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A aura da ironia (I) — explicarem que as pessoas estão sempre mais vulneráveis, portanto
assustadas, logo passíveis de persuasão, quando são abordadas
A cultura popular americana é exatamente igual à cultura americana capazes de distinguir os indivíduos da multidão são vendidos para
séria num aspecto: sua tensão central sempre se deu entre a nobreza imensas multidões de indivíduos), esses anúncios não são, na verdade,
do individualismo e o calor do sentimento comunitário. Em seus mais complicados ou sutis do que os velhos comerciais do tipo Entre-
primeiros vinte anos, parecia que a televisão buscava apelar para-o-Grupo-Feliz que hoje parecem tão antiquados. Contudo, a
sobretudo para o lado grupal dessa equação. Comunidades e laços relação do gênero Seja-Diferente-da-Manada com sua massa de
eram exaltados na infância da TV, embora a própria TV, e espectadores solitários é mais complexa e mais engenhosa. Os
especialmente sua publicidade, tenham desde o início se dirigido ao melhores comerciais da atualidade ainda são centrados no Grupo, mas
espectador solitário, João Bobão, de forma isolada. (Os anúncios agora o apresentam como uma coisa temível, algo que pode engoli-lo,
televisivos sempre apelam a indivíduos, não a grupos, um fato que anulá-lo, impedi-lo de “ser notado”. Mas notado por quem? As
parece curioso à luz do tamanho sem precedentes do público multidões ainda têm importância vital nas teses sobre identidade dos
telespectador – mas só até ouvirmos vendedores talentosos comerciais individualistas, mas hoje a multidão de um determinado
anúncio, longe de ser mais atraente, segura e vivaz do que o indivíduo,
funciona como uma massa de olhos idênticos e sem personalidade. A
multidão é hoje, paradoxalmente, tanto (1) a “manada” em contraste
com a qual a identidade distintiva do telespectador deve ser definida redes quanto para suas afiliadas locais. Isso é mais verdadeiro ainda
quanto (2) o grupo de testemunhas cujo olhar, e só ele, pode lhe quando o espectador está armado com uma engenhoca de controle
conferir tal identidade distintiva. O isolamento do espectador solitário remoto: João B. ainda consome suas seis horas totais de televisão por
diante de sua mobília é implicitamente aplaudido – é melhor e mais dia, mas o tempo que suas retinas dedicam a cada opção encolhe, pois
real, insinuam esses anúncios solipsistas, seguir em voo solo – e ao ele cobre remotamente um espectro muito mais amplo. Pior ainda, o
mesmo tempo tem implicações ameaçadoras, confusas, pois no fim das gravador de vídeo, com suas temíveis funções de avanço e zap,
contas João Bobão não é um idiota que, sentado ali, ignore ser ameaça a própria viabilidade dos comerciais. A solução inteiramente
culpado, como espectador, dos dois graves pecados que o anúncio sensata dos publicitários? Torne os anúncios tão atraentes quanto os
condena: ser um observador passivo (da TV) e fazer parte de uma programas. Ou pelo menos tente evitar que João B. desgoste tanto dos
grande manada (de telespectadores e compradores de produtos Seja- comerciais que sinta vontade de mover seu dedão e conferir dois
Diferente-da-Multidão). Tudo muito estranho. minutos e meio de Hazel no Superstation enquanto a NBC vende um
protetor labial. Faça anúncios mais bonitos, mais animados e cheios de
Na superfície, os comerciais Seja-Diferente ainda apresentam o suficiente informação visual rapidamente justaposta para que a
recado “compre isto” em estado relativamente puro, mas a mensagem atenção de João não chegue a se perder, mesmo que ele corte o
profunda da televisão no que diz respeito a esses anúncios parece ser volume. Como diz eufemisticamente um executivo publicitário: “Os
a de que o estatuto ontológico de João Bobão como mais um na massa comerciais estão ficando mais parecidos com os filmes de
reativa de espectadores é, em algum nível primordial, periclitante e entretenimento”.
contingente, e que a verdadeira realização do ser consistiria em
última análise na transformação de João numa daquelas imagens que Existe uma forma inversa, claro, de tornar os comerciais parecidos
são objetos da audiência de massa. Ou seja, o verdadeiro discurso da com os programas. Faça os programas se assemelharem a comerciais.
