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Centro Ángel Rama

Cadernos Comarca n. 1

IMAGENS DA EUROPA
NA LITERATURA BRASILEIRA
USP – UNIVERSID
UNIVERSIDADE ADE DE SÃO P PAAULO
Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch
Vice-R eitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi
ice-Reitor:

FFLCH – F ACULD
FA CULDADE ADE DE FILOSOFIA,
LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
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CONSELHO EDITORIAL DA HUMANITAS


Presidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)
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Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)
Profª. Drª. Sueli Angelo Furlan (Geografia)
Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História)
Profª. Drª. Beth Brait (Letras)

CENTRO ÁNGEL RAMA


Diretor: Prof. Dr. Flávio Aguiar
Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 – Sala 267-A
05508-900 – São Paulo – SP – Brasil
Telefax: 3818-4879
Exterior 55 11 3818-4879
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Humanitas FFLCH/USP – novembro 2001


Centro Ángel Rama

Cadernos Comarca n. 1
Flávio Aguiar / Sandra Guardini T. Vasconcelos
(Organizadores)

IMAGENS DA EUROPA
NA LITERATURA BRASILEIRA

2001

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


Copyright 2001 da Humanitas FFLCH/USP

É proibida a reprodução parcial ou integral,


sem autorização prévia dos detentores do copyright

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USP


Ficha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

I31 Imagens na Europa na literatura brasileira / organizado por Flávio Aguiar,


Sandra Guardini T. Vasconcelos.— São Paulo: Humanitas / FFLCH / USP,
2001.

62p. (Cadernos Comarca, 1)

Produção de pesquisadores vinculados ao Centro Ángel Rama – Faculdade


de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

ISBN 85-7506-049-X

1. Literatura brasileira (História e crítica) 2. Literatura e história 3. Gêneros


literários 4. Relações Europa-Brasil 5. Paródia I. Aguiar, Flávio II. Vasconcelos,
Sandra Guardini T. III. Série

CDD 869.909

HUMANITAS FFLCH/USP
e-mail: editflch@edu.usp. br
Telefax.: 3818-4593

Editor Responsável
Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento

Coordenação Editorial
Mª. Helena G. Rodrigues – MTb 28.840

Projeto de Capa
Diana Oliveira dos Santos

Projeto Gráfico e Diagramação


Célia Mª. Consoli Jacinto

Revisão
Sandra Guardini T. Vasconcelos
SUMÁRIO

Nota dos Editores ....................................................................... 7

Apresentação ................................................................................ 9

Hamlet à Brasileira: Machado lê Shakespeare


Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos ............................... 11

Mr. Slang, um inglês na Tijuca, ou de Cambridge a Cambridge


José Carlos Bom Meihy .................................................... 21

A Casa Assassina ou a Inglaterra vista da Americalatíndia


Ligia Chiappini .................................................................. 35

Algures, alhures, nenhures. Mediações entre a Europa e


o Brasil na literatura brasileira
Flávio Aguiar ..................................................................... 51
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

NOTA DOS EDITORES


Os Cadernos Comarca têm como objetivo divulgar a produ-
ção dos pesquisadores que se vinculam, direta ou indiretamente, ao
Centro Ángel Rama, centro interdepartamental da Faculdade de Fi-
losofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Enquanto espaço aglutinador de estudiosos preocupados em
discutir e problematizar a literatura e cultura latino-americanas, o
Centro Ángel Rama tem-se constituído num fórum de reflexão so-
bre os processos históricos e culturais nas sociedades latino-america-
nas que surgiram da dissolução dos impérios coloniais. A formação
dessas sociedades (inclusive a brasileira) colocou diferentes culturas
em choque, com resultados não previstos originalmente nas teorias e
nos modelos europeus de produção cultural, tal como atestam as obras
críticas de Antonio Candido e Ángel Rama. Tendo como eixo de
reflexão a idéia de formação, o Centro visa pensar os espaços da cul-
tura literária e artística e dos imaginários sociais, interrogando criti-
camente o alcance do seu papel formador de sistemas culturais na-
cionais e sua capacidade de acolher a multiplicidade de tradições e
invenções reelaboradas continuadamente por uma sociedade forma-
da por processos transculturais. Interessa-lhe portanto investigar os
processos de formação cultural e das expressões culturais brasileiras,
de modo que a discussão dos complexos de escolhas, aceitação e re-
jeição, que definem as novas matrizes culturais em construção em
nosso país, sobretudo no campo das artes, da literatura e da crítica
interpretativa, possa ainda oferecer-se como condição de inteligibili-
dade desses complexos processos culturais.
Esse conjunto de preocupações se traduz na proposição dos
cinco projetos de pesquisa ora em andamento no âmbito do Centro

7
NOTA DO EDITOR

Ángel Rama, envolvendo seus pesquisadores, membros associados e


estudantes: Pensadores da América Latina; Utopia e distopia no pro-
cesso de ocupação, colonização e independência nas Américas; Lite-
ratura e História; Estudos Teatrais; Messianismo e Sebastianismo
na Península Ibérica e no Brasil.
Dessa forma, os Cadernos Comarca se propõem como espaço
de divulgação dos resultados das pesquisas e reflexões dos membros
do Centro Ángel Rama, assim como daqueles que possam contribuir
para ampliar a discussão.

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IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

APRESENTAÇÃO
Desde sua formação, a literatura brasileira tratou a Europa de
modo ambivalente e contraditório. De um lado, o chamado “velho
mundo” aparece como modelar e modelador do “novo”; de outro,
aparece como um sorvedouro que, por provocar a imitação ou a ad-
miração servis, pode subtrair à América sua originalidade. Mesmo o
primeiro aspecto, o modelar ou modelador, pois de “lá” derivam as
instituições “daqui”, tem consigo o signo da ambigüidade: se de “lá”
vieram as instituições, e entre elas a vida literária, vieram também a
exploração e a cobiça predatórias. Dentro desses marcos de confron-
to, a Europa seria inconteste como “imagem civilizatória” na litera-
tura brasileira até aproximadamente os desenvolvimentos do movi-
mento modernista, sobretudo a antropofagia e o mundo macunaímico.
A partir daí, uma nova baliza começa a disputar o “cetro civilizatório”
com a velha Europa, qual seja, o modelo norte-americano, além da
entrada em cena das utopias revolucionárias. Mais recentemente, num
contexto de crise de valores sem precedentes na história da civiliza-
ção, muitos de nossos escritores e seus perosnagens têm revisitado o
cenário europeu.
Os artigos que publicamos a seguir examinam como a presen-
ça e a herança européias são trabalhadas, incorporadas e problemati-
zadas por quatro grandes escritores brasileiros em quatro momentos
distintos de nossa vida literária. O primeiro artigo discute os proce-
dimentos paródicos utilizados por Machado de Assis, na crônica “A
Cena do Cemitério” (Gazeta de Notícias, 03 de junho de 1894), numa
releitura da cena dos coveiros em Hamlet. O segundo detém-se so-
bre dois livros de Monteiro Lobato, Onda Verde e Mr. Slang e o
Brasil, e seu personagem Mr. Slang, cientista e crítico britânico cuja

9
APRESENTAÇÃO

vinda ao Rio de Janeiro o envolve em situações cômicas de desencon-


tros que, entretanto, o levam a uma revisão da educação e do projeto
político brasileiros. Memórias de Aldenham House, de Antonio
Callado, é objeto do terceiro artigo, que discute como o confronto de
culturas nessa obra acaba levando a um falso caso policial que, subi-
tamente, de farsa transforma-se em tragédia e, dialogando com Fin-
negans Wake de James Joyce, abaixa o tom porque a tragédia na “Ame-
ricalatíndia” não se faz sem um rictus de riso. O quarto e último
artigo visa discutir como O Selvagem da Ópera de Rubem Fonseca,
retomando o tema romântico de O Guarani de Alencar, repõe o jogo
com a herança européia e se, de tudo isso, fica algum modelo civiliza-
tório a resgatar.

OS ORGANIZADORES

10
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

HAMLET À BRASILEIRA:
MACHADO LÊ SHAKESPEARE

Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos

Nascida no rodapé do jornal, naquele espaço dedicado às va-


riedades, onde valia tudo para entreter o leitor, a crônica está, desde a
sua origem, associada ao circunstancial, ao precário e ao efêmero.
Nessa arte, com jeito de conversa fiada com o leitor, em que o humor
e a graça dão o tom, o cronista está sempre de olho nos acontecimen-
tos do dia, se alimentando da própria matéria do jornal e das miude-
zas do cotidiano. Assim sendo, seria de se imaginar que, desapareci-
dos os fatos que a suscitaram, a crônica também estaria fadada ao
esquecimento. Não é esse o caso de Machado de Assis. Suas mais de
600 crônicas, escritas ao longo de mais de quatro décadas, desmen-
tem essa transitoriedade e, superando a circunstância que as gerou,
se revestem de um caráter de permanência que permite ao leitor sa-
boreá-las ainda hoje, mesmo que alguns dos fatos que as geraram
tenham se perdido no tempo.
Com a fina ironia e a sagacidade que são sua marca registrada,
Machado, desde a década de 1860 até 1900, ocupou a seção denomi-
nada folhetim de diferentes jornais e revistas cariocas, comentando
acontecimentos do dia-a-dia da cidade do Rio de Janeiro e do país.
Mesmo dizendo-se apenas interessado em “catar o mínimo e o es-
condido”, Machado oferece uma leitura alternativa da história e dos
acontecimentos que comenta, provocando o leitor através de seu ponto
de vista irônico e, portanto, distanciado. Sempre atento aos fatos cultu-

11
VASCONCELOS, Sandra. HAMLET À BRASILEIRA: MACHADO LÊ SHAKESPEARE

rais e políticos, o escritor colocava-se “em seu posto de escuta do mun-


do”1 para mergulhar na contingência das notícias cotidianas, fazendo da
crônica um espaço híbrido, entre o jornalístico e o literário, onde se pode-
riam cruzar diferentes discursos e abolir as fronteiras entre os gêneros.
Esse “escriba de cousas miúdas”, como Machado se autodefine,
desde o início de sua atividade de cronista apontava o hibridismo
como característica central do gênero. Em crônica publicada em 30
de outubro de 1859, a proposição da mescla de elementos díspares já
se apresenta com ares de programa:

“O folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o parto curio-


so e singular do sério, consorciado com o frívolo. Esses dois ele-
mentos, arredados como pólos, heterogêneos como água e fogo,
casam-se perfeitamente na organização do novo animal.” 2

De fato, desses contrastes Machado iria explorar todas as po-


tencialidades e obter resultados extraordinários, transformando a mis-
tura em recurso estético, formal. Nessa altura, se poderia dizer que não
havia aí nenhuma novidade. Afinal, isso é o que também pregava o
programa do teatro romântico, defendido por Victor Hugo em seu
“Prefácio de Cromwell”. Posicionando-se contra a regra da separação
dos gêneros e a favor da harmonia dos contrários, Hugo argumentava
que “[a musa moderna] sentirá que tudo na criação não é humana-
mente belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gra-
cioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra
com a luz”3. E para reforçar seu argumento de que “o moderno nasce
da fecunda união do tipo grotesco com o tipo sublime”, Hugo lança
mão do exemplo do teatro de Shakespeare, em que “da mesma forma

1
A expressão é de Sonia Brayner em “Metamorfoses machadianas”. In: BOSI, Alfredo
et al. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982, p. 432.
2
ASSIS, Machado. O folhetinista. In: Obras Completas. 8. ed. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1992, vol. 3, p. 958.
3
HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime. Tradução do “Prefácio de Cromwell”.
São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 25.

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IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

que os mais vulgares têm várias vezes acessos de sublime, os mais ele-
vados pagam freqüentemente tributo ao trivial e ao ridículo” 4.
Onde estaria então a singularidade do traço machadiano? Como
se daria essa química dos contrários em suas crônicas? Só para ficar
num exemplo do trânsito entre o sério e o cômico, o elevado e o bai-
xo, tomemos a crônica de 28 de maio de 1885, que, por acaso, diz
respeito ao próprio Victor Hugo, e na qual Machado comenta, com
seu peculiar senso de humor, o tratamento sensacionalista dado pelos
jornais à morte do escritor francês, comparando-o com a sensação
criada em torno dos preços baixos da Alfaiataria Estrela do Brasil.
Se, por um lado, a imprensa noticia os dois fatos como se se equiva-
lessem, Machado não perde a oportunidade de apontar esse procedi-
mento, tão comum nos jornais. Dessa forma, o verso “Rien n’est sacré
pour un sapeur!” 5, citado no início da crônica, é adulterado logo em
seguida, transformado em “Rien n’est sacré pour un [...] tailleur! ”
Nessa troca, que é igualmente uma troça, discurso poético e discurso
comercial também passam a se equivaler, num movimento evidente
de dessacralização do primeiro.
Gostaria de argumentar, portanto, que a associação insólita entre
duas notícias tão heterogêneas se constituiria num traço de composi-
ção de que Machado lança mão para produzir um efeito crítico sem
precedentes a respeito do mundo da informação. Nesse processo,
traz para o interior do jornal a literatura, principalmente a estrangei-
ra, que trata com irreverência, através do recurso ao lúdico e ao hu-
mor. Se, de modo geral, os autores brasileiros fizeram da literatura
européia um modelo a seguir e obedecer, Machado preferiu brincar
com ela, incorporando a herança literária e repropondo-a por meio
da paródia.
Sabemos todos quão abundantes são os exemplos da presença de
autores estrangeiros na obra machadiana. Interessa-me aqui, no entanto,
discutir esse modo particular de incorporação, através do estudo de uma
4
Idem, ibidem, p. 45.
5
“Nada é sagrado para um sapador”.

