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Parte I - Raça, ciência e nação na virada do século

4 - Dos males que vêm com o sangue: as representações raciais e a categoria do imigrante indesejável
nas concepções sobre imigração da década de 20

Jair de Souza Ramos

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RAMOS, J. S. Dos males que vêm com o sangue: as representações raciais e a categoria do imigrante
indesejável nas concepções sobre imigração da década de 20. In: MAIO, M.C., and SANTOS, R.V.,
orgs. Raça, ciência e sociedade [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; CCBB, 1996, pp. 59-82.
ISBN: 978-85-7541-517-7. Available from: doi: 10.7476/9788575415177. Also available in ePUB
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DOS MAI£S QUE VÊM COM O SANGUE: AS
REPRESENTAÇÕES RACIAIS E A CATEGORIA
DO IMIGRANTE INDESEJÁVEL NAS
CONCEPÇÕES SOBRE IMIGRAÇÃO DA
DÉCADA DE 20

Jair de Souza Ramos

INTRODUÇÃO

De meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX, a diplomacia


brasileira se esforçou por desenhar um retrato positivo do Brasil junto ao público euro-
peu e, em menor medida, também ao dos E.U.A., por meio de livros, palestras e exposi-
ções, com o objetivo de atrair capitais e imigrantes (Skidmore, 1976:142). Sobretudo a
partir da década de 1890, o objetivo dessa propaganda era trazer trabalhadores suposta-
mente mais aptos que o trabalhador nacional ao regime de trabalho livre que se consoli-
daria com o fim da escravidão (Azevedo, 1987:60).
Este retrato foi predominantemente construído em torno das "riquezas naturais" do
Brasil, mas contemplou também a idéia de que aqui inexistiam conflitos sociais e raciais.
A ausência deste último tipo de conflito foi definida a partir da idéia de que a coloniza-
ção portuguesa se caracterizou pela inexistência de preconceitos raciais, do que a misci-
genação seria o melhor exemplo (Skidmore, 1976:147). E esta visão não foi construída
somente como "artigo de exportação", tendo sido largamente partiihada por intelectuais
e políticos do Império e da Primeira República.
Esta propaganda foi um dos instrumentos de que a República se serviu para atrair
aquelas populações que, na condição de minorias no interior dos estados nacionais cons-
truídos e destruídos desde o século XIX, viviam a experiência das perseguições religio-
sas e étnicas, sendo tangidas de um ponto a outro da Europa por conta das constantes
redefinições de fronteiras e lealdade políticas. Estas pessoas eram atraídas pela perspecti-
va de refazer suas vidas fora da Europa.1 Todavia, as populações européias não foram as
únicas a se sentirem atraídas por estas promessas de paz e trabalho. Estas ofertas seduzi-
ram também os imigrantes japoneses que chegaram ao País nas primeiras décadas do sé-
culo XX e alcançaram ainda alguns jornais e intelectuais negros nos Estados Unidos
(Lesser, 1994:84; Hellwig, 1988:60; Meade & Pírio, 1988:91). Este foi um dos motivos

Em Carcamanos e Comendadores, Mario Careli (1985:23) revela a importância na emigração italiana


dos mecanismos de expulsão a partir das redefinições políticas na Itália. Por outro lado, Willens
(1980:110) mostra o alcance da propaganda na construção da imagem que os imigrantes alemães pos-
suíam do Brasil.
que levou um grupo de afro-americanos a se organizar em uma companhia de coloniza-
ção e entrar em negociações, em 1921, com o então Presidente do Estado do Mato Gros-
so, visando obter terras para a fundação de uma colônia.
Em princípio, a vinda ao Brasil destes imigrantes d
" " e do Japão, patses re-
a Amenca
putados como civilizados e com grande experiência de trabalho livre, deveria encaixar-
se, senão perfeitamente, pelo menos parcialmente, nos objetivos confessados da
propaganda e da política imigratória. Contudo, tanto a realidade da imigração japonesa
quanto a possibilidade da imigração negra receberam severas críticas em função dos su-
postos riscos aos quais o Brasil estava exposto pela falta de controle sobre a entrada de
imigrantes, sobretudo negros e amarelos (Skidmore, 1976).
Qual o fundamento destas criticas. Melhor dizendo, quais fundamentos, para além
da intenção confessa de obter uma mão-de-obra apta ao trabalho livre, das políticas imi-
gr atomas
' brasileiras?
O que parte significativa da literatura sobre imigração no Brasil revela é que a
intenção de obter trabalhadores livres esteve submetida a um critério que poderíamos
chamar provisoriamente por racial - explicaremos mais adiante qual o significado
com que empregaremos o termo - que definiu a preferência pelo imigrante branco e
europeu e a rejeição da imigração das raças não brancas.2 Como nos mostra Seyferth
(1991), desde a lei de terras de 1850 definiu-se o imigrante ideal como "...branco,
camponês, resignado..." ao passo que eram tidas como indesejáveis "as raças atra-
sadãs, não civilizadas e inferiores..." (Seyferth, 1991" 165-166). Com esta observa-
ção, a autora aponta a presença de um cálculo racial na orientação das políticas
.
i mlgratomas
. desde o Império até a metade do século XIX, tanto em relação às áreas
do Sul do País quanto à zona cafeeira de São Paulo (Seyferth, 1991:167). Este cálcu-
lo foi tributário da idéia de caldeamento das raças no sentido da constituição de um
"tipo brasileiro" física e culturalmente homogêneo.3
Em contraposição a esta representação de um imigrante ideal, que aparece de for-
ma recorrente na literatura sobre imigração, gostaríamos de assinalar a existência de uma
outra representação que é a do "imigrante indesejável". Esta representação qualificou
negativamente populações e indivíduos, tendo sido estruturada numa série de critérios
que vão da raça às convicções políticas dos imigrantes, critérios estes que, pelo menos
parcialmente, tentaremos evidenciar neste artigo.4 E ambas as representações, do desejá-
vel e do indesejável, pautaram tanto as políticas públicas de imigração quanto as toma-
das de posição acerca do tema.
Assim, em todo o período da imigração de massa, de 1880 a 1930, creditou-se ao
imigrante branco europeu, com base na teoria do branqueamento, o papel de ingrediente
fundamental na construção de um povo e de uma raça brasileira (Hall, 1969:37), ao mes-

2 Vide Seyferth (1991), Skidmore (1976), Schwarcz (1993) e Azevedo (1987) para citar parte da literatu-
ra.
3 Desse modo, a autora chama a atenção para o fato de que, nos debates sobre imigração, aspectos objeti-
vos, tais como o estabelecimento de colônias de pequenos proprietários ou a substituição do es~ravo pelo
trabalhador livre, foram muitas vezes suplantados pela 6nfase dada ao papel branqueador atribuído ao
imigrante europeu e suas implicações na formação do povo brasileiro (Seyferth, 1991:174).
4 Provavelmente a expressão mais conhecida desta representação seja a primeira lei republicana sobre imi-
gração que proibia a entrada de "indígenas da Ásia ou da África" (Skidmore, 1976:155).
mo tempo em que se supunha prejudicial a entrada de determinados imigrantes no País
Ambas as suposições conformaram as ações do Estado brasileiro no sentido de, por um
lado, incentivar a imigração européia por meio de propaganda no exterior e de benefícios
legais relacionados à posse da terra; por outro, interditar ou restringir a imigração daque-
les povos considerados "raças " ,,
Inferiores 5
Tratava-se aí de ver na mistura dos imigrantes brancos com os mestiços brasileiros
a operação por meio da qual se daria a regeneração da raça, produzindo-se um povo ho-
mogêneo. A entrada de sangue branco e a conseqüente depuração do sangue negro pela
mestiçagem garantiriam, assim, a correçao dos componentes étnicos que fundaram o
Brasil, produzindo um "tipo" racial brasileiro mais eugênico, porque possuidor de
maior quantidade de sangue branco. Esse futuro tipo brasileiro teria como principal vir-
tude fornecer um patamar mais elevado sobre o qual o povo brasileiro construiria sua
unidade racial e cultural, e também6garantir uma evolução futura do país pela melhoria
dos tipos raciais que o compunham.
Este acento sobre a unidade física e cultural que se buscava obter por meio da
imigração européia nos permite dar um primeiro passo para entender o que significa
o termo "raça" nestas concepções que orientaram polmca imigratória.
"
Tem-se chamado a atenção para o fato de queao discurso sociológico e antropológi-
co no século XX foi c onstrmdo por sobre uma separação entre o biológico e o cultural na
explicação dos fenômenos sociais e por uma opção pelo segundo (Ortiz, 1985; Laplanti-
ne, 1991:63). Contudo, como mostra a literatura mais recente, esta separação não se re-
vela tão nítida no que se convencionou chamar "o pensamento social brasileiro" Assim,
Lesser sublinha o fato de que...

...raça, ao menos na primeira metade do século 20, não era meramente um questão
de cor de pele. Realmente minha análise questiona diversas suposições gerais sobre
raça no Brasil. Mais certamente, ela mostra que a questão actal inclui etnia, lín-
gua, nacionalidade e religião... (Lesser, 1995:308, ênfase adicionada)7
~ r " »

Este mesmo entrelaçamento entre características físicas e mentais das "raças" apa-
rece na análise que Maio faz da presença do neolamarckismo nas formulações de Gilber-
to Freyre acerca do judeu em Casa-Grande & Senzala (Maio, 1995:85). Neste texto, o
autor chama a atenção para o fato de que a idéia de adaptabilidade, um dos eixos básicos
da teoria lamarckista, permitiu a Freyre a formulação de um conceito bastante plástico de
"raça judaica". Tal conceito engloba não apenas características físicas mas também
mentais, ambas transmitidas pelo "sangue", e que se transformam no processo de adap-
tação à natureza e ao empreendimento colonial.

