Sei sulla pagina 1di 7

SOBRE TRAGÉDIA... AFINAL, SÃO TRAGÉDIAS!

1
Antonio Guedes

Quando se classifica uma obra como tragédia, não se está apenas aludindo a um gê-
nero, mas, também, relacionando esta obra com uma origem. Portanto, quando Nel-
son Rodrigues diz que sua peça é uma tragédia, ele está propondo um diálogo com
uma certa dimensão temporal. Ele está disposto a procurar uma relação do seu traba-
lho com um lugar que, mesmo distante no tempo, ainda é determinante na sua manei-
ra de construir peças, Nelson está, enfim, apontando para um lugar originário.
Mas que origem é essa? Estou complicando um Nelson obviamente muito mais sim-
ples?
Não. Nelson não é simples. É de fácil apreensão porque inventa sua cena a partir de
um jogo de elementos muito próximos da nossa realidade, mas este jogo não busca
aludir àquela realidade, simplesmente. Ele promove um jogo em cena que torna seu
teatro uma realidade muito própria. Nelson é extremamente sofisticado. A ponto de
agradar até àquele homem mais simples, menos ilustrado.
Tragédia é linguagem
Origem, aqui, deve ser entendida não como um fato perdido no passado; não é o iní-
cio de uma coisa que vai ficando, cada vez mais, perdida no tempo. Origem é o prin-
cípio que se estende ao longo de toda a existência; é uma idéia que funda, atravessa
e permanece, às vezes invisivelmente, naquilo que foi criado.
A origem do teatro ocidental é a tragédia grega. Quando falamos em tragédia, num
primeiro momento pensamos em acontecimentos catastróficos. Mas o gênero trágico
não se funda sobre esta característica. A tragédia grega trabalha com duas idéias
fundamentais: o destino e a justiça. O destino é aquilo sobre o qual o homem não tem
qualquer ingerência. É a trajetória que os deuses determinaram para o personagem.
E a justiça, para um grego, é o equilíbrio entre a vontade divina e a decisão humana.
É no desequilíbrio desta balança, quando tendemos mais para um lado ou para outro,
que o destino se revela. É sempre no erro que o destino se torna visível, porque antes
do erro, a trajetória do personagem vem sendo desenhada num ritmo progressivo.
Mas, na falha, no erro, a cadência do personagem é abalada.
Não podemos nos esquecer que a tragédia grega se construía sobre um conceito de
indivíduo muito diferente do conceito contemporâneo. Poderíamos mesmo dizer que o
conceito de sujeito na Grécia antiga não considerava os sentimentos como inerentes
ao próprio indivíduo. Todo movimento interno era promovido por uma entidade exter-
na. Os deuses eram responsáveis pelo amor, pelo ódio, pelo desejo de vingança.
Este sujeito despossuído de vontade própria ganha visibilidade através da forma co-
mo a tragédia grega descreve os sentimentos. É a linguagem que nos fala do homem
grego. Se, ao sentir paixão por uma mulher o homem atribui a Afrodite este estado de
ânimo, isto é uma forma de dizer um sentimento, que não parece comprometer aque-
le que sente... o homem grego é sempre atingido, é sempre vítima do sentimento –
que, afinal, é da ordem do divino. Seja bom ou mau, o sentimento é que se apodera
do homem.

1
O primeiro contato que tive com estas idéias vieram das aulas e da parceria de trabalho com Ângela
Leite Lopes, na época, professora da Escola de Teatro da Uni-Rio, hoje, professora da EBA-UFRJ e
autora de Nelson Rodrigues – trágico, então, moderno, editado pela Editora UFRJ, RJ, 1993.
O que é importante notar é que qualquer conceituação sobre o sujeito grego ou sobre
a tragédia grega só é possível se atentarmos para a maneira como a linguagem reve-
la as relações do homem com seus sentimentos, suas vontades, suas escolhas ou
com o acaso. A construção da linguagem revela o homem e seu tempo. É na escrita
sobre o sentimento que lemos esta relação do indivíduo consigo próprio. É na fala dos
personagens que identificamos a presença dos deuses no cotidiano do homem grego.
