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Resumo
A presente pesquisa aborda a Campanha contra a Lepra no Rio Grande do Sul com
ênfase no seu principal desdobramento, o Hospital Colônia Itapuã. Buscou-se, ao longo do
trabalho, reconstituir o combate a esta doença no Estado, inserindo as práticas desenvolvidas
em relação à Lepra em um contexto mais abrangente, a Campanha Nacional contra a Lepra.
Nesta perspectiva, procurou-se analisar as medidas profiláticas adotadas entre 1920, período
identificado com o início do combate à doença no Estado, até a década de 50, quando ganhos
terapêuticos contribuíram para que fosse repensado o modelo segregacionista adotado até
então. Neste período teve-se o fim do isolamento compulsório para os doentes de Lepra no
país. Partiu-se do princípio que, exceto em períodos de epidemias, a saúde da população não
era uma preocupação dos poderes públicos até meados da década de 1920, quando se
organizou no Brasil um Departamento Nacional de Saúde Pública. Entretanto, a criação deste
órgão não resultou uma atuação imediata em todo o território, sobretudo no Rio Grande do
Sul, Estado que conservou forte autonomia em relação à Federação, e durante boa parte da
chamada Primeira República esteve guiado pela perspectiva positivista de não intervenção dos
poderes públicos nas questões ditas de caráter privado, entre elas a saúde. A Lepra foi uma
moléstia que pouca atenção recebeu dos serviços sanitários até 1920, entregue à caridade leiga
ou religiosa, quando despertou interesse governamental configurava-se em um problema
nacional. A Campanha Nacional contra a Lepra, iniciada a partir da década de 1930,
encontrou um contexto favorável, de centralização política e de expansão do aparato Estatal,
que possibilitou a organização e a expansão do combate à moléstia a todo o país. Buscou-se
compreender quais elementos associaram-se para que ocorresse o combate à Lepra neste
período e quais seus resultados. Ao mesmo tempo em que se procurou reconstruir a trajetória
do combate à Lepra, resgatou-se a trajetória das próprias Instituições sanitárias nacionais. De
modo semelhante, ao resgatar as histórias de vida dos “moradores-usuários” do Hospital
Colônia Itapuã, recuperou-se um pouco da história do próprio Leprosário.
Abstract
The following research approaches the campaign against leprosy in Rio Grande do Sul
emphasizing its main result, the “Hospital Colônia Itapuã”. The main purpose along the report
was to rebuild the fight against this sickness in the state, introducing the developed practice
for leprosy fight in a more general context, the national campaign against leprosy. From this
perspective was aimed to analyze the prophylactic measures adopted between 1920, period
identified as the beginning of the fight against the sickness in the state, until the 50’s, when
therapeutic acquisitions contributed to the rethinking of the segregationist model adopted up
to that moment. In that period happened the end of the compulsory isolation for the patients of
leprosy in the country. The population’s health was not a concern for the government until the
20’s, except in an epidemical period, when it was organized in Brazil a public health national
department. Notwithstanding, the creation of this organ did not result in an immediate
actuation all over the country, mainly in Rio Grande do Sul, a state that kept a strong
autonomy from the government and during some time in the period called “first republic” was
guided by the positivist perspective of non-intervention of the government in private
characteristic matters, among them, health. The leprosy was a sickness that had little attention
from the medical services until 1920, left to the lay charity or religious, when it awoke the
governmental concern was actually a national problem. The national campaign against
leprosy that started since the 30’s found a favorable context, of political centralization and
expansion of the state, which enabled the organization and expansion of leprosy fight all over
the country. It was aimed to understand which elements in that period joined in the fight
against leprosy and what their results were. At the same time it was aimed to rebuild the fight
against leprosy’s trajectory, it was also retaken the trajectory of the national medical
institutions themselves. In an analogous way, while retaking the life histories of the resident-
users of the “Hospital Colônia Itapuã”, it was also recovered a little part of the leprosarium
itself.
Lista de figuras
Figura 27 Colônia Itapuã – Igreja Católica em frente à Praça Cordeiro de Farias ... 148
Figura 28 Colônia Itapuã – Gruta Nossa Senhora de Lourdes existente no jardim
da Casa das Irmãs .................................................................................... 148
Figura 29 Festa de Casamento .................................................................................. 151
Figura 30 Colônia Itapuã. Edifício da Cadeia mandado construir pelo Governo
Federal ...................................................................................................... 156
Figura 31 Colônia Itapuã. Uma das Enfermarias ...................................................... 159
Figura 32 Enfermaria ................................................................................................ 159
Figura 33 Gráfico do declive da Lepra na Noruega ................................................ 165
Figura 34 Moedas de circulação interna no Leprosário Itapuã ................................. 169
Figura 35 Jornal “A Razão”, órgão oficial, Colônia Itapuã, domingo 24 de
setembro de 1950, nº 341 ......................................................................... 173
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Lista de Quadros
Lista de Tabelas
Lista de Abreviaturas
Sumário
Introdução ............................................................................................................................ 14
CAPÍTULO I – A Lepra está na moda ................................................................................ 26
1.1 Que doença era a Lepra ................................................................................................. 26
1.2 A Lepra na agenda sanitária nacional ............................................................................ 38
1.3 A Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas ............................................ 46
1.4 Quando a Lepra se tornou um problema nacional ........................................................ 51
1.5 A Campanha Nacional ................................................................................................... 55
CAPITULO 2 – O Desfile macabro ................................................................................... 72
2.1 Os doentes de Lepra no Rio Grande do Sul ................................................................... 72
2.2 Um local para o mal: polêmicas e controvérsias ........................................................... 80
2.3 Doentes em busca de cura .............................................................................................. 94
2.4 Era chegado o momento. O combate à Lepra no Rio Grande do Sul ............................ 106
2.5 O “armamento anti-leprótico” no Estado ...................................................................... 115
2.5.1 O Dispensário ............................................................................................................. 115
2.5.2 O Preventório .............................................................................................................. 117
CAPITULO 3: Uma cidade para os Lázaros ....................................................................... 121
3.1 O Hospital Colônia Itapuã ............................................................................................. 121
3.2 A Nova vida no Degredo ............................................................................................... 133
3.2.1 Dias de Trabalho ......................................................................................................... 142
3.2.2 Dias de Purificação ..................................................................................................... 145
3.2.3 Dias de festas .............................................................................................................. 149
3.2.4 Dias de castigo ............................................................................................................ 152
3.2.5 Dias de tratamento ...................................................................................................... 156
3.2.6 Hora de Partir .............................................................................................................. 160
3.3 Considerações em torno do “mundo dos internados” ................................................... 167
CAPITULO 4: “Nós não caminhamos sós” ........................................................................ 176
4.1 Estávamos todos na mesma situação ............................................................................ 176
4.2 “A trajetória do desterro” ............................................................................................. 182
Considerações finais ............................................................................................................ 252
Fontes Consultadas .............................................................................................................. 258
Bibliografia .......................................................................................................................... 271
Apêndice .............................................................................................................................. 283
14
Introdução
Federal de Santa Maria, uma oportunidade me colocaria frente ao Hospital Colônia Itapuã, um
eu tinha sobre Lepra eram passagens bíblicas de leprosos ora mendigando, ora sendo curados
por Jesus Cristo. Tinha lido que, na Idade Média, os leprosos ficavam à margem das cidades,
usavam matracas e panos para cobrir suas feridas. Sobre Lepra, no Brasil, nada sequer ouvira
falar, no Estado, menos ainda; talvez essa doença pudesse ter existido no período colonial
A mesma surpresa que tomou conta de mim quando ouvi falar desse Leprosário
revelava-se cada vez que eu dizia para alguém qual era minha pesquisa. Ainda existe essa
doença? Um Leprosário? Quem eram esses doentes? Como eram esses doentes? Lepra pega?
Tu não tens medo? E seguia a pergunta inevitável: Porque (alguém da História) pesquisar esse
tema? Se ao final deste trabalho eu tiver respondido pelo menos esta última questão, terá
cruzando bairros afastados, campos, vales, chegamos ao Hospital Itapuã. Era de manhã e
estávamos entusiasmados. O grupo de estudantes do qual eu fazia parte havia trocado o verão
(talvez no litoral) pela aventura de desvendar os mistérios que podiam abrigar um Leprosário.
Para um estudante de História, isso era perfeitamente possível. Eu havia conhecido o Hospital
15
algumas semanas antes, em uma rápida visita onde foram tratados os pormenores de nossa ida
Tudo estava pronto para nossa chegada. O “pavilhão 14” ganhou pintura nova para
nos receber, a cozinha do pavilhão ganhou copos e panelas, os quartos, lençóis. Sem perder
que viria a ser nosso trabalho naqueles dias na Instituição. Havia caixas com papéis para
discussão de textos, a planejamento do trabalho. Aos poucos, fomos nos dividindo por
“afinidades”. Um colega ficaria trabalhando com papéis, outros dois com fotografias, eu e
outro colega com as entrevistas. Todos coordenados pela historiadora do local. Nestes
primeiros dias ficamos basicamente indo de lá para cá, do pavilhão 14 à antiga Casa das Irmãs
onde ficava o CEDOPE. Transitávamos, geralmente, sob olhos curiosos dos moradores, a
quem também lançávamos olhares perscrutadores. Finalmente, uma reunião promovida pela
Assistência Social desfazia o mistério (ao menos para os poucos “moradores-usuários” que
compareceram) de quem éramos e o que estávamos fazendo no Hospital. Foi nosso primeiro
Os dias se seguiram até transcorrer pouco mais de um mês, período que durou nosso
estágio. Realizamos nossos trabalhos, trocamos experiências, ora uns ajudando nas tarefas dos
outros, ora conversando sobre nossas impressões. Aos poucos fomos interagindo no cotidiano
da Instituição. Começamos a participar das festas, dos “jogos de bocha” e, principalmente nós
que ficamos com o trabalho de entrevistas, da vida das pessoas. O trabalho era intenso, tinha
tudo por fazer, mas ainda sobrava tempo para as aventuras de conhecer cada canto daquela
16
Instituição construída no modelo de uma pequena cidade. Acredito que a vivência no Itapuã,
naquele verão, tenha ensinado para nós cinco muito mais que organizar arquivos.
conhecer mais sobre o Hospital. Ficamos hospedados no “pavilhão 14” por alguns dias, dessa
vez dirigindo nossa atenção para a documentação existente no CEDOPE, para os livros e as
revistas sobre Lepra. Trabalhamos intensamente para copiar tudo o que pudesse um dia
interessar. Ali, eu já sabia que o contato com o Hospital e com os seus moradores, ao menos
Em primeiro lugar é preciso fazer uma ressalva. Neste trabalho, adota-se o vocábulo
Lepra simplesmente porque no período recortado para fazer a pesquisa, anos 20 aos 50, esse
era o termo usado para designar a doença, mais tarde denominada Hanseníase.247A
substituição do nome da doença não se deu por questões semânticas, antes pretendeu livrar a
moléstia de seu milenar estigma. Se por um lado a troca obteve êxito, por outro resultou um
247
Em homenagem a Amauren Hansen que em 1873 descobriu o bacilo micobacterium leprae causador da
doença. Nos anos 70, foi iniciada uma campanha em São Paulo que defendia a mudança da nomenclatura de
lepra para hanseníase, o governo federal aderiu a esta proposta através do dec. 76.078, de 4 de agosto de 1975,
determinando que a Divisão Nacional da Lepra e a Campanha Nacional Contra a Lepra passassem a ser
denominadas, respectivamente, Divisão Nacional de Dermatologia Sanitária e Campanha Nacional Contra
Hanseníase. No Brasil, foi proibido o uso oficial dos termos Lepra e seus derivados pela lei 9.010, de 29 de
março de 1995.
248
A Hanseníase é uma doença crônica, causada pelo Mycobacterium leprae ou Bacilo de Hansen, que afeta,
principalmente, a pele, os nervos e a mucosa nasal. A doença é contagiosa, transmitida para o homem pelas vias
aéreas, possivelmente pela eliminação do bacilo por doentes em fase contagiante. A primeira dose do
medicamento específico é capaz de eliminar 99,99% da carga bacilar do indivíduo, impedindo, assim, o
contágio. Sabe-se que este bacilo pode infectar um grande número de pessoas, mas poucos adoecem devido a sua
baixa patogenicidade. O período de incubação da doença é em média de 5 a 10 anos. A doença pode se
manifestar de três formas: a hanseníase tuberculóide, forma evolutiva menos grave, a lepromatosa ou
virchowiana, forma progressiva, generalizada e mais grave da doença, e a hanseníase dimorfa, que ocupa
posição intermediária entre as duas formas citadas. O tratamento é feito em ambulatório por poliquimioterapia
(PQT). A cura, dependendo do tipo da doença, pode ser obtida a partir de uma dose ou até 18 meses de
administração dos medicamentos. Dicionário de Termos Técnicos de Medicina e Saúde. Guanabara Koogan, Rio
de Janeiro, 1999.
17
refere-se a política do governo em relação à Lepra, especialmente nos anos de 1920/50. São
Preventório, instituição construída para abrigar os filhos sadios dos doentes. Os doentes
tratamento nos Dispensários, não são tratados neste texto. Pretende-se responder nesta
pesquisa como ocorreu o combate à Lepra no Rio Grande do Sul e qual o papel do Hospital.
Antes de encerrar esta sessão, apresenta-se uma discussão sobre as fontes utilizadas
nesta pesquisa e sobre alguns trabalhos que tematizaram a Lepra como objeto de estudo.
Sem perder a noção do todo, cada parte desta dissertação tem suas fontes
privilegiadas. Esta abundância torna-se possível às custas de muito trabalho e, por que não
dizer, sorte. Sem dúvida as fontes não falam por si, é necessário estabelecer um diálogo com
abordagens possíveis.
Partindo das bibliografias das mais gerais, há os livros médicos produzidos na época,
muitos deles laudatórios, que procuraram registrar os detalhes do combate à Lepra, não raro,
produção de Souza Araújo, Flávio Maurano e Ernani Agrícola. Estes médicos não apenas
249
No texto, a palavra “profilaxia” será tomada no sentido restrito utilizado na época: aplicação de meios
tendentes a evitar doenças. De pro e filake, proteção, defesa. DICIONÁRIO de Termos Médicos. Pedro A.
Pinto, 7ª edição. Ed. Científica – Rio de Janeiro: 1958, p. 391.
18
exerceram suas profissões voltadas para a Leprologia (especialidade que tratava da Lepra),
bem como, escreveram sobre o tema e assumiram posições importantes no combate à doença.
Souza Araújo teve sua carreira profissional ligada ao combate da Lepra, foi
pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, através do qual publicou cerca de 210 trabalhos
tratamento, teve ainda atuação importante ora como formulador, ora como crítico das políticas
sobretudo o Tomo III, onde o autor escreve sobre a doença no período Republicano. Souza
Araújo chefiou a profilaxia da Lepra nos Estados do Paraná e Pará, sendo que neste último foi
Educação e Saúde, através do Serviço Nacional da Lepra, lançou, nos anos 40 do século
Paulo e pesquisador, cuja obra “Tratado de Leprologia: História da Lepra e sua Distribuição
Geográfica no Brasil” deve ser uma referência para aqueles que se propõem a estudar o
também pode ser considerado uma referência. Nesta publicação, Agrícola reuniu dezenas de
250
http://www.coc.fiocruz.br/areas/dad/guia_acervo/arq_pessoal/heraclides_araujo.htm. Acesso em 19/12/2003.
19
palestras por ele proferidas no Rádio entre 1944 e 1945. Expressando o ponto de vista oficial,
visto que ocupava o cargo de diretor do Serviço Nacional de Lepra, o autor discute aspectos
importantes da Campanha que são abordados ao longo do texto, tal como políticas oficiais,
Maya Faillace, “Do conceito atual de profilaxia da Lepra”, talvez o mais completo registro
Porto Alegre, alguns artigos e discussões médicas publicadas em diferentes lugares, como nos
Faculdade de Medicina.
através da Diretoria de Higiene também são alvos de pesquisa. Ainda sobre a mesma década,
lacuna entre 1930 e 1935. Essa ausência de registros (ao menos encontrados) talvez indique
pelas quais passava o país. Em nível federal, estas oscilações políticas e a precária situação
Estado, os Relatórios trazendo informações sobre saúde foram retomados de 1935 em diante.
20
Utiliza-se, ainda, ao longo do trabalho, algumas imagens e fotografias, não como fontes, mas
uma das fontes mais ricas, sobretudo durante os primeiros anos de funcionamento da
diária da Instituição. Esses registros cobrem o período de 1940 a 1944. Depois foram
encontrados os Diários das Irmãs, dos anos de 1946/48/49, que acompanham a movimentação
Sobre o cotidiano da Instituição, além das entrevistas, que sem dúvida são a melhor
fonte para tentar reconstituir o que foi viver no Itapuã, um inesperado material ajudou na
Nas entrevistas é citado várias vezes, mas nunca se teve acesso a nenhum exemplar. Uma
21
senhora, antiga moradora da Instituição, soube que havia pessoas interessadas na história do
lugar. Em visita aos antigos compadres (um deles é um dos entrevistados), resolveu trazer os
4 exemplares que havia guardado. Ela nos confiou os jornais porque, segundo ela, talvez
plástico, onde também carregava uma foto de toda sua família. Tinha medo de que depois que
ela morresse jogassem os jornais fora por não saberem do que se tratava. A passagem dela e
Esse contato com pessoas que falam de outros tempos talvez seja a experiência mais
rica de se trabalhar com História. E são, principalmente, as fontes orais as mais capazes de
fazer isso. Vê-se um mundo que já não existe mais através dos olhos dos entrevistados, não de
contribuem para o crescimento da pesquisa. Ora ou outra, quando necessário, surgem trechos
de depoimentos, mas duas entrevistas são escolhidas para serem melhor trabalhadas nesta
pesquisa. Trata-se do depoimento de uma senhora que está no Hospital desde a inauguração e
retornou.
As entrevistas revelam o momento mais prazeroso desta pesquisa, mas talvez o mais
difícil. Primeiro, pela preparação para ouvir o que os entrevistados têm a dizer, saber ouvir e
saber perguntar. Segundo, porque nem sempre se consegue compreender o que eles querem
dizer, e aqui entra a maior dificuldade, o uso da entrevista, a transformação da palavra falada
em palavra escrita. Assim, aprofunda-se esta discussão no último capítulo. De antemão, pode-
alguns trabalhos que abordam a Lepra/Hanseníase como objeto de estudo. Entre eles
22
destacam-se as pesquisas ligadas à área da saúde que têm procurado explorar os aspectos
culturais e sociais da Hanseníase, buscando, através dos estudos das representações sociais da
Lenita Claro (1995) parece ter sido pioneira, estudou as representações que os
pacientes com hanseníase têm nos dias atuais sobre a doença, para isso fez uma revisão nas
concepções populares acerca da moléstia. Seguindo nesta linha, Marcos de Souza Puntel e
de análise. Criticaram a posição muitas vezes adotada pela medicina, que tende a perceber a
doença do ponto de vista puramente fisiológico, sem levar em conta os fatores externos, como
a cultura e a sociedade. Outros autores, como Letícia Maria Eidt (2000), Prisla Ücker Calvetti
(2000), Sônia Lessa (2001), enveredaram por este caminho. Todos estes trabalhos utilizaram
entrevistas.
Um outro caminho foi seguido pelo historiador Ítalo Tronca (1985; 2000). O autor
primeiro trabalho, estudou a Lepra em São Paulo, procurando articular a experiência dos
Beatriz Anselmo Olinto (2002) seguiu a trilha aberta por Tronca. Analisou os discursos de
pelos médicos, também procurou articular o “contraponto” na fala dos doentes, através da
cooperação dos setores privados no combate à Lepra e o trabalho na área da saúde de Ana Zoé
Schilling da Cunha (2000), que pesquisou a história da hanseníase em Santa Cruz do Sul e sua
relação com a imigração alemã. A primeira autora, a partir de um olhar específico, o cuidado
com os filhos dos doentes, reconstituiu a organização do combate à Lepra no país, indicando
um comparativo entre hospitais do Brasil e EUA; Thomas Hunter, sobre o combate a Lepra
no Rio de Janeiro no período anterior à República; o estudo de Laurinda Rosa Maciel, sobre a
memória e história da hanseníase, onde a autora trabalhou com testemunhos de pessoas que
drama médico social enfrentado por um doente de Lepra e a controvérsia sobre a transmissão
da doença por mosquitos. As discussões propostas nestes textos não serviram como base de
análise para este trabalho, entretanto, julga-se necessário referi-los como produção
Ainda que exceda as pretensões desta pesquisa pode-se, a partir da discussão trazida
no volume por Yara Nogueira Monteiro sobre a profilaxia da Lepra em São Paulo, constatar
pontos semelhantes entre o combate à moléstia nos dois Estados, São Paulo e Rio Grande do
Sul, sendo que o ‘modelo paulista’ teria sido pioneiro na implantação de políticas de combate
à doença no país. O modelo de Leprosário adotado naquele Estado foi referência para a
construção dos demais estabelecimentos no Brasil, entretanto, a autora diz que em São Paulo
24
as políticas de combate à doença foram mais ‘repressivas’ do que em qualquer outro lugar da
Federação.
Nessa pesquisa, ao abordar a “Campanha” contra a Lepra, faz-se uma opção por
privilegiar o ponto de vista oficial, as políticas de combate adotadas pelo Estado, o objetivo é
analisar como se organizaram estas práticas de combate à Lepra no Rio Grande do Sul e qual
rondaram a implantação destas políticas, que em última análise não impediram que fossem
ainda nos anos 20, com a criação no Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) da
Inspetoria da Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas (IPLDV) como a primeira tentativa dos
século passado, analisa-se a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública (Mesp) como
propulsor da Campanha Nacional contra a Lepra, enfoque desta pesquisa. Vários elementos
imaginário social que envolveram a doença ao longo dos tempos. Esta discussão surge na
Rio Grande do Sul. Para atingir este objetivo é necessário, por um lado, conhecer a
organização sanitária existente no Estado, por outro, conhecer a situação em que viviam os
doentes ao longo dos anos 20 até meados dos anos 30, período que antecedeu o combate
trazidas nesta seção, tencionam mostrar as dificuldades que rondaram a implantação das
políticas contra a doença, que por fim foram executadas seguindo o modelo nacional.
se faz possível acompanhar o “modelo” nacional de segregação imposto aos doentes de Lepra
sendo posto em prática. O Leprosário de Itapuã foi a peça fundamental da Campanha contra a
Lepra no Rio Grande do Sul. Buscou-se reconstituir alguns aspectos da vida da Instituição,
sua concepção, finalidades e organização interna. Embora nesta seção tenham sido traçadas
“considerações em torno do mundo dos internados”, foi no quarto e último capítulo, através
da fala de pessoas, que foram segregadas pela Campanha, que foi possível compreender o
drama médico-social vivido pelos doentes de Lepra no Rio Grande do Sul internados no
Leprosário de Itapuã.
26
Em geral, o povo não acredita ser a morféia muito contagiosa, embora lhe
tenha o maior receio: “Lepra não pega à-toa”.5 (grifo do autor)
todas as sociedades, indicam como ponto de partida que a Lepra nunca foi apenas uma
representações sociais, formando quase uma “entidade nova, uma outra doença.”251 Portanto,
Ainda que não seja o objetivo desta pesquisa fazer um estudo ou inventário do
imaginário ou das representações sociais sobre a Lepra, o que mereceria uma pesquisa à parte,
algumas considerações são indispensáveis devido ao papel preponderante que estes elementos
5
OLIVEIRA, Martins de. Sangue Morto. Rio de Janeiro, 1934. Citado por MAURANO, Flávio. História da
Lepra em São Paulo. (3ª Monografia dos Arquivos do Sanatório Padre Bento). Serviço de Profilaxia da Lepra.
São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, vol. 1, 1939, p.249.
6
CLARO, Lenita. Hanseníase: Representações sobre a doença. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1995. A autora cita
inúmeros estudos em sociedades ocidentais e orientais, onde são atribuídos vários significados à Lepra, que
transcendem a condição patológica. Entre outros, a doença é vista como um “carma”, “impureza do sangue e da
alma”, etc. p.p. 20-22.
251
TRONCA, Ítalo. As Máscaras do Medo. Lepra e AIDS. São Paulo: Ed. Unicamp, 2000, p. 15.
27
supõe Le Goff (1994), traduções mentais de uma realidade exterior percebida,253 o que
também sugere reprodução da realidade. A maneira como os homens percebem sua realidade,
como a compreendem, sua visão de mundo condicionada, sem dúvida, pelos componentes
físicos, materiais, culturais, formam suas representações e estas também passam a fazer parte
grupos que compõem a sociedade. As disputas pelas representações seriam tão importantes
quanto outras disputas, pois estaria em jogo a própria organização e o poder de impor uma
fazem parte da própria realidade social, fato que, como afirma Baczko (1991), foi por muito
tempo relegado por uma tradição intelectual cientificista que buscava compreender os agentes
sociais desnudados, o que quer dizer livre de seus imaginários e de suas representações, tal
biológico, são permeadas por outros elementos, como a idéia de impureza, sujeira, pecado,
castigo. Os discursos sociais emitidos sobre a Lepra e os leprosos sempre estiveram urdidos
dúvida, a Bíblia. No livro do Levítico, onde o Senhor ditou “as leis” a Moisés, a Lepra
252
BACZKO, Bonislaw. Los imaginarios sociales. Memorias y esperanzas coletivas. Buenos Aires: Ed. Nueva
Visión, 1991, p. 16.
253
LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 11.
254
CHARTIER, Roger. A Beira da Falésia. A História entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. UFRGS,
2002, p.73. BOURDIEU, Pierre. Linguagem e Poder Simbólico. In: Economia das trocas lingüísticas: o que falar
quer dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. (Clássicos; 4) p.113.
255
BACZKO, Bonislaw. Los imaginarios sociales. Op. cit., p 13
256
O uso da palavra “social” designa a inserção da atividade imaginante individual em um fenômeno coletivo.
BACZKO, Bonislaw. Los imaginarios sociales...Op. cit. p. 27.
28
aparece como sinônimo de imundície, de sujeira, de impureza e o doente referido nos termos
“limpo-sujo”. Nestas passagens bíblicas, duas referências chamam a atenção, uma sobre o
tratamento que deveria ser imposto ao doente, viver fora do acampamento/comunidade; outra
sobre a doença ser enviada pelo Senhor como praga/castigo.257 Estas “prescrições” iriam
mas, principalmente, seu banimento ocorria por motivos religiosos, o doente era considerado
corpo era a expressão da alma, a “graça” exprimia-se através da beleza física, vide as imagens
dos santos, o pecado, ao contrário, manifestava-se através de uma tara física ou doença. O
aspecto mutilante da Lepra evidenciava uma alma corroída pelo pecado.258 Entre as causas da
Lepra figuravam adoração de ídolos, falta de castidade, profanação, blasfêmia. Também era
menstrual.259 Estas causas “coincidiam” com os tabus impostos pela Igreja. A Lepra
representava uma punição por falha moral, o leproso era identificado com um pecador.
257
Bíblia Sagrada: Ed. Pastoral Paulus. São Paulo, 1990. Levítico 13, pp.128-132.
258
LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval ...Op. cit. p.146. LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o cotidiano
no ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1983, p.60
259
BÉNIAC, Françoise. O medo da lepra. In: As doenças têm história. Jacques Le Goff (org.) Lisboa: Terramar,
1985, p.132. RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1993, p.162.
260
A idéia de “utilidade” social dos marginais – aspas do autor – foi desenvolvida por Jean-Claude Schmitt.
História dos marginais. In: A História Nova. Jacques Le Goff (org.) p.285-287. Também sobre “utilidade social”
29
prescrições religiosas, servindo de alerta para o que poderia acontecer com quem não
respeitasse os preceitos da Igreja, por outro lado, eram instrumentos vivos da caridade. Para a
Igreja, fundar ou manter uma leprosaria justificava a acumulação de riquezas.261 O leproso era
um marginalizado social, mas não era um excluído, porque, sendo cristão, participava da
comunhão da Igreja262. A Lepra era sempre considerada uma manifestação de Deus, de sua
cólera ou bondade.263
impureza representada pelos leprosos, mas também para evitar o perigo de contágio. Jeffrey
Richards (1993) afirma que, embora não entendesse como funcionava o contágio, o homem
medieval tinha idéia do que fosse a infecção. As medidas impostas aos leprosos
demonstravam estes temores, eles não podiam tocar em nada que pudesse ser tocado por
pessoas sadias, muitas vezes exigiam-lhes o uso de luvas e de roupas distintivas, deviam
anunciar sua presença com o som da matraca para que as pessoas pudessem escapar a sua
passagem, eram proibidos de falar a pessoas sadias sem encobrir a boca, de transitar por
doenças de pele. Dificuldade, diga-se de passagem, que persistiu até o século XX. Os médicos
ver GEREMEK, Bronislaw. A piedade e a forca: História da Miséria e da Caridade na Europa. Lisboa: Terramar,
1986.
261
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação... Op. cit. p. 157. O crescimento da rede de leprosarias na
Europa nos séculos XII e XIII correspondeu à expansão dos Hospitais Gerais e ao aumento do número de
leprosos, proporcional ao crescimento da população. Entretanto, os cuidados com os leprosos tornaram-se
principalmente resultado da ação caritativa por parte dos indivíduos, um aspecto do desenvolvimento, do
individualismo religioso e da reação positiva aos ensinamentos articulados pela Igreja sobre a acumulação de
riqueza, justificada se fosse gasta em atividades de caridade.
262
SCHMITT, Jean-Claude. História dos marginais...Op. cit. p.p. 272-273.
263
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 6.
264
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação...Op. cit. p.p. 155-156.
30
identificar alguém como leproso não era tarefa fácil. No início da Idade Média não havia
suspeitos. Aos poucos a identificação de casos de Lepra foi se tornando prerrogativa dos
médicos.265
ficava muito instável. Depois da grande fome do século XIV na Europa, judeus e leprosos
Idade Média, seja em função da Peste Negra, da segregação dos doentes, ou da ruptura dos
contatos com os focos orientais da infecção com o fim das Cruzadas, permaneceram os
valores e as imagens que tinham aderido à figura do leproso: mendicante, deformado, sujo,
265
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação...Op. cit. p.p. 151-154.
266
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Vol. 2, Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p. 76.
HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. Braga: Editora Ulisseia, 1996, p. 9. Na Idade Média todas as
coisas tinham uma orgulhosa ou cruel publicidade. “Os leprosos faziam soar seus guisos e passavam em
procissão...”
267
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Capítulo sobre as tipologias dos comportamentos coletivos em tempo de peste. A sociedade buscava “bodes
expiatórios” para lançar a culpa pelas desgraças. p. 138. LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval.
Vol. 2, Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p.82; RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação...Op. cit. p. 164.
Observe a composição dos conspiradores: judeus, leprosos e muçulmanos – inimigos internos e externos da
cristandade.
268
Endemia refere-se a uma doença que existe constantemente em uma região/país e ataca um número de
vítimas “previamente” esperado, diferente de epidemia que se refere ao aparecimento e difusão rápida e
passageira de uma doença (surtos) que atinge um grande número de pessoas ao mesmo tempo. BERTOLLI
FILHO, Cláudio. História da Saúde Pública no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Ed. Ática, 1998. (História em
movimento)
31
aquelas fronteiras e chegaram até nós através da cultura cristã, da qual somos herdeiros.
Françoise Laplatine (1991) analisa que a apreensão da doença como punição, conseqüência
necessária por uma falta ou transgressão, deve-se essencialmente à cultura cristã, que
figura do leproso. Através da noção de circularidade cultural expressa por Carlo Ginzburg
geralmente ocorre uma “sobreposição” dos discursos médico e social, fazendo com que se
natural”, que aderiu à personalidade dos doentes, pode ser um exemplo disso. Tomemos dois
casos. O primeiro exemplo foi retirado de um texto literário, o segundo, de um texto médico:
269
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. Op. cit. p. 6.
270
LAPLATINE, Françoise. Antropologia da doença. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 229
271
No livro “O queijo e os vermes”, Carlo Ginzburg utiliza essa noção de “circularidade cultural” para explicar a
concepção de mundo do moleiro Menochio, permeada de noções de diferentes universos culturais. Esta hipótese
da existência da “circularidade cultural” foi proposta também por Mikhail Bakthin ao estudar a cultura popular
na Idade Média. Bakhtin analisa os elementos da cultura popular presentes na obra do erudito Rebelais. Entre as
culturas haveria um movimento circular de influências recíprocas, de baixo para cima, bem como de cima para
baixo.GINZBURG, Carlo. O queijo e os Vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição. Companhia das Letras, 2001. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renasciemto. O contexto de Françoise Rebelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Ed. UnB, 1993. Do mesmo
modo, o caminho inverso é possível, a incorporação do discurso científico ao discurso social, evidentemente
sofrendo “leituras” de acordo com o contexto. De qualquer forma, esta circularidade possibilita que, em
determinados momentos, predomine uma, ou outra noção do leproso, mas geralmente ocorre uma
“sobreposição” dos discursos médico e social, fazendo com que se forme uma visão deste doente intercruzada
por elementos destes discursos.
32
passar o mal. Eles acreditam que ficam curados se passarem a lepra a sete
pessoas, e às vezes mordem, principalmente crianças (...).272
cuja partitura é um imaginário central. Este imaginário criaria, nas palavras do autor,
tecendo uma rede simbólica que produz e reproduz o fato lepra, dotado, não de sentidos
idênticos, mas homólogos – mal divino, degradação biológica, destruição estética, perigo
Ao tentar definir que doença era a Lepra e que doente era o leproso, o discurso
médico “mobilizou” este imaginário, algumas vezes de forma intencional, usando o medo
para “fins profiláticos”, outras vezes, evocou estas representações para refutá-las,
272
GRAÇA ARANHA, Viagem Maravilhosa...apud MAURANO, Flávio. A História da Lepra...Op. Cit. p. 169.
273
PENNA, Belisário. O Problema Brasileiro da Lepra. In: Archivos Rio Grandense de Medicina, Faculdade de
Medicina de Porto Alegre: Acervo Histórico, ano 8, jan. 1929, p. 13. Acervo Histórico da Biblioteca da
Faculdade de Medicina da UFRGS - AHBFM
274
TRONCA, Ítalo. História e doença: a partitura oculta (A lepra em São Paulo, 1904-1940). In: Recordar
Foucault. Renato Janine Ribeiro (org.). São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985, p. 141.
33
beira das cidades, vivendo em “bandos”, ora resignados com a “sentença” da doença, ora
Estado, Maurano (1939) relata que eles formavam aldeamentos à margem das estradas, onde
que a embriaguez era capaz de produzir. Alguns doentes até automóveis chegavam a possuir,
escondendo-os quando esmolavam, para não “desencantar a piedade” dos transeuntes.275 Este
modus vivendi, descrito pelo médico, retoma e reforça algumas representações incorporadas à
figura do leproso.
poder de convencimento e de credibilidade tal, mesmo que os excluídos reais e concretos não
permanecer inalteradas por muito tempo. Estas “permanências” eram fruto de um imaginário
social mais antigo, que se “alimentava”, muitas vezes, das incertezas que pairavam sobre a
doença. Embora a ciência fosse capaz de identificar o bacilo da Lepra, era incapaz de afirmar
275
MAURANO, Flávio. História da Lepra em São Paulo. Op. Cit. p. 180-1.
276
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma Outra Cidade. O Mundo dos excluídos no final do século XIX. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, Brasiliana Novos Estudos. V.5, 2001, p.18-9.
277
Ver SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. Vol. 1. Período Colonial e
Monárquico. (1500-1889) Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946. SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de.
34
entretanto, às pesquisas “modernas” sobre a Lepra do início do século XX, que viriam a
para organizar um plano geral de combate à Lepra. Reuniram-se vários médicos que
trabalharam até 1919 discutindo questões referentes à doença. Os relatórios apresentados pela
comissão, composta de nomes ilustres no cenário médico nacional, como Eduardo Rabelo,
Belmiro Valverde, Juliano Moreira, Silva Araújo e Adolfo Lutz, forneceram as diretrizes para
278
a profilaxia dos anos vindouros. Os debates na Academia podem ser inseridos num
combate à moléstia. Quando a Lepra “ganhou” a ANM, havia sido realizadas duas
conferências.
destacavam como importante a notificação obrigatória e o estudo das situações de cada país
ou região no que tangia à Lepra. Nesta Conferência o Brasil não enviou nenhum
presidida pelo próprio Hansen, que anos antes havia descoberto o bacilo da Lepra. Esta
determinadas profissões, a separação dos filhos dos doentes, o exame das pessoas de seu
História da Lepra no Brasil. Vol.3. O período Republicano (1890-1952) Rio de Janeiro: Departamento de
Imprensa Nacional, 1956. Capítulo 1.
278
SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. Vol.3. Op. cit. p.123-160.
35
de extrema importância, esta Conferência anunciou que o estudo clínico da Lepra levava a
crer que esta doença não era incurável, embora não fosse conhecido medicamento seguro.279
da opinião que a Lepra era uma doença contagiosa. Porém, havia dúvidas sobre o grau de
transmissibilidade da Lepra gerou muita polêmica. O médico defendia que a doença era
eliminados bacilos vivos da doença – e infectasse outro indivíduo. Entretanto, somente uma
pequena proporção de mosquitos seria capaz de se infectar e, desta, uma fração menor ainda
capaz de transmitir a doença. Se não fosse assim, os bacilos expelidos diariamente, em grande
número, pelos doentes, através das mucosas ou das ulcerações da pele, infectariam um
número muito maior de pessoas, fato que não era observado. Outro ponto de seu parecer que
causou alvoroço referia-se ao isolamento. Discordava das posições que julgavam que em
qualquer lugar ou época todos os doentes tenham sido isolados. A diminuição dos casos de
Lepra na Europa, na opinião do médico, não podia ser atribuída ao isolamento, que, ao
contrário, fazia com que os doentes e suas famílias tivessem o interesse em esconder a
imperfeita.280
279
ROCHA, Raul. Da Lepra o essencial. Rio de Janeiro: Livraria Atheneu, 1942, p.397-399.
280
LUTZ, Adolfo apud SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. Vol.3. Op. cit. p.
124-127. Entre os médicos “de fora” da ANM que defendiam a baixa contagiosidade da Lepra encontramos o
Dr. Emílio Gomes, que ocupou o cargo de bacteriologista por vinte e cinco anos no Hospital de Lázaros da
Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária: “Uma coisa imediatamente me impressionou, foi que um
leproso, que elimina por todas as excreções, por todas as ulceras de que por ventura seja atacado, milhares de
bacilos, não contagie com freqüência os que o rodeiam, como felizmente se dá, porque a lepra é dificilmente
contagiosa.” GOMES, Emílio. Methodo de propagação da Lepra, p.363. Annaes do 9º Congresso Medico
Brasileiro. Medicina Social, 3º volume, Officinas Graphicas da Escola de Engenharia, Porto Alegre, 1926. LUTZ
36
médico Belmiro Valverde, sob o argumento que a transmissão da Lepra pelo mosquito não era
aceita por diversos autores. Para encerrar a discussão que iria gerar polêmica em torno das
Academia fosse de acordo com as idéias do “professor” Lutz. Entretanto, a questão não se
de Lutz. Argumentava que se o mosquito fosse responsável pela transmissão da Lepra, pela
o autor afirmava não ter encontrado relação entre a existência do Culex fatigans – espécie de
mosquito transmissor para Lutz – e os casos de Lepra. Mesmo no Brasil, os maiores focos de
Lepra não correspondiam aos pontos mais habitados pelos mosquitos. O médico tocou em
Lepra, desde os tempos imemoriais, o isolamento foi praticado e em tempos “atuais”, de luta
Mais que embates acadêmicos a respeito da Lepra, o que estava em disputa era a
diretrizes para a Profilaxia da Lepra no Brasil. Se fosse admitida a transmissão pelo mosquito
sustentou a transmissão da Lepra por mosquitos até sua morte em 1940. BENCHIMOL, Jaime; SÁ, Magali
Romero. Adolpho Lutz and controversies over the transmission of lerosy by mosquitoes. In: História Ciência e
Saúde, Manguinhos, vol. 10, suplemento 1, 2003. p.p.49-87.
281
VALVERDE, Belmiro. SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. Vol.3. Op. cit.
p.p. 131-137.
37
mostrar que haveria um longo caminho pela frente no combate à Lepra. As dúvidas e
incertezas sobre a doença fizeram com que o parecer da Comissão fosse favorável, entre
excepcionalmente este poderia ser feito em domicílio; ao cuidado com a descendência dos
moléstia no país.”283
tratava de uma infecção geral crônica, contagiosa, causada pela penetração e proliferação, no
deformações e de processos destrutivos, também era indiscutível que o doente era fonte de
com que os métodos de profilaxia fossem baseados na tradição do isolamento. Estas práticas
uma delas, a da incurabilidade da Lepra, desfeita tão logo iniciaram as pesquisas sobre a
282
Entre os médicos da Comissão que defendiam a baixa contagiosidade da Lepra encontravam-se, além de Lutz,
Henrique Aragão – “ao contrário do que antigamente se acreditava, hoje está estabelecido que o contágio se
faz com dificuldade e tão somente após prolongado contato, permanente coabitação e mercê de condições
precárias de higiene.”; Eduardo Rabello e Silva Araújo: - embora seja a lepra pouco contagiosa, seremos
forçados, pela ignorância em que estamos, dos meios em que se opera a transmissão, a tomar contra ela
medidas relativamente rigorosas a fim de evitar sua propagação, mesmo a um número reduzido de indivíduos.”
SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. Vol.3. Op. cit. p.p. 139 e 153,
respectivamente.
283
SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. Vol.3. Op. cit. p. 159.
284
ROCHA, Raul. Da Lepra o essencial. Op. cit. p. 14.
285
As formas de transmissão da doença discutidas no meio médico eram o contágio de forma direta, de homem
para homem, a forma indireta, através de algum veículo como o mosquito ou a transmissão hereditária. Também
não descartavam a possibilidade de algum alimento ou vestimenta serem responsáveis pela transmissão da Lepra.
LIMA, Lauro de Souza. Relatório. Revista Brasileira de Leprologia, vol. 6, 1938, p. 204. - AHBFM
38
decanos científicos, entre a população, tornava-se a certeza de que a Lepra era um terrível
286
Conclusões da Conferência de Bergen(1909): O estudo clínico da Lepra leva a crer que esta doença não é
incurável. Não possuímos ainda um medicamento seguro. É desejável que se continue a procurar um remédio
específico. ROCHA, Raul. Da Lepra o essencial. Op. Cit. p. 399.
39
doentes eram entregues à filantropia leiga ou religiosa ou à própria sorte. No Rio de Janeiro,
Algumas medidas foram tomadas, como a construção dos primeiros Lazaretos para servir de
asilo aos “leprosos”. No Rio de Janeiro foi construído um Hospital para abrigar os doentes,
porém, desde cedo, o estabelecimento se mostrou insuficiente, não havia espaço e recursos
Ainda que fossem tomadas algumas medidas, combater a Lepra continuava sendo
uma obra mais de caridade do que propriamente um problema sanitário. Com o advento da
República, as questões de saúde foram aos poucos sendo assumidas pelo Estado. Algumas
considerações talvez nos ajudem a compreender porque a Lepra despertou interesse dos
pública, cabendo aos governos estaduais solucionar seus problemas sanitários. Houve uma
287
TERRA, Fernando. Lepra no Rio de Janeiro. Seu aparecimento, freqüência e formas. Brazil Medico, A.
XXXIII, n.º5, de 1/2/1919, p.p. 33-36.
288
MAURANO, Flávio. História da Lepra. Op. Cit. p. 154.
40
separação entre saúde pública, encargo do Estado, e higiene, encargo dos municípios. Este
descompasso fazia com que a situação sanitária do país se tornasse cada vez mais grave.
Alguns Estados promoviam ações em prol da saúde da população, enquanto outros nada ou
pouco realizavam.
atribuições dirigir os serviços sanitários dos portos, fiscalizar o exercício da medicina, estudar
DGSP ampliou sua atuação incluindo serviço de higiene defensiva, polícia sanitária,
profilaxia geral e higiene domiciliária da Capital Federal.289 Afora estes casos previstos, os
1904. A moléstia foi incluída entre as doenças passíveis de intervenção dos poderes públicos
enquanto não fossem estabelecidas Colônias.290 Oswaldo Cruz, então à frente da Diretoria
289
HOCHMAN, Gilberto. Regulando os Efeitos da Interdependência: sobre as relações entre saúde pública e a
construção do Estado (Brasil 1919-1930). In: Estudos Históricos, n.º 11, vol. 6, FGV, 1993, p.48
290
Decreto 5.156 de 08 de março de 1904. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides Cesar de. História da Lepra no
Brasil. Vol. 3 Op. Cit. p.p. 115-126. Com o regulamento da Diretoria Geral da Saúde Pública as orientações para
o combate à lepra permaneceram as mesmas, Dec. 10.821 de 18 de março de 1914. Idem, p. 121.
291
CRUZ, Osvaldo. Uma questão de higiene social: lepra In: O Imparcial, Rio de Janeiro, n.211, p.2, jul. 1913.
