito, que deve iluminar a interpretação da lei ordinária.

Como visto, o princípio da dignidade da pessoa humana, que possui sta-


tus constitucional, e que tem relação direta com a liberdade individual, tem
eficácia direta, aplicação imediata, irradiando sua alta carga valorativa ime-
diatamente nas relações sociais, seja entre o poder público e o particular ou
mesmo nas relações entre particulares.
Sendo assim, embora o princípio da dignidade humana esteja disposto
no art. 1º, inciso III da CF/88, e fundamentado no princípio da autonomia
da vontade, o qual, por sua vez, estrutura-se no princípio da liberdade indi-
vidual, pilar do estado democrático de direito da República Federativa do
Brasil, parece-nos que estas ideias, mais abstratas, quando são tratadas em-
piricamente, acabam se confrontando e eventualmente, até mesmo, se con-
tradizendo.
Passaremos a tratar especificamente, então, desta temática, que ensejou
o nosso estranhamento quanto ao aparente paradoxo normativo de se exis-

91
tir, ao mesmo tempo, uma tutela da personalidade que seria indeclinável e
indisponível e, também, uma garantia civil de autonomia privada.
Quando há colisão entre os valores que norteiam os direitos da persona-
lidade, como o ordenamento se comporta? E quando existe colisão entre um
direito da personalidade e a liberdade individual desse mesmo cidadão?

4. O contexto da sociedade brasileira: “cidadania tutelada” x autonomia


privada

Antes de adentrarmos no tratamento específico das situações práticas


que nos colocaram a pensar sobre o aparente conflito entre a tutela indecli-
nável da personalidade e a autonomia privada, consideramos oportuno con-
textualizar um pouco a formação da sociedade brasileira, a fim de explicitar
o quanto a questão da tutela está enraizada em nossa cultura social e, conse-
quentemente, também na cultura jurídica.
Miguel Reale, em seu clássico texto introdutório do Direito, assim se
manifesta sobre a tutela de direitos (REALE, 2012, p. 34)

O Direito, por conseguinte, tutela comportamentoshumanos: para que essa ga-


rantia seja possível é queexistem as regras, as normas de direito como instru-
mentosde salvaguarda e amparo da convivência social.

De algum modo, essa crença sustenta a ideia de indisponibilidade de di-


reitos, que está, inclusive, configurada expressamente em lei, no art. 11 do
CC/2002, que diz: “[...] comexceçãodoscasosprevistos emlei,osdireitosda-
personalidadesãointransmissíveiseirrenunciáveis,nãopodendooseuexercíci
osofrerlimitaçãovoluntária.”
De acordo com o autor Silvio Savio Venosa, os direitos da personalidade
“são inalienáveis, ou, mais propriamente, relativamente indisponíveis, por-
que, em princípio, estão fora do comércio e não possuem valor econômico
imediato”. (VENOSA, 2004, p. 86)
Ou seja, por serem muito preciosos, a norma jurídica torna os direitos da
personalidade indisponíveis para essas próprias pessoas (personalidades)
que se pretende tutelar?
Essa incoerência motivou a nossa reflexão, que segue, ainda, em aberto
e que está sendo problematizada neste texto.
Mas o que sustenta tudo isso?
As ciências sociais nos ajudam a entender a formação da sociedade bra-
sileira e suas características.
De acordo com Demo (1995), a cidadania é caracterizada pelo exercício
dos direitos humanos e pela possibilidade de acesso a oportunidades que
contribuam para a emancipação das pessoas.

92
Ou seja, a cidadania se relaciona com a liberdade com a autonomia indi-
vidual. No Brasil, entretanto, a ideia de cidadania e autonomia recebe con-
tornos muito peculiares, que ele vai chamar de “cidadania tutelada”.
Demo (1995) nos apresenta diferentes conceitos de cidadania, como a
cidadania tutelada, assistida e emancipada: a cidadania tutelada seria decor-
rente do clientelismo e paternalismo. Este tipo de cidadania é marcado pela
negação/repressão. Já na cidadania assistida há um relativo conhecimento
político, sendo voltada para a reprodução da pobreza política, uma vez que
não se compromete em diminuir as desigualdades sociais, caracterizando-se
pelos benefícios assistenciais. Já a cidadania emancipada refere-se a um su-
jeito ativo, com habilidades e competências para o exercício dos seus deve-
res e exigência dos seus direitos.
A formação da sociedade brasileira, portanto, detém aspectos singulares
provenientes de três séculos de colonização portuguesa, marcados pela cate-
quese indígena, por tribunais da inquisição adotados em Portugal até o sécu-
lo XVIII, por mandonismos locais e regionais que marcadamente se esten-
dem do século XIX ao XX.
Neste cenário também figura a família extensa patriarcal e a escravidão,
suportes para a exploração agrícola latifundiária iniciada no Nordeste, região
de ocupação primitiva das terras brasileiras.
Acrescente-se ainda o fato de o Brasil ter sido a única colônia das Amé-
ricas a sediar no Rio de Janeiro, nas décadas iniciais do século XIX, uma mo-
narquia absoluta, que mesclada aos ingredientes anteriores, concede à socie-
dade, ao estado e a sua divisão de poderes particularidades que distinguem
suas organizações e instituições das de países europeus e americanos.
(AMORIM e LUPETTI BAPTISTA, 2014, p. 288)
Ou seja, o Brasil conviveu, desde sempre, com poderes estatais permea-
dos por situações paradoxais em que traços das organizações do passado pa-
triarcal e estamental parecem sobreviver no presente como entraves para
agilizar a atualização de um mercado de consumo aberto a todos os brasilei-
ros e de uma cidadania compatível com a modernidade contemporânea.
Trata-se de uma forma singular de “patriarcalismo”, marcado pelo poder
centralizado dos senhores de engenho, instaurado durante três séculos de
colônia (Freyre, 2006)3 sob regime do grande latifúndio e da escravidão,
iniciados no século XVI parecem ter marcado a sociedade brasileira através
dos tempos.
Ou seja, a tradição paternalista e tutelar da sociedade brasileira está ar-
raigada na cultura jurídica de forma irremediável.
A ideia de que as pessoas não conseguem, não devem e, portanto, não
podem resolver os seus problemas e os seus conflitos, sozinhas – sem a inter-
venção estatal – é algo que marca a cultura jurídica de uma forma impressio-

3 Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, clássico da sociologia brasileira, publica-
do pela 1ª vez em 1933. Hoje conta quase 50 edições.

93
nante, de maneira que impedir ou até minimizar a intromissão da tutela ju-
risdicional na vida particular dos cidadãos é quase um ato de “anarquia”. O
controle estatal sobre a vida dos cidadãos é uma característica essencial da
cultura social e também jurídica, de modo que acaba justificando e legiti-
mando essa restrição à autonomia, em nome de uma tutela que protegeria
esses cidadãos desprotegidos. (LUPETTI BAPTISTA, 2008)
Faoro, em seu texto clássico, “Os donos do Poder” (1958), delineia, mi-
nuciosamente, a relação de submissão existente entre os indivíduos e o Es-
tado, destacando características que marcavam a estrutura tutelar da socie-
dade brasileira, valendo transcrever o seguinte trecho que exemplifica a
ideia: “Tudo é tarefa do governo, tutelando os indivíduos, eternamente me-
nores, incapazes ou provocadores de catástrofes, se entregues a si mesmos
[...].” (p. 96).
Narrando as características do Brasil do século XVI, Faoro (1958; p. 98)
continua a destacar o papel do Estado como “fonte de todos os milagres e pai
de todas as desgraças”, visão esta que perdura até hoje e, como não poderia
deixar de ser, reflete-se no Direito Brasileiro.
Os cidadãos são tidos pelo sistema jurídico brasileiro, mesmo hodierna-
mente, como hipossuficientes, incapazes de fazer valer os seus interesses le-
gítimos no processo, o que leva a uma intervenção incontrolável do Estado
nos direitos de cidadania (AMORIM, KANT DE LIMA, MENDES; 2005).
É neste contexto que ganha espaço uma visão que tutela os direitos da
personalidade contra a autonomia privada, num exercício de “defender o ci-
dadão dele próprio”, numa espécie de ato “anti-antropofágico” dos cida-
dãos.
Aliás, essa questão, da tutela dos direitos no Brasil, parece nunca ter sido
tão atual. Quanto mais se avança em direção ao aprimoramento das institui-
ções democráticas, menos fica evidente o usufruto do tripé dos direitos que
lhe dão sustentação.
José Murilo de Carvalho (2002), tratando sobre a dificuldade no avanço
da cidadania no Brasil, enquanto fenômeno histórico, já refletia esse contex-
tosobre as três dimensões da cidadania: direitos civis (direito à liberdade, à
propriedade e à igualdade perante a lei); direitos políticos (direito à partici-
pação do cidadão no governo da sociedade – voto) e direitos sociais (direito
à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde e à aposentadoria).
E o objetivo geral do autor era justamente o de demonstrar que no Brasil
não houve um atrelamento dessas três dimensões políticas, e que isso, con-
forme aparece em sua tese, tem gerado historicamente neste país uma cida-
dania inconclusa.
Sendo assim, a descrição de todo esse contexto pretendeu demonstrar
que existe espaço no campo jurídico brasileiro para o paradoxo que nos mo-
tivou a escrever este texto. Melhor dizendo: parece-nos que o contexto da
formação da sociedade brasileira autoriza (ou favorece) que o Direito adote
essa postura, de pretender tutelar e defender os cidadãos brasileiros de suas
próprias vontades.

94
O que, no entanto, nos impacta e nos causa perplexidade é verificar que
esse paradoxo não causa estranheza, como se fosse natural a intervenção do
Estado na autonomia privada, mesmo em situações em que o próprio cida-
dão decide relativizar algum direito de sua personalidade.

5. Análise de duas situações concretas que permitem problematizar o pa-


radoxo que nos instigou: como convivem tutelas, indisponibilidades e li-
berdades individuais?

Para ilustrar a nossa inquietude, pensamos em duas situações concretas


que refletem a dificuldade de compatibilizar, no Brasil,a convivência entre a
indisponibilidade ea tutela dos direitos da personalidade.
As situações apresentadas explicitam casos em que as próprias pessoas
ficam limitadas na disposição e na autonomia de suas próprias vontades, de
forma que a tutela dos direitos da personalidade amputa a sua própria auto-
nomia.
A tutela, nesses casos, acaba impedindo os indivíduos de exercerem os
seus próprios direitos e a pergunta que não parece coerente é pensar se a
plena realização de um direito fundamental da personalidade, no Brasil, aca-
ba eventualmente resultando naimpossibilidade de seu próprio exercício.
Ou seja, o titular do direito, em nome de sua própria proteção, fica res-
tringido na disposição de seu próprio direito. Por quê?

5.1. Barriga de aluguel

A barriga de aluguel, tecnicamente conhecida como reprodução assisti-


da, ou como gestação por substituição, é tema recorrente quando se trata de
direitos da personalidade, notadamente em ação da característica da indis-
ponibilidade dos direitos da personalidade. Tal prática consiste na utilização
do ventre de uma mulher que aceita ceder o seu uso para nele ser gerado um
nascituro formado pela união da carga genética de outras pessoas, que serão
juridicamente os genitores deste nascituro.
No Brasil, a prática foi por muito tempo proibida. Todavia, desde a re-
solução 12.358/1992 do Conselho Federal de Medicina o tema foi tratado
em território nacional. Hoje, as mais recentes resoluções sobre o assunto são
as de número 2.013/2013 e 2.121/2015, que determinam que a “doadora”
temporária do útero deve pertencer à família de um dos parceiros em até
quarto grau e não poderá, de forma alguma, tal ajuste jurídico, ser oneroso,
dentre outras limitações.
Interessante notar como as resoluções mais recentes determinam que
um ato aparentemente altruísta por parte da gestante denominada de “doa-
dora do útero” tenha alcance até o quarto grau de parentesco. Ou seja, inter-
vém na vontade dos envolvidos, dispondo sobre o próprio corpo da gestante
e para com quem ela poderá exercer os direitos sobre o seu corpo.

95
Estranha limitação de um ato de boa vontade!
Se fosse para amigos, por exemplo, a “doadora” não poderia emprestar
temporariamente uma função do seu corpo, pois seria ilícito contrariar esses
dispositivos normativos expressos.
Tais normas desconsideram a possibilidade deste procedimento ser uti-
lizado por pessoas que não possuem a tradicional construção familiar, que
não possuem parentes de até quarto grau, desconsiderando o formato plural
para a constituição familiar, adotado pelo nosso sistema jurídico.
Não podemos olvidar, ainda, que a limitação imposta pelas normas bus-
ca proteger interesses de caráter exclusivamente moral, na medida em que
proíbe qualquer pessoa que não seja parente (ainda assim em certo grau) de
colaborar para com a mulher que deseja ter um filho e não pode, em seu pró-
prio ventre, geri-lo.
Desta forma, conseguimos perceber que o ordenamento jurídico brasi-
leiro restringe a liberdade advinda da vontade destas pessoas que pretendem
exercer a maternidade, mas por meio da gestação de um filho em ventre
alheio.
O caso sobre o qual refletimos nesse item demonstra, portanto, que a
vontade estatal impera sobre a vontade do particular, mesmo quando não se
vislumbra qualquer prejuízo de ordem física ou moral aos envolvidos. Ou
seja, o estado tutela a vontade do indivíduo mesmo quando a expressão des-
sa vontade não compromete minimamente o próprio indivíduo ou terceiros.
Note-se que no caso da gestação por substituição, a questão é oposta a
do aborto. Aqui, os interessados não buscam o exercício do direito funda-
mental à liberdade para extinguir uma vida, mas pelo contrário, para gerá-la.
Mesmo assim, vemos a posição tradicional do estado como tutor dos interes-
ses privados.

5.2. Body artoubody modification

O conhecido body modification, se trata do ato em que o indivíduo dis-


põe de uma parcela de sua integridade física em prol de uma arte que pre-
tende realizar em seu corpo para modificá-lo, de acordo com a sua vontade.
Como exemplos, temos as pessoas que implantam uma espécie de coral em
forma de chifres em seu crânio, para se parecerem com figuras demoníacas.
Outros, implantam pequenas próteses de silicone ou titânio, também no
crânio, ou a bipartição da língua para se parecerem com répteis ou figuras
mitológicas, dentre inúmeras outras modalidades.4

4 “A mexicana Maria Jose Cristerna, conhecida como “Mulher Vampiro”, posou para
fotos durante uma cerimônia de abertura para exibição de suas pinturas em Guadalaja-
ra, no México. Ela mostrou, recentemente um novo implante de chifres de titânio, pre-
sas na boca e diversos piercings que tem pelo corpo.” Fonte: “http://www.jb.com.br/
ciencia-e-tecnologia/noticias/2011/08/06/mulher-vampiro-exibe-novos-chifres-de-tita
nio-e-implante-de-dentes/” acessado em 10/01/2018.

96
A autonomia privada, nesses casos, fica limitada, em nome de uma pro-
teção à integridade física da própria pessoa.
E a questão cerne deste trabalho repousa justamente nesta situação.
Até que ponto o Estado limita, através de suas normas, a autonomia pri-
vada, ou seja, a liberdade do indivíduo?
Temos o exemplo do artigo 13 do Código Civil Brasileiro, que dispõe:

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio
corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou con-
trariar os bons costumes.

Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de trans-
plante, na forma estabelecida em lei especial.

O referido dispositivo legal demonstra o intuito intervencionista do le-


gislador na autodeterminação do indivíduo (ou seja, em sua própria liberda-
de), limitando sua atuação com o intuito de dispor sobre o seu próprio cor-
po, o que consequentemente afeta diretamente o princípio da dignidade da
pessoa humana.
O comando legal é claro quando estipula que é proibido o ato de dispo-
sição do próprio corpo quando este importa em diminuição permanente da
integridade física ou contraria os bons costumes.
Ocorre que, o conceito de bons costumes é extremamente amplo e im-
preciso. Relativo à determinada região, crença ou mesmo convicções políti-
cas. Portanto, como se pode conceber ao poder público a tutela de decidir
se e quando o particular tem disponibilidade sobre seu próprio corpo? E
como determinar que tais atos estariam, ou não, ferindo os “bons costu-
mes”? Aliás, os “bons costumes” seriam em relação a quem? Ao próprio ci-
dadão que se vale do body modification? Ou a terceiros?
No Brasil, o sujeito de direitos da personalidade não poderia se subme-
ter de forma regular a tais procedimentos, tendo que se socorrer de cirurgias
fora do território nacional ou mesmo se submeter a essas intervenções em
locais clandestinos, o que, pelo menos em tese, poderia ser mais danoso à
saúde e própria vida do indivíduo.Fica a indagação: Por que opoder público-
não regulamenta a realização de tais procedimentos, como ocorre no caso de
estúdios que realizam tatuagens e aplicam piercings? Desta forma, resguar-
daria o direito à liberdade sobre o próprio corpo e também a necessária se-
gurança e saúde de quem queira se submeter a tais intervenções corporais.
No lugar disso, tutela o corpo do cidadão contra a sua própria vontade, im-
pedindo-o de sua disposição.

6. Considerações finais

Como verificamos, a liberdade em sentido amplo, que compreende,


dentre outras facetas, as liberdades de expressão, de autodeterminação so-

97
bre o próprio corpo, gênero e nome, é cristalina expressão da dignidade da
pessoa humana. Justamente este é a questão mais complexa sobre o tema
analisado. Uma vez que a liberdade é expressão maior da dignidade da pes-
soa, em tese, não faria sentido restringir tal liberdade se esta própria liber-
dade não causasse dano algum à terceiros ou à sociedade em geral.
Entretanto, como percebemos, em determinadas situações, a pondera-
ção de valores realizada no caso concreto proíbe o indivíduo de exercer a sua
liberdade, algumas vezes em nome de questões morais.
Desta forma, pudemos perceber que as liberdades individuais possuem
certos limites para o seu exercício. Tais limitações, todavia, se encontram
não apenas na própria Constituição Federal, norma jurídica que confere o
direito à liberdade que, possui, inclusive, status de cláusula pétrea, mas tam-
bém em normas infraconstitucionais. Tal fenômeno causa estranheza quan-
do verificamos que doutrina pátria sobre direito constitucional que analisa
os direitos e garantias fundamentais os elevam à categoria de normas autoa-
plicáveis, com produção de efeitos imediatos e de eficácia plena. Ou seja, a
norma que consagra a liberdade em nossa carta magna, não sendo uma nor-
ma constitucional de eficácia limitada ou contida, não poderia sofrer qual-
quer limitação por regras infraconstitucionais.
E seguimos sem respostas para a pergunta que nos instigou.
Será que, em nome da tutela geral dos direitos da personalidade, o orde-
namento jurídico acaba restringindo a liberdade individual?
Ou seja, em nome de proteger a personalidade, será que o Direito a des-
protege e a desconsidera?
Será que a tutela estatal dos direitos da personalidade, acaba amputando
a liberdade individual e autonomia privada?
A nossa inquietude, portanto, decorre dessa estranha percepção de que,
no Brasil, em nome de uma proteção jurídica, os direitos da personalidade
se tornam irrenunciáveis e indisponíveis para o próprio cidadão.
Eis aqui o aparente paradoxo que nos estimulou a compartilhar, neste
texto, nossas perplexidades e reflexões.

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2004.

100
O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001)
e seus instrumentos urbanísticos

Vanderlei Martins
Marcos Paulo Sobreiro Pulvino

Resumo: O presente artigo trata de aspectos importantes da legislação


urbanística brasileira, trazendo os meios disponíveis para uma melhor confi-
guração da malha urbana. Esses são alguns dos instrumentos disponíveis para
melhorar o espaço da cidade. O plano diretor, as Zonas Especiais de Interes-
se Social, a usucapião especial de imóvel urbano, o parcelamento, edificação
e utilização compulsórios, o imposto predial territorial urbano progressivo
no tempo e a desapropriação para fins de política urbana foram os escolhidos
para estudo nessas linhas, acreditando que são evoluções legislativas coloca-
das à disposição da população.

Palavras-chave: Estatuto da Cidade; Instrumentos urbanísticos

Sintesi: Questo lavoro tratta aspetti importanti della legislazione urba-


nistica brasiliana, mettendo a disposizione i mezzi disponibili per una miglio-
re configurazione della rete urbana. Questi sono alcuni degli strumenti dis-
ponibili per migliorare lo spazio della città. Il “plano diretor”, le Zone Spe-
ciali di Interesse Sociale, l’usucapione speciale della proprietà urbana, la
suddivisione obbligatoria, la costruzione e l’uso, la tassa fondiaria urbana
progressiva nel tempo e l’espropriazione per scopi di politica urbana erano
quelli scelti per lo studio in queste linee, ritenendo che gli sviluppi legislativi
siano resi disponibili alla popolazione.

Parole-chiave: Statuto della città; Strumenti urbani.

1. Introdução

O Brasil foi um país essencialmente agrário até meados dos anos 50 do


século passado. Desde essa época, graças ao fortalecimento da industrializa-

101
ção experimentada pelas cidades, o país começou a sentir o fenômeno do
êxodo rural, em que os moradores do campo migraram para as cidades com
o fito de buscar uma vida melhor com mais oportunidades. “Somente entre
1970 e 1980 se incorporaram a população urbana mais de trinta milhões de
novos habitantes1” Com isso, a população das cidades do Brasil passou a ser
urbana e tal fenômeno parece não ter mais volta. Tanto isso é verdade que o
último censo do IBGE feito em 2010, registrou uma taxa de urbanização de
mais 80%, sendo precisamente a porcentagem de 84,36%2 da população.
Esse fenômeno é nacional, mas mais acentuado em certas partes do país.
“A urbanização no Estado de São Paulo já está consolidada, alcançando a
taxa de 96%, a mais alta do país3”. Já na região norte essa mudança não é tão
acelerada.
Também na América Latina a alta taxa de urbanização tem modificado
o panorama das cidades. O que se vê é uma alta taxa de urbanização e a des-
proporcional distribuição de terras é um dos agentes causadores de inúme-
ros problemas urbanos.

A desigual distribuição de terras na América Latina é um dos fatores responsá-


veis pelo exacerbamento da marginalização dos segmentos mais vulneráveis da
população (...) A América Latina é também a região mais urbanizada do mun-
do, tendo 75% da população vivendo em cidade no ano 2000. Em 2030, este
índice chegará a 83% da população4.

A verdade é que as pessoas acreditavam que a vida na cidade seria me-


lhor. Não se olvide que com a industrialização, a oferta de bens e produtos
fez com que fosse disseminada também a prática do consumismo e isso ficou
falsamente atrelado a felicidade. Por essa razão, acreditava-se que a cidade
aparentava ser um local de esperança de uma vida menos difícil, o que pro-
vou não ser verdadeiro.

1 MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desi-


gualdade e violência. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 40.
2 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Séries históricas
e estatísticas. Disponível em: “http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodi-
go=POP122”. Acesso em 07 de setembro de 2017.
3 LENCIONI, Sandra. Uma nova determinação do urbano: o desenvolvimento do
processo de metropolização do espaço. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri; LEMOS,
Anália Inês Geraiges (Orgs.) Dilemas urbanos: novas abordagens sobre a cidade. São
Paulo: Contexto, 2003, p. 35.
4 FREITAS, José Carlos de. Ordem urbanística e acesso a terra. In: ALFONSIN,
Bethânia; FERNANDES, Edésio. Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da
Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p.
18.

102
2. Dos instrumentos urbanísticos disponíveis no Estatuto da Cidade e que
são meios

Esse é o momento em que os instrumentos urbanísticos serão tratados


no trabalho e verificada a sua relação com a regularização fundiária. É evi-
dente que não serão examinados todos os instrumentos, já que a lei trouxe
inúmeros mecanismos para serem utilizados nas cidades, mas serão vistos
apenas os mais importantes e os que tem maior emprego na regularização
fundiária. Também é imprescindível anotar que não é escopo do trabalho o
aprofundamento até esgotar o assunto de cada instrumento urbanístico, mas
apenas situar o leitor do emprego dele na ordenação do espaço urbano e de
como ele funciona. Impossível não começar falando do Plano Diretor, talvez
um dos mais conhecidos instrumentos do Estatuto da Cidade.

2.1. Plano Diretor

A palavra de ordem da política urbana talvez seja planejamento. Planejar


envolve a realização de ordenação das atitudes a serem tomadas para que um
resultado futuro possa ser alcançado. Disso se influi na reflexão de todas as
medidas a serem tomadas, inclusive com estudos técnicos e a oitiva da po-
pulação para poder finalmente decidir o que fazer. A verdade é que a vonta-
de política de criar um projeto não pode se desviar dos resultados que são
esperados, para que o planejamento não seja em vão. E isso se o planejamen-
to é indispensável em qualquer segmento da vida, o mesmo acontece com a
vida na cidade.
Dessa forma, o Estatuto da Cidade trouxe o mandamento de criação do
Plano Diretor, que é um diagnóstico de absolutamente tudo o que acontece
na vida da cidade. Desde a área do perímetro urbano até a parte rural deve
estar descrita no Plano, contendo a delineação de áreas de proteção ambien-
tal, os serviços públicos que devem ser prestados, além das áreas em que
pode ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios.
Além do mais, o plano diretor deve ser aprovado por lei. Por certo que o
Plano nada mais é que uma lei municipal.
O Plano Diretor é considerado um instrumento da política urbana, que
consta na lista doa artigo 4º, mas é algo tão sério que o legislador destinou
um capítulo próprio para trazer os regramentos do Estatuto da Cidade.
Uma observação importante emana logo quando é visualizado o texto da
cabeça do artigo. O caput da sobredita norma declara: “O plano diretor de-
verá conter no mínimo”. Essa redação inspira a idéia de que pode incluir mais
coisa além do que está contido no artigo 42, deixando nítido que outras coi-
sas podem ser incluídas.
Duas citações são imprescindíveis nesse momento, para entender como
a função social da propriedade também está atrelada nisso. O Plano Diretor

103
(...) Está centrado na organização conveniente dos espaços habitáveis, é o ins-
trumento básico da política urbana municipal, deve ser elaborado de maneira
participativa e deve servir como instrumento de realização da função social da
propriedade. Alo organizar os espaços habitáveis em toda a área do Município
(urbana e rural), deve ter, sim, uma preocupação social, de justiça social, de
realização do mandamento constitucional (art. 3º, III), no sentido da erradica-
ção da pobreza e da marginalidade e redução das desigualdades sociais e regio-
nais5.

E a função social da propriedade não deve ser jamais relegada ao segundo


plano quando se fala em Plano Diretor.

(...) Apesar de a Constituição somente prever obrigatoriedade de edição de


plano diretor para municípios com mais de vinte mil habitantes e, apesar de que
a previsão da propriedade urbana cumpre a sua função social quando atende às
exigências do Plano Diretor, a interpretação não poderia, por óbvio, ser no sen-
tido de que a propriedade urbana em Municípios com menos de vinte mil habi-
tantes não deveriam cumprir função social6.

Fazendo uma rápida visualização do artigo 41 do Estatuto da Cidade,


percebe-se que não são apenas as cidades com mais de vinte mil habitantes
que precisam editar o plano diretor, mas também aquelas cidades integradas
em regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, além das cidades que
tem especial vocação turística, também as cidades localizadas em áreas de
influência de empreendimentos que tragam significativo impacto ambien-
tal, além das cidades em que a municipalidade pretenda instituir o parcela-
mento ou edificação compulsórios, o IPTU progressivo no tempo ou a desa-
propriação com títulos da dívida pública para imóveis cujos proprietários
não deram o devido aproveitamento.
Isso revela a preocupação do legislador em maximizar a incidência do
Plano Diretor e incluir o máximo de cidades e ocorrências possíveis. Isso
porque o Plano Diretor tem a finalidade de servir como análise da vida da-
quela cidade e tudo que é feito de maneira ordeira dá bons resultados. Para
o legislador, a falta do Plano é totalmente prejudicial, de modo que quanto
mais cidades criem o seu plano, melhor a será a vida no futuro.
O Plano Diretor deve

5 DALLARI, Dalmo de Abreu. Instrumentos da política urbana. In: DALLARI, Adil-


son Abreu; FERRAZ, Sérgio. (Coord.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal
10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 78.
6 CHAUVET, Luiz Eduardo. Regularização fundiária plena e direito social a moradia
no espaço urbano. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica. Rio de
Janeiro: PUC, 2011, p. 80.

104
Definir as áreas urbanas consideradas não utilizadas, não edificadas e subtiliza-
das, para o poder público municipal aplicar, de forma sucessiva, o parcelamento
ou edificação compulsórios, Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial
progressivo no tempo e a desapropriação para fins de reforma urbana, ao pro-
prietário de imóvel urbano, nos termos do parágrafo 4º do artigo 182. (...) É
incumbência do Plano Diretor a definição de critérios para a utilização dos ins-
trumentos estabelecidos no Estatuto da Cidade, tais como a outorga onerosa do
direito de construir, as operações urbanas consorciadas, o direito de preemp-
ção, a transferência do direito de construir e as zonas especiais de interesse
social7

Interessante destacar, ainda, algumas disposições quanto a prática do


Plano Diretor. Consoante manda o artigo 40, § 4º, durante a sua criação,
será garantida a participação popular, em respeito aos ditames da gestão de-
mocrática das cidades, que também está previsto no Estatuto da Cidade,
privilegiando a democracia e o respeito a vontade da população. Dessa for-
ma, deve haver a plena publicidade dos documentos produzidos, a oportuni-
dade de reunião para discussão em assembléia e audiências públicas, de
modo a ouvir o que o povo quer, além de estar prevista a garantia de acesso
de qualquer interessado a documento e informações produzidos.
Outro ponto importante é a possibilidade de revisão do Plano em deter-
minado período. O Estatuto da Cidade estipulou que a cidade deve reavaliar
seu plano a cada dez anos. Tem-se que a cidade constitui-se num ambiente
deveras dinâmico e muitos dos problemas ou situações que eram comuns na
época da edição do plano, podem já ter cessado. Por isso a revisão torna-se
até um evento necessário.
Ocorre que o problema reside se houver uma lei municipal de outra na-
tureza. Mesmo tratando de outro assunto, ela pode vir a alterar o Plano Di-
retor?
A resposta é simples. Jacintho Arruda Câmara apud Luiz Eduardo Chau-
vet diz que

Caso o plano diretor seja aprovado por lei ordinária (o que é possível) ele pode-
rá ser normalmente alterado por lei ordinária posterior que discipline pontual-
mente uma dada matéria de forma distinta daquela prevista no plano original.
O autor somente faz a ressalva de que a limitação que se impõe é de natureza
lógica (princípio da razoabilidade), que impede a adoção de uma medida pon-
tual que seja desconforme ao sistema geral que caracteriza o plano diretor8.

7 SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irre-


gulares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004, p. 252-253.
8 CÂMARA, Jacintho Arruda. Plano Diretor. In: DALLARI, Adilson Abreu; FER-
RAZ, Sérgio. (Coord.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001.
São Paulo: Malheiros, 2002, p. 334 apud CHAUVET, Luiz Eduardo. Regularização fun-
diária plena e direito social a moradia no espaço urbano. Dissertação de mestrado. Pon-
tifícia Universidade Católica. Rio de Janeiro: PUC, 2011, p. 84.

105
Por derradeiro, o Estatuto ainda ordena que cidades que tenham mais
de meio milhão de habitantes devem elaborar um plano de transporte urba-
no integrado, que seja compatível com o Plano Diretor ou que seja integrado
nele. É sabido que cidades desse porte já podem apresentar problemas de
circulação graças a numerosa população. Assim, o Plano Diretor deve ser
pensado também quanto a mobilidade.

2.2. As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS)

Aqui é possível começar já com o conceito de que consistiriam essas zo-


nas. Nelson Saule Júnior diz que “a ZEIS significa uma categoria específica
de zoneamento da cidade, permitindo a aplicação de normas especiais de
uso e ocupação do solo para fins de regularização fundiária de áreas urbanas
ocupadas em desconformidade com a legislação de parcelamento, uso e ocu-
pação do solo e de edificações9”.
Essas áreas específicas acabam por ser instrumento bem útil para buscar
a regularização fundiária, isso porque com o seu estabelecimento é permiti-
da o abrandamento dos padrões urbanísticos de alguns locais da cidade. E
como se dará a efetivação dessas áreas?

Imagine-se um assentamento precário, onde gerações de famílias ali tenham


historicamente estabelecido e que venha a ser agraciada por um procedimento
de regularização fundiária. Nesse caso, as características comuns de um assen-
tamento precário, tais como as estreitas vias de acesso e a verticalização, muitas
vezes em desconformidade com os padrões estabelecidos para a cidade formal
poderiam tornar uma política benéfica em um verdadeiro desmantelamento
daquela comunidade tradicional, que poderia vir a passar por um intenso pro-
cesso de desapropriação para a sua adequação aos padrões urbanísticos impos-
tos10.

Dessa maneira em existindo a estipulação dessas zonas pelo Plano Dire-


tor, haverão áreas do Município em que os padrões urbanísticos serão úni-
cos, diferente de outros pontos da cidade. Portanto, há a relativização desses
padrões urbanísticos existentes para atender as necessidades específicas das
populações carentes, que geralmente sobrevivem em assentamentos ilegais.
Por último, importante destacar a importância social e a abrangência
desse instrumento. Ele pode ser empregado em loteamentos irregulares ou
favelas e áreas em que o Poder Público queira dar um padrão diferente de
urbanização.

9 SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irre-


gulares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004, p. 363
10 CHAUVET, Luiz Eduardo. Regularização fundiária plena e direito social a moradia
no espaço urbano. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica. Rio de
Janeiro: PUC, 2011, p. 85.

106
O estabelecimento de uma ZEIS serve tanto para a regularização de loteamen-
tos, conjuntos habitacionais e favelas, de modo que o parcelamento e as
construções sejam aprovados pelo poder público; como também para a execu-
ção de projetos de habitação de interesse social, o que representará padrões
diferenciados de construção quando destinados à população de baixa renda11.

2.3. Usucapião especial de imóvel urbano

Usucapião pressupõe aquisição de propriedade. Ela se origina da mistura


das palavras latinas usus e o verbo capio e que somadas significam a expres-
são tomar pelo uso.
E o pressuposto da usucapião é justamente essa: a possibilidade de ga-
rantir a propriedade de determinado imóvel ou terreno pelo lapso temporal
em que a posse foi manifestada. Ao invés de adquirir a propriedade pela
aquisição da terra, a lei possibilitou que alguém por muito tempo no local
possa tornar-se dono dela.
Impossível continuar nesse ponto sem mencionar o papel constitucional
dentro desse instituto. A Carta Política veio ao mundo jurídico falando da
política urbana nos seus artigos 182 e 183. Neste último, ela instituiu uma
modalidade de usucapião especial urbana. Os efeitos nocivos da horrível
ocupação urbana brasileira atingem maciçamente os pobres. É aí que o usu-
capião especial urbano vem ajudar. Aqueles que moram em favelas ou áreas
ilegais e que estejam na posse do terreno por determinado lapso temporal
podem vir a ter garantida a propriedade do imóvel. Então, por conclusão ló-
gica simples, este instrumento tem como função a regularização fundiária.
Inspirado nos ditames constitucionais, o instituto está presente também
nos artigos 9º a 14 do Estatuto da Cidade, e prevê duas modalidades de usu-
capião, quais sejam: o usucapião individual no artigo 9º e o usucapião coleti-
vo nos artigos 10 a 14. Sobre essa nova modalidade de usucapião coletivo,
tem-se que ela deve ser desprendida da antiga visão civilista, que era emi-
nentemente individualista e liberal. Depois da promulgação da Constituição
da República que procurou garantir a proteção de inúmeros direitos, o pen-
samento mais voltado para a dignidade da pessoa humana passou a ter maior
relevância. Temas como justiça social e respeito ao ser humano passaram a
nortear os direitos dos cidadãos. E isso não foi diferente com relação ao aces-
so a terra.
Toda a interpretação dos artigos 10 a 14 do estatuto da Cidade, portan-
to, deve ser voltada a examinar o usucapião como mecanismo de regulariza-
ção fundiária e, sobretudo, de reorganização urbanística. O intérprete deve
fazer um permanente exercício para libertar-se dos dogmas tradicionais do

11 CHAUVET, Luiz Eduardo. Regularização fundiária plena e direito social a moradia


no espaço urbano. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica. Rio de
Janeiro: PUC, 2011, p. 86.

107
direito privado e analisar o instituto com os olhos voltados para o direito ci-
vil, iluminado pelos princípios constitucionais e do direito público12.
E então começam as diferenças entre o usucapião individual e o coletivo.
O individual tem uma única finalidade, qual seja de empreender a regulari-
zação fundiária de áreas ilegais. “Já o usucapião coletivo incumbe dupla ta-
refa: não só regularizar a situação fundiária, mas permitir a urbanização de
áreas ocupadas por população de baixa renda, alterando o perfil social inde-
sejável de determinados núcleos habitacionais urbanos.13”
O usucapião individual se destaca por ter alguns requisitos, como a pos-
se da área urbana com metragem máxima de 250 metros quadrados; o bene-
ficiário não pode ter recebido outro imóvel por usucapião; exige-se a posse
ininterrupta por, pelo menos, 5 anos; além de que a posse deve ser destinada
para a moradia da família.
O Código Civil, que entrou em vigor um ano após o Estatuto da Cidade
trouxe uma hipótese de usucapião urbano. Houve alguma incompatibilida-
de? Há duas hipóteses: Eis a primeira, que ventila a manutenção de todas as
formas individuais de usucapião especial urbano

O Código Civil de 2002 no artigo 1240 tratou da usucapião urbana pró mora-
dia. Suscitou-se a hipótese de abrogação do texto da lei especial, entretanto, o
Enunciado nº 85 d CNJ pacificou a questão, a saber:

Artigo 1240: Para efeitos do artigo 1240, caput, do novo Código Civil, enten-
de-se por área urbana o imóvel edificado ou não, inclusive unidades autônomas
vinculados a condomínios edilícios.

Assim, pode-se afirmar que as duas espécies de usucapir imóveis urbanos per-
manecem no ordenamento. Agora acrescidas da terceira forma originada do
mesmo dispositivo constitucional (artigo 183, CF) conforme expressamente
estabelecido no artigo 60, caput, da Lei nº 11.977/0914.

E a segunda visão, dessa vez a que anuncia a queda da usucapião do artigo


9º do Estatuto da Cidade:

No que se refere ao usucapião individual do artigo 9º do Estatuto da Cidade,


cabe apenas fazer a breve observação de que o preceito encontra-se revogado
pelo artigo 1240 do Código Civil, que trata exatamente da mesma situação
jurídica. Embora seja lei geral, o novo Código Civil tratou do mesmo tema, com

12 LOUREIRO, Francisco. Usucapião coletivo e habitação popular. In: ALFONSIN,


Bethânia; FERNANDES, Edésio. Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da
Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p.
84.
13 Ibidem, p. 89.
14 GOMES, Rosângela Maria de Azevedo. A legitimação da posse na Lei nº
11.977/09: uma análise sobre a aquisição de direitos. p. 10.

108
disciplina algo diversa. Logo, a revogação deu-se pela incompatibilidade das
duas normas regularem a mesma situação jurídica, para os mesmos destinatá-
rios. Prevalece, portanto, a lei posterior, que no caso é o Código Civil15.

E quanto ao usucapião coletivo, ele tem algumas nuances que se diferen-


cia do individual. Alguns requisitos permanecem iguais, acrescentam-se ou-
tros para que ele possa ser utilizado. “O usucapião coletivo apenas voltou o
usucapião individual especial, que já existia em nosso ordenamento desde
1988, para uma finalidade urbanística16”.
O artigo 10 restringe o objeto do usucapião coletivo quando diz no seu
artigo 10 que o instituto serve para áreas com mais de 250 metros quadra-
dos. Não se olvide que o mecanismo foi disposto na Constituição para trazer
melhorias para a vida dos mais carentes e dos que sofrem por não ter sua
casa, tampouco condições de residir dentro da cidade legal. “Logo, a soma
de eventuais posses pode superar o antigo limite de duzentos e cinqüenta
metros quadrados, afastado, portanto, neste ponto, o teto constitucional17”
Porém a mais interessante nuance é descrita no artigo 10 do Estatuto
como a confusão de posse. O artigo em questão declara que é possível o usu-
capião coletivo onde não for possível identificar os terrenos ocupados por
cada possuidor. É evidente que essa confusão decorre justamente da má dis-
tribuição dos espaços urbanos e o exemplo mais comum para a aplicação do
instituto vem justamente das favelas.

A idéia do legislador foi a de alcançar aquelas situações em que pode haver


posse materialmente certa, mas o seu objeto é fluído, as divisas movediças e,
principalmente, o perfil urbanístico indesejável. Encaixam-se na situação acima
aludida as chamadas favelas, ou outros núcleos habitacionais semelhantes não
dotados de planejamento ou de serviços públicos essenciais, em que os mora-
dores tem posse material certa de seus barracos, ou de pequenas casas de alve-
naria, mas, dado ao caos urbanístico das vielas e da própria precariedade das
construções, está a ocupação individual sujeita a constantes alterações qualita-
tivas e quantitativas18.

15 LOUREIRO, Francisco. Usucapião coletivo e habitação popular. In: ALFONSIN,


Bethânia; FERNANDES, Edésio. Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da
Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p.
88-89.
16 LOUREIRO, Francisco. Usucapião coletivo e habitação popular. In: ALFONSIN,
Bethânia; FERNANDES, Edésio. Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da
Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p.
93.
17 LOUREIRO, Francisco. Usucapião coletivo e habitação popular. In: ALFONSIN,
Bethânia; FERNANDES, Edésio. Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da
Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p.
94
18 LOUREIRO, Francisco. Usucapião coletivo e habitação popular. In: ALFONSIN,

109
Aquela área integral onde não se conhece onde começa o direito de cada
possuidor pressupõe a usucapião coletiva, em que é permitida ao poder pú-
blico usar essa ação coletiva para transformar ao final do processo aquela fa-
vela em um local digno, integrado na cidade formal.
Em verdade, o usucapião coletivo só é possível quando há um plano pré-
vio e urbanização da localidade. Por isso se diz que além de promover a re-
gularização fundiária o instituto também facilita a conformação urbanística
da terra.

2.4. Do parcelamento, edificação e utilização compulsórios, do imposto


predial territorial urbano progressivo no tempo e desapropriação para fins
de política urbana.

Esses três instrumentos serão tratados de forma única. O Estatuto da


Cidade, em verdade, estipula que deva ser obedecida uma ordem entre eles.
E é por isso que também serão estudados na ordem em que o Estatuto quis.
Em primeiro lugar, é necessário que haja um imóvel sem destinação nenhu-
ma por parte de seu proprietário e que esteja abandonado, descumprido a
sua função social ou estimulando a bolha da especulação imobiliária.
Tendo a municipalidade percebido a condição desse pedaço de terra, o
primeiro ponto é a imposição da obrigação de parcelar, edificar ou dar defi-
nição compatível que atenda a função social. Se mesmo assim, permaneceu
silente o proprietário, o próximo passo é a cobrança do IPTU progressivo no
tempo. Por último, se ainda assim o proprietário não deu a devida destina-
ção, não há outra saída e resta ao Município a atitude mais drástica, que é a
desapropriação do imóvel. Essa é a explicação sucinta de como deve ser o
uso desses três instrumentos urbanísticos. Nas próximas linhas, eles serão
vistos com pormenor.
Compulsando a Constituição, tem-se que para existir a obrigação de dar
destinação aquele pedaço de terra, essa área deve estar listada no Plano Dire-
tor. É o que diz o artigo 182 da Carta Social. Além do mais, isso deve ser feito
mediante lei específica. Sobre isso, a professora Vera Monteiro explana:

Não é razoável que o plano diretor estenda a toda a cidade a obrigação de par-
celar, edificar ou utilizar compulsoriamente a propriedade. Pois, neste caso,
tais obrigações deixariam de ser sanção administrativa por desentendimento de
norma – clara intenção do Estatuto da Cidade – para ser nova regra de uso da
propriedade19.

Bethânia; FERNANDES, Edésio. Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da


Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p.
96.
19 MONTEIRO, Vera. Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. In:
DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio. (Coord.). Estatuto da Cidade. Comentá-
rios à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 95

110
Já quanto a lei especifica, tem-se o Estatuto da Cidade, que veio para
regulamentar a matéria. Ele trouxe os artigos 5º e 6º para fala do parcela-
mento, edificação e utilização compulsórios. O artigo subseqüente tratou do
IPTU progressivo no tempo. E o artigo 8º cuidou da desapropriação.
Como a área deve estar descrita no plano diretor, é óbvio, como relata a
letra da lei que é subutilizado aquele que fica aquém do que estipulou o Pla-
no Diretor. Os parágrafos 2º e 3º do artigo 5º tratam da notificação que o
Poder Público precisa fazer para o proprietário, dando-lhe ciência da obriga-
ção que precisa ser cumprida.
Após a ciência, vem o prazo para o munícipe dar início a obrigação im-
posta. Segundo a lei, será de um ano, a partir da notificação, para que seja
protocolado o projeto no órgão municipal competente e após isso, dois anos
a partir da aprovação do projeto, para iniciar as obras do parcelamento, edi-
ficação ou utilização compulsórios.
Nos termos do artigo 7º, em havendo descumprimento das obrigações
anteriores, o Município poderá cobrar o IPTU progressivo no tempo, varian-
do até a alíquota máxima de 15%. É vedada a concessão de isenções, já que
a natureza desse instrumento é servir como sanção por um descumprimento
prévio.
A parte final do artigo 7º ainda estipula que a cobrança do imposto pro-
gressivo pode ser cobrado por cinco anos consecutivos.
Eis a lentidão desse procedimento, o que faz o instrumento urbanístico
perder um pouco da sua eficácia. Para chegar até aqui, o Município já deve
ter dado os prazos para o parcelamento, edificação ou utilização compulsó-
rios, como foi examinado nas linhas acima. São três anos até a possibilidade
de cobrança do imposto predial desse artigo 7º. Nesse tempo, a cidade já
pode ter mudado em vários aspectos, talvez fazendo ser inócua a obrigação
imposta anteriormente.

Após cinco anos de progressividade da alíquota do mencionado imposto, em se


mantendo o descumprimento da notificação para parcelamento, edificação ou
utilização compulsórios, surgirá para o Município a dupla possibilidade de con-
tinuar, indeterminadamente cobrando o imposto com a sua alíquota máxima de
15% sobre o valor do imóvel, ou aplicar a penalidade de desapropriação em
nome da política urbana20.

A desapropriação para atendimento da política urbana está descrita no


artigo 8º do Estatuto da Cidade e deve ser feita com pagamento em títulos
da dívida pública por títulos aprovados previamente pelo Senado Federal. A
desapropriação não pode constituir-se unicamente na transferência do bem

20 CHAUVET, Luiz Eduardo. Regularização fundiária plena e direito social a moradia


no espaço urbano. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica. Rio de
Janeiro: PUC, 2011, p. 100.

111
imóvel para a Administração Pública, mas deve ser dada uma destinação que
efetive a melhoria da política urbana.
Mais uma vez é possível refletir sobre o tempo. Até chegar nesse estágio,
um lapso temporal enorme já transcorreu, fazendo com que o instituto seja
pouco utilizado. Esse instrumento é útil? Seus resultados para a política ur-
bana vem depois de muito tempo, depois de ter passado alguns mandatos
eletivos. Um mandato eletivo no Brasil é de 4 anos. Para chegar até a desa-
propriação, é preciso passar antes pela fase do parcelamento, edificação e
utilização compulsórios, cujos prazos somados dão 3 anos. Depois, na se-
qüência, vem o IPTU que pode ser cobrado por 5 anos. Já são oito anos en-
quanto a cidade, dinâmica, vai mudando. Fica a pergunta para reflexão: esse
instrumento pode mesmo ser útil para a política urbana?

3. Considerações finais

Atualmente são grandes as tensões oriundas do difícil acesso a terra ur-


bana, o que faz com que as cidades vivenciem graves problemas. Os pobres
que chegaram até a cidade vindos do campo não conseguiram se fixar na ci-
dade legal e o Estado parece ainda pouco se importar com a horda de pessoas
que migraram para os centros urbanos. Essa grande quantidade de pessoas
também merecem ter uma parcela do espaço urbano para morar com digni-
dade. E quando seu escasso dinheiro não consegue adquirir terra num local
onde há serviços públicos funcionando e os bens do comércio à disposição
para venda, só lhes sobram as favelas e as periferias, onde a qualidade de vida
é bem precária.
Nesses locais, muitas vezes, também não há a segurança jurídica de ter o
título de propriedade daquele pedaço de terra. É possível perceber que tudo
está relacionado, como numa seqüência: o Estado não consegue se fazer pre-
sente nas áreas degradadas e pobres, e sem os recursos estatais, a organiza-
ção do espaço acaba por ser mal planejado e totalmente mal distribuído, o
que faz com que poucos tenham a titulação que garante a propriedade.
Não é mistério que para o ser humano se desenvolver com qualidade de
vida, deve receber uma cidade que lhe proporcione todas as condições para
tal. Nenhum homem consegue atingir em sua plenitude um bom crescimen-
to se não possuir o mínimo. Assim, um Município que preza pela qualidade
de vida dos seus cidadãos deve fornecer infra-estrutura a todos, sem dis-
tinção.
Esse é o desafio que o Estatuto da Cidade precisa vencer. Essa lei trouxe
inúmeros instrumentos urbanísticos que visam tornar a cidade um lugar me-
nos desigual e terrível para morar.
Como se tudo isso não bastasse, deve-se lembrar de duas características:
que toda propriedade possui sua função social e que a base de toda norma
urbanística é oriunda da Carta Social. Os artigos 182 e 183 da Constituição
da República trouxeram as regras da política urbana, que foram disciplina-

112
das pelo Estatuto da Cidade. E o Estatuto foi além: criou diversos mecanis-
mos para atuar na expansão e melhoria da ordem urbanística.
Como conclusão principal tem-se que os instrumentos da política urba-
na são extremamente necessários para que a cidade possa ganhar mais qua-
lidade de vida e para que os seus cidadãos vivam melhor.
Além disso, a Constituição da República definiu o Município como com-
petente para a maioria das medidas do Estatuto da Cidade, pois o morador
guarda íntima relação com esse ente público; é a pessoa política mais próxi-
ma do cidadão. Por essa razão a Constituição concedeu a possibilidade de o
Município criar o plano diretor, de modo que esse documento escrito foi
erigido a instrumento básico da política de desenvolvimento urbano, tão
grande é a sua importância.
O Estatuto da Cidade, então, atendendo ao mandamento do Pacto So-
cial firmou as hipóteses em que os Municípios terão de elaborar tal plano,
como foi trazido ao longo do trabalho.
Essa legislação tratou de permitir a aplicação de formas que efetivem a
política de desenvolvimento urbano, fazendo com que ela seja mais dinâmi-
ca e eficiente, o que pode ser considerado um grande avanço. Merecem mui-
tos aplausos a obrigatoriedade da incisiva participação popular na gestão da
cidade e a tomada do planejamento como diretriz fundamental para o au-
mento da qualidade de vida dos cidadãos, distintivos essenciais do Estatuto
da Cidade.
Com os instrumentos, tem-se que eles são variados e cada um tem o seu
regime próprio. Entretanto, há alguns que são mais utilizados que os outros.
Assim, por derradeiro, o que os que trabalham em prol das cidades devem
fazer é usar todos os instrumentos urbanísticos disponíveis sempre, eis que
os obstáculos são bastante grandes e o trabalho de transformar o meio urba-
no num espaço mais justo bem árduo. Se esses aparelhos não forem aprovei-
tados, os problemas que já são enormes agigantar-se-ão.
Só assim, com o uso regular e efetivo desses mecanismos diante dos pro-
blemas urbanos é que se transformará de fato a cidade num lugar melhor.

5. Referências bibliográficas.

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RAZ, Sérgio. (Coord.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal
10.257/2001. São Paulo: Malheiros Editores, 2002 apud CHAUVET, Luiz
Eduardo. Regularização fundiária plena e direito social a moradia no espaço
urbano. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica. Rio de Ja-
neiro: PUC, 2011;
CHAUVET, Luiz Eduardo. Regularização fundiária plena e direito social a mora-
dia no espaço urbano. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Cató-
lica. Rio de Janeiro: PUC, 2011;

113
DALLARI, Dalmo de Abreu. Instrumentos da política urbana. In: DALLARI, Adil-
son Abreu; FERRAZ, Sérgio. (Coord.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei
Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002;
GOMES, Rosângela Maria de Azevedo. A legitimação da posse na Lei nº
11.977/09: uma análise sobre a aquisição de direitos;
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Séries históricas
e estatísticas. Disponível em: “http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/se-
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LENCIONI, Sandra. Uma nova determinação do urbano: o desenvolvimento do
processo de metropolização do espaço. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri; LE-
MOS, Anália Inês Geraiges (Orgs.) Dilemas urbanos: novas abordagens sobre
a cidade. São Paulo: Contexto, 2003;
LOUREIRO, Francisco. Usucapião coletivo e habitação popular. In: ALFONSIN,
Bethânia; FERNANDES, Edésio. Direito à moradia e segurança da posse no
Estatuto da Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Hori-
zonte: Fórum, 2014;
MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigual-
dade e violência. São Paulo: Hucitec, 1996;
MONTEIRO, Vera. Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. In: DAL-
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mentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002;
SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irre-
gulares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004;

114
A luta pelo reconhecimento da criança e do
adolescente transexual: uma análise a partir
do tratamento hormonal

Cleyson de Moraes Mello


Laura Dutra de Abreu

Resumo: A presente proposta tem como finalidade debater premissas


para o exercício gradual da autonomia da criança e do adolescente transe-
xual em relação a sua liberdade existencial, de modo a buscar no ordena-
mento jurídico a normativa adequada e compatível com o desejo dessas pes-
soas em iniciarem o processo transexualizador, dando-se primazia à dignida-
de da pessoa humana e aos valores sociais e constitucionais que dela deri-
vam. Mesmo sendo vulneráveis – na acepção jurídica da palavra, absoluta-
mente incapazes – não é desejável que haja uma atitude demasiadamente
paternalista, principalmente, do Estado no cuidado sobre estes, a qual reve-
la-se um empecilho no desenvolvimento de sua própria personalidade cuja
proteção se aspira e busca-se dilatar.

Palavras-Chave: Liberdade – Sexo – Gênero – Dignidade – Pessoa –


Criança e Adolescente – Vulnerabilidade.

Abstract: The proposal is to discuss premises for the gradual exercise of


the autonomy of the transsexual child and adolescent in relation to their ex-
istential freedom, so as to seek in the legal order the adequate norms and
compatible with the desire of these people to initiate the transexualizador
process, giving priority to the dignity of the human person and to the social
and constitutional values?? that derive from it. Even if they are vulnerable –
in the legal sense of the word, absolutely incapable – it is not desirable that
there be an overly paternalistic attitude, especially of the State in the care
of them, which is a hindrance in the development of their own personality
whose protection seek to expand.

Keyword: Freedom – Sex – Gender – Dignity – Person – Child and


Adolescent – Vulnerability.

115
Introdução

(...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e te-
mos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí
a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença
que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.1

A ideia deste artigo é se discutir e tentar buscar no ordenamento jurídi-


co a normativa adequada e compatível com os interesses que emanam dos
casos de crianças e adolescentes transexuais que manifestam o desejo em
iniciar o processo transexualizador,2 dando-se primazia à dignidade da pes-
soa humana3 e aos valores sociais e constitucionais que dela derivam.
Segundo Dworkin4, “a liberdade é a exigência fundamental e absoluta
do amor-próprio: ninguém concede importância intrínseca e objetiva à pró-
pria vida a menos que insista em conduzi-la sem intermediação alguma e não
ser conduzido pelos outros, por mais que os ame ou os respeite”. O jusfiló-
sofo afirma ainda que o fato de viver de acordo com a nossa liberdade, é tão
importante quanto ao fato de possuí-la.5

1 SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmo-


politanismo multicultural. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da di-
ferença e da igualdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p.56.
2 Não é objetivo do ensaio a busca por conceitos puros e pretensamente definitivos
acerca da transexualidade ou do discernimento da criança e do adolescente. Da mesma
forma, não se pretende definir as situações-tipos que indiquem quando se deve optar
pela declaração de vontade da criança e do adolescente.
3 “A dignidade da pessoa humana, na sua acepção contemporânea, tem origem reli-
giosa, bíblica: o homem feito à imagem e semelhança de Deus. Com o Iluminismo e a
centralidade do homem, ela migra para a filosofia, tendo por fundamento a razão, a
capacidade de valoração moral e autodeterminação do indivíduo. Ao longo do século
XX, ela se torna um objetivo político, um fim a ser buscado pelo Estado e pela socieda-
de. Após a 2ª. Guerra Mundial, a ideia de dignidade da pessoa humana migra paulatina-
mente para o mundo jurídico, em razão de dois movimentos. O primeiro foi o surgimen-
to de uma cultura pós-positivista, que reaproximou o Direito da filosofia moral e da
filosofia política, atenuando a separação radical imposta pelo positivismo normativista.
O segundo consistiu na inclusão da dignidade da pessoa humana em diferentes docu-
mentos internacionais e Constituições de Estados democráticos. Convertida em um
conceito jurídico, a dificuldade presente está em dar a ela um conteúdo mínimo, que a
torne uma categoria operacional e útil, tanto na prática doméstica de cada país quanto
no discurso transnacional”. BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana
no direito constitucional contemporâneo: natureza jurídica, conteúdos mínimos e crité-
rios de aplicação. Interesse Público [Recurso Eletrônico], v. 14, n. 76, p.4. nov./dez.
2012.
4 DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida: Aborto, Eutanásia e liberdades indivi-
duais. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.342.
5 Ibid., p.343.

116
Neste contexto, a busca pela liberdade existencial6 7 da criança e do
adolescente transexual avulta a prioridade de seu interesse como pessoa,
bem como o desenvolvimento da sua livre personalidade, e não mais do po-
der familiar ou até mesmo o paternalismo do Estado. Assim sendo, mais que
sobrepor a vontade dos pais ou a proteção paternalista estatal, cuida-se de
uma tutela que privilegie o que é o melhor para aquele ser em formação; em
observância, portanto, ao princípio do melhor interesse da criança e do ado-
lescente disposto no art. 227 da CF/88, bem como ao princípio da dignidade
da pessoa humana, disposto no art. 1º, III da CF/88. Logo, é dever do Esta-
do, da sociedade e da sua família, a proteção deste direito, seja sob o caráter
repressivo (sob o binômio lesão-sanção), seja sob o caráter promocional.

1. Aspectos jurídicos, éticos e sexuais do processo hormonizador em crian-


ças e adolescentes transexuais:

No direito positivo brasileiro, inexiste regra específica sobre a matéria.


Segundo Luís Roberto Barroso8, “a constituição de 1988, que procurou or-

6 HABERMAS, Jurgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia


liberal? Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.159.
7 Concluí FELDHAUS, Charles: “Qual o estatuto da liberdade para Habermas? Pri-
meiramente, Habermas afirma explicitamente introduzir um conceito fenomenológico
de liberdade de ação; segundo, é um conceito não idealista, ou seja, não parte da distin-
ção moderna entre sujeito representador e objeto representado; terceiro, a consciência
dessa liberdade é obtida pragmaticamente nos moldes das condições a priori das preten-
sões embutidas no uso comunicativo da linguagem voltada ao entendimento; quarto,
assim como para Kant, não consiste numa liberdade no vazio ou de indiferença, mas sim
numa liberdade vinculada a argumentos (eles explicitam os porquês das ações); quinto,
não é uma liberdade cuja causalidade implicada na motivação racional embutida nela
seja nos moldes de um evento observável causado por outro evento anterior também
observável, e a única coação relacionada com o ato livre é a do melhor argumento; sexto,
não é um tipo de liberdade sem nenhum tipo de condições, ou seja, não é uma liberdade
incondicionada, pois “o caráter condicionado de minha decisão não me incomoda” –
(para Kant, a condição ou exigência da explicação da ação livre e responsável implicava
o condicionamento da ação livre por uma máxima adotada, que incorporava algum mó-
bil de proveniência empírica ou racional); quanto a este aspecto, tanto em Kant quanto
em Habermas a condicionalidade não implica o monismo ontológico, a saber, a inclusão
da liberdade na esfera dos entes causalmente ordenados em uma única série; sétimo,
para Habermas, assim como já o era para Kant, a explicação racional de uma ação não
exclui a presença da liberdade e da imputabilidade; oitavo, o conceito de liberdade
habermasiano, tanto em ZMN quanto em ZNR, vincula-se à possibilidade de identi-
ficação do agente com seu próprio corpo e com sua própria história de vida. (Grifo
nosso). Em síntese, a liberdade é em Habermas um conceito normativo; contudo, tem
uma base física. FELDHAUS, Charles. Liberdade em Habermas e Kant. Controvérsia –
Vol. 7, nº 2: 01-14 (mai-ago 2011). Disponível em: “http://revistas.unisinos.br/index.
php/controversia/article/viewFile/5222/2482”. acesso em: 28/02/ 2018.
8 BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas Iguais: o reconhecimento jurídico das

117
ganizar uma sociedade sem preconceito e sem discriminação, fundada na
igualdade de todos, não contém norma expressa acerca da liberdade de
orientação”. Muito menos podemos falar nas questões atinentes aos transe-
xuais.
Em sua obra, “Diferentes, mas Iguais”, o Ministro do Supremo, assinala
que9:

A interpretação constitucional, como a interpretação jurídica em geral, não é um


exercício abstrato de busca de verdades universais e atemporais. Toda interpre-
tação é produto de uma época, de um momento histórico, e envolve as normas
jurídicas pertinentes, os fatos a serem valorados, as circunstâncias do intérprete
e o imaginário social. A identificação do cenário, dos atores, das forças mate-
riais atuantes e da posição do sujeito da interpretação constitui o que a doutrina
denomina de pré-compreensão. É hoje pacífico que o papel do intérprete não é –
porque não pode ser – apenas o de descobrir e revelar a solução que estaria abs-
tratamente contida na norma. Diversamente, dentro das possibilidades e limites
oferecidos pelo ordenamento, a ele caberá fazer, com freqüência, valorações in
concreto e escolhas fundamentadas.

A despeito da ausência de normatização expressa, a postura do Estado,


ultimamente, vem tendo crescente reconhecimento, apesar ainda, dessas
pessoas sofrerem, quase que diariamente com preconceitos em todas as sea-
ras de suas vidas.
Em sua obra A História da Sexualidade10, Foucault sustenta que:

a causa do sexo - de sua liberdade, do seu conhecimento e do direito de falar dele


- encontra- se, com toda legitimidade, ligada às honras de uma causa política:
também o sexo se inscreve no futuro. Um espírito cuidadoso indagaria talvez se
tantas precauções para atribuir à história do sexo um patrocínio tão considerá-
vel não trazem consigo traços de antigos pudores: como se fosse preciso nada
menos do que essas correlações valorizantes para que tal discurso pudesse ser
proferido ou aceito.

Ainda continua pontuando que “se o sexo é reprimido, fadado à proibi-


ção, à inexistênciae ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua repres-
são possui como que um ar de transgressão deliberada”.11
O fato de por si só estarmos suscitando um viés que envolve uma liber-
dade sexual também, muito mais transgressora que a genuína, já submerge

relações homoafetivas no Brasil. Revista Brasileira de Direito Constitucional, v 17,


2011, p.3.
9 Ibid., p.5.
10 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Tradução
de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque .Rio de Janeiro:
Graal, 1993, p.12.
11 Ibid., p.12.

118
inúmeros problemas. A ideia de sexo reprimido, não é somente objeto de
teoria, conforme Foucault12:

A afirmação de uma sexualidade que nuncafora dominada com tanto rigor como
na época da hipócrita burguesia negocista e contabilizadora é acompanhada
pela ênfase de um discurso destinado a dizer a verdade sobre o sexo, a modificar
sua economia no real, a subverter a lei que o rege, a mudar seu futuro [...] Dizer
que o sexo não é reprimido, ou melhor, dizer que entre o sexo e o poder, a relação
não é de repressão, corre o risco de ser apenas um paradoxo estéril. Não seria
somente contrariar uma tese bem aceita. Seria ir de encontro a toda a economia,
a todos os “interesses” discursivos que a sustentam.

O grande desafio aqui se pauta em estabelecer uma ponderação entre o


cuidado sobre a vulnerabilidade da criança e do adolescente e a proteção so-
bre sua liberdade existencial e, até mesmo, sexual. Não se deve enlear a in-
tervenção estatal para a tutela da criança e do adolescente, com uma sobre-
posição de seus interesses de foro íntimo sobre esses, sob a desculpa de que
se está à protegê-los deles mesmos e, por vezes, de seus pais, mesmo por-
que, o papel do Estado e do Direito é o de acolher – e não o de rejeitar –
aqueles que são vítimas de preconceito e intolerância.
Apesar das inovações do legislador sobre os direitos da personalidade no
Código Civil de 2002, em relação ao código anterior, este é apreendido
como um “engenheiro de obras feitas”.13 Tal resistência sobre os direitos da
personalidade, sob a escusa da necessidade de uma maior segurança jurídica,
acaba por limitá-los e afastá-los da realidade dinâmica em que estão inseri-
dos, criando verdadeiros casos anômalos e altamente ofensivos à liberdade
da pessoa.
Nos casos de transexualidade, é importante demonstrar que os atos de
disposição do próprio corpo refletem na construção e no desenvolvimento
da identidade da pessoa. Isto porque o corpo, aqui, é tido por verdadeiro re-
ceptáculo de signos. Sob esta perspectiva, mais que um ato de liberalidade
sobre o corpo, a limitação sobre essa liberdade afeta a pessoa na construção
de sua identidade latu sensue, em última instância, a própria dignidade da
pessoa humana.
Nada obstante, na medida em que a dignidade humana se tornou uma-
categoria jurídica, é preciso dotá-la de conteúdos mínimos, que deem unida-
de e objetividade à sua interpretação e aplicação. Do contrário, ela se trans-
formaria em uma embalagem paraqualquer produto, um mero artifício retó-

12 Ibid., p.14.
13 TEPEDINO, Gustavo, apud DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no
novo Código Civil (arts. 11 a 21). In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). A Parte Geral do
novo Código Civil/Estudos na perspectiva civil-constitucional. 3ª ed. revista. Rio de Ja-
neiro: Renovar, 2007. p. 59.

119
rico, sujeito a manipulações diversas, segundo Barroso. Ainda continua o au-
tor:14

A primeira tarefa que se impõe é afastá-la de doutrinas abrangentes, totalizado-


ras, que expressem uma visão unitária do mundo, como as religiões ou as ideo-
logias cerradas. A perdição da ideia de dignidade seria sua utilização para le-
gitimar posições moralistas ou perfeccionistas, com sua intolerância e seu auto-
ritarismo. Como consequência, na determinação dos conteúdos mínimos da dig-
nidade, deve-se fazer uma opção, em primeiro lugar, pela laicidade. O foco, por-
tanto, não pode ser uma visão judaica, cristã, muçulmana, hindu ou confucionis-
ta. Salvo, naturalmente, quanto aos pontos em que todas as grandes religiões
compartilhem valores comuns. Em segundo lugar, a dignidade deve ser delinea-
da com o máximo de neutralidade política possível, com elementos que possam
ser compartilhados por liberais, conservadores ou socialistas. Por certo, é impor-
tante, em relação a múltiplas implicações da dignidade, a existência de um regi-
me democrático. Por fim, o ideal é que esses conteúdos básicos da dignidade
sejam universalizáveis, multiculturais, de modo a poderem ser compartilhados e
desejados por toda a família humana. Aqui, será inevitável algum grau de am-
bição civilizatória, para reformar práticas e costumes de violência, opressão se-
xual e tirania. Conquistas a serem feitas, naturalmente, no plano das ideias e do
espírito, com paciência e perseverança. Sem o envio de tropas.

Quando falamos em dignidade, podemos depreender como um de seus


elementos essenciais a autonomia da vontade. A autonomia, ainda segundo
Barroso, é o elemento ético da dignidade, ligado à razão e ao exercício da
vontade na conformidade de determinadas normas.15

14 BARROSO, Op.Cit., 2012, p.20.


15 Na sua dimensão jurídica, a autonomia, como elemento da dignidade, é a principal
ideia subjacente às declarações de direitos em geral, tanto as internacionais quanto as do
constitucionalismo doméstico. A autonomia tem uma dimensão privada e outra pública.
No plano dos direitos individuais, a dignidade se manifesta, sobretudo, como autonomia
privada, presente no conteúdo essencial da liberdade, no direito de autodeterminação
sem interferências externas ilegítimas. É preciso que estejam presentes, todavia, as
condições para a autodeterminação, as possibilidades objetivas de decisão e escolha, o
que traz para esse domínio, também, o direito à igualdade, em sua dimensão material.
No plano dos direitos políticos, a dignidade se expressa como autonomia pública, iden-
tificando o direito de cada um participar no processo democrático. Entendida a demo-
cracia como uma parceria de todos em um projeto de autogoverno, cada pessoa tem o
direito de participar politicamente e de influenciar o processo de tomada de decisões,
não apenas do ponto de vista eleitoral, mas também através do debate público e da
organização social. Por fim, a dignidade está subjacente aos direitos sociais material-
mente fundamentais, em cujo âmbito merece destaque o conceito de mínimo exis-
tencial.(...) Para ser livre, igual e capaz de exercer sua cidadania, todo indivíduo precisa
ter satisfeitas as necessidades indispensáveis à sua existência física e psíquica. Vale di-
zer: tem direito a determinadas prestações e utilidades elementares. O direito ao míni-
mo existencial não é, como regra, referido expressamente em documentos constitucio-

120
Outro ponto chave nesse contexto, diz respeito ao livre desenvolvimen-
to da personalidade.

Ao tutelar um desenvolvimento da personalidade, consagra-se um direito de li-


berdade individual em relação à constituição da personalidade, integrando um
direito à diferença, dizendo-se que o problema, no fundo, é permitir a cada um
que eleja o seu modo de vida, desde que não causa prejuízo a terceiros. Assim se
garante a autonomia de constituir uma personalidade livre, sem qualquer impo-
sição de outrem, preconizando um direito à individualidade. Esse direito está
contido no rol dos direitos de liberdade e emana um conteúdo positivo, na liber-
dade de agir, e um conteúdo negativo, na não interferência ou nos impedimen-
tos.16

O direito ao livre desenvolvimento da personalidade17, portanto, confe-


re ao indivíduo o direito de agir da forma que lhe convier, e impõe uma obri-
gação de não intervenção de terceiros. Para Canotilho,18 ocorre que por ve-
zes o direito à liberdade geral de ação encontra-se restringido por determi-
nação de ato do Poder Público:

Poderia então esse indivíduo invocar o seu direito fundamental para agir em
contrariedade ao ato do poder público? Para que se possa analisar a restrição a
um direito, liberdade e garantia, é necessário conhecermos o âmbito de proteção
das normas constitucionais consagradoras desse direito. No caso em espécie, de-
vemos analisar o âmbito de proteção inerente à liberdade consagrada pelo livre
desenvolvimento da personalidade. Daí a problemática quanto às duas corren-
tes. Uma primeira defende que o âmbito de proteção é qualquer manifestação

nais ou internacionais, mas sua estatura constitucional tem sido amplamente reconheci-
da. E nem poderia ser diferente. O mínimo existencial constitui o núcleo essencial dos
direitos fundamentais em geral e seu conteúdo corresponde às pré-condições para o
exercício dos direitos individuais e políticos, da autonomia privada e pública. Não é
possível captar esse conteúdo em um elenco exaustivo, até porque ele variará no tempo
e no espaço. BARROSO, Op. Cit, 2012, p.24-26.
16 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais,
tomo IV, 4.ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 91.
17 Nas lições de PAULO MOTA PINTO, O Direito ao Livre Desenvolvimento da
Personalidade, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Portugal-Brasil ano
2000, Coimbra Editora, 1999, p. 160, que diz que “a noção de desenvolvimento da
personalidade – e a própria concepção de personalidade em causa – comporta já uma
componente de liberdade.(...) “não protege, nomeadamente, apenas a liberdade de ac-
tuação, mas igualmente a liberdade de não actuar (não tutela, neste sentido, apenas a
actividade, mas igualmente a passividade, com uma garantia não unidimensional de ac-
tuação, mas pluridimensional, de liberdade de comportamento, enquanto decorrente
da ideia de desenvolvimento da personalidade”.
18 J. J. CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ed. Coim-
bra: Almedina. 2002, p. 1275.

121
humana, independente desta ter significativa relação com o desenvolver da per-
sonalidade. A segunda defende que o âmbito de proteção restringe-se às
manifestações que compõem o núcleo da personalidade, e que afetam diretamen-
te no seu desenvolvimento.

Devemos buscar envolver que a personalidade, em si, não é direito, mas


valor, encerrando, por este motivo, situações jurídicas existenciais. Portan-
to, a personalidade não é capacidade! Uma vez que a personalidade é assim
apreendida, ela não apresenta a dualidade entre sujeito (titularidade) e ob-
jeto da relação jurídica, enquanto que a capacidade é tida por aptidão geral
a ser titular de interesse. Nesse sentido, a personalidade é critério qualitati-
vo e a capacidade quantitativo.
Segundo Barroso19:

Passando da filosofia para a teoria do Direito e para a teoria democrática, é de


se consignar que um Estado democrático de Direito deve não apenas assegurar
ao indivíduo o seu direito de escolha entre várias alternativas possíveis, como,
igualmente, deve propiciar condições objetivas para que estas escolhas possam se
concretizar. As pessoas devem ter o direito de desenvolver a sua personalidade e
as instituições políticas e jurídicas devem promover esse desenvolvimento, e não
dificultá-lo. Certas manifestações da liberdade guardam conexão ainda mais
estreita com a formação e o desenvolvimento da personalidade, merecendo pro-
teção redobrada. É o caso, por exemplo, da liberdade religiosa, de pensamento e
de expressão. E também da liberdade de escolher as pessoas com quem manter
relações de afeto e companheirismo. De maneira plena, com todas as conseqüên-
cias normalmente atribuídas a esse status. E não de forma clandestina.

Se há um consenso mínimo quanto às formas de reconhecimento, é que


essas partem da necessidade de consideração do que existe de diferente no
outro, pois só assim será possível construir uma identidade social e indivi-
dual.
Seguindo esse signo é que Charles Taylor advoga a necessidade de se ver
a luta por reconhecimento como formadora de identidades,20 sendo que a
“identidade consiste na interpretação que uma pessoa faz de si mesma e das
características fundamentais que a definem como ser humano”,21 pois o re-
conhecimento é essencial às necessidades humanas, uma vez que a ausência

19 BARROSO, Op.Cit., 2011, p.18.


20 TAYLOR, Charles. El Multiculturalismo y la política del reconocimiento. Tradução
livre dos autores.México: Fondo de Cultura Económica, 1993. p.18.
21 NARITOMI, Sabrina. Princípio constitucional da solidariedade: um direito-dever
de redistribuição de reconhecimento? 2005. Dissertação (Mestrado em Direito Público)
– Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2005. p.72.

122
deste ou sua negação transformar-se-iam em manifestações de opressão le-
vando o sujeito a se ver como menor, enfraquecido e subjugado22.
Portanto, é através do reconhecimento e deferência pelas diferenças
que se afirmam as particularidades culturais que fomentam e permitem a
existência de culturas diversas, fortalecendo, assim, o pleno exercício de
suas identidades.
O processo tradicional de interferência extremamente paternalista dos
representantes legais do menor e do adolescente trans, bem como por parte
do Estado, no tocante a liberdade existencial, em sentido amplo, destes, não
pode ser mais visto como absoluto, pois estaria a limitar e aniquilar o livre
desenvolvimento das crianças e adolescentes, bem como assolando a sua dig-
nidade.
É próprio do ser humano possuir uma identidade para que exista como in-
divíduo e como parte da sociedade, meio em que está inserido e vive. Dentro
de sua individualidade é que ele se reconhece e se distingue dos demais em ca-
racterísticas próprias, se afirmando como um indivíduo único, como pessoa.
Um dos maiores desafios do século XXI é a questão das novas identidades
culturais, ou seja, aqueles aspectos de nossa identidade que surgem de nosso
“pertencimento” a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e nacionais.
Stuart Hall23 esclarecendo acerca da importância do que denomina crise de
identidade e, ainda a este respeito, ressalta que a identidade somente se torna
uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coe-
rente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza.
Hall24 continua asserverando que as mudanças trazidas pela modernida-
de libertaram os indivíduos, até então, seguros por encontrarem apoio para
suas convicções nas tradições e nas estruturas, minando sua visão de ser in-
dividualizado, apontando que o status a classificação e a posição de uma pes-
soa na “grande cadeira do ser” – a ordem secular e divina das coisas, predo-
minavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um indivíduo so-
berano.
Honneth, por sua vez, relaciona questões como luta social e reconheci-
mento com os processos de formação das identidades individuais e coleti-
vas. A luta por reconhecimento seria uma força motriz que geraria o desen-
volvimento e as conquistas sociais. Neste sentido, esclarece25:

22 NARITOMI, Sabrina. Princípio constitucional da solidariedade: um direito-dever


de redistribuição de reconhecimento? No mesmo sentido de: TAYLOR, Charles. El Mul-
ticulturalismo y lá política delreconocimiento. México: Fondo de Cultura Económica,
1993. p.43.
23 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Ta-
deu da Silva e Guaracira Lopes Louro.11.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p.25.
24 Ob. cit. p.25.
25 HONNETH, AXEL. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos so-
ciais: Tradução de Luiz Repa, São Paulo: Ed.34. 2011.p.155.

123
(..) são as lutas moralmente motivadas de grupos sociais, sua tentativa de esta-
belecer institucional e culturalmente formas ampliadoras de reconhecimento re-
cíproco, aquilo por meio do qual vem a se realizar a transformação normativa-
mente gerida das sociedades.

Esta luta apresenta três dimensões do reconhecimento como algo que se


diferencia conforme se realize na esfera dos afetos, dos direitos ou da soli-
dariedade. A estrutura das relações sociais abrange estas três dimensões fun-
damentais da vida individual e coletiva26.

Conlusão

O tema que ora nos propusemos a esboçar, engendra este tipo de ques-
tionamento conflitante. No entanto, isso não impede que argumentemos e
nem que possamos propor soluções legítimas para tal celeuma. A sociedade
por mais evoluída que possa ser em relação a esta questão ainda encontra-se
inculta, onde o convencionalismo para com os transexuais é enorme; tendo
em vista o desconhecimento da sociedade como um todo sobre o assunto.
Muitos estudos já existem acerca da transexualidade, como por exem-
plo o direito ao nome social, a cirurgia de redesignação de sexo e a mudança
de nome no registro civil; bem como, propostas de um Estatuto da Diversi-
dade Sexual, como forma de minimizar os efeitos em relação à dignidade do
transexual27.

26 A luta por reconhecimento de Honneth possui três dimensões intersubjetivas:


“amor”, “direito” e “solidariedade”, sendo tais dimensões viabilizadoras de: autocon-
fiança, auto-respeito e auto-estima.
27 Acautela-se aqui que por razões meramente de delimitação do escopo do trabalho,
não se adentrará na discussão acerca da autorização da realização de cirurgias de trans-
genitalização aos menores de 18 anos, cujo tema, apesar de igualmente relevante, tem
caráter definitivo e de difícil reversão. No entanto, isto não fará com que se esquive da
importante análise do Projeto de Lei nº. 5002/2013, conhecido por “Lei João W. Nery”
ou “Lei de Identidade de Gênero”, proposto pelo então deputado federal Jean Wyllys
(PSOL/RJ) e a deputada federal Erika Kokay (PT/DF), apresentado em 20 de fevereiro
de 2013, mas atendo-se a questão envolvendo o tratamento hormonal. Este projeto é
inspirado na elogiada e inovadora Lei de Identidade Sexual Argentina sobre a qual se
fará comentários na defesa da tese acima proposta. Portanto, há de se estabelecer parâ-
metros para a aferição de discernimento suficiente dessas crianças e adolescentes para
que possam dar início ao tratamento hormonal, principalmente antes da fase de puber-
dade, que estejam livres de discriminação e, também, de patologização.
– BRASÍLIA. Projeto de Lei nº. 5002 de 20.fev.2013. Dispõe sobre o direito à
identidade de gênero e altera o artigo 58 da Lei 6.015 de 1973. Disponível em:
“http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=0583E
760796E1945A5C39BA42A61AD41.proposicoesWeb2?codteor=1059446&filename
=PL+5002/2013”. Acesso em 28/02/2018.
– ARGENTINA. Ley 26.994 de 8.out.2014. Codigo Civil y ComercialdelaNa-

124
A doutrina e jurispridência, muitas vezes, vão buscar uma solução mais
ampla do que a que apresenta o direito subjetivo contida, assim, na situação
jurídica subjetiva. Nesse sentido, a situação jurídica subjetiva é definida
como centro de interesses no qual estão englobados o direito subjetivo, o
poder jurídico, o interesse legítimo, entre outros; e por este motivo, mais
ampla que o direito subjetivo. Em síntese, a exclusividade da solução dos
problemas jurídicos através da noção de direito subjetivo não coincide com
os próprios interesses traçados na Constituição de 198828.
Invocamos, com frequência, na epistemologia os inúmeros procedimen-
tos pelos quais o cristianismo antigo nos teria feito detestar o nosso próprio
corpo:

(...) mas, pensemos um pouco em todos esses ardis pelos quais, há vários séculos,
fizeram-nos amar o sexo, tomaram desejável para nós conhecê-lo e precioso tudo
o que se diz a seu respeito; pelos quais, também, incitaram-nos a desenvolver
todas as nossas habilidades para surpreendê-lo e nos vincularam ao dever de
extrair dele a verdade; pelos quais nos culpabilizaram por tê-lo desconhecido por
tanto tempo. São esses ardis que mereceriam espanto hoje em dia. E devemos
pensar que um dia, talvez, numa outra economia dos corpos e dos prazeres, já
não se compreenderá muito bem de que maneira os ardis da sexualidade e do
poder que sustêm seu dispositivo conseguiram submeter-nos a essa austera mo-
narquia do sexo, a ponto de votar-nos à tarefa infinita de forçar seu segredo e de
extorquir a essa sombra as confissões mais verdadeiras. Ironia deste dispositivo:
é preciso acreditarmos que nisso está nossa “liberação”29.

Acreditamos que no sentido de uma maior liberdade existencial para es-


sas crianças e adolescentes trans,que poderemos traçar saídas buscando
soluções normativas de intervenção que devem contemplar o pluralismo
existente em nossa sociedade democrática, de forma a não transformar esse
instrumento de proteção em instrumento de discriminação.

cion.Disponível em: http://www.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/235000-


239999/235975/norma.htm#6. Acesso em: 28/02/2018.
28 “Diante da complexidade das relações sociais e do ordenamento jurídico, que bus-
ca não apenas jurisdicizar hipóteses do mundo da vida, mas também interferir na vida
quotidiana com a finalidade de emancipar as pessoas, na esteira da personalização do
direito civil, transformou-se o modo de analisar o Direito, que não se prende mais ape-
nas na relação jurídica abstrata, mas que busca analisar o fato inserido na norma, o re-
corte normativo ante a realidade, o que denominamos de situação jurídica subjetiva,
que pressupõe o diálogo entre fato e norma, para além da tríade sujeito, objeto e liame.”
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; KONDER, Carlos Nelson. Situações jurídicas dú-
plices: controvérsias na nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimoniali-
dade. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson. Diálogos sobre Direito Civil.
Volume III. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2012. p. 23.
29 FOUCAULT, 1993.Ob.Cit..p.149.

125
Referências Bibliográficas:

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contemporâneo: natureza jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação.
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Geral do novo Código Civil/Estudos na perspectiva civil-constitucional. 3.ed.,
Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

126
Educação em direitos humanos

Fernanda Baldanza
Katia Eliane Santos Avelar
Maria Geralda de Miranda

RESUMO: A Conferência Mundial de Direitos Humanos considerou


que a educação, a capacitação e a informação pública em matéria de direitos
humanos são indispensáveis para estabelecer e promover relações estáveis e
harmoniosas entre as comunidades e para fomentar a compreensão mútua,
a tolerância e a paz. O contexto fático mundial no que tange à proteção dos
direitos humanos ainda encontra muitos obstáculos para o reconhecimento
de tais direitos, especialmente nos grupos que apresentam alguma situação
de vulnerabilidade. O presente ensaio trata da do ponto de vista jurídico-
normativo da educação em Direitos humanos no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos humanos. Grupos vulneráveis. Educa-


ção. Minorias.

ABSTRACT: The World Conference on Human Rights considered that


human rights education, training and public information are indispensable
for establishing and promoting stable and harmonious relationships be-
tween communities and for fostering mutual understanding, tolerance and
peace. The global factual context regarding the protection of human rights
still faces many obstacles to the recognition of such rights, especially in
groups that are vulnerable. This essay deals with the legal-normative point
of view of human rights education in Brazil.

KEYWORDS: Human rights. Vulnerable groups. Education. Minori-


ties.

INTRODUÇÃO

Sarmento (2016) reconhece que entre o generoso discurso dos docu-


mentos internacionais e textos constitucionais sobre direitos humanos, e a

127
vida concreta da população mais vulnerável, interpõe-se uma distância ho-
mérica. Conforme ressalta o autor, ao redor do mundo pessoas continuam
sendo vitimadas pela fome ou por doenças de fácil prevenção; seres huma-
nos são sistematicamente torturados e quando presos submetidos a condi-
ções de encarceramento absolutamente degradantes; indivíduos são discri-
minados, humilhados e até assassinados em razão de fatores como etnia, na-
cionalidade, gênero, religião, deficiência ou orientação sexual. A dignidade
da pessoa humana, conforme proclamado em todo o sistema de proteção aos
direitos humanos, continua sendo arbitrariamente retirado da vida cotidiana
das pessoas, especialmente as mais vulneráveis.
Fatos históricos reforçam a ideia de uma constante violação de direitos
humanos ao longo de toda a história da humanidade. A escravidão, a Inqui-
sição, as guerras mundiais, as bombas nucleares, o apartheid na África, a cri-
se dos refugiados, conflitos armados de grupos extremistas e terrorismo, são
apenas alguns exemplos de graves violações a direitos humanos ocorridas ao
longo da história da civilização, citados em razão de sua notoriedade.
Nas favelas brasileiras, por exemplo, existe uma política de extermínio
habitual direcionada seletivamente aos suspeitos pobres e residentes destes
locais1, fatos estes que geralmente não são sequer investigados (SARMEN-
TO, 2016). Não são poucos os exemplos de populações que além de margi-
nalizadas, também são consideradas descartáveis, homo sacer ou vidas matá-
veis. (AGAMBEN, 2007)
A verdade é que o mundo atravessa um momento crítico e testemunha-
se o maior nível de sofrimento humano desde a Segunda Guerra Mundial.
Segundo a Cúpula Mundial Humanitária2, que ocorreu no mês de maio de
2016 em Istambul, mais de 125 milhões de mulheres, homens e crianças em
todo o mundo necessitam de ajuda humanitária, por razões de conflitos ar-
mados e desastres. (ONU – CMH, 2016)
A urgência de uma nova forma de concepção dos direitos humanos se
mostra evidente e para tanto é imprescindível que sua doutrina alcance o
maior número de pessoas. Sobre direitos humanos, muito se discute, mas
pouco se ensina, e em razão deste desconhecimento estrutural, surgem as
percepções completamente distorcidas do que venham a ser os Direitos Hu-
manos.

1 Dados podem ser verificados no documento “Você matou meu filho” publicado em
2015 pela Anistia Internacional. Disponível em “https://anistia.org.br/direitos-huma-
nos/publicacoes/voce-matou-meu-filho/”
2 A Cúpula Mundial Humanitária em Istambul, entre 23 e 24 de maio, pretende ser
o marco de uma grande mudança na maneira como a comunidade internacional previne
o sofrimento humano ao preparar-se para responder a crises. Para maiores informações
acessar o documento Agenda pela Humanidade, disponível em “https://nacoesuni-
das.org/cupula-mundial-humanitaria-da-onu-propoe-agenda-pela-humanidade/”

128
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NO PLANO INTERNA-
CIONAL

Para que as pessoas possam se valer de todo sistema de proteção aos di-
reitos humanos é preciso que todos – mulheres, homens, jovens e crianças –
conheçam e compreendam sobre a relevância dos direitos humanos para
suas preocupações e aspirações. (BENEDEK, 2012)
É compreender, acima de tudo, que os princípios e procedimentos de
direitos humanos habilitam as pessoas a participar nas decisões determinan-
tes em suas vidas, atuam na resolução de conflitos e na manutenção da paz,
e se constituem em uma estratégia perfeitamente viável para um desenvol-
vimento humano, social e econômico centrado na pessoa (BENEDEK,
2012). Cabe salientar que esta centralização não se trata de um individualis-
mo radical, mas consiste simplesmente em transformar o indivíduo no pro-
tagonista de sua própria vida.
É a partir desta forma de ensino-aprendizagem que será desenvolvida
uma cultura de direitos humanos baseada no respeito, proteção, satisfação,
cumprimento e prática dos Direitos Humanos. (Ibidem.)
Neste sentido destaca-se a ponderação de Shulamith Koenig, citada no
Manual de EDH (BENEDEK, 2012, p. 45): “A educação, a aprendizagem e
o diálogo para os direitos humanos têm de evocar o pensamento crítico e a
análise sistémica com uma perspectiva de gênero sobre as preocupações po-
líticas, civis, económicas, sociais e culturais, no âmbito do sistema dos direi-
tos humanos”.
Benedek (2012) sugere que quatro objetivos principais devem consti-
tuir a base para a educação em direitos humanos: a) a transformação de co-
nhecimento e de informação; b) o desenvolvimento de aptidões; c) modifi-
cação de atitudes; e d) a atuação.
No item “a” será explicitado o conteúdo, as normas e a proteção relacio-
nada aos direitos humanos e o que estes direitos representam na vida coti-
diana e trabalho dos indivíduos.
O item “b” significa um empoderamento dos indivíduos a viver e traba-
lhar respeitando e implementando os direitos humanos, desenvolvendo ap-
tidões tais como comunicação, escuta ativa, argumentação e debate, análise
crítica, etc.
A modificação de atitudes consiste em uma reflexão sobre a relatividade
dos papeis culturais e de gênero de cada um, para uma reconstrução de va-
lores baseada nos direitos humanos.
A atuação por sua vez pretende implementar uma consciência de direi-
tos humanos tanto na vida cotidiana quando no trabalho.
Feitas estas considerações preliminares, passa-se à análise dos principais
documentos internacionais em matéria de EDH.
A preocupação da comunidade internacional com a Educação em Direi-
tos Humanos nasce juntamente a proclamação da Declaração Universal de

129
Direitos Humanos (1948, pág. 14), que trouxe em seu texto, especifica-
mente no item 2 do art. 26 do documento, a seguinte recomendação:

A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personali-


dade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas
liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e
a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as
atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

A partir desse momento, Cançado Trindade (1993) entende que a de-


claração se transformou em um instrumento pedagógico de conscientização
dos valores fundamentais da democracia e dos direitos humanos.
Seguindo-se a Declaração de 1948, a Educação em Direitos Humanos é
novamente reconhecida no art. 13 do Pacto Internacional dos Direitos Eco-
nômicos, Sociais e Culturais, que foi adotado pela XXI Sessão da Assem-
bleia Geral das Nações Unidas, em 19 de dezembro de 1966 (PIDESC,
1966), que assim dispõe:

Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à


educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvi-
mento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o
respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda
em que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente
de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade en-
tre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e pro-
mover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. “ (Grifo
nosso)

Na II Conferência Internacional de Direitos Humanos realizada no ano


de 1993 em Viena – Itália, a partir da leitura do art. 33 da Declaração de
Viena infere-se que o compromisso com a educação em direitos humanos é
universalizada e retorna à pauta de prioridades das Nações do globo, reite-
rando a relevância da promoção dos direitos humanos para uma cultura de
respeito, tolerância e paz:

33. A educação em matéria de direitos do homem e a disseminação de informa-


ção adequada, tanto ao nível teórico como prático, desempenham um papel
importante na promoção e no respeito dos Direitos do homem relativamente a
todos os indivíduos, sem qualquer distinção de raça, sexo, língua ou religião, o
que deverá ser incluído nas políticas educacionais, quer a nível nacional, quer a
nível internacional. A Conferência Mundial sobre Direitos do Homem salienta
que as limitações de recursos e as inadequações institucionais podem impedir a
imediata concretização destes objetivos.

No ano de 1994, a Assembleia Geral da ONU (AGNU) e o Alto Comis-


sariado das Nações Unidas para Direitos Humanos (ACNUDH) proclama-
ram a Década das Nações Unidas para a Educação em Direitos Humanos de

130
1995 a 2004, através da Resolução 49/184, e criaram o Plano de Ação Inter-
nacional para a Década, que apresenta em seu art. 2º a definição de EDH e
em seguida os cinco objetivos principais do projeto:

2. Em conformidade com estas disposições, e para os efeitos da Década, a edu-


cação em matéria de direitos humanos será definida como os esforços de for-
mação, divulgação e informação destinados a construir uma cultura universal
de direitos humanos através da transmissão de conhecimentos e competências
e da modelação de atitudes, com vista a:
(a) A estimação de necessidades e formulação de estratégias;
(b) Construção e fortalecimento de programas de educação em direitos huma-
nos nos níveis internacional, regional, nacional e local;
(c) Desenvolvimento de materiais educacionais;
(d) Fortalecimento do papel da mídia popular;
(e) Disseminação global da Declaração universal dos Direitos Humanos. (AC-
NUDH, 2012, p. 11)

O referido documento reforça a ideia sobre a essencialidade da EDH


para a redução das violações de direitos humanos bem como para a constru-
ção de sociedades livres, justas e pacíficas.
Neste contexto, em 10 de dezembro de 2004, a AGNU proclamou um
novo Programa Mundial para EDH através da Resolução 59/113-A, que de-
veria ser implementado através de planos de ação implementados de 3 em 3
anos. O plano de ação para a primeira fase3 (2005-2009) do Programa Mun-
dial para EDH realça os sistemas escolares, primário e secundário. O plano
de ação para a segunda fase centra-se na educação superior em programas de
formação em direitos humanos para professores e educadores, funcionários
públicos, agentes policiais e militares4 (2010-2015). Já a terceira fase5
(2015-2019), atualmente em vigor, é dedicada a reforçar a implementação
das duas primeiras fases e promover a formação em direitos humanos de
profissionais comprometidos com a informação assim como jornalistas, blo-
gueiros e profissionais de mídia.
Os Planos de Ações contêm medidas que os Ministérios da Educação e
outros agentes do sistema educacional e da sociedade civil devem adotar
conjuntamente para integrar a educação em direitos humanos em todos os
níveis educacionais e em sistemas profissionais específicos.
Em sintonia com a UNESCO (2006), a educação em direitos humanos
pode ser definida como um conjunto de atividades de educação, de capaci-

3 Íntegra do documento disponível em “http://www.dhnet.org.br/dados/tex-


tos/edh/br/plano_acao_programa_mundial_edh_pt.pdf”. Acesso em 01/06/16.
4 Íntegra do documento disponível em “http://unesdoc.unesco.org/ima-
ges/0021/002173/217350por.pdf”. Acesso em 01/06/2016.
5 Íntegra do documento disponível em “http://unesdoc.unesco.org/ima-
ges/0023/002329/232922POR.pdf”. Acesso em 01/06/16.

131
tação e de difusão de informação, orientado para a criação de uma cultura
universal de direitos humanos. Uma educação integral em direitos humanos
não somente proporciona conhecimentos sobre os direitos humanos e os
mecanismos para protegê-los, mas, além disso, transmite as aptidões neces-
sárias para promover, defender e aplicar os direitos humanos na vida cotidia-
na das pessoas. “A educação em direitos humanos promove as atitudes e o
comportamento necessários para que os direitos humanos para todos os
membros da sociedade sejam respeitados”.
As disposições relativas à EDH foram incorporadas em inúmeros docu-
mentos internacionais, em destaque a Declaração Universal de Direitos Hu-
manos (artigo 26), o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (artigo 13), a Convenção sobre os Direitos da Criança (artigo 29),
a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra
a mulher (artigo 10), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de to-
das as formas de Discriminação Racial (artigo 7) e a Declaração e Programa
de Ação de Viena (Parte I, parágrafos 33 e 34 e Parte II, parágrafos 78 a 82),
bem como na Declaração e Programa de Ação da Conferência Mundial Con-
tra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correla-
tas, celebrada em Durban (África do Sul), em 2001 (Declaração, parágrafos
95 a 97 e Programa de Ação, parágrafos 129 a 139). (UNESCO, 2006)
Ainda no contexto do Plano de Ação para a primeira fase, PMEDH-1
(UNESCO, 2006) é possível encontrar claramente a definição de educação
em direitos humanos como sendo o conjunto de atividades de capacitação e
difusão da informação, orientadas para a criação de uma cultura universal na
esfera dos direitos humanos através da transmissão de conhecimentos, do
ensino de técnicas e da formação de atitudes, e estabelece ainda suas princi-
pais finalidades:

a) Fortalecer o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais;


b) Desenvolver plenamente a personalidade humana e o sentido da dignidade
do ser humano;
c) Promover a compreensão, a tolerância, a igualdade entre os sexos e a amizade
entre todas as nações, os povos indígenas e os grupos raciais, nacionais, étnicos,
religiosos e linguísticos;
d) Facilitar a participação efetiva de todas as pessoas numa sociedade livre e
democrática na qual impere o Estado de direito;
e) Fomentar e manter a paz;
f) Promover um desenvolvimento sustentável centrado nas pessoas e na justiça
social. (UNESCO, 2006, pág. 10)

Cumpre ainda destacar as três principais dimensões da educação em


EDH apresentadas pela UNESCO. (2006, p. 10)

a) Conhecimentos e técnicas: aprender sobre os direitos humanos e os meca-


nismos para sua proteção, bem como adquirir a capacidade de aplicá-los na vida
cotidiana;

132
b) Valores, atitudes e comportamentos: promoção de valores e fortalecimento
de atitudes e comportamentos que respeitem os direitos humanos;
c) Adoção de medidas: fomentar a adoção de medidas para defender e promo-
ver os direitos humanos.

