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Sexta-feira | 10 Maio 2019 | publico.

pt/culturaipsilon
ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 10.609 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

“Eu queria
ser grandiosa!”
Com novo
livro, antes
de um novo
disco
e depois de
um concerto,
Patti Smith
senta-se
com o Ípsilon
num café
de Nova
Iorque

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Acção Paralela Crónica
António Guerreiro Daniel Ribas*
Da geringonça ao dispositivo De Macau com
D O
urante os dias quentes da “crise”, eu, que a oposição parlamentares são, como se viu, ou uma recente cinema português tem
muito li, vi e escutei sobre o assunto, que fui duplicação mimética ou um contra-dispositivo que lidado de forma mais complexa com
um cidadão atento e aplicado, não percebi prossegue as mesmas premissas) que só aspira a uma os discursos culturais,
nada: nem o que tinha sido exactamente coisa: a sua própria reprodução, para a qual avança reconhecendo uma diversidade
votado, nem as consequências imediatas cobrindo-se com uma máscara hipócrita que é já só surpreendente de identidades em
desse voto, nem as cambalhotas e inflexões uma representação espectral da política. transição, sobretudo propostas
que alguns partidos fizeram ao votar, nem a irrupção 4. Esse significado tecnológico do “dispositivo” pelos intensos fluxos migratórios. Esta
viril do governo jogando a carta da demissão quando, governamental já tinha encontrado, talvez por feliz consciência da porosidade entre identidades
pelos vistos, ainda havia muito por decidir, nem que coincidência, uma designação popular no termo — sejam elas nacionais, de género, étnicas,
quantidade de dinheiro seria necessário despender “geringonça”, que também faz pensar nas peças de etc. — torna estes filmes mais conscientes do
anualmente — na roleta tanto saíam mais 800 milhões uma máquina, combinadas de uma maneira que nosso mundo e da dificuldade em lidar com
como menos de metade disso — para satisfazer as parece pouco funcional. Mas enquanto que a as suas ambivalências. A figura do estranho
reivindicações dos professores, nem os argumentos a geringonça é obra de habilidade política, pressupondo deixou de ser clara, abrindo-se uma
justificar os vistosos recuos subsequentes. sujeitos e identidades reais, o dispositivo significa o imensidão de possibilidades de vida. É essa
Senti-me deficiente, destreinado na literacia da declínio da política. A geringonça foi, de certo modo, o uma das forças que contribui para a
vida política da nação. Mas quando, ao quarto dia, instrumento para uma campanha; o dispositivo serve modernidade do cinema português, a sua
prometido que estava já o curso normal das coisas, as operações de “governamentalidade”. Ocorre citar transnacionalidade, e para a sua boa
começaram a aparecer nos jornais artigos didácticos, uma frase dita por um antigo governador de Nova aceitação em grandes festivais de cinema.
tais como “Um guia para perceber as votações da Iorque, Mario Cuomo: “Faz-se campanha em modo Nesta lógica prolongada de
polémica” (PÚBLICO) e “A crise explicada a quem poético, mas governa-se em modo prosaico”. questionamento sobre identidade e a
não percebeu nada” (Expresso), senti um alívio, 5. O discurso hiperbólico e eufórico, à maneira memória necessária que ela produz, nas
percebi que, afinal, a coisa era mesmo complicada e dos relatos desportivos, a que se entregaram últimas duas décadas, alguns cineastas
eu não era o único a precisar de explicador. Mas comentadores e analistas da vida política, “regressaram” a territórios afectivos de
nesse momento já tinha desistido de aceitar anunciando vitórias monumentais e derrotas imaginários perdidos. Sendo Macau, tal
explicações e só queria perceber porque é que não estrondosas, acentuou o efeito do dispositivo que como Hong Kong, um território com um
tinha percebido. Eis as razões que consegui avançar: foi posto em funcionamento para provocar um estatuto diferente no contexto da República
1. A palavra “crise” para descrever o que estava a clash, uma irrupção que provoca um abalo no bom Popular da China (“Região Administrativa
acontecer, muito utilizada pelos meios de cidadão democrático. Esse discurso suscita muita Especial”), a cidade enfrentou, desde a
comunicação social, era completamente paixão, mas não traz entendimento. transferência de soberania, alterações
inapropriada, a não ser que se entenda por “crise” 6. Por uma vez, não foi artificial nem desacertado o profundas na sua estrutura económica e
um puro instrumento de governação. discurso que faz da política um jogo de tácticas e social. Por isso mesmo, a identidade
2. Excluindo a hipótese de se tratar de uma crise, o estratégias, só que agora esse discurso foi escrito, “macaense” tornou-se ainda mais difusa,
que emergiu foi algo que tinha uma função palavra por palavra, por quem geralmente apenas numa mescla de etnias de diferentes
eminentemente estratégica e implicava uma fornece o material para outros o escreverem. Assim, proveniências. Para além disso, Macau
intervenção concertada nas relações de forças, em até um comentador do qual nunca se ouviu uma passou a ser um destino único para o jogo (e
que uns as queriam orientar numa determinada palavra que não fosse inócua, pôde pela primeira vez outras actividades associadas), sobretudo
direcção e outros queriam bloqueá-las. A avaliar pelas proferir uma sentença de enorme alcance: “António por ser um dos poucos locais na China onde
reacções, ganhou o governo esta batalha porque Costa é um profissionalão, sabe mais de política a a actividade é legalmente permitida. Isso
soube fazer um uso mais eficaz do seu dispositivo. dormir do que os outros acordados”. Sabendo nós o provocou um curto-circuito no crescimento
3. A palavra “dispositivo” (só não digo a quem a que significa para Marques Mendes “saber de da cidade e no seu imaginário. De um lado,
devo, enquanto conceito específico, porque não política”, as suas palavras gritam de razão. Elas são a as tradicionais habitações de arquitectura
quero perturbar com citações e referências comemoração mortífera do que resta no lugar da chinesa; do outro, os enormes casinos,
bibliográficas este simples testemunho) tem um vida política. construídos para um luxo ocidentalizado
significado tecnológico, remete para o 7. Depois de ter percebido a razão do pouco ostentatório e exotizado (e que são, na
funcionamento da máquina governamental, para perceber, percebi que perante o excesso de verdade, a cópia da cópia: copiam Las Vegas,
uma pura actividade de governo (do qual a maioria e transparência tendemos a ver tudo opaco. que já havia copiado ícones turísticos
ocidentais).

Livro de recitações Um dos exemplos mais evidentes de


tratamento do território macaense como
“Marcelo nunca esteve tanto tempo calado” memória e como lugar cinematográfico é o
da dupla João Pedro Rodrigues e João Rui
in Diário de Notícias, 7/5/ 2019
Guerra da Mata. Sobretudo impulsionados
Quem se preocupava com o facto de o Presidente, função presidencial o único cargo do poder pela memória pessoal de João Rui, que lá
por tanto falar, desvalorizar o peso das suas político não totalmente capturado pelo viveu parte da infância, os filmes “asiáticos”
palavras e correr o risco de um dia ficar destituído “dispositivo” mediático e, ao mesmo tempo, onde da dupla — como A Última Vez que Vi Macau
da sua ferramenta principal, esqueceu-se de que é ainda possível vislumbrar uma potencial (2012), Alvorada Vermelha (2011) ou Iec Long
quando as palavras se tornam uma moeda pouco existência de vida política, ao contrário do que (2015) — destilam uma certa nostalgia com o
valiosa, o silêncio ganha uma eloquência pensam todos aqueles que identificam a política desaparecimento de marcos históricos da
discursiva. Esta prerrogativa de poder administrar com um conceito que tem hoje uma grande “Macau portuguesa”, enquanto jogam com
com alguma soberania o dito e o não-dito torna a fortuna: governance. um certo imaginário policial, até devedor do
film noir. A mitologia das tríades macaenses,
a vertigem do dinheiro proporcionado pelo
FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR VASCO CÂMARA DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA DE ARTE SÓNIA MATOS jogo, mas também o papel da mulher numa
DESIGNER ANA CARVALHO FOTO DA CAPA DAN HIMBRECHTS/EPA E-MAIL IPSILON@PUBLICO.PT sociedade profundamente machista, é
evidente nestes filmes. Para João Pedro e
João Rui há tanto uma necessidade de

4 16 22 24
Patti Smith Fat White Manuel Zimbro Nadav Lapid preservar — como o olhar encantatório para
Em Nova Iorque, Family A maior Conversa sobre o Mercado Vermelho ou a Fábrica de
no café onde Voltam com exposição que se um filme Panchões — como o de lançar um certo
escreve, ela fala mais um grande consagrou à sua que desperta mistério, por vezes algo exótico, da vida
ao mundo álbum obra do artista paixões e ódios nocturna de Macau.
2 | ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019
O que me passa pela cabeça
Confesso: nunca vi um episódio inteiro de A Guerra
dos Tronos. Não sou muito dada às séries de ficção
televisiva nem ao binge-watching. Contudo,
recentemente, fiquei ancorada e imersa no ecrã do
meu computador durante horas. Devorei os 70
episódios daquela a que já alguns chamam A Guerra
dos Tronos chinesa: The Story of Yanxi Palace.

m amor Embora o Google esteja bloqueado na China, Yanxi


Palace foi o programa de TV mais procurado no Google
em 2018. A analogia com A Guerra dos Tronos deve-se
sobretudo a esta popularidade. A série foi exibida na
China pela primeira vez entre Julho e Agosto de 2018,
no iQiyi, um site de streaming chinês equivalente ao
O fascínio por essa mística asiática é transição acaba. Para a cosmovisão do Netflix. Durante este período, a série foi vista mais de
também evidente no trabalho do cineasta Ivo regime chinês, o betão e o brilho polido dos 20 mil milhões de vezes. E já foi exportada para mais de
M. Ferreira, cujo último capítulo — Hotel materiais falsos são a evidência do amanhã. 70 países.
Império — chega agora às salas portuguesas. Não há lugar para a memória, para a
Apesar de, no caso de Ivo, não haver um nostalgia, para um hotel velho no centro Se A Guerra dos Tronos é uma série de fantasia que
passado biográfico, o cineasta viveu vários mais tradicional de Macau (onde fica foi buscar inspiração à história real da Guerra das
anos em Macau, depois de lá ter chegado por imaginariamente o hotel Império). Rosas, The Story of Yanxi Palace é a adaptação de um
um acaso da sua aventura pessoal de viver o Ivo M. Ferreira emula, algumas vezes, o livro homónimo que se fundamenta em factos que
mundo. E, desde cedo, esse fascínio se cinema de Wong Kar-wai (com citações ocorreram no século XVIII (1741), na Cidade Proibida,
reflectiu no seu olhar cinematográfico, com bastante evidentes). O seu cinema é um em Pequim, durante a Disnatia Qing, sob o comando
o documentário O Homem da Bicicleta — descendente directo da melancolia de do imperador Qianlong. A visualização da série
Diário de Macau (1997). A ficcionalização da Chungking Express (1994), e da sua corrida proporciona uma aprendizagem sobre a cultura e a
cidade serviria, anos mais tarde, para Ivo dar frenética contra um tempo que sabemos ter política da China imperial. Ou pelo menos, o programa
conta das contradições identitárias, próprias terminado. As latas de ananás têm um prazo; atiça-nos a curiosidade para sabermos mais. A
da sua condição de viajante e de estranho. a câmara de vídeo arrasta as sombras dessa sensação de afastamento do mundo ocidental
Com O Estrangeiro, de 2010, isso reflecte-se corrida desenfreada. É um film noir também é uma consequência agradável, que contribui
numa procura em jogo duplo: a personagem romântico. O Midnight Express ou o para um deslocamento temporal e cultural, e muitas
principal — da qual vemos apenas de costas — restaurante Califórnia já não existem em vezes imersivo de quem vê a série.
é o próprio realizador em busca de um Hong Kong. O passado foi apagado porque
estrangeiro que ali vivera anos antes. Parece ele já não interessa: o futuro é tão brilhante Diferente de filmes sobre a China Imperial, como O
Ivo à procura de si próprio, enquanto que ofusca a nossa memória. Na verdade, Último Imperador (1987), de Bernardo Bertolucci, que
estrangeiro de si próprio e daquele local. alguns críticos identificaram essa são produzidos por ocidentais e falados em inglês, The
Macau vive pelas entrelinhas documentais incapacidade de permanência em culturas Story of Yanxi Palace foi criada pelo guionista chinês Yu
desta procura, num quotidiano indiferente. (como Hong Kong e Macau) que estão na Zheng, e é interpretada por asiáticos. É falada em
Aqui, parece que o tempo não passou. Não se zona cinzenta entre um passado colonial e mandarim, o que lhe confere uma autenticidade
pode dizer o mesmo de Na Escama do uma versão pós-moderna de um capitalismo distinta da produção ocidental mainstream. Outra
Dragão, de 2012, no qual a ficção surge da livre. Por isso, o cinema de cineastas de Hong grande diferença, senão a maior, e com certeza a mais
fricção entre o passado (uma jornalista que Kong — como Wong Kar-wai — anda sempre atraente, é a narrativa ser contada a partir do ponto de
conta a história do primeiro navegador atrás daquilo que é efémero, tentando vista das mulheres. Leia-se aqui as esposas do
português) e o futuro (imposto pela agarrar aquilo que já desapareceu (“déjà imperador, concubinas, e empregadas residentes na
imponência de um museu de arquitectura disparu” na concepção do crítico cultural Cidade Proibida. A série passaria certamente com nota
contemporânea onde jaz um junco chinês do Ackbar Abbas). máxima no “teste Bechdel”, um conjunto de directrizes
século XII). Os desencontros entre as Nas diferentes cenas de Hotel Império, a que trata de averiguar e incentivar a igualdade de
personagens, e a sugestão das diferenças mistura entre passado e presente evidencia género no cinema.
culturais faz deste filme um exercício sobre a este permanente estado de sítio cultural: no
própria impotência em relação à qual a nossa memória está sempre em perda. Como destaca a revista norte-americana New Yorker,
transformação desta sociedade. É um pós-modernismo ambivalente que, de Yanxi Palace foi criada para nos distrair e nos
Com Hotel Império, esse confronto entre facto, dá conta de uma certa inevitabilidade transportar para um outro período histórico por meio
passado e futuro é o centro do filme e do do “progresso” e da nostalgia que sempre de, por exemplo, um figurino fiel à história. No entanto,
olhar que Ivo M. Ferreira nos devolve da ficará. Mas esta é talvez uma nostalgia de a série tem também influenciado a sociedade da China
Macau contemporânea. Isso é tão mais algo que talvez nunca tenha lá estado. Ver contemporânea, em temas que vão da moda ao
curioso porque a sequência inicial como que Hotel Império é pensar nessa impossibilidade movimento #metoo. De facto, em 2019, foi censurada e
nos obriga a repensar o tempo: aquelas de redenção e na necessidade de viver num retirada da TV estatal chinesa, por se considerar que
mulheres, preparando-se para entrar no mundo complexo, líquido, imprudente; contraria os valores do Partido Comunista. Apesar
palco de uma casa de espectáculos, parecem talvez excitante, talvez assustador. disto, continua a repercutir online mundialmente. Para
saídas de uma máquina do tempo, de um os fãs de A Guerra dos Tronos, a opção de ver The Story
passado em que Macau vivia noites de glória * Professor da of Yanxi Palace poderá
pode ser um
e glamour. Mas rapidamente essa sensação é Escola das Artes, bom complemento.
complemento Para os
perdida pela realidade: o hotel Império do UCP / interessados em história, a
título é agora uma semi-ruína, uma sombra Programador série chinesa é certamente
do passado, e a sofrer de uma insistente uma fonte ines
inesgotável de
pressão da especulação imobiliária. Esta curiosidades. E por fim, para
realidade é o programa político do próprio po
os amantes de política, The
filme, do qual girará a história de dois irmãos Story of Yanxi Pala
Palace é também
que não se conhecem e da avidez daqueles uma história sobre a conquista e
que querem alargar os seus lugares de jogo. exercício de poder (neste
(n caso,
Hotel Império é assim uma fábula do nosso sobretudo o feminino).
feminin Vale a
tempo. Ou, mais precisamente, de um pena ver e fazer binge-watching.
bing
tempo de velocidade permanente, que (O primeiro episódio
epis com
parece sair de um postulado da ideologia: legendas em espanhol
“um país, dois sistemas”. No filme, a está aqui: https://www.
h
nostalgia colonial é substituída por um voraz youtube.c
youtube.com/
capitalismo desumano. Se o maniqueísmo watch?v=tr_R9s7gMgk)
watch?v=
pode parecer, à primeira vista, demasiado
simplista, na verdade ele conjuga-se com a Por Cláudia Silva
velocidade chinesa da transformação do
mundo. Na paisagem contemporânea, em
Macau vêem-se os arranha-céus do outro
lado, da parte chinesa. A construção
moderna é um catalisador para um futuro:
sinaliza 2049, ano em que o período de
ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019 | 3
ENRIC VIVES-RUBIO/ARQUIVO

4 | ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019


“Continuo
uma
sonhadora,
continuo
a perder-me
noutros
mundos”

Patti Smith
Num palco de Nova Iorque, Patti Smith falou ao mundo em nome do planeta.
Mais comprometida com a causa ambiental do que nunca, a artista deu um
concerto que há-de constar da história da sua vida. No momento em que
chega a Portugal Devoção, o seu livro mais recente, falou do acto de criação, da
razão pela qual escreve e de como quebrou regras cedo demais numa cidade
que não estava preparada para que elas fossem quebradas. Não se arrepende.
“Sempre Äz o que quis”, diz aos 72 anos, numa entrevista ao lado de casa.

Isabel Lucas, em Nova Iorque

ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019 | 5


P
atti Smith entra no café e pa- série de concertos pelo Leste dos Es- pessoas que se envolveram com a
rece maior do que o seu ta- tados Unidos. Uma minitournée antes música e as palavras de Smith. No
manho. A mulher de longos de se conhecer um disco novo, The palco, foi mais activista do que nunca
cabelos brancos sorri e no Peyote Dance, inspirado na poesia de na defesa do ambiente, transfor-
sorriso os olhos quase se fe- Antonin Artaud. O álbum sai a 31 de mando o momento num apelo apai-
cham, enquanto pergunta Maio e é o primeiro de uma série de- xonado à luta pela diminuição de
por uma mesa calma. Aquela onde dicada à poesia, feita com os Soun- emissões de gases causadores de
costuma sentar-se todas as manhãs dwalk Collective. Uma semana antes, efeito de estufa, ou seja, à luta pelo
não está ocupada, mas fica na pe- terminou um livro novo que será pu- respeito dos tratados de Paris.
quena passagem junto ao balcão; blicado em Setembro e, nessa ma- Além dos filhos, Patti apareceu
demasiado ruidosa para uma entre- nhã, a da conversa no café, venceu o com o amigo Michael Stipe e falou Apenas Miúdos recebeu o prémio One Book/ One
vista. Acaba por escolher uma junto prémio One Book/ One New York, para o mundo em defesa do planeta. New York, iniciativa anual da autarquia de Nova
à janela, de frente para a pequena iniciativa anual da autarquia de Nova “Estamos aqui, numa bolha, um mo- Iorque com o site Buzzfeed. E a capa de Horses
sala onde pouco mais de uma dezena Iorque com o site Buzzfeed, onde os mento de felicidade, mas agora é (1975), onde aparece fotografada por Robert
de pessoas toma café, bebe um copo, nova-iorquinos elegem o livro que tempo de irmos lá para fora lutar”, Mapplethorpe
petisca ou simplesmente conversa mais gostaram de ler. Ganhou Apenas disse antes de se despedir, convo-

DIMITRIOS KAMBOURIS/WIREIMAGE
numa tarde de sexta-feira, em Nova Miúdos (Quetzal), a memória sobre a cando uma espécie de revolução ao
Iorque. Ali, todos a reconhecem, mas relação de juventude com o fotógrafo som de People Have The Power.
ninguém a faz sentir-se diferente. Um Robert Mapplethorpe. Publicado em Saiu do palco e voltou para a es-
estranho a assistir diria apenas que 2010, vai ser adaptado à televisão crita, onde está todos os dias. Porque
acabou de entrar uma mulher cheia pela Showtime. escreve? Pensou muito na pergunta,
de magnetismo. Sentou-se, conver- Está feliz? “Estou, têm sido tempos inspirada pelo ensaio de George
sou usando muitos gestos para subli- cheios”, diz, lembrando uma decisão Orwell, Why I Write, e escreveu um
nhar as palavras, sorriu, deu algumas da véspera, no palco. Cantar The De- pequeno livro, Devoção, que acaba
gargalhadas, e houve momentos em troit song. Escreveu essa canção em de ser publicado em Portugal pela
que parecia quase chorar na transpa- 1978 para o marido, o músico Fred Quetzal. Nele, está o processo de es-
rência dos olhos verdes. Isso en- Smith, que morreu em 1994 vítima de crita, as motivações, o resultado. É
quanto bebia um chá, segurando, por ataque cardíaco. “Nunca a tocámos, um acto de amor a um ofício, o mais
vezes, a caneca entre as mãos. A voz costuma deixar-me muito triste. On- natural nela, confessa. Foi à volta do
era límpida e só o modo como de vez tem senti-me acompanhada para o acto de criação que andou quase
em quando esfregava os olhos fazia fazer”, afirma. E logo depois: “Gostei sempre esta conversa. É sobre a es-
denotar algum cansaço. de estar ali. Estava com os meus fi- crita e por isso acabou por ser sobre
Na noite anterior, no recém-rea- lhos, a minha banda, uma casa conhe- quase tudo. Incluindo sobre aquele
berto Webster Hall, sala velhinha de cida”, refere acerca do segundo con- cantinho do café ao lado de casa,
mais de cem anos da cena boémia de certo em Nova Iorque, um espectá- onde escreve intimamente sobre si
Nova Iorque, deu o último de uma culo íntimo para umas centenas de mesma e sobre o mundo. Patti Smith com o seu amigo Michael Stipe