41
voluntárias e emergências, como a criação de Lazaretos para asilar doentes, mantidos através
da filantropia, eram insuficientes para pôr fim à marcha desta doença que cobrava importantes
admitiam os médicos, faltasse base científica para conduzir a profilaxia, entendiam que algo
precisava ser feito. Não havia consenso se deveriam construir um Leprosário nacional ou
vários Leprosários regionais, defendiam porém, que o combate à Lepra deveria ser
permanente e estendido a todo o país, pois se assim não fosse, os doentes iriam migrar de um
Estado a outro, “fugindo” das medidas profiláticas. Deste modo, a doença não iria ser
autônomos nas questões de saúde. Não havia uma agência sanitária nacional que organizasse
problema colocado pelo chamado “movimento sanitarista”,293 reunido em torno da Liga Pró-
Saneamento a partir de 1918. Este “movimento” lançou uma nova interpretação para o
292
PENNA, Belisário. O Problema Brasileiro da Lepra. In: Archivos Rio Grandense de Medicina, Faculdade de
Medicina de Porto Alegre: Acervo Histórico, n.º 8 e 9, agosto e setembro , 1928, p.48. O médico criticava a
construção de leprosários estaduais, ou mesmo regionais, dizia que esta prática iria multiplicar os focos da Lepra.
Diaia-se herdeiro da idéia de Oswaldo Cruz, de construir uma colônia na Ilha Grande para isolar todos os
doentes do país. (AHBFM)
293
Formado por médicos voltados para as questões da saúde pública, comprometidos, na primeira década do XX,
com o saneamento urbano dirigido às capitais, aos centros urbanos e ao combate às epidemias e, na segunda
década do XX, reunidos sob a Liga Pró-Saneamento do Brasil, preocupados com os problemas que assolavam o
interior do país, principalmente as chamadas endemias rurais, estes médicos não apenas propunham reformar o
Estado para torná-lo mais atuante nas questões de saúde pública, como estavam dispostos a ocupá-lo como
técnicos. Ver CASTRO SANTOS, Luiz A. de. O pensamento Sanitarista na Primeira República: uma ideologia
de construção da nacionalidade. In: DADOS – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Ed. Campus, vol. 28,
n.º 2, 1985; HOCHMAN, Gilberto, FONSECA, Cristina M. O. O que há de Novo? Políticas de Saúde Pública e
Previdência 1937-45. In: Repensando o Estado Novo. Dulce Pandolfi (org.). Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999
p.49; 75-76. O “movimento sanitarista” ainda pode ser inserido num contexto internacional dos Movimentos
Nacionalistas de Defesa. HOCHMAN, Gilberto. A Era do Saneamento. São Paulo: Ed. Hucitec/Anpocs, 1998, p.
66.
42
“atraso” do país, não mais a raça, embora houvesse nuanças do discurso eugênico na fala dos
sanitários nacionais, principalmente as endemias que assolavam o interior do país, entre elas a
Lepra, trazendo a saúde pública para o debate político. Reivindicavam que o Estado se
voltasse para além das capitais ou principais cidades, e aconselhavam a criação do Ministério
294
CASTRO SANTOS, Luiz de A. O Pensamento Sanitarista. Op. Cit. p.194-197. A recuperação do “homem do
interior” era uma das correntes de pensamento sobre os rumos que o país devia tomar para atingir o progresso,
outras correntes filiam-se à idéia do branqueamento, ou “europeização”, como alternativa para o
desenvolvimento nacional.
43
as competências estaduais.295
então presidente Wenceslau Brás, do Serviço de Profilaxia Rural, que combateria, através de
outro, estes vínculos, que Gilberto Hochman (1993; 1998) chamou de “interdependência
295
HOCHMAN, Gilberto. Regulando os Efeitos da Interdependência...Op. cit. p.49.
296
SOUZA ARAÚJO, Heraclides Cesar de. História da Lepra no Brasil. Vol. 3 Op. Cit. p.260. O impaludismo
também conhecido como malaria é uma doença infecciosa, provocada pelo hematozoário Plasmódium,
inoculado no homem pela picada dos mosquitos, da variedade Anopholes, o doente apresenta febres em
intervalos regulares e anemia. A doença de chagas foi o nome que recebeu a enfermidade descoberta pelo Dr.
Carlos Chagas, caracterizada pela presença do Tripanossoma Cruzi, um protozoário transmitido ao homem por
vários insetos chamados vulgarmente de barbeiros. Estes insetos ao ingerirem o sangue humano expelem fezes
contaminadas que caem na corrente sangüinea ocasionando a infecção, os sintomas incluem febre alta
prolongada e aumento do tamanho do coração. BERTOLLI FILHO, Cláudio. A História da Saúde Pública no
Brasil. op.cit.
297
HOCHMAN, Gilberto. A Era do Saneamento. Op. cit. p. 27; 99.
44
a moléstia atingia populações de todas as regiões do país. Nos Estados Unidos, a Lepra foi a
Esta análise, embora pareça querer justificar as ações, muitas vezes repressivas, do
Estado, em nome da saúde coletiva, aponta para interessantes constatações. Uma de que a
problema para o Estado, por outro lado, ao intervir na saúde pública (regulando os efeitos
público”. Não necessariamente o Estado teria o monopólio desta função, mas ele seria a forma
Ministério voltou a ser discutida no meio político. Colocada em votação, outra vez a proposta
foi rejeitada, a negativa foi feita através dos mesmos argumentos, da burocratização, das
Mas os “efeitos negativos da interdependência” viriam falar mais alto, com destaque
Federal, realizar os serviços sanitários nos portos e a profilaxia rural nos Estados. No que se
298
Idem. p. 154.
299
Ibidem. p. p.127-143.
45
Doenças Venéreas em todo o país.300 As despesas com a assistência aos morféticos que
fossem isolados nas leprosarias a serem construídas pela União, correriam por conta dos
governos dos Estados de onde estes doentes proviessem. Nenhum destes serviços seria
dos mais tradicionais periódicos médicos do país. A Revista argumentava que as providências
devia ser obrigatório a todos os leprosos, criticava o isolamento domiciliar para doenças
crônicas, devido ao tempo de duração do mesmo. Por fim, condenava a aplicação condicional
das medidas do regulamento aos Estados que acordassem com o governo federal na execução
da profilaxia.301
para responder aos “ataques” que a Brazil-Médico fez ao regulamento. Sobre a crítica feita ao
recomendavam o isolamento misto: hospitalar para doentes indigentes e os que não pudessem
se manter (lembramos que aos doentes ficavam interditadas à maioria das profissões) e
E ainda:
300
Dec. 3897, de 2 de janeiro de 1920.Coleção das Leis, vol. 1, 1920.
301
Brazil Medico, ano 34, 1920, editorial de 24 de julho de 1920. p. 481. SOUZA ARAÚJO, Heraclides Cesar
de. História da Lepra no Brasil. Vol. 3 Op. Cit. p.p. 264-265.
302
Eduardo Rabelo na Sessão da ANM de 12-8-1920. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da
Lepra no Brasil. Vol. 3. Op. Cit. p. p. 269
46
aspecto criticado pela Revista, Rabelo respondeu que, “embora não sendo muito versado em
questões de leis, mas me parece que não poderíamos discricionariamente intervir nos
Estados para fazer a profilaxia sem que houvesse uma lei que isso determinasse”.304 A
construção de leprosarias pela União nos Estados por si só não resolveria o problema, as
outras medidas como a notificação ou a vigilância dependeriam dos serviços dos Estados, a
não ser que o Governo federal instalasse todo um Serviço de profilaxia. Ou seja, a atuação
federal nos Estados, mediante acordos, mais que uma previsão constitucional, era necessária
A argumentação de Rabelo explicou, mas não convenceu seus pares, que seguiram
opinião de tropicalistas, defendiam que a profilaxia da Lepra só poderia ser eficiente com o
muito aquém das expectativas dos médicos reunidos em torno da revista Brazil-Médico, entre
303
Eduardo Rabelo na Sessão da ANM de 12-8-1920. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da
Lepra no Brasil. Vol. 3. Op. Cit. p, p.270.
304
Eduardo Rabelo na Sessão da ANM de 12-8-1920. Idem. p, p.271.
305
Brazil Médico, 21 de agosto de 1920, vol. 34, p. 553. Ibidem. p.271-272.
306
Os colaboradores da Brazil Médico procuraram destacar a necessidade da atuação médica para os destinos da
nação. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil –
47
médico, foi retirado de circulação meses após sua promulgação e substituído por outro
decreto, mais rigoroso em relação à Lepra. Pelo novo decreto, ficava criado dentro do DNSP
suspeitos, mas a qualquer pessoa que residisse ou convivesse com o suspeito. O não
dinheiro mais sanções para os médicos. O médico que infringisse o regulamento seria
considerado “suspeito” pelo DNSP, sendo que todos os doentes por ele visitados e óbitos por
ele atestados seriam sujeitos à verificação por parte das autoridades sanitárias. Caso o
O isolamento, medida profilática adotada em relação aos doentes de Lepra, podia ser
de dois tipos: nosocomial, em colônias agrícolas para doentes capazes de fazer pequenos
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Cap. 6: As Faculdades de Medicina ou como sanar um país
doente, p.p. 189-238.
307
Dec. 14.354 de 15 de setembro de 1920, aprovado pelo Dec. 16.300 de 31 de dezembro de 1923 – constam
pequenas modificações, a maioria de redação.
308
Dec. 14.354 de 15 de setembro de 1920. Biblioteca da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do
Sul. - BALRGS
48
trabalhos ou em asilos para os doentes inválidos; domiciliar para os doentes que tivessem
médicas, tais como possuir cômodo e pertences de uso exclusivo, manter rigoroso asseio
corporal e da habitação, não manusear nenhum objeto que pudesse ser manuseado por outrém,
as pessoas suspeitas. Esta vigilância poderia durar anos e apenas cessar com o
qualquer função que os colocasse em contato com o público. O exame que confirmaria o
exame poderia ser contestada pelo doente. Assim, caberia ao DNSP nomear uma comissão
seriam incentivadas a ampliar seus estudos em Leprologia. E, por fim, o censo, que teria por
foram retomadas. O tema foi longamente debatido na ANM ao logo dos anos 20. A maior
polêmica dava-se em torno da figura de Belisário Penna, que atacava com virulência o DNSP
no que ele referia como o (não)combate à doença. O problema, segundo ele, estaria na própria
denunciava o descaso criminoso com a Lepra, “doença de países atrasados.” Para médicos
doentes de Lepra, sugeriu a criação do município de “São Lázaro” para este fim:
309
PENNA, Belisário. O Problema Brasileiro da Lepra. In: Archivos Rio Grandense de Medicina, Faculdade de
Medicina de Porto Alegre: Acervo Histórico n.º 8 e 9, agosto e setembro , 1928, p.12-38. Alusão à Noruega,
referência na profilaxia baseada no isolamento misto, hospitalar e domiciliar, adotado pela Inspetoria.- AHBFM
310
Belisário Penna na Sessão da ANM de 17/6/1926. Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. Vol. 3.
Op. cit. p. 414. Publicado no Boletim da Academia Nacional de Medicina, Ano 98, nº9, 1926, p.p.211/223.
SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. Vol. 3. Op. cit. p.414.
311
PENNA, Belisário. O Problema Brasileiro da Lepra. In: Archivos Rio Grandense de Medicina, Faculdade de
Medicina de Porto Alegre: Acervo Histórico n.º 8 e 9 agosto e setembro , ano 1928, p. 42. - AHBFM
50
Belisário foi “combatido” na Academia, por colegas como Eduardo Rabelo e Oscar
Silva Araújo (Inspetor da Profilaxia da Lepra). Aos poucos foram se delineando duas
Belisário Penna, era contestada, como também a sugestão do médico para a criação do
Academia, defendia uma posição mais moderada que a do sanitarista, dizia que a segregação
forçada dos doentes não deu resultado em nenhum dos países onde foi adotada, citando o
Penso que devemos ter leprosários, porque com eles conseguiremos isolar
grande e apreciável quantidade de leprosos, pobres ou necessitados, que
precisam do isolamento, e, principalmente, de um lugar em que morem,
durmam e comam. Não há dúvida que devemos isolar os leprosos, mas não
temos o direito de, em uma moléstia pouco contagiosa, como é a lepra,
pôr essa prática em condições estritas, sem podermos sequer garantir a cura.
Procederíamos anti-cientificamente contra todas as legislações do mundo, e
seria um absurdo voltarmos atrás neste momento.312(grifo nosso)
Para sustentar sua posição, Belisário Penna afirmava que se não fossem isolados
uma população de leprosos: “a lepra se dissemina de uma maneira quase igual à tuberculose,
caminhando numa proporção fantástica.”313 Rabelo rebatia as idéias do colega dizendo que a
lepra era pouco transmissível, sendo absurda a comparação com a tuberculose, a única forma
312
RABELO,Eduardo. Sessão da ANM de 24/6/1926. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da
Lepra no Brasil. Vol. 3. Op. cit. p. 427.
313
PENNA Belisário.Sessão da ANM de 17/6/1926. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da
Lepra no Brasil. Vol. 3. Op. cit. p. 417.
51
cessando de tocar no tema que ele denominava “O Problema Brasileiro da Lepra”, passou a
instalar dispensários nos municípios dizia que contribuiria para a propagação, não para o
Belisário Penna criticava a atuação do Departamento Nacional de Saúde Pública, dizia que,
“apesar do título pomposo com a palavra nacional ali intercalada”, não tinha atuação efetiva
dispendioso, sugeria ainda que nestas condições devia se chamar “Departamento Negativo de
Saúde Pública”, movido pela “politicalha” na nomeação dos cargos (que considerava a
Lepra moral do Brasil), criticava as oligarquias como um entrave aos progressos sanitários
Das primeiras atitudes do médico, quando foi nomeado Diretor do DNS em 1930, foi
314
RABELO, Eduardo .Sessão da ANM de 05/8/1926. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da
Lepra no Brasil. Vol. 3. Op. cit. p 431.
315
PENNA,Belisário. Sessão da ANM de 05/8/1926. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da
Lepra no Brasil. Vol. 3. Op. cit. p. 430.
316
PENNA, Belisário. O Problema Brasileiro da Lepra. In: Archivos Rio Grandense de Medicina, Faculdade de
Medicina de Porto Alegre: Acervo Histórico, ano VIII, n.º 2, fev. 1929, p. 9 -13. - AHBFM
317
Esta Inspetoria foi extinta em 1930 pelo Dec. 19.398 de 11 de novembro, por orientação de Belisário Penna
então diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública. SOUZA ARAÚJO. História da Lepra no Brasil. Vol.
3. Idem. Op. cit. p.598.
52
Pública (Mesp) no mesmo ano de 30, assegurando, em tese, ações mais coordenadas nesta
matéria.318
Gilberto Hochman (1993), ao contrário, diz que a Saúde dos anos 30 não representou
uma ruptura, o Mesp incorporou o projeto de Saúde Pública da República Velha, manteve na
DNSP, e avançou ao longo dos anos 30, buscando a tão desejada centralização e
República.320
318
Dec.19.402 de 14 de novembro de 1930. O Ministério teria além da Secretaria de Estado, sete repartições
ligadas ao ensino e quatro departamentos na área da saúde: Departamento Nacional de Saúde, Departamento de
Medicina Experimental, Departamento Nacional de Assistência Pública e Inspetoria de Águas e Esgotos.
319
CASTRO SANTOS, Luiz A. de. O pensamento Sanitarista na Primeira República: uma ideologia de
construção da nacionalidade. In: DADOS – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Ed. Campus, vol. 28, n.º
2, 1985, p.p.193-210.
320
HOCHMAN, Gilberto, FONSECA, Cristina M. O. O que há de Novo? Op. cit. p.p.73-93.
53
nome da “coletividade”, encontrou efetividade num Estado forte e autoritário, como se forjou
no Mesp, atrasando a tão adiada agenda sanitária no Brasil. Durante os três primeiros anos do
Washington Pires. Durante o Ministério deste último, foi criada a Diretoria Nacional de Saúde
e Assistência Médico Social (DNSAMS), através da qual o governo federal atuaria nos
os recursos distribuídos pela DNSAMS encontrava-se uma verba para o combate à Lepra.
Mesp, pasta que ocuparia de 1934 à 1945, um conjunto de reformas transformou o Ministério
pelo ministro em 1937, alterou a estrutura da Saúde Pública no País. Entre outras medidas, o
Nacional de Saúde (DNS) foi reorganizado, tudo visando uma maior centralização e
321
Lei n. 378 de 13 de janeiro de 1937. - BALRGS
54
antigo DNSP, que previam a execução de serviços mediante convênios e somente com a
autorização dos governos, demonstram que o Ministério ganhou uma maior capacidade
intervencionista:
dos Serviços Estaduais de Saúde, através da criação dos Departamentos Estaduais de Saúde
(DES), submetidos ao DNS. O Serviço Nacional da Lepra, proposto por esta reforma de 37,
da Saúde Pública no Estado Novo, através de projetos nacionais para organização sanitária
dos Estados e dos municípios, sempre evidenciando o caráter centralizador das políticas.
governo, sua promoção – vista neste período como “defesa da nacionalidade” – servia para
legitimar o Estado, principalmente durante o período ditatorial do Estado Novo que buscou
legitimar-se pela eficiência, sobretudo na área social, visto que não foi legitimado pelo voto.
Pode-se dizer que a Saúde Pública no Estado Novo não representou ruptura.
322
CAPANEMA apud HOCHMAN, Gilberto, FONSECA, Cristina M.O. O que há de novo? Op. cit. p.84.
323
Dec. 378 de 13 de janeiro de 1937. Atos do Legislativo, vol.3, Rio de Janeiro Imprensa Oficial, p.16. –
BALRGS.
324
HOCHMAN, Gilberto, FONSECA, Cristina M. O. A I Conferência Nacional de Saúde: reformas, políticas e
saúde pública em debate no Estado Novo. In: In: Capanema: O Ministro e seu Ministério. Ângela Castro Gomes
(org.) Rio de Janeiro: FGV, 2000, p.181.
55
Antes, atualizou a agenda dos anos anteriores, qual seja, a efetivação do combate às
endemias rurais e às epidemias. A mudança pode ser marcada pelo intenso processo de
e de burocratização dos serviços. O Estado conseguiu forças para atuar em todo o território,
governamental.
56
A Lepra está na moda, dizia o deputado Gama Rodrigues, de São Paulo. Com esta
observação fazia uma espécie de crítica ao tratamento que a doença vinha recebendo nos
No final do século XIX, início do século XX, tivemos uma expansão da rede de
(1894) nos EUA, Molokai (1865) no Havaí, e Cullion (1906) nas Filipinas.326 Neste contexto,
moléstias como a Lepra não tardaram a adquirir novos significados. A doença passou a ser
uma fala proferida por Gustavo Capanema, por ocasião da inauguração de um Leprosário no
Espírito Santo:
políticos, sobretudo, em função das denúncias dos sanitaristas. Estes médicos diziam que
nosso atraso era resultado, não da nossa formação racial, embora houvesse nuanças do
discurso eugênico na fala destes profissionais, mas das doenças contagiosas que afetavam
325
IYDA, Massako. Cem anos de Saúde Pública. A cidadania negada. São Paulo: Ed. da UNESP, 1994, p. 63.
326
SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. A Lepra – estudos realizados em 40 países (1924-1927). Trabalho
do Instituto Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro. Tipografia do Instituto Oswaldo Cruz, 1929. Estes leprosários
tornaram-se referência no combate à lepra no mundo. O surgimento da Lepra no “Novo Mundo”, bem como a
expansão da moléstia na segunda metade do XIX em vários países, podem ser imputados a colonização e
imperialismo, respectivamente, mas esta discussão foge ao interesse desta pesquisa.
327
AGRÍCOLA, Ernani. Campanha Nacional Contra a Lepra. Palestras proferidas ao microfone da PRA-2 do
Serviço de Radiodifusão Educativa do Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro, 1946. p. 125.
57
nossa população, constatavam que o homem brasileiro, sobretudo do meio rural, era um
personagem doente.328
Um outro fator que “empurrou” a Lepra para a “agenda sanitária nacional” foi a
importante passo para a medicina, por outro lado veio confirmar a contagiosidade da moléstia,
fazendo com que houvesse um recrudescimento dos temores antigos e, sobretudo, munindo a
nacional nos anos 30 do século passado, apontados anteriormente, permitiram que o governo
levasse adiante um plano de combate à Lepra proposto nas primeiras décadas da República.
atuação limitada durante seu período de existência, justificada, entre outros elementos, pela
burocratização dos Serviços e pela dependência dos acordos com os governos estaduais, seu
328
BERTOLLI FILHO, Cláudio. História da Saúde Pública no Brasil. Op. cit. p. 21.
329
BERTOLLI FILHO, Cláudio. A História Social da Tuberculose e do Tuberculoso: 1900-1950. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ, 2001. (Coleção Antropologia e Saúde) p.p.11-112.
330
AGRÍCOLA, Ernani. Campanha Nacional contra a Lepra. Op. Cit. p. 110.
58
propostas pela Inspetoria, herdando um modelo mais ou menos estruturado para a profilaxia
ambulatórios especializados.
O plano nacional de combate à Lepra foi elaborado em 1935 pelos médicos João de
Barros Barreto, diretor Geral da Saúde Pública, Ernani Agrícola, diretor dos Serviços
Estado, obrigado a sustentá-lo no isolamento. A idéia do doente peso para o Estado e para a
331
AGRÍCOLA, Ernani. Campanha Nacional contra a Lepra. Op. Cit. p.p. 10-11. Antes dos anos 30, sob os
auspícios da Inspetoria da Lepra do DNSP, foram construídos alguns leprosários federais através de convênios
com os Estados, são exemplo o Lazarópolis do Prata (1924) no Pará, Colônia São Roque (1926) no Paraná.
332
ROCHA, Raul. Da lepra o essencial. Op. Cit. p. 497.
333
AGRÍCOLA, Ernani. Campanha Nacional contra a Lepra. Op. Cit. p.16.
59
economia ganhou expressão num período em que a ideologia do trabalho era bandeira política
no país. Se era necessário o isolamento, ao menos que os doentes produzissem alguma coisa.
incentivaria o doente a trabalhar. A idéia era de que as colônias tivessem a forma de cidades
autônomas, auto-suficientes.
1924, projeto do médico sanitarista Souza Araújo. Neste estabelecimento, dizia o médico,
todos teriam suas obrigações e o ócio seria desaconselhado.334 Comissionado pelo Instituto
Oswaldo Cruz e a Fundação Rockefeller, Souza Araújo, realizou o estudo sobre a Lepra em
médico percorreu o Brasil a pedido do Governo Provisório para avaliar a situação da Lepra
saudável pelo tempo que fosse necessário, se a doença era muito ou pouco contagiosa, se o
isolamento era a melhor forma de profilaxia, se solucionaria o problema da Lepra, não seria
aquele o momento para querelas acadêmicas entre os médicos, que “aproveitaram” a “boa
vontade” do governo e levaram adiante um plano que vinha sendo gestado há muitos anos.
apropriado para a construção de edifícios, deveria possuir terras para a agricultura de modo a
dar trabalho remunerado aos doentes capazes. Este sistema, segundo seus ideólogos,
contaminada ou “suja”, onde ficariam os doentes, a zona intermediária, onde ficaria o pessoal
Para cuidar dos filhos sadios dos doentes, em colaboração com a sociedade, o
Governo iria instalar Preventórios. A idéia da sociedade “amparar” os filhos dos leprosos
tinha sido levantada em 1926, quando foi fundada em São Paulo a Sociedade de Assistência
aos Lázaros e Defesa contra a Lepra, formada por um grupo de senhoras da elite paulistana.
No ano seguinte, foi fundada uma congênere no Rio de Janeiro. A finalidade destas
associações era estudar a Lepra, fundar Leprosários para doentes indigentes e abastados e,
sobretudo, proteger e educar os filhos dos leprosos, longe dos focos de contágio. 339
autoridades políticas. Os donativos, entre outras finalidades, serviriam para ajudar famílias de
sadia” dos doentes, havia quem defendesse medidas mais “definitivas” para acabar com o
“problema”, que seria cuidar de tantas crianças com pais isolados em função da Lepra.
apresentou uma “solução” para a situação dos filhos dos doentes. Ele defendia: “a
337
ROCHA, Raul. Da lepra o essencial. Op. Cit. p. p. 500-501.
338
AGRÍCOLA, Ernani. Campanha Nacional contra a Lepra. Op. Cit. p. 40.
339
SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. Vol. 3. Op. cit. p. 488-496
340
Idem, p. 488-496
61
da raça e revigorar a saúde do indivíduo (...) a esterilização dos leprosos é forma eficiente de
No discurso dos dois médicos, as razões para a esterilização seriam de três ordens:
esterilização não encontrava respaldo porque a doença não era hereditária. Todavia,
341
Comunicação de Paulo Cerqueira Pereira apresentada na Conferência de Uniformização da Campanha contra
a Lepra, rio de Janeiro, 1933. ROCHA, Raul. Da lepra o essencial. Op. Cit. p. 479. Comunicação de Paulo
Cerqueira Pereira.
342
ROCHA, Raul. Da lepra o essencial. Op. Cit. p. 478.
343
A eugenia era mais uma teoria cientificista européia que procurava explicar a diferença entre os homens
através de causas naturais, era mais uma noção difusa que uma teoria coerente. Lembremos que neste período
havia a preocupação com a formação do povo brasileiro, considerando que a população era tida como doente, a
atuação da medicina na sociedade visava a redenção da raça através de um projeto médico-eugênico.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; MARQUES, Vera Regina Beltrão. A medicalização da Raça:
médicos, educadores e discurso eugênico. São Paulo: Unicamp, 1994.
344
ROCHA, Raul. Da lepra o essencial. Op. Cit. p. 478.
345
BATISTA, Luiz; BECHELI, Luiz Marino : “Symposium” sobre o problema da esterilização dos doentes de
Lepra. In: Revista Brasileira de Leprologia. Órgão Oficial da Sociedade Paulista de Leprologia. São Paulo: vol.
10, 1942, p.167. - AHBFM
62
contrabalançariam as despesas que o governo teria com a assistência social aos filhos dos
leprosos.
propagação de doenças venéreas. Não havia leis que os impedissem de casar, e do ponto de
vista profilático, o casamento até era prática indicada, pois fixaria mais o doente nas
colônias.346
A participação das Sociedades de Defesa contra a Lepra exerceu forte influência nos
rumos da Campanha. Além da responsabilidade pela proteção dos filhos dos Lázaros,
todo o país, onde convocavam a sociedade para a “humanitária cruzada contra a Lepra”,
fim de colaborar na Campanha. Em 1932, algumas das principais Sociedades fundaram uma
“Federação” cuja principal reivindicação era: que a Campanha de combate à Lepra fosse
estendida a todo o país.348 A idéia de “Federação” surgiu em São Paulo com o objetivo de
346
AGRÍCOLA, Ernani. Campanha Nacional contra a Lepra. Op. Cit. p. 27-28
347
GOMIDE, Leila Regina Scalia. Discurso Médico e ação profilática: a hanseníase em questão. In: História e
Perspectivas, Uberlândia, (8), jan./jun. 1993, p. 80. O Boletim foi publicado de abril de 1929 a março de 1930
sendo depois substituído pela Revista de Combate à Lepra, publicada de 1936 até 1944. Não tivemos acesso a
esta fonte, mas sabemos de sua localização: Sede da Federação Eunice Weaver no Rio de Janeiro.
348
Em 1937, a federação foi considerada de utilidade pública pelo governo federal (Decreto n. 1.473 de 08 de
março de 1937), em 1942 foi oficialmente integrada à Campanha contra a Lepra pelo decreto 4.827.
63
Federação, a proposta era fundar novas Sociedades em todo o país, para levar adiante o
doença. Seriam responsáveis pelo tratamento dos doentes não segregados, pela educação e
pela vigilância sanitária, pela fiscalização e pelo controle dos “comunicantes”, como eram
naquele país admitiam o fracasso daquele sistema de isolamento e sugeriam como forma de
profilaxia:
349
MAURANO, Flávio. Tratado de Leprologia. Vol. 1. História da Lepra no Brasil e sua distribuição geográfica.
Ministério da Educação e Saúde. Departamento Nacional de Saúde. Serviço Nacional de Lepra. Rio de Janeiro,
1944. p.p.165-166.
350
Yara Nogueira Monteiro afirma que São Paulo foi o Estado do país que mais enviou doentes para o
Leprosário, enquanto nos demais Estados do país o isolamento era seletivo, São Paulo isolava todos os doentes
diagnosticados. Profilaxis and exclusion: compulsory isolation of Hansen´s disease patients in São Paulo.
MONTEIRO, Yara Nogueira. In: História, Ciências e Saúde, Manguinhos. Leprosy: a Long History of Stigma,
vol. 10, 2003. No Rio Grande do Sul, do período de 1933 a 1960, dos 3.625 casos detectados, 1.960 estiveram
isolados no Leprosário Itapuã. FONTE: Arquivos da Dermatologia Sanitária do Rio Grande do Sul.
351
TOLENTINO, José. “ Porque o actual systema de isolamento fracassou na extinção da Lepra, nas Philipinas”
In: Revista Brasileira de Leprologia. Vol. 4, n.º 3, 1936, p. 378. - AHBFM
64
determinou que o isolamento apenas deveria ser aplicado aos doentes contagiantes,352 aos
mais humano.353
combate à Lepra teve um cunho extremamente repressivo, como ocorreu em relação a outras
leprosos não apenas elementos médicos, como o contágio, mas sociais, como o bem comum.
combate à doença: “São conhecidos os sofrimentos dos doentes de lepra, a sua imensa
tragédia atingindo toda sua família e, por isso mesmo não temos o direito de, por
352
Por formas contagiantes entendia-se aqueles doentes das formas lepromatosas e mixtas(sic), tipos mais graves
da doença, responsáveis por 95% dos contágios, não-contagiantes eram os doentes da forma tuberculóide, que
não eliminam bacilos da doença. ROCHA, Raul. Da lepra o essencial. Op. Cit. p.p. 499.
353
ROCHA, Raul. Da lepra o essencial. Op. Cit. p. 401.
65
foram “sufocadas” em nome da possibilidade de extirpar a Lepra do país, mesmo que o preço
cobrando a intervenção do Estado nas questões de saúde, podiam ver suas ambições
Conferência inaugurou uma nova fase no combate à doença, traçando as orientações gerais
para a execução do plano nacional, que atribuía à União a responsabilidade pela instalação de
Leprosários, à sociedade civil, auxiliada pelo governo, a incumbência dos preventórios e aos
por outro evento, a Conferência Nacional de Assistência Social aos Leprosos, realizada em
1939, no Rio de Janeiro, e organizada pela Federação das Sociedades de Assistência aos
Lázaros e Defesa contra a Lepra com o objetivo de coordenar a ação das Sociedades filiadas à
Federação no combate à Lepra. Nos 8 dias do encontro, que contou com a participação do
propaganda sanitária.356
354
AGRÍCOLA, Ernani. Campanha Nacional contra a Lepra. Op. Cit. p. 138.
355
Idem. p. 41.
356
Revista Brasileira de Leprologia de São Paulo, vol. 7, 1939. p.p. 425-435. - AHBFM
66
Lepra no Brasil. Na ocasião duas correntes discutiam sobre os planos que deveriam orientar a
Campanha no país e sobre o papel do Serviço Nacional da Lepra na execução destas políticas.
Uma “corrente” não admitia que o Serviço Nacional da Lepra tivesse autonomia na
direção do combate a esta moléstia nos Estados. Defendia que a orientação destes serviços
deveria continuar sob a direção dos Departamentos Estaduais de Saúde, organizados em todo
o país através das reformas do MES. A “corrente” formada por médicos do Serviço Nacional
Campanha Nacional contra a Lepra, a ser executada pelos Departamentos Estaduais. Esta
também era a proposta do Ministério, desse modo a União poderia orientar, coordenar e
seriam braços executivos do SNL,358 que teria por funções: organizar, em todo o país, o plano
atividades dos serviços públicos e privados empenhados nessa Campanha; realizar estudos,
quaisquer serviços de combate à Lepra no país e sobre regulamentos e regimentos que cuidem
Por fim, antes de analisarmos como se realizou a Campanha contra a Lepra no Rio
Grande do Sul, vamos examinar um outro elemento, que embora não fizesse parte do
combate à Lepra foram percebendo que a doença não poderia ser caso de polícia; a
moléstia. Para que o tripé funcionasse, era preciso identificar os doentes no tecido social. Isso
poderia ser feito através da busca direta dos doentes, de casa em casa, o que dificultaria o
trabalho da saúde pública, através da apresentação espontânea do doente, na maioria dos casos
A Campanha tinha que alertar a sociedade para o “perigo” que representava a Lepra,
sem causar pânico a ponto de afugentar o leproso. Houve quem defendesse que esta
propaganda devia fazer revigorar o pânico que outrora causava a Lepra e que era “ a única
359
Revista Brasileira de Leprologia, vol.12, 1944, p.163.
360
Belisário Penna na Sessão da ANM de 17/6/1926. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da
Lepra no Brasil. Vol. 3. Op. cit. p. 414.
68
principalmente esta última, que além de atingir os analfabetos, tinha “um grande poder
principalmente, que a Lepra era curável, e, apesar de contagiosa, evitável. Somente uma
modificação na atitude do público para com a doença poderia coroar o sucesso da Campanha.
Saúde, reunidas posteriormente pelo Dr. Ernani Agrícola e publicadas com o título Campanha
Nacional contra a Lepra. Estas palestras eram dedicadas, sobretudo, a informar a população
muito tênues:
361
XAVIER, Alvorino Mercio. MENDES, Pessoa; MANGEON, Gilberto. Da propaganda contra a lepra e os
meios de realizá-la. Arquivos do Departamento Estadual de Saúde, Vol. 1, 1940, 153. CEDOPE/HCI
362
Idem. p. 154. O Rádio foi um instrumento largamente empregado durante o Estado Novo, este meio de
comunicação era visto como “um instrumento de educação e de cultura com vista à integração nacional.”
CAPELATO, Maria Helena. Propaganda Política e controle dos meios de comunicação. In: Repensando o
Estado Novo. Dulce Pandolfi (org.) Rio de Janeiro: FGV, 1999.
363
SOUZA LIMA, Lauro de. Relatório. Departamento de Profilaxia da Lepra do Estado de São Paulo. Revista
de Leprologia, vol. 6, 1938, p. 207. - AHBFM
69
“Amáveis ouvintes”, seguia a exaltação da grande obra que representava o combate à Lepra e
o papel da mulher nesta cruzada, terminava com uma descrição da doença: “um belo dia o
mal aparece e começa sua obra de destruição. Mutila. Deforma. Caem-lhes os dedos, as
mãos, os braços, as orelhas, o nariz. O desgraçado torna-se uma ruína viva. Conheci, há
repassada para a sociedade. Alguns médicos criticavam esta forma de abordá-la, entretanto,
pouco faziam para dissipar estas representações, sendo que o medo não apenas podia, como
foi utilizado em benefício da Campanha. Com o passar dos anos esta atitude viria a ser um
problema.
“contraste” era uma forma de justificar/convencer sobre a necessidade das ações profiláticas.
364
AGRÍCOLA, Ernani. Campanha Nacional contra a Lepra. Op. Cit. p. 103.
365
GASPARINI, Savino. Palestras de Higiene na rádio Tupi. MES: Serviço de Educação Sanitária, 3ª série –
1941, Rio de Janeiro: 1945. P.p.68-70.
70
Figura 7: Asilo Colônia “Santo Angelo”, Mogy das Cruzes, São Paulo
(considerado o Leprosário modelo) In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de.
História da Lepra no Brasil. Vol.2. O período Republicano (1890-1946) Rio de
Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1948. Álbum das organizações
anti-leprosas. Estampa: 49
Figura 8: Amparo Santa Cruz, Rio Grande do Sul. In: SOUZA ARAÚJO,
Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. Vol.2. O período Republicano
(1890-1946) Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1948. Álbum
das organizações anti-leprosas. Estampa: 360
73
Este era o quadro dos doentes de Lepra no Rio Grande do Sul, pintado em 1933 pelo
Dr. Maya Faillace. Nesta época, alguma atenção já haviam despertado os leprosos que
acorriam à Capital, mas o “desfile macabro”, expressão usada pelo médico, havia iniciado
anos antes.
considerados raros.367 Transcorrida pouco mais de uma década, o médico J. Athayde da Silva
apresentou sua tese na Faculdade de Medicina de Porto Alegre – “A propósito de alguns casos
hotéis, como entregadores de leite e, fato que o deixava muito impressionado, um antigo
366
FAILLACE, J. Maya. Do Conceito Atual de Profilaxia da Lepra. Op. Cit. p.p.5-6.
367
BEM, Baltasar P. de. Geografia Médica no Rio Grande do Sul. Tese. Livraria do Globo, Porto Alegre, 1905,
p. 89. - AHBFM
368
SILVA, J. Athayde da. Propósito de alguns casos de lepra. These inaugural. Typografia de Carlos Echenique.
Porto Alegre, 1915. - AHBFM
74
porto de Rio Grande, viu no cais um carregador leproso. Chegando à Santa Casa de
Misericórdia daquela cidade, o médico encontrou uma mineira, com Lepra mutilante,
internada há 7 anos. Entretanto, disseram-lhe que não sabiam o que a “preta” tinha. Havia
outros leprosos na cidade e foi informado sobre outros doentes residentes no interior. O
médico narra um caso de um leproso de Rio Pardo que esteve internado por 4 anos no
Hospital de Lázaros do Rio de Janeiro, o qual abandonou por não ter encontrado melhoras
para seu estado. Desesperado com a doença, o homem submeteu-se por sua “livre e
cidade, 24 horas depois de mordido pela cobra, após sofrimentos atrozes, o homem faleceu.369
Enviar doentes para o Rio de Janeiro, ao que parece, era uma medida tomada por
alguns Estados. A Capital Federal possuía o “Hospitais de Lázaros” desde o século XVIII,
mantido, primeiramente, pela caridade e, na década de 20, assumido pelos poderes públicos.
A maioria dos doentes internados naquela cidade, segundo Clementino Fraga, diretor do
vezes sem autorização das autoridades sanitárias. Para solucionar o problema, sugeria o
como construir Leprosários para evitar o trânsito de doentes pelo território nacional.
Brasileira de Dermatologia de que o Rio Grande do Sul estava livre do “grande flagelo
nacional.” O fato da Lepra existir em menores proporções nos Estados do Sul, não era
argumento, segundo o médico, para não se tomar medidas de defesa, não iniciar a profilaxia
no Estado.370
369
SOUZA ARAÚJO. Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. Vol. 3. Op. cit. p. p. 351-352.
370
Idem. p. 352.
75
A reduzida presença de leprosos registrada no Estado, até o começo dos anos 20, e o
conseqüente descaso com a moléstia podem ser atribuídos, entre outros fatores, à dificuldade
de diagnosticar a doença na sua fase inicial e mesmo em fases adiantadas, como o exemplo,
Os índices de mortalidade provocados pela doença não eram base para calcular a
letalidade, as causas mortis ocorriam por doenças intercorrentes. Se comparada, por exemplo,
à tuberculose, que em um ano chegava a matar 2.257 pessoas no Estado, no mesmo período a
Lepra vitimava apenas cinco, número praticamente insignificante.371 A Lepra sequer era
de 1895 até 1928, eram praticamente as mesmas: difteria, peste bubônica, febre tifóide,
varíola, varicela, sífilis, tuberculose.373 A Lepra despertava a atenção dos poderes públicos
pela ausência de um isolamento para os doentes. Alguns partiam para a Capital em busca de
tratamento:
371
Relatório apresentado ao Presidente do Estado pela Secretaria de Estado dos Negócios do Interior e Exterior
em 4 de setembro de 1922. Oficinas Graphicas d’ A Federação, Vol. 1, 1922. (RSENIE) -AHRS
372
A notificação da Lepra foi estabelecida pelo dec. 3.471 de 12 de maio de 1925. RSENIE, em 01 de agosto de
1926. Oficinas Graphicas d’ A Federação, 1926, p. 417. -AHRS
373
WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: Medicina, Religião, Magia e Positivismo na República Rio-
Grandense, 1889-1928. Santa Maria: Ed. UFSM, Bauru: Ed. EDUSC, 1999. p. 62-63.
374
RSENIE, em 24 de agosto de 1925. Officinas Graphicas d’ A Federação, 1925, p. 327 - AHRS
76
dispersos, muitos passavam despercebidos, exceto em cidades como Santa Cruz do Sul, onde
era denunciada a presença de muitos casos.375 Foi desta cidade que partiu a iniciativa de
tipo colônia-agrícola para abrigar os doentes da Lepra, que, segundo o Rev. Pe. J. Rick, um
Uma das primeiras medidas tomadas pela Sociedade foi mostrar os planos da construção do
Leprosário ao Major Alberto Bins (então deputado estadual), que parece ter sido o
375
RSENIE, em 4 de setembro de 1922,. Oficinas Graphicas d’ A Federação, 1922, p. 64. - AHRS
376
A Sociedade União Popular, o “Volksverein” era uma das mais importantes organizações associativas das
comunidades teuto-brasileiras do sul do Brasil. Criada pelas lideranças católicas, leigas e religiosas, tinha por
objetivos: promover o bem-estar material e espiritual dos católicos de origem alemã; abrir novas fronteiras de
colonização; desenvolver iniciativas de natureza assistencial e de beneficência; promover escolas e educação,
etc. RAMBO, Arthur B. A Sociedade União Popular. In: Perspectiva Econômica, vol. 27, nº79, Série
Cooperativismo, nº32, 1992, p. 31-56.
377
Kolonie (Jornal de Santa Cruz do Sul), s.d. (possivelmente entre os anos de 1924-25) Biblioteca do Colégio
Mauá. Santa Cruz do Sul. Tradução livre de Roberto Steinhaus. Encontramos ainda referência em: Crônica das
irmãs Asilo Colônia Itapuã. 1940, p.1 CEDOPE/HCI. Outras referências em: SOUZA ARAÚJO, Heraclides
César de. História da Lepra no Brasil. Vol. 3, Op. Cit. p. 595. CUNHA, Ana Zoé Schilling da. Hanseníase: a
história de um problema de saúde pública. Série Conhecimento 1. Teses e Dissertações. Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2000.
378
O Major Bins foi nomeado presidente de honra da Sociedade em retribuição ao apoio. Crônica de Asilo
Colônia Itapuã em Porto Alegre, p.1. MANGEON, Gilberto. MENDES, Pessoa. A Profilaxia da Lepra no Rio
Grande do Sul. Op. Cit. p. 01.
77
Lepra.379
leprosos que o quisessem.381 Duas questões podem ser levantadas a partir desta posição dos
poderes públicos frente à Lepra. A primeira, de que a doença era considerada um problema
quase exclusivamente social, entregue à caridade, não fazendo parte nem da agenda médica,
nem dos interesses dos serviços públicos. O Estado aparece como “coadjuvante” da iniciativa
Uma outra questão refere-se ao tratamento e isolamento destinado aos doentes que o
“queiram”, ou seja, o Estado não iria obrigar o isolamento de todos os doentes como queria a
Diretoria. A posição adotada pelo governo positivista de “não intervenção” nas questões
privadas – como o tratamento das doenças, ainda mais no caso da Lepra, que não figurava
379
RSENIE, em 1 de agosto de 1926. Oficinas Graphicas d’ A Federação, 1926, p. 416. Ofício 345 de
29/04/1925. AHRS
380
Kolonie (Jornal de Santa Cruz do Sul), s.d. (possivelmente entre os anos de 1924-25) Tradução livre de
Roberto Steinhaus.
381
Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul pelo Presidente do Estado
Antônio Augusto Borges de Medeiros, na sessão ordinária da 10ª Legislatura, em 23 de setembro de 1926, p. 11-
12.- BALRGS
382
A administração estadual, em relação à saúde pública, voltava-se principalmente para o saneamento das
cidades e à assistência pública – casos de emergência – os serviços de saúde durante boa parte da década de 1920
não eram responsabilidade do governo. WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar. Op. Cit. p. 54-60. Em
relação à Lepra a iniciativa partir da sociedade sempre foi regra, vide estudos de Souza Araújo sobre a Lepra no
Brasil. SOUZA ARAÚJO, Heraclides Cesar de. História da Lepra no Brasil, vol. 1 e 3. Op. Cit.
78
Grande do Sul, também barrava na ineficiente organização existente. Vamos nos ater um
que vigia no Rio Grande do Sul era regida pelos Regulamentos do Serviço de Higiene de
que não era atribuição dos poderes públicos regulamentar a Medicina, as casas de cura e as
práticas de saúde, interferir nas habitações e nas decisões particulares sobre o uso ou não da
vacina. O Estado não deveria intervir em assuntos privados, apenas em casos extremos de
doenças contagiosas.384
Embora contagiosa, a Lepra não podia ser considerada um “caso extremo”. Prova era
perspectiva positivista de não-intervenção parece não ter sido contraditória com o isolamento
383
WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar. Op. Cit. p. 50.
384
Idem p. 53.
385
GARCIA, Paulo César Estaitt. Doenças contagiosas e hospitais de isolamento em Porto Alegre – 1889/1928.
(Dissertação de Mestrado) Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002, p 164.
79
Este aparente paradoxo pode ser compreendido devido a apropriação das idéias
no caso da medicina traduzida em “não intervenção” – não eram uma doutrina homogênea,
Desse modo, como analisa Beatriz Weber, também foi possível combinar no Brasil
degenerescência racial e social caso não houvesse um controle rigoroso das procriações.387
As pressões para a intervenção dos poderes públicos nas questões de saúde, iniciadas
condicionadas à interpretação dos governos locais para o que era ou não objeto passível de
ingerência do Estado. Perspectiva que foi modificando-se sobremaneira ao final dos anos 20
destaca Beatriz Weber (1999), insere-se num contexto da “regeneração da república” (aspas
progresso.