televisão nesses comerciais é o de que é melhor estar dentro da TV do Dessa forma os anúncios parecem menos interrupções do que
que do lado de fora, assistindo. marcadores de ritmo, metrônomos, comentários sobre a teoria da
atração principal. Invente um Miami Vice, em que há bem pouca
Isso quer dizer que a nobreza solitária do Seja-Único não se limita a trama para irritar e distrair, mas uma ênfase sem precedente na
vender produtos. Ela é capaz de garantir de forma brilhante – mesmo aparência, no visual, na atitude, num certo “estilo”. Faça videoclipes
em comerciais que a TV cobra para veicular – que no fim das contas com a mesma levada anfetamínica e as mesmas associações
seja a própria TV, e não qualquer produto ou serviço específico, que arquetípicas oníricas dos comerciais – ajuda bastante o fato de
João Bobão tomará como árbitro definitivo do valor humano. Um videoclipes serem basicamente longos anúncios musicais, de qualquer
oráculo que deve ser consultado sem parar. O estudioso de forma. Ou inaugure um híbrido de informação e publicidade bancado
publicidade Mark C. Miller formula isso de forma sucinta: “A televisão pelo patrocinador que finja ser, de forma despretensiosa, um
foi além da celebração explícita das mercadorias para promover o noticiário leve, como Amazing Discoveries ou aquelas reportagens
reforço implícito da postura de espectador que exige de nós”. sobre queda de cabelo apresentadas por Robert Vaughn que
Anúncios solipsísticos são uma das formas pelas quais a TV acaba por assombram as horas mortas da TV. Apague – exatamente como fez a
apontar para si mesma, mantendo ao mesmo tempo alienada e literatura pós-moderna – as linhas divisórias entre gêneros, interesses,
dependente a relação do espectador com sua mobília. arte comercial e comercial artístico.
No entanto, talvez a relação do espectador contemporâneo com a No entanto, a televisão e seus patrocinadores tinham uma
televisão contemporânea seja menos um paradigma de infantilismo e preocupação de longo prazo ainda maior: suas delicadas relações
vício do que da familiar postura dos Estados Unidos diante de toda diplomáticas com o psiquismo do espectador individual. Como a
tecnologia, que equiparamos a liberdade e poder e, ao mesmo tempo, televisão precisa girar em torno das contradições básicas do ser e do
a escravidão e caos. Porque, assim como ocorre com a televisão, assistir, da fuga da vida cotidiana, o espectador medianamente
podemos adorar pessoalmente a tecnologia, odiá-la, tême-la ou todas inteligente não tem como ficar lá muito feliz com sua vida cotidiana e
as alternativas acima, mas ainda é a ela que recorremos sem cessar seus altos teores de assistência. Talvez João Bobão seja até bem feliz
em busca de soluções para os problemas que a própria tecnologia quando está assistindo, mas é difícil imaginar que se sinta
parece causar – vejam-se p. ex. os catalisadores contra a poluição do terrivelmente feliz por assistir tanto. Com certeza, lá no fundo, João
ar, a “Guerra nas Estrelas” contra os mísseis nucleares, os fica desconfortável por fazer parte da maior multidão da história da
transplantes contra diversos tipos de decadência física. humanidade, vendo imagens que sugerem que o sentido da vida
consiste em se destacar visivelmente da multidão. O ciclo de
Assim como a tecnologia, a Gestalt da televisão também se expande
culpa/complacência/conforto da TV dá conta dessa preocupação num
para absorver todos os problemas a ela associados. As
certo nível. Mas não haveria um jeito mais profundo de manter João
pseudocomunidades de telenovelas do horário nobre como Knots
Bobão firme no meio da multidão de espectadores, associando de
Landing e thirtysomething são confortáveis para o espectador por
alguma forma sua própria assistência à superação dessa multidão de
serem produtos do mesmo meio cuja ambivalência a respeito do Grupo
espectadores? Mas isso seria absurdo. É aí que entra a ironia.
contribui para erodir o sentido de inserção comunitária das pessoas. A
edição sincopada, as frases de efeito dos entrevistados e o tratamento (Continua…)
sumário de questões intrincadas são a forma como o noticiário
televisivo acomoda uma Audiência cujo arco de atenção e apetite pela Leia A aura da ironia (II).
complexidade encolheram um pouco, naturalmente, após anos de
doses maciças de assistência. Etc. Leia A aura da ironia (final).