É, portanto, na linguagem que a tragédia se torna visível; é na fala poética que o herói
grego decai. A vigência da tragédia está, portanto, na força da construção da lingua-
gem que nomeia a trajetória dos personagens.
A tragédia de Nelson
Mas Nelson não tem qualquer interesse arqueológico. Seu interesse está na origem e
não na forma como a origem se apresenta; está efetivamente numa idéia que a tra-
gédia carrega e que, necessariamente, não exige uma mortandade em seqüência.
Quando Nelson classifica uma parte da sua obra como tragédia carioca, ele quer alu-
dir àquela origem do teatro, mas sem esquecer o lugar de origem do universo de suas
peças: o Rio de Janeiro. Mas – questionaria o leitor atento – se a tragédia grega fala-
va de um conceito de sujeito tão distante do conceito atual, ela está perdida no tem-
po... não há qualquer relação entre nosso modo de ver a vida e o modo grego. É ver-
dade... mas há relações; rastos. Alguns imediatos, outros, nem tanto. Revelar a ori-
gem é estabelecer relações; é ordenar os sinais; é definir uma perspectiva e descre-
vê-la. Nelson lança mão de sinais literais da tragédia – como o uso de coros ou de
palavras-chave como “maldição” ou “destino” – mas a tragicidade de suas peças não
se funda nesta superficialidade e sim na dimensão de um mundo totalmente construí-
do pela linguagem. Uma linguagem muito própria; uma linguagem que inventa uma
realidade rodriguiana.
Nelson é de um tempo em que o poder de decisão, antes atribuído aos deuses, foi
transferido para o sujeito. É de um tempo em que os deuses se singularizaram. Em
nosso tempo cristão, as palavras “destino” e “justiça”, lançadas na perspectiva da
construção de uma idéia sobre a tragédia contemporânea, já não se mostram como
idéias fundamentais. Num mundo onde os deuses tornaram-se Deus, num mundo no
qual Freud desenhou os contornos de um sujeito que é o motor de suas ações, “des-
tino” passou a ser algo exclusivo da seara dos homens e “justiça” abandonou os tem-
pos imemoriais para habitar apenas os fóruns, as assembléias e os tribunais. A idéia
da tragédia que Nelson constrói em suas peças promove uma substituição destas
palavras por outras que determinarão a trajetória dos seus personagens trágicos. Nas
tragédias cariocas, “destino”, ou seja, aquilo do qual não podemos fugir, aquilo que
nos leva a fazer o que não deveríamos, aparece como “desejo” ou “paixão”. Estes
são os nomes da desmedida (hybris) contemporânea.
Em O beijo no asfalto, a atitude de Arandir, que beija um rapaz que tinha acabado de
ser atropelado e agonizava na Praça da Bandeira, justamente por ter sido um beijo
aparentemente voluntário – porque ele o poderia evitar – mostra-se como a moderna
falha trágica que substitui o erro involuntário – porque era obra do destino – que Édi-
po cometeu ao assassinar o pai e se casar com a mãe. Mas por que afirmaríamos
que Arandir poderia ter controlado o seu impulso (que era movido pela compaixão)
se, está claro, ele não era capaz adivinhar as conseqüências daquele ato? Ele obe-
deceu a um impulso. Assim como Édipo que, sem saber que se tratava de seu pai,
matou um desconhecido que o ofendera. O destino de Édipo foi tão determinante
quanto a com-paixão de Arandir ou quanto o desejo de Herculano por Geni em Toda
nudez será castigada. Arandir não poderia saber quais seriam as conseqüências do
beijo porque não imaginava que seu ato seria colocado na perspectiva da “versão”,
do relato, da mentira de personagens que presenciaram o beijo e redimensionaram o
fato dentro de um contexto vantajoso apenas para eles.
Da mesma forma, Herculano não poderia saber que seu irmão, Patrício, vingava-se
conduzindo-o ao erro de casar-se com uma prostituta e que manipulava, através de
informações duvidosas, os personagens que envolviam a tragédia de Herculano.