Patti Smith
fotografada
em 1976

GIJSBERT HANEKROOT/REDFERNS/GETTY IMAGES

6 | ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019


Como foi trabalhar com a poesia 1993, Escrever na tradução portugue- Em Apenas Miúdos conta que
de Antonin Artaud? sa]. Achei que poderia fazer qualquer começou muito cedo.
Foi muito bom. Li os poemas dele e coisa de semelhante encarando a Sim. Comecei a ler aos três anos. A
os Soundwalk Collective gravaram escrita como o acto de fazer poemas minha família vem da classe média
música no topo das montanhas no em prosa, ou seja, textos que quando baixa e quando eu era pequena vivía-
México onde estudaram a dança do se lêem nos levam a alguma essência mos num pequeno apartamento, um
Peyote. Muito pouca gente vai até lá acerca do processo de escrita. Não de bebé e duas crianças. Eu tinha muitos
acima; é muito perigoso. Mas os meus forma académica ou didáctica. Eu problemas de saúde, passava muito
amigos foram lá, contactaram com a queria saber de que modo poderia tempo sozinha. O meu pai trabalhava
música indígena e conjugaram-na convidar o leitor a entrar no meu pro- numa fábrica e a minha mãe era
com a poesia de Artaud. cesso e isso aconteceu de forma aci- empregada de mesa, mas eram leito-
Uma poesia agora polémica. dental. Eu estava em Paris e tinha um res ávidos. A minha mãe lia romances
De vez em quando é preciso suspen- diário onde apontava o que estava a e o meu pai lia tudo. Desde livros de
dermo-nos do mundo para que o fazer. O livro foi quase todo escrito em ficção científica, mistério, a Bíblia; e
trabalho não pareça uma blasfémia, França, excepto o fim; escrevi-o aqui. eu, desde pequenina, achava aqueles
ou misógino. Mas não me importo Aliás, sentada àquela mesa [aponta livros misteriosos e queria estar
com essas coisas. Leio Artaud, tentan- para a mesa mais solitária ao fundo neles, dormia com alguns debaixo da
do estar na cabeça de Artaud. Não da sala]. É uma história sobre alguém almofada porque pensava que assim
quero saber se é um insulto ao femi- obcecado com o seu ofício e que se eles entrariam no meu cérebro, e
nino ou a determinada pessoa. Limi- disciplina em função dele, que lhe quis logo aprender a ler. A minha
to-me a ler o trabalho dele. Ele quase devota toda a sua energia e tempo. Ao mãe, que nem tinha terminado o
nunca fala de uma mulher em parti- escrever a história da rapariga que liceu, ensinou-me. Quando aprendi
cular, mas fala da terra. E há a loucura quer ser uma patinadora também a ler, queria fazer aquilo, juntar pala-
dele. Ele era um génio e interessa-me estou a escrever sobre escrever. Olhei vras, criar livros. É a minha vocação
estar dentro de uma mente complexa para todo o meu material e pensei mais consistente.
que não é como a minha. que na primeira parte estava a mos- Mais do que a música.
Não se considera complexa? trar como é que estava fisicamente a Sem dúvida. Eu não sou uma música,
Sou complexa, mas sou mais do tipo escrever. Estava num café, num com- sou uma performer, adoro actuar. Sou
sonhador. A minha loucura é mais boio, numa casa de banho; na segun- uma performer natural.
fantasiosa, mais como uma persona- da parte, há a minha escrita. Eu a Mesmo sendo anti-social?
gem de Alice no País das Maravilhas. escrever e a minha consciência da Quando estou em palco, consigo falar
A loucura dele era grave, esteve inter- escrita. No que se pode chamar a ter- com as pessoas, mas se tiver de ir a
nado, mas a sua disciplina criativa era ceira parte, está o motivo, o porque um jantar é terrível.
tão forte que foi capaz de produzir escrevo. Desse modo orgânico perce- A fazer conversa?
um trabalho incrível apesar dessa bi que estava a escrever sobre como Sim, não sou boa nisso. Só que não
loucura. Eu sou capaz de produzir o escrevo e porque escrevo sem escre- penso como uma música, não tenho
meu trabalho apesar de ser uma ver um ensaio específico. música na cabeça, não ouço harmo-
sonhadora, não muito sociável. E chegou mais perto da resposta nias. Penso em histórias. Fui casada
A sua relação com Rimbaud, o à pergunta “porque escrevo”? com um músico, o meu filho é músi-
poeta que se segue neste Não sei quem disse isto, mas pergun- co, sei como é. Quando as pessoas me
projecto dedicado à poesia, é taram a uma bailarina porque é que dizem que sou música, digo que não.
mais apaixonada. dançava e a resposta foi: “Porque é Sou uma performer, é diferente.
Sim, é diferente. A minha relação com que respira?” É a minha vida. Porque Mas o sentido da musicalidade,
Rimbaud começou quando era ado- é que escrevo? Porque me sinto com- a harmonia, está nos seus
lescente e evoluiu ao logo dos anos. pelida, desde muito pequena. poemas.
Continuo a admirá-lo muito como É mais uma questão de ritmo, um
poeta. Descobri-o muito nova, tinha som, do qual tenho muita consciên-
uns 16 anos, nunca tinha tido um cia. Não apenas em poesia, mas tam-
namorado, ele era lindo e eu fingia bém na prosa, sem dúvida na prosa.
que era o meu namorado à distância. Agonizo a cada frase quando falta
Reconhecia na poesia dele, mesmo
quando não a entendia de todo — eu “Quando era jovem uma batida.
No livro, diz que sentiu remorso
era uma rapariga de uma zona rural
de New Jersey —, uma grande beleza, escrevia qualquer depois de ter escrito essa
história e que, quando era
e não era importante que não enten-
desse tudo. Eu adorava Bob Dylan e coisa, e ainda bem jovem, escrevia com maior
descontracção. Agora existem
não entendia todas as frases de Deso-
lation row [canção de 1965]; não que o fiz. Muitas mais questões morais?
Sim, quando era jovem escrevia
entendo sempre Bob Dylan, mas isso
não me impede de o amar e de incor- vezes vêm ter qualquer coisa, e ainda bem que o
fiz. Agora vivemos tempos diferen-
porar a sua linguagem.
Desolação é uma reflexão sobre comigo a dizer: tes, com as pessoas a terem preocu-
pações diferentes. Muitas vezes vêm
o acto de criar a partir do ensaio
de George Orwell, Why I Write. ‘naquele poema ter comigo a dizer: “naquele poema
parece gozar com as mulheres” ou
Aceitei a tarefa sabendo que não sou
boa a escrever ensaio. Pensei em parece gozar com as “aquela canção ofende os negros”.
“Quando diz Christ died for some-
como poderia falar de escrita de uma
forma que já não tivesse sido feita e li mulheres’ ou ‘aquela body’s sins, but not mine [frase de
abertura de Oath], está a desrespei-
tar os crentes.” Não. Por qual- e
Marguerite Duras [Écrire, Galimard,
canção ofende os
negros’. ‘Quando diz
Christ died for
GIJSBERT HANEKROOT/REDFERNS/GETTY IMAGES

somebody’s sins, but


not mine [frase de
abertura de Oath]
está a desrespeitar
os crentes.’ Não“
ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019 | 7
PASCAL LE SEGRETAIN/WIREIMAGE
quer motivo, esses assuntos tiveram rápidas. Lembro-me de bebermos podia fazer nada. Escrevi uma can-
um dia importância para mim; não chá e leite numas chávenas chinesas, ção, nunca a gravei [Somalia]. Foi a
os vou reescrever agora porque já muito bonitas, até que apareceu o minha tentativa de expressar solida-
não estão na linha da frente das plástico e os copos de plástico substi- riedade, de dizer que se pudesse eu
minhas preocupações, e não vou tuíram as chávenas. Eu achava aquilo mudaria coisas.
pedir desculpa por ter escrito sobre horrível, o plástico sabia mal quando Podemos ser egoístas ou autocen-
isso, porque tudo o que escrevi fi-lo se encostava aos meus dentes. Depois trados quando não se tem filhos;
com total consciência. Sempre vieram os guardanapos descartáveis, quando se tem não se é tão egoísta e
escrevi ou fiz os meus discos para os pratos descartáveis, as canetas sente-se empatia por todas as crian-
abrir espaço num mundo confinado. descartáveis. Não tínhamos muito ças. Isso é interessante mesmo na
Sempre admirei Jesus, li as Escritu- dinheiro e uma caneta era tão sagra- escrita. Quando era mais nova, fu-
ras, admiro os ensinamentos, mas da! Mas ali estavam as pessoas a com- mava erva a noite toda, escrevia
quando tive uma religião era jovem, prar e logo depois a deitá-las fora. E quando me apetecia, mas quando tive
e a ideia de Jesus como a de alguém começaram a ter cartões de crédito e filhos não tinha ajudas, vivíamos de
a carregar um enorme peso, a ideia a comprar coisas de que não precisa- forma simples. Comecei a acordar às Na cerimónia da entrega dos prémios Nobel em
de que tudo o que fizéssemos de vam porque não tinham de pagar cinco da manhã e até às oito aquele 2016, Patti Smith não esperava ficar tão
mau pesaria sobre os seus ombros, logo. Achei perigoso. Era só o início. era o meu tempo de escrita; era um comovida. “Fez-me ter uma branca numa canção
fazia-me sentir claustrofóbica. Tinha Sofro com a poluição nos nossos rios, tempo só meu. O meu marido estava que eu conhecia muito bem”, conta
apenas 20 anos quando escrevi na nossa água. É de partir o coração. a dormir, as crianças também, e vivi

RON GALELLA, LTD./WIREIMAGE


aquela frase. E no nosso país é tão grande o núme- assim durante 16 anos. Não publiquei
De onde veio a frase? ro de crianças afectadas pelo desper- nada de 1980 até 1997 e escrevia todos
Cresci com uma educação religiosa dício, pela poluição, pelos detritos de os dias. Apurei a minha escrita, a mi-
intensa, típica da altura, mas a partir fábricas, pesticidas. E os insectos? nha disciplina, e continuo a acordar
dos 12 ou 13 anos achava tudo dema- Onde estão as borboletas? Costumava às oito, bebo um café, pego no meu
siado confinado; parecia-me que a haver milhares de borboletas por bloco de notas e trabalho em qual-
religião enquadrava as coisas para todo o lado e agora somos capazes de quer coisa.
servir precisamente a religião, e quan- ver uma ou duas. Essas coisas preo- Uma das primeiras palavras do
do tentava expressar o que sentia a cupam-me. seu livro é inspiração. Refere-se
um padre, a um catequista, diziam- Ontem, ao falar das alterações a ela como um mistério.
me: “Isso não é para ser questiona- climáticas, da violência, das Se tentarmos objectificar a inspira-
do.” E eu respondia: “Mas Jesus ques- crianças mortas por armas, ção, podemos dizer que o pôr do Sol
tionava.” E vinha logo a contra-res- pareceu-me estar perante uma me inspira, uma noite estrelada tam-
posta: “Não te compares a Jesus.” Patti Smith que, apesar de em bém me inspira, um lugar bonito, um
Aquela frase foi uma declaração de casa, queria falar para o livro que se lê. Ou seja, tudo pode
independência. Eu iria ser a respon- planeta. inspirar-me, mas ter um flash de ins-
sável pelos meus pecados; Jesus não Nunca falo apenas para Nova Iorque, piração é diferente; é uma coisa cós-
teria de ser responsável pelo que eu mesmo estando em Nova Iorque. Às mica, muito mais próxima da teoria
fizesse. Não é uma declaração contra vezes falo para o mundo. Tenho 72 do Big Bang. Posso estar sentada e
Jesus, por quem tenho admiração. anos, já vivi muito, posso ser a avó de acontecer qualquer coisa que não sei
Para algumas pessoas, ter alguém a muitas pessoas que estão nos meus bem o que é, um espanto que toma
morrer pelos seus pecados é muito concertos, e tento apenas partilhar o conta, súbito. Foi o que aconteceu
confortável, mas sinto que a respon- que vi; é tentar a minha parte para com Devoção, a imagem de uma pati-
sabilidade é toda minha. Jesus já tem que as novas gerações façam o que nadora. Nunca patinei, não sei andar
muito que fazer; não precisa de car- puderem. Estas coisas não têm que de patins, nunca pus uns nos pés. É
regar o que faço. Essas coisas preocu- ver com um lugar específico; têm que por isso que falo de uma coisa meio
pavam-me muito quando era nova. ver com o mundo. Quando tive o meu cósmica, uma estrela que explode. O
Agora não penso muito nisso, porque filho, Jackson, estava com ele ao colo resto é uma reacção subjectiva.
sou o que sou, mas aos 20 tudo conta a dar-lhe de mamar e a ver televisão. Sobre a escrita, refere duas
muito. Mas noutras maneiras conti- Havia um directo a partir da Somália palavras como decisivas para Patti Smith e Fred “Sonic” Smith fotografados em
nuo muito parecida como quando com a Audrey Hepburn. Foi pouco descrever o processo: o “como” 1990. O músico morreu quatro anos depois
tinha 12 anos; continuo uma sonha- antes de ela morrer. Uma câmara e o “porquê”.

ALEX SEGRE
dora, continuo a perder-me noutros apontava para o rosto dela e ela esta- Sim, a primeira começa por ser aci-
mundos, continuo a sentir um entu- va a tentar confortar uma mãe no dental. Como escrevo ou onde escre-
siasmo infantil pelas coisas. meio de uma multidão. Essa mulher vo. Ando por aí com o meu bloco, há
Como ontem, no concerto? era muito magra e estava a segurar o uma coisa que me vem à cabeça ou
Estava feliz, sim. Eu tenho muita tris- seu bebé, e ela estava tão fraca que uma ideia que começa a crescer a
teza, perdi muitas pessoas que ama- deu o bebé para que Audrey o segu- partir de uma leitura. Mas porque
va; preocupo-me com os meus filhos, rasse. E naquele momento o bebé escrevemos é diferente. Escrevo por-
com todas as coisas normais, mas morreu. Vi. O rosto da Audrey que não consigo não escrever; tenho
estou muito contente por estar viva. Hepburn mudou. Somos humanos, de escrever, sou compelida. Seria
Fui muito doente em criança, tive senti uma enorme empatia. Eu tinha bom que por vezes pudesse apenas
muitas febres e tive tuberculose e ven- o meu filho ao colo, estava a alimentá- viver. Penso que seria bom deixar
ci isso tudo. Sim, gosto de estar viva. lo e vi aquele bebé, da mesma idade, apenas as coisas decorrerem sem que
Apareceu muito activa na defesa morrer de fome. Senti ali que cada eu sentisse necessidade de pegar na
do ambiente. É a sua criança é um plural, cada criança são caneta, na máquina fotográfica, e dei-
preocupação actual? todas as crianças. As coisas que me xar-me ir no momento. Tenho de me
É uma preocupação que tenho desde passaram pela cabeça... Acho que disciplinar para conseguir não pegar
criança, e aumenta. Cresci nos anos nunca mais fui a mesma. Aquilo na caneta. Vou muito à ópera e sem- O Hotel Chelsea onde viveu com Robert
1950 e nesses anos houve mudanças mudou-me. Naquele momento não pre que há qualquer coisa que me Mapplethorpe

