Sei sulla pagina 1di 18

A R T I G O S

TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
E A LITERATURA BÍBLICA*

Joel Antônio Ferreira**

Resumo: refletiremos sobre experiências bíblicas no Brasil, pontuando regiões do interior


do Brasil, em tempos de Ditadura Militar. De fato, no sistema da repressão
brasileiro, os cristãos, fundamentados na Bíblia, resistiram e profetizaram.
Conseguiram com isso, transformar locais e regiões na busca de uma socie-
dade de paz e de justiça
Palavras-chave: Transformação. Justiça. Movimentos populares.

Q
ueremos abordar, nesse primeiro artigo, em que e como as Literaturas Hebraicas
e Cristãs - a Bíblia – contribuíram com a transformação social. Num primeiro
momento, apontaremos alguns textos bíblicos que foram expressões de lutas
transformadoras, frutos da fé crítica pessoal e comunitária. Num momento
posterior, olharemos os métodos dos movimentos populares e, também, da
Academia que ajudaram na compreensão da Bíblia. Num terceiro momento,
apresentaremos algumas experiências transformadoras, especialmente, no Brasil,
e, localizadamente, na região de Goiás. Por fim, veremos os muitos desafios
que as leituras bíblicas têm que enfrentar diante das adaptações do Brasil ao
sistema do neoliberalismo internacional.
Ainda nesta Introdução, é preciso dizer que a Literatura Bíblica (Hebraica e Cristã)
nunca provocou, em nenhuma parte, uma transformação radical de algum modo
de produção ou de um sistema injusto. O que aqui olharemos é como esta Li-
teratura provocou, nas bases, em geral, por movimentos populares, um modo
novo de ver e de agir na defesa da justiça e da igualdade. Aí, sim! Movimentos

–––––––––––––––––
* Recebido em: 29.10.2012. Aprovado em: 10.12.2012.
** Doutor em Ciências da Religiãopela Universidade Metodista de São Paulo. Mestre em
Teologia Bíblica pelo Instituto Bíblico de Roma e Universidade Gregoriana. Professor no
Mestrado em Ciências da Religião e no Departamento de Filosofia e Teologia da Universi-
dade Católica de Goiás. E-mail: joelantonioferreira@hotmail.com.

4 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


populares que, a partir da fé e de experiências comunitárias, questionaram,
criticaram, enfrentaram e militaram contra sistemas injustos.

TEXTOS QUE FORAM EXPRESSÃO DE LUTAS TRANSFORMADORAS

Dentro da religião, a literatura sagrada tem sido um forte fator para a transformação da sociedade.
Cada religião, em geral, possui seus livros sagrados, considerados inspirados por Deus
e normativos para a vida de seus fieis. Em nossa cultura ocidental, e, particularmente,
na América Latina, adota-se como Escritura Sagrada, a Bíblia. Muitos de seus textos
foram frutos de experiências transformadoras ou de um grupo ou de uma comuni-
dade maior. Experiências de grupos de fé crítica e de organizações comunitárias
geraram muitos textos que se tornaram, por sua vez, movedores de novas experi-
ências, ao longo da história. Muitos textos violaram o stablishmente propuseram
um projeto transformador, baseado na fé em Deus.
Por exemplo, se pegamos Gn 38, a narrativa sobre “Tamar e Judá”: parece ter sido
um texto contado, na redação final, pelo palácio ou pelo templo. No entan-
to, o relato não interessava a nenhuma dessas instituições. Como entrou,
então, essa história, se ela era uma profunda crítica aos detentores do po-
der, e, principalmente, ao grupo ligado a Judá que se tornará, no futuro,
a nomenclatura geradora do judaismo e do povo judeu? A força histórica
da experiência de fé crítica, especialmente, na época do tribalismo, que
gerou, consequentemente, a fé do(a)s camponeses javistas, que, certamen-
te, contavam o relato de Tamar, impôs, no imaginário coletivo hebreu, um
ícone onde era preciso frisar que Tamar não dera filhos aos filhos de Judá.
Que não era abençoada. Que enganou Judá, o patriarca. Que se passou por
prostituta. Que era mulher.
No entanto, os que impuseram o “relato de Tamar” não tinham a ideologia do
“purismo legalista” que foi ocupando a mentalidade do poder ligada ao
templo, especialmente. Ao contrário, a base hebraica olhava Tamar, não
como excluída, mas como mulher que ajudou a realizar o plano de Deus.
A tradição hebraica, especialmente, a camponesa, começou a ler a histó-
ria, a partir da base, para compreender o verdadeiro projeto de Deus que
contemplava, desde o início da história, os hapiru. Era, então, a hora de
colocar, em Gn 38,26 Judá, o patriarca, reconhecendo Tamar como “jus-
ta”. Se Tamar, no início da narrativa, não tinha espaço e era manipulada
pelos masculinos, no final do relato, ela teve voz, teve projeto, teve vez
e foi reconhecida como mulher. Tamar desmantelou toda uma concepção
androcêntrica de mulher como a “passiva” e objeto do prazer do “macho”.
A tradição hebraica popular contava que Tamar era uma resistente que deu
passos decisivos para superar o patriarcalismo: enganou, sabiamente, quem

5 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


se aproveitou dela. Primeiro na entrada do vilarejo e, segundo com o selo,
o cordão e o cajado. Foi resistente, salvando três vidas: os gêmeos e a si
própria. Foi resistente, mostando a Judá o papel que ele, parecia, havia
perdido e que agora retomava.
O mesmo relato de Tamar, especialmente, nos nossos dias, foi retomado pelas bases
organizadas cristãs para servirem de reflexão e questionamento das várias
posturas patriarcalistas e androcêntricas que tem oprimido as mulheres, par-
ticularmente, as pobres e sem espaço.
Experiências de fé crítica geraram as Escrituras hebraicas e cristãs. A narrativa de
Tamar está dentro dessa perspectiva com um outro adendo forte: a memória
da saída da escravidão do Egito. O memorizar a escravidão e a libertação
foi, no futuro, o tema central da história dos hebreus, israelitas e, mais tarde,
os judeus. Então, mesmo os grupos ligados ao palácio e ao templo, estando
ligados ao poder, guardavam a força sociológica e teológica da memória da
escravidão e libertação. Então, mesmo estando ao lado do poder, os escribas
finais, em muitos casos, respeitaram a oralidade e a memória vindas dos
sofrido(a)s hebreu(ia)s e as colocaram nas redações finais.
Textos como o que vimos de Tamar (Gn 38), ou outros como Agar (Gn 16), Raab (Js
2 e Js 6,17-27), as parteiras (Ex 1,15-22), o cântico de Míriam (Ex 15,20-21),
o Cântico de Débora (Jz 5), colocados pela Redação Final, bem mais tarde,
retrataram a memória libertadora, pela ótica feminina.
A marca de Tamar foi tão profunda, que, na fina flor da linha da justiça, mais tarde,
Mateus (Mt 1) retomou essa mulher, colocando-a na genealogia de Jesus.
Mateus foi mais longe: além de Tamar, contemplou Raab, Betzabéia, Rute e
culminou em Maria. Violou a prática judaica das genealogias masculinas e
rompeu com a falsa ideia de que o Messias viria do Palácio. Pelo contrário, a
realização messiânica de 2 Samuel 7, 1-14 aconteceu na história de mulheres
também. Mais ainda: mulheres mal afamadas. Ainda mais: mulheres estran-
geiras (Raab e Rute). Mais: mulheres pobres. Só assim, ele podia chegar em
Maria, mãe de Jesus, não muito diferete das anteriores. Mateus, um judeu que
escrevia para judeu, baseado na justiça, compreendeu o antigo Testamento,
como uma memória, por vezes, violadora do status quo e, sempre libertadora
de qualquer escravidão.
Textos que envolvem o livro do Êxodo e uma vastíssima literatura nos Salmos e nos
profetas foram a expressão da organização dos hebreus pela luta contra o
regime opressor do Faraó no Egito e nas cidades-estados da região de Canaã.
Para o povo da Bíblia, a memória da saída da escravidão era a garantia e o
sentido da luta pela vida.Os redatores finais, muitas vezes, foram fiéis às
tradições orais e ao imaginário coletivo, quando percebiam que o teológico
era fundamental e estava envolvendo os relatos.