Assim, a “paixão”, só se torna palavra trágica porque, ou é flagrada pelo relato que
atribui um certo valor à atitude ou é provocada pelo assédio de alguém. A paixão, por-
tanto, não tem, sozinha, uma atribuição trágica; ela precisa do relato que a revele.
Assim como o “destino” só se revela pelo desequilíbrio da balança da “justiça”.
Então, a outra idéia fundamental para a tragédia grega, ”justiça”, que era o fiel da ba-
lança em cujos pratos estavam, de um lado, as leis dos deuses e, do outro, as leis
humanas, passa por uma transformação na tragédia rodriguiana. O prato onde esta-
vam as leis dos deuses transformou-se no lugar habitado pelas beatas e pelas tias
solteiras, ou seja, pelas mantenedoras da moral cristã que baliza as atitudes sociais.
E, no outro prato, está o próprio relato das ações trágicas, as chamadas “versões do
fato”. Portanto, a “justiça” passa a encarnar a idéia de “verdade”. Mas não uma ver-
dade entendida como uma idéia absoluta, e sim como uma afirmação circunstancial,
como o relato de uma atitude que é avaliada a partir de uma perspectiva da moral
cristã. E, assim, a “verdade” adquire o valor do conto, a força da retórica, do conven-
cimento. Como esquecer a história contada em Boca de ouro na qual o bicheiro, fla-
grado na cama pelo marido de sua amante, diz que ela negou tão veementemente
que até ele mesmo ficou em dúvida se estava ou não na cama com ela... A verdade
rodriguiana equivale à verdade pirandelliana: o discurso é a verdade dos fatos. A rea-
lidade é da ordem da lembrança ou da imaginação: pode ou não ter acontecido. Mas
a verdade é da ordem do relato: é a descrição do fato.
“Paixão” (desejo) e ”verdade”. Estas palavras, decaídas e relativizadas pela falta de
componentes divinos na equação, aparecem em Nelson como uma maldição que leva
o indivíduo à perdição. E a tragédia rodriguiana está dimensionada no dia-a-dia cario-
ca. Assim como a tragédia, na Grécia, pretendia discutir o homem daquela época co-
locado na dimensão temporal e, portanto, divina, relacionando um tempo imemorial
(mythos) com um tempo da pólis (formação da cidade), a tragédia rodriguiana coloca
o homem no limite entre as atitudes que a paixão o leva a tomar e a dimensão das
palavras que, encadeadas, constroem o relato que inventa ou revela as circunstân-
cias que envolviam aquelas atitudes. É a partir deste relato, desta versão, que os atos
dos personagens serão julgados pelas pessoas que o cercam.
No Brasil todo mundo é Peixoto!
Por meio da generalização, Nelson cria mitos. E, se as tragédias precisam dos tem-
pos heróicos para criar contrastes com o tempo atual, em Nelson, este tempo se en-
carna em figuras que, de alguma forma, levam o personagem trágico ao erro.
O personagem trágico rodriguiano não é um herói que tem em sua genealogia uma
ascendência nobre. Muito pelo contrário, seus personagens são homens e mulheres
comuns; sobreviventes da classe média brasileira. País no qual “todo mundo é Peixo-
to”, segundo Werneck, de Bonitinha mas ordinária, um milionário sem escrúpulos
(mas com algum sentimento de culpa, apenas o suficiente para dar volume ao perso-
nagem). E Peixoto é o nome do personagem torpe que, casado com uma das filhas
de Werneck, vive às custas do sogro. É ele que se incumbe de fazer a Edgar, ex-
contínuo, a proposta – mote de toda a peça – a princípio irrecusável: um cheque al-
tíssimo ao portador para que o rapaz se casasse com Maria Cecília, cunhada de Pei-
xoto, que tinha sido estuprada e, por isto, não encontraria casamento. Na verdade, o
estupro foi promovido por Peixoto, que contratou vários negros para satisfazer uma
fantasia sexual de Maria Cecília, por quem é apaixonado.
Enfim, se no Brasil todo mundo é Peixoto, isto significa que o mundo onde Edgar, o
herói trágico de Bonitinha, mas ordinária, vive não é habitado por heróis olímpicos.
