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1590/S0080-623420140000800027
Artigo Original
Entrevistas narrativas: um importante recurso
em pesquisa qualitativa
Camila Junqueira Muylaert1, Vicente Sarubbi Jr.2, Paulo Rogério Gallo3, Modesto Leite Rolim Neto4,
Alberto Olavo Advincula Reis5
1
Psicóloga. Mestre em ciências. Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil.
2
Mestre em ciências. Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil. 3 Médico.
Professor livre docente. Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil. 4 Psicólogo.
Professor livre docente. Departamento de Medicina. Universidade federal do Ceará. Fortaleza, Brasil. 5 Psicólogo. Professor livre docente. Departamento de
Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil.
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Entrevistas narrativas: um importante
Português recurso em pesquisa
/ Inglês Recebido: 30/04/2014 Rev Esc Enferm USP
qualitativa www.scielo.br/reeusp Aprovado: 16/07/2014 2014; 48(Esp2):193-199
Muylaert CJ, Júnior VS, Gallo PR, Neto MLR, www.ee.usp.br/reeusp/
Reis AOA
Introdução A descrição caracteriza uma tendência literária da segun-
da metade do século XIX e acompanha o caminho do capi-
“As pessoas podem esquecer o que você fez, o que você talismo, sendo seu resíduo. Gradativamente, a descrição
disse, mas nunca esquecerão o que você as fez sentir.” elimina a troca entre a práxis e a vida interior, caracterís-
Fernando Pessoa. ticas da narrativa.
As entrevistas narrativas se caracterizam como ferra- A superficialidade é característica da descrição que
mentas não estruturadas, visando a profundidade, de as- não desperta interesses mais profundos(3).
pectos específicos, a partir das quais emergem histórias
O excesso de explicações sobre as coisas do mundo,
de vida, tanto do entrevistado como as entrecruzadas no
contrapõe a narrativa à informação. A narrativa é uma for-
contexto situacional. Esse tipo de entrevista visa encorajar
ma artesanal de comunicar, sem a intenção de transmitir
e estimular o sujeito entrevistado (informante) a contar
informações, mas conteúdos a partir dos quais as expe-
algo sobre algum acontecimento importante de sua vida e
riências possam ser transmitidas(4). Dito isto, Benjamin(4)
do contexto social(1). Tendo como base a ideia de recons-
tinha como conceito central de sua teoria a experiência e
truir acontecimentos sociais a partir do ponto de vista dos
como expressão delas a narrativa que para ele seria a for-
informantes, a influência do entrevistador nas narrativas
ma de comunicação mais adequada ao ser humano.
deve ser mínima. Nesse caso, emprega-se a comunicação
cotidiana de contar e escutar histórias. Jovchelovich e Nesse sentido: ``Enriquecido pela trama das narrati-
Bauer(1) ainda alertam para a importância de o entrevis- vas, o estilo dos textos produzidos torna-se mais fluente
tador utilizar apenas a linguagem que o informante em- e mais próximo da literatura, mas, sobretudo, nos ajuda a
prega sem impor qualquer outra forma, já que o método refletir sobre questões que dizem respeito a todos, nesses
pressupõe que a perspectiva do informante se revela me- difíceis e complexos tempos em que vivemos(5).
lhor ao usar sua linguagem espontânea. Essas asserções
se assentam na compreensão de que a linguagem empre- Dessa forma, nas narrativas o autor não informa sobre
gada constitui uma cosmovisão particular e, portanto, é sua experiência, mas conta sobre ela, tendo com isso a opor-
reveladora do que se quer investigar: o “aqui” e o “agora” tunidade de pensar algo que ainda não havia pensado(6).
da situação em curso. A narrativa, portanto, pode suscitar nos ouvintes diver-
Desse modo, há nas entrevistas narrativas uma impor- sos estados emocionais, tem a característica de sensibili-
tante característica colaborativa, uma vez que a história zar e fazer o ouvinte assimilar as experiências de acordo
emerge a partir da interação, da troca, do diálogo entre com as suas próprias, evitando explicações e abrindo-se
para diferentes possibilidades de interpretação. Interpre-
entrevistador e participantes(2).