6 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


MÉTODOS

Ver, Julgar e Agir

Os métodos de leitura bíblica, no Brasil, nos meios populares, usaram, em princípio, a


metodologia européia do “Ver-Julgar-Agir. Após a guerra mundial, até chegar
aos tempos do regime militar brasileiro, ele foi bem praticado na JEC, JOC
e ACO, e na JUC.À frente, falaremos mais sobre essas experiências.

Leitura Popular da Bíblia

No final dos anos 1960, após o Vaticano II e Medellín, iniciaram-se, no Brasil, a


princípio, usando o método “Ver-Julgar-Agir”, os círculos bíblicos e escolas
do Evangelho. Aqui, devagarzinho, a trilogia “Bíblia-Vida-Comunidade” foi
aperfeiçoandoo método anterior. O objetivo era fazer a Leitura Popular da
Bíblia nos movimentos populares, a princípio, nas esferas das igrejas.
O grande protagonista foi Carlos Mesters. Esse método que penetrou todo o Brasil
e América Latina e, também, outros continentes, após interessantes experi-
ências de grupos de vivência apresenta várias características (MESTERS;
OROFINO, 2005, p. 1-2) 1: 1) A Bíblia é acolhida como Palavra de Deus,
a fala de Deus vem dos fatos iluminados pela leitura da Bíblia e a Palavra
está também na Vida. 2) Há uma fidelidade à Tradição Viva. 3) Se Deus
ouviu os clamores dos sofridos, no passado, hoje, também, ele nos ouve por
que é Emanuel. 4) A Bíblia é o Livro da Vida de cada dia. 5) Escrita para
nós. 6) Que revela Deus na vida. 7) Ela é uma Boa Notícia para os pobres.
8) O estudioso da Bíblia precisa estar inserido no meio do povo. O uso da
ciência e do bom senso precisam estar juntos. 9) A leitura é envolvente
(contribuição intelectual do exegeta e a participação da comunidade). 10)
Ambiente comunitário de fé.

Leitura Sociológica da Bíblia pelo Modelo Conflitual: vem da base

Para se ler a bíblia pela base, a partir da libertação dos hebreus, na pastoral bíblica operária
do Brasil, Gorgulho ligou o método Ver, Julgar e Agir com a leitura sociológica
(Gorgulho, 1986)2. No tempo intermediário entre o final da Ditadura Militar
e a retorno à Democracia (década de 1980), a leitura sociológico-conflitual
da Bíblia foi bastante difundida, principalmente, entre os estudiosos bíblicos
envolvidos nos meios populares. É a leitura na ótica dos pobres3.O texto é
olhado dentro do conjunto do dinamismo da sociedade em todas as dimensões
(social: econômico, social, político, cultural, militar, jurídico, ideológico e, ai

7 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


dentro, o religioso), na sua relação com a natureza, com o próximo e com Deus
(GORGULHO; ANDERSON, 1987, p. 25). É um modelo que ajuda fortemente
a leitura popular da Bíblia porque ensina a ler a realidade numa perspectiva de
construção dinâmica (KONINGS, 1992, p. 70-1). Neste modelo a dialética dos
conflitos se manifesta com evidência, porque a assimetria é colocada às claras
(ALVAREZ-VERDES, 1985, p.16) e a “mudança” é um elemento regular da
vida social(OSIEK, 1989, p. 272). Toda sociedade de classes tem uma estrutu-
ra assimétrica e é aí que se situa a dinâmica conflitiva (ALVAREZ-VERDES,
1985, p.16-17).

A Leitura Conflitual, a Questão Hermenêutica e a Suspeição

A leitura sociológica pelo modelo conflitual ajudou as comunidades populares a


lerem a Bíblia, na perspectiva da Transformação social. Por isso, houve o
esforço para deixar de lado diversas hermenêuticas (fundamentalismo, lei-
tura ingênua, concordismo, leitura espiritualista, leitura funcionalista) que
mantinham o status quo.
Na Bíblia, do inicio ao fim, percebemos profundas assimetrias sociais e econômi-
cas. Há, sempre, a denúncia ou a constatação de que um pequeno grupo
explora outros (FERREIRA, 2012, 2. ed., p. 52). O hermeneuta precisa
ficar atento. A leitura sociológica crítica da Bíblia, pelo modelo conflitu-
al, ajuda a (re)-construir memórias dos que estavam na base da pirâmide
econômico-social (pobres) ou mais abaixo ainda (escravos) que foram
supressos por vozes ideológicas responsáveis pela manipulação e reestrutu-
ração das narrativas. Precisa ficar de sobreaviso e perguntar se a narrativa
está sendo favorável a uma classe ou a uma ideologia dominante: é uma
atitude de “desconfiança”, de “suspeita” 4. A abordagem sócioanalítica ajuda
a “des-construir” um texto, uma perícope etce a detectar as pessoas, os
grupos sociais que manipularam e intervieram ideologicamente a serviço
de um sistema dominador. A partir da (des)construção, é possível criar
um processo de (re)construção histórica dos papéis e relações sociais que
estão por trás dos relatos e narrativas.

