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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
DOUTORADO EM FILOSOFIA

Deyvison Rodrigues Lima

O avesso da política. As estratégias da finitude e a ontologia do político a


partir da obra de Carl Schmitt

Rio de Janeiro
2017
Deyvison Rodrigues Lima

O avesso da política. As estratégias da finitude e a ontologia do político a


partir da obra de Carl Schmitt

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF),
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Filosofia.

Orientador: Rafael Haddock Lobo

Linha de pesquisa: Filosofia Política

Rio de Janeiro
2017
CIP - Catalogação na Publicação

LIMA, Deyvison

L732a O avesso da política. As estratégias da finitude


e a ontologia do político a partir da obra de Carl
Schmitt / Deyvison LIMA. -- Rio de Janeiro, 2017.

398 f.

Orientador: Rafael Haddock Lobo.


Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Programa de Pós-Graduação em Filosofia,
2017.

1. Filosofia Política. 2. Carl Schmitt. 3.


Político. 4. Imanência. 5. Antagonismo. I. Haddock
Lobo, Rafael, orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ


com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
RESUMO
LIMA, Deyvison Rodrigues. O avesso da política. As estratégias da finitude e a ontologia
do político a partir da obra de Carl Schmitt. Tese (Doutorado em Filosofia) – Orientação:
Rafael Haddock Lobo. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, 2017.

O problema da relação entre racionalidade e ação política, isto é, a possibilidade da ordem


política diante da finitude e pluralidade do corpo social constitui o tema central das discussões
desta pesquisa. Este problema põe em questão o papel das normas e dos afetos na organização
da vida política concreta. A presente tese tem por objetivo propor uma compreensão desta
questão na obra de Carl Schmitt através da reinterpretação de seus argumentos com ênfase na
categoria do político. As principais reivindicações desta pesquisa são: elaborar um status
quaestionis sobre o autor; sustentar que o pensamento schmittiano é orientado pelo argumento
da finitude desde o período pré-weimariano até o tardo-weimariano; demonstrar que esta
estratégia finitista provoca uma ruptura da dicotomia entre transcendência e imanência, ou
seja, da noção de representação política; e, além disso, apresentar a categoria schmittiana do
político a partir da noção de relação como uma reflexão sobre a constituição da ordem através
dos antagonismos, portanto, como um monismo ou imanentismo que dispõe de uma ontologia
política. Por fim, após elaborar uma análise crítica das teses schmittianas, desenvolvemos a
categoria do político como abertura: a leitura de uma ruptura entre imanência e transcendência
ao tratar da diferença entre político e política, isto é, do conflito e da ordem a partir do caráter
antagônico como dado último da ação política e suas consequências para a noção de
comunidade.

Palavras-chave: Político. Política. Antagonismo. Transcendência. Imanência.


ABSTRACT

LIMA, Deyvison Rodrigues. O avesso da política. As estratégias da finitude e a ontologia


do político a partir da obra de Carl Schmitt. Tese (Doutorado em Filosofia) – Orientação:
Rafael Haddock Lobo. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, 2017.

The problem of the relation between rationality and political action, that is, the possibility of
political order in the face of the finitude and plurality of the social body, is the central theme
of the discussions of this research. This problem calls into question the role of norms and
affections in the organization of concrete political life. The present thesis aims to propose an
understanding of this issue in the work of Carl Schmitt through the reinterpretation of his
arguments with emphasis in the category of the politician. The main demands of this research
are: to elaborate a status quaestionis on the author; to maintain that Schmittian thought is
guided by the argument of finitude from the pre-Weimarian to the post-Weimar period; to
demonstrate that this finite strategy causes a rupture of the dichotomy between transcendence
and immanence, that is, of the notion of political representation; and, moreover, to present the
Schmittian category of the politician from the notion of relation as a reflection on the
constitution of order through antagonisms, therefore, as a monism or imanentism that has a
political ontology. Finally, after elaborating a critical analysis of Schmittian theses, we have
developed the category of the political as an opening: the reading of a rupture between
immanence and transcendence in dealing with the difference between political and political,
that is, conflict and order from the character antagonistic as the ultimate datum of political
action and its consequences for the notion of community.

Keywords: Political. Politics. Antagonism. Transcendence. Immanence.


LISTA DE ABREVIATURA DAS OBRAS DE CARL SCHMITT

Der Begriff des Politischen – BP


Die Diktatur – DD
Ex Captivitate Salus – ECS
Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus – GLhP
Gesetz und Urteil - GU
Glossarium – GL
Der Hüter der Verfassung – HV
Land und Meer – LM
Legalität und Legitimität – LL
Der Leviathan in der Staatslehre des Thomas Hobbes – LSTH
Der Nomos der Erde – NE
Politischen Romantik – PR
Politische Theologie – PT
Positionen und Begriffe – PuB
Staat, Grossraum, Nomos – SGN
Theorie des Partisan – TP
Über die drei Arten des rechtswissenschaftlichen Denkens – DarD
Verfassungslehre – VL
Verfassungsrechtliche Aufsätze – VA
Volksentscheid und Volksbegehren – VV
Das Zeitalter der Neutralisierungen und Entpolitisierungen – ZNE
SUMÁRIO

Introdução – Sobre o político e a obra política ....................................................................7

Capítulo 1 – Interpretação e Política: leituras paradigmáticas sobre Carl Schmitt........26


1.1. Erik Voegelin: a crítica e o elogio conservador [1931]....................................................26
1.2. Leo Strauss e Carl Schmitt: um diálogo entre conservadores? [1932].............................42
1.3 Karl Löwith e a imagem especular do político: ocasionalismo, irracionalismo e o ponto
cego da imanência [1935]........................................................................................................59
1.4 Hasso Hofmann: a legitimidade como problema jurídico [1964] ....................................73
1.5 Heinrich Meier: Schmitt como devoto político [1988/1994]............................................95
1.6. Do impolitico ao das Politische: um diálogo ausente entre Roberto Esposito e Carl
Schmitt [1988].........................................................................................................................109
1.7 Carl Schmitt, um hegeliano? A análise de Jean-François Kervégan [1992]....................123
1.8 Chantal Mouffe: o conflito como agonismo [1993/2000]................................................141
1.9 Derrida leitor de Schmitt: o espectro do inimigo [1994].................................................156
Capítulo 2 – Política entre transcendência e imanência....................................................166
2.1. O argumento da finitude contra a metafísica política.....................................................166
2.2. Política da transcendência: a mediação racionalista como metafísica política...............173
2.3. Política da exceção: o problema teológico-jurídico como a questão pela ordem............205
2.4. Política da imanência: os antagonismos do político e a política contra os
antagonismos...........................................................................................................................231
Excurso – Sobre o Nomos da Terra......................................................................................278
Capítulo 3 – Político e abertura: o pathos do antagonismo e a ruptura da simetria entre
imanência e transcendência..................................................................................................297
3.1. Ação política e antagonismo: a estratégia finitista e a noção de monismo político.........299
3.2. O ultrapassamento do pensamento político moderno: uma releitura da distinção entre die
Politik e das Politischen.........................................................................................................318
3.3. A categoria pós-fundacional do político e a noção de abertura......................................351
3.4. A comunidade do antagonismo: relação, ausência e conflito.........................................365

Conclusão ..............................................................................................................................383

Referências Bibliográficas....................................................................................................387
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INTRODUÇÃO

Esta tese surgiu da observação de um problema central em filosofia política: como


pensar o conceito de poder sem reduzir a pluralidade à unidade ou excluir o conflito pela
ordem? As dificuldades encontradas ao tratar a relação entre poder e violência referem-se, em
última instância, à questão do lugar da racionalidade na ação política. A questão de fundo é
acerca da distinção entre violência e autoridade. O ponto de partida que assumimos nesta
pesquisa trata a discussão da análise da política como instauração do corpo social através dos
afetos (diferença e antagonismos) ao invés de compreendê-la como sistema de normas ou
formas de organização e controle da vida social. Com base na argumentação schmittiana,
pretendemos ainda analisar a ruptura ou curto-circuito na relação entre imanência e
transcendência, bem como a semântica moderna, sobretudo, as noções de representação e
legitimidade em teoria política. Para isso, apresentamos as teses de Carl Schmitt como uma
tentativa, mesmo que não desenvolvida completamente pelo autor, de elaboração de uma
espécie de pós-fundacionismo, pós-política ou politica pós-estatal capaz de servir como
potente argumento para as teorias política contemporâneas por sua crítica à metafísica política
e, por exemplo, possibilitar uma narrativa do político que não despreze a noção de
transformação ou conflito.
A compreensão da categoria do político como relação e conflito e, por conseguinte,
como diferença provoca a impossibilidade da articulação transcendente da ordem: a questão
da constituição da ordem passa a ser considerada na finitude e na flutuação dos afetos, mais
especificamente, a partir da leitura de Carl Schmitt, nos antagonismos do corpo social. Assim,
a ordem ou a política teria como impulso inicial não uma fundamentação normativa ou uma
vinculação a um bem ou dever, mas sim um desejo ou afeto, mais precisamente, um
antagonismo. A filosofia política, desde Platão, possui como função primordial o homoíotes
(equilíbrio), isto é, a imunização da pólis contra o perigo da stasis (subversão) e, por
conseguinte, alcançar a duração e a unidade da ordem. Neste contexto, parece-nos que a
política surgiu com base em dois axiomas: sacrifício dos afetos e homogeneização do corpo
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político, numa palavra, imunização do conflito. Ao esboçar uma relação entre político e
política, Schmitt parece entrever que se, por um lado, há uma ordem institucionalizada; por
outro, há a ameaça constante da stasis, mesmo com a pretensão de neutralização da ordem.
Isto significa que ao lançar a categoria do político, Schmitt considera que o político é aquela
relação ineliminável e ininstitucionalizável que a ordem política pressupõe, pois constitutiva
desta; porém, ao mesmo tempo, percebe-se que ao tentar estabelecer seu próprio fundamento,
revela-se uma ausência, ou melhor, o fundamento como ausência que se retira ou se recolhe
quando da estabilização normativa e provoca a abertura ou vazio de origem como
permanência da contingência. A questão que perseguimos não é a clássica questão entre céu e
terra, mas o entre-tempos, a relação entre político e política que denominamos de abertura. O
político nada mais seria do que uma forma do avesso da política: como um porão de coisas
antiquíssimas, o político revela que a origem da política não é outra senão ela mesma, ou seja,
não há bem ou natureza, justiça ou norma como fundamento, mas afetos que marcam a
diferença e o conflito, uma origem sempre presente do corpo político que se estabelece como
bloqueio dos afetos e hipostasiação da ordem, mas assume o papel dos múltiplos
antagonismos em função da negatividade e perspectivismo na constituição do corpo, mesmo
que haja a tendência ao enrijecimento e estabilização institucional. Portanto, constitui objeto
das investigações não apenas a diferença e o antagonismo que o político revela, mas a
diferença e o antagonismo entre política e político, ou seja, a diferença enquanto diferença
política.
Nesta pesquisa, trata-se de uma análise da teoria política e social que não privilegia a
compreensão da sociedade como um sistema de normas ou de leis nem a política como
cálculo ou representação através do Estado (soberania, autoridade, etc.). Trata-se de
compreender a política como constituição dos afetos e, sobretudo, como eles operam ou
interditam, possibilitam a transformação ou a estabilidade e o lugar da razão e da liberdade da
ação política nesta arquitetônica política dos afetos. Pretendemos demonstrar que Carl
Schmitt assume na ambiguidade de seus conceitos a multiplicidade e finitude na constituição
da política e não sua eliminação ou ordenação/hierarquização jurídica. Esta abordagem
significa escapar do caráter normativo dos discursos éticos, da certeza apodítica da ciência
política e, inclusive, das fronteiras entre ciência, filosofia e literatura. Trata-se de uma
abordagem indisciplinada em sentido estrito, o que não significa que não tenha método ou que
seja realizada a despeito dos modelos exegéticos, descritivos ou normativos vigentes nas
disciplinas filosóficas.
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Assim, elaboramos uma leitura de Schmitt, revista e corrigida, que coloca como
ponto cardeal o problema dos afetos, a diferença enquanto antagonismos, ao invés da filosofia
política standart que põe na origem do poder uma forma e unidade, precisamente, como
imunização dos afetos através da lei: trata-se, por isso, de uma teoria que considera a política
e o político como relações imanentes e qualquer transcendência (instituição) como algo
escavado a partir desta imanência, pois apenas como avesso um do outro. Este movimento das
relações e antagonismos não demanda uma mediação, mas uma simples alternância ou
dialética (negativa), pois cada episódio histórico apenas re-marca e de-limita o dentro e o fora,
o equilíbrio e o externo, em termos mais conhecidos, o amigo e o inimigo, como num jogo de
hegemonias no qual o próprio centro não tem lugar pré-determinado. Ao considerar a teoria
política por este plano, abdicamos de um discurso sobre a justificação da ordem substancial,
uma vez que não é decidida (deduzida) de uma norma anterior ou instaurada como mera
explicitação por uma dialética entre ser e aparência, infinito e finito, mas sim como relação de
antagonismo (polémos) que, no final das contas, refere-se a pensar os modos de aparição ou
co-instituição dos estados ou relações a partir dos quais há ação. A questão não é “por que a
ordem é válida?”, mas sim “quem domina?”, o que implica necessariamente relação, mas
também a fratura das simetrias. A resposta que provoca o curto-circuito no parti pris
filosófico é, segundo Schmitt, dada por um antagonismo imanente à efetividade do mundo
(que denominamos aqui como o das Politische), pois reside nas oposições concretas, no
caráter antagônico da existência como faticidade, ou melhor, como forma de vida, sem
reverter-se num dualismo metafísico ou num positivismo vulgar. Afirma-se nas investigações
a seguir a realidade como um continuum, ou seja, o fato último como relação e, conforme
expomos, como diferença na imanência, isto é, antagonismo ao invés da separação de níveis
entre universal e particular. O político como desconstrução da metafísica (política) aponta
para esta postura monista ou imanentista: qualquer transcendência é da ou na imanência, no
máximo como diferença – ou como propomos no último capítulo, como abertura – uma vez
que se, por um lado, para as teses que se apoiam nas cisões e nos dualismos metafísicos a
ação política é válida apenas quando se refere a um fundamento normativo nos molde da
bipolaridade transcendência-imanência; por outro lado, para a categoria do político, pensar a
transcendência é pensar fora da relação e dos antagonismos, é pensar, afinal, a ausência de
relação e não a relação como ausência de substância como é proposto.
No entanto, Schmitt não se aventura na categoria do político desta forma. Apesar da
anomalia do político proposto no período tardo-weimariano, mais especificamente, no final da
década de 1930, o autor ainda participa do campo semântico da modernidade. Tentamos
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apresentar esta pertença ao realizar o percurso do pensamento schmittiano durante as décadas


de 1910 e 1920, cujo fio condutor não seria a secularização, mas um de seus efeitos, o
finitismo, isto é, a percepção da perda do universal ou da separação que se estabelece os
campos. A tese propõe uma chave de leitura para o pensamento político de Schmitt ao
elaborar uma reconstrução dos argumentos da obra schmittiana marcado por 3 momentos:
políticas da transcendência, políticas da exceção, políticas da imanência e, a partir desses,
segundo a leitura que propomos, esboça outro paradigma em teoria política que
denominamos, por fim, como políticas da abertura, estimulado pelo argumento da finitude e
pela ruptura das simetrias e dualidades em teoria política. O pensamento de Schmitt considera
um abismo que ele próprio escava demasiadamente fundo entre constituição da ordem e
ordem normativa, ou melhor, entre imanência e transcendência (neste caso, interna): o golpe
desferido garante-lhe o momento, sem dúvidas à contragosto, da decadência da representação
moderna e, por conseguinte, a dissolução da política moderna. Se em Hobbes a modernidade
política toma forma com o conceito de representação, ela conhece em Schmitt seu ocaso. Esta
concepção do político como mediação é denominado aqui como políticas da transcendência,
pois a face oculta do conflito escamoteada como negação re-negada pela política. Ela
desempenha um fantasioso fundamento para além, utilizando-se uma estrutura de
bipolaridade, mediação, dualismos ou formalismo. A concepção do político como relação, ao
contrário, é uma negação imanente: sem dúvidas, um realismo político – não há nada além do
que essa relação e conflito – e, por isso, um monismo ou imanentismo que sempre se refere ao
âmbito horizontal e histórico e leva à suspeita o paradigma moderno da mediação e da
representação.
Em muitos aspectos, Schmitt vale-se desta suspeita ou antagonismo como método de
conhecimento: ao utilizar conceitos como ordem, unidade, justiça, representação, soberania,
etc., torna-se necessário indicar, segundo ele, certas escolhas e recusas, pressupostos e
antagonismos que os termos utilizados possuem como se tivessem uma face oculta, um
avesso. Por isso, o título da tese: o avesso da política. Notemos: neste momento, não se refere
à destruição ou crítica da política, mas à suspeita, isto é, partimos da indicação dada pelo
próprio autor ao perceber que a face oculta das palavras e discursos, instituições e normas se
referem a antagonismos concretos. Esta relação entre a política que nega o conflito ao propor
uma ordem e unidade sem fissuras e o político que, ao contrário, denuncia as rupturas e lutas
das relações como constitutivos ainda não recebeu atenção devida pelos intérpretes. A
filosofia política, em geral, ou bem aposta na fratura horizontal do corpo político, ou bem na
absoluta verticalização como garantia do poder e da ordem, ou ainda em uma solução de
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mediação normativa ou institucional através de direitos, procedimentos ou democracia.


Enquanto aquela é característica de um realismo político, estas podem ser classificadas, em
geral, como normativistas.
Nesse sentido, antecipamos a seguir algumas hipóteses da pesquisa que sustentam os
argumentos gerais da tese proposta acerca da reconstrução de alguns conceitos da política
moderna: (I) no período tardo-weimariano não é a exceção, decisão ou sequer a inimizade,
mas o que define o político é uma distinção, mais especificamente, uma relação marcada por
antagonismos. Esta leitura do político como relação e, por isso, como diferença, é utilizada
como desconstrução da metafísica política (contra as noções de substância ou identidade
política) a partir do argumento do finitismo, entendido com uma reação ou influência das
teses neokantianas de Hans Vaihinger; (II) esta virada finitista ou imanentista provoca uma
desconstrução da metafísica política, mais especificamente, atinge a noção de representação e,
por conseguinte, a semântica política moderna, uma vez que a representação pressupõe uma
forma (transcendente – de direito) a partir da qual dá unidade e identidade à ordem política:
unidade e identidade não são mais consideradas a partir de algo externo, mas sim como
relação e imanência, no caso, a partir de um afeto mais intenso, qual seja, paradoxalmente,
paixões que impõe o conflito/antagonismo; (III) a política e o político são considerados da
seguinte forma: enquanto este é atravessado por conflito, aquele é compreendido como
momento hegemônico e, portanto, provisório na acomodação das forças em conflito, por isso
tanto a noção de conflito quanto a noção de ordem são acessadas sem apelo à transcendência
ou algo externo à relação; (IV) há uma ruptura entre imanência e transcendência que nem
mesmo a solução da secularização consegue resolver: como a origem da política se refere aos
afetos e não às normas, a distinção metafísica entre o corpo político e um fundamento ou
princípio normativo não desempenha nenhum papel, pois os antagonismos do corpo político
servem como o fundamento não normativo que se expressa como uma ausência ou perda, pois
sempre se refere ao outro, à relação destituída de substância, sem metafísica ou teologia
política; (V) o papel da indeterminação e contingência na experiência política expõe o conflito
como ineliminável: a ordem instaurada (política) não abole o conflito (político); assim, nem
mesmo a possibilidade de uma identidade comunitária supre esta ausência de fundamento: é a
relação que determina a constante diferença entre conflito e ordem, ou seja, considera-se a
diferença e movimento numa perspectiva pós-fundacional; (VI) o corpo social atravessado –
ou, se preferir, paradoxalmente fundado pelo conflito – experimenta sua própria
indeterminação, isto é, a impossibilidade em última instância da institucionalização: ao invés
de propor uma Vermittlung, propomos através da obra schmittiana uma teoria política que
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leva em conta uma permanente Verwandlung contra a identidade autofundada do poder; (VII)
já que não é possível uma mediação (fundamentação racional), tampouco seria possível uma
autofundamentação, tal como alguma pressuposição da vontade de um sujeito autônomo, mas
sim uma pós-política ou uma política pós-fundacional, em todo caso, uma política pós-estatal
é esboçada como um movimento pendular entre politica e político. Este pêndulo pode ser
concebido como uma abertura da ordem (e não fechamento) a partir do antagonismo
ineliminável e ininstitucionalizável dessas instâncias originárias.
***
Com base nestas hipóteses, inicialmente, propomos uma leitura da obra de Carl
Schmitt como auxílio para solucionar o problema da relação entre finito e infinito em teoria
política: através do argumento do finitismo, ressaltamos a ruptura schmittiana das políticas da
transcendência e da exceção (normativismo e realismo fraco, respectivamente) e expomos a
categoria do político como diferença (realismo forte – o externo imanente se configura como
algo interior e co-instituição na própria identidade, por isso, relacional e marcada pela
ausência de substância); após isso, porém, deixamos Schmitt, mesmo ao apostar em seus
conceitos, no desenvolvimento da dialética entre político e política não como escolha de um
dos polos (realismos ou normativismo), mas sim como proposta de superação dos polos: com
a política da abertura, o que estava fora é considerado como centro e, a rigor, não é mais
compreendido como dividido ou separado, mas como relação ou instâncias co-extensivas, ou
seja, como um entre. A distinção não é entre uma abordagem realista ou monista que descreve
fatos ou afetos e outra abordagem normativista ou dualista que fundamenta a ordem em
direitos que servem de critério para as ações: nem absoluto realismo, nem absoluto
normativismo, mas como corpo político definido pelo movimento ou diferença que não
privilegia nem a instância da transcendência nem a instância da imanência, nem fato nem
direito, nem mediação nem imediação uma vez que a política da abertura mostra a relação
entre política e político e expõe o déficit político das teorias políticas. Como não há mediação,
mas sempre relação e antagonismo (diferença), não há apaziguamento ou sacrifício dos afetos
na constituição da ordem, pelo contrário, a stasis é mantida no interior de uma condição pós-
política (leia-se: política pós-estatal ou pós-fundacional) que apresenta um estado hegemônico
sempre suscetível à relação contra-hegemônica. O poder político não recebe uma validade por
seus atributos próprios ou substanciais, mas a partir das relações e dos afetos que o
constituem: não há poder que não se refira ao conflito, assim como não há conflito que não
remeta à relação e, por conseguinte, à diferença ininstitucionalizável. Esta diferença, como
veremos, não se refere apenas à distinção amigo-inimigo, meramente ôntica, mas sim à
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distinção entre política e político, isto é, a diferença entre política e político. Assim, contra a
hipótese hobbesiana, por exemplo, segundo a qual, há efetiva despolitização do corpo social
em favor do soberano; Schmitt, após ter elaborado uma defesa do conceito de representação
no final do período weimariano, ataca este conceito ao decretar sub-repticiamente sua
exaustão: se Hobbes, paradigmaticamente, abre a história da modernidade política
(mecanismo de representação) já impulsionado pelo processo de imanentização da
representação – pois representa-se não mais uma ideia, mas o corpo político em uma relação
interna – pode-se afirmar que Schmitt assume uma postura monista e libera o político da
identidade com o Estado e de conceitos modernos, tais como, validade, legitimidade e
justificação.
A leitura realizada nesta pesquisa procura traçar linhas de fugas e desenvolvimentos
a partir do pensamento político de Carl Schmitt ao invés de elaborar uma exegese dos seus
conceitos. A visão de conjunto que, num primeiro momento o leitor talvez espere encontrar,
logo se desfaz: o texto é montado sob o problema já apontado da relação entre imanência e
transcendência ou entre ação e racionalidade. Apesar de expor as viradas do pensamento
schmittiano, propomos uma leitura filosófica e prospectiva, evitando o mero comentário ou
uma abordagem retrospectiva do autor. Algumas tarefas básicas se somam à proposta de tese,
tais como, a reinserção do pensamento schmittiano no século XX e dos seus efeitos, mesmo
que subjacentes, bem como o esclarecimento das propostas e conceitos, interpretações e
movimentos em seu pensamento, além de, evidentemente, apresentar ao leitor um quadro de
interpretações acerca da obra, tendo em vista a inconsistência ou má-consciência de vários
intérpretes. Sobre estes, esperamos que a pesquisa demonstre que eles combatem uma noção
de “exceção”, “soberania” ou “político”, por exemplo, que o próprio Schmitt teria sido o
primeiro a contestar. Atacam por meio de simplificações sem perceber que, na verdade, suas
interpretações desafiam um fantasma ou expressam um fetiche. No entanto, se, por um lado, a
crítica aborda ideias inexistentes do autor; por outro, o autor que apresentamos também
parece um fantasma, ou melhor, de tantas matizes e possibilidades expostas a partir de suas
contradições e ambiguidades utilizadas pelas colorações políticas mais diversas, também
criamos nossa personagem-autor: por exemplo, dissociamos Carl Schmitt da metafísica e da
modernidade política mesmo que, ao final, perceba-se o parentesco íntimo entre eles e,
necessariamente, tenhamos que abandoná-lo e seguir no percurso que ele indicou. Em todo
caso, demonstramos as escolhas semânticas que a filosofia política realiza visto que também
ela é parcial, oculta seus pressupostos e toma posições e conceitos como escolhas, no limite,
infra-racionais.
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Tendo isso em vista, a estrutura deste trabalho reflete tal pretensão: no capítulo 1,
realizamos uma reconstrução do estado da pesquisa acerca da obra de Schmitt e analisamos os
comentadores já considerados standarts. O capítulo consiste numa abordagem das
interpretações acerca de Schmitt como uma reconstituição do status quaestionis. Talvez
apenas especialistas tenham paciência de passar a limpo os lances da recepção de uma obra,
mesmo assim, é importante tal revisão que mais se assemelha a uma pequena história de um
mal-entendido ou a tentativa de desfazê-lo, mesmo ao preço de criar outro mal-entendido. A
seleção dos autores se deu por relevância reconhecida nos meios acadêmicos e cada seção
possui, por tema, os autores que dialogam e constroem a trama schmittiana. Em geral, serve
como padrão para delimitar como a obra foi pensada e realçar a interpretação proposta nesta
tese. Neste capítulo, as interpretações e comentários abordados explicitam, segundo nossa
chave de leitura, uma intensificação do argumento de finitude que desemboca, apesar da
maneira assistemática, na tese sobre o político como relação e antagonismo, numa palavra, na
tese do imanentismo político.
No capítulo 2, propomos uma leitura de Carl Schmitt, elegendo como central o
tratamento finitista da instauração da ordem entre imanência e transcendência: se a questão
metafísica por excelência pode ser descrita como “por que há ser e não nada?”, a questão da
filosofia política seria “por que há ordem e não o caos?”, porém mesmo assumindo a questão
da ordem como um problema central em Schmitt, percebe-se que o surgimento desta ordem
não é pacífico e refere-se à contingência. Esta questão presente desde o texto Der Wert des
Staates und die Bedeutung des Einzelnen (WSBE) até culminar no Der Begriff des Politischen
(BP) é a chave para compreender a relação entre ser e aparecer que ganha contornos bastante
peculiares na filosofia política schmittiana ao ponto de provocar um ceticismo ou um
pragmatismo político e, a partir da porta deixada entreaberta, possibilitar a exploração dos
argumentos apresentados em meados da década de 1920 em direção a uma teoria política pós-
fundacionista. Carl Schmitt considera uma tese sobre o político que não articula mais a ação à
essência do Estado ou da política como mediação, mas que visa a política como tal, isto é,
rompe a articulação com a metafísica e com a teologia política – vinculadas ao argumento da
secularização – ao considerar o político como relação e antagonismo. Esta ruptura da ordem
do pensamento político provocou uma primeira reação nos âmbitos católicos. Daí as
acusações de que Schmitt teria adotado no final da década de 1920 um “imanentismo”,
“monismo”, “irracionalismo”, “existencialismo político”, entre outros. No entanto, também
encontramos problemas insolúveis nesta proposta, especialmente, a unilateralidade da solução
ao paradoxo entre imanência e transcendência através de um realismo forte que apenas inverte
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os termos em questão e não percebe a diferença enquanto diferença: não diferença do


antagonismo, mas entre político e política e a ausência como fundamento que este pêndulo
provoca.
O paradigma da mediação racionalista moderna é analisado por Schmitt inicialmente
em Der Wert. Neste momento, trata-se de uma reconstrução da forma concreta vinculada à
exigência da Ideia de direito abstrata a partir de um momento da contingência. A tese do
WSBE pode ser exposta na afirmação de que “o direito como norma pura, possui valor,
independentemente de qualquer justificação fática” (WSBE, p. 10). A partir disso, Schmitt
desenvolve o problema da relação entre normas de direito (Rechtsnorm) e normas de
realização do direito (Rechtsverwirklichung) com o intuito de dar conta da legitimação
racional do poder. Neste sentido, o direito precede o Estado, pois este ao se manifestar
enquanto poder necessita qualificar-se como legítimo através da referência àquele, alcançando
dessa forma sua justificação (Rechtfertigung). Schmitt propõe o Estado como a instância
concreta que possui a tarefa da realização do direito ao torná-lo efetivo na história. Assim, ele
afirma a tese do primado do direito sobre o Estado ao justificá-lo pela relação com a norma
pura que o precede (WSBE, p. 50). Na fase pré-weimariana, há uma teoria normativa da
legitimidade do poder através de um medium concreto que representa a forma jurídica:
afirma-se que “entre cada concreto e cada abstrato há um abismo insuperável
(unüberwindliche Kluft)” (WSBE, p. 80), pois há originalmente uma ausência de forma e de
ordem que só pode ser suprida na referência à ideia de direito. O Estado é considerado o
realizador do direito e possui a função de mediação entre quaestio facti e quaestio juri, uma
vez que é compreendido estritamente como organização fática da força que carece a priori da
autorização da esfera jurídica, pois “a autoridade do Estado reside não no poder, mas sim no
direito, que o traz e o realiza (Ausführung)” (WSBE, p. 71). Percebe-se que, antecipando o
resultado da argumentação, caso o Estado perca a função de mediação, teríamos um problema
na relação entre quaestio facti e quaestio iuris, ou seja, na questão da legitimidade.
No entanto, Schmitt lança um argumento que inverte o primado do universal para o
particular: ao investigar a forma da mediação concreta, ele afirma que a tarefa da realização
do direito é possível apenas em uma situação de estabilidade fática da ordem pública. Ora,
neste momento, há a inversão para sua tese exposta em Die Diktatur (DD) e, de forma
definitiva, em Politische Theologie (PT): destruídas as condições fáticas para a constituição
da ordem jurídica, faz-se necessário que o poder pusesse de lado a medida ideal para intervir
na situação desordenada com o intuito de reconstituir a ordem. Essa transformação inverte o
primado do ideal ao real, do universal ao particular: a instância determinante da ordem
16

jurídica passa a ser concreta, porém, ainda refere-se à forma abstrata como locus da
legitimidade. Ora, daí nota-se a estratégia da finitude em ação mesmo com a ressalva
legitimista. Segundo Schmitt, seria necessário buscar em uma forma concreta o nexo entre
particularidade e universalidade que estariam co-implicados naquilo que se pode denominar
de excesso e exceção através da figura da Souveranität (soberania) como se a imanência
necessitasse da referência de algo além, pois apenas captando a forma abstrata de direito seria
legítima. A partir de então, a decisão estatal que ordena a realidade de modo a possibilitar a
Rechtsverwirklichung (realização do direito) joga um papel importante: a instância
determinante da ordem jurídica passa a ser concreta, mesmo que se refira ainda à forma
abstrata como locus da legitimidade. A hipótese da estratégia da finitude é confirmada pela
ação guiada por critérios contextualistas ou particularistas, embora ainda postule a noção do
político como mediação, ou seja, reconheça a estrutura teológico-político como forma jurídica
(representação) que se deve realizar.
Após a elaboração da teoria da Entscheidung (decisão) nos primeiros escritos,
Schmitt desenvolve a teoria da ditadura perseguindo ainda o problema da mediação
(Vermittlung). O que está em jogo para Schmitt durante a década de 1910 é a proposta de uma
mediação que torne possível uma forma concreta e a organização legítima do poder. No
Rahmentheorie schmittiano, não há vinculação necessária entre as esferas do ser e do dever-
ser, sendo a realidade empírica marcada por um desamparo normativo originário, isto é, pelo
domínio da contingência e da não-juridicidade. Entretanto, a justificação da ordem não se dá a
partir da esfera fática – pressuposto – mas apenas da relação ainda buscada entre normas de
direito e normas de realização de direito que, afinal, funciona como fundamento racionalista,
mesmo adotando a decisão como característica do poder. Denominamos esta estrutura teórica
de realismo fraco ou moderado ao apostar em uma validade ou perspectiva externa da ordem,
como se o finito se lançasse continuamente ao infinito, embora não mais como um continuum.
A importância do Die Diktatur é que no texto o pressuposto fático da efetivação do
direito é problematizado e a contingência originária da ordem jurídica é demonstrada, isto é,
transforma a contraposição entre normas de direito (ideal) e normas de realização de direito
(positivas) na oposição entre normas de realização do direito e normas de ação técnica
(sachtechnische Aktionsregel). A ditadura é o conceito jurídico que reconhece uma
Aktionskommission: uma autorização limitada para executar aquilo que for necessário desde
que se alcance determinado fim na realidade empírica (DD, p. XVIII). Dessa argumentação,
decorre o paradoxo da exceção segundo o qual para a realização das normas de direito é
necessária à ação soberana na realidade empírica que suspende tais normas para torná-las
17

efetivas depois do reestabelecimento da ordem fática. O problema da ditadura torna-se o


problema da exceção concreta (DD, p. XVII). A ditadura é uma “comissão de ação
determinada pela situação das coisas (Sachlage)” (DD, p. 134), por isso, a ação do ditador não
é determinada por normas de direito, mas sim pela necessidade imediata que se depara para
eliminar a obliteração ao direito. Nesse ponto, ao invés de relações estritamente jurídicas,
tem-se relações políticas, pois já no texto Die Diktatur, a exceção é um estado do conflito que
inviabiliza qualquer validade normativa. Assim, há uma legitimação da autoridade a partir do
estabelecimento da exceção concreta, portanto, justificada por uma grandeza política e não
por uma norma. No Die Diktatur, é o ditador soberano que encerra a discussão entre direito e
poder, porém ainda em função das normas de direito. Assim, percebe-se o desenvolvimento
germinativo de 1914 a 1921 entre legitimidade e poder que dá origem à Politischen Theologie
e a sua específica teoria da soberania revisitada como decisão sobre o estado de exceção.
A tese da PT refere-se à relação que se estabelece entre exceção e norma através do
paradoxo da soberania (Souveräntiät) que soluciona o problema da legitimação da ordem
através da Rechtsverwirklichung. Nesse contexto, Schmitt elabora seu conceito de
Ausnahmenzustand, isto é, uma situação na qual fático assume a tarefa de constituição e o
normativo não consegue fornecer suas próprias condições institucionias, tornando-se a
decisão sobre o estado de exceção a condição de possibilidade concreta para a efetivação da
ordem normativa. Utiliza-se a teoria da Ausnahmenzustand na tentativa de problematizar a
mediação provocada pelo racionalismo: ressalta-se o elemento fático ao inserir o conceito de
exceção no interior da ordem jurídica como mediação originária entre forma política e
realidade concreta pelo conceito de Entscheidung (de-cisão) que se constitui como origem
não-jurídica da ordem, como uma decisão pela ordenação do estado de coisas. A exceção
torna-se a condição de possibilidade do direito, pois, seja na manutenção seja na criação, o
soberano estabelece a ordem na qual tem validade normas, legitimando a posteriori o poder.
Embora haja um primado das configurações fáticas na constituição da ordem jurídica,
tal ação técnica visando o (re)estabelecimento da ordem fática é praticada com o intuito de
tornar possível a ação do Estado naquela relação entre normas de direito e normas de
realização de direito de onde, aliás, adquire sua legitimidade. Por conta desse último
elemento, Schmitt, apesar da ênfase no contexto pragmático, preserva uma perspectiva
formalista em sede de teoria da legitimação do poder, ou seja, a justificação do poder é
efetivada ainda a partir da ideia de direito, mesmo concebendo tal ideia vinculada à sua
origem não-racional, qual seja, a exceção concreta, configurando ainda um realismo fraco ao
adotar uma validade ou perspectiva externa do poder, mantendo um dualismo em teoria
18

política. O desinflacionamento ocorrerá na fase posterior quando a questão sobre a


legitimidade será considerada a partir da afirmação do caráter não normativo do poder como
determinante do direito por meio das teses do existencialismo político que, por isso, se
caracteriza como uma teoria monista ou imanentista uma vez que rejeita a separação entre
ação e racionalidade (validade): a validade é dada na própria ação e o político deixa de ser
considerado como mediação do teológico.
Neste contexto, a tese proposta no Der Begriff des Politische afirma o político (das
Politische) como uma polemiologia: o antagonismo entre amigo-inimigo expressa a estrutura
original do poder – a oposição e a heterogeneidade de formas de vida – e apresenta outro
critério para a justificação do poder – a diferença ou a polemicidade. O polémos representa a
nova perspectiva através da qual o poder se articula. Ao invés de normas de direito, normas de
realização de direito, normas de ação técnica ou decisão sobre a exceção não constituem mais
a forma de legitimação do poder, mas sim o político como relação concreta. Portanto, na fase
tardo-weimariana, há uma virada na filosofia do poder que privilegia a problemática
imanentista. De modo geral, o argumento finitista aplicado à reflexão sobre a relação entre
poder e normas força Schmitt a inserir o monismo no seu realismo político: a diferença
transcendente perde sua função legitimadora e, partir de então, a dualidade torna-se diferença
na imanência, ou seja, a referência na constituição da norma é contingente. Nesta pesquisa,
analisa-se a virada existencial no Begriff des Politischen e Verfassungslehre como uma
reavaliação e abandono do realismo fraco da teoria da decisão e da representação no Die
Diktatur, Politischen Theologie e Römischen Katholizismus: se na teoria da exceção, a ordem
possui uma origem concreta, porém submetida à exigência da forma abstrata para ser
legítima; na teoria do político, a ordem se estabelece apenas na relação concreta sem a
exigência da forma, ou melhor, a ordem é constituída de maneira contingencial e nisso reside
sua legitimidade denominada aqui de existencial e a proposição de uma teoria da ação política
dotada de um realismo forte, pois propugna uma validade interna do poder. Entre universal e
particular, Schmitt aposta na seguinte tese: a originariedade particular da ordem articula sua
legitimidade a partir de um ato de vontade entendido como um fundamento existencial, um
afeto, digamos assim, originário que dá a medida (seinsmäßige Ursprünglichkeit). Ao invés
de analisar a legitimação do poder, ou seja, sua adequação a algum padrão ou tipo formal e
abstrato, exige-se investigar se, de fato, existe ou não existe, pois nenhum procedimento
racional ou jurídico pode justificar um fato uma vez que “não se pode falar de legitimidade de
um poder público (Staatsgewalt). Um Estado, isto é, a unidade política de um povo, existe na
esfera do político; este, muito menos, admite uma justificação, juridicidade, legitimidade
19

(Rechtfertigung, Rechtmäßigkeit, Legitimität)” (VL, p. 89), ou seja, não é possível uma


justificação a partir de normas, mas apenas a partir do político compreendido não mais como
mediação, conforme a tese da teologia política, mas sim como antagonismos.
Para Schmitt, há uma contiguidade imediata entre existência e legitimidade que
desvela nem tanto um fundamento da ordem como uma instância não racional e contingente,
mas uma estratégia de fundamentação como ficção. Tal fundamento – se é adequado utilizar
este termo – não está vinculado a formas jurídicas ou procedimentos, pois “não necessita de
justificação (Rechtfertigung) em uma norma ética ou jurídica; tem seu sentido na própria
existência política. Uma norma não seria adequada para fundamentar nada aqui. O específico
modo da existência política não necessita nem pode ser legitimado” (VL, p. 87). A
legitimidade é resolvida na qualidade do poder. Dessa forma, a antítese entre ser e dever-ser
resolve-se em outra: ser ou não-ser. Segundo Schmitt, seria um erro afirmar “o poder é
legítimo”; melhor seria: “o poder é ou não é” ou “existe ou não existe”, pois seu fundamento
de validade é sua existência ou aquela seinsmäßige Ursprünglichkeit que resolve a distinção
entre quaestio iuris e quaestio facti, ressaltando a origem da ordem a partir desta última,
assumindo uma legitimação existencial em detrimento de uma legitimação racionalista.
Entretanto, diagnostica-se a derradeira virada no pensamento schmittiano quando ele enfatiza
uma legitimidade histórica do poder e a co-originariedade entre fato e norma, entre imanência
e transcendência, na tentativa de afirmar ambos os polos.
A partir da teoria do nomos, Schmitt elabora uma nova estratégia na solução da teoria
da legitimidade moderna: trata-se de demonstrar que não há um modus intermediário entre
norma e fato, nem passagem válida entre as instâncias. A Nomostheorie radicaliza o
movimento do existencialismo político e investiga não uma mediação, mas a "imediatidade
(Unmittelbarkeit) de uma força jurídica não mediada por leis (vermittelten Rechtskraft)" (NE,
p. 47). A partir de um acontecimento histórico constitutivo (ein konstituierendes
geschichtliches Ereignis) dá-se um ato de legitimidade: Schmitt assume a historicidade das
práticas sociais como fundamento concreto de uma ordem, desvencilhando-se das armadilhas
do paradoxo mediação/imediação e fundamentando a legitimidade na ação; nesse sentido,
nomos seria o "ato originário que funda o direito (rechtbegründenden Ur-Aktes )" (NE, p.
16)1.

1
Em sede de teoria da democracia, sobretudo, no período conhecido como konkretes Ordnungsdenken, Schmitt
propõe uma democracia sem mediações (unmittelbare Demokratie), ou seja, uma democracia imediata ou radical
na qual a identidade e igualdade do povo seja estabelecida de maneira substancial e não apenas jurídica ou
formal: "die Unterscheidung von repräsentativer und unmittelbare Demokratie beruht darauf, daß der Begriff der
Repräsentation noch personalistische Elemente beibehält, während die unmittelbare Demokratie eine sachliche
20

No entanto, a tese pretende desenvolver a relação originária entre imanência e


transcendência na tentativa de superar a Trennung racionalista e propor um movimento ou
abertura como co-instituição da ordem a partir da diferença enquanto diferença política: o
argumento da finitude implica a questão da relação e esta, por sua vez, a categoria do político
No entanto, o político só ganha sentido ao observar a relação com seu avesso. Ora,
perseguimos este problema da mediatidade/imediatidade em termos de co-originariedade: a
perda da autoridade provocada pelo argumento do político implica na dissolução da
transcendência (entendida aqui como o paradigma teológico-político ou resolução da
secularização) e, por conseguinte, na impossibilidade da fundamentação moderna do poder
(legitimidade ou justificação) via mecanismo de representação: haveria uma
indistinguibilidade entre mediação e imediação, inaugurando outra forma de abordagem das
questões político-jurídicas no qual o fora (transcendência), ao qual o político como mediação
remetia, está agora efetivamente no interior do político como antagonismo (imanência). A
origem da política compreende ainda uma diferença, porém não transcendência-imanência,
mas sim a diferença da relação, como exposição desde a imanência.
Daí a necessidade do capítulo 3 para compreender que a dialética entre conflito e
ordem não pressupõe uma instância fora de si, mas apenas a origem como um apartar-se de si
ou ausência. Através da relação e dos antagonismos dados no corpo social como diferença,
procuramos nem tanto de soluções para salvar as teses schmittianas, mas sim como um
desenvolvimento della ulteriorità não autorizados pelo autor e até com certo requinte e
perversão deliberada ao transformar um autor maldito em uma referência para o pensamento
pós-político contemporâneo. Nesse último capítulo, exploramos alguns fios soltos da reflexão
do jurista e desenvolvemos a partir da sua posteridade nossa própria trama, uma categoria do
político que se pretende até certo ponto autônoma das teses schmittianas, embora reconheça
uma íntima filiação: a noção do político reinterpretada como abertura, isto é, compreendida
como relação, conflito, ininstitucionalizável, ilimitado, nunca plenamente realizado, pois
sempre presente-ausente, provocador de um achatamento entre imanência e transcendência,
pois as considera como instâncias co-extensivas. Neste contexto, a categoria do político é
pensada no período do fim da estatalidade moderna, desteologizada, dessecularizada, após a
dissolução do racionalismo e da metafísica política. Afinal de contas, a crise e a crítica da

Identität zu realisieren sucht" p. 28, Der Begriff der modernen Demokratie in seinem Verhältnis zum
Staatsbegriff, pp. 22-28, in PuB. A investigação do problema da imediação torna-se uma preocupação constante
em Schmitt, não apenas na estrutura prático-política – como na formulação de teoria da democracia contra o
liberalismo ou a estatalidade moderna – mas também na estruturação teórico-política – por exemplo, na sua
crítica às posturas racionalistas e normativistas que impedem um pensamento político autêntico.
21

semântica política moderna, inaugura uma narrativa pós-fundacionista e pós-política que


possibilita pensa a noção de comunidade atravessada pela diferença e ausência.

***
Em geral, na prática de comentários, encontra-se nada mais do que os problemas de
interpretação do próprio autor e, portanto, limita-se à percepção da coerência interna do
discurso, da pertinência ou consistência dos argumentos já tão bem analisados por inúmeros
scholars. O que distingue esta pesquisa dos demais comentários acerca da obra do jurista é, na
verdade, o modo de interrogar a obra como uma questão ainda em processo de construção. A
partir de uma leitura filosófica, acentuamos a centralidade da categoria do político como
relação e antagonismo e não simplesmente como conflito entre amigo e inimigo: esta
estratégia se revelou como um potente argumento na desconstrução da metafísica política,
sobretudo, quanto aos conceitos de Estado, ordem e representação. A partir disso, o percurso
desde as primeiras obras até o final da República de Weimar não vem por acaso: partimos da
hipótese de que o itinerário tomado pelo jurista se deve à intensificação do argumento do
finitismo contra a estrutura de mediação racionalista. Esta radicalização altera a noção do
político como mediação para a imediação como constitutiva da ordem. Neste momento,
assumimos a ponta de lança e tomamos a pretensão de “terminar” a virada imanentista ou
finitista em teoria política ao instrumentalizar os conceitos schmittianos em direção a uma
pós-política ou política pós-fundacional compreendida não mais como imanência, mas como
abertura: a abertura do antagonismo político que une e separa como fronteira, mas também
como diferença entre política e político, como um avesso que é, no final das contas, o mesmo
no qual se dá o pensamento da comunidade, qual seja, como antagonismo, mas também como
ausência.
Dessa forma, a perspectiva que se imprime nesta análise não seria a da releitura, mas
sim a da reescrita assumida: não pretendemos banir qualquer indeterminação da obra ou fixar
os limites para a interpretação, embora no segundo capítulo seja elaborado em grande parte do
texto, estritamente, um comentário no sentido tradicional. Na verdade, o trabalho consiste em
uma modulação e exame crítico do discurso, levando em conta a distribuição, classificação e
organização dos problemas, os planos e valores pressupostos. Ainda assim, a atividade
hermenêutica nesta pesquisa se aproxima mais da usurpação do que do mero comentário:
precisamente, a atenção está voltada não apenas para aquilo que Schmitt afirma – os
argumentos do autor, bem como dos principais intérpretes, todavia, são devidamente expostos
–, mas também para aquilo que ele não diz: este é o segredo ou arcano da obra, inventado ou
22

não, apresentamos Schmitt para além dele mesmo, ou melhor, re-trabalhamos seus conceitos
numa espécie de versão revisada, corrigida e ampliada. Um exemplo típico deste
procedimento utilizado na pesquisa pode ser dado pelo seguinte: no Begriff des Politischen, o
autor afirma acerca da relação entre amigos e inimigos. Os comentadores repetem
corretamente os critérios do político, inclusive com a denominação que o simplifica
demasiadamente: a “teoria do amigo-inimigo”, alvo de crítica do próprio Schmitt no prefácio
à edição italiana de 1963. Em nossa leitura, deslocamos a ênfase dos polos e lançamos nosso
olhar para a relação e para o antagonismo. Então, ressaltamos a importância dos afetos na
constituição da ordem ao invés da narrativa que se perde na tentativa de explicar-se diante do
adversário que exige regras de comportamento e de fundamentação da ação. Ao produzir
desvios ou linhas de fugas interpretativas deste tipo, com controle e rigor acadêmico,
pensamos a partir do texto schmittiano sem nos fixar demasiadamente nele: nem dentro nem
fora, o que pretendemos é a partir do fim do seu discurso, no vazio e no não-dito,
desdobrando outras fronteiras. Ao invés de reforçar a já caricatural imagem de Carl Schmitt
como um criador de fórmulas brilhantes e interpretações contraditórias ou episódicas,
pretendemos desenvolver as contradições do seu pensamento: de um normativismo para um
realismo que se recusa a enquadrar o político em um esquema normativo; de uma postura
representacionalista e teológico-política para uma rejeição da transcendência e pós-estatal, de
uma exigência de ordem e de forma para uma ausência de fundamento da ação até afirmar o
conflito como pressuposto do Estado. Estas contradições são buscadas na obra, bem como por
quais percursos e argumentos o autor considerou para as alterações do itinerário.
Estas considerações tornam necessária uma explicitação metodológica: a questão do
sentido da obra, ou melhor, o espaço da obra que, em nossa concepção, não tem como
objetivo redescobrir suas origens, mas explorar novos discursos. Neste sentido,
deliberadamente, realizamos uma interpretação heterodoxa com o intuito de levar para a
filosofia política o torvelinho desconstrutivo que já exerceu influência em todos os outros
âmbitos do saber quanto à possibilidade de discussão do objeto da enunciação como algo
positivo. A pretensão da pesquisa não é apenas estabelecer um paradigma de interpretação da
obra de Carl Schmitt, mas, sobretudo, dar vazão ao pensamento do jurista e permitir que seus
argumentos ganhem força na criação. O leitor já advertido do caráter heterodoxo da pesquisa
em curso, também pode perceber mais uma idiossincrasia da escrita que se apresenta: um
exercício de buscar na obra schmittiana instrumentos categoriais para pensar a teoria política.
A rigor, no limite, não nos interessa quem foi ou como viveu, embora alguns dados
biográficos sejam apresentados, mas o que importa é a tradição ou os intérpretes que se
23

ocupam da obra como algo a ser consumido ou assimilado: decifrar como Schmitt foi
incorporado e de quais elementos penetraram, talvez sem aviso prévio, na escrita e prática
política do século XX. Para isso, tomamos como paradigmático o procedimento sobre o
trabalho da obra que Claude Lefort nos apresenta.
A pretensão inicial do projeto colocaria dois clássicos da filosofia política moderna
em perfil: Maquiavel e Schmitt. Deste ponto de partida, abordar a discussão em torno da
questão sobre o político que pode ser vista nestes autores e elaborar a tese acerca das políticas
da abertura. No entanto, o tema schmittiano ganhou maior vulto (ou melhor, necessidade),
sobretudo, após a leitura do importante texto de Claude Lefort sobre Maquiavel. Desta leitura
fundamental, assumimos em parte a estrutura do trabalho e a proposta de elaborar uma
interpretação sobre um autor controverso que ainda carece, apesar de variados esforços, maior
volume crítico. Evidentemente, guardadas as devidas proporções com o pensador francês,
propusemos com esta pesquisa ao mesmo tempo consolidar o status e importância de Schmitt
como pensador político, mas também, como efeito colateral, elaborar uma interpretação
standart sobre o autor que sirva de referência aos estudos sobre sua obra. A pretensão seria
abarcar todo o período do seu vasto pensamento, selecionando os momentos mais importantes
e, sem dar margem à vexata quaestio sobre sua biografia, não tematizar assuntos prosaicos. O
que resta, parece-nos, é muito mais uma interpretação criativa do que a pretensão de retirar o
sentido autêntico do pensamento de Schmitt.
A metodologia desta pretensão segue de perto a proposta por Claude Lefort. Segundo
o autor do Le Travail de l’oeuvre Machiavel para compreender um pensamento, é necessário
compreender o campo que ele instaura, isto é, a obra e, por isso, torna-se preciso a
reconstrução das críticas que ela desperta ou como ele afirma “J'apprends à lire une oeuvre
dans le sillage des autres (...) le dialoge s’est noué avec les commentateurs et a modifié la
relation qu’il avait instaurée avec ele, changé ses questions, il em a tué certaines et fait surgir
d’autres, il a déplacé l’objet de son désir de savoir” (LEFORT, 1986, p. 24)2. Daí o capítulo
inicial de contextualização das interpretações que a obra schmittiana despertou no discurso
crítico: esta seria a “presença da obra”, como Lefort considera. O pensamento de Schmitt, da
mesma forma que o de Maquiavel, abre (mais precisamente, encerra ao esboçar algo novo)
um horizonte de reflexão sobre o político. Para compreendê-lo, é necessário reportar-se ao

2
“Le fait à penser est que je décide, que nul ne décide d'écrire sur une oeuvre du passé sans s'être enquis de ce
qui fut écrire sur elle. Le fait est encore que la fréquentation des interprètes ne donne pas seulement l'occasion de
puiser des informations utiles, de faire l'économie de certaines recherches ou s'assurer de l'originalité de ses
propres théses, mais qu'elle introduit à un debat dont l'enjeu, au fur et à mesure qu'il se précise, fait mieux
entrevoir ce que l'oeuvre met en jeu” (LEFORT, 1986, p. 24).
24

trabalho crítico despertado por ele, assumindo ou desdobrando suas teses, mas com a atenção
de que a obra não se encerra sobre si mesma. Adotando este critério lefortiano metodológico
de escrita, demonstramos as diferentes interpretações de Schmitt e como dizem respeito ao
“campo de questão aberto pela obra” como desdobramentos e modos de interrogar o
pensamento schmittiano. Assim, “com a permanência na literatura crítica, um poder é
adquirido, uma sensibilidade rica em novos órgãos desperta, cujo efeito é multiplicar a
presença do trabalho além de todas as expectativas, para divulgar o discurso (...) uma
variedade de movimentos, uma profusão de sinais imprevisíveis” (LEFORT, 1986, p. 25). Da
mesma maneira que Lefort, pretendemos investigar o campo de trabalho da obra que se faz e
refaz continuamente e reverbera a presença da obra schmittiana no pensamento e experiência
política do século XX.
Apesar das alterações de curso, esta pesquisa de doutorado revisita a pesquisa de
dissertação de mestrado, na qual concluímos que o pensamento de Schmitt esboçaria uma
espécie de pragmatismo político caracterizado, sobretudo, pela superação da relação entre
mediação-imediação ao optar pela finitude como lugar do político. Revisamos em parte
alguns resultados daquela tese precoce ao perceber que a opção pela finitude gera problemas
maiores do que a manutenção da dualidade. Reformamos no Capítulo 2 o debate sobre uma
possível – e acreditamos mais acertada – chave de leitura, certamente para compreensão da
obra schmittiana: as estratégias da finitude que não tinham ainda sido cogitadas na pesquisa
anterior. A leitura de Hans Vaihinger, complementando o debate sobre mediação em Kant e
Hegel, mostrou-se fundamental para elaborar esta perspectiva. Esta tese interpretativa também
parte de uma pista dada por Schmitt. No texto, Die Lage der europäischen Rechtswissenschaft
(p. 427), no período do Konkreten Ordnungsdenken, ele afirma que “a filosofia não consiste
para mim em um vocabulário de termos, tratado como um sistema filosófico dado, aplicado a
questões jurídicas, mas no desenvolvimento de conceitos concretos a partir da imanência de
um concreto ordenamento jurídico e social”.
Nas últimas décadas, o volume de interpretações consagradas à obra e vida de Carl
Schmitt cresceu consideravelmente. A seleção de interpretações aqui elencadas não pretende
ser exaustiva nem reconstituir a imensa quantidade de trabalhos sobre as questões que
envolvem o autor. Neste caso, os autores são escolhidos a partir de dois critérios muito
simples: em primeiro lugar, as interpretações já clássicas; em segundo lugar, as interpretações
que abrem espaço para outras interpretações. Pode-se afirmar que as primeiras são mais
“fieis” e as segundas menos “fieis”, porém esta tese, por sinal, se enquadra ela mesma no
segundo tipo de interpretação, aquele que pretende deliberadamente errar e ler nas entrelinhas
25

para dizer o que o autor não disse. Assim, como esta tese se encontra no interior da
Renaissence schmittiana das últimas décadas, talvez já na sua última estação, parece-nos que
resta criar algo a partir de um autor que não existe. Todavia, esta já não seria, de partida, uma
tese fora do prumo?
26

Capítulo 1. Interpretação e Política: leituras paradigmáticas sobre


Carl Schmitt

O que pretendemos neste capítulo pode ser considerado como uma forma híbrida de
resenha crítica e considerações ensaísticas. Ao expor alguns aspectos dos comentadores e
explicitar a tese que os motivaram, procuramos algum parti pris comum aos analistas de
Schmitt: ou bem partilhando, ou bem rejeitando, eles possuem contas a acertar com o autor e,
por mais críticas e exprobatórias que sejam, as análises trazem algumas chaves de leitura que
não têm sido plenamente exploradas e que permitem ler o jurista, sem dúvidas, como
pretendemos, para além dele. O objetivo do capítulo é apresentar o estado da arte acerca da
obra schmittiana, os usos e equívocos, os ditos e os feitos sobre Schmitt, além de, antecipando
um tanto nossa hipótese, esboçar uma compreensão da obra schmittiana através de uma chave
de leitura finitista até a elaboração de uma perspectiva imanentista ou monista em teoria
política: esta é, a contrapelo, o resultado das análises das interpretações paradigmáticas, como
que variações sobre o tema. Daí, a ênfase dada aos momentos, não raro, nos quais os
comentadores apontam para a imanência na obra do jurista. O que para as investigações
realizadas nesta pesquisa surge como o principal argumento schmittiano, é passado
despercebido, rejeitado ou subestimado seja pelo próprio jurista, seja por seus intérpretes.
27

1.1 Erik Voegelin: a crítica e o elogio conservador [1931]

Duas questões podem ser destacadas na análise de Voegelin acerca da


Verfassungslehre3: a elaboração de ferramentas conceituais para investigar a Constituição de
Weimar de 1919 e a noção de representação e democracia que a nova configuração política
esboçava. O autor inicia sua análise ao contextualizar a tarefa de Schmitt como criação de um
“sistema de conceitos apropriados para o exame científico dessa nova estrutura política e
jurídica” (VOEGELIN, 2001, p. 42). Assim, o autor descreve como o jurista tedesco se move
a partir do direito positivo e de problemas teóricos constitucionais para abordar os princípios
da teoria política. Neste contexto, Voegelin inicia a análise ao comentar as constantes
altercações entre o nível histórico-concreto e o nível teórico-conceitual e, por conseguinte,
constatar a confusão entre a investigação científica de conceitos constitucionais e a análise
histórica da situação constitucional na década de 1920. No entanto, como já exposto na
introdução, não é a tarefa aqui a reconstrução da resenha sobre a Verfassugnslehre, mas sim
expor a tese que Voegelin elabora num momento tão próximo à publicação do texto
schmittiano: a forte convicção de que o jurista adota uma perspectiva imanentista ou, pelo
menos, busca uma instância concreta de fundamentação da ordem. Perseguimos o tema e, por
esta via, reconstruímos os argumentos voegelianos.
Na resenha de Voegelin, o duplo nível da argumentação de Schmitt é avaliado como
ponto fraco, mais precisamente, como uma disfunção na crítica schmittiana que, pouco
imparcial e muito política, teria se imiscuído demasiadamente nos assuntos da República de
Weimar, além de ter combinado suas inovações conceituais com as formas tradicionais da
teoria política, sobretudo, não distinguindo com atenção o dualismo de “ser” e “deve-ser”,
bem como sua compreensão demasiadamente existencial da esfera política. Voegelin sustenta
que, para Schmitt, “Constituição significa nem a existência política concreta de um povo, nem
uma forma particular de existência política, nem uma norma básica ou lei que constitui o
estado como uma unidade jurídica; nem, finalmente, significa qualquer lei constitucional
específica. Em vez disso, refere-se à decisão geral pela qual o todo é determinado em relação
à sua forma particular de existência” (VOEGELIN, 2001, p. 43) e logo após reconstruir as
distintas concepções de constituição, delimita seu ponto de partida: “(Schmitt) afasta-se desta

3
A resenha foi publicada por Voegelin originalmente como “Die Verfassungslehre von Carl Schmitt. Versuch
einer konstruktiven Analyse ihrer staatstheoretischen Prinzipien” In: Zeitschrift für Öffentliches Recht 11 (1931):
89–109. A edição utilizada neste trabalho foi publicada na coletânea de resenhas do autor em suas obras
completas traduzidas para o inglês: The Collected Works of Eric Voegelin, Volume 13: Selected Book Reviews.
Edição e tradução de Jodi Cockerill e Barry Cooper. University of Missouri Press: 2001, p. 42–66.
28

última distinção entre constituição e direito constitucional” (VOEGELIN, 2001, p. 43), aquela
referindo-se à decisão política fundamental; esta, às leis positivas ou standarts jurídicos. O
comentador acerta quando assume como ponto central a decisão a partir de uma “particular
form of existence”, ou seja, de uma instância imanente como fundamentação das normas, pois
não seria um dever-ser, mas um ser (que se refere à noção de finitude da relação e da
imanência da ordem que, precisamente, ressaltamos em nossa tese) ou uma vontade que
determina a validade da ordem constitucional, mais precisamente, o ato de decisão do qual
emerge a constituição, tal como no excerto:
As leis constitucionais contêm normas padronizadas [Normierungen] de um
conteúdo variado que não tem importância para nós no momento. Para sua validade
como normas [Normen], essas leis exigem uma decisão política (a constituição), que
se repita de uma vontade, e assim por diante. A esfera jurídica, onde as normas
constitucionais também são encontradas, é para Schmitt não fundamentalmente
independente. Não é um sistema de normas encerrado em si mesmo, mas sim a
questão da base de validade e unidade e, além disso, ao ato de uma decisão política,
a uma grandeza decorrente de ser a origem de um "dever" (VOEGELIN, 2001, p.
43).

A análise de Voegelin assume esta tese: Schmitt postularia a noção de vontade ou o


próprio ato de decisão política como instância imanente constitutiva da validade da ordem. O
autor da resenha, porém, não analisa nem os pressupostos nem as consequências filosóficas da
escolha de Schmitt, por exemplo, sobre os antecedentes acerca da categoria da vontade como
fundamento ou as implicações pela escolha da noção de sujeito que decide. Desde então, a
consideração da unidade ou forma política é realizada a partir de uma decisão que não possui
um referencial transcendente tal como na Politische Theologie ou em Römischer
Katholizismus, mas algo que não vai além da imanência sem, todavia, se confundir com ela
como uma mera força normativa do fático4. A noção de uma vontade como fundamento da
unidade política – porém sem referência transcendente – serve em teoria política como tese
para realizar o mesmo movimento crítico de ruptura das simetrias já proposto nas reações às
teses kantianas (e neokantianas, sobretudo, em Kelsen) e seus dualismos, por exemplo:

Já citamos as fórmulas pelas quais Schmitt expressa sua opinião sobre a realidade da
unidade da constituição. A unidade da constituição é derivada de uma vontade
política, uma constituição que dá força [Gewalt] cujo poder [Macht] e autoridade são
capazes de tomar a decisão geral concreta sobre a natureza e a forma de sua própria
existência política. A vontade política encontrada em uma existência política é a

4
Sobre o argumento da “normative Kraft des Faktischen”, cf. JELLINEK, 1929, p. 337 e ss. A ruptura da
simetria entre transcendência e imanência na obra de Schmitt tem início através do diagnóstico do gap entre
estas esferas e, logo em seguida, a aceitação das teses de Hans Vaihinger, sobretudo, a paulatina influência do
argumento da finitude, tal como demonstramos no decorrer desta tese. Mesmo assim, Schmitt não reduz a
constituição da ordem a um fenômeno estritamente fático: essa ambiguidade não fora percebida por Voegelin
que o acusou, sem mais, de imanentista, mesmo com as ressalvas de Schmitt contra o imediatismo, fanatismo ou
determinação da ordem pela força, pois, não obstante sua perspectiva pragmática, haveria uma instância de
transcendência no interior das relações concretas.
29

unidade máxima, uma por trás da qual Schmitt não penetra em sua discussão de
princípios, o que significa que ele interrompe o avanço na construção da realidade
política por meio de seu próprio sistema. Assim, tão grande quanto o passo além da
teoria atual sobre a realidade do estado pode ser, o conceito de vontade de Schmitt,
no entanto, não atinge essencialmente nada mais do que a categoria de propósito de
Jellinek ou "deveria" metodologicamente puro de Kelsen. Isso ocorre porque
Schmitt continua comprometido a crença na necessidade de uma base de unidade
(VOEGELIN, 2001, p. 52).
Em busca de um fundamento da unidade da vontade, Schmitt encontra na análise
histórica de institutos políticos a figura do plebiscito: “Nesses plebiscitos, o povo é o portador
da força que estabelece a constituição e a vontade política do povo determina a forma da
existência política. Mas a ‘vontade’ unificada, a ‘decisão’, se dissolve em uma multiplicidade
rica e estruturada de vontades” (VL, p. 52). A despeito da direta alusão às teses de Rousseau,
o que pretendemos acentuar na leitura voegeliana de Schmitt é que as análises, volta e meia,
apontam para uma origem sempre marcada por multiplicidade e contextos concretos, mais do
que por normas ou fundamento unitário. Neste caso, a oposição à compreensão normativa de
formas do Estado ou do direito se mantém, por exemplo, na exposição dos teóricos mais
representativos do normativismo: Jellinek e Kelsen. A concepção de Estado que podemos
definir, provisoriamente, como políticas da transcendência ou metafísica política, é tratada por
Schmitt, conforme Voegelin, da seguinte maneira:

A realidade social ainda aparece (para Schmitt) sob a categoria pessoal da existência
política, que é então comparada à existência humana individual. Para Jellinek e
Kelsen (...), a chance de construir a realidade do estado foi removida porque estavam
satisfeitas com uma síntese da unidade do estado que transcendia a realidade - o
primeiro fez isso em termos de categoria de propósito, em o sentido de Sigwart; o
último, confiando na aplicação de métodos puros, no sentido neo-kantiano, para
criar o assunto (VOEGELIN, 2001, p. 51).
Do ponto de vista da teoria política, Schmitt sustenta uma concepção de direito
deliberadamente contrária às teses neokantianas e, sobretudo, às teses kelsenianas que partem
de uma racionalidade pura ou de metodologia e situações ideais que seriam compreendidas na
crítica à metafísica, por exemplo, como meras hipostasiações. Para Voegelin, Schmitt elabora
esta crítica ao escolher algo como uma vontade concreta para a tarefa da fundamentação da
ordem, mesmo que se enrede em complicações conceituais entre a multiplicidade do contexto
e a unidade do conceito, entre imanência e transcendência e com a própria noção de vontade.
Voegelin refere-se a isso quando expressa a rejeição de Schmitt em relação à transformação
de normas concretas em estruturas universais: “Ele considera inadmissível tentar transformar
regulamentos concretos na base de um puro sistema de normas puras, porque todos esses
regulamentos são estabelecidos em um determinado local, são efetivos na prática e, por essa
razão, devem ser descritos como positivos. Na opinião dele, a pura teoria do direito faz
30

exatamente essa tentativa” (VOEGELIN, 2001, p. 45). Isso aponta para uma concepção da
política e do Estado mais atenta com o contexto no qual a ação é tomada do que com
princípios ou critérios de justiça, pois:

se Schmitt libertar a esfera normativa do seu isolamento metodológico e reconectá-


la aos estratos subordinados da existência política onde empiricamente é encontrado,
pode não parecer muito importante se ele rejeita a pureza metodológica da teoria
normativa do direito, porque ele entendeu corretamente desde os primeiros
pressupostos até suas últimas conseqüências, ou se sua rejeição se baseia
inteiramente em um mal-entendido (VOEGELIN, 2001, p. 45).
Voegelin, dessa forma, reconhece que a crítica de Schmitt tem por objetivo vincular a esfera
normativa – que ele, evidentemente, não nega – às origens não normativas. Apesar disso, não
é pretensão schmittiana atingir as realizações (conceituais e metodológicas) da teoria pura do
direito, mas apenas questionar – e neste ponto se refere aos fundamentos – o tipo de ordem
política proposta, sobretudo, a crítica à hipostasiação que a teoria pura impõe à compreensão
da ordem normativa. Para Voegelin (2001, p. 46), “Schmitt claramente deseja desenvolver
uma teoria política válida e sistemática, mas a tentativa parece-me não ter conseguido
completamente”. Sem analisar os motivos para o malogro da teoria política a partir de uma
teoria da constituição e a rejeição de uma teoria do Estado, pretendemos nos deter em qual
tipo de validade Schmitt propõe. Antes, porém, prosseguimos acompanhando a análise de
Voegelin.
Segundo Voegelin, Schmitt acusa o positivismo de desenvolver uma instância pura
de normas que, apesar constituir-se como sistema completo e sem lacunas, coerente e pleno,
estabelece com a prática uma relação de dependência: a experiência revela-se como um dado
ineliminável na estrutura do sistema normativo puro ou, como Voegelin descreve, “Dizer que
uma constituição é válida não por causa de sua correção normativa, mas por sua positividade
e que, no entanto, estabelece um sistema ou uma ordem de normas puras como uma norma
pura, é uma confusão cheia de contradições” (VOEGELIN, 2001, p. 46). A análise de
Voegelin aponta, assim, uma contradição no positivismo do mesmo tipo daquela apontada em
Schmitt: se este realiza uma confusão entre níveis conceitual e histórico, o positivismo comete
algo similar entre efetividade e normatividade, mostrando-se aquela fundamental, apesar de
não tratada como elemento da ordem jurídica. Assim, mesmo de maneira crítica, o autor
ratifica a análise schmittiana contra a metodologia purista: esta dependência da prática (da
existência política concreta) demonstra o elemento imanentista que Schmitt assume como
uma característica da ordem e torna mais complexa a relação entre faticidade e racionalidade,
ou seja, a pergunta pelo papel da ação/vontade e da razão/norma que, todavia, Voegelin não
explora. É possível, inclusive, afirmar que a estratégia schmittiana de crítica ao positivismo
31

provoca uma espécie de pragmatic turn na teoria política – algo similar em relação à teoria da
linguagem na passagem das considerações acerca do significado como análise semântica de
sentenças para a análise do significado como prática social. O interesse que possuímos na
resenha de Voegelin é, precisamente, na excelente reconstrução do texto schmittiano que,
além das críticas precisas, reconhece em Schmitt esta postura pragmática. Ao invés de
assumir uma norma fundamental como um transcendental (abstrato), ou melhor, como um
externo (universal) que constitui o interno (particular), o texto de Schmitt em questão é
caracterizado por um pensamento cuja validade não recorre a dispositivos metafísicos, pois
rejeita a garantia de unidade da ordem apenas na instância normativa, ou seja, não considera a
unidade da ordem a partir da unidade do conceito, nem assume a simetria entre imanência e
transcendência como solução fundadora. A proposta de Schmitt, conforme Voegelin, é
atribuir estatuto ontológico de validade ao fático enquanto vontade concreta, como no trecho,
“A solução de Schmitt era atribuir o status ontológico à validade” (VOEGELIN, 2001, p. 47),
mais especificamente, reforçando seu aspecto pragmático (existencial) na base de uma
vontade política. Afinal, o mesmo procedimento que Hegel e, sobretudo, Schopenhauer e
Nietzsche fazem contra o kantismo e suas consequências numa tentativa, mesmo que anti-
metafísica, de recuperar a unidade perdida5.
Este diagnóstico de Voegelin é corroborado em diversos momentos do texto. Por
exemplo, ao elencar alguns trechos nos quais Schmitt levanta o argumento da vontade como
fundamento da ordem ao invés de uma norma, o comentador expõe um argumento que
exemplifica e modifica a noção de decisão em comparação com os textos anteriores ao
enfatizar o elemento da “vontade” ou do “existencial”6, tais como:

Algumas fórmulas: "na verdade, uma constituição é válida porque ela provém de um
poder de constituição e é estabelecida pela sua vontade" (9); "Considerar uma série
de regulamentos individuais como lei constitucional e tratá-la como uma ordem
sistemática e unificada é arbitrária se essa unidade não for derivada de uma vontade
unificada preconizada" (10); "A vontade do povo alemão, portanto, algo existencial,
estabelece ... a unidade política e constitucional" (10); "A unidade da constituição
não está na própria constituição, mas na unidade política cuja forma particular de
existência se determina através do ato de criar a constituição" (22); "A constituição é
válida em virtude da vontade existencial de quem a criou. Cada tipo de norma legal
padronizada, incluindo a norma padronizada do direito constitucional, assume a
existência de tal vontade "(22); "O poder de constituição é vontade política, isto
significa um ser político concreto" (76); "A palavra, vontade, descreve - em
contraste com a dependência de uma correção normativa ou abstrata - o caráter
essencialmente existencial do solo de validade" (76); "A palavra denota, em
contraste com meros padrões, uma grandeza ontológica como a origem do dever. A

5
Sobre a reação ao finitismo provocado pela teoria kantiana, cf. LOPARIC, 2009.
6
Basta considerar que em Politische Theologie a decisão está vinculada à realização da forma política, tornando-
se uma decisão pela ordem e não algo simplesmente imanente. Sobre isso, cf. Cap. 2 Políticas da
Transcendência.
32

vontade está existencialmente à mão, seu poder ou autoridade reside no seu ser
(VOEGELIN, 2001, p. 47).
Em suma, Voegelin arremata a tendência ao pragmatismo de Schmitt, afirmando que:
“A validade e a unidade da lei não devem ser criadas por um ato sintetizador de um sujeito
transcendental da cognição, mas sim pela síntese daqueles que implementam a realidade do
estado” (VOEGELIN, 2001, p. 47), ou seja, ao invés de pressupor um sujeito universal ou
uma estrutura lógica como produtora da ordem ou da síntese como faz Kant ou Kelsen, o
transcendental em Schmitt é considerado do ponto de vista histórico, ou numa palavra,
pragmático ou imanente, pois relativo à forma da existência concreta. Nas palavras do
comentador, mais uma vez: “Schmitt procurou um princípio unificador da constituição, mas a
unidade da constituição, juntamente com o conteúdo adicional da lei, não pode de modo
algum derivar do conteúdo preexistente de uma norma” (VOEGELIN, 2001, p. 48). Assim,
para Voegelin, ao procurar uma unidade para a constituição da ordem política, Schmitt apela
para a validade de alguma instância concreta ao invés de pressupor uma fundamentação a
priori, uma vez que para que a validade da ordem jurídica designa apenas que algo vale,
ressaltando o aspecto da vontade concreta e não seu ser como algo ontológica e
independentemente da vontade, ou melhor, a validade não implica em alguma existência além
da vontade soberana que legitima a ordem, apesar de, claramente, ainda guardar alguma
relação entre imanência e transcendência, ou seja, da representação em Verfassungslehre.
Voegelin afirma algo semelhante acerca da unidade política e do sujeito da decisão política
que determina o tipo e a forma da sua existência. A questão neste ponto é que a decisão se
mostra mais como algo declaratório (de um fato bruto ou concreto já existente) e não como
uma decisão constitutiva, ou seja, reforça a primazia da pluralidade e da contingência na
determinação da ordem, pois, para Schmitt, uma constituição é legítima quando é reconhecida
não apenas como a condição fática, mas também como ordem de direito, quando o poder e a
autoridade do poder que constituiu são reconhecidos por sua decisão. Assim, Voegelin é
bastante atento às implicações do realismo político schmittiano em Verfassungslehre: “o
poder e a autoridade da força que estabelece a constituição é reconhecido quando a unidade
política existe e o sujeito da força que estabelece a constituição pode determinar o tipo e a
forma de sua existência” (VOEGELIN, 2001, p. 50). Além disso, Voegelin reforça a
compreensão pragmatista de Schmitt, desta vez, demonstrando a filiação à noção de validade
sociológica de Weber:

Quanto à palavra validade [Gelten], pode-se dar-lhe o significado sociológico


específico que Max Weber usou frequentemente de acordo com a qual uma norma é
"válida" se for seguida. Este significado reflete o fato social de que as pessoas
33

seguem as normas que se destinam a ser normas de conduta pessoal e que outras
pessoas, de fato, se conduzem de acordo com as normas. O julgamento quanto à
validade neste sentido pode ser feito pelo teórico, mas também pelas pessoas que
vivem dentro da própria realidade social; assim pode ser que uma situação
prolongada de insatisfação com as normas e com aqueles que as estabelecem não
alcance o limiar da rebelião porque cada uma das pessoas dissatissei julga por si
mesmo que todas as demais seguirão as normas e que, como na individual,
enfrentaria consequências desagradáveis no caso de rebelião. Os julgamentos do
indivíduo que se segue à norma sobre se realmente seguem as normas, a "validade"
das normas, podem motivar a conduta individual e assim tornar-se constitutivo da
própria validade. Encontramos este conceito de validade "sociológico" nas
definições de Schmitt do estado (VOEGELIN, 2001, p. 48).
Apesar das análises críticas do jurista, Voegelin percebe que Schmitt ainda é
tributário dos tradicionais problemas em teoria política ao utilizar sem justificação prévia
termos da ciência política e da teoria do direito que limitariam suas teses, mesmo que os
temas da existência e da decisão concedam alguma peculiaridade numa literatura dominada
pela consideração estritamente normativa. Assim, ao assumir o complexo de problemas
tradicionais em teoria política que as categorias de unidade, vontade, poder, suporte (Träger)
de decisão implicam, Schmitt os teria reelaborado através de conceitos não triviais para a
teoria do direito, tais como, existência e exceção. Todavia, a categoria da vontade continua
sendo central, mesmo que ora remeta à discussão jurídica, ora remeta à política tal como
propõe Schmitt. Neste ponto, Voegelin detecta “o aspecto duplo do pensamento de Schmitt,
que combina suas próprias inovações com as formas tradicionais e as aplica ao problema
sistemático anterior do dualismo do ‘é’ e do ‘dever’, bem como da compreensão da esfera da
existência política” (VOEGELIN, 2001, p. 54). O que Voegelin analisa, porém, é o tipo e a
forma que a existência política pode assumir, mais especificamente, a forma da existência
política a partir, nos termos do comentador, da “bipolaridade entre representação e
identidade”. Voegelin acredita que esta bipolaridade é a chave para a compreensão da unidade
política em Schmitt, que se refere, em último caso, à questão da mediação ou da imediação da
ação política. Apesar de considerar que os princípios devem ser considerados conjuntamente,
havendo assim uma flutuação entre eles, os dois seriam exemplificados em intensidades
máximas, por um extremo, na monarquia absoluta (princípio da representação) até a rejeição
da mediação ou da representação como em Rousseau ou em democracias radicais (princípio
da identidade). Com efeito, o comentador avalia sobre a impossibilidade de realização pura
dessas formas: a permanência de um resquício de representação, bem como a impossibilidade
de alcançar a identidade ou homogeneidade.
Além disso, há algo ainda mais contraditório que pode ser a chave para compreender
a disputa acerca do termo “positivo” tal como Schmitt se apropria e Voegelin não percebe
com clareza. Quando discute sobre a unidade politica ser superior ou transcendente ao
34

conjunto de pessoas reunidas e não ser um dado bruto, apesar de fático, ou melhor, contextual
ou situacional; Schmitt se distancia de qualquer abordagem da unidade como uma estrutura
racional ou baseada em uma mera empiria ou fato anterior, pois a considera mais como um
resultado institucional das ações das pessoas, como uma transcendência da imanência, como
desenvolvemos nesta tese7. Apesar disso, Voegelin percebe algo similar ao considerar que:

Mas por mais que os cidadãos ativos possam ser agregados, não constituem,
portanto, uma totalidade ou estabelecem a unidade política do povo. Em vez disso,
eles representam uma unidade política que transcende a assembléia daqueles
reunidos espacialmente e transcendendo também o momento temporal da assembléia
(...) E ainda mais claramente do que em exemplos de ação democrática tão sem
mediação, nas democracias modernas elementos representativos (partidos,
parlamento, etc.) são inseridos entre as pessoas como governante e as pessoas como
governadas. E aqui enfrentamos um problema importante nos princípios de que
Schmitt infelizmente não funcionou: um estado não é fundamentalmente um dado,
mas está sempre presente apenas nas ações das pessoas (VOEGELIN, 2001, p. 55)8.
Neste contexto da crítica voegelinana, rebatemos com a compreensão de que esta
transcendência institucional em Schmitt seria uma transcendência da imanência, ou seja, tem
o mesmo caráter de transcendência que uma metáfora tem em relação ao seu referente. Apesar
disso, Voegelin afirma com razão que Schmitt não trata devidamente do tema (sobre a
natureza da instituição do Estado/direito), uma vez que transita inadvertidamente entre as
considerações positivistas (resquícios de um normativismo impregnado nos textos da década
de 1910 sobre a decisão) e relativas ao político como existência ou faticidade (um turn
pragmático, sobretudo, em Begriff des Politischen que passa a localizar nas relações de
conflito a origem do político e, a partir daí, da política). A resposta à Voegelin viria alguns
anos mais tarde com o pensamento institucionalista da década de 1930 e uma retrospectiva
crítica da própria obra.
Nesta medida, a unidade política não é meramente a assembleia dos cidadãos
reunidos, sua infinidade ou multiplicidade agrupada. Voegelin analisa a dificuldade que tem
Schmitt ao considerar a noção de unidade política a partir de uma perspectiva imanentista, isto
é, sem o apelo à forma transcendente. Por exemplo, quando o resenhista sustenta:

A existência política é reforçada por ações políticas. Em cada ponto de uma


organização política, estamos igualmente próximos e igualmente distantes dessa
existência. Nunca temos toda a existência expressa em um ato político, porque o ato

7
Sobre o argumento da transcendência da imanência, cf. Cap. 3.
8
Voegelin faz uma importante distinção entre a ação dos indivíduos, mesmo considerando-se como uma
unidade, e a noção de unidade política: esta teria uma transcendência em relação às partes imanentes, mantendo
assim uma distinção entre transcendência e imanência ou forma e experiência. Schmitt assume esta distinção até
meados da década de 1920, porém na Verfassungslehre e, sobretudo, no Der Begriff des Politischen, a noção de
mediação sofre alterações. Por isso, afirmamos que Schmitt propõe uma ruptura desta simetria ao contrário do
que Voegelin sustenta ao afirmar que Schmitt não teria pensado isso, ou seja, a diferença que determina que “um
estado não é fundamentalmente um dado, mas está sempre presente apenas nas ações das pessoas” (VOEGELIN,
2001, p. 55).
35

é sempre um elemento constitutivo do todo. Por conseguinte, é uma ilusão acreditar


que podemos chegar a uma largura de cabelo mais próxima da existência como tal
por meio de atos coletivos específicos em que um imenso número de atos de muitas
pessoas são reunidos ou que um povo é "mais idêntico" a si mesmo (perdoe o
comparativo injusto) em uma forma política do que em outro. Nós lidamos aqui, não
com uma mistura de princípios formais, mas sim com o problema da doação de fatos
políticos em geral. E eu preferiria remover esses componentes do significado dos
conceitos schmittanos da identidade e da representação, e falar do fato da existência
política realizada através de atos e dos princípios da existência que eles mesmos
transcendem a existência política (VOEGELIN, 2001, p. 56).
A questão mostra-se intrincada em, pelo menos, dois pontos: as noções de ação
política e de existência política. Esta se refere ao conjunto de atos, como um sedimento das
ações que constituem contextos de ação e instituições (o que Schmitt denomina “existência
política”); já aquela, de maior interesse para nossas investigações, refere-se ao ato político,
elemento pragmático ou contingente da ação política que condiciona desde Aristóteles a
concepção de práxis. Neste contexto, a transcendência que surge para Voegelin mostra-se
problemática, mais do que uma relação entre quantidade e qualidade ou potestas e auctoritas.
Em resposta, apenas parcial, poderíamos propor que a ação política e o contexto da ação
geram princípios ou formas políticas transcendentes, porém não abstratas: a transcendência
não se desloca da realidade, mas mostra-se apenas como diferença ou elemento hegemônico
ou conceitual da ação política, apontando alguma solução para o problema da constituição (ou
da validade) de fatos políticos. Voegelin, às apalpadelas, quase chega ao ponto que nos
interessa quando percebe que a multiplicidade explica as variações da existência política,
como múltiplos jogos de linguagem: “A diversidade das formas do estado deve lidar com o
fato de que, em cada unidade política, dois princípios formativos entram em jogo: identidade
e representação” (VOEGELIN, 2001, p. 54), propondo assim a análise da relação entre
representação e identidade como mais fundamental. No decorrer desta pesquisa, investigamos
a relação entre imanência e transcendência, especificamente, a ruptura desta simetria como
mais fundamental para compreender Schmitt.
Neste momento, portanto, já está bem explícita a questão de fundo que a relação (ou
a ruptura) entre imanência e transcendência desempenha. Na perspectiva de Voegelin, a
relação torna-se problemática em Schmitt por levar em conta o “fact of political existence”,
isto é, uma consideração empírica da qual não seria possível retirar qualquer critério ou
princípio para a ação. Segundo Voegelin, ao apostar na noção de fato da existência política
(concreta) realizado através de atos, ao mesmo tempo em que assume princípios de existência
advindos da prática, sustenta a transcendência da existência política, configurando uma
contradição no jurista. Voegelin mais uma vez acerta o diagnóstico, mas a leitura é
direcionada para a discussão sobre a relação entre identidade e representação e, de maneira
36

apropriada, para a teoria da democracia: “Além da identidade, que é expressamente enfatizada


como o princípio da democracia, o conceito de homogeneidade de todas as pessoas
envolvidas na vida do estado também é essencial. A "igualdade substancial" é a condição
prévia essencial da democracia” (VOEGELIN, 2001, p. 61). No decorrer do texto, Voegelin
observa que Schmitt invoca a noção de “igualdade substancial” ou “homogeneidade” como
determinante da ideia de democracia. Apesar de ambígua e, certamente, pouco elaborada pelo
jurista, Voegelin consegue entrever a possibilidade de definição de democracia através da
“similaridade” de forma de vida que pode ser compreendido como um contexto ou horizonte
de sentido a partir do qual a ação política é justificada:

Desta forma, ele dá o conceito de igualdade democrática com um conteúdo


significativo, que é tão importante para a teoria do estado quanto útil. Schmitt
enfatiza expressamente o novo conteúdo do conceito de igualdade quando diz: "com
a palavra" identidade ", a existência da unidade política do povo é enfatizada em
contraste com uma igualdade normativa, esquemática ou ficcional" (235). Ele
poderia ter ido mais longe: a identidade é contrastada com todas as diferenças nas
qualidades das personalidades. A democracia pressupõe, em termos gerais e em
todos os detalhes de sua existência política, pessoas que são internamente similares
(VOEGELIN, 2001, p. 61-62)9.
É desnecessário argumentar como o argumento schmittiano possui inúmeras lacunas
e serve mais como uma intuição acerca do conceito de democracia do que uma teoria
sistematicamente elaborada. No entanto, a leitura de Voegelin traz o elemento principal sem
equívocos: aquilo que determina a democracia para Schmitt é algo que se refere à forma de
vida, ao empírico, em uma palavra, ao pragmático. Esta ênfase no mundo social e da política
como instituição a partir da vontade rompe o dualismo estabelecido desde cedo na teoria
política e retoma a tradição realista (um ato como fundação da ordem), dotando-a de uma
concepção de democracia, apesar de incipiente e ambígua, útil para desenvolvimentos
posteriores como o que pretendemos. Em outro trecho, Voegelin reitera sua (e nossa) leitura10:

9
Evidentemente, numa interpretação ortodoxa de Schmitt, igualdade não seria meramente um fato nem uma
norma: enquanto o povo se configura como uma multidão plural e contraditória, a unidade política não seria algo
advinda do povo ou da imanência como mero dado natural ou empírico, mas sim através de um processo de
representação da unidade política, ou seja, a decisão pela ordem articula representação e constituição do povo
sempre através da unidade política.
10
Sobre a relação (e as diferenças) de Schmitt com o pensamento católico, bem como a influência sobre
Voegelin, vale a pena analisar o artigo de GONTIER, 2013: “Carl Schmitt and Eric Voegelin therefore represent
two rival figures in the contemporary (post-Hegelian) theologico-political order, which has abandoned the notion
of the state as a historical and worldly incarnation of the eternal kingdom. This scission of the eschatological and
historical occurs in both Schmitt and Voegelin. However, it leads to divergent ethical conceptions. For Schmitt,
the fundamental political virtue is the virtue of patience; against the figure of the Antichrist, who in Schmitt
represents the impatience of the liberal to establish the hereafter on earth, there stands that of the katechon,
keeping political society at a distance from the eschatological which will always remain unattainable form na
kind. In short, the bliss of the elect is not the concern of politics — which must be refocused on the reality of
man kind in this world. At this point, the profession of Christian Faith works in tandem with the defense of
Realpolitik. For Voegelin, on the other hand, the virtue of man (and of the citizen) remains structured by the eros
for the principle. It is certain that this eros cannot be achieved on the earth; the principle is experienced as
37

É verdade que o problema da construção do mundo social, que é melhor abordado


pelo uso de conceitos de tipo formal, é misturado com a determinação de
características formais (como, por exemplo, Schmitt fez tão bem nas passagens
citadas sobre a dissolução gradual das formas e os poderes da formação), mas esta é
posteriormente tratada no essencial por Schmitt. A homogeneidade corresponde à
amorfa democrática no sentido de que as pessoas que sustentam o Estado são, de
fato, de natureza semelhante e semelhantes nas sensibilidades em um ponto
essencial e decisivo - por exemplo, na sua comunidade de pontos de vista religiosos
ou na experiência de pertencer a uma organização (228-34). Uma casuística de tipos
ainda enfrentaria grandes tarefas aqui, tarefas que, sem dúvida, ficam fora do
domínio da teoria constitucional de Schmitt (VOEGELIN, 2001, p. 62).
Não seria esta interpretação de Voegelin um atestado de que Schmitt,
definitivamente, considera a democracia como prática social, ou melhor, seu próprio conceito
refere-se à relação imanente das partes e não com uma estrutura normativa, critérios ou de
valores fora da ação? Do nosso ponto de vista, há uma demonstração de que para Schmitt o
princípio ou critério da democracia está em um dado empírico ou relativo a fatos sociais e não
a alguma estrutura transcendental, por mais problemática que tal tese seja. Arremata
Voegelin, numa passagem lúcida:

Quando a democracia é caracterizada em termos da identidade de governante e


governada, a ênfase é direcionada para a sua gênese liberal, destruindo a forma.
Schmitt atribui a ideia de liberdade ao liberalismo e a idéia de igualdade somente à
democracia. Agora, a idéia de liberdade é de fato uma idéia de luta, que é
representada no século XIX pelo liberalismo. Quando a democracia é atualizada, no
entanto, ela não exige mais a idéia de luta. Pelo contrário, como Schmitt demonstra
muito bem, a democracia se distingue pela exclusão e supressão radical daqueles
que não estão em condições de agrupar (VOEGELIN, 2001, p. 62).
A esta altura, já está em jogo o conceito de democracia liberal criticado por Schmitt e
sua tese de que haveria uma contradição entre as noções de democracia e liberalismo.
Voegelin expõe a crítica à noção de liberdade do liberalismo e reconstroi a noção de
democracia como organização da exclusão, isto é, como uma imunização contra o risco do
externo, mesmo que este externo seja considerado constitutivo da ordem por oposição e, por
isso, imanente. Daí a tese da contiguidade entre democracia e exceção que, no entanto, é posta
de forma enviesada por autores contemporâneos: ora argumentando a postura totalitária de
Schmitt, ora revelando um pretenso dogmatismo do político11.
O expediente de uma teoria da constituição provendo conceitos como se fosse uma
teoria do Estado não passa despercebida por Voegelin: o Estado como forma da unidade
política entre os princípios de identidade e representação e a Constituição como algo concreto
subjacente à forma política a partir da qual ganha existência. Esta aparente confusão entre

existing beyond the world and history, while remaining the ultimate objective of all human will” (GONTIER,
2013, p. 41 ).
11
Recentemente, Giorgio Agamben retoma a tese da contiguidade entre democracia e exceção não apenas no
âmbito conceitual, mas também por uma refinada análise histórica.
38

historiador/politólogo e teórico do Estado/analista conceitual recebe em Voegelin, como já


exposto, uma abordagem caridosa: enquanto outros interpretam o interesse de Schmitt nas
configurações fáticas do político como mero “ocasionalismo”, pois construiria conceitos ao
sabor dos eventos em questão, Voegelin sustenta que “Schmitt não aborda os problemas do
estado como um observador externo, mas é ele próprio ativo no estado como um criador de
idéias políticas. Seus juízos científicos não são as afirmações de um assunto neo-kantiano de
cognição que objetivamente transcende seu assunto, mas sim pesquisas do significado de uma
perspectiva com a realidade política” (VOEGELIN, 2001, p. 63). Dessa forma, não é possível
pensar sem contradições ou interesses: uma autêntica teoria realista é esboçada por esta via
que considera a faticidade da forma de vida e se recusa a tratar, parafraseando Espinosa, uma
natureza humana que não existe em parte alguma. Ou ainda, afirmando um diagnóstico da
postura pragmática ou finitista schmittiana: “Ele toma a constituição como está e trabalha
dentro de um campo de idéias em que ele, tanto quanto a constituição, é fechado. Ele nunca
deixa esse reino, mas sim funciona dentro do horizonte dessas idéias típicas” (VOEGELIN,
2001, p. 63). A ênfase que Voegelin dá na última seção da sua resenha é acerca da adequação
conceitual entre sistema de constituição e ideias políticas e sentido concreto, imanente.
Quando afirma,

Aqueles que se movem dentro do círculo de idéias das constituições modernas do


tipo de Weimar apresentam conceitos como: constituição, direito constitucional,
poder de constituição, portador do poder de constituição, continuidade do estado e
constituição, validade da constituição, constitucional mudanças, violação
constitucional, e assim por diante. E, se isso pode ser feito, é sem dúvida uma tarefa
de extraordinária importância para ordenar este mundo conceitual de acordo com seu
sentido imanente (VOEGELIN, 2001, p. 63).
A proposta de Schmitt, segundo a interpretação de Voegelin, é considerar a ordem em
conformidade com as relações concretas existentes: esta postura pode ser denominada de
realismo político, ou melhor, conforme a interpretação que propomos aqui, de finitismo.
Além disso, Voegelin elogia a capacidade de Schmitt de sincronizar os conceitos
históricos e a ideias políticas. Esta habilidade é reconhecida em autores como Maquiavel e
Guicciardini, Espinosa e Weber que enxergam, em geral, mais história do que normas, mais
finito do que infinito, apostando, cada um a seu modo, na contingência e imanência ao invés
de normatividades e, sobretudo, na ininstitucionalização do político, tema que voltaremos a
tratar. Assim, segundo Voegelin,

apenas um estudioso assumiu a tarefa, um que é capaz de examinar todo o


desenvolvimento histórico do sistema de idéias e pode alocar os conceitos ao seu
devido lugar com base em seu conhecimento. Schmitt executou a tarefa de forma
brilhante, e grandes partes de seu trabalho - em particular, as partes da interpretação
39

histórica - são as melhores que foram escritas sobre constituições desde Lorenz von
Stein (VOEGELIN, 2001, p. 63-64).
Neste contexto, ao invés de haver uma confusão entre conceito e realidade, a metodologia
utilizada por Schmitt é bastante consequente do ponto de vista do realismo ou, como
denominamos, de um finitismo político. Apesar disso, a construção do conceito de
constituição de maneira imanente, isto é, não referido a leis escritas nem a princípios formais,
é peculiar na tradição jurídica e, por isso mesmo, as incompreensões quanto à localização da
base ou fundamento do direito:

É sem dúvida possível tratar o problema jurisprudencial da constituição de forma


imanente - por exemplo, interpretar o conceito de constituição como um conceito
que trata dos direitos e ver nele nada além de um instrumento jurídico. Deste ponto
de vista, entenderemos por uma mudança da constituição (para aproveitar apenas
esse problema) cada alteração do conteúdo das leis constitucionais formais, e uma
não excluirá o conteúdo da capacidade de alteração. Este ponto de vista legalmente
imanente é completamente justificável em termos de materiais e o conceito da
constituição que se segue terá consequências políticas importantes na sua aplicação
prática (VOEGELIN, 2001, p. 64).
As consequências da teoria de Schmitt são delimitadas por Voegelin, principalmente,
em relação à alteração da compreensão do direito, mais especificamente, uma transformação
do conceito de Constituição. Em um trecho significativo, apesar de extenso, ele afirma:

Deste ponto de vista, entenderemos por uma mudança da constituição (para


aproveitar apenas esse problema) cada alteração do conteúdo das leis constitucionais
formais, e uma não excluirá o conteúdo da capacidade de alteração. Este ponto de
vista legalmente imanente é completamente justificável em termos de materiais, e o
conceito da constituição que dele decorre terá consequências políticas importantes
na sua aplicação prática. Se, por outro lado, se aceita o significado que Schmitt
concede ao conceito de constituição em seu sistema de idéias, então se trata de uma
interpretação totalmente diferente das condições de emenda (que já foram abordadas
acima) e totalmente outras implicações políticas. Tais conseqüências políticas
práticas de uma nova definição do mundo das idéias constitucionais são inevitáveis,
quando a constituição passou a significar uma decisão política - uma por trás das leis
constitucionais - feita pelo portador da constituição que dá poder (VOEGELIN,
2001, p. 64).
A questão é que este conceito de Constituição não se apresenta como uma categoria da razão
pura, pelo contrário: é extraída de práticas e contexto social bastante específico, no caso em
questão, da República de Weimar. Assim, Voegelin reconhece que Schmitt elabora seus
conceitos a partir da experiência weimariana e, a partir dela, forja categorias do direito
constitucional. Todavia, por se tratar de uma crítica prosaica, segundo o resenhista, impediria
o jurista de levantar qualquer pretensão de validade universal, uma vez que, inexistente seja
neutralidade seja imparcialidade, não haveria sequer caráter científico. Voegelin contesta esta
leitura ao afirmar que “Por esta razão, é impróprio criticar Schmitt, como ocasionalmente foi
feito, por sua atitude como observador dentro da realidade política e condenar essa atitude
40

como politicamente contaminada e, portanto, como não científica” (VOEGELIN, 2001, p.


64). E segue mais adiante:

Aquele que se preocupa com os problemas do estado geralmente o faz porque se


interessa por eles e, se a opinião política do próprio pensador deve ser transparente
nos resultados do trabalho politicamente interessado, pode ser indesejável, mas não
é um desastre se O ganho na visão pertinente vale o esforço. E isso eles estão no
caso de Schmitt, em uma medida totalmente extraordinária. Se alguma vez seria
insignificante à luz de uma conquista tão grande fazer um barulho sobre as opiniões
políticas visíveis do autor, isso seria uma instância disso. O mundo de idéias
políticas de Schmitt - cujo objetivo é efetivamente ter consequências políticas - foi
construído para um instrumento constitucional atualmente válido (VOEGELIN,
2001, p. 64).
Notamos, mais uma vez, que na própria estrutura conceitual schmittiana o apelo ao
argumento da finitude é determinante, isto é, ao invés de acusar Schmitt de uma confusão
entre experiência política e categorias políticas, República de Weimar e Direito
Constitucional, o que nos deparamos é bem mais do que uma simples confusão entre teoria e
prática, mas uma deliberada tentativa de repensar a relação entre imanência e transcendência,
como Voegelin percebe: “Aparentemente, ele não consegue esclarecer sua própria posição em
relação à realidade do estado e considera seu próprio trabalho como a construção de um
sistema político de idéias com o objetivo de uma investigação interpretativa da constituição de
Weimar” (VOEGELIN, 2001, p. 65). E arremata acerca da confusão:

Ao longo de todo o livro, ele mantém o tom de que o mundo das idéias é ele próprio
política, mas ele faz declarações sobre a realidade do estado como se os conceitos
politicamente imanentes fossem ao mesmo tempo cientificamente transcendentes. O
ponto de vista do pensador politicamente criativo e do observador de fora da política
está constantemente confuso, e dessa confusão surge o tom categórico ao qual
chamamos atenção acima (VOEGELIN, 2001, p. 65).
Esta contradição é apresentada como um ponto falho na argumentação schmittiana. Mais
precisamente, Voegelin (2001, p. 65-66) analisa a confusão de níveis da argumentação
schmittiana como a tentativa do jurista de compreender enquanto unidade a realidade
institucional do direito e da política que não existe enquanto fato bruto, mas apenas como
princípio ou ideias. Na leitura que elaboramos da interpretação de Voegelin, apesar da
confusão bem detectada, desenvolvemos uma interpretação que, ao invés de apresentar uma
falha, apostamos na possibilidade de Schmitt ter percebido a evidente contradição e, não
obstante, percebeu a contradição entre imanência da realidade política e transcendência dos
conceitos político-jurídicos em questão, formulando a seguinte hipótese: a realidade (a partir
de onde se dá a decisão) seria (como se fosse) portadora das ideias, ou melhor, a partir dela
percebe-se que forma e decisão funcionam como base ou fundamento (não um fundamento
último, mas o único fundamento possível) pragmático: uma instância in re e não ante rem. Ao
tentar elaborar uma teoria da constituição, ele se afasta da teoria do Estado e das
41

consequências normativas e percebe que noções políticas são tiradas não apenas da história,
mas do contexto sócio-prático.
Sem entrar na análise de mérito da resenha de Voegelin, pode-se afimar que, mesmo
apontando um equívoco na argumentação schmittiana, o intéprete destaca a tentativa do
jurista de propor uma política pautada na experiência, não apenas histórica, mas como uma
ação que se dá apenas num contexto e, dessa forma, definida em termos contingentes. A
reflexão sobre a ditadura leva a isso, mas também as teses sobre a distinção entre o político e
a política publicadas no mesmo período da Verfassungslehre. O resenhista destaca este
momento da finitude no pensamento de Schmitt e a partir dele elaboramos nosso ponto de
partida como chave de leitura do jurista. O que Schmitt realiza é, de certo modo, passar do
imanente para o universal, dos fatos às normas, mas antes de pensar qual a natureza deste
universal (necessariamente histórico), é preciso levar a sério sua proposta pragmática. Mesmo
que Voegelin discorde do procedimento adotado por Schmitt, por exemplo, quando afirma:

Eles são atualizados por nenhuma perspectiva, mas sim são eles mesmos contidos
como os conteúdos da crença e como motivos políticos dentro da realidade política.
Eles próprios são elementos constituintes da realidade do estado. Na minha opinião,
seria necessário construir de forma correta e sistemática uma teoria constitucional
dessa maneira: primeiro transcendentalmente, como em nossas análises. Aqui, os
problemas da estrutura do estado são explicados para que a posição das idéias
políticas como fonte racional da unidade conceitual seja esclarecida. Em particular,
não deve haver dúvida de que as idéias políticas não são declarações sobre a
realidade, de modo que (como faz Schmitt) pode-se trabalhar de maneira
ininterrupta no mundo constitucional das ideias. Schmitt, acredito, não alcançou a
maior clareza sobre este ponto (VOEGELIN, 2001, p. 65).
No entanto, a leitura que Voegelin elabora se tornou, em parte, basilar para todas as
subsequentes. Por isso, pretendemos retomá-la em sentido diverso e expandir, potencializar
seus argumentos, sobretudo, em relação à acusação de imanentismo, tal como no trecho “seu
forte senso da realidade das idéias políticas levou-o a destruir o tratamento tradicional dos
problemas do estado, um tratamento que se dissolveu na teoria legal e reabrir uma perspectiva
sobre a totalidade da experiência do estado” (VOEGELIN, 2001, p. 65). A questão que
pretendemos analisar é, precisamente, o elemento pragmático do pensamento schmittiano,
uma estrutura conceitual que um intérprete atento como Voegelin percebe plenamente: “aqui
são explicados os problemas da estrutura do estado para que a posição das idéias políticas
como fonte racional da unidade conceitual seja esclarecida. Em particular, não deve haver
dúvida de que as idéias políticas não são declarações sobre a realidade, de modo que (como
faz Schmitt) pode-se então trabalhar pelo mundo constitucional das idéias de forma
ininterrupta” (VOEGELIN, 2011, p. 66). Na leitura de Voegelin, os termos “transcendente” e
“imanente” se referem, respectivamente, à fundamentação do ser e à abordagem de
42

imanentização da realidade transcendente, ou seja, ao caráter fenomenológico ou científico da


esfera da realidade humana sem uma posição transcendente localizada além ou aquém de
qualquer funcionalidade política.
A recepção dos textos de Schmitt parece ser determinante nos temas e argumentos de
Voegelin, sobretudo, o par categorial imanência-transcendência (precisamente, as categorias
que apostamos serem co-extensivas) e a crítica da secularização e da modernidade. Apesar
disso, a questão central parece ser não apenas sobre o estatuto do Estado e a oposição entre
ordem e desordem, mas também entre teoria e prática política, alías, algo que o comentador
percebe com sagacidade no texto schmittiano.

1.2 Leo Strauss e Carl Schmitt: um diálogo entre conservadores? [1932]

No texto Anmerkungen zu Carl Schmitt, Der Begriff des Politischen (Notas sobre “O
conceito do político” de Carl Schmitt) de 193212, Leo Strauss assume, por um lado, o ponto
de partida do jurista alemão quanto às críticas ao liberalismo; por outro, elabora comentários
acerca dos motivos, limites e contradições do texto schmittiano13. Segundo Strauss, o texto
schmittiano seria um libelo moral contra a despolitização provocada pelo liberalismo. No
entanto, ao mesmo tempo em que elogia a estratégia não liberal e a crítica à técnica, Strauss
sustenta que Schmitt possui uma argumentação contraditória: ao expor o fracasso da
hegemonia liberal e normativista, a descentralização do poder do Estado, a despolitização e
neutralização em marcha na modernidade, Schmitt aposta nas teses de Hobbes como um
“großen und wahrhaft systematischen politischen Denker” (BP, p. 64) e, por isso, cai em
contradição, pois elabora uma argumentação contra o liberalismo lançando mão do fundador
do liberalismo. Strauss levanta a tese de que a busca pelo político é, na verdade, uma tentativa

12
O texto de Leo Strauss consultado está presente na edição americana do livro de Carl Schmitt (The Concept of
the Political. Chicago: University of Chicago Press, 2007), com tradução de Georg Schwab da 2ª edição do Der
Begriff des Poltischen de 1932. Nesta edição, além do texto principal sobre o político, constam o The Age of
Neutralizations and Depoliticizations de 1929 [Das Zeitalter der Neutralisierung und Entpolitisierungen],
tradução de Matthias Konzen e John McCormick, e os referidos comentários de Strauss, traduzidos por J. Harvey
Lomaz como Notes on Carl Schmitt, The Concept of the Political, publicado originalmente como Anmerkungen
zu Carl Schmitt, Der Begriff des Politischen, in Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (Tübingen),
LXVII, nº 6, 1932, p. 732-749, texto enviado alguns anos antes para o jurista. Todas as citações dos comentários
de Strauss serão a partir desta edição e citados como (STRAUSS, 2007, p.).
13
A 1ª edição do Der Begriff des Poltiische foi publicada no Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik,
LVIII, 1927, nº 1, p.1-33; a 2ª edição aparece em 1932, com alterações importantes e acompanhado pelo Das
Zeitalter der Neutralisierungen und Entpolitisierungen (A era das neutralizações e despolitizações) (Munique:
Duncker & Humblot). A 3ª edição, com modificações contextuais (Hamburgo: Hanseatische Verlagsanstalt) e a
de 1963, edição que utilizamos em alemão, publicada pela Duncker & Humblot: Berlim – Text von 1932 mit
einem Vorwort unf drei Corollarien. Na versão de 1932, conforme a leitura de H. Meier (2006) estariam
presentes as considerações das notas de Strauss.
43

moral disfarçada: o desejo de ordem, de qualquer ordem, e a necessidade moral do governo


regem o pensamento schmittiano. Ele não teria percebido que Hobbes é, na própria acepção
do Politischen, o antipolítico por excelência, isto é, aquele que na construção do Estado
moderno oblitera a relação e o conflito através da instituição jurídica e, afinal, promove a
instauração do mundo liberal. Durante os comentários, Strauss reforça o tema central da sua
trama com Schmitt contra o liberalismo, “uma crítica radical ao liberalismo é possível apenas
com base numa compreensão adequada de Hobbes” (STRAUSS, 2007, p. 122). A contradição
que o autor aponta no jurista, porém, refere-se ao equívoco do argumento hobbesiano da
soberania do Estado utilizado por ele contra o liberalismo e os processos de despolitização e
neutralização compreendidos seja como uma descentralização da autoridade estatal ou
substituição do soberano por uma ordem ou fonte de produção mecânica de normas técnicas,
seja como uma desestatização ou deslocamento da instância da decisão e da autoridade do
Estado e autonomização de instância sociais. Assim, Schmitt não teria percebido que utiliza o
autor responsável pelo liberalismo para criticar o liberalismo, numa circularidade que
enfraquece sua tese e constitui o mais perspicaz argumento do texto straussiano14. Não à toa,
no início da década de 1930, Schmitt percebe as limitações de uma filiação hobbesiana e
rejeita o argumento decisionista, além de descrever, no final da década, como Hobbes
desencadeou o processo de racionalização burocrática que culminou na neutralização do
político, reduzido a puro mecanismo administrativo e impessoal15.

14
H. Meier (2006) é responsável por uma leitura coerente sobre a relação entre Strauss e Schmitt. Retoma a
relação oblíqua entre o jurista de renome e o jovem filósofo conservador a partir da análise respeitosa, porém
crítica no texto das Anmerkungen: a indicação de Schmitt para uma bolsa da fundação Rockfeller em Paris, o
elogio de Schmitt e a proposta para a publicação das Anmerkungen no mesmo periódico onde anos antes fora
publicado a 1ª versão do Der Begriff des Politischen, bem como as cartas de um devoto Strauss e sua admiração
e reconhecimento. O argumento principal de Meier se refere às alterações que Schmitt realizara em seus textos a
partir das críticas straussianas, sobretudo, a análise das sugestões e críticas ao texto de 1927 assumidas por
Schmitt na 2ª edição em 1932, por exemplo, no distanciamento do conceito do político dos âmbitos da cultura
para considerá-lo como grau de intensidade, o que marca uma mudança de estratégia do jurista que deixaria de
analisar uma instância social para uma ontologia na qual relação e não substância teria primazia. Além disso, a
compreensão sobre Hobbes que em 1927 era descrito como “de longe, o maior e talvez único pensador político”
para, em 1932, “verdadeiramente, um pensador político moderno e sistemático” (BP, p. 64). Entretanto, a
interação entre ou autores atende a uma história mais longa e intricada: pode-se citar, por exemplo, o livro de
1934 Über die drei Arten des rechtswissenschaftlichen Denkens como crítica ao pensamento decisionista de
Thomas Hobbes e guinada em direção ao pensamento da ordem que Strauss atribui à reação/assimilação de sua
leitura por parte de Schmitt e o livro de 1938 Der Leviathan in de Staatslehre des Thomas Hobbes como resposta
não apenas à Walter Benjamin, mas também para Strauss. Na tese Leo strauss’s recovery of the political: the city
and man as a reply to Carl schmitt’s the concept of the political (University of Sydney, 2002), Brett A.R. Dutton
sustenta que o diálogo prossegue ainda por mais algumas décadas com o texto The City and Man servindo como
continuação de resposta às teses de Schmitt. Bruno Simões em A Recusa teimosa (Universidade de São Paulo,
2010), também em tese de doutoramento, traça uma genealogia dos conservadores e detecta alguns resíduos e
influências entre Strauss e Schmitt.
15
Originalmente, cf. “Der Staat als Mechanismus bei Hobbes und Descartes”. In: Archiv für Rechts- und
Sozialphilosophie 39 (1937).
44

A análise de Strauss sobre o ataque schmittiano contra o liberalismo prossegue ainda


em relação ao Das Zeitalter der Neutralisierungen und Entpolitisierungen (A era das
neutralizações e despolitizações), palestra de 1929 anexada à 2ª edição do Der Begriff des
Politischen (O conceito do Político) em 1932 que constitui uma continuação ou variação
sobre o tema da crítica ao liberalismo e diagnóstico da época. Demonstra uma estratégia de
despolitização e neutralização em curso por alguns séculos não como um efeito colateral, mas
sim como fim ou meta (Ziel) do liberalismo. Neste contexto, o destino liberal estaria marcado
desde o início da modernidade, mais precisamente, desde o mundo seiscentista, novamente,
com Hobbes, o “autor do ideal de civilização” que luta contra a “natureza não liberal do
homem” (STRAUSS, 2007, p. 107). Entretanto, para Strauss, apesar de partilhar o diagnóstico
schmittiano, há outra falha nas investigações do jurista, na verdade, ligada à inicial, qual seja,
na acertada contraposição ao liberalismo, Schmitt não apenas se equivoca ao utilizar o liberal
Hobbes contra o liberalismo como também o conceito do político continuaria no interior do
liberalismo já que não se desvincula da instância concreta ou dos âmbitos culturais e
históricos ao invés de buscar, como Strauss esperava, uma fundamentação transcendente. Ao
afirmar o político como autônomo e concreto, Schmitt estaria reproduzindo, na análise de
Strauss, o argumento liberal da autonomia e da historicidade da cultura contra a natureza, ou
seja, Schmitt estaria ainda vinculado ao liberalismo, também por esta via, no que Strauss
lamenta que “a proposição ‘o político precede o Estado’ não representa uma verdade eterna,
mas sim uma verdade presente” (STRAUSS, 2007, p. 99). Além disso, Schmitt não teria
percebido que para elaborar uma frente contra o liberalismo teria que se sustentar fora do
terreno da cultura ao invés de buscar uma contradição no seu interior, ou seja, propor um
retorno ou um além do liberalismo e não compreender “a questão da ordem das coisas
humanas” (STRAUSS, 2007, p. 99) e, dessa forma, desconstruir o sistema racionalista liberal
através de um momento constitutivo exterior ao liberalismo e não, simplesmente, antiliberal,
tal como fizera com o argumento da decisão sobre a exceção e, no texto em questão, com a
relação de antagonismo. Assim, Strauss aponta que, apesar da ambiguidade que o critério do
político implica, qual seja, a questão de que o político seja apenas mais uma instância da
cultura (Kulturprovinz), é possível admiti-lo como instância principal, ainda que localizada no
interior do liberalismo e, com isso, desencadeia um ruptura no interior do status civilis, isto é,
uma quebra da cultura. A separação entre cultura e natureza, mais precisamente, a noção de
autonomia da cultura é o ponto em questão na análise straussiana,

[e]sse ponto de vista nos faz esquecer que ‘cultura’ sempre pressupõe algo que é
cultivado: a cultura é sempre cultura da natureza [...] ela desenvolve as
45

predisposições naturais; é o cuidado esmerado da natureza – não importa se da terra


ou do espírito humano – e obedece, assim, às ordens que a natureza mesma dá”
(STRAUSS, 2007, p. 104).
O sentido da cultura seria cuidar da natureza, cultivá-la uma vez que a natureza seria a medida
do homem16. Todavia, a modernidade, sobretudo com Hobbes, empreende uma luta contra a
natureza e, ao concebê-la sem ordem e violenta, abandona-a como irracional e passa a
“conceber a cultura como criação soberana do espírito quando se pressupõe a natureza
cultivada como oposta ao espírito e quando ela é esquecida” (STRAUSS, 2007, p. 105). Este
esquecimento da natureza que Strauss ressalta na modernidade, sobretudo do conflito e da
morte como possibilidade aberta, é a condição original ou o status naturalis fundamental do
homem. Desta perspectiva, Strauss reconhece a importância do argumento do político
schmittiano em recolocar o status naturalis como fundamento da ordem liberal. No entanto, a
questão é que Strauss desloca demais o sentido do político ou do status naturalis em jogo no
Der Begriff des Politischen: para Schmitt, não está em questão uma natureza anterior, uma
vez que ele localiza no interior da vida civil a relação de conflito. Strauss, porém, concorda
com a quebra da autonomia da cultura (sociedade) e na necessidade de pensar uma condição
ou pressuposto político para o liberalismo (autodeclarado apolítico ou antipolítico), porém
que não se fundasse em algum âmbito da cultura: no caso de Schmitt, como relação e
antagonismo que não rejeita a violência (daí decorre a acusação de irracionalidade para alguns
e o retorno da natureza no interior do status civilis), esboçando um existencialismo político
como alternativa precária, mas válida ao normativismo; no caso de Strauss, uma ordem
natural a orientar a vida civil, mas que dela não faça parte, retornando para uma concepção
antiga de teoria política. Aqui a distinção radical entre os conservadores em sua recusa do
liberalismo: Schmitt insiste no momento constitutivo marcado pelo conflito anterior à norma
ou à racionalidade liberal, ou seja, o liberalismo até nega o político, mas não elimina sua
existência concreta, tornando-se mais uma ocorrência do politico; na leitura de Strauss, como
a cultura é sempre cultura da natureza, proveniente dela, não faz sentido permanecer no
interior da cultura, mesmo demonstrando o momento constitutivo do status naturalis17.