Neste sentido, em 1929 foi proposta uma reorganização dos serviços sanitários no
Estado visando uma maior intervenção do governo nas questões de saúde pública. A higiene
(encargo dos municípios) e a saúde pública ficariam sob única direção de uma Repartição
Central. Seriam instaladas Delegacias nos municípios para cumprir o programa que consistia
em: zelar pela saúde da população, combater as endemias reinantes (entre elas a Lepra),
386
Sobre a difusão e apropriação do positivismo no Brasil e especialmente no Rio Grande do Sul ver: BOEIRA,
Nelson. O Rio Grande de Augusto Comte. In: RS: Cultura e Ideologia (org.) José Dacanal e Sergius Gonzaga.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. CARVALHO, José Murilo de. O positivismo brasileiro e a importação de
idéias. In: Revisitando o Positivismo. Cleusa Maria Gomes Graebin e Elisabete Leal (orgs.) Canoas: La Salle.
1998.
387
WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar. Op. Cit. p. 69.
80
Neste caso, outros fatores como a escolha do local dificultaram ainda mais a execução do
projeto.
388
Para não ferir as autonomias municipais, o Estado firmaria convênios com os municípios para a execução dos
serviços de higiene. Além das referidas Repartição Central e Delegacias, a nova organização contaria com
Inspetorias, Centros e Postos de Saúde, os Institutos de Higiene e Instituto Pauster e o Curso de Higiene e Saúde
Pública. Nos Centros de Saúde da Capital (no interior as Delegacias agiriam como Centros) ficavam os
Dispensários e sob a direção da Delegacia Central de Porto Alegre ficava o Hospital de Isolamento do Estado.
No ano de 1929 oito municípios firmaram convênios com o Estado. In: Revista dos Cursos da faculdade de
Medicina de Porto Alegre; “Organização Sanitária do Brasil e reforma dos Serviços Sanitários do Rio Grande do
Sul” por Fernando de Freitas e Castro, Ano XIX, n. 19, 1933. Officinas Graphicas de Livraria do Comercio. –
AHBFM.
389
O programa foi aprovado pelo I Congresso das Municipalidades. Os municípios iriam contribuir com 3% de
suas receitas para a execução dos serviços pelas Delegacias. Entretanto, até 1935, das 80 Delegacias planejadas,
tinham sido instaladas apenas 11, o que permite relativizar o alcance das reformas. Relatório apresentado ao
Exmo. Sr. Dr. Getúlio D. Vargas, Presidente da República, pelo Interventor Federal Gal. Flores da Cunha, em 15
de abril de 1935. Oficinas Graficas Livraria do Globo, 1935, POA, p, 34 - AHRS
81
poderes públicos, não foi muito difícil para a Sociedade Pró-Leprosário conseguir o apoio do
Estado para sua “causa”. Ainda mais porque a Lepra vinha sendo discutida nos foros
nacionais e internacionais especializados, onde eram cobrados dos poderes públicos medidas
de combate à doença.
as populações vizinhas dos locais examinados, que o estabelecimento não oferecia risco de
contágio. Esse foi o primeiro problema que o combate à Lepra no Estado teve que enfrentar.
Nas discussões acerca do lugar estão inscritas questões como os desentendimentos entre os
primeiro lugar, precisamos entender que um Leprosário não era um hospital comum. Nele os
doentes iriam ser isolados por tempo indeterminado, enquanto representassem perigo à
população. Por isso, além de locais “seguros”, contando com uma distância suficiente para
manter o isolamento, mas não muito, para não dar idéia de degredo, os Leprosários deveriam
ser espaçosos, para abrigar tantos doentes quanto fossem necessários. Nestes
sociedade.
82
Nova Camalduli foi o primeiro local oficialmente visitado.390 (vide n.º 1 no mapa
anexo) Situada no segundo distrito de São Francisco de Paula, município bastante atingido
pela Lepra, a idéia de instalar ali o Leprosário foi descartada após vistoria realizada pelo Dr.
Fernando de Freitas e Castro. O terreno, segundo o médico, não oferecia condições por ser
muito acidentado, situado a 950 metros de altitude, com uma área de 62 hectares de difícil
Poucos dias depois, o Estado ofereceu como alternativa a Ilha de Francisco Manoel
(vide n.º 2 no mapa). Acompanhado pelo Dr. José Flores, o Dr. Fernando de Freitas e Castro
foi inspecionar o local. Em seu parecer, concluiu que a Ilha, apesar de um pouco afastada da
terra e de acesso “mais ou menos difícil” em dias de temporal, se prestava para a construção
Annes Dias levou aos colegas o desejo do governo de ouvir a Sociedade sobre a escolha
definitiva do local para ser construído um Leprosário no Estado. No ofício era solicitado que a
Sociedade nomeasse uma comissão “com a máxima urgência”, para conjuntamente com a
390
A primeira possibilidade foi erguer a construção entre Santa Cruz e Soledade (na época faziam divisa), o
município estava disposto a dar de presente 10 colônias para a Sociedade. O local não oferecia condições, área
muito “ingrata”, cheia de cerros, não poderia ser ocupado por um leprosário, justificou a Sociedade para
descartar o local, que não chegou a ser visitado oficialmente. Kolonie (Jornal de Santa Cruz do Sul), s.d.
(possivelmente entre os anos de 1924-25) Tradução livre de Roberto Steinhaus.
391
RSENIE, em 1 de agosto de 1926, Oficinas Graphicas d’ A Federação, 1926, p. 417 - AHRS
392
RSENIE, em 1 de agosto de 1926, Oficinas Graphicas d’ A Federação, 1926, p. 417 e RSENIE, em 24 de
agosto de 1927, Oficinas Graphicas d’ A Federação, 1927, p. 354. -AHRS
393
Durante a década de 20, a Lepra foi tema de pouco destaque na Faculdade de Medicina de Porto Alegre. De
1898 até 1930 apenas três teses foram defendidas versando sobre o assunto: J. Athayde (1915), Sarmento Barata
(1923), Basil Sefton (1927) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Teses e Dissertações, vol. II, Catálogo
1898-1987, Porto Alegre: Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFRGS, 1988.
394
ARM, ano V, n. 2, outubro de 1926, p. 59. Foram nomeados para compor a comissão os Drs. Guerra
Blessmann, Sarmento Leite, Ulysses Nonohay e Hugo Ribeiro Pinto - AHBFM
83
encomendaram ao colega Dr. Von Bassewitz um estudo sobre a doença no Rio Grande do Sul.
No relatório, o médico denunciava a falta de dados estatísticos sobre a Lepra, dizia conhecer
no Estado 116 doentes, que foram por ele examinados, não acreditava na fácil
Rio Grande do Sul, sentenciava que esta não existia, reduzida a internação compulsória de
mais próprio seria um local de fácil acesso, mais próximo às regiões onde houvesse o maior
número de “lázaros”.396 A Ilha em apreciação tinha uma área de terra pequena de 21 hectares,
horas da cidade (de acordo com a velocidade compatível com os barcos do começo do século
XX). Desde o final do século XIX a Diretoria de Higiene do Estado esteve às voltas com a
Ilha, onde foi instalado um posto de desinfecção para a realização de quarentenas dos
suspeitos de doenças contagiosas, possivelmente também tenha sido instalado nesta Ilha um
lazareto.397
propagação da doença. O “fetichismo da Ilha” – expressão usada pelo Dr. Maya Faillace –
395
ARM, ano VI, out. nov. dez. nos. 10, 11, 12, 1927, p.p. 01-12. Observe a contradição: doença difícil de ser
transmitida versus necessidade de isolar todos os doentes, presente no estudo apresentado pelo médico
demonstra que o isolamento obedecia antes a uma prática tradicional que propriamente científica, pois se a
doença era pouco contagiosa, porque isolar todos o doentes? - AHBFM
396
RSENIE, em 24 de agosto de 1927. Officinas Graphicas d’A Federação, 1927, p. 534. - AHRS
397
GARCIA, Paulo César Estaitt. Doenças contagiosas e hospitais de isolamento...Op. cit. p. 137-142. O termo
Lazareto surgiu no século XV designando um tipo do Hospital para isolar pessoas suspeitas de peste bubônica, o
termo também passou a designar, de modo retroativo, as gafarias e os dispensários para os doentes de lepra. Os
leprosários serviram de modelo para os lazaretos, porém cada um preservou suas características, os primeiros se
ocupariam de uma classe de enfermos, os lazaretos eram associados a quarentenas para moléstias contagiosas em
geral. ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Hospital. Instituição e História Social. São Paulo: Editora Letras &
Letras, 1991, p. 86-87.
84
sempre rondou os meios médicos envolvidos com as discussões sobre os locais para erguer
Leprosarias. A Ilha Grande mesmo, no Rio de Janeiro, foi cogitada para abrigar a grande
Leprosaria Nacional. Muitos leprólogos, como o próprio Souza Araújo, a princípio eram
partidários do isolamento em Ilhas, sugeriam que somente se estas não “dessem conta”
dos centros populosos: “de preferência à margem dum rio, o isolamento poderia ser feito por
bambu.” 398
O melhor é não indicar ilha alguma, porque todas elas, mesmo as de fácil
acesso, mostrarão aos doentes a intencional idéia de prisão, dificultando por
isso a profilaxia. O degredo deve ser absolutamente condenado, porque
representa uma perseguição ao leproso e um perigo para a saúde pública.
Uma perseguição, por ser completamente desnecessário diante dos
conhecimentos atuais sobre a lepra, e um perigo constante para a sociedade,
por causa da inevitável disseminação dos focos ocultos.399
Higiene mandou que fossem adaptados dois pavilhões do Hospital de Isolamento do Estado
“para neles serem recolhidos os doentes indigentes”. A adaptação consistiu em colocar tela
de arame nas janelas e portas para evitar insetos hematófagos. Durante 1926 foram recolhidos
preocupação manifestada pelos poderes públicos era de que as populações vizinhas aos locais
398
SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. Vol. 3. Op. cit. 191-192.
399
FAILLACE, J. Maya. Do Conceito Atual de Profilaxia...Op. Cit. p. 150.
400
RSENIE, em 24 de agosto de 1927. Officinas Graphicas d’A Federação, 1927, p. 1927, p. 534. - AHRS
85
legítima como mostrariam os anos que se seguiram. Como expressava Maya Faillace:
Prata” despertou uma “batalha” que chegou às instâncias federais, além do medo do contágio,
é interessante fazer uma ressalva, no período que antecedeu a Campanha (estes protestos
negativo para os Estados, pois admitiriam que a doença representava um problema sanitário,
perspectiva que vai modificar-se radicalmente nos anos 30, quando temos a ação da
Campanha contra a doença, onde o Leprosário não mais significa atraso, mas sinal de
esteve por conta do medo que o estabelecimento fosse prejudicar o futuro abastecimento de
água da Capital.404 Este medo que o Leprosário inspirava na população era mais uma razão
para que o isolamento em Ilhas, embora contra indicado pela profilaxia, fosse tão aclamado
pela sociedade. A esperança era de que a Ilha pudesse manter os doentes e a doença afastados,
401
RSENIE, em 24 de agosto de 1927. Officinas Graphicas d’A Federação, 1927, p. XXV. - AHRS
402
FAILLACE, J. Maya. Do Conceito atual de Profilaxia. Op. Cit. p.141.
403
SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. Lazarópolis do Prata. Op. Cit. p.p. 25-50.
404
AGRÍCOLA, Ernani. Campanha Nacional contra a Lepra. Op. Cit. p. 121
86
descartar por completo a possibilidade da Ilha, mesmo que isto significasse a impossibilidade
dificuldade do acesso dos médicos ao local, que afinal não poderiam agir como durante os
instalação do Leprosário. Linha Pinheiral foi o terceiro local considerado (vide n.º 3 no
Santa Cruz do Sul e Venâncio Aires. Vistoriado pela Diretoria de Higiene, o local era de fácil
inconveniente para os doentes nem prejuízo para a população vizinha “que além de escassa
esta muito afastada”, podendo ainda contar com os recursos da cidade de Santa Cruz “em
caso de absoluta necessidade”. Tão logo descobriram o projeto, os moradores de Rio Pardo,
protestos causavam embaraços à realização da Campanha.406 Será que esta “prudência” seria
Outra vez o governo do Estado quis ouvir a Sociedade de Medicina. Em 1928 foi
Leprosário na Linha Pinheiral. Ao que parece, a Sociedade demorou para fazer a avaliação, o
que resultou em críticas por parte da Diretoria de Higiene, que condenou a demora como
405
TRONCA, Ítalo. As Máscaras do Medo. Op. Cit. p. 67. Molokai era uma “ilha-leprosário” no Havaí para
onde os doentes eram mandados ficando ao completo abandono.
406
RSENIE, em 25 de agosto de 1928, vol. I, Officinas Graphicas d’A Federação, 1928, p.81. - AHRS
407
SENIE, caixa 4, documentação avulsa. Processo de 1/6/28.- AHRS
87
A Sociedade Médica não reprovou o terreno, entretanto, sugeria um local com não
menos de 600 hectares (maior que a área do terreno em questão) e julgava ainda que estas
instalações poderiam ser localizadas nas proximidades da Capital, conforme ofício enviado ao
Três dias depois, o relator do parecer, Dr. Ulysses Nonohay, em discurso apresentado
escolha do local:
posição da comissão em relação ao parecer sobre o local torna-se difícil julgar, mas podemos
dos protestos.
prioridades. Para a Diretoria, que respondia no Estado pela saúde pública, a imediata
408
ARM, ano VII, agosto e setembro, 1928, n. 8 e 9, p. 3. - AHBFM
409
Idem, p. 5
88
Estado pela campanha denominada “Mil Réis Ouro pela Pátria”. O Dr. Freitas e Castro,
Leprosário: “300 e tantos contos do ‘mil réis ouro’ e quase 300 que possua a Sociedade
cerca de mil contos”. Sua proposta não foi aceita por um grupo de médicos que defendiam
que o dinheiro deveria ser aplicado na construção imediata de um Hospital de Clínicas, idéia
preocupação mais premente do Estado, os médicos teriam que esperar para ter seus interesses
atendidos.
Leprosário, o primeiro junto à povoação de Itapuã (não consta no mapa), o outro, denominado
Fazenda do Pontal (vide n.º 4 no mapa), na margem da Lagoa dos Patos. A inspeção de ambos
foi feita pela Diretoria de Higiene que se manifestou contrária à instalação do Leprosário nos
uma faixa de terra apertada, entre o Guaíba e uma estrada de rodagem, de área exígua e
alagadiça, não oferecia possibilidade de oferecer “zona de defesa” – distância necessária para
o isolamento. A Fazenda do Pontal foi considerada de difícil acesso, com área pequena e
Estes dois locais, possivelmente por terem sido descartados em absoluto pela
410
ARM, ano X, nº 1, agosto de 1931, p.p.31. AHBFM. Discussão apresentada no Correio do Povo, Ano
XXXVII, nº 156 de 05/7/31, p. 12. Museu da Comunicação Hipólito José da Costa - MCSHJC
411
FAILLACE, J. Maya. Do Conceito Atual de Profilaxia. Op. Cit. p. 143.
89
mesmo modo, a Ilha do Curral (vide n.º 5 no mapa), situada no rio Jacuí, apresentada pelo
Rotary Club, mostrou-se completamente imprópria, não indo a julgamento “das autoridades
competentes”.412
ganhar visibilidade na imprensa escrita ao longo dos anos 30. Assim manifestava-se um
médico:
(o Leprosário), também deveriam ser integrados pela inclusão deste lugar de isolamento na
dinâmica do espaço urbano, o Leprosário deveria ser próximo a algum centro. A tensão
Capital permitiria essa exclusão do doente e ao mesmo tempo a inclusão do espaço, o doente
passaria a viver neste local isolado, mas esse local seria “incorporado” pela dinâmica urbana.
enfrentados para a concretização deste projeto ficava por conta dos preços excessivos dos
412
Idem. p. 146. Em determinado momento o Rotary se envolve na construção do Leprosário, esta participação
merece ser melhor explorada, porém foge dos objetivos deste trabalho.
413
Correio do Povo, Ano XXXVII, nº.169, 21/7/31: Mal de Hansen: Dr. Maximiliano Cauduro (especial para o
Correio) p. 3. - MCSHJC
414
ARM, nos. 8 e 9, agosto e setembro de 1928, p. 2.- AHBFM
90
Higiene e pela Faculdade de Medicina.416 O Dr. Maya Faillace, médico da Diretoria, que
despontaria no cenário científico gaúcho durante os anos 30 como um dos nomes mais
água canalizada, fossas biológicas, energia elétrica, terras próprias para agricultura. Pela
extensa área, topografia favorável, distância suficiente das localidades mais próximas, eram
fatores que permitiriam estabelecer “adequada e segura” zona de proteção. O local parecia
Entretanto, mais uma vez os protestos das populações vizinhas se fizeram sentir
signatários do protesto alegavam que a estrada geral, partindo de Porto Alegre e atravessando
Outro argumento alertava para o risco da contaminação das águas do arroio Vigário, pois este,
415
RSENIE, em 25 de agoato de 1928, p. 81. - AHRS
416
A Faculdade nomeou uma terceira comissão para dar um parecer sobre o local. Composta pelos médicos
Martins Gomes, Tomaz Mariante, Valdemar Castro e Pereira Filho. ARM, ano XII, nos. 8, 9,10 (out/dez.), 1933,
p.509. - AHBFM
417
FAILLACE, Maya. Do conceito atual de Profilaxia. Op. Cit. p 147-148.
91
Aconselhavam, portanto, que o local adequado para a construção deveria ser num ponto
Higiene opinou que a instalação do Leprosário não traria perigo nenhum àquela população, a
sessão dos doentes ficaria completamente localizada na parte central do terreno, distante 500
metros da estrada geral, seria construída uma zona neutra entre a estrada e esta sessão, o que
contaminação das águas, julgava infundada, devido a distância entre o terreno e as localidades
vizinhas.419
do relatório, o Dr. Leônidas, presidente da sessão, pediu aos colegas “que resolvessem o
assunto com calma e isenções de ânimo”. As conclusões do parecer eram de que o imóvel e
sua localização “não satisfaziam” as finalidades senão depois de passarem por grandes
Leprosário viesse a ter condições técnicas perfeitas, somente com estas obras de saneamento
Talvez tenham sido os gastos previstos para a adaptação do local para instalar o
leprosário que tenham feito o governo desistir do projeto, pois mesmo sob protestos pediu que
418
Idem. p.147.
419
FAILLACE, Maya. Do Conceito Atual de Profilaxia. Op. Cit. p. 149-151.
420
ARM, ano XII, nos. 8,9,10, out.-dez., 1933, p. 510. - AHBFM
92
a Secretaria da Fazenda avaliasse os gastos. De qualquer modo, a questão se enrolou por mais
governo do Estado adquiriu, sem muito “alarme”, um terreno nas proximidades de Viamão.
réis) para a compra de um terreno de 3 mil hectares em Itapuã para a construção do Hospital-
Colônia.421 A fazenda “Santa Clara”, antigo “Potreiro Grande e das Pombas”, com área de
2.991 hectares de campo e de mato, servida da Lagoa Negra de um lado e uma estrada de
apuramos que o Dr. Ernani Agrícola, diretor dos Serviços Sanitários do Ministério da
Educação e Saúde Pública (Mesp), esteve na Capital e visitou o local em apreço, o terreno foi
colocado à disposição pelo Estado ao governo federal, responsável pelo plano nacional de
combate à Lepra.423 A escolha do terreno foi orientada pelas “autoridades sanitárias” locais,
Janeiro. Parece ter havido consenso na escolha, embora o terreno fosse muito afastado em
Na Assembléia Legislativa a idéia foi bem recebida, como foi publicado no jornal “A
421
Lei n º 575 de 01/4/36, publicada em; Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul.
Oficina Gráfica da Imprensa Oficial, Porto Alegre, vol. 36, 1941. - BALRGS
422
Cartório de Registros de Imóveis e títulos e Documentos, Viamão. Fls. 102, do livro 3-G, no. 1.867.
CEDOPE/HCI.
423
Pequena nota no jornal sobre a vinda de Ernani Agrícola ao Estado. A Federação, ano LIII, no. 170, 29/7/36,
p.3. - MCSHJC
424
A Federação, Ano LIII, no. 172, 31/7/36, p.6 - MCSHJC
93
problema da Lepra no Rio Grande do Sul teria “finalmente sua solução radical e definitiva”.
dentro de pouco tempo, poderiam isolar “toda a população afetada do mal”, calculada em
425
A Federação, Ano LIII, nº. 172, 31/7/36, p.6 - MCSHJC
426
Idem nº. 66, 19/03/1936, p.01 - MCSHJC
94
Figura 09: Pontos examinados para localização do Leprosário. In: FAILLACE, J. Maya. Do conceito
atual de profilaxia da Lepra.
95
Enquanto discutiam a escolha do local, como a Nau dos loucos descrita por Foucault,
chegar na Capital, quando vinham de outros municípios, os doentes eram acolhidos pela Santa
Casa de Misericórdia. Em várias cidades brasileiras as Santas Casas, desde o século XIX,
fundavam ou mantinham Asilos para leprosos.428 Não era o caso da instituição de Porto
Alegre, que sequer possuía um isolamento especial, acolhia os doentes de Lepra somente até a
registro das enfermarias de isolamento, enfermarias de sífilis (doença com a qual a Lepra era
por vezes confundida) e de moléstias tropicais, encontramos 48 casos que deram entrada com
o diagnóstico Lepra, entre os anos de 1920 a 1947. A dificuldade do diagnóstico pode ser
constatada através destes registros, dos 48 diagnósticos pairava incerteza sobre 12 deles (ou
seja, ¼), ao lado do nome Lepra era colocado um ponto de interrogação (?). Entre os doentes,
lavadeira.431
427
FOUCAULT, Michel. História da Loucura....Op. Cit. Cap. 1. Na “Nau dos Loucos” seriam barcos que
levavam uma “carga insana de uma cidade para outra”.
428
MAURANO, Flávio. Tratado de Leprologia. Op. Cit. p.118-119. Destaca a atuação de várias Instituições no
país.
429
O pio estabelecimento reivindicava a construção de um pavilhão de isolamento para observação dos suspeitos
de doenças contagiosas, construção que foi efetivada em 1922, conforme Relatórios da Santa Casa de
Misericórdia de POA. Officinas Graphicas d’A Federação, Porto Alegre. 1922, apresentado pelo Cel. Antenor
Barcellos de Amorim (vice-provedor) p. 05. Centro de Documentação e Pesquisa da Santa Casa de Misericórdia
de Porto Alegre. CEDOP/SCMPA. Para saber mais sobre o funcionamento da Instituição ver: WEBER, Beatriz
Teixeira. As Artes de Curar... Op. cit. Capítulo 3.
430
Relatórios da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre de 1919-1921 até 1950, apresentados pelos
provedores. Officinas Graphicas d’ A Federação, Porto Alegre e Oficinas Gráficas da Livraria do Globo. -
CEDOP/SCMPA
431
Livro de Registro de enfermos: Santa Casa. Consultamos os registros de entrada de pacientes nas salas de
isolamento, na sala de isolamento das moléstias infecto-contagiosas, enfermaria de sífilis e moléstias de pele,
clínica de moléstias tropicais, enfermarias de homens e de mulheres.- CEDOP/SCMPA
96
A Santa Casa era um lugar de passagem para os doentes de Lepra, cujo destino era o
retorno para suas localidades de origem. Nos registros das enfermarias encontramos a saída
destes doentes de Lepra, através das “altas a pedido”. Essas altas podem ser lidas de duas
formas, ou o doente, ciente de sua situação e diante do pouco que a instituição poderia fazer
por ele (lembremo-nos que não era conhecida cura), realmente pedia para ir embora, ou a
instituição, não dispondo de isolamento, mandava estes doentes para casa. Com a adaptação
Foi o que aconteceu em 1926 com pai e filho atacados de Lepra, vindos de Caxias, e
com um outro doente vindo do Paraná. A Santa Casa não aceitou recebê-los, tendo a Diretoria
de volta aos seus locais de origem, conduzidos por um funcionário da higiene num vagão de
funcionava desde 1908 no Rio Grande do Sul, tendo sido construído com a finalidade de
São José, na estrada do Mato Grosso (atual Av. Bento Gonçalves, Bairro Partenon), o
Hospital mantinha uma “distância considerável” da cidade por isolar doenças infecto-
contagiosas.434
O tipo de isolamento sugerido para a Lepra não seguia o mesmo padrão do indicado
para outras doenças contagiosas, que compreendiam surtos mais ou menos longos. A
cronicidade da Lepra exigia um bom tempo de internação, quiçá toda uma vida, dado o
limitado horizonte terapêutico da época. O isolamento do São José, neste sentido, era algo
432
RSENIE, Em 24 de agosto de 1927, p. 534. Officinas Graphicas d’A Federação, 1927. - AHRS
433
RSENIE. Em 1 de agosto de 1926, p.417-418. Officinas Graphicas d’A Federação, 1926.- AHRS
434
GARCIA, Paulo César Estaitt. Doenças Contagiosas e hospitais de isolamento...Op. cit. p.150-163.
97
paliativo, apenas “esconderia” o problema do centro da cidade enquanto não fossem tomadas
cego, pouco restando em termos de tratamento, sendo recolhido por estar em total
desamparo.435
O tratamento era, por diversas vezes, abandonado pelos doentes ou feito com
positiva a simples passagem pelo internamento, que poderia significar alguns dias de cuidado
e de repouso, mesmo que acomodados de forma provisória, em dois pavilhões de madeira que
Se a situação dos doentes que acorriam à Capital era precária, a situação dos que
que empregava o ferro de engomar nos doentes, de acordo com a técnica desenvolvida por
Unna. Reconhecia que o tratamento era bastante doloroso, entretanto, dizia ser muito útil,
aquecia o ferro de engomar e passava por cima dos lepromas (nódulos), protegidos por
camadas de flanela para evitar queimaduras, o calor irradiado, em conjunto com a pressão
435
RSENIE, em 25 de agosto de 1928, vol. 1, p.82. Officinas Graphicas d’A Federação, 1928.- AHRS
436
FAILLACE, J. Maya. Do Conceito Atual de Profilaxia. Op. Cit. p. 85-86.
98
desaparecimento dos sintomas não significava em absoluto a cura, no entanto, era o resultado
esperado por ambos, pelos doentes para evitar o estigma,438 pelos médicos como um sinal da
Se diagnosticar a Lepra em sua fase latente, ou seja, onde os sintomas ainda não
haviam se manifestado, era tarefa difícil até mesmo para os profissionais – os sintomas inicias
presença de bacilos na mucosa nasal, que não necessariamente estavam presentes em todos os
infectados439 – para os doentes, mais difícil ainda. Podemos supor que a Lepra convertia-se
camadas populares, está associada de um modo geral a distúrbios no estado geral do indivíduo
que dificultem o uso habitual do corpo, por exemplo, para o trabalho e para as atividades
cotidianas. Nesse caso, uma simples mancha na pele – um dos sintomas mais característicos
derivado de tal – que sem dúvida existia – seria limitar muito a questão. A Lepra em suas
fases iniciais, possivelmente, nem despertava a atenção daqueles que sofriam seus sintomas.
437
ARM, ano VI, out. nov. dez. nos. 10, 11,12, 1927, p. 09.- AHBFM
438
Goffman define estigma como um sinal exterior que inabilita o sujeito para a aceitação social plena. Estigma
seria um atributo profundamente depreciativo, que comprometeria a identidade social do sujeito. Os estigmas
podem ser classificados em três tipos: 1) os do corpo (deformidades físicas), 2) as culpas de caráter individual
(prisão, vício...) 3) os estigmas grupais (raça, religião, nação). A Lepra estigma está diretamente associada a
estes atributos negativos que comprometem a identidade social, seja ela percebida por sinais físicos (1), seja
sentida através da culpa (2) que pode também ser revestida em “auto-estigma”. No caso da lepra, a própria
doença se transforma em estigma. GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade
deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988, p.13-14.
439
ARM, ano XII, no. 5, julho de 1934, p. 227-235. - AHBFM
440
CLARO, Lenita B. Lorena. Hanseníase....Cita um estudo de um autor sobre a Lepra na China. Para a
população a calamidade era o aparecimento da doença onde os sinais não podiam ser escondidos, gerando
inevitavelmente a segregação social. p. 21 e 90.
441
CLARO, Lenita B. Lorena. Hanseníase. Op. Cit. p. 41. Ver: BOLANTSKI. L. As classes sociais e o corpo.
Rio de Janeiro: Graal, 1984.
99
Mais tarde, a demora na busca do diagnóstico também podia ser atribuída ao medo do
indivíduo se via diante do diagnóstico de Lepra. O Dr. Mário Bernd foi procurado em seu
consultório ginecológico por uma moça de 24 anos, ao examiná-la pensou que se tratava de
sífilis, fez os exames, não era sífilis. Poderia ser Lepra, pensou o médico. Ao fazer uma
“anamnese” da paciente descobriu que ela provinha de São Sebastião do Caí, região muito
afetada pela Lepra, ao indagá-la sobre a doença, a moça confessou que havia trabalhado
conhecer a Lepra, pois muitas vezes era este profissional o primeiro a topar com a doença. A
paciente não voltou ao consultório do médico, que relatou tê-la visto nos bondes da cidade e
ter descoberto que ela trabalhava no “Café João Pessoa” onde foi procurá-la, não encontrando
sanitário.442
442
ARM, ano XII, nº. 4, junho de 1933, p.181-186. - AHBFM
100
ausência de uma sistematização do censo até a migração destes doentes, que saiam de suas
Estado, embora não soubesse ao certo “por falta de elementos necessários”.443 Em 1930, a
443
RESNIE, em 28 de agosto de 1929, vol. 1, p. 220. Officinas Graphicas d’ A Federação, 1929.- AHRS
102
informação era que o número de doentes não era maior que seiscentos.444 As estatísticas não
pararam de subir e, dentro de poucos anos, os doentes passariam a ser contados aos milhares.
Desde que a Lepra havia se tornado uma doença de notificação compulsória, a Diretoria de
Até o final dos anos 30, o Rio Grande do Sul não ainda não possuía nenhum censo
organizado, conforme Maya Faillace, médico assistente da Diretoria de Higiene, era preciso
contar mais com as observações pessoais para calcular o número de doentes do que com as
não tinham serviços especializados para realizar um censo metódico e científico dos leprosos
existentes no Estado.446
maioria das vezes, eram recusados pelos Hospitais. Chegavam “fonogramas” de Caxias, de
Guaporé, de Bento Gonçalves, ora solicitando auxílio das autoridades sanitárias estaduais, ora
enviando doentes para Porto Alegre; o Hospital de Isolamento, além de não possuir as
condições necessárias, não tinha capacidade para “recolher” todos os infectados pela
doença.447 Estes doentes, rejeitados pelos Hospitais sem ter a quem recorrer, acabavam
nos municípios, junto às Delegacias, visava exatamente manter os doentes longe da Capital.448
para sua situação. Algum movimento deve ter gerado a promessa de cura preconizada por um
444
Mensagem do Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, em 20 de setembro de 1930, p 93.
University of Chicago: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u813/000001.html (23/12/02)
445
PRIMIO, Raul di. Algumas epidemias e endemias no Rio Grande do Sul. - ARM, Ano XV, no.3, março de
1936. - AHBFM
446
FAILLACE, J. Maya. Do Conceito Atual de Profilaxia. Op. Cit. p. 123.
447
SENIE, documentação avulsa, caixa 04, processo de 01/6/1928.- AHRS
448
FAILLACE, J. Maya. Do Conceito Atual de Profilaxia. Op. Cit. p. 126.
103
Oswaldo Aranha, oferecendo seus serviços para curar casos de Lepra. Dizia ter atendido
Uruguai. Pedia ao secretário que fossem indicados alguns doentes pela Saúde Pública para
que pudesse fazer uma demonstração. O pedido foi encaminhado pela Secretaria do Interior à
desde que fossem expressos seus métodos e acompanhada por médicos daquela Diretoria. Os
No município de Santo Antônio da Patrulha foi comunicado pelo delegado de estatística, “em
caráter particular”, a existência de duas pessoas “acometidas de uma moléstia que consta ser
profissão, que residia com a família “nos subúrbios” da Vila, a família também estava sob
suspeita de Lepra, sendo que a filha do ferreiro freqüentava o grupo escolar. O outro caso
acariciando crianças em plena rua”. O delegado José Ramos concluía que seu espírito de
O médico auxiliar da Diretoria, Dr. Piaguaçú Correa, foi enviado à localidade para
apurar as denúncias, “sempre que surgem casos de lepra, esta Diretoria sente-se embaraçada
médico não encontrou no ferreiro e nem em sua família qualquer sinal de moléstia que
pudesse ser “incriminada” como Lepra. Quanto ao segundo caso, tratava-se mesmo de Lepra
449
SENIE, documentação avulsa, caixa 04. Processo de 09 de junho de 1928. - AHRS
450
SENIE, documentação avulsa, Caixa 04, Ofício enviado a Diretoria de Higiene pelo Delegado de estatística
de Santo Antônio da Patrulha em 27/4/1928. - AHRS
451
SENIE, documentação avulsa, Caixa 04. Ofício ao Secretário do Interior e Exterior do Diretor de Higiene em
24/5/1928.- AHRS
104
Isolamento do Estado não tinha lugar para abrigar mais doentes, o médico pediu ao intendente
da cidade que procurasse conservar a “infeliz leprosa Rufina” isolada em sua moradia.452
para que uma “acusação” deste tipo fosse considerada grave, portanto, devia ser mantida em
se de pessoas pobres. A suspeita que recaiu sobre o ferreiro se estendia a toda sua família,
sendo que sua filha, ao freqüentar os bancos “escolares”, estava colocando em risco “a
infância” do município. Do mesmo modo que a velha Rufina representava ameaça, pois,
diagnóstico de Rufina, o que teria provocado a denúncia do ferreiro Antônio? Algum sinal
físico? Destarte bem “incaracterístico”, porque parece não ter provocado muita dúvida ao
Fica evidente, também, e este ponto gostaríamos de chamar atenção, que a Diretoria,
com seus 3 médicos – o diretor, o auxiliar e o assistente – pouco podia fazer pelos doentes.
Quando acionada, enviava médicos aos pontos denunciados para examinar os suspeitos e
prescrever o isolamento.
distritos rurais de dois municípios apontados “pela opinião pública” como sendo focos de
Lepra: Santa Cruz e Venâncio Aires. Em Santa Cruz identificou rapidamente 11 casos e após
inquérito constatou que havia falecido um ano antes 14 doentes vítimas da Lepra, 9 doentes
452
SENIE, documentação avulsa, Caixa 04. Parecer do Médico auxiliar Dr. Piaguaçú ao Diretor da Higiene em
exercício. Porto Alegre, 19/5/1928.- AHRS
105
Dos casos observados nos dois municípios, o médico apontava alguma relação entre
eles, tratando-se na sua maioria de pessoas que conviveram entre si, no mesmo meio familiar
ou social, ou ainda que confessavam ter convivido com algum doente, constatação que nos
permite pensar que a Lepra talvez não inspirasse todo o pavor como costuma-se supor,
principalmente em uma comunidade onde ela, “teoricamente”, era bem conhecida. Dos casos
estudados pelo médico havia o de um sujeito condenado, que ao cumprir pena na cadeia de
Santa Cruz adquiriu Lepra; casos da doença em família; casos na vizinhança. Encontramos na
investigação o caso de uma mulher que havia sido enfermeira na Santa Casa de Porto Alegre
na tese do médico J. Athayde), esta mulher freqüentava a casa de dois irmãos que se tornaram
também doentes.454
Diretoria de Higiene do mesmo ano, que apontavam 2 casos de óbitos pela doença em todo o
uniformização dos atestados de óbito, problema referido pela própria Diretoria, além disso,
como nunca é demais dizer, os doentes de Lepra geralmente morriam por outras doenças
intercorrentes.
Conhecer o número e onde estavam os doentes no Estado era o primeiro passo para a
453
FAILLACE, J. Maya. Do Conceito Atual de Profilaxia. Op. Cit. p. 126-7.
454
Idem. p. 127-8.
455
RSENIE, em 25 de agosto de 1928, vol. II , p.67. Officinas Graphicas d’A Federação, 1928. - AHRS
106
localidades: Capital (Eduardo Rabelo), Taquara, São Jerônimo, Cachoeira, Cruz Alta e
à Lepra, contudo, foi nos anos 30 que ações mais coordenadas e agressivas foram tomadas por
456
SENIE, documentação avulsa, caixa 04; Informações solicitadas pela Secretaria ao Dispensário Eduardo
Rabelo.- AHRS
107
O cuidado com a Lepra, que por muito tempo esteve restrito às ações voluntárias da
caridade leiga ou religiosa, num dado momento tornou-se uma das principais pautas dos
podiam mais dar conta do problema da Lepra, como vinham fazendo até então, através da
criação de alguns asilos e Hospitais para recolher os doentes; segundo, porque o Estado, com
o desenvolvimento dos aparatos públicos, podia intervir de forma mais sistemática na saúde
As razões para este “volver-se” para a Lepra, como já foi referido ao longo do texto,
mas nunca é demais lembrar, estavam inseridas num contexto de expansão e de consolidação
dos poderes públicos republicanos, no qual o cuidado com a saúde ganhava relevância,
“nações civilizadas”.
Era chegado o momento do Rio Grande do Sul ingressar na Campanha Nacional que
teve início nos anos 30 em todo o país. A construção do Hospital Itapuã, que lançaria o Estado
na “Campanha Nacional”, foi retardada pela dificuldade da escolha do local e dos impasses
então advindos. A situação tornava-se urgente à medida que surgiam notícias de doentes em
todos os pontos do Estado. Os Hospitais comuns não ofereciam internamento aos acometidos
de Lepra. A Santa Casa não tinha um isolamento para acolhê-los. O Hospital de Isolamento
Hospital de Isolamento São José e reformados outros dois para isolar os leprosos indigentes
Brasil, muitos abrigos para doentes foram construídos e mantidos pela caridade, entretanto,
estava se delineando um outro tipo de filantropia que agiria em conjunto com os poderes
que com o apoio e o envolvimento dos médicos, dos políticos e da sociedade, impulsionariam
a Campanha no Estado.
Conforme destaca Massako Iyda (1994), a partir dos anos 30, dentro da estratégia
procuram não excluir, mas incorporar os sujeitos envolvidos, de alguma forma, com a
Foi o que ocorreu com as “Sociedades Protetoras dos Lázaros”. Surgiram de forma
privada.
457
MANGEON, Gilberto; MENDES, Pessoa. A Profilaxia da Lepra. Op. Cit. p. 81. CESOPE/HCI
458
IYDA, Massako. Cem anos de Saúde Pública. Op. Cit. p. 60-61.
109
Defesa Contra a Lepra. Enquanto os poderes públicos não acenavam soluções “definitivas”
para o combate à doença no Estado, o problema vinha ganhando visibilidade nos meios
Esta mesma Sociedade, que havia ajudado a angariar fundos para a construção do
relâmpago”, realizada em 1936 pelo Dr. Raul di Primio, para construir o “Hospital de
mês”, conseguiu doações suficientes para levantar o Hospital. Seria uma construção modesta,
da Capital. Com a arrecadação, foi possível construir dois pavilhões, com 20 leitos cada um,
da Educação e Saúde Dr. Otelo Rocha, dos médicos Fábio Barreto e Fernando Castro,
Dois deles “batizados” com os nomes de “Luiza de Freitas Aranha” e “Carolina Annes Dias”,
459
A Federação, ano LIII, nº.15, 22/01/36; p. 03. MCSHJC
460
MANGEON, Gilberto; MENDES, Pessoa. A Profilaxia da Lepra. Op. Cit. p.82.
461
A Federação, Ano LIII, nº. 15, p 3. MCSHJC
110
Aos poucos este Hospital de Emergência foi sendo ampliado para abrigar um maior
pavilhão, cinco casas particulares, um armazém, dois chuveiros coletivos, dois jardins, um
era para cerca de 100 pacientes, distribuídos pelos 3 pavilhões; aos doentes com alguns
recursos era permitida a construção de casas particulares e para atender a estes doentes “mais
exigentes” foi instalado um pequeno armazém no Hospital, cuja moeda aceita não era o
pela Capital enquanto o Hospital para leprosos definitivo não estivesse pronto. Estes doentes,
que já vinham sendo recolhidos nos pavilhões de isolamento, a partir de então, contariam com
“dependências próprias”, não seriam tratados em enfermaria comum junto com outros
462
MANGEON, Gilberto; MENDES, Pessoa. A profilaxia da Lepra. Op. Cit. p.85. A inauguração das novas
construções, acompanhada por missa e homenagens, foi anunciada na A Federação, Ano LIII, nº. 163 de 20 de
julho de 1936, p.2.- MCSHJC
111
Como funcionava a vida dentro deste Hospital nestes primeiros anos nos escapa
quase completamente, não foram deixados registros. Podemos imaginar que nos aproximados
1km², área ocupada pelas construções anexas ao Hospital de Isolamento do Estado, muitos
destinos foram marcados de forma indelével em função da doença, não apenas “indigentes”,
erigida no pátio do estabelecimento, permite supor que eles tinham atividades religiosas
atividade esportiva, pois tinham cancha de bocha e campo de futebol. A maioria dos doentes,
112
provavelmente, era composta por pessoas pobres, para quem a caridade olhava em datas
festivas como o Natal, quando apareciam no Hospital “damas distintas” da sociedade para
dentista, 2 enfermeiros sadios e 2 enfermeiros doentes, que com o auxílio das irmãs e de
outros doentes que exerciam pequenas atividades remuneradas, como copeiros, lavadeiras,
pedreiros ou jardineiros.464
na cerimônia de lançamento da pedra, “de um lado altos cerros (...) do outro, uma grande
lagoa denominada Lagoa Negra”, ou seja, o isolamento seria completo, mesmo contrariando
Inaugurando esta obra não posso esconder minha satisfação, pois nutro o
desejo de consagrar os últimos anos de minha existência à prática do bem.
Eu não vejo outra prática melhor, qual seja a de erguer um leprosário. Isso
assinala perfeitamente a íntima comunhão que se estabeleceu aqui entre o
povo e o poder. O governo sente desejos de coletividade e vem
generosamente ao encontro das justas e elevadas aspirações populares.465
solucionar o problema da Lepra era apresentado como uma prática do bem, de outro, uma
Leprosário, a Campanha de combate à Lepra no Estado ganharia novo impulso com a criação,
463
Jornal do Estado, Ano II, nº. 321, p.02. - MCSHJC
464
MANGEON, Gilberto; MENDES, Pessoa. A profilaxia da Lepra. Op. Cit. p.86.
465
A Federação, ano LIII, no. 286, 17/12/36, p. 01.- MCSHJC
113
Higiene.466
Com a centralização política que passou a ocorrer no pós 30, com o apogeu durante o
Estado Novo, não apenas foram nomeados “interventores” para os Estados, a fim de garantir a
Nacional de Saúde.467 Para o cargo de Diretor da Saúde Pública no Estado foi nomeado o
técnico do Departamento Nacional de Saúde (DNS), o Dr. José Bonifácio Paranhos da Costa,
orientações do DNS.468
transformações na Saúde Pública que vinham ocorrendo no país, com o objetivo de ampliar a
O DES ficou submetido à Secretaria da Educação e Saúde Pública,469 criada em 1935, e teria
por função coordenar, administrar e executar todas as atividades relacionadas à saúde pública
no Estado através de um sistema misto: órgãos centrais e distritais. Foram instalados Centros
mesma função: executar os serviços distritais de Higiene e Saúde Pública, atendendo aos
466
Decreto 7.481.de 14.09.38. - Jornal do Estado de 25.11.38. Ano II, Nº 296 - BALRGS
467
IYDA, Massako. Cem anos de Saúde Pública.Op. Cit. p. 58.
468
Jornal do Estado, Ano II, nº. 422, 02/5/39. - MCSHJC
469
As atividades de Educação e Saúde Pública submetidas à Secretaria dos Negócios do Interior e Exterior
(SENIE) passaram a ter uma Secretaria própria. Mensagem enviada à Assembléia Legislativa pelo Dr. Darcy
Azambuja.Secretário dos Negócios do Interior e Exterior, no exercício do cargo de governo do Estado em 1 de
julho de 1936. Porto Alegre: Imprensa Oficial, 1936. p. 63.- AHRS
114
como a participação de associações privadas, sobretudo prestando auxílio junto aos filhos e às
famílias dos doentes internados. Pelo decreto, seriam considerados casos confirmados de
Lepra, pessoas que os exames de laboratório tenham sido positivos ou que, embora tivessem
doença.”471
que coordenaria dois grandes grupos: a Divisão Técnica, responsável pela propaganda, pela
vigilância, pelos exames e pelo tratamento dos doentes; e a Divisão de Assistência Médico
Social, que, auxiliada pela cooperação privada (Sociedade de Assistência aos Lázaros e
Defesa contra a Lepra), ficaria responsável pelo isolamento dos doentes e pelo cuidado com
470
Secretaria da Educação e Saúde Pública. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Cel. Osvaldo Cordeiro de Farias,
Interventor Federal no Rio Grande do Sul, pelo Dr. J. P. Coelho de Souza, Secretário da Educação e Saúde
Pública, compreendendo o período administrativo de 21/10/37 a 31/12/39. Publicado em 1940, Officinas
Graphicas do Instituto Técnico Profissional. - AHRS
471
Decreto 7558 de 11.11.38. Jornal do Estado, 25.11.38, nº 296. - BALRGS
472
MANGEON, Gilberto. MENDES, Pessoa. A Profilaxia da Lepra. Op. Cit. p.p. 87-88.