O Lugar Social das Pessoas e de Grupos na Bíblia

Esta leitura ajuda-nos a olhar, o “lugar social” de toda a narrativa (FERREIRA, 2012,
p. 53)para ouvir a voz dos oprimidos e denunciar a voz dos dominadores. O
“lugar social” dos esquecidos se torna um espaço primordial 5. Esta é a grande
novidade até hoje e sempre: o Deus dos cristãos faz sua opção preferencial
pelos pobres.

8 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


EXPERIÊNCIAS DE TRANSFORMAÇÃO A PARTIR DA BÍBLIA

Situação Histórica

Este tópico precisa ser situado na conjuntura internacional e nacional. Após a 2ª Guerra
Mundial (1939-45), dois grandes movimentos, a partir da Bíblia, procura-
ram dar um sentido novo à história: o Movimento “Por um Mundo Melhor”
de Pe Lombardi e o Movimento de “Ação Católica” europeu que teve uma
interessante influência no Brasil. De 1962-65 houve o Concílio Ecumênico
Vaticano II, evento católico com a presença de iminentes observadores dos
vários credos cristãos. No Brasil, nesse momento, houve a experiência som-
bria do golpe militar de 1964-85. Em 1968, aconteceu o encontro dos bispos
latino-americamos em Medellín (Colômbia).
A Ação Católica6, proveniente da Europa, teve uma interessante influência no Brasil,
antes do Concílio, trazendo uma utopia, 7 principalmente, com a Juventude
Estudantil Católica (JEC), com a Juventude Universitária Católica (JUC)
e Juventude Operária Católica (JOC) 8. Foi desse movimento que surgiu o
Método “Ver-Julgar-Agir” que se perguntava: “se Jesus estivesse aqui, nesse
momento, como ele agiria diante dessa situação?”. Esse movimento criou,
no mundo laico, grandes lideranças cristãs.
Em Roma, acontecia o Concílio Ecumênico que, para o nosso objeto de reflexão,
preparou o documento Dei Verbum (Palavra de Deus): Abriram-se os ho-
rizontes. Enquanto as Igrejas se moviam na compreensão e formação em
torno da Palavra de Deus, impô-se a Ditadura Militar: momentos sombrios,
tristes e de dura memória. Nesse tempo de exceção, de um lado, motivado
pelo incentivo do Concílio Ecumênico para a leitura da Palavra de Deus e,
de outro, pela repressão às reuniões fossem quais fossem, proliferaram-se as
experiências das leituras bíblicas (círculos bíblicos e grupos de Evangelho)
nos meios populares.

Movimentos Populares, CEBs e CEBI

Os inícios dos círculos bíblicos e grupos do Evangelho pegaram carona com interes-
santes experiências do movimento de educação de base (MEB) 9, das escolas
radiofônicas10 e dos Movimentos da Ação Católica 11. Despretensiosamente,
os grupos foram experimentando, na base, jeitos novos de conhecerem a
Palavra de Deus.
Em toda parte do Brasil, foram sendo criadas, no início da década de 1970, as Comu-
nidades Eclesiais de Base (CEBs). Estas iam, devagarzinho, tomando rosto
nas reuniões nas casas, para lerem a Escritura e confrontá-la com a realidade.

9 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


Eram comunidades de fé. A Palavra de Deus ia sendo vivenciada por pessoas,
grupos, círculos, encontros etc.
Começavam as experiências de que ser “comunidade” significava ter igualdade fraterna,
partilha, corresponsabilidade, mesa eucarística do Pão e da Palavra. Foram per-
cebendo um novo jeito de ser “igreja” que surgia da “base”, isto é, dos excluí-
dos/as que assumiam uma nova postura diante da repressão e que propagavam
a esperança no Reino de Deus. As Comunidades Cristãs ou Eclesiais de Base
foram nascendo como expressão de uma Igreja viva e comprometida.
Nas CEBs se vive a dimensão de um coração e mãos abertas para quem sofre ou passa
necessidade, mas também a dimensão profética de anunciar continuamente
a utopia do Reino e, ao mesmo tempo, denunciar todos os mecanismos e
estruturas que impedem a chegada do Reino. É exatamente esta dimensão
profética que gerou as e os mártires da Amazônia (CNBB Amazônia 2012),
bem como os mártires em várias partes do país.
Naqueles momentos sombrios da ditadura, os grupos iam amadurecendo algumas
atitudes como a esperança pascal, a indignação profética e, lentamente, foi
surgindo o compromisso militante (CASALDÁLIGA, 2012). A leitura popular
da Bíblia estava transformando socialmente, politicamente e religiosamente
os inúmeros grupos e círculos bíblicos bem como as CEBs. Ela, nas pequenas
comunidades, estava se tornando libertadora, em tempos de repressão.
Foi nesse contexto de iluminar a leitura popular da Bíblia, feita nas bases, na zona
rural, nas periferias das grandes cidades, na pastoral operária, que surgiu o
Centro de Estudos Bíblicos (CEBI). Se as CEBs foram aparecendo a partir
de 1968, dez anos depois, com iniciativa de Mesters, surgiu o CEBI.

O conhecimento da Bíblia e a preocupação comunitária encontraram o seu


objetivo no serviço ao povo. As pessoas empobrecidas, nas suas comunida-
des lendo a Bíblia a partir do único critério de que dispunham, a saber, a
sua vida de fé e a sua situação de povo oprimido, iam descobrindo o óbvio
que não conheciam: uma história de opressão igual à que elas mesmas
estavam sofrendo, uma história de luta pelos mesmos valores que elas
perseguem até hoje: terra, justiça, partilha, fraternidade, vida de gente.
É o período em que se acentua a dimensão política da fé. É neste mesmo
período dos anos 70 que surge o CEBI, o Centro de Estudos Bíblicos a
serviço da Pastoral Popular, que procura divulgar e dar autoridade a esta
leitura popular da Bíblia (MESTERS; OROFINO, 2005, p.4).

Ele atua em três dimensões: a) na formação bíblica das lideranças comunitárias e mo-
vimentos sociais; b) na proliferação da literatura bíblica para as comunidades;
c) na articulação de grupos na defesa da justiça social e do meio ambiente.