As expressões imigrantes ..... ,,


desejaveJs e "indesejáveis" aparecem, inclusive, quase como categorias na-
tivas no discurso, citado por Jeffrey Lesser, de um membro do conselho de imigração e colonização de
Estado Novo que criticava a política de cotas por nacionalidade introduzida pela constituinte de 34, afir-
mando que as cotase'estrmgem
r "
o ingresso de raças desejáreis e favorecem raças não desejadas" (Les-
ser, 1995:301).
A partir daí, a prática ou não da miscigenação _ bem como os tipos que ela viria a produzir - e a disponi-
bilidade à assimilação funcionaram como valores de referência ao estímulo e à crítica de todos os em-
preendimentos migratórios, até mesmo dos "brancos" (Seyferth, 1991).
Caso não indicado ao contrário, são minhas as ênfases por sublinhado nas citações de outros autores ao
longo deste capítulo.
Segundo o autor:
.,. O conceito chave é o de adaptação, É nesta chave lamarckista que poderia ser com-
preendido o perfil judaico delineado acima, ou seja a combinação entre raça e cultura,
entre hereditariedade, condições físicas e psíquicas, realismo econômico e controle dos
excessos de es.oh"ito militar e religioso na formação brasileir. (Maio, 1995:95)

O que esta literatura nos permite assinalar é a presença, mesmo sem alcan-
çar o grau de sofisticação do discurso de Freyre, de inúmeras sínteses, as mais va-
riadas e ecléticas possíveis, entre o biológico e o cultural, que aparecem por
detrás do termo raça no discurso de intelectuais e políticos brasileiros na primeira
metade do século XX. Estas observações nos permitem propor como ponto de
partida deste artigo a hipótese de que raça foi predominantemente utilizada du-
rante o período da imigração de massa, menos no seu sentido estritamente bioló-
gico do que como termo que identificava populações que supostamente carregavam
uma unidade física e cultural.
Mas de que modo estas concepções de raça conformaram concretamente as toma-
das de posição, e mesmo algumas das iniciativas do Estado brasileiro, sobre a imigração
de massa, nos anos 20? Qual o conteúdo desta representação do imigrante indesejável? E
de que modo populações concretas foram alvo desta classificação?
Nosso objetivo neste artigo é responder, pelo menos em parte, a estas perguntas
através da análise de três desdobramentos da tentativa de imigração dos afro-ameri-
canos em 1921. O primeiro momento a ser analisado é o da reação da diplomacia
brasileira à iniciativa dos negros norte-americanos; o segundo é o da apresentação de
projetos de restrição racial à imigração das "raças inferiores", o que coloca em cena
também a questão do imigrante japonês; o terceiro é um dos frutos do debate sobre
estes projetos: o inquérito sobre imigração e raça da Sociedade Nacional de Agricul-
tura (SNA), de 1925.
O que tentaremos fazer em cada um destes momentos é identificar as repre-
sentações e práticas que corporificam a categoria do imigrante indesejável. Não se
tratará aqui, simplesmente, de assinalar quais as populações que são classificadas
como indesejáveis e sim identificar as representações que formam o eixo desta clas-
sificação. Isto porque, e esta é uma hipótese básica deste artigo, "desejáveis" e "in-
desejáveis" não são nomes que designam determinadas populações de uma vez por
todas, são sim categorias que são mobilizadas por agentes sociais para classificar as
populações imigradas.8 Estas categorias foram mobilizadas tanto por intelectuais e
políticos brasileiros quanto pelos próprios imigrantes nos processos de luta simbólica
que envolveram a imigração. Vale dizer que a classificação de uma população como
desejável ou indesejável não se tratava de algo dado de uma vez por todas, mas de-
pendia sim de uma negociação simbólica entre os agentes envolvidos na imigração.
Este processo de negociação simbólica será observado com mais detalhes na seção
em que discutimos o debate sobre a imigração japonesa.

8 O Aurélio Eletrônico (1994) define nome como "palavra(s) com que se designa pessoa, animal ou coi-
sa" e categoria como "classe, qualidade, ordem".
OS LIMITES DO PARAÍSO RACIAL

Na longa história que une classificações raciais e políticas imigratórias no Brasil,


um dos episódios mais reveladores da representação do imigrante indesejável gira em
torno da tentativa de um grupo de cidadãos norte-americanos, descendentes de africanos,
de imigrar para cá, em 1921, e das reações que se seguiram a esta tentativa.
Como nos mostram Meade & Pífio (1988), este episódio inicia-se com a divulga-
ção, em jornais norte-americanos, de propagandas do governo brasileiro acerca dos atra-
tivos que o país oferecia aos imigrantes. Esta propaganda acabou sendo encampada por
jornais dirigidos ao público negro nos E.U.A. Segundo os autores:

Independente de esforços oficiais do governo brasileiro, o Baltimore Afro-Ameri-


can publicou em 1920 os detalhes de uma oferta do Ministério de Agricultura brasi-
leiro em que eram prometidos passagens, acomodações e crédito de longo prazo
para trabalhadores americanos fisicamente aptos e agricultores que desejassem se
estabelecer no Brasil. (Meade & Pírio, 1988:87)

E o interesse específico do jornal em reproduzir estas informações residiu na cren-


ça, expressa aos leitores, de que o Brasil era um paraíso racial que oferecia ilimitadas
oportunidades, visto que "...não existe 'linha de cor' como se conhece na América ...
Um homem negro pode ser presidente do Brasil e não desperta mais atenção do que a
eleição de um homem branco aqui" (Meade & Pírio, 1988:87).
Esta mesma imagem foi partilhada por inúmeros jornais e ativistas negros dos
E.U.A.9 E sua importância vinha do fato de vir ao encontro da saída emigracionista de-
senvolvida pelo movimento negro em resposta à violência racial institucionalizada atra-
vés das leis Jim Crow. Estas leis, ao atingirem direitos civis e políticos da população
negra no final do século XIX, forneceram suporte ao aparecimento de projetos emigra-
cionistas, parte deles orientados pelo ideal de um nacionalismo negro que tinha como ob-
jetivo fundar repúblicas negras fora dos E.U.A. (Meade & Pírio, 1988:86).
E estes projetos recaíram sobre o Brasil a partir do momento em que os projetos
anteriores em relação à África fracassaram. Além disso, como acreditavam líderes ne-
gros como Cyril Brigs, a América Latina, e em especial o Brasil, eram lugares em que o
predomínio das "raças de cor" poderia servir de base à fundação de uma república negra
a qual, por sua vez, deveria servir de inspiração à luta anticolonial das massas africanas
(Meade & Pírio, 1988:89).
Parcialmente fundados nessas expectativas - as outras expectativas diziam respeito às
possibilidades econômicas abertas, num país onde se supunha inexistir preconceito racial, a
homens negros instruídos e civilizados - um grupo de negros norte-americanos de Chicago
se propôs a comprar terras no Estado de Mato Grosso para estabelecer uma colônia. Para tal,
estes imigrantes fundaram uma companhia de colonização de nome "Brazilian American
Colonization Sindicate" - BACS (Lesser, 1994:84) e basearam suas pretensões nos acordos de
imigração entre Brasil e Estados Unidos, que facultavam aos cidadãos norte-americanos o direi-
to de entrar e se estabelecer no Brasil, a despeito de raça, etnia ou religião (Lesser, 1994:81).

Para uma relação completa dos jornais e ativistas, vide o referido artigo de Meade & Pírio (1988) e Hell-
wig (1988).
Sua iniciativa enfrentou resistências muitos concretas no Brasil. Dos jornais vieram
acusações de um suposto plano do governo norte-americano de enviar para o Brasil toda
a sua população negra, fato que, em plena vigência da ideologia do branqueamento, im-
plicaria um prejuízo irreversível para a suposta regeneração racial que a introdução do
imigrante branco vinha operando..O governo de Mato Grosso, por sua vez, imediatamen-
te reagiu à informação de que os colonos norte-americanos eram negros com o cancela-
mento das concessões que haviam sido oferecidas ao BACS (Skidmore, 1976:212). Por
fim, o Itamarati tratou de prevenir-se contra qualquer entrada destes imigrantes no Bra-
sil, negando seus vistos diplomáticos (Lesser, 1994:84). O que se revela em cada uma
destas reações é a figura do imigrante racialmente indesejado como ma decorrencm ne-
M brasileiras.
cessária do ideal de branqueamento que orientava as políticas mlgratorlas ^ "

Estas restrições aos imigrantes afro-americanos foram conduzidas pela diplomacia


brasileira. Como nos mostra Lesser (1994:85), o ministro das Relações Exteriores, José
Manoel de Azevedo Marques, enviou, no mesmo ano de 1921, mensagens confidenciais
à embaixada brasileira em Washington e aos consulados em Chicago, St. Louis,
Nova Iorque, Nova Orleans, Baltimore e São Francisco - e também ao consulado em
Barbados - ordenando que fossem recusados vistos a quaisquer imigrantes negros
que o solicitassem.
Contudo, as mensagens foram descobertas e questionadas pela BACS que, basean-
do-se nos tratados que regulavam a migração entre os dois países; buscou obter uma re-
visão da atitude do governo brasileiro (Lesser, 1994:88). Este teve, então, que enfrentar o
problema publicamente, sendo forçado a justificar a proibição. A diplomacia brasileira,
porém, não recorreu em momento algum à argumentação racial. Durante todo o tempo
enfatizou-se a defesa da soberania brasileira nos termos de um discurso nacionalista que
negava a qualquer governo ou cidadão estrangeiro o direito de questionar a política imi-
gr atona" brasdelra
" ' (Lesser, 1994:87).
Mas quais as representações que dão conteúdo a restrição à emigração dos negros
norte-americanos?
A primeira delas já foi por nós referida. Diz respeito ao predomínio da teoria de
branqueamento, o que implicava a crença de que o imigrante branco e europeu era fun-
damental para a regeneração racial do trabalhador nacional e também para sua civiliza-
ção. Este pressuposto implicava a exclusão, em princípio, das populações não brancas
dos beneficios concedidos à imigração.
Todavia, este pressuposto mais geral do branqueamento não é capaz, sozinho, de
explicar integralmente as tomadas de posição concretas, sobretudo neste caso específico
dos negros de Chicago. Neste caso, a explicação para a atitude do governo brasileiro
deve ser buscada também em uma outra representação: a de que o negro norte-americano
traria o ódio racial para o Brasil.
Efetivamente, como nos mostram Meade & Pífio (1988:95), alguns dos projetos de
colonização no Brasil estavam atravessados por um black nacionalism que tinha como
um de seus pressupostos a idéia de que os negros deveriam governar as terras onde eram
a maioria da população. E estes movimentos, incluindo a iniciativa do BACS, eram alvo
de investigação por parte do governo americano. Segundo estes autores, aparente-
mente o FBI avisou o governo brasileiro acerca das atividades do BACS, e da pre-
sença de ativistas e das idéias do black nacionalism na origem da sua iniciativa
e mlgratona
' "
(Meade & Pírio, 1988:96).
Assim, ter-se-ia desenvolvido uma colaboração entre os dois governos a partir de
um mesmo temor quanto à natureza da atividade política destes grupos negros. Em am-
bos os governos temiam-se os propósitos de subversão da hierarquia racial que condu-
ziam iniciativas como a do BACS. E no caso do governo brasileiro, havia, como
veremos na próxima seção, o temor, em especial, de que estes imigrantes pudessem dis-
seminar entre os negros brasileiros uma cultura de violência racial. E foi esse temor que
levou alguns deputados a um esforço para que a restrição à entrada dos imigrantes ne-
gros se tornasse definitiva. Esse esforço é o que passamos a analisar.