13
VASCONCELOS, Sandra. HAMLET À BRASILEIRA: MACHADO LÊ SHAKESPEARE

crônica que considero paradigmática no que diz respeito àquele que se


pode chamar de traço machadiano por excelência, isto é, o rebaixamento da
literatura ao mundo da mercadoria.
Publicada originalmente na Gazeta de Notícias 6 e depois inclu-
ída, com o título de “A Cena do Cemitério” no livro Páginas Recolhi-
das, organizado pelo próprio autor, a crônica de 03 de junho de 1894
dialoga diretamente, como o próprio título indica, com a famosa cena
dos coveiros em Hamlet (ato V, cena 1). Nessa altura, nem eram novi-
dade as referências ao teatro shakespeariano na obra de Machado, nem
era inédita a alusão à tragédia do príncipe da Dinamarca, sabidamente
uma das leituras preferidas do nosso escritor. De fato, um olhar mais
detido sobre o conjunto de sua obra revela a sedução que essa peça
parece ter exercido sobre ele. Não foram poucas as vezes em que Ma-
chado recorreu à citação de frases hamletianas, quase sempre adapta-
das de forma brincalhona às circunstâncias, ao longo de sua obra7. Pa-

6
A colaboração de Machado no jornal Gazeta de Notícias, fundado em 1875, se esten-
deu de 1883 a 1897. A série A Semana cobre o período de 1892 a 1897.
7
Só para mencionar alguns exemplos: a expressão “To be or not to be” dá nome a um
conto de 1876, enquanto que os versos “There are more things in heaven and earth,
Horatio,/ Than are dreamt of in our philosophy”. (Hamlet, ato I, cena 5, ll.166,167)
aparecem, em geral alterados, em Quincas Borba, cap. CLXVIII (“Sem conhecer
Shakespeare, ele emendou Hamlet: “Há entre o céu e a terra, Horácio, muitas coisas
mais do que sonha a vossa vã filantropia.”) e cap. CLXIX (“D. Fernanda não entendeu
esta palavra. Creio que mais, porque eu o adoro! Em verdade, a conclusão não parecia
estar nas premissas; mas era o caso de emendar outra vez Hamlet: “Há entre o céu e a
terra, Horácio, muitas coisas mais do que sonha a vossa vã dialética.”); no conto “A
Cartomante” (“Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que
sonha a nossa vã filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo,
numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera
consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras”.); e em inúme-
ras crônicas, como as de 2 de julho de 1893 (“Esta impossibilidade de esconder o que se
passa, no segredo das deliberações, faz-me crer no ocultismo. É ocasião de emendar
Hamlet; “Há entre o Palácio do Conde dos Arcos e a rua do Ouvidor muitas bocas
mais do que cuida a vossa inútil estatística.”); 11 de fevereiro de 1894 (“Há duas
astronomias, a do céu e a da terra; a primeira tem astros e algarismos; a segunda dispensa
os astros e fica só com os algarismos. Mas há também entre o céu e a terra, Horácio,
muitas coisas mais do que sonha a vossa vã filosofia. Uma dessas coisas, como vos
digo, é a vertigem dos números.”); 10 de janeiro de 1895 (“... os bookmakers,

14
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

rece não haver, no entanto, melhor exemplo da impregnação dessa peça


num texto do escritor do que a crônica a que me referi acima, parte da
série de 248 publicadas na coluna A Semana.
A convivência do escritor brasileiro com a obra do grande dra-
maturgo inglês data, segundo seus biógrafos, de 1870, a partir de quando
Machado teria começado a ler autores ingleses8. Se Hamlet foi, de
acordo com João do Rio, um dos livros de cabeceira de Machado9, a
familiaridade do escritor com Shakespeare não se deu exclusivamente
através da leitura. Certamente, Machado teve a oportunidade de assis-
tir às representações das principais peças de Shakespeare no Rio de
Janeiro. Introduzido no Brasil na primeira metade do século XIX,
através de adaptações francesas, foi a estréia da companhia italiana de
Ernesto Rossi em 1871 que, segundo Eugênio Gomes, teve a “prima-
zia de representar o verdadeiro teatro shakespeariano, no Brasil.”
É também Eugênio Gomes quem nos informa que,

“[...] a partir de 1876, começaram a aparecer com maior fre-


qüência os reflexos do teatro shakespeariano em sua obra [de Ma-
chado], uma ou outra vez, com alusão a Rossi e também a Salvini 10,
que ambos proporcionaram à metrópole brasileira as melhores in-
terpretações de Hamlet, Otelo e outros personagens trágicos do
gênio inglês, até então vistas em nosso país.” 11

apesar do nome nunca escreveram livros, e que há entre uma casa e outra mais frontões
do que sonha a minha vã filologia.”); 27 de outubro de 1895 (“Abre-se um capítulo de
mistérios, de fenômenos obscuros, e concordávamos todos com Hamlet, relativamente
à miséria da filosofia”.); 20 de dezembro de 1896 (“Há mais coisas entre o céu e a terra
do que sonha nossa vã filosofia. É velho este pensamento de Shakespeare; mas nem por
velho perde.”).
8
Há algumas controvérsias sobre essa data. Enquanto Eugênio Gomes e Lúcia Miguel
Pereira dão-na como certa, Jean-Michel Massa afirma que em 1870 Machado ainda
não lia inglês fluentemente e que a tradução de Oliver Twist, de Charles Dickens, teria
sido feita através da versão em francês.
9
Apud GOMES, Eugênio. Machado de Assis. In: Shakespeare no Brasil. Rio de Ja-
neiro, Ministério da Educação e Cultura, s.d., p. 160.
10
Eugênio Gomes se refere a dois atores italianos, cujas companhias andaram pelo Rio
de Janeiro na década de 1870.
11
Idem, ibidem, p. 160.

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VASCONCELOS, Sandra. HAMLET À BRASILEIRA: MACHADO LÊ SHAKESPEARE

Seja através da encenação das peças nos palcos cariocas, seja atra-
vés das inúmeras referências, comuns entre os poetas românticos, seja
através da leitura, Machado manteve contato constante com a drama-
turgia de Shakespeare, o que fica patente na sua obra. No entanto,
longe de transformá-la em modelo, Machado vai utilizar-se dela como
elemento de mediação, através do qual penetra nos fatos da semana,
colhidos no jornal. É este o caso da crônica de 03 de junho, em que ele
relê, numa chave paródica, a cena dos coveiros de Hamlet.
Mestre nas associações paradoxais, Machado abre a crônica
em questão com um conselho ao leitor, que vai na contramão do re-
curso adotado pelo próprio escritor – “Não mistureis alhos com
bugalhos”. A advertência vem a propósito da experiência desagradá-
vel, vivida pelo narrador, de combinar a leitura de jornal e de Hamlet,
antes de dormir. O resultado é um pesadelo, provocado pela “mistu-
ra de poesia e cotação de praça, de gente morta e dinheiro vivo” 12.
Tendo como pano de fundo a memória, ainda muito fresca, do
descalabro financeiro provocado pelo Encilhamento13, nos anos de
1890 e 1891, e as notícias das oscilações da Bolsa de Valores que
acabara de ler no jornal, Machado mescla ficção, teatro e História e
incorpora, num mesmo texto, o discurso comercial dos pregões de
títulos e debêntures e a fala rebaixada do narrador e de seu “fiel cria-
do” José Rodrigues, travestidos de Hamlet e Horácio.
Machado aproveita-se, de forma magistral, da suspensão das
leis naturais que a atividade onírica possibilita para colocar lado a
lado duas ordens diversas de experiência. Segundo diz o próprio nar-
rador, “Nos sonhos há confusões dessas, imaginações duplas ou in-

12
ASSIS, Machado. A Cena do Cemitério. In: GOMES, Eugênio. Machado de Assis.
Crônicas. Rio de Janeiro, Agir, 1963, p. 56.
13
Os anos de 1890 e 1891 foram um período de grande agitação financeira conhecido como
Encilhamento, durante o qual o desenfreado movimento da Bolsa e a febre especuladora
levaram à criação de grandes fortunas assim como provocaram grandes falências. A depres-
são econômica deste início da década de 1890 atingiu todo o país. Entre 1891 e 1897, o mil-
réis perdeu metade de seu valor, causando pânico. Grande parte da nação mergulhou num
mar de estagnação econômica e empobrecimento crônico.

16
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

completas, mistura de coisas opostas, dilacerações, desdobramentos


inexplicáveis” (p. 57). Essa observação, diria eu, cabe como uma luva
também para descrever o modo de construção da própria narrativa.
A crônica, estruturada em forma de um sonho emoldurado, é toda
ela construída a partir de homologias criadas, de um lado, pelas refe-
rências constantes ao mundo financeiro e, de outro, pela reencenação
dos preparativos para o enterro de Ofélia. Assim, o espaço é metade
sala, metade cemitério; os coveiros são ao mesmo tempo corretores;
da cova saltam ossos e papéis; os títulos são caveiras; a caveira de
Yorick é ao mesmo tempo uma debênture da Geral.
O tom é de irrisão. Não resta nenhum vestígio da atmosfera
solene presente na cena shakespeariana. A inocência da morte de Ofélia
coloca-a na esfera do sublime. Sem dúvida, como Victor Hugo bem
nos lembra, Shakespeare contrapõe, nessa cena, a solenidade do acon-
tecimento com os trocadilhos, gracejos e verborragia dos coveiros. Da
mesma forma, mescla o humor e a comicidade dos dois “clowns” com
um dos momentos mais altos da peça, em que, numa cena de profunda
ironia dramática, Hamlet tece fantasias, debruçado sobre a cova desti-
nada a Ofélia, ignorante da morte da mulher amada.
Aquele que é um momento de profunda reflexão e melancolia
diante da morte na tragédia shakespeariana, já tingido pelo grotesco
dos atos e falas dos coveiros, transforma-se numa cena sarcástica e
paródica, na qual, através do recurso ao lúdico e ao rebaixamento,
Machado justapõe literatura e mundo da circulação da mercadoria,
tirando disso um efeito crítico absolutamente notável. O que se desen-
terra da cova aberta pelos coveiros da crônica são debêntures ao invés
de ossos. Enquanto cava, um deles recita uma quadrinha que remete
diretamente àquelas cantadas por um dos “clowns” shakespearianos:

Era um título novinho,


Valia mais de oitocentos;
Agora que está velhinho
Não chega a valer duzentos.

17
VASCONCELOS, Sandra. HAMLET À BRASILEIRA: MACHADO LÊ SHAKESPEARE

[Em Shakespeare, por exemplo:


But age, with his stealing steps,
Hath clawed me in his clutch,
And hath shipped me into the land,
As if I had never been such.]

Se, na tragédia, os “clowns” já pertencem à esfera do cômico e


do baixo, Machado rebaixa ainda mais seus coveiros que, dizendo
pilhérias e fazendo trocadilhos, falam de bancos, títulos e patacas.
Também seu Hamlet, com o crânio-debênture na mão, repropõe a
fala do Hamlet original sobre Yorick, transformando um daqueles
momentos em que o príncipe reflete sobre a transitoriedade da vida
num comentário sobre a equiparação operada pelo mundo capitalista
entre arte e mercadoria. Na fala do Hamlet brasileiro encontram-se
ecos de seu sucedâneo dinamarquês e o rebaixamento é patente:

“ – Alas, poor Yorick! Eu o conheci, Horácio. Era um título magnífi-


co. Estes buracos de olhos foram algarismos de brilhantes, safiras e
opalas. Aqui, onde foi nariz, havia um promontório de marfim velho
lavrado; eram de nácar estas faces, os dentes de ouro, as orelhas de
granada e safira. Desta boca saíam as mais sublimes promessas em
estilo alevantado e nobre. Onde estão agora as belas palavras de outro
tempo? Prosa eloqüente e fecunda, onde param os longos períodos, as
frases galantes, a arte com que fazias ver a gente cavalos soberbos com
ferraduras de prata e arreios de ouro? Onde os carros de cristal, as
almofadas de cetim?”14

Logo em seguida, essa equivalência fica definitivamente esta-


belecida, ao sugerir que “[uma letra de Sócrates] Talvez ainda valha
menos que esta debênture” (p. 60).
14
A Cena do Cemitério, p. 59. No texto original: “Let me see. Alas, poor Yorick. I knew
him, Horatio: a fellow of infinite jest, of most excellent fancy; he hath borne me on his
back a thousand times. And now how abhorred in my imagination it is. My gorge rises
it. Here hung those lips that I have kissed I know not how oft. Where be your gibes
now, your gambols, your songs, your flashes of merriment that were wont to set the
table on a roar? Not one now to mock your own grinning – quite chap-fallen? Now get

18
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

É evidente que, na escolha da cena, Machado faz um recorte que


pode render muitíssimo, do ponto de vista dessa espécie de poética da
paródia que caracteriza seu texto. A redução desse momento solene e
elevado, na tragédia de Shakespeare, ao mundo da troca e do capital
opera um deslocamento da função modelar normalmente desempenha-
da pela literatura européia que, nesse caso, deixa de ser modelo e passa a
ser motivo, deliberadamente usada para fins críticos e paródicos.
O alvo da crítica é, claramente, a roda mercantil que transfor-
ma tudo em mercadoria, em valor de troca. Num mundo em que
tudo foi reduzido a mercadoria, não há lugar para o sublime, restan-
do apenas o olhar irônico, capaz de rebaixar o próprio mundo da
informação e chamar atenção para a tabula rasa em que se constitui o
próprio jornalismo.
Nessa reflexão, Machado desafia o leitor, colocando-o diante
de uma visão alternativa a respeito da história e dos acontecimentos.
Machado tinha consciência do papel da imprensa na vida moderna,
no acesso à cultura e na circulação de informações nos grandes cen-
tros urbanos. Tanto assim que colaborou intensamente com diferen-
tes periódicos, ao longo dos anos. No entanto, suas crônicas são um
exercício permanente de contestação. Não se engane o leitor com o
tom zombeteiro, com o ar de comentário descompromissado, com o
distanciamento olímpico de quem faz de conta que se ocupa apenas
de “uma metafísica das quinquilharias”, na feliz expressão de Davi
Arrigucci15. Oblíquo e dissimulado, como Capitu, sempre no domí-
nio de seu ferino senso de humor, Machado folhetinista penetra na
História de seu tempo e, como quem não quer nada, vai expondo as
mazelas da República, através do comentário dos pequenos aconteci-
mentos cotidianos. Misturando ossos e debêntures, “alhos com
bugalhos”, vai deixando um testemunho sobre uma época. Ainda

you to my lady’s chamber, and tell her, let her paint an inch thick, to this favour she
must come. Make her laugh at that.”
15
ARRIGUCCI Jr., Davi. Fragmentos sobre a Crônica. In: Enigma e Comentário. En-
saios sobre Literatura e Experiência. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 58.

