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Os Painéis

de
S. Vicente de Fora

Novos Documentos, Novas Revelações

Clemente Baeta
© Clemente Baeta
© Os Painéis de S. Vicente de Fora –
Novos Documentos, Novas Revelações
Design da capa: Clemente Baeta
1ª Edição: Agosto / 2014
Registo IGAC: 3196 / 2014
Editado por Bubok Publishing S.L.
Impresso em Portugal
A todos os Investigadores e Estudiosos dos Painéis:
- do passado
- do presente
- do futuro

“Eis o meu segredo.


É muito simples: só se pode ver bem com o coração.
O essencial é invisível aos olhos.”
O Principezinho, Antoine de Saint-Exupéry

“Não procures esconder nada; o tempo vê, escuta e revela tudo.”


Sófocles

“Algo só é impossível até que alguém duvide e prove o contrário.”


Albert Einstein
Índice

Introdução ………………………………….……………….. 7

I Parte - Continuação
1. S. João Evangelista e a vara …………………………….. 13
2. O livro do painel do Infante …………………………….. 23
3. O embaixador Jean Jouffroy ……………………………. 29
4. O capacete do Infante Santo …………………………….. 39
5. Porquê só em 1464-1467? ………………………………. 41

II Parte – Continuação e Inovação


6. O traje da rainha D. Isabel ………………………………. 45
7. Letras dissimuladas ……………………………………... 51
8. O frade de barbas e a tábua ……………………………... 55
9. O rosto de um pintor flamengo …………………………. 71
10. O pintor dos Painéis …………………………………….. 77
11. A inscrição na bota do Príncipe …………………………. 89

III Parte – Inovação, Revelação e Negação


12. A tese vicentina …………………………………………. 99
13. A iconografia de S. Vicente …………………………….. 113
14. A cronologia dos documentos …………………………... 121
15. Os documentos das Visitações ………………………….. 133
16. Os pareceres de Francisco Pereira Pestana ……………... 139
17. A opinião de Francisco de Holanda …………………….. 149
18. O documento da Biblioteca do Rio de Janeiro …………. 151
19. O testemunho de D. Rodrigo da Cunha ………………… 155
20. O outro relato de D. Rodrigo da Cunha ………………… 159
21. A contribuição do inventário de 1821 …………………... 167
22. A reconstituição do retábulo do altar de S. Vicente ……. 175
23. Conclusão ……………………………………………….. 179
Apêndices
I. Documentos relativos aos Pintores ………………………... 181
II. Documentos relativos às Visitações ………………………. 185
III. Outros documentos ………………………………………... 193

Bibliografia …………………………………………………... 195


Introdução

Os Painéis revelam, para além do tema principal, inserido num


determinado contexto histórico, um conjunto de mensagens e
referências a outros acontecimentos. Podemos procurar decifrar alguns
através da descodificação das pistas e símbolos presentes nas tábuas.

Na pintura dos séculos XV e XVI são frequentes as inserções de


mensagens transmitidas numa linguagem simbólica e de divulgação
restrita. Esta era apenas conhecida por poucos e a sua interpretação ou
tradução perdeu-se ao longo dos séculos. Para se entender e interpretar
o tema dos Painéis há que descobrir a “escrita” subjacente à sua
execução. Para a decifrar é necessário fazer um trabalho analítico e
penetrar profundamente nos símbolos, de modo a entender as
mensagens ou representações ali existentes.

Os objectos expostos devem ser percebidos como pistas que contêm


em si um enigma ou mensagem codificada. São convites ou desafios
feitos aos observadores da pintura para que tentem a sua decifração de
modo a chegarem à solução ou à leitura do que ali está encoberto. A
descodificação de todos estes elementos permitirá uma nova leitura e
interpretação dos Painéis. Muitas cenas, imagens ou objectos podem
até ter mais do que um significado. Já apresentámos no nosso estudo
anterior1 alguns indícios, argumentos e até provas, que são
suficientemente credíveis para serem pensadas, analisadas e estudadas
mais profundamente.

O nosso contributo para a “Questão dos Painéis” poderá ferir as


susceptibilidades daqueles autores que consideram que este assunto
está encerrado ou que será pouco passível de sofrer alterações. Por

1
BAETA, Clemente – Os Painéis em Memória do Infante D. Pedro (Um Estudo),
Lisboa, 2012
7
isso, estes assumem à partida que qualquer novo contributo não
passará de uma simples fantasia. Sabemos que é difícil ir contra a
posição defendida por uma grande parte dos historiadores de arte ou
académicos que se têm debruçado sobre esta pintura. Este sector da
crítica de arte coloca habitualmente reticências a estas análises e tem
tendência a fugir a qualquer debate que inclua os pormenores que,
sublinhamos, estão na pintura por alguma razão. Escusam-se a
examinar ou a emitir uma opinião sobre estes detalhes, e quando o
fazem é sempre de um modo muito evasivo.

Quando pomos em causa todo um conjunto de mitos e quando


pretendemos dar um novo enquadramento ao tema, logo aparecem os
guardadores e vigilantes dos dogmas oficiais a contestar essa visão.
Pensamos que é imprescindível, que haja por parte destes académicos,
um espírito mais aberto para aceitar a possibilidade de outras leituras
que contrariem, de certo modo, a versão mais divulgada. Não
existindo esta abertura, acontecem habitualmente duas atitudes por
parte destes críticos: a indiferença total ou a ridiculização do
respectivo autor através do esmagamento da sua tese.

Nas nossas investigações explorámos vias que ainda não tinham sido
abordadas e que, pensamos, na perspectiva de um ou outro
investigador, poderão abrir outros caminhos de análise, provavelmente
mais esclarecedores ou enriquecedores, de modo a desvendar um
pouco mais o enigma dos Painéis.

*****
Este segundo estudo deverá ser entendido não só como um
complemento às ideias expostas em Os Painéis em Memória do
Infante D. Pedro, mas também como a entrada em novos campos de
investigação, de certo modo afastados do tema principal já analisado
no trabalho anterior.
Dividimos este trabalho em três grandes partes.

8
A primeira, “Continuação”, reforça os argumentos que expusemos
nalguns capítulos do primeiro volume. Provamos que a vara dourada
que S. João Evangelista segura no painel do Arcebispo foi um atributo
muito utilizado na iconografia deste santo. Esquematizamos o texto
presente no livro aberto do painel do Infante, de um modo legível.
Salientamos que, apesar das severas críticas que teceu a D. Afonso V,
o embaixador e futuro cardeal, Jean Jouffroy, manteve cordiais
relações com o soberano português. Encontramos no capacete do
Infante Santo um pormenor associado à sua santidade. Explicamos a
razão do hiato temporal decorrido entre a morte do infante D. Pedro
(1449) e a homenagem que lhe foi feita nos Painéis (1464-1467).

A segunda parte, “Continuação e Inovação”, visa completar as


análises efectuadas a algumas figuras e revelar simbolismos de
determinados objectos que nos permitiram apresentar soluções que,
reconhecemos, são de certo modo temerárias. Na figura da rainha D.
Isabel damos particular atenção à cobertura da sua cabeça e ao seu
saiote. Vislumbramos nos Painéis centrais um conjunto de letras
camufladas que vão de encontro à nossa tese. Propomos uma segunda
leitura para as figuras do painel dos Frades, local onde descobrimos
um mapa de Portugal. No painel dos Pescadores identificamos o rosto
de um grande pintor flamengo que, indirectamente, nos permitiu fazer
uma leitura bíblica da cena ali representada. Introduzimos novas pistas
para a identificação do pintor dos Painéis. Propomos uma decifração
para a inscrição existente na bota do príncipe D. João, tendo por base
um novo ângulo de leitura da mesma.

A última parte deste estudo “Inovação, Revelação e Negação” integra


a apresentação de um conjunto de documentos inéditos e ausentes do
debate sobre os Painéis, cuja contribuição irá esclarecer ou solidificar
determinadas conclusões já divulgadas. Do mesmo modo
aprofundamos a análise de testemunhos e documentos já publicados
que nos permitiram retirar novas ilações. Analisamos criticamente a
tese vicentina, destacando os seus pontos fracos. Apresentamos um
conjunto de imagens associadas à iconografia de S. Vicente de
9
maneira a evidenciar as diferenças existentes com a imagem do santo
do Políptico. Expomos sinteticamente a cronologia dos documentos
conhecidos, e dos outros agora divulgados, relativos ao retábulo da
capela de S. Vicente da Sé de Lisboa e aos Painéis. Seguidamente
examinamos um conjunto de testemunhos, onde se incluem estes
novos documentos. Dissecamos a parte do relato de D. Rodrigo da
Cunha que não tem sido objecto de atenção por parte dos diversos
estudiosos. Consideramos o Inventário da Mitra de 1821, de onde
extraímos algumas conclusões significativas, um documento
importante que deveria merecer uma maior atenção da parte dos
investigadores. A culminar esta parte, e com base nas informações
inseridas nos diversos documentos, apresentamos uma proposta de
reconstituição do retábulo do altar de S. Vicente da capela-mor da Sé
de Lisboa.

*****
Finalmente uma palavra de reconhecimento e de agradecimento a
todos os investigadores e estudiosos, independentemente das teses que
têm defendido, que há mais de um século, têm analisado e debatido
este tema tão aliciante e viciante. Confessamos que, sem as suas
contribuições, não nos teria sido possível equacionar ou aprofundar
esta matéria da forma que se encontra expressa nos nossos dois
estudos.

10
I PARTE

CONTINUAÇÃO

1. S. João Evangelista e a vara

No nosso estudo anterior defendemos a tese de que as figuras


santificadas representadas nos Painéis eram S. João Evangelista.
Apresentámos aí um capítulo com um conjunto de argumentos que
suportaram este ponto de vista2. Referimos igualmente que esta
identificação “já tinha sido aflorada por Conceição Silva sem no
entanto avançar com uma justificação plausível para essa ideia”.

Entretanto, cerca de oito meses após a publicação desse livro, tivemos


conhecimento de três artigos publicados em 1927 nos quais João Luís
da Fonseca3 nos deu a sua interpretação sobre o Políptico. Na primeira
peça apresentou as suas propostas de identificação para as principais
personagens. No artigo seguinte crítica as identificações, então
publicadas por outros autores para a figura santificada: S. Vicente,
Sta. Catarina e Infante Santo. No último apresentou uma proposta de
identificação para o santo que seria coincidente com a que iríamos
defender 85 anos mais tarde.

Uma análise à tese deste autor, relativa a S. João Evangelista, permite


verificar que os seus pressupostos e justificações divergem e, de certo
modo, são menos sólidas e mais incompletas que as nossas.

2
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap.13. A figura santificada
3
FONSECA, João Luís da Fonseca – in Magazine Bertrand, nºs 1, 10 e 11, 2ª série,
1927
13
João Luís da Fonseca salientou que o santo era venerado na corte,
particularmente pela rainha D. Isabel e pela infanta D. Catarina.
Destaca em especial os pormenores de a soberana ter deixado em
testamento instruções para mandar erigir um mosteiro em honra deste
santo, e por ter baptizado os seus três filhos com o nome de
João/Joana.

De seguida refere-se ao livro aberto do painel do Infante,


considerando-o um atributo do santo:

Da mesma maneira o Evangelho, com as letras bem nítidas e bem


legíveis, é o símbolo de S. João Evangelista, é o seu Evangelho e com
êle é corrente ser representado o santo em várias épocas e várias
escolas de pintura.4

No desenvolvimento do seu raciocínio o autor debruça-se depois sobre


a dalmática:

Antes de explicar a significação dêste atributo convém frizar bem que


a dalmática vestida pelo santo não significa a qualidade de diácono,
pois que a dalmática não era só usada na igreja pelos diáconos, era
usada por outras dignidades, até pelo próprio Papa…

Mas eu creio que a dalmática não está ali para representar um


diácono; o pintor vestiu a figura com uma dalmática de rico tecido de
ouro sôbre uma longa alva para nos dar a ideia duma grande figura
da igreja – um santo.5

Refere ainda que era muito comum os santos se apresentarem vestidos


à moda da época da execução das pinturas.

Conclui a sua análise afirmando que a vara que o santo segura é um


atributo que corresponde à vara de medir que um anjo entregou a S.
João Evangelista, segundo o relato do seu Apocalipse (cap. 11:1-2):

4
Idem - Op. cit., nº 11, pág. 50
5
Idem - Op. cit., nº 11, pág. 51
14
«1 – E deu-me uma cana semelhante a uma vara e foi-me dito:
levanta-te e mede o templo de Deus, e o altar, e os que nele fazem as
suas adorações.

2- Mas o átrio que está fora do templo, deixa-o de fora e não o meças:
porque êle foi dado aos gentios e eles hão-de pizar com os pés a
Cidade Santa por 42 meses.»6

Ilustra esta transcrição com um desenho (fig.1)7 feito a partir de um


detalhe de umas tapeçarias flamengas, existentes no então palácio real
de Madrid, que representavam o Apocalipse de S. João.

Fig. 1 Fig. 2

O autor publicou ainda uma outra imagem, correspondente ao canto


superior direito de um quadro (fig.2)8, que mostraria, segundo ele, S.
João Evangelista a segurar a vara de medir o Templo. Esta afirmação
não é correcta porque o que vemos é um anjo a agarrar um bastão. O
quadro completo representa Jesus e os seus apóstolos no Horto de
Getsémani, momentos antes de ser traído por Judas que, com um beijo
na face o denunciaria aos fariseus. Por esta razão só vemos onze

6
Idem, Op. cit., nº 11, pág. 52
7
Idem, Op. cit., nº 11, pág. 51
8
VERGÓS, Oració a l'Hort de Getsemaní, (1495-1500), Museu Nacional d'Art de
Catalunya.
15
apóstolos (na metade esquerda da pintura). S. João, a figura situada ao
meio dos três apóstolos colocados no primeiro plano, não segura,
conforme se vê, qualquer vara.

Acrescentamos, a título de exemplo, duas imagens, datadas do século


XIV (fig. 39 e 410), que ilustram também esta passagem do Apocalipse,
nas quais se vê o anjo a entregar uma vara a S. João Evangelista para
que este meça o templo de Deus.

Fig. 3 Fig. 4

No estudo anterior escrevemos que este objecto representava


simbolicamente a vara ou bastão de poder que deu posse ao infante D.
Pedro no cargo de regente. Aceitamos porém, que se possa fazer uma
outra leitura que se enquadre dentro da perspectiva sugerida no artigo
que acabámos de analisar, isto é, uma vara de medir. Nesta linha de
pensamento encontramos uma outra referência no Apocalipse (cap.
21:15-17) sobre um outro objecto de medição descrito como uma
cana, mas com o pormenor de ser dourada:

E aquele que falava comigo tinha uma cana de ouro, para medir a
cidade, e as suas portas, e o seu muro.

9
The Cloisters Apocalypse, (manuscrito inglês do início do séc. XIV), The Cloisters,
Nova Iorque, E.U.A.
10
Integrada no conjunto de As Tapeçarias do Apocalipse, (1377-1382), Château
d’Angers, Angers, França.
16
E a cidade estava situada em quadrado; e o seu comprimento era
tanto como a sua largura. E mediu a cidade com a cana até doze mil
estádios: e o seu comprimento, largura e altura eram iguais.

E mediu o seu muro, de cento e quarenta e quatro côvados, conforme


à medida de homem, que é a de um anjo.11

Esta passagem está ilustrada nas figs. 512 e 613.

Fig. 5 Fig. 6

Este pormenor da vara ou cana de ouro levou-nos a investigar mais


profundamente a vida de S. João Evangelista. Nesta pesquisa
encontrámos a referência a um importante livro intitulado Legenda
Áurea ou Lenda Dourada. Esta obra é uma grande compilação, escrita
em latim, sobre as vidas, milagres e martírios de inúmeros santos,
efectuada por Jacobus de Voragine por volta de 1260. Cópias deste
manuscrito espalharam-se rapidamente pela Europa e, após a invenção
da imprensa, efectuaram-se diversas edições14, não só em latim mas

11
Novo Testamento, tradução de João Ferreira de Almeida, pág.434, Lisboa, 1943
12
Bamberger Apokalypse, (c. ano 1000), f. 55r, Bamberg, Staatsbibliothek, MS A.
II. 42, Alemanha
13
Matthias Gerung, (c. 1530-32), f. 303v, Ottheinrich-Bibel, Bayerische
Staatsbibliothek, Alemanha
14
1ª edição publicada em 1470
17
também noutras línguas europeias, que atingiram a máxima
divulgação no final do século XV. Este livro foi uma grande fonte de
informação e de inspiração para os pintores deste período (1260-1530)
quando queriam compor uma cena com determinado santo. Ainda hoje
os historiadores de arte recorrem a ele para recolherem elementos
auxiliares à identificação de um santo sobre a qual têm dúvidas ou
dificuldades em perceberem as cenas ou os atributos expostos numa
determinada pintura ou escultura daquele período.

A Legenda Áurea inclui um capítulo sobre S. João Evangelista que,


após a descrição de vários episódios da sua vida, conclui com um
texto onde se relata uma série de milagres que lhe foram atribuídos:

Isidoro15, no livro da vida e da morte dos santos e dos santos Padres,


diz o seguinte: S. João Evangelista transformou as hastes de árvores
em ouro fino, as pedras e o cascalho do mar em pedras preciosas,
restaurou os pequenos pedaços de pedras preciosas à sua natureza
inicial, ressuscitou uma viúva da morte, reintroduziu a alma de um
jovem no seu corpo, bebeu veneno sem dor ou perigo, e os que haviam
sido mortos pelo mesmo motivo foram recuperados para a vida.16

Assumimos assim que a vara dourada, que S. João Evangelista segura


no painel do Arcebispo, possa também ter o significado associado ao
milagre ou ao poder de transformar ramos, hastes ou folhas em ouro.
Este prodígio foi fixado em imagens (séculos XIV-XV) utilizando
para o efeito uma iconografia diferente da habitual.

As cenas das iluminuras das figs. 7 e 8 mostram, respectivamente,


uma pregação17 e a visão18 de uma cena do apocalipse. Nestas
representações o santo segura uma palma, símbolo de mártir, cuja cor
já é dourada, em vez do verde habitual.

15
Refere-se a Santo Isidoro, arcebipo de Sevilha (c. 560-636)
16
Tradução livre do ingles, (sublinhado nosso), disponível em:
www.fordham.edu/halsall/basis/goldenlegend/GoldenLegend-Volume2.asp
17
Biblia (1373-França), f. 264v, Harvard University, Houghton Library, MS Typ
0555, E.U.A.
18
Idem, f. 267
18
Fig. 7 Fig. 8

Chama-se a atenção para as figs. 9 a 12 que são mais elucidativas


sobre este milagre. As primeiras três são oriundas de um manuscrito,
datado do segundo quartel do século XV, que contém um conjunto de
desenhos e textos centrados nas visões que S. João teve na ilha de
Patmos e descritas no seu Apocalipse. Os desenhos incluem também,
entre outros, o seu julgamento perante um governador e o regresso à
cidade de Éfeso, local onde realizou diversos milagres.

A fig.919 mostra o santo a transformar um ramo numa vara dourada.


Repare-se (fig.10) como é idêntica à do painel do Arcebispo. Na
imagem seguinte (fig.11)20, e em pose que é repetida por diversos
desenhos, vê-se S. João apoiado num bordão também dourado.

Fig. 9 Fig. 10 Fig. 11

19
Manuscrito com imagens do Apocalipse, (Turíngia - c.1425-50), f.13v, New York
Public Library, Manuscripts and Archives Division, NYPL MA 015, E.U.A.
20
Idem, f. 17v
19
A última figura (fig.12)21, que pertence a um breviário de meados do
século XV, ilustra precisamente o momento da concretização do
milagre da transformação do ramo num bordão ou vara dourada.
Repare-se como essa metamorfose está a acorrer na parte inferior do
ramo. A imagem inclui também um outro milagre associado a S. João
Evangelista e muito comum na sua iconografia: bebe uma taça/cálice
de veneno (simbolizado pela serpente ou dragão) da qual saiu
incólume.

Fig. 12

Os atributos que os pintores colocavam nas figuras dos santos tinham


sempre um fundamento e não estavam lá por acaso. Não fazia sentido
um santo, no caso concreto o dos Painéis, estar representado com um
elemento que não se relacionava com a sua vida, martírios ou
milagres.

As pinturas mais difundidas que representam S. João Evangelista,


incluem uma série de atributos, que podem aparecer isolados ou não.

21
Brevário, (Baviera-1454), gravura da contracapa, New York Public Library,
Spencer Collection, NYPL Spencer 039, E.U.A.
20
Estão neste caso: o livro, a águia ou a taça/cálice que referimos atrás.
É comum a sua presença nas cenas do Calvário acompanhando a
Virgem e Maria Madalena. Nas pinturas da Europa Ocidental surge
sempre com um aspecto jovem.

Demonstrámos assim, que a vara que o santo segura na mão é um


atributo a que se deve dar importância na sua identificação.
Reconhecemos no entanto, que esta representação iconográfica foi
muito pouco utilizada. A vara assume no contexto dos Painéis, um
triplo significado: vara de comando/justiça22, vara de medir
(Apocalipse) e vara/bordão dourado (milagres). Todos são plenamente
justificados na figura de S. João Evangelista.

A nossa identificação do santo tem dois conjuntos de documentos que,


isolados e só por si, seriam suficientes para o provar: o simbolismo
patente nos painéis centrais e os relatos incluídos nas crónicas coevas.

Deste modo, quanto aos elementos simbólicos, vislumbramos S. João


Evangelista associado à dicotomia livro fechado/livro aberto, a
simbolizar uma revelação e, como sabemos, o Livro da Revelação ou
Apocalipse, foi escrito por este santo. Este Livro contém duas
referências a uma cana de medir, uma das quais é dourada. A primeira
página, assim como as duas primeiras palavras da última página do
livro aberto, pertencem ao seu Evangelho. A sua iconografia mais
comum mostra um jovem imberbe com um livro na mão. O poder da
transformação de hastes de árvores em varas de ouro fez parte dos
seus milagres e da sua iconografia mais antiga.

Recorrendo, por outro lado, aos registos históricos, associados às duas


personagens situadas à mão direita do santo nos painéis centrais, ou

22
“E que para isso lhe entregava alli mui livremente, e sem cautella, seu
Regimento. Metendo-lhe logo com rostro mui alegre a vara da justiça nas mãos, que
em giolhos e com muito acatamento lhe beijou.” Esta transcrição relata o momento
da entrega do poder do infante D. Pedro a D. Afonso V, quando este atingiu a idade
de 14 anos, in PINA, Rui de - Chronica de El Rei D. Affonso V, Vol II. Lisboa, 1902,
cap. LXXXVI, págs. 23-24
21
seja, à rainha D. Isabel (painel do Infante) e ao seu pai, o infante D.
Pedro (painel do Arcebispo), chegamos igualmente a S. João
Evangelista.

Sabemos que D. Isabel era muito devota deste apóstolo de tal modo
que escolheu para o dia do seu casamento a data que a Igreja
comemora o martírio do santo (6 de Maio). Teve três filhos aos quais
deu o nome próprio em sua honra: João (morreu muito jovem); Joana
(a futura santa) e João (futuro D. João II). Deixou dois testamentos
dando instruções para que fosse erigido um convento em honra de S.
João Evangelista. A posição ocupada pela rainha traduz, de acordo
com o hábito da época, o privilégio do doador da pintura de se fazer
retratar junto do santo da sua devoção. Recorde-se que o seu esposo
cedeu-lhe esse lugar, como sinal do amor que lhe tinha. 23

Finalmente, quanto ao infante D. Pedro, demonstrámos anteriormente


que a sua tomada de posse no cargo de regente, ou seja, a cena
principal que se vê no painel do Arcebispo, ocorreu no dia 27 de
Dezembro, data em que a Igreja celebra S. João Evangelista.

A investigação aqui exposta, associada a todos os outros argumentos


desenvolvidos e apresentados anteriormente24, leva-nos a concluir e a
reforçar que o santo representado nos Painéis é S. João Evangelista.
Não serão estes argumentos de qualidade superior aos evocados
repetidamente pelos defensores da teoria oficial? Não estarão as
provas e indícios que apresentámos num patamar mais elevado que os
das outras teses?

23
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap.13: A figura santificada
24
Idem.
22
2. O livro do painel do Infante

Já analisámos no nosso trabalho anterior25 o livro aberto que se


encontra no painel do Infante. Aí propusemos uma interpretação para
a primeira página e uma leitura, na vertical, para a frase inicial da
segunda página. Continuamos, no entanto, insatisfeitos com os
resultados então obtidos, porque cremos que existe ali muita
informação que, apesar do nosso esforço, não conseguimos ainda
discernir ou decifrar.

A apresentação geral do livro está bem cuidada e as letras estão bem


desenhadas. A selecção de textos litúrgicos diferentes evidencia uma
intenção de fazer uma escolha de palavras existentes nesses textos de
modo a transmitir uma mensagem. Se assim não fosse, as palavras
visíveis teriam sido umas outras quaisquer sem o cuidado de as
mostrar arrumadas pela ordem sequencial do texto original, embora
muito separadas (nomeadamente as das segunda e terceira páginas).

O quadro seguinte ilustra as palavras associadas às letras visíveis (a


negrito) em cada página26:

25
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap.10: O livro e a raínha
26
MARQUES, António Salvador - http://paineis.org. Recorremos a este site para a
transcrição latina das duas primeiras páginas e ao realce das letras visíveis no livro.
23
1ª página 2ª página 3ª página

1ª linha: est pater omnipotens quem


2ª linha: vobis dominum manducaverit
3ª linha: fiat ut cum super omnes amoris
4ª linha: credatis ad dexte:ram nos
5ª linha: iam non multa loqu- promissum spiritum meum
6ª linha: ar vobiscum venit en- in filios: manducat
7ª linha: im princeps mundi quapropter profusis possit
8ª linha: et in me non terrarium
9ª linha: habet quicquam supernae virtutes
10ª linha: sed ut cognoscat potestates:
11ª linha: mundus quia diligo concinunt sine
12ª linha: Patrem et sicut dicentes sanctus
mandatum

Apresenta-se uma síntese da informação existente sobre os textos


visíveis no livro para que outros estudiosos possam, eventualmente,
extrair novos elementos elucidativos ou interpretativos.

O texto da primeira página é retirado do evangelho de S. João (14:28-


31) e encontra-se transcrito quase na sua totalidade (falta o início do
versículo 28 e o final do 31):

Pater maior me est et nunc dixi vobis priusquam fiat ut cum factum
fuerit credatis iam non multa loquar vobiscum venit enim princeps
mundi huius et in me non habet quicquam sed ut cognoscat mundus
quia diligo Patrem et sicut mandatum

O Pai é maior do que eu. Eu vo-lo disse agora, antes que aconteça,
para que, quando acontecer, vós acrediteis. Já não falarei muito
convosco; porque se aproxima o príncipe deste mundo, e nada tem em
mim; mas é para que o mundo saiba que eu amo o Pai, e que faço
como o Pai me mandou27

27
Novo Testamento - Op. cit. pág.187
24
O texto da segunda folha foi extraído do prefácio da missa do
domingo do Espirito Santo até ao sábado seguinte. Pensamos que não
deve ser interpretado neste contexto ou princípio. Basta ver como são
seleccionadas apenas algumas frases ou extractos desse texto, embora
mostrados na sua posição relativa.

Para além disso, as partes visíveis estão separadas pelos dois pontos
(:), sinal de fim de frase, que não existem no texto original. Isto
significa claramente que se quer transmitir algo com as quatro frases
que se podem construir utilizando este raciocínio. Se assim não fosse
aquela escolha de palavras e formação de frases não teria sido assim
arrumada:

“Domine, Sancte Pater, omnipotens aeterne Deus: per Christum


Dominum nostrum. Qui ascendens super omnes caelos, sedensque ad
dexteram tuam, promissum Spiritum Sanctum (hodierna die) in filios
adoptionis effudit. Quapropter profusis gaudiis, totus in orbe
terrarum mundus exsultat. Sed et supernae Virtutes atque angelicae
Potestates hymnum gloriae tuae concinunt, sine fine dicentes:
sanctus”

“Senhor, Pai santo, Deus omnipotente e eterno, por Jesus Cristo


nosso Senhor, o qual, subindo acima de todos os céus e sentando-se à
vossa direita, (neste dia), derramou sobre os filhos da adopção o
Espírito Santo que havia prometido. Por isso, numa efusão de
regozijo, em todo o orbe da terra exulta o mundo inteiro; e as
próprias Virtudes celestes e Potestades angélicas cantam um hino à
vossa glória, repetindo sem fim: Santo”

A nossa interpretação para a primeira frase28 encontra-se disponível no


nosso estudo já citado. Mantem-se, no entanto, a interrogação para o
significado existente nas últimas três que se podem formar:

“promissum spiritum in filios”

“quapropter profusis terrarum supernae virtutes potestates”

28
“Pater omnipotens Dominum super omnes ad dexteram”
25
“concinunt sine dicentes santus”

Finalmente, a terceira página ilustra algumas palavras ou letras de um


extracto de uma das Orationes Sancti Ambrosii Ante Missam singulis
hebdomadae diebus distributae (Orações de Santo Ambrósio a serem
pronunciadas antes da missa de cada dia da semana). Em concreto, a
que está visível corresponde ao sábado, e foi identificada pelo
investigador Dagoberto Markl.29 A passagem seleccionada começa
com uma transcrição do evangelho de S. João (6:51-52), embora com
a ordem dos períodos trocada.30 Haverá uma intenção deliberada para
também aqui citar este evangelho? O resto do excerto desta oração
desenvolve o tema incluído naqueles versículos.

Extracto da oração de Santo Ambrósio:

Tu enim dixisti ore tuo sancto et benedicto: “Panis quem ego dabo,
caro mea est pro mundi vita. Ego sum panis vivus, qui de caelo
descendi. Si quis manducaverit ex hoc pane, vivet in aeternum.” Panis
dulcissime, sana palatum cordis mei ut sentiam suavitatem amoris tui.
Sana illud ab omni languore, ut nullam praeter te sentiam
dulcedinem. Panis candidissime, habens omne delectamentum et
omnem saporem, qui nos semper reficis et numquam in te deficis:
comedat te cor meum, et dulcedine saporis tui repleantur viscera
animae meae. Manducat te Angelus ore pleno: manducet te
peregrinus homo pro modulo suo, ne deficere possit in via, tali
recreatus viatico.

Evangelho de S. João (6:51-52):

Ego sum panis vivus qui de caelo descendi; si quis manduaverit ex


hoc pane vivet in aeternum; et panis quem ego dabo caro mea est pro
mundi vita.

29
MARKL, Dagoberto – O Retábulo de S. Vicente da Sé de Lisboa e os
Documentos, Lisboa, págs. 273-274
30
Assinala-se a negrito o texto visível no livro.
26
Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão,
viverá para sempre: e o pão que eu der é a minha carne, que eu darei
pela vida do mundo.31

A frase que se pode construir com o texto visível nesta última folha, é:

“quem manducaverit amoris nos meum manducat posit”

Não queremos terminar estes apontamentos sem chamar a atenção


para a curiosa continuidade temporal existente entre os textos
litúrgicos da 2ª página (domingo até sábado) com os da 3ª página
(sábado), e ainda sugerir a hipótese de se efectuar uma outra
interpretação para o conjunto do livro através da sua leitura na
horizontal, linha a linha, abarcando simultaneamente as três páginas:

“est pater omnipotens quem”

“vobis dominum manducaverit”

etc.

31
Novo Testamento – Op. cit., pág.168-169
27
3. O embaixador Jean Jouffroy

Demonstrámos no nosso ensaio anterior32 que a personagem de escuro


que expõe um livro aberto no painel da Relíquia, é Jean Jouffroy, deão
de Vergy e embaixador enviado pelos duques da Borgonha à corte
portuguesa no final de 1449. Salientámos igualmente a importância
desta identificação na fundamentação da nossa tese então publicada.

Conforme referimos nesse volume, esta individualidade pronunciou


perante D. Afonso V, quatro discursos cujos principais objectivos
eram: assegurar uma sepultura condigna para o infante D. Pedro,
libertar o filho deste, D. Jaime, e restituir os bens, honras e privilégios
que tinham sido retirados aos familiares e apoiantes do regente, no
rescaldo da batalha de Alfarrobeira.

O saldo final destas intervenções apenas teve, pouco tempo depois, o


seu efeito na libertação de D. Jaime,.

As argumentações desenvolvidas nestas orações apelavam à dignidade


e às virtudes régias, recorrendo para isso a casos exemplares retirados
da Bíblia ou da história da Antiguidade Clássica. Destacavam-se as
acções que o rei devia realizar (os bons exemplos) ou evitar (os maus
exemplos).

Não iremos descrever estes modelos de comportamento, não só por


serem muitos, mas também por serem extensos. Limitar-nos-emos a
destacar algumas das críticas mais directas e duras feitas pelo
embaixador ao rei português.

32
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap.8: O livro e o orador
29
O tempo total despendido na exposição destas oratórias ter-se-á
aproximado das quatro horas. A mais curta terá durado cerca de meia
hora, enquanto a mais extensa ultrapassou a hora e meia. As
audiências tiveram lugar em Évora, local onde então se encontrava a
corte portuguesa.33

Jean Jouffroy explanou perante o rei, logo no primeiro discurso (6 de


Dezembro de 1449) e de um modo firme e claro as razões da sua
missão, reconhecendo simultaneamente as dificuldades que iria
encontrar na concretização da mesma. Afirmou que cumpriria os
compromissos que assumiu na Borgonha e que iria falar abertamente
perante quem quer que fosse, dada a gravidade dos factos que o
levaram até ali.

Lamentou o monstruoso crime cometido no seio da família real e deu


conhecimento dos rumores que circulavam no estrangeiro, onde se
dizia que o rei tinha procurado deliberadamente a morte do tio, de
modo a retirar dividendos dessa acção. O seu nome e o de Portugal
também estavam muito denegridos, devido ao tratamento dado ao
corpo do seu sogro, que ficou abandonado no campo da batalha
durante três dias à mercê das feras e das aves de rapina.