115
oferecer uma “racionalidade técnica” aos serviços da Lepra, que amiúde, porém sem muita
Dispensário e Preventório.
próximo capítulo. Os outros elementos que compunham a Campanha contra a Lepra no Rio
Grande do Sul – censo, vigilância, educação e propaganda sanitária – serão trazidos ao longo
2.5.1 O Dispensário
Pública (DNSP). Este Dispensário funcionou até o começo dos anos 30, não encontramos
registros de quando foi extinto. A ausência de referência ao tratamento da Lepra prestado pelo
municípios, até o final dos anos 20, foi bastante limitada. O Rio Grande do Sul possuía
473
Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul pelo Presidente do Estado
Antônio Augusto Borges de Medeiros, na sessão ordinária da 10ª Legislatura, em 23 de setembro de 1926, p. .10.
- AHRS
474
FAILLACE, J. Maya. Do Conceito Atual de Profilaxia. Op. Cit. p.123.
117
Dispensários nas seguintes localidades: Capital (Eduardo Rabelo); Taquara; São Jerônimo;
n.º 2, enquanto não fosse construído o Centro de Saúde Modelo – que ficou pronto no ano
diagnosticar casos de Lepra, por encaminhar para o isolamento domiciliar ou hospitalar, pela
Postos de Higiene, de modo que os doentes não precisassem procurar tratamento nas grandes
seria suficiente para atender os doentes, que na sua maioria seriam “drenados para a
contribuiríamos tão somente para pontilhar a cidade de novos focos infectantes.”478 Ou seja,
aliás, os modelos de combate às duas moléstias tiveram muitos pontos comuns: pautados nas
proteção aos filhos dos doentes, contaram com a participação de Sociedades Assistências,
475
Sobre o Dispensário Eduardo Rabelo – informações solicitadas por determinação do Secretário dos Negócios
do Interior e Exterior, 9/4/1928, SENIE, doc. avulsa, caixa 04 - AHRS
476
Jornal do Estado, ano II, num. 470, 28/6/39. Localizado na Avenida João Pessoa com a Euclides da Cunha.
MCSHJC
477
MANGEON, Gilberto. MENDES, Pessoa. A Profilaxia da Lepra. Op. Cit. p. 82-84.
478
Jornal do Estado, ano II, no. 165, p.5, 14/6/38 - MCSHJC
118
2.5.2 O Preventório
Campanha. Como aconteceu em todo o país, no Rio Grande do Sul não foi diferente. As
maio de 1938. Neste mesmo mês foi lançada a pedra fundamental do Amparo Santa Cruz,
Primio; Pilla; Coelho de Souza; Ygartua; Freitas e Castro e Luizinha Vale Aranha (mãe de
Oswaldo Aranha), entre outras – iriam percorrer Palácios do Governo, secretarias, bancos,
479
BERTOLLI FILHO, Cláudio. História Social da Tuberculose...Op. Cit.. Do mesmo modo o combate à Sífilis
estabeleceu organizações semelhantes. CARRARA, Sérgio. Tributo a Vênus. A Luta contra a Sífilis no Brasil,
da Passagem do Século aos Anos 40. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996.
480
O Amparo Santa Cruz recebeu o nome em homenagem a cidade de Santa Cruz do Sul, onde havia sido
fundada a Sociedade Leprosário Rio-Grandense. O terreno onde foi edificado o Amparo possivelmente foi doado
por esta Sociedade, que havia adquirido um terreno alguns anos antes “em segredo” para a instalação da
Leprosaria. Crônica das irmãs, 1940, p. 1. - CEDOPE/HCI
481
Sobre o lançamento da Pedra Fundamental: Jornal do Estado, ano II, n. 141 de 16/5/38; n.142 de 17/5/38. -
MCSHJC
482
Jornal do Estado, ano II, n.143, 18/5/38, p.4.- MCSHJC
119
apoio de médicos e de políticos, muitos dos quais tinham suas esposas ou mães envolvidas na
Campanha, como pudemos observar através dos sobrenomes das senhoras. O envolvimento
destes grupos, entretanto, não se limitava em apenas apoiar a Campanha em prol do Amparo.
isolamento das crianças e como deveria ser realizado. Os políticos, como foi a caso de
Cordeiro de Farias, realizavam uma Campanha junto aos prefeitos dos municípios para que
recebidas com entusiasmo nas costumeiras reuniões que ocorriam no salão do “Grande
Hotel”. Em cada reunião, o grupo que apresentasse a maior quantia de arrecadação era
A filantropia das Sociedades de Assistência aos Lázaros, como destaca Leila Gomide
(1991), conjugava no seu discurso preceitos médico-científicos da época (com destaque para a
caridade, o discurso das Sociedades se fez em torno das noções de raça, de pátria e de
grupo indicava que “relevantes” serviços estavam sendo prestados à pátria, neste caso à
“infância do país”.
sociais. A mulher era apresentada pela Campanha, “a guardiã da instituição familiar”, deveria
483
Jornal do Estado, ano II, n. 148, 24/5/38, p.6. (MCSHJC) No Rio Grande do Sul, além de médicos e de
políticos, alguns setores sociais apoiaram a campanha como escolas, grupos de escoteiros, Rotary e Lions
Clube, maçonaria. De modo geral, nos locais onde eram instaladas as Sociedades, elas congregavam em seus
quadros as elites sociais. GOMIDE, Leila Regina Scalia. Órfãos de pais vivos. A lepra e as instituições
preventoriais no Brasil: estigmas, preconceito e segregação. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo: 1991.
484
Jornal do Estado, ano II, n. 148, 24/5/38,p.6; n.151, 27/5/38, p.5. - MCSHJC
485
GOMIDE, Leila Regina Scalia. Órfãos de pais vivos. Op. Cit.
120
proteger não apenas a sua família, mas a família brasileira, a família do Lázaro. As
referências ao Preventório situam-no como “lar” dos pobrezinhos infelizes. Dona Luizinha
Aranha, que viria a dirigir Amparo, “mãe dedicada e cheia de carinho para aos pobrezinhos
sem pai e sem mãe”, Dr. Raul di Primio, “pai e amigo dedicado.”486
Entre as atividades promovidas pela Sociedade esteve a propaganda nas escolas, feita
compreensão infantil sobre a Lepra,”487 e os “chás” em prol do Amparo. Estes “chás” logo se
sessão “Vida Social”. O primeiro chá beneficente, bem ao gosto dos grã-finos, foi organizado
pela Exma. Sra. Avani Cordeiro de Farias, esposa do interventor, como uma “elegante e
O Amparo deveria ficar pronto tão logo o Leprosário começasse a funcionar, pois os
importantes da Campanha.
122
Nos anos 20, quando o médico pronunciou estas palavras, a segregação forçada dos
doentes de Lepra era uma medida pouco cogitada no meio médico, exatamente em função da
dificuldade que iria gerar tal prática e da falta de respaldo científico. Havia muitas incertezas
direção a esclarecer mais sobre a Lepra, as práticas em relação aos doentes foram se tornando
favoráveis a uma “solução radical” para o problema da Lepra, viram nos anos 30, durante a
O Leprosário de Itapuã foi um destes locais de isolamento, uma instituição total, que,
491
Eduardo Rabelo na Sessão da ANM de 24/6/1926. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da
Lepra no Brasil. Vol. 3. Op. cit. p. 427.
123
grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla
por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada.492
inserção do Rio Grande do Sul no movimento nacional de combate à Lepra representado pela
Campanha. O tempo de isolamento dos doentes, incerto naquele período – estamos nos
referindo aos anos 30 e 40 – contribuiu para que se pensasse num modelo “ideal” de
periódico a serviço dos poderes públicos, que costumava informar diariamente as ações
governamentais que envolviam interesses ditos sociais, entre eles a saúde. Através de
publicações diárias de pequenas notas, eram divulgadas notícias sobre os avanços das
O ritmo dos trabalhos era intenso para que, o mais rápido possível o Hospital pudesse
receber os doentes de todo o Estado. Durante a consecução das obras, o Leprosário recebeu
algumas visitas, entre elas destacamos a vinda do Dr. João de Barros Barreto, Diretor Geral
do Departamento Nacional de Saúde. Barros Barreto declarou ao jornal estar diante de “um
dos melhores Leprosários que se tem feito presentemente no Brasil.”494 Esta observação,
autoridade do emissor “Diretor do DNS” conferia um status para o Leprosário Itapuã: um dos
melhores do país!
492
GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Ed. Perspectiva, 7ªed., 2003, p.p. 11-17.
493
Jornal do Estado, Porto Alegre, 7/5/38, ano II, n.º 134, p. 03: construção da Usina; Jornal do Estado, Porto
Alegre, 4/4/38, ano II, n.º 111, p. 02: serviços de eletricidade e saneamento, Jornal do Estado, Porto Alegre,
26/4/38, ano II, n.º 125, p. 01: serviços de água e esgotos - MCSHJC
494
Jornal do Estado, Porto Alegre, 22/6/38, ano II, n.º 171, 22/6/38, p.5. - MCSHJC
124
uma obra de vastas proporções, uma verdadeira cidade em miniatura “de maneira que os
enfermos reunidos ali não tenham a impressão de serem indivíduos para os quais se volta o
Leprosaria Modelo nos Campos de Santo Ângelo, no Estado de São Paulo. Dividido em “três
Na “zona sadia” havia uma residência para o médico diretor, uma para o
495
Jornal do Estado, ano I, n.º 17, 08/12/37, p.1. - MCSHJC
496
Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Cel. Osvaldo Cordeiro de Farias, M. D. Interventor Federal, pelo Dr.
José Bonifácio Paranhos da Costa, Diretor Geral. DES, Officinas Graphicas da Imprensa Oficial, Porto Alegre,
1941, p.45 - AHRS
125
Figura 14: Planta do Leprosário Itapuã. Arquivos do Departamento Estadual de Saúde, vol.
1, 1940.
A esta planta foram acrescentadas algumas construções nos anos seguintes. Como o
pavilhão das diversões, a cadeia, mais alguns pavilhões e casas. Arquivo do Departamento
Estadual de Saúde, 1940.
Estados Unidos) possuía 9 quartos com capacidade para até 3 doentes cada um. Ou seja, um
pavilhão poderia abrigar 27 doentes. No total poderiam ser abrigados em torno de 400 doentes
apenas nos pavilhões. Nas 11 casas geminadas seriam internados os doentes casados. Cada
Lepra, aconselhava-se que “todo doente para sua felicidade e daqueles com quem convive”
deveria procurar o Leprosário de Itapuã, pois ali poderia “tratar-se e gozar de todo conforto
material e moral que se possa imaginar”, e orientava “por isso a menor suspeita do mal
Nesta data o Leprosário nem havia sido inaugurado, as obras estavam em vias de
conclusão, entretanto, prevendo que a campanha para “chamar” os doentes – que pareciam
não ceder aos encantos da bela cidadezinha que era só deles – seria longa, davam início ao
chamamento.498
A orientação geral, como vimos, era de que a Campanha fizesse uma boa
No Rio Grande do Sul muitos doentes já haviam sido recenseados, entretanto, neste momento,
O DNS desenvolvia o censo dos doentes com base nos dados enviados pelos
497
Jornal do Estado, ano II, n 477, 06/7/39, p 10. - MCSHJC
498
Calculavam em torno de 800 a 900 doentes no Estado, confirmados havia 350, presentes em 45 dos 86
municípios do Estado, o censo, entretanto, estava sendo realizados, dos confirmados: Alegrete 2 casos; Bom
Jesus 4; Cachoeira 3; Caí 12; Candelária 4; Carazinho 9; Caxias 6; Cruz Alta 18; Dom Pedrito 1, Estrela 1;
Farroupilha 2; General Câmara 1, Guaporé 2, Ijuí 6; Itaqui 6; Jaguarão 1; José Bonifácio 12; Júlio de Castilhos5;
Lajeado 2; Lagoa Vermelha 14; Montenegro 1; Novo Hamburgo 10; Osório 6; Palmeira 18; Passo Fundo 7;
Pelotas 4; Porto Alegre 61; Prata 10; Quaraí 1, Rio Grande 2; Sanata Cruz 11; Santa Maria 6; Santa Rosa 2;
Santiago 5; Santo Ângelo 15; Santo Antônio 3; São Borja 4; São Francisco de Assis 1; São Francisco de Paula
10; São Jerônimo 1; São Leopoldo 5; São Luiz Gonzaga 5; Soledade 5; Taquara 8, Vacaria 28. Distribuição
Geográfica da Lepra no Rio Grande do Sul em 1939, pelo Dr. Leônidas Soares Machado, trabalho apresentado
no IX Congresso Nacional de Geografia, Florianópolis, Dezembro de 1940, p.112 - AHBFM
499
PENNA, Belisário. O Problema Brasileiro da Lepra. In: ARM, n.º 8 e 9, agosto e setembro , 1928, p. 26. -
AHBFM
127
do interior. Haviam fichados no Estado até 1939, 421 doentes e 2.645 comunicantes. O DES
denúncias, partiam para confirmar casos ou suspeitas de focos de Lepra. Sobre este tipo de
da Lepra de Santa Catarina. O médico dizia que ao viajar para o interior em busca de doentes,
os médicos recebiam o apoio das autoridades locais e, se preciso, reforço policial, para o caso
de ter que remover doentes à força. Os doentes fugiam, “apavorados com as notícias
divulgadas distorcidas de que o governo ou a polícia estavam à cata delas para interná-los,
prendê-los e até liquidá-los”.501 O médico lamentava que houvesse tanto exagero por conta
da ignorância popular...
atrai-los e a força foram recursos usados pela profilaxia da Lepra. Iludiram-se os médicos ao
supor que os apelos ao Leprosário, apresentado como a salvação para os pobres infelizes,
500
A obra de saúde do Governo Getúlio Vargas – O Combate a Lepra no Rio Grande do Sul; por Bonifácio
Paranhos da Costa. Diretor do DES. Jornal do Estado, ano III, n. 688, 23/3/40, p. 6 - MCSHJC
501
SÃO THIAGO, Polydoro Ernani de. A Medicina que aprendi, exerci e ensinei. Florianópolis: Ed. da UFSC,
1996. p.88-89.
128
uma tarefa difícil, por que na maioria dos casos o doente procurava “esconder sua
chegou. A capacidade do Leprosário seria muito maior, de 600 a 800 doentes com
ao Leprosário. O acordo tinha sido feito em 1939 com o governo do Estado, elas iriam
empregar suas vidas em favor dos prediletos de São Francisco, os leprosos.504 Para fazer
um dentista, especialistas do DES. Nove Irmãs, auxiliadas por onze moças e um Capelão,
completariam o quadro.505
de Assis”, com sede em São Leopoldo, previa que, ressalvadas as atribuições do Médico
chefe, o Hospital seria dirigido pelas irmãs, responsáveis pela administração, vigilância sobre
502
Jornal do Estado, ano III, n.º 630, p. 1, 10/1/1940 - MCSHJC
503
Jornal do Estado, ano III, n. º 633, p. 1, 13/1/1940 - MCSHJC
504
POLIANTÉIA comemorativa aos 75º aniversário da chegada das Irmãs Franciscanas ao RS, 1872-1947.
Imprimatur, POA, 21 de julho de 1947, p. 143
505
MANGEON, Gilberto. MENDES, Pessoa. A Profilaxia da Lepra no Rio Grande do Sul. Op. Cit. p. 90.
129
contrato ainda previa que as Irmãs e suas ajudantes teriam uma casa própria no
estabelecimento e caso alguma contraísse Lepra teria uma habitação própria no Asilo. Em
A ida para o Leprosário era um sacrifício pelo qual as Irmãs esperavam ser
voluntárias enviaram o seu nome para ser inserido na lista das privilegiadas. Deus que
Entre as mais de 100 voluntárias para a “missão”, oito foram escolhidas: a Irmã
Techilda; as irmãs Maria e Élia, ambas enfermeiras; a irmã Siegfrida, costureira; irmã
Zulmira, farmacêutica; irmãs Ambrósia e Áurea, para a casa e irmã Sebastiana para a cozinha.
acompanhadas pelo Frei Pacífico de Belleveaux, o Capelão Capuchinho que assumiria a vida
religiosa no Leprosário.
Havia muito o que fazer para preparar a chegada dos primeiros doentes, que já
estavam como os operários tinham deixado.508 O Frei instalou-se numa casa em frente à Usina
e dividia seu tempo entre as missas que eram rezadas todas as manhãs e o aprendizado da
língua alemã, “que será necessária para atender muitos doentes que não conhecem a língua
portuguesa.”509
506
Contrato entre DES e as Irmãs Franciscanas. Doc. Avulsa, CEDOPE/HCI.
507
POLIANTÉIA comemorativa aos 75º...Op. Cit. Ao estudar as minorias na Idade Média, Jeffrey Richards
(1993) destaca que uma das marcas particulares de santidade que a Igreja reconhecia era o cuidado com os
leprosos, era a própria repugnância da doença que confirma a santidade dos santos ao enfrentá-la.
RICHARDS, Jeffrey Sexo, desvio e ... Op. Cit. p.160.
508
Irmãs Franciscanas: Crônica do Asilo Colônia Itapuã, 1940, p. 2. Datilografado - CEDOPE/HCI
509
Caderno do Frei Pacífico, Livro Tombo, março de 1940, p.p. 3-4. Manuscrito - CEDOPE/HCI.
130
pouco significaria; era preciso também atender os filhos dos leprosos, a fim de que eles não
de 1940, respectivamente. Entretanto os atrasos nas obras protelaram em mais alguns meses a
execução das solenidades. Era anunciada a vinda do presidente da República para a cerimônia
Neste interim, o Hospital de Isolamento do Estado passou por uma série de reformas.
ganharam pinturas novas, houve uma ampliação de salas e foi construído um novo pavilhão
continuaria funcionando, seria uma espécie de enfermaria de triagem, onde os doentes fariam
Leprosário de Itapuã. No Jornal do Estado, a cobertura da notícia ocupou toda a capa e contra
capa. Além de historicizar o combate à Lepra no Rio Grande do Sul, a matéria reproduzia os
Drs. Heitor Guimarães, representante do MES, Bonifácio Paranhos, diretor do DES, Hugo
Fazenda, Agricultura, Interior e Obras Públicas; o prefeito de Porto Alegre, Loureiro da Silva;
510
Jornal do Estado, ano III, n. º 635, p. 3, 16/1/1940 - MCSHJC
511
Idem, p. 1, 19/3/1940
512
Jornal do Estado, ano III, n.º 691, p. 1, 27/3/1940 e n.º 692, p. 1, 28/3/1940 - MCSHJC
131
pessoas. Após o corte da fita simbólica pelo Interventor do Estado tiveram início os discursos
Em nome de Capanema, que não pode comparecer, falou o Dr. Heitor Guimarães.
parabenizou o Interventor pela “obra grandiosa, destinada ao combate sem tréguas, vivo e
cientificamente dirigido, ao mais antigo mal que aflige a humanidade”.515 Após historicizar
pobre hanseniano, à sombra dum (sic) teto que é seu, descansará ao abrigo das injúrias do
tempo e da maldade dos homens, que querem ver nele o criminoso, em vez de vítima,
destacar nesta fala do Dr. Guimarães uma inversão. O “hanseniano” – atenção para o termo –
sempre visto como mal a ser exterminado, como um perigo para a sociedade, é apresentado
como vítima. O homem saudável é apresentado como um malvado que quer ver no doente o
culpado. O Leprosário é o local onde o doente pode se refugiar deste malvado, porque é um
lugar que é seu, um lugar onde ele pode ficar à vontade, lugar de leprosos é no Leprosário.
Assim configura-se a diferença entre o doente isolado, convertido em vítima, a quem se volta
513
Idem, n.o 729, 11/5/1940, p 1
514
Caderno do Frei Pacífico, Livro Tombo, março de 1940, p.3. Manuscrito.- CEDOPE/HCI.
515
ARM, ano XIX, n.o 6, junho de 1940, p. 181. - AHBFM
516
Jornal do Estado, ano III, n.o 729, 11/5/1940, p 1.- MCSHJC
132
Governo Estadual, enfatizava a ação dos poderes públicos no combate à Lepra. Os gastos com
Estado, em especial aos religiosos que iriam tomar conta do Hospital: “Uns participaram da
Campanha como discípulos, jogaram moeda e pão aos leprosos, outros como Cristo que
“Campanha contra a Lepra”519, ocorria o que Beatriz Olinto (2002) chama de “monopolização
do que seria a verdade coletiva”, onde o porta voz anula-se em benefício da coletividade a
qual pretende representar e com isso reveste-se da autoridade de tal ausente coletivo.520 A
Campanha torna-se um ente abstrato que justifica as atitudes tomadas em nome do coletivo.
Não são os médicos, a sociedade, os poderes públicos e a Igreja que segregam os doentes,
517
GINZBURG, Carlo. História Noturna. Decifrando o Sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.p.43-
67. Ao analisar a condição do leproso no ocidente medieval, o autor aponta a fragilidade em que estes doentes
viviam, incorporados à cristandade ao mesmo tempo eram excluídos, de vítimas a criminosos era a situação
limítrofe.
518
Jornal do Estado, ano III, n.o 729, 11/5/1940, p 1 e 16.- MCSHJC
519
O evento da inauguração do Amparo também foi noticiado pelos principais jornais da Capital com direito à
reprodução dos discursos, das entrevistas e das fotografias. Em fala “emocionada”, o prefeito de Porto Alegre,
Moisés Velhinho, declarou: O Amparo Santa Cruz começa hoje mesmo a cumprir sua alta finalidade social sob a
benção de Deus. (...) Crianças que seriam lançadas ao abandono e à desgraça – os filhos sãos dos lázaros
recolhidos, órfãos de pais mortos em vida – recebem aqui o aconchego de um teto cristão e aqui encontram a
ternura de corações que sabem mitigar a miséria dos pequeninos (...).Jornal do Estado, ano III, nº 763,
01/7/1940, p. 6. MCSHJC. Em sua fala chamam a atenção dois aspectos, um que ele sentencia que estas crianças
seriam lançadas ao abandono e à desgraça não fosse o Amparo, a Instituição surge como salvadora da prole
sadia do lázaro, em momento algum sugere a violência da retirada dos filhos das famílias, outro aspecto de seu
pronunciamento dá a conhecer o status dos pais das crianças: mortos em vida. Antes da morte física, o doente era
considerado socialmente morto.
520
OLINTO, Beatriz Anselmo. Pontes e Muralhas. Diferença. Lepra e Tragédia (Paraná, início do século XX).
Tese de Doutorado em História. UFSC. Florianópolis, 2002, p. 199.
133
O relato trata da chegada ao Hospital Colônia Itapuã dos primeiros doentes vindos do
Leprosário. Parece-nos estranho que pessoas levadas para o isolamento compulsório, retiradas
de suas famílias e comunidades em função de uma doença tão grave como era considerada a
Esta versão sobre a chegada dos doentes ao Leprosário encontra-se vinculada à visão
oficial da Campanha de combate à Lepra que pretendia forjar a idéia do Leprosário como uma
cidade, uma casa para os Lázaros, um lugar onde os doentes pudessem viver entre seus
semelhantes, ao abrigo da sociedade que tendia a ver neles uma ameaça social. Deste modo,
dos doentes.
religioso, que via nos leprosos os “prediletos de São Francisco”, sua visão foi influenciada
pela interpretação oficial do que consistia segregar os doentes nos Leprosários, considerados
verdadeiros oásis no triste e angustiante deserto que é a existência de um leproso, para livrá-
los da exposição pública e integrá-los a um “meio que é seu, pois os demais moradores
521
Irmã Sebastiana. Entrevista concedida a Arselle de Andrade da Fontoura. Santa Cruz do Sul, outubro de 1999.
135
também são doentes”, o Leprosário era apresentado como um ambiente capaz de suavizar as
veiculam deve ser interpretado como o ponto de vista oficial; suas falas procuram formular
uma versão oficial sobre a Campanha de combate à Lepra, e sempre devem ser lidas como tal.
Entretanto, é possível que para muitos doentes, que provavelmente conviviam com a doença
por muitos anos, realmente a ida para o Leprosário representasse uma possibilidade de
pela Irmã, tratava-se de uma nova significação que estava se forjando para o Leprosário: o
novo lar.
de dentro da ambulância podiam ver três ou quatro casas todas iguais e uma casa que se
destacava das demais, àquela devia pertencer a alguém importante. O veículo não parou para
que pudessem ver melhor, seguiram na estrada deixando para trás as casas.
O carro seguiu mais alguns metros passando por outras construções, quando
finalmente, contornando o caminho sempre à direita, adentraram numa estrada mais larga que
avistaram, em frente, mulheres vestidas de hábito marrom. Na crônica daquele ano, as Irmãs
522
AGRÍCOLA, Ernani. Campanha Nacional contra a Lepra. Op. Cit. p.p. 23 e 25
136
registraram que não era possível descrever o sentimento, a emoção que havia se apoderado de
suas almas com a chegada dos doentes, quando se apresentou diante de seus olhos tanto
Figura 16: Colônia Itapuã. Grupo de internados em frente ao Refeitório Geral. In: SOUZA ARAÚJO,
Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. vol.2. O Período Republicano (1890-1946) Rio de
Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1948. Álbum das organizações anti-leprosas. Estampa:
348
vila, mas logo a aparência se desfez. Portando apenas bagagens de mão, pois o Hospital
forneceria tudo o que precisassem, e trazendo o exame que confirmava o diagnóstico, foram
fotografias que registravam dias mais felizes, tudo ficaria ali para ser desinfectado.
Alguns doentes não chegaram sós, vieram com um ou mais membros de suas
famílias. Aos casais foram destinadas as casas geminadas, morariam duas famílias em cada
casa e a princípio os filhos do casal poderiam ficar morando com os pais. Os homens e as
mulheres que internaram sozinhos foram morar nos pavilhões, devidamente separados por
523
Irmãs Franciscanas: Crônica do Asilo Colônia Itapuã, 1940, p.3. Datilografado.- CEDOPE/HCI
137
sexo. As crianças doentes que foram para o isolamento sem as famílias ficaram em pavilhões
especiais.
O pavilhão das meninas, denominado “Grupo de Santa Inês”, estava sob os cuidados
de uma irmã doente de Lepra, a irmã Perpétua. O pavilhão dos meninos, denominado “Grupo
São Luiz”, primeiro esteve sob cuidado de um doente internado que era professor, depois foi
assumido por um padre também doente de Lepra, o irmão Floriano. Os pacientes com idade
Figura 17: Colônia Itapuã, Residência do Capelão. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides César
de. História da Lepra no Brasil. vol.2. O Período Republicano (1890-1946) Rio de Janeiro:
Departamento de Imprensa Nacional, 1948. Álbum das organizações anti-leprosas.
Estampa 353
524
Irmãs Franciscanas: Crônicas do Asilo Colônia Itapuã, 1940,p.4. Datilografado. - CEDOPE/HCI
138
Figura 19: Colônia Itapuã. Residência das irmãs. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides
César de. História da Lepra no Brasil. vol.2. O Período Republicano (1890-1946)
Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1948. Álbum das organizações
anti-leprosas. Estampa: 355
139
Figura 20: Colônia Itapuã. Pavilhão da Administração, seguido da Padaria. In: SOUZA
ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. vol.2. O Período
Republicano (1890-1946) Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1948.
Álbum das organizações anti-leprosas.: Estampa: 353
Diante deles, estava a ala que lhes pertencia, da qual jamais poderiam sair sem
autorização, separada por cercas das demais áreas do Leprosário, erguia-se a “zona suja”.
Figura 21: Colônia Itapuã. Avenida Getúlio Vargas, cortada pelo portão que separa a zona sadia da
dos doentes. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. vol.2. O
Período Republicano (1890-1946) Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1948.
Álbum das organizações anti-leprosas.: Estampa: 350.
140
Figura 22: Colônia Itapuã. Pavilhão do tipo Carville na praça Cordeiro de Faria. In: SOUZA
ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. vol.2. O Período Republicano (1890-
1946) Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1948. Álbum das organizações anti-
leprosas. Estampa: 350
Figura 23: Colônia Itapuã. Rua Gustavo Capanema, casas geminadas para casais de “leprosos”.. In:
SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. vol.2. O Período Republicano
(1890-1946) Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1948. Álbum das organizações anti-
leprosas. Estampa: 351.
141
pelas enfermarias, do outro pelos pavilhões e em frente pela Capela, foi batizada de “Cordeiro
de Farias”.525
Figura 24: Colônia Itapuã. Vista do Leprosário. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História
da Lepra no Brasil. vol.2. O Período Republicano (1890-1946) Rio de Janeiro: Departamento de
Imprensa Nacional, 1948. Álbum das organizações anti-leprosas. Estampa: 357.
poucos dias, quando o último grupo chegou às instalações do Hospital ainda não estavam
completas. Faltavam alguns prédios, como o “Pavilhão das Diversões”, que iria localizar-se
em frente à praça de esportes, na Av. Getúlio Vargas. Ao lado desta mesma praça iriam
trabalho e foi sob esta égide que nos primeiros dias de internamento os doentes já foram
525
DES 1940: Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Cel. Osvaldo Cordeiro de Farias pelo Dr. José Bonifácio
Paranhos da Costa. Oficina Gráfica da Imprensa Oficial, 1941, p. 50. - AHRS
142
interior do Leprosário. O almejado pelo DES era contar com o menor número de empregados
do DES, que previa os seguintes pontos: os doentes seriam mantidos em rigoroso asseio,
utensílios manuseados ou manufaturados pelos doentes não seriam objeto de comércio, dádiva
ou uso, fora da área destinada aos doentes; a moeda corrente não poderia circular entre os
seriam regulamentadas pela direção; ocorreria sempre que possível a separação dos casos,
para os doentes que a critério das autoridades sanitárias devessem se submeter a novos
exames antes da internação definitiva; os casamentos entre os doentes deveriam contar com a
nascimento.526
interno. Encontramos dois regimentos internos do Hospital, um datado dos anos 70, outro
sem data, pelo conteúdo mais “moralizante”, pouco “técnico”, com maior presença da
autoridade religiosa, supomos que seja anterior. Este regimento trata da disciplina dos
526
Regulamento do DES, decreto n.º 7558 de 11 de novembro de 1938, artigo 94, p.p. 25-26. - BALRGS
143
Os doentes não poderiam afastar-se do “perímetro urbano” (na área do Hospital tinha
mato, chácara, Lagoa Negra) sem autorização superior. As senhoras só poderiam fazê-lo com
Hospital. Estas regras referiam-se aos direitos de ir e vir dentro do Leprosário. Quanto ao
observe a hierarquia. O doente devia tratar com respeito todas as autoridades da Colônia, não
alterar a voz, gritar ou fazer qualquer barulho que pudesse incomodar os demais, não
perturbar o silêncio depois das 21h., cumprir rigorosamente as prescrições dos médicos e das
irmãs relativas à medicação, à higiene e à conduta moral. Ainda, pessoas de sexo diferente só
poderiam passear juntas quando fossem casadas ou quando noivos oficiais, com permissão
penalidades: “Todo o prejuízo material ou moral causado por desleixo e mau caráter
resultaria em pena disciplinar”. As penas seriam de repreensão à reclusão por certo número
527
Regulamentos. Regimento Interno dos doentes. Caixa 01.- CEDOPE/HCI.
144
contra-indicado, oferecia uma certa dificuldade. Mas, talvez, o benefício mais importante do
Ao ingressar no Hospital o doente teria que construir novas referências de vida, visto
que rompia com seus vínculos de vida anteriores, teria que se adaptar à nova situação; o
econômicos do emprego do doente, recebiam pequenas gratificações, que não chegavam a ser
A maioria dos doentes internados era de origem rural. As atividades ligadas à lavoura
eram as mais incentivadas, a idéia era que o Leprosário se tornasse auto-suficiente. Durante o
Dentro da área dos doentes raramente entravam pessoas saudáveis. As irmãs que
entravam vez ou outra, o Frei apenas para as cerimônias religiosas – missas, batismos,
contato entre o pessoal doente e o saudável era mínimo. As irmãs coordenavam todas as
produção da chácara foi de 60.248 litros de leite, 244 cabeças de gado. Na padaria se produziu
64.535 Kg de pão. O refeitório que atendia uma média de 400 doentes era coordenado por
528
DES 1940: Relatório apresentado ao Exmo...Op. Cit. p. 48.- AHRS
529
Alguns doentes puderam manter suas antigas profissões, relatam no Hospital que lá chegou a morar um
fotógrafo responsável por grande parte dos registros fotográficos da época, um violinista que animava as
cerimônias religiosas, um artesão a quem atribuem os trabalhos em mosaico no chão da entrada do Hospital e em
frente a Igreja Luterana.
145
uma única irmã com a ajuda dos doentes, a sala de costura fabricava roupas para os doentes
afazeres. As meninas, de “madrugada”, em fila se dirigiam para a Igreja onde faziam suas
imprescindíveis. Além dos evidentes benefícios econômicos e de pessoal, o trabalho tinha por
Figura 25: Colônia Itapuã. À esquerda lavanderia e a direita oficina dos doentes. In: SOUZA
ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. vol.2. O Período Republicano (1890-
1946) Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1948. Álbum das organizações anti-
leprosas. Estampa: 352.
530
Relatório Anual HCI, 1950 pelo Diretor do HCI Honório Ottoni ao Dr. João Pessoa Mendes, Chefe do
Serviço de Profilaxia da Lepra, em 16/01/1951. Documentação Avulsa. - CEDOPE/HCI.
531
Irmãs Franciscanas: Crônica do Asilo Colônia Itapuã, 1943. Datilografado. - CEDOPE/HCI
146
Figura 26: Operários “leprosos” construindo o Pavilhão da sua Colônia. In: SOUZA
ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. vol.2. O Período
Republicano (1890-1946) Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional,
1948. Álbum das organizações anti-leprosas. Estampa: 358.
Misericórdia, Beatriz Weber (1999) destaca que embora geralmente houvesse colaboração
entre os médicos e as irmãs, algumas vezes as relações eram marcadas por conflitos. Na
perspectiva religiosa das irmãs, a doença era vista como um castigo divino e momento de
147
expiação dos pecados, e a morte como libertação, não como um fracasso terapêutico, visão
deva ter sido tensa. A Lepra era uma moléstia sobrecarregada de conotações religiosas. Ao
mesmo tempo em que era identificada como castigo divino, sinal exterior de uma alma
corrompida pelo pecado, a Lepra oferecia um grande poder de purificação, dado o sofrimento
Neste sentido, o Leprosário seria o local por excelência para a expiação dos pecados.
A cura era a recompensa pela redenção, e a morte a libertação dos sofrimentos. Esta
irmãs eram praticamente as únicas funcionárias com quem o estabelecimento podia contar.
A doença, para as Irmãs, era apresentada como uma “oportunidade” de salvação. Não
raro esta “redenção” era representada pela conversão do internado à “Santa Igreja”. Em suas
palavras: “Graças a Deus, não poucas almas perdidas, andando num caminho errado, já
voltaram ao redil do Bom Pastor”, ou ainda: “assim essa via dolorosa será para muitos, que
talvez lá fora não se lembraram de sua alma imortal, o caminho para a salvação e felicidade
eterna.”533
reencontro de doente com a Igreja. Entretanto, havia aqueles doentes que conservavam suas
confissões religiosas anteriores à entrada no Hospital, foi o caso dos Evangélicos Luteranos
não tocados pelo “milagre da conversão”. Os doentes praticantes desta religião puderam se
532
WEBER, Beatriz Teixeira. As Artes de Curar..Op. Cit. Analisa a atuação das irmãs na Santa Casa. p. 155-
163.
533
Irmãs Franciscanas: Crônicas do Asilo Colônia Itapuã.- CEDOPE/HCI
148
A presença das Irmãs não se restringia apenas ao campo religioso, elas eram as
católico, mas não poderiam fugir às regras que organizavam a vida no Leprosário,
passava por elas. Um exemplo contundente era a distribuição dos doentes no Leprosário. O
regulamento do DES previa, sempre que possível, que os doentes fossem separados segundo o
grau de contagiosidade da doença.535 Esse critério nosológico era ofuscado pelo critério da
moralidade imposto pelas Irmãs, os doentes eram divididos por sexo, estado civil, idade,
somente eram separados os casos mais graves que necessitassem ficar na enfermaria.
A Capela do Hospital ficou pronta um ano depois da chegada dos primeiros doentes,
domingos, o soar dos sinos chamava os fiéis para a missa, o sino marcaria as horas santas do
e as mortes. Também um relógio foi colocado na torre da Igreja para marcar o tempo comum,
o tempo não litúrgico, o tempo dos homens, a cada 15 minutos durante o dia, altas badaladas
534
A Igreja dos Evangélicos construída no Hospital foi a última obra no Estado do renomado arquiteto Theo
Wiederspan. Catálogo. Biblioteca Pública do Estado. A questão religiosa é um tema que merece ser melhor
explorado, entretanto, foge aos objetivos deste trabalho.
535
Decreto n. º 7558, art. 94, letra s. - BALRGS
536
Irmãs Franciscanas: Crônica do Asilo Colônia Itapuã, 1941. Datilografado. - CEDOPE/HCI
149
Figura 27: Colônia Itapuã. Igreja Católica em frente a praça Cordeiro de Faria. In:
SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. vol.2. O Período
Republicano (1890-1946) Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1948.
Álbum das organizações anti-leprosas. Estampa: 355.
Figura 28: Colônia Itapuã. Gruta Nossa Senhora de Lourdes, existente no jardim da Casa
das Irmãs. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. vol.2.
O Período Republicano (1890-1946) Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional,
1948. Álbum das organizações anti-leprosas. Estampa: 356.
150
neste sentido, intensificar a convivência dos doentes, mas delimitar os espaços e a forma
verdadeiros eventos sociais as datas e as cerimônias litúrgicas. Estar fora da Igreja era,
exemplo, eram a oportunidade que muitos doentes tinham de receber algum produto diferente
daqueles fornecidos pelo Hospital, algum presente que poderia ser guardado para si, ou servir
auxílio da cooperação privada. O “Pavilhão” era um local destinado à recreação dos doentes.
Funcionaria como uma espécie de Clube, oferecendo diversões como: cinema, cassino de
jogos, biblioteca, teatro, bar, etc.538 Todas as atividades eram rigorosamente controladas pelas
537
No ano de 1942, o interventor Cordeiro de Farias acompanhado dos Drs. Bonifácio Paranhos, Diretor do
DES, Mércio Xavier, Delegado do DNS, além de outros médicos e autoridades, foram pessoalmente no Itapuã.
Após percorrer as dependências da “zona sadia”, os visitantes entraram na zona dos doentes e foram recebidos
com “Noite Feliz”. Reza a crônica que um doente discursou expressando a “satisfação e o agradecimento” de
todos. Diante de comovida recepção, o interventor dirigiu palavras de “paternal benevolência” aos doentes. As
senhoras esposas das autoridades passaram a distribuir presentes a todos, as crianças ganharam brinquedos,
uniformes e doces, as mulheres receberam “fazenda” para um vestido, meias e sabonetes e os homens ganharam
uma camisa, meias e cigarros. Irmãs Franciscanas: Crônica do Asilo Colônia Itapuã, 1942. Datilografado. -
CEDOPE/HCI
538
Sobre a colaboração das prefeituras dos municípios ver DES, 1942. Relatório apresentado ao Gal. Cordeiro de
Farias M. D. Interventor Federal pelo Dr. José Bonifácio Paranhos da Costa, Diretor Geral. Oficina Gráfica da
Imprensa Oficial, Porto Alegre, 1943, p. 27. AHRS. Os equipamentos que iriam aparelhar este edifício foram
entregues ao interventor federal no dia da inauguração do Hospital. Rotary, Associação Comercial e Clube do
Comércio doaram diversos jogos, incluindo uma mesa de bilhar francêsa e uma inglesa e um aparelho
151
endereçados à biblioteca dos doentes, “graças a Deus foi-nos possível inutilizá-los”. 539
relatam a vinda das “delegações esportivas” de dois outros Leprosários para competir com os
doentes de Itapuã, dos Hospitais São Roque do Paraná e Santa Teresa de Santa Catarina.540
“caravana de atletas” levou o fogo simbólico até os internados, premiando com uma medalha
provavelmente, os momentos onde a segregação se fazia mais presente. Estas ocasiões eram
quando as famílias se reencontravam, pais conheciam os filhos que haviam sido levados
recém-nascidos, filhos conheciam os pais, amigos se reviam. Também deviam ser os dias em
que a certeza de se estar isolado ficava mais evidente. Os visitantes e os doentes eram
cinematográfico. Um médico fez a doação de mais de 1000 livros, uma vitrola e 50 discos. Correio do Povo, Ano
XLVI, n.º 110, 12/5/1940, p. 9.- MCSHJC
539
Irmãs Franciscanas: Crônica do Asilo Colônia Itapuã, 1943. Datilografado. - CEDOPE/HCI
540
Diário das Irmãs, 1948, 08/12/48. - CEDOPE/HCI
541
Diário das Irmãs, 1949, 07/9/49. - CEDOPE/HCI
542
Irmãs Franciscanas: Crônica Asilo Colônia Itapuã, 1942. Datilografado.- CEDOPE/HCI
543
Tivemos oportunidade de entrevistar um senhor que esteve no Leprosário visitando um amigo. Ao recordar a visita,
descreve-a como “uma pouca vergonha”, na entrada tinha uma espécie de balcão de madeira, umas tábuas e tinha um buraco
(vala) separando os doentes de um lado e os visitantes de outro, “vários metros de distância”. Relata que estranhou aquele
isolamento todo, porque em Santa Cruz, município de onde provinha, todos eram acostumados com a presença de doentes e
desconfiavam (inclusive ele mesmo) que a doença fosse contagiosa. E desabafa: “tu já imaginou uma pessoa que tantas vezes
tu tomou chimarão junto, agora de repente tu tem que ficar numa área limpa, a gente nem tanto quanto eles, para eles foi
pior...esse isolamento lá foi violento (...) falavam de um lado para o outro...segredinhos não podia ter.”, Juliane
Conceição Primon. Entrevista com Roberto Stainhaus. Santa Cruz do Sul, 16 maio de 2003.
152
filhos sadios dos doentes, não somente aqueles que nasciam no Hospital, mas aqueles cujos
datas marcadas as crianças eram levadas para visitar os pais no Leprosário, algumas delas iam
para conhecê-los. Até 1947 dez crianças haviam manifestado a doença, essas puderam ir
Leprosário como refúgio para os males, sobre o combate à Lepra como gesto de humanidade,
assim como esta “normalidade” que se tentava constituir dentro do ambiente hospitalar
544
Com capacidade para abrigar mais de 100 crianças, esse preventório contava com um edifício principal de
três pavimentos. No térreo ficariam a cozinha, os depósitos, a lavanderia, a padaria, os banheiros, no segundo
andar, os refeitórios, as salas de aula, a capela, os dormitórios, no terceiro ficariam mais dormitórios, enfermaria
e residência das irmãs. Um pavilhão em anexo serviria para casos em observação. Arquivos do Departamento
Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul de 1940, vol. 1, Porto Alegre: Imprensa Oficial, 1940, p. 90. -
CEDOPE/HCI
545
Arquivos do Departamento Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul de 1947, vol. 8, Porto Alegre: Imprensa
Oficial, 1948, p.108.
153
a cura da moléstia. Para os primeiros por razões óbvias, para os segundos por motivos
também conhecidos, desde evitar a propagação da doença, livrar o Brasil do flagelo da Lepra,
recuperar a saúde dos contaminados, pode-se dizer que nesta ordem. Entretanto, foram os
Hospital entraram mais de 1.200 doentes.546 Eles não estiveram internados todos ao mesmo
546
SAME, Caixa 03, documentação avulsa: Relação da entrada dos pacientes. - CEDOPE/HCI.
154
tempo, a média anual devia ser superior a 500 doentes isolados, número que podia elevar-se
bastante.547
os demais funcionários viviam fora da “zona dos doentes”, portanto, não podiam manter a
vigilância constante. Não poderiam contratar funcionários para fazer a segurança, pois não era
permitido que pessoas saudáveis ficassem entre os doentes. A única forma de fazer funcionar
dos doentes.
O Hospital contava com uma “autoridade” dentro da zona dos internados. A direção
indicaria um doente para servir de “prefeito dos leprosos” ele seria o representante dos
internados. O cargo seria exercido com o auxílio de um “conselho” formado por outros
doentes.549
primeiros anos do Leprosário, não foi encontrado nenhum registro. Entretanto, a “prefeitura”
foi um órgão de longa duração no Hospital. Examinado a documentação dos anos 70 (as
únicas sobre a “prefeitura dos internados”) podemos ter “noção” das funções do cargo.550
547
Relatórios DES: 1940 – 348 internados; 1941 – 500; 1942 – 439; 1943 – 455; 1944 – 455; 1945 – 502; Estes
números indicavam o total de internados no dia 31 de dezembro de cada ano, não o total de doentes passados
pelo Hospital durante o ano. - CEDOPE/HCI. A planta do Leprosário foi modificada em 1950 aumentando a
rede de serviços de água e esgotos para assistir uma população que chegava a 850 pacientes. Relatório Anual do
Hospital Colônia Itapuã, 1950, folha 10, documentação avulsa. - CEDOPE/HCI
548
Regulamentos. Regimento Interno dos doentes. Caixa 01. Op. Cit. - CEDOPE/HCI.
549
A idéia era que houvesse uma eleição para escolher o prefeito, mas na prática era a direção que indicava.