tação não no sentido lógico de analisar de fora, como ob-
Lukács(3) discutindo a transformação da literatura ao servador neutro, mas interpretação que envolve a expe-
longo do tempo discorre sobre o contraste entre os prin- riência do pesquisador e do pesquisado no momento da
cípios da estrutura da composição da narrativa e da des- entrevista e as experiências anteriores de ambos, trans-
crição: a narrativa implica uma posição de participação cendendo-se assim o papel tradicional destinado a cada
assumida pelo escritor em face da vida e dos problemas um deles.
da sociedade. Nesse sentido, há engajamento entre os in-
Seguindo essa linha de raciocínio, as considerações de
terlocutores. A descrição, por seu lado, se relaciona a uma
Lukács(3) e Benjamin(4), apontam e indicam uma opção me-
posição de observação, de desvelamentos do fato per si,
todológica de se utilizar a técnica de entrevista narrativa
sem necessariamente, provocar interfaces entre o fato e
quando trazem à baila elementos teóricos necessários à
os sujeitos a ele pertencente, na conjuntura do discurso.
interpretação dos resultados obtidos.
Nesse mesmo sentido, Benjamin(4) considera que no
Tendo em vista que os processos macros são formados
processo narrativo o sujeito encontra-se implicado na sé-
por ações individuais, a partir da técnica de entrevistas nar-
rie de eventos e acontecimento evocados, ao passo que
rativas pode-se evidenciar aspectos desconhecidos ou ne-
na descrição ele, na condição de sujeito, se encontra apar-
bulosos da realidade social a partir de discursos individuais.
tado do relato que adquire uma dimensão objetiva, des-
critiva e observacional. Nesse sentido, a possibilidade de narrar o vivido ou pas-
sar ao outro sua experiência de vida, torna a vivência que é
A transformação da literatura, que permite contrastar
finita, infinita. Graças a existência da linguagem a narrativa
narrativa e descrição, relaciona-se ao modelo social de
pode se enraizar no outro. Sendo assim, a narrativa é fun-
cada época. Os estilos se alteram de acordo com neces- damental para a construção da noção de coletivo(7).
sidades histórico-sociais, sendo um produto da evolução
social. Isto não significa que o novo seja melhor que o an- A forma oral de comunicar re-significa o tempo vivi-
tigo. A tendência a observar e descrever implica a perda do, as coisas da vida, e concomitantemente a ela, emer-
da significação artística das coisas, rebaixando os homens ge o passado histórico das pessoas a partir de suas pró-
ao nível das coisas inanimadas, chegando a ser inumano. prias palavras(8). Assim uma das funções da entrevista
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narrativa é contribuir com a construção histórica da rea- Tabela 1 - Fases principais da entrevista narrativa.
lidade e a partir do relato de fatos do passado, promover Fases da Entrevista
Regras para a entrevista
o futuro, pois no passado há também o potencial de pro- Narrativa
jetar o futuro. Nessa ótica, o recurso da narrativa coinci- Preparação Exploração do campo.
de com a perspectiva de movimento, no sentido teórico, Formulação de questões exmanentes.
pois através dela é possível conseguir novas variáveis, Iniciação Formulação do tópico inicial para narração.
Emprego de auxílios visuais (opcional).
questões e processos que podem conduzir a uma nova
Narração central Não interromper.
orientação da área em estudo. Ou seja, a narratividade é Somente encorajamento não verbal ou
um recurso que visa investigar a intimidade dos entrevis- paralingüístico para continuar a
tados e possibilita grande riqueza de detalhes, em virtu- Narração.
de disso, pode ser importante quando determinada área Esperar para sinais de finalização
de estudo encontra-se estagnada por haver se exaurido (“coda”).
a busca por novas variáveis sem conseguir, entretanto, Fase de perguntas Somente “Que aconteceu então?”.
Não dar opiniões ou fazer perguntas
avançar no conhecimento. Ressalta-se ainda que os re- sobre atitudes.
latos orais são valorizados porque não são encontrados Não discutir sobre contradições.
em documentos(9). Não fazer perguntas do tipo “por quê?”.