Mais adiante o embaixador da Borgonha relatou o encontro que teve


com a duquesa D. Isabel, cujos sentimentos se traduziam por dores,
mágoas e choros. Estes desgostos mais não eram do que os efeitos
derivados da morte do irmão, do facto do seu cadáver não ter tido
ainda uma sepultura honrada e ainda da situação de pobreza em que
tinham ficado os filhos e a viúva do infante. O deão de Vergy
descreveu ainda o modo como a duquesa se despediu, enquanto
chorava, apertando-lhe as mãos e pedindo-lhe para transmitir ao
sobrinho todo o seu respeito e amor.

33
O relato dos quatro discursos baseou-se em: FIERVILLE, Charles - Le cardinal
Jean Jouffroy et son temps (1412-1473), Paris, 1874, págs. 149-185
30
Jean Jouffroy apelou depois à honradez, bondade, clemência e
humanidade do rei de modo a ultrapassar os ressentimentos que ainda
poderia guardar em relação ao duque de Coimbra. Questionou se
foram assim tão graves os crimes cometidos por dois dos filhos do
Infante para terem sofrido os castigos de que foram alvos: D. João era
apenas uma criança e D. Pedro estava muito longe do local da batalha
de Alfarrobeira.

Na parte final deste primeiro e extenso discurso, o orador rogou ao rei,


em nome da duquesa sua tia e do primo Carlos, que mandasse sepultar
o corpo do tio junto dos túmulos dos seus antepassados, e ainda que
devolvesse os bens, honrarias e mercês que tinham sido retirados aos
seus primos, filhos do infante D. Pedro. Concluiu a sua intervenção
recordando a solicitação pessoal feita pelo duque da Borgonha para
que ele, D. Afonso V, se empenhasse activa e rapidamente na
resolução daqueles pedidos.

O deão de Vergy pronuncia o segundo discurso no dia 13 de


Dezembro na convicção de que os seus apelos seriam atendidos.
Reconheceu que ainda não tinha conseguido a concretização de
nenhum deles, apesar de serem justos, honestos e fáceis de realizar. O
orador acrescentou que nada o impediria de atingir os seus objectivos:
nem as expressões, nem as atitudes, nem a tenacidade daqueles
cortesãos que lhe eram hostis. Encerrou a introdução desta oração
questionando o rei, que era possuidor de um bom coração, de um
julgamento profundo e de uma sabedoria notável, sobre quanto tempo
é que ainda manteria aquela atitude insensível e de raiva contra os seus
familiares.

De seguida o embaixador analisa os conteúdos de duas cartas


remetidas por D. Afonso V. A primeira tinha sido enviada a alguns
soberanos europeus, na qual procurava justificar as atitudes que tomou
contra o infante D. Pedro e seus familiares. A segunda, que entretanto
tinha recebido do rei, mereceria da sua parte um comentário mais
acutilante ao considerá-la injuriosa, porque incluía acusações muito
31
graves, cujo conteúdo era ainda pior do que a carta que foi enviada às
cortes europeias.

Na continuação do seu discurso, Jean Juffroy afirmou que sentia


vergonha de assistir à infâmia que o rei estava a cometer à memória do
seu tio, por recusar a concessão de uma sepultura honrada. Questionou
D. Afonso V se o duque da Borgonha, que tinha contraído uma aliança
com a sua família, ao casar com a sua tia Isabel, e que sempre lhe
tinha demonstrado afeição, merecia a retribuição que lhe estava a dar.
O que estava acontecendo era a falta de vontade do rei em querer
agradar ao duque, porque perante as solicitações que este lhe tinha
formulado, o rei respondia de um modo cada vez mais duro e cruel.

O deão de Vergy disse que talvez se manteria calado, se o rei tivesse


acusado D. Pedro de ter cometido um erro, de ter sido severo,
ambicioso, obstinado ou imprudente, mas que não poderia ficar em
silêncio ou permanecer indiferente quando o acusava de crimes,
traição e parricídio.

Esta oração continuou neste tom agressivo até ao final, o que revela
não só coragem por parte de Jean Jouffroy mas também a forte
protecção que lhe estava a ser dada pelos duques da Borgonha.

O orador não desiste e um mês mais tarde, a 12 de Janeiro, ocorre


nova sessão na qual pronunciará o seu discurso mais longo, onde
procurará encurralar o rei de tal maneira que o leve a ceder nalgum
dos pedidos que já lhe formulou.

O deão de Vergy iniciou esta oração de uma forma muito directa e


objectiva, mostrando o seu desgosto e impaciência, perguntando: “A
razão triunfará sobre a vontade? A natureza domará a cólera? A tua
bondade vencerá o ódio que espalhastes sobre os teus?”

Este tom continua, e mais adiante questionou: “Porque é que


pronunciamos coisas indignas de vós e de nós, indignas do prestígio
real? Vós sois meigo e esta conduta é bárbara; o vosso rosto é de
32
ferro: o que é que poderá acalmar essa severidade? O que foi um
pecado para o vosso tio e sogro, será uma virtude para vós?”

De seguida atacou todos aqueles que levaram o rei a assumir aquelas


posições: “Vós encontrais bajuladores naqueles que se afligem porque
temem o perigo; a adulação mentirosa agrada, em cada momento, aos
vossos ouvidos, não faltam pessoas para despertar, no vosso coração,
as chamas meias extintas da vossa animosidade contra os vossos
parentes”.

O teor do seu discurso continuou a ser pronunciado com a mesma


intensidade, franqueza e ousadia, perante um rei que nunca terá
pensado ser alvo de tal agressividade verbal.

Jean Jouffroy assumiu a certa altura o papel de advogado do infante D.


Pedro e apresentou um longo justificativo das acções (políticas e
militares) que este teve que tomar perante as provocações a que foi
sujeito, tanto à luz da legalidade como à da sua honra. Elaborou uma
defesa sólida, onde nada foi deixado ao acaso, ao expor de um modo
claro o seu raciocínio e ao demonstrar a inocência dos actos que
mancharam a memória do duque de Coimbra.

A exposição prosseguiu com referências à idade de D. Afonso V


(tinha acabado de fazer dezoito anos) considerando, por isso, que era
perigoso dar-lhe a autoridade máxima do país; à supremacia da
linhagem de D. Pedro sobre a do seu meio-irmão, o duque de
Bragança, (defendendo assim as acções que aquele efectuou quando
este pretendeu atravessar as terras do ducado de Coimbra) e à
integridade moral do mesmo infante que seria incapaz de efectuar um
acto de rebelião ou de lesa-majestade contra o seu rei.

Na parte final desta oração o deão de Vergy referiu, dirigindo-se ainda


ao rei, que não lhe movia qualquer intenção maliciosa e que não lhe
queria macular a sua dignidade real, quando lhe demonstrava o seu
azedume no que concernia à sepultura do seu tio. Entendia que a
posição do rei não passava de uma simples crueldade de criança.
33
D. Afonso V e os seus conselheiros continuaram a não ceder a
nenhum dos pontos reivindicados por Jean Juffroy, o que levou este a
solicitar uma nova audiência, que será a última, a ocorrer a 16 de
Janeiro de 1450.

O orador prosseguiu nas suas tentativas de demover o soberano das


posturas que estava a assumir, salientando que continuava a depositar
nele as maiores esperanças, apesar dos contra-ataques e da má
influência exercida pelos conselheiros reais. Questionou D. Afonso V
se não compreendia que as guerras civis eram apaziguadas, não pela
punição, mas sim pela bondade e pelo perdão. Perguntou também se
alguma vez teve uma intenção deliberada em provocar a morte do tio,
quando a verdade dos factos e a sua bondade lhe mostravam
precisamente o oposto. Acreditava que aquela morte terá sido o facto
que mais terá contrariado e perturbado a sua real vontade.

Mais adiante o deão de Vergy salientou as repercussões que a morte


do infante D. Pedro estava a ter no povo que viu cair “no chão essa
flor da família real portuguesa”, e recordou os inimigos que o rei
tinha, nomeadamente a todos aqueles a quem tinha retirado os bens,
pisado a honra e quebrado as esperanças.

Na parte final deste discurso Jean Jouffroy atacou frontalmente os


inimigos do infante D. Pedro: “Há aqueles que dizem que, quem
matou o pai não deve alimentar os filhos. Mas quem são os autores
deste provérbio? São homens ou animais? São animais cujos lábios
escondem uma picada cheia de veneno. As suas bocas só vomitam
esse azedume e calúnia: os seus pés são velozes quando se trata de
derramar sangue.” “Aqueles que vos procuram incutir este provérbio,
são os mesmos que extraem benefícios e vantagens particulares da
guerra civil; são aqueles que, ao fazerem nascer suspeitas na vossa
mente, procuram por isso, ao proverem a vossa segurança, que vós os
cobrais de mercês.”

34
Perante os teores destas quatro orações não é difícil imaginar Jean
Jouffroy, tal como o vemos no painel da Relíquia (fig. 13), a discursar
perante D. Afonso V e sua corte, com um ar carrancudo, zangado, de
sobrancelhas carregadas e a virar as folhas do livro em sentido
contrário.

Fig. 13

Esta missão de Jean Jouffroy foi, apesar de não ter conseguido os


objectivos a que se propunha (salvo a libertação de D. Jaime), aquela a
partir da qual se deu a sua ascensão às mais elevadas posições de
diplomata e de conselheiro, ao serviço da Borgonha e depois da
França, e ainda aos altos cargos eclesiásticos. A sua cultura erudita, os
seus profundos conhecimentos de direito canónico e romano e a sua
oratória eloquente, facilitariam o seu contacto directo com papas e reis
de diversos países.

As palavras bastante duras que o embaixador dirigiu contra D. Afonso


V, não impediram a existência, no futuro, de contactos cordiais entre
ambos. Este facto é confirmado pelo extracto de uma carta que Jean
Jouffroy escreveu em 1464 ao rei da França Luis XI (ao serviço de

35
quem já se encontrava). Neste documento afirma que o rei português
lhe escrevia cartas e que, por já ter estado diante dele, lhe garantia que
o mesmo tinha um carácter agradável e era de boa e nobre linhagem:

“…Le roy de Portugal m’a escrit lectres que son ambassadeur m’a
envoyées; et croy, Sire, par ce que m’a escrit le dict ambassadeur, que
le roy désire moult fort avoir vostre begnivolence. J’ay autrefois esté
devers luy; mais je vous certifie, Sire, que c’est un gentil courage et de
bonne et noble affaire…”34

A cortesia que transparece destas palavras, 14 anos após os confrontos


verbais ocorridos em Évora, vem reforçar a nossa convicção, exposta
anteriormente, de que o “judeu” dos Painéis é Jean Jouffroy. D.
Afonso V, no papel de um dos doadores de uma obra que reabilita a
memória do seu sogro, não colocou quaisquer objecções à figuração
do orador, mostrando assim que não lhe guardava qualquer rancor,
apesar dos acontecimentos passados. Curiosamente a data daquela
carta corresponde precisamente ao limite inferior do período que
propusemos para a execução desta pintura (1464-1467).35

Como nota final diremos ainda que Jean Jouffroy se cruzaria no futuro
com elementos da casa real portuguesa quando, no final de 1470 e na
qualidade de embaixador de Luis XI e já com o título de Cardeal
d’Albi, esteve na corte castelhana para acertar o casamento do irmão
do rei francês com a filha dos soberanos castelhanos. Estes eram
Henrique IV e D. Joana (filha de D. Duarte e irmã de D. Afonso V) e a
princesa Joana, na altura apenas com oito anos de idade:

E logo ahi disse aquelle letrado, em nome del Rey, como por certos
respeitos, que cumpriaõ ao bem daquelles Reynos, sua vontade era
casar sua filha a Princeza Dona Joanna com Carlos Duque de
Guiana; e mostrando o Conde de Bolonha huma procuraçaõ do

34
FIERVILLE, Charles – Op. cit., págs. 184-185 (extracto em francês antigo)
35
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap.14: A datação da pintura
36
Duque, em maõs do Cardeal recebeo a Princeza por molher do dito
Duque Carlos.36

O cardeal já tinha presidido, antes desta cerimónia, a um outro acto


solene no qual os reis de Castela juraram que Joana era filha legítima
deles e onde as outras individualidades presentes, a reconheceram
como a legítima herdeira do trono castelhano:

…e logo el Rey, tocando os Santos Evangelhos, jurou que era sua


filha verdadeira, e a Rainha, com o mesmo juramento, affirmou em
maõs do Cardeal, que era era filha del Rey; e todos os Grandes, que
ahi se acharaõ, a juraraõ por Princeza herdeira, e o mesmo os
Procuradores de algumas Cidades, e Villas do Reyno.37

Mais tarde (1475) D. Afonso V casaria com esta sua sobrinha e


invadiria Castela para defender as posições da sua mulher ao trono.
Estas estavam a ser contestadas, na sequência da morte de Henrique
IV, pelos futuros Reis Católicos e por uma parte significativa da
nobreza castelhana. O desfecho da batalha de Toro (1476) levou o rei
português a renunciar a essa ideia e a retirar-se para Portugal.

Esta infanta ficaria conhecida em Espanha como Juana la Beltaneja


(por ser acusada de ser filha de um suposto amante da rainha chamado
Beltrán de la Cueva, facto que nunca chegou a ser provado) e em
Portugal como a Excelente Senhora.

36
LEÃO, Duarte Nunes de – Crónicas de D. Duarte e D. Affonso V, Tomo II,
Lisboa, 1780, pág. 290
37
Idem, pág. 289

37
4. O capacete do Infante Santo

O capacete que cobre a cabeça do Infante Santo (fig. 14) é geralmente


aceite como tendo origens mouras (do norte de África) ou turcas
(otomanos do leste europeu). No estudo anterior38 afirmamos que o
infante D. Fernando “está aqui representado com o traje militar que
envergava na tentativa da conquista de Tânger”, sem fazer qualquer
referência particular a esse objecto, salvo ao “brilho que emana da luz
reflectida no seu capacete.”

Até hoje, e que tenhamos conhecimento, ainda não foi encontrado


qualquer capacete com estas características. Nas pesquisas que
efectuámos localizámos dois remotamente semelhantes: o da fig.15 é
um elmo com protecção nasal oriundo da França,39 mas que remonta
ao século XII, e o da fig.16 é turco e datado do início do século
XVII.40

Fig. 14 Fig. 15 Fig. 16

38
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap.11: O Infante Santo e Frei João Álvares
39
VOILLET-LE-DUC, E. – Dictionnaire Raisonné du Mobilier Français, Tome VI,
Paris, 1873, pág. 106
40
Elmo turco, Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, E.U.A.
39
Acreditamos, assim, que o capacete seja um objecto imaginário criado
pelo pintor para incluir, de um modo disfarçado, um conjunto de
símbolos associados à personagem que o usa.

Este objecto tem a particularidade de ter um aro dourado na sua base


que se distingue do negro da parte superior. Este pormenor foi, na
nossa óptica, um modo subtil do pintor colocar um nimbo dourado,
símbolo de santidade (fig. 17), sobre o infante D. Fernando cuja
canonização foi tentada em vão pela duquesa da Borgonha D. Isabel.
A presença dos sulcos sobre o elmo conjugados com o reflexo da luz
reflectida, permite a formação de uma letra M (mártir). A conjugação
destes dois elementos permite-nos fazer assim a seguinte leitura:
Santo Mártir.

No esboço subjacente deste painel (fig. 18) é visível o desenho de uma


figura com um turbante, o que evidencia a ideia inicial de colocar um
“mouro” nesta zona do painel. Por este indício podemos, e também
pelo facto de a sua tez estar queimada, situar o seu portador no norte
de África.

Acrescentando este pormenor aos dois atrás referidos, podemos


fortalecer e sustentar a nossa proposta de identificação para esta
personagem e fazer agora a seguinte leitura: Santo Mártir de África41,
isto é, o Infante Santo.

Fig. 17 Fig. 18

41
Termo utilizado por Rui de Pina na sua Crónica de Afonso V, sempre que se
referia à zona geográfica onde se situavam as praças norte-africanas.
40
5. Porquê só em 1464-1467?

Justificámos anteriormente42 a execução do Políptico, entre os anos de


1464 a 1467, recorrendo principalmente à idade das personagens que
identificámos como estando ainda vivas no período de realização dos
Painéis. A correspondência destas idades mostrou-se perfeitamente
compatível com as das respectivas figuras presentes na pintura.

Demonstrámos igualmente que os resultados das datações efectuadas


às tábuas dos Painéis, obtidos pelas análises dendrocronológicas, se
enquadravam também naqueles anos.

Porém, não avançámos com nenhuma razão plausível que explicasse o


motivo de os Painéis evocativos do infante D. Pedro só terem tido
início quinze anos após a sua morte em Alfarrobeira.

Recorde-se que esta batalha foi o culminar de uma série de intrigas e


de pressões, exercidas pelos inimigos do duque de Coimbra sobre D.
Afonso V que, aproveitando a tenra idade do rei, terão também
influenciado a decisão que tomou de retirar, logo a seguir, os bens,
privilégios, mercês e títulos de todos aqueles que tinham apoiado o
infante D. Pedro.

Pensamos assim, em primeiro lugar, que esta homenagem não teria


sido possível em vida dos grandes adversários do infante D. Pedro. E
de facto assim aconteceu já que o arcebispo D. Pedro de Noronha veio
a morrer em 1452 e D. Afonso, duque de Bragança e conde de
Barcelos, só mais tarde, em 1461.

42
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap.14. A datação da pintura
41
A estes importantes detalhes podemos acrescentar mais um conjunto
de circunstâncias que levaram a que esta obra fosse executada mais
tarde sob o patrocínio do rei português e da duquesa da Borgonha
(irmã de D. Pedro).

Assim é de salientar que em 1462 a duquesa de Borgonha tomou a


decisão de se retirar da vida pública, o que lhe permitiu fazer, em
sossego, um levantamento ou rescaldo da sua vida. De entre as
medidas que identificou como ainda estando pendentes de execução,
avultaria a reabilitação da memória do seu irmão Pedro. Lembremos o
grande empenho que desenvolveu, para que os restos mortais deste
infante repousassem em lugar digno, tendo enviado a Portugal o
embaixador Jean Jouffroy com a incumbência de pressionar D.
Afonso V nesse sentido.

Outro elemento, que terá pesado na decisão da duquesa, foi o


desaparecimento precoce de quase todos os filhos do infante D. Pedro,
alguns dos quais apoiou e acolheu pessoalmente na Flandres, no início
de 1450. Estão neste caso os sobrinhos João, Jaime e Beatriz que
faleceriam respectivamente em 1457, 1459, e 1462. Deu igualmente o
seu auxílio à luta que o sobrinho Pedro travou para manter o trono de
Aragão, local onde morreria em 1466. Entretanto a sobrinha Isabel,
rainha de Portugal, já tinha falecido, bastante jovem, em 1455.
Restava apenas Filipa, cuja idade se prolongaria para além da
juventude, tendo morrido com 56 anos em 1493.

Nos Painéis ficariam apenas retratados os filhos do duque de Coimbra


que estiveram mais próximos do pai nos acontecimentos que
antecederam Alfarrobeira: Isabel, Jaime e Pedro.43 É-lhes prestada
uma pequena homenagem ao serem retratados numa obra que reabilita
o nome do seu progenitor.

Outra instrução que a duquesa D. Isabel terá dado ao pintor, foi a


inclusão dos retratos de todos os seus irmãos pelos quais sempre

43
Idem - Cap.6. Os apoiantes do regente
42
demonstrou grande estima. No momento da execução dos Painéis já
se encontravam todos mortos: D. Duarte44 (1438), D. Pedro (1449), D.
Henrique45 (1460), D. João (1442) e D. Fernando (1437). Se
acrescentarmos a figura da própria D. Isabel (1471), deparamos com
um documento único que regista as imagens autênticas de todos os
elementos da ínclita geração, que a duquesa terá querido não só
homenagear e mas também perpetuar.

Como escrevemos previamente,46 D. Afonso V começou gradualmente


(passado um ano após a trágica batalha) a conceder cartas de perdão e
a restituir os privilégios e bens aos apoiantes e familiares do infante D.
Pedro. No final de 1455 aceitou finalmente que os ossos do seu tio e
sogro fossem transladados para o mosteiro da Batalha. A reconciliação
com seu primo Pedro (filho do infante D. Pedro), em 1456, marca o
fim deste tipo de indultos e de perdões.

Contudo, e talvez por ter uma idade mais madura, o rei sente que não
bastaram aquelas medidas para se exorcizar publicamente das culpas e
dos remorsos que o atormentaram, e que precisava de fazer algo mais
de modo a mostrar o seu arrependimento.

A contribuição de D. Afonso V para a realização dos Painéis foi, sem


dúvida, uma forma de reparação moral à memória, à família e aos
apoiantes do infante D. Pedro. Com esta atitude o soberano acabou
por assumir plenamente, a humanidade régia que lhe tinha sido pedida
por Jean Jouffroy logo no primeiro discurso que proferiu em
Dezembro de 1449.47

Os pedidos de desculpas do rei não ficam por aqui porque num


testamento datado de Abril de 1475 volta a pedir perdão, como

44
Aceitamos a proposta de identificação (o homem do chapeirão no painel do
Infante) feita por MARKL, Dagoberto L. – Op. cit.
45
Aceitamos a proposta de identificação (figura do 1ª plano do painel dos
Cavaleiros) feita por MARKL, Dagoberto L. – Op. cit.
46
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap.4. O rei
47
Ver Cap.3 O embaixador Jean Jouffroy
43
vimos48, pelos actos que praticou durante o seu reinado, atribuindo
alguns à pouca idade que tinha quando assumiu o poder.

48
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap.4. O rei
44
II PARTE

CONTINUAÇÃO E INOVAÇÃO

6. O traje da rainha

A jovem, que identificámos como sendo a rainha D. Isabel, exibe-se


trajada com um conjunto algo original (fig.19), que poderá ter sido
semelhante àquele que usava quando se apresentou pela primeira vez
frente ao esposo, após a morte do seu pai na batalha de Alfarrobeira:

Mas El-Rei …, a mandou logo visitar e aconsolar a Santarem, e


escusar-se com palavras de muito amor de a não ir vêr, e pedir-lhe
que ella por si mesma o fizesse.

E com esta visitação de que a Rainha estava desesperada foi em sua


paixão e tristeza mui satisfeita, e sem muito trespasso, sendo d'El-Rei
primeiro certificada do modo em que a elle pelo mais contentar iria,
deu logo ordem á sua partida; e ella com suas damas e casa, por
accordo d'El-Rei, se vestiu com uma honesta temperança de dó. El-
Rei sahiu a recebe-la, e d'elle e de toda sua côrte foi com tanto
acatamento e tão grandes cerimonias recebida, como até seu tempo
nunca o foi outra Rainha, e na vista e fala que ambos logo houveram,
pareceram mostranças de tanto prazer e contentamento, como se
nunca entrevieram as desaventuras passadas.49

Depreende-se deste extracto que a rainha estava vestida de modo a não


revelar, perante D. Afonso V, muita dor ou luto pelos recentes e
trágicos acontecimentos. No painel do Infante vê-se D. Isabel a
envergar uma opa (vestido) vermelha e um toucado (chapéu) roxo/azul
do qual cai um tecido até ao chão. Este conjunto de cores não deixa de

49
PINA, Rui de – Op. cit. Cap. CXXVIII, pág. 116 (sublinhado nosso)
45
simbolizar o sacrifício ou martírio (vermelho) e o luto ou a dor (roxo).
Existe no entanto, por baixo do vestido, uma cota (saiote) de cor verde
(da esperança e da dinastia de Avis) (fig.20).

Fig. 19 Fig. 20 Fig. 21

Note-se em particular, o modo como o toucado (fig. 21) se encontra


encimado por uma espécie de ramagens que se assemelham a chamas:
estão a sinalizar que a sua mente ainda estava conturbada pela morte
do pai. Também o tecido roxo que dali sai, e acompanha o corpo até
ao solo, só pode simbolizar o seu estado de desgosto.

No estudo anterior chamámos a atenção para a existência nos Painéis


de “uma série de objectos que são estranhos e/ou apresentados de um
modo fora do comum” onde incluíamos “a manga anormalmente
larga da figura feminina mais jovem”50. No entanto uma análise mais
cuidada a este pormenor (fig. 20) permite-nos agora pôr em causa esta
afirmação.

O pintor sobrepôs o tecido roxo, que cai da cabeça sobre o vestido, de


tal maneira que provoca a ilusão de uma manga larga. Mas se
olharmos com atenção, vê-se que o vestido é aberto da cintura para
baixo e que nessa zona existem elementos comuns com a outra parte:
uma faixa peluda e uma orla vermelha (tapada pelo tecido roxo) que

50
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap.1: Introdução
46
se prolonga até ao chão. Estes dois elementos formarão no vestido,
atrás da rainha, uma cauda igual à que se vê em primeiro plano.

Repare-se no modo subtil como D. Isabel toca no ventre com uma


mão e afasta o vestido com a outra, de modo a mostrar o saiote verde.
Existe aqui uma mensagem encoberta sobre a relação mãe/filho que se
pretendeu projectar para o futuro (a cor verde da esperança). A rainha
está a comunicar-nos que no seu ventre foi gerado um filho no qual
deposita as expectativas de um reinado menos conflituoso e mais justo
que o do seu esposo. Esse filho, presente no mesmo painel, será o
futuro D. João II.

A figura de D. Isabel inclui assim mais uma mensagem velada, que se


junta àquela que descrevemos no trabalho anterior relacionada com a
interpretação dada ao texto da primeira página do livro51.

Regressando ao chapéu que a rainha usa constata-se que se assemelha,


de certa forma, ao hennin utilizado principalmente pelas nobres e
burguesas da Flandres. Nesta região assumia o formato cónico que
podia ter algumas variantes: formar um cone perfeito (mais ou menos
comprido) ou estar truncado (fig. 22)52 ou bifurcado (fig. 23)53. O véu
transparente podia ter diversos tamanhos. Não se conhecem imagens
de hennins rematados no topo como no exemplar da rainha D. Isabel.

Fig. 22 Fig. 23

51
Idem - Cap.10: O livro e a rainha
52
CHRISTUS, Petrus - Kniende Stifterin - pormenor (c. 1450-1460) - National
Gallery of Art, Washington, E.U.A..
53
VAN DER WEYDEN, Rogier - D. Isabel de Portugal – pormenor (c. 1445-1450)
- J. Paul Getty Museum, Malibu, Califórnia, E.U.A.
47
Podem-se observar hennins decorados com letras em pinturas
flamengas da segunda metade do século XV. Este tipo de decoração,
mais utilizado na corte ducal, pretendia ilustrar a ligação conjugal da
dama com o respectivo esposo, recorrendo-se para o efeito às iniciais
dos respectivos nomes. Assim, nas figs. 24 e 2554 são visíveis as
iniciais C e Y correspondentes a Carlos, o Temerário55 e Ysabella de
Bourbon, a sua segunda mulher. Nas imagens 26 e 2756 conseguem-se
reconhecer o T e o M relativos a Tommaso Portinari57 e à sua mulher,
Maria Baroncelli.

Fig. 24 Fig. 25 Fig. 26 Fig. 27

No toucado de D. Isabel podem-se facilmente visualizar (fig. 21)


diversas letras M. Pensamos que não seja esta a inicial que se quer
efectivamente mostrar, tratando-se pelo contrário de mais um detalhe
dissimulado, à semelhança de outros existentes nos Painéis.
Descobrem-se assim (fig. 28) o A e Y referentes ao casal Afonso e
Ysabel. Este formato do A permite uma segunda leitura onde se vê
simultaneamente um A e um V, equivalente a D. Afonso V. A

54
Autor desconhecido - Retrato duplo Isabel de Bourbon e Carlos, o Temerário –
pormenor, cópia do séc. XVI. Museum voor Schonen Kunsten, Gent, Bélgica.
55
Duque da Borgonha entre 1467-1477
56
VAN DER GOES, Hugo, Tríptico Portinari - pormenor (c.1475), Galleria degli
Uffizi, Florença.
57
Gestor italiano do banco dos Medici em Bruges, tendo-se colocado depois
(c.1470) ao serviço de Carlos, o Temerário
48
utilização deste tipo de decoração reforça a nossa convicção da
influência que a pintura flamenga teve na concepção dos Painéis.

Fig. 28

49
7. Letras dissimuladas

A utilização de letras camufladas, dissimuladas, invertidas ou


deformadas, por parte dos pintores nas suas obras, era comum na
época em que os Painéis foram executados. O seu uso visava criticar
discretamente alguma situação, reforçar a identificação de um
personagem ou transmitir uma mensagem mais ou menos clara.
Salientam-se neste âmbito os pintores flamengos Jan van Eyck (c.
1390-1441) e Hieronimus Bosch (1450-1516).

No seguimento do capítulo anterior, onde destacámos as letras que


visualizámos no toucado da jovem, acrescentamos outros exemplos
cujos resultados e interpretações se inserem perfeitamente no que foi
exposto no nosso ensaio anterior.58

Temos consciência de que vamos utilizar argumentos que podem estar


no limite do aceitável. Não obstante não queremos deixar de os expor
para que os mesmos possam ser conhecidos e apreciados dentro destes
considerandos.

Nas faixas vermelhas da dalmática do santo podem-se ver dois


conjuntos de letras: [L, J e V] e [M e J]. Se optarmos pelo primeiro
arranjo faremos uma leitura ligada ao tema principal dos Painéis: a
reabilitação da memória do infante D. Pedro. Se utilizarmos o
segundo, estaremos a reforçar a identificação que propusemos para o
santo.

Assim o primeiro conjunto (figs. 29 a 31) remete-nos para as iniciais


de três palavras, Lealdade, Vingança e Justiça, escritas nas bandeiras

58
BAETA, Clemente - Op. cit.
51
que as forças do infante D. Pedro levaram quando partiram de
Coimbra rumo ao sul, cujo trajecto terminaria no desastre de
Alfarrobeira:

E no arrayal do Infante se levantaram duas bandeiras, uma sua, e


outra de seu filho, e em ambas iam de uma parte umas letras que
diziam Lealdade, e da outra Justiça e Vingança.59

Estas mesmas palavras foram pronunciadas pelo Duque de Coimbra


perante os seus conselheiros quando uns dias antes tem conhecimento
do ultimatum que, por pressão dos seus inimigos, lhe foi posto por D.
Afonso V:

E porém meu primeiro movimento é n'esse mesmo dia partir d'aqui, e


os ir buscar e esperar no campo, e pedir a Deos e a El-Rei meu
Senhor justiça e vingança d'elles, como de quem tão sem razão tanto
damno e perda me tem feito. E quando se por meus peccados assi não
seguir, contentar-me hei acabar como cavalleiro. E porém d'agora
para em todo tempo e sempre protesto, que seja com verdadeiro nome
de bom e leal vassalo, e servidor d'El-Rei meu Senhor.60

Fig. 29 Fig. 30 Fig. 31 Fig. 32 Fig. 33

Quanto ao segundo par (figs. 32 e 33) vislumbram-se o M e o J


correspondentes a Mártir João (Evangelista).

59
PINA, Rui de – Op. cit., cap. CXVII, pág. 90
60
Idem – Cap. CIX, págs. 74-75 (sublinhado nosso)
52
Podemos descobrir outras letras dissimuladas, que se encontram em
linha com as nossas propostas de identificação anteriormente
divulgadas. Deste modo, nas figs. 34 e 35 descobrem-se um A e um V
indicativos de D. Afonso V. Um pouco menos clara é encontrar o R
(figs. 36 a 38) e o P (figs. 39 e 40) associados ao Regente D. Pedro,
onde tivemos que considerar letras invertidas e efectuar algumas
rotações das imagens.

Fig. 34 Fig. 35

Fig. 36 Fig. 37 Fig. 38

Fig. 39 Fig. 40

53
8. O frade de barbas e a tábua

Uma análise mais pormenorizada ao painel dos Frades levou-nos


concordar com a investigadora Theresa Schedel de Castello Branco61
de que o tema principal subjacente ao mesmo se relaciona com os
cativos e com as acções desenvolvidas para a sua redenção62. Não
obstante, temos algumas divergências e perspectivas diferentes.

Vejamos em síntese o seu ponto de vista.

A autora considera que a personagem de barbas negras e compridas


seja um frade da ordem da Santíssima Trindade63, cuja missão
principal consistia no resgate dos cativos na posse dos mouros de
Granada ou do norte de África (fig. 41). A sua conclusão foi baseada
no facto de a figura envergar o hábito branco daquela ordem e de usar
barbas. Justifica esta última afirmação recorrendo a um trecho,
retirado da Crónica dos Trinitários de Frei Jerónimo de São José,
onde se refere que os frades deixavam crescer as barbas antes partirem
para as suas missões de resgate.

Acrescenta, para melhor alicerçar a sua opinião, que:

“…aquilo que se vê junto ao frade trino é sem dúvida um «tronco».

No decorrer dos tempos o «tronco» viria a ter o significado duma


espécie de prisão e a designação deve vir do facto de ter havido um

61
CASTELLO BRANCO, Theresa Schedel de - Os Painéis de S. Vicente de Fora -
As Chaves do Mistério, Lisboa, 1994, págs. 71-78
62
Palavra utilizada com o significado de remissão, resgate, libertação, salvação.
63
Esta Ordem, fundada por S. João da Mata no século XII, estabeleceu-se em
Portugal no ínício do século XIII e efectuou missões de resgate até ao final do século
XVIII, salvo no intervalo de oitenta anos em que essas funções dependeram do
Tribunal da Redenção dos Cativos criado em 1460 por D. Afonso V.
55
objecto em forma de tronco onde se prendiam os cativos. «Diziam que
era um cárcere ou prisão, mas não se sabe de que natureza fosse, e
que também se dava esse nome a um cepo com olhais onde se prendia
o pé e o pescoço dos cativos». Nos Painéis aquilo que se vê – mal,
infelizmente – é um cepo com olhais simbolizando o cativeiro em
geral.”64

Fig. 41 Fig. 42

Salienta ainda que a presença no painel de dois monges da ordem de


Cister, dos quais um seria o abade de Alcobaça, estaria também
associada à redenção dos cativos. Isto é, este abade, que por inerência
de funções era igualmente o esmoler-mor do reino, tinha a
responsabilidade de supervisionar a recolha e repartição das esmolas,
algumas das quais destinadas à remissão dos cristãos. O outro
cisterciense seria o seu substituto nestas funções.