OS PROJETOS DE RESTRIÇÃO À IMIGRAÇÃO E OS DEBATES


PARLAMENTARES

As reações à tentativa dos afro-americanos de imigrarem para o Brasil não se resu-


mem às ações diplomáticas; o caso repercutiu também no Congresso Nacional. Alguns
deputados, não considerando suficientes as medidas tomadas pelo ltamarati e pelo presi-
dente do Estado de Mato Grosso, resolveram propor leis que impedissem, definitivamen-
te, a entrada de imigrantes negros. Este foi o caso dos deputados Cincinato Braga (SP) e
Andrade Bezerra (PE) que, reagindo prontamente às notícias sobre o caso, ãpresentaram
ainda em 1921 um projeto de lei à Câmara com apenas dois artigos, cujo conteúdo era a
proibição, em caráter absoluto, da entrada de imigrantes negros no País.
Na verdade, este projeto retomava o espírito de uma lei republicana, de 1891i que,
sem falar em raça, proibia a vinda de imigrantes nativos da África e da Ásia. Essa lei ha-
via sido revogada em 1907, o que propiciou a chegada de japoneses para as lavouras ca-
feeiras de São Paulo (Skidmore, 1976:217). O projeto de Cincinato Braga era, contudo,
mais amplo e mais explícito, pois visava erradicar totalmente a possibilidade de uma
imigração negra, sobretudo de negros norte-americanos, o que a lei anterior, mesmo se
estivesse vigorando, não impediria. A forma explícita com que revelava seus objetivos
foi, talvez, responsável pelos ataques que recebeu.na Câmara sob a acusação de ser anti-
republicano, atentar contra a igualdade e a fraternidade, ser anticatólico e desprezar a he-
rança negra na nacionalidade. Diante disso, o projeto teve vida curta, perdendo-se nas
comissões parlamentares (Câmara dos Deputados, 1921).
Uma nova versão do projeto foi apresentada pelo deputado Fidélis Reis (MG) em
1923, engenheiro agrônomo e membro da Sociedade Nacional de Agricultura (SNA). O
deputado fôra, inclusive, um dos maiores defensores do projeto de Cincinato Braga
quando de sua apresentação à Câmara. Sua versão, contudo, diferia do projeto anterior
por preconizar, além das restrições absolutas à entrada de imigrantes negros, estímulos à
imigração européia e restrições parciais à imigração amarela através de uma cota anual
correspondente a 3% dos imigrantes já ingressos no País (Câmara dos Deputados,
1923:213).
Este projeto retomava e ampliava as propostas de Cincinato Braga de modo a
atingir também o imigrante "amarelo", além de fazer da perspectiva racial o funda-
mento de toda uma política imigratória, por meio de uma série de propostas de incen-
tivos à imigração e de política de colonização que beneficiariam os imigrantes
brancos e europeus. Isto fica claro no entendimento que o próprio autor tinha de seu
projeto. Segundo Fidélis Reis:
... além das providências de outra natureza que temos em vista com o nosso projeto -
neste particular mais liberal e menos irritante que o dos preclaros representantes de São
Paulo e Pernambuco - o que queremos é ampliar o pensamento nele eontido, para tornar
a proibição também extensiva, em grandes levas, ao imigrante japonês. (SNA, 1926:457)

A forma como a restrição foi proposta era claramente baseada na política imigrató-
ria americana à qual, tendo entrado em vigor em 1921, havia estabelecido, a partir de
preocupaçõese ugemcas,
^ " um regime de cotas baseado na nacionalidade dos imigrantes
que já tinham entrado no País (Tucker, ! 994:95).
Em sua análise, Tucker mostra que o discurso eugênico nos Estados Unidos defi-
niu, a partir da segunda metade da década de 10, os imigrantes como um objeto privile-
giado de análise. E esta análise teve como uma de suas fontes fundamentais os estudos
de psicologia que, a partir da disseminação dos testes de inteligência, concluíam pela in-
ferioridade - quase em quadro de demência - dos imigrantes judeus, húngaros, italianos
e russos em comparação com os ingleses, escoceses, alemães e escandinavos. Estes estu-
dos produziram, assim, um quadro em que a "inteligência americana" era ameaçada pela
chegada de imigrantes mentalmente inferiores e cuja solução era uma política imigratória
restrita e seletiva segundo as nacionalidades, às quais eram concebidas como raças na-
quele sentido inicialmente referido de unidade física e mental de populações (Tucker,
1994:76-82).10
Estes eugenistas tiveram um papel importante na definição da lei americana de co-
tas, tendo participado, como especialistas científícos em questões de raça, da comissão
do congresso americano que produziu a versão definitiva da lei em 1924. Ao descrever o
depoimento de um destes eugenistas na comissão, Tucker afirma que:

(Laughin)
» sustentava a existência de uma "raça americana ', 'não um simples esto-
que mas uma raça de pessoas braneas do norte e oeste da Europa. A questão imi-
gratória estava assim claramente colocada. 'Nós podemos continuar a ser
americanos ', Laughin observou, "recrutando e desenvolvendo nossas qualidades ra-
ciais ', ou podemos continuar a ser suplantados por outros estoques raciais que são
nao-asslmdávels. (Tucker, 1994:95)

Algumas destas formulações se fazem presente no debate do projeto do deputado


mineiro que, mesmo tendo sido melhor recebido que o de seu antecessor, foi também re-
jeitado na década de 20. Isto significou que o impedimento à imigração negra teve de
continuar sendo feito através da diplomacia. Já o tratamento aos imigrantes japoneses,
pelo menos diante da lei, manteve-se inalterado ao longo da década de 20. Nos anos 30,
contudo, o "espírito" do projeto de Fidélis Reis seria resgatado na definição de cotas de
imigração introduzida na constituição de 1934 (Skidmore, ! 976:217).
A defesa do projeto de Fidélis Reis é particularmente útil à visualização das repre-
sentações que definiram, naquele momento, os negros norte-americanos como imigran-
, °
tes ndesejavem.
i Já na sua apresentação, Fidélis Reis definiu o episódio da tentativa de
imigração dos afro-americanos como uma ameaça ao país, tratando de opor a estes o pa-
p e l e x e r c i d o ," fin a o r m
~ a' çnaclonahdade
ao aa " " ,' ,pelo escravo africano:

10 Cabe assinalar que Tucker mostra também a fragilidade metodológica destes testes e, sobretudo, o quan-
to havia de ideológico na generalização de seus resultados (Tucker, 1994:76-82).
Quando então, pensamos, Sr. Presidente (da Câmara), na possibilidade próxima
ou remota da imigração do preto americano para o Brasil é que chegamos a admitir
a eventualidade da perturbação da paz no continente [...] O nosso preto africano,
para aqui veio em condições muito diferentes, conosco pelejou os combates mais áspe-
ros da formação da nacionalidade, trabalhou, sofreu e com sua dedicação ajudou-nos a
criar o Brasil [...] O caso agora é absolutamente outro. E deve constituir para nós motivo
de sérias apreensões, como um perigo iminente a pesar sobre nossos destinos. (Câmara
dos Deputados, 1923:147)

Tratava-se aí de opor a perturbação - relativa à violência racial - que se temia ad-


vir da imigração dos afio-americanos à contribuição dos negros africanos na construção
do País. Este discurso revela uma estratégia discursiva que escamoteia a condição de es-
cravos com que os africanos chegaram e trabalharam no país para colocar em seu lugar
uma contribuição que parece quase que voluntária.
Mas afinal, que riscos eram esses?
A resposta a essa pergunta aparece de forma mais clara na argumentação que Oli-
veira Vianna produziu em apoio ao projeto de Fidélis Reis. Esta argumentação foi produ-
to de uma consulta do próprio deputado mineiro àquele que, já naquele momento, era um
dos principais defensores da teoria do branqueamento (Skidmore, 1976). Oliveira Vianna
respondeu à consulta enfatizando o "perigo político" que representavam os afro-ameri-
canos. Segundo ele:
... estes, que nos ameaçam vir da América, se acham modelados por uma civilização
superior, falando uma língua própria e tendo um sentimento de altivez e agressivida-
de, natural no meio em que vivem e que não possuíam os africanos que para cá vie-
ram, em outros tempos da costa da i~frica. Esses, pela inferioridade de sua
civilização, fundiram-se com os brancos superiores; quem nos dirá que farão o mes-
mo os negros americanos? Mas se se conservarem 'infusíveis ', neste caso teremos
mais um perigo político a nos ensombrar os destinos. Se se fundirem, neste caso tere-
mos aumentado a massa informe de mestiçagem inferior que tanto retarda o nosso
progresso. (Câmara dos Deputados, 1923:380)