8 | ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019


comove, que me suscite uma ideia, Foi uma tremenda responsabilidade, Plath. Como não se diz que Joni
vou ao bolso puxar do caderno. É um e tão difícil de escrever. A minha gran- Mitchell é uma artista feminina. Não
hábito. Quando tinha 20 anos, estava de preocupação era escrever um livro gosto de catalogar pessoas por géne-
numa festa, com toda a gente a dan- de que Robert tivesse gostado. Ele ro nem catalogar trabalhos por géne-
çar, imersa na festa, e eu, que adorava tinha-me pedido para o escrever e ro. Sou mulher, sou mãe, sou avó, sou
dançar, fui à casa de banho para quando terminei achei que ele ficaria viúva, tenho todas as marcas femini-
escrever um poema sobre isso: ter de feliz com o resultado. Mas também nas, mas quando estou a fazer o meu
sair da festa para escrever... achei que não passaria de um livro de trabalho nunca penso no meu géne-
Está sempre consciente do culto, e agora está em 43 línguas, já ro, se a minha voz é feminina, a não
momento em que está. ganhou prémios, há pessoas muito ser que isso seja propositado. Posso,
Sempre. E penso porque é que não novas que gostam e todos os dias como em M Train, ser a mulher a falar
posso apenas divertir-me, descon- recebo mensagens de alguém a dizer do marido, ou em Just Kids ser a rapa-
trair-me. Nem sei o que aconteceu a alguma coisa. É muito comovente. riga apaixonada pelo namorado. Mas
esse poema, não era bom, mas lem- Estou muito contente por tê-lo escri- quase nunca o meu trabalho teve que
bro-me de estar a escrevê-lo e a ideia to também porque os tempos muda- ver com falar do meu género. Espe-
ser essa interrogação, o porquê de ram tanto, a percepção do que é a cialmente no meu trabalho mais
não conseguir ser como toda a gente, arte... Agora ser artista parece que é recente, estou mais preocupada com
divertir-me, não estar em controlo, ter de pertencer a um jogo em que o a memória, com a emoção, e não há
embebedar-me, dançar, qualquer objectivo é ganhar muito dinheiro. Ou que pôr rótulo.
coisa. Tive de ir à casa de banho escre- ver como se pode chocar, ou ver Umas das suas imagens mais
ver um poema. É insano. E imagino como fazer uma coisa tão grande que icónicas mostra-a como
Camus num café a sofrer por causa de seja impossível ignorar. O objectivo andrógina: a capa de Horses
um parágrafo e a ausentar-se do mun- parece ser o sucesso pelo sucesso, [1975], onde aparece
do por isso. É-se tomado pela mente fama, ter a atenção das redes sociais. fotografada por Robert
do escritor. E não estou a comparar- Quando o Robert e eu éramos jovens, Mapplethorpe.
me com ele. essas coisas nem sequer eram consi- Nem sequer estava a pensar nisso. As
E a sua mente de escritora é deradas. pessoas pensam que eu estava a fazer
diferente, dependendo se Qual era o objectivo? um statement com essa imagem. Nada
escreve poesia ou prosa? O meu? Eu queria ser grandiosa! Se disso. Eu era assim, era assim que me
A poesia é mais difícil. É uma das artes alguém me perguntasse se eu queria vestia. Só queria ter bom aspecto. O
mais bonitas mas mais exigentes por- ser rica e famosa, isso não seria sufi- meu cabelo era assim, eu não estava
que há tanta poesia cifrada num poe- ciente para mim. Eu queria ser a representar nada. Se eu fosse actuar
ma! Talvez seja por isso que muita genial, queria fazer qualquer coisa nessa noite, iria assim.
poesia seja indecifrável. Para mim, a extraordinária. Não se tratava de Não é verdade que brincou de
poesia é a equação perfeita, a obra de fazer muito dinheiro, isso não signi- Sinatra nessa fotografia?
um matemático místico. ficava nada. Se fosse escrever um [Risos] No fim de Jockers Wild [1957],
Em Apenas Miúdos, refere um livro, seria talvez O Pinóquio, um livro Sinatra passeia-se filosoficamente
casal que a vê e a Robert de que as pessoas se lembrassem com o casaco pelos ombros. E é uma
Mapplethorpe. Um deles, pela para sempre, e que lessem uma e cena tão divertida que quando
vossa atitude, pergunta se serão outra vez como eu leio. Robert, na sessão de fotografias, me
artistas, e o outro responde que Disse que leu Ariel, de Sylvia pede para tirar o casaco porque quer
são apenas miúdos. Plath, vezes sem conta. O que é ver a minha camisa branca, me inter-
É verdade [risos]. Escrevi isso no meu que a tornava tão especial? rogo onde pôr o casaco, e atiro-o
diário quando aconteceu. Achei mui- A língua dela era como a de uma rapa- para o ombro como Sinatra. Os dois
to engraçado. Uns 40 anos depois riga a brincar com uma guitarra eléc- ficámos contentes. Limitei-me a brin-
estava a tentar encontrar um título trica. Era feminina mas escapava ao car de Sinatra e as pessoas acharam
para o livro sobre o Robert, nenhum género. Os poemas estão num pata- que eu estava a fazer uma grande
me parecia o certo, e encontrei esse mar em que o género deixa de contar. afirmação de género. Estava simples-
episódio e achei bonito e adequado. Não sou boa a analisar, mas a lingua- mente a ser eu.
Queria que as pessoas tivessem essa gem é tão forte! Quando se lê Sylvia Disse que sempre quis fazer
percepção, de que éramos muito Plath, não se diz que se está diante de coisas grandiosas. O primeiro
jovens. E foi exactamente como escre- uma mulher poeta, mas diante de disco que gravou está entre
vi. Ninguém sabia quem éramos. Eu elas?
trabalhava numa livraria, o Robert Horses concentra um tempo específi-
andava de emprego em emprego, e co. Foi gravado em 1975, mas escrevi
ele queria tanto conquistar o mundo as primeiras linhas em 1968. Nele,
que aquele pequeno reconhecimento
em que alguém nos olhava e tirava “Agora ser artista escrevi poesia, escrevi a minha decla-
ração de independência; tinha come-
uma fotografia foi o suficiente para
ele dizer: “Vês, ela sentiu qualquer parece que é ter de çado a actuar, mas achava as sessões
de leitura de poesia muito chatas;
coisa em relação a nós.”
Dos dois, Robert era o mais pertencer a um jogo queria dizer poesia, mas gostava que
fosse cool, que tivesse que ver com o
sonhador?
De certa forma, sim. Dos dois, eu era em que o objectivo meu tempo. Estava a começar uma
nova década. Em 1970 eu queria que
quem tinha o espírito mais prático.
Não é apenas um livro sobre é ganhar muito a poesia tivesse que ver com essa nova
década, com mais energia, com o que
Robert. É sobre si, e sobre Nova
Iorque e sobre uma geração de dinheiro. O sucesso esse tempo nos disponibilizava, e sou
uma filha do rock n’roll e queria seguir
essa energia e também a de pes- e
artistas.
pelo sucesso, fama,
ter a atenção das
redes sociais.
Quando o Robert
e eu éramos jovens,
essas coisas
nem sequer eram
consideradas”
ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019 | 9
soas que admirava, como Bob Dylan, momento fosse perfeito e não foi. Foi quando me vi nas fotografias não me Não acha que atingiu um
John Lennon, Jim Morrison, Neil imperfeito, mas acho que foi melhor reconheci, aquela não era eu. Eu estatuto quase consensual?
Young, todos os que tinham incorpo- assim porque não somos perfeitos. Ali tomei decisões e não deixei que Gosto que as pessoas gostem de mim.
rado poesia no seu trabalho. A dife- estava eu e eu era a única coisa que outros, que tinham poder, as tomas- Não sei porque será, mas talvez seja
rença é que eram músicos e eu era podiam ter. Mas foi muito difícil para sem por mim. Quiseram que eu cor- por ser como sou; não tenho outra
uma poeta que queria infundir R&B mim; eu aspirava a perfeição, queria tasse a frase “Jesus died for somebody’s persona, não tenho adereços. Sou
ou reggae ou rock n’roll na poesia. Eu cantar de forma perfeita e mostrar às sins, but not mine” porque era contro- apenas eu. Acho que o mais impor-
estava no outro lado. É interessante pessoas a beleza da linguagem dele. versa, que Pissin on the river [canção tante em palco não é ser-se perfeita,
olhar Horses hoje porque tudo o que Houve doçura no modo como de 1978] era muito controversa. Ou não é ser-se bonita, é estar em comu-
fiz nos meus 20 anos é como uma pediu desculpa, nem uma réstia seja, não foi apenas por ser mulher, nicação com as pessoas; mesmo que
metáfora daquilo em que me tornei. da ironia que muitas vezes usa. mas porque fazia o que queria. Se eu sejam cem mil. É preciso estar em
Não é apenas um disco que reflecte Acho que não é ironia, é humor. Há fosse homem, teria problemas muito comunicação com elas, e elas respon-
amor ou paixão, mas reflecte relações muita ironia na minha vida, mas não semelhantes. Nunca fiz cedências dem a isso. As pessoas sabem que
muito particulares, estéticas, de gra- sou uma pessoa irónica. Tenho senti- para ser mais bem tolerada e não me quando estou em palco estou cons-
tidão. É um disco onde estão as do de humor. Tive muitas coisas iró- arrependo. ciente de que elas existem. Muitas
minhas ideias, o meu manifesto pes- nicas a acontecer-me, quase todas vezes estou a cantar e faço isto [faz o
soal. Nele está um pequeno mundo ligadas à morte. Mas não sou cínica; gesto de uma panorâmica], tento ver
em 40 minutos. Quando canto essas dizer qualquer coisa irónica é procu- rostos e falar para eles. Muitas vezes,
canções sinto uma grande ligação à rar um duplo sentido; não sou uma a vontade é congelar em frente de
rapariga que as escreveu.
Essa rapariga não se tornou
pessoa de duplos sentidos. Quando
estou a falar para uma plateia como “Tudo o que queria milhares de pessoas, mas o que se
faz? Respira-se fundo e vamos em
uma estranha?
Não. Sei onde ela está.
ontem e um tipo diz: “Patti, I love
you!”, e eu respondo: “Põe-te na fila!”, era homenagear frente. Às vezes não somos capazes,
como no Nobel.
Fala de Rimbaud e de Bob Dylan
como as grandes inspirações.
só quero ser divertida.
Voltando ao seu activismo, acha o Bob, agradecer-lhe Bob Dylan disse o que achou?
Não falei com ele, só com o filho, que
Dylan ganhou o Nobel em 2016,
foi um momento importante
que a sua voz tem mais peso
enquanto performer do que ter sido tão me ligou a dizer que a família estava
muito emocionada. E sobre o meu
para si, actuou na cerimónia em
Estocolmo.
como escritora?
Como performer é-se muito mais vis- importante para engano, riu-se e disse isto: “Ninguém
estraga tanto as músicas dele quanto
Foi muito emocionante. Tinham-me
pedido para cantar uma canção antes
ceral. Martin Luther King escreveu
discursos lindos, as pessoas leram- mim. Eu queria que ele.” O Bob é um homem muito pri-
vado. [Interrompe a conversa e acena
de se saber quem era o vencedor. Eu
estava longe de imaginar que Bob
nos, mas vê-lo a dizê-los era tão pode-
roso. Actuar é também qualquer aquele momento a alguém] Hey! [Um rapaz aproxima-
se, é o gerente do café e ela pergunta:]
Dylan iria ganhar. Havia rumores, e
tinha uma canção preparada para o
coisa de poderoso. As palavras são
uma coisa mais íntima, mas a coisa fosse perfeito e não O meu filho não é um excelente gui-
tarrista? [O rapaz diz:] “Sim, mas a
caso de ser ele. Mas quando se soube
fiquei muito surpreendida. Escolhi
mais bem sucedida que já fiz foi um
livro, o Apenas Miúdos. Horses deu-me foi. Foi imperfeito, Patti parecia outra pessoa. Não é pos-
sível que seja a mesma.”
uma canção dele que pensei ser a que
melhor simbolizava a razão pela qual
a possibilidade de fazer mais discos.
Não sou uma performer tão grande na mas acho que foi [Ela volta à conversa.] Ele está
habituado a ver-me todas as ma-
ele era um vencedor do Nobel. A
Hard rain’s a-gonna falls falava do
América. As pessoas conhecem-me,
mas não sou convidada a ir a grandes melhor assim porque nhãs despenteada e a pedir um
café, ali enfiada, a escrever sozinha.
ambiente, era antiguerra, em defesa
dos direitos civis, era um poema tão
bonito, tinha frases poeticamente tão
festivais, não tenho grandes cachets,
não tenho discos de ouro, nunca ven-
di muito à excepção, talvez, de Becau-
não somos perfeitos” Só me conhece com livros e blocos
de notas.

JOE QUIGG FOR RAY-BAN VIA GETTY IMAGES


perfeitas. Sou uma performer muito se the night, sou muito mais popular
natural, não fico assustada, vou e na Europa do que na América.
faço o meu trabalho, e não esperava Tem uma explicação para isso?
ficar tão comovida. Fez-me ter uma Sempre fui estranha, diferente. Em
branca numa canção que eu conhe- 1975 quebrei demasiadas regras mui-
cia muito bem. to cedo.
Esqueceu a letra e pouco depois Estava na cidade certa para
escreveu um ensaio na New quebrar regras.
Yorker em que falou de Sim, mas sabe, não era vista dessa
humilhação. Isso quando muita maneira, como alguém para quebrar
gente sublinhou o momento de regras. Talvez os Sex Pistols fossem,
verdade que se viveu. os Ramones. Talvez por ser...
Foi sem dúvida um momento de ver- ... mulher?
dade. Eu não tinha a letra em frente; Talvez em parte, mas sobretudo por-
eu sabia-a tão bem. Mas estavam ali que era inteligente e vinha de uma
tantas câmaras, aquilo estava a ser classe social baixa, não tinha muitas
transmitido para todo o mundo e maneiras e não encaixava em lado
fiquei aterrorizada. Tudo o que que- nenhum. Em 1975 eu não queria saber
ria era homenagear o Bob, agradecer- de coisas que eram tidas como a regra
lhe ter sido tão importante para mim e não fazia uma série de coisas que
em toda a minha vida, em especial me teriam tornado mais aceitável. Eu
quando era jovem. Eu tinha o Rim- não me penteava, etc. Na capa origi-
baud e tinha o Bob, e o Bob Dylan nal de Horses, quiseram pôr o meu
estava vivo. Ele instruiu-me e inspi- cabelo bonito, esticaram-no, tiraram-
rou-me tanto. Eu queria que aquele me estes pêlos que tenho no buço, e

10 | ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019


Escrever é difícil? É como
“domar um potro teimoso”
Em Devoção, Patti Smith deixa a sua marca na literatura
sobre escrita como testemunha — mais uma — da diÄculdade que
é escrever. Por Bárbara Reis

Quem mergulhe em Devoção, de Patti Smith, Smith escreveu “de um fôlego, sem qualquer
que a Quetzal acaba de publicar, a pensar na espécie de remorso, numa viagem de
sinopse da contracapa, poderá sentir-se comboio em França”. A frase seguinte a esta,
enganado. A nota informa que o livro é sobre é assim: “Silêncio. Carros que passam. O
“o processo criativo”, “a escrita” e “a razão rumor do metro. Pássaros anunciando o
pela qual escrevemos”. amanhecer. Quero voltar a casa,
Se está à espera de pistas palpáveis sobre choraminguei. Mas em casa já eu estava.”
escrita, listas de técnicas e de truques, é Devoção é tudo isto e é também sobre escrita.
possível que fique frustrado. Devoção A medida do insólito de Devoção pode
encaixa-se na longa tradição de livros “sobre tirar-se pela dificuldade que há em dizer
a escrita”, mas de forma singular. quantas partes o livro tem. Há a introdução, o
Devoção/ Da Antiguidade Clássica aos modernos, há texto Como funciona a mente, o poema
/Devotion séculos que quem sabe escrever partilha Ashford, o conto Devoção, o poema Flores
Patti Smith regras de escrita com os leitores. Temos essa siberianas, o texto Um sonho não é um sonho e
(Trad. Helder sorte. Vamos a Aristóteles e a Cícero e o ensaio fotográfico Escrito num comboio.
Moura Pereira) aprendemos que os argumentos são factos, Estas são as sete partes que se vêem a olho
Quetzal sejam os que encontramos na pesquisa nu. Será que Patti Smith vê a organização do
(como documentos, testemunhos e provas seu livro da mesma forma? Isoladas, cada
extraídas por tortura) ou os factos que uma é poderosa. Juntas, integram o
mmmmm dependem do nosso raciocínio (“invenção”, “estranho novo complexo literário” de que
diziam). Vamos a Anton Tchékhov e Mark O’Connell falava há uns anos na New
aprendemos a “lei da pistola” (1904): “Se no Yorker para descrever a obra de W.G. Sebald.
primeiro acto há uma pistola pendurada na Smith e Sebald têm vozes diferentes (como
parede, no último acto ela tem de ser se Smith caminhasse com leveza e Sebald
disparada. Caso contrário, não a com passos largos e pesados), mas os dois
penduramos.” Avançamos para George tocam-se na forma como nos levam por
Orwell e descobrimos a generosidade de longas caminhadas à procura das histórias
Politics and the English Language (1946), o que conhecem mas também do que vão
ensaio onde lamenta o mau uso da língua descobrir — connosco, porque estão a
inglesa e expõe as suas angústias (o inglês escrever para serem lidos.
escrito “está cheio de maus hábitos”, “Por que razão nos sentimos impelidos a
sobretudo a “falta de imaginação” e a “falta escrever?”, pergunta Smith, já no fim. “O
de clareza”). Generoso porque nos facilita a meu dedo, como um estilete, desenha no ar
vida e faz listas de regras a seguir, como esta: um ponto de interrogação.” A resposta
i. nunca use metáforas ou figuras de estilo adivinha-se com a leitura das sete partes de
que veja publicadas com frequência. Devoção. Está lá a obsessão pelas palavras, o
ii. nunca use uma palavra comprida se silêncio, a “solidão alheia às necessidades dos
pode usar uma curta. outros”, a dificuldade de começar. E estão lá
iii. se é possível cortar uma palavra, corte-a Proust a escrever de janelas fechadas e Dylan
sempre. Thomas “na sua cabana modesta”. Mas
iv. nunca use o passivo se pode usar o ficamos sem resposta, tal como em Atwood
activo. ficamos sem conhecer o seu método de
v. nunca use uma expressão estrangeira, trabalho. Aos seus alunos, William Zinsser —
uma palavra científica ou jargão se há um que foi jornalista do New York Herald Tribune,
equivalente em inglês do dia-a-dia. deu aulas de escrita nas melhores
vi. quebre qualquer destas regras mais universidades americanas e, como Orwell,
depressa do que diz uma coisa barbaramente lutou contra a escrita de má qualidade — fazia
chocante. um aviso: “Muito poucas frases surgem bem à
Nos contemporâneos, também há primeira, ou mesmo à segunda ou à terceira.
abordagens diferentes. Temos Sobre a Escrita Lembrem-se disto em momentos de
— A Arte em Memórias (2015), de Stephen desespero. Se acham que escrever é difícil é
King, no qual o escritor diz que “o caminho porque é difícil.” Atwood conta como fica
para o inferno é feito de advérbios”. E, talvez incrédula quando lhe dizem “quando me
no extremo oposto, On Writers and Writing reformar, vou escrever um livro”, sugerindo
(2003), de Margaret Atwood, um livro sem que depois da vida dura de trabalho, vão
listas nem máximas, que nos transporta para finalmente poder relaxar.
o universo de escritores, mas sobretudo para É aqui que Patti Smith deixa a sua marca na
a cabeça dos leitores. longa literatura sobre escrita. Em Devoção,
Se imaginarmos King e Atwood como ela é testemunha — mais uma — da dificuldade
mestres de clubes de “escrita sobre a escrita”, que é escrever. Há o “esforço persistente e
Patti Smith pertence ao da escritora um certo sacrifício”, há os “esforços
canadiana. Mas mesmo aí, Devoção é difícil de falhados”, as “euforias ocas”, “um caminhar
classificar. É previsível. Há anos que é assim feito incessantemente de avanços e recuos”.
com a sua música. Devoção é um remix de “É imperioso escrever — diz Smith — mas é
diário de viagem, contemplação, memória e também impossível não ficar envolto numa
romagem ao século dos intelectuais franceses infinidade de batalhas, como se estivéssemos
— e é também um conto negro, que Patti a domar um potro teimoso.”
ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019 | 11
O Há quatro anos,
carro em que Benke Fer- Unidos, que só terá fim em Setembro. zadas e manipuladas para extrair da mento actual aparece na música de
razviaja embrenha-se no O arranque oficial é na sua cidade, música novos sentidos. É aliás por algum jeito e acende faúlhas na ca-
interior do estado de Minas
Gerais. O guitarrista viaja
Goiânia, a capital do estado de Goiás
em que tocam esta noite. Digressão
isso, por essa imprevisibilidade e sen-
tido de descoberta, que os Boogarins já os Boogarins eram beça de alguém”.
Há em Sombrou Dúvida uma can-
para mais um concerto dos
Boogarins. É isso que mais
avançando para o fim, passarão por
Portugal, onde têm concerto marcado
são uma banda tão entusiasmante –
sabemos que seremos transportados vistos no seu país ção chamada Tradição, em que falam
da sensação “de que toda a verdade
faz a banda de Goiânia. Viajar para
concertos, viajar muito, viajar sem-
para 14 de Agosto, no primeiro dia do
Vodafone Paredes de Coura. Não se
para um lugar misterioso, um lugar
melhor, só não sabemos como ou em como figuras de não vai se sustentar” – “jogue as ideias
no ar”, é a resposta. Há uma canção
pre. É isso que faz também a sua mú-
sica. Viajar, viajar muito, procurar
espantem aqueles que, chegada essa
data com o disco bem rodado e com
que direcção.
Sombrou Dúvida, o álbum que destaque do rock em Sombrou Dúvida, a primeira de
todas, Chances, em que Dinho, o vo-
novos territórios, novas sensações,
novos espaços para se expandir.
as canções devidamente decoradas,
acabem por ser surpreendidos. O
agora editam, é o momento em que
transportam para estúdio, de forma independente, calista, canta assim: “As chances de de
eu fugir daqui são nulas / Eu já sou
Existem discos e os discos são os
pontos de paragem que nos mostram
mais provável é que, nessa altura, as
canções de Sombrou Dúvida tenham
declarada, esse constante sentido de
descoberta, fazendo das canções e da e já a sua música quase um encosto, e o fundo do poço
em mim”. Há neste disco Sombra ou
onde pára a viagem em cada mo-
mento – o felicíssimo primeiro en-
já sofrido a inevitável metamorfose
“boogariniana”. “Realmente, a gente
composição das canções, palco de
exploração sónica, ainda de fuga e de tinha garantido dúvida, a canção onde se resume uma
atitude geral, a ética e estética Booga-
contro deu-se em 2013, com As Plan-
tas Que Curam, chegou depois Ma-
não chega nunca no ponto de falar
que a canção está terminada mesmo”,
descoberta psicadélica, mas incorpo-
rando em si os sons que nos rodeiam espaço e apreço rins: “Eu desconfio dos hábitos, eu boto
fé no viver ávido”. Ávidos têm vivido.
nual, em 2015, dois anos depois Lá
Vem a Morte. Agora, é tempo de aco-
confessa Benke. Nesse processo, dirá
pouco depois, “os palcos são os me-
hoje - corpos electrónicos bombeando
vida em redor, tradução em matéria mundo fora. São hoje Viver virou sonhar,
parte 2
lher o impecavelmente intitulado
Sombrou Dúvida, que sai para o
lhores laboratórios”. Não por acaso,
acabará a entrevista a referir-se à car-
sonora do sabor dos tempos. “A gente
compõe, escreve, circula, faz shows. nome reconhecido, As Plantas que Curam foi toda uma
mundo esta sexta-feira. “Pequenas
impressões do mundo”, define-o da
rinha, aos clubes, à vida na estrada,
como a sua “outra casa”.
Temos essa coisa de ser uma esponja,
mas não é pensado”, começa por ex- seguido com revelação. Composto e gravado pelo
guitarrista Benke Ferraz e pelo gui-
forma mais lata possível o guitarrista.
É o destilar, em som e palavra, dos
A canção como criação sempre ina-
cabada. É isso que temos testemu-
plicar Benke. “Não falamos coisas
factuais, não conseguimos fazer uma atenção por público tarrista e vocalista Dinho Almeida,
era obra caseira criada sem outro
últimos dois anos da interminável
viagem dos Boogarins.
nhado desde que os vimos pela pri-
meira vez em palco, pouco depois de
música bradando contra a pessoa, o
político ou o partido x porque isso e imprensa objectivo que descobrir o que sairia
do encontro entre os dois. Saiu de-
“Não sei como, mas conseguimos
marcar quatro shows para a semana
termos sido agraciados pela luz ben-
fazeja de As Plantas que Curam. Foi
não faz parte de como a gente absorve
as coisas do mundo e as coloca no especializada sejo bastante ambicioso (“Eu quero
o infinito”, cantavam em Infinu) e
anterior [ao lançamento] ao disco
novo”, ri Benke no carro que avança
isso que confirmámos sempre que os
vimos depois disso: uma banda que
mundo”. Tudo é mais subtil, de uma
outra energia poética, digamos. e com agenda uma mão-cheia de pérolas que, tro-
picalismo rock em subtexto, se en-
na estrada, lá do outro lado do Atlân-
tico. Depois do lançamento, a banda
vê as canções como ponto de partida
para novas explorações em tempo
“Nunca é uma coisa que vai pegar
todo o mundo à primeira ou que re- de concertos corpavam de bucolismo Kinks, diva-
gação Syd Barrett, visões cósmicas
segue para uma sequência de concer-
tos, entre Brasil, Europa e Estados
real, ou que as usa como peças que
podem ser constantemente reorgani-
sulte numa hashtag. Não temos apti-
dão para tal. Mas tudo o que é o mo- preenchidíssima dos primeiros Tame Impala. Lucifer-
nandis foi a canção farol da banda,

Pequenas
impressões
do grande
mundo
Boogarins
Sombrou Dúvida é o som de uma
banda a absorver os últimos dois
anos da sua interminável viagem
e a transformá-los em canção.
Jogaram ideias no ar e,
utilizando o estúdio como
instrumento, descobriram novos
mundos no seu universo.