Sobre este “conselho” era formado por um “um corpo de guardas”, também doentes aliciados entre os
internados. O prefeito era um funcionário do Hospital subordinado ao Diretor e às Irmãs. DES 1940: Relatório
apresentado ao Exmo. Snr. Cel. Osvaldo Cordeiro de Farias pelo Dr. José Bonifácio Paranhos da Costa. Oficina
Gráfica da Imprensa Oficial, 1941, p. 49. - AHRS
550
Sem dúvida devemos considerar que as transformações pelas quais passou o Hospital ao longo dos anos
alteraram a configuração das relações internas da Instituição, modificando as “prerrogativas” da prefeitura que
entrou os anos 80 em pleno funcionamento. Ver: Caixa da Prefeitura. - CEDOPE/HCI. Temos, por exemplo, nos
anos 80 “licenças” concedidas a internados pelo prefeito, sem dúvida que nos primeiros anos isto era uma
atribuição somente do diretor. Consideramos estas mudanças ao tentar, a partir desta documentação dos anos 70,
reconstituir quais seriam as funções exercidas pela prefeitura. Um estudo sobre as relações sociais e de conflito
dentro do Hospital merece um estudo.
155
papel era garantir a ordem, a disciplina, o funcionamento do trabalho dentro da zona dos
doentes, repassando toda a informação para a Direção. Era também o prefeito que levava as
artigo do regimento que dita o que é permissivo de pena disciplinar é muito amplo “todo o
pena, o que incluía uma gama imensa de comportamentos, sendo o prefeito o responsável pela
execução das penas. De todas as “contravenções” possíveis, que iam desde pessoas do mesmo
sexo passearem juntas, até levantar a voz para alguma autoridade, uma era rigorosamente
punida: a fuga.
doente era obrigado a ir para o Leprosário. Imaginamos que muitos doentes foram forçados a
ir para o isolamento.
doença em todos os exames, o doente poderia obter a alta hospitalar, dando prosseguimento
551
Encontramos na documentação da prefeitura pedidos dos doentes encaminhados à Direção via prefeitura,
comunicados de falecimentos, de casamentos. Caixa da Prefeitura. - CEDOPE/HCI
552
Regimento Interno dos doentes. Caixa 01.- CEDOPE/HCI
553
SANTOS, Juvenal. Considerações em torno do diagnóstico precoce da Lepra. In: ARM, ano XIII, no. 5,
junho de 1934, p. 231. - AHBFM
156
no tratamento em Dispensário.554 Caso isso não acontecesse, o doente apenas poderia deixar o
O doente só obteria licença se seus exames permitissem, ou seja, se ele não representasse
Instituição até não representarem mais perigo à saúde pública. Neste caso, a fuga era a
maneira encontrada por muitos doentes que não estivessem dentro dos critérios sanitários para
deixar, mesmo que temporariamente, o Hospital. Em função disso, as fugas fizeram parte do
Embora seja difícil precisar o movimento das fugas, pois os dados são parciais,
incompletos e também não sabemos se as fugas não eram computadas sob outras
números oficiais são bastante significativos: Foram constatadas 3 fugas em 1940, 36 em 1941,
aconteciam num mesmo dia. Os períodos festivos eram as principais datas para deixar o
vigilância.556 Caso o doente fosse infeliz na sua tentativa, ou se dias depois voltasse ao
Leprosário, era severamente punido com detenção na cadeia do Hospital, que contava com 6
celas gradeadas para receber os “infratores”. As fugas eram uma ameaça ao funcionamento do
direção.
554
Regulamento de Altas do Departamento de Profilaxia da Lepra de São Paulo. (Adotado no Rio Grande do
Sul). Cópia. DES, 25/3/45. Documentação Avulsa. - CEDOPE/HCI.
555
Para os anos de 1940-1 Ver: Relatórios do DES, correspondentes aos mesmos anos. Para os anos seguintes
ver os Arquivos do Departamento Estadual de Saúde dos anos de 1944 e 1947. - CEDOPE/HCI.
556
Cadernos das irmãs, anos de 1946, 1948 e 1949. - CEDOPE/HCI.
157
Hospital sofreria a ameaça de ficar temporariamente sem receber visitas. Outra forma de
podemos deduzir que estes “privilégios”, na maioria das vezes infinitamente pequenos, como
talvez uma porção “extra” de refeição ou um sabonete, podiam adquirir um caráter muito
significativo. Da mesma forma que era a direção que estipulava o lugar de cada um no
Leprosário, um trabalho ou uma moradia melhor poderiam ser incentivo a muitos internados
passível de punição, mas havia modos de burlar as regras do leprosário de forma mais sutil,
direção.
557
Ao analisar o funcionamento de algumas instituições totais, Goffman observou que pequenos privilégios
funcionam como prêmios àqueles internados que respeitam as regras da Instituição. GOFFMAN, Erving.
Manicômios, Prisões e Conventos. Op. Cit. p.50.
558
Por “táticas cotidianas”, Michel de Certeau compreende procedimentos minúsculos e cotidianos que jogam com os
mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los, são “maneiras de fazer” que garantem a
vitória do “fraco” sobre o mais “forte”, pequenos sucessos, golpes, astúcias. CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano. 1.
As artes de Fazer. 6ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1994, p.p. 35-53. Em nosso trabalho, embora considerando esta expressão
conceitual muito semelhante a de “ajustamentos secundários” de Goffman, vamos preferir o uso desta última por ter seu uso
diretamente ligado a estas “táticas” desempenhadas pelos sujeitos em situação de confinamento nas Instituições. Goffman,
Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. Op. Cit.
158
Figura 30: Colônia Itapuã. Edifício da Cadeia mandado construir pelo Governo Federal. In:
SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no Brasil. vol.2. O Período
Republicano (1890-1946) Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1948.
Álbum das organizações anti-leprosas. Estampa: 350.
pareça menor diante da especificidade deste tipo de Hospital, construído, sobretudo, para
uma planta de origem indiana cultivada no Brasil denominada chalmoogra, da qual eram
“aplicações elétricas”. Sobre estas “aplicações” não encontramos nenhuma referência nos
livros e nos relatórios oficiais da Saúde pesquisados, embora nas crônicas das irmãs
estivessem registradas como uma técnica largamente empregada, sendo que em 1941 foram
1.828 aplicações; em 1941: 6.067; 1942: 6.218; 1943: 6.283 e em 1944: 5.184. Podemos
159
supor que, como a doença “atacava” o sistema nervoso, tal “técnica” estivesse associada ao
Pequenas intervenções 20 42 26 41
cirúrgicas
Grandes intervenções cirúrgicas 4 3 17 11
A chalmoogra, durante a segunda metade dos anos 40, foi sendo abandonada,
Lepra.560
Estados Unidos, a sulfona passou a ser utilizada no Hospital Itapuã quatro anos depois,
generalizou e uma enxurrada de remédios derivados desta droga passaram a ser usados no
559
Havia muito de experimental em relação à Lepra, além dos medicamentos feitos a base de chalmoogra, como
um tratamento realizado “pelo oxigênio sob pressão.” AGRÍCOLA, Ernani. Campanha Nacional contra a Lepra.
Op. Cit. p. 67
560
Conclusões do V Congresso Internacional de Lepra, reunido em Cuba, abril de 1948. Revista Brasileira de
Leprologia, vol. 16, 1948, p.p. 225-243.
160
Diaminoxil, Dileprone.561
indeterminada (mista) podem, em alguns casos, evoluir para a cura espontânea. O mesmo não
antibiótico sulfônico.562
generalizado da sulfona em fins dos anos 40, os registros de entrada de pacientes no Hospital
Itapuã apontam, somente para o final dos anos 50, uma diminuição significativa nos
internamentos: 1940: 361; 1941: 146; 1942: 66; 1943: 66; 1944: 89; 1945: 81; 1946: 91; 1947:
78; 1949: 81; 1950: 64; 1951: 71; 1952: 88; 1953: 108; 1954: 120; 1955: 88; 1956: 90; 1957:
sulfona libertaria os doentes da condição de isolamento nos leprosários, não do estigma que
561
Relatório das atividades do HCI – Movimento do Hospital. Documentação Avulsa. - CEDOPE/HCI.
562
LIMA. Lauro de Souza. Estado Atual da Terapêutica da Lepra. Ministério da educação e Saúde.
Departamento Nacional de Saúde. Serviço Nacional da Lepra: São Paulo: 1953.
563
Dados do SAME registros de entrada de pacientes. Caixa do SAME. - CEDOPE/HCI.
564
Relatório das atividades do HCI – Movimento do Hospital. Documentação Avulsa. - CEDOPE/HCI.
161
Figura 31: Colônia Itapuã. Uma das Enfermarias. In: SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de.
História da Lepra no Brasil. vol.2. O Período Republicano (1890-1946) Rio de Janeiro:
Departamento de Imprensa Nacional, 1948. Álbum das organizações anti-leprosas. Estampa:
354.
162
Hospital Itapuã. Em 1941 tiveram alta os 12 primeiros doentes. Por ocasião da partida destes
Interventor Federal, Cel. Cordeiro de Farias, o Secretário de Saúde Dr. Bonifácio Paranhos, o
outros termos, da técnica, da ciência e da fé, foi o que perpassou o discurso dos presentes.
565
Irmãs Franciscanas: Crônica do Asilo Colônia Itapuã, 1941. Datilografado. - CEDOPE/HCI
163
Enquanto o Frei saudou a ação do governo, o Interventor dirigiu palavras de conforto para os
internados, dizendo que abrigava a esperança de ver algum dia aquele Leprosário fechado, por
ter cumprido sua “grande missão”. O acontecimento foi noticiado pelos jornais e utilizado
como uma propaganda a favor do internamento.566 Durante os anos de 1940 a 1943, 254
Mas, foi somente com o advento da sulfona que passaram a ocorrer altas “em massa”
representava uma vitória sobre a doença, por outro causava uma série de problemas para a
Campanha.
executar a tradicional segregação do doente. A maioria dos recursos materiais e técnicos tinha
ambulatorial, os Dispensários teriam que dar conta dos serviços. Rotberg, médico do
Departamento de Profilaxia da Lepra de São Paulo, chamou atenção para “o possível colapso
do Dispensário” que não conseguiria atender a demanda, problema que segundo o médico
Lepra, que acabariam por aumentar o número de altas nos Leprosários. Como solução sugeria
566
Jornal do Estado, Porto Alegre, 23/8/41, p. 1 e 4.
567
Administração Sanitária no Rio grande do Sul 1938/43.- CEDOPE/PARTENON.
568
Em SP as altas Hospitalares passaram a vigorar a partir de 1941. Os tipos de alta são classificados em:
hospitalar para doentes não contagiantes, devendo estes continuar tratamento em ambulatório, alta condicional
que seria um período de observação, entre a alta hospitalar e a definitiva, que somente seria obtida após 5 anos
de vigilância dispensarial. São Paulo, Vol. 10, 1941, p.p. 309-312.- AHBFM
164
clientela”.569
Apesar das experiências com a sulfona e seus derivados durante todos os anos de
Leprosários no Brasil foram instituições “ativas” até os anos 80, atendendo desde casos novos
da doença até reinternamentos de pacientes, que por razões econômicas ou sociais voltaram
para o Hospital.
Mas, de modo geral com o fim do isolamento compulsório, garantido por algumas
determinações legais, alguns direitos dos doentes foram assegurados. Um decreto federal de
1962 garantia aos doentes de forma contagiante o “direito de movimentação” e revogava a lei
perigo social.571
XIV, a loucura, “nova encarnação do mal”, herdou os espaços que pertenciam aos leprosos.572
Em 1972, o Hospital Colônia Itapuã recebeu cerca de 180 pacientes egressos do Hospital
569
ROTBERG, A; BECHELLI, L. M. O dispensário na profilaxia da lepra: sua importância crescente e
modernização. Revista Brasileira de Leprologia, vol. 19, n.º 2, São Paulo, junho de 1951 p. 71-72.
570
BOLETIM do Serviço Nacional de Lepra, ano XXVI, n.º 3 e 4 - jul./dez. Ministério da Saúde. Departamento
Nacional de Saúde, Rio de Janeiro, 1967, p .96.
571
Dec. 968 de 7 de maio de 1962.Boletim do Serviço Nacional de Lepra, Ano XXVI, nº 3 e 4, Jul-dez, 1967,
DNS, Rio de Janeiro: 1967, p.95 - BALRGS
572
FOUCAULT, Michel. História da Loucura...Op. Cit. p. 3-9.
165
social destes pacientes através da laborterapia praticada nas atividades agrícolas. O Centro de
Um rearranjo no espaço hospitalar foi promovido para comportar esta nova situação,
primeiramente marcada por conflitos573, depois por aceitação. Os pavilhões que haviam ficado
desocupados pela saída dos hansenianos foram reutilizados para abrigar estes novos
moradores. A vinda destes pacientes para o Itapuã pode ser lida como um reforço no caráter
Um outro problema gerado com o fim do isolamento foi a respeito da inserção social
dos egressos dos Leprosários. Uma pesquisa realizada nos anos 60 a pedido do Serviço
situação.
O “inquérito” que vamos acompanhar foi efetuado junto ao Centro de Saúde n.º2, em
Porto Alegre, no ano de 1969. Neste Centro encontravam-se registrados 103 doentes, dos
quais apenas 56 foram entrevistados, sendo que dos 57 restantes, 24 não foram encontrados e
os outros 23 não deram entrevistas por diversos motivos, desde não comparecimento até
reintegração social. Dos 56 entrevistados, quando perguntados se seus vizinhos sabiam que
eram portadores da doença, 47 disseram que ninguém sabia. Entre os entrevistados que
trabalhavam 23 dos 56, 20 disseram que nenhuma pessoa do trabalho sabia que eram doentes.
próprio cônjuge, com receio de ser abandonado”, enquanto outros ocultavam de pais, de
573
Histórico do CAR. Unidade de Internação Psiquiátrica, S/D. Arquivo do CEDOPE. Os hansenianos a
princípio rechaçaram completamente a idéia da ida dos pacientes psiquiátricos para o Itapuã. - CEDOPE/HCI
166
irmãos, de filhos, de noras e de genros, “com a intenção de não lhes causar desgostos,
A dificuldade da reintegração social foi algo que acompanhou os doentes, não apenas
quando a doença deixava alguma seqüela física, mas quando – como no caso da maioria dos
entrevistados pela pesquisa – a reintegração passava por omitir (ou mentir?) o passado,
principalmente quando vivido no Leprosário. Como preencher a lacuna dos anos em que se
viveu fora da sociedade? A solução encontrada por muitos foi fixar residência em locais
distantes de suas antigas comunidades, como também revelou a pesquisa: “grande número de
doentes deixava seu local de origem com receio de ser identificado como hanseniano.”575
não podemos negar que passar pela Instituição estigmatizava o doente e a segregação era um
Por fim, quando foi decretada a falência dos Leprosários, muitos envolvidos na
profilaxia, esta idéia foi muito bem sintetizada na seguinte passagem lida na sessão da
doença. Mal-entendido que, diga-se de passagem, tinha sido denunciado quase 30 anos atrás
574
Relatório do inquérito realizado em hansenianos visando estudar a reintegração dos mesmos em sua
comunidade. Boletim do Serviço Nacional da Lepra. Ano XXVIII. n.º 3, setembro de 1969. Ministério da Saúde,
Rio de Janeiro: 1969. p.p.96-121.
575
Idem, p. 112. (Boletim, 1969)
576
Boletim do Serviço Nacional da Lepra, ano XXVI, n.º 3 e 4 Jul. Dez., 1967, Ministério da Saúde,
Departamento Nacional de Saúde, Rio de Janeiro, p. 88.
167
com o caso das Filipinas. Estudos posteriores indicaram que o declínio dos casos de Lepra na
domiciliar pelos “Comitês de Saúde”(1854). A lei de isolamento (1885), que serviu de modelo
para vários países, entre eles o Brasil, atingia somente os doentes em estado muito avançado
da doença e apenas uma minoria de leprosos latentes ou seja, que não manifestavam as
características mais evidentes. Quando essa lei foi promulgada na Noruega, a doença já estava
em queda evidente.
pode ser saudado a posteriori como um fracasso. Os resultados obtidos por tal método no
como perigo e ameaça social, fora os elevados gastos para o erário público.577
Walter Benjamin (1993) enunciou que: “Nunca houve um monumento da cultura que
não fosse também um monumento à barbárie.”578 Eis uma das lições dos enormes
Leprosários, construídos nos anos 30 e 40 para colocar o Brasil entre os países realmente
civilizados...
577
Conclusões neste sentido foram formadas nos Seminários e Congressos Internacionais de Lepra realizados no
final dos anos 50 e 60. Vide Seminário realizado em Belo Horizonte em 1958, onde o isolamento obrigatório em
leprosários foram apontados como obstáculos no combate à lepra (Boletim do SNL, no. 3 e 4, 1967, p. 94). Ou
ainda, os resultados da II Jornada Brasileira de Estudos de Educação em Saúde em Salvador, onde o Diretor da
Divisão Nacional da Lepra avalia que o diagnóstico tardio dos casos da lepra se deve ao fato que os doentes procuram
esconder o diagnóstico temendo a condenação da segregação total (Boletim do SNL, n.º. 3 e 4, 1971, p. 110-
111).
578
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas, 5ª ed., São Paulo: Ed. Brasiliense,
1993. “Sobre o conceito da história”, p. 225.
169
regras impostas pela Instituição, muitas vezes o doente passava a participar de um outro
O sistema formal visava ajustar o indivíduo a sua nova condição de internado, exigia
indivíduo de “ajustamentos primários”. O doente não faria nem mais, nem menos do que
doente empregaria os meios que dispunha para se isolar do papel que a Instituição exigia dele.
obedecendo as “regras da casa”, por convicções pessoais, por necessidades íntimas, pela
posição ocupada dentro do isolamento – um cargo “importante” por exemplo – ou mesmo por
Em todas as entrevistas que realizamos, não encontramos uma pessoa que algum dia,
por algum motivo, não tenha burlado alguma regra do Hospital, fora àqueles que o faziam de
modo deliberado. Com isso não queremos dizer que os doentes passavam o dia inteiro
pensando estratagemas para obter vantagens pessoais ou para o grupo, mas, conhecedores do
170
funcionamento do Hospital, procuravam tirar algum proveito para garantir um destino melhor
no isolamento.
“práticas cotidianas” para conseguir fins não-autorizados pela Instituição.579 Dentre elas é
observados por alguém de fora, também podem parecer infinitamente pequenos, como aquele
internado que presenteava com laranjas a Irmã responsável pelo pavilhão das meninas com a
intenção de um dia obter licença para namorar uma das internadas.580 Ou ainda, a troca de
“bilhetinhos” dentro do refeitório onde a conversa entre os moradores solteiros de sexo oposto
era proibida.581
O trabalho, ou qualquer transação, era paga nesse “latão” que fora do Hospital não
tinha valor nenhum. A moeda tornou-se um empecilho a mais à liberdade dos doentes, que
não poderiam fugir do Leprosário sem dinheiro. Um dos internados começou a falsificá-las, e
os doentes que pudessem destruí-las o faziam, até que o DES foi obrigado a retirá-la de
circulação.582
579
Certeau desenvolveu a idéia de práticas cotidianas como operações através das quais os indivíduos fundam
micro-resistências. Todo o sistema por mais vigilante e disciplinar que seja apresenta espaços de movimentação,
brechas , onde se instauram estas atividades táticas que visam sobretudo fugir da massificação e da passividade.
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. Op. Cit.
580
. P. F. H. Entrevista concedida a Juliane Conceição Primon Serres. Hospital Colônia Itapuã, 25 de janeiro de
2000. “Seu Chico”. - CEDOPE/HCI.
581
.C.L. Entrevista concedida a Viviane Trindade Borges. Hospital Colônia Itapuã, 21 de março de 2001.-
CEDOPE/HCI.
582
A.T.B. Entrevista concedida a Viviane Trindade Borges. Hospital Colônia Itapuã, 09 de janeiro de 2001. -
CEDOPE/HCI.
171
justificativa para sua adoção era de ordem profilática, evitar que o dinheiro tocado por doentes
saísse da Colônia.
parte do “sistema informal”. Porém, este sistema abrangia outros tipos de relações. Vamos
doentes eram sexo, idade (criança/adulto) e estado civil. Quando um “novato” chegava ao
Hospital, antes mesmo da direção lhe destinar um lugar, havia um acerto entre os internados
para ver quem iria ficar com aquele companheiro. Os moradores dos pavilhões davam
preferência a “colegas” da mesma origem étnica, o que em tese assegurava costumes comuns,
ou aqueles que estivessem em boas condições físicas, garantia de que o companheiro poderia
“se virar sozinho”. Entre as mulheres, pareceu-nos que este segundo “critério” era mais
Mas nem sempre era possível levar adiante este arranjo. O problema da moradia
naquele universo tumultuado. Algumas vezes estas redes eram formadas por doentes que
provinham das mesmas regiões, religiões e, talvez, entre doentes que desfrutavam de
172
internados”.
Sob estas “redes de solidariedade” informais pairava uma tensão constante. Enquanto
bem. Entretanto, às vezes alguns doentes se apoiavam nos outros para realizar pequenas
“contraventor” era bom que a rede que o ligasse ao colega fosse sólida, do contrário poderia
ser muito fácil para a direção acionar o sistema “prêmio-castigo”, obrigando um doente
Mas nem sempre os internados eram solidários com seus “companheiros”. O direito
ao cultivo da terra era uma moeda de troca entre os doentes, conforme denunciou o jornal dos
internados.583 Do mesmo modo que ocupar um cargo de poder dentro do Leprosário podia
Leprosário, a “Caixa Beneficente”. Esta “Associação” da qual poderiam fazer parte todos os
entre o Hospital e os doentes. Parte do que era produzido pelos internados era vendido para o
583
Jornal A Razão, Colônia Itapoã, nº343 de 8 de outubro de 1950, p.2. Esse jornal denunciava com repúdio o
comportamento de alguns internados que vendiam o direito ao cultivo terra para outros internados.
584
.E.M.de C. Entrevista concedida a Juliane Conceição Primon Serres. Hospital Colônia Itapuã, 15 de outubro
de 2003. “Dona Telma”, referiu-se aos guardas que às vezes prejudicavam seus companheiros, “abusando” do
cargo que tinham.
173
Leprosário. O dinheiro que a Caixa ganhava nestas “transações” era usado em benefício dos
Oferecer distrações aos internados era uma forma atrativa de convencê-los a aceitar
isolamento. Procurava-se construir uma idéia de “normalidade”, os doentes tinham uma rotina
de trabalho, uma vida religiosa, constituíam uniões entre si, tinham uma vida social.
Entretanto, a situação era muito ambígua, a qualquer momento esta idéia de “normalidade”
(sobre)viver do modo mais normal possível diante da “inevitabilidade” do seu destino. A vida
social na Colônia é, em geral, a recordação mais feliz que os moradores guardam. Alguns
ficam horas falando dos bailes, dos filmes, dos passeios. Selecionam estes momentos,
Anúncios de cinema: “O sinal de Perigo, com Z. Scott”, “Você devia ser artista de
Cinema, foi exibido na Quarta”; “De amor também se morre, com Joan Fontaine”; ou ainda:
“Jornadas Heróicas, com Garry Cooper”; “Devoção, com Ida Lupino e Olivia Haviland”.
585
Ajudava uma média de 100 doentes por mês. DES 1940, Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Cel. Cordeiro
de Farias, Interventor Federal, pelo Dr. José Bonifácio Paranhos da Costa, Diretor Geral. Officinas Graphicas da
Imprensa Oficial, POA, 1941, p. 49.
586
O Jornal se anunciava como “órgão oficial”. Em 1950 a tiragem era de 70 exemplares de 4 páginas, impressos
em uma tipografia caseira. Esta tiragem pode ser considerada bastante significativa, em um universo de
aproximadamente 500 moradores, com cerca de 50% de analfabetos. O que não quer dizer que os analfabetos
estivessem excluídos do consumo do semanário, pois podia haver leituras públicas entre os internados.
Calculamos os analfabetos com base nos dados de 1941 onde em uma população de 456 doentes, tínhamos 225
analfabetos. DES, 1941, Relatório apresentado...Op. Cit. p. 25.
174
domingo último, às 15h30min, o ‘six’ do internado São Luiz e um selecionado local”; “Os
amantes do esporte das multidões terão, na tarde de hoje, no gramado terminal da avenida
Getúlio Vargas, a oportunidade de assistir a um sensacional embate entre os dois quadros que
Em um primeiro olhar se esta publicação fosse deslocada do local onde ela circulava,
momento, um aspecto chama a atenção do olhar. O diretor do jornal era apresentado como
Paulo R., o secretário como N. G., os aniversariantes, Augostinho P., Cláudio C., Eugênio S.,
Dionísia R., o juiz das partidas de vôlei, Nilo P., o falecido Ernesto P., a viúva Hilda P., o
presidente da Caixa Beneficente, Henrique F., o tesoureiro Alcides M., o padre, Cipriano do
padre e o médico tinham seus nomes completos estampados nas páginas, a “técnica” era para
que não fosse possível por alguém que não fizesse parte da comunidade reconhecer os
Uma outra “coluna” do jornal denominava-se “miscelânea”, como o nome indica, ali eram
reunidos escritos sobre vários temas. Esta seção nos pareceu muito interessante.
587
Estas referências foram extraídas dos exemplares do jornal “A Razão”, Colônia Itapoã, dos dias 17 e 24 de
setembro e 1º e 9 de outubro de 1950, correspondente aos números 340,341, 342 e 343 respectivamente, ano 7.
588
Idem.
175
produzido pelos internados, a forma como este jornal veiculava as notícias ficava bem ao
deixando transparecer uma satisfação dos internados com a vida social que levavam. O estilo
do redator contribuía muito para isso, as frases são recheadas de palavras como “grandioso”,
“extraordinário”, “sensacional”.
Figura 35: Jornal “A Razão”, “Órgão Oficial”, Colônia Itapuã. domingo, 24 de setembro de 1950, nº
341.
Pessoas que não pertenciam ao “mundo dos internados” não poderiam compreender
informações como: “anteriormente a lei áurea havia um cargo que depois desapareceu, era o
cargo de capitão do mato! ... senhor! Mas porque essa recordação agora?... Caprichos da
imaginação?...589 Ou ainda: “Ele voltará! Mas não foi só ele o chefe de trinta!...O outro ‘ele’
forma de escrever, através de “códigos”, servia para endereçar as mensagens, algumas pessoas
iam entender. Outras mensagens eram mais diretas, como uma que possivelmente se referia a
eleição para prefeito dos internados: “O direito à cidadania e ao voto foi negado aos
internados. Apesar disso, em nossa Colônia temos verdadeiros comitês políticos (...) Quanta
Primavera” de 1950 foi uma conquista que a dona Terezinha B. (naquela época senhorita) não
pôde compartilhar com sua família. Ela teria motivo para se orgulhar do título, não fosse ele
589
Jornal A Razão, Colônia Itapoã, n.º 341, 24 de setembro de 1950, p.2.
590
Idem , n.º 343, 8 de outubro de 1950, p. 2.
591
Jornal A Razão, Colônia Itapoã, n.º 341, 24 de setembro de 1950, p.2.
177
Hoje, com mais de 70 anos, dona Terezinha, que deixou o Hospital pouco tempo
depois de ganhar o concurso, ainda fica visivelmente emocionada ao recordar aquela época.
dedicou um “bilhete”, saudando-a como “rainha da cidade-esperança”. Ela nunca soube quem
foi o autor, entretanto publicou no jornal seguinte uma nota de agradecimento na qual
prometia guardar o “bilhete” por toda a vida. Eis porque estes jornais chegaram até nós.
romantizado, estereotipado, dramatizado. Em geral todos tentamos ser heróis da nossa própria
história, primeiro convencendo a nós mesmos, depois tentando convencer aos outros. Nem
todos os doentes partiram quando as portas do Leprosário foram abertas, muitos ficaram.
178
Foi pelos idos de 1950 que ergueram um portão onde antes havia uma cerca para
separar a zona dos doentes do resto do Leprosário e sob ele escreveram: “Nós não
caminhamos sós.”592 O “lema” escrito à entrada do Hospital podia abrigar ao menos dois
sentidos: aqueles doentes não viveriam sem ajuda, “não caminhavam sós”, ou a frase traduzia
uma afirmação de que os doentes não estavam sós, contavam com a ajuda, do Estado, da
caráter mais humano ao isolamento, oferecer palavras de conforto não apenas aos internados,
mas aos visitantes. Realmente aquelas pessoas ali não caminhavam sós, não se encontravam
abandonadas.
pesquisa. Através das fontes oficiais (produzidas pela Instituição) este mundo dos doentes
dinâmica das relações que foram tecidas no interior do isolamento não se dão a conhecer ao
primeiro olhar. Somente vamos percebendo que existe uma vida própria e significativa no
592
Foi organizado no Leprosário um concurso para escolher uma frase para ser escrita sob o portão de entrada,
vários moradores participaram, sendo escolhida a frase de um internado, marido de uma de nossas entrevistadas.
Ela relembra a ocasião da “inauguração” do portão, onde o marido recebeu um prêmio por ter vencido o
concurso. E.M.de C. (Dona Telma) Entrevista concedida a Juliane Conceição Primon Serres. Hospital Itapuã.
Outubro de 2003. No Leprosário Modelo nos Campos do Santo Ângelo em São Paulo, tinha na entrada do
Hospital a frase “Aqui renasce a esperança”. SOUZA ARAÚJO, Heraclides César de. História da Lepra no
Brasil. Op. Cit. vol.3, p. 245.
179
Leprosário à medida que nos aproximamos dela. Goffman (2003) sugere que a melhor forma
mundo que em grande parte se desfez. Todos esses velhinhos que circulam hoje na
Instituição, com seus passos trôpegos, auxiliados por bengalas, há 40 ou 50 anos atrás, eram
jovens. As irmãs não existem mais, as visitas de domingos separadas pela cerca não existem
mais, a cadeia está com as suas grades corroídas pelo tempo, o cinema não exibe mais filmes,
pavilhões e as casas estão sendo fechados por falta de moradores. O silêncio invade os dias e
as noites do Hospital. Às vezes é possível percorrer as ruas sem encontrar viva alma.
Embora aquele universo que buscamos seja tão diferente deste que hoje se apresenta,
conviver com os “participantes” nos ajudou a “imaginar melhor” o que era aquele lugar há 50
anos. Algumas vezes temos a impressão de que o passado emerge com toda sua força naquele
lugar e não nos referimos somente às construções, às ruas e às praças que revelam a
tem um ritmo diferente. Os moradores falam de “colegas” que partiram há 30 anos, como se a
com “as pessoas de saúde”. Nós éramos os diferentes. Embora curados, na maioria das vezes
referiam-se a si mesmos como “nós os doentes”, identidade que lhes foi imposta durante toda
uma vida, difícil de ser rejeitada, ainda mais residindo na Instituição e carregando no corpo
marcas da doença. Não raro alguns se escondiam ao nosso olhar, talvez com medo de nosso
593
GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos...Op. Cit. p.8.
180
medo. As pessoas mais seqüeladas eram as mais arredias e solitárias. Algumas delas nunca
chegamos a ver.
Os participantes daquele universo, com quem convivemos, eram pessoas cujos sinais
período que o tratamento contra a doença era pouco eficaz, mas nada que os impossibilitaria
de ter uma vida “normal” fora do Leprosário, sem despertar nenhuma suspeita sob seu
diagnóstico pregresso.
Alguns passeiam fora do Hospital com freqüência, como o caso de Dona Telma, que
semanalmente vai a Porto Alegre na casa de uma amiga (cuja mãe esteve também internada
no Hospital), mas subsiste sempre com ela aquele medo de ser descoberta.594 Esta senhora
tem as mãos perfeitas, um símbolo de distinção entre os doentes, que na maioria dos casos
oferecê-las para o aperto, uma, duas, três vezes durante o mesmo encontro. Do mesmo modo
que aqueles que as tinham estragadas, como costumam dizer, procuram escondê-las do olhar
do outro.
aparência. Os mais mutilados são vistos pelo grupo, na maioria dos casos, como desleixados,
Esta observação foi possível durante o convívio na Instituição, principalmente a partir da fala
de uma moradora.
594
E.M. de C. Entrevista concedida a Juliane Conceição Primon Serres. Hospital Colônia Itapuã, 15 de outubro
de 2003.
181
Dona Anita nunca quis que suas palavras fossem gravadas, disse que não sabia falar
ao gravador e que tinha pouco a contar sobre sua vida. No entanto, foi nas conversas
informais com ela que muitos aspectos da “cultura dos internados” foram revelados.595
meigo como poucos. Foi para o Leprosário ainda menina e passou sua vida lá. Ao contrário de
seu marido, um de nossos entrevistados, não gosta muito de falar, seu passado lhe causa
imensa tristeza. Com mãos e pés mutilados pela doença, não se sente bem na companhia de
estranhos, sempre pensa que está sendo observada. Dona Anita “optou” por viver à margem
da vida social do Hospital, não vai à Igreja, às festas, raramente sai de casa. Por muito tempo
insistia em dizer que não gostava de estar no “movimento” porque o barulho a deixava
aborrecida. Um dia confessou que não participava das reuniões sociais porque sentia-se
constrangida.
muitos internados iam às missas para rir dos “pépes”. Pausa, tratava-se de outro fenômeno.
“Pépes”, nos esclareceu, era como chamavam na Colônia as pessoas aleijadas, muitas vezes
motivo de riso e de escárnio. Ela se considerava uma “pépe”, portanto evitava o contato com
os demais moradores, exceto com aqueles que tinha intimidade. Por sua vez, dona Anita
595
A expressão “cultura dos internados” foi criada por Goffman para designar um sistema informal mais ou
menos organizado do qual participam os moradores de instituições totais. GOFFMAN, Erving. Manicômios,
Prisões e Conventos...Op. Cit.
596
Dona Anita não quis dar entrevista, entretanto autorizou que fossem divulgadas nossas conversas. Depois de
um encontro com ela partíamos para escrever tudo que fosse possível lembrar, como um caderno de campo.
182
perceber algumas diferenças, muitas vezes sutis, que compõem a cultura dos internados, entre
elas a distinção pela aparência. Esta distinção parece fundamental na construção das relações,
perceber que estes ganhos eram muito valorizados pelos internados. As próprias relações que
se constituíam no internamento, como as uniões entre os casais, por exemplo, passavam por
estes ganhos. Além de ter um companheiro, o internado que casasse tinha alguns benefícios,
como a moradia e um rancho mensal. Não precisaria mais morar em um pavilhão com mais
vinte e tantos internados, nem fazer as refeições no refeitório. Os casais, moradores das
O convívio com os moradores, não apenas com aqueles que nos deram entrevistas,
mas com os outros com quem nos relacionamos de modo menos “oficial”, nos ajudou a
pensar o Hospital e as relações de modo não tão homogêneo como à primeira vista.
Quando olhado de fora, de longe, com um olhar distraído ou “viciado” (de quem vê,
podemos pensar que os doentes viviam como “sonâmbulos” a obedecer ordens da direção.
Entretanto, lançamos um olhar sobre o mundo dos internados e esse nosso olhar busca a
diferença, a vida que surge e se desenvolve sempre forçando os limites impostos pela
Instituição.
Quando decidimos utilizar esta fala, procuramos D. Anita. As anotações foram lidas para ela conferir se o
conteúdo estava de acordo e pedimos sua autorização para utilização das informações.
597
GOFFMAN. Erving. Estigma. Op. Cit. cap.1 .
183
Conhecendo a vida de muitos internados observamos que os homens são capazes de (re)fazer
suas vidas sob circunstâncias adversas e percebemos que não há muita diferença entre o “fora
e o dentro”. Aquele microcosmo reproduz tanto quanto possível as relações e os valores que
conformismo, jogo de interesses, compaixão – e como todo sistema possui brechas, às vezes
598
Expressão tomada a Bertolli Filho quando estuda os caminhos percorridos pelos doentes de
tuberculose. BERTOLLI FILHO, Cláudio. A História Social da Tuberculose e do
Tuberculoso. Op. cit.
184
abertas as portas do isolamento. Entre os que ficaram, dispostos a falar têm poucos. A maioria
dos internados prefere que suas histórias se percam para sempre, gostariam que suas histórias
Entretanto, existem aqueles que querem ser ouvidos, como se falar de seu passado
fizesse parte do processo de “cura”. Walter Benjamim (1994) pergunta “se não seriam todas
as doenças curáveis se apenas se deixassem flutuar para bem longe – até a foz – na
correnteza da narração.”599
Todos os moradores-usuários do Hospital que nos deram entrevistas são pessoas que
a seu modo superaram o “trauma” causado pela doença e pela segregação. Eles conseguem
olhar para si mesmos e formular explicações e sentidos para suas vivências, mesmo que para
Esses “recursos” são usados pelos narradores na busca de estabelecer uma coerência
entrevistados. O acesso que temos a estas vivências ocorre através de suas lembranças,
599
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única (Obras Escolhidas II) 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.269.
600
MORAES, Marieta. História Oral: um inventário das diferenças. (?) p. 10. THOMSON, Alistair; FRISH
Michael; HAMILTON, Paula. Os debates sobre memória e História: alguns aspectos internacionais. In:
FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína. (orgs.) Usos e Abusos da História Oral. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
185
construídas ao longo dos anos, trazidas por suas falas, portanto, não temos acesso ao passado
A história oral revela menos sobre os eventos do que sobre os significados, o que não
implica que ela não tenha validade fatual, mas privilegia a subjetividade do expositor, o que
eles selecionaram para nos contar, a maneira como narram, e, principalmente, o papel que
atribuem a si mesmos na história que estão narrando é muito pessoal. Na história oral, o
narrador é empurrado para dentro da narrativa e se torna parte da história, ele é um das
personagens e o contar da história se torna parte da história que está sendo contada. 601
por nossa identidade pessoal, a memória gira em torno desta relação passado-presente e
Há uma necessidade de compor um passado com o qual possamos conviver, nesse sentido,
presente, seletividade da memória, distorções, que ao nosso ver não prejudicam o trabalho, ou
são “compensados” pela riqueza da fonte oral, realizamos catorze entrevistas, obedecendo o
modelo história de vida, das quais escolhemos duas para trabalharmos. A escolha não foi
fortuita.
Uma de nossas entrevistadas, a quem vamos chamar Dona Branca, além de ter uma
memória fantástica, é daquele tipo de pessoa que gosta de falar, mas apenas para aqueles que
ganham sua confiança, e isso é um caminho lento e árduo. Fomos várias vezes procurá-la sem
sucesso, às vezes dizia não estar se sentindo bem, estar indisposta, com sono ou cansada e
601
PORTELLI, Alessandro. Forma e Significado em História Oral. A pesquisa como experimento de igualdade.
Projeto História, São Paulo (14), fevereiro, 1997, p.31-37.
602
THOMSON, Alistair. Recompondo a Memória: Questões entre a História Oral e as memórias. Projeto
História, São Paulo (15), abril 1997, p.p.54-59.
186
pedia que passássemos em seu quarto outro dia. Quando estávamos quase desistindo, ela
aceitou dar a entrevista. Contrariando as “boas regras” da história oral, em uma tarde ela nos
Dona Branca é uma das moradoras mais antigas do Hospital, está entre os cem
primeiros pacientes transferidos do Partenon para o Itapuã, ela é uma referência entre os
internados, justamente porque ela conserva a memória “mais antiga” do grupo. De opiniões
fortes, entre todos os entrevistados, ela nos pareceu aquela que tem menos receio de dizer o
que pensa, talvez porque alimente a certeza de que dentro de pouco tempo vai morrer. Sua
entrevista, além de ser rica em informações factuais graças a sua capacidade de memória e de
inserção no mundo dos internados, é reveladora dos tipos de relações que se desenvolviam no
histórias em potencial, 603 estar diante de Dona Branca é compreender isto. Um dos aspectos
que mais nos fascinou em sua entrevista foram as pessoas que iam brotando na sua narrativa,
que passaram a ter vida a partir da sua fala. Entramos em contato com tantos internados que
não existem mais, que morreram, que deixaram o Hospital. Uma primeira leitura poderia
supor que ela nos falava tanto dos outros para evitar falar de si mesma, mas aos poucos fomos
percebendo que não era este o caso. Aquelas pessoas faziam parte de sua vida, aquele
homem forte, de fala mansa e pensada, tem uma auto-imagem bem construída. Como poucos,
conseguiu tirar “proveito” da situação de isolamento. Considerado por todos uma liderança,
seu Chico faz questão de participar de todas as atividades do Hospital, procurando garantir
603
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na História Oral.
Projeto História, São Paulo, (15), abril, 1997, p. 17.
187
que suas opiniões sejam ouvidas. A diferença entre a sua entrevista e a de Dona Branca é
bastante nítida, ele não estava apenas dando uma entrevista, mas falando para o público.
Nos primeiros contatos que tivemos com nosso entrevistado, ele explicitou que
nunca havia sofrido nenhum tipo de preconceito, sempre foi bem aceito pela comunidade de
fora do Hospital, o isolamento não tinha representado nenhuma grande mudança na sua vida,
era como se ele não tivesse passado pela experiência da segregação. Essa versão sempre era
colocada em xeque por sua mulher, que assistia às entrevistas; ela relembrava episódios que
Sua entrevista foi uma das mais laboriosas, não por ele não gostar de falar – gosta e
como! – mas em função da dificuldade de ir além dessa versão pronta de sua trajetória, de
aprofundar o relato que ele já contou dezenas de vezes para si mesmo e para os outros, do
qual sempre procurou excluir os elementos de conflito que pudessem colocar em risco sua
identidade atual.604
Seu Chico se reconhecia como personagem de sua história e sabia o que estávamos
fazendo, sabia que suas memórias seriam registradas e poderiam, no futuro, ser lidas por
outras pessoas, ele queria se apresentar da melhor forma possível. Às vezes, no meio da
A entrevista dele é, sob muitos aspectos, representativa. Seu Chico, como a maioria
dos entrevistados, passou por experiências comuns, muitas delas “traumáticas”, entretanto,
ambiente hospitalar, através de “frases-chaves” como: “foi melhor assim”, “aqui é a nossa
604
HALL, Michael M. História Oral: os riscos da inocência. In: O Direito à memória. Patrimônio Histórico e
cidadania. São Paulo: DHP, 1992.
188
casa”, “as irmãs eram muito boas para nós”, “havia muito respeito naquele tempo”, “como era
bom”.
a situação narrada.605 Mas, em geral, os entrevistados preferem evitar o nome “lepra” usando
“a doença”, “a nossa doença”, o que diminui o conflito entre a identidade dos internados e as
Um outro motivo da escolha da entrevista de seu Chico se deve ao fato de que ele
morou, com alta, alguns anos fora do Hospital e depois reinternou, vivenciando duas situações
Chico aconteceram com outros doentes que deixaram temporariamente a Instituição para
605
Pausas-chaves e frases-chaves seriam características presentes nas histórias de vida estudadas pela
pesquisadora Marie-Françoise Chanfrault-Duchet. FRASER, Ronald. História Oral, História Social. Historia
Social, n.º 17, otoño 1993, p.p. 131-139.
606
L.K. Entrevista concedida a Juliane Conceição Primon Serres. Hospital Colônia Itapuã, 15 de outubro de
2003. “Dona Branca”. A entrevista de Dona Branca neste aspecto se diferenciou das outras, ela fala “lepra” sem
a menor “ cerimônia”.
607
Estamos partindo do ponto de vista da Instituição. Por certo que a maneira como os sujeitos lidavam com a
identidade que o Leprosário tentava impor variava de um caso a outro, como bem destacou Goffman “quando o
indivíduo compreende pela primeira vez quem são aqueles que de agora em diante ele deve aceitar como seus
iguais, ele sentirá pelo menos uma certa ambivalência, porque estes serão não só pessoas nitidamente
estigmatizadas e, portanto, diferentes da pessoa normal que ele acredita ser, mas também poderão ter outros
atributos que, segundo a sua opinião, dificilmente podem ser associados a seu caso”. GOFFMAN, Erving.
Estigma. Notas sobre a Manipulação da Identidade deteriorada...Op. Cit. p. 46.
189
do estigma” quando um sujeito, ciente de sua condição estigmatizante, usa subterfúgios para
identificação, ou o doente esconde sua situação e tem que lidar com a manipulação de suas
informações pessoais.
constrangimentos e rejeição social. Entretanto, convém destacar que esta situação de contato
social com “não-doentes” geralmente se apresentava tensa, como relata uma senhora:
608
A identidade é uma construção social de certa maneira sempre em devir, no quadro de uma relação dialógica
entre o eu e o outro. Candau, Joël apud CATROGA, Fernando. Memória e História. PESAVENTO, Sandra
Jatahy. Fronteiras do Milênio. Porto Alegre. Editora Universidade, 2001, p. 50. No caso, a identidade do “não-
doente” é construída em relação a do doente.
609
Segundo Goffman, o estigmatizado pode encontrar-se diante de duas situações: uma, sua “característica
distintiva” já é conhecida, neste caso ele seria uma pessoa desacreditada; outra, quando sua “característica
distintiva” não é conhecida, neste caso ele seria uma pessoa desacreditável. Na primeira situação a pessoa
desacreditada tem que manipular as situações sociais difíceis, no segundo caso, a pessoa desacreditável tem que
manipular as informações para não se tornar desacreditada. GOFFMAN, Erving. Estigma. Op. Cit. p.p. 51-52
610
C.L. Entrevista concedida a Viviane Trindade Borges. Hospital Colônia Itapuã, 21 de março de 2001.-
CEDOPE/HCI.
190
marcadas de forma indelével, condenadas, se não a viver para sempre no Hospital, a esconder
das pessoas de seu convívio uma parte significativa de sua história. O tempo que conviveram
com a doença, para a grande maioria, foi relativamente curto em relação ao tempo que
viveram, entretanto, parece que não houve um antes ou um depois da doença. Temos a
impressão que só existiu a LEPRA e a organização dos destroços de antigas identidades que
Para acompanhar a trajetória desses sujeitos, objetivo que ora perseguimos, optamos
por trazer o texto da entrevista de forma integral, somente assim podemos acompanhar a
fragmentos das entrevistas, ora como exemplificadores de alguma situação, outras como base
para alguma análise. A opção pelo texto inteiro foi inspirada em grande parte pelo trabalho de
Ecléa Bosi (1994), “Memória e Sociedade”, onde a autora faz um estudo sobre a memória dos
Embora a autora não explicite seu procedimento com as entrevistas – no final dos
anos 70, quando o trabalho foi publicado, as discussões metodológicas sobre história oral
eram incipientes no Brasil – Ecléa apresenta ao leitor um “texto limpo”, uma narrativa direta
em primeira pessoa.
