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SAARNIVAARA, Uuras. Luther Discovers the Gospel. St. Louis: Concordia Publishing
House, 2005.
Introdução
Na busca de Lutero por um caminho que lhe desse paz com Deus e garantia de salvação, ele
tinha de encontrar uma solução para a grande questão de vida ou morte no relacionamento pessoal
do homem para com Deus: Como o homem, apartado (separado) de Deus por seus pecados e culpa,
poderia se tornar aceitável a Ele e entrar numa comunhão viva e pessoal com Ele?
Para o autor, essa questão se divide, na verdade, em duas subquestões: 1 - Como ele poderia
encontrar paz para sua consciência por meio do perdão dos pecados? 2 - Como ele poderia ser
justificado ou se tornar justo à vista de Deus que é Santo? E o autor defende que Lutero enfrentou
estes dois aspectos em momentos diferentes de sua vida, em duas “crises”, tendo encontrado em
cada crise a solução para uma das perguntas.
Para entender a dificuldade de Lutero, o autor ressalta que é preciso ver que foram oferecidos
a ele três entendimentos do caminho para a justiça. O primeiro foi o pensamento popular de que
Deus concede seu favor àqueles que fizeram o seu melhor para obedecer à Lei. É a visão ativa da
justificação: Deus recompensa as boas obras e pune as más. O segundo foi o ensino oficial da
Igreja Romana de que o homem é justificado ao ser curado da sua doença do pecado de modo que
ele se torna capaz de amar a Deus e a seu próximo e de cumprir a Lei. Nele a justificação é um
processo gradual, sendo passivo e ativo, uma cooperação entre a graça divina e os esforços do
homem. E o terceiro é aquele ensinado na Bíblia, enfatizado por Paulo, de que o homem é
justificado por meio da fé somente, pela redenção que há em Cristo Jesus. Claro, por meio desta
fé que é viva, Cristo habita no coração do homem, fazendo dele nova criatura e ele então produz
boas obras em amor e obediência, constrangido pelo amor de Cristo. Mas estas boas obras são
somente o fruto e não o fundamento da justificação. É uma justificação completamente passiva: o
homem recebe o presente imerecido do perdão dos pecados e é visto como justo graças à justiça
de Cristo que é imputada a ele, sem nenhum fundamento no homem.
O autor aponta que até recentemente (anos 40) os pesquisadores eram unânimes em dizer
que a doutrina da justificação de Lutero era deste terceiro tipo. Mas um renomado estudioso, Karl
Holl, tentou provar que o ensino de Lutero é, na verdade, o ensino Romano, apenas numa forma
mais melhorada e purificada.
Neste livro o autor assume, então, dois objetivos: 1 - averiguar o conteúdo do ensino maduro
de Lutero sobre a justificação e 2 - traçar e datar o caminho que Lutero percorreu até a redescoberta
do Evangelho. E já que Lutero mesmo afirma que Agostinho, Staupitz e as Escrituras o ajudaram
e guiaram neste processo, o livro trata de investigar então estas três influências sobre ele.
O conceito de Salvação do pecador de Agostinho e sua relação com o ensino maduro de Lutero
O autor afirma que os escritos de Agostinho que influenciaram Lutero enquanto buscava
pela verdade foram principalmente aqueles contra o Pelagianismo e o Semi-Pelagianismo. Nestes
escritos, Agostinho defende o seguinte conceito de salvação: a queda do homem corrompeu sua
natureza de modo que não ele não busca mais o bem em Deus, mas nas coisas criadas. Então o
homem não tem mais livre arbítrio em assuntos espirituais, mas seu espírito está sujeito à carne.