16
Compreensão de Strauss sobre cultura é melhor desenvolvida em outro texto do autor. Por exemplo, na citação
a seguir, ele afirma que “o objetivo da filosofia é a cultura, a cultura da natureza. O que a natureza oferece ao
homem sem a atividade suplementar do próprio homem é suficiente apenas para uma vida de penúria. De modo
que, para a vida se tornar mais confortável, o esforço humano é requisitado, bem como a ordenação da natureza
desordenada. A cultura não introduz na natureza humana nenhuma ordem alheia à natureza, mas segue as linhas
vistas no interior da natureza. A cultura faz regularmente o que a natureza faz esporádica e casualmente. A
cultura é fundamentalmente método, apenas método” (STRAUSS, 1997, p. 90).
17
Neste aspecto é relevante uma distinção elaborada por Quentin Skinner (1996) sobre a via antigua (a partir dos
teóricos baseados em Agostinho e Tomás de Aquino e a via moderna, sobretudo com Ockham e os humanista do
Renascimento: enquanto a via antiga refere-se à lei natural segundo a qual as sociedades devem se constituir; a
via moderna, ao contrário, prescinde do fundamento natural e afirma as relações políticas na cidade. Segundo
46

Em relação ao conceito de cultura, para Strauss, significa “a totalidade do


pensamento e da ação dos homens que se organizam em domínios diversos e relativamente
autônomos, em províncias de cultura [Natorp]” (STRAUSS, 2007, p. 102). Neste contexto, é
a permanência neste nível cultural e histórico que a crítica straussiana aponta, pois “Schmitt
permaneceria no horizonte desta resposta” (STRAUSS, 2007, p. 102). Todavia, Strauss
reconhece que, apesar da solução imanente de Schmitt, é possível retirar a ambiguidade do
político em relação a outras províncias da cultura: “a distinção entre amigos-inimigos ‘não é
de igual valor ou análoga àquelas outras distinções; o político não constitui ‘um novo domínio
concreto particular’” (STRAUSS, 2007, p. 102). Leitor atento, Strauss percebe que Schmitt
passa a apostar na imanência como estratégia contra o liberalismo, embora discorde da ação
em meio às relações humanas e priorize a questão da natureza ou, mais propriamente, a
postulação de uma metafísica política. Assim, esta segunda crítica colhida do texto de Strauss
já revela, ou melhor, antecipa nem tanto uma interpretação, mas sim um desejo de orientação
metafísica que gostaria que Schmitt tomasse. Neste contexto, faz sentido a crítica à
imanentização, já tornada lugar comum por outros intérpretes de Schmitt, por exemplo, desde
Erik Voegelin (2001) até Roberto Esposito (1999), logo no §1 das Anmerkungen, Strauss
reconhece que o campo de investigação schmittiano é o do “human things” ou ainda quando
afirma que “Schmitt só pretende conhecer o que é” (STRAUSS, 2007, p. 108): o retorno do
político para Schmitt dá-se na relação humana do conflito ao invés da procura metafísica de
algum fundamento ou substância. Apesar desta diferença, Strauss reconhece que Schmitt
tenha conseguido contrariar os avanços liberais mesmo permanecendo no seu interior, ou seja,
na interpretação de Strauss, o conceito do político schmittiano se apresenta como o
fundamento da cultura na posição de um status naturalis interno, isto é, um estado de conflito
e, ao menos, “a partir da possibilidade da guerra (caso extremo), a vida adquire sua função

SKINNER (1996, p. 421), “Outro grupo de humanistas, a quem os teóricos da Contra Reforma ansiavam ainda
mais por combater, eram os defensores da ragione di stato, em especial Maquiavel (...) identificaram com muita
clareza o ponto central para o qual se podia afirmar que convergiam as teorias políticas de Lutero e Maquiavel:
ambos se empenhavam, ainda que por motivos bem diferentes, em rejeitar a ideia da lei natural enquanto base
moral adequada para a vida política”. Em outro trecho, Skinner afirma que os tomistas desenvolveram uma
teoria da sociedade política em oposição aos hereges, afastaram-se da escolástica (concebida por Ockham) e
“recorreram à tese fundamental da via antiga, segundo a qual o homem tem a capacidade de usar seu raciocínio
para criar os alicerces morais da vida política” (SKINNER, 1996, p. 425). A teoria da lei natural, como rejeição
da via moderna (finitista) dá autoridade às leis a partir da adequação com os teoremas da justiça natural, de
forma que “para que as leis positivas criadas pelos homens assumam o caráter e autoridade de leis genuínas,
devem ser compatíveis, em todo os momentos, com os teoremas da justiça natural propostos pelas leis da
natureza. Assim, esta última fornece uma estrutura moral dentro da qual devem operar todas as leis humanas;
inversamente, o objetivo dessas leis humanas consiste apenas em fazer vigir, no mundo (in foro externo), uma lei
superior que todo homem já conhece em sua consciência (in foro interno)” (SKINNER, 1996, p. 426). A via
antiga se sobrepõe através de Suárez e dos Contratualistas aos teóricos da via moderna. Neste texto sobre o
político, Schmitt estaria próximo aos teóricos da via moderna; Strauss, da via antiga.
47

especificamente política” (STRAUSS, 2007, p. 108). Não obstante, Strauss sustenta que
Schmitt enfraquece seu argumento, pois ainda articulado com as polarizações próprias do
âmbito da cultura e, sobretudo, ao referir-se às aspirações liberais de autonomia, gera a
ambiguidade já referida no conceito do político, mesmo considerando que a possibilidade da
guerra não é apenas “o caso extremo dentro de um âmbito autônomo, mas é o caso extremo
por antonomásia para o ser humano, já que se refere à possibilidade real da eliminação física e
a mantém latente” (STRAUSS, 2007, p. 104) e, por isso, o político “não é um domínio
concreto, relativamente autônomo, entre outros. (...) não é de igual valor nem análogo ao
moral, o estético, o econômico, etc.” (STRAUSS, 2007, p. 104), mas demonstra que o político
é fundamental para as outras esferas, mesmo que dentro da finitude. Dessa forma, até mesmo
Strauss assume que Schmitt critica a autonomia dos diversos domínios concretos do
pensamento e da ação humana, revelando a originariedade do político, isto é, do conflito
diante dos âmbitos culturais. Apesar do restabelecimento da noção de um status naturalis,
este ainda ocorreria no interior da cultura, desfeito o vínculo com uma compreensão anterior
de natureza ou ideal da justiça e da ordem e, por conseguinte, aprofundando-se na fundação
liberal da política moderna. Esta segunda crítica aberta num dos flancos da teoria schmittiana
pode tanto quanto a primeira suscitar réplica, como a seguinte: ao criticar a localização do
político schmittiano no mundo da cultura, isto é, no terreno liberal, mesmo relativizando a
autonomia das “províncias de cultura”, Strauss aposta numa localização não liberal da
política, num retorno à natureza, como algo perdido e autêntico. Em todo caso, desperta a
possibilidade não apenas de uma compreensão do político como status do homem
(STRAUSS, 2007, §11) como também a possibilidade de uma política pós-liberal que em
Schmitt poderia ser pensada sem apelar ao aspecto fundacional (metafísico), pois o político
compreende apenas a finitude das relações humanas como desenvolvida no capítulo 3.
Na luta contra o Estado empreendida pelo liberalismo, Schmitt percebe o retorno do
político como conflito na própria compreensão liberal que se autodeclara antipolítica (ou
apolítica, em todo caso, pacífica, não violenta, contra o conflito, técnica, etc.). Não obstante a
sutileza de afirmar que a despolitização polemicamente expressa, mal disfarçado, seu sentido
político, Schmitt arrola mais um argumento para desconstruir as fileiras liberais: até mesmo o
pacifismo ou o discurso técnico-econômico traz consigo a marca do político, salvaguardando
a persistência do político como contradição e conflito no interior da hegemonia liberal. As
novas associações e formas sociais que reivindicam o fim do Estado teriam nesta
reivindicação um papel político e, dessa forma, apenas confirmariam a existência do conflito,
os movimento de neutralização e despolitização, pois, a partir disso, Schmitt afirma a
48

autonomia e a inescapabilidade (necessidade) do político. Entretanto, na perspectiva de


Strauss, no que consiste em seu terceiro argumento crítico, as teses de Schmitt se enredam,
mais uma vez, no liberalismo: em primeiro lugar, ele não conseguiria demonstrar a existência
permanente (a partir de considerações fáticas e históricas, como pretende) do político: um
mundo pacificado e sem conflitos é uma possibilidade que, apesar de improvável, pode vir a
existir. Então, em segundo lugar, Strauss avança, sustentando que as considerações de Schmitt
recuam para uma “profissão de fé antropológica”, segundo a qual o político seria real e
necessário por conta da natureza humana marcada pelo periculosidade (Gefährlichkeit): “a
oposição entre a negação e a afirmação do político se remonta a um debate sobre a natureza
humana (...) se o homem é bom ou mal por natureza (...) a hipótese da periculosidade humana
é, portanto, o suposto último do político” (STRAUSS, 2007, p. 111). Assim, em terceiro
lugar, a leitura do filósofo aponta, curiosamente, que a afirmação do político como conflito é,
na verdade, uma afirmação moral, ou seja, mesmo assumindo a periculosidade do homem,
este pressuposto antropológico não passaria, como teria reconhecido o próprio jurista, de uma
“fé”, uma vez que não estaria demonstrada sua necessidade ou universalidade, mas seria
tomada como uma entre tantas outras ficções. Strauss aponta esta limitação e o nexo entre
natureza humana e o político ao afirmar que “tão verdadeira quanto a periculosidade do
homem, também a necessidade do político, ambas se sustentam (...) se a periculosidade do
homem é apenas crível, então se encontra basicamente ameaçada e junto com ele, o político”
(STRAUSS, 2007, p. 111). Assim, o político não se sustenta, segundo Strauss, a não ser
lançando mão de um argumento moral contra o liberalismo, qual seja, a afirmação da
superioridade da vida do conflito diante da segurança burguesa: caso haja a extinção dos
antagonismos, Schmitt teria que se respaldar em outro pressuposto, conforme Strauss,

se, em última instância, o político está ameaçado, então a afirmação do político deve
ir mais além do reconhecimento da sua realidade: deve intervir de maneira ativa em
favor do político ameaçado, deve afirmar o político. Isto nos leva a perguntar
necessariamente: por que Schmitt afirma o político? (STRAUSS, 2007, p. 112).
No entanto, parece que Strauss comete um equívoco ao deduzir uma moral a partir de
uma afirmação de estados de coisas. Além disso, utiliza um salto injustificável no raciocínio
sobre o político: um “deve” que é interpretado como um imperativo categórico político ao
invés de mera descrição própria de um realismo ou finitismo político. Embora o argumento
não seja tão simples de desembaraçar, o autor mesmo prossegue por uma via contraditória. Se,
ao elogiar em Schmitt, parafraseando-o, assume como proposição válida, a tese de que “o
político não tem nenhum sentido normativo, mas sim existencial” (STRAUSS, 2007, p. 112),
não seria contraditório pressupor uma afirmação moral (no sentido de um valor transcendente)
49

a um sentido concreto? Ou bem denunciaria o pressuposto escondido por Schmitt e


desmancharia o conceito do político, ou bem, ao guardar as duas proposições como válidas,
assume uma contradição: uma teoria que qualifica ora como imanentista (monista) ora como
dualista, com primazia da moral, o que parece enfraquecer suas análises. No entanto, Strauss
parece não se intimidar com a contradição, por exemplo, quando sustenta que “a afirmação da
periculosidade não tem um sentido político, mas sim apenas um sentido normativo, moral (...)
é a afirmação da força como força criadora de estados, da virtude no sentido maquiavélico”
(STRAUSS, 2007, p. 112). Uma flagrante contradição que, porém, Schmitt parece se esquivar
de cometer se sua teoria política for compreendida como um finitismo e a necessidade do
político como um estado de coisas ou uma espécie de condição ou a priori histórico, para usar
uma expressão estranha ao autor, mas que neste caso é apropriada. Para Strauss, Schmitt
deveria ou bem reconhecer o político como contingente – pois carente do atributo de
necessidade – o que não seria admitido por um filósofo marcado mais por um realismo
metafísico do que por um realismo político, ou bem não afirmar o político como necessário ou
inescapável, pois, dessa forma, evidencia-se que a afirmação seria uma proteção “porque sua
condição de ameaçado vê ameaça à seriedade da vida humana” (STRAUSS, 2007, p. 117),
uma postura moral que Strauss denuncia como fundamento do político.
Apesar das ressalvas, Strauss reconhece o político como aquilo que dota a vida
humana de seriedade. No entanto, mais uma vez, desenvolve uma consideração sutil em sua
análise sobre o texto em questão: embora Schmitt proponha, na esteira de Hobbes, o sacrifício
das vidas (a possibilidade da morte) e a iminência do conflito como critérios do político, ou
seja, um resgate da condição natural do homem dentro do projeto liberal falido; a tendência
social no liberalismo, segundo Strauss, possui fins não políticos, tais como, ciência,
tecnologia, comércio, etc., e não teria, portanto, como compreender este critério. Assim, para
Strauss, a institucionalização da política moderna provocou o abandono da natureza e dos
afetos em direção à racionalidade da cultura e da civilização com o consequente esquecimento
do raciocínio político de base a partir do qual se deu a associação dos indivíduos: o medo
sofreu uma institucionalização suficientemente forte para tornar a “eventualidade do conflito”
algo não presente no cotidiano. Numa palavra, a ação e o pensamento não são regrados a
partir da eventualidade do conflito, pois a cultura ou o mundo liberal orientam-se fora desta
hipótese. O Estado subalterno à sociedade seria, conforme Strauss, o destino daquela hipótese
lançada por Hobbes. Este teria lançado “os fundamentos do liberalismo para contrapor-se à
natureza não liberal do homem” (STRAUSS, 2007, p. 107). Assim, a percepção do perigo
iminente, natureza irracional do conflito, não estaria mais acessível ao indivíduo liberal, pois
50

desconhece seus próprios pressupostos e metas, confiam na bondade original


(fundadas na criação e providência divinas) da natureza humana; ou, amparando-se
na (suposta) neutralidade das ciências naturais, nutrem esperança de um
aperfeiçoamento da natureza humana, em vista da qual a experiência que os homens
têm de si mesmo não fornecem nenhuma justificação (STRAUSS, 2007, p. 107).
Segundo Strauss, Hobbes lutou contra a natureza não liberal do homem ao inaugurar o
processo de neutralização (da religião e das guerras civis-religiosas) e construir uma
estabilização da ordem desencadeando um processo lógico no qual assume a técnica como
método para a supressão do estado de natureza e alcance da segurança e paz. Em termos
schmittianos, que faz análise semelhante, a legislatur humanus torna-se uma machina
legislatorium que, como máquina, possui em si a justiça e a verdade como seu próprio
funcionamento, abrindo espaço para a tolerância religiosa e a legalidade pacifista, numa
palavra, a consciência individual. Neste caso, Strauss mais uma vez adota a critica de Schmitt
à obrigação apenas in foro externo que franqueia o espaço privado para “a liberdade de
pensamento e da consciência” (Gedanken und Gewissensfreiheit), inclusive, a admissão legal
de grupos contrários ao poder estatal. Desta fissura entre público e privado que, conforme a
leitura de Strauss, o mundo liberal se esquece, advém o perigo de onde foi criado (cultura da
natureza), além de, inadvertidamente, acreditar na bondade do indivíduo, na autodeterminação
do sujeito e, por conseguinte, na negação do Estado, uma vez que apenas a afirmação não
liberal da periculosidade pode garantir a necessidade de governo (STRAUSS, 2007, §25).
Assim, propriedade privada, livre-consciência, liberdade contra o Estado e até mesmo
democracia (representativa) são conceitos políticos escamoteados como afeto antiestatal
peculiar do liberalismo. Para Schmitt, um afeto polêmico que, apesar de se declarar
antipolítico – porque antiestatal, nesse monopólio ou hegemonia provisória do Estado sobre o
político – é ele mesmo político. Neste ponto, um comentário importante de Strauss. Diante da
percepção de que a ciência moderna solapou suas próprias bases originais, na verdade, sem
sua base política, pois ausente a orientação da vida humana ao conflito, Strauss confirma a
leitura de Schmitt, segundo a qual, no mundo liberal se esquece da natureza hostil que se
contrapõe à civilização com o sacrifício dos afetos e institucionalização da vida política. A
ação política, ou seja, orientada pela eventualidade do conflito não é mais levada em conta nas
associações liberais, pois a natureza não liberal do homem, isto é, o status naturalis ou a
relação como conflito foram esquecidos. Assim, contra a vida tecnicizada18, Strauss reforça a
visão schmittiana do conflito, por mais que considere precisamente por aí sua
impossibilidade, uma vez que teria que realizar a crítica para além do solo liberal, visto que

18
MCCORMICK, 1994.
51

sacrifício da vida e o conflito não têm mais espaço numa concepção de mundo liberal na qual
os fins sociais não se orientam pela política, mas sim pela tecnologia, ciência, economia e
resolução de conflitos, entre outros dispositivos. Para Strauss, apenas uma crítica externa ao
mundo liberal é capaz de elaborar um diagnóstico da época. No entanto, enquanto Strauss
propõe o retorno aos antigos, criticando a argumentação “liberal” de Schmitt; o jurista elege
precisamente o mundo liberal para realocar esta irracionalidade ou estado de natureza: ele
demonstra que na origem sempre presente do mundo liberal há conflito e irracionalidade.
Mesmo assim, Strauss põe em marcha uma crítica da filosofia da cultura (Kulturphilosophie)
como crítica ao liberalismo: crítica à tolerância e liberdade do indivíduo contra a moral
inscrita na natureza; em última instância, ele critica a modernidade e sua forma política, o
liberalismo, por fixar-se na compreensão das coisas humanas ou da cultura e civilização e
esquecer-se que a verdade está – como antigos observam – na natureza. Assim, arremata a
análise deste argumento contra Schmitt, apontando ainda para Hobbes: a ausência do
questionamento sobre a melhor ordem política e, por isso, a falta de orientação moral à
sociedade que leva, por conseguinte, à dissolução e ao rebaixamento moral provocado pelo
liberalismo. Strauss afirma ainda que

se é verdade que a autoconsciência definitiva do liberalismo é a filosofia da cultura,


podemos concluir que o liberalismo, envolvido e absorto na segurança do mundo da
cultura, esquece a fundação da cultura, o estado de natureza, isto é, a natureza
humana na sua periculosidade (Gefählichkeit) e no seu estar em perigo
(Gefährdetheit) (STRAUSS, 2007, p. 108).
Em vista da última Nota acerca do conceito do político, Strauss complementa, no
quinto argumento colhido em seus comentários, que, embora haja ambiguidade na relação
entre cultura e o político, nenhum âmbito da cultura dá conta da compreensão da morte física,
tal como o político. O conflito e a possibilidade da morte é o meio pelo qual Schmitt evita que
o mundo-cultura torne-se mero entretenimento, conservando a seriedade da vida e instalando
permanentemente não o medo, mas o conflito. Daí, em parte, Schmitt consegue se
desvencilhar de Hobbes (o medo em Hobbes é individual, o conflito em Schmitt é coletivo,
público, pois – como sustentamos nesta tese – Schmitt não funda a política no afeto do medo,
mas no de conflito, ou mais precisamente, no antagonismo). Ele afirma o político,
descrevendo a seriedade da vida posta diante do conflito, contra a negação liberal, isto é, a
vida orientada para o consumo e homogeneidade enquanto “mero jogo”. Para Strauss, como já
exposto, esta afirmação teria uma motivação moral, ou melhor, uma escolha sobre a
superioridade da relação política sobre a proposta pelo liberalismo. Não obstante, Strauss
encontra em Schmitt um aliado para rechaçar a civilização liberal diante da sua decadência
52

constatada fortemente na Alemanha da década de 1920, por considerar o consumo e o


conforto da técnica como finis ultimus do liberalismo, ou seja, a renúncia liberal sobre os fins
e ênfase nos meios (tecnologias), tal como Strauss considera:

em um mundo não liberal, Hobbes lança os fundamentos do liberalismo para


contrapor-se à natureza ‘não liberal’ – com o perdão da palavra – do homem. Os
homens de épocas posteriores, porém, que desconhecem seus próprios pressupostos
(Voraussetzungen) e metas, confiam na bondade original (fundamentadas na criação
e na providência divinas) da natureza humana; ou, amparando-se na (suposta)
neutralidade das ciências naturais, nutrem esperança de um aperfeiçoamento
(Verbesserung) da natureza humana, em vista da qual a experiência que os homens
têm de si mesmo não fornece nenhuma justificação (STRAUSS, 2007, p. 107).
Este finis ultimus se transforma em frivolidade: “levam ao ideal de civilização, isto é, à
prescrição de relações sociais racionais da humanidade como uma ‘parceria no consumo e na
produção’” (STRAUSS, 2007, p. 107). Para Strauss, Schmitt ainda aqui não consegue se
desembaraçar do liberalismo, pois mesmo ao sustentar a maldade natural do homem –
entendida como periculosidade da natureza humana e assim garantir o domínio pelo Estado –
este argumento seria fundamentalmente moral: “Schmitt afirma o político, pois enxerga no
status ameaçado do político uma ameaça à seriedade da vida humana” (STRAUSS, 2007, p.
117). Como a cultura não justifica o sacrifício ou a possibilidade da morte, uma vez que se
refere à natureza, ela perdeu o status naturalis e a possibilidade de compreendê-la tendo por
base a relação do conflito, logo marcada como irracional. Para Schmitt, segundo Strauss, esta
seria a crise do liberalismo: não consegue dar conta do Ernsfall por meio de considerações
puramente econômicas, morais, culturais, entre outras e, por conta deste esquecimento
imperdoável da natureza, dá-se o motivo da crise da civilização que Schmitt tentaria resgatar
através da figura do status naturalis como conflito e luta efetiva e desidealizada a partir da
existência real do inimigo, do perspectivismo e de uma identidade que não se confunde com
identidade cultural, embora diante dela encontre um pouco de dificuldade para se distanciar.
Na leitura de Strauss, portanto, ao afirmar a periculosidade humana como pressuposto do
político, Schmitt não conseguiria sustentar o caráter inescapável (necessário) do político –
para o político existir, deverá haver a permanência de uma oposição, mas a questão é que esta
permanência não pode ser garantida com um critério metafísico em Schmitt – porém, ao
menos, devolve ao mundo burguês a seriedade ao invés da frivolidade do consumo.
A leitura de Strauss pode indicar alguns ganhos conceituais na interpretação do Der
Begriff des Politisichen: apesar de reconhecer a possibilidade da ausência de conflitos, o
político como conflito apenas expressa a negatividade como condição histórica para a ação
política, sem a necessidade de uma “profissão de fé antropológica” ou qualquer raciocínio
53

teológico, tal como a tese de Heinrich Meier sustenta19. Daí, a interpretação de Strauss
segundo a qual a afirmação da maldade ou da periculosidade do homem (em última instância
a afirmação do político) seria uma afirmação da moral aparece com uma tentativa de dotar o
conceito do político de um fundamento ou elemento transcendente20. Strauss ainda apresenta
mais uma análise das consequências do conceito do político. Para ele, tomar a Gefählichkeit
como pressuposto do político significa assumir uma configuração de forças sempre em
oposição. Caso não ocorra, o político seria extinto. Este argumento straussiano, mais uma vez,
deseja e projeta mais do que interpreta: a pretensão de uma unidade ou instância ideal no qual
os conflitos fossem solucionados ou, pelo menos, houvesse uma resolução fora da imanência
das relações. Entretanto, a principal crítica presente na leitura de Strauss seria, na verdade, a
de que o autor do Der Begriff des Politischen põe a questão política da dominação estatal sob
uma consideração moral: a periculosidade ou maldade do homem seria o critério do político.
A partir daí, Strauss entra novamente em contradição na leitura, visto que afirma, por um
lado, que Schmitt trata das coisas humanas, mas por outro, interpreta que o jurista almeja o
conhecimento puro e completo por meio do político uma vez que afirma ser a questão
fundamental do Estado ou da política o problema do bem e do mal, lidas como maldade ou
periculosidade humana e ordem estatal e soberana.
Numa sexta crítica presente em suas Notas, Strauss dirige uma crítica conformada à
Schmitt ao descrevê-lo como imanentista, mais precisamente, ao acusá-lo de abandonar a
Veritas transcendente e fixar-se nas já referidas “coisas humanas”. Este argumento é
importante para a confirmação de alguns aspectos da tese que sustentamos acerca do finitismo
em Schmitt e gostaríamos de retomá-lo neste parágrafo, justamente numa análise de caráter
metafísico como a de Strauss. Tanto em Schmitt quanto em Strauss, a consequência mais
nociva do liberalismo é o individualismo, ou melhor, o modo de vida baseado no
esvaziamento e substituição do sentido da existência pela segurança e paz, mera satisfação das
paixões ou necessidades individuais que culminam na despolitização. Para ambos, o político
como relação de conflito e o eventual sacrifício das vidas, garante que o mundo não seja
apenas consumo ou entretenimento, pois dá à vida humana alguma dignidade ou solenidade,
num retorno ou nostalgia, em um autor evidente; porém, em outro, hesitante, em relação às
teses antigas. Apesar de considerar a afirmação do político como uma afirmação moral, como
demonstrado anteriormente, Strauss reconhece a importância da escolha pelo caso sério ou

19
Cf. infra, 1.5
20
Nossa tese vai de encontro a esta leitura: Schmitt teria realizado uma ruptura da simetria entre transcendência e
imanência. Apesar de não assumir as consequências de sua argumentação, apostamos na herança de seu
pensamento.
54

extremo (Ernstfall) contra o liberalismo que despolitiza os conflitos e os transforma em jogos


ou competições, no final das contas, em entretenimento e ausência de sentido. Se para
Schmitt, todavia, a perda da seriedade é a negação do político, já que sustenta que nenhum
âmbito da vida é capaz de dar conta da morte física do indivíduo; de certa forma, a negação
do político é um ataque à centralidade do Estado que possuiria, na modernidade, o monopólio
histórico do político, daí a importância da afirmação do político; para Strauss, entretanto, o
liberalismo significa, desde Hobbes, a ausência do questionamento sobre a melhor ordem
política, que deveria ser recuperada por um conceito de político (ou de filosofia política)
voltado às origens. E esta é a crítica que mais uma vez é dirigida à Schmitt: o jurista
permanece na imanência e, por isso, segundo Strauss, Schmitt não se refere à verdade eterna,
fundamento do político, restando-lhe a contingência da instância histórica, de onde não é
possível pensar a melhor ordem política. Por conta do abandono da Veritas, para Strauss,
Schmitt deixa de resolver a tensão entre amigos e inimigos (entendida de maneira maniqueísta
como mera afirmação de um dos polos e não, como propomos, como relação e antagonismo),
pois a oposição não se refere a uma instância ideal ou abstrata capaz de solucionar como uma
unidade o problema do político e permanece na negatividade. Esta ausência de transcendência
é motivo de lamentação para o platônico Strauss. Ele a expressa numa fórmula protocolar que
vale pela lucidez quanto aos objetivos de Schmitt em Der Begriff des Politischen: “O tratado
de Schmitt aborda a questão da ordem das coisas humanas” (STRAUSS, 2007, p. 99). Para
Strauss, como o liberalismo rejeita a possibilidade de uma moral vinculada à natureza, as
ações humanas careceriam de uma orientação moral, porém Schmitt cairia no mesmo
equívoco: além de escamotear uma moral na afirmação do político, mesmo sem vincular-se a
alguma ordem natural ou metafísica, ele não teria se livrado do âmbito da cultura. Interessante
que Strauss acusa a falta de orientação moral e projeta esta falta para Schmitt quando sustenta
que a afirmação do político possui uma carga moral, ou melhor, um pressuposto moral de
Schmitt, como mera preferência, contra a despolitização e neutralização do liberalismo. A
tentativa de Schmitt é, todavia, apenas tornar contíguo status naturalis e status civilis, mais
precisamente, a manutenção do inimigo (antagonismo e conflito) no interior da ordem como
uma stasis ou guerra civil que apenas o Estado poderia controlar e, dessa forma, contrapondo-
se à negação liberal do Estado, uma vez que estaria incapacitado de dar conta da violência
originária da ordem. Vê-se, por um lado, Hobbes com o argumento do medo da morte e a
pretensão de desdobrá-lo na extinção dos afetos diante da estabilização da ordem com
segurança e paz: racional, portanto, nos efeitos, mesmo à custa do caso extremo; por outro,
Schmitt, como admirado em parte por Strauss, mantém este caso sério no interior da ordem,
55

incrustando a relação de conflito em um reestabelecido ‘lugar de honra’, isto é, no status


naturalis como fundamento da cultura, bem como o político como status fundamental e
extremo do homem. Infelizmente, para Strauss, Schmitt permanece na imanência e, sem
analisar o mérito da leitura straussiana, constata-se a primeira confirmação da perspectiva
finitista e pluralista na obra de Schmitt.
No sétimo comentário relevante para nossa pesquisa, numa formulação já bastante
conhecida, Strauss argumenta que Schmitt teria um “liberalismo com sinal trocado”
(STRAUSS, 2007, p. 120). Strauss acusa a ausência substancial do conceito do político, que
teria tolerância com qualquer tipo de postura ou conteúdo desde que se agrupasse em conflito.
Como não há outro critério que não seja o conflito para tratar acerca do “problema
indelimitável” do político, não haveria também um conteúdo próprio ou temas a priori
políticos. A questão, porém, é justamente esta: Schmitt não propõe conteúdo ou valores nem
escolhe um dos polos, mas apenas resgata a luta como lugar único possível do político, isto é,
da seriedade e, portanto, da vida. Assim, Schmitt, sem a preferência moral pelo político, teria
que sustentar que o “ser-político significa estar orientado para o ‘caso extremo’. Por isso,
afirmar o político é afirmar a luta enquanto tal, sem que importe em nome de que se luta”
(STRAUSS, 2007, p. 127) e, dessa forma, a partir desta postura neutra quanto aos motivos do
conflito, Schmitt:

respeita todos aqueles que querem lutar; é tão tolerante como os liberais, só que com
a intenção oposta: enquanto que o liberal respeita e tolera todas as convicções
"honestas" (...) ordem legal e a paz, o que afirma o político como tal respeita e tolera
todas as convicções "sérias", isto é, todas as decisões orientadas para a possibilidade
real da guerra. Assim, a afirmação do político como tal se revela como um
liberalismo de sinal contrário. (STRAUSS, 2007, p. 120)
Para Strauss, Schmitt não apenas se move conceitualmente na perspectiva liberal – neste caso,
assumindo um pluralismo ou diferença como condição do político, o que, em nossa
perspectiva não o qualifica, sem mais, como liberal – mas também assumiria a neutralidade
liberal: através do princípio da inescapabilidade ou da necessidade do político, ele respeita
todos aqueles que querem lutar, mesmo que na luta não assumam uma bandeira ou coloração
específica, isto é, não é negado o atributo de político àquele que assume o conflito. No
entanto, a despeito de Strauss, pode-se compreender a estratégia de Schmitt como um
perspectivismo típico: jogar contra o liberalismo, pois sua pretensa neutralidade, isto é, a
afirmação de neutralidade que expressa a realidade política do liberalismo, sua luta contra o
político, afinal, seria ela mesma política. Schmitt demonstra ainda que o discurso não político
do liberalismo é, no final das contas, político e, dessa forma, nada escaparia desta relação. Ele
seria tolerante assim como o liberal, porém pelo motivo oposto. Schmitt desdenha, por
56

exemplo, do ideal de pacifismo declarado pelo liberalismo e sustenta, nas entrelinhas, uma
tese pluralista ou perspectivista segundo a qual pressupõe a existência concreta do outro, fato
ineliminável da teoria política. Strauss, porém, vê sob outra base este discurso e não esconde
sua fonte platônica na compreensão da relação política, pois “estamos sempre disputando
como outro e com nos mesmos sobre o justo e o bom” (STRAUSS, 2007, p. 188). Para
Strauss, na verdade, nem o conflito, nem o conforto, mas a excelência humana e
conformidade com a natureza: se a seriedade está ligada ao conflito, este só pode se dar em
direção ao ou sobre o justo. Isto é o que, em última instância, justifica o conflito, a separação
e inclusive o sacrifício da vida: retomar a política como reflexão sobre a melhor ordem.
Não obstante, neste ponto, Strauss encontra em Schmitt uma referência, apesar do
imanentismo, finitismo e pluralismo deste: há uma natureza ou periculosidade, algo irracional
relativo àquele medo e violência que é preservado na cultura ou civilização. Strauss encontra
um forte argumento, embora não desenvolvido, ao compreender o político como uma espécie
de fundamentação não racional, ou melhor, afetiva da política. Retorna-se a um irracionalismo
que caracterizaria a base da cultura como estado de natureza, mais precisamente, como “a
natureza humana na sua periculosidade (Gefähllichkeit) e no seu estar em perigo
(Gefährdetheit)” (STRAUSS, 2007, p. 108) e a solução estaria num retorno à natureza que
Schmitt efetivou apenas parcialmente. Neste momento, Strauss concede o elogio de que
Schmitt critica o liberalismo com a tese de que é necessário o retorno do status naturalis,
anterior à cultura e ao desvanecimento liberal, e o conceito do político como aquilo que é
mais sério, fundamental e extremo, mesmo que lamente ainda o fato de que Schmitt não
realoca este conflito fora da cultura, fora do mundo liberal 21. Todavia, este argumento de
Strauss parece uma interpretação contrária ao que Schmitt, mesmo a contragosto,
efetivamente faz: inserir no interior da ordem liberal o conflito. De certa forma, Schmitt
executa um movimento oposto ao de Hobbes: insere a luta como irracional inextirpável,
transforma a guerra civil em parâmetro, ou pelo menos, em origem da sociedade burguesa.
Método similar já tinha realizado na Politischen Theologie: a exceção como origem da ordem.
No entanto, conforme a leitura que fazemos (e Strauss ao negá-la, confirma-a) em Der Begriff
des Politischen não há uma ideia de ordem ou forma política a partir da qual a decisão se
refere. Numa lúcida leitura, Strauss arremata: “o que [Schmitt] busca é excluir todas as

21
Na leitura de Meier, esta crítica de Strauss teria sido levada a sério por Schmitt ao ponto deste modificar nas
edições seguintes do Der Begriff des Politischen a concepção do político como um domínio ou instância (relação
social que ainda permaneceria no âmbito da cultura) para uma análise de fundamento ou estrutura última do
político como intensidade. Esta passagem do critério do político de domínio ou instância para grau de
intensidade teria sido provocada pela recepção das críticas dos comentários de Strauss. Cf. MEIER, 1988.
57

possibilidades desse tipo [de juízo de valores]: o político não pode ser avaliado segundo
valores, nem mediar-se conforme um ideal; aplicado ao político, todos ideais não são mais
que ‘abstrações’, todas as abstrações normativas não são mais que ‘ficções’” (STRAUSS,
2007, p. 108-109). Assim, o político toma a significação de sua relação permanente com a
“possibilidade real de eliminação física dos homens” e, ainda segundo Strauss, para Schmitt
“não existe um fim racional, nem uma norma justa, nem um ideal social tão belo, nem uma
legalidade que possa fazer aparecer como algo justo que os homens se matem
reciprocamente” (STRAUSS, 2007, p. 109). A seriedade da vida social implica o político
como forma de vida oposta ao liberal ou burguês: no final das contas, o que Strauss não
enxerga, é que Schmitt expõe o conflito entre esses afetos diferentes, mas nem como mero
pluralismo e tolerância política, nem como formas políticas ou estruturas normativas.
A interpretação straussiana extrai a conclusão atípica de que Schmitt teria um
liberalismo moral voltado ao conflito como resgate de um status naturalis que permitiria
fundamentar a ordem a partir do bem. Inexplicável resultado exegético. O trecho citado por
Strauss para fundamentar seu desfecho contraditório é “‘a partir das forças de um saber
íntegro’ possa renascer ‘a ordem das coisas humanas’” (STRAUSS, 2007, p. 119) que
interpreta como “a polêmica contra a moral – contra os ideais e as abstrações normativas –
não o impedem de fazer um juízo moral sobre a moral humanitária” (STRAUSS, 2007, p.
119) e na tese de que Schmitt se esforça em ocultar o juízo moral acerca do liberalismo. Na
afirmação do político como um caráter inelutável, a ordem em Schmitt também seria não uma
necessidade (falta-lhe o pressuposto essencialista que Strauss exige), mas uma afirmação
moral da necessidade da ordem. Isto implica numa séria ameaça à tese do político, mas
também uma possibilidade de compreensão não essencialista da sua teoria, mesmo,
fenomenologicamente, sustentando a permanência do Estado e da ordem, ponto fraco em sua
teoria que Strauss percebe. Neste contexto, Strauss finaliza as Anmerkungen com a pretensão
de trazer Schmitt para suas fileiras: o jurista teria como objetivo o “saber íntegro” (e não o
perspectivismo que o conceito do político implicaria), ou seja, “a origem não corrompida e
não a natureza das coisas humanas” (STRAUSS, 2007, p. 122) e, além disso, Strauss remete o
político para além da realidade e conflitos históricos: não vincula o bem e o justo à existência
política concreta, mas sim ao conhecimento puro ou transcendente que ele tem em vista. Entre
os dois conservadores, apesar de concordarem na crítica ao liberalismo, Schmitt aceita a
ausência de transcendência, a impossibilidade do dualismo entre céu e terra e as
consequências de uma época secularizada que transformaram o pensamento político, mesmo
que ainda afirme a necessidade da ordem.
58

As críticas de Strauss, todavia, parecem surtir efeitos, embora não precisamente na


direção apontada por ele: no início dos anos 1930, Schmitt propõe uma leitura mais coerente
com o imanentismo do Der Begriff des Politischen: o institucionalismo ou pensamento da
ordem concreta que mantém nas considerações acerca do texto sobre o Nomos, superando esta
dualidade entre transcendência e imanência. A questão de Strauss, no entanto, serve para
iluminar os próximos passos: realmente, a “crítica ao liberalismo para consumar-se (...) deve
ir para um horizonte para além do liberalismo” (STRAUSS, 2007, p. 122) e a partir desta
consideração cabe uma última nota sobre o comentário de Strauss que corrobora a tese desta
pesquisa: Schmitt hesita, mas se considerarmos a leitura de Strauss correta, qual seja, a ordem
como algo não necessário – pois Schmitt admite a imanência e, por conseguinte, a
contingência da ordem – não é possível sustentar um Ziel ou instância transcendente. Em
outras palavras, não há dualismo nem possibilidade de solução fora do político, mas – ainda
concedendo méritos à leitura de Strauss – apenas uma afirmação moral sem transcendência.
Dessa maneira, pode-se assumir o político – assim como o próprio liberalismo – e a ordem
política como objetos possíveis ou contingentes, ou seja, Schmitt abre a possibilidade de
pensar a política fora dos padrões fundacionais ou essencialistas da modernidade: como
finitismo ou imanentismo político, uma vez que a validade da ordem não é determinada por
um critério certo e seguro sobre a melhor ordem ou forma política e o político mesmo é
considerado in re, ou seja, lançado nos jogos da imanência. Passa a ser considerado fora do
contexto liberal, a partir do qual pode ser denominado um pensamento do pós-liberalismo.
Atualizamos o diagnóstico da leitura de Strauss e arriscamos completar os passos que seja
Schmitt seja Strauss não desenvolveram: este se preocupa, como todo conservador da sua
lavra, quanto à melhor ordem política e vê aquele, até então o teólogo da política, não se valer
de verdade eterna, mas sim apenas da verdade história ou na sua estratégia de atacar por
paradoxos, no caso, mais uma vez jogando com as armas do adversário liberal, segundo o
argumento da neutralização. A preocupação de Strauss é que Schmitt se aprofunda com
Hobbes na fundação modernidade política e, por isso, não escapa do paradigma liberal. Na
verdade, a crítica de Strauss está correta na contradição de Schmitt em relação à Hobbes
contra o liberalismo, mas equivocada quanto ao fato de que Schmitt prossiga no liberalismo.
O que ele faz, se nos permitem um paralelismo descabido, é uma espécie de morte do
liberalismo pelo próprio liberalismo: se, de uma forma geral, Hobbes abre a modernidade,
Schmitt encerra ou, ao menos, abre a possibilidade de se considerar outro paradigma político
para além da modernidade, isto é, para além do liberalismo. Ele não apenas descarta a Veritas
e assume a imanência ou a validade in re da ordem, mas aponta para outro tipo de teoria
59

política não liberal ao fazer frente às teses políticas no terreno mesmo delas. Em todo caso, a
crítica de Schmitt ao liberalismo teve, segundo Strauss, o mérito de reestabelecer o estado de
natureza como fundamento da cultura e, sobretudo, o político como o estado fundamental do
homem. Se Hobbes privilegiou o medo com o afeto constitutivo da ordem, Schmitt – mesmo
na leitura de Strauss – aparece levantando novamente um afeto, o conflito, como afeto
fundamental na constituição da ordem o que, por si, já daria ensejo outra percepção do
político, não normativista ou racionalista que oblitera e sacrifica os afetos. Na leitura de
Schmitt, mesmo a realizada por Strauss, é o afeto de conflito ou do antagonismo e não uma
norma ou princípio racional que determina a origem do político. A partir disso, seria possível
pensar uma política para além do liberalismo.

1.3 Karl Löwith e a imagem especular do político: ocasionalismo,


irracionalismo e o ponto cego da imanência [1935]

A pergunta central que Löwith em seu texto remete à Schmitt, fazendo coro às
questões de Leo Strauss, é a seguinte22: em que se baseia a decisão pelo político? Por que
fundamento ou razão se dá afirmação do político? A suspeita de Löwith em relação ao
pensamento schmittiano se expressa na leitura de que o jurista sofreria de uma indeterminação
do próprio fundamento de sua teoria política. Assim, por carecer de uma substância ou
essência, o decisionismo seria, na verdade, um ocasionalismo. Isso significa que a categoria
central da decisão em Schmitt seria uma decisão sobre uma ocasião considerada como
meramente fática (portanto, irracional) e marcada pela contingência, assim como o
romantismo político fora caracterizado pelo jurista. Em outras palavras, o comentador ressalta
o elemento da ocasião em detrimento do ato da decisão. Por isso, segundo Löwith, a teoria do
jurista não conseguiria determinar nenhum fundamento, pois “a decisão de Schmitt pelo
político (...) nada mais [é] que uma decisão pelo ser-decidido” (LÖWITH, 2006, p. 57).
Seguindo as críticas de Strauss e de Voegelin, a interpretação de Löwith expõe uma postura
moral dissimulada de Schmitt ao criticar a moral e a metafísica dos seus oponentes, sobretudo
do liberalismo. Entretanto, Löwith mostra-se ainda mais impiedoso que Voegelin e menos
respeitoso que Strauss: há uma denúncia de que o jurista não apenas pressupõe aquilo que
critica em suas obras, mas que seu próprio método de pensamento é a mera acusação, ou

22
LÖWITH, Karl. “Der okkasionellle Dezisionismus von Carl Schmitt” (1935), in: Sämtliche Schriften, Band 8,
Stuttgart: Metzler, 1984, p. 32-71. Utilizamos a tradução para o espanhol: El decisionismo ocasional de Carl
Schmitt, in: Heidegger, pensador de un tiempo indigente: sobre la posición de la filosofía en el siglo XX, 1ª ed. -
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2006, p. 43-89.
60

melhor, a ocasião da denúncia e não a coerência teórica guiaria seus escritos, caracterizando
seu pensamento como oportunista, um decisionismo volúvel ou, simplesmente, um
ocasionalista político. Ao final, após a exposição e comentário das teses schmittianas, sub-
repticiamente, Löwith vincula Schmitt aos acontecimentos políticos da década de 1930 na
Alemanha. Pretendemos, todavia, utilizar a leitura de Löwith como indício ou álibi para nossa
própria: é correto afirmar que em Schmitt figura uma ausência de fundamento, mas não que
isso lhe causa prejuízo, pelo contrário, provoca uma transformação na teoria política que,
embora não desenvolvida pelo autor, mostra uma possibilidade filosófica interessante para
pensar a pós-política ou, como denominamos, o pós-fundacionismo em teoria política.
Na exposição sobre a interpretação de Strauss, expusemos suas contribuições através
da crítica central ao pensamento de Schmitt de que ele oblitera a pergunta pelo fundamento da
decisão pelo político porque evidenciaria a inversão sistemática dos valores e princípios do
liberalismo, permanecendo o decisionismo schmittiano no horizonte mesmo daquilo que
combate. Desse modo, Strauss, enxerga um julgamento moral da moral da política ou do
liberalismo, ou seja, a afirmação do político não passaria de uma afirmação moral, no caso, da
superioridade da seriedade diante da vida burguesa. No final das contas, na leitura do filósofo,
Schmitt seria um liberal, com uma base moral, porém com o sinal invertido, pois propugna
outra moral, diferente da liberal, sem dúvidas, uma vez que afirma o conflito e, por
conseguinte, o político; porém, partilha a mesma arquitetura do adversário ao justificar sua
escolha por uma preferência moral. A interpretação de Löwith, inicialmente, assume a
estrutura do argumento straussiano: Schmitt apenas teria invertido os valores e princípios do
liberalismo e, por conta da mera inversão, partilha dos seus fundamentos. Dessa forma, ao
acusar o liberalismo de possuir uma estrutura subjetiva, da ausência de decisão e romantismo,
pois a partir do eu solipsista constitui a realidade, ele assume a lógica que combate: Schmitt
teria adotado uma decisão prévia, mais precisamente, uma decisão pela decisão, conforme
Löwith “eine Entscheidung für die Entschiedenheit”, ou seja, uma decisão de ser decidido
apenas como contestação polêmica diante do elemento de indecisão (na esfera pública) do
romantismo. Esta postura seria a base do seu decisionismo sem conteúdo: ao demonstrar sua
incapacidade de determinar o núcleo metafísico do liberalismo, a não ser negativamente,
Schmitt sofreria com a indeterminação do próprio fundamento que ele combate e, dessa
forma, não seria capaz de determinar o seu próprio. Na leitura de Löwith, de modo
semelhante ao adversário, o decisionismo seria um ocasionalismo, no sentido de que a decisão
permanece uma decisão pelo ser-decidido não importa o que seja decidido: o método
polêmico de crítica schmittiano – a mera inversão das posições sob ataque – teria como
61

contrapartida a falha que o comprometeria: o compartilhamento da ausência que atribui ao seu


adversário. Da mesma forma que no liberalismo ou romantismo haveria uma decisão por não
haver decisão (de igual modo, na leitura schmittiana, estes seriam políticos na medida em que
recusam o político), Schmitt expõe-se à exigência de haver decisão, não interessa sobre o quê.
Assim, sem a fundamentação metafísica que daria um conteúdo determinado, segundo
Löwith, Schmitt ficaria reduzido a um ocasionalismo, ou melhor, precipita-se naquilo que ele
mesmo acusa o romantismo, qual seja, a mera ocasião para a decisão, apenas com a inversão
entre esfera privada e pública. Como Löwith aponta logo no início do texto, “mostraremos
que também o decisionismo antirromântico e ateológico de Schmitt é apenas o reverso de sua
ação segundo as circunstâncias e a ocasião” (LÖWITH, 2006, p. 44). Além disso, se a partir
do Politische Theologie, o decisionismo é compreendido como vazio e meramente uma
ocasião para uma decisão sobre qualquer coisa; o Der Begriff des Politischen apresentaria
“um vazio de conteúdo de substância, o fundamento niilista do conceito de Schmitt da
política” (LÖWITH, 2006, p. 64), mais uma vez, a ausência de fundamento. Em torno destes
dois argumentos se estrutura o texto do intérprete alemão23.
A crítica schmittiana ao liberalismo questiona a incapacidade de decisão acerca de
questões éticas, religiosas e, sobretudo, políticas. Nesta proposta, apesar de considerar o
liberalismo como uma decisão política contra o político, Schmitt não se deixa convencer que
esta seja uma base apropriada ou suficiente para sustentar uma teoria política. Com efeito, o
liberalismo seria determinado por sua negação do político, seria o antipolítico por excelência
e, precisamente, esta característica daria à metafísica liberal a imagem de um mundo sem
substância definida, sem decisão ou juízo acerca do político, na leitura de Schmitt, míope
diante do conflito. Assim, contra o liberalismo ou a metafísica da indecisão (com sua ausência
de substância ou decisão pela não decisão), Schmitt polemicamente inverte e propõe o que
Löwith julga ser expressão de niilismo (ativo): uma decisão pela mera decisão ou por estar
decidido. Entretanto, a leitura mais atenta da obra de Schmitt, até mesmo da Politische
Theologie, mostraria que a decisão não é aleatória, mas sim uma decisão pela ordem, como

23
A acusação de uma postura ateológica e niilista por ausência de fundamento corrobora, mais uma vez, nossa
leitura de Schmitt: como já visto, tanto Strauss quanto Voegelin já criticavam o jurista pelo abandono da
metafísica ou, pelo menos, pelas considerações “da ordem das coisas humanas” (Strauss) ou “imanentismo” e
“abandono da Veritas” (Voegelin). A tese de Löwith, apesar das dúvidas sobre o caráter de Schmitt, joga luz
novamente sobre este aspecto: ausência de fundamentação, de substância ou essência. Löwith, porém, afirmar
ser esta uma falha insanável do pensamento schmittiano. No capítulo 3 demonstraremos ser esta a linha de fuga
para a proposta de uma alternativa às políticas da metafísica. Mesmo assumindo a interpretação de Löwith como
mote para nossa pesquisa, é necessário considerar que os argumentos de Löwith acerca de Schmitt não se
sustentam. Lukács também elaborou uma interpretação que vinculava Schmitt ao niilismo, cf. LUKÁCS, 1959,
p. 519-537.
62

mais à frente discorremos24. Em todo caso, para Löwith, a questão é que o argumento da
inversão de indecisão para a mera decisão, qualquer que seja, é a chave para compreender o
jurista, senão vejamos.
Inicialmente, é necessário indicar que o que Schmitt compreende por metafísica é
algo mais próximo de uma visão de mundo de uma época, sua Weltanschuung. Por exemplo,
em Politische Theologie, ele afirma que “a imagem metafísica do mundo, que se faz em uma
época determinada, tem a mesma estrutura daquilo que a ilumina como forma de organização
política. O estabelecimento de uma tal identidade é a sociologia do conceito de soberania. Ela
prova que (...) a metafísica é a expressão mais intensa e clara de uma época” (PT, p. 50-51)25.
Assim, conforme o jurista, para conhecer uma posição ou conceito, bastaria determinar a qual
imagem de mundo se refere. No caso em questão, Schmitt expõe a distinção entre romantismo
e decisionismo que Löwith tenta embaraçar: este surge como modelo da soberania e do
político (enquanto mediação, como veremos); aquele, exemplo da indecisão liberal da
burguesia. No entanto, na leitura do intérprete, o núcleo metafísico do liberalismo não
conseguiria ser definido pelo jurista exceto negativamente, por exemplo, como indecisão. Isso
implica, segundo a chave de leitura que afirma ser a obra de Schmitt uma mera reação
especular às teses que combate, que a indeterminação do fundamento do pensamento que ele
combate reverbera como sua a ausência de fundamento. É por isso que Löwith contesta ao
afirmar que o decisionismo não determina o fundamento metafísico que ele mesmo requer e,
por conseguinte, se configura como um ocasionalismo, ou seja, a decisão pelo político não
seria uma afirmação moral pelo político, como Strauss afinal salientara, mas sim uma decisão
pelo ser-decidido, o que traria sérias consequências para o decisionismo, pois vinculado com
seu oposto, o ocasionalismo. O autor, já no começo de sua resenha, lança a matiz que
assumiria em todo o texto sobre Schmitt: “As contribuições de Schmitt são esencialmente
‘polêmicas’, ou seja, não apenas criticam de modo episódico esta ou aquela posição para
iluminar sua própria opinião, mas também que sua própria ‘validade’ descansa por inteiro
sobre aquilo contra o que se dirige” (LÖWITH, 2006, p. 44). Assim, a argumentação
polêmica é considerada como aquele pensamento que não se interessa pela coerência ou
correção dos argumentos, mas apenas pela ocasião de sua imposição. O ocasionalismo
provocaria, então, o modo da decisão pela decisão, isto é, a decisão independente da sua

24
CF. Cap. 2. Sobre isso, GALLI, 2008 e SÁ, 2006.
25
PT, p. 50-51: “Das metaphysische Bild, das sic hein bestimmtes Zeitalter von der Welt macht, hat dieselbe
Struktur wie das, was ihr als Form ihrer Politischen Organisation ohne weiteres einleuchtet. Die Feststellung
einer solchen Identität ist die Soziologie des Souveränitätsbegriffes die Metaphysik der intensivste und Klarste
Ausdrück einer Epoche ist”.
63

matéria. Em uma leitura com dentes cerrados e poucas concessões, Löwith apresenta, logo no
início, observações como tentativa de confirmar sua tese (interpreta o termo “polêmico” de
maneira trivial ao se negar em reconhecer qualquer sutileza em seu sentido filosófico). Por
exemplo, quando descreve que Schmitt não indica nem em qual Zentralgebiet estaríamos nem
qual é o novo mito próprio do Estado total, já dispara a tese de que a decisão e o político na
teoria de Schmitt carecem de fundamento, antecipando a questão sem análise do mérito: “o
conceito do político não dá nenhuma indicação de um novo mito que possa funcionar como
fundação espiritual da atividade política moderna” (LÖWITH, 2006, p. 46) e descreve esta
postura de “confusamente romântica”, já numa chave de interpretação preconcebida na qual a
análise só traz a confirmação da tese de que Schmitt não teria nenhuma determinação clara do
político, a não ser que ele seria o oposto ao liberalismo e, neste sentido, não poderia não
decidir, ou melhor, estaria decidido a ser decidido. A rigor, poderíamos afirmar que, para
Löwith, qualquer argumento schmittiano estaria submetido a um reductio ad ocasionalismus.
Apesar dos equívocos, enquanto a análise de Strauss faz jus à complexidade do pensamento
schmittiano, a interpretação de Löwith assume, sem críticas, a estrutura do argumento
straussiano e dispara uma cadeia de considerações sobre o liberalismo/romantismo ao inverso
quando afirma a decisão pela decisão como imagem especular da indecisão romântica. Cabe
notar que, ao afirmar que Schmitt não fornece nenhuma orientação que sirva como “fundação
espiritual da atividade política moderna” (LÖWITH, 2006, p. 46), Löwith corrobora nossa
tese: para o jurista, em alguns textos, é possível sustentar que não haja realmente fundamento
último ou substância a partir da qual constituir a ordem, ou seja, sequer a distinção entre
imanência e transcendência, tal como tradicionalmente é compreendida, poderia ser mantida
depois das teses de Schmitt.
Neste contexto, a pergunta seria: qual papel o romantismo político desempenha na
obra de Schmitt? Parece-nos que este conceito esclarece a passagem realizada no século
XVIII, qual seja, da hegemonia da moral humanitária do século XVII para a economia e
técnica do século XIX-XX, restando à burguesia a função de sujeito político herdeiro do
espírito romântico. Em todo caso, o que caracteriza o romantismo político, conforme Löwith
aduz, é que “para este (Schmitt/Romantismo) tudo pode transformar-se em centro espiritual
da vida, já que sua própria existência não tem centro” (LÖWITH, 2006, p. 47). Dessa forma,
ainda segundo Löwith, Schmitt teria afirmado ser a ausência de fundamento o fundamento
desta postura. Além disso, seria central para “ao autêntico romântico (importa) apenas seu eu
engenhoso e irônico, porém no fundo inconsistente. ‘O indivíduo isolado, emancipado e
individualizado se torna, no mundo liberal burguês, (...) a instância superior de apelação, o
64

absoluto’” (LÖWITH, 2006, p. 47), isto é, a privatização da existência humana e, por


conseguinte, a submissão ou negação do político e a denegação da decisão. A metafísica
liberal partilharia, portanto, este núcleo metafísico da indecisão fundamental
(Unentschiedenheit ou Unentschlossenheit) expressa na ética da argumentação, da discussão e
publicidade que se opõem à decisão. Segundo Löwith, a crítica schmittiana do liberalismo
centra fogo à irresolução e às formas dos seus prolongamentos éticos, religiosos, jurídicos e
políticos. De fato, Schmitt considera os românticos como ocasionalistas, pois se movem num
“mundo sem substância, (...) sem decisão, sem juízo final” e, logo em seguida, afirma que este
diagnóstico serve também para a metafísica liberal como uma metafísica da indecisão. O
decisionismo schmittiano é considerado por Löwith um niilismo, se bem que ativo, devido à
recusa de fundamentação da decisão, ou melhor, a tese de que a decisão não surge de uma
cadeia de razões ou argumentações, mas apenas do gesto da ordem. Esta fundação por meio
da Entscheidenheit se expande a todos os domínios do existir, tema heideggeriano por
excelência, mas que em Schmitt seria o aspecto criticado por Löwith quando afirma que o fato
da decisão importa mais que o seu conteúdo. Na leitura de Löwith, este teria sido o equívoco
que denuncia a relação entre decisionismo e ocasionalismo (liberal ou romântico). Segundo
ele, para o jurista, “enquanto o romântico seja romântico, o mundo inteiro se apresenta para
ele como a mera oportunidade, a ocasião pura ou occasio, em termos românticos, como
‘veículo’, ‘incitação’ e ‘momento flexível (critativo)’ para a atividade produtiva de seu
irônico e intrigante eu” (LÖWITH, 2006, p. 48). Então, esta definição estaria bastante
próxima de sua própria definição de decisionismo sem fundamento e tempestivamente em
uma ocasião fática. Arremata Löwith: “este conceito romântico da occasio nega – da mesma
forma que o conceito de Schmitt de decisão! – qualquer ‘vínculo com uma norma’” e enreda
Schmitt no mesmo tipo de crítica que Strauss lhe remete: uma imagem especular daquilo que
combate. Apesar disso, Löwith reconhece que “o romântico mistura todas as categorias, é
incapaz de uma distinção e uma determinação clara, de uma decisão indiscutível” (LÖWITH,
2006, p. 48), ou seja, da maneira aproximada do próprio julgamento de Schmitt acerca do
romantismo, Löwith sustenta que estaria ausente na atitude romântica a seriedade política e
potência de decisão, porém mesmo sem levantar um argumento consistente na obra de
Schmitt que o enquadrasse com tal, o intérprete associa diretamente o romantismo ao
decisionismo de forma paradoxal ou, pelo menos, de modo a causar estranheza quando afirma
“para a indecisão insubstancial do romantismo, este pode encontrar, contra sua vontade,
decisões estranhas. Com este romantismo, Schmitt caracteriza, não em última instância,
também sua própria pessoa, já que seu próprio decisionismo é de tipo ocasional” (LÖWITH,
65

2006, p. 49). No entanto, parece-nos um argumento forçado igualar o romantismo


caracterizado pela indecisão e o decisionismo que, mesmo sem possuir conteúdo e ocorrer em
ocasião de exceção sob a ação do soberano, seria uma ocasião de decisão. O frágil argumento
de Löwith seria ainda mais contestado caso uma exegese simples dos textos schmittianos
fosse melhor executada: por exemplo, na estrutura da sua teologia política que vincula a
decisão à noção de e em função da ordem, além das considerações do político como mediação
da ideia ou representação da forma de direito26. As similaridades, coincidências e seletividade
não prestam para afirmar a identidade de coisas distintas e a mera constatação que uma
decisão se dá numa ocasião (na exceção) parece insuficiente para condenar toda uma teoria
política sob a denominação de ocasionalista. Em todo caso, Löwith prossegue:

Não obstante, falta à teoria política de Schmitt, juntamente com um âmbito central
determinante, não apenas a metafísica da decisão, que ele reconhece com justiça
como o fundamento portador do socialismo ‘científico’ de Marx, mas também o
fundamento teológico que está presente na decisão religiosa de Kierkegaard em
favor de um governo autoritário. Daqui se pode perguntar: (qual) a fé em que se
mantém a ‘exigente decisão moral’ de Schmitt, quando ele mesmo não tem fé nem
na teologia do século XVI nem na metafísica do século XVII e muitíssimo menos na
moral humanitária do século XVIII, mas apenas na força da decisão? (LÖWITH,
2006, p. 49-50).
Neste contexto, o decisionismo de Schmitt, na leitura de Löwith, é carente de
fundamento e, por isso, a exceção seria o único fundamento possível, na verdade, como a
ocasião para a decisão sobre o que se queira. Löwith enxerga subjetivismo e dogmatismo,
num irracionalismo que dispensa qualquer lastro essencial ou metafísica assumidos, assim:

O fato de que o extremus necessitatus casus, no sentido jurídico e em relação com a


política, não tenha nenhum conteúdo comum com a decisão existencial-religiosa de
Kierkegaard em favor do “único que é necessário” não tem importância para
Schmitt, já que para ele apenas interessa assegurar o direito anormal da decisão
como tal, além ou acima do conteúdo que se decida ou para qual utilidade
(LÖWITH, 2006, p. 50).
O autor da resenha crítica parece desconhecer que apesar de Schmitt recusar uma
fundamentação normativa em seu realismo (fraco ou forte) contra o positivismo do início do
século XX, ele preserva uma instância determinante da ordem, à princípio fática, todavia que
se encarrega de anular-se como força ao representar a forma política e organizar de fato a
estrutura do poder.
A interpretação de Löwith consegue o feito de não encontrar sequer uma boa ideia
nos textos schmittianos, mais uma vez, classificando a teoria da exceção à ausência de ordem
ou romantismo: “a exceção, disse Schmitt com um tom suspeitosamente romântico, é ‘mais

26
Sobre os conceitos de Soberania e Representação no pensamento político do século XVII, cf. DUSO, 2007 p.
160.
66

interessante que o caso normal’ e não apenas confirma a regra, mas também, afinal, a regra
vive somente da exceção (...) Schmitt, de modo oposto, enfrenta a exceção de modo polêmico
ao universal” (LÖWITH, 2006, p. 50-51). Löwith interpreta o fato de que Schmitt não acede
ao universal como um gosto pela não decisão27, mas não percebe as sutilezas do
desenvolvimento conceitual de Schmitt desde Der Wert des Staates até Der Begriff des
Politischen. Em mais um exemplo do equívoco que se tornou paradigmático e repetido a
despeito da análise de mérito, o autor assevera: “este fundamento niilista de uma decisão
ligada a nada mais se torna completamente claro no conceito do político” (LÖWITH, 2006, p.
57). Não é possível, sequer através de uma interpretação conservadora, afirmar que Schmitt
seria um teórico niilista que destroi as bases do Estado moderno! Além disso, sustentar que no
jurista não exista uma fundamentação transcendente da ordem é um equívoco notório.
Todavia, por uma exegese absurda, Löwith chega ao ponto que gostaríamos: a quebra do
fundamento do Estado via Schmitt, mesmo que no comentador em questão seja concebida de
maneira negativa e pouco convincente28. A passagem central da resenha de Löwith que
demonstra isso é a seguinte: “esta expressão de claridade máxima, todavia, alguém não pode
encontrá-la em Schmitt, já que, segundo sua construção histórica da totalidade moderna do
político, não existe um fundamento metafísico transparente nem um ‘tema de disputa’
genuíno, isto é, carece de um ‘âmbito decisório’” (LÖWITH, p. 52, grifo nosso). A ausência
ou carência de fundamento impressiona o resenhista:

Quando, como faz Schmitt para definir o político através do conceito de decisão
soberana, se abstrai todo âmbito central, então o único que resta consequentemente
como finalidade da decisão é a guerra que perpassa todos os âmbitos e os questiona,
isto é, a disposição ao nada que é a morte entendida como sacrifício da vida por um
Estado, cuja própria ‘pressuposição’ já é o decisivo-político. A decisão de Schmitt
pelo político não é, como uma decisão religiosa, metafísica ou moral, isto é,
espiritual, uma decisão para um âmbito determinado e regulativo, mas sim nada
mais que uma decisão pelo ser decidido (eine Entscheidung für die Entschiedenheit )
— não importa em favor de qual tema —, porque esta é a essência específica do
político (LÖWITH, 2006, p. 57).
Veremos como a interpretação de outros autores, por exemplo, de Derrida,
compreende o político schmittiano articulado com a noção de vida e não de morte (cf. 1.9).
Não obstante, Löwith retorna ao mesmo argumento inúmeras vezes: Schmitt postularia um
decisionismo sem conteúdo próprio, sem um fundamento metafísico, niilismo que leva à
morte e, diante disso, arremata sua interpretação afirmando que Schmitt desatou o laço entre
transcendência e imanência, não possui mais um princípio de ordem, mas apenas um
27
GÓRNISIEWICZ, 2016.
28
O mérito da interpretação de Löwith está na acusação de ausência de fundamento e apelo à imanência do
político na teoria de Schmitt. O que Löwith denuncia se torna na reconstrução que elaboramos o esboço de uma
teoria política pós-fundacionista.
67

“decisionismo profano de Schmitt (que) é necessariamente ocasional, já que carece não


apenas dos pressupostos teológicos e metafísicos dos séculos anteriores, mas também da
moral humanitária” (LÖWITH, 2006, p. 52). Se por um lado, a ausência de fundamento a que
se refere Löwith marca a preocupação de uma desvinculação entre “uma política da decisão
soberana, para o qual o conteúdo, não obstante, é apenas o produto da occasio contingente da
situação política do momento” (LÖWITH, 2006, p. 53) e “o produto ‘da força de um
conhecimento íntegro’ sobre o originalmente correto e justo, como no conceito platônico da
essência da política, em que dito conhecimento é a fonte de uma ordem das questões
humanas” (LÖWITH, 2006, p. 53); em outras palavras, Löwith se antecipa e demonstra o que
pretendemos fazer nesta pesquisa: Schmitt teria realizado uma ruptura das simetrias ou
bipolaridades entre transcendência e imanência, ressaltando o caráter da contingência em
detrimento do universal e necessariamente justo que serviria de base para a “ordem das
questões humanas”, tal como Voegelin e Strauss, por outros meios, já haviam diagnosticado,
saudosos da antiga unidade e ordem. Aliás, como o próprio Schmitt antes tinha se esforçado
tanto por garantir. Por outro lado, o caráter ocasional da decisão seria o responsável por essa
liberação indevida, pois:

sua decisão – que flutua em libertade por não se apoiar em nada mais que em si
mesma – corre o perigo, reconhecido por ele mesmo, não apenas ocasionalmente de
se equivocar quanto ao “ser subjacente” em cada grande movimento político (...)
mas também que, desde o começo, também se encontra exposta de modo
permanente e inevitável a este perigo, já que este é essencial ao ocasionalismo, ainda
em forma não-romanticamente decisionista (LÖWITH, 2006, p. 52-53).
Nesta tentativa de anexar a Schmitt o rótulo de ocasionalista, Löwith sustenta que o
decisionismo schmittiano sem fundamento nem conteúdo, sendo meramente uma decisão por
ser decidido seja lá qualquer coisa que for, como se houvesse uma espécie de síndrome ou
fetiche da decisão, seria da mesma natureza do seu oposto. A rigor, os comentadores, tanto
Strauss quanto Löwith, jogam contra Schmitt a mesma estrutura do argumento que torna
política uma postura antipolítica. Entretanto, é na questão sobre o político que o resenhista
explora ainda um argumento central para reforçar sua tese: a relação entre amigo e inimigo.
Para Löwith, esta seria uma relação aleatória e, por isso, mais uma vez ocasional. O
argumento seria o seguinte: como não se refere a uma substância ou essência, o inimigo
político, em última instância, seria aquele determinado de fato, ou seja, mais uma vez, na
contingência da ocasião, como na passagem, um pouco longa, mas necessária:

Em algumas passagens parece que o inimigo é “precisamente” apenas um estranho,


um outro, alguém de “índole diferente” (ein Andersgearteter) de modo tal que em
um caso extremo seria “possível um conflito” como ele que apenas poderia ser
decidido pelos participantes como uma questão de vida ou morte (...) De modo mais
68

expresso se diz que a guerra que não é um combate espiritual nem uma contenda
simbólica, mas sim um combate no sentido de “condição ontológica originária”, que
surge da diversidade de índoles entre o próprio ser e o estranho. Se segue da
inimizade, que o combate é apenas a “realização” e a “consequência” mais extrema
da distinção ontológica existente. Por outra parte, o estado real da inimizade mútua
não é caracterizado como uma realidade dada por natureza, mas sim como uma
possibilidade essencial da existência política, como um poder-ser antes que como
um ser-assim determinado por natureza (...) Inclusive se nega de forma expressa que
a distinção amigo-inimigo signifique que um “povo determinado deveria ser sempre
amigo ou inimigo de outro povo determinado”, ou que a neutralidade não possa ser
politicamente significativa e que o evitar a guerra não possa ser o correto em termos
políticos. Antes, a guerra parece cerecer de sentido se é medida seu sentido com os
propósitos e bens concretos da vida, em lugar de medi-la com seu pressuposto puro:
a afirmação e a manutenção da existência política (LÖWITH, 2006, p. 59-60)
Em outro trecho importante, no qual Löwith expressa suas indagações acerca das teses
schmittianas e articula niilismo, ocasionalismo, distinção entre amigo e inimigo, o argumento
da ausência de fundamento (contingência e ocasionalismo) retorna acrescido do tema
ontológico e da aproximação com Heidegger:

Todavia, se somente no caso conflitivo pode ser decidido se é necessária esta última
consequência de um assassinato físico e de um sacrifício físico, então o inimigo
ontológico – o qual deveria significar muito mais que o fato de que alguém “seja”
meu inimigo de modo contingente – não se determinaria apenas de modo ocasional,
isto é, a partir de que ele questiona e nega a própria existência política de um modo
por completo independente da índole peculiar do ser? Todavia, o inimigo tampouco
nega, de modo algum, a própria “forma de existência” ou “índole” do ser, mas sim
nega nem mais nem menos que a existência pura, o factum brutum do Dasein
público político, antes que qualquer definição mais precisa em termos de diversas
índoles inimigas ou amigas entre si do ser nacional e racial, religioso e moral,
civilizatório e econômico (LÖWITH, 2006, p. 62).
Não pretendemos analisar o mérito da leitura de Löwith, mas recuperar alguns
elementos interpretativos para reforçar nossa tese. No trecho em questão, o resenhista tem
razão tanto ao afirmar que Schmitt não busca um fundamento, quando sustenta que as
categorias de decisão e do político são irredutíveis à racionalidade normativa. É possível
considerar o niilismo, mas o que Löwith realmente elabora é uma condenação do niilismo de
Schmitt como impotência diante do acontecimento, ou melhor, é a acusação de ocasionalismo,
na verdade oportunismo, que Löwith remete contra Schmitt. No entanto, Löwith cai em
contradição: ele afirma que Schmitt possui uma crítica ao normativismo liberal não tendo ela
própria, seguindo a análise de Strauss, senão um sentido normativo. Todavia, esse raciocínio é
paradoxal: ou bem descarta toda e qualquer normatividade (esta é justamente a acusação de
ocasionalismo político que Löwith dirige à Schmitt), ou bem o jurista teria assumido, às
avessas, a normatividade do liberalismo (acusação de liberal e moralista de Strauss) que
Löwith admite como correta. Diante da crítica aporética, afinal, consideramos que a tentativa
de Schmitt pode ser compreendida como uma superação da lógica do fundacionismo que
escapa, precisamente, da “má infinidade (do fundamento) do normativismo” (KERVÉGAN,
69

2006, p. 120). Desse modo, vai bem além ao descontruir a diferença entre imanência e
transcendência, normativo e descritivo, realidade e aparência. O fato de Schmitt não eleger
uma relação ou instância e reconhecer que o único critério que possui é a intensidade da
relação, seja ela qual for, é o suficiente para Löwith afirmar seu rótulo ocasionalista, mas pelo
mesmo argumento podemos afirmar também que Schmitt seria avant la lettre um teórico da
política pós-fundacionista. O resenhista parece fixado em dispensar logo de início qualquer
coisa que não se parecer com fundamento ou metafísica. Assim, não serve qualquer
consideração da imanência que, por conseguinte, seria fruto do sujeito, da vontade e ocasião.
Paradoxalmente, Löwith extrai uma conclusão coerente:

Como consequência disto, oscilam de lá para cá suas formulações decisivas da


distinção amigo-inimigo entre uma inimizade (ou amizade, segundo corresponda)
compreendida de modo substancial e outra compreendida de modo ocasional, de
modo tal que, afinal, não sabe se aqui se trata de índoles similares ou diversas ou
apenas de quam estão unidos – uns contra os outros – de modo ocasional. Sobre o
fundamento oscilante desta ambiguidade, Schmitt erige seu conceito de ser político,
cuja característica essencial já não é a vida na pólis, senão apenas o jus belli
(LÖWITH, 2006, p. 65).
A questão se impõe: a dificuldade de pensar a teoria política em Schmitt sob a
perspectiva da metafísica política, pois baseada em relações imanentes e de conflito, somente
se desvencilharia dos problemas inventados caso apostasse em outra forma de compreensão
da política. Aliás, o deslocamento do centro e a dissolução das certezas caracteriza em grande
parte a política contemporânea. Com efeito, partimos da mesma compreensão do texto de
Schmitt, porém com uma pretensão oposta ao de Löwith, por exemplo, quando o intérprete
afirma:

Em Schmitt encontramos a mesma inversão, porém de um modo relativamente


liberal em sua tese de que todos os conceitos políticos são necessariamente
“polêmicos” por estarem ligados a uma “situação”(!!!) dada. Para Schmitt, não
existe em absoluto conceitos políticos que não tenham em vista “uma confrontação
concreta” – em última instância, o caso de emergência na relação com o inimigo
político – e que não estejam ligados a uma tal situacão (LÖWITH, 2006, p. 73).
Ao invés de interpretar como ocasionalista ou oportunista, Schmitt se apresenta em
nossa leitura como um teórico imanentista (mesmo que resguarde uma instância de
transcendência no interior da imanência) e autor marcado pela finitude, ausente o fundamento,
ou melhor, o fundamento como esta ausência provocada pelo antagonismo: a ausência como
centro da política, numa concepção baseada na diferença e não na identidade substanciais que
Löwith esperava encontrar. Nesta outra passagem, Löwith reforça a compreensão de Voegelin
sobre o abandono da transcendência e a escolha pela imanência de Schmitt “a inevitável ‘falta
de objetividade’ [por acaso Schmitt estava interessado em evitá-la?] de toda decisão política
é, para ele, apenas o ‘reflexo da distinção entre amigos e inimigos’, imanente a toda conduta e
70

compreensão políticas” (LÖWITH, 2006, p. 74). Sem mais delongas, é esta leitura que
colhemos do texto de Löwith que nos fornece um surpreendente reforço das concepções
desenvolvidas nesta tese.
De maneira mais explícita, Löwith articula Schmitt a Heidegger em torno da questão
da faticidade e da decisão. A passagem é extensa, mas vale a pena reproduzi-la integralmente:

Apareceu no mesmo ano que O conceito do político de Schmitt, e a teologia


dialética alcançava seu maior poder de sedução nesse mesmo momento. Para
compreender o contexto contemporâneo dos impulsos radicais de Heidegger torna-
se útil colocá-los em relação com uma expressão de Rilke. O mundo burguês,
escreve Rilke em uma carta de 8 de novembro de 1915, tem esquecido por meio de
sua fé no progresso na humanidade das ‘últimas instâncias’ da vida humana; tem
esquecido que este mundo burgês ‘estava superado de antemão por Deus e pela
morte’. O mesmo significado também tem a morte em Ser e Tempo (§63): como a
insuperável ‘instância superior de apelação’ de nosso ser e poder. Em Ser e Tempo,
de Deus não se fala (...) O único necessário para ele é a pergunta pelo ser enquanto
tal e em sua totalidade; uma pergunta para a qual o nada e a morte resultam
especialmente reveladoras. A morte é o nada diante da qual se manifesta a radical
finitude de nossa existência temporal ou, como se encontra nas lições de Freiburg
(...) a “faticidade histórica” cujo pathos é a resolução de assumir o Dasein mais
próprio. “A liberdade para a morte” (...) por meio da qual o Dasein em cada caso
próprio e isolado em si mesmo alcança seu poder-ser-total corresponde ao
decisionismo político com o sacrifício da vida pelo Estado total no caso de
emergência da guerra. O princípio de ambos os casos é o mesmo: o regresso radical
a algo último, ao puro Dasein da faticidade, isto é, ao que resta da vida quando se
tem varrido todos os conteúdos vitais tradicionais (LÖWITH, 2006, p.78).
Nas aproximações que Löwith realiza entre Schmitt e Heidegger 29, o resenhista
atribui uma dimensão ontológica à obra de Schmitt, mas a conclusão é próxima dos termos de
Strauss, aliás, sendo algo similar às análises de Heidegger sobre o jurista30: a simples inversão

29
O tema da decisão estava em voga na Alemanha dos anos 1920. Tanto no que se refere à urgência política da
ação quanto à rejeição de um racionalismo inerte, pouco propício à decisão e à vontade. A indecisão, às vezes
assimilada ao que Nietzsche denomina vontade de nada, seria o fundamento metafísico da decadência. Aliás,
este seria outro tema dos 1920, sobretudo, através de Oswald Spengler. No caso de Schmitt, o sentido da questão
em Kierkegaard é deslocado e seletivamente interpretado como reforço do seu decisionismo, bem como observa
o tema através das relações próximas com Jünger e Heidegger. No prolongamento desse radicalismo, a partir de
Karl Barth, critica-se a concepção liberal da religião, postulando “uma decisão inexplicável determinada pela fé
na revelação, irredutível a qualquer enraizamento antropológico”, uma espécie de ruptura com a irresolução
própria das teologias liberais” (KERVEGAN, 2006, p. 117). Neste contexto, Löwith considera mais relevante a
aproximação entre a concepção do político e a temática da resolução (Entschlossenheit), desenvolvida por
Heidegger nos parágrafos 60 e 62 de Sein und Zeit e sugere que a crítica schmittiana à metafísica liberal como
uma indecisão fundamental (Unentschiedenheit), a ética da argumentação, da discussão e da publicidade
evidencia a decisão pela decisão que o decisionismo schmittiano exige.
30
Heidegger acusa o pensamento de Schmitt de ser a última versão do liberalismo: “Und damit mitgegeben das
Freund-Feind-Verhältnis. Was ist das für eine Selbständigkeit? Die des Politischen. Carl Schmitt denkt liberal: 1.
weil Politik »auch« eine Sphäre; 2. weil vom Einzelnen her und seiner Haltung. Vgl. dagegen S. 161. Er
übersieht - daß gerade der Widerstreit seine innere Transzendenz hat - zum Staat - seine Grundbedeutung - in der
Bezogenheit auf Staat - sofern dieser als Sein des Volkes - aber der »Staat« kann dergleichen auch nicht »sein«
(schon »Staat« was? Formaler status, Ausstattung, Auftreten. »Mathematischer Staat«. Vorrede zur
Phänomenologie). So ist die »Bewegung« - »politisch« - Träger und Wahrer des Politischen. Das Politische (d.
h.) Sein = Sorge des Volkes (nicht »für« das Volk) und hier nun erscheinende Möglichkeiten. Aber immer vgl. 1
u. Sich-selbst-werden - im Anderssein! (Innenpolitik) - zu sich selbst und gegen Andere! Weshalb hier
notwendig Zusammen(Ein-)schluß als Ausschluß - weil - Sorge -Mitsein umwillen! und Widersein - damit schon
Bestimmung des Anderen als Freund!”, GA, 86, p. 117.
71

do liberalismo caracterizaria o decisionismo como uma ausência de fundamento próprio.


Enquanto alguns asseveram que as teses schmittianas encontrariam seu telos no conceito de
Estado total31, nossas análises interpretam-no como um pensamento pós-metafísico por, entre
outros argumentos, conceber o político a partir da faticidade, aliás, diagnóstico que Löwith
também aceita. Em seu paralelismo com Heidegger (Löwith elabora um grande excurso sobre
Heidegger na análise do pensamento de Schmitt), ele associa os autores e afirma que decisão
sem conteúdo “adquiriu conteúdo histórico-político a resolução formal cujo ‘para quê’ que
aparece na decisão (Ser e Tempo § 60). A brincadeira magistral que um dos ouvintes das
lições de Heidegger disse – “estou decidido, porém não sei para quê” – foi recebido com uma
seriedade inesperada, já que a enérgica marcha vazia dos existencialistas (...) entrou no
‘movimento’ político universal” (LÖWITH, 2006, p. 81). Neste trecho, ironicamente, Löwith
continua a associação do decisionismo com o irracionalismo e niilismo. Prossegue em sua
leitura ocasionalista, agora apelando para os eventos nefastos da década de 1930:

O pathos da decisão em favor da pura decidibilidade encontrou uma aprovação


generalizada na época do entreguerras. Preparou o caminho para a decisão em favor
da decisividade de Hitler e fez possível a virada política como ‘revolução do
niilismo’. Todavia, este pathos não estava de nenhum modo confinado ao
decisionismo político, mas também caracterizava não menos a teologia dialética e a
filosofía da existência (LÖWITH, 2006, p. 77).
No texto da resenha, o autor esboça uma genealogia do decisionismo e busca uma conexão
interna entre decisionismo político, filosófico e teológico, nomeadamente, entre Carl Schmitt,
Martin Heidegger e Friedrich Gogarten32.
Ainda mais adiante, Löwith demonstra que todo o percurso de Schmitt é marcado por
quebras teóricas e manobras interpretativas que apenas confirmam a tese monocórdia de que
Schmitt é ocasionalista, pois a depender da situação, do contexto ou do argumento, ele
alteraria de posição: “O princípio de todas as mudanças nas distintas edições é, não obstante,
sempre o ocasionalismo que caracteriza as decisões de Schmitt ligadas à situação do momento
e, por isso, em todos os casos polêmicas” (LÖWITH, 2006, p. 72). Por exemplo, no trecho
acerca do Drei Arten no qual abandona oficialmente o normativismo e o decisionismo,
Löwith decreta: “Este último câmbio no pensamento variável de Schmitt poderia sugerir
inicialmente que inverte tudo o que teria dito até este momento, porém na realidade isto só
confirma o caráter completamente ocasional do seu pensamento político” (LÖWITH, 2006, p.
76). Para quem estava tão atento à obra de Schmitt, não perceber a continuidade na diferença

31
Por exemplo, a tese de Jean-François Kervégan, cf. KERVÉGAN, 2006, p. 119 e, logo abaixo, 1.7.
32
Cf. ainda Falk (2014). O texto passa se concentrar nas análises de Heidegger e descreve o argumento da
iminência da morte e o manter-se diante do nada, além de Gogarten e esboça uma análise da época sob o tema da
decisão tomada a partir da imanência que seria o pressuposto do pensamento de Schmitt.
72

entre os momentos do autor, por exemplo, entre os textos Politische Theologie e Der Begriff
des Politischen revela uma leitura seletiva. Löwith mesmo faz a retrospectiva do jurista:

Se um estado de necessidade político é eliminado faticamente por um fato decisivo,


então também o decisionismo como conceito político fundamental se torna
supérfluo. Com este abandono da decisão, Schmitt não trai seu próprio pensamento:
pois se em algum lugar seu pensamento se mantém fiel a si mesmo é precisamente
na passagem do normativismo extremo (em seu ensaio sobre o Valor do Estado e o
significado do Indivíduo, de 1917 [sic]), passando pelo conceito decisionista do
político (1927), até seu pensamento da ordem (1934), já que compartilha com
fidelidade o pensamento do que lhe corresponde, de maneira impensada, nas
situações políticas respectivas. Tão “decisiva” como era antes a situação anormal da
“exceção”, assim de decisiva se torna agora a situação “normal” e estabelecida e o
“homem normal” para o pensamento político correto e justo. A antítese que serve de
critério já não é norma vs. decisão, mas sim norma vs. ordem. Os conceitos políticos
perdem assim o caráter essencial afirmado anteriormente, o de ser polêmicos; agora,
se tornam essencialmente positivos, de acordo com a nova ordem positiva do Estado
que sucede à decisão política levada a cabo pela revolução nacional-socialista
(LÖWITH, 2006, p. 76).
O autor encerra o trecho associando diretamente as teses e a metodologia schmittiana ao
Nazismo, talvez, um dos primeiros registros históricos de um intelectual de grande influência
que contribui para a má-fama do jurista: “a decisão soberana de ontem se integra agora —
após seu abandono — à ordem concreta recém surgida” (LÖWITH, 2006, p. 77)33.
Na verdade, ao contrário de Löwith, atribuímos esse fluxo e alterações na obra de
Schmitt por uma estratégia finitista assumida mesmo que hesitante. Até mesmo Strauss faz
este julgamento, quando atribui as alterações do Der Begriff des Politischen à leitura das suas
Bemerkungen por Schmitt. Julgamento oposto realizado por Löwith. Primeiro, ao associar
teses inexistentes no texto de Schmitt com o Nazismo: “já que Schmitt não apenas é tão
antiliberal, isto é, tolera todos os agrupamentos sem se improtar de que índole sejam desde
que seja ‘sérios’, mas também por ser tão antisemita que promove a especificidade racial
como fundamento da existência comum” (LÖWITH, 2006, p. 70). A leitura de Löwith
combate uma caricatura e, de fato, parece que o resenhista analisa outro livro. Segundo, ao
comentar as alterações entre 2ª e 3ª edição e apelar para questões quase pessoais insinuando
que a ocasião do Nazismo também tivesse ensejado a ocasião para uma mudança na
concepção teórica de Schmitt34. Neste momento, Löwith alcança sua crítica mais incisiva e
talvez injusta: “por certo, em uma formulação que não levar ao ingênuo leitor à ideia de que a
nova mudança de Schmitt só pode ter sido feita depois da vitória da revolução nacional-
socialista (LÖWITH, 2006, p. 72).

33
Nas últimas décadas, o papel de principal acusador de Schmitt cabe, entre vários outros, a Yvez-Charles
Zarka. Cf. ZARKA, 2005.
34
Sobre as alterações entre as edições do Der Begriff des Politischen, por todos, MEHRING, 2009. Ademais,
para os pesquisadores de Schmitt faz-se imprescindível a edição em português do Der Begriff des Politischen
traduzida por Alexandre Sá na qual são cotejados os textos das três edições.
73

Assim, quando Löwith, um contemporâneo do jurista, afirma que “o único chamativo


deste desenvolvimento é que Schmitt parece considerar por completo supérfluo assinalar ou
justificar ao leitor (...) a mudança compulsiva que sofreu sua decisão soberana desde O
conceito do político” (LÖWITH, 2006, p. 77) nada mais faz do que reforçar a necessidade de
uma leitura que explicite algumas opções e realize, mesmo à contrapelo, alguns
desdobramentos que Schmitt não assume ou desenvolve. Eis o papel desta tese. Há outra
passagem no texto de Löwith que, apesar da densa carga crítica, funciona como pista para
nossa própria pesquisa, tal como o trecho acima citado. Quando o resenhista afirma que em
Schmitt se encontra “apenas a disposição para a morte e para matar, porém não qualquer tipo
de ordenamento da vida comunitária, tal como corresponde ao sentido original da pólis, se
converte na ‘instância superior de apelação’ para o conceito de Schmitt da essência da
política, conceito para o qual o caso normal da vida em comum em uma comunidade pública
não é o específico” (LÖWITH, 2006, p. 57-58), também encontramos outra pista sobre a
relação comunidade, político e morte que desenvolvemos na última parte desta pesquisa.
O tom das críticas da década 1930 ainda sem uma interpretação cuidadosa da opera
schmittiana é marcado pelos ataques de Strauss, Voegelin e Löwith aos flancos da teoria
política: a ausência de fundamento. Da mesma forma, Lukács35 não faz outra crítica ao
associar Schmitt ao irracionalismo, considerando seu decisionismo como niilista. O que não
se percebe, porém, é que esta leitura – irracionalista, niilista, imanentista, ausência de
fundamento – não representa necessariamente acusações graves. Pelo contrário, se é correto
que Schmitt não propõe uma determinação essencial ou substancial do político, ou que a
decisão e, posteriormente, o político não faz jus à racionalidade moderna, só demonstra que o
autor evidenciou um paradoxo interessante, sem dúvidas, da racionalidade jurídica moderna,
inclusive, através da sua própria dissolução. Aquele que se guia por Löwith para compreender
Schmitt não encontra nada além do que uma caricatura disforme sob a sombra do
ressentimento.

1.4 Hasso Hofmann: o Pathos de decisão e a legitimidade como problema


jurídico [1964]36

35
LUKÁCS, 1959, p. 519-537.
36
O texto que utilizamos foi publicado originalmente como Legitimität gegen Legalität: der Weg der Politischen
Philosophie Carl Schmitts em 1964, seguido por edições em 1992, 1995 e 2002, esta última a que consultamos
(Berlim: Duncker & Humblot, 2002).
74

O mérito do livro Legitimität gegen Legalität consiste em sua abordagem sistemática


da obra schmittiana. Ao invés de perder-se em conjecturas relativas à biografia do jurista e
sua damnatio memoriae, Hofmann elabora a primeira tese sobre Schmitt que, a rigor, propõe
uma chave de leitura que perpassa todo pensamento do autor, a saber, a questão da
legitimidade. A relevância da interpretação paradigmática de Hofmann reside, em primeiro
lugar, na leitura da obra a despeito das polêmicas que já se assomavam em torno de Schmitt
em meados da década de 1960, apesar de arrefecidas após 1945, ou seja, não possui tom
apologético nem polêmico; em segundo lugar, apresenta com rigor metodológico a análise
mais completa da obra schmittiana, propondo uma exegese histórico-evolutiva do pensamento
do autor. Nesta proposta de leitura sistemática, o autor aposta que não haveria um método pré-
concebido em Schmitt; antes, o jurista pensaria a partir do acontecimento ou do caso concreto,
mesmo de maneira contraditória, tal como Hofmann afirma acerca do problema da coerência
na obra de Schmitt:

As numerosas antíteses conceituais sempre a enviar continuamente à decisão.


Conforme isso, a obra de Schmitt não forma um sistema racional (Schmitts Werk
kein rationales System). Ao contrário, muito provavelmente é possível encontrar um
contínuo pathos da decisão (Pathos der Entscheidung): o decisionismo de Schmitt
como atitude espiritual (geistige Haltung)” (HOFMANN, 2002, p. XXIX).
Estes aspectos já tornam o livro de Hofmann obra de referência para compreender o
pensamento schmittiano, por isso pretendemos retomar e problematizar a seguir, sobretudo, a
tese de Hofmann de que haja uma continuidade no pensamento de Schmitt, não obstante as
inúmeras contradições conceituais, assegurada pela questão da legitimidade, ou melhor, como
elemesmo assevera: “o presente trabalho se move a partir da hipótese de uma certa
continuidade em todas as modificações” (HOFMANN, 2002, p. XXXI), e logo em seguida
afirma:

Isso determina a doutrina schmittiana do Estado e do direito como uma tentativa de


isolar a ideia do Estado anti-individualista e transpessoal (einer
antiindividualistischen, transpersonalen Staatsidee), e como busca de um
fundamento para uma justificação do direito pós-positvista. Por isso, a fórmula é
Legitimidade contra Legalidade (Legitimität gegen Legalität) (HOFMANN, 2002, p.
XXXI).
Apesar de optar por uma abordagem extensiva, Hofmann faz algumas escolhas
exegéticas e, dentre elas, está a tarefa de situar as teses schmittianas no interior da tradição
política moderna, além, é claro, de um tratamento imanente à Opera, isto é, sem considerar
questões biográficas. De fato, estes são acertos importantes de sua interpretação, pois não
apenas aborda os conceitos e argumentos dentro do quadro referencial do autor, sem
conjecturas sobre as polêmicas em torno do Nazismo, mas também o faz, considerando
75

Schmitt como jurista no interior da tradição, ou melhor, no final da tradição do que pode ser
chamada era da estatalidade ou, como preferimos, das políticas da metafísica. A obra do
jurista alemão é localizada por seu comentador como um problema de direito público e
político, mais especificamente, apesar das contradições que perpassam toda a obra analisada,
o problema da crise do racionalismo político moderno. Assim, com suas considerações acerca
da contradição como estrutura conceitual, Hofmann através de Schmitt revela um problema da
própria modernidade, inclusive sob a característica de uma peculiar epistemologia da
contradição e consegue tratar um importante problema de filosofia política a partir de um
contexto jurídico, extrapolando os limites de ambos. Assim, em paralelo ao problema da
legitimidade, qual seja, a justificação da ordem e da violência, o intérprete estabelece outro
elemento paradigmático na interpretação sobre Schmitt: o argumento de que para acompanhar
a obra schmittiana é necessário jogar com a contradição. A contradição é colocada como
princípio hermenêutico, pois não seria possível compreendê-lo como uma sistematicidade: as
inúmeras contradições internas e mudanças de posições são relacionadas com os distintos
contextos histórico da obra. Um situacionismo ou contextualismo que refletiria ao invés de
uma preocupação com o universal, a atenção aos aspectos concretos, confundindo abordagens
analíticas e histórica (por exemplo, conforme a crítica de Voegelin) ou ainda ratificando – de
maneira mais compreensiva e laudatória – a acusação de pensamento ocasionalista (segundo a
análise de Löwith)37 e, conforme sustentamos nesta tese, uma postura imanentista. Entretanto,
a constatação da contradição e da relevância do contexto histórico não significa que Schmitt
apenas analisava a situação concreta e esta mera faticidade servisse de tema para a discussão,
mas sim a considerava através de uma anti-sistematicidade assumida como ponto de partida.
É a leitura hofmmaniana que inaugura, pelo menos, executa em um estudo detalhado, esta
análise: metodologicamente, compreende o jurista a partir da contradição38 e seu pensamento
ao nível fenomenológico, histórico, contextual. Em suma, suas teses são formas de
argumentos que podem ser localizados em determinada situação espiritual e determinado
momento histórico. Este argumento torna-se um paradigma interpretativo importante. No
texto em comentário, Hofmann segue a obra de Schmitt desde 1910 até pouco depois de 1950
com estes pressupostos acima descritos. Esta obra, um clássico para schmittólogos, de direita

37
É bastante conhecida a interpretação-acusação de Löwith sobre Schmitt “o decisionismo antirromântico e
ateológico de Schmitt não é outro que outro aspecto de seu agir segundo a ocasião e a circunstância”. Sobre isso,
cf. seção 1.3.
38
O que serve de potente argumento para nossa leitura no capítulo 3: não apenas a obra schmittiana prossegue de
maneira contraditória, como a própria contradição (na forma de antagonismo ou conflito e violência) é tida como
básica para compreender as instituições, relações e a própria política.
76

ou de esquerda, fiéis ou infiéis, influencia nossa releitura, ou melhor, nossa reescrita de


Schmitt, apesar de não estar isenta de limitações.
Há outra tese subsidiária, além da legitimidade e do pathos da contradição, que
Hofmann detecta. Ele sustenta que para compreender a obra de Schmitt torna-se necessário
perceber todos seus escritos a partir de seu contexto e da situação concreta, como tentativas,
literalmente, variações sobre o tema: uma espécie de pós-positivismo político avant la Lettre,
ou melhor, a elaboração de um realismo político contra (mais uma vez a contradição como
mola propulsora) os diversos normativismos. Assim, para Hofmann, Schmitt considera a
recusa de uma fundamentação normativa sem recair na mera afirmação da força normativa do
fático ou da validade da norma imanente a si, propondo de várias maneiras o pensamento da
contingência fora do conceito, como algo impredicável, tal como também propomos na última
parte desta tese. Hofmann reconhece em parte esta habilidade do jurista ao tratar da “história
ou sociologia dos conceitos”39 ou, tal como ele caracteriza numa expressão muito adequada,
“um pensamento situado” (HOFMANN, 2002, p. 7), isto é, fenomenologicamente orientado
ao caso concreto. Neste contexto, o comentário de Hofmann lida com estas questões
interpretativas e, sobretudo, diante da questão metodológica da leitura da obra de Schmitt,
propõe uma solução ao problema da continuidade ou da descontinuidade no pensamento do
autor: após 1933, houve alguma ruptura teórica na sua obra ou manteve-se Schmitt coerente?
Com lucidez, Hofmann trata da questão da ruptura, afastando-se da abordagem biográfica, ao
sustentar uma continuidade no pensamento schmittiano não obstante a contínua modificação
de fases ou abordagens, explícita ou implicitamente. O autor reconhece tanto a ausência de
coerência em fases distintas do pensamento de Schmitt quanto uma falta de consistência no
interior da mesma posição, apesar de fornecer não exatamente um conceito ou argumento, tal
como propomos nesta tese, mas sim um problema, qual seja, o da legitimidade. Em nossa
leitura, pretendemos demonstrar, desta vez em um autor sistemático, que o argumento da
finitude surge como a principal chave de acesso ao pensamento schmittiano.

* * *
As considerações de Hofmann podem ser reconduzidas a um problema-chave: a
legitimidade é tomada como categoria hermenêutica através da qual se interpreta toda a obra
schmittiana, notadamente, contra a concepção de legalidade do positivismo jurídico. O

39
Para Schmitt, “qualquer movimento espiritual deve ser considerado por si mesmo de um ponto de vista
metafísico e moral, não como um exemplo de um princípio abstrato, mas como realidade histórica concreta, em
relação a processos históricos” PT, p. 7. A sociologia dos conceitos schmittiana é uma das influências de R.
Koselleck, O. Brunner e Cia. em torno do Geschichtliche Grundsbegriffe. (KOSELLECK; CONZE; BRUNNER,
1994)
77

argumento interpretativo que o autor estabelece como chave de leitura do pensamento de


Schmitt não é outro senão o problema da justificação do poder público, marcado pela
exaustão da metafísica da ordem/Estado e, por conseguinte, por outro conceito de Politik,
como afirma Hofmann (2002, p. XXXIII-XXXIV):

O cumprimento democrático (Das demokratische Ende) da metafísica do Estado


(Staatsmetaphysik), como o motivo principal da contemporânea desestatalização do
político (als des tragenden Grundes der neuzeitlichen Verstaatlichung des
Politischen), faz Schmitt tentar conservar a ideia do Estado como ‘unidade politica’
através do recurso ao político tal como definido pela tradição da doutrina do Estado
(forte grau de unidade e capacidade de fazer guerra).
Segundo o intérprete, este problema percorre desde a origem nas suas obras de juventude,
atravessa as variações sobre o tema de viés racionalista, existencial e racial até, num último
turn, assumir uma legitimidade histórica, implicando um argumento que servirá de guia para
Hofmann: Schmitt não elabora uma teoria do Estado, mas uma teoria da Constituição como
base para o político. Na interpretação hofmanniana, Schmitt propõe uma tentativa de opor a
legitimidade – seja compreendida como mediação racionalista, seja compreendida como ato
histórico ou qualquer outro argumento da longa obra schmittiana – à legalidade, ou seja,
demonstrar a anterioridade constitutiva, bem como a irredutibilidade daquela, além da
convicção de que se trata um tema, por excelência, da teoria jurídica. Assim, Hofmann
sustenta que ao tratar dos estudos de Schmitt na sequência histórica “se evidencia muito
rapidamente, que o desenvolvimento é dominado por um tema bastante específico: o
problema da legitimação do poder público (...) sua obra inteira deve ser vista à luz desta
problemática, o problema da justificação da autoridade estatal (der Rechtfertigung staatlicher
Gewalt) como o agente deste desenvolvimento. Os conceitos e posições fundamentais de
Schmitt são reconduzidas (...) a este problema de partida” (HOFMANN, 2002, p. 11).
Segundo o intérprete, a partir do problema da faticidade do poder, Schmitt levanta a questão
da sua legitimação, desde Der Wert des Staates até os escritos do segundo pós-guerra. Aliás,
este seria o principal problema do positivismo jurídico, alvo das críticas schmittianas: dar
conta de uma argumentação jurídica racional não obstante o fundamento de validade da
norma seja fático, ou ainda, a relação não resolvida entre validade e faticidade40. Este
problema metajurídico da legitimidade do poder é o fio condutor através do qual se
desenvolve toda a obra de Schmitt, inclusive, já diagnosticado por Lukács ao afirmar que o
jurista trata daquilo que o neokantismo não considera em suas considerações sobre o direito,
ou seja, esquece o problema do poder através do qual o direito é criado, pois o problema da
qualidade do poder é o problema da legitimidade que, todavia, o positivismo não aborda por
40
WSBE, p. 21.
78

considerá-lo como um problema metajurídico ou fático41. Mais uma vez, a finitude é


considerada como fundamental na leitura de Schmitt, mesmo que tratada de modos distintos
durante a obra, inclusive, radicalizada em seus últimos escritos a partir de uma legitmidade
concreta e histórica.
Neste contexto, Hofmann estabelece outro ganho metodológico na leitura da obra de
Schmitt: qualquer análise acerca do jurista tedesco, teria que levar em conta com bastante
atenção a contraposição ao positivismo jurídico. Ele aposta na reconstrução do positivismo
como contexto geral ao qual Schmitt se contrapõe e a partir do qual, por contradição, constroi
sua teoria. No caso em questão, Hofmann analisa o contraponto ao positivismo ao contrastar
autoridade e poder, ou melhor, pensar a autoridade em termos de poder na relação entre
faticidade e validade, além de incluir nas considerações sobre a ordem jurídica o problema da
violência, desfazendo a imagem do direito como um procedimento ou análise meramente
formal das normas, isto é, como possuidor de uma legitimidade imanente à própria lei. Assim,
Hofmann propõe que seja o antipositivismo a posição a partir da qual Schmitt, por
contradição, constitui sua teoria político-jurídica. Este ponto de partida, porém, leva a
algumas confusões, sobretudo, na questão acerca do aspecto fático ou positivo que Schmitt
propõe. Hofmann percebe esta questão e, referindo-se como exemplo à decisão do Tribunal
do Reich que reconheceu a revolução de novembro de 1918 vitoriosa, faz a seguinte análise:
“A juridicidade da justificação/fundamentação (Die Rechtmässigkeit der Begründung) não é
uma característica essencial do poder estatal (Staatsgewalt)” (HOFMANN, 2002, p. 17), ou
seja, ele expressa a concepção da teoria do direito (positivista) segundo a qual o estatuto
concreto ou a validade (fática) do poder é irrelevante, uma vez que o problema do fundamento
da validade do direito não seria um problema jurídico. O direito seria idêntico ao ordenamento
de um poder estatal organizado e bastaria a jurisdição ou a vigência das leis sobre o território:
este seria o único critério do poder, qual seja, uma legitimidade que não poderia ser
compreendida juridicamente, por isso, sem vinculação42. Este argumento, em suma,
demonstra a tese de que a legitimidade não seria um problema jurídico e, portanto, não
compõe parte essencial do Estado e do direito no modelo positivista do Rechtsstaat, como
sustentava G. Anschütz e W. Jellinek (cf. HOFMANN, 2002, 17-18). Na medida em que o
positivismo se estabelece como doutrina formal, legalista, a-histórica, como técnica na

41
Em inúmeras obras, Habermas trata deste problema e não seria exagero afirmar que em grande parte delas o
alvo que o filósofo tem em vista é Carl Schmitt. Por exemplo, a Inclusão do outro (HABERMAS, 2002) e
Direito e Democracia (HABERMAS, 1997) parecem textos escritos com objetivo polêmico.
42
É sobre este lugar que se dá a disputa entre Benjamin e Schmitt descrita por Agamben como a querela sobre a
localização da decisão fora ou dentro do direito. Cf. AGAMBEN, 2004, p. 81-98.
79

aplicação e racionalismo abstrato ou formal no método, Schmitt se arma contra estas teses e
constroi seu pensamento como um antipositivismo, assim como um antiliberalismo. Nesta
virada, ele recorre à Savigny: da construção jurídica até o momento lógico do direito, da
análise da história até seus elementos constitutivos43. Ao invés de assumir a ciência da direito
como metodologicamente pura, Schmitt aposta na constituição polêmica dos fatos; ao invés
de abstração ou hipostasiação da voluntas legislatoris ou da voluntas legis, a decisão do
soberano como condição da ordem; ao invés da racionalidade ou lógica na aplicação da
norma, dirige seu olhar às condições concretas, não racionais ou de exceção e conflito e deixa
escapar o irracional ou o fundo niilista do político que espera para além do problema da
ordem como ponto cego da teoria jurídica.
Para Hofmann, as críticas ao positivismo habilitam Schmitt a questionar a abstração
do conflito, desviar as discussões políticas do enquadramento dos termos jurídicos e
denunciar as ficções e hipostasiações. Schmitt, inclusive como Hofmann reconhece como um
ato “contra o status quo” (HOFMANN, 2002, p. 87), afirma que a garantia jurídica da ordem
social é realizada como manutenção da hegemonia ou, como Hofmann afirma, “uma ilimitada
capacidade de adaptação política do positivismo jurídico como mera técnica social”
(HOFMANN, 2002, p. 23). Se, para o positivismo jurídico, o problema da legitimidade era
algo que não se referia ao direito, Schmitt, ao contrário, o reconhece como questão central. Da
mesma forma, se para a teoria do Estado de direito (liberal) a política era algo que
pressupunha o Estado, isto é, só poderia ser considerada a partir do Estado e de sua ordem
jurídica; para o jurista, a questão é outra, precisamente, seu oposto: o Estado pressupõe o
político. Esta forma de contraposição se mostra ainda no debate acerca do positivismo quando
ao invés da legitimidade do poder estatal, considera-se apenas a legalidade de seus atos. Esta
legalidade, segundo Hofmann (2002, p. 24), seria o “modo de funcionamento de qualquer
burocracia estatal, a justificação do estado e a validade do direito em si mesma”, isto é,
imanente ao sistema. A imanência da qual Schmitt se refere não é, porém, desta validade da
lei em si nem a da força normativa dos fatos, mas outra: “o problema da legitimidade
(Legitimität), da justificação (Rechtfertigung) do poder público e da validade do direito
(Geltung des Rechts) (...) seria objeto apenas da sociologia compreensiva (verstenhenden
Soziologie)” (HOFMANN, 2002, p. 25). Em sua abordagem antipositivista e antiliberal,
Schmitt põe em marcha seu argumento finitista a fim de desconstruir o positivismo jurídico.

43
Para uma visão geral do problema a partir do ponto de vista da história e da metodologia do direito, por todos,
LARENZ, 1997, Parte 1.
80

Neste ponto, Hofmann demonstra a idiossincrasia da tese schmittiana, pois aposta


como impulso inicial esta reação contra o positivismo jurídico e, por isso, recoloca o
problema da validade jurídica do poder no centro das questões da teoria do direito. Eis o
ponto de partida que Hofmann escolhe como critério para sua exegese: inicialmente,
contestando o dogma da completude do sistema jurídico (nos textos de 1910 e 1912), Schmitt
já ingressa em polêmica contra Kelsen e levanta o problema da decisão judiciária. Nesta etapa
inicial, Hofmann levanta a hipótese da influência de Vaihinger no jovem Schmitt,
precisamente, na questão acerca da possibilidade da decisão como algo que não pode ser
pensado como subsunção. Em suma, a justeza da decisão não pode se limitar à legalidade
(Gesetzmässigkeit) nem à dedução lógica das normas jurídicas, uma vez que um princípio
formal não poderia determinar o conteúdo de uma decisão. Entretanto, qual seria o princípio
capaz de lidar com a indeterminação de conteúdo? (Cf. HOFMANN, 2002, p. 27-28). Para
Schmitt, apenas outro juiz, no caso de decidir ou de ser capaz de dar razão da mesma maneira.
Hofmann percebe que o apelo às condições fáticas como determinantes do direito já se mostra
presente na obra do jurista desde a década de 1910. A pergunta pelo fundamento de validade
do ato estatal e sua determinação concreta implica num dualismo entre normas concretas e
normas universais, ou melhor, na questão de contrapor-se ao positivismo jurídico que
problematiza a realização do direito como algo indeterminado a partir da norma, por isso a
necessidade da prática ou da ação. A partir deste problema inicial, segundo Hofmann (2002,
p. 30-31), Schmitt já tem bastante claro o argumento da relação entre exceção e norma e, por
esta via, também é demonstrada nossa própria leitura: o argumento da finitude na construção
de um monismo político. Para tanto, conforme Hofmann antecipa, Schmitt precisaria superar
a distinção neokantiana entre ser e dever-ser. Inicialmente, seria o ato da práxis jurídica e,
logo depois, o conceito de “realização do direito” que funcionaria como princípio de
determinação jurídica. Assim, em contraposição à determinação da decisão a partir das
proposições normativas, Schmitt sustenta que “aquilo que legitima a decisão, que como tal é o
momento inicial de qualquer direito, não está antes desta, mas é causada por ela”
(HOFMANN, 2002, p. 32). Ora, a norma, conteúdo ou sentido é algo tardio na concepção de
Schmitt, visto que algo já se dera como base para atribuir-lhe validade. Esta escolha pelo
âmbito concreto ou prático em detrimento de uma vontade da lei ou do legislador ou ainda de
um conteúdo determinado no texto da norma, abre o caminho para compreender a decisão de
81

maneira distinta do positivismo, mais especificamente, como exceção e, logo em seguida,


conflito44.
A questão para Hofmann se desenvolve no capítulo seguinte como o diagnóstico e
crítica das teses positivistas, sobretudo, a categoria de subsunção e as teses de Kelsen. Em
poucas palavras, mais uma vez, a relação entre norma abstrata e aplicação no caso concreto.
Em geral, para o positivismo jurídico, a validade da norma é independente da faticidade, ou
seja, ela precede logicamente o político, pois não há relação nem conflito, além de possuir a
função de justificar o poder ao concebê-lo através do direito. O Estado, porém, articula estes
dois mundos ideais, da norma e da realização da norma e a questão, para Hofmann, não é
outra senão a de que o Estado seja definido a partir de normas que o precedem. Da mesma
forma, se para Kelsen não há relação entre ser e dever-ser; para Schmitt, há um abismo entre
norma e sua realização; neste caso, porém, requer-se um intermediário, eis a função de
mediação da política via Estado45. Nesta questão específica, apesar de bastante próximo de
Kelsen, não seria possível desenvolver um normativismo em Der Wert des Staates, tal como
não apenas Hofmann, mas também Löwith sustenta. Neste caso, Hofmann deveria ter
apostado em descrever tal postura como formalista e não como normativista ou como uma
legitimação normativista, pois não se pode afirmar que no Der Wert des Staates Schmitt adote
uma posição normativista, uma vez que neste texto o direito antecede o poder e o poder é
considerado em função da realização ou da mediação entre a ideia do direito e a realidade
efetiva em que ele se realiza. Assim, o direito é pura forma, um direito sem conteúdo, ou
como Schmitt propõe, um “direito natural sem naturalismo” (Natrurecht ohne Naturalismus),
por isso, não pode ser identificado com uma norma, e a posição schmittiana não é aqui, em
1914, passível, como Hofmann assevera, de ser descrita como uma “legitimação
normativista”.
Não obstante propor a tentativa de distanciamento entre Schmitt e Kelsen, Hofmann
implica estes juristas numa aliança, ao menos em Der Wert des Staates, ao afirmar, por
exemplo, que “o paralelismo entre a doutrina jurídica do Estado de Kelsen e a filosofia do
direito e do Estado de Schmitt é ainda mais evidente com o referimento à definição do Estado
se colocar no centro do Der Wert des Staates” (HOFMANN, 2002, p. 40), ou ainda, em
trecho onde Schmitt afirma que “não há outro estado que o estado de direito” (WSBE, p. 53).
O motivo dessas aproximações entre Kelsen e Schmitt, para Hofmann, é a contraposição

44
Espantosa a coincidência com o pós-positivismo. Schmitt poderia ser considerado um precursor desta posição,
apesar de todas as ressalvas. Sobre o pós-positivismo no direito, CANOTILHO, 2003.
45
O autor que de maneira convincente e exaustiva argumenta acerca da categoria da mediação como problema
central no pensamento schmittiano é GALLI, 2010, infra, 1.10.
82

absoluta entre ser e dever-ser, forma e conteúdo, poder e direito (diríamos ainda, entre
imanência e transcendência, descritivo e normativo): o problema que incomoda Schmitt, mas
que efetivamente só encontrará resposta (e ainda assim parcial e ambígua) no final a década
de 1920. Não obstante precária, a solução schmittiana ao problema da relação entre poder e
direito é proposta logo em Der Wert des Staates e até mesmo Hofmann, que sustenta um
argumento difícil neste ponto – normativismo e idealidade normativa – afirma que “o direito
positivo, aquele logicamente autônomo, emerge como representação normativa empírica posta
faticamente não pode ser o produto do automovimento lógico da consciência jurídica, mas
deve seu aparecimento, seu ingresso na realidade a uma decisão autoritária” (HOFMANN,
2002, p. 45) A peculiaridade desta decisão, porém, nos faz qualificá-la de formalismo ou de
decisionismo fraco que sofre revisões até sua formulação mais completa nos textos do início
da República de Weimar, mas que ainda pressupõe uma forma de direito e, por conseguinte, a
noção de política como mediação46. Da mesma forma que ser e dever-ser, normas de direito e
normas de realização de direito, a dualidade entre exceção e direito expressa uma espécie de
antagonismo, tal como, de maneira distinta, também implica em antagonismo a relação entre
amigo e inimigo.
Como já dito, Hofmann acerta ao delimitar o ponto de partida de Schmitt como
aquele mesmo de Kelsen e do positivismo, qual seja, o dualismo entre norma e realidade
concreta, validade e faticidade, e busca a partir daí a questão que implica estas duas bordas,
ou seja, o problema da legitimidade. Desde a busca pelo ponto final do direito, isto é, pela
concretização da norma na decisão judicial, como afirma Hofmann, parafraseando E. Bloch,
Schmitt possui o “pathos da concreção (finita)” (Pathos des (endlichen) Konkretion) de Hegel
(HOFMANN, 2002, p. 48), assim como a mesma questão entre realidade (racional) e
existência (meramente factual)47. Por isso, na descrição da legitimidade racionalista, Hofmann
sustenta que a questão entre norma e realidade é resolvida por Schmitt pelo conceito de
ditadura soberana e, posteriormente, pelo conceito de Ausnahmenzustand, ou seja, como as
condições fáticas anteriores ao direito que possibilitam o ingresso do direito na realidade (vide
HOFMANN, 2002, cap. 2). Neste contexto, Hofmann afirma que “ele (Schmitt) não pensa
que a situação concreta seja sujeita a um princípio de estrutura da realidade social, a
homogeneidade (...) do meio de realização do direito que funda e garante a relativa
estabilidade e mensurabilidade da situação” (HOFMANN, 2002, p. 55). Neste caso, a

46
Sobre isso, GALLI, 2010 e Cap. 2.
47
Para a compreensão da relação entre Estado e contingência em Hegel, KERVÉGAN, 2006 e, por todos,
LEBRUN, 1988.
83

normalidade fática pertence à sua validade imanente, sendo o soberano o responsável pela
ação na realidade para formatação fática. Sem entrar no mérito das análises de Hofmann, a
questão que sublinhamos é a seguinte: o argumento da finitude é explicitado, mais uma vez,
como constitutivo na solução schmittiana da relação entre ser e dever-ser, imanência e
transcendência, norma e fato. Esta solução, a despeito dos problemas que implica, assume
claramente uma postura pela finitude que, mais uma vez, reforça a leitura da tese
interpretativa que propomos nesta pesquisa.
Seja quando Hofmann sustenta o tema da realização do direito (2002, p. 46-49), seja
quando tematiza a questão da ditadura e da teologia política (sobretudo, 2002, p. 49-64) ou
quando afirma que em Schmitt “não se trata da garantia da justiça constitucional do
fundamento do ordenamento jurídico estatal, mas da garantia real da normalidade fática como
fundamento de validade imanente de todo direito” (HOFMANN, 2002, p. 61), o comentador
expõe uma virada imprescindível na leitura da obra: argumenta que Schmitt assume a
distinção weberiana entre ação orientada a valores e ação orientada a fins, substituindo a
perspectiva da teoria do Estado ao fazer mais uma concessão realista à imanência como algo
original ou mais constitutiva: com o reconhecimento de uma “autoridade fundada de maneira
teleológico-racional da organização fática do poder de qual faz parte” (HOFMANN, 2002, p.
68). Logo em seguida, o arremate: “esta validade real fática impressionou Schmitt (...) e o
fascinaria sempre, até mais tarde, em particular na resignação posterior à 1945” (HOFMANN
2002, p. 69), esta teoria da legitimidade teleológica-racional, como Hofmann denomina, se
distinguiria da legitimidade positivista por sua capacidade de contradição e, no final das
contas, Schmitt “confronta a doutrina do Estado com seu fundo niilista e irracional”
(HOFMANN, 2002, p. 70-71) com o argumento da Ausnahmenzustand, uma vez que ele

reconhece por inteiro a passagem inevitável da legitimidade monárquica à


democrática, mas se opõe contra o desenvolvimento científico de uma teoria da
legitimidade e da validade jurídica transcendental e absoluta para uma imanente,
neutra a respeito de valores, relativística e teleológico-racional, contra a tendência de
toda justificação jurídica imanente do poder a partir do mero funcionamento
relativamente privado de dificuldades da legalidade legislativo-estatal (HOFMANN,
2002, p. 71).
Sem dúvida, Schmitt não aceita este tipo de legitimidade abstrata e mecânica e, diante
do gesto da contradição, é levado para uma concepção que acentua mais ainda a postura
niilismo e do irracional contra a perspectiva de uma ordem com fundamento normativo, qual
seja, a compreensão do conflito e não da norma. Hofmann acerta ao descrever como Schmitt

estava decidido a pensar a realidade, abandonada pelo neokantismo enquanto mera


faticidade, e a construir a realidade mesma como realidade jurídica. Mas se todo o
direito é direito situado e a validade de todo direito depende de uma ordem objetiva
84

estabilizada de maneira ideal (...) se põe (...) a tarefa decisiva de se a situação dada
neste significado fático é normal ou não (HOFMANN, 2002, p. 87).
Esta tese demanda, evidentemente, uma vontade como produtora da ordem e da
unidade, como uma mediação que intervém na realidade, mas que não se porta como uma
grandeza racional ou compreendida conceitualmente tal como em Hegel: a contingência da
decisão, mesmo vinculada à ordem, revelada como fundamental para o direito, demonstra o
curto-circuito entre transcendência e imanência e, sobretudo, revela a primazia da finitude.
Sem dúvidas, uma proposta deste tipo causa mais problemas do que a questão que tenta
solucionar e, por isso mesmo, não foi negligenciada pelos autores das décadas seguintes48.
A superação ou ruptura da distinção entre imanência e transcendência ocorre quando
o político (fático) é pensado fora do enquadramento normativo que o dístico ser e dever-ser ou
norma e caso concreto implica. Numa palavra, compreender a distinção entre ser e dever ou
imanência e transcendência como não apenas a distinção entre político (antagonismo) e
política (instituição), mas como relação é compreender a transcendência como o sentido da
imanência e voltar a ela. Neste contexto, Hofmann assume que para Schmitt:

o objeto da ciência jurídica é um ser (Sein), ou melhor, o ser-aí (So-sein) da situação


historicamente concreta, dominada e determinada por certa ideia, enquanto o dever-
ser aparece como um problema de ‘tomada’ de posição prática. O fato é que Schmitt
prefere a normalidade fática da situação como fundamento da validade de todas as
normas estatais de realização do direito, que faz do ordenamento fático e
determinado da ideia o objeto principal da sua pesquisa orientada ao sentido
empírico (...) na pesquisa empírica da validade normativa o objeto perde o caráter de
norma e vem tratado como essente (Seiende) e não como vigente (gültig)
(HOFMANN, 2002, 79-80).
Este é o momento da virada do político: a estratégia finitista. Explicitamente, a
virtude da afirmação que equivale a um ceticismo político é marcadamente polêmico, pois sua
capacidade de desconstrução lembra em suas melhores formas um Maquiavel ou um
Espinosa49; Hofmann reconhece exemplarmente que em Schmitt “um sistema normativo
torna-se posições e conceitos” (HOFMANN, 2002, p. 82). Em todo caso, se no capítulo 2
desta tese demonstramos a tentativa não assumida de Schmitt na superação da dicotomia entre
imanência e transcendência; no capítulo 3, tentamos realizar a ruptura e propomos uma nova
maneira de pensar esta relação para além das formas gnósticas, dualistas, secularistas com a
noção pouco schmittiana de abertura. Hofmann, todavia, tem uma leitura que se aproxima
desta. Quanto à categoria do político, por exemplo, ele afirma: “a autonomia (Selbständigkeit)
do político não é compreendida no sentido que o político forma uma esfera da vida social

48
Sobre a intrincada relação entre Benjamin e Schmitt, cf. AGAMBEN, 2004 e WEBER, 2008, p. 176-194.
49
Sobre a leitura da obra de Schmitt como um ceticismo político, cf. LESSA, 2003. Sobre a relação com
Maquiavel, numa leitura que o distancia de Schmitt na questão do local e função do conflito, cf. ADVERSE,
2016.
85

determinável objetivamente” (HOFMANN, 2002, p. 97), ao contrário do tratamento da


ciência política ou do direito, Schmitt não define o que é o político, apenas dá uma indicação
de sua natureza, ou melhor, de como acontece: “diversamente de todas as outras
contraposições objetivamente condicionadas e determinadas, o inimigo em sentido próprio e
político não é um adversário determinável objetivamente, a diferença objetiva é pouco
significativa (...) o inimigo é simplesmente o outro, o estranho, em termos existenciais e não
algo objetivo” (HOFMANN, 2002, p. 98) como seria se escolhesse o sangue, raça ou
substância de um povo. Aqui, pois, a concepção existencial do político, ou como preferimos, a
concepção pragmática ou finitista, sobrepõe-se ao apelo conceitual, tanto que Schmitt passa a
remeter conceitos à práticas concretas, num procedimento que utiliza desde meados da década
de 1910 como forma de construção de teses. Hofmann (2002, p. 110), mais uma vez, acerta
quando afirma: “a distinção amigo-inimigo como relação não-objetiva entre os homens”. Com
uma ressalva, pois o comentador não percebe que a ênfase do político não está no amigo-
inimigo, mas no antagonismo que a relação traz consigo. Em todo caso, a ênfase na existência
e não na justificação da unidade política é analisada por Hofmann como no trecho a seguir:
“para Schmitt, parece ser importante apenas que a unidade política existe, mas não a natureza
desta unidade” (HOFMANN, 2002, p. 99, grifos do autor). Löwith, inclusive, já havia tratado
disso ao comparar Schmitt e Heidegger, notando que “esta possibilidade última, extrema e
crítica (a guerra) (...) simplesmente existe (...) e não tem necessidade nem de maneira
nenhuma é capaz de alguma justificação ou legitimação” (HOFMANN, 2002, p. 99).
Em um trecho bastante significativo que reforça em parte a leitura que propomos,
Hofmann, mais uma vez, acerta o tom da crítica e mostra qual é a peculiaridade do
pensamento do jurista, apesar de utilizar alguns termos que o aproxima de uma abordagem
metafísica:

Schmitt procura com isso a verdade limite da esfera limite do político (die äußerste
Wahrheit der äußersten Sphäre des Politischen), aquela realidade última
condicionante, mas ela mesma incondicionada, a partir da qual pode ser evidenciado
o caráter fictício de qualquer normatividade (...) ainda aquela realidade última frente
a qual a antítese entre política e direito, entre direito e poder torna-se sem sentido
(...) no sentido existencial, da guerra, questio facti e questio iuris coincidem na
mesma medida que a contraposição entre ser e dever-ser torna-se problemática
(HOFMANN, 2002, p. 99-100).
Em suma, assim como em Heidegger, Hofmann aposta que o problema da relação
entre ética e ontologia ou ser e dever-ser não desempenha mais nenhum papel.
Evidentemente, o apelo ao concreto como origem do sentido do político implica na elevação
do antagonismo ao modo, por excelência, de produção de conceitos: a situação política, as
relações concretas e históricas, de maneira inevitavelmente polêmica, expressam o caráter de
86

finitude que Schmitt assume ao tratar do político desde o argumento da secularização e da


sociologia ou história dos conceitos até a proposta, como ficou conhecido, do
“existencialismo político”. De maneira aproximada, vemos neste argumento um antecessor do
nosso próprio, qual seja, a ruptura da simetria entre imanência e transcendência e a
localização da transcendência como algo do interior da imanência, bem como a proposta
desenvolvida no capítulo 3 da ontologia do político.

* * *

Do nosso ponto de vista, o equívoco de Hofmann (2002, p. 104-107) aparece na


medida em que assume as leituras de Strauss (o motivo moral e metafísico latente do Der
Begriff des Politischen) e de Löwith (ausência de conteúdo e, por isso, um ocasionalismo
político) e, dessa forma, deixa de lado uma leitura mais criativa para assumir paradigmas
interpretativos, por exemplo, quando afirma, na esteira desses autores, “com esta teoria
irracional da guerra civil, Schmitt entra em concorrência com a teoria da luta de classe”
(HOFMANN, 2002, p. 111) ou ainda:

sem um fundamento filosófico sistemático de uma filosofia crescida sob Hegel e


sem um fundamento religioso, a proposta de Schmitt permanece privada de
conteúdo e sem sentido e conduz a um irracionalismo político sem uma via de saída,
conduz a uma ideologia sem fundamento da guerra civil do estado de exceção
permanente (HOFMANN, 2002, 110-111).
A associação com Nietzsche não demora a ser feita o que, ao invés, demonstra apenas a
situação espiritual da tentativa de novas propostas diante da decadência da semântica
moderna. No caso de Schmitt, o abandono de forma de legitimidade tradicionais ao apostar
em uma “maßgebender Fall” (BP, p. 39), ou seja, num “caso que dá a medida”, resultando na
tese finitista que temos em vista, em geral, como Hofmann mesmo assume “a existencialidade
do fundamento de validade” (HOFMANN, 2002, p. 134), a decisão como “um ato originário e
constitutivo da vida política” (HOFMANN, 2002, p. 130), “a luta, em sua originariedade
existencial (seinsmäßigen Ursprunglichkeit), nasce da diversidade da própria existência”
(HOFMANN, 2002, p. 129), ou ainda, “a forma particular da existência política, porém, que é
o produto de uma tal decisão e pressupõe a existência de uma unidade política, não pode e não
deve legitimar-se” (HOFMANN, 2002, p. 136), “é legítima apenas aquela constituição que é
expressão adequada da realidade (adäquater Ausdrück der Politische Wirkichkeit)”
(HOFMANN, 2002, p. 137).
87

Em contraposição à concepção de legitimidade como uma legalidade que


desempenha o papel de fundamento imanente da ordem jurídica50, Hofmann analisa o
conceito de legitimidade proposto na Verfassungslehre como uma decisão política vinculada à
forma de existência da unidade política. Não obstante haja alguma ambiguidade nesta
proposta schmittiana, a questão que Hofmann expõe como critério interpretativo da obra é
bem delimitado também nesta parte: não há necessidade de justificação normativa (ética ou
jurídica), pois é extraído da própria existência política. Isto implica, evidentemente, uma
incômoda equivalência entre Estado e poder51 e atribui a distinção em última instância para a
noção de representação política: representação da unidade política do povo e não de sua
existência natural. Em todo caso, o problema da legitimidade continua sendo o problema da
qualidade do poder estatal que, porém, não se expressa mais na diferença entre ser e dever-
ser, mas sim em outra: existe ou não existe, de forma que a pergunta não é se um poder é
legítimo ou ilegítimo, mas sim se ele tem existência ou não (PuB, p. 141). Assim,

todas as disposições normativas, segundo Schmitt, são secundárias diante das


decisões fundamentais existenciais sobre o tipo e a forma da existência política.
Aquela decisão existencial produz todas as disposições normativas e dá o sentido, na
mesma medida em que constitui o Estado como uma unidade política (HOFMANN,
2002, p. 121).
A análise de Hofmann quanto à virada para o existencialismo político em Schmitt é precisa e
indica, mais uma vez, o elemento pragmático das teses do jurista:

Se a normalidade fática (faktischen Normalität) é o fundamento de validade


imanente (immanenter Geltungsgrund) de qualquer norma jurídica; se, em outras
palavras, a existência fática de um ordenamento é precondição de validade
normativa de um ordenamento jurídico, mas a normalidade fática é instável
(instabil) e determinada pela situação (...) a pesquisa aborda a especificidade da
atual situação histórica concreta da política na sua dinâmica deve constituir a
primeira e essencial tarefa do juspublicista (HOFMANN, 2002, p. 78).
Este é o momento hermenêutico mais relevante da interpretação hofmanniana. Quando ele
afirma, por exemplo, que o “objeto da ciência jurídica é um ser” (HOFMANN, 2002, p. 79-
80), o comentador aposta em alguma instância histórica e o “dever-ser aparece como um
problema de tomada de posição prática” (HOFMANN, 2002, p. 80). Assim, este fundamento
imanente de validade se refere não a normas (perde o caráter de normas vigentes), e assume o
caráter ontológico, ou seja, Seienden e não Gültig. Aqui talvez seja a leitura mais próxima da
realizada no cap. 3 desta tese: uma estratégia finitista que, todavia, não se inicia na recepção
do pensamento de Vaihinger ou de Weber, mas desde o início da década de 1910, na tentativa
de determinação do conteúdo da norma através de alguma instância concreta, percorre toda a

50
Sobre isso, cf. DYZENHAUS, 1997.
51
Cf. VL, p. 89.
88

obra de Schmitt. A leitura de Hofmann demonstra a transição do problema da validade


normativa para o problema da estabilidade empírica a partir da qual se dá qualquer
representação normativa, por exemplo, quando afirma que “muito significativa (...) é a
operação schmittiana de fazer coincidir questio iuris e questio facti no conceito de nomos, no
ato jurídico originário da conquista da terra (Landnahme), desenvolvendo com isso uma
espécie de teoria da legitimidade histórico-filosófica” (HOFMANN, 2002, p. 15),
demonstrando que suas questões não são apenas a reflexão de uma teoria, mas um diagnóstico
do exaurimento das categorias modernas. Schmitt busca a fronteira entre imanência e
transcendência e demonstra o caráter fictício da normatividade, bem como seu fundamento
irracional, ou melhor, sua ausência de fundamento52.
Em nossa interpretação, todavia, sustentamos que Schmitt busca, além disso, o limite
anterior à distinção entre ser e dever-ser, faticidade e validade, direito e poder, imanência e
transcendência, como aquela borda que ao mesmo tempo divide e une e que torna, por fim,
estas distinções esvaziadas, provocando uma ruptura entre as simetrias, pois atento à relação e
abertura entre político e política. Em um trecho significativo nesta questão que serve de apoio
à nossa tese, Hofmann sustenta que, em relação à teologia política, Schmitt desenvolve uma
argumentação como jurista e não como teólogo53 e, ainda mais, propondo uma história ou
sociologia dos conceitos que não se confunde com algo geral ou abstrato, mas concreta. Neste
sentido, Hofmann (2002, p. XXXVII, grifo nosso) sustenta que a “Reflexão sobre uma
entidade terrena absoluta (eine absolute irdische Instanz), cuja existência não pode ser
seguida ou fundamentada pelo motivo ou a vontade do indivíduo, apesar da natureza secular”,
ou seja, a categoria de soberania e a teoria do direito têm validade a partir da noção de
encarnação divina, portanto tem como referência algo terreno, ou melhor, refere-se ao
finitismo, numa palavra, como expomos no capítulo 3, não há política sem encarnação 54. Por

52
Sobre a ausência de fundamento como característica da tese schmittiana e como reconsideramos esta ausência
de fundamento a partir da influência heideggerina da compreensão do fundamento como ausência e de como esta
concepção está na origem de uma teoria política pós-fundacionista, cf. Cap. 3.
53
Quanto à teologia política, Hofmann é convicto de que esta não desempenha nenhum papel relevante na
quanto à teoria do direito e do Estado, tal como expõe logo na Parte 1 de seu texto. Por exemplo, de maneira
diametralmente oposta ao dito por outra interpretação influente como a de Heinrich Meier, para Hofmann, a
ideia de soberania do Estado moderno, bem como o de representação política, é um modelo abandonado como
paradigma político central. Schmitt teria abandonado a ideia de Estado soberano e adotado como “Lehre von der
göttlichen Entzweinung, des Aufstands der Menschlichkeit des Sohnes gegen den Vater (...) Revolutionäre
‘Politische Christologie’ statt ‘monarchianischer’ ‘Politischer Theologie’ (HOFMANN, 2002, p. XXXVII-
XXXVIII). Segundo Hofmann, o papel do catolicismo na ciência do direito seria apenas metodológico. Apesar
disso, a Teologia Política II possui uma resposta indireta à Hofmann sobre “a diferença da filosofia política, a
teologia política mostra um surplus de justificação normativa”. Sobre a teologia política schmittiana, entre
outros, NICOLETTI, 1990.
54
ESPOSITO, 2013, p. 67: “Il problema di fondo posto da Schmitt è, insomma, la presenza inevitable del Due
nella figura dell’Incarnazione, cui il principio trinitario è strettamente connesso nella dogmatica Cristiana”; a
89

conta do abandono da categoria de soberania para compreensão do Estado, bem como a


substituição da dicotomia entre normas de direito e normas de realização de direito, exceção e
norma pelo dualismo entre amigo e inimigo, Hofmann propõe uma leitura imanentista do
pensamento de Schmitt, mesmo que ainda preso às categorias de legitimidade, unidade
política, ordem, entre outras. Esta leitura imanentista nem sempre é dada como adequada nos
comentários de Hofmann. Por exemplo, ao analisar as críticas ao conceito do político já em
Der Begriff des Politischen, o autor refuta a noção de inimigo e acusa Schmitt de um
“pragmatismo vitalista” (HOFMANN, 2002, p. 107). Além disso, classifica a distinção entre
amigo e inimigo como “relação não-objetiva”, bem como nota uma ausência de fundamento
que resvala num irracionalismo: não pensa em uma possibilidade nova, de uma política fora
da metafísica ou como algo impredicável. Neste ponto, Hofmann encerra a questão e fecha a
via interpretativa que pretendemos explorar.
A interpretação hofmanniana é talvez a primeira a considerar seriamente a passagem
da legitimidade racional para outro tipo de legitimidade, isto é, para o existencialismo político
marcado, paradoxalmente, por um irracionalismo55. Para Schmitt, o que interessa é a
existência ou faticidade do modo político e não sua natureza ou substância. Acima de tudo,
refere-se ao mundo ou à faticidade da mesma forma que Heidegger, mas, precisamente por
esta característica, não se pode afirmar uma justificação ou legitimação, muito menos, uma
representação da existência política, uma vez que não é algo normativo, racional ou suscetível
de fundamentação. Este seria uma consequência do argumento de Hofmann: a própria noção
de legitimidade perde sentido. A distinção entre ser e dever-ser ou entre quaestio facti e
quaestio iuris é desprovida do critério de diferenciação, pois imanentizada, ou melhor, são
consideradas a partir de um monismo complexo a partir do qual passam a coincidir neste
momento existencial, uma vez que o que Schmitt tem em vista é outra distinção: se a unidade
política existe ou não existe. Não obstante, a condição da situação concreta ou faticidade é
elemento fundamental para a argumentação schmittiana. Hofmann demonstra que este aspecto
intensificado no pensamento da ordem concreta na década de 1930 ao ponto de caracterizar a
própria filosofia do direito, por exemplo, quando sustenta: “Filosofia do direito é para mim
não um sistema filosófico dado (vorhandenen philosophischen System) sobre questões
jurídicas aplicadas ao vocabulário, mas sim o desenvolvimento de conceitos concretos a partir

partir de outra perspectiva, da relação da política como encarnação, imanência e contingência, SAFATLE, 2015,
Parte 1.
55
Este irracionalismo é tratado por Voegelin na forma de um “imanentismo”; por Löwith, como um
ocasionalismo sem universais; por Habermas, como elogio à violência. Sobre este último, cf. HABERMAS,
1987, p. 101-114.
90

da imanência de uma ordenação social e jurídica efetiva (einer konkreten Rechts- und
Gesselschaftsordnung)” (HOFMANN, 2002, p. 6). A questão é que Hofmann é ambíguo ao
considerar este procedimento de Schmitt como chave de leitura, ou melhor, em considerar a
própria situação concreta do autor como hermenêutica da obra. Este argumento do
contextualismo do pensamento schmittiano que na crítica de Löwith é acentuado como um
ocasionalismo político e aproximado ao romantismo recebe em Hofmann outro tratamento:
como método próprio, levando em conta a sociologia dos conceitos desenvolvida
posteriormente. Apesar disso, parece que nem Schmitt nem Hofmann percebem que este
procedimento de mera escolha entre uma das dimensões não consegue escapar do dualismo,
ao final, a solução requer desfazer-se da própria necessidade de escolha entre algum dos
âmbitos.

* * *
Conforme Hofmann, Schmitt assume influência tanto do neokantismo quanto do
idealismo, visto que o direito natural sem naturalismo seria mais próximo do idealismo
transcendente do que da doutrina católica jusnaturalista. Além disso, Hofmann é um dos
primeiros a apontar a influência do ficcionalismo de Hans Vaihinger nos escritos iniciais de
Schmitt e no uso que ele faz na crítica ao positivismo e do direito público. Schmitt, sob
influência de Vaihinger, estaria decidido “a pensar a realidade abandonada pelo neokantismo
enquanto mera faticidade e a construir a realidade mesma como realidade jurídica”
(HOFMANN, 2002, p. 87). Este seria um argumento esclarecedor na compreensão do
desenvolvimento do pensamento schmittiano do período pré-weimariano para o período
weimariano. Assim, tendo em vista a influência da temática neokantiana, mais precisamente,
a teoria das ficções de Vaihinger, Hofmann fornece um instrumental útil na análise da
faticidade e da exceção, visto que o raciocínio de Schmitt na virada para as condições fáticas
da ordem teria sido estabelecido como problema quando assumira as teses neokantianas,
formulando seu teorema da exceção e da ordem: “se todo direito é direito situado e a validade
de todo direito depende de uma ordem objetiva estabilizada de maneira ideal, se põe para o
jurista a tarefa decisiva de se a situação dada é normal ou não” (HOFMANN, 2002, p. 87).
Neste contexto, as teses de Schmitt em relação à controvérsia weimariana sobre o
método da ciência jurídica, bem como sua posição, que apesar de não ser facilmente
classificada, podem ser determinadas, em geral, como antinormativa. Sem dúvida, não se
compreende por que Hofmann explora tão pouco a relação entre Schmitt e Hegel, na verdade,
uma espectral ausência de Hegel que aparece em poucas páginas e que apenas algumas
91

décadas depois torna-se um pressuposto indispensável para compreender o jurista56. Apesar


disso, a abordagem histórico-evolutiva de Hofmann traz avanços consistentes para os estudos
acerca de Schmitt não apenas das suas obras de juventude, mas também na comparação com
Kelsen e a tentativa de afastar-se das influências neokantianas e idealistas e inaugurar uma
compreensão do político como uma reformulação do conceito de estado da teoria alemã ao
inverter o primado do Estado e declarar a autonomia do Politischen: “o anti-universalismo
schmittiano que refuta qualquer parâmetro do agir político-estatal, tanto o vínculo de uma
moral individual-universalista, quanto aquele de uma normatividade abstrata antecedente à
decisão política concerta” (HOFMANN, 2002, p. XLII), tarefa que, todavia, o intérprete não
se dispôs a realizar.
A interpretação de Hofmann, juntamente com as leituras de W. Böckenförde e I.
Maus, contribui, por exemplo, para a confirmação da presença de Schmitt na elaboração da
Grundgesetzt de Bonn em 1949 no que se refere à teoria dos direitos fundamentais, ao limite
de poderes de revisão constitucional e às garantias institucionais. Entretanto, o
instrumentarium schmittiano recebe um tratamento desigual na interpretação de Hofmann,
pois há ênfase exagerada nos dispositivos jurídicos em detrimentos de conceitos mais potentes
na esfera da filosofia política propriamente dita. Categorias como legalidade e legitimidade,
poder constituinte e poder constituído, constituição e leis constitucionais, guarda da
constituição, revisão constitucional, Estado de direito são colocados sob a influência de um
pensamento anti-liberal e anti-positivista, mais como contra-ataque teórico do que como
categorias e críticas capazes de fornecer munição para uma teoria política (e jurídica) não
hegemônica. Esta, inclusive, é outro argumento importante na obra de Hofmann: a crítica
schmittiana ao positivismo como uma postura política de contestação do status quo.

