"Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros." Sete vezes a palavra "Roteiros" repete-se no "Manifesto antropófago" de Oswald de Andrade. Encontra-se entre o parágrafo "Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas" e "O instinto caraíba". "Roteiros. . ." é presença entre a mecânica das idéias "cadaverizadas" e o canibalismo, etimologicamente originado de caraíba. África, América Latina, Ásia, Canadá e Estados Unidos, Europa, Oceania e Oriente Médio são nossos "Roteiros...", definidos sem um critério único, como continente, bloco econômico ou regiões culturais. Não se trata de uma espécie expandida das alegorias dos quatro continentes, desenvolvidas pela arte européia do século XVII.
O substantivo plural "Roteiros" conota múltiplos pontos de vista. Os desafios contemporâneos já indicavam ser necessário à Bienal desenvolver a capacidade de escolher. Nos anos 70 sedimentou-se a idéia de salas especiais dedicadas a grandes nomes da arte. Em 1996 introduziu-se a idéia de uma mostra composta por exposições de regiões do mundo com Universalis. Nosso desafio foi integrar um conjunto de olhares e articular critérios. No processo de "Roteiros. . ." foi necessário definir o foco.
Mercator orientou as representações cartográficas, hoje amplamente vigentes, segundo a posição mais adequada ao olhar europeu. Estamos frente a recortes da produção artística de sete áreas. O conjunto dos "Roteiros. . ." não busca reduzir o mundo a uma visão universalista ou globalizante, nem mesmo cada região a um olhar totalizante. Alguns comparam o papel do curador ao do cartógrafo. No catálogo da mostra Cartographies (1992), organizada por Ivo Mesquita, o crítico Justo Pastor Mellado analisa como a origem cultural e geográfica do curador marca as aproximações à arte do Outro. "Roteiros. . ." seria trabalho de cosmógrafos buscando um olhar de, sobre ou para sua região. Dois princípios foram estabelecidos como método curatorial: ir e vir. Os curadores deveriam efetivamente constituir seus Roteiros por meio da experiência de palmilhar o território para (re)conhecer sua arte. Afinal, já havia uma chave: "Contra o gabinetismo, a prática culta da vida", afirmava Oswald de Andrade no "Manifesto da poesia pau-brasil" (1924).
Nos dois encontros em São Paulo, os curadores consolidaram pontos de partida e definiram o formato final de "Roteiros. . .". O diálogo centrífugo desenvolveu objetivos de complementaridade, contrapontos ou confrontos, demarcação de especificidades. Um chat da Internet entre os curadores, coordenado por Adriano Pedrosa, completou esta rede de relações de alteridade. Os curadores receberam informações sobre a relação desta Bienal com a audiência brasileira, seu papel no contexto da cidade e os compromissos com a educação. Nesta Bienal o conceito geral regente é "densidade", como processo de condensação de significados. Quase todos os curadores de "Roteiros. . ." optaram por fazer referência ao tema Antropofagia e Histórias de Canibalismos do Núcleo Histórico como hipótese de trabalho.
Na escolha dos curadores das regiões das economias centrais, preferíamos olhares da margem, mas profundamente vinculados a suas regiões. A escolha de curadores belga e finlandesa com Bart De Baere e Maaretta Jaukkuri para a Europa significa, portanto, deslocar decisões dos centros hegemônicos. Os curadores deveriam ter a capacidade de articular uma perspectiva do olhar a partir do lugar. Era necessário definir uma questão e testá-la em campo, construindo o desenho final de cada Roteiro e não a realização de enunciados preestabelecidos.