A Lei de Deus, que lhe exige obediência espontânea, a qual ele é incapaz de possuir, revela então
a ele sua fraqueza, pecaminosidade e a doença em sua vontade. Aí, quando o homem ouve o
Evangelho, uma fome e sede de salvação são criadas nele. Ele passa a suplicar por perdão e pela
graça renovadora que permitirá que ele ame a Deus e ao próximo. Essa graça lhe é dada no Batismo
e é restaurada àqueles que caíram da graça batismal pelo arrependimento (conversão). Com essa
graça, sua natureza e vontade doentes são curadas e habilitadas a buscar o bem em Deus e a
obedecer seus mandamentos. Para isso, o Espírito de Deus age recriando o coração do homem de
modo a libertar sua vontade e inspirar nele um desejo e um amor pelo bem que há em Deus. Assim
a natureza é reparada pela graça e o Espírito imprime a Lei de Deus no coração dos crentes.
O ponto de Agostinho é que todo amor anseia por algo. Se direcionado para baixo, para as
coisas criadas, é um amor pecaminoso, carnal, cupiditas, a concupiscência. Se direcionado para
cima, buscando o bem em Deus, é um amor Cristão, real, caritos, a caridade. Antes da queda, o
homem possuía o caritos, mas depois seus desejos e esforços se voltaram ao mundo criado,
tornando-se em cupiditas. Enquanto essa concupiscência mantém sua influência no homem, ele é
pecaminoso e iníquo. Já quando a caridade controla seu coração, ele é justo e reto. O homem em
pecado, portanto, é culpado perante Deus não tanto por sua culpa, mas pela doença de sua natureza.
A principal tarefa da graça de Deus é então curar sua natureza. Essa cura ou reparação é que
Agostinho chama de regeneração, vivificação, renovação ou justificação. Para ele, a justificação é
o homem ser tornado justo em sua vontade e comportamento, é a graça divina e o Espírito o
capacitando a ter a atitude correta em direção a Deus e a querer e ser capaz de fazer boas obras.
Agostinho cita muito a Paulo quanto à justificação e à “justiça de Deus”, mas sempre
interpreta essas expressões como se significassem essa justiça restauradora ou a cura da natureza
humana. Para Agostinho, “a justiça de Deus [que] se manifesta no Evangelho” (Rm 1.17) é aquela
com a qual ele dota (ou equipa) o homem quando o justifica. Ser “justificado gratuitamente por
Sua graça” (Rm 3.24) é entendido como a ação da graça que cura a enfermidade da vontade e
habilita o homem a cumprir a Lei. Gratuitamente significa apenas que não há mérito antecedente,
já que a graça é concedida não porque o homem fez boas obras, mas justamente para que seja
capaz de fazê-las, para que possa cumprir a Lei.
O entendimento de Agostinho é que “a ajuda divina torna possível que alcancemos a justiça
diante de Deus”, implicando que a justiça não é algo que se recebe completo, mas antes é um
processo gradual de se tornar justo no qual a vontade renovada do homem coopera com a graça de
Deus. O homem deve constantemente desejar e suplicar por justiça ou justificação e que Deus
possa lhe conceder forças para voltar as costas para o mundo e cumprir a Lei em amor e obediência.
A fé, que tem fome e sede de justiça, então progride por meio da renovação diária do homem
interior. Mas o homem nunca se torna absolutamente justo nessa vida, embora esteja sempre
avançando em direção a meta da justiça, que é a renovação perfeita. E já que a justificação é um
processo gradual de cura e o crente é mais pecador que justo, Agostinho ressalta que é essencial
que ele se mantenha humilde, confesse seus pecados e se acuse e se condene, pois “o pecado não
pode permanecer sem punição [...] Ele deve ser punido ou pelo homem ou por Deus, que julga”.
Por isso, “é do feitio da graça que ninguém conte sua própria justiça como algo. Pois essa justiça
é de Deus, dada a nós por Ele para que seja nossa”. “Independentemente da justiça que tem, o
crente não deve presumir que a tem de si mesmo [...] e deve continuar a ter fome e sede de justiça
nAquele que é o pão da vida”.
Quando Agostinho diz que um cristão é “ao mesmo tempo justo e pecador” (simul iustus et
peccator), ele quer dizer que o amor (caritas) não tem domínio completo em seu coração e vida.
Ele é chamado de justo porque a justiça foi iniciada nele, mas ele ainda é uma mistura de bem e
mal, espiritualidade e carnalidade, amor e concupiscência. Sua justiça aumenta ou busca aumentar
diariamente rumo à perfeição que alcançará na vida futura, mas nessa vida o crente é justificado
apenas em parte. Ele é justo até certo ponto e é pecador até certo ponto.