* * *
Parece-nos, todavia, que Hofmann não equaciona corretamente a abordagem
nitidamente anti-positivista de Schmitt, intensificada paulatinamente na articulação entre
normas de realização do direito e normas de direito e acerca da questão entre ser e dever-ser: a
abordagem mais voltada à vida concreta, atribuindo um papel maior à estrutura da experiência
que, mesmo com a solução racionalista da mediação estatal entre normatividade e faticidade,

56
O. BEAUD, Carl Schmitt ou le juriste engagé, Préface da Théorie de la constitution: “En réalité, Schmitt
radicalize la thèse hégélienne dans un sens autoritaire lorsque son réalisme constitutionnel débouche sur la
revendication d’une souveraineté effective de l’Etat (...)La thèse realiste des hégéliens va encore plus loin em
affirmant la supériorité de l’effectivité par rapport à la validité, de la réalité politique par rapport à la norme (...)
Pour les juristes néo-hégéliens, la constitution comme loi politique est donc considérée comme supérieure à la
constitution comme norme juridique. Il en resulte un double renversement dans la conception même du droit
constitutionel” (p. 84-85).
92

racionalidade e ação, ser e dever, imanência e transcendência, demonstra que o argumento da


normalidade fática como fundamento de validade imanente de qualquer norma jurídica se faz
presente desde muito cedo, o que garante o caráter pragmático das teses schmittianas que não
faz esperar pela legitimidade histórica do período da produção do pós-1945. Assim, se, por
um lado, a existência fática de um ordenamento é pré-condição da validade normativa de um
ordenamento jurídico; por outro, a normalidade fática é instável e determinada pela situação.
Esta – a normalidade fática – é mais uma consequência da situação do momento que ganha
em Schmitt também um caráter hermenêutico constitutivo e o político já reside aqui nesta
instância instável, determinada pela situação, ou seja, neste momento, a ação é anterior já ao
direito e como que antecipa qualquer ato normativo, além de situar a ação política e, por
conseguinte, a validade das normas numa esfera de contingência. Este argumento, na
interpretação que realizamos, será desenvolvido em toda a obra schmittiana, mas a percepção
de Hofmann, apesar de apontar de forma aguda este elemento sempre presente, não trata em
sua potência teórica: tivesse Hofmann demorado mais na exploração deste elemento, não
apenas teria o diagnóstico de uma gradativa intensificação do pragmatismo na obra de Schmitt
como também uma proposta distinta até mesmo do realismo político. Em outras palavras, a
aposta na finitude, no contexto/imanência como determinante da ordem e no
antagonismo/conflito, revelam uma estratégia de recusa do normativismo (como Hofmann
aponta). Além disso, explicita uma teoria política pautada em relações, isto é, na recusa da
arquitetônica da norma para compreender a ordem que o levará à arquitetônica dos afetos. É o
que denominamos de imanentismo ou monismo político que parte de uma ausência de norma
ou substância para pensar os modos de constituição do estado de coisas e do corpo político
como relação de antagonismo.
Este imanentismo adquire maior visibilidade a partir do turn existencial após 1927 e
revela a Schmitt uma contingência do Dasein, sua faticidade, ou melhor, em seus termos, a
noção de “situação concreta” que passa a desempenhar um papel importante na obra na
medida em que o finitismo se intensifica. Não resta muito claro se Hofmann percebe este
movimento de intensificação do finitismo e de sua consequência inicial, qual seja, a liberação
da ação e também da contingência. Este aspecto das teses schmittianas é residual antes do
Begriff des Politischen, mas configura uma virada importante, apesar de logo modificada pelo
paradigma da ordem concreta. A crítica à interpretação de Hofmann é que não existe algo
denominado “legitimidade existencial” ou qualquer tentativa de justificação da instância
fática do poder. Além disso, segundo Hofmann, a passagem do racionalismo de juventude
para a década de 1920 teria sido homogênea, eis mais um ponto fraco. Hofmann sustenta
93

longamente a interpretação de Leo Strauss (e de Löwith) contra Schmitt: elabora uma crítica
apressada e uma leitura limitada e pouco generosa sobre os conceitos de amigo e inimigo,
quanto à ausência de conteúdo do político, a unidade política e a orientação à política externa.
Hofmann afirma que:

Schmitt se coloca vizinho daqueles que criticam severamente o mundo liberal e


burguês (seja por diversas posições ou intenções): Sören Kiekegaard, Karl Marx,
Donoso Cortés. Entretanto, sem o fundamento filosófico sistemático de uma
filosofia crescida sob a influência de Hegel e sem um fundamento religioso de
Schmitt permanece sem conteúdo e sem sentido e conduz à um irracionalismo
político sem via de saída, a uma ideologia sem raiz da guerra civil do estado de
exceção permanente (HOFMANN, 2002, p. 110-111).
Se com esta descrição de uma teoria política irracionalista, Hofmann afasta Schmitt dos
modernos, o faz em tom de reprovação, utilizamos esta descrição para aproximá-lo dos
contemporâneos com novidades em relação a estes: tanto a teoria do político como
antagonismo – que Hofmann lamenta ao denominá-la de irracionalismo político – quanto a
teoria marxista da luta de classes contradizem o mundo burguês com a distinção, ainda
segundo Hofmann, que a de Marx chega a uma solução onde não há mais antagonismo e a de
Schmitt, mais radical e irracional, não vislumbra uma solução, pois permanece sempre o
conflito como algo irremediável, como interpretamos, um abertura constitutiva. Ora, esta
ausência de fundamento não seria uma característica contra a metafísica política sustentada
por teóricos contemporâneos?
Hofmann situa o pensamento de Schmitt no interior da crise da racionalidade
moderna57: se, metodologicamente, a obra de Schmitt é construída a partir da situação
concreta, é de se esperar, portanto, que num período de crise do paradigma moderno, Schmitt
não se exima de tomar postura quanto a ele e, como Hofmann sustenta, esta postura é
precisamente a mudança efetivada no final da década de 1920, qual seja, a concepção do
Politischen e o pensamento da ordem concreta. Hofmann trata bem deste ponto: para ele, a
antítese entre estado de exceção e norma não desempenha nenhum papel após 1933 e é
substituída pelo problema da ordem concreta, ressaltando os deslocamentos do pensamento de
Schmitt, apesar da preocupação constante acerca da ordem e do poder, da transcendência e
imanência. A questão é saber até que ponto Hofmann leva o elemento pragmático como chave
hermenêutica ou princípio constitutivo (ou um dos princípios) do pensamento de Schmitt.
No final das contas, parece-nos que Hofmann disseca tão bem a obra schmittiana que
quase não oferece saídas ao pensamento: muito coesa, muito exegética, muito sistemática

57
Sobre a posição de Schmitt no estágio final da metafísica moderna, cf. HEIDEGGER, GA, 86 e CASTRUCCI,
1999 (ambos trazem poucas, mas valiosas páginas sobre a posição do jurista no fim da Metafísica/Jus Publicum
Europaeum); cf. também, OJAKANGAS, 2005.
94

apesar do pensamento contraditório de Schmitt, a interpretação de Hofmann teria maior êxito,


em termos de proposições não meramente exegéticas, se indicasse quais caminhos na crise da
estatalidade e da racionalidade moderna Schmitt aponta. Outra crítica cabível é a seguinte:
arrisca toda a compreensão da obra em apenas uma categoria, além de não de captar algumas
dimensões, por exemplo, cabe perguntar como a legitimidade pode ser considerada o
problema que atravessa toda a obra e pensamento schmittiano, se o próprio conceito de
legitimidade sofre alterações durante a obra do jurista? É duvidoso que Schmitt considerasse
uma legitimidade existencial ou histórica, por exemplo, uma vez que a legitimidade pressupõe
diferença entre duas instâncias (imanência e transcendência) que parece sofrer um curto-
circuito no decorrer da obra.
Por isso, em nossa interpretação, apanhamos os fios soltos e argumentos inacabados
para ao invés de fechar um sistema de interpretação, abrir uma releitura, reescrita para um
pós-política e pós-estatal. Definitivamente, não é possível caracterizar Schmitt, de maneira tão
simples, como uma busca pelo fundamento de validade ou legitimidade do poder: reduzir
Schmitt a um discurso sobre a legitimidade, um discurso legitimador da ordem e do direito,
ou coisa que o valha, é não reconhecer a potência do sua obra. Mesmo assim, a leitura de
Hofmann consegue detectar alguns elementos fundamentais para a confirmação de nossa tese.
No trecho a seguir, ele aponta, mais uma vez, a característica da ausência de fundamento ou
de substância política:

para Schmitt, em contraste com a doutrina aristotélica, o homem é uma essência


política não graças a seu logos, não por força de sua natureza por este determinada,
mas segundo sua totalidade do político que deriva da ausência de uma determinada
essência natural do homem, da existência privada de natureza (...) ao fim de toda
obra schmittiana se funda sobre a profunda reversão da compreensão do mundo e
da imagem do mundo (...) A consciência da absoluta contingência do ser (Dasein)
chega (...) o primado do problema existencial sobre o problema essencial, que
exprime o núcleo da assim dita filosofia existencial em suas diversas matizes (...) o
simples que (Daß) da decisão é para Schmitt mais importante que o porque (Wofür)
da decisão (HOFMANN, 2002, p. 156-157, grifo nosso)
A interpretação de Hofmann, talvez juntamente com a de Galli, é a mais consistente,
apesar de pouco criativa ou filosófica: sua maior falha foi não distinguir que uma
interpretação de Schmitt só poderia ser realizada, paradoxalmente, fora da sua época, ou seja,
apontando para o fim da metafísica do Estado (e das políticas da transcendência), sobretudo, a
desestatalização do político e, por conseguinte, a desconstrução da semântica moderna. Em
relação ao fundacionismo, ou melhor, ao peculiar pós-fundacionismo schmittiano, o autor não
aborda o curto-circuito que as instituições jurídicas, tais como, estado de direito, liberalismo,
democracia, representação, etc., sofrem. Caso Hofmann avançasse neste ponto, o que talvez
95

lhe custasse mais do que poderia assumir por conta de sua postura de jurista, chegaria a
formular uma teoria pós-política. Em todo caso, o autor percebeu, afinal, qual a novidade das
teses do jurista: “para Schmitt se trata de apreender a faticidade da nossa existência política
contingente e de trazer as consequências disso. Esta é uma atividade filosófica; significa mais
que uma tentativa de descobrir, com uma perspectiva sociológica, a “infraestrutura social” do
direito” (HOFMANN, 2002, p. 159)58.
A querela continuidade-descontinuidade, porém, ainda hoje está em jogo. Na
argumentação na Parte II, apostamos em progressivas alterações e densidades de realismo,
mesmo que a questão se altere durante a obra. A interpretação proposta nesta tese não leva em
conta como central a questão da legitimidade, mas sim a relação entre transcendência e
imanência, além, é claro, da superação por meio de outro conceito de político. Não demonstra
apenas a transição do problema da validade normativa para o problema da estabilidade
empírica a partir da qual se dá qualquer representação normativa, mas apostamos que Schmitt
busca o limite, realidade ou modo concreto de constituição de objetos políticos, o que
demonstra o caráter fictício da normatividade. Em nossa interpretação, Schmitt busca a
fronteira anterior mesmo à distinção entre ser e dever-ser, direito e poder, que torna, por fim,
estas distinções esvaziadas, abandonando a noção de legitimidade.

1.5 Heinrich Meier: Carl Schmitt como devoto político [1988/1994]

No final da década de 1980, Heinrich Meier publicou seus estudos sobre a relação de
recíproca influência entre Carl Schmitt e Leo Strauss, sobretudo, ao destacar como as críticas
do jovem Strauss surtiram efeito no pensamento schmittiano. Segundo Meier, a análise
straussiana sobre o político provocou algumas alterações na argumentação do jurista,
inclusive, ao ponto de modificar a redação do texto na edição de 1932 59, principalmente, a
caracterização do conceito de Politischen. No entanto, o livro mais polêmico e que trata mais
especificamente da interpretação de Meier sobre a obra schmittiana apareceu alguns anos
depois. No Die Lehre Carl Schmitts: Vier Kapitel zur Unterscheidung Politischer Theologie

58
Ainda segundo Hofmann, Schmitt pode ser definido como “um sucessor espiritual dos nominalistas e dos
voluntaristas (...) Hans Welzel pode compreender a obra de Schmitt em perfeito paralelo histórico com a
polêmica que na época, o nomialismo tardo-medieval tinha conduzido contra o platonismo nas vestes tomásicas
do realismo da ideia” (HOFMANN, 2002, p. 163).
59
MEIER, H., Carl Schmitt, Leo Strauss und Der Begriff des Politischen. Zu einem Dialog unter Abwesenden.
Mit Leo Strauss Aufsatz über den Begriff des Politischen und drei unveroffentlichten Briefen an Carl Schmitt
aus den Jahren 1932-1933, Stuttgart, J. B. Metzler, 1988.
96

und Politischer Philosophie de 199460, o comentador levanta a tese de que o pensamento de


Schmitt é uma forma de teologia política. Mais especificamente, a fundamentação da teoria
política schmittiana seria a tese do pecado original, de onde extrai suas consequências: a
necessidade da ordem diante da periculosidade (Gefährlichkeit) dos homens e sua base moral-
metafísica. Neste contexto, ao afirmar que Schmitt pressupõe uma teologia política em
sentido forte, Meier assume que a obra inteira só pode ser corretamente interpretada se
percebermos a motivação de uma ação política baseada na fé da revelação cristã. Esta tese, no
entanto, pertence a uma corrente minoritária de intérpretes, dentre os mais conhecidos, Hugo
Ball, Jacques Maritain e Jacob Taubes e, como tentaremos demonstrar, apesar de repousar
sobre um mal-entendido, reforça paradoxalmente a compreensão finitista que esboçamos
como uma possível chave de leitura do corpus schmittiano. Além disso, corrigir esse mal-
entendido acerca da pretensa centralidade da teologia política não só nos coloca em melhor
posição para apreciar o núcleo do pensamento de Schmitt, mas também põe em foco a
autêntica significação da teologia política e, sobretudo, a tensão entre transcendência e
imanência, bem como a resolução que encontramos na distinção entre o político e a política.
As considerações a seguir expõem alguns argumentos de Meier, além de uma análise crítica
de suas teses que apesar de influentes revelam-se, como demonstramos abaixo, com várias
falhas e imprecisões. Ao final, buscamos algumas confirmações para nossa própria leitura,
senão vejamos.
A tese de Meier sustenta que Schmitt possui uma reflexão político-jurídica
fundamentada no mito do pecado original, mais especificamente, em Gênesis 3:15. Esta
fundamentação teológica impossibilitaria Schmitt de desenvolver uma autêntica teoria
política, pois permaneceria ao nível da teologia política, subordinando sua reflexão em
direção à dicotomia tipicamente teológica (ou ainda, como Ruth Groh propõe explicitamente,
uma teoria gnóstica) entre bem e mal, Deus e Satanás. Esta interpretação teológica (ou
interpretação mitológica, como o autor também denomina) implica em um dualismo que,
segundo Meier, Schmitt mantém ao expor a tese entre amigo e inimigo como critério do
político, compreendido como expressão secundária diante da matriz religiosa. Assim, Meier
assevera uma “impossibilidade teológica da doutrina política de Carl Schmitt” (theologische
Unmöglichkeit einer Politischen ‘Lehre’ Schmitts) por causa de sua relação não resolvida

60
Consultamos a tradução americana de Marcus Brainard, The Lesson of Carl Schmitt. Four Chapters on the
Distinction between Political Theology and Political Philosophy. The University of Chicago Press: Chicago &
Londres, 2011. Heinrich Meier desencadeou inúmeras críticas com suas teses sobre Schmitt tanto em Carl
Schmitt, Leo Strauss und der “Begriff des Politischen” de 1988, quanto em Die Lehre Carl Schmitts de 1994.
97

entre céu e terra, imanência e transcendência. A questão da doutrina de Schmitt seria


compreendida não como uma filosofia ou teoria política, mas como uma teologia política:

A "oposição concreta" em que Schmitt faz a expressão "teologia política" em seu


próprio conceito, é a oposição entre autoridade e anarquia, entre fé na revelação e
ateísmo, entre a obediência e a rebelião contra o soberano supremo. Mas a
autoridade, a revelação e a obediência são (...) determinações decisivas da causa da
teologia política, que não veio ao mundo com a teoria de Schmitt. É tão antigo
quanto a fé na revelação, e continuará a existir, tanto quanto se pode dizer, tanto
quanto a fé em um Deus que exige obediência continua a existir (...) A teologia
política entendida como uma teoria política ou uma doutrina política que afirma
basear-se na fé na revelação divina (...) Nesse sentido, não só os teólogos políticos
que aceitam o ensino de Schmitt de imediato e com assente usam-no, mas também
são mais numerosos que rejeitam os políticos de Schmitt opção e não compartilhe
sua fé ... Continua sendo uma arma na discussão político-teológica (MEIER, 2011,
p. 171).
A tese de que Schmitt não postula uma filosofia política, mas sim uma teologia
política e, por isso, de que a obra schmittiana teria como pano de fundo a relação entre céu e
terra, implicaria não apenas que o conceito de político teria como fundamento a distinção
entre amigo e inimigo como um impulso moral (como sustenta também Leo Strauss), mas
também, explicitamente, seria considerada a partir do evento do pecado original. A teologia
política como fundamento do conceito do político e, afinal de contas, de toda obra do jurista, é
em parte sustentada, segundo Meier, através dos escritos publicados após sua morte, diários e
cartas que ratificariam uma visão cristã da sua teoria nem sempre assumida como tal ou, ao
menos, nas entrelinhas de seus textos publicados. Deste modo, o trabalho de Meier identifica
o aspecto central do pensamento de Schmitt (a teologia política) compreendido vulgarmente
como relação entre sagrado e profano, com o intuito de demonstrar a revelação do mistério
divino como o fundamento último, em uma palavra, Deus como soberano. Esta
fundamentação teológica radical que Meier procurar estabelecer através dos textos de Schmitt
simplifica demasiadamente uma obra difícil e complexa, plena de rupturas, influências e
viradas teóricas. Meier trata em quatro capítulos (respectivamente, sobre moralidade, política,
revelação e história) a diferença entre filosofia política e a teologia política schmittiana. Na
interpretação do autor, Schmitt teria por base a convicção de que “uma decisão moral é o
núcleo da ideia política” (MEIER, 2011, p. 1). Logo no início de sua exposição, Meier
assimila esta concepção moral à teologia remetendo a política à transcendência e, não
obstante as afirmações de Schmitt em sentido contrário, ele insiste que “A proclamação de
uma "política pura" não pode ser a expressão de uma retórica? E se os ataques de Schmitt à
"moralidade humanitária" e ao "moralismo" fossem guiados por motivos morais?” (MEIER,
2011, p. 2), seguindo de perto o que já fora dito por Strauss. Neste contexto, a rejeição de
qualquer concepção que se aproxime da imanência torna-se urgente: Meier encontra,
98

nomeadamente, esta rejeição em um texto tardio (Politische Theologie II) que, apesar disso,
cita como abertura do argumento: “A loucura da ilusão de Prometeu é tão simples como o dia.
Pode-se ouvir em todas as formulações que Schmitt escolhe para descrever as "cadeias de
pensamento" nas quais o "autismo" da imanência deve se mover, na imanência "que é dirigido
polêmica contra uma transcendência teológica" sem querer admitir isto” (MEIER, 2011, p. 5).
Atento às teses de Meier, o leitor acreditaria estar diante de um pensador crítico da
historicidade, das formas de vida, da existência ou da instituições concretas, inclusive de teses
que afirmam que a ação se dá na “cegueira da imanência” o que seria, para Meier, a rejeição
de Deus, ou melhor, a ruptura da relação entre político e teologia. A relação direta que Meier
descreve não se parece quase em nada com os textos que, efetivamente, Schmitt traz a
concepção, por exemplo, de político como mediação do teológico: nada de fanatismo ou de
política teológica, mas uma tese que demonstra um rasto entre estas esferas, mais
especificamente, a secularização como transferência61.
A crítica à técnica e à despolitização não faz com que Schmitt almeje um reino dos
céus, pelo contrário, ele abandona, mesmo sem assumir o argumento até as últimas
consequências, a forma-Estado, declara a primazia da relação concreta e, ao invés de sustentar
que “toda autoridade temporal ou humana procede diretamente da autoridade espiritual ou
divina”, afirma, ao contrário, o conflito como cenário do político, secular e demasiadamente
imanente62. A mera contraposição à Bakunin não torna Schmitt um defensor da fé nem
convence tomar o liberalismo como um adversário cristão. Além disso, a crítica à economia
não se refere à ausência de Deus, mas antes à ausência de político, isto é, como uma crítica à
transformação do poder em cálculo, numa juridicização extravagante. Se o político não
deixou de ser teológico (na tese de uma secularização inacabada), ao menos deixou de ser sua
mediação e isso foi desencadeado pela secularização, acabada ou não, mesmo em suas formas
estatais na busca da ordem.

61
Sobre o tema, imprescindíveis: LÜBBE, 1965 e CASTELO BRANCO, 2011. Deste, extraio um trecho
revelador: “o conceito de secularização transita numa tensão entre visibilidade e invisibilidade, transcendência e
imanência, pessoalidade e impessoalidade. Por ora, destaco que a secularização, entre outros sentidos
empregados por Schmitt, se refere a um problema de representação que surge com o iluminismo e o
romantismo” (CASTELO BRANCO, 2011, p. 25). De uma perspectiva histórica, sobretudo, SCATOLLA, 2007.
62
Sobre a relação de Schmitt com o pensamento católico, entre outros, vale a pena analisar o artigo de
GONTIER, 2013: “an intellectual anticipating of the political at the level of the innerworldly-historical—more
intelligent than the ‘decency’ of many others whose stubbornness keeps them safe from dangerous adventures—
but [of] insufficient spiritual stature to be able to escape the mischief of the world-immanent seduction—it is
never enough for the ‘periagoge’ in the Platonic sense.” In common with Heidegger, Schmitt has undermined the
meaning of transcendence that Plato understood to be the purpose oft he periagoge. In both writers, the position
of radical transcendence (radical to the extent of no longer providing a horizon of meaning for mankind) is
reversed, thereby becoming the affirmation of an absolute immanence” (GONTIER, 2013, p. 42). Estas
considerações reforçam a tese proposta nesta pesquisa.
99

Entretanto, não há como tratar das teses de Meier sem abordar a peculiar função
política que a teoria do pecado original como fundamento para a manutenção da ordem
desempenha. Por exemplo, ele assevera que: “Sua teologia política explica não só a percepção
de que, se a teologia desaparecer, também a moral; se a moral desaparecer, também o político,
assumindo que a teologia ou a moral poderiam ‘desaparecer’. Schmitt acredita que ele sabe,
além disso, e muito mais certamente que a negação do pecado original destroi toda a ordem
social” (MEIER, 2011, p. 13) e, logo mais, ele afirma:

No entanto, as coisas podem estar de acordo com a ordem pela qual a Fé no pecado
original é considerada indispensável, certamente é assim a teologia política de
Schmitt. A doutrina do pecado original nomeia o fiador que assegura a
inevitabilidade de um radical Ou - ou até o fim dos tempos: colocarei enantiomas
entre a sua semente e a sua semente. A crença na verdade de Gênesis 3:15 é o
fundamento sobre o qual a teologia política de Schmitt é erigida (MEIER, 2011, p.
12-13).
Curiosamente, o tema do inimigo ganha relevância na obra jurídico-política apenas
no final da década de 1920 e seria pensar de maneira demasiadamente gnóstica ou
maniqueísta um pensamento schmittiano compreendido desde o início sob esta marca
religiosa. Não obstante, Meier prossegue: “A doutrina do pecado original diz respeito à
oposição entre o bem e o mal, Deus e Satanás, a obediência e a desobediência. Ao mesmo
tempo, ele confronta o próprio homem com um final Ou-Ou. A decisão, o credo absoluto ou
não credo que requeira, torna-se assim o paradigma da "decisão moral exigente" como tal”
(MEIER, 2011, p. 13). A leitura de Strauss é assimilada do modo mais devoto possível ao
ponto de transformar uma caracterização moral e liberal em uma leitura cristã.
Em um trecho que mais se assemelha a um sermão, Meier retoma inúmeras citações
desconexas de textos do período pré-weimariano com outros textos da década de 1970. Nessa
colcha de retalhos, diz o que quer, ou melhor, força Schmitt rezar:

O homem só encontra sua salvação na obediência da fé. Devido à sua proveniência


divina, ele vive no estado de liberdade condicional e julgamento. Ele está sujeito ao
mandamento da ação histórica. O homem é a criatura que deve "responder em
fazer". Ao enfatizar a obediência, a teologia política coloca essa virtude no centro,
que é, nas palavras de um dos seus maiores professores, na criatura racional, por
assim dizer, a mãe e guardião de todas as virtudes (MEIER, 2011, p. 16).
Em síntese, numa formulação confusa, pouco conceitual e contraditória (ao articular a
teologia política com obediência e Hobbes – que seria um teólogo político por excelência?!,
logo ele que inicia o processo de imanentização da representação e critica a potestas
indirecta), Meier sustenta esta equação:

Para a teologia política, a subordinação à obediência significa que, se desejar


permanecer em harmonia com suas pressuposições, deve entender-se como "teoria"
com base na obediência. A teologia política não é excluída do mandamento da ação
100

histórica. Para a teologia política também afirma que somente a obediência a Deus
pode garantir a proteção do senhor deste mundo. Devemos reconhecer no obedo, ut
liber sim do teólogo político o arquétipo da "eterna correlação entre proteção e
obediência", um arquétipo não distorcido por qualquer secularização? (MEIER,
2011, p. 16-17).
Meier consegue enfatizar o apelo à ordem que as teses schmittianas trazem, mas ao vincular o
apelo à ordem como uma obediência à Deus, o comentador extrapola sem dar conta que,
afinal, o jurista não poderia, simplesmente, subscrever afirmações desta espécie: “A teologia
política pressupõe fé na verdade da revelação” (MEIER, 2011, p. 20). Todos os eventos são
submetidos à revelação, a imanência à transcendência e esta revelação, claro, serve para
reforçar a tese da ordem, isto é, como fundamento da obediência. Na relação entre obediência
e teologia política, Meier reforça, de maneira paradoxal, para não dizer incompreensível, uma
embaraçosa historicidade da teologia política:

Para obedecer a revelação ou a si mesmo, a teologia política tem que querer ser
"teoria" por obediência, em apoio à obediência e por obediência. A moral é,
portanto, seu princípio em dois sentidos. Ele é o início da teologia política e
continua sendo seu campo determinante. Esta relação fundamental merece mais
atenção, na medida em que a teologia política in concreto pode defender posições
divergentes sobre a moralidade (...) Se é verdade que a moral não pode continuar a
existir sem a teologia, então certamente não é menos verdade que a teologia política
não pode ser pensado e compreendido sem o primado que concede moral. Para a
teologia política de Schmitt, as diferenças e contradições das posições político-
teológicas devem ser explicadas com base na sua historicidade (MEIER, 2011, p.
20-21).
Numa releitura mais de Strauss do que de Schmitt, Meier assume a identificação
entre teologia política e moralidade. Esta leitura, porém, encontra mais do que as propostas de
Schmitt trazem, mesmo em Politische Theologie, onde as questões não são tratadas no âmbito
da moral. Não obstante a inexistência deste tema, Meier afirma “se permanecemos dentro do
horizonte da teologia política, a posição fundamental de Schmitt sobre a moral parece ser
consistente (MEIER, 2011, p.21). Assim, ele reduz Schmitt a uma luta da decisão moral da
teologia política, por exemplo, quando afirma que “Schmitt ataca a moral humanitária porque
vê nele o ‘veículo’ de uma ‘nova fé’ anti-divina” (MEIER, 2011, p. 23). Assim, contra estes
desafios históricos, Schmitt teria movido sua máquina teológico-política, pois “Ele luta nela
como ‘aquilo que detém’ o caminho para a auto-deificação do homem. Onde quer que a
humanidade seja considerada o ‘valor mais alto’, o perigo é grande que toda relativização do
homem com base em uma transcendência e outra palavra no esquecimento” (MEIER, 2011, p.
23). O teólogo político como defensor da moral:

em geral, o gesto de desmascarar com que Schmitt se opõe ao engano de conduzir a


política sob pretextos morais, sob o pretexto do não político e com métodos
subjugados, é tão pronunciado e julgamentos e pontos de vista morais (...) que a
opinião de que Schmitt claramente distinguido entre política e moral, que ele era um
teórico da "política pura", cuja única preocupação era compreender e determinar o
101

que é, já que por essa razão só pode ser encontrado com espanto (MEIER, 2011, p.
21-22).
O malabarismo hermenêutico de Meier ganha desenvoltura com essa articulação que, com
algum mérito, ele desenvolve, por exemplo, “Para o teólogo político (...)está ciente da
importância escatológica da batalha por ou contra a inimizade na idade em que ‘nada é mais
moderno do que a batalha contra o político’ (PT, p. 55; RK, p. 19) a defesa do político se
torna um dever moral” (MEIER, 2011, p. 25).
No capítulo 2, Meier avança em sua tese: expõe a relação entre o conceito do político
e a fé cristã. Logo de entrada, enuncia, numa irônica inversão da tese schmittiana, que “O
conceito de Carl Schmitt sobre o político pressupõe o conceito de inimigo” (MEIER, 2011, p.
26). Esta formulação reverbera a leitura de Derrida, na qual o argelino argumenta a relação de
necessidade e não meramente possibilidade entre o político e a guerra63. No entanto, a
argumentação aborda, inicialmente, a definição do político como comportamento determinado
pela real possibilidade da guerra e pela distinção entre amigo e inimigo. Desta pressuposição,
Meier extrai duas consequências: (i) o conceito de inimigo estaria acima de qualquer outra
categoria e, por isso mesmo, (ii) seria uma espécie de verdade indubitável, fundamento que
perpassa toda a obra de Schmitt. No entanto, parece que Meier pressupõe mais do que Schmitt
assume e lança suas pretensões de tudo perceber de maneira teológica, por exemplo,

Se alguém quiser penetrar no centro da empresa em cujo serviço Schmitt se coloca


com sua teoria do político, é preciso voltar para a questão que decide tudo, uma
questão que não é criada na "teoria" de Schmitt, mas sim precede, porque para
Schmitt foi respondido de forma autoritária de uma vez por todas. Se alguém quiser
falar dos pressupostos que formam o fundamento do conceito de político de Schmitt,
não pode permanecer silente sobre a fé na revelação. Não se pode compreender o
ensinamento de Schmitt sobre o político, se não o compreender como parte de sua
teologia política (MEIER, 2011, p. 27).
Para Meier, tudo se resolve antes da obra, curiosa hermenêutica que elege uma chave de
leitura exterior à própria obra. Além disso, na leitura do comentador, as cartas, diários e notas
de exílio teriam maior força hermenêutica do que as obras escritas. Este acesso esotérico que
Meier sustenta, ou melhor, que revela como sendo a única chave de leitura não é outro senão,
como já visto, a fé na revelação. O pressuposto do político a partir da consideração do inimigo
como figura central que, na curiosa exegese meieriana, remete à maldição bíblica o faz
afirmar sem rodeios que:

O significado central de que a distinção entre amigo e inimigo é concedido no


pensamento de Schmitt só pode ser compreendido, todo o peso que Schmitt dá seu
critério do político apenas apreciado, por alguém que não deixa de atender a esse
outro critério que sujeita a afirmação ou negação da inimizade à distinção político-
teológica (MEIER, 2011, p. 27).

63
Sobre isso, DERRIDA, 1998 e infra 1.9.
102

A redução da diferença política à diferença teológica é a tese básica de Meier. A


partir disso, ele pretende demonstrar a inexistência de uma teoria política em Schmitt 64.
Assim, haveria apenas uma teologia política e não verdadeira teoria política no jurista alemão,
pois ainda na relação céu e terra, imanência e transcendência, numa secularização inacabada.
O autor não acompanha uma distinção na obra de Schmitt entre o conceito do político como
mediação e o conceito de político como relação ou diferença existencial, ou melhor, o político
como uma mediação a serviço da teologia política e o político liberado da teologia,
precisamente, por ter alcançada autonomia, uma vez que imanente.
Meier descreve corretamente a abordagem do politische Existentialismus do Der
Begriff des Politischen, inclusive remetendo às diversas versões do texto. Além disso, realiza
uma lúcida reconstrução dos argumentos do texto em questão quando afirma que Schmitt
defende o político como independente de qualquer instância, inclusive moral, porém
questiona a possibilidade desta independência ou pureza do político (MEIER, 2011, p. 28-29).
Apesar das observações críticas, Meier é assertivo num ponto: o inimigo não pode ser
compreendido a partir de normatividades, tal como no trecho, “o inimigo não é definido por
meio de ‘normatividades’, mas sim é um fato da ‘realidade existencial’; ele não está sujeito a
uma avaliação moral, estética ou a qualquer outra (...) Ele é o inimigo que ‘deve ser afastado’
na batalha existencial” (MEIER, 2011, p. 29). No entanto, apesar de ter clareza quanto ao
estatuto da relação de antagonismo (visto que se dá na faticidade), a leitura de Meier já se
torna partidária da sua própria tese e remete, numa circularidade insatisfatória, todas as
considerações para o além: até mesmo quando descreve alguns argumentos schmittianos
como a “objetividade existencial e independência do político (...) a distinção entre amigo e
inimigo pode existir teoricamente e praticamente sem que a moral, a estética, a economia ou
outra distinção sejam aplicadas simultaneamente” (MEIER, 2011, p. 28), ele ainda considera
Schmitt não permanece nos “domínios do pensamento e da ação humanos” (MEIER, 2011, p.
29), mas dele ultrapassa, pois apesar de compreender em um sentido concreto e existencial a
real possibilidade do conflito, para Meier, Schmitt ainda trata o conceito de inimigo como um
domínio próprio não por ser uma qualidade do político, mas por ser a forma da autoridade. Na
interpretação de Meier,

Do início ao fim, o que diz respeito a Schmitt não é a independência do político, mas
sim a sua autenticidade. Coloque mais precisamente: desde o início, o que importa
para ele é localizar o que é autoritário no político. O conceito de política está
orientado para o "agrupamento autoritário". Tem a "unidade autoritativa" em vista.
Mesmo num momento em que Schmitt ainda atribui a região política dentro do

64
Esta tese também é sustentada por ZARKA, 2005.
103

domínio das províncias da cultura, o conceito de objetivos políticos no "caso


autoritário" (MEIER, 2011, p. 31).
Assim, Schmitt teria sob a questão do político o pressuposto da ordem, evidentemente, um
pressuposto teológico-político. Entretanto, o pressuposto da unidade política ou da ordem,
segundo Meier, chega ao ponto central da sua análise sobre o conceito do político quando
afirma que:

O político "surge" onde quer que dois se juntem e unam forças contra um inimigo.
Este é precisamente o significado desse giro conceitual em conseqüência do qual o
político é denotar "o grau mais extremo de intensidade de um vínculo ou uma
separação, de uma associação ou de uma dissociação" O político é livre de sua
referência fixa à comunidade e, por assim dizer, feito fluido. Mas, desse modo, o
passo decisivo é tomado para revelar que o político é o total para uma interpretação
"ontológica-existencial" (MEIER, 2011, p. 34, grifo nosso).
Em outras palavras, o político como algo fluído, sem substância. Como Meier pode
conciliar uma leitura moral-religiosa de Schmitt com esta interpretação do político como algo
“fluído”? Ele mesmo ratifica da seguinte forma: “Como possibilidade, tudo é político, e tudo
sempre é mais ou menos político” (MEIER, 2011, p. 34), assim, Meier confirma a tese de que
“Os povos perderam sua posição de chave presumida (...) Em 1932, ‘religião, aulas e outras
pessoas’ são explicitamente citadas em uma respiração com eles como constituintes possíveis
neste mundo” (MEIER, 2011, p. 33, grifos do autor), ou seja, compreende que o político não
se determina no Estado. Todavia, logo tenta conciliar esta tese do politico como algo fluído e
incalculável com a tese de que “como Schmitt tem em mente e como sua teologia política
exige” (MEIER, 2011, p. 34). Surpreso, o leitor não demora a perceber que objetos diferentes
são tomados por iguais e duas teses distintas colocadas lado-a-lado como coincidentes: uma
ordem da imanência sem transcendência (mesmo que Meier insista na relação entre político
como totalidade e indivíduo na perspectiva existencial!) teria como pressuposto a unidade da
ordem em termos teológico-políticos. O problema evidente da paradoxal ligação entre céu e
terra, realmente, só pode ser resolvido como um ato de fé do intéprete.
Meier prossegue a análise da tese do político não apenas baseado numa concepção de
moral cristã, mas também como “fundada no recurso à concepção de intensidade é o resultado
de uma perspectiva originalmente individualista” (MEIER, 2011, p. 34). Numa leitura
apressada, o intérprete cristão vincula o político ao existencial e deste ao individualismo. Esta
interpretação ainda reverbera as teses de Strauss – o liberalismo com sinal oposto –, mas não
considera uma possibilidade mais interessante: Schmitt não concede maior peso ao inimigo,
nem mesmo afirma o político a partir de um individualismo, pelo contrário: dá ênfase na
relação que instaura o conflito e, sobretudo, trata com uma noção de comunidade, certamente
pouco desenvolvida, mas que o afasta suficientemente de qualquer abordagem individualista.
104

O comentador analisa corretamente a distinção entre “political” e “agonal”, por


exemplo, “Esta situação permite que Schmitt disponha de sua posição político-teológica
contra toda metafísica "não política". Por meio da distinção entre "político" e "agonal", ele
deixa claro que a guerra pode ser a extrema emergência para o homem, e só quando a guerra
tem o peso da decisão sobre o domínio, a ordem e a paz” (MEIER, 2011, p. 40), sustentando a
diferença entre uma abordagem teológico-política e a metafísica a partir do diferencial da
guerra. Na verdade, segundo Meier, o critério não seria uma mera disputa ou agonismo
apolítico, mas sim como a luta por dominação, ordem e paz através do conflito ou da luta de
vida ou morte. Talvez este seja o ponto mais interessante de Meier: a leitura de Schmitt como
um autor da ordem: “Considerando que a teologia política se baseia sem reservas no unum est
necessarium da fé e encontra a sua segurança na verdade da revelação, a filosofia política
coloca a questão do direito inteiramente no terreno da ‘sabedoria humana’, de modo a
desenvolver a questão no máximo Via fundamental e abrangente para o homem” (MEIER,
2011, p. 42). No entanto, também seu ponto fraco: remete a questão da ordem a algo além,
mais especificamente, à fé na revelação, tal como a seguir, “a teologia política sabe que é
baseada na fé e quer ser porque sabe que toda vida humana deve ser baseada na fé” (MEIER,
2011, p. 43), desconhecendo o caráter metodológico da teologia política e justificando com
discurso religioso o Politische schmittiano.
Meier sustenta ainda que Schmitt daria maior importância à inimizade e ao inimigo,
literalmente, “em vista ou a relutância de Schmitt sobre a realização de um exame nativo,
também pode ser explicado por que o amigo e a amizade permanecem tão visivelmente sem
graça em sua concepção e pálidos completamente em comparação com o inimigo e a
inimizade” (MEIER, 2011, p. 50) e, ao apostar na primazia do inimigo como princípio da
formação de si, contrapondo-se, sobretudo, ao agonismo da metafisica, mera oposição
metafísica: “na batalha de vida e morte, mais em jogo para Schmitt do que pura auto-
afirmação ou reconhecimento humano” (MEIER, 2011, p. 54). Esta questão central do
comentário de Meier faz-se presente em todo o texto, mais uma vez aqui sobre o tema do
inimigo: “o que é mais importante é pressuposto; o significado da ordem em que cada luta
pela preservação ou desenvolvimento da sua própria, não é objeto de discussão” (MEIER,
2011, p. 56). Mereceria a subscrição sem maiores considerações se não fosse a
complementação que arremata um pensamento terrenal ou telúrico com o pressuposto
teológico sempre presente no comentador:

Para Schmitt, a defesa da inimizade tem um fundamento teológico, a batalha com o


inimigo segue um destino providencial: o decreto eu colocarei inimizade entre sua
105

semente e sua semente precede o fratricídio de Caim. Com esse decreto voltamos ao
princípio da fé em que Schmitt erigiu seu edifício político-teológico e que ocupa um
lugar decisivo em Der Begriff des Politischen (MEIER, 2011, p. 57).
Não soa estranho o intérprete finalizar seu argumento com um termo alheio a Schmitt
para designar o politico: a comunidade de fé. Assim, “A batalha de fé que a formação do
conceito de Schmitt toma como padrão é a batalha na qual a fé verdadeira conforma a fé
herética. Nesta batalha, atinge-se o grau mais extremo de intensidade de associação e
dissociação. A inimizade mais intensa prova ser a inimizade autorizada. Aqui a preocupação é
domínio, ordem e paz ‘no sentido eminente’” (MEIER, 2011, p. 63). Contra isso, postulamos
outra interpretação que não aprofunda, mas subtrai e, por isso mesmo, trai o pensamento do
autor. Ao invés de comunidade de fé, uma comunidade do conflito65.
A questão da teologia na obra de Schmitt passa de tema praticamente inexistente –
até meados da década de 1980 – até chave de leitura para compreensão de todo seu
pensamento. O theological turn no debate acerca da obra schmittiana joga luz sobre uma
concepção de ação política baseada na fé cristã da revelação, mais especificamente, como
afirma Meier “a teologia política permanece e cai com fé na revelação, e ainda, a inimizade é
definida com fé na revelação” (MEIER, 2011, p. 66). A raison d’être da teologia política seria
a “obedience of faith” (MEIER, 2011, p. 67) na revelação66. No entanto, como articular
revelação e política, ou melhor, como sustentar que a teoria política de Schmitt seja uma
“truth of revelation” e delimite a distinção entre “obedience and rebellion”? Meier parece
partir de uma noção de secularização bastante peculiar: ao invés de esvaziamento ou
progressiva transferência entre as esferas, o comentador reenvia a política à teologia e, parece-
nos, faz o caminho inverso do pretendido por Schmitt, por exemplo, ao tratar da sociologia
dos conceitos. Numa formulação precisamente oposta à que levantamos nesta tese, Meier
afirma que “Schmitt não se limita a manter aberta a ‘porta de entrada para a transcendência’”
(MEIER, 2011, p. 69). Deste ponto de vista, como Meier articula história e teologia,
imanência e transcendência no pensamento de Schmitt? Além disso, Meier não aborda as obra
do período pré-weimariano, por exemplo, não discute a virada do pensamento formalista para
os argumentos do período do pensamento de exceção e ordem. No texto, aborda apenas

65
Cf. seção 3.4
66
Sobre a posição de Schmitt como defensor da ordem e o paralelismo com Eusébio de Cesaréia: “Though
Schmitt (unpersuasively) denies that this is his intention, the work effectively culminates in a defense of the
‘unfortunate Bishop Eusebius’ of Caesarea against the ‘defamation’ he has suffered in posterity, attacked “ad
personam” through ‘moral-political’ categories, such as ‘ideologist’ and ‘propagand[ist]’ of ‘caesaropapi[sm]’.
As Schmitt repeatedly emphasizes, Eusebius was simply a ‘love[r] of peace and order’ who thought he saw in
the Imperium Romanum some possible salvation from ‘political pluralism’ and ‘disastrous civil war’. This is
thinly veiled allegory. Eusebius is Schmitt; the Council of Nicea, the Weimar Republic” (MEIER, 2011, p. 73).
106

alguns excertos desconexos à luz de cartas ou comentários de autores cristãos e se satisfaz


com o argumento do Katechon em suas obras tardias67.
A tese central no capítulo três do texto é a seguinte: a pretensão de uma pureza
absoluta do teológico, em última análise, torna-se vazia. A fixação de Schmitt foi o perigo e o
horror apocalíptico do anticristo. Neste confronto escatológico entre Cristo e o Anticristo, o
conceito de Schmitt do político teria sido foi articulado por causa de religião. Além disso, a
Teologia política nega a possibilidade de uma justificação racional do próprio modo de vida.
[Ele] sabe que é fundado na fé e quer ser tão fundamentado porque acredita na verdade da fé.
Assim, “o núcleo metafísico parece, portanto, ser político, não apenas potencialmente, mas na
verdade, e desde o início: não é preciso esperar até que a posição metafísica e teológica seja
submetida à distinção entre amigo e inimigo” (MEIER, 2011, p. 73). A partir disso, todavia,
Meier comete um equívico ao submeter a obra de Schmitt à transcendência e, sobretudo, à
soberania suprema, sem considerar vários argumentos da Verfassungslehre (praticamente
ausente em seus comentários) e do Der Begriff des Politischen (com lacunas injustificáveis na
apresentação): “Tudo é acessível para a distinção entre amigo e inimigo porque tudo está
sujeito ao domínio político. Nada é concebível que possa ser excluído do soberano supremo”
(MEIER, 2011, p. 74). A precedência do teológico, a questão da obediência e da ordem pode
ser resumido no seguinte: “Mais uma vez, voltamos ao ‘dogma teológico fundamental da
pecaminosidade do mundo e dos homens’, que é decisivamente importante para a teologia
política de Schmitt. Ele diz precisamente isso: Deus quer nada menos que tudo, ele exige
obediência incondicional, e o mundo não cumpre essa demanda” (MEIER, 2011, p. 78). Ou
ainda, no trecho a seguir, numa reconstituição dramática: “Passo a passo, Schmitt chamou a
nossa atenção para uma cadeia de raciocínio fundacional, e no final (...) ele nos confronta com
um apodítico Ou-Ou: fé ou desordem” (MEIER, 2011, p. 81). Não é estranho extrair um apelo
à ordem das teses schmittianas, mas a leitura unilateral que resume o político à metafísica
parece insustentável, tal como no excerto: “no nível do confronto político-teológico, ‘o núcleo
metafísico de toda a política’ é, em primeiro lugar, sinônimo da metafísica, ou mais
corretamente: com a teologia que Schmitt discerne como base de toda teoria política, todo
ensino político, toda atitude política” (MEIER, 2011, p. 72). Assim, a medida da ordem é a fé
na revelação: “à luz dos critérios de autoridade e obediência, torna-se óbvio que o que, na
verdade, os unifica e o que os divide, prova ser de nível subordinado” (MEIER, 2011, p.

67
Sobre o Katechon, Schmitt retoma uma interpretação clássica de uma passagem da II Epístola aos
Tessalonicenses, segundo a qual o Império (romano) seria o que guarda e retarda a vinda do Anticristo. cf.
LÖWITH, 1983, p. 180 et seq.; CACCIARI, 2013.
107

85)68. Em suma, a fé na revelação como o coração da metafísica ou teologia política e a


questão da obediência e da ordem como o pressuposto de qualquer política contra o niilismo.
No capítulo 4, Meier tenta conciliar história e teologia política, orientação concreta e
revelação: “Em Schmitt, o dilema da teologia política emerge particularmente agudamente,
pois ele responde com um historicismo forçado à aporia fundamental com a qual qualquer
teoria política que quer ser teoria baseada na obediência da fé se vê confrontada. Tudo o que
lhe parece essencial neste mundo parece ser essencialmente histórico” (MEIER, 2011, p. 122-
123). Desta articulação, numa última tentativa, depende o sucesso da argumentação de Meier.
Inicialmente, ele demonstra a escolha de Schmitt por Hobbes:
Sua insistência na necessária correspondência de obedientia et protectio; sua defesa
das potestas directa; e sua rejeição das reivindicações políticas levantadas pelos
potestates indirectae; sua implementação teórica do princípio governamental de
domínio e pacificação cuius régio, eius religio; Sua aderência inabalável às questões
quis iudicabit? quis interpretabitur? quis interrogabit? No entanto, no ponto de
vista de Schmitt, a decisão para o Estado moderno era in concreto uma decisão de
‘secularização’ (MEIER, 2011, p. 124).
Portanto, o Estado é compreendido como veículo da secularização, isto é,
caracterizado como um conceito concreto. Para o autor, uma forma de realização do eterno na
história: daí sua peculiar leitura da secularização em Schmitt. Em suma, o jurista teria inserido
“em um curso de eventos que possuem significância transcendente” (MEIER, 2011, p. 124).
Mesmo que compreenda corretamente que “A secularização marca um fim e um novo
começo. O pluralismo dos Behemoths e Leviathans - (...) forma uma ordem nova, profana e
racional - toma o lugar da ordem político-teológica da respublica Christiana, com sua
organização hierárquica e orientação sagrada” (MEIER, 2011, p. 125). A partir da construção
do Estado moderno em Hobbes, Schmitt percebe o “pensou na decisão política soberana que
neutraliza toda oposição teológico-eclesiástica e seculariza a vida” (MEIER, 2011, p. 125) e,
apesar de reconhecer sua importância na eliminação das guerras civis religiosas, caracteriza-o
como técnico, em todo caso, como forma que abandonou a Veritas transcendente.
Assim, Meier prossegue com sua tentativa de vincular imanência e transcendência no
autor. Depois de afirmar que “Schmitt tenta dissolver a questão historicamente” (MEIER,
2011, p. 126), Meier relaciona o Estado concreto à ideia teológica que o sustenta: “Em outras
palavras, a verdade histórica do Estado consistiu em ter protegido a verdade da fé sem elevar
a sua própria verdade” (MEIER, 2011, p. 127). Entretanto, o Estado moderno torna-se incapaz
de garantir a verdade da fé: o “vehicle of secularization” produz uma “religion of technicity”

68
Os trechos que vinculam fé, ordem, política e moralidade se multiplicam a cada página, por exemplo, “What
concerns Schmitt above all in the doctrine of original sin is the defense of the center of the theology of revelation
and the presupposition of every – as he understands it – genuine morality” (MEIER, 2011, p. 81).
108

e, por conseguinte, neutralização e despolitização. Seguindo o argumento da relação entre


transcendência e imanência, Meier analisa a tese de Schmitt sobre Hobbes na qual “Hobbes
pressupõe um soberano cristão quando secularizou a ‘eterna correlação entre proteção e
obediência’, a fim de obter com ela o fundamento desse edifício” (MEIER, 2011, p. 129).
Neste caso, numa análise coerente, apesar das conclusões equivocadas, Meier acerta ao dizer
que:

Schmitt observa que, entre 1815 e 1918, ocorreu um "desenvolvimento da dinástica


para a legitimação democrática" e "que o tipo de legitimidade que prevalece hoje é
de fato democrático", sem, no entanto, esquecer por um momento que, para a
teologia política, de acordo com isso "imensamente Paralelo frutífero entre a
metafísica e a teoria do Estado", a democracia tem o seu" equivalente "no
panteísmo, no" panteísmo da imanência "ou na" filosofia da imanência " (MEIER,
2011, p. 144).
E, como conclusão do argumento, ele reforça sua tese: “A teologia política de Schmitt
é incapaz de fornecer ações históricas com qualquer orientação ‘concreta’ (...) Como, por
exemplo, todo pensamento que retorna às ‘conexões mais profundas’, está menos ligado ao
seu ‘momento histórico’ do que aparentemente acredita” (MEIER, 2011, p. 170), pois ao
vincular a imanência à transcendência e garantir a ordem através do mecanismo das políticas
da transcendência: “nós já chamamos a causa: uma teoria política, doutrina política ou um
ponto de vista político para o qual, de acordo com a autocompreensão do teólogo político, a
revelação divina é a autoridade suprema e a melhor fonte” (MEIER, 2011, p. 172-173). Meier
distingue entre teologia política e filosofia política: esta só poderá compreender sua própria
causa a partir daquela, como se autoridade que a filosofia política concebe devesse estar em
conexão com a teologia.
Ao interpretar toda obra de Schmitt como uma construção teológica baseada na tese do
pecado original, Meier obscurece inúmeros pontos e torce outros tantos: a importância
demasiada dada ao ponto de partida teológico, simplesmente, não se sustenta e dá ensejo
apenas a uma leitura gnóstica e pouco criativa. O autor transforma uma distinção terrenal em
um dualismo eterno e teológico: ao invés de afetos e conflito – como propomos – aparecem
Deus e o Diabo, Cristo e o Anticristo. Esta interpretação se revela incoerente, visto que não
teria como levar adiante o projeto escatológico do cristianismo nem mesmo a noção de que o
inimigo é também justo, de direito e, além disso, em lugar nenhum da obra de Schmitt vê-se
alcançar o paraíso. Afinal, afirmar que Satã é um inimigo justo ou igual ao Senhor é colocar a
figura do inimigo de maneira equívoca com o catolicismo e, apesar dos paralelismos,
inventados ou não, justapor a teoria schmittiana ao pano de fundo do Cristianismo é não
apenas simplista como sinal de pouca honestidade intelectual. Talvez a questão mais útil da
109

interpretação de Meier é no ponto onde reitera que Schmitt é um pensador da ordem, mas não
é possível reduzir a teoria jurídica e política schmittiana simplesmente a uma teologia política
por conta da questão da unidade e ordem69. A inexplicável influência que um texto como o
Meier adquiriu tem apenas uma explicação: levantou um mito sobre outro mito.
Argumentativamente, a análise da obra de Schmitt deixa a desejar e discordamos in toto da
chave hermenêutica meieriana que sustenta como papel chave a teologia política [leia-se: o
aspecto cristão da filosofia de Schmitt] o fato de que apenas uma interpretação que siga no
sentido da teologia política pode tornar compreensível o que de outro modo aparece altamente
disparatado, enigmático e obscuro, quando não completamente inconsistente.

1.6. Do impolitico ao das Politische: um diálogo ausente entre Roberto


Esposito e Carl Schmitt [1988]

A questão surge na leitura da obra de Roberto Esposito, mais especificamente, no


texto Categorie dell’impolitico (Categoria do impolítico)70: a compreensão do impolitico
como aquilo que é ininstitucionalizável, irrepresentável, vazio, borda ou fronteira da política.
Esta tese aponta para o avesso da identidade política como substância e da legitimidade a
partir de uma fundamentação racional ou normativa. A linhagem do impolítico parte de
Romano Guardini até Georges Bataille numa cadência convincente ao atacar o conceito de
representação e de ação política. A hipótese exposta nesta pesquisa, porém, sustenta que
Esposito reverbera de maneira mais íntima do que assume alguns argumentos propostos por
Carl Schmitt, sobretudo, no Der Begriff des Politischen (O conceito do político). Estes
pressupostos não assumidos explicitamente acenam para as teses da diferença política como
relação, do problema da finitude da ação, da ausência de fundamento, da inevitabilidade do
conflito e da impossibilidade de juridificação do político. Nesta seção, propõe-se uma espécie

69
Excelente contraposição acerca da tese do pressuposto teológico-político como chave de toda obra schmittiana
é trazido por ROBERTS, 2015: “The most plausible support for the political theological thesis derives from
postwar and (mostly) posthumously published material,which was retrospectively projected back upon Schmitt’s
Weimar-period writings as an interpretive lens. Ultimately, as it turns out, this material is no more than
suggestive (section 2). This material also forces us to recall the details of Schmitt’s relationship to the Roman
Catholic Church, from which he had slowly drifted over the course of the Weimar period. Thus, the quasi-
confessional statements found in his postwar notebooks must be interpreted either (a) as part of a widespread,
postwar turn to Christianity, or (b)as his cynical ploy to distance himself from the NSDAP. Retrospectively
projecting this material back onto the Weimar corpus is hermeneutically questionable (section 3). (...) As most of
his readers recognized until relatively recently, the “political” is the core concept in Schmitt’s thought, and this
sui generis category, while irreducible to theology, draws upon all spheres of human life. Theology can, but need
not, have a connection to it” (p. 453).
70
ESPOSITO, Roberto. Categorie dell’impolitico. 2ª ed. [1ª ed. 1988], Bologna: Il Mulino, 1999.
110

de tarefa arqueológica na reconstrução do impolítico para demonstrar que apesar da


inspiração anti-schmittiana (o título Categorie dell’impolitico é uma referência à Le Categorie
del ‘Politico’, tradução para o italiano de uma coletânea de textos de Schmitt na qual consta o
Der Begriff des Politischen), o livro de Esposito carrega várias das teses schmittianas. Neste
contexto, destaca-se uma variação do conceito de das Politische no período tardo-weimariano
e sustenta-se que embora não haja coincidência entre das Politische e l’impolitico, a
complementação proposta à tese de Esposito realça os argumentos de Schmitt na teoria
política contemporânea, inclusive, como um capítulo na ruptura da simetria entre imanência e
transcendência.
A chave de interpretação da política moderna é descrita por Esposito como uma
imunização do corpo social pela neutralização do conflito através de um processo de
institucionalização do político. Este paradigma imunitário busca repelir a violência
constitutiva das relações sociais a partir da proteção da vida e impedir a potencial deriva
comunitária como ameaça do munus, isto é, o comum que provoca a perda e a ausência entre
os sujeitos. Além disso, o autor demonstra como esta relação desapropriadora é rejeitada na
instauração da ordem jurídica e da unidade política através dos mecanismos de representação
e soberania: a modernidade assumiu os direitos subjetivos como fundamento da ordem e
evitou o contato direto entre os indivíduos com a exclusividade do liame jurídico. Assim,
reduziu a possibilidade de contágio ou violência, pois não haveria relação válida que não seja
mediada pela forma jurídica. Neste ponto, inicia-se a análise das categorias do impolítico. O
diagnóstico refere-se à imunização da filosofia política que não pusera ainda em discussão a
questão sobre a possibilidade de enunciação de seu objeto e preserva quase sem alterações a
semântica moderna de conceitos como soberania, autoridade, representação, entre outros. Este
é o mérito inicial do texto de Esposito, qual seja, a problematização do não dito em política ou
do princípio como crise que não se situa nem além nem aquém, mas sempre como origem
presente, ou melhor, como não-origem da política que a filosofia se recusa abordar.
Na introdução do Categorie dell’impolitico, Esposito confirma a suspeita sobre a
influência na proposta do termo: ele afirma que ou bem haveria confusão entre os intérpretes
com o termo proposto por Thomas Mann em Betrachtungen eines Unpolitischen
(Considerações de um impolítico) de 1918, ou bem com o texto já citado Der Begriff des
Politischen de Schmitt. Apesar de rejeitar ambas filiações, o autor afirma que se aproxima da
obra schmittiana mais como “ponto de partida (sponda di contrasto) [...] do que uma
referência interna” (ESPOSITO, 1999, p. 7). Há, todavia, um problema a ser analisado: parece
que o conceito do impolítico não apenas “começa ali onde o discurso schmittiano para:
111

tomando o que está além (dalla sua ulteriorità)” (ESPOSITO, 1999, p. 7), mas toma
emprestado mais do que assume quanto à estrutura, por mais que avance para além do que o
jurista alemão admitiria. Entretanto, de maneira desconcertante, a análise de Esposito sobre o
impolítico não chega ao Der Begriff des Politischen, apesar de tê-lo em vista. O autor italiano
reconhece as “consideráveis realizações analíticas” (ESPOSITO, 1999, p. 7) da Politische
Theologie (Teologia Política) de 1922 e do Römischer Katholizismus und politische Form
(Catolicismo Romano e Forma Política) de 1923; porém, neste percurso, ele considera como
semelhantes teses bastante distintas, pois a concepção do político como mediação ou
representação sofre revisão com a proposta do político como relação ou antagonismo no
período tardo-weimariano. Embora demonstre esta alteração como um contra-ataque
schmittiano às concepções imanentistas da década de 1920, Esposito trata apenas da
Verfassungslehre (Teoria da Constituição) de 1928. A questão é: por que Esposito reconhece
o Categorie dell’impolitico como “mise en abyme” do texto Römischer Katholizismus und
politische Form e não aborda o Der Begriff der Politischen? A análise aponta que entre
impolitico e das Politische há uma conexão importante esquecida. Além disso, a pesquisa
joga em cena o conceito de representação: a partir da politische Kehre schmittiana, remete-se
àquilo que Esposito observou como sendo o impolítico, ou seja, o irrepresentável da política.
Esta virada ficou sem observação devida pelos intérpretes, porém é precisamente este
argumento que mostra que o desenvolvimento de Esposito passa necessariamente por Schmitt.
Ao distinguir o impolítico do anti-político ou do apolítico, Esposito sustenta que
enquanto estes participam da política como uma imagem invertida e como tal apenas mais
uma maneira de fazer política ao posicionar-se contra a política, ou seja, uma configuração
política tanto da anti-política quanto da apolítica; o impolítico, ao contrário, provoca uma
paradoxal intensificação da política, uma vez que ele “define toda a realidade em termos
políticos (...) para o impolítico, não existe uma entidade, uma força, uma potência que possa
opor-se à política” (ESPOSITO, 1999, p. XIV) a partir de algum âmbito externo ou interno,
pois não há a possibilidade de um ideal ou valor distintos da realidade política que reconduza
à unidade ou origem. Esposito tem em vista os processos de despolitização e neutralização da
política que possuem a função de excluir o conflito e instaurar ordem: a política moderna
surgiu, então, como antipolítica. Isto significa que o impolítico não se contrapõe à política
nem mesmo pode ser considerado como apolítico ou não-político, pois seria o outro da
representação política, isto é, o não pensado ou esquecido por ela: se a política moderna
surgiu como antipolítica, pois administração do conflito sob a forma da ordem contra o
conflito insustentável da violência anárquica da origem sempre presente; então o impolítico
112

não rejeita o conflito nem nega a política, mas sim “a considera como a única realidade e toda
realidade” (ESPOSITO, 1999, p. XV), ou seja, não existiria fora nem anti- ou ante-, mas
apenas política sem possibilidade de metapolítica e, por conseguinte, o impolítico demonstra
sua abertura como abandono da simetria entre finito e infinito: considera que não há
transcendência ou finalidade externa. Ora, neste momento, percebe-se o incômodo do
impolítico, pois “a política nem sempre tem consciência de sua própria finitude constitutiva.
Está continuamente levada a esquecê-la. O impolítico não faz outra coisa que lembrar-lhe”
(ESPOSITO, 1999, p. XVI). Assim, o impolítico contradiz não apenas a distinção entre
essência e aparência, mas também os discursos de dualidades ou simetrias ao reafirmar um
realismo político uma vez que não há “presença de uma realidade segunda, ou primeira, a
respeito da única que se pode experimentar como tal” (ESPOSITO, 1999, p. XXI) e, dessa
forma, coincide com a própria política: enquanto a antipolítica ou a apolítica nega a política, o
impolítico nega esta negação e, por este modo, “começa a emergir o caráter paradoxalmente
afirmativo da negação impolítica. O que afirma o impolítico? Afirma que não há outra política
que a política (...) não é outra coisa que si mesma” (ESPOSITO, 1999, p. XVI).
Neste contexto, o impolítico serve para afirmar que a política não pode transcender a
si mesma, não há nada exterior ou finalidade transcendente nem uma lei natural universal a
partir da qual se concede autoridade, ou seja, o “impolítico é o fim de todo ‘fim da política’”
(ESPOSITO, 1999, p. XVI), portanto, como uma desconstrução que, ao contrário, não apenas
mostra os limites e separa dentro e fora, mas “une justamente o que separa”, isto é, o
impolítico torna-se limite da política, mas também limite de seu próprio limite: “o impolítico
não é distinto do político (sic da política), mas sim é o político (sic a política) mesmo
observando desde um ângulo de refração que o modera frente ao que ele não é e tampouco
pode ser. A seu impossível” (ESPOSITO, 1999, p. XXI). Apesar de rigoroso na utilização dos
conceitos, Esposito não distingue entre a política e o político. Esta distinção inaugurada por
Schmitt (die Politik e das Politische) e retomada de diversas formas por autores como Paul
Ricoeur, Claude Lefort, Phillipe Lacoue-Labarthe, como demonstrado no capítulo 3 desta
tese, remete à diferença entre uma concepção de política institucional e outra que não é
abarcável por instituições por se referir à transformação e ao conflito. Esta distinção pode ser
compreendida como expressão da filosofia diante da crise do pós-guerra, no caso, como um
sintoma de ausência de fundamento e finitismo que expõe a dimensão da instituição a
situações de rupturas, interrupções ou momentos extraordinários que destituem qualquer
tentativa de fundamentação do poder, por exemplo, em Helmuth Plessner como Kairós, em
Walter Benjamin como Jetztzeit ou em Schmitt como Ausnahmenzustand. Neste último, em
113

Der Begriff des Politischen, a primazia do antagonismo como político demonstra que a luta
irrompe a normalidade. Numa inversão elegante, Schmitt sustenta que a ordem pressupõe o
conflito, porém este conflito mostra-se como negatividade que não é capturável, isto é, como
a possibilidade do conflito, enquanto critério do político, é sempre presente, ele se mantém
como a relação doadora de sentido, numa palavra, a abertura constitutiva da ordem. Ao invés
de substância, dualidade, objeto ou sujeito, considera-se relação e diferença, negatividade e
conflito na constituição do poder, ou seja, a transcendência é sempre da ou na imanência o
que desfaz a necessidade do nexo entre ser e aparecer, substituindo-o pelo par político (ou
impolítico) e política. Entretanto, Esposito não enxergou nas teses de Schmitt uma ocorrência
do impolítico.
Na desconstrução impolítica, há uma negação da teologia política tradicional
(católica) como representação ou conexão entre terra e céu ou poder e bem, mas também
rejeição da teologia política seja compreendida como filosofia da história, seja compreendida
como transferência ou secularização de conteúdos teológicos para conceitos jurídico-políticos.
O impolítico não repete a postura da filosofia política moderna de pressupor uma origem ou
substância seguido por uma cisão ou crise que determina a reflexão nostálgica sobre
fundamento perdido ou instauração de um processo de despolitização e neutralização. Para
Esposito, não há movimento linear, mas sim desde o começo a cisão e o conflito são
compreendidos como origem, embora “não é necessário decidir disto que a política não tem
propriedade nem essência (...) sua propriedade consiste na ausência do próprio, assim como
sua essência consiste em uma falta de essencialidade irremediável” (ESPOSITO, 1999, p.
XXVI). Ele assume o impolítico como de-criação e desfundamento: se não há queda nem
origem, então princípio e precipício são originários, tal como um descentramento, sem
dúvidas, uma desconstrução da lógica moderna, mesmo que partindo dela mesma. Assim,
Esposito aproxima-se de Heidegger ao afirmar que “a origem não se dá senão na forma do
próprio apartar-se” (ESPOSITO, 1999, p. XXVII) e, por conseguinte, não considera um
processo histórico determinado por algo anterior ou por uma finalidade como nas teses da
secularização, mas analisa a política naquilo que não é exposto, como que desocultando seu
parti pris: mostra que não é possível dar a volta por trás e encontrar algo como essência ou
fundamento – argumento que retorna em Communitas (1999) e Immunitas (2002) –, já que
dar a volta por trás é como dar uma volta em torno de uma mesa, encontra-se, após a volta, no
mesmo lugar de antes. A origem seria secundária, ou seja, seria não-origem, pois diferença de
si mesma, articulação in-originária daquilo que se origina. Como não é possível dar a volta
por trás para desvelar um fundamento e ao tentar este movimento a reflexão encontra uma
114

origem não originária, percebe-se que a origem coincide com a não origem. Esposito
considera que nisto consiste o irrepresentável da política e o impolítico seria a enunciação
deste irrepresentável. Este provocaria um curto-circuito na noção de representação: se a
origem é crise-princípio, mostra-se a cada tentativa de delimitação como um retrair-se
contínuo, não como algo que está fora ou além, mas como um limite, margem ou vazio
exterior que a política não determina, mas que é ela mesmo como presença e finitude.
Para os propósitos desta investigação, é suficiente uma leitura seletiva de alguns
episódios do texto espositiano. Inicialmente, o autor lança o debate sobre a teoria da
representação política no catolicismo do início do século XX, sobretudo, com Romano
Guardini e Carl Schmitt. Este tema serve de problema inicial a partir do qual o argumento do
impolítico é desenvolvido. Para Guardini, segundo Esposito, a teologia política postula a
função do Cristo como lugar da decisão que significa compreender no seu sofrimento a
distância e separação expressa na narrativa bíblica como abandono. Assim, esta distância, ou
melhor, esta cisão revela-se como a própria condição da decisão: a oposição ou bipolaridade
do contraste que a natureza de Cristo carrega. Esta condição afirma a possibilidade da decisão
através da oposição entre homem e Deus, natureza e graça, tempo e eternidade. Além disso,
compreende esta relação como alteridade e a decisão como histórica, pressupondo-a como
vinculação entre poder e autoridade, imanência e transcendência. Para que haja autoridade,
porém, é necessário que uma pessoa concreta a represente visível e historicamente, seja como
homem singular seja como instituição, em todo caso, como uma representação na história ou
encarnação. Não basta à autoridade a decisão, pois necessita da referência ao elemento
transcendente: além do sujeito ou da instituição, é necessário uma conexão ou liame entre céu
e terra ou bem e poder. Em suma, aqui reside a teologia política católica como uma política
metafísica da união ou representação entre o terreno e o divino. Ao mesmo tempo, rejeita as
teses protestantes do governo divino imediato e a doutrina da sola scriptura, bem como as
teses dos humanistas e dos defensores da ragioni di stato numa curiosa declaração católica
contra os inimigos comuns, Lutero e Maquiavel. Em Guardini, portanto, dá-se a expressão
desta declaração: além da instância concreta e histórica, a transcendência da ideia em função
da qual se representa e organiza a realidade garante à autoridade política sua validade.
Em Schmitt, por contraste, não há relação teológica substancial: a mediação da Igreja
funciona como um modelo apenas formal uma vez que assume de Roma o paradigma
jurídico-político de organização do poder, qual seja, a exigência de dar forma à vida, de uma
razão ordenadora expressa como complexio oppositorum, isto é, uma estrutura que abarca e
reúne as contradições do social, reduzindo os dualismos modernos ou pluralidades concretas
115

ao estabelecer uma realidade institucional como unidade e ordem formal. A teologia católica
seria portadora de um racionalismo jurídico como uma função sacerdotal universalizada que
se caracteriza pela representação: esta é a forma ou ideia do direito que a Igreja realiza por sua
capacidade de conceder unidade e forma à realidade humana sem reduzir a experiência
material a esquemas abstratos. O sacerdote é concretamente interligado por uma cadeia de
mediações e representa a pessoa de Cristo na relação entre céu e terra. Esta representação
empresta à Igreja a capacidade de criar direito, em outras palavras, auctoritas. A mediação
seria o principal atributo da Igreja: é o que possibilita a jurisdictio da autoridade. Nesta
estrutura, a função do político é, via teorema da secularização como problema teológico-
político – isto é, a Igreja como modelo para o Estado – apenas secundária: realizar a mediação
do teológico, pois o poder só tem autoridade caso represente e sirva de mediação desta forma
estabilizadora. Este é o primeiro aspecto da questão que Esposito considera em Schmitt: o
político como mediação é a tese central da teologia política. A relação se estabelece entre
decisão soberana e ordem de direito, poder e autoridade, uma bipolaridade típica do
catolicismo que se opõe ao pensamento imanentista ou não representativo. Schmitt afirma em
Römischer Katholizismus: “nenhum sistema político pode durar, nem sequer uma geração,
como uma técnica da conservação do poder (Machtbehauptung). A ideia é inerente ao político
(zum Politischen gehört die Idee), dado que não há política sem autoridade, nem há
autoridade sem um ethos da convicção” (RK, p. 28). Esposito retoma a argumentação
schmittiana do complexio oppositorum como crítica à técnica moderna e aos dualismos
incapazes de dar forma política, pois mero domínio da matéria que reproduz as fraturas entre
espírito e natureza, pensamento e ser, sujeito e objeto do racionalismo técnico-científico: a
complexio seria uma estrutura ou ordo geométrico-representativo da Igreja em formato de
cruz, vertical-horizontal, uma extensão horizontal governada por uma decisão vertical que
pressupõe a ideia ou forma jurídica para ordenar e hierarquizar as diferenças concretas. É um
argumento que garante ordem e forma à experiência, mas não dissolve as contradições do
corpo social: surge uma instância de representação como totalidade. Neste momento, ainda
não há realismo político, mas a tentativa de orientar normativamente a ordem através de uma
racionalidade institucional, um modelo eclesiástico pelo qual a existência concreta
(contingente) torna-se racional (organização política). A decisão é orientada pela
representação e buscar instituir a ordem, em suma, a tese teológica-política schmittiana.
Esta estrutura torna-se problemática ao abandonar a possibilidade de dar forma à
experiência a partir de uma instância decisória concreta orientada normativamente. Para isso,
é necessário distinguir a evolução do conceito de representação em sua obra de 1923 até 1928
116

e esclarecer que a ausência da análise do Der Begriff des Politischen por Esposito não é
insignificante: a concepção católica da complexio enquanto diferença horizontal que une
contrários e a transcendência da ideia enquanto diferença vertical que garante autoridade dá
lugar, na modernidade, à concepção democrático-parlamentar que elide a dimensão da
transcendência. Neste caminho, um novo conceito do político surge como crítica às
dualidades da modernidade, mas também ao continuum entre religião e política. Assim,
Esposito realiza uma leitura correta ao afirmar que

desde o escrito de 1923 ele [Schmitt] considera a ideia propriamente católica de


representação e, portanto, todo horizonte categorial do catolicismo, em termos
residuais, como o que resiste; e ao convergir contra ele, de forças opostas e
complementares como o capitalismo e o socialismo. Isto significa que o catolicismo
poderia obter o monopólio do político, justamente porque tenha ficado só em sua
defesa (...) Daí seu destino terrivelmente utópico, no sentido literal de uma crescente
subtração do espaço histórico e semântico, de uma progressiva e irrefreável
insularidade frente ao grande desenraizamento moderno. (ESPOSITO, 1999, p. 54)
Nos textos do período weimariano, há uma Trennungsthese que vincula a forma de
direito à decisão concreta para efetivar a ordem como jurídica, ou seja, segundo Schmitt, não
é possível pensar o direito sem uma instância concreta e anterior, numa palavra, soberania.
Entretanto, esta decisão soberana pela ordem não pode ser determinada normativamente, uma
vez que a tese da articulação entre exceção e norma revela o primado da decisão do soberano:
“a ordem jurídica, como toda ordem, repousa em uma decisão e não em uma norma” (PT, p.
16). Esta tese reforça a decisão como organizadora da realidade já que a norma a pressupõe,
isto é, seu poder de normalização da faticidade, e somente em um momento posterior adviria
sua legitimidade. Apesar de manter a diferença entre transcendência e imanência como
distinção entre Recht e Rechtsverwirklichung, Schmitt assume a ação soberana como
contingente ou indeterminada e, por conseguinte, deixa frouxa a relação da mediação política
do teológico que garantiria a representação da ideia na experiência: afinal, desliga a relação
entre transcendência da forma e imanência da decisão. Neste contexto, Esposito tem o mérito
de sustentar uma interpretação da transformação do pensamento de Schmitt ao perceber este
abandono da bipolaridade que caracteriza a representação católica, sobretudo, ao apostar que
a dualidade entre forma de direito e decisão concreta é tornada imanente. Esta transformação
seria motivo de ataques de teólogos contra Schmitt: a secularização levou-o à imanência,
portanto, uma secularização que não apenas transferia, mas eliminava a mediação do
teológico pelo político, agora autônomo:

o caráter irreversível da secularização está confirmado pelo fato de que justamente


ao remeter à autoridade pessoal do Cristo age, no aparato conceitual do Hobbes
schmittiano, como legitimação da cisão interior/exterior, e portanto de levar a zero a
Veritas transcendente (...) A distância realmente insuperável que separa a teologia
117

política schtmitiana da grande representação católica se manisfesta justamente aqui,


na desautorização da transcendência da Veritas. (ESPOSITO, 1999, p. 56)
Apesar de assegurar que “decisão e representação permanecem como referências
fundamentais na obra schmtitiana, porém submetidas a um movimento de secularização que
tende a fazer divergir ao infinito seus planos” (ESPOSITO, 1999, p. 56), acentuando a
diferença entre Schmitt e teologia católica, Esposito afirma a transferência da bipolaridade
para o nível da imanência, no caso, como diferença que corresponde à relação concreta
descrita como antagonismo ou relação entre amigo e inimigo:

ambos os termos – unidade e oposição – se voltam absolutos ao externo do poder, e


ainda invertem, o significado conferido a eles pelo princípio bipolar, no sentido de
que a unidade tende a suturar a diferença metafísica em direção a um acabado
monismo, enquanto a oposição, transferida ao nível de imanência tende,
reciprocamente, a transformar a diferenciação na antítese, também absoluta,
amigo/inimigo. (ESPOSITO, 1999, p. 56)
Ora, aqui se encontra uma sofisticada interpretação das teses schmittianas, sobretudo,
da transição para o tardo-weimariano. Assim, para Schmitt, desde o período pré-weimariano,
o princípio representativo teria surgido na modernidade como uma superioridade formal, mas
tal superioridade formal se dá como uma complexio: não elimina a diferença, a forma
representativa não sacrifica os opostos concretos e a representação é a garantia ou salvaguarda
da pluralidade dos elementos representados, por isso complexio oppositorum, ou seja, uma
estrutura que reúne e guarda, representa os opostos numa solução de hipostasiação da ordem e
torna-se, no final das contas, uma crítica aos dualismos modernos, uma vez que a pluralidade
é afirmada ao mesmo tempo que se forma uma realidade institucional. O elemento
transcendente tanto ao representante quanto ao representado é a ideia de direitoque tem como
característica a formação (formierung) da realidade: ao político seria inerente a ideia,
portadora da autoridade. Ao contrário de um pensamento não-representativo – por exemplo,
em Max Weber, na descrição da redução do conceito de autoridade ao conceito de poder –,
Schmitt, assim como o catolicismo, conservaria tanto a diferença-horizontal (pluralidade)
quanto a diferença-vertical (transcendência). Esta diferença crucial, porém

se rompe, quando um de seus polos – o transcendente – é esquecido, quando todo o


real se fecha dentro de um único princípio monista, então a grande representação
política não pode senão despedir-se e deixa o terreno para seu moderno adversário:
“o pensamento econômico conhece somente um tipo de forma, quer dizer, a precisão
técnica que está longe da ideia de representação”. (ESPOSITO, 1999, p. 76)
Para Esposito, o problema da mediação em Schmitt em meados da década de 1920
enfrentava esta encruzilhada diante da negação imanentista da noção de forma jurídica: ou
bem continuava na relação transcedência-imanência como chave para legitimidade política,
ou bem combatia o adversário (liberalismo, sobretudo) no seu próprio campo. O encerramento
118

paradigmático é realizado com o politische Existentialismus e resumido por Esposito: “o fim


da bipolaridade (entre céu e terra) assinala o fim da representação; o fim da representação, o
fim da política” (ESPOSITO, 1999, p. 76). Neste argumento, Esposito teria em mãos mais
uma ocorrência do impolítico, precisamente, no autor que, segundo ele, teria elaborado a
última grande defesa da noção de representação, pois tendo em vista a perda do político como
mediação, Schmitt teria proposto uma alternativa imanentista com um renovado conceito do
político que se configura de maneira pós-estatal, apesar de ainda propor ordem jurídica e a
estabilização do poder. Entretanto, a questão que se põe é novamente: por que a leitura que
Esposito realiza da alteração da noção de político em Schmitt não chega explicitamente ao
Der Begriff des Politischen? Neste momento, o percurso mais adequado apontaria para a
virada do político que Schmitt executa, um anúncio da pós-política ou uma política pós-estatal
– pressupondo, por exemplo, a relação de antagonismo como anterior ao Estado ou ainda a
representação política como relação imanente à unidade política, como na Verfassungslehre –
porém, o leitor vê um tema promissor sem desenvolvimento necessário.
Na leitura de Eric Voegelin, segundo Esposito, apresenta-se esta relação entre
imanentismo e fim da representação em Schmitt:

O caráter monista, a caída da bipolaridade, caracterizava o novo ponto de vista


schmittiano. É como se Schmitt tivera reduzido drasticamente o alcance diferencial
do conceito de representação tal como aparecia no ensaio de 1923. O que ali era
cuidadosamente diferenciado, agora está concentrado, violentamente concentrado,
em uma obsessão de unidade que não deixa espaço a outro respecto dele. Segundo
Voegelin, é justamente essa obsessão a que arrasta o ponto de vista de Schmitt,
ainda tão inclinado a romper a falsa coerência da teoria no caráter concreto da
realidade existencial, até o plano tradicional da abstração. (ESPOSITO, 1999, p. 77)
Para Voegelin, o princípio teológico é o fundamento de sentido e fora desta
bipolaridade metafísica o político ficaria perdido e o mesmo ocorreria com os conceitos de
unidade, vontade e decisão. Este juízo teológico explica o motivo das reações hostis que
Schmitt sofreu dos católicos. O que interessa neste ponto é a acusação de que a
Verfassungslehre teria uma postura imanentista contra a transcendentalista da teologia política
católica autêntica que rejeita a coincidência entre fundação e autoridade ou a legitimação
imanente da ordem. Na desconstrução do conceito de representação de Voegelin, Esposito
procura o conceito de Identität em Schmitt e, mais uma vez, o autor italiano pauta os temas
schmittianos, inadvertidamente, fora do Der Begriff des Politischen, onde conseguiria
melhores resultados. Afinal, embora Esposito apostasse na relação entre Hobbes e Schmitt,
ele recua das suas consequências mais radicais: se aquele abre a política moderna, este deveria
ser compreendido como final ou fechamento da modernidade política, ou seja, durante o
percurso a transcendência se perdeu, tornando-se o outro ou, simplesmente, antagonismo.
119

Segundo Esposito, ao eliminar o amor Dei, resta a Hobbes o amor sui o que desencadeia a
história da imanência na tradição moderna. Assim, a argumentação espositana deveria, para
ser coerente, sustentar Schmitt como filósofo da imanentização e a categoria do político do
texto Der Begriff des Politischen distinta daquela da Politische Theologie e do Römischer
Katholizismus. Estas leituras confirmam a hipótese assumida nesta pesquisa: a obra de
Schmitt adotaria uma estratégia de finitude, desenvolvendo-se de um normativismo até um
realismo forte (monismo e imanentismo). Esposito reconhece este movimento ao afirmar:

daqui, para Schmitt, por um lado, a negação de toda posição nostálgico-restauradora,


e portanto a aceitação do horizonte da técnica como o único efetivamente provável;
por outro, a recuperação, a partir do interior mesmo da técnica, de seu vazio político,
de uma noção de política adequada às circunstâncias, quer dizer, em condições de
aceitar o desafio imposto pelo tempo da técnica e de decidi-la existencialmente.
Somente uma decisão livre de pressupostos historicistas e esquemas providenciais
pode tornar plena (reabrir?) a “nada-política” da técnica dirigindo-a para seus
próprios fins. (ESPOSITO, 1999, p. 77)
O que Esposito sustenta aqui pode dar uma pista para compreensão de como Schmitt
teria se desfeito da bipolaridade imanência/transcendência e criticado o moderno como cisão e
descontinuidade, abandonando a solução do continuum entre teologia e política. Esta
proposta, porém, não é desenvolvida, pois Schmitt desaparece aos poucos do texto de
Esposito para voltar aqui e acolá entre Heidegger, Jünger e Bataille. Durante o percurso
inteiro, o impolítico refere-se à imanência não como algo distinto da transcendência, mas na
tentativa de compreensão da política mais uma vez diante do oxímoro da representação da
pluralidade, isto é, ao preferir a afirmação da irrepresentabilidade da política tal como um
objeto passível de determinação, mas sim a partir da sua margem exterior e que a determina
negativamente, ao mesmo tempo como fundo e reverso. Neste sentido, o impolítico
demonstra a impossibilidade de determinação afirmativa da política e, por conseguinte, a
possibilidade da ruptura das simetrias entre transcendência e imanência, tarefa que, segundo a
interpretação que é proposta a seguir, Schmitt também desempenha:

o modo do impolítico é esta imanência que remete já à transcendência, uma


transcendência escavada na imanência. Não um espaço ou, todavia menos, um valor
situado fora do político e a ele indiferente, mas sim o transcender interior ao político
como categoria afimativa. O vazio, a ausência que o político abre quando põe em
jogo (revoga) sua própria dimensão de presença (representação). O impolítico
consiste em uma saída fora de si mesmo que não se eleve a nenhuma transcendência.
(ESPOSITO, 1999, p. 121)
Assim, compreender o impolítico como aquilo que contorna, como uma margem
exterior que ao mesmo tempo é seu fundo e seu reverso, como aquilo que é externo, mas que
ao mesmo tempo limita a política, como um bordear. Esta diferença entre política e seu fundo
irrepresentável, também ocorre em Schmitt ao compreender seu conceito do político como
120

relação e antagonismo como no trecho a seguir: “o inimigo é a nossa própria pergunta


enquanto forma e ele nos arrasta, e nós a ele, para o mesmo fim” (GL, p. 213). O argumento
do impolítico é terrenal, desliga céu e terra não escolhendo algum dos elementos, mas
assumindo a tarefa de ruptura das dicotomias, ou seja, uma postura anti-metafísica e anti-
teológica, por isso o curto-circuito na relação entre sujeito e poder proposto pelo autor
italiano. Se, por um lado, pensar apenas transcendência significa pensar a ausência e,
portanto, uma metapolítica; então, por outro lado, pensar apenas a imanência também não se
mostra a solução mais adequada: recai-se na repetição da unilateralidade, pois o plano de
imanência seria absoluto ou infinito e restaria, da mesma forma, a identidade metafísica. Por
isso, não é o caso de afirmação de um polo ou outro, mas da diferença como um rasgo que
desfaz a dicotomia entre imanência e transcendência. Esta relação é proposta por Esposito
como impolítico e por Schmitt como antagonismo. Expostos alguns comentários sobre o
impolítico e a interpretação espositiana de Schmitt, resta elaborar o episódio ausente neste
diálogo.
Na leitura espositiana, a neutralização e despolitização são elementos da política
moderna. Em outras palavras, a institucionalização política como estabelecimento de um
excesso normativo que instaura a violência da ordem contra a violência anárquica através da
ação soberana. Paradoxalmente, a estrutura representativa moderna é instaurada por Hobbes
ao mesmo tempo em que se perde a representação da ideia, qual seja, a forma de direito
abstrato que o Estado deveria tomar como mediação para justificar-se como legitimo. O
paradigma da representação entre transcendência (ideia) e imanência (força) é transformado
em outro que, entretanto, realiza um curto-circuito entre céu e terra ao instaurar-se como
relação entre representante e representado. Para Esposito, seguindo Schmitt, a instauração
desse modelo de representação revela a negação da mediação entre forma de direito e poder
concreto, pois a representação tornou-se imanente. Daí o texto Römischer Katholizismus de
1923 ser um das derradeiras defesas da representação ou do político como mediação, tema
presente também na Politische Theologie de 1922. Ao perder o vínculo da mediação
racionalista, isto é, a referência à ideia de direito como organizadora do Estado, a
modernidade tornou-se autoreferencial, pois sem a determinação de um bem transcendente ou
vinculação do poder a uma finalidade externa. A solução do mecanismo da decisão como
decisão pela representação na Politische Theologie seria uma tentativa para refazer o vínculo
autoritativo entre forma e poder. Desligados entre si, a mera força ou quantidade
permaneceria carente de legitimidade, por isso a tese da teologia política schmittiana: uma
121

exceção (decisão) que capta o excesso (forma) e evita uma auto-fundamentação como
afirmação de força. Deste ponto, confissão da crise do Estado, Esposito iniciou sua crítica.
Esta compreensão espositiana, todavia, faz jus às teses de Schmitt até 1923. Assim,
se é correto afirmar que Schmitt vincula o político à representação ou mediação, a decisão à
ideia ou forma de direito (ordem) em meados de 1920; logo em seguida, no final da década, já
não é possível compreendê-lo através destas teses, ou seja, o conceito do político não é mais
analisado como mediação, mas como relação concreta e antagonismo anterior à unidade ou
ordem. Neste momento, a questão é a seguinte: por que Esposito não analisa a virada do
conceito do político e a dissolução da representação moderna que o Der Begriff des
Politischen traz? A hipótese proposta é que Schmitt esteja mais próximo do que se poderia
aceitar e faz jus ao rol de autores impolíticos ou, ao menos, utilizou alguns argumentos ou
estratégias impolíticas. Em outro trecho fundamental, Esposito aproxima das Politische e o
impolitico ao considerar este, assim como Schmitt faz com aquele, como uma

crítica da teologia política em sua dupla acepção católico-romana (a representação) e


hobbesiano-moderna (a relação entre representante-representado). Nesta segunda
direção, o impolítico se constitui em oposição direta a toda forma de despolitização,
e então, numa relação simplesmente oposta do político (sic política) (...) o impolítico
é o político (sic política) observado desde seu limite exterior (...) Nesta acepção,
impolítico tem sido todo grande realismo político. (ESPOSITO, 1999, p. 20)
O filósofo italiano parece desconhecer que esta distinção entre política e impolítico
já havia sido feita, em termos aproximados, conforme Oliver Marchart (2010), por Schmitt com
os termos die Politik e das Politische. Em todo caso, é correto pensar o impolítico como uma
forma de realismo político e assim Esposito fornece a chave para compreensão do problema: a
questão do medo e da insegurança é tratada pela política ao escamotear as relações de
dominação e violência sob institutos jurídicos e morais que o impolítico problematiza ao
explicitar que não existe outra política que ela mesma. O impolítico, como o irrepresentável
da política, é a ação que busca desocultar inimizades e conflitos, como uma desautorização do
soberano, das convenções e da unidade da ordem, aliás como Maquiavel já havia realizado.
Ao assumir, embora com nostalgia, o fim da representação política por conta da
despolitização e neutralização da forma política como mediação, Schmitt reconhece uma
ausência de fundamento transcendente, um nada ou vazio no centro da política moderna:
resta-lhe a ação política como relação concreta que determina o poder: “todos os conceitos,
representações e palavras políticas têm um sentido polêmico, visualizam um antagonismo
concreto, estão ligados a uma situação concreta (...) e transformam-se em abstrações vazias
(...) quando esta situação é esquecida (BP, p. 31). Esta tese implica um fundamento negativo
do agir político que não se submete à determinação juridica ou racional prévia. Isto significa
122

que não é possível encontrar um fundamento último de legitimação, pois há um abismo no


momento constitutivo do político marcado pela contingência.

* * *
Na teoria do político, Schmitt assume que a cisão entre transcendência e imanência
ou ser e dever-ser é uma impossibilidade: a autoridade não recebe legitimidade a partir de
uma instância ideal. Assim, o político possui sua origem em outro lugar: na contingência,
como relação polêmica estabelecida por meio da exclusão e da diferença. O factum brutum do
político como hostilidade originária entre amigos e inimigos refere-se à distinção do corpo
político e aos afetos, ao contrário das normas e parâmetros universais, inserindo a violência
como constitutiva da ordem. Se com Schmitt, percebe-se a ausência de substância e o conflito
como pressuposto político da política, tal como um transcendental finito; então a relação
inesgotável entre política e política abre espaço para considerações acerca de uma dialética
negativa em política. Esposito não chega a esta compreensão; a rigor, nem mesmo Schmitt,
porém se impolitico para aquele significa que “o único modo de conter o poder é reduzir o
sujeito” (ESPOSITO, 1999, p. 21), segundo a leitura exposta, Schmitt deixa entrever esta tese
avant la Lettre: a relação concreta e não o sujeito constitui a ordem.
Nestes termos, se é possível compreender Schmitt como um impolítico, também é
possível antecipar a crítica espositiana à contribuição schmittiana a este conceito: a ânsia da
decisão e da ação, mesmo relativizada no final da República de Weimar, ainda perpassa seu
pensamento demasiadamente moderno tanto quanto a pretensão de unidade. A crítica
impolítica à teologia política e à representação passa pela afirmação da finitude, pela ausência
de forma ou de bem na imanência e pela escavação da transcendência como abertura da/na
imanência. Para Esposito, seguindo as teses de Simone Weil e Georges Bataille, o bem seria
irrealizável, porém, apesar disso, o homem deveria praticar tal impossibilidade evitando a
ação. Esta ação passiva ou ação sem finalidade transcendente mostra que qualquer relação
entre política e verdade torna-se unilateral ou idolatria e reduzindo-se à experiência interior –
no caso, como rompimento do estatuto metafísico do sujeito de ação – transforma-se em um
misticismo traduzido como nada ou silêncio e não na possessão violenta ou externa de um
objeto ou ação constitutiva de ordem: o impolítico como uma inação e, por conseguinte, como
desconstrução da categoria de sujeito num eloquente deslocamento da política moderna que
abre o pensamento da comunidade desenvolvido por Esposito contra a metafísica do sujeito.
Assim, a questão da imediação e da irrepresentação contra a mediação e a
representação persiste no impolítico de Esposito e revela o ponto fraco do impolítico
123

schmittiano: o fetiche conservador em relação ao Estado ou qualquer tipo de ação ordenativa


ou instituição como resultado necessário do político. De fato, apesar do das Politische
aproximar-se do impolitico, não há uma identidade entre os termos: enquanto aquele é
caracterizado por ser relacão e imanência, diferença e conflito, bem como por ser a condição
originária da política; o impolitico, ao contrário, é o outro da política que coincide com ela
mesma. Esposito realiza com o impolitico uma tarefa apenas entrevista por Schmitt: se este
pensou a política moderna como despolitização ao ponto de lançar mão do argumento do
político como reconhecimento do estádio terminal da política (isto é, dissolução da
representação e, por conseguinte, perda de legitimidade e esvaziamento); Esposito foi mais
radical: com o impolítico pensa uma contra-história da modernidade e o possibilita abordar a
política moderna no confronto com sua origem aporética: a communitas. O mérito de Esposito
é buscar no rastro de pensadores como Elias Canetti e Simone Weil, Heidegger e Bataille a
possibilidade do impolítico sem os conceitos tradicionais de liberdade, igualdade, etc. O
ponto negativo: parte da solução estava bem mais próxima do que pensava (ou gostaria), por
isso ou bem utilizou subrepticiamente o argumento schmittiano ou bem, para evitar polêmicas
com uma relação tão próxima a um autor de má fama, preferiu de maneira elegante construir
um conceito e, por precaução, tornar subjacente a influência do jurista alemão.

1.7 Carl Schmitt, um hegeliano? A análise de Jean-François Kervégan


[1992]

Jean-François Kervégan realiza uma tarefa ambígua em seu texto Hegel, Carl
Schmitt. Le politique entre spéculation et positivité71: ao mesmo em que expõe nas entrelinhas
uma filiação não assumida, privilegiando a compreensão de alguns temas schmittianos à luz
de Hegel, ao invés de Hobbes ou de Heidegger, por exemplo; realiza a incômoda tarefa de
comparar Schmitt a um clássico da filosofia moderna e termina, inadvertidamente, por tomar
um autor em função do outro, além de não expressar a complexidade e variações de temas e
conceitos da obra do jurista. Ao realizar uma “lecture ‘em miroir’ de deux corpus”, Kervégan
acredita que a relação seria útil para a compreensão de zonas obscuras dos pensadores, ou
seja, explicar um autor pelo outro: o decisionismo schmittiano serviria para compreender
alguns aspectos da teoria hegeliana; enquanto esta, por sua vez, serviria para esclarecer alguns

71
Esta obra foi consultada no original em francês Hegel, Carl Schmitt. Le politique entre spéculation et
positivité. Paris: PUF, 1992; e na tradução para o português, Hegel, Carl Schmitt. O político entre a especulação
e a positividade. Trad. Caroline Huang. Barueri: Manole, 2006. As citações se referem à edição brasileira.
124

desvios e recusas da obra schmittiana. A tese do autor sobre Schmitt pode ser descrita a partir
da hipótese de que “a obra de Schmitt visa ser a realização – no terreno da positividade e em
condições ético-políticas profundamente modificadas – das posições fundamentais da filosofia
hegeliana do direito e do Estado” (KERVÉGAN, 2006, p. 135). De qualquer forma, para
Kervégan, “a referência à filosofia hegeliana desempenha um papel determinante na própria
constituição da problemática de Carl Schmitt” (KERVÉGAN, 2006, p. 133) e o que se vê é
uma tentativa de compreender Schmitt a partir de Hegel. A leitura que realizamos acerca dos
textos de Kervégan sobre o jurista atende à tarefa nem tanto de servir como advogado de
Schmitt quanto demonstrar que os equívocos ou insuficiências da leitura schmittiana de Hegel
podem ser bastante produtivos e, necessariamente, devem interpretados de forma mais
propositiva. De maneira precisa, Kervégan refaz a argumentação schmittiana acerca do
liberalismo, da Rechtsstaatlichkeit, das críticas ao legalismo e ao parlamentarismo, traz ao
debate as ambiguidades do realismo político de Hegel, reabsorvido por Schmitt, por exemplo,
quando trata do direito internacional e elabora um claro paralelismo entre Grundlinnien
Philosophie des Rechts e o Der Begriff des Politischen, bem como a recusa à submissão da
política à moral abstrata, entre outros temas. O autor elabora uma consistente reconstrução
dos argumentos do jurista na Parte 1 do livro, apesar de relatados sob o espectro unilateral do
decisionismo e, ao final, da figura do Estado Total. Na Parte 2, após breves comentários sobre
o realismo político schmittiano, traça a linha argumentativa já mencionada, questionável,
porém bem executada: reler a obra de Schmitt a partir da leitura de Hegel. Ao final, caso seja
aceita a leitura do comentador, chegaríamos à conclusão que Schmitt, em vários aspectos,
apenas atualizou Hegel para o século XX apesar de não assumir as consequências da dialética
especulativa, permanecendo na positividade, ou melhor, como Kervégan afirma, numa
metafísica da decisão.
Na leitura que realizamos, porém, sustentamos que Schmitt pode ser melhor
compreendido, mesmo diante da filiação inesperada, como um pensador que recusa a solução
especulativa da lógica hegeliana, não por conta do decisionismo avesso a qualquer solução
reconciliadora, mas sim por sua aposta no político como negatividade, isto é, como
contradição finita que não se resolve em algum momento posterior. Dessa forma, a leitura de
Kervégan é apresentada em 3 argumentos principais: (a) o percurso do decisionismo ao
Estado total, (b) a interpretação de Schmitt acerca da relação entre Estado e sociedade civil
em Hegel e (c) a recusa à solução especulativa que resolveria as contradições do político,
como a seguir expomos.
125

Com efeito, a tese de Kervégan não compreende as sutilezas do desenvolvimento da


obra schmittiana: como demonstraremos no próximo capítulo, até mesmo no período pré-
weimariano, a decisão e a soberania funcionam como atividades mediadoras, pois a ideia ou
forma política a ser realizada (Estado) é concretizada via alguma instância histórica,
paradigma mais próximo às teses neokantianas do que hegelianas. No entanto, há clareza
quanto à anterioridade do político sobre o Estado, apesar da confusão reiterada entre
decisionismo e conceito do político (tardo-weimariano): nesta proposta, o político é relação de
antagonismo; naquela, o político é mediação entre decisão e forma de direito, vigente ainda o
tema da representação, por exemplo, em Römischer Katholizismus. Além disso, ele não leva
às últimas consequências a diferença entre político e política, pois se o político vai além do
estatal, a escolha de Schmitt pela ordem e pelo Estado não seria uma consequência necessária
de sua teoria, mas apenas uma preferência diante do apego ao modelo westfaliano de Estado
(uma espécie de “monopólio natural”, ou melhor, histórico), nem mesmo, como faz Kervégan,
haveria uma redução da reflexão sobre o político à proposta do Estado Total. Apesar de deixar
claro, sobretudo, no segundo pós-guerra, que para Schmitt a era do estado já não existiria
mais, Kervégan analisa as consequências da categoria do político sobre o Estado, ou seja, o
Estado total como “expansão do político e decadência do Estado liberal clássico”
(KERVEGAN, 2006, p. 46) realmente muito próximo do que Schmitt fez, demonstrando os
elementos hegelianos que Schmitt recolhe, porém deixa um tema promissor subdesenvolvido:
o pós-liberalismo ou uma política pós-estatal poderia ser explorada a partir disso. Kervégan
não assume este risco da interpretação do político e apesar de elaborar uma excelente exegese,
não percebe as sutilezas e detalhes do percurso da obra schmittiana e suas possibilidades
conceituais.
Apesar de não considerar mais atentamente para a diferença entre político e política,
o autor compreende bem a natureza do problema em questão: “o elemento mais notável desse
texto é a ideia de que o político não é uma substância ou um domínio de objetos, mas uma
relação, uma função, seria até uma tentação dizer: um modo” (KERVEGAN, 2006, p. 55). A
análise precisa – importante para o desenvolvimento desta tese – descreve como Schmitt
distingue Estado e político, além de atribuir o equívoco de pensar o político como
estritamente estatal, evidentemente, levando em conta o monopólio político pelo Estado na
modernidade. Após esclarecer este erro persistente, o autor ressalta a leitura mais filosófica da
tese: o político se refere a qualquer atividade humana, pois um horizonte de conflito como
originário. Por isso, Kervégan considera o “caráter relativo e relacional do político” como 2
(duas) teses distintas: (i) a indeterminação substancial da relação politica e a não-
126

impossibilidade do conflito que implica na polemicidade na natureza humana (neste ponto, o


autor esboça a crítica de que o critério do político seria meramente descritivo, ou seja, seria
uma antropologia política); (ii) o conflito como o “coeficiente político da atividade humana”
(KERVÉGAN, 2006, p. 57) que caracteriza o político como algo fora do Estado, determinado
a partir da guerra como situação-limite, ou melhor, o horizonte de sentido a partir do qual se
determina a política. No texto do comentador, esta pressuposição sempre presente, porém, não
é distinta da decisão do soberano ou da exceção, confundindo sob o mesmo rótulo,
novamente, as diferenças entre exceção e excesso – próprias do período weimariano,
sobretudo, no Politische Theologie – e entre político e política – referentes ao período tardo-
weimariano que apesar de heterogêneo pode ser delimitado pelo Der Begriff des Politischen.
Quanto ao conceito do político, Kervégan compreende bem o que está em jogo ao afirmar
que:

A dissolução, ou pelo menos a interferência dessa divisão clássica, que Schmitt


pensa perceber na realidade contemporânea, torna, em contrapartida, problemática a
identidade própria do político, ou a sua vocação para se manifestar de forma
privilegiada mais em certos domínios de atividade do que em outros. Pareceria,
portanto, que o político como grau polêmico seria, ao mesmo tempo, o que motiva a
distinção entre Estado e política (sic), preocupação maior de Schmitt, e o que
ameaça a própria identidade do político, que o Estado tradicionalmente assegurava
(KERVÉGAN, 2006, p. 58).
Enquanto interpretamos o rompimento como favorável para uma teoria política pós-
estatal, Kervégan – assim como o próprio Schmitt – enxerga que a crise de identificação do
político com o Estado provoca, ao contrário, a figura do Estado total e, por conseguinte, a
guerra total, o pacifismo e a criminalização da oposição ao considerar o inimigo como
exterminável, pois:

a guerra se inscreve numa lógica que não é mais aquela da grande política clássica
dos poderes, mas que leva a declarar o inimigo fora da humanidade e a justificar seu
extermínio (Vernichtung). As noções de guerra total e de inimigo total, forjadas em
1935 para caracterizar esse novo modo de ser suprapolítico da guerra, formam com
aquela do Estado total os elementos de uma teoria da auto-superação em curso da
guerra e do Estado e, por conseguinte, do universo clássico da política
(KERVEGAN, 2006, p. 59).
Neste contexto, Kervégan considera ainda o período do institucionalismo, no qual
Schmitt abandona a questão do normativismo e do decisionismo (metafísica da decisão). O
comentador demonstra como o Estado Total é consequência da extensão e da intensificação
do político, mais especificamente, como a “guinada ao Estado Total” se refere à “nova relação
existente entre o Estado e os recursos da técnica moderna: para Schmitt, o Estado Total não é
apenas um Estado que utiliza as técnicas para estabelecer e desenvolver sua influência sobre
cada um; é também, simplesmente, o Estado da ‘era da técnica’” (KERVEGAN, 2006, p. 68).
127

No entanto, não apenas em relação à expressão da técnica, mas também como consequência
da ruptura da separação entre sociedade e Estado, próprias das delimitações do pensamento
liberal, Kervégan considera acertadamente que Schmitt fora “um dos primeiros a perceber o
alcance das transformações que afetam os Estados liberais-democráticos contemporâneos”
(KERVEGAN, 2006, p. 70) e faz um comentário que aproxima Schmitt de uma espécie de
pré-compreensão da biopolítica:

Elas (as transformações que Schmitt analisa) não significam apenas a atribuição de
novas funções ao organismo político, a par de suas obrigações tradicionais: política
exterior, manutenção da ordem e justiça. A importância adquirida pela
administração da vida social é traduzida por uma verdadeira mudança de natureza. A
soberania do Estado (mesmo absolutista) andava junto com o reconhecimento da
existência de questões não políticas. Ao contrário, o Estado social, que nisso é um
Estado “total”, intervém em todas as circunstâncias possíveis e em todos os
domínios da existência humana, não apenas na economia [...] mas também nas
questões culturais e sociais (KERVEGAN, 2006, p. 70).
Ao vincular a tese da distinção entre amigo-inimigo ao Estado total autêntico,
acreditamos que Kervégan perde a oportunidade de desenvolver adequadamente o conceito do
político. Ele contradiz a identidade entre Estado e política logo em seguida quando afirma que
“para Schmitt, o Estado enquanto conceito de uma realidade histórica determinada está em
segundo lugar em relação ao político, que designa a intensidade polêmica da relação inter-
humana até seu fundamento antropológico” (KERVEGAN, 2006, p. 73). A pergunta que se
faz é: não obstante os bons argumentos quanto às apostas schmittianas na proposta do Estado
Total, por que o intérprete não explorou – uma vez que possuía uma compreensão sofisticada
da noção de Politischen – esta saída como a mais indicada ao invés de se perder nas
interpretações que ligam, sem sucesso, as considerações do decisionismo com o conceito do
político? Em outras palavras, por que Kervégan sustentou a relação decisionismo-
institucionalismo-Estado Total e reduziu o conceito do político a simples adendo do
decisionismo?
A reflexão sobre o Estado Total é finalizada por Kervégan com o pressuposto
metafísico da teologia política. Não obstante o tema teológico-político perder força no período
em questão, mais uma vez o intérprete amealha teses distintas sob a mesma rubrica e reduz as
variações sobre o político ao Estado total e, por sua vez, à teologia política como filosofia da
história. Kervégan lança a interpretação da sociologia dos conceitos jurídicos como a
“explicitação de tais correlações entre mentalidades e estruturas políticas. A tarefa de tal
sociologia é, pois, elucidar numa perspectiva histórica, o núcleo metafísico (e teológico) que
as representações do Estado abrigam. A teologia política desenvolve-se assim numa
antropologia cultural” (KERVÉGAN, 2006, p. 88). Kervégan interpreta como uma teoria da
128

história as representações ou imagens que uma época elabora de si que se organizam em torno
de um setor dominante (Zentralgebiet): objeto das representações e princípio de
inteligibilidade de uma época. Em cada época da modernidade, Schmitt descreve uma
imagem de mundo (Weltbild) que seria um campo de objetividade, conceitual e
representações a partir de onde há organização da época, da subjetividade, das formas sociais.
Assim, as esferas teriam se sucedido da teologia, metafísica, moral, economia até, finalmente,
a técnica. Kervégan trata da historicização das formas de subjetividade, tema próximo a
Dilthey e Spengler, dos quais Schmitt, afinal, se mostra devedor, mas também enfatiza a
relação com Heidegger, quando este trata da “era das concepções de mundo” que seria um
prolongamento “filosófico da reflexão político-histórica de Schmitt sobre a ‘era das
neutralizações e despolitizações”; ambas analisam a concepção moderna do mundo como
sistema. É significativo que tanto em Schmitt quanto em Heidegger, a reflexão crítica sobre a
modernidade, que insiste em sua dimensão política ou metafísica, tenha por desfecho o
problema da técnica (KERVÉGAN, 2006, p. 90).
No entanto, não apenas a reflexão sobre a técnica marca a interpretação de Kervégan,
mas também a peculiar filosofia da história schmittiana. O sentido da história moderna seria
compreendido a partir da representação do político e das imagens do mundo, do Zentralgebiet
como um processo de neutralização sucessivo e, por conseguinte, de despolitizações: “A
História é história do deslocamento do lugar do político, ao mesmo tempo, que é das formas
de ser e de agir do Estado. Quando um novo setor dominante advém, o desafio dos conflitos
possíveis se desloca, e as formas mesmo do político se transformam profundamente”
(KERVÉGAN, 2006, p. 92). Kervégan descreve as teses e aponta as falhas e ambiguidades.
Não obstante, apesar de trazer com clareza o tema e não ceder às tentações de associá-lo ao
totalitarismo ou nazismo, o autor acerta ao definir o Estado total, mesmo em suas
ambiguidades, como a tese schmittiana que “oferece a solução para os problemas que são
apresentados pela determinação do político a partir da técnica. Somente tal Estado, ‘que não
conhece mais nada de absolutamente não político’, é passível de investir e de dominar a esfera
da técnica” (KERVÉGAN, 2006, p. 95). Entretanto, parece-nos exagerado afirmar que o
Estado Total “manifesta o enraizamento da teoria jurídica positiva e de um discurso político
que aspira à positividade numa metafísica da história, entendida como teologia política. O
Estado Total para Schmitt é a verdade atual do político, e ele o é porque conduz o político a se
atualizar plenamente, isto é, totalmente” (KERVÉGAN, 2006, p. 95). Para quem acompanha a
argumentação de Kervégan, este desfecho parece pouco natural, demasiado apressado, sem as
sutilezas que o texto até então trazia. Certamente, a ausência da leitura mais matizada sobre o
129

conceito do politico o faz cair em um flagrante equívoco na interpretação de Schmitt,


precisamente, no conturbado período, teórico e biográfico, da década de 1930.
Apesar da ausência de detalhes da análise, Kervégan é um dos autores que chama
atenção à tese schmittiana de contiguidade entre Estado total (antes, ditadura) e democracia.
Ele afirma: “fazer proceder ao ‘totalitarismo’ do desenvolvimento da democracia é, na época,
algo original” (KERVÉGAN, 2006, p. 78-79), pista seguida à risca por Giorgio Agamben. O
intérprete francês enxerga distante algo que estava mais perto, por exemplo, quando sustenta
que nos textos posteriores (pós-1945) a suspeita e depois a convicção surgem de uma
transposição definitiva da estrutura do Estado como tal. A dissociação do político e do estatal,
segundo Kervégan analisa em Schmitt, adquiriria assim um teor de sentido historicamente
concreto. Nada é mais nítido que o prefácio da reedição de O conceito do político, de 1963:
“‘A era do Estado está em declínio. Todo comentário é doravante supérfluo’” (KERVÉGAN,
2006, p. 63), poderia facilmente ter antecipado este diagnóstico já para o início da década de
1930 ou, pelo menos, nos textos que culminaram no Der Nomos der Erde. Entretanto, ao
invés de explorar o texto sobre o político, o intérprete elege o tema do Estado total como
aquilo que substituiria o estado liberal-constitucional parlamentar e comete, do nosso ponto de
vista, um equívoco: parece-nos que Kervégan reduz o conceito do político ao Estado total.
A estratégia de nossa tese diverge da assumida por Kervégan no seguinte: ao invés
de seguir o caminho do argumento do Estado Total, em parte, pelo próprio Schmitt e que
Kervégan reconstroi, procuramos alternativas para pensar a época pós-liberal e pós-estatal (no
capítulo 3, sustentamos o tema da pós-política) que o jurista apenas entrevê, pois não teria se
desvencilhado completamente nem assumido as consequências de suas próprias teses. Pode
parecer abusivo tomar as teses de Schmitt dessa forma. Não obstante, executamos dessa forma
porque, parece-nos, compreender filosofia política requer rompimento mais radical com a
tradição do que deseja provocar Schmitt, por isso é necessário ir além dos seus propósitos.
Kervégan não explora os fios soltos na reflexão de Schmitt: se o Estado moderno se dissolve
por conta do contexto geopolítico do século XX, bem como por conta da interferência entre as
esferas antes segregadas do público e do privado, sociedade civil e Estado, o declínio do
Estado não é do politico, mas a partir do diagnóstico schmittiano pode-se pensar, mais
filosoficamente, uma alternativa que seja diferente do Estado total, mais como uma abertura
compreendida a partir da categoria do político do que um pensamento que considera a técnica
130

como final da política ou da história. No final das contas, a leitura que elaboramos faz jus à
situação epocal de Schmitt, qual seja, fim do Jus Publicum Europaeum72.
O segundo aspecto da interpretação sobre Schmitt é a chave de leitura hegeliana.
Kervégan descreve a lógica de Hegel em três aspectos, ou melhor, discerne três momentos em
tudo que possui uma realidade: (a) “o momento abstrato ou de entendimento”, (b) “o
momento dialético ou negatividade racional” e (c) “o momento especulativo ou positivamente
racional” (KERVÉGAN, 2006, p. 352). A filosofia revelaria a partir da positividade abstrata
uma negatividade que movimenta/impulsiona esta positividade como negação à direção da
negação da negação, isto é, à positividade racional e especulativa do conceito. Para Hegel,
segundo Kervégan, “caso seja necessário à razão olhar o negativo de frente, de persistir junto
a ele (...) é sempre prejudicial tomá-lo como ponto de partida como faz o entendimento
abstrato” (KERVÉGAN, 2006, p. xxi). Com efeito, ele critica a positividade que permanece
fechada em si mesma. Este fechamento significa, na verdade, a recusa da oposição do
imediato e da mediação, ou antes, a demonstração disso que essa oposição, ela mesma
imediata é subentendida por todo o processo da mediação lógica cujo resultado seria a
vontade de reconciliação. Na leitura de Kervégan, Schmitt teria compreendido esta mediação
ou reconciliação em Hegel como uma concessão inadmissível ao liberalismo e à ética da
discussão. Assim, Kervégan sustenta que:

se, para Hegel, a filosofia é essencialmente filosofia do real, é evidente que ela não é
uma consagração da faticidade: seus textos políticos aqueles mesmo cujo realismo
Schmitt admira tanto o demonstram suficientemente. A reconciliação com a
efetividade (...) não significa que essa torne toda realidade amável, mas que ensina a
detectar aí os traços de um movimento cuja razão, se ela deve ser percebida e
decifrada na História, não pode ser pensada somente a partir dela (KERVÉGAN,
2006, p. 356).
Além disso, a derradeira formulação da filosofia política hegeliana se apresenta
intragável para Schmitt. Ainda conforme Kervégan (2006, p. 170), Hegel teria inserido sua
“teoria política numa doutrina do espírito objetivo, que se desenvolve como filosofia da
história universal” e, por conseguinte, passaria a tratar a racionalidade histórica em ato de
efetuação73. No comentário preciso de Kervégan,

Hegel vê em Napoleão o instrumento da razão histórica; Carl Schmitt prefere


limitar-se à materialidade do instrumento. Nada de impressionante, aliás, nessa
opinião preconcebida: a filosofia da História e seu idealismo da razão são aquilo que
Schmitt julga mais ambíguo em Hegel, em todo caso, aquilo que debilita, a seu ver,

72
CASTRUCCI, 1999.
73
A rejeição de Schmitt desta tese hegeliana vem com um irônico comentário: “a alma do mundo que Hegel vê
em 1806 entrar a cavalo em Iena era um soldado e não um hegeliano; ela representava a aliança da filosofia com
o sabre, mas vista somente pelo lado do sabre” (Parlamentarismus, p. 70).
131

o vigor ‘político’ que manifestam os textos de Frankfurt ou Iena (KERVÉGAN,


2006, p. 172).
Ao propor o Estado como uma instância da universalidade racional na ordem do
espírito objetivo, Hegel afasta a compreensão do político como confronto e conflito, não
obstante a força e a violência estejam presentes no seu conceito. A guerra (ou em termos
schmittianos, o político como relação e antagonismo) seria para o Hegel mais maduro
(aparentemente, tão distinto do Hegel da Constituição da Alemanha ou do artigo sobre direito
natural),

a mediação, o momento negativo graças ao qual a identidade positiva da


comunidade política, ela própria socialmente diferenciada e organizada, se constitui
e se mantém nas coisas e nos espíritos (...) a guerra e sua eventualidade não podem
ser uma determinação positiva da essência do Estado. O teor ético da guerra não é,
decididamente, aquilo que permite determinar o conceito do político (KERVÉGAN,
2006, p. 175-176).
A função do Estado é a unificação, o viver em conjunto e não a guerra: “arriscando a
vida e os bens de cada um (...), ela lembra factualmente a verdade filosófica segundo a qual o
político não é a condição externa da vida ética, mas, antes, seu lugar próprio originário”
(KERVÉGAN, 2006, p. 176). Assim, ao propor a guerra ou conflito como horizonte sempre
presente da política – o elemento propriamente político da política – Schmitt retomaria de
Hegel e da ética do Estado, como Kervégan sustenta, “a continuidade entre guerra e política
[que] se deve ao fato de a guerra, ou pelo menos a sua eventualidade, ser a condição da
existência factual do Estado” (KERVÉGAN, 2006, p. 176). Entretanto, em Hegel há uma
diferença fundamental: a guerra é uma negação da negação (das determinações finitas que se
tomam por objetivos incondicionais, vida burguesa, propriedade, bens, etc.), mas aquilo que é
negado pelo político (particularidade social) também é mediação daquilo que nega.
Neste contexto da leitura hegeliana, conforme Kervégan (2006, p. 352), Schmitt
deveria ser compreendido, por um lado, através de uma “absolutização da positividade” – no
sentido de que conserva a ordem (do Estado) acima de qualquer contradição (negatividade)
interna –, por outro lado, como uma “absolutização do próprio negativo” – no sentido de que
ao considerar a distinção amigo-inimigo não teria uma solução especulativa que superasse a
oposição e a elevasse à positividade especulativa. Assim, para o autor, caso assumisse toda a
lógica hegeliana, o jurista não teria “‘a força de impacto polêmica da antítese dualista’, pois a
dialética oculta ou apaga (...) o ‘ou ... ou’ da decisão” (KERVÉGAN, 2006, p. 353). O autor
avalia que Schmitt não assume esta consequência do hegelianismo e, por isso, “permanece
num ponto de vista que se baseia no fato de deter-se no finito” (KERVÉGAN, 2006, p. 353).
Neste ponto, a leitura do comentador corrobora a nossa própria por um motivo: Schmitt
132

assume a finitude ao invés do momento especulativo ou positivamente racional. É verdade


que sob a influência de Hegel, como advogado da mediação, o decisionismo provocava um
fechamento e, por conseguinte, a constituição da ordem implicava num conceito do político
como mediação e a decisão pela representação. Entretanto, argumentamos que em Schmitt a
negatividade não significa fechamento, pois há abertura, o outro. Assim, apesar de
permanecer na negatividade, a crítica não vale para a compreensão do político como relação,
pois nesta não há fechamento visto que a ordem pressupõe afetos, conflito.
Uma questão que nos parece ambígua na leitura de Kervégan é a associação entre
decisionismo e emancipação da tutela filosófica. Apesar de tornar relativa tal ruptura ao
reconhecer uma associação solidária entre racionalidade e entendimento, Kervégan parece
fugir da questão da negatividade: elege a teoria (decisionista) como “a expressão mais
consciente e radical da emancipação da tutela filosófica, mesmo que possa ser identificada
como uma forma de racionalidade: de maneira paradoxal – mas este paradoxo a torna
filosoficamente interessante – ela é uma metafísica da positividade” (KERVÉGAN, 2006, p.
xxxi). A partir desta emancipação do saber especulativo, Kervégan compreende as teses de
Schmitt e o aproxima de um autêntico positivismo jurídico, pois “se o decisionismo é um
pensamento ‘positivo’ e mesmo, a nosso ver, a sua forma acabada, é então em um sentido
totalmente diferente do positivismo jurídico: ele pretende se situar não fora, mas além da
interrogação que engendra a racionalidade filosófica” (KERVÉGAN, 2006, p. xxxi-xxxii).
Dessa forma, Schmitt seria a expressão mais radical da emancipação do saber especulativo,
nos termos do autor, de uma metafísica da positividade. Aqui encontramos um possível
antecedente da nossa própria leitura da transcendência na imanência. Entretanto, o trecho
mais evidente da interpretação que demonstra o interesse de Kervégan na ruptura provocada
por Schmitt é quando afirma: “Enquanto uma filosofia como a de Hegel se esforça para
acolher o entendimento positivo, para conduzi-lo para além de si mesmo e revelar a sua
subordinação às exigências de ordem especulativa, o decisionismo recusa o princípio de uma
racionalidade que poderia constituir o horizonte de sentido da teoria jurídica” (KERVÉGAN,
2006, p. xxxii). Ele prossegue:

A alternativa verdadeiramente positiva de uma inteligência especulativa do real (...)


consiste em liberar de seus laços filosóficos o espaço da racionalidade positiva,
fazendo da decisão, componente essencialmente irracional de toda ordem jurídica e
política, o pré-requisito impensável do próprio direito (KERVÉGAN, 2006, p.
xxxii).
Estamos de acordo com os resultados da interpretação do francês, porém não podemos
subscrever este argumento tendo em vista a decisão pela ordem, precisamente, quando
133

Schmitt ainda teria um realismo fraco, ou seja, uma perspectiva de validade da ordem a partir
de alguma instância externa, no caso, a representação e legitimação do direito. Assim,
corroboramos a afirmação de Kervégan, segundo o qual, Schmitt “exclui a perspectiva
racional de reconciliação” (KERVÉGAN, 2006, p. xxxii). Também estamos de acordo em
sustentar que este “positivismo” não teria nada em comum com aquele em voga no início do
século. Ainda diríamos com Kervégan que Schmitt teria um verdadeiro positivismo – como
emancipação da tutela filosófica – mas não poderíamos afirmar que o jurista instaurasse uma
metafísica da positividade. Na verdade, nem mesmo para o decisionismo esta tese seria
válida: a decisão é decisão pela forma jurídica e, por isso, guarda relação com aquela instância
da racionalidade, apesar de uma relação problemática, pois irredutível. A tese de Kervégan
estaria equivocada, mas, a despeito do autor, podemos reutilizá-la para pensar o conceito do
político como relação e antagonismo que possibilita Schmitt recusar a solução hegeliana e
articular-se com a negatividade. Kervégan esboça uma compreensão neste sentido e, além de
elaborar uma crítica contundente à tradição política racionalista ou normativista, interpreta o
conceito do político como:

uma espécie de niilismo epistemológico refletido, radicaliza o projeto que o


positivismo jurídico formulava ainda ingenuamente: o de uma razão jurídica
wertfrei, libertada dos valores, que não fosse mais uma razão, já que teria deixado de
ser normativa. Ele consegue fazendo do ‘político’, ele próprio incluído, a partir da
situação-limite que determina o teor, isto é, o conflito, a pressuposição
irreconciliável de toda ordem jurídica concreta e de todo pensamento dessa ordem
(KERVÉGAN, 2006, p. xxxii).
Para Kervégan, decisionismo seria, portanto, uma “metafísica da decisão, porquanto
esta constitui o momento fundador, ‘o político’, de uma ordem qualquer” (KERVÉGAN,
2006, p. 351) – e como tal possuiria uma base metafisica expressa na teologia política e
filosofia da história própria desta. Kervégan segue de perto a crítica de Löwith e de Strauss:
com este, afirma que Schmitt procura uma inversão sistemática do liberalismo e termina preso
no horizonte daquilo que combate, configurando um liberalismo às avessas; com aquele, por
não determinar o “núcleo metafísico do liberalismo” sofre com a indeterminação do próprio
fundamento do pensamento que combate. Para Kervégan, embora tenha reconhecido as
objeções de Strauss e Löwith, Schmitt não assume, tal como gostaria, o argumento segundo o
qual o político (aqui o intérprete francês engrossa a fileiras dos que não percebem as sutilezas
do político, ao tomá-lo como idêntico ao decisionismo) “supõe uma determinação da sua
essência” (KERVÉGAN 2006, p. 119), rejeitando a determinação essencialista ou
normativista. Kervégan percebe corretamente, uma espécie de niilismo em Schmitt: por este
argumento, ele consegue estabelecer um critério forte para opor-se as críticas de Strauss e
134

Löwith (ausência de fundamento), pois Schmitt prescinde desta base (afinal, Löwith tem
razão em seu diagnóstico, mas parece se apressar ao determinar que esta ausência é uma
falha) e tanto a decisão quanto o político são irredutíveis à racionalidade normativa. Pode-se
enxergar um niilismo, porém ativo. A questão de Löwith contra o niilismo de Schmitt é a
acusação de ocasionalismo, na verdade, oportunismo ou inviabilidade de um fundamento para
a ação política. Da mesma forma, a crítica antinormativa ao liberalismo não fornece uma base
para a ação política; ora, segundo a crítica de Strauss, ela mesma serviria como base
normativa para o jurista. Assim, Schmitt ou bem descarta toda e qualquer normatividade
(acusação de ocasionalismo de Löwith) ou bem assume, às avessas, a normatividade do
liberalismo (acusação de liberal e moralista de Strauss). Nem Strauss, nem Löwith.
Interpretamos a tentativa de Schmitt como superação da lógica do fundacionismo que escapa
da “má infinidade (do fundamento) do normativismo” (KERVÉGAN, 2006, p. 120) conforme
Kervégan sustenta, mas vai bem além ao descontruir a diferença entre imanência e
transcendência, fundamento e superfície, realidade e aparência numa formulação hesitante e
precária, mas interessante como ponto de partida para pensar uma teoria pós-política.
Kervégan encerra a parte destinada a Schmitt com a razoável tese de que se nem com
Hobbes de Strauss nem com o Heidegger de Löwith é possível realizar uma leitura adequada
de Schmitt, seria Hegel a chave de leitura mais eficaz. Esta seria a cifra que daria acesso ao
pensamento do jurista. A tese de Kervégan, portanto, afirma que Schmitt recorreu a Hegel
para sua empreitada de “inversão da epistemologia liberal”, apesar de Schmitt se situar além
das alternativas que ele mesmo considera inelutáveis (KERVÉGAN, 2006, p. 120). O autor
acredita que Schmitt postula uma metafísica da história através da sua teologia política e o
Estado total seria uma resposta aos críticos, seria “a verdade atual do político, e ele o é porque
conduz o político a se atualizar plenamente, isto é, totalmente” (KERVÉGAN, 2006, p. 95) no
Estado.
A crítica que fazemos de Schmitt assume a chave de interpretação de Kervégan,
porém, ao invés de demonstrar inconsistências, apostamos que as teses do jurista seriam
compreendidas não como uma metafísica da positividade, mas sim, após os esclarecimentos
sobre a diferença entre o decisionismo e o período pré- e tardo-weimariano, como um
pensador da negatividade como finitude que se quer finitude na qual a transcendência é
transcendência da imanência, por isso, ao invés de infinito ou transcendente (no sentido
sagrado ou externo) ou fechamento da ordem a partir da decisão (no sentido de um
positivismo consequente) tomaria o paradigma da relação como abertura, pois ausente a
pacificação do conceito. Na teoria schmittiana, a ordem jurídica e a racionalidade normativa
135

pressupõem um elemento de irracionalidade como fundamento – a decisão bruta, o existencial


(Positivität, no sentido de Hegel), mas este fundamento não se reduz a uma metafísica da
decisão ou da ordem, pelo contrário: o antagonismo é o dado último a que se pode chegar.
Por mais razoável que seja a interpretação de Kervégan acerca da ambiguidade de
Hegel e da escolha de Schmitt pela positividade74, o problema é que a obra de Schmitt não se
resume ao decisionismo. Kervégan, assim, está parcialmente correto quando sustenta que
Schmitt dissocia um aspecto conservador de um aspecto revolucionário em Hegel, uma vez
que o jurista “subordina a problemática especulativa a uma lógica, a do ‘ou... ou’, da qual essa
problemática quer ser justamente a rejeição (...) No caso de Schmitt, ela [a lógica da decisão]
se revela particularmente operante, já que tende a fortalecer a abordagem do direito e da
política que é a sua” (KERVÉGAN, 2006, p. 144). Assim, Schmitt faz da dialética o fator
revolucionário do hegelianismo e considera o marxismo como herdeiro desse pensamento,
mas a questão fundamental para o tema aqui tratado e que Kervégan deixa escapar é que “a
decisão revolucionária é a consequência rigorosa da dimensão dialética do pensamento de
Hegel, ou ainda da negatividade constitutiva do racional” (KERVÉGAN, 2006, p. 144) que no
pensamento sobre o político (não decisionista) Schmitt assume através da dupla inscrição
entre die Politik e das Politischen, em tonalidade não muito estranha à crítica marxista: o
argumento do antagonismo e da concretude (finitude). Em outras palavras, a partir do
contexto jurídico-político da República de Weimar, apesar de assimilar conceitos e teses
hegelianas, Schmitt não admitiria a solução especulativa do sistema de Hegel, permanecendo
na positividade sem a possibilidade de síntese racional. No entanto, além da recusa do campo
de racionalidade definido por Hegel, Schmitt ainda apontaria uma ambiguidade no filósofo:
uma tendência à afirmação do poder do Estado conviveria com a orientação liberal. Esta
indecisão seria mais um motivo a partir do qual Schmitt acusaria as ilusões normativas
persistentes e localiza a tensão do hegelianismo precisamente na teoria política: entre o
elemento dialético e o elemento sistemático, ou seja, “o projeto íntimo de sua filosofia

74
“Se Carl Schmitt endurece a oposição entre ordem política e desordem social, se insiste na semelhança
estrutural entre a sociedade civil, no sentido de Hegel, e o estado de natureza hobbesiano, não é unicamente para
impor a sua interpretação ‘política’ do hegelianismo em oposição às leituras ‘liberais’ dominantes. Para ele,
trata-se, acima de tudo, de promover, através de Hegel, a sua própria ética decisionista do Estado e de justificar a
consequência última principal que lhe parece que deve ser extraída daí: diante de uma sociedade que se tornou
total, isto é, tendo imposto a sua medida no espaço do político, um Estado, ele próprio total, é a única chance de
restabelecer a dimensão do universal, de preservar a condição absoluta de toda ética e de todo direito”
(KERVÉGAN, 2006, p. 235). Kervégan pretende com a pesquisa mostrar o erro de Schmitt (endurece a oposição
entre desordem social e ordem política) e a aporia do seu decisionismo (2006, p. 235) e, através disso,
restabelecer a teoria política hegeliana. A questão estaria no ponto em que há “limites da assimilação da
sociedade civil num estado de natureza puro; esta possui, ao menos, a forma de uma racionalidade, apesar de
somente o Estado dotar essa forma de um conteúdo ético” (2006, p. 235).
136

reconciliar – isto é, unificar na forma de uma racionalidade que faça jus ao livre movimento
da diferença – a vitalidade infinita da negatividade dialética e o poder organizador da
totalização sistemática” (KERVÉGAN, 2006, p. 139). Diante do que Löwith denomina de “a
ambiguidade fundamental dos Aufhebungen dialéticos”75 (LÖWITH, 1969, p. 94), Schmitt
tem em vista, assim como os marxistas, os conflitos que ocorrem na sociedade civil – desta
análise, são extraídas as possibilidades revolucionárias do pensamento hegeliano –, bem como
a doutrina do Estado e suas consequências conservadoras, até mesmo reacionárias. Conforme
Kervégan (2006, p. 143), “o marxismo rompeu com aquilo que a subordinação da sociedade
civil ao Estado (...) podia comportar de equívoco (do ponto de vista da lógica decisionista do
‘ou... ou’)”. Neste contexto, corroborando a leitura de Kervégan, os trabalhos de Schmitt
despertam, inesperadamente, um interesse em pensadores marxistas como G. Lukács, W.
Benjamin e K. Korsch76. Com efeito, Schmitt elabora um paralelo entre estratificação social e
a organização da sociedade burguesa e o Estado com a relação de Hobbes entre estado de
natureza e Estado civil, mais precisamente, analisa os parágrafos 243 a 245 da Grundlinien
des Rechtsphilosophie, onde se mostra o esboço de uma teoria da luta de classe. Nas palavras
de Kervégan (2006, p. 2002), a diferenciação e diversificação própria da sociedade civil é o
traço da particularidade natural que conserva em si o resquício do estado de natureza. Isso
coincide com o argumento de Schmitt, bem como com a leitura de Strauss: como uma espécie
de luta pelo reconhecimento, porém no interior do estado civil, assumindo ou levando a sério
o paradoxo de que o direito advém da violência, ou melhor, para extinguir a violência com
violência. Ora, daí as consequências do “direito dos heróis de fundar Estados” como portador
de uma violência legítima. Diante disso, Kervégan faz um precisa analogia com Schmitt ao
afirmar que “esse direito, que não tem nada de jurídico, ilustra, no ponto em que o estado de
natureza oscila em sua negação política, uma dialética da natureza e do espírito em
movimento na direção de sua objetividade ao mesmo tempo jurídica e política”
(KERVÉGAN, 2006, p. 218), ou seja, como um limite entre a anomia da natureza e a ordem
de direito. Kervégan prossegue, associando diretamente o tema à Schmitt:

nesse sentido, ele poderia servir para uma interpretação do tipo decisionista: da
mesma forma que, em tal perspectiva, o estado de exceção é o fato extranormativo
que torna efetiva a ordem normativa, assim como, no mito político das origens ao
qual recorre Hegel, o ato fundador é o ponto de inflexão onde a ordem se instaura
pelo próprio meio que produzia o caos (...) mas percebe-se a falha de tal
intepretação: ao passo que, numa perspectiva decisionista, a exceção (a ‘decisão’) é

75
“Die Spaltung der Hegelschen Schule in Rechts- und Linkshegelianer war sachlich ermöglicht durch die
grundsätzliche Zweideutigkeit von Hegels dialektischen »Aufhebungen«, die ebensogut konservativ wie
revolutionär ausgelegt werden konnten” (LÖWITH, 1969, p. 84).
76
A breve carta de Benjamin à Schmitt consta na Gesammelte Schriften, Frankfurt: Suhrkamp, I/3, p. 887.
137

a condição de validade da ordem normativa, a violência originária não é, conforme


Hegel, de modo algum, princípio da ordem que ela produz factualmente. Sendo
somente a negação do não-direito, o direito do herói continua essencialmente do
lado do não-direito e da naturalidade (KERVÉGAN, 2006, p. 218-219)
Assim como em Hegel, Schmitt aposta na força da negatividade, isto é, na oposição e
cisão, mas diferentemente dele, considera esta força como originária e não apenas um começo
fenomenológico dos Estados, seu início externo, não conceitual: violência e negação de
direito é passagem, formam a negatividade graças a qual o Estado tem espaço. Portanto, é a
negação da negação, uma reconciliação do espírito consigo mesmo. Entretanto, Hegel,
diferentemente de Schmitt não concebe o Estado a partir da situação limite do estado de
natureza; pois distingue entre origem e fundamento, ser e aparecer, “começo no fenômeno” e
o “princípio substancial” dos Estados. Se em Hegel, o processo da contradição e diferença
(negatividade – negação da negação) leva ao fundamento, descontruindo os dualismos
(identidade e diferença, interior e exterior, noumeno e fenoumeno, sujeito e objeto) por
encontrar, ao final, algo unificador; em Schmitt, não há resolução da contradição através do
decisionismo, tal como Kervégan afirma: “Se Schmitt deixa de percebê-lo (a unidade
racionalidade ético-política do Estado) é provavelmente menos por incompreensão ou
ignorância dos textos do que porque precisaria, para reconhecê-lo, aceitar que fosse
questionado o dualismo filosófico intransigente no qual se baseia a sua própria empreitada”
(KERVÉGAN, 2006, p. 40). Avaliação correta de Kervégan. Todavia, seu diagnóstico atento
serve apenas para um período das teses schmittianas: no conceito do político, acreditamos que
não há mais dualidade entre imanência e transcendência, interno e externo, normativo e
descritivo, tal como apresentamos no último capítulo desta pesquisa.
Para Kervégan, a ambivalência do pensamento de Hegel permite “o acesso ao núcleo
teórico do decisionismo” (KERVÉGAN, 2006, p. 150). Retrucamos, porém, 2 argumentos: (i)
o decisionismo schmittiano é uma teoria da mediação, diferente da hegeliana, mas ainda assim
mediação; (ii) o decisionismo não se aplica ao período tardo-weimariano, isto é, ao conceito
do político (como imanência e antagonismo). Schmitt não permanece na positividade, mas
antes – como o próprio Kervégan reconhece em alguns trechos – assume a negatividade como
lugar do político, uma vez que o decisionismo não é o único paradigma interpretativo da obra
de Schmitt nem mesmo é a interpretação que o comentador francês dele executa a mais
adequada.
Em última instância, sob este aspecto, Schmitt não seria um hegeliano nem de
esquerda nem de direita, mas um anti-hegeliano, graças à Hegel: nem tanto por sua rejeição à
superação da contradição, mas sim por sua compreensão da negatividade que o político
138

implica, pois como relação e conflito originário e contínuo mesmo dentro da ordem que
sempre destitui o positivo (seja o abstrato seja o especulativo/racional). Assim, pensar uma
negatividade radical é pensar a ausência de positividade (racional) e se, conforme nossa
leitura, Schmitt pode se livrar – não sem algum esforço – da acusação de “metafísica da
positividade” (abstrata) apontada por Kervégan (ao considerar que sua fase decisionista
clássica finda antes da tardo-weimariana e, portanto, sem a consideração da ordem ou decisão
como fim último); então o político seria a negatividade que se recusa estabilizar como
racional, tendo em vista sua base nas diferenças imanentes. Este é o dispositivo ou paradoxo
filosoficamente interessante em Schmitt que Kervégan deixa escapar: o conceito do político
como relação e antagonismo permaneceria como o negativo ressaltando a ênfase não ao
momento da destituição (como a dialética hegeliana na qual o negativo se encontra
posteriormente destituído pelo racional especulativo) e mais do que meramente permanecer na
escolha/decisionismo (positividade abstrata), Schmitt através do seu revisitado conceito do
político poderia se esquivar de uma “metafísica da positividade” – como aposta Kervégan – e
esboçar algo parecido com uma ontologia da negatividade, ou melhor, o político como um
dispositivo de dialética negativa. Em suma: o que importa em relação ao intérprete francês,
não apenas reinterpretar, mas também rejeitar o rótulo de decisionismo e compreender o
político como aquele momento dialético ou negatividade do conflito e relação sem a oposição
ou momento especulativo ou positivamente racional.