Ir de perguntas exmanentes para
Imanentes.
o método da narrativa Fala conclusiva Parar de gravar.
São permitidas perguntas do tipo “por quê”?
Nas entrevistas narrativas se considera que nossa me- Fazer anotações imediatamente depois da
entrevista.
mória é seletiva, lembramos daquilo que “podemos” e al-
Fonte: JOVCHELOVICH E BAUER (2002)
guns eventos são esquecidos deliberadamente ou incons-
cientemente. Nessa perspectiva, o importante é o que a As questões exmanentes referem-se às questões da
pessoa registrou de sua história, o que experienciou, o pesquisa ou de interesse do pesquisador que surgem a
que é real para ela e não os fatos em si (passado versus partir da sua aproximação com o tema do estudo, ao ela-
história). borar a revisão de literatura e aprofundamento no tema a
As narrativas, dessa forma, são consideradas represen- ser pesquisado (exploração do campo). Essas questões de-
tações ou interpretações do mundo e, portanto, não estão vem ser transformadas em imanentes, sendo essa tarefa
abertas a comprovação e não podem ser julgadas como crucial no processo de investigação, que deve ao mesmo
verdadeiras ou falsas, pois expressam a verdade de um tempo ancorar questões exmanentes na narração, sempre
ponto de vista em determinado tempo, espaço e contexto utilizando a linguagem do informante. As questões ima-
sóciohistórico(1). Não se tem acesso direto às experiências nentes são temas e tópicos trazidos pelo informante, elas
dos outros, se lida com representações dessas experiên- podem ou não coincidir com as questões exmanentes.
cias ao interpretá-las a partir da interação estabelecida(8). É importante mencionar que inicialmente o informan-
Assim, o importante é o que está acontecendo no te deve ser avisado sobre o contexto da investigação e so-
momento da narração, sendo que o tempo presente, bre os procedimentos da entrevista narrativa. Então, o en-
passado e futuro são articulados, pois a pessoa pode trevistador expõe o tópico central que tem a função de ser
projetar experiências e ações para o futuro e o passado disparador da narração, os critérios de elaboração desse
pode ser ressignificado ao se recordarem e se narrarem tópico deve seguir as seguintes orientações(1):
experiências. As entrevistas narrativas são, pois, técnicas 1. Necessita fazer parte da experiência do informan-
para gerar histórias e, por isso, podem ser analisadas de te, para garantir o seu interesse e uma narração
diferentes formas após a captação e a transcrição dos rica em detalhes.
dados(10). Neste processo são envolvidas as caracterís-
ticas para-linguísticas (tom da voz, pausas, mudanças 2. Deve ser de significância pessoal e social, ou co-
na entonação, silencio que pode ser transformado em munitária.
narrativas não ouvidas, expressões entre outras), funda- 3. O interesse e o investimento do informante no
mentais para se entender o não dito, pois no processo tópico não devem ser mencionados, para evitar
de análise de narrativas explora-se não apenas o que é que se tomem posições ou se assumam papéis já
dito, mas também como é dito. Lembramos ainda que desde o início.
embora as entrevistas sejam a forma mais conhecida de
coleta de dados, as histórias narrativas podem ser reuni- 4. Deve ser suficientemente amplo para permitir ao
das a partir de diferentes formas como observação, do- informante desenvolver uma história longa que, a
cumentos, imagens e outras fontes(2). partir de situações iniciais, passando por aconte-
cimentos passados, leve à situação atual.
A tabela a seguir apresenta de forma estruturada o
processo a obtenção das entrevistas narrativas: 5. Evitar formulações indexadas, ou seja, não referir
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datas, nomes ou lugares, os quais devem ser trazi- • O segundo, o material não indexado vai além dos
dos somente pelo informante, como parte de sua acontecimentos e expressam valores, juízos, refe-
estrutura relevante. re-se à sabedoria de vida e, portanto, é subjetivo.