Finalmente admite que o objecto de reduzidas dimensões (fig. 42), que


um quarto frade tem nas mãos, seja a caixa das esmolas ou Arca da
Piedade.

Esta investigadora propôs as seguintes identificações, atendendo à


data que defendeu para a realização dos Painéis (1469/1470):

64
CASTELLO BRANCO, Theresa Schedel de - Op. cit., pág. 78
56
• Frade de barbas: Frei Pedro do Espirito Santo, provincial dos
trinitários ou Frei Pedro Nunes, pregador que angariou muitas
esmolas para a libertação dos cativos
• Abade de Alcobaça: Frei Nicolau Vieira
• Outro monge de Cister: Frei João de Santarém
• 4º frade: Frei João de Évora, pimeiro provedor do tribunal dos
cativos criado por D. Afonso V.

Temos no entanto algumas observações a fazer sobre a interpretação


dada pela autora.

Em primeiro lugar não nos parece que o pequeno objecto, tanto pelo
seu formato e como pelo seu tamanho, tenha algo a ver com a recolha
de esmolas. A Arca da Piedade, como analisaremos mais adiante, está
representada noutro local.

Na nossa perspectiva essa caixa contém as relíquias do Infante Santo,


recolhidas e transportadas para Portugal em 1451 por Frei João
Álvares, que foi seu secretário e companheiro de infortúnio e
posteriormente seu biógrafo.

Vejamos como este cronista descreve a caixa, em particular a sua cor,


que continha as relíquias de D. Fernando quando estas chegaram ao
reino:

No primeyro dia do mez de Junho da era de mil e quatrocentos e


cincoenta e hum annos, chegou a Santarem João Alvares (Autor desta
Chronica, e secretario deste senhor, aonde então estava el-Rey D.
Affonso V deste nome, e sobrinho do Santo Infante) e trazia as
reliquias da freçura, coração, tripas, e tudo o que foy tirado do corpo
deste Infante, quando em Féz os Mouros o fizerão abrir: as quaes
reliquias tirou de lá secretamente o dito João Alvares, e as trouxe a
estes Reynos. Estas reliquias vinhão metidas em huma cayxa de

57
madeyra cuberta de damasquim preto, com o forro preto, acayrelada
de retroz com fechadura, e pregadura dourada.65

A personagem que segura a caixa negra é um cónego que


identificamos como pertencente à Congregação dos Cónegos
Seculares de S. João Evangelista, devido à cor azulada do hábito que
os membros desta instituição envergavam. Esta congregação também
conhecida por Lóios, por se ter instalado no convento de Santo Elói
em Lisboa graças aos esforços do infante D. Pedro, dedicava-se a
acções de assistência e de auxílio aos mais necessitados.

A presença nos Painéis desta instituição religiosa também se justifica


pelo facto de muitos dos seus membros terem desempenhado funções
de educadores, confessores e pregadores junto dos infantes e príncipes
da família real.

Aquela figura será o padre Martim Lourenço que foi, com o mestre
João Vicente, co-fundador da congregação em Portugal no início do
século XV. Aquele religioso, para além de ter tido um papel
fundamental na consolidação desta instituição, foi um dos que mais
privou de perto com diversos elementos da casa real:

… & como o nosso Martim Lourenço fosse de todos conhecido pelo


sangue, & não menos estimado pela indole, facilmente foi admittido a
palacio para assistir ao Infante D. Duarte herdeiro da Coroa, de que
o fazião benemerito igualmente as prerogativas do animo, & a do
nascimento.66

…dispoz que Martim Lourenço na primeira occasião, que se seguio,
prégasse na sua presença. Elle o fez com tanto juizo, & energia, com
tanta profundidade, & eloquencia, que El-Rey, mandando-o chamar,
o recebeo com louvores não vulgares, & logo o nomeou seu

65
ÁLVARES, Frei João – Chronica dos Feytos, Vida e Morte do Infante Santo que
morreo em Fez, Lisboa, 1730, Cap. XLII, pág. 319-320 (sublinhado nosso)
66
SANTA MARIA, Padre Francisco de - Ceo Aberto na Terra, Lisboa, 1697, pág.
613 (sublinhado nosso)
58
Prégador, honra que todos julgàrão tão bem collocada, como
merecida.67

Sinco annos esteve o nosso Fundador Martim Lourenço em casa do
Infante D. Fernando, servindo no exercicio de Confessor, & Esmoler,
& proseguindo juntamente o de Prégador com universal frutto…
…porque já estava resoluto, em dar principio à desejada refórma do
Clero, retirando-se do mundo, & servindo a Deos em lugar solitario,
se deliberou Martim Lourenço ao seguir, para o que pedio licença ao
Infante, & alcançada, posto que difficultosamente, porque o amava, &
venerava muito, se retirou em companhia do P. M. João, para a
Igreja dos Olivaes, até parar em Villar de Frades: donde
acompanhando ao mesmo Infante, & a sua irmã D. Isabel, foi a
Borgonha, & dahi a Roma…68

Passados alguns meses, chegárão aos servos de Deos nóvas de
Portugal, acerca do estado da sua Congregação, pela quaes
entenderão, que era precisamente necessario, que hum delles se
pusesse logo a caminho, este foi por cõsentimento de ambos, o P.
Martim Lourenço, o qual veyo outravez por Borgonha, despedirse da
Duquesa, & trazer ao Duque seu marido as primeiras noticias do que
havião obrado nas cousas que lhe encõmendàra; & sendo deles
recebido, & despedido cõ singular estimação, & agrado, partio a toda
a pressa para Lisboa, trazendo cartas da Duquesa para os Reys, &
Infantes, & despedindo-se tambem destes, se poz a caminho para
Villar.69

Perservou o servo de Deos em Villar até o anno de 1440 no qual o
Infante D. Pedro, então Governador do Reyno, o mandou chamar
para Lisboa: porque fazia nella grande falta a sua doutrina. He
verdadeiramente digno de admiração o extraordinario apreço, em
que este venerável Padre era tido dos Principes, & principaes do

67
Idem, pág. 616 (sublinhado nosso)
68
Idem, pág. 634 (sublinhado nosso)
69
Idem, pág. 635 (sublinhado nosso)
59
Reyno; procurando todos a sua assistencia, como homem singular, &
utilissimo.70

Como acabámos de confirmar, o padre Martim Lourenço prestou


assistência ao futuro rei D. Duarte, foi pregador de D. João I,
pertenceu à casa do Infante D. Fernando e acompanhou D. Isabel na
sua viagem para a Borgonha, quando esta foi contrair casamento com
Filipe o Bom, tendo aqui executado algumas missões sob as ordens
deste governante. O infante D. Pedro, regente do reino, também
recorreu à sua experiência e conhecimentos (facto que
desconhecíamos, razão pela qual anteriormente não lhe fizemos
referência) 71.

No livro anterior, e também já neste, expusemos a nossa convicção de


que a duquesa D. Isabel teria tido uma participação especial na
concepção geral e no financiamento dos Painéis.72 Assim, terá
mandado introduzir, em particular no painel relacionado com os
cativos, uma caixa que conteria as relíquias do seu irmão, que também
foi cativo mas que, como sabemos, não chegou a ser resgatado com
vida.

O privilégio de segurar aquelas relíquias coube ao padre Martim


Lourenço, não só pelo expusemos acima, mas também por ter sido o
orientador espiritual do mártir de Fez:

…se devem em grande parte às direções do nosso Fundador [Martim


Lourenço], como de Mestre, & pay espiritual, as grandes virtudes,
que resplandecèrão no Infante [D. Fernando]…73

Poder-se-á colocar a questão se aquela função não estaria melhor


atribuída a Frei João Álvares que, como vimos, se deslocou
70
Idem, pág. 637 (sublinhado nosso)
71
BAETA, Clemente - Op. cit., Cap.6: Os apoiantes do regente
72
Idem - Cap.3: A duquesa
73
SANTA MARIA, Padre Francisco de – Op. cit., pág. 627 (sublinhado nosso)
60
propositadamente ao norte de África para trazer aqueles restos
mortais. No entanto, este religioso assume, na personagem do
primeiro plano do painel dos Pescadores um papel de maior destaque
e dramatismo ao se prostrar perante a figura do Infante Santo colocado
no painel dos Cavaleiros.74

Encontramos entre o padre Martim Lourenço e Frei João Álvares


algumas coincidências, uma vez que ambos:

• Pertenceram, simultaneamente, à casa do infante D. Fernando;


• Conheceram o infante D. Pedro;
• Desempenharam no estrangeiro missões ao serviço dos duques
da Borgonha.

A comprovar-se a hipótese de a caixa conter as relíquias referidas


acima e, atendendo ao facto de as ossadas do infante D. Fernando só
terem regressado a Portugal em 1472, na sequência da tomada de
Arzila por D. Afonso V, pode-se deduzir que os Painéis só poderiam
ter sido executados entre 1451 e 1472 (intervalo de tempo que
compreende o período de execução que propusemos (1464-1467).75

Passemos à figura do frade de barbas e à tábua que ele segura ou a que


se encosta.

Na fig. 41 realçámos, com circunferências brancas, os orifícios pouco


perceptíveis existentes naquela área escura do painel. Na nossa
perspectiva estes buracos representam alegoricamente as ranhuras dos
cepos76, arcas ou caixas de esmolas, que existiam nas sedes episcopais
do reino, reservados para a recolha dos fundos destinados à redenção

74
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap.11: O Infante Santo e Frei João Álvares
75
Idem - Cap.14: A datação da pintura
76
Este cepo era uma espécie de coluna feito a partir de um tronco de árvore. Ver no
Apêndice II como os valores de certas penas revertiam a favor do cepo de S.
Vicente.
61
dos cativos. O objecto de madeira que contém esses orifícios ilustra
simbolicamente a Arca da Piedade. O frade de barbas está a guardar
esse depósito ou cofre.

O Regimento da Redenção dos Cativos Cristãos77, assinado em Évora


a 21 de Abril de 1454, que visava pôr alguma disciplina na recolha das
esmolas, é claro nestes aspectos:

Senhor.

Estas sam as cousas que se apontaram pera se fazer o regimento que


vosso desejo he se fazer para tiramento e remimento dos cativos de
vossos Regnos e d’outros quaesquer christaãos que cativos em terra
de mouros atee honde poder avondar a renda que se per ello hordena
primeiramente.

Item Vossa Mercee hordene que a meetade de todo o que render a


arca da piedade seja para o dito remymento e tiramento e da outra
metade poderees fazer esmolas que em cada hum anno fazees aos
mosterios egrejas e religiosas pessoas segundo nosa costumada
hordenança. E para a dita renda seer mayor e mais acrecentada
devees mandar que todas penas de dinheiros que se custuma poer por
alguns malleficios per quaeesquer desenbargadores das casas da
justiça e per outros quaesquer juizes e corregedores todas se ponham
pera a arca da piedade posto que atee ora se posessem pera a
chançalaria ou pera outras alguas obras e se se [sic] esto asy fezer a
dita renda sera asy acrecentada que pera metade della se pode fazer
muito serviço de deus no dito tiramento e remimento.

Item que Vossa Mercee mande que nas sees catedraaes de vossos
Regnos e nas igrejas principaaes das villas e lugares delles se
ponham senhas arcas fechadas com suas fechaduras as quaes tenham
dous homeens-boons da cada hum lugar nas quaes arcas se deitem
pelo buraco que em cada hua dellas estever quallquer esmola que as

77
Vários - Portugaliae Monumenta Misericordiarum – Antes da Fundação das
Misericórdias, Vol. 2, Lisboa, 2003, págs.93-95 (sublinhado nosso)
62
pessoas quiserem fazer e seja pregado pelos pregadores e reitores das
egresas que as ditas arcas seom postas nos ditos lugares pera se
deitarem as ditas, os quaes pregadores e reitores promovam o poboo
a toda boa devaçom pera fazerem as ditas esmolas, e em cada hum
anno os ditos homeens-boons que das ditas arcas carrego teverem
venham dar conta com entrega ao dito esmoller pera se recadar o que
asy render e se mandar desprender com as outras rendas no dito
tiramento e rendiçom.

Item todos os dinheiros que se recadarem das ditas rendas e esmolas
todos devem seer entregues a hua boa fieel pessoa que este na cidade
de Cepta por thesoureiro e o dito ministro vaa fazer o dito resguate
aos lugares honde os ditos cativos jouverem e tragam certidam per
escripto das pessoas e preços por que forem resguatados e com a dita
recadaçom se vaa a dita cidade de Cepta e falle com o dito
thesoureiro e se acordem na maneria em que se ha-de levar o preço
com toda segurança e com conselho do governador da dita cidade
façam todo bem e fiellmente em tall guisa que recebam de Deus boom
galardom.

A Crónica dos Trinitários de Frei Jerónimo de São José, atrás


referida, contem uma descrição pormenorizada sobre o processo que
era seguido em 1580 (que não deveria ser muito diferente daquele
utilizado no tempo do reinado de D. Afonso V), para se obter a
redenção dos cativos em terras mouras. Esse relato começa na recolha
de esmolas, passa pelos rituais e métodos das negociações efectuadas
no Magrebe, e termina com as cerimónias religiosas efectuadas no
regresso das viagens. Em particular, repare-se nos cuidados postos no
cofre no momento da partida de Lisboa e à chegada da localidade de
destino: 78

Descendo outra vez ao tribunal, recebião o cofre do dinheiro, do qual


os mesmos Padres Redemptores tinhão huma chave, e os dous

78
SÃO JOSÉ, Frei Jerónimo de – História Chronologica da Ordem da SS.
Trindade, Tomo I, Lisboa, 1789, págs. 584-588
63
Officiais Thesoureiro, e Escrivão outras, e o conduzião na companhia
de varios Religiosos, que os acompanhavão até a náo do resgate,…

Com a notícia se franqueava logo a entrada; porém aqui tinhão muita
cautela em não desembarcarem senão pela manhã, por conta do
cofre, e alguns inconvinientes que podião succeder. Conduzião o
mesmo cofre para a casa do Baxá ou Bey…

Daqui passavão a contar o dinheiro do cofre, e vendo 3, ou 4 sacos
todos a mil moedas em sima de hum couro de boi, que são naquelles
paizes os melhores bofetes, tirava o Gasnadar (Thesoureiro Mór da
Republica) tantos sacos, quantos importavão a conta de 3 por cento,
que são os seus direitos, e entregavão o mais…

O costume de os frades trinitários usarem barbas compridas nas suas


acções de redenção, salientado por Theresa Schedel de Castello
Branco, é igualmente afirmado no 2º tomo da mesma obra de Frei
Jerónimo de S. José. Escreve este cronista, referindo-se à morte de
Frei José de Paiva79 que ocorreu quando se preparava para realizar a
sua 6ª redenção e após ter resgatado 960 cativos:

Foi seu transito ao 19 de Março do anno de 1739, dia do Santo do seu


nome, que o teria por Advogado na presença do rectissimo Juiz.
Como se achava destinado para o Resgate, tumulou-se com as suas
mesmas barbas crescidas, que a todos infundia o maior respeito, e
veneração.80

Concordamos, com esta investigadora, de que o frade barbudo


representa efectivamente um redentor. Pelo comprimento das suas
barbas deduzimos que já teria realizado muitas acções de resgate.
Acreditamos, porém, que represente alguém já a actuar ao serviço do

79
Redentor geral dos cativos e activo nas primeiras décadas do século XVIII
80
SÃO JOSÉ, Frei Jerónimo de – Op. cit., Tomo II, Lisboa, 1794, pág. 417
(sublinhado nosso)
64
Tribunal da Redenção dos Cativos81, instituição criada por D. Afonso
V durante o ano de 1460. A vestimenta dos membros desta
organização seria assim de cor branco-amarelada, acrescido de um
barrete decorado com uma cruz de formato particular (fig. 43).
Evitava-se deste modo qualquer confusão com o hábito branco dos
trinitários que ostentavam, sobre o peito, a cruz da sua ordem (fig. 44).

Fig. 43 Fig. 44

Houve nesta época, por parte do rei, uma vontade de normalização, de


centralização e até de expiação no que se refere aos cativos. Como
vimos atrás, as regras do Regimento da Redenção dos Cativos
Cristãos estabeleciam uma série de preceitos a serem seguidos na
recolha e tratamento das esmolas reservadas para a libertação daqueles
subjugados. A criação do Tribunal da Redenção dos Cativos vai mais
longe, ao retirar à ordem da Santíssima Trindade o privilégio que
detinha na recolha das importâncias destinadas àquele objectivo:

Para este effeito applicou algumas rendas, que pertencião á Coroa,


para o cofre dos mesmos cativos, determinando ser elle só, e não a
Ordem, o que dalli em diante praticasse as Redempções.82

O acto de expiação do rei, ao chamar a si a culpa de alguns cristãos


estarem no cativeiro, terá contribuído igualmente para criação deste
tribunal:

81
Este tribunal foi criado na sequência do desvio de fundos e da má gestão efectuada
pelos monges trinitários.
82
SÃO JOSÉ, Frei Jerónimo de – Op. cit., Tomo I, pág. 292
65
Quis este inclito Rei (falamos de D. Affonso) quando veio a primeira
vez da Africa, que a elle só devessem seus vassallos, que se achavão
cativos, o grande benefício da Redempção, julgando com ardente zelo
que entrando elles no cativeiro por sua causa, devia o poder invicto, e
a fortaleza do seu braço ser o que, abrindo com Real piedade os
carceres da Barberia, restituisse a todos a antiga posse da sua
liberdade.83

Vejamos um relato de um aprisionamento de cativos cristãos ocorrido


nas campanhas africanas de D. Afonso V. Trata-se da terceira
tentativa falhada para conquistar Tânger efectuada por D. Fernando,
irmão do rei, no início de 1464:

E dos christãos entre mortos e captivos ficaram trezentos, todos os


mais homens escolhidos e especiaes, duzentos mortos e cento
captivos…

E dos captivos principaes, que aos cubellos se recolheram e
preitejaram com os mouros, foi D. Fernando Coutinho, marechal,
Fernão Tellez, Ruy Lopez Coutinho, João Falcão, e Diogo da Silva,
que depois foi conde de Portalegre, Garcia de Mello, D. Alvaro de
Lima, filho do visconde D. Lionel de Lima; e outros muitos até o dito
numero, em cujos grandes resgates além das mortes de tanta e tão
nobre gente, o reino recebeu uma durosa magua e grandissima perda,
a qual testemunhou bem com os grandes prantos e geraes
lamentações que em todo elle por este caso se fizeram…84

D. Afonso V também não se esqueceu dos cativos no testamento que


assinou (em Abril de 1475) antes de invadir Castela para apoiar
pretensão da sua sobrinha Joana ao trono deste reino:

Mando que se apartem cem mil rés os quaes se despendam em


remimento dos cativos de quaesquer dinheiros assi em ouro como em
prata ou em otra moeda que em minha guarda roupa trouver a esse

83
Idem - pág. 292 (sublinhado nosso)
84
PINA, Rui de - Chronica de El Rei D. Affonso V, Vol III, Lisboa, 1902, Cap.
CLIII, págs. 41-42, (sublinhado nosso)
66
tempo e se nom abastarem ajamse donde forem milhor parados e
estes dinheiros se entreguem a quem então for meu esmoler que os
despenda per mandado de meus executores e testamenteiros.85

Neste contexto sustentamos que o rei tenha dado indicações, tal como
a duquesa D. Isabel o fez, para que o tema dos cativos, que lhe
merecia tanta atenção e dedicação, figurasse num painel desta
grandiosa pintura.

Não queremos terminar este capítulo sem apresentar uma hipótese, um


pouco temerária e arriscada, relativa ao modo como os orifícios
visíveis da tábua estão expostos (fig. 45). No nosso ponto de vista
essas pequenas aberturas correspondem a uma distribuição geográfica
aproximada das sedes episcopais existentes em Portugal nos meados
do século XV. Só não aparece a localização da diocese da Guarda
(eventualmente terá desaparecido com os repintes e/ou restauros que
este painel sofreu). Surge, porém, um orifício que já estará localizado
no reino vizinho representando Zamora ou Salamanca86.

Temos de reconhecer, todavia, uma certa falta de rigor existente na


disposição relativa das cidades assinaladas na tábua, quando as
comparamos com a sua posição num mapa actual (fig. 47). Contudo
não podemos esquecer que aquele elemento da pintura ilustrará o
conhecimento geográfico de Portugal nos meados do século XV.

Recorrendo ao mapa mais antigo conhecido de Portugal (fig. 46)87,


onde assinalámos a localização daquelas sedes religiosas, concluímos
pela existência de uma certa coincidência com a distribuição exposta
na tábua dos Painéis, o que vem de encontro com a nossa suposição
inicial.

85
SOUSA, António Caetano de - Provas da História Genealógica da Casa Real
Portuguesa, Tomo II, Lisboa, 1742, pág. 9 (sublinhado nosso)
86
Este ponto poderia sinalizar as dioceses de Miranda do Douro ou de Bragança. No
entanto ambas foram instituídas já depois da execução dos Painéis: primeira em
1545 e a segunda só em 1770.
87
SECO, Álvaro, 1561, Biblioteca Nacional, Lisboa, http://purl.pt/5901
67
Fig. 45 Fig. 46 Fig. 47

Curiosamente os capítulos do Regimento da Redenção dos Cativos


Cristãos, como consta do seu preâmbulo, foram objecto de consulta
prévia por parte dos responsáveis máximos das dioceses de Braga,
Lamego, Porto, Guarda, Coimbra, Évora e Ceuta. Os seus bispos
tinham, como vimos atrás, as tarefas de coordenar e incentivar as
recolhas das ditas esmolas: “…que Vossa Mercee mande que nas sees
catedraaes de vossos Regnos e nas igrejas principaaes das villas e
lugares delles se ponham senhas arcas fechadas com suas
fechaduras…”

Estão assim representados no painel dos Frades, para além do


esmoler-mor na figura do primeiro plano, uma caixa que contém
relíquias de um cativo da família real, um redentor dos cativos e a
Arca da Piedade onde eram depositadas as esmolas recolhidas por
todo o reino, destinadas a juntar as verbas para as remissões dos
cativos cristãos. Na Arca é visível a distribuição geográfica das sedes
episcopais existentes no país na época em que os Painéis foram
executados.

Uma última nota para salientar o “diálogo” que se estabelece entre a


Arca e o Caixão presente no painel da Relíquia, de acordo com a

68
disposição dos Painéis que propusemos no nosso estudo anterior88 e à
qual acrescentámos mais esta interacção. A Arca encontra-se
precisamente em frente ao Caixão (fig. 48). Ambos são objectos de
madeira e têm dimensões semelhantes. Um encontra-se fechado e o
outro aberto. Aquela recolhia esmolas para resgatar os cativos vivos,
enquanto este, que se mantém aberto, recorda a dificuldade que existiu
em resgatar, com dignidade, os restos mortais do Infante D. Pedro até
que descansassem em paz no seu túmulo no mosteiro da Batalha.

Fig. 48

88
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap.12: A disposição dos Painéis
69
9. O rosto de um pintor flamengo

Ao analisarmos diversas pinturas oriundas da região da Flandres,


anteriores à execução dos Painéis, deparámos numa delas com um
rosto muito semelhante ao de uma figura presente no painel dos
Pescadores. Não estará aqui o elo que prove as influências ou a oficina
na qual o pintor dos Painéis realizou a sua formação? Neste contexto
arriscamos a apresentação de uma hipótese, que será porventura um
pouco audaciosa, mas que desejamos mesmo assim divulgar.

Referimo-nos ao rosto do pintor flamengo Rogier van der Weyden


(Tournai, c.1399 - Bruxelas, 1464), cujo único auto-retrato (fig. 50)
conhecido se encontra na sua pintura S. Lucas Desenhando a Virgem
(fig. 54)89, e ao da personagem que ocupa o segundo lugar à esquerda
no último plano daquele painel (fig. 49). Esta parecença é acentuada
recorrendo à fotografia (fig. 51) tirada antes do restauro efectuado aos
Painéis em 1909. Repare-se nas semelhanças existentes no ar
melancólico, nas rugas da testa, nos olhos, na boca, nas maçãs do
rosto e no queixo. A orientação do rosto numa direcção contrária à
acção que se desenvolve nos painéis centrais, confirma que a sua
presença não deve ser conectada ao tema principal dos Painéis.

89
WEYDEN, Rogier van der - S. Lucas Desenhando a Virgem, (c.1435-1440),
Museum of Fine Arts, Boston, E.U.A..
71
Fig. 49 Fig. 50 Fig. 51

O autor do Políptico deve ter sido aluno de Rogier van der Weyden,
em cuja oficina recebeu formação e aperfeiçoou a sua técnica. A
influência que o mestre flamengo exerceu sobre o pintor dos Painéis
pode ser encontrada nos profundos retratos psicológicos visíveis
praticamente em todos os 60 rostos das personagens dos Painéis. É
reconhecido que um dos pontos mais fortes que distingue a pintura de
Rogier van der Weyden é sua capacidade de retratar magistralmente a
intensidade das emoções humanas. Esta atingiria o seu máximo nas
faces das figuras da obra-prima A Descida da Cruz, presente no
Museu do Prado em Madrid, nas quais perpassam, de uma forma
dramática, as suas angústias e sofrimentos.

O pintor dos Painéis presta com este retrato uma homenagem ao seu
mestre. Era comum neste período os artistas incluírem nas suas obras
a figura de outros pintores pelos quais nutriam uma grande admiração
ou reconhecimento. Estão neste caso os exemplos de Leonardo da
Vinci, na imagem do profeta Zacarias, pintado por Miguel Ângelo
(fig. 52)90 e de Miguel Ângelo, na figura de Moisés, da autoria de
Rafael (fig. 53)91.

90
BUONARROTI, Miguel Ângelo - tecto da Capela Sistina, (pormenor), (1508-
1512), Vaticano.
91
RAFAEL Sanzio – Escola de Atenas, (pormenor), (1509-1511), Palácio
Pontifício, Vaticano.
72
Fig. 52 Fig. 53

A obra de Rogier van der Weyden S. Lucas Desenhando a Virgem


(fig. 54) poderá ter estado exposta num lugar público, possivelmente
na capela de S. Lucas92, da responsabilidade da guilda dos pintores em
Bruxelas, dado que existem outras cópias efectuadas por diversos
artistas nos museus de Munique, São Petersburgo e Bruges93.

Fig. 54

92
Segundo uma tradição cristã S. Lucas tornou-se patrono dos pintores por ter
efectuado desenhos da Virgem e de discípulos de Jesus. Por esta razão era comum,
os pintores se fazerem auto-representar em obras nas quais estavam a executar um
retrato da Virgem.
93
Os copistas desta pintura estavam igualmente a homenagear Rogier van der
Weyden, ao reproduzirem o seu rosto,
73
Aliás os trabalhos de Van der Weyden foram, de um modo geral,
bastante reproduzidos conforme se pode constatar pela existência de
outros exemplos em diversas colecções museológicas. Estas
duplicações terão sido executadas por aprendizes ou auxiliares da
oficina do pintor flamengo, ou por outros pintores, que procuravam
assim desenvolver a sua técnica de modo a aproximá-la à do mestre.

Como temos referido ao longo do nosso estudo, existem nos Painéis


objectos e cenas que permitem que se lhes façam mais do que uma
leitura ou interpretação. Assim, o autor do Políptico deve ter
aproveitado o primeiro nível de leitura do painel dos Pescadores94 para
introduzir, de um modo subtil e recorrendo, em particular, a um
extracto do evangelho de S. Lucas, um outro significado para os
pescadores ali presentes.

O pintor socorreu-se para o efeito aos textos bíblicos dos quatro


evangelistas95 que relatam o local e o modo como Jesus encontrou os
seus primeiros discípulos. Três deles (S. Mateus, S. Marcos e S.
Lucas) escrevem que estes eram pescadores e que estavam no mar da
Galileia. Enquanto os evangelhos de S. Mateus e de S. Marcos
referem quatro pescadores – Simão Pedro, André, Tiago e João – o de
S. Lucas nomeia apenas três – Simão Pedro, Tiago e André. O quarto
evangelista (S. João) é omisso quanto às suas profissões mas percebe-
se que esses encontros se deram junto a caminhos que ligavam
povoações.

No painel dos Pescadores estão presentes três pescadores, tal como


relatado por S. Lucas. Podemos no entanto considerar que o pintor
acrescentou um quarto (colocado no primeiro plano a segurar um
rosário cujas contas são vértebras de peixe), para assim estar também
de acordo com o número dos primeiros discípulos de Jesus segundo as
descrições feitas por S. Mateus e S. Marcos.

94
BAETA, Clemente - Op. cit., Cap.6: Os apoiantes do regente
95
Novo Testamento - Op. cit., Mateus 4:18-22; Marcos 1:14-20; Lucas 5:1-11; João
1:35-51
74
É igualmente interessante a maneira como o pintor, inspirando-se
precisamente nas mesmas passagens bíblicas96, ilustrou os pescadores
“pescados” na rede:

E disse-lhes: Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens


(Mateus 4:19)

E Jesus lhes disse: Vinde após mim, e eu farei que sejais pescadores
de homens (Marcos 1:17)

E disse Jesus a Simão: Não temas: de agora em diante serás pescador


de homens (Lucas 5:10)

O painel dos Pescadores permite assim não só uma leitura imediata,


como expusemos no primeiro volume, mas também uma outra, mais
dissimulada e religiosa (recorrendo principalmente ao evangelho de S.
Lucas).

O pintor dos Painéis ao incluir, o retrato do seu mestre, nesta tábua


em particular acaba por lhe prestar um público reconhecimento com
essa singela e simbólica homenagem.

96
Idem.
75
10. O pintor dos Painéis

Antes da realização dos Painéis não havia em Portugal nem


percursores nem uma escola de pintura, que pudesse justificar o nível
de execução patente no Políptico. O pintor não pode ter aparecido por
geração espontânea e deve ter, por isso, recebido a sua formação no
estrangeiro. Um conjunto de investigadores adiantam que a região
mais provável para efectuar esta aprendizagem terá sido a da
Flandres/Borgonha, em parte devido às relações familiares e
comerciais existentes entre as duas cortes.

O caracter simbólico de um conjunto de objectos ou duplos sentidos


de algumas cenas enquadram-se e sofrem as influências dos artistas do
norte da Europa nomeadamente da região da Flandres (Jan van Eyck,
um pouco antes; Roger van der Weyden e Memling, contemporâneos).
Dentro desta mesma linha aparecerá mais tarde Hieronimus Bosch,
talvez o maior mestre nesta técnica de camuflagem.

Conforme já expusemos no capítulo anterior, defendemos que o pintor


dos Painéis adquiriu os seus conhecimentos na oficina de Rogier van
der Weyden. Podemos acrescentar outros elementos que espelham a
influência deste mestre flamengo sobre o autor do Políptico. Por
exemplo, repare-se na similitude do desenho dos traços dos rostos,
comparando por exemplo faces retiradas dos Painéis (figs. 55 e 57)
com retratos executados pelo mestre de Tournai (figs. 56 97 e 58 98).

97
VAN DER WEYDEN, Rogier – António da Borgonha (c.1456), (pormenor),
Musée Oldmasters, Bruxelas.
98
VAN DER WEYDEN, Rogier – Francesco d’Este (c.1460), (pormenor),
Metropolitian Museum of Art, Nova Iorque.
77
Fig. 55 Fig. 56 Fig. 57 Fig. 58

Um outro pormenor, onde encontramos ainda maiores semelhanças, é


na técnica de tratamento das dobras e sombreados dos panejamentos
dos hábitos99 (figs. 59 e 61) e das túnicas100 (figs. 60 e 62) feitas pelos
dois pintores; diríamos que foram realizadas pelo mesmo artista.

Fig. 59 Fig. 60 Fig. 61 Fig. 62

É possível que o pintor tenha regressado mais tarde ao norte da


Europa para recolher os retratos da duquesa D. Isabel e do embaixador
Jean Jouffoy. Estes seriam depois transpostos para os Painéis de um
modo seguro, conforme se constata nos respectivos desenhos
subjacentes revelados pela publicação das reflectografias de

99
Painéis de S. Vicente de Fora, MNAA, Lisboa, (pormenores dos painéis da
Relíquia e dos Frades, respectivamente).
100
VAN DER WEYDEN, Rogier – A Descida da Cruz (c.1435), (pormenores),
Museu do Prado, Madrid.
78
infravermelho.101 Naquela viagem o artista terá ainda recebido
instruções específicas da duquesa sobre algumas personagens, cenas e
mensagens que pretenderia que figurassem na pintura.

Coloca-se assim a questão: quem foi o pintor que executou os


Painéis? Não existe uma certeza absoluta, embora a maioria dos
investigadores atribua a sua realização a Nuno Gonçalves e, um
número mais reduzido, a João Eanes. Para tal baseiam-se em cartas,
emitidas pela chancelaria de D. Afonso V, que os mencionam como
pintores régios. O nome de Nuno Gonçalves sobressai devido a uma
menção elogiosa que lhe foi feita pelo humanista Francisco de
Holanda em meados do século XVI. Alguns estudiosos dos Painéis
têm avançado com propostas de interpretação e de decifração para as
siglas, sinais ou letras existentes na bota do rei e/ou no botim do
príncipe D. João, nos quais vislumbram os nomes e/ou iniciais destes
dois artistas102.

Os documentos conhecidos do século XV, onde estes pintores estão


citados, encontram-se transcritos no Apêndice I.

Seguimos, através destes testemunhos, a evolução progressiva de


Nuno Gonçalves desde que foi contratado pela primeira vez em 1450
(Doc.1 - a palavra novamente tinha então o significado de o que é
novo e não outra vez, como actualmente), passando pelo seu aumento
de vencimento em 1452 (Doc.2) e o seu estatuto de cavaleiro em 1470
(Doc.6), até culminar no título de “pintor das obras da cidade” em
1471 (Doc.7). Inicialmente recebia um vencimento fixo e estava à
disposição do rei para a realização de qualquer trabalho. Porém, em
1470 apesar de executar uma obra a pedido de D. Afonso V, já é
remunerado “à peça”. Falta um documento que esclareça esta
alteração.