19
VASCONCELOS, Sandra. HAMLET À BRASILEIRA: MACHADO LÊ SHAKESPEARE

com a memória viva da especulação financeira que havia marcado os


anos de 1890 e 1891, o narrador-Hamlet e seu criado José Rodrigues-
Horácio, em meio a coveiros e caveiras, apontam, com tiro certeiro,
para um daqueles males que assolam o país até hoje. É José Rodrigues,
personificação do homem simples, quem diz:

“Meu Senhor, as batatas desta companhia [Companhia Promotora


das Batatas Econômicas] foram prósperas enquanto os portadores
dos títulos não as foram plantar. A economia da nobre instituição
consistia justamente em não plantar o precioso tubérculo; uma vez
que o plantassem era indício certo da decadência e da morte.”

Não soam familiares e contemporâneas essas palavras? No Bra-


sil do Plano Real, especular também dá mais lucros do que plantar.

20
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

MR. SLANG, UM INGLÊS NA TIJUCA


OU DE CAMBRIDGE A CAMBRIDGE

José Carlos Sebe Bom Meihy

in whiskey veritas...

Curioso o fato de Mr. Slang ter sido formado em Cambridge


e ser exatamente aqui que eu venha falar dele. Não moro na Tijuca,
onde o excêntrico inglês e sua criada Dolly, da ficção de Lobato Mr.
Slang e o Brasil, foram residir por mais de quarenta anos, mas, como
leitor crônico de Lobato, fico surpreso por admitir, depois de muitos
anos de freqüência aos seus textos que este é o mais contundente,
desconsertante e revelador libelo político que ele escreveu sobre os
dilemas do progresso no Brasil. Revelador, digo também, no sentido
mais completo do termo: de definição de estilo modernista combina-
do com soluções políticas asseguradas em argumentos conservado-
res. A surpresa das mensagens contidas nas palavras de Mr. Slang
desvela ainda a posição do taubateano rebelde que até 1931 tramitava
entre posições políticas muito retrógradas – de vocação monarquista
– e um progressismo material que, por fim, se identificava mais com
a formulação de uma elite dominante que propriamente com o
republicanismo1 .

1
Para Lobato as virtudes da monarquia estariam firmadas na possibilidade de um sistema
de representação mais estável. A república, por outro lado, através da reposição períodica
promovida por eleições geraria uma representatividade duvidosa.

21
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. MR. SLANG, UM INGLÊS NA TIJUCA...

Antes de abordar o problema da sistematização política loba-


teana, deve-se dizer que seria ingênuo resenhar as passagens em que
Lobato cria Mr. Slang sem um destaque às questões de estilo. Sim, o
que se verifica na escrita e na construção desse texto é um exercício
de linguagem combinada com expressões rápidas e espertas, frases
sutis e fugidias, equiparações lúdicas metaforizadas em argumentos
e equiparados às jogadas de xadrez (constantes entre o narrador e o
velho e ácido britânico). Moderno, Lobato não só na forma – não se
trata de um romance, nem de um conto e tem soluções que fogem às
regras da crônica –, neste texto relata conversas diárias entre o fleu-
mático europeu e um brasileiro capaz de entender e processar as crí-
ticas do inglês da Tijuca.
Trata-se sempre e de qualquer forma de um diálogo. Estranho
diálogo, diga-se, onde o brasileiro mais estimula a conversa que pro-
priamente a enfrenta. De um lado, o britânico que se assume com
todas as características cabíveis no estereótipo vigente de um repre-
sentante do velho império britânico. De outro, o enxadrista brasileiro
interessado em aprender as lições emanadas do crítico europeu ao
mesmo tempo que não queria perder nenhuma partida. Salienta-se
pois que o oponente do inglês é um atento ganhador do jogo e dono
de moral civilizatória. Desde logo pois arma-se a bipolaridade entre
civilização e barbárie. Não se trata porém de qualquer processo
civilizatório nem de qualquer barbárie. Na verdade, o brasileiro, no
correr do texto, vai ganhando alguma autonomia crítica e acaba, por
fim, no texto decorrente, América, por expressar uma liberdade de
opinião que o revela como um político decidido a trazer o progresso
para o Brasil.
Não é sem ironia que o inglês é nomeado Mr. Slang, que em
tradução quer dizer “gíria” e, na mesma ordem, é com sentido que o
personagem nacional brasileiro não se identifica por nome ou refe-
rência específica de origem, credo ou política: é um anônimo indefi-
nido e, portanto, confundido com o narrador/leitor. Esta estratégia
aliás faz com que seja soldada no leitor a identidade de alguém que,

22
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

no diálogo, mostrava-se de passivo a ativo, e que, em relação ao in-


glês, deixava clara sua capacidade de aceitação. Não se fala portanto
de um debate dialético constante e equilibrado, daqueles onde o ata-
que e a defesa se constituem no equilíbrio dos argumentos. Pelo con-
trário, o que se verifica é uma crescente argumentação na qual se
coloca em pauta a seqüência dos fatos, exemplos e certezas construídas
sobre a necessidade de mudar o Brasil. Fala-se de uma atualização
estranha que centraria fogo na tradição portuguesa e proporia novo
modelo de desenvolvimento.
Antes de prosseguir convém tentar uma relação entre os “dois”
Mr. Slang que afinal aparecem em dois momentos distintos da cha-
mada obra adulta de Lobato: no texto referido e no próximo da cole-
ção Obras Completas, respectivamente nos volumes números 8 e 9.
Curiosamente é nestes dois textos que os temas da modernização do
Brasil se constituem de maneira mais clara e historicamente justificada.
Enquanto o primeiro caso se passa no Rio de Janeiro, o segundo tem
os Estados Unidos como cenário. Entre um e outro, a discussão for-
ça a compreensão da importância da máquina – o avião, os navios, os
meios de comunicação – e não faltam críticas ao sistema viário brasi-
leiro, aos trens da Central do Brasil. Na mesma ordem a exaltação à
eficiência, aos avanços científicos e honestidade política promovem
luz e sombra entre ideal e realidade brasileira.
Sendo que a primeira edição de Mr. Slang foi publicada, em
jornal, em 1927 e apenas em 31 reaparece o personagem inglês é
natural a pergunta relativa à retomada emblemática daquele que foi
descrito como homem excêntrico e, cá para nós, maníaco e esquisitís-
simo, como de regra todo inglês celibatário maior de sessenta anos 2 .
Enfim, o que representaria Mr. Slang antes e depois da ida de Loba-
to aos Estados Unidos? Continuidade – que no caso implicaria re-
forço de suas opiniões prévias –, ou ruptura – que de outra forma

2
Monteiro Lobato, J. B. Mr. Slang e o Brasil, Obras Completas, São Paulo, Editora
Brasiliense, 1964, p. 6.

23
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. MR. SLANG, UM INGLÊS NA TIJUCA...

significaria revisão de antigas opiniões? A resposta a esta questão se


constitui no fulcro deste texto. Convém lembrar que há uma homologia
interessante entre a trajetória promovida pela ficção e o roteiro desen-
volvido pelo próprio Lobato em vida. Entre 1927 e 31, o escritor este-
ve nos Estados Unidos como Adido Comercial do Brasil. Exatamente
entre a redação de um e outro texto, Mr. Slang viajava do Brasil para a
China. O velho inglês dizia que estava cansado do Brasil. Para seu
estudo sobre o parasitismo nas sociedades, reafirmava, o Brasil era o
mais maravilhoso éden dos imprevistos mas que em face de um novo
governo eleito, Washington Luiz Pereira de Souza (15 de novembro
de 1926 até 14 de novembro de 1930), restava procurar outro local
para a pesquisa de campo pois está parecendo que daqui por diante,
com o governo novo, vai o Brasil normalizar-se 3. Para Mr. Slang isto
seria uma tragédia pois a volta do bom senso e a justiça destrói o pito-
resco social que cá me trouxe 4.
Independentemente dos argumentos políticos, a ironia é um
tempero atualíssimo em Lobato que promove uma ficção paródica
em que os elementos constituintes da identidade do personagem são
assumidos como elemento integrante da solução formal do texto. Na
mesma medida em que expressões latinas são comicamente assumi-
das como parâmetro de verdade como se lê no whiskey a verdade,
evoca pensar inclusive que na bebida, ou no seu efeito, estaria a pos-
sibilidade da análise e do entendimento entre os dois. A mais contun-
dente mostra da picardia lobateana, contudo, é colocada na boca do
brasileiro que logo admite que wisdom é riqueza e depois de um
surpreendente ponto inicia a frase dizendo que:

A de Mr. Slang contribuirá, talvez, para o enriquecimento de


algum espírito amigo da verdade, embora eu esteja convencido da

3
O apoio que Lobato dava a Washington Luiz baseava-se na formulação de uma nova
política financeira que visava à estabilização cambial que implicava a substituição do
mil-réis pelo cruzeiro
4
Idem, p. 109.

24
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

absoluta tolice que é em nossa terra dar atenção à pobre dama nua
que mora no poço5.

O elogio à Inglaterra perpassa todo o primeiro texto. Um, colo-


cado logo de início, serve de alerta para se pensar o texto como um
todo. É com solenidade que Mr. Slang pontifica que o hábito de ter
idéias próprias fez da Inglaterra o que a Inglaterra é. O reverso, que
toca diretamente na intenção do autor, é também verbalizado mostran-
do que o hábito brasileiro de aceitar, por comodismo ou preguiça, idéias
alheias, não me parece que esteja fazendo grande coisa deste país 6. Em
outras passagens fica evidente a exaltação britânica. Na referência que
faz aos motivos por que deixava o Brasil ele declara enfaticamente que
ordem e justiça... só me interessam no Império Britânico e remata a
tirada dizendo que:

A América do Sul quero-a como sempre a tive: convulsa, facino-


rosa, isto é, pitoresca. E já que se pretende instalar aqui a ordem
mudo-me. Ordem por ordem, tenho a inglesa, que é de pedra e cal
e não de momentâneo acaso político 7.

Como se trata de um personagem que migra de um texto para


outro, sendo Mr. Slang sempre um observador “de fora”, tem-se que
sua posição teria que manter a lógica austera que marcara o estereoti-
pado inglês. A variação de paisagem entre o Brasil e os Estados Uni-
dos, contudo, faria com que o britânico personagem tivesse que alterar
alguns supostos de seu ponto de vista8. A presença de Lobato nos Es-
tados Unidos reforçaria alguns elementos que julgava fundamentais
para a atualização do Brasil. Assim, não seria equivocado dizer que,
entre um livro e outro, dá-se a transferência da crítica civilizatória para

5
Idem, p. 8.
6
Idem, p. 10.
7
Idem, p. 110.
8
Edgard Cavalheiro explora o contexto da viagem de Lobato aos Estados Unidos exi-
bindo o contexto temático de suas opiniões políticas em Monteiro Lobato, vida e obra,
vol. 1, Editora Brasiliense, São Paulo, 1962, p. 279.

25
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. MR. SLANG, UM INGLÊS NA TIJUCA...

a modernizadora. O que se mantém como denominador comum é o


pragmatismo inglês – que ao contrário do lusitano – teria gerado solu-
ções políticas progressistas, seja para a própria Inglaterra, seja para os
Estados Unidos.
O fato de o governo brasileiro ter mudado entre 26 e 30, servia
de rumo para a transferência dos argumentos diretos da polêmica so-
bre o Brasil. Não era mais, no livro América, o ataque a Arthur
Bernardes que interessava, mas sim as referências que fazia à estrutura
governista. Neste sentido, o Mr. Slang nos Estados Unidos é mais um
indicador das mudanças a serem feitas que propriamente alguém que
diagnostica os problemas. Aliás, no caso norte-americano, Lobato/Slang
vão além: propõem modelos, soluções. Trata-se de algo mais que a
crítica.
É interessante notar que o argumento colocado pelas palavras
de Mr. Slang é instruído pela observação de alguém “de fora”, que
passou mais de quarenta anos no Brasil. A “visão histórica” de Mr.
Slang, portanto, combina duas características importantes: uma cer-
ta neutralidade de quem vê “esteticamente”9 e que, ao mesmo tempo,
concatena a crítica pelo encadeamento de exemplos. Neste sentido
Mr. Slang é um diagnosticador que, além de tudo, tem vista armada
por ser um coletor de notícias de jornal, com as quais ele formula um
dossiê com fatos aberrantes. São exemplos que ele coleciona. Não se
trata porém de uma colagem de notícias curiosas. Não. São elemen-
tos de uma crítica feroz ao tradicionalismo brasileiro. Então temos
crítica ao tradicionalismo aliada a soluções de força.
A instrução de uma abordagem histórica da triste realidade
brasileira decorre de um processo de identificação, no passado, de
nossos males. Reconhece ele que nossa mentalidade é mal que vem
de trás, dos tempos do Brasil colônia. Portugal, ao tomar posse da
terra nova, cuidou de uma coisa só: o Fisco. Caracterizando o impos-
9
São palavras “ditas” pelo personagem: “eu hoje só quero o pitoresco. Olho tudo pelo
prisma estético. Vejo paisagens humanas, nas quais o parasitismo figura como um ele-
mento estético de muito valor”, op. cit. p. 77.

26
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

to como um mal incomensurável, Lobato transfere para o inglês o


direito de ensinar os brasileiros que nossos males vêm do passado
remoto. No mesmo argumento ele delibera que veio depois (da colô-
nia) a independência, a Monarquia, a República, e em todas estas
mudanças se mexeu em tudo, menos no Fisco. Ficou ele com o mes-
mo arcabouço e a mesma psicologia colonial 10.
Tratando tudo em nível de questões mentais, Lobato reconhe-
ce que o mal é conjuntural, da América Latina, e conclui que, apesar
desta característica “genética”, há países que se libertaram das amar-
ras históricas. O Uruguai e a Argentina são exemplos disto como se
vê na passagem em que Mr. Slang conclui que algumas potências já
encerraram esse ciclo. O Uruguai foi uma chasqueada de homens
durante anos e anos. Hoje é um dos mais felizes e prósperos recantos
do mundo. O mesmo se dá com a Argentina11.
Lobato contudo delega autoridade a Mr. Slang para que ele
mostre sentido evolutivo na história. São comentários do inglês as
palavras seguintes:

Neste território já houve um Brasil ameríndio. Que é dele?