Esta forma de apresentar a entrevista não garante que o entrevistado fale por si,
como pode parecer à primeira vista. Ao contrário, o trabalho do pesquisador é ainda maior,
ele trabalha a entrevista para apresentá-la em forma de texto. E aqui temos um ponto a ser
discutido.
611
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembrança de Velhos. 3ªed., São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
191
ainda não foi encontrada uma solução satisfatória para a forma de transcrição.612 Entre os
historiadores que trabalham com história oral é praticamente consenso que a transcrição
implica mudanças e interpretações, uma recriação, pois nenhum sistema de escrita é capaz de
reproduzir o discurso com absoluta fidelidade. A escrita representa a linguagem por traços,
mas há outros elementos constituintes da linguagem que não podem ser reproduzidos na
A transcrição, portanto, vai além da passagem da fita para o papel, ela exige
A fonte oral trabalha com subjetividades, não estamos diante dos acontecimentos,
mas da interpretação que os sujeitos fazem destes acontecimentos, interpretação mutável pela
dinâmica de suas memória e identidades. Desse modo, ela pode ser considerada uma fonte
que já vem “trabalhada.” Não que as fontes escritas sejam mais objetivas (neutras!) e isentas
de interpretações, mas a diferença destas, a fonte oral tem “a priori um status de fonte”, ela
Mercedes Vilanova (1997) diz que não importa quem entrevistamos, sempre haverá
uns cinqüenta por cento nosso na fonte que ajudamos a criar.616 Com isso não quer dizer que o
pesquisador pode inventar o depoimento, tampouco ele pode “colocar palavras na boca do
612
JOUTARD, Philippe. El tratamiente del documento oral. Debats, nº 19, Valencia. Ed. Instiució Alfonsos el
Magnanim, Instituició Valenciana d’estudis i invertigació. S/d., p.72.
613
PORTELLI, Alessandro. Forma e Significado em História Oral. A pesquisa como experimento de igualdade.
Projeto História, São Paulo (14), fevereiro, 1997. TOURTER-BONAZZI, Chantal de. Arquivos Propostas
Metodológicas. Cap. 19, in: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína. (orgs.) Usos e Abusos da
História Oral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
614
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na História Oral.
Projeto História, São Paulo, (15), abril, 1997. Op. Cit.
615
VOLDMAN, Danièle. A invenção do depoimento oral. Cap. 20. in: FERREIRA, Marieta de Moraes e
AMADO, Janaína. (orgs.) Usos e Abusos da História Oral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1998.
616
Vilanova, Mercedes. La Historia sin adjetivos com fuentes orales y la historia del presente.... p. 32.
192
entrevistado”. Ele inventa a fonte, no sentido de que cria um material para pesquisa que antes
não existia.
A história oral oferece ao pesquisador uma certa margem de liberdade para trabalhar
com a fonte. Podemos utilizar fragmentos de entrevistas, recortando a fala dos entrevistados,
uma frase deslocada sempre carrega o risco de modificar o sentido que ganharia no conjunto
do texto. Do mesmo modo que a apresentação de um texto que foi concebido a partir de um
diálogo (perguntas e respostas), quando transformado em texto direto (apenas respostas), sofre
modificações, além das decorrentes da própria transcrição. O uso que se faz das entrevistas,
além de seguir algumas reflexões esboçadas por autores que trabalham com história oral,
colóquio, quem decide o que vai relatar é o narrador.”617 O entrevistado que determina o que
entrevistados nos interessavam, com isso pudemos acompanhar suas trajetórias mesmo antes
internamento, primeiro porque a maior parte do tempo nossos entrevistados viveram dentro da
Instituição, segundo porque o objetivo da pesquisa enfocava este período. As entrevistas não
617
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. Relatos Orais: do “indizível” ao “dizível”. Ciência e Cultura 39 (3), março,
1987.
193
adotado partiu da transcrição literal da entrevista, realizada logo após a gravação, no qual
palavras faladas em palavras escritas. Nesta fase, buscamos registrar não apenas o que o
Este tipo de registro possibilitou que pudéssemos perceber, por exemplo, a inflexão
separação dos filhos nas entrevistas com as mulheres era outra, mesmo que depois o
sentido, buscamos promover estas alterações para tornar a entrevista mais legível. Nesta fase
Tínhamos uma pauta de assuntos e de perguntas que iam sendo colocadas ao ritmo
discorrendo sobre o cotidiano. Em alguns casos isso não era possível, ou porque o
entrevistado não eram a mesma, fazendo com que algumas perguntas ou respostas
Um caso ilustrativo foi quando perguntamos para Dona Branca sobre os primeiros
dias de internamento e ela nos narrou sobre a cozinha do Hospital, sobre os pães que as irmãs
faziam, aparentemente ela “fugia” do assunto. Mas, uma análise na sua trajetória permite
194
perceber que ela havia passado por períodos de carestias derivados da falta de condições
clara nos casos que julgamos estritamente necessário, introduzimos a pergunta no próprio
texto, mas de modo geral isso não foi preciso. Apesar destas pequenas alterações que
promovemos no texto a fim de torná-lo mais compreensível, nosso trabalho não chegou a
O texto final, que ora apresentamos, procurou ser o mais fiel possível à fala dos
estabelecida pelo entrevistado. Como resultado, obtivemos um texto que às vezes fica num
“vai e vem”, onde determinados assuntos e épocas aparecem mais “freqüentados” que
outros.621Optamos, também, por não “enxugar” o texto, julgando que todos os eventos da vida
618
L.K. (Dona Branca).Entrevista concedida a Juliane Conceição Primon Serres. Hospital Colônia Itapuã, 15 de
outubro de 2003.
619
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 4ªed. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 232-240.
Neste método o pesquisador torna-se autor do texto à medida que ele recria a entrevista com a finalidade de
conferir clareza e força expressiva ao texto. A transcriação passaria por 3 etapas: 1) transcrição absoluta, onde as
palavras são mantidas em estado “bruto”; 2) textualização, onde são feitas algumas alterações como a retiradas
das perguntas e eliminação de erros gramaticais; 3) transcriação, que seria a forma final, onde a entrevista foi
recriada.
620
GATTAZ, André Castanheira. Lapidando a fala bruta: a textualização em História Oral. (Re) introduzindo a
História Oral no Brasil. MEIHY, José Carlos Sebe Bom.(org.). São Paulo, Ed. da USP, 1996, p.p. 133-140. No
processo de transcriação descrito pelo autor, o primeiro passo seria uma transcrição literal, depois uma primeira
textualização a partir da qual seria elaborado um índice classificando cada parágrafo com uma combinação de
letras e números, de acordo com uma lista pré-estabelecida representando os temas tratados nas entrevistas. Com
base neste índice, seria realizada uma nova textualização, onde seriam definidos os grupos temáticos e um
conseqüente enxugamento da entrevista.
621
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.10, 1992, p.
201. Apesar das características da memória, flutuante, mutável, o autor destaca que existem pontos
relativamente invariantes. Em entrevistas de história de vida muito longas, os entrevistados voltam várias vezes
aos mesmos acontecimentos, isto seria parte do trabalho de solidificação da memória, alguns destes elementos
passariam, com o tempo, a fazer parte da própria essência da pessoa. Neste sentido, julgamos improcedente fazer
“correções” na narrativa dos entrevistados, seria quase como fazer “correções” em suas memórias.
195
aprovaram sua publicação sem muitas modificações. Seu Chico foi mais “cuidadoso”,
retomando alguns pontos do texto para esclarecer melhor. Sugeriu que usássemos seu nome
verdadeiro, porque alguém tinha que se assumir como “portador” da hanseníase. Não fizemos
isto por questões legais, a Instituição tem uma política de preservação da identidade dos
internados. De qualquer modo, a atitude dele foi importante e esperamos que em sua
“autobiografia”, empreendimento que ora nosso entrevistado realiza, ele possa identificar-se.
Dona Branca aprovou o texto, apenas ressaltou que ficaram faltando mais coisas, que ela teria
muito mais para contar, que poderia ficar falando o resto da vida... Não temos dúvida disso,
Dona Branca
criado com minha avó materna, era para ele ter ido para o Amparo Santa Cruz, onde ficavam
os filhos de leprosos. Lá no Amparo, as crianças estudavam, tinham irmãos que davam aula
para eles, saiam formados e podiam se empregar na rua. Mas a Vó não quis que ele fosse, ela
quis criá-lo. Quando eu e meus pais fomos para o outro Leprosário, deixamos o Cléo com a
A nossa doença, sabe como foi? Quando meu irmão nasceu eu tinha 3 anos e meio,
ele é de 2 de junho, no parto a Mãe ficou doente porque a parteira deixou um pedaço da
placenta na barriga dela. O Cléo foi criado guacho, não podia mamar por causa da febre da
mãe. Imagina, naquele tempo não tinha penicilina nem nada. O médico que cuidava dela era
alemão da Alemanha, ele foi muito judiado, “Shinder” era o sobrenome, ele foi muito judiado
no tempo da última guerra, botaram ele em uma ilha, onde ele tinha que trabalhar, ele foi
Depois dessa febre apareceu uma mancha na Mãe, e no Pai começou nos olhos, em
todos os médicos que eles foram, até em Porto Alegre e por tudo, todos perguntaram se
alguma vez ela não tinha tido uma febre muito forte e ela contou que quando ganhou meu
irmão, a parteira deixou a placenta... não sei como a Mãe se salvou. Esse Dr. Shinder disse
que a única coisa que ela podia fazer era colocar bolsa de gelo na barriga e gelo, da onde
naquele tempo! Tinha que vir gelo de Porto Alegre, não tinha nada aquele tempo, não tinha
Meu irmão nasceu depois de mim, eu tinha 3 anos, e ali foi tudo, nós gastamos o que
podíamos e o que não podíamos e foi aquela coisa, assim começou a doença, eu peguei e o
Cléo não, eu não tinha nada, nada, só umas manchinhas assim nas minhas coxas arroxeadas,
Depois esse mesmo médico atendia o Pai e a Mãe meio escondido para ninguém
saber que eles tinham a lepra, ele fazia injeção neles. Eu e o meu irmão saímos de casa, eu fui
para a avó paterna, e o meu irmão foi nessa avó materna que criou ele. O médico disse que era
melhor tirar as crianças de casa, foi a pior coisa para a minha mãe. No sábado a minha tia
levava o meu irmão lá para a mãe ver ele, e eu fiquei na colônia em Ivoti. Moramos com os
Esse Dr. Shinder fez tratamento na Mãe e no Pai. Mandou buscar injeção lá da
Alemanha, “Camistrol”, não tinha aqui, só na Alemanha, era um tratamento bom, depois de
um tempo esse médico disse para minha mãe que podia buscar os filhos que ela e o Pai
estavam curados. Passou 5 anos e a doença apareceu na mãe de novo, ela começou a perder a
força das mãos, ela não devia ter parado o tratamento. Era “Camestrol” davam em
comprimidos e injeção, eles faziam injeção, foi nesse tempo que acharam melhor tirar as
crianças de casa, depois voltamos, mas vou lhe dizer, a coisa mais triste...
197
Então, no Sábado, a minha tia, irmã mais velha da Mãe levava o meu irmão para a
Mãe, ela podia ver o Cléo mas não podia pegar assim, a Mãe dizia que foi muito triste para
ela. Eu não fiquei muito tempo lá na minha outra avó e assim foi indo, no fim tivemos que
vender nossa casa, fomos morar com um tio meu e viver do aluguel da casa, depois nós
Para fazer injeção, esse Dr. Shinder nem cobrava, ele foi muito judiado no tempo da
última guerra. E depois, sabe o que esse médico fez? Tinha o pai dele que também morava em
Novo Hamburgo, médico também, da Alemanha. Ele chamou o pai dele e mostrou as
manchas da Mãe e o pai dele logo conheceu que era lepra, ele não sabia bem ao certo, mas
chamou o pai dele e mostrou a mancha da Mãe, é isso aí mesmo, conheceu logo. Ele fazia
injeção na Mãe e no Pai, ele dizia assim... ele era tão bom para eles... ele dizia para eles irem
pelos fundos para fazer injeção, para os outros não desconfiar, não entravam pela frente da
casa dele, onde dava consulta, eles iam pelos fundos, ele nem cobrava, tinham medo que as
Alemanha, ele não cobrava nada, nada... como é que ia cobrar se nós não tínhamos nada?!
Eu cheguei a fazer umas injeções, depois que reapareceu a doença na Mãe, fiz umas
injeções daquelas mesmas que sobraram da Mãe e do Pai, até inflamou uma no braço da Mãe
e em mim inflamou uma na nádega, pois estavam vencidas, o médico aplicava no Pai e na
Mãe, em mim quem aplicava era uma enfermeira que ele tinha, me parece, faz tantos anos...
Esse médico foi judiado por causa da guerra, não podia falar alemão, levaram ele
para uma Ilha, não sei como era o nome, Ilha das Flores, das Cobras, parece que era no Rio,
levaram ele para uma Ilha onde tinha que trabalhar no pesado, e quando ele saiu de lá, até o
diploma tiraram dele; quando ele saiu de lá começou a beber, beber até morrer, até o diploma
tiraram dele.
198
Nós fomos morar com um tio meu, alugamos nossa casinha e depois fomos para o
Partenon. O Pai foi antes, fomos por causa da prefeitura de Novo Hamburgo. Lá no Partenon
as casas eram particulares, quem podia tinha que fazer a casa, a nossa foi um tio da Mãe que
fez. Lá neste Leprosário tinha um pavilhão que foi a mãe do Oswaldo Aranha que fez, se
chamava, Luizinha, eles fizeram uma placa com o nome dela, e colocaram na porta, todos os
Mas nós sofremos tanto, sabe o que tinha lá, como se chamam...percevejos. Nossa
senhora, entravam nas ripinhas da madeira para dentro, mas vou lhe dizer, nós ficávamos
isolados lá no hospital, não podíamos sair. As visitas vinham quintas e domingos, as visitas
naquele tempo podiam chegar perto, o diretor mandou fazer uma casinha para receber as
Quem nos mandou para lá foi um médico que ia em todos os Estados, em todos os
lugares, Dr. Escobar, ele vinha assim com a agulha e fincava na gente, enfiou a agulha assim
para dentro da pele e eu nem sentia. Ele fazia exames em todos os lugares, por todo Novo
Hamburgo, ele ia nas casas, lá em casa ele foi, de lá nós fomos para o Partenon. O Pai foi
primeiro, nossa casinha não estava pronta, casinha pequena, de duas peças. No Partenon,
pavilhão vazio não tinha, estava tudo cheio, até na capelinha tinha gente, todos com esta
doença. Quando tinha missa tinham que tirar as camas todas para fora, uma vez por mês o
padre ia lá, tinha que tirar as camas para fora para rezar a missa, era uma capelinha pequena.
Naquele hospital não tinha cerca, nós íamos até lá em cima, digo lá em cima porque
tinha uma subida até o sanatório. Nós caminhávamos depois do jantar; nos fundos tinha um
riacho, não era muito vigiado, tinha dois enfermeiros, um enfermeiro e uma enfermeira. Tinha
o Dr. Raul di Primio, este tinha até uma afiliada lá, uma doente que ele ficou padrinho, ele
batizou, não sei se ela era protestante ou não era batizada, ele foi bom para nós, esse foi um
dos que fundou aquele hospital. Tinha o Dr. Raul, o Dr. Xavier e o Dr. Bonifácio, esse três
199
que eram leprólogos. Nos domingos e nos dias de Natal eles iam lá com a gente, com as irmãs
da Santa Casa, levavam cada presente para nós, cada pacote de fazenda que as irmãs pediam
nas lojas, como eram boas as irmãs para nós, da Santa Casa, ali tinha não sei quantas irmãs.
Quando foi inaugurado aqui já tinham as irmãs, 11 de maio de 1940 foi inaugurado e
2 de junho nós viemos, a primeira turma, viemos na camioneta, não podiam vir todos de uma
vez, eram tantos doentes...uma velhinha vinha deitada, ela estava quebrada, tinha caído, ela
tinha que ficar deitada na maca, o Dr. até escolheu a minha mãe para cuidar dela durante a
viagem e o Pai era o único homem entre as mulheres, ele passou muito mal na viagem, ele
Nós sabíamos onde era o hospital, porque um tempo antes o Dr. Pessoa Mendes
arrumou uma turma para vir para conhecer, até eu fui escolhida. Fizemos um piquenique ali
na casa das irmãs. Nós trouxemos coisas para comer, isso foi uns meses antes de nós virmos
para cá, viemos de manhã cedo e de tardezinha saímos daqui, estava querendo escurecer,
viemos conhecer esse lugar, veio uma camioneta cheia, ele escolheu e nos trouxe aqui. Depois
Mas a viagem para cá eu nunca me esqueço, esta que nós viemos definitivos. Saiu
uma ambulância, essa com a vovózinha, ela era da Itália, ela era italiana mesmo, falava pouco
brasileiro, mas coitadinha, uns dias antes de vir para cá ela se quebrou, vieram duas
camionetes e essa ambulância que trouxe a vovózinha, veio uma turma de doentes na frente à
esquerda e à direita, à esquerda e à direita não tinha uma casa, só campo, campo, campo,
campo...
Nós saímos de lá era 2h30min, era chão batido, chegamos aqui era quase 6 horas, as
irmãs já sabiam, elas estavam nos esperando. Quando cheguei aqui, estava contente por causa
das irmãs, estava pronto o jantar e tudo, nós ganhamos uma casa, o primeiro casal a ganhar
200
casa foi meus pais, primeiro era assim a numeração 1ª, 2ª, 3ª, 4ª, a 5ª, número cinco era a
Fomos morar juntos os 3, o Pai e a Mãe ficaram no quarto da frente e eu nos fundos.
Barbaridade, nunca me esqueço dessa viagem. Meu Deus do céu, quando nós entramos no
primeiro portão lá em cima, as mulheres... eu era criança tinha 14 anos, todos começaram a
chorar... cada um pensou uma coisa de certo, quem sabe Deus quando nós vamos sair daqui...
mas depois com as irmãs estava muito bom. Quando eu vim para cá não pensava nada, fiquei
contente porque lá eram as casa de madeira com esses bichos, os percevejos, que coisa
horrorosa.
Alguns dos nossos antigos vizinhos souberam para onde nós viemos, outros não. A
mãe não queria mais ficar em Novo Hamburgo não, lá não, não, não. Não queriam vender
mais nada para nós, de medo de pegar o dinheiro, de pegar a doença, já pensou uma coisa
isso foi a pior coisa, porque a Mãe era muito católica, mas meu Deus do céu... o padre
proibiu. Um dia a Mãe disse para meus avós: - Pelo menos digam para o padre trazer a santa
comunhão; nós morávamos perto dos meus avós. Eles falaram para o padre e ele disse que
levaria às nove da manhã, naquele tempo os padres andavam a cavalo. A Mãe aprontou a
salinha e rezou bastante antes da comunhão, dali a pouco ele chegou a cavalo, em cima da
batina tinha um guarda pó, ele não tirou o guarda pó, eu acho que ele tinha medo...
Ele tirou da pasta o cálice e tudo, e nós já havíamos rezado bastante antes da
comunhão. O cálice estava enrolado num jornal antigo, me lembro tão bem, não era o Correio
do Povo, era o Diário de Notícias. Ele desenrolou o cálice e abriu todo o jornal na mesa e não
rezou um pai-nosso, nada, nada, nem nos cumprimentou, chegou deu a comunhão, deixou o
201
jornal em cima da mesa e se mandou. O guarda pó ele não tirou. O hábito dele era preto, dos
Um dia o Pai estava tão desesperado que foi lá na casa desse padre. Nós não
tínhamos nada para comer, nada, nada, era só aquele aluguelzinho da casa e aí o Pai disse que
ia lá no padre ver o que ele iria dizer. Ele foi na casa paroquial do lado, bateu, e contou, o Pai
se abriu com ele. O Pai disse que tinha lepra, assim, assim, e não tinha mais nada para comer.
Sabe qual foi o consolo que ele deu? Sabe o que ele disse? Nada..., fez o sinal da cruz na em
cima da cabeça do Pai e disse que essa doença não tinha cura. Foi só o que ele disse, depois
Desde que a Mãe casou ela comprava do mesmo armazém, o sobrenome era
“Knipel”. As sextas-feiras ele vinha, tomava nota do que a Mãe queria e aos sábados ele trazia
a cavalo. Um dia, quando nós não morávamos mais na nossa casa, estávamos morando perto
da Vó, um dia ele chegou, cada fim do mês que a Mãe pagava ela dava um pacotão de balas
para nós, e daí um dia ele chegou e disse: - Olha dona Martina, não posso vender nada para
vocês. Aí a Mãe disse: - Mas porque? Eu sempre paguei todos os meses. Não, ele disse, é por
causa dos meus fregueses, tão sabendo que vocês estão doentes e não querem comprar mais
nada de mim. E corriam as lágrimas dos olhos do homem, não querem mais comprar por
causa do dinheiro, por mim eu venderia sempre para vocês, mas os fregueses estão se
retirando por causa de vocês... Tu já pensou? Mas ele chorou...., o homem chorou, desde que
a mãe casou sempre daquele mesmo armazém, comprando sempre dele, a Mãe coitada disse:
Está bem então, vou pagar o que estou devendo e não quero prejudicar o senhor. Nós não
Minha avó morava meio perto, ela comprava as coisas e levava lá para nós. A Vó
coitada a cada dois anos tinha um filho, a Mãe era a mais velha, eram 4 filhas mulheres e 6
homens, ela ajudava um pouquinho com o que podia, ela fazia pão, ela nos dava leite, tinha
202
umas vaquinhas, ela tinha que comprar as coisas para dar para nós, desconfiavam do dinheiro.
Até meu avô trabalhava num açougue, onde matavam só porcos para fazer morcela, essas
coisas; até do meu avô eles tinham medo, não queriam dar mais serviço para meu avô, já
imaginou como eles tinham medo dessa doença. Eu já lhe contei que me chamavam até de
quintas, ou quintas e domingos eram as visitas, a Mãe pediu para eu ir lá na casa da mulher
dele que tinha ido visitá-lo para saber notícias do meu Pai que já estava internado, eles tinham
armazém e tiveram que fechar o armazém e tudo, ninguém comprava mais nada deles, daí a
mãe disse: - Tu vai lá com teu tio Oswaldo. Ele era três meses mais velho do que eu, então
nós fomos lá, ele tinha 10 anos eu acho, e nós fomos para saber notícias do Pai. Estava
querendo escurecer e a mulher não vinha, não vinha. Dissemos: vamos para casa, e na beira
da estrada tinha um campo cheio de maricá, ela floresce no verão, eu ia indo com meu tio para
casa, íamos para casa porque a mulher não apareceu. Aí, de repente, uma pedra em cima de
mim, Ô leprosa! e se escondeu atrás daquele maricá, uma árvore grossa, não vimos nada, ele
se escondeu. De repente outra pedra, Ô leprosa! daí ele espiou assim, era um rapaz de 15
anos, eu reconheci, era o irmão de uma íntima amiga minha, aliás, primo dela.
Não se via nada em mim, só que andava o boato que nós éramos doentes, vou te
dizer, tratamos de sair de lá. O Pai já tinha saído, fomos para o Partenon, para a nossa casinha
lá que um tio da Mãe mandou fazer. Nos fomos para lá em 1938, 39 e em 40 nós viemos para
cá, 2 de junho, eu tinha 14 anos, lá quando internei lá tinha 13, ficamos um ano e pouco lá.
Aqui, vim morar com meus pais, mas tinha o internato das gurias. Depois vieram
umas irmãs doentes da nossa doença que cuidavam o internato das gurias e tinha um irmão
lassalista de Canoas, que cuidava dos guris. Como era bom aqui, tinha quase oitocentos
doentes e tinha uma irmã que cozinhava para todos esses doentes. Nas casinhas ganhavam
203
ranchos, nós ganhávamos rancho, era a irmã Sebastiana que cozinhava para todos, todos os
casais das casinhas ganhavam rancho, e que rancho, mas nem vencia comer tudo.
Quem podia, trabalhava. Havia poucos aposentados, todos davam um jeitinho. Tinha
sapataria, faziam sapato, tinha oficina, todos trabalhavam e quando vinha doente de fora as
mulheres iam perto da camionete para pegar roupas para lavar, não tinham ganho nenhum,
uma vez por semana vinha a camionete, iam lá no Partenon de lá eles vinham para cá,
primeiro faziam exames lá, no mesmo hospital que nós estávamos, e depois a camionete
Mais tarde vieram uns conhecidos nossos morar aqui. Até, ele faleceu agora de
câncer na bexiga. Ele internou com 6 anos e ficou até os 18, os pais estavam aí junto. Não faz
nem um mês que vieram me dizer que ele tinha falecido, ele casou com uma moça de saúde,
ele não tinha nada, o Geraldino, ele só tinha uma manchinha de nada, ela que desconfiou que
era doença, a mulher, e pediu para o médico para ele vir para cá.
Morei com meus pais até que a Mãe faleceu, então era obrigado a entregar a casa. A
casa era só para o casal, os filhos podiam morar nos fundos, mas foi só eu que morei com os
pais, as outras crianças foram morar com as irmãs, no internato Santa Inês. Minha mãe
faleceu de “albumina”, o sangue virou todo em água, moramos ali 17 anos, depois tivemos
que entregar a casinha. Tinham filas para as casas, vinham tantos casais, a primeira casa que
desocupava aquele casal ganhava. Quando a Mãe morreu, nós viemos para o pavilhão, eu e o
Pai.
As irmãs ficaram muito contentes quando nós viemos, nós éramos católicos, a Mãe e
o Pai como rezavam, minha nossa... e a Mãe nunca ficou revoltada. Depois, eu ainda fiquei
cega e o Pai também não enxergava nada. A doença logo começou nos olhos do Pai e a Mãe
só tinha as manchas, mas nunca deu positivo, ela tinha o tipo nervosa pura como chamavam,
Eu fiquei cega quando eu tinha 19 anos. Naquela foto ali em cima eu tinha 18, mas
eu sofri tanta dor nestes olhos, naquela época morava com a Mãe e o Pai. Depois a Mãe ainda
faleceu... Olha, eu fiquei doente, magra, seca, então um dia o nosso diretor me chamou, era o
Dr. Ari, lá de Pernambuco, onde não faz frio, ele estranhou muito o frio aqui, ele era noivo,
ele disse: - Branca, tu vai passear e tira essa roupa preta. Naquele tempo era luto, ele disse
que era para eu ficar lá com a minha avó, mas eu me arrependi tanto de ter ido, os meus tios
Para vim passear aqui, vinha ônibus nos domingos às oito horas; só nos domingos,
vinham às 8 e às 11 ia embora. Tinha cerca e cerca aí na frente, não podia ter contato, duas
cercas, de um lado os nossos guardas cuidavam, do outro lado os guardas de saúde, não podia
passar nada um para o outro. Os pacotes que as visitas traziam ficavam ali na enfermaria e
depois as irmãs entregavam para as pessoas. Às vezes passava alguma coisa, tinham uns
guardas muito bons, eles fingiam não ver. Quando queríamos escrever uma carta, nós
atirávamos nos pés das visitas, mas Deus o livre se alguém visse. As cartas tinham que passar
na estufa quando saiam. Ficávamos conversando na cerca, longe assim, mais ou menos meio
metro de distância, depois o Dr. Mangeon mandou fazer um abrigo, pois ficavam assim, no
Nos primeiros dias, quando vim para cá, não tinha aquele portal “ Nós não
caminhamos sós”, colocaram depois. As irmãs eram muito boas para nós, que comida boa
faziam, que pães bons e sabe quantos tinham na cozinha no tempo das irmãs? Era essa irmã
Sebastiana, agora esse mês vai fazer um ano que ela é falecida, ela morreu lá em Santa Cruz,
ela era uma irmã bem alta, na cozinha tinha um fogão à lenha enorme, era a irmã, duas moças
e um homem, para cozinhar para toda essa gente, e férias nada, que férias, e hoje quantos têm
Depois que a Mãe faleceu eu fui morar com um casal em uma outra casa porque
quando ela estava morrendo ela falava muito em uma tal de Aldinha, Alda, ela achava que a
Mãe queria pedir para ela me cuidar, a Mãe não sabia para quem que ela ia me dar, no fim ela
me entregou para a irmã Élia. Ela dizia: - O Cléo está bem, está lá com a avó. Ela falou até o
fim da vida dela, o Pai ia no pavilhão dos homens, era o pavilhão dez, ficaria muito bem. O
pavilhão era cuidado por uma irmã e duas moças, elas eram doentes, a irmã não, a irmã se
chamava Maria, era da Alemanha, cuidou muito bem os velhinhos, no fim não deu mais,
estava muito velhinha e um dia ela soube que iam levar ela daqui lá para São Leopoldo, todas
as irmãs estão enterradas lá, daí ela se escondeu embaixo da cama, não queria sair daqui.
Ela contava coisas da guerra barbaridade, ela passou a primeira guerra cuidando dos
doentes, dos feridos lá na guerra. Depois, na última guerra nós já estávamos aqui, durante a
segunda guerra quem tinha rádio, quem escutava alemão tiravam o rádio, o diretor mandou,
não podia escutar nada da Alemanha, nenhum noticiário, tiravam o rádio, tinham muitos
descendentes de alemães aqui dentro, mas o nosso diretor era francês, Mangeon, Gilberto
Mangeon, nosso padrezinho também era francês, esse irmão lassalista que cuidava os guris
Eu fiquei com essa tal de Alda, ela era muito relaxada. Um dia uma irmã doente
disse: - Branca, tu não pode ficar aqui. Ela tinha um papagaio que botava no meu quarto,
aquela coisa azeda comida e tudo, isso faz mal para ti, Branca! Ela disse que ia dar um jeito,
que eu tinha que sair de lá, mas não disse perto dela, não tinha capricho. Aí arrumaram uma
senhora para cuidar de mim, a dona Velma, ela até foi minha madrinha de casamento. Ela era
enfermeira, todos os enfermeiros aqui dentro eram doentes, a irmã Élia que ensinava, parteiras
Quando nasciam os nenéns, ali onde é nossa copa da enfermaria era a sala de
engravidava aqui dentro, a irmã já deixava tudo pronto. Do lado de lá ficava o berçinho, tinha
uma moça que cuidava do nenén durante toda noite, dava um banho nele e trazia vestidinho e
Amparo Santa Cruz, só traziam aqui para visitar e de longe, bem longe e quando era
pequinininho não traziam, depois de mocinho estudava tirava um curso, podia sair de lá e se
empregar em Porto Alegre. Os partos eram feitos pela irmã Élia e essas duas enfermeiras que
ela ensinou. Todos doentes, todos doentes, enfermeiros não tinham de saúde, só as irmãs, só
Então eu fui morar com a dona Velma até eu casar. Casei aqui ceguinha, este rapaz
gostava de mim quando eu era perfeita, ele era de Santa Cruz. Ele sempre, sempre dizia que
gostava de mim, eu ia nos bailes, mas ele não podia ir porque tinha um pé machucado, quando
ele dançava um pouco sangrava. Até, depois ele perdeu a perna abaixo do joelho, tiveram que
cortar. Eu contei para a dona Velma que ele gostava muito de mim, mas eu não queria namoro
firme.
Fazia sete anos e meio que ele estava fora, morando com um amigo dele. Naquele
tempo vinha um médico do Rio, fazia exame e se o exame dava bom tinha que ir embora, ele
não tinha onde morar, os pais dele já eram falecidos. Um amigo dele daqui ofereceu a casa
para ele, era lá para a serra, nos matos, longe, ele foi lá no amigo dele. E um dia, chegou a
dona Velma, que era enfermeira, naquele tempo eles davam consulta cedo, os médicos
moravam aqui, lá naquele sobrado onde é a creche, os diretores eram obrigados a morar aqui,
um dia a dona Velma chegou lá na janela do meu quarto, ela bateu assim e disse: - Branca, tu
nem sabe quem reinternou aqui... sete anos e meio parece que ele estava lá fora... ele logo
perguntou por ti. Eu disse: - Mas quem será? Ela disse: - O Valmor. Meu Deus do céu, depois
de tantos anos ele voltou... teve que voltar por causa da perna, ele baixou a enfermaria. A
dona Velma disse que qualquer dia ia me levar para visitá-lo, eu disse que não queria saber,
207
ela disse que ia me levar. Um dia ela me arrumou e eu fui lá conversar com ele, ficou tempo
na enfermaria e depois o irmão dele deu uma perna mecânica de presente para ele.
Eu gostava dele como amigo. Antes eu tinha outro namorado, se chamava Arlo,
namorei ele um ano, ele era muito miserável, pão-duro, nunca me dava presente, eu não
gostava dele. Freqüentava a nossa casa, aos sábados de noite e domingos ele ia lá em casa.
Um dia eu desmanchei o namoro no baile, a Mãe depois me xingou, disse que eu devia ter
desmanchado na nossa casa, eu estava vendo que estava ficando cega, o baile era ali no
refeitório, não existia lá o Cassino, foram os doentes que construíram o Cassino, tinha olaria
Daí, no baile ele me convidou para ir na mesa. Eu fui e disse: - Hoje eu vou
desmanchar o namoro. Estava ficando cega, não dava. Aí ele mandou trazer uma bebida e
coisa e nós conversamos, daí disse para ele: - Olha Arlo, vamos desmanchar meu namoro.
- Mas porque Branca? - Eu acho que eu vou ficar cega e não vai dar. Daí ele ficou tão
chateado, ele me pegou na mão e disse assim: - Mas porque Branca? - Eu vou ficar cega e
coisa assim. Ele pegou na minha mão e disse: Olha, nem que tu fique em cima de uma cama,
eu quero casar contigo. Mas eu disse não, eu não quero mais. Eu sai do baile ele não dançou
Depois reencontrei o Valmor quando ele voltou, antes dele ir embora, quando ele se
despediu lá de casa eu já não enxergava, então ele pediu uma foto minha para a mãe, era essa
ali do leque, só muito menor, então a Mãe deu para ele. Enquanto ele esteve lá fora ele sempre
tinha a foto na cabeceira, aquela foto minha, sete anos e meio, ele voltou, ele pediu para o Pai
para casar comigo e o Pai negou três vezes, esse caso até é engraçado.
Ele foi pedir para o Pai dar licença para me namorar e o Pai negou três vezes. Dizia:
- Não, mas vocês vão passar trabalho, a Branca não enxerga. Ele tinha razão. O Valmor não
era aposentado nada. Como é que vocês vão viver? aí a dona Velma, essa que foi minha
208
companheira de quarto e depois minha madrinha de casamento, daí ela disse: - Branca, ela
varria a Igreja, nós íamos juntas, eu e uma outra guria, ela varria a Igreja porque ela era muito
católica, lá na Igreja tinha a Santa Rita, a dona Velma disse: - Branca nós vamos fazer uma
novena para Santa Rita para o teu Pai dar licença para ti casar.
A coisa mais engraçada, começamos a novena, essa Santa Rita foi uma promessa que
uma senhora fez, essa Santinha depois sumiu da Igreja. Começamos a novena, 9 dias para a
Santa Rita pedindo para o Pai me deixar casar. Por um lado eu queria, eu pensava, nas
casinhas a gente ganhava tudo... mas eu não ganhei. Primeiro fiquei morando no pavilhão,
tinha muita gente que queria casa, três vezes ele pediu, depois disse que ia desistir, meu Pai
para a Santa, o Pai estava esperando a dona Velma que dava as fichas para a consulta, o Pai
chamou a dona Velma, - A senhora vem cá, diz para a Branca que ela pode casar, no 5º dia
da novena! Então ela voltou correndo lá no meu quarto, no pavilhão, aquele defronte o 10,
que era das senhoras, ela foi lá me dizer: - Olha o teu pai deixou! Nem tínhamos terminado a
Meu casamento estava bonito, foi lá na Igreja. Depois fizemos uma festinha lá no
pavilhão, não foi grande coisa, nós não tínhamos nada, só uma janta com café, salgados e
doces. Ah, antes tinha que falar com o diretor, ele é que dava licenças. O Dr. Ari, um morenão
bonito, já está morto também, mas então o Valmor foi lá, tinha que pedir licença para o
diretor para namorar, ele foi lá pedir e o diretor disse que me queria muito bem. - Ela não tem
mais Mãe, disse, tem só o Pai que também não enxerga. E eu não quero que tu judie dela, se
eu souber que tu judiou dela, não sai casamento. Eu casei, na Igreja e no civil, ele já era
católico, quando cortaram a perna dele aqui, ele quis ficar católico, por causa das irmãs, ele e
Fomos para o pavilhão, não tinha jeito, tinha uma fila para ir para as casas, faleceu
um doente que morava em uma casinha, mas tinham três casais na minha frente. O Valmor foi
falar com o diretor, não podíamos fazer nada, tinham três casais na nossa frente. O Dr. Ari
disse que ele podia tudo, o Valmor disse que não queria casa porque tinham esses na nossa
frente, mas o Dr. disse: - Não, com o casal de velhinhos eu já falei, eles não querem casa, dos
outros dois casais, um deles tem uma mulher que é muito relaxada, eles não vão ganhar casa.
O Dr. fazia as consultas de manhã depois saia para ver a limpeza das casas, ele ia em todas as
casas todos os dias, então ele disse que um dia ele foi no quarto dessa mulher e não gostou,
era dez e meia, onze horas e tinha um pinico em baixo da cama com xixi.
Fomos para o pavilhão doze, ganhamos um quarto lá, depois desocupou a casinha e
nós fomos para lá. Fiquei 21 anos casada, depois ele ficou mal e eu tive que vir com ele aqui
para a enfermaria. Nesse quarto aqui do lado ele morreu, com câncer no esôfago, de tanto
fumar. Meu casamento foi muito bonito, mas triste porque não tinha a minha Mãe, os anos
que ficamos casados foram muito bons, ele foi muito bom para mim, depois ele se aposentou,
até a roupa ele lavava e passava. Eu nunca tive alta, ele saiu, mas depois que voltou não saiu
Nós nunca saímos lá fora nem para passear, eu só fui aquela vez que a Mãe faleceu,
que o diretor mandou eu ir passear um pouco lá com minha Vó, mas eu não devia ter ido,
meus tios choravam, eu saí de lá perfeita, depois não enxergava, eles não se conformavam que
eu não enxergava. Fiquei um mês lá, logo no princípio eu me conformava em não enxergar,
eu tinha a Mãe e tudo, mas agora, cada vez mais velha, cada vez mais revoltada, agora não me
Primeiro ele queria muito uma filha. Ficava tão triste, todo mês ele perguntava se eu
não estava grávida, uma vez atrasou 8 dias a minha menstruação, 8 dias passou do prazo, ele
ficou tão faceiro, ele dizia, - “Miúda”, ele me chamava de “Miúda”, tu está grávida. Eu quero
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uma menina, os guris são muito marotos. Eu também queria, a guria a gente cria como quer.
Se nós tivéssemos um filho ele não iria para o Amparo, nós íamos dar para a irmã dele de
Santa Cruz, ela não segurava os filhos que ela tinha, ela perdia, ela tinha o útero infantil, era
uma moça tão bonita, ela ficava grávida mas perdia, ia até 4 meses e perdia, depois ela se
matou.
Um dia o marido dela veio para casa, ele era viajante, eles jantaram e se deitaram, de
repente ela ouviu um ronco tão engraçado, acendeu a luz e o marido dela estava morrendo, ela
ficou bem louca... sabe o que ela começou a fazer? Dizia que não era para morar ninguém
com ela, se chaveava em casa às seis horas e começava a beber, foi assim até morrer. Não se
conformou com a morte do marido, o sangue dela virou todo em água, não queria ninguém
que morasse com ela, tinha um marido muito bom, vou lhe dizer.
Quando meu marido morreu eu disse para a senhora madre que eu ia ficar morando
na enfermaria, porque para onde é que eu iria, o meu lugar era aqui, e a madre disse: - Aí não,
aqui, não é lugar de morar. Então fui morar lá no 10, ali na esquina, era de mulher. Essa que
me cuidou até o fim da vida dela, essa senhora que perdeu as duas pernas, a dona Dilda, ela
morava no pavilhão 10, ela era a chefe do pavilhão, ela limpava, queria que visse aquele
pavilhão, aquilo brilhava. Em outubro ela começava a fazer limpeza, as camas todas para a
rua, olha que ela era caprichosa, barbaridade, depois ela veio na enfermaria perdeu a perna, eu
tinha esperança que ela voltasse para o pavilhão, mas um dia a madre disse: - Branca tu tem
que trazer tuas coisinhas que a Dilda não vai mais para o pavilhão.
Essa coitada sofreu... mas me cuidou até que ela não pode mais, Deus nos livre,
caprichosa, minha nossa, começou a enfeitar meu quarto lá embaixo, e eu dizia que não queria
mais nada, eu dava os vasos e os enfeites todos de presente e ela dizia: - Não dá Branca.
Vamos enfeitar teu quarto de novo bonitinho. Começou a fazer guardanapos de croché, eu
fiquei com ela até... Esses guardanapos aqui foi uma outra senhora que fez, ela morava lá
211
conosco, dona Almerinda, ela ganhou alta, às vezes ela vinha fazer visita, depois nunca mais
ela veio.
Muita gente ganhou alta. Naquele tempo tinha que ir embora, vinha um médico do
Rio, fazia exames, se dava bom tinham que ir embora, uma vez foram 50 embora, nessa turma
o meu marido foi junto. Tinham os que fugiam, mas iam para a cadeia quando voltavam, tinha
cadeia bem lá embaixo perto do Cassino, cadeia mesmo, nossa até parece um sonho todas
essas coisas. Vê o que passei na minha vida, ainda bem que peguei marido bom. A primeira
vez que os doentes fugiam ganhavam 7 dias de cadeia, depois eram 15, depois até um mês.
Fugiam porque não ganhavam licença para passear, no começo não deixavam ninguém sair,
empurraram para dentro da camioneta, ele até perdeu o juízo depois. Ele se matou aqui
dentro, quem pegava era o médico, aquele que fazia exame em nós, em todo o Rio Grande
eles se meteram, buscavam parentes que tinham a doença, esse homem estava no campo
quando foi pego, pediu para se despedir da mulher ao menos, não deixaram. Um outro, esse
também perdeu o juízo, queimaram a casinha dele, não sei quem fez isso, acho que foram os
Meu marido mesmo, veio por conta dele, diz que de lá os doentes vinham em vagão
onde vinham os bichos, os bichos... No tempo do trem, traziam os cavalos, lá eles botavam os
leprosos, uns sentavam em cima da mala porque tinha sujeira dos animais. Lá de Santa Cruz
eles vinham assim, lá eles pegavam as pessoas desse jeito... Meu marido veio na frente, ele
sabia que tinha que vir naquele trem ali, ele estava fichado, aí ele veio na frente por conta
dele, nesse vagão vinham os doentes que eram mandados, nesse vagão sujo...Conheci um
casal e uma senhora que vieram assim, o Valmor veio antes, por conta, para evitar...muito
triste...
212
Eu ando muito revoltada com minha vida agora, eu não vou viver mais muito tempo,
não me sai mais da cabeça esse sofrimento. Agora, depois de velha, está me fazendo mal,
porque eu penso muito, lembro de tudo isso... mas aqui era muito bom no princípio, tinha
cinema três vezes por semana, teatro, baile, dois times de futebol, o Juventude azul e branco e
o União vermelho e branco. O nosso diretor que apitava o jogo, o Dr. Gilberto Mangeon. Não
podia entrar outros de saúde, só entrava ele e as irmãs, apenas no Natal vinham outras pessoas
de fora.
No Natal era muito bonito aqui, vinha o governador com a esposa e a secretária dela,
lá no refeitório tinha um pinheiro bonito e os presentes que nos ganhávamos das irmãs eram
muito bonitos! Uma vez, o governador era o Ernesto Dorneles e a sua mulher era a Fabíola....
eu sempre fui vestida pobrezinha, eles fizeram um círculo no refeitório, no centro ficava o
pinheirinho, de um lado as mulheres, do outro os homens, eles estavam ali dando os pacotes
que as irmãs já tinham feito e essa dona Fabíola tinha um pregador tão lindo. Ela sempre
olhava para mim e sorria, ali tinha uma turma de gurias todas bem arrumadas, a mais
pobrezinha era eu, de blusinha branca e de saia preta, e ela olhava para mim e sorria, de
repente ela tirou o broche dela e deu para a secretária me entregar, depois me roubaram o
broche, sumiu da minha casa, mas era tão bonito, todo com rosinhas, parecia uma louça, tinha
botõezinhos, muito bonito. Essa história esta escrita no livro das irmãs, não me diga!