Muito pelo contrário, ele é pura imundície. E esta sujeira é anunciada e sublinhada
por Peixoto. É contra este mundo que Edgar luta e, numa atitude apaixonada, queima
o cheque milionário para viver com Ritinha, mesmo sabendo que ela era uma garota
de programa. Mas sua atitude o redime apenas em uma dimensão pessoal. O mundo
decaído (porque o mundo rodriguiano não é divino) não mudará com sua atitude.
Nesta tragédia, Edgar parece não cometer nenhum erro ou, por outro lado, parece até
corrigir seu erro ao abandonar Maria Cecília, queimar o cheque e fugir com Ritinha
em direção ao sol. Bonitinha, mas ordinária é a única tragédia que, aparentemente,
tem um final feliz. Um desfecho onde, o “bem” seria vitorioso e o mal derrotado. Mas
seria mesmo? Edgar, antes de queimar o cheque, diz que eles vão começar a vida
sem nenhum tostão. E quase se pode ouvir as falas finais, ditas naquela inflexão am-
bígua, irônica, enfim, canastrona, de Nelson Rodrigues: “E se for preciso, um dia, vo-
cê beberá água da sarjeta. Comigo.”
Depois de ouvir esta fala, com esta inflexão, fica no ar a maldição proferida por Peixo-
to: “Toda família tem um momento em que começa a apodrecer.” Afinal, o mundo sob
aquele sol em direção ao qual Edgar e Ritinha caminhavam no fim da peça ainda é o
mesmo.
Eu não beijaria na boca um homem que não estivesse morrendo!
A dimensão do herói trágico rodriguiano encontra um perfeito exemplar em Arandir,
de O beijo no asfalto. Um homem comum que ia à Caixa Econômica junto com o so-
gro para empenhar uma jóia presencia um atropelamento. Num impulso, vai até a
vítima que agoniza, beija a boca do moribundo que, em seguida morre. O sogro pre-
sencia o fato, os passantes também, mas, para a infelicidade de Arandir, também es-
tava lá Amado Ribeiro, repórter da Última Hora.
Nelson volta a trabalhar com uma idéia já visitada, um ano antes, em Boca de ouro: a
verdade contida no relato. Se em Boca... as versões variam de acordo com o humor
de quem relata (D. Guigui), no Beijo... a verdade dos fatos será relatada pelo repórter
que conta uma deliberada mentira para vender, à cidade, uma história retumbante. E
esta manchete jornalística vai colocar o simples Arandir como foco de toda a cidade
que julgará, a partir da matéria daquele repórter, o beijo dado em um desconhecido
agonizante.
Amado Ribeiro, o repórter que produz a verdadeira versão daquele beijo, assume o
lugar de Peixoto de Bonitinha... Ele revela a verdade – porque sua matéria jornalística
é o relato, a versão oficial do fato ocorrido –, uma verdade que atribui ao ato o valor
de um erro – erro moral para a cidade e trágico para Arandir – cometido pelo herói
trágico. Amado é a imagem de um mundo cruel no qual parece não caberem homens
de bem. Não há espaço para a ingenuidade, parece dizer Amado Ribeiro, toda atitude
é interessada (e interesseira). É sempre um toma-lá-dá-cá. E, se Arandir beijou o a-
tropelado, é porque ou lhe devia este beijo ou dele tirava prazer.
Desta peça, fica a fala de Arandir que, de forma quase suplicante, explicaria sua falha
trágica:
– “Não! Nunca! Eu não beijaria na boca um homem que. (Passa as costas da
mão na própria boca, com um nojo feroz.) Eu não beijaria um homem que não
estivesse morrendo!”
Mas não explica. Amado Ribeiro deu verdade e concretude a uma atitude impensada
de Arandir que poderia se perder no vazio da realidade. O relato do jornalista promo-
veu conseqüências inesperadas. Mas a realidade daquele beijo morreu com Arandir.
O único, enfim, a saber o que aquele fato realmente significava...
Se Deus existe, o que vale é a alma. Não é a alma?