Desta forma, o Plano de Ação estabelece uma série de objetivos e méto-


dos para a implementação de políticas que efetivem e fortaleçam a educação
em direitos humanos como instrumento de conscientização e transformação
social.
No dia 19 de dezembro de 2011 a AGNU adotou a Declaração das Na-
ções Unidas sobre Educação e Formação em Direitos Humanos através da
Resolução nº 66/173 e solicitou que os governos, os organismos e organiza-
ções das Nações Unidas, as organizações intergovernamentais e ONGs in-
tensificassem seus esforços para difundir a declaração e promover seu res-
peito e sua compreensão a nível universal.
Oportuno ressaltar que a Declaração reafirma o entendimento de que
toda pessoa tem direito a educação, e que a educação deve orientar-se pelo
pleno desenvolvimento da personalidade humana e de sua dignidade, capa-
citando todas as pessoas a participarem efetivamente de uma sociedade li-
vre, favorecendo a compreensão, a tolerância e amizade entre todas as na-
ções e todos os grupos raciais, étnicos e religiosos e promovendo o desenvol-
vimento das atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz, da se-
gurança e do fortalecimento dos direitos humanos.
A Declaração, no seu art. 1º, considera como um direito humano univer-
sal o direito a buscar e receber informações sobre todos os direitos humanos
e para tanto deve ter garantido o acesso à educação e formação em direitos
humanos. (ONU, 2012)
Esta foi uma breve exposição acerca dos principais documentos interna-
cionais que tratam do tema da educação em Direitos Humanos, sendo certo
muitas das declarações hoje vigentes no direito internacional versam sobre a
formação humanista dos seres humanos.

EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

Do ponto de vista jurídico-normativo a educação no Brasil tem status


constitucional de direito social, uma das categorias integrantes do Título II
da Constituição Federal de 1988, que trata dos direitos e garantias funda-
mentais inerentes a todos os indivíduos, conforme estabelecido em seu art.
6º: “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a mo-
radia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição”. (BRASIL, 1988)

133
Os objetivos da educação no Brasil podem ser extraídos da leitura do art.
205 da Constituição do Brasil, que assim dispõe: “A educação, direito de to-
dos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a co-
laboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
(BRASIL, 1988)
A educação representa, no seu sentido amplo, tudo aquilo que pode ser
feito para desenvolver o ser humano, e, em sentido estrito, a instrução e o
aperfeiçoamento de competências e habilidades. (VIANNA, 2006)
Para Freire (1967), o ponto de partida da educação está em considerar
a liberdade e a crítica como modo de ser do indivíduo. Em uma sociedade
dividida em classes, a educação é potente ferramenta para a mudança social.
Freire (op. Cit.) sustenta ainda que a educação para o desenvolvimento deve
ser uma prática de conscientização permanente, que possibilite ao homem a
discussão corajosa sobre a sua problemática, e a partir disso, obtenha a força
e a coragem necessárias para lutar e se tornar protagonista de sua própria
vida. Uma verdadeira pedagogia do oprimido: aquela que tem de ser forjada
com o ser humano e não para ele, na luta incessante de recuperação de sua
humanidade. (FREIRE, 2014).
A Constituição de 1988, no artigo 214, determina que a lei estabeleça
um Plano Nacional de Educação, com duração decenal, com objetivo de ar-
ticular o sistema nacional de educação e definir diretrizes, objetivos, metas
e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e o desenvolvi-
mento do ensino em seus diversos níveis, destacando no inciso V a preocu-
pação soberana com a promoção humanística do País, incluindo-se nesta dis-
posição a educação em direitos humanos.
O Plano Nacional de Educação, que tem duração decenal (2014-2024),
foi aprovado através da Lei 13.005 de 25 de junho de 2014 para regulamen-
tar o art. 214 e adota em seu texto claras disposições sobre educação em di-
reitos humanos. Dentre as diretrizes constantes do art. 2º, cumpre salientar:
“V – formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores
morais e éticos em que se fundamenta a sociedade; VII – promoção huma-
nística, científica, cultural e tecnológica do país; X – promoção dos princí-
pios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade so-
cioambiental”.
A Lei de Diretrizes e Bases (BRASIL, 1996) determina em seu art. 1º
que a educação “abrange os processos formativos que se desenvolvem na
vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino
e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas
manifestações culturais”. Entre os princípios elencados no art. 3º da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Escolar (1996), é possível constatar que al-
guns se encontram fundamentados em vertentes da educação humanista, a
saber:

134
Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamen-
to, a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;
IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância;
XII – consideração com a diversidade étnico-racial.

A educação em Direitos Humanos no Brasil apresenta contornos mais


expressivos a partir dos anos 80, baseada no movimento de redemocratiza-
ção do país (PNEDH, 2007), que pôs fim a um regime ditatorial marcado
pelo autoritarismo de Estado e violações de direitos e garantias individuais.
Este movimento ostentou seu marco jurídico com a promulgação da Consti-
tuição Federal em 1988 (BRASIL, 1998) que legitimamente consagrou o
Estado Democrático de Direito e reconheceu como seus fundamentos o res-
peito à dignidade da pessoa humana e a garantia dos direitos individuais e
coletivos, tais como os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, so-
ciais, culturais e ambientais.
A educação baseada em direitos propõe que além das disciplinas básicas
ministradas nos ambientes educacionais seja incluída a educação em direitos
humanos como ferramenta útil ao fortalecimento de uma cultura de direitos
em que prevaleçam os valores dos direitos humanos.
Neste sentido, para reconhecer e realizar a educação como um direito
humano de caráter social e a Educação em Direitos Humanos como um dos
eixos fundamentais do direito à educação, a sociedade precisará demonstrar
um posicionamento firme quanto à promoção de uma cultura de direitos.
(BRASIL, 2011)
Especificamente, a educação em direitos humanos pretende conscienti-
zar, transformar e emancipar a sociedade contemporânea através do conhe-
cimento e, conforme ensina Benevides (2000), trata-se essencialmente da
formação de uma cultura de respeito à dignidade da pessoa humana através
da promoção e defesa de valores fundamentais como a vida, liberdade, igual-
dade, justiça, solidariedade, cooperação, tolerância e paz. Com efeito, Bene-
vides (2009, p. 323) ensina que a Educação em Direitos Humanos parte de
três pontos principais:

E Educação em Direitos Humanos parte de três pontos essenciais: primeiro, é


uma educação de natureza permanente, continuada e global. Segundo, é uma
educação necessariamente voltada para a mudança e terceiro, é uma inculcação
de valores, para atingir corações e mentes e não apenas instrução, meramente
transmissora de conhecimentos. Acrescente-se, ainda, e não menos importante
que, ou esta educação é compartilhada por aqueles que estão envolvidos no
processo educacional – os educadores e educandos – ou ela não será educação
em direitos humanos. Tais pontos são premissas: a educação continuada, a edu-
cação para a mudança e a educação compreensiva, no sentido de ser comparti-
lhada e de atingir tanto a razão quanto a emoção.

135
Com base nessa explanação é possível identificar três eixos principais da
EDH: i) educar para princípios; ii) educar para valores; iii) educar para di-
reitos.
É neste contexto histórico surgem as primeiras versões do Programa Na-
cional de Direitos Humanos (PNDH), produzidos entre 1996 e 2002. Com
relação ao tema da EDH o documento orientador principal é o Programa
Nacional de Direitos Humanos-3, conhecido como PNDH-3 (2009), que
apresenta no eixo orientador V as determinações sobre a Educação e Cultu-
ra em Direitos Humanos com foco no desenvolvimento de uma nova men-
talidade coletiva para o exercício da solidariedade, do respeito às diversida-
des e da tolerância bem como em combater o preconceito, a discriminação
e a violência, promovendo a adoção de novos valores de liberdade, justiça e
igualdade.
Com relação à educação não formal, há previsão específica na Diretriz nº
20 do V Eixo Orientador V, objetivo Estratégico I do PNDH-3 (2009),
Ação Programática I, item “b” que versa sobre a inclusão da temática de
educação em Direitos Humanos na educação não formal de responsabilida-
de da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República,
Ministério da Cultura, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial da Presidência da República; Secretaria Especial de Políti-
cas para as Mulheres da Presidência da República; Ministério da Justiça de
forma a:

b) Apoiar iniciativas de educação popular em Direitos Humanos desenvolvidas


por organizações comunitárias, movimentos sociais, organizações não-governa-
mentais e outros agentes organizados da sociedade civil.

No ano de 2006, o Brasil concebe seu primeiro Plano Nacional para Edu-
cação em Direitos Humanos, elaborado pela Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da República em parceria com órgãos do poder
Executivo especificamente os Ministérios da Educação e Justiça, contando
ainda com a colaboração da Unesco, para então consagrar uma política edu-
cacional do Estado Brasileiro direcionado às 5 principais esferas educacio-
nais (MEC, 2011): educação básica, educação superior, educação não for-
mal, mídia e formação de agentes públicos de segurança e justiça.
Os Planos Nacionais são executados por políticas públicas a serem de-
senvolvidas pelos Municípios em regime de colaboração com as demais esfe-
ras do poder público. O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
incorpora os principais aspectos dos documentos internacionais sobre Direi-
tos Humanos, contemplando exigências antigas e contemporâneas da socie-
dade pela construção de uma cultura de paz, democracia, desenvolvimento
e justiça social. (PORTAL BRASIL, 2011)
De acordo com o Plano Nacional para Educação em Direitos Humanos
(2007) a educação não-formal em direitos humanos orienta-se pelos princí-
pios da emancipação e autonomia, visando executar o processo de sensibili-

136
zação e construção de uma consciência crítica, podendo ser entendida como
educação para a vida no sentido de garantir o respeito à dignidade do ser hu-
mano.
A Educação em Direitos Humanos, conforme preconiza o PNEDH
(2007) é percebida como um processo pluridimensional e sistemático que
conduz a formação do sujeito de direitos, composta por 5 dimensões nortea-
doras:

a) apreensão de conhecimentos historicamente construídos sobre direitos hu-


manos e a sua relação com os contextos internacional, nacional e local;
b) afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos
direitos humanos em todos os espaços da sociedade;
c) formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer presente em níveis
cognitivo, social, ético e político;
d) desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção
coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos contextualizados;
e) fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e instru-
mentos em favor da promoção, da proteção e da defesa dos direitos humanos,
bem como da reparação das violações.

O PNEDH é o principal documento nacional orientador de políticas pú-


blicas e ações da sociedade civil para a educação em direitos humanos a nível
nacional, e aponta quais objetivos devem ser alcançados na consecução do
Plano (2007): l) balizar a elaboração, implementação, monitoramento, ava-
liação e atualização dos Planos de Educação em Direitos Humanos dos esta-
dos e municípios;
De acordo com a leitura do item “L” acima destacado infere-se que o
Plano delega aos Estados e Municípios a elaboração, implementação, moni-
toramento, avaliação e atualização dos Planos de Educação em Direitos Hu-
manos a nível local, que deverão criar e executar tais disposições:
O PNEDH (2007) estabelece ainda os princípios norteadores da educa-
ção não formal em direitos humanos, conforme se aduz a seguir6:

a) qualificação para o trabalho;


b) adoção e exercício de práticas voltadas para a comunidade;
c) aprendizagem política de direitos por meio da participação em grupos so-
ciais;
d) educação realizada nos meios de comunicação social;
e) aprendizagem de conteúdos da escolarização formal em modalidades diver-
sificadas; e

6 Texto original completo: “A educação não-formal em direitos humanos orienta-se


pelos princípios da emancipação e da autonomia. Sua implementação configura um per-
manente processo de sensibilização e formação de consciência crítica, direcionada para
o encaminhamento de reivindicações e a formulação de propostas para as políticas pú-
blicas, podendo ser compreendida como: “ (PNEDH, 2007, p. 42)

137
f) educação para a vida no sentido de garantir o respeito à dignidade do ser
humano.

Por sua vez, o 1º Plano Municipal do Rio de Janeiro de Direitos Huma-


nos (2014) reafirma que a educação e a cultura em Direitos Humanos visam
à formação de uma nova concepção coletiva para o exercício da solidarieda-
de, do respeito às diversidades e à tolerância tendo como principais objeti-
vos o combate ao preconceito, à discriminação e à violência bem como a pro-
moção de valores como igualdade, justiça e liberdade, e consagra como slo-
gan a expressão “Rio de direitos. “
O documento confere ao Eixo Orientador V a responsabilidade pela po-
lítica de educação e cultura em direitos humanos, e especificamente à dire-
triz nº 3 a responsabilidade pelo reconhecimento da educação não formal
com espaço de defesa e promoção dos direitos humanos.
A espécie a ser explorada e utilizada no presente trabalho é unicamente
a educação não formal, conforme explica Gohn (2006), esta forma de edu-
cação é aquela que acontece através da evolução e experiências da própria
vida humana, via processos de compartilhamento de experiências, podendo
ser exercida em espações e ações coletivas e cotidianas, bem como em espa-
ços públicos.
Para a autora (GOHN, 2006, p. 29), a educação não formal não só capa-
cita os indivíduos a se tornarem cidadãos do mundo no mundo como tam-
bém amplia os horizontes de conhecimento sobre os indivíduos do mundo e
suas formas de sociabilidade, priorizando tanto a construção de relações so-
ciais baseadas em igualdade e justiça social quanto a transmissão de informa-
ção e formação política e sociocultural, em razão de ambas serem capazes de
fortalecer o exercício da cidadania.
No ano de 2012 o Conselho Nacional de Educação estabeleceu as Dire-
trizes Nacionais para Educação em Direitos Humanos através da Resolução
nº 01/2012 considerando as disposições dos documentos internacionais e
nacionais7 referentes ao tema.
Cabe aqui destacar os princípios sobre o qual irá se fundamentar a edu-
cação para a mudança e transformação social, conforme a resolução nº

7 Importante transcrever o texto completo para demonstrar a amplitude da aborda-


gem deste trabalho aos principais documentos detentores de educação humanista
“CONSIDERANDO o que dispõe a Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948; a Declaração das Nações Unidas sobre a Educação e Formação em Direitos Hu-
manos (Resolução A/66/137/2011); a Constituição Federal de 1988; a Lei de Diretri-
zes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996); o Programa Mundial de Educa-
ção em Direitos Humanos (PMEDH 2005/2014), o Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH-3/Decreto nº 7.037/2009); o Plano Nacional de Educação em Direi-
tos Humanos (PNEDH/2006); e as diretrizes nacionais emanadas pelo Conselho Nacio-
nal de Educação, bem como outros documentos nacionais e internacionais que visem
assegurar o direito à educação a todos(as).” (CNE, 2012)

138
01/2012: “I – dignidade humana; II – igualdade de direitos; III – reconheci-
mento e valorização das diferenças e das diversidades; IV – laicidade do Es-
tado; V – democracia na educação; VI – transversalidade, vivência e globali-
dade; e VII – sustentabilidade socioambiental”.
No esteio de documentos nacionais sobre EDH, importante destacar a
inserção dos valores de educação humanista na formação de profissionais do
magistério na educação básica através da promulgação das Diretrizes Curri-
culares Nacionais para as Licenciaturas, definidas pela Resolução nº
02/2015 do Conselho Nacional de Educação, órgão vinculado ao Ministério
da Educação, ambos do Poder Executivo. Ainda no preâmbulo a preocupa-
ção com a matéria se mostra evidente tendo em vista a Resolução considerar
a educação em e para os direitos humanos um direito fundamental e inte-
grante do direito à educação e também

uma mediação para efetivar o conjunto dos direitos humanos reconhecidos pelo
Estado brasileiro em seu ordenamento jurídico e pelos países que lutam pelo
fortalecimento da democracia, e que a educação em direitos humanos é uma
necessidade estratégica na formação dos profissionais do magistério e na ação
educativa em consonância com as Diretrizes Nacionais para a Educação em Di-
reitos Humanos;

Tal resolução inova e eleva ao caráter de princípio premissas oriundas da


educação em direitos humanos, ao estabelecer no art. 2º, §5º, II:

§ 5º São princípios da Formação de Profissionais do Magistério da Educação


Básica:
II – a formação dos profissionais do magistério (formadores e estudantes) como
compromisso com projeto social, político e ético que contribua para a consoli-
dação de uma nação soberana, democrática, justa, inclusiva e que promova a
emancipação dos indivíduos e grupos sociais, atenta ao reconhecimento e à va-
lorização da diversidade e, portanto, contrária a toda forma de discriminação.

A implementação da educação em direitos humanos na formação de


profissionais do Magistério reforça a expansão da política de proteção e pro-
moção em direitos humanos e pode ser considerada uma etapa inaugural
para uma transformação educacional e cultural baseada nos valores huma-
nistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como bem salienta Coutinho (2013) o acesso à educação é um fator cla-


ramente relacionado à desigualdade uma vez que pessoas que tem acesso à
educação são, via de regra, aquelas que se apropriarão de parcelas mais sig-
nificativas da riqueza e as que não tiveram pleno acesso à educação e não são
beneficiadas por alguma política redistributiva, tendem a ficam com parce-

139
las reduzidas de renda e por conseguinte, transmitem essa situação desprivi-
legiada para seus descendentes gerando um ciclo vicioso de reprodução de
elites e mobilidade social reduzida.
Não obstante, a educação em direitos humanos pretende garantir ao
educando uma educação imparcial, livre de valores pré-concebidos, pautada
no respeito, solidariedade e alteridade, que descortine a realidade e forneça
subsídios teóricos, históricos, sociais e jurídicos para que o educando arqui-
tete a sua própria concepção crítica. Ao reforçar o pensamento crítico cria-
se um filtro para recepção de verdades absolutas sem questionamentos e
abre-se um próspero caminho para ideias baseadas em fatos e não em qual-
quer forma de mitologia. A EDH objetiva incutir valores de respeito, tole-
rância, alteridade, solidariedade, justiça social e estabilizar uma cultura de
paz nas práticas cotidianas.
Mais do que nunca, o mundo precisa de Educação em Direitos Huma-
nos, para justamente reconhecer que somos todos humanos, iguais em dig-
nidade e direitos. Sendo assim se torna crucial esclarecer que os Direitos
Humanos se constituem hodiernamente como princípios fundadores da so-
ciedade moderna uma vez que refletem uma cultura de proteção e respeito
ao outro como também representam formas de luta contra as situações de
desigualdade de acesso aos bens materiais e imateriais, às discriminações
perpetradas sobre as diversidades culturais e religiosas, e, de forma geral, às
opressões vinculadas ao controle do poder por minorias. (BRASIL, 2011)
Neste sentido é preciso conceber uma nova forma de educação direcio-
nada à construção de um pensamento humanista na sua essência, de base
ideológica e comportamental. A educação em direitos humanos se propõe,
essencialmente, a buscar possíveis soluções para um grave problema estru-
tural na cultura brasileira que é o desconhecimento de direitos e propor um
modelo de desenvolvimento pautado na potencialização de capacidades in-
telectuais e comportamentais do indivíduo.

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143
O direito de morrer no pensamento
de Steven Luper

Luiz Augusto Marca


Andréia Fernandes de Almeida

Resumo: A indisponibilidade do direito à vida sempre foi uma das ra-


zões primeiras de toda a proteção jurídica, um princípio que engloba do iní-
cio da vida até a sua cessação, zonas limiares, envoltas de complexidade, am-
bivalências e contradições. E será na seara do término da vida e na possibili-
dade de exercício da autonomia da vontade pelo seu titular, que o estudo de
Steven Luper está pautado, onde nem sempre a morte pode ser considerada
como um dano, tampouco o ato de matar visto como necessariamente malé-
fico e reprovável.

Palavras-chave: direito e morrer e autonomia e vontade

Abstract: The unavailability of the right to life has always been one of
the first reasons for all legal protection, a principle that encompasses from
the beginning of life to its cessation, threshold zones, surrounded by com-
plexity, ambivalence and contradictions. And it will be at the end of life and
in the possibility of exercising the autonomy of the will by its owner, that
the study of Steven Luper is based, where death can not always be consid-
ered as an injury, nor the act of killing seen as necessarily maleficent and
reprehensible.

Keywords: right and die and autonomy and will

Considerações Iniciais

A personalidade é uma qualidade inerente da pessoa humana, sendo im-


possível falar em personalidade, sem falar de pessoa; na mesma linha de ra-
ciocínio, é impossível falar de pessoa humana sem falar de vida e morte.
Desta forma, personalidade, vida e morte são conceitos intrinsecamente li-
gados, os quais apresentam relações óbvias de interdependência e zonas li-

145
miares, ambivalentes e contraditórias, divergências no que tange à determi-
nação do exato momento em que a personalidade passaria a existir no ser
humano e também quando ao instante em que ocorreria sua cessação1.
E será nesta seara que o debate acerca da eutanásia e de um suposto di-
reito à morte digna transcende por sua complexidade o campo da argumen-
tação estritamente jurídica. Aspectos bioéticos filosóficos e morais devem
ser tomados em consideração sob pena de injustificável redução do tema.
O presente artigo pretende contribuir para o debate apresentando o
pensamento filosófico de Steven LUPER, professor e diretor do departa-
mento de Filosofia da Universidade de Trinity nos EUA, cujas reflexões so-
bre o tema, em especial as manifestadas em sua obra A Filosofia da Morte
podem colaborar para uma renovada compreensão de tão relevante questão.
Com isto se pretende buscar em sua argumentação, suporte moral que
embase e fundamente o discurso jurídico, quanto à admissibilidade do ato
de matar, quanto à possibilidade da pessoa “titular” da vida e/ou terceiros,
que tenham seu consentimento, para matá-la.

1. A Filosofia da Morte, de Steven LUPER

A obra A Filosofia da Morte é dividida em duas partes, intituladas Mor-


rer (1ª parte) e Matar (2ª parte). A primeira discute os conceitos de vida e
morte, e se esta é capaz de causar dano. A segunda parte é dedicada ao estu-
do das razões pelas quais o ato de matar é considerado moralmente reprová-
vel (e em quais circunstâncias poderia não o ser), além de abordar a temática
da eutanásia e do aborto.
A primeira etapa do texto tem início por uma discussão a respeito do
conceito de vida. Esta é compreendida como uma autoperpetuação baseada
na replicação, de modo que “uma coisa vive apenas quando tem a capacida-
de razoavelmente considerável de se preservar por meio de processos co-
mandados por replicadores duráveis em seu interior” (LUPER, 2010, p.51).
Definida a noção de vida com base no critério acima exposto, o autor
passa a discorrer sobre as relações entre pessoalidade e humanidade. Duas
concepções de pessoalidade seriam, em sua ótica, admissíveis: uma concep-
ção biológica – que afirma que algo é uma pessoa se e apenas se for um ser
humano – e uma concepção psicológica – que exige o requisito da capacida-
de de autoconsciência para aquisição da condição de pessoa (Op. cit., p. 37),
sendo a segunda preferível à primeira. Dentro desta perspectiva, o conceito
de pessoa é mais amplo que o de ser humano, abrangendo algum espécime
animal dotado desta qualidade.

1 ESTEVES, Luciana Batista. (In)Disponibilidade da vida? In: Revista de Direito


Privado. Volume 24, p.89. Out/2005.

146
Quanto aos elementos que definiriam a humanidade, três alternativas
possíveis são apresentadas:
Inicialmente, o essencialismo animal sustenta que os seres humanos são
animais; o essencialismo mental afirma que o que nos define enquanto hu-
manos é nossa mente (definida como a capacidade de entidade capaz de
consciência); por fim, o essencialismo pessoal afirma que somos definidos
pela capacidade de autoconsciência.
Num segundo momento, passa-se a analisar a morte. Reconhecida a am-
biguidade do termo, este pode ser compreendido como um processo ou o
resultado de um processo (Op. cit., p. 56). Leo PESSINI reforça este enten-
dimento:

A morte é vista hoje como processo e não como evento e, portanto, não pode
ser determinada como ocorrendo num momento específico. É um fenômeno
progressivo. Em primeiro lugar morrem os tecidos mais dependentes de oxigê-
nio, sendo o mais sensível de todos o cérebro. De três a cinco minutos de falta
de oxigenação são suficientes para comprometes irreversivelmente o córtex do
paciente, que daí em diante terá apenas vida vegetativa, ou seja, estará incons-
ciente, mas respirando e com o coração batendo (PESSINI, 2004, p. 52).

Entender a morte como um processo implicaria aceitar que a mesma não


é instantânea, mas uma sequência extintiva dos processos vitais, cuja se-
quência não é inteiramente clara. O “fim da vida” comportaria assim uma
tríplice interpretação possível: poder ser considerada como “a conclusão do
processo de morte, a perda do derradeiro fim da vida” (“desfecho de mor-
te”), como um ponto preliminar no processo de morte a partir do qual este
se torne irreversível, alcançando um ponto de não-retorno (“preâmbulo da
morte”) ou “quando os diversos sistemas fisiológicos do corpo cessam de
funcionar irreversivelmente como um todo integrado” (“ integração da mor-
te”). O declínio dos processos vitais antes de sua extinção última sugeriria,
no seu entender, que o processo de morte ocorre em graus, de modo que
compreender o estado de morte como abrangente de todas as circunstâncias
que antecedem o óbito significaria um estado de vida parcial (LUPER,
2010, pp. 56-58). De forma sintética, o autor arremata:

Portanto, a morte pode ser um estado (estar morto) ou processo de extinção


(morrer); também poderia ser análoga a um ou dois eventos durante o processo
de morte: o preâmbulo da morte ocorre quando o processo de morte atinge o
ponto de irreversibilidade, ao passo que o desfecho da morte ocorre quando o
processo de morte se completa (Op. cit. pp. 58-59).

Leo PESSINI realça as dificuldades em definir com exatidão a ocasião


em que se dá este ponto de não retorno:

O que parece simples à primeira vista na verdade é uma complexa operação: a


determinação de quando realmente não existe mais retorno. O realmente difí-

147
cil – e avançaríamos a expressão, o atualmente impossível – é que, apesar de não
haver dúvida quanto à existência de um instante, um momento ultrapassado o
qual não há condições de reverter o processo, nós não possuímos meio de esta-
belecer a ocasião precisa em que isso ocorre, em outras palavras, quando o pon-
to limite de retorno impossível é atingido, o chamado point of no return dos
autores ingleses (PESSINI, 2004, pp. 54-55).

De fato, a dificuldade em se obter critérios seguros que possam afirmar


em caráter inquestionável quando a morte ocorre é ressaltada pelo autor em
outra passagem:

Defining death is one thing; providing criteria by which it can be readily detec-
ted or verified is another. A definition is an account of what death is; when, and
only when its definition is met, death has necessarily occurred. A criterion for
death, by contrast, lays out conditions by which all and only actual deaths may
be readily identified. Such a criterion falls short of a definition but plays a prac-
tical role. For example, it would help physicians and jurists determine when
death has occurred (LUPER, 2016, p.06).

Nos Estados Unidos da América país do autor, adota-se o critério previs-


to no Uniform Determination of Death Act de 1981, pautado em padrões
médicos, que considera a ocorrência do óbito quando da cessação irre-
versível das funções respiratória e circulatória além da total cessação das
funções cerebrais2. Para o autor, tal critério é passível de críticas, na medida
em que:

These current criteria are subject to criticism, even if we put aside reservations
concerning the qualifier ‘irreversible’. Animalists might resist the criteria since

2 Cabe destacar que o Brasil considera a ocorrência do óbito no caso de morte ence-
fálica. No dia 15 de dezembro de 2017 foi publicado no Diário Oficial da União a Re-
solução 2.173/2017 do Conselho Federal de Medicina do Brasil – CFM, que define os
critérios do diagnóstico de morte encefálica, estando previsto no art. 1o. os requisitos
para caracterização da mesma: “Art. 1º Os procedimentos para determinação de morte
encefálica (ME) devem ser iniciados em todos os pacientes que apresentem coma não
perceptivo, ausência de reatividade supraespinhal e apneia persistente, e que atendam a
todos os seguintes pré-requisitos: a) presença de lesão encefálica de causa conhecida,
irreversível e capaz de causar morte encefálica; b) ausência de fatores tratáveis que pos-
sam confundir o diagnóstico de morte encefálica; c) tratamento e observação em hospital
pelo período mínimo de seis horas. Quando a causa primária do quadro for encefalopatia
hipóxico-isquêmica, esse período de tratamento e observação deverá ser de, no mínimo,
24 horas; d) temperatura corporal (esofagiana, vesical ou retal) superior a 35°C, satu-
ração arterial de oxigênio acima de 94% e pressão arterial sistólica maior ou igual a 100
mmHg ou pressão arterial média maior ou igual a 65mmHg para adultos, ou conforme a
tabela a seguir para menores de 16 anos (...)”. Cabe destacar também a Lei n. 9.434, de
4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo
humano para fins de transplante e tratamento post mortem, destaca que tal procedimen-
to somente poderá ser realizado após a comprovação de morte encefálica.

148
the vital processes of human beings whose entire brains have ceased to function
can be sustained artificially using cardiopulmonary assistance. Mindists and
personists might also resist the criteria, on the grounds that minds and all psy-
chological features can be destroyed in human beings whose brain stems are
intact. For example, cerebral death can leave its victim with an intact brain
stem, yet mindless and devoid of self-awareness (Op. cit., p. 06).

Para James RACHELS, a morte não poderia ser compreendida como


um processo, mas como um evento posterior ao processo de morrer, confor-
me se depreende da seguinte passagem:

An obvious but misguided reaction to the argument is to object that, contrary


to what Epicurus says, death can be quite painful – think, for example of the
agony experienced by someone dying of a horrible disease. This objection is
misguided because it confuses death with dying, which are different notions.
The difference is that dying is a process, which go on through a period of time,
while death is an event which occurs at a certain time. While he is dying, a
person is still alive: the process of dying, and not the event of death, is the
source of the pain (RACHELS, 1986, p. 41).

Consideradas as explicações anteriormente trabalhadas quanto à nature-


za humana, a morte, para o animalismo, seria a interrupção irreversível dos
processos vitais pelos quais se preserva a existência dos seres humanos; para
o essencialismo mental, ocorreria com o fim de nossa existência como men-
tes e para o essencialismo pessoal, com a cessação da capacidade de auto-
consciência.
A segunda parte do livro destaca as impressões de LUPER sobre o ato de
matar, tendo como pretensão responder ao questionamento base sobre
quando o ato de matar é moralmente condenável. O capítulo 07 de seu livro
(cujo título, “matar”, é idêntico ao que nomeia toda a segunda parte de sua
obra) busca compreender as razões pelas quais o ato de matar é comumente
ilícito.
O ato de matar é descrito como um erro prima facie, na medida em que,
em linha de princípio, possui características condenáveis – embora, conside-
rando as circunstâncias como um todo, a ação possa ser justificável (ex: ma-
tar um animal para fins de alimentação, matar alguém em legítima defesa,
ou, em países que admitem tal medida, aplicar a pena capital) – em virtude
do dano causado a quem morre (LUPER, 2010, pp.171-172). O autor res-
salta ainda a distinção entre os atos de matar e o de deixar morrer. A respei-
to, BEAUCHAMP e CHILDRESS afirmam que:

Matar representa uma família de ideias cuja condição central é causar direta-
mente a morte de alguém, enquanto deixar morrer representa uma outra famí-
lia de ideias cuja condição central é evitar intencionalmente uma intervenção
causal a fim de que uma enfermidade ou ferimento cause uma morte natural
(BEAUCHAMP, 2013, p. 244).

149
Para LUPER, tal diferença é apresentada como relevante, na medida em
que:

A distinção é importante, pois pode ser permissível deixar uma criatura morrer
mesmo não sendo permissível matá-la (embora seja, sem dúvida, errado matar
um ser quando é errado deixá-lo morrer). É controverso quantos famintos devo
ajudar a não deixar morrer, mas bastante óbvio que não posso matar nenhum
deles (LUPER, 2010, p. 172).

Na correlação estabelecida entre as condutas de matar e deixar morrer,


percebe-se uma gradação, de modo que sempre que o ato de matar seja con-
siderado lícito, igualmente o seria o de deixar morrer (esta premissa, implí-
cita no texto, autoriza afirmar que um ordenamento que admita a conduta
da eutanásia fatalmente admitiria, como igualmente lícita, a prática da orto-
tanásia), não sendo admissível a conclusão contrária (na medida em que a
conduta de deixar morrer não implicaria na dedução necessária pela admis-
sibilidade do ato de matar). Partindo do pressuposto que as diferenças entre
ambas as práticas sejam consideradas claras, LUPER passa a analisar algumas
explicações sobre o erro do ato de matar, a saber: a explicação do dano, do
consentimento e do valor do sujeito.
A primeira destas explicações possíveis é sintetizada na seguinte fór-
mula:

Explicação do Dano: Matar o sujeito S é totalmente ilícito apenas se causa dano


a S e na medida em que causa esse dano. O grau de ilicitude de matar S depen-
de do grau de dano: quanto mais danoso a S, mais censurável é (Id., p. 172).

A fórmula apresentada condiciona a ilicitude do ato de matar à causação


de um dano ao sujeito que é vítima de tal prática. Tanto mais reprovável será
a conduta, quanto maior seja o dano dela advindo. Formulada em tais ter-
mos, a explicação poderia permitir o argumento contrario sensu, de que,
quando incapaz de causar dano, o ato de matar seria de todo incensurável.
Naturalmente, tal argumento passa pelo debate sobre se a morte (ou, dito
de outro modo, a perda da vida) em si poderia ser considerada em si um
dano3. Neste sentido, a argumentação em torno dos interesses críticos apre-

3 Uma das dificuldades possíveis aqui seria identificar o momento da ocorrência do


dano, e o sujeito sobre o qual este supostamente recai. Analisando a questão, LUPER
recorre à análise do Epicurismo sobre tal paradoxo: “the harm thesis, on which death
may harm the individual who dies, can hold true only if there is a subject who is harmed
by death, a clear harm that is received, and a time when that harm is received. As to the
timing issue, there seem to be two possible solutions: either death harms its victims
while they are alive or later. If we opt for the second solution we appear to run head on
into the problem of the subject, for assuming that we do not exist after we are alive, no
one is left to incur harm. If we opt for the first solution – death harms its victims while
they are alive – we have a ready solution to the problem of the subject but we face the

150
sentada por DWORKIN poderia fornecer uma explicação útil. Para o autor,
no que se refere aos interesses fundamentais de uma pessoa, estes são divi-
didos em dois grupos: os interesses experienciais – ligado ao valor dos fatos
e circunstâncias como experiências – e os interesses críticos – capazes de
tornar as vidas sensivelmente melhores ou piores, uma vez vividos ou igno-
rados (PEREIRA, 2010, p. 02). O principal traço distintivo entre tais inte-
resses reside justamente na influência que os segundos têm sobre a qualida-
de de vida da pessoa. DWORKIN sustenta que tal diferenciação é necessária
para entender as convicções sobre o modo como as pessoas devem ser trata-
das (DWORKIN, 2016, pp. 283-286). Sendo a preocupação com os inte-
resses experienciais um fenômeno natural (na medida em que a obtenção da
sensação de prazer e, ao reverso, o evitar a sensação de desprazer ou dor se-
jam características instintivas de todos os animais), seu estudo é centrado na
figura dos interesses críticos, e o porquê das pessoas se preocuparem com
eles (ainda que de forma não totalmente consciente). Para tal análise, o au-
tor (após recusar perspectivas biológicas ou sociológicas que abordam o
tema) oferece uma explicação que denomina intelectual, que parte da pre-
missa de que as pessoas possuem um desejo de ter uma vida boa, e que se
preocupem com o que se possa considerar como tal.

As pessoas consideram importante não apenas que sua vida contenha uma va-
riedade de experiências certas, conquistas e relações, mas que tenha uma estru-
tura que expresse uma escolha coerente entre essas experiências – para algu-
mas, que demonstre um compromisso inequívoco e autodefinidor com uma
concepção de caráter ou de realização que a vida como um todo, vista como
uma narrativa integral e criativa, ilustre e expresse. Sem dúvida esse ideal de
integridade não define, por si só, uma forma de vida: pressupõe convicções
substantivas (Op. cit., p. 290).

Assim, na medida em que a vida biológica em si não mais atenda (antes


represente uma afronta) aos interesses críticos de seu titular, a morte não
poderia ser considerada um dano, mas antes o máximo respeito devido a tais
interesses (Id., p. 305). Do mesmo modo, uma vida cujo propósito se tenha
frustrado, ou cujo titular não mais possua quaisquer interesses que possam
ser frustrados não poderia ser prejudicada com o evento morte, ao revés, tal-
vez seja até mesmo favorecida por esta:

We have said that dying is a bad thing for us since it frustrates our desires.
However, a more accurate way to put matters is that dying is bad for us if it
thwarts our desires. On the strength of the premise that what thwarts my de-
sires is a misfortune for me, we cannot conclude that my dying is a bad thing

problem of supplying a clear way in which death is bad: death seems unable to have any
ill effect on us while we are living since it will not yet have occurred” (LUPER, 2007 p.
239).

151
for me unless I have desires that would be thwarted by my death. A death
which comes when I have exhausted all of my ambitions will be a welcome
release from a life destined to be one of excruciating emptiness (LUPER, 1987
p. 236).

Neste caso é vislumbrar a morte como exercício da autonomia da vonta-


de do ser humano, é reconhecer que há pessoas para quais a vida realmente
não vale mais a pena ser vivida, que seu prolongamento coloca em xeque sua
integridade física e psíquica e que a continuação de sua existência poderá ir
de encontro com sua dignidade (ESTEVES, 2005).
LUPER combina a fórmula original com as variantes do hedonismo ne-
gativo (atribuído ao epicurismo) e positivo, gerando duas outras. A explica-
ção do dano combinada com o hedonismo negativo assim se exprime:

Explicação do Dano do Hedonismo Negativo: Matar S é totalmente ilícito ape-


nas se causa dano a S e na medida em que causa esse dano, e o faz quando e
apenas quando faz S sofrer mais do que teria sofrido caso S não tivesse sido
morto (Id., p. 173).

Esta explicação é criticada como inadequada para explicar a ilicitude do


ato de matar, na medida em que, sendo o hedonismo negativo pautado nas
ideias de que todo benefício somente pode ser obtido mediante a redução
da dor, e de que toda vida implica numa quantidade significativa de sofri-
mento, toda conduta de matar (desde que do modo mais indolor possível)
seria invariavelmente benéfica. Daí concluir-se pela afirmação inversa, ou
seja, que o ato de matar seria totalmente permissível, não podendo ser to-
mado por moralmente inadequado. Acrescentando ao argumento a suposi-
ção de que existe um dever moral de beneficência em relação a outras pes-
soas (ou mesmo a outros seres sensíveis, e, portanto, capazes de sentir dor),
o ato de matar seria benéfico e haveria mesmo que falar-se em uma presun-
ção de autorização para ser morto sem dor, que não poderia ser recusada ra-
cionalmente (Id., pp. 173-174).
Uma segunda variação possível do hedonismo seria apresentada pelo he-
donismo positivo, expressa nos seguintes termos:

Explicação do Dano do Hedonismo Positivo: Matar S é totalmente ilícito ape-


nas se causa dano a S e na medida em que causa esse dano. O dano é avaliado
em termos comparativos; para S, o prazer é o único bem intrínseco e a dor, o
único mal intrínseco (Id., p. 174).

Em que pese ser apontada como mais factível, esta ideia estaria sujeita a
duas críticas: a menor plausibilidade do hedonismo positivo, quando compa-
rado a outras teorias sobre o bem-estar, bem como o fato de não explicar a
razão de ser mais reprovável pôr termo a vida de um ser humano do que a
outras criaturas (Id., pp. 174-175).

152
Rejeitadas as combinações da Explicação do Dano com as teorias hedo-
nistas, LUPER passa a abordá-la sob uma ótica “pura”, dissociada de qual-
quer ideia particular sobre bem-estar. Assim analisada, esta explicação teria
como atrativo estabelecer uma hierarquia entre as diferentes formas de vida
(implicando, portanto, numa gradação da ilicitude do ato de matar). Assim:

Suponha, por exemplo, que os seres com autodeterminação (ou pelo menos
autoconscientes) em geral extraem da vida. Essa suposição é atraente, pois os
interesses dos seres autodeterminados são bem mais abrangentes e sofisticados
do que os de entes meramente sencientes, ao passo que as formas de vida não
sencientes, como as plantas, não tem ponto de vista a partir do qual o que acon-
tece com elas seja importante a elas. Com essas suposições, a Explicação do
Dano implica que matar algumas espécies de criaturas seja pior que matar ou-
tras, embora isso também seja ilícito. Chamemos essa afirmação de tese da hie-
rarquia (Id., p. 175).

A esta visão opõem-se duas objeções: uma pautada na igualdade e outra


na existência de danos permissíveis e da desnecessidade do dano para a ilici-
tude do ato de matar.
A objeção da igualdade é apresentada em algumas variações, centradas
ou não numa superioridade hierárquica da vida humana. Concentrando a
análise nas suas versões antropocêntricas, a primeira (denominada tese radi-
cal) afirma que matar um ser humano pode ser tão grave quanto matar qual-
quer outro; a segunda (tese moderada) reduz esta condição aos seres huma-
nos autodeterminados – ou, pelo menos, autoconscientes (Id., p. 176). A
objeção da igualdade contraria a tese do dano, na medida em que a perda da
vida dos seres humanos (ao menos os autodeterminados, a aceitar-se a varia-
ção moderada) seria, em si, moralmente errada, independente de quaisquer
considerações a respeito de seus interesses, ou de quaisquer questionamen-
tos a respeito de eventuais danos que lhes sejam causados.
A segunda objeção apresentada por LUPER à tese do dano divide-se em
dois argumentos centrais: inicialmente, o prejuízo causado a uma pessoa,
desde que prévia e conscientemente consentido poderia ser considerado
moralmente defensável:

Prejudicar os outros, ao que parece, pode ser moralmente permissível. Isso é


sugerido pelo fato de que nem sempre se causa mal às pessoas prejudicadas
com seu consentimento. Por exemplo, os voluntários de experiências podem
ser gravemente prejudicados, mas também assumem o risco após o consenti-
mento adequado. Talvez quem seja prejudicado quando é morto não o seja,
porém, quando é morto com seu consentimento (Id., p. 177).

De outro modo, o autor aponta que o dano poderia ser considerado um


elemento desnecessário para a ilicitude do ato de matar. Assim, uma pessoa
poderia sofrer danos sem ser prejudicada quando tratada de forma contrária
à sua vontade, mesmo que tal tratamento seja considerado benéfico. LUPER

153
elucubra se uma pessoa poderia ser prejudicada quando morta contra sua
vontade mesmo quando ser morta não lhe causasse mal.
Uma segunda explicação possível para o problema moral do ato de matar
é denominada explicação do valor do sujeito. Esta pressupõe que determi-
nados tipos de sujeitos possuam um valor intrínseco. “Valor do sujeito” é de-
finido como aquele que decorre de forma objetiva da própria natureza de
sujeito, permanecendo constante durante a existência de uma pessoa – di-
versamente do que ocorre com seus níveis de bem-estar, ou com os valores
por ela professados, que oscilarão durante o transcurso de sua vida, e que são
apresentados como relativos e pessoais, na medida em que dependem da
própria percepção de bem daquela pessoa (Id., p. 178). A análise das
implicações morais de matar, à luz da explicação do valor do sujeito, esta-
riam contidas na seguinte fórmula:

Explicação do Valor do Sujeito: Matar o sujeito S é totalmente errado apenas


se S for um sujeito intrinsecamente valioso; o grau de ilicitude de matar S de-
pende do grau do valor intrínseco de S: quanto maior é o valor, mais censurável
é matar (Id., p. 179).

Uma crítica apresentada à teoria do valor do sujeito é a de que esta pres-


supõe a presença se algum tipo de qualidade constante em sua existência. A
dificuldade residiria em identificar qual seria esta qualidade. Restringir o va-
lor intrínseco da vida à espécie humana poderia significar afirmar que a qua-
lidade inerente ao ser humano que o faz intrinsecamente valioso seria sua
capacidade de autoconsciência, ou autodeterminação. Ocorre que tais ca-
racterísticas não são constantes, estando ausentes durante o processo gesta-
cional, ou em situações de estado vegetativo, ou comatoso (Id., p. 180)4.
Numa tentativa de contornar esta crítica com relação à transitoriedade,
LUPER apresenta uma outra fórmula, a qual chama explicação do valor su-
perior do sujeito:

Explicação do Valor Superior do Sujeito: Matar o sujeito S é totalmente errado


apenas se S teria se tornado ou continuado a ser um sujeito intrinsecamente
valioso caso não fosse morto; a ilicitude de matar S depende do grau do valor
intrínseco que S teria ou continuaria a ter: quanto maior é o valor, mais conde-
nável é matar (Id., p. 181).

A explicação é galgada em um princípio do valor do sujeito, assim des-


crito:

4 Tal dificuldade é refutada por outros autores como John FINNIS, para os quais o
valor da vida humana deriva de uma condição partilhada por toda a humanidade, e que
não pode ser perdida ainda que diante do comprometimento de alguma de suas facul-
dades (FINNIS, 2011, p.221).

154
Princípio do Valor do Sujeito: Fazer A contra o sujeito S é totalmente errado
se, por causa de A, o valor intrínseco de sujeito que S alcançará ou reterá seja
menor do que teria sido se A não tivesse sido feito; o grau de ilicitude de se
fazer A contra S depende de quanto valor do sujeito A priva S; quanto mais
valor do sujeito S teria alcançado ou retido (caso A não tivesse sido feito) a mais
do que o valor de sujeito que S realmente alcançará, mais censurável é fazer A
a S (Id., p. 181).

De fato, posta nestes termos, a dificuldade de uma suposta transitorie-


dade do valor de sujeito ao longo da vida resta minimizada, na medida em
que o que é moralmente censurável é o ato que impede a aquisição ou ma-
nutenção de tal valor. A compreensão da explicação nestes termos poderia
considerar moralmente censurável o ato de abortar (ou de matar um bebê)
sempre que isto o impedisse de, futuramente, alcançar uma existência in-
trinsecamente valiosa, o mesmo não se dizendo (ou ao menos não com a
mesma intensidade) de fetos anencéfalos, bebês portadores de uma defi-
ciência capaz de impedir-lhe o desenvolvimento de suas faculdades mentais
ou – o que mais diretamente interessa a este trabalho – de pessoas que se
encontrem em estado vegetativo permanente ou gravemente demenciadas
(Id., p. 181).
Uma terceira explicação possível para as implicações morais do ato de
matar seria chamada explicação do consentimento, que toma em considera-
ção a possibilidade da pessoa optar por ser morta. Colocada em termos sim-
ples, esta explicação afirma que o ato de matar será sempre errado quando
(e apenas quando) não seja de acordo com o consentimento de quem morre.
LUPER a sintetiza nos seguintes termos: “Explicação do Consentimento:
Matar o sujeito S é diretamente errado apenas se não for com o consenti-
mento dele” (Id., p. 189)
Nesta primeira formulação, a explicação somente poderia ser aplicável a
indivíduos que detenham competência para manifestar validamente sua
vontade, não se aplicando aos considerados incompetentes para tanto. Ten-
tando contornar esta dificuldade, combinando as explicações do consenti-
mento e do dano, chegando, enfim, aquilo que denomina explicação combi-
nada e que seria, em seu entender, a mais apta à questão enfrentada:

Explicação Combinada: Se S é um sujeito incompetente, matá-lo é diretamen-


te errado apenas se lhe causa dano e na medida em que causa esse dano; se S é
competente, matar S no tempo T é diretamente errado apenas se S não fez uma
escolha consciente para ser morto em T (Id., p. 191).

Esta explicação parte da premissa de que tanto as escolhas e interesses


de um sujeito são importantes do ponto de vista moral, devendo ser respei-
tadas quando realizadas por quem detenha competência para fazê-lo. De
igual modo, a possibilidade de se causar malefício ou benefício a um sujeito

155
(independente de sua capacidade de autodeterminação) é importante do
ponto de vista moral (Id., p. 191). Assim, para indivíduos competentes, a
escolha quanto a ser morto é o ponto predominante, sendo moralmente re-
provável qualquer de matar que contrarie. Em se tratando de indivíduos não
competentes (ou que ao menos não tenham manifestado seu desejo em al-
guma diretriz antecipada de vontade), predominaria o princípio da não ma-
leficência, sendo vedado matar-lhes sempre que tal ato gerar um dano maior
do que a sobrevivência (num raciocínio inverso, quando tal continuidade
não representar dano, seria lícito tirar-lhe a vida).
Consideradas as implicações morais do ato de matar, LUPER sustenta
que tanto o suicídio (cometido pelo próprio suicida, ou assistido por tercei-
ro), quanto a eutanásia podem constituir opções racional e moralmente jus-
tificáveis. Seriam racionalmente aceitáveis na medida em que encerrassem
uma vida de sofrimentos irreversíveis. Neste caso, atenderiam a questões
prudenciais, devendo ser, preferivelmente, realizados sob assistência de
profissional médico:

Em geral, um bom meio para o suicídio seria indolor, rápido e confiável. Com
toda probabilidade, envolveria algum tipo de droga prescrita por um médico.
Quando morrer é do interesse de uma pessoa, diria que o suicídio seria pruden-
te. Contudo, não diria que é a única abordagem prudente ao suicídio ativo,
tampouco a melhor. A melhor seria tirar a vida sob a supervisão de um médico
disposto a nos ajudar que interviria caso algo inesperado acontecesse. No caso
de algo dar errado, o médico faria a eutanásia. No entanto, obviamente, isso
pressupõe que a eutanásia ativa seja permitida e disponível (Id., p. 213).

Sob um ponto de vista moral, o autor defende a possibilidade do suicídio


e da eutanásia, com base na tese supra abordada da explicação combinada do
dano e do consentimento. Deste modo, o suicídio e a eutanásia seriam mo-
ralmente aceitáveis quando estejam dentro dos interesses do paciente, ou
quando solicitados por este mediante consentimento informado e conscien-
te. Dentro deste raciocínio, o autor sugere algumas normas que o tornariam
moralmente adequado:

1. Quando um indivíduo opta, com competência e informações adequadas, por


se matar usando um método responsável, pode proceder e solicitar ajuda dos
outros.

2. Quando um indivíduo opta, com competência e informações adequadas, que


deve ter a liberdade de morrer, seja imediatamente ou quando ocorrer alguma
contingência futura, e não mudar de ideia, seu pedido deve ser atendido.

3. Quando um indivíduo opta, com competência e informações adequadas, que


deve ser morto usando algum método responsável, seja imediatamente ou em
caso de ocorrer alguma contingência futura, e não mudar de ideia, seu pedido
deve ser cumprido.

156
4. Quando um indivíduo está temporariamente fora de suas capacidades men-
tais quando decide suicidar-se ou quando pede para morrer, outros não devem
auxiliá-lo (a menos que seja necessária a paliação); ao contrário, devem intervir
e ajudá-lo a recuperar sua competência.

5. Devemos agir no melhor dos interesses daquele que perdeu a competência


sem tornar conhecidas suas preferências sobre seu destino; também podemos
agir no melhor dos interesses daquele que nunca foi competente. Agir dessa
maneira significa preservar a vida desses indivíduos; contudo, em alguns casos,
significará praticar a eutanásia passiva ou ativa (Id., p. 230).

A ordem moral e o imperativo de tutela que determinam que a vida deve


ser respeitada, são valores morais enraizados em uma sociedade que está em
rápida transformação5, onde os valores estão cada vez mais sendo questio-
nados.

Considerações Finais

Pretender restringir o debate sobre a eutanásia e o suicídio assistido a


um aspecto estritamente normativo implicaria num empobrecimento de tão
controverso tema. Este trabalho teve como objetivo apresentar uma contri-
buição consistente na análise do pensamento filosófico de Steven LUPER.
De seus numerosos escritos sobre o tema extrai-se que nem sempre a
morte possa ser considerada como um dano, tampouco o ato de matar visto
como necessariamente maléfico e reprovável. A vida (em que pese sua natu-
reza de direito fundamental, e seu evidente valor para o direito) não pode
ser encarada sob um prisma absoluto, outros valores e fatores da personali-
dade do ser humano devem ser levado em conta, como por exemplo a inte-
gridade física e psíquisa de uma pessoa com doença terminal.
O fundamento para a inviolabilidade do direito à vida está na dignidade
da pessoa humana, mas há casos em que o ser humano encontra-se em situa-

5 Atualmente vivemos na sociedade pós-industrial ou informacional, como denomi-


nada por Castells (CASTELLS, Manuel. O Poder da Comunicac?ao. Sao Paulo: Paz e
Terra, 2015.). As transformações em direção à sociedade da informação, em estágio
avançado nos países industrializados, constituem uma tendência dominante mesmo
para economias menos industrializadas e definem um novo paradigma. O avanço tecno-
lógico no novo paradigma foi em grande parte o resultado da ação do Estado e é o Estado
que está à frente de iniciativas que visam ao desenvolvimento da “sociedade da informa-
ção” nas nações industrializadas e em muitas daquelas que ainda estão longe de ter
esgotado as potencialidades do paradigma industrial (WERTHEIN, Jorge. A Sociedade
da Informação e seus desafios. Cie?ncia da Informac?ao, v. 29, n. 02, mai./ago. 2000,
p. 71-77. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ci/v29n2/a09v29n2.pdf. Acesso
em 20 de fevereiro de 2018.)

157
ção tão delicada, onde seu estado de saúde debilitado, compromete toda
uma dignidade construída ao longo da vida, o que pode culminar no desejo
de encerrar esta situação que lhe parece indigna. Fatos como este, onde a
continuação da vida a qualquer custo vai de encontro com a dignidade da
pessoa humana, devem ser deslocados do foco do seu prolongamento, por
um encerramento pautado em sua autonomia da vontade.
Embora a tese esposada pelo autor não seja inteiramente capaz de res-
ponder à questão dos indivíduos despidos de competência para decidir
quanto ao desfecho de sua existência, os critérios apontados possuem o ine-
gável mérito de respeitar-lhe a autonomia quanto ao direito de encerrar uma
existência que contrariando seus interesses e desejos seja, em si, um dano.
Tais critérios podem fornecer suporte moral ao discurso jurídico notada-
mente em ordenamentos que pautados pela noção de respeito e promoção
da dignidade humana, devem assegurar à própria pessoa prioritário respeito
à sua autonomia, naquilo que se refere a seus interesses existenciais.

Referências

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tária, 2017.
BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de Ética Biomédica.
Trad. Luciana Prudenzi. 3ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013.
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Tradução de
Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2016.
CASTELLS, Manuel. O Poder da Comunicac?ao. Sao Paulo: Paz e Terra, 2015.
DWORKIN Ronald. O Domínio da Vida. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2016.
ESTEVES, Luciana Batista. (In)Disponibilidade da vida? In: Revista de Direito Pri-
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FINNIS, John. Human Rights and Common Good. Collected Essays, v. III. Nova
York: Oxford University Press, 2011.
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____________. (2007). Mortal Harm. The Philosophical Quarterly, 57(227), 239-
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mons.trinity.edu/phil_faculty/46/. Acesso em: 21.03.2018.
PEREIRA, Tânia da Silva. O Direito à plenitude da vida e a possibilidade de uma
morte digna. In: PEREIRA, Tânia da Silva, et. al. Vida, Morte e Dignidade Hu-
mana. Rio de Janeiro: GZ ed., 2010.

158
PESSINI, Leo. Eutanásia: Por que abreviar a vida? São Paulo: Centro Universitário
São Camilo; ed. Loyola, 2004.
WERTHEIN, Jorge. A Sociedade da Informação e seus desafios. Ciência da Infor-
mação, v. 29, n. 02, mai./ago. 2000, p. 71-77.

159
O neoconstitucionalismo na perspectiva dos
direitos fundamentais – novas formas de
se interpretar a ciência jurídica

Marcilene Margarete Cavalcante Marques


Hector Luiz Martins Figueira

Resumo: O presente artigo tem como fito discutir como os avanços tra-
zidos pelo neoconstitucionalismo proporcionaram mudanças no cenário dos
direitos fundamentais no Brasil. Deste modo, para a efetiva concretização
dos direitos fundamentais, é necessário repensarmos o modelo do positivis-
mo jurídico, na busca de um olhar mais constitucionalizado do Direito, com
ênfase na realidade social. Assim, este artigo pretende relacionar o momen-
to pós-positivista com a entrega dos direitos sociais. Noutraspalavras, de-
monstrar como o neoconstitucionalismo se preocupa em garantir os direitos
fundamentais e limitar a atuação estatal.

Palavras Chaves: neoconstitucionalismo, direitos fundamentais, positi-


vismo jurídico.

Abstract: This article aims to discuss how the advances brought by neo-
constitutionalism have provided changes in the scenario of fundamental
rights in Brazil. Thus, for the effective realization of fundamental rights, it
is necessary to rethink the model of legal positivism, in the search for a more
constitutional view of Law, with emphasis on social reality. Thus, this arti-
cle intends to relate the post-positivist moment with the delivery of social
rights. In other words, demonstrate how neo-constitutionalism is con-
cerned with securing fundamental rights and limiting state action.

Keywords: neoconstitutionalism, fundamental rights, legal positivism.

INTRODUÇÃO

O direito brasileiro desde o advento da constituição de 1988 vem ten-


tando dar novos contornos aos direitos fundamentais, a própria carta consti-

161
tucional previu em seu artigo 5º uma gama de direitos a fim de garantir a
cidadania plena dos direitos dos brasileiros e dos demais que aqui residem.
Contudo, já foi constado que o postulado escrito não é certeza de efetivida-
de plena de tais direitos, e a prática do dia a dia dos tribunais também cor-
robora com a tese de que leis não mudam realidades.
Mesmo tendo em vista estas premissas jurídicas e sociais, não podemos
jamais deixar de acreditar na força de nossas instituições e principalmente
na força do direito constitucional em território pátrio. Encampado por um
movimento denominado neoconstitucionalismo, muitos autores brasileiros
estão repensando nossas estruturas jurídicas e prospectando sobre o futuro
deste direito principiológico e demasiadamente importante para a sobrevi-
vência dos demais ramos da ciência jurídica. A expressão neoconstituciona-
lismo foi usada pela primeira vez pela autora italiana Suzanna Pozzolo, em
1993. Neste sentido, Streck (2009, p. 8), ressalta que o neoconstituciona-
lismo é:

Uma técnica ou engenharia do poder que procura dar resposta a movimentos


históricos de natureza diversa daqueles que originaram o constitucionalismo
liberal, por assim dizer (ou primeiro constitucionalismo). Por isso o neoconsti-
tucionalismo é paradigmático; por isso ele é ruptural; não há sentido em tratá-
lo como continuidade, uma vez que seu “motivo de luta” é outro.

Assim, o objetivo deste trabalho é discutir como os avanços trazidos pelo


neoconstitucionalismo proporcionaram mudanças e rupturas no cenário dos
direitos fundamentais no Brasil. Deste modo, para a efetiva concretização
dos direitos fundamentais, é necessário repensarmos o modelo do positivis-
mo jurídico, na busca de um olhar mais constitucionalizado do Direito, com
ênfase na realidade social. Diversos autores comentam que o modelo positi-
vista não conseguia responder aos anseios de uma evolução da sociedade, as-
sim, ocorre a crise do positivismo jurídico, baseada na crítica de alguns auto-
res em relação a um modelo que já não corresponde com os conflitos atuais,
principalmente no que diz respeito ao seu aspecto excessivamente formalis-
ta e sua falta de resposta a questões relacionadas a uma sociedade atual. So-
bre o positivismo jurídico e o pós-positivismo preciosa é a lição trazida por
Soares (2007, p. 226):

O positivismo lógico da TeoriaPura do Direito abdica o tratamento racional do


problema da justiça, ao afastar quaisquer considerações fáticas e, sobretudo,
valorativas do plano da ciência jurídica, de molde a assegurar os votos de casti-
dade axiológica do jurista. A busca do direito justo passa a depender das inclina-
ções político-ideológicas de cada indivíduo, relegando ao campo do cepticismo
e do relativismo a compreensão do direito justo.

Por óbvio, este artigo pretende relacionar o momento pós-positivista


com a entrega dos direitos fundamentais. Noutras palavras, demonstrar
como o neoconstitucionalismo se preocupa em garantir os direitos funda-

162
mentais e limitar a atuação estatal. No primeiro momento faremos uma ex-
planação sobre o movimento neoconstitucionalismo na era pós-positivista.
Adiante, apresentarei o contexto em que se encontram os direitos funda-
mentais nesta seara, e na última quadra apresento especificadamente a
questão dos direitos sociais.

1. Neoconstitucionalismo: uma nova abordagem do Direito

Neoconstitucionalismo trata-se de um movimento teórico de revaloriza-


ção do direito constitucional, de uma nova abordagem do papel da constitui-
ção no sistema jurídico, movimento este que surgiu a partir da segunda me-
tade do século XX. Grosso modo, o neoconstitucionalismo visa refundar o
direito constitucional com base em novas premissas como a difusão e o de-
senvolvimento da teoria dos direitos fundamentais e a força normativa da
constituição, objetivando a transformação de um estado legal em estado
constitucional.Humberto Ávila (2009, p. 2), a despeito de afirmar a exis-
tência de diversos significados para a o termo neoconstitucionalismo, apon-
tando como correta a utilização do termo “neoconstitucionalismo(s)”, res-
salta que:

As características principais desse movimento podem ser apontadas na existên-


cia de: número maior de princípios nos textos legais; uso preferencial do méto-
do de ponderação, no lugar da simples subsunção; justiça particular (individual,
levando em consideração as peculiaridades do caso concreto); fortalecimento
do Poder Judiciário; e aplicação da Constituição em todas as situações, em de-
trimento da lei.

Nesta interpretação o direito constitucional estaria “acima” do direito


meramente legal, sendo imprescindível neste momento, interpretar toda e
qualquer lei, à luz da Constituição. Representa, em sentido amplo, a supera-
ção do positivismo jurídico, pois promoveu a reestruturação do ordenamen-
to jurídico, que deixou de ser calcado no estrito respeito à lei para ser, total-
mente, influenciado pela Constituição, natural repositório dos direitos fun-
damentais. Nesse sentido, Barcellos (2007, p. 4) aduz que:

As Constituições contemporâneas, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial,


introduziram de forma explícita em seus textos elementos normativos direta-
mente vinculados a valores – associados, em particular, à dignidade humana e
aos direitos fundamentais – ou a opções políticas, gerais (como a redução das
desigualdades sociais) e específicas (como a prestação, pelo Estado, de serviços
de educação). A introdução desses elementos pode ser compreendida no con-
texto de uma reação mais ampla a regimes políticos que, ao longo do Século
XX, substituíram os ideais iluministas de liberdade e igualdade pela barbárie
pura e simples, como ocorreu com o nazismo e o fascismo. Mesmo onde não se
chegou tão longe, regimes autoritários, opressão política e violação reiterada

163
dos direitos fundamentais foram as marcas de muitos regimes políticos ao longo
do século passado”.

Com isso muda-se, também, o sistema de interpretação do Direito, não


mais adstrito ao método silogístico, mas voltado para a análise valorativa das
normas em face da Constituição. Seus efeitos são: supremacia do texto
constitucional, promoção dos direitos fundamentais, força normativa dos
princípios constitucionais, a constitucionalização do Direito e a ampliação
da jurisdição constitucional. Com o neoconstitucionalismo sepulta-se o Es-
tado de Direito que cede lugar para o Estado Democrático de Direito –
como muito bem assegurado pela CRFB de 1988.
Verifica-se, portanto, no Brasil, que vivemos, ao menos em tese, sob a
égide de um Estado Democrático de direito garantido constitucionalmente
que deve ser preservado e fomentado por todos os operadores da área jurí-
dica indistintamente. Segundo Comanducci (2003, p. 85), o neoconstitu-
cionalismo ideológico distingue-se parcialmente da ideologia constituciona-
lista, ao elevar como seu objetivo precípuo a garantia dos direitos fundamen-
tais, em detrimento da limitação do poder estatal, algo central no constitu-
cionalismo dos sécs. XVIII e XIX.
A atenção não se restringe somente a direitos individuais, o neoconstitu-
cionalismo exigiu comportamento positivo do legislador; neste sentido, ele
se preocupou em colocar em prática também as políticas públicas, que per-
fazem a concretização de direitos sociais. Sendo assim, (Bonavides, 2013,
p.583) leciona que:

Os direitos sociais fizeram nascer à consciência de que tão importante quanto


salvaguardar o indivíduo, conforme ocorreria na concepção clássica dos direitos
da liberdade, era proteger a instituição, uma realidade social muito mais rica e
aberta à participação criativa e à valoração da personalidade que o quadro tra-
dicional da solidão individualista, onde se formara o culto liberal do homem
abstrato e insulado, sem a densidade dos valores existenciais, aqueles que uni-
camente o social proporciona em toda a plenitude.

Por último não podemos olvidar que o neconstitucionalismo, desenvol-


veu visões diferentes para o fenômeno da constitucionalização do direito.
Como marco teórico Luís Roberto Barroso (Barroso, 2007, p. 05) afirma:

No plano teórico, três grandes transformações subverteram o conhecimento


convencional relativamente à aplicação do direito constitucional: a) o reconhe-
cimento de força normativa à Constituição; b) a expansão da jurisdição consti-
tucional; c) o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação consti-
tucional. Grifos nossos

Talvez seja esse o grande marco trazido pelo neoconstitucionalismo,


qual seja o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação cons-
titucional. “Em suma: a Constituição figura hoje no centro do sistema jurí-

164
dico, de onde irradia sua força normativa, dotada de supremacia formal e
material. Funciona, assim, não apenas como parâmetro de validade para a
ordem infraconstitucional, mas também como vetor de interpretação de to-
das as normas do sistema” (Barroso, 2010, p 28).
Podemos inferir, então, que o neoconstitucionalismo é um ramo do co-
nhecimento jurídico que tem diversas facetas. Em todo caso, o que se pode
alegar, nesse momento, é que estamos inseridos em um período de transição
jurídica e social. Uma das provas disso é o fato de que temos diversos meca-
nismos constitucionais que atuam de forma internacional. Com o advento
da globalização, que atingiu o homem moderno no final do século passado, o
neoconstitucionalismo ganhou as proporções internacionais que são muito
evidentes na atualidade.
Ao fim e ao cabo das explicitações acerca do neoconstitucionalismo não
poderia deixar de mencionar os fenômenos que levam ao neoconstituciona-
lismo, para tanto, nos valeremos da preciosa lição do professor Daniel Sar-
mento (2009, p. 95):

 Reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da


sua importância no processo de aplicação do direito.

 Rejeição ao formalismo e uso mais frequente de métodos e estilos mais aber-


tos de raciocínio jurídico.

 Constitucionalização do direito com a irradiação de normas e valores consti-


tucionais para todos os ramos do ordenamento.

 Reaproximação entre o Direito e a Moral, com penetração cada vez maior da


filosofia nos debates jurídicos.

 Judicialização da política e das relações sociais, com um significativo desloca-


mento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário.

Assim fica claro que são inúmeros os benefícios trazidos pelo movimen-
to do neoconstitucionalismo, sendo imprescindível, portanto, este estudo.
No mais, cabe agora nesta próxima quadra demonstrarmos e relacionarmos
os direitos fundamentais com o movimento constitucionalista.

2. Os direitos fundamentais na contemporaneidade e suas diversas facetas

Antes de adentrarmos as vicissitudes atuais sobre os direitos fundamen-


tais na contemporaneidade, cumpre mencionar algumas linhas gerais sobre
estes direitos tão importantes no âmbito do ordenamento brasileiro. Assim,
alicerçar a Constituição nos Direitos Humanos é uma das características bá-
sicas do neoconstitucionalismo, buscando garantir relações sociais mais jus-
tas as quais deverão ter por premissa maior a dignidade da pessoa humana;

165
cabe ao intérprete das normas constitucionais, precipuamente aguçar seu
olhar sobre o desenvolvimento da realidade social, com o objetivo de efeti-
var princípios garantidores e assecuratórios. Neste sentido (Dallari, 2010,
p.306):

Direitos Humanos são atributos naturais, essenciais e inalienáveis da pessoa hu-


mana, que esta pode opor a qualquer ação ou omissão que ofenda ou ameace
sua integridade física e mental e sua dignidade, ou que impeça a satisfação de
suas necessidades essenciais, físicas, intelectuais, afetivas e espirituais e o livre
desenvolvimento de sua personalidade.

Percebe-se, no entanto, que a efetivação da questão democrática não é


uma tarefa fácil. Mais que isso, é uma tarefa complexa, que envolve uma
proteção a direitos, uma regulamentação e separação de poderes, além de
uma preceituação fundamental, por fim uma constituição organizada. Neste
sentido, uma constituição conforme esclarece o artigo 16 da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão:

Artigo 16º. Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos
direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição. (De-
claração dos Direitos do Homem e do Cidadão. França, 178910).

Sob esta perspectiva, para organizar, orientar e garantir todo este pro-
cesso democrático amplia-se a figura da Constituição, que, dentre outras di-
retrizes, vem garantir dentro da lógica do estado de direito a proteção das
minorias, basicamente via preservação dos direitos e garantias fundamen-
tais. Por este motivo, se faz tão importante à organização de um Estado De-
mocrático de Direito forte e atuante, neste sentido, Canotilho, (2013,
p.116):

O termo Estado de Direito foi substituído por Estado Democrático de Direito,


incorporado na Constituição Federal de 1988 como o garantidor do efetivo
exercício dos direitos civis, sociais, liberdades, entre outros direitos. Está ex-
presso no Preâmbulo e definido pelo Artigo 1º, ligado ao princípio da legalidade
e concretizar o princípio da igualdade, é o núcleo-base em que se acopla a de-
mocracia e os direitos humanos fundamentais conquistados.

Ainda em linhas iniciais, e de conceituação da temática, valiosa é a lição


trazida por Dantas sobre esta seara. Em sua ótica, o Estado Democrático de
Direito seria:

Conjugação do Estado de Direito com o regime democrático. Trata-se, portan-


to, do Estado submetido ao império da lei, ou seja, a um conjunto de normas
que criam seus órgãos e estabelecem suas competências, que preveem a separa-
ção dos poderes, e que também fixam direitos e garantias fundamentais para a
proteção do indivíduo contra eventuais arbitrariedades estatais, e no qual tam-

166
bém se garante o respeito à denominada soberania popular, permitindo que o
povo (o titular do poder) participe das decisões políticas do Estado, seja por
meio de representantes eleitos, seja por meio de mecanismos de democracia
direta. (DANTAS, 2014, p. 65-66).

Os direitos fundamentais individuais, instituídos em um Estado Demo-


crático de Direito, são os mecanismos que garantem a liberdade, privacida-
de, vida, propriedade e igualdade, e que limitam a atuação estatal de abusos
em virtude da sua posição avantajada. Da mesma forma, o controle concedi-
do aos três poderes de decisões como meio de representatividade da socie-
dade limita a atuação desta, não como devesse prevalecer a vontade da maio-
ria, mas sim prevalecer o respeito à minoria, aos grupos de acordo com a sua
distinção, as escolhas não devem ser pautadas de acordo com a moral de um
determinado grupo da sociedade, mas respeitando as diferenças entre cada
indivíduo. Contudo, contemporaneamente percebe-se que o povo brasileiro
anda descrente da política nacional, por motivos óbvios, como ressalta Silva,
(2003, p. 126):

A democracia contemporânea está vinculada ao processo democrático de agre-


gação das vontades, hoje os partidos desenvolvem políticas para se manterem
no poder, enquanto deveriam ao certo estar no cargo para formular políticas
com intenções totalmente contrária ao que a maioria se apresenta na atualida-
de. Seria do desinteresse do privado pelo setor público em razão da sua des-
crença neste, o cidadão, então estaria mais preocupado com a sua vida privada,
preferindo deixar tais assuntos na mão da elite, do que participar e contribuir
para assuntos do seu interesse que poderiam afetar o seu cotidiano se se ins-
truísse e interessasse mais pelo Poder Público e a sua atuação na economia do
País e, em outros setores. Dessa forma, os votantes se tornam sujeitos passivos
na política e democracia do País, sem participar das decisões do governo que
dizem respeito direto ao brasileiro e a sua vida pessoal.

Para Sarlet; Marinoni; Mitidiero (2014, p.79), o Estado democrático de


Direito seria fundado na “harmonia social e assume o compromisso (na or-
dem interna e internacional) com a solução pacífica de controvérsias”. O Es-
tado de Direito atual deveria, portanto, ser caracterizado pela vinculação
dos direitos fundamentais a finalidade precípua de respeito ao ser humano.
E na prática, no jogo democrático político, muitas vezes não vê isso aconte-
cer. O que de fato ocorre é a mera defesa de interesses privatistas escusos.
Assim, se faz imprescindível nesta quadra, trazer à baila, a classificação
evolutiva dos direitos fundamentais ou humanos, que, segundo entendi-
mento pacífico, articulam-se em pelo menos três gerações ou dimensões da
seguinte forma: a primeira geração representa as conquistas dos direitos in-
dividuais ou políticos consagrando o valor da liberdade. Na segunda geração
surgem os direitos sociais, econômicos e culturais, consagrando o valor da
igualdade. Na terceira geração há a consagração dos direitos relativos à paz,

167
ao desenvolvimento econômico e a preservação ambiental, visando consa-
grar a solidariedade.
Partindo dessa evolução é possível fazer um rol dos seguintes direitos
fundamentais: direito à vida, à liberdade, igualdade, legalidade, proibição da
tortura e de tratamento desumano ou degradante, liberdade de manifesta-
ção do pensamento, liberdade de culto e crença religiosa, liberdade de ativi-
dade intelectual e artística, direito à proteção dapropriedadee inviolabilida-
de domiciliar, sigilo de comunicações, liberdade de profissão, liberdade de
informação, liberdade de locomoção, direito de reunião, direito de associa-
ção, direito à herança, direito de petição, direito à inafastabilidade da juris-
dição, direito ao devido processo legal, direito à segurança jurídica e respei-
to, dignidade da pessoa humana, direitos políticos, direitos sociais (saúde,
educação).

3. Os direitos sociais: a grande questão brasileira

Muito se fala em direitos fundamentais e acaba abarcando os direitos so-


ciais, contudo, neste trabalho buscamos fracioná-los e dar maior ênfase a es-
tes direitos. No Brasil estão dispostos genericamente no art. 6º da CRFB e
depois ao final da constituição estão descritos com mais propriedade. O fato
é que os direitos sociais sempre foram o calcanhar de Aquiles da sociedade
brasileira.
Noutras palavras, a nossa dificuldade sempre esteve em fazer a concre-
tização dos direitos sociais. A função típica para realização de políticas públi-
cas cabe ao poder legislativo, ele é o legitimado constitucional a promover
tais direitos e entregá-los aos cidadãos por meio de atuação positiva. O esta-
do nacional em sua maioria das vezes é omisso às questões sociais, deixando
o povo brasileiro relegado a uma condição de penúria e miséria plena. A pa-
lavra social tem grande peso neste conceito, como ressalta Sarlet (2008,
p.56):

[a] expressão “social” encontra justificativa, entre outros aspectos (...), na cir-
cunstancia de que os direitos de segunda dimensão podem ser considerados
uma densificação do princípio da justiça social, além de corresponderem a
reivindicações das classes menos favorecidas, de modo especial da classe operá-
ria, a titulo de compensação, em virtude da extrema desigualdade que caracte-
riza (e, de certa forma, ainda caracterizada) as relações com a classe emprega-
dora, notadamente detentora de um menor grau de poder econômico.

A ordem constitucional brasileira identifica então expressamente os di-


reitos a prestações positivas do Estado com os direitos fundamentais, consa-
grando-os como verdadeiros direitos subjetivos, em princípio plenamente
tuteláveis em juízo. Nesse sentido, o art. 5º, § 1º, da Constituição da Repú-

168
blica: “As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm apli-
cação imediata”.
Entretanto, há grande dificuldade na efetividade dos direitos sociais – e
de outros direitos que exigem prestações estatais positivas – se refere à tex-
tura aberta, em maior ou menor grau, em geral caracterizadora das normas
constitucionais que os veiculam. A Constituição da República consagra, por
exemplo, o direito à saúde, inclusive determinando a vinculação de um mí-
nimo de recursos públicos à sua satisfação (arts. 6º, 196 e 198, § 2º, da
CR88). Todavia, o texto constitucional não define expressamente em que
consiste o objeto do direito à saúde, limitando-se a uma referência genérica.
Não é possível inferir, por exemplo, se o direito à saúde como direito a
prestações abrange todo e qualquer tipo de prestação relacionada à saúde
humana (desde atendimento médico até o fornecimento de óculos, apare-
lhos dentários, etc.), ou se esse direito à saúde encontra-se limitado às
prestações básicas e vitais apenas.
Como se percebe pelo exemplo, os direitos sociais são de incomensurá-
vel desafio para as instituições brasileiras. São denominados pela dogmática
clássica de direitos fundamentais de segunda dimensão e determinam a pro-
teção à dignidade da pessoa humana, enquanto os de primeira dimensão ti-
nham como preocupação a liberdade encontra partida ao poder de imperium
do Estado.
Ou seja, a segunda dimensão visa não uma abstenção estatal, mas uma
atuação positiva (ação) do Estado. As prestações positivas exigidas pela po-
pulação visavam a efetividade das liberdades pleiteadas pela primeira di-
mensão dos direitos fundamentais, posto que sem qualidade de vida, educa-
ção, saúde e igualdade fática ocorreria instabilidade nos direitos fundamen-
tais consagrados anteriormente (primeira dimensão). Nesse sentido, precio-
sa a lição de (Marmelstein, 2008, p. 51-2):

Os direitos de primeira geração tinham como finalidade, sobretudo, possibilitar


a limitação do poder estatal e permitir a participação do povo nos negócios
públicos. Já os direitos de segunda geração possuem um objetivo diferente. Eles
impõem diretrizes, deveres e tarefas a serem realizadas pelo Estado, no intuito
de possibilitar aos seres humanos melhor qualidade de vida e um nível de dig-
nidade como pressuposto do próprio exercício da liberdade. Nessa acepção, os
direitos fundamentais de segunda geração funcionam como uma alavanca ou
uma catapulta capaz de proporcionar o desenvolvimento do ser humano, forne-
cendo-lhe as condições básicas para gozar, de forma efetiva, a tão necessária
liberdade.

Assim, há uma proclamação à dignidade relacionada a prestações sociais


estatais obrigatórias (saúde, educação, assistência social, trabalho e etc) im-
pondo ao Estado o fornecimento de prestações destinadas a concretização
da igualdade e redução de problemas sociais para entregar a pessoa humana
o piso vital mínimo (mínimo necessário para uma existência dignada).

169
A segunda dimensão dos direitos fundamentais visa, entre outras razões,
consagrar a dignidade da pessoa humana através de prestação positivas obri-
gatórias impostas ao Estado para alcançar a justiça social (igualdade mate-
rial, e não formal). Deste modo, a segunda dimensão dos direitos fundamen-
tais, quer proteger a dignidade humana conforme Magalhães (2001, p. 248)
“A dignidade da pessoa humana é o núcleo essencial de todos os direitos fun-
damentais, o que significa que o sacrifício total de algum deles importaria
uma violação ao valor da pessoa humana”.
Um dos debates mais associados ao neoconstitucionalismo presente é a
consagração plena dos direitos sociais, no sentido de configurarem direitos a
prestações positivas sensivelmente exigíveis conforme a vontade constitu-
cional que lhes é ínsita. No Brasil, a tutela de tais direitos sociais diz respeito
diretamente à prática judicial de nossas Cortes, na perspectiva de elegerem-
se, no ambiente dogmático, diretrizes prático-racionais e hermenêuticas de
ampliação dos contornos definidores dos direitos postos na Constituição e
sua consentânea aplicação cotidiana.
O problema da efetividade das normas constitucionais (e infraconstitu-
cionais) tem sido um dos mais graves entraves constatados no ordenamento
jurídico brasileiro. E um problema crônico. Novo gênero de patologia que
recrudesce em meio a um ambiente acrítico e desprovido de proposições lú-
cidas; parece que há muito diagnóstico, mas pouco prognóstico. Noutras,
palavras não se vê uma solução razoável para nossas questões sociais, políti-
cas e econômicas e seguimos fracassando em índices de desenvolvimento so-
cial e econômico se comparado a outros países do globo.

Considerações finais

Depois destas exaustivas reflexões chegamos à conclusão de que o neo-


constitucionalismo é um caminho para pensarmos os direitos fundamentais
e na sua maior eficácia e eficiência. Que realmente o modelo do positivismo
é insuficiente para o atendimento dos anseios da sociedade brasileira. Para
além de um olhar puramente dogmático, buscamos aqui inferir sobre o di-
reito social na prática, e assim, pudemos notar como a sedimentação da de-
mocracia é importante neste contexto de sedimentação de prestações posi-
tivas estatais. Noutras palavras, com uma democracia forte, conseguimos a
concretização mais facilmente dos direitos sociais.
Por fim, entendemospela necessidade de um processo de reforma polí-
tica, social e cultural e uma nova ideia de democratização em larga escala,
com mudança de consciência e valores de toda a sociedade brasileira.
O ponto de partida é a viabilização da participação popular na esfera lo-
cal, pois isso permite o aprimoramento da democracia e do dever cívico de
cada um concretizando os direitos fundamentais, a cidadania plena e a pró-
pria democracia constitucional trazida pela Constituição Federal de 1988.
As mudanças partem da tomada de uma nova consciência e principalmente

170
da tomada de novos valores morais e éticos, o que leva a uma nova raciona-
lidade política, social, cultural e econômica.
Ao que tudo indica, em nosso país, os entraves que impedem a concre-
tização dos dispositivos jurídicos decorrem não apenas do caráter de ideali-
dade presente em seu conteúdo, mas também da ausência de vontade do po-
der público. Há, ainda, casos em que a inefetividade decorre dos interesses
particulares de classe ou do poder de veto de alguns grupos hegemônicos.
Há, por conseguinte, um fosso que separa a expectativa gerada pela expan-
são dos direitos formais de cidadania e sua realização no cotidiano dos indi-
víduos. Esse desconforto gera nas pessoas a crença segundo a qual os direitos
não existem para serem realizados, sendo, tão-somente, adereços ou
formulações abstratas inexecutáveis.
Estalacuna demonstra bem que o Direito é um instrumento social que
não escapa à esfera do político, ou ainda que: “a Constituição, sem prejuízo
da sua vocação prospectiva e transformadora, deve conter-se em limites de
razoabilidade no regramento das relações de que cuida, para não comprome-
ter o seu caráter de instrumento normativo da realidade social” (Barroso,
2001, p.89)
Ao fim e ao cabo, o neoconstitucionalismo apareceu como nova forma
de interpretar o direito ajudou a enxergar as diversas facetas do direito fun-
damental, principalmente a lançar um olhar mais apurado para os direitos
sociais. De modo, que somente hipervalorizando princípios como a dignida-
de da pessoa humana e prestando atenção nos valores democráticos e repu-
blicanos poderemos construir uma sociedade mais justa.

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com.br/primeira_edicao/artigo_Lenio_Luiz_Streck_hermeneutica.pdf. Aces-
so em: 14 maio 2017.

172
Proteção dos cetáceos em perspectiva nacional
e internacional visando garantir a
sustentabilidade dos oceanos globalizados1

Mery Chalfun
Erika Tavares
Rossana Fisciletti

Resumo: A problemática enfrentada na pesquisa é a de investigar se o


Brasil utiliza realmente os documentos legislativos na proteção dos cetáceos
visando garantir a sustentabilidade dos oceanos globalizados, em perspectiva
nacional e internacional ou se apenas assinou tais documentos de proteção
aos animais marinhos, sob a argumentação falaciosa de poder tratá-los como
objetos e utilizá-los com finalidade científica e comercial. Asprincipais abor-
dagens metodológicasão a revisão integrada de literatura e a histórico com-
parada.

Palavras chaves: Cetáceos; Moratória; Proteção ambiental.

Abstract: The aims adress the research is to investigate whether Brazil


actually uses legislative documents in the protection of cetaceans in order to
guarantee the sustainability of globalized oceans, in a national and interna-
tional perspective, or if it has only signed such documents to protect marine
animals under false argument to treat them as objects and to use them for
scientific and commercial purposes. The main methodological approaches
are the integrated literature review and the comparative history.

Key words: Cetaceans; Environmental Protection; Moratorium.

1 Esta pesquisa faz parte de dois Projetos um da Universidade Veiga de Almeida


(Direito e Proteção dos Animais) e outro da Universidade Estácio de Sá – UNESA
(PIBIC).

173
INTRODUÇÃO

Em 2014, foi determinada a suspensão da caça a baleias em águas inter-


nacionais da Antártida, fazendo cumprir a moratória de proteção aos cetá-
ceos, baleias egolfinhos, e ainda, considerar que a questão envolvia a pesca
comercial e não científica como sustenta o Japão. Isso porque, a caça destes
mamíferos é qualificada como cruel pelos defensores dos animais não huma-
nos.
Recentemente, porém, em outubro de 2015, tal determinação foi sus-
pensa, sendo definida a possibilidade de caça às baleias com apenas algumas
restrições quanto à quantidade de animais caçados, mesmo havendo algu-
mas espécies em risco de extinção, conforme a CITES, o que torna o tema
obrigatório para estudo, justificando a pesquisa.
O presente artigo pretende responder à problemática, por meio dos ob-
jetivos: (i) geral – apresentar estudo histórico comparado dos Tratados in-
ternacionais visando investigar se há proteção dos animais marinhos, notada-
mente os cetáceos, baleias e golfinhos, sua caça e pescaem perspectiva na-
cional e internacionalgarante a sustentabilidade dos oceanos globalizados.
Quanto à metodologia, será utilizada a revisão literária integrada de
obras interdisciplinares em direito ambiental, direito dos animais, direito
constitucional e ciências ambientais, além da obtenção se dados secundários
em sites governamentais nacionais e estrangeiros, além da análise dos dados
dos sites das ONG Sea Shepherd e Greenpeace.
Os resultados esperados são os de compreender se há ou não, por parte
do Brasil, proteção aos cetáceos, baleias e golfinhos em compatibilidade
com o ideal de sustentabilidade.

1. A SUSTENTABILIADE ANIMAL NOS OCEANOS GLOBALIZA-


DOS: ANÁLISE HISTÓRICO COMPARADA DA CONVENÇÃO
DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE O DIREITO DO MAR (1982) NA
QUALIDADE DE AMBIENTE DE TRÂNSITO E REPRODUÇÃO
DOS CETÁCEOS

A Convenção do Mar tem por finalidade a manutenção da paz entre as


Nações, ciente de que o espaço marítimo constitui importante meio de or-
dem econômica, de relacionamento entre as Nações e de fonte de vida ma-
rítima. Concluída em 10 de dezembro de 1982, foi assinada em Montego-
Bay, e entrou em vigor internacionalmente em 16 de novembro de 1994,
após osexagésimo instrumento de ratificação, sendo adotada, ratificada por
152 (cento e cinquenta e dois) países, incluindo Japão e Noruega. No Brasil,
foi ratificada em 1995 (Decreto 1530, de 22\06\1995), ou seja, após a
Constituição Federal de 1988 e Lei Nacional de Proteção aos Cetáceos de
1987. É o principal Tratado referente ao mar, também chamada Convenção

174
de Montego Bay ou UNCLOS (United Nations Conventionon the Law of the
Sea)
Nesta perspectiva, houve uma longa negociação para que se chegasse a
um consenso no conflito entre a livre navegação dos mares, com consequen-
te utilização e exploração, e de outro lado a soberania dos Estados Costeiros.

2.1. Onde os Cetáceos transitam e se reproduzem?2

Os Cetáceos transitam por todos os oceanos que estão protegidos pela


Convenção de Livre Navegação dos Mares para cumprirem o ciclo reprodu-
tivo. Como continuam a ser caçados e a forma de reprodução de tais espé-
cies é lenta, a reprodução não se dá em tempo suficiente para repor as espé-
cies caçadas, logo, há ameaça de extinção destas.
As baleias, por exemplo, realizam uma migração anual para se reprodu-
zirem no período de junho\julho e permanecem em águas tropicais até no-
vembro\dezembro. Estima-se que algo em torno de 15 mil indivíduos, prin-
cipalmente das espécies franca e jubarte, migrem anualmente para a costa
brasileira. Ao longo da costa nordeste do Brasil é comum sua reprodução e o
Banco de Abrolhos é o maior berço reprodutivo do Atlântico Sul. Elas saem
do inverno rigoroso da Antártida, onde se alimentam, e migram para o litoral
para acasalar, reproduzir e permanecem até que os filhotes estejam fortale-
cidos. No Brasil a ICMBio possui plano Nacional para Conservação dos
Grandes Cetáceos. Existem diversos centros de pesquisa e conservação de
mamíferos aquáticos, como por exemplo o CMA (Centro Nacional de Pes-
quisa e Conservação de Mamíferos aquáticos), administrado pelo Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiverisidade (ICMBio).
Além disso, o Brasil possui grandes berços reprodutivos, como por
exemplo a área de Proteção Ambiental da Baleia Franca, em Santa Catarina;
Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, na Bahia e Parque Marinho de Fer-
nando de Noronha, em Pernambuco, todos Santuários de Cetáceos.
Em águas brasileiras as baleias são amplamente protegidas, além de ter
sido declarado santuário, a portaria 117 de 1996 (alterada em 2002 pela
portaria 24) regulamenta o turismo de observação e determina distância de
pelo menos 100 metros entre os barcos e os animais, além disso, a Instrução
Normativa 2011 impede atividade sísmica enquanto as baleias estiverem no
litoral brasileiro. O Centro participa ainda da Comissão Internacional da Ba-
leia (CIB)

2 Este texto é uma síntese do panorama apresentado pela instituição protetiva dos
animais marinhos. Disponível e m : “http://www.icmbio.gov.br/portal/comunica-
cao/noticias/20-geral/6910-temporada-de-reproducao-atrai-15-mil-baleias-para-o-lit
oral-brasileiro.html” Acesso em 07 de janeiro de 2016. As alusões referentes às ciências
biológicas e ambientais são necessárias, dada a interdisciplinaridade do tema.

175
Há que se analisar, portanto, a diferença de atuação do Brasil nos diver-
sos espaços marítimos no que se refere à proteção contra a matança ou caça
a baleias, seja, no mar territorial, plataforma continental, zona econômica
exclusiva ou alto mar. Cabe destacar que tais espaços3 são definidos e regu-
lamentados através da Lei nº 8617, de 04 de janeiro de 1993.

2.1.1. Mar territorial

A Convenção sobre o Direito do Mar menciona que os países são livres


para delimitar seu espaço de mar territorial, desde que não ultrapasse 12 mi-
lhas marítimas (artigo 3º, da Convenção) (cada milha náutica equivale a
1853 metros). A medida teve como identificação inicial, na idade média, a
distância que um tiro de canhão o que poderia alcançar como algo equivalen-
te a três milhas, Dessa forma, perdurou até início Século XX, sendo então
estabelecida uma distância além das três milhas, com largura maior e assim
maior exclusividade.
Tal delimitação, conforme a convenção além do mar e engloba o espaço
aéreo, subsolo e leito desse mar (artigo 2º, da Convenção). Assim, conforme
a Lei 8617 de 1993 tal espaço compreende uma faixa de doze milhas marí-
timas de largura, a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insu-
lar, com base nas cartas náuticas adotadas oficialmente pelo Brasil. Inicial-
mente, a largura não era regulamentada, havia liberdade neste tópico.
Há soberania dos Estados na delimitação e dentro destes espaços, que
somente será relativizada em casos de força maior, pois nestas hipóteses, as
embarcações próximas podem ter que parar e o estado costeiro estará obri-
gado a aceitar tal parada. Assim, a soberania é restrita na chamada direito de
passagem inocente (artigos 17, 18, 19, da Convenção), desde que haja peri-
go à paz, boa ordem e segurança do Estado, que deve ser rápida, contínua.
No entanto, o respeito à vida marinha, notadamente aos cetáceos, no es-
paço delimitado pelo Brasil deve prevalecer em conformidade com a lei in-
terna e soberania do Estado, possuindo alguns direitos sobre essa extensão,
tais como direito de polícia, com conseqüente, regulamentação aduaneira,
sanitária, navegação, podendo reservar aos brasileiros a pesca e proteção de
sua fauna, assim como a preservação de certas espécies.4

3 A Zona Costeira e Marinha do Brasil se estende da foz do rio Oiapoque (AP) à foz
do rio Chuí (RS), e abrange os limites dos municípios da faixa costeira a oeste até as 200
milhas náuticas, incluindo as áreas em torno do Atol das Rocas (RN), dos arquipélagos
de Fernando de Noronha (PE) e de São Pedro e São Paulo (PE), e as ilhas de Trindade
e Martin Vaz, situadas além do limite marinho. Sua faixa terrestre se estende por apro-
ximadamente 10.800 mil quilômetros ao longo da costa – computados os recortes de
litoral e reentrâncias naturais- e possui uma área de aproximadamente 514 mil km.
Disponível em “http://www.mma.gov.br/informma/item/6618-a-biodiversidade-na-
zona-costeira-e-marinha-do-brasil” Acesso em 07 de janeiro de 2016
4 MMA e ICMBio possuem listas de espécies ameaçadas de extinção, 12.256 espé-

176
cies foram analisadas entre 2013 e 2014. As listas foram divulgadas em 2014, sendo
divididas por espécies e critérios de risco.Os pesquisadores incluíram 720 novas espé-
cies na lista, totalizando 1.173 espécies ameaçadas, que se subdividem em três catego-
rias: Criticamente em Perigo (CR), Em Perigo (EN) e Vulnerável (VU). Houve um
aumento em relação às avaliações anteriores, realizadas em 2003 e 2004, que contabili-
zaram 627 espécies ameaçadas. Naquele momento, entretanto, o universo contemplado
era bastante reduzido – apenas 1.137 espécies foram analisadas. Quanto aos cetáceos
podem ser citados como exemplos dessa lista:
“Baleia Cachalote: Physeter macrocephalus é encontrada em todos os oceanos. A
espécie foi intensamente caçada no passado, suspeitando-se que houve um declínio po-
pulacional de pelo menos 50% nas últimas três gerações (período de 96 anos), inclusive
no Brasil. As causas da redução (caça) são claramente reversíveis, compreendidas e ces-
sadas. Portanto, a espécie foi categorizada como Vulnerável (VU), segundo o critério
A1d.
Baleia Franca do Sul: Eubalaena australis possui distribuição circumpolar no he-
misfério sul. A caça ilegal realizada até 1973 reduziu a população de baleias francas na
costa brasileira à quase zero, e a estimativa populacional ainda é bastante reduzida, in-
clusive comparada aos dados históricos pré-caça. Estima-se um declínio de pelo menos
70% nos últimos 86 anos (três gerações) provocado pela caça. Há evidencias de gargalo
genético intensificado pela caça comercial intensiva realizada em todo Hemisfério Sul.
A população total na costa sul do Brasil é estimada em cerca de 555 indivíduos, com
aproximadamente 206 indivíduos maduros. Atualmente, a população está crescendo,
contudo, a população atual é extremamente pequena em comparação com as estimati-
vas originais, representando menos de 10%. Portanto, a espécie foi categorizada como
Em Perigo (EN) segundo os critérios A1d e D.
Baleia Sei: Balaenoptera borealis é encontrada em todos os oceanos. A exploração
de baleias-sei no Hemisfério Sul ocorre desde o início do século passado, e foi intensa
entre 1950 e 1970, quando os estoques foram seriamente reduzidos. A exploração co-
mercial cessou em 1979. Estima-se que a caça comercial tenha reduzido a população
global em cerca de 80-90% nas últimas três gerações (cerca de 70 anos). A população no
Brasil foi reduzida concomitantemente à redução na Antártica e índices de abundância
na área de caça da Paraíba indicaram um declínio de quase 90% no período 1966-72. A
causa da redução é compreendida, reversível e cessada. Portanto, a espécie foi categori-
zada como Em Perigo (EN) segundo os critérios A1ad. Cruzeiros de pesquisa realizados
entre 1998 e 2001 sugerem que esta população ainda não se recuperou. Uma série tem-
poral maior, e mais recente, seria necessária para avaliar a tendência atual da população.
Baleia azul: Balaenoptera musculus parece ter sido sempre rara na costa brasileira,
porém não existem dados históricos para comprovação da abundância da espécie antes
do período de intensa caça. Diversos esforços recentes de levantamento de cetáceos na
costa brasileira, não resultaram em qualquer registro de baleia-azul. Embora haja evi-
dências de que algumas populações estejam se recuperando, estima-se que a população
remanescente no Hemisfério Sul (Antártica) represente menos de 1% da existente no
período anterior à caça comercial (antes de 1904), com um declínio de pelo menos 90%
no período de três gerações (93 anos). A causa da redução é compreendida, reversível e
cessada. Portanto, a espécie foi categorizada como Criticamente em Perigo (CR) segun-
do os critérios A1abd.
Baleia fin: Balaenoptera physalus ocorre em todos os oceanos. As baleias-fin foram
exauridas pela caça comercial de baleias em todo o mundo no século XX. A população
global sofreu um decréscimo superior a 70% entre 1929 e 2007 (período de três gera-
ções), sendo que o maior declínio ocorreu no Hemisfério Sul. No Brasil, Balaenoptera

177
2.1.2. Plataforma continental

Conforme Convenção e Lei 8617/93 a plataforma continental, também


conhecida como plataforma submarina, engloba o leito e subsolo das áreas
submarinas, além de seu mar territorial, ao longo do prolongamento natural
do território terrestre, que vai até o bordo exterior da margem continental,
ou distância de até 200 milhas marítimas das linhas de base a partir das quais
se mede a largura do mar territorial, quando o bordo exterior da margem
continental não atinja essa distância. É água pouco profunda em área consi-
derável de terra, e depois do leito do mar em grandes profundidades.
No Brasil o prolongamento natural ultrapassa a distância de 200 milhas,
por que motivo, se pleiteia que sua Plataforma Continental se estenda até
que o prolongamento acabe conforme artigo 76, da Convenção.
O Estado possui soberania sobre este espaço, portanto, seus recursos na-
turais, vida marinha, cetáceos, fauna e flora devem ser respeitados. A explo-
ração ou atividades de exploração só podem ocorrer pelo próprio Estado ou
com seu consentimento.
Em todos os espaços a tentativa sempre foi de conciliar a liberdade dos
mares com a soberania dos Estados. A expressão plataforma continental foi
utilizada oficialmente pela primeira vez em 1945 em duas proclamações as-
sinadas pelo presidente Truman dos Estados Unidos. A estas proclamações
seguiram outras e diversos países manifestaram pretensões às plataformas
continentais, incluindo o Brasil, que em 1950 fixou suas normas, comple-
mentadas através de Decreto em 1969, e decreto lei 1098 de 1970.
A soberania do estado costeiro sobre a plataforma continental e sua ex-
ploração de forma exclusiva, ainda que o estado costeiro optasse por não ex-
plorar os recursos naturais, ou seja, independentes de ocupação efetiva ou
fictícia, foi definida através da Convenção sobre a Plataforma Continental
assinada em Genebra em 1958.
Em 1982 a Convenção do mar complementou a Convenção de 1958
além de ser assinada por novos Estados membros, havendo alteração princi-
palmente quanto a delimitação, uma vez que incompatível com a nova reali-
dade de desenvolvimento tecnológico.

physalus sempre foi rara na antiga área de caça na Paraíba, porém, houve exploração em
Cabo Frio (atual Arraial do Cabo) no início da década de 1960. Não há informações
sobre as proporções de redução populacional nas águas brasileiras. Supõe-se que as ba-
leias-fin do Brasil migrem para a Antártica, porém não se conhece as rotas de migração
nem o destino dos animais. Acredita-se que a população no Brasil foi reduzida concomi-
tantemente à redução na Antártica. Portanto, a espécie foi categorizada como Em Peri-
go (EN) segundo os critérios A1ad. É provável que as populações estejam crescendo,
uma vez que a causa da redução populacional foi suspensa e é reversível.
Síntese de informações disponíveis em: “http://www.icmbio.gov.br/portal/comu-
nicacao/noticias/4-destaques/6658-mma-e-icmbio-divulga-novas-listas-de-especies-
ameacadas-de-extincao.html”. Acesso em: 09 jan. 2016.