101
VÁRIOS – Nuno Gonçalves, Novos Documentos, Estudo da Pintura Portuguesa
do Século XV, Lisboa, 1994, págs. 144 e 185, respectivamente.
102
Ver o capítulo seguinte no qual expomos a nossa proposta de decifração para a
faixa presente no botim do jovem.
79
Curiosamente o ano de contratação deste pintor coincide com o de
uma viagem que Roger van der Weyden fez à Itália em 1450. Será
Nuno Gonçalves o pintor português que se formou na oficina do
mestre flamengo e que, apercebendo-se que já teria pouco a aprender,
aproveitou a partida de Van der Weyden para regressar a Portugal, e
entrar ao serviço de D. Afonso V, onde mais tarde iria executar os
famosos Painéis?

Quanto a João Eanes conhece-se a data da sua entrada ao serviço do


rei (1454, Doc.3) e a da sua destituição (1471, Doc.7). No entanto,
percebe-se pelo teor destes dois documentos, que inicialmente foi
admitido, sem vencimento fixo, para efectuar trabalhos sempre que o
rei os solicitasse, e que quando foi deposto já tinha uma determinada
remuneração fixa associada à posição mais elevada dos pintores
régios: o de pintor das obras da cidade. Também aqui não existe um
testemunho que clarifique esta mudança.

A retirada de funções a João Eanes terá sido por uma razão particular
ou pelo limite de idade? Cremos que haverá um motivo forte para este
afastamento. Basta ver a forma seca e ríspida utilizada nas palavras no
texto (Doc.7). Se fosse apenas por uma questão de idade o modelo
utilizado seria totalmente diferente, como se pode constatar na
seguinte carta de aposentação, datada de 10 de Janeiro de 1473, dada
ao pintor João Afonso, apesar de este não ter ainda atingido a idade
legal que era de 70 anos:

Doc. 9 (10-1-1473)
Dom Afomso etc. a quamtos esta carta virem fazemos saber que nos
queremdo fazer graça e merçe a Joham Afomso, pintor, nosso
vassallo, morador em a çidade de Lixboa por os seruyços que nos tem
fectos em as partes dafryca e em outros lugares, temos por bem e
apousentamollo com toda sua homrra, posto que nom aja ydade de
sateenta annos per que o deue seer. E porem mandamos ao veador
dos nossos vassallos da dita çydade, etc., carta em forma. Dada em

80
Euora a x dias de janeyro – elRey o mandou per Joham Galuom bispo
de Coimbra & Afomso Garçes a fez – de mill iiijc lxxiij.103

Será João Eanes, o artista que ocupava o posto mais elevado dos
pintores régios à data da conclusão dos Painéis, o autor desta obra?
Terá ultrapassado o seu papel na concepção da composição e foi, por
isso, afastado das suas funções quando D. Afonso V percebeu o
sentido de alguma das mensagens camufladas que a pintura continha e
de que não terá gostado?

Perante as constatações e dúvidas atrás expostas, relativamente a estes


dois pintores, pode-se colocar uma nova questão: será possível que
ambos tenham participado na feitura dos Painéis, não só pelos
distintos e significativos cargos que desempenhavam como pintores
régios, mas também pela dimensão do Políptico em si mesmo, que
exigiria mais do que um executante?104

Esclarece-se, e este ponto é importante, que estamos a assumir que o


cargo de pintor das obras da cidade seria o equivalente ao título de
pintor da cidade de Bruxelas, local de onde teria sido importado este
conceito. Esta posição, através qual o pintor se encarregava de
executar as pinturas solicitadas pelas diversas entidades da cidade
(civis ou religiosas), foi criada especificamente para Rogier van der
Weyden em 1436 e seria extinta após a sua morte. Este facto, só por
si, mostra-nos a elevada importância dada a este título.

Curiosamente e, três itens mais adiante, integrado no mesmo


documento de onde extraímos o Doc.7, são descritas o que eram as
obras da cidade. Estranhamente, e que saibamos, nenhum outro
investigador se refere a este item:

Doc. 10 (12-4-1471)
Item. Queremos e mandamos que as obras da Cidade se façam por
empreitada, tendo os oficiaes tal maneira que no começo do anno,

103
VITERBO, Sousa – Notícias de Alguns Pintores Portuguezes, Lisboa, 1903, p. 6
104
Ver capítulo seguinte.
81
como entrarem, todos juntamente com o Veador e Escrivam delas vam
ver pela dita Cidade, e fora dela as obras que sam pera fazer asy de
muros, como calçadas, fontes, canos, e quaesquer outras que se
ouverem de fazer; e levem consyguo os mesteiraes, e talhem com eles
a dita empreitada, e as escrevam asy o Escrivam delas, declarando
em que lugares sam, e como se ham de fazer, e o que por elas ham
d’aver: e o Escrivam, e Vedor das ditas obras tenham carrego de as
ver, a andarem aly com os mesteiraes, vendo se as fazem bem, e como
devem; dando triguança que se acabem aos tempos que com eles for
talhado.105

Perante este documento, e se utilizarmos o significado ipsis verbis de


obras da cidade nele desenvolvido, fica-nos a interrogação sobre quais
seriam realmente as funções dos pintores referidas no Doc.7. A
afirmação que fizemos, de que o lugar de pintor das obras da cidade
correspondia ao posto mais elevado da carreira, seria assim totalmente
posta em causa. Pensamos todavia que o rei não iria colocar pintores
deste nível a efectuarem trabalhos que não seriam adequados aos seus
estatutos de pintores régios. No entanto fica a dúvida…

Para além dos testemunhos atrás referidos existe ainda a referência


feita a Nuno Gonçalves pelo humanista, desenhador, arquitecto e
escritor Francisco de Holanda106 na sua obra Da Pintura Antiga de
1548:

E neste capítulo quero fazer menção de um pintor português que sinto


que merece memória, pois em tempo mui bárbaro quis imitar nalguma
maneira o cuidado e a discrição dos antigos e italianos pintores. E
este foi Nuno Gonçalves, pintor del-Rei D. Afonso, que pintou na Sé
de Lisboa o altar de S. Vicente, e creio que também é da sua mão um

105
SERRA, José Corrêa da – Colecção de Livros Inéditos de História Portugueza,
Tomo III, Lisboa, 1793, págs. 424-425 (sublinhado nosso)
106
No Cap. 17 A opinião de Francisco de Holanda, analisamos em particular, as
referências sobre o retábulo.
82
Senhor atado à coluna que dois homens estão açoitando em uma
capela do mosteiro da Trindade.107

Este autor destaca também um pintor português, no trabalho Diálogos


de Roma (a segunda parte da obra anterior), sob o título “A tábua dos
famosos pintores modernos a que eles chamam águias” que contém
21 referências, onde se incluem nomes como Miguel Ângelo,
Leonardo da Vinci, Rafael, Mantegna e Giotto, sendo o artista
português o último desta lista:

21. O pintor português, ponho entre os famosos, que pintou o altar


de S. Vicente de Lisboa.108

Pela conjugação das duas citações anteriores surge a dúvida sobre o


verdadeiro autor do “altar de S. Vicente”, independentemente das
pinturas serem os Painéis ou outras mais específicas referentes à vida,
milagres e martírios de S. Vicente. Repare-se na hesitação “e creio
que é também…” em atribuir a Nuno Gonçalves a autoria de uma
pintura existente no mosteiro da Trindade e, também, na ausência da
identidade do pintor português na lista onde era suposto aparecer o seu
nome enfileirado ao lado dos outros grandes mestres – as “águias”
como Francisco de Holanda os denominou. Pode-se admitir que o
humanista teve aqui um lapso de memória e que se estava mesmo a
referir a Nuno Gonçalves.

Constatamos que os conceitos estéticos e a escola artística que


Francisco de Holanda defendia, eram bastantes diferentes dos que são
visíveis nos Painéis. O estilo de pintura que ele elogiava, na obra de
Nuno Gonçalves, era a da Renascença italiana do seu tempo,
caracterizada pela aproximação às artes da antiguidade clássica.
Pensamos que é muito forçado tentar inserir os Painéis nesta escola de
pintura:

107
HOLANDA, Francisco de - Da Pintura Antiga, Lisboa, 1984, págs. 37-38
(sublinhado nosso)
108
HOLANDA, Francisco de - Diálogos em Roma, Lisboa, 1984, pág. 137
83
E o que hoje se pinta, onde se sabe pintar, que é somente em Itália,
podemos-lhe chamar também antigo, sendo feito hoje em este dia.109

Note-se, a seguir, como o humanista explana os seus conceitos sobre


as posições que a figura humana deveria assumir numa composição.
Conclui-se facilmente que as posturas rígidas, observáveis nas figuras
do Políptico, são precisamente o oposto. O seu ideal é perfeitamente
traduzível, por exemplo, no fresco A Escola de Atenas de Rafael (fig.
63): 110

Os rostos todos serão diferentes nas feições e filosomias como faz a


natureza, diferentes nas idades, nas cores da carne, nos movimentos,
nas mãos e nos pés, e nos corpos, tendo as posturas antigas, porque
se uma figura estiver toda fronteira, a outra esteja de meio rosto, ou
treçada, e a outra voltada, e a outra inclinada para baixo, a outra
para cima recursada, alguns assentados e outros jazendo, repartidos
por seus lugares na história. 111

Fig. 63

109
HOLANDA, Francisco de - Da Pintura Antiga, Lisboa, 1984, pág. 37
110
RAFAEL Sanzio – Escola de Atenas, (1509-1511), Palácio Pontifício, Vaticano.
111
HOLANDA, Francisco de - Da Pintura Antiga, Lisboa, 1984, pág. 62
(sublinhado nosso)
84
Noutro extracto, Francisco de Holanda recomenda que as figuras da
pintura “não ocupassem confusamente toda a tábua” e que se deixasse
alguns espaços vazios. Mais uma vez não vemos estes princípios
aplicados nos Painéis, onde as personagens estão compactas e os
espaços vazios são diminutos:

…porque a pintura tanto há-de ser feita daquilo que nela se faz, como
do que se deixa de fazer. E se as figuras forem poucas ou se forem
muitas, a ordem que eu nelas encomendaria, seria que não ocupassem
confusamente toda a tábua ou lugar onde se põem, mas que deixem
alguns espaços vazios e dilatados para darem despejo e clareza à sua
obra…112

A figura anterior também exemplifica estes conceitos do humanista


português.

Porém, se olharmos para as pinturas S. Vicente na Cruz em Aspa e S.


Vicente Atado à Coluna113 (figs. 64 e 65), verificamos que estão ali
presentes os ideais estéticos de Francisco de Holanda.

Fig. 64 Fig. 65

112
Idem - pág.61 (sublinhado nosso)
113
GONÇALVES, Nuno, (c. 1470), MNAA, Lisboa, (www.matriznet.ipmuseus.pt)
85
Se associarmos este facto, às cenas dos martírios do santo evocados
nestas tábua e meia, podemos afirmar, que estas pinturas poderão ter
pertencido ao retábulo que o humanista viu no altar de S. Vicente da
Sé de Lisboa (tese defendida por Adriano de Gusmão114) e que lhe
permitiu atribuir o título de “águia” a Nuno Gonçalves. Imagine-se a
grandiosidade desta composição completada com outros painéis, onde
se incluiriam também as cenas dos milagres e da vida de S. Vicente,
pintados com aquela beleza plástica do corpo humano e com escassos
elementos decorativos!

Pensamos que a figura principal da pintura com “um Senhor atado à


coluna que dois homens estão açoitando”, que Francisco de Holanda
atribuiu a Nuno Gonçalves, estaria também representada com o corpo
praticamente despojado de roupas, e que o resto do quadro não teria
grandes adornos, dentro da linha da beleza estética defendida pelo
humanista português.

Estas duas obras teriam em comum figuras que permitiram a


Francisco de Holanda afirmar que Nuno Gonçalves, “quis imitar
nalguma maneira o cuidado e a discrição dos antigos e italianos
pintores”, e que por isso merecia ser colocado “entre os famosos”
pintores daquele tempo. Daqui se pode deduzir que os Painéis não
estariam colocados na Sé de Lisboa, ou então que não mereceriam o
seu elogio, uma vez que as suas figuras se apresentavam segundo
modelos estéticos muito diferentes daqueles que enaltecia.

Pode-se concluir, curiosamente, que estas citações de Francisco de


Holanda têm, na perspectiva que acabámos de abordar, uma
interpretação totalmente contrária à que habitualmente lhe é atribuída.
Assim, aquelas referências não provam que o autor dos Painéis tenha
sido Nuno Gonçalves, ou que tenha sido esta a pintura que o
humanista viu na Sé de Lisboa. No entanto as mesmas menções

114
GUSMÃO, Adriano de - Nuno Gonçalves, Lisboa, 1957, pág. 113-116
86
permitem-nos defender que Nuno Gonçalves foi de facto um grande
pintor “que pintou na Sé de Lisboa o altar de S. Vicente “ conforme se
deduz pelas supostas amostras sobreviventes da pintura deste altar
(figs. 64 e 65). 115

Todavia nada impede que que este pintor tenha executado ou


participado na execução dos Painéis, recorrendo para o efeito a um
registo ou estilo menos “clássico”. Sabe-se que Nuno Gonçalves
esteve ocupado a executar um retábulo na capela real de Sintra, que
foi concluído em 1470.116 Teria tido assim disponibilidade para
intervir na realização da pintura dos Painéis, cuja execução terá
ocorrido, uns anos antes, entre 1464-1467.

115
Repare-se que a perspectiva dos ladrilhos desta tábua e meia, sugere a falta de
outros painéis que terão desaparecido.
116
Ver Apêndice I, Doc.6
87
11. A inscrição na bota do Príncipe

Os elementos da inscrição visíveis na bota do jovem príncipe D. João


(fig. 66) têm sido ao longo dos anos objecto de diversas propostas de
decifração e de interpretação. Nelas, os investigadores têm procurado
visualizar o nome do pintor (ou dos pintores), a data de execução da
obra ou ainda a identificação dos doadores.

É importante não esquecer, quando se analisa esta tarja, as vicissitudes


por que passaram os Painéis ao longo dos séculos, e em particular os
repintes e restauros, que poderão ter alterado o desenho inicial dos
caracteres ali expostos.

O primeiro dos estudiosos, que se debruçou sobre esta faixa, foi


Belard da Fonseca que, logo em 1957, chamou a atenção para as suas
particularidades:

Confrontando-a com a das outras personagens do políptico, verifica-


se que não era «moda» dessa época ornamentar as botas de tal
forma, pois não se vêem idênticos sinais no calçado das restantes
pessoas.

Por outro lado, para ser uma simples decoração, falta-lhe a repetição
dos motivos ou desenho, que é de todos os tempos e de todos os povos,
desde os egípcios e assírios aos gregos e romanos, dos maias e
astecas aos hindus e chineses, dos esquimós aos zulus, entre os
americanos, os europeus, os africanos e os asiáticos; o mesmo ornato
repete-se sempre em qualquer friso, na Arte dos brancos, dos
amarelos ou dos negros.

89
Nos monumentos, na cerâmica, nos bordados, nas jóias, nas
ferragens, nas tapeçarias, nos couros lavrados, etc., um friso
decorativo é uma repetição contínua de «motivo» da decoração.

Neste caso, porém, ao contrário dessa tendência natural, nota-se a


preocupação de fazer sempre sinais diferentes.117

Em contrapartida os historiadores de arte não dão particular


importância àquela tira, afirmando que se trata de um mero friso
decorativo como era usual na época. A opinião deste sector de opinião
pode ser sintetizada no seguinte extracto incluído num livro recente de
Pedro Flor:

… uma análise paleográfica cuidada verifica que os símbolos


inseridos nessa bota têm somente um aspecto alfabetiforme e não
representam com evidência caracteres paleograficamente legíveis. A
presença desta tarja na bota do Príncipe encontra razão de ser na
moda do tempo. Com efeito, os sapatos recebiam não raras vezes
decorações em ouro, de acordo com o gosto e moda da época, pelo
que esse motivo dourado deve ser entendido como tal e nunca como
uma assinatura imprevista do autor.118

Este autor acrescenta uma nota que nos remete para uma prova do que
está a afirmar:

Ver, por exemplo, o calçado da figura de pé no painel do Políptico da


Ressureição de Lázaro (1461) de Nicolas Froment do Museu dos
Uffizi em Florença para vermos um caso evidente de uma decoração
pintada no sapato de uma figura.119

Pedro Flor não publicou essa imagem, mas pela observação que se
pode fazer ao citado pormenor desta pintura (fig. 67), concluiu-se que
a decoração dourada que cobre os sapatos, de uma forma salpicada,

117
FONSECA, António Belard da - O Mistério dos Painéis - O Cardeal D. Jaime de
Portugal, Lisboa, 1963 (2ªed.), págs. 108-109 (sublinhados nossos)
118
FLOR, Pedro - A Arte do Retrato em Portugal nos Séculos XV e XVI, Lisboa,
2010, pág. 205
119
Idem - nota 198.
90
não é em nada semelhante à faixa localizada na ponta da bota do
jovem dos Painéis.

Fig. 66 Fig. 67 Fig. 68

Subescrevemos na totalidade o ponto de vista expresso atrás por


Belard da Fonseca, que reforçamos com um exemplo de um friso
decorativo incluído nos próprios Painéis, correspondente à sobrepeliz
do clérigo que se encontra junto do caixão no painel da Relíquia (fig.
68). Como se constata, os elementos da tarja da bota não têm a
repetibilidade patente neste friso.

Um grande número de historiadores de arte só aceita as letras


presentes no livro do painel do Infante. Quanto às outras inscrições
visíveis no Políptico (a do livro aberto do painel da Relíquia e esta na
bota do jovem) não lhes dão importância e não aceitam que aí se
possam esconder textos camuflados ou disfarçados.

Esta coexistência de inscrições de leitura fácil com outras menos


legíveis era prática corrente nas pinturas da época como bem o
demonstrou, com muitos exemplos, Belard da Fonseca no 4º volume
da sua obra. 120

120
FONSECA, António Belard da - O Mistério dos Painéis - Os Pintores, Lisboa,
1963, págs. 111-134
91
Expomos sinteticamente, sem qualquer tipo de crítica, as propostas de
leituras apresentadas pelos estudiosos: António Belard da Fonseca121,
Theresa Schedel de Castelo Branco122, Jorge Filipe de Almeida123,
Rosa Marreiros124 e António Salvador Marques125.

Fig. 69 Fig. 70 Fig. 71

António Belard da Fonseca


Efectuou a sua leitura a partir da posição dada pela fig. 69, ou seja, na
perspectiva de um observador da pintura. Aqui decifrou:

N G ‘ J. Eanyes «» Nuno Gonçalves e João Eanes


N G ‘ J. Eannees «» Nuno Gonçalves e João Eanes

A primeira proposta consta no 1º volume (1957) da sua obra e a


segunda representa um reajustamento publicado no 4º volume (1963).

121
O Mistério dos Painéis - O Cardeal D. Jaime de Portugal, Lisboa, 1957, (2ª
ed.,1963)
122
Os Painéis de S. Vicente de Fora - As Chaves do Mistério, Lisboa, 1994
123
Os Painéis de Nuno Gonçalves, Lisboa, 2003
124
A Faixa no Botim de D. Afonso V nos Painéis de Nuno Gonçalves: um
“calcanhar de Aquiles”, Coimbra, 2004
125
Painéis de S. Vicente de Fora – Modo de Utilização, http://paineis.org., 1998-
2010
92
Em ambos os casos o autor encontrou os nomes dos pintores que
defendeu como sendo os executantes dos Painéis.

Theresa Schedel de Castelo Branco


Olhando para a faixa, no mesmo ângulo de visão do autor anterior
(fig. 69), vislumbrou os seguintes caracteres:

A S E J E G J C Ccl «» Amen [Scilicet] Ego Joan Eanes Gratia Jesu


Cristi conclusus

O que se traduz como: Ámen: Eu João Eanes, [pela] graça de Jesus


Cristo, concluí.

O “.S.” representa a abreviatura de scilicet, palavra latina com o


significado de “:” (dois pontos), enquanto conclusus é o perfeito de
concludo.

Jorge Filipe de Almeida


Coloca a tarja numa posição vertical (fig. 70), o que lhe permitiu uma
nova perspectiva de leitura. A sua interpretação foi:

S N Gs A CCCC Rb «» Sinal Nuno Gonçalves Ano Quatrocentos


Quarenta e cinco

Os símbolos convertidos para Rb representam o modo de escrever 45,


naquela época.

Rosa Marreiros
Recorreu também à posição da inscrição dada pela fig. 69, onde leu:

C[?] A S I X J ̃ (ou T) CCCC v «» Concluso (a) [?] Anno Senhor


Ihesu Christo mil quatrocentos e quarenta e cinco

Onde os caracteres J͝ ̃ (ou T) equivalem a mil e o ao 40.

93
António Salvador Marques
Este autor socorreu-se de um processo mais elaborado. Utilizou uma
imagem (fig. 71) que corresponde à posição inversa da inscrição da
fig. 69 reflectida num espelho. Ali decifra:

Y Z Abel DCCQ «» Ysabel, dictus

Onde DCCQ representa a abreviatura da palavra dictus o que equivale


a dito ou a prometido. Por outras palavras a pintura é a concretização
de uma promessa efectuada por D. Isabel, duquesa da Borgonha.

Deduz-se, pelos exemplos atrás expostos, que esta tarja tem dado
lugar às mais variadas leituras que estão alinhadas, evidentemente,
com o significado geral dos Painéis proposto por cada autor.

A nossa proposta, que se enquadra também neste princípio, não deixa


de apresentar, contudo, um ponto de vista inovador. Assim, para
efectuarmos a sua leitura, colocámos a faixa numa posição que
corresponde ao ângulo de visão, ou de leitura, que o jovem tem
quando olha para a ponta da bota do seu pé esquerdo (fig. 72).

Fig. 72

Deste modo decifrámos os seguintes caracteres:

Po J J No oY d A .S. Y s(?)
94
Para o efeito, recorremos principalmente às abreviaturas recolhidas e
publicadas por Borges Nunes no seu livro Abreviaturas Paleográficas
Portuguesas.126

Esclarece-se que os dois números que se encontram junto às imagens


seleccionadas, correspondem respectivamente à data da centúria e da
década do documento original de onde foram recolhidos: 44 <> 1440;
48 <> 1480; etc..

127

> <> Po,


abreviatura de Pedro, que realçámos por se encontrar junto a uma
zona escura.

128

> <> J J, iniciais de J que, nesta época, também


podiam representar o I. O exemplo seleccionado corresponde à
abreviatura de João. Repare-se nos “o” colocados ao lado dos J em
ambas as imagens.

129

> <>
No, abreviatura de Nuno. Eliminámos parte do símbolo seguinte de
modo a evidenciar o “o” sobrescrito. Este “o” foi pintado de modo a
ser comum com o da abreviatura seguinte.

126
NUNES, E. Borges – Abreviaturas Paleográficas Portuguesas, 1981, 3ª ed.
127
Idem - pág.110
128
Idem - pág.101
129
Idem - pág.108
95
130

> <> oY, abreviatura de Yoam


(João). A opção por um Y poderá significar que esta pessoa era de
origem estrangeira?

<> d, inicial de uma palavra.

<> A, inicial de uma palavra.

131

> <> abreviatura da palavra latina scilicet cujo


significado pode ser traduzido por: isto é; por exemplo; a saber; o
mesmo é dizer. Equivale, numa frase actual, aos “:” (dois pontos).

<> Y, inicial de uma palavra.

<> s (?), símbolo de difícil identificação, que se encontra numa


zona muito escura e que está pouco perceptível.

De acordo com a nossa decifração e interpretação podemos ler na


inscrição o seguinte texto:

Pedro Jean Jouffroy Nuno João doador Afonso : Ysabel

130
Idem - pág. 116
131
Idem - pág. 74
96
Por outras palavras:

• O primeiro conjunto de símbolos (Po, J J) remete-nos


imediatamente para o tema principal da pintura, de acordo com o
que expusemos no nosso primeiro livro132. Conforme escrevemos,
no seguimento da batalha de Alfarrobeira, na qual o infante D.
Pedro morreu, os duques da Borgonha enviaram o embaixador
Jean Jouffroy a Portugal com uma dada missão, que consistiu em
tentar obter um enterro honrado para os restos mortais do ex-
regente e a forçar a reposição das honrarias e mercês que tinham
sido retiradas aos familiares do duque de Coimbra. Concluímos
então que o tema principal dos Painéis se relacionava com a
reabilitação do nome do infante D. Pedro, e que a presença ali do
emissário da Borgonha era fundamental para aquela dedução. Esta
sai agora ainda mais reforçada com a decifração de símbolos,
colocados lado a lado na faixa, que identificam as estas duas
personagens: Infante D. Pedro e o embaixador Jean Jouffroy.

• Segue-se um outro grupo de caracteres (No oY) que nos


encaminham para as iniciais dos nomes próprios dos principais
pintores régios activos nesta época, conforme analisámos no
capítulo anterior. Os autores do Políptico foram assim: Nuno
Gonçalves e João Eanes.

• À letra d atribuímos o significado da palavra doadores atendendo


ao contexto e à posição em que se encontra no meio dos outros
símbolos: entre os nomes dos pintores e dos patrocinadores dos
Painéis.

• O último conjunto de caracteres (A .S. Y) identifica, na nossa


óptica, os doadores da pintura: D. Afonso V, o mesmo é dizer133,
Isabel, duquesa da Borgonha.

132
BAETA, Clemente – Op. cit.
133
Ver acima “.S. <> o mesmo é dizer”
97
Encontra-se aqui uma mensagem codificada dirigida ao portador da
bota: o príncipe João. Este é o único personagem que a pode ler de
uma maneira fácil. Trata-se de uma mnemónica destinada a recordar
as intrigas e os acontecimentos que culminaram na morte do seu avô
(o infante D. Pedro).

Assim, a referência conjunta Pedro/Jean Jouffroy, no início da


inscrição, é uma indicação clara para que o futuro rei D. João II leia os
discursos proferidos pelo deão de Vergy.134 Nestes destacam-se os
relatos das insinuações desenvolvidas pelos inimigos do seu avô junto
do seu pai (D. Afonso V), as medidas que este tomou contra os seus
tios maternos e as pressões exercidas pela sua tia-avó, a duquesa
Isabel, para que os restos mortais do infante D. Pedro tivessem uma
sepultura digna.

Não sabemos se efectivamente D. João II interpretou aquela


mensagem de acordo com esta leitura. Sabemos sim que mandou
executar, D. Fernando II, duque de Bragança, após um processo
judicial muito sumário, acusando-o de conspiração e de chefiar a parte
da nobreza que se opunha à retirada de poderes e regalias que estava a
efectuar. Este duque era neto do 1º duque de Bragança (D. Afonso),
que tinha sido o mais acérrimo inimigo do infante D. Pedro.

134
Ver Cap.3 O embaixador Jean Jouffroy
98
III PARTE

INOVAÇÃO, REVELAÇÃO E NEGAÇÃO

12. A tese vicentina

No primeiro volume afirmámos, e cumprimos, que “o presente estudo


não pretende opor-se a qualquer uma das teses já publicadas”.135 No
entanto, e devido aos novos documentos que iremos apresentar e à
extracção de novos elementos, incluídos em testemunhos já
conhecidos, não nos poderemos manter em silêncio perante a tese
vicentina.

Segundo esta, e de acordo com a informação mais generalizada, os


Painéis representam um acto de veneração da nação portuguesa
perante S. Vicente, como forma de lhe agradecer o resultado das
acções militares empreendidas por D. Afonso V no norte de África. O
texto do site do Museu Nacional de Arte Antiga ilustra este raciocínio:

A sua apresentação segundo uma estrutura horizontal, articulada de


acordo com a perspectiva dos ladrilhos que definem o pavimento e
unificada pelo friso de cabeças ao longo da parte superior da
composição, deve corresponder à sequência da disposição primitiva
dos painéis, que originalmente estariam integrados no retábulo do
Altar de São Vicente da capela-mor da Sé de Lisboa (c. 1470)…

Os Painéis apresentam-nos um agrupamento de 58 personagens


individualizadas em torno da dupla figuração de São Vicente, solene e
monumental assembleia representativa da Corte e de vários estados
da sociedade portuguesa da época, com destaque para a Cavalaria e
para a Igreja nas suas diversas hierarquias, em acto de veneração ao

135
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap. 1.Introdução
99
patrono e inspirador da expansão militar quatrocentista no
Magrebe…

Embora permaneça problemático, na ausência de testemunhos


coetâneos à sua criação, o pleno entendimento da intenção e
significado da obra, ela deve estar assim associada a uma dupla
função, votiva e evocativa, dos triunfos guerreiros da dinastia de Avis
no norte de África.

Singular “retrato colectivo” na história da pintura europeia, é uma


obra de enorme importância simbólica na cultura portuguesa. Daí os
desafios interpretativos que tem suscitado nomeadamente no domínio
das identificações iconográficas, exercício mais ou menos imaginativo
que tem alimentado uma polémica já secular e até ao momento
inconclusiva. 136

Esta teoria, cuja origem remonta ao livro de José de Figueiredo137


publicado em 1910, continua a ser a preponderante, apesar das
sucessivas críticas que tem sofrido, devido ao apoio que tem recebido
por parte dos historiadores de arte.

Antes de entrarmos na análise à teoria vicentina, inserimos um trecho


do trabalho de Pedro Flor, que subscrevemos na sua totalidade:

Apesar de em pleno século XXI pairar ainda uma densa névoa de


incertezas e interessantes problemáticas sobre a «Questão dos
Painéis», é possível estabelecer, com segurança, alguns dados muito
concretos, e de difícil objecção, e que jamais deverão ser esquecidos
ou ignorados, por quem se dedicar a um estudo honesto e coerente
sobre a problemática. Tal declaração não é infundamentada e baseia-
se nas mais de duas dezenas de documentos que às pinturas se
referem…138

Vejamos quais são, em síntese, as linhas principais e mais actuais


desta tese defendida pelos historiadores de arte Fernando António

136
http://www.museudearteantiga.pt/. Painéis de São Vicente, (sublinhado nosso).
137
FIGUEIREDO, José de - O Pintor Nuno Gonçalves, Lisboa, 1910
138
FLOR, Pedro – Op. cit., pág. 184
100
Baptista Pereira139 e Pedro Flor140 nos seus estudos publicados em
2010.

• Os Painéis integravam o retábulo do altar de S. Vicente da Sé de


Lisboa.

• Este era constituído pelas séries de quadros sobre a Vida,


Martírios, Milagres e Veneração (vulgo Painéis) e ainda a dos
Santos (figs. 105-108).

• Os mais de vinte documentos actualmente existentes, provam que


os Painéis estiveram naquele altar. Merecem particular atenção o
parecer de Pereira Pestana (1534), a carta de André de Resende
(1567), o Documento do Rio (finais do século XVI) e o inventário
da Mitra de 1821.

• Apoiam as conclusões do estudo laboratorial de 1994.

• S. Vicente está representado de acordo a sua iconografia: jovem,


dalmática, livro e corda aos pés. A ausência dos atributos da nau e
dos corvos era habitual, conforme se prova através de alguns
exemplos. Para além disso, a presença no retábulo da estátua com
estes atributos, dispensava a sua repetição nos Painéis.

• Afirmam que o rosto de S. Vicente na tábua S. Vicente Atado à


Coluna (fig. 65) é igual aos rostos dos santos dos Painéis e que,
se aquele fez parte do retábulo, então estes últimos também o
integraram, dadas as evidentes semelhanças fisionómicas.

• As representações de milagres atribuídos a S. Vicente nos painéis


dos Frades (auxílio prestado aos monges de Cister no meio de

139
PEREIRA, Fernando António Baptista – Istoria e Retrato no Retábulo de S.
Vicente de Nuno Gonçalves, in Arte Teoria, nº12/13, Lisboa, 2010, págs. 161-183
140
FLOR, Pedro – Op. cit., págs. 183-218
101
uma tempestade ou a tábua lançada a Frei Sancho, monge cativo,
que o fez chegar a terra).

• No painel da Relíquia a figuração de mais elementos relacionados


com S. Vicente (o Chantre Estêvão expõe, o Livro dos Milagres
atribuídos ao santo; o túmulo representa as tábuas que sobraram
no cabo de Sagres, quando o seus restos foram transferidos para
Lisboa e que D. Afonso Henriques depois mandou recolher; a
relíquia pertence ao santo).

• A representação dos Pescadores ou marítimos sempre protegidos


por S. Vicente de acordo com o Livro dos Milagres. Neste painel
encontra-se no primeiro plano um paralítico de Lisboa, que ficou
curado após ter permanecido durante várias noites junto do
túmulo do santo.

• Não atribuem qualquer valor à pretensa inscrição existente na


bota do jovem do painel do Infante.

• A encomenda da obra está relacionada com o agradecimento


colectivo que a Nação prestou a S. Vicente pelos êxitos nas
campanhas militares norte-africanas de D. Afonso V e um pedido
para que mesmas graças continuassem a ser concedidas no futuro.

• As análises dendrocronológicas efectuadas às três séries


sobreviventes sugerem que todas foram pintadas na segunda
metade do século XV.

• O pintor foi Nuno Gonçalves.

Encerramos esta súmula com um outro trecho do livro de Pedro Flor,


que tem igualmente o nosso apoio:

102
Ignorar e não abordar criticamente a documentação escrita,
iconográfica e técnica hoje disponível, … retira crédito de qualquer
tentativa de interpretação ou análise dos Painéis. Para os estudar
correctamente, é necessário explicar e justificar o seu percurso
histórico e as vicissitudes porque passaram. 141

Teceremos de seguida breves observações críticas a esta teoria,


algumas das quais serão completadas e desenvolvidas nos capítulos
seguintes:

• Os Painéis integravam o retábulo do altar de S. Vicente da Sé de


Lisboa. Este era constituído pelas séries de quadros sobre a Vida,
Martírios, Milagres e Veneração (vulgo Painéis) e ainda a dos
Santos.
Segundo aqueles críticos o retábulo incluiria, para além da série da
Veneração (os Painéis), os Martírios, de que sobreviveram a tábua e
meia S. Vicente atado à coluna e S. Vicente na cruz em aspa (figs. 64
e 65), e ainda a série dos Santos (S. Teotónio, S. Pedro, S. Paulo e Sto.
António (?)) (figs. 105 a 108). A inclusão dos Painéis e dos Santos
contraria o relato pormenorizado de D. Rodrigo da Cunha142, que
escreve explicitamente que “Seguese pellos maes paineis do retabolo
de pintura singular, varios milagres do santo, com os passos
principaes de sua vida, & martyrio”. Não existe no seu testemunho a
mínima referência ao que é visível nestas duas séries. Como é possível
ignorar um documento tão claro e transparente como aquele escrito
pelo arcebispo de Lisboa em 1642?