Além disso, enquanto está sendo purificado, Deus perdoa os pecados que permanecem no
crente e não imputa a ele sua culpa. O cristão tem, portanto, uma graça dupla: 1 – justificação ou
renovação e 2 – perdão de pecados. O pecado “permanece em atividade, mas finda sua culpa. Não
que ela deixe de existir, mas não é imputada”. Uma vez que nossa justiça é ínfima, Agostinho
reconhece que a maior porção da salvação é a remissão de pecados e não o aperfeiçoamento das
virtudes, mas coloca sua ênfase sempre no segundo ponto.
Mesmo assim, Agostinho ressalta que o homem é salvo somente pela graça. A redenção é
somente por graça imerecida e a condenação somente por julgamento merecido. Antes da fundação
do mundo Deus decidiu salvar alguns da “massa de perdição” que é a humanidade e deixar outros
receberem sua justa condenação. Este foi Seu decreto eterno de predestinação.
Em suma, portanto, o pecado do homem consiste em seu amor por e confiança em coisas
terrenas e sua salvação e justiça consistem em que ele volte a buscar sua alegria em Deus e nas
coisas do céu. Logo, a preocupação principal em sua conversão não seria encontrar um Deus
misericordioso por meio da remissão de pecados, mas receber de Deus uma nova vontade e o poder
de sujeitar sua concupiscência e buscar as coisas do céu.
Repare agora o contraste com os conceitos que Lutero tem de justificação e santificação:
2. O homem é justificado pela imputação dessa justiça e perdão alcançados por Cristo em
benefício do pecador. A justiça passiva que o crente recebe como um dom gratuito por meio da
imputação de Deus é sinônimo de perdão de pecados. Essa absolvição de culpa o torna aceitável a
Deus e inculpável diante dele.
3. O homem é justificado quando recebe pela fé esse perdão proveniente da justiça imputada
e assim se apropria dele. A fé não justifica porque é uma nova qualidade no homem, mas porque
se agarra à promessa da graça e confia somente na misericórdia de Deus.
4. A justificação não é um processo gradual, mas um ato instantâneo de Deus no qual Ele
declara o pecador livre de sua culpa. O pecador se apropria de uma só vez do perdão completo e
da justiça completa de Cristo. A partir daquele momento ele é completamente justo, isto é, sem
culpa diante de Deus. “A promessa do Evangelho inclui tudo em si: justificação, salvação, herança
e bênção. E a fé se apropria dela de uma só vez, não aos poucos”. A fundação e conteúdo da
justificação é a obra consumada de Cristo, a propiciação em favor de toda a humanidade para
perdão dos pecados, reconciliação. E a imputação e fé são a maneira como a graça se torna uma
posse pessoal do pecador.
5. Deus, de fato, não apenas perdoa os pecados e considera o pecador justo, mas também o
renova e o torna justo em seu coração e vida. Essa renovação, porém, é a segunda parte da obra de
salvação de Deus. Em alguns momentos Lutero a chama de “segunda justificação” ou “dom”, ao
passo que a justificação pela fé ele chama de “primeira justificação” ou “graça”. Enquanto a
“graça” é dada completa e instantaneamente, o “dom”, ou a renovação do Espírito, é dado
gradualmente. Pela “graça [...] somos considerados completa e perfeitamente justos diante de
Deus, pois esta graça não é dividida em partes, como são os dons, mas nos leva [de uma vez] ao
favor de Deus por causa de Cristo”. Já “os dons e o Espírito aumentam em nós a cada dia e ainda
não são perfeitos, de modo que permanece em nós a concupiscência e o pecado”.
6. A correta distinção entre Lei e Evangelho está ligada inseparavelmente com a doutrina da
justificação. Lutero enfatizou fortemente o ensino Paulino de que a única função espiritual da Lei
é criar a convicção do pecado no coração humano e assim prepará-lo para a recepção da graça do
Evangelho. Já o Evangelho não exige nenhuma obra do homem. Por meio dele, Deus pronuncia
Sua graciosa imputação, Sua sentença de absolvição. O cumprimento da Lei por meio do amor a
Deus e ao próximo não pertence, portanto, à justificação.