Mas um homem comum nem sempre é um homem pobre. Herculano de Toda nudez
será castigada não é nenhum rei grego, mas é um homem de posses. O que o torna
um homem comum são suas crenças, e o que o torna um personagem trágico é seu
desejo, que vai de encontro às suas crenças. Aqui, Nelson vai trabalhar a separação
cristã entre o corpo e o espírito, na medida em que, se a alma é pura, Deus vai per-
doar, não importando como o corpo foi maculado, se pelo desejo ou pelo acaso. É a
popular contradição na qual alguém pode ser negro mas ter a alma branca.
Toda nudez... vai evidenciar o jogo dicotômico que Nelson desenvolve em sua obra.
Uma dicotomia que separa, tragicamente, como numa maldição, o corpo do espírito,
o bem do mal, o desejo do amor. E, quando em O teatro desagradável2 Nelson, em
resposta aos críticos que diziam que sua obra gravitava em torno de “sexo, sexo, se-
xo”, argumenta que não vê como qualquer assunto possa se esgotar, e muito menos
o sexual, o que ele está dizendo também é que seu melhor assunto está no âmbito do
que é estigmatizado e proibido pela civilização cristã. Aí está o lugar da questão para
Nelson. Ele não quer negar a moral cristã nem protestar contra ela. Ele quer, ao con-
trário, revolver nossos mitos e nossas marcas de pensamento.
Herculano, nosso personagem trágico, chega em casa e recebe uma fita. Nela, a voz
de Geni começa dizendo: “Herculano, quem te fala é uma morta. Eu morri. Me matei.”
e, a partir daí ela vai contar tudo, desde o princípio, para que ele entenda os motivos
de seu ato.
Este recurso traz, mais uma vez, a narrativa para o primeiro plano. Assim como, em
Boca de ouro, o Boca só tinha existência através do relato de Dona Guigui, como na
Valsa nº 6, Sônia é apenas o que se pode ver e ouvir dela em cena, e como, em O
beijo..., a vida de Arandir foi decidida pela versão do seu beijo veiculada pelo repórter
no jornal, Toda nudez... é uma história contata por Geni. Como em Vestido de noiva,
pode ser fruto do sonho, ou da imaginação. Mas é relato e acontece em cena. E, em
cena, o relato é concreto. A dicotomia palavra/sentido não existe. As duas são uma e
pronto: a vida se dá a partir do relato.
Também nesta peça temos uma imagem do mundo cão: Patrício, irmão de Hercula-
no, foi à falência. Herculano podia ajudar mas não moveu um dedo. Patrício vive, a-
gora, às custas do irmão rico, mas nutre um ódio intenso contra ele, hoje, um viúvo
dedicado ao luto à ex-mulher. É Patrício quem vai apresentar Geni ao irmão. É ele
quem vai levar Serginho, filho de Herculano, a ser amante da madrasta, é ele quem
vai contar a Geni, que Serginho fugiu com o ladrão boliviano que o havia currado na
prisão. Segundo Patrício, “o casto é um obsceno.” De novo, lançando mão de uma
generalização, Nelson cria uma imagem mitológica do homem que, em algum mo-
mento, incorrerá no erro. Se não errar por si mesmo, acabará recebendo um empur-
rãozinho. Mas a decadência é inevitável porque a castidade é, também, imoral, por
dar margem a sonhos contraditórios.

2
Publicado no primeiro número da revista Dionysos, editada pelo então Serviço Nacional de Teatro em
outubro de 1949. Republicado no número 7 da revista Folhetim Teatro do Pequeno Gesto, edição de
maio-agosto de 2000.
Herculano sonhava, por isto se apaixonou por Geni, aquela com quem ele transou
doze vezes em duas noites de luxúria. Patrício sabia que seria fácil levá-lo ao erro. E
não hesitou.
O homem deseja sem amor, a mulher deseja sem amar
A serpente é a última peça de Nelson e, se as outras peças aqui comentadas tinham
em sua estrutura um personagem que servia de mote para que a paixão deslanchas-
se e seguisse seu curso avassalador sobre o personagem trágico – Amado Ribeiro
em Beijo...; Peixoto em Bonitinha...; Patrício em Toda nudez... – aqui não temos um
personagem que exerça este papel: é a própria paixão que se apresenta como prota-
gonista e se impõe aos personagens – quase como aquele deus grego que se apode-
ra do homem.