Os Martírios e os Santos não têm o mistério patente nos Painéis.


Existe uma grande diferença nas temáticas e estilísticas patentes
nestas três séries. O painel e meio dos Martírios de S. Vicente, assim
com os quatros Santos não podem pertencer ao mesmo conjunto dos
Painéis – falta-lhes a massa humana. Naqueles conjuntos apenas se
141
FLOR, Pedro – Op. cit., pág. 193
142
Ver Cap.19 O testemunho de D. Rodrigo da Cunha
103
vêem santos isolados destacados dos fundos neutros dos quadros. Se
os exemplos sobreviventes dos Martírios pertenceram de facto ao
retábulo de S. Vicente, então pode-se facilmente concluir que os
Painéis não fizeram parte desse altar. O documento de 1767 é
elucidativo sobre a unidade estilística observável no conjunto de
pinturas que tinham estado na capela de S. Vicente: “todos pintados
de pintura do mesmo autor”.143

O resultado final deste retábulo, onde se incluíam estas séries de


quadros de acordo com aqueles autores, seria uma amálgama de obras
totalmente dissonantes. Como ficariam chocados, todos aqueles que
tinham contribuído com fundos para aquela obra, ao contemplarem
um retábulo que se apresentava como uma manta de retalhos! Estilos
pictóricos diferentes, temas diferentes, um retábulo evocativo de S.
Vicente com cenas que lhe eram estranhas!

Curiosamente ao defenderem a inclusão dos Painéis no retábulo, onde


já estavam painéis com representações da vida, milagres e martírios (e
por isso o santo já não necessitaria de evidenciar os seus atributos
habituais), estes autores procuraram mesmo assim, na série da
Veneração (os Painéis), outros episódios da vida e milagres de S.
Vicente.

Um destes autores144 vê a fragilidade da sua argumentação e procura,


por isso, ultrapassá-la. Consegue então o “milagre” de rebaptizar a
série que denominava da Veneração para dos Milagres. Procura
justificar assim a integração dos Painéis no conjunto retabular, através
dos milagres menores de S. Vicente que descobriu nas seis tábuas!
Para o autor, sempre que se encontre um documento que faça
referência às cenas com milagres do retábulo do altar de S. Vicente da
Sé de Lisboa, devemos entendê-lo como correspondente aos Painéis!

143
Ver Cap.14 A cronologia dos documentos
144
PEREIRA, Fernando António Baptista – Op. cit., págs. 161-183
104
Este raciocínio tem no entanto um grande obstáculo porque, de acordo
com o Documento do Rio, a agora denominada série dos Milagres foi
retirada do altar no final do século XVI, o que significa que ela não
poderia continuar a ser referenciada nos documentos posteriores ao
final do século XVI, como por exemplo acontece no testemunho de D.
Rodrigo da Fonseca!

• Os mais de vinte documentos actualmente existentes, provam que


os Painéis estiveram naquele altar. Merecem particular atenção o
parecer de Pereira Pestana (1534), a carta de André de Resende
(1567), o Documento do Rio (finais do século XVI) e o inventário
da Mitra de 1821.
Nos capítulos seguintes iremos dissecar alguns destes documentos.
Excluindo os testemunhos acima destacados, todos os outros são
omissos sobre qualquer pormenor que possa ser identificado ou
relacionado com os Painéis.

Constata-se também que os defensores desta teoria ainda não


exprimiram uma opinião mais aprofundada ao inventário de 1821.

• Apoiam as conclusões do estudo laboratorial de 1994.


Os desenhos subjacentes, revelados no estudo145 publicado em 1994,
indicam que a concepção inicial de algumas figuras dos Painéis foi
alterada na versão final. Por outro lado, na série dos Martírios esses
desenhos coincidem com os da figura final. Esta diferença é também
um indício de que os dois conjuntos não fariam parte do mesmo
retábulo.

• S. Vicente está representado de acordo a sua iconografia: jovem,


dalmática, livro e corda aos pés. A ausência dos atributos da nau e
dos corvos era habitual, conforme se prova através de alguns
145
VÁRIOS – Nuno Gonçalves, Novos Documentos, Estudo da Pintura Portuguesa
do Século XV, Lisboa, 1994
105
exemplos. Para além disso, a presença no retábulo da estátua com
estes atributos, dispensava a sua repetição nos Painéis.
José de Figueiredo contribuiu para esta ideia ao deduzir, pelos elogios
feitos por Francisco de Holanda146 a Nuno Gonçalves, que o retábulo
da capela de S. Vicente seria de elevada qualidade artística, e que
aqueles encómios só poderiam ser dirigidos aos Painéis, dada a
excelência destes. Questiona-se se seria possível aos defensores da
tese vicentina identificar o santo dos Painéis como S. Vicente, se não
existissem aqueles comentários de Francisco de Holanda? Cremos que
não.

Alguns defensores desta teoria afirmam que um dos principais


contribuintes para a realização dos Painéis foi o arcebispo D. Jorge da
Costa, que se fez representar em lugar de destaque. Salientam ainda o
papel que este desempenhou na recolha de esmolas para as obras da
capela do santo mártir e a presença das suas armas a rematar o
retábulo, de acordo com o relato de D. Rodrigo da Cunha. Sabemos,
no entanto, que aquele arcebispo partiria mais tarde para Roma onde
iria adquirir um túmulo na igreja de Sta. Maria del Populo, destinado
ao seu descanso final. Aqui deu instruções para que esse sepulcro
incluísse as imagens dos três santos da sua devoção: S. Vicente, Sta.
Catarina e Sto. António. Se esta estátua do padroeiro de Lisboa foi
esculpida, lá em Roma, de acordo com iconografia habitual (fig. 73)
seria expectável que o santo dos Painéis, sendo S. Vicente, se
apresentasse, cá em Lisboa, com os mesmos atributos, num Políptico
onde o próprio D. Jorge da Costa interveio activamente.

146
Ver Cap.17 A opinião de Francisco de Holanda
106
Fig. 73

Pode-se concluir assim que o Políptico não integrou o retábulo e que


D. Jorge da Costa não é o arcebispo presente nos Painéis nem
patrocinou a sua realização, porque os santos não estão representados
como S. Vicente.

Perante a imagem do santo dos Painéis, só encontramos dois pontos


comuns com a iconografia consagrada de S. Vicente: a dalmática e o
livro. A corda, amarrada a uma mó, era um atributo próprio das
representações deste santo, per si, nos outros reinos ibéricos. Não é
conhecida nenhuma imagem do padroeiro de Lisboa com uma vara na
mão. Igualmente nos parece estranho que rainha D. Isabel esteja
figurada ao lado de um santo pelo qual não nutria grande afeição,
sabendo nós a profunda devoção que dedicava a S. João
Evangelista.147

147
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap.13: A figura santificada
107
A figura santificada dos Painéis não pode ser S. Vicente porque não
segue os cânones que já estavam fixados para a sua representação, e
que continuaram a ser utilizados posteriormente. Se fosse S. Vicente
seria de esperar que, em pelo numa das suas imagens, concebidas
depois dos Painéis, se apresentasse de acordo a iconografia patente no
Políptico.

• Afirmam que o rosto de S. Vicente na tábua S. Vicente Atado à


Coluna (fig. 65) é igual aos rostos dos santos dos Painéis e que, se
aquele fez parte do retábulo, então estes últimos também o
integraram, dadas as evidentes semelhanças fisionómicas.
Existe de facto uma certa semelhança entre os rostos destas figuras.
No entanto os seus nimbos são totalmente diferentes dado que uns
estão abertos e os outros fechados. Não se percebe a posição destes
autores ao defenderem uma representação desigual para o mesmo
elemento do mesmo santo integrado no mesmo retábulo! Seria natural
que o santo dos Painéis tivesse um nimbo igual ao do S. Vicente do
retábulo, até para facilitar a sua identificação como tal. Muito
provavelmente o mesmo modelo deve ter pousado para as duas
pinturas.

• As representações de milagres atribuídos a S. Vicente nos painéis


dos Frades (auxílio prestado aos monges de Cister no meio de uma
tempestade ou a tábua lançada a Frei Sancho, monge cativo, que o
fez chegar a terra).
É verdade que vemos neste painel uma tábua, mas não nos parece que
seja um monge de Cister que a está a amparar, dado a cor menos
branca do seu hábito e um barrete na cabeça alheio a esta Ordem.
Também não se vê uma representação concreta desse milagre pouco
conhecido de S. Vicente.

As cenas dos milagres deviam ser simples e perfeitamente


perceptíveis pelos devotos. Basta olhar para a tábua e meia (figs. 64 e
108
65), relativas aos martírios do santo, para se entender os temas que
estão ali expostos. S. Vicente deveria ser facilmente reconhecido pelos
fiéis, o que não é possível com o santo dos Painéis.

Se os Painéis fizeram parte de um retábulo que incluía, segundo os


documentos, uma série relativa aos milagres efectuados pelo Santo
porque é que os historiadores de arte vicentinos insistem em procurar
demonstrar a existência de um conjunto de milagres nos Painéis. Não
haveria necessidade de estes estarem camuflados e ainda por cima
referentes a milagres menores, quando nos outros painéis do retábulo
já estariam perfeitamente visíveis e identificados os principais
milagres de S. Vicente.

• No painel da Relíquia aparecem a figuração de mais elementos


relacionados com S. Vicente (o Chantre Estêvão expõe, o Livro dos
Milagres atribuídos ao santo; o túmulo representa as tábuas que
sobraram no cabo de Sagres, quando o seus restos foram
transferidos para Lisboa e que D. Afonso Henriques depois
mandou recolher; a relíquia pertence ao santo).
Se o livro é ilegível, segundo estes autores, como é possível afirmar
que o texto se refere aos milagres do santo? A relíquia pode ser
atribuída a qualquer santo. Como é que o túmulo assume a forma de
um caixão inteiro se apenas foram recolhidos restos de tábuas?

• A representação dos Pescadores ou marítimos sempre protegidos


por S. Vicente de acordo com o Livro dos Milagres. Neste em
painel encontra-se no primeiro plano um paralítico de Lisboa, que
ficou curado após ter permanecido durante várias noites junto do
túmulo do santo.
Falta nesta representação algo mais explícito, de modo a se perceber o
paralítico e a sua cura milagrosa. Trata-se de mais um milagre pouco
divulgado que nunca teve, que se saiba, qualquer ilustração artística.

109
• Não atribuem qualquer valor à pretensa inscrição existente na
bota do jovem do painel do Infante.
Este ponto já foi objecto de análise no capítulo dedicado à inscrição
visível na bota do Príncipe.148

• A encomenda da obra está relacionada com o agradecimento


colectivo que a Nação prestou a S. Vicente pelos êxitos nas
campanhas militares norte-africanas de D. Afonso V e um pedido
para que mesmas graças continuassem a ser concedidas no futuro.
Defendem estes autores que o tema dos Painéis se prende com as
conquistas norte-africanas de D. Afonso V. A conquista de Alcácer
Ceguer em 1458, não justifica uma obra desse tamanho. O próprio D.
Afonso V ficou admirado quando comparou a dimensão de Ceuta,
com aquela pequena cidade que tinha acabado de conquistar:

A Terça feira pella manhã que eraõ xxiiij dias daquelle mês
Doutubro, foi ElRey na sua Cidade de Cepta. E como elle havia alto e
grande coraçaõ, quando se alevantou pella menhã, e vio a Cidade de
Cepta, onde chegara de noite, começou de a olhar de todallas partes,
e quando vio sua grandeza entristeceo sua cara, como home que se
nom contentava tanto da victoria que recebera, como da primeira
postoque assaz grande fosse, porque vendosse Rey como seu avô, e de
mais alta linhagem que elle, nom se pode contentar, porque o nom
sobrepojava.149

Relativamente às conquistas de Arzila e Tânger (1471) como explicar


que o retábulo de S. Vicente (que incluía a série dos Painéis, segundo
estes autores) iniciado em 1462,150 insira cenas referentes a
acontecimentos que ainda não se deram? A eventual inclusão tardia
deste tema no retábulo também não se justificaria, porque a

148
Ver Cap.11 A inscrição na bota do Príncipe
149
ZURARA, Gomes Eanes de, - Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, Cap.
XXXIV, in SERRA, José Corrêa da – Op. cit., pág. 93 (sublinhado nosso)
150
Ver Cap. 15 Os documentos das Visitações
110
componente da pintura já estaria concluída, e as obras do conjunto
retabular já se encontrariam na fase final (1473). 151

Aquelas vitórias militares de D. Afonso V, ocorridas em 1471, foram


devidamente glorificadas nas quatro grandiosas tapeçarias de Pastrana.
Porquê duplicar as comemorações das vitórias norte-africanas? Porquê
encomendar uma segunda obra, os Painéis, de dimensões bastante
mais reduzidas e com uma ambiência muito menos guerreira, para
comemorar o mesmo acontecimento? No Políptico não existe o
mínimo pormenor que nos aponte para as acções do norte de África.
Os militares estão ali presentes por outro motivo como analisámos no
estudo anterior. 152

• As análises dendrocronológicas efectuadas às três séries


sobreviventes sugerem que todas foram pintadas na segunda
metade do século XV.
Os resultados dos exames dendrocronológicos feitos às pranchas de
cada um destes conjuntos de pinturas permitem discordar desta
afirmação, dado que as datas a partir das quais seria possível a
realização das pinturas são as seguintes: Painéis: 1438 a 1448;
Martírios: 1455 a 1471 e Santos: 1458 a 1471. 153

• O pintor foi Nuno Gonçalves.


A atribuição da autoria dos Painéis a Nuno Gonçalves é comum
também a outras teorias. Em capítulos anteriores expusemos a nossa
posição sobre o pintor do Políptico. 154

151
Idem
152
BAETA, Clemente – Op. cit., Cap. 6. Os apoiantes do regente
153
ESTEVES, Lilia - A Dendrocronologia Aplicada às Obras de Arte, D.E.M.,2003.
154
Ver Cap. 10 O pintor dos Painéis
111
13. A iconografia de S. Vicente

Nos argumentos avançados pelos defensores da tese vicentina


incluem-se geralmente imagens de S. Vicente sem os seus atributos
habituais, a nau e os corvos, de modo a justificar que a figura
santificada dos Painéis representa efectivamente o padroeiro de
Lisboa.

Encontra-se neste caso a iluminura existente no Livro de Horas de D.


Duarte, introduzida por José de Figueiredo155 (fig. 74)156. Esta
ocorrência deve-se, na nossa perspectiva, ao facto do livro ser
originário da Flandres, onde não seria conhecida a iconografia
portuguesa do santo. Assim utilizou-se simplemente a que era habitual
na região. Já as ilustrações de outros santos (Sta. Catarina, Sta.
Verónica, S. João Baptista, S. Tiago, S. Cristóvão, etc.), inseridas
nesta mesma obra, apresentam-se de acordo com as suas iconografias
tradicionais.

Situação idêntica acontece com as imagens das iluminuras incluídas


num outro Livro de Horas, oriundo também da zona da Flandres.
Veja-se que a figura de S. Vicente (fig. 75)157 é praticamente igual à do
livro de D. Duarte. Os outros santos (S. Pedro, Sto. André, S. Tiago,
S. Marcos, S. João Batista, etc.), incluídos neste livro, estão
representados com os seus atributos habituais.

155
FIGUEIREDO, José de – Op. cit., págs. 24 e 47-48
156
S. Vicente, in Livro de Horas de D. Duarte, 34v, (pormenor), Bruges, c. 1401-
1433, Torre do Tombo online ref.: PT-TT-MSMB/A/L65
157
S. Vicente, in Livro de Horas, f.29, Bruges, séc XV, Cambridge, Harvard
University, Houghton Library, MS Lat 161, E.U.A.
113
Fig. 74 Fig. 75

Um outro exemplo de S. Vicente, dentro daquele modelo de


representação, foi incluído no debate dos Painéis por Reynaldo dos
Santos158. Trata-se de um quadro integrado no retábulo da capela do
cardeal D. Jaime (arcebispo de Lisboa e filho do infante D. Pedro), em
S. Miniato de Florença (fig. 76)159. Aquele encontra-se inserido numa
cornija, na qual se podem ler, no friso inferior, os nomes dos
respectivos santos: S VINCENTIVS / S IACOBVS AP / S
EVSTACIVS, o que, de certo modo, dispensa a presença dos atributos
para as respectivas identificações. Aliás, veja-se o modo fora do
habitual como São Tiago se encontra pintado neste retábulo
florentino: não apresenta sacola, e o barrete, que costuma estar na
cabeça ou atrás das costas, é substituído por um chapéu que está
colocado no chão.

158
SANTOS, Reynaldo dos - Nuno Gonçalves, Londres, 1955, pág. 6-7
159
POLLAIUOLO, António e Piero del, c.1467. O retábulo inclui as imagens de S.
Vicente, S. Tiago Maior e S. Eustáquio. O original encontra-se na Galleria Uffizzi,
Florença.
114
Um terceiro exemplo, também bastante citado, foi apresentado pelo
historiador de arte francês Charles Sterling160, e refere-se a um quadro
de S. Vicente, no qual o seu corpo dá à costa com uma mó atada ao
pescoço, depois de ter sido atirado ao mar. Seleccionámos o detalhe
desta cena (fig. 77)161 na qual o santo vem ainda acompanhado de uma
âncora e de uma corda enrolada colocada junto ao seu corpo. Os
partidários da teoria vicentina afirmam que a corda, colocada no chão
do painel do Arcebispo, tem o mesmo significado iconográfico, o que
lhes permite identificar o santo dos Painéis como S. Vicente.

Fig. 76 Fig. 77

No entanto, o contexto em que a corda aparece nas duas pinturas é


totalmente diferente. Nesta imagem, está associada ao milagre que
vemos e percebemos no quadro. Nos Painéis a presença isolada da
corda, sem ligação a qualquer outro pormenor, é claramente
insuficiente para considerá-la como atributo de S. Vicente. As cordas
estão também reproduzidas de modo diferente: num caso encontra-se
enrolada em espiral e no outro forma um rolo alongado apertado por
vários nós, o que nos leva a deduzir que os respectivos significados
simbólicos são necessariamente diferentes.

160
STERLING, Charles – Os Painéis de S. Vicente e os seus Enigmas, in João
Couto - In Memoriam, Lisboa, 1971, pág. 197
161
VALL, Pere, 1º quartel do séc. XV. Museu Episcopal de Vic, Barcelona
115
Os três exemplos que acabámos de analisar têm em comum o facto da
imagem do santo ter sida concebida por artistas estrangeiros que não
conheciam a iconografia portuguesa de S. Vicente. Os atributos deste
santo variavam de país para país. Nos outros reinos peninsulares, por
exemplo, era normal estar representado junto a uma cruz em aspa ou
atado a uma mó. Já em França o santo encontrava-se ao lado de uma
videira podendo, nalguns casos, segurar um cacho de uvas, no seu
papel de padroeiro dos vinicultores.

A tradição da iconografia portuguesa apresenta-o envergando uma


dalmática de diácono, cujos atributos incluem a barca com os dois
corvos, a palma e o livro. A barca ou nau simboliza a viagem que as
relíquias do santo efectuaram desde o cabo (de S. Vicente) até Lisboa,
as quais foram acompanhadas por dois corvos, enquanto a dalmática e
a palma representam os martírios que o santo sofreu às ordens do
imperador Diocleciano no início do século IV, na cidade de Valência.

A utilização destes elementos iconográficos é antiga conforme


podemos verificar nas figs. 78 (onde se vê o interior da Sé de Lisboa e
o túmulo de S. Vicente) e 79 (que representa Lisboa, onde é
perceptível a Sé e a chegada da barca com o corpo do santo). Estas
imagens, que foram introduzidas no contexto dos Painéis pelo
investigador José Saraiva162, fazem parte do selo da câmara da cidade
de Lisboa apenso a uma carta datada de 1352.163

162
SARAIVA, José - Os Painéis do Infante Santo, Leiria, 1925, págs. 40 e 59 e
estampas entre as págs. 60-61
163
SOUSA, António Caetano de - História Genealógica da Casa Real Portuguesa,
Tomo IV, Lisboa, 1738, pág. 28
116
Fig. 78 Fig. 79

As imagens seguintes ilustram detalhes deste selo onde estão patentes,


com maior pormenor, os corvos sobre o túmulo de S. Vicente (fig. 80)
e parte da barca onde se encontra o corpo do santo acompanhado de
um corvo (fig. 81).

Fig. 80 Fig. 81

Se quisermos recuar um pouco mais e ilustrar apenas o símbolo da


cidade de Lisboa, sem a imagem do santo seu padroeiro, encontramos
registos como o selo da cidade datado de 1233, proveniente do
mosteiro de Santos-o-Novo (fig. 82) e o brasão de Lisboa de 1336
existente no Chafariz do Andaluz (fig. 83). Este modelo foi utilizado

117
numa iluminura (fig. 84)164 do início do seculo XVI e serviu de
inspiração para o actual brasão de Lisboa (fig. 85).

Fig. 82 Fig. 83 Fig. 84 Fig. 85

A pequena escultura da fig. 86165, é testemunha que os atributos


(dalmática, palma e nau com corvos) continuavam a ser utilizados na
transição do século XV para o XVI. A imagem de barro S. Vicente
com a barca e os corvos (fig. 87)166, do mesmo período, é a prova de
que, mesmo ao nível da arte popular, o santo já era representado de
acordo com este modelo.

Fig. 86 Fig. 87 Fig. 88 Fig. 89

164
Brasão de Lisboa in Regimento dos Vereadores da Câmara de Lisboa, 1502,
Arquivo Histórico Municipal
165
S. Vicente, escultura, séc. XV-XVI, MNAA, Lisboa, www.matriznet.ipmuseus.pt
166
S. Vicente, Imagem de barro policromado, séc. XV-XVI, Museu da Cidade,
Lisboa
118
A mesma iconografia está também patente na estátua, actualmente
bastante deteriorada, existente na porta ocidental do mosteiro dos
Jerónimos (fig. 88)167. Se esta escultura, patrocinada pelo poder régio
de D. Manuel I, utilizou os atributos habituais de S. Vicente, então
seria de esperar que as imagens do santo dos Painéis, cuja execução
teve o apoio real de D. Afonso V, tivessem também os mesmos
elementos identificativos. Como não os tem…

Ainda ao nível da estatuária, confirma-se que este modelo de


representação de S. Vicente continuou a ser utilizado ao longo dos
anos, conforme se comprova pelo exemplo mais recente (1970) que se
encontra no largo das Portas do Sol em Lisboa (fig. 89).

Na numismática existe O Vicente de ouro (fig. 90), moeda criada em


1555 por ordem de D. João III, que tem a particularidade de o seu
cunho ter sido desenhado por António e Francisco de Holanda (pai e
filho), sendo este último o autor da obra Da Pintura Antiga, na qual
elogiou o pintor do retábulo do altar de S. Vicente da Sé de Lisboa.
Como se vê os atributos do santo estão ali presentes (dalmática, palma
e nau).

Fig. 90

Este padrão iconográfico foi igualmente seguido ao nível da pintura


portuguesa. São exemplos os quadros do início do século XV1 (figs.
91168 e 92169).

167
Início do séc. XVI
168
CONTREIRAS, Diogo de, 1ª metade do Sec. XVI, colecção particular
169
FREI CARLOS, c. 1525, Metropolitan Museum de Nova Iorque
119
Fig. 91 Fig. 92

Pelos exemplos atrás expostos, questiona-se o porquê e a razão de se


ter adoptado uma iconografia diferente para representar o S. Vicente
presente dos Painéis (segundo os autores desta teoria), contrariando a
tradição? Ou então, porque é que o modelo do santo dos Painéis
(sendo S. Vicente) não continuou a ser seguido, ou não foi adoptado
nas imagens criadas posteriormente para o padroeiro de Lisboa?

120
14. A cronologia dos documentos

Para se ter uma noção dos documentos em que se baseiam as diversas


teorias sobre os Painéis, nomeadamente a oficial, é importante
apresentar uma relação cronológica dos testemunhos que fazem
referência ao retábulo de S. Vicente da capela-mor da Sé de Lisboa ou
aos Painéis.

Nesta relação sintética é apresentada pela primeira vez um conjunto de


documentos, que julgamos inéditos no debate dos Painéis, e que
poderão contribuir, pensamos, para a clarificação de algumas ideias já
assentes.

1433: “ E por que a dita Capella Mayor a este tempo estava…nam


ainda acabada…mandou em ouro amoedado tazer… e
encomendou ao Vedor da obra, que della nunqua desestisse atee
se de todo acabar…”

Instruções dadas por D. João I, nas vésperas da sua morte, para


que se acabassem as obras em curso no altar de S. Vicente. 170

1462: “…ajuda para as obras da Capela do mártir S. Vicente da


Sé…”

Notícia recolhida por Vitor Serrão num documento de 1666 e


publicada por Dagoberto Markl em 1988. 171

1462: “…para as obras de S. Vicente…”; “…e ajuda pelas obras mui


grandes que se cada dia crescem na capela do dito mártir…”
170
PINA, Rui de – Crónica de D. Duarte, Cap. I, Porto, 1914, pág. 74
171
MARKL, Dagoberto - O Retábulo de S. Vicente de Lisboa e os Documentos,
Lisboa, 1988, pág. 231-232
121
Referem-se às recolhas de esmolas incluídas nas Visitações a
Santiago de Óbidos e a S. Miguel de Torres Novas. Documentos
recuperados e publicados por Isaías da Rosa Pereira em 1970 e
introduzidos no debate dos Painéis pelo presente estudo.172

1467: “…e ajuda pelas obras mui grandes que se cada dia crescem na
capela do dito mártir…”

Refere-se à recolha de esmolas incluída na Visitação a S. João


de Mocharro de Óbidos, recuperada por Jaime Cortesão e
publicada em 1960. 173

1467: “…e ajuda pelas obras mui grandes que se ainda cada dia
requerem na capela do dito mártir…”; “…ainda pelas obras
mui grandes que se cada dia fazem na capella do dito mártir…”

Referem-se às recolhas de esmolas incluídas nas Visitações a


Santiago de Óbidos e a S. Miguel de Torres Novas. Documentos
recuperados e publicados por Isaías da Rosa Pereira,
respectivamente em 1970 e 1995, e introduzidos no debate dos
Painéis através do presente estudo.174

1469: tinha dado 5650 reais ao “…cabido da dita Sé de esmola para


o retábulo que se ora faz na dita Sé do martel S. Vicente”.

Carta de quitação referente a um pagamento feito por D. Afonso


V, recolhida por Jaime Cortesão. 175

1473: “…ainda pelas obras mui grandes que se cada dia fazem na
capela do dito mártir…”

172
Ver texto completo no Apêndice II
173
CORTESÃO, Jaime - Os Descobrimento Portugueses, Vol. III, Lisboa [1960],
1990, pág. 513
174
Ver texto completo no Apêndice II
175
CORTESÃO, Jaime – Op. cit., pág. 514
122
Refere-se à recolha de esmolas incluída nas Visitações a
Santiago de Óbidos. Documento recuperado e publicado por
Isaías da Rosa Pereira em 1995, e introduzido no debate dos
Painéis pelo presente estudo.176

1490: “…para as obras de São Vicente…”

Refere-se à recolha de esmolas incluída nas Visitações a S.


Miguel de Sintra. Documento recuperado e publicado por Isaías
da Rosa Pereira em 1978, e introduzido no debate dos Painéis
pelo presente estudo.177

1517: “…para as obras de São Vicente da dita Sé de Lisboa…”

Refere-se à recolha de esmolas incluída nas Visitações a S.


André de Mafra. Documento recuperado e publicado por Isaías
da Rosa Pereira em 1978, e introduzido no debate dos Painéis
pelo presente estudo.178

1534 (c.): “…que neste dia de S. Vicente, que agora vem vá ouvir
missa à Sé para ver aqueles famosos Reis armados tão formosos
e gentis-homens…”

Parecer de Francisco Pereira Pestana enviado a D. João III,


incluído no códice encontrado na Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro por Artur da Motta Alves em 1936, e recuperado para a
problemática dos Painéis por Dagoberto Markl.179

1534 (c.): “…entrando na Capela-mor desta cidade olhe aquelas


sepulturas dos Reis vossos Avós, e nelas verá quanto melhor
parecem os que não estão vestidos de arminhos, pois tudo ali
vai parar …”

176
Ver texto completo no Apêndice II
177
Idem
178
Idem
179
MARKL, Dagoberto – Op. cit., pág. 41-42
123
Conselho de Francisco Pereira Pestana enviado a D. João III,
publicado por Maria Leonor Garcia da Cruz em 1997 e
introduzido no debate dos Painéis pelo presente estudo.180

1537: “…para as obras de São Vicente…”

Penalização monetária aplicada, por um ministro apostólico, a


oficiais da câmara. Informação recolhida na Crónica dos
Carmelitas de José Pereira de Santa Ana de 1751 pelo autor do
presente estudo.181

1545: “…Ali está a imagem do Santo, com o seu nome declarado, e a


sua vida explicada em belas figuras…”

Versos incluídos no poema Vincentius Levita e Mártir de André


de Resende recuperado por Adriano de Gusmão.182

1548: “…que pintou na Sé de Lisboa o altar de S. Vicente…”; “…que


pintou o altar de S. Vicente de Lisboa…”

Francisco de Holanda elogia o autor da pintura, na sua obra Da


Pintura Antiga/Diálogos de Roma. Referência introduzida no
debate por José de Figueiredo.183

1567: “…tais como esculturas e uma antiquíssima pintura que


representa o acontecimento [a transladação] e em que as vestes,
o calçado e a maneira de cobrir a cabeça nos dão mostra da
sua grande antiguidade…”

Extracto de uma carta de André de Resende integrada no tema


dos Painéis por José Saraiva.184

180
Ver Cap. 16. Os pareceres de Francisco Pereira Pestana
181
Ver Apêndice III
182
GUSMÃO, Adriano de – Op. cit., pág. 45
183
FIGUEIREDO, José de – Op. cit., pág. 71-74
184
SARAIVA, José – Op. cit., págs.19-20
124
1600 (c.): “…está retratado na capela-mor da Sé…, e em baixo ao pé
dela estavam dois painéis em que estava pintado S. Vicente em
figura de moço de 17 anos em cada retábulo e painel, que
estavam juntos um do outro, e a figura de S. Vicente estava
virada uma para outra de maneira que mostrava a si cada parte
do rosto…”;

“…tinham nas cabeças umas caraminholas muito altas de


veludo, umas de vermelho, outras de verde e de cores que
parece que eram os barretes daquele tempo, há muito que não
vi isto, disseram-me há poucos dias que não estavam já aí estes
painéis, dirão os cónegos onde estão…”

Manuscrito encontrado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro


por Artur da Motta Alves, vulgarmente conhecido como
Documento do Rio, e publicado conjuntamente com outros
documentos185 em 1936. A comunicação pública da existência
deste manuscrito foi feita por Afonso de Dornelas em 1933.