Esta citação revela os principais pontos do discurso acerca dos riscos da imigração
dos afro-americanos. Está presente a imagem do negro norte-americano como portador
de uma atitude altiva e agressiva, que tanto impressionava os políticos e intelectuais bra-
sileiros. Em oposição a esta postura segregacionista, o negro africano é representado
como consciente de sua inferioridade e, por conseguinte, predisposto à mistura, entendi-
da como interação sexual e cultural com os "brancos superiores", onde se resguardaria
aos primeiros uma posição inferior, submetida.
Esta representação dos afio-americanos definiu, assim, dois riscos fundamentais no
que diz respeito ao seu desejo de imigrar. Em primeiro lugar, sua postura altiva dava
margem à possibilidade de não se "fundirem" aos "brancos superiores", insistindo por
manter uma identidade própria dentro da nação.
Nossa hipótese aqui é que o principal temor em relação aos afio-americanos era o
de que a negritude se destacasse da nacionalidade, ou seja, que a identidade negra esca-
passe ao fundo comum de uma nação concebida a partir do esquema classificatório do
branqueamento, o qual pressupunha o domínio branco e a subordinação negra. A partir
desta concepção, a vinda dos afio-americanos implicaria importação do "problema
racial americano" - do "ódio entre as raças" -, pondo em risco o tipo de relação entre
as raças no Brasil do qual se acreditava estar ausente a violência racial. Traduzia-se, as-
sim, o temor de que o black nacionalism que os afro-americanos portavam pudesse
ameaçar o controle que a República, pouco menos de três décadas depois da abolição,
buscava consolidar sobre as possibilidades de violência negra.
Em segundo lugar, essa imigração poderia resultar em um aumento da "mestiça-
gem inferior", gerando em prejuízo àquela direção que a teoria do branqueamento apon-
tava. Trata-se aqui de um temor semelhante àquele partilhado pelos eugenistas
norte-americanos, e que diz respeito ao aumento do contingente das "raças inferiores"
na população do País. As elites brasileiras tinham, contudo, a especificidade de, ante o
elogio da mestiçagem pressuposto pela teoria do branqueamento, temer também que a
mistura racial com estas "raças inferiores" levasse à geração de um mestiço "inferior"
porque inverso daquele mestiço branqueado que se desejava obter por meio da imigração
branca.
Esse temor, que foi intensamente mobilizado no debate da Câmara (Câmara dos
Deputados, 1923:348), encontrou sua melhor expressão na análise que Afrânio Peixoto
fez do projeto de Fidélis Reis, também produzida a partir de uma consulta do deputado,
da qual podemos extrair as seguintes palavras:
É neste momento que a América pretende desembaraçar-se do seu núcleo de 15
milhões de negros no Brasil. Quantos séculos serão precisos para depurar-se todo
esse mascaro humano? Teremos albumina bastante para refinar toda essa escória?
Não bastou a Libéria, descobriram o Brasil? (Câmara dos Deputados, 1923:384)

A LUTA PELOS IMIGRANTES: O INQUÉRITO SOBRE


IMIGRAÇÃO E RAÇA DA SOCIEDADE NACIONAL DE
AGRICULTURA (SNA)

O debate sobre o projeto Fidélis Reis não se confinou às discussões na Câmara,


tendo alcançado também entidades civis como a Sociedade Nacional de Agricultura
(SNA). Esta associação produziu, em 1925, um "inquérito" cujo eixo era a discussão
das propostas contidas no projeto de 1923, o qual, naquele momento, ainda se encontra-
va em tramitação no Congresso. Esta pesquisa foi idealizada pelo então presidente da
SNA, Lira de Castro, fazendeiro paraense e engenheiro agrônomo, com o objetivo de:
"...abrir um rasto inquérito em todo o País para colher a média de opiniões sobre as con-
trovérsias do projeto" (SNA, 1926:474).
O inquérito foi feito através de seis mil questionários enviados a toda a diretoria da
SNA, a associações rurais e comerciais, a presidentes de estado, à Academia de Medici-
na, à Sociedade Brasileira de Geografia, ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a
prefeitos em SP, RS, SC, RJ, GO, AL, ES, MT, MG, AM, CE, BA, PA, MA, PE, PB,
ES, AC, aos principais jornais do País e a mais um conjunto de indivíduos fidos como
"autoridades" nos temas do projeto (SNA, 1926:14). Do conjunto de questionários, 166
receberam respostas provenientes de todas as regiões do País e de quase todos os esta-
dos, tendo estas sido parcialmente publicadas pela SNA num volume datado de 1926.
Responderam ao questionário membros da própria SNA, secretários estaduais de agricul-
tura e colonização e/ou funcionários federais ligados a estes temas, e indivíduos interes-
sados na questão.
Em que pese a pequena proporção de respostas diante dos questionários enviados,
seu conteúdo revela bem o debate transcorrido no interior da entidade, uma vez que a
maior parte dos questionários respondidos veio de membros da própria SNA. Porém,
mais do que isso, a análise em maior detalhe destes discursos, tendo como pano de fundo
a descrição mais geral de contexto que realizamos nas duas seções anteriores, nos permi-
tirá mergulhar mais profundamente na lógica desse pensamento racial. Passemos então à
análise do inquérito.
Tendo por referência o debate em torno do projeto de Fidélis Reis, o inquérito
trazia perguntas que iam desde a importância da imigração, até o tipo de raça ade-
quada à região do inquirido. Assim, a interrogação conduzida pela SNA sobre o tema
da imigração seguindo a linha do projeto, foi modelada pelas representações ra-
ciais. 1 l
Todavia, antes de visualizar o modo como estas representações estruturaram as to-
madas de posição, devemos responder algumas perguntas: Quais o,s interesses específi-
cos que levaram a SNA a se envolver neste debate? E de que modo o inquérito respondia
a estes interesses?
Uma primeira resposta às duas questões aponta para o fato de que o inquérito foi
constituído com o objetivo de barrar as restrições propostas à imigração japonesa. Atra-
vés do inquérito, a partir do projeto Fidélis Reis o debate sobre as restrições raciais à
imigração é deslocado dos "negros" para os "amarelos".
Para aprofundar essa resposta é necessário delinear a estrutura da entidade e seus
mecanismos de atuação. Faremos isso a partir do estudo feito por Mendonça acerca da
SNA e de seu papel no interior de um movimento denominado pela autora por ruralismo
(Mendonça, 1990). Agregaremos a essa análise os elementos extraídos de nossa própria
pesquisa (Ramos, 1994), dos anos que vão de 1910 a 1930, no periódico A Lavoura,
principal meio de divulgação da entidade.
Partindo da definição de Mendonça (1990:32), podemos identificar a SNA como
instância de formalização, junto ao Estado, das demandas de determinadas frações da
classe dominante agrária. Era composta por setores alijados do domínio sobre o aparato

As perguntas do questionário eram: (1) Julga V. Exa. necessária e útil a imigração estrangeira para o
Brasil? Por que?; (2) No caso afirmativo, acha que essa imigração deva ser meramente espontânea, ou
deva ser intensificada ou subvencionada? No primeiro caso, que ordem de auxílios poderão prestar os
governos aos imigrantes?; (3) Pensa que essa imigração deva ser exclusivamente da raça branca? Parece-
lhe que ela se aclimata bem em rodas as regiões do País? Dá preferência a alguma nacionalidade?; (4)
Qual a opinião de V. Exa. acerca da imigração amarela?; (5) Se V. Exa. aceita, em princípio, a imigração
amarela, acha que ela deva ser acolhida incondicionalmente, ou opina por qualquer espécie de restrição
ou de distribuição pelas zonas do País?; (6) Qual a opinião de V. Exa. acerca da imigração negra?; (7) Se
V. Exa. aceita, em princípio, a imigração negra, acha que ela deva ser acolhida incondicionalmente, ou
opina por qualquer espécie de restrição ou de distribuição pelas zonas do País?; (8) Que bons serviços
poderão os imigrantes de qualquer das aludidas raças prestar, especialmente nas zonas em que V. Exa.
emprega sua atividade?; (9) Que sugestões mais lembra V. Exa. em matéria de imigração e de braços es-
trangeiros para a lavoura do Brasil?; (10) Quais as idéias de V. Exa. a respeito do trabalhador nacional,
sua localização, seu apego à terra, sua aptidão para a lavoura e a criação?; (11) Além do braço, que ou-
tros elementos de trabalho faltam às lavouras e às indústrias do nosso país, para intensificar, melhorar e
baratear sua produção?
estatal da União, que estava sob controle do complexo cafeeiro paulista. Essa definição
revela dois elementos fundamentais ao entendimento da entidade: em primeiro lugar, ela
foi instituída com o objetivo de canalizar e organizar as demandas de tais frações agrá-
rias, posicionando-se a um só tempo como seu porta-voz e seu dirigente; em segundo lu-
gar, a luta para reverter a condição periférica de tais grupos levou a entidade a
desenvolver o estímulo ao desenvolvimento técnico-produtivo destes complexos agrários
e o encaminhamento de ações de pressão junto ao Estado brasileiro e de propaganda jun-
to aos demais atores políticos, de modo a garantir um tratamento preferencial às suas de-
mandas de sustentação econômica. 12
O diagnóstico que estas oligarquias fizeram das razões de sua posição periférica re-
feriu-se a um "estado de atraso", originado, a um só tempo, pela precariedade técnica de
uma economia que fôra por quatro séculos baseada no trabalho escravo, e pela própria
solução dada a esse problema~ qual seja, a abolição, vista como tendo produzido uma ca-
rência generalizada de capitais e mão-de-obra. Esse lagnostJco definiu "a falta de bra-
d .
ços para a lavoura" como uma das preocupações fundamentais da entidade e motivo de
demandas perante o Estado e aos atores políticos. Para confirmar seu diagnóstico, a SNA
procurou demonstrar, com o uso de dadose statlstJcos, ex~stencla de vazios demográfi-
" " a " " "
cos no Norte e no Centro do Pais.
Contudo, essa falta de braços dizia respeito menos ao número concreto de habitan-
tes destas regiões do que a um conjunto de qualificações com que se definia a figura
ideal do trabalhador livre, e das quais os trabalhadores nacionais concretos pareciam dis-
tantes. E o eixo destas qualificações negativas era a usencla, por parte do trabalhador
a ^ "
nacional, dos hábitos culturais enfeixados no termo tvtlizaçao, termo com que se identi-
C " ' '
ficava a existência de uma disciplina para o trabalho, a posse de técnicas de produção, a
higiene na organização da casa e da produção, e o respeito às leis.
Nesse sentido, restava à SNA duas saídas básicas para a solução deste problema. A
primeira delas consistiu em propostas de reformado nacional, de modo a adequá-lo ao mo-
delo dofarmer. Nesse caso, com base em um diagnóstico do que poderíamos chamar uma
"carência civilizatória", os membros da SNA constituíram como uma de suas linhas bá-
sicas de atuação o esforço para obter do Estado e dos próprios fazendeiros mecanismos
que propiciassem a civilização do nacional, tais como: medidas de saneamento e higiene,
escolas técnicas localizadas no próprio meio rural, medidas de repressão à "vadiagem"
e controle da circulação da mão-de-obra rural, construção de colônias agrícolas - penais
ou não --, alocação de imigrantes e nacionais em colônias mistas etc. Tais medidas eram
vistas como sendo necessárias à superação dos hábitos "retrógrados" que o trabalhador
nacional carregava e, conseqilentemente, como mecanismo de superação de uma das
principais causas do "atraso" da agricultura. Uma segunda solução consistiria no estí-