Remanesce no fundo dos sertões, em tribos expulsas do litoral e
condenadas ao desaparecimento. Hoje temos um Brasil luso-áfrico.
Por que não há de morrer, como morreu o Brasil ameríndio? A
terra fica, mas os povos passam12.

Todas as soluções vislumbradas pelo excêntrico inglês decorrem


da existência combinada de dois fatores. Um interno e outro externo.
No primeiro caso tudo depende da potência da elite. Elite é,
portanto, um tema fundamental na propositura de uma alternativa
de saída do caos histórico nacional. No princípio e no fim do texto
Lobato retoma a questão da elite. Diz o inglês que o Brasil possui sua

10
Idem, p. 46.
11
Idem, p. 42
12
Idem, p. 49.

27
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. MR. SLANG, UM INGLÊS NA TIJUCA...

elite. Não há leite, por magro que seja, que não dê creme sobrena-
dante 13. Depois, quando subitamente Mr. Slang resolve ir para a
China, cansado do Brasil – de onde precisava tirar férias intermi-
tentemente –, o interlocutor nacional resolve reagir mostrando que
nós também temos pessoas honestas e, enfim, uma elite. Mediante
a fraqueza dos argumentos do brasileiro contradito por exemplos
que, na rua, espontaneamente negavam as falas do ofendido, ouve
as contemplativas palavras do inglês ao dizer que acreditava na exis-
tência de uma elite moral no Brasil. Apenas admito que está arre-
dada da sua função orgânica. Está à margem, à espera de que a
chamem. Uma reserva por enquanto – mas uma bela reserva, creia14.
Os argumentos de Mr. Slang progridem no sentido de mostrar,
positivamente, que no Brasil haveria uns trinta homens e que o
modelo deles seria Belizário Pena15.
No segundo caso, Mr. Slang exalta a vinda e o valor da imi-
gração. Não faltam preconceitos para o contorno das idéias do in-
glês sobre os brasileiros não pertencentes à elite. O exemplo mais
eloqüente se dá quando o estrangeiro conta que certa feita, ao fazer
uma viagem para Minas Gerais, num trem da Central, encontrara
um funcionário da empresa que cumpria o estranho – e inexplicável
– ritual de, com um martelo, bater no eixo do trem de ferro. Per-
guntado sobre o porquê disto dá-se a seguinte situação descrita por
Lobato:

Com a testa a borbulhar de suor, olhou-me o preto com esse ar


hostil que tem o nacional da plebe para com o estrangeiro bem
posto, e disse, de mau modo:

– Sei lá! Há dezesseis anos que estou neste emprego e nin-


guém nunca me fez semelhante pergunta. Bato porque meu serviço é
bater, hom’essa!...16
13
Idem, p. 43.
14
Idem, p. 114.
15
Idem, p. 115.
16
Idem, p. 66.

28
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

Lobato é implacável ao exibir um norte como modelo acabado


da decadência. Talvez das páginas mais drásticas escritas por este
autor esteja a descrição que faz de um cavalo posto para morrer. Equi-
parando o velho animal à burocracia assim descreve o caso:

Era um cavalo aposentado do serviço e solto no campo para que


morresse em paz. Sua magreza era tamanha que me despertou a
curiosidade. Aproximei-me... Não era mais um cavalo. Era uma
piolheira sobre quatro patas. Não teria talvez um milímetro de
pele livre de parasitas – e parasitas bem magros, porque o sangue
já se fazia pouco para tantos. Pus-me a refletir sobre a estupidez
do dono do cavalo e sobre a estupidez ainda maior dos parasitas.
Aquele multiplicar-se excessivo iria matar o cavalo, e com ele a
piolheira. O Brasil é isso, meu caro, pelo menos no norte17.

O contraste sempre evocado por Lobato, em termos de Brasil,


era invariavelmente o estado de São Paulo mostrado como exemplo
que se fosse seguido daria ao país condição de colossal! O Brasil
inteiro se transformará num Estado de São Paulo, que se é o que é
deve-o sobretudo a um pouco de braço e cérebro europeu que para lá
se encaminhou18.
O apelo para a imigração se constitui para Lobato na avenida
necessária para a superação dos problemas múltiplos que tínhamos.
A corrente imigratória identificada pelas palavras de Mr. Slang era
fraca ao que conclui que hoje pode-se dizer que não há corrente
imigratória para o Brasil. Vêm para cá uns poucos iludidos e um
certo refugo que não encontra guarida em parte nenhuma19. A solu-
ção para os problemas brasileiros pois estava em importar cérebros 20.
Com estes elementos Lobato exibia através da crítica de Mr.
Slang os pontos de estrangulamento do nosso progresso. Por ordem

17
Idem, p. 63.
18
Idem, p. 32.
19
Idem, p. 31.
20
Idem, p. 89.

29
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. MR. SLANG, UM INGLÊS NA TIJUCA...

de apresentação tudo começaria pela instabilidade da moeda que se-


ria a causadora da carestia. Ao tecer considerações sobre lastro de
moeda o inglês da Tijuca distingue papel-moeda de moeda-papel e
passa a mostrar que a falta de lastro ouro ocasionava um distúrbio no
controle da moeda e disto se passa com facilidade à inflação. Com
estes elementos colocados, a conversa entre os dois interlocutores en-
tra na questão da atualidade (1927) quando se discutia o problema21
da estabilização da moeda, da corrupção e da falta de projeto para o
país. A estabilidade econômica traria naturalmente para o país ouro e
imigrante que viriam ao país não para se arriscar mas para investir.
Com loas aos capitais estrangeiros Mr. Slang surpreende ao dizer
que entre nós o dinheiro de fora é pouco ou é mínimo, é zero diante
do que poderia ser e diante das necessidades do país. E o que veio, ou
veio garantido por leis especiais ou veio para empréstimos ao gover-
no, caso muito diferente.
A estabilização da moeda geraria mais que um efeito positivo
sobre a população, um mecanismo de crença política que resultaria
na existência de um programa eficiente de governo. Com estes argu-
mentos o texto de Lobato vai ganhando os contornos ideológicos
precisos que tem.
A questão central que sutilmente se coloca diz respeito à for-
ma de governo. Falando a partir de um momento em que a Repúbli-
ca está sendo contestada, o autor contrapõe, com estranho cuidado, o
modelo monárquico como ideal. Alguns argumentos apontados pelo
sagaz Mr. Slang mostram, por exemplo, que o voto é sempre uma
escolha falível e que fora responsável até pela colocação de uma pes-
soal como o marechal Hermes no governo.
Para Lobato, com Afonso Pena teria morrido – no dia 13 de
junho de 1909 – o último bastião da ordem brasileira. A subida de
Nilo Peçanha ao governo equivaleria à irrupção de um tumor. Afonso
Pena seria bom porque era ainda produto da influência do velho impe-
rador. A crítica à República reponta desde então com argumentos como:

21
Idem, p. 28-29.

30
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

Ora a República, até Afonso Pena, ainda muito se beneficiou com a


projeção no tempo do célebre lápis azul do imperador. Mas o amado-
rismo que daí para cá presidiu à escolha dos substitutos desses ho-
mens, até quando operará os seus tristes resultados? Contra um mau
ministro do Supremo Tribunal, com dez ou vinte anos de vida, que
poderá o Sr. Washington Luiz, que dentro de três e pouco não será
mais governo? 22

Mais à frente Mr. Slang menos disfarçadamente diz a que veio.


Ao reforçar a crítica ao fato da transitoriedade dos governos republi-
canos, diz o inglês que para curar os males de um país não bastavam
governos quadrienais e que sim, seriam urgentes períodos mais pro-
longados que durassem quatriênios quanto fossem necessários para a
total eliminação dos elementos amorais que o período ciclônico lhe
meteu dentro23. Talvez das passagens mais elucidativas do texto de-
corre desta conversa quando o brasileiro candidamente pergunta ao
inglês se seria possível um modelo de lugar onde fosse aplicada a
idéia e ele responde metaforicamente:

– Olhe, disse ele, apontando para certa ilha. Veja que lindo qua-
dro forma aquele veleiro, a estampar a brancura de suas lonas de
encontro aos verdes do morro!...
Respeitei-lhe a discrição e desconversei 24.

Há duas passagens importantes para o entendimento da In-


glaterra como modelo, ambos decorrem de referências a livros. Lobato
no primeiro caso faz Mr. Slang refletir sobre biblioteca e coloca na
boca do brasileiro a decepção de quem

tinha grande curiosidade de conhecê-la, imaginando coisa aí para


10.000 volumes. Enganei-me. A famosa biblioteca se resumia numa
edição da Enciclopédia Britânica, impressa em fino papel da Ín-
dia e encadernada em camurça.

22
Idem, p. 37.
23
Idem, p. 35.
24
Ibidem.

31
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. MR. SLANG, UM INGLÊS NA TIJUCA...

– Só isto, Mr. Slang? exclamei desapontado.


– Acha só isto ao tudo? respondeu ele rindo-se. Já possuí nume-
rosos livros, mas desfiz-me deles como de tambolhos quando me
convenci de que a Enciclopédia Britânica resume toda a sabedoria
humana 25.

Como a Enciclopédia Britânica não era o único livro da estan-


te de Mr. Slang, o brasileiro ficou surpreso com a exaltação a um
outro livro escolar. Diz ele:

Corri os olhos pelo título: “Little Arthur History of England” de


Callcott.
Neste livrinho, continuou ele, aprendi os rudimentos da formação
do meu país. Aqui no capítulo VIII trata a autora, em linguagem
ao alcance de qualquer menino, de como se formou o parlamento
inglês. Cada cidade enviava ao rei três ou quatro dos seus homens
mais hábeis, os quais se reuniam numa casa dita, em velho inglês
“witenagemot”, ou reunião de homens avisados 26.

Independentemente do debate – sempre esquemático, redu-


tor, discutível e às vezes cabotino – sobre a localização de José Bento
Monteiro Lobato enquanto regionalista, pré-modernista, moderno
ou modernista, vale percebê-lo como um autor preocupado com pro-
blemas nacionais/brasileiros significativos. Tal cuidado exibe um au-
tor com trajetória definida no sentido da busca de uma evolução que
parte do local para o nacional.
De regra, habituamo-nos a visitar o rebelde de Taubaté em
termos de vinculações estéticas ou públicas – quase sempre separa-
damente –, e neste sentido perdemo-nos em fragmentações simplifi-
cadoras. O acompanhamento da evolução temática de Lobato em
consonância à formulação de uma problemática nacional pode su-
gerir que além de uma sintonia, digamos de gênero literário, po-
der-se-ia pensar na precisão de um momento em que um intelec-

25
Idem, p. 51.
26
Idem, p. 85-86.

32
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

tual torna-se orgânico e nele se fundem valores literários e compro-


missos políticos.
Uma viagem pela seqüência dos assuntos tratados por Lobato
é indicativa do prestígio desse escritor enquanto homem público.
Quase sempre, o que se verifica é o estabelecimento de uma evolu-
ção temática que tramita entre um escritor que se inicia com temas
localizados, da cidade pequena, do interior (identificado em ter-
mos urbanos, falsamente, como cidade morta) e depois passa a fa-
lar em termos dos habitantes, do povo, dos caipiras (cruelmente
alcunhados de piolhos da serra, pichoras ou, mais comumente como
Jeca Tatu). Outra etapa temática de Lobato diz respeito à amplia-
ção da problemática quando então o autor passa a projetar os pres-
supostos identificados no “velho” Vale do Paraíba com os do Brasil
como um todo. A questão da saúde pública se mostra tema de cali-
bre mais abrangente e passava a projetar dimensão mais larga do
autor.
A saúde pública torna-se tema lobateano na medida em que,
saído do Vale, na cidade grande, depois da gripe espanhola, em
1918, seus argumentos em favor de campanhas para a saúde do
brasileiro, decorrente das “denúncias” que faz sobre o estado de
vida do caipira, são reconhecidos. Tornando-se personagem do
mundo da mídia, Lobato ganha fama e com ela passa a ser, politica-
mente, destaque nacional.
A chamada literatura infantil dimensiona Lobato de maneira
a expressar a manifestação de um discurso articulado na direção de
um projeto de educação. Depois – e é aí que entra o personagem
chave deste texto, Mr. Slang –, emerge na obra lobateana o estabe-
lecimento do modelo estrangeiro de progresso. Dois padrões se apre-
sentam como modelares: a Inglaterra e os Estados Unidos27. No
27
Alice Mikita Koshiyama, em livro intitulado Monteiro Lobato, intelectual, empresá-
rio, editor, T. A. Editor, São Paulo, 1982, à página 100 sobre os Estados Unidos afir-
ma textualmente: “potência embrionária, o terceiro dono do mundo depois do Império
Romano e do Império Britânico”.