1614: “…na Sé na capela-mor donde estava o Altar do Santo com


aquele tão sumptuoso sepulcro…”;

Memorial de Pero Roiz Soares descrevendo o altar e a


descoberta de um cofre contendo as relíquias de S. Vicente
metido na parede, publicado originalmente em 1953 e
recuperado para esta problemática por Adriano de Gusmão.186

1615: “…vos mandei encarregar que para que se acrescente a


veneração das relíquias do mártir São Vicente, padroeiro dessa
cidade, ordenásseis, por conta das rendas dela, um altar e
retábulo em que estivessem com a decência devida…”

185
ALVES, Artur da Motta - Os painéis de S. Vicente num códice da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, Lisboa, 1936, pág. 7
186
GUSMÃO, Adriano de - Nuno Gonçalves, Lisboa, 1958, págs. 14-15
125
Carta régia de Filipe II dirigida à vereação da cidade de Lisboa a
dar instruções para a execução de um altar e retábulo novo.
Documento publicado por Eduardo Freire de Oliveira187 em 1887
e introduzido na temática dos Painéis por Adriano de Gusmão.188

1617: “Tenho entendido que, sem embargo do que vos mandei


escrever acerca da obra do retábulo, …para estarem mais
decentemente colocadas as relíquias do glorioso mártir S.
Vicente, se não tratou até agora dela…”

Nova carta régia dirigida à câmara. Documento publicado por


Eduardo Freire de Oliveira189 em 1887 e introduzido na temática
dos Painéis por Adriano de Gusmão.190

1618: “…se vos avisa da resolução que tomei sobre se tornar a pôr o
real d’água para as obras principais dessa cidade; e porque
depois do retábulo e capela do mártir S. Vicente, deve ser a
primeira trazer à cidade água…”

Documento publicado por Eduardo Freire de Oliveira191 em 1887


e introduzido na temática dos Painéis por Adriano de Gusmão.192

1620: “…não vejo um insígne e custoso sepulcro em que seu Corpo


esteja com a veneração devida; não vejo um retábulo no seu
altar de notável artifício…”

Extracto de um livro de Diogo Pires Cinza. Trecho inserido


nesta questão por Adriano de Gusmão.193

187
OLIVEIRA, Eduardo Freire de – Elementos para a História do Município de
Lisboa, Tomo II, Lisboa, 1887, págs. 358-360
188
GUSMÃO, Adriano de - Op. cit., 1957, pág. 159
189
OLIVEIRA, Eduardo Freire de – Op. cit.,, pág. 400
190
GUSMÃO, Adriano de – Op. cit., 1957, págs. 159
191
OLIVEIRA, Eduardo Freire de – Op. cit., pág. 410
192
GUSMÃO, Adriano de - Op. cit., 1957 pág.159
193
GUSMÃO, Adriano de - Op. cit., 1957, pág. 71
126
1631: “Por parte do cabido da Sé dessa cidade se me representou que
o retábulo do glorioso São Vicente de Valença, cujo corpo está
naquela Igreja, é muito antigo, e está mui velho…pedindo-me
mande que essa cidade, por conta do real d’água, faça essas
obras…”

Carta régia, agora de Filipe III, em resposta à solicitação do


cabido para que a câmara custeie as obras. Documento
publicado por Eduardo Freire de Oliveira em 1888194 e
referenciado para a temática dos Painéis por José de
Figueiredo.195

1632: “…acerca do retábulo do glorioso santo…não parece


conviniente que sendo os cónegos, senhores da igreja maior, tão
grossas em rendas…lhe mande a câmara fazer as obras na sua
mesma casa…”

Contestação da vereação da Câmara, dirigida ao rei, relativa ao


financiamento das obras. Documento publicado por Eduardo
Freire de Oliveira em 1888196 e introduzido na temática dos
Painéis por Adriano de Gusmão.197

1633: “…Pede a Vossa Magestade lhe faça mercê mandar a cópia


autêntica da dita carta à câmara desta cidade, e que, na
conformidade dela, faça logo o dito Altar…”

Devido ao não início dos trabalhos, o deão e o cabido da Sé


recorrem à junta governativa para que intercedesse junto do
monarca recordando as ordens que este enviou à câmara na carta
de 1631. Documento publicado por Eduardo Freire de Oliveira

194
OLIVEIRA, Eduardo Freire de – Elementos para a História do Município de
Lisboa, Tomo III, Lisboa, 1888, pág. 448
195
FIGUEIREDO, José de – Op. cit., pág. 36
196
OLIVEIRA, Eduardo Freire de – Op. cit., Tomo III, Lisboa, 1888, pág. 515
197
GUSMÃO, Adriano de – Op. cit., 1957, págs. 160
127
em 1887198 e introduzido na temática dos Painéis por Adriano de
Gusmão.199

1642: “…Aqui neste espaço se levanta o altar do santo, de que logo


nasce o retábulo com a sua imagem de vulto no meio, com a
palma de martir, na mão direita, e a nau em que foi trazido, na
esquerda. Seguem-se pelos mais painéis do retábulo de pintura
singular, vários milagres do santo, com os passos principais de
sua vida, e martírio…”;

“…A devoção que sempre tivemos ao glorioso mártir, e as


grandes mercês, que por seus merecimentos temos recebido da
mão divina, nos obrigarão a de novo mandar renovar, e dourar
esta obra…”

O relato de D. Rodrigo da Cunha, que corresponde à descrição


mais detalhada existente sobre o retábulo, foi introduzido no
debate dos Painéis por José Saraiva.200

1690: “…A causa para se abrir [o túmulo] foi o tirar-se o Retábulo


velho na Capela do Santo e quererem fazer um novo…”

Documento que descreve a retirada do túmulo e do retábulo


antigo de S. Vicente. Foi incluído na questão dos Painéis por
Mesquita de Figueiredo em 1926, facto recordado por Adriano
Gusmão201. Porém este testemunho já tinha sido publicado em
1791 por Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas.202

1742: “…Depois mandando fazer novo, e mais moderno retábulo…se


tiraram os ditos painéis e com pouca estimação se guardavam
até o tempo, em que tomou posse da dita Sé…o primeiro

198
OLIVEIRA, Eduardo Freire de - Op. cit., Tomo II, Lisboa, 1887, págs. 359-360
199
GUSMÃO, Adriano de – Op. cit., pág. 160
200
SARAIVA, José – Op. cit., págs. 69-74
201
GUSMÃO, Adriano de – Op. cit., pág. 14
202
VILAS BOAS, Frei Manuel do Cenáculo – Ciudados Literários do Prelado de
Beja, Lisboa, 1791, págs. 75-77
128
patriarca de Lisboa, o cardeal D. Tomás de Almeida, …
mandando limpar as ditas pinturas, e guarnecer os painéis com
correspondentes molduras…nos painéis se descobrem várias
imagens do mártir S. Vicente…que se acha[m] na casa do
jardim do palácio do sítio de Marvila…”

Por esta transcrição se fica a saber que, após a sua remoção, os


painéis do antigo retábulo da capela de S. Vicente, estiveram
guardados na Sé, até que o cardeal D. Tomás de Almeida os
mandou limpar e emoldurar e depois os enviou, em 1742, para o
palácio da Mitra em Marvila. Notícia dada por Frei António da
Piedade em 1763 e recuperado para o tema dos Painéis por
Adriano de Gusmão.203

1767: “…vários painéis de milagres de S. Vicente…foram mandados


para a quinta de Marvila, depois que D. Tomás de
Almeida…tomou posse a Novembro de 1742…”;

“…todos os ditos painéis que passam de doze todos pintados de


pintura do mesmo autor e de milagres do dito Santo…”

Manuscrito encontrado e divulgado por Luís Reis Santos em


1952 e referido por Adriano de Gusmão.204

1821: “Um painel de cinco palmos de largo e mais de oito de alto


pintado em tábua e representando o cofre das Reliquias do dito
Santo assistido de um Rei e vários religiosos e outras pessoas
com moldura dourada”;

“Dois painéis de quase oito palmos de largo e onze de alto com


molduras de nogueira em pau relativos a São Vicente Mártir e
mais Relíquias e Milagres e agradecendo a ele um Rei”;
203
GUSMÃO, Adriano de – Op. cit., 1957, pág. 47
204
GUSMÃO, Adriano de – Op. cit., pág. 81. Este manuscrito contrapõe o exposto
no documento anterior, negando que estariam presentes, no painel da cena da
Transladação de S. Vicente, dois cónegos da Ordem dos Eremitas de St. Agostinho,
quando na verdade se viam quatro cónegos, da Ordem Regular de Sto. Agostinho.
129
“Dois painéis de quatros palmos de largo e outro de alto
molduras douradas, com pintura em tábua da Vida de Santo
Vicente”;

“Dois painéis de oito palmos e mais de alto e quatro de largo


com molduras douradas e pintura em tábua da Vida de São
Vicente;

“Dois painéis de quatro palmos de largo e mais de oito de alto


pintados em tábua em que trata de Milagres do Santo acima”;

“Dois painéis de cinco palmos de largo e oito de alto molduras


douradas pintados em tábua de um Milagre de São Vicente
Mártir”;

“Dois painéis de quase cinco palmos de largo e onze de alto


molduras douradas pintura em tábua que tratam dos Milagres
de São Vicente Mártir”;

“Um painel pouco mais pequeno [que o anterior] da mesma


pintura em pau de Milagres do mesmo Santo”

Extractos do inventário dos Bens da Mitra em Marvila, existente


no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, com referências a
painéis que incluem cenas da vida e milagres de S. Vicente,
revelado por Nuno Saldanha em 2010. 205

Através desta lista de documentos, onde se incluem menções à


realização das obras na capela de S. Vicente, às descrições do retábulo
de S. Vicente, à presença dos Painéis naquele local, e ainda à
existência de painéis em Marvila com imagens do santo, podemos
resumi-los do seguinte modo:

205
SALDANHA, Nuno – Transitoriedade e Permanência: a Pintura em S. Vicente
de Fora, in Mosteiro de S. Vicente de Fora, Arte e História, Lisboa, 2010, págs.
157-187
130
• O retábulo de S. Vicente integrou a capela-mor da Sé de
Lisboa durante 228 anos (1462-1690).

• Os documentos das Visitações relativos à execução inicial do


retábulo (1462-1473) são bem explícitos quanto ao seu
objectivo porque, “vendo como o corpo e relíquias do
gloriosíssimo mártir São Vicente são em a igreja
metropolitana da mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa
com tanta humildade”, tornava-se necessário proceder à
dignificação do local onde se encontravam.

• As descrições incluídas nos documentos de 1545, 1567 (parte)


e 1642 não deixam dúvidas de que as cenas representadas no
retábulo eram relativas à vida, martírios e milagres de S.
Vicente.

• Os Painéis, senão todos pelo menos alguns, figuraram neste


local durante cerca de 66 anos (1534-1600). Podemos inferir a
sua presença através dos documentos de 1534, 1567 (parte) e
principalmente no de 1600.

• A presença de painéis com imagens da vida e dos milagres de


S. Vicente no palácio da Mitra em Marvila estão referenciados
nos documentos de 1742, 1767 e no inventário de 1821. Tudo
indica que sejam os que foram retirados da capela de S.
Vicente da Sé de Lisboa, segundo o documento de 1690.

Nos capítulos seguintes iremos analisar alguns destes documentos


com maior detalhe.

131
15. Os documentos das Visitações

Em 1960 Jaime Cortesão introduziu, no debate sobre os Painéis, um


documento publicado em 1887 relativo à Visitação à Igreja de S. João
de Mocharro de Óbidos pelo arcebispo D. Jorge da Costa em 14 de
Fevereiro de 1467, cujo item 37 atribuía quarenta dias de indulgências
a quem contribuísse com esmolas:

“…pellas obras muy grandes que se cada dia rrecresçem na capella


do dicto martir, mandamos a todolos priores vigairos e benefiçiados e
persoas ecclesiasticas a que esto pertencer que cada huum em sua
igreja faça huum moonspostero que peça aos fiees xpaâos peras
dictas obras…[na Sé de Lisboa].”206

Aquele investigador fez ainda referência a um outro documento,


datado de 19 de Junho de 1469, que informa que D. Afonso V tinha
dado 5650 reais ao:

“…cabido da dita Sé de esmola para o retábulo que se ora faz na dita


Sé do martel S. Vicente”.207

Mais tarde, em 1988, Dagoberto Markl apresenta uma breve notícia,


recolhida por Vítor Serrão numa publicação de 1666:

“No ano de 1462 sendo Arcebispo dom Ao Nogueira mandou o Vor que
se tirasem esmollas pa as obras da Capa do martyr S. Viçente da see e
aos que as desem se lhe conçediã quorenta dias de perdão”. 208

206
CORTESÃO, Jaime – Op. cit., pág. 513
207
Idem - pág. 514
208
MARKL, Dagoberto – Op. cit., págs. 231-232
133
Temos assim conhecimento de que em 1462 e 1467 se recolhiam
esmolas para custear as obras que decorriam na capela de S. Vicente
da Sé de Lisboa e que em 1469 o rei contribuiu com uma verba para o
retábulo de S. Vicente.

Neste contexto, e no âmbito da pesquisa que temos vindo a


desenvolver, apresentamos outros documentos que, julgamos, serão
inéditos nas investigações efectuadas sobre os Painéis, e que
permitem extrair um conjunto de ilações bastante sólidas. Estes
confirmam e acrescentam novos dados aos revelados pelos
investigadores atrás citados. Estes testemunhos, que podem ser
consultados no Apêndice II, dizem respeito a um conjunto de
Visitações,209 que foram recolhidos, tratados e publicados pelo
investigador Isaías da Rosa Pereira.

As Visitações correspondiam a visitas de inspecção efectuadas às


paróquias, por ordem das autoridades eclesiásticas da respectiva
diocese, cujo objectivo era verificar as práticas, os costumes e os
rituais seguidos pelos fiéis e membros do clero. No caso de serem
detectados comportamentos incorrectos eram aplicadas penalidades de
acordo com os respectivos níveis de gravidade. Simultaneamente
faziam-se levantamentos aos bens da igreja, inteirando-se do seu
estado de conservação e, caso este fosse mau, davam-se instruções
para a sua recuperação.

Seleccionámos, dentro daquele conjunto de documentos, que abarcam


o período compreendido entre 1434 e 1524, apenas os itens que fazem
referências ao cepo ou à capela de S. Vicente existente na Sé de
Lisboa. Pretendemos assim contribuir para a desmistificação de que os
Painéis foram executados para figurarem na Sé de Lisboa.

209
Ver no Apêndice II as indicações das respectivas fontes.
134
135
O quadro da página anterior sintetiza as Visitações atrás referidas.

A coluna Arcebispo indica o respectivo dignitário; a Data em que foi


efectuada a visita; a Paróquia que foi objecto de inspecção; o número
do item do documento que contém a referência a S. Vicente; a
indicação do Destino da penalização sofrida ou da indulgência paga e
o respectivo Valor - uma importância concreta no caso de uma
penalidade ou esmolas a troco de indulgências.

Conclui-se que no período atrás referido (1434-1524) só há


referências a S. Vicente no intervalo 1456-1517, o que evidencia que,
nas Visitações efectuadas durante as prelaturas de D. Pedro de
Noronha (1424-1452) e de D. Luís Coutinho (1452-1453), não foram
cobradas quaisquer penalizações em nome deste santo. Estas recolhas
só irão ter início no tempo do Cardeal D. Jaime (1453-1459).

Verifica-se que até ao final de 1458 só se recolhiam importâncias para


o cepo (caixa de esmolas) afecto ao culto do santo e confirma-se que
em 1462 já se cobravam fundos para as obras da capela de S. Vicente
na Sé de Lisboa. Estas iniciaram-se sob a prelatura do arcebispo D.
Afonso Nogueira (1459-1464) e continuaram nas de D. Jorge da Costa
(1464-1500) e do seu irmão D. Martinho da Costa (1500-1521).

As obras mais significativas ocorreram entre os anos de 1462 a 1473


(…obras muy grandes…) e as menos importantes entre 1490 e 1517,
desaparecendo também neste período a referência às “obras para a
capela de S. Vicente”, ficando apenas “para as obras de S. Vicente”.

Quando D. João I morreu em 1433, como vimos no capítulo anterior,


decorriam obras na capela de S. Vicente. Estas não devem ter sido
profundas ou tinham pouca qualidade porque, passados trinta anos, já
se lamenta o estado em que a capela de S. Vicente se encontrava e o
local onde se guardavam as relíquias do santo.

As contribuições para as “obras muy grandes” foram obtidas por


mamposteiros colocados em todas as igrejas, que recebiam as esmolas
136
em troca de indulgências equivalentes a 40 dias de perdão. Por outro
lado os fundos para as “obras de S. Vicente” resultavam de
penalidades fixas, aplicadas aos fiéis e clérigos, pelo incumprimento
de certas regras.

De salientar que o texto do item referente às grandes obras incluído na


Visitação de 1462 (do tempo de D. Afonso Nogueira), serve de
modelo para o item idêntico de 1467 (já na prelatura de D. Jorge da
Costa). As diferenças mais significativas destes artigos referem-se ao
modo e ao período de recolha das esmolas.

Prova-se assim que este impulso, para renovar profundamente a capela


da Sé de Lisboa, onde se encontrava “…o corpo e rreliquias do
gloriosíssimo martir ssam Viçente…”, partiu de D. Afonso Nogueira
que pretendeu com esta acção dar um caracter mais solene e digno ao
local onde se veneravam dos restos mortais do santo.

Apesar de não existirem nestes documentos nenhuma referência a


qualquer pintura, subentende-se que as obras na capela se referiam a
um retábulo, entendido aqui no seu duplo significado, isto é, tanto à
obra de cantaria ou marcenaria, como ao conjunto de painéis ou
pinturas.

Esta recolha de esmolas a troco de indulgências, realizada pela Igreja


para executar as obras no retábulo da capela de S. Vicente da Sé de
Lisboa, só se justificaria se o conjunto das pinturas evocasse e
representasse cenas da vida, martírio e milagres do santo padroeiro de
Lisboa.

Não seria lógico obter da população em geral verbas para custear um


Políptico onde estariam notoriamente presentes membros da realeza,
nobreza, militares e clerezia, e onde a figuração do santo não seguia a
iconografia habitual, já então instituída e reconhecida como tal. Para
além disso os fiéis também se sentiriam incomodados em rezar na
capela de S. Vicente perante umas pinturas cujas cenas eram alheias
ao culto do santo da sua devoção.
137
Estas Visitações representam não o contrato, mas a confirmação de
que, no período em que foram executadas umas “obras mui grandes”
(1462-1473), se pintou na Sé de Lisboa um retábulo evocativo de S.
Vicente.

138
16. Os pareceres de Francisco Pereira Pestana

Em 1988 o investigador Dagoberto Markl recuperou para o debate


sobre os Painéis um documento, que foi apresentado em 1936 por
Artur da Motta Alves, mas que não teve a devida atenção dos
estudiosos: 210

Trata-se da «Repartição Q. Fes Fr.co Pera Pestana Pa Se Cõquistar


o Reyno de Fez», que surge integrada no códice onde vem a relação
dos Retratos de Reis Q. Estã ͠e Lxa.
...
O trecho final da Repartição é o que importa mais para a questão
dos Painéis, tendo sido, como já dissemos, sistematicamente
ignorado. Pereira Pestana, depois de descrever as forças necessárias
para a boa condução da conquista de Fez, dirige no final uma súplica
ao rei:

«…lembrar & pedir p.r M. q. este dia de S. V.te, q.


agora vem va ouvir missa ha Sé por ver aqles
famosos Reis armados tão fermosos e g̴ẽtis homens
aquelles todos estã no paraizo...»

Quanto ao ano da sua redacção, Dagoberto Markl supõe “que o


conselho dado por Pereira Pestana talvez se possa situar cerca de
1531”.

Assim o trecho “famosos Reis, armados tão formosos, e gentis-


homens” permite-nos associá-lo às figuras dos Painéis de maiores
dimensões. Os “famosos Reis, armados tão formosos” seriam D.

210
MARKL, Dagoberto L. – Op. cit., págs. 41-42
139
Afonso V, D. Duarte211 e o futuro D. João II no painel do Arcebispo, e
o regente infante D. Pedro no painel do Infante, acompanhados de
outros cavaleiros armados, enquanto os “gentis-homens” estão
bastante visíveis no painel do Infante. Se estas conclusões estiverem
correctas estaremos perante o registo mais antigo que nos descreve
figuras dos Painéis e que os coloca no altar de S. Vicente da Sé.

A interpretação que damos à recomendação do relator para que o rei


que “vá ouvir missa à Sé para ver aqueles famosos Reis…”, leva-nos
a deduzir que aquelas pinturas seriam uma novidade no altar de S.
Vicente212 e que o soberano não as conhecia. Assim sendo, os Painéis
surgiram neste local setenta anos após a execução do retábulo original.

Ao longo das nossas pesquisas encontrámos outras referências a


Francisco Pereira Pestana, onde se incluem outros pareceres que
emitiu sobre a política norte-africana.

Na obra Noticias de Portugal de Manuel Severim de Faria está


publicada uma síntese de um relatório seu:

…& o repete Francisco Pereira Pestana em hum discurso sobre a


guerra de Africa, em que mostra ao mesmo Rey [D. João III] quanto
contra seu Estado era sustentar nos lugares de Africa 2000 lanças,
que naõ faziaõ força mais que de 100…213

Por outro lado Diogo Barbosa Machado, na Biblioteca Lusitana,


fornece-nos os títulos completos de dois conselhos escritos por Pereira
Pestana, um dos quais relativo ao norte de África:

Practica em que persuadia a D. Joaõ o III naõ ser conveniente


passar elle, e seu Irmaõ o Infante D. Luiz a Africa; e o modo como
os Ecclesiasticos podiaõ concorrer para esta empreza.

211
O homem do chapeirão, segundo alguns autores.
212
Presumimos que o autor, ao evocar o dia de S. Vicente, estava a encaminhar o rei
para a capela deste santo.
213
FARIA, Manoel Severim de – Noticias de Portugal, Lisboa, 1655, pág. 47
140
Discurso sobre o governo da India onde mostra os meyos por
onde se pode dilatar a sua Conquista.
Estas duas obras se conservavaõ na Livraria do Chantre de
Evora Manoel Severim de Faria. 214

As duas menções sobre África, que aparentemente serão apenas uma


(dada a existência de um ponto comum: Manuel Severim de Faria),
mostram pelo seu conteúdo e pelo título do parecer que Pereira
Pestana não era, naquela época, defensor da política norte-africana que
estava a ser seguida.

Esta posição é contrária à que está expressa no documento revelado


por Motta Alves, como se conclui pelo seu título «Repartição Q. Fes
Fr.co Pera Pestana Pa Se Cõquistar o Reyno de Fez», e resumida do
seguinte modo:215

… e onde o seu autor descreve as fôrças que era possível organizar


para a conquista do reino de Fez, os contigentes de tropas com que
cada Bispo, cada Fidalgo e cada Província podia concorrer e quasi
no final do documento o seu autor dirige-se, numa súplica ao rei,
pedindo-lhe para que não abandone a ideia dessa campanha,
incitando-o com a invocação da memória e dos feitos gloriosos dos
reis passados finalizando por… [segue-se a citação recuperada por
Markl].

Aquele autor publica ainda outros extractos do mesmo documento,


que serão importantes no desenvolvimento da nossa interpretação:216

… tudo nos levando a crer que o presente documento é a resposta


dada por aquele fidalgo que, logo ao iniciá-lo, diz: «eu dey a causa
& razã a V.A. porq. diuia passar ͠e Africa», referindo-se ainda em
outra parte ao infante D. Luís, nos seguintes termos: «seria ver
celebrar h͠u pontifical cõ tanta gloria, alegria, e choros de prazer na

214
MACHADO, Diogo Barbosa – Bibliotheca Lusitana, Tomo II, Lisboa, 1747, pág.
219
215
ALVES, Artur da Motta – Op. cit., pág. 15
216
Idem, págs. 15-16
141
qla. grande mesquita, q. ali seria ele verdadeiro pontifical onde pelo
Ifte. Dõ Luis voso irmão e vosso cõdestable V.A. fose armado
cavaleiro…»

Este enquadramento vem a propósito de um outro documento,


composto por duas partes, que julgamos inédito no âmbito das
investigações já publicadas sobre os Painéis. Trata-se de um longo
parecer escrito em Lisboa por um Francisco Pereira e dirigida a D.
João III, no qual é exposta a sua opinião sobre a política e as medidas
que o rei devia tomar quanto às praças norte-africanas.217 Este foi
publicado por Maria Leonor Garcia da Cruz e encontra-se inserido no
seu estudo mais amplo sobre a presença portuguesa no norte de África
na época de D. João III.218 Esta autora considera que o referido
conselho foi escrito no final de 1534.

Este Francisco Pereira, apesar de lhe faltar o apelido, 219 é sem dúvida
o mesmo autor dos pareceres atrás analisados. O que agora
divulgamos, é praticamente uma cópia daquele referido por Motta
Alves, a julgar pela descrição e pelos extractos que este autor
publicou. Ao longo dos primeiros 24 fólios deste seu conselho, de um
total de 44, Pereira Pestana destaca os ganhos e os motivos porque se
devia conquistar o reino de Fez. Nos restantes fólios enumera as
contribuições (militares ou pecuniárias) que cada bispo, fidalgo ou
província podia entregar para essa campanha.

Constatamos um alinhamento nas ideias expressas nos dois


documentos. Os textos citados por Motta Alves são, salvo a grafia
diferente, exactamente iguais aos contidos neste novo documento, o
que só vem avalizar a autenticidade do documento anteriormente
recolhido por este autor:

217
Este fidalgo, antes de 1510, esteve sete anos nas praças africanas ao serviço de D.
Manuel I.
218
CRUZ, Maria Leonor Garcia da – As controvérsias ao tempo de D. João III sobre
a política portuguesa no Norte de África, in Mare Liberum nº 13, Junho 1997
219
No capítulo XCV da Crónica de D. Manuel, Damião de Gois referindo-se a
Francisco Pereira Pestana, denomina-o também por Francisco Pereira.
142
«eu dey a causa & razã a V.A. porq. diuia passar e͠ Africa»
versus
“Eu dei a cauza e rezões a Vossa Alteza por que devia passar em
Affrica”220
e
«seria ver celebrar h͠u pontifical cõ tanta gloria, alegria, e choros de
prazer na qla. grande mesquita, q. ali seria ele verdadeiro pontifical
onde pelo Ifte. Dõ Luis voso irmão e vosso cõdestable V.A. fose
armado cavaleiro…»
versus
“seria ver celebrar hun Pontefical com tanta alegria com choros de
prazer naquella tão grande mesquita que alli seria elle vardadeiro
Pontefical onde pello Infante D. Luís Vosso Irmão e vosso
Condestable Vossa Alteza fosse armado Cavaleiro…”221

É de salientar ainda o pedido de perdão que Pereira Pestana fez ao rei,


por anteriormente ter emitido uma opinião diferente (deve estar a
referir-se à posição repescada por Manuel Severim de Faria e
eventualmente incluída no parecer citado por Barbosa Machado, que
transcrevemos acima):

Outra vez peço por merce a Vossa Alteza queria (sic) perdoar o
atrevimento que em tanto me atraver cometi, querendo (como já
disse) olhar a vontade com que se escrevo, protestando de assim
servir vendo-me na dita guerra que mereça perdão de minhas
ignorancias e porque acerca de aquesta Conquista, há outro parecer
em escripto em contrario deste, a este se deve perdoar.222

Consideramos que tanto o documento de Pereira Pestana citado por


Motta Alves, como aquele que ora apresentamos, devem ser datados à
volta de 1533-1534, enquanto os que exprimiam uma posição

220
CRUZ, Maria Leonor Garcia da – As controvérsias ao tempo de D. João III sobre
a política portuguesa no Norte de África – Compilação de Documentos, in Mare
Liberum nº 14, Dezemdro 1997, pág. 151
221
Idem, pág. 157
222
Idem, pág. 149
143
contrária, serão de 1531-1532. Estas datas coincidem com dois
momentos em que D. João III pediu aos seus conselheiros que lhe
dessem as suas opiniões sobre as acções que deveriam ser tomadas
relativamente às praças norte-africanas.

O trecho que consideramos mais importante, e onde encontramos


novos contributos para a problemática dos Painéis inclui, à
semelhança daquele recuperado por Dagoberto Markl, uma
recomendação dirigida ao soberano para que efectue uma visita à
capela-mor da Sé. Nele o autor incentiva novamente o rei, utilizando
agora um texto diferente:

E porem Senhor em entrando na Capella mor desta cidade olhe


aquellas sepulturas dos Reyes vossos Avos, e nellas vera quanto
melhor parecem os que não estão vestidos de arminhos pois tudo alli
vay parar não toco a redempção dos captivos asim de Portugal como
de Castella a que munto se deve olhar. 223

O autor está a apelar ao espírito guerreiro do rei, ao realçar o contraste


dos trajes envergados por dois grupos: os que não estão vestidos de
branco (os militares) e os que estão de branco (os frades). Ressalva,
porém, o reconhecimento que devia ser dado às acções efectuadas
pelos frades no resgate dos cativos.

Tudo indica, por esta descrição de Pereira Pestana, que os painéis dos
Cavaleiros e dos Frades se encontravam na capela-mor da Sé de
Lisboa, junto às sepulturas de D. Afonso IV e D. Beatriz, sua mulher.
Por aqui se pode concluir que estas tábuas não integravam o retábulo
existente na capela de S. Vicente.

Curiosamente, o autor ao ligar os frades com hábitos brancos


(arminhos) a estruturas ligadas às acções de redenção de cativos, vem

223
Idem, pág. 148
144
de encontro com o expusemos anteriormente224 onde defendemos que
o tema principal do painel dos Frades se relacionava com estas acções
de resgate.

Pereira Pestana ao sugerir uma visita à capela-mor da Sé, tal como no


outro parecer está, para além de incentivar o rei, a dar-lhe uma
novidade sobre a presença, naquele local, de umas pinturas dignas de
serem admiradas. É importante recordar que D. João III e a sua corte
já não se encontravam de Lisboa nessa altura porque, desde os finais
de 1530, quando a peste começou a grassar, até 1537, estabeleceram a
sua residência quase permanentemente em Évora. Por este motivo o
soberano não teve oportunidade de contemplar a novidade das
referidas pinturas na Sé de Lisboa.

Aquele autor fornece-nos, com estas duas descrições, a localização de


quatro dos seis Painéis na capela-mor: do lado do Evangelho, junto
aos túmulos de D. Afonso IV e esposa, estariam os painéis dos Frades
e dos Cavaleiros; no lado da Epístola, na capela de S. Vicente, situar-
se-iam os painéis do Infante e do Arcebispo.

Não existem estranhamente nestes pareceres, que expõem pontos de


vista relacionados com as conquistas das praças do norte de África,
uma única menção ao santo ou ao retábulo que se encontrava no altar
de S. Vicente, precisamente ali na capela-mor. Esta omissão contradiz
a posição oficiosa defendida por certos autores e também publicada no
site do Museu Nacional de Arte Antiga, que relaciona S. Vicente com
essa política expansionista:

Os Painéis apresentam-nos um agrupamento de 58 personagens


individualizadas em torno da dupla figuração de São Vicente, …, em
acto de veneração ao patrono e inspirador da expansão militar
quatrocentista no Magrebe.225

224
Ver Cap. 8. O frade de barbas e a tábua
225
http://www.museudearteantiga.pt/pt
145
Estes dois documentos associados ao relato de 1567,226 que descreve
“que as vestes, o calçado e a maneira de cobrir a cabeça nos dão
mostra da sua grande antiguidade” permitem induzir que os Painéis
marcaram presença na capela-mor da Sé, o que será depois
amplamente reforçado com o Documento do Rio, que analisaremos
adiante.

Tudo nos leva a concluir, na sequência da leitura e interpretação que


acabámos de efectuar aos extractos dos relatórios de Francisco Pereira
Pestana, nos quais este autor aconselha que o rei faça uma visita à
capela-mor da Sé de Lisboa, que o aparecimento dos Painéis neste
local se deveu ao grande sismo que a capital sofreu no dia 26 de
Janeiro de 1531 cujos prejuízos só foram superados pelo terramoto de
1 de Novembro de 1755.

O cronista Garcia de Resende, que sentiu e viveu este cataclismo,


deixou-nos uma descrição, de certo modo detalhada, sob a forma de
um poema de onze décimas227. De reter as referências à intensidade do
sismo (foy em tam grande maneira terremoto), à sua duração (obra de
hu͠o credo durou), às sucessivas réplicas (deste grande a ho p͠ meiro
cinco͠eta dias ouue) e aos prejuízos que causou (muros & torres
cahiram villas paços mõesteiros igrejas, casas, celleiros, quintas).

Os historiadores actuais descreveram este sismo do seguinte modo:

“…Lisboa e a zona do Tejo, com particular incidência em Santarém,


Almeirim, Azambuja, Castanheira, Vila Franca de Xira e Benavente
são atingidos por violento terramoto. «Nunca se viu nada mais
temeroso: parecia que o céu com a terra se juntava e umas casas
com outras se davam […] Santarém está tão destruída que não há
onde o rei repouse228, porque os seus palácios estão no solo, por

226
Ver Cap. 14. A cronologia dos documentos
227
RESENDE, Garcia de – Miscellanea, Évora, 1554, fols. xxij-xxiij
228
O rei entretanto já tinha fugido do seu paço de Benavente.
146
terra […] Em Almeirim o mesmo […] E na Azambuja não havia uma
única casa […] O mosteiro de Belém caiu na sua maior parte e a
torre de Belém com toda a sua artilharia ficou de tal maneira que se
abriu por todas as esquinas […].» Milhares de mortos, vítimas que
se juntam às mortes por doença, assinaladas entre os começos do
Verão e o final do ano na capital.” 229

São ainda reportados outros danos em Lisboa, em particular numa ala


do Paço da Ribeira, numa nave do Convento de S. Domingues e
alguns estragos numa das torres da Sé.

A capela real de S. Miguel, situada junto ao antigo paço real da


alcáçova de S. Jorge e local para onde os Painéis foram concebidos, 230
terá sofrido elevados estragos com o sismo. Este acontecimento terá
obrigado à transferência do Políptico para a Sé de Lisboa, edifício que
teve poucos danos e localizado perto daquela capela real. Assim se
explica o aparecimento dos Painéis na capela-mor numa data muito
posterior à execução do retábulo de S. Vicente.

Recordamos que o novo Paço Real foi mandado construir por D.


Manuel I junto à Ribeira no início do século XVI, tendo sido o local
de residência dos reis portugueses até ao terramoto de 1755. A
excepção foi dada por D. Sebastião que pelos seus ideais de cavalaria
medieval, volta a ocupar o Paço da Alcáçova ao mandar recuperar
estas instalações, incluindo a capela de S. Miguel. Este facto é
confirmado pela descrição efectuada por um membro da comitiva
papal que chegou a Portugal em 1571, conforme referimos no estudo
anterior.231

229
MATTOSO, José - Direcção de – História de Portugal, 3º Volume, Lisboa, 1993,
pág. 216
230
BAETA, Clemente, Op. cit., Cap. 12. A disposição dos Painéis
231
Idem.
147
17. A opinião de Francisco de Holanda

A inclusão da apreciação de Francisco de Holanda na “Questão dos


Painéis” coube a José de Figueiredo no livro O Pintor Nuno
Gonçalves232. Aquele humanista estudou em Itália, durante cerca de
dez anos, local onde recebeu as influências que formaram o seu
pensamento, cujas ideias reflectem a arte do renascimento italiano, e
que foram expostas na sua obra Da Pintura Antiga, escrita em 1548.