* * *
A principal crítica à interpretação de Kervégan é a ausência da distinção entre o
político como mediação do Politischen Theologie e o político como relação do Der Begriff
des Politischen. Em todo caso, ele acerta ao afirmar que “o político não tem substância, ele
designa apenas o poder conflitual inerente às práticas humanas e, desse modo, não o positivo,
mas sim o negativo, sob a figura da inimizade, se encontraria absolutizado” (KERVÉGAN,
2006, p. 353). Todavia, o autor erra ao afirmar “consequentemente, existe uma real coerência
na escolha teórica desenvolvida pelo decisionismo. Recusando os recursos da negatividade,
isto é, da racionalidade dialética, ele hipostasia o positivo (a decisão) (sic) e assim também o
negativo (o par amigo-inimigo), conferindo-lhe um valor fundador: o complexo
conflito/decisão – o político no sentido schmittiano” (KERVÉGAN, 2006, p. 353). O autor
mais uma vez trata como teses iguais o decisionismo e o conceito do político no final da
década de 1920. Eis a grande falha da leitura de Kervégan conforme nossa própria leitura
demonstra. Além disso, ao considerar Schmitt como um autor da positividade – ordem –,
admite, contraditoriamente, que Schmitt “absolutiza” tanto o âmbito da positividade abstrata
139

quanto a negatividade (na figura do inimigo). Se Kervégan confunde períodos bastante


distintos (inclusive, estas incompreensões renderam ao jurista contundentes críticas por sua
“imanentização”, segundo apresentamos na leitura de Voegelin), ao menos, ele acerta na
descrição desta última. Ao afirmar que “o negativo, sob a figura da inimizade, se encontra
absolutizado”, logo em seguida oblitera esta possibilidade e afirma que Schmitt “recusa os
recursos da negatividade, isto é, da racionalidade dialética (sic), ele hipostasia o positivo (a
decisão) e assim também o negativo (par amigo-inimigo), conferindo-lhe um valor fundador”
(KERVÉGAN, 2006, p. 353) e, mais uma vez trata coisas distintas como se fossem iguais,
quando afirma: “o complexo conflito/decisão (sic) – o político no sentido schmittiano – se
torna a pressuposição intransponível do sistema das normas e da própria racionalidade
jurídica” (KERVÉGAN, 2006, p. 354). Simplesmente, não há possibilidade de considerar
como idênticas as estratégias da decisão soberana e do conceito do político (em Der Begriff
des Politischen e em parte da Verfassungslehre). A questão que tomamos nesta pesquisa é
como interpretar Carl Schmitt não com uma metafísica da positividade, mas como uma
ontologia da negatividade na qual imanência e finitude se recusam à solução especulativa ou
racional e se fixa não na positividade abstrata da ordem (como o decisionismo levaria), mas
na permanência no negativo, isto é, nas figuras do conflito sem solução de fora ou
transcendente. O político como negativo (antagonismo) e não como positivo (decisão), seria o
ponto cego das análises de Kervégan: uma ontologia do antagonismo e a noção de abertura
que apresentamos nesta pesquisa.
A inimizade em Hegel não se refere a uma naturalização da relação, mas sim ao
caráter ético e metafísico, sobretudo, quanto à soberania externa, incapaz de se reduzir à
positividade abstrata. Segundo Kervégan, “o inimigo é, em sua determinação especulativa, o
aspecto exteriorizado da negatividade constitutiva da identidade positiva de si da vida ética”
(KERVÉGAN, 2006, p. 157, grifos do autor). Inicialmente, ele trata a soberania do Estado em
Hegel como uma relação de exclusão de outros Estados. Evidentemente, sem a possibilidade
de um terceiro superior (a não ser a História, mas isso é obviamente problemático), os Estado
teriam a forma de relação externa via guerra, ou seja, através do jus belli, do uso da força
legítima no caso de solucionar suas pendências. Este tipo de Estado, para Schmitt, já não
existe mais. Entretanto, a chave para compreender o trecho citado de Kervégan é que Schmitt
assume a noção do inimigo como negativo exterior constitutivo. Na leitura de Kervégan,
Schmitt assume este elemento de Hegel, mas destituída do momento especulativo e, por isso,
ele teria se fixado na positividade da mera decisão entre eles ou nós; na nossa leitura, porém,
Schmitt poderia ter arriscado uma ontologia da diferença uma vez que já teria se defeito do
140

vínculo entre político e Estado e sustentaria que “essa exterioridade mútua (...) é apenas a
transposição em exterioridade da ‘relação infinitamente negativa de si’, que é engajada pelo
ser para si positivo da totalidade política” (KERVÉGAN, 2006, p. 157). E prossegue: “É
preciso, por conseguinte, pensar o negativo (o inimigo) como negatividade, isto é, não como
uma realidade dada, mas como momento do processo da totalidade ético-política”
(KERVÉGAN, 2006, p. 158); mais precisamente, é como se o negativo fosse um termo
externo, apesar de recusar aquela “totalidade ético-política”. Para Schmitt, o político e o
direito comportam um caráter conflitual (antagonismo) e Kervégan acertadamente reitera este
aspecto quando afirma que “o político não é outra coisa senão uma relação originária da
eventualidade do conflito” (KERVEGAN, 2006, p. 350). Assim como Hegel trata do “ser para
si como uma relação infinita consigo mesmo mediatizada pela relação com o outro”, Schmitt
também teria na relação de conflito a exposição daquilo que é constitutivo da identidade de
um Estado. A releitura que elaboramos prescinde da hipótese de ordem ou do Estado como
pressuposto e busca recuperar a noção de negatividade e guerra:

a equação estabelecida (por Hegel) pelo artigo sobre o direito natural entre a
atividade militar e a atividade política, faces indissociáveis do modo de ser do
‘estado dos homens livres’, poderia ser compreendida como uma antecipação das
teses de Le concept du politique. Numa perspectiva decisionista, a guerra, ou, mais
precisamente, a hostilidade, é a situação limite que permite pensar a possibilidade da
unidade política, e o jus belli, isto é, ‘a possibilidade real de designar o inimigo, se
for preciso, por uma decisão própria’, é a propriedade distintiva do Estado soberano
(KERVÉGAN, 2006, p. 169)
Apesar da proximidade quanto à noção de guerra e de inimigo, neste ponto,
Kervégan traz uma contribuição importante na relação entre Hegel e Schmitt: o jurista não
concorda com o filósofo, pois “ela (a obra de Hegel da época de Berlim) inscreve os
princípios do jus publicum europaeum na perspectiva puramente especulativa de um
racionalidade histórica” (KERVÉGAN, 2006, p. 165) e, precisamente, esta capitulação diante
do conflito Schmitt parece recusar, de maneiras distintas, seja pela via do decisionismo, seja
pela via do político como relação e antagonismo. Assim, nem a decisão que Kervégan aposta,
nem a solução da totalidade especulativa: para Schmitt, o conceito do político, revisitado no
final da década de 1920, seria o esboço de uma dialética negativa77. Apesar disso, Kervégan
tenta associar Schmitt à Hegel quando ele “confirma a ligação íntima que une a metafísica
decisionista da positividade à dialética especulativa, e isso a respeito do tema principal do

77
“No ser-aí, essa relação negativa do Estado consigo aparece como relação de um outro a um outro, e como se
o negativo fosse um [termo] externo. A existência dessa relação negativa tem, portanto, o aspecto de uma dvir e
de uma confusão com dados contingentes que vêm do exterior. Mas [essa relação] é seu momento próprio mais
elevado, sua infinidade efetiva enquanto idealidade de tudo aquilo que está incluído nele” (apud KERVEGAN,
158 HEGEL, RPh §323, p. 279).
141

ensaio sobre o conceito de política, a relação amigo-inimigo (...) ‘o inimigo é a figura de


nossa própria questão’” (KERVÉGAN, 2006, p. 358). Teria Schmitt assumido o inimigo
como mediação? Isso nos parece bastante heterodoxo. Mesmo assim, custa-nos aceitar a
possibilidade da mediação, aliás, propomos que não haja mais a distinção entre imeditiadade e
mediatidade, mas apenas abertura e relação. Da mesma forma, parece despropositado afirmar
que “a absolutização do negativo, caráter próprio do decisionismo, se encontra novamente
questionada e, com ela, toda a metafísica da positividade sobre a qual estava construída a
doutrina jurídica de Schmitt” (KERVÉGAN, 2006, p. 359). Entretanto, podemos afirmar que
Schmitt rejeita a solução racionalista, ou seja, permanece na negatividade ao invés da
positividade racional ou especulativa. Assim, Schmitt não admite uma racionalidade na
história como algo universal, mas diferentemente do que Kervégan aponta o jurista não
escolheu “a positividade e não a dialética”, mas sim a negatividade e fez dela seu ethos.
A chave de leitura schmittiana que propomos sobre Hegel, da qual nos distinguimos
de Kervégan, é a seguinte: em nossa interpretação, Hegel não percebe que seu sistema não
comporta a abertura que a ideia de dialética, em especial a categoria de negatividade, implica.
Em outras palavras, a partir do conceito do político – portanto, nossa interpretação parte de
um ponto bastante preciso da obra schmittiana, caso se escolha outro ponto de partida,
certamente teríamos outro resultado – a totalidade a que Hegel pretende, teria sido vista por
Schmitt com suspeita, pois intervenção ou resquício de um racionalismo ou universalismo que
o jurista não poderia admitir. Da mesma forma, a diferença no âmbito da particularidade
(como negação abstrata) não encontraria uma solução mais adiante: o que através do conceito
do político de Schmitt pode-se afirmar é que na teoria de Hegel haveria redução da diferença
à identidade, como um jogo de cena, ao neutralizar a negatividade diante da positividade
absoluta ou especulativa. O jurista, portanto, teria percebido o movimento de Hegel ao
dissolver as contradições concretas e solucionar no âmbito ideal as questões da finitude.
Assim, ao menos no Der Begriff des Politischen – que conforme a interpretação que
elaboramos no capítulo 3, atende por um movimento de imanentização do político ao
considerá-lo como relação e finitude – tenta permanecer na tensão da luta ou do conflito: não
apenas mantém a negatividade, dispensa a um saber absoluto ou solução final, mas também
elabora um pensamento do político que não nega a negação, além de deixar espaço à abertura.
Esta é a cifra que escolhemos para compreender Schmitt contra Hegel: enquanto este enxerga
na contingência dos eventos a necessidade do conceito; aquele, ao menos em uma fase
bastante precisa da sua obra, pensa a contingência (finitude) mais como uma ausência do que
fundamento e não se envergonha de ser conhecimento contingente do contingente, uma vez
142

rejeitada a possibilidade da ordem a partir de uma forma ou conceito transcendente. Dessa


maneira, sustentamos que a relação de conflito expressa no Der Begriff des Politischen teria
maiores ganhos conceituais se interpretada como negatividade, finitude e contingência, ao
invés da interpretação de Kervégan, como uma metafísica da positividade.

1.8 Chantal Mouffe: o conflito como agonismo [1993/2000]78

A tese que Chantal Mouffe sustenta ao assumir alguns argumentos de Carl Schmitt é
considerar a distinção entre amigo e inimigo como uma relação de agonismo. De forma
bastante peculiar, a autora corrobora uma abordagem anti-essencialista, pragmática, que
concede primazia à contingência e rejeita a possibilidade de fixidez das identidades
(MOUFFE, 1993, p. 7; MOUFFE, 2005, p. 18). Do ponto de vista da sua proposta, a filósofa
elabora uma releitura da distinção entre amigos e inimigos, agora compreendida como
“we/they opposition”, isto é, a transformação de um modelo antagonístico em um modelo
agonístico ou adversarial e, dessa forma, pretende conciliar este modelo com a noção
revisitada de democracia liberal. A correção ou incorreção desta leitura tem como
consequência saber até que ponto Schmitt pode impor desafios para a realização da
democracia liberal, ou seja, até que ponto os argumentos utilizados por ele têm plasticidade
suficiente e podem ser aproveitáveis numa releitura, revista e corrigida, de um dos temas mais
criticados em suas obras. O challenge de Schmitt não seria outro senão: como assumir o
conflito (como agonismo) dentro dos parâmetros da política moderna mais voltada ao
consenso e à racionalização do que às relações de conflito? Mouffe tenta reescrever os
princípio de uma teoria democrática e inserir de fato, além dos procedimentos e racionalidade,
o conflito, ou melhor, o político como conflito. Para isso, critica as concepções de democracia
deliberativa por conta da neutralização e redução da pluralidade, mas também algumas teses
de Schmitt que, apesar de inspirar profundamente as análises mouffeanas, são apropriadas e
desenvolvidas de modo assumidamente anti-schmittiano. A proposta fundamental de Mouffe
é, precisamente, elaborar um modelo agonístico de democracia. Senão, vejamos.
O ponto inicial da apropriação de Mouffe é a adoção de uma ontologia do conflito a
partir de Schmitt. A tarefa da autora parece descabida ao tentar mostrar como um teórico tão
avesso às teses liberais e crítico do parlamentarismo, entre outros institutos da política

78
Utilizamos os seguntes textos: MOUFFE, Chantal. The Return of the Political. London; New York: Verso,
1993; On the Political. London: Routledge, 2005; The Democratic Paradox. London/New York: Verso, 2000.
143

institucional moderna, pode servir como teste ou critério para o aperfeiçoamento das
democracias liberais. Por outro lado, ela discorda do jurista ao compreender a democracia
liberal como modo de governo não necessariamente ligado ao estado de exceção, bem como
não admite que a democracia liberal seja uma contradição em termos. Assim, ao elaborar uma
leitura pertinente sobre o estatuto da democracia e das teorias politicas contemporâneas tanto
em The return of the political quanto em The democratic paradox, Mouffe expõe seus
pressupostos logo nas primeiras linhas: trata de Lefort, sobre democracia e imanência e, claro,
da ausência da autoridade transcendente, e demonstra por que viés ela aborda Schmitt, qual
seja, como um autor da imanência. Diante desta abordagem, seguimos com atenção a leitura
de Mouffe, visto que a proposta de desleitura é próximo ao que realizamos. Entretanto, ela se
aproveita do conceito de antagonismo e consegue, por menos indicado que seja, higienizar
Schmitt. A autora parte de um solo disfarçadamente liberal ou, pelo menos, resvala para uma
defesa normativa da democracia, deixando escapar uma radicalidade – e com ela os perigos –
que a teoria schmittiana apresenta. Por conta e risco, ela assume as teses schmittianas, mas
abranda suas consequências.
Sob uma inspiração assumidamente schmittiana, apesar de não referir-se ao texto
sobre o Parlamentarismo de 1923, entre outros, Mouffe, sem delongas, apresenta sua teses.
Inicialmente, o argumento central é que “é vital para a política democrática entender que a
democracia liberal resulta da articulação de duas lógicas que são incompatíveis em última
instância e que não há nenhuma maneira pela qual elas poderiam ser perfeitamente
reconciliadas” (MOUFFE, 2000, p. 5). Os dois elementos a que se refere são a questão da
identidade ou homogeneidade que a democracia exige e, por conseguinte, a exclusão do
diferente, bem como o elemento da soberania; e a questão do individualismo ou dos
princípios de direito natural subjetivos que deram origem à estrutura normativa do Estado,
numa palavra, a noção de liberdade. Ou ainda,

a tensão entre igualdade e liberdade não pode ser conciliada e que só podem existir
formas hegemônicas contingentes de estabilização de seu conflito, torna-se claro
que, uma vez que a própria idéia de uma alternativa à configuração existente do
poder desaparece, o que desaparece também é o mesmo possibilidade de uma forma
legítima de expressão para os resistentes contra as relações de poder dominantes
(MOUFFE, 2000, p. 5).
Em todo caso, Mouffe elabora uma análise precisa da prática política fin-de-siècle,
sobretudo, contra as teorias normativista com base na discussão racional ou no consenso
como forma de eliminar o conflito: “A situação política apenas descreve, caracterizada pela
celebração dos valores de uma política consensual do centro (...) É por isso que coloco uma
ênfase especial nas conseqüências negativas de considerar o ideal da democracia como a
144

realização de um ‘consenso racional’ e sobre a ilusão concomitante que esquerda e direita


deixaram de ser categorias pertinentes para políticas democráticas” (MOUFFE, 2000, p. 7).
Não é estranho para um leitor de Schmitt uma crítica desta natureza. Mouffe assume estes
argumentos sem, no entanto, fazer referência ao jurista. Mesmo assim, a autora reforça o
diagnóstico dado por Schmitt na década de 1920: “é a incapacidade de os teóricos
democráticos e os políticos reconhecerem o paradoxo de que a política liberal-democrática é a
expressão que está na origem da sua ênfase equivocada no consenso e sustenta a crença de
que o antagonismo pode ser erradicado. É um fracasso que impede a elaboração de um
modelo adequado de política democrática” (MOUFFE, 2000, p. 8). Em contraposição à Rawls
e Habermas, Mouffe trata deste aspecto, qual seja, “sua solução não é dúvida diferente, mas
compartilham a crença de que, através de procedimentos deliberativos adequados, seria
possível superar o conflito entre os direitos individuais e as liberdades e as reivindicações de
igualdade e participação popular” (MOUFFE, 2000, p. 8), estabelecendo, afinal, não uma
teoria do “inaccessible consenus”, mas sim “um "confronto agonístico" entre interpretações
contraditórias dos valores constitutivos liberais-democráticos” (MOUFFE, 2000, p. 9). Assim,
a despeito de Schmitt, a autora pretende utilizar alguns argumentos do jurista e “para
redescrever (...) democracia liberal em termos de ‘pluralismo agonístico’” (MOUFFE, 2000,
p. 9). Para isso, a autora parte das teses de Schmitt e discorda deste, pois, segundo ela:

sua tese (uma contradição estrutural da democracia liberal) que este é um regime não
viável, dado que o liberalismo nega a democracia e que a democracia nega o
liberalismo. Embora considere que a crítica de Schmitt fornece informações
importantes e que deve ser levada a sério, minha posição (...) é que essa
irreconciliação final não precisa ser visualizada no modo de uma contradição, mas
como locus de um paradoxo (MOUFFE, 2000, p. 9).
Mesmo concordando, em geral, com a análise schmittiana – a contradição entre a
lógica universalista liberal e a concepção democrática de igualdade e a necessidade da
constituição do demos – ela afirma: “Sugiro que reconhecer esse paradoxo nos permite
entender qual é a verdadeira força da democracia liberal” (MOUFFE, 2000, p. 9), qual seja,
Mouffe propõe articular a lógica da relação democrática (soberania, demos, exclusão-
inclusão) com o discurso dos direitos humanos. Nesta tensão, “visualizando a dinâmica da
política democrático-liberal como o espaço de um paradoxo cujo efeito é impedir o
encerramento total e a disseminação total, cuja possibilidade está inscrita nas gramáticas da
democracia e do liberalismo, abre muitas possibilidades interessantes” (MOUFFE, 2000, p.
10). A proposta de Mouffe tem seus méritos, sobretudo, ao destacar que “daí a necessidade de
abandonar a ilusão de que um consenso racional poderia ser alcançado quando tal tensão seria
eliminada e perceber que a política democrática pluralista consiste em formas pragmáticas,
145

precárias e necessariamente instáveis de negociação, seu paradoxo constitutivo” (MOUFFE,


2000, p. 11)79. Mouffe acerta ao destacar “a natureza paradoxal da democracia liberal (que)
exige romper com a perspectiva dominante racional e exige um quadro teórico que reconheça
a impossibilidade de constituir uma forma de objetividade social que não se baseie em uma
exclusão originária” (MOUFFE, 2000, p. 11) e como este argumento reforça uma postura
“non-essentialist” e um “post-structuralism and deconstruction” imprescindível para
compreender a democracia. Neste ponto, a autora expõe sua tese fundamental: “Uma tese
fundamental do meu trabalho tem sido por algum tempo que uma abordagem racionalista é
obrigada a permanecer cega ao "político" em sua dimensão de antagonismo e que tal omissão
tem consequências muito graves para a política democrática” (MOUFFE, 2000, p. 11). O
problema é descrito com precisão e inteligência, apesar de, quase literalmente, o conteúdo
desta questão já habitava há muito nas obras de Schmitt.
No contexto da relação com Schmitt, resta uma ressalva: parece que a autora não se
aproxima demasiadamente do jurista. Apesar da influência inegável na tentativa de uma
concepção não racionalista da teoria política – basicamente, a procura por outras formas não
institucionais de participação política – Mouffe não leva às últimas consequências as teses
schmittianas; tergiversa com Wittgenstein e Derrida para esconder uma argumentação
claramente schmittiana. Por exemplo, assume a influência de Derrida sobre o externo
constitutivo (“constitutive outsider”), mas logo afirma que:

um primeiro passo na minha argumentação é afirmar que a oposição amigo / inimigo


não é a única forma que o antagonismo pode tomar e que pode se manifestar de
outra maneira. É por isso que proponho distinguir entre duas formas de
antagonismo, o antagonismo propriamente dito - que ocorre entre inimigos, isto é,
pessoas que não possuem espaço simbólico comum - e o que eu chamo de
"agonismo", que é um modo diferente de manifestação de antagonismo porque
envolve uma relação não entre inimigos, mas entre "adversários", os adversários
sendo definidos de forma paradoxal como "inimigos amigáveis", isto é, pessoas que
são amigos porque compartilham um espaço simbólico comum, mas também

79
Safatle reforça esta compreensão, por exemplo, quando afirma: “Identidades culturais, ou seja, aquelas ligadas
à afirmação da especificidade de forma de vida que se estruturam a partir de etnias, nacionalidades, religiões,
modos de sexualidade, vínculos a sistemas de costumes – sempre se definem sob tensão, se não quisermos adotar
a ilusão tipicamente liberal de um pluralismo sem antagonismo” (SAFATLE, 2015, p. 349). Sobre isso, cf.
também MOUFFE, 2000, p. 39. Quando a autora aborda o político ele assume em termos imanentista e remete à
Schmitt “the political as our ontological condition” (MOUFFE, 2005, p. 16): seja compreendido como referente
ao contexto histórico, seja referente ao antagonismo instaurado na distinção entre amigos e inimigos como
critério (lógico, não histórico) do político. Assim como Agamben, Mouffe desempenha importante papel nas
releituras de Schmitt, pois recoloca o autor nas discussões contemporâneas em teoria política. Neste caso, o
argumento de Schmitt prossegue incólume: o liberalismo esquece de que identidades são constituídas no interior
de relações assimétricas de poder e não por normas e procedimentos ou consenso racional. O apelo às teses
schmittianas é compreendido por sua forte vocação à desconstrução das ilusões liberais e jurídicas.
146

inimigos porque querem organizar isso espaço simbólico comum de uma maneira
diferente (MOUFFE, 2000, p. 13).
Ela reconhece que democracia implica na exclusão de alguns grupos ou agentes na
demarcação do demos, mas tenta amenizar a distinção entre amigo inimigo e parece não
perceber que a lógica do político que ela assume de Schmitt não se deixa facilmente enganar
com essa mudança semântica: o modelo adversarial deixa de funcionar tendo em vista o
abandono da relação entre democracia e exclusão. Mesmo assim, Mouffe segue na
substituição do modelo antagonístico pelo modelo agonístico80: “Vejo a categoria do
"adversário" como a chave para considerar a especificidade da política democrática pluralista
moderna, e é no centro da minha compreensão da democracia como ‘pluralismo agonístico’”
(MOUFFE, 2000, p. 14).
O ponto de partida de Mouffe para a compreensão deste modelo é, evidentemente, a
crítica da democracia parlamentar por Carl Schmitt. Este texto seminal escrito na década de
1920 aponta as contradições da República de Weimar e se assomavam às críticas schmittianas
da época. Nele Schmitt, resumidamente, declara que democracia requer ao mesmo tempo
homogeneidade e eliminação ou erradicação da heterogeneidade. Em todo caso, o jurista
sustenta no texto sobre Parlamentarismo uma versão forte de igualdade: ao invés de uma
igualdade formal e abstrata, ele concebe uma igualdade de gênero, uma igualdade de tipo.
Apesar disso, o conceito de igualdade para Schmitt, conforme Mouffe se aproveita, é político,
ou seja, um conceito que possibilita uma distinção. Ao contrário das abordagens raciais ou
essencialistas, Mouffe trata com precisão este ponto na obra de Schmitt: “Ele nunca postulou
que isso pertencia a um povo só poderia ser considerado em termos raciais. Na contrária, ele
insistiu na multiplicidade de maneiras pelas quais a homogeneidade constitutiva de um demos
poderia se manifestar” (MOUFFE, 2000, p. 40). Assim, para Schmitt, segundo Mouffe, o que
é importante não é “natureza da similaridade em que a homogeneidade se baseia” (MOUFFE,
2000, p. 40). Ora, seu ataque se dá contra “an abstract idea of humanity”, precisamente, ao
contrapor o conceito de humanidade ao conceito de povo81. Como analisa Mouffe, “Schmitt
afirma que existe uma oposição insuperável entre o individualismo liberal, com seu discurso
moral centrado em torno do indivíduo e o ideal democrático, que é essencialmente político, e
que visa a criação de uma identidade baseada na homogeneidade” (MOUFFE, 2000, p. 39)

80
WENMAN (2014, p. 88) levanta uma questão importante para o debate ao afirmar que o conceito do político
de Schmitt não seria um conceito vazio, mas que seria intrinsecamente ligado ao autoritarismo e, sobretudo, à
ordem e segurança. Assim, ele problematiza, por outro argumento, a proposta de releitura problemática da
autora.
81
Sobre o tema, inúmeros artigos de Schmitt na coletânea Frieden oder Pazifismus.
147

Em outros termos, liberalismo nega democracia e vice-versa, tornando a democracia


parlamentar um regime inviável.
Mouffe destaca a importância da noção de unidade política e identidade para Schmitt
e, por conseguinte, a relação entre democracia e lógica da inclusão-exclusão. Ao contrário do
liberalismo, que não consegue estabelecer esta fronteira e, portanto, não utiliza um conceito
como o de povo, mas o de humanidade ou outras abstrações e formalizações, ou seja, sem um
conceito político: “a questão central da constituição política do ‘povo’ é algo que a teoria
liberal não consegue enfrentar adequadamente, porque a necessidade de criar uma ‘fronteira’
contradiz sua retórica universal. Contra a ênfase liberal na ‘humanidade’, é importante
ressaltar que os conceitos-chave da democracia são os ‘demos’ e as ‘pessoas’” (MOUFFE,
2000, p. 44). Seguindo de perto as teses schmittianas sobre a tensão entre democracia e
liberalismo, porém apesar de até aqui concordar com o jurista, Mouffe se distancia dele para
tentar salvar o conceito problemático de democracia liberal ao reinventá-la sob uma nova
cifra. Segundo ela,

Eu acho que Schmitt está errado em apresentar esse conflito como uma contradição
que é obrigada a liderar a democracia liberal para a autodestruição. Podemos aceitar
sua visão perfeitamente bem sem concordar com a conclusão que ele desenha.
Proponho reconhecer o crucial diferente entre as concepções liberal e democrática
da igualdade, considerando a articulação e as consequências de outra forma
(MOUFFE, 2000, p. 44).
Mais especificamente, para Mouffe, ao mesmo tempo em que a lógica democrática
constitui o povo, subverte a tendência universalista e abstrata do liberalismo. Reciprocamente,
a referência aos direitos humanos resiste às formas de exclusão que a constituição do povo
através da democracia implica. Assim, Mouffe retira consequências positivas desta
articulação, pois o “false-dilemma” de Schmitt não percebeu esta articulação entre as duas
lógicas, pois enquadrou apenas em uma visão pessimista: “nenhuma resolução final ou
equilíbrio entre essas duas lógicas conflitantes é sempre possível, e pode haver apenas
negociações temporárias, pragmáticas, instáveis e precárias da tensão entre elas. A política
liberal-democrática consiste, de fato, no constante processo de negociação e renegociação -
através de uma articulação hegemônica diferente - desse paradoxo constitutivo” (MOUFFE,
2000, p. 45). Mouffe realiza exemplarmente o que tentamos nesta tese: a partir de uma análise
de Schmitt, apoiado em seus textos, assumindo seus conceitos, retira uma tese que o jurista
seria incapaz de subscrever. Na verdade, esta é a principal virtude de um texto filosófico,
precisamente, o que a partir dele é desenvolvido, sua herança.
Entretanto, um dos argumentos que Mouffe custa aceitar é o de uma
“impossibilidade de estabelecer um consenso racional sem exclusão” (MOUFFE, 2000, p. 45)
148

ou, em outras palavras, acerca da natureza do consenso que pode ser obtido em uma liberal-
democracia. A questão é tratada pela autora a partir das considerações sobre democracia
deliberativa, onde “o principal desafio que enfrenta a democracia é como reconciliar a
racionalidade com a legitimidade - ou, de forma diferente, a questão crucial que a democracia
precisa abordar é como a expressão do bem comum pode ser compatível com a soberania das
pessoas” (MOUFFE, 2000, p. 46). Mouffe percebe que a tentativa de fundamentação da
legitimidade sobre a racionalidade depende da distinção entre aceitação (agreement) e
consenso racional (rational consensus), ou seja, a necessidade de que o processo de discussão
se realize em condições ideais de discurso: imparcialidade, igualdade, abertura e ausência de
coação, etc. Esta estrutura ideal daria as garantias para a legitimação, no caso em questão, a
produção do consenso. Por conta de seu ponto de partida, Mouffe critica as idealizações
destas condições, aliás, até mesmo os habermasianos mais naïves concordam que tais
condições são ideais e funcionam como horizonte normativo das ações fáticas, ou seja,
funciona como uma ideia regulativa desde o começo. Neste momento, para desconstruir as
teses que denominamos de políticas da metafísica ou, em geral, normativas, mais uma vez a
autora se utiliza da argumentação schmittiana e analisa as ilusões liberais:

Se aceitarmos a visão de Schmitt sobre as relações de inclusão-exclusão que estão


necessariamente inscritas na constituição política do "povo" - que é exigido pelo
exercício da democracia - devemos reconhecer que os obstáculos para a realização
da situação de discurso ideal - e ao consenso sem exclusão que isso provocaria -
estão inscritos na própria lógica democrática. De fato, a deliberação pública gratuita
e sem restrições de todos em questões de interesse comum vai contra o requisito
democrático de traçar uma fronteira entre "nós" e "eles" (MOUFFE, 2000, p. 48).
De certa forma, paradoxalmente, as condições de possibilidade da democracia são
condições não democráticas, ou melhor, não estão em conformidade com a democracia
deliberativa, pois “Consenso em uma sociedade liberal-democrática (...) expressão de uma
hegemonia e cristalização das relações de poder” (MOUFFE, 2000, p. 49), o que significa que
a fronteira do que é e do que não é legítimo é algo determinado politicamente, afinal, outro
argumento assumidamente schmittiano. A compreensão de consenso sem exclusão “é incapaz
de prever o pluralismo liberal-democrático de forma adequada” (MOUFFE, 2000, p. 49). Para
a autora, tanto Rawls quanto Habermas eliminam o pluralismo da esfera pública para salvar o
consenso e se mostram incapazes de refutar a crítica de Schmitt, tarefa que Mouffe se põe a
realizar mesmo assumindo as teses do jurista contra ele próprio. Numa análise sagaz, Mouffe
destaca que a noção de democracia em Schmitt deve ser compreendida a partir da noção de
amizade: o polo tantas vezes esquecido na teoria schmittiana é o ponto central para sua teoria
da democracia, ou seja, a homogeneidade. Ao contrário do liberalismo que simplesmente
149

transpõe para a esfera pública a diversidade dos interesses privados e reduz o político à
negociação entre interesses. Diante da impossibilidade de um modelo de identidade
democrática no liberalismo, ela aposta na formação de uma unidade. Entretanto, neste
momento Mouffe não percebe um elemento. Quando analisa que para Schmitt “não há lugar
para um pluralismo dentro de uma comunidade política democrática” (MOUFFE, 2000, p.
51), a autora não leva em conta a importância da noção de complexio oppositorum que
garante uma unidade vertical, apesar das contradições horizontais. A unidade política nas
obras pré-weimarianas e weimarianas parecem ser basicamente formais, visto que apenas no
Der Begriff des Politischen e na Verfassungslehre temos expressamente uma abordagem que,
em geral, poderia ser denominada existencial. Ela está correta ao afirmar que “a democracia
exige a existência de demonstrações homogêneas” (MOUFFE, 2000, p. 51), mas não ao
continuar que “isso impede qualquer possibilidade de pluralismo” (MOUFFE, 2000, p. 51),
subestimando a capacidade de pluralidade que uma leitura mais generosa poderia retirar dos
textos schmittianos. Apesar disso, a autora tem razão ao tratar Schmitt com um defensor da
ordem, ou melhor, da unidade política diante do pluralismo liberal, apesar de, talvez, tivesse
melhores resultados se interpretasse os argumentos por uma via menos ortodoxa.
Em síntese, Mouffe reconhece que Schmitt “é justo ressaltar as deficiências do tipo
de pluralismo que nega a especificidade da associação política” (MOUFFE, 2000, p. 53) e,
além disso, numa tentativa de delimitar uma postura realista através de Schmitt, “é necessário
constituir o povo politicamente” (MOUFFE, 2000, p. 53, grifos da autora). O que Mouffe, no
entanto, pretende é demonstrar que no interior da unidade política há pluralismo e, logo em
seguida, que este pluralismo se estabelece não como luta ou conflito que põe em jogo a vida
ou morte, mas, numa higienização das teses de Schmitt, o conflito se torna um jogo. A partir
deste ponto, Wittgenstein passa a ser o modelo. Para ela,

Schmitt nos apresenta um dilema falso: ou há unidade do povo, e isso exige expulsar
todas as divisões e antagonismos fora das demonstrações - o exterior que precisa
para estabelecer sua unidade; ou algumas formas de divisão dentro das
demonstrações são consideradas legítimas, e isso conduzirá inexoravelmente ao tipo
de pluralismo que nega a unidade política e a própria existência do povo (MOUFFE,
2000, p. 54).
No entanto, Mouffe elabora uma análise ainda mais sutil da tese da unidade política
de Schmitt ao apontar que há uma contradição entre a resolução de eliminar qualquer
pluralismo dentro da unidade política e não observar as condições para produção desta
unidade (MOUFFE, 2000, p. 54). No fundo, concordamos com Mouffe neste ponto: Schmitt
150

não aplica ao interior da ordem sua lógica do político82. Na verdade, a crítica deveria ser
desenvolvida de maneira a soltar as amarras do político e desencadear no interior da ordem o
conflito. Logicamente, esta seria a implicação mais natural. Apesar disso, Schmitt fecha esta
possibilidade mesmo a custo da coerência e Mouffe, com atenção para este momento do
conflito, tenta reabrir este modo de concepção, ainda que limitando suas consequências
institucionalmente. Nesta tese, também reabrimos o político, porém, sem vinculá-lo à ordem
ou à realização da democracia liberal tal como Mouffe pretende: este é, talvez, seu equívoco,
move-se em terreno liberal. Ainda assim, é capaz de perceber algumas incoerências em
Schmitt e trabalhar a partir delas. Por exemplo, quando propõe a alteração de homogeneity por
commonality. Mouffe propõe ainda uma leitura não schmittiana a partir de Schmitt: “para a
compatibilidade do pluralismo e da democracia liberal exige, na minha opinião, pôr em
questão qualquer ideia de "pessoas" como já foi dada, com uma identidade substantiva (...)
uma vez que reconhecemos que a unidade do povo é o resultado de uma construção política,
precisamos explorar todas as possibilidades lógicas que uma articulação política implica”
(MOUFFE, 2000, p. 55-56), ou seja, a categoria de povo, como identidade ou identidades
sociais, passa a ser considerada em seu modo de articulação político real, como um resultado
de processos hegemônicos de conflito, estes sim processos de constituição do povo. Apesar
disso, a identidade não pode ser fixada uma vez por todas: a própria noção schmittiana
demandaria, logicamente, esta conclusão de Mouffe. Em todo caso, a comentadora com
propriedade retira esta conclusão:

tal identidade (...) nunca pode ser totalmente constituída, e ela só pode existir através
de múltiplas e concorrentes formas de identificação. A democracia liberal é
precisamente o reconhecimento desta lacuna constitutiva entre as pessoas e suas
várias identificações. Daí a importância de deixar este espaço de contestação para
sempre aberto, em vez de tentar preenchê-lo através do estabelecimento de um
consenso supostamente "racional" (MOUFFE, 2000, p. 56).
A autora aceita a noção de um “conflictual field”, bem como de “competing forces”,
inclusive também aceita que não haja uma articulação hegemônica sem determinação de
fronteiras, mas o conflito e a fronteira (nas democracias liberais) são internas e o “them” não é
um “permanent outsider” (MOUFFE, 2000, p. 56). Nesta proposta de um pluralismo de forças
no interior da ordem, “tentar definir o bem comum e visar a fixação da identidade da
comunidade, a articulação política das demonstrações não pode ter lugar” (MOUFFE, 2000,
p. 56). Na tentativa de viabilizar a relação entre democracia e liberalismo, Mouffe torna um
paradoxo político numa armadilha para si mesma: a exclusão-inclusão volta a ser colonizada

82
Sobre a distinção entre Maquiavel (conflito como aquilo que mantém a ordem) e Schmitt (conflito como
aquilo que funda a ordem e depois se exaure na ordem), ADVERSE, 2016.
151

pela economia, direito ou moral e, diante de uma análise mais sociológica, parece que salva a
teoria para perder a realidade, mais uma vez. Talvez a proposta mais interessante seja o
ultrapassamento destes modelos (pós-política) mesmo que a única pista que podemos extrair
de Schmitt não nos concede alento, pois resta apenas a contradição como negatividade
ininstitucionalizável.
Ainda resta a Mouffe demonstrar a natureza do conflito entre amigo-inimigos, visto
que da maneira como é tratado por Schmitt é incompatível com a noção liberal. Aliás, esta
noção é construída precisamente como seu antípoda, tão seu inverso que termina por ser
exatamente aquilo que combate, na leitura de alguns intérpretes tais como Strauss e
Heidegger. Neste contexto, a tarefa final da autora é pensar um modelo agonístico de
democracia: no interior de uma sociedade democrática, inimigos existenciais que em Schmitt
se detinham numa luta de vida e morte se tornam adversários que compartilham valores e
princípios. A disputa ou concorrência agora reside no âmbito da interpretação e hegemonia.
Para isso, a autora realiza uma reconstrução do processo através do qual a teoria da
democracia no modelo agregativo fora articulada com o liberalismo. Desta fusão, o caráter
normativo da democracia fora deixado de lado por seus aspectos procedimentais ou
descritivos. Após críticas, já na década de 1970, por exemplo, com Rawls, recupera-se o
elemento normativo ou moral da teoria democrática e busca-se articular valores liberais com
democracia. Assim, a promoção de uma racionalidade normativa para a democracia através de
“procedimentos adequados de deliberação, para alcançar formas de agrément que satisfaçam
racionalidade (entendida como defesa do direito liberal) e legitimidade democrática
(representada pela soberania popular). O seu movimento consiste em reformular o princípio
democrático da soberania popular de forma a eliminar os perigos que poderia representar para
os valores liberais” (MOUFFE, 2000, p. 83). Nas análises sobre Rawls e Habermas, Mouffe
declara que existe um pontos de convergência entre as versões de democracia deliberativa,
qual seja, “sua insistência comum sobre a possibilidade de fundamentar autoridade e
legitimidade em algumas formas de raciocínio público e sua crença compartilhada em uma
forma de racionalidade que não é meramente instrumental, mas tem uma dimensão
normativa” (MOUFFE, 2000, p. 85). Nesta altura, a autora chega ao ponto preciso da questão
sobre democracia (e política em geral): ao contestar as leituras de Rawls e Habermas e
declará-las insuficientes, assim como a crítica de Schmitt, assevera que o que está em jogo é
mais do que normas, razão ou procedimento, mas sim afetos. Em suas palavras, ao fazer
referência à Oakeshott,
152

a autoridade das instituições políticas não é uma questão de consente, mas do


reconhecimento contínuo de cidadãos que reconhecem a obrigação de obedecer as
condições prescritas na res publica (...) é a constituição de um conjunto de práticas
que possibilitam a criação de democracia dos cidadãos. Isso não é uma questão de
justificação racional, mas de disponibilidade de formas democráticas de
individualidade e subjetividade. Ao privilegiar a racionalidade (...) deixar de lado
um elemento central, que é o papel crucial desempenhado pelas paixões e afecções
na garantia da lealdade aos valores democráticos (MOUFFE, 2000, p. 95).
Assim, mais uma vez, Mouffe se filia à tradição realista em teoria política ou, pelo
menos, percebe que há algo além de normas83. A questão que analisamos, porém, não é a
correção desta argumentação, mas o quanto das teses de Mouffe já não estava na obra de
Schmitt, sobretudo, este aspecto do pathos e do conflito ou afetos como constitutivo da
experiência do político. Em outro trecho, a evocação ao estilo provocativo e às teses
schmittianas é ainda mais claro: “Em todos os casos, são abstraídos das relações sociais e de
poder, linguagem, cultura e todo o conjunto de práticas (sociais)” (MOUFFE, 2000, p. 95).
Em geral, a argumentação de Mouffe se encaminha para sua proposta meio pragmática, meio
desconstrutivista, segundo a qual é necessário colocar ênfase nos tipos de práticas e não nas
formas de argumentação. De Wittgenstein, Mouffe recolhe uma importante lição: regras são
abreviações de práticas e, por isso, a distinção entre moral e ética, procedimental e
substancial, descritivo e normativo não pode ser mais utilizada sem ressalvas e termina por
elaborar uma contundente crítica ao framework racionalista ao salientar que o “power is
constitutive of social relations” (MOUFFE, 2000, p. 98).
A cada passo, Mouffe mostra sua dependência das teses de Schmitt. Desta vez, após
criticar o consenso racional e a democracia liberal, ela assume o lastro das teses schmittianas
antes de declarar sua própria. A rigor, após constatar que “este modelo de política
democrática é incapaz de reconhecer a dimensão do antagonismo que implica o pluralismo
dos valores e seu caráter indiscutível” (MOUFFE, 2000, p. 99), a autora propõe, sob as crítica
de Schmitt às neutralizações e despolitizações provocadas através da ética e da economia, um
“modelo democrático capaz de compreender a natureza do político. Isso requer o
desenvolvimento de uma abordagem que coloca a questão do poder e do antagonismo em seu
centro” (MOUFFE, 2000, p. 99). Assim, qualquer objetividade social é derivada de relações
de poder e, por isso, traz consigo os traços de exclusão e violência que lhe são íntimos. Esta
conversão entre poder/violência e objetividade ou instituição se denomina hegemonia, sempre
precária, sempre provisória, mas também eficaz, numa clara referência às teses de Ernest
Laclau. Neste contexto, a questão para Mouffe não é de oposição entre democracia e poder ou
83
A autora não percebe que, para Schmitt, até as obras do período weimariano, a forma política (ideal) dá a
medida autoritativa para o empírico, por isso, racionalidade é atributo da unidade política enquanto decisão pela
ordem.
153

violência, mas sim “como constituir forma de poder mais compatível com os valores
democráticos” (MOUFFE, 2000, p. 100). Mouffe arremata sua argumentação aproximando-se
do realismo político, sobretudo ao sustentar que como não há fundamento ou critério racional,
mas que a ordem depende dos jogos entre as forças, também não há relação entre céu e terra
ou sacralização do poder: qualquer configuração de poder é meramente um arranjo de forças,
portanto, hegemônico e como tal sua legitimidade advém da faticidade, ou melhor, das ações.
Todavia, uma vez que não há representação da totalidade ou fundação ou razão absoluta,
também dos fatos ou das ações pode deixar ser ou ser seu oposto. Em todo caso,

A democracia exige, portanto, que a natureza puramente construída das relações


sociais encontre seu complemento nos fundamentos puramente pragmáticos das
reivindicações de legitimidade do poder. Isso implica que não existe um fosso
infranqueável entre o poder e a legitimidade - não obviamente no sentido de que: (a)
se algum poder tenha sido capaz de se impor, é porque é reconhecido como legítimo
em alguns lugares; e (b) se a legitimidade não se baseia em um terreno apriorístico, é
porque se baseia em alguma forma de poder bem-sucedido (MOUFFE, 2000, p.
100).
Pensar uma racionalidade pura ou fundamento apriorístico é não compreender como o poder
produz racionalizações e retrospectivamente produz sua legitimidade.
Para dar conta deste conflito ininstitucionalizável de seu modelo agonístico (contra o
agregativo e o deliberativo), Mouffe propõe mais uma vez uma distinção originalmente
schmittiana. Aqui vem ao caso uma nota: não há remissão nem à fonte original nem ao modo
como o termo foi desenvolvido. Simplesmente, como se fosse um argumento ou distinção
notória (e anônima), são utilizados os termos “politics” e “political” e definidos de maneira
tão próxima aos utilizados por Schmitt que nem mesmo uma citação direta teria feito melhor
uma vez que o texto mesmo já é, em grande parte, uma paráfrase criativa das teses do jurista
alemão. Em todo caso, Mouffe, inicia bem a análise “esta questão (...) não é como chegar a
um consenso sem exclusão, pois isso implicaria a erradicação do político” (MOUFFE, 2000,
p. 101) e, finalmente, explicita sua tese, “a política visa a criação da unidade num contexto de
conflito e diversidade; está sempre preocupado com a criação de um ‘nós’ pela determinação
de uma política de ‘eles’” (MOUFFE, 2000, p. 101). Mouffe explora não o fim da distinção,
incontornável, mas sim o caminho pelo qual a diferença é estabelecida. A questão para ela é
que a democracia agonística “para construir os "eles" de tal forma que já não é percebido
como um inimigo para ser destruído, mas como um ‘adversário’” (MOUFFE, 2000, p. 101-
102). Em Schmitt há mesma preocupação, apesar de algumas mudanças, mas o cerne
prossegue incólume: não há criminalização do inimigo – inclusive, é a medida de si mesmo –
pois Schmitt demonstra que ao considerar o inimigo como um adversário pode haver uma
intensificação do conflito ao ponto de, ao extrapolar esta normatização ou moralização que
154

Mouffe mal-esconde, chegar ao necessário ponto do conflito de vida e de morte. Aqui, mais
uma vez, o liberalismo, mesmo residual retorna (quando Mouffe neste trecho usa o termo
tolerância, deixa escapar sua intenção mais íntima e não confessável), o qual em parte assume,
“discordamos sobre o significado e a implementação desses princípios, e esse desacordo não é
um tom que possa ser resolvido através de deliberações e discussões racionais. Na verdade,
dado o pluralismo indenizável do valor, não existe uma resolução racional do conflito, daí a
sua dimensão antagônica” (MOUFFE, 2000, p. 102). Mouffe é bem consciente de como as
relações de poder tomam configurações temporárias em torno de um confronto contínuo, mas
não leva às últimas consequências o conflito, visto que não chega ao ponto extremo. No final
das contas, ela assume sem querer um pressuposto liberal que Schmitt criticava, a ausência de
periculosidade. Entretanto, afinal, quem precisa assumir que a politica coloca em risco a vida?
Numa manobra conceitual, a autora substitui o antagonismo por outro categoria, o
agonismo: “O antagonismo é a luta entre os inimigos, enquanto o agonismo é uma luta entre
adversários” (MOUFFE, 2000, p. 102). Enquanto este considera a luta de vida e de morte que,
segundo Schmitt, atribui seriedade à política e a determina como relação de perigo
(Gefärhlichkeit), o agonismo representa o consenso plural constituído sobre o conflito entre
objetivos diferentes, mas sob o pressuposto de uma gramática política em comum, ou seja,
permanece subjacente ao consenso plural uma crença compartilhada na eficácia do sistema,
isto seria denominado de “pluralismo conflitual”. Neste contexto, Mouffe é clara ao
direcionar os afetos e paixões da relação política aos objetivos (normativos) da democracia:
“as paixões podem ser mobilizadas em torno de objetivos democráticos e antagonismo
transformado em agonismo” (MOUFFE, 2000, p. 104). Ou ainda neste trecho: “A principal
tarefa da política democrática não é eliminar as paixões da esfera do público, para tornar
possível um consenso racional, mas para mobilizar essas paixões em direção a projetos
democráticos” (MOUFFE, 2000, p. 103). Não obstante, esta tentativa de amenização do
pensamento schmittiano articula um curioso caso de liberalismo de esquerda: “Uma
democracia que funcione bem exige um confronto vibrante de posições políticas
democráticas” (MOUFFE, 2000, p. 104), mais à frente, ela conclui: “A hegemonia
incontestada do neoliberalismo representava uma ameaça para as instituições democráticas”
(MOUFFE, 2000, p. 6) como se fosse necessário algo além do neoliberalismo para ameaçar a
democracia. Parece que o tema da morte física do inimigo não é suportado pelas
considerações mouffeanas. Como Babrak IBRAHIMY (2014, p. 311) afirma:

O modelo de Mouffe (...) não pode acomodar o plano teórico que encontra no
trabalho de Schmitt, já que a tensão original entre ontologia e contingência está
155

ausente. Considerando que o tratado de Schmitt está em constante reestruturação


entre as duas posições de ontologia e contingência, e embora o tom geral possa
emprestar ao ser político percebido como uma ontologia, o trabalho posterior de
Mouffe se concentra no político como antagonismo entre grupos em sentido
ontológico.
Em seguida, numa análise crítica, ao constatar a ausência de uma teoria do político
como ontologia, tal como em Schmitt que seja articulada com a contingência, pois Mouffe
continuaria no âmbito ôntico, assim, “o conceito do político (de Mouffe) não tem nenhuma
premissa ontológica. Mais forçosamente, ele ressalta que o modelo adversário de Mouffe é
falho desde o início, pois afirma informar o uso do político, mas permanece no âmbito da
análise da política” (IBRAHIMY, 2014, p. 311). A inconsistência de Mouffe é que não é
suficientemente radical, ou melhor, permanece num âmbito ôntico e não percebe a natureza da
questão em Schmitt: a pretensão normativa sobre o que a ontologia política é, isto é, “a
confusão entre ontologia e ôntico” (IBRAHIMY, 2014, p. 311).
A diferença fundamental entre Mouffe e Schmitt é quanto à natureza do conflito: o
conflito como meros competidores não passa de um liberalismo animado, num jogo menos
fútil, mas ainda seguro. O conflito não se dá em torno ou pelo poder e ordem, mas como
competição por projetos hegemônicos, por isso não se refere a um conflito real, mas quase
simbólico, uma metáfora de luta, afinal, um teatro cuja remissão mais parece ser a uma
metafóra do que à luta de vida e de morte que dá o tom trágico e concreto às teses
schmittianas diante do pluralismo agonístico mouffeano. Sem metáforas, Schmitt leva mais
longe, por um motivo simples: não há razão para ou do conflito, como ele afirma “não existe
proposta racional, nenhuma norma (...) nem legalidade ou legitimidade que justifique os
homens se matarem por estas razões” (BP, p. 49). Na tentativa de higienização de Schmitt,
Mouffe realiza a transformação de antagonismo em agonismo, mas reduz demasiadamente a
pretensão do jurista ao inseri-lo numa narrativa de formas democráticas liberais de um
pluralismo agonístico que concebem o dissenso como legítimo e, eis o equívoco, a partir de
uma suposição normativa. A compreensão de que em Schmitt o político leva ao risco
existencial refuta a interpretação de Mouffe; corrobora o que Leo Strauss já havia dito sobre
Schmitt, com melancolia: “no eternal truth but only a presente truth”. Apesar de presente o
tempo inteiro, Mouffe desloca Schmitt do seu contexto. Mesmo assim, ele consegue perceber
o político não apenas como um estado de relações, mas também como uma posição
ontológica. Da mesma forma, consegue analisar com propriedade as teses sobre consenso e
deliberação, visto que o político como antagonismo ainda é o seu pressuposto ontológico.
Para tentar se livrar da sombra do autoritarismo que as posições schmittianas poderiam
levantar, bem como a contradição a democracia liberal, Mouffe assume o pior dos dois lados:
156

sua fórmula de um consenso conflituoso (democracia agonística) é insustentável, apesar de


bem-intencionada e o conflito de baixa intensidade nada mais é do que uma leitura
liberalizante das ideias de Schmitt. Para nossa análise, é desnecessário embargar o modelo
agonístico de Mouffe: sua teoria não se sustenta, mas no que se refere à nossa pesquisa, não
pretendemos analisar o mérito das teses, e sim trazer uma leitura criativa e atual da obra de
Schmitt e, talvez mais do que qualquer autor, demonstra um Schmitt imanentista, além de, é
claro, muito próximo da própria caricatura que nós mesmos fazemos do jurista.

1.9 Derrida leitor de Schmitt: o espectro do inimigo84 [1994]

Das leituras arroladas neste capítulo, sem dúvidas, a elaborada por Derrida possui a
argumentação mais refinada e filosófica acerca da obra schmittiana. A análise derridiana
levanta a tese de que a intensidade da relação entre amigo/inimigo é problemática devido à
dissolução que provoca na separação entre guerra e política. Ora, com clareza, Derrida expõe
que ao utilizar o critério da intensidade para distinguir o que é político do que não é político,
Schmitt insere neste critério, sub-repticiamente, o telos do político: a guerra se torna a
essência do político e não o pressuposto. De maneira elegante, Derrida aponta o problema da
tese schmittiana: se a intensidade – isto é, aquilo que concede politicidade à oposição – é
alcançada na medida em que chega ao ponto decisivo da guerra, então a guerra deixa de ser
mero acidente ou consequência do político e passa a ser considerada como seu próprio
destino. Essa circularidade é percebida expressamente: “Schmitt não define tanto o político
mediante a negação oposicional, quanto define esta última mediante o político. E essa
inversão depende de uma lei teleológica da potência ou da intensidade” (DERRIDA, 1998, p.
160). A pequena concessão que Schmitt faz quando afirma que em caso de paz absoluta não
haveria inimizade e, por conseguinte, não haveria agrupamento amigo/inimigo, é apanhada
por Derrida que, a partir disso, arremata sua tese principal sobre Schmitt, segundo a qual,
haveria uma identidade entre político, inimigo e guerra. Assim, ele avança em suas análises
afirmando “que o ser-político do político surja em sua possibilidade com a figura do inimigo,
este é o axioma schmittiano em sua forma mais elementar” (DERRIDA, 1998, p. 103). Nas
palavras de Derrida, para Schmitt, “o político como tal, nem mais nem menos, não existiria

84
Edição original publicada como Politiques de l’amitié. Paris: Editions Galilée, 1994. O texto de referência
utilizado nesta seção é o Políticas de la amistad, Madrid: Trotta, 1998.
157

sem a figura do inimigo e sem a possibilidade determinada de uma verdadeira guerra. Caso se
perca o inimigo terá se perdido simplesmente o político mesmo” (DERRIDA, 1998. p. 103).
O contexto então é que, para Derrida, o conceito do político de Schmitt se centra na
figura do inimigo e esta não pode ser diferenciada, como pretende o jurista, da guerra: a
eventualidade da luta é sua possibilidade real. Ora, a interpretação do autor revela que “não
existe mais que um conceito e noção de possibilidade real como possibilidade presente”
(DERRIDA, 1998, p. 142), tal como um espectro que habita em todos os conceitos
schmittianos. Na verdade, Derrida analisa com afinco a distinção entre possibilidade (real ou
efetiva), eventualidade e efetividade da guerra em Schmitt e assevera: “os três critérios
(realidade, possibilidade, presença) se encontram aqui no coração da mesma eventualidade”
(DERRIDA, 1998, p. 154). Isso pode ser explicado da seguinte forma: no momento em que a
guerra é possível, ela está presente visto que não se apresenta a ela mesma senão,
paradoxalmente, como uma referência à possibilidade própria da guerra. Conforme Derrida
(1998, p. 105-106): “que esta tenha lugar ou não, que esta esteja decidida ou não, que tenha
sido declarada ou não, essa é uma alternativa empírica em relação a uma necessidade de
essência: a guerra tem lugar, tem começado já antes de começar desde o momento em que se
considera eventual (...) e é eventual desde o momento em que é possível”. Ora, Schmitt só
poderia delimitar estes critérios elementares para o político se pré-determinasse algo no qual
esta articulação teria fim, ou melhor, “a possibilidade real (do conflito)” seria uma “presença
real ou possível” (DERRIDA, 1998, p. 154), ou seja, aquilo que Derrida identifica como o
télos mesmo da articulação. Após uma série de perguntas acerca da relação entre esses
elementos – “Como se manifesta, como se apresenta a configuração amigo/inimigo? Como se
apresenta ou se realiza sua ‘possibilidade real’, seja como possível, seja como real? Como
pode marcar essa realidade tão logo a presença, tão logo a possibilidade mesma?”
(DERRIDA, 1998, p. 154) – ele mesmo responde, levando adiante sua tese85:

Na guerra. Em qualquer caso, na guerra como extremidade, como limite extremo do


estado de exceção, como ‘extrema eventualidade’. É dessa forma que se torna
reveladora; constitui um fato no qual pode ser lida uma essência (...) um fato
exemplar em um sentido teleológico (o télos como limite extremo) e paradigmático.
Não se trata do télos político, de tal ou qual fim político, de tal ou qual política, mas
sim do télos do político (...) Enquanto meio político ‘mais extremo’, a guerra
manifesta a possibilidade desta discriminação amigo/inimigo que ‘funda’ toda
representação política (DERRIDA, 1998, p. 154-155, grifos do autor).

85
A chave de interpretação de Derrida faz recordar a exegese de Heinrich Meier (sobretudo quando este afirma
que “o conceito do político pressupõe o conceito de inimigo” MEIER, 2011, p. 26). Evidentemente, as análises
de Derrida são mais consistentes e não cita uma vez sequer o dogma teológico como fundamento das teses
schmittianas. Apesar de Derrida citar o texto de Meier durante sua argumentação, o argelino não apela em
nenhum momento para aspectos pessoais ou esotéricos da figura de Schmitt tal como Meier.
158

Quando Schmitt pergunta se a distinção entre amigo e inimigo “está ou não presente
como possibilidade ou como efetividade real”, o argelino analisa com atenção se esta
presença (da discriminação entre amigo e inimigo) é realmente presente ou realmente
possível, ou melhor, pergunta-se acerca do referente mesmo da questão: “se refere à presença
(vorhanden ist oder nicht) ou às modalidades dessa presença (possibilidade real ou efetiva,
possibilidade ou efetividade reais)” (DERRIDA, 1998, p. 155, grifos do autor). Assim, numa
leitura minuciosa, Derrida tenta associar guerra e político ao identificar o “realmente
presente” e o “realmente possível”, ou melhor, ao perceber que enquanto presença
(Vorhandenheit) a estrutura do político (amigo/inimigo) é inegável (realidade/presença), mas
que, no segundo caso (possibilidade real ou efetiva), também estaria presente a discriminação
entre amigo/inimigo. Diante disso, ele sustenta a espectralidade do inimigo numa leitura que
se torna seminal em sua pesquisa: “é a presença mesma a que parece espectral, virtualidade de
aparição que desaparece. Tão logo a mesma presença (...) simboliza aquilo ao qual tem que
apelar (...) para resistir ao retorno do espectral, em uma palavra, para exorcizar, conjurar,
reprimir ao aparecido” (DERRIDA, 1998, p. 155). Segundo Derrida, reforçando sua tese, o
jurista considera que “a guerra tem sentido e nenhuma política, nenhum laço social como laço
político tem sentido sem ela, sem sua possibilidade real” (DERRIDA, 1998, p. 155), ou seja, a
presença do político se dá como “possibilidade real” da guerra. Entretanto, qual é a diferença
entre possibilidade (como critério) e a eventualidade (como possibilidade efetiva) da guerra?
Derrida arrisca uma resposta:

Schmitt não quer dissociar a modalidade quase transcendental do possível e a


modalidade histórico-fática do eventual (...) Desde o momento em que a guerra é
possível-eventual, o inimigo está presente, está aí; sua possibilidade está suposta e
resulta estruturadora no presente, efetivamente. Seu ser-aí é efetivo, institui a
comunidade como comunidade humana de combate, como coletividade combatente.
De golpe, o conceito de inimigo é deduzido ou construído a priori, ao mesmo tempo
analítica e sintética, sintéticas a priori, se preferir, como conceito político, ou
melhor, como o conceito mesmo do político (DERRIDA, 1998, p. 106, grifos do
autor).
O próximo passo de Derrida será delimitar o que seria este “quase transcendental do
possível”: o possível (da guerra) que o autor analisa em Schmitt é sempre um possível-
eventual indissociável da presença estruturadora no presente. Em todo caso, o comentador
reforça a possibilidade de uma ontologia – tal como elaboramos no capítulo 3 desta tese – ao
reconhecer, em Schmitt, como uma necessidade universal, a determinação do inimigo. Ao
argumentar que a mera possibilidade funciona como um marcador de presença da guerra,
sistematicamente, Derrida reforça sua tese identificando guerra e política. De fato, ele
assevera: “a estratégia da pressuposição (Voraussetzung) (...) requer sempre que a
159

pressuposição da possibilidade real ou da eventualidade esteja presente em um modo


determinado (vorhanden)” (DERRIDA, 1998, p. 148). Esta presença pressuposta, segundo
Derrida, não é outra senão a do inimigo. No trecho em questão, o autor analisa o conceito de
Unterscheidung como diferença política e estabelece o vínculo desta diferenciação como
discriminação. Este movimento não é ingênuo. Ao afirmar que a diferença é uma
discriminação (entre amigo e inimigo), o comentador ataca em dois flancos: por um lado,
sustenta que não é uma simples diferença ou uma diferença independente de conteúdo; por
outro lado, estabelece uma leitura que impede qualquer consideração pura do político, isto é,
formal como, ainda conforme Derrida, pretenderia Schmitt. Em ambos os casos, o
comentador inviabiliza algumas consequências e derivações schmittianas, sobretudo, acerca
da própria discriminação entre amigo e inimigo.
Na verdade, conforme Derrida, as bases a partir das quais Schmitt parte não são
consistentes seja em termos filológicos e conceituais, seja em termos fenomenológicos ou
históricos. Para demonstrar essa inconsistência, o autor elabora um longo e necessário excurso
sobre Platão, mais especificamente, acerca da distinção que Schmitt remete aos antigos entre
pólemos e stásis: exatamente onde Schmitt aposta subtrair do conceito do político a noção de
naturalidade, ali (em Platão) se verifica uma inquietante pertença à physis, tais como os
conceitos de amigo e de inimigo. A partir da constatação da inviabilidade do conceito de
inimigo ou da discriminação tal como Schmitt elabora no Der Begriff des Politischen, Derrida
conclui que “permanece inencontrável a pureza do pólemos ou do inimigo mediante a qual
Schmitt pretenda definir o político” (DERRIDA, 1998, p. 134) e, numa inversão de papeis
curiosa, Derrida acusa Schmitt – o realista político por excelência – de possuir um discurso
meramente ideal, visto que:

nenhuma política tem sido adequada a seu conceito do político. Nenhum


acontecimento político pode ser corretamente descrito ou definido com ajuda deste
conceito. E esta indagação não é acidental, desde o momento em que a política é
essencialmente uma práxis, coisa que implica sempre o próprio Schmitt quando
recorre de forma tão insistente ao conceito de possibilidade ou de eventualidade
reais e presentes sem suas análises das estruturas formais do político (DERRIDA,
1998, p. 134, grifos do autor).
Neste ponto, Derrida extrai outra análise, qual seja, a de que haveria em Schmitt, ao
distinguir entre hostis e inimicus e afirmar ser a hostilidade o contrário da amizade em
política, um conceito de guerra que não chega ao extermínio, uma vez que “há aqui uma
experiência do amigo/inimigo totalmente pura (para Schmitt) em sua essência politica, de
todo afeto (...) Se o inimigo é o estrangeiro, a guerra que o farei deveria manter-se, no
essencial, sem ódio, sem xenofobia intrínseca” (DERRIDA, 1998, p. 107). Uma guerra sem
160

ódio que, apesar disso, não é nem justa nem injusta, mas se dá como uma pureza de cálculo. O
mais importante neste ponto é a confirmação de nossa hipótese por Derrida: haveria um
“deslocamento semântico” no qual o amigo poder vir a ser o inimigo, ou seja, não existe uma
raça ou naturalidade na definição de inimizade, pois esta se refere em torno das categorias de
público e privado. Derrida analisa, todavia, que a separação entre público e privado se desfaz
na contemporaneidade e, por conseguinte, também algumas teses de Schmitt. Mesmo assim,
para não perder o inimigo e cair na despolitização, fanatismo e imediatismo da ação, Schmitt
teria que defender o Jus Publicum Europaeum e, sobretudo, a forma-Estado. Esta defesa
desesperada do Estado, porém, lhe rende inúmeras incoerências, tal como Derrida lhe arrosta:
“o Estado pressupõe o político, certamente, e em consequência se distingue logicamente
deste; porém a análise do político, stricto sensu, e de seu núcleo irredutível, isto é, a
configuração amigo/inimigo, tem que privilegiar (...) a forma estatal desta configuração: dito
de outro modo o amigo ou o inimigo como cidadão” (DERRIDA, 1998, p. 141). Não apenas
o conceito de guerra civil ou entre Estados, mas o conceito de guerra mesmo se torna como
simétrico (por que não, sinônimo) com o conceito de inimigo. De maneira sempre precisa e
elegante, Derrida pergunta “Como pode Schmitt privilegiar o Estado (inclusive, se não reduz
o político a este), regular o conceito de inimigo a partir da possibilidade da guerra entre
Estados e, não obstante, ver como simétricas a guerra exterior e a guerra civil, como se o
inimigo fosse algumas vezes o estrangeiro, outras vezes o concidadão?” (DERRIDA, 1998, p.
142). Neste ponto, como Schmitt, por Derrida, teria tentado excluir o ódio como afeto político
– e, por consequência, todos os afetos da política – por um conceito puro ou meramente
formal da estrutura do político se “o contrário de amizade em política (...) não é a inimizade,
mas a hostilidade”? Segundo Derrida, isso teria como consequência que “o sentimento não
teria nada a ver com isso, nem a paixão, nem o afeto em geral” (DERRIDA, 1998, p. 107) o
que geraria um absurdo, qual seja, uma ação desapaixonada, sem afetos, despsicologizada ou
simplesmente, um positivismo anacrônico. Sem analisar os méritos da interpretação
derridiana, acreditamos que nos servem por, pelo menos, dois motivos: 1. estabelece um
vínculo, nem que seja pela negação, entre política, inimigo e afetos; e 2. considera a noção de
pureza (que não reconhecemos desta forma em Schmitt, apesar de tê-la em vista como
argumento crítica contra o positivismo jurídico), mas em todo caso não uma pureza da norma
ou formal, mas sim um pureza conceitual que se refere à existência concreta, em suma, como
161

Derrida interpreta, “uma pureza impura”. Em todo caso, o intérprete direciona a teoria política
aos afetos, tema que exploramos no capítulo 3 86.
Apesar desse diagnóstico inesperado e convincente, Derrida marca a dubiedade do
discurso schmittiano que não obstante procurar uma estrutura formal do político também é
capaz de “reivindicar incansavelmente a pertinência concreta, existencial e situada, das
palavras da língua política. Entre elas, em primeiro lugar, da palavra política” (DERRIDA,
1998, p. 135). Mais adiante, Derrida reforça uma interpretação que apostamos em nossa:
“Estes vocábulos não devem e não podem resultar (...) em correlatos de entidades ideais ou
abstratas. Porém esta necessidade da determinação concreta dependeria do sentido polêmico
que determina sempre estes termos” (DERRIDA, 1998, p. 135). Schmitt, então, teria uma
postura ambígua entre a procurada pureza conceitual e a convicção do estatuto polêmico dos
conceitos políticos. Assim, aconselha a distinção entre aquilo que é político e aquilo que não é
político, ou seja, o caráter constitutivamente polêmico e perspectivo dos valores. Por esse
motivo, não poderia exigir a pureza que Derrida nota: no quadro conceitual schmittiano,
pureza e polêmica forçosamente deveriam gerar uma contradição argumentativa. Segundo
Derrida, que talvez não aceitaria o antagonismo como método, “Schmitt faz esforços (...) para
subtrair a qualquer outra pureza (...) a impureza do político, a impureza própria e pura do
conceito ou do sentido político (...) o sentido polêmico desta pureza do político seja, em sua
impureza mesma, todavia puro” (DERRIDA, 1998, p. 135-136), mas está certo ao interpretar
esse desejo de pureza em Schmitt, mesmo que seja uma pureza impura por trazer consigo
todas as coisas que alcança.
Sobre a metodologia de Schmitt, mais especificamente, sobre o recurso ambíguo de
polemicidade e neutralidade, Derrida afirma que “a lógica deste discurso põe em ação uma
estratégia ao mesmo tempo original (desconsideração do conceito tradicional de
possibilidade) e clássica (recurso à condição de possibilidade em uma análise do tipo
transcendental-ontológico)” (DERRRIDA, 1998, p. 147). O que permitiria Schmitt afirmar
que todos os conceitos da esfera do espírito até mesmo conceito de espirito são
compreendidos através da existência política concreta, é o fato de que, conforme Derrida,
“não podem ser neutros, nem neutralizáveis. Estes conceitos não se reduzem à unidade, são
pluralistas” (DERRIDA, 1998, p. 147). É desta forma que Derrida analisa o conceito de

86
“The state may well function as the center, but if it does, this is an effect of the play of forces rather than an a
priori privilege—and of course, its centrality does not prevent it from being a site for the play of forces, too.
Schmitt does not dare make this move; he fails to accept the absence of an ultimate ground of the political and
hence misses the structurality of political structure. He ends up recognizing and fearing the contingency of
objectivity ensuing from the double bind, which ultimately renders him a reactionary modernist or a conservative
revolutionary of political thought” (ARDITI, 2008, p. 26)
162

concreto em Schmitt que se torna, no final das contas, abstrato ou espectral (gespentisch):
“esta concreção do concreto, determinação em última instância à qual Schmitt apela sem
cessar, veremos que está sempre excedida, desbordada, digamos que assediada pela abstração
de seu espectro” (DERRIDA, 1998, p. 137)87. De acordo com o autor, o abstrato é algo fora
do alcance, inacessível e inconcebível como conceito. Por meio deste argumento, Derrida
chega mais uma vez à confirmação da tese de que o pensamento de Schmitt seria perpassado
inteiramente pela noção do inimigo ou da guerra, pois “é essa possibilidade real que o torna
Schmitt obsessivo, ou o habita, qual seja, a lei mesma da espectralidade. A oscilação e a
associação, a disjunção-conjuntiva que alia a efetividade real e a possibilidade” (DERRIDA,
1998, p. 151). Ao constatar que a distinção política não poderia ser compreendida sem a
referência à “possibilidade real”, Schmitt nada mais faz que articular o seguinte raciocínio
exposto por Derrida:

para que o conceito de guerra tenha sentido, para a determinação fenomenológica e


semântica do discurso sobre a guerra, tem que estabelecer condições de
possibilidade. E isso é o que pretende o Conceito do Político. Se a guerra não é um
télos sentido ideal moral ou religioso, nem tampouco no sentido de um ideal político
determinado, esta dimensão semântico-fenomenológica é em si teleológica
(DERRIDA, 1998, p. 156).
Dessa forma, Derrida faz uma consideração que demonstra uma peculiar capacidade analítica.
Após insistir na relação entre “concreto” e “possibilidade real”, ressaltando que “apenas um
inimigo concreto, concretamente determinado, pode despertar o político (...) somente um
inimigo real pode sacar o político de seu sono e, se recordará, da especialidade abstrata do seu
conceito; só ele pode despertá-lo a sua vida efetiva” (DERRIDA, 1998, p. 160); logo adiante,
complementa com uma apreciação fundamental: “o espectro está alojado no político mesmo,
o contrário do político habita e politiza o político. Esse espectro poderia muito bem ser o (...)
Partisan que não respeita as condições formais e as fronteiras juridicamente garantidas da
guerra” (DERRIDA, 1998, p. 160). Assim, para Derrida, o Partisan seria o político levadas às
últimas consequências. Entretanto, se Schmitt não avança neste ponto já desde de 1932,
também Derrida parece não antever algumas consequências: nem mesmo a distinção entre
político e política (apesar da referência à Nancy) nem a interpretação de que, afinal de contas,
uma vez que esta guerra não deve ser pensada apenas em termos de Estado, mas de conflito,
deveria se encaminhar para a compreensão do político através do funcionamento do corpo
social como movimento em direção ao antagonismo liberado da forma-Estado. Isso significa
não mais levar à risca a discriminação amigo/inimigo, mas sim perceber algo pulverizado
como antagonismo e relação. Quanto a este tema (sobre os limites clássicos do político),
87
Sobre o conceito de concreto em Schmitt e uma análise da interpretação de Derrida, cf. OJAKANGAS, 2005.
163

aliado ao tema da neutralização e das despolitizações, Derrida tenta demonstrar que o jurista
não considera todas as consequências do conceito do político e se o tivesse feito teria notado
uma contradição: a despolitização e neutralização provoca uma hiperpolitização que Schmitt
não teria analisado, ou melhor, só analisaria décadas mais tarde no texto sobre o Partisan.
Segundo Derrida, que reconhece o tratamento dado por Schmitt ao tema, o jurista teria
analisado a hiperbolização do político, porém pelo desencadeamento da hostilidade pura lhe
aparece aquilo que diagnostica através de todos os fenômenos de despolitização, através de
tudo o que destroi os limites clássicos do político.
Mesmo que alguns autores como Carlo Galli e Roberto Esposito sustentem que o
conceito do político schmittiano serve como um conceito não ideológico da política, por esta
aspiração à impureza pura ou pura impureza, Derrida prefere detectar aquilo que permite
Schmitt passar de um valor a outro, de uma instância ou relação a outra, numa lógica viral ou
contrabando entre as inúmeras áreas da ação humana sem pertencer, na verdade, a nenhuma
delas: “parece que o que faz isso possível é a permanente presença (...) da guerra como
possibilidade real” (DERRIDA, 1998, p. 156). Esta presença real da guerra que Derrida acusa
de não assumida (ou percebida) por Schmitt, assumimos na forma de uma ontologia do
antagonismo: a presença do político como possibilidade real, ou melhor, como necessidade
vital. Em todo caso, apesar das críticas que Derrida acertadamente remete a Schmitt, o
comentador reconhece o conflito/político (resumidos à guerra pelo intérprete) como esta
estrutura ontológica e seu sentido originário ou ontológico (seinsmassigkeit Ursprünglichkeit)
a partir do qual deve se reconhecer as palavras “luta” e “inimigo”. Assim, Derrida reforça sua
tese “não poderia haver hostilidade sem a possibilidade real deste dar-a-morte, nem
tampouco, correlativamente, amizade fora desta pulsão mortífera” (DERRIDA, 1998, p. 145).
Derrida já se pronunciara ao afirmar que Schmitt tenta expulsar os afetos do político e da
guerra, sobretudo, o do ódio e da exterminação do estrangeiro ou do outro, mas também
percebe que o conceito do político e da guerra em Schmitt não atende por uma lógica
mortífera, pelo contrário, apesar de ter a morte como horizonte, o político não seria um mero
dar-a-morte, mas “esta pulsão mortífera do amigo/inimigo procede da vida e não da morte, da
oposição a si da vida enquanto que se afirma ela mesma, e não de algum tipo de atração da
morte pela morte ou para a morte” (DERRIDA, 1998, p. 146). Talvez em seu quadro
interpretativo, Derrida constata uma “hostilidade sem afeto”, “uma agressividade puramente
desapaixonada”, “uma hostilidade pura” e não percebe que Schmitt estava muito atento às
críticas de Strauss e não gostaria de vincular seu conceito do político a alguma destas
instâncias da cultura ou liberais. Daí, no entanto, juntamente com a leitura que faz do conceito
164

de inimigo em Platão, não seria possível desconsiderar o elemento dos afetos da teoria política
de Schmitt. Entretanto, prosseguindo a questão de como para Derrida o político não é morte,
mas vida, ele afirma:

isso pode parecer paradoxal, porém a possibilidade real de dar morte, irredutível
condição do político, e inclusive estrutura ontológica da existência humana, não
significa para Schmitt nem ontologia da morte ou do morrer, nem levar em conta
seriamente um nada, nem outro código, posição de um princípio ou de uma pulsão
de morte. O dar morte procede de uma negatividade oposicional, porém esta
pertence à vida (...) à vida enquanto se opõe a si mesma afirmando-se (DERRIDA,
1998, p. 145).
Derrida possui uma das leituras mais analíticas e impiedosas do conceito do político
schmittiano, mas também tem o mérito de perceber suas contribuições originais. Por exemplo,
quando o comentador expõe que “negatividade, de-negação e política, ocupação espectral e
dialética. Se existe um politicismo de Schmitt, este consiste em que não basta definir o
político mediante a negatividade do polêmico ou da oposição (a negatividade oposicional em
geral) (...) O político é tão mais político enquanto é antagonista, certamente, porém a oposição
é tão mais oposicional, a oposição suprema como essência e telos da oposição, da negação e
da contradição, enquanto é política” (DERRIDA, 1998, p. 160). Em outro trecho, Derrida
sintetiza qual o efeito de Schmitt no mundo filosófico: “resulta que Schmitt nos pede (...) que
continue tratando do político mesmo, que se pensa a guerra, e em consequência o dar a morte,
e finalmente o que se chama a hostilidade absoluta como a coisa da filosofia” (DERRIDA,
1998, p. 168). Este seria mais um ponto fraco, porém, por ter feito do inimigo e não do amigo
o conceito definidor do político. Mesmo que para Schmitt, conforme reconhece o próprio
Derrida, “partir do inimigo não é o contrário de partir do amigo” (DERRIDA, 1998, p. 176),
pois o que interessa mesmo é que haja a possibilidade da guerra e, sobretudo, que se tenha em
vista que “nesta dialética do reconhecimento para identificar a meu inimigo tenho que
reconhecê-lo, porém de tal maneira que me reconheça também” (DERRIDA, 1998, p. 186),
ou seja, o inimigo na figura do irmão ou ainda, numa provocação calculada, por que não da
irmã?
Poderíamos opor à leitura de Derrida uma série de observações, tais como, o conceito
do político de Schmitt não seria guiado pela guerra ou pelo conflito como o autor insiste88, ele
mesmo não explora a noção de relação entre os combatentes no laço político instaurado pelo
antagonismo, aliás, conceito não desenvolvido por Derrida, da mesma forma da questão dos

88
Contrapõe-se à leitura clássica de Hofmann que afirma que “o político não reside na guerra em si mesma, mas
em um comportamento determinado pela possibilidade real do caso crítico e na clara consciência da situação
particular de tal (...) na tarefa de distinguir corretamente amigo e inimigo Schmitt nega possuir uma definição
militarista ou imperialista, mas sem dúvidas (é) antipacifista” (HOFMANN, 2002, p. 57).
165

afetos e do político (quando Schmitt se refere ao conflito entre amigos e inimigos, ele teria em
vista a questão do antagonismo como determinante e não a luta em si) não distingue a
alteração entre os dois conceitos de político nos textos Politische Theologie e Der Begriff des
Politischen, em nenhum momento faz referência ao Der Nomos der Erde, entre outros
argumentos e contra-argumentos que, no final das contas, não teriam eficácia, não seriam
produtivos. De nossa parte, partimos de outra chave de leitura do político – inventada ou
colhida livremente nos textos schmittianos – qual seja, o político como relação ou afetos, a
partir do qual podemos elaborar uma leitura que Derrida se nega a fazer: o afeto que
determina a ação e o antagonismo como este espectro que atravessa a realidade.
Todavia, logo no início das análises sobre o jurista, Derrida expõe duas considerações
que revelam o caráter da obra: inicialmente, a pergunta sobre “em que se converteu, por
exemplo, a estrutura real do político, das forças e da dominação em política, das relações de
força e debilidades, do laço social, dos sinais e do discurso que o constituem? (...) Para que se
deve falar de maneira (...) tão paradoxal ou aporética, tão impossível?” (DERRIDA, 1998, p.
100) e, logo em seguida, afirma que “consiste justamente em questionar radicalmente os
esquemas tradicionais da causalidade ou da significação, recordando-nos a irredutibilidade
daquilo que se mantém mais além desse discurso mesmo: o outro, o acontecimento, a
singularidade, a força/debilidade, a diferença de força, o mundo, etc.” (DERRIDA, 1998, p.
100). A questão inicial para ele é: por que ler Schmitt? Por que parte considerável da esquerda
se debruça sobre os textos de Schmitt? Logo Schmitt, um autor conservador, católico, jurista
que mesmo relacionado com graves compromissos, consegue:

antecipar as tempestades e os sismos que iriam transtornar o campo histórico, o


espaço político, as fronteiras dos conceitos e dos países, a axiomática do direito
europeu, os laços entre o telúrico e o político, a técnica e a política, os media e a
democracia parlamentar, etc. De repente, um vigilante teria sido mais sensível que
muitos outros à fragilidade, à precariedade desconstrutível das estruturas, das
fronteiras e dos axiomas que ele pretendia proteger, restaurar ou conservar a
qualquer preço (DERRIDA, 1998, p. 102, grifos do autor).
Após a exposição do problema, o autor demonstra a perplexidade diante do caso Schmitt e
justifica sua escolha “pelo interesse próprio das teses schmittianas, certamente, e por sua
originalidade, apesar de que estas pareçam tão raivosamente conservadoras em seu conteúdo
político como reativas e tradicionalistas em sua lógica filosófica. Porém também por sua
herança” (DERRIDA, 1998, p.102). Desta herança que também partimos89.

89
Em outro trecho, Derrida é mais explícito sobre a localização do pensamento de Schmitt: “Para ser
consequente com ele mesmo esta homenagem a uma paternidade hegeliana deve extender-se à posteridade
marxista de Hegel. E esta consequência tem algo a ver com as simpatias notórias que este jurista hiper-
tradicionalista da direita católica tem inspirado em certos círculos do pensamento políitco de esquerda. Estes
166

Capítulo 2 – Política entre transcendência e imanência

2.1. O argumento da finitude contra a metafísica política

As investigações expostas neste capítulo dizem respeito à tentativa de ruptura do


liame entre imanência e transcendência a partir da categoria do político na obra de Carl
Schmitt. A proposta de leitura é considerar em alguns textos schmittianos, desde o período
pré-weimariano até o período tardo-weimariano, um papel cada vez mais importante dado à
noção de finitude em teoria política. Nesta análise, propomos uma interpretação da teoria
tardo-weimariana como uma teoria finitista, isto é, afirma-se que as condições de justificação
da ação não são exteriores à própria ação (imanentismo), pois assumem uma validade in re e
rejeitam a estrutura política baseada na distinção metafísica entre ser e aparecer (monismo).
Tanto a permanência ou estabilização (unidade) quanto a separação ou verticalização
(transcendência) do poder são criticadas como uma produção teológico-política a partir da
separação entre imanência e transcendência, ou seja, postulam a validade da ação através de
uma instância diferente do corpo social, negando a autonomia do político ao tentar um
enquadramento normativo da contingência e não considerando o elemento pragmático do
político. Pretendemos demonstrar, ao final, que as dicotomias ordem-desordem, ideal-

‘amigos’ de esquerda não correspondem a uma formação fortuita ou psicológica nascida de alguma confusão
interpretativa. O que temos aí é um imenso sintoma histórico-político cuja lei está, todavia, por se pensar”
(DERRIDA, 1998, p. 162).
167

empírico, validade-faticidade, racionalidade-ação política são consideradas duplicações


desnecessárias. Além disso, a crítica provoca um processo de achatamento: o poder possui um
caráter relacional e a diferença não é com algo além ou sequer distante, mas imanente, pois o
que concede validade, para utilizar um termo ainda marcado pela semântica política moderna
da relação imanência-transcedência, à ação política não é o fundamento ou princípio
normativo nem mesmo o procedimento formal, legal ou democrático, mas a relação de
antagonismo. O que Schmitt afirma é que as relações de poder só podem ser compreendidas
se remetidas à dimensão dos conflitos. O que garante ou constitui o corpo político?
Poderíamos afirmar que Schmitt teria como resposta, apesar de utilizar outros termos e um
tanto hesitante: um afeto e não uma norma. Esta concepção afasta a noção da Trennungsthese
entre ser e dever-ser, por exemplo, e garante à imanência a textura de um continnum,
evidentemente, marcado pelas rupturas e fragmentações dos antagonismos e contradições
incessantes, mas sem referências externas. Este capítulo apresenta uma leitura de como
Schmitt desconstroi a cisão através do argumento do finitismo e, além disso, o que essa
escolha implica e quais as consequência que o próprio autor não assume.
Para demonstrar esta leitura, apresentamos uma interpretação da solução schmittiana
ao problema da legitimidade através da passagem do seu peculiar formalismo, sobretudo, no
texto Der Wert des Staates und die Bedeutung des Einzelnen (O valor do Estado e o
significado do indivíduo) de 1914 – denominado como política da transcendência por conta
de seu caráter meta-político, isto é, as condições da validade da ação política são normativas,
portanto, são consideradas em referência externa à ação – para o decisionismo ou, mais
especificamente, para o realismo fraco expresso nos textos Die Diktatur (A ditadura) de 1921,
Politische Theologie (Teologia Política) de 1922 e, de certa forma, no Römischer
Katholizismus und politischer Form (Catolicismo Romano e forma política) de 1923. Neste
trabalho, denominamos esta leitura como política da exceção, pois a questão da validade da
ação se transforma na relação da ação concreta do soberano, exemplarmente ilustrado no
Politische Theologie, tendo em vista a forma de direito, representação e constituição da
ordem. Neste ponto, o conceito a ser considerado é o de mediação, pressuposto metafísico que
retira a autonomia do político e assegura, ao mesmo tempo, a articulação entre racionalidade e
ação e a cisão entre transcendência e imanência, determinada pela querela acerca da
secularização. Após isso, demonstramos a compreensão do político como crítica à metafísica
e desconstrução da lógica da representação e da transcendência (considerada como
neutralização ou imunização contra o conflito) da política moderna, bem como a relação entre
político e política e a tese da diferença como antagonismo em Der Begriff des Politischen (O
168

conceito do político) de 1927-1932 e alguns argumentos colhidos na Verfassungslehre (Teoria


da Constituição). Neste aspecto, a tese reivindica uma elaboração nova do problema sobre o
político: a ênfase não recai nem sobre o amigo nem sobre o inimigo, mas sobre a relação e o
antagonismo constitutivos da ordem e da política e constituem o que denominamos de
políticas da imanência. Os termos “formalismo”, “realismo fraco” e “realismo forte” são
utilizados para apontar os deslocamentos na obra de Schmitt que atribuímos à intensificação
do finitismo. Esta estratégia finitista na relação entre ação política e racionalidade, assumida
ou não, é o parti pris que propomos para compreender a obra schmittiana.
Apesar de parecer trivial, esta interpretação passou despercebida pelos intérpretes da
obra que ressaltam um dos polos. Pretendemos demonstrar que torna-se mais profícuo não
interpretar Schmitt como apenas um teórico da política (ordem) ou do político (antagonismo),
mas compreender a categoria do político como relação e abertura, afinal, co-instituintes da
ordem. No entanto, esta observação funciona como crítica às teses schmittianas: não haveria
apenas a política como representação ou mediação e, por conseguinte, como apaziguamento
da stasis e constituição da ordem, nem mesmo apenas o político como relação e antagonismo
finitista sem a possibilidade da estabilização hegemônica; nesta pesquisa, a categoria do
político, a despeito do próprio Schmitt, pode ser interpretada como abertura ou movimento
entre política e político conforme demonstramos no capítulo 3. Isso implica não apenas em
abandonar a opção pela compreensão do político como mediação (transcendência) como
demonstramos que Schmitt realiza no Der Begriff des Politischen, mas também rejeitar a
simples inversão, ou seja, a compreensão do político como relação de conflito (imanência ou
finitismo), pois teria ou bem a forma de um positivismo e de uma faticidade problemáticos,
ou bem uma espécie de finitismo absoluto que faria retornar o infinitismo no interior da
própria finitude, tornando o político absoluto. Da mesma forma, utilizamos esta chave de
leitura para elaborar uma crítica às teses schmittianas e esboçar o que no capítulo seguinte
apresentamos como sendo a política da abertura ou uma concepção alargada e de outra
natureza sobre a categoria do político.
A categoria do político apresentada por Schmitt provoca uma paradoxal
intensificação da política uma vez que define toda a realidade em termos políticos, ou seja,
não existe entidade, força ou relação que não seja passível de tornar-se política. Ao realizar a
virada política na tese sobre o pressuposto necessário do político diante do estatal, Schmitt
tem em vista os processos de despolitização e neutralização da política que possuem a função
de excluir o conflito e instaurar ordem: a política moderna surgiu, então, como antipolítica.
Isto significa que a categoria do político não se contrapõe à política nem mesmo esta pode ser
169

considerada como apolítica ou não-política, pois seria, mais precisamente, o outro da política,
aquilo que não é representado, isto é, o não pensado ou esquecido por ela: se a política
moderna surge como antipolítica – melhor seria, antipolítico –, pois como um conflito
administrável sob a forma da ordem contra o conflito insustentável da violência anárquica da
origem sempre presente, o político não rejeita o conflito nem nega a política, mas sim
considera que não há outra política que a política mesma, isto é, não há uma realidade ou
substrato político fora das relações, mas sim aponta a realidade imanente como a única
realidade. Assim, não existe fora nem anti- ou ante-, mas apenas política sem possibilidade da
transcendência e, por conseguinte, o político demonstra sua abertura constitutiva na ruptura da
simetria entre imanência e transcendência ou entre finito e infinito, uma vez que não há ponto
de vista externo ou universal como se pudesse ser conduzido a um fim distinto e diferente de
si, tal como uma transcendência ou finalidade externa: é neste momento que faz sentido o
incômodo ou a anomalia do político, pois enquanto a política não traz no seu discurso a
finitude constitutiva, ou deliberadamente esquece, a categoria do político reafirma a condição
de ausência de fundamento externo, tomando o externo como diferença do antagonismo.
Assim, a categoria do político contradiz não apenas a distinção entre essência e aparência,
mas também os discursos de dualidades ou simetrias ao reinventar o realismo político uma
vez que não há presença de uma substância, natureza ou essência e, dessa forma,
paradoxalmente, coincide com a própria política, sendo apenas seu avesso: enquanto a política
nega o conflito, o político nega esta negação ao demonstrar seu rasto.
Embora não assuma diretamente, a pretensão schmittiana na categoria do político é
sustentar uma leitura da política como algo que trata dos assuntos terrenos e não se articula
com aspirações celestiais ou metafísicas, ou seja, rejeitam-se as distinções entre políticas da
transcendência e metapolíticas ou de qualquer relação entre céu e terra, assumindo o poder
sem pecado. Na tradição do pensamento político, distingue-se uma via política antiga – desde
a concepção agostiniana (patrística) segundo a qual as sociedades seculares emergem como
decorrência do pecado até a ênfase tomásica na capacidade de compreensão da lei natural
pelos homens como base moral para as repúblicas – e sua versão concebida pelos tomistas que
influenciou os contratualistas modernos como o modo de fazer valer no mundo concreto a lei
moral que todos possuiriam na consciência: este caráter de legalidade e validade da política,
qual seja, uma política de matriz transcendente, mesmo não pressupondo a autoridade como
ordenada diretamente por Deus, afirma que, embora as sociedades políticas sejam criadas
pelos homens, devem fundamentar-se no direito natural; a outra perspectiva, a via moderna
desde Guilherme de Ockham e Marsílio de Pádua e, posteriormente, Maquiavel, rejeita esta
170

estrutura moral para a vida política e defende a ragione di stato como capacidade de
conservação do estado sem apelos à categorias metafísicas, tais como consciência moral ou lei
natural. Dessa forma, numa arqueologia da categoria do político desde sua configuração pré-
moderna90, afirma-se que a política não pode transcender a si mesma, não há nada exterior ou
uma finalidade transcendente nem uma lei natural universal a partir da qual se concede
autoridade, mas o político seria considerado como o fim do fim da política, portanto, como
uma desconstrução da metafísica política que, ao contrário, não apenas mostra os limites e
separa dentro e fora, mas torna-se limite da política como seu avesso. Ao invés de substância,
dualidade, simetrias, objeto ou sujeito, finalidade ou bem, considera-se relação e diferença,
portanto contra a separação da hipótese gnóstica uma vez que qualquer transcendência é
sempre da ou na imanência o que desfaz a necessidade da separação e resolve a querela da
secularização como um impulso para fora da analogia entre conceitos teológicos e conceitos
político-jurídicos e dá como referencial da ação apenas a diferença como antagonismo.
Nesta desconstrução da metafísica através do político, há uma negação da teologia
política tradicional como representação ou como conexão entre poder e bem, entre terra e céu,
mas também rejeição da estrutura específica da teologia política schmittiana. Após atribuir à
secularização uma função de transferência entre conteúdo teológico e conceitos jurídico-
políticos, como demonstramos na seção 2.3, bem como uma teoria genealógica da soberania
que articula decisão soberana à coação ordenativa, poder à ordem ou forma política, mesmo
que esvaziada qualquer representação substancial, Schmitt altera seu pensamento, acentua o
papel do finitismo e não repete, ao menos por algum tempo, a postura da filosofia política
moderna de pressupor uma origem ou fundamento pleno seguido por uma cisão ou crise
provocada pela técnica que determinaria a reflexão nostálgica sobre fundamento perdido ou a
realização da forma de direito. Pode-se afirmar que, segundo Schmitt, numa formulação ainda
imprecisa, a essência da política consistiria em uma falta de essencialidade que não se pode
solucionar, pois referente à relação concreta. Ele assume o político, afinal de contas, como um
desfundamento: se não há queda nem origem, então princípio e precipício são originários, tal
como um descentramento, sem dúvidas, uma desconstrução da lógica moderna, mesmo que
partindo do interior da própria modernidade, como fronteira, como limite do limite ou avesso
da representação. Assim, Schmitt não considera um movimento ou processo histórico
determinado por algo anterior como uma causa, substância ou uma explicitação da história, ao
contrário, analisa a política precisamente naquilo que não é exposto, como que desocultando

90
A reconstrução das discussões entre via antiga e via moderna é elaborada, entre outros, em SKINNER, 2006,
capítulo 14.
171

seus pressupostos e tomadas de posições, revelando o raison d’être ou as condições


especificamente políticas da política: mostra que não é possível dar a volta por trás e
encontrar algo como essência ou fundamento, pois dar a volta por trás é como dar uma volta
em torno de uma mesa já que, após o retorno, encontra-se no mesmo lugar de antes. A origem
seria sempre secundária, ou seja, é não-origem uma vez que é diferença de si mesma ou, numa
formulação inspirada por Heidegger, articulação in/originária daquilo que se origina e como
não é possível dar a volta por trás para desvelar algo como um fundamento fixo ou origem
plena, mas ao tentar realizar este movimento a reflexão política encontra uma origem não
originária, pois relacional e antagonística, percebe que a origem coincide com a não origem.
Schmitt considera que precisamente nisto consiste o político: uma enunciação da origem
(diferença e conflito) que é contemporânea à co-instituição da ordem e, por isso, apesar de
hegemônica, sempre crise-principio, pois mostra não apenas por sua formação finitista e
polêmica o caráter de contingência, mas também a cada tentativa de tratamento científico
experimenta um retrair-se contínuo, não como algo que está fora ou além, mas sim como um
limite ininstitucionalizado, como uma margem ou vazio exterior (de substância) que a política
não determina, mas que é ela mesma enquanto diferença de si, no caso, o fundamento como
ausência de fundamento.
A chave interpretativa para este capítulo é resumida no seguinte: tendo em vista o
processo de perda do político como mediação (por exemplo, na estrutura institucional tanto do
capitalismo quanto do socialismo, opções vigentes na década de 1920 que podem ser
compreendidos como consequências das teorias finitistas contra a noção de mediação),
Schmitt teria proposto uma alternativa também imanentista como contra-ataque, diante da
crise do moderno, através de um renovado conceito do político que se configura de maneira
pós-política e pós-estatal, superando as neutralizações e despolitizações, inclusive
demonstrando como estas são também modos do político. A secularização teria levado
Schmitt à imanência, portanto, a uma secularização (acabada) que determina uma liquidação e
não apenas transferência da esfera da religião, mesmo que o autor revise suas teses, sob outro
contexto, após os anos 1930. Parece-nos que assim como Hobbes, no início do pensamento
político moderno, já provoca uma ruptura no conceito de representação, tornando-a como uma
estrutura de referência interior/exterior e não imanente/transcendente; Schmitt, já no ocaso da
modernidade, deixa de considerar a autoridade como matriz transcendente formal ou racional:
a virada do político faz com que decisão (exceção) e ordem (excesso) não sejam mais
articuladas pela mediação política. A partir de então, fazendo divergir os planos de imanência
e transcendência, Schmitt abandona o princípio bipolar da mediação católica e propõe o que
172

pode ser denominado de monismo: a oposição é realocada no nível da imanência, situada na


diferença existencial entre amigos e inimigos que, em todo caso, refere-se à relação e
antagonismo do político. Todavia, a política, a todo custo, tenta relativizá-lo escamoteando
conceitos ou levantando poeira com diferenças metafísicas: o que interessa para compreender
o político é que a contradição ou oposição, antes entre transcendência e imanência, foi
transferida ao nível da imanência como antagonismo.
O oxímoro da representação da pluralidade, isto é, a afirmação da
ininstitucionalidade ou irrepresentabilidade do político significa, mais precisamente, a
concepção da política não de forma positiva, tal como um objeto passível de determinação,
mas sim como negatividade, constituindo seu fundo e reverso. Demonstra-se a
impossibilidade de determinação afirmativa do político, bem como a tentativa de ruptura das
simetrias entre transcendência e imanência, tarefa que, segundo nossa interpretação, Schmitt
dá ensejo: o político é o modo da imanência que, mesmo que se refira à transcendência,
compreende esta transcendência (por exemplo, a ordem jurídica ou unidade política) escavada
na imanência: não há fora ou além, pois o vazio ou ausência de substância do político revoga
a possibilidade de uma estabilização ou ordem compreendida como saída ou externo; para o
político, não há transcendência externa, mas a diferença surge dentro da imanência. No limite
impensável, a categoria do político como relação e antagonismo é terrenal, desliga céu e terra
não escolhendo algum dos elementos, mas assumindo a tarefa de ruptura das dicotomias, ou
seja, uma postura anti-metafísica e anti-teológica, por isso o curto-circuito que dá primado à
noção de relação concreta. Se, por um lado, pensar apenas transcendência significa pensar a
ausência e, portanto, uma metapolítica; então, por outro lado, pensar apenas a imanência
também não se mostra a solução mais adequada: Schmitt, em nossa interpretação, não escapa
da unilateralidade, pois o plano de imanência seria absoluto ou infinito e, se for este o caso,
restaria da mesma forma a identidade metafísica. Dessa forma, não é o caso de afirmação de
um ou outro, mas da diferença como abertura, como um rasgo que desfaz a dicotomia entre
imanência e transcendência que Schmitt, embora não o afirme explicitamente, pode ser
interpretado como relação de contraposição tornada imanente pela troca da dualidade
imanência-transcendência pela de amigo-inimigo com ênfase na abertura entre os polos, isto
é, da relação e do antagonismo.

***

Nesta parte da pesquisa, sustentamos a tese interpretativa de que a escrita de Carl


Schmitt sofre deslocamentos devido à intensificação do argumento da finitude em teoria
173

política, ou seja, o fio condutor cada vez mais importante que assume a ação na contingência
sem determinações racionais prévias. Dessa forma, propomos 3 momentos que podem ser
denominados como: política da transcendência (seção 2.2): uma teoria formalista apoiada na
teoria tradicional da legitimidade estatal não positivista; política da exceção (seção 2.3): um
realismo fraco marcado pelos conceitos de exceção e decisão, mas também pela secularização
e mediação; e como políticas da imanência (seção 2.4): uma ruptura da dicotomia entre
imanência e transcendência, tomando aquela instância como constitutiva da ordem, de
maneira distinta da redução do político ao econômico ou da recusa à qualquer autoridade
(transcendência). Esta última análise é, deliberadamente, uma interpretação não ortodoxa da
obra de Schmitt: os intérpretes consideram que mesmo no período tardo-weimariano ainda
persiste a luta contra a imediação e a referência da forma política ou ideia de direito à noção
de representação. Ao contrário, como pretendemos demonstrar na última seção deste capítulo,
interpretamos este período como o fim da representação e, por conseguinte, da política
moderna através da proposta de um realismo forte com uma noção de validade in re, pois se
refere à relação e aos arranjos de antagonismos. O desenvolvimento, porém, será feito apenas
no capitulo 3, ao tratar da pós-política e da proposta de indistinção entre imanência e
transcendência em teoria política, ou melhor, da diferença enquanto diferença entre político e
política.

2.2 Políticas da transcendência: a mediação racionalista como metafísica


política

2.2.1. A questão do poder entre mediação e imediação

A questão em torno do papel que as dicotomias ou cisões, tais como, entre realidade
e norma ou entre ação e racionalidade desempenham na reflexão jurídico-política remete ao
problema do dualismo metodológico tipicamente kantiano entre ser e dever-ser: é possível
algum medium entre estas esferas? Entretanto, há uma questão anterior que lhe serve como
pressuposto: o poder pode ser controlado por normas? Ou ainda: a lei moral (racionalidade) é
capaz de determinar a ação? Estas questões são bastante conhecidas na década de 1910
através do neokantismo e influenciam a reflexão schmittiana. Neste contexto, as influências
iniciais a serem verificadas quanto a sua relevância no pensamento de Schmitt são as
seguintes: (I) a reconstrução da teoria da mediação (Vermittlung) racionalista, especificamente
174

a matriz kantiana acerca da subjetividade que marca o período formalista schmittiano; (II) a
descrição da alternativa proposta pela teoria da mediação dialética hegeliana, o conceito de
Estado e o papel da violência na constituição da ordem; (III) o argumento do “como se” (als
ob) de Hans Vaihinger e o argumento cético ou finitista das ficções políticas e jurídicas.
O ponto de partida para o problema aqui exposto é a reconstrução da teoria
schmittiana da política e do direito como uma tentativa de solução da separação entre
imanência e transcendência, ou melhor, na proposta de uma estrutura de mediação entre
realidade e norma ao sugerir o esgotamento dos paradigmas políticos modernos do
normativismo e do realismo91. Notoriamente, o problema se constitui como uma questão
persistente na reflexão de inúmeros autores clássicos e contemporâneos seja na filosofia
teórica ou na filosofia prática moderna e, por isso, trabalha-se a questão no fundo histórico-
conceitual da matriz de todo desenvolvimento posterior, qual seja, na tensão entre Kant e
Hegel. O tratamento dispensado aos autores representa apenas uma das possíveis entradas no
tema em discussão e, portanto, tem valor propedêutico na tentativa de reprodução do contexto
teórico-histórico na base do qual se dá o desenvolvimento das reflexões schmittianas, mais
especificamente, na sua obra anterior à República de Weimar, pois a exigência da
Mittelbarkeit, como se demonstra em seguida, é o tema por excelência do jurista tedesco na
sua obra de juventude.
(I)
A partir da teoria do cogito cartesiano, a metafísica moderna se articulou enquanto
instância universal do conhecimento do mundo através do pensamento, ou seja, através da
categoria da consciência. Tal pressuposto fundamental para a metafísica racionalista foi
adquirido por meio da tese clássica da apreensão verdadeira da realidade através de conceitos
que possuem a pretensão de captar a realidade como ela é em si mesma, pois o real, segundo a

91
Em linhas gerais, a filosofia política moderna pode ser dividida em dois paradigmas distintos: o normativismo
e o realismo. Os extremos no pensamento político podem ser delimitados por abordagens racionalistas, de um
lado, ou cratológicas, de outro. Abordagens racionalistas requerem princípios normativos e desenvolvem uma
teoria sobre a validade da ação humana, constituindo assim uma filosofia prática em termos éticos. Abordagens
cratológicas levam em consideração as determinações concretas de relações de poder, movendo-se no interior do
paradigma da Realpolitik. A questão decisiva na discussão entre ambas posições é acerca da relação entre moral
e política, ethos e kratos, isto é, se o político é entendido como Macht ou como Recht. No primeiro caso, dá-se
uma fundamentação política das normas; no segundo, obtém-se uma fundamentação normativa da política. Sobre
isso, cf. V. HÖSLE, 1997, p. 100-101, onde expõe de forma aproximada essa distinção com os termos das
Politische e das Kratische: "Jedenfalls ist für eine befriedigende Theorie der Politik einer Untersuchung der
kratischen Fertigkeiten ebenso wie des politischen Sachverstandes unabdingbar. War es ein Fehler Platons, die
kratische Dimension der Politik nahezu auszublenden, so ist es eine noch verhängnisvollere Einseitigkeit der
meisten politischen Denker dieses Jahrhundert, die sachliche Dimension ignoriert zu haben. Carl Schmitt etwa
erfaßt im 'Begrif des Politischen' ausschließlich Aspekte des Begriffs des Kratischen, für der Gegensatz von
Freund und Feind in der Tat eine zentrale Rolle spielt. Unter 'Politik' verstehe ich also Handlungen, die im
Kontext von Machtkämpfen auf die Bestimmung und/oder Durchsetzung von Staatszwecken ausgerichtet sind".
175

metafísica clássica, é estruturado de maneira racional e, portanto, o pensamento expressaria o


mundo no interior de um sistema de natureza axiomático-dedutiva regido pelos princípios de
causalidade e de razão suficiente a partir dos quais possibilitaria o conhecimento apriórico
sobre os entes conhecida como a tese do realismo conceitual, isto é, a identidade entre ser e
pensamento que possibilita o discurso racional sobre o mundo. Na modernidade, porém, o
princípio da identidade entre intelecto em ato e o inteligível em ato deu lugar à representação
e inaugurou um espaço – a subjetividade – como princípio último de fundamentação da
realidade. Neste sentido, de modo distinto da metafísica clássica, porém ainda sob sua
influência, o racionalismo moderno assimila o pressuposto da representação e articula de
maneira necessária a realidade à estrutura do pensamento, ou seja, o ser é conhecido no
pensamento e, dessa maneira, a representação da realidade se dá através de um discurso
racional com validade objetiva universal que não depende de estruturas subjetivas empíricas,
mas sim da organização da realidade mediada pela consciência. Apesar disso, a metafísica
moderna partilha, ao menos, a tese da identidade entre ser e pensar, porém de maneira diversa,
pois a partir da representação da consciência que teria a pretensão de captar o modo de ser das
coisas.
No entanto, através do insistente argumento desenvolvido pelo ceticismo sobre a
possibilidade de que o pensamento possa ser inadequado à estrutura essencial da realidade e
das consequências do solipsismo moderno, ou seja, a dúvida sobre um discurso verdadeiro
sobre o mundo e, por conseguinte, a hipótese da inadequação entre estrutura do pensamento e
estrutura do mundo, Kant elabora uma teoria que apresenta as condições de possibilidade e de
validade do conhecimento legítimo capaz de interpretar a experiência e estruturar
conceitualmente os dados da percepção, isto é, trata-se de uma teoria da legitimação dos
pressupostos cognitivos e das estruturas do sujeito que, enquanto tal, possibilitaria extrair
conhecimentos válidos dos fenômenos empíricos. De tal modo, estimulado pelo empirismo
moderno, Kant questiona os pressupostos da metafísica racionalista, cuja tese afirma que os
conceitos estão em relação direta com a experiência sensível que, por conseguinte, tornam-se
a matriz de qualquer conhecimento, pois não haveria concepções dotadas de sentido se não
fossem derivadas da experiência. Dessa forma, ao abandonar a pretensão metafísica de
enunciação do essencial e do absoluto, a virada reflexiva kantiana investiga a estrutura do
aparelho cognitivo humano a fim de descobrir, ao invés da constitucionalidade dos entes, a
solução do problema de como são constituídos os objetos do conhecimento, concedendo
primazia da representação sobre o ser, visto que o erro da metafísica racionalista fora,
precisamente, transformar os instrumentos do aparato conceitual humano em estruturas
176

ontológicas e pressupor o acesso à realidade para além da experiência sensível. Daí a


categoria de transcendência passa a ser considerada a partir da consciência ou subjetividade
como conjunto das condições de possibilidade da objetificação dos dados da sensibilidade.
Este transcendental afirma que a experiência não atinge o suprassensível, mas,
necessariamente, ocorre através de mediações categoriais.
Ademais, a relação entre subjetividade e mediação realiza em Kant o papel
fundamental na constituição da realidade: o desenvolvimento radical desta forma de reflexão
complementou o longo processo de antropologização do pensamento que se dera desde o
nominalismo medieval e, após Descartes, Hobbes, Spinoza e Leibniz, momento no qual houve
a substituição da ontologia enquanto reflexão sobre o ser enquanto ser, pela filosofia
transcendental que, de uma perspectiva epistemológica, instaura o sujeito transcendental ou
reflexivo, distinto dos sujeitos empíricos, como instância de objetificação mediadora entre
realidade natural e mundo humano. Segundo Kant, o real é cognoscível apenas através das
formas da intuição, quais sejam, espaço e tempo, e do pensamento, as categorias; porém, tais
formas só existem em relação ao sujeito cognoscente, pois o objeto existe na medida em que é
constituído através do sujeito e nunca em si mesmo. Isso tem como consequência a tese de
que não é possível qualquer espécie de conhecimento válido independente da intuição e da
experiência do sujeito, portanto da sua mediação, uma vez que não é possível descrever o
objeto em si mesmo, mas apenas pressupô-lo. Como estes surgem a partir das categorias:

os objetos em si de modo algum nos são conhecidos e que os por nós denominados
objetos externos não passam de meras representações de nossa sensibilidade, cuja
forma é o espaço e cujo verdadeiro correlatum, contudo, isto é, a coisa em si mesma,
não é nem pode ser conhecida com a mesma e pela qual também jamais se pergunta
pela experiência (KANT, 1974, p. 44)92.
Isso significa ainda que a natureza racional e a constituição antropológica são o
limite do pensamento humano diante do mundo, pois se dá através da mediação das categorias
universais e necessárias entre a experiência fático-causal e um conhecimento válido. Segundo
Kant, as afecções do mundo são captadas pela sensibilidade e pelas categorias do
entendimento e ao serem estruturadas pela consciência tornam-se objetos transcendentalmente
constituídos, afirmando a tese de que não existe um princípio imanente de organização da
realidade, mas apenas a estrutura transcendental que produz os objetos. Nestes termos,

92
KANT, Immanuel. “Crítica da razão pura”. In: Kant. Coleção Os pensadores. Trad. Valério Rohden e Udo
Baldur Moosburger, Kant I, 1974, p. 44; cf. também KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft 1, Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1968, p. 78 “sondern daß uns die Gegenstände an sich gar nicht bekannt sein, und, was wir
äußere Gegenstände nennen, nichts anders als bloße Vorstellungen unserer Sinnlichkeit sein, deren Form der
Raum ist, deren wahres Correlatum aber, d.i. das Ding an sich selbst, dadurch gar nicht erkannt wird, noch
erkannt werden kann, nach welchem aber auch in der Erfahrung niemals gefragt wird”.
177

sustenta-se a tese de que a realidade mundana é criada a partir da experiência do sujeito


cognoscente e a relação entre pensamento e realidade é tratada a partir de considerações
epistemológicas, ou seja, elabora-se uma Erkenntnistheorie como uma teoria do aparato
cognitivo humano, onde a experiência é estruturada, organizada e constituída como objeto
através da mediação categorial, tornando-se a filosofia uma teoria da legitimação dos objetos
da experiência humana. A partir disso, inicia-se a transformação radical da ontologia da
metafísica pré-crítica em uma teoria do conhecimento adquirindo a configuração de uma
objetologia.
Entretanto, as teses de Kant enfrentam críticas relevantes uma vez que possuem
como consequência necessária da teoria da mediação racionalista a perda da realidade, pois
inalcançável já que não é possível falar das coisas em si, mas apenas de coisas para o sujeito,
visto que a coisa em si, o mundo noumenal é incognoscível: carece da ação mediadora do
sujeito, por isso deve-se pressupor, porém, sem determiná-lo essencialmente como na
metafísica racionalista na qual os conhecimentos dos objetos são imediatos ou ainda no
empirismo, segundo o qual o conhecimento da realidade é intuitivo. De tal forma, esta
reflexão transcendental provoca a questão do gap entre pensamento e realidade, criando uma
dualidade insolúvel entre forma e matéria, universal e particular que repercute de diversas
formas no pensamento contemporâneo. Nesse sentido, o idealismo transcendental ou
subjetivo consiste em um sistema formal que deduz a realidade a partir da capacidade de
apreensão de objetos e, sobretudo, de calcular, dominar e prever os fenômenos pelo
entendimento.
No quadro teórico pré-kantiano, seja na proposição platônica da questão, seja na
doutrina tomista, cuja especulação propugna por uma substância universal, estabelece-se uma
relação de identidade entre pensamento e realidade. A metafísica dogmática pré-crítica
partidária de uma ontologia clássica sustentava a noção de uma ordem pré-estabelecida
radicalmente distinta daquela estrutura argumentativa e conceitual do pensamento moderno, já
que este em contraposição àquele é marcado, como já salientado, por uma carência de ser e
abandono do paradigma metafísico clássico, de uma fundamentação ontológica, admitindo
uma desordem in natura que exige algum tipo de mediação, função exercida pela categoria da
razão como o novo Mittel. Esse argumento, porém, que estabelece uma oposição abstrata
entre a esfera do inteligível e a esfera do fenomenal na metafísica kantiana mostra-se
limitado: ao destituir o paradigma da ontologia clássica, não haveria mais a pretensão do
contato imediato com a realidade, o mundo tornou-se desprovido de qualquer forma ou modo
imanente, portanto, sem configuração ou ordem a priori, já que, na modernidade, é a ação
178

ordenadora do sujeito racional que determina em última instância a realidade ou, pelo menos,
sua qualidade cognoscível. Dessa maneira, a teoria moderna transformou-se, na verdade, em
uma produção da forma, precisamente por conta da ausência de substância e, dessa maneira, a
objetividade passa a ser não mais o mundo das coisas (a tese identificação entre conceito e
realidade), mas sim a ordem racional do sujeito transcendental. Assim, a razão humana teria,
segundo Kant, a característica de legislar sobre a natureza como conhecimento dos objetos da
experiência, mas também – e aqui inicia o problema para a filosofia prática – sobre o agir
humano através de sistemas de leis a priori tanto da natureza quanto da liberdade. Neste caso,
a razão prática estabelece as condições de possibilidade de uma ação a partir de leis ou
critérios a priori universais e necessários para determinação da liberdade do agente.
Dos problemas que tal estrutura transcendental põe em jogo não apenas em sede de
teoria do conhecimento, mas também em sede de teoria política, pode ser ressaltada a questão
das dicotomias modernas e a caracterização de uma racionalidade como calculabilidade e
dedutibilidade: sujeito e objeto, pensamento e realidade, ser e dever-ser, faticidade e validade,
moral e direito, forma e conteúdo, teoria e práxis, etc., todas advindas do paradigma do
racionalismo moderno que segue a tese de que só se pode conhecer o objeto do conhecimento
na medida em que se cria tal objeto a partir da subjetividade. Nesse sentido, tornou-se a
questão central da Modernidade a criação da realidade pelo sujeito, pois a ordem é
compreendida não como algo dado, mas como um problema diante da ausência de
transcendência. Entretanto, a solução para o dilema provocado por essa nova concepção é, no
racionalismo, a apresentação da mediação moderna. Esta, por sua vez, tentou reestabelecer a
descontinuidade aporética entre realidade e mundo, ser e dever-ser ou, em termos políticos,
validade e facticidade (a partir de fora), em suma: a questão acerca da justificação do
conhecimento que se perdera na passagem para a modernidade ou, em termos da teoria
política, a questão acerca da legitimidade da ação ou da ordem que se perdera na passagem
para a modernidade93.
O aspecto mais importante da reconstrução dos argumentos de Kant para a pesquisa
nesta tese é a compreensão de que ao rejeitar a tese da estruturação imanente da realidade que
sustenta que todo ente é verdadeiro, Kant admite que qualquer conhecimento e ação humana
seria dado somente através de mediações, no caso, como validação do conhecimento através
das estruturas do sujeito que articula a instância transcendental como estrutura humana

93
Sobre a noção de legitimidade a partir de uma perspectiva da teoria política, cf. COSTANTINO, 1994, pp. 35-
46; GALLI, 2010, pp. 635-653 et seq. e HOFMANN, 1977, p. 50 et. al. De certa forma, Schmitt busca
precisamente recuperar essa espécie de legitimidade imanente da ordem pública, porém, evidentemente, de
maneira distinta dos antigos como se demonstrará durante a exposição deste trabalho.
179

universal e necessária, pois apenas através dessa forma os fenômenos seriam conhecidos, uma
vez que o mundo em si apenas é postulável. Nesse sentido, a tese da correspondência entre
esquemas conceituais e realidade em si é rejeitada diante da mediação transcendental, porém,
como consequência, admite-se também o abismo entre pensamento e realidade e a
necessidade de tematizar os pressupostos e condições do conhecimento humano que,
necessariamente, condiciona qualquer tentativa de conhecimento sobre a realidade. Dessa
forma, as consequências das teses kantianas em sede de teoria política trazem, em um
primeiro momento, a necessidade de uma instância de mediação das esferas separadas, entre
realidade e pensamento. Na modernidade, esta função coube ao indivíduo, pois como
principal elemento da relação racional da produção seja da ordem do conhecimento seja da
ordem jurídico-política a estrutura conceitual da modernidade exige o Mittel epistemológico,
mas também político, como elemento para validação dos pressupostos da ordem que, afinal, é
constituída a partir da razão humana. Assim, por exemplo, na tradição do contratualismo, o
indivíduo é posto na base da ordem política, na verdade, como princípio pré-social e pré-
político que instaura ab ovo a unidade política como um novo demiurgo. A invenção do
sujeito criador da ordem e da realidade estabelece a ordenação do mundo como um problema
e não como um dado natural o qual desde sempre o ser humano habitaria: a nova mediação
propõe uma solução racionalista e individualística que demonstra a capacidade ordenativa do
sujeito na sua autojustificação. Portanto, nesse quadro, subjetividade e mediação tornam-se as
palavras centrais para o racionalismo político ou normativismo94.
Assim, a articulação entre mediação teórica e mediação política aguça ainda mais o
principal problema para a questão entre ser e dever-ser, pois, de maneira sucinta, mediação é,
no sentido moderno, a relação racional, construtivista e discursiva que o sujeito institui com o
objeto que por intermédio da razão produz uma forma dotada de sentido, ou seja, a ordem a
partir da qual é possível conhecimento e ação. De maneira geral, o problema da mediação
moderna significa a questão da transformação do particular em universal, isto é, da percepção
do mundo e da construção da ordem artificial. Todavia, a crítica transcendental, ao contrário
da metafísica pré-crítica, parte, como já salientado, da diferença entre conceito e realidade e
renunciou o conhecimento do Absoluto e da verdade incondicionada, bem como a

94
Para Schmitt, a Vermittlung (mediação) é a categoria política moderna fundamental que determina a ordem ao
dotá-la de uma forma racional; cf. WSBE, pp. 4-5 e pp. 108-109; AB, p. 60. O tema da mediação em seus vários
momentos e aspectos é tratado minunciosamente por GALLI, 2010, cap. I, II, III e VII. GALLI, 2010, p. 5 “se la
ragione è il nouvo medio, il soggetto è lo snodo, l’articolazione, attraverso il qual ela ragione si fa azione e
l’esperienza può essere messa in forma e resa oggettiva, cioè comunicabile, universale. Il modo della mediazione
razionalistica moderna è quindi, primariamente, l’Opera del soggetto; e questa è rappresentazione, cioè
produzione e costruzione effetualmente formativa dell’immagine razionale del mondo”. Ainda sobre a relaçã
180

possibilidade de uma constituição imanente da realidade95. Deste ponto, a teoria de Hans


Vaihinger extrai parte de sua aposta na noção de ficção.
Da perspectiva da teoria política moderna, a mediação racionalista – denominada
nesta pesquisa ora como racionalismo, ora como normativismo – abandona o paradigma
ontológico fundado sobre uma ordem a priori cosmológica e, para todos os efeitos, propõe
uma organização política construída de modo racional e científico como produto dos homens
livres e iguais a partir da figura do contrato social baseado na tese do direito natural subjetivo
que assegura, por exemplo, em Hobbes e, principalmente, em Locke, os valores fundamentais
da modernidade: segurança e ordem. A tese da sociabilidade natural dos homens partilhada
pelos antigos que pressupunha o ethos, na verdade, como uma versão humana da physis, da
qual o nomos seria a expressão jurídica, portanto como uma ordem natural heterônoma, não
vinga no mundo moderno, pois o ser humano seria na compreensão moderna o sujeito
autônomo e independente preconizado pelo racionalismo como princípio tanto da ordem do
conhecimento quanto da ordem política. Essa concepção provoca a dissolução do paradigma
ontológico da organização a priori do mundo e, por conseguinte, a ausência de ordem e da
forma natural como era peculiar no quadro conceitual antigo e propicia, por conseguinte, a
transformação da relação entre política e ética na passagem da antiguidade para a
modernidade96. A partir da necessidade de configuração de uma associação política artificial
entre seres humanos diante de um estado de natureza com ausência de uma ordem e
autoridade comum, a teoria política moderna desenvolve um discurso de justificação do poder
e do domínio, bem como da coexistência pacífica entre os indivíduos. Desse modo, a forma
de coesão social artificial, cujo projeto e execução são racionalmente produzidos através de
um pacto entre os sujeitos por meio de uma mediação racional construtiva e pré-social,

95
Ao declarar o fim da metafísica, Heidegger critica a constituição onto-teológica da metafísica como inscrita no
seu destino desde Platão. A tradição metafísica põe como primum cognitum do pensamento Deus ou o Absoluto
e, dessa forma, torna idêntica a ordem do conhecimento com a ordem do ser. Essa estrutura fundamental
demonstra, para Heidegger, a estrutura onto-teológica da metafísica – por exemplo, de Tomás de Aquino a Hegel
– que expressa uma dialética entre o Ser como fundamento do conhecimento dos seres e o Ente supremo como
fundamento ontológico dos seres, esquecendo-se assim da diferença ontológica entre Ser e entes: ser e divino se
relacionam necessariamente na ontologia transformando-a, na verdade, em uma onto-teologia que de Platão a
Nietzsche determina o destino dessa forma de reflexão. Sobre isso, cf. HEIDEGGER, 1979, p. 189-202.
96
Sobre a transformação da relação entre ética e direito, VAZ (2002, pp. 214-215) afirma que “na antropologia
política clássica, a universalidade do Direito tem a forma de uma universalidade nomotética, ao passo que na
antropologia política moderna estamos diante de uma universalidade hipotética. A universalidade nomotética é
aquela que tem como fundamento uma ordem do mundo que se supõe manifesta e na qual o nómos ou a lei da
cidade é o modo de vida do homem que reflete a ordem cósmica contemplada pela razão. A universalidade
hipotética, ao invés, é aquela cujo fundamento permanece oculto e requer uma explicação a título de hipótese
inicial não verificada empiricamente (…) no primeiro caso, permanecemos no âmbito da ontologia antiga, no
segundo caminhamos sob o signo do pensamento científico moderno. No primeiro caso, a Política conserva uma
intrínseca relação com a Ética, no segundo essa relação torna-se extrínseca e problemática, e a Política tende se
constituir em esfera autônoma, independente da normatividade ética e frequentemente a ela oposta”.
181

consiste na justificação normativa da ordem do poder fático que é representada, de forma


geral, pelas teses das teorias contratualistas tanto na sua vertente maximalista (ao realizar um
cálculo egoísta racional) quanto na perspectiva universalista (ao preconizar o bem comum)
que afirma, em geral, que a sociabilidade e a objetividade institucional são criadas pelos
indivíduos através da racionalidade.
A separação entre ética e política, iniciada teoricamente com Maquiavel, teria com a
noção de necessidade (necessità) uma condição inderrogável que marcou a fundação do
pensamento político moderno. Em 1853 cunhava-se no Gründlagen des Realismus de L. A.
Rochau o termo Realpolitik, que se referia à relação imediata entre potência e domínio
necessariamente vinculada ao Estado, no qual predominaria idéias tais como necessitas legem
non habet, princeps legibus solutos, arcana imperii ou Staatraison como normas de ação
diante de uma percepção nova sobre o poder a fim de governar e conservar o Estado, produzir
disciplina social, obediência política mediante regras de governar segundo critérios de
eficácia. Desde então, a concepção realista em política significa uma conexão estreita entre
poder político e força precisamente ao romper a concepção clássica de subordinação à moral
ou ao direito. De modo geral, a perspectiva de um Estado ideal ou de um ratio status sofreu
forte impacto a partir de Maquiavel, pois, embora apenas no século XIX o termo fosse criado,
o pensamento da política como discurso do poder fora elaborado pelo pensador florentino – e
antes mesmo, por exemplo, a noção de necessitas, fora trabalhada por juristas e teólogos
medievais desde o século XII – para quem a legitimidade estaria no êxito e na glória da
República e não em normatividades ou instâncias morais, inaugurando assim a modernidade
política através da constituição autônoma em relação à ética, uma vez que o funcionamento da
realidade política, independentemente de considerações morais, do rex justus ou do
honestum, baseia-se na ação política marcada pelo conflito e exceção, subordinando
moralidade à necessidade, como explicitado tanto em Il Principe quanto nos Discorsi através
dos quais afirma que não é a racionalidade, mas sim a contingência histórica que determina a
realidade política97.
No entanto, a virada da filosofia política iniciada por Maquiavel foi tratada com
maior adequação e organização apenas em Hobbes, pois o principal autor da política enquanto
poder e força e que, juntamente com Hegel, como adiante será demonstrado, maior influência
exerceu sobre Schmitt, representa uma reviravolta na filosofia política no século XVII a partir

97
Cf. SENELLART, 2000, p. 45-79; sobre a origem da dicotomia entre normativismo e realismo político desde
Spinoza, Treitschke e os teóricos do Machtsstaat que fora sistematicamente empregada na obra de Friedrich
Meinecke sobre a razão de Estado, cf. KERVÉGAN, 1992, p. 136-137.
182

da inversão da questão fundamental sobre a relação entre política e moral que caracteriza o
autor pela consideração analítica do fenômeno do poder, pela utilização da categoria de
soberania derivada da discussão entre auctoritas e potestas98 e da abordagem dedutivamente
racional das questões políticas. A transformação da filosofia política operada por Hobbes
altera radicalmente a relação entre poder e normas, concedendo pela primeira vez de forma
sistemática o primado do paradigma do poder sobre o paradigma da norma, ressignificando
através, principalmente, das obras Leviathan, or the Matter, Form and Power of a
Commonwealth ecclesiastical and civil (1651), De cive (1642) e Elements of Law Natural and
Politic (1640) a constituição do político, pois a passagem dos direitos naturais pré-políticos do
estado de natureza para o direito e a lei civil no estado de sociedade demonstra a submissão da
ética à política, uma vez que a ação ética do indivíduo na sociedade civil pressupõe,
evidentemente, a superação do bellum omnium contra omnes e, portanto, uma ação fundada
na força para afastar o mal (a morte violenta) que baseia sua condição de cidadão e não a
objetividade de um bem, já que não se pode articular uma moralidade no estado de natureza,
mas apenas na sociedade civil, pois somente no Estado haveria segurança da vida e se
constituiria o bem e o mal, o justo e o injusto, a virtude e o vício. Dessa forma, para Hobbes,
contrariando a tese clássica da sociabilidade natural do homem, da hipótese do estado de
natureza surge o contrato, que representa a primeira manifestação do vínculo social que
estabelece a anterioridade do indivíduo sobre a sociedade; então, através do mecanismo da
situação originária de conflito, onde se dá a luta pela autoconservação e apenas vige o direito
natural pré-estatal, estabelece-se a passagem da liberdade do estado de natureza ao domínio
na sociedade civil e, por conseguinte, através do pacto regido pela razão intrínseca à natureza
humana, no caso um cálculo egoísta racional do indivíduo, dáse a justificação da relação entre
comando e obediência e a mediação criadora da ordem36.
Nesse contexto, são forjadas as categorias políticas modernas, tais como, liberdade,
igualdade, tolerância, estado de direito, etc. que estão estruturalmente vinculadas ao conceito
de soberania e representação através de um sistema universal de obrigação dos indivíduos
submetidos à obrigação na forma-lei: a ordem estatal, cuja universalidade abstrata todos os
particulares se referem, haja vista o acordo das suas vontades livres e iguais na participação e
criação dessa ordem, exclui a possibilidade da coexistência natural de homens como
portadores de direitos naturais e propõe a organização política através da transformação de
direitos naturais do indivíduo em direitos civis dos cidadãos e, sobretudo, a partir disso, a