178
A nova delimitação beneficiou os estados com extensas plataformas,
mas a solução foi o princípio do patrimônio comum da humanidade, confor-
me artigo 82 da Convenção, podendo ser adotado tanto para proteger a ex-
cessiva exploração como também o “apoderamento por um único estado
costeiro de patrimônio que deveria ser universal”.

2.1.3. Zona econômica exclusiva

Conforme Convenção sobre o Direito do Mar, de 1982, e Lei 8617, 4


de janeiro de 1993, a Zona Econômica do Brasil engloba uma extensão de 12
a 200 milhas marítimas. A ZEE foi uma grande inovação da Convenção, e
definida em seu artigo 55, assim como a plataforma continental teve sua ori-
gem nas duas proclamações assinadas em 1945 pelo presidente dos Estados
Unidos.
No Brasil foi baixado o Decreto 1089, 02 de março de 1970 estipulando
a faixa de 200 milhas marítimas de largura. A delimitação de 200 milhas foi
uma das grandes dificuldades e discordâncias na Convenção de 1982. Uni-
formizar os entendimentos foi uma das problemáticas, pois alguns países
possuíam posição mais favorável ao reconhecimento da soberania do estado
costeiro, como por exemplo o Brasil, além disso, já haviam ampliado seus
direitos de forma unilateral.
O direito de soberania foi reconhecido no artigo 56 da Convenção de
1982, assim, neste espaço, o país possui soberania quanto ao aproveitamen-
to, exploração, conservação dos recursos naturais, das águas sobrejacentes
ao leito do mar, do leito do mar e seu subsolo, da fauna e flora, além de qual-
quer atividade de aproveitamento ou exploração com finalidade econômica.
Não há exceção à soberania, como ocorre no mar territorial, ou seja, não se
aplica o direito de passagem inocente.
O Brasil possui jurisdição exclusiva para regulamentar, permitir ou não
a investigação científica da vida marinha, permitindo ou não captura de re-
cursos naturais. É o Estado costeiro que permite ou não a captura de recur-
sos vivos da zona econômica exclusiva, os demais Estados, possuem apenas
liberdade de navegação e sobrevoo, além de colocação de cabos e dutos sub-
marinos. Sendo o Brasil um santuário de cetáceos5, sua proteção é ampla
neste espaço, sendo que nestehá, entre outros, o objetivo de conservação
das espécies (artigo 61, 64). Atualmente há grande preocupação com as es-
pécies altamente migratórias e a pesca excessiva. Em decorrência da ameaça
de extinção de algumas espécies (transzonais) foi incluído na Agenda 21
(parágrafo 1752) durante a Conferência do Rio em 1992, recomendação de
“Conferência visando à implementação da Convenção sobre o Direito do
Mar sobre as populações transzonais e as espécies altamente migratórias”.

5 Decreto nº 6.698, assinado pelo presidente Lula em 17.12.2008 criou o santuário


de baleias e golfinhos do Brasil

179
A preocupação maior foi com o bacalhau e o haddock, mas houve refle-
xo no Brasil, pois os pesqueiros se deslocaram para o Atlântico Sul em busca
de atum, além da pesca ou caça a tubarões, golfinhos e baleias, pesca de es-
pinhel e finning6:

“O caso do pesqueiro Chyvo Manu, apresado em novembro de 1992 por uma


corveta da marinha brasileira é um exemplo. Localizado a 180 milhas do litoral
do Rio Grande do Norte, quando lançava espinhéis ao longo de 50 milhas, os
técnicos identificaram uma carga de 75 toneladas de peixes, bem como grande
quantidade de barbatana e indícios de que muitos cações de qualidade inferior
foram jogados ao mar depois de retiradas as barbatanas. Levado à base naval,
toda a carga foi confiscada e o navio teve que pagar pesada multa.” (ACCIOLY,
2015, p. 621)

No Brasil, o Decreto nº 4361, de 05 de setembro de 2002, protege e


regulamenta atividades com as espécies migratórias.

2.1.4. Alto mar

Não há soberania no alto mar, ou seja, nenhum Estado possui poder so-
berano sobre a parte que engloba as áreas marítimas não incluídas no mar
territorial, zona econômica exclusiva ou águas interiores de um Estado (ar-
tigo 86 da Convenção). Adota-se o princípio da liberdade dos mares, que en-
globa a liberdade de navegação, pesca e investigação científica, no entanto,
há preocupação com a vida humana e também preservação das espécies.
O Alto Mar é área ou espaço aberto a todos os Estados, com direito de
pesca, navegação, investigação científica, mas com condições que devem ser

6 A pesca de espinhel consiste numa linha pesqueira feita de monofilamento. A linha


geralmente chega a medir entre 1,6 a100 quilômetros de comprimento. A linha é bali-
zada por isopor ou flutuadores de plástico, e a cada 3 metros uma segunda linha se
estende por mais 5 metros. Nesta linha secundária está enganchado um anzol iscado
com lula, peixe – no Brasil se utiliza muito a sardinha, ou até carne de golfinho e
foca.São utilizados bastões luminosos presos às linhas para atrair os animais. É comum
a pesca acidental de tubarões neste tipo de pesca, bem como raias, tartarugas e aves.
Essa atividade iniciou-se no Brasil em 1958, introduzida por japoneses. Disponível em
“http://seashepherd.org.br/tubaroes/” Acesso em 05 ago. 2015. Ofinningé uma prática
de pesca, extremamente cruel, onde são retiradas as barbatanas dos tubarões ainda vivos
e, após, são devolvidos para o mar. O destino de milhares de tubarões todos os anos é a
morte por afogamento. Os tubarões necessitam das barbatanas para nadar e assim, tro-
car oxigênio com a água. Sem elas, afundam e morrem no fundo do oceano. A captura
desses animais dessa forma, não distingue as fêmeas em gestação dos demais, afetando
ainda mais o equilíbrio no número de espécies. O desembarque de barbatanas de tuba-
rões sem as respectivas carcaças fere a portaria nº 121/1998 do IBAMA – Instituto
Brasileiro do Meio ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Ao pesar as barbata-
nas separadamente, não poderá ser superior a 5% do peso das “carcaças”. Disponível em
“http://seashepherd.org.br/tubaroes/” Acesso em 05 ago. 2015.

180
respeitadas por todos, como preservação de recursos vivos, cooperação en-
tre os Estados e gestão dos recursos. O artigo 1.1, define área como “o leito
do mar, os fundos marinhos e o seu subsolo, além dos limites da jurisdição
nacional;” e continua, em seu artigo 136, normatizando: “A ‘Área’ e seus re-
cursos são patrimônio comum da humanidade”.
Assim, conforme a Convenção, apesar de não haver soberania, todos
possuem deveres, como assistência, impedir transporte escravo, combater
pirataria e tráfico de entorpecentes (artigos 98, 99, 100 a 108). Proteger as
espécies e impedir crueldade e extinção.
A Convenção de 1982 limita a liberdade de pesca; apresenta nítida preo-
cupação com as espécies migratórias e transzonais, bem como com sua con-
servação. Segundo a convenção, os estados devem trocar informações, res-
peitar tratados bilaterais e multilaterais de organizações internacionais com-
petentes. Caso não haja um controle efetivo, a pesca em alto mar acabará se
concentrando no atum e nas baleias.
Os navios em alto mar devem se submeter às leis civis, criminais e admi-
nistrativas dos estados cuja bandeira naveguem; estão submetidos a jurisdi-
ção destes estados, mas, excepcionalmente poderão se submeter a outras
jurisdições, como por exemplo em caso de renúncia do comandante do na-
vio (artigo 92, da Convenção).
Portanto, o comércio e prática internacional devem observar e respeitar
os padrões de proteção ambientais, que são necessários ao bem-estar da so-
ciedade global.

2. A SUSTENTABILIADE ANIMAL NOS OCEANOS GLOBALIZA-


DOS: A PROTEÇÃO AOS CETÁCEOS NA PERSPECTIVA INTER-
NACIONAL E NACIONAL NO ÂMBITO DO DIREITO AMBIEN-
TAL

As águas da Antártida devem ser protegidas por todos os Estados, uma


vez que não pertencem a nenhum especificamente, sendo de interesse de
todos, espaço de domínio e interesse público, é patrimônio de toda a huma-
nidade, habitat fundamental para diversos animais não humanos.
Outro documento internacional de fundamental importância é Conven-
ção sobre a Diversidade Biológica de 1992, seguida pelo Brasil, tem como
principal objetivo a preservação das diferentes formas de vida na terra e na
água, sendo esta uma preocupação da humanidade, adotada em Nairobi, em
1992, entrou em vigor em 1993 e, atualmente, possui 191 adesões.
Analisar-se-ão tais documentos, dentre outros, para investigarse os cetá-
ceos (baleias e golfinhos) estão sendo ou não realmente protegidos em águas
brasileiras.

181
3.1. Estudo de Caso 1 – Proteção às Baleias

No que tange especificamente às baleias, há que se destacar a Conven-


ção Internacional para regulamentação da pesca a Baleia de 1946. Inicial-
mente, o objetivo foi regulamentar a pesca e promover a pesquisa desses ani-
mais, sendo formada uma Comissão Internacional de Pesca a Baleia. Através
da Comissão são estabelecidos estudos sobre a pesca, coleta, pesquisa de ba-
leias, regulamentação sobre os limites e condições desta pesca. Após diver-
sas emendas, a Convenção acabou por se tornar o principal instrumento de
proteção e preservação das baleias.
Em 1994, a Comissão declarou um santuário de Baleias na totalidade do
oceano Antártico, proibindo completamente a caça às baleias para fins co-
merciais.
Porém, as mortes de dezenas de baleias ocorrem com justificativa de
pesquisa cientifica no Santuário. Todos os anos o navio-fábrica baleeiro de-
sembarca com cerca de duas mil toneladas de carne de baleia.7 Além disso,
o Greenpeace e o Sea Shepherd, entre outros, entendem que o método uti-
lizado para caça de baleias é cruel, e as baleias foram incluidas na lista de
animais ameaçados de extinção da CITES (Comércio Internacional de Es-
pécies ameaçadas de extinção).
Infelizmente, ainda hoje, alguns países desenvolvem a caça de baleias
tendo como principal justificativa o desenvolvimento científico, o que não
corresponde à realidade.
Uma das emendas mais polêmica foi a moratória de pesca da baleia a
partir dos anos de 1985 e 1986, estabelecendo a parte sul dos oceanos como
santuário, e proibindo em alguns pontos até mesmo a caça para finalidade de
pesquisa científica.
O Brasil é signatário, mas alguns países se insurgiram contra esta mora-
tória, tais como Japão, Noruega e Islândia; e, apesar de assinarem a morató-
ria, o fizeram com algumas reservas.
Assim, apesar da moratória, estes países permanecem realizando a caça
de baleias, e conforme estimativa da Comissão Baleeira, em torno de 2500
animais são mortos por ano.
O Japão, por exemplo, com o pretexto de finalidade científica tinha o
direito de caçar até 1000 baleias por ano, no entanto, esses animais acabam
sendo utilizados para outros fins. Em 1988, o Japão lançou um Programa de
Caça Científica de Baleias na Antártica (JARPA), para supostamente for-
necer dados para o controle populacional das baleias.
A CIB analisou as pesquisas e verificou que não havia resultados substan-
ciais resultantes do manejo desses animais, encaminhando assim, um pedido
ao governo japonês para que paralisassem a caça às baleias na Antártica.

7 Revista The Economist, 25/10/1997. Disponível em “http://archive.greenpea-


ce.org/oceans/whales/porsciense.html”. Acesso em: 06 de ago. 2015

182
Na Islândia, o pretexto é cultural e diversos animais são mortos cruel-
mente nas Ilhas Faroe, o que gera crítica mundial.
Em 2007, a 59ª reunião da Comissão Baleeira Internacional teve a parti-
cipação de mais de 20 países, que concluíram pelo bem-estar, conservação e
proteção dos cetáceos; e, consequente posicionamento quanto à proibição
de caça.
Apesar disso e da moratória, diversos animais permanecem sendo caça-
dos. A atuação dos governos e das Organizações de Proteção, como Sea
Shepherd, ganham cada vez mais destaque.
Em 31 de março de 2014, a partir de uma denúncia da Austrália em
2010 e pressão de entidades de proteção ambiental e vida marinha, Green-
peace eSeaSheperd, junto à Corte Internacional de Justiça, foi determinada
a suspensão da caça de baleias em águas internacionais da Antártida, fazendo
cumprir a moratória de proteção aos cetáceos e considerar que a questão en-
volvia a pesca comercial e não científica como sustenta o Japão.
Recentemente, porém, em outubro de 2015, tal determinação foi sus-
pensa, pela CIB, sendo determinada a possibilidade de caça às baleias com
algumas restrições quanto à quantidade de animais caçados.
No entanto, apesar da decisão da Corte Internacional, principal órgão
jurídico da ONU, o Japão declarou recentemente que continuará o progra-
ma anual de caça às baleias, por entender que a competência da corte não se
aplica neste caso, ou seja, quanto a pesquisa e conservação de recursos vivos
do mar. O plano é caçar em torno de 330 baleias este ano e 4000 durante os
próximos 12 anos. Reduzindo assim a meta de 900 por ano.

3.2. Estudo de Caso 2 – Proteção aos Golfinhos

Há que se destacar ainda a questão que envolve golfinhos, amplamente


divulgada no documentário The Cove, ganhador do Oscar de melhor docu-
mentário em 2010, que mostra ativistas da Sea Shepherd em ação no Taiji.
Em 2006, escondidos durante semanas, observando a enseada de Taiji no Ja-
pão, conseguiram filmar e fotografar pescadores assassinando golfinhos e ou-
tros cetáceos. O fato desconhecido até mesmo do povo japonês acabou tor-
nando pública uma prática extremamente cruel, fazendo com que o docu-
mentário fosse proibido no país.
O documentário demonstra algo em torno de 23.000 golfinhos mortos
por ano, mortos por pescadores que lançam canos de metal na água, batendo
uns nos outros para criar uma parede de som. Assim, interferem na capaci-
dade dos golfinhos de orientação, que nadam sem direção para fugir do ba-
rulho. Dessa forma, são encurralados para que não fujam, alguns são mortos
com facão e sua carne vendida em mercado, sem a informação de que se tra-
ta de carne de golfinho; outros são abandonados; e outros capturados e ven-
didos para parques aquáticos.

183
A carne do golfinho é contaminada com o mercúrio existente nas águas
do Japão. Ainda assim a população se alimenta, muitas vezes sem conheci-
mento de que a carne é de golfinhos, contaminando-se. Muitas vezes essa
carne é vendida como sendo de baleia, muito consumida no país.
Em 1999, uma equipe de cientistas estrangeiros, trabalhando no Japão,
avaliou amostras de carne de baleia e de golfinho e encaminharam os resul-
tados à Comissão Internacional Baleeira – IWC.
O resultado da pesquisa foi de que mais de 91% das amostras de golfi-
nhos e pequenas baleias excederam os limites aceitáveis para poluentes,
uma amostra teve mais de 1.600 vezes o permitido de mercúrio, e que 24%
das amostras de carne de baleia eram de golfinhos.
No Brasil, a caça de golfinhos é proibida8, no entanto, a pesca ilegal, in-
clusive através de redes fixas (prática proibida) ainda ocorre. Nessas redes
fixas, 25% são considerados lixo (tartarugas, golfinhos, outras vidas mari-
nhas), além disso, a pesca não seletiva, ou seja, captura de uma espécie para
que se possa apanhar outra é uma grave ameaça à sobrevivência destas espé-
cies, calcula-se que cerca de 300 mil baleias, golfinhos e botos morram
anualmente em redes de pesca.

8 No Brasil pode ser citado como exemplos alguns casos que foram levados a juízo:
1) CASO GOLFINHOS – AMAPÁ – Processo 2007.31.00.001910-7 – 2ª Vara
Federal = AÇÃO CIVIL PÚBLICA. (Advogado Cristiano Pacheco. Instituto Sea Shep-
herd Brasil. Instituto Justiça Ambiental). Apesar da lei de Cetáceos, diversos golfinhos
foram mortos no Amapá. Filmagens divulgadas em rede nacional, como rede Globo,
Senado, TV Cultura, TV Justiça entre outras mostraram imagens de 83 golfinhos mor-
tos em um dia de embarcação. Em um mês de atividade, em torno de 2500 animais em
apenas uma embarcação. Foram utilizados iscas de tubarão (prática do finning). E os
golfinhos, olhos para confecção de talismã, dentes para colares e vendidos no mercado
negro da região. Destaca-se a crueldade, pois muitas vezes olhos e dentes foram extraí-
dos com os animais ainda vivos dentro das embarcações. As filmagens foram do IBAMA,
mas houve silêncio quanto ao nome das embarcações “Graças a Deus” e “Damasco III”,
por tal motivo o IBAMA também foi processado.
2) Caso Pescado do Amaral. Ação Civil Pública 2006.71.00.016888-4 RS. Prática
de Pesca de Arrasto.(Utilização de material, equipamento que prende animais de gran-
de porte (ex: tartarugas, golfinhos, lobo marinho). A Sentença em 2007 (Juiz Federal
Candido Alfredo Silva Leal Junior) condenou a empresa Pescado do Amaral a não rea-
lizar pesca de arrasto dentro das três milhas marítimas, com o uso de apetrechos proibi-
dos, conforme legislação, e pagamento de indenização no valor de R$ 97.550,00 com
correção, pelos danos que causou com a prática de pesca predatória (conforme art. 13
da lei 7347\85) e Multa de R$ 97.500,00 para cada vez que descumprir as determina-
ções = realizar prática predatória.
3) IJA (Instituto Justiça Ambiental) x Wal Mart Brasil e Carrefour = utilizando a
Lei 8078\90 em prol de animais marinhos, ou seja, dever de informação da origem,
características, qualidade do produto. É direito do consumidor saber se o cação compra-
do é de espécie em extinção, se é de origem de pesca predatória.

184
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em âmbito nacional e internacional, a vida marinha necessita de prote-


ção e o que foi verificado é que embora as normas nacionais e internacionais
tentem garantir a sustentabilidade dos oceanos globalizados, infelizmente a
fiscalização é escassa e os interesses econômicos se sobrepõem aos abusos
cometidos.
As entidades de proteção e também a sociedade possuem atuação em
destaque, já a atuação do governo brasileiro e dos países que se comprome-
teram em proteger os cetáceos é precário. Cento e cinquenta e seis países
assinaram a moratória de proteção aos cetáceos, mas os interesses capitalis-
tas e mercadológicos se destacam. Contudo, é preciso atuação mais deter-
minante do Poder Público, particularmente da Marinha e do IBAMA, para
que possa ser reconhecido o Brasil como um país onde é cumprida a legisla-
ção ambiental.
Cada animal e cada grupo de espécies, individualmente considerados, e,
todos juntos, desempenham papel fundamental para o equilíbrio do ecossis-
tema, formando uma estruturada cadeia capaz de manter a vida e futuro do
planeta. Entretanto, apesar de toda importância desempenhada por cada um
destes grupos, diversos são os abusos, práticas cruéis e exploratórias, que,
por interesses econômicos desnecessários e ignorância, colocam em risco a
vida do animal não-humano, e também a vida planetária, a sustentabilidade
do planeta e de toda vida que nela habita.
Por fim, destacou-se, na pesquisa, que o Brasil está no caminho certo,
tentando utilizar realmente os documentos legislativos na proteção dos ce-
táceos, em perspectiva nacional e internacional;e que não apenas assinou tais
documentos de proteção dos animais marinhos, sob a argumentação falacio-
sa de poder tratá-los como objetos e utilizá-los com finalidade científica.

REFERÊNCIAS

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TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente: Pa-
ralelo dos Sistemas deProteção Internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fa-
bris, 1993.

186
Caso Vladimir Herzog vs. Brasil:
uma experiência na corte interamericana
de direitos humanos

Morgana Paiva Valim


Mariana de Freitas Rasga

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo refletir sobre os rituais e ex-
periências de campo vivenciadas entre os dias 22 a 25 de maio de 2017 na
Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, na Costa Rica.
Neste sentido, será realizada uma aproximação por contraste das atividades
observadas naquele tribunal internacional em relação aos existentes no Bra-
sil, especialmente a forma como o caso de Vladimir Herzog foi tratado por
espaços jurisdicionais distintos. De modo que, mediante uma abordagem
crítico-reflexiva os vieses de cunho descritivo-compreensivo serão destaca-
dos, especialmente, quando verificada in locu a audiência pública do caso do
jornalista Herzog, morto sob tortura por agentes da ditadura brasileira em
outubro de 1975.

Palavras-chave: Corte Interamericana de Direitos Humanos; Conflitos;


Tribunais; Campo.

RESUMEN: Este trabajo tiene por objetivo reflexionar sobre los ritua-
les y experiencias a través de la observación de campo vivida entre los días
22 a 25 de mayo de 2017 en la Corte Interamericana de Derechos Huma-
nos, en San José, Costa Rica. En este sentido, se realizará una aproximación
por contraste de las actividades observadas en aquel tribunal internacional
en relación a los existentes en Brasil. De modo que, mediante un enfoque
crítico-reflexivo, los sesgos descriptivos-comprensivos serán destacados, es-
pecialmente, cuando se verifica in locu la audiencia pública para el juicio del
periodista Vladimir Herzog, muerto bajo tortura por agentes de la dictadura
brasileña en octubre de 1975.

Palabras clave: Corte Interamericana de Derechos Humanos; Conflic-


tos; Tribunales; El campo.

187
1. INTRODUÇÃO

Entre os dias 22 a 25 de maio de 2017, por ocasião de um Congresso


Internacional que participamos face a nossa interseção no curso de doutora-
mento do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga
de Almeida (UVA/RJ) viajamos para a cidade de San José, na Costa Rica.
Para além das discussões acadêmicas típicas do mundo jurídico promo-
vemos nosso engajamento pessoal em atividades relacionadas como uma
possibilidade de socialização dos dilemas relacionados na administração de
conflitos no sistema de justiça.
Nesse sentido, cientes da existência das pautas da 118º sessão ordinária
na Corte Interamericana de Direitos Humanos naquele período, marcamos
presença em todas elas, a fim de que pudéssemos observar as práticas e os
habitus1 do campo jurídico a fim de que nos servissem de matrizes para uma
perspectiva crítica de análise, de conteúdo, simbolismos e rituais perti-
nentes.
A um porque a autora deste paper possui também como foco de estudos
a arena jurídica e seus meandros contrastivos por meio de trabalho de campo
e a dois por que a coatora estuda detidamente o funcionamento da Corte
Interamericana e os direitos humanos. Esse foi o insight perfeito para que
juntas pudéssemos viabilizar a escrita deste trabalho.
Dentro de tal contexto, o presente trabalho pretende analisar por con-
traste o mecanismo de atuação dos Tribunais de Justiça no Brasil e sua pro-
pagada democracia verificada no método de seus julgamentos, bem como, o
modo de atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, através de
uma metodologia focada na pesquisa bibliográfica e também nas observa-
ções de campo a fim de se buscar o respaldo científico necessário para o de-
bate da problemática suscitada.
Essa trajetória tem início na compreensão do espectro de aplicação e a
interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos na Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Indubitavelmente a Corte tem por
objetivo a aplicação da Convenção Interamericana de Direitos Humanos2
com escopo de garantir a preservação dos direitos de qualquer pessoa, su-
primindo violações de qualquer ordem quando promovidas por ações de Es-
tado.
Para mitigar as impunidades, a Corte possui a prerrogativa da jurisdição
internacional que complementa as regras de proteção interna dos Estados-

1 Segundo Bourdieu (2007), o habitus é um “sistema de disposições socialmente


constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o prin-
cípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de
um grupo de agentes” (p. 191).
2 Mais conhecido como o Pacto de San José da Costa Rica. Tal tratado foi incorpora-
do ao direito brasileiro pelo Decreto nº 678/92.

188
partes componentes do sistema regional de proteção. Um dos mecanismos
utilizados pela Corte é o chamado “controle de convencionalidade”, conce-
bido como um instrumento que permite a análise da legislação interna em
relação aos tratados e convenções internacionais que o Estado se comprome-
teu a cumprir. Segundo OLIVEN; RASGA (2017, p. 267-268):

O controle de convencionalidade resulta da criação jurisprudencial da Corte


Interamericana, numa espécie de ativismo judicial, que basicamente funda-
menta-se em dois argumentos: o princípio da boa-fé no cumprimento das
obrigações internacionais e a regra do 267 artigo 27 da Convenção de Viena
sobre Direito dos Tratados, na qual o Estado não deve alegar o direito interno
para se eximir de obrigações convencionadas. São duas as consequências básicas
dos efeitos do controle de convencionalidade. A primeira de caráter negativo
ocorre quando a lei interna se opõe à Convenção Americana ou à jurisprudência
da Corte, devendo ser declarada inválida e expurgada do ordenamento nacio-
nal. A segunda, com nítido aspecto positivo, ocorre quando o juiz local aplica a
lei doméstica à luz das normas da Convenção Americana, harmonizando os dois
ordenamentos jurídicos.

Dentre dessa perspectiva de proteção dos direitos humanos, o Brasil foi


instado a apresentar suas alegações na 118º Sessão Ordinária no caso do jor-
nalista Vladimir Herzog.

2. JUICIO DEL CASO HERZOG

Militante do Partido Comunista Brasileiro, na noite de 24 de outubro de


1975, foi procurado pelos agentes do DOI/CODI na cidade de São Paulo
(Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de
Defesa Interna do II Exército) para prestar esclarecimentos face as suas su-
postas ligações e atividades criminosas em nome da militância.
Naquela noite a direção da TV Cultura em que trabalhava mediou com
os agentes militares o comparecimento espontâneo de Herzog para o dia se-
guinte diante da necessidade de manter a programação da emissora no ar.
No entanto, no dia 25 de outubro de 1975, por volta das 8 horas, Herzog
foi detido arbitrariamente nas dependências do órgão militar por ser consi-
derado “inimigo do Estado”. De certo, que no final deste mesmo dia, foi de-
clarado morto pelo Comandante do DOI/CODI, por prática de suicídio.
Seu cadáver foi encontrado “em suspensão incompleta e sustido pelo pesco-
ço, através de uma cinta de tecido verde” (segundo, as informações descritas
na ação declaratória de nº 136/76).
Desta feita, foi iniciada uma via crucis para a comprovação da prática de
atos desumanos, tortura seguida de cometimento de homicídio, o que defla-
grou um movimento processual para a sobredita execução sumária.

189
Apenas por necessidade de esclarecimento aos leitores3: A vítima e viú-
va de Vladmir Herzog, no dia 20 de abril de 1976, e, seus filhos Ivo e André
ajuizaram uma ação judicial face a crueldade do regime ditatorial militariza-
do ao seu marido, a fim de desconstituir a versão dada pelos militares pelo
hipotético suicídio de Herzog.
Durante todo percurso processual a vítima Clarice Herzog apesar de
deixar evidente não desejar valores indenizatórios e sim a declaração de ve-
racidade da barbárie cometida em nome do Estado, recebeu uma sentença
que prolatava a necessidade de pagamento de verba indenizatória, sem con-
tudo, responsabilizar os autores.
Em 27 de outubro de 1978, o juiz federal Márcio José de Moraes, da 7ª
Vara da Justiça Federal em São Paulo, declarou a responsabilidade da União
pela prisão, tortura e morte do jornalista:

Pelo exposto, julgo a presente ação PROCEDENTE e o faço, nos termos do


artigo 4, inciso I, do Código de Processo Civil, para declarar a existência de
relação jurídica entre os Autores e a Ré, consistente na obrigação desta indeni-
zar aqueles pelos danos materiais e morais decorrentes da morte do jornalista
Vladimir Herzog, marido e pai dos Autores, ficando a Ré condenada em hono-
rários advocatícios que, a teor do artigo 20, parágrafo 4 do mesmo diploma
legal, fixo em Cr$ 50.000,00 (cinquenta mil cruzeiros). Determino, outrossim,
com fundamento no artigo 40 do Código do Processo Penal, sejam extraídas e
remetidas ao Sr. Procurador Geral da Justiça Militar, para as providências le-
gais que couberem, cópias autenticadas pela Secretaria, desta sentença e de
todos os depoimentos das testemunhas ouvidas por este Juízo. Custas “ex-
lege”. Oportunamente, observadas as cautelas legais, subam os autos ao Egrégio
Tribunal Federal de Recursos, para os fins do duplo grau de jurisdição. P.R.I.
São Paulo, 27 de outubro de 1978. Processo 136/76.

No entanto, mesmo diante de uma sentença favorável ao reconhecimen-


to da responsabilidade da União o caso Herzog foi encaminhado à Corte
pelo crime de lesa-humanidade; pela completa ausência de conhecimento
dos fatos que motivaram não só a morte de Vladimir Herzog, mas também
por toda a persecução obscura ocorrida nos porões do DOI/CODI desde
sua prisão arbitrária e, ainda, pela inexistência de punição dos agressores. Es-
tes foram os motivos que justificaram a reivindicação de que o Estado brasi-
leiro deveria não só descortinar a realidade, mas, também punir seus auto-
res, na medida em que a Lei de Anistia promulgada durante o regime militar
criou um terreno fértil para a impunidade, face aos artifícios utilizados pelo
Estado de prescritibilidade de crimes; irretroatividade de leis e coisa jul-
gada.
Burocracias papelizadas, a promulgação da Lei de Anistia; arquivamen-
tos e trancamentos judiciais, fatos novos não perseguidos por meio de inves-

3 http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=bibliotbnm&pagfis=17
666

190
tigação serviram de mote para uma alegada constituição de coisa julgada ma-
terial e com isso de que os crimes cometidos contra a suposta vítima teriam
prescrito pelo tempo-espaço-jurídico, ou seja, a jurisdição interna do Estado
brasileiro asfixiou uma possível condenação dos responsáveis pela morte de
Herzog.
O Brasil apesar de admitir ter realizado uma reparação simbólica ao edi-
tar livros, sites em memória dos fatos ocorridos, em seu ato de permanente
impunidade, feriu diretamente à Convenção Americana de Direitos Huma-
nos em vários de seus dispositivos, assim como, a jurisprudência da Corte o
que o faz incorrer numa responsabilidade internacional por omissão promo-
vendo um abismo entre direitos sonegados e regras inobservadas.
Diga-se que a criação da Comissão da Verdade e a Comissão de Mortos
e Desaparecidos no regime político tornaram indelével a morte de Herzog.
No entanto, o pagamento de 100 mil reais a vítima e seus filhos, a retificação
da certidão de óbito que antes continha a afirmação de morte de enforca-
mento por asfixia mecânica e após por “lesões e maus tratos sofridos duran-
te o interrogatório em dependência do 2º Exército (DOI/CODI)” imple-
mentaram parte da história na memória coletiva recente, mas, não restaura-
ram a verdade dos fatos.
A internalização dessas informações nos legitima a acreditar que pelaau-
sência de investigação séria, aprofundada e pautada na necessidade de puni-
ção severa dos responsáveis pela tortura e execução de Vladimir Herzog é
que se (re)construiu todo o processo investigativo com vias ao oferecimento
de uma representação à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

3. LAS OBSERVACIONES DEL CAMPO

Rumo à Corte, situada na Avenida 10, entre as Calles 45 y 47 no distrito


de Los Yoses, bairro de San Pedro em San José na Costa Rica, uma série de
procedimentos de segurança tiveram que ser tomados ainda na calçada do
lado de fora de sua sede, tais como: aguardar o ingresso não só dos juízes;
mas, das partes envolvidas nos julgamentos, dos secretários e funcionários
identificados do local. Após essa etapa e religiosamente no horário descrito
na portaria, fomos autorizadas a entrar, sem antes cumprir a necessária vis-
toria de nossas bolsas e pertences pessoais, passar pelo detector de metais
por duas vezes e seguir diretamente ao recinto do julgamento.
De início nada se assemelhava aos mecanismos brasileiros. Já foi noticia-
da4 a entrada de cidadãos portando explosivos, artefatos bélicos5 e afins em

4 http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/07/1898582-homem-que-ameacou-
queimar-juiza-viva-e-condenado-a-20-anos-de-prisao.shtml
5 http://www.espacovital.com.br/noticia-27670-homem-atira-na-exmulher-em-fo
rum-mata-advogado-e-e-morto

191
sede jurisdicional. Práticas como essas nos fizeram compreender a necessi-
dade do seguimento dos regramentos impostos. Prima-se pela segurança de
todos.
Os portões dos tribunais aqui no Brasil abrem em horários distintos6 a
depender da serventia e muitas das vezes sequer encontramos a totalidade
de seus serventuários quiçá os magistrados lotados para o atendimento pre-
conizado como público e a serviço da população.
A arquitetura em estilo clássico do prédio da Corte Interamericana de
Direitos Humanos promove o destaque imponente da casa branca, entre co-
lunas romanas, mas, com todo aparato de vigilância que o local merece. Afi-
nal ali transitam Chefes de Estado e autoridades de máxima repre-
sentatividade dos Estados, Organizações não governamentais e Organiza-
ções Internacionais.
O espaço físico interno destinado a realização das sessões está divido em
três grandes fileiras com algumas dezenas de cadeiras de médio conforto. E,
sob a perspectiva visual do público para a entrada no recinto, a disposição
desse lugar possibilitava perceber que: do lado esquerdo, por detrás da mesa
dos representantes das vítimas, seus assessores e estagiários, se posiciona-
vam aqueles que pretendiam reforçar a defesa da parte fragilizada.
Já a fileira central onde se posicionava a mesa dos delegados, assistentes
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que é o órgão de fiscali-
zação dos direitos humanos para admissibilidade das denúncias, geralmente
se acomodam os ouvintes com posição neutra. E, do lado direito, o espaço
está destinado a mesa composta pela delegação do Estado denunciado pelas
violações cometidas, sempre representado por seus advogados e diplomatas
e, ainda, pelos ouvintes ou convidados que aparentam dar apoio ao mesmo.
Nosso dilema teve início em compreender essa disposição de lugares,
porque afinal, em que pese outros entendimentos não há no Brasil essa po-
larização de partes em relação aos ouvintes, mas, muito evidente entre as
partes litigantes.
Como desconhecíamos esse código silencioso nos sentamos do lado di-
reito que era justamente o lugar onde havia mais cadeiras disponíveis. No
entanto, verificamos uma série de olhares insidiosos em nossa direção. E,
após uma longa pausa para entendimento tivemos a sensação de que havía-
mos nos colocado numa posição de enfrentamento acidentalmente, eis que,
os defensores buscavam apoio entre olhares e apertos de mão mesmo com
os ouvintes desconhecidos para que suas fileiras fossem logo preenchidas.
Fato que contornamos à francesa.
Curiosamente, uma recém-nomeada defensora interamericana pelo Es-
tado brasileiro, que depois soubemos que se encontrava em curso prepara-
tório, sentou-se a nossa frente e logo foi repreendida por sua colega para se
posicionar na fileira que correspondia a defesa da vítima, que era o lado es-

6 http://www.tjrj.jus.br/ca/leiacessoinformacao/info-inst/horario-atend

192
querdo para onde já tínhamos nos dirigido, o que nos deu a certeza que essa
composição cênica é preservada e extremamente demarcada como um ri-
tual.
À nossa frente um estrado com grandes dimensões e com as bandeiras
dispostas dos 35 (trinta e cinco) países que ratificaram a Carta da Organiza-
ção dos Estados Americanos – OEA.
Salienta-se que a Corte é composta por 07 (sete) juízes e todos são indi-
cados7 por meio dos Estados em razão do profundo conhecimento de direito
internacional e direitos humanos; dos mais relevantes serviços prestados em
seus países e de sua honradez para o cumprimento de um mandato de seis
anos, podendo ser reeleitos por um único período.
Em contraste, no Brasil, o preenchimento das vagas na magistratura de
primeira instância ocorre por meio de concurso público8 de provas e títu-
los9. Caso, os magistrados cometam atos ilegais ainda assim tem seus venci-
mentos garantidos por meio de aposentadoria compulsória10.
Diversamente, a regra do concurso púbico não se aplica aos tribunais su-
periores, como por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, composto por 11
Ministros indicados pelo Presidente da República e sabatinados pelo Senado
Federal. É nesse cenário político de viés duvidoso que os nomes dos indica-
dos, por vezes, são alvos de críticas já que nem sempre o notável saber jurí-
dico e a conduta ilibada estão presentes.
E, é aí que começam os questionamentos. De início pelos vencimentos.
De certo que, pela Lei Fundamental de nosso país, esse deveria ser o maior
valor pago aos servidores, já “vantagens pessoais ou de qualquer outra natu-

7 Segundo o Estatuto da Corte, em seu artigo CAPÍTULO II COMPOSIÇÃO DA


CORTE: Artigo 4. Composição 1. A Corte é composta de sete juízes, nacionais dos
Estados membros da OEA, eleitos a título pessoal dentre juristas da mais alta autorida-
de moral, de reconhecida competência em matéria de direitos humanos, que reúnam as
condições requeridas para o exercício das mais elevadas funções judiciais, de acordo
com a lei do Estado do qual sejam nacionais, ou do Estado que os propuser como candi-
datos. Podendo ser consultado no site: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/oea/ec-
tidh.htm.
8 http://jornaldaordem.com.br/noticia-ler/examinador-confirma-fraude-em-conc
urso-para-magistratura-rio janeiro/7040
9 Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:
I – vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercí-
cio, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz
estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado; II –
inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII; III –
irredutibilidade de vencimentos, observado, quanto à remuneração, o que dispõem os
arts. 37, XI, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I; III – irredutibilidade de subsídio, ressalvado
o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I. (Redação dada
pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
10 http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/veja-casos-de-o
utros-juizes-condenados-a-aposentadoria-compulsoria-0ldyxa83s81b2tbv9kwpt6m26

193
reza”. Fora outros penduricalhos associados, tais como: auxílio-moradia, au-
xílio-alimentação; gratificações por acúmulo de varas; auxílio-saúde, desem-
bolsos por produtividade, por aulas em escolas da magistratura, gratificação
por cargos de direção, por integrarem comissão especial, por serem juízes
auxiliares, licença especial, gratificações relacionadas ao magistério, “Bolsa
Pesquisa”, “ajuda de custo” para se instalarem em outra cidade.
No Brasil os dados estatísticos11 apresentados no ano de 2016 revelaram
que dos 10.765 Juízes, Desembargadores e Ministros do Superior Tribunal
de Justiça muitos recebem vencimentos superiores a quantia de R$ 33.763,
cujos valores são em regra pagos aos ministros do Supremo Tribunal Fede-
ral.
Já os vencimentos dos juízes da corte estão previstos no artigo 17 do Es-
tatuto da
Corte Interamericana de Direitos Humanos e fixados apenas e de acordo
com as obrigações e compatibilidades de suas atribuições.
Se, por um lado, tudo isso nos instigava, por outro, causava também cer-
ta estranheza decorrente de experiências, muitas vezes frustradas, no cam-
po jurídico brasileiro. E, por tudo isso, tínhamos cada vez mais a necessidade
de absorver essa experiência culturalmente diferenciada do nosso país de
origem.

3.1. SEÑORAS Y SEÑORES, LA CORTE!

Folhetos são distribuídos sobre a necessidade de comportamento respei-


toso de todos em relação a todos no interior da Corte e também sobre o pas-
so-a-passo de tudo o que iria ocorrer nas sessões. As telas de televisão em
LED informam as sessões do dia e com isso também avisos de voz são emi-
tidos na modalidade bilíngue quanto ao início, pausa e término das mesmas.
Não havia crucifixos, Têmis, balanças, malhetes ou qualquer outra insígnia
que “representasse a justiça”12 como de costume se verifica no Brasil.

11 https://oglobo.globo.com/brasil/mais-de-dez-mil-magistrados-recebem-remunera-
coes-superiores-ao-teto-20340033
12 E-3.048/04 – SÍMBOLOS DA ADVOCACIA – A IMAGEM DA JUSTIÇA (TÊ-
MIS), A BALANÇA, A BECA E AS INSÍGNIAS PRIVATIVAS DO ADVOGADO –
RAZÕES ESTATUTÁRIAS, ÉTICAS E HISTÓRICAS DITADAS PELA NOBREZA
DA ADVOCACIA – INFLUÊNCIA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS BRASI-
LEIROS. Os símbolos do advogado, cujo direito de uso é assegurado pelo inciso XVIII
do artigo 7o da Lei nº 8.906/94 e regrado pelo Provimento nº 08/64 do C.F.O.A.B.
(influenciado pelo I.A.B.), são representados (i) pela figura mitológica de Têmis – deusa
grega que personifica a Justiça –, equilibrada pela balança e imposta pela força da espa-
da; (ii) pela Balança, que representa o mencionado equilíbrio das partes; e (iii) pela
Beca, usada pelo profissional do direito como lembrança do seu sacerdócio e respeito ao
Judiciário. A presença do crucifixo nas salas de júri e dos advogados é um alerta para o
cometimento de um erro judiciário que não deve ser esquecido, enquanto que a figura
de Santo Ivo justifica o título de padroeiro dos advogados, pelo conhecimento de Direi-

194
Pontualmente às 9h do dia 24 de maio, na sala de audiência da Corte,
escutamos em aviso sonoro: SEÑORAS Y SEÑORES, LA CORTE! Todos
os presentes imediatamente colocaram-se de pé e em respeito solene nada
era ouvido além das passadas calmas e ritmadas dos juízes. Depois que todas
as autoridades sentaram, os presentes foram se alocando em suas cadeiras e
nada mais era pronunciado pelos ouvintes. Não havia toques de celulares
nem mesmo conversas ao pé do ouvido. Toda sessão foi transmitida ao vivo
pelo site da Corte, o que permitiu o acesso em tempo real por qualquer pes-
soa do mundo. Mesmo assim notamos a presença de canadenses como ob-
servadores do ato processual.
Ficamos imóveis até a abertura dos trabalhos que passaram a ser condu-
zidos pelo atual secretário, Pablo Saavedra,13 que dentre tantas funções or-
ganiza o procedimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Para além dessas questões, retornamos ao movimento de reconhecimen-
to do espaço físico onde ocorrem as sessões, nota-se que do lado esquerdo
foi possível perceber um quadrículo reservado com cadeira e microfone para
oitiva das supostas vítimas de violações de direitos humanos e das testemu-
nhas e do lado diametralmente oposto da mesa onde permanece do início ao
fim o secretário da Corte que ocupa uma função de extremada relevância.
Indissociável perceber que ali as rotinas são cadenciadas e cronometra-
das. Tudo isso permeado pelo atravessamento de integração e conexão de
espaço-tempo. Esse processo permitia o reconhecimento das identidades e
as hibridizava, ou seja, todos os partícipes do processo eram tratados com o
mesmo merecimento e valor.
Diferentemente do Brasil onde advogados, partes, juízes e ministros
transformam esse espaço num palco de aberrações e espetáculos14. Fazen-
do-nos crer que é traço patológico comum na cultura judicial e na identida-
de dos representantes dessa casta.

to que detinha e por sua luta em defesa dos necessitados. O uso de desenhos, logotipos,
fotos, ícones, frases bíblicas, orações ou citações célebres, ainda que eventualmente de
boa estética, é vedado pelo artigo 31, caput, do Código de Ética, letras “c” e “k” do
artigo 4o do Provimento nº 94/00 do CFOAB e artigo 4o da Resolução nº 02/92 do
T.E.P. “Mas as insígnias que lhe são privativas devem ser ostentadas com orgulho pelo
advogado”.V.U., em 21/10/04, do parecer e ementa do Rel. Dr. BENEDITO ÉDISON
TRAMA – Rev. Dr. GUILHERME FLORINDO FIGUEIREDO – Presidente Dr.
JOÃO TEIXEIRA GRANDE.
13 Em todos os lados das paredes existiam quadros com fotografias dos juízes que
anteriormente foram designados para atuação na Corte juntamente com a figura do se-
cretário. Pudemos acompanhar marcadamente o passar de anos em relação ao mesmo
por intermédio das fotografias dispostas nos quadros e também credibilizadas nas
informações informatizadas no site da Corte, onde seu encargo é realizado há muitos
anos naquele lugar. Tal fato, o torna imprescindível para a memória dos julgamentos
daquela Corte.
14 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2014/06/11/achei-pessimo
-diz-marco-aurelio-sobre-advogado-expulso-do-stf.htm.

195
Se, por um lado, tudo isso nos instigava, por outro, causava também cer-
ta estranheza decorrente de experiências, muitas vezes frustradas, em are-
nas jurídicas brasileiras. E, por tudo isso, tínhamos cada vez mais a necessi-
dade de absorver essa experiência culturalmente diferenciada do nosso país
de origem.
Embora problemático reconhecer o distanciamento dos rituais no Brasil
do ocorrido em San José na Costa Rica, a partir dessas interfaces nossa ten-
tativa era a de sermos capazes de captar a complexidade de todos esses sim-
bolismos.
Como dito antes, dos movimentos ritualísticos brasileiros, as audiências
são realizadas num movimento de entra-e-sai de jurisdicionados e o falatório
de todos, por vezes, provoca um frenesi na sala de audiências, são raros os
momentos em que o silêncio é preservado em nome da ordem e do respeito
para o interessado falar e ser ouvido.

3.2. ARGUMENTOS Y PRUEBAS

Para que todos os pontos processuais considerados nevrálgicos inobser-


vados no Brasil fossem realinhados a vítima foi ouvida na Corte. Ao ser cha-
mada para depoimento, Clarice Herzog foi instada pelo secretário a infor-
mar seu nome, idade e sua nacionalidade. Na Corte é possível expressar-se
nos idiomas oficiais: inglês, espanhol e português.
Clarice Herzog passou a ser indagada por seus advogados a responder
perguntas sobre o caso de tortura e morte de Vladimir.
De idade avançada, após, aproximadamente 1h de depoimento, com
certa desordenação de ideias sobre os fatos, era repetitiva, ora esquecia de-
terminadas informações questionadas e creditava à sua própria idade o insu-
cesso sintomático de sua fala sem coesão.
Foi indagada pelos juízes, leu a carta de sua sogra em agradecimento ao
juiz prolator da sentença no Brasil. Não havendo mais perguntas a serem fei-
tas, Clarice Herzog foi convidada a sentar junto com os demais presentes na
fileira esquerda próxima de seus defensores.
Os agentes do Brasil passaram a explicar a ocorrência dos fatos. Segun-
do, o ponto de vista do Estado brasileiro. E, nesse momento a vítima- Clari-
ce Herzog, passou a intervir aos brados:

“Vocês mataram meu marido!!!”


“Assassinos!!!”
“Meu marido não era bandido, era trabalhador !!!”

A viúva-vítima foi orientada por seus advogados para abster-se de


manifestações, quando em altos brados, replicou:

“Ué? Eu não posso falar? Eu preciso falar!!! É mentira tudo o que eles estão
falando!!!

196
Vê-se assim que o sistema binário de ganhador-perdedor, talvez estives-
se presente no inconsciente de Clarice Herzog que a motivava falar mesmo
em momento inoportuno, como se isso legitimasse a disputa nesta sessão, e,
principalmente, a validade de seus reclamos, não apenas como discurso, mas
para externar a sua realidade, reforçando sua dor, sofrimento, angústia, que
mais pareciam estigmas repousados sob um véu destituído de poder, mas,
incontestavelmente permeado de significados quando olhamos pelo prisma
dos rituais brasileiros.
Pausa para almoço. Sessão encerrada: LA CORTE SE RETIRA!
Mais uma vez, ficamos de pé, em silêncio sepulcral. Saem os juízes, o
retorno das atividades foi programado para às 13:30h. Nos dirigimos ao res-
taurante mediano mais próximo da Corte, e, qual não foi nossa surpresa que
a juíza Elizabeth Odio Benito, que foi vice-presidente da Costa Rica, juíza
do Tribunal Penal para a ex-Iugoslávia e juíza do Tribunal Penal Internacio-
nal, caminhava ao nosso lado na rua e sentou em mesa oposta à nossa, sem
ser cortejada foi tratada como todo cidadão costarriquenho o é.
Isso nos causou tanta surpresa que indagamos ao garçon se ele conhecia
aquela figura pública. Afirmativamente ele, deixa claro seu conhecimento
sobre o exercício da função da juíza e nos informou que os servidores públi-
cos da Costa Rica caminham com o povo, andam de transportes coletivos,
sem seguranças de qualquer ordem, recebem e ouvem os pedidos da comu-
nidade local por que são eleitos para essa tarefa e dos mais baixos aos altos
encargos, a função precípua é atuarem com lisura e inclinação ao bem-fazer
público.
Em nosso retorno, as mesmas formalidades, de praxe na entrada dos juí-
zes na Corte. Mais depoimentos da tríade formada por todos os repre-
sentantes, fosse da vítima, da Comissão de Direitos Humanos ou do corpo
de defesa do Brasil. Cada fala tinha seu tempo demarcado e respeitado. Não
houve as interveniências pela “ordem” ou por “máxima vênia”.
O que há de determinante no contexto em que estão imbricadas as a-
ções dos agentes públicos é uma possibilidade de leitura onde os elementos
antidemocráticos não se ajustam e se definem como processos sociais de vio-
lência nas questões de ordem, de controle social e ameaça moral a sociedade
pelo processo de terror instituído por estas categorias de profissionais. Em
larga medida esses agentes, para se fazerem respeitar, impõem o uso inten-
cional da força física e do abuso de poder. De fato, nessa intrincada trama de
personagens que dividem territórios físicos e simbólicos, os efeitos do desa-
pontamento são inevitáveis ao longo da malfadada trajetória do regime mili-
tar que viabilizou o afastamento de um convívio pluralista e inclusivo.
Nesse fosso criado pelo regime ditatorial no cometimento de crimes em
nome do Estado é que eles passam a ser considerados por sua lesão enorme
ante a persistência, impunidade e o mecanismo das violações que atingem
patamares máximos de desumanidade e impedimento de fruição dos direi-
tos mínimos de todo e qualquer cidadão.

197
Evidenciam um discurso assimétrico imbuído de táticas, estratégias e re-
cortes totalizantes de desajustes e ilegalismos por meio de burocracias não
só nas normas jurídicas, mas, sofrem as vítimas uma disciplinarização como
forma de controle das dinâmicas sociais na dimensão jurídica de um consen-
so inalcançável numa conexão de jogos onde as práticas se transformam em
verdadeiros labirintos de papel (TISCORNIA, 2008).
Pensar sobre os requisitos caracterizadores da impunidade, da crueldade
e da inexplicável violação de direitos humanos praticadas pelos agentes em
nome da Lei é uma medida também de fortalecimento das burocracias ad-
ministrativas e judiciais como medida de interrupção de busca da verdade.
O caso do brasileiro Herzog se desenha na opacidade e na lógica do se-
gredo. Num lugar onde os ritos judiciais se sedimentam erigindo um arca-
bouço desolador, impossibilitando a significação dos conflitos, onde a reso-
lução de situações-problema permanece no espaço de forma e conteúdo su-
jeitos a extrema precarização da subjetividade interna de cada país, num
duelo onde os dispositivos se alinham entre a abstração da norma que não é
descortinada para a resolução das tensões e embates sociais.
Por isso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos os direitos da
proteção da pessoa humana, sua liberdade de expressão entre outros ele-
mentos são levados à preservação quando os fatos jurídicos são inobservados
nos países de origem.
Sem mais nada a ouvir, os trabalhos foram encerrados, com o mais alto
grau de zelo nos procedimentos, bem como, na respeitabilidade devida dos
juízes em relação aos partícipes. Em observações empíricas já realizadas pu-
demos perceber que o movimento da desconfiança, da descrença e da inqui-
sitorialidade, traços referenciais dos magistrados brasileiros (VALIM; RAS-
GA, 2016, p.46) não foram verificados na Corte.
O caráter interpretativo de regras, ao ser iminentemente subjetivo, de-
flagra os gradientes de ininteligibilidade de ações no espaço jurídico, eis que,
a impossibilidade de sentido ou de questionamento em tais formulações ar-
gumentativas estão contidas no interior das sensibilidades do julgador o que
delimita um campo fértil para as iniquidades. Posto que, estarão fadados
muitos jurisdicionados à morte silenciosa de seus direitos universais tais
como: os civis, sociais e políticos. A amplitude dessas ações marca na arena
jurídica uma semiologia particularizada do discurso de se “aplicar o direito”
no mundo dos segredos oficiais de normalização, neutralização e dominação
da mecânica de ordem imposta pelo Estado.
Ao ser instada a Corte Internacional dos Direitos Humanos a rotina dos
desacertos, da politização, da hierarquização e do monopólio do poder vão
reorganizando de “fora para dentro” os Estados em comandos que fecham o
fosso intransponível do direito dogmatizado.
As sentenças da Corte apresentam-se como um resultado em amplo es-
pectro, eis que, não se restringem às reparações de caráter exclusivamente
financeiro, mas também determinam imperativamente a necessidade de
uma tomada de medidas que visem assegurar uma mudança interna nos paí-

198
ses para as mais complexas violações aos direitos humanos aliado ao fato de
intentar prevenir ocorrência de situações assemelhadas no futuro.
No Brasil, raramente, as sentenças são cumpridas. Indenizações não são
pagas. O judiciário atua numa morosidade que produz ineficácia e recalci-
trância de ações violadoras de direitos.
A partir disso quando um Estado sofre uma condenação por violação aos
direitos humanos por parte da Corte, além do constrangimento internacio-
nal que permanece a exercer pressão política, a Corte cristaliza uma garantia
de não repetição em cenário interno de tais subtrações de direitos ao moni-
torar o cumprimento da decisão. O que vale dizer, suas sentenças emanam
um efeito transformador no entendimento de tribunais nacionais e os in-
fluenciam diretamente na determinação de reformas nas políticas públicas
específicas desses Estados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Às 18h nos retiramos da Corte, ficando o julgamento soberano e secreto


da Corte marcado para a prolação da sentença cuja expectativa é de aproxi-
madamente 06 (seis) meses com vistas ao reconhecimento da ocultação da
verdade e da impunidade. Assim como, pela declaração da imprescritibilida-
de ou não dos praticados pela ditadura militar em razão das violações aos di-
reitos humanos tão fundamentais desprezados pelo Estado em relação a Vla-
dimir Herzog.
Voltamos ao Brasil com a sensação de que nosso relato, talvez não fique
na memória acadêmica, mas, certamente participamos em parte de uma his-
tória brasileira que fala não só sobre discursos jurídicos, mas, sobretudo so-
bre a forma como se conduzem os conflitos tão humanos e fundamentais
que podem ser observados pelas ciências sociais aplicadas.
Diante da complexidade de nossa experiência na Costa Rica, especial-
mente, na Corte Interamericana de Direitos Humanos relatamos aqui o que
passou mais evidente em nossa concepção para este paper. Assim, as viola-
ções de direito em nome do Estado, por parte de seus agentes, se indenes
permitirão que seus perpetradores se assentem no terreno fértil da impuni-
dade.
A Corte internacional ao condenar um Estado, de modo definitivo e ina-
pelável, descortina a realidade com tomadas de medidas a serem referencia-
das no sistema político interno do Estado condenado, para preservar não só
a memória de épocas passadas, mas, por prestarem contas à toda sociedade
de que o poder de condenar os responsáveis por delitos sob a proteção do
Direito Internacional não ficarão “imunes” à persecução procedimental in-
terna mal fadada pelos países aderentes, sem qualquer interferência na von-
tade soberana dos mesmos, já que são integrantes e pactuam de tais interes-
ses protetivos máximos.

199
Enfatizamos que os dilemas e dramas dos casos retratados apesar de apa-
rentarem comuns não podem ser restringidos aos fenômenos jurídicos cons-
tantes no limite de nossa reflexão, onde nossas motivações, resultados, difi-
culdades de olhares e críticas alimentam que a nossa necessidade de expe-
riência calcada no ensino-aprendizagem aponta para uma busca de olhares
para a administração de conflitos em perspectiva crítica que sendo expandi-
da em outras pesquisas de campo certamente apontarão para novos cami-
nhos quando o ponto de partida é a persecução de direitos essenciais do ho-
mem para o gozo de seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como
dos seus direitos civis e políticos e o fim não é o monopólio do poder ditato-
rial tampouco arbitrário, por isso o estudo por contraste foi-nos essencial.

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TISCORNIA, Sofía. Activismo de los derechos humanos y burocracias estatales. El
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201
A evolução do poder judiciário nas
constituições do Brasil: de coadjuvante
a protagonista

Carlos André Coutinho Teles


Fernando Rangel Alvarez dos Santos

RESUMO: O presente estudo investigou, de maneira não exaustiva, a


evolução do Poder Judiciário nas Constituições do Brasil, analisando sua fal-
ta de independência e efetividade ao longo da história, tendo como marco
temporal a Constituição de 1824, o que perdurou até o final da ditadura.
Com o advento da Constituição federal de 1988 o país inaugurou uma nova
fase da sua história, e a Carta Política democrática, entre diversas inovações,
tornou independente o Poder Judiciário (BARROSO, 2012). Os resultados
apontam que esta independência foi efetivada a partir do respeito ao sistema
de tripartição dos poderes inspirado na obra de Montesquieu e da constitu-
cionalização dos direitos políticos o que culminou no desenvolvimento do
constitucionalismo da efetividade capitaneada por BARROSO (2015). Re-
levante o estudo do tema já que o Constitucionalismo está diretamente liga-
do às mudanças sociais, econômicas e jurídicas, bem como a estruturação do
Estado ao longo da história. Sob a perspectiva metodológica, o presente tra-
balho pesquisou fontes bibliográficas e legislativas no que se refere ao estu-
do da ausência de independência e efetividade do Poder Judiciário brasileiro
até a promulgação da Constituição Cidadã, objetivando demonstrar, de ma-
neira não exaustiva, os motivos que ensejaram a independência do Poder Ju-
diciário sobrevir apenas quando da promulgação daquela. Ao final, a partir
constitucionalismo da efetividade identificam-se dois novos fenômenos, a
judicialização e o ativismo judicial, que emergem como novos paradigmas da
atuação judicial e criam novo campo de pesquisa sobre as controvérsias ad-
vindas nesses novos institutos jurídicos.

Palavras chave: Poder Judiciário; constituição federal; efetividade

ABSTRACT: The present study investigated, in a non-exhaustive way,


the evolution of the Judiciary in the Brazilian Constitutions, analysing its
lack of independence and effectiveness throughout history, having as a time

203
frame the Constitution of 1824, which lasted until the end of the dictators-
hip. With the advent of the 1988 federal constitution, the country inaugu-
rated a new phase of its history, and the Democratic Political Charter,
among many innovations, made judicial power independent (BARROSO,
2012). The results point out that this independence was achieved through
respect for the system of tripartition of powers inspired by the work of
Montesquieu and the constitutionalizing of political rights, which culmina-
ted in the development of the constitutionalism of the effectiveness com-
manded by BARROSO (2015). Relevant is the study of the theme since
Constitutionalism is directly linked to social, economic and legal changes, as
well as the structuring of the State throughout history. From a methodolo-
gical point of view, the present study is based on the deductive model regar-
ding the study of the absence of independence and effectiveness of the Bra-
zilian Judiciary until the enactment of the Citizen Constitution, aiming to
demonstrate, in a non-exhaustive way, the reasons that caused the inde-
pendence of the Judiciary will only come about when it is promulgated. In
the end, from the constitutionalism of effectiveness, two new phenomena
are identified: judicialization and judicial activism, which emerge as new pa-
radigms of judicial action and create a new field of research on the contro-
versies arising in these new legal institutes.

Key words: judicial power; federal constitution; effectiveness.

INTRODUÇÃO

Como o propósito deste trabalho é realizar um estudo da evolução his-


tórica do Poder Judiciário, mais precisamente, da independência dos Tribu-
nais Constitucionais Brasileiros ao longo da história, a pesquisa se debruçará
sobre a Constituições nacionais, desde a outorgada em 1824 até a Constitui-
ção Cidadã. Dessa forma, o presente estudo deixará de abordar a estrutura
jurídica do Brasil Colonial, tendo como ponto de partida a Carta Imperial
aonde o estudo terá como principal intelectual o Marques de São Vicente.
Já na Constituição que inaugura a República teremos como principal expo-
sitor e idealizador, Rui Barbosa; seguindo a ordem cronológica na qual as
constituições foram editadas e reeditadas perpassaremos por Alberto Tor-
res, Oliveira Viana, Osny Duarte Pereira, Manoel Gonçalves Ferreira até
chegarmos à Luís Roberto Barroso.
Durante o período republicano o estudo verificou a contenção do Poder
Judiciário pelos outros poderes concorrentes haja vista o conluio exercido,
sistematicamente, entre poder executivo e legislativo. No período em que
antecede a promulgação da Constituição de 1988, o fator marcante será a
ditadura militar, período em que houve o enfraquecimento geral das insti-
tuições políticas.

204
Por fim, percebe-se que Luís Roberto Barroso desconsidera toda a histó-
ria constitucional brasileira, enaltecendo a força normativa da Constituição
e a independência dos tribunais a partir da Constituição de 1988, o que deu
origem a doutrina da efetividade e com ela dois novos fenômenos jurídicos
nesses últimos quinze anos despontaram em nosso Tribunal Constitucional:
a judicialização dos direitos e o ativismo judicial.

A CONSTITUIÇÃO DE 1824

A Constituição política do império do Brasil foi elaborada por um con-


selho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I em 25.03.1824. Na-
quele tempo, a forma de Governo era Monárquica, Hereditária, Constitu-
cional e Representativa, sendo o território divido em províncias e a religião
oficial do império era a Católica Apostólica Romana.
Em que pese ecoar pelo ocidente a moderna noção de tripartição dos po-
deres, por muitos atribuída à Montesquieu (1748), os poderes políticos re-
conhecidos pela Constituição do Império eram quatro, quais sejam, o Poder
Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo e o Poder Judicial. Nas
palavras do Marques de São Vicente “todos Elles são a expressões naturaes
e necessárias da soberania nacional”. (SÃO VICENTE, 2001, p. 31)
O Imperador, por seu turno, concentrava na sua pessoa os Poderes, Exe-
cutivo e o Moderador, sendo àquele inerente à administração do Império, o
que era exercido por meio dos Ministros de Estado e este tinha como fim
precípuo ser a chave de toda a organização política, sendo por meio do Poder
Moderador que o Imperador assegurava a manutenção da independência, o
equilíbrio e a harmonia dos demais Poderes Políticos. (SÃO VICENTE,
2001, passim)
A partir desta concentração de Poderes, Sua Majestade, poderia nomear
senadores, dissolver a câmara de deputados e convocar outra que a substi-
tuísse, nomear e suspender magistrados entre outras atribuições.
Nesse ponto é necessário destacar que o Poder Executivo, concentrado
nas mãos do Imperador, estava investido de jurisdição para decidir questões
de ordem administrativa, limitando às atribuições do Poder Judicial apenas
às questões particulares, ou ainda, ao direito comum, que à época circuns-
creviam-se ao direito civil, comercial e ao direito penal. (SÃO VICENTE,
2002, p. 82).
Por outro lado, a guarda da constituição era de atribuição da Assembleia
Geral que era composta por duas câmaras, a câmara dos deputados e o sena-
do, órgãos máximos da expressão do Poder Legislativo. Não era autorizado
ao Poder Judicial realizar qualquer controle sobre o Poder Legislativo, já que
o sistema de freios e contrapesos era de atribuição do Imperador por meio
do Poder Moderador.
Da mesma forma, falecia ao poder judicial autoridade para revogar as
leis criadas pelo poder legislativo, não havendo, ainda, nesta Constituição o

205
instituto do controle de legalidade e ou constitucionalidade por parte do po-
der judicial, pois, segundo Marquês de São Vicente: “Só o poder que faz a
lei é competente para revoga-la, quer expressa ou implicitamente no todo
ou em parte.” (SÃO VICENTE, 2002, p. 82).
Com efeito, o Conselho de Estado, conforme previsto na Carta de
1824, seria composto por até dez membros vitalícios, tendo como função
aconselhar o imperador em todos os negócios graves e ações gerais da admi-
nistração pública, principalmente em questões relativas à declaração da
guerra, ajustes de paz, negociações com as nações estrangeiras, etc.
Tal Conselho tinha a atribuição de árbitro em contenciosos administra-
tivos e conflitos de competências, especialmente no julgamento dos recur-
sos contra as decisões dos presidentes das províncias e dos ministros de Es-
tado, além de exercer o papel de guardião da constitucionalidade e da lega-
lidade dos atos do Executivo. Em suas sessões eram discutidas questões
como candidaturas ao Senado, aprovação de leis, atos legislativos, constitu-
cionalidade das resoluções dos conselhos gerais das províncias, convocação e
prorrogação da Assembleia Geral, petições de graça, queixas contra magis-
trados, questões eleitorais, supressão de rebeliões e revoltas, bem como re-
conhecimento de cidadania. São Vicente (2002, p. 84)
A partir das breves considerações acima, verifica-se que, por mais que
houvesse quem defendesse a independência do Poder Judicial, haviam
limitações quanto às matérias que poderiam ser conhecidas e julgadas, assim
como deveria este Poder restringir-se à interpretação das leis que lhe eram
submetidas a apreciar não sendo de sua atribuição a realização qualquer con-
trole de legalidade e ou constitucionalidade. O Brasil ainda não possuía um
Tribunal Constitucional.

A CONSTITUIÇÃO DE 1891

A Constituição de 1891, a primeira republicana, instalou no país o siste-


ma presidencialista de governo, adotando ainda o critério da dualidade da
Justiça, pelo qual coexistiram no Brasil a Justiça Estadual e Federal. A Justi-
ça Federal era composta pelo Supremo Tribunal Federal e tantos juízes e
Tribunais Federais que o Congresso entendesse necessário criar.
Inspirada na Constituição americana, a Carta Constitucional conferia
autonomia e independência ao Poder Judiciário, atribuindo ao Supremo Tri-
bunal Federal à possibilidade de não apenas aplicar cegamente as leis edita-
das pelo Poder Legislativo, mas, também, caso entendesse que alguma delas
fosse contraria à Constituição caberia à Corte Constitucional declará-las
inaplicáveis, conforme defendia Ruy Barbosa. (BARBOSA, 1892, p. 21)
Relevante registrar que o Estado de Sítio foi escrito por Rui Barbosa em
1892, um ano após a promulgação da Constituição de 1891 e, naquele tem-
po, ainda estava esperançoso com os ideais liberais da época; o registro é ne-

206
cessário porque Barbosa, alguns anos depois faz severas críticas à referida
Constituição, o que veremos adiante.
Por outro lado, uma das características marcantes da República Velha
foi a parceria existente entre Poder Executivo, Legislativo e com os ‘Coro-
néis’. O Coronelismo1 assegurava durante as eleições, por meio dos votos de
cabresto, que seus representantes fossem eleitos e reeleitos, políticos estes,
que representavam os interesses dos ‘Mandões’2 das antigas províncias, ou
seja, os Coronéis dos novos Estados da Federação.
Em que pesem os conceitos liberais de Rui Barbosa se propagarem aos
quatro cantos da nação, e, por mais que seus ensinamentos importados da
doutrina americana, formassem seguidores, as oligarquias dos Estados ti-
nham maior voz e representatividade no Congresso Nacional, fato este que
engessava os ideais liberais da época.
De fato, a Constituição inovou quando permitiu a todo e qualquer juiz
realizar o controle difuso de constitucionalidade da legislação nacional, ins-
trumento este oriundo do sistema de freios e contrapesos, capaz de conter
as arbitrariedades do Poder Legislativo. Outras conquistas da época foram a
previsão do habeas corpus e do estado de sítio no bojo da Constituição, ins-
trumentos estes que trouxeram repulsa da classe política. (VIANNA, 1974,
p. 504)
Com efeito, durante discurso ocorrido em sua posse como presidente
do IAB, registra Barbosa (1914) que:

Grandes triunfos, neste quarto de século, registra a justiça brasileira. Os direi-


tos supremos, algumas vezes imolados, acabaram por vingar, em boa parte, na
corrente dos arestos. Haja vista os grandes resultados que, graças a ela, se apu-
raram, sob o estado de sítio deste ano, quando, mercê das suas sentenças, alcan-
çamos salvar, da liberdade de imprensa, uma parte considerável, e preservar os
debates parlamentares das trevas em que os queira envolver a ditadura, com a
cumplicidade submissa do próprio Congresso Nacional.

Pois bem, por mais que houvesse a possibilidade do controle de consti-


tucionalidade difuso pelos juízes estaduais e federais, observa Oliveira Vian-
na que a justiça brasileira se caracterizava, nessa época, pelas figuras do “juiz
nosso”, do “delegado nosso”, ou seja, era uma justiça posta a serviço dos in-
teresses dos mandões. (VIANNA, 1974, p. 499).

1 O coronelismo é um sistema político, uma complexa rede de relações que vai desde
o coronel até o presidente da República, envolvendo compromissos recíprocos.Carva-
lho (1997).
2 O mandão, o potentado, o chefe, ou mesmo o coronel como indivíduo, é aquele
que, em função do controle de algum recurso estratégico, em geral a posse da terra,
exerce sobre a população um domínio pessoal e arbitrário que a impede de ter livre
acesso ao mercado e à sociedade política. Carvalho, (1997)

207
Alberto Torres (1914, p. 34) faz duras críticas à ausência de clareza no
fato de haver interpretações dúbias sobre a possibilidade de recurso para o
Supremo Tribunal Federal de julgados oriundos dos tribunais locais, o que
demonstra o empoderamento daqueles juízes locais. (VIANNA, 1974, p.
499).
O conluio entre as facções legislativas e os coronéis, de fato, foi a maior
característica da república velha, tanto que a história (CARVALHO, 2007,
p. 131) nos traz relatos daquele tempo sob a denominação da república oli-
gárquica, como se segue:

A república oligárquica, composta pelos antigos senhores feudais, que a partir


da independência tornaram-se donos das províncias e, já com a república, ao
lado dos governadores, concorriam como poder paralelo do estado, jamais tole-
raram um Supremo Tribunal independente e que pudesse controlar as leis edi-
tadas em benefício de parcela tão pequena da população.

No discurso de posse no IAB, Barbosa (1914), traz críticas duras ao con-


luio das oligarquias, vejamos:

Mas os elementos facciosos, que se fizeram senhores do Estado, e exploram,


como vasta comandita, as aparências restantes do regímen, adulterado nas suas
condições mais necessárias, mutilado nos seus órgãos mais nobres, prostituído
nas funções mais vitais, sentem o obstáculo invencível, que às aventuras do
mandonismo, do caudilhismo, do militarismo opõe uma justiça entrincheirada
solidariamente nas prerrogativas da justiça americana, e compreendem que,
para acabar com os últimos remanescentes da legalidade no domínio político e
civil, eleitoral e parlamentar, administrativo e financeiro, para transformar ab-
solutamente a República num governo de privilégios, abusos e castas, lhes cum-
pre dar àquela instituição um combate de extermínio, abrir contra ela uma
campanha inexorável, só a largar de mão depois de reduzida a um poder subal-
terno, desmedulado e caduco. Com esse intuito sitiaram a cidadela ameaçada,
e lhe apertam os aproches, assestando contra ela as mais formidáveis baterias da
força, ao mesmo tempo que lhe solapam os fundamentos com as minas de uma
sofisteria desabusada. Dessa guerra sem escrúpulos, a tática principal tem con-
sistido, sobretudo, nestes últimos quatro anos, em negarem abertamente obe-
diência o governo e o Congresso às mais altas sentenças judiciais, com pretexto
de que o Supremo Tribunal exorbita, prevarica, usurpa; e, para coonestar essa
rebeldia mascarada em amor da legalidade, a exceção dos casos políticos, opos-
ta, na jurisprudência dos Estados Unidos, à competência que a Suprema Corte
ali exerce, de negar definitivamente execução às leis inconstitucionais, tem mi-
nistrado aos congressos e governos insurgidos a evasiva, que havia mister esse
movimento de anarquia radicalmente subversiva.

O fato de o Senado julgar os ministros do Supremo Tribunal Federal nos


crimes de responsabilidade trouxe significativo desconforto para o poder ju-
dicial que, em regra, deveria ser independente. Isto porque o crime de res-
ponsabilidade imaginável, que poderia ser praticado pelos ministros, seria o

208
de interpretar a lei e declará-la inconstitucional. Com isso, em última ins-
tância, ao invés do Supremo Tribunal Federal ser o órgão revisor, guardião
da constitucionalidade das leis, a reforma projetada tornava uma das câma-
ras do congresso o derradeiro revisor (BARBOSA, 1914).

Logo, se o exercício desta função judiciária consiste, precisamente,em aquilatar


e declarar, na suprema instância, que os atos do Congresso Nacional, isto é, os
atos nos quais colaboram a Câmara e o Senado juntos, lhes ultrapassam a com-
petência constitucional; se, pois, da competência desses dois ramos do corpo
legislativo, acordes e cooperantes, o juiz, na suprema instância, é o Supremo
Tribunal Federal, como admitir, que da competência do Supremo Tribunal Fe-
deral, nessa decisão, possa vir a ser árbitro, ulteriormente, o Senado, isto é,
nem mais nem menos, uma das duas câmaras do Congresso? É superlativo da
irrisão, o nec plus ultra do absurdo. Atentai bem. Da competência constitucio-
nal da Câmara e do Senado, reunidos em Congresso, o último juiz é o Supremo
Tribunal Federal. Mas, se, pronunciada por ele a sentença que nega a compe-
tência constitucional ao Congresso, não estiver este por ela, da competência
desse tribunal em julgar da competência do Congresso o último juiz, o árbitro
final, então, vem a ser, única e somente, o Senado.

Verifica-se que a República Velha, por mais que tenha inaugurado um


capítulo republicano da história brasileira, não conferiu aos juízes a autono-
mia americana que se esperava, sendo o controle da maior cúpula do Poder
Judiciário pelo senado o traço marcante da república oligárquica.

AS CONSTITUIÇÕES DE 1934 E 1937

A Constituição de 1934 não foi elaborada para e por uma elite que igno-
rava o país, na verdade, tratava-se de um documento que classificava e esta-
belecia grupos, criando direitos e deveres específicos. No viés social, tratava
a Carta de reconhecer direitos sociais do cidadão brasileiro, empoderava sin-
dicatos, criava o salário mínimo, reconhecia a mulher como eleitora e ainda
lhe assegurava direitos trabalhistas.
Já, no viés judicial, foi regulamentada pela nova Constituição a Justiça
Militar e a Justiça Eleitoral, sendo reconhecida Justiça do Trabalho como ór-
gão administrativo. Houve significativo avanço no que diz respeito à inde-
pendência da Corte Suprema sob a ótica de que em incorrendo nos crimes
de responsabilidade, os Ministros não seriam mais julgados pelo Senado,
mas, por um por um Tribunal Especial, cujo presidente era o mesmo da Cor-
te Suprema, tribunal este composto por nove Juízes, sendo três Ministros da
Corte Suprema, três membros do Senado Federal e três membros da Câ-
mara dos Deputados, tendo o Presidente do Tribunal Especial o voto de mi-
nerva.
Porém, em 1931, Vargas invocando “imperiosas razões de ordem públi-
ca”, por meio do Decreto nº 19.711 aposentou seis juízes do Supremo Tri-

209
bunal Federal (STF), o que, por si só, já demonstrava sinais de dias tenebro-
sos que estariam por vir para o poder Judiciário brasileiro. Passados três anos
da promulgação da Carta de 1934, sobreveio a outorgada Constituição de
1937 que instalava um regime ditatorial no país.
Todos os atos acima enumerados eram considerados questões exclusiva-
mente políticas e, tanto a Constituição de 1934, como a Constituição de
1937 vedava, expressamente, ao Poder Judiciário de conhecer e, por conse-
quência, julgar questões de natureza política. A Carta de 1937 conferiu ao
chefe do Executivo amplos poderes e a faculdade de legislar por meio de de-
cretos-leis, inclusive sobre assuntos constitucionais, transformando o Poder
Legislativo e o Judiciário em poderes subordinados.
A referida Carta Magna instituiu o controle político sobre as decisões
dos membros do Poder Judiciário quando, em primeiro lugar, determinou
que, só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes, pode-
riam os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Presi-
dente da República, o que retirou a autonomia dos juízes, monocraticamen-
te, declararem a inconstitucionalidade de leis monocraticamente.
Mas não é só. Nos casos em que fossem declaradas a inconstitucionalida-
de de lei, o Presidente da República, para assegurar o bem-estar do povo,
primando pela promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta
(conceitos vagos e abertos), poderia submeter à lei declarada inconstitucio-
nal ao exame do congresso nacional e se este a confirmasse sua legalidade
por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficaria sem efeito a de-
cisão do Tribunal. Verifica-se, então, que o Tribunal Constitucional além de
não poder conhecer de questões políticas, quando exercia sua precípua atri-
buição de controlar as arbitrariedades legislativas poderia ver vilipendiadas
suas decisões por meio dos atores políticos desprovidos de jurisdição.

A CONSTITUIÇÃO DE 1946

A Constituição de 1946 foi fortemente influenciada pela onda de demo-


cratização que dominava o mundo ocidental a partir do fim da segunda guer-
ra mundial, o que levou a classe política nacional a estabelecer as bases, pela
primeira vez, de um regime democrático.

Após 1945, o ambiente internacional era novamente favorável à democracia


representativa, e isto se refletiu na Constituição de 1946, que, nesse ponto,
expandiu a de 1934. O voto foi estendido a todos os cidadãos, homens e mu-
lheres, com mais de 18 anos de idade. Era obrigatório, secreto e direto. Perma-
necia, no entanto, a proibição do voto do analfabeto. A limitação era importan-
te porque, em 1950, 57% da população ainda era analfabeta. Como o analfabe-
tismo se concentrava na zona rural, os principais prejudicados eram os trabalha-
dores rurais. Outra limitação atingia os soldados das forças armadas, também
excluídos do direito do voto. (CARVALHO, 2004, p. 145).

210
Destarte, o texto constitucional ter se baseado nas ideias liberais da
Constituição de 1891 e ainda nas ideias sociais da de 1934. Na ordem eco-
nômica, procurou harmonizar o princípio da livre-iniciativa com o da justiça
social. Na forma do art. 1º, os Estados Unidos do Brasil mantinham, sob o
regime representativo, a Federação e a República, prestigiando, ainda, o mu-
nicipalismo. A teoria clássica da tripartição dos poderes de Montesquieu foi
restabelecida. Importante destacar que o Poder Judiciário era exercido pe-
los seguintes órgãos: a) Supremo Tribunal Federal; b) Tribunal Federal de
Recursos; c) Juízes e Tribunais militares; d) Juízes e Tribunais eleitorais; e)
Juízes e Tribunais do Trabalho
Lado outro, por mais que a Constituição de 1946 preservasse as liberda-
des democráticas, os parágrafos 1° e 2º do artigo 135 estabelecia os casos de
perda ou suspensão de direitos políticos. Aproveitando-se disto, os congres-
sistas que se opunham aos ideais comunistas, sob o fundamento de que o
Partido Comunista não era uma agremiação democrática, cassaram e extin-
guiram aquele partido.
Todavia, para que os idealistas comunistas não voltassem mais ao con-
gresso, o senador Dario Cardoso (PSD/GO) apresentou emenda ao artigo
32 do Código Eleitoral, pela qual não poderiam disputar cargos eletivos os
que professassem ideias de partidos suprimidos por ato do Poder Legislati-
vo. Não apenas os comunistas percebiam o caráter perigoso dessa emenda,
amplos setores da opinião pública, inclusive no Poder Judiciário, percebiam
que o atestado de ideologia passaria a ser uma perigosa arma contra oposicio-
nistas e a falência do regime democrático instituído na Carta de 1946. (PE-
REIRA, 1996).
O próprio Código Eleitoral é um exemplo de como diferentes grupos da
Constituinte trabalharam para conservar o controle do governo sobre o Po-
der Judiciário. O anteprojeto vencedor atribuía ao presidente da república o
poder de nomear os Ministros que compunham o Tribunal Superior Elei-
toral.3
O autor mencionado acima também criticava o modo pelo qual as clas-
ses dominantes se conduziram na Constituinte para constituir um Poder Ju-
diciário que lhes fosse dócil (PEREIRA, 1964, p. 134), citando a competên-
cia do Presidente da República para nomear os Ministros do Supremo Tri-
bunal Federal, dependendo posteriormente, da sabatina do Senado, aliás,
modelo semelhante ao de hoje. Registra que esta atribuição permitiu que
Juscelino Kubitscheck nomeasse tantos juristas mineiros que em sua totali-
dade compunham a metade da Corte que, embora impolutos, deviam defe-
rência ao chefe do Poder Executivo.

3 Pereira (1964, p. 134-135) defendia que “o correto em matéria de tamanha impor-


tância seria que o Supremo Tribunal designasse os Ministros, mediante sorteio, e só
esses compusessem o Superior Tribunal Eleitoral.”

211
Percebe-se que o espírito democrático que imbuiu a Constituição de
1946 não foi efetivado, pois o sistema democrático que se idealizava insti-
tuir no país, deveria se estruturar em duas bases, quais fossem legalidade e
controle judiciário. O primeiro desses princípios significa que a autoridade
pública deve efetivar-se e acordo com a lei, segundo as normas prescritas e
dentro dos limites postos pela lei. Já o segundo princípio, mas palavras de
Gonçalves Filho (1978, p. 35), significava que:

(...) a fiscalização e o controle do Governo na sua missão de aplicar a lei, como


a aplicação da lei em certos casos, deve ser confiada a juízes isentos, imparciais
e independentes. Este controle judicial é garantia indispensável da legalidade.
Se não houver, dentro da própria organização política, quem mantenha os ór-
gãos governamentais dentro dos limites da lei, sancionando-lhes as infrações,
restabelecendo a situações ilegalmente modificadas, o princípio da legalidade
será uma simples e inócua frase.

Por mais que os ideais democráticos estivessem suplantados na Carta de


1946 fica evidente a parceria existente entre legislativo e executivo, o que
ainda mantinha o Judiciário como poder subalterno.

A CONSTITUIÇÃO DE 1967

O Presidente João Goulart foi deposto pelo movimento militar que


eclodiu em 31.03.1964, sob acusação de estar a serviço do comunismo in-
ternacional. O General Costa e Silva, o Brigadeiro Francisco Correia de
Melo e o Almirante Augusto Rademaker, militares vitoriosos, constituíram
o chamado Supremo Comando da Revolução e, em 09.04.1964, baixaram o
Ato Institucional nº 1, de autoria de Francisco Campos, com muitas limita-
ções ao exercício da democracia entre elas: a) nos termos do art. 6º, o Co-
mando da Revolução poderia decretar o estado de sítio; b) nos termos do
art. 7º, conferia-se o poder de aposentar civis ou militares; c) nos termos de
seu art. 10, o de suspender direitos políticos, cassar mandatos legislativos fe-
derais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos. O
AI nº 2/65, após ter estabelecido eleições indiretas para Presidente e Vice-
Presidente da República, foi seguido pelo de nº 3, que também as estabele-
ceu em âmbito estadual.
O Congresso Nacional foi fechado em 1966, sendo reaberto a partir da
edição do Ato Institucional nº 4/66 cujo pano de fundo era para aprovar a
Constituição de 1967. A Constituição de 1967 concentrou o poder da Re-
pública no âmbito federal, esvaziando os Estados e Municípios e, por conse-
guinte, conferiu amplos poderes ao Presidente da República.
O Poder Executivo foi extremamente fortalecido, sendo o mandatário
eleito para mandato de quatro anos, indiretamente, por sufrágio do Colégio
Eleitoral, composto pelos membros do Congresso Nacional e de Delegados

212
indicados pelas Assembleias Legislativas dos Estados, em sessão pública e
mediante votação nominal.4
Por fim, em que pese, naquele tempo, o Supremo Tribunal Federal, em
sua maioria, ser composto por Ministros honrados e comprometidos com a
defesa da Constituição, vivia-se em um estado autoritário. A força do Poder
executivo militar sempre foi, de sobremaneira, desproporcional relação aos
demais poderes, o que se podia verificar, mesmo em tempos democráticos,
na conclusão do voto proferido pelo Ministro Nelson Hungria, quando não
conheceu da segurança do writ (MS nº 3.557) impetrado por Café Filho que
pretendia retornar à Presidência da República:

Afastado o manto diáfano da fantasia sobre a nudez rude da verdade, a resolu-


ção do Congresso não foi senão a constatação da impossibilidade material em
que se acha o Sr. Café Filho, de reassumir a Presidência da República, em face
da imposição dos tanque e baionetas do Exército, que estão acima das leis, da
Constituição e, portanto, do Supremo Tribunal Federal. Podem ser admitidos
os bons propósitos dessa imposição, mas como a santidade dos fins não expunge
a ilicitude dos meios, não há jeito, por mais auspicioso, de considerá-la uma
situação que possa ser apreciada e resolvida de jure por esta Corte. É uma situa-
ção de fato criada e mantida pelas forças das armas, contra a qual seria, obvia-
mente, inexequível qualquer decisão do Supremo Tribunal. A insurreição é um
crime político, mas, quando vitoriosa, passa a ser um título de glória, e os insur-
retos estarão a cavaleiro do regime legal que infligiram; sua vontade é que con-
ta, e nada mais.
(...). Contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente valerá
uma contra insurreição com maior força. E esta, positivamente, não pode ser

4 A maior expressão de desrespeito às instituições políticas, no regime militar, se deu


a partir da edição do Ato Institucional nº 5, vejamos as principais disposições:
a) formalmente, foram mantidas a Constituição de 24.01.1967 e as Constituições
Estaduais, com as modificações constantes do AI-5;
b) o Presidente da República poderia decretar o recesso do Congresso Nacional,
das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por ato complementar em
estado de sítio ou fora dele, só voltando a funcionar quando convocados seus membros
pelo Presidente da República;
[...]
d) os direitos políticos de quaisquer cidadãos poderiam ser suspensos pelo prazo de
10 anos e cassados os mandatos eletivos federais, estaduais e municipais;
e) ficaram suspensas as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamo-
vibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo; o Presi-
dente da República, em quaisquer dos casos previstos na Constituição, poderia decretar
o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo;
f) o Presidente da República poderia, após investigação, decretar o confisco de bens
de todos quantos tivessem enriquecido ilicitamente, no exercício do cargo ou função;
g) suspendeu-se a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra
a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular (art. 10 do
AI-5);
[...]

213
feita pelo Supremo Tribunal, posto que este não iria cometer a ingenuidade de,
numa inócua declaração de princípio, expedir mandado para cessar a insurrei-
ção.
(...) O ilustre impetrante bateu em porta errada. Um insigne professor de Di-
reito Constitucional “doublé” de exaltado político partidário, afirmou, em en-
trevista não contestada, que o julgamento deste mandado de segurança enseja-
ria ocasião para se verificar se os Ministros desta Corte eram “leões de verdade
ou leões de pé de trono. Jamais nos inculcamos leões. Jamais vestimos a pele do
rei dos animais. A nossa espada ê um mero símbolo. É uma simples pintura
decorativa no teto ou na parede das salas da Justiça. Não pode ser oposta a uma
rebelião armada. Conceder mandado de segurança contra esta, seria o mesmo
que pretender afugentar leões autênticos, sacudindo-lhes o pano prelo de nos-
sas Iogas. Sr. Presidente: o atual estado de sítio é perfeitamente constitucional
e o impedimento do impetrante para assumir a Presidência da República, antes
de ser declaração do Congresso é imposição das forças insurrecionais do Exér-
cito contra a qual não há remédio na farmacologia jurídica. Não conheço do
pedido de segurança.

A CONSTITUIÇÃO DE 1988

Com o advento da Constituição de 1988 foi instituído o atual Estado


Democrático de Direito, cuja finalidade era de assegurar valores supremos
de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, baseada na har-
monia social e comprometida, na ordem interna e internacional. Sob a for-
ma de governo republicano e sistema de governo presidencialista, consoli-
dou-se a federação. A teoria clássica da tripartição dos poderes de Montes-
quieu foi retomada para, definitivamente, haver independência entre os po-
deres da república, o que tem sido efetivado por meio do sistema de freios
e contrapesos.
Com o propósito de uma vez por todas tornar o Supremo Tribunal Fe-
deral uma Corte Constitucional, a CF/88 criou o Superior Tribunal de Jus-
tiça (STJ), Corte responsável pela uniformização da interpretação da lei fe-
deral em todo o Brasil, sendo órgão de convergência da Justiça comum.
Consolidada a República, nossas Constituições apenas militavam no sen-
tido de tentar tornar independentes os poderes republicanos, não se preocu-
pando em efetivar o comando normativo para o qual foram idealizadas, fato
este, na visão de Barroso (2003), que só se tornou uma realidade a partir da
promulgação da Constituição Cidadã.
Nas últimas duas décadas, o Poder Judiciário entrou de vez no cenário
institucional brasileiro, deixando de se passar despercebido, muito menos
sendo visto com indiferença ou distanciamento dos anseios da população.
De acordo com Barroso (2015, p. 512), há mais de uma razão para esse fe-
nômeno.

214
A ascensão do Poder Judiciário se deve, em primeiro lugar, à reconstitucionali-
zação do país: recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magis-
tratura, juízes e tribunais deixaram de ser um departamento teìcnico especiali-
zado e passaram a desempenhar um papel político, dividindo espaço com o Le-
gislativo e o Executivo. Uma segunda razão foi o aumento da demanda por jus-
tiça na sociedade brasileira. De fato, sob a Constituição de 1988, houve uma
revitalização da cidadania e uma maior conscientização das pessoas em relação
à proteção de seus interesses. [...] Aos fatores mencionados acima – ascensão
institucional do Judiciário e aumento da demanda por justiça – somam-se inú-
meros outros que contribuíram para alçar a atuação de juízes e tribunais a uma
posição central na vida pública contemporânea. De fato, circunstâncias como a
amplitude da Constituição, a combinação da jurisdição constitucional concen-
trada e difusa, bem como a constitucionalização do Direito deram lugar a um
feno?meno muito visível no Brasil contemporâneo: a judicialização das relações
políticas e sociais. Judicialização, entenda-se bem, não se confunde com usur-
pação da esfera política por autoridades judiciárias, mas traduz o fato de que
muitas mateìrias controvertidas se inserem no âmbito de alcance da Constitui-
ção e podem ser convertidas em postulações de direitos subjetivos, em preten-
sões coletivas ou em processos objetivos.

Em artigo publicado, Barroso (2012) expõe as principais causas que con-


tribuíram para o fenômeno da judicialização do direito:

A primeira grande causa da judicialização foi a redemocratização do país, que


teve como ponto culminante a promulgação da Constituição de 1988. Nas últi-
mas décadas, com a recuperação das garantias da magistratura, o Judiciário dei-
xou de ser um departamento técnico-especializado e se transformou em um
verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive
em confronto com os outros Poderes. A segunda causa foi a constitucionaliza-
ção abrangente, que trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes
eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária.
A Carta brasileira é analítica, ambiciosa, desconfiada do legislador. Como intui-
tivo, constitucionalizar uma matéria significa transformar Política em Direito.
Na medida em que uma questão – seja um direito individual, uma prestação
estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma constitucional, ela se
transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formula-
da sob a forma de ação judicial. A terceira e última causa da judicialização, a ser
examinada aqui, é o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, um
dos mais abrangentes do mundo. Referido como híbrido ou eclético, ele com-
bina aspectos de dois sistemas diversos: o americano e o europeu. Assim, desde
o início da República, adota-se entre nós a fórmula americana de controle inci-
dental e difuso, pelo qual qualquer juiz ou tribunal pode deixar de aplicar uma
lei, em um caso concreto que lhe tenha sido submetido, caso a considere in-
constitucional. Por outro lado, trouxemos do modelo europeu o controle por
ação direta, que permite que determinadas matérias sejam levadas em tese e
imediatamente ao Supremo Tribunal Federal. A tudo isso se soma o direito de
propositura amplo, previsto no art. 103, pelo qual inúmeros órgãos, bem como
entidades públicas e privadas – as sociedades de classe de âmbito nacional e as
confederações sindicais – podem ajuizar ações diretas. Nesse cenário, quase
qualquer questão política ou moralmente relevante pode ser alçada ao STF.

215
Como exemplo da judicialização de questões políticas podemos citar al-
guns casos emblemáticos que foram decididos pelo Pretório Excelso, como
a cláusula de barreira, a distribuição das bancadas estaduais na Câmara dos
Deputados, os critérios distributivos do Fundo de Participação dos Estados,
as pesquisas com células tronco, o aborto de feto anencefálico, o casamento
homoafetivo, a distribuição dos royalties do petróleo, o financiamento de
campanha, etc.
Esse fenômeno deu origem a outro fenômeno, conhecido como ativismo
judicial5. O ativismo judicial traduz uma postura proativa e expansiva de in-
terpretar a Constituição pelo julgador, dando efetividade ao sentido e ao al-
cance de suas normas, para ir além do legislador ordinário (BARROSO,
2012).