Um extracto deste trabalho, habitualmente transcrito por outros


investigadores no âmbito das suas pesquisas sobre os Painéis, afirma
que o pintor do altar de S. Vicente foi Nuno Gonçalves:

E este foi Nuno Gonçalves, pintor del-Rei D. Afonso, que pintou na Sé


de Lisboa o altar de S. Vicente, e creio que também é da sua mão um
Senhor atado à coluna que dois homens estão açoitando em uma
capela do mosteiro da Trindade.233

Num outro estudo Diálogos de Roma (que corresponde a uma 2ª parte


da obra anterior), Francisco de Holanda, sob o título “A tábua dos
famosos pintores modernos a que eles chamam águias”, publica uma
lista com 21 nomes, onde se incluem Miguel Ângelo e Leonardo da
Vinci, dos quais o último é um artista português:

21. O pintor português, ponho entre os famosos, que pintou o altar de S.


Vicente de Lisboa.234

232
FIGUEIREDO, José de – Op. cit.
233
HOLANDA, Francisco de - Da Pintura Antiga, Lisboa, 1984, págs. 37-38
(sublinhado nosso)
234
HOLANDA, Francisco de - Diálogos em Roma, Lisboa, 1984, pág. 137
(sublinhado nosso)
149
Aquele autor escreveu por duas vezes “que pintou o altar de S.
Vicente de Lisboa”, sem se referir ao tema que lá estava exposto. A
não alusão a outros pormenores significa que as pinturas objecto da
sua atenção só podiam dizer respeito a cenas relacionadas com este
santo, ainda mais quando se sabe que Francisco de Holanda conhecia
bem os atributos de S. Vicente conforme se vêem na moeda de ouro
Vicente (fig. 89) cujo cunho seria mais tarde desenhado por si e pelo
seu pai, António de Holanda, como já tínhamos feito referência.235

No capítulo anterior afirmámos que os Painéis foram deslocados para


a capela de S. Vicente da Sé no seguimento do sismo de 1531, o que
implica que já se encontrassem ali quando Francisco de Holanda
efectuou o elogio ao pintor do altar de S. Vicente. No entanto, não
lhes teceu qualquer comentário, assim como a outras pinturas que
existiriam na Sé de Lisboa, porque as mesmas não se enquadravam no
seu ideal estético.236

Se assim não fosse o humanista teria feito o devido reparo elogiando


os Painéis com uma breve descrição, tal como o fez quando descreveu
os pormenores de “um Senhor atado à coluna que dois homens estão
açoitando em uma capela do mosteiro da Trindade”.

Aliás, se os Painéis não tivessem sobrevivido, todas estas dúvidas


nem se poriam porque, perante aquelas referências de Francisco de
Holanda, se concluiria simplesmente que no altar de S. Vicente da Sé
de Lisboa teriam existido umas pinturas que ilustrariam, de certeza,
cenas da vida, dos milagres e dos martírios deste santo.

235
Ver Cap. 13 A tese vicentina.
236
No Cap.10 O pintor dos Painéis, debruçámos essencialmente sobre as referências
feitas a Nuno Gonçalves e ao ideário artístico defendido por Francisco de Holanda.
150
18. O documento da Biblioteca do Rio de Janeiro

O relato que efectua uma descrição que mais se aproxima do que é


visível nos painéis centrais encontra-se no chamado Documento do
Rio.237 Trata-se de um manuscrito encontrado na Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro por Artur da Mota Alves, no qual um autor anónimo
descreve diversos retratos de figuras régias então existentes em
Lisboa. É datado do final do século XVI e terá sido levado para o
Brasil quando a família real portuguesa fugiu da 1ª invasão francesa
no final de 1807. No relato em causa podemos ler:

O Príncipe Dom Afonso seu filho, que caiu do cavalo, está retratado
na capela-mor da Sé, soía estar na dita capela entrando por ela à
mão esquerda do altar em cima no alto uma sepultura dourada onde
diziam estar o corpo de S. Vicente, e em baixo ao pé dela estavam
dois painéis em que estava pintado S. Vicente em figura de moço de
17 anos em cada retábulo e painel, que estavam juntos um do outro, e
a figura de S. Vicente estava virada uma para outra de maneira que
mostrava a si cada parte do rosto em figura deste S. Vicente está
retratado o Príncipe Dom Afonso – um rosto muito formoso de moço,
e ele, e outras muitas figuras de homens que nos ditos painéis estavam
que eram Senhores e fidalgos daquele tempo que se mandaram
retratar com o príncipe Dom Afonso e tinham nas cabeças umas
caraminholas muito altas de veludo, umas de vermelho, outras de
verde e de cores que parece que eram os barretes daquele tempo, há
muito que não vi isto, disseram-me há poucos dias que não estavam já
aí estes painéis, dirão os cónegos onde estão, também me disseram
que estava este príncipe retratado em São Bento, em figura de São

237
ALVES, Artur da Motta – Op. cit.
151
Sebastião no pé de um retábulo nunca o vi, os da Sé retratou o Mota
que foi o que pintou El-Rei Dom João pai deste príncipe.238

Encontram-se aqui, de facto, alguns detalhes coincidentes com o que é


observável nos Painéis, em particular na dupla figuração do jovem
santo, colocado frente a frente, e nas menções aos barretes que cobrem
as cabeças das figuras. Este pormenor da descrição da duplicação da
figura santificada é bastante forte o que nos leva a concluir que os
painéis centrais do Políptico estiveram na capela-mor da Sé, apesar de
notarmos a ausência de referências a outros elementos que seriam
expectáveis. Estão neste caso as omissões relativas a personagens
colocadas em posições de destaque, como por exemplo, às duas
figuras femininas, aos membros da igreja, em particular ao arcebispo,
e também às figuras militares, limitando-se o memorialista a fazer
alusão apenas às “figuras de homens que nos ditos painéis estavam
que eram Senhores e fidalgos daquele tempo”.

Estranhamente o autor anónimo também não faz qualquer menção às


duas personagens colocadas nos primeiros planos que estão a assumir
uma posição régia (têm apenas um joelho no chão) quando o códice,
de onde este documento foi extraído, tinha como objectivo, e de
acordo com o seu título, fazer um levantamento dos Retratos de Reis
que estão em Lisboa. Em contrapartida outras descrições da realeza,
incluídas na mesma relação, já são mais detalhadas, como por
exemplo:

El-Rei Dom João o Primeiro de Boa Memória está retratado no altar-


mor de Santo António à mão direita do Evangelho em joelhos vestido
com uma opa de brocado, e aos pés dele está em joelhos também
vestido de preto o Infante D. Fernando que morreu em Fez, e da outra
banda da Epístola a Raínha inglesa mulher do dito rei, estes retratos

238
CORTESÃO, Jaime – Op. cit., pág. 501, (sublinhados nossos). Ajustámos o texto
original à grafia actual.
152
e o d’el-rei Dom Duarte seu filho fez um grande pintor daquele tempo
e se chamava Diogo Gomes da Rosa.239

Curiosamente é de salientar que não se conhecem, ou não


sobreviveram, nenhuma das outras pinturas cujos retratos o autor
anónimo descreveu na versão completa da sua memória.

Naquele extracto o memorialista também não faz a mínima referência


a qualquer um dos outros quatro painéis de menor dimensão do
Políptico. Possivelmente a sua atenção estava apenas concentrada na
única personagem para a qual avançava uma identificação.

A ausência de qualquer alusão ao retábulo de S. Vicente, ali presente


por cima do túmulo do santo será igualmente justificada pela
focalização do autor nas figuras régias.

É interessante notar o modo como o autor desconhecido descreveu a


posição que os dois painéis ocupavam junto a “uma sepultura dourada
onde diziam estar o corpo de S. Vicente, e em baixo ao pé dela
estavam dois painéis em que estava pintado S. Vicente”, e, mais
adiante, a retirada destes painéis, “disseram-me há poucos dias que
não estavam já aí estes painéis”. Podemos concluir por estes
extractos, que estas pinturas não estavam integradas na estrutura das
molduras do retábulo original o que lhes facilitou a sua remoção.

A descrição pormenorizada efectuada por D. Rodrigo da Cunha, que


analisaremos de seguida, vem confirmar esta dedução, porque não
assinala qualquer falta ou lacuna no retábulo do altar de S. Vicente,
para além de não fazer qualquer alusão aos Painéis, o que prova que
estes já não se encontravam naquele local.

A colocação temporária destes Painéis, nos quais figurava um santo


em duplicado, junto a um retábulo onde eram evocados os martírios,
os milagres e a vida de S. Vicente, deve ter estado na origem da crença

239
MARKL, Dagoberto – O Essencial sobre Nuno Gonçalves, Lisboa, 1987, pág.
13. Ajustámos o texto original à grafia actual.
153
de que aquele santo, há falta de melhor indicação, também seria S.
Vicente, embora os devotos não percebessem o significado subjacente
àquelas representações cénicas.

154
19. O testemunho de D. Rodrigo da Cunha

Na sua História Ecclesiastica da Igreja de Lisboa, datada de 1642, D.


Rodrigo da Cunha descreve em pormenor o altar de S. Vicente da Sé
de Lisboa. A integração deste testemunho no debate dos Painéis foi
efectuada pelo investigador José Saraiva.240 Transcrevemos as partes
mais relevantes:

…O lugar, que hoje tem o sagrado deposito, he na nesma capella


mòr, da parte sa epistola, pouco abaixo dos degraos do altar, na area,
& taboleiro, que faz a mesma capella entre os primeiros, & segundos
degraos, em correspõdencia dos tumulos dos gloriosos reys dom
Affonso o IV & Dona Brites sua mulher. Aqui neste espaço se leuanta
o altar do santo, de que logo nace o retabolo com a sua imagem de
vulto no meyo, com a palma de martyr na maõ direita & a nao em que
nos foi trasido, na esquerda. Seguese pellos maes paineis do retabolo
de pintura singular, varios milagres do santo, com os passos
principaes de sua vida, & martyrio. Armase no friso, ou cimalha, hum
tumulo, de oito, até nove palmos, lançado ao cõprimento do altar, a
que sustentam quatro Anjos, dous da cabeceira, & dous dos pés do
tumulo, tam encurvados com o peso, que nam lhe bastando os
hombros a sustentalo, nem huma maõ, cõ que acordem a ter mão
nelle, se estribam a sy proprios na outra, trocando, & cruzando os
braços com grande expressam de força, que padecem. Da outra parte
entra o tumulo na parede da Capella mòr, & nella fica maes de
ametade assi para segurança das sagradas reliquias, como da obra,
que os Anjos ficavaõ desiguais Athlantes…

…No maes, vai cõtinuãdo o retabolo, & fazendo Zimborio à


sepultura, retocado por dentro d’estrellas, por fora de argentaria em

240
SARAIVA, José – Op. cit.
155
que se vem varias piramides, & castellos da mesma obra da
frontaleira, até que de todo vem a fenecer, junto da abobada com
remates de Anjos, q sustentam coroas, & outras insignias em ordem
ao sãto. Quem fosse o autor da obra, na perfeiçam em que hoje està,
não pudemos descubrir, foy pelo menos seu restaurador, quando não
autor, ou o cardeal D. Iorge da Costa, ou seu irmam D. Martinho da
Costa, no tempo que foram Arcebispos, como se vé do escudo de suas
armas, que tem pendurado do braço esquerdo, a gloriosa virgem, &
martyr S. Catherina, na coluna que fica do euangelho, em que remata
o retabolo, sam a roda de naualhas da mesma santa, como diremos
em seu lugar. Responde lhe na coluna da parte da epistola, outra do
Anjo do reyno, com as quinas reaes, já postas na form, em que as
mandou cõcertar el Rey dom Ioam o segundo deste nome. A deuaçam
que sempre tiuemos ao glorioso martyr, & as grandes merces, que por
seus merecimentos temos recebido da maõ diuina, nos obrigaram a de
nouo mandar renouar,& dourar esta obra, jà q cõ outros mayores
seruiços nos não he possivel mostrarmo nos agradecidos…241

Trata-se, sem dúvida, de uma narração fidedigna e pormenorizada


realizada localmente pelo então arcebispo de Lisboa. A grandiosidade
do retábulo, que se depreende através deste relato, justifica que a sua
construção se tenha prolongado por vários anos, conforme vimos na
análise que efectuámos às Visitações.

Fica-se a saber que no retábulo havia painéis que ilustravam cenas da


vida, milagres e martírio de S. Vicente e ainda uma estátua que o
representava colocada no meio do retábulo, com a exibição dos
atributos tradicionais (palma e nau). Este pormenor evidencia que a
iconografia habitual de S. Vicente era de facto utilizada nessa época e
que o santo dos Painéis, que não apresenta aqueles sinais distintivos,
não pode ser S. Vicente.

A descrição de D. Rodrigo da Cunha prova que os Painéis não


fizeram parte do retábulo do altar de S. Vicente na Sé de Lisboa. Não

241
CUNHA, Rodrigo da – História Ecclesiastica da Igreja de Lisboa, Lisboa, 1642,
págs. 96-97 (sublinhados nossos)
156
existe no seu extenso relato o mínimo detalhe que nos possa levar a
suspeitar dessa ocorrência, nem uma referência de que o retábulo
estaria incompleto por terem sido retirados uns painéis no início desse
século.242 Repare-se que este clérigo era então, nem mais nem menos,
o arcebispo de Lisboa. A sua narrativa foi, sem dúvida, escrita perante
o retábulo da Sé e o facto de esta ter sido publicada ainda em sua vida,
só pode autenticar o seu conteúdo, se é que ainda houvesse dúvidas
sobre a integridade moral do seu autor. Se os Painéis estivessem ali
presentes, seriam certamente objecto da atenção deste prelado. A tese
vicentina continua a defender, socorrendo-se também deste
documento, que os Painéis fizeram parte do retábulo de S. Vicente.

A menção que o autor faz às recentes obras de conservação que


mandou executar, confirma que o retábulo era já antigo. Teria já uma
idade no mínimo de 180 anos, de acordo com o período de execução
das “obras muy grandes” revelado pelas Visitações (1462-1473). No
entanto alguns elementos decorativos ao nível da talha foram
realizados posteriormente, conforme de deduz pela menção às “quinas
reaes, já postas na form, em que as mandou cõcertar el Rey dom Ioam
o segundo”, isto é, depois de 1485. Neste período nos documentos das
Visitações apenas existem referências a “obras de Sam Vicente”.

Já salientámos atrás243 a devoção que D. Jorge da Costa nutria por S.


Vicente era de tal modo que mandou colocar uma escultura deste
santo (fig. 73) junto ao túmulo que adquiriu em Roma para ser
sepultado. Esta estátua seria assim semelhante àquela que integrava o
retábulo de S. Vicente e que foi descrita por D. Rodrigo. Esta
confirmação de que D Jorge da Costa conhecia bem a imagética deste
santo, é mais um elemento que nos leva a concluir que os santos dos
Painéis não foram pintados para figurarem no altar de S. Vicente.

242
Referimo-nos à descrição dada pelo Documento do Rio. Se os Painéis tivessem
sido retirados do retábulo inicial, notar-se-ia a sua falta no espaço não ocupado do
retábulo e D. Rodrigo teria feito essa observação.
243
Ver Cap. 12 A tese vicentina.
157
20. O outro relato de D. Rodrigo da Cunha

Os diversos investigadores dos Painéis quando se socorrem do


testemunho de D. Rodrigo da Cunha apenas citam o trecho que
descreve o retábulo, que analisámos no capítulo anterior. Todavia, esta
narrativa continua com o relato dos principais episódios da vida,
martírios e milagres de S. Vicente. Através desta descrição podemos
imaginar quais seriam as cenas dos “varios milagres do santo, com os
passos principaes de sua vida, & martyrio” presentes nos painéis que
o arcebispo de Lisboa referiu anteriormente.

Esta narração da vida do padroeiro de Lisboa244 permite descrever, por


exemplo, as doze imagens de S. Vicente presentes numa frontaleira
dos finais do século XIII originária da ermida de Santa Maria del
Monte, em Liesa na região de Huesca (Aragão).245 Apesar destes dois
documentos serem oriundos de nações diferentes e de épocas distintas,
pretendemos evidenciar com esta análise comparativa, que o relato e o
modo de representar a vida e os milagres de S. Vicente se mantiveram
imutáveis, não havendo por isso justificações para que essa figuração
se tivesse alterado apenas na execução dos Painéis.

Repare-se então na grande correlação existente entre estes


documentos:

Nasceo o santo martyr na cidade de Huesca, no reyno de Aragam,


de pays nobres, & grandes catholicos: criouse em Çaragoça na
eschola de S. Valerio, illustrissimo bispo daquella cidade, onde teve
244
CUNHA, D. Rodrigo da – Op. cit., págs. 97-98
245
OMEDES, António Garcia - Este frontal de altar, é composto por doze cenas
dispostas em três filas com quatro imagens cada. Encontra-se presentemente exposto
na Diputación Provincial de Huesca, Espanha. Imagens recolhidas por cortesia de:
www.romanicoaragones.com/3-Somontano/990399-Liesa8-DPH.htm.
159
os aumentos de virtudes, que de tal mestre, & tal discipulo, se podiam
esperar. Felo o santo bispo, levita seu, que foy o mesmo, que
encomendarlhe a pregaçaõ do sagrado evangelho, que entaõ
exercitavam sò os bispos por suas proprias pessoas, & a idade, &
impedimento da lingua prohibiam a sam Valerio, o naõ pudesse fazer
com a decencia, & expediçam, que este sagrado ministerio de sy
pedia.
Nesta ocupaçaõ andava, quãdo Daciano ministro cruel dos
emperadores Diocleciano, & Maximiano, chegou a Hespanha, com
titulo de seu governador. Soube o tyrano por relaçaõ de muitos, o
fervor com que o santo levita convertia huns, melhorava outros, & de
todo desacreditava a seita dos falsos Deoses;

Fig. 93 Fig. 94

mandou o ir a Valença, onde estava, & com elle a seu mestre, e


prelado sam Valerio [fig. 93]. Ally, depoes de examinados [fig. 94],
mandou atormentar com todo o genero de crueldades a sam Vicente,

Fig. 95 Fig. 96

160
tratos, açoites [fig. 96], vinhas,

Fig. 97 Fig. 98

& garfos de ferro [fig. 98], cruzes [fig. 97], fogueiras, crescendo
igualmente a paciencia, & soffrimento, no santo, que a malicia, &
fereza no tyrano.

Fig. 99 Fig. 100

Desatinava entretãto Daciano, & naõ sabendo já o que fizesse, o


mandou de novo lançar em hum escuro carcere, prohibindolhe todo o
genero de sustentação, & alivio, para q desta maneira, ou mudasse
deparecer, ou lhe desse a elle tempo para inventar novos martyrios
com que de novo o atormentasse. Aqui foy o santo visitado de Anjos
[fig. 99], festejado com musicas do ceo, recreado com perfumes
suavissimos, & cercado de tam soberanos resplãdores, quaes naõ
podiaõ soffrer os olhos dos q o guardavaõ, ãtes cheyos de medo, &
persuadidos, que o santo era fugido, o quizeraõ elles tambem fazer,
por escapar das maõs de Daciano. Nam fugi, dizia para elles S.
Vicente, naõ fugi, seguros podeis estar. Ide, dizei a Daciano, que
161
aparelhe novos tormentos, porque os passados obraram tam pouco
em mim, que nem sinaes de os aver padecido, se acharam em meu
corpo.
Certificado Daciano do que passava, tendo diante de si ao
glorioso martyr, fingio queria tratar de sua cura, & regalo, como
arrependido de o aver atormentado. Mandouo lãçar em huma cama
brãda, & mimosa, cuberta de flores. Aqui, lhe dizia, poderàs
descançar, & tomar alento, & se quizeres, arrependerte de tua
pertinàcia, mudãdo a adoraçaõ do Crucificado, na dos Deoses
immortaes, dõde tiraràs vida, hõra, riquezas, & tudo o maes, que no
mundo te poderia fazer bemaventurado.
Falava Daciano, & espirava entre tanto o glorioso martyr,
acabãdo delicias, o que nam poderam acabar tormentos. Voava
aquelle espirito bemaventurado, às moradas eternas, ficava o corpo
entre rozas, para que nam sò a alma triunfadora, fosse coroada de
immortalidade, mas o corpo de flores, pois flores lhe foram os
tormentos, que por Christo padecera. Morto o santo, mandou logo o
tyrano fosse lançado às feras, se naõ que acodindo primeiro, q todas
hum corvo, lhe servio de guarda contra as de maes. Faz a historia
particular mençam de hum lobo [fig. 100], mas eu nam creyo (dizia
santo Agostinho) que o trouxe ali sua corosidade, & o q refer
testemunha de tam soberana maravilha, à vista da qual nem sabia,
nem podia dar um passo adiante…

Fig. 101 Fig. 102

Naõ parou aqui a fereza de Daciano ordenou, que os ministros de


sua impiedade, o lançassem no mar, bem afastado da terra, & com
huma grande pedra ao pescoço [fig. 101]: diligenciavam, contra a
162
divina providencia, a qual sustentando brandamente sobre as agoas,
o sagrado corpo, o foi trazendo a terra, primeiro ainda q a ella
chegassem os que no alto o deixaraõ. Fizeraõ assim mesmo oficio de
coveiro as ondas ao santo martyr, abrindolhe na area sepultura
[fig.104?], em que a pedra ficou servindo de campa, de epitafio o
mar, a sua memoria. Daqui o tresladou por revelaçaõ do mesmo
santo, certa matrona devota a segunda sepultura [fig. 102], fora, mas
junto aos muros de Valença, como em profecia, que o esperavaõ
outros mais gloriosos mausoleos, do que lhe poderia dar sua patria.

Fig. 103 Fig. 104

Aqui esteve reverenciado de toda Hespanha, atè q nella entraraõ os


mouros, & sucederão a sua terceira, & quarta tresladação, pera o
promõtorio sagrado & daly pera Lisboa [fig. 103], na forma q acima
deixamos relatadas.

Fig. 93: As figuras à esquerda são respectivamente, S. Vicente e o


bispo S. Valério. As restantes personagens estão a executar a ordem
dada pelo governador.

Fig. 94: Os dois santos apresentam-se presos perante Daciano.

Fig. 95: S. Vicente fica retido, enquanto S. Valério é expulso da


cidade. O relato de D. Rodrigo não inclui esta cena.

Fig. 96: S. Vicente é preso a uma coluna e açoitado.

163
Fig. 97: S. Vicente é martirizado na cruz em aspa.

Fig. 98: S. Vicente encontra-se sobre uma cama de pregos e está a


ser martirizado com uma grelha.

Fig. 99: Dois anjos visitam o santo na prisão.

Fig. 100: Um corvo impede que um lobo devore o corpo de S.


Vicente.

Fig. 101: O corpo do santo é atirado ao mar com uma mó atada ao


pescoço. É de assinalar existência da iconografia da barca com os
dois corvos e as ondas do mar. Curiosamente estes pormenores
coincidem com os existentes no actual brasão de armas da cidade de
Lisboa (fig. 85). A localização destas imagens no reino de Aragão e
o facto de terem sido executadas nos finais do século XIII, poderão
ser explicadas pelas relações de proximidade com Portugal, na
sequência dos casamentos celebrados entre as duas casas reais.246

Fig. 102: Segunda transladação dos restos mortais de S. Vicente


para o exterior dos muros de Valença.

Fig. 103: Os sinos da Sé de Lisboa tocam em louvor da colocação


das relíquias do santo no interior do templo, após a sua última
transladação de Sagres para Lisboa. Este local é confirmado pela
inscrição de LIXIBONA junto à torre da igreja. Um outro pormenor
curioso é o modo como o túmulo se encontra colocado sobre
colunas, tal como o vemos no selo da cidade de Lisboa datado de
1352 (fig. 80).247

246
Por exemplo: D. Sancho I com D. Dulce (1174) e D. Dinis com D. Isabel (1280),
que continuaria mais tarde através de D. Duarte com D. Leonor (1428) e Infante D.
Pedro com D. Isabel (1429)
247
A explicação para esta representação é idêntica àquela dada anteriormente para a
imagem da barca com os dois corvos.
164
Fig. 104: Esta cena aparentemente ilustra o primeiro enterro de S.
Vicente. Se assim for encontra-se deslocada da ordem cronológica
seguida, tanto na frontaleira, como na narrativa do arcebispo de
Lisboa.

Constatámos que os acontecimentos principais da vida de S. Vicente


já estavam instituídos nos finais do século XIII e que se mantiveram
idênticos até aos meados do século XVII. Se utilizássemos esta
mesma narração de D. Rodrigo para descrever, por exemplo, os
painéis sobreviventes do retábulo de S. Vicente de Sarrià248,
contemporâneo do retábulo da Sé de Lisboa, verificaríamos que a
mesma também se ajustaria às respectivas cenas.

Não vemos nos Painéis qualquer representação semelhante à


descrição ou às imagens que acabámos de mostrar. No Políptico nada
está de acordo com a iconografia que expusemos ou com os
pormenores descritos nesta breve biografia de S. Vicente. O único
elemento que eventualmente poderia ser ligado aos milagres deste
santo seria a corda que se encontra no chão no painel do Arcebispo.
Mas mesmo esta é insuficiente pela ausência da mó, impedindo a sua
associação com o milagre patente na fig. 101.

248
Obra executada entre 1455-1492, iniciada pelo pintor aragonês Jaume Huguet
(1412-1492), encontra-se presentemente no Museu Nacional de Arte da Catalunha.
165
21. A contribuição do inventário de 1821

Em 2010 foi revelado por Nuno Saldanha249 um extracto de um


inventário, efectuado em 1821, relativo a bens existentes no palácio da
Mitra, em Marvila. Este documento, que ainda não recebeu totalmente
a devida atenção por parte dos críticos de arte, é fundamental no
esclarecimento do que poderia ter sido o retábulo de S. Vicente que
existiu na capela-mor da Sé de Lisboa.

Nesta relação são mencionados diversos painéis com cenas da vida e


milagres de S. Vicente. Estes quadros são muito provavelmente
aqueles que pertenceram ao retábulo de S. Vicente da capela-mor da
Sé de Lisboa, e que foram enviados para aquele palácio pelo cardeal
D. Tomás de Almeida, em 1742.250

Os itens do inventário que incluem menções a S. Vicente, são os


seguintes: 251

1. …Um painel de cinco palmos de largo e mais de oito de alto


pintado em tábua e representando o cofre das Reliquias do dito
Santo assistido de um Rei e vários religiosos e outras pessoas
com moldura dourada…;
2. …Dois painéis de quase oito palmos de largo e onze de alto
com molduras de nogueira em pau relativos a São Vicente
Mártir e mais Relíquias e Milagres e agradecendo a ele um
Rei…;

249
SALDANHA, Nuno - Op. cit., págs. 157-187
250
Ver Cap.14 A cronologia dos documentos, as referências aos anos de 1690, 1742
e 1767
251
SALDANHA, Nuno, Op. cit., (N.B.: Os numerais são apenas indicativos para
facilidade de exposição)
167
3. …Dois painéis de quatros palmos de largo e outro de alto
molduras douradas, com pintura em tábua da Vida de Santo
Vicente…;
4. …Dois painéis de oito palmos e mais de alto e quatro de largo
com molduras douradas e pintura em tábua da Vida de São
Vicente…;
5. …Dois painéis de quatro palmos de largo e mais de oito de alto
pintados em tábua em que trata de Milagres do Santo acima…;
6. …Dois painéis de cinco palmos de largo e oito de alto
molduras douradas pintados em tábua de um Milagre de São
Vicente Mártir…;
7. …Dois painéis de quase cinco palmos de largo e onze de alto
molduras douradas pintura em tábua que tratam dos Milagres
de São Vicente Mártir…;
8. …Um painel pouco mais pequeno [que o anterior] da mesma
pintura em pau de Milagres do mesmo Santo…

Obtém-se um total de 14 painéis, o que está dentro do número de


quadros referido no documento de 1767:“…todos os ditos painéis que
passam de doze todos pintados de pintura do mesmo autor e de
milagres do dito Santo…”.252

Utilizando o palmo com um comprimento de 22 cm, tal como o fez


Nuno Saldanha, obtemos respectivamente as seguintes dimensões (em
cm): 1) 110x183; 2) 169x242; 3) 88x88; 4) 88x183; 5) 88x183; 6)
110x176; 7) 103x242; 8) 99x238.

Assim, conjugando as dimensões dos itens 7) e 8) com as descrições


dos respectivos temas, podemos aceitar que as tábuas S. Vicente Atado
à Coluna e S. Vicente na Cruz em Aspa (fig. 105)253, seriam as únicas
sobreviventes dos bens daquele inventário com referências a S.
Vicente.

252
Ver o Cap. 14 A cronologia dos documentos.
253
MatrizNet, http://www.matriznet.dgpc.pt
168
No entanto teríamos que admitir um corte nas suas dimensões depois
de 1821, atendendo às suas medidas actuais (91x210 cm). Esta
redução, que aconteceu em época desconhecida, é notória quando as
duas tábuas são colocadas lado a lado e se vê a descontinuidade
existente nos frisos das paredes de fundo. Outro indício destes cortes é
a localização da mão e do pé do santo, da meia tábua, junto aos limites
do quadro.

Fig. 105

Curiosamente estas pinturas, antes de terem sido integradas na


colecção do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) encontravam-se
afastadas, dado que essas incorporações se deram em datas e através
de entidades diferentes, tendo a primeira sido comprada e a outra
doada.254 Estes pormenores implicam, caso sejam estas as tábuas
descritas no inventário, que ambas tenham sido simultaneamente
retiradas do palácio da Mitra e, depois de terem sofrido os cortes nas
suas dimensões, foram separadas até que o destino as juntou
novamente no MNAA.

254
MatrizNet, http://www.matriznet.dgpc.pt
169
Segundo o descritivo dos itens 7) e 8), as cenas dos três painéis
“tratam dos Milagres de São Vicente Mártir”. Na nossa óptica
devemos interpretar este conceito de “milagre”, que o relator do
inventário utilizou, como significando igualmente “martírio” no
sentido de que ocorre um milagre sempre que alguém sobrevive a um
martírio. Repare-se que aquela relação é omissa relativamente a
qualquer referência aos “Martírios” de S. Vicente, quando estes
faziam parte da sua biografia e estavam presentes nos retábulos que
lhe eram dedicados.

Quanto à hipótese de os quadros dos Painéis estarem incluídos


naquele inventário, apenas vemos como possíveis as duas pinturas
relativas ao item 2) cujas dimensões, 170x242 cm, ultrapassam em
muito as dimensões das tábuas do Políptico. Estamos a referir não só
às duas pinturas centrais, mas também às quatro laterais que já se
encontrariam unidas duas a duas, tal como foram encontradas em 1882
(figs. 106 e 107). O tamanho médio unitário destes quatro conjuntos é
128x207 cm.

Fig. 110 Fig. 111

170
Esta aceitação implicaria grandes reduções em cada unidade dos
Painéis, na ordem de 42x35 cm. É importante recordar que os
resultados do estudo laboratorial efectuado em 1994 confirmam que
estes sofreram cortes algures no tempo:

Quanto à detecção de eventuais reduções das dimensões de painéis,


em altura ou largura, verificaram-se vestígios de cortes efectuados a
serra ou plaina no lado esquerdo dos painéis dos Frades, do Infante e
do Arcebispo, e no lado direito do painel da Relíquia, bem como no
topo superior de todos os painéis.255

Contudo na respectiva descrição do item 2) lê-se que são “relativos a


São Vicente Mártir e mais Relíquias e Milagres e agradecendo a ele
um Rei”. Este extracto poderia ser interpretado como referente às das
personagens masculinas dos primeiros planos dos painéis do Infante e
do Arcebispo, pelas posições régias que assumem ao se ajoelharem
apenas com um joelho no chão. Porém, as menções a relíquias e
milagres, incluídas neste item, anulam esta possibilidade.

Assim concluímos, no que respeita aos Painéis e recorrendo a este


inventário de 1821, que:
• As tábuas do Políptico não podem ser incluídas nesta relação
e, por extensão,
• que nunca integraram o retábulo de S. Vicente da Sé de
Lisboa, que foi retirado em 1690,
• que o santo lá representado não é o padroeiro de Lisboa, e
• que as mesmas não se encontravam no palácio da Mitra, pelo
menos no momento do inventário.

O historiador de arte Pedro Flor256 também publicou aquela relação de


1821 e acrescentou mais três itens, que são facilmente identificáveis

255
VÁRIOS – Nuno Gonçalves, Novos Documentos, Estudo da Pintura Portuguesa
do Século XV, Lisboa, 1994, pág. 62
256
FLOR, Pedro – Op. cit., pág. 187
171
com as tábuas de quatro santos atribuídos à escola de Nuno Gonçalves
(figs. 108 a 111)257 e pertencentes ao Museu Nacional de Arte Antiga:

…Um painel de vara de largo e vara e meia de alto, moldura


dourada, pintura em tábua de um prelado presentando de alva, mitra
e bago…;

…Dois painéis de cinco palmos de largo e oito de alto com moldura


preta e filetes dourados, um com pintura de São Pedro e outro de São
Paulo muito antigos…;

… Um painel de mais de cinco palmos de largo e seis de alto com


moldura dourada e pintura de São Francisco com o crucifixo na
mão…

Fig. 108 Fig. 109 Fig. 110 Fig.111

A partir das medidas actuais destes quadros,258 e utilizando o número


de palmos dados pelo inventário, obtemos um palmo médio de 17cm259
de comprimento, o que é manifestamente reduzido. Temos assim que
concluir que entre aquele inventário e o momento em que a série dos
Santos foi integrada no MNAA, ocorreram cortes nas suas dimensões.
Se repararmos no desnível existente entre os bancos, onde se sentam
os santos, ficamos com uma ideia da área eliminada.

257
MatrizNet, http://www.matriznet.dgpc.pt
258
Respectivamente (em cm): 89,3x115,5; 80,3x135,8; 84x137; 90,3x117,9. Fonte:
MatrizNet, http://www.matriznet.dgpc.pt.
259
Excluindo o primeiro painel, cuja dimensão está expressa em varas, obtivemos
para os outros as seguintes medidas para o palmo utilizado no inventário: 16,1x17,0;
16,8x17,1 e 17,0x19,7. A vara do primeiro item seria equivalente a 85-90 cm.
172
Fica porém uma interrogação final sobre qual terá sido o destino dado
aos restantes doze quadros com imagens de S. Vicente descritos no
inventário de 1821, de que restaram apenas a tábua e meia dos
Martírios, quando os quatro painéis da série dos Santos, colocados no
mesmo palácio de Marvila e incluídos no mesmo rol de bens,
sobreviveram. Porém o S. Pedro deste conjunto já se encontrava em
Londres quando foi adquirido pelo MNAA, enquanto os outros três
foram incorporados neste museu a partir do Mosteiro de S. Vicente de
Fora, onde se encontravam armazenados.260

260
MatrizNet, http://www.matriznet.dgpc.pt
173
22. A reconstituição do retábulo do altar de S. Vicente

Tendo por base os elementos fornecidos pelo inventário do palácio de


Marvila de 1821 e ainda os dados contidos no documento do Rio de
Janeiro e no testemunho de D. Rodrigo da Cunha, apresentamos uma
possível reconstituição do que seria o retábulo do altar de S. Vicente
na capela-mor da Sé de Lisboa (fig. 112).261 As proporções das
diversas componentes desta proposta estão de acordo com as medidas
apuradas nas diferentes fontes.