Portanto, a conduta do entrevistador é fundamental 2. Na etapa seguinte, utilizando o conteúdo indexa-
no resultado das narrativas e se houver mais de um entre- do, ordenam-se os acontecimentos para cada in-
vistador na mesma pesquisa pode gerar problemas, já que divíduo o que é denominado de trajetórias.
o método leva em consideração a interação entre pesqui-
sador e informante. Caso haja mais de um entrevistador 3. O próximo passo consiste em investigar as dimen-
deve haver constante diálogo entre os pesquisadores, pa- sões não indexadas do texto.
ra alinhar os possíveis problemas e para que haja trocas 4. Em seguida, agrupam-se e comparam-se as traje-
que podem enriquecer a pesquisa, uma vez que cada eta- tórias individuais.
pa é preparada coletivamente(5).
5. O último passo é comparar e estabelecer seme-
É importante, ainda, que o pesquisador acolha bem lhanças existentes entre os casos individuais permi-
o informante e tenha uma escuta comprometida que tindo assim a identificação de trajetórias coletivas.
permite obter pistas para captar a senha que é o portal
de acesso ao informante. Assim, para obter bons resul- Para analisar o material recomenda-se reduzir o texto
tados o pesquisador deve ter uma grande capacidade gradativamente, operando-se com condensação de sen-
de interação com o outro, uma disponibilidade psicoló- tido e generalização, divide-se o conteúdo em três colu-
gica para ouvir e habilidades de escrever as experiên- nas, na primeira fica a transcrição, na segunda coluna a
cias analisadas(5). primeira redução e na terceira apenas as palavras-chave.
Então, desenvolvem-se categorias, primeiramente para
Outro fator relevante a ser observado é o tamanho da cada uma das entrevistas narrativas, posteriormente são
narrativa, por revelar aspectos que devem ser analisados ordenadas em um sistema coerente para todas as entre-
a cada caso, pode ser maior ou menor a depender do pes- vistas realizadas na pesquisa, sendo o produto final a in-
quisador, do informante ou do contexto social. terpretação conjunta dos aspectos relevantes tanto aos
As narrativas combinam histórias de vida a contextos informantes como ao pesquisador.
sócio–históricos, ao mesmo tempo que as narrativas re- Para uma análise mais aprofundada dos dados deve-
velam experiências individuais e podem lançar luz sobre mos fazer a seguinte pergunta proposta por Erving Goff-
as identidades dos indivíduos e as imagens que eles têm man: o que está acontecendo aqui e agora? Essa pergunta
de si mesmo(2), são também constitutivas de fenômenos aponta os indicadores do contexto situacional (aqui) e o
sóciohistóricos específicos nos quais as biografias se en- momento da interação em curso (agora). Os enquadres e
raízam. As narrações são mais propensas a reproduzir es- as pistas contextuais podem nos auxiliar nesse processo,
truturas que orientam as ações dos indivíduos que outros os enquadres constituem a forma como construímos e si-
métodos que utilizam entrevistas. Dessa maneira, o ob- nalizamos o contexto da situação em curso e as “pistas de
jetivo das entrevistas narrativas não é apenas reconstruir contextualização” são muito importantes na sinalização
a história de vida do informante, mas compreender os dos enquadres. Essas pistas nos remetem tanto para tra-
contextos em que essas biografias foram construídas e os ços do contexto local, situacional, como para o contexto
fatores que produzem mudanças e motivam as ações dos macro, acionando informações de natureza institucional,
informantes(1). cultural e social(11).
A interpretação de narrativas ainda representa um Ainda, para o estabelecimento das categorias e as
desafio aos pesquisadores que podem seguir diferentes consequentes categorizações são usados tanto o proce-
técnicas ou métodos. Ao mesmo tempo em que o domí- dimento de codificação baseado em dados como o de
nio de técnicas específicas é exigido, não há intenção de codificação baseado em conceitos. A leitura prévia da li-
esgotar as possibilidades de análise, mas sim de realizar teratura disponível que se debruça sobre esse tema bem
uma análise no sentido de abrir os sentidos(5). como o foco de interesse de investigação proporcionou
Shutze(1), delineia uma forma de análise da entrevista a definição prévia de algumas categorias. Por outro lado,
narrativa bastante didática: com o material obtido em campo pode-se construir novas
categorias.