Os pacotes vinham com tanta coisa dentro, tudo bem feito, uma vez o Dr. Mangeon
arrumou sombrinhas para todas as mulheres, os homens chapéus, ele ia nas lojas em Porto
Alegre pedir e ganhava, ele era muito sério, para ele rir era difícil, mas ele era muito bom, ele
gostava que nós nos divertíssemos, tinha bastante diversão. Tinham dois times, o Juventude
ganhou todas as taças, tinha lá no Cassino um armário com vidro na frente, ali estavam todas
as taças dentro. Pra onde foi isso eu não sei. Só os doentes jogavam, os de fora não, não
Lagoa, nós íamos para lá, ele se chamava Valdomiro, era de Santa Maria, ele até se casou
aqui. Naquele dia foram realizados três casamentos, a noiva dele foi vestida de branco e as
outras duas foram de cor de rosa, eu não achei bonito casar de cor de rosa, não, não, noiva tem
que ser de branco. Se precisava lenha tinha que pedir para ele, a lenha já vinha cortada,
entregavam nas casas, naquele tempo só tinha fogão à lenha, para tomar banho tinha que
Ele morreu muito cedo, barbaridade, começou assim com febre, e não sabiam o que
ele tinha, ele morava ali onde mora a Telma agora, depois nós moramos naquela casa,
começou com aquela febre e cada vez mais alta. Nós viemos visitá-lo aqui na enfermaria,
eram marcados os dias, não podia entrar a qualquer hora, eram as terças, quintas e domingos,
das 2 até ás 3, e se alguém estava mal para morrer, colocavam um quadro negro ali na frente
na entrada escrito, visita proibida, a gente já sabia que tinha alguém mal para morrer, não
deixavam entrar visitas. Só os enfermeiros entravam a qualquer hora na enfermaria, mas tinha
umas colchas tão bonitas nas camas, faziam colchas com saco de farinha de trigo, desfiavam e
com os fios faziam linha, nos lugares desfiados faziam um croché, eram as irmãs que faziam,
eram bonitas, essas elas guardavam para o Natal e dias de festa, durante a semana eram
Como estava dizendo, o prefeito cuidava a limpeza das ruas, as ruas eram saibradas,
parecia que eram calçadas, era tudo limpinho, todos os dias varriam e ninguém atirava nada
na rua, era tudo com respeito, obedeciam tudo, o que o Dr. Mangeon dizia nós fazíamos.
Tinham concursos de jardins, os mais bonitos eram premiados. O Dr. Mangeon passava nas
casas com uma comitiva formada pelo prefeito, o administrador, que também se chamava seu
Valdomiro, esse já estava aqui quando nós viemos, ele morava aqui com a mulher e duas
Quando morria alguém todos iam no cemitério, todos, colhiam flores para levar, os
parentes de fora não podiam entrar, mas aqui de dentro todos iam. Agora, no velório do seu
Toni, aquele senhor que morava aqui na enfermaria e também não enxergava, ele faleceu
domingo lá fora, às nove e meia da noite e segunda trouxeram e enterraram ele logo, diz que
Quase todos os doentes que vinham para cá tiveram que passar ali no Partenon. Meu
marido também era para vir num desses vagões que traziam animais, onde veio um casal e
uma senhora, e o meu marido veio antes para Porto Alegre, os doentes paravam ali no
Partenon, ali ficou um pavilhão para os doentes baixar e fazer os exames, nosso antigo
leprosário, se dava ruim eles vinham para cá, toda sexta vinha a camioneta de lá, trazia os
“novatos” como se dizia, os doentes novos. Quando chegava a camioneta as irmãs esperavam,
a irmã Maria era encarregada para dar quartos, os quartos eram cheios, com 3 camas, queriam
começar a colocar 4 camas, e eram todos os pavilhões só da nossa doença, cheio, cheio.
Tinha uma irmã que trabalhava na padaria, ela mesmo contou depois que tinha muito
medo de nós, o mais perto que ela vinha era da padaria até a cozinha, levar algum cesto com
pão, que era distribuído toda a manhã junto com o leite pela irmã Sebastiana. A cozinha era o
mais perto que esta irmã chegava de nós, se chamava irmã Áurea, e de repente a irmã Áurea
saiu da padaria, foi transferida, depois de anos não é que ela internou doente, foi então que ela
contou como tinha de medo de nós, o mais perto que ela chegava era da padaria até a cozinha,
e ficou doente.
Ela ficou cuidando dos velhinhos, no pavilhão 10, depois ela foi embora e morreu lá
fora, as outras irmãs não tinham nenhum medo, nunca, nunca, essa irmã Élia trabalhava sem
luva, mexia nas feridas, limpava tudo, a irmã Élia era da Alemanha também, ela faleceu com
35 anos parece, lá em São Leopoldo onde era o lugar delas, luva da onde?!
215
O Dr. Ari sentava em cima da cama dos doentes nas enfermarias e filava cigarros,
fumava muito, depois morreu de câncer no pulmão, pegava cigarro dos doentes e fumava,
jogava cartas com os doentes. Tinham uns funcionários do lado de lá, mas estes não entravam
Antes, então, eu contava do nosso prefeito, o seu Valdomiro que era de Santa Maria,
um dia ele começou com aquela dor de cabeça enjoada e foi indo que ele baixou a enfermaria,
terça-feira eu e a Mãe viemos visitá-lo, estava lendo jornal, sentado em cima da cama, e
quarta ele morreu, trouxeram ele aqui onde nasciam os nenéns para ele não ficar no meio dos
outros doentes com aquela febre. Não sabiam do que era aquela febre, depois que ele morreu,
o Dr. Mangeon, nosso diretor, disse assim: - Dona Marta, era o nome da mulher dele, que
depois acabou casando com outro aqui dentro, todos são falecidos. O Dr. perguntou se ela
deixava abrir a cabeça do marido, veio outro médico de Porto Alegre, um cirurgião, a mulher
deu licença, abriram a cabeça, ele tinha meningite, e não abriram mais o caixão, como devem
ter enfaixado aquela cabeça, meningite ele tinha, único caso, não sabiam de onde vinha a
febre. A lepra é difícil matar, ela judia, mas tem que ter outra doença para matar.
Meu pai faleceu com 84 anos, quando ele faleceu a Mãe já era falecida há 22 ou 23
anos, eles estão juntos no cemitério. Esses tempo mexeram no túmulo, da mãe só encontraram
a alça do caixão, mais nada, foi enterrada na terra, não nessas carneiras que fazem agora, eu
vou na terra também já está pronto lá, eu vou te dizer... o que eu já sofri, minha nossa senhora.
Além dessa nossa doença, eu tive uma outra, o Valmor ainda estava lá fora, não tinha
casado ainda. Comecei esse tratamento forte com Promim, então eu fiquei fraca do pulmão,
eu fiquei mal, mal, estavam esperando toda hora eu morrer, mas vou lhe dizer, a irmã Élia foi
lá nas casinhas ver a pressão de uma senhora que sofria da pressão alta, então eu disse para a
Mãe chamar a irmã Élia, ela era uma doutora, inteligente que vou te dizer, eu disse para a Mãe
marcar os exames, todos eram realizados aqui, tinha um laboratório, Dr. Jandir era o médico.
216
Eu custei, mas fui, depois ela veio e disse o resultado para a minha mãe, cochichava, eu só
ouvi que ela disse assim: - Tem que passar água fervendo em todas as colheres que ela usa...
A minha mãe não se revoltava com nada, nunca vi, dizia que tinha que ser assim,
fiquei couro e osso, muita tosse eu não tinha, eu fiz tratamento, barbaridade, acho que tomei
botão, e fortificante e vitamina, isso e aquilo, tomei tudo, injeção fazia de manhã e de tarde.
Depois comecei a engordar, fiquei gorda, não havia comida que chegasse, tinha mais uma
moça que era fraca do pulmão, aquela diz que já tinha até buraco no pulmão. Tivemos que ir
para fora fazer exames, o meu deu bom, o da moça não deu bom, depois ela morreu lá fora.
Quando o meu marido foi para se casar comigo, eu já estava forte, mas disseram
assim para o Valmor: - Tu vai casar com essa moça? Ela é tuberculosa. Ele disse: Ah, é? Ele
foi lá no Dr. Ari e disse: - Olha eu quero casar com a Branca. É verdade que ela é
tuberculosa? Quem é que disse isso? Me contaram por aí. Daí ele disse: - Olha Valmor, sobre
isso tu não precisa mais ter medo, ela está curada, eu tenho a ficha dela aqui na minha
gaveta, olha o raio x dela, ela está curada, por isso tu não precisa te preocupar. Até isso
disseram para ele... fazia tempo que eu já estava boa, também, Estreptomicina de manhã e de
Nós fomos para o Partenon fazer o exame, não sei direito onde nós fomos, eu andei
de camioneta, mas eu não enxergava, lá tiraram radiografia do meu pulmão, dessa moça e de
um outro senhor, fomos os três, aí o Dr. disse: - Olha Valmor, quanto a isso tu não precisa ter
medo, ela está curada mesmo, pode casar, por causa disso não. Foram os fofoqueiros aqui de
dentro que contaram para ele, os doentes, mas naquele tempo era diferente, nós éramos mais
unidos, muito unidos, mas mesmo assim, às vezes surgia uma conversinha. O Dr. Ari disse
para o Valmor: - Não precisa ter medo. Olha se tu tem intenção de casar, mas tu não judia
dela, porque ela não enxerga, não tem mais mãe, só o pai que também não enxerga, o dia que
217
eu souber que tu judiou dela, aí de ti. O Valmor me contou, o Dr. chamou ele lá no gabinete
Todos os dias ele vinha, dava consulta e depois ia nos quartos dos pavilhões todos os
dias, quarto por quarto ver as limpezas, e daí ele foi lá ver o meu quarto, ele sempre entrava lá
e sentava para conversar, era um quarto só. Tinha essa que queria a nossa casa, a relaxada, o
Dr. disse assim para ela: - Vai lá ver o quarto do Valmor, depois olha o teu. Nosso quarto era
bem limpinho, ele arrumava bem, passava todos os dias um pano no piso, ele era caprichoso.
Ele ia muito ao cinema, gostava muito do cinema, três vezes por semana tinha
cinema. Um dia ele foi, eu chaveei a porta da frente, - Mas eu não posso lhe deixar sozinha.
Eu disse: - Pode ir. Ele gostava muito de cinema, não demorou ele voltou, eu disse: - Porque
tu voltou? - Eu me lembrei que tu não podia ver o filme, eu também não quero saber. Veio
para casa. Tu não pode ver, eu também não me interesso. Nunca mais foi no cinema, como ele
Desses tratamentos que eu fazia, então, tinha o Promim, esse que me deixou fraca
dos pulmões, o “100%” era uma injeção, um líquido branco grosso, nós fazíamos no
músculo, esse Promim era sulfa, depois veio um mais forte. Eu não me arrependo nada que eu
sofri, de tudo que eu sofri, o pior foi perder a visão, esse que foi o pior, e ainda casar
ceguinha... ele gostava de mim quando eu era ainda perfeita, ele dizia para os outros: - Aquela
baixinha há de ser minha, ela tem os olhos muito travessos. Ele dizia para os outros e eles
vinham me contar, coitado, não chegou a dançar comigo, por causa do pé dele. Uma vez diz
que ele estava pronto para ir ao baile, chegou ali perto do cinamomo sangrou o pé dele e ele
voltou.
O momento mais triste da minha vida foi quando eu perdi a minha mãe, ela morreu
ali onde está o Altino, ali era o lado das senhoras, ela ficou só 15 dias aqui na enfermaria e
morreu, esse dia nunca me esqueço, faz mais de 40 anos que ela é falecida, e eu não contei
218
para o meu irmão até hoje o que ela pediu para eu dizer para ele. Ele estava com a Vó, ela
passou o braço no meu pescoço e disse assim: - Olha tu diz para o Cléo que não é para fazer
nada errado, andar sempre direitinho, não roubar nem nada. Isso foi a última coisa que ela
falou.
estava se aprontando para deitar, o meu avô estava lendo jornal na salinha, a Mãe morreu às 9
da noite num sábado, ela se aprontando para deitar, bem na hora que a Mãe morreu aqui,
depois contaram para nós, ela apareceu lá na janela e ainda falou com a Vó, disse assim:
- Mãe eu vou morrer, estou sofrendo muito, eu vou morrer, estou sofrendo muito. Naquela
noite a Vó teve um derrame, ela não contou para o Vô, ela não contou para ninguém que a
Mãe tinha aparecido na janela. Chamaram um médico, ela vomitou muito, perdeu a visão de
uma vista, mas não ficou aleijada do derrame, só perdeu a visão de um olho, as pernas e os
Fazia 15 dias que tinham enterrado a Mãe, a Vó tinha 6 noras, que chamavam ela de
mãe, elas disseram: - Vamos ter que contar para a mãe que a Alvina faleceu. Ninguém queria
dizer, então uma tia disse que ela contaria, ela tem que saber, a Vó ainda estava na cama por
causa do derrame, então ela disse assim: - Mãe, a senhora sabe que a Alvina faleceu? Ela
No mesmo instante que a Mãe morreu aqui, o meu irmão estava trabalhando num
bar, sábados e domingos num bar e dias de semana numa fábrica de calçados, ele também se
sentiu mal na mesma hora, uma coisa ruim que deu nele, aí o dono do bar perguntou se ele já
Quando a Mãe faleceu avisaram meus parentes, no velório ninguém veio, vieram
antes e depois que ela tinha morrido, eles são muito de chorar, naquela época já podiam entrar
no hospital, mas só num caso destes, mas não deu tempo de virem. Na hora do enterro chovia,
219
o velório foi lá em casa, chovia, chovia, bem na hora que nós íamos saindo para o cemitério,
fomos igual eu e o Pai. Isso era muito triste, os outros doentes ficaram no velório toda a noite,
eu nem me deitei, o Pai não saía de perto do caixão dela, ficou a noite toda sentado perto dela.
Quando ela morreu, aqui, o quarto era cheio de gente, a hora que ela morreu todo
mundo chorava barbaridade. Depois eu não enxergava, nem o Pai e ela falando, dizendo tudo
isso, dizendo isso, rezou todo o terço junto bem alto, o terço inteiro, quando ela começou a se
despedir de mim e do pai, a irmã Élia saiu correndo, diz que foi chorar lá na sala de operação,
Agora que estou velha, eu penso em tudo isso, não posso mais acreditar em nada,
não, não, é muito sofrimento, agora eu não enxergo e estou ficando..., capaz de ficar paralítica
das minhas pernas, nas minhas mãos não tenho sensibilidade, só as coisas grossas eu sinto, eu
tinha as mãos perfeitas... eram perfeitas as minhas mãos... eu tinha uma mãe que se
conformava com tudo, com tudo, para ela era para ser assim, uma coisa que eu nunca vi, coisa
Bem no princípio, eu tive momentos felizes aqui, com 18 anos, ali naquela foto eu
tinha 18, com 19 eu fiquei cega, barbaridade... Mas momento feliz depois de cega... Eu
gostava de ir nos bailes, nos jogos, tinha todos os domingos jogo de futebol, cinema eu não
cheguei a ir.
ceguinho muito inteligente, ele tinha um secretário que escrevia. Não sei se ainda existe
algum, trazia notícias da sociedade. Ali saiam as fofocas, os namoros, saía todo o Domingo,
anunciavam os jogos, cinema, teatro, as brigas, eram duas folhas grandes, às vezes era bem
bonzinho de dar risada. O jornalzinho era escrito lá no Cassino, esse senhor ditava, o
secretário escrevia, depois que ele morreu, se não me engano, parou de circular. Esse senhor
casou aqui dentro, era de Itaqui, a esposa dele morreu, depois foi ele. Não sei de onde ele
220
descobria tanta coisa para colocar no jornal, o nome era o mesmo de um jornal de Santa
Maria, A Razão.
Tinham até músicos aqui, uma senhora de idade era professora de música, ela
ensinava os rapazes a tocar gaita e violão, ela se chamava, se não me engano, dona Emília, ela
O seu Nelvor tocava violino, ele era inteligente, depois ele foi nosso dentista, vinha
um dentista de fora, mas ele tinha um medo, Deus o livre, ele olhava só de longe, ele não
atendia, ele olhava só de longe, era o seu Nelvor que atendia, ele ensinou o seu Nelvor a ser
dentista, ele se parava assim de longe... se fantasiava todo para entrar aqui, puxava as calças,
não podia encostar a bainha no chão, não tocava em nós, de medo, de medo... Depois ficou o
seu Nelvor até entortarem as mãos dele e já não deu mais, um homem muito inteligente,
tocava violino, a coisa mais triste para ele foi quando teve que deixar de tocar violino.
Na Igreja tocavam o órgão, tinha dois coros na missa, depois veio um padre de São
Paulo doente, ele não queria que soubessem que ele era doente e veio para cá, ele era daqueles
que usam as meias vermelhas, ia ser bispo, depois ele voltou para São Paulo e morreu muito
triste lá, o corpo dele ficou coberto de feridas, ele ficou internado aqui um tempo, ele morava
ali no colégio, ali depois da Igreja Católica, o colégio que tem o nome do Dr. Mangeon, nosso
diretor.
Meu Deus do céu, a gente não pensava que estava num hospital de tanta diversão que
tinha, sábados, domingos e terças vinham de fora passar filmes, um homem de saúde vinha,
esse o Dr. Mangeon deixava entrar, um mil réis era a entrada. Tinham teatros bonitos, tinha
uma professora de bailado, parece que se chamava Margarida, depois ela foi com alta, ela era
casada há pouco tempo. Poucas pessoas que iam com alta voltavam. Eu não pude sair, o que
eu podia fazer... Agora estou muito revoltada por causa da minha cegueira, as outras coisas
221
não me queixo mais, não posso me conformar, agora estou ficando com as pernas duras, não
Sabe de que lugar vinham a maioria dos doentes, de Santa Cruz, de lá que tinha mais
gente, todos descendentes de alemães, iam até fazer leprosário lá, depois queriam botar a
gente entre as duas lagoas, já pensou, nas conversas daqui o pessoal comentava, botar todos
lá na ilha, mas lá não deu por causa da areia não dava para fazer o alicerce, imagina, no meio
Esse hospital foi muito bem feito, assim, a casa das irmãs, os pavilhões, os lugares
que eu me refiro, quem será que fez essa coisa assim? A diretora quer reformar o Cassino, a
parte de cima, quando nós viemos para cá aquilo ali era um campo, muito bonito, depois
escolheram aquele lugar para fazer o Cassino. Eu não cheguei a ir nos bailes ali, já não
enxergava, primeiro era no refeitório, tiravam as mesas do lado de lá, de manhã tinha que
Fiz muitos amigos aqui dentro, a maioria são falecidos, senti muito a morte desse que
era nosso prefeito que eu falei, morreu muito cedo. Era nosso prefeito aqui de dentro, quando
faltava uma coisa tinha quer pedir para ele, ele transmitia lá para a direção, a administração,
As nossas coisas de Novo Hamburgo ficaram lá, fomos para o Partenon só com
nossas roupas, viemos para cá sem nada também, o Dr. Mangeon dizia que tinha que passar
na estufa, ele não queria os percevejos para cá, foi tudo numa estufa, botaram desinfetante
parece. Os caminhões trouxeram nossas mudanças, tinha os nomes nas caixas de cada um, só
trouxemos as roupas, nem sei se trouxemos louça, acho que não, depois as irmãs davam as
No Natal um casal ganhava tanta coisa, um pacote de bolacha, com aquele açúcar
colorido em cima, bolacha de Natal, roupas, ali tinha de tudo para o casal, era algodão não sei
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quantos metros, era toalha de mesa, as mulheres ganhavam fazenda para vestido, os homens
tecidos para fazer calças, tinha a sala de costura, tinha uma chefe que só cortava, ficava ali
onde é a lavanderia, lá embaixo, ali onde está tudo abandonado, de um lado ficava a
Vinha muita gente de fora que não tinha uma roupa para mudar, tudo gente pobre.
Uma vez veio um caminhão cheio de gente, cheio, cheio, não tinham uma roupinha para
mudar, a madre vinha e tomava nota do número ia lá para a sala de costura, então eles
ganhavam roupas, era de brim, mas eram roupas boas, uma cortava, outra costurava e duas
Essas pessoas que vinham no caminhão, vinham todas em pé, coisa mais triste, o
caminhão era aberto atrás, todos em pé parados, era cheio, cheio. No caminhão, uma vez veio
um com os cabelos compridos, pensaram que fosse mulher e trouxeram para o salão das
mulheres, depois os enfermeiros, nossos enfermeiros doentes, deram banho nele e viram que
ele era homem. Coitado! Em casa quem é que ia cortar seus cabelos, era muito triste, não sei
se ele ficou internado, ele não caminhava, ele faleceu depois. Nós viemos na camioneta, esse
caminhão não sei, acho que passou lá por Lagoa Vermelha, Vacaria, não sei por onde, ia
juntando os doentes.
Essa camioneta que eu vim era fechada, nós entrávamos por trás e sentávamos do
lado, um carreiro de bancos aqui e outro ali. O Pai vinha mal, gemendo e vomitando. Uma
hora nós paramos num riacho, aquela água tão limpinha, a Amélia, uma senhora já falecida,
que acabou casando com o irmão do seu Nelvor, ela disse: - Vamos parar um pouco, molhar
uma toalha e pôr no rosto do seu Dilerme, o Pai se chamava Dilerme. Ela desceu e molhou a
toalha e passaram no rosto dele, ele vinha mal mesmo, parou a camioneta, quando batia assim
fechou, vieram dois cavaleiros sabe, acho que eram fazendeiros por ali, uns cavalos bonitos,
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eram dois a cavalo, quando fecharam aquela porta da camioneta atrás, eles espiaram assim
para dentro e disseram assim: - Olha a mudança dos leprooosos! disse para nós, esses
cavaleiros, olha a mudança dos leprooosos, e uma mulher ficou tão brava, ela disse para eles
até um nome tão feio, ela disse para eles, saiam daí filhos das putas, ela disse para eles, ela era
Esses deviam andar lá pelos campos, porque não se via casa, lá longe se via uma
casa, diz que era um tal de, não lembro mais o nome dele, morava lá para os fundões, um
fazendeiro, depois sumiram daí. Vizinhos por aqui eram muito poucos quando nós viemos
para cá. À direita e à esquerda era só campo, antes de nós chegar no hospital longe assim
tinha uma casa, de certo eram esses fazendeiros não sei, diziam que iam se mudar quando nós
viemos. Quando nós chegamos essa Igreja nossa não estava pronta, mas olha fizeram tão
Os doentes fizeram umas canoas, uns caíques para andar na água, aos domingos nós
não parávamos em casa, íamos lá na Lagoa Negra. Nós ia de manhã na missa, bem cedo,
íamos com esse vizinho que depois abriram a cabeça, quando estava querendo clarear o dia
nós já íamos indo, jogávamos a rede, pescávamos cada peixe, nós levamos só o arroz, lá tinha
um rancho feito de junco, essas plantas que crescem na água, daquilo era feito um rancho, só
as portas e janelas eram de madeira, era do seu Valdomiro.... Nós fazíamos um ensopado de
peixe e assim passávamos o dia lá, era muito bom. Agora liberaram a Lagoa, aqui no nosso
canto, mas não pode pescar, liberaram para fazer piquenique na Lagoa Negra, aquela água é
preta. Uma vez atravessamos a Lagoa Negra, desembarcamos na Ilha e fomos até a Lagoa dos
Patos, aqueles montes de areia tão limpinhos, nós fomos com essa canoa que construímos, era
nosso passatempo.
Christi, eram muito bonitas. Blocos de carnaval, tinham duas sociedades, essa vermelha e
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branca e a nossa era azul e branca, a do Juventude. Eu participava do carnaval, nós fazíamos
as fantasias bonitas, uma vez nós fizemos de marinheiro, todos de marinheiro, coisa mais
linda, a gola era azul e a camisa branca, a calça era branca com uma lista azul e um chapéu
igual ao de marinheiro. Desfilávamos na rua depois íamos para o salão, tinha duas orquestras,
cada qual queria ser mais caprichoso, o outro bloco, do União, tinha outra fantasia, vermelha e
branca.
Uma vez fizeram um bloco, “bando da lua” e os versos de carnaval foram escritos
por um doente, os versos para cantar, faziam ensaio e tudo. As pessoas escolhiam para qual
sociedade pertencer, então tinha aquela rivalidade, por exemplo, como o Colorado de Porto
Alegre e do Grêmio, até a amizade já ficava diferente por causa da rivalidade. As moças
pertenciam mais ao nosso, ao Juventude, as moças bonitas e tudo, tinha bastante moça do
Cada clube tinha suas orquestras, as duas eram boas, tinham violão, gaita, violino,
pandeiro, completa, completa, tinha baile na roça, as pessoas vinham fantasiadas, até carroça
de boi vinha no baile, mas era bonito aquele baile, até o Dr. Mangeon ia lá olhar de noite, mas
tinha hora para terminar, tinha que deixar arrumado, por que a irmã vinha de manhã, se tinha
coisa fora do lugar, as mesas, ela ficava brava, de manhã cedo os que promoviam o baile
Os bailes não eram no mesmo dia, eles tinham os deles, nós os nossos, uns não iam
nos bailes dos outros, havia rivalidade grande. Tinha concurso de rainha da primavera, eu fui
a primeira rainha, a mais feia e a primeira! Os votos eram vendidos e abertos na hora, alguns
torciam para esta, outros para aquela e na última hora entrou uma lista de votos só para mim,
daí eu ganhei! Foi um enfermeiro nosso que comprou, ele nos acompanhou desde o Partenon.
Ele foi enterrado aqui, ele quis ser enterrado com os doentes, era o desejo dele. Ele teve que
pedir licença para o Jair Soares, que era o governador para ser enterrado aqui, porque ele era
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de saúde, desde rapazinho novo era nosso enfermeiro. Ele fez a sepultura dele antes e
escreveu na lápide assim: “Aqui jaz meus ossos esperando os vossos!”, ele era o seu Mário,
“Aqui jaz meus ossos esperando os vossos”, ele está lá esperando! Como ele era dos doentes,
Fui coroada rainha da primavera, meu irmão tem a foto, esses tempos ele trouxe. Nos
vestíamos todas de branco, as moças botavam flor na cabeça, as casadas não. Eram muito
bonitos os bailes, mas a rivalidade era grande, eles tinham a rainha deles, nós as nossas, tudo
separado. Tinha domingo que era baile nosso, o outro deles, quando tinha baile deles, nós
íamos espiar na janela, lá no refeitório, nenhuma das nossas moças entravam nos bailes deles,
nós tínhamos a maioria das moças. Todos os anos tinha esse baile da primavera, na última
hora veio a lista, eu nem pensava em ser rainha, tinham as candidatas, onde eu ia pensar que
era eu, isso foi esse seu Mário que votou tudo em mim...
Essa história da Santa Rita que sumiu que eu ia contar foi assim, internou uma
senhora que era esposa de um sargento, muito bonita. Essa mulher chorava tanto, tanto,
quando internou, ela tinha medo que entortasse as mãozinhas dela, ela não tinha nada, era
bonita, ela fez a promessa, se ela saísse daqui com as mãos perfeitas, ela ia dar a Santa Rita
para Igreja, aquela Santa que eu fiz a novena para casar! Um dia essa Santa sumiu da Igreja,
depois eu soube que uma irmã deu para uma pessoa aí de fora, mas não podia, pois foi a
mulher que fez a promessa, se ela saísse com os dedos perfeitos, ela ia trazer a Santa, e
trouxe, bem grande, toda vestida de preto, conhece a história dessa Santa? Ela era casada,
depois que ela perdeu os filhos, foi para o convento. O marido dela bebia muito e foi morto,
ela tinha dois guris, esse filhos disseram para ela que iam vingar a morte do pai, eu li uma vez
essa história e também passou uma vez na novela, no tempo das novelas do rádio, ela pediu
para Deus que levassem eles antes, para não se vingarem da morte do pai. Os filhos
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morreram, ela foi para o convento, lá ela ganhou câncer na cabeça e era desprezada pelas
irmãs por causa do mau cheiro de sua cabeça, ela morreu no convento.
Aquela outra Santa que tem ali na capelinha foi doação de um casal que morou aqui
e depois foi para o leprosário de Santa Catarina, ainda existe essa capela? O nome da mulher
era Migalina, mas nós chamávamos de Miga. Ela já morreu também, ela foi muito boa para
mim, a Santa que ela colocou na capela parece que era Nossa Senhora de Lourdes. Foi esse
casal que fez a gruta, eles eram catarinenses estavam lá no leprosário depois vieram para cá,
eram tão caprichosos... O marido dela parece que ainda está lá naquele hospital, ele bebia
muito, ela era muito minha amiga, às vezes meu marido machucava as mãos, não parava de
trabalhar, não podia lavar louça, ela vinha lá, todos os dias, ela me ajudava muito.
Uma vez também tinha um São Roque aqui, agora eu não sei onde ele está, uma vez
ele ficava numa gruta, mas este Santo não é de gruta, de gruta é Nossa Senhora de Fátima,
aquela que apareceu para as crianças. O Jacinto e o Francisco eram irmãozinhos, eles
faleceram, a irmã Lúcia ainda esta viva, tem os segredos naquela carta, os segredos de Fátima.
A Nossa Senhora de Lourdes apareceu para a Bernardete, uma vez essa moça estava colhendo
lenha no mato e a Santa apareceu para a menina. Esse São Roque tinha um cachorrinho de um
lado e um pãozinho na mão e uma úlcera na perna, naquele tempo eu enxergava, ele estava lá
Não acredito em outra vida depois desta, não tem, aonde que é esta vida? Aonde?
Ninguém vem dizer como é que é ou não é, quando morrer é o fim da vida, eu acho sim e eu
tenho muito receio que me carreguem lá para fora, eles levam já meio morto, não viu o seu
Toni? Ele estava mais morto que vivo, tenho medo dos estranhos, ele disse para uma
funcionária daqui que ele estava muito bem tratado e que estava com muita saudade de nós, o
Tenho medo de sair daqui e me levarem em outro hospital. Eles fazem isso sabia, lá
as enfermeiras tem medo da gente, que a gente é torto, eu não enxergo e tudo... como é que
vou comer, aqui eu estou acostumada com o lugar, tem a mesinha, e lá aonde não posso nem
me lembrar, isso me ataca os nervos, não posso mais ficar nervosa por causa do coração, e
agora minhas pernas estão ficando paralíticas, que coisa, meus joelhos estão duros. Não sei se
vou ficar bem, eu tenho uma saudade das irmãs, elas não vem mais para cá...
Vou lhe dizer, dá para escrever um livro da minha vida, sabe qual é o título que vou
botar no livro, “Nasci para sofrer”... o título mais certo, até tinha uma psicóloga que queria
escrever um livro da minha vida, eu disse o título, ela não gostou, no fim eu não quis mais,
não queria que a minha vida se transformasse em livro, eu ia recordar tudo, desde o princípio
o que eu sofri, eu disse: - Até faço um livro, mas tem que ser esse título “nasci para sofrer”, o
mais certo que tem, o mais certo. Depois resolvi que não queria mais escrever o livro. Essa
história que te contei virar um livro? Se eu pudesse ler podia ser! Não precisa me agradecer,
só vem me visitar.
Seu Chico
Sou Chico, filho de João e Joana, nascido em Boa Vista do Erechim, hoje Aratiba,
sou do ano de 1924. Meu pai era de Santa Cruz, minha mãe de Caxias, foram para a colônia
de Rio Novo, em Erechim, trabalhar com madeira. Lá eles se conheceram e casaram, depois
vieram embora. Tudo era muito difícil naquela época, éramos três irmãos, um é falecido.
Dá para dizer que eu nasci e me criei na lavoura, estudei até o quarto ano. Eu só
falava alemão, aprendi português simplesmente porque o finado pai tinha um livro em
português. Fui dois anos na escola, depois viemos para Ijuí procurar recursos para meu pai,
que também era doente. Quando saímos de lá, eu deveria ter uns onze anos, meu irmão não
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falava ainda, lembro de uma passagem quando ele estava brincando no pátio e começou a
apontar para o chão, era uma aranha grande, ele ainda não falava, devia ter uns quatro anos.
Outra vez, nessa época, nós estávamos andando em um burro, um agarrado no outro, quando
o burro pisou em uma lata nós caímos, éramos crianças naquela época.
Trabalhávamos em nossa terra quando o finado pai resolveu procurar recursos por
causa da doença. Ele vendeu a terra e nós saímos de lá, meu pai era um homem muito
marcado por causa da doença, não tanto fisicamente, mas a comunidade sabia que ele tinha
uma doença, não sabiam o que era, podiam desconfiar, mas ninguém podia afirmar, provar
como? A vizinhança dizia que era aquilo, mas era tudo imaginação de quem convivia, nem o
médico, um clínico que tratava de sarampos, gripes e coisinhas assim, tifos, varíola, varicela,
nem ele sabia o que era. Meu pai saiu de lá para procurar recursos e nós viemos com ele,
Esses vizinhos que falavam que o pai era doente, eu reencontrei uns 25 anos depois e
eu, para não dar razão para eles, disse que o pai até morreu desgostoso por causa daquilo que
falavam, das fofocas, alguns na vizinhança falavam, mas nunca souberam. Essa doença não
era comum na região, mas as pessoas desconfiavam por que a cidade era pequena e o pai saia
Viemos todos, pai, mãe, e três irmãos. Chegamos num anexo da Santa Casa, onde o
meu pai..., ficamos ali, mandados pelo médico de Ijuí. O primeiro médico que nos entrevistou,
que entrevistou o Pai com a gente junto foi o doutor Faillace, me lembro bem o nome dele.
Foi a primeira marcação sobre este nome feio..., ele chegou e disse assim..., ao invés de
chegar de outro modo, ao invés da saúde procurar o doente, o Pai veio procurar recursos e o
médico disse..., me lembro da reprimenda até hoje, ele disse: - Como é que o senhor ficou até
hoje vivendo com sua família? O senhor não podia viver com sua família, o senhor tem
lepra..., assim repreendendo ele. Todos nós estávamos juntos com o Pai. O médico disse: - O
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senhor tem que ir imediatamente para o Partenon, e não demorou muito veio um carro e o
levou, nós ficamos ali. Ficamos uma semana ali fazendo exames, fizemos uma visita para ele
no Partenon e voltamos para Ijuí. O doutor não deixou mais ele ir embora. Ele ficou no
Partenon até fundar este hospital aqui, até fundar o Itapuã, ele foi um dos primeiros que
vieram. E nós voltamos para Ijuí e continuamos na agricultura, tínhamos notícias dele através
Uma vez ele fugiu do Partenon para nos visitar, ele queria saber como nós
estávamos, não que ele não acreditasse que nós estávamos bem, mas queria ver. Quando ele
voltou, como as vagas eram poucas, ou às vezes nem tinham lugares, o médico não quis mais
aceitá-lo por que já tinham outros doentes esperando, então a comunidade do hospital, dos
internados, foram buscá-lo e o trouxeram para dentro do Partenon, decerto o médico não
contrariou.
Um vizinho, que era nosso parente, foi uma vez visitar o pai lá no Partenon. Nós não
tínhamos condições de viajar, nosso vizinho veio e nos trouxe notícias dele, que já contava
que viria para Itapuã. Nós não sabíamos onde era, depois o pai veio para a Colônia e
relação a nós em função do pai estar internado. Comigo algumas vezes deu para notar uma
pequena diferença, quando eu sai daqui e fui visitar pessoas que a gente não via há tempos,
deu para perceber que não era aquilo que era antes, não é que tratassem diferente, mas davam
um pouco de demonstração. Primeiro, como se diz, a gente ficava na roda, depois não se
juntavam junto com os outros, eu não me lembro de nenhum exemplo, só sentia, mas até pode
Uma vez aconteceu com um parente. Quando nós éramos guris nós andávamos
sempre juntos e em uma ocasião, depois que eu estava aqui, encontrei com ele na rua e ele
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não me cumprimentou, ele não veio me cumprimentar. Na época ele não devia saber, mas
depois deve ter ficado sabendo que ele era casado com uma mulher que tinha parentes doentes
aqui, de certo ele não estava sabendo naquele tempo e no fim ele deu uma demonstração em
relação a mim. Quando eu sabia através dos parentes que os amigos tinham perguntado, se
tinha especulação sobre mim eu já não procurava, deixava de lado, como o médico me disse
lá uma vez, o Dr. Schmidt, ele disse: - 50% te aceitam e os outros 50% tu não precisa! É
lógico.
Quando eu estava com dezessete anos minha mãe faleceu, ficamos só os três irmãos,
o Pai não foi no velório da Mãe, não sei se ele pôde sair daqui, mas aquele tempo a
comunicação era por carta, levava uma semana. Eu comecei a perceber que não estava bem,
fui ao médico do posto e constataram que eu também estava doente. Eu nunca imaginava,
tinha feito aqueles exames quando eu era guri, imaginava que seria para toda vida, tinha 22
Me deu tipo uma erisipela na perna, também me deu uma infecção no braço, fiquei
baixado quatro dias no hospital. Fui consultar com o médico que tratava a Mãe, era nosso
amigo, de certo ele desconfiou, ele sabia que o Pai estava aqui em Porto Alegre. Ele era um
médico dos olhos, nariz e garganta, então ele fez um receituário para me encaminhar para o
médico do posto de Ijuí, que se chamava Solon, este médico me encaminhou para Cruz Alta,
onde tinha um posto mais central de Porto Alegre, tinha um médico que viajava para São
Paulo e atendia em Cruz Alta e toda a região da serra, de lá fui encaminhado para cá.
anunciando os hotéis, eles ofereciam hotéis se tu queria ficar hospedado, os trens ficavam
parados um tempo ali, a viagem não foi muito boa porque vim com infecção, embarquei ao
meio dia e cheguei no outro dia de manhã em Porto Alegre. Eu já estava um pouco
desesperado, pois estava parando na casa de pessoas que não eram meus parentes, fiquei dois
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anos com eles, posso dizer que foi minha segunda família. Quando eles souberam que eu
vinha para cá, a reação deles foi como a minha, eu sai chorando, eles ficaram chorando.
Eles não se informaram muito sobre mim, sabiam que o Pai estava em Porto Alegre
doente, mas nunca perguntaram porque nem nada. Agora quando o médico constatou lá em
Ijuí que eu teria que viajar, eu cheguei em casa e tive que explicar. Eu também não sabia bem,
quer dizer, é uma coisa que nós não conhecíamos muito a fundo, então eu expliquei para eles
e disse que estava muito desesperado. O patrão – eles eram meus patrões – me disse para eu
não me desesperar, quem sabe tu vai gostar de lá e vai ficar por lá mesmo, nem queira voltar
para cá.
Eu não imaginava bem como ia ser, imaginava um pouco porque quando o Pai estava
no Partenon nós fomos visitá-lo, com aquela turma, aquela gente. Quando ele escrevia nos
contava que em Itapuã tinha bastante gente, muito mais que no Partenon, então quando
cheguei no portão vi aquela montoeira de gente. A camioneta fazia o transporte para cá tinha
os dias marcados, era aquela recepção grande, vinham esperar a gente. Entrei aqui em 1947,
Vim sozinho para Porto Alegre, passei pelo Partenon, onde havia tipo uma
hospedagem, aqueles que vinham do interior ficavam ali, ao lado tinha um ambulatório,
alguns já vinham com exame, outros faziam o exame ali, eu fiz neste ambulatório do
Partenon. Era um médico e um enfermeiro que vinham fazer o exame, enfiavam um ferro no
nariz da gente, era um exame de muco, muito primitivo, mas naquela época era assim. Fiquei
uma semana lá, demoraram uns dois dias para fazer o exame, depois eu fiquei esperando a
transferência.
estava internado desde 1936, uma porção de anos. Eu já sabia que não vinha aqui para morrer,
o médico lá de Cruz Alta, o Dr. Guido me disse que não era como no tempo do meu pai, havia
232
um tratamento novo, isso eu sabia. Este médico tinha a mania de dizer para todo mundo que o
internamento iria durar dois anos, dois anos e meio, era o mínimo que ele dava para encorajar
um pouco! Depois vim conhecer aqui pessoas que ele atendeu. Em Ijuí era Posto de Saúde,
nós chamávamos de Posto de Higiene, em Cruz Alta já era Departamento de Saúde era um
centro.
Quando cheguei aqui encontrei o meu pai, ele estava bastante mutilado. Ele não
esperava que um filho ficasse doente, tinha um ressentimento. Eu até escrevi para ele quando
fui me alistar, que eu fui fazer inspeção de saúde e passei, que eu iria servir. Fiquei um mês
no quartel em Ijuí e fui dispensado, eles mandaram todos que eram colonos embora, gostaria
de ter servido, pessoas que tinham menos estudos que eu faziam cursos de cabos e sargentos,
queria servir como voluntário, mas logo eu fiquei doente, foi surpresa para mim e para o Pai
eu vir para cá. A mãe morreu sem saber da minha doença. Quando recebi o diagnóstico, foi
Da última vez que eu tinha visto ele para o nosso reencontro, ele estava muito
diferente, a princípio quando ele veio para cá ele melhorou muito, trabalhava por aqui e tudo,
plantava, era faxineiro de rua, depois não pôde mais. As vistas dele começaram a enfraquecer,
no encontro ele já não me enxergava, ele não me viu, o Pai estava muito abatido da doença,
ele não chegou a fazer o novo tratamento, com a sulfa. Naquele tempo muita gente esperava
Depois que internou, o Pai saiu aquela vez fugido do Partenon e daqui nunca saiu.
Eles não davam licença, tinha que fazer exames, e os dele não permitiam que ele saísse.
Também eu não sei se aqui em Itapuã eles eram de dar muita licença, o Dr. Mangeon era
enérgico nestas coisas, até para POA ele negava as licenças. Daqui o Pai não chegou a fugir,
Para dizer a verdade, o primeiro encontro meu e do Pai ele já estava sabendo, quando
eu cheguei no portão, o pessoal de certo foi contar para ele. Eu não fui lá na enfermaria direto,
me levaram lá na recepção, aquele tempo tinha horário de visitas, era das duas em diante,
tomei café, depois me levaram lá com ele. Nosso encontro foi normal. Ele era sempre muito
preocupado, ele não enxergava mais, ele se preocupava muito com o futuro. Naquele tempo
aconteciam muitas coisas por aqui, coisas normais da vida, muitas mulheres que não tinham
marido pegavam outros, de certo ele pensava que eu ia cair naquilo, ele se preocupava muito
com essa parte social. Quando ele ficou viúvo já estava muito abatido.
Quando cheguei arrumaram um quarto no pavilhão para mim, cada quarto tinha duas
pessoas morando e estavam esperando a terceira, então como eu era mais novo, me preferiam,
queriam que a gente fosse morar, porque quem sabe vem um estranho ou outro muito doente,
ou porque era preto, ou porque era branco. A pessoa estranha às vezes não se acerta, meu pai
era conhecido por aí, então me disputaram para ir morar com eles.
Depois de um mês, mais ou menos, a irmã achou que eu teria que morar com meu
pai, ele estava na enfermaria, julgaram que eu tinha obrigação de cuidar dele, então eu vim
morar com ele. Mas eu precisava trabalhar, gostava de trabalhar para ganhar alguma coisa.
Depois de uns quinze dias já tinha passado a infecção, comecei a trabalhar, trabalho tinha a
vontade. Nos primeiros dias fiquei no pavilhão, depois tive que cuidar do meu pai, era um a
menos para eles cuidar. Como tinham muitos que não podiam fazer serviço fora dos
pavilhões, eu pagava um para atender o pai enquanto eu trabalhava, e assim ia indo. Morei
com meu pai um ano, depois foi ficando lotado aquele pavilhão que nós morávamos, era uma
segunda enfermaria, então pediram minha vaga, meu Pai continuou lá, um outro doente se
Comecei fazendo capinas, outros plantavam, doentes mesmo, alguns tinham suas
propriedades, chegava a época de plantar, eles precisavam de alguém para ajudar, comecei
234
por aí. Depois quebrei brita para essa igreja Luterana que estava no alicerce, quebrei aquelas
pedrinhas que estão ali no chão, na entrada. Depois uma hepatite me impediu de continuar
trabalhando, fiquei alguns meses sem trabalhar, quando voltei, comecei a trabalhar na horta
do hospital.
Todas as verduras de consumo interno do hospital eram plantadas pelos doentes, nós
tínhamos hortas particulares, cada um tinha um quadrinho, era tudo vendido por intermédio da
caixa beneficente, ela vendia para o hospital para serem usadas no refeitório. Essas verduras
não passavam para a cozinha, eram feitas no refeitório, no nosso lado, naquele tempo nada do
lado de cá passava para o lado de lá, naquele tempo era rígido, só passava de lá para cá!
Também trabalhei no refeitório de garçom. Todo o trabalho interno era feito pelos doentes, o
quadro de funcionários aqui dentro era só de doentes, só os chefes não, as irmãs, tinha uma
produtos de fora do hospital, fui trabalhar na olaria, comerciando tijolos para o hospital.
Fiquei lá uns dois anos, depois fui trabalhar com a apicultura, um senhor que morava aqui e
criava abelhas foi embora e me vendeu as caixas, trabalhei uns cinco anos fornecendo mel
para o hospital, tudo para o hospital, vendíamos para a caixa e a caixa vendia para o hospital.