Incluímos os 14 painéis do inventário com referências a S. Vicente,


nos quais assumimos, para este efeito, que a tábua e meia (santo atado
à coluna e na cruz em aspa) fariam parte dos mesmos. Na parte
inferior desta composição colocámos os três quadros que tinham a
indicação da presença do rei, o qual estava acompanhado por S.
Vicente em dois deles. No nível seguinte encontram-se os painéis com
as cenas dos milagres/martírios do santo. A rematar o retábulo estão
representadas as imagens da sua vida com a ilustração dos seus
milagres/martírios.

A maneira como colocámos os dois painéis do item 2), cujo descritivo


refere “… São Vicente Mártir… e agradecendo a ele um rei…”,
poderá confirmar o texto do Documento do Rio: “e em baixo ao pé
dela [da sepultura] estavam dois painéis em que estava pintado S.
Vicente em figura de moço de 17 anos em cada retábulo e painel, que
estavam juntos um do outro, e a figura de S. Vicente estava virada
uma para outra de maneira que mostrava a si cada parte do rosto”.
Será que o memorialista estaria a descrever aqueles dois painéis que
261
Os números dos itens do inventário indicam a ordem pela qual foram expostos no
capítulo anterior.
175
constam do inventário de 1821? Este facto explicaria então a ausência
de qualquer referência às figuras femininas, aos religiosos e aos
militares, que se encontram presentes nos painéis do Infante e do
Arcebispo. O autor anónimo não estaria assim a descrever estes
Painéis, como muitos autores defendem, mas sim os quadros
pertencentes ao retábulo de S. Vicente e descritos no inventário da
Mitra.

Assim se entenderia, com mais lógica, a razão do seu comentário “há


muito que não vi isto, disseram-me há poucos dias que não estavam já
aí estes painéis, dirão os cónegos onde estão”, porque aqueles dois
quadros (item 2)), e o terceiro (item 1)), “…um Rei e vários religiosos
e outras pessoas…”, teriam sido retirados devido à presença de
“muitas figuras de homens que nos ditos painéis estavam que eram
Senhores e fidalgos … e tinham nas cabeças umas caraminholas
muito altas de veludo, umas de vermelho, outras de verde e de cores
…”, que não estariam de acordo com as normas saídas do Concilio de
Trento (1545-1563) relativas à representação de imagens nos altares.
A zona inferior do retábulo teria ficada mutilada sendo depois
disfarçada de tal modo que, quando D. Rodrigo descreve o altar em
1642, não lhe faz qualquer comentário. Esta nossa hipótese
apresentar-se-ia bastante sólida se todos os pressupostos e argumentos
pudessem ser minimamente validados. Permitiria também, e mais uma
vez, afirmar que os Painéis não integraram o retábulo de S. Vicente.

A posição em que colocámos a estátua do santo está de acordo com o


relato de D. Rodrigo da Cunha “o retabolo com a sua imagem de
vulto no meyo, com a palma de martyr na maõ direita & a nao em que
nos foi trasido, na esquerda”. Já André de Resende, no seu poema de
1545, assinalava a presença de uma escultura naquele local.

Quanto à disposição do túmulo, seguimos igualmente as indicações do


testemunho do arcebispo de Lisboa e também do Documento do Rio.
Diz D. Rodrigo: “Armase no friso, ou cimalha, hum tumulo, de oito,
176
até nove palmos, lançado ao cõprimento do altar, a que sustentam
quatro Anjos, dous da cabeceira, & dous dos pés do tumulo… Da
outra parte entra o tumulo na parede da Capella mòr…”, isto é, o
sepulcro encontrava-se sustido por quatro anjos e um lado estava
metido na parede. O anónimo memorialista acrescenta que “em cima
no alto [está] uma sepultura dourada onde diziam estar o corpo de S.
Vicente”.

Finalmente, posicionámos os painéis do Infante e do Arcebispo de


acordo com o texto do manuscrito do Rio atrás transcrito, recordando,
no entanto, que a sua passagem nesse local foi temporária (1534-
1600). Caso altar estivesse afastado da parede de fundo, estes quadros
poderiam ter ficado mais proximos um do outro. Possivelmente a
origem dos pingos de cera encontrados pelo restaurador Luciano
Freire, esteja nesta colocação dos Painéis junto do altar:

Mais tarde, e sem lhes fazerem a menor limpeza, o que foi talvez a sua
salvação, pois os quadros certamente teriam sabido muito
maltratados d'esta perigosíssima prova, deram-lhes um verniz grosso,
ordinário, côr de alcatrão, e isto feito tão inconscientemente, que, por
baixo d'este verniz, se encontraram grandes pingos de cera, o que é
também prova de os quadros terem tido velas accesas, perto.262

262
FIGUEIREDO, José de – Op. cit., pág. 38 (sublinhado nosso)
177
Fig. 112

178
23. Conclusão

Terminamos assim esta segunda abordagem aos Painéis de S. Vicente


de Fora. Tal como na primeira, pretendemos descodificar os mistérios
e enigmas desta magnífica pintura utilizando para o efeito abordagens
e caminhos inéditos, alguns dos quais, como referimos, a tocar o
limite do razoável.

O conjunto de documentos inéditos que introduzimos no debate sobre


os Painéis permitirá, assim o esperamos, uma maior clarificação das
posições já assumidas pelos diversos investigadores. Igualmente, o
aprofundamento que efectuámos ao testemunho de D. Rodrigo da
Cunha e ao Inventário da Mitra de 1821, possibilitará a obtenção de
novas conclusões sobre esta problemática.

Queremos igualmente salientar, entre outros, os argumentos que


apresentámos para justificar a inclusão da vara na iconografia de S.
João Evangelista e o retrato de Rogier van der Weyden no painel dos
Pescadores, que nos permitiu identificar a escola de formação do
pintor dos Painéis e, simultaneamente, descobrir um duplo significado
para as personagens desta tábua.

Nestas duas viagens percorremos caminhos, veredas e atalhos que


atravessaram todos os painéis, salvo o dos Cavaleiros,263 onde
descobrimos e recolhemos um conjunto de novos simbolismos,
mensagens e identificações que alicerçaram a construção da nossa
tese.

263
A nossa contribuição neste painel, ficou-se apenas pela confirmação da
identificação do Infante Santo e pela revelação do halo de santidade que a sua figura
contém
179
Não sabemos se voltaremos a publicar outro estudo sobre este tema,
apesar de reconhecermos a existência de muitos pormenores e
elementos cujos segredos ainda não foram revelados e que esperam
por uma outra leitura e interpretação.

Finalmente temos esperança de que os contributos que divulgámos e o


modo como abordámos esta temática, possam contribuir para a
abertura de novos rumos e métodos na decifração dos mistérios dos
Painéis.

*****

Verba volant, scripta manent

180
Apêndice I

Documentos relativos aos Pintores

Doc. 1 (20-7-1450)
Dom Afomso etc. A quantos esta carta virem fazemos saber que nos
querendo fazer graça e mercee a Nuno Gllz, teemos por bem e filhamollo
ora nouamente por nosso pintor e queremos que aja de nos de mantymento
en cada huu anno des primeiro dia de janeiro, que ora foy desta presente
era en diante doze mil reaes brancos em quanto nossa mercee for a rrazom
de mill reaes cada mes, os quaaes dinheiros lhe serom pagos en cada huu
ano em lugar honde delles aja bõo pagamento aos quartees do ano per
nossa carta que lhe en cada huu ano sera dada em a nossa fazenda. E por
ssua guarda e rrenenbrança dello lhe mãdamos dar esta carta synada per
nos e asseellada do nosso seello pendente. Dada em Lixbõa xx dias de julho
– G.º Eanes a fez – ano de nosso Senhor Ihesu Xpo de mill iiiic l.264

Doc. 2 (6-4-1452)
Dom Afomso etc. A quantos esta carta virem fazemos saber que nos
querendo fazer graça e merce a Nuno Goncaluez, nosso pintor, teemos por
bem e queremos que aja de nos, en cada ano, pera ajuda de seu mantimento
des primeiro dia de janeiro que ora foy desta presente era de iiijc lij en
diante, emquanto nossa mercee for, tres mil quatro centos e trinta e dous
reaes brancos, aalem dos dos mill rs que lhe ja tynhamos assentados pera o
dito seu mantymento, os quaees lhe serom todos pagos en cada huu ano no
nosso almazem da cidade de Lixbõa, aos quartees per carta que lhe en cada
huu ano sera dada en a nossa fazenda. Outro si nos praz que aja en cada
huu ano na nossa alfandega da dita cidade des o dito primeiro dia de
janeiro que ora foy en diante huua peça de pano de Bristoll pera sseu vestir,
per carta que lhe isso mesmo sera dada en a dita fazenda en cada huu ano

264
VITERBO, Sousa – Noticia de Alguns Pintores Portuguezes, Lisboa, 1903,
pág.89. (Chancelaria de D. Afonso V)
181
per a dita guissa. E por sua guarda e rrenenbrança dello lhe mandamos dar
esta carta asynada per nos e asseellada do nosso seello pendente. Dada en
Euora bj dias dabrill G.º de Lixbõa a fez ano de nosso Sñr Ihesu Xpo de mill
iiijc lij.265

Doc. 3 (17-7-1454)
Dom Afomso etc. A quantos esta carta virem fazemos saber que nos
querendo fazer graça e merçee a JohanEanes pintor morador em esta nossa
çidade de Lixboa teemos por bem e filhamo llo por nosso pintor pera
quando lhe da nossa parte for rrequerido nos auer de seruyr de sseu ofiçio
em o nosso almazen da dicta çidade. E queremos e mandamos que daqui en
diante elle seia escusado de pagar em nehuns nossos pedidos peitas fintas
nem talhas seruiços enprestidos nem em outros alguus encaregos que por
nos ou por os conçelhos sso meu forem lançados per quallquer guisa que
seia titor nem curador de nehuus orfõos nem haja nehun encarrego nosso
nem dos conçelhos contra ssaa vontade nem seia beesteiro do conto nem
posto em vintena de mar e sse o for que seja logo della tirado nem tenha
cauallo nem armas nem beesta de garrucha posto que tenha a conthia per o
que aja de teer. Outrossi nom poussem com elle em ssaas casas de moradia
nem adegas e cauallariças nem lhe tomem pam vinho rroupa palha lenha
galinhas gaados bestas de ssella nem dalbarda nem outra alguua cousa de
sseu contra ssua vontade nem sirua nem vaa serujr per mar nem per terra a
nehuuas partes que sejam saluo com o nosso corpo ou com jffante meu sobre
todos preçado e amado jrmãao e nom com outra alguua pessoa. E porem
mandamos a todollos nossos carregadores juizes justiças alcaides meirinhos
e ao nosso poussentador moor e ao da rrainha mjnha molher que sobre
todas amo e preço e aos dos jffantes meus jrmãaos e tios e a outros
quaeesquer offiçiaaes e pessoas que lhe compram e guardem e façam bem
comprir e guardar esta nossa carta em todo e per todo segundo em ella he
contheudo sse nom sejam çertos os que contra ella forem que lho
estranharemos grauemente como naquelles que nom conprem mandado de
seu rrey e senhor. Dada em Lixboa xbij dias de Julho,Gonçalo de Moura a
faz ano de nosso Senhor Jhesu Christo de mil iiij Liiij, Ruy Galuam a fez
escrepuer.266

265
Idem
266
FONSECA, António Belard da - O Mistério dos Painéis - Os Pintores, 1963,
pág. 17 (in Chancelaria de D. Afonso V)
182
Doc. 4 (18-3-1463)
…na camra da vereaçam da muy nobre e sempre leall cidade de Lixboa […]
perante elles pareceo Nuno Gomçalvez pintor del Rey nosso Snõr e disse aos
ditos oficiaes e ppores dos mesteres que he verdade que na cidade tem tres
pardieiros em Villa Noua della que som em a rrua da meetade, os qees
partem ao ponente com beco e com casa do dito Nuno Gllz …267

Doc. 5 (20-3-1463)
E que porquanto ho [um quintal] elle queria vender a Nuno Gonçalvez
pintor do dito Sor Rey por preço de …268

Doc. 6 (25-8-1470)
It. E Pagou mais dos ditos dinheiros a Nuno Gllz caualleiro de nossa casa, e
nosso Pymtor, dezaoito mill cemto y trimta rrs. em comprimento dos vymte
tres mill rrs. que de nos auia dauer de feitio, & custos do retabollo que fez
pera nossa capella de simtra.269

Doc. 7 (12-4-1471)
Item. Queremos e mandamos iso mesmo que Joane Anes Pintor nom aja
mais daquy em diante mantimento allguum, salvo Nuno Gonçalves averá o
que lhe he ordenado, e pimte por ele as obras da Cidade.[…]Feito em
Samtarem a doze dias do mês d’Abril. Pedr’Alvarez o fez anno de nosso
Senhor Jesuu Chrispto de mil quatrocentos setenta e huu.270

Doc. 8 (26-6-1492)
…o quall chãao e pardieiros parte com parede de olivall do mosteiro sã
francisco e cõ quintall da cidade que foi de Nuno Gllz pintor…271

267
Idem, pág. 58 (in Livro 1º Aforamentos)
268
Idem, pág. 58 (in Livro 1º Aforamentos)
269
Idem, pág. 58 (in Chancelaria de D. Afonso V)
270
SERRA, José Corrêa da - Colecção de Livros Inéditos de História Portugueza,
Tomo III, Lisboa, 1793, págs. 424-425 (in Livro Vermelho de D. Afonso V)
271
FONSECA, António Belard da – O Mistério dos Painéis - Os Pintores, 1963,
pág. 59 (in Livro 2º Aforamentos)
183
Apêndice II

Documentos relativos às Visitações

Transcrevemos aqui os itens das Visitações, mencionadas no capítulo


15, que fazem referências a S. Vicente:272

Visitação a Santiago de Óbidos, 4 de Junho de 1456:


“7. Item mandou ao prioste que rrequeyra as covas assy da dita egreja
como de fora so pena de C rreaes pera o cepo de sam Vicente.”273

Visitação a Santiago de Óbidos, 21 de Maio de 1457:


“4. Item porquanto achey que em algüas egrejas avia algüus benneffiçiados
dordeens sacras e ainda sacerdotes de misa que se nom fallavam hüus e
cellebravam missa com grande carrego de suas consciencias, e porem
querendo eu a ello proveer como som theudo por salvaçom de suas almas
mando ao prior e thesoureiro de qualquer egreja da dicta cidade e
arçebispado que aos sacerdotes que se nom fallarem nom dem vestimenta
pera dizerem missa em a dicta egreja ataa que nom sejam rreconciliados, e
se lha o prior der pague com rreaes pera o cepo de sam Viçente e o
thesoureiro cimquoeenta e se a o saçerdote tomar sem mandado do prior ou
thesoureiro que pague IIe rreaes pera o dicto cepo e mais seja preso no
aljube, e ao que nom for de missa assy benefficiado como yconomo mando
ao prioste que lhe nom acuda com os fructos de seu beneffiçio ou yconomia
ataa que nom seja rreconçilliado.”274

272
N.B.: os sublinhados são nossos.
273
PEREIRA, Isaías da Rosa - Visitações de Santiago de Óbidos (1434-1481) in
Lusitânia Sacra, nº 8, 1970, pág. 147
274
Idem, págs. 148-149
185
Visitação a Santiago de Óbidos, 14 de Junho de 1458:
“7. Item achey que nom mandaram telhar o alpendere da dita egreja nem
mandaram correger o frontal do coro nem mandaram çarrar a buraca
dapar da pia do baptizar nem mandaram pintar sam Lourenço do Peral nem
Christo, Joham e Maria nem acassellaram a capeella da dita egreja, porem
mando ao prioste que agora for dc sam Joham por avante que rretenha em
ssy mil rreaes da rrenda da dita egreja e faça correger e comprir todas estas
cousas daqui ataa dia de todos os Santos so pena de cem rreaes pera o cepo
de sam Vicente.”275

Visitação a Santiago de Óbidos, 19 de Novembro de 1458:


“2. Item achey que nom mandaram pintar sam Lourenço do Perall nem
Christo e Maria e Johane nem acasalaram a capeela da dita egreja, porem
mando ao prioste cpie rretenha em sy mill rreaes da rrenda da dita egreja e
faça correger e comprir todas estas cousas daqui ataa dia de sam Joham
Baptista este primeiro que vem sob pena de çem rreaes pera o çepo de sam
Vicente.”276

Visitação a Santiago de Óbidos, 9 de Junho de 1462:


“5. Item achamos que o prior levou 1111e rreaes menos oyto pera mandar
pintar o cruçefixo e Johanne e Maria da capeella do Villar e hos nom
mandou pintar porque lhe mandamos que os mande pintar ataa Natall
primeiro que vem so penna de IIIe rreaes pera as obras de sam Viçente.”277
“6. Item achamos na dicta igreja hüa capeella a que chamam de santa
Maria de Canagaa e tem a ossia maal corregida, mandamos ao prior e
benefiçiados que a mandem correger ataa Natali primeiro que vem sso pena
de IIIe rreaes pera as obras de sam Viçente.”278
“28. Item outrossy porquanto nós fomos çertificado que algüus clerigos do
dicto nosso arçebispado dizem muitas vezes missas ssem primeiramente
rrezarem o que he muito grande carrego de suas conçiençias e perigoo de
suas almas, e querendo nós a ello proveer per esta presente mandamos

275
Idem, págs. 151-152
276
Idem, pág. 150
277
Idem, pág. 156
278
Idem, pág. 156
186
jeeralmente em o dicto arçebispado a todollos priores, vigairos e
benefiçiados e capellãaes de cura e thesoureiros que quando quer que
ssouberem que algüus dos dictos clerigos nom rrezam as dietas oras
segundo ssam obrigados que lhes nom conssentam que diguam missa nem
lhes dem o corregimento pera a dizer. E qualquer dos ssobredictos que ho
contrairo fezer que pague por cada vez çem rreaes a meetade pera ssam
Viçente e a meetade pera quem hos acusar.”279
“30. Item conssiirando nós como em todallas igrejas deste arçebispado
ssam postos manposteiros pera pedirem esmollas pera algüus oragoos
rreçebendo as daquellas pessoas que per devaçam lhas dar quiserem ssem
costrangimento algüu e veendo como o corpo e rreliquias do gloriosíssimo
martir ssam Viçente ssam em a igreja matropolitana da muy nobre e senpre
leall çidade de Lixbooa com tanta umildade e rreverença e devaçam que
outras semelhantes se nom acham em Espanha por honrra e louvor de Deus
prinçipalmente e serviço seu e ajuda pollas obras muy grandes que se cada
dia rrecreçem em a capeella do dicto martir, mandamos a todollos priores,
vigairos e benefiçiados e pessoas eclesiasticas a que esto perteeçer que cada
hüu em sua igreja faça hüu manposteiro que peça aos fiees christãaos pera
as dictas obras, e aalem do que elles mereçerem ante Deus por taaes
esmollas fazerem nós lhes outorgamos dos thesouros que a nós outorgua a
ssanta madre Igreja Rta dias de perdam por cada vez que taaes esmollas
fezerem, as quaaes esmollas rreçeberá hüu dos abonados e bõos homëes que
ouver na dicta freeguisia das mãaos dos dictos manposteiros e screpvam
todo o que rrender o prior ou vigairo ou capellam que tever carrego da cura
da dicta igreja e sseram levadas estas esmollas tres vezes no anno aa ssee
da dieta çidade scilicet na oytava de Natall e de Pascoa e per dia de ssam
Joham e entregallos ham ao chantre perante o nosso vigairo e perante dous
scripvãaes quaaes nós pera ello hordenarmos pera todo viir a booa
rrecadaçam e sse despender como deve.”280

Visitação a S. Miguel de Torres Novas, 10 de Junho de 1462:


“14. Item conssiirando nós como em todallas Igrejas deste arcebispado
ssam postos manposteiros para pedirem esmolas pera alguus oragoos
recebendo-as daquellas pessoas que per devaçam lhas dar quiserem ssem

279
Idem, pág. 161
280
Idem, págs. 161-162
187
constrangimento alguum. E veendo como o corpo e relíquias do
gloriosíssimo martir ssam Vicente ssam em a Igreja matropolitana da muy
nobre e ssenpre leall cidade de Lixboa com tanta umildade e rreverença e
devaçam que outras semelhantes sse nom acham em Espanha por honrra e
louvor de Deus principalmente e serviço seu e ajuda pollas obras muy
grandes que se cada dia recrecem em a capeella do dicto martir, mandamos
a todollos priores, vigairos e beneficiados e pessoas eclesiásticas a que esto
perteece que cada huum em sua Igreja faça huum manposteiro que peça aos
fiees christãaos pera as dictas obras, e aallem do que elles merecerem ante
Deus por taaes esmollas fazerem nós lhes outorgamos dos thesouros que a
nós outorgua a ssancta Madre Igreja quareenta dias de perdam por cada
vez que taaes esmollas fezerem, as quaaes esmolas receberá huum dos
abonados e bõos homees que ouver na dicta freeguesia das mãaos dos dictos
manposteiros e escreverá todo o que receber o prior ou vigairo ou capellam
que tever carregado da cura da dicta Igreja e sserem levadas estas esmollas
tres vezes no anno aa See da dicta cidade, convém a ssaber na oytava de
Natall e de Pascoa e per dia de ssam Joham, e entregallas ham ao Chantre
perante o nosso vigairo e perante dous scripvãaes quaaes nós pera ello
hordenarmos pera todo viir a boa verdade e sse despender como deve.”281

Visitação a Santiago de Óbidos, 2 de Fevereiro de 1467:


“18. [31] Item porquanto achamos que em algüas igrejas algüus
benefiçiados dordens sacras e ainda sacerdotes de missa que sse nom
fallavam hüus com os outros e cellebravam missa com grande carrego dc
suas conçiençias, e querendo nós a ello proveer como somos theudo por
salvaçam de suas almas mandamos a prioll e thesoureyro daquella igreja de
quallquer igreja da dita çidade e arçebispado que os sacerdotes que sse nom
fallarem que lhe nom dem vistimenta pera dizerem missa na dita igreja atee
que nom sejam rreconçiliados, e sse o prior der pague Ie rreaes pera o çepo
de sam Vicente e o thesoureiro Lta a pera o dito cepo e mais seja preso no
aljube, e o que nom ffor de missa assy beneficiado como hiconimo
mandamos ao prioste que lhe nom acuda com os frucos do seu beneffiçio ou
hiconimia atee que primeiramente nom seja rreconciliado.”282

281
PEREIRA, Isaías da Rosa - Visitações de São Miguel de Torres Vedras (1462-
1524) in Lusitânia Sacra, 2ª série, nº 7, 1995, pág. 202-203
282
PEREIRA, Isaías da Rosa - Visitações de Santiago de Óbidos (1434-1481) in
Lusitânia Sacra, nº 8, 1970, pág. 176
188
“23. [36] Item consirando nós em como todallas igrejas deste arçebispado
sam postos memposteyros pera pidirem esmollas pera algüus oragos
rreçebendo das persoas que per sua devaçam lhas querem dar ssem algüu
coostrangimento e veendo como ho corpo e rreliquias do gloriosimo martir
sam Vicente sam na igreja metropollitana da muy nobre e sempre lial çidade
de Lixboa com tanta solenidade rreverençia e devaçam que outros sse nam
acham semelhante nas Espanhas por honrra e lovor de Deus
prinçipallmente e por serviço e ajuda pollas obras muy grandes que sse
ainda cada dia rrequerem na Capella do dito martir, mandamos a todollos
priores, vigairos e benefiçiados e persoas ecclesiasticas a qual este
pertençer que cada hüu em sua igreja faça hüu momposteiro que peça aos
fiees christãos pera as ditas obras e alem daquelles mereçerem ante Deus
por taaes esmollas fazerem nós lhe outorgamos dos tehesouros que nos
outorga a santa madre Igreja quorenta dias de perdam por cada vez que
taaes esmollas fezerdes as quaaes esmollas rreçeberá hüu dos abonados e
bõos homens que ouver na dita freguesia das mãaos dos ditos momposteyros
e escrepveram todo o que rreçeberem e o prior e vigairo ou capellam que
seu carrego tever e sseram levados os ditos dinheiros das obras piadosas e
escrepvello am e emtregue no presente ho escripvam.”283
“24. [37] Item porque achamos que algüus por nom jejuarem às vesperas de
sam Viçente andavam muito tempo excumungados por nom poderem hir nos
buscar pera asolviçam, e provendo nós a ello cometemos aos priores e curas
das igrejas do nosso arçebispado que possam absolver os que nom
jejuaarem as ditas festas dandolhes por ello as pendenças acustumadas que
sam por cada hüa dous rreaaes pera o dito çepo as quaaes lhe mandamos
em virtude de obediençia e sob penna de excomunhom que rrecadem e as
mandem aos rrecadadores que possermos nas vigairias as quaes tenham
escripvãaes do que rreçeberem pera as causas piadosas pera sseerem
levadas ao dito çepo.”284

Visitação a S. Miguel de Torres Novas, 18 de Abril de 1467:


“35. Item consiirando nós como em todalas egrejas deste arcebispado sem
postos manposteyros pera pidirem esmolas pera alguus oragos recebendo-
as daquelas persoas que per sua deuaçam lhas querem dar sem alguum

283
Idem, págs. 177-178
284
Idem, pág. 178
189
constrangimento, e ueendo como o corpo e relíquias do gloriosíssimo martir
sam Vicente sam na egreja metropolitana da mui nobre e senpre leal cidade
de Lixboa com tanta solenidade e deuaçam que outras semelhantes se nom
acham na Espanha por honrra e louuor de Deus primeiramente e seu
serviço e ainda pollas obras mui grandes que se cada dia recrecem na
capeela do dito martir, mandamos a todolos priores, vigairos e beneficiados
e persoas eclesiásticas a que esto perteecer que cada huum em sua egreja
faça hum mamposteiro que peça aos fiees christãaos pera as dictas obras e
aalem o que elles merecerem ante Deus por taaes esmolas fazerem nós lhes
o utorgamos dos thesouros que nos outorga a Sancta Madre Egreja Rta dias
de perdam por cada uez que taaes esmolas fezerem, as quaes receberá huum
dos abonados e bõos homes que ouuer na dicta freguisia das mãaos dos
dictos mamposteiros e escreuerá todo o que render o prior, vigairo ou
capellam que seu cargo teuer e seram leuadas estas esmolas dia de sam
Joham aos recebedores que ora poemos nas villas dos dinheiros das obras
piedosas e ser-lhe-am entregues perante o scriuam que pera ello
deputamos.”285

Visitação a Santiago de Óbidos, 1 de Fevereiro de 1473:


“28. Item consiirando nós como en todallas igrejas deste arçebispado sam
postos menposteiros pera pedirem esmollas pera algüus oragos rreçebendo
as daquellas pessoas que por sua devaçam lhas querem dar sem algüu
constrangimento, e veendo como o corpo e rrelliquias do gloriosíssimo
mártir sam Vicente sam na igreja metropollitana da muy nobre e senpre
leall çidade de Lixbooa com tanta sollenidade e rreverençia devaçam que
outros semelhantes sse nom acham na Espanha por honrra e louvor de Deus
prinçipalmente e seu serviço e ainda pellas obras mui grandes que sse cada
dia fazem na capella do dicto martir, porem mandamos a todollos priores,
vigairos, benefiçiados e pessoas eclesiásticas a que esto perteençer que cada
hüu em sua igreja façam hüu menposteiro que peça aos fiees christaaos pera
as dietas obras e a elles do que elles mereçerem ante Deus por taaes
esmollas fazerem nós lhes outorgamos dos thesouros que a nós outorga a
sancta Madre Igreja R dias de perdam por cada vez que taaes esmollas
fezerem, as quaaes esmollas rreçeberam hüu dos abonados e bõos homëes

285
PEREIRA, Isaías da Rosa – - Visitações de São Miguel de Torres Vedras (1462-
1524) in Lusitânia Sacra, 2ª série, nº 7, 1995, pág. 216
190
que ouverem na dicta freeguisia das mãos dos dictos menposteiros e
escrepverá todo o que rrenderem o prioll, vigairo ou capellam que seu
carrego tever e seram levadas estas esmollas de sam Joham a sam Joham
aos rrecebedores que ora poemos nas villas dos dinheiros e das obras
piedosas e serlhe am emtregues perante ho escripvam que pera ello
deputarmos.”286
“29. Item porquanto achamos que algüus por nam jajunarem as vésperas de
sam Vicente andavam muito tenpo escomungados por nom poderem hir a
nós buscar absoluçam, e querendo nós proveer a ello cometemos aos priores
e curas das igrejas de todo nosso arçebispado que possam absolver os que
nom jajunarem a dieta festa dandoihes por ello as pendenças acustumadas
que sam de cada hüu dous rreaes pera o çepo, os quaaes lhe mandamos em
virtude de obediençia e sob pena dexcomunham que rrecadem e mandem
aos rreçebedores que posermos nas viigayrias os quaaes teeram escripvam
do que rreçeberem pera as cousas piedosas levadas ao dicto çepo.”287

Visitação a S. Miguel de Sintra, 30 de Maio de 1490:


”Item achei que os beneficiados nam saíam sobre os finados às segundas
feiras, soomente dentro no corpo da igreja. Mando aos dictos beneficiados
que daqui avante saiam sobre eles per fora da igreja segundo lhe é mandado
nas Constituições sob pena de pagarem per cada vez que errarem cem reaes
pera obras de Sam Vicente. E per este mando ao tesoureiro sob a dieta pena
que as aponte e o notefique ao vigairo que os mande logo executar e eles
executados os mande entregar per as dictas obras sob a dicta pena.”288

Visitação a Santo André de Mafra, 20 de Abril de 1512:


“E porque nenhüu nom hé poderoso pera descompenssar (sic) com a lei se
nam aquelle que a fazer, mando ao vigairo e cura da dita egreja que com
muita diligencia sejam avisados que guardem e cumpram os dictos capitolos
das dictas costituiçõoes segundo sua Reverendíssima Senhoria manda. E
qualquer que o contrario fezer ei-ho por condanado na penna contheuda nos

286
PEREIRA, Isaías da Rosa - Visitações de Santiago de Óbidos (1434-1481) in
Lusitânia Sacra, nº 8, 1970, págs. 204-205
287
Idem, pág. 205
288
PEREIRA, Isaías da Rosa - Visitações de São Miguel de Sintra e de Santo André
de Mafra (1466-1523) in Lusitânia Sacra, nº 10, 1978, pág. 163
191
dictos capitollos a qual hé de mil reaes a metade pera o mártir Sam Vicente
e a outra metade pera a sua chancelaria.”289

Visitação a Santo André de Mafra, 4 de Maio de 1517:


“Item achei per certa enformaçam que quando quer que se faziam algüuas
procisõees [os] beneficiados e iconemos nom queriam hir às dictas
procisõees posto que lhe seja mandado pello cura, o que dam de si maao
exempllo ao po[vo] e nam fazem o que a seu hoficio pertence, per que
mando aos dictos beneficia[dos] e iconemos que ora sam e ao diante forem
que quando quer que as semelha[n]tees procisõees forem ordenadas pello
Cura, asi as jeraees como as especiaes feitas e ordenadas pella villa, que
todos vam em ellas. E quallquer benefeciado e iconemo que nella nom foor
mando ao cura que ora hé [e ao] diante for que lhe mande pagar Lta reaes
por cada vez que nellas nom for, os quaees Lta reaes seram arrecadados
pello dicto cura pera as obras de Sam Vicente da dicta See de Lixboa.” 290

289
Idem, pág. 225
290
Idem, - pág. 239
192
Apêndice III

Outros documentos inéditos

Para além destes documentos atrás expostos, associados a Visitações,


localizámos mais dois, que consideramos igualmente inéditos na
“Questão dos Painéis”, que fazem referências a contribuições para a
capela de S. Vicente. O mais antigo fala em indulgências para a capela
de S. Vicente e encontra-se numa carta escrita no final de 1437:

“E eu creo que o cabidoo de Lixboa ssera contente de lhes pagar os


çem ducados e que lhes dem as dictas bullas e lhes praza que as
dictas endulgençias ssejam outorgadas a capella de Sam Ueçente e
eu spero que o santo padre outorgara ao dicto cabidoo as sinaturas
que comprem pera esto.”291

O segundo relato, incluído na Crónica dos Carmelitas, refere-se a um


litígio relacionado com o desvio de uma estrada que passava à porta
do convento de Santa Ana de Colares. A pena incluía uma
contribuição para as “obras de São Vicente”. Este acontecimento
remonta ao ano de 1537:

“Mas naõ obstante todas estas diligencias, como as vontades eraõ


muitas, e algumas pessoas do povo ficavaõ descontentes, foraõ taõ
insoportaveis as violências, que no fazer, e desfazer do caminho
sobrevieraõ, que para evitar estas, e outras mayores ruínas, se
precisou o Prior do Convento a recorrer ao Juiz conservador da
Religião, para que tomando conhecimento da causa, a defendesse. O
Juiz, que era naquelle tempo Matheus de Fontes, Chantre da Sé de
Lisboa procedeo logo contra os ditos oficiais da Camera (aos quaes

291
Carta de Gonçalo Anes, cubiculário do papa, escrita de Bolonha a D. Gomes,
abade do mosteiro de Santa Maria de Florença, in DINIS, António Joaquim Dias -
Monumenta Henricina, Volume VI (1437-1439), págs. 217-219, Coimbra, 1964.
193
seguia o povo) passando contra elles hum Munitorio. A este vieraõ
com embargos; mas naõ sendo recebidos, mandou o dito Ministro
Apostólico com pena de excomunhaõ, ipso facto, e de duzentos
cruzados (ametade para as obras de Saõ Vicente, e outra ametade
para as obras do mesmo Convento de Santa Anna) que o caminho
novamente aberto na forma, em que fora abalizado, se conservasse a
beneficio dos Religiosos….”292

292
SANTA ANNA, Frei Joseph Pereira de – Chronica dos Carmelitas, Tomo II,
Lisboa, 1751, págs. 145-146. Possivelmente estas obras estariam relacionadas com
alguns estragos provocados pelo terramoto de 1531.
194
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