1. Após a transcrição separa-se o material indexado
do não indexado: Devemos, portanto, retirar dos dados o que de fato
eles significam, não impondo uma interpretação com base
• O primeiro corresponde ao conteúdo racional, em teorias preexistentes. A maior parte dos pesquisado-
científico, concreto de quem faz o que, quando, res se movimenta entre os ditos e os não ditos do discurso
onde e porque, ou seja, é ordenado (consequen- circulante, favorecendo uma análise mais enquadrada do
temente é de ordem consensual, coletiva) contexto narrado(12).
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a narrativa como instrumento de in- esclarecimentos, mais direcionadas ao foco do conteúdo
vestigação em pesquisa qualitativa pesquisado, são realizadas após o término da gravação. Isto
porque a captura em profundidade exige do entrevistador
Minayo(13) se refere ao verbo compreender como a um aprender a ouvir tanto as falas quanto as pausas, silên-
principal ação em pesquisa qualitativa, em que questões cios, ritmos e o próprio cenário que vai se configurando no
como a singularidade do indivíduo, sua experiência e vi- decorrer de uma história que ali é contada (18,21).
vência no âmbito de grupo e da coletividade ao qual per- A construção da intimidade entre o entrevistador e
tence, são fundamentais para contextualizar a realidade entrevistado permite ao pesquisador desprender-se do
na qual está inserido. Ao buscar responder questões em papel de controlar o discurso do participante, se está ade-
um determinado contexto espaço-temporal ou histórico- quado ou não ao material que o pesquisador almeja ob-
-social, as pesquisas qualitativas não são generalizáveis. ter(10). Ao propor que o entrevistado discorra livremente a
Isso não significa que sejam pouco objetivas, pouco rigo- partir de uma questão aberta, a investigação possibilita o
rosas ou sem credibilidade científica, mas sim que abor- não condicionamento das respostas, o que propicia para o
dam e tratam os fenômenos de outra forma(14,15). sujeito da pesquisa a construção gradativa de uma história
Se por um lado a pesquisa qualitativa se preocupa em com tendências próprias, em que os conteúdos implícitos
capturar um nível de realidade que não pode ser mensu- e os não ditos, possam emergir com maior naturalidade e
rado quantitativamente, por outro, o pesquisador só po- comprometimento com a realidade cotidiana (21,22,23).
derá desenvolver uma postura crítica que o qualifique no A riqueza do método das narrativas propõe ainda um
aprofundamento da captura dos dados, se permanecer desafio ao pesquisador: o de se tornar parte do processo,
em uma busca ativa e atenta por novos interlocutores e em que ouvir em profundidade o que emerge dos partici-
observações em campo, com o objetivo de articular e en- pantes implicados em suas próprias histórias, admite que
riquecer as informações coletadas, uma vez que o objeto seja atravessado pela singularidade da trama de significa-
da investigação é sempre um objeto construído(13,14,16). ções que é criada por cada sujeito (18,22).
Schraiber(17) afirma que a narrativa é a objetivação Assim, as entrevistas narrativas são mais apropriadas
do pensamento, dado que o pensamento externalizado para captar histórias detalhadas, experiências de vida de
é apreendido em sua forma de relato oral. As narrativas um sujeito ou de poucos sujeitos. Deve-se passar um tem-
assim, segundo a autora, são ferramentas bastante apro- po considerável com cada entrevistado e captar informa-
priadas para o estudo qualitativo em que se objetiva in- ções por meio de diferentes tipos de fontes, que podem
vestigar representações da realidade do entrevistado. A ser de origem pessoal, familiar ou social. Alguns exemplos
partir dessas representações pode-se captar o contexto são cartas, fotografias, documentos, correspondências,
em que esse informante está inserido. diários, entre outros. O pesquisador deve também estar
atento a contextualizar pessoalmente, culturalmente e
Nessa perspectiva, as narrativas preconizam em seu
historicamente o sujeito de pesquisa, bem como reesto-
instrumento de coleta a questão gerativa(18). Esta forma de
riar os relatos e outras informações obtidas de forma que
abordar o sujeito da pesquisa sugere capturar a fala a par-
se construa algum tipo de estrutura para posteriormente
tir de um posicionamento bastante diferenciado da entre-
inserir a história em uma sequência cronológica(2).