10 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


É aqui que percebemos, fortemente, como o CEBI veio, desde a ditadura militar até
os dias de hoje, sendo a expressão transformadora que vem da base: pessoas
como moradores/as de bairros, agricultores/a, operários/as, grupos de mulheres,
por vezes, assalariadas, movimentos dos sem-terra, sem-teto, ambientalistas,
quilombolas, alguns grupos indígenas, pessoas de defesa dos direitos huma-
nos, sindicalistas rurais, organizações que aproximam suas atividades a uma
espiritualidade bíblica comprometida com a transformação social, a justiça e a
cidadania, sempre numa mentalidade ecumênica (LOPES, 1988, p. 6-8).
A leitura bíblica atingia, na década de 1970, os movimentos de base (comunidades) coordena-
dos pelas igrejas cristãs e inspirados pela Teologia da Libertação. Havia movimentos
sociais, por vezes, clandestinos, que se moviam na oposição à ditadura militar. A
postura dos cristãos da base era de resistência prudente e inteligente. As denúncias,
na época de “chumbo”, eram assumidas, muitas vezes, pelos seus pastores, que
tinham que ser voz e vez dos que não a tinham (CASALDÁLIGA, 1971).
A força da resistência, além da comunhão eclesial, era a leitura da Bíblia. Nesse tempo,
as comunidades eclesiais de base e grupos do Evangelho leram livros confli-
tuais da Bíblia, principalmente, os textos surgidos em tempo de perseguição,
como o livro do Apocalipse. Por exemplo, quando em São Paulo foram presos
e torturados os frades dominicanos, as igrejas liam e meditavam esses textos
surgidos em época de conflitos. Isso iluminava as estradas e dava forças para
o enfrentamento da repressão. Enquanto a situação política era repressora, a
comunhão decidida e determinada das bases deu sustentáculo aos que podiam
falar e gritar em seu nome. Portanto, a base, ao ler a Bíblia, era um sustentá-
culo para os seus representantes na hierarquia. Os grandes textos de denúncia
contra os desrespeitos da ditadura militar surgiram, em várias igrejas do Brasil,
respaldados pelas igrejas da base.
Com isso, muitos militantes não cristãos se aproximaram dos grupos das igrejas, porque
estas, como instituição, até certo ponto, eram respeitadas e tinham, em alguns
lugares, posturas de enfrentamento, por causa da justiça e da defesa dos direitos
humanos. Vários daqueles foram protegidos, escondidos ou salvos da tortura,
prisão e morte, pela interferência dos líderes das igrejas. Citamos aqui vários
Bispos, como D. Arns e líderes como Sobel e Jaime Wright 12. O que mantinha
a força dessas lideranças? Além da fé e espiritualidade, a força das comuni-
dades que liam a Bíblia na Base.

A Bíblia e seu Papel Transformador

Quase toda a América Latina (Sul, Central e parte do Caribe) passou por
experiências terríveis, em nível político. Muitas nações passaram por esses
abomináveis momentos de dor. Se olharmos a história de El Salvador, Ni-

11 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


carágua, Guatemala, Peru, Chile, Argentina, Bolívia, Brasil, entre tantos,
recordar-nos-emos das Igrejas proféticas que enfrentaram, em nome da fé em
Deus, as arbitrariedades e os desrespeitos a tudo quanto é direito humano.
Nesses países, as experiências populares da leitura bíblica foram o sustentá-
culo de tantos cristãos e pessoas que buscavam a verdade. Por isso mesmo,
foi o tempo dos/as mártires, porque resistiram e profetizaram. Vamos afunilar
a nossa reflexão. Olhemos aqui bem perto.

Experiências de resistências localizadas

Podemos citar aqui no Regional Centro-Oeste da CNBB, as resistências de três Dioceses,


sempre na questão da defesa da Terra. O primeiro exemplo é da Diocese de
Ipameri. Quando o governo brasileiro de Geisel fez uma aliança com o gover-
no japonês, com o projeto JICA 13, foi a leitura da Bíblia, em toda a Diocese
que deu aos pequenos fazendeiros e lavradores a iluminação para resistirem
à venda (tomada) das terras por parte dos “sulistas” que eram intermediários
do referido projeto. Nessa região o projeto fracassou. Apareceram muitos
problemas.
O segundo exemplo é de S. Félix do Araguaia. Com uma população à base dos peões,
índios e posseiros, no final da década de 1960, foi a leitura da Bíblia que
ajudou aquela Igreja a ser voz dos que não tem voz e vez dos que não tem
vez. Especialmente os posseiros, o sindicato de lavradores, o clube das co-
madres, o grupo de jovens, os assentamentos e os agentes de pastoral foram
a resistência, ainda em tempos duros da repressão da Ditadura Militar, até os
dias de hoje. Nesse tempo, a perseguição ao Bispo e aos agentes de pastoral
foi intensa: aconteceram aí os martírios 14.
O terceiro exemplo, a que nos deteremos um pouco mais, é da Diocese de Goiás. Nos
tempos de ditadura militar e, posteriormente, na transição para a Democracia e,
também, tempos da UDR, quem estava à frente da Diocese de Goiás, era D. To-
más Balduino15. Para ele, o clima geral, pós Vaticano II e Medellín, era favorável.
Outras Dioceses como Propriá, S. Félix, Goiânia, Xapecó, Caxias, Vitória, João
Pessoa, S. Paulo puxavam as CEBs. Era um clima de renovação de interesses.
Na Diocese de Goiás, no início, chegaram muitos agentes de pastoral que tinham
muito peso no modo de ler a Bíblia e de se organizarem. Estes foram dando for-
mação e ajudando num grande caminho. Houve intercâmbio. Por exemplo, Carlos
Mesters e a leitura popular na linha libertadora. O novo modo de ler a Bíblia
entrou no coração do povo: os lavradores/as, meeiros, roceiros/as se aglutinaram
na Igreja quando viram que ela estava do lado deles. O pessoal começou a ler
a Bíblia, de um modo novo: começaram pelas parábolas, da árvore que não dá
bons frutos, os textos do ambiente rural. Aí, foi-se descobrindo a Palavra com

12 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


pouco trabalho. Ia-se percebendo o lado salvífico, popular, libertador. As reuni-
ões aconteciam nos chamados “grupos de Evangelho”. A leitura bíblica foi se
alargando para o Antigo Testamento, para a compreensão do Êxodo. O estudo
era valorizado e transformado, pouco a pouco, em cantos, festas, mutirões como
nova visão. Além de libertadora, iam compreendendo o “livro sagrado”, como
“nosso livro”. Compreenderam que, além do Antigo Testamento (antes de Jesus)
e o Novo Testamento (Jesus), havia o “novíssimo testamento”: “somos nós”! Era
a história deles, atualizada. Tinham liberdade de interpretar. Aprenderam pelo
método Paulo Freire, com a grande assessoria de Elizeu.
Um problema sério para os agentes de pastoral: o catolicismo tradicional. Goiás, antiga
capital, tinha um grande aparato sócio-político-cultural. Como planejamento,
foi feita uma opção por não quebrar nada. Tentava-se respeitar a tradição e se
apresentava, durante o tradicional, o concílio, a colegialidade, o povo de Deus.
Era o esforço que se fazia, rezando o terço e, aí, se propunha alguma coisa, no
comentário da Palavra. A procissão do encontro da 6ª feira santa era respeitada
e, no meio, apresentava-se o novo. Não havia problemas. No ano da consciência
negra, por exemplo: na estação que dizia que Jesus caiu pela 2ª vez, perguntava-se à
multidão: “se Jesus caiu, como uma mãe negra hoje, reagiria ao ver o seu filho cai-
do?” Isso passava tranquilamente. Respeitava-se a tradição e apresentava-se o novo.
Esse lado libertador virou, também, político: começaram a se organizar. Antes da nossa
chegada, já havia alguns grupos de lavradores em Formoso, em Itauçu, grupos
que foram reprimidos. Com a caminhada a coisa entrou. A leitura bíblica envol-
veu o aspecto transformador. O Centro de Formação (casa do bispo) tornou-se
o local de reuniões, de formação, escritório, alojamento. Grupos do Evangelho
geraram movimento dos trabalhadores. Caminhavam com os próprios pés e
pensavam com a própria cabeça. Vieram depois as “ocupações”: movimento
dos trabalhadores. Depois quiseram entrar na CPT deles: plena autonomia.
Era um movimento dos pobres. Eles esperavam a concretização da libertação
na vida deles. Era uma dimensão política. Do ponto de vista da Terra, fizeram
ocupação, acampamentos. Foram tempos difíceis. Assumiram a questão da
Terra, mais que a política local, estadual e nacional.
Entre tantos fatos libertadores podem-se citar as experiências da saúde. Foi uma for-
ça a compreensão da fitoterapia, receita caseira, cartilha da lamparina. Isso
pegou. Tinha dois médicos jovens, além das pessoas do meio popular que se
especializaram nessa pastoral da saúde. A nova saúde dinamizou os pobres.