98
Sobre os termos auctoritas e potestas, cf. VL, pp. 75-87; sobre o princípio do “princeps legibus solutus est” cf.
DINIZ, 2007, p. 139-148 e AGAMBEN, 2004, p. 37-45.
183

elaboração de uma estrutura institucional de juridificação do poder representado, de forma


melhor acabada, no constitucionalismo moderno do Estado de Direito, principalmente a partir
de Locke, como uma técnica de limitação do poder.
Segundo a mediação racionalista moderna em sede de teoria política, o principal
mecanismo desta instituição jurídico-política, a soberania representativa, determinaria a
legitimação da unidade política através da forma-Estado. A partir disso, a articulação entre
Estado e política seria um topoi comum: a política estaria necessária e suficientemente
vinculada à forma-Estado, uma vez que a esfera política, do ponto de vista do racionalismo
moderno, significaria, basicamente, representação e institucionalização na forma e na
estrutura da soberania estatal: o povo se transforma em nação; o indivíduo em cidadão; o
natural em artificial, o político em jurídico na constituição da ordem, na transformação da
desordem originária para a ordem artificial. Assim, a ideia da ordem está na origem do
pensamento político moderno, porém uma ordem alcançada a partir da coação à mediação
racionalista: o sujeito como origem da forma política que, através do mecanismo privatista do
contrato, institui a soberania. Se, por um lado, a mediação subjetivista necessita da estrutura
da soberania para assegurar um espaço de co-existência pacífica entre os homens, tornados
cidadãos, não admitindo outro discurso verdadeiro ou pretensão de verdade senão a do
próprio soberano; por outro, a estrutura soberana é legitimada se, e somente se, for
racionalmente aceita pelos particulares que livremente a escolheram e forjaram, pois a questão
principal da razão política moderna é se entre sujeito e ordem exista uma forma moderna a ser
realizada: o problema da modernidade é a do local do sujeito racional como lugar de
fundamentação da realidade política.
Entretanto, essa tese em teoria política exige outro tipo de mediação, pois enquanto a
mediação racionalista baseia-se no sujeito transcendental, ou seja, universal e necessário, a
argumentação acerca da mediação política vincula a determinação social à legitimação a partir
de alguma instância também universal e necessária, porém realizada através da ação do
sujeito que cria a ordem racional e sua validade. Dessa maneira, na estrutura teórica do
pensamento político moderno, há um primado lógico da política como universal, ou seja,
como ordem produzida pelos sujeitos que confeccionam a soberania moderna como algo
mediado pela lei racional. Desde o jusnaturalismo e as doutrinas do contrato social, a ideia de
ordem coercitiva e racional estabelece o sujeito como articulação indispensável. Todavia, a
mediação subjetiva revelou a lógica da construção e o funcionamento da ordem política
racional a partir da ideia da Selbstbehauptung na qual a mediação reside no próprio sujeito,
pois enquanto produto de um contrato expresso por sua vontade. Assim, o problema moderno
184

da legitimidade, fundamental na concepção da mediação racionalista se legitima apenas caso


seja racionalmente vinculado ao sujeito99. A questão principal da razão política moderna
reside nessa tensão entre sujeito particular e ordem universal, mais precisamente, acerca da
legitimação do poder. Por um lado, a esfera pública é vinculada estruturalmente aos
portadores de direitos privados, como um sistema de ordem e segurança dos indivíduos e de
uma fundamentação pré-política, pré-estatal e pré-histórica que, como Schmitt argumenta, na
esteira de Hegel, resulta numa completa despolitização da ordem política. Assim, a forma
moderna é abstrata e o indivíduo politicamente possui valor apenas enquanto é capaz de
volição pela lei racional ou forma política universal e não por sua vinculação concreta ou
existencial que resulta na crítica de uma fundação pré-política e, ao final mesmo, uma
despolitização, pois ao considerar o direito natural como fundamento da política ou do Estado
de direito, por um lado, afirma-se como base da ordem política uma condição não política (há,
portanto, um déficit político) e, por outro lado, resguarda-se o estatuto do indivíduo enquanto
sujeito privado e, dessa forma, a mediação moderna se mostra como uma coação não mais
orientada para o summum bonum como fundação da ordem e reduz a política exclusivamente
à segurança e à exclusão do summum malum, qual seja, em linguagem hobbesiana, o temor da
morte violenta diante do qual se sacrifica os afetos e produz-se a homogeneização e
imunicação do corpo social.
Segundo o racionalismo, a primeira ação política do sujeito é a construção do Estado
uma vez que haveria uma coação à ordem que a modernidade assume como organização ideal
do poder. Entretanto, esse argumento do racionalismo contratualista resulta em uma aporia,
pois afirma que a mediação racional se dá através da imediatidade concreta dos indivíduos
autonômos enquanto objetivo fundamental da realização da sua liberdade, tornando-se, na
verdade, mediação entre instância da liberdade individual e ordem da sociedade. O direito
pretende em todas suas manifestações vincular sua positividade, mesmo que necessariamente
histórica, a algum fundamento objetivo ou princípio universal de justiça. Nestes termos, o
discurso moderno tentaria estabelecer uma fundação meta-histórica do direito e separar a
validade universal da norma da pura faticidade contingente com o intuito de dotá-lo de
obrigatoriedade e vigor, contrafaticidade, para além da experiência jurídica concreta

99
Sobre a relação problemática entre ser e dever-ser em Kant assevera SÁ, 2009, p. 40: “Assim, não estando
determinado pelo poder que é próprio da lei natural, o sujeito kantiano surge como o depositário de uma lei que
se fundamenta puramente em sua interioridade. Se chamarmos racionalidade à interioridade do sujeito, dir-se-ia
que uma tal lei surge como o imperativo autonómico de uma lei puramente racional. Torna-se possível a Kant
caracterizar o sujeito livre através da presença nele de uma pura lei racional, de uma lei que, surgindo como um
puro dever-ser (Sollen), como um puro imperativo sem poder, encontra diante de si a lei natural que, como um
poder, determina a exterioridade natural, fenoménica ou fática de todo o ser (Sein)”.
185

apoiando-se, no caso moderno, exclusivamente, na racionalidade do indivíduo. Na verdade, a


estrutura da modernidade estabelece o direito como uma técnica que, afastando-se da política,
da religião, da moral, torna-se indiferente quanto ao conteúdo, pois o que importa é nada mais
que o procedimento formal através do qual seja possível garantir segurança e previsibilidade
às relações jurídicas100. Dessa forma, o idealismo transcendental argumenta que a esfera
subjetiva da razão pura justifica a máxima do agir prático a partir de uma universalidade
formal que, porém, mostra-se aporética, pois ao assumir o sujeito como fundamento da
realidade perde a noção de totalidade do mundo diante do inevitável dualismo entre sujeito
transcendental e mundo. A partir dessas críticas e limitações, Hegel realiza uma tentativa de
síntese entre a metafísica racionalista e a filosofia transcendental, recuperando a tese da
totalidade e, no que interessa para a pesquisa realizada, tematizando a articulação entre
imanência e transcendência, faticidade e validade que servirá de base para o desenvolvimento
do pensamento de Schmitt.
(II)
Para Hegel, o racionalismo na teoria política moderna põe em jogo os conceitos de
Estado, de soberania e legitimidade, entre outros, a partir da categoria da mediação. No
entanto, esta categoria se desenvolve numa contradição entre o princípio da particularidade
concreta (indivíduo) e a unidade absoluta do domínio político (Estado). Assim, já no texto
hegeliano de 1802 sobre o direito natural, o autor problematiza a figura do pacto entre os
particulares e, por conseguinte, a passagem do estado de natureza para o domínio do Estado
de direito, que deveria agregá-los em uma unidade superior, pois, conforme Hegel haveria
incongruência entre duas esferas distintas: a esfera empírica dos indivíduos que admite a
multiplicidade concreta e a esfera formal na unidade absoluta do domínio político. A
mediação racionalista moderna configura-se como um pensamento formal incapaz de articular
essas duas esferas uma vez que o dispositivo do pacto social, tomando como exemplo as
teorias contratualistas, realizaria uma abstrata justaposição entre a multiplicidade particular
dos indivíduos e a unidade abstrata do Estado. O formalismo excessivo do pensamento
kantiano, bem como das teorias contratualistas, provocou a cisão metodológica já apontada
entre transcendência e imanência, validade e faticidade e, por conseguinte, a impossibilidade
de contato com a realidade. Na tentativa de superação do pensamento kantiano e do gap
provocado, inclusive com a superação da contingência provocado pelo argumento finitista de

100
GALLI, 2010, p. 8: "Pensare la politica come la ricerca costruttivistica di eficacia e sicurezza significa che già
ab initio la mediazione è un'immediatezza, un riflesso obbligato o una coazione, il che implica che la forma
moderna è per sua essenza una tecnica, la prassi una poiesi, e l'azione è in verità un automatismo".
186

origem kantiana, a questão é, segundo Hegel, ao criticar a instauração contratual da sociedade


a partir da liberdade do indivíduo, torná-la política e socialmente constituída. Para Hegel, a
dimensão política não surge adequadamente da subjetividade ou, em termos políticos, dos
indivíduos particulares: de maneira distinta da mediação racionalista, a totalidade não é
compreendida como a soma dos indivíduos que constituiriam a unidade formal, pois, dessa
forma, subordinaria desarrazoadamente o direito público ao direito privado, ou seja, uma
instância superior em relação à outra inferior, pois nesse conceito de liberdade moderno são
introduzidas as determinações concretas e objetivas subordinando o universal abstrato.
Em geral, desde o período de Jena, para Hegel, não é pensável uma origem
subjetivamente racional da ordem política, pois o Estado (a vontade universal) é diferente da
vontade real empírica dos particulares que o pressupõe e, evidentemente, participa de uma
relação de fundamentação da ordem política. Entretanto, apesar do primado da Ideia, o autor
considera ainda o momento oposto da individualidade como momento indispensável na sua
objetivação, uma vez que o pensamento dialético hegeliano não pressupõe a mediação como
um sistema que exclua o momento da negatividade, mas, pelo contrário, assimila tal
imediatidade concreta, porém superando-a ao reconhecer a origem e o telos ideal, pois para
ele natureza e espírito constituem uma só totalidade101. Para Hegel, a ideia possui em si o
princípio do seu desenvolvimento e nesse primeiro momento articula-se em conceito; porém,
exterioriza-se e objetifica-se em natureza, torna-se fora-de-si, ou seja, passa a ser organização
do mundo natural; após isso, finalmente, num terceiro momento, torna-se em-si-e-para-si ao
regressar a si mesma, adquirindo consciência de si própria e do movimento histórico que
percorreu. Nesse itinerário, torna-se Espírito, pois a ideia é o próprio movimento do pensar e
o Espírito é a realização da ideia que toma autoconsciência de si através do seu Entwicklung.
O Espírito se desenvolve a partir de um processo histórico: num primeiro momento o espírito
subjetivo que nesta fase ainda está ligado à finitude, pois inserido no mundo natural e,
representado pela esfera privada, tem seu último estádio na identidade entre racionalidade e
autoconsciência da liberdade através da qual propicia a passagem para o espírito objetivo;
num segundo momento, o espírito objetivo que representa a superação da esfera privada pela
esfera coletiva, pois enquanto totalidade de vínculos apenas se origina do todo e, por sua
universalidade, expressa valores que ultrapassam as vontades e os interesses particulares; e,

101
Segundo GALLI, 2010, p. 13-14 “La mediazione razionalistica moderna gli appare così percorsa da uma
aporia: um consequenziale pensiero empirico e concreto è incapace di totalità, mentre um pensiero soltanto
formale è privo di contenuti concreti (...) Il primato logico dell’Idea implica che per Hegel è irrilevante la
questione dell’origine dela politica così come viene posta – e risolta – nel razionalismo e nell’empirismo
moderni”.
187

num terceiro momento, o espírito absoluto que se realiza no Direito, na moralidade e na


eticidade da seguinte forma: a vontade livre ganha existência, ou seja, concretiza-se no mundo
objetivo e daí nasce o direito; porém, o direito como existência do querer livre é a liberdade
considerada em sua existência externa e imediata que se torna inadequada para a realização da
liberdade, pois imediatidade e exterioridade devem ser superadas. Nesse momento, a
liberdade regressa a si própria e se faz moralidade que, entretanto, ainda é um momento
unilateral que deve ser superado através da realização objetiva, externa e concreta da sua
vontade. Então, surge a eticidade (Sittlichkeit), momento no qual o querer do sujeito é em-si-
e-para-si. Esta, por sua vez, realiza-se, afinal, no Estado como estação da liberdade em sua
existência concreta como substância ética consciente de si depois que a individualidade fora
dissolvida numa totalidade e de ter se perdido na totalidade e na unidade substancial quando
os indivíduos se relacionam numa universalidade formal como pessoas independentes e
autônomas. Segundo Hegel, o Estado é a própria ideia que se manifesta no mundo como
totalidade ética e o espírito absoluto é o Espírito que desenvolveu autoconhecendo-se
absolutamente e, portanto, completado o processo de autoefetivação do seu conceito. Assim, a
eticidade é a concreção da liberdade mediatizando o mundo objetivo e a consciência subjetiva
dentro do Estado que representa, para o autor, a realização da liberdade concreta, pois a
história é a realização efetiva da liberdade e a liberdade, segundo Hegel, é a manifestação
concreta do Espírito na história. A história é a história do desenvolvimento do Espírito e,
dessa forma, da objetivação da liberdade e do Estado que se realiza no conceito.
Entretanto, mesmo que a unidade da esfera ético-política seja dada apenas no Estado,
a sociedade civil já possuiria a forma de uma racionalidade fundamental. Assim, para Hegel, a
unidade do espírito residiria na objetividade institucional e na subjetividade natural-imediata,
ou seja, entre particular e universal onde figuram a substancialidade objetiva e a
substancialidade subjetiva. Essa identidade resume-se no conceito de Sittlichkeit que
representa a mediação política na sociedade civil ao constituir o Estado ou espírito absoluto
como a pressuposição histórica concreta e a racionalidade objetiva. De fato, seja a
determinação econômica do sujeito através do trabalho, da propriedade e da troca seja a
determinação jurídica por meio do formalismo do direito privado e do Rechtszustand, tal
diferença leva à distinção entre burguês e cidadão além da necessidade de uma mediação
entre a vida ético-política por meio da vida ético-social. A individualidade e a singularidade
tornam-se os princípios reguladores da modernidade em contraposição ao período antigo e,
por isso mesmo, segundo Hegel, torna-se necessário diferenciá-la da esfera propriamente
188

política. Diante disso, ele afirma que a sociedade civil possui como finalidade não o universal,
mas sim a satisfação das necessidades102.
Na famigerada afirmação segundo a qual “o que é real é efetivo e o que é efetivo é
racional” reside a pretensão hegeliana de enquadramento especulativo da história empírica,
asseverando retrospectivamente o sentido que, de toda forma, demonstraria que a
contingência dos eventos revela a necessidade do conceito e, por conseguinte, garante a
contiguidade entre racional e efetivo103. A negatividade concreta rejeita a imediatidade da
ideia e a re-produz como realidade efetiva, pois a mediação concreta contém no seu
movimento dialético um momento de crise após do qual dá-se a superação reconhecendo-se a
origem e o telos ideal. Nestes termos, a mediação concreta para Hegel é o movimento do
imediato que pela negatividade se faz Espírito. Dessa forma, a mediação concreta em Hegel
apresenta-se como uma “negação da negação” já que nesse movimento o finito se descobre
como finito e, portanto, assume o primado do infinito não mais contrapondo-se-lhe, mas sim
como finito e infinito reciprocamente implicados como ideal e real e não apenas como
contraposição ou unidade. Através desta mediação, supera-se a formalidade e a empiricidade
contraditórias do racionalismo moderno, realizando uma coincidência entre o verdadeiro e o
todo: a ideia é o fundamento absoluto e imediato. O fato de que a mediação concreta encerra-
se no saber especulativo do Espírito mostra que esta mediação não desempenha o papel
intermediário que Schmitt lhe assegura no período pré-weimariano. Entretanto, a mediação
concreta prossegue sendo em Hegel a potência que opera a transformação do particular no
universal, da experiência subjetiva desenvolvendo-se ao universal.
No espírito objetivo, a mediação concreta manifesta a potência da negatividade,
como descrito nos Grundlinien des Rechtsphilosophie, onde a dimensão da objetividade tem
um início ideal universal – a ideia de vontade livre – que é imediatamente Direito, porém
articulado na própria determinação negativa: a primeira determinação é a pessoa jurídica, ação
concreta do indivíduo e consiste na decisão subjetiva que é assim, sendo imediata
negatividade, a cifra da objetividade, ou seja, o signo tanto do primado da ideia quanto da sua
não imediata efetividade. Esta objetividade é para Hegel mediações politicas e sociais nas

102
Sobre isso, cf. KERVÉGAN, 1992, p. 184 et seq. Schmitt utiliza a argumentação hegeliana com o intuito de
fundamentar sua tese da separação entre liberalismo e democracia, cf. VL, p. 253 “Das deutsche Wort 'Bürger'
umfaßt beide Bedeutungen: citoyen und bourgeois. Der Gegensatz der beiden Bedeutungen ist aber so groß wie
der Unterschied eines unpolitischen ethischökonomischen Liberalismus von Demokratie, die ein rein politischer
Begriff ist. Die erste und wichtigste Äußerung über den Bourgeois als Gegenbegriff gegen den in der politischen
Sphäre existierenden Staatsbürger findet sich bei dem jungen Hegel in der Schrift über die wissenschaftlichen
Behandlungsarten des Naturrechts”.
103
Sobre a filosofia do Direito de Hegel cf. D. HEINRICH/ R.P. HORSTMANN (Hrsg.), 1982; DREIER, Ralf,
1981, p. 316-350; RITTER, Joachim. 1988, p. 183-317; LEBRUN, 1988, p. 65-112.
189

quais a Ideia se efetiva. Segundo Hegel, o racionalismo político moderno considerado


dialeticamente consiste na superação da distinção liberal entre público e privado, ou seja, na
contraposição entre indivíduo e Estado, especificamente, na primazia deste diante daquela,
pois o Estado seria um meio substancial, uma mediação concreta e ideal. O primado lógico e
real do Estado sobre os indivíduos e sobre a sociedade se manifesta como Vermittlung social,
legislativa e executiva, pois se configura, conforme Hegel, como mediação orgânica e
concreta, isto é, como Verfassung. A unidade do Estado como Verfassung revela sua
configuração como algo imediato, em última instância, como imediatidade do soberano que
no particular exprime o universal, sendo o fundamento do sistema de mediação. Neste
momento, ocorre uma argumentação curiosa: o real como objetivação do ideal, encontra no
Estado, objetivação da vida ética, a decisão imediata da subjetividade do soberano,
vinculando o primado lógico da ideia ao primado do Estado e, por conseguinte, ao realismo da
decisão soberana que articula ideia e contingência, mediação e imediação, tal como Galli
descreve:

O real é de fato compreendido por Hegel como objetivação e vida ética do ideal; esta
tem início imediatamente de si e sua objetivação – o Estado – é, enquanto em si
mediada, infundado e se exprime adequadamente na decisão imediata da
subjetividade do soberano. O máximo de idealismo (o primado lógico da ideia)
implica na realidade no máximo de realismo (o primado lógico do Estado) e também
o máximo desenvolvimento da contingência da política (...) que se exprime na
idealidade da decisão soberana do monarca; que esta seja o apogeu do Estado
significa na realidade que na soberania se manifesta a incompletude do princípio da
política. A soberania, em Hegel, não é construída, mas resulta da relação imediata
entre ideia e contingência: a soberania é a existência do Estado (GALLI, 2010, p.
21-22).
Nos Grundlinien des Rechtsphilosophie, este problema da relação entre mediação e
imediação é solucionado na figura do Estado, pois este seria tanto mediatidade quanto a
própria imediatidade e, por conseguinte, superior ao racionalismo moderno, pois o Espírito
seria a forma absoluta da mediação concreta, a conciliação entre subjetividade e objetividade.
Na seção Sittlichkeit, Hegel afirma que o Estado é uma realidade complexa, um Inteiro
(Ganze) e sua unidade substancial não pode ser nem conhecida da opinião pública nem
construída pelo racionalismo, visto que o Estado para Hegel está em uma relação específica
com a sociedade civil, sendo esta na verdade uma bürgerliche Gesellschaft. Para Hegel, a
sociedade civil é um sistema de necessidade que media a subjetividade imediata em uma
atividade de negação que é o trabalho na sua forma moderna; sociedade seria o sistema da
eticidade perdido no seu próprio extremo; lugar (sociedade) onde se manifesta a dialética do
trabalho alienado do sujeito singular e a separação moderna entre indivíduo privado,
indivíduo social e esfera política. Enquanto a sociedade política dos antigos se constituia
190

como esferas nas quais haveria uma complexa ordem dada, o racionalismo moderno teria a
pretensão de construir a partir do contrato o universal através do sujeito e da sociedade civil.
Para Hegel, a sociedade civil se abre para o universal na articulação com o Stände através da
qual se organiza em uma primeira presença do universal, uma primeira saída do sujeito da
própria particularidade através de uma mediação social pela representação parlamentar. O
parlamentarismo não configura uma massa informe de indivíduos atomizados e abstratos, mas
a objetividade da esfera essencial da sociedade. Assim, dá-se o momento subjetivo da
liberdade universal necessário ao Estado moderno e que lhe dá superioridade diante da "bela
eticidade" dos Antike como uma volição do universal por parte dos singulares104.
Nesse sentido, a contingência contida na negatividade vem reconhecida no
pensamento especulativo hegeliano como contingência da Ideia e, por conseguinte, a origem
não racional é submetida ao movimento da negatividade que constitui a conciliação entre
subjetividade e objetividade, ou seja, do Espírito absoluto como mediação concreta. Apesar da
concretude do Espírito objetivo, a contingência do Dasein não se torna originária uma vez que
a presença do Espírito absoluto na história é pressuposta na ciência especulativa. A
negatividade não empurra Hegel, como faz com Schmitt, para o âmbito do entendimento
assumindo a decisão ou o conflito como originários. Mais uma vez, Galli é preciso:

a negatividade não transforma a filosofia hegeliana em um “pensamento negativo”,


assim como a decisão soberana não a transforma em um pensamento decisionístico,
nem a teoria do inimigo a torna um pensamento do conflito originário; do mesmo
modo, a decisão sobre o caso de emergência não abre um espaço real para um papel
estratégico do estado de exceção. Em Hegel, a mediação não construtiva, mas
discursiva (GALLI, 2010, p. 24).
Para Hegel, ao contrário, o Estado é o inverso da violência, mesmo que na sua
constituição externa ou fática houvera conflito. Assim, o Estado é compreendido como uma
forma organizada do ser da comunidade, ou seja, a base da ordem ético-política, uma vez que
se torna a condição universal através da qual a vida ética se efetiva onde agrega os momentos
da família e da sociedade em uma totalidade ética como momentos elementares do Estado,
pois, segundo Hegel, apenas a unidade política permite a diferenciação da totalidade ética que
se torna, por conseguinte, a instância da universalidade racional na ordem do espírito
objetivo105.

104
Sobre a noção de representação em Hegel e Schmitt, cf. por todos, KERVÉGAN, 1992, p. 263269; 284-316.
105
HEGEL, Rph, § 255, p. 396-397; §256, p. 397-398; “In der Wirklilchkeit ist darum der Staat überhaupt
vielmehr das Erste, innerhalb dessen sich erst die Familie zur bürgerlichen Gesellschaft ausbildet, und es ist die
Idee des Staates selbst, welche sich in diese beiden Moment dirimiert; in der Entwicklung der bürgerlichen
Gesellschaft gewinnt die sittliche Substanz ihre unendliche Form, welche die beiden Momente in sich enthält: 1.
der unendlichen Unterscheidung bis zum fürsichseienden Insichsein des Selbstbewußtseins, und 2. der Form des
191

A relação entre Schmitt e Hegel é descrita, sobretudo, a partir do problema do


realismo político que significa, em termos gerais, a perspectiva teórica que se contrapõe às
várias formas de normativismo ou racionalismo ético e político106. Tal questão é contestada
por Hegel através de sua mediação concreta que pretende estabelecer uma relação entre Ideia
e realidade contra as teses contratualistas, a abstração liberal e a separação kantiana que ao
propor uma mediação racionalista assume a subjetividade como fundamento da ordem
radicalmente distinto da realidade externa. Schmitt assume da teoria hegeliana influência
incontestável, porém, diferentemente de Hegel, elabora um pensamento capaz de sustentar a
distinção entre imediação e mediação, entre contingência e absoluto, pois a estrutura teórica
da mediação em Schmitt rejeita a relação necessária entre ideia e contingência: se para Hegel
a Ideia dá-se através da contingência, para Schmitt, ao invés, a Ideia não se encontra no
processo de mediação concreta, mas sim é capturada por um momento da contingência.
Assim, segundo o jurista tedesco, há um momento anterior da contingência, da concretude
que experimenta originalmente uma ausência de forma e de ordem marcada por uma
imediatidade concreta da força ou da mera potestas. Este momento originário da ordem e da
forma, sobretudo, nos escritos do início da República de Weimar, possui uma negatividade
não suscetível à dialética, pois ineliminável: não há relação possível entre contingência e
Ideia, muito menos conciliação especulativa no Espírito uma vez que o abismo entre Ideia e
realidade se mantem mesmo com a representação da forma de direito. Schmitt considera esta
objetividade sempre atravessado pelo negativo que, no final das contas, desempenhará um
papel determinante.
Por outro lado, a principal distinção entre Hegel e Schmitt pode ser observada no
seguinte aspecto: se em Hegel a mediatidade concreta se desenvolve até sua conclusão no
saber especulativo do Espírito, em última instância, a dimensão especulativa decorre de uma
racionalidade política imanente e a mediação dialética faz jus à negatividade por conta de sua
concretude, não desempenha no filósofo, porém, a função central que lhe concede o jurista: a
exceção no pensamento schmittiano é originária e, além disso, afasta a discursividade

Allgemeinheit, welche in der Bildung ist, der Form des Gedankens, wodurch der Geist sich in Gesetzen und
Institutionen, seinem gedachten Willen, als organische Totalität objektiv und wirklich ist”.
106
Acerca da aproximação entre Schmitt e Hegel, KERVÉGAN (1992, p. 143), afirma que “la référence à la
philosophie hégélienne joue un rôle determinant dans la constitution même de la problématique de Carl Schmitt
et dans la définition de ses lignes de force. Il n'est pas question de faire de Schmitt un 'hégélien'. Il se réclame
plutôt de Hobbes (…) En revanche, on peut considérer que l'appropriation critique des outils que la conceptualité
hégélienne peut offrir à une théorie positive du droit et de l'État est, du point de vue même de Schmitt, partie
intégrante de son travail de juriste”; porém, mais adiante, o autor arremata ao assinalar, por outro lado, a
distinção entre o jurista e o filósofo: “l'oevre de Schmitt vise à être l'accomplissement, sur le terrain de la
positivité et dans des conditions éthico-politiques profondément modifiées, des position fondamentales de la
philosophie hégélienne du droit et de l'Etat” (1992, p. 145).
192

construtivística do logos para instaurar o primado da violência na constituição da ordem. Se,


para Hegel, a Ideia atravessa a contingência e experimenta um processo de mediação
concreta; para Schmitt, a Ideia não experimenta nenhum processo de mediação concreta, no
máximo objeto de representação, mas o elemento que se destaca no seu pensamento é a
contingência, a concretude como desconexão entre ideia e realidade, racionalidade e ação,
pois na tentativa de solução da cesura moderna Schmitt, diferentemente de Hegel, afirma a
radical e originária ausência de forma e de ordem, porém esta ausência se configura como
uma imediatidade que necessita de um ato de mediação, uma Vermittlung. Desse modo, o
momento originário da forma política é objeto de litígio entre Hegel e Schmitt: para este, o
poder constituinte do povo, a potência da hostilidade existencial ou ainda a decisão soberana;
para aquele, a razão se manifesta na ordem política concreta como Espírito objetivo. Após sua
fase normativista – descrita abaixo no seu Der Wert des Staates und die Bedeutung des
Einzelnen de 1914 com desenvolvimento nos textos Die Diktatur e Politische Theologie,
respectivamente, 1921 e 1922 – a mediação schmittiana é a figura da exceção que a seguir
desenvolve-se marcado pelo problema da modernidade, qual seja, a ausência de ordem e a
produção da forma através de uma mediação concreta. Embora Schmitt afirme, por um lado,
na teoria da exceção a negatividade originária como ausência de ordem e de forma na
concretude, admite, por outro lado, um âmbito de excesso ideal que imprime à faticidade a
exigência de ordem e de forma mediado por uma decisão pela representação da Ideia. Tal
postura é denominada nesta pesquisa de realismo fraco e expressa a exigência do universal
que vincula a ação política concreta na contingência da faticidade, pois, segundo Schmitt na
sua teoria da exceção, a forma é originalmente um particular, constituída a partir da crise,
rejeitando uma ratio universal e necessária. Este momento de contingência é fragmentado e
descontínuo e ganha maior relevância ao tratar a questão especificamente moderna: a
dualidade entre ser e dever-ser que, por diversas maneiras, recebe tratamento na sua obra e,
inicialmente, é tratado ora como a estrutura da mediação racionalista, ora como a legitimidade
de uma ordem política.

2.2.2. A mediação e imediação na teoria política de Carl Schmitt

Por conta da concentração deste trabalho na relação entre transcendência e


imanência, bem como na investigação do problema da mediação racionalista, a reconstrução
dos argumentos precedentes foi realizada com o intuito de tornar compreensível o
desenvolvimento do pensamento schmittiano desde seu ponto de partida, qual seja, a relação
entre direito e poder e a questão acerca da legitimidade da ordem na teoria jurídico-política
193

moderna. A argumentação schmittiana se encontra no interior da crise da mediação


racionalista moderna que experimenta a dissolução da Vermittlung como consequência da
racionalidade técnica que torna necessária a ressignificação do vínculo entre ordem e
desordem, realidade e norma, particular e universal e, especificamente na segunda fase do seu
pensamento, torna também urgente a exigência de uma teoria política capaz de decisão e
representação orientada por uma forma do direito ou, conforme sua última fase, a pergunta
pelo novo nomos da terra após a dissolução do Jus Publicum Europaeum. O que está em jogo
é precisamente a questão sobre a mediação e a forma como originárias em relação à instância
concreta na constituição da ordem, ou seja, a questão sobre o fundamento da ordem e, por
conseguinte, da sua legitimidade política diante do desgaste que tanto o conceito de sujeito
quanto o de Estado sofreram. A posição histórico-intelectual de Schmitt situa-se no momento
de crítica à legitimidade racionalista e das instituições políticas da modernidade e, por isso
mesmo, pergunta-se sobre o novo nomos da terra baseado na técnica e na indústria (ou seja,
domínios econômicos) e não mais no território ou no espaço (domínios propriamente
políticos). Sua obra registra a decadência da história moderna da jurisprudência europeia, bem
como do paradigma ético-político da democracia liberal ao refutar as abstrações idealistas e
universalistas, mas também alguns conceitos, tais como, representação e legitimidade; para o
jurista tedesco, esta estrutura originária da política é contraditória, pois localizada na cesura
entre realidade e norma que se desfaz no século XX.
A reconstrução do aparato argumentativo e conceitual de Schmitt demonstra sua obra
eivada, permanentemente, por um problema fundamental que confere significado e
sistematicidade ao seu pensamento, qual seja, a crise do racionalismo político moderno, seja
em sua vertente lógico-transcendental seja na sua versão dialética e, especificamente, na
teoria jurídica e do Estado que pode ser compreendida ainda através da ruptura entre
imanência e transcendência. Tal fenômeno representa, em geral, uma crise da modernidade
europeia e, em particular, uma crise da vida política, cultural e institucional da Alemanha,
principalmente entre 1914 e 1945. Nesse sentido, Schmitt realiza um grande esforço
interpretativo de investigação dos fundamentos das categorias estruturais do direito e da
política, elaborando, sobretudo, uma reflexão analítica ao perscrutar as transformações e
configurações políticas, sociais e epistemológicas, principalmente, ao realizar uma
transformação em relação à racionalidade moderna sustentando, de acordo com a
interpretação proposta nesta tese, o argumento da co-originariedade entre transcedência e
imanência que a categoria do político expõe. Por sua vez, a dissolução da mediação política
moderna que se manifesta em múltiplas esferas como, por exemplo, no âmbito histórico
194

através das grandes Guerras Mundiais e do advento da técnica; na esfera lógica, cuja ciência
jurídica e política diante da impossibilidade da racionalização da experiência realiza tentativas
de dedutibilidade formal do real; e nas relações políticas marcadas, por sua vez, pela
insuficiência do sistema parlamentarista em vista das contradições do mecanismo
representativo moderno, pelo anacronismo do Estado de Direito diante da democracia de
massas e da emergência dos tempos da técnica e da indústria no século XX.
A crítica de Schmitt ao racionalismo moderno ataca a tese que estabelece a noção de
subjetividade – ou individualidade em termos ético-políticos – como a mediação necessária e
universal através da qual se fundamenta a ordem e o direito da associação política. Nestes
termos, para Schmitt, o problema da Vermittlung significa o problema da legitimação de uma
ordem, pois o argumento principal é que, nesta fase inicial do seu pensamento marcado pela
busca da mediação racionalista fora do sujeito, o mecanismo de mediação é fático, porém
busca sua validade na medida em que consegue representar a forma abstrata. O problema
lógico, político e filosófico da mediação e da forma racional se expressa no pensamento de
Schmitt através da busca desse meio capaz e articular coerentemente validade e faticidade,
como representação. Em termos gerais, Schmitt discorda da mediação moderna como relação
racional que o sujeito institui com o objeto e com o qual determina a produção de ordem e
conhecimento, pois, para ele, a mediação entre ser e dever-ser se dá, na verdade, inicialmente
no Estado; após, porém, na denominada teoria da exceção, a mediação dar-se-ia através da
categoria da Entscheidung: o autor abandona o formalismo proveniente do idealismo
transcendental e do contratualismo, bem como as teses hegelianas e passa a apostar em uma
instância concreta que estabelece a ordem fática sustentando sua legitimidade a partir de uma
ordem de direito, tornando-se uma ordem ou Estado de direito ou ainda uma decisão concreta
sobre a forma de direito.
A mediação racionalista moderna é, sobretudo, uma grandeza subjetiva, ou seja, a
ação do sujeito é criadora da representação: produção e construção da imagem racional do
mundo sustentada por uma concepção subjetivista que concede sentido e ordem à realidade, à
questio facti – um mundo sem nenhuma configuração ou ordem prévia e, portanto, submetido
à capacidade ordenativa do sujeito cuja qualificação é posterior e determinante. A realidade
seria um apanhado de fatos brutos enquanto a atividade racional do sujeito se constituiria no
fator capaz de organizá-la. Nestes termos, a forma moderna de mediação assume como
condição necessária a ausência de substância, isto é, a objetividade do mundo moderno seria
uma ordem racional artificial, uma ordem produzida que deixa ausente ou inacessível o parti
pris da metafísica moderna que pretendiam ser capazes de maneira imediata das relações ou
195

objetos não racionais ou da desordem na vida política. Do ponto de vista político, a


modernidade é constituída a partir dessa ausência de forma e de ordem, pois em sua
constituição íntima experimenta uma cesura entre norma e realidade, validade e
experiência107.
A modernidade como uma construção racional e científica de um espaço dentro do
qual haja ordem e segurança consiste na execução da mediação moderna de um ponto de vista
político construído por obra dos sujeitos racionais, livres e iguais. Dessa forma, como livres e
iguais, porém destituídos de medida e forma, o poder político não é a condição inderrogável,
transcendente de uma ordem natural, mas produto da ação dos sujeitos. A mediação política
moderna seria a construção do âmbito da coexistência pacífica e como tal artificial, pois
projetada e construída através de um contrato entre os sujeitos que revela a mediação
racionalista tanto construtiva quanto discursivamente e não como naturalmente sociáveis.
Assim, a soberania se torna o problema fundamental da política moderna: da coexistência de
sujeitos de direitos e organizados como cidadãos a partir da produção da identidade política
através do sistema de obrigação dos sujeitos por meio da autorepresentação soberana que se
dá através da forma-de-lei, ou seja, o comando do soberano cuja universalidade abstrata os
particulares se identificam. Nestes termos, do problema da mediação racionalista entre
realidade e pensamento, imanência e transcedência ou sujeito e objeto torna-se o problema da
mediação política e jurídica que, durante a modernidade resultaram nas teorias do Estado,
mais especificamente, na teoria da soberania. Neste ponto, reside a transformação dos direitos
naturais dos sujeitos particulares em direitos civis dos cidadãos, bem como na juridificação da
política através da soberana representação. A mediação política moderna é a construção
artificial de uma unidade política na soberania e possui como meio fundamental a forma-
Estado como meio homogêneo. Evidentemente, o conceito de poder que expressa esse
fenômeno buscava uma legitimação, de justificação racional que foi desenvolvida pela
reflexão política que surge, sob o signo fundamental da transformação moderna, em meados
do século XVII. Daí, metodologicamente, delimita-se a pesquisa aos fenômenos modernos,
precisamente neste momento no qual a cesura de que se trata aparece plena de contradição
reproduzida ad nauseum em todo pensamento posterior.
Neste contexto, é necessário demonstrar ainda, outros conceitos fundamentais da
filosofia política moderna. Esta transformação da modernidade representa o princípio
hermenêutico da fratura que se persegue nesta pesquisa. Desaparece o mundo objetivo no qual
107
Cf. WSBE, pp. 45, p. 108-109.
196

orientar-se e surge como problema fundamental, eminentemente moderno, qual seja, a


pergunta acerca da legitimidade do poder soberano que não está ligado ao significado de
majestas (como nos antigos tratados de política) ou às diferentes potestates (inseridas numa
ordem hierárquica). O pensamento de Schmitt, resolutamente anti-universalístico, antiliberal e
anti-Aufklärung é, precisamente, uma crítica à modernidade diante da crise da mediação
moderna e da forma racional no mesmo momento em que no século XX esta se reveste como
técnica e formalismo jurídico que constroi uma ciência jurídica orientada ao normativismo
dominante. O reconhecimento desta crise da modernidade e sua exaustão reside na cisão
radical entre subjetividade e objetividade e, enfim, da dissolução tanto do sujeito liberal
quanto da objetividade do Estado. Por conta da análise de Schmitt da cesura moderna
apontada, o autor sistematicamente argumenta contra a questão da mediação racionalista e a
forma política representada através das formas degeneradas do liberalismo, do
parlamentarismo e do positivismo jurídico do século XX. Neste sentido, de maneira diferente
do racionalismo moderno, a imediatidade não racional como origem de uma forma, entre
realidade sem ordem e Ideia de ordem, não possui uma mediação (nem esta tem na sua origem
um sujeito), mas tão somente uma separação zusammenhanglosigkeit de princípio que Schmitt
denomina, posteriormente, de exceção concreta mesmo que a Ideia seja pressuposta. Assim,
exceção e Ideia tornam-se as origens da política tal como uma mediação entre ordem e
desordem, transcendência e imanência: assegura à decisão soberana uma função de mediação
pela representação e ordena uma forma concreta. Dessa forma, esta ação política assume
ambos os lados da origem e constitui a ordem.
Conforme a hipótese desta tese, o projeto de mediação do racionalismo moderno
sofre uma reversão inescapável através da inserção do argumento do finitismo: a origem da
política não reside na razão do sujeito ou do Estado, mas na crise e na decisão sobre a
exceção, numa palavra, na contingência. Este argumento não se enquadra na lógica do
racionalismo moderno porquanto não é estabelecida através do contrato (que exclui da
mediação a negatividade e o conflito) nem através da síntese dialética (que inclui o
racionalismo). Além disso, a obra de Schmitt demonstra as estações por que passa a recusa do
racionalismo desde o formalismo até o pensamento da ordem concreta: a importância do papel
que as noções de conflito e diferença desempenham– avessas à concepção da mediação
moderna e sua forma racional – implica na rejeição de juridificação da política e, por
conseguinte, uma flexibilização da forma uma vez que sempre contingente, pois resultado de
uma ação política marcada pela faticidade, não é mais determinante da ação política.
197

A renúncia schmittiana à objetividade e à subjetividade moderna baseada no


argumento da forma da mediação racional é necessária e impulsiona suas reflexões para
outros conceitos como constituidores da ordem: se a ordem não se fundamenta através de uma
mediação discursiva, muito menos, através da técnica nos conceitos e nas instituições
políticas especificamente modernas, mas sim em um mecanismo de decisão e de
representação – e, posterioremente, de relação e afeto – a imediatidade concreta da exceção
surge como argumento finitista que articula imanência e transcendência, mesmo que a
concretude da ação ainda careça de legitimidade ou autonomia já que pressupõe o postulado
da secularização que compreende o político como mediação. Está em processo, porém, uma
investigação genealógica acerca da ordem: a tese que sustentamos é que, nas investigações,
Schmitt abandona a mediação e racionalidade modernas em vista da não-racionalidade e
imediatidade na constituição da ordem como resposta à crise da teoria moderna. Nas seções
seguintes, propomos uma análise dos argumentos de Schmitt com ênfase nos textos de 1914
(Der Wert des Staates und die Bedeutung des Einzelnen), de 1921 (Die Diktatur), de 1922
(Poltische Theologie) e de 1923 (Römischer Katholizismus und politischer Form),
demonstrando o deslocamento do pêndulo schmittiano: do transcendente para o imanente, da
mediação para a imediação como tratamento da crise do racionalismo moderno.

* * *

A teoria normativista de Schmitt em Der Wert des Staates und die Bedeutung des
Einzelnen considera o primado do direito sobre o Estado, pois este ao se manifestar na esfera
fática do poder necessita qualificar-se como legítimo a partir da referência àquele, alcançando
sua justificação (Rechtfertigung). O paradigma da mediação racionalista moderna, tal como
descrito a pouco, é rejeitado por Schmitt inicialmente através das obras Über Schuld und
Schuldarten (1910) e Gesetz und Urteil (1912), depois, com maior ênfase, em sua fase ainda
racionalista ou formalista, em Der Wert des Staates (1914) até sua elaboração mais madura
em Die Diktatur (1921) e Politische Theologie (1922) quando abandona e critica tanto a
procedência kantiana quanto a hegeliana e desenvolve, segundo a interpretação que se faz a
seguir, um realismo fraco em teoria política. O problema é descrito como a exaustão do
modelo juspositivista, especificamente o logicismo kelseniano, que distingue realidade e
norma, tornando-se impotente diante da Rechtsverwirklichung – constituição da realidade
conforme o direito – além das críticas à legalidade estritamente formalista e a tese da ausência
de lacunas do ordenamento jurídico108. A tarefa imposta nesta fase do pensamento schmittiano
108
GU, pp. 4-9; contra o neokantismo, cf. WSBE, p. 60-66.
198

consiste na articulação de uma forma concreta com a exigência da Ideia de direito abstrata a
partir de um momento da negatividade. De forma geral, a tentativa do autor é pensar a política
a partir de uma origem comum que vincule Macht e Recht sem recair nas unilateralidades
representadas seja pelo realismo tradicional (Machtpolitik) seja pelo racionalismo (na forma
de um normativismo). A aporia da modernidade impõe como exigência a reflexão sobre uma
nova relação entre razão e forma política que nem a mediação racionalista nem a mediação
dialética através dos conceitos de sujeito e de Estado conseguem dar conta diante das críticas
a tais paradigmas, resultando no descrédito da política como Recht, ou seja, da forma racional
moderna do Estado de direito como juridificação da realidade social e política.
O argumento do Der Wert des Staates é expresso no trecho: “o direito como norma
pura, possui valor, independentemente de qualquer justificação fática”109. Na medida em que
sustenta essas duas esferas, Schmitt propõe o Estado como a instância concreta que possui a
tarefa da realização do direito ao captar a ideia de direito e torná-la efetiva na realidade do
mundo empírico de modo que na série de elementos proposta – Direito, Estado e Indivíduo –
o medium estatal articula adequadamente aquelas outras duas esferas, o ideal jurídico e o
empírico individual110. Assim, Schmitt afirma a tese do primado do direito sobre o Estado ao
defini-lo – isto é, justificá-lo – se e somente se estiver em relação com a norma pura que o
precede111. Esta tese racionalista leva a outra ainda mais radical, qual seja, a de que há uma
separação entre direito e ética, ou melhor: a norma jurídica torna-se heterônoma, pois é o
Estado e não o indivíduo que se torna fundamento da vida pública. Consequentemente, na
filosofia do direito público e do Estado na fase pré-weimariana do jovem Schmitt, há uma tese
lógico-normativa problemática a qual assevera que não há Estado que não se configure como
Estado de direito112, expressando o insuperável abismo entre norma pura e sua realização,
entre direito e fato, diferença entre direito e poder como o antagonismo fundamental que

109
O trecho inteiro em WSBE, p. 10 afirma: “Das Recht, als reine, wertende, aus Tatsachen nicht zu
rechtfertigende Norm stellt logisch das erste Glied dieser Reihe dar; der Staat vollstreckt die Verbindung dieser
Gedankenwelt mit der Welt realer empirisches Einzelwesen, verschwindet, um vom Recht und dem Staat, als der
Aufgabe, Recht zu verwirklichen, erfaßt zu werden und selbst seinen Sinn in einer Aufgabe und seinen Wert in
dieser abgeschlossenen Welt nach ihren eigenen Normen zu empfangen”.
110
Sobre a reconstrução dos argumentos de Schmitt contidos no texto WSBE, inclusive sobre o paralelismo entre
Schmitt e Kelsen, cf. HOFMANN, 2002, p. 38-46. WSBE, p. 56 “Welche Bedeutung dem staatlichen Gesetz
dabei zukommt, wird sich aus der Erklärung des Staates ergeben müssen, ebenso wie die Gliederung der Werte,
in der Recht, Staat und Individuum durch die zur allgemeinsten Grundlagen genommene Vorherrschaft des
Rechts gruppiert werden. In der Mitte dieser Dreiteilung steht der Staat”.
111
WSBE, p. 50 “Das heißt, da eine solche Gesetzlichkeit nur im Recht gefunden werden kann, daß das Recht
nicht aus dem Staat, sondern der Staat aus dem Recht zu definieren, der Staat nicht Schöpfer des Rechts, sondern
das Recht Schöpfer des Staates ist: das Recht geht dem Staate vorher”.
112
WSBE, p. 52 “Damit ist der Primat des Rechts begründet. Die lediglich faktische Gewalt vermag sich an
keinem Punkte zu irgend einer Berechtigung zu erheben, ohne eine Norm vorauszusetzen, an der sich die
Berechtigung legitimiert”.
199

permanece estrutural ao seu pensamento, mesmo com a mediação do Estado. Entretanto,


embora o Estado seja considerado o realizador do direito que possui a função de mediação
entre direito e poder, ser e dever-ser, faticidade e validade, ele é compreendido estritamente
como organização fática da força que carece da autorização da esfera jurídica. Dessa forma,
Schmitt partilha da tradicional distinção entre potestas e auctoritas e da diferença entre essas
duas esferas, porém almeja a realização da norma pura através de medium concreto que
representa tal idealidade no ato mesmo da sua legitimação. A unidade entre normatividade e
faticidade no Estado por meio do direito positivo resolve o problema da legitimidade por um
viés ainda normativo, porém o problema da relação entre realidade racional e existência fática
prossegue ainda insolúvel, pois diferentemente de Hegel, Schmitt, nesta fase, não admite
qualquer comunicação substancial entre estas esferas, mas apenas uma forma fenomênica que
representa o direito no mundo empírico.
Desde o texto de 1910 Über Schuld, onde afirma que a culpa na sua concretude não
se submete à dedução normativa, e do texto de 1912 Gesetz und Urteil, no qual sustenta que o
problema central do direito é a relação entre norma e caso concreto, cuja ligação não é
estabelecida de imediato, Schmitt se aproxima da antítese kantiana entre Sein e Sollen através
da reflexão sobre o significado da decisão judiciária como uma superação dialética no ato da
práxis jurídica. Entretanto, o argumento da Rechtspraxis contido no escrito de 1910 passa ao
centro em Der Wert des Staates sob a denominação da Rechtsverwirklichung (normas de
realização do direito) para demonstrar a articulação entre direito e Estado. A partir disso,
Schmitt desenvolve a distinção entre Rechtsnorm (normas de direito) e Rechtsverwirklichung
com o intuito de uma legitimação racional do poder na qual o Estado como instância concreta
possui a tarefa de captar a ideia de direito e torná-la efetiva na realidade do mundo empírico.
Na série de elementos expostas em Der Wert des Staates – Direito, Estado e Indivíduo – o
medium estatal articula o ideal jurídico e o empírico individual, porém o autor ainda sustenta a
tese do primado do direito sobre o Estado ao definir esta instância – isto é, justificá-lo – se e
somente se estiver em relação com a norma pura que o precede. Desse modo, logo no ponto
de partida, Schmitt assume as problemáticas teses e dualismos neokantianos do início do
século XX entre norma pura e realização da norma, entre direito e poder ou transcendência e
imanência: esta é a cisão que estrutura a ordem política moderna, pois mesmo como mediação
realizadora do direito, o Estado seria uma mera organização da força que carece a priori da
autorização (validade) da esfera jurídica. Consequentemente, na fase pré-weimariana, há uma
tese lógico-normativa segundo a qual não há Estado que não se configure como Estado de
direito, pois “ao conceito de Estado pertence o conceito de poder (die Macht), assim como
200

apenas o fenômeno empírico (empirische Erscheinung) pode vir a comprovar tal poder (…) a
autoridade do Estado reside, porém, não no poder, mas sim no direito, que o traz e o realiza
(Ausführung)”113. Assim, por conta da necessidade de adequação entre estas instâncias, a
tarefa do poder de realizar a norma de direito consiste em uma representação, mesmo que a
forma de direito ideal nunca seja realizada por completo e, por isso mesmo, haja uma
impossibilidade, em última instância, da realização da justiça. A tese da separação entre a
universalidade da norma e a particularidade da realidade empírica expõe um meio, o Estado,
que põe em marcha a secularização no sentido de uma mediação entre um elemento
transcendente e o saeculum ao operar a introdução da ideia no mundo, isto é, a estrutura
metafísica entre ser e aparecer que serve de paradigma formal da legitimação da ação política
através do mecanismo da representação. Este é o teorema da secularização para Schmitt:
busca-se efetivar a forma ou ideia de direito. Por meio desta função legitimadora da ordem, o
positivismo é rejeitado como mera autoafirmação dos fatos, da subjetividade ou do arbítrio,
ou seja, como uma instância da contingência e, por isso, mostra sua incapacidade de validação
da ação política, embora se reconheça que a separação pressuposta entre ideal e empírico é
resolvida apenas parcialmente pela representação da forma através do Estado de direito. Esta
é uma tese dualista (não há efetivação do ideal no concreto) e normativista (anterioridade e
superioridade da forma) que, numa primeira leitura – da ação racional legitimadora entre
normas de direito e normas de realização de direito e primazia daquelas – mostra-se estranha
ao desenvolvimento posterior do realismo schmittiano, mas que prepara o contexto inicial
para a compreensão dos argumentos da exceção, decisão, político, etc., pois apresenta as
questões trazidas pela separação assumida entre imanência e transcendência.
Entretanto, neste texto de 1914, apesar de formalista, Schmitt já desenvolve uma
estratégia finitista. A tese racionalista possui como contrapartida uma proposta de corruptela
do jusnaturalismo que altera significativamente a concepção de direito pressuposta. Trata-se
de um peculiar Naturrecht ohne Naturalismus (direito natural sem naturalismo), isto é, o
direito seria uma estrutura formal carente de poder para a determinação do seu conteúdo. Em
outras palavras, haveria apenas a exigência da forma de direito, mas não um conteúdo pré-
determinado. Assim, embora a organização do poder fático se justifique através da vinculação
à forma do direito pré-estatal, a determinação do conteúdo é concreta e, por isso, contingente.
Esta estrutura seria um desvio em relação ao normativismo ou à limitação do poder seja

113
O trecho inteiro está em WSBE, p. 71: “Zum Begriffe des Staates gehört daher die Macht, so daß nur die
empirische Erscheinung Staat gennant werden darf, die solche Macht bewährt (…) Die Autorität des Staattes
liegt trotzdem nicht in der Macht, sondern im Recht, das er zur Ausführung bringt”.
201

através do direito natural seja através do constitucionalismo moderno: uma espécie de Razão
de Estado racionalista, uma vez que apesar da representação da ideia de direito, qualquer
conteúdo poderia ser posto. O argumento de Schmitt segundo o qual a ordem seja
determinada pelo Estado que teria a prerrogativa de efetivar seus conteúdos desde que os
constituísse como ordem jurídica também se diferenciava do positivismo jurídico já que
conservava uma instância não empírica como fundamento da validade estatal. Apesar do
decisionismo precoce e da necessidade de distinguir-se do positivismo, o pressuposto
schmittiano do direito natural força o autor a reconhecer em Der Wert des Staates uma ordem
racional superior e anterior ao poder. Esta transcendência ao poder caracteriza um
normativismo ou, na melhor das hipóteses, um tipo de realismo fraco, pois a estrutura da
mediação moderna exige a compreensão da ação política vinculada à cisão transcendência-
imanência da razão e do poder, isto é, a legitimidade ainda é compreendida como adequação
entre ação e direito que Schmitt assume como pressuposto: ordem e unidade da representação
por meio de um princípio normativo114.
Apesar disso, ainda na teoria pré-weimariana, surge uma concepção de ação política
deslocada do paradigma da transcendência. A solução da mediação racionalista assegura
apenas formalmente a legitimidade e a unidade da ordem a partir da representação de uma
instância externa ou configuração de uma forma na realidade concreta, mas não dá conta da
cisão entre instância da validade e da faticidade: mantém-se o problema da indeterminação
entre universal e particular. Schmitt assume a diferença entre as instâncias, o ideal como
separação do real e neste, ausência e perda irrecuperáveis – aliás, este diagnóstico do hiato
insolúvel entre as esferas será um dos argumentos centrais na transição de sua teoria e,
posteriormente, afirmação do político como finitude, como demonstramos no capítulo 3. A
particularidade da ação não guarda continuidade necessária com a racionalidade; pelo
contrário, a ideia de direito demonstra e realça a contingência e descontinuidade entre
transcendência e imanência. A contingência da validade da ordem política vincula a ação
política (quantidade de força) à exigência de ordem para ser considerada autoridade e justiça
(qualidade do direito). No entanto, cada vez que tenta aproximar estas instâncias mais se
arrisca a dissolução da segurança jurídica e da estabilidade institucional ao perceber a
diferença entre direito e decisão política ou entre racionalidade e ação como distintas da
lógica da subsunção. Neste contexto, Schmitt sacrifica o conceito de político e lança mão de

114
Neste trecho, assumimos em parte a interpretação de Alexandre Sá (SÁ, 2003). Embora o scholar português
tenha uma leitura original ao perceber um decisionismo já no Der Wert des Staates justificado racionalmente,
acredito que a matriz normativa ainda é fundamental na fase pré-weimariana. Sobre isso, nosso capítulo anterior
e seção 2.2 e 2.3 deste capítulo.
202

uma solução normativa diferente segundo a qual o Estado seria, necessariamente, uma função
da secularização, ou seja, o único meio pelo qual o direito pode ser realizado e, ao realizá-lo,
transforma ordem em ordem jurídica através da mediação racional como processo legitimador
do poder que passa a ser revestido com o atributo de soberania: afinal, surge o argumento da
progressiva concretização da matriz teológica que desempenhará papel importante na sua
teoria política.
A partir disso, o jurista alerta para o perigo de determinação da ordem fora do direito,
isto é, determinação a partir da imanência, contra a “força normativa do fático” característica
do positivismo. Para ele, ao afirmar a secularização, a ação exige a distinção entre forma e
experiência, através da qual consegue o critério da racionalidade do poder. Assim, ao manter a
distinção entre universal e particular, Schmitt por um lado justifica o Estado a partir da ideia
de direito mesmo ao preço de uma cisão irrecuperável entre as instâncias; por outro, cai numa
armadilha incômoda, pois considera a força ou a violência (a ação política) – portanto um
modo da faticidade – como determinante na realização da ideia e, ao concretizá-la, força
legítima. O critério para validade se dá quando a força nega-se como faticidade e representa
na experiência a dimensão ideal ao realizar o direito. Esta forma abstrata, no entanto, depende
de uma força contingente que se impõe para realização do direito, porém prossegue, mesmo
legitimada, ainda como força ou violência autorizada: não soluciona, antes alarga ainda mais a
separação entre realidade e ideia. Não há identidade entre ser e aparecer, nem a pressuposição
de que a violência seria apenas o início externo ou fenomenal dos Estados e não seu princípio
substancial, pois, diferentemente de Hegel, a mediação do Estado não soluciona o caráter
contingencial da realidade, a cisão entre ideal e real continua para Schmitt uma vez que a
mera quantidade de poder não se torna legitimidade: há separação entre poder e direito que a
mediação racionalista não soluciona. Daí a importância da estrutura representativa e da
secularização como relação entre metafísica e política uma vez que a transcendência garante
unidade e legitimidade à ação estatal que ordena e representa o universal no particular,
enquanto a realidade prossegue marcada pela negatividade, pois o direito é contrafático e o
político um modo de instituição e representação da ideia. Este argumento do finitismo ou da
separação entre transcendência e imanência desempenhará um papel cada vez maior na
argumentação schmittiana; bem como, a noção de ausência (normativa) será retomada em
outro nível: a indeterminação entre as instâncias demonstra a impossibilidade da decisão a
partir da norma e, posteriormente, é tratada através do argumento da decisão fora da lei ou
exceção. Mesmo com o esforço de uma justificativa racional para a ação e autoridade do
Estado, o argumento finitista problematiza a relação entre imanência e transcendência e
203

instaura um ceticismo quanto às teorias políticas normativas que explica, sob a hipótese
proposta, a ruptura das obras seguintes no final da década de 1920.
Esses argumentos e teses colhidos no texto de 1914 empresta às investigações
realizadas até aqui a seguinte posição de partida: há em Schmitt o reconhecimento da
contraposição entre ser e dever-ser, poder e direito, imanência e transcendência como
instâncias incomunicáveis, separadas de maneira a produzir um dualismo fundamental que
concede, no máximo, uma representação da ideia no mundo. Entretanto, esta dualidade é
parcialmente solucionada pela concessão do primado do direito como idealidade e da norma
pura diante do momento da negatividade. Tal instância abstrata empresta ao Estado sua
Rechtmäßigkeit (legitimidade), pois a organização do poder fático só alcança sua justificação
através da vinculação ao direito como norma pura pré-estatal que diante do momento da
negatividade da decisão concreta estatal sobre a forma jurídica torna-se efetiva, mesmo que de
uma maneira não necessária, pois em Schmitt, diferentemente de Hegel, esta forma jurídica é
abstrata, mas sua concretização é um ato de decisão soberano (Akt souveräner Entscheidung)
de representação desta forma abstrata como forma concreta, porquanto o momento do Estado
é marcado pela contingência radical da esfera fática. Assim, faz sentido a declaração de
Schmitt que “entre cada concreto e cada abstrato há um abismo insuperável” 115. Como
consequência, Schmitt admite que a realidade fática seja conformada de acordo com o
imperativo da realização do direito, sobretudo, no que concerne à ordem pública, sua
constituição conforme a regra universal e abstrata que deve, necessariamente, conduzir-se
como mediador e garantidor do direito.

* * *

No entanto, ainda perseguindo o tema da realização do direito, Schmitt arrola em sua


reflexão um argumento elegante que, ao final, provoca uma radical transformação no seu
pensamento, pois ao investigar a forma concreta através da qual o direito pode ingressar na
realidade empírica dotando-lhe de ordem, ele argumenta que essa tarefa da realização do
direito, conforme descrita acima, é possível apenas em uma situação de relativa estabilidade
da ordem pública. Ora, precisamente neste momento da sua argumentação há a inversão para
sua tese exposta posteriormente em Die Diktatur e, de forma definitiva, em Politische
Theologie, uma vez que destruída as condições para a constituição da ordem jurídica na
realidade concreta, faz-se necessário que a organização fática do poder pusesse de lado a
medida ideal, portanto o imperativo das normas de realização do direito, para intervir na

115
WSBE, p. 80: “Zwischen jedem Konkretum und jedem Abstraktum liegt eine unüberwindliche Kluft”.
204

situação desordenada com o intuito de reconstituir a segurança e a ordem pública, inclusive


utilizando, se necessário, de mecanismos de violência. Nesse sentido, a contraposição entre
norma jurídica e norma de realização de direito torna-se outra: contraposição entre norma
jurídica e norma de ação técnica com o intuito de criar a ordem fática na qual, eventualmente,
a ordem jurídica pudesse ser aplicada.
A partir de então, ao contrário do texto de 1914, deixa de se enfatizar o momento
ideal da norma e volta-se para a decisão estatal que ordena a realidade de modo a possibilitar
a Rechtsverwirklichung. A transformação, embora sutil, é relevante o suficiente para alterar o
enquadramento teórico dado à questão e marca um primeiro deslocamento provocado pelo
argumento da finitude, pois se no texto de 1914 Schmitt desenvolve uma teoria do Estado
como mediador necessário entre a norma pura e a realidade concreta e, desse modo, portador
da tarefa de realizar o universal no particular que o torna necessariamente Estado justificado
pelo direito; no texto Die Diktatur (1921)116 o autor preocupa-se ainda com o problema da
contraposição entre normas jurídicas (ideal) e normas de realização de direito (positivas),
porém a partir de uma atenção maior ao Estado como instância empírica de organização do
poder fático, ou seja, a ênfase recua da norma abstrata para a realidade empírica, entendida
neste texto de 1921 como decisão política – não meramente decisão jurídica – sobre a situação
concreta. O agente desta decisão é, conforme Schmitt, o soberano que se constitui como
estrutura originária concreta da ordem exposto ao problema da exceção que põe em dilema a
opção nova entre normas de realização de direito e normas de ação técnica. Essa
transformação inverte o primado da transcendência para imanência, do ideal para o real, em
outras palavras, a instância determinante da constituição da ordem jurídica é, a partir de então,
concreta, entretanto, a exigência da forma continua referindo-se à esfera abstrata. Assim,
surge o realismo político schmittiano, porém por conta desta exigência contínua e incessante
da norma de direito ideal diante da norma de realização do direito, mesmo num caso de
exceção concreta que exige normas de ação técnica, pode ser denominado nesta pesquisa por
tal postura de realismo fraco: Schmitt inverte o primado da norma para a realidade, isto é, do
direito para a decisão sobre o direito e, ao realizar essa manobra, tem o intuito de escapar
tanto do normativismo abstrato quanto como positivismo trivial, pois a ordem jurídica que
analisa tem uma origem concreta, mas também corresponde a uma instância ideal,
configurando uma Kehre fundamental no seu pensamento ao apontar a origem não racional da

116
No ensaio Diktatur und Belagerungszustand de 1917, Schmitt já avistara a dimensão do problema entre
normas de direito e normas de realização de direito que pressuporiam uma situação fática propícia ao
ordenamento pelo Estado a partir daquelas normas. Entretanto, quando há uma situação de sítio ou de exceção
não é possivel seguir tal regra racionalista.
205

ordem política como co-pertencimento entre violência e forma que, afinal de contas,
possibilita a ordem jurídica, mesmo pressupondo ainda uma estrutura bipolar entre imanência
e transcendência.
Nesse sentido, após a investigação da consistência da mediação racionalista e da
reprovação da sua capacidade de elaborar em uma forma jurídica a articulação entre
concretude e Ideia, a rigor, a estrutura moderna estaria obliterada nesta clivagem originária;
ao invés, segundo ele, é necessário buscar em uma forma concreta o nexo entre
particularidade e universalidade que conforme os textos da Die Diktatur e Politische
Theologie estaria co-implicados no momento da exceção através da figura da Souveranität
(soberania), pois em contraposição ao dualismo entre transcendentalismo e historicismo, na
teoria da soberania Schmitt propõe o nexo entre faticidade e validade a partir da relação entre
decisão sobre o caso de exceção e representação da ideia de direito. Nestes termos, o autor
consegue superar a tese positivista ao articular uma forma jurídica originalmente política, pois
vincula ideia de direito e realidade concreta a partir da negatividade como a seguir se
demonstra.

2.3. Política da exceção: o problema teológico-jurídico como a questão pela


ordem

A partir da elaboração da teoria da Entscheidung nos primeiros escritos, Schmitt


desenvolve a teoria da Ausnahmenzustand perseguindo o problema da mediação (Vermittlung)
entre ideia de direito e realidade concreta, isto é, sua proposta que inicialmente é esboçada por
meio de uma mediação racionalista e encontra no Estado a principal expressão de realização
do direito abandona o paradigma individualista e juridicista das teorias modernas, mesmo
prosseguindo com a tese da incomunicabilidade entre esfera do direito ideal e esfera da
realidade empírica, esfera da validade e esfera da faticidade. O que está em jogo para Schmitt
durante a década de 1910 não é tanto a resolução do abismo entre quaestio facti e quaestio
iuris, entre ser e dever-ser, mas sim a proposta de uma mediação que torne possível uma
forma concreta e, dessa maneira, uma organização do poder político que se compreenda como
legítimo. Por isso, a permanência da descontinuidade entre imanência e transcedência no
Rahmentheorie schmittiano é, pois, no fundo, segundo o autor, pelo motivo de não haver uma
vinculação necessária entre as esferas do dever-ser e do ser, sendo a realidade empírica
marcada por um desamparo normativo originário, isto é, pelo domínio da contingência e da
206

não juridicidade. Neste contexto, nos escritos posteriores ao de 1914, Schmitt continua o
esforço na proposta de uma teoria jurídico-política (filosofia do Estado e do direito e teoria do
poder) que realize a ideia de direito e consiga auferir sua legitimidade a partir da idealidade
abstrata das normas, porém com algumas modificações fundamentais que vão configurar um
novo topoi: o novo argumento desloca a investigação da norma abstrata e da norma de
realização do direito para a consideração das situações fáticas que permitem tal realização. De
fato, apoia-se em uma concepção carregada por um realismo, porém moderado ou fraco e
adquire significado e relevância na elaboração no texto de 1921 Die Diktatur sobre o conceito
de ditadura (comissária e soberana) e, de forma mais explícita no texto da Politische
Theologie de 1922117.
Após isso, Schmitt conduz suas discussões até a elaboração do conceito de exceção
(Ausnahmen), isto é, uma situação onde fático e normativo se indistinguem, tornando-se,
entretanto, a condição de possibilidade concreta para a efetivação da ordem. Dessa maneira,
ocorre um deslocamento semântico do termo Entscheidung: no seu duplo significado
constante de origem da ordem e de manutenção da ordem, é inserido no interior do direito
como um dispositivo mediador entre norma e realidade que desempenha tanto a função de
mediação originária não normativa que captura o ideal jurídico para realizá-lo no mundo
empírico quanto a função de manutenção ou criação da ordem concreta no caso crítico
(Ernstfall), pois uma norma jurídica pressupõe uma normalidade fática. Apesar de solucionar
a questão da mediação entre ser e dever-ser ao propor um nexo constitutivo originário entre
forma jurídica e realidade concreta (konkreten Wirklichkeit), a teoria schmittiana da exceção
revela, para todos os efeitos, o conceito de Entscheidung como algo que estabelece a ordem
jurídica, no interior do direito, porém fora da história. Embora não seja deduzível
racionalmente de um fundamento normativo-abstrato – pois a exceção significa uma situação
fática de indistinção entre situação de fato e situação de direito, quaestio iuris e quaestio facti,
a partir da qual se requer a decisão e através da qual se dá a legitimidade fática do poder –
esta se mostra exterior à imanência da constituição e da experiência histórico-política, pois,
em última instância deve sua configuração jurídica à ideia de direito. E mais: a justificação da
validade da ordem nunca se dá a partir da esfera fática – pressuposto – mas apenas da relação
que ainda perdura entre normas de direito e normas de realização de direito que, afinal,

117
É necessário observar que já no texto de 1914 há uma continuidade entre o uso da temática da Dezision e o
pensamento posterior de Schmitt, ou seja, a relação entre a decisão concreta e o horizonte da ideia de direito.
Evidentemente, em Politische Theologie a decisão a que se refere Schmitt – seja Dezision seja Entscheidung –
desempenha um papel cada vez maior tornando-se, diferentemente, por exemplo, do texto de 1912 Gesetz und
Urteil e do texto de 1914 Der Wert der Staates und die Bedeutung des Einzelnen, para a constituição da ordem e
da forma jurídico-política.
207

emprestam sua legitimidade, no fundo, ainda racionalista. Assim sendo, a seguir são
analisadas as teses do autor em relação ao seu realismo fraco ou moderado.

(I)

No texto Die Diktatur, Schmitt investiga o significado deste conceito central da


teoria do Estado e da teoria da Constituição designado como “o problema da exceção
concreta”118. A ditadura consistiu da era da República romana até o século XVIII como um
mecanismo legítimo para o reestabelecimento ou preservação da ordem jurídico-política,
tendo em vista o exercício do poder excepcional autorizado pelas instituições em apuros. Se a
tese levantada no texto Der Wert des Staates põe a relação entre normas de direito e normas
de realização de direito, o texto de 1921 coloca em questão essa tese ao arguir, precisamente,
o pressuposto fático desta efetivação do direito e demonstrar a contigencialidade originária da
ordem jurídica, isto é, transforma a contraposição anterior na oposição entre normas estatais
de realização do direito e normas de ação técnica (sachtechnische Aktionsregel). A ditadura é,
segundo Schmitt, o conceito jurídico que permite reconhecer uma Aktionskommission que
consiste numa autorização limitada para executar aquilo que for necessário desde que se
alcance determinado fim na realidade empírica119. Em geral, conforme a distinção
schmittiana, o ditador tem a autorização de infringir as limitações que são lhe postas pela
ordem jurídica e constitucional desde que sua ação seja dirigida para restaurar a ordem
pública e tornar a realidade empírica estável para que possa haver uma ordem jurídica e, dessa
forma, o direito seja efetivado quando do afastamento do perigo, da conturbação ou crise
fática, por exemplo, uma guerra ou crise econômica que coloque a ordem sob risco. A partir
de então, a ação no caso concreto orientado por um determinado objetivo empírico (a
reconstituição da ordem fática) é considerada o pressuposto ou o fundamento da ordem
jurídica que, a contrario senso, precisa pressupor sua suspensão mediante a ação técnica do
ditator para ser conservada e reestabelecida120. A eliminação dos obstáculos à realização do
direito é o objetivo a que se presta a ditadura, porém a ação do ditador não é, por si,

118
DD, p. XVIII: “Abstrakt gesprochen, wäre das Problem der Diktatur das in der allgemeinen Rechtslehre
bisher noch wenig systematisch behandelte Problem der konkreten Ausnahme“.
119
DD, p. XVIII: "Gerade aus dem, was sie rechtfertigen soll, wird die Diktatur zu einer Aufhebung des
Rechtszustandes überhaupt, denn sie bedeutet die Herrschaft eines ausschließlich an der Bewirkung eines
konkreten Erfolges interessierten Verfahrens, die Beseitigung der dem Recht wesentlichen Rücksicht auf den
entgegenstehenden Wille eines Rechtssubjekts, wenn dieser Wille dem Erfolg hinderlich im Wege steht;
demnach die Entfesselung des Zweckes vom Recht".
120
DD, p. XVIII-XIX: "weil alles berechtigt wird, was, unter dem Gesichtspunkt des konkret zu erreichenden
Erfolges betrachtet, erforderlich ist, bestimmt sich bei der Diktatur der Inhalt der Ermächtigung unbedingt und
ausschließlich nach Lage der Sache; daraus entsteht eine absolute Gleichheit von Aufgabe und Befugnis,
Ermessen und Ermächtigung, Kommission und Autorität".
208

fundamentada por nenhuma norma, mas apenas pela necessidade fática do caso concreto.
Dessa argumentação decorre o paradoxo da exceção o qual afirma que para a realização das
normas de direito é necessário a ação soberana na realidade empírica que, paradoxalmente,
suspende as normas de direito para torná-las efetivas em um momento posterior depois do
reestabelecimento da ordem fática. O problema da ditadura torna-se, portanto, o problema da
exceção concreta (DD, p. XVII).
A ditadura não se confunde com despotismo ou tirania: os poderes extraordinários
exercidos objetivam a criação da situação fática onde o direito possua vigência. Apesar da
contraditória característica de não possuir circunscrição legal, a ditadura recebe uma tarefa,
qual seja, a construção das condições nas quais o direito possa ser efetivado. No entanto, por
esse motivo, não é possível definir juridicamente as ações do ditador nessas condições, pois a
delimitação jurídica neste caso faz-se insuficiente, já que a ditadura é uma “comissão de ação
121
determinada pela situação das coisas (Sachlage)” , por isso, a ação do ditador é
determinada pela natureza das coisas e não por normas de direito, ou seja, regra-se pela
necessidade imediata que se depara para eliminar a obliteração ao direito. Qualquer recurso
ou meio pode ser utilizado para afastar a pertubação da ordem fática – verdadeiro pressuposto
das normas de direito – o que caracteriza uma postura que se denomina aqui de cratológica,
pois enfatiza as relações de ação e de poder fáticos, porém com um horizonte jurídico, já que,
por um lado, a ditadura é compreendida por Schmitt como um instituto de direito público não
determinado juridicamente, mas sim baseado na natureza das coisas ou dos fatos com que se
depara; por outro, tal ação estabelece como objetivo a ordenação fática, uma vez que a “noção
de um adversário concreto, cuja eliminação é o que há de mais próximo de uma delimitação
do objetivo da ação (…) a delimitação de que se trata aqui não é uma apreensão dos fatos
122
através dos conceitos de direito, mas uma determinação puramente fática” . Isso significa
que não é possível enquadrar a realidade concreta dentro de normas e institutos legais, pois na
ditadura há uma suspensão do direito com o intuito de garantir os pressupostos fáticos da
validade do próprio direito: a ditadura faz referência apenas à realidade concreta, aos fatos
que determinam a autoridade na execução das medidas marcadas pela necessidade, pois se
justifica tudo que é necessário do ponto de vista do resultado concreto a ser alcançado que

121
O trecho inteiro é DD, p. 134: “Gerade solche Ausnahmen aber gehören zum Wesen der Diktatur und sind
möglich, weil es sich bei ihr um eine nach der Sachlage bestimmte Aktionskommission handelt”.
122
DD, p. 132: “Aber ihm fehlt das, was der Aktion ihren präzisen Inhalt gibt, nämlich die Vorstellung eines
kokreten Gegners, dessen Beseitigung das nächstumschriebene Ziel der Aktion sein muß. Die Umschreibung,
um die es sich hier handelt, ist keine tatbestandsmäßige Erfassung durch Rechtsbegriffe, sondern eine rein
tatsächliche Präzisierung”.
209

caracteriza fundamentalmente a ação ditatorial como uma ação técnica visando um fim
determinado.
No entanto, o significado da ditadura sofreu transformações a partir da Revolução
Francesa e na teoria marxista-leninista, pois passou a designar o fundamento da única ordem
legítima. Neste mesmo texto, atento às transformações semânticas, Schmitt utiliza uma
distinção fundamental entre ditadura comissária e ditadura soberana (kommissarischer und
souveräner Diktatur) para esclarecer essa situação. Enquanto a ditadura comissária recebe a
tarefa de restituir a ordem pública existente diante de um caso de ameaça interna ou externa
(por exemplo, uma guerra civil ou uma invasão das fronteiras por outro Estado) que, por isso,
provoca a suspensão da ordem jurídica e os poderes extraordinários do ditador para a proteção
da ordem, a ditadura soberana obecede a outra lógica: é sua função, ou melhor, sua finalidade
a constituição de uma nova ordem, pois se, por um lado, a ditadura comissária é uma
instituição, depende de uma constituição já existente e, por conseguinte, é estabelecida a partir
da ordem pré-existente, embora dela não receba legalidade, mas apenas a previsão ou
reconhecimento legal de que a norma é incapaz de agir no caso concreto e, por isso mesmo,
autoriza a ação ditatorial para sanar a situação problemática, por outro, a ditadura soberana
possui plena liberdade de proceder de maneira efetiva na criação de um novo ordenamento
constitucional tal como um pouvoir constituant. O ditador soberano, segundo Schmitt, dita ao
povo as leis sem estar vinculado a limites normativos, porém apesar disso não carece de
legitimidade, pois sua legitimidade é engendrada a partir da sua ação na situação concreta: de
modo geral, o conceito de ditadura significa a ação que visa a um fim, no caso, ao estado de
direito, mesmo que tal estado seja a negação desse meio.
O que torna semelhante os dispositivos é a relação com o direito, ou seja, a decisão
nestes casos se revela enquanto elemento constitutivo da ordem, e mais: a exceção torna-se
articulada ao momento da realização do direito (Rechtsverwirklichung) e a tese segundo a
qual uma norma para ser válida deve assumir um caráter geral e juridificar a realidade
empírica revela sua necessidade de que a situação a ser governada possua uma previsibilidade
e regularidade, pois:

se, em tempos normais, o meio para alcançar um resultado concreto pode ser
calculado com certa regularidade, no caso de necessidade, podese apenas dizer que o
ditador está autorizado a fazer precisamente tudo o que é necessário conforme a
situação das coisas. Aqui não importam mais as considerações jurídicas, mas apenas
o meio adequado para um resultado concreto no caso concreto (...) Aqui também o
procedimento pode ser falso ou correto, mas essa apreciação refere-se apenas ao fato
210

de se as medidas (Maßnahme) são corretas em um sentido técnico-objetivo


(sachtechnischen), isto é, se elas são adequadas ao fim (zweckmäßig)123.
No primeiro caso, a exceção funciona como o mecanismo que suspende a ordem
jurídica até então vigente, porém mesmo desimpedido para agir e extirpar os obstáculos para o
reestabelecimento da normalidade e, por conseguinte, a posterior realização do direito, o
ditador comissário não pode revogar nem as normas vigentes nem os poderes constituídos.
Por outro lado, no segundo caso, a ditadura soberana não é imbuída da salvação da ordem,
mas sim da criação de uma nova constituição. Neste caso, exceção significa abrogação e não
apenas suspensão da ordem jurídica já que:

a ditadura soberana vê no conjunto da ordem existente a situação que ela quer


eliminar através da sua ação. Ela não suspende uma constituição existente graças a
um direito fundado nela – portanto, graças a um direito constitucional –, mas busca
criar uma situação, em que seja possível uma constituição que ela considera como
verdadeira constituição. Não invoca uma constituição existente, mas uma
constituição a implementar124.
A ditadura soberana, ao contrário, é a expressão mais radical do poder que consitui
uma nova configuração fática e torna o estado de exceção como o locus onde é constituída a
ordem jurídica. Nessa perspectiva, o poder constituinte é, na verdade, uma espécie de força
originária (Urkraft) da ordem jurídica que constitui toda ordem, porém que não é constituído,
nem pode ser configurado como uma instância organizada ou orientado por uma
representação. Assim, Schmitt embora não seja defensor da arbitrariedade e do domínio da
força bruta sobre o direito, reconhece a existência de um elemento não racional que,
contraditoriamente, revela-se como pressuposto da norma: a racionalidade de uma ordem
normativa necessita de algo não normativo ou não racional, precisamente, o fundamento ou
pressuposto concreto da ordem normativa que demonstra já neste ponto a preocupação com a
relação entre imanência e transcendência, ser e dever-ser, ação e racoinalidade, faticidade e
validade, uma vez que ele, por um lado, não reduz direito à força; nem, por outro, subordina a
força ao direito, porém estabelece uma imbricação entre o universal e o particular que, afinal
de contas, mostra tais elementos em recíproca dependência. O problema da ditadura revela o
fundamento concreto da ordem: as condições efetivas pressupostas pela representação e pela

123
DD, p. 11: “Denn wenn das konkrete Mittel zur Erhaltung der öffentlichen Sicherheit tun darf, in normalen
Zeiten mit einer gewissen Regelmäßigkeit berechnet warden kann, so läßt sich für den Notfall nur sagen, daß der
Diktator eben alles tun darf, was nach Lage der Sache erforderlich ist (…) Auch hier kann das Vorgehen falsch
oder richtig sein, aber diese Beurteilung bezieht sich nur darauf, ob sie zweckmäßig sind”.
124
DD, p. 134: “Die souveräne Diktatur sieht nun in der gesamten bestehenden Ordnung den Zustand, den sie
durch ihre Aktion beseitigen will. Sie suspendiert nicht eine bestehenden Verfassung kraft eines in dieser
begründeten, also verfassungsmäßigen Rechts, sondern sucht einen Zustand zu schaffen, um eine Verfassung zu
ermöglichen, die sie als wahre Verfassung ansieht. Sie beruft sich also nicht auf eine bestehende, sondern auf
eine herbeizuführende Verfassung”.
211

ordem jurídica e libera parcialmente a ação política da carga normativa uma vez que,
paradoxalmente, a ditadura ignora o direito para realizá-lo125.
A origem da ordem de direito e sua aplicação na realidade concreta levanta outro
problema ainda mais fundamental, qual seja, a relação entre forma e violência para a
constituição de uma ordem normativa. A origem não racional da ordem resultaria, inclusive,
na radical afirmação de que, necessariamente, caso se queira efetivar uma justiça normativa
na realidade concreta, deve-se agir contra o direito: a realização do direito pressupõe sua
própria negação/suspensão. Nesse ponto, ao invés de relações estritamente jurídicas, tem-se
relações políticas, pois já no texto de 1921, segundo Schmitt, o estado de exceção é um estado
do conflito que inviabiliza qualquer contexto normativo, pois corresponde a um nada de
direito. Na ditadura, portanto, há o paradoxo de que a validade da ordem jurídica pressupõe
uma situação de fato na qual regras de direito não se aplicam, pois justamente através dessa
situação de exceção há a possibilidade de efetivação concreta do direito, já que como exceção,
ela se mantém em uma dependência funcional em relação àquilo que nega. Se é correto, como
Schmitt afirma, que a ditadura soberana provoca ruptura e criação da ordem, uma vez que
ignora, é certo, o direito, mas apenas para realizá-lo, por outro lado, tal situação não é
propriamente a-jurídica, pois “a ditadura é um problema da realidade concreta sem deixar de
ser um problema jurídico”126 e, assim, a ação do ditador é legitimada pela existência de uma
autoridade capaz de suspender o direito e, por conseguinte, estabelecer a exceção concreta,
portanto, seria justificada por uma grandeza política (fático-existencial ou pragmática) e não
por uma norma ou ordem jurídica, pois a dimensão política da finitude desempenha a função
de fundamento último de validade da ordem jurídica. Entretanto, como esse poder constituinte
é ininstitucionalizável e irrepresentável – isto é, ao mesmo tempo em que estabelece e funda a
ordem, permanece subjacente à ordem criada e possui, na verdade, uma potência constituinte
inesgotável – torna a ordem instável e sempre contingente em sua matriz originária mesmo
que se refira em última instância à realização do direito. O problema do texto de 1914 entre
normas de direito e normas de realização do direito, pressupondo o Estado como mediador,
resulta no texto de 1921 na solução através da qual o pressuposto agora é o ditador soberano
que encerra a discussão entre direito e poder. Assim, percebe-se o desenvolvimento
germinativo de 1914 a 1921 entre legitimidade do Estado e organização fática do poder que
dá origem à Politische Theologie e a sua específica teoria da soberania como a seguir é

125
DD, p. XVIII.
126
DD, p. 133-134: “Infolgedessen ist die Diktatur ein Problem der konkreten Wirklichkeit, ohne aufzuhören,
ein Rechtsproblem zu sein”.
212

reconstruída, ainda, porém, sob uma teoria normativista por conta da noção de político como
mediação derivada do teorema da secularização e reforçado no texto de 1924 Römischer
Katholizismus und politische Form através da defesa do conceito de representação.
A origem da ordem levantou a questão da negatividade do político e deslocou a
teoria schmittiana do normativismo: a relação entre forma e violência é assumida como a
origem não normativa e a abertura da ordem que resulta na afirmação paradoxal de que ordem
e representação exigem a ação contra o direito, pois a realização do direito pressupõe sua
própria negação/suspensão. Neste ponto, as relações estritamente jurídicas (por exemplo, a
crítica à relação entre direito e decisão nos textos de 1910 e 1912), tornam-se relações
políticas, pois no texto de 1921, a exceção e a ditadura referem-se a conflitos que inviabilizam
qualquer contexto normativo prévio uma vez que se referem à ausência de direito. A
compreensão da ordem a partir da necessidade e finitude faz Schmitt abandonar critérios
normativos para ação política. Entretanto, mesmo arriscando a relação entre político e
imanência, ele ainda mantém a ideia de direito como horizonte de legitimação (posterior),
bem como as noções de secularização e mediação: a relação da violência com o direito
pressupõe o locus da ação estatal. Esta estrutura teológico-metafísica serve de critério racional
– embora apenas metodológico – para a validade da ação política e mantém a diferença entre
ser e dever-ser, imanência e transcendência, apesar da virada finitista em curso127.

(II)

Das seções anteriores, demonstra-se a relação entre a legitimidade normativa do


Estado em Der Wert des Staates e a organização do poder em Die Diktatur. Na verdade,
demonstra-se a passagem da ênfase na validade normativa para o problema da estabilidade
empírica a partir da qual se dá qualquer representação normativa. Esta relação dá origem na
Politische Theologie (1922) à teoria da soberania como decisão sobre o estado de exceção,
porém ainda sob um viés formalista ou transcendente, pois sustenta uma validade ou
perspectiva externa da ordem que caracteriza um realismo moderado trazido por sua peculiar
teologia política compreendida como secularização. O texto de 1922 possui duas teses
complementares: (i) a relação que se estabelece entre abertura do estado de exceção (decisão)
e forma (ordem normativa) através do conceito de soberania com o objetivo de solucionar o
problema da ordem através da conhecida afirmação “Soberano é aquele que decide sobre o

127
Esta virada finitista de Schmitt pode ser compreendida a partir da influência de HansVaihinger, por exemplo,
Hasso Hofmann capta isso ao afirmar que “Er war entschlossen, sich der vom Neukantianismus als bloße
Faktizität zurückgelassenen zu stellen und die Wirklichkeit selbst als Rechtswirklichkeit zu konstruieren”
HOFMANN, 2002, p. 87.
213

estado de exceção”128 e (ii) a tese que relativiza este realismo político ao estabelecer seu
horizonte normativo: “todos os principais conceitos da teoria do Estado moderna são
conceitos teológicos secularizados”129. Assim, a teoria da soberania é desenvolvida como
outra estratégia na solução do problema da mediação: estabelece uma cisão entre
determinação concreta e justificação normativa, ação e racionalidade acerca da estrutura e
origem da ordem a partir da decisão. Esta concepção decisionista ressalta o aspecto fático da
exceção, paradoxalmente fora da ordem jurídica, mas constitutiva, pois desempenha a função
originária de mediação entre forma e realidade. Há aqui outra intensificação do finitismo,
apesar da proposta do vínculo teológico-político e da diferença entre mediação e imediação: a
exceção torna-se condição de possibilidade da ordem jurídica, ainda mais necessária do que a
ação do ditador do texto de 1921, uma vez que a ação do soberano é a expressão da ação
como instaurador da ordem na faticidade a partir da qual possam valer normas jurídicas, ou
seja, o jurídico é constituído pela ação política que assume seu papel fundamental de
mediação: capta o universal a partir do particular, o excesso a partir da exceção.
A tese inicial da Politische Theologie é a relação, à primeira vista contraditória, que
se estabelece entre estado de exceção e norma através do paradoxo da soberania que
soluciona, segundo Schmitt, o problema da constituição da ordem normativa diante da
premência da Rechtsverwirklichung. Inicialmente, desenvolve-se a teoria schmittiana da
Ausnahmenzustand na tentativa de abordar o problema da mediação racionalista provocado
pela filosofia política e do direito modernos, ou seja, a resolução do abismo entre quaestio
facti e quaestio iuris, entre determinação concreta e justificação normativa, discutindo o
fundamento da ordem. Essa teoria se apoia em uma concepção carregada de realismo na
ênfase do aspecto fático e adquire significado no argumento da introdução da exceção no
interior da ordem jurídica desempenhando a função originária de um dispositivo mediador
entre forma jurídica e realidade concreta através do argumento da Entscheidung, a qual
destituída de um sujeito constitutivo, de um fundamento absoluto ou de uma teleologia
histórica, constitui-se como origem não normativa da ordem. A exceção, então, torna-se a
condição de possibilidade da ordem, uma vez que a partir dela, quer na manutenção quer na
criação da ordem, o soberano age para instaurar uma faticidade sobre a qual possam valer
normas jurídicas. Portanto, os três conceitos básicos que abreviam a teoria schmittiana neste
período são: Ausnahmen, Entscheidung e Souveränität, os quais a seguir são reconstruídos a
partir do texto de 1922 Politische Theologie .

128
PT, p. 13: "Souverän ist, wer über den Ausnahmezustand entscheidet".
129
PT, p. 43: “Alle prägnanten Begriff der modernen Staatslehre sind säkularisierte theologische Begriffe”.
214

Para Schmitt, a figura da exceção contrapõe-se à universalidade abstrata e formal,


refere-se à situação de fato que nem subsumível nem previsível perturba a unidade e a ordem
do esquema racionalista. A abertura da exceção é o argumento finitista que o autor traz contra
o normativismo, pois mesmo tratada como conceito jurídico é o aspecto não normativo que
passa a determinar a ação política. O conceito de exceção desempenha um papel central como
o pressuposto fático da ordem: Schmitt propõe introduzir na ordem jurídica a figura da
exceção não como algo apenas referido à noção de necessidade – como no caso do texto de
1921 sobre a ditadura – mas sim como algo mais originário: a relação entre racionalidade
(excesso ou transcendência) e ação política (exceção ou imanência) é considerada da outra
margem que afirma, ao invés da forma (ideia), a contingência e ausência como origem: “A
exceção não é subsumível; ela se exclui da concepção geral, mas, ao mesmo tempo, revela um
elemento formal jurídico específico, a decisão (...) o estado de exceção surge quando a
decisão deva ser criada e quando tem validade nos princípios jurídicos” 130.
Dessa maneira, na origem, não haveria uma norma, mas sim uma decisão. Este
argumento de finitude mantém o deslocamento iniciado em Die Diktatur: a constituição da
ordem refere-se ao caso concreto ao invés da relação de adequação ou representação de um
paradigma racional. Paradoxalmente, se a vigência do direito está vinculada às condições
concretas, então o fundamento de validade da ordem jurídica consiste nestas condições fáticas
a partir das quais a decisão – que deixa de ser meramente instituto jurídico para tornar-se a
condição política concreta – cria a ordem a partir de um grau zero de direito, ou seja, no
estado de exceção a ordem jurídica (abstrata e formal) não se aplica devido à relação sui
generis entre normatividade abstrata e normalidade fática que exige a decisão soberana como
fator ordenativo131. A tese pode ser resumida no seguinte: a decisão que abre o estado de
exceção constitui a ordem a partir da situação concreta necessária para que o jurídico possa
130
O trecho completo em PT, p. 19: “Die Ausnahme ist das nicht Subsumierbare; sie entzieht sich der generellen
Fassung, aber gleichzeitig offenbart sie ein spezifisch-juristisches Formelement, die Dezision, in absoluter
Reinheit. In seiner absoluten Gestalt ist der Ausnahmefall dann eingetreten, wenn erst die Situation geschaffen
werden muß, in der Rechtssätze gelten können”.
131
Ao contrário de Schmitt, Walter Benjamin compreende o soberano barroco na indecisão, mais
especificamente, na teoria da oposição entre símbolo e alegoria, ao inserir a melancolia como momento da
soberania que posterga a ação, pois indecidível, e que põe em questão seu próprio status. Antes, porém, sua
preocupação, no clássico texto Zur Kritik der Gewalt, era distinguir entre violência que põe e violência que
depõe o direito e buscar outro tipo de violência (divina) que não cria nem conserva a ordem e, por isso, desfaz a
articulação tradicional entre violência e direito que justificaria aquela através deste. Sobre esse debate em teoria
da soberania, imprescindível, AGAMBEN, 2004, p. 83-98. Entretanto, Agamben analisa parcialmente
argumentação schmittiana: se a decisão até o início do período weimariano tem a função de determinar o
soberano e a violência no âmbito do direito; em Der Begriff des Politischen, a decisão não desempenha o papel
central das obras anteriores e o político é compreendido como relação concreta através dos antagonismos não
mediados pela forma direito ou do Estado. Apesar de distintas, as interpretações de Benjamin e Schmitt
questionam a fundamentação racional do poder e assumem a noção de violência como ponto de partida para
criticar a relação entre soberania, direito e Estado. A fonte comum é, evidentemente, Georges Sorel.
215

ser aplicado, visto que a normatividade pressupõe uma normalidade fática, pois nenhuma
validade normativa se faz valer a si mesma, mas depende de instâncias concretas para ser
efetivada. Além de não normativo, outro atributo da ação política soberana é ser uma vontade
que se torna a condição de validade da ordem. Diante da impossibilidade da validade de uma
ordem normativa a partir de si mesma ou de uma racionalidade intrínseca, a derradeira opção
que se apresenta para Schmitt ao rejeitar critérios normativos e universalistas ou qualquer tipo
de consenso sobre valores e normas é adotar o argumento finitista do decisionismo como ação
política constituidora da ordem:

Toda norma geral exige uma configuração normal das condições de vida nas quais
ela deve encontrar aplicação segundo os pressupostos legais, e os quais ela submete
à sua regulação normativa. A norma necessita de um meio homogêneo. Essa
normalidade fática não é somente um “mero pressuposto” que o jurista pode ignorar;
ao contrário, pertence à sua validade imanente 132.
A superioridade fática da ordem diante do direito é reconhecida através de uma
paradoxal “validade imanente”, isto é, uma espécie de direito de autopreservação “sendo o
estado de exceção algo diferente da anarquia e do caos, subsiste, em sentido jurídico, uma
ordem, mesmo que não uma ordem jurídica. A existência do Estado mantém aqui uma
supremacia sobre a validade da forma jurídica”133 que serve de justificação do poder
ilimitado. A normalidade possui um caráter ordenativo via exceção que representa ao mesmo
tempo supressão do direito e condição de validade. Na exceção, ocorre uma ação na qual se
dá a criação das condições para a realização do direito, pois “não existe norma que seja
aplicável ao caos. A ordem (Ordnung) deve ser estabelecida para que a ordem jurídica
(Rechtsordnung) tenha um sentido (...) soberano é aquele que decide sobre se tal situação
134
normal existe. Todo direito é direito situacional” . Esta afirmação mostra a inversão que o
argumento da finitude opera na teoria schmittiana e a consideração de uma validade in re: ao
invés da relação de adequação normativa de onde derivaria sua legitimidade; desde Die
Diktatur, ele aposta em uma ordem fática mais originária, sem vínculos normativos e
explicita, enfim, seu pressuposto mais potente, o ato anterior à ordem normativa. Além da
consideração da origem como um nada normativo, a ordem a ser criada depende de uma
violência originária que ao ordenar a realidade cria o direito mesmo sem autorização: a
132
PT, p. 19: “Jede generelle Norm verlangt eine normale Gestaltung der Lebensverhältnisse, auf welche sie
tatbestandsmäßig Anwendung finden soll und die sie ihrer normativen Regelung unterwirft. Die Norm braucht
ein homogenes Medium. Diese faktische Normalität ist nicht bloß eine ‘äußere Voraussetzung’, die der Jurist
ignorieren kann; sie gehört vielmehr zu ihrer immanenten Geltung”.
133
PT, p. 18: “Weil der Ausnahmenzustand immer noch etwas anderes ist als eine Anarchie und ein Caos,
besteht im juristischen Sinne immer noch eine Ordnung, wenn auch keine Rechtsordnung”.
134
PT, p. 19: “Es gibt keine Norm, die auf ein Chaos anwendbar wäre. Die Ordnung muß hergestellt sein, damit
die Rechtsordnung einen Sinn hat (...) souverän ist derjenige, der definitiv darüber entscheidet, ob dieser normale
Zustand wirklich herrscht. Alles Rechts ist Situationsrecht”.
216

violência escapa da qualificação jurídica, mas por pouco tempo. A relação entre ação política
e violência é o aspecto mais importante do realismo schmittiano e servirá de modelo para o
desenvolvimento da sua teoria do político quando se desvencilha do teorema da secularização.
Racionalidade normativa e exceção concreta, ordem e ausência de ordem, são, pois,
duas dimensões ou momentos opostos que o autor traz à reflexão como temas fundamentais
para a discussão jurídica, pois segundo ele a exceção é um conceito jurídico, refere-se ao
direito, porém, apesar disso, sua relação com o direito é peculiar, uma vez que a konkreten
Wirklichkeit é caracterizada como uma exceção concreta que afasta de si o caráter normativo
e enfatiza o aspecto existencial das relações fáticas. O pensamento juspublicista schmittiano
procura estabelecer os pressupostos fáticos da ordem e da sua validade concreta ou imanente,
pois, precisamente nesse sentido, o conceito de exceção desempenha um papel central na sua
argumentação: Schmitt tem a proposta de inserir no interior da ordem jurídica a figura da
exceção não como algo apenas referido à noção de necessidade, como no caso do texto de
1921 sobre a ditadura, onde o ditador agiria sobre a realidade com o intuito de dar-lhe a
medida do direito, mas sim como algo mais radical e fundamental, como um fundamento, ou
melhor, como uma mediação originária na constituição da ordem estatal-jurídica, uma vez
que, segundo o autor, “deve-se entender por estado de exceção um conceito geral de teoria do
Estado, mas não qualquer ordem de necessidade ou estado de sítio“135.
Segundo Schmitt, a vigência do direito está necessariamente vinculada às condições
concretas da normalidade fática. Nesse caso, o fundamento de validade da norma jurídica
consiste nas condições fáticas ou nas configurações normais das relações de vida produzidas
pela decisão que deixa de ser meramente instituto jurídico ou aplicação do direito para tornar-
se o fundamento político concreto, já que no estado de exceção as normas do direito não se
aplicam devido à relação sui generis entre normatividade abstrata e normalidade fática. A tese
exposta pelo jurista pode ser brevemente resumida no seguinte: a decisão cria a configuração
normal da situação concreta necessária para que o direito possa ser aplicado, visto que a
normatividade pressupõe uma normalidade fática para sua vigência, pois nenhuma validade
normativa se faz valer a si mesma, mas depende de instâncias concretas para ser efetivada.
Assim, a criação de um “meio homogêneo” (DD, p. 13; PT, p. 19) é a única forma através da
qual seria possível constituir o fundamento de validade da ordem, pois diante da
impossibilidade da validade de uma ordem normativa a partir de si mesma ou de uma
racionalidade intrínseca axiológica, a derradeira opção que se apresenta para Schmitt é rejeitar

135
PT, p. 13: “Daß hier unter Ausnahmezustand ein allgemeiner Begriff der Staatslehre zu verstehen ist, nicht
irgendeine Notverordnung oder jeder Belagerungszustand, wird sich aus dem Folgenden ergeben”.
217

tais critérios universais e racionais ou qualquer tipo de consenso normativo sobre valores e
normas e adotar radicalmente o argumento de que apenas em uma condição fática estável as
normas podem ter vigência:

Toda norma geral exige uma configuração normal das condições de vida nas quais
ela deve encontrar aplicação segundo os pressupostos legais, e os quais ela submete
à sua regulação normativa. A norma necessita de um meio homogêneo. Essa
normalidade fática não é somente um “mero pressuposto” que o jurista pode ignorar.
ao contrário, pertence à sua validade imanente136.
A normalidade fática possui, segundo Schmitt, um caráter ordenativo que, por um
lado, embora represente a supressão do direito, por outro, determina a validade do sistema
normativo no estabelecimento de uma homogeneidade social que possibilita a vigência de
princípios normativos, pois na situação de exceção subsiste um ordenamento, ainda que não
um ordenamento jurídico. É precisamente no estado de exceção onde se dá a criação das
condições para a realização do direito:

Não existe norma que seja aplicável ao caos. A ordem deve ser estabelecida para que
a ordem jurídica tenha um sentido. Deve ser criada uma situação normal, e soberano
é aquele que decide, definitivamente, sobre se tal situação normal é realmente
dominante. Todo direito é direito situacional 137.
A tese da relação entre normatividade e normalidade demonstra em Schmitt que uma
norma não pode por si mesma fazer-se efetiva, pois, em última instância, as condições de
validade da norma tornam-se evidentes, de modo distinto da perspectiva racionalista, apenas
quando se depara diante de um caso limite, ou seja, a meio caminho entre a normalidade e a
anormalidade. A perspectiva racionalista toma como incontestável o caráter universal e
necessário que garantiria à ordem jurídica o status de contrafática da seguinte maneira:
independentemente das condições da realidade empírica uma norma seria válida por sua
lógica imanente descartando qualquer referência não normativa como pressuposto para a
validade do direito. No entanto, Schmitt lança mão do argumento da exceção precisamente
como crítica ao normativismo, pois “toda norma geral exige uma configuração (Gestaltung)
normal das relações de vida” e, por conseguinte, depende de um elemento não-racional ou
empírico para a constituição da ordem de direito. Nessa perspectiva, o estado de exceção
significa, em um primeiro nível de argumentação, a situação concreta que provoca a

136
PT, p. 19: “Jede generelle Norm verlangt eine normale Gestaltung der Lebensverhältnisse, auf welche sie
tatbestandsmäßig Anwendung finden soll und die sie ihrer normativen Regelung unterwirft. Die Norm braucht
ein homogenes Medium. Diese faktische Normalität ist nicht bloß eine ‘äußere Voraussetzung’, die der Jurist
ignorieren kann; sie gehört vielmehr zu ihrer immanenten Geltung”.
137
PT, p. 19: “Es gibt keine Norm, die auf ein Chaos anwendbar wäre. Die Ordnung muß hergestellt sein, damit
die Rechtsordnung einem Sinn hat. Es muß eine normale Situation geschaffen werden, und souverän ist
derjenige, der definitiv darüber entscheidet, ob dieser normale Zustand wirklich herrscht. Alles Recht ist
‘Situationsrecht’”.
218

suspensão da validade de um sistema normativo seja para dotá-lo novamente do suporte fático
necessário para sua vigência (normalidade) seja para, irrompendo sua validade, constituir
outra estrutura de validade, isto é, outra ordem jurídica. Como consequência disto, a topologia
da exceção – ou o momento da anormalidade fática que no fundo indistingue faticidade e
validade – pode ser compreendido como o momento onde não há normas, porém não se exclui
da esfera do direito, pois o que existe é uma relação de inclusão-exclusão caracteriza a
exceção como um caso singular que é excluído da norma geral, porém ainda possui vínculo
com a norma, mesmo sob a forma da suspensão. Desse modo, a exceção configura na teoria
schmittiana uma situação-limite na qual se reconhece a impossibilidade de fundamentação do
direito a partir de uma normatividade abstrata, porém também reconhece a necessidade de
constituição de uma ordem normativa para além da mera faticidade empírica. Em todo caso,
Schmitt assegura o estado de exceção no interior da ordem, pois, segundo ele, sempre
“subsiste um ordenamento, ainda que não um ordenamento jurídico”138.
Em um segundo nível de argumentação, o estado de exceção pode ser compreendido
como um mecanismo através do qual é possibilitada a organização da normalidade fática e,
por conseguinte, a realização daqueles pressupostos que permitem a vigência de uma ordem
jurídica e, assim sendo, revela-se como um problema da realidade concreta ao mesmo tempo
que se constitui como um problema do direito, pois ainda articulado com a tese da
secularização. De certa maneira, a criação da normalidade fática é não apenas uma realidade
externa à ordem jurídica, mas sim um elemento interno, algo que integra a “validade
imanente“ (PT, p. 19) de uma norma. Destarte, nesse momento, torna-se visível a dissociação
dos dois elementos que constituem a ordem jurídica (Rechts-Ordnung): o direito e a ordem. A
normalidade situacional não pode concebida em termos abstratos, mas depende da
configuração fática que, em última instância, possibilita a validade de uma ordem normativa e
revela a indepedência conceitual, particularmente, na situação extrema da exceção, onde há a
suspensão das normas e da normalidade e se põe a questão da origem, pois “é preciso criar um
ordenamento (Ordnung) para que o ordenamento jurídico (Rechtsordnung) tenha um
sentido”139. Em outras palavras, para Schmitt, no momento da exceção há a primazia da
existencialidade política em relação à vigência da ordem normativa: há ordem pública, mas
não ordem normativa e, por essa situação, “a existência do Estado demonstra uma indubitável

138
PT, p. 18: “Weil der Ausnahmenzustand immer noch etwas anderes ist als eine Anarchie und ein Caos,
besteht im juristischen Sinne immer noch eine Ordnung, wenn auch keine Rechtsordnung”.
139
PT, p. 19: “Die Ordnung muß hergestellt sein, damit die Rechtsordnung einen Sinn hat”.
219

superioridade sobre a validade da ordem normativa“140, mesmo que ordenamento normativo e


ordem fática configurem os momentos integrantes da estrutrura do direito. Embora haja,
segundo a interpretação que se apresenta, um primado das relações de forças sobre o direito,
essa constatação não significa uma rejeição da dimensão normativa por parte de Schmitt, uma
vez que a crítica que ele realiza é àquela posição jurídico-política moderna que pretendia
reduzir o direito à lei. De forma diversa, o que interessa para o autor é não apenas a
concepção que considera a abstração formalista do direito como norma, mas também as
condições fáticas de aplicação do direito, ou seja, a situação concreta de uma ordem. Aqui
ainda faz-se repercutir o tema da Rechtsverwirklichung, pois embora haja um primado das
configurações fáticas na consituição da ordem jurídica, tal ação técnica visando o
(re)estabelecimento da ordem fática é praticada com o intuito de tornar possível a ação do
Estado naquela antiga relação entre normas de direito e normas de realização de direito.
Assim, a norma consegue regrar a realidade e ordenar as expectativas de condutas tão
somente se a situação concreta que pretende normatizar já estiver de alguma forma
regularizada por uma ordenação fática. Nesse caso, a instância de poder não apenas cria a
estabilidade empírica por meio de uma ação técnica, mas também realiza o direito conforme a
norma geral e universal, de onde, aliás, em derradeira instância, adquire sua legitimidade. Por
conta desse último elemento, Schmitt, apesar da ênfase nas situações fáticas na origem da
ordem normativa, preserva uma perspectiva normativista em sede de teoria da legitimação do
poder, ou seja, a justificação do poder é efetivada ainda partir da ideia de direito, mesmo
concebendo tal ideia vinculada à sua origem nãoracional, qual seja, a exceção concreta. Dá-se,
portanto, a virada teórica que parte da universalidade da norma para a consideração empírica
da configuração da situação concreta que permita a relação entre normalidade e
normatividade, porém à perspectiva realista adiciona o elemento da ideia de direito através da
qual a ordem torna-se ordem legítima.
Segundo o autor, o estado de exceção se aproxima do direito de autoconservação do
Estado que, neste caso, suspende a ordem normativa para colocar em evidência a existência
política com o intuito de reconstituir os pressupostos fáticos que uma ordem pública exige
para a vigência de normas. Nesse argumento, Schmitt enfatiza a unidade política (politische
Einheit) como sendo aquela base existencial-política que constitui o pressuposto fático de
validade, embora a legitimiadade da ordem jurídica ainda dependa do elemento transcendente
ou da ideia de direito para garantir sua validade e a condição da unidade do próprio

140
PT, p. 18: “Die Existenz des Staates bewährt hier eine zweifellose Überlegenheit über die Geltung der
Rechtsnorm”.
220

ordenamento jurídico, pois, assevera, “o caso excepcional, o caso não descrito na ordem
jurídica vigente pode ser no máximo caracterizado como caso de extrema necessidade, como
risco para a existência do Estado ou similar, mas não ser descrito com um pressuposto
legal”141. Nesse caso, porém, para que haja tal ação desvinculada da ordem jurídica, faz-se
mister a suspensão desta, ou seja, em termos técnicos, a existência de uma situação anormal
que põe em jogo ou a manutenção ou a criação de uma nova configuração jurídico-política,
isto é, o estado de exceção, pois “no estado de exceção, o Estado suspende o Direito por fazer
jus à autoconservação”142. E “entrando-se nessa situação, fica claro que em detrimento do
Direito, o Estado permanece”143. Além disso, a consequência fundamental que Schmitt propõe
neste argumento é a separação do direito em dois elementos necessário: norma e ordem, visto
que “os dois elementos do conceito de ‘ordem jurídica’ defrontam-se e comprovam sua
autonomia conceitual. Assim como no caso normal o momento autônomo da decisão pode ser
repelido a um mínimo; no caso excepcional, a norma é aniquilada”144. Dessa forma, de acordo
com sua tese, a ordem jurídica pode ser interpretada como a composição de dois momentos ou
topoi, quais sejam, o momento da faticidade e o momento da validade: direito e poder,
transcendência e imanência seriam conciliados na expressão da ordem que agrega tanto o
momento da negatividade quanto o momento da idealidade.
No entanto, a demonstração da tese da articulação entre exceção e norma revela mais
um elemento fundamental na estrutura do seu pensamento nesta fase: o primado da decisão do
soberano, pois “também o conceito de ordem jurídica, aplicado irrefletidamente como algo
óbvio, contém, em si, a contradição dos dois elementos diversos do âmbito jurídico. A ordem
jurídica, como toda ordem, repousa em uma decisão e não em uma norma” 145. Essa tese
reforça o elemento da decisão como o organizador da realidade sem referências normativas
uma vez que é a norma que pressupõe o poder de normalização da faticidade e somente em
um momento posterior lhe concede a legitimidade.

141
PT, p. 13-14: “Der Ausnahmefall, der in der geltenden Rechtsordnung nicht umschriebene Fall, kann
höchstens als Fall äußerster Not, Gefährdung der Existenz des Staates oder dergleichen bezeichnet, nicht aber
tatbestandsmäßig umschrieben werden”.
142
PT, p. 18-19: “Im Ausnahmefall suspendiert der Staat das Recht, Kraft eines Selbsterhaltungsrechtes”.
143
PT, p. 18: “Ist dieser Zustand eingetreten, so ist klar, daß der Staat bestehen bleibt, während das Recht
zurücktritt”.
144
PT, p. 19: “Die zwei Elemente des Begriffes ‘Rechts-Ordnung’ treten hier einander gegenüber und beweisen
ihre begriffliche Selbständlichkeit. So wie im Normalfall das selbständige Moment der Entscheidung auf ein
Minimum zurückgedrängt werden kann, wird im Ausnahmefall die Norm vernichtet”.
145
PT, p. 16: “und auch der Begriff der Rechtsordnung, der gedankenlos als etwas Selbstverständliches
angewandt wird, enthält den Gegensatz der zwei verschiedenen Elemente des Juristischen in sich. Auch die
Rechtsordnung, wie jede Ordnung, beruht auf einer Entscheidung und nicht auf einer Norm”.
221

A questão, afinal, é saber que, embora haja a depêndencia estrutrural da ordem à


exceção, como caracterizar esta última, uma vez que não se pode apelar nem para o
fundamento transcendente jurídico nem para uma ordem positiva que indique através de uma
designação de competências aquele que deve agir para sanar o momento de crise, pois se
diante de uma pertubação da ordem fática, o direito acusa o golpe e resta impotente para ser
realizado? Qual instância deveria agir para reestabelecer a ordem e, por conseguinte, o direito
suspenso nessa situação de exceção? Ou nas palavras de Schmitt: “a controvérsia sempre se
movia no sentido de decidir a quem eram conferidas tais competências, (...) quem devia ser
competente para o caso, para o qual não havia previsão de competência”146. Nesse sentido,
Schmitt completa a virada da relação entre faticidade e validade, expressa no texto de 1922 no
qual concede primazia à instância fática da organização do poder sobre o direito quando se
refere à constituição da ordem que, embora não jurídica, permite a efetivação do direito.
Dessa maneira, o jurista articula a decisão e estado de exceção, pois mesmo que a ordem
jurídica seja suspensa diante de uma exceção concreta, permanece a exigência de
reestabelecer ou recriar essa configuração fática para que, sobretudo, algo mal compreendido
por alguns intérpretes, o direito possa ser novamente efetivado. A exceção, porém, prossegue
no interior do direito, dele faz parte e torna-se um pressuposto inalienável que toda ordem
jurídica possui como momento originário assumido ou não. Embora a exceção seja não
normativa, mantém uma relação no interior do direito, pois o estado de exceção revela-se a
partir de uma relação negativa com o direito: sua característica fundamental é a exclusão das
normas de direito, porém ao realizar tal exclusão das normas, necessariamente, inclui-se no
âmbito da juridicidade. Na exceção, há uma situação-limite diante da qual o direito se exclui,
pois no momento excepcional, que representa a indistinção entre queastio facti e quaestio iuri,
é tratada não como preeminência da força sobre as normas, mas sim como, ao mesmo tempo,
um problema da realidade concreta e um problema jurídico (DD, p. 133-134) o que
corresponde a sua origem não racional, pois não é possível delimitar juridicamente um caso
de exceção ou estado de necessidade, uma vez que a exceção é sempre concreta e, como tal,
exclui-se da relação com as normas e a ação torna-se desvinculada de normas jurídicas
A exceção não é subsumível; ela se exclui da concepção geral, mas, ao mesmo
tempo, revela um elemento formal jurídico específico, a decisão na sua absoluta
nitidez. Em sua configuração absoluta, o estado de exceção surge, então, somente
quando a decisão deva ser criada e quando tem validade nos princípios jurídicos147.

146
PT, p. 17: “Die Kontroverse bewegte sich immer darum, wem diejenigen Befugnisse zukamen, [über die nicht
bereits durch eine positive Bestimmung, etwa eine Kapitulation, verfügt war,] mit andern Worten, wer für den
Fall zuständig sein sollte, für den keine Zuständigkeit vorgesehen war”.
147
PT, p. 19: “Die Ausnahme ist das nicht Subsumierbare; sie entzieht sich der generellen Fassung, aber
gleichzeitig offenbart sie ein spezifisch-juristisches Formelement, die Dezision, in absoluter Reinheit. In seiner
222

No entanto, por sua vez, a decisão (Entscheidung), assim com a exceção


(Ausnahme), não se refere à norma ou ao ordenamento, mas é jurídica, pois ao menos de
alguma forma está no interior do ordenamento mesmo que não esteja enquadrada em qualquer
delimitação normativa: a decisão se liberta de todo vínculo normativo e se torna, neste
sentido, absoluta148. Ora, a decisão tem efeitos constitutivos e não meramente declaratórios,
há força vinculante no ato decisório, pois é apenas através dele que o estado de exceção pode
se tornar existente: a decisão resolve sobre a aplicação ou não das normas, sobre a suspensão
de uma ordem jurídica e sua manutenção ou recriação. A teoria de Schmitt sempre em adesão
ao momento de finitismo, às situações de crise, exceção e decisão, à rejeição da confiança na
dialética e progressista, da racionalidade moderna reflete seu desencantamento que mais se
apresenta como um desconstrucionismo do que um fundacionsimo.
Neste contexto ainda, por exemplo, o soberano (Souveräner) ao decidir sobre a
exceção, além de constatar a situação de conflito demonstra que a norma não é
universalmente válida e, além disso, revela que o fundamento da ordem normativa é uma
grandeza empírica. Apesar dessas peculiariedades, o soberano, assim como a exceção e a
decisão, segundo Schmitt, reside, paradoxalmente, no interior do direito, pois “está fora do
ordenamento jurídico normalmente em vigor, porém, faz parte dele, porque é competente para
a decisão sobre se a constituição in toto pode ser suspensa”149. Para Schmitt, o direito é
realizável através de um ato político, ou melhor, de uma decisão política que assume a
originariedade da ordem ao instaurá-la sobre a exceção. Assim, na origem há um nada
normativo (relativo apenas à instância empírica) e a ordem a ser criada depende de uma
violência originária que ao ordenar a realidade cria o direito mesmo sem possuir nela mesma
direito uma vez que é decisão na exceção, mas tem em vista a forma ou ordem de direito. Por

absoluten Gestalt ist der Ausnahmefall dann eingetreten, wenn erst die Situation geschaffen werden muß, in der
Rechtssätze gelten können”.
148
Soberania pode ser compreendida como nada ter acima de si. Parece-nos que a argumentação schmittiana
busca atender a este critério. Em todo caso, o pensamento contemporâneo tenta superar este pressuposto,
precisamente, rejeitando esta figura do ente supremo (soberania, povo, etc.) em direção a um ultrapassamento da
teoria política moderna. A crítica de Heidegger à Schmitt reside neste ponto: o jurista teria capturado a lógica da
soberania e da representação, além de tomar o Estado como a figura por excelência da política. Dessa forma,
Schmitt é acusado de desenvolver a última versão do liberalismo, na esteira da crítica de Strauss, por ter apenas
invertido a estrutura própria do liberalismo. Schmitt tentaria ultrapassar o Estado como ente supremo, mas
permanecera como a consumação da soberania, visto que sua preservação atende à necessidade da ordem e ao
Katechon. Heidegger, assim, critica a estrutura metafísica da dominação e, através dela, desconstroi o
substancialismo político. Aí reside toda a questão do Dasein como ser-com (Mit-sein) e dos esforços contra a
noção de representação que daria espaço para compreender uma atitude política na qual cada um assume
resolutamente seu próprio ser (como resolução e não representação). Sobre isso, HEIDEGGER, GA, 86.
149
PT, p. 14: “Er (der Souverän) entscheidet sowohl darüber, ob der extreme Notfall vorliegt, als auch darüber,
was geschehen soll, um ihn zu beseitigen. Er steht außerhalb der normal geltenden Rechtsordnung und gehört
doch zu ihr, denn er ist zuständig für die Entscheidung, ob die Verfassung in toto suspendiert werden kann”.
223

conta da sua capacidade criadora do direito de uma perspectiva externa, o soberano inclui-se
na juridicidade, pois ao criar o direito por um ato de força, portanto na realidade empírica, tal
organização fática recebe do direito sua qualificação enquanto ordem jurídica: assume-se a
ausência de direito na força criadora do direito, porém, paradoxalmente, na mesma força que
afirma a ausência confirma a presença, uma vez que a decisão não apenas declara a exceção,
mas também constitui uma ordem. Portanto, o decisionismo schmittiano se enquadra nas
teorias da legitimidade político-jurídica, isto é, no interesse da justificação de uma ordem
ainda postulando uma perspectiva normativista. Como já exposto sobre o conceito de
soberania, Schmitt sustenta que como toda ordem, a ordem jurídica se fundamenta numa
decisão e não em uma norma. Evidentemente, tal proposição contrapõe-se à teoria kelseniana
do direito, cuja principal característica é a adoção do postulado kantiano de que um sistema
normativo deve manter uma estrita separação entre o ser (Sein) e o dever-ser (Sollen).
De modo contrário, Schmitt assinala que o conteúdo normativo de uma prescrição
jurídica só pode ser determinado por intermédio de uma decisão política a qual, por definição,
não é dedutível de parâmetros normativos, mas sim do concreto, das necessidades e
contingências do caso. Na filosofia kantiana do direito, o direito de emergência não é direito,
já que o “ser”, a emergência, deve permanecer estritamente separada do “dever ser”, o direito.
O caso crítico (Ernstfall), portanto, não prova absolutamente nada porque o que é excepcional
carece de consequências jurídicas para uma ordem legal. Esta proposição pode chegar a um
normativismo extremo quando se utiliza para ocultar o locus do poder que, para além do
sistema legal, a manifestação da exceção frequentemente revela onde reside o poder real
dentro do Estado. Porém, Schmitt não apenas quer conciliar direito e realidade, mas também
elaborar uma versão diametralmente oposta à fórmula kantiana, pelas noções de exceção e
decisão e de justificação das normas através das práticas e usos sociocráticos, ou seja, dos
jogos de poder. O problema da força normativa das normas (die normative Kraft des Normen)
não é a questão correta a ser enfrentada. Em vez da validade de um sistema jurídico, o que
importa para a política é sua eficácia numa situação concreta. É com esse teor não racional,
não normativo, não universalizável que a reflexão sobre o poder e as normas em Schmitt
critica o normativismo em todas as suas manifestações por não dar conta da realidade, pois
essa “normalidade fática não é somente um mero pressuposto que o jurista pode ignorar. Ao
contrário, pertence à sua validade imanente”150.

150
PT, p. 19: “Diese faktische Normalität ist nicht bloß eine ‘äußere Voraussetzung’, die der Jurist ignorieren
kann; sie gehört vielmehr zu ihrer immanenten Geltung”
224

Segundo Schmitt, o conceito de decisão significa a necessidade de uma instância


política determinante sobre a situação de exceção, já que "toda ordem se fundamenta numa
decisão"151. Ao afirmar que “Soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção”152,
Schmitt associa a situação excepcional à soberania como aquela figura que dá a ordem no
caso extremo, sem restrições nem lei ao ficar forada-lei para assegurá-la. Por isso, assevera
que “do ponto de vista normativo, a decisão surge do nada”153, pois a decisão não é apenas a
aplicação do direito, mas sim o único fundamento possível uma vez que “a ordem jurídica,
como qualquer outra ordem, remete a uma decisão e não a uma norma”154, porque “não há
norma que seja aplicada ao caos. Para uma norma fazer sentido, uma situação normal deve
existir”155, ou seja, a normalidade fática, pressuposto para a validade de qualquer
normatividade, é produzida independentemente de princípios normativos ou argumentação
racional, mas sim através de um ato de autoridade. Além disso, Schmitt distingue
radicalmente entre decisão e norma e afirma que “a autoridade comprova que, para criar
direito, ela não precisa ter direito”156, ou seja, existe um soberano concreto de onde emana
uma ordem concreta, pois “somente algo concretamente existente e não uma simples norma
válida pode ser soberana”157. Da seguinte forma, Schmitt expressa a relação entre soberania e
exceção e as coloca na origem de uma situação política:

A questão que interessa é quis iudicabit; sobre o "que" é o bem público e o interesse
comum decide o soberano; em que consiste o interesse do Estado, quando deve
ocorrer uma ruptura ou remoção completa da ordem jurídica existente, são todas
questões que não se deixam determinar normativamente, mas cujo conteúdo
concreto remete a uma decisão concreta da instância soberana 158.
Em todos os casos, a decisão a que se refere o autor possui um caráter real, nunca de
modo universalista ou ideal, muito menos não se pode falar em uma espécie de decisão
normativa (normativische Entscheidung), mas sim em uma decisão que dá a medida
(Maßgebendsentscheidung) no caso concreto, ou seja, determinante. A soberania se manifesta
precisamente na decisão sobre a manutenção ou instauração da ordem, ou seja, numa situação

151
PT, p. 16: "jede Ordnung beruht auf einer Entscheidung".
152
PT, p. 13: "Souverän ist, wer über den Ausnahmezustand entscheidet".
153
PT, p. 37-38: "Die Entscheidung ist, normativ betrachtet, aus einem Nichts geboren".
154
PT, p. 16: "Die Rechtsordnung, wie jede Ordnung, beruht auf einer Entscheidung und nicht auf einer Norm".
155
PT, p. 19: "Es gibt keine Norm, die auf ein Chaos anwendbar wäre. Die Ordnung muß hergestellt sein, damit
die Rechtsordnung einen Sinn hat".
156
PT, p. 19: "die Autorität beweist, daß sie, um Recht zu schaffen, nicht Recht zu haben braucht".
157
VL, §1, p. 7: "Denn richtigerweise kann nur etwas konkret Existierendes, nicht eine bloß geltende Norm
souverän sein"
158
VL, §6, p. 49: “Die Frage, auf die es ankommt, ist immer: quis iudicabit; über das, was das öffentliche Wohl
und der gemeine Nutzen erfordert, entscheidet der Souverän; worin das staatliche Interesse besteht, wann es eine
Durchbrechung oder Beseitigung des Bestehenden Rechtes erfordert, alles das sind Fragen, die nicht normativ
festgelegt werden können, sondern nur durch die konkrete Dezision der souveränen Instanz ihren konkreten
Inhalt bekommen".
225

de exceção na qual é necessária uma ordem concreta para que, afastando a situação anormal,
voltem a valer a normalidade garantida pelo soberano.
Há, para Schmitt, ainda nesta fase, uma separação originária entre ser e dever-ser,
realidade e norma. A partir do problema da mediação racionalista, Schmitt persegue a
mediação entre tais instâncias e elege a decisão como estrutura através da qual se dá a
mediação possibilitadora da ordem jurídica. Nesse quadro, a validade da ordem depende da
decisão não apenas como meio pelo qual o soberano organiza e/ou cria a ordem e a
normalidade, mas também como mecanismo através do qual a ordem fática consegue sua
legitimidade ao capturar a norma de direito e representá-la na realidade fática, pois a decisão é
sempre uma decisão pela representação. A decisão não é nem mediação (no sentido
racionalista) nem fundação, mas passagem entre ideia e contingência. Para Schmitt, a decisão
está no âmbito jurídico, é sempre jurídica, não é metajurídica uma vez que significa que a
criação das normas se dá a partir de uma situação de anomia, ou seja, a criação da ordem e das
normas se dá a partir de uma situação de ausência de normas e de ordem, mesmo que
compreenda a decisão como um instituto jurídico. Não à toa, a exceção é tratada como um
conceito geral da doutrina do Estado e a decisão assim como a norma e a exceção estão no
âmbito da juridicidade. Nesse sentido, a decisão não é arbitrária, mas é a exigência que a
efetivação da Ideia de direito desafia à ordem concreta realizar. Embora a soberania seja
definida como uma instância de decisão última, a sua competência para decidir não pode ser
determinada previamente, ou seja, sua ação não pode ser circunscritas por normas. Por isso,
Schmitt afirma que “a decisão liberta-se de qualquer vínculo normativo e torna-se absoluta em
sentido real”159 e, por conseguinte, faz surgir a questão sobre o portador da soberania, pois
quem decide sobre as competências não reguladas constitucionalmente, ou seja, quem é
competente quando o ordenamento jurídico não dá resposta alguma à pergunta pela
competência? O soberano se constitui a si mesmo no ato da decisão, já que seria ilógico
derivar sua autoridade de qualquer norma prévia.
Entretanto, apesar da ênfase da realidade concreta na constituição da ordem não se
pode afirmar que tal ordem partilhe uma legitimidade existencialista, pois, como
demonstrado, embora a exceção seja concreta e a decisão sobre a exceção constitua o
pressuposto ou o fundamento fático para a validade das normas, a legitimidade do Estado
advém da relação deste poder com a esfera das normas de direito e não da ação fática
constituidora da normalidade. Assim, em relação à Ausnahmentheorie, ainda há a distinção

159
PT, p. 18: “Die Entscheidung macht sich frei von jeder normativen Gebundenheit und wird im eigentlichen
Sinne absolut”.
226

entre ato de conformação jurídica da realidade (fático) e condições de legitimidade da ordem


concreta pelo direito, pois embora haja a virada em direção ao primado do concreto sobre o
normativo nesta fase de Schmitt, a anterioridade existencial da unidade política normalizada
serve de fundamento concreto da vigência da ordem normativa, tornando esta posterior às
determinações existenciais.
A consequência da auto-crítica da sua teoria da exceção traz à tona alguns déficits,
inconsistências e limites, mas também aponta para possibilidades de ultrapassamento dos
parâmetros modernos. Para Schmitt, os conceitos de direito e de ordem constituem elementos
fundamentais, por exemplo, na sua teoria da exceção que mesmo afirmando o primado das
relações imediatas na estrutura da decisão soberana ao instituir as condições para a efetivação
da ordem normativa abstrata e, dessa maneira, estabelecer uma relação entre o particular e o
geral a partir da categoria da decisão como medium concreto, não abandona critérios de
validação de normas visto que rejeita a opção entre uma pura racionalidade normativa e uma
mera efetividade fática das relações de poder. O elemento fundamental na interpretação do
autor é a questão da mediação entre ideia de direito abstrata e forma política concreta, que
serve aqui como o principal argumento na proposição de uma teoria política que articula
elementos dos paradigmas anteriores, porém que possui num primeiro momento a proposta da
teoria da exceção na análise da tradição jusfilosófica entre cratologia e normativismo.
Entretanto, apesar do desempenho na resolução do abismo, a Entscheidung schmittiana se
mostra, para todos os efeitos, fora da história, um espécie de Normtranszendent e, sobretudo,
torna a decisão, necessariamente, articulada com um momento exterior à constituição
histórico-política o que torna inadequada e traz em si algumas inconsistências e limites. A
rigor, a temática da exceção e da decisão não desempenha o papel central na teoria de Schmitt
no período tardo-weimariano. A ênfase da hipótese levantada nesta pesquisa analisa a
estrutura da teoria do político como momentos de superação da tentativa inicial do
pensamento schmittiano de dar conta da questão entre normas e realidade concreta,
transcendência e imanência, ou seja, o pensamento decisionista e o mecanismo da exceção
não conseguem solucionar o problema da mediação e da legitimação do poder e recai, mesmo
que parcialmente, numa tese normativista da qual apenas aos poucos se desvencilha, pois seja
a partir das relações políticas existenciais – levadas ao extremo em Der Begriff des
Politischen – seja a partir da relação entre ordenamento concreto e norma – assimilada a partir
do institucionalismo da década de 1930 –, Schmitt investiga outras formas de solucionar a
questão da originariedade entre ser e dever-ser, sobretudo, alterando a noção do político e o
contexto da relação ação e racionalidade entre mediação e imediação.
227

No que importa destacar, esta argumentação realista implicaria uma ação política
sem referencial legitimador, isto é, não existiria critério a priori, mas apenas a própria ação na
determinação da ordem, como uma recusa, nos termos de Eric Voegelin, do
transcendentalismo e aceitação do imanentismo. Entretanto, esta consequência típica de um
realismo político não é aceita plenamente neste momento por Schmitt, que enfraquece seu
realismo, pois a ação ainda teria uma matriz normativa: a exceção pressupõe um excesso,
referindo-se à outra tese estrutural do texto Politische Theologie. Isto significa que a decisão
precisa ainda de uma metafísica da legitimidade ou de uma teologia política tal como no
mecanismo de representação, pois Schmitt ainda não conseguira livrar-se da problemática
relação entre ação e racionalidade política e apesar de mostrar a origem concreta da ordem,
ato contínuo lança mão da tese do político como mediação e da relação entre imanência e
transcendência. Assume a ausência de direito no ato criador do direito, porém, no mesmo ato
que afirma a ausência é confirmada a presença, uma vez que a decisão não apenas declara a
exceção, mas também se constitui como ordem jurídica ao justificar-se como “de direito”.
Assim, para justificar o decisionismo baseado numa ordem política não normativa, o autor
propõe a tese da secularização ao afirmar a contiguidade entre política e teologia. Isto
significa que mesmo rejeitando a soberania da norma na constituição da ordem, ele vincula a
ação política à racionalidade, afirmando que a medida do poder é determinada pela ordem
teológica, afinal, sua racionalidade última, pois o único paradigma da ordem que se dá via
representação e impede a afirmação de uma ação imanente arbitrária. Se, por um lado, a
ordem jurídica pressupõe a decisão política como constituição; por outro lado, a política seria
uma mediação ou tradução da ordem teológica. Neste sentido, a ordem é alcançável apenas
como mediação do teológico pelo político: daí a síntese de sua teologia política e a
manutenção da diferença entre transcendência e imanência. A ação política é compreendida
através das categorias de mediação ou representação e pressupõem a distinção metafísica
entre ser e aparecer que cerram a ação política no âmbito institucional.
Apesar da decisão soberana sobre a exceção ser constitutiva da ordem normativa,
pois na origem há a primazia da singularidade da ação, Schmitt relativiza seu finitismo através
deste pressuposto teológico-político. A validade da ordem depende da decisão não apenas
como meio pelo qual o soberano organiza e/ou cria a ordem e a normalidade, mas também
como mecanismo através do qual o político consegue sua legitimidade ao capturar a forma
teológica e representá-la, uma vez que a decisão é sempre uma decisão pela representação. A
decisão é passagem entre contingência e ideia, a representação da ideia de direito para a
constituição da ordem estatal. Esta articulação entre decisionismo e secularização estabelece a
228

teologia como condição da ação política, tornando a autoridade justificada a partir de uma
instância anterior e, por conseguinte, uma ação política sem autonomia vinculada a uma
validade externa. Nesse contexto, a ação imediata torna-se uma ação contra o político e, por
conseguinte, não justificável: o acesso à ordem não é imediato, mas se dá através de
instituições, cujo paradigma não é o Estado, mas o catolicismo romano. Este é o papel do
argumento da secularização na Politische Theologie que traz elementos da tradição do
realismo político justapostos à noção de legitimidade metafísica e teológica, ou seja, a
secularização aparece como o horizonte da ação política não tanto por seu caráter de filosofia
da história, que Schmitt dispensa, mas sim por seu valor metodológico de evidenciar a
mediação racional. Esta mediação política e institucional do teológico assegura autoridade ao
poder. Dessa forma, o teorema da secularização mantém a cisão entre imanência e
transcendência, configurando ainda um realismo fraco ao adotar, neste resquício normativo,
uma validade externa ou ante rem do poder.
Este conceito de representação em Schmitt pode ser analisado exemplarmente no
texto Römischer Katholizismus und politische Form (Catolicismo romano e forma política) de
1923 como a última defesa do político como mediação, tendo como exemplo o modelo
institucional e jurídico da Igreja Católica. A pretensão é buscar transcender o imediato ao
propor uma racionalidade normativo-institucional que estabeleça uma ordem que não seja
meramente imanente, a rigor, contrapondo-se às despolitizações da economia e a da técnica
moderna. Em todo caso, uma exigência de dar forma à vida, de uma razão ordenadora. Assim,
a teologia católica carregaria uma lógica jurídica, uma espécie de racionalismo jurídico
romano, uma função sacerdotal universalizada que se caracterizaria pela representação: esta é
a forma ou ideia do direito que paradigmaticamente a Igreja realiza. A pessoa do sacerdote é
interligada via concreta por uma cadeia de mediações infinitas e representa a pessoa de Cristo
que lhe concede a capacidade de criar direito novo, isto é, fornece auctoritas e jurisdictio. A
mediação seria para Schmitt a principal característica de Roma e, precisamente, o que
possibilita a decisão da autoridade. A função do político é realizar esta mediação da forma de
direito via argumento da secularização tendo a igreja como modelo para o Estado: o político
como mediação é a tese reafirmada da teologia política. A relação entre decisão e ideia
(ordem), poder e autoridade é uma bipolaridade típica do catolicismo que se opõe ao
pensamento imanentista ou não representativo, pois como Schmitt afirma “nenhum sistema
político pode durar, nem sequer uma geração, através de uma mera técnica da conservação do
poder. A ideia é inerente ao político, dado que não há política sem autoridade, nem há
229

autoridade sem um ethos da convicção” 160. O ordo geométrico em forma de cruz da Igreja de
Roma estrutura-se como uma espécie de extensão horizontal governada por uma decisão
vertical: não há realismo politico aqui. A concepção católica da complexio enquanto diferença
horizontal e a transcendência da ideia enquanto diferença vertical expressa a bipolaridade
típica da representação politica católica. Além do representante e do representado, porém, é
necessário segundo Schmitt um terceiro elemento transcendente a ambos, este é a ideia,
novamente como horizonte formalista. Ao afirmar que ao político é inerente a ideia, ele
afasta-se de um pensamento não-representativo que reduz o conceito de autoridade ao
conceito de poder e conserva tanto a diferença-horizontal (pluralidade) quanto a diferença-
vertical (transcendência). Esta diferença é crucial, pois se a bipolaridade se romper, o
transcendente for esquecido ou o real compreendido a partir de sua própria nervura, então o
conceito de representação política com sua Veritas é dissolvido. Para Roberto Esposito, como
já expomos, a paradoxal posição de Schmitt demonstra que “o fim da bipolaridade metafísica
assinala o fim da representação; o fim da representação, o fim da política” (ESPOSITO, 1999,
p. 76). Isto revela que ao optar pela imanência na constituição da ordem, Schmitt não rejeita
apenas a instância transcendente, mas também a ideia de ordem de direito e, por conseguinte,
de representação. No final da década de 1920, Schmitt elide a dimensão da transcendência e
propõe uma alternativa imanentista do político, ela mesma pós-política e pós-estatal: a Veritas
é desautorizada, a secularização é, por fim, acabada161.
Schmitt se desfaz a bipolaridade imanência-transcendência e critica ao moderno
como cisão e descontinuidade. Se Hobbes inaugura, então Schmitt fecha o pensamento
político moderno e nesse percurso a transcendência se perdeu e o conceito de representação
sofreu transformações até sua dissolução no jurista alemão. O desinflacionamento da teoria
política de Schmitt, porém, só ocorrerá na fase posterior, quando a questão da validade será
considerada a partir da afirmação do caráter não normativo (não representativo ou mediador)
do político como condição da ação por meio da diferença como antagonismo. Em Der Begriff
des Politischen, o político irrompe os paradigmas normativistas, teológico-político e a
secularização, prescinde das justificações externas e alcança autonomia. Para isso, prepara

160
RK, p. 28:
161
Roberto Esposito partilha da mesma interpretação ao afirmar que “ambos os termos – unidade e oposição – se
tornam absolutos ao extremo de perder, (...) o significado conferido a eles pelo princípio bipolar, no sentido de
que a unidade tende a saturar a diferença metafísica em direção a um monismo completo, enquanto a oposição,
transferida ao nível de imanência tende, reciprocamente, a transformar a diferenciação na antítese, também
absoluta, amigo/inimigo” (ESPOSITO, 1999, p. 56).
230

outro paradigma cuja validade é imanente à ação. O que está em jogo é a autonomia do
político e o fim da representação-mediação racionalista. Algo que poderia ser descrito como
um political turn, rejeitando a distinção metafísica entre ser e aparecer ao revelar a
singularidade do negativo incodificável e o múltiplo na constituição da unidade do corpo
político que passa a ser enfatizado como diferença imanente entre político e política.
No que importa destacar, esta argumentação realista implicaria uma ação política
sem referencial legitimador, isto é, não existiria critério a priori, mas apenas a própria ação na
determinação da ordem. Entretanto, esta consequência típica de um realismo político não é
aceita por Schmitt o que enfraquece seu realismo, pois a ação ainda teria uma matriz
normativa: a exceção pressupõe um excesso. Isto significa que decisão precisa ainda de uma
metafísica da legitimidade ou de uma teologia política tal como no mecanismo de
representação, pois Schmitt ainda não conseguira livrar-se da indeterminação entre ação e
racionalidade política e apesar de mostrar a origem da ordem, ato contínuo lança mão da tese
do político como mediação. Este conceito de representação pode ser destacado como a última
defesa do político como mediação, tendo como exemplo o modelo institucional e jurídico da
Igreja Católica. A pretensão dele é buscar transcender o imediato ao propor uma racionalidade
normativa-institucional que constitua uma ordem que não seja meramente imanente. Não
obstante, assume-se a ausência de direito no ato criador do direito, porém, no mesmo ato que
afirma a ausência é confirmada a presença, uma vez que a decisão não apenas declara a
exceção, mas também constitui-se como ordem jurídica ao justificar-se ato contínuo como “de
direito”. Assim, para justificar o decisionismo baseado numa ordem política não normativa, o
autor propõe a tese da secularização ao afirmar que “todos os principais conceitos da teoria do
Estado moderna são conceitos teológicos secularizados”162. Isto significa que mesmo
rejeitando a soberania da norma na constituição da ordem, ele vincula a ação política à
racionalidade, afirmando que a medida do poder é determinada pela ordem teológica, afinal,
sua racionalidade última, pois o único paradigma da ordem que se dá via representação e
impede a afirmação de uma ação imanente. Se, por um lado, a ordem jurídica pressupõe a
decisão política como constituição; por outro lado, a política seria uma mediação ou tradução
da ordem teológica. Neste sentido, a ordem é alcançável apenas como mediação do teológico
pelo político: daí a síntese de sua teologia política e a manutenção da diferença entre
transcendência e imanência. A ação política é compreendida através das categorias de

162
PT, p. 43: “Alle prägnanten Begriff der modernen Staatslehre sind säkularisierte theologische Begriffe”.
231

mediação e representação e pressupõem a distinção metafísica entre ser e aparecer que cerram
a ação política no âmbito institucional.
Apesar da decisão soberana sobre a exceção ser constitutiva da ordem normativa,
pois na origem há a primazia da singularidade da ação, Schmitt relativiza seu finitismo através
deste pressuposto teológico-político. A validade da ordem depende da decisão não apenas
como meio pelo qual o soberano organiza e/ou cria a ordem e a normalidade, mas também
como mecanismo através do qual o político consegue sua legitimidade ao capturar a forma
teológica e representá-la, uma vez que a decisão é sempre uma decisão pela representação, ou
seja, como passagem entre ideia e contingência. Esta articulação entre decisionismo e
secularização estabelece a teologia como condição da ação política, tornando a autoridade
justificada a partir de uma instância anterior e, por conseguinte, uma ação política sem
autonomia. A partir dessa teologia política, a ação imediata torna-se uma ação contra o
político e, por conseguinte, não justificável: o acesso à ordem não é imediato, mas se dá
através de instituições, cujo paradigma não é apenas o Estado, mas, sobretudo, o catolicismo
romano. Este é o papel do argumento da secularização na Politische Theologie que traz
elementos da tradição do realismo político com uma noção de legitimidade metafísica e
teológica. Em suma, a secularização aparece como o horizonte da ação política. Esta
mediação política e institucional do teológico assegura autoridade e representação. O teorema
da secularização mantém a cisão entre imanência e transcendência, configurando ainda um
realismo fraco ao adotar, neste resquício normativo, uma validade externa ou ante rem do
poder. O desinflacionamento da teoria política de Schmitt só ocorrerá na fase posterior,
quando a questão da validade será considerada a partir da afirmação do caráter não normativo
(mediador) do político como condição da ação por meio da diferença como antagonismo.