33
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. MR. SLANG, UM INGLÊS NA TIJUCA...

primeiro caso, a eficiência e a seriedade do governo se levantam como


exemplos. No segundo, a voracidade, a capacidade técnica e sobretudo
a vocação para a riqueza seriam atestado de objetivo a ser seguido.
Voltando dos Estados Unidos em 1931, mostra-se decidido a
ferrar o Brasil. Conseqüência óbvia, os ataques ao governo. Ataques
constituídos pelas observações colocadas na boca de Mr. Slang. Con-
vém, contudo, observar que também o inglês da Tijuca era passível de
“mudança de opinião”. A solidez das concepções do cidadão britânico
mudou da Tijuca para os Estados Unidos. No América, sem dúvida,
varia a intensidade do prestígio delegado ao império britânico. Já no
Mr. Slang e o Brasil, alguns elementos que marcariam a visão pró Es-
tados Unidos estavam presentes. Com maior eloqüência o nome de
Henry Ford é mostrado como emblema das preferências. Logicamente
vestígios da visão inglesa da lógica do progresso proposto são manti-
dos. Não é sem razão que, por exemplo, transparece a perfeição do fato
de ser um britânico que, primeiro, fez a crítica, no Brasil, ao nosso
sistema. Em seguida, nos Estados Unidos, o cidadão inglês apresenta
a política norte-americana como modelo que foi criado pela tradição
imperial da ex-metrópole.
As posições políticas de Lobato nunca foram estáveis e nem or-
todoxas. Depois de tramitar entre monarquia e apreço aos Estados
Unidos, ele acaba por se aproximar dos comunistas e depois, no fim da
vida, diz optar por um estranho georgismo, a teoria desenvolvimentista
e pragmática do norte-americano Henry George28.
Sem dúvida Lobato era nacionalista. Esta afirmativa representa
a única manifestação estável do autor. Estranhamente, o teor político
nacionalista lobateano independia de ser filtrado ou por monarquia ou
por república. Interessava juntar ao nacionalismo soluções modernas.
Estas viriam principalmente através da constituição de uma elite. Cu-
riosamente, a elite era mais facilmente identificável na monarquia.

28
Nunes, Cassiano, O último sonho de Monteiro Lobato: o Georgismo, s/e, São Paulo,
1983.

34
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

A CASA ASSASSINA OU
A INGLATERRA VISTA DA AMERICALATÍNDIA

Ligia Chiappini

Americalatíndia, latina e índia, violenta e fraca, longe do pa-


raíso que um dia nela foi divisado pelo europeu e no qual um dia ela
própria acreditou. Americalatíndia de Ignácio de Loyola Brandão1,
prefigurada por aquela de quase trinta anos antes que, no final da
década de 80, aparece no romance de Antonio Callado, Memórias
de Aldenhan House 2.
Até hoje esse romance não obteve da crítica o merecido reco-
nhecimento. Chegou mesmo a figurar como livro de memórias, nas
listas dos mais vendidos e nem sempre mais lidos, a começar por
quem deveria ler antes de anunciar, deixando-se enganar pelo título e
tornando evidente que nem sequer o abriu3.
A verdade é que o livro merece uma leitura mais atenta, pois
ele volta a integrar de modo exemplar as angústias individuais e os
descaminhos de nossa história, como já fizera Callado em seus gran-
des momentos (pelo menos em Quarup, Sempre Viva e Reflexos do
Baile). Aqui vai mais longe ainda, pois tenta comprender o Brasil,

1
Refiro-me ao romance Zero, publicado em 1975, no Rio de Janeiro, anos depois da
primeira edição italiana.
2
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989.
3
Por esse motivo, aqui, será necessário utilizar mais a paráfrase do que o faríamos se o
romance fosse mais conhecido.

35
CHIAPPINI, Ligia. A CASA ASSASSINA OU A INGLATERRA VISTA DA AMERICALATÍNDIA

tentando entendê-lo na América do Sul e esta, em suas tensas rela-


ções com a Europa.
Narrado do ponto de vista de um jornalista brasileiro que vai
para Londres, fugindo da ditadura de Getúlio Vargas, na década de
40, e que lá encontra outros companheiros latino-americanos (uma
chilena-irlandesa, um paraguaio, um boliviano e um venezuelano)
que, por sua vez, fugiam do arbítrio da polícia política em seus res-
pectivos países, esse romance volta a explorar com muita técnica e
talento algumas das vertentes mais interessantes da ficção desse au-
tor que haviam ficado meio na sombra no romance anterior (Concer-
to Carioca).
Pelo confronto desses latino-americanos uns com os outros e
deles todos com os ingleses, no dia-a-dia de uma agência da BBC
especialmente voltada para a América Latina, localizada em Aldenhan
House (uma casa tipicamente inglesa, semelhante às velhas e miste-
riosas casas de Edgar Allan Poe), Callado acaba denunciando tanto
os bárbaros crimes latino-americanos do passado e do presente, quanto
o envolvimento das nossas elites com os criminosos de colarinho bran-
co da super civilizada Inglaterra. Do confronto, porém, não brota
apenas a denúncia, mas também a exposição paródica dos preconcei-
tos e dos estereótipos dos ingleses sobre os latino-americanos e vice-
versa.
Valendo-se uma vez mais dos recursos do romance policial, de
que é leitor voraz, Callado retoma as linhas de força de seus roman-
ces anteriores a Concerto Carioca para recomeçar a análise implacá-
vel da nossa barbárie, pela qual a história se repete como farsa e o
gênero do policial só pode acontecer como paródia.
Vinte anos depois dos sucessos de Aldenhan House que se
prolongam num Paraguai e num Brasil só aparentemente democrati-
zados, o narrador (ex-representante brasileiro na BBC, como fora o
próprio Callado), escreve suas memórias, novamente na prisão.
A história se passa, na maior parte do tempo, em plena guerra,
Segunda Guerra Mundial, mas não se pense que nos será dada a ler

36
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

uma crônica dessa guerra, cuja presença apenas se faz sentir por uma
ou outra alusão a aviões alemães ou a alarmes ameaçando a vida quo-
tidiana das pessoas. As guerras que se narram aí são outras, de que
participou e participa até morrer, o heróico paraguaio Facundo
Rodríguez, figura épica, trágica e grotesca ao mesmo tempo: num
primeiro momento, a guerra do Chaco (de 1932-1935), continuada
na paz por nacionalistas fascistas, contrários aos ideais dos mártires
de outra guerra maior – a Guerra do Paraguai. Esta, a guerra que
liquidou quase literalmente esse País, com a Tríplice Aliança tendo a
Inglaterra por trás, sustentando e insuflando. Facundo é um mártir,
cuja existência é preciso borrar da história para evitar a todo o custo o
perigoso culto aos heróis que o povo inventa e segue, capaz de infla-
mar ânimos e ressuscitar ideais revolucionários a tanto custo sepulta-
dos com o corpo do herói martirizado.
Mártires há em Callado desde o início da sua obra ficcional,
começando pelo protagonista de Madona de Cedro que, feito Cristo
redivivo, sofre o martírio de carregar a cruz, ladeira acima, purgando
seus pecados. O mito da paixão perpassa a trajetória de Nando, em
Quarup, de Beto em Reflexos do Baile, de Quinho, em Sempreviva.
E sempre ele se choca com a repressão que não apenas quer destruir
concretamente os homens que lutam pelos ideais de justiça social e
democracia, como quer destruir a matriz de onde brota a força para
essa luta: o imaginário, a lenda, o mito facilmente reencarnável em
novas utopias e novos heróis.
Facundo é salvo das garras da polícia política por amigos de
sua mulher, Isobel, uma inglesa apaixonada, princípio feminino
semprevivo que, como Lucinda e como Francisca, está sempre pron-
ta a renascer das cinzas para apoiar a luta do seu homem. Facundo,
não por acaso, atualiza o arquétipo do bárbaro caudilho de Sarmiento,
e Isobel, por sua vez, atualiza um dos arquétipos mais poderosos da
cultura branca e cristã, retomado por Joyce no FinnegansWake. Tra-
ta-se, mais uma vez, da dualidade entre barbárie e civilização, tão
recorrente nas literaturas latino-americanas e aqui revivida de forma
nova, a um só tempo lírica e irônica, como veremos.

37
CHIAPPINI, Ligia. A CASA ASSASSINA OU A INGLATERRA VISTA DA AMERICALATÍNDIA

Quando o romance começa, acompanhamos o casal, preparan-


do-se para deixar o Brasil, no navio que os levará à Inglaterra com
Perseu Blake de Souza, o brasileiro também recém-saído da prisão,
mais o inglês William Monygham. Este, personagem um tanto miste-
rioso, é um engenheiro, especialista em prospecção de petróleo, no que
trabalhara em terras baianas, e que agora viaja a Londres supostamen-
te para submeter-se a uma cirurgia. Esse navio, guiado por um esco-
cês, o capitão Murray, é a ante-sala que prepara o cruzamento irreversível
dessas vidas, sobretudo de Perseu e Facundo, cujos diálogos, verda-
deiros duelos verbais, revivem as feridas da Guerra do Paraguai.
Sobre o seu irremediável ressentimento em relação ao Brasil e
à Inglaterra, desde o início, o próprio Facundo nos alerta, analisando
a ironia daquela convivência forçada pelo destino:

“ – A vida tem caprichos curiosos, disse Facundo, sem maiores intro-


duções. Há, na face da terra, dois países com os quais eu jamais teria
querido estabelecer qualquer vínculo que fosse, a Inglaterra e o Brasil.
Pois me casei com uma inglesa, com ela me refugiei no Brasil para não
ser morto no Paraguai, e agora estou condenado, com um brasileiro a
bordo, a chegar à Inglaterra.” (p. 21)

No navio, outros duelos verbais têm por tema aparente a cul-


tura e a literatura, mas estas disfarçam apenas o conflito político e
econômico. Para o paraguaio Facundo, a cultura da Inglaterra é de-
cadente. Ela teria gasto quase toda a acumulação de capital cultural
que conseguira no passado e o que haveria de bom na sua literatura
do século XX – as obras de Bernard Shaw e James Joyce – seria...
irlandês.
Por isso, quando William Monygham apresenta o argumento
de que os livros, com guerra e tudo, continuam a chegar em abun-
dância ao povo britânico, Facundo responde: “Chegam [...]. Uma
avalanche. Uma inundação. Mas de romances policiais.” (p. 17)
Estamos já desde esse início mergulhados no tema e na forma
que alimenta este romance até o final: a história de crime, o romance

38
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

policial. Essa forma será um emblema para a Inglaterra, vista pelo


paraguaio. Mas ela será, também, como veremos, enquanto paródia
do romance policial, emblema do Paraguai e do seu trágico destino
de país duplamente colonial.
A birra de Facundo com a Inglaterra se intensifica ainda mais,
por contraste com a sua admiração pela França. Para ele, “todo ho-
mem de bem [...] tem alguma ligação especial com a França”. E a
vergonha do momento que estão vivendo “é que o mundo inteiro não
se haja unido para limpar logo a França dos alemães”4.
Já o brasileiro, polido e civilizado, não acompanha Facundo
no seu ressentimento, o que o outro interpreta como fruto da aliança
histórica do Brasil com a Inglaterra contra o Paraguai. O pretexto da
disputa agora é um termo: Dago, com que os ingleses se referem aos
latino-americanos, equivalente ao utilizado nos Estados Unidos,
cucaracha. À falta de indignação de Perseu, Facundo responde:

“Brasileiros estão acima de apelidos desagradáveis. A Tríplice


Aliança, que em 1870 destruiu o Paraguai e matou todos os para-
guaios, inclusive o dirigente supremo e chefe das forças paraguai-
as, era formada por dois países dagos, Argentina e Uruguai, mais
o Brasil, país o que? Grego? Romano? Ah, já sei, país nigger, ou
que pelo menos só mandava para morrer na frente do combate
seus negros, os escravos.” (p. 25)

Isobel é a mulher civilizada, a inglesa independente que incor-


pora o que há de melhor do Paraguai e da Inglaterra. Ela é capaz de
entender a paixão de Facundo pelo Paraguai e, embora não aprove a
sua xenofobia, capaz também de ler na aparente civilidade do nacio-
nalismo inglês, a mesma irracionalidade e a mesma violência: “ – Ó,
Monygham, exclamou Isobel, rindo. Depois você diz que Facundo
só pensa no Paraguai. E você? Pensa só em que?”
4
Para Facundo, pode-se dizer, como Pierre Rivas, Paris era a capital da América Latina.
Ver o texto de Pierre Rivas, Paris, capital da América Latina em Literatura e História
na América Latina, São Paulo, Edusp, 1993, (org.) Ligia Chiappini e Flávio Wolf de
Aguiar.

39
CHIAPPINI, Ligia. A CASA ASSASSINA OU A INGLATERRA VISTA DA AMERICALATÍNDIA

A continuidade desse diálogo revela, ironicamente, aos olhos


de Isobel e aos do leitor, o quanto a auto-estima do inglês passa pela
supervalorização dessa suposta racionalidade e pelo preconceito em
relação ao paraguaio tido por passional e bárbaro. É a opinião do
colonizador, justificando o seu domínio, a qual Isobel desmistifica,
mostrando que tudo isso se esconde sob a máscara sofisticada do
sense of humor:

“ – É diferente. Nós somos uma realidade que pode ser avaliada,


julgada de um ponto de vista impessoal. Pode ser adotada como
medida, pedra de toque.
[...]
– Não foi por nada que o meridiano número um ficou conosco,
em Greenwich, e que de lá ditamos as longitudes e a hora do mun-
do inteiro. Nós inventamos virtudes novas (defeitos, pouquíssimos)
que foram por nós testadas e depois difundidas, aplicadas em es-
cala imperial, para todos verem, desfrutarem delas. As pessoas
capazes de se educar a si próprias, se civilizar, construir com orgu-
lho seu próprio país e sua própria vida são as que vão ficando [...]
– parecidas conosco.
–Boa aluna, boa aluna, disse o Monygham, levantando a cabeça e
acomodando no nariz um imaginário pincenê.
– Você adota uma postura cômica mas bem que acredita no que
está dizendo.
[...] – Só o senso de humor garante a paz.
– Cuidado que um dia martirizam você, e do alto da sua cruz
você responderá aos algozes forjando, com seus últimos suspiros,
trocadilhos e paradoxos.” (p. 36-37)

Durante a viagem começa Perseu a fazer seu diário. Daí para a


frente ele vai ser uma espécie de porta-voz de Callado que se divide
entre ele e Elvira, a irlandesa-chilena, autora da tradução interminá-
vel de um livro que, desde essa época, constituiu-se num verdadeiro
desafio para o leitor Antonio Callado e muitos outros: Finnegans
Wake, de Joyce.