12 | ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019


Mário Lopes
chave para a abordagem criativa, Era voz e violão e resto íamos colo-
encontrávamo-los em Tempo: cando”. O que ouvimos agora é, en-
“vou-me libertar do tempo dos homens tão, “a gente procurando a canção
/ só vou te encontrar / enquanto eles dentro do estúdio”. Alguém que
dormem”. Ou então, se quisermos a chega com uma ideia – um riff de gui-
simplicidade de uma palavra de or- tarra, uma linha de sintetizador, uma
dem, “viver virou sonhar”, como melodia de voz, um ritmo na bateria
Sombrou cantavam em Falsa folha de rosto. - e os outros que o seguem, com cada
Dúvida Depois, com a estabilização da um dos instrumentistas a alimentar-
Boogarins banda em quarteto – a Benke e a Di- se mutuamente enquanto se fixa a
LAB 344/OAR nho juntaram-se, primeiro, o baixista matéria-prima a lapidar posterior-
Raphael Vaz e, depois, o baterista mente. Todo um processo intuitivo.
Ynaiã Benthroldo -, tudo se expan- “Ninguém fala para o outro ‘faz as-
mmmmm diu. Nos concertos, como referimos, sim’ ou ‘tive esta ideia e é isso que
e em estúdio. Disso resultou Lá Vem vamos fazer’. Consegue-se a con-
a Morte, o disco de 2017 que nos mos- fiança no que se está fazendo só de o
trou uns Boogarins híbridos, orgâni- outro não reclamar, entendeu?”.
cos-digitais, a deixarem envolver em Há quatro anos, já os Boogarins
sombras aquilo que antes era luz ra- eram vistos no seu país como figuras
aquela em que se cristalizou essa diosa em céu azul ou noite iluminada de destaque do rock independente,
primeira vida Boogarins, toda ela luz por lua cheia. Sombrou Dúvida é e já a sua música tinha garantido es-
e sonho ganhando vida na voz doce reflexo directo do que imediata- paço e apreço mundo fora. São hoje
e andrógina de Dinho. Manual Ou mente o antecedeu. “Uma volta ao nome reconhecido e respeitado, se-
Guia Livre de Dissolução dos Sonhos, Manual, mas com esse aspecto ana- guido com atenção por público e im-
em 2017, perdeu em sabor a artesa- lítico e sequencial do Lá Vem a prensa especializada e com agenda
nato caseiro o que ganhou com o Morte”, diz Benke. de concertos preenchidíssima. Tudo,
facto de os Boogarins serem então, Curiosamente, pondo em perspec- aponta Benke, à escala do universo
não um duo a montar canções para tiva o percurso até aqui, o guitarrista da música independente, entenda-se
ver o que dá, mas banda a perseguir afirma que, em essência, não vê gran- – “[no Brasil] o rock mesmo vive
e capturar canções em estúdio. “A des diferenças entre As Plantas que num guetozinho, e nem acho isso in-
gente tocou muito ao vivo e trouxe Curam e o álbum agora editado. “A justo para nós, a gente também tem
muito do que estava fazendo no diferença é a nossa experiência”, de- que aprender a fazer música para a
palco, conseguiu mexer muito com fende. Como conseguimos absorver galera ouvir e a gente está nessa
dinâmicas, exactamente o que as ideias e como conseguimos mate- busca”. Felizmente, essa busca faz-se
aprendemos nos shows”, dizia então rializá-las em gravação. Antes não de acordo com o manual Boogarins.
ao Ípsilon Dinho Almeida. Versos tínhamos banda para ficar fazendo. Só temos a ganhar com isso.
Há quatro anos, Dinho dizia-nos
que o título Manual ou Guia Livre de
Dissolução dos Sonhos nascera “de
pensar no prazer do sonho e de pas-
Sombrou Dúvida é o momento sar para o pensamento consciente, e
em que transportam para de vê-lo diluído até se misturarem os
estúdio, de forma declarada, dois num pensamento mais inteiro”.
esse constante sentido Podemos aplicar o mesmo raciocínio
de descoberta, fazendo a Sombrou Dúvida. É um álbum de
das canções e da composição psicadelismo expansivo, sintonizado
das canções, palco com o seu tempo. Um álbum rock
de exploração sónica manipulado por exploradores de es-
túdio, com baterias manipuladas,
sintetizadores ambientais, colagens
sonoras inquietantes, enxertos das
jams em estúdio transformadas em
matéria electrónica que cai em cama-
das sobre as melodias de marca regis-
tada Boogarins.
Cantam “jogue as ideias no ar” e é
precisamente o que fazem. “Temos
essa coisa de ser uma esponja”, dizia
Benke ao Ípsilon, e é mesmo verdade.
Nesta música que é ambição esca-
pista, ponto de fuga para um sonho
entrevisto algures, estão as melodias
que primeiro nos fascinaram neles
– basta ouvir um dos singles de apre-
sentação, Invenção -, é está o muito
que os Boogarins absorveram desde
então. Ei-los, então, a incluir na sua
música subgraves de pista de dança,
métodos de tecelões da electrónica
ou sugestões de jazz onírico proces-
sado digitalmente. Ei-los a reprodu-
zirem em pinceladas abstractas
aquilo que o mundo lhes permite ver
e a oferecerem-nos canções de volta.
Canções vivas, com mil acontecimen-
tos dentro de si. Benke Ferraz pode
falou de “pequenas impressões do
mundo”, mas como são vastas as pe-
quenas impressões do mundo dos
Boogarins.
ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019 | 13
“S
ee my body, it’s nothing Graffin, quando a mãe deste traba-
to get hung about/ I’m lhava, tocavam apenas na costa oeste

Pedro Rios nobody except genetic


runaround”. Foram
estas as primeiras pa-
dos Estados Unidos e ao fim-de-se-
mana. O primeiro álbum vendeu ins-
tantaneamente 3.000 cópias, mas a
lavras cantadas num banda era um fenómeno local. Can-
Ao 17.º álbum, os Bad disco de Bad Religion: somos apenas tavam contra a religião, o governo e
Religion encontram material genético, 100% matéria, 0%
alma. Cantou-as Greg Graffin, miúdo
os “valores familiares” que Ronald
Reagan, eleito em 1980, apregoava.
Age of
Unreason
uma nova urgência, de 16 anos que, com outros miúdos da
mesma idade ou pouco mais velhos,
“Economy, technology, does it really
work?/ The guy running the go-
Bad Religion
Epitaph, distri.
culpa da actual fundara, no ano anterior, 1980, em vernment’s another jerk”, cantava Edel
Los Angeles, uma pequena banda. Graffin em Politics daquele disco. Fast
política americana. Há muito que os Bad Religion não forward de 38 anos: Donald Trump
mmmqm
Vão mostrá-la em são essa pequena banda que fazia
hardcore porque não havia nada de
põe milhões com saudades de Rea-
gan. “Este é o Presidente mais extra-
Lisboa. Conversa mais excitante para se fazer. Com dis- vagante, como constatarás se estuda-
cos como Suffer (1988), uma obra- res História e leres sobre presiden-
com Greg Graèn, prima, ressuscitaram o hardcore tes”, diz Greg Graffin, ao telefone
humanista, professor punk, que adocicaram com sabedoria
melódica, e lançaram as bases para a
com o Ípsilon. Age of Unreason, o 17.º
álbum de estúdio dos Bad Religion, é
doutorado, punk há explosão punk dos anos 1990 — dos
Offspring, a banda mais bem-suce-
antídoto para a era Trump. Apresen-
tam-no na próxima quarta-feira, dia
quatro décadas. dida da Epitaph, editora fundada por 15 de Maio, na Sala Tejo da Altice
Brett Gurewitz, aos Green Day. Arena, em Lisboa, 19 anos depois da
Mas no início dos anos 1980 Graffin, primeira e única passagem por Por-

Iluminismo
Gurewitz e os outros membros dos tugal, no Festival Paredes de Coura.
Bad Religion não imaginavam o que “Cada vez que fazemos um álbum
estava para vir. Queriam apenas fazer penso que pode ser o último. No pró-
parte do frenesim hardcore de Los ximo ano será o nosso 40.º aniversá-
Angeles. Ensaiavam na garagem de rio. Quarenta anos como banda é

punk
contra Trump
Greg Graffin
(o quarto a
contar da
esquerda)
apaixonou-se
pelo punk ao
mesmo tempo
que descobria
o amor pelos
fósseis. Nele,
a ciência e a
consciência
punk
ALICE BAXLEY

coexistem

14 | ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019


ainda mais notável do que ter 17 ál- ramos que soe familiar para que livros que escreve (um deles cha-
buns. Tudo é uma dádiva. Cada toda a gente saiba que é Bad Reli- ma-se Anarchy Evolution: Faith,
oportunidade de dar um concerto é gion. Temos um som que apenas Science, and Bad Religion in a World
uma dádiva. Valorizo imenso os fãs, surge, e esse é o nosso som normal, Without God).
estão connosco há tanto tempo… e mas tentamos escrever canções, Estava tudo em potência naquele
também os novos fãs que só agora esticar as coisas um pouco com cada adolescente que cantava sobre
nos estão a descobrir. Quando edi- álbum e fazer algo diferente”, ana- maus presidentes e os problemas
tamos um álbum, é quase um mila- lisa. Dois exemplos: Downfall faz da religião. Estava tudo condensado
gre [risos] porque não o editaría- rock radiofónico à volta da entropia no logótipo da banda — um símbolo
mos se não tivesse qualidade. Nesta e de outras leis da física e Lose your de proibição em cima da cruz de
altura do campeonato, só queremos head também tem sacarina pop em Cristo —, que continua a gerar polé-
editar material de qualidade em doses suficientes para agradar aos mica quando é avistado em escolas
que sentimos que temos algo a dizer punks que envelheceram e apren- ou nas forças armadas americanas.
e que é punk mesmo bom. Penso deram a gostar de cantigas. Um símbolo criado por punks ado-
que o atingimos: o nosso nível de Isto é um álbum punk, sim, mas lescentes para irritar os adultos e
energia está bom e estamos a tocar punk letrado — o habitual nos Bad outros adolescentes, mas que se
melhor do que nunca. É muito inte- Religion. Age of Unreason joga com tornou sinónimo de liberdade pes-
ressante que a música seja o tipo de o título do livro The Age of Reason, soal e de pensamento antidogmá-
ofício em que podes melhorar ao publicado entre 1794 e 1807 por um tico. “Nunca fomos abertos à estu-
longo dos anos, desde que não te dos pais fundadores da América, pidez”, resume Graffin. “Desde
destruas a ti mesmo”, afirma Graffin, Thomas Paine — a sua defesa do pro- cedo, fomos contra os princípios
com 54 anos. gresso científico e o seu cepticismo dogmáticos da religião.”
face aos ditames da religião organi- Define-se como um humanista. A
Um sino no centro zada contrastam com os “factos al- ciência dá-lhe o que outros encon-
da cidade ternativos” de Trump e o seu conú- tram nos textos religiosos. “Nunca
Os Bad Religion fizeram do punk bio com os cristãos evangélicos. End tive o conforto de conhecer as his-
ferramenta de iluminação colectiva, of history tem ecos de Karl Popper e tórias da origem da Bíblia porque
retirando-lhe qualquer tentação nii- faz uma referência a John Locke, fi- os meus pais não mas ensinaram”,
lista e pondo em canções ideias pro- lósofo inglês do século XVII, o “pai conta. Rotula-se como naturalista
gressivas e conhecimento científico do liberalismo”. Um regresso aos mais do que como ateu. “O que co-
(Greg é um cientista). O repertório valores básicos do iluminismo, que nheço é o sentimento que obtenho
passado ganha agora renovado sen- os actuais populismos tornam de quando vou lá fora e estudo a natu-
tido — We’re only gonna die from our novo revolucionários, “não porque reza e vejo as florestas, vejo os ani-
own arrogance, de 1982, poderia fa- vão criar uma sociedade perfeita, mais, estudo o oceano. Gosto de
lar sobre os nossos dias e de políticos mas porque dão um método para ter observar a natureza de todas as for-
como Trump, que rejeita a mão hu- um diálogo civilizado e uma comu- mas imagináveis. Dessa forma, sin-
mana nas alterações climáticas. Age nidade pacífica.” to-me uma parte do planeta, sinto-
of Unreason soa urgentíssimo por- me ligado a algo maior do que eu.
que os tempos políticos assim o di- “Nunca fomos abertos Do que ouço de pessoas religiosas,
tam. “Threat is urgent, existential”, à estupidez” é também isso que o sentimento
confirmam na primeira canção do Enquanto descobria o punk, Greg religioso dá.”
álbum, Chaos from within, punk de Graffin encontrava também o amor Na América de Trump, os Bad Re-
guitarras supersónicas. pelos fósseis. Estudou Biologia e ligion carregam velhas bandeiras. E
“Podes argumentar que é mais Geologia na Universidade da Cali- recusam dar a luta por perdida. “A
importante do que nunca ouvir Bad fórnia. Mais tarde, doutorou-se em América é um país enorme e sempre
Religion”, atira Graffin. “Algumas história da ciência, com uma tese houve bolsas de intolerância — sem-
pessoas descrevem-nos como zan- que lança questões sobre a tensão pre. E sempre houve bolsas de tole-
gados, mas eu não sou um homem entre religião e a biologia evolutiva rância. O Presidente Trump dá
zangado. Quando canto, é essa a — temas que continua a tratar nos muita atenção às bolsas de intole-
forma como soo. O que fazemos é Bad Religion, nas aulas que dá e nos rância, enquanto o nosso Presidente
mais um apelo sonoro ao público anterior, o Presidente Obama, não
para que as pessoas acordem. Não dava”, reflecte. Rejeita que as coisas
é suave, relaxante, ‘vamos apanhar
uma moca’; é ruidoso, agressivo, “A América tem uma estejam piores. “Devemos ter muito
cuidado em não criar a nossa propa-
para acordar as pessoas, como um
sino no centro da cidade ou uma história muito ganda e uma das formas de a criar é
dizer: ‘tudo é terrível agora, estamos
sirene.”
Não há grandes revoluções musi- grande para ser a regredir’. Isso é propaganda, esta-
mos apenas a jogar o jogo das pes-
cais em Age of Unreason. The
approach é Bad Religion clássico: derrubada por um soas intolerantes.”
Em End of history, punk que só
punk rock veloz, camadas de melo-
dia, coros e a voz de Graffin a injec- Presidente. Há muita deseja o possível, recusa-se o jogo
do adversário e canta-se “utopia is
tar sabedoria (“An apocryphal po-
pular mythology or a civilization in inércia para que an opiated dream/ what we want is
an open society”. Uma sociedade
wane/ Whatever your assessment is,
a paradox remains” — quantos tudo seja aberta que, acredita Graffin, mais
cedo ou mais tarde voltará. “A Amé-
punks cantam coisas como esta?).
Faces of grief é um minuto de pan- descarrilado por um rica tem uma história muito grande
para ser derrubada por um Presi-
cadaria, com baixo pulsante. Can-
didate abre como uma canção folk Presidente. dente. Há muita inércia para que
tudo seja descarrilado por um Pre-
e torna-se rock épico contra a “de-
sinformação” servida a uma “gera- Sim, acredito que sidente. Sim, acredito que a Amé-
rica vai sobreviver. Isso não significa
ção pós-verdade”. “As pessoas ado-
ram títulos de tablóides”, diz-nos a América vai que acredite numa era dourada.
Com efeito, foi assim que Trump foi
Graffin, entre risos, “e o nosso Pre-
sidente usa isso para sua vantagem sobreviver. Isso não eleito, afirmando: ‘make America
great again’. Acreditou que podia
total. Vi artigos a defender que ele
é um génio por usar o Twitter e coi- significa que apelar aos sentimentos das pessoas,
fazendo-as pensar que o passado
sas do género. Essa não é a minha
definição de génio.” acredite numa era era melhor do que o presente”,
aponta. “Assumir que será o fim da
“Temos que fazer música que ve-
nha do coração. Em estúdio, procu- dourada” América por causa de um ditador
ou um tirano é ridículo.”

ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019 | 15


Fat White
Depois de quase
se terem
destruído com o
álbum anterior,

Family
os ingleses
voltam com mais
um grande
álbum. O

na luta contra
chocante, em
Serfs Up!, já não é
Hitler nem o
bombardeamento

a auto-censura
de um parque
temático — é
terem feito um
disco pop.

Gonçalo
Frota

SARAH PIANTADOSI

Os Fat White Family estão aí para colocar a


cabeça no cepo.Lias Saudi, vocalista do grupo (ao
centro) em conversou com o Ípsilon
16 | ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019
www.cm-matosinhos.pt

E foi então, assim


que a tempestade
amainou, que Lias Conferências
Saudi percebeu que Residência Dramatúrgica
2ÀFLQD(VFULWD&ULDWLYD
seriam necessárias $SUHVHQWDomRGH/LYURV

medidas drásticas 12 MAIO


o r t
que
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Mais tino é a v


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s nço MUNI SINHOS
não implodisse. Eduardo L
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DE M TANTINO


CONS ERY
A primeira foi Encontro com escritores
N

livrarem-se da nas escolas


2019

A
SARAH PIANTADOSI

pós a digressão de Songs for


Our Mothers, os Fat White heroína — “essa Estacionamento gratuito para participantes com apresentação de credencial no parque da Docapesca, 11 e 12 de maio.
Family estavam prontos a
seguir para o caixão. A droga que é a morte ORGANIZAÇÃO PRODUÇÃO EXECUTIVA APOIOS

banda que voltou a trazer


o perigo, o desplante, a da criatividade”; a www.bertrand.pt

provocação e o caos para o rock in-


glês nos últimos anos, estava esfran- segunda foi
despacharem Saul
11
galhada pela sua própria conduta no
limite. E tinham caído em todas as
armadilhas óbvias de uma carreira
Adamczewski, Bélgica
compositor do grupo Samuel Lefeuvre
medianamente bem-sucedida no
que resta da indústria musical: “Dro-
gas, ascensão social, hanger-ons [de-
mai
Florencia Demestri
finição para aqueles amigos-lapa que
costumam rodear gente de notorie-
21h30
dade pública para, com isso, colher
umas migalhas em proveito próprio],
comportamentos descontrolados,
fim do mundo” e todos queriam “fa-
zer-lhes a folha”. “Vivíamos sob um le terrier
narcisismo, toda essa treta”, lista
Lias Saudi, vocalista do grupo em
pavor espesso e pesado, e dava para
cortar a paranóia com uma faca.”
cine-teatro Louletano
conversa com o Ípsilon. Tinham sido “Quando começámos, vivíamos
sovados por cada cliché disponível e todos na mesma casa, drogávamo-nos
quase caído para uma valeta devido e fazíamos música apenas para nossa
ao consumo de heroína; precisavam diversão”, compara com os primeiros
agora de medidas drásticas de sobre- tempos. “Passámos tanto tempo a
vivência — individual e colectiva. sermos ignorados por toda a gente
Songs for Our Mothers já tinha sido, que desenvolvemos o nosso léxico
na verdade, um álbum de sobrevivên- estético e erguemos uma estrutura de
cia. Depois da recepção eufórica do integridade que nos permitiu sobre-
álbum Champagne Holocaust, o grupo viver à tempestade quando final-
tinha sido empurrado para a gravação mente chegou.” E foi então, assim
de um segundo registo quase sem que a tempestade amainou, que Lias
tempo de preparação e mal aguen- Saudi percebeu que seriam necessá-
tando viver numa cidade que dava rias medidas drásticas para que a
mostras de os querer cuspir dali para banda não implodisse. A primeira foi
fora. Londres, lembrava Lias Saudi ao livrarem-se da heroína — “essa droga
Ípsilon em 2016, tinha-se tornado que é a morte da criatividade”; a se-
uma cidade cada vez mais cruel para gunda foi despacharem Saul Adamc-
músicos, com os preços da habitação zewski, principal compositor do
tão estratosféricos que mesmo no seu grupo, autor de todos os arranjos, e
caso, com uma carreira já de algum maior foco de tensão com os restantes
sucesso (concertos nos grandes festi- elementos e com a dependência pro-
vais e em salas destacadas), a carteira priamente dita; a terceira foi fazerem
não garantia mais do que um quarto a trouxa e saírem de Londres, mudan-
ª

nos limites da Greater London. Claro do-se para Sheffield.


que as drogas também não ajudavam. Após seis meses em Sheffield, início co-produção estrutura financiada parceiros co-financiadores
www.encontrosdodevir.com
Esse disco, compara Lias, “era como de um longo período para reparar as
estarmos no bunker do Hitler, era o relações criativas e de amizade e actividades culturais centro de artes performativas do algarve

ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019 | 17


“Mais do que fazer
um álbum, tratava-se
de restabelecermos
as nossas relações Serfs Up!

enquanto seres Fat White


Family

humanos e pararmos Domino; distri.