2.4. Política da imanência: os antagonismos do político e a política contra os


antagonismos

2.4.1 O conceito do Político: Staat e Politischen163

163
Em síntese de excertos coligidos, analíticamente, o Der Begriff des Politischen possui, ao menos, 8
proposições fundamentais: 1. “Der Begriff des Staates setzt den Begriff des Politischen”; 2. “Die spezifisch
politische Unterscheidung, auf welche sich die politischen Handlungen und Motive zurückführen lassen, ist die
Unterscheidung von Freund und Feind”; 3. “Der Krieg folgt aus der Feindschaft, denn diese ist die seinsmäßige
232

As investigações de Schmitt acerca da relação entre Recht e Macht, particularidade


do fato e universalidade da norma, levaram-no diretamente ao problema central da teoria
política moderna: a questão da soberania do Estado. Paulatinamente, Schmitt abandona a
reflexão abstrata sobre a mediação racionalista e tematiza o conceito de soberania como
categoria fundamental da política, pois seria através da de-cisão que se realiza, em última
instância, a justificação do poder público entre as instâncias do excesso e da exceção,
universal e particular. Evidentemente, na teoria da exceção e no decisionismo, como já tratado
na seção anterior, o tema da soberania é abordado ainda sob uma legitimação racionalista e,
por conseguinte, vinculada à questão do formalismo de um realismo moderado, pois mesmo
em textos mais tardios como Die Diktatur (1921) e Politische Theologie (1922) há uma
inconciliável oposição entre norma (ideal) e fato (real), visto que o problema entre direito e
poder ou entre validade e faticidade é localizado amiúde na discussão sobre o soberano que
realiza, para alcançar a legitimidade, a forma jurídica164. Entretanto, na medida em que
Schmitt se aproxima de uma postura realista, o problema de uma relação direta entre Estado e
soberania torna-se ainda mais evidente: a legitimação seria alcançada a partir de uma instância
imediata sem necessidade de mediação através de normatividades ou do direito.
Há uma profunda transformação na semântica schmittiana a partir da virada
pragmático-existencial: o político (das politisch) e não mais normas de direito e normas de
realização de direito constituiriam o aparato conceitual de determinação do poder público.
Nesse sentido, a unidade política (politischen Einheit) constitui-se como campo de referência
do político (das Beziehungsfeld des Politischen) que, especificamente no caso moderno, é
denominado como Estado. Assim, o conceito de Estado enquanto modelo da unidade política

Negierung eines anderen Seins”; 4.“Das Politische bestimmt immer die Gruppierung, die sich an dem Ernstfall
orientiert”; 5. “Der Staat als die maßgebende politische Einheit hat eine ungeheure Befugnis bei sich
konzentriert: die Möglichkeit Krieg zu führen und damit offen über das Leben von Menschen zu verfügen”; 6.
“Aus dem Begriffsmerkmal des Politischen folgt der Pluralismus der Staaten”; 7. “Man könnte alle
Staatstheorien und politischen Ideen auf ihre Antropologie prüfen und danach einteilen, ob sie, bewusst oder
unbewusst, einen von 'Natur bösen' oder einen 'von Natur guten' Menschen voraussetzen” e, por fim, 8. “Durch
den Liberalismus des letzen Jahrhunderts sind alle staatlichen und politischen Vorstellungen in einer
eigenartigen und systematischen Weisen verändert und denaturiert worden”. Cf. MEHRING, 2009, p. 206-214.
164
Sobre a questão fundamental do pensamento schmittiano como um problema acerca da legitimação da ordem
pública, cf. HOFMANN, 2002, p. 11: "Und doch muß das ganze Werk vor dem Hintergrund dieser Fragestellung
gesehen, muß die Frage nach der Rechtfertigung staatlicher Gewalt als agens der Entwicklung begriffen werden.
Stets sind die Grundbegriffe und Grundpositionen Schmitts in den einzelnen Entwicklungsabschnitten wieder
zurückzubeziehen auf jene Ausgangsfrage". Na fase inicial, segundo HOFMANN, 2002, p. 12, Schmitt é
considerado como um teórico racionalista ao buscar uma legitimação do poder público a partir da ideia de direito
como norma pura independente de qualquer justificação fática, pois “Von da an zieht sich die Bemühung um das
so umrissene, 'metajuristische' Problem der Legitimität wie ein roter Faden durch das Werk Carl Schmitts” e,
adiante, arremata: “Indem das reine, nichtstaatliche, originäre Recht logisch als absolut gültig erschlossen und
dieses Recht als absoluter und maßgeblicher Wert rational bejaht wird, stellt sich die Abhandlung über den Wert
des Staates als ein Versuch dar, die Staatsautorität – in der Terminologie Max Webers gesprochen –
'wertrational' zu begreifen” (p. 66).
233

articula-se de maneira quase necessária à decisão fundamental e ao direito: a estatalidade,


para Schmitt, possui o atributo fundamental da politischer Entscheidung. Dessa forma,
Schmitt afirma que o monopólio da politischer Entscheidung seria uma "obra-prima de forma
européia e racionalismo ocidental" (dieses Glanzstück europäischer Form und occidentalen
Rationalismus), pois a expressão da política seria, necessariamente, a expressão do Estado: "a
política em seu grande sentido, a alta política, era, outrora, apenas a política externa que um
Estado soberano como tal, perante os outros Estados soberanos que reconhecia como tais,
executava no nível deste reconhecimento ao decidir sobre mútua amizade, inimizade ou
neutralidade"165.
O conceito clássico de unidade política na modernidade determina na teoria do
Estado distinções bastante claras, tais como, interior e exterior, guerra e paz, militar e civil,
neutralidade e não-neutralidade. Em outras palavras, a relação entre o estatal (staatlich) e o
político (politisch) é por vezes confusa, uma vez que, de modo geral, o político é relacionado
ao Estado, excluindo a sociedade como algo não-estatal, logo não-político ou apolítico, numa
circularidade pouco convincente. Apesar das dificuldades evidente, segundo Schmitt, o
estatuto do político seria distinto do Estado moderno, pois este, como assevera:

no sentido literal do termo e conforme sua manifestação histórica, o Estado é uma


situação (Zustand) de um tipo particular de povo, e, mais precisamente, a situação
que dá a medida (ou determinante) no caso decisivo; ele constitui assim, em relação
aos múltiplos status pensáveis, tanto individuais como coletivos, o status por
excelência166.
A noção de Estado enquanto status de um povo rejeita as abordagens normativistas
ou contratualistas que reduzem o público ao privado a partir da pressuposição de uma
realidade pré-estatal e pré-social não-histórica167. Assim como Max Weber, Schmitt critica a
tese do desenvolvimento das sociedades do estatuto para o contrato e estabelece o modelo
estatutário se não como forma superior de relação ao menos como forma social que
"compromete a pessoa em sua existência e a insere numa ordem global", portanto, um forma
política168. Dessa maneira, o Estado é a forma da unidade política, ou seja, é o ser-aí
especificamente político de um povo, porém, embora seja a forma privilegiada dessa
165
BP, p. 11: "Politik im großen Sinn, hohe Politik, war damals nur Außenpolitik, die ein souveräner Staaten als
solcher, gegenüber andern souveränen Staaten, die er als solche anerkannte, auf der Ebene dieser Anerkennung
vollzog, indem er über gegenseitige Freundschaft, Feindschaft oder Neutralität entschied".
166
BP, p. 20: "Staat ist seinem Wortsinn und seiner geschichtlichen Erscheinung nach ein besonders gearteter
Zustand eines Volkes, und zwar der im entscheidenden Fall maßgebende Zustand und deshalb, gegenüber den
vielen denkbaren individuellen und kollektiven Status, der Status schlechthin".
167
Sobre a estrutura da modernidade politica, cf. BARCELLONA, 2003, p. 47-53; sobre a discussão
normativista a respeito do Estado de Direito e uma abordagem normativa do conceito de Estado, cf. KELSEN, §
41. O Estado seria a partir dessa perspectiva apenas um sistema de normas (Sollen).
168
O trecho inteiro é o seguinte VL, p. 68: "Zum Unterschied davon begründet der Statusvertrag ein dauerndes,
die Person in ihrer Existenz erfassendes Lebensverhältnis und fügt sie einer Gesamtordnung ein".
234

manifestação ou do modo de ser do político, o Estado não é sinônimo do político, pois apesar
de que a noção de unidade política tenha encontrado sua expressão mais forte no Estado
moderno, no qual se expressou privilegiadamente por meio das noções de soberania e de
jurisdição, que traduziram a natureza especificamente política do Estado, tal coincidência ao
nível do fenômeno não é algo necessário, pois apenas histórico e, portanto, contingencial e
não analítico169.
Segundo Schmitt, embora na sua criação o Estado moderno tenha se estruturado
como Estado absolutista, a noção de Estado de direito (Rechtsstaat), ou melhor, o bürgerliche
Rechtsstaat é a forma política capaz de expressar os ideais liberais burgueses e se desenvolver
como Estado Liberal. Embora designe uma realidade constitucional especificamente alemã ao
buscar uma alternativa entre o constitucionalismo da restauração baseada na soberania
monárquica (Carta constitucional de Luís XVIII de 1812) e o constitucionalismo da revolução
com seu princípio da soberania nacional ou popular, o Estado de direito torna-se, na verdade,
desde o século XIX sinônimo de Estado liberal de direito, pois limita-se à defesa da ordem e
segurança públicas em prol da autonomia privada. Neste contexto, a esfera da liberdade
individual delimita os objetivos do Estado, estabelecendo a primazia dos direitos à liberdade e
à propriedade (Freiheit und Eigentum) e tornando o soberano, da mesma forma, limitado pelo
direito que, em última instância, estava submetido ao império da lei (Herrschaft des
Gesetzes). Schmitt considera que a expressão Rechtsstaat denomina um estatuto jurídico
marcado por, pelo menos, três características: a. legalidade; b. constitucionalidade; c.
independência da magistratura. Em relação à primeira característica, pode-se afirmar que há
uma determinação de que toda medida estatal deve apoiar-se em alguma norma legal; em
outras palavras, ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei, pois o princípio da preeminência da lei, especialmente no tocante à proteção de
direitos individuais, articula-se com a noção de Estado de direito dotado de uma constituição
capaz de executar um controle formal da legalidade dos atos estatais – por exemplo, o
princípio da anterioridade da lei penal que afirma “nullum crimen, nulla poena sine lege”,
bem como o princípio da anterioridade da lei tributária e, de forma paradigmática, o princípio
da legalidade da administração pública – e, dessa maneira, garantir a segurança e a ordem
jurídica baseada na autonomia privada. Em relação à segunda característica, o

169
De uma perpectiva jurídica-constitucional, SKINNER, 2006, p. 393-413 e BERMAN, 1983, p. 85-119.
Conforme KERVÉGAN, 1992, p.68: "c'est avant tout comme Etat qu'un peuple est un, pour lui-même et pour les
autres peuples. Historiquement, la représentation est devenue l'être même de l'identité, singulièrement depuis le
XVIIª siècle: l'Etat est la figure dans laquelle une communauté représente (au double sens de darstellen et de
repräsentieren) son identité, et tend à en être la forme exclusive".
235

constitucionalismo estabelece uma complexa tecnologia de limitação do poder político que,


para ser exercido, deve observar o conjunto de competências explicitamente definidas por
meio de uma lei fundamental. Em relação à terceira característica, permite o controle judicial
da atividade da administração, além, é claro, do controle de constitucionalidade a posteriori
dos atos governamentais, legislativos e administrativos e, por conseguinte, o direito de
recurso contra decisões do poder público caso prejudiquem interesses privados protegidos170.
Embora estas sejam algumas características funcionais do Rechtsstaat há, segundo
Schmitt, dois princípios fundamentais: o princípio de distribuição ou de divisão
(Verteilungsprinzip) o princípio de organização (Organisationsprinzip). O princípio de
distribuição assegura, por um lado, a esfera de liberdade do indivíduo como uma realidade
pré-estatal e pré-social e, portanto, ilimitada; por outro, a esfera estatal como previamente
limitada, estabelecendo a delimitação das esferas privada e pública a partir dos direitos
fundamentais e inalienáveis do indivíduo que exigem uma restrição do Estado. Tal princípio
marca a cesura entre Estado e Sociedade civil, entre princípio político e princípio econômico
na esteira do pensamento de Hegel e de Lorenz von Stein. De maneira geral, o princípio de
divisão entre o público e o privado mediante o argumento dos direitos fundamentais dispõe da
tese da anterioridade absoluta do indivíduo e a conservação de direitos naturais subjetivos na
passagem para a configuração politica estatal. Assim, no pensamento contratualista,
especialmente em Locke, os direitos naturais subjetivos transformam-se em direitos
fundamentais da ordem estabelecida e, por serem anteriores ao próprio Estado, tornam-se o
limite constitucional imposto ao poder constituído. Os direitos fundamentais possuem, por
conseguinte, tácita ou manifesta, uma cláusula de delimitação do político e do Estado que, a
partir de então, é obrigado a orientar suas ações para a garantia e conservação do indivíduo e
da sua propriedade tornando-se a base normativa para o Rechtstaat. O princípio de
organização, por sua vez, estabelece a divisão do poder do Estado em um sistema de
competências circunscritas, que garante o controle recíproco do poder estatal e evita
arbitrariedades através de um controle de constitucionalidade. Dessa forma, direitos
fundamentais e separação ou divisão de poderes estabelecem, pois, o conteúdo essencial do
Estado de direito171.

170
Cf. sobre “Die Prinzipien des bürgerlichen Rechtsstaat”, VL, p. 125-138.
171
Cf. VL, p. 126-127: “Aus der Grundidee der bürgerlichen Freiheit ergeben sich zwei Folgerungen, welche die
beiden Prinzipien des rechtsstaatlichen Bestandteils jeder modernen Verfassung ausmachen. Erstens ein
Verteilungsprinzip: die Freiheitssphäre des einzelnen wird als etwas vor dem Staat Gegebenes vorausgesetzt, und
zwar ist die Freiheit des einzelnen prinzipiell unbegrenzt, während die Befugnis des Staates zu Eingriffen in
diese Sphäre prinzipiell begrenzt ist. Zweitens ein Organisationsprinzip, welches der Durchführung dieses
Verteilungsprinzip dient: die (prinzipiell begrenzte) staatliche Macht wird geteilt und in einem System
236

Estes, portanto, seriam os princípios do Estado de Direito de tal modo que um Estado
só poderia ser considerado Estado de Direito caso possuísse estes elementos nos seus textos
constitucionais. Entretanto, para Schmitt, esses princípios não seriam suficientes para
constituir um Estado uma vez que sua configuração autêntica, a rigor, são exigidos além de
elementos jurídicos, outros especificamente políticos: além dos princípios liberais –
unilateralmente jurídicos – são necessários princípios políticos que seriam, na verdade, a
autêntica fundamentação do Estado enquanto unidade política (politischer Einheit). Os
elemento rechtsstaatlich (direitos fundamentais e separação dos poderes) apresentam apenas
uma versão individualista e liberal que se tornou na modernidade uma espécie de ideal
normativo, porém, incapazes de fundar uma realidade política, pois o Rechtsstaat, segundo
Schmitt, tem como objetivo impor restrições ao poder através de normas: “o esforço do
Estado de direito civil-burguês tende a reprimir o político, a delimitar todas as expressões da
vida do Estado por meio de uma série de normas e a transformar toda sua atividade em
competências”172. Nestes termos, é o elemento político que determina o Estado enquanto
modo de ser de uma forma de vida, ou seja, para além da exclusividade dada ao elemento
jurídico, Schmitt aposta na primazia da politicidade como fator determinante na configuração
do Estado que, mesmo sem abdicar da sua forma jurídica, possui como fundamento uma
grandeza política:

Na realidade, o Estado de Direito, apesar de todo o seu caráter “de direito” e de toda
sua normatividade, ainda continua sendo um Estado e contém, consequentemente,
além desse componente de Estado de direito civil-burguês, um outro componente
especificamente político (…) O político não pode ser separado do Estado – que é a
unidade política de um povo – e, despolitizar o direito constitucional não significaria
nada além de desestatizar173.
O estatuto jurídico do Rechtstaat é, pois, para Schmitt, incapaz de estabelecer uma
forma política, porém, paradoxalmente, traz consigo um sentido político, mesmo que
negativo: a politicidade do Rechtsstaat é, precisamente, a recusa de qualquer politicidade na

umschriebener Kompetenzen erfaßt. Das Verteilungsprinzip – prinzipiell unbegrenzte Freiheit des einzelnen,
prinzipiell begrenzte Machtbefugnis des Staates – findet seinen Ausdruck in einer Reihe von sog. Grund- oder
Freiheitsrechten; das Organisationsprinzip ist in der Lehre von der sog. Gewaltenteilung enthalten, d. h. der
Unterscheidung verschiedener Zweiger staatlicher Machtausübung, wobei hauptsächlich die Unterscheidung von
Gesetzgebung, Regierung (Verwaltung) und Rechtspflege – Legislative, Exekutive und Justiz – in Betracht
kommt”.
172
VL, p. 41: “Das Bestreben des bürgerlichen Rechtsstaates geht aber dahin, das Politische zurückzudrängen,
alle Äußerungen des staatliche Tätigkeit in Kompetenzen, d. h. genau umschriebene, prinzipiell begrenzte
Zuständigkeiten zu verwandeln”.
173
VL, p. 125: “In Wahrheit bleibt der Rechtsstaat, trotz aller Rechtlichkeit und Normativität, doch immer ein
Staat und enthält infolgedessen außer dem spezifisch bürgerlich-rechtsstaatlichen immer noch einen anderen
spezifisch politischen Bestendteil (…) Das Politische kann nicht vom Staat – der politischen Einheit eines
Volkes – getrennt werden, und das Staatsrecht entpolitisieren, hieße nichts anderes als das Staatsrecht
entstaatlichen”. Sobre o conceito político e o conceito jurídico de lei, cf. KERVÉGAN, 1992, p. 55- 60.
237

constituição da ordem. A negação do político expressa sua principal característica política.


Desse modo, Schmitt acusa a contradição na transformação dos direitos naturais subjetivos
em direitos fundamentais de uma ordem constitucional, pois inicialmente os indivíduos
autônomos, independentes e não-políticos na sua existência como burgueses impõem ao
Estado o reconhecimento de uma realidade que, pretensamente, seria anterior e superior e
usurpam sua soberania ao negar na constituição a originalmente relações políticas, ou sejam,
públicas. De forma geral, porém, o Estado de direito (Rechtsstaat) tornou-se um Estado
legislativo (Gesetzgebungstaat) marcado pelo parlamentarismo: sistema no qual a sociedade
detém por meio da representação o poder e exerce a soberania através da lei. Na medida em
que o Estado legislador adota o modelo parlamentar, a legalidade torna-se a forma de
legitimidade política, porém sem conceder à organização política uma forma de Estado, mas
apenas uma forma de funcionamento que provoca uma crise de legitimidade, pois para
Schmitt somente um princípio de legitimidade (monarquia ou democracia) pode conceder ao
poder autoridade174.
Após a análise da estrutura e dos limites do Rechtsstaat e das consequências do
parlamentarismo moderno, principalmente a experiência da República de Weimar, pode-se
afirmar que Schmitt estabelece em sua teoria política, sistematicamente, pelo menos, três
proposições: I. não há direito sem política (relação entre Estado e político ou fundamentação
política do direito); II. o político vai além do estatal (tese da pressuposição ou primazia do
político) e III. diante das modificações no século XX, o Estado é considerado como total175.
(I) A abordagem do politische Existentialismus rejeita as considerações normativistas
kantianas ou kelsenianas, pois, como já demonstrado, este paradigma normativista reduz a
realidade política às formas de mediação racionalistas, ou seja, no caso, consideram o Estado
como um sistema normativo que fundamenta a realidade política a partir de um Sollen
abstrato e racional176. Nestes termos, Schmitt afirma que o Estado possui, na verdade, uma
fundamentação política, pois consiste na forma pública da unidade da comunidade.
Entretanto, como tal forma e unidade podem ser alcançadas sem a determinação de uma ideia
transcendente que lhe sirva de paradigma? Segundo o jrusita, tal forma pública define-se a
partir da decisão sobre o modo de existência de um povo que, dessa maneira, constitui-se
como uma unidade política:

174
Especificamente em relação ao problema do Parlamentarismo no Rechtsstaat e na República de Weimar, cf.
LL e GLhP; GALLI, 2010, p. 463-512; BEAUD, 1997, p. 49-58.
175
Estes argumentos foram expostos por KERVÉGAN, 1992, p. 67 et seq., adaptados e expandidos, porém, na
investigação a seguir.
176
Sobre a concepção do Normativismus, cf. HERRERA, 2010, p. 86-101.
238

O Estado no sentido literal do termo, o Estado segundo a sua manifestação histórica,


é um estado de um tipo particular de povo, e, mais precisamente, o estado
determinante no momento decisivo; ele constitui assim, em relação aos múltiplos
status pensáveis, tanto individuais como coletivos, o status por excelência177.
Em outras palavras, segundo Schmitt, o Estado apresenta dois elementos
fundamentais: a unidade de uma comunidade (unicidade) e a realidade política (politicidade).
Em relação ao primeiro elemento, o Estado é considerado como o status por excelência, a
forma determinante de uma comunidade que se organiza a partir de sua identidade. No século
XVII, o Estado tornou-se a principal forma através da qual uma comunidade expressa sua
identidade e soberania, aliás, torna-se soberano apenas aquele Estado que pretende representar
a comunidade em uma realidade institucional. Genealogicamente, tal pretensão surgiu a partir
das guerras confessionais européias e propiciou a formação dos Estados nacionais sob o
discurso da expressão da nação, ou seja, uma espécie de homogeneidade de um povo. Assim,
houvera a necessidade de afirmação de uma ordem no âmbito interno e soberania no âmbito
externo, ou seja, a estatalidade (Staatlichkeit) como expressão da soberania da nação. Por
outro lado, complementando a significação de Estado para Schmitt, pode-se afirmar que tal
unidade que expressa a identidade de uma comunidade é considerada política, isto é, apesar
das inúmeras formas de expressão da comunidade (religiosa, moral, cultural, racial, etc.) há
ainda, sobretudo, a forma política, que prevalece sobre as demais, pois dotada da pretensão
radical de hegemonia. Nesse contexto, o Estado pode ser definido em Schmitt como uma
unidade política (politischer Einheit), porém a definição schmittiana de Estado é, de certa
forma, perfunctória e redundante, pois não consegue explorar o fenômeno estatal a partir da
sua peculiaridade conforme será esclarecido na última seção deste capítulo.
De uma perspectiva mais técnica, Schmitt enfatiza a noção de Constituição.
Conforme o jurista tedesco, há quatro sentidos no conceito de Constituição: absoluto, relativo,
positivo e ideal. No sentido absoluto, a constituição se identifica com o próprio Estado, como
sua existência, portanto afirmando a tese da primazia da facticidade da ordem pública, como a
seguir será tratado, pois ao discorrer sobre a peculiaridade da relação entre constituição e
Estado assevera que:

O Estado não tem uma constituição “de acordo com a qual” se forma e funciona uma
vontade estatal, ele é constituição, isto é, uma situação dada sobre o modo de ser, um
estatuto de unidade e ordem. O Estado deixaria de existir caso essa constituição, ou
seja, caso essa unidade e ordem cessasse. A constituição é sua “alma”, sua vida

177
BP, p. 20: “Staat ist seinem Wortsinn und seiner geschichtlichen Erscheinung nach ein besonders gearteter
Zustand eines Volkes, und zwar der im entscheidenden Fall maßgebende Zustand und deshalb, gegenüber den
vielen denkbaren individuellen und kollektiven Status, der Status schlechthin”.
239

concreta, sua existência individual178.


Dessa forma, a constituição é o modo de ser, o ser-aí concreto do Estado sem
consideração a normas ou leis constitucionais, rejeitando assim o normativismo peculiar das
teorias racionalistas. Neste sentido, no texto Verfassungslehre, há uma superação das
insuficiências do Begriff des Politischen, pois o Estado não é considerado apenas como uma
politischer Einheit, expressão pouco elucidativa que, inclusive, torna-se indistinta do conceito
de Estado, mas como uma ordem concreta ou uma instituição, isto é, uma grandeza existencial
que possui na sua faticidade a medida da sua juridicidade. A virada existencial-pragmática
faz-se de uma forma completa: “um conceito como o de 'constituição' não pode ser dissolvido
em normas e normatividades. A unidade política de um povo tem a sua forma de existência
concreta na constituição (…) acima de toda norma, há a existência concreta do povo
politicamente unido179”. Por outro lado, no sentido positivo, constituição é compreendida por
Schmitt, complementando o sentido anterior, como uma decisão sobre o tipo e a forma da
unidade política, isto é, antes de ser considerada como um sistema normativo, é interpretada
como o momento necessário da decisão política, a rigor, o ato do poder constituinte que
determina a forma da existência da unidade política. Este conceito é “positivo”, pois, segundo
Schmitt, é necessária a determinação de uma vontade constituinte, ou seja, existencial, para
criar e por a ordem como um ato de vontade. Neste sentido, Schmitt assevera sua teoria da
primazia da decisão política em detrimento do normativismo abstrato, ou melhor, uma
fundamentação política da ordem contra uma fundamentação normativa, pois ao rejeitar
positivismo e racionalismo, o autor consegue através da sua teoria do existencialismo político
acertar a falha do realismo fraco da teoria da decisão: a decisão a partir de então dá-se em
relação ao ser concreto e não a partir da realização do direito ideal, tomando uma
caracaterística mais declaratória do que constitutiva. Não há forma a ser realizada nem
articulação necessária com qualquer instância ideal para alcançar a legitimação da autoridade:
Schmitt consegue afirmar a faticidade da ordem sem apelo à instâncias transcendentes ao
argumentar que a ordem tem origem num ato-vontade, isto é, numa vontade que constitui uma
realidade institucional. Desse modo, não é uma força normativa da faticidade, mas a força
normativa da decisão que caracteriza a unidade política.

178
VL, p. 4: “Der Staat hat nicht eine Verfassung, 'der gemäß' ein staatlicher Wille sich bildet und funktioniert,
sondern der Staat ist Verfassung, d.h. ein seinsmäßig vorhandener Zustand, ein status von Einheit und Ordnung.
Der Staat würde aufhören zu existieren, wenn diese Verfassung, d.h. diese Einheit und Ordnung aufhörte. Die
Verfassung ist seine 'Seele', sein konkretes Leben und seine individuelle Existenz” (grifo no original).
179
VL, p. 121: “ein Begriff wie 'Verfassung' nicht in Normen und Normativitäten aufgelöst werden kann. Die
politische Einheit eines Volkes hat in der Verfassung ihre konkrete Existenzsform (…) Vor jeder Norm steht die
konkrete Existenz des politisch geeinten Volkes”.
240

(II) Para Schmitt, porém, o político não se esgota na realidade estatal, pois o Estado
como status da unidade política não é nada mais do que o status político de um povo
organizado em um território, ou seja, a forma institucional moderna do político conforme a
tese afirmada logo no ínicio do Begriff des Politischen, "o conceito de Estado pressupõe o
conceito do político"180 e aprofundada na Verfassungslehre. Entretanto, a pressuposição
(Voraussetzung) estabelecida por Schmitt se realiza tanto de forma lógica quanto de forma
histórica, isto é, enquanto concreta unidade política de um povo, o Estado se estrutura através
do político, já que o político é estrutura relacional, necessária e suficiente, para a
determinação da politicidade de uma situação. Assim, apesar de lúcido quanto à distinção
conceitual e lógica entre Estado e político, em relação ao ponto de vista histórico, Schmitt
hesitava na dissociação da articulação moderna, pois embora lógica e conceitualmente
distintos, o estatal e o político empiricamente se identificaram por muitos séculos. Para
Schmitt, o Estado moderno conseguira identificar os conceitos de estatal e do político, pois foi
capaz de "conseguir a paz em seu interior e excluir a inimizade como conceito jurídico" 181,
precisamente, tal movimento de ordenação se deu em torno do Estado como "o campo de
referência do político"182, no qual pôs-se fim às guerras civis confessionais dos séculos XVI e
XVII. No entanto, no Vorwort à edição de 1963 do Der Begriff des Politischen, após analisar
o esgotamento da "época da estatalidade", e consequentemente de todo quadro teórico da
política moderna, afirma que "destrona-se o Estado como o modelo da unidade política, o
Estado como o titular do mais admirável monopólio entre todos, o monopólio da decisão
política"183. Em outros termos, em relação à Zeitalter der Staatlichkeit e a configuração do jus
publicum europaeum:

Não faz muito tempo, a parte européia da humanidade vivia uma época em que os
conceitos jurídicos procediam integralmente do Estado e o supunham como modelo
de unidade política. (…) Realmente existiu a época em que a identificação dos
conceitos estatal e político era justificada, pois o Estado europeu clássico tinha
conseguido essa coisa completamente inverossímil que foi instaurar a paz no interior
e excluir a hostilidade enquanto conceito do direito. (…) E, de fato, dentro desse
Estado não havia mais do que uma polícia, a política estava ausente (…) somento
era político no sentido pleno, alta política, a política externa praticada por um Estado

180
BP, p. 20: "Der Begriff des Staates setzt den Begriff des Politischen voraus". Em contraposição clara à
afirmação de Jellinek que afirma: “Politisch heisst staatlich; im Begriff des Politischen hat man bereits den
Begriff des Staates gedacht” apud GALLI, 2010, p. 755.
181
Para o trecho inteiro, cf. BP, p. 10: "Es gab wirklich einmal eine Zeit, in der es sinnvoll war, die Begriffe
Staatlich und Politisch zu identifizieren. Denn dem klassischen europäischen Staat war etwas ganz
Unwahrscheinliches gelungen: in seinem Innern Frieden zu schafen und die Feindschaft als Rechtsbegriff
auszuschließen".
182
BP, p. 9: "das Beziehungsfeld des Politischen".
183
BP, p. 10: "Der Staat als das Modell der politischen Einheit, der Staat als der Träger der erstaunlichsten aller
Monopole, nähmlich der Monopols der politischen Entscheidung, dieses Glanzstück europäischer Form und
occidentalen Rationalismus, wird entthront".
241

soberano enquanto tal em relação a outros Estados soberanos que reconhecia como
tais184.
Além disso, a consequência imediata do conceito do político para a realidade estatal
internacional é a configuração de um pluriversum político, ou seja, a existência de um
complexo de unidades políticas distintas, pois não há de se falar sobre um universum, mas sim
em um pluriversum, uma vez que "da característica conceitual do político resulta o pluralismo
do universo de Estados. A unidade política pressupõe a possibilidade real de existência do
inimigo e, com ela, outra unidade política coexistente (...) O mundo político é um
Pluriversum, e não um Universum"185. Assim, esta é a condição do Estado na teoria do
político, pois mesmo relativizada em sua centralidade não há dúvidas de que a forma política
da unidade de um povo, da maneira como se estabelecera na modernidade, deve ser
considerada a forma superior de organização política186, pois é a politicidade do Estado que
dele a unidade determinante e mais influente de um agrupamento humano:

A unidade política é, segundo sua essência, a unidade que dá a medida, sendo


indiferente de quais forças retira seus últimos motivos psíquicos. Ela existe ou não
existe. Quando existe, constitui a unidade suprema, i.e., a unidade determinante no
caso decisivo187.
Trata-se, primordialmente, de afirmar a anterioridade conceitual do político na
determinação do conceito do Estado, da sua soberania, representação e resolução pacífica das
disputas internas, uma vez que embora a forma moderna institucional do político seja a
estatal, esta depende daquela por conta da conflitividade que a fundamenta ou seja por conta
da sua dimensão decisória e histórica. Dessa maneira, após as guerras político-religiosas, a
Staatlichkeit moderna passou a ser determinada a partir da sua capacidade de decisão política
e, de certa forma, detém não apenas o monopólio da decisão, mas também o monopólio do
político, pois no decorrer do século XX a forma do Estado de direito constitucional liberal
parlamentar encontra-se em declínio e indica outra realidade institucional que Schmitt
denomina Estado Total: há no século XX uma dissolução da delimitação entre público e

184
BP, p. 10-11 (Prefácio da edição de 1963): “Der europäische Teil der Menschheit lebte bis vor kurzem in
einer Epoche, deren juristische Begriffe ganz vom Staate her geprägt waren und den Staat als Modell der
politischen Einheit voraussetzten (…) Es gab wirklich einmal eine Zeit, in der es sinnvoll war, die Begriffe
Staatlich und Politisch zu identifizieren. Denn dem klassischen europäischen Staat war etwas ganz
Unwahrscheinliches gelungen: in seinem Innern Frieden zu schaffen und die Feindschaft als Rechtsbegriff
auszuschließen (…) Politik im großen Sinne, hohe Politik, war damals nur Außenpolitik, die ein souveräner
Staat als solcher, gegenüber andern souveränen Staaten, die er als solche anerkannte”.
185
BP, p. 54: "Aus dem Begriffsmerkmal des Politischen folgt der Pluralismus der Staatenwelt. Die politische
Einheit setzt die reale Möglichkeit des Feindes und damit eine andere, koexistierenden, politische Einheit voraus
(...) Die politische Welt ist ein Pluriversum, kein Universum".
186
Embora da perspectiva de uma teoria normativa do Estado, segundo OLIVEIRA, 2003, p. 333-363, em
comentário à obra de V. Hösle, há também o reconhecimento do Estado enquanto forma política superior.
187
BP, p. 43: "Die politische Einheit ist eben ihrem Wesen nach die maßgebende Einheit, gleichgültig aus
welchen Kräften sie ihre letzten psychischen Motive zieht. Sie existiert oder sie existiert nicht. Wenn sie
existiert, ist sie die höchste, d.h. im entscheidenden Fall bestimmende Einheit".
242

privado, sociedade civil e Estado, cuja consequência seria a extensão radical do político para
qualquer instância da ação humana, pois a interpenetração entre sociedade e Estado provocou
uma politização total uma vez que, quando separadas, as esferas sociais e políticas não se
imiscuiam, porém quando confundidas, há uma expansão do político tornando políticas
relações outrora meramente sociais. Isso acarreta um declínio da Staatlichkeit moderna, mas
não do político que a partir da preeminência do econômico e da ruptura com o direito
internacional europeu moderno apresenta-se, renovado, em outras relações humanas188.
(III) A tese do Estado Total (totalen Staat) é desenvolvida, para além da controvérsia
nazista, a partir da análise das transformações do Estado moderno no século XX que indica,
na verdade, a transformação do político, mais precisamente, sua intensificação e extensão. A
questão posta por Schmitt trata do problema dos meios de subordinação e intervenção na
sociedade, marcados pelo desenvolvimento das técnicas de comunicação e dos métodos e
aparatos militares. De fato, o Estado total é um Estado da era da técnica. Após o Estado
absolutista do século XVII e XVIII e do Estado neutro do século XIX, surge o Estado Total
como identidade entre sociedade e Estado189, pois a dissolução das delimitações entre as
esferas da sociedade e do Estado provocou a indistinção daquela divisão bastante clara até o
século XIX:

se a própria sociedade se organiza em Estado, se Estado e sociedade devem ser,


principalmente, idênticos, então todos os problemas sociais e econômicos se tornam
imediatamente estatais e não se pode mais distinguir entre setores estatais-políticos e
setores sociais-apolíticos190.
Seja a partir da politização da sociedade, por exemplo quando submetida à luta de
classes, seja a partir da intervenção do Estado nas ordem social, econômica e cultural, o novo
tipo de Estado representa um afastamento das formas moderna ao tornar a divisão entre
privado e público impraticável, pois “tudo é político, pelo menos em potência, e a referência
ao Estado não pode mais fornecer o necessário para estabelecer o caráter distintivo específico
do 'político'”191. Entretanto, para Schmitt, há uma distinção entre Estado total por fraqueza,
mera quantidade de poder, e Estado total por força, marcado, ao invés, por uma energia

188
Conforme KERVÉGAN, 1992, p. 80-81: “Il semble pourtant que l'Etat soit devenu la forme indépassable du
politique. Très probablemen, la forme politique qui succédera à l'Etat libéral sera encore un type – inédit – d'Etat
(..) Au moment même où il s'efforce de dissocier conceptuellement Etat et politique, Schmitt paraît ainsi
constater leur identification durable”.
189
Sobre o tema, cf. “Die Wendung zum totalen Staat”, In: PuB, p. 166-178; “Starker Staat und gesunde
Wirtschaft”, In: SGN, p. 71-91; “Weiterentwicklung des totalen Staates in Deutschland”, In: VA, p. 359-366;
comentários sobre a distinção entre Estado total por debilidade (aus Schwäche) e Estado total por força (aus
Stärke), cf. HOFMANN, 2002, p. 112-116; GALLI, 2010, p. 683-702; KERVÉGAN, 1992, p. 85-109.
190
HV, p. 78-79, apud, KERVÉGAN, 1992, p. 87.
191
BP, p. 24: “In ihm ist infolgedessen alles wenigstens der Möglichkeit nach politisch, und die Bezugnahme auf
den Staat ist nicht mehr imstande, ein spezifisches Unterscheidungsmerkmal des 'Politischen' zu begründen”.
243

imanente que o impulsiona como existência política. O primeiro tipo de Estado total possui
três características: é um Estado providência ou social, um Estado de partidos e um Estado
administrativo192, ou seja, configura-se como um Estado que intervém em todos os domínios
da existência humana – econômico, social, cultural, etc. – e, além disso, é determinado por um
regime partidário pluralista – parlamentarismo – que transfere o monopólio do político do
Estado aos partidos e, afinal, é caracterizado pela substituição das instâncias de decisão
política por uma burocratização da administração. Por outro lado, o Estado total por força é
movido pela autêntica politicidade, isto é: “consegue distinguir entre amigo e inimigo. Nesse
sentido, todo Estado autêntico é um Estado total; sempre tem sido assim, enquanto societas
perfecta deste mundo; há muito tempo, os teóricos do Estado sabem que o político é o
total”193, ou seja, não há nada que não possa ser, ao menos potencialmente, estatal e político.
Entretanto, Schmitt argumenta que o Estado total por força resulta do processo democrático
de identificação entre o Estado e o povo e não entre o Estado e a sociedade (leia-se:
economia). Desse modo, ao dar ênfase ao aspecto democrático, o jurista procura uma
legitimação plebiscitária ao Estado que se tornaria, então, numa grandeza política, pois
substituiria a lógica liberal por uma lógica democrática, ou seja, um princípio econômico por
outro especificamente político, pois, ao comentar sobre Estado fascista em 1929, Schmitt
revela o que está em questão nessa substituição, no fundo, uma teoria que não é
antidemocrática, mas sim antiliberal:

O fato de que o fascismo renuncia às eleições e despreza todo elezionismo, o que


não é antidemocrático, mas antiliberal, resulta do exato conhecimento seguinte: os
atuais métodos de voto pessoal secreto ameaçam tudo aquilo que é estatal e político
através de uma completa privatização, exilam o povo, enquanto unidade, da esfera
pública (o soberano desaparece na cabine de votação) e reduzem a formação da
vontade política a uma somatória de vontades individuais privadas e secretas, ou
seja, na verdade, a aspirações e a um resentimento de massa incontroláveis (…) Essa
identificação da democracia com o sufrágio pessoal secreto é do liberalismo do
século XIX e não da democracia194.
O que está em jogo na discussão sobre a relação entre Estado e político é o

192
Cf. “Weiterentwicklung des totalen Staats in Deutschland”, In: VA, p. 359-366; cf. a excelente exposição de
KERVÉGAN, 1992, p. 85-109.
193
“Weiterentwicklung des totalen Staats in Deutschland”, p. 361: Ein solcher Staat kann Freund und Feind
unterscheiden. In diesem Sinne ist, wie gesagt, jeder echte Staat ein totaler Staat; er ist es, als eine societas
perfecta der diesseitigen Welt, zu allen Zeiten gewesen; seit langem wissen die Staatstheoretiker, daß das
Politische das Totale ist”.
194
“Wesen und Werden des faschistischen Staates”, in: PuB, p. 126 : “Daß der Faschismus auf Wahlen verzichtet
und den ganzen 'elezionismo' haßt und verachtet ist nicht etwa undemokratisch, sondern antiliberal und
entspringt der richtigen Erkenntnis, daß die heutigen Methoden geheimer Einzelwahl alles Staatliche und
Politische durch eine völlige Privatisierung gefährden, das Volk als Einheit ganz aus der Öffentlichkeit
verdrängen (der Souverän verschwindet in der Wahlzelle) und die staatliche Willensbildung zu einer
Summierung geheimer und privater Einzelwillen, das heißt in Wahrheit unkontrollierbarer Massenwünsche und
ressentiments herabwürdigen (…) Jene Gleichsetzung von Demokratie und geheimer Einzelwahl aber ist
Liberalismus des 19. Jahrhunderts und nicht Demokratie”.
244

argumento schmittiano em direção a uma configuração da ordem política a partir de uma


legitimação concreta, ou seja, na contradição entre racionalismo e pragmatismo, o autor
realiza uma reviravolta no final da década de 1920 postulando a tese do político como
intensidade polêmica da relação entre seres humanos. A partir dessa perspectiva realiza uma
desconstrução da normativismo moderno e sua teoria do Estado e inaugura-se através de um
realismo forte uma compreensão distinta para a constituição das normas a partir do político.

2.4.2 O conceito de inimigo (der Feind)195

Segundo Schmitt, o político é uma relação concreta caracterizada pela


heterogeneidade e pelo conflito. Nestes termos, o político possui fenomenologicamente sua
origem na contingência da ordem, poder-se-ia dizer numa in-finitude entre crise e decisão. A
decisão, porém, possui um caráter inédito em relação ao texto Politische Theologie: decide-se
sobre o inimigo a ser combatido e não sobre as condições fáticas para a realização do direito.
Neste caso, porém, a ênfase não recai sobre a decisão nem mesmo sobre o inimigo, mas sim
no caráter construtivo da identidade e da unidade política a partir da relação polêmica, por
mais que haja bons argumentos contra isso196. O político, como já destacado, parte de uma
situação marcada pela polemicidade uma vez que o inimigo concreto, ou melhor, a relação
polêmica é estabelecida por meio da exclusão e da diferença. O factum brutum do político
como hostilidade originária entre amigos e inimigos é portanto a distinção peculiar do
político.
Em relação ao par conceitual amigo-inimigo, Schmitt utiliza-se de uma distinção
trazida por Platão na República entre polémios e echthròs que se refere no texto clássico à
distinção entre a guerra externa entre grego e bárbaros (polémios) e a guerra interna entre
gregos considerados como iguais. Para Platão, não poderia ser de outro modo, pois a diferença
e exclusão é objetiva a partir de um fundamento ontológico, já que a guerra contra o inimigo
seria considerada justificada moralmente e, portanto, articularia ontologia, política e conflito
desde a origem (Ursprung). Em Schmitt, obviamente, não há fundamento ontológico explícito
ou tematizado, muito menos um fundamento moral para vincular guerra e política, mas apenas
195
Ao analisar as transformações ocorridas no conceito de inimigo desde a constituição do jus publicum
Eurapaeum até a Guerra fria, Schmitt afirma no Prefácio de 1963 ao Der Begriff des Politischen que é necessário
prosseguir na investigação sobre o conceito de inimigo e de guerra, pois no tipo de guerra atual "brechen allen
Begriffsachsen, die das überkommene System der Begrenzung und Hegung des Krieges bisher getragen haben.
Der Kalten Krieg spottet aller klassischen Unterscheidungen von Krieg und Frieden und Neutralität, von Politik
und Wirtschaft, Militär und Zivil, Kombatanten und Nicht-Kombattanten – nur nicht der Unterscheidung von
Freund und Feind, deren Folgerichtigkeit seinen Ursprung und sein Wesen ausmacht" BP, p. 18.
196
Por exemplo, a convincente argumentação de Derrida, supra, 1.9.
245

uma co-implicação originária a partir da estrutrura existencial de uma contingência marcada


pelo conflito ineliminável. Na verdade, o ascendente desta relação pode ser encontrado em
Hobbes com sua formulação moderna do nexo entre soberania e guerra.
Para Schmitt, portanto, é necessário lutar contra o inimigo, porém não se pode
considerá-lo como hors-de-la-loi ou hors-de-la-humanité, uma vez que, em última instância,
o inimigo é ineliminável, pois não se pode perdê-lo ou destruí-lo sem perder-se e destruir-se a
si mesmo. A formação da identidade de um "nós" se dá na medida do "eles", ou seja, mediante
diferença. O inimigo é existencialmente distinto e estranho, diferente da forma de vida
autóctone e, por isso, heterogêneo, contra quem o conflito é possível. Nesse sentido, a
distinção fundamental da política marca o grau de intensidade da associação ou dissociação de
uma unidade a ponto tal que não é possível política sem inimigo atual ou possível. É
necessário lutar existencialmente contra um inimigo para encontrar a própria medida, em
outras palavras, ao descobrir a diferença do outro, nomeá-lo como estranho e decidir pelo
conflito, descobre-se a si mesmo, o outro modo de ser contraposto ao modo de ser de uma
unidade política, pois "cada um deles só pode decidir ele próprio se o caráter diferente do
desconhecido significa, no existente caso concreto de conflito, a negação do próprio tipo de
existência e, por isso, se será repelido ou combatido a fim de resguardar o próprio tipo e vida
que dá a medida"197, o que signfica que a decisão não é orientada normativamente. Se Schmitt fosse perguntado:
“Por que lutar contra alguém?”, a resposta talvez seria uma explanação sobre a inevitabilidade
do conflito: “Como não lutar contra alguém?”.
O inimigo, assim, é sempre hostis e nunca inimicus, ou seja, o estatuto político do
inimigo é de um inimigo público, no caso, uma outra unidade política, isto é, um outro Estado
e não o adversário privado, concorrente comercial ou o infiel198. Desta maneira, a distinção
especificamente política refere-se a hostis e não a inimicus: aquele se combate, este se odeia;
o primeiro é polémios; o segundo, echthròs, ou seja, quer a violência declarada, quer o
combate regulado, é necessário e suficiente que na situação de inimizade, em caso extremo, os
protagonistas se enfrentem como inimigos públicos e, eventualmente, o conflito leve à luta de

197
BP, p. 27: "Den extremen Konfliktsfall können nur die Beteiligten selbst unter sich ausmachen; namentlich
kann jeder von ihnen nur selbst entscheiden, ob das Anderssein des Fremden im konkret vorliegenden
Konfliktsfalle die Negation der eigenen Art Existenz bedeutet und deshalb abgewehrt oder bekämpft wird, um
die eigene, seinsmäßige Art und Leben zu bewahren".
198
Para Hegel, o inimigo é a diferença ética enquanto negação do estranho em sua totalidade, pois, conforme
trecho de Hegel citado por Schmitt, BP, p. 62: "eine solche Differenz ist der Feind, und die Differenz, in
Beziehung gesetzt, ist zugleich als ihr Gegenteil des Seins der Gegensätze, als das Nichts des Feindes, und dies
Nichts auf beiden Seiten gleichmäßig ist die Gefahr des Kampfes. Dieser Feind kann für das Sittliche nur ein
Feind des Volkes und selbst nur ein Volk sein". Sobre o conceito de hostis e de inimicus, cf. BP, p. 29 et seq.
Sobre a relação entre Schmitt e Hegel, por todos cf. KERVÉGAN, 1992, et all.
246

vida ou morte. Nestes termos, qualquer conflito entre grandezas públicas é um justus bellum e
o inimigo um justis hostis, pois a relação amigo-inimigo pressupõe uma definição pública na
medida em que a definição schmittiana do politisch torna sinônimos os termos político e
polêmico, mas também político e público e, por conseguinte, a definição da inimizade, mesmo
que a noção de uma guerra civil não seja abordada por esta perspectiva.
Todavia, a ocorrência da criminalização do inimigo rompeu com a tradição do Jus
Publicum Europaeum199 que estabelecera a distinção entre criminoso e inimigo; este teria um
status jurídico e não poderia ser objeto de aniquilação porquanto seria o outro, diferente e
estranho, em um sentido intenso e existencial, com o qual, em caso extremo, o conflito fosse
possível, porém possuidor dos mesmos direitos e equivalentes numa configuração jurídica por
meio da qual ao final de uma guerra poderia chegar a um acordo de paz. Assim, para Schmitt,
não é suficiente apenas a distinção entre amigos e inimigos, mas é necessária também a
distinção entre paz e guerra e a concreta possibilidade desta, já que as relações de
antagonismo entre amigos e inimigos tornam imperativo o enfrentamento do inimigo por
motivos político-existenciais: "a guerra decorre da inimizade, pois esta é a negação que dá a
medida (seinsmäßige) de um outro ser. A guerra é apenas a realização extrema da inimizade
(...) tendo, antes, que permanecer existente como possibilidade real"200. A guerra para Schmitt
é uma espécie de situação-limite a partir da qual se determina a política, mesmo que seja
difícil imaginar uma relação de precedência da inimizade diante do conceito de guerra. Esta
crítica, no entanto, servirá de argumento importante para a configuração de uma ontologia do
antagonismo no capítulo 3. É uma espécie de pressuposição sempre presente (vorhandene
Vorausetzung), pois "o político não reside no conflito em si, (...) (mas sim) em um
comportamento determinado por essa possibilidade real na clara compreensão da própria
situação assim determinada e na incumbência de distinguir entre amigos e inimigos"201. A
partir disso, outra relação que se estabelece de forma inevitável na obra de Schmitt é entre as
noções de Krieg (guerra) e de Feind (inimigo). Neste caso, o conceito de paz não é
considerado, segundo Schmitt, como um conceito político, pois pressupõe a eliminação da

199
Sobre a criminalização do inimigo, cf. Die Wendung zum diskriminierenden Kriegsbegriff. In: FoP, p. 518-
597. Contemporaneamente, o desenvolvimento da guerra levou a conceitos de paz e de inimigos totalizantes, cf.
TP; "Die Wendung zum totalen Staat". In: PuB, p. 166-178; "Totaler Feind, totaler Krige, totaler Staat". In: PuB,
p. 268-273.
200
BP, p. 33: "Der Krieg folgt aus der Feindschaft, denn diese ist seinsmäßige Negierung eines anderen Seins.
Krieg ist nur die äußerste Realisierung der Feindschaft (...) wohl aber muß er als reale Möglichkeit vorhanden
bleiben, solange der Begriff des Feindes seinen Sinn hat".
201
BP, p. 37: "Das Politische liegt nicht im Kampf selbst (...) (sondern) in einem von dieser realen Möglichkeit
bestimmten Verhalten, in der klaren Erkenntnis der eigenen, dadurch bestimmten Situation und in der Aufgabe,
Freund und Feind richtig zu unterscheiden".
247

hostilidades e, dessa forma, a exterminação do inimigo que, porém, sequer mais recebe esta
denominação porquanto tornou algo fora da humanidade.
Como consequência da específica categoria política acima apontada, tem-se a
impossibilidade da constituição de um Estado mundial, pois, segundo Schmitt, como já
descrito, a condição do político necessariamente estabelece uma configuração plural na ordem
internacional, isto é, um pluriversum ou invés de um universum de unidades políticas. Disso
decorre que a concepção de pluriversum político, ou seja, a realidade política internacional é
composta por um complexo de unidades políticas soberanas, sendo impraticável, na teoria
schmittiana, um Estado, República, Federação ou Império mundial que agrupassem todos os
Estados e eliminasse a distinção especificamente política entre amigos e inimigos e a
possibilidade da guerra. Caso houvesse um universum, a condição do político seria negada e,
quando muito, um tal mundo apolítico se configuraria como uma forma técnico-econômica,
mas não governado, muito menos político.
A formação do conceito de inimizade é analisada por Schmitt como argumento
através do qual insere o elemento da eventualidade e contingência na política: não é
simplesmente uma contraposição objetiva e determinada, nem mesmo basta ser o outro e o
estrangeiro para considerá-lo inimigo, mas sim o diferente em um sentido existencial e
intenso. Em outras palavras: aquela alteridade que, no caso extremo, representa faticamente a
negação do próprio modo de existir e, por isso, torna-se necessário diferir e defender-se com o
intuito de preservação de si próprio. Essa perspectiva exclui da exclusão a discriminação
moral e a criminalização jurídica: o inimigo não é um conceito tratado através de normas e,
enquanto tal, é existencial e político, portanto, não se tem como qualificá-lo moralmente, pois
é a decisão sobre o inimigo que constitui a identidade e, por conseguinte, ordena o próprio
direito e a própria moral: o diferente é excluído da co-vivência como ato originário da decisão
sobre a constituição da identidade, pois o estrangeiro representa a negação do próprio modo
de ser o que implica, naturalmente, a necessidade da neutralização de um inimigo e a
pacificação da ordem interna. A partir da tese de que só existe identidade política caso haja
inimigo público, a determinação da ordem é tem causa na contingência concreta da exclusão
do inimigo. Assim, a origem da política é um ato de exclusão, pois na mesma medida em que
há a exclusão e diferença, há também a constituição do político como unidade e ordem.
Entretanto, o que está em jogo na argumentação schmittiana, ao menos no que se
refere ao objeto das investigações realizadas, é que a experiência política está marcada por
uma faticidade radical, qual seja, a existência concreta e contingente, pois uma vez que o
momento da distinção e da diferença é a origem do político, o inimigo torna-se,
248

paradoxalmente, parte da identidade. Então, torna-se necessário ressaltar que não há o


primado do conceito de inimigo e, por isso, é equivocada a interpretação que privilegia o
momento da inimizade, pois, a rigor, Schmitt não inicia seu argumento a partir do inimigo – o
inimigo também tem seu momento interno de consenso – mas da oposição, ou seja, o início
do político é a polêmica que agrupa dois ou mais grupos numa simultânea definição auto-
referente interno-externo, amigo-inimigo cuja perspectiva do outro e de si é posta em
construção recíproca. Uma teoria do político carregada pelo paradigma do antagonismo que
afirma uma identidade a partir de uma negação dialética entre dissenso e consenso revela-se
mais interessante e mais realística do que a hipostasiação da comunicação sem atritos. É, pois,
o político como contingência e imediatidade conflitiva da presença da identidade diante da
oposição – também ela, é claro, uma identidade – numa relação existencial capaz de criar uma
forma de direito202.

2.4.3 O conceito de amigo (der Freund)

Para Schmitt, como reconstruído acima, o critério elementar do político é a distinção


amigo-inimigo, uma vez que toda e qualquer relação política participa das diferenciações que
se articulam a partir de uma situação extrema de enfrentamento, pois "a distinção
especificamente política, à qual podem ser relacionadas as ações e os motivos políticos, é a
diferenciação entre amigo e inimigo"203. Assim, o político é constituído por uma relação de
oposição e complexidade de formas de vida distintas que se põem em contradição extrema,
atribuindo-lhes sentido específico, pois para o autor o termo político "não designa um
domínio de atividade próprio, mas apenas o grau de intensidade de uma associação ou de uma
dissociação de pessoas"204. O autor argumenta que para a obtenção do conceito do político são
necessárias categorias específicas porque a relação política é autônoma e distinta a partir de
suas diferenciações existenciais extremas uma vez que "qualquer antagonismo religioso,

202
A tese proposta por MEIER, 1998, p. 26-27 “Carl Schmitt's concept of the political presupposes the concept
of the enemy. The political can endure only so long as there is an enemy, 'at least as a real possibility', and the
political is real only where the enemy is know. Knowledge of the enemy seems to be fundamental in every way
(…) The central meaning that the distinction between friend and enemy is accorded in Schmitt's thought can
only be comprehended, the entire weight that Schmitt gives his criterion of the political only appreciated, by one
who does not fail to attend to that other criterion wich subjects the affirmation or negation of enmity to the
political-theological distinction”. O próprio Schmitt no Vorwort de 1963 ao Der Begriff des Politischen rejeita
tal interpretação e, como já exposto nesta pesquisa, o argumento central para compreender corretamente a tese
do amigo e do inimigo em Schmitt é o da polemicidade que pressupõe os dois momentos como inseparáveis.
203
BP, p. 26: "Die spezifisch politische Unterscheidung, auf welche sich die politischen Handlungen und Motive
zurückführen lassen, ist die Unterscheidung von Freund und Feind".
204
BP, p. 38: "es bezeichnet kein eigenes Sachgebiet, sondern nur den Intensitätsgrad einer Assoziation oder
Dissoziation von Menschen".
249

moral, econômico, étnico ou outro se transforma em um antagonismo político quando for


suficientemente forte para agrupar efetivamente os homens em amigos e inimigos"205.
Portanto, se na esfera moral, as diferenciações extremas são o bom e mau; na estética, o belo e
o feio; na econômica, o útil e o prejudicial, etc; na esfera do político, para Schmitt, a fim de
resguardar sua autonomia, é fundamental a diferenciação de algo específico, ou seja, "a
questão é, então, se também existe e em que consiste uma diferenciação específica como
critério elementar do político, a qual, embora não idêntica e análoga àquelas outras
diferenciações, seja independente destas, autônoma e, como tal, explícita sem mais
dificuldades"206. De alguma forma, o critério do político, segundo o jurista tedesco, deve ser
puro ou, pelo menos, quando ocorre, possui a característica dominante da situação. Entretanto,
será que podemos afirmar com Schmitt que um antagonismo nascido de uma contraposição
religiosa intensa seja da mesma natureza ou tipo de um antagonismo também intenso surgido
a partir de uma contraposição econômica?
No conceito do político, Schmitt elabora uma dialética do antagonismo: uma
dialética conflitiva entre amigos e inimigos imposta por uma decisão através da qual a
distinção especificamente política dá unidade e ordem a um agrupamento; porém, ao invés de
solucionar a contraposição, deixa em tensão o antagonismo, pois tal antagonismo entre
amigos e inimigos não possui sentido normativo, o qual poderia ser dissolvido, mas sim
existencial, cuja determinação necessariamente se dá por uma realidade concreta no conflito
contra um inimigo para além de qualquer razão moral:

Ele (o inimigo político) é precisamente o outro, o estrangeiro e, para sua essência,


basta que seja, em um sentido especialmente intenso, existencialmente algo diferente
e desconhecido, de modo que, em caso extremo, sejam possíveis conflitos com ele,
os quais não podem ser decididos nem através de uma normalização geral
empreendida antecipadamente, nem através da sentença de um terceiro "não
envolvido" e, destarte, "imparcial"207.
Assim, Schmitt não se refere a qualquer relação, mas apenas a relações conflitivas
que alcancem a intensidade existencial preconizada pelo político, ou seja, o caráter relacional
do político é marcado estruturalmente por relações de oposições e dissenso, pois qualquer
dissociação concreta, ou seja, dada a partir de uma configuração histórica de formas de vida
205
BP, p. 37: "Jeder religiöse, moralische, ökonomische, ethnische oder andere Gegensatz verwandelt sich in
einen politischen Gegensatz, wenn er stark genug ist, die Menschen nach Freund und Feind effektiv zu
gruppieren".
206
BP, p. 26: "Die Frage ist dann, ob es auch eine besondere, jenen anderen Unterscheidungen zwar nicht
gleichartige und analoge, aber von ihnen doch unabhängige, selbständige und als solche ohne weiteres
einleuchtende Unterscheidung als einfaches Kriterium des Politischen gibt und worin sie besteht".
207
BP, p. 27: “Er ist eben der andere, der Fremde, und es genügt zu seinem Wesen, daß er in einem besonders
intensiven Sinne existenziell etwas anderes und Fremdes ist, so daß im extremen Fall Konflikte mit ihm möglich
sind, die weder durch eine im voraus getroffene generelle Normierung, noch durch den Spruch eines
'unbeteiligten' und daher 'unparteiischen' Dritten entschieden werden können".
250

transforma-se em uma dissociação política quando discrimina entre amigos e inimigos diante
da possibilidade da morte, o que caracteriza em termos gerais o existencialismo político de
Schmitt, mesmo que, aparentemente, não haja afetos, paixões na relação política: seria uma
pulsão desapaixonada ou um afeto público, se é que seja possível. Entretanto, não se pode
reduzir o critério do político ao momento da negatividade originária e afirmar simplesmente
que o político é caracterizado pela inimizade ou pelo afeto impessoal208. A dialética do
político exige os dois momentos: amizade e inimizade. Não existe apenas inimigo e dissenso
radical, mas também associação e identidade. A sutileza do argumento schmittiano, como
afirma o autor num texto chave sobre Däubler, para compreender o que está em jogo é que "o
inimigo é a nossa própria pergunta enquanto forma e ele nos arrasta, e nós a ele, para o
mesmo fim"209. Assim, Schmitt busca na condição humana, o significado do político, ou seja,
o elemento antagonístico que une e separa os homens, seja pelo consenso seja pelo dissenso
que se desenvolve numa instância fática da vida humana e, portanto, torna-se prescindível a
referência a normatividades ou fundamentos racionais. O inimigo, no fundo, é o meu irmão e
Schmitt pensa em termos pouco normativos esta relação política por excelência.
A partir disso, o autor propõe a tese da autonomia do político através de um critério
próprio para a identificação do fenômeno, pois "a objetividade que dá a medida (die
seinsmäßige Sachlichkeit) e a autonomia do político já se apresentam nesta possibilidade de
separar-se de outras diferenciações tal contraposição específica como aquela entre amigo e
inimigo e de concebê-la como algo autônomo"210. Assim, as relações sociais seriam
construídas a partir de oposições específicas, ou seja, a dialética da amizade-inimizade é
constitutiva do mundo público, tornando-se o critério do político necessariamente agonístico.
Embora o autor não forneça uma definição rigorosa do que seja “político” e que, de fato, o
ponto de partida da argumentação, conforme nossa interpretação, seja o conceito de
polemicidade, ou melhor, de antagonismo – quando não o de inimigo identificado com a
guerra – este paradigma está em consonância com a tese política moderna do estado de
natureza, notoriamente, em Hobbes. Entretanto, apesar deste déficit conceitual, o que
interessa para este estudo é a possibilidade de identificar o político e, por conseguinte, a
origem da ordem, a partir da existencialidade e do conflito sem apelo à normatividades
anteriores à esfera fática e, por conseguinte, caracterizar uma teoria política pragmática. Não à

208
Sobre esta interpretação, cf. Derrida, 1.9. Desenvolvemos esta questão sob outra perspectiva no capítulo 3.
209
Gl, p. 213: "Der Feind ist unsere eigne Fragen als Gestalt. Und er wird uns, wir ihn zum selben Ende hetzen".
210
BP, p. 28: "Die seinsmäßige Sachlichkeit und Selbständigkeit des Politischen zeigt sich schon in dieser
Möglichkeit, einen derartig spezifischen Gegensatz wie Freund-Feind von anderen Unterscheidungen zu trennen
und als etwas Selbständiges zu begreifen".
251

toa, o jurista caracteriza o político a partir da diferença, tal proposta neutraliza a polarização
sobre algum tipo de primazia do conceito de inimigo ou do conceito de amigo como definidor
do político. Articulado dessa forma, o político não possui objeto ou sujeito, mas apenas
relações e diferenças produzidas de maneira imanente o que põe a contraditoriedade das
formas de vidas como a origem da ordem jurídico-política a partir de onde aufere sua
legitimidade, que para todos os efeitos, refere-se apenas à sua própria existência. De certa
forma marcado por um “conflitualismo”, Schmitt, porém, consegue elaborar uma teoria que
justifica a ordem normativa sem necessidade de alguma instância não política, isto é, a teoria
do político schmittiana não se configura como simplesmente irracional ou destrutiva, ao
contrário, busca estabelecer as condições concretas, por assim dizer, a existência fática de um
ordenamento como precondição da validade normativa de um ordenamento jurídico e,
portanto, um fundamento propriamente político como autêntico e real o que, afinal, articula-se
de certa forma à tradição de pensamento que de Treitschke, Ratzenhofer e Simmel ao propor a
vinculação da política aos conceitos de Macht, Kampf e Feindseligkeit211.
Ademais, segundo Schmitt, o conceito de amigo implica em sede de teoria da
democracia o conceito de homogeneidade. Para ele, há dois princípios fundamentais da forma
política, quais seja, o princípio da identidade e o princípio da representação: o primeiro,
significa a igualdade substancial entre governados e governantes, ou seja, a ausência de
diferença qualitativa; o segundo, ao contrário, significa a apresentação da unidade do todo,
isto é, da unidade política. Para o jurista, de maneira distinta do que sustenta a teoria
democrática liberal, o princípio da identidade é o que caracteriza uma autêntica democracia,
pois não é a liberdade – sempre reduzida à liberdade individual – mas sim a homogeneidade
ou igualdade substancial – não formal e marcada por uma existencialidade concreta, isto é,
amizade – que caracteriza o conceito político de democracia. Evidentemente, a
homogeneidade ou a igualdade substancial possui, necessariamente, uma desigualdade que se
dá, como já demonstrado, na distinção polêmica do inimigo e, por isso mesmo, a
representação não é, segundo Schmitt, um procedimento ou um processo normativo, pois

Representação não é um fenômeno normativo, nenhum procedimento ou processo,


mas apenas existencial. Representar significa tornar visível e presente um ser
invisível por intermédio de um ser presente. A dialética do conceito reside no
seguinte fato: o invisível está supostamente ausente e, no entanto, tornado
simultaneamente presente. Isto não é possível com uma espécie qualquer de ser, mas
pressupõe uma espécie particular de ser. Qualquer coisa de finitude, de menor valor
ou sem valor, algo baixo não pode ser representado. Falta-lhe a espécie de ser

211
Cf. GALLI, 2010, p. 743.
252

reforçado que é passível de uma elevação ao ser público, de uma existência212.


Dessa forma, Schmitt representa a elaboração mais refinada na quebra do paradigma
da política moderna – a mediação racional – e revela a contribuição do autor para a filosofia
política: a ação política está radicalmente baseada numa origem contingente, desprovida de
garantias ou fundamento, consitui-se como uma desordem cujo limite não é outro senão o
antagonismo. Ora, por isso Schmitt localiza o político num espaço sem medidas ou padrões,
cuja ausência de mensurabilidade é insuperável e permite, por outro lado, sua própria
fundação sem mediações ou universais, mas radicado na experiência ou, da perspectiva como
se interpreta neste estudo, de forma pragmática, pois o político como concreto não
juridificado, após uma percepção prático-empírica até uma compreensão pragmático-
histórica, é estabelecido por ele através da questão da legitimidade da ordem que traz consigo
o problema da relação entre imanência e transcendência até chegar no limiar da sua origem.
Se na teoria da exceção, como demonstrado no capítulo anterior, a ordem possui uma origem
concreta, porém submetida à exigência da forma abstrata para ser legítima; na teoria do
político, a ordem se estabelece ainda a partir de alguma instância ou relação concreta, porém a
exigência da forma é inexistente, ou melhor, é constituída de maneira radicalmente
contingencial e nisso, precisamente, reside sua legitimidade, denominada aqui de existencial,
que o jurista tedesco tenta compreender agora por meio de um realismo forte213. Diante desse
persistente problema, Schmitt esboça a tese que viria a ser conhecida como existencialismo
político: a originariedade existencial da ordem que, destituída da necessidade de
transcendência, articula sua legitimidade a partir da sua mera existência – que, no entanto, não
significa mero positivismo –, através de uma consituição institucional da ordem a partir de um
ato de vontade entendido como um fundamento existencial. Antes, porém, de prosseguir na
tese do político de Schmitt e aprofundar a noção de Poder Constituinte e de legitimidade
existencial das normas e do poder público, cabe expandir mais um pouco sobre esta tese
pragmática ou existencialista do político e da relação entre transcendência e imanência.

212
VL, p. 209-210: “Repräsentation ist kein normativer Vorgang, kein Verfahren und keine Prozedur, sondern
etwas Existentielle. Repräsentieren heißt, ein unsichtbares Sein durch ein öffentlich anwesendes Sein sichtbar
machen und vergegenwärtigen. Die Dialektik des Begriffes liegt darin, daß das Unsichtbaren als abwesend
vorausgesetzt und doch gleichzeitig anwesend gemacht wird. Das ist nicht mit irgendwelchen beliebigen Arten
des Seins möglich, sondern setzt eine besondere Art Sein voraus. Etwas Totes, etwas Minderwertiges oder
Wertloses, etwas Niedriges kann nicht repräsentiert werden. Ihm fehlt die gesteigerte Art Sein, die einer
Heraushebung in das öffentliche Sein, einer Existenz, fähig ist”.
213
Ao contrário, na teoria do nomos os dois elementos da ordem – sua faticidade (existência) e sua validade
(legitimidade) – são novamente considerados, porém de uma perspectiva diversa, pois se inicialmente, por um
lado, nem o racionalismo nem o realismo fraco deram conta de uma mediação entre as instâncias ideal e real, o
realismo forte da teoria do político, por outro lado, abandona completamente a necessidade de uma legitimidade
exterior ao próprio ato de instituição da ordem – distinta ou posterior enquanto qualificação do poder – e torna
desnecessária e sem sentido a pergunta pela validade transcendente ou ideal da autoridade e da ordem.
253

2.4.4 Conflito e Consenso: a polemiologia como a hermenêutica do político

Carl Schmitt assume o caráter polêmico do político como condição fundamental do


conhecimento da realidade pública, mas também como condição epistemológica, ao elaborar
um perspectivismo marcado pelo polémos das relações sociais e através do mecanismo da
exceção/decisão, isto é, uma concepção política do conhecimento que traduz a natureza
conflituosa dessas relações, segundo a qual o conhecimento, assim como o fenômeno do
político, é perpassado por uma multiplicidade de forças em permanente conflito. De tal forma
essa polemicidade das forças marca o perspectivismo schmittiano como o pressuposto
epistemológico do realismo político forte através do qual, em última análise, a possibilidade
de qualquer conhecimento se dá através do agrupamento ao qual se pertence, ou seja, a
dialética da amigo-inimigo é estrutural até mesmo ao processo de conhecimento. A partir de
uma leitura pragmático-política do perspectivismo, enfatiza-se a articulação entre realismo na
política e anti-realismo em epistemologia, ou seja, a noção de conhecimento partisan e,
sobretudo, a possibilidade da articulação de uma teoria política da linguagem como a seguir é
demonstrada.
A relação entre conhecimento e poder é analisada, em Schmitt, através das categorias
de exceção e decisão. Quanto à primeira, diante da possibilidade de uma "epistemologia da
exceção" que, em termos gerais, "explica o geral e a si mesma"214, já se percebe a tese
epistemológica que, de forma inversa, põe a exceção como via de acesso privilegiado para a
compreensão da realidade. O conhecimento a partir do ponto de vista da exceção é
epistemologicamente mais interessante do que a situação normal porque, conforme Schmitt,
“o que é normal não demonstra nada, só a exceção prova tudo; ela não apenas confirma a
regra, mas a regra vive da exceção”215. Evidentemente, no interior da teoria político-jurídica
schmittiana, a exceção é o momento e o lugar originário não racional do ordenamento
normativo, pois a suspensão da validade do ordenamento demonstra, em uma situação limite,
que seu princípio de fundamentação não reside em si mesmo, mas em condições concretas, ou
seja, na realidade histórica. Ademais, o caso extremo se torna importante política e
epistemologicamente no interior da teoria de Schmitt porque o estado de exceção é o lugar
onde são determinadas as configurações fundamentais da unidade política e, por conseguinte,
o sentido da ordem e da constituição porquanto há uma tensão entre violência e ordem de

214
PT, p. 21: "Die Ausnahme erklärt das Allgemeine und sich selbst". Neste trecho, o teólogo protestante a quem
Schmitt se refere é Kierkergaard.
215
PT, p. 21: "Das Normale beweist nichts, die Ausnahme beweist alles; sie bestätigt nicht nur die Regel, die
Regel lebt überhaupt nur von der Ausnahme".
254

forma tal que esta só se estabelece a partir daquela, ou seja, uma ordem normativa “exige uma
configuração normal das condições de vida nas quais deve encontrar aplicação segundo os
pressupostos legais e aos quais submete à sua regulação normativa”216, assegurado
estruturalmente pelo momento da exceção. Dessa forma, paradoxalmente, a ordem contém no
seu interior a exceção, ou seja, a condição de possibilidade de sua própria validade e também
a possibilidade de sua suspensão217.
Entretanto, é necessário levar em consideração a dupla estrutura da epistemologia
schmittiana: se a exceção mostra seu caráter necessariamente partisan, que pressupõe um
mundo público determinado politicamente, ou seja, através de decisões diante do inimigo; da
mesma forma, o agonismo das forças pressupõe a exceção como possibilidade da distinção e
da ordem, uma vez que "é preciso criar um ordenamento para que o ordenamento jurídico
tenha um sentido"218. Na ausência desses elementos, não existiria distinção política ou sentido
público, seja no âmbito interno seja no âmbito externo, pois haveria apenas a esfera
incomunicável da individualidade liberal. De maneira complementar, a estrutura do
conhecimento de proposições públicas dar-se-ia em torno de antagonismos e contraposições
como substrato real, inelimináveis das relações de poder, pois essas estruturas do
conhecimento político são determinadas, por um lado, por um perspectivismo polêmico do
agrupamento amigo-inimigo; por outro, através do mecanismo da exceção. Portanto, sem a
decisão sobre a exceção e a determinação do inimigo, não há conhecimento político
propriamente dito.
Esses pressupostos e consequências epistemológicas elementares do conceito do
político schmittiano conseguem articular a constituição da ordem e a determinação da política
e do poder como estruturas fáticas necessárias diante da incognoscibilidade do romantismo e
do niilismo moderno, pois, por exemplo, ao afirmar o primado do espaço diante do nada como
na passagem a seguir do Glossarium "onde há espaço, há ser"219, Schmitt se refere à
constituição do sentido na realidade histórica concreta e à superação da Aufklärung e do
racionalismo. Assim, ao pressupor seja uma epistemologia decisionista seja uma
epistemologia da exceção, Schmitt investe contra os cânones metodológicos do racionalismo
filosófico e científico, porque rejeita tanto o positivismo quanto o idealismo: nem a redução
216
PT, p. 19: "(die Rechtsordnung) verlangt eine normale Gestaltung der Lebensverhältnisse, auf welche sie
tatbestandsmäßig Anwendung finden soll und die sie ihrer normativen Regelung unterwirft".
217
Sobre a discussão acerca da exceção no pensamento de Schmitt, mais especificamente no Die Diktatur e
Politische Theologie, cf. SCHWAB, 1989; sobre o tema da exceção em Schmitt e Benjamin, cf. DERRIDA,
2010, et. all; para uma arqueologia da influência recíproca entre os autores, cf. AGAMBEN, 2004, p. 81-98.
218
PT, p. 19: "Die Ordnung muß hergestellt sein, damit die Rechtsordnung einen Sinn hat".
219
O trecho inteiro é: "Der herrliche Nietzschesatz: Mit festen Schultern steht der Raum gegen das Nichts. Wo
Raum ist, ist Sein. Daher also der Haß gegen das Wort Raum" Gl, p. 317 .
255

positivista do objeto à um fato, cuja decisão deve ser deduzida estritamente de normas válidas
nem o quadro teórico do normativismo e a necessidade de critérios universais ou lógico-
formais. Voltaremos a este tema no próximo capítulo ao tratarmos da questão dos afeto no
corpo político.
Em última análise, promover a exceção à condição epistemológica do conhecimento
político significa, entre outras coisas, afirmar que o mundo político não é tratado apenas a
partir das normas e do sentido estabelecido racionalmente. No realismo forte schmittiano,
evita-se qualquer consideração normativa lógico-formal ou instância normativa vinculadora
da decisão do soberano de forma que não é possível conhecimento político verdadeiro seja
como representação seja como estrutura lógica, pois, como demonstrado, qualquer
conhecimento político é necessariamente situado, partidário e, segundo Schmitt, esta é a única
forma de constituição do mundo público. Assim, ao colocar o sujeito decisivo e a exceção
como fundamento da ordem política, Schmitt assume que obrigações políticas têm um
fundamento não racional o que significa que “todas as representações, palavras e conceitos
políticos possuem um sentido polêmico”220. Tal leitura tem fortes consequências na reflexão
sobre política e epistemologia: essas esferas, que se mostram vinculadas, excluem qualquer
essência ou fundamento racional e complementam o movimento de destranscendentalização
da razão e a crítica da razão idealista. Não é a questão da representação correta da realidade
através de normas, mas sim contextos particulares de usos e práticas que determinam o
conhecimento político, dito de outro modo: são as relações sociais de consenso e dissenso que
marcam nossas proposições a respeito da constituição do mundo, pois o conhecimento teórico
assim como o conhecimento prático é, segundo Schmitt, necessariamente partisan. De forma
lúcida, o jurista tedesco mostra como mesmo naqueles que se pretendem justos e pacíficos, as
relações políticas não perdem suas peculiaridades, realizando deslocamentos semânticos e
polêmicos:

Para o emprego destes meios se tem formado em todo caso, um novo vocabulário,
essencialmente pacífico, que já não conhece a guerra, mas apenas execuções,
sanções, expedições punitivas, pacificações, defesa de tratados, polícia internacional
e medidas para garantir a paz. O opositor já não se chama de inimigo, mas sim
coloca-o hors-la-loi e hors l’humanité na qualidade de violador da paz ou ameaça
contra a paz, e uma guerra levada a cabo para a manutenção ou a expansão de
posições econômicas de poder tem que ser convertida com grande inversão de
propaganda em "cruzada" e na “última guerra da Humanidade”. Assim o exige a
polaridade entre ética e economia. Em todo caso, fica descoberto nela uma
surpreendente sistematicidade e coerência, porém também este sistema
supostamente apolítico e até mesmo anti-político serve a agrupamentos do tipo
amigo-inimigo, sejam já existentes ou novos, e não podem escapar da consequência

220
BP, p. 31: "haben alle politischen Begriffe, Vorstellungen und Worte einen polemischen Sinn".
256

do político221.
A rigor, para Schmitt, a consequência do político exige que, ao invés da existência de
uma verdade (Veritas) que sirva de fundamento ao Estado, às normas, etc., haja alguém
investido de autoridade (auctoritas) e que estabeleça a decisão ao determinar o que essa
verdade significa: Quis interpretatibur?, Quis judicabit? são as questões essenciais sobre os
fundamentos do Estado e da norma como um ato de vontade que constitui uma ordem
pública:

O motivo repousa na mera autoridade com poder em que há uma decisão e a


decisão, por sua vez, é valorosa como tal, porque nas coisas mais importantes,
justamente, é mais importante que se decida sobre o que se vai decidir (...) o
essencial é que nenhuma instância superior avalie a decisão222.
O mecanismo da decisão se refere à situação de autoridade que o soberano exerce
quanto aos pertencentes daquele agrupamento político, pois "a exceção não é subsumível; ela
se exclui da concepção geral, mas, ao mesmo tempo, revela um elemento formal jurídico
específico, a decisão na sua absoluta nitidez"223. Assim como o soberano age políticamente
através da decisão e da exceção, também governa prescrevendo o uso correto de termos a fim
de normalizar, organizar e determinar condutas coletivas. A soberania, ou o sujeito decisivo,
está na origem da política entre a violência da exceção e o estabelecimento do direito. Dessa
forma, o Estado, tradicionalmente, afirmou-se como poder soberano na medida em que
controlou a revolução, a guerra civil e as invasões bárbaras, ao instaurar a ordem e o direito,
pois uma vez que tais movimentos contra a ordem julgam ter razões legítimas e agir em nome
da verdade, da liberdade ou da justiça é necessário que, além da decisão sobre o estado de
exceção ou do discernimento entre amigo e inimigo, o soberano tome ainda a decisão sobre o
que é publicamente considerado verdadeiro ou justo, já que a organização, a regulamentação e
o controle dos conteúdos das proposições constituem a expressão magna do poder político.

221
BP, p. 77-78: "Für die Anwendung solcher Mittel bildet sich allerdings ein neues, essentiell pazifistisches
Vokabularium heraus, das den Krieg nicht mehr kennt, sondern nur noch Exekutionen, Sanktionen,
Strafexpeditionen, Pazifizierungen, Schutz der Verträge, internationale Polizei, Maßnahmen zur Sicherung des
Friedens. Der Gegner heißt nicht mehr Feind, aber dafür wird er als Friedensbrecher und Friedensstörer hors-la-
loi und hors l'humanité gesetzt, und ein zur Wahrung oder Erweiterung ökonomischer Machtpositionen geführter
Krieg muß mit einem Aufgebot von Propaganda zum 'Kreuzzug' und zum 'letzten Krieg der Menschheit'
gemacht werden. So verlangt es die Polarität von Ethik und Ökonomie. In ihr zeigt sich allerdings eine
erstaunliche Systematik und Konsequenz, aber auch dieses angeblich unpolitische und scheinbar sogar
antipolitische System dient entweder bestehenden oder führt zu neuen Freund- und Feindgruppierungen und
vermag der Konsequenz des Politischen nicht zu entrinnen".
222
PT, p. 61: "Der Grund liegt darin, daß in der bloßen Existenz einer obrigkeitlichen Autorität eine
Entscheidung liegt und die Entscheidung wiederum als solche wertvoll ist, weil es gerade in den wichtigsten
Dingen wichtiger ist, daß entschieden werde, als wie entschieden wird (...) das Wesentliche ist, daß keine höhere
Instanz die Entscheidung überprüft".
223
PT, p. 19: "Die Ausnahme ist das nicht Subsumierbare; sie entzieht sich der generellen Fassung, aber
gleichzeitig offenbart sie ein spezifisch-juristisches Formelement, die Dezision, in absoluter Reinheit".
257

Nesse sentido, a legitimidade de uma ordem é produzida a posteriori por sua própria
faticidade, invertendo os termos da teoria racionalista.
Assim, Schmitt elabora um realismo político forte baseado no conflito como
condição original da política de forma que qualquer pretensão de conhecimento – público, ou
seja, político – que se propõe à neutralidade, à a-historicidade ou a condições ideais de ação é
inaceitável, já que não há modo de conhecimento sobre a política fora da política ou
independente da relação de conflito, pois, para o jurista tedesco, não se pode evitar as
consequências do político: nosso olhar desenvolve-se perspectivisticamente, sendo travejado
por relações sociais de poder, visto que "todos os conceitos da esfera espiritual, inclusive o
conceito de espírito, são pluralistas em si e só podem ser compreendidos tomando como ponto
de partida a existência política concreta (...) todas as representações essenciais da esfera
espiritual dos homens são existenciais e não normativas"224. Neste ponto, outra vez, não há no
pensamento schmittiano a possibilidade da regulação racional da política ou subordinação da
política a normas morais ou jurídicas, pois seu "existencialismo político" elabora uma
reflexão sobre as concretas relações entre forças contra qualquer especulação política de
matriz normativa. Conforme Arruda, para Schmitt, “a política é o fundamento de toda
normatividade objetiva e todos os conceitos normativos somente ganham densidade quando
referidos à esfera do político”225. Em outras palavras, a legitimidade é baseada não em um
fundamento apriorístico, normativo ou abstrato, mas sim em alguma forma de poder no
interior de relações fáticas através das quais ordem e direito são estabelecidos.
O realismo político schmittiano aproxima-se de uma compreensão anti-realista do
conhecimento político porque não se admite a autoridade epistêmica do sujeito cognoscente, o
modo representacional do conhecimento de objetos nem a verdade dos juízos como certeza. O
conhecimento não é a correspondência entre proposições e fatos, pois, normas, assim como
qualquer outro objeto, são produzidas pela práxis social, e não se pode conhecer normas
anteriores às próprias relações políticas ou realizar um consenso normativo incontroverso ou
ainda demonstrar critérios transcendentais de avaliação de normas concretas, como entidades
pré-estatais ou pré-sociais. Além disso, a autoridade epistêmica passou para a primeira pessoa
do plural, o nós soberano, ou seja, tornou-se pública a partir de uma concepção democrática
como a que Schmitt postula baseado no princípio de igualdade. Há, portanto, vinculação entre
uma interpretação pragmática do realismo político forte schmittiano e a compreensão

224
ZNE (1929) In: BP, p. 84: "Alle Begriffe der geistigen Sphäre, einschließlich des Begriffes Geist, sind in sich
pluralistisch und nur aus der konkreten politischen Existenz heraus zu verstehen (...) Alle wesentlichen
Vorstellungen der geistigen Sphäre des Menschen sind existenziell und nicht normativ".
225
ARRUDA, 2003, p. 60.
258

antirealista do conhecimento explicitada pelo autor da seguinte forma:

todos os conceitos, idéias e palavras políticas possuem um caráter polêmico, têm em


vista uma rivalidade concreta; estão ligados a uma situação concreta cuja última
consequência é um agrupamento do tipo amigo-inimigo (que se expressa em guerra
ou revolução) e se convertem em abstrações vazias e imaginárias quando esta
situação desaparece. Palavras como Estado, república, sociedade, classe e mais
além: soberania, Estado de Direito, absolutismo, ditadura, plano, Estado neutro ou
total, etc. resultam incompreensíveis se não se sabe quem in concreto deverá ser
designado, combatido, negado e refutado através destes termos226.
As relações sociais de poder e o perspectivismo como teoria do conhecimento
partisan asseguram que, como todos os conceitos políticos são conceitos polêmicos, isto é,
produzido uns contra outros, só é possível conhecer algo a partir do antagonismo entre
amigo/inimigo para garantir a preservação do grupo. O antagonismo se imiscui por todas as
esferas da vida, uma vez que qualquer relação pode tornar-se política, redutível à distinção
entre amigo/inimigo e à possibilidade da guerra. Além disso, determina o conhecimento, as
palavras e as coisas, pois os discursos são, na verdade, atos de poder: apenas polemicamente
se pode reconhecer, compreender e julgar o caso concreto e estabelecer a situação extrema do
conflito, visto que assim como o conflito não pode ser decidido a partir de uma norma geral
previamente determinada, já que cada conflito é específico e exige decisões concretas, o
julgamento dessa situação cabe aos participantes, aos que combatem juntos e não por uma
terceira parte neutra e desinteressada. Portanto, qualquer conhecimento ou decisão política
assume o caráter partidário, para decidir, julgar e para pôr fim ao conflito necessariamente
tem que se tornar parte dele e tomar um lado da disputa, ou seja, tomando-se uma perspectiva
no interior de uma agonística precisa:

Ao caso extremo de conflito somente pode resolvê-lo entre si os próprios


participantes, isto é: cada um deles só por si mesmo pode decidir se a forma de ser
diferente do estranho representa, no caso concreto do conflito existente, a negação
da forma existencial própria e deve, por isso, ser rechaçada ou combatida a fim de
preservar a própria, existencial forma de vida 227.
Para Schmitt, a operação cognitiva básica é a diferenciação, a partir da qual a
semântica é criada. Quando são investigadas as relações políticas, os diferentes grupos
conferem sentido aos fatos e instituições e os interpreta contextualmente a partir da estrutura
226
BP, p. 31: "Erstens haben alle politischen Begriffe, Vorstellungen und Worte einen polemischen Sinn; sie
haben eine konkrete Gegensätzlichkeit im Auge, sind an eine konkrete Situation gebunden, deren letzte
Konsequenz eine (in Krieg oder Revolution sich äußernde) Freund-Feindgruppierung ist, und werden zu leeren
und gespenstischen Abstraktionen, wenn diese Situation entfällt. Worte wie Staat, Republik, Gesellschaft,
Klasse, ferner: Souveränität, Rechtsstaat, Absolutismus, Diktatur, Plan, neutraler oder totaler Staat usw. sind
unverständlich, wenn man nicht weiß, wer in concreto durch ein solches Wort getroffen, bekämpft, negiert und
widerlegt werden soll".
227
BP, p. 27: "Den extremen Konfliktsfall können nur die Beteiligten selbst unter sich ausmachen; namentlich
kann jeder von ihnen nur selbst entscheiden, ob das Anderssein des Fremden im konkret vorliegenden
Konfliktsfalle die Negation der eigenen Art Existenz bedeutet und deshalb abgewehrt oder bekämpft wird, um
die eigene, seinsmäßige Art von Leben zu bewahren".
259

sociológica à qual pertencem. Dessa forma, o conhecimento está numa tessitura de poder no
qual agem as forças que ditam normas e comportamentos e o resultado desse embate é
chamado, com certo apelo, de verdade. Enquanto instância de imposição, a verdade é criada
por meio da polemização ou da politização das interpretações da realidade que se torna uma
perspectiva entre várias. Não mais universal e a priori, a verdade é determinada pelo poder
soberano que a interpreta e decide, portanto, estabelece-a institucionalmente: o único critério
para a verdade de um enunciado consiste em que medida ela está em condições de se impor
contra outros enunciados, ou seja, se ela é ou não confirmada e reconhecida numa relação de
supra- e subordinação aos seus destinatários. Seja na política, no direito ou em relação a uma
teoria da verdade, os interesses, vontades e necessidades, ou ainda as crenças e os desejos de
um grupo atuam como formas de produzir imagens de acordo com sua estrutura e valores: “a
partir da conceitualidade jurídica orientada nos próximos e práticos interesses da vida jurídica,
encontra-se a última estrutura radicalmente sistemática e essa estrutura conceitual é
empregada com a assimilação conceitual da estrutura social de certa época”228.

As categorias são específicas e condicionadas, resultantes do pertencimento a um


grupo e da finitude da existência humana diante da trágica condição política, pois como
sempre se pertence a um grupo (político), o distanciamento e a imparcialidade são falácias
úteis apenas para justificar seu interesse como universal, influenciando todas as demais
relações porquanto "na realidade psicológica, o inimigo facilmente é tratado como mau e feio
porque toda diferenciação recorre (...) à diferenciação política como à mais forte e intensa das
diferenciações e agrupamentos a fim de fundamentar sobre ela todas as demais diferenciações
valorativas"229. Os conceitos correspondem aos usos e às práticas e são determinados pelos
antagonismos reais. Ao discorrer sobre Hobbes, Schmitt esclarece mais uma vez sua proposta:

Em Hobbes, que é um grande pensador político, autenticamente sistemático, sua


concepção pessimista do homem e, mais além dela, sua correta apreciação de que as
piores inimizades se produzem precisamente quando em ambos os bandos existem a
convicção da verdade, a bondade e a justiça 230.

228
PT, p. 50: "hinausgehend über die an den nächsten praktischen Interessen des Rechtslebens orientierte
juristische Begrifflichkeit, die letzte, radikal systematische Struktur gefunden und diese begriffliche Struktur mit
der begrifflichen Verarbeitung der sozialen Struktur einer bestimmten Epoche verglichen wird". A partir daí,
Schmitt propõe a denominada sociologia dos conceitos que consiste, em breves palavras, na investigação
científica e teórica da história dos conceitos políticos constituindo uma espécie de hermenêutica do político em
Schmitt.
229
BP, p. 27-28: "In der psychologischen Wirklichkeit wird der Feind leicht als böse und häßlich behandelt, weil
jede, am meisten natürlich die politische als die stärkste und intensivste Unterscheidung und Gruppierung, alle
verwertbaren anderen Unterscheidungen zur Unterstützung heranzieht".
230
BP, p. 64-65: "Bei Hobbes, einem großen und wahrhaft systematischen politischen Denker, sind daher die
'pessimistische' Auffassung des Menschen, ferner seine richtige Erkenntnis, daß gerade die auf beiden Seiten
vorhandene Überzeugung des Wahren, Guten und Gerechten die schlimmsten Feindschaften bewirkt".
260

De forma ainda mais clara, logo em seguida, Schmitt arremata:

Aos opositores políticos de uma teoria política lúcida não lhes resultará difícil,
portanto, tomar uma concepção e descrição clara dos fenômenos políticos e, em
nome de alguma instância autônoma, declará-la imoral, antieconômica, acientífica e,
sobretudo – já que isso é o que importa politicamente – colocá-la hors- la-loi como
algo demoníaco que deve ser combatido 231.
Todo discurso é necessariamente situado, pois qualquer discurso que se pretenda
neutro ou imparcial cai numa contradição performativa, ou seja, nega aquilo mesmo que
pressupõe: sua situacionalidade histórica fundamental. Poderíamos arriscar dizer que, por se
tratar de afetos, há inter-esse como forma de conehcimento e ação do corpo político. A relação
com o direito e o poder é da mesma natureza, segundo Schmitt, pois:

Em primeiro lugar, se tem que perguntar se por direito se entendem as leis positivas
e os métodos legislativos existentes que devem seguir em vigência porque, nesse
caso, o “império das leis” não significa mais que a legitimação de um status quo
determinado em cujo sustentamento naturalmente tem interesse todos aqueles cujo
poder político ou cujas vantagens econômicas se estabilizaram nesse Direito 232.
Não apenas as configurações estruturais de uma sociedade são resultantes das
disputas e embates, como vimos, mas também as relações entre verdade e normas observam e
acompanham o que o poder e a ordem fazem valer como tais. O direito funciona como
elemento estabilizador de um status de uma circunstância atravessada por fluxos de forças.
Mais uma vez Schmitt:

A soberania do direito significa apenas que as pessoas que estabelecem e


administram as normas legais, e que o império de uma ‘Ordem Superior’ é tão só
uma frase vazia de conteúdo quando não implica que certas pessoas, sobre a base
desta ‘Ordem Superior’, desejam governar outras pessoas de uma ‘Ordem
Inferior’233.
Assim, o conhecimento político não visa a verdade em si, mas apenas ao domínio das
coisas pela unidade concreta, uma vez que:

São sempre grupos humanos concretos os que lutam contra outros grupos humanos
concretos em nome do direito, da humanidade, da ordem ou da paz. Se tem que ser
consequente com seu próprio pensamento político ainda a risco de que acusem de
imoralidade e cinismo, o observador dos fenômenos políticos apenas pode ver neles

231
BP, p. 65: "Den politischen Gegnern einer klaren politischen Theorie wird es deshalb nicht schwer, die klare
Erkenntnis und Beschreibung politischer Phänomene und Wahrheiten im Namen irgendeines autonomen
Sachgebiets als unmoralisch, unökonomisch, unwissenschaftlich und vor allem – denn darauf kommt es politisch
an – als bekämpfenswerte Teufelei hors-la-loi zu erklären".
232
BP, p. 66: "erstens, ob 'Recht' hier die bestehenden positiven Gesetze und Gesetzgebungsmethoden
bezeichnet, die weiter gelten sollen; dann bedeutet die 'Herrschaft des Rechts' nämlich nichts anderes als die
Legitimierung eines bestimmten status quo, an dessen Aufrechterhaltung selbstverständlich alle ein Interesse
haben, deren politische Macht oder ökonomischer Vorteil sich in diesem Recht stabilisiert".
233
BP, p. 66: "die Souveränität des Rechts nur die Souveränität der Menschen bedeutet, welche die
Rechtsnormen setzen und handhaben, daß die Herrschaft einer 'höheren Ordnung' eine leere Phrase ist, wenn sie
nicht den politischen Sinn hat, daß bestimmte Menschen auf Grund dieser höheren Ordnung über Menschen
einer 'niederen Ordnung' herrschen wollen".
261

um meio político utilizado por pessoas que se combatem concretamente 234.


As relações políticas têm a capacidade de transformar qualquer esfera da vida em
disputa de poder. Uma epistemologia que pretenda articular antagonismo, exceção e decisão
numa forma de compreensão da realidade política deve ser capaz, da mesma forma, de
transformar qualquer relação entre os grupos adversários em formas polêmicas a partir das
quais se pode conhecer contra o outro, ou seja, contra o Gegenspieler, contra os personagens
antagônicos de uma situação concreta de enfrentamento marcada, evidentemente, pelo
perspectivismo. Dessa forma, Schmitt procura desconstruir a concepção essencialista e a
noção de uma ordem abstrata, inclusive como forma de conhecimento, pois este é
necessariamente situado, determinado historicamente assim como o fundamento do poder
público: não trata de uma figuração correta do mundo, mas de um modelo pragmático das
relações do mundo e das coisas. Nesse sentido, questões epistemológicas tradicionais como:
existem normas a priori?, como é possível conhecer normas?, qual o papel essas normas têm
na política?, não são colocadas por um realista político de uma tendência forte de forma tão
ingênua. Para Schmitt, na discussão sobre o poder, conceitos e palavras em geral são sempre
utilizados de forma polêmica:

Também aqui são possíveis numerosos tipos e graus do caráter polêmico, mas
sempre permanece distinguível o essencialmente polêmico das construções políticas
semânticas e conceituais. Questões terminológicas tornam-se, assim, questões de
alta política; uma palavra ou expressão pode ser, simultaneamente, reflexo, sinal,
distintivo e arma de um conflito inimigo 235.
Isso significa afirmar que os termos utilizados não possuem uma semântica fixada a
priori ou apenas pelo uso, como tradicionalmente a Filosofia da Linguagem assevera, mas
insere na significação dos termos da linguagem o contexto e as relações de poder nas quais o
usuário se situa. Assim, a situação do usuário da linguagem em questões políticas –
virtualmente, para Schmitt, engloba qualquer relação – é marcada por sua vinculação
existencial, porém, isso tem como consequência que a semântica é fundada pela pragmática
mediante o contexto de antagonismo e que é urgente a necessidade de uma teoria política da
linguagem que justifique o estado da questão ainda tão incipiente.

234
BP, p. 66-67: "denn es sind immer konkrete Menschengruppen, die im Namen des 'Rechts' oder der
'Menschheit' oder der 'Ordnung' oder des 'Friedens' gegen konkrete andere Menschengruppen kämpfen, und der
Betrachter politischer Phänomene kann, wenn er konsequent bei seinem politischen Denken bleibt, auch in dem
Vorwurf der Immoralität und des Zynismus immer wieder nur ein politisches Mittel konkret kämpfender
Menschen erkennen".
235
BP, p. 31: "Auch hier sind zahlreiche Arten und Grade des polemischen Charakters möglich, doch bleibt das
wesentlich Polemische der politischen Wort- und Begriffsbildung stets erkennbar. Terminologische Fragen
werden dadurch zu hochpolitischen Angelegenheiten; ein Wort oder ein Ausdruck kann gleichzeitig Reflex,
Signal, Erkennungszeichen und Waffe einer feindlichen Auseinandersetzung sein".
262

2.4.5 Pragmatismo político e teoria da linguagem

Em suma: se, pragmaticamente, por um lado, a linguagem é práxis social e o


significado é estabelecido pelo uso; por outro, essa prática social é marcada profundamente
por relações de poder que, dessa forma, constituem-na, ou seja, não é suficiente afirmar a
pragmaticidade da linguagem, mas é necessário ir adiante e sustentar que essas relações
pragmáticas são perpassadas por disputas, autoridade e força. Assume-se, por conseguinte, a
premissa de que a constituição do sentido se dá na esfera do mundo da vida, ou seja, não é
nem metafisicamente nem transcendentalmente fundamentada, mas sim pragmaticamente nas
relações sociais. Para Schmitt, uma teoria da linguagem, assim como uma teoria política, é, no
fundo, uma teoria agonística do poder, isto é, também a linguagem é perpassada por uma
pluralidade de forças:

O caráter polêmico também domina, sobretudo, o uso linguístico corrente da própria


palavra "político", não importando se o adversário é apresentado como "apolítico"
(no sentido de desconhecedor do mundo, a quem falta o concreto) ou se,
inversamente, se pretende desqualificá-lo ou denunciá-lo como "político" a fim de
se elevar a si mesmo sobre ele como "apolítico" (no sentido de puramente objetivo,
puramente científico, puramente moral, puramente jurídico, puramente estético,
puramente econômico, ou com bases em semelhantes purezas polêmicas)236.
Dessa forma, Schmitt radicaliza a reflexão pragmática e põe o conceito do político
no centro de uma teoria da linguagem, cujo princípio fundamental é a polemicidade. A tese
principal que se pode extrair desse pensamento é que a linguagem é um regime de poder no
qual palavras e conceitos são criados, pois do mesmo modo que a sociabilidade é constituída
por relações de poder, o que é trivial, a linguagem também possui como momento fundador
tais relações polêmicas como se percebe do seguinte trecho, decisivo para a investigação
sobre a relação entre linguagem e poder em Schmitt:

conceitos políticos decisivos, interessa justamente quem os interpreta, define e


aplica; quem, através da decisão concreta, diz o que é paz, desarmamento,
intervenção, ordem pública e segurança. Trata-se de uma das mais importantes
manifestações da vida jurídica e espiritual da humanidade em geral o fato de que
aquele que possui o verdadeiro poder também pode determinar por si mesmo os
conceitos e palavras. Cæsar dominus et supra grammaticam: César também é senhor
da gramática237.

236
BP, p. 31-32: "Der polemische Charakter beherrscht vor allem auch den Sprachgebrauch des Wortes
'politisch' selbst, gleichgültig, ob man den Gegner als 'unpolitisch' (im Sinne von weltfremd, das Konkrete
verfehlend) hinstellt, oder ob man ihn umgekehrt als 'politisch' disqualifizieren und denunzieren will, um sich
selbst als 'unpolitisch' (im Sinne von rein sachlich, rein wissenschaftlich, rein moralisch, rein juristisch, rein
ästhetisch, rein ökonomisch, oder auf Grund ähnlicher polemischer Reinheiten) über ihn zu erheben".
237
PuB, p. 202: "entscheidenden politischen Begriffen kommt es eben darauf an, wer sie interpretiert, definiert
und anwendet; wer durch die konkrete Entscheidung sagt, was Frieden, was Abrüstung, was Intervention, was
öffentliche Ordnung und Sicherheit ist. Es ist eine der wichtigsten Erscheinungen im rechtlichen und geistigen
263

Para Schmitt, de forma inicial, há uma recusa de qualquer consideração normativa da


política, ou seja, ele argumenta a favor do primado das relações sociais históricas diante das
normas, pois ao invés de buscar uma fundamentação normativa através de alguma instância
que transcende o meramente empírico, o realismo político forte ou o pragmatismo
existencialista afirma que o que vale é determinado pela facticidade ou realidade concreta. As
idéias de necessitas legem non habet e a de ratio status marcaram o realismo político
moderno e reúnem pensadores diversos de Bodin e Hobbes à Nietzsche e Weber, entre outros.
Tal relação representa mais do que uma consideração histórica, pois a dependência a que se
refere Schmitt designa uma relação de fundamentação que decide sobre a validade ou não da
esfera normativa, portanto, a vinculação se dá de forma estrutural. Segundo o autor, em
Legalität und Legitimität, ao expor a situação contraditória da República de Weimar, seriam
necessárias garantias institucionais238 ao invés de simples normas e garantias normativas ou
dos institutos, precisamente por causa do pensamento concreto da ordem que estipula uma
instância que ministre uma proteção especial (besonderen Schutz) à determinadas instituições
(bestimmten Einrichtungen) jurídico-políticas da estrutura estatal, pois:

Onde em um determinado complexo de Direito material, como complexo de


categoria superior, se contrapõe em uma grande extensão ao Direito material
estabelecido pelo legislador ordinário, como um complexo de categoria inferior, e
esta diferenciação reside na desconfiança diante do legislador simples, quer dizer,
diante ao legislador ordinário, o complexo de normas superiores necessita ser
protegido mediante instituições orgânicas concretas contra o legislador simples e
ordinário. Porque nenhuma norma, nem superior nem inferior, se interpreta e se
aplica, se protege ou se defende a si mesma; nenhuma validade normativa se faz
valer a si mesma; e também não existe – se não quisermos nos deixar levar por
metáforas e alegorias – nenhuma hierarquia de normas, apenas hierarquias de
homens e de instâncias concretas239.
Assim, segundo Schmitt, é necessário uma instituição orgânica concreta (konkreter
organisatorische Einrichtung) para assegurar a validade de normas, pois tanto o direito
quanto as instituições políticas são expressões do poder e, portanto, dependem dele para se
fazerem efetivas. No desenvolvimento do argumento schmittiano, torna-se importante para a

Leben der Menschheit überhaupt, daß derjenige, der wahre Macht hat, auch von sich aus Begriffe und Worte zu
bestimmen vermag. Caesar dominus et supra grammaticam: der Kaiser ist Herr auch über die Grammatik".
238
Sobre a teoria das garantias institucionais de Schmitt, cf. VL, § 14, principalmente, p. 170-174;
"Freiheitsrechte und institutionelle Garantien der Reichsverfassung" (1931), In: VA, p. 140-173; cf. ainda
BONAVIDES, 2004, p. 535-578; BEAUD, 1997, p. 89-96.
239
LL, p. 52-53: "Wo in einem größeren Umfang ein bestimmter Komplex materiallen Rechts, als ein Komplex
höherer Art, dem vom einfachen Gesetzgeber gesetzten materiellen Recht, als einem Komplex niederer Art,
gegenübersteht, und diese Unterscheidung gerade auf dem Mißtrauen gegen den einfachen, das heißt den
ordentlichen Gesetzgeber beruht, bedarf der Komplex höherer Normen konkreter organisatorischer Einrichtung,
um vor dem einfachen ordentlichen Gesetzgeber geschützt zu sein. Denn keine Norm, weder eine höhere noch
eine niedere, interpretiert und handhabt, schützt oder hütet sich selbst; keine normative Geltung macht sich selbst
geltend; und es gibt auch – wenn man sich nicht in Metaphern oder Allegorien ergehen will – keine Hierarchie
der Normen, sondern nur eine Hierarchie konkreter Menschen und Instanzen".
264

compreensão da relação entre linguagem e poder, bem como para o assentamento da noção de
pragmatismo político algumas considerações sobre a estrutura da norma, pois esta como
expressão jurídica do poder, segundo a lógica deôntica tradicional, enuncia uma obrigação,
proibição ou permissão; por exemplo, o enunciado "é proibido matar alguém salvo em caso de
necessidade" é verdadeiro e o enunciado "é pertimido não cumprir as promessas" é falso, ou
seja, enunciados deônticos afirmam que existem ou não determinadas obrigações e podem ser
verdadeiros ou falsos. Por outro lado, na base das considerações dos enunciados normativos
está a noção de imperativo ou, simplesmente, de ordem, pois enunciados normativos como os
acima só possuem valor de verdade quando se referem a obrigações previamente existentes,
porém tais obrigações previamente existentes não são nem verdadeiras nem falsas, pois ou
bem há um consenso normativo sobre valores ou bem o fato de que alguém proibe, ordena ou
permite algo, ou seja, impõe uma norma através de um ato de vontade, isto é, de autoridade é
suficiente para estabelecer sua validade numa ordem de direito, conforme a passagem:

Uma constituição não se baseia em normas, cuja correção seria o fundamento de sua
validade; ela se baseia em uma decisão do ser político que define o modo e a norma
de sua própria existência. A palavra “vontade” designa o elemento existencial
essencial deste fundamento, em oposição a qualquer dependência de critérios
normativos ou abstratos240.
A ordem põe normas e com essa manifestação afirma a validade do direito. O ato de
impor uma norma não depende das qualidades morais intrínsecas ou da necessidade lógica da
norma, mas da vontade do soberano que decide sobre sua validade. Daí, o conceito político de
norma em Schmitt, distinto do conceito formal de norma na versão liberal, revela o momento
da decisão e da autoridade, pois a norma é uma relação de mando e, como tal, revela a ordem
emitida como existencial, uma vez que esta é a decisão política como forma da unidade de um
povo. A impossibilidade de regulação racional da política se expressa na primazia do
elemento não racional que fundamenta normas, a decisão:

A Constituição não é portanto algo absoluto, na medida em que ela não se cria a si
mesma. Ela não vale também por conta de sua correção normativa ou por causa de
seu acabamento sistemático. Ela não se dá a si mesma, mas provém de uma unidade
política concreta. Linguisticamente é talvez possível dizer que uma constituição se
põe a si mesma, sem que a estranheza dessa forma de falar seja percebida de
imediato. Entretanto, que uma constituição se dê ela própria é claramente sem
sentido e absurdo. A Constituição vale por força da vontade política daquele que a
fez. Qualquer forma de normatização jurídica, inclusive as normas constitucionais,

240
VL, §8, p. 76: "Eine Verfassung beruht nicht auf einer Norm, deren Richtigkeit der Grund ihrer Geltung wäre.
Sie beruht auf einer, aus politischem Sein hervorgegangenen politischen Entscheidung über die Art und Norm
des eigenen Seins. Das Wort 'Wille' bezeichnet – im Gegensatz zu jeder Abhängigkeit von einer normativen oder
abstrakten Richtigkeit – das wesentlich Existentielle dieses Geltungsgrundes".
265

pressupõem a existência prévia de uma tal vontade 241.


A análise dos enunciados normativos sob o ponto de vista de uma teoria política é
importante para a reflexão sobre a constituição da linguagem, pois, da mesma forma que a
pragmaticidade é a dimensão da linguagem no ato ou no jogo de comunicação, ou seja,
relacionada ao discurso num contexto em função da ocorrência de um signo, tratando das
relações entre sistemas formais e os seus utilizadores; há a possibilidade de, a partir de
Schmitt, inserir elementos extralinguísticos nas investigações sobre a linguagem e acentuar o
aspecto praxeológico e a interrogação sobre a relação entre linguagem e poder.
Evidentemente, um contexto situacional que leve em consideração determinações sociais e
institucionais põe em análise um discurso histórico eivado de enunciados imperativos e
normativos. Com isso, fixa-se, no âmbito da filosofia política, o paradigma da
comunicabilidade e explora-se suas possibilidades estruturais a partir da noção de poder – por
exemplo uma teoria da verdade em termos de uma teoria do poder ou uma semântica do
poder, etc., sempre relacionada à existência concreta e ao dissenso, inclusive com a
possibilidade da morte, ou seja, levando em conta a condição finita da existência humana. De
forma geral, na leitura que se realiza de Schmitt, a validade e certeza de uma norma, ordem ou
enunciado são determinadas por relações pragmáticas, porém, mais do que isso, revela um
aspecto pragmático constitutivo, isto é, a primazia de uma situação onde comunicação e poder
se entrelaçam e determinam uma semântica a partir do conflito. Não se quer demonstrar com
isso que a linguagem, as normas jurídicas ou a ordem política sejam constituídas apenas por
situações polêmicas, pois, como é natural, o consenso também participa da sociabilidade
humana e, portanto, tem sua função constitutiva. O que se pretende aqui é apenas ressaltar o
topos contrário sem excluir este último, ou seja, a importância de uma teoria do dissenso
numa esfera pragmática constitutiva da sociabilidade política. Assim, por pragmatismo
político, compreende-se uma tentativa de substituir a noção de crenças verdadeiras enquanto
representações da natureza das coisas ou de normas válidas formalmente, pelo
reconhecimento de justificações em crenças e desejos como propriedades intrinsecamente
dependentes de uma situação de poder e da vontade, em última instância caracterizada como
sociocrática e não apenas sociopraticamente. No fundo, a tradicional análise do discurso se

241
VL, §3, p. 22: "Die Verfassung ist also insofern nichts Absolutes, als sie nicht aus sich selber entstanden ist.
Sie gilt auch nicht kraft ihrer normativen Richtigkeit oder kraft ihrer systematischen Geschlossenheit. Sie gibt
sich nicht selbst, sondern wird für eine konkrete politische Einheit gegeben. Sprachlich ist es vielleicht noch
möglich zu sagen, daß eine Verfassung 'sich selber setzt', ohne daß die Seltsamkeit dieser Redensartsofort
auffällt. Aber daß eine Verfassung sich selber gibt, ist offenbar unsinnig und absurd. Die Verfassung gilt kraft
des existierenden politischen Willens desjenigen, der sie gibt. Jede Art rechtlicher Normierung, auch die
verfassungsgesetzliche Normierung, setzt einen solchen Willen als existierend voraus".
266

refere a estruturas interessantes, mas que se mostram limitadas: o que está em jogo aqui é a
análise do discurso no interior de um contexto histórico concreto; por isso, busca-se a partir
de Schmitt uma reabilitação da relação entre retórica e filosofia, ou em outros termos, entre
discurso-poder e saber-sistema e reintroduzi-lo neste, constituindo uma filosofia política da
linguagem na tensão entre discurso e poder.
Na pretensão de investigar a origem da ordem pública e da autoridade do poder, a
teoria do político de Schmitt afirma como realidade última condicionante, porém
incondicionada, uma existencialidade concreta originária que dá a medida (seinsmäßige
Ursprünglichkeit) e evidencia o caráter fictício de qualquer normatividade na tentativa de
fundação da ordem, inclusive, ao ponto de tornar a contraposição entre política e direito ou
poder e normas destituída de sentido, pois nesse caso considerado a partir da seinsmäßige
Ursprünglichkeit a distinção entre quaestio iuris e quaestio facti é solucionada, embora
advogando por um lado apenas. Schmitt propõe a polemicidade entre amigos e inimigos como
a categoria específica do político e o conceito de Estado como a unidade concreta de um
povo, mas a tese schmittiana de que todos os conceitos políticos são conceitos polêmicos é
mais uma expressão de uma espécie radical de pragmatismo, pois refere-se à situação
concreta histórica e à utilização semântica por um agrupamento na definição do significado.
Nesse sentido, cabe agora, finalizar a análise de teoria schmittiana investigando como se dá a
constituição da ordem e das normas através de um ato de vontade existencial.

2.4.6 Dos fatos às normas, e vice-versa: voltando ao chão áspero

O texto Verfassungslehre de 1928 é considerado, a rigor, o desenvolvimento teórico-


jurídico mais sistemático das teses germinadas no texto Der Begriff des Politischen de 1927.
Na verdade, como um eminente intérprete da obra de Schmitt afirma, o conceito do político é
a chave de leitura para a teoria da constituição242. Neste contexto, a interpretação que Schmitt
realiza possui tanto um caráter analítico quanto um caráter fenomenológico, ou seja, embora
tenha como ponto de partida a República de Weimar e a critica ao liberalismo e ao
Rechtsstaat, desenvolve uma análise conceitual dos institutos políticos e jurídicos mesmo que
influenciado pelo condicionamento histórico alemão da década de 1920. A distinção inicial da
obra de Schmitt delimita a investigação marcada pelo anti-liberalismo e anti-positivismo que
possui como tese fundamental a distinção entre leis constitucionais e constituição. O
argumento utilizado pelo jurista tedesco é sobre, por um lado, a distinção analítica entre

242
BÖCKENFÖRDE, 1988, p. 283-299.
267

constituição formal e constituição material, por outro lado, a distinção sociológica entre
constituição real e constituição escrita.
Em relação ao pragmatismo político decorrente do argumento do fintismo, suas
consequências para a fundamentação da ordem pública e das normas mostram-se, em primeiro
lugar, com a investigação da Realität originária a partir da qual a constituição tem seu
fundamento, porém tal realidade referida às relações de forças e determinada, sobretudo, pela
Gesamt-Entscheidung. A decisão sobre o tipo e a forma da própria unidade política é, nesse
quadro, a decisão política fundamental da qual emerge a existência política ou o modo
concreto de ser de um povo, ratificando o momento da polemicidade como orignário da
ordem, pois nem apenas decisão sobre a exceção, nem apenas decisão sobre o inimigo, mas
decisão acerca da própria existência. O principal argumento a ser esclarecido nesta tese
schmittiana é (I) o conceito de unidade política (politische Einheit) e o desenvolvimento do
tema acerca da decisão (Entscheidung), bem como (II) analisar a tese da instituição da ordem
normativa a partir da concreta existência política; além disso, desenvolvendo a tese
interpretativa deste estudo, apresenta-se (III) a teoria schmittiana como um pragmatismo
político que acerta em rejeitar normas anteriores à forma política e dirigir suas ações através
do impulso existencial à conservação da forma de vida específica de grupo; e, por fim, (IV) as
considerações acerca da noção de poder constituinte do povo que serve como argumento
fundamental em direção ao esclarecimento sobre o que se denomina aqui teoria pragmática.

(I)

Segundo Schmitt, qualquer enunciado normativo é subsidiário diante da decisão


concreta de uma unidade política sobre o modo da existência de um povo. O primeiro
argumento a ser esclarecido é o de Entscheidung que tem como objetivo a criação da ordem,
pois expressa a vontade criadora como algo existencial e serve de fundamento não normativo
para a ordem pública, pois é a decisão real de uma unidade real de vontade que constitui o
Estado como uma unidade qualificada politicamente243. Para Schmitt, “antes de qualquer
norma há a existência concreta do povo politicamente unido”244, ou seja, é a decisão-criação

243 Cf. HOFMANN, 2002, p. 121: “Alle normativen Regelungen sind nach Schmitts Anschauung sekundär
gegenüber der existenziellen Gesamt- und Grundentscheidung über Art uund Form der politschen Existenz. Jene
existenzielle Entscheidung trägt alle normativen Regelungen und gibt ihnen Sinn, insofern sie den Staat als eine
politische Einheit konstituiert, prinzipiiert und d.h. Zugleich: andere Arten politischer Existenz entschlossen
negiert (…) Die bewußte politische Gesamtentscheidung über Art und Form der politischen Existenz ist für
Schmitt m. a. W. die schlechthin ursprüngliche und von seinem dezisionistischen Begriff des Politischen her
gesehen allein mögliche und wesentliche Manifestation des Selbstbehauptungswillens eines Volkes als einer
Einheit und Ganzhheit”.
244 VL, p. 121: “Vor jeder Norm steht die konkrete Existenz des politsch geeinten Volkes”.
268

sobre a existência da unidade política que produz originalmente as normas que são
autorizadas não por um consenso racional ou por alguma ordem de valores universais, mas
sim por um consenso existencial marcado polemicamente pela decisão. Numa perspectiva
anti-substancialista e anti-formalista, o conceito de decisão, segundo Schmitt, é a vontade que
funda a ordem pública a partir dos interesses e das forças existentes numa forma de vida.
Esta distinção pode ser caracterizada como consequência da tese acerca do político,
pois é através da negação decisiva sobre o outro que se constitui existencialmente a identidade
de si, sem a consideração de razões ou normas prévias para a formação política uma vez que o
que interessa para o autor é, justamente, ao realizar uma genealogia do político, buscar a
origem não racional do poder e da ordem. Tal decisão polêmica, isto é, produtora de um
consenso interno e de um dissenso externo é, porém, antecedido por algo ainda mais
originário: se, por um lado, a decisão produz a unidade política sendo portanto sua origem; ela
pressupõe, por outro lado, de forma ainda mais originária, uma manifestação da vontade
(voluntas) ou de um ato existencial do povo que produz a partir de si mesmo sua politicidade.
No entanto, esta vontade como auto-instituição reside em um fundamento ainda mais
subjacente, qual seja, no fundamento de legitimação último na realidade histórica, qual seja,
na própria existência originária ou em outras palavras, na própria facticidade política245.
Assim, as normas e a ordem jurídica, bem como as leis constitucionais dependem da
unidade política; por seu turno, a unidade política depende da decisão originária; esta, por sua
vez, depende da existência concreta de um povo como substrato último para o fundamento da
ordem: além deste não há nada nem fundamento jurídico nem fundamento moral, pois o
fundamento de legitimidade último da ordem política e do poder público é, na verdade, a
realidade histórica

A decisão jurídica mais importante está contida no Preâmbulo: “o povo alemão dá-se
esta Constituição”, e no art. 1, 2: “o poder do Estado emana do povo”. Estes
enunciados caracterizam-se como decisões políticas concretas e o pressuposto
jurídico-positivo da constituição de Weimar: o Poder constituinte do povo alemão
como Nação, isto é, unidade com capacidade de agir e consciente de sua existência
política246.
Dessa forma, a rigor, nem mesmo a decisão sobre o modo e a forma da unidade

245
Desta perspectiva pragmática é, portanto, sem sentido, por exemplo, o pedido do reconhecimento do Estado
da Palestina diante da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) no dia 23 de setembro de
2011, pois a existência ou não de um Estado, conforme Schmitt, está vinculada, na verdade, apenas à auto-
afirmação enquanto unidade política através da decisão como ato de vontade e fato institucional servindo de
fundamento ao poder público.
246
VL, p. 60: “Die wichtigste politische Entscheidung ist in dem Vorspruch: 'Das deutsch Volk hat sich diese
Verfassung gegeben' und in art. 1 Abs. 2: 'Die Staatsgewalt geht vom Volke aus', enthalten. Dieses Sätze
bezeichnen als konkrete politische Entscheidung die positiv-rechtliche Grundlagen des deutschen Volkes als
einer Nation, d.h. einer politischen Existenz bewußtsein, handlungsfähigen Einheit”.
269

política é o fundamento último da ordem, pois há uma realidade anterior, qual seja, a
existencialidade originária da realidade histórica, em outras palavras,

Toda lei, como regulamento normativo, e também a lei constitucional, necessita para
sua validade, como fundamento último, de uma decisão política que o preceda,
adotada por um poder ou autoridade politicamente existente. Toda unidade poítica
existente tem seu valor e sua razão de existência, não na justeza ou conveniência das
normas, mas sim na sua própria existência. Aquilo que existe como uma entidade
política é juridicamente considerado digno de existir. Por isso seu direito de auto-
conservação é o pressuposto de toda posterior discussão; procura sobretudo subsistir
na sua existência, in suo ese perseverare (Spinoza); defende “sua existência, sua
integridade, sua segunrança e sua Constituição” - todo o valor existêncial247.
Além disso, a unidade política é, segundo o autor, um todo (Ganze), porém uma
totalidade que compreende a inteira existência humana, como sendo aquela relação mais
intensa e mais presente até ao ponto da exigência política da vida e da morte mediante um
conflito e não meramente uma unidade formal marcada pela justaposição simples dos
indivíduos de um grupo ligados por algum liame jurídico; apesar disso, a condição do político
não se caracteriza a partir de uma perspectiva estável, pois as categorias de amigo e de
inimigo, ou melhor, a polemicidade que marca o político é algo dinâmico uma vez que, para
Schmitt, o status político é a forma de compreensão mais radical do ser humano que se
manifesta de maneira espontânea. Pode-se afirmar inclusive que Schmitt possui uma
perspectiva política holista, ou seja, há uma realidade marcada pela primazia do todo sobre o
mero somatório das partes. Em todo caso, a condição do político para Schmitt é uma condição
total, isto é, é a partir do político que se pode determinar a unidade política ou o Estado como
o status predominante de um povo, mais intenso e que o caracteriza e o torna uma grandeza
pública, pois como já demonstrado politicidade é sinônimo de publicidade.
O conceito de unidade política é algo da ordem concreta, por assim dizer, é um fato
institucional e não algo normativo, fictício ou formal. Para Schmitt, é desprovida de sentido a
pergunta sobre a legitimidade ou autoridade de uma tal coisa, pois o que interessa é a
imanência da existência política que garante uma homogeneidade substancial de um povo em
uma unidade política. Descrita como grandeza existencial, a unidade política ou o poder
público não se submetem ao crivo da justificação posterior elaborada através de critérios
jurídicos, morais ou racionais: basta configurar-se enquanto vontade política – ou melhor,

247
VL, p. 22: “Jedes Gesetz als normative Regelung, auch das Verfassungsgesetz, bedarf zu seiner Gültigkeit im
letzten Grunde einer ihm vorhergehenden politischen Entscheidung, die von einer politisch existierenden Macht
oder Autorität getroffen wird. Jede existierende politische Einheit hat ihren Wert und ihren
'Existenzberechtigung' nicht in der Richtigkeit oder Brauchbarkeit von Normen, sondern in ihrer Existenz. Was
als politische Größe existiert, ist, juristisch betrachtet, wert, daß es existiert. Daher ist ihr 'Recht auf
Selbsterhaltung' die Vorausssetzung aller weiteren Erörterungen; sie sucht sich vor allem in ihrer Existenz zu
erhalten, 'in suo esse perseverare' (Spinoza); sie schützt 'ihre Existenz, ihre Integrität, ihre Sicherheit und ihre
Verfassung' – alles existentielle Wert”.
270

uma vontade instauradora de um fato, no caso, um fato institucional – e grandeza existencial


para que ao invés de perguntar-se acerca da legitimação (Rechtsmässigkeit) do poder público,
investigar genealogicamente se, de fato, existe ou não existe tal unidade política. Em outras
palavras, a decisão sobre o modo e a forma configura a unidade política e não cabe, a rigor,
verificar a legitimidade desse tal poder – precisamente porque ele é anterior ao direito e, em
última instância, ele põe o direito – mas apenas se existe um fato institucional, pois é
inadequado averiguar essa grandeza existencial através de categorias ou princípios jurídicos
uma vez que nenhum procedimento racional ou jurídico pode justificar um fato.