40
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

Mas, assim como freqüentemente Perseu expressa Callado,


por vezes também este se afasta dele, ironicamente, para mostrá-lo
como a incorporação da ideologia do caráter nacional brasileiro, apre-
goando a superioridade nossa sobre os hispano-americanos:

“Sem dúvida encontrarei um ou outro brasileiro na BBC, mas estarei


sobretudo cercado de hispano-americanos, cucarachas. O diário terá a
virtude simbólica de me manter a mim em minha especificidade brasi-
leira, em nossa diferenciação. [...] Há mais semelhança entre quaisquer
dos países hispano-americanos – todos, sem exceção, caudilhescos e
militaristas – do que entre qualquer um deles e o Brasil. Vargas, prove-
niente do sul espanholado, é, para nós, um desvio de rota, um enxerto
hispânico ocasional.” (p. 42)

É a visão do brasileiro do centro do país que assim se exprime


e que logo se desmascara quando aproxima Facundo de Euclides da
Cunha, vendo em ambos uma expectativa de tragédia. Pois, se o olhar
de um escritor como Facundo e como Euclides da Cunha se dirige
para o mundo que se oculta ao olhar usualmente encantado com o
aparente progresso das nossas capitais, a tragédia está sempre ali, à
espreita, sempre pronta a repetir-se.
Essa alusão a Euclides se dá, ainda no início do romance, num
diálogo de Perseu e Isobel. Ela cria também em nós a expectativa de
tragédia para a personagem Facundo, o que será confirmado mais
adiante.
A visão de mundo de Facundo é trágica e o seu destino tam-
bém o será. Já a visão de mundo dos ingleses, segundo ele, é a de um
folhetim policial. Facundo lê a cultura inglesa como irremediavel-
mente marcada pelo espírito indiciário e pela imaginação doentia do
crime. Diz ele, ainda brincando, a Isobel quando esta e o capitão
Murray desconfiam do misterioso Monygham:

“ – Você e o capitão Murray, britânicos que são, acham que todo o


mundo no mundo é assassino, espião ou detetive. Vamos para o
refeitório que é hora de almoço.” (p. 47)

41
CHIAPPINI, Ligia. A CASA ASSASSINA OU A INGLATERRA VISTA DA AMERICALATÍNDIA

Ainda no navio, discutindo com Monygham, Facundo come-


ça a desenvolver a teoria que virá a perdê-lo: a de que os ingleses não
podem viver sem inventar um cadáver e uma investigação, o que
explica como forma de compensarem o tédio para a “indigestão de
riqueza”, conquistada pelo comércio:

“Apatia, melancolia, tédio. Os ingleses inventaram então o cadá-


ver como herói da história. Eles próprios eram o cadáver, claro.
Mas não passava a má digestão crônica, angustiosa. E ocorreu,
num imperial arroto, a invenção do caro Watson e de Sherlock
Holmes pelo gênio inglês por excelência, Conan Doyle.” (p. 52)

Chegamos à segunda parte do romance. O cenário é outro:


Aldenhan House,

“uma sólida casa de dois andares, com seu perfil de chaminés con-
tra o céu, seu vasto telhado em rampa até as colunas do pórtico. A
cada lado do telhado, dois torreões encimados por telheiros pon-
tudos de duas águas, e, mais alta que eles, à esquerda, uma torre,
quase um campanário, de onde subia a longa flecha de ferro em
que se empoleirava, dourado, um galo-cata-vento.” (p. 66)

Típica casa vitoriana, Facundo a vê como uma casa mal-as-


sombrada e faz questão de morar o mais longe possível dela. Dando
prosseguimento a sua teoria sobre os ingleses, agora ele tem o cenário
do crime e pergunta ao inglês Moura Page: Quedê o cadáver?
Na biblioteca dessa casa, Facundo lê para divertir-se e apri-
morar a sua teoria, o célebre romance gótico, ancestral do policial: O
monge. A partir daí decide provocar Herbert Baker, diretor da Voz
de Londres. A primeira visita que faz ao seu escritório no centro de
Londres é já premonitória do desenrolar de toda a história policial
que se segue. Facundo vai a Baker porque quer fugir da casa. Quer
trabalhar no escritório de Londres. Quando Baker lhe responde que
isso, pelo menos no momento, não é possível e pede para Facundo
lhe explicar por que quer sair da casa, este explica com uma descrição
detalhada que, ao mesmo tempo, atravessa sótãos, porões e águas-

42
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

furtadas e traça a genealogia do romance policial, a partir dos livros


da biblioteca de Aldenhan House que narram também a história da
Inglaterra: “romances populares que vão retratando o império: ro-
mances góticos, os primeiros romances de mistério, e afinal a pujan-
ça vitoriana, refletida nas primeiras edições de Conan Doyle, que
Aldenhan House tem completo, inclusive o dos romances históri-
cos”. Trata-se de uma literatura que esconde o mal mas na qual ele
vive, oculto, em todos os romances aparentemente apolíneos.
Isso basta para deslanchar o duelo entre Baker e Facundo. E
os ataques se dirigem, naturalmente, para a história dos respectivos
países e seus ilustres líderes, de Bolivar a Bonpland e ao mítico Dr.
Francia.
Essa conversa termina com o mau humor dos dois. E a im-
pressão que ficamos é a de que ela valeu pela declaração de uma
guerra de que passaremos a viver novos e emocionantes lances. An-
tes deles, temos uma réplica rebaixada do diálogo Facundo-Baker no
diálogo Perseu de Souza-Baker. Este provoca o brasileiro, pergun-
tando quem é o caudilho do momento. Quer, assim, igualá-lo aos
hispano-americanos, todos caudilhos. Mas Perseu, cioso da sua dife-
rença a resguardar, assegura que Vargas é o primeiro e último caudi-
lho que dominou o Brasil e que será logo deposto.
A imaginação de romancista de Facundo, para tormento de Baker,
estende no tapete da sala deste ou na biblioteca, ou na copa, ou debaixo
da cama, no quarto de dormir, ou afoga no lago ou na piscina cadáveres
e mais cadáveres. E, sempre que pode, o romancista-pesquisador en-
terra-se na biblioteca de Aldenhan House ou na do Museu Britânico
para procurar pistas de um outro crime dos ingleses: a Guerra do
Paraguai, de que quer desvendar o “lado oculto”. Por isso, quando
Isobel se preocupa com ele que não volta depois de soar o alarma, ele
responde que, durante o ataque aéreo ele estava “na outra guerra”.
Aldenhan House, a casa do crime, a casa criminosa, identifi-
ca-se com a própria Inglaterra para Facundo. E ele prevê sua queda
quando conseguir provar o grande crime cometido contra o seu país:

43
CHIAPPINI, Ligia. A CASA ASSASSINA OU A INGLATERRA VISTA DA AMERICALATÍNDIA

“ – Ah, dizia ele, malicioso, estou de fato me enfiando nas vísceras de


Aldenhan House, e, ao acabar minha investigação, denunciarei, for-
malmente, esta casa infame, que há de cair de joelhos aos meus pés.
– Você tanto critica os ingleses, disse Isobel, que acaba escreven-
do um romance policial. Gótico.
Facundo tinha olhado para os lados, como quem teme que haja
ouvidos estranhos à escuta.
– O criminoso é a casa.” (p. 88)

Está colocado aí, emblematicamente, o próprio destino de


Facundo, como vítima da casa assassina, que será dramaticamente
deslanchado na partes seguintes, 3, 4 e 5. Morre Baker, cujo cadáver
é encontrado no lago de Aldenhan House. Põe-se em prática a teoria
de Facundo e ele, naturalmente, é o culpado ideal. O autor do crime
na imaginação torna-se o principal suspeito. E, orgulhosamente, re-
cusa-se a defender-se.
O romance vai num crescendo de suspense e chegamos ao jul-
gamento de Facundo que, ao ser chamado para depor, significativa-
mente vê bloqueado o seu entendimento da língua inglesa (ou orgu-
lhosamente recusa-se a falá-la, o texto deixa isso ambíguo).
Nessa altura, novo e sinistro personagem, antes apenas men-
cionado, como personagem constante dos pesadelos de Facundo, entra
em cena: o Filinto Müller paraguaio, Emiliano Rivarola, chefe de
polícia, transformado em embaixador para melhor acompanhar o caso
do assassino de Aldenhan House. Rivarola, no dizer do fino jurista
inglês, que a chamado de Isobel vai defender Facundo, é uma “estra-
nha mistura de pessoa inteligente, astuta, até certo preparo, e do mais
puro homem de Neandertal”.
Rivarola tudo faz para amargar a vida de Facundo, inclusive
interceptar a correspondência que ele envia aos pais, no Paraguai. E
decepciona-se quando, subitamente, no tribunal, desfaz-se a trama
policial com a descoberta de que Baker morrera de um ataque cardí-
aco, tendo sido jogado no lago, provavelmente por Facundo mesmo
(o livro não afirma isso diretamente e o paraguaio nunca o confessa),
mas já depois de morto, só para compor a cena comprobatória da sua
teoria e consumar de todo o crime de Aldenhan House.

44
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

Facundo também escrevera uma novelinha, no dizer de


Rivarola, “uma espécie de história da guerra do Paraguai em forma
de romance policial montado pelos ingleses. Os ingleses teriam es-
crito a guerra – afinado à moda deles o piano paraguaio – antes dela
acontecer [...]”. Leitor do romance policial inglês, Facundo lê a his-
tória da Inglaterra à luz desse gênero narrativo considerado menor e
a reescreve parodiando-o e aí incluindo, como parte dessa história, o
capítulo da história do Paraguai que inviabilizou o projeto da pátria
Guarani, idealizado por Francia.
Os métodos políticos do imperialismo inglês seriam para
Facundo os mesmos do romance policial. Essa a teoria que vemos
esboçar-se desde o início do romance. Quando Perseu examina a es-
crivaninha do defunto Baker, sobre a qual há muitos livros falando
de crimes e enforcamentos, parece comprovar-se também a mania
dos ingleses pelo gênero. Segundo Sir Cedric, o incansável advoga-
do, protetor de Isobel, Rivarola também compartilha da mania de
Facundo e Baker por essa “literatura menor” que acaba amarrando o
destino dessas três personagens-chaves da história de Callado e da
história das relações Inglaterra-América-Latina.
Libertado Facundo, que é apenas multado pelo estorvo ou
nuisance de toda a encenação que armou para escrever, também ele,
por seu lado, o reverso da guerra do Paraguai, concretizando a histó-
ria do crime da casa assassina, parece terminado o romance policial.
Páginas adiante, é deslindado o último mistério, num diálogo acon-
tecido já na parte 6 entre Perseu e William Monygham, num restau-
rante de Paris: trata-se de saber por que rebaixaram nessa sentença
“nuisance” o crime heróico de Facundo e o modo como ele desafiou
a lei inglesa. A resposta, uma vez mais, desarma toda a trama e se
revela muito simples: na lógica do poder não há lugar para mártires.
É preciso banalizar o ato que se queria heróico em simples estorvo,
ação impertinente e menor de um pobre diabo subdesenvolvido5.
5
Poucos anos depois do aparecimento do romance de Callado, Chico Buarque de
Hollanda retomaria essa imagem da pobreza incômoda nos enclaves de civilização
deste nosso mundo bárbaro, num livro chamado justamente Estorvo.

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Antes de partirem para Paris e de lá virem a se encontrar de


novo com Perseu e Miguel Busch, Isobel e Facundo tentaram es-
quecer o pesadelo de Aldenhan House, vivendo na província ingle-
sa, na terra das irmãs Bronte, aí respirando a doce atmosfera campes-
tre, reeditando os clichês apaziguadores da tradição idílica. Mas tal
atmosfera, se podia trazer a ilusão da reconquista da infância perdida
a Isobel, não acalmava Facundo. O fim da guerra, aproximando-se,
os alemães deixando a França, abre a oportunidade para que este vá
trabalhar em programas especiais para a América Latina, feitos em
Paris. Novo breve intervalo de calma para Isobel. Mas novos planos
brotam da cabeça visionária de Facundo, agora apoiados pelo boli-
viano, Miguel Busch, que já aparecera no início do romance e reapa-
rece nesse momento para tramarem a união da Bolívia e do Paraguai
contra o imperialismo, a superação dos nacionalismos mesquinhos, a
reversão da guerra do Chaco. Planos aparentemente mirabolantes e
inofensivos, mas que vão se revelar comprometedores na 7a. e última
parte do romance, quando Facundo, já de volta ao Paraguai, é acusa-
do de conspirar contra a pátria, ter matado um amigo e companheiro
de cela (que, na verdade se enforcara, quando da sua primeira pri-
são) e novamente acusado do crime contra Baker, crime que é reavi-
vado pelo falso testemunho de um falso jardineiro inglês.
Quando chegamos à página 233 do romance, lemos, destaca-
do numa linha só: “Acabou o romance policial”. Já sabíamos que
Baker morrera do coração e já sabíamos que Monygham não tinha
nada de misterioso, nenhum segredo a guardar sobre a liberação de
Facundo. Mas temos ainda 70 páginas pela frente. O suspense agora
coloca-se para o leitor na seguinte pergunta: como vai sustentar-se o
romance daqui para a frente? Pois é a partir daí que começamos a nos
defrontar com o verdadeiro romance policial, mas não mais a racio-
nal trama do detetive e das pistas que desafiam e convidam à decifra-
ção. Estamos mais próximos agora do “roman noir americano”, com
a atordoante sequência de ações em que se confundem mocinhos e
bandidos, a lei e o crime. Pior ainda, estamos diante do romance de
crime mais grotesco. Da paródia do romance inglês. Da produção de

46
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

crimes e cadáveres como encenação das autoridades que querem li-


vrar-se dos incômodos heróis e, em sua memória, não permitem que
se erga nem sequer uma sepultura, para evitar o risco de romarias.
Outros métodos, mais bárbaros e primitivos, mais descarados e ab-
surdos, mas os mesmos fins de borrar da história os heróis e os már-
tires. É a história na Américalatíndia, repetindo-se como farsa:

“ – Vocês estão mesmo convencidos de que eles querem montar


uma farsa de Aldenhan House para culpar Facundo? Representar
tudo de novo, só que em termos de circo, de troça? Enlouquecer a
gente repetindo, num outro tom, jocoso e ameaçador, o que já acon-
teceu e já acabou, ou devia ter acabado?” (p. 252)