Experiências da base e martírios 16

Entre aqueles que se identificaram com a Palavra Bíblica e com a luta sindi-
cal foi Sebastião da Paz: não faltou o testemunho de entrega da própria vida

13 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


até o derramamento de sangue (TEIXEIRA, 2009, p. 31-2). Este testemunho
animou, encorajou e fortaleceu as caminhadas das bases das igrejas.Sebastião
engajou-se cada vez mais nas atividades da igreja. Atuando como coordenador,
incentivou as atividades nos círculos bíblicos, nas celebrações dos cultos e nas
visitas que realizava junto às comunidades rurais da redondeza, animando-as
com a palavra do evangelho, anunciando a “boa nova”. Através desse traba-
lho, ele incentivou as pessoas a refletirem sobre a realidade de suas vidas,
da vida da comunidade, da sociedade e do mundo em que viviam. Tornou-se
um dos principais líderes de experiências de base da Diocese de Goiás e,
posteriormente, do trabalho sindical. Mudando-se para Uruaçu, motivando
o surgimento de um novo sindicato rural dos trabalhadores ali, foi motivo
do ódio dos patrões que o assassinaram em 28 de Agosto de 1984. Um ano
e dois meses depois, a “profecia e martírio” aconteceu com um outro líder
da Diocese de Goiás, Nativo Natividade de Oliveira (OLIVEIRA, 2009, p.
27- 30), (assassinado em 23/10/1985) 17.

Os Estudiosos e a Literatura Bíblica Transformadora

Também os estudiosos da Bíblia, motivados pelo seu papel transformador,


e, em comunhão aos excluídos, procuraram dar a sua contribuição. Na déca-
da de 1980, após Medellin e tempos de ditaduras em quase toda a América
Latina, surgiu um comentário latino-americano da Bíblia 18. Este nasceu de
uma leitura nova da Bíblia feita pelo povo cristão da América Latina, mais
especialmente do Brasil. Surgiu compreendendo que a leitura devia ser fei-
ta a partir dos pequenos e oprimidos que viviam a fé. Perceberam que era
necessário, para compreender os pobres da Bíblia e os pobres de hoje, ler a
Bíblia pelo método sociológico, pelo modelo conflitual (dialético), onde se
contemplavam as leituras negra, feminista, indígena e ecológica.
Os especialistas desse comentário tinham uma longa experiência de prática das co-
munidades cristãs populares (COMBLIN, 1985, p. 6-7). Entenderam que a
libertação começava pela Bíblia. Ao conscientizarem-se de que os simples
e pequenos estavam descobrindo a Bíblia, definiram a linha de reflexão em
cinco momentos: a) A Bíblia como memória dos pobres; b) A prática dos
pobres nas lutas de libertação; c) A Bíblia, livro da esperança dos pobres; d)
A Bíblia, oração do povo de Deus; e) A Bíblia, livro ecumênico; f) Leitura
da bíblia em vista de uma nova prática (COMBLIN, 1985, p. 7-11).
Ao lado desse Comentário, a fim de favorecer os leitores de toda a América
Latina, América Central e Caribe, surgiram duas revistas: Estudos Bíblicos
e Revista de Interpretação Bíblica Latino Americana (RIBLA). Apontamos
aqui a figura do nosso saudoso Schwantes. Nesse mesmo tempo, sempre na

14 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


preocupação da leitura transformadora apareceram os fascículos do CEBI,
intitulados “Por trás da Palavra” e do mesmo CEBI, a série “A Palavra na
Vida”.

Mudança Histórica

Caiu a ditadura militar, no Brasil, em 1985. Um pouco antes, as massas


populares que estavam, até então, amordaçadas, saíram às ruas, pedindo a
legalização política e liberdades democráticas. Vieram as manifestações cha-
madas de “Diretas Já”. Em 1988 foi entregue a Constituição Brasileira, fruto,
em muitos tópicos, dos clamores que vieram das bases. Várias associações,
agremiações ou grupos clandestinos, agora, podiam falar. Veio a democracia.
Com relação ao nosso tópico, os grupos e partidos que, muitas vezes, se re-
fugiaram nas igrejas, criaram seus próprios espaços. No início, o Partido dos
Trabalhadores, até então, de fato, dos trabalhadores, que viera dos movimentos
sociais das igrejas, dos inúmeros sindicatos, do universo dos intelectuais,
tornou-se o canal político dos gritos populares.
As bases cristãs continuaram a agir, ao lado de vários segmentos populares,
atuantes até a primeira eleição presidencial e o impeachment do Presidente
Collor. Como em todas as porções, a desmobilização popular foi um fenô-
meno novo.
Hoje, as mobilizações são localizadas, a partir de tensões concretas que mo-
bilizam as pessoas ou grupos atingidos. Por exemplo, celebrando os quarenta
anos do manifesto duríssimo dos Bispos da Amazônia contra a dilapidação
daquela região, em tempos de ditadura (1972), as Igrejas da mesma Amazônia,
em julho de 2012, sempre respaldado na Bíblia, lançou um novo manifesto,
também fortíssimo, na defesa daquela área:

...Como quarenta anos atrás, a Amazônia continua sendo considerada a


‘colônia’, mesmo que abranja mais da metade do território nacional. Para
a metrópole – Brasília, o sudeste e o sul do País – Amazônia é apenas
‘província’, primeiro província madeireira e mineradora, depois a última
fronteira agrícola no intuito de expandir o agronegócio até os confins deste
delicado e complexo ecossistema, único em todo o planeta. De uns anos
para cá a ‘província’ recebeu mais um rótulo, sem dúvida o mais desas-
troso, pois implicará a sua destruição programada, haja vista o número de
hidrelétricas projetadas para os próximos anos: a Amazônia é declarada
a província ‘energética’ do País. Sob a alegação de gerar energia limpa se
esconde a verdade de que mais florestas sucumbirão, mais áreas, inclusive
urbanas, serão inundadas, milhares de famílias serão expulsas de suas

15 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


terras ancestrais, mais aldeias indígenas diretamente afetadas, mais lagos
artificiais, podres e mortos, produzirão gases letais e se tornarão viveiro
propício para todo tipo de pragas e geradores de doenças endêmicas...
(CNBB Amazônia, 2012).