(II)

A questão subjacente é: como é possível coerentemente conceber a unidade política


do povo com a existência fática e de que maneira pode-se afirmar que há uma vontade política
unitária ou uma decisão política una e não apenas uma unidade sistemática normativa e lógica
tal como afirma o normativismo? Uma realidade social como unidade real da vontade que se
autodetermina, ainda mais sob os argumentos que põe em jogo topois que desde a primeira
metade do século XX são renegados, tais como homogeneidade e exclusão. Entretanto, apesar
disso, para o jurista alemão, o fundamento de validade de uma norma não pode ser outra
norma, pois não é a razão ou uma norma abstrata e geral que coordena o surgimento da
ordem, mas sim um ato decisivo da vontade que instaura e autoriza a existência do poder
público: uma unidade política funda-se em uma decisão. Caso ocorresse o contrário, o Estado
seria, na verdade, idêntico à sua constituição jurídica, pois seria dela que retiraria sua
legitimidade de uma perspectiva estritamente normativa. No texto Verfassungslehre, a decisão
fundamental sobre a constituição da unidade política não ocorre ex nihilo. A argumentação de
Schmitt desde o Politische Theologie nega a precedência das normas diante da decisão: nesse
caso, a decisão sobre o inimigo dá-se a partir de uma situação política concreta, ou seja, há
um condicionamento histórico da decisão o que leva, nesta fase, para além do argumento
exposto no texto de 1922 sobre o direito ser direito situado: agora, além de situado, o direito é
o ordenamento concreto e histórico que institui a constituição, porque é cometer gravíssimo
erro compreender a constituição como uma lei ou norma fundamental ou ainda uma
sistemática lógica ou normativa, pois não é outro momento senão na decisão existencial sobre
o modo e a forma da unidade política do povo que funda uma autoridade política. Segundo
Schmitt, a facticidade da existência política torna legítima a ordem do poder de fato e serve de
fundamento de validade da constituição, cujo o decisionismo retomado e expandido significa
não apenas o ato originário e constitutivo do político, mas também expressa a noção de ordem
271

e forma concreta.
Não apenas como normalidade fática, com o intuito de realizar normas de direito,
mas, sobretudo, como sentido concreto e determinado. Em todo caso, pode-se afirmar que a
decisão política é anterior à unidade política pois se o Estado é compreendido como grandeza
politicamente existente, deve ser fundado em algum substrato ou condição concreta. Assim,
unidade política significa uma condição concreta, existencial, no qual o conteúdo objetivo é
formulado na decisão constitucional como substância da constituição e qualificado através da
distinção peculiarmente política. O argumento da decisão não se refere mais à exceção
enquanto normalização da situação fática, mas, de modo específico, refere-se à polemicidade
característica do político, pois é o polémos dotado de uma originariedade existencial que dá a
medida política ao caso concreto (ursprünglich seinsmäßigkeit) e constitui a ordem pública
através da diferença existencial ao justificar o poder público através do seu fundamento de
validade do direito. Todas as distinções polêmicas residem em uma existencialidade
originária, evidentemente não tributária de qualquer perspectiva ontológica ou substancialista,
ou muito menos, étnica, mas radicalmente tratada como relações concretas, ou seja, na
contraditoriedade das relações agonísticas que são marcadas, como já exposto, por uma
indeterminação ontológica e, principalmente, por uma impossibilidade de termo ou teleologia.

(III)

Diante disso, o problema da legitimação do poder público faz remontar à questão do


fundamento último de todo direito, pois ao abandonar o paradigma racionalista da legitimação
a partir da mediação entre normas de direito e normas de realização de direito, entre validade
e faticidade, adota um critério pragmático que, nesse caso, refere-se à existência da unidade
política do povo como instância concreta originária da ordem. É precisamente neste ponto que
ocorre uma importante reviravolta no pensamento de Schmitt, pois é solucionado o problema
da existência da unidade política e o problema da relação entre quaestio facti e quaestio iuris:

Não se pode falar de legitimidade de um Estado ou de um poder público. Um


Estado, isto é, a unidade política de um povo, existe, precisamente, na esfera do
político; este, muito menos, admite uma justificação, juridicidade, legitimidade, etc.,
como se na esfera do direito privado se quisesse fundamentar normativamente a
existência do indivíduo humano vivo248.
Para Schmitt, há uma contiguidade imediata entre existência (quaestio facti) e
legitimidade (quaestio iuris), ou seja, há uma co-implicação entre ser e dever-ser, faticidade e

248
VL, p. 89: “Von Legitimität eines Staates oder einer Staatsgewalt kann man nicht sprechen. Ein Staat, d.h. die
politische Einheit eines Volkes, existiert, und zwar in der Sphäre des Politischen; er ist einer Rechtfertigung,
Rechtmäßigkeit, Legitimität usw. sowenig fahig, wie in der Sphäre des Privatrechts der einzelnen lebende
Mensch seine Existenz normativ begründen müßte oder könnte”.
272

validade que desvela o fundamento originário da ordem como uma instância não racional e
contingente. Obviamente, tal tese se afasta do positivismo porque enquanto esta afirma a mera
validade a partir das próprias normas – p.ex. a Grundnorm de Kelsen – a posição de Schmitt,
denominada aqui de realismo forte ou de pragmatismo por partir de uma perspectiva
imanente. De forma geral, em uma formulação que engloba as características elementares do
seu conceito do político, Schmitt expõe o significado do realismo político num relato preciso
sobre a polêmica entre racionalismo das normas e pragmatismo político:

Enquanto a crença na racionalidade e na idealidade de seu normativismo ainda for


viva, nas épocas e nos povos que ainda costumam manifestar a crença (de tipo
cartesiano) nas idées générales (...) Enquanto isso ocorre, faz valer também uma
diferenciação milenar e um ethos primitivo: o nomos contra o mero demos; a ratio
contra a mera voluntas; a inteligência contra a vontade cega e sem lei; a idéia do
direito normatizado e calculado contra a idéia da pura adequação de medidas e
decretos a partir de alterações conjunturais; o racionalismo racionalmente
fundamentado contra o pragmatismo e o emocionalismo; o idealismo e o Direito
justo contra o utilitarismo; a validade e o dever-ser contra a pressão e a necessidade
das relações e acontecimentos249.
Em contraposição a um normativismo carente de concretude ou conteúdo, Schmitt
propõe uma pragmatismo calcado nas relações concretas e na vontade polêmica da unidade
política fundada no ato instituidor da ordem como legítima a partir de sua própria auto-
afirmação. Entretanto, ao tratar da questão sobre o Poder constituinte, Schmitt realiza outra
reviravolta e radicaliza suas investigações acerca do conceito de validade das normas e
legitimidade da ordem. A decisão acerca do modo e da forma da existência concreta e da
unidade política tem seu fundamento de validade na vontade política existente que se põe
(VL, p. 22), pois “a palavra vontade indica – em contraposição a qualquer dependência de
uma justiça normativa ou abstrata – o objetivo existencial deste fundamento de validade”250.
Para Schmitt, o direito possui necessariamente um fundamento existencial, ou seja, um
condicionamento histórico e político marcado por um ato originário de vontade que institui a
ordem. Dessa maneira, a vontade política é, na verdade, um ser político concreto e, por
conseguinte, pode-se afirmar apenas sobre sua existência ou inexistência, pois, a rigor, é o seu
poder ou autoridade que garante a decisão concreta sobre a configuração da existência

249
LL, p. 15: "Solange der Glaube an die Rationalität und Idealität seines Normativismus lebendig ist, in Zeiten
und bei Völkern, die noch einen (typisch cartesianischen) Glauben an die idées générales aufzubringen
vermögen, erscheint er jedoch gerade deshalb als etwas Höheres und Idealeres. Solanges kann er sich auch auf
eine vieltausendjährige Unterscheidung berufen und ein uraltes Ethos für sich geltend machen, nämlich den
nomos gegen den bloßen demos; die ratio gegen die bloßen voluntas; die Intelligenz gegen den blinden,
normlosen Willen; die Idee des normierten, berechenbaren Rechts gegen die von der wechselnden Lage
abhängige bloße Zweckmäßigkeit von Maßnahme und Befehl; den vernunftgetragenen Rationalismus gegen
Pragmatismus und Emotionalismus; Idealismus und richtiges Recht gegen Utilitarismus; Geltung und Sollen
gegen den Zwang und die Not der Verhältnisse".
250
VL, p. 76: “Das Wort 'Wille' bezeichnet – im Gegensatz zu jeder Abhängigkeit von einer normativen oder
abstrakten Richtigkeit – das wesentlich Existentielle dieses Geltungsgrundes”
273

política. O que interessa para Schmitt, segundo a tese que se persegue nesta pesquisa, é que,
afinal, foi encontrada a instância fática capaz de assegurar o único fundamento de
legitimidade possível, qual seja, a própria realidade política. Entretanto, tal fundamento – se é
possível utilizar este termo – não se reduz à polemicidade porquanto de uma maneira ainda
mais concreta refere-se em determinar efetivamente a existência da unidade política, sem
apelo à instâncias normativas a partir do poder constituinte que se caracteriza, acima de tudo,
como fundamento último de qualquer norma: “O poder constituinte não está vinculado a
formas jurídicas ou procedimentos”, pois, segundo Schmitt, “não necessita de legitimidade ou
justificação em uma norma ética ou jurídica; tem seu sentido na própria existência política.
Uma norma não seria adequada para fundamentar nada aqui. O específico modo da existência
política não necessita nem pode ser legitimado”251.
Assim, uma constituição em sentido positivo é legítima através da expressão da força
e da autoridade do poder constituinte sobre o qual a decisão se fundamenta porque a
legitimidade da constituição e o problema da justificação do poder estatal seja por meio da
imposição da força física seja por meio do reconhecimento da autoridade como legítima é
tratado por Schmitt como um problema de existência política e, por conseguinte, a rigor, é
inadequado utilizar o termo legitimidade ou justificação pois, afinal de contas, não se trata de
uma qualificação posterior que torna um poder fático uma autoridade, mas sim a própria
vontade que se determina enquanto tal ao dar-se uma constituição e decidir sobre o modo e a
forma da sua existência política. Evidentemente, a unidade política é constituída através da
decisão política concreta do sujeito constituinte que enquanto um todo é, na verdade,
propriamente, um fato e não apenas um ato, ou seja, a sua própria existência ou faticidade
acarreta, sem necessidade de qualificação posterior, sua validade. Em outros termos, segundo
Schmitt, “o poder ou a autoridade que domina ou governa não pode basear-se em instâncias
inalcançáveis ao povo, mas apenas na sua vontade”252.

(IV)

Assim, a diferença entre uma ordem jurídica e uma ordem não jurídica e que torna a
ordem justificável é que o poder estatal representa a unidade política de um povo e o
problema da legitimidade é resolvido no problema da qualidade do poder estatal, mais
251
VL, p. 79: “An Rechtsformen und Prozeduren ist die verfassunggebende Gewalt nicht gebunden” (...) (VL, p.
87) “Sie bedarf keener Rechtfertigung an einer ethischen oder juristischen Norm, sondern hat ihren Sinn in der
politischen Existenz”.
252
VL, p. 235: “Infolgedessen darf die Macht oder Autorität derer, die herrschen oder regieren, nicht auf
irggendwelchen höheren, dem Volke unzugänglichen Qualitäten beruhen, sondern nur auf dem Wille, dem
Auftrag und dem Vertrauen derer, die beherrscht oder regiert werden und die sich auf solche Weise in
Wahrheitselbst regieren”.
274

rigorosamente, no problema da existência do poder e, dessa forma, a antítese entre ser e


dever-ser resolve-se em outra: ser ou não-ser. Segundo Schmitt seria um erro afirmar “o poder
público é legítimo” ou “o poder público é ilegítimo”; o correto seria: “o poder público é ou
não é”, ou melhor, “existe ou não existe”, pois seu fundamento de validade é, de maneira
direta, sua existencialidade orignária ou a seinsmäßige Ursprünglichkeit que resolve a
distinção entre quaestio iuris e quaestio facti, ressaltando a origem da ordem a partir desta
última.
O pressuposto desta decisão é, com efeito, um ser concreto, ou seja, por assim dizer,
um fato bruto, preexistente e, por conseguinte, desnecessária qualquer tentativa de
legitimação, pois a forma particular da existência política – resultado da decisão – depende
desse fundamento existencial que, a rigor, não pode nem precisa legitimar-se (VL, p. 87). Da
perspectiva da realidade política, a constituição – como decisão sobre a forma e o modo da
existência política – não precisa de legitimação, pois algo que existe a partir de si mesmo não
tem carência normativa. Na verdade, esta aparente ambiguidade de Schmitt revela um
conceito de legitimidade existencial, aliás, de alguma forma já compreendido pelos gregos
antigos: a legitimidade de uma constituição ou, simplesmente, de uma unidade política, é a
expressão adequada da realidade política. Para Schmitt, o único fundamento válido para servir
como princípio de legitimidade é a faticidade existencial. A problemática existencial provoca
o seguinte argumento: a organização do poder pressupõe a existência de uma unidade política,
esta, por sua vez, reside na decisão sobre o modo e a forma política, que, em última instância,
pertence ao ser concreto e histórico que simplesmente é ou não é. Apesar das inúmeras áreas
cinzentas, inconsistências e circularidades, a definição serve para apoiar nossa tese acerca do
finitismo em sua obra.
Dessa forma, a teoria da legitimidade em Schmitt funda-se no poder constituinte do
povo, pois, se é possível traçar uma compreensão mais analítica, pode-se afirmar que na teoria
schmittiana há uma necessária adequação entre realidade concreta e constituição, pois a
legitimidade refere-se, afinal, ao problema do poder constituinte expressar a faticidade que,
em última instância, é o fundamento de legitimidade da norma, porém, como já demonstrado,
um fundamento e uma legitimidade não racionais porque derivados de uma perspectiva
pragmática que supera qualquer normatividade e fundamentação253. Assim, na teoria da
legitimação existencial há apenas princípios políticos e relativos à efetividade e concretude

253
Conforme HOFMANN, 2002, p. 147: “Man kann weiter sagen, daß gerade darin Schmitts besonderes
Verdienst liegt, daß er schärfer und entschiedener als irgendein anderer deutscher Jurist oder Rechtsphilosoph in
der ersten Hälfte dieses Jahrhunderts die Rechtswissenschaft mit der Fragwürdigkeit ihrer Grundlagen
konfrontiert hat”.
275

das relações fáticas, pois ao compreender justiça como normatividade, Schmitt exclui da sua
apreciação qualquer consideração acerca dessa categoria, porém afirma a origem como um ato
de vontade originário:

Poder constituinte é a vontade política cuja força ou autoridade é capaz de adotar a


concreta decisão de conjunto sobre o modo e a forma da própria existência política,
determinando assim a existência da unidade política como um todo. Das decisões
desta vontade decorre a validade de toda posterior regulação legal-constitucional. As
decisões são qualitativamente distintas das normatividades legal-constitucionais
estabelecidas sobre seu fundamento. Uma constituição não se fundamenta em uma
norma cuja justiça seja seu fundamento de validade. Baseia-se em uma decisão
política surgida de um Ser político, acerca do modo e forma do próprio Ser254.
O pensamento de Schmtit pode ser visto, da maneira que Hofmann sustenta, como
uma grande investigação sobre a problemática da legitimação do poder público, porém em
termos não normativos, ou seja, a partir de uma perspectiva pragmática ao afirmar a
existência originária da comunidade política como fundamento ou instância de legitimação
fática da autoridade. Nas investigações realizadas, diferentemente da maioria das obras sobre
Schmitt, elegeu-se não o liberalismo como princípio opositor, uma espécie de guia às avessas
através do qual construíra seu pensamento, mas sim o racionalismo ou normativismo político
compreendido como uma técnica de limitação e enquadramento normativo do poder de
maneira meramente técnico e formal. Já na Politische Theologie, o autor tedesco afirma que,
tradicionalmente, o problema da justeza em relação ao conteúdo e da justificação da
construção estatal parte de um racionalismo. Ao contrário deste, a postura que se desvela em
Schmitt é, radicalmente diferente: não há necessidade de justificação ou fundamentação a
partir de alguma norma ética ou jurídica, mas é algo que se fundamente na sua própria
existência política.
Para Schmitt, a condição do político recebe um diverso tratamento em referência à
tradição racionalista: há o primado do problema da existência como uma relação de absoluta
contingência. Segundo o autor, na verdade, o que importa em uma relação política não é, a
rigor, o motivo ou razão da decisão, mas sim sua existência, isto é, o fato de que haja uma
unidade política, pois a questão principal é, precisamente, se existe ou não tal unidade e,
sobretudo, se a homogeneidade substancial do povo que constitui o poder público é, de fato,
marcada pelo conflito e pela possiblidade da morte como fundamentos da ação política. Nesse

254
VL, p. 75: “Verfassunggebende Gewalt ist der politische Wille, dessen Macht oder Autorität imstande ist, die
konkrete Gesamtentscheidung über Art und Form der eigenen politischen Existenz zu treffen, also die Existenz
der politischen Einheit im ganze zu bestimmen. Aus den Entscheidung dieses Willens leitet sich die Gültigkeit
jeder weiteren verfassungsgesetzlichen Regelung ab. Die Entscheidung als solche sind von den auf ihrer
Grundlage normierten verfassungsgesetzlichen Normierungen qualitativ verschieden. Eine Verfassung beruht
nicht auf einer Norm, deren Richtigkeit der Grund ihrer Geltung wäre. Sie beruht auf einer, aus politischem Sein
hervorgegangenen politischen Entscheidung über die Art und Norm des eigenen Seins”.
276

contexto, o elemento existencial em Schmitt ganha relevância na articulação de uma teoria


que propõe uma radical transformação no modo de pensar a condição política: abandonando a
perspectiva universalista e normativa, o autor demonstra a necessidade de buscar o
fundamento do poder público na origem existencial que dá a medida (seinsmäßige
Ursprünglichkeit) de uma comunidade ou associação humana que existe e, por esse atributo,
qualifica-a enquanto legítima. Esse tipo de legitimidade ou justificação – a rigor, termos
carregados por uma semântica criada pela teoria racionalista e, enquanto tal, aplicável apenas
parcialmente à teoria schmittiana – dá-se de uma maneira bastante peculiar na sua obra: a
normatividade deriva da normalidade fática, mais precisamente, é a faticidade da unidade
política que garante a si mesma através da decisão sobre seu modo e forma a famigerada
legitimidade. No entanto, tal qualificação ou justificação do poder não advém de uma norma
exterior ou mediante o apelo a formas racionais ou morais, uma vez que é condição necessária
e suficiente a faticidade da existência política para a constituição do âmbito da validade da
ordem, pois o dever-ser normativo não pode ser separado do ser político concreto uma vez
que este é o fundamento existencial de validade daquele. O que importa aqui é distinguir dois
tipos de legitimidade: a existencial e a racionalista. Esta apoia-se numa racionalidade voltada
a valores ou a fins; aquela, a situações concretas, como uma decisão absoluta que, no fundo,
não necessita de legitimidade no sentido tradicional, mas evidencia um nominalismo e
voluntarismo peculiares. Assim, como já demonstrado, ao propor um realismo forte no âmbito
prático, Schmitt vê-se forçado por coerência lógica, a adotar um nominalismo ou um
antirealismo no âmbito teórico, pois para o autor a verdade e o sentido da ordem está na
própria existência ou, em conceitos aristotélicos, in re.
Porque legitimidade do poder foi tradicionalmente articulada como juridificação do
poder, passou a ser uma necessidade a referência do poder estatal a algum princípio ou norma
universal e racional e não na própria existência pública da ordem como Schmitt propõe.
Obviamente, a teoria schmittiana destaca a perspectiva existencial – ou seja, a condição do
político – como a esfera através da qual o poder torna-se, de fato, autoridade: não se pode
falar aqui, a rigor, de justificação ou juridicidade, pois questão de fato e questão de direito são
neste nível inseparáveis, porém com uma ênfase ou primazia na existência fática da ordem. A
tese de uma co-originariedade entre as instâncias da faticidade e da validade é esboçada neste
período e a simetria entre imanência e transcendência mais uma vez se vê em apuros: nem a
primazia da norma como nas teorias da década de 1910, nem a primazia da decisão concreta –
mesmo que vinculada à necessidade da realização do direito – como na teoria da exceção e da
decisão concreta do início da década de 1920 nem, afinal, a primazia quase absoluta ao
277

momento existencial da origem da ordem como na teoria descrita acima: para o jurista, após
perseguir de todas as formas e tentar equacionar a relação entre ser e dever-ser, há, na
realidade, uma origem em comum entre as instâncias o que, embora não represente uma
solução sem problemas, mostra a necessidade de tratar o assunto sob outra perspectiva255.

255
A inovação ocorre, inicialmente, ao tratar da contingência e da existencialidade da ordem e do político e
prossegue na década de 1930 impulsionada pelo pensamento da ordem concreta (Raumordnung) pela noção de
Großraum, da conquista marítima e terrestre (Land- und Seenahme). Neste trabalho, interpreta-se a postura
voltada à questão da existência da ordem como uma questão pragmática ou legitimidade existencial, porém, na
leitura que se realiza a seguir, diagnostica-se outra virada e ressignificação ao enfatizar o momento da
historicidade da ordem e uma originariedade, em última instância, indiscernível entre ser e dever-ser, facticidade
e validade como uma proposta de indiscernibilidade entre fato e norma que afinal é, se não o definitivo, ao
menos a última maneira através da qual o jurista tedesco averigua tal relação.
278

Excurso – Sobre o Nomos da terra

A teoria da decisão e, posteriormente, a teoria do político de Schmitt assumem a contradição


originária da política entre imanência e transcendência ao mesmo tempo em que desenvolvem
tentativas para a superação das aporias do paradigma moderno, elaborando uma teoria política
que renuncia o paradigma da fundação tradicional do poder e da legitimação racionalista e
jurídica e, além disso, diante da crise da subjetividade moderna e da crise do Estado-Nação
afirmam a contingencialidade do político como uma condição necessária e trágica do ser
humano. Na verdade, Schmitt depõe não apenas os conceitos modernos, mas também a
linguagem, a epistemologia e, mais radicalmente, a estrutura própria do paradigma político
moderno: a partir de então, não se fala mais em sujeitos ou em objeto, nem individualismo
nem metafísica. No entanto, a virada mais fundamental na teoria schmittiana ocorre na sua
última expressão, na fase pós-weimariana, através da denominada teoria do nomos, lançando
mão de outras posições e conceitos, tais como, história, espaço, ato, entre outros, expressando
a crise definitiva do fundamento moderno e a elaboração de uma nova racionalidade calcada
no conceito de nomos como categoria primordial para a superação da linhagem política
anterior.
A partir de 1933, a antítese entre estado de exceção e norma não desempenha o papel
relevante que possuíra no decisionismo (realismo fraco) nem mesmo a polemicidade das
formas de vida, tal como expressa no existencialismo político (realismo forte), pois a partir de
então é tomado outro ponto de partida: o problema da relação entre ordenamento concreto e
norma e, mais tardiamente, a reflexão sobre o nomos da terra representam nova tentativa de
tratamento do problema aqui perseguido. Na obra Der Nomos der Erde im Völkerrecht des
Jus Publicum Europaeum de 1950, Schmitt investiga a dissolução do jus publicum
Europaeum e o problema do novo nomos da Terrra. A tese que se expõe mais uma vez nesta
pesquisa é a análise da originalidade da obra de Schmitt ao tratar dois problemas interligados:
a cesura entre imanência e transcendência ou faticidade e validade e os paradigmas políticos
alicerçados sobre tal distinção. Qualquer conhecimento ou ação política precisariam
esclarecer melhor este pressuposto que condiciona as propostas teóricas quer do realismo
político – cuja ênfase recai radicalmente no momento da faticidade – quer do normativismo
político – cuja ênfase, por outro lado, é quase exclusivamente acerca da validade de uma
ordem dispensando pressupostos fáticos. Assim, Schmitt busca a origem desta distinção como
279

reconstruído até aqui. No entanto, neste momento, é detectada na obra de Schmitt uma grande
novidade que, na verdade, já fora esboçada desde cedo: a superação da simetria entre
imanência e transcendência, ou seja, o momento em que questio iuris e questio facti
coincidem na medida em que a contraposição dever-ser e ser não tem mais nenhum espaço,
mas sim a contraposição entre ser e não-ser. Entretanto, mesmo com tal tese já expressa de
alguma forma na teoria do existencialismo político, apenas na teoria do nomos o finistimo ou
pragmatismo chega ao seu auge e, de uma vez por todas, a dicotomia pode ser superada seja
em sede de teoria da legitimidade seja em sede de teoria da norma256.
No primeiro momento da sua obra, Schmitt recepciona a dicotomia apontada e
afirma que qualquer relação entre norma e realidade seria feita através da decisão (realização
do direito) de onde garantiria sua legitimidade; após o abandono paulatino do paradigma do
normativismo deu-se início à busca pela superação do problema da cesura: inicialmente,
através do paradigma decisionista e da teoria da exceção que, embora de uma perspectiva
realista, solucionava a questão de forma racionalista e unilateral, pressupondo uma instância
ideal a ser realizada, por isso, nesta pesquisa denominado de realismo fraco; posteriormente,
através daquilo que se convencionou denominar de existencialismo político, que solucionava
também por um realismo, porém dessa vez de viés forte, como já demonstrado; por fim, o
paradigma do nomos no qual a distinção entre questio juris e questio factis, ou seja, a
distinção entre ser e dever-ser já não tem nenhum sentido, pois, como será demonstrado, tal
cesura é superada por uma genealogia da legitimidade concreta e histórica da ordem que se
desvencilha das aporias e contradições modernas do racionalismo e depõe a contradição entre
sujeito e objeto, ser e dever-ser, forma e concretude, mediação e imediação, transcendência e
imanência, na proposta de um pensamento que articule em outra chave de leitura o poder
público no qual não jogam mais as dicotomias modernas. A tese neste estudo afirma que na
filosofia schmittiana do nomos há uma co-extensividade entre a legitimidade e a existência da
ordem de um ponto de vista concreto e histórico que provoca a superação da distinção entre
poder e normas e ressignifica a teoria do poder público na elaboração de outro paradigma
político denominado pragmatismo. A pretensão deste excurso é (I) apresentar a posição do
problema até aqui discutido; investigar (II) a passagem da teoria do político para a teoria do

256
HOFMANN, 2002, p. 231: “Schmitts Nomos-Philosophie erweist sich als der Versuch, vor aller
wissenschaftlichen Zergliederung die ursprüngliche Einheit und Ganzheit des menschlichen Lebens zu bedenken
und die ontischen Wurzeln des Rechts darin, in der je geschichtlichen Welt des Menschen, d.h. in der
Raumhaftigkeit des menschlichen Daseins selbst zu entdecken”. O autor reconstroi os argumentos da teoria do
nomos de Schmitt em paralelo com Heidegger e demonstra sua interpetação do ser-num-ordenamento-epocal-
mundano como um fundamento da vida dos povos e instância imanente de todo o direito, bem como traça a
noção de legitimidade histórica que caracteriza a derradeira fase do jurista alemão.
280

pensamento da ordem concreta; (III) descrever o desenvolvimento da obra do autor ao


analisar a formação do jus publicum Europaeum descrita no livro Der Nomos der Erde de
1950, bem como (IV) reconstruir o conceito de nomos para, finalmente, esboçar a
compreensão do pragmatismo político como a intuição fundamental de Schmitt.

Posição do problema

A exposição precedente investigou na obra de Schmitt alguns aspectos referentes à


problemática intra-estatal e de Direito constitucional, por exemplo, no tratamento da questão
entre normas de direito e normas de realização de direito e sobre a relação entre staatlich e
politisch. Da mesma maneira, já foi demonstrado que ao anti-liberalismo e anti-formalismo
schmittiano soma-se o anti-universalismo que rejeita como parâmetro para a ação político-
estatal tanto um vínculo moral individual-universalístico quanto aquele de uma normatividade
abstrata antecedente à decisão política concreta. Assim, a teoria da exceção e, posteriormente,
a teoria do político de Schmitt assumiram a contradição da origem da política e revelaram o
percurso para a superação das aporias do paradigma moderno. Desde sua obra tardo-
weimariana, Schmitt rejeitava a abordagem política a partir de uma perspectiva humanitária
ou universalista, provocando uma imagem global pautada num pluriversum onde ocorriam a
polemicidade e a possibilidade da guerra como condição interestatal necessária. Através do
conceito de guerra do direito internacional interestatal (jus publicum Europaeum), o Estado
adversário era reconhecido como inimigo, porém sempre como inimigo justo, pois seu status
de soberano frente a outros Estados soberanos concedia-lhe o reconhecimento do seu direito
de guerra (jus belli). Dessa forma, ocorreu a delimitação e o cerceamento da guerra pelo
Direito internacional que poderia ser concluída por meio de um acordo de paz, contendo
inclusive cláusula de anistia, sendo possível uma clara diferenciação entre guerra e paz, bem
como as distinções entre interior e exterior, militar e civil dentro de parâmetros jurídicos,
mesmo que não necessariamente normativos: “a guerra pode ser delimitada e cerceada pelo
direito internacional"257, pois a estrutura geral desse sistema de direito público europeu
fundamentava-se na tentativa de circunscrição desse agonismo. A partir disso, Schmitt
endereça seus esforços analíticos para a investigação histórica e conceitual do direito e da
política internacional:

É inadmissível designar de maneira indiferenciada todo recurso à violência na forma


da guerra como anarquia e considerar esta designação como a última palavra sobre a

257
BP, p. 11: "Die Krieg kann begrenzt und mit völkerrechtlichen Hegungen umgeben werden".
281

questão internacional da guerra. Uma circunscrição da guerra e não sua abolição foi
até hoje o autêntico êxito do direito, foi até hoje a única realização do direito
internacional258.
A guerra ou a violência ao invés de ser caracterizada como uma afronta à ordem
moral ou à humanidade é, para Schmitt, a expressão ineliminável do político e, por isso,
mesmo o direito configurou-se em função da guerra e não o inverso, ou seja, a ordem jurídica
é criada a partir desse horizonte de dissenso. Caso houvesse um movimento proclamando a
“última guerra da humanidade” com a intenção de superar as animosidades entre as nações e,
por conseguinte, pacificar o mundo, tal guerra, segundo Schmitt, seria uma tentativa de
superação do político e, a rigor, o inimigo seria apresentado como algo desumano e, enquanto
tal, aniquilado. Tal fato representaria uma situação de ruptura com o arcabouço jurídico que
fora criado não como forma de eliminar a guerra, mas apenas como um ordenamento concreto
que regia as relações interestatais ao reconhecer o político como condição ineliminável.
Entretanto, de forma especial no início do século XX, deu-se um movimento de dissolução do
jus publicum Europaeum marcado por um processo de criminalização do inimigo de guerra e
na concepção de guerra justa que provocou profundas transformações na concepção de
inimigo e na configuração do nomos tradicional. A partir de então, rompe-se o ordenamento
espacial criado no mundo europeu e o equilíbrio entre os Estados territoriais através da
Duellkrieg como luta pela existência para dar origem a uma situação de desregulação e
despolitização através da técnica.
A origem do jus publicum Europaeum como ordenamento espacial concreto subtrai a
perspectiva normativa – formal e universal – da fundação do direito e avizinha-se do
problema entre ser e dever-ser na tentativa de solucioná-lo: o ordenamento teria sua origem na
localização e apropriação soberana da terra. Nesse sentido, o princípio de legitimidade da
ordem residiria na localização espacial que o soberano estabelece em contraposição ao
princípio de legitimidade de cunho universalista que desarticula a conexão originária entre
ordenamento e localização, provocando a problemática dicotomia entre transcendência e
imanência. Daí, o esforço analítico e histórico de Schmitt ao recuperar o momento originário
da constituição da ordem: é a ordem de um determinado espaço histórico que determina o
soberano e, a rigor, sua legitimidade, pois fundado no ordenamento concreto que significa

258
O trecho na íntegra, NE, p. 159: “Es ist also unzulässig, jede kriegsförmige Gewaltanwendung
unterschiedslos als Anarchie zu bezeichnen und diese Bezeichnung für das letzte Wort zur völkerrechtlichen
Frage des Krieges zu halten. Eine Einhegung, nicht die Abschaffung des Krieges war bisher der eigentliche
Erfolg des Rechts, war bisher die einzige Leistung des Völkerrechts. Im übrigen ist die Verwendungdes Wortes
Anarchie typisch für eine Auffassung, deren Einsichten noch nicht so weit vorgedrungen sind, daß sie Anarchie
und Nihilismus zu unterscheiden weiß”.
282

neste contexto o ordenamento espacial supra-estatal e supra-nacional, como ver-se-á em


seguida.
Schmitt fundamenta sua teoria do nómos sobre o fragmento de Píndaro que afirma:
“O nomos de todos soberano / dos mortais e dos imortais / conduz com mão mais forte /
justificando o mais violento. / Julgo-o das obras de Héracle...”. Segundo a interpretação de
Schmitt, o nomos soberano é o evento constitutivo do direito diferente da concepção
positivista da lei como convenção racional. Schmitt concebe o nómos basileús como um
princípio mais alto que o simples direito e refere-se a um poder supremo, pois afirma a
soberania como indistinção entre direito e violência. A coincidência entre direito e violência
que constitui a soberania é afirmada tanto pelos Sofistas quanto por Hobbes que, a rigor,
mantém essa relação no interior da ordem como característica fundamental da soberania, qual
seja, a união entre violência (faticidade) e ordem normativa (validade). Nesse contexto, o
nomos é o puro imediatismo de uma força, compreendido como histórico e concreto, o que se
distingue radicalmente do positivismo e do legalismo que partem de uma perspectiva abstrata
e universal uma vez que para a elaboração de sua teoria sobre o caráter da superioridade
constitutiva do nomos sobre a lei, Schmitt afirma que o termo nómos significa algo mais do
que simples lei (Gesetz), pois enquanto lei significa mediação, nomos, ao contrário, significa
imediação, ou seja, expandindo sua teoria da legitimidade existencial, o autor aposta em outro
nível que não seja nem uma norma nem meramente um ato de vontade, mas um
acontecimento ou evento histórico constituinte que, superior ao direito, representa um poder
supremo como indistinção entre violência e direito, ou em outros termos, indistinção entre
quaestio facti e quaestio iuris: o nomos seria aquilo mais original fundador do direito, porém
ao mesmo tempo jurídico259.

Ele era, porém, delimitado com relação ao ordenamento jurídico normal: no tempo,
através da proclamação, ao início, do estado de guerra, e, ao final, através de um ato
de indenidade; no espaço, por uma precisa indicação de seu âmbito de validade. No
interior deste âmbito espacial e temporal, podia ocorrer tudo aquilo que fosse
considerado de fato necessário segundo as circunstâncias 260.
Dessa forma, a partir do fragmento, a soberania seria a justificação da violência ou,
em outros termos, a validade do fático. Nestes termos, desde remota época, a legitimidade de
uma ordem é posta diante da facticidade que a funda como soberana, tema, aliás, presente

259
Exposição bastante lúcida é desenvolvida por AGAMBEN, 2004, p. 37-45.
260
NE, p. 67: “Zeitlich ist es durch Verkündung des Kriegsrechts am Anfang und durch einen Indemnitätsakt am
Schluß von dem Zeitraum der normalen Rechtsordnung abgegrenzt; räumlich durch eine genaue Angabe des
Geltungsbezirks; innerhalb dieses örtlichen und zeitlichen Bereichs kann alles geschehen, was nach Lage der
Sache faktisch notwendigerscheint”.
283

desde, pelo menos, a obra Die Diktatur. Assim, para evidenciar mais uma vez a origem
concreta da ordem, Schmitt assevera em relação ao nomos que:

até mesmo Hördelin confunde a sua tradução do fragmento vertendo para o alemão o
termo nómos com Gesetz e se deixa desviar por esta palavra infeliz, embora saiba
que a lei é mediação rigorosa. O nómos em sentido originário é, ao contrário, o puro
imediatismo de uma força jurídica (Rechtskraft) não mediada pela lei, ele é um
evento histórico constituinte, um ato de legitimidade, a qual unicamente torna em
geral sensata a legalidade da nova lei261.
O velho nomos da terra referia-se à ordenação espacial dos Estados europeus até o
século XX. A partir daí, um novo nómos surge: a nova ordem espacial da terra, como nova
forma de organização histórica, pois o ordenamento eurocêntrico chega ao fim e com ele o
direito internacional. Com isso dissolve-se o velho nomos da terra que surgira com a
revolução espacial provocada pela descoberta do novo mundo, evento histórico irrepetível que
moldara o sistema da terra e que, no século XX, descobre sua ruína. Antes, porém, de analisar
as características e a dissolução do nomos, faz-se mister reconstruir a virada que ocorreu na
obra de Schmitt no período tardo-weimariano.

O pensamento da ordem concreta (konkretes Ordnungsdenken)

Após o dito período tardo-weimariano, Schmitt executou outro radical deslocamento


teórico: da teoria do político à teoria do pensamento da ordem concreta. A temática do
pensamento da ordem concreta ou institucionalismo critica o decisionismo anterior por sua
abertura à exceção – o que potencializa infinitas possibildades de transformações e revoluções
– e por seu apelo ao positivismo e ao normativismo – porquanto prossegue nas aporias da
teoria moderna da medição racionalista, aliás como já demonstrado. Se no paradigma
decisionista, Schmitt opõe-se à teoria normativista revelando a origem excessiva da ordem; e
no paradigma do político, a polemicidade das formas de vida; no pensamento da ordem
concreta, o autor argumenta sobre a substância jurídica da ordem concreta, tais como se
encontra na família, na Igreja, no exército, numa burocracia, etc. O argumento do autor é,
precisamente, que a norma de dever-ser considerada a partir de uma perspectiva abstrata e
universal não toca o ser, isto é, buscando recuperar a tradição de concretude alemã – Fichte,
Hegel, Savigny – Schmitt investiga as origens de uma auctoritas.

261
NE, p. 42: “Aber auch Hölderlin verwirrt seine Deutung der Pindar-Stelle (Hellingrath V 277) dadurch, daß er
das Wort Nomos im Deutschen mit ‘Gesetz’ wiedergibt und auf den Irrweg dieses Unglückswortes lenkt,
obwohl er weiß, daß das Gesetz die strenge Mittelbarkeit ist. Der Nomos im ursprünglichen Sinne aber ist grade
die volle Unmittelbarkeit einer nicht durch Gesetze vermittelten Rechtskraft; er ist ein konstituierendes
geschichtliches Ereignis, ein Akt der Legitimität, der die Legalität des bloß en Gesetzes überhaupt erst sinnvoll
macht”.
284

O institucionalismo de Hauriou e de Santi Romano exerceu sobre Schmitt grande


influência, fato atestado na obra Über Drei Arten des Rechtsdenkes de 1933 quando o autor
observa que há três tipos de pensamento jurídico: o normativismo, o decisionismo e o
institucionalismo. Para este último, o direito antes de se expressar através de normas refere-se
a relações sociais, como tais, evidentemtente fáticas, constituindo-se como organização ou
estrutura concreta, isto é, o direito nasce de um fato social. Tal pressuposto é o que se
denomina de instituição, pois é um fato que se reveste juridicamente, sem confundir aquilo
que é propriamente fático e aquilo que é direito. A dicotomia entre ser e dever-ser é
preservada, porém encontra-se uma relação ainda mais direta: o Sein é realidade socialmente
mediada e constituída juridicamente. O direito nesta perspectiva não se confunde nem com
normas nem com a pura decisão, mas refere-se à organização social, pois enquanto aqueles
paradigmas conduzem cada vez mais para uma ruptura entre normatividade e facticidade;
estes conduzem a reflexão a uma realidade social já mediada e constituída juridicamente.
A passagem da postura decisionista para a teoria do político e da teoria do político
para a teoria do nomos foi intermediada pelas reflexões sobre tal ordem concreta262. Dessa
maneira, Schmitt, assimilando algumas teses institucionalistas, insere elementos do
decisionismo e do existencialismo político numa síntese parcial para elaborar seu konkretes
Ordnungdenken onde afirma que as instituições sociais, ou numa linguagem schmittiana, o
ordenamento concreto – e não apenas a norma ou a decisão – pode servir de fundamento do
poder público. Assim: “o próprio Estado é para o modo de pensar institucionalista não mais
uma norma ou um sistema de normas, em tampouco uma mera decisão soberana, mas sim a
instituição das instituições, em cuja ordem inúmeras outras instituições (em si mesmas
autônomas) encontram sua defesa e ordem“ (Sobre os três tipos, p. 119)263.
Para Schmitt, porém, o institucionalismo é melhor desenvolvido sob o argumento da
espacialidade, isto é, uma ordem espacial tal como trabalhada nos escritos internacionalistas e
tem por síntese complexa a teoria do nomos. O termo substância significa nesta nova fase de

262
Segundo GALLI, 2010, p. 876: “si può affermare che come la teoria degli anni Venti individuava la
possibilità di concretezza di um ordine politico nella consapevolezza epocale, nella cosciente apertura
all’eccezione e alla coazione alla forma, cioè all’origine, così ora, alla ricerca di uma concretezza oltre le
categorie del Moderno, Schmitt la individua in uma consapevolezza ancora epocale, ma anche spazialmente
determinata: l’idea politica, che doveva passare attraverso um’eccezione, ora deve rendersi concreta – e questo
processo è il nomos – próprio con l’essere orientata da una specifica rivoluzione politico-spaziale, da uma
determinata appropriazione e divisione dela Terra. Il nesso originário Idea/eccezzione si arricchisce della
determinazione spaziale e si fa nomos, l’ultimo nome dell’origine dela politica”.
263
Segundo GALLI, 2010, p. 884: “L’istituzionalismo, in altre parole, rappresenta una sorta di svolgimento
idealistico della tematica del potere costituente: uno svolgimento che, rispetto alla ottusa negazione positivistica,
ha senz’altro il merito di non eliminare in partenza la questione dell’origine, ma solamente per poi trasferirla in
una sorta di situazione pacificata, del cui esito non conflittuale la dialettica è garante”.
285

pensamento do autor, a rigor, concretude. Tal termo, por sua vez, significa não mais exceção,
mas sim normalidade, pois a partir daí abandona-se definitivamente o nada normativo como
origem da política e admite-se a normalidade da ordem concreta, uma vez que qualquer
ordenamento – da mesma forma o ordenamento jurídico – pressupõe um concreto conceito de
normalidade que não deriva da norma, mas que, pelo contrário, produz essa mesma norma no
desenvolvimento histórico concreto a partir da imanência de um ordenamento social. O
desenvolvimento da modernidade a partir de uma perspectiva individualista e contratualista
confundiu ordem, direito e regra (Ordnung, Recht e Regeln) e fez do Estado de Direito um
Estado da lei, isto é, uma ordem que pretende ser constituída a partir da norma universal e
abstrata, pois, tecnicamente, seria concebido como um dever-ser (a norma) que não toca no
ser (o fato) que recebeu sua formulação mais radical, como já demonstrado no capítulo 1, na
obra de Hans Kelsen.
Neste sentido, pode-se afirmar uma virada institucionalista no pensamento de
Schmitt que esperava no movimento do nacional-socialismo uma superação da forma-Estado
e uma nova legitimidade para alargar normativismo e decisionismo na proposta do
institucionalismo como um passo para além da forma política moderna e sua abstrata
universalidade. Schmitt coloca a investigação da ordem concreta (família, burocracia corpo,
Igreja, exército e principalmente Estado) e não mais a decisão sobre a exceção como
legitimação do poder público. Essa virada, porém, configura mais uma continuidade do que
uma descontinuidade no seu pensamento e releva que a partir dos anos 1930 Schmitt acentua
o sentido da catástrofe da forma politico moderna a partir de um degeneramento teórico e
prático do dispositivo da "decisão pela representação".
No entanto, pode-se afirmar que ao propor uma teoria cada vez mais calcada na
concretude ou na ordem concreta, Schmitt encontra novo estímulo para tratar o problema
constante de sua obra, qual seja, como já salientado de várias formas, a relação entre Sein e
Sollen, ou simplesmente, entre normativismo e realismo, porém sob novos argumentos. A
virada institucionalista que o levou ao pensamento da ordem concreta provocou outra tomada
de posição que se pode designar de virada pragmático-histórica, basicamente expressa nos
estudos internacionalistas e, na sua forma melhor acabada, na teoria do nomos a partir da qual
o Kronjurist reflete sobre o fim do universal moderno na sua forma abstrata a favor do
universal concreto, pois deixa de se guiar pela temática da exceção e do nada normativo para
se ocupar da origem da ordem através da normalidade da ordem concreta.
A partir desta contraposição, Schmitt em um primeiro momento tenta superar a
forma-Estado através da noção, ideologiacemnte conotado, de Reich e de Grossraum e, em
286

seguida a esta primeira espacialização, advém, no pós-guerra, a última síntese do seu próprio
pensamento onde espaço (Raum) desempenha um papel de relevância na investigação sobre a
ordem, pois o Estado deixa de ser identificado com o próprio espaço considerado a partir de
uma ordem normativa para tornar-se espaço concreto. O Reich seria, na verdade, o grande
espaço (Grossraum), isto é, o locus do exercício hegemônico sobre outros espaços para além
do Estado, inclusive sobre espaços estranhos de outras nações. Assim, esta noção designaria
um espaço político plural – diferente do espaço meramente estatal moderno – e, por isso,
mesmo um espaço político e não meramente normativo. A capacidade de ordenação
dependeria dessa consciência espacial-política. O Reich seria, portanto, mais que Estado,
significando a forma política de um povo que possui a capacidade de influência espacial no
exercício de uma hegemonia em um Grossraum que organiza a partir de um ponto de vista
interno um ordenamento concreto plural, porém sob hegemonia de uma potência e a partir de
um ponto de vista externo um equilíbrio. Apesar das inúmeras críticas dirigidas à teoria do
Grossraum, o que interessa para este estudo é a superação da forma-Estado moderna como
dotada do monopólio do direito e a necessidade de pensamento da política em termos
espaciais como espaço politicamente interpretado, pois “o conceito de espaço e a ideia
política não podem ser separados (...) uma ideia política bem definida é aquela que vem
afirmada de uma determinada nação e que tem identificado um inimigo específico: dessa
característica advém a politicidade”264.
Para Schmitt, o movimento nacional-socialista representava a recuperação da
tradição de concretude tedesca como uma tendência/virada a uma direção política superior ao
universalismo que enquanto a teoria da ordem concreta é uma tentativa de superação da teoria
do político desenvolvida, após os acontecimentos nefastos da época hitlerista, através da
teoria do nomos que representa uma radicalização no sentido espacial a partir do qual os
conceito de espaço concreto (Raum) passa a jogar o papel mais importante na argumentação
schmittiana265.

264
“Il concetto d’Imperio nel diritto Internazionale. Ordinamento dei grandi spazi com esclusione dele potenze
estranee” (1941). Cita-se a partir da tradução italiana, p. 38-39.
265
A referência ao período nazista de Schmitt pode ser abordado a partir de três perspectivas: 1ª hipótese – sua
adesão intrínseca – representa uma necessidade imanente do seu pensamento e que, por isso, há uma
continuidade entre teoria política schmittiana e o III Reich, marcado por autoritarismo, anti-parlamentarismo,
catolicismo reacionário, decisionismo, violência, etc.; 2ª hipótese – a tese ocasionalista de Löwith – segundo o
qual a adesão de Schmitt ao nazismo embora não represente uma necessidade imanente da sua obra, demonstra
que algumas ideias estruturais, tais como anti-liberalismo e irracionalismo, são semelhantes e, por isso, num
juízo de oportunidade e ambição pessoal Schmitt preferiu aderir a nova ordem ao invés de contrapor-se; 3ª
hipótese – adesão extrínseca – nem por necessidade conceitual nem por oportunismo intelectual, Schmitt, na
verdade, teria por um lado, enxergado no nacional-socialismo um novo tipo de legitimidade do poder público
que tanto buscara e, além disso, a superação das contradições da República de Weimar. Esta última hipótese,
287

Jus publicum Europaeum

Entre os séculos XVI e XIX ocorreu o processo de formação daquilo que Schmitt
denomina de “época interestatal do direito internacional” (NE, p. 112), ou seja, a consolidação
do Estado como unidade política por excelência e a constituição do jus gentium moderno. A
época da estatalidade europeia cunhou os conceitos e as práticas políticas em torno da figura
do Estado determinando o jus publicum Europaeum que conheceu sua decadência no século
XX. A obra Der Nomos der Erde busca através de uma investigação analítica e histórica
desvendar a peculiaridade desse sistema jurídico e político e suas transformações na era
contemporânea.
Para Schmitt, o principal feito do jus publicum Europaeum foi, precisamente, a
delimitação ou circunscrição da guerra, isto é, a limitação do agonismo e a relativização da
inimizade. Nesse contexto, houve a exclusão da categoria de justa causa belli (a guerra justa),
tributário de uma perspectiva moralizante que prescrevia o aniquilamento do inimigo e, por
conseguinte, a negação do político, pois “as avaliações teológico-morais e jurídicas só
extraem a sua força de instituições concretas e não de si mesmas”266. Assim, a violência não
seria desencadeada aleatoriamente, mas posta em termos jurídicos, porém essa manifestação
jurídica não seria uma negação do agonismo humano, ao contrário: há o primado do político
que se serve de normas contra as tendências desagregadoras da vida humana. O cerne da
questão está na característica do Estado moderno como detentor do jus belli, isto é, o
monopólio do direito de guerra que, evidentemente, exclui soberanamente do seu interior a
possibilidade do conflito. Na esfera interna do Estado haveria apenas uma instância de
decisão e, por conseguinte, ordenação pública através da neutralização da guerra civil dentro
dos limites territoriais; no exterior, nas relações entre nações, a autodeterminação soberana

sem ingenuidades é claro, parece mais coerente e, de forma geral, explica os fatos posteriores na biografia do
jurista. Seja um oportunista ou um sincero entusiasta de uma nova possibilidade política, não se pode
desconsiderar sua obra por mácula tal que entre outros, assim como Heidegger, também cometeram. Na verdade,
a partir de 1935, Schmitt já se encontrava em suspeita pelas SS (Schwarz Korps), levado a juízo sumário e logo
expulso do Partido nazista em 1936 sob suspeita de ser uma “mente perigosa” para o regime. Em todo caso, a
chave de leitura aqui desconsidera aquelas obras escritas sob pressão dos acontecimentos que possuem sem
dúvidas valor histórico e político, mas para este estudo apenas complicaria mais ainda o percurso escolhido para
trabalhar os temas em questão. Para justificar-se, Schmitt utilizava a máxima de Macróbius, cf. ECS, p.23, 18-24
e 63: “num possum scribere in eum qui potest proscribere”.e durante o posterior exílio interno, autodenominava-
se em Gl, p.53 de “Epimeteu crstão”. Cf. ainda ECS, p.14 e 55. Cf. ainda, BENDESKY, Joseph W. Carl Schmitt.
Teorico del Reich. Bologna: Il Mulino, 1989; BALAKRISHNAN, G., The Enemy: An Intelectual Portrait of
Carl Schmitt. London: Verso, 2000; NOACK, Paul. Carl Schmitt. Eine Biographie. Frankfurt/Berlin: Ullstein,
1996.
266
O trecho inteiro, NE, p. 28: “Nur darf man dabei nicht vergessen, daß solche moraltheologischen und
juristischen Beurteilungen ihre Kraft nur aus konkreten Institutionen, nicht aus sich selber schöpfen.
Insbesondere ist Friede kein raumloser, normativistischer Allgemeinbegriff, sondern stets als Reichsfrieden,
Landfrieden, Kirchenfrieden, Stadtfrieden, Burgfrieden, Marktfrieden, Dingfrieden konkret geortet”.
288

como capacidade de proclamação da guerra contra um inimigo sem a necessidade de


parâmetros de justiça ou apelo a alguma instância moral: faz-se guerra porque o Estado possui
autonomamente a partir de sua própria existência da pretensão de legitimidade exclusiva do
poder público:

A definitiva desvinculação entre a argumentação eclesiástica e teológico-moral e a


argumentação jurídico-estatal e a igualmente importante desvinculação entre o
problema de fundo jusnaturalista e moral da justa causa e o problema tipicamente
jurídico-formal do justis hostis, o qual é diferenciado do criminoso, isto é, do objeto
de uma ação punitiva267.
A separação entre justa causa e justis hostis está na base do jus publicum
Europaeum, bem como o reconhecimento de que cada Estado é igual em direitos, inclusive na
possibilidade de realizar a guerra, pois não há nesse sistema a pretensão de justiça por uma
das partes, por se tratar, evidentemente, de questão política, pois “o princípio da igualdade
jurídica dos Estados torna impossível discriminar entre o Estado que trava uma guerra justa e
aquele que trava uma guerra injusta (...) isso contradiz a igualdade jurídica dos soberanos”268.
Por um lado, não há princípios normativos éticos para limitar o exercício da guerra; por outro,
não há a necessidade de uma guerra de aniquilação, pois, como demonstrado na teoria do
político, a aniquilação do inimigo é, de uma forma específica, a aniquilação de si mesmo e,
em última instância, a aniquilação do político, pois apesar de existencial e histórico “o
conceito de inimigo se torna passível de uma configuração jurídica”269. Não há normas éticas
nem justiça material para delimitar o exercício do político, mas apenas uma forma
institucional, pois “a justiça da guerra reside (...) na qualidade institucional e estrutural das
formações políticas que travam a guerra em um mesmo plano”270 que passa a ser considerado
ainda uma relação de força, porém estruturado por meio de regras adotadas pelos beligerantes
como adequadas que ao final, a rigor, não demonstra a verdade ou a justiça de nenhuma das
partes, mas apenas a força e a virtude. Apesar disso, a guerra é enquadrada não por meio de
normas racionais ou morais, anteriores e incondicionadas, mas sim através da efetividade das
relações entre as ordenações organizadas no espaço concreto por meio dos Estados: “a força
vinculatória de uma obrigação de Estados soberanos em termos do direito internacional, não
267
NE, p. 91: “in der endgültigen Ablö sung der moraltheologisch-kirchlichen von der juristisch-staatlichen
Argumentation und in der ebenso wichtigen Ablö sung der naturrechtlichen und moralischen Frage der justa
causa von der typisch juristisch-formalen Frage nach dem justus hostis, der vom Verbrecher, d. h. von dem
Objekt einer punitiven Aktion, unterschieden wird”.
268
NE, p. 138-139: “Der Grundsatz der juristischen Gleichheit der Staaten macht es unmöglich, zwischen dem
Staat, der einen gerechten, und demjenigen, der einen ungerechten Staatenkrieg führt, zu diskriminieren (...) das
widerspricht der rechtlichen Gleichheit der Souveräne”.
269
NE, p. 114: “Der Begriff des Feindes wird einer rechtlichen Formung fähig.”
270
NE, p. 114-115: “die Gerechtigkeit des Krieges liegt jetzt nicht mehr in der Übereinstimmung mit bestimmten
Inhalten theologischer, moralischer oder juristischer Normen, sondern in der institutionellen und strukturellen
Qualität der politischen Gebilde”.
289

pode residir na problemática autovinculação dos soberanos que se mantém livres, mas no
pertencimento comum a um espaço circunscrito, isto é, baseia-se no efeito abrangente de uma
ordenação concreta do espaço”271. Essa concepção já, de antemão, demonstra que Schmitt
prossegue na investigação da legitimidade da ordem a partir de uma instância concreta, ou
seja, acena mais uma vez para o problema da dualidade entre ser e dever-ser e busca para tal
questão uma solução que o supere adequadamente.
Tal organização, porém, pode ser melhor elucidada através da categoria do espaço
(Raum), pois como Schmitt afirma o Estado soberano não é apenas o novo conceito de ordem
em geral, mas sim o novo conceito de ordem espacial. É a existência de uma nova consciência
planetária do espaço, uma revolução espacial ocorrida com a descoberta do novo mundo que
determina a existência da época moderna:

Toda vez que, por um novo avanço das forças históricas, por um desatar de novas
energias, novas terras e mares ingressam no horizonte da consciência geral da
humanidade, mudam também os espaços da existência histórica. Surgem, então,
novas medidas e dimensões da atividade histórico-política, novas ciências, novas
ordenações (...) O alargamento pode ser tão profundo e surpreendente que
transforme não apenas as medidas e os parâmetros de mensuração, não apenas o
horizonte exterior dos homens, mas também a estrutura do conceito de espaço.
Pode-se então falar de uma revolução espacial272.
A época moderna sofreu a mais radical ruptura das concepções tradicionais, uma
autêntica revolução espacial planetária atingindo as representações tradicionais do espaço,
mas, principalmente, a nova ordenação do espaço provocou uma reorganização política e
jurídica uma vez que as referências de organização do mundo são determinadas por novas
representações da ordenação do espaço273. Para Schmitt, o que interessa nessas tais

271
NE, p. 198: “Immer wieder muß daran erinnert werden, daß die bindende Kraft einer völkerrechtlichen
Verpflichtung souveräner Staaten nicht in der problematischen Selbstbindung freibleibender Souveräne liegen
kann, sondern auf gemeinsamer Zugehörigkeit zu einem umhegten Raum, d. h. auf der umfassenden Wirkung
einer konkreten Raumordnung beruht”.
272
LM, p. 56-57: “Jedesmal wenn durch einen neuen Vorstoß geschichtliche Kräfte, durch eine Entfesselung
neuer Energien, neue Länder und Meere in den Gesichtskreis des menschlichen Gesamtbewußtseins eintreten,
ändern sich auch die Räume geschichtlicher Existenz. Dann entstehen neue Maßstäbe und Dimensionen der
politisch-geschichtlichen Aktivität, neue Wissenschaften, neue Ordnungen (…) Die Erweiterung kann so tief und
überrraschend sein, daß sich nicht nur die Maße und Maßstäbe, nicht nur der äußere Horizont der Menschen,
sondern auch die Struktur der Raumbegriffes selber ändert. Dann kann man von einer Raumrevolution
sprechen”.
273
A reflexão de Schmitt abre novo horizonte de pesquisa futuras como, por exemplo, a investigação sobre a
revolução espacial no século XX referente à expansão das novas tecnologias – no campo virtual, internet,
notoriamente, mas também em outras áreas como a revolução da imagem ou econômica – uma espécie de
revolução que, de forma ainda mais radical, altera completamente a compreensão do mundo e do espaço, porém
quase não abordada pelos juristas. A indicação dessa pesquisa, em breve, pode ser trabalhada em estudos
promissores. Cf. por todos, HARVEY, 2001, por exemplo, quando afirma que “A modernidade, por conseguinte,
não apenas envolve uma implacável ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes, como é
caracterizada por um interminável processo de rupturas e fragmentações internas inerentes”, p. 22.
290

transformações espaciais são, precisamente, as transformações políticas e jurídicas que delas


advém, pois:

Toda ordenação fundamental é uma ordenação espacial (...) Desse modo, no seu
núcleo essencial, a verdadeira e autêntica ordenação fundamental reside em
determinados limites e delimitações espaciais, em determinadas medidas e em uma
determinada distribuição da terra. No começo de cada grande época, está uma
grande apropriação de terra. Em particular, toda mudança e deslocamento da
imagem da Terra está associada a mudanças de política mundial e a uma nova
repartição da Terra, a uma nova apropriação de terra274.
Nestes termos, a organização global do espaço dá-se, numa perspectiva eurocêntrica
e interestatal, a partir do Estado, pois a superfície terrestre foi apropriada, dividida e explorada
pelas unidades políticas sobre uma base territorial que implica o estabelecimento de novas
medidas e novas fronteiras em consonância com a disputa pela apropriação das novas terras e
mares por meio da Landnahmen e da Seenahme que inscreveu a ordem no espaço por um ato
concreto. O solo não europeu da Terra tornou-se, sem mais, solo colonial, isto é, espaço livre
para a apropriação e exploração: no solo europeu, havia qualidade jurídica e um direito
localizado; no resto do solo terrestre, apenas o fato bruto sem qualificação jurídica, por
conseguinte, liberdade na apropriação e qualificação ordenativa originária. Assim, havia um
espaço regulado pelo direito e outro sem juridicidade, um espaço liberado de restrições
jurídicas. A apropriação da Terra (Landnahme) é compreendida por Schmitt como esse
movimento originário de qualificação do espaço que ao mesmo tempo é marcado pela
facticidade da ação e pela juridicidade do ordenamento, é, na verdade, uma orden-ação, um
ato que constitui a ordem e o direito num espaço a partir de uma radical Einteilung der Erde
que qualifica o espaço como espaço do direito, isto é, como jurisdição onde vigoram normas
jurídicas. Assim, o direito possui como condição de validade o ato da apropriação do espaço,
por isso, é uma configuração histórica concreta e não de uma racionalidade normativa a
condição de possibilidade da ordem e do direito.
Nesse contexto, a oposição entre terra e mar passa a desempenhar um papel
fundamental na obra de Schmitt. Trata-se de mundos distintos e de convicções jurídicas
contrapostas que determinam o âmbito terrestre como território de um Estado ou solo livre
para a apropriação e o âmbito marítimo como livre e não ocupável. Enquanto o espaço
terrestre é concebido como um Raumordnungsbegriff (conceito de ordenação espacial), a
superfície marítima constitui uma esfera de não-estatalidade: “a separação entre terra firme e

274
LM, p. 71: “Jede Grundordnung ist eine Raumordnung (…) Nun, die wahre, eigentliche Grundordnung beruht
in ihrem wesentlichen Kern auf bestimmten räumlichen Grenzen und Abgrenzungen, auf bestimmten Maßen und
einer bestimmten Verteilung der Erde. Am Anfang jeder großen Epoche steht daher eine große Landnahme.
Insbesondere ist jede bedeutende Veränderung und Verlagerung des Erdbildes mit weltpolitischen
Veränderungen und mit einer neuen Einteilung der Erde, einer neuen Landnahme verbunden”.
291

mar livre foi o princípio fundamental e específico do jus publicum Europaeum”275 O que
interessa para a averiguação das hipóteses levantadas neste trabalho é que o espaço marítimo
é alheio às formas de ordenação concretas, isto é, o instrumento conceitual que Schmitt utiliza
para a análise sobre a espacialização da política é a distinção entre terra e mar, significando
mais do que a oposição entre indivíduo (sociedade) e Estado ou indústria/comércio e política,
mas sim, num sentido mais profundo, a oposição entre forma política concreta e
universalismo abstrato. Político significa agora dimensão político-espacial e não apenas
exceção concreta ou polemicidade e, diante disso, todas as revoluções políticas podem ser
compreendidas, a rigor, como revoluções espaciais, especificamente, terrestres. A
originalidade do espaço é a determinação fundamental do político, evidentemente como
intensidade conflitual do agir humano, mas principalmente, o espaço, para Schmitt,
estruturado e desestruturado a partir do político: espaço, assim, é ser, porém apenas o espaço
ordenado pode ser compreendido dessa forma. Nesse contexto, porém, o aspecto mais
relevante do argumento não reside na existencialidade da unidade política, mas sim na origem
concreta da política como dimensão do espaço, pois o conceito de espaço e a ideia política
não podem ser separados, essa é a aquisição do elemento de politicidade uma vez que em
Schmitt espaço significa impermeabilidade, visibilidade e publicidade e não é possível
estabelecer uma ordem concreta a partir do âmbito econômico-marítimo. Na constituição de
uma ordem jurídica, vigência e localização do direito estão relacionados a limites e fronteiras
fixas, ao contrário, no mar “os campos não se deixam semear e as linhas firmas não se deixam
gravar” e, evidentemente, “não conhece a unidade patente entre o espaço e o direito”276. De
forma semelhante, as terras livres não europeias eram concebidas como uma esfera de
emprego da violência subtraída ao direito.
No entanto, a dissolução do jus publicum Europaeum deu-se a partir do
desenraizamento espacial no solo europeu ocorrido por meio da expansão da economia
mundial internacionalizada, por um normativismo universalista e por uma tecnologia
indiferente a qualquer localização concreta. Esta tendência sempre foi verificada em todo
modernidade e conquista sua maior expressão na concepção legalista do direito como mera
positividade a partir da racionalidade formal da técnica. Nesse contexto, a ordem jurídica
experimenta uma cesura radical entre norma e realidade, ser e dever-ser, pretensão normativa
e experiência social, perdendo o caráter circunstancial da validade da ordem jurídica que

275
NE, p. 155: “Die Trennung von festem Land und freiem Meer war der spezifische Grundzug des jus
publicum Europaeum”.
276
NE, p. 13: “Das Meer kennt keine solche sinnfällige Einheit von Raum und Recht, von Ordnung und Ortung”.
292

termina por oferecer uma pista pela qual se pode compreender a tese de Schmitt na junção
destes elementos, negando uma concepção abstrata do direito. A mediação entre ideia abstrata
do direito e a contingência da existência concreta dá-se, segundo Schmitt, em um primeiro
momento, numa passagem violenta que impõe à experiência uma forma tal como articulado
na teoria da exceção, por isso a ênfase nas situações de guerra e de conflito, bem como na
exigência de relações de força e não apenas princípios normativos, mas, num segundo
momento, revela-se necessário a configuração da ordem normativa para a existência social. A
questão é que ambos – a irredutibilidade da realidade histórica à normatividade e a ordem
jurídica – dependem de uma lógica da imanência ou do concreto: a realidade, assim como a
norma, não necessita de legitimidade, pois basta a existência do espaço e a ocorrência da
apropriação-conformação. Não se trata de mera justificação do fático, mas sim de que tal
fático é ordenado e, por isso, legítimo como existente. O problema da validade do poder
público e da ordem jurídica é esclarecido no seguinte: o direito não é nem dever-ser racional e
normativo nem mera força e relação de fato; ao contrário, direito assim como o Estado é uma
“forma no sentido de uma configuração de vida”277. Neste sentido, a validade do direito é
condicionada ao pressupor um espaço de ordem concreta enraizado histórica e socialmente,
pois todo direito é ordem concreta, ao passo que normas e regras só obtém o seu significado e
sua lógica na moldura de uma ordem concreta.
Dessa maneira, Schmitt prepara a compreensão da questão de modo a corrigir os
equívocos anteriores: nem afirma unilateralmente a primazia da norma, nem a primazia do
fato ou realidade concreta (realismo fraco e realismo forte), mas, neste momento, estabelece
uma relação entre imanência e transcendência, faticidade e validade, concreto e abstrato,
ressaltando uma origem comum entre a norma e a realidade que se apresenta, na verdade,
como um processo interminável de ordenação da realidade na sua própria imediatidade. Neste
momento, já se anuncia a ideia de nomos como origem de uma ordem política articulando ao
mesmo tempo concretude e forma, facticidade e validade como a seguir se expõe com maiores
detalhes.

O conceito de nomos

Segundo o Kronjurist, na última fase da sua obra, o problema da relação entre


faticidade e validade remete à questão do nomos. Para compreender a originariedade do
direito e da ordem concreta é necessário compreender, na verdade, a unidade entre ordenação

277
PT, p. 33: “Der Staat wird also zu einer Form im Sinne einer Lebensgestaltung”.
293

e localização. A tese é a seguinte: há uma relação necessária entre espaço e direito, ou seja,
uma ordem jurídica é sempre desde o início uma ordem espacial. Para Schmitt, o conceito de
nomos possui tal caráter espacial, pois significa o ordenamento fundamental (Grundordnung)
compreendido como origem de uma ordem concreta, ou seja, é o sistema de limites e medida
espacial, uma nova divisão ou apropriação da Terra, pois diferente do que costumeiramente se
pensa, nomos não é uma série de regras e convenções internacionais, mas o princípio
fundamental da distribuição do espaço terrestre. A teoria do nomos se apresenta para Schmitt
como uma teoria da superioridade constitutiva do nomos sobre a lei (Gesetz, no sentido de
posição convencional), refere-se à criação e definição do espaço no qual a ordem jurídica
possui validade, afastando-se, assim, do pensamento legalista que perdera a relação originária
entre ordem jurídica e espaço, pois, por assim dizer, é a localização (Ortung) que determina o
interno e o externo a partir de onde o ordenamento pode ser considerado legítimo. No entanto,
a legitimidade deste peculiar pragmatismo espacial dá-se mediante um ato histórico: nomos,
assim, é ordenamento do espaço constituindo-se como uma tomada de terra (Landnahme) e
delimitação de uma ordem jurídica e territorial (Ordnung)278:

O espaço como tal não é evidentemente uma ordem concreta. Porém, toda ordem
concreta e toda comunidade têm um conteúdo específico em termos de lugar e de
espaço. Nesse sentido, pode-se dizer que toda organização jurídica, toda instituição
contêm em si suas concepções de espaço e, portanto, também trazem consigo sua
medida interna e sua fronteira interna279.
A articulação entre Ortung e Ordnung constitui o nomos da terra (NE, p. 70), isto é, a
perspectiva originária entre facticidade e validade que Schmitt procurara para solucionar a
espinhosa questão genealógica. Para tanto, o autor se desvencilha das aporias da mediação
racionalista, bem como dos realismos propostos anteriormente para buscar um paradigma
político mais adequado. Nesse momento, é necessário reconstruir e desenvolver melhor o
argumento acerca da conceito de nomos para, após, traçar o esboço do que seria esse
pensamento político capaz de dar conta dos problemas herdados da modernidade. A palavra
nomos, segundo Schmitt, designa "a apropriação da terra como participação e divisão

278
Para Agamben, há uma conciliação entre a teoria da exceção e a teoria do nomos na medida em que o nomos
pressuporia um momento originário de exceção como indistinção entre fato e norma. A leitura do autor italiano é
bastante criativa, mas confunde estes dois níveis: a categoria de exceção não desempenha a centralidade teórica
pretendida. A tese de Agamben afirma que o estado de exceção é a estrutura original da política que emerge na
contemporaneidade até tornar-se regra. No entanto, essa tese não faz jus à teoria de Schmitt e, simplesmente,
reconstrói o jurista tedesco de uma forma caricatural.
279
“Völkerrechtliche Großraumordnung mit Interventionsverbot für raumfremde Mächte”, In: SGN, p. 319: “Der
Raum als solcher ist selbstverständlich keine konkreten Ordnung. Wohl aber hat jede konkreten Ordnung und
Gemeinschaft spezifische Ort- und Rauminhalte. In diesem Sinne läßt sich sagen, daß jede Rechtseinrichtung,
jede Institution ihren Raumgedanken in sich hat und daher auch ihr inneres Maß und ihre innere Grenze mit sich
bringt”.
294

fundamental do espaço”280. Nesse sentido, nomos seria o "ato originário que funda o
direito"281, ou seja, o ato-instituição histórico concreto da constituição da ordem e da norma.
Assim, o sentido original de nomos, que Schmitt se esforça por recuperar, revela a íntima
relação com o conceito de espaço (Raum), pois desvela o “ato de ordenação e de localização,
constituinte e espacialmente concreto”282. Entretanto, diante do uso impróprio, a palavra
nomos perdeu seu sentido originário e passou a significar qualquer regulação ou ordem
normativa, confundindo-se com o conceito formal de lei (Gesetz), ou seja, de um significado
concreto e histórico para uma acepção abstrata e universal. A interpretação que o
pragmatismo político schmittiano dá a partir da relação fundante do nomos, enquanto força
real que atua concretamente, entre espaço e ordem concreta traz consequências para a questão
sobre a caracterização da teoria política, mais precisamente, para a recusa do enquadramento
normativo da política e da primazia da norma sobre as relações concretas, bem como na
investigação sobre o persistente problema. Por outro lado, quando Schmitt quer fazer
referência ao conceito formal de norma, ou seja, à norma abstrata ou lógica, utiliza o termo
Norm ou ainda Gesetz e seus derivados.
Entretanto, para o interesse dos estudos desenvolvidos aqui, o problema central é o
nomos articulado enquanto “mediação” concreta e sua vinculação com o fenômeno
fundamental da tomada da terra (Landnahme), resultando daí o fenômeno de localização e
ordenamento (Ortung und Ordnung). Tais conceitos permitem ao autor demonstrar a estrutura
espacial de uma ordenação concreta, pois a ordem existe a partir da ordenação do espaço.
Dessa maneira, elucida e apresenta a relação originária entre ser e dever-ser ao sustentar a tese
da impossibilidade de separação entre estas instâncias que, afinal de contas, são
indistinguíveis. A distinção ocorre apenas nos paradigmas anteriores porquanto unilaterais e,
por isso, mesmo incapazes de compreender a constituição concreta da ordem, pois fixados
seja numa perspectiva universalista ou normativa seja numa perspectiva demasiadamente
fática, isto é, ou bem por um racionalismo ou bem por um realismo (positivismo).
Segundo Schmitt, no sentido original, a palavra nomos significa, a rigor, a plena
"imediatidade de uma força jurídica não atribuída por leis”283, em outras palavras, o nomos é
"um acontecimento histórico constitutivo"284. A partir disso, Schmitt desenvolve a noção de

280
NE, p. 36: "Landnahme als die esrte Raum-Teilung und -Einteilung".
281
NE, p. 16: "rechtbegründenden Ur-Aktes".
282
NE, p. 47: “konstituierenden Ordnungs- und Ortungsakt”.
283
NE, p. 47: "Unmittelbarkeit einer nicht durch Gesetze vermittelten Rechtskraft".
284
NE, p. 47: "ein konstituierendes geschichtliches Ereignis".
295

legitimidade histórica que dá sentido à legalidade da lei285. Assim, o nomos é o processo


fundamental de divisão do espaço, um ato originário e concreto de localização e ordenamento
do espaço que se configura na forma de um factum constituinte, isto é, de um poder
constituinte de toda e qualquer normatividade, pois, no início de qualquer ordem jurídica,
"não está uma norma fundamental (Grund-Norm), mas sim uma apropriação fundamental
(Grund-nahme)"286 que se configura enquanto legítima na medida em que estrutura
juridicamente o espaço, pois “eleva um pedaço de terra a campo de força de uma
ordenação”287: compreender nomos como norma ou lei representaria uma perda semântica e
teórica para a compreensão da obra de Schmitt.
Segundo Schmitt, originalmente relacionado ao conceito de nomos estão os termos
nehmen, teilen, weiden que significam, respectivamente, tomar/apropriar, partir/dividir e
apascentar/pastorear. Para o jurista tedesco, do substantivo nomos, filologicamente, deriva-se
o verbo nemein que possuiria três significados articulados, quais sejam, um ato de apropriação
(nehmen), um ato de divisão e de partilha (weilen) e, por fim, o ato de apascentar, cultivar ou
produzir (weiden)288. Posteriormente, no mesmo diapasão, Schmitt insere um quarto
significado, qual seja, o ato de nomeação, por meio do qual uma dada apropriação ganha
publicidade e visibilidade289. Esses possíveis significados servem de argumento para a
compreensão dos processos históricos através dos quais espaço (imanência) e direito
(transcedência), ou melhor, faticidade e validade resumem-se, originariamente, no conceito de
nomos como desvelamento da unidade primitiva da ordem e das normas. Na verdade, é a
partir dos Ur-Akte como um ato primitivo ou uma appropriatio primaeva que funda a
medição originária a partir da qual todas as outras medidas ganham sentido e não por meio de
alguma normatividade.
Nesse sentido, pode-se afirmar que não há, a rigor, mediação normativa ou racional,
pois o ato de apropriação que constitui o nomos é uma forma imediata (unmittelbare Gestalt),
ou melhor, um ato-instituição no espaço que constitui “o primeiro título jurídico que está na
base de todo direito”290. Entretanto, o nomos não se reduz a um ato de força, como já visto,
uma vez que o ato da instituição da ordem no espaço constitui uma espécie de fato-instituição

285
Sobre a idéia de legitimidade histórica em Schmitt, cf. HOFMANN, 2002, p. 189-248.
286
SGN, p. 581: "Am Anfang steht nicht eine Grund-Norm, sondern eine Grund-Name"; Cf. ainda o ensaio
"Nehmen, Teilen, Weiden" (1953). In: VA, p. 489-504.
287
NE, p. 40: “ein Stück Erde zum Kraftfeld einer Ordnung erhebt”.
288
“Nehmen – Weilen – Teilen. Ein Versuch, die Grundfragen jeder Sozial- und Wirtschaftsordnung von
Nomos her richtig zu stellen”. In: VA, p. 489-504.
289
“Nomos – Nahme – Name”. In: SGN, p. 583-585.
290
NE, p. 17: “In jedem Falle ist die Landnahme nach Innen und Außen der erste Rechtstitel, der allem
folgenden Recht zugrunde liegt”.
296

que torna facticidade e validade co-originários. Assim, torna-se compreensível a definção do


nomos como “a plena imediatidade de uma força jurídica não mediada por leis” (NE, p. 42),
pois como afirma FERREIRA, 2010, p. 361: “o ato de apropriação, embora tenha um caráter
imediato – ou seja, não possa ser concebido em termos de uma mediação normativa –, se
apresenta como força jurídica em razão da sua capacidade de estabelecer uma ‘mediação’
entre os planos do direito e da realidade, entre ser e dever-ser”. Entretanto, como o próprio
comentador salienta, estas duas instâncias não podem ser dissociadas, pois, na origem,
enquanto ato de legitimidade radical, o nomos torna indistinguíveis mediatidade e
imediatidade, dever-ser e ser, validade e faticidade na constituição da ordenação concreta do
espaço que, na interpretação desse estudo, pode ser esclarecido como um esboço de um novo
paradigma politico.
297

Capítulo 3. Político e abertura. O pathos do antagonismo e a


ruptura da simetria entre imanência e transcendência

A distinção conceitual entre das Politischen (o político) e die Politik (a política)


remete, respectivamente, à diferenciação entre um conceito forte de política e outro
tradicional: ora se refere à fundamentação do tipo normativo, ora indica a compreensão da
ação a partir da relação e diferença entre afecções no interior do corpo social. Esta diferença
expõe o problema da dupla inscrição do estatuto da ação política, por isso, denominamos
como o paradoxo do político. Este capítulo se empenha na tarefa de propor uma leitura
através das teses de Schmitt que permita pensar a contingência da ação sob o argumento de
finitude e traçar algumas considerações sobre a ruptura da simetria entre imanência e
transcendência, levando em conta o paradoxo exposto. Além disso, pretendemos elaborar uma
concepção em teoria política que denominamos como monismo ou imanentismo baseado em
uma peculiar ontologia política e na noção de abertura. Propomos ainda uma breve narrativa
sobre a diferença política e, ao final, uma releitura desta diferença como diferença ontológica
e suas consequências para um pensamento político pós-fundacional. Ao menos em esboço,
insistimos na elaboração de uma ontologia política tendo como princípio de totalidade da
realidade, por assim dizer, a necessidade do conflito (como uma estrutura afetiva, isto é,
estabelecida nas relações do corpo social). Esta poderia servir como base de uma pós-política,
compreendida como uma reflexão sobre a estrutura do poder fora da moldura normativa e
representativa, visto que leva em conta a ausência ou impossibilidade de fundamento (no
sentido tradicional do termo) e, sobretudo, concebe o poder não como uma gramática ou
semântica comum para o viver juntos, mas como o conjunto dos afetos que circulam no corpo
social e, a partir deles, sua efetiva condição de existência. Nesta perspectiva, o problema em
análise não se encontra na ausência de norma ou de fundamento transcendente da autoridade,
mas será, ao contrário, saber até que ponto as condições afetivas estabelecem uma dominação
298

ou não, quais tipos de afetos permitem a constituição e crescimento do corpo social e quais
trazem sua dissolução. Em todo caso, perpassa por este capítulo a noção do político como a
questão sobre a natureza dos vínculos sociais, ou melhor, como uma questão dos tipos de
afetos que forjam a ordem política291. Assim, o poder circula por sua própria natureza
relacional e encontra aqui e acolá alguma sedimentação mais duradoura, embora precária. A
questão é que não se refere a uma vontade que submete outra vontade, mas à circulação de
algo que submete todas as vontades, escapando das marcas das filosofias da consciência ou do
sujeito e da mera dominação: este aspecto de totalidade, isto é, este afeto que perpassa todas
as vontades é denominado aqui como antagonismo, o fato mais básico da realidade que
traçamos, em esboço, através de uma ontologia do político292.
Ao final da pesquisa, realizamos uma leitura experimental da noção de comunidade:
o que determina a comunidade política não teria como pressuposto ou fundamento uma
substância comum, raça ou sangue, nem normas ou procedimentos, sequer ainda uma forma
de direito; nem mesmo afetos como medo, esperança ou desamparo, ou ainda a noção de ser-
com ou, simplesmente, de relação: antes, a ausência desapropriadora característica da noção
de comunidade tal como é pensada contemporaneamente293 seria melhor compreendida
através do antagonismo, princípio da ontologia política proposta. A questão é encontrar uma
configuração (afetiva) do poder, isto é, um circuito de antagonismos que não encontre nem a
estabilização definitiva marcada pela unidade metafísica, nem a dominação assujeitadora da
mera força do fático. O caminho proposto é proceder à ruptura da simetria entre
transcendência e imanência. Em nossa leitura, enquanto esta se refere às relações concretas
como causa finita não unificadora da realidade, numa palavra, aos afetos do corpo social;
aquela pode ser compreendida ora como contingência (o fundamento como ausência), ora
como resultado provisório ou hegemônico dos afetos que remetem constantemente à relação
concreta, eles mesmo condicionados pela contingência, provocando um jogo ou movimento
em que nenhum extremo é capaz de estabilizar algo que possa ser determinado como ordem
ou unidade. Esta experiência de impossibilidade da fixação da ordem pode ser ilustrada com a

291
Vladimir Safatle (SAFATLE, 2015) desenvolve esta tese e, apesar dos pontos de partida distintos, contribui
decisivamente para o desenvolvimento desta pesquisa. Cf. ainda AURÉLIO, 2000.
292
Da mesma forma que Nietzsche e, sobretudo, Heidegger, o que denominamos aqui não se confunde com um
fundamento no sentido tradicional do termo, cf. MÜLLER-LAUTER, 2009. Numa proposta de elaboração de
ontologia política em Carl Schmitt, cf. VIRISONOVA, 2011. Evidentemente, como o leitor logo perceberá,
neste capítulo, a influência de Espinosa também se faz presente, bem como, já que se trata de uma tentativa de
leitura a partir de Schmitt e não uma exegese, adotamos um estilo ensaístico que nos parece mais conveniente
para a proposição de alguns argumentos a serem explorados pela teoria política de forma mais autoral.
293
Sobre isso, cf. o desenvolvimento de alguns argumentos de Bataille, Blanchot, Nancy e, sobretudo, Esposito
na seção 3.4.
299

noção de abertura, por isso, ambas – faticidade e validade ou imanência e transcendência –


seriam modos na finitude. Ora, a partir disso, denominamos a teoria política proposta nesta
tese de monismo político, pois compreende estes momentos distintos na teoria tradicional
como co-extensivos, ou seja, a rigor, não realizamos a mera inversão da transcendência para a
imanência, mas propomos uma fusão na qual não haja prioridade ontológica de uma ou de
outra instância. Rastros dessa concepção podem ser encontrados em Schmitt, tal como os
argumentos de exceção, do político ou a apropriação originária da terra. Lançamos um novo
olhar sobre o problema proposto ao pensar não apenas transcendência como algo dentro da
imanência – visto que não se configura a imanência como mera faticidade, assim como se
rejeita a possibilidade de uma forma ou ordem puramente abstrata sem vinculação aos modos
da relação e da finitude – como também permite pensar a teoria política, afinal de contas, fora
destes dois paradigmas ao perceber a diferença ou a fronteira entre as instâncias como
abertura. Assim, esta reflexão ao mesmo tempo em que propõe uma interpretação da obra de
Schmitt, procura também analisar algo para além do autor: a pós-política ou pós-
fundacionismo como consequência não apenas da diferença política entre político e política,
mas principalmente como uma diferença enquanto diferença, isto é, como abertura que
implica num movimento infinito e no devir-outro da politica.

3.1 Ação política e antagonismo: a estratégia finitista e a noção de monismo


político

A hipótese de trabalho desta pesquisa parte da interpretação de que a teoria política


de Carl Schmitt se desenvolve como uma teoria finitista, isto é, afirma-se que as condições de
justificação da ação política não são exteriores à própria ação, pois assumem uma validade in
re e rejeitam a estrutura metafísica baseada na distinção entre ser e aparecer, aliás, como já
exposto no capítulo anterior. A partir disso, desenvolvemos a noção de imanentismo ou
monismo político baseada em uma ontologia política cujo princípio de realidade do corpo
social não se refere a normas, racionalidade ou qualquer paradigma de legitimação externo,
mas sim a afetos, mais precisamente, àquele afeto mais intenso, o antagonismo, como o
elemento espectral que perpassa toda a realidade294. Tanto a permanência ou estabilização
(unidade) quanto a separação ou verticalização (ordem) do poder – garantidas pelo dispositivo

294
Evidentemente, a referência que utilizamos remete a Derrida (cf. 1.9). Temos consciência de que reinterpretar
a noção de guerra, da maneira como Derrida analisa em Schmitt, como antagonismo produz algumas
consequências que, em todo caso, pretendemos trabalhar durante o capítulo.
300

teológico-político da separação entre imanência e transcendência – sofrem um contra-ataque


nas teses schmittianas, sobretudo, pela concepção do político considerado como relação e
conflito. A partir desta leitura, o problema da pesquisa, inicialmente, torna-se a tentativa de
reinterpretação do conceito de das Politische fora dos tradicionais problemas da validade e da
soberania. A seguir, nesta seção (3.1), analisamos a transformação do conceito do político
como mediação para sua determinação a partir da imanência; logo após, abordamos o
mecanismo de secularização e seu papel até a noção de ausência (de forma) ser retomada em
outro nível. Na seção seguinte (3.2), arrematamos o tema desenvolvido com a elaboração de
uma releitura do conceito do político, como esboço preparatório para uma teoria monista
baseada numa estrutura de corpo social concebido através de uma ontologia política. Daí
(3.3), assumimos o pensamento pós-fundacionista e procuramos dar consistência à teoria
política proposta sob as noções da contingência e abertura para, logo depois (3.4),
desenvolvermos a questão da comunidade através da tese proposta.
No início do período weimariano, Schmitt propõe uma teoria da decisão ainda no
contexto da mediação entre ideia de direito e realidade concreta: sustenta a tese da mediação
do poder pela instanciação do direito e, por conseguinte, a separação entre faticidade e
validade. O que está em jogo para o autor não é tanto a resolução do gap entre quaestio facti e
quaestio iuris, mas sim a proposta de uma mediação que torne possível a organização do
poder como ordem legítima. A Trennungsthese apresentada acima caracteriza a realidade
empírica por um desamparo normativo originário, isto é, pelo domínio da contingência e da
não-juridicidade ao mesmo tempo em que a considera, paradoxalmente, como a instância
determinante da ordem. Neste momento, apesar de ainda conservar a categoria da
representação, o jurista acentua o papel da finitude na ação política. Há um deslocamento das
considerações do contexto de justificação para a análise do contexto da ação. Este, porém,
refere-se ainda à estrutura formal que empresta legitimidade à ação, constituindo uma tese que
denominamos como realismo fraco ou moderado ao apostar em uma perspectiva externa (ante
rem) de validade da ordem.
A questão aparentemente insolúvel entre representação e pluralidade, transcendência
e imanência pode ser remetida à dialética entre política e político que expressa a condição
finita da ação: se aquela (a política) se refere à instituição e estabilidade da ordem; este (o
político) se refere ao negativo ou ao impulso que não se deixa ser fixado em formas
institucionais, visto que retira-se a cada evento295. Dessa forma, compreende-se a categoria do

295
O tema possui um precursor bastante conhecido na modernidade sob a forma da relação entre Poder
Constituinte e Poder Constituído. Evidentemente, as considerações sobre o paradoxo político vão além e por isso
301

político a partir de Carl Schmitt como possuindo uma origem (histórica), a única possível, (i)
na relação e imanência; além disso, trata deste contexto através de uma perspectiva realista
em política, ou seja, (ii) da relação como conflito e, como consequência, de uma teoria que,
no final as contas, se mostra como um (iii) desfundamento296. Com Schmitt, a categoria do
político permite-nos pensar a fase termidoriana, isto é, a institucionalização do aparelho
burocrático-administrativo como uma estabilização jurídica necessária, porém não isenta de
transformações, visto que se apresenta como resultado de uma ação extralegal que expõe a
relação íntima entre ação, violência e direito fora do referencial teórico do normativismo ou
das políticas da transcendência. Entretanto, uma questão ainda preliminar se faz necessária:
como pensar a imanência sem compreendê-la como mera inversão de universais? No texto,
apresentamos duas hipóteses: uma que denominamos hipótese hobbesiana: redução das
multiplicidades e exclusão do conflito; outra, hipótese nietzschiana (mas bem poderia ser
maquiaveliana ou espinosiana): um caráter auto-fundador do corpo político que implica uma
ausência de relação com as esferas universais, ou melhor, considera o espaço social como
realidade passional e, por conseguinte, conflituoso, além da crítica ao direito por escamotear o
nexo violência-poder como um discurso sobre justificação e origem (abstrata) da ordem. A
interpretação sobre Schmitt que sustentamos aqui mostra o deslocamento de uma hipótese
para outra, do Schmitt hobbesiano para um Schmitt nietzschiano, se é que podemos falar em
algo do gênero. A exposição a seguir tenta reforçar esta transformação da categoria do
político de mediação para imediação, da referência à transcendência até a ruptura e afirmação
da tese do político como relação e violência e, por conseguinte, aquilo que é irrepresentável
ou avesso da política.
A relação a que o político se refere pode ser compreendida como graus de
intensidade de forças – leia-se, afetos – na tentativa de se fixar numa ordem a partir da
diferença. A interpretação que elaboramos acerca dos argumentos schmittianos considera que
sua compreensão ressalta este momento da relação e do antagonismo como fundamento
peculiar da ordem: ao invés de enfatizar a unidade ou identidade, a categoria do político
expõe o reverso da identidade, ou seja, o avesso da política como diferença que remete ao
externo e provoca uma persistente ausência no centro da ordem. Nesta proposta, o político
demonstra sua origem como crise, como avesso da política, visto que em sua estrutura operam
os afetos, os antagonismos ou oposições dos múltiplos em luta, isto é, a negatividade.

tentamos nos afastar desta distinção já desgastada em tantos manuais de Direito Constitucional e Teoria Política.
Sobre isso, cf. NEGRI, 2002 e VL.
296
Devemos esta noção de “desfudamento”, bem como de “decriação” à Simone Weil. Sobre isso, ESPOSITO,
1999, p. 189-244.
302

Portanto, o impulso para a diferença e não a constituição da ordem é a chave da relação entre
política e político. A relação de antagonismos que consideramos em Schmitt nada mais é do
que esta diferença como o resultado desta disputa dos afetos. Isso é o contrário de fascismo ou
aniquilamento do outro: o político como diferença e conflito pressupõe o outro, ou seja, a
multiplicidade permanente sem o procedimento do reduction ad unum. Mesmo quando se
refere à unidade política, a categoria do político tem em vista, sobretudo, os antagonismos que
a possibilitam, na verdade, que a determinam com uma causa imanente: não são considerados
amigos e inimigos em si, mas sempre a partir das relações, por isso contextual ou
pragmaticamente. A chave de leitura remete o político à relação de oposição entre desejos,
aquele de comandar e oprimir e aquele de não ser comandado e oprimido. Por esta forma,
podemos tratar a questão da liberdade, ou melhor, o desejo de liberdade como elemento
fundante de uma ordem política, tema quase inexistente na obra de Schmitt, mas que poderia
ser pensado por este meio, deliberadamente não liberal. O paradoxal da relação entre político
e política é que a negatividade do conflito é o fator produtivo das leis e instituições civis – o
que, certamente, é preciso entender, se considerarmos esta pulsão negativa como fundamento
da ordem política. A questão é, mais uma vez, como compreender o surgimento da ordem a
partir de uma “negatividade”? Mais precisamente, se impõe a tarefa de pensar o lugar do
fundamento da ordem política como desfundamento. O que Schmitt realiza, embora não
radicalize sua pretensão, consiste em um desvio da análise das estruturas estatais ou
normativas ao perceber uma relação anterior e concreta que constitui a ordem297. O argumento
do finitismo e o olhar para a exceção embutidos em sua reflexão desde o período pré-
weimariano provocam este movimento: as práticas sociais ganham estatuto constitutivo, mais
especificamente, o conflito ou as lutas em torno do poder e da ordem. Trata-se, então, de dois
termos que se implicam em sua exclusão mútua, polos cuja identidade se estabelece por seu
antagonismo permanente, de tal modo que remetem um ao outro indefinidamente o que
implica num recuo da reflexão sobre os polos para uma reflexão sobre a oposição e sua
natureza de afetiva. O realismo político, sem dúvidas, está na ação, mas a questão é se esta
ação se refere, afinal, à racionalidade.
No contexto da filosofia política moderna, a neutralização (rejeição do conflito que
gera a unidade) e despolitização (obediência ao soberano cuja validade advém da instituição
da violência contra a violência que, por fim, gera a ordem) são formas tradicionais da

297
Evidentemente, a reconstrução desta seção já não atende à tarefa de mera reconstituição dos argumentos
schmittianos através de uma exegese estrita. Pretendemos já abrir algumas veredas interpretativas que, apesar da
referência contínua à obra de Schmitt, serão utilizadas para pensar algo que o jurista, simplesmente, não tinha em
vista.
303

institucionalização política como estabelecimento de um excesso normativo diante das


relações sociais: a exclusão da violência através da ordem e unidade provocadas pelo
soberano. Paradoxalmente, a estrutura representativa é instaurada por Hobbes ao mesmo
tempo em que se perde a representação da ideia, qual seja, a forma de direito abstrato que o
Estado deveria tomar como mediação (político) para justificar-se como legítimo. O paradigma
da representação entre transcendência (ideia) e imanência (força) é transformado em outro
que, entretanto, realiza um curto-circuito entre céu e terra ao instaurar-se como relação entre
representante e representado. A instauração desse modelo de representação moderna
hobbesiano é, na verdade, a negação da mediação entre forma de direito e poder concreto,
pois a representação passa a ser meramente imanente. Daí o texto Römischer Katholizismus
de 1923, como visto, ser um das derradeiras defesas da representação ou do político como
mediação racional (forma de direito), tema que Schmitt já apostara desde Der Wert des
Staates, Die Diktatur e, sobretudo, em Politische Theologie de 1922. No texto de 1923,
Schmitt propõe a forma da mediação do catolicismo como parâmetro da forma político do
Estado moderno. Ao perder este vínculo da mediação racionalista, isto é, a referência à ideia
de direito como ordem do Estado de direito, a modernidade torna-se “autoreferencial” como
uma Selbstbehauptung sem a determinação de um bem e sua vinculação ao poder ou
finalidade externa. A solução do Naturrecht onhe Naturalismus ou o mecanismo da decisão
como decisão pela representação na Politische Theologie – demonstrando a função do político
como mediação – serviriam apenas para refazer o vínculo formal de uma metapolítica, ou
melhor, a relação autoritativa entre forma e poder. Desligados entre si, a mera força ou
quantidade permaneceria carente de legitimidade, por isso a tese da teologia política
schmittiana: uma exceção (decisão) que capta o excesso (ordem) e evita uma auto-
fundamentação como uma mera afirmação de quantidade de força ou ainda como um processo
imanente de realização da ideia. Deste ponto, uma confissão da crise final do Estado, Schmitt,
de fato, inicia sua crítica. Assim, se for correto afirmar que Schmitt vincula o político à
representação ou à mediação, a decisão à ideia ou forma de direito (ordem) em meados de
1920; logo em seguida, no final da década, já não é possível compreendê-lo através destas
teses, ou seja, o conceito do político não é mais analisado como mediação, mas como relação
concreta e antagonismo anterior à unidade ou ordem.
Neste momento, cabe demonstrar esta última manobra da finitude no período
weimariano: a dissolução da representação298. O político como o avesso ou o irrepresentável

298
Evidentemente, o tema da representação não deixa de ser tratado por Schmitt, porém o que estamos
destacando neste momento é o problema que este tema enfrenta no período do final da década de 1920 e,
304

na política é aquela ação que busca a desocultação das inimizades e conflitos, como uma
desautorização do soberano, das convenções e da unidade da ordem. Ao assumir, embora com
nostalgia, o fim da representação política por conta da despolitização e neutralização da forma
política como mediação (secularização), Schmitt reconhece da mesma forma uma ausência de
fundamento transcendente, um nada ou vazio no centro da política moderna e remete a ação
política às relações concretas que determinam o poder: “todos os conceitos, representações e
palavras políticas têm um sentido polêmico, visualizam um antagonismo concreto, estão
ligados a uma situação concreta (...) e transformam-se em abstrações vazias (...) quando esta
299
situação é esquecida” . A noção de ordem política e essência ou substâncias políticas têm
agora como referência o vazio originário, a impossibilidade de enquadramento normativo ou a
falta e a lacuna. A questão é que neste autor há uma transformação ou um contínuo apelo à
constituição da ordem, mesmo que seja assumidamente precária ou contingente contra a
decisão ou coação à ordem: ao invés da transposição institucional guiada por uma forma
representativa e, por conseguinte, legitimadora, o político não pretende preencher esta lacuna
ou vazio originário, pois seria cometer o mesmo erro da teologia política da qual se afasta.
Além disso, afasta-se ainda da simetria decisão-representação, teologia e secularização, além
de problematizar a relação entre imanência e transcendência ao elaborar uma espécie de
políticas da abertura (cf.3.3).
A secularização tem um papel importante nisso. Ao mesmo tempo que explica,
também expõe a diferença entre forma política e realidade contingente, pois a indeterminação
entre ação e racionalidade torna, em nossa leitura, o argumento do finitismo ou da validade in
re a solução mais coerente. Ora, este é o argumento para compreender a transição entre os
textos do início da República de Weimar e os do final da década de 1920. Como a decisão do
soberano enquanto decisão pela realização de um ideal e da ordem é, em parte, descartada no
final da década de 1920 pelo politische Existentialismus, a contingência da realidade, exposta
por esta mesma decisão, passa a ser considerada o locus da ação política, afastando-se do
teorema da secularização ou do caráter transcendente. O problema é retomado sob a forma da

sobretudo, as consequências que alguns de seus argumentos teriam produzido em relação ao enfraquecimento da
centralidade da representação na teoria política, como ressaltamos, mesmo que o jurista não tenha assumido tais
consequências.
299
BP, p. 31: “Erstens haben alle politischen Begriffe, Vorstellungen und Worte einen polemischen Sinn; sie
haben eine konkrete Gegensätzlichkeit im Auge, sind an eine konkrete Situation gebunden, deren letzte
Konsequenz eine (in Krieg oder Revolution sich äußernde) Freund-Feindgruppierung ist, und werden zu leeren
und gespenstischen Abstraktionen, wenn diese Situation entfällt. Worte wie Staat, Republik, Gesellschaft,
Klasse, ferner: Souveränität, Rechtsstaat, Absolutismus, Diktatur, Plan, neutraler oder totaler Staat usw. sind
unverständlich, wenn man nicht weiß, wer in concreto durch ein solches Wort getroffen, bekämpft, negiert und
widerlegt werden soll”.
305

desestatização do político, ou melhor, a compreensão de que a instituição é assumida como


um fenômeno posterior ao político. Se o argumento do finitismo recusa a relação entre
transcendência e ação política, então torna necessário demonstrar como a instância não
normativa, irracional, tecida por relações de conflito, precária e contingente conseguiria
determinar o corpo político sem apelar para uma meta-política ou fundamentação racional,
nem mesmo afirmar que esta nova relação seja agora o fundamento como uma simples
inversão. Schmitt não estaria propondo um “estado de natureza”, algo nos moldes de uma
realidade pré-política ou pré-estatal? No final, a questão é compreender a condição da ação
política a partir das afecções e, para isso, ele assume uma postura pragmática na qual sustenta
a tese de que a constituição do político é determinada como diferença e antagonismo
ininstitucionalizável. O desafio é como não reduzir a imanência da relação através do político
à mera funcionalidade ou faticidade nem recorrer a uma metafísica política. Isto problematiza
a questão entre racionalidade e político, isto é, a referência do político (ação) à razão e sobre a
necessária (legítima) manifestação do político a partir de uma estrutura ontológica anterior.
Pode-se dizer, mais uma vez, que ser é aparecer, isto é, o acontecer do político afasta a
disjunção entre o ser e aparecer e qualquer dualismo teológico ou gnóstico assume a ação no
contexto existencial de formas de vida e provoca a perda da autoridade ou soberania como
fundamento transcendente. A crítica contra as políticas das transcendências desempenha a
mesma função da crítica à metafísica, sobretudo, quanto à relação entre racionalidade e ação,
desconstruída através da compreensão da ação política na diferença como um entre ou
imanência e não como cisão de instâncias ou identidades essenciais: a pergunta sobre a
validade da ação, afinal, é metafísica.
O argumento do finitismo rejeita, portanto, a dialética tradicional entre ser e
aparecer, bem como o processo de secularização entre transcendência e imanência, pois não
se distingue da própria ação constitutiva: diferença e relação é sua medida. Esta ausência de
substância ou essência da ação torna o político indeterminado, inclusive, ao tratamento do
direito ou da ciência política. Compreendido como pluralidade, o argumento repara a
distinção entre ser e aparecer por outra: política e político. Este último é tido como um
movimento no qual ação e fundamento se confundem, pois ao tomar o político como
originário qualquer estrutura de poder deve pressupor o conflito, mesmo como instituição
política. Assim, torna-se interessante distinguir este movimento ou diferença política da mera
criação ou manutenção da ordem e compreendê-lo como a diferença em si mesmo, ou seja, ao
invés de perguntar-se sobre o papel de instância constituidora de um fundamento – seja o
306

político ou a política – pensar a diferença da relação entre político e política. Segundo


WOLLIN, comentando a este respeito,

No caso do existencialismo, a desvalorização de todos os valores tradicionais


significava que a existência humana, em sua factividade bruta, se tornou um valor
por si só - o único valor que permaneceu, por assim dizer. Tais idéias alimentaram a
natureza "não-normativa" do decisionismo, tanto nas suas variantes heideggerianas
quanto nas de Schmitt, onde a decisão deve ser feita ex nihilo - no total desrespeito
dos paradigmas de valores culturalmente dominantes, que meramente servem para
capturar a decisão autêntica mais uma vez nas regiões inferiores de inautenticidade.
(WOLLIN, 1990, p. 394, grifos do autor).
No que importa para nossa leitura, esta afirmação mostra a inversão que o argumento da
finitude opera na teoria schmittiana: ao invés da relação de adequação com a estrutura formal
da ordem de onde derivaria sua legitimidade, ele aposta em uma ordem fática mais originária,
sem vínculos transcendentes e explicita, enfim, seu pressuposto mais potente, o ato anterior à
ordem normativa, ou seja, no caso da obra do início da década de 1920, o estado de exceção.
Além da origem como um nada normativo, a ordem a ser criada depende de uma violência
originária que, mesmo sem autorização, ao ordenar a realidade cria o direito e escapa da
qualificação jurídica. Todavia, por pouco tempo.
Esta argumentação implicaria a aceitação precoce de um imanentismo se não
houvesse um complemento: a exceção pressupõe um excesso, referindo-se à outra tese
estrutural da Politische Theologie. Isto significa que a decisão se encontra ainda no contexto
de representação, pois Schmitt ainda não conseguira livrar-se da relação entre ação e
racionalidade, visto estar assente que apesar de mostrar a origem concreta da ordem, lança
mão da tese do político como mediação e recoloca a ação dentro do horizonte da teologia
política. Assume a ausência de direito no ato criador do direito, porém, a decisão não apenas
declara a exceção, mas também se constitui como jurídica ao justificar-se como criadora da
ordem (de direito). Assim, para justificar o decisionismo baseado numa ordem política não
normativa, o autor propõe a tese da secularização ao afirmar, em seu aspecto metodológico, a
contiguidade entre política e teologia. Isto significa que ele vincula a ação política à
racionalidade, afirmando que a medida do poder é determinada pela forma de direito, afinal,
sua racionalidade última, pois é o paradigma da ordem que se dá via representação que
impede a afirmação de uma ação imanente arbitrária. Se, por um lado, a ordem jurídica
pressupõe a decisão política como constituição (decisionismo); por outro lado, a decisão seria
uma mediação do teológico pelo político (teorema da secularização): daí a manutenção da
diferença entre transcendência e imanência que encerra a ação política no âmbito
institucional. Neste contexto, a decisão é passagem entre forma (ideia) e experiência
(contingência), “a representação da ideia ausente do direito em vista da criação da ordem”
307

(GALLI, 2010, p. 342), configurando ainda um realismo fraco ao adotar uma validade
externa ou ante rem do poder pelo dispositivo de representação.
No final da década de 1920, todavia, conforme a tese que desenvolvemos, Schmitt
elidiu a dimensão da transcendência e propôs uma alternativa imanentista (preferimos, o
termos monista, pois demonstra a co-extensividade entre imanência e transcendência) do
político, ela mesma pós-política e pós-estatal, mesmo que de maneira ambígua: a Veritas é
desautorizada, a secularização é, por fim, acabada, ou pelo menos rejeitada em sua capacidade
hermenêutica, como exemplarmente Esposito assevera:

ambos os termos – unidade e oposição – se tornam absolutos ao extremo de perder


(...) o significado conferido a eles pelo princípio bipolar, no sentido de que a unidade
tende a saturar a diferença metafísica em direção a um monismo completo, enquanto
a oposição, transferida ao nível de imanência tende, reciprocamente, a transformar a
diferenciação na antítese, também absoluta, amigo/inimigo (ESPOSITO, 1999, p.
56).
Durante o percurso, a tradicional transcendência se perdeu, assim como o conceito de
representação sofreu transformações até sua desconfiguração. O desinflacionamento da teoria
política de Schmitt ocorre na fase posterior, quando a questão da validade é considerada a
partir da afirmação do caráter do político não como mediação, mas sim como relação e
antagonismo. Em Der Begriff des Politischen, como consequência do finitismo, o político
irrompe o paradigma teológico, prescinde das justificações externas e alcança autonomia,
apesar de não se identificar completamente com a imanência: na tese que sustentamos, mesmo
ao preparar outro paradigma cuja validade é imanente à ação, Schmitt consegue elaborar uma
transcendência interna, que, no final das contas, provoca uma dissolução da diferença entre
transcendência e imanência. O que está em jogo é a autonomia do político e o fim (ou
enfraquecimento) da categoria da representação-mediação. Algo que pode ser descrito como
um political turn, rejeita a distinção metafísica entre ser e aparecer ao revelar a singularidade
do negativo incodificável e o papel do múltiplo na constituição do corpo político que passa a
ser considerado na fissura da diferença ontológica entre político e política.
O teorema da secularização, em geral, pode ser compreendido seja como problema
da relação entre religião e política, seja como filosofia da história. Neste contexto,
gostaríamos de ressaltar apenas um aspecto ou consequência do teorema da secularização. As
teses da querela podem ser delimitadas como a seguir: a primeira leitura do teorema da
secularização é descrita ou bem como uma transferência de conceitos teológicos para a esfera
temporal, isto é, passagem ou mundanização do sagrado para o profano na forma de conceitos
jurídico-políticos, ou bem como uma liquidação ou resolução e, por conseguinte,
emancipação da religião através do processo de desencantamento, isto é, da dominação
308

racional e técnica sobre a natureza. No primeiro caso, temos a tese da secularização-


transferência; no segundo, a tese da secularização-liquidação300. Em ambos, a teologia política
como relação entre bem e poder fornece uma chave para a compreensão da constituição do
mundo moderno. Se, por um lado, apesar do termo secularização ser empregado nos mais
diversos contextos, um sentido geral poderia ser proposto, qual seja, o de um processo de
emancipação da Modernidade diante de qualquer tutela religiosa ou transcendente, assumindo
a organização da vida como algo terreno; por outro lado, restaria dúvidas quanto à
emancipação completa da esfera do terreno diante da religião. Poderíamos afirmar que
ocorreu não uma secularização da esfera espiritual, mas uma espiritualização da esfera secular
e assim tornar problemática o próprio teorema da secularização proposto por Schmitt 301. Não
obstante as inúmeras leituras, gostaríamos de nos fixar nos textos e problemas de Schmitt,
bem com em alguns de seus antecedentes, assim como faremos abaixo302.
Em Hegel, o sentido inicial de Verweltlichung do cristianismo serve como conceito
para suturar a brecha aberta pela modernidade e oferecer uma concepção de natureza. A
secularização ofereceria um continuum histórico, considerando a modernidade como uma
realização do cristianismo e não simplesmente liquidação do cristianismo. Neste contexto,
Verweltlichung refere-se à realização (Aufhebung) da religião cristã e – diferentemente do
significado anti-cristão de expropriação do Säkulariesierung – a penetração do Geist no Welt.
A questão que se levantava era até que ponto a política não seria uma espécie de religião
secular? No decorrer do século XIX, Marx reelabora uma tradução laica da escatologia cristã
segundo a qual a Verweltlichung seria uma superação da filosofia abstrata e a abertura a uma
práxis política capaz de transformar a realidade. Para Löwith, elaborando o segundo teorema,
a moderna filosofia da história é uma “secularização” do princípio teológico da história da
salvação que passou a ser a finalidade terrena de seu sentido, ou seja, a matriz comum a esta
concepção é tomar o processo de mundanização ou secularização como uma realização
espiritual do reino de Deus sobre a terra, concedendo pleno sentido à distinção entre ser e
aparecer. Ainda segundo, Löwith, no idealismo alemão, os conceitos que denunciam esta
estratégia são os de “providência” e “escatologia”, justamente, transferidos à filosofia da

300
Sobre uma abrodagem histórica do tema, SCATTOLA, 2007 e MONOD, 2016. Para uma leitura que
distingue entre secularismo e secularização, cf. LÜBBE, 1965.
301
Recentemente, Agamben também engrossa esta fileira ao pensar a secularização como um dispositivo que
transfere e desloca os conceitos de uma esfera para outra sem os redefinir semanticamente. Assim, a
secularização seria, na verdade, uma “marca” ou “assinatura” que vincula o profano ao sagrado. No caso em
questão, Agamben analisa a assinatura teológica (seja como teologia política, seja como teologia econômica) da
secularização. Cf. AGAMBEN, 2007.
302
Sobre o tema, MARRAMAO, 1995; 1997; DUSO, 2007, LÜBBE, 1965, MONOD, 2016, SCATOLLA, 2007,
PEDRO, 2011.
309

história que figuram como problema central de qualquer abordagem sobre secularização: a
aceitação de uma transferência da providência e fé nos decretos da divindade implicaria até
que ponto a fé no progresso e em um Weltplan imanente? Se assim for, o milenarismo cristão
se transformaria em escatologia política e a tese segundo a qual a moderna noção de progresso
consiste em uma versão secularizada da escatologia judaico-cristã – ou seja, uma liquidação
da herança cristã, uma mundanização do cristianismo – ganharia uma realização imanente do
sentido da história303.
Em Schmitt, retornando ao nosso tema central, o caráter da secularização
intensificado na modernidade demonstra a relação entre transcendência e imanência. Ora, é
precisamente esta relação que gostaríamos de tratar, ou melhor, o que dela foi feito e qual sua
herança, por assim dizer. Inicialmente, é necessário lembrar que esta transferência entre
esferas funciona como uma passagem formal: o conteúdo teológico propriamente dito não é
importado para o âmbito secular. Em um trecho já bastante conhecido, Schmitt explicita a
chave do processo de secularização na modernidade, ou seja, o sentido das instituições
modernas se deve ao mecanismo de transferência, substituição ou analogia:

Todos os conceitos significativos da teoria do Estado moderna são conceitos


teológicos secularizados. Não somente de acordo com seu desenvolvimento
histórico, porque ele foi transferido da teologia para a teoria do Estado, à medida
que o Deus onipotente tornou-se o legislador onipotente, mas, também, na sua
estrutura sistemática, cujo conhecimento é necessário para uma análise sociológica
desses conceitos304.
É necessário localizar esta tese schmittiana no interior daquilo que ele denominava de
“sociologia dos conceitos” como sua metodologia crítica da modernidade. Neste contexto,
Schmitt elabora uma refinada análise da modernidade em Politische Romantik. Ao afirmar
que teria havido na modernidade duas transformações que podem se associar em um
interessante contra-movimento, o jurista analisa o impacto do pensamento de Galileu/Kant e
Descartes: a terra deixa de ser o centro do universo e, logo em seguida, o pensamento
ontológico sofre seu golpe com a passagem da realidade do mundo exterior para um fato
subjetivo interno. Esta situação epocal revela uma tensão ou dilema moderno: entre
pensamento e realidade, conceito e realidade, sujeito e objeto, espírito e natureza. Na
filosofia, porém, a velha ontologia desaba e o primado do sujeito mostra-se determinante,
porém, sob um custo, qual seja, o esvaziamento da realidade, a perda do mundo externo, uma

303
LÖWITH, 1983, p. 180 et seq.
304
PT, p. 43: “Alle prägnanten Begriffe der modernen Staatslehre sind säkularisierte theologische Begriffe.
Nicht nur ihrer historischen Entwicklung nach, weil sie aus der Theologie auf die Staatslehre übertragen wurden,
indem zum Beispiel der allmächtige Gott zum omnipotente Gesetzgeber wurde, sondern auch in ihrer
systematischen Struktur, deren Erkenntnis notwendig ist für eine soziologische Betrachtung dieser Begriffe”.
310

vez que a estrutura do mundo que antes era garantida sob o auspício de uma ordem
cosmológica encontra-se diante da ausência de fundamento, ou melhor, o fundamento
universal da physis é problematizado a partir do sujeito, ele mesmo considerado como origem
e artífice do mundo, por exemplo, na hipótese do contrato social: ao invés da ordem ser
garantida como algo natural ou divino (direito natural ou direito subjetivo) passa a ser
considerada como um produto do espírito humano, cultural portanto, delimitando uma
separação forte entre natureza e cultura. Por isso, a cisão ou gap insolúvel que Schmitt detecta
como constitutiva da época moderna, marcada por concepções imanentistas. A pergunta pelas
condições da realidade ou do mundo dão lugar à pergunta sobre o cogito ou, mais
precisamente, como Kant, à inteligibilidade do mundo empírico a partir do sujeito. A solução
transcendental de Kant é marcada ela mesma pelo finitismo da condição humana,
precisamente esta característica que apostamos que Schmitt assume não sem hesitações no
final da década de 1920. O finitismo em Kant revela que a essência da realidade empírica não
pode ser apreendida, a coisa em si, afinal, é incognoscível. Esta realidade abandonada,
irracional, inexplicável, provocada justamente pelo argumento central do pensamento
moderno, recebeu diversos tratamento e arranjos para sua sutura: praticamente toda filosofia
moderna é uma resposta à perda da realidade numa interminável recherche de la Realité. Esta
emancipação do sujeito moderno provocou o abismo entre natureza e cultura, eu e mundo,
cuja unidade não é mais dada de antemão: a realidade torna-se irracional, inexplicável,
contingente, uma vez que a dualidade se instala como método não apenas do conhecimento,
mas também da própria ação.
No campo da teoria política, alvo da crítica de Schmitt, a modernidade se caracteriza
como essa perda da realidade provocada, sobretudo, pela nova posição do sujeito: passa ao
centro da vida política e, tal como demiurgo, é considerado a origem da ordem. No entanto,
isso provoca um efeito indesejável: Deus é encarnado no indivíduo liberal, mas este é o
agente produtor-consumidor no mercado, em última instância, uma esfera empírica. Não
pretendemos analisar a tese de Schmitt, segundo a qual romantismo articula-se com
liberalismo e demonstra como o sujeito liberal evita a tomada de decisão política assim como
o sujeito romântico se evade da realidade para a esfera da fruição estética. A análise da
secularização, feita em breves termos aqui, tem a pretensão de esclarecer um ponto muito
preciso: a reflexão acerca da secularização vale como crítica ao romantismo/liberalismo pelo
motivo de que esta modernidade política experimenta a inquietante (e, para Schmitt,
particularmente, desesperadora) impossibilidade de conferir forma à realidade. Eis o ponto
chave ao qual queríamos chegar. Há um gap entre experiência e forma, autoridade e força,
311

direito e fato que não encontra solução em nenhuma instituição moderna. Ora, o que Schmitt
lamenta é o fato da ausência de fundamentação para o político, ou seja, a perda da
transcendência que implica “esvaziamento do mundo” e ausência da ordem. Em termos que
aproximam de nossa tese: a separação entre imanência e transcendência provoca, a rigor, a
impossibilidade da teoria política. A imanência como irracionalidade e violência não fornece
nenhum modelo ou forma política, está entregue à contingência ou impossibilidade de
princípio de constituição da ordem. Vimos no capítulo anterior como Schmitt trata deste
problema: de alguma forma, haveria uma mediação que instaura uma representação e
transforma potestas em auctoritas. Esta mediação seria o político, leia-se bem, o político
como mediação do teológico, ou seja, sem a autonomia que o caracterizará em textos do final
da década de 1920. A defesa mais radical deste argumento de representação, mais uma vez, é
exposta em Römischer Katholizismus, no qual haveria um vínculo entre forma e representação
capaz de resgatar a mera imanência de sua faticidade contingencial. Tanto a economia quanto
a técnica seriam incapazes de fornecer uma representação política e, por conseguinte,
conceder forma à ordem, pois o econômico e o técnico apelam a uma presença real das coisas.
A modernidade secularizada revelou a impossibilidade de fundamento para a ordem quer da
esfera do conhecimento, quer da esfera da política e esta situação epocal revela o finitismo
como condição humana. Neste contexto, porém, qual a solução que propõe Schmitt, o último
defensor da ordem e do Jus Publicum Europaeum? A mediação é considerada a partir da
imanência, através da decisão, mas a forma jurídica advém do modelo representativo da Igreja
Católica, da decisão pela ordem, da mesma forma que lida com a ausência de Cristo, o Papa
sendo seu substituto, daria a tentativa de ordenação da realidade a partir de um princípio
transcendente. Esta seria durante boa parte do pensamento weimariano de Schmitt a solução
ao gap que a modernidade impôs ao mundo: ao elaborar a dialética entre excesso e exceção,
articulando teologia e política, Schmitt desdobra o conceito de secularização e consegue fazer
com que a própria secularização seja ao mesmo tempo o problema (evidenciou a contingência
da realidade cindida) e a solução (a decisão tal como a mediação na Igreja Romana articula
forma e experiência e constitui a ordem e a unidade). A partir daí, mesmo aceitando tal
arranjo, a fundamentação da ordem política consagra a perda da transcendência da realidade e
implica o espectro insistente do “esvaziamento do mundo” que se torna incapaz de rejeitar a
ilusão de auto-fundamentação, mesmo que sub-repticiamente abandone a necessidade de um
governo seja pelas leis econômicas, seja pelas leis técnicas, em todo caso por alguma
instância imanente:
312

Em grande medida, o lugar de Deus para o homem moderno foi ocupado por outros
fatores, por certo mundanos, como a humanidade, a nação, o indivíduo (...) A
postura não deixa de ser metafísica por isso. O pensamento e o sentimento de cada
homem contêm sempre um determinado caráter metafísico (...). A isso chamo de
secularização305.
A argumentação schmittiana percebe a ausência de fundamento da modernidade e sua
estratégia finitista, mas engrossa as fileiras daqueles que rejeitam o imanentismo cego que
beira o irracionalismo, mesmo que sofrendo precisamente esta acusação, como vimos, durante
a década de 1920. Apesar disso, ele rejeita as tentativas de mediação da modernidade, a ideia
de humanidade é considerada por ele como abstrata, assim como o liberalismo que pretende
governar através de leis imanentes, em todo caso, a ruptura já fora iniciada:

A realidade mais alta e mais segura da antiga metafísica, o Deus transcendente, foi
eliminada. Mais importante que a disputa dos filósofos foi a pergunta acerca de
quem assumia suas funções como realidade mais alta e mais segura e, desse modo,
como instância última de legitimação da realidade histórica. Apareceram duas novas
realidades seculares que impuseram uma nova ontologia, sem esperar a finalização
da discussão epistemológica: a humanidade e a história. Completamente irracionais,
se são consideradas com a lógica da filosofia racionalista do século XVIII, mas
objetivas e evidentes em sua validade supra-individual, dominam in realitate o
pensamento da humanidade como os dois novos demiurgos 306.
Assim como a secularização expôs a diferença entre imanência e transcendência, a
indeterminação entre contingência (da ação) e racionalidade mobiliza o argumento do
finitismo, qual seja, a questão da validade in re e permite considerar o monismo como um
forte candidato à solução do problema colocado no início da pesquisa. Ora, a proposta desta
tese – e grande parte da coerência da tese depende da correta colocação deste argumento – é
que Schmitt assume a narrativa moderna da imanência ao elaborar uma releitura, certamente
ambígua e hesitante, do seu conceito do político: ao compreendê-lo não mais como mediação
do teológico, mas como relação e antagonismo, o jurista não faz outra coisa que arriscar uma
tese imanentista e rompe de vez a diferença entre transcendência e imanência que, até a última
hora, e até mesmo depois, tentou salvar. Eis o argumento para compreender a transição entre
os textos do início da República de Weimar e os textos do final da década de 1920. Como a
decisão do soberano enquanto decisão pela realização de uma forma abstrata é descartada no

305
PR, 18: “Für den modernen Menschen sind weithin an die Stelle Gottes andere, und zwar irdische Faktoren
getreten: die Menschheit, die Nation, das Individuum, die geschichtliche Entwicklung oder auch das Leben als
Leben seiner selbst wegen, in seiner ganzen Geistlosigkeit und bloßen Bewegung. Das Denken und Empfinden
jedes Menschen behält immer einen bestimmten metaphysischen Charakter (...) Das nennen ich
Säkularisierung“.
306
PR, p. 68: “Die höchste und sicherste Realität der alten Metaphysik, der transzendente Gott, war beseitigt.
Wichtiger als der Streit der Philosophen war die Frage, wer seine Funktionen als höchste und sicherste Realität
und damit als letzter Legitimationspunkt in der historischen Wirklichkeit übernahm. Zwei neue diesseitige
Realitäten traten auf und setzen eine neue Ontologie durch, ohne auf die Beendigung der erkenntnistheoretischen
Diskussion zu warten: die Menschenheit und die Geschicht. Völlig irrational, wenn man sie mit der Logik der
rationalistischen Philosophie des 18. Jahrhunderts betrachtet, aber objektiv und evident in ihrer überindividuellen
Geltung, beherrschten sie in realitate das Denken der Menschheit als die beiden neuen Demiurgen”.
313

final da década de 1920 pelo politische Existentialismus, a contingência da realidade, exposta


por esta mesma decisão, passa a ser considerada o locus da ação política afastando-se do
teorema da secularização. O problema é retomado sob a forma da desestatalização do político,
ou melhor, a compreensão de que a instituição é assumida como um fenômeno posterior ao
político numa rejeição da identidade entre político e Estado. Se o argumento do finitismo
recusa a relação entre transcendência e ação, então se torna necessário demonstrar como a
instância não normativa, irracional, tecida por relações de conflito, precária e contingente
conseguiria determinar o corpo político sem apelar a uma meta-política ou fundamentação
tradicional. Nesta segunda parte, propomos uma leitura finitista: o político como diferença e
antagonismo ininstitucionalizável, como a stasis ineliminável, numa palavra, como a
imanência da relação que, numa releitura de Der Begriff des Politischen, não é mais
delimitado pelo Estado.
A questão que se pode explicitar não é acerca da legitimidade ou do critério para a
unidade política, mas sim, de outra forma: é possível ação política sem critérios racionais?
Ora, a teoria do político é um sintoma da crise da estatalidade e da ausência de fundamento
ou, como propomos, um deslocamento da questão do sujeito (da decisão) para a relação como
diferença, ressaltando a constituição do corpo político através de afecções e não instâncias
transcendentes. A ação política é singular, dá-se na negatividade e daí assume uma
característica desestabilizadora, mesmo que inexplorada por Schmitt. Ao compreender os
dualismos e cisões schmittianas num grau crescente de concretude e contingência, percebe-se
que aquilo que possibilita a ação política não é alheio à própria ação. Segundo Flickinger,

em e através do agir político, não submisso à determinação prévia de normas


racionalmente fundadas dentro da ordem estabelecida (...) o ponto crucial da
argumentação schmittiana é precisamente apontar à impossibilidade de encontrar um
último fundamento de legitimação dentro da racionalidade política moderna (...) o
fascínio maior da teoria schmittiana consiste na descoberta de um abismo, ou seja,
de um momento constitutivo do político, sem que este seja deduzível por
argumentos inerentes à própria razão política (FLICKINGER, 1992, p. 18; p. 25).
Este abismo revela-se como aquilo que é irrepresentável, incodificável e denomina-se aqui
como o político (das Politische) em contradição com a política (die Politik): enquanto este se
refere ao poder institucionalizado, aquele é marcado pelo conflito. O político não se esgota no
Estado, embora este tenha sido na modernidade seu status ou modo de aparecer hegemônico,
por isso o curto-circuito entre ser e aparecer que a teoria schmittiana provoca. Ao afirmar que
“o conceito do Estado pressupõe o conceito do político” (BP, p. 20)307, o autor expressa esta
anterioridade e autonomia do político que não se refere à representação ou mediação da forma

307
BP, p. 20: “Der Begriff des Staates setz den Begriff des Politischen voraus”.
314

de direito308. Assim, não se trata de uma definição de essência, mas “um estado (Zustand) que
fornece a medida em caso de decisão” (BP, p. 20)309, porém esta decisão se refere à medida
do status, da relação e do sentido concreto e existencial e não mais da medida transcendente
da ideia de direito: a questão não é se normas devem ou não valer, mas se a unidade política
existe ou não existe.
Se a questão tradicional da metafísica “por que o ser e não o nada?” pressupõe a
dialética metafísica do ser e aparecer e a lógica da reductio ad unum, bem como a diferença
ontológica entre ser e ente; então a questão clássica em filosofia política “por que ordem e não
o caos?”, da mesma forma, pressupõe a dialética da representação entre transcendência e
imanência implicada pela teologia política que preserva a relação entre racionalidade e ação,
bem como a diferença ontológica entre político e política. A teoria do político como finitude,
todavia, se desembaraça da metafísica política e recoloca a questão do sentido da ação,
tomando a diferença enquanto diferença e não como mera diferença entre instâncias (cf. 3.3).
Pode-se dizer que ser é aparecer, isto é, o acontecer do político afasta a disjunção entre o ser e
aparecer ou qualquer bipolaridade, além de assumir a ação no contexto existencial de formas
de vida e provocar a perda da autoridade ou soberania como fundamento transcendente. A
crítica às políticas da transcendência desempenha a mesma função da crítica à metafísica,
sobretudo, quanto à relação entre racionalidade e ação, desconstruída através da compreensão
da ação política enquanto diferença na imanência e não como cisão de instâncias: a pergunta
sobre a validade da ação, afinal, é metafísica e não se põe mais. O argumento da finitude
implica, portanto, na imanentização do político e, sobretudo, a alegada ausência de substância
ou essência provoca uma indeterminação na categoria do político. Dessa forma, o argumento
do político rejeita o processo de secularização, pois não se distingue da própria ação
constitutiva, uma vez que diferença e relação é sua medida.
O argumento da finitude remete a teoria para a imanência; desta, para a relação e
diferença; daí então, até restar a configuração do político como antagonismo. Assim, quando
se tem em vista a contradição que atravessa a política – o direito, a autoridade, o Estado –
mostra-se sua origem esquecida e inconfessável: o conflito. Todavia, quando se tem em vista
a possibilidade de constituição da ordem, há o reenvio para aquilo que poderia estabilizá-la,
mas que se encontra como um vazio ou ausência. Por este motivo, diz-se que a pós-política
308
Schmitt realiza uma provocativa inversão na tradição jurídico-política alemã que sustentava, conforme Georg
Jellinek em 1914, que “‚Politisch‘ heißt ‚staatlich‘; im Begriff des Politischen hat man bereits den Begriff des
Staates gedacht” (JELLINEK, 1929, p. 180). Apesar da abertura para uma política não estatal e a dissolução dos
conceitos de representação e soberania, Schmitt ainda hesita em uma circularidade ou ambiguidade entre Estado
e político, sobre isso, cf. SCHÖMBERG, 2003.
309
BP, p. 20: “und zwar der im entscheidenden Fall maßgebende Zustand”.
315

teria que considerar a experiência a partir da ausência, visto que impossível remeter à
fundamentação da maneira tradicional. Além disso, por apresentar-se como relação (neste vai-
e-vem não mais entre amigos e inimigos, mas sim entre política e político) e não como
substância, o político expressa sua ilimitabilidade e ubiquidade: ao alcançar o Intensitätsgrad
do conflito, qualquer relação social torna-se relação política, pois “como o político não tem
substância própria, o ponto do político pode ser atingido por qualquer domínio, e todo grupo
social”310. Isto, no entanto, provoca uma desestabilização no modo de conceber as relações.
Além disso, torna o político perigoso: recusa qualquer apelo à transcendência e passa a
ocorrer por contágio da relação. Visto estar assente a ausência da organização hierárquica, o
poder se constitui em relações de forças que, ao ponto extremo de intensidade, se transfigura
em poder político, isto é, polêmico e, principalmente, hegemônico. O caráter viral e
desestabilizador da relação no tecido social produz a forma imanente da ordem e,
precisamente neste ponto, é inaceitável pela teoria tradicional da política (inclusive, pelo
próprio Schmitt), por isso a imunização ou ordenação normativa, isto é, a representação
política contra o risco do político.
Além da diferença entre político e política, a ação é orientada pelo afecções ou
pathos do polêmico, tem em vista a pergunta pela diferença do político enquanto originária
ontológica (seinsmäßige Ursprünglichkeit) e não a pergunta por uma instância universal
(norma) ou particular (decisão). No entanto, nossa proposta da diferença ontológica entre
político e política, insere Schmitt em outro grupo de autores: ao invés de pensá-lo como um
teórico da política institucional, por exemplo, numa concepção jurídico-política de Estado e
da ordem, é possível interpretá-lo como o autor que inaugura a diferença política e pensa o
político não apenas como relação co-instituinte, mas também como uma abertura constante,
pois relação “incomensurável”, isto é, não institucionalizável e, por isso, portador de uma
validade in re ao pensar o singular do múltiplo311. Ele leva adiante sua lógica imanente ao

310
“Staatsethik und pluralistischer Staat”, In: PuB, pp. 159-160: “Weil das Politische keine eigene Substanz hat,
kann der Punkt des Politischen von jedem Gebiet aus gewonnen werden, und jede soziale Gruppe”.
311
Oliver Marchart desenvolve o tema da diferença ontológica como diferença política ao elaborar um paralelo
entre ontisch-ontologische Differenz e politik-politisch Differenz e sustenta a distinção conceitual entre político e
política desde Schmitt até o Linksheideggerianismus de Jean-Luc Nancy. Embora o autor reconheça a
originalidade da distinção em Schmitt, argumenta que o jurista não teria percebido a diferença entre os níveis
como diferença e, por isso, teria se fixado no papel de uma instância constituidora de fundamento ou “in der
Suche nach dem Sein des Seienden (die Substanz, die Subjekt)”. A Grundfragen não seria sobre o “ontologische
Sein” ou sobre o “ontisch Seiende”, mas sim “auf die Differenz zwischen beiden als Differenz” (MARCHART,
2010, p. 147), pois ao se tratar de outra forma a diferença, dá-se um “Ent-Zug des Grund”. Todavia, o autor
apenas repete o gesto já tradicional de rejeitar a obra schmittiana. Ele desconsidera que Schmitt não toma “keine
partikulare Domäne oder Spezies des ontisch Seiende” (MARCHART, 2010, p. 150), mas o contrário: em Der
Begriff des Politischen, Schmitt sustenta a diferença e relação, e não cada polo, como aquilo que determina o
político.
316

afirmar que “permanece constitutivo para o conceito do político (...) um antagonismo e


contraposição”312. A diferença entre político e política tem em vista, precisamente, esta
relação e diferença como antagonismo. No lugar da lógica da representação, é estabelecida a
lógica da imanência que impede a formação de uma totalidade ou significado transcendente,
ou melhor, podemos afirmar que o transcendente é uma constituição social ao invés de mera
abstração. Ao assumir o político como relação e imanência, percebemos a lei e a ordem
atravessada por afecções do corpo social, dentre as quais, a contradição e violência. Estes
termos podem ser interpretados em Schmitt como o elemento incodifícável e irrepresentável
que, apesar das tentativas de dissolução no Estado como moldura normativa, permanece como
contingente, pois não sutura os conflitos que o constituem. Por isso, propomos também que
esta característica do político demonstra o caráter da abertura como a diferença enquanto
diferença e sua radical contingência. Diante disso, apesar do apelo à ordem, as teses de
Schmitt desencadeiam seu oposto. Neste contexto, as categorias servem como ficção na
manutenção do poder, mas assumidas como ficção não podem desempenhar a pretensão
universalista: funcionam como narrativas hegemônicas provisórias. O finitismo transforma-se
aqui em imanência e traz a Grundlosigkeit ao descontruir a concepção de um Estado como
mediador do universal, pois apenas uma consequência do político. A tradição política oblitera
o sentido do político – por conseguinte, da dialética negativa entre política e político e a noção
de abertura que instaura a contingência como uma espécie de origem aporética da ordem – ao
pensar a política enquanto instituição, justiça, igualdade ou liberdade, esquecendo sua
condição política não-metafísica, qual seja, a diferença/abertura e o antagonismo, numa
palavra, a dimensão do ser-com ou, de maneira geral, das afecções. Nesta leitura, não está em
jogo a busca de fundamento a partir do qual a ação pode ser válida, mas sim a exposição do
antagonismo como constitutivo do corpo político, por isso originalmente fragmentado, onde a
pergunta “há justificação racional para a ação política?” não tem mais sentido. É desta
perspectiva que recolocamos a pergunta acerca do político como um avesso do próprio
Schmitt, ou melhor, como um argumento não levado às últimas consequências. Ao afirmar
que “todas as representações, palavras e conceitos políticos possuem um sentido polêmico”
(BP, p. 31)313, há referência à imanência dos antagonismos como determinantes da ação e a
tentativa de pensar outro começo. A questão é que este começo, ultrapassamento da forma

312
BP, p. 30: “Doch bleibt auch hier stets ein – durch die Existenz der alle Gegensätze umfassenden politischen
Einheit des Staates allerdings relativierter – Gegensatz und Antagonismus innerhalb des Staates für den Begriff
des Politischen konstitutiv”.
313
BP, p. 31: "haben alle politischen Begriffe, Vorstellungen und Worte einen polemischen Sinn".
317

política moderna ou devir-outro da política que interpretamos em Schmitt se refere à finitude


ou, conforme Ojakangas, à própria noção de concreto, visto que o jurista:

ocorre dentro da imanência. De fato, o concreto é precisamente algo que meramente


ocorre. É um evento (Ereignis) - e, mais precisamente, é um evento que pertuba o
universo de sistemas auto-fechados absolutamente racionais. Ele introduz uma
ruptura - um vazio - no fechamento da ordem imanente para si. É nessa perspectiva
que devemos entender a definição de Schmitt sobre o conceito de política (…)
Segundo ele, isso significa uma abertura de ordem para a transcendência
(OJAKANGAS, 2005, p. 29).
Esta transcendência não se refere a um fundamento ou substância, pois, como
propomos, transcendência passa a significar contingência, ou melhor, a experiência da
ausência de fundamento no movimento infinito da finitude entre político e política. Este
ultrapassamento do Estado apostaria na ausência normativa, na contingência e antagonismo
das relações, isto é, na autonomia do político314. Sem forma e ideia a priori, a decisão é
meramente declaratória e não constitutiva do político uma vez que não se refere à
representação da ideia na realidade concreta, mas sim na existência da diferença do
antagonismo, no qual não há vontade racional, normas ou subjetividade, mas relações e
afetos, sendo o mais intenso – o antagonismo – determinante do corpo político, ou seja, o
evento do antagonismo permanece fora dos esquemas racionalistas: seja a decisão soberana,
seja a “apropriação original de terra” ou a relação enquanto conflito, a imanência está sempre
além ou aquém da racionalidade. Em outras palavras, há um gap ou diferença entre
constituição irracional e ordem institucional e, precisamente, esta diferença é o objeto do
avesso que gostaríamos de tratar. Assim, não há norma ou medida prévia e originária tal como
um fundamento da ação política.
O que interessa nesta interpretação é perceber que o argumento finitista em Schmitt
se refere à relação mais intensa, qual seja, ao antagonismo imanente que põe em questão a
constituição do corpo social: não há uma Selbstbehauptung ou uma mera inversão do
liberalismo, mas uma tese que sustenta o antagonismo do político como o quantum de força
que encontra aqui e acolá uma forma predominante, hegemônica ao compor o corpo
político315. Este é modo principal da ação política que não pressupõe normatividades ou de-

314
Benjamin Arditi traz a mesma compreensão ao afirmar sobre Schmitt: “He is advancing a claim that in a way
mirrors the ontological difference in Heidegger and brings to mind Claude Lefort’s claim that we should not
confuse the political with its historical modes of appearance (…) the political in Schmitt will always be
excessive vis-à-vis its concrete manifestations” (ARDITI, 2008, p. 13-14).
315
Deleuze afirma algo similar em relação ao pensamento de Foucault: “Certamente, nada a ver com uma ideia
transcedente, nem com uma superestrutura ideológica; nada a ver tampouco com uma infra-estrutura econômica,
já qualificada em sua substância e definida em sua forma e utilização. Mas não deixa de ser verdade que o
diagrama age de acordo como uma causa imanente não-unificadora, estendendo-se por todo o campo social: a
máquina abstrata é como a causa dos agenciamentos concretos que efetuam suas relações; e essas relações de
318

cisões metafísicas: Schmitt não apostaria em um fundamento ou vontade soberana, pois


qualquer instituição deve levar em conta este fato bruto do conflito ineliminável. Ele tem em
vista uma politische Unterscheidung e não uma politische Entscheidung, uma vez que a ação
na contingência revela esta diferença como antagonismo e a partir disso o político passa a ser
marcado pela compreensão da imanência como a perda do ideal da representação. Ao invés da
unidade ou da ordem, depara-se com a multiplicidade e uma tessitura de contradições e
pluralidades do corpo político. Esta reinterpretação nos parece mais interessante, embora
heterodoxa: a imanência da relação, na estrutura dos afetos, considera o político como conflito
e ausência, onde, afinal, é impossível a distinção entre forma e experiência. Nesta relação, a
cada instauração de ordem, o político se retira como se fosse mais originário do que a forma,
pois não pode ser sequestrado ou localizado além ou aquém, mas sempre como relação que,
paradoxalmente, é lembrada não dentro como um fundamento, mas a partir do outro como
conflito e perda, tal como Schmitt afirma, certamente com outras intenções, “o inimigo é a
nossa própria pergunta enquanto forma e ele arrasta-nos, e nós a ele, para o mesmo fim”316.
Entretanto, o político também não poder ser considerado o mais originário, uma vez que se
algo pode assumir este posto seria mesmo a própria noção de ausência constitutiva, o político
mesmo caracterizado por ela na figura do outro como finitude radical, ou seja, negatividade.
O jurista inseriu no princípio da ordem algo muito perigoso, o excesso do político, porém,
apesar disso, ele não assume por inteiro algumas destas consequências e o político guarda
uma tensão entre desagregador e ordenativo não desenvolvida por ele. O que as estratégias da
finitude permitem, finalmente, é elaborar algumas críticas às políticas da transcendência e
liberar a ação de modelos formalistas, inclusive contra o próprio Schmitt.