Popstock

de nos destruirmos mmmmq


mutuamente.
Termos atravessado
tudo isso é algo Uma paradisíaca cabana
no grupo, Lias Saudi continuava a
questionar-se se aquela mudança de que me deixa de bambu
se tinha imaginado por encontrar-se
debaixo de uma pilha de sujidade e
àquilo que diz em voz alta na simples
procura de provocar reacções nos
ares estratégica teria sido um erro.
“Foram cinco anos preso num cabrão extremamente Sheffield era a paisagem pós-indus-
trial à espera de ser habitada por uma
desmando na veia de Birthday Party
ou The Fall. É daí que vem I believe in
outros, possa, afinal, ter uma sensibi-
lidade pop. Claro que, no caso dos Fat
de um quarto frio, com abuso de dro-
gas, em que havia muito bullying en- orgulhoso — a um banda que, de repente, podia gastar
o mesmo orçamento mensal que lhe
something better, canção com anda-
mento meio tropical, polvilhada por
White Family, essa sensibilidade é
suficientemente avariada para que as
tre nós e estávamos todos muito trau-
matizados”, diz ao revisitar mental- ponto em que nem garantia um quarto em Londres num
apartamento de cinco assoalhadas.
um teclado de linhagem soul que po-
dia ter sido oferecido por Damon Al-
suas canções não nos cheguem boni-
tinhas e compostinhas. “Sempre tive
mente esse período. “E havia muita
merda do passado que ainda insistia sequer me interessa E com a ajuda de um par de amigos,
dava ainda para alugar um barracão
barn e que se consegue imaginar
surgida na tepidez das águas cambo-
essa natureza antagonista devido à
forma como cresci”, reconhece Lias.
em voltar a atormentar-nos. Mais do
que fazer um álbum, tratava-se de muito o que transformado em sala de ensaios e
estúdio próprio, com o bónus de o
janas. É um dos exemplos de alguma
electrónica discreta e de temas dolen-
“Todo o bullying e todo o racismo
[devido à sua ascendência magre-
restabelecermos as nossas relações
enquanto seres humanos e pararmos as pessoas acham manager da banda viver mesmo ali
ao lado e poder garantir que os Fat
tes (oiça-se Vagina dentata, inspirada
pela leitura de Sexual Persona, de Ca-
bina] que conheci na minha adoles-
cência fizeram de mim um advogado
de nos destruirmos mutuamente. O
facto de termos atravessado tudo isso
é algo que me deixa extremamente
do novo disco” White Family não descambavam em
Happy Mondays (uma outra história
de drogas, rock’n’roll e uma espiral
mille Paglia, ou Rock fishes) que apro-
ximam também os Fat White Family
dos Primal Scream, mas que envere-
do diabo e um cínico empedernido.
Bem como um fundamentalista pela
liberdade de expressão.”
orgulhoso — a um ponto em que nem descendente). Mas não foi só She- dam por uma onda de choque ines- É por isso que Lias Saudi não en-
sequer me interessa muito o que as às pessoas uma versão limpinha dos ffield a servir de paisagem para as perada na sua carreira. tende aquilo que os Fat White Family
pessoas acham do novo disco ou quão Fat White Family” só porque se sentia canções de Serfs Up! Enquanto Eliminada a raiva que, por vezes, fazem como uma contínua provoca-
grande será a sala em que vamos to- aterrorizado pela ideia de ter de ir Nathan (o irmão mais novo de Lias e grassava nas suas criações, adopta- ção. Acredita, simplesmente, estar a
car. Conseguimos provar que a essên- trabalhar em pubs novamente. teclista do grupo) assumia um maior ram uma assumida “sensibilidade cumprir um papel de que o mundo
cia disto tudo era a música e não uma Só que o plano, afinal, surtiu efeito. protagonismo na composição dada pop”. Dados, como sempre, a contra- pop/rock se esqueceu, demasiado
queda iconoclástica, happy-go-lucky, E ao fim desses seis meses, a lidar a ausência de Saul (que, na verdade, riar tudo aquilo que deles se pudesse entregue a “um solipsismo burguês
niilista para o abismo.” com fantasmas e traumas, a ideia de voltaria pouco depois), o vocalista esperar, os Fat Whites começaram a falsamente de esquerda e nascido nos
Nesse período em que os Fat White futuro foi-se tornando mais aberta e decidiu desbloquear criativamente perguntar-se o que poderia constituir media” que, na sua opinião, se rendeu
Family tentavam limpar a cabeça e respirável, “ao invés de ser um ponto durante uma viagem de dois meses um perigo real nas suas decisões ar- ao politicamente correcto. Celebrar
reequilibrar o passo, Lias Saudi era no horizonte cada vez mais mirrado”. pelo Camboja e pelo Laos. tísticas, e capaz de provocar e irritar a morte de Thatcher publicamente,
atormentado não apenas pelo pas- Em parte porque Sheffield era um Dois meses que Lias passou sozi- o seu público. “Já cantámos cartas de piscar o olho a um ideário fascista,
sado mas por aquilo que o futuro lhe lugar suficientemente pacato e desin- nho, a tirar notas, a acumular frag- amor ao Hitler conspurcadas de he- soltar frases misóginas não é, segundo
poderia trazer — e que podia, no li- teressante para que a criatividade ti- mentos de ideias e a tentar entrar roína [Goodbye Goebbels], cantámos a cartilha do grupo, mais do que es-
mite, implicar um regresso ao pas- vesse também de os resgatar dessa num modo contemplativo proporcio- sobre pedofilia, bombardeamento de palhar a desordem que a arte deveria
sado. Ou seja, a limpeza das cabeças nova vida. “Depois de toda a anima- nado pela paisagem paradisíaca de parques temáticos [Bomb Disneyland] assegurar. É a resposta a uma cultura
e daquilo que circulava no sangue ção e de todo aquele caos em que tí- que se rodeara. “Estive a viver três e Harold Shipman [serial killer e mé- “estéril e homogeneizada” em que
assustava-o também pelas conse- nhamos vivido, o tédio era mesmo a semanas numa cabana de bambu na dico inglês, em When Shipman deci- vêem o Ocidente transformar-se, com
quências criativas que poderia impli- solução para os nossos problemas”, ilha tropical de Koh Rong Samloem e des], para onde nos podemos virar as “pessoas a viverem aterrorizadas
car. Os Fat Whites sempre tinham vi- concede o músico. “E conseguimos todos os dias ficava deitado na água a agora? O que é arriscado fazermos? com a possibilidade de fazerem má
vido no limite, num regime de deca- mesmo ficar entediados como a ver o pôr-do-sol”, recorda. “Eu sei Reggae branco, Wham!?” E foi por aí figura ou dizerem alguma coisa er-
dência oficial, paredes-meias com o merda — isso nota-se no disco”, ri-se. que soa muito foleiro, mas estava por que seguiram, misturando pop e ou- rada que as leve a serem vistas como
desastre absoluto. Varrer isso de Não porque Serfs Up!, terceiro álbum ali, tomava um ácido uma ou duas tras referências soltas, tentando cho- sexistas, racistas ou outros istas.”
cena, por mais que fosse uma medida do grupo em que, de facto, há qual- vezes por semana e ficava a contem- car com recursos tão inesperados Os Fat White Family estão aí para
necessária para a vida não se estam- quer coisa de uns Beach Boys detur- plar as coisas, a tentar convocar as quanto arrancar o novo álbum com colocar a cabeça no cepo. Para apre-
par de mão dada com a arte, podia pados (oiça-se Oh Sebastian, que co- forças místicas [risos].” Feet, excelente canção que tanto re- goarem coisas em que não acreditam
comprometer essa natureza desa- meça por ameaçar ser uma variação É daí que vem alguma da luz e da corre a uma secção de cordas quanto (se necessário for), para assumirem
brida que, fatalmente, transpirava de de Somewhere over the rainbow), seja esperança que se infiltra em Serfs Up!, a autotune. o ridículo, para armarem confusão
forma gloriosamente torta para a mú- um disco entediante, mas porque há álbum de pós-sobrevivência, em paz O choque é, portanto, que gente e lutarem contra a autocensura. Nem
sica. Em Sheffield, tentando domar a uma abertura sonora que parece ser com esse período crítico e em que, de que pareça viver para tirar do sério que para isso tenham de levar por-
dor e a ansiedade, o vocalista dava a resposta à necessidade de arranjar repente, se descobre uma qualidade quem esteja à sua volta, arriscando rada ou até mesmo fazer uma can-
por si a pensar se acabaria a “vender algo com que se pudessem entreter. pop nos Fat White Family que sempre diariamente ser esmurrada devido ção pop.
18 | ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019
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Não há
destino
nem
pressa na
música dos
The Necks São uma das
bandas mais
singulares em
actividade,
subindo a palco

I
nsiste-se, muitas vezes, na asso-
ciação da música dos australia- sem saber o que país com pouco atrás de si, remoto
para a maior parte do mundo, com
No final dessa estada londrina, Swan-
ton cruzou-se com um livro do mú-
drões de lenta transformação, tor-
nou-se tão singular e diferenciadora
nos The Necks com a paisagem
do seu país: árida, selvagem, sem
vai acontecer. uma população concentrada nas
grandes cidades mas rodeada dessa
sico e ensaísta neo-zelandês Chris-
topher Small, intitulado Music, So-
que não é especialmente difícil per-
cebermos quando estamos diante
delimitações claras, a perder de Apenas com a paisagem maioritária que — entre ciety, Education, que havia de de uma peça dos Necks— habitual-
vista, tranquila, tensa, ampla, desertos e regiões de vegetação seca produzir estragos na sua vida. Small mente, temas únicos que se prolon-
guardadora de segredos, tensa, cheia certeza de que — é quase desabitada. “Estamos a dissertava acerca do poder de trans- gam por 40 a 60 minutos (e isto vale
de contrastes. Tornou-se um cliché
— tão carregado de razão quanto de
avançará falar de um país que é muito re-
cente”, defende Swanton. “A Austrá-
formação social operado pela música,
mas também do paradigma da música
tanto para os álbuns quanto para os
concertos) e começam por um pe-
preguiça. Mas a verdade, admite o
contrabaixista Lloyd Swanton ao Íp-
lentamente. lia não tem uma grande História
como nação moderna e não temos
clássica ocidental — demasiado con-
vencida de que estava sozinha no
queno motivo que vai ganhando
novos contornos até desaguar em
silon, é que seria incapaz de imagi- A 15 e 16 de Maio, movimentos artísticos profundos. mundo. “Essa leitura virou-me a ca- ideias totalmente diferentes, numa
nar uma banda como esta nascida
numa cidade como, atiremos ao actuam no Há muita inspiração e flashes de
ideias brilhantes, mas não temos
beça do avesso”, lembra o músico.
“Foi o livro certo para o momento em
circularidade intensa e deslum-
brante. Ou, na sua proposta de de-
acaso, Nova Iorque. “Adoro Nova
Iorque, adoro o frenesim constante
GNRation e na movimentos.” O que isso ofereceu
ao trio, desde a primeira hora, foi a
que me encontrava. Acabei por me
corresponder com o Christopher
finição, música “não inteiramente
avant-garde, nem minimalista, nem
da cidade, mas se estivesse lá tenho Culturgest. mais absoluta liberdade, a dispensa Small e acho até que retirei coisas do ambiental, nem jazz”, sendo tudo
a certeza de que começaria a tocar de qualquer pressão para seguir tra- livro que ele não tinha querido dizer. isto e qualquer coisa mais em simul-
música que reflectisse mais esses dições anteriores. “Essa falta de tra- Mas fui muito tocado pela noção de tâneo.
ambientes”, adivinha. Não significa
isto que os The Necks não tenham a
sua legião de fãs nova-iorquinos, tão
Gonçalo dição”, acrescenta o músico, “deu-
nos uma enorme abertura e uma
total disponibilidade para tentarmos
tocar música sem um objectivo em
mente, de estar completamente
imerso no momento e importar muito
“Só que não era isso que estávamos
a tentar fazer”, sublinha o músico. E
não era porque, de início, os Necks
dispostos como quaisquer outros a
abandonar-se nas mãos de três mú-
sicos que avançam pelas suas peças
Frota aquilo que nos apetecia fazer.”
E aquilo que queriam tentar criar
era uma música sem quaisquer re-
mais o processo do que o produto.”
Ao organizar essas ideias, contac-
tou o pianista Chris Abrahams e o
nem se pensavam como algo mais do
que uma experimentação vivida a
três. Nos primeiros tempos, havia
musicais improvisadas com o vagar gras. Ou melhor, com uma única re- baterista Tony Buck e perceberam mesmo uma firmeza em recusar as
de quem não tem qualquer pressa gra, que se mantém até hoje: um co- que os três estavam sintonizados actuações em público. “Não quería-
em chegar. Os Necks, aliás, não sa- meça a tocar, os outros vão atrás. Na numa reflexão semelhante sobre a mos gerar quaisquer expectativas,
bem sequer onde querem chegar. E altura que esta imagem de improvi- música. “O irónico”, ri-se Lloyd, “é juntávamo-nos apenas para tocar e
é assim desde que começaram a fa- sação despreparada começou a ins- termos formado uma banda tão fo- nem sequer falávamos sobre o que
zer música juntos, em 1987. talar-se na cabeça de Lloyd Swanton, cada no processo e termos acabado queríamos fazer. Nessa altura, era
Há na música distendida dos o músico encontrava-se em Londres, por criar um produto tão identificá- muito exigente física e mentalmente.
Necks, portanto, uma marca geográ- a estudar contrabaixo clássico e a ou- vel.” E isto porque a forma de cons- Agora estamos mais relaxados porque
fica, mas sobretudo histórica. De um vir música de uma forma omnívora. trução livre, sempre seguindo pa- aprendemos muito pelo caminho.

20 | ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019


HOLIMAGE
Mas era muito cansativo e ficávamos vilhoso que possamos subir ao palco, Há na música distendida concerto nosso. Acho que se aquilo
esparramados na sala de ensaios du- alguém poder começar com o mo- dos Necks, portanto, que tocamos se estendesse por sete
uma marca geográfica,
rante bastante tempo, às vezes com
as luzes desligadas, na penumbra ab- “Estamos mais tivo musical menos auspicioso que
existe e passada meia hora haja sons mas sobretudo histórica
ou oito horas, talvez ninguém conse-
guisse desfrutar a nossa música. As-
soluta, a conversar sobre a peça que
tínhamos acabado de tocar e os cami- relaxados porque incríveis a acontecer que nem sabe-
mos de onde vêm?” Tornou-se, por
sim, numa hora, é como um avião
que arranca, descola, voa durante
nhos que tinha tomado.” Mas esse
momento era mais de descompressão aprendemos muito isso, comum dizerem entre si que
precisam apenas de “metade de uma aderir a um mundo numa frenética
algum tempo, permite-nos ter uma
óptima vista aérea da paisagem e
do que de afinação ou de correcção.
Não havia conclusões ou aprendiza- pelo caminho. Mas ideia decente” para fazerem um con-
certo ou um disco. A partir daí, desse
aceleração —visível à nossa volta não
apenas nas regras de uma canção
voltamos a descer.”
Para não variar, também as varia-
gens óbvias a transportar dessas re-
flexões. “O que nos interessou sempre era muito cansativo fragmento que possa nem ser espe-
cialmente inspirado, as ligações e os
pop que tem de agarrar nos primei-
ros 15 segundos, mas também numa
ções na abordagem que vêm desen-
volvendo têm sido lentas. Pelo que é
foi começarmos com a mente em
branco”, garante. Por isso, foram re- e ficávamos acidentes que se seguem desblo-
queiam infinitos caminhos criativos
disponibilidade cada vez menor para
adiar o prazer ou na vertigem da ace-
provável que alguém submetido à
audição de gravações dos Necks de há
petindo este método até que ganha-
ram confiança suficiente para se apre- esparramados e, de repente, o problema é “decidir
acerca das demasiadas ideias” que
leração tecnológica.
“Embora tenha os meus valores
30 anos e de agora seja capaz de re-
conhecer a mesma banda. “Não é
sentarem em concerto.

Uma hora de voo


na sala de ensaios, têm de impedir que se atropelem.
Até porque a própria natureza da
políticos”, diz-nos Lloyd Swanton,
“nunca diria que somos uma banda
exactamente como se soássemos aos
Rolling Stones e no segundo seguinte

Essa confiança cristalizou a um tal às vezes com as linguagem dos The Necks é incom-
patível com qualquer sobrecarga de
abertamente política. Claro que
quando começámos há 30 anos não
fôssemos os Abba”, ri-se o contrabai-
xista. Na verdade, a grande transfor-
ponto que, mais de 30 anos passa-
dos, os Necks continuam a fazer mú- luzes desligadas, na informação musical. Os temas evo-
luem lentamente, vão-se transfor-
era assim tão comum tocar música
que levasse tanto tempo a desenvol-
mação de fundo, difícil já de localizar
no tempo — Lloyd calcula que tenha
sica a partir das mesmas premissas.
E Lloyd Swanton ainda dá por si a penumbra absoluta, mando noutra coisa a partir dessa
“meia ideia” inicial e criando um
ver. Num certo sentido, até acho que
é mais aceite hoje, mesmo que o
acontecido por volta de Aether (2001)
— foi o crescente recurso a texturas
subir ao palco — como acontecerá a
15 de Maio no GNRation, Braga, e a a conversar sobre inadvertido transe — se bem que,
reconhece Swanton, exista na sua
mundo esteja mais acelerado e con-
sumamos informação a um ritmo
paralelas que correm em simultâneo,
sem serem necessariamente concor-
16 na Culturgest, Lisboa — a pensar
que “é bom que algum dos outros a peça que tínhamos contribuição para a música do trio
uma influência assumida de músicas
ridículo.” Talvez porque os Necks
acabaram por funcionar como abrigo
dantes em termos de tempo ou har-
monia. Como três vozes que cantam
dois tenha alguma coisa pensada”
porque ele muitas vezes avança “sem acabado de tocar tradicionais como o gnawa. T alvez
tal inferência pudesse ser excessiva
dessa urgência desenfreada que en-
contramos a cada esquina, sugeri-
cada uma a sua música, sem se sobre-
por ou boicotar as outras duas. Ape-
qualquer ideia na cabeça”. Só que
em vez de ceder ao drama ou algum e os caminhos no final dos anos 1980, mas hoje é
quase impossível não ler nas carac-
mos. “É verdade que as pessoas po-
dem ouvir-nos e desligar da loucura
nas à espera de uma pequena varia-
ção que conduza a outra e, sem da-
ataque de pânico, o contrabaixista
contenta-se em pensar “Não é mara- que tinha tomado” terísticas da música dos australianos
uma recusa (de ordem política) em
do mundo durante uma hora, sa-
bendo que é isso que vai durar um
rem por isso, já tenham esquecido
por completo o que os levou até ali.

ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019 | 21


Na arte de Manuel
Zimbro, escuta-se
o invisível
P
oesia ou arte visual? Poeta
ou artista visual? Na Galeria
Na Galeria Quadrum, em Lisboa, corre. “Ele fez outra banda dese-
nhada, mas não a trouxemos. Há
fotografia, replica o desenho de uma
orelha (no livro Desenho, coordenado
Quadrum, em Lisboa, o ar- a maior exposição consagrada sempre coisas que poderão nunca com Nuno Faria), o interior orgânico,
quitecto André Maranha e vir a ser mostradas. Não sabemos, quase carnal, colorido, dos torrões.
Tobi Maier, o director artís- a Manuel Zimbro ilumina o trabalho mas aqui pode ser visto o que o Ma-
Ver sob a luz
tico das Galerias Munici-
pais, interrogam-se sobre a resposta
de um artista para quem a escrita nuel Zimbro quis mostrar”.
Permanece-se então diante da- André Maranha fala daquilo que é da
apropriada. Em que categoria colo-
car Manuel Zimbro (1944-2003),
e o desenho eram inseparáveis, quilo que o artista quis mostrar, na
Quadrum até 7 de Julho, em História
ordem da escuta no trabalho de Ma-
nuel Zimbro, mas escutar é, ou pode
que, indiferente às necessidades da produtos da mesma sensibilidade Secreta da Aviação e Alguns Meteori- ser, escutar, como o próprio artista
carreira, escreveu e desenhou com tos. “O título remete para outras ex- refere numa entrevista, os domínios
a mesma sensibilidade e atenção à impermanência das coisas. posições em que o Manuel Zimbro da alma, sensoriais, psicológicos,
poética? “Não é possível chegar a mostrou essa série. Primeiro na Ma- invisíveis. Um escutar que é afinal
qualquer conclusão”, respondem
em uníssono. “A pergunta é justa, José deira, na Porta 33 [um lugar funda-
mental na vida artística e mundana
saber ver o que nos escapa à vista
desarmada: não apenas as coisas ou
mas não sei se ele escrevia para es-
tes desenhos e esculturas, ou se a
escrita os antecedia”, medita o ar-
Marmeleira de Manuel Zimbro], depois em Lis-
boa na Galeria Assírio & Alvim e a
última apresentação aconteceu, em
fenómenos, os raios da luz da Lua ou
os grãos de uma planta, mas também
o sentido das palavras. Diante do que
quitecto. “Talvez não se possa falar 2005, na galeria da Escola António via e sobre o que via, Manuel Zimbro
na reunião das duas coisas separa- Arroio, com a montagem do Pedro também falava e por isso escrevia.
das. Ele está a trabalhar no mo- Esculturas que voam Morais. De alguma forma, esta expo- Nos livros, que começam em títulos
mento em que estas coisas são in- História Secreta da Aviação e Alguns sição declina essa montagem. As como Entre Todos os Sólidos a Areia
distintas, em que o que é da ordem Meteoritos, este é o nome da exposi- esculturas aeromodeladas, que cons- É o mais Líquido, Viagens em Si ou O
da visão é da ordem da escuta”. ção, esconde uma série de contin- tituem essa série, ‘voam’, não estão Homem Invisível e a Florista, ou nas
Escutar não é apenas uma prática gências e circunstâncias, evoca a no interior de vitrinas, como o pró- palavras que escreveu à superfície
do artista, pode ser também do es- presença de outras figuras que se prio Manuel desejava”, observa. Fei- das pedras. Também estas podem
pectador. Nesta exposição, conside- encontram do outro lado deste tas de balsa, pairam sobre a terra ser escutadas com o seu peso, tama-
rada a maior que alguma vez se reali- palco, aquele que não se pode ver. como sementes voadoras, engenhos nho, densidade. “São pedras que ele
zou com trabalhos de Manuel Zimbro, “O convite para fazer já era recuado, leves que balouçam à luz e a à som- encontrou na Madeira. Escreveu
estão palavras. Pintadas sobre seixos datava do tempo em que o João Mou- bra, dir-se-ia, à procura da invisibili- uma palavra sobre cada e ofereceu-a
— “importantíssimo”, “eu”, “olá”, rão era o director das galerias, mas, mmmmm dade. Nas paredes, os desenhos a a um amigo. Considero-as como fa-
entre outras — em títulos de livros, em no ano passado, faleceu [o professor História Secreta da Aviação grafite parecem contrariar esse mo- zendo parte de uma actividade epis-
textos, poemas, prosa, entrevistas. e artista] Pedro Morais, um grande e Alguns Meteoritos” vimento, pois precisamente dão a tolar. Têm peso e voam. E talvez haja
Um liame subtil emerge entre o que amigo do Manuel. Era ele quem ia De Manuel Zimbro ver, minuciosas, o desenho das se- uma correspondência qualquer en-
se escreveu e o que se desenhou ou desenhar a exposição”, revela André LISBOA. Galeria Quadrum. Palácio dos
mentes do pinheiro, da tília ou do tre o tamanho e o sentido que lhes
se esculpiu, assegurado por um mé- Maranha. Com este desapareci- Coruchéus, Rua Alberto Oliveira, 52. Até 7 de jacarandá. “É o trabalho de alguém damos”, sugere.
todo que Manuel Zimbro parece des- mento, o trabalho suspendeu-se até Julho. Terça a domingo das 10h00 às 13h00 e que estava a ver. Mesmo a sua es- Algumas pedras, imaginamos,
das 14h00 às 18h00.
crever num dos seus textos: uma vi- que Lourdes Castro, a mulher com crita, trata do visível”, comenta An- poderão ter sido oferecidas a Lour-
são que “vem do profundo silêncio, quem Manuel Zimbro partilhou a dré Maranha. “Provavelmente esta- des Castro, cuja sombra vemos
da imobilidade psicológica, onde nem vida e por vezes a arte, entrou em 80, quando vivia em Paris, e cujas mos a falar daquilo do que está no numa série de cartazes alusivos ao
o tempo nem o espaço nem o pensa- cena. “Retomou os contactos e deci- páginas podemos observar, numa limar do visível, mas diria que não se trabalho colaborativo no Teatro das
mento se podem mexer, sem que to- dimos avançar. Voltei à Madeira para edição fac-similada da EGEAC, Do- trata de tornar o invisível visível, mas Sombras. A presença de artista é de-
davia as coisas deixem de ser o que ver tudo de novo, mas a escolha das cumenta e da editora francesa Para- de tornar o visível visível. E isso não licada, discreta, invisível, como se
são”. Mas, acrescenta, “sendo tam- obras é da Lourdes Castro. A maioria guay, com o apoio generoso de Lour- é óbvio. Para o Manuel, havia a imo- ali estivesse a velar pelos desenhos,
bém incessantemente uma coisa ou- foi mostrada em À Luz da Sombra, no des Castro. O desenho, o pensar re- bilidade e depois o observar. E ele pelas esculturas. “Sim, a presença
tra”. Como as sementes voadoras, da Museu de Serralves, que os reuniu, flexivo sobre os sentidos e as observava coisas francamente sub- dela sente-se. Julgo que está em todo
série História Secreta da Aviação, os mas algumas não estavam lá, como faculdades humanas convergem, tis”. Mencionemos algumas: os cau- lado. Ela sempre disse que a sombra
torrões de terra, pintados a guache, a banda desenhada O Leite da Via com humor, numa obra filosófica e les das bananeiras nas aguarelas so- era o território dela, a luz seria o do
ou os seixos encontrados e transfigu- Láctea”. Trata-se de uma obra inaca- poética que inclui uma representa- bre papel realizadas em 1999, o fumo Manuel”. É sob essa luz que o visi-
rados pelos sentidos das palavras. bada, que o artista iniciou nos anos ção da paisagem onde a acção de- de um cigarro que, apanhado pela tante pode agora repousar e ver.

22 | ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019


Jorge
Mourinha,
em Berlim
Sinónimos: a terceira
longa-metragem do
israelita Nadav
Lapid, Urso de Ouro
em Berlim 2019,
Älme de
encerramento do
IndieLisboa neste
Äm-de-semana,
desperta paixões e
ódios. Não é um
Älme político,
segundo diz o

Judeu
realizador ao Ípsilon:
é um Älme

“N
ão sou capaz de ser
assim muito objec-
imprevisível sobre o tivo, e nunca achei
que estivesse a fazer
caos do mundo, uma coisa muito ra-
história de um judeu dical... mas consigo
perceber, racionalmente, que o filme
errante que possa parecer insuportável.” Nadav
Lapid sorri enquanto fala da reacção
sobrevive contando polarizada, extrema, à sua terceira
histórias. longa-metragem, Sinónimos. Apesar
de ocupado com os deveres a que a

errante
sua estreia na competição do festival
de Berlim o obriga, o realizador is-
raelita confessa que leu algumas das
primeiras, e mais devastadoras, crí-
ticas feitas a um filme que, desde a
primeira exibição à imprensa, divi-
diu as águas do certame alemão (e
da crítica internacional) como pou-
cos. “Gosto que não seja [um filme]
previsível”, explica Lapid, em frente
de um café, ao Ípsilon e a um jorna-
lista italiano. “Gosto da ideia de pes-
soas que nada têm que ver com os
meus valores e com as minhas ideias
encontrarem coisas maravilhosas no

em território instável
filme, e de pessoas que apreciam o
meu cinema ficarem completamente
indiferentes ou mesmo hostis.”
Quando falámos com o cineasta,
ainda o júri presidido por Juliette Bi-
noche não tinha atribuído a Sinóni-
mos o prémio máximo de Berlim — e
24 | ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019
que acontecem nas nossas vidas. e torna-se normal, porque toda a diferente: uma violência surda, ba-
Isso, por vezes, implica criar contra- gente faz o mesmo, mas quando o seada em códigos, comportamentos,
dições entre a forma e o conteúdo anormal se torna normal há um coisas muito subtis e ao mesmo
para chegar à verdade — e a verdade monstro que começa a crescer.” tempo muito cruéis. No fundo, França
pode, como sabemos por experiên- E foi esse “monstro” que às tantas e Israel são uma espécie de antípodas
cia própria, ser estranha, caótica, se manifestou. “Volto a casa, começo que também são sinónimos”, diz o
misteriosa.” a trabalhar, estudo filosofia, começo realizador, com um sorriso que ex-
E que verdade é essa? Para come- a escrever romances, tenho uma boa plica, também, o título do filme —
çar, Sinónimos, que faz neste fim-de- vida... e ao fim de ano e meio tenho para lá do modo como Yoav, interpre-
semana o encerramento oficial do uma iluminação. Não lhe quero cha- tado com garra pelo bailarino franco-
IndieLisboa (Culturgest, domingo, dia mar um ataque de ansiedade, porque israelita Tom Mercier, vai aprendendo
12 de Maio, às 18h) antes de entrar, dia isso dá uma ideia de histeria, mas na francês, através da leitura de um di-
16 de Maio, no circuito comercial, é verdade senti-me como se eu fosse a cionário de sinónimos. “Repare-se
um choque para quem conhece as única pessoa lúcida no meio de cegos. como, em ambos os hinos nacionais,
suas longas anteriores, O Polícia (2011) Poucos dias depois aterrei no Aero- israelita e francês, se fala de derramar
e The Kindergarten Teacher (2014, que porto Charles de Gaulle.” sangue. E quando olhamos para o
não se estreou em Portugal mas cuja Uma fuga para a frente, então, que dicionário de sinónimos, repare que
remake americana com Maggie Gylle- pode ser interpretada como fuga à os primeiros a serem listados são O bailarino franco-israelita
nhaal, A Educadora de Infância, esteve mentalidade de cerco, “nós” versus muito próximos do original. E quanto Tom Mercier (ao lado
há pouco em exibição por cá). “eles”, que se sente em Israel. Mas mais sinónimos uma palavra tem, esquerdo)interpreta com garra
No seu centro está Yoav, um israe- que não é uma fuga “política”, antes mais eles se tornam distantes do ori- Yoav no filme Sinónimos
lita que se muda para Paris, em fuga existencial: “não acho que seja um ginal. Talvez seja isso que França e do realizador israelita Nadav
não se sabe (inicialmente) bem do filme político no sentido mais estrito Israel são: sinónimos distantes...” Lapid (em baixo)
quê, com o intuito de se “tornar” da palavra”, defende Lapid. “O Yoav
francês e abandonar a sua identi- não está a fugir a uma lei específica
dade israelita — como uma pele que passada pelo Governo, nem a um
se muda. “Há uma certa percenta- primeiro-ministro que ganhou uma
gem de gente que vê a sua identi- eleição... Está a fugir é do que ele
dade como uma prisão”, diz Lapid, entende ser a alma colectiva israelita
explicando que essa questão nem — que, para ele, está amaldiçoada, é
sequer é um “exclusivo” israelita. uma doença, um demónio.” Uma
“Podia ser a história de um italiano, alma colectiva que abre a porta para
ou de um suíço, ou de um português o cineasta explicar a progressiva po-
que foge da sua identidade, que quer larização da opinião pública no seu
ser arrancado à sua identidade... Já país natal. “Israel é um país que edu-
não me recordo do seu nome, mas cou os seus habitantes para um amor
li uma vez um intelectual italiano total, absoluto, incondicional, ilimi-
que dizia: ‘A pátria é um local que tado, do seu país. Devoção total,
me envergonha.’” com uma visão perfeitamente dico-
A referência não é casual: a pátria tómica do universo — se não se faz
tem sido um tema recorrente do ci- parte do ‘nós que amamos Israel’
nema de Lapid — já em O Polícia ele sem reservas, automaticamente é-se
confrontava duas visões opostas de parte dos ‘eles que são inimigos’. Em
Israel — e ganha uma dimensão quase resultado disso, se não aceitamos
de vida e de morte num país que vive esse amor total, damos por nós
em permanente “estado de guerra”, numa situação de alienação. Tenho
até mesmo consigo próprio. Não será
surpreendente que Sinónimos seja
sempre vontade de dizer aos israe-
litas, de modo que eles ouçam, que “Tenho sempre
o Urso de Ouro focou ainda mais os
holofotes num filme divisivo, literato,
inspirado em acontecimentos da pró-
pria vida do realizador, que, à imagem
se pode ser israelita e criticar as coi-
sas negativas do país. Mas é difícil, vontade de dizer aos
absurdista, doloroso, desvairado,
comédia trágica ou tragédia cómica
do seu protagonista, partiu de facto
para França nos anos 1990 para se
temos de gritar muito alto...”
Paradoxo: Yoav (interpretado com israelitas, de modo
sobre um israelita que literalmente
foge de Israel para se recriar, e à sua
reinventar, sem conhecer a língua.
Mas Lapid recusa definir o filme como
garra pelo bailarino franco-israelita
Tom Mercier) é alguém que, aparen- que eles ouçam,
identidade, em França. Um filme que,
nas palavras de Lapid, “põe o espec-
autobiográfico. “A autoficção é uma
coisa que não me interessa”, afirma.
temente, se quer desfazer do que o
faz israelita, mas nunca o consegue que se pode ser
tador a percorrer território instável”,
que o quer forçar a sair da mera pas-
“Este é um filme que refere eventos
que aconteceram com maior ou me-
realmente. Sobrevive através das his-
tórias que vai contando, das narrati- israelita e criticar Sinónimos
Synonymes
sividade de estar sentado numa sala
para o tornar um observador activo:
nor precisão, só que transformados
pelas palavras, pelas observações.”
vas que vai criando para si próprio e
para os outros que o rodeiam — é, as coisas negativas De Nadav Lapid
Com Tom
“A partir do momento em que cate-
gorizamos ou classificamos uma Um lúcido no meio
de cegos
como Lapid disse anteriormente em
entrevistas, uma das características do país. Mas é difícil, Mercier,
Quentin
coisa... esse é o momento em que já
não observamos, em que já não esta- Tal como Yoav, também Lapid partiu
mais marcantes da identidade ju-
daica: a sua capacidade de criar e temos de gritar Dolmaire,
Louise
mos a olhar para o filme em si.”
Para Lapid, mesmo compreen-
dendo que este estará longe de ser
para França em resultado de uma
“iluminação” súbita sobre o seu lugar
em Israel. “Eu vinha de uma família
contar histórias como modo de sobre-
viver e de fazer sentido do mundo.
“Exactamente: quanto ele mais re-
muito alto...” Chevillotte