Na montagem dos Roteiros da África, visou-se a conjugar experiência e potencial do próprio continente por meio de pessoas que enfrentam em seu cotidiano as dificuldades de produzir conhecimento sobre o continente, a partir de aí mesmo viver. Lorna Ferguson havia superado fronteiras como coordenadora da I Bienal de Joannesburgo. Convidada, coube-lhe indicar uma curadora do sul do Saara, de um lugar onde fossem escassas instituições de arte. Assim, Awa Meite enriquece estes Roteiros com os artistas do Mali. Mesmo na África existem poucos curadores com uma visão da produção artística deste complexo continente. Nem mesmo as comunicações e possibilidades de viagem são sempre eficientes. Por isso, desde o início, a Bienal de São Paulo compreendeu que estes Roteiros poderiam ter um sentido adicional que seria propiciar às curadoras da África a oportunidade de conhecer um pouco mais de seu próprio continente.
As curadoras da África não buscaram vestígios de "canibalismo" em alguma sociedade tradicional. Um editor europeu ligado à África disse-me que era lamentável que conotássemos a África ao canibalismo. Talvez ele quisesse salvar o continente de uma visão preconcebida do canibalismo como ato de barbárie. O processo de emancipação da cidadania na África confronta-se com a voracidade política da exclusão social, do racismo e genocídio. Na América Latina, o modernismo-e o "Manifesto antropófago"-é momento luminoso como busca de uma linguagem própria pela superação da herança colonial e de sua síndrome de emulação da arte européia. Buscamos neste continente uma arte que toca a emancipação política da linguagem e a constituição de uma reflexão dolorosa sobre o processo em que a África se assume como sujeito crítico de sua própria história. Franz Fanon afirmou que a descolonização é sempre um fenômeno violento, com a substituição de "espécies" de homens. O pós-colonialismo implica violências novas. O tempo social da África do Sul está hoje constituído tanto pela Comissão da Verdade e Reconciliação quanto pela arte de Abdoulaye Konaté ou William Kentridge.
Numa época, muitos artistas brasileiros evitavam as mostras latino-americanas, que eram entendidas como um gueto. O partido curatorial de Rina Carvajal toma a antropofagia como mais um ponto de contato entre o Brasil com a América Latina. Em sua heterogeneidade, a América Latina busca reforçar suas relações identitárias, mesmo que os processos de subjetivação tenham prevalência em outros níveis. No entanto, no mundo competitivo da globalização e de reordenamento das economias em blocos geográficos, a idéia de identificação latino-americana-quer realidade histórica, quer ficção-parece se impor como uma pré-condição ideológica para a organização do bloco econômico deste hemisfério. O México, por exemplo, é hoje uma espécie de fronteira espessa. É o extremo da América Latina. O norte de seu território é a fronteira alfandegária dos Estados Unidos, como primeiro bastião norte-americano a deter as correntes migratórias latino-americanas. Chiapas é uma fronteira interna na sociedade mexicana. As fronteiras da América Latina invadem os Estados Unidos, com a cultura que se transporta pela migração. Rina Carvajal vive em Nova York, lugar que hoje concentra a diversidade do pensamento da América Latina, atraindo críticos como destino numa espécie de diáspora voluntária. O sistema de classificação cultural operante nos Estados Unidos não tem validade na América Latina. Não nos interessa na Bienal em geral a ideologia do multiculturalismo, com seu sistema de classificação das etnias desenvolvido pela sociedade norte- americana.
A escolha adequada do curador da Ásia nesta Bienal deslocaria a busca do eixo predominante Japão-Coréia na direção do sudeste da Ásia. Apinan Poshyananda, da Tailândia, tem realizado algumas exposições sobre a Ásia. Desde cedo aderiu ao conceito da Bienal, inclusive canibalismo. Inicialmente, pensou-se num impasse decorrente do fato de que fossem muito escassas as referências de canibalismo na cosmogonia budista. No entanto, seu projeto curatorial se desenvolveu para conjugar a espessura trágica do presente com aspectos arcaicos das culturas da Ásia e o processo dessa etapa pós-colonial. Poshyananda criou metáforas e interpretações originais para o canibalismo. A curadoria da Ásia reflete um repertório mais amplo de interpretações do canibalismo no processo pós-colonial. Uma dimensão que se aborda é o desejo, demonstrando a vastidão com que o ato amoroso e o de se alimentar confluem no significante "comer". Um exemplo disto seria o sorriso siamês: a idéia de auto-exoticização para oferta ao consumo do colonizador e a posterior devoração deste. Existem também nuances políticas em suas noções de canibalismo: guerras, opressão de minorias ou ataque especulativo do sistema financeiro internacional às moedas asiáticas.