A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e in-
tensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com
maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura
ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: a) a aplica-
ção direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu
texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; b) a decla-
ração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com
base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Cons-
tituição; c) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, nota-
damente em matéria de políticas públicas.

Por outro lado, neste mesmo trabalho, Barroso (2012) critica a passivi-
dade do Judiciário nacional durante todo o período que antecedeu a Consti-
tuição de 1988, intitulando este fenômeno como autocontenção judicial,
tratando-se da

(...) conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações
dos outros Poderes. Por essa linha, juízes e tribunais a) evitam aplicar direta-
mente a Constituição a situações que não estejam no seu âmbito de incidência
expressa, aguardando o pronunciamento do legislador ordinário; b) utilizam
critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de
leis e atos normativos; e c) abstêm-se de interferir na definição das políticas
públicas.

Os fenômenos acima enumerados foram implementados a partir do de-


senvolvimento da doutrina da efetividade, capitaneada por Luís Roberto
Barroso.

5 De acordo com KOERNER (2013, p. 69-85), a nomenclatura ativismo judicial foi


utilizado pela primeira vez por Arthur Schlesinger em um artigo da revista Fortune em
1947.

216
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do estudo proposto percebe-se que desde a Constituição Im-


perial até o final da ditadura, o Poder Judiciário brasileiro viu-se tolhido pelo
conluio existente entre Legislativo e Executivo. O falecido Poder Modera-
dor permitia apenas aos juízes conhecer de questões particulares, não havia
um Tribunal Constitucional. Com a República, as oligarquias instaladas no
país eram senhoras dos estados, se valendo ainda de seus representantes fiéis
no congresso nacional, tendo o Senado a palavra final sobre o controle de
constitucionalidade exercido pelo Supremo Tribunal Federal. Na Era Var-
gas, seus decretos-leis falavam pó si só; Legislativo e Judiciário eram poderes
subalternos. A Constituição de 1946 foi bem idealizada, poderia dar ao Ju-
diciário o posto que sempre buscou não fossem, ainda, os conluios entre
executivo e legislativo. Sob a ditadura militar os atos institucionais deram o
tom à nação, congresso fechado e Judiciário com inúmeras restrições as suas
atribuições, que sequer poderia se manifestar sobre questões políticas.
De fato, a Constituição cidadã trouxe com ela a esperança de dias me-
lhores, empoderando como nunca o Judiciário trouxe, em seu âmago, a pos-
sibilidade de normatizar condutas e questões políticas. Abriu as portas do
Supremo Tribunal Federal para que seus Ministros dessem efetividade às
normas constitucionais por meio de instrumentos como o mandado de in-
junção, ação direta de constitucionalidade, ação direta de inconstitucionali-
dade entre outros.
A constitucionalização dos direitos possibilitou ao STF o controle de
questões políticas como jamais visto, embora seja necessário que os Minis-
tros disponham de enorme bom senso para decidir no uso das suas atribui-
ções e limitações constitucionais, sob pena de ferir o princípio da a inde-
pendência dos poderes. Com isso, necessário o aprofundamento na pesquisa
proposta, pois a judicialização de questões políticas e o ativismo judicial são
fenômenos atuais que da maneira que forem instrumentalizados poderão re-
solver o que até hoje não se imaginou poder ser resolvido ou, por outro lado,
criar significativa instabilidade político-institucional.
A conclusão que se chega é que a única maneira de se controlar o conluio
entre executivo e legislativo é por meio de um Judiciário responsável, forte
e independente e, ao que nos parece, instrumentos temos, que venham dias
melhores.

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219
Biossegurança à brasileira: quimera
legislativa subjugada ao princípio
da dignidade humana

Vanele Rocha Falcão César

RESUMO: Este trabalho problematiza a categoria biossegurança no or-


denamento jurídico brasileiro e os impactos oriundos dos avanços biotec-
nológicos no direito à vida e à saúde. Bioética, Biodireito e Biossegurança são
categorias multidisciplinares que dialogam entre si na prática dos modelos
regulatórios, voltando-se a presente análise, especificamente, para a bios-
segurança legal no Brasil, vista pelo escopo dado pela lei federal nº
11.105/2005, tema que será abordado neste capítulo, sob o enfoque da dig-
nidade da pessoa humana.

Palavras-chave: Biossegurança; Biodireito; Bioética; dignidade da pes-


soa humana

ABSTRACT: This paper problematizes the category Biosecutirty in the


Brazilian legal system and the impacts of biotechnological advances on the
right to life and health. Bioethics, Biolaw and Biosecutirty are concepts that
exist throughout multiple disciplines and that have interconnections in the
regulatory models, turning to the present analysis, more specifically, for legal
Biosecutirty in Brazil, from the scope given by the federal legislation 11.105
/ 2005, topic to be covered in this chapter, under the focus of the dignity of
the human person.

Key words: Biosecurity; Biolaw; Bioethics; dignity of the human per-


son

Introdução

O presente trabalho se desenvolverá a partir da premissa de que o século


XXI encontra-se impregnado de profundas transformações oriundas dos
avanços biotecnológicos, o que é facilmente perceptível através das moder-

221
nas técnicas de reprodução humana assistida, do mapeamento do genoma,
do prolongamento da vida mediante transplantes, da alteração de sexo, da
clonagem, da engenharia genética, da seleção de sexo, das combinações qui-
méricas e híbridas, assim como da pesquisa com células-tronco embrionárias
para aprofundamento de estudos para a cura de diversas patologias.
Fundado em tal premissa, buscar-se-á investigar algumas influências da
Bioética e do Direito nas consequências da modernidade. A legislação que
servirá de base ao desenvolvimento deste trabalho é a Lei nº 11.105, de 24
de março de 2005, conhecida como Lei de Biossegurança.
Analisar-se-á, portanto, o conceito de biossegurança e o conteúdo da lei
regente sobre o assunto, bem como os pontos de contato entre a biossegu-
rança e os direitos humanos, haja vista a necessidade de preservação do ser
humano e de sua dignidade para salvaguardá-lo de investigações abusivas
que aviltem a sua condição de pessoa humana.

1. A Bioética e o Biodireito

Bioética, segundo Vicente Barretto, é o ramo da Filosofia Moral que es-


tuda as dimensões morais e sociais das técnicas resultantes do avanço do co-
nhecimento nas ciências biológicas (BARRETTO, 2006, p, 104). A expres-
são Bioética foi utilizada pela primeira vez, em 1970, pelo oncologista ame-
ricano Van Rensselaer Potter, no título do livro Bioethics, Bridge to the futu-
re, para designar uma nova disciplina que deveria permitir a passagem para
uma melhor qualidade de vida (BARBOZA, 2003, p, 51). A Bioética, como
proposta por Potter, tinha por finalidade ajudar a humanidade a racionalizar
o processo da evolução biológico-cultural. Todavia, a acepção corrente do
termo foi introduzida pelo fisiologista holandês André Hellegers, fundador
do primeiro instituto de Bioética, que a relacionou com a ética da Medicina
e das ciências biológicas (BARRETTO, 2006, p, 104).
A Bioética surgiu no campo da Filosofia moral, em razão da necessidade
de se estabelecer princípios racionais que explicassem e fundamentassem o
comportamento do homem diante dos novos conhecimentos e tecnologias
(BARRETTO, 1999, p, 386) produzidos pelos experimentos científicos.
Atualmente, o campo da Bioética extrapola o âmbito das ciências da saú-
de, como inicialmente proposto e apresenta uma dupla face: de um lado, in-
corpora as novas formas de responsabilidade, principalmente a responsabili-
dade com as gerações futuras e de outro, incorpora a ideia kantiana do res-
peito à pessoa e ao conhecimento, considerando a pessoa humana como de-
tentora de direitos inalienáveis (BARRETO, 1999, p, 408). Por tratar de
tema essencial para a sobrevivência da humanidade e que envolve liberda-
des, direitos e deveres da pessoa, da sociedade e do Estado, a Bioética trans-
formou-se na mais recente fonte formal de disciplina dos direitos humanos,
sendo materializada na Declaração universal do genoma humano e dos direi-
tos humanos de 1997.

222
A despeito da Bioética informar todos os processos biotecnológicos, in-
troduzindo limites e princípios reitores a experimentos científicos envol-
vendo seres humanos, de modo a coibir a sua coisificação, a mesma não pos-
sui a coercibilidade ínsita às normas jurídicas. Por isso, o Direito passa a dis-
ciplinar as repercussões jurídicas advindas de tais experimentos, com a im-
posição de normas cogentes e aplicação de sanções, em um primeiro mo-
mento, através da regulamentação trazida pelo Biodireito.
Os avanços na área biotecnológica, sobretudo a partir do século XIX, co-
meçaram a abalar categorias jurídicas que até então pareciam imutáveis
(BARBOZA, 2003, p, 57). Conforme acentua Heloísa Helena Barboza, a re-
produção humana passa a ser “assistida”, interferindo a Medicina e a Biolo-
gia em processo até então “natural”, impondo a revisitação e/ou criação de
novo conceito para pessoa, pai, mãe e filho. Enquanto as técnicas de repro-
dução assistida passam a afrontar os conceitos de início da vida e de sua pro-
teção jurídica, os transplantes de órgãos e tecidos e o prolongamento da vida
passam a abalar o conceito de morte (BARBOZA, 2003, p, 56). De igual
modo, a possibilidade de mudança de sexo, o sequenciamento do genoma
humano, a clonagem terapêutica e reprodutiva, a produção de alimentos
transgênicos – dentre outras situações vivenciadas nas sociedades pós-mo-
dernas – exigem eficaz regulamentação jurídica (BARBOZA, 2003, p, 57)
para que possam ser coibidos eventuais abusos decorrentes de tais práticas.
Constata-se, assim, que toda e qualquer expansão biotecnológica vai neces-
sariamente extrapolar o campo da Bioética, carecendo de uma normatização
jurídica, que, em um estágio inicial, vai ficar a cargo do Biodireito.
Para o campo jurídico, é notória a relevância do tema para a adequada
valoração normativa, visto que as inovações oferecem oportunidades de de-
senvolvimento ao mesmo tempo que expõe bens jurídicos potencialmente
relevantes. Em feliz síntese, Peralta (2017, p. 15-16) expõe esta problemá-
tica:

La utilización a gran escala, con fines experimentales y terapéuticos, de la infor-


mación genética que contiene el genoma humano abre paso a un formidable
debate que aboca en definitiva a la definición de los limites que el respeto a la
dignidad humana, a supropia integridad y a los principios de autonomíade la
voluntad deben imponer a la utilización del material genético y celular humano
por la ciencia y por la medicina.

Por otro lado, el mejor acceso que ofrece hoy la ciencia a la información gené-
tica general de las especies vivas plantea a su vez otros dilemas adicionales, que
surgen de la manipulacion y transferencia a gran escala de material genético
entre especies, (lo que permite a su vez la supervivencia de organismos modifi-
cados genéticamente), como son: la protección de la diversidad y de la integri-
dad genética propia de cada especie, la utilización de principios activosaislados
de los seres vivos, el aprovechamiento con fines de lucro de esa informacion y
la cuestión general de la patentabilidad de los seres vivos.

223
O Biodireito consiste, portanto, no ramo do direito que cuida da teoria,
da legislação e da jurisprudência relativas às normas reguladoras da conduta
humana diante dos avanços da Biologia, da Biotecnologia e da Medicina
(BARRETTO, 2006, p, 101). Heloísa Helena Barboza ressalta que, apesar
de o Biodireito manter estreita relação com a Bioética, não se confunde com
a mesma, nem se limita a ser o seu correspondente jurídico, tendo em vista
que o Biodireito compreende o conjunto de fenômenos resultantes da Bio-
tecnologia e da Biomedicina, também estudados pela Bioética (BARRET-
TO, 2006, p, 101). A base principiológica desta área está assentada na Cons-
tituição da República, podendo-se afirmar que os princípios constitucionais
constituem os princípios do Biodireito (BARRETTO, 2006, p, 73).
O direito à vida é assegurado no art. 5º da Constituição da República de
1988 e afigura-se como o primeiro e o mais importante de todos os direitos
fundamentais do ser humano. Ives Gandra da Silva Martins acentua que o
direito à vida é o “primeiro dos direitos naturais que o direito positivo pode
simplesmente reconhecer, mas que não tem a condição de criar” (MAR-
TINS, 1999, p, 128). De igual modo, o art. 5º, caput, da Constituição da
República proclama a igualdade entre todos perante a lei, a partir da qual
decorre, segundo Alarcón (2004, p. 264), os seguintes enunciados:

1) O tratamento que deve dar a legislação infraconstitucional às práticas de


manipulação genética e geneterapias em geral deve coadunar-se com o postula-
do da igualdade na lei. Assim, as pessoas, brasileiras e estrangeiras, que pisem
no solo brasileiro, terão o direito de desfrutar, por igual, das vantagens das te-
rapias genéticas[...].

2) A garantia de igualdade assegurará o acesso de todos à informação genética e


a não ser desconhecido perante os tribunais em seu direito de preservação da
identidade genética.

3) Qualquer discriminação realizada pela norma legal deverá atender os crité-


rios técnicos que implicam a adequação dessa discriminação, em virtude de um
fator escolhido para tanto, com a regra da dignidade da pessoa humana e os
direitos fundamentais expressos na Constituição Federal.

4) O portador de doença genética pode ser discriminado apenas na medida de


sua desigualdade. O conteúdo da discriminação não pode ser negativo, pelo
contrário, deve ser altamente positivo, de modo a incluí-lo na coletividade. Evi-
dentemente que o grau de inserção pode depender do diagnóstico de sua do-
ença.

Em abono ao princípio da isonomia, a dignidade humana, um dos funda-


mentos da República Federativa do Brasil, vai impedir a coisificação do ser
humano nos experimentos científicos e a sua instrumentalização nas pesqui-
sas genéticas, passando, assim, a atuar como vetor na realização dos mesmos.

224
O Estado Brasileiro, porquanto Estado Democrático, tem por finalidade
garantir o bem-estar da sociedade, estando ínsita a proteção à saúde pública
(MORAES, 2003, p. 1925), como decorrência do direito à vida e à existên-
cia de uma vida digna. O direito à saúde passou a ter status constitucional
com a promulgação da Carta Política de 1988, a qual estabelece em seu art.
196 que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação. O art. 197 da Carta Política proclama
que as ações e serviços de saúde são de relevância pública e cabe ao Poder
Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e
controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de tercei-
ros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Nesse sentido, salienta José Afonso da Silva (2005, p. 831) que

A saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve ga-
rantir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doenças e outros agravos. O direito à saúde rege-se pelos princípios da univer-
salidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, prote-
gem e recuperam. As ações e serviços de saúde são de relevância pública, por
isso ficam inteiramente sujeitos à regulamentação, fiscalização e controle do
Poder Público, nos termos da lei, a quem cabe executá-los diretamente ou por
terceiros, pessoas físicas ou jurídicas de direito privado. Se a Constituição atri-
bui ao Poder Público o controle das ações e serviços de saúde significa que so-
bre tais ações e serviços tem ele integral poder de dominação, que é o sentido
do termo controle, mormente quando aparece ao lado da palavra fiscalização.

A despeito de tais colocações não terem o condão de exaurir a base cons-


titucional do Biodireito, as mesmas vêm reafirmar o seu fundamento de va-
lidade e a carga cogente do mesmo.

2. O conceito de Biossegurança

As questões afetas a biossegurança, no ordenamento jurídico brasileiro,


encontram-se disciplinadas na Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, re-
gulamentada pelo Decreto 5.591, de 22 de novembro de 2005 .
O termo biossegurança foi utilizado na década de 70, na reunião de Asi-
lomar, Califórnia, por ocasião de debates travados pela comunidade cientí-
fica acerca dos impactos da engenharia genética na sociedade e constituiu
“um marco na história da ética aplicada a pesquisa, pois foi a primeira vez
que se discutiu os aspectos de proteção aos pesquisadores e demais profis-
sionais envolvidos nas áreas onde se realiza o projeto de pesquisa” (GOL-
DIM, 2009). O conceito de biossegurança empregado na reunião de Asilo-
mar alcançava apenas a proteção da saúde do trabalhador diante dos riscos
biológicos no ambiente ocupacional. Verifica-se, portanto, que o aludido

225
conceito era utilizado em acepção muito mais restrita do que a dos dias
atuais, conforme será visto alhures.
A partir dos anos 90, após o seminário realizado no Instituto Pasteur em
Paris, o termo biossegurança passou a ser relacionado a ética em pesquisa, ao
meio ambiente, a animais e processos envolvendo tecnologia de DNA re-
combinante, em programas de biossegurança (COSTA; COSTA, 2018). A
biossegurança passa, então, a ser concebida como o “conjunto de ações vol-
tadas para a prevenção, minimização ou eliminação de riscos inerentes às ati-
vidades de pesquisa, produção, ensino, desenvolvimento tecnológico e pres-
tação de serviços, visando a saúde do homem, dos animais, a preservação do
meio ambiente e a qualidade dos resultados” (TEIXEIRA, 1996). Desta for-
ma, o conceito de biossegurança evoluiu para englobar também os mecanis-
mos de prevenção dos riscos da biologia. Nesse sentido, a biossegurança en-
volve as relações de risco entre a tecnologia e o homem; entre o agente bio-
lógico e o homem; entre a tecnologia e a sociedade e entre a biodiversidade
e a economia (COSTA; COSTA, 2018).
Apesar da evolução citada, a Lei 11.105/2005, em seu art. 1º, autoriza a
formulação de um conceito de biossegurança ainda mais amplo, para com-
preender o conjunto de normas de segurança e mecanismos de fiscalização
sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a
transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a
comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de
organismos geneticamente modificados e seus derivados, bem como sobre o
avanço científico das pesquisas biotecnológicas, com vistas à proteção da
vida e da saúde humana e do meio ambiente.
Segundo Costa, apesar da evolução do conceito de biossegurança, tecni-
camente, a biossegurança está mais voltada para saúde do trabalhador e pre-
venção de acidentes, de forma que prefere chamar o conteúdo da Lei
11.105/2005 como biossegurança legal (COSTA; COSTA, 2018).
Mesmo numa significação mais dilargada, para abranger questões atinen-
tes a organismos geneticamente modificados ou patógenos, radiações ioni-
zantes e não-ionizantes, substâncias citotóxicas ou mutagênicas que provo-
quem alterações capazes de gerar doenças ou mal-formações fetais (MAR-
TINS-COSTA; FERNANDES; GOLDIM, 2018), o termo biossegurança
também não guardaria relação com a pesquisa e utilização de células-tronco
embrionárias, as quais são igualmente regulamentadas pela Lei de Biossegu-
rança. No entanto, o presente trabalho enfrentará algumas questões afetas
ao tema questão, uma vez que se desenvolverá sob a ótica da denominada
biossegurança legal.

3. O conteúdo da Lei de Biossegurança

A Lei de Biossegurança, Lei nº 11.105/2005, teve sua origem no Projeto


de Lei nº 2.401/2003 de iniciativa da Presidência da República e tinha por

226
escopo estabelecer normas de segurança e mecanismos de fiscalização de
atividades que envolvessem organismos geneticamente modificados e seus
derivados, criar o Conselho Nacional de Biossegurança, reestruturar a Co-
missão Técnica Nacional de Biossegurança e dispor sobre a Política Nacional
de Biossegurança.
A Exposição de Motivos do Projeto de Lei nº 2.401/2003 consignou ex-
pressamente em seu bojo que o objetivo da Lei de Biossegurança era o de
estabelecer um novo marco legal para regular as atividades que envolvessem
organismos geneticamente modificados e seus derivados, desde a pesquisa
até sua comercialização, visando proteger a vida e a saúde humana, dos ani-
mais e das plantas, bem como o meio ambiente e eliminar os conflitos legais
então existentes entre a revogada Lei de Biossegurança – Lei nº 8.974/95,
de 05 de janeiro de 1995, a Medida Provisória nº 2.191-9, de 23 de agosto
de 2001 e a legislação ambiental.
Isto porque, à época, era proibido pela Lei nº 8.974/2005 o cultivo e co-
mercialização de organismos geneticamente modificados, os chamados ali-
mentos “transgênicos”, ante a ausência de mecanismos para se estabelecer
os riscos que tais organismos poderiam gerar para a vida e saúde humana,
assim como para os animais, plantas e meio ambiente.
No entanto, pelo menos desde o ano de 1998, o tema ganhou repercus-
são nacional, na imprensa escrita e falada, quando a Comissão Técnica Na-
cional de Biossegurança emitiu um parecer favorável à liberação do plantio
e comercialização de soja transgênica a serem realizados por empresa multi-
nacional no país, sem exigir a realização do estudo de impacto ambiental. A
autorização em questão motivou o Instituto Brasileiro de Defesa do Consu-
midor a ajuizar ação civil pública em face da União Federal e da aludida em-
presa para impedir a liberação da soja transgênica, sendo o pedido julgado
procedente.
Não obstante, contrariando a decisão judicial prolatada na aludida ação
civil pública, o então presidente Fernando Henrique Cardoso editou a Me-
dida Provisória nº 2.191-9, em 23 de agosto de 2001, a fim de possibilitar o
cultivo, a importação e a comercialização de transgênicos no país.
A discussão se reacendeu no ano de 2003, ao ser divulgado nos princi-
pais meios de comunicação que estavam sendo cultivadas no Brasil sementes
geneticamente modificadas, especialmente de grãos de soja no Rio Grande
do Sul, sendo estimado à época, pelos mesmos canais de comunicação, que
80% (oitenta por cento) de sua lavoura era composta de transgênicos. O nú-
mero expressivo se justifica pela proximidade com a fronteira da Argentina,
país em que são autorizados o cultivo e a comercialização de transgênicos e
de onde seriam contrabandeadas as sementes geneticamente modificadas.
No início de março de 2003, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva se
manifestou contrário à liberação da produção e consumo de alimentos trans-
gênicos, louvando-se no princípio da precaução e argumentando que não
existiam estudos suficientes para comprovar que o consumo de tais alimen-
tos seria inofensivo à saúde, nem garantias de que o plantio dos mesmos pu-

227
desse ser implementado de forma ecologicamente responsável e sustentá-
vel.
Contudo, em virtude das pressões políticas, principalmente dos planta-
dores de soja do País, poucos dias depois, em 26 de março de 2003, foi edi-
tada a Medida Provisória nº 113/2003 autorizando a comercialização da pro-
dução de soja transgênica da safra de 2003, sendo a mesma convertida na Lei
nº 10.688, de 13 de junho de 2003. A par da ilegalidade da produção de soja
transgênica após o período indicado na referida Lei, alguns produtores con-
tinuaram traficando e cultivando o grão geneticamente modificado e, mais
uma vez, foram beneficiados por nova autorização governamental para o co-
mércio do produto, já que foi editada a Medida Provisória nº 223/2004, de
14 de outubro de 2004, convertida na Lei nº 11.092, de 12 de janeiro de
2005, para liberar a comercialização da safra de 2004/2005.
Foi, então, neste contexto histórico político-legislativo que se deu a ela-
boração do Projeto de Lei nº 2.401/2003, que originou a atual Lei de Bios-
segurança, o qual, no seu nascedouro, não contemplava a pesquisa com célu-
las-tronco embrionárias.
A regulamentação de pesquisas com células-tronco embrionárias somen-
te foi introduzida no Projeto de Lei nº 2.401/2003, aproximadamente uma
semana antes de sua votação pela Câmara dos Deputados, por meio de subs-
titutivo de Aldo Rebelo. O então Deputado justificou que a apresentação do
substitutivo para contemplar a realização de pesquisas com células-tronco
embrionárias, se dava em razão dos reclamos da comunidade científica, visto
que as células-tronco embrionárias seriam detentoras de enorme potencial
terapêutico em doenças ainda resistentes a outras formas de tratamento e,
por conseguinte, não podia ser mantida na nova Lei de Biossegurança a proi-
bição de tais pesquisas existente na Lei nº 8.974/95.
A partir do substitutivo do Deputado Aldo Rebelo, o foco da atenção foi
deslocado das bancadas ruralistas e ambientalistas para as bancadas católicas
e evangélicas, bem como para manifestações de organizações não-governa-
mentais que questionavam a produção de seres humanos para experimenta-
ção e outras finalidades terapêuticas.
A visão panorâmica dos antecedentes históricos da Lei nº 11.105/2005
denota, portanto, que a mesma não guardava – originariamente – qualquer
pertinência com a questão da pesquisa científica com células-tronco em-
brionárias. Após essa pequena digressão sobre os antecedentes históricos da
Lei de Biossegurança, cumpre agora analisar o seu fundamento de validade e
seu conteúdo.
A Lei nº 11.105/2005 foi editada para regulamentar os incisos II, IV e V
do § 1º do art. 225 da Constituição da República, o qual dispõe que todos
têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso co-
mum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presen-
tes e futuras gerações. Com vistas ao asseguramento desse direito, a Carta
Política estabelece que incumbe ao Poder Público deveres de preservação,

228
fiscalização e controle. Contudo, o legislador ordinário reuniu, no mesmo
corpo legislativo, tal como numa “colcha de retalhos” (MARTINS-COSTA;
FERNANDES; GOLDIM, 2018) a regulamentação acerca da pesquisa e a
fiscalização dos organismos geneticamente modificados; a utilização de cé-
lulas-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia; o papel, a estrutu-
ra, as competências e o poder da Comissão Técnica Nacional de Biossegu-
rança e a formação do Conselho Nacional de Biossegurança.
Martins-Costa, Fernandes e Goldim alertam para o fato de que o Capí-
tulo I da Lei, a pretexto de servir como sua parte introdutória, traz no art.
1º as pautas fundamentais quanto às normas de segurança à vida, à saúde hu-
mana, animal e vegetal e ao meio ambiente, fiscalização e utilização em geral
dos organismos geneticamente modificados, tanto para fins de pesquisa,
como para fins comerciais, apontando o princípio da precaução como prin-
cípio basilar a ser observado. Contudo, segundo os autores, “não cabe a Lei
aprisionar princípios em conceitos rigidamente traçados, sendo tarefa da ju-
risprudência e da doutrina formular, paulatinamente – e de acordo com a
experiência e a necessidade – o conteúdo dos modelos jurídicos (REALE)
cuja moldura (KELSEN) é traçada pelo legislador” (MARTINS-COSTA;
FERNANDES; GOLDIM, 2018).
O princípio da precaução, como asseveram Peralta e Botija (2008, p.
80), autoriza que a Autoridade Pública adote posições conservadoras e até
medidas excepcionais quando o risco envolvido não encontra-se plenamente
esclarecido pela ciência. A escolha do texto legal adotado gera uma “perigo-
sa combinação” entre o que rotula de uma ausência e um excesso, qual seja,
a falta de indicação de critérios de concretização do princípio da precaução
(art. 1º) combinada com o excessivo poder discricionário cometido à Co-
missão Técnica Nacional de Biossegurança (art. 14, de forma especial).
No que tange à regulamentação das pesquisas com a utilização de célu-
las-troncos (art. 5º) (MARTINS-COSTA; FERNANDES; GOLDIM,
2018), o legislador, sem qualquer critério científico, fixou o marco de 03
(três) anos após o congelamento para utilização dos embriões tido como “in-
viáveis”, sem esclarecer, todavia, o que entendia por “embriões inviáveis”,
mantendo nos dispositivos subsequentes as mesmas imprecisões jurídicas.
O parágrafo primeiro do art. 5º da Lei exige o consentimento dos genitores
como um dos requisitos para a realização da pesquisa científica com células-
tronco embrionárias, ingressando em um intrincado campo jurídico, que é o
de estabelecer se os embriões são “pessoas”, tendo, portanto, ascendentes,
pai e mãe. Para Martins-Costa, Fernandes e Goldim (2018), a imprecisão
legislativa “abre-se para complicadas questões práticas”:

Se os embriões tiverem os seus “genitores” a descoberto (como ocorre nos ca-


sos de doação de gametas), ou mesmo se estes tiverem desaparecido, dissolvido
o vínculo conjugal ou simplesmente abandonado os embriões, como se resolve-
rá a questão do consentimento? Deverá ser criada uma presunção de consenti-
mento?

229
A par de tais questões – aparentemente insolúveis no âmbito da legisla-
ção em vigor – os autores citados (MARTINS-COSTA; FERNANDES;
GOLDIM, 2018) ainda suscitam outras questões que dizem respeito à ga-
rantia da privacidade das pessoas que demandam técnicas de reprodução as-
sistida que, diante da importância do tema, convém trazer à colação:

Como os pesquisadores interessados em utilizar embriões terão acesso aos da-


dos de suposta inviabilidade? Poderão invadir a privacidade dos “genitores”
para conferir o estado ou o tempo de congelamento, de 3 (três) anos, exigido
por Lei? Quem será o responsável pela obtenção do consentimento informado
– o próprio pesquisador ou o médico assistente responsável pelos procedimen-
tos de reprodução assistida?

Por fim, acentuam Martins-Costa, Fernandes e Goldim (2018) a lacuna


legislativa existente nos casos de doação, pelo que questionam se “todos os
embriões congelados de um mesmo casal, ainda em idade reprodutiva, po-
derão ser destinados à pesquisa e para a produção de material biológico?” In-
dagam, ainda: “Existirá a possibilidade de ressarcir os gastos já realizados por
este casal no tratamento de reprodução assistida, conforme previsto na Re-
solução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde?”
A conclusão que se extrai, ante os vácuos legislativos deixados pela Lei
nº 11.105/2005, é que o legislador ao pretender reunir no mesmo texto nor-
mativo temas tão complexos e distintos entre si, desprovido de rigor técni-
co-cientifico, criando uma verdadeira quimera legislativa, vulnerou o princí-
pio da segurança jurídica, em virtude da instabilidade social ocasionada pelo
ato legislativo em análise, cuja ordem somente pode ser restabelecida com o
auxílio da doutrina e da jurisprudência dos Tribunais, até que sobrevenha
nova legislação que regulamente as diversas questões ali versadas.
O art. 5º da Lei de Biossegurança autoriza, para fins de pesquisa e tera-
pia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões huma-
nos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo proce-
dimento, desde que se tratem de embriões inviáveis; ou congelados há 3
(três) anos ou mais, na data da publicação da Lei, ou se, já estavam congela-
dos na data de sua publicação, após o decurso de 3 (três) anos, contados a
partir do seu congelamento, ressalvado em qualquer caso, o consentimento
dos genitores (§ 1º).
O referido artigo disciplina a realização de pesquisa científica envolven-
do os chamados embriões excedentários decorrentes de fertilização in vitro,
cujas células-tronco apresentam a capacidade de se transformar em células
de qualquer tecido de um organismo (art. 3º, XI), o que pode representar a
cura potencial de diversas doenças e deformidades, diante dos avanços da
Medicina. O dispositivo em questão teve a sua constitucionalidade questio-
nada através do ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
3510 pelo Procurador Geral da República, ao fundamento de que a realiza-
ção de pesquisas científicas com células-tronco embrionárias seria violadora
do direito à vida e à dignidade da pessoa humana.

230
Após exaustivo debate sobre o tema, inclusive com a manifestação pú-
blica de diversos segmentos, tanto sociais quanto religiosos, com argumen-
tos contra e a favor da autorização legal da realização de pesquisa científica
com a utilização de células-tronco embrionárias, a Corte Constitucional, por
maioria, entendeu, sem qualquer ressalva, pela constitucionalidade do dis-
positivo legal em testilha.
O relator, ministro Carlos Ayres Britto votou pela total improcedência
do pedido, fundamentando seu voto no direito constitucional à vida, à saú-
de, ao planejamento familiar e à pesquisa científica, bem como ressaltou o
espírito de sociedade fraternal preconizado pela Constituição Federal, ao
defender a utilização de células-tronco embrionárias na pesquisa para a cura
de doenças. O ministro Carlos Ayres Britto rotulou a Lei de Biossegurança
como um “perfeito” e “bem concatenado bloco normativo” e destacou que
para existir vida humana, é preciso que o embrião tenha sido implantado no
útero humano. O zigoto, segundo o ministro é a primeira fase do embrião
humano, a célula-ovo ou célula-mãe e, portanto, representa uma realidade
distinta da pessoa natural, porque ainda não tem cérebro formado. Britto se
louvou, ainda, nos dispositivos constitucionais que versam sobre o direito à
saúde (artigos 196 a 200) e na obrigatoriedade do Estado de garanti-la, de-
fendendo, assim a utilização de células-tronco embrionárias para o trata-
mento de doenças. Acompanharam o relator as ministras Ellen Gracie e
Carmen Lúcia, bem como os ministros Joaquim Barbosa, Cezar Peluso,
Marco Aurélio e Celso de Mello.
O julgamento histórico envolvendo a constitucionalidade da realização
de pesquisas cientificas com o uso de células-tronco embrionárias reafir-
mou, de forma contundente, o princípio da dignidade humana como o bali-
zador e limitador de todas as pesquisas científicas envolvendo células em-
brionárias.
Paulo Vinícius Sporleder de Souza (2004, p. 238) destaca que “a huma-
nidade está sendo chamada a administrar responsavelmente o presente e o
futuro da sua evolução, nos limites de seu saber e poder”, o que não pode ser
esquecido pelo progresso técnico-científico, tendo em vista que não só a na-
tureza pode ser manipulada, mas o próprio ser humano, impondo a fixação
de limites a tais intervenções, visando a proteção da dignidade humana.
Infere-se, portanto, que a dignidade humana é o principal vetor que vai
orientar e informar as pesquisas científicas, impondo limites à realização in-
discriminada das mesmas, tanto na esfera nacional quanto internacional,
como se verá a seguir.

Considerações Finais

A sociedade contemporânea passa por profundas e intensas mudanças


estruturais, sendo certo que na era da modernidade global, a evolução da
biotecnologia vai constituir um dos principais fatores de mudança social, es-

231
pecialmente com a introdução das técnicas de reprodução humana assistida,
o mapeamento do genoma, o prolongamento da vida mediante transplantes,
as técnicas para alteração do sexo, a clonagem, a engenharia genética e de-
mais institutos correlatos. O Biodireito não possui uma base teórica sedi-
mentada como os demais ramos do Direito, visto que os fatos por ele regu-
lados são relativamente novos e permeados pelo ineditismo. Não obstante,
sua base principiológica está assentada na Constituição da República, o que
permite se afirmar que os princípios constitucionais constituem os princí-
pios do Biodireito e norteiam todas as suas regras. Embora o conceito de
biossegurança, em sentido estrito, não possua nenhuma pertinência com os
conceitos de Bioética e de Biodireito, visto que aquele se restringe aos riscos
ocupacionais, tal conceito foi dilargado pela Lei de Biossegurança brasileira,
pelo que se fez necessário o recurso à Bioética e ao Biodireito para contex-
tualização e melhor entendimento do tema apresentado neste trabalho.
A ampliação extremada do alcance da Lei de Biossegurança fez com que
a mesma se tornasse alvo de inúmeras críticas doutrinárias, não só porque
regulamentou diversos institutos que não guardam qualquer correlação en-
tre si, bem como porque é permeada de obscuridades e imperfeições técni-
cas. Sem embargo da legislação brasileira, de uma maneira geral, não ser pa-
radigma em técnica jurídica, um dos fatores preponderantes para que a Lei
de Biossegurança fosse rotulada pela doutrina de “colcha de retalhos” re-
monta ao seu nascedouro, como explicitado por ocasião da análise dos ante-
cedentes históricos da Lei.
A constitucionalidade da pesquisa com células-tronco embrionárias, re-
gulamentada pelo art. 5º da Lei de Biossegurança, foi submetida ao crivo do
Supremo Tribunal Federal por meio de Ação Direta de Inconstitucionalida-
de por suposta violação ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana,
sendo que após exaustivo debate sobre o tema, a Corte Constitucional, por
maioria, entendeu, sem qualquer ressalva, pela constitucionalidade do dis-
positivo legal em testilha. Após um julgamento histórico, o Supremo enten-
deu que o direito constitucional à vida, à dignidade da pessoa humana, à saú-
de, ao planejamento familiar e à pesquisa científica seriam prestigiados atra-
vés da pesquisa com utilização de células-tronco embrionárias, por repre-
sentar a cura potencial para diversas doenças. A despeito de qualquer con-
trovérsia sobre o tema, no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal, foi
reafirmado, de forma contundente, que o princípio da dignidade humana é
baliza limitadora de todas as pesquisas científicas.

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233
Servidores públicos civis e reformas
previdenciárias: um caso privilegiado de
constituição dirigente invertida

Darleth Lousan do Nascimento Paixão


Nilton Rodrigues da Paixão Júnior

RESUMO: as reformas previdenciárias afrontam os direitos sociais pre-


videnciários dos servidores públicos civis ao darem prevalência ao custeio da
dívida pública, configurando verdadeiro estado de exceção financeiro per-
manente, que já se alonga desde 1996 até os dias atuais, retratando a supre-
macia/blindagem da Constituição Financeira sobre a Constituição Econômi-
ca e a Constituição Social, materializando retrocesso social.

PALAVRAS-CHAVE: aposentadoria, pensão, servidor público, consti-


tuição dirigente invertida.

ABSTRACT: the social security reforms clash with the social security
rights of civil servants by giving priority to the financing of public debt, es-
tablishing a true state of permanent financial exception that has been lasting
from 1996 to the present day, thereby shaping the supremacy and shielding
of the Financial Constitution over the Economic Constitution and Social
Constitution, witgh na attendant social setback.

KEY WORDS: Retirement, pension, public servant, inverted manda-


tory ruling constitution.

INTRODUÇÃO

O presente artigo analisa as mudanças constitucionais no que diz respei-


to às regras de aposentadorias, pensões e contribuições previdenciárias dos
servidores públicos civis, desde o texto promulgado em 1988 até os dias
atuais.

235
O estudo dessa trajetória, que envolve direitos sociais garantidos na
constituição originária e paulatinamente degenerados, se fez pautado na
constituição federal, emendas constitucionais e em artigos doutrinários que
dão suporte a uma possível hipótese: a constituição dirigente brasileira tor-
nou-se uma constituição dirigente invertida.
A constituição de 1988 privilegiava valores sociais, especialmente sob a
influência de ideais humanistas, como a Declaração Universal dos Direitos
do Homem, buscando estabelecer o Welfare State. Entretanto, na trajetória
de vinte e nove anos de vigência, ideias neoliberais foram ganhando espaço e
sendo blindadas. O apelo da não intervenção do estado no mercado de capi-
tal e o incentivo de financiamentos públicos em projetos de capital privado
se tornou uma realidade.
Medidas para reduzir o financiamento público, nas ações que promovem
garantias sociais, transformaram-se em emendas constitucionais. Alterações
nas regras de aposentadoria, pensão, contribuição previdenciária e tempo de
serviço degeneraram direitos antes defendidos e até comprometidos em
programas de governo.
O país, inserindo-se num mundo globalizante e ainda como membro de
organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional – FMI e a
Organização Mundial do Comércio – OMC, sujeitou-se à preponderância
dos poderes econômicos nos moldes do mercado de capital.
A escolha originária por uma constituição dirigente, que determina me-
tas e programas a serem alcançados para a promoção o bem-estar social, fun-
dada especialmente em valores individuais e coletivos (erradicação da po-
breza, redução das desigualdades regionais, valorização do trabalho), foi se
transformando numa constituição financeira, orientada pela ordem interna-
cional capitalista e macroeconômica, na prevalência do mercado de capital
privado e do comércio internacional. Houve uma inversão de metas e pro-
gramas. O sistema financeiro como instrumento para o alcance dos objetivos
fundamentais sociais da constituição tornou-se fim e a redução de direitos
sociais meio.

1. O texto constitucional originário

O poder constituinte originário é aquele que tem competência e autori-


zação para iniciar novo ordenamento jurídico de um estado-nação soberano.
A nação é anterior ao estado. Nesse sentido, é a nação1 enquanto vontade o
cerne da realidade política.

1 De acordo com Noberto Bobbio e outros, nação é um dos termos de valor semân-
tico dificíl e incerto para se conceituar. Pode ser entendida como o fundamento natural
do poder político numa união necessária entre nação e estado. Não é mais um termo
vago a ser atribuído à simples ideia de grupo (povo com língua, costumes e valores co-

236
O poder constituinte originário possui características próprias: poder
inicial, ilimitado, incondicionado, indivisível e permanente.
O Brasil após o fim do regime militar e início de uma democracia com
alicerces em direitos fundamentais e sociais da pessoa humana, escolheu um
sistema jurídico tendo a constituição como norma fundamental, da qual ir-
radia princípios e fundamentos de validade para o ordenamento jurídico a
ela subordinado.

Os ordenamentos jurídicos são sistemas hierarquizados, em cujo ápice as


constituições estão situadas. As leis só são válidas se estão de acordo com a
constituição quanto ao seu teor e se tiverem sido editadas em conformidade
com os procedimentos prescritos constitucionalmente. (NETO e SARMEN-
TO, 2017, p. 23).

O processo de transição entre o fim do regime autoritário e o início da


democracia garantiu procedimentos para a implementação de uma assem-
bleia nacional constituinte que escrevesse uma carta constitucional pautada
no estado de direito e na democracia. No dia 5 de outubro de 1988 é pro-
mulgada e publicada a Constituição da República Federativa do Brasil – CF.
A constituição brasileira tem perfil dirigente, uma vez que além de de-
terminar direitos e garantias individuais contra o poder estatal, organiza o
governo, mas, também, traça diretrizes, fins e programas de ação a serem
alcançados pelo estado-nação e pela sociedade. O art. 3º da CF estabelece
como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza
e a redução das desigualdades sociais e regionais, além dos direitos trabalhis-
tas, previdenciários e da valorização do trabalho humano2.
Contudo o movimento de globalização econômica afeta sobremaneira a
implementação de projetos sociais e desenvolvimentistas almejados:

muns) ou à ideia de toda e qualquer forma de comunidade política. “Nação é a ideolgoia


de um determinado tipo de Estado, visto ser justamente o Estado a entidade a que se
dirige concretamente o sentimento de fidelidade que a ideia de Nação suscita e man-
tem”. BOBBIO, Norbertos e outros. Dicionário de Política. Trad. De João Ferreira,
Carmen C. Varriale e outrso. Brasília: Universidade de Brasília, 1986.
2 “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação.” e arts. 5º, 6º a 11. BRASIL. Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível e: “http://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm”. Acesso em 2 mai. 2017.

237
Atualmente, fala-se em crise do constitucionalismo dirigente. Esta crise está
ligada a diversos fatores, como a globalização econômica, que diminui o poder
real dos Estados-nacionais de implementarem os projetos consagrados nas suas
constituições; a emergência de ordens jurídicas internacionais e regionais dis-
putando espaço com o constitucionalismo estatal; os problemas econômicos e
políticos enfrentados pelo Welfare State. (NETO e SARMENTO, 2017, p. 62-
63)

A constituição dirigente, por determinar objetivos a serem alcançados


pelas futuras gerações, pode acabar por, de certa forma, engessar mudanças
posteriores que se possam fazer necessárias, a fim de acompanhar o dinamis-
mo da sociedade, porém convém por em relevo que esse dirigismo tem nas-
cedouro no poder constituinte originário.
Entretanto é necessário ressaltar que a justificativa de mudanças ao tex-
to constitucional deve ser muito bem fundamentada, alicerçada numa razão
pública3, sob pena de se tornarem mudanças voluntariosas a trabalho de po-
líticas partidárias, eleitorais e populistas.
A CF de 1988 estabeleceu, no Capítulo VII, Seção II4, as regras para a
aposentadoria dos servidores públicos civis.

3 No entendimento de John Rawls, razão pública deve ser compreendida no contex-


to em que as doutrinas abrangentes, tendo diferentes concepções de bem, apresentam
fundamentos racionais e razoáveis que, no encontro de uns com os outros, acabam por
permitir que se cheguem a um acordo do que seria aceitável em uma democracia cons-
titucional, seriam consensos sobrepostos. Os consensos sobrepostos são constituídos a
partir dos debates públicos que determinam, a partir da apresentação de razões, quais
seriam os ajustes e acordos aceitáveis pelas doutrinas abrangentes razoáveis e através de
qual fundamento seria possível a composição de uma razão pública. RAWLS, John. Li-
beralismo Político. São Paulo: Ática, 2000, p. 262-298.
4 “Art.40O servidor será aposentado:
I – por invalidez permanente, sendo os proventos integrais quando decorrentes de
acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável,
especificadas em lei, e proporcionais nos demais casos;
II – compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos proporcionais ao
tempo de serviço;
III – voluntariamente:
a) aos trinta e cinco anos de serviço, se homem, e aos trinta, se mulher, com pro-
ventos integrais;
b) aos trinta anos de efetivo exercício em funções de magistério, se professor, e
vinte e cinco, se professora, com proventos integrais;
c) aos trinta anos de serviço, se homem, e aos vinte e cinco, se mulher, com proven-
tos proporcionais a esse tempo;
d) aos sessenta e cinco anos de idade, se homem, e aos sessenta, se mulher, com
proventos proporcionais ao tempo de serviço.
§1º Lei complementar poderá estabelecer exceções ao disposto no inciso III, a e c,
no caso de exercício de atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas.
§2º A lei disporá sobre a aposentadoria em cargos ou empregos temporários.

238
A aposentadoria se daria por tempo de prestação de serviço público e de
contribuição, fixando idade apenas para os casos de aposentadoria compul-
sória.
Estava também determinada à aposentadoria e às pensões a garantia do
recebimento integral da remuneração, sem desconto previdenciário, bem
como a paridade dos benefícios e vantagens recebidas pelos servidores da
ativa.
A administração dos recursos recebidos a título de contribuição previ-
denciária, de caráter contributivo e solidário, e pagamentos desses benefí-
cios está a cargo do Regime Próprio de Previdência Social – RPPS5, sob ges-
tão da Secretaria de Previdência do Ministério Fazenda.
O tempo não para, traz mudanças e a sociedade demanda inúmeras ne-
cessidades que nem sempre estão abarcadas no texto constitucional originá-
rio ou, quando estão, precisam ser ajustadas. Então reformas à CF começam
a surgir na trajetória de 1988 até os dias atuais.

§3º O tempo de serviço público federal, estadual ou municipal será computado


integralmente para os efeitos de aposentadoria e de disponibilidade.
§4º Os proventos da aposentadoria serão revistos, na mesma proporção e na mesma
data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo tam-
bém estendidos aos inativos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente conce-
didas aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou
reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria, na forma da lei.
§5º O benefício da pensão por morte corresponderá à totalidade dos vencimentos
ou proventos do servidor falecido, até o limite estabelecido em lei, observado o disposto
no parágrafo anterior.
Art.41São estáveis, após dois anos de efetivo exercício, os servidores nomeados em
virtude de concurso público.
§1º O servidor público estável só perderá o cargo em virtude de sentença judicial
transitada em julgado ou mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada
ampla defesa.
§2º Invalidada por sentença judicial a demissão do servidor estável, será ele reinte-
grado, e o eventual ocupante da vaga reconduzido ao cargo de origem, sem direito a
indenização, aproveitado em outro cargo ou posto em disponibilidade.
§3º Extinto o cargo ou declarada sua desnecessidade, o servidor estável ficará em
disponibilidade remunerada, até seu adequado aproveitamento em outro cargo.”
CF/1988, op.cit.
5 “O Regime de Previdência dos Servidores Públicos, denominado Regime Próprio
de Previdência Social (RPPS) tem suas políticas elaboradas e executadas pela Secretaria
de Previdência do Ministério da Fazenda. Esse regime é compulsório para o servidor
público do ente federativo que o tenha instituído, com teto e subtetos definidos pela
Emenda Constitucional nº 41/2003. Excluem-se deste grupo os empregados das em-
presas públicas, os agentes políticos, servidores temporários e detentores de cargos de
confiança, todos filiados obrigatórios ao Regime Geral. “Disponível em: “http://www.
previdencia.gov.br/perguntas-frequentes/regime-proprio-rpps/”. Acesso em: 10 mai.
2017.

239
2. Emendas Constitucionais

2.1. Emenda Constitucional nº 20, de 1998

Dez anos depois da CF/1988, a Emenda Constitucional nº 20, de 15 de


dezembro de 1998, altera as regras de aposentadoria, onerando os servido-
res públicos civis, não só com o aumento do prazo de prestação de serviço e
contribuição previdenciária, como acumulando o tempo de contribuição a
critérios de idade mínima6.

6 EC nº 20/1988: “Art. 40 Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos


Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é
assegurado regime de previdência de caráter contributivo, observados critérios que pre-
servem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.
§1º Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo
serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma
do§ 3º:
I – por invalidez permanente, sendo os proventos proporcionais ao tempo de con-
tribuição, exceto se decorrente de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença
grave, contagiosa ou incurável, especificadas em lei;
II – compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos proporcionais ao
tempo de contribuição;
III – voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de dez anos de efetivo
exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentado-
ria, observadas as seguintes condições:
a) sessenta anos de idade e trinta e cinco de contribuição, se homem, e cinquenta
e cinco anos de idade e trinta de contribuição, se mulher;
b) sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher,
com proventos proporcionais ao tempo de contribuição.
§2º Os proventos de aposentadoria e as pensões, por ocasião de sua concessão, não
poderão exceder a remuneração do respectivo servidor, no cargo efetivo em que se deu
a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão.
§3º Os proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão calculados
com base na remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a aposentadoria e,
na forma da lei, corresponderão à totalidade da remuneração.
§4º É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de
aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, ressalvados os casos
de atividades exercidas exclusivamente sob condições especiais que prejudiquem a saú-
de ou a integridade física, definidos em lei complementar.
§5º Os requisitos de idade e de tempo de contribuição serão reduzidos em cinco
anos, em relação ao disposto no§ 1º, III, “a”, para o professor que comprove exclusiva-
mente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no
ensino fundamental e médio.
§6º Ressalvadas as aposentadorias decorrentes dos cargos acumuláveis na forma
desta Constituição, é vedada a percepção de mais de uma aposentadoria à conta do
regime de previdência previsto neste artigo.
§7º Lei disporá sobre a concessão do benefício da pensão por morte, que será igual
ao valor dos proventos do servidor falecido ou ao valor dos proventos a que teria direito
o servidor em atividade na data de seu falecimento, observado o disposto no § 3º.

240
A EC 20/1998 ao vincular idade e tempo de contribuição aumentou efe-
tivamente o tempo para a aposentadoria. Antes bastavam 35 anos de contri-
buição, se homem, e 30 anos de contribuição, se mulher, com a possibilida-
de de aposentaria proporcional ao tempo de contribuição, 30 anos, se ho-
mem, e 25 anos, se mulher.
A mudança passa a exigir requisitos de idade e tempo de contribuição,
cumulativamente: 35 anos de contribuição e idade de 60 anos, se homem, e
30 anos de contribuição e 55 anos, se mulher. Em situação prática, um ho-
mem e uma mulher que ingressassem no serviço público com 18 anos, pode-
riam entrar na inatividade com 53 e 48 anos, respectivamente. Após a EC 20
trabalhariam mais 7 anos para a fruição desse direito.

§8º Observado o disposto no art. 37, XI, os proventos de aposentadoria e as pen-


sões serão revistos na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a
remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendidos aos aposentados e
aos pensionistas quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos ser-
vidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação
do cargo ou função em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a
concessão da pensão, na forma da lei.
§9º O tempo de contribuição federal, estadual ou municipal será contado para efei-
to de aposentadoria e o tempo de serviço correspondente para efeito de disponibilida-
de.
§10 A lei não poderá estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contri-
buição fictício.
§11 Aplica-se o limite fixado no art. 37, XI, à soma total dos proventos de inativi-
dade, inclusive quando decorrentes da acumulação de cargos ou empregos públicos,
bem como de outras atividades sujeitas a contribuição para o regime geral de previdên-
cia social, e ao montante resultante da adição de proventos de inatividade com remune-
ração de cargo acumulável na forma desta Constituição, cargo em comissão declarado
em lei de livre nomeação e exoneração, e de cargo eletivo.
§12 Além do disposto neste artigo, o regime de previdência dos servidores públicos
titulares de cargo efetivo observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para
o regime geral de previdência social.
§13 Ao servidor ocupante, exclusivamente, de cargo em comissão declarado em lei
de livre nomeação e exoneração bem como de outro cargo temporário ou de emprego
público, aplica-se o regime geral de previdência social.
§14 A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, desde que instituam
regime de previdência complementar para os seus respectivos servidores titulares de
cargo efetivo, poderão fixar, para o valor das aposentadorias e pensões a serem concedi-
das pelo regime de que trata este artigo, o limite máximo estabelecido para os benefí-
cios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201.
§15 Observado o disposto no art. 202, lei complementar disporá sobre as normas
gerais para a instituição de regime de previdência complementar pela União, Estados,
Distrito Federal e Municípios, para atender aos seus respectivos servidores titulares de
cargo efetivo.
§16 Somente mediante sua prévia e expressa opção, o disposto nos §§14 e 15 po-
derá ser aplicado ao servidor que tiver ingressado no serviço público até a data da publi-
cação do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar.”
CF/1988, ibid.

241
O §3º do art. 40 ainda mantém a integralidade dos proventos calculados
na remuneração do servidor em que se desse a aposentadoria.
A aposentadoria proporcional de 30 anos de contribuição para homens e
25 anos de contribuição para mulheres deixa de existir.
A mensagem do Poder Executivo nº 306, de 1995, que expõe os moti-
vos da reforma constitucional, originou a Proposta de Emenda Constitucio-
nal – PEC nº 21, de 1995; posteriormente devido ao seu desmembramento
em outras quatro PEC’s, foi considerada prejudicada, dando sequência na
tramitação da matéria a PEC nº 33, de 1995, que se transformou na EC
20/1998.
Nos termos da citada exposição de motivos7, a alegação da reforma
constitucional se deu basicamente em resposta a um “déficit previdenciá-
rio”, com a justificativa de que o arrecadado não era suficiente para fazer
face às despesas com aposentadorias, pensões e riscos de doença, mesmo
quando resultantes de acidente do trabalho. Nota-se ainda que o governo as-
sume problemas relacionados a índices de evasão e sonegação, na concessão
e manutenção de benefícios fraudulentos e nos altos custos administrativos
de previdência social.
Alerta-se aqui para o fato de que os servidores públicos têm o regime
previdenciário próprio denominado Regime Próprio de Previdência Social
(RPPS)8, nos termos das normas previstas no art. 40 da Constituição Fede-

7 “É preciso ter claro, no entanto, que os problemas da previdência social decorrem


da conjunção de fatores de naturezas diversas. Existem fatores conjunturais decorrentes
da instabilidade macroeconômica, cujos efeitos adversos nos níveis de emprego e renda
e sobre o grau de formalização das relações de trabalho comprometem o fluxo regular
das contribuições ao sistema. Esta situação começa a ser revertida agora, com os resul-
tados obtidos pelo plano Real, no que concerne à estabilização monetária e à retomada
de um processo sustentado de crescimento, mas eles só começarão a afetar favoravel-
mente o comportamento dos indicadores de mercado de trabalho, no médio e longo
prazos. Reconhece-se ainda a existência de problemas gerenciais graves que se manifes-
tam nos índices de evasão e sonegação, na concessão e manutenção de benefícios frau-
dulentos e nos altos custos administrativos de previdência social.” (grifos nosso)
...
“Não obstante as dificuldades assinaladas, a Previdência Social tem pago pontual-
mente a 15,2 milhões de beneficiários montantes mensais da ordem de R$ 2 bilhões,
estando prevista para o ano de 1995 uma despesa com benefícios equivalente a R$ 29,5
bilhões, cerca de 6% do PIB.” Disponível em: “http://www.camara.gov.br/proposicoes-
Web/fichadetramitacao?idProposicao=333231”. Acesso em 5 maio de 2017.
8 “Regime Próprio de Previdência Social é um sistema de previdência, estabelecido
no âmbito de cada ente federativo, que assegure, por lei, a todos os servidores titulares
de cargo efetivo, pelo menos os benefícios de aposentadoria e pensão por morte previs-
tos no artigo 40 da Constituição Federal.”
...
“Desta forma, de um lado, temos o Regime Geral de Previdência Social – RGPS,
cuja gestão é efetuada pelo INSS, que vincula obrigatoriamente todos os trabalhadores

242
ral e na Lei nº 9.717/98, além de terem suas políticas elaboradas e executa-
das pela Secretaria de Previdência do Ministério da Fazenda.
A exposição de motivos ratifica a importância da unificação dos regimes
previdenciários especiais9. A intenção desde aquela época era a unificação
dos regimes previdenciários com um valor máximo de aposentadoria (teto).

2.2. Emenda Constitucional nº 41, de 2003

O texto constitucional ainda se mantinha intacto quanto a insistência do


governo em taxar as aposentadorias, mas os pleitos dos líderes do governo
trabalhavam sem trégua, desde 1998, para aprovar reformas previdenciárias
nessa linha.
A exposição de motivos encaminhada ao Congresso Nacional10 deu ori-
gem à PEC 40/2003, que inicia sua tramitação, com turnos de discussões e
votações, até a aprovação da Emenda nº 41, no dia 19 de dezembro de 2003,
no primeiro ano de mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A EC 41/2003 determina que os aposentados e pensionistas do Brasil
passam a contribuir para a Previdência Social nos mesmos índices que os tra-
balhadores e servidores da ativa11.
Os novos servidores públicos que ingressarem no serviço público a partir
dessa EC 41/2003, ficarão sujeitos às regras do regime de previdência geral,

do setor privado e também os servidores públicos não vinculados a regimes próprios de


previdência social e, por outro lado, temos vários regimes próprios de previdência social
cujas gestões são efetuadas, distintamente, pelos próprios entes públicos instituidores.
As normas básicas dos regimes próprios estão previstas no artigo 40 da Constituição
Federal, na Lei 9.717/98 e nas Portarias do Ministério da Previdência Social n°s
402/2008 (diretrizes gerais) e 403 (normas de atuária).” Disponível em: “http://www.
previdencia.gov.br/perguntas-frequentes/regime-proprio-rpps/”. Acesso em: 5 mail.
2017.
9 “O desafio posto, hoje, à sociedade brasileira é decorrente dos dois aspectos (diver-
sos regimes especiais com regras de concessão e reajuste de benefícios diferenciadas das
regras do Regime Geral de Previdência Social – RGPS e de outro, vem ocorrendo uma
incorporação paulatina de ações assistenciais, o que resulta em diluição gradativa do
vínculo contributivo do segurado). Trata-se, em primeiro lugar, de avançar no sentido
da uniformização dos regimes especiais de previdência, aplicando-se-Ihes os requisitos
e critérios fixados para a esmagadora maioria dos cidadãos brasileiros. Em segundo lu-
gar, é necessário resgatar o caráter contributivo da política previdenciária, transferindo
para a área de assistência social, os benefícios que lhe são próprios.” Ibid.
10 “PEC 40/2003 E.M.I. nº 29 – MPS/CCIVIL-PR. Em 29 de abril de 2003. Dispo-
nível em: “http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?cod-
teor=129815&filename=“Acesso em: 5 de maio de 2017.
11 Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, que “modifica os arts.
37, 40, 42, 48, 96, 149 e 201 da Constituição Federal, revoga o inciso IX do § 3º do art.
142 da Constituição Federal e dispositivos da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de
dezembro de 1998, e dá outras providências.” CF/1988, op. cit.

243
podendo aderirem a regime de previdência complementar, caso sejam insti-
tuídos (art. 40, §§14, 15 e 16).
Os proventos de aposentadoria não terão como referência a última re-
muneração percebida na atividade, tanto para os futuros servidores públicos
quanto para os que ainda estão na ativa, ou seja, fim da paridade. Os proven-
tos terão como base de cálculo a média de todas as remunerações utilizadas
para fins das respectivas contribuições durante toda a vida laboral (art. 40,
§§3º e 8º).
Todos os servidores públicos, inativos e pensionistas contribuirão de for-
ma permanente para o sistema previdenciário. (art. 40, §18).
Aqueles servidores públicos que alcançaram o direito de fruição da apo-
sentadoria poderão ser beneficiados com ausência da contribuição, a título
de abono de permanência, caso continuem na atividade (art. 2° da EC
41/2003).
A paridade entre as remunerações dos servidores da ativa e as aposenta-
dorias e pensões deixa de existir. Haverá apenas reajustes para preservar o
seu valor real, nos termos de critérios a serem estabelecidos em lei. Somen-
te aqueles que tenham cumprido todos os requisitos legais para aposentado-
ria antes da promulgação dessa emenda, aposentados ou ainda por opção na
ativa, terão direito à regra de paridade (art. 40, §19).
O valor das pensões deixa de ser integral e passa a ter limite imediato de
70% (setenta por cento) dos proventos do servidor, podendo ainda ser redu-
zido mediante lei ordinária (art. 40, §7º, I e II, da CF/1988).
A exposição de motivos, semelhante à da EC 20/1998, segue na linha
dos mesmos argumentos: “déficit previdenciário”, necessidade de unifica-
ção dos regimes previdenciários, acrescentando a questão da longevidade
dos servidores e trabalhadores12.

12 PEC 40/2003 E.M.I. nº 29 – MPS/CCIVIL-PR. Em 29 de abril de 2003: “É sabido


que a Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, modificou diversos
princípios da administração previdenciária do setor público, em especial o caráter con-
tributivo e o equilíbrio financeiro-atuarial. Não obstante, dada a abrangência incomple-
ta e parcial da EC nº 20, persistem hoje regras bastante diferenciadas entre o Regime
Geral de Previdência Social e os regimes próprios de Previdência Social dos servidores,
com desequilíbrios nas dimensões da eqüidade e sustentabilidade de longo prazo.”
....
“Trata-se de avançar no sentido da convergência de regras entre os regimes de pre-
vidência atualmente existentes, aplicando-se aos servidores públicos, no que for possí-
vel, requisitos e critérios mais próximos dos exigidos para os trabalhadores do setor
privado.”
... “a necessidade de financiamento, em 2002, dos regimes de previdência dos ser-
vidores públicos nas três esferas de governo situou-se na faixa de 39,1 bilhões de reais,
beneficiando pouco mais de 2,5 milhões de servidores públicos. No mesmo ano, toda a
dotação destinada ao Ministério da Saúde foi de 28,5 bilhões de reais; a dotação do
Ministério do Trabalho e Emprego no Orçamento de 2002 foi de 14,1 bilhões de reais;

244
Ressalta-se que a partir dessa emenda o regime da integralidade e pari-
dade foi extinto. Os proventos passam a se dar sobre média de todas as
remunerações utilizadas como base de cálculo para as contribuições, garan-
tindo-se a atualização monetária para preservar o valor real da moeda.

2.3. Emenda Constitucional nº 47, de 2005

A EC 47 surge para amenizar os casos de servidores que começaram no


serviço público com pouca idade, que foram penalizados duramente com o
aumento da idade para a aposentadoria no momento da EC 20/1998. Entre-
tanto é a emenda mais exigente quanto às obrigações a serem cumpridas
para a fruição da inatividade.
O art. 3º da EC 4713 criou uma regra de transição com a exigência de
requisitos cumulados: 35 e 30 anos de contribuição, respectivamente se ho-
mem e se mulher; 25 (vinte anos) de efetivo exercício no serviço público
(sendo 15 anos de carreira e 5 anos no cargo em que se dará a aposentadoria)
e idades reduzidas de um ano para cada ano a mais de contribuição.

bem como a do Ministério da Educação no orçamento de 2002 foi de 17,4 bilhões de


reais. Isso nos remete a uma outra questão, que é a oportunidade do gasto público.”
...
“Em uma situação em que os brasileiros estão vivendo cada vez mais, não se justifi-
ca conceder aposentadorias com idades precoces, tal como é permitido pelo ordena-
mento constitucional vigente, 48 anos de idade para mulheres e 53 para homens, na
hipótese de terem ingressado regularmente em cargo efetivo na Administração Pública
até 16 de dezembro de 1998, data de publicação da Emenda Constitucional no 20, de
1998.” E.M.I. no 29 – MPS/CCIVIL-PR. Em 29 de abril de 2003. Disponível em:
“http:// www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=
129815& filename=”. Acesso em: 5 mai. 2017.
13 ”Art. 3º Ressalvado o direito de opção à aposentadoria pelas normas estabelecidas
pelo art. 40 da Constituição Federal ou pelas regras estabelecidas pelos arts. 2º e 6º da
Emenda Constitucional nº 41, de 2003, o servidor da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, que tenha ingressado
no serviço público até 16 de dezembro de 1998 poderá aposentar-se com proventos
integrais, desde que preencha, cumulativamente, as seguintes condições:
I – trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se
mulher;
II – vinte e cinco anos de efetivo exercício no serviço público, quinze anos de car-
reira e cinco anos no cargo em que se der a aposentadoria;
III – idade mínima resultante da redução, relativamente aos limites do art. 40, § 1º,
inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal, de um ano de idade para cada ano de
contribuição que exceder a condição prevista no inciso I do caput deste artigo.
Parágrafo único. Aplica-se ao valor dos proventos de aposentadorias concedidas
com base neste artigo o disposto no art. 7º da Emenda Constitucional nº 41, de 2003,
observando-se igual critério de revisão às pensões derivadas dos proventos de servidores
falecidos que tenham se aposentado em conformidade com este artigo.” CF/1988, op.
cit.

245
No exemplo dado anteriormente, o mesmo homem e mulher que traba-
lhariam 7 anos a mais (para alcançar as idades de 60 e 55 anos), a partir dessa
EC 47 teriam a possibilidade de se aposentar um pouco mais cedo, cumprin-
do um pedágio de 4 anos (56 anos e 52 anos, respectivamente).

“Art. 40 ...
§4º É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão
de aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, ressalva-
dos, nos termos definidos em leis complementares, os casos de servidores:
I – portadores de deficiência;
II – que exerçam atividades de risco;
III – cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem
a saúde ou a integridade física.
...
§ 21 A contribuição prevista no § 18 deste artigo incidirá apenas sobre as par-
celas de proventos de aposentadoria e de pensão que superem o dobro do limite
máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social
de que trata o art. 201 desta Constituição, quando o beneficiário, na forma da
lei, for portador de doença incapacitante.” (NR)

É importante observar que essa reforma trouxe situações ainda mais di-
fíceis para se aposentar, porque, ao exigir 15 anos na carreira e 5 anos no
cargo, gerou uma imobilidade para o servidor público, que diante de uma
boa oportunidade em nova carreira deverá sopesar a onerosidade do tempo
de trabalho a mais que deverá cumprir.

2.4. Emenda Constitucional nº 88, de 2015

A PEC 42 de 2003 (PEC 457/2005 na CD), de autoria do Senador Pe-


dro Simon, originou à EC 88/2015, que altera a idade para a aposentadoria
compulsória do servidor público em geral.

Art. 40 ...
§ 1º ...
II – compulsoriamente, com proventos proporcionais ao tempo de contribui-
ção, aos 70 (setenta) anos de idade, ou aos 75 (setenta e cinco) anos de idade,
na forma de lei complementar;

Desde o ano de 2003 já se discutia a possibilidade de a aposentadoria


compulsória ser estendida, especialmente para atender àquelas carreiras
que exigem notório conhecimento, como é o caso dos ministros dos tribu-
nais superiores.

2.5. Proposta de Emenda Constitucional nº 287, de 2016

A PEC 287, de 2016, merecedora de um artigo próprio para demonstrar


o rigor dos requisitos para se alcançar à aposentadoria, determina a mesma

246
idade de 65 anos para homens e mulheres e 25 anos de contribuição, desde
que cumprido, no mínimo, dez anos de efetivo exercício no serviço público
e cinco anos no cargo em que ocorrerá a aposentadoria. Essa proposta reduz
o tempo de contribuição, indo de encontro com as justificativas governa-
mentais de “déficit orçamentário”, uma vez que o sistema previdenciário se
dá no binômio contribuição/retribuição.
Os proventos de aposentadoria e pensões serão pagos de forma escalo-
nada, começando por 51% podendo chegar aos 100% da média das
remunerações e dos salários utilizados como base de cálculo das contribui-
ções.
Veda o recebimento de mais de um benefício, ou seja, mais de uma apo-
sentadoria, mais de uma pensão por morte ou aposentadoria e pensão por
morte, salvo os casos de acumulação autorizados na CF.
Considerando que tal proposta ainda se encontra em tramitação, inicia-
da na Câmara dos Deputados, não se fará mais comentários.
Passa-se a uma análise da constituição dirigente frente a todas essas
alterações que degeneraram paulatinamente direitos sociais, em particular
dos servidores públicos sob razões majoritariamente de ordem financeira.

3. A inversão do conteúdo dirigente da constituição em matéria previden-


ciária do servidor público civil

3.1. Da Constituição e suas subconstituições

O modelo constitucional brasileiro elegeu como paradigma, em 1988, o


estado de bem-estar social, evidenciado nos fundamentos da República Fe-
derativa do Brasil14.
A Constituição Federal de 1988 é uma norma jurídica abrangente, que
aborda assuntos diversos, estando sistematizada em subsistemas ou
subconstituições: política, econômica, financeira, orçamentária e social.
De acordo com Ricardo Lobo Torres (2000, p.1), pode-se dizer que a
subconstituição orçamentária deve estar em harmonia e equilíbrio com a
econômica e financeira, especialmente ao se considerar questões tributárias
e de gastos públicos.
O estado de direito prima por um orçamento equilibrado, que controle
as receitas e despesas de forma a fazer face aos objetivos fundamentais de

14 “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:


I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação.” CF/1988, op. cit.

247
redistribuição de rendas. Mesmo porque há uma interface direta da socieda-
de e de seus interesses no constitucionalismo atual.
Ao lado da subconstituição política, em que se encontram os objetivos
fundamentais do desenvolvimento nacional, da erradicação da pobreza, da
redução das desigualdades sociais e do bem-estar social, assim como toda a
organização administrativa e política do estado, estão as subconstituições
econômica e financeira, as quais deveriam ser os instrumentos de concreti-
zação daqueles objetivos fundamentais.
Na trajetória do estado brasileiro de 1988 até os dias atuais, inúmeras
crises financeiras ocorreram e ainda estão presentes, em especial sob o argu-
mento de que para manter o estado do bem-estar social a intervenção na
economia se fazia necessária.
Teorias para superar a crise do estado do bem-estar social começaram a
surgir: algumas com ideias radicais, como o neoliberalismo, em defesa do es-
tado mínimo, e o de pós-modernidade, pautada numa sociedade de risco e
na desregulamentação, deslegalização e desestabilização de instituições15.
Tradicionalmente para resguardar direitos sociais e coletivos, leis de
emergência intervinham nas liberdades políticas e econômicas. “Hoje, dá-se
o contrário: a utilização atual dos poderes de emergência caracteriza-se por
limitar os direitos da população em geral para garantir a propriedade privada
e a acumulação capitalista)”. (BERCOVICI, 2006, p. 97)
O orçamento público, nos termos do art. 165 da CF, com o plano plu-
rianual, diretrizes orçamentárias e orçamentos anuais, estipula as diretrizes,
objetivos, metas e prioridades a serem cumpridas pela administração públi-
ca. O orçamento passa a ser matéria interdisciplinar envolvendo aspectos ju-
rídicos e econômicos.
A ideia primeira é a de aumentar as receitas, com maior peso nos tribu-
tos, para fazer face às despesas com prestações públicas, sobretudo em ques-
tões de incentivos fiscais, dos subsídios, da previdência social e da segurida-
de. Não sendo suficiente o alto percentual tributário, o país se endivida in-
terna e externamente, caindo numa malha de juros insuportáveis gerando
orçamentos deficitários16.

15 “O Estado Pós-moderno, característico da sociedade de risco, funda-se na desregu-


lamentação, na deslegalização (retirada do direito formal e a sua substituição pela auto
regulação dos indivíduos e grupos sociais) e na desestabilização de instituições estabele-
cidas, o que permitirá a mobilização coletiva para a defesa dos interesses difusos e para
a cura do direito (Sorge um das Recht), mediante uma nova ética da responsabilidade e
uma ampliação dos direitos de ação.” TORRES, op. cit, p. 16.
16 “Os orçamentos são escandalosas mentiras, que escondem sob o nome de receita os
empréstimos que a nossa pobreza nos obriga a contrair, e dissimulam com a expressão
de saldos os déficits tenebrosos que assoberbam as nossas finanças”. Discursos e Confe-
rências. Porto: Emp. Literária e tipografia, 1907, p. 13 (apud TORRES, idem, p. 31-
32).

248
É importante salientar que o país faz parte do cenário mundial do co-
mércio. Como estado-membro de organizações internacionais, especial-
mente do FMI – Fundo Monetário Internacional e a OMC – Organização
Mundial do Comércio17, se sujeitando às convenções e acordos ali delibera-
dos, inclusive para se beneficiar com as concessões de empréstimos.

O processo de mundialização econômica está causando a redução dos espaços


políticos, substituindo a razão política pela técnica. Há um processo de tentati-
va de substituição dos governos que exprimem a soberania popular pelas estru-
turas de governance, cujos protagonistas são organismos nacionais e internacio-
nais “neutros” (bancos, agências governamentais “independentes”, organiza-
ções não-governamentais, empresas transnacionais, etc.) e representantes de
interesses econômicos e financeiros. (BERCOVICI, 2014, p. 744)

Segundo Bercovici e Massonetto, as boas intenções de um país pautado


na subconstituição econômica, com diretrizes e prioridades, cede espaço aos
anseios do capitalismo e o direito financeiro para a ser o centro para a toma-
da de decisões:

O direito financeiro, desarticulando-se do direito econômico, ganha centralida-


de na organização do capitalismo, impondo a rigidez dos instrumentos financei-
ros às boas intenções do constitucionalismo econômico do século XX. (BER-
COVICI, 2006, p. 58)

O paradigma do estado social e constitucional passa a ser atacado pelas


ideias liberais da não intervenção do estado no domínio econômico e ainda a
pretensa neutralidade financeira na condução de reformas sociais.
A subconstituição financeira, que era instrumento para o alcance dos ob-
jetivos fundamentais do país, passa a ser a prioridade e as reformas sociais
tornam-se necessárias para incrementar o ganho de capital, numa nítida in-
versão dos papéis.
A exposição de motivos do Poder Executivo, ao fundamentar as propos-
tas de reforma previdenciária em relação às aposentadorias dos servidores
públicos civis, deixa claro que o cerne da questão é financeiro, admitindo,
inclusive, situações da própria má administração das contas públicas, que
dão causa à evasão, sonegação e manutenção de benefícios fraudulentos.
O discurso governamental não cogita mudanças na governança pública
quanto à administração dos recursos públicos para fazer face às despesas que

17 Na cidade de Bretton Woods, nos Estados Unidos da América, no ano de 1944, foi
instituído através de acordos entre 44 países, dentre eles o Brasil, o Fundo Monetário
Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), de forma a criar mecanismo de integra-
ção e liberalização das relações de comércio internacional, estabelecendo paridades
cambiais no padrão outo-dólar. DAL RI, Arno Júnior. História do Direito Internacional:
comércio e Moeda, Cidadania e Nacionalidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004,
p. 118-133.

249
garantem o desenvolvimento social. Ao contrário, retira direitos sociais para
adequar à má administração que dá causa a essas perdas tributárias e déficits
orçamentários.

... para garantir a atração dos investimentos privados, o Poder Público brasileiro
tem que estabilizar o valor real dos ativos das classes proprietárias. Ou seja, o
orçamento público deve estar voltado para a garantia do investimento privado,
para a garantia do capital privado, em detrimento dos direitos sociais e serviços
públicos voltados para a população mais desfavorecida. (BERCOVICI, 2006, p.
69)

Países periféricos, como o Brasil, para garantir os investimentos privados


e gerar acúmulo de capital, acaba por reduzir os investimentos e financia-
mentos no setor público.

CONCLUSÃO

Diante do texto constitucional de 1988 e das posteriores reformas ocor-


ridas, especialmente quanto às regras de aposentadoria e contribuição previ-
denciária dos servidores públicos civis, é possível identificar a mudança de
paradigma do estado: do social para o financeiro.
Inicialmente a visão era de incentivar direitos sociais e serviços públicos,
incrementando a força de trabalho de modo a construir um país próspero e
hábil a reduzir as desigualdades sociais e regionais e, em resposta a esse in-
vestimento, alcançar o desenvolvimento social capaz de gerar o acúmulo de
capital.
Na trajetória até os dias atuais, sob a égide de uma economia globalizada
e inserida nos acordos de comércio internacional, o estado faz nítida opção
por privilegiar o capital em detrimento a direitos sociais, para manter o equi-
líbrio macroeconômico.
O estado social ganha conotações acentuadas neoliberais. As reformas
previdenciárias nada mais são do que um modo de captar recursos, imputan-
do aos aposentados e pensionistas maior tempo de trabalho efetivo e contri-
buição previdenciária permanente, reduzindo o financiamento público no
bem-estar social para privilegiar e garantir investimentos privados.
As reformas previdenciárias afrontam os direitos sociais previdenciários
dos servidores públicos civis ao darem prevalência ao custeio da dívida pú-
blica, configurando verdadeiro estado de exceção financeiro permanente,
que já se alonga desde 1996 até os dias atuais, retratando a supremacia/blin-
dagem da constituição financeira sobre a constituição econômica e a consti-
tuição social.
Para o Brasil como país de desenvolvimento tardio que não viveu efeti-
vamente o bem-estar social, a opção pelo modelo neoliberal, que alicerça re-

250
formas redutoras de direitos sociais com o fim de garantir e atrair investi-
mentos privados, materializa evidente retrocesso social.

REFERÊNCIAS

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te invertida: a blindagem da Constituição Financeira e a agonia da Constitui-
ção Econômica. Boletim de Ciências Económicas. Vol. XLIX. Coimbra, 2006.
BERCOVICI, Gilberto. A expansão do estado de exceção: da garantia da Consti-
tuição à garantia do capitalismo. Coimbra: 2014, vol. LVII, Tomo I.
____________. O estado de exceção econômico e a periferia do capitalismo. For-
taleza: Pensar, v. 11, p. 95-99, fev. 2006.
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“http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.
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BOBBIO, Norbertos e outros. Dicionário de Política. Trad. De João Ferreira, Car-
men C. Varriale e outrso. Brasília: Universidade de Brasília, 1986.
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dania e nacionalidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributá-
rio. Vol. V. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
RAWLS, John. Liberalismo Político. São Paulo: Ática, 2002, p. 262-298.

251
Tombamento entre a eficácia legal e
as modificações que ocorrem no bem

Irene Celina Brandão Felix

RESUMO: Como instituição do direito administrativo com previsão


constitucional, o tombamento é uma modalidade de intervenção na proprie-
dade, realizada pelo poder público, que gera em regra restrição parcial do
bem imóvel, com intuito de proteger a história, a cultura e a arte. O que se
pretende nesta breve análise, é refletir acerca da imutabilidade do bem tom-
bado, de forma a preservar a lembrança do momento histórico artístico e
cultural de determinada época, sendo este nomeadamente um dos princi-
pais efeitos do tombamento, bem como procurar a resposta para qual o con-
teúdo da história que se pretende preservar e qual o local histórico que inte-
ressa preservar.

Palavras Chaves: Instituições; Patrimônio Histórico; Direito Adminis-


trativo; Intervenção no Direito de Propriedade.

ABSTRACT: As an institution of administrative law with constitutional


provision, tipping is a modality of intervention in the property, carried out
by the public power, which generates, as a rule, partial restriction of the im-
movable property, in order to preserve history, culture and art. What is in-
tended in this brief analysis is to reflect on the immutability of the asset, so
as to preserve the memory of the historical artistic and cultural moment of
a given period, this being one of the main effects of the tipping, as well as
looking for the answer to which the content of the history that is intended
to be preserved and which historical site is worth preserving.

key-words: Institutions; Historical Heritage; Administrative Law; In-


tervention in Property Law.

INTRODUÇÃO

Esta breve reflexão divide-se em três partes: na primeira parte, constam


algumas considerações acerca do instituto do tombamento, buscando con-

253
ceituar e distinguir as modalidades de tombamento de bens imóveis. Na se-
gunda parte, apontamos os problemas referentes ao que pode ser conceitua-
do como patrimônio histórico no caso do tombamento voluntário, destacan-
do qual o conteúdo da história que será objeto de lembrança. No terceiro
momento, cuida-se do tombamento compulsório de bens imateriais, tendo
como mote o patrimônio cultural afro-brasileiro, como os Terreiros que
atualmente são objeto de preservação patrimonial por parte do Estado Bra-
sileiro.
No âmbito da Municipalidade, nos termos do inciso IX do artigo 30 da
Constituição da República Federativa do Brasil, cumpre a promoção e a pro-
teção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação
fiscalizadora federal e estadual.
Em razão da localização do bem objeto de tombamento, é o Município
quem realiza a verificação e a indicação de qual será objeto de tombamento,
ainda que seja de conteúdo imaterial, bem como recebe os pedidos de tom-
bamento voluntário nomeadamente de bens imóveis, móveis e imateriais,
não obstante que o IPHAN também o faça. Como consequência lógica, em
razão de ser o Município quem aprova todo e qualquer pedido de autoriza-
ção para construção civil, acaba por exercer a fiscalização da conservação dos
bens imóveis objeto de tombamento, em virtude do poder de não deferir a
autorização para construção, quando se tratar tombamento de bem imóvel.
Ainda que seja deferida a autorização para construção, demolição ou obras
de conservação depende da concordância do IPHAN, órgão responsável pela
conservação do patrimônio histórico.
O problema da pesquisa se resume em apertada síntese, em perquirir
qual o conteúdo da história que se pretende ver lembrada e em qual local a
história deve ser preservada no caso de tombamento de bem imóvel de for-
ma voluntária.
A justificativa para a reflexão acerca do tombamento se faz necessária
em razão do aumento da proteção do patrimônio imaterial constituído da
história cultura e arte do povo brasileiro. Embora seja recente a preocupação
de preservar estes bens de cunho imaterial, a história cultura e arte dos po-
vos de matriz africana no Brasil, são neste momento objeto de tombamento
em razão da Portaria nº 118/96 do IPHAN.
O tombamento de bem imóvel voluntário, por gerar um custo elevado
de manutenção e representar uma forma de intervenção na propriedade e a
restrição que sofre a propriedade da vizinhança em razão da limitação de uso
e fruição, provoca o engessamento do mercado imobiliário tendo por conse-
quência forte impacto no desenvolvimento urbano. A metodologia empre-
gada no trabalho é a pesquisa teórica, conceitual utilizando referências bi-
bliográficas de livros e artigos de periódicos publicados.

254
CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE O TOMBAMENTO

O tombamento é um instituto jurídico que visa nomeadamente a con-


servação de um bem que pode ser móvel ou imóvel, de conteúdo material
ou imaterial. Tem por finalidade garantir a preservação da história arte e cul-
tura do povo brasileiro.

A busca pela conceituação do instituto do tombamento é, em parte, frustrante,


pela escassa legislação e, consequentemente, pela falta de produção doutrinária
acerca do tema. Ladeia a escassez legislativa uma espécie de comportamento
cultural no sentido de menosprezar e até desconhecer o instituto, deixando
transparecer o conceito anacrônico e díspar da postura constitucional que reco-
nhece a propriedade privada, submetendo-a a uma função social.” (RODRI-
GUES, 2003, p. 33).

O tombamento é uma modalidade de intervenção do Estado na proprie-


dade privada, que segundo Pietro, “tem por objetivo a proteção do patrimô-
nio histórico e artístico nacional, assim considerado, pela legislação ordiná-
ria” (DI PIETRO, 2003, p. 133).
Insculpido na Constituição da República Federativa do Brasil no artigo
216 caput e incisos e parágrafos, se encontra o instituto do tombamento.
Nomeadamente, o § 1º do artigo 216, dispõe acerca da desapropriação, que
constitui uma das modalidades de intervenção na propriedade que se difere
do tombamento. Retornaremos a este ponto. No que tange ao fundamento
do tombamento

O fundamento do tombamento é a função social da propriedade, que modifi-


cou o conteúdo do direito de propriedade, ao impor ao titular desse direito a
harmonização de seu exercício com o interesse público, o qual está na preser-
vação desse patrimônio, implicando a produção de efeitos sobre o conteúdo
desse direito, por meio da obediência aos deveres instituídos ao titular do direi-
to. (TOMASEVICIUS FILHO, 2004, p. 233)

Por se tratar o tombamento de um instituto jurídico composto de nor-


mas e estruturas normativas fundamentais, e ultrapassado o conceito, dora-
vante se dirá acerca da eficácia do tombamento.
Em razão do procedimento do Tombamento ter previsto o rito próprio,
e o trâmite administrativo obedecer as fases contidas no Decreto Lei nº
25/37, com a participação do IPHAN, inicialmente o Tombamento sempre
será provisório, até que após cumpridas as formalidades legais tornar-se-á
definitivo.

A lei equipara o tombamento provisório ao definitivo para quase todos os efei-


tos, com o que ocasiona uma restrição brutal ao direito de propriedade, en-
quanto pendente, a decisão final da autoridade encarregada da preservação do
patrimônio histórico. Por isso, essa decisão não pode demorar, devendo ser pro-

255
nunciada rigorosamente dentro dos prazos legais, sob pena de a omissão ou re-
tardamento transformar-se em abuso de poder (MEIRELLES, 1985, p. 3).

Qual a eficácia atribuída ao tombamento provisório? O tombamento


provisório tem a mesma eficácia do tombamento definitivo? O tombamento
definitivo retroage visando a proteção do bem desde o tombamento provi-
sório? Durante o procedimento do tombamento provisório de quem é a res-
ponsabilidade de conservação do bem?
Há casos em que apesar do tombamento provisório, em razão da demora
do procedimento para que se torne definitivo, mudanças que alteram as ca-
racterísticas do imóvel que se pretende preservar ocorrem.
Com isso, o tombamento definitivo pode ocorrer após sérias interven-
ções no imóvel. De quem é a responsabilidade de manutenção ou desfazi-
mento da obra durante o período compreendido entre o tombamento provi-
sório e o definitivo? Em julgado recente, houve a interpretação, que o bem
objeto de tombamento provisório merecia proteção para que pudesse garan-
tir o tombamento definitivo. Assim, foi determinado no caso concreto a im-
possibilidade de demolição do imóvel. (Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a.
58, nº 181, p. 49-418, abr./jun. 2007 307).
A eficácia atribuída ao bem imóvel no caso do tombamento provisório é
a mesma do tombamento definitivo. Quanto à responsabilidade pela conser-
vação do bem tombado de forma provisória, é a mesma do bem tombado de
forma definitiva. De forma semelhante e com algumas diferenças o tomba-
mento de bens imateriais como história cultura e arte, a responsabilidade
pela conservação do bem tombado é do IPHAN, em razão do bem se encon-
trar catalogado no referido Instituto.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2003:132) afirma que no caso do tom-
bamento, a desapropriação em regra será utilizada quando a restrição afetar
integralmente o direito do proprietário; o tombamento é sempre restrição
parcial, conforme se verifica pela legislação que o disciplina; se acarretar a
impossibilidade total de exercício dos poderes inerentes ao domínio será ile-
gal e implicará em desapropriação.
No caso da desapropriação, seguirá o rito próprio e deverá haver indeni-
zação prévia e justa nos termos da Lei nº 3365/41, o que não contempla o
nosso objeto de estudo neste momento.
Entretanto, apesar da restrição parcial ser a regra do tombamento, os
proprietários dos imóveis vizinhos também sofrem os efeitos do tombamen-
to nos termos do artigo 18 do Decreto Lei nº 25/37

Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-


nal, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe
impeça ou reduza a visibilidade nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena
de ser mandada destruir a obra ou retirado o objeto impondo-se neste caso a
multa de 50% do valor do mesmo objeto.

256
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves (2008:67) destaca que as
restrições administrativas ao direito de propriedade não se direcionam ape-
nas ao imóvel tombado, mas podem atingir sua vizinhança, a fim de permitir
que o entorno não fique descaracterizado.
Em virtude dos efeitos provocados pelo tombamento de bens imóveis,
verifica-se o engessamento do mercado imobiliário, a limitação do direito de
propriedade em razão da preservação do imóvel tombado, a desvalorização
que implica em prejuízo ao proprietário, restringe o direito de propriedade
da vizinhança, e, por consequência gera o impacto no desenvolvimento da
malha urbana, alterando o desenho das cidades, com as limitações impostas
em razão do tombamento. Sob este enfoque, é forçoso reconhecer que o
prejuízo financeiro que experimenta a vizinhança de um imóvel tombado
em razão das limitações ao uso da propriedade.
Nos casos de tombamento de bens imóveis de propriedade do ente pú-
blico, preconiza o Decreto Lei nº 25/37 que o tombamento de bens públicos
deve ser de ofício nos termos do artigo 5º do referido Decreto Lei, mediante
simples notificação ao ente público que pertencer o imóvel. Caso seja tom-
bamento de documentos ou bens móveis que estejam sob a guarda do ente
público, o procedimento da notificação é o mesmo, e seus efeitos começam
a partir do momento em que o ente destinatário da notificação recebe a me-
dida.
Se faz necessário que o órgão técnico responsável se manifeste. O órgão
técnico que na esfera federal é o Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-
tístico Nacional (IPHAN), instituído como autarquia pelo Decreto nº
99.492/90 com autorização inserida na Lei nº 8029/90. Neste Decreto, re-
cebeu a denominação de Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC)
e após modificado para IPHAN. O Tombamento possui processo adminis-
trativo com rito próprio a ser seguido sob pena de nulidade.

O tombamento é precedido de um processo em que a Administração Pública


identifica o valor cultural do bem a ser tombado, havendo o direito a impugna-
ção e ao contraditório, por parte do proprietário do bem que deve ser notifica-
do, a fim de apresentar suas contra-razões ao tombamento, abrindo-se a opor-
tunidade de manifestação dos vizinhos do imóvel a ser tombado. Tem caracte-
rística constitutiva de cautelar do tombamento provisório(Borges, 2005, p. 2).

O tombamento de bens imóveis de propriedade de particulares pode ser


voluntário ou compulsório nos termos do artigo 6º do Decreto Lei 25/37. O
tombamento voluntário se dá quando o proprietário ou qualquer pessoa ofe-
rece o bem para ser tombado, possuindo o imóvel as características e requi-
sitos necessários para constituir parte integrante do patrimônio histórico e
artístico nacional, conforme o juízo do órgão técnico competente, que em
muitos casos é a própria administração pública municipal onde se situa o
imóvel.

257
Nos casos de tombamento voluntário ou compulsório, atinge como ob-
jeto o bem particular. De forma voluntária, o tombamento pode ser reque-
rido pelo proprietário ou por qualquer pessoa, desde que preenchido os re-
quisitos necessários. No caso do tombamento compulsório, é feito pelo ente
público contra a vontade do proprietário.

O tombamento compulsório é feito à revelia da vontade do proprietário e, qua-


se sempre, a questão só será dirimida pelo Poder Judiciário, ao qual cabe a apre-
ciação do mérito do ato administrativo, não de seu fundamento, pois é dever do
Estado proteger o patrimônio cultural brasileiro. O juiz não vai examinar se o
poder público deveria ou não tombar, mas se a coisa pode ser tombada, isto é,
se ela se reveste do “excepcional valor arqueológico, etnográfico, bibliográfico
ou artístico” a que se refere o caput do art. 1º de Decreto-Lei nº 25/37. O
proprietário irresignado pode oferecer impugnação ao tombamento; caso não o
faça, a coisa (será inscrita no Livro do Tombo por simples despacho da autori-
dade administrativa. Havendo impugnação, o órgão que solicitou (o tomba-
mento terá vista do processo para opinar). Em seguida, o processo é encaminha-
do para o Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, ou órgão estadual ou municipal competente (ALVES, 2008, p. 69-
70).

Apesar de o tombamento ser um instrumento em prol da preservação do


patrimônio cultural e natural, é preciso advertir que ele não se aplica a qual-
quer bem. A Constituição de 1988 ao incluir no âmbito da tutela estatal os
bens imateriais (art. 216, I, II e III) não os sujeitou necessariamente ao tom-
bamento.
Importa esclarecer que o tombamento não é a única modalidade de pre-
servação da história arte e cultura em nosso meio. Há outros meios possíveis
de conservar a cultura de um povo sem necessariamente recorrer ao tomba-
mento. “A proteção a esse patrimônio incorpóreo é feita através de outros
instrumentos (desapropriação, inventários, campanhas de divulgação, disci-
plinas específicas nos currículos escolares, etc) de modo a manter vivo na
consciência dos cidadãos a prática dessas manifestações” (ALVES, 2008, p.
82).

O QUE PODE SER CONCEITUADO COMO PATRIMÔNIO HIS-


TÓRICO NO TOMBAMENTO VOLUNTÁRIO

O problema refere-se ao conteúdo do que seja o conceito de história a


ser preservada no caso do tombamento voluntário. Qual é o patrimônio his-
tórico que se pretende preservar?
Não há uma única resposta de forma específica sem a análise do caso
concreto. O conteúdo do qual o período histórico ou a história que se pre-
tende preservar serão respondidas no momento em que se apresentar à jus-
tificativa, e os critérios para aferir o conceito de patrimônio histórico são

258
bastante genéricos e amplos, principalmente nos casos de tombamento vo-
luntário. Os requisitos que deverão ser observados referem-se ao procedi-
mento administrativo do tombamento e não ao conteúdo da história ou da
arte. Quando há por parte do ente público uma preocupação em conservar
determinado período histórico, são feitos levantamentos dos bens existen-
tes e encaminhados ao tombamento. No caso do tombamento voluntário,
que pode ser requerido pelo proprietário ou por qualquer pessoa, basta que
se apresente uma justificativa demonstrando de forma clara a razão do pedi-
do de conservação por meio do tombamento e a autoridade administrativa
poderá iniciar o procedimento, em razão de ser um ato de natureza discri-
cionária do ente público.
Assim, caso seja indicado um bem imóvel para tombamento de forma
voluntária e administrativa sem lograr êxito, resta ao cidadão o pedido judi-
cial. Assim, “qualquer cidadão tem o direito subjetivo (de caráter difuso) de
ver a coisa protegida, embora não seja o titular imediato desta universalida-
de, mas pode exigir a sua conservação e restauração pelos meios processuais
próprios, v.g., a ação popular (art. 1º, §1º, da Lei nº 4.717/65)” (ALVES,
2008, p. 83-84).

A ação civil pública é capaz de obrigar o particular ou o Estado a preservar o


bem, ainda que liminarmente, mas não tem como constituir por meio da sen-
tença o tombamento do bem, nem pode obrigar qualquer dos órgãos responsá-
veis a iniciar o processo de tombamento, caso isso seja necessário para a sua
preservação. Seu máximo alcance é funcionar como um tombamento indireto,
produzindo-se algum dos efeitos desse instituto jurídico a posteriori por meio
da decisão judicial. Em suma, muitas vezes há a necessidade de que a sentença
constitua o tombamento do bem, mas, devido à separação de poderes, não pode
o Poder Judiciário substituir-se à Administração nessa matéria (TOMASEVI-
CIUS FILHO, 2004, p. 241).

O Decreto Lei nº 25 de 30/11/1937, ainda vigente, organiza a proteção


do patrimônio histórico e artístico nacional. No artigo 1º do referido diplo-
ma legal, se encontra um conceito bastante amplo do que seja o patrimônio
histórico e quais são os bens passíveis de tombamento. Dispõe o artigo 1º do
referido diploma legal:

Art. 1º Constituem o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos


bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse
público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer
por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artís-
tico.

A questão que merece ser refletida é qual o conteúdo da história que se


pretende ver lembrada e em qual local a história deve ser preservada. Nas
periferias brasileiras não se verificam atos de tombamento como aqueles

259
existentes nos centros históricos das cidades brasileiras. Importante obser-
var que o conteúdo do que seja o período histórico é bastante controvertido.

A história não é elemento neutro e as diferentes formas de sua narrativa devem


ser problematizadas de maneira a revelar as injustiças a serem combatidas no
sentido da realização do direito à cidade. A narrativa histórica clássica, das le-
tras, muitas vezes é percebida como campo de disputa, sobretudo se observar-
mos o campo acadêmico histórico e da historiografia; no entanto, a narrativa
histórica produzida pela linguagem urbana, pela sintaxe do patrimônio históri-
co, muitas vezes é encarada como algo intocável, neutro, destacado da realida-
de. Os tecidos urbanos que são escolhidos para contar as histórias oficiais cos-
tumam ser denominados como “centros históricos” retirando, por consequên-
cia, a história dos outros centros e, obviamente, das periferias (RIBEIRO e SI-
MÃO, 2014, p. 4).