Outro ponto a se assinalar é que a articulação política que constituiu a SNA teve abrangência nacional.
Por um lado, os membros da Sociedade provinham de uma vasta gama de regiões e complexos produti-
vos; por outro, os membros de sua diretoria, de um modo geral, e seus presidentes em particular, conta-
vam em seu currículo uma carreira politica considerável em seus estados de origem, tendo chegado - to-
dos os presidentes da entidade e parte da diretoria - ao Congresso Nacional. Esse histórico político per-
mitia que a Sociedade combinasse a abrangência regional ao peso político da representação das elites
agrárias de vários estados. Esta combinação definia o conteúdo do termo "nacional" com o qual a So-
ciedade se autodenominava (Mendonça, 1990:121).
mulo à imigração européia, vista como portadora de atributos civilizatórios a serem di-
fundidos entre os "trabalhadores nacionais". Esta função civilizadora rea]izar-se-ia por
meio do que chamariamos de "pedagogia do exemplo". Nesse sentido, a imigração
branca foi concebida como uma das formas de resolver, a um só tempo, a falta de braços
e a falta de civilização dos braços existentes.
Entretanto, historicamente, a imigração européia concentrou-se em determinadas
regiões do Sul e Sudeste do País, excluindo estados que não tinham recursos financeiros
ou condições geográficas que lhes permitissem atrair o imigrante europeu. De modo que,
se o Imigrante europeu era o desejável, ele nem sempre era o possível. E esta diferença
de possibilidades no tocante à obtenção de imigrantes europeus gerou, na SNA, uma
busca por alternativas. Urna destas alternativas, da qual o Inquérito de ! 925 é testemunha
cabal, consistiu no estímulo àlmlgraçãojaponesa
. , para os estados do Norte. 13 É o que re-
vela a seguinte observação do secretário-geral da SNA, Heitor Beltrão, feita no comentá-
rio às respostas dos inquiridos que rejeitaram a imigração japonesa:
Outro ponto que causa surpresa é o relativo às zonas que exprimem votos pró ou
contra o amarelo A rimeira vista ima inava-se ue o Norte em cu o clima tro ict2[ça_al
~nte se a~ o irei rante branco e cuas indústrias xtrativas exigem
~os ~__~q_~~o am~~~~~ _e ue o branco nem s m te su Ona. qu««-
ria com melh r insistência a imi ta ão amarela cujos traços não diferem muito de al-
guns sub-typos sertanistas do extremo Norte e cio Nordeste. Mas não foi o que ocorreu. O
Norte deu 11 votos favorcíveis em 32 votantes, enquanto o Centro deu 29 em 49 votantes e
os Sul 34 em 82. (SNA, 1926:25)

A citação revela que, a uma diferença supostamente climática entre regiões, Su-
punha-se dever corresponder uma distribuição diferenciada das raças imigradas no
território brasileiro Tratava-se, assim, de distribuir os imigrantes no espaço de acor-
do com uma hierarquia, que dizia respeito menos ao clima - uma vez que o Japão é
um pais de clima temperado - do que à pressuposição de que, racialmente inferiores,
os japoneses se submeteriam a "desconfortos que o branco nem sempre suporta". Su-
punha-se também a eficácia da mistura entre os japoneses - com todos os pressupostos
de disciplina para o trabalho com que eram representados _ e "alguns sub-typos serta-
nistas do extremo Norte e Nordeste". No raciocínio do s " "
~migrante japonês caberia uma tarefa braçal e civilizatória em ecretano-geral
certas regiõesda
àsSNA,
quaisao
o
braço europeu não interessava enfrentar. 14
Essa solução repousava, assim, num duplo raciocínio sobre a imigração japone-
sa: o imigrante japonês era visto como "menos exigente" quanto às condições de
trabalho a que seria submetido, incluindo aí tanto a dureza de certas tarefas quanto os
rigores hmat~cos
C " " onde estas tarefas seriam realizadas; e o surgimento do Japão corno

Cabe recordar que naquele momento entendia-se por Norte o espaço geográfico que hoje engloba as re-
giões Norte e Nordeste.
E esse papel civilizar~rio que caberia ao imigrante japonês legitimava até mesmo a mistura física com o
nacional, segundo o advogado paulista AIfredo Elis Júnior: "Dão bom cruzamento com os elementos
brasileiros, os japoneses. Dão tipos agradáveis e aparentemente eugênicos. Os que acham feios os japo-
neses esquecem que a beleza fisica é relativa e os brasileiros têm, maximé (sic) no Norte, traços mongó-
licos" (SNA, 1926:67). Para uma análise mais abrangente da imigração japonesa no Brasil, vide Salto
(1961).
potência no cenário mundial era acompanhado de uma representação do seu povo como
portador de atributos civilizatórios, tais como a disciplina ao trabalho, o hábito de pou-
pança e as técnicas produtivas.

O DEBATE SOBRE A IMIGRAÇÃO JAPONESA

Todavia, essa , tematlva


,al~ , , era consensual nem dentro da entidade, nem den-
não
tro do debate político da época. E o que observaremos, nesta e na próxima seção, é um
debate entre defensores e opositores da imigração japonesa a partir do qual fica evidente
e luta simbólica envolvida na definição de uma população concreta como imigrante "de-
sejável" ou "indesejável".
Podemos observar que a oposição específica à imigração japonesa remonta, no mí-
nimo, às primeiras experiências feitas por cafeicultores paulistas na importação deste
tipo de imigrante a partir de 1906.15
Já nesse momento, os opositores dessa imigração invocavam o exemplo norte-ame-
ricano de restrição ao japonês para legitimar representações do amarelo como imigrante
nasslmllável. O núcleo dessa representação era a diferença entre as culturas, a suposta
tendência ao isolamento no interior de seu próprio grupo e o caráter prejudicial, da mis-
tura com o "amarelo" à evolução eugênica do tipo racial brasileiro. Evolução esta que,
supostamente, vinba sendo operada por meio da importação do "sangue europeu" e sua
mistura ao nacional. Esta representação gerou preocupações em torno da "proteção da
raça" e mobilizou diversos segmentos das elites brasi]eiras, notadamente aqueles mais
próximos ao discurso propriamente eugênico. ]6
Mesmo diante dessa oposição, a importação de braços japoneses por fazendeiros
paulistas - importação que obedeceu a ciclos definidos segundo a indisponibilidade de
imigrantes europeus - persistiu até o fina] da década de 10, a ponto de São Paulo ter concen-
trado, no período, cerca de 80% dos imigrantes que entraram no País. Todavia, estes ciclos se
interromperam em 1922, quando o governo paulista resolveu não mais subvencionar as pas-
sagens dos imigrantes japoneses (Nogueira, 1973:228).
Esta decisão foi tributária das expectativas que cercaram o fim da Primeira
Guerra Mundial. De um lado, a solução do conflito reforçou as esperanças de uma
retomada do fluxo de imigrantes europeus para o Brasil, pelo menos até o começo da
década; e de outro, o tema básico do conflito, a luta entre impérios, produziu uma
aguda consciência dos perigos de uma nova repartição imperialista do mundo onde o
território brasileiro poderia tornar-se objeto de disputa. Notadamente a segunda va-
riável deu forte impulso aos inimigos da imigração japonesa que desencadearam, a
partir de !918, uma campanha na imprensa pedindo ao governo brasileiro restrições
à entrada de trabalhadores japoneses e condenando as anteriores iniciativas panlistas
de importação destes imigrantes.