Uma comparação dos ensinos de Agostinho e Lutero sobre a justificação deixa claro que
eles interpretavam o termo de forma bem diferente. Agostinho entende por justificação a
renovação ou transformação gradual do homem à imagem de Deus. Lutero entende como o perdão
de pecados, a imputação da justiça de Cristo. Por outro lado, ambos entendem que: a salvação do
homem consiste em dois dons de Deus, perdão e renovação; que a renovação do homem é obra do
Espírito, recebido por meio da fé; que a graça divina e a não imputação dos pecados suprem aquilo
que falta na justiça de vida do homem. À primeira vista, é uma diferença de terminologia:
Mas a exegese moderna demonstra também que Agostinho estava errado em sua exposição.
Em latim, iustificare = iustum facere, fazer justo, o que enganou Agostinho. Por seu conhecimento
inadequado de Grego, ele falhou em perceber que dikaióo significa declarar justo ou absolver.
Para Lutero, a conversão é a apropriação do perdão de pecados. Quando a Lei traz ao homem
a convicção de seus pecados, sua culpa lhe pesa, porque está sob a ira de Deus. Ele sente
necessidade então de pedir por perdão e misericórdia e deve aceitar a promessa do Evangelho de
perdão de pecados em Cristo. Ao se apropriar dessa graça, ele já está justificado e tem paz com
Deus. Como um fruto natural e necessário de sua fé, ele começa então a viver uma vida de
obediência a Deus, amando a Deus e ao próximo como Deus o ama. Agostinho vê o perdão de
pecados como um grande e necessário dom de Deus, mas não pensa na conversão como uma
apropriação desse perdão.
Agostinho acredita que o homem é justificado ao cumprir a Lei por meio do poder que recebe
de Deus. Lutero ensina que o homem primeiro deve ser justificado e possuir pela fé o cumprimento
completo da Lei alcançado por Cristo. Só aí é possível para ele esforçar-se em cumprir a Lei em
amor e obediência. Logo, o entendimento que eles tem da Lei e do Evangelho é completamente
diferente. De acordo com Agostinho, a Lei dirige o homem a Cristo pois procura encontrar nele o
poder para cumprir a Lei em amor e obediência. Para Lutero, a Lei dirige o homem a Cristo pois
quer receber dele um perfeito cumprimento já realizado. Cumprir a Lei em amor segue apenas
depois como fruto dessa fé.
Por fim, ambos concordam com a necessidade de uma luta incessante contra o pecado e uma
mortificação diária da carne, e Lutero leva essa “boa luta da fé” tão a sério quanto Agostinho,
porém para Lutero, ser livre da aflição dessa necessidade de avaliar seu crescimento em santidade
é essencial para que avance nessa luta.
Enfim, Agostinho pertencia a fé católica e, embora o Igreja Romana tenha modificado sua
doutrina da justificação em diversos pontos, ela ainda é basicamente agostiniana. Os católicos
ainda concordam com Agostinho que a justificação é a renovação do homem pela graça que os
habilita a tornarem-se justos ao fazerem boas obras em amor. Por mais que haja similaridades entre
Agostinho e Lutero, é preciso notar que há um profundo abismo entre seus ensinos sobre a
justificação e não se trata de uma mudança de ênfase apenas. Falar do conceito luterano de
justificação não é apenas falar de justificação pela graça por meio da fé por causa de Cristo e da
não-imputação de pecados. Essas frases também casam com a visão agostiniana. Temos de falar
no conceito da natureza e conteúdo da justificação, o que os difere de fato.
2.1 Introdução:
Pouco tempo depois do sermão acima mencionado, Lutero publicou o seu “Sermão sobre
a Justiça Dupla”, contendo uma expressão ainda mais clara sobre sua nova visão, onde menciona:
“A justiça dos cristãos” é dupla, assim como o pecado dos homens é duplo.