vista semidirigida que utilizam de roteiro semiestruturado
com perguntas definidas ao qual se deseja circunscrever Por sua fecundidade, as narrativas podem potencial-
um dado objeto a ser investigado(14,18,19). mente capturar circunstâncias nas quais o pesquisador al-
meja investigar mediações entre experiência e linguagem,
O uso do roteiro semiestruturado, desde que pré-tes-
estrutura e eventos, ou ainda situações da coletividade
tado e tendo o pesquisador prévio entendimento dos ob-
envolvendo memória e ações políticas. As narrativas são
jetivos de cada pergunta, permite que a entrevista flua pe-
uma forma dos seres humanos experienciarem o mundo,
la ordem do discurso do entrevistado, possibilitando que
indo além da simples descrição de suas vidas, pois ao re-
o entrevistador lance mão de seguir um roteiro estrutura-
pensarem suas histórias – as que contam e ouvem – refle-
do que, em geral, quebra a naturalidade e cria imposições
tem quem são reconstruindo continuamente significações
restritivas tanto ao pesquisador como ao próprio sujeito
acerca de si(18,24).
da pesquisa. Ainda assim, a diretividade de cada pergunta
aponta para um foco, o que limita o sujeito a responder Portanto, o pesquisador colabora com o entrevistado
dentro de um campo associativo bastante definido e pre- e o envolve na pesquisa, de modo que ambos saem modi-
viamente delimitado pelo próprio pesquisador(20). ficados desse encontro(2). Nesse sentido, Clandinin e Con-
nelly compreendem a narrativa como forma de entender
É mister salientar, que nas narrativas a não diretividade a experiência, sendo a experiência o fundamental a ser
propõe a apreensão dos significados em que o sujeito fala captado nas pesquisas.
e, ao construir seu próprio discurso em narrativas, possa
repensar os próprios acontecimentos por ele enunciados. Por fim, a pesquisa narrativa amplia a conexão do pes-
As interferências com perguntas pontuais para eventuais quisador com o campo, seu contexto e tessitura, ao pos-
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sibilitar que a tensão do enigma de pesquisa (o problema constitui a trama em que relatos biográficos e fatos viven-
em questão) não se perca, uma vez que o material coleta- ciados se entrelaçam. As narrativas permitem ir além da
do oferece rica consistência de experiências e significados transmissão de informações ou conteúdo, fazendo com que
- pela escuta prolongada e pela noção da importância dos a experiência seja revelada, o que envolve aspectos funda-
eventos que o encadeamento das narrativas permite cap- mentais para compreensão tanto do sujeito entrevistado
turar, e não precipita no pesquisador a busca por recons- individualmente, como do contexto em que está inserido.
tituir vivências e atribuições dos entrevistados pela anco-
ragem de referenciais teóricos que pela própria empiria Ao romper com a tradicional forma de entrevistas ba-
captada no campo(23). seadas em perguntas e respostas, o método das narrati-
vas revela-se um importante instrumento para se realizar
Conclusões investigações qualitativas, dispondo para os pesquisado-
res dados capazes de produzir conhecimento científico
O método qualitativo de pesquisa caracteriza-se por compromissado com a apreensão fidedigna dos relatos e
abordar questões relacionadas às singularidades que são a originalidade dos dados apresentados, uma vez que per-
próprias do campo e dos indivíduos pesquisados. O estu- mitem no aprofundamento das investigações, combinar
do qualitativo por meio das narrativas permite capturar histórias de vida a contextos sócio–históricos, tornando
as tensões do campo, de maneira que as ressonâncias e possível a compreensão dos sentidos que produzem mu-
dissonâncias de sentidos que emergem pelas falas, sejam danças nas crenças e valores que motivam (ou justificam)
problematizadas a partir do encadeamento das falas que as ações dos informantes.
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