Considerada uma peça de fôlego curto, ela é, na verdade, um primor de síntese. A
palavra fôlego, inclusive, está no campo semântico da suspensão da respiração, da
sensação de falta de ar provocada pela velocidade com que as cenas se encadeiam.
O fato de esta peça ser construída sobre um único ato torna-se um fator estratégico
para o efeito trágico que Nelson procura. Não construir tramas paralelas colabora pa-
ra que a história ganhe uma velocidade devastadora na vida dos três personagens
envolvidos no jogo amoroso: Guida, Lígia e Paulo serão tragados pela impossibilida-
de de resistir ao desejo. Neste texto, a partir do erro trágico – que está no fato de
Guida oferecer, por uma noite, seu marido a Lígia, sua irmã – é dada a partida para
uma corrida na qual o desejo impulsiona a ação com tal velocidade que temos a sen-
sação de só conseguirmos respirar quando, enfim, Guida é assassinada.
Aqui, Nelson não quer mais evidenciar a tragédia por meio dos passos que o perso-
nagem, numa construção psicológica, daria em direção ao seu destino. Sua trajetória
dá saltos, avança rapidamente em direção à conclusão da história. Os personagens
não têm tempo para refletir; apenas agem. E, no fim da peça, temos não exatamente
uma trajetória em direção à desgraça, mas uma sensação. É o sentimento do trágico
que se revela.
Nelson, como em quase todas as suas peças, recorre a um título instigante que nos
obriga a perguntar pelo seu sentido. Em clara alusão ao pecado original, A serpente é
uma peça construída de forma ágil, com rápidas passagens de cena, sugerindo uma
uma edição cinematográfica – recurso que o autor já tinha experimentado em algu-
mas peças, como as mudanças de quadros em O Beijo... ou, de forma explícita, nas
projeções de Bonitinha... A serpente estabelece um jogo narrativo no qual os diálogos
são interrompidos pelo que Nelson chama de “monólogo interior aos gritos”, um re-
curso de narração que suspende a ação para relatar informações importantes, seja
para a compreensão da história, seja para revelar os sentimentos dos personagens
em determinados momentos da peça.
Em A serpente, Nelson parece querer evidenciar a estrutura de construção da peça,
deixando-a, por assim dizer, à mostra. A falta de tramas paralelas também colabora
para que vejamos este texto de forma esquemática. Mas isto, longe de se mostrar
como um defeito, é, na verdade, uma das qualidades deste texto. É uma característi-
ca que aponta para uma dramaturgia seca, descarnada, direta e cruel. Aponta para
uma escrita dramática que, sem abandonar sua base trágica, começa a experimentar
um tempo, uma velocidade próprios da época em que foi escrita (1978), quando a
televisão é uma referência cultural e o cinema é uma realidade, inclusive em relação
à obra de Nelson.
Vida é o que representamos no palco e não o que vivemos cá fora 3
Ao dizer estas palavras, Nelson sabia o que estava em jogo na construção das suas
peças. Não, decididamente, Nelson não é simples. Ele nos traz uma cena moderna,
vigorosa, cheia de concretude e, ao mesmo tempo, articula e promove a comunhão
da contemporaneidade com o público. Poucos conseguem realizar esta proeza.
Ao pensar estas peças, é importante dimensioná-las no tempo... e no limite da linha
imaginária do tempo no ocidente está a tragédia grega. Inserir as peças de Nelson
Rodrigues no tempo da história do teatro, não apenas o brasileiro, pode protegê-las
de se tornarem mero jogo de costumes, mera crônica carioca. Não que estas peças
não sejam ótimas crônicas... mas seria uma pena limitá-las à superfície se trazem em
si questões fundamentais que as inscrevem num panorama dramatúrgico do qual o
Brasil também faz parte.

3
Programa do espetáculo Senhora dos afogados, Rio, 1954.

Potrebbero piacerti anche