Seria importante comparar a história de outros centros urbanos brasilei-


ros conforme citado pelo autor acima referenciado, no que tange aos bens
imóveis situados nas periferias, de forma a preservar a lembrança da forma
de vida desta população, o que não é objeto desta investigação.
Nota-se uma grande preocupação do legislador constituinte, na Seção II
do título referente à Cultura, cujo objetivo é a proteção dos direitos cultu-
rais e dos bens materiais e imateriais referentes à ação e memória de dife-
rentes grupos formadores da sociedade brasileira.
A memória da identidade dos grupos que já compuseram a sociedade
brasileira também merece ser preservada. São os nossos antepassados que
muito contribuíram com o costume, a arte e cultura ainda enraizadas no
povo brasileiro atualmente.

O TOMBAMENTO COMPULSÓRIO DE BENS IMATERIAIS

A partir da promulgação da Constituição da República Federativa do


Brasil, verificou-se a preocupação do Poder Público com a preservação da
história arte e cultura brasileira. O primeiro ato de tombamento compulsó-
rio de bens imateriais ocorre no já citado § 5º do artigo 216 da Constituição,
no que se refere à história dos antigos quilombos.
Após a Constituição de 1988, são criadas inúmeras Leis com o objetivo
de preservar bens imateriais, como a cultura, a história e arte, principalmen-
te dos povos de matriz africana no Brasil.
A Lei que nos interessa neste momento é a Portaria nº 188 de 18 de
Maio de 2016, que tem por objetivo o tombamento dos Terreiros, lugar de
exercício da religiosidade de matriz africana brasileira. Até a presente data,
verifica-se no site do IPHAN, que alguns Terreiros no Estado da Bahia fo-
ram tombados. Outros ainda se encontram em processo de tombamento. É
importante que sejam tombados os demais Terreiros situados em outros Es-
tados e Municípios brasileiros.

260
De acordo com Otair Fernandes e Luciane Barbosa (2016:03) o reco-
nhecimento do patrimônio cultural afro-brasileiro no âmbito da preservação
patrimonial por parte do Estado é algo recente no Brasil. Isso porque se por
um lado, a ampliação da noção de patrimônio operada conceitualmente me-
diante adoção da referência a natureza imaterial da cultura colocou no cen-
tro do debate questões relacionadas a pluralidade e diversidade cultural, o
que implica numa transformação teórica e metodológica no campo dos estu-
dos sobre patrimônio. Por outro lado, a luta histórica dos afro-brasileiros por
direitos e reconhecimentos também deve ser considerada, em particular o
protagonismo do movimento negro nacional mediante as suas várias formas
de organização na luta por reconhecimento, reparação e valorização da cul-
tura afro-brasileira, sobretudo, ao longo do processo de democratização do
país, desde os anos oitenta.

A Carta Magna de 1988 catalisa esse processo não apenas definindo o patrimô-
nio cultural brasileiro como os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação,
à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, como os
afro-brasileiros e indígenas, mas, sobretudo, determinando a participação des-
ses grupos, em parceria com o Estado, nas políticas de preservação do patrimô-
nio considerando a democratização do acesso aos bens de cultura e a valorização
da diversidade étnica e regional. (FERNANDES E BARBOSA, 2016, p. 3).

O Legislador Constituinte quando cria e institui o Tombamento de bens


imateriais como são por exemplo os documentos e sítios de reminiscências
históricas, evolui bastante o conceito de patrimônio cultural e acaba por fo-
mentar políticas públicas no sentido de preservar a cultura do povo brasi-
leiro.

Essa escassez de referências às matrizes africanas e indígenas no conjunto do


patrimônio cultural brasileiro não é fruto do acaso e da ignorância do Estado.
Ao contrário, o eurocentrismo e o foco na materialidade cujo único instrumen-
to jurídico era o “tombamento” consubstanciaram uma política de preservação
voltada para monumentalização de bens culturais que representavam uma elite
cultural e social. (FERNANDES E BARBOSA, 2016, p. 2)

Atualmente o IPHAN através da Portaria nº 188 de 18 de Maio de 2016


aprovou ações para preservação de bens culturais dos Povos e Comunidades
Tradicionais de Matriz Africana.

Art. 1º – Aprovar Ações para Preservação de Bens Culturais dos Povos e Comu-
nidades Tradicionais de Matriz Africana, disposto nos eixos de Identificação e
Reconhecimento, Formação e Capacitação, Apoio e Fomento e Valorização, na
forma do Anexo I, que assume compromisso junto aos Povos e Comunidades
Tradicionais de Matriz Africana pelo período de 04 anos.

261
A referida portaria é do ano de 2016 e se vigora por quatro anos, termi-
nará sua vigência no ano de 2020 e merece ser prorrogada por sua importân-
cia. A informação que será adquirida durante a vigência da Portaria em co-
mento, é de extrema importância tendo em vista o desconhecimento da cul-
tura de matriz africana por boa parte da sociedade brasileira.
A cultura de matriz africana representa uma riqueza contida na diversi-
dade cultural existente em todas as regiões brasileiras.
No anexo I da referida Portaria, constam as

Ações para Preservação de Bens Culturais dos Povos e Comunidades Tradicio-


nais de Matriz Africana. Grupo de Trabalho Interdepartamental para Preserva-
ção do Patrimônio Cultural de Terreiros (GTIT) Brasília, maio de 2016. O Ins-
tituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, por meio Grupo
de Trabalho Interdepartamental para Preservação do Patrimônio Cultural de
Terreiros (GTIT), apresenta diretrizes e ações que compõem Ações para pre-
servação dos bens culturais dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz
Africana, dispostas nos eixos de Identificação e Reconhecimento, Formação e
Capacitação, Apoio e Fomento e Valorização dos Povos e Comunidades Tradi-
cionais de Matriz Africana, como segue: Eixo Identificação e reconhecimento:
Finalização dos processos de reconhecimento abertos até 2016 (BA, SE, PE,
RJ, SP). Os processos abertos a partir de então, seguirão os prazos estabeleci-
dos nos atos normativos específicos de cada instrumento de acautelamento.

O conjunto de medidas proposto pela citada Portaria, cria também cur-


sos à distância visando capacitar profissionais cujo objetivo é a preservação
do patrimônio imaterial de comunidades e povos de diversas expressões da
cultura e da história brasileira promovendo o multiculturalismo e tendo
como consequência a diminuição do preconceito e do desconhecimento da
cultura e da arte. Trata-se de mais uma forma de inclusão social. Por meio
das ações de salvaguarda de um bem cultural, preconizadas pelo Decreto Lei
nº 3551/2000, e com a participação ativa do IPHAN, são estabelecidos os
critérios que envolvem a seleção dos bens que deverão ser preservados.

A salvaguarda de um bem cultural implica no estabelecimento de um conjunto


de medidas que visam garantir a sua permanência. A identificação, documenta-
ção, investigação, preservação, proteção, promoção, valorização, transmissão
(essencialmente por meio da educação formal e não-formal) e revitalização do
patrimônio imaterial em seus diversos aspectos, em constante construção par-
ticipativa da comunidade detentora, são etapas do processo de Registro, con-
forme preconiza o Decreto nº 3.551/2000. Através deste Decreto o Estado
brasileiro busca dar garantias para a valorização das diversas expressões da cul-
tura brasileira asseguradas por meio do reconhecimento e de ações de apoio e
fomento, às condições de produção e reprodução dessas referências culturais,
criando o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI) (FERNANDES
E BARBOSA, 2016, p. 5).

262
A valorização da arte, cultura, e, a preservação da identidade e história
brasileira também influenciam o turismo nas cidades e provocam um envol-
vimento e participação maior da comunidade tanto durante o processo ante-
rior ao tombamento, na fase de tombamento provisório, quanto após o tom-
bamento de forma definitiva.

A construção de um outro horizonte historiográfico se apóia na possibilidade de


recriar a memória dos que perderam não só o poder, mas também a visibilidade
de suas ações, resistências e projetos. Ela pressupõe que a tarefa principal a ser
contemplada em uma política de preservação e produção de patrimônio coleti-
vo que repouse no reconhecimento do direito ao passado enquanto dimensão
básica da cidadania é resgatar estas ações e mesmo suas utopias não realizadas,
fazendo-as emergir ao lado da memória do poder e em contestação ao seu triun-
falismo. Aposta, portanto, na existência de memórias coletivas que, mesmo he-
terogêneas, são fortes referências de grupo mesmo quando tenham um fraco
nexo com a história instituída. É exatamente aí que se encontra um dos maiores
desafios: fazer com que experiências silenciadas, suprimidas ou privatizadas da
população se reencontrem com a dimensão histórica. Por esta via, pode-se
constituir uma política de preservação (e uma historiografia) que deverá ter em
mente o quanto o poder desorganizou a posse de um sentido das participações
coletivas, destruindo a possibilidade de um espaço público diferenciado (PAO-
LI, 1992, p. 25-28).

O envolvimento da população com a conservação proteção e promoção


e a valorização das lembranças de um povo constituem também o patrimô-
nio cultural e artístico. A preservação implica em democratizar a cultura a
história e a arte.

RESPONSABILIDADE DE CONSERVAÇÃO DO BEM

No caso da conservação dos bens imóveis, é interessante observar de


quem é o dever de conservação da propriedade tombada. Em que pese ser
da responsabilidade do proprietário a manutenção do bem nos termos do ar-
tigo 19 § 1º Decreto Lei nº 25/37, quando o proprietário logra êxito em
comprovar a inexistência de recursos financeiros suficientes para a conser-
vação do bem, o ônus da manutenção do imóvel tombado transfere-se ao
ente público.
Salienta-se por oportuno que encontrar o material e mão-de-obra espe-
cializada em restauração de antiguidades, além de não ser tarefa fácil acarre-
ta um custo um maior para o proprietário do imóvel, sob este aspecto, acre-
dita-se que é o tombamento conforme dito anteriormente é uma modalida-
de de intervenção na propriedade. Não constituindo uma desapropriação.
Tampouco é um direito real de garantia uma vez que não se encontra ti-
pificado no Código Civil, entretanto, não se pode negar que o imóvel perde
substancialmente o seu poder atrativo de mercado e experimenta a diminui-

263
ção em seu preço, causando prejuízo financeiro principalmente ao proprie-
tário.
Da mesma forma sofre aquele que adquiriu o bem tombado a responsa-
bilidade da manutenção de um bem penalizado com a intervenção direta do
tombamento.
De certo que existe uma dificuldade na fiscalização do poder público no
que se refere a conservação do patrimônio histórico, em razão das constru-
ções realizadas no interior dos imóveis tombados, sem o devido requerimen-
to de autorização junto a Municipalidade, alterando substancialmente o
imóvel objeto de tombamento.
“Acresce que é de competência municipal a autorização de construções,
mediante aprovação das respectivas plantas; já têm ocorrido hipóteses em
que aprovada pela Prefeitura, vem depois a construção a ser impugnada pelo
IPHAN (cf. parecer in RDA 93:379)” (DI PIETRO, 2003, p.140).
É importante observar o disposto no § 2º do artigo 19 do Decreto Lei nº
25/37, que prevê a possibilidade do proprietário requerer o cancelamento
do tombamento, quando o poder público tem o ônus de executar as obras de
conservação do bem.
Merece destaque, o disposto no artigo 20 do Decreto Lei nº 25/37, em
razão de preconizar o citado artigo, a permanente vigilância sobre as coisas
tombadas, inspecionando-as sempre que julgar conveniente. No caso de mo-
radias tombadas, fiscalizar o interior da casa da família é sempre constrange-
dor.
No caso específico da moradia, a necessidade do morador vai alterando
com o tempo, e as obras de modificação também. Não despiciendo observar
que o imóvel residencial tombado pode ser vendido a outras pessoas, que
também acabam por realizar mudanças importantes na habitação sendo
muito difícil revelar quem fez a modificação e quando foi feita a intervenção
em que pese haver perícia técnica. No caso de tombamento apenas de facha-
da de moradia, é mais fácil perceber quando há obras de modificação. Neste
sentido, já há algumas Decisões Judiciais, que apontam no sentido que o
atual morador não pode ser responsabilizado pelas alterações promovidas
anteriormente.
De forma diferente ocorre nos casos de tombamento de bens imateriais
remanescentes da história e cultura onde não há um bem móvel. A história
e cultura e arte têm sido preservadas em grande parte por meio de Registro
em Livro Tombo e procedimento próprio e específico da competência do
IPHAN.

CONCLUSÃO

Verificou-se no decorrer desta investigação, que o tombamento é uma


modalidade de intervenção na propriedade, com a finalidade de preservação
histórica artística e cultural. O tombamento pode incidir sobre bens imóveis

264
e bens móveis e também aqueles destituídos de cunho material, como são os
bens imateriais de caráter histórico, citados no curso do trabalho como os
Terreiros, de matriz africana existentes em nossas cidades.
De caráter bastante controvertido, o instituto do tombamento no que
tange aos bens imóveis, gera restrição ao direito de propriedade do proprie-
tário e também da vizinhança, não se mostrando como uma melhor solução
em termos de conservação de patrimônio histórico. Quanto aos bens mó-
veis, também não se revela o tombamento a melhor opção, em razão da di-
ficuldade de conservação do bem.
Por outro lado, é forçoso concluir que após o advento da Constituição da
República Federativa do Brasil, houve um aumento no conteúdo do que seja
patrimônio histórico cultural e artístico, bem como da história que se pre-
tende preservar.
No caso do tombamento voluntário, o conteúdo da história que se pre-
tende preservar é genérico e subjetivo. Com a criação da Portaria nº 188/06
do IPHAN, que determina a conservação de dos bens culturais dos povos de
matriz africana, emerge cristalina a democratização do acesso aos bens de
cultura e a valorização da diversidade cultural de cada região do País. Em li-
nhas conclusivas, vale dizer que o Tombamento não altera a propriedade de
um bem; apenas proíbe que ele venha a ser destruído ou descaracterizado.
Logo, um bem tombado não necessita ser desapropriado, mas deve manter
as características que possuía na data do tombamento.
Não se pode olvidar que o tombamento é uma das iniciativas possíveis
de serem tomadas não sendo a única forma de preservação dos bens cultu-
rais/ambientais, na medida em que impede legalmente a sua destruição e
descaracterização. É necessário deixar claro que aquele que ameaçar ou des-
truir um bem tombado está sujeito a processo legal que poderá definir mul-
tas, medidas compensatórias ou até mesmo a reconstrução do bem como es-
tava na data do tombamento dependendo do veredicto final do processo.
A Constituição Federal no Artigo 216, estabelece que é função da
União, do Estado e dos Municípios, com o apoio da comunidade, preservar
os bens culturais e naturais brasileiros, dando especial atenção aos sítios ar-
queológicos. A notificação do achado de um sítio arqueológico ou qualquer
projeta de intervenção em áreas de sítios arqueológicos devem ser comuni-
cadas ao IPHAN.

REFERÊNCIAS:

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Proteção ao Patrimônio Cultural. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo
Horizonte, v. 98, p. 65-98, jul-dez, 2008.
BORGES, Marco Antônio. Revista Jurídica, Brasília, v 7, nº 73, p. 01-04, junho-ju-
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265
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2003,
16º ed.
FERNANDES, O. e BARBOSA, L. Patrimônio Cultural Imaterial dos Afro-Brasi-
leiros na Baixada Fluminense: contradições e possibilidades. In: Entre o Local
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MEIRELLES, Hely Lopes. Tombamento e Indenização. Revista de Direito Admi-
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NADER, Paulo Introdução ao Estudo do Direito, Rio de Janeiro: Forense, 1998,
16ª ed.
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PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In. O di-
reito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992, p.
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PELEGRINI, Sandra C. A. O patrimônio cultural e a materialização das memórias
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RIBEIRO, Cláudio Rezende; SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Relações e contradi-
ções: direito à cidade e patrimônio urbano. In: III Encontro da Associação Na-
cional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo arquitetura,
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RODRIGUES, Francisco Luciano Lima. Breve estudo sobre a natureza jurídica do
tombamento, 32 Pensar, Fortaleza, v. 8, n. 8, p. 32-38, fev. 2003.
TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O tombamento no Direito Administrativo e
Internacional. Revista de Informação Legislativa. Brasília v. 41, n. 163, p. 231-
248, jul./set. 2004.

266
Uma análise lógica da Lei Anticorrupção
frente à Lei de Improbidade Administrativa

João Victor Tavares Galil


Fernando Rangel Alvarez dos Santos

Resumo: O presente estudo analisou a lei anticorrupção frente à lei de


improbidade administrativa por um viés da análise lógica de Lourival Vilano-
va acerca dos recursos de linguagem para o direito administrativo sanciona-
dor. A pesquisa parte da ideia de que pode ou não haver repetição de nor-
mas, ou seja, bis-in-idem nas duas leis no que tange ao direito administrativo
sancionador. A metodologia envolveu as fontes bibliográficas e a doutrina
para verificar a hipótese e os resultados apresentam dificuldades jurídicas na
aplicação das leis, principalmente no que se refere aos acordos de leniência.

Palavras-chave: anticorrupção; improbidade administrativa; lógica jurí-


dica.

Abstract: This essay analyzed to the anticorruption law and the admin-
istrative improbity by a logical analysis of Lourival Villanova involving the
language resources for the public punitive law. This research begins from
the idea that could or not happen legal repetition, it means, bis-in-idem on
the both laws who treats public punitive law. The methodology involved the
bibliographic sources and the doctrine to verify the hypotheses the results
show us juridical difficulties on the application of both laws, mainly when
its refers to the plea bargaining.

Key words: administrative improbity; legal logic; anti-corruption.

1. Breves considerações iniciais

A Lei nº 12.846/2013, mais comumente conhecida como a Lei Anticor-


rupção de Pessoas Jurídicas, tem causado fortes incômodos à comunidade
jurídica no que diz respeito aos limites de sua aplicação.
Enquanto alguns se tornam fortes defensores do poder combativo do di-
ploma aos atos de corrupção que contaminam a sociedade brasileira, outros

267
argumentam que Lei não passa de mais um documento normativo que pou-
co inova no sistema jurídico.
Grande parte deste incômodo vem da confusão gerada quando pensada
na aplicação de seus dispositivos paralelamente à aplicação da Lei de Impro-
bidade Administrativa, Lei nº 8.429/92.
É inegável que a existência contemporânea dos dois diplomas normati-
vos criou uma massa cinzenta recheada de dúvidas em relação à incidência e
campo de atuação do poder preventivo-punitivo de cada um.
Não é para menos. Afinal, as condutas tipificadas por cada um destes do-
cumentos guardam incrível similaridade entre si. É o caso de como, por
exemplo, aquela estipulada pelo art. 5º, I da Lei nº 12.846, que prevê a san-
ção à pessoa jurídica que “prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamen-
te, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relaciona-
da;”, que mantém características muito parecidas aos incisos elencados pelo
art. 9º da Lei de Improbidade Administrativa – referentes aos atos de im-
probidade que importam em enriquecimento ilícito.
Diante deste cenário, tem surgido discussões, desde as bancas de con-
gressos relativos a temas de direito administrativo até as páginas da doutrina
especializada1, sobre se seriam perfeitamente aplicáveis ou não ambos os
textos normativos, se teriam havido algum tipo de derrogação da Lei mais
antiga ou se a vigência simultânea resultaria em situações que tocassem em
algum tipo de reflexão sobre a proibição do “bis in idem”.
De forma dissonante ao que pode parecer e com reconhecida ousadia
que, mais do que criticável, deve ser encorajada para o bom desenvolvimen-
to da Academia, não se acredita que tal debate de importe em enorme tor-
tuosidade, nebulosidade e necessite de profunda meditação pelos estudio-
sos e aplicadores do Direito em questões de alta abstração.
Pautar-se-á a discussão sobre critérios meramente lógicos, sem que tal
adjetivo possa soar pejorativo, no sentido de que a visão sobre a estrutura
das normas que compõe os diplomas e a relação por eles tratada é elemento
suficiente para chegar-se a uma conclusão que, se não definitiva, constitui
enorme fonte de solução de dúvidas e problemas que a muitos servem de
angústia.
Para clarificar a exposição do tema, e a absorção de nossas ideias para
quem as lê, pautaremos, sempre que necessário, a comparação das duas con-
dutas sobre as características da conduta conhecida comumente como cor-
rupção, de modo que o art. 5º, I da Lei Anticorrupção2 e o art. 9º, “caput”3

1 José Roberto Pimenta Oliveira afirmou seu entendimento de que as pessoas jurídi-
cas podem ser sancionadas pela Lei de Improbidade Administrativa ao comentar o art.
2º da Lei Anticorrupção em obra coordenada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Thia-
go Marrara (OLIVEIRA in DI PIETRO; MARRARA. 2017, p. 24).
2 Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira,
para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no
parágrafo único do art. 1o, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estran-

268
e incisos assumem papel primordial sem, no entanto, descaracterizar a con-
clusão relativa aos diplomas em suas respectivas amplitudes.
A compreensão deste fenômeno é essencial para solucionar uma impor-
tante discussão levantada ao fim deste trabalho, que, acredita-se, ser de
grande importância no cenário após a entrada em vigor da Lei Anticorrup-
ção: Se a celebração do Acordo de Leniência seria uma produção de provas
do colaborador contra si mesmo, visto haver ali a exposição de fatos que ba-
seariam o ajuizamento de uma Ação de Improbidade Administrativa. Esta,
por sua vez, tendo como sustentáculo fático o mesmo ato de corrupção e
como polo passivo o mesmo sujeito presente no acordo celebrado.

2 A relação na Lei Anticorrupção e o conflito frente ao art. 3º da Lei de


Improbidade Administrativa.

O anteprojeto de Lei que se transformou na Lei nº 12.846/93, segundo


verifica-se por sua Exposição de Motivos – EMI Nº 00011 2009 –, objeti-
vava:

(...) suprir uma lacuna existente no sistema jurídico pátrio no que tange à res-
ponsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a Admi-
nistração Pública, em especial por atos de corrupção e fraude em licitações e
contratos administrativos.

Afirmando ainda que:

As lacunas aqui referidas são as pertinentes à ausência de meios específicos para


atingir o patrimônio das pessoas jurídicas e obter efetivo ressarcimento dos pre-
juízos causados por atos que beneficiam ou interessam, direta ou indiretamen-
te, a pessoa jurídica.4

geiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacio-


nais assumidos pelo Brasil, assim definidos:
I – prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente
público, ou a terceira pessoa a ele relacionada;
3 Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento
ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de
cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1°
desta lei, e notadamente:
I – receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer
outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, grati-
ficação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido
ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público;
4 Disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1084183.pdf. Acesso em
14 dez. 2017 p. 9.

269
Conforme claramente pode se verificar, reconhecia-se neste momento
que a legislação não respondia de forma suficiente aos atos ilícitos contrários
à Administração Pública – dentre eles, os de corrupção – praticados por Pes-
soas Jurídicas.
Embora condutas tipificadas pela nova Lei daquele momento já tives-
sem anteriormente sido estabelecidas – a exemplo das sanções existentes da
Lei Geral de Licitações – fato é que, até aquele momento, nenhum diploma
tinha se preocupado em estabelecer procedimentos expressos para buscar a
responsabilização objetiva das Pessoas Jurídicas de forma tão concisa e deta-
lhada quanto ao diploma Anticorrupção5.
Neste cenário, a Lei de Improbidade Administrativa assumia caráter de
enorme protagonismo, utilizada por órgãos de controle, sobretudo o Minis-
tério Público, como base para o ajuizamento de Ação responsável por sancio-
nar os agentes causadores do dano. Mais especificamente, vale afirmar, a
Ação de Improbidade Administrativa.
No entanto, para que a Ação de Improbidade Administrativa fosse o cor-
reto diploma para tal responsabilização buscada, deveria estar a Lei daquele
momento redigida a fim de poder incidir e realizar efeitos sobre aquela per-
sonalidade fictícia.
Os agentes ímprobos que não são agentes públicos e que podem sofrer
os efeitos da Lei nº 8.429/92 são, até hoje, aqueles previstos do art. 3º dessa.
Tal a letra da Lei:

Art. 3° As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mes-
mo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de im-
probidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta.

A leitura do dispositivo leva-nos a perceber que, para sofrer os efeitos da


Lei, deve haver necessariamente a presença de elemento volitivo na compo-
sição da conduta executada6.
É a conclusão que se chega ao observar a presença dos verbos “induzir” e
“concorrer” no dispositivo legal.

5 Nesse sentido Mellilo Dinis do Nascimento é expresso ao afirmar: “A primeira e


grande novidade da Lei Anticorrupção é o fato de cuidar de um aspecto nunc tratado de
forma direta pela legislação que tenta proteger o patrimônio público dos ataques da
corrupção: a responsabilidade objetiva no campo administrativo e civil das pessoas jurí-
dicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.”
[NASCIMENTO (org.), 2014. p. 111].
6 FAZZIO (2015, p. 68-69) descreve da seguinte forma: “Em princípio, esse dispo-
sitivo não distingue entre terceiro pessoa física e terceiro pessoa jurídica, mas ao usar a
expressão mesmo que não seja agente pública e ao aludir aos verbos induzir e concorrer,
para descrever a conduta do extraenus, certamente está se referindo à pessoa natural,
não à jurídica”

270
De fato, pela própria natureza conotativa de tais verbos, passa-se a inter-
pretar o ato de improbidade administrativa no sentido de que este, por si só,
deva possuir em sua base estrutural a presença do dolo do agente envolvido.
É assim em relação ao agente público, pessoa física, e assim deve ser em re-
lação ao particular que com ele atue.
Desse modo, todas as condutas elencadas em incisos dos artigos 9º, 10 e
11 da Lei7 haveriam de ser condutas necessariamente dolosas, abrindo-se
aqui uma pequena ressalva às condutas especificamente do artigo 10 – rela-
tivo aos atos que importem danos ao Erário – por ter decidido a própria Lei,
explicitamente, em admitir a conduta culposa8.
Fica então a dúvida: se a conduta que será vista como ato ímprobo im-
porta em elemento volitivo, como pode então uma pessoa jurídica, despro-
vida de dolo ou culpa por sua própria natureza fictícia, ser vista como agente
ímprobo?
Aqueles que defendem a possibilidade valem-se da Teoria da Realidade
Técnica9, de forma a atribuir às pessoas jurídicas, forçadamente, um âmbito
de intenção de agir que não se confundiria com a intenção daquelas pessoas
naturais que dela se utilizam.
Tal interpretação, extensiva e, portanto, não permitida no âmbito do Di-
reito Administrativo Sancionador, divide ainda espaço com outra interpre-
tação insistente em atribuir às pessoas jurídicas a responsabilidade pelos atos
elencados: aquela que as posiciona na figura do “beneficiado” mencionado
no art. 3º10.
Tais hipóteses são minimamente, insistimos, forçadas e não há porque
adotá-las. O ato ímprobo só é ato ímprobo quando ocorre a incidência da
conduta realizada no mundo dos fatos sociais sobre a hipótese do mundo das
normas.
A norma jurídica é composta de um antecedente – uma hipótese que re-
corta fatos do mundo social, sem poder abrangê-lo como um todo – e um
consequente – uma relação modalizada, podendo apresentar-se como obri-

7 Não julgamos apropriado tratarmos aqui da conduta tratada pelo art. 10-A, incluí-
do na Lei de Improbidade Administrativa por força da Lei Complementar nº 157 de
2016, por acreditarmos que fugiria do restante do tema aqui trabalhado.
8 Art. 5° Ocorrendo lesão ao patrimônio público por ação ou omissão, dolosa ou cul-
posa, do agente ou de terceiro, dar-se-á o integral ressarcimento do dano.
9 “De notar-se que, a partir da teoria da realidade técnica, confere-se às pessoas jurí-
dicas a capacidade de aquisição e exercícios de direitos, capacidade para a prática de
atos e negócios jurídicos, enfim. Pode-se afirmar, de todo modo, que possuem elas uma
vontade distinta da vontade de seus integrantes(...)” (GARCIA, Emerson; PACHECO
ALVES, Rogério. 2014, p. 928).
10 “Também as pessoas jurídicas poderão figurar como terceiros na prática dos atos de
improbidade, o que será normalmente verificado com a incorporação ao seu patrimônio
dos bens públicos desviados pelo ímprobo” (Idem. p. 368).

271
gatória, proibida ou permitida, e que se estabelece quando confirmada a hi-
pótese do antecedente.
Além disso, a norma jurídica, por ser um dever-ser imposto pelo legisla-
dor, é composta ainda por um functor-de-functor – representado pela variá-
vel D – e um conector , responsável por modalizar a conduta em uma das
três formas pelas quais, ontologicamente, deve se apresentar (comando per-
mitido, proibido ou obrigatório)11.
Reduzindo complexidades, observamos a seguinte estrutura lógica: D
[H  C].
Especificamente em relação ao consequente, este vem a estabelecer
uma relação jurídica entre dois sujeitos, necessariamente, distintos: S’ R S’’.
É o que se convencionou denominar como caráter irreflexivo do Direito, pe-
rante o qual a norma jurídica nunca poderá estabelecer uma relação entre o
sujeito consigo mesmo. Caso assim ocorra, opera-se o instituto da confusão,
responsável por extinguir relações jurídicas12.
Primeiramente, a relação estabelecida se consubstancia em um dever de
conduta imposto pelo sistema – essa é o que se chama de norma primária –
cujo descumprimento corresponde a uma nova hipótese que, por sua vez,
estabelecerá uma nova relação entre um sujeito da norma primária detentor
de direito subjetivo e o Estado-juiz, responsável por forçar o sujeito que des-
cumpriu o seu dever de prestação a cumprir com o mesmo – essa é a norma
secundária.
A junção da norma primária e secundária constitui-se na estrutura com-
pleta da norma jurídica, que afirma que em caso de descumprimento da
conduta consequente da norma primária, cumprida estará a hipótese da nor-
ma secundária e, portanto, sua respectiva consequência, responsável por es-
tabelecer uma nova relação que abarcará, desta vez, o Estado-juiz: D {(H’ 
S’ R’ S’’) v [-(S’ R S’’)  S’ R’’ S’’’]}
Ocorrendo então uma conduta típica de corrupção, como o oferecimen-
to de vantagem a agente público, ainda assim não é sustentáculo o suficiente
para afirmar que pratica a empresa um ato ímprobo. Pode até ser algum ato
tipificado em Lei, mas ímprobo, conforme tratado pelos termos da Lei nº
8.429/92, não é.
Isso porque a conduta exigida pela norma primária ali existente – neste
caso o de agir de forma proba perante a Administração Pública – e gerar a
relação jurídica prevista pela Lei de Improbidade Administrativa, estabele-

11 Para uma perfeita compreensão sobre o tema vide: Vilanova (2005).


12 Vale a transcrição de palavras mais sábias proferidas por Lourival Vilanova: “Sob o
estrito ponto de vista lógico-formal, um mesmo termo de uma relação qualquer R pode
ocupar as duas posições na estrutura relacional: x R x (assim nas relações reflexivas de
identidade, de igualdade). No direito, porém, formalizando a estrutura relacional da
norma teremos que um sujeito qualquer S’ mantém uma relação qualquer R em face de
outro sujeito qualquer S’’. (Op. cit. p. 74)

272
ceu relação (R) entre o Estado-Administração (S’) e o agente público ou o
agente privado que com aquele atuou (S’’).
Consequentemente, em caso de descumprimento deste dever de con-
duta, será a força sancionadora do Estado-juiz (S’’’) destinada a sancionar
este mesmo sujeito da relação primária (S’’).
A pessoa jurídica pode, por sua vez, vir a compor relação conexa, mas
que com aquela não se confunde. Pode a pessoa jurídica sim, ser utilizada
pelo agente privado para fins de ato de improbidade, mas não se confere em
sujeito na relação estabelecida, nem mesmo como beneficiado13. Prova dis-
so, é a redação dos incisos do art. 12 da Lei responsável, que ao elencar as
sanções em seus princípios, é expressa ao afirmar que sofrem as sanções
aqueles terceiros, mesmo beneficiados, “ainda que por intermédio da pessoa
jurídica da qual seja sócio majoritário...).”14
O que ocorre, neste caso, é uma relação anterior entre um sócio, por
exemplo, e uma entidade que goza de personalidade jurídica – como uma
sociedade empresária que, no momento da prática do ato ímprobo, é utiliza-

13 Mesmo dentre aqueles que considerem a pessoa jurídica como beneficiada da rela-
ção, admitem que a sanção sobre ela não é o mecanismo adequado aos termos da Lei.
Neste sentido, Waldo Fazzio Junior afirma que: “Para alcançar os verdadeiros beneficiá-
rios (sócios) de ato de improbidade que formalmente favorece pessoas jurídicas (cuja
existência e patrimônio são distintos dos sócios e de seu cabedal), o instrumento legal
indicado é a desconsideração da personalidade jurídica.” (Op. cit; p. 69).
14 Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas
na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes
cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a
gravidade do fato: (Redação dada pela Lei nº 12.120, de 2009).
I – na hipótese do art. 9°, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao
patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública,
suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três
vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou
receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda
que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez
anos;
II – na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valo-
res acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da fun-
ção pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa
civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou
receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda
que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco
anos;
III – na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da
função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de mul-
ta civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de
contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios,
direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio
majoritário, pelo prazo de três anos.

273
da como “ferramenta”. Essa relação anterior, no entanto, não é suficiente
para deslegitimar o que vem sendo até agora apresentado.
O sistema jurídico, vale dizer, é composto das mais variadas relações ir-
reflexivas, anteriores ou não à hipótese de determinada norma jurídica, for-
mando uma teia de tão altíssima complexidade que apenas um “juiz-Hércu-
les dworkiano”15 seria capaz de conhecer por inteiro.
Por este motivo, a intenção do legislador em estabelecer relação oriunda
de ato de corrupção na qual figuraria uma pessoa jurídica exigiu previsão em
norma distinta àquelas inseridas na Lei de Improbidade Administrativa. A
Lei Anticorrupção veio a assumir a posição até então vaga.
Enquanto a Lei de Improbidade Administrativa estabelece relação R
unindo o agente privado que, por sua vez, utilizou-se de pessoa jurídica, e a
Administração Pública, a Lei Anticorrupção é responsável por posicionar em
relação análoga a figura da pessoa jurídica.
A problemática mora na hipótese referente ao dever de probidade que-
brado, que gerará a relação secundária na qual o dever de improbidade des-
cumprido será imposto, em forma de sanção, pelo Estado-juiz.
O que ocorre, na realidade, é que diferentes normas estabelecem dife-
rentes hipóteses sobre diferentes fatos jurídicos recortados do mesmo fato
social, de forma que o ato no mundo social pode gerar diferentes consequên-
cias no mundo jurídico oriundas de diferentes hipóteses confirmadas (dife-
rentes fatos jurídicos).
Nesse sentido, CARVALHO (2015, p. 160) observa:

(...) normas diferentes podem incidir sobre o mesmo suporte fáctico, engen-
drando também fatos jurídicos diversos. Um único fato social comparece aos
olhos do jurista como dois fatos jurídicos distintos porque objeto da incidência
de normas jurídicas diversas

Para clarear a questão, voltemos a imaginar: um agente privado, em


nome de certa empresa, pratica ato de corrupção.
Imaginemos uma conduta no mundo social exatamente como aquela ti-
pificada pelo art. 5º, I da Lei Anticorrupção, segundo o qual as condutas por
ele tipificadas possuem, no seu ocorrer, a participação do agente público, de
forma análoga à Lei nº 8.429/92, o que nos possibilita enxergar a presença
conjunta das normas diplomadas.

15 [...] eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre


humanas, a quem chamarei de Hércules. Eu suponho que Hércules seja juiz de alguma
jurisdição norte-americana representativa. Considero que ele aceita as principais regras
não controversas que constituem e regem o direito em sua jurisdição. Em outras pala-
vras, ele aceita que as leis têm o poder geral de criar e extinguir direitos jurídicos, e que
os juízes têm o dever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribu-
nais superiores cujo fundamento racional (rationale), como dizem os juristas, aplica-se
ao caso em juízo. (DWORKIN, 2002, p. 165).

274
Neste caso ocorre a incidência da norma constante na Lei de Improbida-
de Administrativa, tendo o agente privado como sujeito da relação, e da Lei
Anticorrupção, tendo a pessoa jurídica como sujeito de outra relação, não
devendo existir qualquer tipo de confusão. Importa perceber, nestes casos,
que o recorte oferecido pela hipótese da norma de uma Lei não é igual ao
oferecido pela outra, embora mantenham como raiz o mesmo fato do mun-
do social, cujo a ocorrência pode gerar várias relações no mundo das normas.

3. O debate referente ao bis in idem.

A questão possui repercussão prática, já que sua incompreensão pode


gerar a crença de que a aplicação conjunta dos diplomas configuraria caso de
“bis in idem”, ou seja, a possibilidade de um sujeito sofrer mais de uma san-
ção de mesma natureza – cível, administrativa ou penal – pelo mesmo feito.
Tal crença seria, de pronto, um equívoco, já que a composição originada
pela quebra de conduta na Lei de Improbidade Administrativa visa sancio-
nar pessoa física, enquanto na Lei Anticorrupção a possibilidade de sanção
aplicada pelo Estado-juiz é dirigida à pessoa jurídica.
Essa confusão, infelizmente, deve-se em grande parte ao Ministério Pú-
blico. Não são raros os casos na Jurisprudência de Ação de Improbidade Ad-
ministrativa ajuizadas com vistas a buscar a penalização de empresas,
organizações ou demais entidades utilizadas por pessoas físicas, muito em-
bora esta Lei não trouxesse a base normativa necessária para tal, tampouco
qualquer tipo de proteção à função-social da empresa16.
Conforme já aqui observamos, e vale insistir, a Lei de Improbidade Ad-
ministrativa não possui texto compatível com sanções a pessoas jurídicas.
Inicialmente, porque a natureza destas por si só não se relaciona com a ideia
de elemento volitivo. Segundo, porque a figura dos beneficiados, como de-
monstrado pela redação dos incisos do art. 12 da mesma Lei, é referente ain-
da a pessoas físicas que utilizam pessoa jurídica.
Em complemento a essa análise, também seria incabível qualquer justi-
ficativa de que a pessoa jurídica poderia ser sancionada por ambas e que isso
não incorreria em “bis in idem” devido ao objeto visado pelas distintas nor-
mas, que se relacionam a responsabilizações distintas.
Se poderia afirmar que enquanto a Lei de Improbidade Administrativa
visa coibir condutas praticadas em conjunto com agente público na qual

16 Infelizmente o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar ao Recurso Especial Nº


970.393 – CE (2007/0158591-4) no qual relatou o Min. Benedito Gonçalves, decidiu
no seguinte sentido: “Considerando que as pessoas jurídicas podem ser beneficiadas e
condenadas por atos ímprobos, é de se concluir que, de forma correlata, podem figurar
no polo passivo de uma demanda de improbidade, ainda que desacompanhada de seus
sócios”. (BRASIL, 2007)

275
houve, por parte das pessoas físicas, dolo ou culpa, e a pessoa jurídica restou
beneficiada, a Lei Anticorrupção visa responsabilizar objetivamente deter-
minada entidade sem exigir a presença do agente público.
Ora, adotar este argumento seria desconsiderar totalmente as relações
previstas nos textos normativos e aqui já demonstrados. As responsabiliza-
ções são cíveis, portanto de mesma natureza, o que de pronto já seria pres-
suposto para não acreditarmos em incidência conjunta sobre o mesmo sujei-
to pelo mesmo ato – pois isso, sim, é caso de “bis in idem”.
Além do mais, se a questão do agente público fosse o diferencial das
duas incidências legais, a aplicação do art. 5º, I da Lei de 2013 – já mencio-
nado – geraria um enorme desconforto, já que o tipo ali previsto exige, por
si só, a presença do agente público.
Não há porque prolongarmos a discussão, pois ela se resolve na fórmula
já demonstrada. As relações possuem sujeitos distintos e, portanto, podem
coexistir no mundo jurídico. Uma está referente a pessoa física, a outra re-
fere-se a pessoa jurídica, e a discussão sobre existência ou não do “bis in
idem” foi erroneamente levantada pela indevida prática de aplicar-se a Lei
de Improbidade Administrativa a pessoas jurídicas, algo que não deveria ter
ocorrido.

4. A segurança jurídica no Acordo de Leniência

Os reflexos práticos do aqui discutidos ultrapassam a simples posição e


eventual sofrimento de sanção por pessoas jurídicas devido a atos de impro-
bidade administrativa. Vão além, agindo sobre um assunto de intensa palpi-
tação no cenário acadêmico jurídico atual: a possibilidade de celebração de
acordo de leniência entre a Administração Pública e a pessoa jurídica que
agiu de maneira tipificada pela Lei nº 12.846/2013, conforme previsto pelos
arts. 16 e 17 deste diploma.
Como o presente estudo não objetiva comentar o instituto, basta afir-
mar que tal acordo pode ser firmado a pedido da pessoa jurídica que agiu de
forma ilícita, com fins a obter redução e isenção das penas previstas na Lei,
desde que a pessoa jurídica interessada seja a primeira a cooperar com a Ad-
ministração Pública, cessando o seu agir em conduta ilícita, assumindo sua
participação e se propondo a auxiliar nas investigações e no processo admi-
nistrativo sempre que for solicitada.
Diante deste cenário, comum que se pense se as informações levadas à
Administração Pública poderiam servir de base para a propositura de uma
ação de improbidade administrativa, visto que, pelos termos da Lei, a possi-
bilidade de uma ação civil pública baseada nos termos da Lei Anticorrupção
ficaria suspensa.
Primeiramente, como já aqui se explanou, a pessoa jurídica não poderia
figurar como sujeito passivo em uma ação de improbidade administrativa.

276
Imagine-se, portanto, a seguinte situação hipotética de uma empresa que re-
solve celebrar acordo de leniência e revela a prática de várias condutas tipi-
ficadas na Lei de Improbidade Administrativa pelo seu corpo social.
Poderia imaginar-se se essas informações seriam permitidas para funda-
mentar uma ação de improbidade administrativa e, se caso o fosse, se respei-
tado estaria o princípio da segurança jurídica no procedimento de celebra-
ção do acordo de leniência.
Ora, de fato criar-se-ia um cenário altamente desmotivador ao acordo
de leniência, visto que sua celebração, ao passo que permitiria a suspensão
de uma ação baseada em uma lei, certamente resultaria no ajuizamento de
ação distinta sobre o mesmo relato fático.
No entanto, vale ter-se em mente tudo que foi aqui relatado: a relação
criada pela Lei de Improbidade Administrativa é distinta da criada pela Lei
Anticorrupção. Em ambos os documentos, verifica-se que, em momento
processual algum, há a figura da Administração Pública como sujeito da re-
lação tanto na Lei nº 8.429/92, através da redação do art. 1717, quanto na
Lei nº 12. 846/2013.
A diferença se manifesta no polo oposto. Conforme verificou-se, a Lei
Anticorrupção veio a trazer a possibilidade de sanção às pessoas jurídicas por
atos já tipificados na Lei de Improbidade Administrativa que, por sua vez,
dirige-se apenas a pessoas físicas.
De acordo com esta perspectiva, não haveria motivo para advogar no
sentido de que o acordo de leniência fere a segurança jurídica de quem o ce-
lebra. Se o acordo de leniência é um instrumento que surge no meio da re-
lação entre uma pessoa jurídica e a Administração Pública, percebe-se que
esta procura, com tal instrumento, exatamente as informações necessárias
para punir as pessoas físicas que agiram contrárias a Lei de Improbidade Ad-
ministrativa, de modo que, se houvesse, imagina-se, a possibilidade do acor-
do de leniência suspender a propositura da Ação de Improbidade Adminis-
trativa, o acordo de leniência perderia parte do seu caráter investigativo e
sua importância no sistema.
Por este motivo, discorda-se parcialmente do entendimento de Valdir
Moysés Simão e Marcelo Pontes Vianna quando estes afirmam que “A pes-
soa jurídica colaboradora (no acordo de leniência), entretanto, ficará sujeita
à responsabilização judicial com base na própria Lei Anticorrupção (LAC) e
na Lei de Improbidade Administrativa (...)”18, pois defende-se a permanên-
cia da aplicação da Lei de Improbidade, mas não aos mesmos sujeitos previs-
tos na Lei Anticorrupção.

17 Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério
Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medi-
da cautelar.
18 (SIMÃO; VIANNA, 2017. p. 57).

277
No entanto, concorda-se com os mesmos autores quando estes afirmam
que “a pessoa jurídica deve trazer informações sobre a conduta de pessoas
naturais”, afirmando ainda que a responsabilidade seja objetiva “(...) não
deve servir de pretexto para o fornecimento de provas que oculte a identi-
dade daqueles que efetivamente praticaram atos delitivos”19.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tentou-se aqui demonstrar a impropriedade da discussão acerca do bis


in idem e da insegurança jurídica que poderia existir após a entrada em vigor
da Lei Anticorrupção.
Verificou-se a existência de um diálogo entre este diploma e a Lei de
Improbidade Administrativa, demonstrando que mais do que conflitante,
tal existência conjunta é complementar.
Para isso, foi necessária a redução das normas jurídicas a sua fórmula ló-
gico-estrutural, a fim de demonstrar que a relação jurídica legislada é distin-
ta em cada diploma e, portanto, a aplicação conjunta de ambos não gera
qualquer tipo de confusão.
A justificativa aí existente consiste no fato de que o mesmo fato social –
exemplificado aqui como um ato de corrupção praticado por um repre-
sentante de uma empresa e um agente público – incide de maneiras diversas
no mundo jurídico, relacionando diferentes personagens do mundo social
das mais variadas maneiras.
Foi ressaltado, ainda que, a postura reiterada de aplicação da Lei de Im-
probidade Administrativa ocorreu de forma indevida, sem a devida base
normativa e que, se assim não tivesse ocorrido, não haveria porque discutir
a possibilidade ou não da incidência do princípio do “non bis in idem”.
Por último, verificou-se a aplicação do exposto à situação de suposta in-
segurança jurídica causada pelo Acordo de Leniência da Lei Anticorrupção
no sentido de que as informações coletadas pela Administração Pública ser-
viriam de sustentáculo para o ajuizamento de uma Ação de Improbidade
Administrativa sobre os mesmos fatos jurídicos.
Os fatos jurídicos capazes de sustentar a propositura de uma ação contra
pessoas físicas são o recorte do fato social que se adequa aos tipos e à siste-
mática da Lei de Improbidade Administrativa, distintos da Lei Anticorrup-
ção, embora semelhantes.
Dessa forma, conclui-se que o Acordo de Leniência, mais do simples-
mente abrandar as penas a serem sofridas por uma pessoa jurídica, assume
caráter altamente investigativo para que a Administração Pública possa,
realmente, coletar informações e punir as pessoas naturais que agiram em
afronta à moralidade do Estado.

19 Idem, p. 117.

278
Referências:

BRASIL. PODER EXECUTIVO. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Pro-


mulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em “http://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm”. Acesso em: 30
jan. 2018.
______. PODER EXECUTIVO. LEI nº 8.429/92, DE 2 DE JUNHO DE 1992.
Rio de Janeiro, RJ, 2 jun. 1992. Disponível em http://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/leis/L8429.htm. Acesso em: 30 jan. 2018.
______. PODER EXECUTIVO. LEI Nº 12.846, DE 1º DE AGOSTO DE 2013.
Brasília, DF, 1º ago. 2013. Disponível em http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm. Acesso em: 31 jan. 2018.
______. Poder Judiciário. Supremo Tribunal de Justiça. REsp: 970393 CE
2007/0158591-4, Relator: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Jul-
gamento: 21/06/2012, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe
29/06/2012.
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 6ª ed.
São Paulo: Noeses, 2015;
CARVALHOSA, Modesto. Considerações sobre a Lei anticorrupção das pessoas
jurídicas: Lei n. 12.846 de 2013. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2015.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FAZZIO JUNIOR, Waldo. Improbidade Administrativa: doutrina, legislação e
jurisprudência. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.
Garcia, Emerson; PACHECO ALVES, Rogério. Improbidade administrativa. 8ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Comentários ao art. 2º. In: DI PIETRO, Maria
Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago. Lei Anticorrupção comentada. Belo Hori-
zonte: Fórum, 2017. p. 23-46.
SIMÃO, Valdir Moysés; VIANNA, Marcelo Pontes. O acordo de leniência na lei
anticorrupção: histórico, desafios e perspectivas. São Paulo: Trevisan Editora,
2017.
VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema de Direito Positivo; prefá-
cio Geraldo Ataliba; apresentação de Paulo de Barros Carvalho. São Paulo:
Noeses, 2005.

279
The dark side of fashion: uma análise empírica
sobre o trabalho escravo contemporâneo na
indústria da moda

Carla Sendon Ameijeiras Veloso


Larissa Pimentel Gonçalves Villar
Hector Luiz Martins Figueira

RESUMO: Apesar da abolição da escravatura, o trabalho escravo, ainda


existe. Em um novo contexto sócio histórico, as correntes e senzalas foram
deixadas para trás, e, atualmente, os trabalhadores são aliciados, sujeitados
a condições degradantes e têm seus direitos fundamentais cerceados. O tra-
balho escravo contemporâneo tem emergido como tema de pesquisa nos Es-
tudos Organizacionais desde o início dos anos 2000, chamando atenção pela
utilização desta prática. No Brasil é um tema que enseja grande preocupa-
ção, justificando-se, após denúncia na Corte Interamericana de Direitos
Humanos e confissão da utilização desta prática em pleno século XXI. O
trabalho escravo contemporâneo é encontrado nas mais diversas atividades
econômicas, desde carvoarias até indústrias têxteis ou mesmo comércios,
seja no âmbito urbano ou rural. Neste artigo analisaremos a visão de alguns
consumidores sobre o consumo em empresas que foram denunciadas pela
utilização de trabalho escravo. Adotamos a indústria da moda como foco de
pesquisa porque ela obscurece a reflexão dos consumidores que, ao fazerem
suas compras, sentem-se como que entrando em outro mundo: de beleza e
fantasia, em busca da sua própria satisfação. Soma-se a isso o fato de a indús-
tria da moda brasileira ser uma das maiores do mundo (ABIT, 2015). O pre-
sente artigo utilizará metodologia quantitativa e qualitativa, bem como lite-
ratura jurídica existente.

PALAVRAS-CHAVE: Sociedade; consumo; trabalho escravo contem-


porâneo; indústria da moda.

ABSTRACT: Despite the abolition of slavery, slave labor still exists. In


a new socio-historical context, the chains and slave quarters have been left
behind, and today the workers are lured, subjected to degrading conditions
and have their fundamental rights curtailed. Contemporary slave labor has

281
emerged as a research theme in Organizational Studies since the early
2000s, drawing attention to the use of this practice. In Brazil, it is a matter
of great concern, justifying itself, after denunciation in the Inter-American
Court of Human Rights and confession of the use of this practice in the XXI
century. Contemporary slave labor is found in the most diverse economic
activities, from charcoal to textile industries or even trades, whether in ur-
ban or rural areas. In this article we will analyze the view of some consumers
about consumption in companies that were denounced using slave labor.
We adopt the fashion industry as the focus of research because it obscures
the reflection of consumers who, when shopping, feel like entering another
world: beauty and fantasy, in search of their own satisfaction. Added to this
is the fact that the Brazilian fashion industry is one of the largest in the
world (ABIT, 2015). This article will use quantitative and qualitative meth-
odology, as well as existing legal literature.

KEYWORDS: Society; consumption; contemporary slave labor; fas-


hion industry.

INTRODUÇÃO

Trabalho escravo ou trabalho em condição análoga à de escravo agride os


direitos de personalidade, também denominados de direitos fundamentais,
violando o principal bem jurídico a ser protegido, que é a dignidade da pes-
soa humana.
O critério decisivo para a identificação de uma violação da dignidade, se-
gundo Sarlet (2001), passa a ser o do objetivo da conduta, isto é, a intenção
de coisificar o outro.
O nosso ordenamento jurídico não possui um conceito próprio para o
trabalho escravo, sendo certo que o artigo 149 do Código Penal tipifica a
conduta delituosa de reduzir alguém a condição análoga à de escravo.
Há uma Portaria espedida pelo Governo Temer que objetiva modificar
a conceituação do trabalho escravo, sendo certo, que atualmente esta com
os efeitos suspensos por decisão liminar do Supremo Tribunal Federal.
A presença de qualquer um dos seguintes elementos é suficiente para
configuração de trabalho escravo: trabalho forçado; jornada exaustiva; servi-
dão por dívida; e condições degradantes (MTE, 2015). As estimativas do
trabalho escravo no mundo, conforme o Walk Free Slavery Index1 (2014),
dão conta de que se trata de uma situação que não pode mais ser negligen-
ciada nos estudos que tratam de gestão e organizações. Segundo as estimati-
vas (WALK FREE SLAVERY, 2014)1, são 35,8 milhões de homens, mulhe-

1 Relatório elaborado pela Fundação Internacional Walk Free Slavery, “uma organi-
zação global com a missão de acabar com a escravidão moderna em nossa geração pela

282
res e crianças presos na escravidão moderna, em todo o mundo, abrangendo
os cinco continentes.
Como bem disse Gustavo Luís Teixeira das Chagas (2012, p. 65), a re-
dução do ser humano à condição análoga à de escravo perpassa pela liberda-
de do ser humano em sua acepção mais essencial: a de poder ser.
A liberdade em sua essência é eivada de livre arbítrio, e, é nessa linha
que foram deliberadas as leis protecionistas no Estado brasileiro. Suprimir a
liberdade do cidadão em pleno século XXI significa podar seu próprio des-
tino.
Segundo Miraglia (2011, p. 216), a liberdade diz respeito não apenas ao
direito subjetivo de ir e vir, significando, no âmbito coletivo, a liberdade de
associação e exercício da atividade sindical obreira. Ademais, pode-se afir-
mar que também é possível inferir dessa liberdade o direito de livre-arbítrio
na escolha do serviço prestado e o direito de o trabalhador encerrar a relação
jurídica a qualquer tempo.
No mundo da moda nos deparamos com o trabalho escravo em diferen-
tes matizes, sendo necessário um questionamento sobre as possíveis políti-
cas de erradicação e as consequências no consumo.
“Quantos escravos trabalham para você?” é a pergunta que o aplicativo
Slavery Foot print, da Organização Não Governamental (ONG) anglo-aus-
traliana Made in a Free World, utiliza para instigar as pessoas a pensarem
sobre o tema. O teste é composto por onze perguntas, que incluem a aquisi-
ção de produtos de higiene, alimentação, vestuário, entre outros, a fim de
mensurar quantos escravos podem ser encontrados ao longo dessa cadeia
produtiva.
Enquanto o internauta responde às questões, são exibidas informações a
respeito do trabalho escravo no mundo e sua relação com o consumo.
Por meio da conscientização, a ONG busca fazer com que as pessoas re-
pensem seus hábitos de compra e, em consequência, desestimular a prática
criminosa de trabalho escravo.
No Brasil, a ONG Repórter Brasil desenvolveu, em 2013, o aplicativo
Moda Livre, que avalia grandes grupos varejistas de moda e relaciona aque-
les em que a produção têxtil foi flagrada em casos de trabalho escravo.
Mesmo com tantos mecanismos, órgãos e legislações que objetivam
combater o trabalho escravo, vale ressaltar, que o Brasil foi condenado em
2016 perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos pela prática
desta conduta.
Não é raro notícias de resgate de trabalhadores em condições análogas a
de escravidão.

mobilização de um movimento ativista global, gerando pesquisa da mais elevada quali-


dade, atraindo negócios e elevando os níveis sem precedentes de capital para promover
mudanças naqueles países e indústrias que carregam a maior responsabilidade pela es-
cravidão moderna atual” (WALK FREE SLAVERY, 2014)

283
A proposta é que o consumidor conheça a conduta das marcas antes de
efetuar a compra e, assim, se torne um agente no combate ao trabalho es-
cravo.

1. PRESENTE?

A problemática central da presente pesquisa fulcrana pergunta sobre a


eficácia sobre a utilização da mão de obra escrava na indústria da moda.
Bauman (2008), ao descrever a passagem de uma sociedade de produto-
res para uma sociedade de consumidores, argumenta que está em curso a
transformação de uma sociedade sólida para uma sociedade líquida, em que
tudo é avaliado como mercadoria, predominando o desapego, a troca e o
eterno recomeço. A principal característica da sociedade de consumo é a vi-
são das pessoas em um espaço social mercantilizado no qual tudo se trans-
forma em mercadoria. Essa ideia é reforçada pelo ingresso no mundo virtual,
que reflete o homem como produto em redes que expõem as pessoas, de
forma semelhante a mercadorias em um catálogo, e tudo acontece de forma
rápida (BAUMAN, 2008).
Dentro desta questão problema constatamos que o mundo da moda pos-
sui imagem vinculada ao glamour, à beleza e nele há uma forte valorização
do novo. No entanto, na indústria da moda existem mazelas, entre elas, a
exploração criminosa de trabalhadores, por meio de trabalho escravo. As
marcas e conceitos das grandes corporações são criteriosamente criados,
mas a produção é repassada a terceiros. Esses, por sua vez, pagam valores ín-
fimos por peça produzida, obrigando trabalhadores a jornadas extenuantes a
fim de produzirem muito recebendo uma remuneração mínima para sobre-
vivência (REPÓRTER BRASIL, 2012).
A busca por melhores condições de vida e a miséria existente em várias
localidades do nosso país favorece o aliciamento destes trabalhadores pelos
“gatos”2, que disponibilizam locais para facilitar o aliciamento, e daqueles
que utilizam do trabalho escravo que são dentre outras formas as oficinas de
costura no Estado Brasileiro.
Não raro, nomes de grandes marcas e grandes varejistas da indústria da
moda estão vinculados à exploração de mão de obra escrava nessas condi-
ções (AYRES, 2012; PRADO, R., 2011; SANTINI, 2014; VERONESE,
2014).
A justificativa de ordem social reside no fato de que, ao conhecer os ar-
gumentos utilizados pelos consumidores de moda quanto a adquirirem ou
não produtos de empresas denunciadas por utilizar trabalho escravo con-

2 Gato é o intermediador entre o empregado e o empregador. É a pessoa que alicia


trabalhadores com promessas de excelentes salários e condições de vida (MIRAGLIA,
2011).

284
temporâneo, oferecemos à sociedade pontos para reflexão a respeito de suas
próprias escolhas.
Assim, a sociedade poderá ser estimulada a pensar se suas escolhas con-
tribuem para a manutenção de práticas corporativas criminosas contra aque-
les que estão em condições de desigualdade em relação aos consumidores
das marcas para a qual produzem.
Há uma questão cultural muito forte em nosso país referente a escravi-
dão, assim como na atualidade podemos destacar o analfabetismo, exclusão
social, abismo econômico que acarreta na pobreza e desemprego. Tudo isso
é somado a ausência eficaz estatal em todos os recantos do nosso país que
facilita o aliciamento de trabalhadores.
Além disso, o aspecto psicológico do escravizado e o medo da denúncia
aos órgãos competentes dificulta o flagrante e consequentemente a sua li-
bertação.
O Estado Brasileiro tem diante dele certas expressões da questão social
que são a pobreza, exclusão social, analfabetismo, desemprego e essa reali-
dade social beneficia a prática da escravidão contemporânea. Tais sintomas
sociais se coagdunam a precarização dos direitos do trabalho que são um dos
problemas mais graves na atualidade, e, uma ausência de políticas públicas
de coibição a prática deste crime.
Existe uma questão muito forte de dependência entre o senhor que de-
tém os meios de produção e o escravo que possui a força de trabalho.
A luta pela sobrevivência de um lado pelo trabalhador e a visão de um
lucro exorbitante pelos empregadores facilita a mitigação de custos, a viola-
bilidade dos direitos e a perpetuação do trabalho escravo.
Há denúncias cada dia mais frequentes que hasteiam a bandeira da res-
ponsabilidade social, do respeito, do comportamento ético e do compromis-
so com a verdade. Criam códigos de conduta que contemplam missões, va-
lores e princípios dignos de um Estado Democrático de Direito e, com isso,
vinculam sua imagem à probidade, ao decoro e aos direitos humanos e utili-
zam-se da mão de obra escrava.
É difícil acreditar que exista uma realidade de tamanha crueldade e co-
vardia tão perto de nós. Trata-se da exploração de pessoas realizada por gri-
fes de renome e de solidez econômica, das quais provavelmente já adquiri-
mos produtos. É uma escravidão impune, pois não está visível aos olhos da
sociedade. A melhor solução para combater esse crime talvez esteja em nos-
sas mãos: o poder do consumidor. Quando compramos, estamos depositan-
do nosso voto de confiança na empresa e na forma como aquela mercadoria
foi produzida. É preciso fortalecer essa consciência e repugnar grifes que
exercem trabalhos análogos à escravidão.
Quando compramos, estamos depositando nosso voto de confiança na
empresa e na forma como aquela mercadoria foi produzida. É preciso forta-
lecer essa consciência e repugnar grifes que exercem trabalhos análogos à es-
cravidão.

285
2. IMPRESSÕES DO CAMPO PRÁTICO:

A pesquisa científica tem o intuito de averiguar, de maneira preliminar,


a possibilidade de sua utilização para a produção do conhecimento jurídico
científico. É indispensável o estudo empírico nas análises das leis, pois a rea-
lidade é que dita as necessidades e as demandas criativas do campo jurídico.
Para tanto, diversos autores nos ajudam a compreender este amplo e com-
plexo método de se pesquisar por meio de experimentação empírica.
Deste modo, o Direito dialoga com a Antropologia, por meio do método
etnográfico que alinha os significados teóricos a prática. Como defende
Geertz (GEERTZ 2011; ALVES 2012) “A vocação da antropologia inter-
pretativa não é responder as nossas questões mais profundas, mas colocar a
nossa disposição as respostas que outros deram (...) e assim incluí-las no re-
gistro de consultas sobre o que o homem falou”
Segundo Bachelard no século XVII, as vertentes mais divergentes das
ciências se aliavam em pelo menos um aspecto, o da unidade do conheci-
mento com base na experiência. Nesse sentido, se para os empiristas, a ex-
periência é essencialmente uniforme, pois que tudo advém das sensações,
para os idealistas, “[...] a experiência é uniforme porque é impermeável à
razão.” A ciência, por conseguinte, se configurava num bloco homogêneo.
(BACHELARD, 2006, p. 15).
Tendo em vista, esta premissa de Bachelard, resolvi em minha pesquisa
de banco para estruturação da tese, fazer pesquisa qualitativa para entender
como os consumidores brasileiros observam e se comportam diante da es-
cravidão perpetrada por empresas no mercado da moda no Brasil.
A estrutura de nossa observação empírica:

Quantitativo 8 pessoas
Sexo Feminino
Idade De 18 a 55
Escolaridade Sem critério3
* Quadro elaborado pelo autor
3
Vários tipos de respostas foram fornecidos pelos entrevistados, aqueles
que se espantam, e se chocam ao saber. E aqueles que não se incomodam e
não esboçam nenhum tipo de reação, bem como aqueles que preferem ficar
em silêncio. Sendo assim, a pesquisa qualitativa que pretendo fazer ao longo
da minha tese se mostra embrionária, mas já dá alguns sinais, a respeito das
entrevistas já colhidas com algumas consumidoras do mercado da moda.
Veja:

3 Apenas uma das entrevistadas não possuía ensino superior. As demais ou eram
formadas ou já estavam cursando uma universidade.

286
Entrevistada 1 – “Blogueira” de moda.

Olha! Eu não sabia disso! “Mas, eu não deixo de comprar porque as rou-
pas são bonitas e me vestem muito bem.”

Entrevistada 2 – Médica.

“O trabalho escravo é um problema global, que os governantes deveriam


cuidar, o fato de eu não comprar roupa da Zara, não impede que o trabalho
escravo no mercado da moda continue.”

Entrevistada 3 – funcionária da própria loja:

“Não possuo opinião formada sobre isso.”

Entrevistada 4 – professora de letras:

“A escravidão moderna é um evento endêmico no mundo todo, em di-


versos segmentos, fruto da desigualdade econômica e do fenômeno globali-
zante. Mesmo diante inúmeras denúncias de âmbito internacional, ela con-
tinua a existir, e as pessoas continuam comprando produtos oriundos desta
mão de obra, pois não fazem esta associação. Ou seja, ao comprar uma roupa
aqui, está se comprando um estilo de vida, um prazer, e jamais se pensa que
se está contribuindo para um mercado de exploração humana.”
Estas quatro entrevistas ressaltam algo que eu já pressupunha antes de
pesquisar este tema, mas o que eu pensava, não de fato corresponde à reali-
dade fática. Contudo, por outro lado, também obtive entrevistas, em que as
entrevistas se comportavam em sentido contrário. Veja:

Entrevistada 5 – dona de casa

Há algum tempo eu já não consumo fast-fashion, estou buscando viver


com menos e com coisas melhoras, nada de modinhas. Desde que soube
desta onda de trabalho escravo e infantil, nunca mais comprei roupa nestas
lojas que estão sendo processadas, mas sei que a maioria das pessoas não se
preocupa com isso.

Entrevistada 6 – advogada

Tenho uma preocupação com estas questões, pois milito nesta área no
meu trabalho. Não vou te dizer que não compro nada na Zara, mas evito ao
máximo de entrar lá e consumir qualquer produto. Essa realidade de traba-
lho escravo é muito grave e vai se asseverar ainda mais no Brasil de hoje, pós
reforma trabalhista.

287
Entrevista 7 – empregada doméstica

Eu não compro roupa lá porque não tenho dinheiro, mas se tivesse não
compraria agora que estou sabendo disso, eu tenho uma irmã que já foi qua-
se escrava num apartamento da zona sul, é a maior humilhação e tristeza que
pode ter na vida de uma pessoa.

Entrevistada 8 – digital influencer

Eu trabalho diretamente com imagem e com tendência, todo mundo


acha que devo estar linda e bem vestida todo dia, pois é mais eu penso numa
economia sustentável e criativa, e além do mais sou vegana, não consumo
produtos testados em animais, e muito menos roupas oriundas de mão de
obra escravo. Também estimulo minhas amigas a não comprar em marcas
que sabemos estar envolvidas nestes escândalos.
Percebemos então, que pesquisa qualitativa tem como finalidade conse-
guir dados voltados para compreender as atitudes, motivações e comporta-
mentos de determinado grupo de pessoas. Objetiva entender o problema do
ponto de vista deste grupo em questão. É importante perceber que é um
tipo de investigação que considera apenas aspectos subjetivos que não po-
dem ser traduzidos em números.
A pesquisa qualitativa se perfaz por meio do método etnográfico A etno-
grafia, na sua acepção mais ampla, pode ser entendida, como a arte e a ciên-
cia de descrever uma cultura ou grupo: A pesquisa etnográfica abrange a des-
crição dos eventos que ocorrem na vida de um grupo (com especial atenção
para as estruturas sociais e o comportamento dos indivíduos enquanto mem-
bros do grupo) e a interpretação do significado desses eventos para a cultura
do grupo. Assim, objetivamos fazer no mercado da moda nosso estudo com
base no diálogo entre antropologia e a sociologia jurídica.
No caso realizando uma interação entre, por exemplo, entre o Direito e
a Sociologia:
“[...] a sociologia a jurídica pode ser uma fundamental alavanca [para
desnaturalizar as certezas produzidas pelo direito], na medida em que ela
impulsione a adoção de uma postura “epistemologia” que lance a semente
da dúvida que elimine os obstáculos de uma discussão mais aberta e questio-
nadora. [...]” (VARELLA, 2008, p. 90 apud LUPETTI; KANT DE LIMA
2010, p. 10).
Deste modo, é possível trabalhar o direito como sendo uma ciência, que
se transforma por meio da pesquisa social, e constrói conhecimento. Lem-
brando sempre da necessidade de se valorizar o saber local.

1. OU FUTURO?

Observa-se nas pesquisas de campo que existem consumidores que


acreditam que a sociedade pode e deve promover mudanças. Estes consumi-

288
dores consideram as consequências sociais do seu ato de consumo, ou utili-
zam-se do boicote como forma de promover mudanças ou ainda privilegiam
empresas que mostram maior responsabilidade social ou ambiental (WEBS-
TER JR, 1975).
Observa-se uma legitimação moral que segundo Crane (2013) consiste
na aceitação mínima no campo institucional, como, por exemplo, de clientes
e comunidade local propicia a perpetuação dessa prática. Nesse sentido, os
argumentos quanto ao boicote ser um caminho para promover as mudanças,
vai ao encontro da posição de Crane (2013), por ser esse uma ação que não
sustenta e não compartilha com essa prática.
O consumidor ético forja uma nova cultura do consumo, expressando
sua visão social de mundo e sua ética. Esse consumidor considera as conse-
quências do seu consumo e assume responsabilidade pelas questões sociais
(FONTENELLE, 2007, 2010). Nesse contexto de surgimento de figuras de
consumidores socialmente responsáveis e outras formas de pensar o consu-
mo, como o consumo ético, verde, consciente, político, entre outras
denominações (CRAIG-LEES E HILL, 2002, MALPASS ET AL, 2007; MI-
CHELLETTI ET AL, 2003), que chamam a atenção para a importância do
consumo como um processo psicológico e social.
Os argumentos centram-se na ideia de que, no Brasil, o trabalho escravo
contemporâneo é uma prática ilegal e criminosa, no entanto, as empresas,
para lucrarem mais, infringem as leis, tornando-se ilegais e criminosas, po-
rém, isso não as intimidam. Já os consumidores que adquirem esses produ-
tos tornam-se coniventes, incentivando que essa prática criminosa se perpe-
tue e se torne uma prática de gestão, legitimando-a moralmente (CRANE,
2013).
A necessidade e a reputação das marcas como motivadores de compra
revelaram que existem consumidores que procuram evitar o consumismo,
procurando um comportamento racional e responsável. Estes consumidores
indicaram que se veem inseridos na cadeia produtiva e têm consciência das
consequências sociais do ato de consumir, procurando utilizar 89 do seu po-
der de compra para promover uma mudança social, seja por meio do consu-
mo de produtos oriundos de empresas responsáveis ou do boicote àquelas
que não possuem comportamento compatível com a visão social dos consu-
midores (WEBSTER JR, 1975).
Encontrar consumidores com esse comportamento indica que existe es-
paço para o consumo consciente, no entanto, esse espaço é percebido pelas
organizações como importante para o crescimento de um mercado, como
criticado por Barros et al (2011), Fontenelle (2007) e por Sampaio (2013).
É por meio do consumo que as pessoas expressam seus pensamentos, seus
ideais e sua ética. O consumo consciente é uma nova cultura do consumo
forjada para este público (FONTENELLE, 2007, 2010), que assume a res-
ponsabilidade pelos crimes organizacionais, sob a noção de que se não hou-
vesse consumo não haveria oferta de produtos oriundos de práticas crimino-
sas. Quanto mais visibilidade as práticas das organizações, sejam elas boas

289
práticas ou nefastas, mais os consumidores poderão se posicionar e fazer es-
colhas racionais, de acordo com seus ideais.
Por derradeiro, pode-se afirmar que a história do trabalho no Brasil não
se iniciou com a industrialização ou com a CLT, mas sim com o trabalho es-
cravo, que persistiu como atividade legal por mais de três séculos, iniciado
com a exploração de mão de obra indígena e consolidado com o tráfico ne-
greiro e exploração do trabalho dos africanos (ROCHA; GÓIS, 2011).
A luta pela sobrevivência de um lado pelo trabalhador e a visão de um
lucro exorbitante pelos empregadores facilita a mitigação de custos, a viola-
bilidade dos direitos e a perpetuação do trabalho escravo.
A dinâmica do processo gira em torno do capital e poder enraizado no
Estado Brasileiro, seja no aspecto comportamental, político, psicológico, re-
gional, dentre outros.

CONCLUSÃO:

O trabalho precário e, especificamente, o trabalho escravo contemporâ-


neo, interfere negativamente no desenvolvimento do indivíduo, visto que vi-
ver para o trabalho atrapalha a 100 educação dos trabalhadores e de suas fa-
mílias, não apenas pelas possibilidades de ascensão promovidas pela educa-
ção, mas pela mudança cultural e intelectual que a educação produz. Aceitar
que pessoas trabalhem sem garantir educação é condená-las a estas condi-
ções precárias. A educação, por si só, pode não transformar a sociedade, mas
“sem ela tampouco a sociedade muda” (FREIRE, 2000, p.67), mas isto é
pauta para uma outra discussão.
As contribuições desta pesquisa são de natureza teórica e social. Como
contribuição teórica adentramos nas discussões sobre trabalho escravo con-
temporâneo, conseguimos relacionar organizações, cultura e sociedade ao
tema, mostrando a relevância do tema para a área de Estudos Organizacio-
nais. A contribuição social foi mostrar à sociedade e, em especial, aos consu-
midores, a existência do trabalho escravo contemporâneo e a participação
de cada indivíduo no combate ou manutenção dessa prática criminosa, bem
como suas percepções sobre o tema.
Grandes grifes hasteiam a bandeira da responsabilidade social, do res-
peito, do comportamento ético e do compromisso com a verdade. Criam
códigos de conduta que contemplam missões, valores e princípios dignos de
um Estado Democrático de Direito e, com isso, vinculam sua imagem à pro-
bidade, ao decoro e aos direitos humanos. Contam com público fiel à marca
e ao estilo de vida que lhe corresponde. Mascara-se, no entanto, uma reali-
dade cruel e pungente: uma produção barata e degradante. Pulveriza-se in-
tensamente a cadeia produtiva: contrata-se e subcontrata-se, dissipando-se
os riscos da atividade. Negocia-se a prestação dos serviços sob o rótulo de
relações estritamente comerciais. Paga-se pouco, muito pouco: o limite ne-
cessário para garantir o lucro máximo. (CAVALCANTI, 2013).

290
Somado a isso há uma cultura do medo que é instaurada para evitar de-
núncias sobre a existência nos locais de trabalho escravo. Para combater a
prática da escravidão contemporânea é preciso denunciar. Através das de-
núncias, o Ministério Público, o Ministério do Trabalho e a Polícia Federali-
niciam um processo de investigações e de fiscalizações.
Apesar de todos os esforços resta constatada a existência em pelo século
XXI de trabalho escravo contemporâneo em nosso território nacional.
Portanto, é difícil acreditar que exista uma realidade de tamanha cruel-
dade e covardia tão perto de nós. Trata-se da exploração de pessoas realiza-
da por grifes de renome e de solidez econômica, das quais provavelmente já
adquirimos produtos. É uma escravidão impune, pois não está visível aos
olhos da sociedade.
A melhor solução para combater esse crime talvez esteja em nossas
mãos: o poder do consumidor. Quando compramos, estamos depositando
nosso voto de confiança na empresa e na forma como aquela mercadoria foi
produzida. É preciso fortalecer essa consciência e repugnar grifes que exer-
cem trabalhos análogos à escravidão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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para o setor e para o Brasil. Disponível em: Acesso em: 17, novembro, 2017.
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de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
BACHELARD, Gaston. A epistemologia. Tradução de Fátima Lourenço Godinho
e Mário Carmino Oliveira. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2006.
BAUMAN, Z. A crise do sistema que hipotecou o futuro. Globo News, Programa
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BELISÁRIO, Luiz Guilherme. A redução de trabalhadores rurais à condição aná-
loga à de escravo: um problema de direito penal trabalhista. São Paulo: LTr,
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BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho decente: análise jurídica da
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desafio de realizar pesquisa empírica no Direito: uma contribuição antropoló-
gica”. paper apresentado no 7ª encontro da ABCP – Associação Brasileira de
Ciência Política. 04 a 07 de agosto de 2010. Recife/Pernambuco.

291
MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira.Trabalho escravo contemporâneo: conceitua-
ção à luz do princípio da dignidade da pessoa humana,2008. Dissertação
(Mestrado), Programa de Pós-graduação em Direito, Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.
MIRAGLIA, Livia Mendes Moreira. Trabalho Escravo Contemporâneo — concei-
tuação à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. 2ª ed. São Paulo:
Ltr. 2015.
SANTOS, Ronaldo Lima dos. A escravidão por dívida nas relações de trabalho no
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SENTO-SÉ, Jairo Lins de Albuquerque. Trabalho escravo no Brasil. São Paulo:
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VARELLA, Alex. Saber Juridico e Direito à Diferença no Brasil: questões de teoria
e método de uma perspectiva comparada. In:________ KANT DE LIMA, Ro-
berto e LUPETTI, Bárbara. “O desafio de realizar pesquisa empírica no Direi-
to: uma contribuição antropológica”. paper apresentado no 7ª encontro da
ABCP – Associação Brasileirade Ciência Política. 04 a 07 de agosto de 2010.
Recife/Pernambuco.

292
(Há) ética na delação premiada (?)

Ana Paula Couto


Marco Couto

Resumo: O presente artigo busca expor aspectos éticos relacionados à


delação premiada. Embora tenha recebido grande visibilidade nos últimos
tempos, o referido instituto é bastante criticado por parte de doutrinadores
que nele enxergam uma fraqueza estatal, na medida em que caberia ao Esta-
do investigar a prática de qualquer ilícito penal sem a colaboração dos crimi-
nosos. Por outro lado, há autores que ressaltam a eficiência prática da dela-
ção premiada, acreditando que se trata de mecanismo fundamental para o
esclarecimento da criminalidade, não se podendo, por isso, dispensá-lo. É
com o propósito de expor os diversos pontos de vista existentes quanto à
ética da delação premiada que se passa a abordar tal tema.

Palavras-chave: Delação premiada. Doutrina. Ética.

Abstract: This paper tries to expose ethical aspects related to Brazilian


plea-bargain. Although it has received a great deal of attention lately, plea-
bargain has been widely criticized by law scholars who regard it as a State
feebleness, since the State is in charge of investigating the practice of any
criminal offense without the help of criminals. On the other hand, some
authors emphasize the practical efficiency of plea-bargain, holding that it is
a fundamental mechanism to crime clarification, and therefore indispensa-
ble. The topic is approached with the purpose of exposing the various points
of view regarding the ethics of plea-bargain.

Keywords: Plea-bargain; Legal Doctrine; Ethics

(Há) Ética na Delação Premiada (?)

A delação premiada ganhou fama nos últimos tempos por conta dos pro-
cessos que envolvem políticos e empresários famosos. Atualmente, é muito
difícil assistir a algum telejornal, independentemente da emissora que o vei-
cule, sem ver o tema abordado. O noticiário impresso também trata do as-

293
sunto diariamente. Nas universidades, quando o tema é referido em sala de
aula, não faltam interesse e indagações por partes dos alunos, muitos deles
com opinião formada à luz do que é veiculado pela imprensa.
O que se pretende neste artigo é abordar a forma como os diversos dou-
trinadores que tratam da delação premiada enxergam a ética do referido ins-
tituto. Não custa lembrar que, considerando os dispositivos atualmente em
vigor no ordenamento jurídico brasileiro, a delação premiada é tratada na
Lei 8072/90, na Lei 9080/95 (que a inseriu na Lei 7492/86 e na Lei
8137/90), na Lei 9269/96 (que a disciplinou no CP), na Lei 9807/99, na Lei
11343/06, na Lei 12529/11, na Lei 12683/12 (que a inseriu na Lei
9613/98) e na Lei 12850/13.
É diante desse panorama que a doutrina brasileira trata do aspecto ético
da delação premiada, ora criticando de forma veemente a opção feita pelo
legislador, ora enxergando em tal instituto a única saída para o esclarecimen-
to de crimes cuja prática se mostra de acentuada complexidade.
Nesse aspecto, analisando aspectos positivos e negativos da delação pre-
miada, Guilherme de Souza Nucci registra um rol de aspectos que consti-
tuem interessante ponto de partida para análise ética que se pretende fazer.

É legítima e aceitável essa forma de incentivo legal à prática da delação? São


pontos negativos da colaboração premiada: a) oficializa-se, por lei, a traição,
forma antiética de comportamento social; b) pode ferir a proporcionalidade na
aplicação da pena, pois o delator recebe pena menor que os delatados, autores
de condutas tão graves quanto a dele – ou até mais brandas; c) a traição, como
regra, serve para agravar ou qualificar a prática de crimes, motivo pelo qual não
deveria ser útil para reduzir a pena; d) não se pode trabalhar com a ideia de que
os fins justificam os meios, na medida em que estes podem ser imorais ou anti-
éticos; e) a existente delação premiada não serviu até o momento para incenti-
var a criminalidade organizada a quebrar a lei do silêncio, regra a falar mais alto
no universo do delito; f) o Estado não pode aquiescer em barganhar com a cri-
minalidade; g) há um estímulo a delações falsas e um incremento a vinganças
pessoais. São pontos positivos da delação premiada: a) no universo criminoso,
não se pode falar em ética ou em valores moralmente elevados, dada a própria
natureza da prática de condutas que rompem as normas vigentes, ferindo bens
jurídicos protegidos pelo Estado; b) não há lesão à proporcionalidade na aplica-
ção da pena, pois esta é regida, basicamente, pela culpabilidade (juízo de repro-
vação social), que é flexível. Réus mais culpáveis devem receber penas mais
severas. O delator, ao colaborar com o Estado, demonstra menor culpabilidade,
portanto, pode receber sanção menos grave; c) o crime praticado por traição é
grave, justamente porque o objetivo almejado é a lesão a um bem jurídico pro-
tegido; a delação seria a traição com bons propósitos, agindo contra o delito e
em favor do Estado Democrático de Direito; d) os fins podem ser justificados
pelos meios, quando estes forem legalizados e inseridos, portanto, no universo
jurídico; e) a ineficiência atual da delação premiada condiz com o elevado índi-
ce de impunidade reinante no mundo do crime, bem como ocorre em face da
falta de agilidade do Estado em dar efetiva proteção ao réu colaborador; f) o

294
Estado já está barganhando com o autor da infração penal, como se pode cons-
tatar pela transação, prevista na Lei 9.099/1995. A delação premiada é, apenas,
outro nível de transação; g) o benefício instituído por lei para que um criminoso
delate o esquema no qual está inserido, bem como os cúmplices, pode servir de
incentivo ao arrependimento sincero, com forte tendência à regeneração inte-
rior, um dos fundamentos da própria aplicação da pena; h) a falsa delação, em-
bora possa existir, deve ser severamente punida; i) a ética é juízo de valor variá-
vel, conforme a época e os bens em conflito, razão pela qual não pode ser em-
pecilho para a delação premiada, cujo fim é combater, em primeiro plano, a
criminalidade organizada.1

Demonstrando preocupação com a amplitude que se possa conferir à


delação premiada, Frederico Valdez Pereira ressalta a necessidade de ser es-
tabelecido um equilíbrio entre a pretensão de funcionalidade repressiva e o
asseguramento dos direitos de liberdade, como condição legitimante das
normas de incentivo à aquisição do saber probatório do imputado que coo-
pera com a autoridade judiciária.

Por outro lado não se pode cogitar de atribuir ao prêmio pela colaboração pro-
cessual a dignidade ou extensão de princípio geral: a relação de tendencial con-
traposição entre os valores em jogo exige que o instrumento esteja limitado a
um especifico campo de manifestação delituosa no qual o interesse do eficien-
tismo na resposta estatal esteja em desequilíbrio, malsucedido pela ineficiência
dos meios tradicionais ante o fenômeno a enfrentar.2

De seu lado, após fazer análise sobre aspectos éticos em sua obra, preo-
cupando-se em abordar, em tópicos específicos, “a ética e o Direito”, “a éti-
ca e a moral” e “a utopia de uma ética universal e o Direito”, Eduardo Luiz
Santos Cabette e Marcius Tadeu Maciel Nahur posicionam-se, de forma cla-
ra, afirmando inexistir qualquer mácula ética na delação premiada.

Efetivamente, a colaboração premiada, conforme demonstrado em linhas vol-


vidas, envolve uma apreciação ética, mas daí chegar à conclusão de que o insti-
tuto venha a violar normas morais porque um criminoso propõe-se a dar
informações à Polícia ou ao Ministério Público vai uma grande e insuperável
distância. Negar legitimidade ética ou moral à colaboração premiada é o mesmo
que atribuir validade ético-moral à “lei do silêncio” reinante entre criminosos e,
especialmente, na macrocriminalidade. Isso implica uma total inversão de va-
lores.3

1 NUCCI, Guilherme de Souza. Organização Criminosa. Rio de Janeiro: Forense,


2015, p.53-54.
2 PEREIRA, Frederico Valdez. Delação premiada: legitimidade e procedimento. Cu-
ritiba: Juruá, 2016, p. 116.
3 CABETTE, Eduardo Luiz Santos; NAHUR, Marcius Tadeu Maciel. Criminalidade
organizada & globalização desorganizada. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2014, p. 181

295
No mesmo sentido, de maneira enfática, Eugênio Pacelli explicita o seu
ponto de vista favorável à aceitação ética do instituto da delação premiada.

A delação, a traição ou qualquer expressão que pretenda traduzir o ato de reve-


lação da estrutura da organização criminosa, de seus autores e o modo de fun-
cionamento, ou, ainda, as informações acerca da localização da vítima e do pro-
duto ou proveito de ações criminosas, nada disso vai de encontro a qualquer
conceito de ética. A menos, é claro, que se passe a ideia de que a ética há de ser
determinada pelo grau de lealdade entre partícipes de determinado empreen-
dimento. Mas, aí, afastado de qualquer vinculação à moralidade, referido con-
ceito não servirá para mais nada.4

Em abordagem interessante do instituto em destaque, José Alexandre


Marson Guidi5 destaca trecho da obra de Pedro Juan Mayor, no ponto em
que destaca a fidelidade existente entre os membros da organização crimi-
nosa.

Sus membros, que no son numerosos, pero sí capaces de cometer cualquier


crimen se sujetan a um Código de Honor, inflexibile y severo cuya principal
regla es la obediência absoluta a los jefes y la completa reserva. Bajo juramento
se obligan a ayundarse mutuamente y no actuar de testigos ante ningún tribu-
nal. Esse conjunto de tradiciones recibe el nombre de omertá, voz proveniente
del siliciano omu (hombre).6

O penalista Damásio Evangelista de Jesus, por sua vez, já teve a oportu-


nidade de se manifestar de forma radicalmente contrária à delação premia-
da, inclusive destacando que tal instituto não é didático.

Ocorre que o delator sabe que, descoberta a traição, fatalmente será executado
pelos comparsas ou, se preso, pelos companheiros de cela, que não suportam
traidores. E a norma não é pedagógica: ela ensina que trair traz benefícios.7

4 PACELLI, Eugênio. Atualização do Curso de Processo Penal. Comentários ao CPP.


Lei 12.850/13. Disponível em www.eugenciopacelli.com.br, acesso em 16.08.2013.
5 GUIDI, José Alexandre Marson, Delação premiada: no combate ao crime organi-
zado. São Paulo: Lemos & Cruz, 2006, p. 147
6 MAYOR, Pedro Juan, Concépcion criminológica de la criminalidade organizada
contemporânea. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 7, n° 25, janeiro-março,
1999, 9. 218: “Seus membros, que não são numerosos, mas capazes de cometer qual-
quer crime, sujeitam-se a um Código de Honra inflexível e severo, cuja principal regra
é a obediência absoluta aos chefes e ao completo sigilo. Sob juramento, obrigam-se a se
ajudar mutuamente e não atuar como testemunhas perante nenhum tribunal. Esse con-
junto de tradições recebe o nome de omertá, termo proveniente dos homens sicilianos.”
7 JESUS, Damásio Evangelista de. O prêmio à delação nos crimes hediondos. Bole-
tim IBCCRIM, n° 5. São Paulo: IBCCRIM, 1993.

296
Em excelente obra, Cleber Masson e Vinícius Marçal posicionam-se de
maneira favorável à delação premiada, antes de destacar a opinião de diver-
sos autores que abordam o tema.

De mais a mais, razões de ordem prática justificam a adoção da colaboração


premiada, a saber: a) a impossibilidade de se obter outras provas, em virtude da
“lei do silêncio” que vige no seio das organizações criminosas; b) a oportunidade
de se romper o caráter coeso das organizações criminosas (quebra da afectio
societatis), criando uma desagregação da solidariedade interna em face da pos-
sibilidade da colaboração premiada.8

A mencionada obra de Cleber Masson e Vinícius Marçal, ao contrário da


maioria dos textos que abordam a delação premiada, destacou a posição de
autores estrangeiros, aos quais se faz menção neste momento diante da im-
portância dos mesmos no cenário internacional. É nesse contexto que se re-
gistram as opiniões de Luigi Ferrajoli, Eugênio Raúl Zaffaroni, Winfried
Hassemer e Rudolf Von Ihering.
Assim sendo, de forma contrária ao instituto, manifestou-se o italiano
Luigi Ferrajoli, criticando a opção legislativa feita em seu país de origem de
forma bastante veemente.

O legislador italiano, sugestionado pelos aspectos decadentes da experiência


americana, seguiu, ao invés, a estrada oposta, legitimando a transação primeiro
com as leis de emergência sobre os arrependidos e, depois, de maneira ainda
mais extensa, com a recente reforma do Código de Processo Penal. O resultado
é inevitavelmente a corrupção da jurisdição, a contaminação policialesca dos
procedimentos e dos estilos de investigação e de juízo, e a consequente perda
de legitimação política ou externa do Poder Judiciário.9

Também de forma veemente, o argentino Eugenio Raúl Zaffaroni criti-


cou a eticidade do instituto da delação premiada, revelando que a sua ado-
ção fere princípios há muito consagrados no Direito.

A impunidade de agentes encobertos e dos chamados arrependidos constitui


uma séria lesão à eticidade do Estado, ou seja, ao princípio que forma parte
essencial do Estado de Direito. O Estado está se valendo da cooperação de um
delinquente, comprada ao preço de sua impunidade, para “fazer justiça”, o que
o Direito Penal liberal repugna desde os tempos de Beccaria.10

8 MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinícius. Crime organizado. São Paulo: Método,


2016, p. 121
9 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo, Revista
dos Tribunais, 2010, p. 561.
10 ZAFFARONI, Eugênio Raul. Crime organizado: uma categoria frustrada. Discur-
sos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, 1996, v. 1, p. 45.

297
De seu lado, o alemão Winfried Hassemer apresentou crítica contun-
dente à delação premiada, a ponto de afirmar que a sua aplicação seria capaz
de arruinar o processo penal.

A longo prazo deve-se temer que o acordo arruíne o processo e, com isso, tam-
bém aqueles princípios e regras que garantem a proteção dos participantes. O
futuro do acordo no processo penal está aberto. Deve-se esperar que os tradi-
cionais princípios do Direito Processual Penal possam fazer valer novamente de
modo vigoroso na práxis o seu poder de convicção em face dos interesses na
economia e eficiência.11

Por sua vez, o também alemão Rudolf Von Ihering, ao contrário do seu
compatriota, externou a sua opinião favorável ao instituto da delação pre-
miada, ressaltando a sua utilidade prática.

Um dia, os juristas vão ocupar-se do direito premial. E farão isso quando, pres-
sionados pelas necessidades práticas, conseguirem introduzir a matéria premial
dentro do direito, isto é, fora da mera faculdade e do arbítrio. Delimitando-o
com regras precisas, nem tanto no interesse do aspirante ao prêmio, mas, sobre-
tudo, no interesse superior da coletividade.12

Radicalizando a sua sustentação favorável à delação premiada, Américo


Bedê Jr. e Gustavo Senna chegam a diagnosticar a chamada “síndrome de
Alice”, conforme abaixo explicitado.

Essa postura preconceituosa e antidemocrática de certa parcela da doutrina re-


vela um comportamento típico de quem foi acometido, pode-se dizer, pela
“síndrome de Alice”, pois mais parece viver num “mundo de fantasia”, com um
“direito penal da fantasia”, onde não existem homens que – de forma paradoxal
– são movidos por verdadeiro descaso para com a vida humana; um mundo no
qual não existem terroristas, nem organizações criminosas nacionais e interna-
cionais a comprometer as estruturas dos próprios Estados e, por conseguinte, o
bem-estar da coletividade e a sobrevivência humana.13

Por sua vez, Marcos Paulo Dutra Santos, em excelente obra na qual
aborda a delação premiada, esclarece que o delator atenta contra a legislação
em vigor e, ao mesmo tempo, atenta contra os seus comparsas.

11 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Ale-


gre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 237.
12 IHERING, Rudolf Von. A luta pelo Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 73,
13 BEDÊ JUNIOR, Américo; SENNA, Gustavo. Princípios do processo penal: entre
o garantismo e a efetividade da sanção. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 26-
28.

298
Aliás, o atuar do delator revela-se o mais repugnante de todos, pois, além de ter
atentado contra a ordem jurídica e, por conseguinte, contra a sociedade, consi-
derado o crime perpetrado, volta-se contra os próprios comparsas, protagoni-
zando dupla traição: primeiramente, trai o pacto social que, enquanto cidadão,
também assinou; em seguida, trai os corréus, violando o pacto criminoso que
firmaram. E é justamente “premiado” com a menor punição.14

No mesmo sentido, Rômulo de Andrade Moreira critica a opção legisla-


tiva que se utiliza, no ponto de vista do referido autor, da fraqueza moral do
criminoso, afirmando o seguinte.

A traição demonstra fraqueza de caráter, como denota fraqueza o legislador


que dela abre mão para proteger seus cidadãos. A lei, como já foi dito, deve
sempre e sempre indicar condutas sérias, moralmente relevantes e aceitáveis,
jamais ser arcabouço de estímulo a perfídias, deslealdades, aleivosias, ainda que
para calar a multidão temerosa e indefesa (aliás, por culpa do próprio Estado)
ou setores economicamente privilegiados da sociedade (no caso da repressão à
extorsão mediante sequestro).15

Walter Nunes da Silva Júnior trouxe em sua obra interessante enfoque


quanto à mudança de nomenclatura utilizada pelo legislador, o qual, em um
primeiro momento, tratou do instituto como “delação premiada” para, pos-
teriormente, evoluir para “colaboração premiada”.

Ao preferir a expressão colaboração, o legislador expressa preocupação ética,


pois dá destaque aos benefícios que o agente traz para a sociedade com a sua
ajuda na persecução criminal, não à traição aos companheiros da empresa ilíci-
ta. Em outras palavras, incentiva, por meio da premiação, a consciência da pes-
soa quanto a sua responsabilidade pela preservação da segurança pública, nos
termos do art. 144, caput, da Constituição.16

Aliás, a discussão quanto à eticidade da delação premiada já foi objeto de


reflexão, ainda no Século XVIII, por parte de Cesare Bonesana, o Marquês
de Beccaria, na sua obra consagrada.

Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de grave delito que dela-


tasse os companheiros. Tal expediente tem inconvenientes e vantagens. Os in-
convenientes são que a nação estaria autorizando a delação, detestável mesmo

14 SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração (delação) premiada. Bahia: JusPo-


divm, 2016, p 69.
15 MOREIRA, Rômulo de Andrade. A mais nova previsão de delação premiada no
direito brasileiro. Disponível em: www.ambitojurídico.com.br. Acesso em 12 mar.
2016
16 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: teoria
(constitucional) do processo penal. Natal: OWL Editora Jurídica, 2015, p. 541.

299
entre criminosos, porque são menos fatais a uma nação os delitos de coragem
que os de vilania: porque o primeiro não é frequente, já que só espera uma força
benéfica e motriz que o faça conspirar contra o bem público, enquanto que a
segunda é mais comum e contagiosa, e sempre concentra mais em si mesma.
Além disso, o tribunal mostra a própria incerteza, a fraqueza da lei, que implora
a ajuda de quem a infringe.17

De seu lado, Nicolao Dino demonstra toda a sua convicção quanto à uti-
lidade do instituto da delação premiada.

No universo do crime, a lógica do jogo é diferenciada, e o silêncio é um impor-


tante escudo de proteção. Além disso, a criminalidade organizada tem acompa-
nhado de perto o desenvolvimento tecnológico-científico. Cada vez mais, sofis-
ticam-se as práticas de corrupção e os mecanismos de ocultação da sonegação,
da lavagem de dinheiro, de evasão de divisas, de fraudes em mercados de capi-
tais, dentre outras práticas ilícitas. E quanto mais complexa for a empreitada
criminosa, mais difícil será a obtenção da prova. Por tudo isso, é necessário
incentivar o criminoso a contribuir com o Estado, ainda que em troca de um
benefício proporcional à colaboração levada a cabo.18

Stephen Trott, por sua vez, apresenta uma visão simples e realista a res-
peito da delação premiada, na exata medida em que reconhece a sua impres-
cindibilidade, nos seguintes termos.

A sociedade não pode dar-se ao luxo de jogar fora a prova produzida pelos de-
caídos, ciumentos e dissidentes daqueles que vivem da violação da lei.19

Apresentando ponto de vista bastante claro, Sergio Fernando Moro de-


monstra o seu apoio à aplicação do instituto da delação premiada.