"l 5 Esta primeira importação, como outras que se seguiriam, explicava-se pela necessidade de fazer frente
ao estrangulamento do fluxo de imigrantes europeus e pela esperança em estreitar os laços comerciais
entre Brasil e Japão de modo a abrir mais mercados para o café.
l 6 Porém, entre os eugenistas, o tema da imigração japonesa também gerou divisões. Para uma análise des-
tas posiçòes, vide Stepan (1990:142-143).
Figuras de destaque do meio médico, como Miguel Couto e o então chefe do de-
partamento de higiene de São Paulo, Arthur Neiva, acusavam os imigrantes japoneses de
se aculturarem com dificuldade e de representarem o ponto de partida para uma futura
colonização japonesa de terras sul-americanas (Nogueira, 1973:207). Esta campanha re-
sultou na suspensão pelo Estado de São Paulo das subvenções a este imigrante.17
Enfim, era em meio a este quadro de acusações ao imigrante japonês, centradas nos
temas da eugenia e do imperialismo, que se moviam as pretensões de determinados seg-
mentos da SNA em promover a imigração japonesa para o Norte do País. Falamos em
segmentos da SNA porque dentro da própria entidade as opiniões estavam divididas. Isto
é o que nos mostra tanto o debate que se desenrolou nas páginas de A Lavoura nos meses
de julho e dezembro de 1926 acerca da necessidade de imigração japonesa para a Ama-
zônia (A Lavoura, dezembro de 1926, p.463 e junho de 1926, p.297), quanto o fato de
um membro e diretor da entidade - o deputado federai por Minas Gerais, Fidélis Reis -
ter apresentado à Câmara o projeto que restringia a imigração japonesa, e de ter a ele se
oposto, por meio da elaboração do Inquérito e das intervenções na Câmara, o presidente
da entidade, senador pelo Pará, Lyra de Castro.
Para entendermos essa discordância no interior da própria entidade é necessário'
lembrar que a SNA se estruturava por sobre um conjunto muito diverso de complexos
econômicos, cujos diferentes atrativos à imigração conformavam as posições sobre o
tema. Nesse sentido, cabe lembrar que as levas de imigrantes europeus que, desde o final
do Império e Primeira República, se encaminharam para o País, o fizeram tão-somente
para um conjunto limitado de estados, sobretudo SP, PR, SC e RS e, em menor escala,
RJ, MG, ES.
Isto implicava a existência de uma distinção quanto às expectativas diante dos di-
versos tipos de imigração, entre parlamentares que representaram os estados que recebe-
ram imigração européia e representantes de estados que nunca puderam contar com este
tipo de imigrante. Vale dizer que a clivagem regional que separa os dois parlamentares e
diretores da SNA - Lira de Castro (senador pelo Pará) e Fidélis Reis (deputado federal
por Minas Gerais) - deve ser tomada como uma variável importante no entendimento da
diferença de opiniões sobre a imigração japonesa.
A divisão dentro da própria SNA era, assim, expressão de uma divisão dentre os
atores políticos de um modo geral, segundo os interesses regionais que representavam. E
a explicação mais imediata para tal divisão consiste nas possibilidades diferenciadas des-
tas regiões em beneficiar-se da manutenção de uma política imigratória preferencialmen-
te centrada no imigrante europeu. Isto é, do ponto de vista dos representantes das regiões
que historicamente não foram objeto de empreendimento imigratório significativo, defi-
nir o imigrante europeu como único merecedor de subsídios e de ampla liberdade de en-

Em 1924, Eugênio Lefévre, diretor-geral da secretaria de agricultura de São Paulo dizia: "A imigração
japonesa subvencionada foi mantida pelo governo durante alguns anos, tendo sida adotada em caráter
temporário, para suprir a deficiência européia. Contudo, mesmo permanecendo as dificuldades à vinda
de europeus, resolveu o Estado de São Paulo em princípios de 22 não mais subvencionar a imigração ja-
ponesa. Esta resolução foi ditada pelo receio de avolumar demais no estado o estabelecimento de imi-
grantes que, sob os pontos de vista da tbrmação da raça nacional, social e político, não podem nos con-
vir. Além disso, teve o governo de atender à manifestação da opinião pública, traduzida na imprensa des-
ta capital e do Rio de Janeiro" (apud Nogueira, 1973:209).
trada no País implicava - pelas circunstâncias de desenvolvimento econômico e condi-
ções climáticas destas regiões - congelar a situação de inexistência de imigração para
tais estados, ao mesmo tempo em que se garantia que os recursos públicos continuariam
concentrados num tipo de imigração que beneficiava tão somente os mesmos estados já
beneficiados.
Esta disputa em torno da definição de leis restritivas prosseguiu ao longo de toda a
década de 20, estando no centro do debate sobre a imigração de "negros" e "amarelos".
Algumas destas posições tomadas no debate estão presentes nas respostas ao inquérito da
SNA, e sua análise nos permitirá revelar, de maneira mais clara, a diversidade de repre-
sentações constituídas em torno destes dois tipos de imigrantes, os quais são objetos de
análise privilegiados para uma exposição das representações raciais e a sua lógica de
operação no que diz respeito à constituição da categoria do imigrante indesejável.

A POSIÇÃO DOS FAZENDEIROS SOBRE "NEGROS" E


"AMARELOS"

A rejeição tanto à imigração de "negros" como de "amarelos" esteve presente de


forma acentuada, ainda que desigual nas respostas ao inquérito da SNA. No caso dos
imigrantes negros, a recusa à entrada no País esteve presente em 134 das 166 respostas;
já no caso do imigrante japonês, 92 respostas definiam-lhe a recusa, ou a restrição nos
termos do projeto Fidélis Reis, 57 respostas lhe eram favoráveis e 14 foram omissas.
Contudo, a análise mais detida das representações presentes nas respostas nos per-
mitiu identificar um quadro mais complexo do que simples posições de aceitação ou re-
jeição. Foi possível visualizar uma lógica que estrutura estas posições a partir da
identificação de três categorias nativas que presidiram tanto a rejeição quanto a aceitação
destes dois tipos de imigrantes (Ramos, 1994). Estas categorias são: a eugenia da raça
imigrada, sua civilização e sua disponibilidade à assimilação.
Analisemos tais critérios. O primeiro critério de classificação quanto aos riscos e
benefícios da imigração era o do grau de eugenia dos povos imigrados. O termo eugenia,
que identificaria a disciplina científica que estuda as condições mais propícias à reprodu-
ção e melhoramento da raça humana18 (Stepan, 1990:114), foi utilizado, nestes discur-
sos, para fazer referência ao grau de proximidade física do povo imigrado aos povos de
raça branca. Nesse sentido, a imigração era considerada um instrumento de reg, eneração da
raça, na medida que visava o aumento da proporção de sangue branco no povo brasileiro.
Como nos mostra Stepan, os pressupostos do eugenismo podiam gerar três posi-
ções: a primeira, preocupada com os meios para se obter uma procriação sadia; a segun-
da, com a eliminação dos fatores "disgênicos" no meio e; a terceira, que visava
interditar a procriação de indivíduos ou raças - aqui no sentido biológico mais estrito -
que geram doenças. Todavia, na década de 20, as duas primeiras foram predominantes, e
isso por três motivos: o primeiro foi a associação entre o movimento eugenista e sanita-
rista; o segundo foi o predomínio das concepções lamarckistas que enfatizavam o pro-
cesso de adaptação ao meio ambiente e, conseqüentemente, a necessidade de agir sobre o

18 Segundo a definição contida no verbete eugenia do Aurélio eletrônico.


meio tanto quanto sobre o homem; e o terceiro foi o predomínio da teoria do branquea-
mento, à qual fundamentava uma visão positiva sobre a mistura racial envolvendo os
imigrantes brancos (Stepan, 1990:124-8).
O segundo critério consistia em avaliar o grau de civilização do povo imigrado. O
núcleo das representações do que era um povo civilizado continha dois elementos funda-
mentais: de um lado, a mportancla
^ . internacional do país de origem do imigrante; de ou-
i
tro, a associação entre povo imigrado e a existência de uma disciplina para o trabalho, a
posse det ecmcas
" " de produção, a higiene na organização da casa e o respeito às leis. Es-
tas representações, que tinham como modelo imaginário o camponês europeu, foram
usadas como critério de julgamento dos hábitos culturais, reais ou imaginários, associa-
dos aos demais imigrantes. A partir daí, todas as práticas culturais que se afastassem des-
te modelo eram tomadas como índice da ausência de civilização. Isto fazia do imigrante
branco o principal instrumento de difusão, entre os "trabalhadores nacionais", de uma
civilização cujos conteúdos eram a disciplina, a produtividade, a higiene, o respeito às
leis e à propriedade.
Um terceiro e fundamental critério de avaliação das possibilidades de imigração
era a propensão dos povos imigrados em se deixarem assimilar pelo "meio" brasileiro.
Nas representações das elites republicanas, conformadas pela teoria do branqueamento, a
imigração branca, com todos os elementos positivos físicos e mentais que poderia trazer,
carregava como função básica a de se misturar ao nacional, de tal forma que a resistência
a esta mistura implicava a própria negação de seu papel fundamental.
A assimilação como critério seletivo articula-se ainda ao temor de que, mantida a
unidade cultural e fisica do imigrante em regiões fracamente ocupadas pelo elemento na-
cional, essa unidade étnica desse origem, seja a uma ocupação imperialista, seja a reivin-
dicações pela constituição de comunidades políticas pr r opnas. -
Era o temor de que
surgissem, a partir da manutenção de uma unidade física e cultural entre os povos irei-
grados, de Estados dentro do Estado brasileiro. Conseqüentemente, tais preocupações
definiram um elenco de medidas visando a dissolução dessa suposta unidade fisica e cul-
tural do imigrante. 19
O que é particularmente interessante em tais critérios, sobretudo os de eugenia e ci-
vilização, é que eles corporificam aquela concepção de raça como um cruzamento entre
o físico e o ultural/hlstonco.
C " " Vale dizer que tomar uma posição sobre o caráter desejá-
vel ou indesejável de uma raça de imigrantes implicava avaliar sua contribuição biológi-
ca e cultural à constituição do "povo brasileiro" e, também, avaliar a disponibilidade da
raça imigrada a oferecer tais contribuições ao povo brasileiro, se deixando assimilar.
Este jogo de critérios era particularmente útil a uma negociação simbólica onde alguns
critérios poderiam ser colocados em primeiro plano em detrimento de outros.
Nesse sentido, para os defensores da imigração japonesa tratava-se de tornar vito-
riosa a representação do japonês como um imigrante oriundo de uma civilização bastante