um filme unânime (coisa que, de burguesa, intelectual, mas quando cusa a sua identidade, mais a reforça”, mmmmm
qualquer modo, o seu cinema nunca comecei o meu serviço militar obri- anui. “No fundo, ele é o verdadeiro
foi), Sinónimos era “o único filme gatório, aos 18 anos, a minha única judeu errante, que conta histórias
possível” neste momento. “Não é aspiração era ser um herói e, se fosse para sobreviver.”
uma questão de opções estilísticas necessário, morrer pelo meu país”, Ironia: fala-se da violência inerente
ou decisões criativas...”, explica. “É recorda. “Aos 18 anos não se com- a um Israel que vive permanente-
possível que algumas das decisões preende o que é a morte, mas adorava mente em convulsão, dir-se-ia mesmo
que tomo não pareçam evidentes, imaginar o meu funeral militar. Fiz em “estado de guerra” (até mesmo
mas para mim são as únicas possíveis três anos e meio de tropa, fui um bom consigo próprio), mas Lapid não se
porque estou a tentar chegar ao soldado, recebi até louvores. E a certa coíbe de mostrar como essa violência,
fundo da verdade daquele momento altura tudo isso acaba. O que é de lou- afinal, não é um exclusivo israelita.
[específico]. A vida é por natureza cos em Israel é que toda a gente faz a “Quando o Yoav chega a França, des-
extrema, impossível, absurda — mas tropa, e depois volta à vida normal cobre que há todos os tipos de violên-
é essa a realidade. E o meu filme pro- como se nada tivesse acontecido. cia”, aponta. “Em França existe igual-
cura revelar a natureza dos eventos Pega-se numa coisa que não é normal mente algo de muito violento, mas é
ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019 | 25
Cinema
notoriedade, mas nunca mais
Estreiam escreveu nada e vive às custas da AS ESTRELAS Jorge
Mourinha
Luís M.
Oliveira
Vasco
Câmara
O spleen
mulher, que é rica. Mas a mulher
(Isla Fisher) morre num acidente DO PÚBLICO
de automóvel (que é a sequência
de Miami mais dramática do filme, e em que
Korine melhor usa aquele seu tipo Agradar, Amar e Correr Depressa – mmmmm mmmmm
Korine filma um monstro do de montagem alternada Anoitecer mmmmm mmmmm mmmmm
“retrospectiva”, a fazer dialogar
inconformismo e de Até Que o Porno nos Separe – mmmmm mmmmm
planos de flash-back e de
umacontracultura, nada flash-forward) e deixa em The Beach Bum: A Vida numa Boa – mmmmm –
predominante: Moondog. testamento que Moondog só Diamantino mmmmm mmmmm mmmmm
Luís Miguel Oliveira herdará a fortuna e a propriedade
Greta mmmmm mmmmm mmmmm
dela quando voltar a publicar.
Expulso de casa, sem outro Hotel Império mmmmm – mmmmm
The Beach Bum: a Vida Numa
Boa remédio, tem mesmo que A Land Imagined mmmmm – mmmmm
escrever.
The Beach Bum Quero-te Tanto mmmmm – mmmmm
E é só isto, a história, mesmo
De Harmony Korine Ruben Brandt, Coleccionador mmmmm – –
Com Matthew McConaughey, Snoop que “isto” pudesse ser uma
Dogg, Isla Fisher, Zac Efron declinação de tragédia grega (o O Silêncio dos Outros – mmmmm mmmmm
herói banido que tem que cumprir
Sinónimos mmmmm – –
mmmmm certa tarefa para poder voltar a
a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente
casa). Para mais, não há nenhuma
Com as suas paisagens da Florida, angústia na personagem, feita de
entre Miami e as Keys, The Beach pura “joie de vivre”, espécie de
Bum é como um lado B para Spring super-herói hedonista em
Breakers, o anterior filme de constante estado de euforia (algo
Harmony Korine. Um lado B que McConaughey aguenta muito
“conceptual”, que vai pelo bem, sempre de sorriso pedrado, a
caminho contrário do lado A: se, deter-se um milímetro antes do
fiel à sua predilecção por figuras puro cartoon). Não se trata,
monstruosas, Korine filmara em definitivamente, de um filme
Spring Breakers os monstros do sobre as agruras da criação poética
conformismo (as adolescentes — Moondog escreve na praia, nos
fotocopiadas umas das outras, por bares, e raramente se ouve ou lê
sua vez fotocopiadas dos uma linha do que ele escreva (fica
estereotipos da predominante tudo em elipse, o que também é
cultura teen americana), em The bastante lado B de Paterson). É
Beach Bum filma um monstro do quase apenas um pretexto para
inconformismo e de uma espécie Korine seguir a odisseia de um
de contracultura, nada poeta vadio, por episódios
predominante. É ele Moondog, progressivamente delirantes que Ivo Ferreira: a atmosfera, mais do que a narrativa
personagem interpretada por envolvem fugas de centros de
Matthew McConaughey (que rehab (porque ele obviamente diz
nunca ninguém viu nestes “não, não, não”) e, na mais pensar em Jia Zhang-ke. Jia vem
preparos: cabeleira loura, robes divertida sequência de todas, um A última vez também ao de cima no modo como
coloridos, tangas...), poeta barco turístico para observação de Ferreira filma a sua personagem
selvagem e caótico que tira toda a golfinhos que afinal eram que ela viu feminina central: Margarida
sua inspiração do excesso e da
desordem (por aí, The Beach Bum
tubarões. Ou pretexto para filmar
um longo bailado de McConaughey
Macau Vila-Nova, “sobrevivente”
resignada de um outro tempo, que
também podia ser um lado B para (a maneira como ele se mexe mantém vivo o hotel familiar com o
o Paterson de Jim Jarmusch), e vive talvez seja o principal foco de Uma actriz excelente e um dinheiro que ganha como call girl
em permanente estado de atenção da câmara de Korine), olhar fascinado por Macau em clubes nocturnos.
embriaguez, literal e figurada. temperado por luzes e néons, são sedutores, mas não Surge então um esboço de noir:
Moondog publicou uns poemas há música dos Cure e de Van um homem misterioso que parece
uns anos, que lhe deram certa Morrison, e uns versos de
redimem o novo filme de Ivo ter um qualquer interesse
Baudelaire ditos ao sol da Florida Ferreira de ser um falhanço particular no hotel e na sua
(o melhor efeito de honroso. Jorge Mourinha herdeira; um potencial comprador
“deslocamento” em todo o filme). que quer deitar abaixo o hotel para
Quando começamos a pensar que Hotel Império aproveitar o boom da construção;
isto, não sendo desagradável, não um amigo/chulo/mafioso que tem
De Ivo M. Ferreira
parece ir a lado nenhum, ou que se Com Margarida Vila-Nova, Rhydian desígnios mais ou menos ocultos. E
arrasta, ou que se torna cansativo, Vaughan, Kam Kwok-Leung uma ideia: um lamento por uma
vem a sequência final, bastante comunidade de bairro, com uma
conseguida, a dar ao filme uma mmmmm mulher que quer manter vivo um
coerência de que ele parecera pouco do seu passado num
fugir até então: é um final Macau tem sido ponto regular de momento em que o futuro está
“anti-tudo” (anti-social, inspiração para Ivo Ferreira, que apostado em destruí-lo. É
anti-capitalista, anti-artístico), viveu vários anos na antiga colónia simpático, esse lado levemente
uma grande “instalação” de portuguesa e aí dirigiu algumas nostálgico por um mundo que está
Moondog que é a sua derradeira (e curtas e um documentário de boa a desaparecer, enterrado pelo
maior) obra poética antes de o memória (Vai com o Vento). Mas o dinheiro e pela ambição; mas é
filme o abandonar, como um herói território parece não ter inspirado insuficiente para levar a bom porto
grego, sozinho no mar. do mesmo modo a quarta ficção uma narrativa que nunca ganha
Concilia-nos com os aspectos mais longa do cineasta, após Em Volta consistência, que se dispersa por
discutíveis do estilo de Korine, (2002), Águas Mil (2009) e Cartas episódios e personagens que
reconcilia-nos com os altos e da Guerra (2016). Ou antes: acabam por sugerir uma trama que
baixos do carrossel que o filme inspirou-o seguramente em termos nunca se explica nem se resolve.
todo é, e, digamos assim, faz-nos de cenário e ambiente, a meio O que é pior é que Margarida
sair de coração cheio. Sabe bem caminho entre a urgência urbana Vila-Nova é tão excelente no papel
ver The Beach Bum, coisa que não das personagens deslocadas de um de Maria que acaba por fazer notar
se diz de todo os filmes, mesmo Wong Kar-wai e uma atmosfera de como quase todo o elenco
Matthew McConaughey: cabeleira loura, robes coloridos, tangas... de alguns muito melhores falso thriller pelo meio de um local masculino está longe de estar à
do que este. em mudança constante que faz altura; e que o desenho atento e
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da comunidade que vive no Hotel Regista-se também como primeiro lugar, um exemplo
Império é mil vezes mais declaração de intenções, ou discretamente feliz de cinema
conseguido e mais interessante do auto-justificação para uma entrada “activista”: pode cumprir a função,
que o arremedo de noir que parece na “norma”: Agradar, Amar e com eficácia pelo menos ao nível
bafiento e gasto. Como se Correr Depressa é Honoré em busca da sensibilização de consciências,
(confirmando o que já sentíamos do “grande romanesco francês”, de manifesto pela revogação da Lei
em filmes anteriores) Ferreira fosse entidade tão mítica como, na da Amnistia que, em 1977, pôs uma
um cineasta mais interessado em literatura do outro lado do “tampa” no passado franquista e
filmar o que acontece frente à Atlântico, a great american novel. elegeu o esquecimento como
câmara do que em seguir uma Honoré vai atrás disso duma forma melhor forma de lidar com o
história pré-definida, que está mais que já nada tem a ver com as passado. A lei foi também uma
interessado na atmosfera e na brincadeiras cinéfilas em torno de forma, eventualmente a mais fácil,
observação do que propriamente “tropos” da nouvelle vague dos seus de exonerar todos os presos por
na narrativa. Hotel Império é um primeiros filmes, exercícios felizes “delitos” de carácter político, mas
passo atrás em relação a Cartas da mesmo que quase adolescentes (ou todo o filme gira em torno do
Guerra e um filme que parece precisamente por isso). Aqui desequilíbrio fundamental que ela
ter-se perdido algures no labirinto reclama-se outro fôlego, o fôlego criou: “esquecer” o passado
das velhas ruelas de Macau; um do romanesco e do melodrama, e significa deixar os crimes sem
falhanço honroso, mas ainda assim uma relevância e significância que investigação, e portanto os
um falhanço. são, inclusivamente históricas: os criminosos sem castigo e as vítimas
meios intelectuais gay parisienses sem reparação, e
do princípio dos anos 90 (há um consequentemente significa
O amor e a Sida romancista, há um velho jornalista esquecer a justiça.
na Paris dos que dá uns toques como crítico de
cinema), ainda carregados pela
O filme fala disso, seguindo os
passos de umas quantas vítimas de
anos 90 ravage operada pela Sida na década
anterior (o romancista é
tortura e outras patifarias do
franquismo (como o roubo de
seropositivo), com personagens que bebés) ao longo dos anos em que
Não é “mau”, e os actores são
transportarão alguns pozinhos de tentaram contornar a Lei da
bons. Mas é pesado, quando figuras reais do período, e dentro Amnistia através de um processo
quereria ser apenas grave. deste quadro uma história interposto num tribunal argentino,
Luís Miguel Oliveira movimentada de amores escudando-se no facto de os
homossexuais caóticos, com centro crimes contra a humanidade
Agradar, Amar e Correr na relação entre o romancista (mais poderem ser da jurisdição de
Depressa atormentado, mais “negro”, mais qualquer tribunal do mundo.
doente) e o jovem cinéfilo (mais Entre essa narrativa (ainda em
Plaire, Aimer et Courir Vite
livre, mais luminoso, mais aberto à data em que o filme
De Christophe Honoré
Com Vincent Lacoste, Pierre saudável), provavelmente estreou, 2018), acompanhada nos
Deladonchamps, Denis Podalydès simbolizando uma clivagem entre seus momentos mais significativos,
duas gerações, a dos anos 70/80 e a e os depoimentos e histórias dos
mmmmm dos 90. Material altamente vários intervenientes, o filme
combustível, por certo, mas Honoré encontra a sua estrutura,
é mais bombeiro do que pirómano temperada ainda por algumas
e o fogo apaga-se mais do que o que imagens de arquivo da Guerra Civil
arde (Fassbinder é que ele de e de manifestações anti-franquistas
certeza não é, apesar do grande (algumas extraídas a um
poster de Querelle que inestimável filme de Pere
ostensivamente se mostra no Portabella sobre a época da
apartamento duma das transição, Informe General). Cidade
Se imaginássemos uma
personagens). Temos a sensação de
estar sempre em ambiente
Sobressaem duas figuras dum
dramatismo supremo e quase
Aberta
competição, que teria vários controlado e perante um filme que trágico, duas velhotas que
participantes possíveis mas alguns prefere a segurança de uma factura passaram a vida com uma
candidatos de topo (Assayas, Ozon, desenvolta (e nessa desenvoltura, obsessão: recuperar os corpos da
Christophe Honoré...), para decidir quase exibicionista), o desbobinar mãe, num caso, e do pai, noutro,
quem é o François Truffaut dos de um argumento palavroso e cheio ambos sumariamente executados
tempos modernos, conciliando de tiradas “epigramáticas”, a um durante a Guerra Civil e sepultados
respeitabilidade artística e real investimento na mise en scène em valas comuns. Querem
intelectual, gosto por formas e na invenção estilística (as raras sepultá-los numa sepultura com
narrativas populares, e aceitação vezes em que Honoré se permite nome, mas isso signficaria
pelo “grande público”, Honoré isso até funcionam: a cena entre o reconhecer algo que o
ficaria, depois deste filme, um romancista e o jovem à porta do “esquecimento” impede: a
pouco mais próximo da meta: foi o hotel, depois do primeiro encontro, existência de valas comuns. “Não
primeiro a lembrar-se de filmar, in tem uma graça quase Demy). Não é remexer no passado”, como se
loco no cemitério de Montmartre, forçosamente “mau”, e os actores ouve dizer durante o filme da boca
um plano do autêntico túmulo de são bons, e sobretudo convictos. de políticos do PP (Aznar ou
Truffaut, visitado pela personagem Mas é pesado, quando quereria ser Rajoy), torna-se um eufemismo
que mais tem em comum com apenas grave, vergado a um sentido para “não exumar cadáveres”. E,
Honoré (vinte e poucos anos no de seriedade auto-atribuido com por isso, a sequência, quase
princípio da década de 1990, época que não tem a melhor maneira de derradeira, do reencontro de uma
da acção, como ele então tinha, e lidar, e que lhe tolhe os das velhas senhoras com o cadáver
aspirações a ser crítico de cinema e movimentos. descarnado do seu pai, finalmente
realizador, como Truffaut foi e exumado, ainda com a bala que o
Honoré veio a ser). O gesto de matou alojada entre duas costelas
auto-filiação, como uma
Continuam (aparentemente o metal resiste
homenagem que pretende dizer O Silêncio dos Outros mais à decomposição do que a
mais sobre quem homenageia do carne humana), tem uma força tão
The Silence of Others
que sobre quem é homenageado, comovente e tão politicamente
De Almudena Carracedo e Robert
parece bastante expresso, e na poderosa: dá uma imagem para os
Bahar
verdade não tem mal nenhum, é só Documentário milhares de esqueletos, mortos da
uma coisa que se regista (como se mesma maneira e enterrados da
regista, já agora, que outro túmulo mmmmm mesma maneira, sobre os quais os
filmado na mesma sequência é o de espanhois caminham, em beatífico
Koltès). O Silêncio dos Outros é, em “esquecimento”. L.M.O.
ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019 | 27
Livros
que George Orwell tem “muito mais que Jacinta Matos dirige os maiores vindo a ser colocadas a propósito
Ensaio valor” como jornalista, ensaísta e e mais rasgados elogios, de certos gestos ou episódios, como
escritor de documentários do que escrevendo, por exemplo, que Mil a lista de nomes de apoiantes ou
Estranho numa como romancista. Neste sentido, a
autora não poupa críticas a novelas
Novecentos e Oitenta e Quatro é um
“grande clássico da literatura
simpatizantes do comunismo
soviético que Orwell forneceu ou
terra estranha como A Filha do Pároco, de 1935, política do século XX” e que A ingenuamente permitiu que fosse
dizendo partilhar por inteiro a Quinta dos Animais é “uma obra ao transmitida ao Foreign Office.
Um ensaio informado (e opinião do próprio Orwell, que em mesmo tempo controversa e Ponto também abordado pela
carta a Henry Miller classificou permanentemente actual”, que autora, mas não devidamente
muito informativo) sobre o aquela incursão modernista como “nos diverte a cada leitura que explorado na avaliação de alguém
percurso solitário de um “uma merda”, do mesmo passo que fazemos”, um livro marcado pelo sempre louvado pela sua lucidez
homem livre. António Araújo é muito mais favorável na “traço forte da sátira”, pela “lucidez profética e pela sua perspicácia
apreciação de obras de não-ficção brutal da escrita polémica” e pelo política, é o facto de George Orwell
George Orwell. Biografia como Na Penúria em Paris e em humor, onde se fundem, “num se ter equivocado rotundamente ao
intelectual de um guerrilheiro Londres (1933), O Caminho para equilíbrio ideal, o objectivo artístico pensar que à guerra contra Hitler se
indesejado Wigan Pier (1937) ou Homenagem à e político” de Orwell. Para mais, se a associaria uma revolução em larga
Catalunha (1938). autora pretendeu sublinhar a escala, capaz de abalar os alicerces
Jacinta Maria Matos
Edições 70 Numa opção que se afigura vertente ensaística do seu do capitalismo ocidental e do
correcta e confere clareza biografado, estranha-se que não modelo democrático liberal.
mmmmm expositiva ao texto, Jacinta Maria analise mais detidamente a vasta e Poucos antes do deflagrar da
Matos acompanha muito heterogénea produção de Segunda Guerra, George Orwell
Talvez do cronologicamente a trajectória Orwell nesse domínio, a que este chegou a antevê-la num sonho
domínio da intelectual de Orwell, sem excesso livro dedica um capítulo quase premonitório e, retomando a sua
lenda, conta-se de informações biográficas e escolar e didáctico, em que o anterior experiência de voluntário
que quando a pessoais, que surgem apenas ensaísmo orwelliano é arrumado e na Catalunha, tentou alistar-se logo
futura rainha quando é necessário para o sumariamente listado por temáticas seis dias depois do início do
Isabel II quis ler A enquadramento da sua obra: por (“ensaios político-ideológicos”, conflito, o que talvez ponha em
Quinta dos exemplo, os “cinco anos de tédio ao “ensaios sobre questões causa a ideia, sustentada por Jacinta
Animais, o livro som das cornetas”, como polícia na identitárias”, “ensaios de base ou Matos, de que abraçou a causa
de que todos Índia, essenciais para a formação temática autobiográfica”, “ensaios bélica sem grande entusiasmo ou
falavam, um criado do palácio de da sua consciência anti-imperialista sobre o campo e a natureza”). Ainda convicção. O facto de, por razões
Buckingham correu as livrarias de (recorde-se o famoso texto Matar assim, deve reconhecer-se que é de saúde, ter sido rejeitado pelo
Londres à sua procura, sem um Elefante, de 1936), ou a morte concedida a devida e merecida Exército causou-lhe uma desilusão
sucesso, e, por suprema ironia, prematura da mulher em 1945 e o atenção a um dos “textos políticos” profunda e, além de combater
acabou por ser um livreiro refúgio da ilha de Jura, nos confins mais importantes de George Orwell, através da escrita, Orwell não
anarquista quem cedeu à princesa da Escócia, sem dúvida relevantes O Leão e o Unicórnio, de 1941. deixou de colaborar activamente
o seu próprio exemplar da obra. A para a tonalidade sombria e Apesar de redigida num estilo no serviço de protecção civil da
Quinta dos Animais, de 1945, e Mil distópica de Mil Novecentos e claro e simples, o “eu” da autora Home Guard. Assim, o cepticismo
Novecentos e Oitenta e Quatro, saído Oitenta e Quatro, o derradeiro livro. intromete-se por vezes de forma inicial quanto ao desfecho do
em 1949, são os dois livros mais Pese embora a assumida excessiva na narrativa, com conflito, sentimento de prudência
célebres de Eric Arthur Blair preferência pela obra não-ficcional frequentes apreciações e mais do que natural na altura, e
(1903-1950), conhecido por um do seu biografado, a autora não considerações pessoais, até aliás bastante comum, não parece
pseudónimo literário — George deixa de dar a devida atenção a autobiográficas, que perturbam o ter abalado a sua firme convicção
Orwell — que, curiosamente, foi novelas e romances, como Dias que deve ser o ideal de uma de que deveria lutar — e de que lado
escolhido pelo seu editor Victor Birmaneses, de 1934, sobre o qual biografia, mesmo de uma biografia deveria lutar.
Gollancz a partir de uma lista que o avança observações algo “intelectual”, ou seja, o acesso Um traço de carácter justamente
autor lhe fornecera. ambivalentes, já que tanto afirma directo do leitor ao biografado, sem sublinhado neste livro é a liberdade
Nesta extensa e extremamente que o livro é uma “crítica acérrima a presença mediadora de uma de espírito de George Orwell, o seu
informada “biografia intelectual de ao imperialismo britânico” (p. 112) biógrafa que, pelo texto adentro, desalinhamento face a côteries
um guerrilheiro indesejado”, como, logo a seguir, que, de um nos chega a informar em que altura literárias e artísticas, a sua total
Jacinta Maria Matos, professora da ponto de vista contemporâneo, ele da sua vida leu um determinado distância perante partidos e
Faculdade de Letras da “enferma ainda do tom paternalista, livro de Orwell e que impressão facções, grupos ideológicos ou
Universidade de Coimbra, não se não mesmo racista, do discurso este então lhe causou ou que, num rebanhos intelectuais, atitude
esconde a admiração imensa, mas colonial típico” e que, sobre o momento decisivo da obra, a exemplarmente expressa quando,
não acrítica, pelo seu biografado e Império britânico, “o que a obra nos conclusão, transcreve todas as convidado a colaborar com a BBC,
procura resgatá-lo do peso propõe para reflexão é pouco” (p. mensagens que, num dado dia de fez questão de vincar que só
esmagador que aqueles dois livros 119). Por outro lado, e apesar de Agosto de 2017, o “Google Alert” lhe aceitaria tal compromisso se este
têm na avaliação da sua obra. pretender valorizar a faceta deu sobre o autor de Mil Novecentos não lhe toldasse a independência e
Considera, por um lado, que eles não-ficcional de Orwell e de não o e Oitenta e Quatro. Tal opção faz, a autonomia, que Orwell assumiu
não constituem o melhor da reduzir aos dois romances que o por outro lado, com que Jacinta por vezes com laivos radicais, quase
produção orwelliana e, por outro, celebrizaram, é em relação a estes Matos resvale aqui e ali no uso de libertários. É sintomático que,
ULLSTEIN BILD/ULLSTEIN BILD VIA GETTY IMAGES
expressões coloquiais ou vulgares, mesmo após a consagração e a fama
em diálogo com o “meu público”, de A Quinta dos Animais, o
afirmando, por exemplo, que ao ir manuscrito de Mil Novecentos e
para a Escócia, Orwell “não fugiu Oitenta e Quatro tenha sido alvo de
para o cu de judas” (p. 338). sucessivas recusas por parte de
Compreende-se a familiaridade de vários editores, prova de que Orwell
Jacinta Matos com um autor cuja jamais buscou o apadrinhamento
obra conhece e domina de notáveis (T. S. Eliot rejeitou-o por
profundamente, mas tal mais de uma vez) ou compactuou
intimidade, próxima e de várias com um “sistema” que o repugnava
décadas, faz com que a autora, visceralmente, mesmo quando nele
como se disse, acabe por conceder reconhecia traços merecedores de
um espaço excessivo às suas preservação: é ilustrativo que o seu
próprias opiniões e impressões projecto de um “socialismo inglês”
pessoais e, mais ainda, adopte um não ponha em causa elementos
tom complacente em relação à como a monarquia e a tradição, o
personalidade de George Orwell, sentido patriótico ou o papel da
com alguns “problemas” a serem Igreja (aliás, o tema da religião em
desculpados, por exemplo, pelas Orwell, um ateu singular, deveria
origens sociais do seu biografado. ter sido abordado mais
Um traço de carácter justamente sublinhado neste livro é a Ainda assim, Jacinta Matos mantém profundamente neste livro). George
liberdade de espírito de George Orwell a objectividade e não ilude algumas Orwell, para mais, nunca fez alarde
das questões melindrosas que têm da sua independência e, ao e
28 | ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019
PAULO PIMENTA
contrário de muitos outros, que passou, mais dois livros de fluidificam e disseminam numa
sobretudo do lado de cá da Mancha, poesia, além deste A Vau, surgido espécie de substancia gelatinosa
não se arvorou em “maldito” nem já no fim de 2018: Jocasta (Viúva que, a ser mais do que uma
propagandeou a sua condição de Frenesi, 2018) e Dizimar (Viúva metáfora aqui tentada, teria muito
franco-atirador. O seu Frenesi, 2018). Mais recentemente, a dizer do nosso tempo. Daí que
inconformismo foi já em 2019, PCD reuniu, em Carmes uns versos deste livro nos falem da
primordialmente interior — e, por (Companhia das Ilhas, 2019), “os “pata anónima/ do novo género de
isso, profundamente autêntico. versos que o autor dá por salvos da poder” (p. 30). Trata-se de uma
Alvo de tentativas de apropriação erosão no processo criativo”, assim força que nem sequer ganha a
de vária ordem na Guerra Fria e nos reavaliando e reequacionando a consistência suficiente para ter
anos vindouros, capturada quer à sua poesia compreendida entre os nome, para ser adjectivado. Mais
esquerda, quer à direita (uma das anos de 1971 e 2018. Se Jocasta nos para lá do anonimato da “pata”
primeiras adaptações de A Quinta falava de um “inferno urbano”, que calca, animalesca, está ainda
dos Animais foi financiada pela CIA), Dizimar, como se quisesse esse “novo género de poder” que
a sua obra permanece como despertar-nos de um qualquer nem chega a definir-se. Talvez não
admirável testemunho de um torpor, situa-nos num lugar, que é o por acaso se lance mão da fórmula
homem livre, que produziu das nosso, “onde ser livre/ se tornou “autocracia do Demo” (p. 35). É ao
reflexões mais originais e ser gestor/ dos utensílios da dos mil nomes e nenhum, ao nunca
acutilantes sobre as misérias do tortura,/ banqueiro-amador da Esta poesia, de Paulo da Costa Domingos, é de exortação em tempo nomeado e por demais dito, ao
século XX, algumas das quais, como usura”. São dois exemplos breves, de mortos. É das que duvidam mais do que erguem sistemas Diabo, que o poema vai buscar
é frequente dizer-se, mantêm retirados de dois livros igualmente designação para o que não pode,
flagrante actualidade. Até por isso, e breves, mas que demonstram até ou não deve, tê-la. Um estado de
pela honestidade intelectual da que ponto a poesia de PCD tem se equivale e se anula toda a um estado de quase indefinível caminho para a ruína.
autora e pela seriedade do seu feito questão de se abeirar do que diferença. É um diagnóstico e a irreversibildade, de insânia e Se quiséssemos procurar, por
esforço, uma biografia que merece rodeia o sujeito da escrita. Ao equação de um confronto possível, decomposição. Pelo que o edificar entre vestígios possíveis, a “caixa
ser lida. fazê-lo, contudo (e esse é um ponto isso que estes versos tornam destes textos poéticos, se surge negra do poema” (p. 11), talvez essa
prévio que não será de mais plausível e deixam no plano de animoso e resistente, oposto à cápsula reveladora não nos
repetir), não abre caminho a uma possibilidade actuante e apatia, alicerça-se sobre um fundo fornecesse quaisquer respostas
Poesia qualquer tipo de menosprezo da potencialmente agitadora. de inegável cepticismo. definitivas. Porque esta poesia é
expressão (e mesmo da Contudo, em face desta poesia, não Esta poesia dirige-se para o que das que duvidam, mais do que
Desfazer o nó expressividade). Muito pelo
contrário, a linguagem recobra
deve pensar-se em teores salvíficos,
crenças, sistemas ou propostas
pode ser, ou vir a consumar-se,
prospectivamente, como “uma
erguem sistemas, ou propõem
molduras ordenadas. Mas as
do garrote permanentemente forças, acera-se,
repleta das munições adequadas
organizadoras. Há, pelo contrário,
no próprio seio da meditação que
etnia de pensadores” (p. 18).
Porque PCD está especialmente
indicações que ela pudesse dar
talvez não se afastassem muito —
para enfrentar o descampado do os versos de PCD a cada passo atento aos sinais contrários à no espírito, senão na letra — de
A poesia de Paulo da Costa mundo, o terreiro de dias lançam, um vestígio incurável de independência e à liberdade, mas certos versos de A Vau — “Se
Domingos enfrenta o mundo enfrentados sem ilusões nem desconfiança, senão mesmo de também rejeita vigorosamente ninguém vier/ desfazer o nó do
de igual para igual. Nem lenitivos — “A fundição Universo é certa descrença — “Não cures de toda e qualquer emissão que labore oculto/ garrote que só tolhe e
reverência, nem temor, há um sucesso,/ um cáustico, e emendar a Natureza,/ que siga sua no logro, na dissimulação, que desmoraliza/ sonhos, aventura:/
escande versos/ de angústia nunca desordenada ordem,/ nada há promova a falsidade de oásis de ¿deve o cego rumo do dia/ vos
por aqui. Antes o resolvidos.” (p. 9) senão nascer e morrer” (p. 15). São fancaria onde só soçobrem os satisfazer?” (p. 12) À afirmação do
desassombro de dizer de Esta é uma poesia de exortação princípios basilares da linguagem e infernos torpes das piores das estrangulamento, acrescenta-se,
forma clara mas repensada o em tempo de mortos, ou, na dos seus referentes; e os poemas a melhores intenções — “Têm desde logo, a impossibilidade de o
que é viver aqui e agora. melhor das hipóteses, de eles tornarão, em enérgicas cabeças de televisão, / estão explicitar, visto que é “oculto” o
demasiados mortos-vivos, retomas que revigoram essa noção emancipados; mas/ há cabrinhas, “garrote” opressor. Segue-se a
Hugo Pinto dos Santos atingidos por uma alienação forte — “São os amores/ à imagem hortalicinhas// e a merda dos interrogação, que, muito mais do
A Vau emudecida, que se congratula com que criaram/ a desordem/ natural grandes/ cabrões da Casa do Povo,/ que persuadir, visa incitar o
a insipiência do seu hedonismo do// caos...” (p. 26) Tratar-se-á, por que é preciso esfregar.” (p. 19) A pensamento e o amadurecer da
Paulo da Costa Domingos
Companhia das Ilhas fosco — “Frente ao televisor fim, implicitamente (a “imagem”), expletiva, o impropério, ou a reflexão acerca das situações que
confessai a vossa ignorância de da visão desapiedada de um invectiva — “¿De que lado te dói?/ provocam a opressão, ou seja, a
mmmmm tudo,/ cegos em terra de cegos, mundo sem Deus? Esse em que, ¿do consentimento/ ou da recusa?” morte durante a vida. A Vau — cujo
doidos/ no domínio iluminado da replicando Dostoievski, tudo é (p. 32) —, não carregam como a título remete para a possibilidade
Mesmo alguns loucura,/ trôpegos de joelhos e permitido? É do desabrigo de um polícia de choque: chamam os mais de ir de uma a outra margem sem
leitores menos alma,/ não era preciso entornar o mundo sem divindades que aqui se nefastos bois pelos piores nomes. auxílio mais do que o próprio pé —
desatentos café/ só por causa de um golo.” trata, ao que tudo indica; um Algo que é particularmente não enjeita os perigos da corrente,
poderão ficar (p.13) Já não é exactamente mundo que arremessa o humano problemático, sobretudo quando nem o acidente geográfico e a
surpreendidos de distópico conceber na superfície para o terreno das suas mais se está imerso, como esta poesia demarcação que o rio constitui;
saber (ou de um ecrã uma entidade perigosas e solitárias descobertas. está, na torrente concreta do mas prevê a capacidade de
recordar) que confessora, uma planura onde se Por seu turno, os alertas que estes mundo que existe em redor. transpor esse obstáculo a um
Paulo da Costa fazem rasas e se abolem todos os poemas promovem, situam-se Estamos perante o caso de um tempo concreto e figurativo,
Domingos (PCD) relevos e rugosidades, e tudo se mais na ordem da constatação, que mundo sem inimigo discernível, circunscrito e aberto à globalidade
publicou, no ano converte numa chata lisura em que ora é dolorosa, ora exasperada, de mas com forças adversas que se da experiência humana.