Não se está traindo a pátria ou alguma espécie de resistência francesa. Um cri-


minoso que confessa um crime e revela a participação de outros, embora movi-
do por interesses próprios, colabora com a Justiça e com a aplicação das leis de
um país. Se as leis forem justas e democráticas, não há como condenar moral-
mente a delação. É condenado nesse caso o silêncio.20

17 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes
Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 128/129.
18 DINO, Nicolao. A colaboração premiada na improbidade administrativa: possibili-
dade e repercussão probatória. In: SALGADO, Daniel de Resende; QUEIROZ, Ronal-
do Pinheiro de (Org.) A prova do enfrentamento à macrocriminalidade. Salvador: Jus-
podium, 2015, p. 444
19 TROTT, Stephen. O uso de um criminoso como testemunha: um problema espe-
cial. Tradução: Sergio Fernando Moro. Revista CEJ. Centro de Estudos Judiciários do
Conselho da Justiça Federal. V. 11, n. 37, abr/jun. 2007, p. 74.
20 MORO, Sergio Fernando. Considerações sobre a Operação Mani Pulite. Revista

300
Também Fausto Martin De Sanctis, em sua obra que aborda o estudo do
crime organizado, se posiciona de maneira favorável à delação premiada, ex-
cluindo qualquer crítica à sua eticidade.

Ética porque atende às finalidades político-criminais e à proteção do bem jurí-


dico. Quando se ataca esse instituto, alegando-o não ético, na verdade se está
invocando a “ética” do criminoso, que não aceita ser apontado como compar-
sa.21

De seu lado, em sua excepcional obra, Cibele Benevides Guedes da


Fonseca expõe o seu ponto de vista claramente favorável à delação premia-
da, nela não visualizando qualquer mácula sob o aspecto ético.

Desse modo, no caso de combate às organizações criminosas, com vistas à pre-


servação dos tantos valores por elas vilipendiados, parece ser absolutamente
natural que, em um Estado Democrático de Direito, haja previsão legal de re-
compensas ao agente que deseja retornar às regras democráticas, auxiliando o
law enforcement no combate a tal espécie de crimes.22

Cezar Roberto Bitencourt e Paulo César Busato, adotando ponto de vis-


ta contrário à delação premiada e criticando a sua eticidade, são expressos a
afirmar o seguinte.

Qual é, afinal, o fundamento ético legitimador do oferecimento de tal premia-


ção? Convém destacar que, para efeito da delação premiada, não se questiona a
motivação do delator, sendo irrelevante que tenha sido por arrependimento,
vingança, ódio, infidelidade ou apenas por uma avaliação calculista, antiética e
infiel do traidor-delator. Venia concessa, será legítimo ao Estado lançar mão de
um estímulo à deslealdade e traição entre parceiros, para atingir resultados que
sua incompetência não lhe permite através de meios mais ortodoxos?23

Também abordando a questão ética que não passou despercebida por


tantos autores já mencionados, Renato Brasileiro de Lima expõe o seu ponto
de vista da seguinte maneira.

CEJ. Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília, n. 26,


jul/set 2004, p. 58-59.
21 DE SANCTIS, Fausto Martin. Crime organizado e lavagem de dinheiro: destinação
de bens apreendidos, delação premiada e responsabilidade social. São Paulo: Saraiva,
2015, p. 182.
22 FONSECA, Cibele Benevides Guedes da. Colaboração premiada. Belo Horizonte:
Del Rey, 2017, p. 51.
23 BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à lei de or-
ganização criminosa. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 117.

301
Apesar de se tratar de uma modalidade de traição institucionalizada, trata-se de
instituto de capital importância no combate à criminalidade, porquanto se
presta ao rompimento do silêncio mafioso (omertà), além de beneficiar o acu-
sado colaborador. De mais a mais, falar-se em ética de criminosos é algo extre-
mamente contraditório, sobretudo se considerarmos que tais grupos, à margem
da sociedade, não só tem valores próprios, como também desenvolvem suas
próprias leis.24

Valdir Sznick também aborda o aspecto ético da colaboração premiada,


nos seguintes termos.

A colaboração espontânea (por muitos assimilada à traição) tem conotação mo-


ral, não sendo imoral. O legislador não questiona os motivos que levaram o
membro de uma organização a denunciar os demais membros e suas atividades.
Podem ser movidos por motivos nobres, como o arrependimento das ações co-
metidas, ou, mesmo, movidos pelo interesse de colaborar; ou levados por mo-
tivos menos nobres, diminuição sensível na pena (Itália e Estados Unidos) e,
até, isenção da pena (na Inglaterra); ou por motivos até criticáveis, como a vin-
gança (por não ter obtido uma “promoção” ou recompensa na organização cri-
minosa).25

Por derradeiro, expostas as concepções dos doutrinadores acima cita-


dos, convém registrar a observação feita por Piercamillo Davigo, um dos
membros da equipe milanesa que atuou na Operação “Mani Pulite”, cons-
tante em artigo de Sergio Fernando Moro, inserido no livro de Gianni Bar-
bacetto, Peter Gomez e Marco Travaglio, que tratou da aludida operação.

A corrupção envolve quem paga e quem recebe. Se eles se calarem, não vamos
descobrir, jamais.26

São essas, portanto, as opiniões doutrinárias que pesquisamos com o


propósito de enriquecer o tema, não se podendo esquecer que a questão éti-
ca, por si só, apresenta grau de dificuldade elevado quanto à sua compreen-
são. Nesse contexto, definir se a conduta do delator, que entrega os seus
companheiros de vida criminosa nas mãos da Justiça, é amparada pela ética
não é simples. É justamente essa complexidade, facilmente perceptível
quando se expõe tantos pontos de vista, que pretendemos realçar neste es-
tudo, como forma de permitir que o leitor melhor possa refletir quanto ao
mesmo.

24 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm,


2014, p. 731.
25 SZNICK, Valdir. Crime organizado: comentários. São Paulo: Livraria e Editora
Universitária de Direito, 1997, p. 368.
26 BARBACETTO, Gianni; GOMEZ, Peter; TRAVAGLIO, Marco. Operação Mãos
Limpas. Porto Alegr, CDG, 2016, p. 880.

302
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304
O processo administrativo tributário como
meio facilitador do acesso à justiça e exercício
da ampla defesa diante das decisões do
Conselho de Contribuintes da Prefeitura
da Cidade do Rio de Janeiro

Rosy Nery Guimarães


Marcilene Margarete Cavalcante Marques

Resumo: Este trabalho visa demonstrar a importância do profissional do


Direito não só na sua atuação em processos judiciais, mas também em pro-
cessos administrativos, onde sua participação não é obrigatória. O foco são
as decisões proferidas pelo Conselho de Contribuintes do Município do Rio
de Janeiro. O objetivo deste estudo foi analisar a importância do conheci-
mento jurídico nas impugnações, para atingir a verdade através de um meio
mais acessível ao cidadão comum, pela simplificação dos procedimentos e
baixo custo. Por fim, restou apontar que a contribuição da atuação do pro-
fissional do direito é fundamental, sem, contudo, sugerir que passe a ser
obrigatória.

Palavras Chaves: Processo Administrativo Tributário. Conselho de


Contribuintes. Profissional do Direito. Acesso à Justiça. Ampla Defesa.

Abstract: This paper aims to demonstrate the importance of the profes-


sional of lawyers not only in judicial processes, but also in administrative
processes, where its participation is not mandatory. The focus are the deci-
sionsof the Council of Taxpayers of Rio de JaneiroCity. The objective of
this study was to analyze the importance of legal knowledge in the impug-
nationto reach the truth through a more accessible way to the ordinary citi-
zen by the simplification of procedures and the low cost; Finally, a proposal
to update the law professional is fundamental, without, however, suggesting
that it becomes mandatory.

Keywords: Administrative Tax Process. Council of Taxpayers. Profes-


sional of the Law. Access to justice. Broad Defense.

305
INTRODUÇÃO

Este artigo trata do processo administrativo tributário como um meio fa-


cilitador da fruição dos direitos constitucionais de acesso à Justiça e exercí-
cio da ampla defesa, previstos na carta magna brasileira.
A insatisfação leva o cidadão a se interessar em procurar a tutela judicial
para resolver seus conflitos, encontrando muitas vezes grandes obstáculos
que o impedem de prosseguir como, por exemplo, no campo tributário: va-
lor reduzido a questionar; custas processuais que representam mais um gas-
to para quem já está com problemas para quitar o débito; honorários advo-
catícios, etc.
Nesse sentido, este trabalho mostra as diversas vantagens da utilização
do processo administrativo para uma solução mais justa para a lide tratada,
abordando os princípios que regem os envolvidos e focando na análise da im-
portância da participação de profissional qualificado para a elaboração das
peças de defesa.
Apresenta-se aqui a tramitação básica do processo administrativo-tribu-
tário no Município do Rio de Janeiro para apontar as fases e ponderar o re-
sultado no órgão colegiado Conselho de Contribuintes, como sendo decisão
representativa do exercício da ampla defesa.
O assunto se justifica por abordar uma prática não muito explorada no
meio acadêmico jurídico e tão importante para o cidadão comum, tendo em
vista a grande contribuição social que o profissional do direito pode oferecer
com seu conhecimento e expertise.
A metodologia adotada consiste no levantamento de material biblio-
gráfico e documental, fundamentando-se na legislação vigente, em livros e
artigos de ilustres doutrinadores, bem como em orientações feitas pessoal-
mente por integrantes da composição do ano de 2017 do Conselho de Con-
tribuintes que foram fundamentais para a compreensão desde toda a trami-
tação dos julgamentos até à decisão dos recursos administrativos, e sua im-
portância para a sociedade.

1. O processo administrativo fiscal e seus princípios norteadores

O eminente tributarista Hugo de Brito Machado Segundo1 cita como


princípios jurídicos aplicados ao processo administrativo tributário:
Utilidade do processo administrativo – não se pode impor gravames ao
contribuinte se o fato que supostamente enseja aplicação dos mesmos ainda
estiver sob a apreciação da administração pública.
Não submissão do órgão julgador ao poder hierárquico – os agentes fis-
cais, quando no exercício de uma das suas atividades típicas dentro da admi-

1 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Processo Tributário 8ª ed. 2015

306
nistração pública, estão vinculados à estrutura hierárquica do órgão a que es-
tão subordinados, diversamente de quando são julgadores, que estão vincu-
lados apenas às provas, e não ao dever de obediência.
Verdade material – a administração não pode exigir determinada afir-
mação sobre um fato; só se considera provado, se através de outros meios for
possível chegar à certeza de que aquele fato ocorreu mesmo.
Oficialidade – cabe à autoridade competente zelar pelo impulso célere
do processo, bem como por sua conclusão. Quando o processo administrati-
vo não depender de provocação do sujeito passivo a própria administração
pública deve promover de ofício a instauração do processo.
Diversas doutrinas ainda trazem mais alguns princípios específicos que
acreditamos importantes para este trabalho, quais sejam:
Legalidade objetiva – que visa a realçar a impessoalidade da atuação do
agente, com adstrição à norma jurídica que disciplina e instrumentaliza, com
a finalidade de aplicar a lei e o Direito.
Informalidade – bastam as formalidades essenciais à obtenção de certeza
jurídica e à segurança processual, ficando, portanto, dispensadas as formali-
dades excessivas, como o objeto principal da nossa discussão: desnecessida-
de da capacidade postulatória do advogado.
Princípio inquisitivo – que decorre da prevalência da verdade material e
permite que, no âmbito do processo administrativo tributário, o julgador
possa demandar diligências adicionais com intuito de produção de provas a
fim de determinar fatos relevantes.
Revisibilidade – que é a faculdade da administração pública revisar seus
próprios atos. Nesse sentido, o art. 145, I e II, do CTN2 permite que o lan-
çamento regularmente notificado ao sujeito passivo seja alterado em virtude
da impugnação por parte deste ou pelo recurso de ofício, os quais (impugna-
ção e recurso) ocorrem no âmbito do processo administrativo tributário.
Vale lembrar que existem princípios gerais não menos importantes e
que se aplicam ao processo administrativo tributário, assim como em qual-
quer área do direito processual como, por exemplo, o princípio da igualda-
de, cuja aplicação pode ser observada no princípio do formalismo moderado,
na medida em que propicia a qualquer pessoa, mesmo com conhecimentos
limitados, ter seus atos recebidos pela Administração Pública.O princípio
ora em tela dispensa formas rígidas para o processo, principalmente para os
atos a cargo do particular, devendo a norma que o regula exigir apenas as for-
malidades necessárias à certeza e licitude do procedimento. Assim, este
princípio torna o processo administrativo de acesso mais fácil para o contri-
buinte, não exigindo as formalidades do processo judicial, de forma que em

2 BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 denominada Código Tributário


Nacional (CTN). Art. 145.O lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo só
pode ser alterado em virtude de:I – impugnação do sujeito passivo;II – recurso de ofício.

307
qualquer campo de atuação do direito existe a necessária obediência a esse
postulado inseparável da existência da Justiça e do Estado de Direito.
Outro princípio não menos importante também é o da legalidade, o qual
garante que somente por norma representativa da vontade do povo se pode
criar deveres e sanções por seu descumprimento.
E, para o nosso estudo, vale a citação do dispositivo constitucional pre-
visto no art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988, que estabelece a legi-
timidade ao processo administrativo tributário contencioso, o qual assegura
ao sujeito passivo o contraditório e ampla defesa: “aos litigantes, em proces-
so judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o con-
traditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Tais ga-
rantias são existentes tanto no âmbito do processo administrativo tributário
quanto no processo judicial tributário, e estão ligadas ao princípio do devido
processo legal.
O contencioso administrativo se inicia a partir da notificação do sujeito
passivo do lançamento tributário, onde o mesmo tem as opções de pagar ou
impugná-lo com interposição de recurso administrativo, passando o crédito
a ter sua exigibilidade suspensa, nos termos do art. 151, III do CTN3.
Questão muito importante é a redação da Súmula Vinculante 21 STF a
qual afirma que “é inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento
prévios de dinheiro ou bens para a admissibilidade de Recurso Administra-
tivo”.
Ao final do processo administrativo, depois de seguido todo o rito pre-
visto na legislação tributária do ente tributante, a decisão administrativa
pode ser favorável ou desfavorável ao sujeito passivo. No deferimento favo-
rável, ocorrerá a extinção total ou parcial do crédito tributário, com base no
art. 156, IX, do CTN4. Por outro lado, sendo a decisão desfavorável, o cré-
dito volta a ser exigível, e no caso de inadimplência, a fazenda pública pode
realizar os atos cabíveis, como inscrever o crédito tributário em dívida ativa
para gerar a certidão de dívida ativa, que constitui título executivo extraju-
dicial com vistas a viabilizar o ajuizamento da ação de execução fiscal para a
cobrança judicial do crédito tributário.
De acordo com a redação do art. 145, I e II do CTN5, a impugnação, seja
voluntária interposta pelo sujeito ativo ou o recurso de ofício apresentado

3 BRASIL. Ibid. Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: III – as


reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário admi-
nistrativo.
4 BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 denominado Código Tributário
Nacional (CTN). Art. 156.Extinguem o crédito tributário: IX – a decisão administrativa
irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa
ser objeto de ação anulatória.
5 BRASIL. Ibid. Art. 145.O lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo
só pode ser alterado em virtude de: I – impugnação do sujeito passivo; II – recurso de
ofício.

308
pela fazenda pública, pode acarretar a alteração do lançamento que já foi re-
gularmente notificado ao sujeito passivo.
As decisões proferidas por órgãos administrativos não possuem caráter
definitivo para o contribuinte, não afastando o acesso ao Poder Judiciário,
com base no princípio da inafastabilidade da jurisdição, consignado no art.
5º, XXXV, da CF/886; tendo em vista que no nosso ordenamento jurídico
não existe “coisa julgada administrativa”, sendo este caráter exclusivo das
decisões judiciais transitadas em julgado.
Ao contribuinte é assegurado o direito de, a qualquer tempo, desistir da
via administrativa antes mesmo da decisão definitiva, seja para quitar o cré-
dito tributário, seja para ingressar judicialmente. Tal opção implica a renún-
cia da lide instaurada no âmbito administrativo, que, no caso específico do
Município do Rio de Janeiro, está fundamentada no art. 109, §1º do Decre-
to 14.602/1996, que trata dos procedimentos e processos administrativos
tributários7.

2. A Presença do Advogado e o Exercício da Ampla Defesa.

O tema já está pacificado nos tribunais superiores e objeto da Súmula


Vinculante nº 5, que dispõe que “a falta de defesa técnica por advogado no
processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. A discussão
aqui apresentada busca verificar os benefícios que a presença do advogado
pode trazer para o contribuinte e o impacto em relação à diminuição ou não
dos processos judiciais.
Para ingresso de ação judicial é necessário constituir advogado e fazer o
pagamento das custas processuais, enquanto que no processo administrativo
tributário o interessado, como cidadão comum, pode apresentar impugna-
ção no mesmo processo administrativo que gerou o lançamento controverso
ou em processo novo sem pagamento de qualquer taxa ou despesas com
autenticações cartoriais, podendo levar as cópias junto com os documentos
originais para serem reconhecidas pelo próprio servidor público. Na esfera
administrativa, o cidadão pode optar por ser ele mesmo o patrono do pro-
cesso, e se quiser constituir procurador, este não precisa ser advogado. Se

6 BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do


Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Art. 5. XXXV – a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
7 BRASIL. Rio de Janeiro (Município). Decreto nº 14.602, de 29 de fevereiro de
1996: regulamenta o procedimento e o processo administrativo – tributário (PAT). Art.
109 – Encerra-se o litígio com: § 1º – A propositura pelo contribuinte de ação judicial
relativa à mesma matéria objeto do litígio importa desistência da impugnação ou do
recurso interposto na esfera administrativa. http://www.rio.rj.gov.br/web/smf/conse-
lho-de-contribuintes – dia 12/09/2017

309
for de seu interesse, pode complementar o pedido com a expertise de pro-
fissionais técnicos para auxiliar na defesa.
A pesquisa para avaliar a importância da presença do advogado nos pro-
cessos administrativos tem por objetivo verificar se, logo após o contribuinte
ser autuado pelo Fisco e estando bem assessorado na elaboração de sua de-
fesa, há possibilidade concreta de se encerrar o litígio, evitando-se assim um
contencioso que certamente consumiria mais em tempo e dinheiro.Outro
aspecto que corrobora o aumento do exercício à ampla defesa é o valor con-
troverso, muitas vezes tão baixo que não caberia autuar um processo judicial
por conta das custas e honorários, possivelmente mais elevados que o pró-
prio objeto do litígio.
Existem diversas normas que regulam o processo administrativo tributá-
rio e elas se encontram nas legislações federal, estadual e municipal, às quais
qualquer pessoa pode ter acesso. No entanto, por ser a maioria dessas nor-
mas de difícil interpretação, os profissionais do setor possuem maior capaci-
dade de usá-las da forma apropriada.
Em muitos casos, lançamentos e autos de infração estão baseados em
normas administrativas como, por exemplo, portarias e instruções, tornan-
do difícil a pesquisa sobre a origem e a possível ilegalidade dessas normas ao
contribuinte que não está acostumado com o assunto e nem possui a exper-
tise necessária para entender as leis.
O professor e advogado tributarista Raul Haidar8, faz menção a várias re-
gras a serem observadas na defesa ou impugnação na esfera administrativa,
como adiante se demonstra.
Forma – deve a defesa ser apresentada na forma adequada e em lingua-
gem apropriada. Será muito útil se os parágrafos forem curtos, sem frases
imensas que dificultem o entendimento e a clareza do texto. Também será
bom que os parágrafos sejam numerados, facilitando-se eventuais citações
no futuro, quando se tornarem necessárias eventuais citações ou pesquisas.
Objetividade – a defesa deve ser objetiva. Em primeiro lugar citam-se
minuciosamente os fatos. Prejudica a clareza quem já no início entra no mé-
rito. Isso deve ficar para a fase seguinte.
Respeito – a primeira obrigação do contribuinte é tratar o agente do Fis-
co com respeito. Ainda que ele tenha sido grosseiro em sua atuação, nenhum
proveito trará ao contribuinte tratá-lo com a mesma grosseria. Não se pode
esquecer que o julgador na instância administrativa quase sempre é um fis-
cal. O tratamento ruim será recebido como se dirigido a todos os servidores
públicos.

8 HAIDAR, Raul. Revista eletrônica Consultor Jurídico. Matéria: Defesa do contri-


buinte nos autos de infração do Fisco. 21/07/2014. Disponível em: http://www.con-
jur.com.br/2014-jul-21/justica-tributaria-defesa-contribuinte-autos-infracao. Acesso
em 29/09/2017.

310
Documentos – os que forem juntados à defesa não exigem reconheci-
mento de firma ou autenticação. Essa é a regra do artigo 988 do Decreto nº
3000/99 (RIR)9. As repartições costumam exigir reconhecimento de firma
na procuração. Por outro lado, é indispensável que sejam juntados todos os
documentos que tenham sido mencionados ou úteis à defesa. Nesse caso,
esses devem ser especificados na parte final da defesa.
Perícia – na defesa pode ser pedida a realização de perícia contábil ou ser
juntado laudo pericial extrajudicial, que ajuda muito no esclarecimento de
dúvidas tributárias. Tais perícias só podem ser feitas por contador.
Multas confiscatórias – ainda que na fase administrativa não se reconhe-
ça que as multas não são confiscatórias porque previstas em lei, deve o con-
tribuinte sempre invocar tal princípio, tendo em vista que pode acontecer
este reconhecimento em processo judicial.
Em 21 de setembro de 2007 foi publicada no Diário da Justiça da União
a Súmula nº 343, que afirmava ser indispensávela presença do advogado
para a realização da justiça, tendo em vista a observância das garantias cons-
titucionais do Contraditório e Ampla Defesa, in verbis: “É obrigatória a pre-
sença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar”.
Portanto, os defensores dessa tese afirmam que muito embora a presen-
ça de um advogado seja dispensável no processo administrativo, as normas
aplicadas ao processo administrativo tributário são de complexidade extre-
ma, o que acaba prejudicando o próprio contribuinte, sendo assim necessá-
ria a defesa técnica em benefício daquele que não está acostumado com tan-
tas normas, o que prejudica sua defesa perante os órgãos administrativos.
O processo tributário administrativo é uma importante ferramenta que,
se bem articulada às defesas e recursos interpostos pelo contribuinte, pode
conduzir à extinção do crédito tributário, sem necessidade do Poder Judi-
ciário, quando há justiça e equidade nos meios de defesa.

3. Atos Administrativos e a Natureza das Decisões proferidas pelo Conse-


lho de Contribuintes.

Na instauração de um litígio existem esferas administrativas recursais


previstas na legislação própria de cada ente fazendário, e, por previsão cons-
titucional, podem existir órgãos colegiados representados por Conselhos de

9 BRASIL. RIR-99 – Decreto nº 3.000 de 26 de Março de 1999. Regulamenta a tri-


butação, fiscalização, arrecadação e administração do Imposto sobre a Renda e Proven-
tos de Qualquer Natureza. Art. 988. Salvo em casos excepcionais ou naqueles em que
a lei imponha explicitamente esta condição, não será exigido o reconhecimento de fir-
mas em petições dirigidas à administração pública, podendo, todavia, a repartição re-
querida, quando tiver dúvida sobre a autenticidade da assinatura do requerente ou
quando a providência servir ao resguardo do sigilo, exigir antes da decisão final a apre-
sentação de prova de identidade do requerente.

311
Contribuintes, com composição paritária entre representantes da fazenda
pública e dos contribuintes.
O surgimento dos Conselhos10 remonta a 1831, com a criação do pri-
meiro órgão centralizador de julgamento em última instância de processos
administrativos da fazenda pública. A partir do Decreto nº 16.580, de 4 de
setembro de 1924, foi positivada a possibilidade de criação de um Conselho
de Contribuintes em cada Estado e no Distrito Federal, sendo que o único a
entrar em funcionamento até o final de 1929 foi o federal do Rio de Janeiro,
então distrito federal. Com o decorrer dos anos foram criados outros, e hoje
temos vários federais, estaduais e municipais. Como o foco do presente tra-
balho é o Conselho do Município do Rio de Janeiro, não foi pesquisada a
quantidade nem em quais localidades da federação existe algum. Um exem-
plo que enfatiza a grande importância dos conselhos administrativos para a
sociedade é o escândalo do mensalão relacionado ao Conselho de Contri-
buintes Federal, que atinge diretamente o erário público, a ética e tantos ou-
tros bens coletivos.
Em razão do princípio da inafastabilidade da jurisdição, com fulcro no
art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal11, via de regra, as decisões
proferidas no âmbito do processo administrativo, inclusive o fiscal, são sus-
cetíveis de apreciação pelo Poder Judiciário.
O Conselho de Contribuintes é o órgão colegiado de composição paritá-
ria responsável pela decisão de conflitos instaurados entre contribuintes e o
Fisco em relação ao crédito tributário. Segundo o Regimento Interno do
Conselho de Contribuintes do Município do Rio de Janeiro, o seu objetivo
é garantir ao contribuinte julgamento em segunda instância dos processos
administrativos fiscais que versem sobre tributos e contribuições, adminis-
trados pela Secretaria Municipal da Fazenda, com independência, imparcia-
lidade, celeridade e eficiência, colaborando para o aperfeiçoamento da legis-
lação tributária. É o Conselho de Contribuintes que, promovendo a revisão
de todo o lançamento tributário efetuado pelo Fisco, decidirá pela existên-
cia ou não do crédito tributário, conforme dispõe o art. 1º do Regimento In-
terno.

Art. 1º O Conselho de Contribuintes é o órgão administrativo colegiado de que


trata o Art. 243 da Lei nº 691, de 24 de dezembro de 1984, integrado na estru-
tura da Secretaria Municipal de Fazenda, com autonomia administrativa e de-
cisória, tendo a atribuição de julgar, em segunda instância, os recursos voluntá-

10 MONTEIRO, Eduardo Martins Neiva, CAMPOS, Hélio Silvio Ourem. Conselho


Administrativo de Recursos Fiscais – CARF. Portal Âmbito Juridico. Disponível em
http:// ambitojuridico.com.br/site/index.php?artigo_id=10510&n_link=revista_arti-
gos _leitura. Acesso em 25/11/2017
11 BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Art.5, XXXV – a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

312
rios e de ofício contra decisões finais proferidas pela primeira instância em pro-
cessos administrativos tributários de natureza contenciosa, bem como os pe-
didos de reconsideração apresentados contra suas próprias decisões não unâni-
mes.

Portanto, como o Conselho de Contribuintes é um órgão administrati-


vo, as decisões proferidas nos julgamentos são consideradas atos administra-
tivos.

4. Tramitação Básica do Processo Administrativo Tributário na Prefeitura


do Município do Rio de Janeiro e a Contribuição do Advogado.

A tramitação básica de processo administrativo tributário no Município


do Rio de Janeiro se dá quando o cidadão, que passa a ser tratado como con-
tribuinte, toma ciência de um lançamento(como por exemplo, um auto de
infração, uma guia de IPTU ou de outro tributo tipo ISS, etc.) e não concor-
da com a própria cobrança ou contra os dados que foram usados, e, com isto,
se insurge contra a fazenda pública. Ao apresentar impugnação a este lança-
mento, o departamento fiscalizador responsável pelo lançamento analisa os
argumentos e opina, encaminhando o processo para o departamento julga-
dor, representado pela Coordenadoria de Revisão e Julgamento (CRJ). Ain-
da inconformado com o resultado, é possível apresentar novo recurso para o
Conselho de Contribuintes. E, posteriormente, ainda existe previsão legal
para interposição de recurso especial para o Secretário Municipal de Fazen-
da, encerrando em definitivo a instância recursal administrativa.
Normalmente, a impugnação e o recurso do contribuinte em análise até
a CRJ não precisam de fundamentação jurídica, porque os julgadores são
servidores públicos com formação universitária em qualquer curso superior,
que foram admitidos como fiscais em razão de concurso público. Sendo as-
sim, este recurso deve conter os aspectos técnicos objetivos da matéria de
fato ali tratada, como exemplo: laudo de valor venal pelo arquiteto, perícia
contábil, contador, etc.
Neste artigo, a segunda instância recursal é representada pelo Conselho
de Contribuintes do Município do Rio de Janeiro, que é órgão administrati-
vo colegiado integrado na estrutura da Secretaria Municipal de Fazenda,
previsto no art. 243, Lei nº 691/84 CTM12, com autonomia administrativa
e decisória, os recursos voluntários e ex-officio contra decisões proferidas

12 BRASIL. Rio de Janeiro (Município). Lei ordinária nº 691, de 24 de dezembro de


1984. Aprova o Código Tributário do Município do Rio de Janeiro e dá outras providên-
cias (CTM). Art. 243 – Ao Conselho de Contribuintes do Município do Rio de Janeiro,
composto de oito membros com a denominação de Conselheiros, compete a apreciação
das decisões de primeira instância no processo administrativo tributário contencioso,
conforme definido pelo Poder Executivo e na forma do Regulamento.

313
em primeira instância pela Coordenadoria de Revisão e Julgamento Tributá-
rios da SMF, referentes a processos administrativo-tributários de natureza
contenciosa.
O Conselho do Rio de Janeiro foi criado através do Decreto-Lei nº 6, de
15 de março de 1975, e recepcionado no Código Tributário Municipal de
14/12/1984 através da Lei nº 691.
Antes que o recurso voluntário do contribuinte à decisão da CRJ seja
apreciado pelo Conselho de Contribuinte é necessário que a fazenda pública
analise os argumentos apresentados, para o pleno exercício do contraditório.
Para tanto, o recurso é rebatido por um Representante da Fazenda, com for-
mação diversa, mas exigida reconhecida experiência em legislação tributá-
ria. Seus pareceres trazem um relatório de todo o caso concreto, para depois
apresentar a fundamentação com referência à doutrina jurídica e apontando
jurisprudência, o que dá mais robustez aos seus textos, que são chamados de
Promoção da Fazenda, com sua conclusão e a sugestão de voto. Por vezes, a
conclusão do seu parecer é a favor do contribuinte, tendo em vista que a sua
atribuição principal é de zelar pela aplicação correta da legislação tributária,
consoante o art. 14 do Regimento Interno13, e nem sempre foi o órgão fa-
zendário de primeira instância quem acertou; mas na grande maioria das ve-
zes, a sugestão de voto do representante da fazenda é a favor do fisco.
A experiência comprovada do representante da fazenda que irá analisar
o recurso à decisão da CRJ já é motivo suficiente para que o mesmo seja pro-
duzido com maior riqueza de informações e cuidado na sua elaboração.
Cabe apontar que, além da utilização de informações técnicas (matérias de
fato), tais como projetos de arquitetura para questionamento de lançamen-
tos, ofertas de imóveis para discutir valor venal e outros aplicados ao tipo de
fato gerador que está sendo impugnado, existem ainda questões puramente
jurídicas, tais como decadência, prescrição, preclusão e outros institutos dos
quais dificilmente o cidadão comum ou profissional de outra área de atuação
possua conhecimento suficiente para lançar mão e evitar que se percam seus
direitos. É fato também que a internet permite acesso a vasto material à dis-
posição de todos para contribuir na confecção da impugnação, mas é o pro-
fissional de direito que tem o conhecimento para escolher a melhor funda-
mentação, doutrina e jurisprudência para fazer uma tese de defesa competi-
tiva e com chances reais de êxito.
A dinâmica dos processos em condições de prosseguimento é a sua dis-
tribuiçãopara o Conselheiro Relator, que irá analisar todo o material juntado
pelas partes e se deparar, normalmente, com um recurso não fundamentado
apresentado pelo contribuinte e a réplica fundamentada feita pelo repre-

13 Ibid, Art. 14. A Representação da Fazenda, observando as normas constantes deste


Regimento, tem por atribuição promover a instrução dos processos antes de sua distri-
buição aos Conselheiros e fiscalizar a correta aplicação da legislação tributária.

314
sentante da fazenda, o que o levará, em grande parte das vezes, a concordar
com a promoção apresentada.
Deve-se pontuar, que o Conselheiro Relator analisa todas as provas jun-
tadas aos autos e os argumentos apresentados pelas partes, podendo tam-
bém solicitar diligências ou pareceres técnicos para dirimir dúvidas, pesqui-
sar outras fontes, para ficar convencido e decidir com base nos fatos e na lei.
Cabendo esclarecer que os outros Conselheiros poderão agir de forma simi-
lar no julgamento, quando o mesmo é suspenso e transferido para outra
data, para os esclarecimentos cabíveis. A todos é garantido o princípio do li-
vre convencimento motivado.
Toda sessão do Conselho produz um Acórdão redigido pelo Conselheiro
Relator, onde estarão consignados o relatório, a conclusão da Representação
da Fazenda, o próprio voto e a decisão que se traduz no acórdão propriamen-
te dito.
No dia em que o processo entra em pauta, o julgamento se faz num ce-
nário similar ao de um tribunal judicial de segunda instância, tanto no aspec-
to físico quanto nos procedimentos. As sessões, embora similares às de tri-
bunais judiciais, são revestidas de menor formalidade e mais acessíveis ao ci-
dadão comum, onde é garantido o seu direito de defender oralmente a sua
tese, sendo a ele facilitado, inclusive, interceder nos debates entre os conse-
lheiros e o representante do fisco, para esclarecer seu ponto de vista.
Nesses momentos de defesa oral e permissão para manifestar-se durante
a discussão da matéria, acontece que, muitas vezes pela solenidade tácita
imposta pelo ambiente, expertise dos envolvidos e característica da sessão,
o cidadão comum acaba por sentir-se intimidado, e perde uma boa chance
de apresentar melhor seus argumentos. Este é outro momento em que um
profissional do direito pode contribuir bastante com apoio e conhecimento.
Depois de debatido o assunto, a questão é colocada em votação. As de-
cisões unânimes encerram a instância administrativa. Quando não, temos
duas hipóteses: resultado por maioria, quando caberá recurso especial ao Se-
cretário Municipal de Fazenda, na condição de chefe da estrutura adminis-
trativa à que a matéria está subordinada, ou porvoto de desempate, isto é, na
apuração do resultado dá empate entre os representantes do contribuinte e
do fisco. Dentro do prazo de 30 dias, a decisão fica sub judice, aguardando
algum pedido de reconsideração, e posterior, a decisão final.

Considerações Finais

O objetivo deste trabalho foi analisar o processo administrativo como


um meio de solução de conflitos e sua eficácia como alternativa ao Judiciá-
rio.
Restou demonstrada a importância do processo administrativo para o ci-
dadão comum como garantidores dos princípios constitucionais da ampla
defesa e acesso à justiça pelos seguintes fatores: é um meio gratuito de lidar

315
com as controvérsias, o que permite que se discutam, inclusive, questões
que envolvam valores de pouca monta; é um processo menos oneroso, por
conta da própria gratuidade para interposição de impugnação, e por não ser
obrigatória a contratação de profissional técnico nem de advogado.
A eficiência do processo administrativo com igualdade de posiciona-
mentos das duas partes traduzir-se-ia em um excelente instrumento para
desafogar o Judiciário na medida em que o contribuinte teria exercido ple-
namente seu direito de defesa, e a decisão, independente se a favor ou con-
tra, estaria mais próxima da verdade, afastando seu interesse em continuar
com a lide, por se convencer do resultado.
Nesse sentido, restou demonstrado que a expertise do profissional do
Direito é um forte aliado para aumentar as chances de êxito nas controvér-
sias e, principalmente, chegar a um resultado mais justo, com as seguintes
contribuições: (1) Conhecimento para usar todo material disponível na le-
gislação federal, estadual e municipal, inclusive as normas administrativas
de forma apropriada, e para escolher a melhor argumentação para fazer uma
tese de defesa com chances reais de êxito; (2) Orientar o contribuinte na
escolha dos profissionais técnicos necessários (arquitetos, contadores etc.);
(3) Ser profissional com experiência em legislação tributária, com melhores
condições para apresentar argumentação compatível com a experiência do
Representante da Fazenda; (4) Conhecimento de questões puramente jurí-
dicas, tais como decadência, prescrição, preclusão e outros institutos para
lançar mão dos mesmos; (5) Dar apoio presencial na sustentação oral e dis-
cussão na sessão de julgamento; (6) Avaliar novos argumentos para apresen-
tação de pedido de reconsideração, para o caso de improvimento por voto
de desempate; (7) Analisar todo o contraditório em caso de improvimento,
para identificar se a questão foi exaurida, e caso contrário, avaliar as chances
de êxito pela via judicial; (8) Preparar o processo administrativo para ser
usado como prova na esfera judicial.
Portanto, cabe ao profissional do direito oferecer o seu conhecimento
jurídico em condições compatíveis com os requisitos e complexidade de
cada uma das duas esferas. Deve-se, no entanto, garantir que as impugna-
ções administrativas continuem sem a obrigatoriedade de capacidade postu-
latória do advogado para manterem-se como instrumento acessível à popu-
lação.

Referências

BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do


Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988 (CRFB). 49. ed. 2014.
BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 denominado Código Tributário
Nacional (CTN). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
L5172Compilado.htm Acesso em: 20 ago 2017.

316
BRASIL. Rio de Janeiro (Município). Decreto nº 14.602, de 29 de fevereiro de
1996: regulamenta o procedimento e o processo administrativo – tributário
(PAT). Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=
178507. Acesso em: 20 ago 2017.
BRASIL. Rio de Janeiro (Município). Legislação tributária municipal. Disponível
em: “http://www2.rio.rj.gov.br/smf/fcet/legislacao.asp”. Acesso em: 20 ago
2017.
BRASIL. Rio de Janeiro (Município). Lei ordinária nº 691, de 24 de dezembro de
1984. Aprova o Código Tributário do Município do Rio de Janeiro e dá outras
providências (CTM). Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/rj/r/rio-
de-janeiro/lei-ordinaria/1984/69/691/lei-ordinaria-n-691-1984-aprova-o-co
digo-tributario-do-municipio-do-rio-de-janeiro-e-da-outras-providencias.
Acesso em: 20 ago 2017.
BRASIL. Rio de Janeiro (Município). Resolução SMF nº 2.694, de 29 setembro de
2011 que aprova o Regimento Interno do Conselho de Contribuintes do Mu-
nicípio do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/docu-
ments/91253/3e689cc1-2bc5-4304-99d9-49255c32d965 . Acesso em
11/11/2017.
CONSELHO EDITORIAL: “DENISE. VERA LUCIA. SANDRO. et al. (2003)”.
Revista Tributária Municipal. Conselho de Contribuintes do Município do
Rio de Janeiro nº 1. 1. ed. Rio de Janeiro: Na Daugraf Gráfica e Editora. 2003.
CONSELHO EDITORIAL: “DENISE. VERA LUCIA. SANDRO. et al. (2003)”.
Revista Tributária Municipal. Conselho de Contribuintes do Município do
Rio de Janeiro nº 2. 2. ed. Rio de Janeiro. [s.n.], 2006.
HAIDAR, Raul. Matéria: Defesa do contribuinte nos autos de infração do Fisco.
2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jul-21/justica-tributa-
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RIBAS, Lidia Maria Lopes Rodrigues. Processo Administrativo Tributário. Editora
Malheiros. 2008. p. 54-55.

317
Direito ao lazer e dano existencial: reflexos
nos direitos da personalidade do trabalhador

Danielle Riegermann Ramos Damião


Jaqueline Nacata Garcia

Resumo: Este artigo teve por objetivo abordar a caracterização do dano


existencial em razão da violação do direito ao lazer por jornadas excessivas
de trabalho,e a suma importância de repará-lo através de indenização por
dano existencial como forma de garantir e proteger os direitos da personali-
dade do trabalhador, amparando-se sempre no princípio da dignidade da
pessoa humana, com respaldo na Constituição Federal e garantindo assim,
numa ótica trabalhista, a inviolabilidade do direito à honra, à vida privada, à
identidade e à essência subjetiva e existencial do trabalhador. O direito ao
lazer também está presente na constituição, disposto como direito social
fundamental, o que o torna indisponível e inerente ao trabalhador. Sendo
assim, abordou-se também a questão de que, através da prática costumeira
das jornadas extensivas de trabalho – realidade vivencial de muitos trabalha-
dores brasileiros – surge da lesão ao direito ao lazer a necessidade de indeni-
zar o ofendido através da indenização por dano existencial, compensando-o
pela ofensa ao direito social, bem como aos reflexos negativos à sua persona-
lidade e à sua essência existencial. Diante da importante essencialidade de
tal direito rotineiramente lesado, trouxe este artigo uma nova tendência nos
entendimentos dos tribunais do trabalho, que refere-se à caracterização do
dano existencial quando da ausência ao direito ao lazer – principal foco deste
trabalho –, atribuindo ao empregador causador do dano a obrigação de inde-
nizar o trabalhador ofendido; abordando também doutrinas e trabalhos que
discutem este tema relativamente novo no âmbito jurídico, que é de matriz
italiana e importado aos tribunais brasileiros.

Palavras chave: Dano existencial.Direito ao lazer. Direitos da persona-


lidade do trabalhador.

Abstract: The purpose of this article was to address the characterization


of existential damage due to the violation of the right to leisure due to ex-
cessive work hours, and the importance of repairing it through indemnity
for existential damage as a way to guarantee and protect the rights of the

319
personality of the worker, always based on the principle of the dignity of the
human person, with support in the Federal Constitution and thus guaran-
tee, in a labor perspective, the inviolability of the right to honor, privacy,
identity and the subjective and existential essence of the worker. The right
to leisure is also present in the constitution, disposed as a fundamental so-
cial right, which makes it unavailable and inherent to the worker. Thus, the
question was also raised that, through the customary practice of the exten-
sive work days – the lived reality of many Brazilian workers – the injury to
the right to leisure arises from the need to indemnify the victim through in-
demnity for existential damage, compensating – o for the offense to the so-
cial right, as well as the negative reflexes to its personality and its existential
essence. Faced with the important essentiality of such a right that is rou-
tinely harmed, this article has brought a new trend in the labor courts,
which refers to the characterization of existential damage when absent from
the right to leisure – the main focus of this work –, attributing to the causa-
tive employer of the damage to the obligation to indemnify the offended
worker; also addressing doctrines and works that discuss this relatively new
legal issue, which is of Italian origin and imported into the Brazilian courts.

Keywords: Existential damage. Right to leisure. Rights of the personali-


ty of the worker.

Introdução

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e os direitos da personali-


dade, institutos de suma importância na sociedade atual, são garantidos pela
Constituição Federal. Entretanto, conforme se pretende concluir no 1º ca-
pítulo deste trabalho de pesquisa,é preciso que tais direitos não sejam ape-
nas constitucionalmente garantidos aos indivíduos, mas que de fato, na prá-
tica, sejam protegidas sua incolumidade física e psíquica, a sua dignidade e o
seu projeto de vida.
Em virtude da ausência do direito social ao lazer, os tribunais brasileiros
vêm aplicando em suas decisões a indenização por dano existencial como
uma medida de tutela efetiva a tal direito.
O direito ao lazer, tratado no 2º capítulo deste trabalho, é um direito
fundamental social que limita a duração de trabalho e a jornada excessiva,
garantindo a todos a proteção da personalidade, através de tempo livre para
descanso, atividades sociais, promoção da dignidade humana, e aprimora-
mento profissional. Tal direito, em meio à rotina massificada de trabalho da
sociedade, tem sido lesionado constantemente e significativamente pelas
jornadas laborais excessivas, resultando no esgotamento profissional, físico
e mental dos trabalhadores.
O trabalhador por muitas vezes tem abdicado repetidamente de seu
tempo livre influenciado pela máxima da efetividade do trabalho, o que é

320
controverso, já que um trabalhador disposto e prestativo não é o trabalhador
esgotado, exausto e desprovido do seu tempo para lazer. Como veremos
adiante, tal realidade causa reflexos negativos diretamente nos direitos da
personalidade do trabalhador,bem como ao seu projeto de vida e ao seu de-
selvolvimento pessoal.
Neste sentido, através do método dialético dedutivo, a expectativa do
presente trabalho de pesquisa visa identificar a prática indispensável e irre-
nunciável do direito ao lazer, como forma de garantir e proteger os direitos
fundamentais da personalidade do trabalhador, principal tese a ser trabalha-
da, bem como respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana, tutela-
dos mediante indenização por dano existencial, analisando o cabimento em
atribuir responsabilidade ao empregador causador do dano.

1. Direitos da personalidade do trabalhador e proteção à dignidade hu-


mana

A Constituição Federal, logo em seu preâmbulo dispõe sobre a busca em


assegurar a todos os indivíduos o exercício de um rol de direitos, dentre eles,
os direitos sociais e individuais, a liberdade, o bem-estar, o desenvolvimen-
to, a igualdade e a justiça.1
Seguindo esta premissa, a lei magnatraz como um de seus fundamentos
em seu artigo 1ºa dignidade da pessoa humana2, a qual, importante ressaltar,
vem disposta no dispositivo constitucional antes do inciso referente aos va-
lores sociais do trabalho e da livre iniciativa, entendendo assim, que o traba-
lho deve, acima de tudo,ser digno e pautado no princípio da dignidade hu-
mana.
Neste liame que assegura as condições existenciais dignas ao trabalha-
dor, o artigo 170do nosso texto constitucional expõe que a ordem econômi-
ca de nosso país também deve ser pautada pela valorização do trabalho e da

1 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1998 dispõe em seu preâmbu-


lo o seguinte texto: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o de-
senvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade frater-
na, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na or-
dem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos,
sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATI-
VA DO BRASIL”.(BRASIL, 1988).
2 O art. 1º da Constituição Federal dispõe sobre seus fundamentos na seguinte or-
dem de incisos: “Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indisso-
lúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrá-
tico de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a digni-
dade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o
pluralismo político”.(BRASIL, 1988).

321
livre iniciativa,pretendendo em meios a outros princípios, a busca pelo ple-
no emprego, bem como a redução das desigualdades regionais e sociais3.
A magnitude com a qual a constituição zela pelo valor do trabalho digno
resta evidenciada no corpo de seu texto, nos artigos 7º ao 11º, os quais dis-
põem sobre os direitos de todos os trabalhadores, tais como a duração do
trabalho não superior oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, sendo
possível a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo
ou convenção coletiva de trabalho; o repouso semanal remunerado, sendo
preferencialmente aos domingos, e o gozo de férias anuais remuneradas, re-
forçando nitidamente preceitos que visem à melhoria de sua condição exist-
encial.
À vista disso, é possível corroborar o entendimento de que a lei magna,
através de dispositivos que possuem aplicabilidade imediata, e que limitam
a quantidade de trabalho bem como asseguram ao trabalhador o acesso ple-
no ao seu tempo livre, intenta aproteger os direitos da personalidade do tra-
balhador.
Os direitos da personalidade são indisponíveis e fundamentais, pois são
aqueles que protegem a dignidade da pessoa humana, permitindo ao ser o
seu autodesenvolvimento como pessoa humana no mundo. (OLIVEIRA;
BELMONTE, 2015).
A dignidade da pessoa humana é o núcleo representativo dos direitos
fundamentais, que tem como principal essência a tutela e proteção da pes-
soa humana. (OLIVEIRA; BELMONTE, 2015).
Em que pese tais direitos possuam respaldo constitucional, face à evolu-
ção tecnológica da sociedade capitalista atual que prega a cultura da máxima
produção, surgem diariamente consequências que acabam por lesar tais di-
reitos dos trabalhadores, como por exemplo, a prática constante de jornadas
maçantes e excessivas de trabalho que os privam de ter o devido tempo li-
vre, seja para descanso, desenvolvimento pessoal, promoção social ou lazer.
Oliveira e Belmonte, em suas palavras, descrevem:

[...] Contudo, com o dinamismo social provocado por uma evolução vulcânica
das tecnologias e do desenvolvimento econômico gerado pelo modelo de pro-

3 O artigo 170 da Constituição Federal de 1988 esboça em seu caput e incisos seus
princípios e fundamentos na seguinte ordem disposta: “Art.170. A ordem econômica,
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da pro-
priedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio am-
biente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos
produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) VII – redução das desigualdades regio-
nais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as em-
presas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País”. (BRASIL, 1988).

322
dução capitalista, surgem diversas situações não tipificadas nos ordenamentos
jurídicos que ofendem diretamente a dignidade da pessoa humana, fato que,
por vezes, provoca uma omissão social na tutela dos direitos decorrentes da
personalidade [...]. (OLIVEIRA; BELMONTE, 2015, p. 16).

A vida laboral do trabalhadordeve ser pautada por condições dignas para


o exercício dos direitos da personalidade, fundamentadas na proteção à dig-
nidade da pessoa humana, garantindo a este tempo livre para até mesmo se
recompor ao trabalho digno no dia seguinte,e não apenas cumprindo suas
obrigações laborais mediante jornadas extremamente extensivas, mas tam-
bém permitindo a sua autoafirmação, desenvolvimento pessoal, e, principal-
mente, ao seu direito ao lazer.(CALVET, 2010).

2. Jornada excessiva de trabalho e ausência ao direito ao lazer

Tem-se o conceito de jornada de trabalho como o “tempo diário em que


o empregado tem de se colocar em disponibilidade perante seu empregador
em decorrência do contrato [...]”. (CALVET, 2010, p. 103-104).
Ora, se a própria Constituição Federal limita este tempo diário em que
o trabalhador deve estar disponível ao trabalho, percebe-se a notável impor-
tância constitucional que tem para a sociedade o trabalho e o lazer, na mes-
ma intensidade, também ao colocá-los dispostos lado a lado no corpo de seu
artigo 7º. (CALVET, 2010)
Em que pese a Consolidação das Leis do Trabalhotambém limite a jor-
nada de trabalho em até oito horas, prorrogáveis em no máximo mais duas
horas suplementares4, (facultada a compensação de horário ou redução da
jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho) a realidade la-
boral nem sempre é a de valorização do trabalho. Nas palavras de Silva e
Wolowski:

[...] A globalização, o crescimento econômico e a grande concorrência mercan-


til têm contribuído para que muitas empresas atinjam metas e índices que ga-
rantam seu espaço no mercado. Para o alcance destes objetivos, muitos empre-
gadores abusam de seu poder diretivo, estabelecendo metas inatingíveis, des-
respeitando a honra dos seus empregados, exigindo jornadas de trabalho em
excesso [...]. (SILVA; WOLOWSKI, 2015, p. 354).

4 A jornada normal de trabalho vem expressa na Consolidação das Leis do Trabalho


da seguinte forma: Art. 58 – A duração normal do trabalho, para os empregados em
qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja
fixado expressamente outro limite. Art. 59 – A duração normal do trabalho poderá ser
acrescida de horas suplementares, em número não excedente de 2 (duas), mediante
acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de traba-
lho(BRASIL, 1943).

323
São recorrentes os casos onde se encontra o esgotamento profissional
pelas jornadas de trabalho maçantes e excessivas, que são advindas da cultu-
ra capitalista e do desenvolvimento tecnológico em que a sociedade está in-
serida, onde o trabalhador esgota-se física e mentalmente em grande parte
da sua quota diária, privando-o de seu tempo livre para o aprimoramento
pessoal e lazer. Entretanto, paradoxalmente, é pertinente considerar que,
com o desenvolvimento tecnológico aumenta-se a produção e diminui-se o
trabalho, aumentando consequentemente, em tese, o tempo disponível para
o devido lazer.
É a linha de pensamento de Calvet, que em suas palavras:

[...] se é certo que a robotização permite o aumento da produção com a redução


do trabalho, também é fato que, em tese, o homem poderia trabalhar menos ou
de forma menos extenuante para que fosse mantido o nível produtivo e, enfim,
gozar de mais lazer [...]. (CALVET, 2010, p.14)

Entretanto, é possível constatar-se que na prática a realidade não condiz


com tal teoria. Enquanto se pensar em lazer como tempo não produtivo, o
trabalho continuará sendo o núcleo central da vida das pessoas, sendo sem-
pre o instituto de mais importância para a sociedade capitalista. (CALVET,
2010)
É indispensável a necessidade dese revalorizar o lazer como instituto que
proporciona ao trabalhador o desenvolvimento de suas potencialidades labo-
rais, bem como ao seu integral auto desenvolvimento humano, tendo como
características principais a função de viabilizar o seu descanso; recreação; e
o desenvolvimento da sua personalidade; uma vez que ferramenta necessária
à busca e obtenção de sua dignidade humana no trabalho. (PEREIRA, 2015)
Ainda, em mesmo raciocínio, Pereira esboça tal entendimento:

[...] A redução na jornada de trabalho, possibilitada pelo desenvolvimento tec-


nológico, permitiria o aparecimento de novos postos de trabalho, também sen-
do necessária a redução ou extinção das horas extras, com estas ações a justiça
social será eminente, além de proporcionar a diminuição das desigualdades so-
ciais e maior segurança jurídica, política e social. Todos estes benefícios só são
possíveis com a valorização do direito ao lazer [...]. (PEREIRA, 2015, p.140)

O lazer5, direito social fundamental do trabalhador, vem sendo lesado


pela prática rotineira de jornadas que excedem o admitido legalmente em

5 O direito ao Lazer é um direito social fundamental garantido à todos os trabalhado-


res e assegurado pela Constituição Federal de 1988, que vem disposto em seu artigo
6ºnas seguintes palavras:”Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimenta-
ção, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição.” (BRASIL, 1988).

324
tempo de trabalho, impedindo que o mesmo desfrute de uma vida digna,
privando-o de seu convívio social, familiar, atividades que o tragam prazer e
aprimoramento pessoal, impossibilitando-o de concretizar o seu projeto de
vida. O trabalho, vale ressaltar, tem essência social e não existencial, e a au-
sência ao direito ao lazer acarreta aos trabalhadores diversas consequências
existenciais negativas, bem como doenças físicas e psíquicas. (SILVA; WO-
LOWSKI, 2015)
Ao zelar sempre pela proteção da dignidade humana do trabalhador, ca-
racteriza-se a necessidade de se compensar, através de devida indenização, a
ausência do direito ao lazer decorrente de casos de excesso de trabalho e jor-
nadas laborais excessivamente extensivas. (SILVA; WOLOWSKI, 2015)

3. Dano moral e dano existencial decorrentes de ausência ao direito ao


lazer

Diante das consequências expostas acima, face a privação do direito ao


lazer, pode-se observar a explícita caracterização de danos e a suma necessi-
dade de repará-los ao trabalhador efetivamente lesado.
Entretanto, é preciso que tal direito não seja apenas garantido a este,
mas que de fato, na prática, seja protegida sua incolumidade física e psíqui-
ca, a sua dignidade e o seu projeto de vida. Em vista disso, a indenização por
dano moral e dano existencial em razão da ausência do direito ao lazer vem
sendo adotada pelos tribunais brasileiros, conforme julgamento do Tribunal
Regional do Trabalho da 1ª Região:

RECURSO ORDINÁRIO. JORNADA EXCESSIVA. DANO MORAL.


CONFIGURAÇÃO. Dano moral é aquele que atinge os direitos da personali-
dade, sem valor econômico, caracterizando-se, na relação de emprego, por abu-
sos cometidos por empregado ou empregador com repercussão na vida privada,
na intimidade, na honra ou na imagem do ofendido. Na presente hipótese res-
tou demonstrado nos autos que o reclamante era submetido a jornadas exces-
sivas, que extrapolavam, em regra, o limite de dez horas diárias, bem como que
permanecia de sobreaviso todo o tempo em que não estivesse efetivamente
trabalhando, fatos que notadamente atingem a integridade física do emprega-
do, visto que o expõe a situações de extremo stress e fadiga física e mental,
além de não permitir ao trabalhador tempo necessário para o lazer e convívio
familiar.
(TRT-1 – RO: 00005039420125010471 RJ, Relator: PAULO MARCELO DE
MIRANDA SERRANO, Data de Julgamento: 01/07/2015, Sexta Turma, Data
de publicação: 09/07/2015)

O julgado acima corrobora com o entendimento abordandoa configura-


ção do dano moral em razão da ausência ao direito ao lazer em decorrência
das jornadas excessivas presentes na realidade das relações laborais atuais.

325
3.1. Dano moral e dano existencial

O dano moral deriva de ato lesivo à honra ou dignidade do indivíduo.


Sendo assim, todo ato que lesiona a integridade física e psíquica do trabalha-
dor, se decorrente deassédio moral6 por excesso de trabalho,sempre deverá
ser indenizado pelo seu causador, visto que, tamanha a gravidade, pode co-
locar em risco a vida do trabalhador. (SILVA; WOLOWSKI, 2015)
Enquanto o dano moral possui aspecto subjetivo, consistindo no sofri-
mento psicológico do indivíduo, o dano existencial tem natureza mais am-
pla, possuindo aspecto objetivo,no qual consiste no cerceamento e impedi-
mento do trabalhador de realizar atividades referentes à sua realização pes-
soal, à sua autoafirmação como ser no mundo, e ao seu projeto de vida.
(FROTA; BIÃO, 2010)
Odano existencial possui matriz italiana (FROTA; BIÃO, 2010), e é um
instrumento de tutela da dignidade humana do trabalhador, possuindo
como núcleo o dano ao projeto de vida.
Trata-se de instituto relativamente novo que vem sendo aplicado nas de-
cisões jurisprudenciais brasileiras, como exemplo a decisão do Tribunal Re-
gional do Trabalho da 4ª Região:

DANOS EXISTENCIAIS. CUMPRIMENTO DE JORNADA EXTENUAN-


TE DE TRABALHO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. O cumprimento de jorna-
das de trabalho exaustivas, com prestação de labor em sobrejornada acima do
limite estabelecido pela lei (art. 59, caput, da CLT), constitui causa de danos
não apenas patrimoniais ao trabalhador, mas, principalmente, violação a direi-
tos fundamentais e o aviltamento da saúde e bem-estar do empregado. É, pois,
fator de risco ao estado psicossocial da pessoa, capaz de ensejar danos à saúde e
à sociedade como um todo, na medida em que o obreiro fica privado de uma
vida familiar e social dignas, do lazer e do desenvolvimento de sua personalida-
de, além de gerar risco potencial para acidentes e doenças do trabalho. Inega-
velmente, a prestação de trabalho em jornadas exaustivas, com labor habitual
e diário acima dos limites estabelecidos pela lei, além do máximo tolerável para
permitir uma existência digna ao trabalhador, causa dano presumível aos direi-
tos da personalidade do empregado (dano moral/existencial in reipsa), dada a
incúria do empregador na observância dos direitos fundamentais e básicos esta-
belecidos pela lei quanto à duração da jornada de trabalho, em especial os limi-
tes para exigência de horas suplementares e ao mínimo de descanso exigido
para recomposição física e mental do trabalhador. No caso concreto, a ilicitude
do ato praticado pelo empregador é evidente, diante da violação de direitos
fundamentais e sociais, notadamente os direitos sociais a uma existência digna,
ao lazer, à segurança etc., pelas restrições de ordem pessoal e social sofridas

6 De acordo com o entendimento de Silva e Wolowski, há violação dos direitos da


personalidade nas relações de trabalho quando incide o assédio moral por excesso de
trabalho. O assédio moral se configura pelas práticas abusivas e reiteradas que lesionam
os direitos da personalidade do trabalhador. (SILVA; WOLOWSKI, 2015)

326
pelo autor, que laborou por cerca de 2 anos e três meses cumprindo jornada de
12,5 horas diárias de trabalho, além de dois domingos por mês e feriados, com
jornada de 10,5 horas de trabalho, gozando sempre de apenas 35 minutos para
descanso e alimentação, e sem gozo de férias neste período. Indenização por
danos morais devida, na modalidade de danos existenciais.
(TRT-4 – RO: 00011817420125040003 RS, Relator: MARCELO JOSÉ FER-
LIN D AMBRÓSIO, Data de Julgamento: 05/06/2014, 3ª Vara do Trabalho de
Porto Alegre)

Tal julgado exemplifica a importação da aplicabilidade do dano exis-


tencial das relações de trabalho.
O dano existencial traduz-se em gênero de dano imaterial, que impossi-
bilita o indivíduo de executar o seu projeto de vida (conjunto de atividades
sociais, familiares, profissionais, religiosas, artísticas, entre outras, arquite-
tadas em metas almejadas para a sua autoafirmação e auto realização no
mundo); bem como de reaver a sua vida de relação social, profissional e fa-
miliar (convivência com os demais). (FROTA, 2011)
Em igual entendimento, preceitua Frota que “[...]o fato injusto que
frustra esse destino (impede a sua plena realização) e obriga a pessoa a resig-
nar-se com o seu futuro é chamado de dano existencial [...].” (FROTA,
2011, p. 245).
No mesmo seguimento, o dano existencial se subdivide em duas bases,
que são o dano à vida de relações e o dano ao projeto de vida. (FROTA,
2011)
O dano à vida de relações se caracteriza pelo impedimento do indivíduo
de proceder às suas atividades sociais e relacionais, onde compartilha com os
demais seres humanos seus pensamentos, aspirações, vivência, e aspectos
relacionados a sua experiência humana, que contribuem para a sua formação
existencial. É o que preceitua Frota:

[...] diz respeito ao conjunto de relações interpessoais, nos mais diversos am-
bientes e contextos, que permite ao ser humano estabelecer a sua história vi-
vencial e se desenvolver de forma ampla e saudável, ao comungar com seus
pares a experiência humana, compartilhando pensamentos, sentimentos, emo-
ções, hábitos, reflexões, aspirações, atividades e afinidades [...] (FROTA,
2011, p. 252)

O dano ao projeto de vida é o núcleo do dano existencial, e constitui no


impedimento causado ao indivíduo de executar um conjunto de atos desti-
nados a concretização de metas e aspirações pessoais para a sua auto realiza-
ção e que dão sentido à sua existência. (FROTA; BIÃO, 2010).

3.2. Dano ao projeto de vida como núcleo do dano existencial

O projeto de vida faz parte da dimensão existencial do indivíduo. Estese


elabora ao longo de sua vida, através de um complexo de vários aspectos, tais

327
quais sejam os familiares; os religiosos; os educacionais, os políticos; os eco-
nômicos e os sociais, que, reunidos, influenciam diretamente na formação
psique e existencial do ser humano, bem como nas suas escolhas pessoais,
dando sentido à sua razão existencial. (FROTA; BIÃO, 2010)
Ao sofrer restrição à realização do seu projeto de vida, através do cum-
primento de jornadas excessivas impostas ao indivíduo; do impedimento de
usufruir do seu tempo livre e lazer; bem como de efetivar o seu desenvolvi-
mento existencial,surge o chamado dano ao projeto de vida, vertente do
dano existencial.
Neste seguimento, corroboram Frota e Bião com tal entendimento:

[...] o dano ao projeto de vida consiste em vertente do dano existencial relacio-


nada ao impedimento de que determinado ser humano tenha a possibilidade
fática de praticar, baseado em seu livre-arbítrio, conjunto de atos imprescindí-
veis à execução de planejamento razoável e adaptável de metas e aspirações
pessoais (plausíveis e exequíveis) que dão sentido à sua existência e repre-
sentam aspecto central de sua busca pela autorrealização [...]. (FROTA; BIÃO,
2010, p. 148)

É notável a grave consequência de tal dano, pois o mesmo lesa significa-


tivamente a perspectiva humana do indivíduo de desenvolvimento pessoal
bem como oferece grave ameaça ao livre arbítrio para que este possa esco-
lher o seu próprio destino. (FROTA, 2011).
Constitui fato caracterizador de dano ao projeto de vida – núcleo do
dano existencial – por exemplo, a ausência ao direito ao lazer do trabalhador
em consequência de jornadas excessivas de trabalho que ultrapassam o tem-
po laboral permitido em lei, e que assim lesionam os direitos da personalida-
de do trabalhador pelo não gozo de seu tempo livre, impedindo-o de concre-
tizar o seu projeto de vida.
Uma vez caracterizado o dano existencial7, através do dano à sua vida de
relações, bem como o dano ao projeto de vida do trabalhador, nasce a indis-
pensável necessidade de se reparar o dano causado à vítima, através de um
instrumento que ofereça tutela efetiva ao trabalhador.
A partir desta significativa imprescindibilidade de se reparar tal dano
bem como de se evitar a sua prática reiterada nas relações de trabalho, é que
os tribunais brasileiros tem aplicado a devida indenização por dano exis-
tencial nos casos de ausência ao direito ao lazer ao trabalhador imposta, res-
ponsabilizando assim o causador da ofensa.

7 O dano Existencial, segundo entendimento de Frota, se caracteriza por meio de


uma alteração significativa na vida do ser humano, no que diz respeito às suas relações
familiares, sociais, afetivas, culturais, repercutindo consequentemente na sua existência
como ser no mundo. (FROTA, 2011, p. 246)

328
3.3. Aplicabilidade do dano existencial na justiça do trabalho brasileira e a
responsabilização do causador de indenizar o ofendido

O dano existencial pode atingir setores distintos, sendo eles as relações


sociais; familiares; afetivas; culturais; religiosas e de lazer, pois, em confor-
midade com Frota: [...] O dano existencial materializa-se como uma renún-
cia involuntária as atividades cotidianas de qualquer gênero, em comprome-
timento das próprias esferas de desenvolvimento pessoal [...]. (FROTA,
2011, p. 246)
Destarte, no âmbito das relações de trabalho, é afetado pelo dano exist-
encial o trabalhador que através de jornadas excessivas e extensas abdica
forçadamente ao seu tempo de lazer e, uma vez lesado o direito ao trabalha-
dor ofendido, surge a necessidade de se indenizá-lo.
A justiça brasileira, através tímidos julgamentos no judiciário especiali-
zado trabalhista, vem aplicando a indenização pelo dano existencial:

INDENIZAÇÃO POR DANO EXISTENCIAL. JORNADA DE TRABALHO


EXTENUANTE. O dano existencial consiste em espécie de dano extrapatri-
monial cuja principal característica é a frustração do projeto de vida pessoal do
trabalhador, impedindo a sua efetiva integração à sociedade, limitando a vida
do trabalhador fora do ambiente de trabalho e o seu pleno desenvolvimento
como ser humano, em decorrência da conduta ilícita do empregador. O Regio-
nal afirmou, com base nas provas coligidas aos autos, que a reclamante laborava
em jornada de trabalho extenuante, chegando a trabalhar 14 dias consecutivos
sem folga compensatória, laborando por diversos domingos. Indubitável que
um ser humano que trabalha por um longo período sem usufruir do descanso
que lhe é assegurado, constitucionalmente, tem sua vida pessoal limitada, sen-
do despicienda a produção de prova para atestar que a conduta da empregado-
ra, em exigir uma jornada de trabalho deveras extenuante, viola o princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana, representando um aviltamento
do trabalhador. O entendimento que tem prevalecido nesta Corte é de que o
trabalho em sobrejornada, por si só, não configura dano existencial. Todavia, no
caso, não se trata da prática de sobrelabor dentro dos limites da tolerância e
nem se trata de uma conduta isolada da empregadora, mas, como afirmado pelo
Regional, de conduta reiterada em que restou comprovado que a reclamante
trabalhou em diversos domingos sem a devida folga compensatória, chegando a
trabalhar por 14 dias sem folga, afrontando assim os direitos fundamentais do
trabalhador. Precedentes. Recurso de revista conhecido e desprovido. (grifo do
Autor)
(TST – RR: 10347420145150002, Relator: JOSÉ ROBERTO FREIRE PI-
MENTA, Data de Julgamento: 04/11/2015, 2ª Turma, Data de publicação:
DEJT 13/11/2015)

O tribunal superior do trabalho, em decisão do recurso de revista acima


mencionado, ratificou o entendimento de que no presente caso caracteri-
zou-se a devida indenização por dano existencial, eis que a trabalhadora la-

329
borava em jornadas extenuantes e reiteradas, não se tratando apenas de so-
brelabor permitido em lei, mas sim em ato reiterado e imposto pelo empre-
gador que lesa os direitos fundamentais da trabalhadora.
No mesmo sentido, o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª região julgou:

DANOS EXISTENCIAIS. CUMPRIMENTO DE JORNADA EXTENUAN-


TE DE TRABALHO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. O cumprimento de jorna-
das extenuantes, com labor habitual e diário acima dos limites estabelecidos
pela lei – como no caso, em que o autor trabalhou até quinze horas diárias por
treze meses – causa dano presumível aos direitos da personalidade do emprega-
do (dano moral/existencial in reipsa), dada a incúria do empregador na obser-
vância dos direitos fundamentais e básicos estabelecidos pela lei quanto à dura-
ção da jornada de trabalho, em especial os limites para exigência de horas su-
plementares e mínimo de descanso exigido para recomposição física e mental
da pessoa. Indenização por danos morais devida, na modalidade de danos exis-
tenciais. Recurso provido.
(TRT-4 – RO: 00003428820125040281 RS, Relator: MARCELO JOSÉ FER-
LIN D AMBRÓSIO, Data de Julgamento: 30/10/2013, 1ª Vara do Trabalho de
Esteio)

Confirmando e comprovando o cabimentode tal modalidade indeniza-


tória nas relações de trabalho, bem como e a suma importância de sua apli-
cabilidade, vê-se qualificada na decisão acima bem como nos julgamentos
atuais a importação e a tendência dos tribunais do trabalho brasileiros em
adotar a indenização por dano existencial como medida de tutela e repara-
ção ao direito ao lazer face jornadas excessivas laborais.

CONCLUSÃO

Tendo em vista a valorização do trabalho, diante de todo o demonstra-


dono decorrer da presente pesquisa, entende-se queo direito ao lazer, dis-
posto no artigo 6º da Constituição Federal do Brasil, é preceito fundamen-
tal, possuindo aplicabilidade imediata, sendo fator determinante para a for-
mação da personalidade e aperfeiçoamento pessoal do trabalhador.
Entretanto, quando violado tal direito, causa-seimpacto negativo direta-
mente nos direitos da personalidade do trabalhador ofendido, bem como re-
flexos à ordem econômica,restando inquestionável a configuração do dano
existencial, devendo ser tutelado através da indenização por dano exis-
tencial, medida relativamente nova que vem sendo reiteradamente adotada
pelos posicionamentos dos tribunaisdo trabalho brasileiros.
Ante todo o exposto no presente artigo, chega-se à conclusão de que ain-
denização por dano existencialé instrumento de tutela de suma importância,
indispensavelmente aplicável às relações laborais onde se configura o abuso
do trabalhador face as jornadas excessivas e extenuantes, devendo ser atri-

330
buída ao ofensor causador do dano a obrigação de reparar, eis que é forma
efetiva de garantir e proteger os direitos fundamentais da personalidade do
trabalhador, repeitando assim, uma das principais bases do direito do traba-
lho no Brasil, que é o princípio da proteção à dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

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332
A Saúde em Juízo

Carlos José de Souza Guimarães

Resumo: Este artigo problematiza a situação relativa à utilização do Po-


der Judiciário como substitutivo ao Poder Executivo na execução de políti-
cas públicas na área de saúde. Mais especificamente, questiona-se a jurispru-
dência brasileira no sentido de tratar o direito à saúde como direito subjeti-
vo individual, para fins de condenar os entes federativos a prover tratamen-
tos e medicamentos aos postulantes das ações judiciais.

Palavras-chave: direito à saúde; judicialização; ativismo judicial.

Abstract: This article problematizes the situation regarding the use of


the Judiciary as a substitute for the Executive Power in the execution of
public policies in the health area. More specifically, the brazilian jurispru-
dence is questioned in order to treat the health right as an individual subjec-
tive right, for the purpose of condemning federal entities to provide treat-
ments and medicines to postulants of lawsuits.

Keywords: health and security right; judicialization; judicial activism.

Introdução

Talvez o melhor título para este artigo seja “A saúde sem juízo”. Diante
do caos construído ao longo de algumas décadas, com o sucateamento da
rede pública de saúde, o aviltamento dos serviços médico-hospitalares gra-
tuitos e a proliferação de negócios, lícitos e ilícitos, que aproveitam este la-
mentável estado de coisas (como os planos privados de saúde e a corrupção
político-administrativa, dentre muitos exemplos), as dramáticas demandas
na área de saúde, em seus mais variados tipos (transplantes, fornecimentos
de remédios, tratamentos experimentais, internações urgentes, prestações
de home care, alterações de lugar nas filas internas dos hospitais, realizações
de exames, entre uma infinidade de outras hipóteses), buscaram a tutela ju-
risdicional como forma de proteção efetiva.

333
Nesse cenário, o Poder Judiciário foi transformado em instância assis-
tencialista, gerando-se uma enxurrada de ações judiciais, todas tendo por
base o preceito constitucional do art. 196, segundo o qual a saúde é direito
de todos e dever do Estado, redação genérica e programática, que a jurispru-
dência transformou em fonte de direitos individuais subjetivos, oponíveis às
três esferas governamentais, independentemente das restrições orçamentá-
rias e das normas que estruturaram o Sistema Único de Saúde (SUS), como
a Lei 8.080/1990, verbi gratia.
O direito universal à saúde (incluindo fornecimento de remédios, trata-
mentos médicos, exames pormenorizados, internações hospitalares, acom-
panhamentos especializados etc.) é muito mais amplo que os estreitos limi-
tes do controle judicial, exigindo políticas públicas de qualidade, voltadas
para a sua necessária efetivação, com o respectivo aumento de recursos or-
çamentários para as elevadas despesas do custeio da rede pública de saúde
(SUS).

O direito à saúde, originalmente, poderia ensejar a sua tutela coletiva,


nunca individual, considerando a finitude dos recursos públicos e o princípio
da igualdade. Do mesmo modo, as pretensões autorais na área de saúde não
admitiriam a antecipação da tutela de urgência, nos termos do art. 300, pa-
rágrafo 3º, do Código de Processo Civil (CPC), diante do evidente perigo de
irreversibilidade (ainda que parcial) dos efeitos da decisão, embora a ju-
risprudência uníssona tenha rechaçado tal limitação, como se o poder geral
de cautela pudesse ser justificado exclusivamente por situações de fato, in-
dependentemente das regras jurídicas, podendo ser flexibilizados os limites
legais.

Do Litisconsórcio Passivo e da Separação de Poderes

A União não seria a responsável pelo atendimento direto das demandas


de saúde, sendo tal providência atribuída ao Estado e ao Município, por se-
rem estes os entes políticos encarregados pelas prestações materiais no âm-
bito do SUS, em virtude da repartição de funções administrativas prevista
na Lei n.º 8.080/1990.
Todavia, apesar disso, entendeu o STF que existe solidariedade passiva
entre as três esferas governamentais, decidindo in verbis:

Suspensão de Segurança. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos funda-


mentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de
Saúde – SUS. Políticas públicas. Judicialização do direito à saúde. Separação de
poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem di-
reito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de
saúde. Fornecimento de medicamento: Zavesca (miglustat). Fármaco registrado

334
na ANVISA. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à
segurança públicas. Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo regi-
mental a que se nega provimento. [STF, Tribunal Pleno, STA 175 AgR / CE,
Rel. Min. GILMAR MENDES, DJe 30/04/2010]

Faz-se mister salientar que a solidariedade prevista na Carta Magna, que


tem justificado, em tantas decisões judiciais, a condenação da União, refe-
re-se apenas à manutenção do SUS, ou seja, à destinação de recursos e à
criação de estrutura eficiente para a prestação dos serviços. Essa solidarieda-
de não significa, ressalte-se, que todos os entes tenham que realizar os mes-
mos serviços para o mesmo grupo social, já que tal procedimento tornaria o
SUS irracional, ao arrepio das diretrizes previstas no artigo 198 da Consti-
tuição da República.
Outrossim, não é admissível supor que a Administração Pública possa
exercer controle absoluto sobre a saúde de toda a população. A Constituição
Federal não prevê assistência médica a cada cidadão isoladamente, o que se
revelaria materialmente impossível.
Ao Estado, em sentido amplo, nos termos do art. 196 da Lei Maior, cabe
regulamentar, fiscalizar e controlar as ações e serviços de saúde, podendo
sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros, atendidas as po-
líticas definidas em lei.
As pretensões autorais daqueles que litigam judicialmente na área da
saúde, entretanto, encontram-se subordinadas à denominada “reserva do
possível”, vale dizer, sujeitas à previsão da lei e à disponibilidade orçamentá-
ria. Neste sentido, a organização ou manutenção prévia das unidades de saú-
de, dos serviços médico-hospitalares e dos materiais do SUS (incluindo o
fornecimento de medicamentos) estão sujeitas às iniciativas do Poder Exe-
cutivo e às deliberações legislativas específicas, bem como estão subordina-
das à alocação específica de recursos, o que inviabiliza, em tese, a tutela ju-
dicial nas questões de saúde.
De outra forma, o Poder Judiciário estaria invadindo competência ex-
clusiva do Poder Executivo, pois estaria gerindo, de fato, através da tutela
jurisdicional, o funcionamento do serviço público de saúde, muito embora
não possua legitimidade política para tal função.
Vale, a propósito, conferir-se, a seguir, uma bem fundamentada decisão
do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que enfrentou tal discussão aber-
tamente, concluindo em sentido completamente oposto, embora traduzin-
do, com perfeição, o entendimento majoritário dos tribunais brasileiros so-
bre estes assuntos:

APELAÇÃO CÍVEL. REEXAME NECESSÁRIO. ADMINISTRATIVO. DI-


REITO À SAÚDE. SEPARAÇÃO DE PODERES. SOLIDARIEDADE ENTRE
OS ENTES FEDERATIVOS. ISONOMIA. RESERVA DO POSSÍVEL. FALTA
DE PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA NÃO COMPROVADA. MÍNIMO EX-

335
ISTENCIAL. HOME CARE. 1. Trata-se de apelação interposta contra senten-
ça que, em ação ordinária, condenou os demandados a garantirem ao deman-
dante sua inclusão no programa de Atenção Domiciliar (Portaria GM/MS
963/2013), a ser efetuada pelo Município do Rio de Janeiro, assegurando ao
paciente o fornecimento de alimentação enteral, complementos alimentares e lei-
te em pó, sendo o Estado do Rio de Janeiro incumbido do fornecimento de cama
hospitalar, cadeira de banho e cadeira de rodas, conforme programa já existen-
te. 2. Não se conhece do agravo retido quando a parte não reitera o pedido de
apreciação na apelação ou nas contrarrazões (art. 523, §1º, CPC). 3. Não viola
o princípio da separação de poderes a decisão judicial que, para tornar efetivo o
direito fundamental à saúde, busca cumprir exatamente as medidas adminis-
trativas já implementadas pelo poder público, com o devido respeito aos princí-
pios constitucionais estabelecidos. (A tutela judicial do direito público à saúde
no Brasil. Direito, Estado e Sociedade. Vol. 41, 2012. p. 189. Disponível em:
“http://ssrn.com/abstract=2250121”). Precedente: STF, 1ª Turma, ARE
894.085-SP, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJe. 17.02.2016. 4. Não se
mostram legítimas as alegações sobre violação à isonomia como impeditivas do
direito fundamental à saúde, uma vez que cabe ao Estado-Administrador, após
efetivamente reconhecido um direito subjetivo perante o Judiciário, como efeito
indireto da decisão, verificar a conveniência e oportunidade de estendê-lo aos
demais cidadãos nas mesmas condições do litigante originário, (O princípio da
isonomia na tutela judicial individual e coletiva, e em outros meios de solução
de conflitos, junto ao SUS e aos planos privados de saúde. p. 225. Disponível em:
“http://bit.ly/1T1r38T”). Precedente: TRF2, 5ª Turma Especializada, AI
00140210320114020000, E-DJF2R 28.3.2012. 5. A “reserva do possível”
(unter dem Vorbehalt des Möglichen), segundo um precedente do Tribunal
Constitucional Federal alemão (BVerfGE 33, 303), diz respeito a direitos de
beneficiar-se de prestações do Estado já existentes, dos denominados direitos
fundamentais derivados (grundrechtliche Verbürgung der Teilhabe), como, por
exemplo, os de participar de vagas existentes em universidades, e que se pode
razoavelmente exigir da sociedade, ou seja, dentro dos recursos orçamentários.
Isso não se confunde com os direitos fundamentais originários, que obrigam o
legislador a criar prestações ainda não existentes. Nesse contexto, a falta de
orçamento público não obsta a exigibilidade judicial do núcleo essencial dos di-
reitos fundamentais. Contudo, tratando-se de prestações de saúde vinculadas à
lei (direitos fundamentais derivados), a reserva do possível deve ser observada,
nos limites do orçamento, mas, neste caso, compete à Administração comprovar
– e não apenas alegar – que o orçamento não comporta a satisfação da pretensão
do demandante [...] (TRF2, 5ª Turma Especializada, AI
00140210320114020000, E-DJF2R 28.3.2012). 6. A medida de tratamento
domiciliar concedida está inserida na órbita do mínimo existencial, por já haver
regulamentação em sede infraconstitucional (Lei nº 8.080/90 e Portaria
GM/MS nº 963/2013), mostrando que o referido programa possui previsão or-
çamentária própria. 7. Apelação e remessa necessária não providas. Agravo re-
tido não conhecido. [TRF-2ª Região, 5ª Turma Especializada, Apelação Cível
0000519-20.2011.4.02.5101, Rel. Desembargador Federal RICARDO PER-
LINGEIRO, e-DJF2R 05/07/2016]

336
Da Falta de Isonomia

Entrementes, as ações judiciais na área da saúde, como forma de tutelas


individuais, visam satisfazer pleitos isolados, que poderão ser atendidos, por
causa da decisão judicial, em detrimento de alguma coletividade – como se
não existissem outras pessoas na mesma situação fática das partes beneficia-
das, o que é naturalmente improvável, e também como se não houvesse uma
natural limitação de recursos (materiais, financeiros, físicos etc.) à disposi-
ção dos órgãos públicos, tornando impossível o atendimento universal a to-
das as demandas da área de saúde, a todo momento e lugar, sejam demandas
individuais ou coletivas.
Mesmo que indiretamente, a concessão de um benefício individual na
área de saúde – ainda que justo e necessário – prejudica a harmonia do siste-
ma, pois o atendimento de uma demanda singular implica na redução de re-
cursos para o atendimento ao público em geral.
Há sistemas que são organizados em filas (como exames e cirurgias espe-
cíficas), há sistemas que são disciplinados por prioridades médicas (como as
vagas de UTI), há sistemas que estão estabelecidos em padrões oferecidos à
comunidade (como a Relação Nacional de Medicamentos, disponibilizada
pelo SUS), há sistemas que dependem de fatos externos à Administração
Pública (como a doação de órgãos para transplantes), entre outros.
O prejuízo ao sistema implica em violação da isonomia constitucional,
pois o Poder Público não pode beneficiar um indivíduo em detrimento de
outro (art. 5º, I, da Constituição Federal), mesmo que seja através de uma
ordem judicial, já que os recursos indispensáveis ao cumprimento desta re-
ferida ordem sairão do mesmo conjunto finito que atende a toda uma comu-
nidade, não obstante a jurisprudência entender, não poucas vezes, que não
existe a referida violação à isonomia, posto que não haveria vínculo direto
entre o benefício de alguém e o potencial prejuízo de outrem, daí decor-
rente.
Vale observar, por oportuno, três decisões das Turmas Recursais do Rio
de Janeiro, que julgaram, em segunda instância, ações propostas nos Juiza-
dos Especiais Federais:

CONSTITUCIONAL. FORNECIMENTO DE INSUMOS. CPAP E MÁSCA-


RA NASAL PARA TRATAMENTO DE APNEIA DO SONO. RISCOS
APONTADOS NO LAUDO MÉDICO SÃO MAIS HIPOTÉTICOS E PO-
TENCIAIS DO QUE EFETIVAMENTE CONCRETOS. AUSÊNCIA DE DE-
MONSTRAÇÃO CIENTÍFICA DE REDUÇÃO DOS ÍNDICES DE MOR-
TALIDADE COM O FORNECIMENTO DE TAIS INSUMOS, AINDA QUE
HAJA MELHORIA NA QUALIDADE DE VIDA. JUÍZO DE PROPORCIO-
NALIDADE NÃO RECOMENDA O DEFERIMENTO DOS INSUMOS.
SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.
[TRF-2ª Região, 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais, Recurso
Inominado 0011271-85.2017.4.02.5151/02, Rel. Juíza Federal FLÁVIA HEI-
NE PEIXOTO, Julgamento em 09/11/2017]

337
PEDIDO DE REALIZAÇÃO DE CONSULTA E PROCEDIMENTO CIRUR-
GICO. VOTO NO SENTIDO DE SER RESPEITADA A FILA DE ESPERA
RESPEITANTO ASSIM ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO INTO.
RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. [TRF-2ª Região,
1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais, Recurso Inominado
0141518-57.2017.4.02.5151/01, Rel. Juíza Federal LILEA PIRES DE ME-
DEIROS, Julgamento em 14/12/2017]

ADMINISTRATIVO. SUS. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. SESSÕES DE


OXIGENOTERAPIA HIPERBÁRICA PARA TRATAMENTO DE ÚLCERA
EM MEMBRO INFERIOR ESQUERDO. NECESSIDADE DEVIDAMENTE
COMPROVADA. TRATAMENTO ADEQUADO, CONFORME PARACER
DO NAT. RESPONSABILIDADE DOS ENTES FEDERATIVOS. INAPLICA-
BILIDADE DA SUSPENSÃO DETERMINADA NO RESP 1.657.156/RJ,
UMA VEZ NÃO SE TRATAR DE MEDICAMENTO. RECURSO DA UNIÃO
E DO ERJ CONHECIDOS E IMPROVIDOS. [TRF-2ª Região, 6ª Turma Re-
cursal dos Juizados Especiais Federais, Recurso Inominado 0050851-
11.2016.4.02.5167/01, Rel. Juiz Federal LUIZ CLEMENTE PEREIRA FI-
LHO, Julgamento em 18/02/2018]

Do Alto Custo e da Falta de Padronização

Interessante observar que as decisões judiciais determinando o forneci-


mento de medicamentos de alto custo são amplamente polêmicas, não ape-
nas pelos aspectos jurídicos, mas sobretudo pelos aspectos econômicos.
Neste sentido, o STF elegeu a matéria como sendo tema de repercussão ge-
ral, assim decidindo:

SAÚDE – ASSISTÊNCIA – MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO – FORNE-


CIMENTO. Possui repercussão geral controvérsia sobre a obrigatoriedade de o
Poder Público fornecer medicamento de alto custo. [STF, Tribunal Pleno, RE
566471/RN, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJ 07/12/2007]

Também a falta de padronização dos medicamentos pleiteados em juízo


foi objeto de intensos debates na jurisprudência, sobretudo quanto às de-
mandas por substâncias ou medicamentos que não integram as listas oficiais
dos órgãos públicos, tendo o Eg. STJ determinado a suspensão dos processos
nesta hipótese (REsp 1657156/RJ, tema 106 do sistema dos recursos repe-
titivos), nos termos do art. 1037, II, do CPC, inclusive nos Juizados Espe-
ciais, embora tenha expressamente admitido a possibilidade da concessão
de liminares nestas situações, se houver urgência a justificá-las (urgência,
aliás, que realmente ocorre na maioria dos casos concretos). Assim decidiu
o STJ a respeito:

ADMINISTRATIVO. PROPOSTA DE AFETAÇÃO. RECURSO ESPECIAL.


RITO DOS RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS. FORNECIMENTO DE

338
MEDICAMENTOS. CONTROVÉRSIA ACERCA DA OBRIGATORIEDA-
DE E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS NÃO INCORPORADOS
AO PROGRAMA DE MEDICAMENTOS EXCEPCIONAIS DO SUS. 1. De-
limitação da controvérsia: obrigatoriedade de fornecimento, pelo Estado, de me-
dicamentos não contemplados na Portaria n. 2.982/2009 do Ministério da Saú-
de (Programa de Medicamentos Excepcionais) . 2. Recurso especial afetado ao
rito do art. 1.036 e seguintes do CPC/2015 (art. 256-I do RISTJ, incluído pela
Emenda Regimental 24, de 28/09/2016). [STJ, ProAfR no REsp 1.657.156/RJ,
Rel. MINISTRO BENEDITO GONÇALVES, Publ. 03/05/2017]

Tema 106 – “Obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não


incorporados em atos normativos do SUS”.

Quanto aos tratamentos e medicamentos experimentais, a jurisprudên-


cia é mais resistente ao deferimento, apresentando crescente tendência em
favor de que sejam admitidos. É a situação, por exemplo, da importação de
remédios à base de canabidiol. Contudo, há julgados isolados que admitem
o custeio, pelo erário público, de tratamentos médicos fora do país, diante
da ausência de similares nacionais e da insuficiência dos serviços do SUS1.

Conclusões

As demandas judiciais relativas à área de saúde possuem um aspecto hu-


manitário muito relevante, que frequentemente prevalece sobre os aspectos
jurídicos, especialmente em demandas de pequeno valor ou naquelas em
que são explícitas as insuficiências dos órgãos públicos, deixando o interes-
sado sem alternativas.
As câmaras de conciliação e os demais sistemas extrajudiciais de compo-
sição de litígios seriam inegavelmente muito úteis nestas demandas, porém
é notória a resistência do Ministério da Saúde em participar destas iniciati-
vas, dificultando o diálogo2.
Muitas ordens judiciais não conseguem ser cumpridas a tempo, perecen-
do o objeto da referida demanda, enquanto outras são convoladas em ordens
de pagamento aos beneficiários, às expensas do Poder Público (RPV, preca-

1 Sobre o canabidiol, ver acórdão de Turma Recursal da JFRJ no processo 0014590-


61.2017.4.02.5151/02; sobre fosfoetanolamina, ver acórdão de Turma Recursal da
JFRJ no proc. 0502065-58.2015.4.02.5151/01; sobre tratamento no exterior, custeado
pela União, ver o rumoroso caso de Matheus Teodoro Oliveira, na capital de MG, am-
plamente divulgado na web e que ganhou notoriedade graças à campanha de mídia,
ocorrida em 2016 e 2017.
2 Conferir a iniciativa, por exemplo, da Câmara de Resolução de Litígios de Saúde
(CRLS), no Rio de Janeiro, que congrega representantes do Estado do RJ (PGE, Defen-
soria Pública, Secretaria de Saúde) e do Município do RJ, buscando soluções extrajudi-
ciais de natureza administrativa, que evitam a propositura de ações judiciais.

339
tório ou depósito judicial), criando novos problemas no tocante à prestação
de contas destes valores, que são recursos públicos.
O direito à saúde precisa ser efetivado sem a necessidade da tutela juris-
dicional, nunca sendo excessivo recordar que a omissão dos governantes em
melhorar as condições mínimas da rede pública de saúde, perpetuando o
quadro caótico atual, pode caracterizar improbidade administrativa e diver-
sos outros ilícitos, inclusive penais, desrespeitando a própria dignidade da
pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito,
como reconhecido expressamente pelo art. 1º, inciso III, da Constituição
Federal.

340
O direito à justa memória para a preservação
da dignidade humana: um novo
direito fundamental

Armenia Cristina Dias Leonardi

RESUMO: A preservação da memória e o repúdio ao esquecimento dos


fatos ocorridos durante a Ditadura Militar, representante do regime autori-
tário que assolou a América Latina de 1954 até 1990, é uma necessidade
premente para salvaguardar a humanidade. A restauração da memória para
a história humana, individual e coletiva, é importante para garantir que os
erros do passado não sejam esquecidos e, consequentemente, repetidos por
gerações futuras. As novas gerações têm o direito de conhecer sua história e
o dever de conservar os direitos individuais para que a própria história e a
estabilidade dos direitos da coletividade sejam garantidos. Segundo Paul Ri-
coeur (2007, p. 28/29), os fatos reais não verdadeiramente conhecidos pelo
indivíduo induzem a uma “opinião falsa”, uma associação do pensamento à
determinada situação que realmente não aconteceu, o que leva a uma falsa
memória e afasta a realidade do passado causador de sofrimento à inúmeras
famílias de desaparecidos políticos.

PALAVRAS CHAVE: memória – história – democracia

RESUMEN: The preservation of memory and the rejection of the for-


getfulness of the events that occurred during the Military Dictatorship, rep-
resentative of the authoritarian regime that devastated Latin America from
1954 until 1990, is a pressing need to safeguard humanity. The restoration
of memory to human history, individual and collective, is important to en-
sure that the mistakes of the past are not forgotten and, therefore, repeated
by future generations. The new generations have the right to know their his-
tory and the duty to preserve individual rights so that the history itself and
the stability of the rights of the collectivity are guaranteed. According to
Paul Ricoeur (2007, 28/29), real facts not really known by the individual
induce a “false opinion”, an association of thought to a particular situation

341
that did not actually happen, which leads to a false memory and The reality
of the past causing suffering to countless families of political disappeared.

KEYWORDS: Memory – history – democracy

1 – INTRODUÇÃO:

O presente estudo pretende fazer uma reflexão sobre a questão da im-


portância do resgate da história atroz e a preservação da memória dos países
da América Latina durante a ditadura militar para a garantia da dignidade
humana individual e coletiva.
A partir da análise da perspectiva filosófica de Paul Ricoeur, que defen-
de o respeito à memória de cada ser humano como essenciais, será analisado
o conceito de “justa memória” como direito fundamental da humanidade.
A restauração da memória para a história humana, individual e coletiva,
é importante para garantir que os erros do passado não sejam esquecidos e,
consequentemente, repetidos por gerações futuras. As novas gerações têm
o direito de conhecer sua história e o dever de conservar os direitos indivi-
duais, para que a própria história e a estabilidade dos direitos da coletividade
sejam garantidos.
A ditadura militar na América Latina deixou como legado diversas pes-
soas desaparecidas, cujas histórias não foram resgatadas, o que agrava o so-
frimento individual das famílias, vítimas sobreviventes da prática dos horro-
res cometidos contra seus entes, agravado justamente pela impossibilidade
de conhecer os fatos realmente como aconteceram.
As ditaduras na América Latina estabeleceram-se a partir do final da Se-
gunda Guerra Mundial, em 1945, com a instauração da Guerra Fria e a divi-
são do mundo em dois blocos: Estados Unidos e União Soviética. Para pro-
teger sua hegemonia e impedir a propagação do comunismo, os Estados Uni-
dos financiam e incentivam a militarização dos países da América Latina, sob
o argumento de ampliar a defesa dos Estados.
A preservação da memória e o repúdio ao esquecimento dos fatos ocor-
ridos durante a Ditadura Militar, representante do regime autoritário que
assolou a América Latina de 1954 até 1990, é imprescindível para a garantia
do Direito à Dignidade Humana em âmbito mundial.
Será ressaltada neste estudo a iniciativa do Chile para resgate e preser-
vação da memória que, além da busca da verdade e da justiça, idealiza e edi-
fica o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, resultado da perseveran-
ça do povo Chileno, em 2010.
O presente estudo examinará a necessidade de busca da verdade histó-
rica e a relação entre memória e esquecimento, constituintes do sujeito de
direito e fundamental para a compreensão dos Direitos Humanos através da
visão teórica de Paul Ricoeur.

342
A identidade do indivíduo é colocada como elemento fundamental para
o encontro de sua própria história e do equilíbrio social, o que justifica a con-
cretização da igualdade e consequentemente da compreensão dos Direitos
Humanos, no caso da relevância da preservação da memória.

2 – A DITADURA NA AMÉRICA LATINA

O regime ditatorial é autoritário, utilitário, composto por uma estrutura


hierárquica bem definida, submetendo o povo ao medo, privando-o de todas
as formas de liberdade, de reflexão e manifestação da vontade. A ditadura
impõe a ordem utilizando o “terror” contra o povo e perseguindo um grupo
específico, aqueles indivíduos considerados seus opositores.
Giardonolli-Nascimento (2012, p.3) descreve os rigores da ditadura:

Todos os dispositivos repressivos, dos mais sutis aos mais invasivos, tinham
como objetivo principal internalizar normas, valores e condutas que fizessem
de cada indivíduo um aliado do regime, defensor e propagador da “nova or-
dem”. As campanhas desenvolvimentistas e as propagandas políticas ideológi-
cas e ufanistas, por exemplo, foram importantes estratégias adotadas (Ribeiro,
1987). Nesse contexto, as práticas repressivas atacaram diretamente os “comu-
nistas”, os “subversivos” e os “extremistas”, sendo que o restante da sociedade
não ficou ileso a outras práticas rígidas de controle adotadas, tais como a dela-
ção e a vigilância, que atingiam não apenas o corpo, mas a moral e a dignidade
de qualquer pessoa vinculada diretamente aos opositores do regime, principal-
mente aos militantes políticos.

A ditadura na América Latina teve início durante a Guerra Fria. A Guer-


ra Fria iniciou-se ao final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e com ela
uma disputa pelo predomínio mundial entre Estados Unidos e União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Caracterizou-se por uma intensa guerra ideológica, econômica, diplomá-
tica e tecnológica que dividiu o mundo em blocos com sistemas ideológicos
diferentes: o bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco co-
munista, liderado pela União Soviética. Essa divisão influenciou diretamen-
te nos regimes políticos de inúmeros países.

Os Estados Unidos, para proteger sua hegemonia, ameaçada pelas mudanças


anunciadas pelos países que demonstravam empatia pela ideologia comunista,
“adotaram a doutrina contra insurreição”, adotando um programa sistemático
de militarização em conjunto com os governantes da América Latina, já que a
interferência bélica direta nos territórios não seria possível (PEREIRA e MAR-
VILLA, 2005).