Quando eu cheguei já tinha a caixa, ela era uma intermediária entre os doentes e o
hospital, indiretamente ela ganhava 50%, se ela me pagava 10 por um pé de alface, ela vendia
por 20, diretamente com o hospital não tinha negócio. Tinha um presidente que controlava a
caixa, este presidente não era eleito, quando ele saia, ele indicava um sucessor, às vezes era o
diretor que indicava. Estive na posse de uma das diretorias, da terceira, eu tinha interesses, eu
trabalhava com apicultura na época. Deram muitas mancadas por aí, primeiro não tinham nem
A caixa era uma associação dos internados, ela tinha muitas atividades, galpão,
olaria, criação de porcos, cavalos, tinha uma representação de roupas da Renner. O hospital
dava roupas de brim comum, azulão, os que queriam podiam comprar. O escritório da caixa
funcionava no Cassino, lá também tinha uma biblioteca, um salão de bailes. Os bailes eram
feitos pelos clubes, o Juventude era bem exigente, o outro um pouco menos, para ir lá tinha
tinha que ter exames bons, dar negativo, depois de um ano e meio eu também consegui uma
licença. Tinha data marcada para voltar, podia ficar fora no máximo um mês, quando tu tinha
algum problema para resolver, mas licença de passeio era por dez dias. Para a pessoa sair
tinha que pegar uma roupa e tudo o que queria levar e colocar na estufa, agora, quando tu
voltava não, a estufa ficava lá na frente. Quando as coisas saiam passavam na estufa, quando
entravam, passavam normalmente. Chegava lá e entregava a mala com as coisas que ia levar,
tinha que ser no dia anterior, no outro dia ia lá e pegava. A primeira vez que saí levei a mala,
Eu morei no pavilhão com o Pai, depois a irmã perguntou se eu não podia ceder
minha vaga para outros dois velhos, que ficariam melhor lá, cedi, eles se comprometeram em
cuidar dele. Aí eu fui morar no pavilhão, morava com outros, podia escolher, naquele tempo
tinha um pouco mais de vagas, tinha que ver se aqueles que moravam no quarto aceitavam,
também tinham mais estas coisas por aqui... Fui para o pavilhão dezessete, junto com um
senhor que se dava com o Pai, ele era da fronteira, achavam ele muito chato, ele gostava do
que é meu é meu, o que é teu é teu, e tinham uns mexeriqueiros, então diziam que ele era um
cara que não dava para morar, me contaram a maneira dele e eu pensei, então me serve. Fui lá
falei com ele, ficou faceiro, um filho do João, então estava tudo bem, me dei bem com ele. Eu
Morava um rapaz por ali que se viciou no jogo, não trabalhava nem nada, com tanto
serviço por aí... Uma vez ele viu que eu tinha dinheiro, cheguei em casa, tinha pagado a
lavadeira, ele me pediu emprestado, não podia me pagar depois, eu sei que guardei meu
dinheiro no bidê com chave, quando cheguei em casa o bidê estava longe da parede, tinham
mexido, levou dez, eu tinha 30, sobrou vinte, então eu falei para o velho que meu bidê havia
sido mexido, este rapaz estava roubando fumo também me disse o velho. Ele era um
Havia algumas brigas por aqui, não demais, mas dentro de refeitório era um lugar
que se brigava bastante. Ali todos se juntavam, eram obrigados a se juntar o povo, no
refeitório não havia desvio, às vezes ocorriam encontros entre pessoas que não se davam bem,
uma vez assisti uma briga de faca lá dentro. Tinham guardas aqui, mas eles não desarmavam
Morei nos pavilhões até novembro de cinqüenta e um, depois eu e Anita casamos,
ficamos mais um tempo nos pavilhões, tinham uns três ou quatro casais que moravam
separados por falta de lugar, quando nós casamos abriram um pavilhão para os casais.
Podíamos namorar aqui dentro, primeiro o Dr. Mangeon deixou bastante liberdade,
mas dava muito incomodo, os encontros clandestinos, vamos dizer assim, estava ficando uma
coisa viciosa, nem se escondiam mais. Às vezes internava uma mulher séria, mas o tempo e a
separação do marido iam calejando, às vezes uma necessidade de sexo, a ocasião faz o
ladrão... Então, se deram muitos casos assim, ele deu liberdade e a liberdade foi demais, isso
eu não assisti, conto porque os outros contavam, o meu pai mesmo contava. De repente o
diretor pôs um freio, então a coisa foi feia, mudou de repente, muitos tinham construído
ranchinhos onde faziam encontros, no fim ele mandava desocupar ou desmanchar, alguns não
queriam, teve um que ele botou fogo, teimaram, ele botou fogo. Até tinha um sargento
internado aqui que disse que queria ver se o diretor queimava o rancho dele, ele foi lá e
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queimou, ele era peitudo mesmo, não tinha medo, daí terminou que aquele sargento foi
Acontecia que se eu quisesse namorar por exemplo a Anita, tinha que pedir licença
para ele, se ele achava que dava, tudo bem, se ele achava que tinha condições de saúde, não se
importava. Teve um caso que a pessoa foi pedir para casar, namorar e casar e ele disse:
- Olha, esta moça não vai ficar boa, ela não vai mais poder caminhar. E não deu outra, logo
presidente da caixa mandava os guardas vigiar, depois que começava a namorar firme ia falar
com o diretor, as irmãs intermediavam, mas elas não mandavam, as irmãs mandavam no
uns dez por aí. Eu e a Anita começamos a nos olhar no cinema, o teatro que sempre tinha ali,
namorados oficiais sentavam juntos, nós sentávamos e ficávamos olhando um para o outro,
nos bailes aconteciam os encontros, mas as gurias não iam. Elas ficavam no internato, as
irmãs não deixavam elas ir nos bailes. Depois que nós éramos casados entrou outra irmã ali,
as antigas sociedades dos clubes de futebol não existiam mais e nós fundamos uma liga dos
casais da qual eu era o presidente, então fui falar para as irmãs deixarem as gurias participar
Bem, nós namoramos, noivamos e depois achamos que dava para casar, tínhamos
licença, no tempo do Dr. Ari era mais fácil, nos encontrávamos em qualquer lugar, mas não
podia namorar pesado, tinham guardas por aí que não deixavam, não podia ficar escondido,
não dava. Alguns namoravam escondidos, os que eram casados namoravam de forma
Naquele tempo não tinha luz a noite inteira, terminava às onze e trinta, os bailes
tinham que começar cedo, com muito custo nos dias de baile nós conseguíamos uma hora a
mais, dependendo de quem cuidava da usina, antes de apagar a luz de vez ele dava um sinal
de 15 minutos, apagava a luz e acendia, já sabíamos, mais quinze minutos. Depois que falei
com a madre, eu tinha que buscar as gurias no pavilhão e depois levar de volta.
Para nos casarmos fizemos uma ficha na prefeitura com os nomes e escolhia a data,
no dia vinha um escrivão, geralmente era durante os dias da semana, ele vinha de Itapuã. Nós
marcamos para quarta feira, 28 de novembro, tinha mais dois casais que estavam pensando
em casar, mas se desentenderam, depois que nós demos os nomes eles vieram perguntar se
não dava para incluir os deles juntos, eu disse que podia. Uma outra pediu que nós
esperássemos porque ela não tinha completado dezoito anos ainda e precisava de licença dos
pais, eles queriam que nós segurássemos porque sairia mais barato e não sei mais o que, estes
que a moça era menor teve que esperar, nós e os outros dois casais marcamos todos naquele
mesmo dia.
Começaram a cerimônia com padre e escrivão casando o outro casal, eles disseram
que nós iríamos ter pouca sorte por que estávamos casando por último, não tem nada a ver,
afinal os outros morreram e nós estamos aqui... eles foram antes de nós em tudo! Depois
quando foi para entrar na fila para ganhar casa eles queriam ser os primeiros também e foram
os primeiros, a segunda casa foi dada para nós, os outros não tinham nem dado o nome. Eles
colocaram o nome nesta lista com segundas intenções, mas como eu não podia dizer que eu
não queria, eu não mando nada, daí fomos morar no pavilhão, fazíamos as refeições no
refeitório, naquele tempo não existia cozinha nos pavilhões, havia dois banheiros nos
pavilhões, era um pouco difícil, às vezes eu levantava às 4 e meia, cinco da manhã para ficar
mais a vontade. As camas eram duas de solteiro encostadas, depois algumas mulheres foram
Nós tínhamos números quando internávamos, não chegou a ter oitocentas pessoas
aqui dentro, muito saíam com alta. Quando veio o tratamento novo, a sulfa, a gente do tutu foi
embora, se sentiram bem. Tinham alta condicional, seguiam fazendo o tratamento fora do
hospital, tratamento de dispensário. Tinha gente de muito dinheiro, tinha gente rica aqui,
donos de fábricas de calçados, não tinha outro jeito, vinham para cá, mas depois quando veio
o tratamento podiam conseguir comprando, então eles iam embora, então quer dizer que o
hospital não deve ter tido internadas seiscentas pessoas, dá para calcular pelas moradias, 19
pavilhões e 29 casas.
Em cada casa moravam duas famílias, uma cozinha para os dois. Não era nada fácil
para um casal morar aqui, o casal mais antigo tinha mais direitos, tinham aqueles que
procuravam ficar o menor tempo em casa para evitar conflitos, aqueles que não queriam
outros juntos, que tinham ciúmes, por aí. Nas casas sempre moravam dois casais os que
ficavam na frente se achavam com mais direitos, o banheiro e a cozinha usavam juntos, então
para ficar mais a vontade uns faziam uns ranchinhos para passar as horas lá, era livre, os
desparceirados também faziam para não dar na vista por aí. Um casal que queria se encontrar,
como é que ia no quarto, tinha mais duas pessoas. Em uma casa como essa morava duas
famílias. Tinha algum privilégio, tinha gente que morava sozinha. As crianças em geral não
Também havia privilégios nas casas, eu não fui dos privilegiados, um casal foi
embora e a preferência ficava para mim, mas tinha um doente que era enfermeiro e ele foi
falar com o prefeito e tirou nossa preferência, ficou morando na casa, ele perguntou se nós
queríamos morar com ele, eu não quis, a casa era para mim, se eu não quisesse aceitar ele...
aquele se antecipou, assumiu como se tivesse mais direito que a gente. Eu não confiei mais
em prefeito, até nem mais em diretor. Tinha um casal que estava indo embora, fui falar com o
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diretor, fomos morar com eles, mas comemos fogo, ela não nos deixava ir na cozinha, queria
Meu irmão veio morar com a gente, ele ficou aqui um ano, desconfiavam que ele
tinha a doença, mas não tinha, fez os doze exames, cada mês um e foi embora. Ele bebia
muito e o médico acho que tinha um palpite, às vezes as pessoas ficavam com olhos
vermelhos, bebedeira, não sei se desconfiaram, ou ele falou alguma coisa, sei que mandaram
ele para cá, internaram ele, naquele tempo tinha que ficar um ano em observação, mas ele não
Saímos do hospital em 56, ficamos doze anos fora, no interior. Muitos saíam com
alta, a Anita tinha alta há dois anos, eu trabalhava, tinha minha criação e pensava que fora eu
Nós saímos daqui e fomos morar em Iraí, não queria voltar para a minha antiga
região porque estava sabendo que as terras por lá tinham se desgastado, não tinha humus e
também um pouco porque a curiosidade era demais. Até fui procurar lugar em Ijuí, mas lá as
propriedades eram muito caras e disputadas, era quase tudo minifúndio, lá só podia trabalhar
de meeiro e meeiro não vai para frente de jeito nenhum, dar metade para o dono da terra sobra
pouco...
Lá em Iraí nós não conhecíamos ninguém, por um lado isso era bom, por outro ruim.
Pode ser bom no começo, mas com o tempo... tudo pode acontecer no tempo que a gente vive
fora, a gente sempre acha que vai bem, não tem pessimismo, às vezes pode dar ao contrário, e
como a gente está num lugar estranho e a gente está sempre acobertando uma coisa, a doença
por exemplo, e se a gente piora e depois aparece, fica pior porque a gente estava ocultando
antes, isso a gente tem que pensar, isso a gente não pensou.
Como disse aquele médico, vem em nosso meio que tem 50% que te aceita e outros
50% tu não precisa, eu fiz o contrário, fui para um meio desconhecido, onde ninguém sabia.
241
Lá em Iraí ninguém sabia que nós tínhamos a doença, as pessoas eram muito desorientadas,
Só tinha uns compadres que moravam lá que sabiam, eles foram para lá primeiro,
eles também eram daqui, esconderam a doença por muito tempo, hoje em dia parece que
sabem deles, não deu para acobertar mais. Como é que foi mesmo Anita? A filha deles
trabalhava..., assim num Posto, as enfermeiras viram o nome dos pais dela e não deram mais
chimarrão para ela, isso aconteceu há uns 25 anos atrás, os pais nunca contaram para ela,
nunca disse para os filhos, foi uma surpresa, as noras dela não sabiam. Eles sempre tinham,
aquilo é errado, não avisar nem os filhos, se aceitar eles não se comprometem, os filhos
ficaram chocados.
Quando saí, antes de ir para Iraí, andei por todo o Alto Uruguai, até encontrei um
parente meu por lá, ele queria muito que eu fosse morar lá perto dele, era para nós combinar
de comprar uma coisa juntos, lá por Santa Rosa, só que não tinha Posto lá, eu tinha que vir
para Santo Ângelo, só que em Santo Ângelo o pessoal da saúde era muito rígido, queriam
tudo, casa bem feita, todas as condições, eu não podia, não me agradei, por causa daquilo não
deu.
Nós tínhamos que continuar o tratamento fora, se eu fosse para Santa Rosa, por
exemplo, e quisesse me tratar em Ijuí, dependia daqui, mas eles diziam que não, que era para
me tratar em Santo Ângelo que tinha posto mais perto, e Santo Ângelo, não me agradou o
tratamento deles.
tratamento, ela foi uma vez. Palmeiras era o mais perto que tinha. Um dia eu fui lá e disseram
que eu não precisava mais vir em Palmeiras, era para continuar no Posto de Frederico
Westphalen e depois o Posto foi para Iraí mesmo. Então, primeiro me tratei em Palmeiras,
Nós íamos no Posto e também tinham fiscais que iam nas casas. Lá em casa ele não
chegou nenhuma vez, ele até foi expedicionário da guerra, ele procurou chegar mas não
chegou, o fiscal da saúde ia ver as condições da gente. Era muito ruim por causa da
curiosidade, o que esse cara quer ali? Uma vez quase veio à tona, tinha um açougueiro que foi
quem me ajeitou para morar lá, o fiscal da saúde foi fazer inspeção no açougue dele e
perguntou por mim, onde eu morava, o cara queria saber porque ele estava me procurando,
naquelas alturas quase veio à tona, ele não disse porque, mas quase veio à tona. Nós
ficávamos sempre com medo, era perigoso, quase, quase. Ele foi lá fiscalizar a carne, ele
perguntou onde eu morava e o homem queria saber porque, de certo ele pensou que eu ia
botar açougue!
Em Iraí dei aula em uma escola municipal perto de casa, dava aula de manhã até
meio dia, fiz isso dois anos, eu pedi para o Dr. se eu podia, ele me perguntou se quando eu saí
daqui me deram alguma exigência, não, então não tem problema nenhum, o que tu vais fazer
é contigo. Depois de dois anos ali, uns achavam que eu ganhava por mês e começaram a ficar
tempo, faltavam muita aula, o professor anterior havia colocado aquelas crianças no 3º ano
sem eles saberem fazer conta, fui me aborrecendo depois não quis mais.
Nós saímos de lá porque meu irmão, que foi morar conosco, chegou lá e não gostou,
não sei o que ele queria, tinha terra para trabalhar, tinha casa para morar, ele dizia que era
ruim, eu dizia todo mundo mora aqui, porque tu não pode morar aqui. Foi o seguinte, quando
eu fui acertar para morar lá, o dono queria vender toda a propriedade e eu sozinho não tinha
condições comprar, eu disse: - Eu venho aqui para trabalhar e depois a gente vê se dá para
comprar. Chamei meu irmão, ele queria, ele ficaria com a metade e eu com a outra, ele
chegou lá e não gostou, não queria trabalhar, perdeu o crédito, e eu não podia comprar
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sozinho e a metade ele não vendia, ficou difícil, depois o proprietário vendeu para o filho, eu
distrito, ficamos só um ano nesse lugar, eu tinha comprado mal e apareceu um negócio,
troquei esta terra por outra, foi nossa terceira morada, tudo ali por perto. A vantagem deste
segundo lugar é que estavam fundando ali um colégio de irmãs, mas a minha filha tinha recém
Quando nos mudamos fui lá no Posto e expliquei, tinha mudado o fiscal de saúde
era um tal de Paulo, então eu disse para ele, se por acaso fosse fazer a visita, era para dizer
que era nosso amigo, ou vinha trazer recomendação, ele foi só uma vez, depois não foi mais,
disse que não precisava. Fomos visitados só uma vez, uma única vez.
fazendo disputa de visitas, eu disse para eles: - Olha vão me desculpar, mas deixem essas
disputas entre vocês, mas não nos coloquem no meio, vocês não sabem o que isso pode
prejudicar a gente, se vocês começam vir aí a cada 15 dias, um mês, vai dar algum problema,
Depois, fazia uns 3 anos que nós estávamos aqui, o Jair Soares, que era Secretário da
Saúde, fez um balanço do que os postos tinham. Veio da delegacia lá de Iraí esse Paulo fazer
um curso, ele ficou chefe de uma delegacia, daí o prefeito aqui pediu para eu levar esse
pessoal nas casas, cicerone, eu cheguei para perguntar por onde nós começávamos, e ele
Quando saímos daqui nos tratamos em Palmeiras, lá tinham pessoas que se tratavam
depois que saiam daqui, tinham duas irmãs que eram lá de Palmeiras, do interior, meio
fazendeiras, então quando nós íamos no posto buscar o tratamento, nós vimos as duas irmãs e
um outro homem também, não sei se era parente delas ou conhecido, estava lá também, aqui
244
nós chamávamos de Patacão. Nós estávamos lá para ser atendidos e eles apareceram, mas eles
não vieram nos cumprimentar, de certo não queriam dar demonstração para os outros que nos
conheciam, ficaram olhando, eu fiz a mesma coisa também, eu já estava ali, eram eles que
deviam vir cumprimentar, não vieram... Foi esses que nós encontramos. Acho que foi lá em
Frederico que tinha um rapaz que estava se consultando, eu vi que ele era doente, e passou.
Às vezes os Postos de hansenianos eram separados dos outros. Esse de Palmeiras era
separado, o de Frederico parece que tinha tudo junto, mas tinha um consultório separado,
chamavam só de Posto. Depois que vim para Iraí, alí tinha muita gente, atendiam todas as
doenças, por pobreza, ali encontrei uma porção de gente, alguns conhecidos, tinha um que
morava na chamada vila operária. No Posto nós chegávamos cedo para conseguir ser atendido
depois do meio-dia, ali era Posto mesmo, tudo junto, misturado, esses que iam buscar o
O medicamento que nós buscávamos chamavam de 100%, mas aquele foi por pouco
tempo, depois foi sulfona-lafi, que até achei muito boa, era escrito assim, tratamento para...
- não tem problema dizer o nome antigo?... tratamento para a ... lepra. Nós raspávamos “a
palavra”, era uma latinha, raspávamos muito até sair o nome, se alguém visse não tinha nada,
podiam pensar que era fortificante, vitamina! Fazia isso aí, porque no interior a pior coisa que
existe é a curiosidade, uma coisa muito forte, tudo é estranho, então raspávamos, chegávamos
em casa e raspávamos, porque às vezes deixávamos em cima da mesa, uma hora a gente
esquece! Se fosse outra embalagem, de papel, ficaria ruim, se riscava podia dar desconfiança,
nós raspávamos a latinha dos dois lados! E não carregávamos nenhuma ficha com a gente.
Logo que tinha trocado a terra, ainda faltava eu pagar uma promissória que eu devia,
tive uma erisipela, e não sei, acho que foi lá no meu compadre mesmo que saiu a conversa
que nós íamos voltar para cá, não para o Hospital, mas para Porto Alegre e chegou nos
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ouvidos desse que eu devia, então ele achava que eu ia fugir do meu compromisso e veio me
cobrar, eu já estava na terra que eu tinha trocado, faltava pagar a terra que eu tinha comprado,
A mulher desse com quem eu tinha trocado a terra andou fazendo umas conversas,
que eu tinha uma doença ruim, ela disse que eu tinha alguma doença, porque eu fiquei de
cama, pé inchado, a erisipela é uma infecção que incha, dizia que eu tinha uma doença ruim,
ela espalhou por lá, quase deu problema, aí eu fui no Posto lá de Palmeira e contei para o Dr.
Mário, ele disse: - Vou te dar um atestado de saúde, se ela te falar qualquer coisa tu me
escreve e eu vou convidar ela para fazer exame aqui, ele me deu uma proteção muito grande.
Cheguei lá e mostrei para ela. - Se a senhora não acreditar nisso aqui, então vão lhe convidar
para a senhora ir lá no Posto e a senhora vai fazer exame para saber se está boa de saúde,
eu disse. Sei que terminou com aquilo. Ela podia pensar qualquer coisa, mas já mexeu com a
fazer exames. Disseram para mim em Palmeiras que eu ia passar a me tratar em Frederico
Wesphalen, abriram um Posto lá, ficava mais perto. Para ir para Palmeiras eu tinha que posar
em Iraí para no outro dia ser atendido de manhã. Uma vez eu e a Anita fomos de ônibus, então
tinha a hora certa, outra vez fui a cavalo. Um dia veio uma carta para mim do Posto de
Frederico, aí eu não fui, fazia pouco tempo que eu tinha me apresentado em Palmeiras, era
para ir a cada três meses, mas dali uns dias veio outra carta, eu disse para a Anita, vamos ir.
Ela pensava que estava grávida, ela aproveitaria e faria uma consulta e assim
fizemos. Cheguei lá e me identifiquei e o Dr. disse assim: - Porque não veio antes? Eu
respondi que recém fazia um mês que tinha me apresentado no outro Posto, que valia aquela
visita, mas lá não te falaram que eu queria falar contigo, não falaram nada, eu disse, só me
transferiram para cá, ele disse:- Não, é que nós temos todos os materiais para fazer exames e
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nenhum de nós sabe fazer, me disse o médico, nós não fizemos curso, assumimos o posto sem
fazer curso nenhum e nos disseram que tu sabia bem. Bom, eu sei como se faz, faziam em
mim, a gente fica sabendo como é que é, mas eu nunca fiz, mas se tem material vamos tentar.
Era o médico e uma enfermeira assistente, daí eu mostrei, isso aqui é assim, assim,
assim, perguntei se tinha lâmina, ele disse que tem, bom, então estou a sua disposição para
começar. Tinha tipo uma canetinha para rasgar a pele, embaixo da pele nós não temos sangue,
mas uma espécie de um líquido e de muco também, disse para ele que não era preciso enfiar
muito para dentro do nariz para tirar o muco, introduzir muito machuca e não precisava, e foi
indo, fui ensinando, e às vezes os dois não se acertavam, brigavam, e eu tinha que rir!
Depois nós éramos as cobaias ali, não tinha ninguém, nem um outro doente, eles
estavam nos esperando para ensinar eles! Eu contei para muitos por aí e eles não acreditavam,
mas é a pura verdade, eu perguntei para ele: - Tu não foi fazer curso lá em Porto Alegre,
Itapuã? – Não, ele disse, de repente veio uma ordem dizendo que eu tinha qualificação. -
Muito bonito, eu disse! Até acertar quantos erros vai dar. Tinha que dar muita demonstração!
Ainda bem que naquele tempo que faziam lá, não estavam mais internando gente assim, isso é
Tivemos dois filhos fora do Hospital, o João e a Francisca, então tentei me enraizar,
pensando no bem da família. Depois veio o problema do colégio, a filha estava terminando os
estudos nas escolas que tinham lá por perto, nós não tínhamos condições de mandá-la para um
internato. Os filhos me ajudavam, mas eu não queria aquela vida para eles, achei melhor vir
para Porto Alegre, eles tinham cabeça boa para estudar. Quando nós voltamos em 68 o
Amparo, onde ficavam as crianças estava em crise, então eles ficaram uma semana aqui no
Primeiro quando eles vinham nos visitar eles ficavam lá no portão, depois veio um
outro diretor que deixava entrar os grupos. As primeiras visitas foram meio constrangedoras,
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eles estavam acostumados com a gente, eles não esperavam a separação. Quando o diretor de
lá veio aqui a primeira vez com os nossos filhos, demorou pouco mais de um mês, ele me
disse assim: - Todas as crianças do Amparo são boazinhas, mas estas são a “nata”, quer
dizer, até ali criamos bem eles, se não foi bem, foi depois! Teve mais gente na situação dos
Naquele tempo não aceitavam os filhos aqui dentro e nós nem queríamos. Aqui eles
filho no colégio Padre Caladre, fez curso de impressor, está aqui na parede o certificado. Eles
não podiam falar mal do Amparo, tinham alguns diretores de lá que eram bons, outros eram
variáveis, uma vez entrou um que não era muito agradável com as crianças!
De saída as crianças não entendiam porque tinham que ficar lá, mas depois de certo
foram sabendo. Algumas pessoas de lá foram assustando as crianças para eles não contar nada
dos castigos ou sobre os banhos de álcool que elas tinham que tomar depois de vir nos visitar.
Isso que eles ficavam longe, que nós nem chegávamos perto, não era para eles contar nada...
Isso quem diz é a Anita, que nossas crianças não podiam falar nada, só que estava bom.
Depois a Francisca foi morar com a prima da Anita, nós ficávamos meio assim por causa do
João, ele ficou no Amparo, até os 18 também, eles eram muito unidos, quando eles foram para
lá a filha tinha que dormir com ele, ela tinha 10 e ele 8 anos!
E isto que nós pegamos uma época melhor, as anteriores eram mais difíceis,
acompanhava estas coisas também. Mas nossos filhos não puderam mais voltar, o primeiro
que pode morar aqui foi este rapazinho filho da Matilde, ele nasceu e cresceu aqui.
O hospital tinha suas leis, a Secretaria de Saúde tinha as normas dela. Tinha uma
cadeia para o pessoal que brigava, com lesão corporal aí dava cadeia, desacato e fugas
também. Nos primeiros tempos havia muitas fugas, eu fugi uma vez, voltei e fui para a cadeia,
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dois dias, era para ser mais, mas eu tinha trabalho, se a pessoa trabalhava para a caixa, o
presidente dizia que precisava dela, ficava registrado na cadeia, mas o presidente usava a
mulher do delegado tinha fugido dele, fugiu mesmo, ele estava uma fera, quando eu me
apresentei ele me deu cadeia dura. Isso foi nos anos 50, tentei tirar licença, passei quase um
mês lutando, ele não quis me dar, eu não tinha os exames bons, estavam me enrolando e eu
precisava sair para resolver um inventário, me aborreci com aquilo e fui para Ijuí.
A gente se comunicava aqui, um estava com vontade de sair, quando dava uma
lotaçãozinha num carro a gente mandava vir a saia lá pelo morro. Quando sabíamos que o
outro queria ir, nós nos juntávamos para sair mais barato, na volta cadeia. Tinha um internado
aqui que tinha taxi, combinavam e saiam, nós saíamos pelo morro, três, quatro pessoas
acompanhavam para ajudar a levar as malas. A direção ficava sabendo depois, quando a
pessoa não aparecia, nós íamos lá em cima e nos esperavam lá, fugíamos à noite, alguns saiam
durante o dia.
A cadeia era normal, ficava fechado lá, às vezes tinha mais de um dava para ficar
conversando. Aconteceu um crime aqui, um rapaz foi baleado, ele tinha dezoito anos e devia
para a justiça, ficou doente, saiu da cadeia para vir para cá, às vezes ele fugia da cadeia lá
fora, aqui ele não estava na cadeia, ele parecia assim, louco, se ele tinha vontade de andar de
carro, pegava um carro para dar umas voltas, acho que não tinha crime até. Aqui dentro ele
não cometeu nenhum, agora alguma coisa tinha, ele era valente, não tinha medo, por isso
aconteceu, ele foi baleado e esse que fez isso ameaçou outras pessoas aqui dentro. Houve
outro caso no tempo em que eu não estava mais aqui, este decepou a mão do outro com um
facão, o que decepou eu não conheci, o outro sim, esta vivo no Hospital em Santa Catarina.
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nomeado pelo diretor. Os guardas internos eram doentes, os guardas sadios ficavam cuidando
as entradas e saídas. Quando tinha uma vaga ou convidavam, eles se tornavam guardas. A
função deles começava em cuidar a separação dos homens e das mulheres. Os guardas
As irmãs sempre estiveram aqui, trabalhei no refeitório de garçom uma época, tinha
contato com três irmãs, uma era a irmã Sebastiana, uma das fundadoras, tinha outras duas a
cuidavam dos doentes, depois quando nós voltamos algumas não estavam mais aqui.
A madre geral não trabalhava assim, mas ela determinava tudo que era do hospital,
quem queria pedir alguma coisa, quem queria mudar de quarto, era tudo com ela. As irmãs
eram necessárias aqui, tinha a irmã Lídia que era como uma médica. Mas havia diferença
entre eles, os médicos davam a consulta e os remédios, as irmãs ficavam mais com o serviço
braçal, vamos supor, cuidavam dos doentes, tinham enfermeiros também, nos primeiros
Havia duas igrejas aqui, aquela que fica lá fora era dos funcionários, as irmãs não
paravam nunca, falecia alguém, elas faziam o enterro, sempre tinha uma mão forte delas. A
princípio o padre fazia os enterros, tinha um padre que era paciente aqui, ele era de São Paulo,
teve um outro jesuíta, tinham dois, um irmão marista e um jesuíta, até este era meu parente.
Nos primeiros anos nós não mantivemos praticamente nenhum contato com a
comunidade de fora, nenhum mesmo, as coisas que vinham de fora do hospital, por exemplo,
para o armazém era uma senhora que comprava e mandava o caminhão do Estado buscar, ela
trabalhava muito. No começo não tínhamos nenhum contato, para dizer a verdade começamos
a ter quando voltamos para cá em 68. Um doente fez uma cancha de carreira então começou a
haver um pouco de contato. Aí foi indo, as primeiras vezes até se a gente queria botar um
250
barzinho lá tinha que ser separado, tudo dividido, depois ficou um só, aquilo ajudou muito.
Antes, de fora eu só conhecia alguns que trabalhavam na cozinha e três rapazes, dos guardas,
deles nós tínhamos conhecimento, mas comunidade assim não, muito raro, eles não vinham
fazer nada aqui para dentro, a gente também não ia para lá.
Esses do refeitório não tinham nenhum preconceito, nós até começamos a negociar
com eles, tipo contrabando, por baixo do pano! Eu tinha a criação de abelha, mel quase não
vendi por que era muito pesado para levar, não valia à pena, então a gente matava porcos,
muita gente criava porcos, nós vendíamos banha, eles vinham buscar ou nós levávamos. Este
comércio era proibido, não podíamos vender, mas sobrava muita coisa e o que sobrava a gente
vendia. Às vezes tinha três, quatro, cinco encarregados que subiam o morro com as latas nas
costas, nós nos encontrávamos lá na casa deles, lá na casa de uma pessoa de saúde que nos
recebia, tomávamos vinho com ele, então nós até tropeávamos porcos vivos pelo morro, um
atrás do outro!
Uma vez tratei a venda de uns porcos com uns que tinham aí, eles viriam buscar os
porcos de carreta, o guarda ia permitir que eles passassem pelo portão, quando foram passar o
guarda não quis deixar. A primeira surpresa que tive quando eu voltei aqui foi que teve um
que negociou direto, nós tínhamos que tropear escondidos de noite pelo morro, esse veio e
comprou porco direto, o hospital já estava permitindo, de repente entrou aquele homem com
A nossa aceitação às vezes tinha algumas barreiras, não eram todos, alguns, a Anita
diz que sentia, que as pessoas no ônibus não sentavam no mesmo banco quando sabiam que a
gente era daqui. Esta visão foi mudando, ainda tem hoje, mas são pessoas que eu acho que são
incertas consigo mesmas, não vou achar a palavra, mas são pessoas que têm medo de tudo,
medo até da noite, da noite escura, então isso aí não tem cura.
251
Aconteceu casos assim, por exemplo um senhor daqui foi com licença, então
encontrou um meio vizinho que tinha muito medo dele, e este vizinho vinha vindo justamente
com um padre lá daquele lugar, ele disse para o padre “esse aí tá no leprosário”, este senhor
chegou a ouvir. Esse que fez o comentário, que não ia nem visitar o outro com medo, levou
uns três anos e ele estava internado aqui! Esse que tinha medo, acontece.
Eu não fiquei tão marcado assim pela doença, não poderia dizer o que teria sido do
meu futuro se tivesse ficado lá fora, a gente sempre dá um jeito na vida, eu não posso dizer
como eu iria ser... Eu vim internar aqui e me acostumei, eu construí minha vida aqui. O
hospital apenas me beneficiou, se a gente continuasse sem tratamento, a gente não existia
Hoje eu não teria mais condições de sair daqui, não daria para fazer outra vida, às
vezes se tem algum passeio, eu vou. Tem lugar que eu gostaria de ir, Rolante, minha mãe
passou um tempo da vida dela neste lugar, ela sempre falava. Queria conhecer lugares que a
gente ainda não conhece, no Rio Grande aqui, no Brasil inteiro, muitos vão para o estrangeiro,
nós aqui temos tanta coisa bonita para ver, não acha?
Eu vejo o hospital como uma cidadezinha do interior, tem os trabalhos, tem lazer,
nós somos considerados moradores, o hospital é apenas lá onde existe a enfermaria. É como
uma comunidade, agora moram aqui os pacientes do São Pedro. Tiveram a iniciativa de trazer
estes pacientes para cá. Na época vieram dois médicos psiquiátricos para conversar, contar
Primeiro a gente estava muito assustado, achávamos que eles iam pegar uma turma
toda e trazer, contavam umas histórias, às vezes muito diferente do que era, ou quem sabe era
assim lá no São Pedro, não sei. Então nos primeiros tempos a gente não queria aceitar, porque
nós também éramos discriminados pelo pessoal do São Pedro, a gente achava que ia ser muito
A direção pegou aquela área do pavilhão de baixo que nós estávamos morando,
estavam reformando outros dois aqui em cima, eles botaram os casais neste pavilhão aqui de
cima, tiraram os outros que não eram casais de lá e colocaram aqui no lado de cima da
Para nós irmos para o Cassino, nós tínhamos que fazer uma volta grande lá pelo
refeitório, eles quiseram fechar antes dos pacientes do São Pedro chegar. Eles ainda
recomendaram, não estraguem a tela, não cortem a tela para querer passar. Então foi ali que
eu pensei... fiz uma cova para passar por baixo da tela, atingi a terra, não a tela! Comecei a
passar por ali para ir para o outro lado, depois os outros achavam que era melhor para eles
também e começaram a passar por baixo da tela e assim continuou por uns dois meses, para
As relações com eles começaram aos poucos, porque eles ficaram também assim
estranhos, começaram a sair devagar, os que estavam melhores começaram a vir ali no
armazém, uns até chegavam e pegavam as coisas sem comprar, eles eram estranhos aqui, de
certo nunca viram o armazém, pegavam as coisas, os atendentes às vezes não conseguiam
acompanhar... Eles andavam pelas ruas, mas nunca fizeram nada, não dá para se queixar.
Aos pouco foram se entrosando, para falar a verdade a nossa situação ficou melhor
que a deles, a situação deles não faz muito tempo que estão melhorando, a causa dos pacientes
do São Pedro é muito mais difícil. Ainda começou a melhorar depois de uns dois anos para cá,
antes viviam uns dez ou vinte na porta do armazém pedindo, viam os outros comprar coisas e
ficavam pedindo. Hoje não, todos ganham, tem sempre algum trocado, uns ainda trabalham,
todos ganham pensão vitalícia, então eles têm seu dinheirinho. São bem corretos, pagam suas
Hoje estão administrando o hospital como podem, acho que não existe dinheiro em
nenhum Hospital antigo, pude notar isso no São Pedro. Tive no Jardim Botânico e, também,
253
só há conservação, não tem novidade, acho que é crise do Estado mesmo. Este trabalho que
vocês estão fazendo é gratificante, não havia acontecido ainda e com o tempo não vai mais
haver internados aqui. Estão saindo ou morrendo, com o tempo isso não vai existir, vão ficar
Considerações Finais
Quando se chega ao final de uma jornada, tem-se a impressão que ficaram muitas
foram feitas, livros que não foram consultados, pessoas que não foram ouvidas, tantos outros
modo? Certamente haveria outro trabalho, não este. Mas ainda assim faltaria... Nos limites do
que foi proposto fazer, foi-se bem sucedido. Escrever esta dissertação além de uma prática de
específicas. A Lepra foi a enfermidade escolhida para promover estas reflexões, moléstia
pouco visitada pelos pesquisadores da área de História, fato que contribui para que persistam
na atualidade as representações sociais antigas sobre a Lepra.622 Espera-se que este trabalho
venha contribuir de alguma forma para pensar algumas questões referentes ao tema.
que não parta deste pressuposto corre o risco de empobrecer a questão. Por um lado, teve-se o
que poderia se chamar de uma “pressão externa” para combater a doença. As questões
descobertas científicas que pareciam lançar luz sobre uma moléstia tão antiga, quanto
desconhecida. Os países assolados pela endemia se viram impelidos a tomar medidas contra a
622
Esta idéia é sugerida por Ítalo Tronca, a relação entre a “desqualificação” da Lepra pela historiografia e o
vigor das persistências das representações em relação à Lepra. TRONCA, Ítalo. As máscaras do Medo. Op.
Cit.p. 23
255
Por outro lado, teve-se uma “pressão interna”. A filantropia, que historicamente
cuidava do problema da Lepra no Brasil, mal estava conseguindo abrigar alguns doentes nos
asilos existentes, que dirá contribuir para pôr fim à marcha da moléstia. A criação da
Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas (1921) acenava como uma resposta do
governo aos apelos que vinha recebendo, sobretudo, dos setores médicos e sociais. O governo
trazia, assim, a questão da Lepra para a alçada estatal. Entretanto, esta Inspetoria foi pouco
eficaz, entre outros fatores, devido a dificuldade do Estado em estender sua atuação a todas
governamental em caráter nacional, foi possível ao Estado empreender uma Campanha contra
a Lepra em todo o território, dispondo dos recursos necessários e dos mecanismos jurídicos
legais para levar adiante o combate à endemia. Combater a Lepra no período estudado, além
país civilizado.
diretivas nacionais de combate à Lepra no Estado e quais seus desdobramentos. Foi possível
perceber que ao lado dos pressupostos científicos caminharam representações sociais sobre a
doença, presentes não apenas na fala da população, como no caso da discussão sobre a
escolha do local do Leprosário, ocasião em que o medo social ficou evidente, mas na fala dos
deixava de ser preocupante. Entregues à própria sorte, centenas de pessoas vagavam em busca
de ajuda. Algo precisava ser feito, essa foi a compreensão dos homens daquela época.
sociedade. Era preciso segregar os leprosos não porque a medicina tivesse condições de
oferecer-lhes a cura ou qualquer tratamento minimamente eficaz, mas para evitar que
contagiassem a população.
funções previstas pela Campanha. Mostrou-se ao longo do trabalho como se constituiu a vida
na Instituição, primeiro do ponto de vista do Hospital, depois sob o olhar dos internados. Se,
diante da tragédia social que era ser doente de Lepra, por outro lado reforçou o preconceito e
Embora fosse o único meio conhecido na época para conter a propagação da Lepra, a
segregação foi muito contestada, primeiro porque pairavam dúvidas sobre o quanto a moléstia
era contagiosa, segundo porque experiências internacionais denunciavam que a prática nem
sempre obtinha resultados satisfatórios, como foi o caso das Filipinas. O fracasso do sistema
motivo do fracasso era simples, certos de que seriam segregados, os doentes se escondiam das
autoridades sanitárias.623
Mas parece que o “aviso” vindo daquele país não ressoou por aqui. Foi preciso
transcorrer muitos anos – até a descoberta da sulfona! – para que as autoridades sanitárias
a Lepra no Brasil. O Hospital Colônia Itapuã foi fruto deste (mal)entendimento, que a
623
Op. cit.
257
Lepra foram arbitrárias, amparadas mais no poder do Estado autoritário capaz de fazer
resultado, constata-se centenas de pessoas que ainda residem nos Leprosários espalhados pelo
Brasil, purgando um passado, muitas vezes doloroso. Poderiam ter tido um destino menos
amargo se não tivessem sido segregadas? Provavelmente não, porque iriam cair no
desamparo. Algo tinha que ter sido feito, o problema reside na forma como foi realizado.
Filipinas ou em qualquer outro lugar, não surtiram os efeitos desejados, como admitiram a
sobretudo a carente. Esse parece ter sido um aspecto pouco discutido entre os envolvidos na
Campanha.
Por certo a Campanha não cumpriu seus objetivos iniciais, eliminar a Lepra do
Brasil. Tão logo foi descoberto um tratamento eficaz contra a doença, a segregação, ou o
doentes pode ter representado um empecilho para a detecção de novos casos, cientes da
esconder as pessoas que tinham uma convivência íntima com ele (comunicantes), de modo
que não fossem procuradas pelos serviços de saúde. Neste sentido, esta prática pode ser
saudada como um fracasso, segregava apenas os casos “abertos” da doença, ou seja, quando
os sinais da Lepra eram evidentes, não tendo praticamente nenhuma atuação sobre os casos
A região Sul foi uma das menos afetadas pela moléstia no Brasil. Em 1938, eram
estimados pouco mais de 4 doentes para dez mil habitantes, enquanto a média nacional era de
10 casos para cada dez mil habitantes, ou seja, em cada mil brasileiros um era doente.624 Nas
últimas décadas do século XX a situação continua não muito animadora. Para se ter uma
idéia, em 1985 eram registrados 19 doentes para cada dez mil habitantes, ou seja, em cada mil
brasileiros, quase dois eram doentes. Comparando os números, em 1985 o país tem a média
de casos maior do que tinha em 1938. Em 2000 este número sofre uma redução considerável,
disciplina estudada nos cursos de Medicina, o que contribui para que muitos profissionais
doença chegam a seus consultórios, muitas vezes, os médicos pedem exames sofisticados,
é a busca tardia por parte dos doentes de tratamento médico, visto que na sua fase inicial,
caracterizada geralmente por uma mancha na pele, a Hanseníase não desperta preocupação,
Brasil no ano de 1997, quase 10% do total mundial que era de 890 mil doentes. Estes números
624
BARRETO, Barros. Organização Moderna da luta contra a Lepra: a campanha no Brasil. Arquivos de
Higiene, Rio de Janeiro, 1938, 8 (2) : 245. In: MAURANO, Flávio. Tratado de Leprologia. Op. Cit. p. 37-39.
625
Guia para controle da Hanseníase. Cadernos de Atenção Básica, n.º10, Ministério da Saúde. Brasília, DF,
2002, p.9
626
Em um curso sobre “Prevenção das incapacidades em Hanseníase”, oferecido pela Secretaria da Saúde do
Estado, realizado no Hospital Itapuã, ouvimos relatos sobre a situação atual dos doentes em algumas regiões do
Estado. Muitas pessoas chegam ao serviço de saúde quando a doença já provocou lesões mais sérias, algumas em
estado grave, com mutilações e cegueira. Em alguns casos, os doentes procuram tardiamente os serviços de
saúde, em outros, procuram a tempo, mas são mal diagnosticadas. Como foi o caso relatado sobre uma moça de
Erechim, com 22 anos, doente desde os 7 anos, que era tratada à base de pomadas e o caso de um outro senhor
doente há 40 anos, ele teve os vinte dedos amputados pelo diagnóstico de osteomelite ... Mesmo que estes casos
apresentem tratamento e cura, as seqüelas são irreversíveis. Curso de “Prevenção às incapacidades em
Hanseníase”, dias 29 e 30/10/2002, Hospital Colônia Itapuã. Profissional responsável: Rita Sosnoski Camello,
chefe da seção de dermatologia sanitária, coordenadora do controle da Hanseníase, SES/RS.
259
Ainda não se pode saber ao certo qual foi a contribuição da Campanha, mais
precisamente do Hospital Colônia Itapuã, para a profilaxia da Lepra no Rio Grande do Sul,
não se sabe sequer se houve uma contribuição. Se forem comparadas as estatísticas, em 1938
havia 4 casos para 10 mil habitantes, em 1991 havia 3,96 casos da doença para 10 mil.628
Entretanto, estes dados devem ser interpretados com cuidado, este estudo se limitou até a
A única avaliação que se pode fazer com relativa segurança diz respeito ao papel do
pessoas tiveram seus destinos modificados, exigindo que se adaptassem a nova condição. Esta
doentes, ao menos os que ficaram morando no Leprosário, romperam praticamente com todos
os vínculos externos. Reconstruíram suas vidas (re)significando aquele lugar. Criado para
isolá-los do mundo, o Leprosário acabou por tornar-se o próprio mundo daqueles internados,
627
Como os gestores Municipais de Saúde vão acelerar a Eliminação da Hanseníase no Brasil, Brasília,
CONASEMS, 1999.
628
A eliminação da Hanseníase vem sendo uma preocupação da Organização Mundial de Saúde e dos governos
dos países atingidos. O tratamento no Brasil é gratuito e fornecido pelas Unidades Básicas de Saúde. No Rio
Grande do Sul, nos últimos 10, anos tivemos uma redução drástica do número de casos: 1991: 3628 casos; 1992:
2580; 1993: 2247; 1994: 1305; 1995: 861; 1997: 514; 1998: 464; 1999: 409; 2000: 413; 2001: 177; 2002: 231.
Fonte: DS/SES/RS
260
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Jornal do Estado, Porto Alegre, ano II, nº. 141, 16/5/38 – MCSHJC
Jornal do Estado, Porto Alegre, ano III, n.º 633, 13/1/40 –MCSHJC
Jornal do Estado, Porto Alegre, ano III, n.º 635, 16/1/40 –MCSHJC
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Entrevistas
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SERRES, Juliane Conceição Primon. Entrevista com Roberto Stainhaus. Santa Cruz do Sul,
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Chico”. CEDOPE/HCI.
______. Entrevista com a Sra. L.K. Hospital Colônia Itapuã, 15 de outubro de 2003.
Legislação
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Decreto 7.481 de 14 de setembro de 1938. – Jornal do Estado, 25.11.38. Ano II, nº 296 -
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Apêndices