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IndieLisboa

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16.º Festival Internacional de Cinema

2 a 12 de maio
PARCEIRO DE PATROCINADOR
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ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019 | 29


Discos
ao lado das canções que acima
Pop citámos, caso exemplar de Stand
By, repleta de lugares-comuns
Nunca é tarde sobre o fenómeno das redes
sociais), e nenhum investimento,
demais para (re) do ponto de vista formal, em
esquemas rimáticos e/ou fonéticos
descobrir Praso que não lhe conhecêssemos já. E é
pena, até porque Raiva de Ontem
Não sendo o melhor álbum (todo um poético apontamento só
daquele que é um dos neste título), logo a abrir, dá ideia
de coisa diferente: “E se eu disser
melhores rappers da história
que me sabe a pouco…?” (a
do hip-hop português, L.E.V. música? o parco reconhecimento
não deixa de se constituir, em pela sua carreira? a… vida?),
qualquer caso, numa bela ouvimos-lhe naquele seu
porta de entrada para toda característico tom de bom gigante,
rosto bruto mas coração inquieto
uma discografia à espera de (Mal acompanhado já estou quando
ser devidamente revisitada. ‘tou sozinho’, título e verso de uma
Francisco Noronha das faixas), ladeado por umas
fadísticas cordas (primeiro indício
L.E.V. — Livre e Espontânea da forte presença das guitarras ao
Vontade longo de todo o disco) que
desembocarão, mais à frente, num
Praso
Artesanacto inesperado arfar a cappella
(sobreviver, então…), que, por seu
mmmqm turno, dará depois lugar, mais
inesperadamente ainda, ao
Numa altura em beatbox. Felizmente, há mais
que o hip-hop excepções proveitosas (Fugir à
português regra, Até Virar Pó, pungente
atravessa um incursão pela finitude) e, em A
período de fulgor Praga, Praso assina mesmo alguns
nunca antes visto, dos melhores versos da sua carreira
não deixa de permanecer um certo (os convidados brasileiros Bk e Sain
sabor amargo pelo facto de alguns estão lá mas é como se não
nomes com muitos anos de casa estivessem, tal a discrepância da
passarem ao lado do vendaval que riqueza da palavra de um e de
tem colocado rappers nos tops de outros): “Na mesma terra que
vendas, streamings e festivais de nascem cactos / Nascem rosas / Há
Verão, como se, enfim, nunca Praso construiu alguns dos melhores (mas mal conhecidos) discos belezas perigosas, ilusões
tivessem existido — injustiças da história do hip-hop português provisórias / A vida tem sido
destas acontecem em todo o lado, rigorosa / E dado a volta de forma
já se sabe, mas a frequência não caprichosa / Não deixando de ser
diminui o desgosto. Dissemos uma certa propensão para, por Sistema Intravenoso, Algarve e os apetitosa (…) / O bem e o mal, eu já
“muitos anos de casa” mas vezes, colocar demasiadas palavras Tribruto, por exemplo). Isto dito, provei os dois / Não nego apetites /
dissemos mal: não interessa aqui a no mesmo verso (atropelando, por chegamos a L.E.V. — e chegamos a Penso sempre no que vem depois /
contagem histórica, antes o coeso e isso, o tempo do compasso) numa uma semi-desilusão. Do ponto de Todo o ser tem limites (…) / Viver da
apuradíssimo sentido estético com carismática imagem de marca vista instrumental, o ouvido e as música / Na inspiração que chegue
que alguém como Praso (n. 1983) (como o faz, ainda que noutros mãos de Praso mantêm-se, para viver dela / Mais escrevo
construiu alguns dos melhores termos e de modo deliberadamente desfaçam-se as dúvidas, quando desço um furo na fivela / Eu
(mas mal conhecidos) discos da ainda mais “anti-natura”, alguém inatacáveis, fiéis, sem jamais cair só quero ver a sequela dos borrões
história do hip-hop português, como Allen Halloween). Falámos na monotonia, a uma certa que fiz nesta tela / Sucesso a
casos de Alma e Perfil (2009) e acima em Sines: o negligenciar a linhagem do rap dos 90 (Overdose é degraus, nunca quis / Eu quero
Caçador de Sonhos (2012). A Praso que, em parte, Praso se encontra um cypher à antiga), embora haja planícies / Espaço, amor e saúde /
pertencem alguns dos mais belos e votado no actual panorama do rap derivações, declinações, nada aqui Para tempos difíceis (…) / Sem
requintados beats ouvidos neste português, se é explicável pelo possuindo o bolor sonoro de grandes planos e metas / Vou
país, e que fazem dele, juntamente facto de o próprio nunca ter qualquer “purismo” (“fidelidade”, mentindo nas letras / Copiando
com os portuenses Virtus e Minus, o embandeirado em modas de aliás, igualmente visível no rol de falsos profetas”. Contas feitas, se
mais jazzístico produtor de hip-hop ocasião e preferir concentrar-se em convidados, inexistindo qualquer nós, terminada a escuta de L.E.V.,
em Portugal — Qualquer Coisa e Um fazer música adulta com selo nome “quente” do hip-hop dissermos que nos sabe a pouco,
Pouco de Jazz, pequeno tratado de próprio, não deixa também de português actual). Neste particular, que isso não impeça ninguém de
charme e tesão, tornou-se um estar associado, contudo, a uma prolonga-se, em coerência com os atentar no disco (só aquele
pequeno fenómeno para toda uma postura orgulhosamente trabalhos anteriores de Praso, uma trocadilho em Quasar, com a Duia
geração que redescobriu no jazz underground, militantemente atenção redobrada aos arranjos e o dos Da Weasel seguido do
banhado a rimas todo um sedutor independente, distanciada do crescente interesse pela adição de pronunciar “Baby, Baby” à Biggie,
mundo novo. Composições em que fogo-de-artifício. Isso é o que material orgânico (i.é, vale a atenção) mas, sobretudo, de
o termo “bom gosto” é uma concorre para que se tenha criado instrumentos tocados, e não mergulhar nos anteriores — é uma
redundância (digamos, para um verdadeiro culto em torno de si apenas samplados) à MPC, algo das formas de, pelo meio do refugo
simplificar, que Praso é o Exile e da sua crew Alcool Club (na qual audível em malhas como Raiva de (Pirukas, Wet Bed Gangs e afins)
português) e em cima das quais o se destaca, pela crueza inteligente Ontem, Nunca será justo ou Livre e que vem sendo sofregamente
rapper de Sines vai deixando alguns das palavras e na fanfarronice Espontânea Vontade. É no texto, vendido por promotores como
versos maravilhosos, memoráveis rouca e gangster, Montana, que porém, que L.E.V. peca, uma certa bandeira do “espantoso momento
mesmo, como os que lhe tem neste disco duas colaborações mas real saturação que não deixará do hip-hop português” (não
encontramos em 1,86 do Céu, e de quem há muito se espera um de acometer os ouvintes mais suficientemente espantoso para
Naquele Hotel, Se Este Amor Fosse trabalho a solo), o que, por sua vez, rodados na música do português (A alguém como Praso ter sido
Errado, Soldado de Chumbo, sempre constituiu um sadio factor culpa não é do nosso romance é convidado para o evento “A
Síndroma de Estocolmo ou Tempo, de destabilização do binómio paradigmática na ilustração de um História do Hip-Hop Tuga”),
Amor e Saúde — é mesmo preciso Porto-Lisboa no que à criação beat espantoso servido por uma encontrar o que de realmente
voltar a estas canções, sem as quais hip-hop diz respeito letra esquecível): poucas ou espantoso ele encerra. Uma boa
é impossível falar devidamente da (somam-se-lhes, nessa demanda, nenhumas ideias, fantasias ou parte dele não está nos festivais,
valia poética do hip-hop português. outras figuras/geografias delírios novos (ou francamente mas continua a estar onde
São elas, aliás, que lhe converteram fundamentais, claro: Évora e a crew desinspirados quando colocados interessa: nos discos. e
30 | ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019
BARRETT EMKE
(mas isso será lá longe, quando Oh, escuridão — “when I was a boy, no
O gospel My God caminha para o seu final). rooftop on my joy”, em No halo —,
Antes, a história é outra. polvilha “oh, my lord, carry my
Segundo Kevin Construído à volta do piano e da home” por várias canções e
Morby voz, próxima como nunca antes, é
um álbum mais descarnado que os
confessa, em Piss river, aquilo que
parece evidente desde o início: “I
anteriores de Morby. Tem o piano a tried to pray but I didn’t know what
Oh My God tem olhos nos dar o mote, tem órgão a amparar a to say / So I just mumbled some
céus, é guiado por piano e melodia e coros femininos celestiais names / I said, ‘I hope they’re ok,
coros celestiais e deixa-nos a orientar o olhar — “carry a glad then amen”. A questão é que
song, wherever I go / singing, oh my acreditamos. Acreditamos nos
como crente cépticos.
God, oh my Lord”, diz a canção coros e nas dúvidas de quem canta,
Mário Lopes homónima, a primeira do álbum. acreditamos no bom gosto do sax e
Oh, My God Aqui e ali, ouvir-se-á um saxofone no calor da secção rítmica.
acentuar o tom nocturno, qual Acreditamos neste bálsamo em
Kevin Morby
Dead Oceans; distri. Popstock gospel cantado em madrugada alta, forma de som e palavra. Até que
que marca o ambiente geral. surge um interlúdio com nada mais
mmmqm Naquele hábil cruzamento de que o som de chuva caindo entre
A música de Kevin Morby mudou novamente de cenário. Agora, linguagens clássicas do rock em que arvoredo e, depois dele, uma
Kevin Morby é ei-lo a encenar um quase gospel Morby é especialista, ouvem-se ecos Congratulations que soa a sobra de
um cantautor de do Dylan cristão-novo de finais de Elton John para um dos seus álbuns
linguajar 70 ou do Lennon em catarse dos da década de 1970 — com solo de
eléctrico, um consumiam a Califórnia e denso e misterioso, folk-rock a primeiros álbuns a solo (Seven devils guitarra saído de um qualquer
ex-baixista dos pressentiu o pior quando ao conectar-se com a vastidão da parece até enxertar parte da rabo-de-cavalo da década seguinte
Woods que, a desastre natural se juntou a paisagem natural americana. melodia de How?, canção de — e começa a quebrar-se o
solo, se revelou clássico ameaça laranja, na forma de um Agora, três anos depois de se afligir Imagine). Isto enquanto Hail Mary, encantamento. Quando, mais à
instantâneo, amalgamando Dylans certo candidato presidencial que se com as chamas e com a retórica de com metais a dar alguma frente, ouvimos Morby alinhar
e Reeds e Jonathan Richmans tornaria depois presidente do seu um político, digamos, turbulência à ascensão celeste, nos versos como “I want to be clean / I
enquanto, marca autoral, lançava país. Perante isto, Morby procurou assustadoramente peculiar, a apresenta aquilo que seria uma don’t want to be mean”, acreditar
um olhar sobre as suas redondezas. refúgio. Oh, My God, o álbum agora música de Morby mudou versão country dos Spiritualized, e a torna-se definitivamente difícil.
Foi ele que, com Singing Saw e City editado, é o som desse espaço que novamente de cenário. Oh, My God óptima OMG Rock’n’roll, à parte no Oh behold dirá ele na canção que
Music, reservou lugar no panteão Morby encontrou como protecção. é o álbum gospel de um não crente, contexto geral, é folk-rock movido a se despede, piano e voz de olhos
de apreços melómanos da Antes dele surgira City Music, é a reflexão espiritual de um anfetaminas, órgão Farfisa e nos céus, no exacto ponto em que
actualidade, foi ele que sentiu o disco mais enérgico onde rock se cantautor profano a erguer os percussão rude (as baquetas Oh My God se apresentou. No
mundo desabar sobre si há três sobrepunha ao prefixo folk e onde olhos aos céus. É uma belíssima parecem bater placas de metal, não início, porém, acreditávamos no
anos quando, depois de uma Morby versejava sobre a imensa surpresa, exemplarmente em timbalões), qual Highway 61 gospel de Kevin Morby. É uma pena
digressão, regressou a Los Angeles. solidão possível na multidão das executado e carregando-nos na sua produzido por Tom Waits. constatar que, se tivessem sido
O nativo de Kansas City tornado grandes cidades — “hand in hand convicção. Isto, até chegar o Este é um gospel sem certezas eliminadas do alinhamento três ou
músico em Nova Iorque, chegou with myself / all alone on a crowded momento em que soçobra na sua espirituais. Recua à infância, época quatro canções, continuaríamos a
para descansar mas viu-se rodeado street”, cantava então. Antes de circularidade, em que se desfaz o de toda a felicidade, felicidade acreditar. Assim sendo, crentes
das chamas imensas que City Music houve Singing Saw, mais feitiço e deixamos de acreditar intocada por qualquer tipo de cépticos nos confessamos.

ípsilon | Sexta-feira 10 Maio 2019 | 31


CONTEÚDO
COMERCIAL

MOBILE FILM FESTIVAL:


JÁ SÃO 3 321 MINUTOS
DE HISTÓRIAS
A PRIMEIRA EDIÇÃO DO MOBILE FILM FESTIVAL
EM PORTUGAL CHEGA ESTE MÊS AO FIM. ATÉ CONHECERMOS
O VENCEDOR, REUNIMOS ALGUNS DADOS SOBRE ESTE
FESTIVAL INTERNACIONAL DE CINEMA.

1 TELEMÓVEL | 1 MINUTO | 1 FILME


Longe vai o tempo em que fazer um filme era algo que exigia um grande investimento.
Hoje em dia, todos podem tentar a sua sorte como realizadores: a “arma” para o seu
sucesso pode estar neste momento no seu bolso ou pousado ao seu lado.

GLOBAL SYSTEM MOBYLE GLOBAL SYSTEM MOBYLE


INGREDIENTES NECESSÁRIOS ASSOCIATION (GSMA) ASSOCIATION (GSMA)
NO MUNDO EM PORTUGAL

Æ 1 telemóvel ou 1 tablet 8,981,686,500 5,134,170,650 10,229,0000 6,954,000


PARA PARA
telemóveis pessoas telemóveis pessoas

Æ 1 minuto

Æ 1 história de sucesso 66,72% 68,00%

População População
mundial portuguesa com
com telemóvel telemóvel (48º)

14 ANOS
APÓS A PRIMEIRA EDIÇÃO O JÚRI

VENCEDORES
JÁ DÃO CARTAS

ANO EM QUE O MFF CHEGA


A PORTUGAL
Morgan Simon
Venceu em 2011 o primeiro Æ Curtas recebidas
Prémio BNP Paribas até 21 de Março
“Compte tes Blessures”
(2016) foi a primeira
longa-metragem Æ A organização
seleccionou
20 finalistas

3 321 116 Benjamin Busnel


Æ Vencedor
revelado no final
FILMES PAÍSES Venceu o Mobile Film Festival
em 2012.Depois de várias de Maio
curtas, estreou-se na
TV com “Le Départemen”,
O Festival já chegou de 23 episódios Mais
a Marrocos, Taiti, Alemanha de 70 20 finalistas 1 vencedor
e Portugal. A estreia em Inglaterra participantes
está marcada para breve
Alexandre Perez
Venceu o prémio de Melhor
PRÉMIO OUTRAS CATEGORIAS
Realizador duas vezes,
65 MILHÕES
PREMIADAS
em 2014 e 2015.Realizador
de “Sergeant James” (2017), Melhor Realizador
visualizações curta de realidade Grande Prémio - BNP Melhor Actor/Actriz
online virtual seleccionada em
Paribas para filmar uma Melhor Argumento
14 festivais
curta-metragem. Prémio do Público

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