Um leitmotiv que perpassa o livro todo, a princípio hermético


e indecifrável, mas que pouco a pouco vai-se adensando e se esclare-
cendo, é o chambre vermelho que foi arrancado do chefe da guerra
pelo lado paraguaio, Solano López, e exibido no museu histórico do
Rio de Janeiro. A princípio é uma imagem indecisa que acalma Perseu,
sem ele mesmo saber por que e se projeta no oceano, logo depois de
uma discussão sua com Facundo, ainda a bordo do navio que os leva-
va à Inglaterra, o Pardo: “uma mancha vermelha que surgia diante
de seus olhos, um pano vermelho, com fios dourados, que agora, por
exemplo, se erguia sobre o mar como se fosse desfraldado e carrega-
do pela escolta de peixes-voadores” (p. 22). Depois da primeira vez
que Facundo lembra o nome de Francia essa imagem começa a
explicitar-se: “Ele descobrira, de repente, que pano vermelho era aque-
le, surgido diante dos seus olhos, com bordados de ouro, carregado
pelos peixes-voadores acima da esteira do navio: era um roupão, um
robe de chambre de homem, cuja virtude era fazer com que ele ficas-
se extremamente tolerante em relação a Facundo Rodríguez” (p. 26).
O roupão vermelho, como sangue, é o emblema da eterna guer-
ra em que Facundo combate. Uma guerra que se renova, sempre com
o mesmo inimigo e os mesmos heróis. Assim, o comandante morto
pelo avião inimigo, na guerra do Chaco, também veste o mesmo rou-

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CHIAPPINI, Ligia. A CASA ASSASSINA OU A INGLATERRA VISTA DA AMERICALATÍNDIA

pão de sangue nos pesadelos que acompanham os dias e as noites de


Facundo e que o impedem de esquecer a guerra sempre perdida:

“ – Vejam, senhores, o truque extraordinário, o milagre! – o mes-


mo roupão vermelho, que virou deboche, prêmio, troféu de cam-
peonato num museu do Rio de Janeiro.” (p. 31)

O tal roupão que Perseu descobrira na infância e de cuja exis-


tência dera ciência a Facundo num dos seus primeiros diálogos a
bordo do Pardo, vai fazer parte dos pesadelos do paraguaio daí para
a frente. A obsessão o persegue até na sua volta ao Paraguai.
Ironizando, Rivarola vai dizer que Facundo quer fazer uma nova
Guerra do Paraguai só para ter de volta um roupão.
Pois é o roupão com sua cor de sangue que vai vestir Facundo
na prisão, tornando a tragédia em farsa e o herói em palhaço, porque
a arma talvez mais eficiente para vencer um herói-mártir é ridiculari-
zá-lo.
Depois disso, Facundo é libertado, mas com o assassinato da
falsa testemunha pela polícia, arma-se novamente e, agora, definiti-
vamente a farsa que vai precipitar o seu fim. O mesmo quadro: o
inglês (o falso jardineiro) cujo cadáver aparece jogado no rio, na mes-
ma posição de Baker. Quadro encenado com perfeição, não faltando
a foto-montagem de Facundo com o chantagista, sua pretensa nova
vítima, estampada no jornal. Fuga, asilo na embaixada com auxílio
de Isobel e amigos. Nada disso lhe vale, porque o desejo de restaurar
a verdade impele o paraguaio ao último gesto heróico: redigir e pu-
blicar no jornal da oposição a sua versão da história, o que acaba
levando-o e ao jornalista seu amigo novamente à prisão e à morte,
também encenada como suicídio, o que só ficamos sabendo no epílo-
go. É ainda o epílogo que nos conta a morte de Isobel e o cumpri-
mento de sua última vontade por Sir Cedric que, ironicamente, junta
suas cinzas às de Facundo com a ajuda de... Rivarola.
Assim, a história chega ao fim, escrita dentro dos muros de
uma prisão, desta vez, no Brasil, onde se encontra Perseu, vítima da

48
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

velha-nova repressão que se abateu uma vez mais sobre os comu-


nistas.
Mas ela continua a ressoar na nossa memória, cruzando-se
com outra a que o romance não cessa de aludir: a história de Finnegans
Wake. Como se sabe, esse livro, extremamente sofisticado, narra o
sonho de Humphrey Chimpden Eawicker, taberneiro em Dublin.
Nele o taberneiro vive o remorso de um crime em que é algoz e víti-
ma. A história, porém, tem uma dimensão cósmica. Esse herói-anti-
herói acaba morrendo mas renasce das cinzas em sucessivas meta-
morfoses. O tempo é cíclico. Tempo de resistência em tempo de modo
irônico da ficção.
Esse o tempo de Callado que, ao dialogar com um romance
não por acaso irlandês, rememora sua experiência da Inglaterra da
Segunda Guerra Mundial e do Brasil de duas ditaduras e de duas
pós-ditaduras; a experiência dos exilados que se foram e dos que vol-
taram para contar, tentando recuperar um outro da Inglaterra que
Facundo acusa e que talvez esteja muito mais próximo do Paraguai e,
por que não, do Brasil, ou pelo menos de um certo Brasil: aquele
tanto mais visível quanto mais se encena a sua entrada plena na mo-
dernidade pós-moderna.

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IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

ALGURES, ALHURES, NENHURES.


MEDIAÇÕES ENTRE A EUROPA E O BRASIL NA
LITERATURA BRASILEIRA

Flávio Aguiar

I’m wandering
round and round
nowhere to go...
[...]
While my eyes
are looking for
flying saucers
in the sky...

Caetano Veloso,
no exílio em Londres.

Um coração selvagem envolto por um verniz europeu: duran-


te muito tempo esta imagem descreveu, na nossa literatura, o homem
brasileiro e sua condição. O coração era variado: podia ser valente
como o de Cacambo, n’O Uraguai, indômito como o de Peri, n’O
Guarani, ou ainda indomavelmente balofo, como o de Brás Cubas
em suas Memórias póstumas.
Dos dois nativos aqui citados, o que de mais perto correspon-
de ao motivo europeu do bom selvagem é Cacambo, que defronta os
europeus ao invés de se aliar a alguns deles, como Peri. Mas no con-

51
AGUIAR, FLÁVIO. ALGURES, ALHURES, NENHURES. MEDIAÇÕES ENTRE A EUROPA...

fronto, argumenta como um político, um “homem comum”, apelan-


do para o bom senso e o bem público, antes de passar à guerra, como
quer o radical Cepé. Explica a Gomes Freire, encarregado da ques-
tão fronteiriça entre Portugal e Espanha, que a Coroa lusitana erra ao
querer trocar as terras de Sacramento pelas dos Sete Povos, o que
implica a expulsão dos jesuítas e dos nativos reduzidos. As terras
missioneiras, sem o trabalho dos nativos, de nada valem, explica ele.
Parece o Padre Vieira, um século antes, argumentando que Portugal
deve dar Pernambuco à Holanda em troca da paz, pois os holandeses
detêm Angola neste momento, e Pernambuco sem Angola (isto é,
sem escravos) não vale muita coisa... Cacambo é selvagem, e assim se
bate e cumpre seu destino trágico, mas pensa e fala muito mais como
se fora representante do Terceiro Estado.
Pode-se discutir à larga se Peri tem um coração português num
corpo de selvagem, ou um coração de selvagem numa armadura
medieval, pela intervenção dos ideais do amor cortês, reconsagrados
pelo romance histórico, no estilo de Sir Walter Scott no Ivanhoé.
Mas é com O Guarani que se delineia com clareza meridiana, no
projeto de criar uma literatura que expresse a cultura e a civilização
brasileiras, que estas têm apenas uma parte de suas raízes na Europa
e que são e devem ser mestiças. A civilização brasileira, depois da
catástrofe da casa de D. Antonio de Mariz, que simboliza o impasse
do império português, nasce do interior para o litoral, pelo casamen-
to do mito de Tamandaré com o de Noé. Ela (a civilização) não ape-
nas nasce na nova terra, mas da nova terra. E deve comportar em si
tanto a construção da cultura como a contemplação da natureza ma-
jestosa. Melhor do que Peri, que é um personagem bastante artifi-
cial, é Ceci que catalisa esse movimento de reconciliar natureza e
cultura, ao superar as afetações de menina cortesã e fazer-se mulher
americana, nas páginas finais do romance. Como quase sempre, as
mulheres de Alencar são bem mais interessantes do que os homens,
com exceção talvez de alguns vilões, como Loredano, o ex-padre ita-
liano transformado em aventureiro apátrida. Neste pendor pelo fe-

52
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

minino Alencar não fora inteiramente original. Já Moema, do


Caramuru, de Santa Rita Durão, tivera a dedicação de Iracema, em-
bora de modo e com fim diversos. Sepulta a nativa no mar seu amor
acendrado – cujo objeto ia na caravela, ao encontro da civilização
européia, situação que Alencar retoma em seu romance, quando
Martim parte na jangada depois do trespasse da esposa. Mas é esta
que, antes, o seduzira com seus licores misteriosos, revelando-lhe o
que é o amor apaixonado, genuinamente romântico, para além da
adoração cortesã. Confrontado com a gravidez da nativa, Martim se
transforma num guerreiro selvagem, de nome Coatiabo, e dança a
noite inteira, num ritual que, como o encontro de Ceci e de Peri,
redefine o rumo da história. Nem esse rumo nem o guerreiro serão
mais os mesmos. Estranho a si próprio, Martim contempla agora as
palmeiras e as praias da nova terra com essa nostalgia de um passado
mítico que o desterra, na alma, do presente e do futuro. Moacir, o
filho da dor, que Alencar descreve como sendo o primeiro cearense,
redime a dura sorte dos mestiços em outras criações, como a Marabá,
de Gonçalves Dias, a Isabel de O Guarani, até mesmo o Calabar, da
peça homônima de Agrário de Meneses. Os exemplos dessas perso-
nagens situam em dois planos os confrontos entre as terras brasileiras
e os empreendimentos civilizatórios europeus. Ao tempo da literatu-
ra colonial, esse confronto era predominantemente visto num plano
sincrônico. Era um confronto de duas culturas, estranhas uma à ou-
tra, uma cristã e outra pagã, uma civilizada e outra bárbara. Esse
confronto vai-se deslocando progressivamente no espaço. Ao tempo
de Anchieta, o confronto se dá em bloco entre a civilização cristã,
metropolitana, e a gentilidade da nova terra. Há, é claro, bons e maus
de um lado e outro, mas o bom nativo é o cristão, e o mau branco é
o que se desregra como os nativos, submetendo-se aos próprios
apetites. Ao tempo de Vieira, estabelecida a cultura metropolitana
na faixa litorânea ou em suas cercanias, nas cidades e nos enge-
nhos, o confronto vai se deslocando para o sertam, interiorano e
bravio, onde residem as tribos não reduzidas, com suas línguas bár-

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AGUIAR, FLÁVIO. ALGURES, ALHURES, NENHURES. MEDIAÇÕES ENTRE A EUROPA...

baras e seus costumes estranhos, sua plasticidade notável para rece-


ber o ensinamento e para esquecê-lo a seguir. Para a geração ilus-
trada ele se desloca mais ainda, para o passado, como no caso de
Caramuru, ou para os confins do Império, visto sob o ângulo de
uma questão de fronteiras, como no caso de O Uraguai. Mas ao
mesmo tempo em que se dão estes deslocamentos, o empreendi-
mento civilizatório europeu começa a se apresentar padecente de
um mal-estar contínuo e congênito, transpondo para a nova terra,
além das instituições e da religião, seus problemas e diferenças. São
testemunho desse mal as guerras religiosas e comerciais com
calvinistas e holandeses, os maus tratos dispensados aos escravos
africanos e o apresamento ilegal dos nativos, o estabelecimento de
comerciantes inescrupulosos que ameaçam ou deslocam a antiga
fidalguia e seus valores (como o sagaz brichote, de Gregório de
Matos), e a oportunidade para os desmandos tirânicos criada pela
distância da metrópole, como no caso de Fanfarrão Minésio, nas
Cartas chilenas. Invertendo os termos de Vieira, Basílio acrescenta-
rá ainda a este quadro a demonização dos jesuítas, que corrompem
os nativos com seu projeto de império temporal.
Por vezes, a antiga terra e seus valores aparecem como pontos
de um equilíbrio desejado mas não mais possível. A Corte e a fidalguia
de Lisboa são, para Vieira, atacadas pelo verme da corrupção e do
descaso. Cláudio Manoel da Costa canta o Ribeirão do Carmo e a
cobiça aurífera, enquanto tem saudades das margens ensombreadas
dos distantes rios da Europa, onde o poeta encontraria o verdadeiro
refúgio para sua alma que é, agora, além de atormentada, desterrada.
Esse mal-estar da civilização se amplia nas gerações românti-
cas, mas o consolo metafísico (pois se trata de buscar o verdadeiro
ser, que se oculta na natureza) vem de outra parte, ou de outro modo.
Em primeiro lugar, os românticos situam o confronto entre os mun-
dos selvagem e civilizado num plano diacrônico. O mal-estar da civi-
lização vem de que ela traz consigo marcas indeléveis de sua passada
barbárie. A civilização que vem da Europa recusa-se a ser civilizada.