Geralmente a mobilização é uma resposta a um apelo feito por uma ONG, internacional
ou nacional, ou por redes sociais e redes solidárias, via internet, convidando
as pessoas no que se chama de “participação cidadã”.

DESAFIOS

Se a leitura bíblica foi uma ferramenta viva dos movimentos populares, especialmente
das bases das Igrejas cristãs, nas décadas de 1960-1980, diante da desmobi-
lização popular nos novos tempos, é preciso ver em que, hoje, essa leitura
pode continuar a ser um fenômeno transformador. Muita coisa mudou, em
todos os níveis.
Alguns problemas, que são expressões das assimetrias, tais como saúde, desemprego,
analfabetismo, moradia, transporte, educação, alimentaçãoetc, não desapa-
receram. Permanecem os conflitos dos resistentes ribeirinhos, seringueiros,
quilombolas e outros povos tradicionais.
Outros são novos (MESTERS; OROFINO, 2012, p. 14-5), como por exemplo, a)
o embate dos afrodescendentes que já tiveram interessantes vitórias pelas
terras quilombolas e nas cotas nas universidades. b) A luta das mulheres
marginalizadas por salários dignos e a vitória da Lei Maria da Penha. c) A
ECO-92 e a Rio+20 de 2012 são frutos das novas forças ecológicas popu-
lares que surgiram em todo o mundo. d) As ciências não param de avançar,
modificando a visão de mundo. e) O Brasil, embora classificado como a 6ª
economia do mundo, continua com desigualdades em quase todos os níveis.
f) As mobilizações homossexuais e as vitórias no reconhecimento da união de
pessoas do mesmo sexo. g) os ininterruptos escândalos de corrupção em todos
os níveis governamentais (nacional, estadual e municipal), em contraposição
à ética na política e economia. h) As vitórias dos povos indígenas, no pós
500 anos de invasão dos brancos, nas demarcações de várias reservas. Vale
ressaltar o apoio de quarenta anos do CIMI que ajudou a assegurar a existên-
cia de várias nações indígenas, que, se não fosse esse apoio, teriam muitas
desaparecido. i) Algumas organizações religiosas, como alguns regionais da
CNBB ou segmentos evangélicos que não perderam sua postura profética.
j) A Comissão da Verdade que exige todos os esclarecimentos legais, pelas
prisões, torturas e assassinatos nos tempos dos porões da Ditadura Militar.
k) Se a grande resistência fundamentada na Bíblia se deu com a questão da

16 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


Terra, essa tensão continua em toda a nação, com vários movimentos rurais,
indígenas e quilombolas.
Os sucessivos Fóruns Sociais Mundiais tornaram visível um imenso número de pequenos
e localizados projetos e lutas, mostrando que os motivos e a mobilização das
pessoas dependem muito de sua afinidade e de sua visão localizada dos proble-
mas.Mesters e Orofino (2012, p. 15) falam que hoje existe uma infinidade de
propostas que podem ser locais (cooperativas de catadores de lixo), regionais
(movimento em defesa do semi-árido), nacionais (lei da ficha limpa) e inter-
nacionais (ONGs ecológicas). Nesta articulação exercem papel importante os
novos meios de comunicação e de informação através da internet 19. Esta ação
comunicativa gera e desenvolve novas técnicas e novos saberes no movimento
popular. Diante de tantos desafios, alguns tão complexos, a Bíblia como projeto
questionador, crítico e transformador, ainda tem o seu lugar? É inegável que é
preciso rever os trabalhos bíblicos que possam atender a estes novos desafios,
principalmente, se se olha a busca da base, onde, conforme Mesters e Orofino
(2012, p. 16) estão os sujeitos históricos, aquele conjunto que se esconde na
palavra “povo”, eixo estruturante do movimento popular.

CONCLUSÃO

Nos tempos da “Guerra Fria”, em nível universal e do “Regime de Segurança Na-


cional”, em nível brasileiro, soubemos agir, com a Bíblia, nos movimentos
populares. Agora, é inegável a força ideológica e econômica do capitalismo
neoliberal em nível universal e nacional.
Não podemos perder de vista a preferência pelos pobres apresentada pela Bíblia
(FERREIRA, 2012, 2. ed., p. 54). Ela é uma proposta viva do agir social.
Entre as nações e gentes, quem tem entendido, a partir da Bíblia, a força da
ação comunitária são os cristãos dos continentes pobres de comunidades
populares.Com analogias que não podem ser desprezadas, estes grupos, a
partir do seu “lugar social”, conseguem enxergar os da “margem” na Bíblia.
Criam a “vocação crítica” 20. Os que estão na periferia vêem os que estavam
na periferia bíblica. A “teoria crítica” que leva à “suspeição”, é apreendida,
na leitura bíblica comunitária, pelas pessoas da margem porque entres estas
e a Bíblia há uma comunicação privilegiada: o lugar social e a fé as aproxima
(FERREIRA, 2012, p. 55).
O problema desafiante é a dificuldade de mover grupos populares para esses novos
tempos. As técnicas do capitalismo neoliberal encantam. As provocações ao
consumismo fascinam. As “induções” ao individualismo silenciam as consci-
ências. Se soubemos encontrar métodos para enfrentar o sistema de sessenta
anos atrás até bem pouco, temos que descobrir, agora, novos e dinâmicos

17 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


métodos que movam grupos para enfrentar o novo momento. Confessamos
que não sabemos como, por enquanto. Temos, no entanto, que procurá-los
para, repetindo Jon Sobrino, de que é preciso construir uma democracia de
“alta intensidade” que é baseada na justiça e na paz, nos direitos humanos e
na igualdade reconhecida de todos os povos.

SOCIAL TRANSFORMATIONANDBIBLICALLITERATURE
Abstract: we will reflection biblical experiences in Brazil, scoring the interior regions of
Brazil, in times of military dictator ship. In fact, in the system of the Brazilian
repression, the Christians, based on the Bible, resisted and prophesied. Have they
doneto transform places and regions in search of a society of peace and justice.
Keywords: Bible. Transformation. Justice. Popular movements.