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, a humanidade entrou em


uma nova e peculiar fase de tensões, conhecida como Guerra Fria. Esse período

343
histórico caracterizou-se pela constante rivalidade entre Estados Unidos e
União Soviética, dois países que saíram fortalecidos ao término da Segunda
Guerra.
Os Estados Unidos, em especial, estabeleceram-se como líderes de um chama-
do “bloco capitalista”, constituído de países que adotaram esse sistema econô-
mico. Em contrapartida, a União Soviética liderava um bloco de países ditos
socialistas. Cada uma dessas potências considerava-se defensora desses siste-
mas econômicos, respectivamente.
Assim, a rivalidade entre os dois países permaneceu muito mais no campo da
batalha ideológica que do confronto direto, exceto em alguns países do chama-
do “Terceiro Mundo”, que sofreram com intervenções em seus territórios,
como aconteceu na Coréia (1950-53) e no Vietnã (1965-75).

Para impedir o avanço do comunismo, com a influência Norte-America-


na impulsionada pela Revolução Cubana, de 1959, a América Latina sofreu
os rigores da ditadura militar de 1954 a 1990, período histórico em que
atrocidades foram cometidas contra seus opositores, “em graus que iam da
perversão extrema ao genocídio, sua brutalidade.” (NEPOMUCENO,
2015)
Considerando que qualquer forma de governo com características pro-
gressistas ou reformistas provavelmente se transformaria em um governo
comunista, foram implantadas as ditaduras militares na América Latina com
o apoio norte americano e com objetivo de neutralizar a ideologia propalada
pela extinta União Soviética.

3 – MEMÓRIA: HISTÓRIA DE UM POVO

A memória de um povo é construída pelos fatos reais produzidos por


seus indivíduos, por seus governantes, por sua cultura, e deve ser preservada
em benefício da dignidade humana social, individual e coletiva.
A dignidade humana pressupõe os direitos humanos. Os direitos huma-
nos servem como “princípio de organização e legitimação social onde a liber-
dade e a igualdade são o princípio da lei” (BARRETTO, 2013), portanto, são
instrumentos de controle político e social para evitar arbitrariedades contra
a dignidade humana, que é o alicerce dos direitos humanos.
Ricoeur (2014) estabelece que uma de suas preocupações ao escrever a
obra A memória, a história e o esquecimento, é a “preocupação pública”:

Perturba-me o inquietante espetáculo que apresentam o excesso de memória


aqui, o excesso de esquecimento acolá, sem falar da influência das comemora-
ções e dos erros da memória – e de esquecimento. A ideia de uma política da
justa memória é, sob esse aspecto, um de meus temas cívicos confessos.

De acordo com Paul Ricoeur (2007), o objeto da memória deve partir


do “que” e não somente do “quem”, sob o risco de indução a um resgate

344
mnemônico egoísta, sem relevar a consciência coletiva. A memória e a ima-
ginação estão interligadas no interior do ser humano. Ao despertar a memó-
ria, imediatamente é despertada a imaginação, quando é permitida a reme-
moração ao ser humano. Se não há a possibilidade de imaginar os fatos ver-
dadeiros de sua história, ao ser humano é impossível preservar sua memória.
Os fatos históricos que não são verdadeiramente reproduzidos não for-
mam a “memória”, se delimitam à imaginação. Quando uma história não é
contada como realmente aconteceu, a mente humana não possui memória e
sim imaginação, ou seja, idealiza a situação de acordo com a sua reprodução
mental daquilo que foi relatado, por isso é importante a preservação dos fa-
tos históricos como verdadeiramente aconteceram para preservação de sua
história.
Ricoeur (2007) afirma ainda que a análise do tempo e a análise da me-
mória se sobrepõem. Explica que a análise da memória refere-se à conexão
entre memória e imaginação, vinculada à alma sensível:

A semelhança entre as duas problemáticas dá uma nova força à velha aporia do


modo de presença do ausente: poderíamos indagar como (wemightpuzzledhow),
quando a afecção está presente, mas a coisa está ausente, nos lembramos daqui-
lo que não está presente.

O verdadeiro reencontro com o passado, além de evitar os mesmo erros,


tem como objetivo impedir que esses mesmos erros sejam cometidos sob
outro regime de governo, isto é, impedir a utilização da mesma sistemática
sob outro aspecto, como uma democracia representativa descaracterizada
que encobre um regime autoritário.
Paul Ricoeur (2007) diferencia memória e imaginação:

O problema suscitado pela confusão entre memória e imaginação é tão antigo


quanto a filosofia ocidental. Sobre esse tema, a filosofia socrática nos legou dois
topoi rivais e complementares, um platônico, o outro aristotélico. O primeiro,
centrado no tema eikon, fala da representação presente de uma coisa ausente;
ele advoga implicitamente o envolvimento da problemática da memória pela da
imaginação. O segundo, centrado no tema da representação de uma coisa ante-
riormente percebida, adquirida ou aprendida, preconiza a inclusão da proble-
mática da imagem e da lembrança. É com essas versões da aporia da imaginação
e da memória que nos confrontamos sem cessar.

Ricoeur (2007) demonstra que a memória é o restabelecimento dos fa-


tos como realmente ocorreram e imaginação é a visualização de “como” os
fatos ocorreram de acordo com a forma como foram narrados. A imaginação
é deturpada quando não há o conhecimento corretos dos fatos passados.
Adolfo Perez Esquivel (NEPOMUCENO, 2015) viveu a experiência da
ditadura na Argentina, uma das mais cruéis na América Latina, defende o
resgate da memória sob o correto argumento de que não existe povo sem
memória, sem sua história preservada:

345
Os povos sem memória desaparecem. Não há povo sem memória, porque a
memória não nos leva a ficar apenas no passado: nos ajuda a iluminar o presen-
te. A construir a vida. De uma forma ou de outra, quer a gente queira, quer não
o passado está sempre presente. E o presente propriamente dito é fruto de um
determinado passado. Portanto, quando se fala em resgatar a memória, não se
está apenas querendo remexer o passado, mas analisar, perguntar: por quê? Por
que aconteceram essas coisas?

A sociedade é responsável por pressionar o Estado a exumar o passado e


desenterrar os eventos ocorridos durante a ditadura militar, procurar para
orientar seu presente e seu futuro.

3 – A JUSTA MEMÓRIA COMO NOVO DIREITO FUNDAMENTAL

A ditadura militar na América Latina deixou como legado diversas pes-


soas mortas, desaparecidas e famílias em eterno sofrimento ou por não co-
nhecer o paradeiro de seus familiares ou pelo luto comprovado, porém, com
eterna saudade em suas almas.
O sofrimento individual das famílias, vítimas sobreviventes da prática
dos horrores cometidos contra seus entes, é agravado justamente pela im-
possibilidade de conhecer os fatos realmente como aconteceram.
A reconstituição dos fatos como verdadeiramente ocorreram e o que
aconteceu com as pessoas desaparecidas é a última esperança destas famílias
para amenizar seu sofrimento e importante para preservar as futuras gera-
ções de novos regimes de governo contrários ao bem estar social.
Miguel Marvilla (2005) declara que:

A memória das coisas terríveis não deve jamais ser relegada a um canto do sótão
ou do porão, onde se possa cobrir de poeira e esquecimento. Pelo contrário,
deve ser deixada sempre à vista de todos, para que as coisas terríveis, relembra-
das, não tornem a acontecer.

O direito à “justa memória”, por atingir a individualidade ao influenciar


a psiquê, a intimidade do ser humano e a coletividade, por referir-se à hu-
manidade no tocante à necessidade de impedir o esquecimento de fatos hos-
tis e brutais, no caso deste estudo, causados pela ditadura militar, para pro-
teger as futuras gerações, reúne características de direitos de primeira, se-
gunda e terceiras dimensões.
Os direitos de primeira dimensão referem-se aos direitos civis e políti-
cos, baseados na liberdade, que exprimem o valor da vida, cuja característica
é a obrigação negativa do Estado, que se abstém de cometer arbitrariedades
contra tais direitos. Os direitos de segunda dimensão condicionam o Estado
a uma prestação positiva, obriga-o a desenvolver ações de proteção e justiça
social, compreendendo os direitos econômicos, culturais e sociais, baseados
na igualdade. A terceira dimensão de direitos fundamentais acolhe os direi-

346
tos coletivos, que incluem o direito de solidariedade, cuja proteção cabe ao
Estado em face do conjunto dos indivíduos, baseado na fraternidade (MAR-
MELSTEIN, 2008).
Nasce o direito fundamental à “justa memória” em harmonia com os
três principais pilares dos direitos fundamentais: liberdade, igualdade e fra-
ternidade. Trata-se de um direito individual, coletivo e social, com a garan-
tia de dignidade, embora insuficiente para amenizar a dor das vítimas sobre-
viventes e das famílias daqueles que não sobreviveram ou desapareceram
durante a ditadura na América Latina.
Segundo Paul Ricoeur (2007), os fatos reais não verdadeiramente co-
nhecidos pelo indivíduo induzem a uma “opinião falsa”, uma associação do
pensamento à determinada situação que realmente não aconteceu. Leva a
uma falsa memória e afasta a realidade do passado.
O fim do período ditatorial na América Latina induz o imediato desinte-
resse das autoridades em restabelecer o passado, porém, a sociedade perce-
be a necessidade de destruir uma realidade adulterada em favor da preser-
vação das memórias e, aos poucos, cada país inicia o resgate de sua história.
A sociedade começa a transformar o inconformismo com o injusto e a
opressão em força positiva, partindo do caráter negativo do inconformismo
para tentar buscar soluções positivas. A natureza negativa do inconformismo
diante das circunstâncias, neste caso, arbitrárias e violentas causadas pela di-
tadura militar é fundamental para impulsionar a indagação e obtenção da
preservação da história e, consequentemente, de sua memória.
A preocupação de Paul Ricoeur (2007) fundamenta-se na disseminação
de dados fáticos enganosos, com o objetivo de escamotear a verdade, levan-
do o povo ao erro ao dissimular sua história e memória produzida pelo es-
quecimento dos eventos históricos
Citando o exemplo do Chile, onde ocorreram barbaridades jamais prati-
cadas na história do país, inicia-se a busca da verdade através de “Comissões
da Verdade”, em 1990, sob a iniciativa do Presidente Patricio Aylwin. (NE-
POMUCENO, 2015)
Nepomuceno (2015, p. 98) descreve a perseverança do povo chileno:

Passado pouco tempo da instalação da ditadura, familiares de desaparecidos,


organismos de direitos humanos e sobreviventes dos centros de detenção abri-
ram um caminho de busca e denúncia, construindo memoriais ao longo da es-
treita geografia. Atualmente, são mais de vinte, e vários mais estão em processo
de construção.

São espaços de encontro, que nos falam de um pacto para não esquecer. E hoje,
no Chile, graças à perseverança de quem não se rendeu na busca da verdade, da
justiça e da memória, a maioria dos chilenos reconhece que no país foram vio-
lados os direitos humanos e rejeita o que aconteceu.

Não somente buscando a justiça com a punição dos agressores e a busca


por vítimas, principalmente na região do Deserto do Atacama, o Chile tam-

347
bém promove o resgate dos fatos reais para preservação de sua história e me-
mória com a construção do Museu da Memória e Direitos Humanos, inau-
gurado em 2010, cujo objetivo vale ser citado:

El Museo de La Memoria y los Derechos Humanos es um espacio destinado a


dar visibilidad a las violaciones a los derechos humanos cometidas por el Estado
do Chile entre 1973 y 1990; a dignificar a las victmas y sus família; y estimular
La reflexión y el debate sobre la importância del respecto y la tolerancia para
que estos hechos nunca más se repitan.
(Disponível em “http://ww3.museodelamemoria.cl/sobre-el-museo”. Pesqui-
sado em 30/04/2016)

O direito à “justa memória” deve ser reconhecido como um direito fun-


damental universal para ser exercido por todos os povos em nome da preser-
vação da dignidade humana mundial.

5 – CONCLUSÃO

Além da violência contra seus opositores, a ditadura militar na América


Latina manchou moral e emocionalmente todas as famílias dos desapareci-
dos e o desconhecimento e incerteza diante da morte fazem com que o au-
sente permaneça presente através de uma busca incessante de seus familia-
res por sua memória.
O direito do ser humano de ter sua história e dignidade preservadas é
maculado pela agressão emocional que não é extinta com a morte. A violên-
cia moral e emocional é eterna, pois a ausência mantém a presença do ente
perdido para a violência da ditadura.
Trata-se da violência psicológica contra todas as famílias de desapareci-
dos políticos concretizada através da ocultação dos restos mortais e dos fatos
ocorridos, o que nega a possibilidade de estabelecimento da memória, re-
quisito indispensável à imortalidade do ente.
O direito à “justa memória” surge para restaurar os fatos hostis causado-
res de sofrimento a inúmeros indivíduos pela ditadura militar com o objeti-
vo de resguardar o direito individual e coletivo de conhecer sua verdadeira
história deve ser reconhecido como direito fundamental para condicionar os
Estados a protegerem a coletividade do “esquecimento” e, consequente-
mente, da repetição dos mesmos modelos governamentais que segregam a
sociedade, realizando ações culturais e sociais para preservação da história e
a memória para a dignidade humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARRETTO, Vicente de Paulo. O fetiche dos direitos humanos e outros temas.


Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

348
FRANCISCO, Wagner De Cerqueira E. O Brasil na Guerra fria. Disponível em
“http://brasilescola.uol.com.br/geografia/o-brasil-na-guerra-fria.htm”. Acesso
em 30 de abril de 2016.
GIANORDOLI-NASCIMENTO. VELOSO, Ingrid faria. CORRÊA, Flávia Gote-
lip. SILVA, Sara Angélica Teixeira da Cruz. CRUZ, Jaiza Pollyana Dias. OLI-
VEIRA. COSTA, Flaviane da. A construção da memória histórica da ditadura
militar brasileira: contribuição das narrativas de familiares de presos políticos.
Psicologia e Saber Social, 1(1), 103-119, 2012.
MARVILLA, Miguel. Ditaduras não são eternas. Espírito Santo: Flor e Cultura,
2005.
MUSEU DA MEMORIA. Disponível em “http://ww3.museodelamemoria.cl/so-
bre-el-museo”. Pesquisado em 30/04/2016.
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008.
NEPOMUCENO, Eric. A memória de todos nós. Rio de Janeiro: Record, 2015.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: UNICAMP,
2007.

349
O sistema proporcional e o déficit de
cidadania no Brasil

Maurício Pires Guedes


Gabriela do Amaral Rezende

Resumo: As consequências da aplicação do sistema proporcional nas


eleições nacionais para cargos do Poder Legislativo, em geral, decorrem da
desarmonia existente entre a teoria utilizada na elaboração da norma eleito-
ral e a forma como produz efeitos no caso em concreto.A questão que será
discutida no presente artigo, tendo como referência o déficit de cidadania
brasileira quando comparada com outros países, é a análise do peculiar pro-
cesso de formação de aquisição dos direitos desde a emancipação política
em 1822passando pelos diferentes movimentos autoritários que marcaram
algumas décadas da história nacional até os dias de hoje. Busca-se com tal
debate repensar as bases do sistema eleitoralproporcional sob uma ótica teó-
rica para, em seguida, compreendermos a realidade da aplicação deste siste-
ma dentro do histórico-constitucional brasileiro.

Palavras-chave: Sistemas eleitoras. Sistema proporcional. Déficit de ci-


dadania.

Abstract: The consequences of the application of the proportional sys-


tem in national elections to positions of the Legislative Branch generally re-
sult from the difference between the theory used in the elaboration of the
electoral norm and the way in which it takes effect in the concrete case. The
issue that will be discussed in this article, with reference to the Brazilian
citizenship deficit when compared with other countries, is the analysis of
the peculiar process of formation of rights acquisition from political eman-
cipation in 1822 through the different authoritarian movements that
marked a few decades of national history to the present day. This debate
seeks to rethink the bases of the proportional electoral system from a theo-
retical point of view and then to understand the reality of the application of
this system within the historical-constitutional Brazilian.

Keywords: Electoral systems. Proportional system. Deficit of citizens-


hip.

351
Introdução:

As redes de comunicação em um mundo globalizado vêm provocando,


ao longo dos anos, inúmeras transformações tanto sociais quanto políticas. E
um dos setores que mais saiu de sua zona de conforto, por ter seus segredos
revelados e compartilhados nas mídias em geral, foi a política, especialmen-
te a política-partidária.
Apesar de reconhecermos que somos nós mesmos, enquanto cidadãos
brasileiros, que elegemos os que representam a soberania popular, há rele-
vante discrepância no procedimento eleitoral brasileiro que impedeuma
maior conformação entre a verdadeira pretensão do povo e aquilo que o sis-
tema acaba gerando no mundo prático, o que acaba por trazer, como conse-
quência, o afastamento de grande parte da população do debate público so-
bre temas relevantes.
Se a essência da existência do sistema eleitoral é aproximar os repre-
sentantes de seus eleitores, de modo a reforçar a disciplina partidária tal
como esclarece CARVALHO (2008 p.202), a realidade prática brasileira
aponta em sentido diversoao objetivo efetivamente querido, demonstrando
a falta de coerência lógica do seu funcionamento especialmente quando o
assunto é o sistema proporcional de eleição.
Corroborando a tese acima, convém destacar que pesquisa do Datafolha
publicada em 24 de Junho de 2017 e que tinha por objetivo mensurar o nível
de confiabilidade das instituições brasileiras demonstrou que 65% da popu-
lação não confia no Congresso, sendo certo que, do restante, 31% das pes-
soas entrevistadas disseram que confiam apenas “um pouco”.
Buscaremos discutir no presente artigo, portanto, as consequências da
aplicação do sistema proporcional nas eleições nacionais para cargos do Po-
der Legislativo a partir da falha existente, ao nosso ver, entre a teoria utili-
zada na elaboração da norma eleitoral e a forma como produz efeitos no caso
em concreto, devendo ser destacado que a classe política, responsável pela
criação e aperfeiçoamento da legislação não se dedica minimamente ao tema
por ser dele beneficiária direta.
A questão será discutida tendo como referência o déficit de cidadania
brasileira quando comparada com outros países, o que pode ser explicado
pelo peculiar processo de formação de aquisição dos direitos desde a eman-
cipação política com a Independência em 1822 passando pelos diferentes
movimentos autoritários que marcaram algumas décadas da história nacio-
nal.
Iniciaremos o debate discutindo as bases dos sistemas eleitorais majo-
ritário e proporcional sob uma ótica teórica para, em seguida, compreen-
dermos a aplicação destes sistemas dentro do histórico-constitucional brasi-
leiro.
Ao final discutiremos a ineficácia das diretrizes eleitorais vigentes em
relação a realidade sócio-política nacional, o que gera, na prática, a despeito
da Constituição de 1988 ter eliminado grandes obstáculos aos direitos polí-

352
ticos, uma realidade eleitoral distorcida. Com efeito, será possível concluir
ao final que o voto proporcional, por suas peculiaridades, afasta a relação en-
tre eleitores e eleitos e impede, em nossa visão, o adequado desenvolvimen-
to do sistema democrático no Estado brasileiro.

Sistemas eleitorais majoritário e proporcional:

O surgimento da democracia ensejou ao longo da história inúmeros de-


bates acerca da legitimidade do poder e sua distribuição, certo de que as
próprias alterações estruturantes do sistema democrático, tal como pode ser
verificado com o advento da democracia representativa,são suficientes para
aflorarinúmeras discussões sobre a sua essência.
Dentro desse contexto surge o sistema eleitoral enquanto complexo de
procedimentos responsáveis por organizar as eleições e converter votos em
mandatos políticos, visando captar a vontade popular que é manifestada de-
mocraticamente através do voto. Para além deste fato, tem por escopo ainda
o sistema eleitoral o de estabelecer meios para que os diversos grupos pos-
sam se sentir representados, de modo a garantir o estreitamento da relação
entre representante e representado.
Conforme esclarece GOMES (2013, p.113), os sistemas eleitorais são
mutáveis e variam no tempo e no espaço a partir da vivência concreta das
sociedades, fruto da interação entre as diversas forças políticas existentes
em determinado domínio específico.
Dentre os sistemas comumente encontrados dentro do pensamento ju-
rídico ocidental que estudam a distribuição de cadeiras do parlamento de
acordo com a vontade dopovo, denominados por isso mesmo de “tradicio-
nais” pela doutrina jurídica em geral, destacam-se o sistema majoritário e o
sistema proporcional.
Em apertada síntese, deve ser destacado que o sistema majoritário é
aquele através do qual são eleitos os candidatos que obtiverem a maioria dos
votos válidos, o que, segundo esclarece BONAVIDES (1994, p.248), faria
parte da lógica democrática em razão da facilidade de compreensão dos ci-
dadãos de como o governo é formado. Há ainda que ser destacado em favor
do referido sistema o fato de que, sob o ponto de vista estruturante, a elei-
ção a partir da maioria gera uma maior aproximação do eleitor com o candi-
dato eleito, permitindo, dentre outros pontos positivos, uma maior fiscaliza-
ção das políticas adotadas pelo governo.
De acordo com FARIAS NETO (2011, p.187), no entanto, a fidedigni-
dade do sistema majoritário pode ser questionada a partir da artificial forma
como esta maioria é formada na prática política, o que, diante de um forte
bipartidarismo existente, por exemplo, poderia ensejar na sufocação de uma
minoriaque ficaria absolutamente tolhida de participação política dentro
dos processos representativos.

353
Diante desse quadro é que surgirá em meados do século XIX o sistema
proporcional, cujo fundamento é permitir que determinadas parcelas da so-
ciedadepossam se fazer representar no processo das escolhas políticas de de-
terminado Estado funcionando como instrumento contramajoritário, espe-
cialmente em caso de tiranias.
Em que pese ter feição “popular”, por opor o direito de minorias em de-
trimento da maioria, o sistema proporcional foi defendido inicialmente por
liberais que, receosos com a ampliação do direito ao voto, temiam que a clas-
se educada não tivesse mais relevância na participação política. Nesse senti-
do esclarece CINTRA (2000, p.13):

Temiam eles que, com a extensão do direito de voto a amplas parcelas da po-
pulação, já em curso, as minorias educadas fossem definitivamente banidas da
representação política caso permanecesse em vigor o sistema majoritário. De-
pois, o reclamo do sistema proporcional foi assumido pelos socialistas. Nume-
rosas reformas se sucederam entre o final do século XIX e o começo do XX, a
fim de implantá-lo. Mas não foi uma evolução simples, que se possa resumir
dizendo que a esquerda era proporcionalista e a direita majoritarista. Na verda-
de, a grande luta da esquerda era pela ampliação do direito do voto, eliminan-
do-se restrições censitárias, de alfabetização e os votos ponderados.

Com efeito, foi a preocupação com possíveis tiranias a mola-mestra bá-


sica e fundamental para o delineamento do sistema proporcional, devendo
ser ressaltada, nesse sentido, as seguintes lições de BOBBIO (1994, p.70-
71) sobre o tema:

O segundo remédio contra a tirania da maioria consiste, para Mill, numa mu-
dança do sistema eleitoral, isto é, na passagem do sistema majoritário – pelo
qual todo colégio tem o direito de conduzir apenas um candidato e dos candi-
datos em disputa aquele que recebe a maioria dos votos (não importa se em um
ou dois turnos) vence e os demais perdem – para o sistema proporcional (que
Mill acolhe seguindo a formulação de Thomas Hare, 1806-1891), que assegura
uma adequada representação também às minorias, em proporção aos votos re-
cebidos ou num único colégio nacional ou num colégio amplo o suficiente para
permitir a eleição de vários representantes. Ao apresentar as vantagens e as
qualidades positivas do novo sistema, Mill sublinha o freio que a maioria encon-
traria na presença de uma minoria aguerrida capaz de impedir a maioria de abu-
sar do próprio poder e, portanto, a democracia de degenerar.

Walter Costa Porto (apud BASSETTO 2016, p.25) informa que o siste-
ma proporcional foi discutido formalmente pela primeira vez no Brasil em
1893 por força de projeto do Deputado Assis Brasil, posteriormente não
aprovadono Congresso Nacional. Após outras tentativas frustradas, a ideia
acabou sendo efetivada no primeiro Código Eleitoral Brasileiro, o Decreto
21.076 de 1932, promulgado por Getúlio Vargas.
Para além dos sistemas majoritário e proporcional vistos acima, existem
experiências europeias que permitem a combinação de ambos dentro ou não

354
de distritos eleitorais previamente delineados, o que, por suas especificida-
des, características e peculiaridades nos afastaria do escopo do presente ar-
tigo que tem como base o direito brasileiro e sua aplicação prática. Passe-
mos, assim, a análise histórica dos sistemas eleitorais no Brasil.

Os sistemas eleitorais no Brasil:

De acordo com Roedel (2010, p.1), o primeiro registro de votação no


Brasil ocorreu 32 anos após a chegada dos colonizadores portugueses, em 23
de janeiro de 1532. Essa eleição foi realizada na então vila de São Vicente, e
teve como finalidade a escolha dos membros do Conselho Municipal da re-
ferida localidade.
As primeiras eleições gerais com a participação de cidadãos residentes
no Brasil somente viriam a acontecer 289 anos depois, em 1821, como res-
posta às insatisfações decorrentes do retorno da Corte Portuguesa à Lisboa
após a Revolução Liberal do Porto, tendo como escopo escolher deputados
que fariam a representação da colônia na Corte de Lisboa.
Efetivada a Independência do Brasil em 1822, e outorgada a Constitui-
ção de 1824 por D. Pedro I, as eleições passaram a ser indiretas e em dois
graus: na eleição de primeiro grau os votantes escolhiam os eleitores da pro-
víncia que, em momento posterior, em segundo grau,escolhiam os deputa-
dos e senadores para a Assembleia Geral e os membros dos conselhos gerais
da província.
Este modelo foi mantido em suas bases, com a exceção da maior ou me-
nor amplitude censitária estabelecidas ao longo do século XX, até a promul-
gação do Decreto nº 3.029 de 09 de janeiro de 1881, no bojo do qual o im-
perador institui que “[a]s nomeações dos Senadores e Deputados para a As-
sembléa geral, membros das Assembléas Legislativas Provinciaes, e quaes-
quer autoridades electivas, serão feitas por eleições directas, nas quaes to-
marão parte todos os cidadãos alistados eleitores de conformidade com esta
lei.”
A proclamação da república em 15 de novembro de 1889 trouxe para o
panorama brasileiro a tensão de novas concepções e ideias que modificaram
o pensamento político pátrio, agitando as forças dominantes. Se os sistemas
político e jurídico não haviam sido previamente discutidos e delineados pe-
los atores do movimento que gerou o golpe republicano, este momento de
alta incerteza da história nacional foi profícuo no desenvolvimento de meca-
nismos pragmáticos que buscaram garantir, a um só tempo e modo, a ordem
e a estabilidade social conforme estudo já realizado por GUEDES (2017,
p.455-467) sobre a “política dos governadores” e a importância da manipu-
lação da “comissão de verificação de poderes” como instrumento desta prá-
tica.
Não por outro motivo que somente com a centralização do poder em
Getúlio Vargas, a Revolução de 1930 e a extinção da referida comissão que

355
foi possível a instituição de uma nova legislação eleitoral, o Código Eleitoral
de 1932, que, após a criação do Tribunal Superior Eleitoral e dos Tribunais
Regionais Eleitorais possibilitou o voto feminino e implantou o voto secreto.
Todo esse avanço, porém, durou muito pouco na medida em que, com a
instituição do Estado Novo, a participação política foisignificativamente res-
tringida, sendo relevante indicar, por seu caráter simbólico, que o regime
então constituído jamais efetivou o plebiscito que deliberaria sobre a própria
Carta de 1937, conforme originariamente estabelecido no artigo 187 do re-
ferido diploma constitucional.
Após a Segunda Guerra Mundial, a pressão pela volta da democracia
permitiu a reorganização partidária e convocação de novas eleições que cul-
minou, em dezembro de 1945, com a eleição do general Dutra com a maio-
ria dos votos.
Somente com a Constituição de 1946 foi instituído efetivamente o sis-
tema proporcional no Brasil, consequência direta da multiplicação do núme-
ro de partidos políticos que foram criados com o fim do Estado Novo. Como
bem indicado por BALEEIRO (2012 p.15), essa reprodução de partidos en-
fraqueceu tanto o governo como as oposições existentes, valendo destacar,
nesse sentido, a falta de sua apropriação para a prática brasileira conforme
esclareceu à época ARINOS (p.137):

Fundando-se a representação proporcional no quociente eleitoral, claro é que


um número avultado de correntes de opinião pode, através da conquista de
poucos daqueles quocientes – às vezes um único – obter personalidade política
em determinada circunscrição eleitoral. Daí o atrativo natural à formação dos
pequenos partidos, que representam, afinal, nuanças opinativas de posições po-
líticas na verdade aproximadas. Por isso mesmo é que, na frase feliz de certo
jurista, a representação proporcional é mais uma radiografia de opiniões do que
um processo de formação de maiorias estáveis.

Insta mencionar,dentro dessa linha histórico-constitucional brasileira, a


Constituição de 1967 que, em plena ditadura militar, retomou o sufrágio in-
direto para presidente da república, dentre outras modificações substanciais
que já haviam sido estabelecidas pelos atos adicionais decretados pelo gover-
no militar, tendo voltado às discussões e ao debate público com o movimen-
to a favor das Diretas Já a partir de 1983 e que culminaria, em 1985, com a
previsão de convocação de nova Assembleia Nacional Constituinte que cria-
ria a atual Constituição brasileira.
Atualmente a Constituição utiliza os dois modelos de sistema estudados
no presente artigo – majoritário e proporcional –, certo de que continuam
existindo divergências quanto à eficiência de ambos na doutrina, conforme
se observa, respectivamente, das posições de CUNHA e MENDES a res-
peito:

Expurgado de algumas deficiências, parece-nos que o sistema majoritário ainda


é o melhor, pelo menos enquanto a representação proporcional não atingir suas

356
verdadeiras finalidades, que são as de encarnar autêntica e legitimidade as reais
correntes de opinião, embasadas em princípios ideológico-partidários. (CU-
NHA, 1973 apud RAMAYANA, 2015 p. 162)

Não retira o caráter de eleição direta a adoção do modelo proporcional para a


eleição para a Câmara dos Deputados (CF art. 45,caput), que faz a eleição de
um parlamentar depender dos votos atribuídos a outros colegas de partido ou à
própria legenda. É que nesse caso, decisivo para a atribuição de mandato é o
voto concedido ao candidato ou partido e não qualquer decisão a ser tomada
por órgão delegado ou intermediário. (MENDES 2010 apud AMORIM, 2011
p. 5)

Atualmente o sistema proporcional é empregado para preencher as va-


gas do poder legislativo, com exceção do Senado Federal, no âmbito federal,
estadual e municipal.

Da ineficácia das diretrizes eleitorais vigentes em relação a realidade só-


cio-política brasileira:

Bem compreendidas as bases dos referidos sistemas, deve ser entendido


que, no mundo jurídico, deparamo-nos muitas vezes com situações em que
a previsão do “dever ser” não se coaduna com a realidade do “ser”, o que le-
vou autores da Teoria Constitucional como LOEWENSTEIN (apud MI-
RANDA, 2015, p.712) a distinguir as Constituições a partir da concordân-
cia das normas constitucionais com a realidade do processo do poder como:
normativas, nominais e semânticas.
As primeiras seriam aquelas em que há o sincronismo de adaptação en-
tre aquilo que a norma prevê a realidade social, enquanto nas segundas e ter-
ceiras haveria um importante hiato entre o que prevê a norma e a sua efetiva
aplicabilidade no mundo, distinguindo-se tais espécies apenas quando a nor-
ma constitucional fosse utilizada como instrumento do poder político domi-
nante, hipótese em que seria chamada de semântica, ou quando este des-
compasso fosse mera consequência da realidade existencial, quando seria
classificada como nominal.
Esta taxonomia constitucional de Loewenstein constitui importante
mecanismo, em nossa visão, para análise do sistema proporcional no Brasil,
cuja análise no presente artigo será realizada a partir do peculiar desenvolvi-
mento que tivemos em nosso país da ideia de cidadania.
Com efeito, a legislação brasileira se baseou em modelos de grande su-
cesso nos países onde foram instituídos originariamente, mas que não se
adaptavam, em grande parte dos casos, a nossa peculiar realidade nacional.
Nesse sentido há hoje uma antítese entre a realidade proposta na legis-
lação e aquela em que de fato se desenvolve no mundo real quando o tema
passa pela compreensão do sistema proporcional, na medida em que, da ma-
neira como se efetiva, este sistema acaba sendo utilizado para justificar a

357
permanência da supremacia da vontade da camada mais abastada, excluindo
a parcela da população já constantemente excluída econômica e socialmente
dos direitos em geral.
Conforme dito anteriormente, a consequência desse desligamento das
funções originais do sistema proporcional, a saber, dar voz a todas as cama-
das da população, gerou uma ausência do sentimento de representação por
parte da população brasileira, certo de que, dentre os diversos denominado-
res possíveis, a própria constituição da “cidadania brasiliense” parece ser um
dos mais importantes para a consolidação da realidade nacional em que vive-
mos.
Em uma realidade cujos direitos foram tipicamente outorgados e não
conquistados, é tarefa difícil desvencilhar os vícios que macularam nossa ci-
dadania, razão pela qual, o voto, expressão máxima de cidadania, não serve
para corroborar ou legitimar o governo, mas perpetuar um sistema falho e
antagônico criado pelo próprio ordenamento jurídico brasileiro.
Comecemos destrinchando o conceito de cidadania, o que nos iluminará
o suficiente para a compreensão desta afirmação. Para CARVALHO (2008)
a cidadania é constituída basicamente de direitos civis, direitos sociais e di-
reitos políticos. A falta de um deles é o bastante para que o cidadão se torne
“incompleto”. Temos como expressão dos direitos civis os direitos funda-
mentais à vida, como à liberdade e à propriedade; como expressões dos di-
reitos sociais o direito à educação e ao trabalho, ecomo exemplo dos direitos
políticos o direito ao voto.
Em um país relativamente novo, tivemos períodos muito longos de pou-
co ou nulo progresso da cidadania, certo de que, sem adentrar muito no mé-
rito da questão, não se pode deixar de ressaltar que o Brasil foi uma colônia
de exploração e não de povoamento como em outros lugares da américa la-
tina, e, apesar de haver unidade territorial, linguística e cultural, nossa eco-
nomia era basicamente monocultora e latifundiária, gerando pouco “espírito
cívico”, o que fez com que à época da independência não houvesse cidadãos
brasileiros, sequer uma pátria. (CARVALHO 2008 p.18)
Contribui para o pouco espírito cívico o fato de que os direitos no Brasil
foram conquistados de maneira pacífica, com poucas lutas, diferentemente
da América Espanhola e dos países do Velho Continente. A nossa própria
independência se deu de maneira negociada, com a finalidade de atender
aos interesses ingleses e portugueses em primazia aos nossos próprios direi-
tos.
Diferente é o caso da Inglaterra do século XIX. MARSHALL (1967 p.
63), esclarece que a forma pela qual os direitos sociais, civis e políticos se
desenvolveram em solo inglês obedece muito mais a uma ordem cronológica
do que lógica propriamente dita. Segundo o referido autor,os direitos civis
foram constituídos ao longo do século XVIII enquanto que a predominância
dos direitos políticos ocorreu no século XIX. Com a devida obtenção desses
direitos, passou-se em seguida a observar com maior ênfase os direitos so-
ciais, sendo estes o grande assunto do século XX.

358
Os direitos civis representaram a conquista do Habeas Corpus, da abo-
lição da censura de imprensa e o direito de trabalhar,de modo que, no final-
do século XVIII, quando houve a ambição dos direitos políticos, já havia
uma sólida fundaçãoem relação a tais direitos.
Quando os direitos civis assumiram esse caráter geral, passando a per-
tencer ao conjunto da sociedade como um todo, é possível observar a forma-
ção dos direitos políticos como instrumento de equilíbrio e a homogeneiza-
çãodos diversos grupos sociais então existentes.Com tais avanços, a legisla-
ção eleitoral da época, que pode ser considerada subproduto direto dos di-
reitos civis, expandiu-se e continuou restrita: o número de eleitores aumen-
tou, mas permaneceu ínfimo frente a população total. Vale ressaltar que a
partir do século XX, com a adoção do sufrágio universal, os direitos políticos
perderam essa característica secundária e passaram a ser tratados autonoma-
mente.
Movida pela industrialização, os trabalhadores foram expostos a toda
sorte de tratamentos desumanos. A burguesia, grande controladora do siste-
ma capitalista, tinha como único objetivo a maximização dos lucros, e para
chegar a esse resultado, se valia da máxima exploração do trabalhador.
Importante lembrar que segundo Marshall (1967 p.88) os direitos so-
ciais compreendiam um mínimo que não fazia parte do conceito de cidada-
nia com a finalidade de “diminuir o ônus da pobreza sem alterar o padrão de
desigualdade”, padrão este do qual logicamente a pobreza decorria.
Isso gerou uma revolução não só no campo trabalhista, mas também no
campo eleitoral. No final da década de 1830, surgiu na Inglaterra um movi-
mento denominado de cartista, cujos objetivos centrais eram reivindicações
políticas. Esse movimento almejava uma reforma parlamentar que garantis-
se uma representação mais equilibrada nas eleições distritais; a abolição do
censo eleitoral exigido dos candidatos ao parlamento; o sufrágio universal
masculino para os maiores de 21 anos; mandatos parlamentares anuais; voto
secreto; pagamento de salário aos parlamentares, além da reforma dos dis-
tritos eleitorais.
Com tais reivindicações, buscava-se chegar a uma democratização do
parlamento, facilitando o acesso a ele. O Parlamento Inglês não aceitou a
proposta e diversos líderes cartistas foram presos. Uma nova proposta foi
feita pelo movimento e mais uma vez o Poder Legislativo Inglês se mostrou
pouco propenso a mudanças. Apesar desses ditos fracassos, o Partido Liberal
percebeu que havia a necessidade de conceder alguns direitos aos trabalha-
dores, e uma série de direitos sociaise políticos foram aprovados.
Percebe-se que a construção do cidadão europeu, no caso em estudo o
inglês a partir da ótica de MARSHALL, se deu através de uma série de even-
tos onde a conquista de um direito foi elemento condutor e anterior à con-
quista dos outros. Depois que os ingleses conquistaram seus direitos civis,
foram em busca dos direitos políticos e esperaram por um longo tempo para
obter os direitos sociais.

359
Não há aqui a ingenuidade de pensar que uma cidadania somente será
“genuína” caso obedeça especificamente a essa ordem de obtenção de direi-
tos, até porque não se pode esperar que a população esteja sempre à frente
do regime democrático. Todavia, no Brasil, além de não haver nitidamente
uma obediência a essa ordem temporal, para além dos governantes, mas a
carga de gerir o sistema democrático é conferidaao Estado e isso gerou aqui-
lo que é chamado, por que não, de “cidadãos dóceis”, cujos direitos foram
obtidos sem grandes tensões sociais e não conquistados.
A participação política de nossa sociedade sempre foi tímida, tanto que,
no episódio da Proclamação da República, Aristides Lobo disse a célebre fra-
se: “E o povo assistiu bestializado à proclamação da República”.
Segundo o autor José Murilo de Carvalho (2008 p.67),

mesmo na ausência de um povo político organizado, existiria um sentimento,


ainda que difuso, de identidade nacional. Esse sentimento, como já foi observa-
do, acompanha quase sempre a expansão da cidadania, embora não se confunda
com ela. Ele é uma espécie de complemento, às vezes mesmo uma compensa-
ção, da cidadania vista como exercício de direitos.

Sabemos que a inexpressiva participação da sociedade brasileira na cons-


trução de seus direitos sociais e políticos não se deu por mero desinteresse,
e sim por toda a opressão e censura, políticas e sociais,pelas quais o povo foi
subordinado. Tanto é que a primeira constituição brasileira foi outorgada,
ou seja, imposta pelo imperador.
Devemos voltar aos “primórdios constitucionais brasileiros”, na Consti-
tuição Outorgada de 1824, a fim de elucidar sobre o exemplo fornecido. Em
1822, D. Pedro I tinha que administrar, além de um país falido, cujos cofres
seu predecessor, o rei D. João VI, havia esvaziado, uma crise de incertezas
sobre o novo país que surgia. Havia a iminente necessidade de organizar o
país. Mas como fazê-lo quando as opiniões dos próprios brasileiros eram tão
divergentes?
Republicanos e federalistas, abolicionistas e escravagistas, enfim, uma
classe de opostos viria a se enfrentar na Assembleia Geral Constituinte, cujo
objetivo seria organizar esse novo Estado que surgia com o fim do vínculo
com a metrópole portuguesa. Nas palavras de Gomes (2010 p.212), “a
Constituição seria a fiadora de um novo pacto social, expressão igualmente
nova no vocabulário político brasileiro”, de modo que Constituição teria um
papel muito mais de unir o País do que propriamente ditar normas e regras.
Consoante o mesmo autor, em 03 de maio de 1823, quando instalada a
Assembleia Constituinte, as discussões que predominaram versavam sobre
o papel do Imperador, certo de que havia um grupo que pregava que tanto a
legitimidade quanto o poder do soberano eram delegados pela nação brasi-
leira, e isso significava não só uma submissão do Imperador à Constituição,
mas também impedia que ele usasse sua autoridade com arbitrariedade,
como, por outro, moderados que pregavam que a autoridade do Imperador

360
decorria da tradição e herança histórica, sustentando-se por si mesma, sen-
do, portanto superior à constituinte bem como ao restante da sociedade bra-
sileira. (2010 p.213)
A Assembleia Constituinte sofreu inúmeras crises, a primeira delas a
partir da ideia defendida pelos democratas da cláusula do juramento prévio,
segundo a qual o imperador não era um imperador qualquer, mas um “Im-
perador Constitucional”, tendo seus poderes limitados pela Constituição. E,
como tal, deveria jurar a constituição antes mesmo que ela fosse elaborada
Em um discurso feito aos deputados, D. Pedro deixou clara a missão a
qual estavam vinculados, que era de criar uma Constituição que colocasse
barreiras ao despotismo, que pregasse a união, tranquilidade e inde-
pendência do Império, e uma constituição digna do Brasil e do Imperador
(GOMES, 2010 p.216).
Em razão das diversas dissidências sobre qual deveria ser a posição do
Imperador na organização político-institucional brasileira, a Assembleia foi
dissolvida e D. Pedro I outorgou a primeira Constituição brasileira em 25 de
março de 1824, cujo texto, avançado em termos de direitos civis e sociais,
aliada a baixíssima (para não dizer nula) representação da vontade brasileira,
contribuiu para um espírito cívico “dócil”, que aceitou a imposição desses
direitos sem reclamar a falta de tantos outros, como os políticos por exem-
plo.
Outro grande exemplo é período da Ditadura Militar, momento em que
uma série de leis foram aprovadas sem que, contudo, a população pudesse
demonstrar seu descontentamento.Com a ampliação da participação políti-
ca anterior a 1964, houve uma resistência que culminou na imposição de
mais um regime ditatorial em que os direitos civis e políticos foram limita-
dos pela violência(CARVALHO 2008 p.157).
Podemos dividir o período ditatorial no Brasil em três grandes fases. A
primeira compreenderia os anos de 1964 a 1968, caracterizando-se por um
período de intensa atividade repressiva seguida de sinais de abrandamento.A
segunda fase engloba os anos de 1968 e 1974, e teria sido a mais brutal, prin-
cipalmente no que se refere à restrição dos direitos políticos e civis. Nessa
etapa da Ditadura Militar, houve intensa repressão política, apesar das taxas
de crescimento econômico. Esse período no Brasil foi configurado por essas
diversas formas de “maquiar” a supressão de direitos fundamentais.
A terceira fase pode ser considerada como fase de transição para o perío-
do democrático. Concebida a partir de 1974 com a posse do general Geisel,
esse período arrastou-se até 1985, e ficou marcado pela retomada dos mili-
tares liberais ao poder, onde houve uma tentativa de liberalizar o sistema, a
despeito da forte oposição dos órgãos de repressão. Vale destacar que a opo-
sição, a partir desse momento, começou a dispor de maior participação po-
lítica.
Os instrumentos utilizados pelo governo, para encarnar a repressão fo-
ram os atos institucionais. O primeiro deles, o AI nº 1, foi responsável pela
cassação dos direitos políticos no período de dez anos de boa parte dos líde-

361
res políticos e sindicais, bem como de intelectuais e militares. Instituído em
nove de abril de 1964, regulou também as aposentadorias forçadas de fun-
cionários públicos (civis e militares) e o fechamento de órgãos ligados ao
movimento operário.
O AI nº 2, datado de outubro de 1965 aboliu a eleição direta para presi-
dente da República, desmanchou partidos políticos criados após 1945, e es-
tabeleceu o bipartidarismo (CARVALHO 2008 p. 161). Os poderes do pre-
sidente “fermentaram”, podendo, inclusive, destituir o parlamento, intervir
nos estados e decretar estado de sítio.
Em 1968 surge o mais grave destes atos: o AI nº 5. Como o Congresso
foi fechado, o então presidente Costa e Silva passou a governar de forma di-
tatorial. Reiniciaram-se as cassações de mandatos, suspenderam-se os direi-
tos políticos de deputados e vereadores, e houve demissões sem justa causa
de funcionários públicos.
No comando do general Médici, tivemos o maior dos retrocessos coma
volta da pena de morte. E detalhe, a pena de morte era por fuzilamento.
Essa pena não era mais imposta sequer no período imperial. Em 1970 tive-
mos a inserção da censura prévia em jornais, livros e demais meios de comu-
nicação. A censura à imprensa aboliu a liberdade de opinião; não havia liber-
dade de reunião (CARVALHO 2008 p. 163).
Uma discussão feito por CARVALHO em seu livro “Cidadania no Bra-
sil”, dentre as várias existentes, chama a atenção: durante os governos mili-
tares houve um acréscimo do número de eleitores. Em1960 cerca de 12,5
milhões de pessoas votaram nas eleições presidenciais. Em 1986 esse núme-
ro passou para 65, 6 milhões. Mas o que significaria votar, para esses cida-
dãos, sendo que outros inúmeros direitos lhes eram extirpados? O ato de vo-
tar poderia, nessas circunstâncias, ser considerado pleno exercício de um di-
reito político?
Durante todo esse período de censura aos direitos civis e políticos, os
governos buscaram, como forma de contraprestação, aumentar os direitos
sociais. Esse paternalismo gerou aumento em direitos trabalhistas, por
exemplo, mas, em contrapartida, colocou a população a sombra de sua pró-
pria cidadania,pois não mais detentora de todos os direitos, apenas de parte
deles.
O saldo da cidadania brasileira é então de uma cidadania parcial, nunca
exercida plenamente. Nos governos militares, houve ampliação dos direitos
sociais, principalmente previdenciários, mas não dos políticos. No período
democrático houve avanço dos direitos políticos, mas suspensão ou ligeiro
progresso dos direitos sociais que não resultaram em avanços dos direitos ci-
vis.
Isso nos leva a refletir sobre a maneira como se desenrolou a cidadania,
e se, de fato, alguma vez a exercemos. Como esclareceuma vez mais CAR-
VALHO (2008 p. 12), a construção da cidadania tem a ver com a relação
com o Estado e com a nação, de modo que as pessoas só se tornam cidadãs

362
no momento em que se tornam parte de uma nação e de um Estado, gerando
lealdade e identificação de uma unidade.
Ora, não há maior prerrogativa que gere identidade e lealdade com uma
nação do que o direito ao voto. Sabe-se, inclusive, que no Brasil, assim como
em grande parte dos Estados ocidentais, o voto tomou a dimensão e o status
de representante da cidadania, ou seja, uma personificaçãodos direitos e de-
veres de cidadão. Logo,exercê-lo de maneira dúbia nos torna, com efeito,
“cidadãos incompletos”, retirando um dos pilares primordiais de sua exis-
tência.
De fato, a despeito da Constituição de 1988 ter eliminado grandes obs-
táculos aos direitos políticos através da universalidade de voto, permanece-
mos em uma realidade eleitoral distorcida em que o voto proporcional, por
suas peculiaridades, afasta os eleitores de seus eleitos e impede, em nossa
visão, o adequado desenvolvimento do sistema democrático no Brasil.

Considerações finais:

Apesar das diversas reformas e mudanças vividas no sistema sócio-de-


mocrático brasileiro, ainda não amadurecemos nosso sistema político princi-
palmente naquilo que se refere a forma como escolhemos nossos repre-
sentantes.
Nota-se que o sistema proporcional, critério adotado para a eleição da
maior parte dos cargos do poder legislativo, é utilizado de maneira inócua no
ordenamento, pois ao invés de contribuir, garantindo uma maior repre-
sentatividade no parlamento, ele atua como “mais do mesmo”, mantendo no
poder as vozes que sempre estiveram e tirando do alcance da população a
transparência sobre como elegem seus representantes.
Nas eleições de 2014, por exemplo, candidatos com votações expressi-
vas levaram consigo parlamentares que, sozinhos, não teriam a mínima chan-
ce de serem eleitos, o que demonstra, para além dos fundamentos do siste-
ma proporcional em si, as incoerências que são geradas em sua aplicação ao
caso concreto.O estado de São Paulo, por exemplo, possui na Câmara dos
Deputados o total de 70 cadeiras. Dividindo-se o número de votos válidos
pelo número de cadeiras, o candidato para ser eleito precisaria de cerca de
300 mil votos válidos. A eleição do deputado Celso Russomanno do Partido
Republicano Brasileirocom cerca de 1,5 milhões de votos, em razão do sis-
tema proporcional, gerou a eleição de outros quatro candidatos do referido
partido, dentre eles o hoje deputado Fausto Pinato que obteve somente 22
mil votos.
De acordo com uma reportagem publicada no jornal “Estadão”1, apenas
36 dos 513 deputados tiveram votos válidos para se elegerem sozinhos, de

1 Matéria intitulada “Saiba quem foi eleito na ‘carona’ de Tiririca e Russomanno.” O


Estado de S. Paulo. São Paulo, 08 out. 2014).

363
modo que o restante foi eleito a partir das idiossincrasias que a aplicação do
sistema eleitoral gera na prática.
Isso leva ao sentimento por parte do povo brasileiro de que não está sen-
do devidamente representado por tais políticos,não só pelo comportamento
dos mesmos, mas por saber que o candidato escolhido, ainda que tenha um
bom número de votos, pode não ser eleito por não ser estar inserido em um
partido de relevância eleitoral.
Desta feita, acredita-se que o Brasil necessita de uma reforma eleitoral,
alterando dispositivos que permitem aos partidos, bem como às coligações,
arquitetar a escolha de nossos representantes, de modo que a escolha caiba
tão somente, para melhor ou para pior, aos cidadãos brasileiros.

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365
Os contratos nas técnicas de
reprodução assistida

Beatriz Capanema Young

Resumo: A Constituição da República de 1988, em seu artigo 226, § 7º,


reconhece a todos o direito ao livre planejamento familiar. No campo da re-
produção humana são significativas as conquistas permitidas pelo avanço da
ciência, especialmente no que diz respeito às técnicas de reprodução assisti-
da. O dinamismo com que ocorrem tais avanços coloca a ciência em des-
compasso com o direito, o que deixa diversas questões carentes de respostas
do legislativo. Nesse sentido, propõe-se analisar as espécies contratuais que
permeiam essas relações e possíveis problemas que podem sobrevir durante
a aplicação das técnicas de reprodução assistida, sempre propondo uma in-
terpretação constitucional humanizada ante o objeto de tais contratos de es-
copo existencial.

Palavras-chave: Biodireito. Planejamento familiar. Reprodução Assisti-


da. Técnicas. Resolução CFM nº 2.168/2017.

Abstract: The Republic Constitution of 1988, in its article 226 § 7º, rec-
ognize all citizens the right to independent family planning. In the human
reproduction field are significant the achievements allowed by the advance
of science, specially concerning the assisted reproduction techniques. The
dynamism that occurs these advances puts science mismatched with the
law, leaving various issues wanting answers from the legislative. In these
terms, its proposed examine the contractual species that surface in that re-
lation and the possible problems that can supervene during the application
of the assisted reproduction techniques, always proposing a humanized con-
stitutional interpretation because the object of such existential contracts.

Key-Words: Biolaw. Family planning. Assisted reproduction. Tech-


niques. CFM Resolution nº 2.168/2017.

Sumário: 1. Introdução. 2. Espécies contratuais nas técnicas de repro-


dução assistida. 2.1. O contrato de inseminação artificial. 2.2. O contrato de
fertizilação in vitro e a preservação criogênica de embriões. 2.3. O contrato

367
de gestação por substituição. 2.4. Problemas suscitados pela aplicação das
técnicas. 3. Por uma interpretação contratual constitucional. 4. Conclusão.
Referências.

1. Introdução

Com fundamento nos princípios da dignidade da pessoa humana e da


paternidade responsável, a Constituição da República de 1988, em seu arti-
go 226, § 7º, reconhece a todos o direito ao livre planejamento familiar. Tal
direito abrange não somente a não interferência no exercício do direito de
fundar uma família, mas também o direito à procriação.1 A regulamentação
trazida pela Lei nº 9.263/96, prevê em seu artigo 9º o exercício do direito
ao planejamento familiar, através do oferecimento dos métodos e técnicas
de concepção e contracepção cientificamente aceitos. Neste sentido, com-
preende-se que as “técnicas de concepção” abrangem também as técnicas de
reprodução assistida.2
Para se chegar a efetiva concretização deste direito, conforme delimita-
do nos dispositivos constitucionais acima mencionados, foram necessários
dois grandes saltos evolutivos da ciência: o primeiro ocorreu na década de 60
com a criação da pílula anticoncepcional, e o segundo a partir da década de
70 com a difusão dos métodos de reprodução assistida e os bons resultados
obtido.3 Este segundo momento significou importante progresso na resolu-
ção de um dos problemas mais antigos da sociedade: a infertilidade.4 Os nú-
meros da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que a infertilida-
de é um problema vivido por 8% a 15% dos casais.5 No Brasil, estima-se que

1 Para Heloisa Helena Barboza, o exame do parágrafo 7º, do artigo 226, da Consti-
tuição Federal de 1988, “permite reconhecer a introdução em nosso sistema de deno-
minada ‘autonomia reprodutiva’, sendo assegurado o acesso às informações e meios para
sua efetivação, ao se atribuir ao Estado o dever de propiciar recursos educacionais e
científicos para o exercício desse direito, e ao se vedar qualquer forma coercitiva por
parte de instituições oficiais ou privadas”. (BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução
humana como direito fundamental. In: Carlos Alberto Menezes Direito; Antônio Au-
gusto Cançado Trindade; Antônio Celso Alves Pereira. (Org.). Novas Perspectivas do
Direito Internacional Contemporâneo. 1. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2008).
2 BARBOZA, Heloisa Helena. Proteção da autonomia reprodutiva dos transexuais.
In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, mai./ago., v. 20, n. 2, 2012, p. 552.
3 Utiliza-se a expressão “reprodução assistida” como gênero, que comporta diferen-
tes espécies, como a inseminação artificial e a fertilização in vitro.
4 LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida.
In: BARBOZA, Heloisa Helena; BARRETO, Vicente de Paulo (Orgs.). Temas de Biodi-
reito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 102.
5 Disponível em: “http://www.who.int/reproductivehealth/publications/monito-
ring/924156315x/en/”. Acesso em: 17 fev. 2018.

368
mais de 278 mil casais têm dificuldade para gerar um filho em algum mo-
mento de sua idade fértil.6
As técnicas de reprodução assistida vêm criar novas possibilidades para
que casais inférteis, casais homossexuais, famílias monoparentais e até pes-
soas já falecidas se reproduzam, seja através da inseminação artificial homó-
loga ou heteróloga, da criação de embriões humanos in vitro para sua poste-
rior implantação ou até que uma mulher tenha a gestação de filho que será
de outra.
Tais hipóteses demonstram a importância de regulamentação adequada
da matéria, de ampla repercussão jurídica, especialmente no que diz respei-
to às estruturas familiares profundamente abaladas em sua concepção origi-
nal.7 O dinamismo com que ocorrem tais avanços coloca a ciência em des-
compasso com o direito, o que deixa diversas questões de alta indagação ca-
rentes de respostas do legislativo.
Neste cenário, o Código Civil dedicou ao assunto apenas três incisos do
artigo 1.597,8 que tratam da presunção de paternidade dos filhos havidos do
casamento, gerando mais dúvidas que soluções. A Resolução do CFM
2.168/2017 é, no momento, a melhor regulamentação sobre o tema. A cada
dois anos, busca-se atualizar as disposições com base nas demandas sociais,
de modo que nesta última edição foram alteradas as disposições sobre os cri-
térios para a gestação de substituição, a redução do prazo para descarte de
embriões e o congelamento de material para uma gestação tardia, o que fa-
vorece, por exemplo, pacientes em tratamento oncológico.
Entretanto, a despeito do elogiável esforço do CFM para amenizar os
problemas causados pela ausência de regulamentação jurídica sobre o tema,
a Resolução 2.168/2017 é de cunho meramente deontológico, não possui
eficácia nem força normativa de lei.
Em consequência, a solução para os conflitos resultantes da utilização
destas técnicas é confiada ao judiciário, que nem sempre possui os instru-
mentos próprios para atender às peculiaridades deste campo científico.

6 Disponível em: “http://www.brasil.gov.br/saude/2011/09/planejamento-fami-


liar”. Acesso em: 17 fev. 2018.
7 BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução assistida: questões em aberto. In: CAS-
SETTARI, Christiano (Coord.). 10 anos de vigência do Código Civil brasileiro de 2002.
Estudos em homenagem ao professor Carlos Alberto Dabus Maluf. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 92-93.
8 Teor do artigo após a alteração promovida pela Lei 11.105/05 – Lei de Biosseguran-
ça: “Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: III –
havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havi-
dos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de
concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde
que tenha prévia autorização do marido”.

369
Uma legislação formal contendo cláusulas gerais9 voltadas para esse tipo de
atividade, editada em paralelo e sem prejuízo de sua disciplina pelo CFM,
possivelmente seria benéfica a todos os interessados.
Diante deste panorama reformulado da reprodução humana, a socieda-
de almeja respostas para diversas questões relacionadas à reprodução assis-
tida, especialmente no tocante à responsabilidade civil médica.
Feitas essas considerações iniciais, passa-se à análise dos instrumentos
contratuais que permeiam as relações jurídicas na reprodução assistida e aos
possíveis problemas que podem advir da aplicação das técnicas, ante a falta
de regulamentação jurídica.

2. Espécies contratuais nas técnicas de reprodução assistida

Embora seja mencionada com mais frequência a “inseminação artificial”,


as técnicas de reprodução assistida consistem precipuamente em “procedi-
mentos biomédicos que promovem a reprodução humana sem a necessidade
de haver contato sexual entre um homem e uma mulher”,10 abrangendo,
além da inseminação artificial, a fertilização in vitro.
Na prática, os interessados no uso dessas técnicas procuram uma clínica
especializada, que os informará sobre as possibilidades existentes, fará exa-
mes prévios para diagnosticar o tipo de infertilidade que está causando o
problema na concepção da pessoa, para se verificar qual técnica seria mais
adequada. Isto porque, a depender do obstáculo, a indicação para o uso dos
métodos se altera, como se verá em apertada síntese a seguir.
A técnica de reprodução assistida, em qualquer de suas modalidades,
poderá ser homóloga, quando se utiliza gametas do casal, cujos integrantes
serão os pais da criança a nascer, ou heteróloga, na hipótese de o material ser
doado por terceiro.
Ao optar pelo método de reprodução assistida, verifica-se que compõe a
relação uma série de contratos anexos, de natureza acessória ao principal,
que são essenciais ao objetivo final, qual seja, a concepção.11 Os contratos

9 Para Stefano Rodotà, a normatização deste campo deve se dar através de cláusulas
gerais, pois uma legislação específica e detalhada restará rapidamente ultrapassada, em
razão da incessante dinâmica das inovações científicas e tecnológicas. Assim, a redesco-
berta dos princípios se concretiza uma interpretação constitucionalmente orientada,
que não pode ser relacionada somente à decisão do caso concreto, mas investe na re-
construção global do sistema. (RODOTÀ, Stefano. Il nuovo habeas corpus: la persona
constituzionalizzata e la sua autodeterminazione. In: ______; ZATTI, Paolo. Trattato di
biodiritto: âmbito e fonti del biodiritto. Milão: Giuffrè Editore, 2010. p. 169-230).
10 BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução assistida: questões em aberto. cit., p. 93.
11 Por exemplo, se é verificado que a técnica mais indicada para um casal é a fertiliza-
ção in vitro, com o uso de gametas de doadores, além do contrato de prestação de ser-
viços médicos que os pacientes farão com a clínica, existem contratos paralelos que a

370
são essenciais para o objetivo final da concepção e nascimento de uma crian-
ça e se encontram em relação de dependência recíproca, uma vez que se
frustrado o objeto de algum deles, o objetivo final também se frustrará. Ob-
serva-se, assim, a existência de contratos coligados na reprodução assistida,
ante a presença de conexão entre os contratos, que façam com que eles per-
sigam juntos uma função ulterior além da função específica de cada um.12
Ressalta-se, por fim, que a relação entre médico e paciente é reconheci-
da majoritariamente pela doutrina como uma relação de consumo,13 pois se
encontram presentes os três elementos essenciais: o consumidor que é o pa-
ciente; o fornecedor, que é o médico que prestará o serviço; e o serviço, que
é o ofício especializado objeto da obrigação médica.14 Porém, afirma-se que
a responsabilidade do médico é do tipo subjetiva, ou seja, exige-se a prova
da intenção de causar dano ou da conduta negligente, imprudente ou impe-
rita (em uma palavra, da culpa lato sensu do agente) para o surgimento do
dever de indenizar.15 Além de se tratar também de obrigação de meio.16
Não obstante, a despeito da responsabilidade civil subjetiva dos médi-
cos, a responsabilização das clínicas de reprodução humana assistida e dos
bancos de sêmen se dará de forma objetiva, aplicando-se analogicamente os

clínica fará com o banco de sêmen, para obter os gametas do doador, além da criopre-
servação dos embriões excedentários, o informe de consentimento para técnicas de fer-
tilização assistida e se necessário o uso de gestação por substituição, ainda o contrato
com a gestante.
12 KONDER, Carlos Nelson. Contratos conexos: grupos de contratos, redes contra-
tuais e contratos coligados. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 181. Para uma outra pers-
pectiva do tema, ver: MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. Contratos coligados no
direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009.
13 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil médica no direito brasileiro. Revista de
Direito do Consumidor, vol. 63. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./2007; DANTAS,
Eduardo Vasconcelos dos Santos. Aplicação do Código do Direito do Consumidor no
exercício da medicina. In: FIGUEIREDO, Antônio Macena de; LANA, Roberto Lauro
(Coord.). Direito médico: implicações éticas e jurídicas na prática médica. Rio de Janei-
ro: Lumen Juris, 2009, p. 206 e ss.
14 FRANÇA, Loreanne Manuella de Castro; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti
Tarifa. Da inserção de cláusulas de não indenizar nos contratos relacionados à reprodu-
ção humana assistida. In: CONPEDI/UFF. (Org.). Biodireito. 1. ed., Florianópolis:
FUNJAB, 2012, v. 1, p. 326.
15 Art. 951 do Código Civil: “O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no
caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por
negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal,
causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho”.
16 Segundo Aguiar Júnior, “quando o profissional assume prestar um serviço ao qual
dedicaraì atenção, cuidado e diligência exigidos pelas circunstâncias, de acordo com o
seu título, com os recursos de que dispõe e com o desenvolvimento atual da ciência,
sem se comprometer com a obtenção de um certo resultado. O médico, normalmente,
assume uma obrigação de meios”. (AGUIAR JUìNIOR, Ruy Rosado de. Responsabili-
dade civil do meìdico. Revista dos Tribunais, Sao Paulo, v. 84, n. 718, ago. 1995. p. 34).

371
dispositivos referentes aos hospitais e casas de saúde, uma vez que a respon-
sabilidade da pessoa jurídica que fornece serviços médicos eì objetiva no âm-
bito do direito do consumidor.17 Porém, se o profissional apenas utiliza o
hospital para internar seus pacientes particulares, responde com exclusi-
vidade por seus erros, afastando assim responsabilidade do estabeleci-
mento.18

2.1. O contrato de inseminação artificial

Essa primeira técnica se diz intracorpórea, uma vez que a concepção


ocorre no interior do corpo da mulher que fará a gestação. Comumente, re-
corre-se a este procedimento quando há impossibilidade de o casal ter filhos
em razão de infertilidade do marido, no caso de mulheres que desejam ser
mães solteiras ou casal homoafetivo.
Quando homóloga, o contrato de inseminação se dará unicamente entre
a clínica e o(s) paciente(s). Entretanto, quando for necessário se utilizar de
gametas masculinos ou femininos ou até ambos de doadores, a contratação
também será realizada com terceira instituição, chamada de “banco de sê-
men”, responsável pela seleção dos doadores, catalogação dos perfis, pela
conservação do material genético e pela realização dos exames pertinentes
para testar a qualidade do material.19
Com efeito, entre o banco de sêmen e o doador do material genérico é
firmado instrumento de doação voluntária, que versa sobre a concessão gra-
tuita de gametas à determinada clínica de reprodução humana. Para se evitar
a mercantilização de embriões e tecidos humanos, a Lei 11.105/05 proíbe e
criminaliza a comercialização de material biológico, também a Resolução no
2.168/17 veda a obtenção de lucro na doação de gametas, bem como pré-
embriões.20 Embora não se refira diretamente à doação de gametas, a Cons-

17 Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de


culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à
prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre
sua fruição e riscos.
18 GONÇALVES, Fernando David de Melo. Responsabilidade civil do médico e dos
bancos de sêmen na inseminação artificial. Revista Jurídica Consulex. Ano XIII, n. 292,
mar. 2009, p. 267.
19 KONDER. Carlos Nelson. Elementos de uma interpretação constitucional dos
contratos de reprodução assistida. In: Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC. Rio
de Janeiro: Padma, 2001. v.7., jul./set. 2011, p. 251.
o o o
20 A Lei n 11.105/05, art. 5 , § 3 , diz que: “É vedada a comercialização do material
biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da
Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997”. Lei 9.434/97, art. 15: “Comprar ou vender
tecidos, órgãos ou partes do corpo humano: Pena – reclusão, de três a oito anos, e
multa, de 200 a 360 dias-multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem promo-
ve, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação”. A comerciali-

372
tituição de 1988 proíbe, no artigo 199, §4º, toda comercialização de órgãos,
tecidos e substâncias humanas.21
A clínica de reprodução assistida, portanto, funciona como intermediá-
ria e responsável pelo procedimento de inseminação e demais cuidados mé-
dicos, como o acompanhamento, realização de exames e tratamento ambu-
latorial do paciente. Enquanto o banco de sêmen fica responsável pela doa-
ção e verificação de qualidade dos gametas.22

2.2. O contrato de fertizilação in vitro e a preservação criogênica de em-


briões

Esta técnica teve seu marco inicial com o nascimento, em 1978 na Ingla-
terra, de Louise Brown. Diferentemente da inseminação artificial, não só o
sêmen é coletado como também o óvulo é coletado do ovário da paciente,
através do uso do hormônio foliculo estimulante (FSH) que estimula o cres-
cimento do maior número de óvulos possível. Assim, a fecundação é extra-
corpórea, onde os óvulos e espermatozoides são colocados em uma proveta
de laboratório, dando origem assim à denominação “bebê de proveta”. En-
tão, os óvulos fertilizados ou embriões resultantes são implantados no útero
da paciente para que ocorra a gestação.
Este método costuma ser utilizado quando a impossibilidade de concep-
ção decorre de problema de origem tubária, o qual impede o encontro do
óvulo e espermatozoide na tuba uterina e, após a fecundação, o deslocamen-
to do embrião para o útero para a fixação na parede endometrial.23
Em razão da taxa de sucesso deste procedimento ser baixa e seu alto cus-
to financeiro, normalmente são gerados diversos embriões de uma só vez,
sendo os não implantados congelados em nitrogénio líquido para serem uti-
lizados em uma nova tentativa no caso de fracasso da primeira.24 Desta pre-

zação de embriões jáì era vedada pelas Resoluções do Conselho Federal de Medicina,
que na última edição determina no item IV (1): “A doação não poderá ter caráter lucra-
tivo ou comercial.”
o
21 §4 A lei disporáì sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de
órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento,
bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo ve-
dado todo tipo de comercialização”.
22 Item III da Resolução 2.168/2017 do CFM: “As clínicas, centros ou serviços que
aplicam técnicas de RA são responsáveis pelo controle de doenças infectocontagiosas,
pela coleta, pelo manuseio, pela conservação, pela distribuição, pela transferência e
pelo descarte de material biológico humano dos pacientes das técnicas de RA”.
23 KONDER. Carlos Nelson. Elementos de uma interpretação constitucional dos
contratos de reprodução assistida. cit., p. 256.
24 Resolução 2.168/17, Item I (7): “Quanto ao número de embriões a serem transfe-
ridos, fazem-se as seguintes determinações de acordo com a idade: a) mulheres até 35
anos: até 2 embriões; b) mulheres entre 36 e 39 anos: até 3 embriões; c) mulheres com

373
servação criogênica destes embriões desenrolam-se diversas indagações, so-
bre a propriedade do material biológico e a natureza jurídica do embrião,
como se verá mais adiante.

2.3. O contrato de gestação por substituição25

Através deste instrumento, um casal (casal contratante) que deseja ter


um filho, encarrega outra mulher (mãe gestante, subrogada ou de substitui-
ção) que leve a termo a gestação, por via de inseminação artificial ou fecun-
dação in vitro, podendo utilizar o material genético dos contratantes, o óvu-
lo da gestante, ou de doadores.
Este método é utilizado nos casos onde a própria mulher não é capaz bio-
logicamente de levar a gravidez ao seu termo, em casos de casal homoafetivo
masculino ou pessoa solteira.
É razoavelmente pacífica a licitude deste negócio jurídico em nosso or-
denamento, uma vez que o pacto traduz um gesto altruísta, fundado no prin-
cípio da boa-fé e solidariedade, que atende ao direito de procriação daquela
que manifesta o desejo da maternidade.26
As controvérsias começam a surgir quando se analisa eventual patrimo-
nialidade desde contrato e quando se utiliza o óvulo da gestante substituti-
va27, o que acaba gerando um conflito positivo quando várias mães reivindi-
cam para si a maternidade da criança, ou um conflito negativo quando ne-
nhuma das mães quer assumir a maternidade. No Brasil, a proibição ao cará-
ter lucrativo está consolidada no item VII (2) da Resolução 2.168/17 do
CFM.28

40 anos ou mais: até 4 embriões; d) nas situações de doação de oócitos e embriões,


considera-se a idade da doadora no momento da coleta dos oócitos. O número de em-
briões a serem transferidos não pode ser superior a quatro”.
25 Adota-se neste artigo a referência à gestação por substituição, muito embora a téc-
nica seja referida através de diversas outras nomenclaturas: doação temporário de útero,
cessão de útero, mães de substituição, etc.
26 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; KONDER, Carlos Nelson. Situações jurídicas
dúplices: controvérsias na nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimonia-
lidade. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Org.). Diálogos sobre direito
civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. v. III. p. 18.
27 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Conflito positivo de maternidade e a utiliza-
ção do útero de substituição. In: CASABONA, Carlos María Romeo e QUEIROZ, Ju-
liane Fernandes (coord.). Biotecnologia e suas implicação ético-jurídicas. Belo Horizon-
te; Del Rey, 2004. p. 309-323.
28 Item VII da Resolução 2.168/17 do CFM: “1. A cedente temporária do útero deve
pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau
(primeiro grau – mãe/filha; segundo grau – avó/irmã; terceiro grau – tia/sobrinha; quar-
to grau – prima). Demais casos estão sujeitos à autorização do Conselho Regional de
Medicina. 2. A cessão temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comer-
cial”.

374
A gratuidade do contrato tem outros efeitos jurídicos. No nosso ordena-
mento, não poderá a gestante ser considerada prestadora de serviços, assim,
não responderá por negligencia durante a gravidez, mas somente por dolo.29
Exatamente por este motivo, se proliferaram das clausulas contratuais que
explicitamente vedam à gestante fumar, consumir drogas ou bebidas alcoó-
licas e demais atividades que coloquem em risco a saúde do feto.30
Como já falado, a ausência de regulamentação mundial sobre o assunto
e a heterogenia existente entre os países, acaba por ocasionar uma migração
de casais interessados na técnica de “barriga de aluguel” em países onde as
normas sejam mais flexíveis. Entretanto, recentes casos de grande repercus-
são de abandono de bebês com doenças e deficiências acabaram por fechar
os portões de alguns países para estrangeiros se utilizarem dessa técnica.31

2.4. Problemas suscitados pela aplicação das técnicas

Ultrapassada as exposições sobre os métodos de reprodução assistida,


passemos à exposição dos problemas mais comuns ocorridos nesse âmbito e
algumas respostas já dadas pelas Cortes internacionais em casos seme-
lhantes.
Primeiramente, um problema que vale para todos os contratos é quando
não se consegue a gestação perseguida. Atentas a esta realidade, e preocupa-
das com uma eventual responsabilização, as clínicas, ao celebrarem o contra-
to de prestação de serviços médicos com o casal, normalmente incluem uma
cláusula alertando para a impossibilidade de garantir que a paciente engravi-
dará em decorrência do tratamento proposto, tendo em vista que inúmeras
causas poderão determinar o insucesso do resultado.32 O insucesso do trata-
mento, por si só, não gera responsabilidade para o médico, pois as incertezas
que permeiam a reprodução fazem da obtenção de uma gravidez ou do nas-
cimento de um filho resultados que podem ou não ocorrer.
Não obstante, caracterizar a reprodução assistida como uma obrigação
de meio não implica permissão ao devedor para agir como se o resultado es-
perado pelo credor lhe fosse indiferente. Esta constatação decorre da apli-
cação do principio da boa-fé objetiva à matéria obrigacional, que vem tem-

29 Art. 1.057, CC. “Nos contratos unilaterais, responde por simples culpa o contraen-
te, a quem o contrato aproveite, e, só por dolo, aquele que não favoreça”.
30 KONDER. Carlos Nelson. Elementos de uma interpretação constitucional dos
contratos de reprodução assistida. cit., p. 262.
31 Após abandono de bebê com Down pelos seus pais australianos, Tailândia proíbe a
contratação de barriga de aluguel por estrangeiros: http://www.bbc.com/portugue-
se/noticias/2015/02/150219_tailandia_barriga _ aluguel_ru.
32 LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida.
cit. p. 115.

375
perar a distinção entre obrigações de meio e de resultado.33 Observado o
cumprimento dos deveres médicos, não lhe devem ser imputados nem o in-
sucesso no tratamento, nem o erro de diagnostico da infertilidade.
Por outro lado, um assunto que sempre está em pauta é sobre o anoni-
mato do doador de gameta (sêmen e óvulo). A Resolução do CFM34 pres-
creve a preservação do anonimato como uma obrigação do estabelecimento
que explora a reprodução assistida – obrigação esta que pode ser excepcio-
nada em “situações especiais”, sendo fornecido os dados necessários apenas
para médicos, protegendo-se a identidade civil do doador. Portanto, haveria
a responsabilidade do médico que infringe o dever de sigilo, revelando os no-
mes das partes envolvidas.35 Vale ressaltar que neste aspecto, sua obrigação
é de resultado, pois não sofre, a princípio, influência de nenhuma circuns-
tancia exterior que pudesse justificar a quebra. Entretanto, tal manutenção
do sigilo é fruto de grande divergência doutrinária, onde de um lado se ques-
tiona o direito à identidade genética e autoconhecimento de sua origem.36
Outra hipótese que vem gerando muita polêmica diz respeito ao descar-
te ou à cessão não autorizada de embriões. Como já dito, quando se opta
pela fertilização in vitro, o número de embriões saudáveis obtidos in vitro,
aptos a serem implantados no útero, são superiores aos efetivamente trans-
feridos, para se evitar uma gravidez múltipla. Os restantes criopreservados
em tanques de nitrogênio (“congelados”), poderão ser utilizados pelo casal
posteriormente, tanto para obter o êxito que não foi possível na primeira
tentativa, como para gerar um novo bebe sem ter que se sujeitar novamente
àquelas etapas já ultrapassadas.

33 LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida.


cit. p. 138.
34 Item IV, 2: “Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-
versa. 4. Será mantido, obrigatoriamente, sigilo sobre a identidade dos doadores de ga-
metas e embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, informações sobre
os doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médi-
cos, resguardando-se a identidade civil do(a) doador(a). 5. As clínicas, centros ou servi-
ços onde são feitas as doações devem manter, de forma permanente, um registro com
dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de material
celular dos doadores, de acordo com legislação vigente”.
35 LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida.
cit. p. 141.
36 Apenas para exemplificar a larga divergencia de opiniões, v. RODOTÀ, Stefano.
Diritti della persona, strumenti di controllo sociale e nuove tecnologie riprodutiv, ando
otro lado,sobre os . 120) do casamento.u o homem tenham interesse em dar continui-
dade nta e oito) horassistencia e; e PERLINGIERI, Pietro. L’inseminazione artificiale
tra principi costituzionali e riforme legislative. Além de TEPEDINO, Gustavo. A disci-
plina jurídica da filiação na perspectiva civil-constitucional. Rodotà e Tepedino trazem
argumentos a favor do anonimato, arguindo inclusive que só assim se garante que a doa-
ção de esperma seja um ato verdadeiramente desinteressado; já para Perlingieri, perso-
nalizar a doação significa combater a especulação.

376
Nos contratos celebrados com os casais que as procuram, as clínicas nor-
malmente estabelecem que os embriões excedentes permanecerão em seu
poder e guarda, à disposição do casal para uma gestação futura (“ou outra
destinação que melhor atender aos interesses dos contratantes”). A ausência
de uma previsão legal que estabeleça um prazo para esta nova transferência,
somada ao desinteresse de muitos casais em procurar novamente as clínicas
(por motivos que vão desde a falta de estrutura emocional ou financeira para
atravessar um novo período de tentativas até a separação do casal, passando
pelo simples desejo de não ter mais filhos) acabou gerando uma “superpopu-
lação” de embriões, estocados nos centros de reprodução assistida, à espera
de uma destinação.37 Deste cenário surgem alguns problemas.
A primeira opção seria o congelamento “indefinido”, mas armazenar
embriões custa caro e muitas clínicas acabam se desfazendo do excedente.
Mas não é só o descarte que preocupa as instituições, pois a perda do mate-
rial genético pode ter consequências drásticas, especialmente nos casos em
que as amostras extraviadas ou inutilizadas representavam a última esperan-
ça do doador propagar seus genes, quando uma nova coleta é impossível.38
Além do descarte e da perda, sua cessão não autorizada representa outro
ponto apto a gerar pedidos de responsabilização na esfera cível. Também é
possível a troca, por engano, de embriões ou gametas entre casais que se tra-
tam na mesma clínica (uma nova versão de troca de bebes nos berçários das
maternidades).
Nesta hipótese, o descarte e a cessão de embriões ou gametas sem auto-
rização, ou a perda dos mesmos, não pode o profissional escudar-se por trás
da álea inerente à atividade médica com o intuito de afastar sua responsabi-
lidade. A obrigação referente ao depósito deste material é de resultado.39
Outra situação pode ocorrer quando da separação de casais que são res-
ponsáveis por embriões guardados em clínicas, e a mulher ou o homem te-
nham interesse em dar continuidade à gestação, mesmo sem estar na cons-
tância do casamento.40 Nestas hipóteses, a Resolução do CFM recomenda
que no momento da criopreservação o casal expresse sua vontade, por escri-
to, quanto ao destino que será dado aos embriões congelados em caso de di-
vórcio.41 Até se for o

37 LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida.


cit. p. 115-116.
38 LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida.
cit. p. 117-118.
39 LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida.
cit. p. 139.
40 Caso dos embriões da atriz Sofia Vergara: http://www.dailymail.co.uk/news/arti-
cle-4825122/Judge-dismisses-embryo-suit-against-Sofia-Vergara.html.
41 Resolução 2.168/17, Item V.

377
O mesmo ocorre se um dos donos do material biológico venha a falecer.
Nessa discussão sobre a propriedade de material biológico (sêmen ou óvu-
los), há vários interesses em jogo, especialmente patrimoniais.42 A CFM jul-
ga que a intenção do doador (expressa por escrito, contudo) deva guiar o jul-
gamento em casos correlatos.
Os problemas mais nevrálgicos, ocorrem quando há questionamentos
sobre os bebês que nascem por meio de reprodução. Poderia responsabilizar
um médico pelo nascimento de uma criança com malformação ou proble-
mas de saúde, principalmente os de cunho hereditário?
Quando se identifica na criança, ou mesmo ainda no feto, deficiência ou
patologia congênita de origem paterna, ou seja, proveniente do sêmen forne-
cido, que poderia ter sido prevenido por exame necessário que era de res-
ponsabilidade da clínica, ou mesmo quando for o médico de seu corpo de
funcionários, responderá a própria clinica objetivamente. Assim, considera-
se o vício não em produto, mas na obrigação médica de prestação de servi-
ços.43 Seria absurdo querer aplicar a teoria do vício oculto do produto e res-
ponsabilidade do fornecedor, ou o disposto sobre vício redibitório no Códi-
go Civil. Uma visão da criança como um produto que não deve apresentar
defeitos é coisificar a vida humana, com fortes tendências eugenistas.44
Assim, só devem ser imputados aos médicos os problemas de saúde que
decorram da não observância dos cuidados esperados. Assim, há de ser res-
ponsabilizado o profissional que não realizar uma seleção dos doadores de
sêmen.45 Neste caso, responderá mediante apuração de culpa, podendo
diante da hipossuficiencia técnica da paciente inverter o ónus da prova.46
Mais conturbado é decidir acerca da pré-seleção embrionária. Segundo
Bruno Lewicki,

A pessoa humana tem uma dignidade intrínseca que impede que ela seja julga-
da com base em suas peculiaridades, atribuindo-se maior ou menos valor a de-
terminado sexo, raça, altura ou cor dos olhos. O reconhecimento desta dignida-
de impõe ainda a sua não-instrumentalização, “significando dizer que este ja-

42 Lembre-se que o nascimento de um filho gerado post mortem afastará os pais do de


cujus de sua sucessão, conforme o disposto no artigo 1.829, I, do Código Civil.
43 KONDER. Carlos Nelson. Elementos de uma interpretação constitucional dos
contratos de reprodução assistida. cit., p. 253.
44 KONDER. Carlos Nelson. Elementos de uma interpretação constitucional dos
contratos de reprodução assistida. cit., p. 252.
45 LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida.
cit. p. 144-145.
46 CDC, Art. 6º: “São direitos básicos do consumidor: VIII – a facilitação da defesa
de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo
civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossufi-
ciente, segundo as regras ordinárias de experiências”.

378
mais poderá ser considerado objeto de intervenções e experiências mas será
sempre sujeito de seu direito e de suas próprias escolhas”. A pessoa é um valor
em si mesma; não pode ser utilizada como meio de satisfação de aspirações dos
pais.47

Maria Celina Bodin de Moraes faz referencia à Primeira Convenção dos


Direitos do Homem e da Biomedicina (1997), que veda expressamente a
manipulação que possa alterar o patrimônio genético da descendência, res-
guardando a hipótese de escolha de sexo com a finalidade de evitar doença
hereditária grave.48
A recomendação de semelhança fenotípica entre doadores e beneficiá-
rios49 só vem a corroborar a função precípua da procriação humana assistida,
qual seja, a busca de um “substitutivo” para a reprodução “não-assistida” que
lhe seja o mais aproximado possível, e não uma versão “otimizada” dos mé-
todos convencionais.50
O ponto comum de todos estes problemas ocorridos no âmbito da re-
produção assistida é que podem ser resolvidos com disposições contratuais
claras e completas, prevendo todas as alternativas que podem vir a ocorrer
ao longo da relação contratual, e através do consentimento informado aos
pacientes, gestantes, doadores e demais integrantes desta relação jurídica
complexa.

3. Por uma interpretação contratual constitucional

É neste contexto civil-constitucional que deve se inserir uma análise dos


contratos de reprodução assistida. Ao ter por objeto gametas, embriões ou
fetos, assim como a saúde dos pais, tais tipos contratuais tratam de valores
como vida, integridade física, privacidade, família e dignidade humana. A
constitucionalização do direito é fundamental para a transição da bioética
para o biodireito, uma vez que a bioética é trabalha com princípios filosófi-

47 LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida.


cit. p. 148.
48 MORAES, Maria Celina Bodin de. Direito civil e constituição: tendências. In: Di-
reito, estado e sociedade, no 15, ago./dez. 1999, p. 110.
49 Resolução 2.168, Item IV: “5. As clínicas, centros ou serviços onde são feitas as
doações devem manter, de forma permanente, um registro com dados clínicos de cará-
ter geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores, de
acordo com legislação vigente. (...) 7. A escolha das doadoras de oócitos é de responsa-
bilidade do médico assistente. Dentro do possível, deverá garantir que a doadora tenha
a maior semelhança fenotípica com a receptora”.
50 LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida.
cit. p. 149.

379
cos morais.51 Por isso, deve ser previamente afastada qualquer análise redu-
tora à mera perspectiva patrimonialista, privilegiando-se uma interpretação
constitucional destes contratos.52
A vulnerabilidade inata a qualquer paciente se torna ainda mais aguda no
âmbito da reprodução assistida. Circunstancias agravantes como os efeitos
psicológicos da luta pela fertilidade e os altos custos destes tratamentos. A
soma de tais fatores confere ao casal que passa por estes tratamentos uma
“especial vulnerabilidade”. Por este motivo se sobressai de forma tão mar-
cante o núcleo de deveres extrapatrimoniais que os profissionais devem ob-
servar com relação aos seus pacientes.53
Pode se ressaltar alguns dos deveres que compõem o amplo quadro das
obrigações do médico na reprodução assistida: o dever de informação, co-
municando ao paciente os riscos do tratamento e as vantagens (no caso es-
pecifico da reprodução assistida, deve abranger ainda o fornecimento de es-
tatísticas); diligência no diagnóstico; a obtenção de consentimento; o dever
de tutelado melhor interesse do paciente.
Acrescente-se, ainda, que todos estes deveres, que se encontram pre-
sentes na relação médico-paciente e cuja violação poderá determinar a res-
ponsabilidade do profissional pelo dano causado, hão de ser interpretadas à
luz do princípio da boa-fé objetiva, princípio introduzido pelo Código de
Defesa do Consumidor e que se expressa não somente durante a execução
do contrato, mas também nas fases pré e pós-contratual.

4. Conclusão

Nesse âmbito de renovadas técnicas científicas e maleabilidade dos tipos


contratuais clássicos, novas espécies contratuais surgem urgindo por regula-
mentação jurídica. Diante da importante função que o planejamento fami-
liar exerce frente à promoção da dignidade da pessoa humana e ao direito ao
livre desenvolvimento da personalidade, com a formação de famílias nos
moldes mais diversos desejados, as possibilidades trazidas pelo avanço tec-
nológico são enriquecedoras.
A regulamentação, mesmo que de cunho deontológico, realizada pelo
CFM através da Resolução no 2.168/2017 é, no momento, a melhor direção
sobre o tema, uma vez que vem sendo atualizada a cada dois anos, buscando
incluir novas questões e anseios da sociedade. Entretanto, é necessário um

51 RODOTÀ, Stefano. Il nuovo habeas corpus: la persona constituzionalizzata e la sua


autodeterminazione. cit., p. 171.
52 KONDER. Carlos Nelson. Elementos de uma interpretação constitucional dos
contratos de reprodução assistida. cit., p. 249-250.
53 LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida.
cit. p. 128-129.

380
esforço da doutrina e da jurisprudência no sentido de construir um sistema
de apoio, orientado pela tábua axiológica constitucional, enquanto a morosi-
dade do legislativo impede a promulgação de norma jurídica formal, trazen-
do segurança jurídica e, quem sabe, respostas às diversas questões em aberto
decorrente da utilização dessas novas técnicas.

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382
O princípio da imparcialidade como garantia
do Devido Processo Legal

Gisela Vasconcelos Esposel

Resumo: Neste artigo pretende-se analisar o princípio da imparcialidade


do órgão julgador, seu real significado, apresentando a diferença entre neu-
tralidade e imparcialidade. Para tanto, é imprescindível a análise do Princí-
pio do Devido Processo Legal, do direito de punir do Estado e a necessidade
do processo penal para a concretização deste fim. Em seguida, será feita uma
abordagem sobre o que seria um processo justo, efetivo, resultado lógico e
coerente de um processo penal democrático. Ao final, o artigo tratará sobre
o princípio da imparcialidade, diferenciando-o da neutralidade, permeando
a discussão em torno da possibilidade da determinação da produção de pro-
vas pelo magistrado.

Palavras-Chave: Devido Processo Legal. Processo Penal Democrático.


Processo Justo. Imparcialidade.

Abstract: This article attempts to analyze the principle of impartiality


of the judge, its real meaning, showing the difference between neutrality
and impartiality. Therefore, it is essential to analyze the Principle of Due
Process of Law. of the right to punish of the State and the need of criminal
procedure to implement this order. Next, it will raise a discussion of what
would be a fair, effective, coherent and logical outcome of a democratic
criminal procedure. In the end, the article talks about the principle of im-
partiality, differentiating it from neutrality, permeating the discussion
around the possibility of determining the production of evidence by the
judge.

Keywords: Due Process of Law. Democratic Criminal Procedure. Fair


Process. Impartiality.

Introdução

O artigo 5º, inciso LIV, da Constituição da República Federativa do Bra-


sil, dispõe que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o

383
devido processo legal”, sendo pela primeira vez positivado na ordem jurídi-
co-constitucional brasileira. A origem do postulado remonta à Magna Carta
inglesa de 1215 no artigo 39,1) imposta pelos barões feudais ao Rei João
Sem Terra.
É curiosa a informação de que a redação original foi escrita em latim tor-
nando-se inacessível o seu conhecimento por todos.1 A famosa cláusula 39
afirmava que” Nenhum homem livre será detido ou preso, nem privado de
seus bens, banido ou exilado ou, de algum modo, prejudicado, nem agire-
mos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízo legal de seus
pares ou segundo a lei da terra.”2
Verifica-se, portanto a expressão Law of the land (lei da terra) e não a
consagrada due process of Law, essa somente utilizada em 1354. Destarte,
sempre se entendeu que as expressões eram sinônimas e, por fim, o due pro-
cess of law passou ao direito norte-americano, incorporado em sua Consti-
tuição, na 5ª (1791) e 14ª (1868) emendas3 sendo essas disposições pratica-
mente reproduzidas em nossa Constituição Brasileira.
Ressalte-se que, a análise de tal princípio será feita à luz do processo pe-
nal, funcionando como garantia de um processo penal democrático, efetivo
e justo. Assim, no seu aspecto processual significa dizer que o processo penal
deve resultar em oportunidades iguais às partes, com possibilidade de ampla
defesa, observância do contraditório, juiz natural, imparcial, presunção de
inocência, fundamentação das decisões. Enfim, é uma garantia do indivíduo,
um direito fundamental4. Segundo o Ilustre Professor Barbosa Moreira, esse
princípio funciona como norma de encerramento5, se por ventura os demais
princípios não forem suficientes para resguardar determinada garantia pro-
cessual não prevista de modo expresso na lei.

1 Beccaria, a seu tempo, já apontava com acerto o problema da obscuridade das leis
“se a interpretação da lei é um mal, a obscuridade, que a interpretação necessariamente
acarreta, é também um mal. E esse mal será maior se as leis forem escritas em língua
estrangeira”. De fato, o latim era uma língua estrangeira ao povo. Beccaria, Cesare. Dos
Delitos e das Penas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p.28. Tradução de J. Cre-
tella Jr. E Agnes Cretella
2 COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação histórica dos direitos humanos. São
Paulo : Saraiva, 1999, p.70.
3 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo Penal e Constitui-
ção. Princípios Constitucionais do Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009,
p.140.
4 Um Estado de Direito é hoje um Estado de Direitos Fundamentais onde se reco-
nhece aos cidadãos a defesa de sua autonomia pessoal, invocando direitos políticos fun-
damentais contra as leis e outros atos do poder público. CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ed. Coimbra (PT): Editora
Almedina, 1998, p.449.)
5 MOREIRA, Barbosa. Aspectos Processuais Civis na nova constituição. Revista da
Defensoria Pública, ano II, nº 4, mai/jun/jul/ago/ 2011, p.102.

384
Para isso, faz-se necessário uma rápida digressão sobre o direito de punir
do Estado e o processo penal como instrumento necessário para imposição
de pena, sempre com a seguinte premissa: se é correto afirmar que o direito
de punir pertence ao Estado torna-se imperiosa a observação das garantias
fixadas pela Lei Maior, evitando-se qualquer arbítrio estatal.

O direito de punir do Estado e o processo penal como instrumento neces-


sário para imposição da pena.

A convivência em sociedade nem sempre é harmoniosa, havendo confli-


tos que devem ser solucionados para a necessária coexistência pacífica dos
indivíduos. Surge assim o Direito com a função primordial de manter a paz
social, restabelecer a vida em sociedade, evitando que determinados bens
venham a ser desrespeitados.
Abolida a persecução particular penal, surge para o Estado o poder-de-
ver de punir sempre que o possível infrator praticar uma conduta delituosa
ofensiva ao bem jurídico tutelado. Como bem observa Rogério Lauria Tucci6
a infração penal além, de violar um bem jurídico tutelado por uma legislação
específica, afeta a harmonia da convivência em comunidade e por isso, in-
cumbe ao Estado restaurar a ordem jurídica atingida restabelecendo a paz
social.
Inicialmente, gostaríamos de fazer algumas considerações gerais acerca
de bem jurídico penal, para posteriormente nos lançarmos na tarefa, não
menos complexa de proceder à análise do processo penal como instrumento
para imposição de uma penal, sob o prisma do devido processo legal.

Na verdade bem é a palavra tradicional para indicar o que, na linguagem moder-


na, se chama valor. Um bem é um livro, um cavalo, um alimento, qualquer
coisa que se possa vender ou comprar;um bem também é beleza, dignidade ou
virtude humana, bem como a ação virtuosa, um comportamento aprovável.7

Quanto ao aspecto penal, a proteção dos bens não poderá ser de forma
aleatória. Serão tutelados apenas bens jurídicos fundamentais, em decorrên-
cia do caráter fragmentário8 do Direito Penal. Assim, o legislador ficará ads-

6 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasilei-


ro. São Paulo : Revista dos tribunais, 2011, p.29.
7 Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.
107.
8 Segundo o autor Luciano Feldens “Como sustentáculo do raciocínio aqui desenvol-
vido, desponta essa nota que bem caracteriza – ou bem deveria caracterizar – o Direito
Penal contemporâneo, respeitante ao seu caráter assumidamente fragmentário, a trans-
mitir a ideia de que, em face dos diversos valores cultuados em determinada sociedade,
preocupar-se-á o Direito Penal em positivar aqueles (bens jurídicos) que realmente me-

385
trito a tipificar somente as condutas mais graves que lesionem ou coloquem
em perigo os bens considerados mais importantes, limitando o poder puni-
tivo estatal.
O Ilustre Professor Luiz Regis Prado considera como bens suscetíveis de
proteção penal os direitos constitucionais do cidadão, os valores objetiva-
mente tutelados e outros que se insiram no contexto de garantia do Estado
Democrático de Direito. Afirma o autor que9 “a conceituação material do
bem jurídico deve implicar no reconhecimento de que o legislador eleva à
categoria de bem jurídico o que já na realidade social se apresenta como um
valor.”
O legislador ordinário em hipótese alguma irá dispor de uma liberdade
irrestrita. Existem balizas que devem ser asseguradas para que não se vulne-
re direitos humanos e os postulados de garantia. Nota-se que o que se pre-
tende é limitar o arbítrio estatal. Assim nasce o processo penal10. Ou seja,
violado o bem jurídico tutelado o Estado irá intervir sancionando o indivíduo
infrator aplicando-lhe uma pena, para cumprir sua função social de resta-
belecer o bem comum. E essa pena somente será aplicada mediante o pro-
cesso.
Inicialmente, torna-se importante lembrar que o processo deixa de ser
apenas um instrumento de concretização do direito material, mas sobretudo
um instrumento para garantia da realização da justiça e efetivação dos direi-
tos, que, segundo Jorge Miranda11, são aspectos basilares de um Estado De-
mocrático de Direito.

reçam especial proteção, salvaguardando-os frente a determinados ataques, teorica-


mente os mais graves, que lhes venham a ser praticados.” In FELDENS, Luciano. Tutela
Penal de Interesses Difusos e Crimes do Colarinho Branco. Porto Alegre, 2002, p. 41.
9 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e Constituição. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1997, p. 76.
10 Segundo Aury Lopes Júnior “o Estado, como ente jurídico e político, chama para si
o direito e também o dever de proteger a comunidade e inclusive o próprio delinquente
(...) ao suprimir a vingança privada e avocar o poder de punir, nasce o processo penal
como caminho necessário para que o Estado legitimamente imponha uma pena. JÚ-
NIOR, Aury Lopes, Direito processual penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 66.
11 A caracterização do Estado de Direito, ou seus postulados básicos, que podem va-
riar, em alguma medida, nos vários sistemas jurídicos, deve, não obstante, guardar um
núcleo mínimo existencial que, ante a Constituição Brasileira consiste: na garantia do
princípio da legalidade e no da igualdade, como básicos do sistema; na definição rigorosa
e na garantia efetiva dos direitos essenciais da pessoa; na limitação do poder, não apenas
pelos direitos fundamentais, mas também pela existência de órgãos de governo inde-
pendentes, harmônicos e coordenados entre si e responsáveis por sua atuação; na des-
centralização do poder; na garantia da função jurisdicional independente e do exercício
da jurisdição constitucional, seja por intermédio do controle de constitucionalidade efi-
caz e efetivo dos atos estatais, seja pelo exercício da jurisdição constitucional das liber-
dades. (MIRANDA, 1998, apud CUNHA FERRAZ, 2006, p. 135-136).