“A primeira é a alheia... por ela, Cristo é justo e nos justifica por meio da fé, 1 Co 1: ‘Mas
vocês são dele, em Cristo Jesus, o qual se tornou para nós, da parte de Deus, sabedoria, justiça,
santificação e redenção.’... Esta justiça é concedida aos homens no batismo e cada vez que se
arrependem verdadeiramente, para que o homem possa gloriar em Cristo e dizer: ‘Tudo que Cristo
realizou por sua obra e sua Palavra, todas as bênçãos do seu sofrimento e morte são minhas, como
se eu as tivesse realizado, vivido, agido, falado, sofrido e morrido.
Assim, Lutero explica que o Salmo 30 (“Em ti, ó Senhor, eu confio; nunca serei
envergonhado; entregue-me na sua justiça.”) é entendido de modo que o salmista não diz “em
minha”, mas “em tua”, na justiça de Cristo. Assim sendo, o apóstolo ousa dizer em Efésios 3: “Que
Cristo possa habitar em seus corações através da fé.”
Lutero ainda explica que essa justiça alheia é derramada sobre nós sem as nossas obras,
ou seja, sem nossa participação, unicamente através da graça; e que é contra o pecado original,
este que é tanto alheio quanto inato, entrando em nós sem as nossas obras, apenas através do
nascimento.
Ainda ensina no sermão que a segunda justiça é a nossa própria. Não de forma como se
nós a realizássemos sozinhos, mas que nós cooperamos com essa primeira justiça alheia. Citando
a continuação do parágrafo: “Esta é a boa conduta em boas obras, primeiro na mortificação da
carne e na crucificação dos desejos malignos... segundo, também, no amor para com nosso
próximo, e, terceiro, em humildade e temor a Deus...” (o ser humano apenas pode realizar essa
mortificação da carne e crucificação dos desejos malignos por causa, primeiro, da ação do Espírito
Santo, em que Cristo nos imputa a justiça dele)
Lutero cita que “Essa justiça é obra da primeira justiça, é fruto e efeito...”
1. Cristo e sua obra da manjedoura até o calvário é a justiça dos crentes. Todos os pecados
são apagados em um instante através dessa justiça infinita. Como uma justiça infinita é a posse
dos homens completamente e imediatamente através da fé.
3. Nos dois sermões Lutero faz referência ao Salmo 31.2 e Rm 1.17. Ele dá atenção
especial em seu último sermão ao Salmo 31.2. “É, portanto”, diz ele, “que para entendermos o
Salmo 30.” Essas palavras parecem indicar que Lutero agora descobriu o correto entendimento
dessa passagem. Usando palavras praticamente idênticas a estas no seu Prefácio de 1545 ele
explica que essa “Justiça de Deus” é a justiça de Cristo. É concedida ao pecador através da fé em
Cristo. – É muitas vezes chamado nos Salmos de obra do Senhor, misericórdia de Deus, poder,
verdade e justiça. Lutero afirma expressamente que essa justiça, obra, misericórdia e verdade de
Deus não é a “segunda” justiça ou a renovação gradual do homem, no coração e vida, na imagem
de Cristo. É a “primeira” ou a justiça “alheia” que é concedida aos pecadores completa e
imediatamente. Isso significa que a culpa do pecado é apagada através do perdão dos pecados. A
justiça de Cristo, apreendida pela fé, cobre todos os pecados. Assim o homem torna-se de Cristo,
e Cristo dele. Ele é um filho de Deus e herdeiro da vida eterna.
Na época em que Lutero publicou esses sermões, ele estava, também, entrando no seu
segundo curso de preleções sobre os Salmos. Ele iniciou suas preleções reais no início de 1519.
No entanto, ele deve ter começado sua preparação logo após ter terminado suas preleções sobre
Hebreus (27 de março de 1518). Uma vez que a extensa explicação dos primeiros cinco salmos foi
impressa, em 22 de março de 1519, ele deve ter começado a trabalhar neles até o final do verão de
1518.