Diz Seyferth (1991:32), "...a realidade teuto-brasileira acabou se transformando numa espécie de pesa-
delo, num perigo real, pois poderia se tornar um exemplo para outros grupos imigrados, igualmente não
assimilados. Nas quatro décadas que antecederam a campanha de nacionalização, o perigo da formação
de Estados dentro do Estado - derivado da forma desastrosa com que foi realizada a colonização do Sul
- foi o argumento empregado por segmentos da elite brasileira e pelo próprio Estado para justificar uma
assimilação forçada".
desenvolvida e portador de grande disponibilidade à assimilação, o que faria dele, em
que pese ser visto como eugenicamente inferior, um imigrante altamente recomendável.
Nestes argumentos, a positividade de sua civilização foi construída por meio de uma ên-
fase na sua disciplina ao trabalho. E a defesa de sua predisposição a se deixar assimilar -
argumentação obviamente mais difícil que a primeira - se deu por meio da representação
do "japonês" como umtipo ordeiro e respeitador das leis e das autoridades. Esse padrão
de defesa expressa-se de modo cristalino na posição adotada pelo Prefeito da cidade de
Antonina, Paraná, João Ribeiro da Fonseca:
Embora o ideal seja a arianização de nossa raça, o japonês é o tipo do trabalha-
dor ideal pelo espírito de ordem, de iniciativa, de capacidade e de disciplina. Não
acredito no chamado 'perigo amarelo' dadas as qualidades de ordem e respeito do
japonês, que acatam as leis e as autoridades locais, ./amais as incomodando, de modo
que as estatísticas policiais só raramente registram um japonês envolvido, mesmo em sim-
ples casos correcionais. Ele é assimilável se não o deixamos isolado. Concorda em que do
ponto de vista estético, seja elemento que não satisfaça. mas suas grandes qualidades so-
brelevam esse defeito e ele nos dá aquilo de que mais necessitamos: o esforço produtivo
admirável. (SNA, 1926:198)

Essa citação resume alguns dos principais argumentos do discurso pró-japoneses


que pudemos encontrar nas respostas. Assim, ante a imagem do amarelo oriundo de uma
civilização decadente, o inquirido opõe a do trabalhador organizado, com espírito de ini-
ciativa, disciplinado e capaz. À crença no "perigo amarelo" - expressão que identifica
os temores acerca de possíveis pretensões imperialistas sobre o Brasil - o autor contra-
põe a representação de um tipo ordeiro, de tal modo adaptado à autoridade, tanto a do
Estado Nacional Brasileiro na forma de suas leis quanto a do patrão no trabalho da la-
voura, que não se lhe registram prisões e sequer inquéritos. E ao discurso que propõe o
melhoramento racial pela imigração exclusiva do sangue branco - o "ideal de arianização",
do qual compartilhava o autor - pouco havia a fazer, senão colocar o critério eugênico em
segundo plano, enfatizando os demais. Afinal, nem tudo que se deseja se pode obter.
No sentido contrário, os mais radicais opositores da imigração japonesa repre-
sentavam-na como marcada pela ausência ou decadência de civilização, e como portado-
ra de costumes, língua e comportamentos que impediam a mistura com o nacional. Esse
era o tipo de argumento que havia sido mobilizado já na década de 60 do século XIX,
quando da possibilidade da imigração chinesa para São Paulo (Azevedo, 1987). Nessas
representações, o chin era fruto de uma civilização decadente, portador de hábitos vicia-
dos, inútil ao trabalho e infenso à assimilação.
Nas respostas ao inquérito do SNA estas representações sobre o chin são, algumas
vezes, reproduzidas em relação à imigração japonesa. E nessa reprodução é que se produziram as
visões mais negativas sobre o japonês. Foi assim que o professor Benedicto Edelberto de Goés,
de Coary, Amazonas, quando indagado a respeito afirmou ser".., contrário à imigração ama-
rela porque os indivíduos dessa raça são indolentes e dados ao vício de inebriantes"
(SNA, 1926:99).
No mesmo sentido, porém de forma mais sofisticada, o deputado federal por São Paulo e
relator do projeto de Fidélis Reis, João de Faria, afirmava:

Imigrante caro, devido à distância de seu país natal, o japonês não agradou o fa-
zendeiro paulista. A sua língua nos é incompreensível, os costumes são muito diferen-
tes dos nossos, com um aspecto fisico pouco atraente, dotado de uma moral que a
nosso ver, é estranhável e se caracteriza pela falta de cumprimento de seus contratos, o
colono japonês, em regra, quando recebe o pagamento, deserta em massa da fazenda du-
rante a noite. O fazendeiro desconfiou logo desse colono, porque ele não se arranjava con-
venientemente a sua casa, dormia no chão, com agasalhos de íntima ordem [...] e o banho
era tomado em comum, entre homens e mulheres, atirando água uns sobre os outros, de
modo que a casa já sem higiene, ficava em petição de miséria. (SNA, 1926:462)
Temos aí o tema da inassimilação - presente na afirmação de que tais imigran-
tes possuem uma moral marcada pelo "não cumprimento de seus contratos", o que
caracteriza uma "inadaptação" à própria lógica que preside a importação de imi-
grantes pela lavoura cafeeira - da eugenia, o "aspecto físico pouco atraente", e da
civilização, a ausência de hábitos de higiene e de conforto -, o que foi descrito nas
palavras de um dos inquiridos como "ausência de hábitos de raça refinada" (SNA,
1926:87). Estes temas permitiram aos adversários da imigração japonesa produzir, de
tal imigrante, uma visão triplamente negativa, tomando-o como o exato inverso do
imigrante ideal.
Um outro tipo de crítica recaiu sobre o imigrante japonês, tendo atingido também a
imigração dos afro-americanos. O eixo desta crítica era a imagem de um imigrante porta-
dor, a um só tempo, de inferioridade racial, de um alto grau civilizatório e de uma rejei-
ção à assimilação. A combinação específica entre assimilação e civilização foi a base
sobre a qual estruturaram-se os temores de que os imigrantes estivessem vinculados a
práticas imperialistas ou pudessem, no futuro, nutrir desejos separatistas. Tais temores
derivavam-se da crença de que um alto grau de civilização e cultura, quando associado a
práticas isolacionistas, tem por efeito reforçar as identidades étnicas das populações imi-
gradas, reforço esse que é associado ao imperialismo e ao separatismo na medida da vi-
gência daquelas concepções que derivam os Estados Nacionais de uma prévia unidade
física e cultural dos povos que lhes formam.Z°
Esta representação emprestaria um sentido especial ao critério da eugenia. Pois,
além do perigo político que representavam - por ameaçar a unidade e soberania do Esta-
do Nacional -, os japoneses eram vistos como ameaça à unidade cultural e racial da qual
deveria emergir o "tipo único brasileiro". Na definição de Darcy Azambuja, lavrador no
Rio Grande do Sul:
A raça amarela tem constituição mental, tradições, costumes, tendências e aspira-
ções tão arraigadas e diferentes das nossas que nunca se integrariam na massa da
nacionalidade brasileira e, antes, prolongariam, indefinidamente, o caos etnoiógico
em que nos debatemos. A colonização amarela formaria aqui, o quisto social que for-
mam os negros na América do Norte. (SNA, 1926:124)

Além dos "japoneses", os imigrantes negros vindos da América do Norte se


enquadram nesta classificação e são objeto de uma rejeição ainda mais profunda e
violenta. Eles são o alvo da resposta do General Moreira Guimarães, presidente da
Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, que responde ao inquérito da SNA afir-
mando:

20 Para uma análise das concepções que associam raça, cultura e nação ver Seyferth (neste volume).
Deve ser cauteloso o processo seletivo de modo que se evite a entrada de qualquer
grupo étnieo de raça negra consubstaneiando uma mentalidade perturbadora dos in-
teresses nacionais e que não se altere profundamente o equilíbrio dinâmico das per-
centagens dos componentes atuais da futura raça brasileira. (SNA, 1926:278)

A resposta acima expõe duas faces desse temor: a idéia de que os negros norte-
americanos trariam um tipo especial de inassimilação, que consistia "ódio de raças", e
que sua vinda poderia alterar a correlação de forças expressa na idéia de equilíbrio per-
centual dos componentes da raça brasileira. O temor de que se atualizassem no Brasil
conflitos raciais como aqueles vividos nos E.U.A. aparece também na resposta do médi-
co e Diretor Geral do Serviço de Estatística do Ministério de Agricultura Indústria e Co-
mércio, José Luiz Sayão de Bulhões Carvalho:
É contrário à imigração de negros porque viria a perturbar o processo de fusão
das raças que aqui se vai operando. Seria andar para trás e transplantar para o Bra-
sil o problema racial que os E.U.A., apesar de seu espírito prático não conseguiram
até hoje resolver. (SNA, 1926:214)

Ou ainda, nas palavras do já mencionado Antônio Americano do Brasil:


Já não teríamos para a lavoura as gentes simples, que foram os primitivos africa-
nos da escravatura, facilmente identificando-se com a terra. Os negros de hoje vi-
riam dos Estados Unidos, de São Salvador, de Barbados, elementos cheios de
defeitos, carregando o ódio ao branco que os tem perseguido, possuindo apurados
vícios que não tiveram os antigos escravos. (SNA, 1926:73)