Uma exceção especial no processo de escolha dessas curadorias ocorreu com relação aos Roteiros Canadá e Estados Unidos, com a escolha do crítico brasileiro Ivo Mesquita. Mesquita teve uma importante experiência no Canadá, onde realiza trabalhos curatoriais desde 1988 para instituições locais e agora como professor visitante no Center for Curatorial Studies do Bard College no estado de Nova York. Um pressuposto no desenho curatorial desenvolvido foi entender o canibalismo como uma espécie de latência interdita na cultura norte-americana. Assim, a obra de Jeff Wall, Dead troops talk, é um ponto de partida básico destes Roteiros na discussão do canibalismo. Ao tratar da guerra do Afeganistão, Wall refere-se a A jangada do Medusa, obra de Théodore Géricault, cujos estudos estão expostos no Núcleo Histórico desta Bienal. Outra direção tomada pela curadoria de Ivo Mesquita aborda a "institutional critique". Alguns artistas ironizam as instituições culturais. A arte é metaforicamente devorada pelas instituições do sistema de arte (museus, mercado, arquitetura, colecionadores, crítica de arte, curadores, educadores, etc.). No Brasil, uma crítica institucional extremamente voraz se fez nos anos 60 e 70 com artistas como Nelson Leirner, Barrio, Antonio Manuel e Ivens Machado, o qual ergueu uma arquitetura dentro do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1975, tornando-a espaço de ação escatológica. Machado não perdia de vista a Merde d'artiste de Manzoni.
Desde logo sentimos que a maior dificuldade de lidar com a idéia de canibalismo estava na Europa, talvez não sem uma razão cultural. O canibalismo é um antigo fantasma da Europa, uma idéia que deixa de ser remota para se tornar uma experiência concreta com os nativos da América. No fundo, o canibalismo é para a Europa um signo de diferença e de barbárie conforme entendida neste continente. No entanto, muito das histórias de canibalismos conhecidas no Ocidente foram, de certo modo, a história do canibalismo projetado pela Europa. Talvez nenhum continente tenha produzido um corpus tão variado de pensamento sobre o canibalismo: mitologia clássica, imaginário medieval, Dante, Staden, Léry, Montaigne, de Bry, Shakespeare, Swift, Goya, Géricault, Moreau, Rodin, Freud, Bataille, dadaísmo, surrealismo, Lévi-Strauss, Caillois, Cobra, Yves Klein, além da mitologia clássica e do canibalismo dos citas.
A Nova Guiné seria o último laboratório das culturas ditas "primitivas" clássicas, uma espécie de última fronteira da civilização ocidental, afirma W. Arens. Com um acervo tão intenso de práticas canibais, a Oceania poderia oferecer motivos e fatos para um contato com aspectos mais fatuais. Numa experiência que poderia nos remeter à antropóloga Margaret Mead, que viveu entre aqueles povos da Nova Guiné, Marina Abramovic tentou realizar um projeto com canibais de ilhas da Oceania. Louise Neri, curadora da Oceania, nasceu na Nova Zelândia e foi curadora assistente da Bienal de Sydney. Ali onde pareceria mais fácil discutir identidade social, Louise Neri buscou extrair o processo de subjetivação em artistas individuais que facilmente seriam redutíveis ao padrão étnico, ao modelo genérico do aborígine. O mundo de surfistas e tatuagens aqui expõe de forma iconoclástica. Neri trata com artistas que insistem em recusar a se converter pela regulação do modelo eurocêntrico com suas contradições acirradas pela dimensão do processo de colonização. Tracey Moffatt é a aborígine que se desloca do arcaísmo na direção de utilizar o fundo comum das tecnologias contemporâneas para fazer emergir, com sua obra ácida, fantasmas pessoais no quadro do modelo pós-colonial. Neri questiona a idéia de processo de constituição da identidade cultural ao problematizar a própria noção de canibal. Canibal é o "mau selvagem", que no pólo oposto ao modelo do "bom selvagem" sedimentado na Europa iluminista, recusa toda complacência do colonizado e, politicamente, insiste na "barbárie".