Lutero fala muito pouco sobre justiça nos Salmos 1-22, porque não teve oportunidade de
debruçar-se sobre o assunto em grande medida. Das suas poucas afirmações sobre justificação, as
mais importante são encontradas na sua explanação do Salmo 5.9: “Conduza-me, ó Senhor, em
sua justiça, por causa dos meus inimigos.” Na primeira edição dessas preleções, publicada em 22
de março de 1519, Lutero comenta como segue resumidamente:
A justiça de Deus deve ser entendida não de acordo com a opinião popular, de que Deus
é justo e assim julga os ímpios, mas como Santo Agostinho em seu tratado, “On the Spirit and the
Letter”, que Deus é justo e, assim, justifica o homem, ou seja, por essa misericórdia ou graça
justificadora, somos considerados justos diante de Deus. Lutero cita Paulo em Rm 3 para
exemplificar: “Mas, agora, sem lei, a justiça de Deus se manifestou, sendo testemunhada pela Lei
e pelos Profetas.” É chamado tanto de a justiça de Deus quanto de a nossa justiça, porque é
concedido a nós por sua graça, da mesma maneira que é a obra de Deus, que opera em nós, a
Palavra de Deus que nos é falada, a virtude de Deus que é forjada em nós por ele, e assim por
diante.
O livreto de Lutero intitulado de “Fourteen Consolations for Them Who Labor and Are
Heavy Laden”, no último capítulo, se encontra a “música das músicas” sobre justificação e
salvação, de acordo com Saarnivara, que faz seis citações e que são expressas a seguir:
“Aqui não há nada do mal, pois Cristo, ressuscitado dentre os mortos, não morre mais; A
morte não tem mais domínio sobre ele... mas o que é que Ele forjou através de Sua ressurreição?
Ele destruiu o pecado e levou a justiça à luz, aboliu a morte e restaurou a vida, conquistou o inferno
e nos concedeu a glória eterna.”
“Todas essas são essas bênçãos inestimavelmente preciosas que a mente do homem ousa
apenas acreditar que lhe foram dadas, como foi com Jacó, que, como está relatado em Gênesis 45,
quando soube que seu filho José era governante no Egito, foi como um despertar de um sono
profundo.”
Lutero menciona que em 1 Co 1, Paulo diz que, apesar de pecador, ele é atraído pela
justiça de Cristo, que lhe foi dada. Diz que mereceu a condenação, mas que foi libertado pela
redenção de Cristo. Assim, um cristão, se ele crê, pode se vangloriar dos méritos de Cristo, e suas
bênçãos (de Cristo), como se ele mesmo tivesse cumprido todos eles (os méritos).
“Assim sendo, como é impossível que Cristo com sua justiça não agrade a Deus, então
também é impossível que nós não o agrademos através da nossa fé, que se apega a sua justiça. Daí
resulta que um cristão é inteiramente sem pecado. E mesmo que ele tenha pecados, eles não o
podem prejudicar, mas são perdoados por causa da inesgotável justiça de Cristo, que engole todo
o pecado e em que nossa fé se baseia.”
“Esta imagem seria suficiente em si mesma para nos encher com tanto conforto que não
somente tornaria desnecessário lamentar nossos males, como também deveria ser possível nos
gloriarmos em meio as nossas tribulações. Na verdade, dificilmente sentiríamos os males, por
causa da alegria que temos em Cristo.”
Alguns dos pensamentos expressados acima por Lutero, desejamos observar com ênfase
especial.
Algo grande e decisivo aconteceu na vida espiritual de Lutero e em sua compreensão da
justificação. Isso é bastante evidente. O outono ou o início do inverno de 1518 o levaram a uma
nova fase em seu desenvolvimento, à posse da visão da Reforma sobre a justificação. O período
agostiniano de sua peregrinação foi passado. A justificação, em seu sentido primário, já não era
um processo de tornar-se justo. Em vez disso, foi a apropriação imediata da justiça de Cristo.
Verdade, Lutero nunca entregou a visão de que o homem nunca deixa de ser um pecador, que os
restos do pecado podem ser removidos apenas gradualmente, e que, por causa de Cristo, Deus não
imputa esse pecado que permanece como culpa; Mas tudo isso que ele agora viu como parte da
santificação e não da justificação.