386
A essência do Direito Penal está na aplicação da pena e o processo penal
irá possibilitar tal aplicação, eis a sua instrumentalidade, meio para consecu-
ção de um fim. É impossível impor uma pena sem que exista um processo
judicial, isto porque o direito penal não possui realidade concreta fora do
processo, mesmo no caso de consentimento do acusado.12 Diferente, por-
tanto, do processo civil, sendo desnecessária a sua aplicação para que pre-
tensões possam ser satisfeitas no seu dia a dia.
Tucci13esclarece que não há como ser imposta a sanção penal prevista
em lei, de forma direita e imediata. A efetivação desta sanção reclama a
existência de um processo, confrontando o ius puniendi do Estado com o
ius libertatis do indivíduo.Ou seja, a concreta punição deve resultar de um
pronunciamento judicial em” processo timbrado pelo due process of Law.
Nesse contexto, não há como admitirmos um processo penal democrá-
tico sem a observância dos princípios constitucionais, tais como Devido Pro-
cesso Legal, Presunção de Inocência (Não Culpabilidade), Imparcialidade,
Ampla Defesa e Contraditório, Duração Razoável do Processo etc. O pro-
cesso penal deverá se aplicado à luz da Constituição14.
A ideia é a de que o Estado detém legitimamente o monopólio da força
para organizar a sociedade, retirando desta o exercício arbitrário pelas pró-
prias razões, salvo em casos excepcionais e, assim, o processo penal é con-
cebido como freio, limite ao exercício do poder de punir. O réu, a priori,
deve ser considerado inocente; cabe ao acusador, portanto, por meio de
provas que produzirá em processo público, convencer o juiz de que o réu
é culpado.
Desse modo, o processo penal é repaginado para, a partir do Princípio do
Devido Processo legal, assegurar a proteção dos direitos fundamentais da

12 Leciona Aury Lopes Júnior que “frente à violação de um bem juridicamente prote-
gido, não cabe outra atividade que não a invocação da devida tutela jurisdicional. Im-
põe-se a necessária utilização da estrutura preestabelecida pelo Estado – o processo
judicial – em que, mediante a atuação de um terceiro imparcial, cuja designação não
corresponde à vontade das partes e resulta da imposição da estrutura institucional, será
apurada a existência do delito e sancionado o autor. O processo, como instituição esta-
tal, é a única estrutura que se reconhece como legítima para a imposição da pena.”
Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista).
Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 3.
13 TUCCI, op., cit. p.32.
14 “Com efeito, esse processo democrático precisa garantir a isonomia, publicidade,
ampla defesa e contraditório, princípios fundamentais sem os quais a sua deslegitimida-
de aflora e macula a decisão. No decorrer do processo os direitos fundamentais serão
invocados e debatidos argumentativamente (discurso proposicional e não autoritário).
O processo é quem mediará, pelo discurso, a decisão, não mais solitária do juiz, mas
co-produzida democraticamente.” Rosa; Silveira Filho. Para um processo penal demo-
crático. Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009, p. 86-87.

387
pessoa acusada. Sendo, verdadeiramente um processo justo. O grande desa-
fio contemporâneo é possibilitar o efetivo acesso à justiça, um processo jus-
to. No entanto, o que vem a ser um processo justo? Ou efetividade é sinôni-
mo de rapidez? E ainda, processo justo é sinônimo de decisão justa? Essas
reflexões serão analisadas no tópico a seguir.

Processo justo como resultado inevitável da aplicação do Princípio do De-


vido Processo Legal

Há uma preocupação dos autores modernos em apresentar parâmetros


mais concretos para definir o que seria processo justo. Os conceitos embrio-
nários, teóricos são insuficientes para propiciar um processo efetivamente
justo. É preciso aprofundar mais as garantias, torná-las mais visíveis. Confor-
me Paulo José Freire Teotônio15 com o passar do tempo a mera garantia do
acesso à justiça tornou-se insuficiente para a pacificação social, sendo neces-
sária à efetividade da justiça e, para tanto, segundo o autor, somente será
possível com a implementação dos princípios constitucionais.
Na mesma linha de pensamento, Humberto Dalla16 em sua obra afirma
que a jurisdição, com o passar do tempo, tem se mostrado ineficaz pelos
mais variados motivos e unindo-se ao fato da crescente modificação da so-
ciedade, enseja uma busca por novos instrumentos jurisdicionais. Concluin-
do, ao final, que um dos temas mais importantes nos dias atuais é o acesso à
justiça.
Ampliando essa ótica, Cândido Rangel Dinamarco17 após tecer con-
siderações sobre o tema, ressalta que acesso à justiça não equivale a um
mero ingresso em juízo, mas sobretudo deve-se assegurar que as pretensões
cheguem efetivamente a um julgamento de fundo, sob pena de a própria ga-
rantia constitucional da ação ser inoperante. Segundo o autor, o posiciona-
mento moderno gira em torno da ideia de processo civil de resultados. As-
sim, o que importa é o resultado que o processo produz na vida das pessoas
ou grupos e, para tanto, só terá acesso à ordem jurídica justa quem recebe
justiça.

15 TEOTÔNIO, Paulo José Freire.... et al. O Devido Processo Legal e seus novos
paradigmas.In: As novas fronteiras do direito processual. São Paulo: RCS Editora, 2007,
p. 503.
16 PINHO, Humberto Dalla Bernardina. Direito Processual Civil Contemporâneo
vol.1. São Paulo: Saraiva, 2012, p.51.
17 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil I. São Pau-
lo: Malheiros, 2009, p.118.

388
Ocorre que conforme leciona o Professor Rogério José Bento Soares do
Nascimento18 é preciso ter a atenção”ao conceito de justo visto como uma
possibilidade de ponto de irradiação a partir do qual os compromissos do Es-
tado Democrático de Direito ganham sentido e substância.”
O processo justo se forma a partir da observância das garantias funda-
mentais do processo e essas são resultado da soma das garantias individuais
mais garantias estruturais.19 Cabe-nos ressaltar que a própria Constituição
da República em seu artigo 5º, inciso XXXV consagra expressamente o Prin-
cípio da Inafastabilidade do Poder Judiciário ou do Acesso à Justiça.
A leitura que se faz de tal princípio deve ser a mesma que acompanha
os avanços da sociedade, suas transformações e respectivos anseios. Não
nos interessa mais a simples possibilidade de ajuizar uma demanda que re-
sulte em uma sentença em um processo muitas vezes longo, dispendioso,
enfim sem qualquer compromisso com o real significado do acesso à jus-
tiça.20
Para alcançar esse desiderato, o Professor Paulo Cezar Pinheiro Carnei-
ro21 em brilhante obra, considerou fundamental a existência de certos prin-
cípios que informariam o real significado da expressão acesso à justiça: aces-
sibilidade, operosidade, utilidade e proporcionalidade.
A acessibilidade deve ser entendida como a existência de pessoas capa-
zes de estar em juízo, sem qualquer óbice de natureza financeira, efetivan-
do-se os direitos individuais e coletivos. Operosidade pressupõe a atuação
produtiva de todos os que participam da atividade judicial. Nesse aspecto,
de suma importância a figura do juiz. O ideal de jurisdição hoje não é mais
um modelo sentenciador que tão somente respeita a vontade da lei.

18 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Lealdade Processual: Elemento da


Garantia de Ampla Defesa em um Processo Penal Democrático. Ed. Lumen Juris. 2011,
p.107.
19 COMOGLIO, LUIGI PAOLO é citado pelo Professor Leonardo Greco em seu
artigo Garantias Fundamentais do Processo:O Processo Justo. Nesse ele apresenta as
garantias individuais (acesso amplo, imparcialidade do juiz, ampla defesa, inércia, con-
traditório, coisa julgada) e as garantias estruturais (isonomia, motivação das decisões,
efetividade, publicidade e duração razoável).
20 Conforme leciona Paulo Cezar Pinheiro Carneiro “no lugar de um processo acessí-
vel a poucos, demorado, preocupado tão somente com a segurança e a técnica em detri-
mento dos seus fins, que resultasse numa sentença e somente nela, independente do seu
conteúdo de justiça ou não, exigia-se como inevitável um outro tipo de processo que
funcionasse para todos, da forma mais rápida possível, igualitário e equânime e que
resultasse em uma sentença eticamente justa, com a utilização dos instrumentos técni-
cos que seriam direcionados para essas finalidades.” (Pinheiro Carneiro, Paulo Cezar.
Acesso à Justiça. Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Editora Forense, 1999.
p. 42.)
21 Op. cit., p. 54.

389
No modelo ideal de jurisdição de Mauro Capeletti22 o juiz, hoje, tem
que administrar a justiça em três etapas: conhecer bem o problema; elaborar
a sua solução para o problema; pensar no impacto da sua decisão.
Quanto à utilidade, essa significa que deve ser imprescindível que o ven-
cedor receba de forma proveitosa e rápida o seu direito, com menor sacrifí-
cio para o vencido.
No entanto, não podemos confundir conceitos jurídicos. Em relação à
celeridade, não é correta a afirmativa difundida por muitos (muitas vezes
pela imprensa) de que justiça rápida é sinônimo de processo efetivo, justo.23
Por fim, o aludido autor apresenta como quarto princípio a proporcionalida-
de levando a opção do julgador a escolha do interesse preponderante.
De qualquer sorte, o processo somente será justo se respeitar o devido
processo legal24. No Brasil, significa atender as garantias do acusado, para
que o mesmo seja processado pelo Estado por meio de um juiz natural, im-
parcial, com observância do contraditório participativo25, com decisões mo-
tivadas, com ampla defesa assegurada, por meio de um procedimento razoá-
vel de duração.
Importantíssimo, portanto, o estudo do processo penal. Em uma socie-
dade de massa, complexa como a atual, os meios de comunicação tentam ao
máximo afirmar que a criminalidade é o problema crucial da modernidade,
devendo ser controlada com penas mais severas, restringindo-se os direitos
dos acusados26 e, assim, ilude a sociedade com discursos repressores.
A violência sempre existiu e existe, é elemento intrínseco ao fato social.
O que devemos tentar é mantê-la dentro de um limite de suportabilidade.

22 Mauro Capeletti e Bryant Garth. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie


Northfleet. Editora Sergio Antonio Febris Editor.
23 Segundo José Carlos Barbosa Moreira se uma justiça lenta demais é decerto uma
justiça má, daí não se segue que uma justiça muito rápida seja necessariamente uma
justiça boa. O que todos devemos querer é que a prestação jurisdicional venha a ser
melhor do que é. Se para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito bem: não, contudo,
a qualquer preço. Temas de Direito Processual. Oitava Série. Ed. Saraiva, 2004. p. 5.
24 Conforme nos ensina Rogério Bento “processo devido é processo legítimo. Proces-
so legítimo é processo equitativo, tal como foi proclamado na Convenção Europeia de
Direitos Humanos, processo justo. E processo justo, na linha do que aqui vem sendo
sustentado, é processo democrático, tomando-se democrático no sentido deliberativo,
ou seja, processo que assegura participação influente dos envolvidos no caso penal, na
sequência procedimental dirigida para a resolução jurisdicional da acusação. op.cit.,
214.
25 Nas lições de Leonardo Grego “o contraditório participativo pressupõe que todos
os contra-interessados tenham o direito de intervir no processo e exercer amplamente
as prerrogativas inerentes ao direito de defesa e que preservem o direito de discutir os
efeitos da sentença que tenha sido produzida sem a sua plena participação.”
26 Afirma Maria Lúcia Karam que “tais campanhas manipulam emoções, selecionando
e propagando alguns crimes mais cruéis, para, assim, produzir e generalizar uma indig-
nação moral contra os que são identificados como criminosos.” (KARAM, Maria Lucia.
De crimes, penas e fantasias, p. 189.)

390
Garantir ao acusado um processo penal democrático não é sinônimo de im-
punidade. Existe sim, a possibilidade de se punir garantindo. É perfeitamen-
te possível a existência de um processo penal com estrita observância do
Princípio do Devido Processo Legal.

Princípio da Imparcialidade X Neutralidade

Por fim, após necessárias considerações acima expostas, trataremos des-


te instigante tema conhecido não somente por estudiosos do direito, mas
também por toda a sociedade que muitas vezes ao clamar por justiça afirma
o popular ditado: “A justiça é Cega.” E dessa afirmação está por trás o anseio
de ser julgado por um juiz imparcial, que não esteja envolvido no conflito,
nem com qualquer das partes.
É tema de suma importância e atual. Só para confirmar tal afirmação, foi
noticiada por inúmeras vezes a parcialidade do Ministro Dias Toffoli no jul-
gamento do mensalão.
A imparcialidade é inerente à função jurisdicional,27 pressuposto de va-
lidade do processo, ou seja, para que o processo tramite regularmente o juiz
deve ser imparcial, sob pena de afetar a relação processual. A própria Cons-
tituição da República prevê normas para assegurar a imparcialidade do órgão
julgador. (art. 5º, inc. XXXVII; art. 95, caput e parágrafo único).
Mas o que vem a ser imparcialidade? A imparcialidade é sinônimo de
neutralidade? Exige-se que o juiz seja imparcial e neutro? Ao determinar a
produção de prova estaria o juiz afetando a sua imparcialidade? A legitimi-
dade de sua atuação? O presente trabalho objetiva refletir sobre tais indaga-
ções, sem a presunção de trazer respostas fechadas, finais e corretas. Mas
precipuamente aguçar o espírito e a mente, que não raras as vezes andam
adormecidos.
Seja como for, a imparcialidade é como já afirmado um requisito de va-
lidade processual, inserido no devido processo legal, como uma conquista do
processo penal democrático. O código de processo penal estabelece normas
relativas à suspeição e impedimento do magistrado. As hipóteses de suspei-
ção estão tratadas no artigo 254 do CPP e as de impedimento no artigo 252
e 253 do mesmo diploma legal.
Segundo Pacelli de Oliveira28, em ambas as hipóteses coloca-se em risco
o devido processo legal, pois o que se está em jogo é a imparcialidade do jul-

27 ZAFFARONI afirma não existir jurisdição sem imparcialidade “não se trata de que
a jurisdição possa ou não ser imparcial e se não o for não cumpra eficazmente sua fun-
ção, mas que, sem imparcialidade, não há jurisdição.” Poder Judiciário: crise, acertos e
desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p.86.
28 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo : Atlas,
2012. p. 291.

391
gador permitindo-se às partes o afastamento do magistrado. Para o autor os
casos de impedimento dizem respeito a fatos e/ou circunstâncias ligados ao
próprio processo submetido inicialmente à jurisdição do juiz. Já as hipóteses
de suspeição referem-se a situações de realidade externa ao processo levado
ao conhecimento do juiz. E por fim, as incompatibilidades previstas no arti-
go 112 do CPP compreendem as situações que não estejam arroladas nas hi-
póteses anteriores (suspeição e impedimento) que possam interferir na im-
parcialidade do julgador.
Não há como se falar em justiça sem garantir um julgamento imparcial.
E o Estado que detém o monopólio do direito de punir deve perseguir sem-
pre a imparcialidade, principalmente no campo do processo penal em que o
bem jurídico tutelado é a liberdade do indivíduo. Não se pode esquecer que
vivemos sob a égide de um Estado Democrático de Direito e o juiz tem uma
função essencial de garantidor dos direitos fundamentais.29

Considerações finais

Nessa linha, para que se reconheça um sistema como democrático e, es-


pecificamente como uma democracia constitucional, não basta a noção for-
mal, do senso comum, como poder do povo de assumir diretamente, ou
através de representantes, as decisões políticas. Mas há que se ter uma di-
mensão substancial, preocupada com o conteúdo, impondo proibições e
obrigações.30 E a imparcialidade está, sem dúvida, presente em uma demo-
cracia constitucional.
Mas será que ser imparcial significa ser neutro? Definitivamente, não.
Não existe mais espaço para o juiz expectador, estático, inerte, neutro. Esse
não é o ideal de processo efetivo e justo. Para que isso ocorra o juiz deve ter
um comportamento mais atuante no processo e, em hipótese alguma essa
atitude proativa irá afrontar a sua imparcialidade.
Na mesma linha de pensamento, pode-se concluir que não será a deter-
minação da prova feita pelo magistrado que irá também afetar a sua impar-
cialidade, até porque não se pode afirmar que tal resultado será mais ou me-
nos justo. O problema não está na determinação da prova, mas na sua valo-
ração, na exigência do contraditório, no tratamento igualitário das partes. A

29 JÚNIOR, Aury Lopes. A instrumentalidade garantista do processo penal. “o funda-


mento da legitimidade da jurisdição e da independência do Poder Judiciário está no
reconhecimento da sua função de garantidor dos direitos fundamentais. Nesse contex-
to, a função do juiz é atuar como garantidor dos direitos do acusado no processo penal.
30 Essa é a conclusão de Luigi Ferrrajoli em Poteri Selvaggi: La crisi della democrazia
italiana. Roma – Bari, Editori Laterza, 2011, p. apresentando garantias constitucionais
primárias e secundárias. As primárias estariam divididas em negativas (direitos que não
devem ser prejudicados por outrem – vida, liberdade, propriedade) e positivas (direitos
que devem ser atendidos – educação, saúde, direitos sociais).

392
raiz do problema não está na atividade probatória exercida pelo juiz. Como
se os juízes fossem perseguidores de inocentes, cruéis, inquisidores, queren-
do a qualquer custo “arranjar” provas para que possam enfim prolatar uma
sentença condenatória.
A propósito, o Professor Rogério Bento31 ressalta que o monopólio do
interesse público não pertence ao Ministério Público, sendo o juiz também
defensor da ordem jurídica justa, do regime democrático e dos direitos in-
disponíveis. Acrescenta o autor que ao presidir e interferir na atividade de
instrução o juiz estará zelando pelo devido processo. Ao determinar a pro-
dução de prova para dirimir dúvida sobre ponto relevante já trazido no pro-
cesso pelas partes, o magistrado não contamina sua atuação, até porque ele
não estará dispensado de fundamentar sua decisão.
A Constituição da República consagra expressamente o Princípio da mo-
tivação das decisões judiciais na norma do artigo 93, inciso IX. Assim, as de-
cisões devem ser devidamente fundamentadas e o juiz atenderá ao princípio
do contraditório, dando ciência às partes da produção da prova, atendendo
por fim, ao princípio democrático e ao modelo acusatório.

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31 Op. cit., p.206-210.

393
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Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

394
A cooperação dolosamente distinta e sua
aplicabilidade no delito de latrocínio

Fabio Asty Dantas

Resumo: Visa o presente trabalho traçar breves reflexões acerca do ins-


tituto da cooperação dolosamente distinta prevista no art. 29, § 2º, do Có-
digo Penal brasileiro. Para tanto, far-se-á uma análise quanto aos requisitos
para a configuração do concurso de pessoas e os reflexos da aplicação da lei
no tratamento penal da codelinquência.
A partir de tais considerações, pretende o artigo discorrer quanto à rele-
vância do tema para além do debate teórico e da hipótese abstrata da lei,
para tanto propondo um estudo de caso e fornecendo sua solução à luz da
mitigação da teoria monista.

Palavras-Chave: Direito Penal. Teoria Monista. Concurso de Pessoas.


Dolo.

Abstract: The purpose of this paper is to draw up brief reflections on


the institute of “different perpetrators’ intents” provided for in art. 29,
paragraph 2, of the Brazilian Penal Code. To do so, an analysis will be made
of the requirements for the configuration of the people contest and the im-
plications of the application of the law in the criminal treatment of codelin-
quency.
Based on these considerations, the article intends to discuss the rele-
vance of the topic beyond the theoretic discussion and the abstract hy-
pothesis of the law, for both proposing a case study and providing its solu-
tions based on the mitigation of the monistic theory.

Keywords: Criminal Law. Monist Theory. Criminal Conspiracy. Crimi-


nal Intent.

395
Concurso de Pessoas.

O concurso de pessoas1 pode ser definido como a circunstância de que


se reveste a prática de um crime, na qual se vislumbra um ajuste prévio de
vontades no sentido da realização da conduta proibida.
Obviamente, quando se fala em crime praticado em concurso de agen-
tes, a primeira noção extraída é a da pluralidade de atores, cada qual volun-
tariamente responsável pela violação do comando legal proibitivo mediante
uma postura que se mostre relevante para o êxito da empreitada antijurí-
dica.
Via de regra, os delitos tipificados no Código Penal e nas leis penais es-
peciais constituem o que a doutrina classifica como crimes unissubjetivos,
isto é, delitos cujas descrições típicas “referem-se a fatos realizáveis por uma
única pessoa”2.
O crime de homicídio, p. ex., é tipificado como a conduta de “matar al-
guém”, nos termos do art. 121, “caput”, do CP. Não é difícil perceber que
o delito em comento pode ser praticado apenas por uma pessoa que tenha
por objetivo ceifar a vida alheia, o que, no entanto, não afasta a possibilidade
de que outra ou mesmo outras pessoas também almejem a morte da vítima
e, assim, se articulem de modo a alcançar este desiderato.
É neste último caso que ocorre o concurso eventual de pessoas3, situa-
ção que recebe a tutela dos arts. 29 a 31 do CP:

1 O concurso de pessoas também é chamado de “concursus delinquentium”, concur-


so de agentes, codelinquência etc. Vale a ressalva de que, embora largamente utilizado
na doutrina e mesmo aqui neste artigo, a expressão “concurso de agentes” é vista com
reservas por alguns doutrinadores, como René Ariel Dotti, que enxergam nela uma ma-
neira de extrapolação do instituto, vindo a abranger também agentes físicos que, pela
sua capacidade de alteração do mundo exterior, poderiam ser englobados pela regra do
art. 29 do CP. O entendimento carece de razoabilidade, mormente porque a ideia de
concurso de agentes se refere, por óbvio, ao concurso volitivo de agentes, o que pressu-
põe o ser humano capaz como parte integrante do concurso de agentes. Ademais, o
crime, na sua mais básica definição, se resume como um fato humano, do que também
se constata ser essencial a presença humana para a sua ocorrência. Em todo caso, fica
consignado que a malograda reforma penal de 1969 substituiu a previsão do Código de
1940, que usava o nome de “co-autoria” em seu Título IV (arts. 25 a 27), vindo a regis-
trá-la como concurso de agentes. Posteriormente, e já por ocasião da reforma de 1984,
optou-se pela fórmula concurso de pessoas, de forma a evitar polêmicas e afastar qual-
quer possibilidade de má compreensão do instituto da codelinquência.
2 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, v. 1, 17.
ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 546.
3 Na hipótese de crimes plurissubjetivos, ou seja, crimes cuja descrição típica prevê
a existência de mais de um agente delitivo, há o concurso necessário de pessoas, como
nos clássicos exemplos dos delitos de rixa e de bigamia (arts. 137 e 235 do CP, respec-
tivamente).

396
Art. 29 – Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a
este cominadas, na medida de sua culpabilidade. (Redação dada pela Lei nº
7.209, de 11.7.1984)

§ 1º – Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída


de um sexto a um terço. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

§ 2º – Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-


á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de
ter sido previsível o resultado mais grave. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)

Circunstâncias incomunicáveis

Art. 30 – Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal,


salvo quando elementares do crime. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)

Casos de impunibilidade

Art. 31 – O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição


expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser
tentado. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

O entendimento correto acerca do concurso de pessoas possui impor-


tância fundamental para o estudioso do Direito Penal, mormente porque se
trate de questão corriqueira na seara jurídico-penal e, também, porque nem
todos os agentes consorciados colaboram de maneira idêntica para o resulta-
do final do injusto, o que demanda um tratamento de acordo com a intenção
de cada agente.
Neste sentido, é imprescindível compreender as teorias que debatem
acerca da repercussão jurídica do concurso de pessoas e identificar a teoria
adotada pelo legislador pátrio quanto ao tema da criminalidade coletiva.
Há basicamente três teorias a respeito do assunto: a pluralista, a dualista
e a monista.
Segundo a teoria pluralista (ou pluralística), “a cada participante corres-
ponde uma conduta própria, um elemento psicológico próprio e um resulta-
do igualmente particular. À pluralidade de agentes corresponde a pluralida-
de de crimes. Existem tantos crimes quantos forem os participantes do fato
delituoso”4.
Portanto, a teoria pluralista preconiza que a pluralidade de agentes cor-
responde a uma pluralidade de ações distintas que deverão ocasionar uma
pluralidade de delitos. Cada agente contribui com uma conduta própria,

4 BITENCOURT, Ibid., p. 550.

397
com um elemento subjetivo em particular, do que se extrai a ideia de que a
tantos quantos forem os participantes do fato delituoso, a tantos quantos re-
sultarão os crimes incidentes, devendo cada agente envolvido responder por
um crime próprio, autônomo em relação aos demais.
A falha apontada para esta teoria se atém ao fato de que a conduta de
cada agente não é autônoma, mas converge com as demais para um resultado
único e comum, qual seja o crime pretendido.
É o caso do delito de furto de veículo praticado por três agentes em con-
curso. Na hipótese fática, um dos agentes posicionou-se numa esquina, de
modo a verificar eventual presença de transeuntes ou mesmo da polícia, o
segundo arrombou a porta do veículo com a utilização de uma chave micha,
ao passo que o terceiro incumbiu-se de efetuar uma ligação direta no auto-
móvel, vindo os três a empreender fuga no próprio veículo furtado.
No exemplo ilustrado, houve a prática de um único crime de furto qua-
lificado, e não de três delitos autônomos, o que seria, por sinal, incompreen-
sível diante da evidência de que apenas um carro foi levado pelo trio. A in-
tervenção de três agentes na execução do delito não desvirtua o caráter úni-
co do bem jurídico violado, o que nos leva a concluir que o resultado produ-
zido também é um só.
Já a teoria dualista (também chamada de dualística) sustenta que as con-
dutas penalmente relevantes, quando praticadas em concurso, acarretam
dois crimes: um em relação aos autores5, e outro em relação aos partícipes6.
No exemplo citado, o partícipe seria identificado como o agente que se
postou à espreita a fim de dar aos seus cúmplices a tranquilidade necessária
para os atos de execução do delito, ao passo que aos outros participantes
dar-se-ia o nome de autores (no caso, coautores), responsáveis pela conduta
nuclear do tipo.
A problemática persiste, porquanto o crime continua a ser único e refe-
rente a uma só “res furtiva”. A teoria dualista, embora acerte ao contrapor
as figuras do autor e do partícipe, não resolve a questão da unicidade do de-
lito.
Mesmo não sendo a teoria adotada no Brasil, percebe-se que o art. 29 do
CP contém laivos da teoria dualista, especialmente na parte final de seu “ca-
put” e no § 2º, que impõem a verificação do elemento subjetivo do crime
(dolo ou culpa) e do grau de censura da conduta em relação a cada um dos
agentes delitivos.
Por fim, a teoria monista (ou unitária), segundo a qual o crime, ainda
que praticado em colaboração por várias pessoas, é único. Todo aquele que

5 Definidos como os agentes que realizam o verbo do tipo penal, isto é, a atividade
principal ou a conduta típica propriamente dita.
6 Entendidos como os agentes que exercem uma atividade secundária (acessória) em
relação ao crime definido pelo tipo penal.

398
concorre para o crime, responde integralmente por ele, que é o resultado da
conduta de cada agente.
A teoria monista não estabelece distinção entre os atores da conduta ilí-
cita, como autor, partícipe, instigador, cúmplice etc. Todos são considera-
dos autores ou coautores do crime.
O Código Penal de 1890 previa a diferenciação genérica entre os parti-
cipantes do crime, conforme definição de seu art. 177, enquanto os arts. 18
e 21 continham a previsão específica para autores8 e cúmplices9, respectiva-
mente.
Já o legislador de 1940, abraçando a teoria da equivalência das condi-
ções10, inseriu no art. 25 que “quem, de qualquer modo, concorre para o cri-
me incide nas penas a este cominadas”. A conclusão é a de o ordenamento
jurídico abandonou a orientação anterior (que separava as figuras de autor e
cúmplice) para firmar o entendimento de que toda a pessoa que contribuiu
para a prática criminosa acaba sendo responsável pelo delito em sua totali-
dade.
Aplicando a chamada teoria extensiva, o texto original do Código de
1940 estabeleceu que todos os participantes do crime são autores dele, evi-
tando, assim, uma série de questões que poderiam ocorrer a partir das
definições de autor e partícipe.
A reforma de 1984 passou da teoria extensiva (trata a todos como auto-
res) para a teoria restritiva, voltando a estabelecer a distinção entre autor e

7 Os agentes do crime são autores ou cumplices [sic].


8 Art. 18. São autores:
§ 1º Os que directamente [sic] resolverem e executarem o crime;
§ 2º Os que, tendo resolvido a execução do crime, provocarem e determinarem
outros a executal-o [ sic] por meio de dadivas, promessas, mandato, ameaças, constran-
gimento, abuso ou influencia de superioridade hierarchica [sic];
§ 3º Os que, antes e durante a execução, prestarem auxilio, sem o qual o crime não
seria commettido [sic];
§ 4º Os que directamente executarem o crime por outrem resolvido [sic].
9 Art. 21. Serão cumplices [sic]:
§ 1º Os que, não tendo resolvido ou provocado de qualquer modo o crime, forne-
cerem instrucções [ sic] para commettel-o [sic], e prestarem auxilio á sua execução;
§ 2º Os que, antes ou durante a execução, prometterem [sic] ao criminoso auxilio
para evadir-se, occultar [sic] ou destruir os instrumentos do crime, ou apagar os seus
vestigios [sic];
§ 3º Os que receberem, occultarem [sic], ou comprarem, cousas obtidas por meios
criminosos, sabendo que o foram, ou devendo sabel-o [sic], pela qualidade ou condição
das pessoas de quem as houverem;
§ 4º Os que derem asylo [sic] ou prestarem sua casa para reunião de assassinos e
roubadores, conhecendo-os como taes [sic] e o fim para que se reunem [sic].
10 Segundo Magalhães Noronha, é a teoria por força da qual “tudo quanto concorre
para o resultado é causa”. NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal, v. 1, 38. ed.,
São Paulo: Rideel, 2009, p. 117.

399
partícipe, conforme se deduz do item 25 da Exposição de Motivos nº
211/8311, apresentada pelo então ministro da justiça Ibrahim Abi-Ackel.
Zaffaroni e Pierangeli12 advertem que o texto do art. 29 do CP não pode
ser entendido como um nivelamento valorativo entre os agentes em concur-
so, de forma a considerá-los todos autores, mas que todos terão, em princí-
pio, a mesma pena estabelecida para o autor.
Isso significa que a teoria monista evoluiu ao longo do tempo, passando
de um sistema unitário clássico, que não distinguia autor de partícipe, para
um sistema diferenciador, segundo o qual autor e partícipe são responsabili-
zados de modos diversos13.
A doutrina apresenta tal evolução sob os títulos de exceção pluralística à
teoria monista14, teoria unitária temperada15, teoria monista temperada ou,
ainda, teoria monista matizada16. No Brasil, o art. 29 do Código Penal con-
firma a adoção da teoria monista sob a ótica do sistema diferenciador.

Cooperação dolosamente distinta.

Para que exista concurso de pessoas, é preciso observar a ocorrência de


alguns requisitos: (a) pluralidade de participantes e de condutas para a prá-
tica de um único crime, (b) relevância causal das condutas, isto é, cada con-
duta deve ter efetivamente contribuído para o resultado e para a prática do
crime, (c) vínculo subjetivo entre os participantes, entendido como o liame
psicológico entre autores e partícipes, de modo que cada um tenha ciência

11 Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal (Lei nº 7.209, de 11


de julho de 1984), item 25: “Ao reformular o Título IV, adotou-se a denominação ‘Do
Concurso de Pessoas’ decerto mais abrangente, já que a co- autoria não esgota as hipó-
teses do concursus delinquentium. O Código de 1940 rompeu a tradição originária do
Código Criminal do Império, e adotou neste particular a teoria unitária ou monástica do
Código italiano, como corolário da teoria da equivalência das causas (Exposição de Mo-
tivos do Ministro Francisco Campos, item 22). Sem completo retorno à experiência
passada, curva-se, contudo, o Projeto aos críticos dessa teoria, ao optar, na parte final do
art. 29, e em seus dois parágrafos, por regras precisas que distinguem a autoria da parti-
cipação. Distinção, aliás, reclamada com eloqüência pela doutrina, em face de decisões
reconhecidamente injustas”.
12 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito
Penal Brasileiro: parte geral, 4. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
13 Já que concorrem de maneira distinta na execução do delito, autor e partícipe re-
cebem tratamentos diferentes na definição de suas situações jurídicas.
14 GOMES, Luiz Flávio (coord.); MOLINA, Antonio García-Pablos de. Direito Pe-
nal: parte geral, v. 2, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
15 MESTIERI, João. Manual de Direito Penal: parte geral, v.1, Rio de Janeiro: Foren-
se, 1999.
16 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral, São Paulo: Re-
vista dos Tribunais, 1999.

400
de que contribui para o resultado daquele crime, (d) identidade da infração
penal, ou seja, todos os agentes devem praticar (ou almejam praticar) a mes-
ma infração penal.
Uma vez configurada a hipótese de codelinquência, a priori todos os
agentes responderão pela mesma prática delitiva e estarão sujeitos à mesma
pena, independentemente da posição que ocupem (autores ou partícipes)
na realização do delito. No entanto, diversa será a situação quando existir
entre os agentes um rompimento na vinculação lógica que os motiva, e que
determina o cometimento de crime diverso do que fora inicialmente preco-
nizado entre os sujeitos.
Neste caso, um dos infratores crê participar da prática de determinado
delito, e assim almeja e se liga aos demais consorciados, contribuindo de ma-
neira relevante para o êxito da empreitada criminosa. Porém, durante a prá-
tica antijurídica, estando o delito ainda no percurso do “iter criminis”, há
uma cisão entre as vontades, e alguns dos agentes acabam por extrapolar a
“voluntas” que marcou a formação do concurso eventual de pessoas para,
num desvio subjetivo, praticarem delito de maior gravidade e que não en-
trou na esfera de conhecimento do outro infrator.
Nesta conjectura fática, ocorre uma alteração consciente do dolo entre
os agentes inicialmente em concurso, e que acaba cindindo o consórcio cri-
minoso no momento em que as condutas intelectualmente não previstas e
não desejadas antes da prática dos atos executórios acabam motivando os su-
jeitos desviados.
É nesta hipótese que ocorre a cooperação dolosamente distinta, tão cla-
ramente definida por Artur Gueiros e Carlos Japiassú17:

“A cooperação dolosamente distinta – também conhecida como desvio subjeti-


vo da conduta – pressupõe hipóteses nas quais o partícipe pretendeu contribuir
para um injusto menos grave do que o efetivamente cometido pelo autor. Sen-
do assim, por força do § 2º, do art. 29, do CP, ele irá responder pelo crime que
quis participar. Em síntese, responderá de acordo com o seu dolo”.

Portanto, para a existência da cooperação dolosamente distinta é crucial


que haja o desvio doloso no momento da realização da conduta proibida, o
que gerará punição diferenciada para o partícipe dissidente.
É importante observar que, se não houver a cisão do elemento volitivo
(dolo) e da unidade de infração penal, subsistirá o concurso de agentes. As-
sim, se o partícipe de qualquer forma aderiu às condutas desviantes em re-
lação ao que fora inicialmente acordado, também responderá em concurso
pelo delito de maior gravidade que acabou sendo praticado. Se não aderiu,
responde de acordo com sua vontade inicial.

17 GUEIROS, Artur de Brito; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de Direito


Penal: parte geral, v. 1, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2012, p. 308.

401
Analisada a questão por este viés, tem-se que o instituto da cooperação
dolosamente distinta é uma forma de mitigação da teoria unitária, permitin-
do que o partícipe receba uma justa resposta ao mal que visou ocasionar.
Deve ainda ser entendido que, se houver previsibilidade do resultado
mais grave, considerado o grau de inteligência e orientação do chamado “ho-
mem médio”, visto sob o ponto de vista do partícipe, a pena será aumentada
até metade, conforme a 2ª parte do
§ 2º do art. 29.
Não havendo tal previsibilidade, e observando-se na conduta dos agen-
tes uma divergência de vontades quanto à finalidade ilícita (o cometimento
da mesma infração penal), deixa-se de reconhecer a existência do concurso
de pessoas e afasta-se a aplicação da teoria monista frente a exceção plura-
lística contida no art. 29, § 2.º, do Código Penal brasileiro.
Deve-se também ter em conta que o consórcio delitivo pode ocorrer sob
diferentes formas, como na elaboração conjunta do plano criminoso (con-
cepção intelectual do delito), na prática de atos executórios, na indução, es-
tímulo ou prestação de auxílio a outrem. Da mesma maneira, várias também
são as possibilidades de ocorrência de desvios subjetivos de condutas, como
nas hipóteses de “mandato criminoso”18, participação19 e coautoria20.

18 Basileu Garcia define a cooperação dolosamente distinta como a falta de coincidên-


cia entre mandato e execução, donde se conclui existir, nos casos de delito praticado
sob encomenda, um mandato entre o autor intelectual do crime (o mandante) e o seu
executor, que age de acordo e por ordem deste mandato criminoso. GARCIA, Basileu.
Instituições de Direito Penal, v. I, t. I, 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2008.
19 Bitencourt descreve o desvio subjetivo de conduta no caso de participação: “A re-
gra da disposição em exame pretende ter aplicação a todos os casos em que o partícipe
quis cooperar na realização de delito menos grave. O concorrente deverá responder de
acordo com o que quis, segundo o seu dolo, e não de acordo com o dolo do autor”.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado, 7. ed., São Paulo: Saraiva,
2012, p. 177.
20 Celso Delmanto tem um interessante posicionamento quanto à possibilidade de
aplicação da exceção pluralística nas hipóteses de coautoria: “Tratando do concurso de
pessoas, o caput deste art. 29, ao usar a expressão ‘quem, de qualquer modo, concorre
para o crime’, abrange tanto o coautor quanto o partícipe, que responderão ‘na medida
de sua culpabilidade’. [...] Por sua vez, o § 2º, embora utilize o verbo ‘participar’, o faz
em sentido amplo, abrangendo tanto o coautor quanto o partícipe, já que de sua redação
consta expressamente o termo concorrentes, verbis: ‘Se algum dos concorrentes quis
participar...’. [...] Assim, embora a unanimidade dos doutrinadores entenda que o § 2º
alcança apenas o partícipe, desde a 6ª edição desta obra (2002), havíamos reformulado
nossa posição anterior naquele sentido, para admitir a sua aplicação também ao coautor.
Conforme explanado nos comentários ao caput, a coautoria pressupõe vínculo subjeti-
vo, ou seja, unidade de desígnios na execução do mesmo crime. Na prática, contudo,
existem situações em que um dos agentes age com determinado dolo e o outro, sem o
conhecimento daquele e por sua exclusiva iniciativa, age com dolo diverso, alcançando
resultado diferente do pretendido pelo primeiro. Por exemplo, dois acusados, desarma-
dos, entram em uma casa com a intenção de furtar, julgando que os moradores estives-

402
Sobre a possibilidade de atenuação da teoria monista nos casos de coau-
toria, Rogério Greco corrobora o pensamento expressado por Delmanto na
nota nº 20:

“Merece destaque o fato de que o § 2º do art. 29 do Código Penal permite tal


raciocínio tanto nos casos de coautoria como nos de participação (moral e ma-
terial). O parágrafo começa sua redação fazendo menção a ‘alguns dos concor-
rentes’, não limitando a sua aplicação tão somente aos partícipes. [...] Deve ser
frisado, portanto, que a expressão ‘quis participar de crime menos grave’ não
diz respeito exclusivamente à participação em sentido estrito, envolvendo so-
mente os casos de instigação e cumplicidade, mas sim em sentido amplo, abran-
gendo todos aqueles que, de qualquer modo, concorrem para o crime, estando
aí incluídos autores (ou coautores) e partícipes”21.

Traçadas em linhas gerais as possibilidades de mitigação da teoria unitá-


ria, faz- se mister avaliar a aplicação prática da regra da cooperação dolosa-
mente distinta, mediante um estudo de caso hipotético que requeira a com-
pleta compreensão do instituto.

Estudo de caso: desvio subjetivo de conduta no crime de latrocínio.

Partiremos do seguinte caso fictício para fins de sedimentar a aplicabili-


dade (ou não) da tese da cooperação dolosamente distinta: dois agentes,
aqui chamados de A e B, ajustam entre si a prática do crime de roubo me-
diante o emprego de arma de fogo contra a vítima, nomeada de C.
A se encarrega de exercer a grave ameaça, munido da arma, e de subtrair
os pertences da vítima, ao passo que B se encarrega de dirigir o veículo utili-
zado para a fuga. Durante a prática dos atos de execução do crime, C reage
à abordagem criminosa e A dispara o revólver, causando a morte de C.

sem ausentes; um deles, surpreendido pelo morador na cozinha, por sua exclusiva ini-
ciativa o mata com uma faca que ali se encontrava, enquanto o outro agente está no
andar superior. Pelo entendimento tradicional, ambos responderiam por latrocínio, na
medida de sua culpabilidade; já pela exegese aqui defendida, aquele responde por latro-
cínio, enquanto este, que sequer estava na cozinha e não podia prever e tampouco evitar
a conduta do outro, responde por furto qualificado pelo concurso de pessoas. Como se
pode verificar neste exemplo, durante o iter criminis, parte das condutas foi desejada e
praticada por ambos (entrada na casa para a subtração de bens móveis); já a morte do
morador, foi desejada e perpetrada unicamente por um deles, que alterou o seu dolo
durante a prática do outro crime, sendo que esse desfecho não podia ser imaginado pelo
outro”. DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado, 9. ed., São Paulo: Saraiva,
2016, p. 254.
21 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral, 17. ed., Niterói: Impetus,
2015, p. 488.

403
Ocorre na situação ilustrada o delito de latrocínio, previsto no art. 157,
§ 3º, 2ª parte, do CP:

Art. 157 – Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave
ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzi-
do à impossibilidade de resistência:

[...]

§ 3º Se da violência resulta lesão corporal grave, a pena é de reclusão, de sete a


quinze anos, além da multa; se resulta morte, a reclusão é de vinte a trinta anos,
sem prejuízo da multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)

Qual a situação jurídica de A e B no exemplo fático retratado? Respon-


dem ambos pelo crime de latrocínio ou B se enquadra hipótese de cabimen-
to da cooperação dolosamente distinta?
A responsabilidade de A nos parece de fácil constatação, devendo ele
responder pela ação dolosa tanto na subtração da vítima quanto no seu ho-
micídio, ambas as condutas no mesmo contexto fático que leva à subsunção
do tipo penal do roubo seguido de morte (latrocínio).
A “vexata quaestio”, todavia, cinge-se à situação de B: deve este respon-
der pelo latrocínio que vitimou C, em concurso de pessoas com A? A solu-
ção para o caso depende da análise acerca da existência ou não de previsibi-
lidade quanto ao resultado ocorrido (morte da vítima) por parte de B, e da
aceitação do risco de produzi-lo.
Se a morte de C em função da prática executória do crime de roubo es-
tivesse na esfera de previsibilidade de B, e se a prova demonstrasse que ele
aceitou o risco de sua ocorrência, estaríamos, sem sombra de dúvidas, diante
da hipótese de dolo eventual, o que materializaria o concurso de agentes en-
tre A e B em torno do delito de roubo qualificado pelo resultado morte.
No entanto, caso a prova demonstrasse que B supôs levianamente que o
evento mais grave não aconteceria22 (ainda que soubesse que A estava arma-
do), estaríamos num quadro de afastamento do dolo eventual e aceitação da
clássica tese da culpa consciente em relação a B.
Aqui, estaria instaurado um quadro de aparente antinomia: B responde-
ria como coautor de latrocínio, nos termos do art. 19 do CP (“Pelo resultado

22 Mesmo ciente de que A estaria armado no momento da “grave ameaça” definidora


do crime de roubo, isso por si só não faz prova da finalidade do delinquente (a possível
morte da vítima), uma vez que o instrumento em testilha não tem o condão unicamente
de preencher a adequação típica da violência, mas também se presta ao desempenho da
grave ameaça. E mesmo que se pudesse conceber o eventual manejo de violência, não
haveria, “ipso facto”, como ligar a morte de C à esfera cognitiva e volitiva de B, pois essa
possível violência poderia se limitar, p. ex., a uma prévia aceitação de que tiros para o
alto fossem dados como meio de facilitação da fuga, o que, em última análise, não esta-
beleceria uma ligação psíquica-volitiva entre os agentes.

404
que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causa-
do ao menos culposamente”) ou seria beneficiado pela aplicação da tese da
cooperação dolosamente distinta do art. 29, § 2º?
Neste caso, embora o crime de latrocínio admita a figura do preterdolo
a que alude o art. 19 do CP, temos que as circunstâncias fáticas revelam que
ocorreu uma substituição do dolo23 por parte de A, sendo o resultado mais
grave (morte da vítima) produto de sua intenção e vontade. Neste sentido,
mais adequada ao caso concreto a aplicação da regra da cooperação dolosa-
mente distinta.
Além da questão da substituição do dolo, dois outros motivos resolvem
esse conflito aparente de normas: (1) a aplicação do art. 29, § 2º, consiste na
regra mais favorável ao acusado, considerada a pena a que estará submeti-
do24, e (2) encerra a utilização do critério da especialidade da norma25,
como forma de resolução da aparente antinomia.
Por fim, vale o registro de que o crime preterdoloso ocorre por culpa
atribuída ao executor, diferentemente do caso em que o resultado mais gra-
ve tenha ocorrido pelo dolo do executor, em substituição ao dolo do partíci-
pe, restando a este, caso previsível o resultado mais grave, a regra da coope-
ração dolosamente distinta em substituição ao preterdolo. Daí ser mais justa
a regra do art. 27, § 2º, do CP ao caso concreto.

Conclusão.

O tema trazido ao longo deste trabalho é de relevância ímpar aos estu-


diosos do Direito Penal, pois de ocorrência frequente nas lides forenses e de
solução nem sempre fácil ou tranquila.
Por isso, a exata compreensão acerca do fenômeno do concurso de pes-
soas e do arcabouço teórico em torno de sua aplicação prática constitui ma-

23 Importa trazer a lição de Luiz Flávio Gomes quanto à substituição do dolo nos casos
de desvios subjetivos de conduta: “Cabe notar que o excesso do executor que atua dis-
tintamente revela o que se chama de substituição do dolo. Inicialmente o dolo está
dirigido a um resultado. O executor excessivo substitui o dolo (por conta própria) e o
orienta para outro resultado, mais grave”. GOMES; MOLINA, Op. cit., p. 511.
24 No caso de aplicação do art. 19 (crime preterdoloso), B responderia em concurso
de pessoas com A pelo crime de latrocínio, sujeitando-se à pena de 20 a 30 anos reclu-
são; aplicando-se a regra do art. 29, § 2º (cooperação dolosamente distinta), ele respon-
deria pelo crime de que quis participar (roubo duplamente majorado, em tese com pena
de 6 a 15 anos de reclusão), aumentando-se a pena da metade pela previsibilidade obje-
tiva do resultado, alcançando o “quantum” final de 8 a 22 anos de reclusão.
25 Não é difícil perceber que a norma do art. 19 do CP possui caráter geral em relação
às hipóteses de ocorrência de crimes preterdolosos, como o latrocínio retratado hipote-
ticamente neste trabalho, enquanto o desvio subjetivo de condutas (art. 29, § 2º, do
CP) constitui regra especial concernente ao concurso eventual de pessoas.

405
téria extremamente relevante ao debate acadêmico como meio de fomentar
a justa aplicação da lei penal.
Neste sentido, a cooperação dolosamente distinta como exceção à teoria
monista atende aos reclames de uma aplicação das normas penais consentâ-
nea aos ideais de justiça e equidade que marcam o cenário jurídico brasileiro
da atualidade.
Por fim, um singelo estudo de caso referente ao concurso eventual de
pessoas na prática do crime de roubo majorado que acaba descambando para
a ocorrência do delito de latrocínio ajuda a sedimentar o instituto do desvio
subjetivo de condutas e sua aplicabilidade sempre que houver uma cisão no
dolo dos agentes em concurso.

Bibliografia.

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nível em: ”http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851- 1899/D847.
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Pe-
nal Brasileiro: parte geral, 4. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

406
Os direitos autorais analisados
sob a perspectiva da era digital: o
compartilhamento nas redes sociais
de obras fotográficas

Maria Cecília Mendonça Velez

Resumo: O presente artigo foca na vivência das redes sociais, que obti-
veram grande êxito na cultura digital, com destaque para as redes Facebook
e Instagram, e na possibilidade de amplo compartilhamento de propriedade
intelectual por meio das mesmas. Estuda-se como tal costume de comparti-
lhamento está conectado com a legislação de direitos autorais brasileira e o
modelo de licenças livres Creative Commons. Examina-secomo se dá a atua-
ção do direito autoral na legislação brasileira no ambiente da Internet atra-
vés das obras fotográficas em redes sociais, comentando sobre os direitos au-
torais, a propriedade intelectual e a formade lidar com esses direitos com a
utilização das licenças livres. O método utilizado foi a análise da Lei de Di-
reitos autorais (L. 9610/98), juntamente com os termos de uso das redes
sociais citadas,comparados com o costume de uso da Internet para compar-
tilhamento das obras artísticas e o claro descompasso da realidade com o
disposto na lei. Trata-se também do uso de licenças livres como forma de
equilibrar o uso habitual da Internet e o respeito ao ordenamento.

Palavras-chave: Direito Autoral, Propriedade Intelectual, Internet,


Compartilhamento, Redes Sociais, Obras fotográficas.

Abstract: This article focuses on the social media’s experience, which


have achieved great success in digital culture, especially Facebook and Insta-
gram, and the possibility of broad sharing of intellectual property through
them. It is studied how such sharing habit is connected to the brazilian
copyright legislation and the Creative Commons free licenses model. This
article analyzes the copyright’s execution in brazilian legislation on the In-
ternet environment through photography in social media, commenting
about copyright, intellectual property and how to deal with these rights
with the use of free licenses. The method used was the analysis of the bra-
zilian copyright law (L. 9610/98), along with the mentioned social medias’

407
terms of use, compared with the habit of using the Internet to share artistic
works and the mismatch of reality and the law. It is also analyzed the use of
free licenses as an option to balance the habitual use of the Internet and the
respect for the Law.

Keywords: Copyright, Intellectual Property, Internet, Sharing, Social


Media, Photography.

Introdução

A relevância do tema dos Direitos Autorais é nítida na atualidade. O


tema se faz presente no importante artigo 5º da Constituição Federal de
1988, que trata dos direitos fundamentais. Nesse artigo encontram-se
disposições que estabelecem proteção ao direito do autor,mais especifica-
mente nos incisos XXVII e XXVIII.
Com a revolução tecnológica proporcionada pela Internet diversos ra-
mos do Direito têm sofrido grandes transformações para que assim se ade-
quem aos anseios da sociedade, como é o caso dos Direitos Autorais. A so-
ciedade contemporânea é complexa e, muito comumente, há um descom-
passo entre a teoria jurídica e a realidade social. A realidade jurídica é dire-
tamente afetada pela ética, política, ideologias e vivência cultural de um
povo e a velocidade das transformações econômicas sociais e culturais afe-
tam todos os ramos do Direito, o campo dos Direitos Autorais não é uma
exceção.
Percebe-se então a necessidade da adequação do universo jurídico para
com as mudanças sociais e tecnológicas vividas, como comenta Patricia Peck
Pinheiro (2016, p. 51):

A sociedade humana vive em constante mudança: mudamos da pedra talhada


ao papel, da pena com tinta ao tipógrafo, do código Morse à localização por
Global Positioning System (GPS), da carta ao e-mail, do telegrama à videocon-
ferência. Se a velocidade com que as informações circulam hoje cresce cada vez
mais, a velocidade com que os meios pelos quais essa informação circula e evo-
lui também é espantosa.

A fotografia é uma forma de obra intelectual, sendo assim uma proprie-


dade intelectual protegida pelo direito do autor. Com redes sociais como
Facebook e Instagram mais fotógrafos conseguem visibilidade e ampliam as
oportunidades de tornarem conhecidos seus trabalhos. No entanto, com a
possibilidade que o meio digital traz de compartilhamento e reprodução de
conteúdo, os Direitos Autorais têm tido dificuldade de atuar nesse ambien-
te virtual.
Torna-se necessário analisar quais seriam as barreiras impostas pelos Di-
reitos Autorais na realidade de sociedade digital de compartilhamento e ob-

408
servar se as práticas atuais de compartilhamento de propriedades intelec-
tuais fotográficas violam a legislação de direito autoral brasileira, a Lei 9610
de 1998.
Para isso, examinaremos o instituto do Direito Autoral e o tratamento
que recebe pela legislação brasileira, verificaremos as implicações da revolu-
ção digital ocorrida através do advento da Internet, analisaremos também
como lidam as Redes Sociais Instagram e Facebook com as propriedades in-
telectuais inseridas nelas.

1. O Direito Autoralalegislaçãobrasileira

Inicialmente é importante compreender o recente ramo jurídico do di-


reito autoral e sua área de alcance. Na Antiguidade não havia ainda formada
a ideia de Direito Autoral. Isso, no entanto, começa a se modificar com o
surgimento de questões que envolviam a autoria de determinadas obras (LE-
MOS et al., 2011, p. 105). Houve grande mudança, de fato, na Idade média
com a Revolução da Imprensa, o que garantiu maior difusão das obras inte-
lectuais. Ao mesmo tempo surge uma grande preocupação econômica com
as cópias dessas obras (Ibid. p. 106).
Nossa legislação que versa sobre o tema, a Lei de Direitos Autorais bra-
sileira – 9610/98 – surge para atualizar a lei anterior de 1973 (Ibid. p. 110),
e está conectada a acordos internacionais, tais quais o acordo TRIPS e a
Convenção de Berna de 1886 (Ibid. p. 29). A LDA define quais obras são
objeto de proteção dos direitos autorais, qualifica esses direitos em morais e
patrimoniais e estabelece as limitações protetivas (Ibid. p. 30).
Os Direitos Autorais têm como objeto de proteção bens criados pelo in-
telecto, as propriedades intelectuais (artigo 7º da LDA), mais especifica-
mente aquelas sem um viés utilitário, como é o caso da propriedade indus-
trial (artigo 8º da LDA). Dispõe Newton Silveira (2014, p. 8) que as obras
protegidas pelo direito autoral têm como simples requisito serem originais
enquanto que as propriedades industriais dependem da observância da exis-
tência de inovação, serem uma novidade, sendo a originalidade analisada
subjetivamente enquanto a novidade seria analisada de forma concreta. As-
sim, o Direito Autoral trata da imaterialidade característica da propriedade
intelectual, abarcando então criações científicas, culturais, artísticas, caso
das obras fotográficas (MARTINS FILHO, 1998).
Há então o direito dos autores, artistas, intérpretes, entre outros, como
o caso dos direitos conexos. Os autores são aqueles que geram, desenvolvem
a ideia, que criam “obra literária, artística ou científica” segundo o artigo 11
da LDA. Esses direitos se dividem em direitos morais e direitos patrimo-
niais.
Os direitos morais são aqueles que estarão sempre conectados ao autor,
são inalienáveis, irrenunciáveis, e estão dispostos mais especificamente do
artigo 24 ao artigo 27 da lei supracitada. Segundo Abrão (2002, p. 74) “Os

409
direitos morais do autor são aqueles que unem indissoluvelmente o criador
à obra criada. Emanam da sua personalidade e imprimem um estilo a ela.”
Já com relação aos direitos patrimoniais a autora ensina que:

São os direitos de fruição e de disponibilização exclusivos do autor [...]. São


direitos exclusivos, porque dependem de prévia e expressa aprovação do autor
e só dele, ou de quem o represente, para que possam ser reproduzidos, exibi-
dos, expostos publicamente, transmitidos por meios mecânicos eletrônicos ou
digitais, armazenados, etc. (Ibid. p. 80).

Ou seja, patrimoniais são aqueles direitos que se definem pela explora-


ção econômica da obra intelectual criada e são listados com mais detalhes
nos artigos 28 – “Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor
da obra literária, artística ou científica” – e 29 – “Depende de autorização
prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades”
– da mesma lei. Há ainda a figura do domínio público que, com relação às
obras fotográficas, não estarão mais protegidas após 70 anos de sua divulga-
ção, contados a partir de 1º de janeiro do ano seguinte (artigo 44, LDA).
O direito do autor tem essas duas frações pontuadas por Fábio Vieira Fi-
gueiredo (2016, p. 56)como parte patrimonial, fração plenamente disponí-
vel, e parte extrapatrimonial, fração indisponível a qual será sempre de titu-
laridade do criador. Compreende-se então que o direito atribuído ao autor
de ter seu nome conectado à sua obra é de natureza extrapatrimonial, ou
moral, podendo esse autor reivindicar em qualquer época a sua autoria,
como dispõe o inciso I do artigo 24 da LDA.

2. A Revolução Digitalesuasimplicações nasociedade

O desenvolvimento das ciências tecnológicas, ao dinamizar a transmis-


são de dados e informações, colaborou com o conhecimento de novas cultu-
ras e formas de sociedades, além de realizar um importante papel na questão
do acesso à educação (ADOLFO; ROCHA; MAISONNAVE, 2012). Não é
possível que com imensas mudanças na sociedade o Direito não seja afetado
também de maneira profunda. Abrão (2002, p. 13) atribui ao recente ramo
do Direito Autoral novas nuances causadas pelas inovações do século XX,
principalmente o advento da Internet e toda sua capacidade revolucionária
de difusão de informação.
Em relação ao ambiente virtual, Marineli (2017, p. 20) define como ca-
racterísticas e desafios apresentados pelas principais redes sociais a abertu-
ra, a ausência de uma estrutura hierárquica, a conexão pela identidade e o
compartilhamento de informações. Além da grande possibilidade de proble-
mas que podem surgir dessas características para a questão da privacidade
dos usuários dessas redes, há também o problema do respeito às obras artís-

410
ticas, ou a mera citação da autoria das obras, mais especificamente por conta
do desafio causado pela facilidade do compartilhamento.
As redes sociais foram uma das inovações dessa revolução. Esses sites,
ou aplicativos, trouxeram uma maior facilidade para a difusão de conteúdo,
o que foi percebido por muitos profissionais como uma boa forma de divul-
gação de seus trabalhos. Tais trabalhos, obras artísticas, estão na categoria de
propriedade intelectual que é protegida pelos direitos de autor.
Tendo como base o momento histórico-social no qual nos encontramos,
marcado pelas inovações tecnológicas, temos a questão das obras artísticas
protegidas pelos Direitos Autorais e a adequação desse ramo do Direito na
realidade atual permeada pelas transformações trazidas pela era digital. Tra-
ta sobre o tema em questão o jurista Ronaldo Lemos (2011, p. 21): “Vive-
mos, pois, tempos de grande efervescência criativa. A internet permite a to-
dos que se expressem em diversas mídias e plataformas, convertendo em au-
tor quem quer que esteja conectado à rede. Somos todos fotógrafos, escri-
tores, músicos, cineastas.”
O problema da adaptação do Direito Autoral continua a ser debatido
pelo autor:

Mas vivemos também tempos de incerteza. O direito autoral é um ramo razoa-


velmente recente dentro da ciência jurídica. Forjado entre os séculos XVIII e
XIX, consolidou-se no século XX, valendo-se de modelos de negócio que de-
pendiam da materialidade do suporte (como livros em papel e fitas VHS, entre
outros). Com o advento da internet e da cultura digital, as certezas foram aba-
ladas, os intermediários tornaram-se muitas vezes dispensáveis e agora a indús-
tria cultural precisa se reinventar para sobreviver. Não é a primeira vez que isso
acontece e provavelmente também não será a última. (Ibid. p. 22)

3. Obras Fotográficas como Propriedades Intelectuais inseridas nas Redes


Sociais

A fotografia é reconhecida como propriedade intelectual pelo artigo 11


já citado, pois “[...] ainda que a técnica se apure e tudo seja acionado meca-
nicamente, a lei autoral presume autor a pessoa física criadora de obra lite-
rária, artística ou científica.” (ABRÃO, 2002, p. 113). Nesse sentido, é pos-
sível depreender que fotografias que visam apenas registrar uma situação co-
tidiana, sem finalidade artística, não estariam sob o manto dos Direitos Au-
torais.
As obras de fotógrafos postadas no Instagram ou Facebook configuram
propriedade intelectual, pois se encaixam no artigo 7º da Lei de Direitos
Autorais, mais especificamente no inciso VII desse artigo, o qual prevê “as
obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da foto-
grafia”. O caput do mesmo artigo também possibilita a proteção das fotogra-

411
fias na internet através dos Direitos Autorais visto que a obra intelectual
pode ser expressada através de qualquer meio, seja ele virtual ou não. No
momento em que a obra for exteriorizada haverá a atuação dos Direitos Au-
torais, sem necessidade de registros específicos dessa obra original.
Na Internet a aplicação dos Direitos Autorais se torna muito mais com-
plexa. Os autores nem sempre conseguem usufruir plenamente de seus di-
reitos patrimoniais relacionados à obra e também não conseguem ter amplo
controle sobre o uso e reprodução da propriedade intelectual. Seja no meio
virtual, ou fora dele, é observável que o tema não é amplamente conhecido.
É possível encontrarmos museus com placas de advertências aos visitan-
tes para que não tirem fotos das obras ou nas redes sociais fotógrafos que
legendam suas postagens com a frase “todos os direitos reservados”. Isso, no
entanto, não seria necessário, visto que a Lei de Direitos Autorais exige au-
torização prévia e expressa do autor para o uso e compartilhamento de sua
obra, segundo o artigo 29 e os subsequentes incisos. Talvez o hábito dos au-
tores, de avisarem sobre a proteção que seu trabalho recebe, esteja ligado ao
fato de o tema ainda não estar totalmente claro para a sociedade e também
por haver uma distinção entre a regulação tida mais como teórica do que
possível de ser praticada.
Há o entendimento de que se determinada obra foi divulgada na rede
seu autor automaticamente concordou em ceder seus direitos patrimoniais,
inclusive morais, que não podem ser renunciados, ou como se todo o con-
teúdo encontrado na internet fosse de domínio público. Tal pensamento não
está de acordo com a legislação. Muitas vezes obras são copiadas e compar-
tilhadas sem a autorização e muitos menos sem a devida menção do autor,
direito assegurado pelo inciso II do artigo 24. Além disso as obras muitas ve-
zes são modificadas sem a permissão de seu autor.
Nas redes sociais já mencionadas há uma relação de prestação de servi-
ço. Esses sites disponibilizam termos de uso que ainda são confusos e dificil-
mente são lidos pelos usuários. Porém tanto o Instagram quanto o Facebook
promovem uma política de respeito aos Direitos autorais.
No regulamento do Instagram lemos:

Você declara e garante que: (i) o Conteúdo publicado por você no Serviço ou
através dele é de sua propriedade ou, então, você possui o direito de conceder
os direitos e licenças apresentados nesses Termos de Uso; (ii) a publicação e
uso do seu Conteúdo no Serviço ou através dele não viola, utiliza incorretamen-
te ou transgride os direitos de qualquer terceiro, incluindo, sem limitação, di-
reitos de privacidade, direitos de publicidade, direitos autorais, marca comer-
cial e/ou outros direitos de propriedade intelectual; (iii) você concorda em pa-
gar todos os royalties, taxas e qualquer outra soma de dinheiro devida em fun-
ção do Conteúdo que você publica no Serviço ou através dele; e (iv) você possui
o direito e capacidade legal de participar desses Termos de Uso em sua juris-
dição.

412
E ainda:

O Instagram tem o compromisso de ajudar pessoas e organizações a protegerem


seus direitos de propriedade intelectual. Os Termos de Uso do Instagram não
permitem a publicação de conteúdos que violem os direitos de propriedade
intelectual de terceiros, como direitos autorais e de marca comercial.

A rede social também orienta como o usuário poderá denunciar possí-


veis violações de direitos autorais nas publicações.
De forma muito similar procede o Facebook:

Nós respeitamos os direitos de terceiros, e esperamos que você faça o mesmo.


Você não publicará conteúdo ou praticará qualquer ato no Facebook que infrin-
ja ou viole os direitos de terceiros ou a lei. Nós podemos remover qualquer
conteúdo ou informação publicada por você no Facebook se julgarmos que isso
viola esta declaração ou nossas políticas. Nós fornecemos a você ferramentas
para ajudá-lo a proteger seus direitos de propriedade intelectual. Para saber
mais, acesse a nossa página Como denunciar reclamações de infrações de pro-
priedade intelectual. Se removermos seu conteúdo por infringir os direitos au-
torais de alguém, e você acreditar que o removemos por engano, forneceremos
a você a oportunidade de recorrer. Se você violar repetidamente os direitos de
propriedade intelectual de terceiros, nós desativaremos sua conta quando apro-
priado. Você não usará nossos direitos autorais, marcas comerciais ou quaisquer
marcas semelhantes que possam causar confusão, exceto conforme expressa-
mente autorizado pelas nossas Diretrizes de uso de marcas ou com nossa per-
missão prévia por escrito.

Apesar de tais termos respeitarem as diretrizes da legislação brasileira


sobre direitos autorais, as imagens continuam sendo compartilhadas, infrin-
gindo assim, os direitos dos autores. De certa forma as redes sociais podem
lucrar com as obras intelectuais nelas postadas pois gerariam mais visualiza-
ções e, consequentemente, produziriam mais lucro com publicidade.
Importante destacar que os autores de obras intelectuais como as foto-
grafias não lucram da mesma forma que os produtores de conteúdos como
vídeos nas redes sociais. Os vídeos no YouTube têm seu número de visualiza-
ções monetizado trazendo lucro ao seu autor, assim como ao YouTube, atra-
vés de conteúdos publicitários, por exemplo. Já no caso das fotografias pos-
tadas no Facebook há lucro, exploração patrimonial, de forma direta, apenas
para a rede social por meio da publicidade. O fotógrafo, atualmente, tem as
redes sociais como uma boa forma de divulgação de seu trabalho artístico e
não, especificamente, como forma de lucro direto.

4. A LDA no contexto digital

Com a Internet surge, então, a chamada cibercultura, uma realidade em


que os sistemas jurídicos, no caso estudado o sistema brasileiro, parecem li-

413
dar com grande dificuldade. Um dos grandes dilemas é a forma como é tra-
tado o compartilhamento na rede, seja de forma coletiva ou peer to peer
(p2p). Assim teremos que analisar o problema das barreiras impostas pelos
Direitos Autorais na atual sociedade digital de compartilhamento.
A Lei n. 9.610 de 1998 já sofre críticas por sua aplicação mesmo fora do
ambiente digital. Existem traços claros de obsolescência no texto da lei.
Uma das principais críticas é dirigida ao tratamento dado às cópias de obras
protegidas pelo Direito Autoral. A lei de proteção ao direito do autor ante-
rior, Lei n. 5.988 de 73, inciso II do artigo 49, autorizava a “a reprodução,
em um só exemplar, de qualquer obra, contando que não se destine à utili-
zação com intuito de lucro”; ou seja, era possível fazer a cópia de toda a obra
sem a autorização do autor (ADOLFO; ROCHA; MAISONNAVE, 2012).
Já a atual lei se apresenta ainda mais restrita ao dispor em seu polêmico
artigo 46, inciso II, que não há ofensa ao Direito Autoral se houver “a repro-
dução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copis-
ta, desde que feita por este, sem intuito de lucro”. A questão é mais perti-
nente para o caso de obras literárias, por exemplo, mas fica claraa divergên-
cia entre o costume atual e o que dispõe a legislação.
Numa realidade onde o meio virtual é amplamente utilizado para o com-
partilhamento de informações e conteúdo em geral, percebe-se que há um
descompasso entre a realidade e a lei de 98, pois as limitações ao Direito
Autoral expressas no artigo 46 dessa lei ainda não correspondem ao uso ha-
bitual da propriedade intelectual na internet.
É possível traçarmos outra observação importante sobre nossa legislação
de Direito Autoral: o rol fechado de possíveis usos, por terceiros, da pro-
priedade intelectual que não constituem ofensa ao direito do autor. Se com-
pararmos o instituto de Copyright utilizado no sistema jurídico estaduniden-
se, perceberemos a figura do fair use, ou então o uso proporcional da pro-
priedade intelectual, em que será analisada a questão caso a caso (Ibid.).
Ao delimitarmos especificamente quais as possíveis formas de usos, pa-
rece que engessamos a legislação e não contemplamos as reais formas de uti-
lização das obras protegidas por direito autoral por parte da sociedade. A ne-
cessidade de reavaliação da forma pela qual lidamos com os Direitos Auto-
rais surge exatamente por conta da grande diferença entre teoria jurídica e
realidade fática.
O problema entre a teoria jurídica, ou seja, os ordenamentos jurídicos
vigentes, e o uso prático da internet não é uma questão controversa apenas
no Brasil. Sobre o tema dispõe Benkler (2006, p. 385):

It is difficult to tell how much is really at stake, from the long-term perspecti-
ve, in all these legal battles. From one point of view, law would have to achieve
a great deal in order to replicate the twentieth-century model of industrial in-
formation economy in the new technical-social context. It would have to cur-
tail some of the most fundamental technical characteristics of computer net-

414
works and extinguish some of our most fundamental human motivations and
practices of sharing and cooperation.1

No entanto, é possível observar que a forma pela qual tem sido tratada a
questão não é a mais eficiente. Campanhas de conscientização sobre as ofen-
sas ao Direito Autoral demonstraram não surtir grandes efeitos, ainda mais
quando ocorre a comparação de um download ilegal de música com o furto,
por exemplo. Além disso, o tema também regido pelo Código Penal, ao tra-
tar de crimes contra a propriedade intelectual do artigo 184 ao artigo 186,
podendo ser discutido se seria realmente o caso de ultimaratio na qual se
insere a atuação do Direito Penal.
Há a insistência em adequar a forma pela qual a sociedade lida com a
propriedade intelectual, a prática social, a um rol fechado e nitidamente ul-
trapassado. Mais simples seria que solução jurídica se adaptasse à cibercul-
tura. Se o caminho de adequação não for pela reforma da legislação existe
uma outra alternativa, que parece bastante adequada: as licenças livres.

5. Uso de Licenças Livresna rede como segunda via

A lei 9610/98 tem se tornado obsoleta devido ao avanço da internet e


das novas formas de divulgação das obras intelectuais na rede, principalmen-
te pela proliferação de obras virtuais e seu compartilhamento em massa on-
line. Atualmente tornou-se difícil não infringir os direitos autorais no meio
digital por falta de informação da sociedade e pela inadequação da norma à
realidade.
As limitações ao Direito Autoral expressas nos artigos 46 a 48 da lei ain-
da não correspondem ao uso habitual da propriedade intelectual na internet.
As licenças livres, por meio das Creative Commons, surgem como uma for-
ma de facilitar a relação entre autor e coletividade.
A preocupação do autor da obra, no caso o fotógrafo, ao postar sua arte
nas redes sociais não é o de diretamente obter lucro com tal postagem, visto
que, como já exposto, no caso das redes sociais tratadas – Instagram e Face-
book – não há uma remuneração direita pelo post em si, mas sim maior visi-
bilidade para o trabalho do artista.
Os fotógrafos, ao buscarem por uma maior visibilidade de seu trabalho,
e um consequente maior alcance do mesmo, encontram certos obstáculos.

1 É difícil dizer o quanto está realmente em jogo, da perspectiva de longo prazo, em


todas essas batalhas judiciais. De um ponto de vista, o Direito teria que conquistar um
grande feito para replicar o modelo de economia de informação industrial do século XX
no novo contexto técnico-social. Ele teria de reduzir algumas das mais fundamentais
características técnicas das redes de computadores e extinguir algumas das mais funda-
mentais motivações humanas de compartilhamento e cooperação. (BENKLER, 2006,
tradução nossa)

415
Ao perceberem que, muitas vezes é benéfico o compartilhamento de suas
obras pela internet, se, claro, respeitado seu direito inalienável de ter sua au-
toria citada, os artistas querem autorizar a reprodução de suas obras.
Porém, isso se torna impraticável se for de fato necessária, como prevê
a legislação, a autorização, uma por uma, da reprodução da obra fotográfica.
O foco da questão problemática na qual se encontra o direito do autor na
rede digital está no fato de que sua obra não pode ser reproduzida, copiada,
ou compartilhada sem a autorização prévia e expressa desse autor, segundo
o artigo 29 da Lei de Direitos Autorais de 1998.
Não é viável ao autor, e às redes sociais, aplicarem a repressão de toda e
qualquer forma de reprodução, cópia, compartilhamento que infrinja os di-
reitos autorais no ambiente virtual na forma regulada pela LDA, o que im-
põe a utilização de novos modelos de proteção à propriedade intelectual.
Para que esses direitos não fossem violados o autor deveria autorizar
cada reprodução e compartilhamento da propriedade intelectual individual-
mente. O modelo de “todos os direitos reservados” paulatinamente vem
sendo modificado através das Licenças Livres, como é o caso das Creative
Commons, que podem ser aplicadas nos casos em que os artistas, em questão
os fotógrafos, desejam permitir variados usos de suas obras.
Essas licenças livres são “licenças de uso padronizado, que especificam
quais usos podem ser feitos com determinada obra” (LEMOS et al., 2011,
p. 63). Essa seria uma boa forma de respeitar o artigo 29 da LDA pois have-
ria uma autorização expressa e geral do autor para determinados usos de sua
obra, de acordo com a abrangência dessa permissão, mantendo a obrigação
de se citar a autoria da obra (Ibid. p. 68). A licença Creative Commons é
uma forma de contrato feito entre o autor e a sociedade em geral. Tal licen-
ça de uso permitiria ao fotógrafo que autorizasse a qualquer interessado a
cópia de sua fotografia de forma pública e geral (BRANCO, 2014, p. 129).
Através das Creative Commons o autor pode adaptar os tipos de licenças
à permissão de uso que busca conceder aos interessados. Como exemplo,
pode o autor licenciar sua obra pela licença mais permissiva, a de Atribuição
que permite a cópia, distribuição e utilização da obra mesmo para fins co-
merciais, mantendo apenas a obrigatória citação da autoria, já que se trata de
um direito inalienável do autor e que estará presente em todos os tipos de
licenciamento. Pode o autor também condicionar o uso de sua obra para ge-
rar obras derivadas apenas se tais forem licenciadas pelo mesmo tipo de li-
cença (LEMOS et al., 2011, p.69-71). Assim, o fotógrafo poderá formar,
através dos diferentes componentes oferecidos pela Creative Commons, a
licença que atende ao uso que deseja permitir.
Importante salientar que o uso dessas licenças livres é feito exatamente
para equilibrar o respeito ao direito do autor e à legislação, bem como faci-
litar a autorização para a reprodução das obras artísticas, propriedades inte-
lectuais que são protegidas pelo Direito Autoral. No site das Creative Com-
mons é possível encontrar informações sobre a preocupação da licença em

416
respeitar o instituto de copyright, definindo-se como “legal tools that crea-
tors and other rights holders can use to offer certain usage rights to the public,
while reserving other rights”2.

Considerações Finais

É possível inferir que o Direito Autoral tem grande influência não só na


sociedade, através das obras físicas, mas também no ambiente virtual, atra-
vés da Internet e amplo compartilhamento de tais propriedades intelec-
tuais. Com uma investigação da legislação de diretos autorais, a LDA de 98,
percebe-se um atraso no que tange à realidade digital. A revolução vivida
pela Internet interfere diretamente em nossa legislação, que já dava sinais
de defasagem na questão das cópias, como o caso comum de xerox em am-
bientes acadêmicos.
Não se discute que os autores, artistas, fotógrafos, enfim, detentores
desses direitos precisam ter suas obras protegidas, mas sim que há a neces-
sidade de atualização na forma de pensar sobre os direitos autorais. Muitos
autores já percebem os benefícios trazidos pela divulgação e os diversos
compartilhamentos de seus trabalhos através das redes sociais e por isso ten-
tam acompanhar o ritmo imposto pela sociedade digital.
Para se obter o meio-termo entre a aplicação do ordenamento, enquanto
o mesmo não é reformado, e o costume social de compartilhamento pela In-
ternet é que surgem as licenças livres como as Creative Commons. Essas li-
cenças fazem a ponte entre o autor interessado em compartilhar sua obra
com a coletividade, se adequando então ao meio digital.

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2 Ferramentas legais que criadores e outros detentores de direitos podem usar para
oferecer certo uso de direitos para o público, enquanto reservam-se outros direitos.
(CREATIVE COMMONS, 2016, tradução nossa)

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Brasília, v. 27, n. 2, p.183-188, 1998. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.
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autor, software, cultivares, nome empresarial, abuso de patentes. 5. ed. Barue-
ri: Manole, 2014. 406 p.

418
A função social das relações contratuais

Fernando Ferreira Pascoal

RESUMO: O presente artigo trata do estudo da função social do con-


trato e de seus aspectos contratuais no âmbito do direito civil. Para tal, res-
saltam-se o desenvolvimento histórico do código Beviláqua de 1916, que
buscou a valoração da família, contrato e propriedade, sendo motivado por
influência política, econômica e liberalista. Além da evolução histórica do
código civil de 1916, percebe-se o progresso do princípio da boa-fé objetiva,
a diferença da liberdade de contratar para a liberdade contratual na autono-
mia da vontade, o novo código civil de 2002 e sua importância nas relações
do direito civil brasileiro.

Palavras-chave: Contratos; Direito Civil; Função social do Contrato.

ABSTRACT: This article deals with the study of the social function of
the contract and the contractual aspects of civil law. To do this, highlight
the historical development of the code of 1916 Beviláqua, that sought the
valuation of family, contract and property, being motivated by economic,
policy influence and a libertarian. In addition to the historical evolution of
the civil code of 1916, the progress of the principle of good-faith objective,
the difference of the freedom to contract for contractual freedom on the
autonomy of the will, the new civil code of 2002 and your importance in the
relations of the Brazilian civil law.

Keywords: Contracts; Civil Law; Social function of the contract

INTRODUÇÃO

O contrato é um acordo de vontades entre duas ou mais pessoas, ou seja,


um negócio jurídicobilateral e queestabelece um ato firmado,garantindo a
obrigação de ser cumprido. Tem por objetivo o interesse econômico desti-
nado à natureza patrimonial.
O princípio mais comum na relação contratual é o “Pacta Sunt Servan-
da”, que significa “Os Contratos Assinados Devem Ser Cumpridos”. Tal

419
princípio estabelece a obrigatoriedade de cumprir o que foi pactuado. Po-
rém, com o decorrer do tempo, surge uma nova valoração na transição do
Código Civil de 1916 para o diploma civilístico de 2002, qual seja: o princí-
pio da função social dos contratos, com vistas a proteger os mais fracos nas
relações contratuais.

O novo código civil não ficou à margem dessa indispensável necessidade de


integrar o contrato na sociedade, como meio de realizar os fins sociais, pois
determinou que a liberdade contratual (embora se refira equivocadamente a
liberdade de contratar) deve ser exercida em razão e nos limites da função so-
cial do contrato. Esse dispositivo (art. 421) alarga, ainda mais, a capacidade do
juiz para proteger o mais fraco na contratação, que, por exemplo, possa estar
sofrendo pressão econômica ou os efeitos maléficos de cláusulas abusivas ou de
publicidade enganosa.1

A força obrigatória ganha uma nova perspectiva jurídica em relação à


função social dos contratos – a autonomia da vontade já não se apresenta de
forma absoluta, podendo questionar os termos da avença; contudo, obtém-
se uma maior flexibilização em razão do estado social e econômico dos con-
tratantes.

1. CÓDIGO CIVIL DE 1916

O Código civil foi elaborado sob a inspiração do estado liberal burguês


do século XIX, ainda distante da forte influência do Estado Social do século
XX.Traduz em seu conteúdo a designação patrimonial, bem como a codifi-
cação de suas normas tradicionais no Código Civil de 1916, demonstrando
o interesse da classe dominante em seu próprio benefício e tornando o Có-
digo Beviláqua individualista.

“O Código Civil, bem se sabe, é fruto das doutrinas individualista e voluntarista


que, consagradas pelo Código de Napoleão e incorporadas pelas codificações
do século XIX, inspiraram o legislador brasileiro quando, na virada do século,
redigiu o nosso Código Civil de 1916. Àquela altura, o valor fundamental era o
indivíduo. O direito privado tratava de regular, do ponto de vista formal, a
atuação dos sujeitos de direito, notadamente o contratante e o proprietário, os
quais, por sua vez, a nada aspiravam senão ao aniquilamento de todos os privi-
légios feudais: poder contratar, fazer circular as riquezas, adquirir bens como
expansão da própria inteligência e personalidade, sem restrições ou entraves

1 AZEVEDO, Álvaro Villaça. O novo código civil brasileiro: tramitação, função so-
cial do contrato, boa-fé objetiva, teoria da imprevisão e em especial onerosidade ex-
cessiva. Cadernos de Direito, v. 4, n. 6, Piracicaba: Unimep, 2004, p. 13.

420
legais. Eis aí a filosofia do século XIX, que marcou a elaboração do tecido nor-
mativo consubstanciado no Código Civil”.2

De uma forma simplificada, o Código Civil de 1916 regulava o direito


privado com o intuito patrimonialista, visando precipuamente o enriqueci-
mento através do que foi pactuado entre os contratantes, demonstrando o
fruto do individualismo no Código Beviláqua. Nele reside a liberdade do in-
divíduo nas relações jurídicas, sem se preocupar com questões sociais de tal
relação, que poderiam afetar uma das partes envolvidas ou a terceiros.

1.1. FAMÍLIA

Embora, hoje, encontre-se em constante mudança o modelo das “famí-


lias”, o seguimento do Código de 1916 apresentava a família tradicional,
que tinha o marido como “o cabeça” do casal, o chefe da sociedade conju-
gal, função que exercia com a colaboração da mulher no interesse comum
do casal e dos filhos – modelo inaceitável em muitas famílias nos dias de
hoje.

“Em suas interações na sociedade, o homem tende a reunir-se em grupos, ou


núcleos, em que satisfaz suas necessidades básicas, de ordem pessoal ou patri-
monial, assumindo relevo especial a da família. Como centro irradiador de vida,
de cultura e de experiência, a família é acélula básica do tecido social, em que
o homem nasce, forma sua personalidade e se mantém, perpetuando a espécie,
dentro de uma comunidade duradoura de sentimentos e de interesses vários
que unem seus integrantes”.3

O Código de Beviláqua trazia valores de uma época conservadora, inclu-


sive um pensamento rígido quanto à mulher. A tradição conservadora da
época considerava a mulher como relativamente incapaz, fazendo a discri-
minação quanto a ela. Concede-se margem ao entendimento de que estaria
sempre sob o controle masculino, fato que a deixava vulnerável à indissolu-
bilidade do matrimônio, ou seja, a hierarquização patriarcal fazia com que o
divórcio não fosse algo admitido.
Com a Constituição da República de 1988, esse modelo de família não
resistiu, extinguindo-se questões de desigualdade entre homens e mulheres.
A nova Carta Magna deu uma perspectiva no direito de família, uma trans-
formação no formato econômico para o afetivo.

2 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,


2001, p. 2.
3 BITTAR, Carlos Alberto. Direito de família. São Paulo: Forense Universitária,
2006, p 125.

421
1.2. CONTRATO E PROPRIEDADE

A propriedade e o contrato (autonomia da vontade das partes) no Direi-


to Civil de 1916 possuíam a relação de cunho patrimonialista, ou seja, numa
ambiência individualista, na qual a forma absoluta de dispor da propriedade
ocorre como lhe convém, sem qualquer limitação do que é constituído em
sua propriedade ou acordado entre a vontade das partes.
Para EDSON FACHIN, os pilares básicos do Código Civil de 1916 ti-
nham por característica a família, contratos e a propriedade. FACHIN ex-
plica que:

“Os três pilares fundamentais, cujos vértices se assenta a estrutura do sistema


privado clássico, encontram-se na alça dessa mira: o contrato, como expressão
mais acabada da suposta autonomia da vontade; a família, como organização
social essencial à base do sistema, e os modos de apropriação, nomeadamente a
posse e a propriedade, como títulos explicativos da relação entre as pessoas
sobre as coisas”.4

O caráter da propriedade estabelecido do Código Civil de 1916 assegu-


rava ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de rea-
vê-los do poder de quem quer que, injustamente, os possua. É substituído,
com o passar do tempo, por restrições, servidões e desapropriações.

2. A BOA-FÉ CONTRATUAL

Aqui é importante destacar a diferença entre a boa-fé objetiva e a boa-fé


subjetiva. Aboa-fé subjetiva implica na intenção do agente; consiste no seu
interior, às suas crenças internas.Enquanto, a boa-fé objetiva engloba o con-
junto dos fatos e a conduta das partes com o dever de agir sempre com ho-
nestidade, correspondendo entre as partes a confiança recíproca, visando a
questões éticas, morais e legais.
Nesse sentido, é importante destacar as lições de Judith Martins-Costa:

“A expressão ‘boa-fé subjetiva’ denota ‘estado de consciência’, ou convenci-


mento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito [sendo] apli-
cável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria posses-
sória. Diz-se ‘subjetiva’ justamente porque, para a sua aplicação, deve o intér-
prete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicoló-
gico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também
vista subjetivamente como a intenção de lesar outrem [...]

4 FACHIN, Luiz Edson.Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
p. 12-13.

422
Já por ‘boa-fé objetiva’ se quer significar, segundo a conotação que adveio da
interpretação conferida ao § 242 do Código Civil alemão, de larga força expan-
sionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos
países da common law, modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurí-
dico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar sua própria conduta a esse arqué-
tipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, pro-
bidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fa-
tores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos,
não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente sub-
juntivo”.5

De forma simplificada, explica CÉSAR FIUZA:

“A boa-fé subjetiva consiste em crenças internas, conhecimentos e desconheci-


mentos, convicções internas. Consiste, basicamente, no desconhecimento de
situação adversa. Quem compra de quem não é dono, sem saber, age de boa-fé,
no sentido subjetivo.

A boa-fé objetiva baseia-se em fatos de ordem objetiva. Baseia-se na conduta


das partes, que devem agir com correção e honestidade, correspondendo à con-
fiança reciprocamente depositada. As partes devem ter motivos objetivos para
confiar uma na outra”.6

Dessa maneira, a boa-fé objetiva nas relações contratuais tem uma aná-
lise na conduta e nos efeitos que são atribuídos aos contratos, incidindo di-
retamente na conduta das partes manifestadas.
O art. 422 do Código Civil de 2002 declara que os contratantes, mesmo
na conclusão do contrato e em sua execução, têm o dever de agir em confor-
midade com aboa-fé. Carlos Roberto Gonçalves explica que: “Cabe ao juiz
estabelecer a conduta que deveria ter sido adotada pelo contratante, naque-
las circunstâncias, levando em conta ainda os usos e costumes. Estabelecido
esse modelo criado pelo juiz para a situação, cabe confrontá-lo com o com-
portamento efetivamente realizado”.7

2.1. DEVERES ANEXOS OU LATERAIS

Daboa-fé objetivaderivam deveres anexos ou laterais, como: deveres de


lealdade e cooperação; deveres de proteção, de sigilo ou de cuidado; e deve-

5 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no pro-


cesso obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p.411.
6 FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 9. ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2006. p.410-411.
7 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. III, 6. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009. p. 36.

423
res de informação ou esclarecimento. O dever da obrigação principal faz sur-
gir outras obrigações nas relações jurídicas e o não cumprimento desses de-
veres iria ferir a boa-fé objetiva.

[...] o conteúdo do contrato amplia-se, por força da boa-fé, para além das
obrigações estritamente contratuais. Ao lado das obrigações que não existiriam
fora do contrato, a boa-fé passou a incluir no contexto contratual o dever geral
de não causar dano, em todas as suas múltiplas especificações. Este campo de
atuação dos deveres instrumentais.8

“Os deveres anexos podem ser compreendidos como deveres positivos


e negativos, os quais, através da sua inserção na relação jurídica, relativizam
a autonomia privada, aoestabelecer deveres de comportamento, os quais
nortearão a conduta dos contratantes, nas fases pré-contratual, contratual e
pós-contratual”.9 Além da obrigação principal, deve ser sempre observado
os deveres da conduta na relação jurídica para que não se ofenda a boa-fé
objetiva, a qual serve para instrumentalizar toda relação jurídica e o cumpri-
mento da obrigação principal, que tem o interesse das partes envolvidas no
contrato.

2.2. VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO

“Devido à importância concretizada pelos deveres anexos de conduta


nas relações jurídicas obrigacionais, a doutrina firmou entendimento no sen-
tido de que, quando se descumpre os deveres anexos de conduta, surge a
chamada violação positiva do contrato ou adimplemento ruim”.10 Se o con-
trato apresentar algum defeito jurídico, o contratante tem o dever de repa-
rar eventuais danos sobrevindo dessa relação jurídica.

“A boa-fé enseja, também, a caracterização do inadimplemento mesmo quando


não haja mora ou inadimplemento absoluto do contrato. É o que a doutrina
moderna denomina violação positiva da obrigação ou do contrato. Desse modo,
quando o contratante deixa de cumprir alguns deveres anexos, por exemplo,
esse comportamento ofende a boa-fé objetiva e, por isso, caracteriza inadimple-
mento do contrato”.11

8 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato:novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janei-


ro: Renovar, 2006. p.155-156.
9 MELLO, Heloísa Carpena Vieira de. A boa-fé como parâmetro da abusividade no
direito contratual. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-cons-
titucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.316.
10 CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito ci-
vil.Coimbra: Almedina, 2007. p. 594.
11 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro.v.3. Contratos e atos uni-
laterais,9.ed., São Paulo: Saraiva, 2012. p. 59.

424
Outra expressão da violação positiva do contrato, conhecida como
“cumprimento defeituoso”, não decorrerá somente do descumprimento da
prestação principal, mas da desobediência aos deveres anexos decorrentes
do princípio da boa-fé objetiva. O art. 422 do Código Civil de 2002 deter-
mina que os contratantes têm o dever de conservar, em todo o desenrolar da
relação pactuada, o princípio da boa-fé objetiva, ou seja, uma forma de ex-
tinguir possíveis condutas que violem a boa-fé objetiva até o fim dessa rela-
ção contratual.

3. A LIBERDADE CONTRATUAL

A liberdade de contratar é a oportunidade que o indivíduo tem de con-


tratar, caso queira ou não; enquanto a liberdade contratual se apresenta na
possibilidade de escolher o conteúdo do contrato. Só terá restrições em vir-
tude de ordem pública, uma vez que o interesse social interfere nas relações
privadas.

Qualquer leigo em Direito sabe que goza de uma liberdade natural para cele-
brar pactos com outras pessoas e que, uma vez alcançado o acordo, nasce para
cada uma das partes um compromisso de mútuo cumprimento, não só por res-
peito à palavra dada, mas também pela expectativa de que a outra parte cum-
prirá o trato e pela necessidade de gerar uma confiança no entorno para cele-
brar novos convênios. Por isso não cria estranheza aos acadêmicos que ocupam
os bancos dos Cursos de Direito aquele solene e categórico brocardo latino pac-
ta sunt servanda, tão sonoro e tão fácil de aprender; nem aquela sentença lapi-
dária de que “o contrato é lei entre as partes”, proclamada pelo Código Napo-
leão, hoje bicentenário; nem saber que os doutos pandectistas alemães, depois
de proclamar o princípio de autonomia davontade, colocaram-no como princí-
pio cardeal no frontispício do Direito privado.12

A Liberdade de Contratar se distingue da Liberdade Contratual; é um


tema de alta relevância na Autonomia da Vontade, conhecida como Autono-
mia Privada. Existe divergência na doutrina que difere a Autonomia da Von-
tade, reunida na liberdade em contratar.A diferença da Liberdade de Con-
tratar é a eventualidade em que o contratante tem de contratar, caso queira.
Já a Liberdade Contratual se resume na escolha do conteúdo em que o con-
trato será feito.

“No contrato de nossa época, a lei prende-se mais à contratação coletiva, visan-
do impedir que as cláusulas contratuais sejam injustas para uma das partes. As-

12 SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto. A obrigação como processo. São Paulo: Bus-
hatsky, 1976. p. 26.

425
sim, a lei procurou dar aos mais fracos uma superioridade jurídica para compen-
sar a inferioridade econômica.

[...] Por esse prisma, realçando o conteúdo social do novo Código, seu art. 421
enuncia: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da fun-
ção social do contrato”. O controle judicial não se manifestará apenas no exame
das cláusulas contratuais, mas desde a raiz do negócio”.13

Com essas novas diretrizes, a Liberdade Contratual ganha uma nova va-
loração, são traçados princípios constitucionais para assegurar a utilidade so-
cial nas relações contratuais. A liberdade passa a ser limitada nos interesses
da coletividade. Sobre esse novo aspecto, explica o professor J. MIGUEL
LOBATO GÓMEZ:

“Na atualidade, os doutrinadores mais atentos costumam afirmar que o contra-


to não é uma simples relação de interesses contrapostos, senão também um
instrumento de cooperação social, portanto nos últimos tempos deixou-se de
conceber o contrato como um instrumento necessariamente decorrente ou re-
presentativo de interesses antagônicos, em vez de adversários os contratantes
passaram, num número cada vez maior de contratos, a ser caracterizados como
parceiros, que pretendem ter, um com o outro, uma relação equilibrada e equi-
tativa, considerando até os ideais de fraternidade e justiça”.14

Claramente, notam-se os interesses coletivos, vistos como um novo in-


divíduo no ordenamento jurídico, assumindo as novas relações sociais do
contrato e extinguindo a ilicitude do enriquecimento, através dos vícios
onerosos constituídos nos contratos. Hoje o novo ordenamento jurídico, o
código civil de 2002, restringe o absolutismo do princípio do “Pacta Sunt
Servanda”, marcando um novo equilíbrio entre as partes, legitimando o con-
teúdo contratual e respeitando os interesses particulares da coletividade no
ordenamento jurídico.

CONCLUSÃO

Podemos afirmar que, a Função Social do Contrato rompe o legado do


Direito Civil nas concepções individualistas, limitando a autonomia da von-
tade no novo dispositivo do Código Civil de 2002. A Constituição da Repú-
blica de 1988 enfatiza a função social, destacando a importância do equilí-
brio social em suas relações e respeitando o interesse coletivo, em consonân-

13 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral
dos contratos. v. 2. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003.p. 375-376
14 GÓMEZ, J. Miguel Lobato. Autonomia privada e liberdade contratual. Teresina:
Revista Jus Navigandi, 2015, n. 2397, 23jan.2010.

426
cia com a estrutura econômico-social. O princípio da função social do con-
trato, agrega uma proteção para as partes envolvidas e toda a sociedade, evi-
tando a ineficácia das relações que têm por conveniência ofender aos inte-
resses sociais, podendo produzir efeitos a terceiros.

Referências:

AZEVEDO, Álvaro Villaça. O novo código civil brasileiro: tramitação, função so-
cial do contrato, boa-fé objetiva, teoria da imprevisão e em especial onerosi-
dade excessiva. Cadernos de Direito, v. 4, n. 6, Piracicaba: Unimep, 2004.
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de família. São Paulo: Forense Universitária,
2006.
CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes.Da boa-fé no direito ci-
vil.Coimbra: Almedina, 2007.
FACHIN, Luiz Edson.Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 9. ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2006.
GÓMEZ, J. Miguel Lobato. Autonomia privada e liberdade contratual. Teresina:
Revista Jus Navigandi, 2015, n. 2397, 23jan.2010.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. III, 6. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009.
______. Direito civil brasileiro.? v.3. Contratos e atos unilaterais,9.ed., São Paulo:
Saraiva, 2012.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no pro-
cesso obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
MELLO, Heloísa Carpena Vieira de. A boa-fé como parâmetro da abusividade no
direito contratual. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito
civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
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ro: Renovar, 2006.
SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto. A obrigação como processo. São Paulo: Bus-
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TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
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dos contratos. v. 2. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

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