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IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

Agrilhoando a nova terra ao tronco da escravidão e desatando as cor-


rentes da cobiça e da luxúria desabridas (imagem que ainda ecoará
em Retrato do Brasil, de Paulo Prado, em 1928), a condição colonial
emperra o empreendimento civilizatório propriamente dito, que se-
ria realizado se a Europa nos enviasse apenas o proceder sisudo e
grave de D. Antonio de Mariz ou a dedicação dos missionários. Para
retomar os caminhos desse empreendimento é necessário remontar
às origens, a uma visão direta da natureza e da natureza humana
contra o seu pano de fundo (seguindo aliás um modelo aberto pelos
românticos europeus), e de certo modo começar tudo de novo. É
diante do vasto horizonte, na eminência onde vai construir sua casa,
que D. Antonio jura permanecer português, e esse juramento se dá
“sobre o altar da natureza, em face do sol que transmontava”. A des-
lealdade vem para o sertão do litoral, trazida pela cobiça dos aventu-
reiros e de Loredano. O aimoré é bruto e repulsivo, mas não é desle-
al; é um caso de involução humana – como será mais tarde, embora
visto de modo mais simpático, o jagunço de Euclides da Cunha.
Para vencer a deslealdade devem se buscar as forças arcanas,
ou fontes, da alma humana, que se deixam ver, por exemplo, na poe-
sia. Mas esta só se descobre no contato íntimo com a natureza. Nes-
sas origens buscadas pela palavra poética há violência. Na natureza
brasileira “a beleza e a graça” alteram-se com os “dramas terríveis” e
os “monstros repulsivos”. Mas há aí um segredo a contemplar, uma
energia primeva a recuperar, que só está ao alcance da alma que en-
frenta o deserto e o abismo; só assim se começará, em terras da Amé-
rica, a remissão civilizatória, que compreende a remissão da própria
civilização. Para os românticos, não se poderia ficar apenas no retor-
no ou na contemplação das origens. Daí deve-se voltar vertiginosa-
mente ao tempo presente. Caso contrário, ficaríamos na condição do
aimoré, feroz e bruta. Se a Europa nos deu o mal-estar da civilização,
ela também nos deu os modelos e as instituições a seguir, entre elas a
da língua. Esse fixar-se nos modelos europeus deve ser inseminado,
por assim dizer, pela consciência da origem diversa. Sem essa cons-

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AGUIAR, FLÁVIO. ALGURES, ALHURES, NENHURES. MEDIAÇÕES ENTRE A EUROPA...

ciência não há amor da pátria, e sem esse amor sairíamos da condição


de bruto para a de cópia ou fantoche, como são o Azevedo, de O
demônio familiar, e Pedro, o escravo da peça, que imitam, respecti-
vamente, o dandi francês e o Fígaro de O Barbeiro de Sevilha. Na
viagem de volta ao presente não se chega exatamente no mesmo lu-
gar da civilização européia, mas ao lado. E o modelo que nos espera
no futuro é sobretudo o da civilização à francesa. A Europa torna-se
ao mesmo tempo ponto de partida da catástrofe que nos joga de en-
contro ao mal-estar da civilização, e modelo para o futuro, com suas
instituições modernas. A esse futuro devemos acorrer com a cons-
ciência de nossa origem diversificada, que é, na verdade, o que nos
permitirá alcançá-lo, com uma convivência equilibrada entre nature-
za e cultura.
A estrutura desse padrão romântico, com acréscimos e revi-
sões, subsistiu e ainda está presente entre nós, brasileiros deste novo
século. Veja-se, por exemplo, para se considerar não só a literatura, a
ânsia atual dos políticos, governistas e oposicionistas de diversos
matizes e com nuances, de levar o Brasil ao Primeiro mundo, como
se aquele fora um pacote ou uma espécie de caravela que se pudesse
arrastar de um lado para o outro, e este a linha de chegada de uma
competição olímpica, onde ganharíamos a medalha do mérito civili-
zatório.
Ainda no século passado, a geração realista, povoada de ideais
e de reformadores positivistas, relativizou muito o sentido remissor
da raiz nativa ou natural, tomada que é aquela geração por uma re-
pugnância mal disfarçada ou escancarada pela mestiçagem da nossa
condição. Mas não anulará a importância de contemplá-la, para que
se compreendam os males e as latentes potencialidades do país. A
rocha viva da nacionalidade, para Euclides da Cunha, numa imagem
que remonta ao sebastianismo e ao Livro de Daniel, é ainda o serta-
nejo em sua condição de vida íntima com a natureza que lhe é, ao
mesmo tempo, mãe acolhedora e virago ameaçadora, padrão que o
regionalismo reproduzirá, com variações, até à exaustão.

56
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

Noutro extremo desse espectro, o douto, pedante e desossa-


do Brás Cubas não deixa de ver a realização de seu amor com Virgília
como o brotar de uma planta, “com tal ímpeto e tanta seiva, que,
dentro em pouco, era a mais vasta, folhuda e exuberante criatura
dos bosques” o que, se é ironia fálica, é ainda revivescência de uma
retórica romântica. Premido pela condição do adultério e pelo vago
ciúme que ele mesmo sente em relação a Lobo Neves, o marido
traído, Brás Cubas vê na roça, que lhe é estranha, e na Europa, que
lhe dera o verniz de bacharelado, os refúgios possíveis para come-
çar uma outra vida. Mas essa esperança se desvanece logo e com
ela o desejo. Brás Cubas termina mesmo na escusa casa da Gamboa
que não é nem na roça, nem na cidade propriamente dita (isto é,
não se dá ao reconhecimento público), nem na Europa. Não é al-
gures, nem alhures; é nenhures, embora seja “um brinco”. E o per-
sonagem ainda fica feliz quando uma distante guerra civil na
Dalmácia européia afasta da cena um diplomata rival nas preferên-
cias da senhora. A partir do Modernismo, sobretudo, se ampliam
muito as fontes reconhecidas como pertencentes à nossa cultura,
bem como os modelos civilizatórios e a crítica da sociedade brasi-
leira e da civilização como um todo. O modelo norte-americano
empata com o europeu; por vezes, no senso comum, o supera, pois
a Europa se torna o palco de guerras intermináveis e de totalitaris-
mos vicejantes. É necessário reconhecer, porém, que para muitos
de nossos compatriotas esses totalitarismos é que são o modelo a
seguir... A esquerda introduz entre os modelos o projeto comunis-
ta. O negro e o imigrante passam a ser parte mais íntima da nacio-
nalidade emergente. A consciência de se ser parte da América La-
tina desperta mais vigorosamente, e virá crescendo até hoje. Ao
mesmo tempo,os brasileiros começam também a tomar parte mais
ativa nos dramas europeus. A poesia, que já cantara, com Castro
Alves, os movimentos libertários e republicanos d’aquém e d’além
mar, visita agora o túmulo de Lorca e as ruas de Stalingrado. Saga,
de Érico Veríssimo, nos leva à guerra civil espanhola, e em seu mo-
numental O tempo e o vento os imigrantes terminam por ter um

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AGUIAR, FLÁVIO. ALGURES, ALHURES, NENHURES. MEDIAÇÕES ENTRE A EUROPA...

papel quase tão importante quanto os protagonistas de raiz mais


antiga, como é o caso do Dr. Carl Winters e do anarquista espanhol
que fica em Santa Fé. Mais tarde, Guerra em surdina, de Bóris
Schnaiderman, só para dar um exemplo, nos levará às ações da FEB
na Itália.
Os tempos de exílio, por que muitos passaram entre 1964 e
1980, contribuíram para restabelecer uma leve preferência por terras
européias, enquanto modelo civilizatório, nos escritos brasileiros. Nos
anos anteriores a 64, a esquerda, no papel de protagonista da cena
cultural, se fizera bastante nacionalista, sem ser xenófoba, quanto à
paisagem de seus dramas. Logo após o golpe de 1º de abril, esse viés
permaneceu, mesmo em correntes como a Tropicália, que aceitavam
o “estrangeirismo” das guitarras elétricas. Foram as memórias do
exílio, algumas escritas ainda em sua vigência, que começaram a res-
tabelecer na juventude leitora, fosse a dos novos ou a dos antigos
jovens, o gosto pelo equilíbrio social-democrata manifesto na terra
distante – essa Europa – um mundo desenvolvido mas aparente-
mente desdentado de seus antigos imperialismos, engolfado que fora
num maior. Enquanto isso, o parceiro comunista merecia dessas no-
vas gerações uma crítica bastante acentuada, e foi, aliás, saindo de
cena até desabar no bastidor.
As últimas décadas da literatura brasileira viram um renascer
de motivos indianistas e do romance histórico, numa retomada da
visão das fontes arcanas de nossa autonomia cultural e literária. Ao
lado disso, ampliaram-se consideravelmente as paisagens de atuação
dos personagens brasileiros. Por isso quero encerrar essa vertiginosa
viagem comentada com algumas observações sobre uma obra que
reúne em si essas tendências todas: O Selvagem da Ópera, de Ru-
bem Fonseca, publicado em 1995, e que retoma os temas (e os acor-
des...) de O Guarani.
O narrador da biografia de Carlos Gomes discute continua-
mente a forma do romance, querendo “atualizá-la”, fazendo dela um
“texto básico” para o cinema. Isto implica buscar uma maior objetivi-

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IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

dade descritiva para a linguagem romanesca, muito ao gosto já mani-


festo pelo autor em outras criações, inspirado que é pelo jornalismo
norte-americano e o roman noir detetivesco.
O jogo Brasil-Europa é o motor do biografado e da biografia.
Carlos Gomes vai à Europa a mando e com a proteção do Imperador,
tanto para se aprimorar como para levar o Brasil para a terra, o cená-
rio e o enredo das óperas, que eram, então, o palco de maior prestígio
no reino da produção cultural. Este objetivo ele o cumpre, pois des-
de logo Il Guarani obtém reconhecimento e sucesso a partir do Scala
de Milão. Mas o drama do romance de Fonseca se baseia no desajuste
que o sucesso da criatura traz para o seu criador, estendendo a este a
frase mefistofélica de Goethe, que Augusto Meyer já citara a propó-
sito da relação entre Machado e Brás Cubas:

Am Ende hängen wir doch ab


Die Kreaturen, die wir machten
(Afinal nós acabamos dependendo
das criaturas que criamos)

O civilizado Carlos Gomes, da aristocrática Campinas, que


passa pela Corte e vai para Milão, toma como inspiração a vida selva-
gem de antanho, re-criada pelos românticos. Mas nesta transmigração
no espaço e no tempo torna-se ele mesmo questo selvaggio elegante e
capriccioso, [...] uno dei più onesti e generosi caratteri ch’io abbia
mai conosciuti, conforme a frase citada em epígrafe de Antonio
Ghislanzoni, um dos libretistas que trabalham com o maestro. Acres-
centa que a mão que este estende é a de um gentiluomo, enquanto o
coração é esuberante di tenerezza e di ogni sentimento gentile. Ou
seja, o homem é um verniz europeu povoado por um coração que
guarda contato com aquilo que, para a sofisticada civilização burgue-
sa em andamento, é já algo remoto. No romance (cuja insistência em
se aproximar do cinema lembra a de Carlos Gomes em se aproximar
da ópera) Carlos Gomes é um herói romântico, representando uma
pátria meio tosca, um império escravocrata, numa Europa ao mesmo

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AGUIAR, FLÁVIO. ALGURES, ALHURES, NENHURES. MEDIAÇÕES ENTRE A EUROPA...

tempo liberal e presa da restauração, onde a ópera é cada vez mais


presa do cálculo, do acordo, do lucro e das rivalidades entre as potên-
cias que levam às conquistas neocoloniais do XIX e aos desastres do
XX.
Diante das vaias que caem sobre o Lohengrin de Wagner, em
Milão, o Carlos Gomes de Fonseca pensa, em discurso indireto: “Não
tem dúvidas de que aquele rancor contra Wagner nada tem a ver com
a música, e sim com o fato dele ser alemão. Sente-se mais do que
nunca um estrangeiro, pior do que isto, um bugre, um selvagem no
meio de civilizados [...]. Ele, Gomes, é aturado, com condescendên-
cia, por ser um animal exótico” (p. 108).
O descentramento roerá sua alma até o fim, e seu corpo, de-
pois da morte. O cadáver, depois dos estertores da agonia em Belém,
na rede, é composto em cena patriótica, na cama, para a foto que
imortalizará o respeito dos brasileiros por seu herói civilizatório...
Se a Europa aparece no romance como a arena onde se perde a
fera, também aparece como a moldura onde sua memória conserva
mais nítida, pois lá não se destrói a história como cá. A Milão de
Carlos Gomes, afirma o narrador, ainda existe, com “ruas e praças
inteiras sem uma casa demolida”. Reserva ele palavras acres para des-
crever o descaso nosso pelo patrimônio histórico.
Simbolicamente, o romance termina não com a morte de Carlos,
mas com o suicídio de seu amigo, o engenheiro André Rebouças, na
Ilha da Madeira, onde se exilara desde a queda do Império.
Nem cá nem exatamente lá, prisioneiro de uma viagem que
não tem fim, entre um continente e outro, Rebouças e sua morte
entre as pedras simbolizam a consciência dos novos impasses que se
põem para a nossa literatura. A civilização que era nosso modelo está
em crise, tomada por um mal-estar que atinge proporções universais.
Os modelos ideológicos que encantavam gerações estão em escom-
bros ou no estaleiro, em conserto, como é o caso da própria Europa
social-democrata que fora refúgio para os exilados brasileiros. O que

60
IMAGENS DA EUROPA NA LITERATURA BRASILEIRA

se reconhecia como fonte arcana, a natureza, está cada vez mais cer-
cada por uma civilização que a agride e com isso a si própria. O
mundo dito primeiro voltou em parte, ainda que em sua franja, a ser
palco de guerras intermináveis e de extermínio. O futuro foge dos
pés de todos, a viagem começada parece perder a visão de seu come-
ço, sem ter visível qualquer fim.
A estrutura ainda está de pé, mas parece não ter ponto de apoio.
Flutua, à deriva.
A literatura, com sua palavra de resgate, mantém-nos de certo
modo, pelo menos com o objetivo de permanecer à tona e de quem
sabe arribar a alguma parte. Mais ou menos como dizia Isidoro de
Sevilha a propósito da fé:

“Sirva de exemplo o que se diz de uma árvore jovem: sua copa, se


dobrada, quando solta, volta à posição original.” (Sentenças, II, 4)

Para que, esperemos, além das antigas se enraízem novas dire-


ções.

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NOTA DO EDITOR

Ficha técnica

Mancha 10,5 x 18,5 cm


Formato 14 x 21 cm
Tipologia CaslonOldFace Bt 12 e Belwe 18
Papel miolo: off-set 75 g/m2
capa: cartão branco 180 g/m2
Impressão e acabamento GRÁFICA DA FFLCH/USP
Número de páginas 64
Tiragem 500 exemplares

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NOTA DO EDITOR

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