Notas

1 Mesters, um holandês-brasileiro, porque está inserido no nosso meio há cinquenta anos, foi
o grande batalhador, incentivador e autor dos primeiros círculos bíblicos do Brasil. O seu
trabalho continua dinâmico e vivo. Foi ele o idealizador do Centro de Estudos Bíblicos
(CEBI), organização ecumênica da Leitura Popular da Bíblia. Não se pode falar, no Brasil,
em Leitura Popular da Bíblia sem pensar em Carlos Mesters.
2 Num projeto da Ação Católica Operária (ACO) e Comissão Nacional de Pastoral Operária
(CPO), fez-se a elaboração dos estudos Bíblicos do Antigo e Novo Testamento, de um
modo muito didático, usando muitas figuras e, às vezes, textos em forma de “gibi”, a fim
de facilitar a compreensão dos operários que tem pouco tempo para formação.
3 A leitura latino-americana, particularmente a brasileira não é, comumente, citada na biblio-
grafia americana ou européia. Ela foi muito divulgada entre nós na década de 80 (séc. XX)
e experimentado por interessantes biblistas latino-americanos, particularmente, brasileiros.
Sua compreensão popular foi bem absorvida, notadamente, em alguns grupos populares
como as comunidades eclesiais de base (CEBs) de Igrejas mais comprometidas com os ex-
plorados e excluídos, com o CEBI, com as pastorais rurais e operárias (é de se reconhecer
a bela assessoria de G. Gorgulho à pastoral operária com “a leitura pelos quatro lados”).
Entre os biblistas brasileiros, localizadamente, os do “Comentário Bíblico”, a leitura da
Bíblia foi exercitada por muitos, em torno deste modelo. A orientação do “Comentário” foi
elaborada por Comblim (1985). Porém, no momento, há um acentuado recuo. Veja também:
(SILVA, 1991, p. 74-84). Entre os comentaristas um que procurou fazer a leitura por este
modelo foi (FERREIRA, 1992 e 2005). Veja também um número especial onde todos os
artigos procuraram utilizar a leitura sociológica (AA.VV. 1990).
4 É importante a “vocação critica” para a intelecção da leitura bíblica. É este espírito crítico que
tem ajudado também os hermeneutas da Bíblia para a leitura “por trás das palavras” e por trás
dos acontecimentos narrados por pessoas ligadas a alguma situação de poder. Aí se descobrem
pessoas da periferia, grupos da margem que são frutos do ambiente social de exclusão.

18 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


5 Um dado interessante é, por exemplo, uma perícope que iremos estudar adiante: Mc 7, 24-30
sobre a mulher siro-fenícia. Este texto sempre valorizou a ideia da salvação universal. Cor-
reto. Porém, nunca se davam importância à figura de alguém excluída de todos os modos:
u’a mulher, além disso, estrangeira e, mais ainda, pobre. A leitura, com espírito crítico, com
o cabedal da suspeição, pode olhar o outro lado e perceber que é, talvez, nas narrativas do
Novo Testamento, um dos poucos lugares onde a mulher, representando os marginalizados
da época, sai vitoriosa porque a fé era muito grande (FERREIRA, 2012, 2ª ed., p. 53).
6 Juventude Estudantil Católica (JEC), movimento similar à JOC, destinado aos jovens es-
tudantes. Juventude Operária Católica (JOC), movimento surgido na Bélgica (PeCardijn),
destinado a reunir e cristianizar os jovens operários. Juventude Universitária Católica (JUC),
movimento também similar à JOC, destinado a reunir os jovens universitários.
7 Utopias [...] são aquelas ideias, representações e teorias que aspiram uma outra realidade,
uma realidade ainda inexistente. Têm, portanto, uma dimensão crítica ou de negação da
ordem social existente e se orientam para sua ruptura. Deste “modo, as utopias têm uma
função subversiva, uma função crítica e, em alguns casos, uma função revolucionária”
(LÖWY, 2002).
8 A JOC desempenhou um papel importante no cenário nacional na construção de uma nova
utopia, principalmente a partir do golpe de 1964 que procurou amordaçar as poucas vozes
que se levantaram para defender os direitos dos trabalhadores. Representativa, ainda, de
uma nova maneira de organização do laicato na Igreja Católica, não encontrou, por parte da
hierarquia eclesiástica, o apoio suficiente para sobreviver e, mesmo não extinta oficialmente
como foi a Juventude Universitária Católica, acabou desaparecendo devido à perseguição
militar e ao descaso de muitos bispos que não compreenderam a sua importância.
9 Movimento de Educação de Base (MEB), experiência educacional promovida no Nordeste
do Brasil pela Igreja Católica, empregou pedagogia popular entre os pobres e foi atacado
pelos militares.
10 Nos anos quarenta, padre Joaquim Salcedo começou a usar o rádio para a educação popular.
Em poucos anos, sua iniciativa tomou dimensões nacionais, atingindo milhares de famílias
e comunidades isoladas.O povo recebia em casa o material didático e acompanhava a instru-
ção pelo rádio. Leitura, saúde, agricultura, desenvolvimento comunitário e liderança rural
eram os temas básicos do curso que durava oito meses. A iniciativa do padre Salcedo ficou
conhecida como Ação Cultural Popular - Rádio Sutatenza. Foi a partir dessa experiência
colombiana que dom Eugênio deu início às Escolas Radiofônicas do MEB.O Movimento de
Educação de Base, além de alfabetizar, ajudava o povo pobre do Nordeste a alcançar seus
direitos como cidadãos. O meio mais adequado para chegar ao povo, foi o rádio. Em pouco
tempo, as escolas radiofônicas contavam com 25 emissoras e atingiam 15 Estados. Durante
os primeiros três anos de funcionamento, mais de 400 mil estudantes haviam completado
um ou mais cursos por meio das escolas radiofônicas.
11 Oficialmente, a JUC foi, no tempo da ditadura, abandonada pela hierarquia católica. Nesse
momento, os cristãos jucianos fizeram uma opção política. Criaram a AP (Ação Popu-
lar), grupo que foi muito perseguido pelos militares do sistema. Quanto a JOC, segundo
Mainwaring,“A onda de repressão de 1970 silenciou a JOC justamente quando a Igreja
popular começava a ganhar espaço e quando a instituição começava a defender os direitos