Estas citações definem apenas uma parcela dos temores em relação à imigração ne-
gra, notadamente a preocupação com a guerra civil que atingiu os E.U.A. e com as lutas
anti-escravistas ocorridas em Barbados e São Salvador. As respostas revelam ainda o te-
mor que esse ódio racial, enquanto padrão de relação com a hierarquia racial, pudesse
servir de exemplo aos outros contingentes negros que compunham a população brasilei-
ra, produzindo uma ruptura, a um só tempo, da hierarquia racial e do processo de mistura
sobre o qual se definia a unidade política da Nação. Tal temor se expressa na seguinte
declaração do professor e Presidente do Círculo do Magistério Noturno Municipal no
Rio de Janeiro, Gabriel Bandeira de Faria:
Os negros são inferiores aos amarelos. Fiquemos apenas com os nossos homens
de cor, os quais são honestos, dignos, honrados, ótimos cidadãos, magníficos traba-
lhadores e parte integrante da nossa nacionalidade. Não procuremos con_lúndi-los
nem corrompê-los com os produtos estranhos e malçlicos, pernieiosos, exóticos, ori-
ginários da A~['rica ou mesmo dos Estados Unidos. (SNA, 1926:157)

Trata-se aqui de opor o "ódio racial" dos negros norte-americanos à perfeita inte-
gração do negro brasileiro à nacionalidade, como faz o secretário-geral da SNA, Heitor
Beltrão:
Aliás, conforme se pode ver dos resumos eontidos nas fichas individuais, nem to-
dos são fundamentalmente adversos à raça negra; quase todos elogiam os brasileiros
desta raça e exprimem sua gratidão aos serviços por esses prestados à pátria, ex-
pressando, outrossim, freqüente alusão à integração da mesma em nossa nacionali-
dade, o que faz desaparecer aqui o problema, que tão visceralmente preocupa os
Estados Unidos da América do Norte. (SNA, 1926:31)
Nas representações sobre o imigrante negro esse "problema racial" se tomaria ain-
da máis dramático na medida em que sua vinda aumentaria o contingente negro no Bra-
sil, e a associação entre um padrão de comportamento agressivo e um aumento da
população negra produziria o desequilíbrio da hierarquia racial vigente. Daí o já citado
Antonio Carlos Simões da Silva declarar:
Não aceito a imigração negra porque enquanto o Brasil tiver em seu seio o núme-
ro de representantes dessa raça, que ascende aos demais nele existentes, parece que
seria desequilibrar a bela harmonia reinante entre as mesmas, cogitar-se na entrada
de indivíduos da mesma raça máxime em grandes grupamentos, o que viria com o
tempo e seu peculiar de proliferação, a assenhorar-se de todo o país, em franco de-
trimento das demais. Mesmo em favor do elemento negro do Brasil não deve ser faei-
litada essa imigração, pois viriam imigrantes de religião diferente das dos negros do
Brasil, que são católicos fervorosos, e sem o entusiasmo patriótico que o negro tem
ag~. Ademais o negro norte-americano traria o ódio contra o Branco e
contra o amarelo, aqui felizmente desconhecido. (SNA, 1926:79)

Na medida em que o autor não considera que a vinda de japoneses e europeus em


massa também pudesse perturbar a "bela harmonia" entre as raças, fica claro que a
"harmonia" remete não ao número de indivíduos que as raças possuíam na população
global, mas a uma dada correlação de forças em que a população branca deveria predo-
minar. A idéia de uma "harmonia racial" remetia, assim, a um afastamento das possibi-
lidades de conflito, de modo que a mistura racial deveria ser conduzida dentro de uma
determinada hierarquia em que prevaleceria a raça branca. Em resumo, o risco da imigra-
ção de negros norte-americanos, para além de sua suposta inferioridade racial, consistia
na possibilidade de que não se fundissem, seja fisicamente ao trabalhador nacional, seja
simbolicamente à cultura brasileira.

RAÇA E IMIGRAÇÃO NA PRIMEIRA REPÚBLICA: A BUSCA


DO PONTO DA MISTURA

Até aqui procuramos evidenciar as representações constitutivas da categoria do


imigrante indesejável. Todavia, o que nos parece relevante no caminho que trilhamos foi
revelar a lógica que organiza este pensamento racial como um conjunto articulado de
representações, às quais definem tanto os imigrantes desejáveis quanto os indesejáveis,
posto que são lados da mesma moeda. Daí, o que tentaremos fazer nesta conclusão é
apontar o eixo sobre o qual se construiu esta lógica racial entre intelectuais e políticos re-
publicanos nos anos 20.
Nossa hipótese básica é que eixo da articulação entre raça e imigração na Primeira
República residiu na função atribuída ao imigrante de fornecer contribuições a uma
"mistura" física e cultural da qual resultaria um "tipo brasileiro" único e superior. Este
eixo foi o responsável pelos esforços em controlar a imigração, tornando-a instrumento
de construção da "mistura" homogênea e superior que deveria ser o povo brasileiro.
Na base dessas representações estava o ideal de aumento do contingente de sangue
branco na população brasileira. Este mesmo ideal orientara a política imigratória dos go-
vernos imperiais. Naquele período buscou-se obter uma inversão da pirâmide populacio-
nal, cuidando que houvessem mais brancos que negros no País, por meio da adição dos
imigrantes europeus à população branca já existente. Mas, a partir dos anos 80 do século
passado, a esse ideal somou-se uma preocupação de que os imigrantes brancos se dispu-
sessem à miscigenação e à assimilação cultural.21 A partir daí, a prática ou não da misci-
genação, bem como os tipos que ela viria a produzir, e a disponibilidade à assimilação
funcionaram como eixos de referência de estímulo e de crítica de todos os empreendi-
mentos migratórios, até mesmo dos. "brancos". Sílvio Romero, por exemplo, tendo por
referência o imperativo da miscigenação e da assimilação como requisitos para a cons-
trução de uma Nação branca, formulou críticas ao "enquistamento alemão" no Sul do
País, preocupado com o fato de colonos imigrados não se casarem e não aprenderem a
língua portuguesa (Seyferth, 1991 ).
Uma das explicações da ênfase sobre a miscigenação diz respeito ao fato de que a
constituição do Estado Republicano como Estado Nacional passou, necessariamente,
pela elaboração de um conjunto de representações acerca da identidade nacional brasilei-
ra. E muitas das imagens de Nação fabricadas ao longo das primeiras décadas da Repú-
blica conceberam a unidade nacional como problema relativo à produção de um povo
brasileiro, à produção de uma unidade racial em meio à diversidade de populações que
ocupam o território.22
Contudo, se por um lado a idéia de homogeneidade racial como base da Nação de-
tiniu a miscigenação como meta fundamental da imigração, por outro tal prática foi con-
cebida como devendo ser orientada pelos pressupostos de desigualdade contidos nas
teorias raciais. Essa combinação de miscigenação e desigualdade racial - ou, em outros
termos, de mistura e hierarquia entre raças - foi responsável pela definição de um papel
privilegiado para os povos de raça branca.
Assim, ao mesmo tempo que a mistura era um eixo fundamental das repre-
sentações sobre o imigrante, os vários componentes possíveis dessa mistura nunca foram
tomados como equivalentes entre si. Ao contrário, foram classificados nos termos de
uma nítida hierarquia racial que definia desde a plena positividade de determinados po-
vos até a extrema negatividade de outros. Essa classificação não recomendava quaisquer

Seyferth (1991 : 11 ) assinala o final do século XIX como o momento em que o Estado brasileiro muda de
posição em relação às populações imigradas, enfatizando menos o papel colonizador dos povos brancos
do que sua disponibilidade à assimilação, porconta do temor dos chamados "quistos étnicos". Segundo
a autora, quando entra em cena a tese do branqueamento - e o seu corolário: a idéia de miscigenação -,
os alemães cedem lugar aos povos latinos corno imigrantes brancos pret~renciais. Os alemães considera-
dos inassimi[áveis passam também a ser vistos como um "perigo" para a unidade nacional.
Essa ênfase na produção de um povo esteve diretamente ligada à passagem da Monarquia à República,
quando se tentou definir a existência de um povo brasileiro - cuja expressão seria o mestiço - como eixo
simbólico da unidade nacional. Até então, este eixo era definido pela figura do imperador. Esse desloca-
mento encontra similar na história européia e foi assim descrito por Michel Foucault, para o caso da
França, em entrevista ao periódico Quel Corps: "Numa sociedade como a do século XVII, o corpo do
rei não era uma metáfora, mas uma realidade politica: sua presença física era necessária ao funciona-
mento da monarquia.., lA república "una e indivisível" -JSR] é uma fórmula imposta contra os giron-
dinos, contra a idéia de federalismo à americana. Não há um corpo da República. Em compensação, é o
corpo da sociedade que se torna, no decorrer do século XIX, o novo princípio, É esse corpo que será pre-
ciso proteger, de um modo quase médico: em lugar dos rituais através dos quais se restaurava a integri-
dade do corpo do monarca, serão aplicadas receitas terapêuticas, como a eliminação dos doentes, o con-
trole dos contagiosos, a exclusão dos delinqüentes. A eliminação pelo suplício é, assim, substitutda pelos
métodos de assepsia: a criminologia, a eugenia, a exclusão dos degenerados..." (Foucault, 1986:145).
misturas, mas tão-somente aquelas que pudessem representar a melhoria biológica e a ci-
vilização do trabalhador nativo. E mesmo para a imigração branca postulava-se uma hie-
rarquia a recomendar diferentes combinações segundo o povo imigrado e a região onde
seria instalado.
, Por fim, os mecanismos de seleção dos imigrantes tiveram também um papel de re-
forço e reprodução da hierarquia entre populações, característica da sociedade brasileira.
Estes mecanismos de seleção, que propiciavam o aumento da população branca, ti-
nham por objetivo reduzir os riscos de um questionamento da ordem racial vigente por
meio da violência dos não brancos. Mas, para que este resultado pudesse ser alcançado,
era necessário que os imigrantes brancos não representassem, eles mesmos, uma ameaça
à "ordem constituída". Daí que os mecanismos de seleção levassem em conta, além da
cor da pele, a necessidade de se obter os mais assimiláveis entre os brancos e, quando
não fosse possível evitar, os mais "dóceis" entre as "raças inferiores". Tratava-se, so-
bretudo, de esconjurar o risco máximo de não brancos indóceis, inassimiláveis e que pu-
sessem em questão a hierarquia racial - o que era o caso da representação que recaía
sobre os afro-americanos.

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