Nosso estudo sobre os relatos de Lutero sobre seu desenvolvimento espiritual e teológico
revelou que foi a concepção de justificação da Reforma que Lutero descobriu na torre do
mosteiro de Wittenberg e não a visão agostiniano-católica, que ele conhecia há muito tempo.
Outras investigações tornaram evidente que essa visão evangélica aparece pela primeira vez nos
escritos de Lutero durante o outono e inverno de 1518-19. A única conclusão possível é que a data
desta descoberta em seu prefácio de 1545 está correta.
Conclusão
Quando Lutero entrou no mosteiro, ele sofreu duas grandes crises. A primeira foi sua
conversão, ou quando ele começou a ter uma fé pessoal na remissão de pecados em Cristo. O
problema que ele tinha com isso era a questão de como obter a certeza do perdão de Deus, ou seja,
como estar certo de que Deus verdadeiramente perdoou os pecados quando a absolvição era
proclamada. Através dos conselhos de Staupitz, Lutero ganhou o certo entendimento nas questões
de arrependimento, absolvição e predestinação. E assim, a “luz do evangelho começou a brilhar
no seu coração”, e ele “comeu os primeiros frutos da fé e do conhecimento de Cristo”, como Lutero
relata.
Embora, Lutero possuía a fé salvadora em 1512, a sua concepção de justificação não estava
completa. Então, o autor chama o período do outono de 1512 até o verão de 1518 de o “período
crepuscular da reforma”. Os primeiros raios do sol da graça e justiça já estavam iluminando o céu
na vida espiritual de Lutero, mas a verdadeira aurora ainda não tinha tomado o lugar. A luz
completa do conhecimento evangélico da justificação ainda não tinha alcançado a sua alma.
Entretanto, a descoberta da torre não significou que Lutero jogou todos as suas visões fora,
pois muitas de suas concepções pré-reformatórias, eram perfeitamente Escriturísticas. A diferença
básica entre as doutrinas pré-reformatórias e sua doutrina da reforma sobre a salvação é encontrada
na concepção da natureza e essência da justificação. Assim, a justificação pela fé não é um
processo gradual de renovação ou de se tornar justo, mas é a justiça de Cristo outorgada pela
imputação de Deus ao ser humano, Deus justifica o pecador perdoando os seus pecados e o
considerando inocente e sem culpa pela obra expiatória de Cristo. O fundamento da justificação e
o objeto da fé do crente está no que Cristo fez para ele. Então, na conversão o homem recebe o
Espírito Santo, o qual faz morada no coração dele e, assim, renovando o seu coração e a sua vida.
Lutero não se tornou um reformador por causa da sua conversão, ou pela sua fé pessoal em
Cristo, nem meramente por causa da sua experiência religiosa. Mas ele se tornou um reformador
por descobrir o verdadeiro sentido da Palavra escrita de Deus, particularmente na Palavra a respeito
da justificação. É verdade que sua descoberta da torre também foi uma profunda experiência
religiosa, pela qual ele encontrou paz, até então desconhecida. Mas, o que ele sentiu e
experimentou, não foi o ponto central ou principal. Este ponto foi a descoberta Escriturística do
caminho da salvação, especialmente da justificação.
A descoberta de Lutero traz dois princípios da Reforma: que a Escritura é a Palavra revelada
e inspirada de Deus, sendo o único padrão e norma da fé e da vida Cristã; e que o pecador é
justificado somente pela graça através da fé em Cristo. E essa descoberta, ou redescoberta, é o que
os apóstolos de Cristo proclamavam, mas que acabou sendo escondido pelos entendimentos
errados e doutrinas falsas.
Por fim, o autor diz que há uma grande diferença nos primeiros escritos de Lutero se
comparado com os escritos posteriores. Assim é importante fazer a distinção entre o Lutero novo
e o Lutero velho, e os escritos próprios da Reforma ou verdadeiramente Luteranos são aqueles que
foram escritos após 1518.