19 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


humanos. Durante o governo Médici, outros grupos da Igreja adquiriram um dinamismo que
ultrapassava a JOC e a ACO. As comunidades de base desabrocharam e as recém-formadas
Comissão Pastoral Operária e Comissão Pastoral da Terra tornaram-se os focos ativos da
inovação da Igreja” (MAINWARING, 1989, p. 157).
12 Após a ditadura, surgiu o livro “Projeto Brasil Nunca Mais”, elaborados na responsabilidade
de D. Paulo Evaristo Arns, Cardeal de S. Paulo, pelo Rabino Henry Sobel, da comunidade
judaica e por Jaime Wright, pastor presbiteriano de S. Paulo.
13 Projeto do tempo do governo Geisel que consorciava 48 empresas japonesas e 44 brasileiras.
Visava implantar fazendas de grande porte em 600 mil km² do Planalto Central (área 60%
superior ao do Japão), cultivando milho e soja para atender à demanda japonesa. No plano
social gerava concentração fundiária, desemprego e migração rural.
14 Em Ribeirão Cascalheira foi erguido um monumento dedicado aos mártires, onde se
celebram e fazem memória dos indígenas, negros, mulheres marginalizadas, crianças
de rua, operários, camponeses e agentes de pastoral que se comprometeram pela vida e
pela justiça.
15 Essa reflexão se deu em uma entrevista que D. Tomás Balduino deu, recordando e analisando
as experiências da Diocese de Goiás, nos tempos em que ele era o Bispo de lá. Disponível
em: <Veja em joelantferreira.blogspot.com.br>. Acesso em: 17 jul. 2012.
16 Da experiência da Bíblia como transformadora, na Diocese de Goiás, citamos alguns fatos
ocorridos quando essa leitura levou muitos lavradores para a política, na assumência sindical
e na luta pela terra. Desses, alguns foram assassinados, ou vítimas de atentados, exatamente,
porque a resistência e a profecia podem levar ao martírio. Foram os casos de Tião da Paz,
Nativo Natividade, PeCavazutti, Tarcísio de Medeiros, Alonso Aleixo da Silva, Benedito
Ferraz da Silva, Floriano Cardoso da Silva
17 Nessa década, entre o final da Ditadura Militar e o governo provisório de Sarney, tivemos
o surgimento da União Democrática Ruralista (UDR) e, coincidentemente, uma série de
assassinatos de líderes camponeses/as e religiosos/as no Brasil.
18 Os comentaristas são: Gilberto da Silva Gorgulho, José Comblin, Carlos Mesters, Milton
Schwantes, Ana Flora Anderson, Ludovico Garmus, Sandro Gallazzi, Ana Maria Rizzante,
Sebastião Gameleira, João L. Correa, Francisco Rubeaux, Henry Ternay, Pablo Andiñach,
J. Severino Croatto, Joel Antônio Ferreira, Ney Brasil da Silva, Valmor da Silva, Tércio M.
Siqueira, Júlio P. Zabatiero, Luiz Alexandre S. Rossi, ShigeyukiNakanose, J. L. Dietrich,
C. Orofino, Johan Konings, Nelson Kilpp.
19 O problema é que as “redes sociais”, diante de algum problema tenso, surge como fogueira
e desaparece quando suas denúncias surtem ou provocam efeitos. Não há continuidade.
20 “Vocação Crítica” é um termo tirado da corrente socialista, a sociologia crítica. Com essa
perspectiva crítica, auxiliou na compreensão da sociedade capitalista como um sistema de
dominação e ajudou a compreender os processos históricos que visão alterar a ordem exis

20 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013


Referências
ALVAREZ-VERDES, L. El Método Sociológico en la investigación bíblica actual. St Mor,
989, p. 16.
CASALDÁLIGA, Pedro. Mensagem de esperança para todas as comunidades de Base do
Continente. iserassessoria.org.br. 19/06/2012.
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Mar-
ginalização Social. Carta Pastoral da Prelazia de S. Félix do Araguaia. S. Félix: e/p, 1971.
CNBB AMAZÔNIA. Carta dos Bispos ao Povo de Deus – 10º Encontro da Igreja na Ama-
zônia. Santarém, 06/07/2012: IHU, 07/07/2012.
COMBLIN, J. Introdução Geral ao ComentárioBíblico. Petrópolis: Vozes, em co-edição
com Imprensa Metodista e Editora Sinodal, 1985.
FERREIRA, Joel Antônio. Entrevista com D. Tomás Balduino. joelantferreira.blogspot.
com.br 17/07/2012.
FERREIRA, Joel Antônio. Gálatas: a Epístola da Abertura de Fronteiras. S Paulo: Loyola, 2005.
FERREIRA, Joel Antônio. Paulo, Jesus e os Marginalizados. 2. ed. Goiânia: Ed da PUCGO, 2012.
FERREIRA, Joel Antônio. Primeira Epístola aos Tessalonicenses. Petrópolis: Vozes, 1992.
GORGULHO, G.; ANDERSON, A. F. A Leitura Sociológica da Bíblia. Estudos Bíblicos,
Petrópolis: Vozes,n. 2, 1987, p. 6-10.
GORGULHO, G. A História do Povo de Deus 1º Vol. De Abraão até o Fim da Monarquia.
Rio de Janeiro: ACO-CPO, 1986.
KONINGS, Johan. A Leitura da Bíblia. Estudos Bíblicos, Petrópolis: Vozes, n. 32, 1992, p. 70-71.
LOPES, Eliseu Hugo. Bíblia e Ecumenismo. Um grande Desafio. Por Trás da Palavra. CEBI,
n. 3, 1988, p. 6-8.
LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social:elementos para uma análise marxista.São Paulo:
Cortez Editora, 2002.
MAINWARING, Scott. Igreja católica e política no Brasil (1916/1985). São Paulo:Brasiliense, 1989.
MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco. O Caminho por onde Caminhamos. Estudos
Bíblicos, Petrópolis: Vozes, n. 114, Abril/Junho, vol. 29, 2012, p. 7-16.
MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco. Sobre a Leitura Popular da Bíblia no Brasil. Dis-
ponível em: <http://www.cebi.org.br/leitpopbiblia.htm>. 16.8.2005. Acesso em: 02.07.2012.
OLIVEIRA, Eduardo Rodrigues de. Martírio: Profecia e Resistência - Biografia de Nativo
Natividade de Oliveira. CPT Regional. Goiânia: Ed. da CPT, 2009, p. 27- 30.
OSIEK, Carolyn. The New Handmaid: The Bible and the Social Sciences. TS, n. 50, 1989, p. 272.
SILVA, Airton José da.A Leitura sociológica da Bíblia. Estudos Bíblicos, Petrópolis: Vozes,
n. 32, 1991, p. 74-84.
TEIXEIRA, Otacílio A. Martírio: Profecia e Resistência - Biografia de Sebastião Rosa da
Paz. CPT Regional. Goiânia: Ed. da CPT, 2009, p. 31-2.
VV.AA. Sociologia das Comunidades Paulinas. Estudos Bíblicos,Petrópolis: Vozes, n. 25, 1990.

21 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 4-21, jan./jun. 2013

Potrebbero piacerti anche