O Oriente Médio é a região de riscos. É parte de três continentes. A região ferve no centro e arde nas bordas, no dizer de seus curadores. Ausente das grandes mostras internacionais, organizar Roteiros do Oriente Médio implicava organizar intricada arquitetura curatorial. O primeiro escolhido foi Vasif Kortun, curador de uma Bienal de Istambul e proveniente de um país islâmico. Por sua vez, Kortun deveria trabalhar com um curador de Israel, tendo escolhido Ami Steinitz. Em sua perspectiva inicial propusera não incluir em seus Roteiros artistas originários de seus países, o que implicaria considerar apenas a arte produzida no mundo árabe. Esses Roteiros são uma espécie de exposição viável. Mais do que uma exposição de arte de conciliações, como talvez a maioria preferisse, esses Roteiros-mais do que qualquer outro- é um testemunho sobre si mesmo como possibilidade do processo curatorial. Roteiros Oriente Médio talvez tratem mais sobre a arte da curadoria. Sobre as suas possibilidades sobrepostas a fronteiras tão claras e fortemente demarcadas com feridas abertas. Ou seja, sobre as possibilidades de deslocar o olhar por regiões de conflito e encetar diálogo. Alguns artistas, por indignação ou medo de lidar com curadores do "lado inimigo", não desejaram participar destes Roteiros.
O Oriente Médio, como berço das religiões monoteístas, permite-nos discutir como o canibalismo é tratado como prática do Outro entre as sociedades. "Tanto europeus quanto árabes parecem ter um mórbido interesse no canibalismo" é a análise antropológica de Evans-Pritchard. Para alguns povos africanos, os europeus seriam canibais. Durante séculos, o cristianismo afirmou que os judeus utilizavam sangue humano em alguns rituais. A eucaristia é um sacramento que implica o consumo do corpo de Cristo. Na França Antártica, protestantes comparavam os católicos aos índios canibais. Já na Rússia, uma mulher de confissão batista foi ipso facto acusada de canibalismo. Como fantasma, o canibalismo é sempre a prática do Outro.
O arquiteto Paulo Mendes da Rocha criou soluções para atender ao programa de montagem desenvolvido pelos curadores. O espaço seria um diagrama do diálogo curatorial e não delimitação de territórios. Pediu-se para evitar a clássica montagem por salas e constituir uma transparência que articule regiões, artistas e obras. Articulados, os Roteiros mantêm sua identidade. Os artistas não seriam misturados como numa exposição coletiva universal que reduzisse a experiência individualizada dos curadores a uma espécie de comissão internacional, dissolvendo os olhares num olho único. Canadá e Estados Unidos terão uma montagem dispersada pelo espaço da Bienal.
"Roteiros. . ." dialoga com a pintura Mapa de Lopo Homem, de Adriana Varejão. A artista aí se refere à representação cartográfica daquele português que em 1519 desenha um mapa em que todos os continentes estariam unidos. O capricho cartográfico de Homem reconciliava as antigas concepções ptolemaicas e reassegurava o papel bíblico de Adão como pai da humanidade, o que se daria apenas com esta unidade do horizonte geográfico. Lopo Homem tentava reconciliar antigas crenças e o trauma do conhecimento. Varejão repõe o trauma. Um grande corte sobre o mapa no meio da pintura expõe as vísceras e a carne do quadro feitas em tinta e sutura, tal fenda com material cirúrgico. Frente o desafio da descontinuidade e do contágio cultural, esta pintura é um emblema do horizonte curatorial de "Roteiros. . .".