3.2 O ultrapassamento do pensamento político moderno: uma releitura da


distinção entre die Politik e das Politischen

O problema da pesquisa e a hipótese levantada permitiram interpretar a obra


schmittiana por meio do fio condutor do argumento da finitude. Entretanto, parece que
Schmitt deixa sem desenvolvimento uma série de intuições importantes que poderiam servir
como motivos para um ultrapassamento da teoria política moderna. Esta tese arrisca um passo

força passam, não por cima, mas pelo próprio tecido dos agenciamentos que produzem” (DELEUZE, 2005, p.
46, grifo nosso).
316
Gl, p. 213: "Der Feind ist unsere eigne Fragen als Gestalt. Und er wird uns, wir ihn zum selben Ende hetzen".
319

preliminar em regiões que seguem ainda muito escuras. Pretendemos avançar nessas
categorias e argumentos e esboçar uma teoria que se configure como um imanentismo ou
monismo político, ou seja, que consiga pensar a ruptura da simetria entre imanência e
transcendência, mas também que trate a noção de abertura e as categorias de contingência e
antagonismo. Para além dessas perspectivas, mais prospectivas do que exegéticas,
pretendemos tornar viável uma ontologia, tomando como parti pris a tese de que política se
refere a afetos e não a normas e de que a totalidade da realidade pode ser considerada sob a
inscrição do antagonismo como relação básica do próprio corpo social, um elemento comum
através do qual se dão as ações e vontades, inclusive as normas. A pergunta mais relevante
que poderia ser encaminhada neste ponto é a seguinte: a filosofia política seria, portanto,
meramente descritiva ao invés de estabelecer normas ou critérios a priori e procedimentos
racionais como horizonte de ação para alcançar a justiça ou a liberdade? A resposta, como se
verá, exige uma reconsideração da distinção entre normativo e descritivo, validade e
faticidade e outras dicotomias que, no geral, em outro campos da reflexão filosófica já
exercem um papel bastante debilitado, por exemplo, analítico e sintético, a priori e a
posteriori, natureza e cultura, sujeito e objeto, etc. Trata-se, portanto, de perguntar por que
razão a filosofia política continua operando com categorias já consideradas gastas, além de
tentar outro tipo de pensamento político317.
Segundo Arditi (2005, p. 227), seguindo de perto Schmitt, a época moderna seria
uma postura secular diante do perigo da ausência de um fundamento último de sentido do
mundo, assim “a genealogia política da modernidade começa com a delimitação de um
âmbito secular da decisão política separado da esfera religiosa”. Evidentemente, o autor se
refere à Hobbes e à instauração do âmbito institucional de modo estritamente político,
rejeitando-se a ordem natural ou teológica. Assim, ao mesmo tempo em que é revelada, a
contingência da ordem sofre uma tentativa de controle: apenas o soberano é sujeito político e
caso o conflito surja no corpo social sob a proteção do Estado, deve ser considerado um
assunto de polícia e não de política. De modo aforístico, Schmitt descreve este princípio da
modernidade política: o “protego ergo obligo é o cogito ergo sum do Estado”318. No entanto,

317
Sobre a diferença entre Politik e Politischen, Marchat argumenta que o resultado da “politische Differenz, und
als solche werde ich die Differenz zwischen Politik und dem Politischen im Weiteren bezeichnen, aus einer
Sackgasse, in die konventionelle politische Theorien und Sozialtheorien geraten waren. Nicht nur die
konzeptuellen Innovation des Politischen, sondern die eigentlich Differenz oder Spaltung, die auf diese Weise
dem konventionellen Begriff von Politik beigebracht wurde, scheint mir auf die Krise des fundamentalistischen
Horizonts der Sozialwissenschaften hinzuweisen (...) Was in den Bruchstellen dieses fundamentalistischen
Horizonts sichtbar wurde, war ein postfundamentalistisches Denken, durch welches zu erfahren möglich wurde,
was Lefort die ‘Auflösung der Zeichen der Sicherheit’ nennt” (MARCHAT, 2010, p. 144-145).
318
BP, p. 53: “Das protego ergo obligo ist das cogito ergo sum des Staates”.
320

ele mesmo percebe a permanência da questão do político e sutilmente considera que até
mesmo a negação política do político pode ser considerada como uma inconfessável
declaração de que a dupla inscrição da ação política não se deixa facilmente controlar319. A
experiência impredicável da contingência, no caso, a relação de conflito, demonstra seu
aspecto de ininstitucionalização. Ainda, conforme Arditi (2005, p. 228), “os distúrbios são
vestígios do político que permanecem alojados dentro do Estado, por isso a permanência do
político termina sendo reconhecida de maneira indireta pela mera necessidade de contar com
uma polícia dentro do Estado civil”. Dessa maneira, a ordem estatal da política se constitui
apenas como um modelo hegemônico que não esgota nem anula a realidade conflitiva do
político. Haveria, porém, migrações do fenômeno do político: no caso em questão, do Estado
absolutista ao Estado liberal, que teria como consequência expansões da fronteira política, a
partir do qual se poderia afirmar hoje, após deslocamentos da mesma natureza, um pós-
liberalismo320. Entretanto, esta relação significa apenas que “o subsistema da política passa a
hegemonizar o político e que, não obstante, o político transcende os confins do subsistema da
política” (ARDITI, 2005, p. 231). Assim, parece-nos que aquilo que a tradição grega apontava
como a stasis321 prossegue como o ponto central do problema da ordem. Neste momento,
precisamente, lançamos a tese da abertura: a ordem não é composta por uma das partes nem
de ambas, mas do espaço vazio ou em disputa permanente entre o político e a política, qual
seja, a fronteira do conflito, o avesso da política. Arditi continua: “o esforço por pensar esse
excesso é talvez o grande aporte de Schmitt, cujo conceito do político permite teorizar a
política mais além do subsistema político. Este excedente se ampliou nas últimas décadas
através da disseminação dos meios e dos lugares de intervenção política” (ARDITI, 2005, p.
231). Ora, se desde Platão – com a necessidade de apaziguar por meio da racionalidade a
tendência ao conflito da alma ou dos desejos (República, 572a-572b; 577d) – até Hobbes –
319
Exemplo disso é a compreensão de que a guerra seria apenas entre Estado e que uma guerra civil não seria,
propriamente dito, uma ocorrência do político. Ora, ao pensar dessa forma, o autor impõe um limite arbitrário ao
conceito do político. Posteriormente, na teoria do Partisan, Schmitt demonstra outra leitura sobre a guerra sem
considerar o Estado ou a ordem como lugar privilegiado da manifestação do político.
320
Cf. ARDITI, 2005, p. 219-248.
321
Conforme Nicole LOURAUX (1987, p. 103), o elemento do conflito é originário na cultura grega, assim “o
conflito na forma reprimida do agôn, constitui já o centro da pólis”. O mal-estar que se verifica ao tratar de
conflito, violência em relação aos fenômenos sociais não é percebido senão como uma incompreensão
humanística sobre o tema, uma vez que a guerra civil é constitutiva da pólis: “sous l'excommunication de la
stasis, la certitude que la guerre civile est connaturale à la cité, voire fondatrice du politique en tant qu'il est
précisément commun. Mais tel est l'oubli de ce politique indissociablement conflictuel et commun qu'il faut” (p.
103-104). Sobre a stasis como paradigma do governo moderno, Giorgio AGAMBEN, 2015. Hasso HOFMANN
(2002, p. XXXVIII) comenta sobre a staseologia em Schmitt como uma teoria da revolta que o jurista assume
em detrimento da leitura teológica-política: “Hat Schmitt nicht selbst die Idee des souveränen Vater-Staates
preigegeben? Vertritt er nicht selbst eine staseologische Position des eschatologisch notwendigen christologisch-
politischen Konflikts im trinitarischen Übergang vom Reich des Vaters auf das Reich des Sohnes”. Na literatura
alemã, as importantes pesquisas de Chrsitian MEIER, 1990, p. 13-25.
321

que, com outros mecanismos, tenta ordenar o corpo social contra o conflito sempre presente –,
a pergunta típica da filosofia política é acerca da estabilização da ordem, constituição da
unidade e validade racional, além claro, da neutralização dos afetos. Gostaríamos, agora, de
pensar o inverso desta pergunta: como pensar o poder em termos de abertura ao invés de
estabilização e unidade, em termos de relação e afeto ao invés de normas?
O ponto de partida, portanto, para este ultrapassamento da semântica política
moderna, em nosso ponto de vista, é a proposta do político como relação, a constituição do
corpo social a partir do afeto mais intenso, o antagonismo, e a contraposição à estabilização
puramente imanente da ordem. No Der Begriff des Politischen, Schmitt assume esta tese da
diferença baseada no afeto da contradição como medida para o político: “a oposição política é
a oposição mais intensa e mais extrema e qualquer situação de oposição concreta é tão mais
política quanto mais se aproxima do ponto extremo que é o agrupamento entre amigos e
inimigos” (BP, p. 30)322. Neste momento, ele tem em vista a transformação do volume da
oposição existencial em relação política. A categoria do político como o antagonismo é
interpretada como diferença e não como um simples critério amigo-inimigo, ou melhor, como
uma espécie de achatamento da bipolaridade entre transcendência e imanência. O critério do
político como o grau de intensidade do polémos refere-se ao antagonismo anterior às cisões e
instituições, inclusive às identidades de amigo e inimigo, pois o pólemos é compreendido
como multiplicidade e de formas de vida, portanto, de maneira imanente. Afinal, provoca-se
um curto-circuito no parti pris político moderno que pergunta pelo princípio normativo ou
fonte de autoridade da ação política. Estas oposições fáticas constituem a totalidade das
relações e não deixam espaço algum para distinções como anterior e exterior, normas de
direito e normas de realização de direito, exceção e norma, decisão e ordem ou legalidade e
legitimidade porque, como já exposto, qualquer transcendência é da imanência, ou seja,
derivada dos lances e das ações concretas e, dessa maneira, a ausência da condição política
aponta para a contingência estrutural. Este antagonismo refere-se à relação: em um primeiro
nível, o político abandona a diferença ôntica (amigo e inimigo) para trazer consigo algo mais
radical, qual seja, expressa esta diferença enquanto relação. No entanto, ainda não é esta a
configuração final da estrutura política: o modo de relação ou de ser-com baseado nos afetos
(antagonismo, sobretudo) mantém-se em diferença com o modo das tentativas de sequestro ou
de estabilização via ordem (da política) e, a partir daí, nem renunciamos ao conflito, nem à

322
BP, p. 30: "Der politische Gegensatz ist der intensivste und äußerste Gegensatz und jede konkrete
Gegensätzlichkeit ist um so politischer, je mehr sie sich dem äußersten Punkte, der Freund- Feindgruppierung,
nähert".
322

ordem, ao invés, sustentamos que a abertura enquanto tal, ou seja, a diferença entre conflito e
ordem: isso é o que podemos considerar a experiência co-instituinte e afetiva do corpo
político.
O quadro geral é, naturalmente, a postura antiliberal schmittiana323. No contexto da
disputa das interpretações acerca da República de Weimar, a crítica à despolitização e
neutralização liberais desencadeou a reação do jurista durante toda sua obra. Entre outros
argumentos, ele ataca a tradicional distinção entre político e Estado e, por conseguinte,
desautoriza a leitura liberal, econômica e tecnicista da determinação da ação política
totalmente secularizada324, bem como a leitura da modernidade tardia – como consequência,
em parte, do sucesso das ciências da natureza – na qual todos os objetos passam a ser
governados por concepções de imanência. Diante disso, Schmitt percebe que o lugar do
político como mediação está ameaçado pela perda da transcendência (externa) e pelo
mergulho na imanência como fonte última da validade.

[o] argumento cogito ergo sum remeteu o homem para um processo subjetivo e
interno, para o seu pensamento, em lugar da realidade [Realität] do mundo externo.
A ciência natural deixou de ser geocêntrica e buscou o seu centro fora da Terra, o
pensamento filosófico tornou-se egocêntrico e buscou o seu centro em si mesmo. A
filosofia moderna é dominada por uma dissociação entre pensamento e ser, conceito
e realidade, espírito e natureza, sujeito e objeto, que nem mesmo a solução
transcendental de Kant remediou (PR, p. 62-63)325.
Por isso, ele constroi uma nova e mais sutil contraposição às tendências anti-políticas ou
apolíticas da modernidade sob a estratégia da finitude326: a categoria do político do final da
década de 1920 pode ser inicialmente considerada como uma resposta à concepção liberal de
Estado. Por sua peculiar metodologia antagonística, Schmitt se posiciona de modo
diametralmente oposto às teses analisadas, captando suas ideias ou conceitos e levando em
conta seu extremo, precisamente, seu contrário ao tentar dissolver os esquemas conceituais da

323
Inúmeras pesquisas já foram realizadas acerca da postura antiliberal de Carl Schmitt. Nossa argumentação
parte especialmente de FERREIRA, 2004.
324
Apesar de ser considerado, paradoxalmente, como liberal por autores como Leo Strauss e Martin Heidegger,
cf. 1.2.
325
PR, 62-63: “ihre Argumentation cogito, ergo sum, wies des Menschen an einen subjektiven und internen
Vorgang, an sein Denken, statt an die Realität den außenwelt. Das Naturwissenschaftlichen Denken der
Menschen hörte auf, geozentrisch zu sein und sucht den Mittelpunkt außerhalb der Erde, das philosophische
Denken wurde egozentrisch und suchte den Mittelpunkt in sich. Die moderne Philosophie ist von einen
Zwiespalt zwischen Denken und Sein, Begriff und Wirklichkeit, Geist und Natur, Subjekt und Objekt beherrscht,
den auch die tranzendentalen Lösung Kants nichts behoben hat”.
326
Neste contexto, Schmitt realiza uma releitura do conceito do político e, ao conceder-lhe autonomia, tenta
superar os prolemas relativos à colonização do político por áreas ou instâncias apolíticas ou antipolíticas: como o
político é uma relação, não importa qual seja a instância neutra ou imparcial, nem mesmo depende da noção de
representação, pois, como algo relacional, isto é, imanente, ele pode ser marcada pelo político: no caso extremo,
até o pacifismo mais consequente poderia ser considerado político justamente por uma implicação inesperada.
Os motivos pacifistas numa guerra entre pacifistas e não-pacifistas, tornariam-se políticos, uma vez que nada
escapa de suas consquências.
323

posição em ataque. Além disso, segundo o jurista, cada época elaborava para si uma imagem
metafísica e a questão que Schmitt se coloca é saber qual é a imagem metafísica do mundo na
modernidade tardia? Para isso, Ojakangas tem uma resposta precisa:

uma característica distante da modernidade tardia é a tendência de racionalizar e


neutralizar tudo (...) Esta é uma transformação da metafísica da transcendência para
a da imanência (...) É precisamente a metafísica da imanência - a metafísica das
ciências naturais - que abriu o caminho para a racionalização e a neutralização
absolutas na medida em que o conceito de imanência implica (...) a imagem
metafísica da modernidade tardia implica a possibilidade de controlar tudo - tudo
pode ser agarrado (greifen), o que também significa, concebível para o conceito
(Begriff) (OJAKANGAS, 2005, p. 27-28).
Na verdade, em Römischer Katholizismus, Schmitt assevera algo neste tom contra socialismo
e capitalismo que, como modelos institucionais, incorporam o tecnicismo327. No interior da
modernidade não haveria apenas um gap entre transcendência e imanência, mas a completa
dissolução das bases histórico-espirituais para algum tipo de mediação racional que
concedesse forma à experiência, de uma vez por todas abandonada à sua própria
contingência328. Diante disso, Schmitt acentua sua estratégia finitista: a validade de uma
ordem pressupõe uma determinada condição de faticidade. Aos poucos, validade e faticidade
se entrelaçam ao ponto de se tornarem indistintas, como por exemplo, em um texto tardio ele
afirma: “todo direito é, em primeiro lugar, ordem concreta, ao passo que normas e regras só
obtém o seu significado e sua lógica na moldura de uma ordem concreta” (SGN, p. 382)329.
Há uma tensão entre os termos diferente do modo de uma mediação entre abstrato e concreto,
mesmo que se compreendam irredutíveis um ao outro. Pelo contrário, como sustentamos, o
modo da tensão se dá como uma irresolução a partir da abertura constitutiva. Isto significa
que, para além das teses de Schmitt, ao invés de propor um fundamento concreto da ordem
normativa, o que manteria o dualismo incômodo apenas invertendo um dos lados, analisamos
a forma que o jogo entre político e política impede o fechamento ou a fundamentação da
ordem, destacando a ausência de fundamentação por conta da recíproca referência. Se for
correta a afirmação de Michele Nicoletti segundo a qual, a forma ou o transcendente se
apresenta em Schmitt como “um processo inexaurível de ordenação da realidade”
(NICOLETTI, 1990, p. 136), devemos interpretá-la que não apenas a ordem não encontra seu
princípio de validade em si e, por isso, remete constantemente para um além, como também
este além está mais perto do que se poderia supor, na verdade, não mais se refere a uma forma
política ou ideia de direito (a noção de representação) nem a algo externo, mas está no interior

327
Para Schmitt, seria Maquiavel “portador do principal traço negativo do Moderno, isto é, a perda do nexo com
a transcendência, sem a qual não há política eficaz” (GALLI, 2008, p. 87)
328
Sobre a contingência como fundamento, cf. 3.3, a seguir.
329
“Auflösung der europäischeen Ordnung im ‚International Law´ (1890-1939)” (1940) in SGN, 382.
324

da realidade concreta como relação social marcada pelo antagonismo. Assim, não há mais
espaço além ou dualidade dentro-fora, mas transcendência dentro da imanência: a constituição
da ordem, por assim dizer, representa as relações tomadas no corpo social no que ele possui
de violência e poder, numa palavra, antagonismo. Todavia, esta configuração que podemos
sem dúvidas nomear – como se fosse necessário nomear as coisas – de realismo forte ou
pragmatismo, não designa algo como um fundamento, visto que também se refere para fora de
si, no caso, para o outro como externo constitutivo necessário. Esta passa a ser a medida da
ordem que, por sua própria natureza, apesar de Schmitt não admitir suas últimas
consequências, demonstra a instabilidade do poder que se movimenta tal como um pêndulo
entre política e político.
Ora, nossa interpretação é que justamente em Der Begriff des Politischen Schmitt
passa a atacar a simetria entra imanência e transcendência com o arsenal do adversário,
lidando com a perda da transcendência (no caso dele, a noção de representação e forma
política) e a absolutização da imanência (provocada pelas concepções imanentista, sobretudo,
pela ciência e técnicas modernas, mas também pelo capitalismo e socialismo): se não é
possível pensar a dicotomia entre normas de direito e normas de realização do direito, forma e
experiência, excesso e exceção, pois estes ainda se referem a algo fora da história e da
constituição imanente da realidade, Schmitt arrisca – ou arriscamos por ele – uma teoria
política imanentista fortemente marcada por um finitismo, mas que não se limita a uma
Selbstbehauptung nem mesmo à certeza ou ao cálculo da técnica. Na verdade, o jurista
prepara um arranjo que no final das contas implode a concepção de imanência da
modernidade, pois haveria uma transcendência dentro da imanência, como um duplo que não
se refere ao binômio dentro-fora ou imanência-transcendência, mas política-político, ou seja,
qualquer sentido ou forma política tem caráter secundário diante da prática social que aponta,
afinal, para uma ausência de origem no movimento do pêndulo político, pois encontra no seu
termidor uma estabilização mesmo que precária. Nesta tese, reinterpretamos a imanência
como relação (na qual ocorre a multiplicidade de afetos, sobretudo, o antagonismo, isto é, a
condição da ordem, se quiserem, como um transcendental histórico) e a transcendência como
contingência (por se referir ao não fundamento, mas sim à abertura entre político e política, ou
seja, à diferença que, no fundo, marca uma ausência). Além disso, por não apostar em algum
dos lados, sustentamos que a reflexão política deve partir desta abertura, ou seja, o movimento
mesmo entre o antagonismo e a contingência. Na balança entre os espectros insolúveis,
encontramos o passo mais importante para fora das bipolaridades: tanto do antagonismo
(diferença meramente ôntica) quanto da contingência (impossibilidade de fixação da forma
325

política) que se referem um ao outro e de onde deriva a impossibilidade da ordem, pois


ausência de fundamento. Esta concepção atrapalha os planos de uma realidade previsível,
manipulável, segura e certa, bem como o processo de neutralização e despolitização. Do
mesmo modo, o político é aquilo que, diferentemente do liberalismo ou das neutralizações e
despolitizações, sequer pode ser captado ou fixado pela racionalização moderna, uma vez que
convencido da ausência de fundamento último da política moderna, a transcendência só
poderia ser considerada a partir do concreto, ou seja, assume a possibilidade da ordem a partir
do irracional, no caso, do conflito sempre presente como uma origem aporética 330. Ao invés
de instituir o medo pela segurança ou ordem, instala-se o antagonismo como princípio
entrópico do corpo social.
Em nossa leitura, Schmitt avança contra a metafísica moderna numa tentativa
ambígua: o conceito do político, como contra-conceito diante do liberalismo e de sua imagem
metafísica de mundo, é baseado nesta mesma imagem metafísica da modernidade que ele
combate, qual seja, da imanência absoluta, por exemplo, contra Espinosa331. Entretanto,
Schmitt realiza, paradoxalmente, esta modernidade tardia e, por isso, causa um curto-circuito
na noção de política, representação, Estado, entre outros, pois a partir da lógica imanente da
modernidade pensa a transcendência dentro da imanência, ou seja, por um lado, a perda da
transcendência alojada numa relação imanente; por outro, a perda da imanência, ela mesma
referida à uma ausência de si, no caso, à transcendência de si mesma, causando uma ausência
ou perda da origem/fundamento: nem dentro nem fora, ou melhor, um dentro-fora que mais
parece com a fronteira do que com espaços determinados que, por isso, escapa das
classificações e reduções do racionalismo moderno. Desta forma, não obstante conservador,
seu pensamento serve como caixa de ferramenta para análise do outro da política e demonstra
uma inesperada virtude. Mas à qual custa? Ojakangas (2005) e Esposito (1999) são claros:
“Schmitt percebeu plenamente que a modernidade tardia é marcada por uma perda
fundamental de tal transcendência” (OJAKANGAS, 2005, p. 28) e:

330
Galli sustenta que Schmitt teria medo do conflito e por isso propõe o Estado como a forma através da qual o
conflito e a morte é controlada. Ele afirma que Schmitt “é o pensador do conflito como ordem negada, na ótica
de uma soberania que é portadora de ordem própria porque capaz de chegar ao extremo em seu espasmo
decisionístico” (...) Schmitt, na realidade, teme o conflito” (GALLI, 2008, p. 103).
331
Em Politische Romantik, Schmitt critica a ontologia naturalista ou imanentista de Espinosa: Mas o sistema de
Spinoza é a primeira reação, e na verdade análoga àquela outra pós-kantiana, contra a abstração do racionalismo
moderno, representado então por Descartes e Hobbes, e contra uma concepção mecânica do mundo. A cisão
característica – que se distingue claramente não apenas em Descartes, mas também de forma especialmente
interessante em Hobbes – entre um fenomenalismo que considera o mundo exterior como mera percepção e um
materialismo caracterizado do mesmo modo, isto é, que somente reconhece movimentos dos corpos, é superada;
pensamento e ser se convertem em atributos da mesma substância infinita” (PR, p. 64). Sobre uma aproximação
entre os autores, WALTHER, Manfred. “Carl Schmitt et Baruch Spinoza ou les aventure du concept du
politique” In.: BLOCH, Olivier (Org.) Spinoza au XXe. Siécle. Paris: PUF, p. 361-374.
326

o caráter irreversível da secularização está confirmado pelo fato de que justamente


ao remeter à autoridade pessoal do Cristo age, no aparato conceitual do Hobbes
schmittiano, como legitimação da cisão interior/exterior, e portanto de levar a zero a
Veritas transcendente (...) A distância realmente insuperável que separa a teologia
política schtmitiana da grande representação católica se manisfesta justamente aqui,
na desautorização da transcendência da Veritas (ESPOSITO, 1999, p. 56).
Assim, mesmo ao considerar o político em contraposição à absoluta imanência ou à
mera faticidade (capitalismo, liberalismo, comunismo, economia, técnica, ciência), este
político (relação e antagonismo) não é compreendido como uma transcendência além da
imanência, por isso, o expediente que utilizamos aqui de uma ontologia do político. Por este
mesmo motivo, a transcendência não é considerada como algo externo, mas uma
transcendência da imanência, ou seja, sem o recurso de uma fundamentação transcendental da
ordem ou da autoridade, a transcendência se refere à contingência. Neste ponto, Ojakangas,
mais uma vez, esclarece “[ele] não deve ser entendido como um novo fundamento
transcendente de ordem além da imanência. Então o que é? É uma transcendência dentro da
imanência. É imanente na medida em que ocorre dentro da imanência. No entanto, é
transcendente na medida em que é inconcebível para o conceito, em outras palavras, não é
possível apropriar-se em esquemas racionalis” (OJAKANGAS, 2005, p. 29). Assim, apesar de
assumir o argumento da finitude e radicalizar a imanência da ordem, Schmitt resiste à
absolutização da imanência e ainda preserva alguma noção de transcendência e forma política.
Essa leitura, por exemplo, também realiza Bernardo Ferreira:

Schmitt retoma a concepção de Max Weber a respeito da validade empírica dos


princípios normativos (...) Essa avaliação me parece essencialmente correta, mas ao
mesmo tempo considero necessário sublinhar as conclusões de natureza normativa
que Schmitt extrai dessa distinção. Ao insistir na impossibilidade de uma
fundamentação da ordem em uma norma pressuposta e universalmente reconhecida,
ele não restringe a reflexão jurídico-política a uma perspectiva puramente empírica e
descritiva do direito e da política como fenômenos sociais (...) seu problema
continua a ser o das condições de possibilidade de uma ordem normativa. Não raro,
os seus textos exibem uma desorientadora combinação de sensibilidade empírica,
“realismo” e postura prescritiva. Paradoxalmente, a sua recusa da possibilidade de
uma fundamentação normativa da vida política não tem um significado puramente
descritivo, mas, na verdade, normativo (FERREIRA, 2004b, p. 51).
Em nossa leitura, é o procedimento de inserção ou achatamento que dissolve a
bipolaridade da distinção entre transcendência e imanência ou validade e faticidade, bem
como a noção de fundamentação como instância univesal devido as decorrências do paradoxo
político e do movimento de pêndulo da diferença. A secularização liberou a contingência e daí
em diante restou apenas um passo para afirmar o outro da política. Este jogo entre
transcendência e imanência (ou normativo e descritivo) nada mais é do que, em parte, o jogo
de abertura e fechamento da ordem movido pelo movimento de diferença, isto é, na ação do
político como negatividade que move a dialética entre político e política inapropriável através
327

de esquemas racionalistas e que rejeita mesmo o apelo a uma noção de transcendência ou


fundamentação univesal. Neste contexto, o pensamento pós-fundacionista sustenta que:

a distinção entre política e política é chamado em filosofia como diferença


ontológica (...) a diferença ontológica se desempenha como uma incompatibilidade
radical, uma lacuna infranqueável entre conceitos como the social, politics, policy,
polity, and police, de um lado, e o acontecimento político como evento ou
antagonismo radical do outro (...) política - no nível ôntico - continua a ser um
regime específico de discurso, um sistema social particular, uma certa forma de
ação; enquanto, por outro lado - no nível ontológico - o político assume o papel de
algo que é de natureza totalmente diferente: o princípio da autonomia da política ou
o momento da instituição da sociedade. Como diferenciado da política, a noção de
política não pode ser assimilada às diferenças sociais, à repetição, tradição,
sedimentação ou burocracia. Como outras figuras de contingência e falta de
fundamento, como o evento, o antagonismo, a verdade, o real ou a liberdade, as
habitações políticas, por assim dizer, no terreno da sociedade, o que se faz sentir no
jogo diferencial da diferença política (MARCHAT, 2007, p. 6-8).
Aí reside o “irracionalismo” de Schmitt: em sua recusa teimosa e conservadora, elabora uma
potente crítica à racionalidade moderna e, inesperadamente, dá ensejo a uma nova forma de
compreender a teoria política, mesmo que não tenha assumido as consequências.
No caso em questão, se o liberalismo, por exemplo, por meio de um influente G.
Jellinek sustenta a precedência do Estado, Schmitt inverte este tese – apesar de não ser
meramente uma inversão nem mesmo um ocasionalismo ou decisão naive – ao afirmar a
anterioridade lógica e histórica do político, daquilo que é ininstitucionalizável, como o
antecedente ou mais originário e a condição da ordem. Na crítica de Schmitt ao liberalismo –
seja como impossibilidade de decisão, seja como neutralização do político ou individualismo
e, por conseguinte, impossibilidade de governo e de ordem política – o conceito do político
revisitado no final da década de 1920 serve como novo topos a partir do qual a realidade
social despolitizada e neutralizada pelos mecanismos da política moderna torna-se,
novamente, política, ou melhor, há uma re-politização ao introduzir a noção de conflito como
anterior à ordem e embaraçar os esquemas normativos ao apostar na autonomia do político.
Leo Strauss é bastante claro neste ponto: apesar de ser liberal por sustentar um encarniçado
antiliberalismo, Schmitt se equivoca ao sustentar Hobbes como pensador político, uma vez
que as teses hobbesianas apontam para um apaziguamento do corpo social, enquanto Schmitt,
ao contrário, segundo a leitura straussiana, para o conflito332. Desta encruzilhada Hobbes-
Schmitt, surge a crítica de como o mundo liberal se torna despolitizado e neutralizado ao
afastar o conflito e, por conseguinte, reprimir o político, imunizando os indivíduos contra a
relação do corpo social. É a partir desta constatação que Schmitt rejeita a identificação entre

332
Mesmo que se aponte que Schmitt tenha como meta a preservação da ordem e a manutenção do conflito fora
do Estado, as consequências do político o impedem de realizar seu desiderato. Neste ponto, talvez, tenhamos que
ser mais coerentes do que o próprio autor, ou seja, Schmitt foi pouco schmittiano.
328

político e Estado (política) e lança mão de um argumento que, de certa forma, põe a pergunta:
Schmitt não estaria propondo um “estado de natureza”, retomando o político como pré-
política e pré-estatal?333 Na verdade, a crítica de Schmitt se dirige à forma de não-política que
a política moderna assume, inclusive através de Hobbes, no caso, como uma sublimação ou
sequestro do político pelo liberalismo sob os valores de segurança e certeza da ordem. Ora, a
natureza conflitual do corpo social depõe contra a narrativa de despolitização liberal e
individualista, ou seja, o conflito demonstra sua irredutibilidade à ordem334.
A dupla inscrição do político, como Zizek descreve335, estabelece logo de entrada o
excesso que o político figura em relação às formas institucionais da política: ao mesmo tempo
em que desterritorializa a teoria política – pois o político é considerado como relação e afeto e
não como substância ou região de coisas – torna-o uma espécie de universal concreto,
garantindo uma plasticidade e uma relatividade, numa palavra, um perspectivismo político.
Por isso, a possibilidade de se referir com esta dupla inscrição aos eventos ou ações fora da
esfera institucional e ainda assim considerá-las como objeto da reflexão política. Além disso,
por se tratar de uma relação marcada pelo antagonismo, há uma expansão dos modos de
aparição, ou seja, fornece mecanismos conceituais para pensar o fora-da-lei ou o externo da
representação e da política partidária ao invés da percepção dos modos de aparição da política
simplesmente ao nível institucional e vinculada a um sistema formal exclusivo.
Evidentemente, não é possível pensar exclusivamente um ou outro. Por exemplo, enquanto o
refugiado é a expressão nua deste deslocamento e desterritorialização que o político implica,
um estado totalitário ou império absoluto seria a tendência à ausência do político. Na tese que

333
O diagnóstico de Galli, traçando um paralelo entre Schmitt e Maquiavel, não autoriza esta leitura: Se a
fórmula schmittiana do ‘político’ como relação amigo/inimigo institui entre guerra e política um continuum, se
Maquiavel afirmou muitas vezes e em muitos lugares a identidade das ‘boas leis e das boas armas’, todavia a co-
implicação originária entre guerra (ou melhor, conflito) e política não torna igual Maquiavel e Schmitt. Na
realidade, na antítese entre ordem e conflito, Schmitt e Maquiavel estão em dois partidos diversos: o primeiro é o
pensador do conflito como ordem negada, na ótica de uma soberania que é portadora de ordem própria porque
capaz de chegar ao extremo em sua pulsão decisionística, enquanto o segundo aceita o conflito enquanto
constitutivo da política como fato humano coletivo. Schmitt, na realidade, teme o conflito; Maquiavel, não; para
o segundo é fim em si (se o conflito é glorioso e não determinado pela ‘avareza’). E esta distância estrutural
desmente a presumida consonância entre eles, ou mesmo a sua identificação como dois mestres daquilo que se
costuma definir como ‘realismo político’ (isto é, um pensamento que oscila entre o reconhecimento do papel da
violência e a busca pelas ‘leis’ da ordem) (GALLI, 2008, p. 103). Sobre a relação entre Maquiavel e Schmitt, cf.
ADVERSE, 2016.
334
É necessário notar que não apenas a base do “pesimismo antropológico” e seu antiliberalismo, mas também o
contexto de conflito desde a I GGM até a turbulenta década de 1920 e 1930 condicionam o pensamento de
Schmitt como um permanente tema e contínua reflexão sobre o conlfito e violência, mas também “the
emmergence of effective, non-state political actors and processes, such as expansion of democracy and
politicization of civil society” (VIRIASOVA, 2011, p. 3); cf. também, ARDITI, 1996, p. 15. as fronteiras foram
definidas e o político seria uma reação ao beyond perdido.
335
“The political is inscribed as a gentrified domain of normalized or institutional political exchanges (politics)
and as the negativity of decisions and actions that put objectivity into question (the political), whether at the local
or macro levels, within or outside the political sub-system” (apud ARDITI, 2008, p. 17).
329

desenvolvemos, há uma reinterpretação desta ambiguidade fundamental: são termos


correlatos que partilham de um comum, qual seja, a ausência que um representa ao outro e
que se expressa na abertura da ordem. É a negatividade imanente e, por conseguinte, a
ausência por ela provocada (1º nível da ausência) e a contingência da ordenação (2º nível da
ausência) que desencadeia, entre a interrupção e ordem, sem atribuir maior peso a algum dos
lados, o movimento do paradoxo que se aloja na ausência fundamental, ou melhor, não se
encontra a origem da ordem, mas experimenta-se como um nada de origem336. Esta estrutura
do paradoxo político demonstra as noções de abertura e contingência no interior da pós-
política que tentamos construir, tal como Olivier Marchat afirma: “a diferença entre política e
político tornou-se um traço conceitual: a ausência de um último fundamento da sociedade. Tal
abordagem buscará o momento do político dentro do continuum histórico das teorias
políticas, como é descrito pela história conceitual” (MARCHAT, 2007, p. 31). Assim, o
intuito não é apenas dissolver a simetria em prol deste “continuum” histórico, mas analisar
aquilo que ela evidencia: a ausência de gramática comum na forma de um sistema de normas,
numa expressão, ausência de fundamento, ou melhor, como demonstramos mais à frente, o
fundamento como ausência. Dessa forma, a dialética negativa entre político e política
demonstra como a vida social é uma instauração e circulação de afetos. G. Ulmen sustenta
acerca da diferença política que:

é irrelevante se aceita ou não a antítese amigo-inimigo, uma vez que é inegável que
as nações continuam a agrupar-se em conformidade e que continua a ser uma
possibilidade sempre presente na esfera política: "O núcleo do político não é
inimizade, mas sim a distinção de amigo e inimigo que pressupõe amigo e inimigo
do corpo"(TP, p. 93). A chave para o conceito de política não é, portanto, inimizade,
mas a própria distinção. A situação mais perigosa surge quando esta distinção é
desfocada, o que resulta em desfocagem da distinção entre guerra e paz (ULMEN,
1987, p. 189, grifos do autor).
Esta diferença entre político e política mais do que tornar insolúvel a relação entre imanência
e transcendência, demonstra o caráter antipredicativo da ação política que não se fixa em
alguma das instâncias, tal como uma totalidade incomensurável não representável. A partir
disso, traçamos a função ontológica do antagonismo à margem dos mecanismos de
institucionalização ou, em outros termos, o princípio da ordem, paradoxalmente, como
princípio de des-identidade e de des-diferenciação como condição própria do impróprio da
ação política.

336
Entretanto, o conflito não teria aqui maior peso? Ou não seria a ordem ainda o objeto da filosofia política? É
bem verdade que Schmitt, em Der Begriff des Politischen, afirma que a prerrogativa do político pode ser
reivindicada por todo agrupamento que detiver poder suficiente para assegurar a proteção, a despeito, portanto,
da autoridade do Estado. Mas está claro que seu objetivo é exatamente restaurar esta autoridade. A respeito, ver
o artigo de Benjamin Arditi (2008, p. 7-28).
330

***

Para analisar a diferença política – não como discriminação entre amigo e inimigo
nem mesmo como mera oposição – mas sim como diferença entre política e político e suas
decorrências, é necessário ainda caracterizar a noção do político. A ênfase será dada a este
conceito por um motivo simples: as políticas da metafísica foram constituídas com base na
recusa da finitude do finito. Com a crise da metafísica política, pretendemos liberar aquelas
dimensões do real esquecidas ou relegadas a um tratamento secundário pela tradição, como a
vida, os afetos, o concreto, o corpo, a existência humana, a palavra, o irracional, a exceção,
entre outros, ou seja, aqueles planos e relações mais travejadas na trama da finitude. O que
Schmitt parece desencadear é uma espécie de infinitização (imanente) do finito, ou seja, uma
compreensão de que na concretude das relações do corpo social se estabeleçam como um
movimento sem fim entre político e política, esta tensão insolúvel que marca a ausência e
perda, numa palavra, a contingência que passa a ser a própria condição da ação política. Por
isso, nosso interesse em suas teses como ferramenta conceitual para pensar uma política não
metafísica, ou melhor, uma política da abertura337.
Este problema é retomado sob a forma da desterritorialização, ou mais precisamente,
da desestatalização do político: a compreensão de que a instituição é assumida como
fenômeno posterior ao político, segundo a tese que “o conceito do Estado pressupõe o
conceito do político” (BP, p. 20). Se o argumento do finitismo – ou como interpreta Voegelin,
entre outros, na crítica à Schmitt, como o imanentismo – recusa a relação entre transcendência
e ação política, então torna-se necessário demonstrar como a instância não normativa e
contingente conseguiria (in)determinar o corpo político sem apelar a uma fundamentação
racional ou universal ao mesmo tempo em que rejeita a simples identificação com a força.

337
Apenas a título de recapitulação, é conveniente lembrar a contextualização acerca do conceito do político, que
realizamos. Basicamente, 3 momentos no pensamento de Schmitt: (i) o momento formalista durante a década de
1910 – especialmente, o Der Wert des Staates – que pode ser denominado como período pré-weimariano; (ii) o
momento marcado pelos textos Die Diktatur e Politische Theologie até meados da década de 1920 compreendido
como um realismo fraco, pois há decisão e exceção, mas em função da instauração da forma e ordem política,
denominado como período weimariano, ainda na defesa da representação ou de uma validade ante rem, baseados
no teorema da secularização e (iii) um momento de realismo forte, sobretudo, em Der Begriff des Politischen,
mas também em Verfassungslehre, marcado pelo politische Existentialismus ou pela compreensão do político
como relação e antagonismo, denominado de período tardo-weimariano, caracterizado ainda por uma validade in
re ou imanentista, pois refere-se à relação e arranjos de forças e corpos políticos, em último caso por um
perspectivismo político. Este último caracteriza-se por um abandono da semântica metafísica da decisão e da
exceção, além da rejeição do político como mediação. Neste período tardo-weimariano, a decisão do soberano
enquanto decisão pela realização de um ideal e da ordem no corpo social é recusada e assume-se a tese do caráter
autônomo do político na diferença imanente. Como consequência, a contingência da realidade, exposta pela
decisão, passa a ser considerada o locus da ação política, afastando-se do teorema da secularização ou de uma
metapolítica.
331

Este contexto levanta a tarefa de evitar o endosso do simples anti-fundacionismo ao propor


um pensamento pós-fundacionista, uma característica da teoria do monismo político.
No final das contas, a questão é compreender a condição da ação política a partir das
consequências pragmáticas do finitismo e, para isso, ele assume uma postura na qual sustenta
a tese de que a constituição do político se dá na diferença do conflito e, por conseguinte,
mostra-se como ininstitucionalizável: a categoria do político seria reinterpretada como uma
política dos afetos ou, mais precisamente, do afeto mais intenso, o antagonismo 338. Desse
modo, uma política que se exerce na contingência dos arranjos de forças e não na decisão pela
ordem, isto é, não escamoteia a violência como origem da ordem nem mesmo tenta calar as
vozes dissonantes e monopolizar a violência, pois analisa poder político como relação e afetos
e não posse/propriedade ou norma. O desafio é, sem metafísica política, não reduzir a
imanência da relação à faticidade. Para tanto, utiliza-se uma estratégia finitista típica do
realismo político que, conforme sustenta esta pesquisa, torna-o afim de uma ontologia do
político ou do antagonismo, como a seguir expomos.

***

A definição do político por Schmitt, a essa altura já bastante conhecida, é a seguinte:


“a diferenciação especificamente política, à qual podem ser reconduzidas as ações e os
motivos políticos, é a diferenciação entre amigo e inimigo” (BP, p. 26)339 e ainda “a oposição
política é a oposição mais intensa e mais extrema e qualquer situação de oposição concreta é
tão mais política quanto mais se aproxima do ponto extremo que é o agrupamento entre
amigos e inimigos” (BP, p. 30)340. Diferença e intensidade compõem o traço do político. No
entanto, alguns outros pontos importantes, tais como a autonomia, o expediente de utilizar um
critério específico sem determinar seu conteúdo, a ausência de uma essência, forma ou
substância política, a diferença enquanto conflito, o caráter da intensidade que concede ao
político a mobilização de uma energia que possibilitaria pensá-lo como uma tendência
parasitária ou viral, pois expansiva, visto que não se refere a uma esfera de atividade ou ação,
mas a qualquer relação, entre outros, são elementos deste político a partir dos quais
esboçamos uma ontologia peculiar. Desenvolvemos abaixo algumas dessas características: (i)

338
Diferentemente de Schmitt, não pretendemos nem mesmo como um expediente de pensamento sustentar o
conflito em uma antropologia, por isso a proposta de uma ontologia do conflito tal como esboçamos nesta tese.
339
BP, p. 26: “Die spezifisch politische Unterscheidung, auf welche sich die politischen Handlungen und
Motive zurückführen lassen, ist die Unterscheidung von Freund und Feind. Sie gibt eine Begriffsbestimmung im
Sinne eines Kriteriums, nicht als erschöpfende Definition oder Inhaltsangabe”
340
BP, p. 30: "Der politische Gegensatz ist der intensivste und äußerste Gegensatz und jede konkrete
Gegensätzlichkeit ist um so politischer, je mehr sie sich dem äußersten Punkte, der Freund- Feindgruppierung,
nähert".
332

o político se refere aos afetos que ocorrem nas relações do corpo social, sobretudo, ao mais
intenso, qual seja, ao afeto de antagonismo; (ii) por se referir à relação (imediatidade
relacional), o político é marcado pela ausência de substância ou essência; (iii) a autonomia do
político é garantida pela adoção de um critério hermenêutico (o grau de intensidade da
relação); (iv) a consequência do político: unicidade e totalidade; (v) o político como
pluralidade ou ser-com (relação propriamente plural); (vi) a ilimitabilidade do político e (vii)
o político como ininstitucionalizável. Logo após, demonstramos como através das teses
schmittianas alguns conceitos em teoria política podem ser redefinidos341.
(i) A categoria do político é discutida através de uma abordagem existencial em
detrimento da leitura normativa: os afetos que perpassam os corpos nas relações sociais
determinam a estrutura do poder. Como visto, aquele afeto mais intenso, o afeto que se refere
à oposição e à heterogeneidade de formas de vida, apresenta o critério para a ação, qual seja, a
polemicidade. O polémos ou antagonismo, por assim dizer, é o afeto que determina a
experiência do poder e instauradora da ordem, o dado último possível da realidade, mais
como um factum brutum e potência destituinte do que fundamento normativo: normas de
direito, normas de realização de direito, normas de ação técnica ou decisão sobre a exceção
não constituem mais uma possibilidade válida ou coerente de legitimação do poder, mas
agora, na releitura de Schmitt, o político como o pólemos ou antagonismo. Por este meio, a
relação entre imanência e transcendência sofre uma revisão e torna-se uma relação
concreta342. Pelos mesmos motivos, pode-se afirmar que esta categoria desautoriza a
imposição de um poder que se intitule transcendente. Este political turn no final da década de
1920 revela uma transformação do realismo fraco caracterizado na teoria da decisão em Die
Diktatur e Politische Theologie: se pelo mecanismo da exceção, a ordem possui uma origem
concreta, porém submetida à exigência da forma abstrata para ser legítima; na teoria do
político, a ordem se estabelece ainda a partir de alguma relação concreta, porém a exigência
da forma é inexistente, ou melhor, é constituída de maneira contingencial e nisso reside sua
legitimidade denominada aqui de pragmática e a proposição de um realismo que assume uma
validade in re, pois assume a ausência de forma universal. Entre universal e particular,
apostamos na seguinte tese: a originariedade particular da ordem deixa de articular sua
legitimidade através de um ato de vontade (como decisão racional) e assume a relação social
(como movimento passional) como seu princípio, tal como uma existência concreta originária

341
Alguns textos importantes para nossa leitura: SHAPIRO, 2010; 2003, SZABO, 2006; WOLLIN, 1990;
MARDER 2005; CHROSTOWSKA, 2009; ARDITI, 1996, 2008. Tal como propomos nesta tese, François Julien
propôs uma interpretação da filosofia política não a partir, mas através de Schmitt, cf. FREUNDE, 1965.
342
Sobre a noção de concretude em Schmitt, OJAKANGAS, 2004.
333

que dá a medida (seinsmäßige Ursprünglichkeit). Ao invés de analisar a legitimação do poder,


ou seja, sua adequação a algum padrão ou tipo ideal, exige-se investigar se, de fato, existe ou
não existe, pois nenhum procedimento racional ou jurídico pode justificar um fato, uma vez
que “não se pode falar de legitimidade de um poder público (Staatsgewalt). Um Estado, isto é,
a unidade política de um povo, existe na esfera do político; este, muito menos, admite uma
justificação, juridicidade, legitimidade (Rechtfertigung, Rechtmäßigkeit, Legitimität)343. Para
Schmitt, haveria uma contiguidade imediata entre existência e legitimidade que revela o
princípio originário da ordem como uma instância não racional e contingente, no fundo, como
uma dissolução entre validade e faticidade, entre normativo e descritivo, tal como
propomos344. Tal fundamento – se é adequado utilizar este termo – não está vinculado a
formas jurídicas ou procedimentos, pois “não necessita de justificação (Rechtfertigung) em
uma norma ética ou jurídica; tem seu sentido na própria existência política. O específico
modo da existência política não necessita nem pode ser legitimado” (VL, p. 87)345. A
legitimidade é resolvida na própria existência do poder e, dessa forma, a antítese entre ser e
dever-ser resolve-se em outra: ser ou não-ser. Assim, assumimos o argumento schmittiano de
que seria um erro afirmar “o poder é legítimo”; melhor seria: “o poder é ou não é” ou “existe
ou não existe”, pois aquilo a que se refere não funciona mais como um fundamento de
validade, mas sim à existência da relação que o instaura. Por este motivo, a distinção entre
quaestio iuris e quaestio facti recebe uma solução, ressaltando a origem da ordem a partir
desta última, ou melhor, assumindo uma espécie de legitimação pragmática ou contextual em
detrimento de uma legitimação racionalista, mesmo que, em nossa interpretação, ao dissolver
a fronteira entre imanência e transcendência, ele faz com que a categoria de legitimidade
perca seu sentido. Entretanto, na obra tardia de Schmitt, diagnostica-se a derradeira virada ao
enfatizar uma espécie de legitimidade histórica do poder (Schmitt utiliza o termo legitimidade
apesar das consequências de seus argumentos tornarem-no inócuo) e a co-originariedade entre
fato e norma, isto é, a ruptura entre imanência e transcendência ao perceber um
entrelaçamento entre ambos sem apelar para instâncias externas ou dualismo internos, pois

343
VL, p. 89: “Von Legitimität eines Staates oder einer Staatsgewalt kann man nicht sprechen. Ein Staat, d.h. die
politische Einheit eines Volkes, existiert, und zwar in der Sphäre des Politischen; er ist einer Rechtfertigung,
Rechtmäßigkeit, Legitimität usw. sowenig fahig, wie in der Sphäre des Privatrechts der einzelnen lebende
Mensch seine Existenz normativ begründen müßte oder könnte”.
344
Após as críticas de Quine e Sellars aos dogmas do empirismo e ao mito do dado, aliadas às críticas de
Davidson ao dualismo esquema conceitual-conteúdo, parece-nos necessário atualizar a filosofia política e
reconhecer alguns ganhos conceituais que substituem noções semânticas tradicionais como o
representacionalismo, referencialismo, atomismo.
345
VL, p. 87: “Sie bedarf keener Rechtfertigung an einer ethischen oder juristischen Norm, sondern hat ihren
Sinn in der politischen Existenz”.
334

co-extensivas. A hipótese que tomamos de Schmitt, afinal, é que para compreender a lógica
do político, como o avesso da política, é preciso pensar essa relação constitutiva do
antagonismo, ou seja, que na origem há afetos e não normas. Além disso, ainda
desenvolvendo as teses de Schmitt, podemos pensar o afeto numa dimensão pública, a rigor,
como uma intensidade impessoal e coletiva a partir da qual se co-institui o corpo político
como relação e, por isso, a recusa schmittiana da transcendência como universal.
(ii) Ao analisar o corpo político podemos perceber mais a ocorrência de relação (na
verdade, relações) do que a presença de normas. A partir disso, a descrição de essência ou de
algo em comum a toda comunidade política se torna inviável pelo próprio objeto em questão.
Admitido este ponto de partida, estaríamos diante de uma postura pós-metafísica em teoria
política, pois é estabelecido um critério para a identificação do político, ao contrário de um
conteúdo substantivo. A autonomia do político reside precisamente neste ponto. Ao afirmar
que "o político não tem substância própria"346, recusa-se a bipolaridade entre transcendência e
imanência, mas tampouco se contenta com qualquer consideração de origem da ordem como
imediato: se a transcendência (aqui entendido como forma, a priori, ou qualquer instância
racional ou universal externa às práticas e usos da ação política) é abandonada, mesmo a
contragosto, ela se reinsere no interior da imanência, considerada a única instância possível.
Logo, se não é uma substância ou conjunto de objetos, mas sim uma relação, uma função ou
modo decorre daí a tese da imediatidade relacional como medida do político, bem como uma
ontologia política que seria, a rigor, uma ontologia relacional e não substancialista. Assim,
mesmo que a (in)determinação do político, de forma histórica, seria dada a partir de um
“critério conceitual” (Begriffsmerkmal) e não por uma “definição de essência”
(Wesensbestimmung), ainda é preservada uma instância transcendente como aquilo que
concede a forma à experiência347. A dualidade entre imanência e transcendência ou excesso e
exceção passa a ser considerada a partir de uma nova perspectiva, como já demonstrada, a
política e o político. Estes, porém, como algo recíproco e co-extensivos modos da finitude.
Apesar disso, o objetivo de Schmitt é apenas trazer as características determinantes de uma
noção e, conscientemente, tratá-la como algo que sempre escapa a qualquer descrição ou
classificação metafísica, pois, caso contrário:

346
PuB, p. 160: "Das Politische (hat) keine eigene Substanz".
347
De modo similar, analisando Espinosa, Diogo Pires Aurélio sustenta que “a essência do político é impossível
de confundir com uma qualquer moldura racional de onde e no interior da qual as normas de conduta fossem
deduzidas, de modo a imporem-se como condição necessária e legítima da paz e da estabilidade. Os últimos
fundamentos de um estado ou da qualquer ordenamento jurídico não estão jamais isentos da contingência e do
aleatório que lastram a ação humana, não passando as construções políticas alegadamente fundadas numa razão
indiscutível de simples máscaras que ocultam a verdadeira natureza do poder” (AURÉLIO, 2004, p. xxii)
335

o político significaria uma substância própria ao lado de outras substâncias de


“associações sociais”; ele ofereceria, assim como a religião, a economia, a língua, a
civilização e o direito, um teor particular (…) a unidade política torna-se então uma
unidade substancial particular, nova, justaposta a outras unidades (…) De fato, o que
resta do Estado, enquanto unidade política, quando se abstrai todos os outros
conteúdos: religioso, econômico, cultural, etc.? Se o político não é nada além do
resultado de tal subtração, ele é, na verdade, igual a zero. Entretanto, é justamente aí
que reside o mal-entendido (…) Como o político não tem substância própria, o
ponto do político pode ser atingido por qualquer domínio, e todo grupo social –
Igreja, sindicato, grande empresa, nação – se torna político e, consequentemente,
estatal, quando se aproxima desse ponto de intensidade intensa 348.
Desse modo, o político pode referir-se a qualquer atividade desde que estabelecida por uma
referência às relações marcadas por contextos específicos concretos: a politização das relações
humanas seria dada por uma relação cujo conhecimento é sempre post factum ou in re, em
todo caso, contextual. A postura anti-essencialista provoca, por conseguinte, uma
imprevisibilidade do fenômeno e o torna potencialmente indelimitável. Nesse sentido, Schmitt
afirma que o político possui um caráter relacional e afetivo que provoca sua indeterminação
substancial ou uma subdeterminação ontológica349. Ora, pode-se afirmar com isso a tese da
imediatidade relacional como medida do político, ou seja, a autonomia do político, recusando
um parâmetro racionalista, refere-se a um critério específico: a relação concreta. Não é outro
o motivo pelo qual Schmitt prefere o adjetivo substantivado “o político” (das Politische) ao
tradicional substantivo “a política” (die Politik), pois o que interessa não é uma esfera de
coisas políticas, mas relações que possam ser consideradas como tais, a partir de qualificações
ou critérios que seriam averiguados nos casos como potencialmente políticos. Dessa forma,
para Schmitt, não há nenhuma normalidade vital (vitale Normalität), pois a teoria política
moderna, marcada pelo conceito moderno de existência, significando basicamente a
experiência na contingência, passa a ser caracterizada pelo abandono de qualquer referência
universal – a não ser o antagonismo como princípio ordenador da realidade – pois a condição
348
“Staatsethik und pluralistischer Staat”, In: PuB, pp. 159-160: “das Politische eine eigene Substanz neben
anderen Substanzen 'sozialer Assoziationen' bedeute, daß es neben Religion, Wirtschaft, Sprache, Kultur und
Recht einen besonderen Gehalt darstelle, und daß infolgedessen die politische Gruppe koordiniert neben die
anderen Gruppen gestellt werden könne, neben Kirche, Konzern, Gewerkschaft, Nation, Kultur – und
Rechtsgemeinschaften der verschiedensten Art (…) Denn was bleibt vom Staat als der politischen Einheit übrig,
wenn man alle anderen Gehalte, das Religiöse, Wirtschaftliche, Kulturelle usw. abzieht? Ist das Politische nichts
als das Ergebnis einer solchen Substraktion, so ist es in der Tat gleich Null. Aber darin liegt eben das
Mißverständnis (…) Weil das Politische keine eigene Substanz hat, kann der Punkt des Politischen von jedem
Gebiet aus gewonnen werden, und jede soziale Gruppe, Kirche, Gewerkschaft, Konzern, Nation, wird politisch
und damit staatlich, wenn sie sich in diesem Punkt der höchsten Intensität nähert”.
349
Étienne Balibar (Spinoza et la politique, Paris, Puf, 1985, p. 74) nota que Espinosa abandona o binômio
direito-dever por outro correlativo, independência e dependência. Ao comentar sobre esta mudança em Espinosa,
Diogo Pires Aurélio analisa em termos muito próximos aquilo que denominamos relação: “o maior ou menor
grau de indepedência de um ser não é o estatuto jurídico definido e garantido a priori, pelo contrário, estabelece-
se na própria dinâmica constitutiva da natureza (...) o que faz com que o valor da potência de cada um varie
continuamente, em função dos encontros e dos confrontos que ele vai tendo com a infinidade dos outros seres
(...) e estabilidade alcançada por esses meios permanece intrinsecamente provisória, visto estar assente, em
última instância, não na pura razão, mas nos afetos” (AURÉLIO, 2004, p. xix).
336

política seria considerada na ausência de uma essência política ou uma estrutura universal. As
condições políticas se referem, nesta releitura, às relações e afetos dos corpos em associação e
dissociação, levando em conta a intensidade e a possibilidade da morte como características:
esta é a virada em direção à postura pragmática com primazia dos afetos que leva a marca da
finitude e se resigna com o topos da ação na contingência.
A intenção de Schmitt logo no início do Der Begriff des Politischen é demonstrar
que o político não é limitado ou subordinado pelo Estado. Evidentemente, ele inverte os
termos e provoca alguns mal-entendidos. A questão do político se torna intrincada, uma vez
que é o conceito daquilo que não tem conceito, ou melhor, que é ininstitucionalizável. A
própria teorização de Schmitt, perde controle sobre ele, por isso, por não se referir à
substância ou essência, “but finds its temporary certainty in a ‘criterion’, which, by definition,
is always potentially multiple since it does not refer to any essence” (OJAKANGAS, 2005, p.
36). Para Marton Szabo, “the political does not seek the essence, but the specific (...) Schmitt
chooses from the competing possibilities of specification that one aspect based upon which
things get a political meaning, namely the friend-enemy distinction” (SZABO, 2006, p. 32).
(iii) A partir da indeterminação substancial, libera-se o político da referência externa:
sua configuração é, na verdade, de um poder sem externo, sem reconciliação em sua
diversidade contextual. No mesmo movimento de afirmação da indeterminação, da autonomia
e do caráter relacional, o critério político é designado ainda pelo grau de intensidade das
relações e afetos dos corpos em associação e dissociação, levando em conta a possibilidade de
morte. Esta postura pragmática dá primazia ao existencial e altera seu conceito de
legitimidade, deslocando-a, como já exposto, de uma posição meramente normativa ou
institucional: “a oposição política é a oposição mais intensa”350. Assim, o político refere-se ao
corpo social como relação imediata tomada como existência concreta diante de outros corpos
cujos afetos se mostram irredutíveis e contrários: marca a pluralidade do político. A
identificação coletiva através do conflito não é determinada pelo par amigo e inimigo,
identidade e alteridade, mas sim pelo tipo da relação que se instaura, isto é, uma relação
marcada pela diferença e violência. Numa palavra, um tipo específico de afeto que engloba a
vida social. Este é a chave de leitura que adotamos e a coerência da teoria do político depende
da compreensão desta questão.

350
BP, p. 30: "Der politische Gegensatz ist der intensivste und äußerste Gegensatz und jede konkrete
Gegensätzlichkeit ist um so politischer, je mehr sie sich dem äußersten Punkte, der FreundFeindgruppierung,
nähert".
337

Assim, desvinculado da necessidade de autorização (legitimidade), resta investigar


nas relações concretas quais podem ser consideradas políticas e quais não podem. Neste
momento, é oportuna a questão: como conciliar multiplicidade e unidade, ou melhor, como
analisar o político e suas múltiplas singularidades e relações sem a mediação? Com lucidez,
afirma Leo Strauss (2007, p. 108) que “Schmitt deseja conhecer apenas o que é”. Tal
averiguação é feita através de um critério que serviria de hermenêutica da ocorrência do
político sem recusar a possibilidade da ordem. O critério do político seria o grau de
intensidade de uma relação humana, pois, como afirma o jurista: “o político designa somente
o grau de intensidade de uma unidade. Assim, a unidade política pode ter diversos conteúdos
e englobá-los nela. Porém, ela sempre define o grau mais intenso de unidade, e é a partir desse
grau que se encontra determinada, em consequência, a distinção mais intensa”351. Entretanto,
o que significa intensidade quando se fala em político? Não seria uma determinação circular
ao afirmar que o político é o afeto mais intenso e o afeto mais intenso é aquele que alcança o
grau ou ponto do político? O critério é esboçado por Schmitt a partir da constatação descritiva
do comportamento humano, isto é, ao alcançar o afeto mais intenso, qualquer relação da
prática humana torna-se política e, dessa forma, podemos arriscar, alcança a liberdade; então,
da mesma forma, se, por um lado, o político não se fixa enquanto instância ou esfera de
objetos determinada (Bereich; Sachgebiet), pois, assim como a liberdade e a igualdade, entre
outras relações, são indissociáveis da situação de conflito, a medida (Maßnahmen) das
instituições e das leis justas são elaboradas através da forma de sociabilidade que orienta a
realidade política estruturalmente polêmica; por outro lado, no entanto, para que qualquer
relação social possa tornar-se uma grandeza política, é necessário não apenas a polemicidade,
mas sobretudo a qualidade da intensidade, isto é, ao chegar no "ponto decisivo"
(entscheidenden Punkt), caracterizado pela intensidade da oposição afetiva, torna-se
especificamente política, pois “o que interessa é o caso de conflito. Se as forças antagônicas
econômicas, culturais ou religiosas forem tão fortes a ponto de definirem, por si mesmas, a
decisão sobre o caso crítico, elas terão se convertido na nova substância (sic) da unidade
política” (BP, p. 39)352. No caso, o que determina a ordem política são os modos e circuitos
dos afetos, aliás, até neste ponto, Schmitt mostra-se um hobbesiano consequente, porém com

351
“Staatsethik und pluralistischer Staat”, In: PuB, p. 159: “Richtigerweise bezeichnet das Politische nur den
Intensitätsgrad einer Einheit. Die politische Einheit kann daher verschiedene Gehalte haben und in sich
umfassen. Sie bezeichnet aber stets den intensivsten Grad der Einheit, von dem aus infolgedessen auch die
intensivste Unterscheidung”.
352
BP, p. 39: "Das, worauf es ankommt, ist immer nur der Konfliktsfall. Sind die wirtschaftlichen, kulturellen
oder religiösen Gegenkräfte so stark, daß sie die Entscheidung über den Ernstfall von sich aus bestimmen, so
sind sie eben die neue Substanz der politischen Einheit geworden".
338

uma distinção: ao contrário de Hobbes, os afetos constitutivos não são sacrificados diante da
ordem, mas permanecem como arcano ineliminável. Caso se pretenda conhecer a ordem do
mundo, torna necessário conhecer os afetos do corpo social.
(iv) A característica da intensidade provoca outra consequência para a
inteligibilidade do fenômeno do político: a unicidade. Em outras palavras, por conta da
intensidade caracterizadora do político, ao ocorrer o agrupamento entre cooperadores e não-
cooperadores há o movimento de unificação e submissão de todas as outras esferas da vida
àquela hegemônico. No entanto, diferentemente do que interpreta Derrida353, em Schmitt não
há um fechamento necessário da ordem. Ao menos, interpretamos a teoria schmittiana, não
obstante incoerências com o restante do pensamento, como uma abertura constante. Sem
dúvidas, o jurista hesita quando combate pela ordem e tenta afastar qualquer possibilidade de
destruição da unidade política, mas nas entrelinhas mesmo do seu texto deixa escapar que não
há como estabilizar a ordem, uma vez que sua garantia é sempre precária, provisória,
dependente dos jogos de antagonismo: a identidade ou estabilidade da ordem seria assegurada
apenas por uma instância externa e última o que, a esta altura, já não é mais possível: a
relação do corpo social é a causa imanente da ordem, recusando as narrativas de constituição
do corpo social através de um poder transcendente ou da figura do indivíduo racional que
calcula perdas e danos no contrato de criação da cidade. Em suma, o político é o campo da
experiência ou dos afetos. Ao deslocar seu jogo argumentativo para a imanência, a
contingência assume o centro da ação política e aquele afeto mais intenso – capaz de se
configurar tanto como uma força centrípeta quanto como uma força centrífuga em relação à
ordem, pois intensidade impessoal baseada no conflito que provoca a co-instituição da ordem,
como uma potência constituinte, mas também com uma potência destituinte – se transforma
na causa imanente da ordem. Denominamos esta forma assumida como uma invariância da
multiplicidade. Esta característica provoca o fenômeno de totalização do político, bem
diferente dos totalitarismos, pois a unidade política é sempre a unidade suprema porque nivela
todas as outras relações através de afinidades e similaridades (não como uma Artgleichheit,
mas sim como uma Gleichartigkeit) e impede os outros agrupamentos conflitantes de
convergir até a hostilidade extrema (a guerra civil), mesmo que sua possibilidade,
evidentemente, não possa ser extirpada por normas. Ao mesmo tempo em que assevera a
tendência à totalização da política, mantém-se a abertura constitutiva, ou seja, a dialética entre
abertura e fechamento, das Politische e die Politik é proposta como estrutura da teoria

353
Derrida sustenta a tese do fechamento da ordem em Schmitt. Ao contrário, tentamos demonstrar o inverso: a
infinitização da dupla inscrição do político. Cf. 1.9.
339

política. No lugar onde exista essa unidade, os conflitos dos indivíduos ou dos grupos sociais
podem ser resolvidos de maneira tal que exista uma ordem, ou seja, uma situação normal, mas
nunca definitiva ou natural, visto que multíplice e não suscetível de síntese que reconcilie em
definitivo. A unidade mais intensa está ou não está no caso; ela pode se dissolver, e então a
situação normal desaparece, porém, ela é sempre irremediavelmente unidade, mesmo que se
dê como unidade provisória ou meramente hegemônica. Diferentemente, das utopias e
totalitarismos pacificadores, não há possibilidade lógica de apaziguamento do corpo social,
visto que a stasis que a constitui não se arrefece por decreto.
(v) O político se manifesta na sua imediatidade como pólemos e quando, por um
instante, a intensidade da relação forma a distinção entre amigos e inimigos, dá-se ali a
diferença ontológica política: uma configuração existencial cujos valores e notas são
incompatíveis uns com os outros. É precisamente o outro e sua impossibilidade que co-institui
a unidade. A polemicidade, portanto, traz consigo a necessidade de uma relação heterogênea
conflitiva, ou seja, um âmbito da vida humana caracterizado por uma oposição existencial ao
outro que, por via indireta, termina por afirmar a identidade hegemônica da unidade política.
Se o político é marcado por um grau extremo de intensidade entre grupos humanos, então tal
relação, paradoxalmente, tem como questão anterior à associação ou dissociação, o conflito:

na realidade concreta da existência política não reinam ordens e normas abstratas,


sendo, ao contrário, sempre pessoas ou associações concretas que governam outras
pessoas e associações concretas, também aqui, naturalmente, visto de uma
perspectiva política, o 'domínio' da moral, do Direito, da economia e da 'norma'
possui apenas um sentido político concreto (BP, p. 72)354.
Desse modo, o político refere-se ao corpo social imediato como existência concreta diante de
outro corpo cujos afetos se mostram irredutíveis e contrários: marcam a característica da
pluralidade do político, ou como denominamos, a invariância da multiplicidade. O político
pressupõe a relação, isto é, não pode ser considerado pela lógica da exclusão ou da morte, ao
contrário, é o argumento mais radical do ser-com que não visa a morte, mas se dá através da
morte como negatividade ineliminável. A identificação coletiva através do conflito não é
determinada simplesmente pelo conflito em si como luta que visa simplesmente a destruição
do outro, aliás, nada mais equívoca ao se tratar da questão do político: a identidade e
alteridade se referem ao tipo da relação que se instaura, isto é, relação marcada pela diferença.
Esta é a pedra de toque de toda problemática schmittiana e nossa formulação a partir da

354
BP, p. 72: "in der konkreten Wirklichkeit des politischen Seins keine abstrakten Ordnungen und Normen
reihen regieren, sondern immer nur konkrete Menschen oder Verbände über andere konkrete Menschen und
Verbände herrschen, so hat natürlich auch hier, politisch gesehen, die 'Herrschaft' der Moral, des Rechts, der
Wirtschaft und der 'Norm' immer nur einen konkreten politischen Sinn"
340

diferença política como diferença ontológica depende, em última instância, do correto


assentamento desta questão. A diferença como a contingência radical da condição humana
apresenta o político como destino trágico.
No entanto, como vimos, há uma relação subjacente entre guerra e político: para
Schmitt, embora o político seja caracterizado por ser uma relação polêmica e extrema, não há
identificação entre político e guerra, mas uma pressuposição sempre presente, pois a guerra
não é o objetivo, mas o pressuposto como afeto355 é “a realização extrema de inimizade (…)
tendo antes que permanecer existente como possibilidade real” (BP, p. 33)356. A eventualidade
do conflito garante a lógica política como comportamento polêmico, mas não se determina
como belicista, militarista ou imperialista, pois embora a guerra seja um ato político, este não
é a origem da política, mas sim a disposição à guerra que, nomeadamente, Schmitt refere-se
como atitude polêmica, ou melhor, como afeto do antagonismo. Portanto, a polemicidade ou a
disposição à guerra e não a guerra em si é a estrutura política originariamente antagonística já
que é a partir desta extrema possibilidade que a vida humana adquire seu sentido mais
elevado, qual seja, especificamente político357. O que interessa em nossa interpretação é saber
como nas teses de Schmitt a demonstração de uma originariedade da hostilidade caracteriza o
político, ou melhor, como articular esta polemicidade concreta – que se manifesta, em última
instância, no conflito que põe em jogo vida e morte e, por conseguinte, mobiliza o ser humano
numa dimensão pragmática – e sua necessidade sem apelar para um fundamento ou princípio
metafísico ou formal:

A guerra, disposição para a morte por parte dos homens em combate, a morte física
de outras pessoas que estão do lado do inimigo, nada disso tem um sentido
normativo e sim apenas um sentido existencial, mais precisamente na realidade de
uma situação do combate real contra um inimigo real e não em quaisquer ideais,
programas ou normatividades. Não há nenhum fim racional, nenhuma norma por
mais correta que seja (…) nenhuma legitimidade ou legalidade que possam justificar
o fato de que, por sua causa, os seres humanos se matem uns aos outros. Se tal
extermínio físico da vida humana não ocorre a partir da afirmação fática da própria

355
O conceito do político de Schmitt não é guiado pela guerra nem mesmo estão ausentes no político os afetos,
tal como Derrida insiste. Ao contrário, partindo da chave de leitura do político como relação entre corpos ou
afetos, pode-se elaborar uma precisão categorial: o afeto que determina o conflito é o antagonismo. Quando
Schmitt se refere ao conflito entre amigos e inimigos, ele teria em vista a questão do afeto do antagonismo como
determinante e não a luta em si, uma “pureza impura” ou um transcendental a priori. Sobre isso, em parte, cf.
Derrida 1.9, no qual o argelino expõe o problema da circularidade entre inimigo, política e guerra.
356
O trecho inteiro é, BP, p. 33: “Der Krieg folgt aus der Feindschaft, denn diese ist seinsmäßige Negierung
eines anderen Seins. Krieg ist nur die äußerste Realisierung der Feindschaft (…) wohl aber muß er als reale
Möglichkeit vorhanden bleiben, solange der Begriff des Feindes seinen Sinn hat”.
357
Ao contrário de Strauss, que interpreta esta escolha pela seriedade ou guerra como uma escolha moral;
preferimos interpretá-la como a convicção não assumida de uma ontologia do político.
341

forma existencial perante uma negação igualmente fática dessa forma, esse
extermínio não pode ser justificado (BP, p. 49-50)358.
Neste excerto, Schmitt argumenta sobre o caráter pragmático do político: não há
normas nas quais se possam fundamentar a ordem política, pois o político carrega esta
contingência originária consigo, qual seja, para além de legalidades ou legitimidades, é o ato
concreto que institui polemicamente a ordem diante do desafio posto pela decisão contra um
inimigo real359. Para ele, esta estrutura justifica a existência política: a decisão polêmica e
discriminatória sobre a exclusão, sem fundamentos normativos, visto que baseada na
existência concreta de uma comunidade marcada pelo conflito que a partir disso constitui sua
identidade e torna-se política. Na verdade, o político é caracterizado como esta comunidade
do conflito e a decisão sobre a guerra mostra ainda o trágico no político: apesar de não o
caracterizar enquanto tal, a possibilidade real e presente sobre a morte física dá a chave de
leitura para o político como momento fundamental da vida humana, ou seja, aquele afeto mais
intenso e, sobretudo, aquela relação que co-institui a identidade polêmica via emergência do
dissenso. Ao afirmar na sequência do texto que não se pode fundamentar guerra alguma com
normas éticas ou jurídicas (“Auch mit ethischen und juristischen Normen kann man keinen
Krieg begründen”), o Schmitt propõe a tese do existencialismo político como uma tese
pragmática, ou seja, são as relações concretas de poder (ou como preferimos, os afetos como
intensidades impessoais de antagonismo) e não princípios racionais ou normativos que
determinam o corpo político:

na realidade concreta da existência política não reinam ordens e normas abstratas,


sendo, ao contrário, sempre pessoas ou associações concretas que governam outras
pessoas e associações concretas, também aqui, naturalmente, visto de uma
perspectiva política, o 'domínio' da moral, do Direito, da economia e da 'norma'
possui apenas um sentido político concreto360.

358
BP, p. 49-50: “Der Krieg, die Todesbereitschaft kämpfender Menschen, die physiche Tötung von andern
Menschen, die auf der Seite des Feindes stehen, alles das hat keinen normativen, sondern nur einen
existenziellen Sinn, und zwar in der Realität einer Situation des wirklichen Kampfes gegen einen wirklichen
Feind, nicht in irgendwelchen Idealen, Programmen oder Normativitäten. Es gibt keinen rationalen Zweck, keine
noch so richtige Norm (…) keine Legitimität oder Legalität, die es rechtfertigen könnte, daß Menschen sich
gegeseitig dafür töten. Wenn eine solche physische Vernichtung menschlichen Lebens nicht aus der
seinsmäßigen Behauptung der eigenen Existenzform gegenüber einer ebenso seinsmäßigen Verneinung dieser
Form geschieht, so läßt sie sich eben nicht rechtfertigen”.
359
A questão em jogo nesta característica é compreender o político nem como um convite à destruição do
inimigo nem como homogeneização global, mas sim como pluralidade e diferença (ôntica) radical: o outro é que
me constitui e, em última instância, precisa-se dele como um externo constitutivo para existir. Digamos,
portanto, que o político é a forma extrema do ser-com, ou melhor, do ser-diante-da-morte. Apenas em uma
sociedade de cumpridores de normas teríamos o sossego propiciado pela falta de pluralidade, mas logo veríamos,
parafraseando Wittgenstein, que sem conflitos não teríamos como andar.
360
BP, p. 72: "in der konkreten Wirklichkeit des politischen Seins keine abstrakten Ordnungen und Normen
reihen regieren, sondern immer nur konkrete Menschen oder Verbände über andere konkrete Menschen und
Verbände herrschen, so hat natürlich auch hier, politisch gesehen, die 'Herrschaft' der Moral, des Rechts, der
Wirtschaft und der 'Norm' immer nur einen konkreten politischen Sinn".
342

Ora, este é o incômodo que as abordagens do realismo político causam. Entretanto, o


argumento do político tem como principal vantagem a consideração da desestatalização da
política, a partir de um ponto de vista não liberal ou antiliberal, sem implicar numa
despolitização, isto é, ainda se opondo às neutralizações econômicas e técnicas através da
compreensão do político como diferença e antagonismo. Parece-lhe incontornável a
problemática relação entre razão e ação: não há uma finalidade, valor ou forma jurídica a ser
realizada a partir da qual se alcança a legitimidade ou justificação como adequação entre ação
e razão ou moral. Pelo contrário, o das Politischen implica na direção da ação a partir dela
mesma como afeto de conservação/expansão do corpo político, isto é, a teoria do político
como relação e antagonismo desconstroi a metafísica política e recoloca a questão do sentido
da ação na finitude, tomando o político no seu caráter concreto e afetivo. A crítica às políticas
da transcendência desempenha a mesma função da crítica ou desconstrução da metafísica,
sobretudo, quanto à relação entre racionalidade e ação, desconstruída pela compreensão da
ação política na diferença e não como cisão de instâncias ou identidades essenciais: a
pergunta sobre a validade da ação, afinal, é metafísica e pressupõe a articulação bipolar entre
transcendência e imanência que, neste momento, Schmitt esboça uma rejeição – bem como
em sua teologia política – para considerar apenas a co-instituição como abertura e pluralidade,
o argumento refaz a distinção entre ser e aparecer por outra, qual seja, a distinção entre
política e político, mesmo que à custa da semântica política. Além disso, ao realizar esta
manobra, Schmitt logra inesperada virtude ao indicar a distinção entre transcendência e
imanência: a política ou ordem como resultado dos corpos e afetos em conflito não é outra
coisa do que arranjos hegemônicos dessas relações concretas. Se há transcendência ou
paradigma a ser considerado como legitimador, não é outro senão a própria imanência; se há
configuração de ordem e unidade, estas derivam das relações de antagonismos e, por isso, se
dão na imanência e qualquer transcendência, por exemplo, a unidade política e ordem
jurídica, dá-se na e a partir da imanência, pois uma vez achatadas em uma só esfera, elas se
mostram co-extensivas. Ação e fundamento se confundem: não cabe a pergunta se a ordem
vale ou não vale, mas sim se ela existe ou não existe o que implica, ao invés de análises de
normas para alcançar a justiça ou a liberdade, uma análise de afetos para saber qual deles
compõe uma estrutura política adequada aos desejos de justiça e liberdade.
Assim, o político em Schmitt faz referência não apenas à relação e a afetos, mas
também a uma espécie de vazio originário, impossibilidade normativa ou falta e lacuna que a
própria noção de relação exige: assume a constituição da ordem no plano imanente como
precária, contingente e impede a compreensão da decisão ou coação à ordem, ao invés da
343

transposição institucional guiada por uma forma representativa e, por conseguinte,


legitimadora no sentido normativo. A categoria do político reinterpretada aqui não pretende
preencher esta lacuna ou vazio originário, pois seria cometer o mesmo erro da teologia
política. Por isso, afasta-se da simetria decisão e representação, teologia e secularização, além
de problematizar a relação entre imanência e transcendência ao elaborar uma espécie de
política da imanência que determina o das Politische através da noção de relação e afetos e
não através de uma substância ou essência. Desse modo, o político pode referir-se a qualquer
atividade desde que estabelecida por uma referência a relações concretas361, isto é, nem
abstrato nem universal ou a priori:

contraposições religiosas, morais, entre outras, intensificam-se como contraposições


políticas e podem provocar o agrupamento do tipo amigo-inimigo; porém, se ocorrer
este agrupamento de combate, a contraposição que dá a medida (maßgebende
Gegensatz) deixa de ser puramente religiosa, moral ou econômica, mas sim
362
política .
Isto significa que a politização das relações humanas seria dada por uma relação cujo
conhecimento é sempre post factum ou in re. A postura anti-essencialista provoca uma
imprevisibilidade do fenômeno e o torna indelimitável: não é por outro o motivo que Schmitt
prefere o adjetivo “político” ao substantivo “política”, pois o que interessa não é uma esfera
de coisas políticas, mas relações políticas, delimitando a ação não como uma questão de
normas, mas de afetos e diferença.
(vi) A partir do conceito de relação e de oposição pressupostos na lógica constitutiva
da politicidade, outra característica se apresenta: a ilimitabilidade. Porque se expressa em
qualquer relação social que alcance o grau de intensidade em associação e dissociação,
potencialmente qualquer relação pode tornar-se política. Assim, a autonomia do político se
expressa na sua irredutibilidade e especificidade em relação aos âmbitos da experiência, pois
não se reduz a uma esfera determinada, podendo contaminar e transformar qualquer relação
por mais anódina que pareça em uma relação política desde que alcance o momento intenso
da polêmica ao produzir consenso e dissenso, amigo e inimigo com a possibilidade do
conflito real, ou seja, transformar mera quantidade de poder em qualidade política. Tal
passagem ou transformação se realiza no âmbito dos modos do afeto, isto é, não depende de
qualquer instanciação de qualidades a partir de normas – como no realismo fraco –, mas
apenas da caracterização especificamente política, pois para Schmitt, na leitura que

361
DEUBER-MANKOWSKY, 2008.
362
BP, p. 36: "(das) religiöse, moralische und andere Gegensätze sich zu politischen Gegensätzen steigern und
die entscheidende Kampfgruppierung nach Freund oder Feind herbeiführen können. Kommt es aber zu dieser
Kampfgruppierung, so ist der maßgebende Gegensatz nicht mehr rein religiös, moralisch oder ökonomisch,
sondern politisch (...) Nichts kann dieser Konsequenz des Politischen entgehen".
344

realizamos, assim como não há distinção entre político e público, também não há distinção
entre político e legítimo, esquema e conteúdo, experiência e forma. Assim, por mais que
deseje a durabilidade da ordem, a energia do político impede qualquer fechamento
transcendente. O autor arremata esta peculiaridade do político enquanto relação e conflito ou,
em uma palavra, enquanto polemicidade – intensidade que não conhece fronteiras
estabelecidas por sua própria natureza – ao estabelecer a necessária consequência do conflito,
antecipando, da sua maneira, a noção de políticas virais e os movimentos políticos fora da
institucionalidade363. Daí revisitamos a tese da totalidade do político, pois da maneira como
foi caracterizado torna-se, na verdade, um relação ubíqua dotada de força irresistível e
ineliminável. É necessário ainda considerar que a correlação entre político e política expõe
um paradigma da atuação desta dupla inscrição: o paradigma da fluidez. Se, por um lado,
como já criticado, o paradigma da rigidez, revela a burocracia, normatividade e
procedimentos como força de imunização dos desejos sociais; aquele, o paradigma da fluidez,
refere-se à intensidade, conflito, expansividade e movimento de deslocamento. Diante da
pergunta: o que está além do político? Schmitt teria a seguinte resposta: nada (está além do
político). Assim como não é possível pensar uma sintaxe fora do uso (fora da linguagem ou
fora do mundo), também não existiria algo que escapasse da lógica viral do político. Neste
caso, um outsider é a negação da ausência e finitude que carrega o corpo social, a rigor, seria
mesmo a negação de relação, uma vez que pensa o sujeito sem desejo ou antagonismo, numa
palavra, sem afetos ou corpo. Ojakangas se refere à impossibilidade em questão quando
afirma que existe apenas uma transcendência imanente da exceção (OJAKANGAS, 2005).
Caso levemos a sério as teses schmittianas, o político como destino, assim como a morte, sua
tendência à totalização não se refere ao monopólio do tipo instaurado pelo Estado, mas sim de
outro modo: nem rígido nem monopolístico, pois seria contraditória uma totalização estável, a
noção de totalidade que se pode construir através das teses schmittianas seria a de uma
totalidade resiliente a movimentos internos e externos, uma totalidade fluída não composta
por objetos ou subtâncias, mas corpos que interagem, ou seja, relações e diferenças que se
constituem em ordens provisórias. A noção de intensidade é fundamental para compreender
esta característica: a intensidade é o que determina a aquilo que é politicizado. A politicização
é, dessa forma, algo da ordem do evento, construindo após sua ocorrência,
retrospectivamente, sua validade, ou melhor, demonstrando que não há diferença entre

363
Ao aliar uma reflexão filosófica com aparatos da ciência política, Arditi desenvolve uma teoria da viral
politcs que pode ser definada, de maneira simples, como aquelas ocorrências do político fora dos esquemas
conceituais ou institucionais, por exemplo, manisfestações de massa, os refugiados ou qualquer movimento de
corpos que ponham em jogo a questão dos limites nromativos da ordem, cf. ARDITI, 2010.
345

validade e faticidade, normativo e descritivo, uma vez que não é possível distinguir a
racionalização da legitimação da ordem de sua propróia ocorrência enquanto ordem: tal como
um jogo de linguagem, o que se apresenta nas teses de Schmittt é uma rejeição da diferença
entre imanência e transcendência ao sustentar que, afinal, qualquer transcendência é da
imanência e encontra suas bases num momento mais íntimo do que assume. Assim, num self-
grounding phenomena (VIRISANOVA, 2011, p. 10) ou “to everything that surrounds or falls
outside of it” (MARDER, 2005, p. 19) qualquer diferença pode ser politicizada, e nisto
consiste o caráter total do político: a passagem da quantidade para a qualidade do político é
dado por uma relação que põe em jogo a eventualidade da morte num lance de vontades do
corpo social. Se esta energia ou força centrípeta pode ainda assustar por seu irracionalismo
assumido ou até por um cinismo calculado em declinar a validade universal à configuração de
poder particular, a alternativa em fazer cumprir normas e procedimentos legais não soa, a esta
altura, menos estranho nem, certamente, mais eficaz.
(vii) É, precisamente, a relação de inimizade que de-põe e irrompe a identidade: a
diferença a que se expõe é sempre uma transcendência da relação imanente, ou seja, refere-se
ao contingente, é, por conseguinte, ininstitucionalizável e, no limite, não-conceitual. Numa
palavra, a fundação da ordem sob o incômodo elemento irracional. Todavia, dito assim, algo é
movido no interior da teoria política que precisamos ainda elaborar. No final da década de
1920, Schmitt realizou o political turn: o movimento de tentativa de ruptura da distinção entre
transcendência e imanência ao justificar a ação política através desta última, ressaltando a
questão da autonomia do político. A pressuposição de uma ideia ou forma de direito é
abandonada e o problema da legitimidade passa a ser considerado como um problema
concreto que implica a existência de contraposições ou antagonismos como condição para a
organização política. O tema em questão é sobre a possibilidade da ação política sem critérios
racionais (institucionais ou normativos) e da transcendência, seja ela de que tipo for, no
interior da imanência. Aliás, a teoria do político torna-se um sintoma da crise da estatalidade e
da ausência de fundamento, como já exposto, ou seja, um deslocamento da questão do sujeito
(da decisão) para a relação como diferença enquanto diferença, nesta releitura, como afeto do
antagonismo. Neste quadro teórico, a ação política é singular, dá-se na negatividade e daí
assume sua característica desestabilizadora. Ao compreender os dualismos e cisões
schmittianas num grau crescente de concretude e contingência, percebe-se que aquilo que
possibilita a ação política não é alheio à própria ação, por isso a leitura finitista ou monista:
Schmitt é responsável pela ruptura da compreensão normativa da ordem e, ao perceber, resta-
lhe como dado bruto a relação de antagonismo como aquilo que, efetivamente, produz e dá a
346

medida, isto é, ordem política alcança uma validade in re, uma perspectiva interna, no caso,
através das relações dos corpos sociais, nomeadamente, dos afetos que compõem estes corpos.
Esta distinção que nas obras anteriores se referia à decisão e forma, exceção e excesso,
político e ideia, no Der Begriff des Politischen torna-se um abismo que revela como algo
irrepresentável, incodificável, pois se mostra anterior e, paradoxalmente, o fundamento
negativo como das Politische em contradição com die Politik: este se refere ao poder
institucionalizado; aquele, ao conflito, heterogeneidade e pluralidade de relações, constituindo
uma dialética entre ordem e conflito364. Ao afirmar que a anterioridade e autonomia do
político diante do Estado ou de qualquer paradigma normativo anterior, Schmitt adota a
determinação fenomenológica mais próxima às práticas do que aos conceitos universais ou
critérios abstratos da mediação política. Assim, sua Kehre afirma que o político não se
restringe ao Estado, uma vez que este é apenas um status ou modo de aparecer hegemônico,
uma forma institucional derivada da relação e do conflito e, por esta contingencialidade da
forma, põe em questão a dialética entre ser e aparecer. Esta dialética própria da estatalidade
moderna esconde a violência na formação da unidade política e busca uma medida
transcendente, essência ou origem como condição não política da política, isto é, nega a
compreensão da política como conflito e relação por instâncias apolíticas ou morais, ao invés
da relação e do sentido concreto.

***

Nesta seção, resta apontar alguns traços para uma ontologia do político a partir da
diferença entre política e político. A oposição mais intensa teria a capacidade de transformar
mero agonismo, concorrência ou oposição em um antagonismo político. Entretanto, o que
significa afirmar que este antagonismo político, ao envolver afetos numa relação ao extremo,
transforma ações e relações em algo político? A pergunta pode ser colocada de outra forma:
seria possível conceber algo concreto que perapasse todas as relações políticas e através dessa
universalidade concreta propor que funcione como um princípio de realidade? Ao propor uma
ontologia do político, surge a pretensão de análise de algo que atravessa toda a realidade na
forma de um princípio de inteligibilidade do real, mas que, não funcione nos moldes de um
fundamento, ao contrário, como uma condição necessária nos moldes de um transcendental
histórico. Mesmo essa proposta estaria em apuros, pois poderia exigir-se que tal princípio da

364
Benjamin Arditi traz esta mesma compreensão ao afirmar sobre Schmitt: “He is advancing a claim that in a
way mirrors the ontological difference in Heidegger and brings to mind Claude Lefort’s claim that we should not
confuse the political with its historical modes of appearance (…) the political in Schmitt will always be
excessive vis-à-vis its concrete manifestations”. (ARDITI, 2008, p. 13-14).
347

realidade seja algo fora da realidade, sobretudo, quando se trata de filosofia política. De outra
forma, a violência ou a mera faticidade das relações sociais não poderiam conceder nenhum
princípio ou forma à experiência nem mesmo a consideração de uma natureza intrínseca ou
final do ser humano, tal como uma antropologia (pessimista ou otimista). Neste ponto,
lançamos o pressuposto de que esta ontologia do político a ser construída, se for possível,
sustenta-se numa concepção de que a totalidade das coisas ou modos de coisas, a rigor, a ação
humana, só poderia ser compreendida através dos afetos que estas relações constituem365 366.
Um dos principais elementos para imaginar a ontologia em questão é a marca do
político como totalidade. A partir da totalidade imposta pela lógica do político, cada relação
pode alcançar o grau de intensidade e, portanto, passa a ser considerada através do não espaço
do político que significa incerteza e desapropriação do comum. De certo modo, a leitura de
Derrida expressa este espectro do inimigo e da guerra presente em todo laço social. Por nossa
vez, analisamos este espectro como a ameaça da ausência e lugar vazio do poder, e até mesmo
o momento institucional pode ser compreendido como a estrutura residual que se sedimenta
como momentâneo cessar fogos dos afetos em cadência. As apostas na origem ou
fundamento, ao invés de determinar como algo positivo, mostram sua negatividade insolúvel.

365
Ao comentar acerca da ontologia imanentista de Espinosa, Diogo Pires Aurélio, mais uma vez, joga luzes em
um importante antecedente da tese aqui proposta: “[a] inserção do político numa ontologia imanentista leva, em
primeiro lugar, a negá-lo como espaço imune à conflitualidade, tal como Hobbes o pretendera, um espaço de
onde a violência estaria ausente porque ficara, mediante o pacto, concentrada toda numa pessoa, soberana e
racionalmente legitimada, que do exterior do corpo social imporia as condições da paz (...) O político em
Espinosa é, pelo contrário, ainda e sempre um modo da natureza (...) a atividade de cada ser constitui sempre um
esforço de libertação, de redução de dependência. Não quer dizer que q única situação imaginável entre os
indivíduos seja a de conflito. Os indivíduos, da mesma forma que podem entrar em guerra e, com isso, aumentar
conjuntamente a impotência, podem igualemente encontrar modos de cooperação mutuamente vantajosa, não
universal nem definitivamente, mas em agregados mais ou menos ocasionais, formados por situações ou desafios
comuns que geram afetos igualemente comuns (...) superando as divergÊncias e anulando, tendencial e
provisoriamente, a instabilidade nas relações” (AURÉLIO, 2004, p. xx). Na ontologia que propomos, todavia,
não há nehuma dinâmica afetiva ou passional para suspender o antagonismo.
366
Dentre as referências imprescindíveis para compreender esta proposta, está Espinosa. Em sua contraposição à
teoria do contrato de Hobbes, mantem intacto o direito natural, isto é, o direito que cada um possui se refere à
sua potência, ou seja, a capacidade de afirmar e realizar o que deseja (AURÉLIO, 2004, p. xvii). Visto que a
natureza é o todo, não há exterior ou limites, ele evita propor formulações sem conteúdo, universais,
despreendidas da prática e relativas ao contexto de ação. Numa palavra, conflito e relação imanente aproximam
Schmitt de Espinosa. Dessa forma, apostamos nesta tese da ausência da transcendência tradicionalmente
interepretada como o infinito ou o fora: “na impossibilidade de encontrar a fundamentação em qualquer
transcendência (...) a política somente pode ser pensada na imanência e como configuração específica do
relacionamento entre esses modos da natrueza que são os seres humanos” (AURÉLIO, 2004, p. xlii). Ou ainda
no trecho a seguir: “essa forma de encarar o político como um processo relacional e como continuação do estado
de natureza não equivale, porém, a extrair a conclusão aristotélica segundo a qual o homem seria naturalemente
sociável. Pelo contrário, trata-se de um pocesso que é tanto associação como de conlfito (...) considerar, pois, a
natureza como horizonte inultrapassável do político significa integrar o político num horizonte de conflitualidade
e contingência, onde não obstante os homens se unem de forma mais ou menos duradoura consoante os afetos
comuns que estabilizam e predominam em dado momento” (AURÉLIO, 2004, p. xliii). Na doutrina espinosana,
“o corpo político ou república é tão-só a forma como a sua potência, sem jamais suturar a conflitualidade que em
si lateja e intrinsecamente a constitui, se afirma coesamente através de um regime ou conjunto de normas que
normalizam e preservam duradouramente a interação evolutiva de seus membros” (AURÉLIO, 2004, p. xliv).
348

Este caráter de ambiguidade e ubiquidade mostra que o político não seria uma coleção de
objetos nem relações específicas ou procedimentos e critérios universais, mas um evento que,
ao ocorrer, a comunidade é exposta à vida e à morte. Evidentemente, nas teses schmittianas
encontramos, ao menos em parte, aquilo que Bataille denomina de “horizonte sacrificial da
filsoofia política”, mas de modo diverso dos demais, pode-se sustentar que o afeto do
antagonsimo, como aquilo que mais basilar, move de modo pleno o corpo social, bem como a
noção de que o afeto que conduz o corpo social.
O rastro da totalidade do político nos libera para pensar uma ontologia do político,
isto é, sua concepção como algo necessário dentro da finitude, pois todas as partes envolvidas
pelo mesmo fluxo afetivo. Dessa forma, a noção de que o politico se refere à energia ou à
intensidade367 ou ainda, como preferimos, esta tendência totalizante do político ratifica que é
impossível esboçar ou traçar limites, pois se aproxima da imagem de uma fronteira, bem
como indica que as dualidades tradicionais já não funcionavam diante da leitura imanentista.
A ontologia é, por assim dizer, um sucedâneo improvisado e mal-visto para a ausência de
substância e perda de transcendência: como todas as bipolaridades e simetrias se dão nos
jogos entre forças e afetos, ao menos algo neste jogo é universal, qual seja, no que se refere ao
corpo social aquele afeto mais intenso que é posta em jogo não como a possibilidade da
morte, mas sim como Derrida mesmo reconhece “esta pulsão mortífera do amigo/inimigo
procede da vida e não da morte, da oposição a si da vida enquanto que se afirma ela mesma, e
não de algum tipo de atração da morte pela morte ou para a morte” (DERRIDA, 1998, p.
146). Assim, nesta ontologia, a passagem da potência para o ato não é determinado pela morte
propriamente dita – o que a distancia de críticas em relação à crueldade ou violência de suas
teses – mas, pelo contrário, o antagonismo surge como potência transformada em ato e aqui
temos a emergência da abertura ontológica: o político como negatividade permanente (e a

367
Para Nietzsche, a consciência é, a rigor, algo tardio em relação ao nível fisiológico, que por sua vez consiste
num desencadeamento de forças (cf. KSA 11, 27 [3], p. 275), ou seja, “luta por potências dos quanta de
vontade” (MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 126). Assim, consciência é apenas uma excrescência do
desencadeamento de forças, como um “impulso que subordina a si uma multiplicidade de impulsos e forças”
(MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 128). De maneira contrária à postura da simplificação falsificadora do medo
contra à instabilidade e à abertura, Nietzsche toma a profusão de vontades e consciências (vontade de potência)
como algo não apenas de facto, mas também de juri; assim, como algo estrutural, a perspectiva afirmada não se
constitui como mais um princípio da metafísica, mas como algo relacional e, enquanto tal, irredutível a uma
perspectiva unitária, pois Nietzsche “não busca, de maneira nenhuma, deduzir o múltiplo a partir de um
princípio; ao contrário, para ele tudo o que é simples se apresenta como produto de uma multiplicidade efetiva
(...) trata-se aqui de eliminar o mal-entendido de que, por fim, a multiplicidade remete ainda a uma ‘unidade’
última da qual ela surge no sentido de uma arché (pois) (...) não é necessário colocar uma unidade atrás da
multiplicidade dos afetos” (MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 66). Na leitura de Müller-Lauter, contrapondo-se à
interpretação heideggeriana, “com seu discurso da unidade do múltiplo, Nietzsche não visa a uma raiz
metafísica, mas a uma relação recíproca: dependência dos múltiplos entre si que se dá no conjunto de um mundo
único” (MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 67, grifo do autor).
349

diferença entre político e política) como a potência constituidora. A rigor, o framework da


ontologia do político é aquele que reflete mais a potência do que o ato: antagonismo e
intensidade são suas categorias elementares com a especial característica de, por um lado, não
adotar um ponto de partida ou fundamento (cf. seção 3.3), por outro, não adotar um ponto de
chegada ou teleologia. Nestes termos, Szabo (2006) elabora uma expressão precisa, segundo
ele, o critério do político schmittiano adquire uma “infinite character”, transformando tudo
aquilo que toca:

O político, como critério, é de caráter expansivo; é apenas um aspecto, mas esse


aspecto tem a capacidade de se referir a qualquer coisa, pelo que é infinito, não
circunda e esgota o assunto, mas o toca. A distinção entre amigo e inimigo pode
investir tudo sem criar uma esfera social limitada. Um dos corolários do político é
que a política tardia-moderna parece ser uma substância infinita que penetra a vida
como um todo, enquanto que não abandona a independência das outras esferas
sociais (SZABO, 2006, p. 33).
Esta ontologia do movimento infinito que o político desencadeia uma espécie de
parisitismo ou característica viral que contamina sem limites tudo o que toca, como sustenta
ainda Virisonova:

Este parasitismo, por um lado, resulta da ausência do lugar apropriado do político;


por outro lado, é uma característica definidora da distinção política como tal. A
capacidade de se alimentar das energias heterogêneas não é um resultado da
deslocalização ou deslocamento da política, mas é indicativo do próprio político
como o princípio do deslocamento (VIRISANOVA, 2011, p. 7).
Ao considerar a corpo social baseado em afetos e desenvolver a diferença entre político e
política – na qual avançamos para compreender não algum dos lados da relação (amigo-
inimigo, experiência-forma, conflito-instituição), mas a diferença política enquanto
movimento ou ausência de centro – Schmitt, entre outros, permite a compreensão da dinâmica
da comunidade. Em outras palavras, Schmitt pode ser considerado um dos primeiros teóricos
políticos que se refere ao político como algo da ordem dos afetos. A questão, no entanto, é
mais intrincada: aparentemente, há uma impossibilidade em delimitar as fronteiras do político,
pois princípio de deslocamento, viral e destabilizador, de fato, espectral: ocorre precisamente
aquilo que Schmitt temia, qual seja, não é possivel traçar espaços políticos e outros não
políticos, públicos e privados, combatente e não-combatente, civil e militar, visto que como
potencialmente tudo é político, nenhuma esfera da realidade está a salvo de ser tocada pela
intensidade da relação. Por isso, a condição humana como condição do politico, ou seja, como
horizonte do antagonismo necessário dentro da finitude368. Assim, como afrimar Marder,

368
Poderíamos acrescentar que estas reflexões schmittianas se aproximam de uma análise biopolítica. Em geral,
a pergunta que poderíamos estabelecer é a seguinte: de que forma pensar o político como estrutura afetiva do
antagonismo sem aproximá-lo da figura da morte? Como, por outro lado, estabelecer uma relação entre
político/política fora do horizonte sacrificial dos afetos e aproximá-lo da vida ou da liberdade? Em todo caso, é
350

“Schmitt enquadra sua discussão do político em uma espécie de ontologia negativa, no não-
espaço ou, melhor ainda, no deslocamento de diferentes domínios da ação humana”
(MARDER, 2009, p. 60). Esta ontologia negativa delimita uma ausência ou o não-espaço
como fronteira daquilo que denominamos de movimento ou abertura entre político e política:
não se dá primazia a algum dos momentos, mas ao abismo, ou melhor, à ausência entre ambos
como política autêntica.
Evidentemente, a abertura é marcada pelo conflito em torno da ordem e acarreta um
problema: como evitar que a teoria política sofra de circularidade e configure de fato uma
ausência de si mesmo sem postular algum tipo de fixidez, mesmo como um expediente. Em
outras palavras, como a luta em torno da ausência abdica de pensar o político como ordem,
mesmo quando já constituída, e declara a si mesmo como um mero expediente. Não seria
melhor apostar numa teoria política que deixasse às normas e procedimentos a definição o que
seja liberdade e justiça? Já que o político, neste contexto, é o deslocamento, o devir-outro da
política, como conceber para a prática política – é a prática política que importa, afinal de
contas – o político como aquele displacement, como desterritorialização contínua? Isso
implica renegar a ideia de ordem? A ontologia prepara o caminho para compreender a
despossessão que a comunidade provoca via conflito e ausência de centro da ordem por
assumir como estrutura sua própria inviabilidade. Se fornece um argumento importante para
pensar uma política sem sujeito, longe dos esquemas da subjetividade e do
próprio/propriedade, por outro lado, sofre de um déficit sociológico para transformar em
prática esta possibilidade imagética. Da mesma forma que é impossível pensar o político sem
política, é impossível pensar a política como surgida entre protocolos e atos formais. O
conceito do político, por um lado, evidencia a indeterminação do direito e a impossibilidade
da representação ou transcendência externa; por outro, a tessitura de contradições do corpo
politico expressa o afeto mais potente: o antagonismo, que evidencia a contingência ou a
ausência de fundamento como uma transcedência interna. A imanência da relação, na
estrutura dos afetos do corpo político expõe a ausência de fundamento ou substância, pois
submetido à abertura irredutível do conflito, isto é, a relação como dado mais originário e
negatividade. Na teoria do político, Schmitt assume como ponto de partida que a cisão entre
transcendência e imanência é uma impossibilidade: a autoridade não recebe legitimidade a

válida e presente a questão que Esposito põe acerca da biopolítica: por que a biopolítica transformou-se em uma
tanatopolítica? Da mesma forma, crítica óbvias de teóricos normativistas podem ser antecipadas: em relação à
falta de segurança e certeza, ao déficit de institucionalidade e procedimentos; à rejeição precoce de parãmetros
normativos que servam ao mesmo tempo de horizonte da ação e constituidores de instituições. Compreendemos
tais questões como relevantes, mas estabelecemos outro framework para debatê-las posteriormente.
351

partir de uma instância externa. Desse modo, a organização do poder é engendrada através de
uma relação concreta, mais especificamente, a ação se dá contingência, ou seja, numa in-
finitude entre crise e decisão. A decisão, porém, possui um caráter inédito em relação ao texto
do Politische Theologie: decide-se sobre o inimigo a ser combatido e não sobre as condições
fáticas para a realização do direito, isto é, tem um caráter declaratório e não constitutivo. O
político, como já destacado, parte desta situação marcada pela polemicidade uma vez que o
inimigo concreto, ou melhor, a relação polêmica, é estabelecido por meio da exclusão e da
diferença. O factum brutum do político como hostilidade originária refere-se à distinção do
corpo e dos afetos, ao contrário dos parâmetros universais, inserindo a violência ou simples a
ação sem lastro normativo como constitutiva da ordem. Deste ponto, de uma ontologia do
político insistimos em elaborar a noção de abertura: a constituição de uma ordem a partir dos
afetos que o discurso subjetivista tenta sequestrar demonstra que o antagonismo não apenas se
dá na relação concreta de oposição (diferença ôntica), mas sobretudo na diferença entre
politico e político, por isso, ao invés da ordem, pensamos a ausência e a abertura como tema
para a teoria política.

3.3 A categoria pós-fundacional do político e a noção de abertura

A questão que nos encaminha para o debate acerca da abertura entre o político e a
política é a tentativa de ultrapassamento da estrutura metafísica da dominação: a crítica ao
substancialismo ou essencialismo político que instaura a relação já descrita entre imanência e
transcendência com a pretensão de unidade e durabilidade da ordem política. Se com Schmitt
percebemos a ausência de substância e o conflito como pressuposto político da política,
podemos propor a partir dele uma dialética negativa entre das Politische e die Politik como
uma potente abertura para a compreensão da teoria política que, sem excluir unidade e ordem,
considere estas realidades como constituídas a partir da imanência. Como afeto e relação,
Schmitt deixa entrever a ação através do político: exclui a metafísica da decisão e permite
pensar a ordem como resultado contra-hegemônico das forças em ação. A leitura que
realizamos das teses de Schmitt se aproveita de um contexto de rejeição, esgotamento ou
abandono da transcendência a partir do qual propomos a pós-política, uma política pós-estatal
ou pós-fundacionista. Segundo De Wit (2008, p. 165), o pensamento moderno, em última
instância também o schmittiano (cf., sobretudo, as análises de Voegelin, Strauss, Esposito e
Derrida), se desloca em virtude de uma “sedução da imanência (...) uma negação de toda
352

forma de transcendência” que, conforme sustentamos nesta pesquisa, é o resultado da


secularização, mais precisamente, do argumento de finitude que libera a contingência numa
concepção de mundo que não se estrutura mais metafisicamente. O que nos interessa no
percurso de Schmitt é saber como um autor que critica a ausência de transferência entre
esferas (transcendência e imanência), ou seja, da forma política nos arranjos institucionais
permite esboçar uma compreensão de filosofia política como a que queremos desenvolver
radicada na imanência, mais precisamente, como uma política pós-fundacionista ou,
simplesmente, pós-política. Preliminarmente, algumas pistas podem ser dadas.
Inicialmente, Schmitt pode ser considerado como um defensor da ordem e, mais
ainda, da constituição da ordem pela forma ou ideia por meio da representação. Assim, é
necessário recusar-lhe qualquer rótulo que, sem mais nem menos, aproxime-o de uma postura
imanentista, apesar de conceber algo que, caso fosse levado às últimas consequências, não
teria outro resultado: ele teria preservado um modo de transcendência que não se distingue da
imanência. Exemplarmente, em um primeiro momento, esta transcendência dentro da
imanência aparece na forma da decisão soberana, como o evento fundante da política, mesmo
que tributário de uma forma para além da imanência: a transcendência está presa a algum
evento da realidade concreta e a ela se refere. Dessa maneira, a experiência só ganha forma a
partir da transcendência (OJAKANGAS, 2005, p. 28-29). Mais adiante, porém, a
transcendência não é sequer deslocada da imanência, ou melhor, ela não tem outra origem,
nem está separada da imanência, mas é, precisamente, transcendência da imanência. Esta
crítica da racionalidade ou da separação entre normativo e descritivo, entre ação e
racionalidade, é exposta como uma herança do irracionalismo de Nietzsche, inclusive, algo da
crítica à dualidade entre racional e irracional: aquele se refere ao Estado e suas instituições;
este, à realidade que resiste às conceituações e racionalizações, pois “the formless
unformulable world of the caos of sensations” (DESAI, 2002, p. 395). Esta dualidade seria em
Schmitt, respectivamente, “the immediacy of life” e a “rational interpretation” (DASEI, 2002,
p. 395). Assim, “a natureza conflitual da realidade implica, de acordo com Schmitt, que não
só os conceitos principais da teoria política são polêmicos, mas que sua manifestação real
deve emergir do polemos para ser genuíno” (VIRISANOVA, 2001, p. 4). Aqui temos uma
pista sobre de que tipo seria a ontologia do político que estamos esboçando (tomando vários
insights dos textos de Schmitt). Na verdade, sua crítica ao liberalismo passa pela análise de
como o liberalismo não aceita esta ontologia e, por isso, despolitiza o real, desconfigurando-o.
Neste contexto, podemos afirmar que “o conceito de político de Schmitt representa uma nova
tendência em termos políticos: é uma reflexão auto-referencial sobre a "essência" da política
353

moderna tardia, suas tendências (...) o político é abordado como potencialidade que existe e
pode atualizar em qualquer lugar e a qualquer momento, seja em um evento, decisão,
resistência, revolução, insurreição, inscrição dos excluídos, e assim por diante”
(VIRISONOVA, 2001, p. 5). Schmitt dá nome a algo novo: das Politischen. Entretanto,
gostaríamos de acrescentar que esta concepção se refere à ausência de fundamentação, ao
contexto não normativo, ao papel co-institutivo dos afetos e, por conseguinte, ao fim das
dicotomias uma vez que todas as instituições se referem às práticas, em especial, a
dissolução/ruptura da simetria entre imanência e transcendência, bem como entre faticidade e
normatividade, do universal e do particular. Em todo caso, está em jogo agora a noção de
ausência no interior da teoria política e os textos de Schmitt são úteis como guia para chegar
até este ponto. Todavia, de agora em diante, é necessário dar um passo além do jurista.
Neste momento, pretendemos reforçar a possibilidade de uma teoria do político fora
do paradigma moderno da dominação ou da soberania. Para isso, acolhemos algumas
indicações já expostas nas seções anteriores, dentre elas, (I) trazer novamente a compreensão
dos afetos como elemento mais basilar do corpo político a partir do político como relação de
antagonismo, tal como vimos na ontologia política; (II) a contingência como estrutural ou
transcendental diante do movimento pendular entre político e política e, por conseguinte, a
noção de ausência de fundamento que garante, em parte, uma abordagem pós-fundacionista e
(III), finalmente, a noção de abertura.
(I)
Entre outros, o diagnóstico de Chantal Mouffe sobre o político é elucidador quando
se tem em vista uma reinterpretação do legado de Schmitt em termos de relação e afetos.
Segundo ela, “a principal tarefa da política democrática não é eliminar as paixões da esfera do
público, para tornar possível um consenso racional, mas para mobilizar essas paixões em
direção a projetos democráticos” (MOUFFE, 2000, p. 103). É neste contexto que
consideramos que o político refere-se a afetos e instaura uma rede ou movimento afetivo, um
circuito de afetos, aliás, como já expomos acima. A compreensão daquilo que a tradição
denomina “fundamento” da política é, em última instância, a análise destes afetos ou
movimentos afetivos do corpo social que, porém, desconstroem a noção de fundamento ou de
centro da política. A imunização contra o político ou violência é instaurada através das formas
jurídicas do Estado moderno, diante do medo que permeia todas as ações na narrativa
justificadora elaborada desde Hobbes, ou seja, o que está em jogo são os epifenômenos
institucionais, o movimento daquilo que denominamos “paradoxo do político”. Parece-nos
que este argumento inicial merece ser tratado, mesmo que de relance, em dois pensadores
354

standarts: Platão e Hobbes. Logo após esse breve excurso, esperamos encontrar uma chave
diferente para pensar a instauração do corpo político. Ao invés de privilegiar as análises
através do afeto do medo, da esperança, da liberdade, do desamparo, entre outros, reforçamos
a análise do antagonismo como afeto ou relação constituidora da comunidade.
O que nos interessa em Platão é perceber como já era claro para os antigos a
periculosidade (Gefährlichkeit, para utilizar um termo próximo a Schmitt) instaurada na alma.
Ele sustenta algo neste sentido ao afirmar que “o que queremos saber é o seguinte: que existe
em cada um de nós uma espécie de desejos terrível, selvagens e sem leis” (República, 572b) e,
logo mais, executa a importante passagem do indivíduo ao corpo social: “se, por conseguinte,
o indivíduo é semelhante à cidade, não é forçoso que se encontre nele as mesmas
disposições?” (República, 577d). Sua análise da alma dos seres humanos se realiza em
paralelo com a estrutura da cidade e uma vez que “a cidade está divida em três corpos,
também a alma de cada um tem três partes” (República, 580d). A pergunta do autor poderia
ser a seguinte: como produzir a unidade e ordem na pólis? Evidentemente, sabemos qual é
resposta platônica e não nos causa estranheza o exercício de rejeição do empírico ao associar
a ação diretamente à racionalidade: “quando toda a alma obedece à parte filosófica e não se
revolta contra nenhuma parte, é-lhe possível cumprir em tudo suas funções e ser justa
(República, 586e) (...) o que mais se afasta da razão não é o mesmo que está mais distante da
lei e da ordem?” (República, 587a). Isso tudo já é de conhecimento pleno dos intérpretes.
Todavia, há um trecho interessante, pouco comentado, mas a partir do qual é possível
encontrar uma brecha bastante generosa. Na República, Platão afirma que “alguém que tem a
sua melhor parte tão débil por natureza, que não é capaz de comandar os monstros que nele
habitam, antes os acalenta, a única coisa que aprende é a adulá-los" (República, 590c-d) e no
Livro IX em 558c é comparado a um monstro policéfalo capaz de devorar o homem. Ao que
tudo indica, não é outra a referência que Nietzsche colhe quando trata dos múltiplos afetos no
corpo em detrimento da unidade. No final das contas, até mesmo Platão sabe o que interessa
quando se trata do corpo social: instaurar corretamente os afetos, ou melhor, instaurar os
afetos de modo a neutralizá-los, uma vez que não é possível eliminar simplesmente uma das
partes da alma.
O conceito de soberano em Hobbes atende à mesma lógica: a base da filosofia
politica moderna é a noção de poder soberano que inculca o medo como elemento central da
coesão social. O estado seria o garantidor da segurança, ou melhor, o gestor da insegurança
neste jogo disfarçado de procedimentos e normatividades, mas que lida com o movimento dos
afetos e corpos. Tanto quanto Platão, Hobbes também entende que os corpos políticos se
355

constituem na interação afetiva, numa palavra, na vontade. Da violência legítima entre os


signatários do pacto social não emergiu uma comunidade: sem afetos, mas somente cálculos
racionais, a narrativa originária da modernidade gira em torno da noção de representação, uma
ficção jurídica na qual se funda a política que afirma que vontades diferentes se transformam
em uma unidade volitiva, uma personagem ou máscara da multidão controlada pela estrutura
jurídico-política. Como afirma Diogo Aurélio Pires, “o povo na teoria hobbesiana é a
multidão sem multiplicidade, o uno que subsume a diferença e o conflito numa vontade que é
ao mesmo tempo palavra e espada (word e sword)” (AURÉLIO, 2004, p. xxxii). É por isso
que, mesmo afastando-se do platonismo, pois Hobbes articula o poder soberano a uma
instância colocada no exterior do agregado para domesticar a multidão, mas não universal, ele
“encontra, assim, o platonismo, ao associar também ele o político à neutralização da
desordem passional e a uma elisão da conflitualidade” (AURÉLIO, 2004, p. xxxiv).
Ainda neste contexto, o tema político mais importante das últimas décadas que
retorna à ordem do dia, seja a questão (possibilidade) da comunidade: viver juntos, isto é,
viver em implicação parece que vai além da mera tese antiga do animal político ou do cálculo
racional egoísta dos modernos. A noção de abertura que tratamos entra em discordância com
os valores fundamentais desta semântica política moderna: aquilo que constitui o indivíduo
não foram as lutas pelas liberdades individuais, mas a expressão de uma certa servidão, uma
internalização do processo de disciplinas marcado por uma profundo domínio. Os valores do
indivíduo moderno, sobretudo, o de propriedade (que apesar de ser constituído desde o direito
romano, recebe na constituição moderna do indivíduo um tratamento bastante diferenciado)
leva a modernidade a outro patamar. Como exemplo maior deste significado, podemos pensar
em John Locke e sua concepção determinante da modernidade do indivíduo como proprietário
de sua própria pessoa: a relação consigo mesmo é uma relação de propriedade e, por conta
disso, os indivíduos são portadores de propriedades e entram na vida social, precisamente,
tendo em vista o reconhecimento de sua propriedade, ou seja, como sujeitos de direitos
(subjetivos). A partir do momento em que as relações na sociedade civil passam a ser relações
entre proprietários e o contrato se torna o ato por excelência da relação entre sujeitos (de
direitos) temos uma profunda alteração da vida social e o escamoteamento das relações e
afetos por procedimentos e normas. Ora, estes seriam o meio racional para o banimento das
paixões que turvam a ação política. O esforço desta pesquisa é buscar uma configuração fora
deste paradigma moderno: ao invés da paixão submetida ao cálculo ou o indivíduo como
proprietário ou como próprio, tratar o afeto ininstitucionalizável do antagonismo e a
inadequação do sujeito para pensar a ação, ou seja, ao invés de pensar o “próprio” debruçar-
356

nos sobre o “impróprio” que se dá justamente nas relações que acreditamos, podem ser
repensadas como relações comunitárias rejeitando o caráter contratualista e sua noção de
liberdade marcada pela autonomia do sujeito ou proprietário de si. Para especificar melhor o
que significa cada um destes termos e delimitar mais um pouco o contexto da nossa
argumentação, escolhemos o tema da contingência e na próxima seção a questão da
comunidade.
O ideal de conhecimento e de verdade vigente não apenas na modernidade, mas
desde cedo na tradição política, oblitera o papel dos afetos na construção do conhecimento e
da ação. O banimento dos afetos ou o “horizonte sacrificial” da filosofia política pode ser
indicado, entre vários, por um trecho estratégico de Schopenhauer, segundo o qual “a fim de
vermos que uma apreensão puramente objetiva e, portanto, correta das coisas, só é possível
quando as consideramos sem qualquer participação pessoal, portanto, sob completo silêncio
da vontade, tornamo-nos presente pra nós o quanto todo afeto ou toda paixão turva e falsifica
o conhecimento, sim, como toda inclinação ou aversão , desloca, colore, distorce, não apenas
o julgamento, não, mas já intuição final das coisas” (SCHOPENHAUER, 2002, p. 30) Os
afetos seriam elementos negativos, a vontade e as paixões devem ser silenciadas e excluir
qualquer consideração de ordem pessoal. O sujeito ideal de conhecimento e da ação possui a
característica de um conhecimento e ação puros: destituído de vontade, de dor e alheio à
temporalidade está fora do circuito dos afetos, um sujeito desinteressado. De outro modo,
todavia, compreende Nietzsche esta questão:

De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa


fábula conceitual que estabelece “um puro sujeito de conhecimento, isento de
vontade, alheio à dor e ao tempo”, guardemo-nos dos tentáculos de conceitos
contraditórios como “razão pura”, “espiritualidade absoluta”, “conhecimento em si”;
- tudo isso pede que se imagine um olhe que não pode absolutamente ser imaginado,
um olho voltado para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpretativas, as
que fazem com que ver seja ver-algo, devem estar imobilizadas, ausentes; exige-se
do olho, portanto, algo absurdo e sem sentido. Existe apenas um visão perspectiva,
apenas um “conhecer” perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre
uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa,
tanto mais completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade”. Mas eliminar
a vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o
conseguíssemos: como? – não seria castrar o intelecto (NIETZSCHE, GM, 1998, p.
109).
Ora, a contraposição de Nietzsche sustenta que os afetos não são um fator de
impossibilidade, mas é, precisamente o contrário: a multiplicidade dos afetos torna possível o
conhecimento e, em nosso caso, a ação política. Qualquer ação é expressão da multiplicidade
dos corpos. A herança nietzschiana deixa a porta aberta para a compreensão da ordem não
como uma unidade formal ou jurídica, mas sim como uma constelação de afetos e posições ou
357

conceitos que, não se pode negar, tem alguma repercussão em Schmitt. A orquestração das
vivências humanas com a precariedade da realidade representa o perigo que Platão considera
alimentar e fortalecer o "monstro de mil formas" (República, 589a), fornecendo as imagens do
lado irracional, a parte irascível do homem (República, 604d-605e). Para Nietzsche, ao
contrário, o que está em jogo é o domínio das paixões, não a rejeição ou extirpação dos afetos:
“quanto maior é a força dominadora de nossa vontade, tanto mais liberdade é lícito ser dada às
paixões. O grande homem é grande pelo espaço de liberdade de suas paixões: porém, ele é
suficientemente forte para fazer desses monstros seus animais domésticos”369.
(II)
O pensamento pós-fundacionista que trazemos para o debate sobre a diferença
política se mostra como consequência do tipo de argumentação que serve como raison d’être
deste capítulo. Parece que ao dissolver e rejeitar algumas categorias (lembremos que o que
move esta pesquisa é a dissolução da simetria entre transcendência e imanência a partir de
Carl Schmitt e suas consequências), torna-se inevitável pensar sobre um novo topoi em teoria
política que leva a sério temas como a ausência (de fundamentação), negatividade, violência,
indecidibilidade, contingência, abertura. A delimitação destas últimas constitui a tarefa a ser
realizada nesta seção.
Acerca da contingência, sustentamos a leitura de que a ruptura da estrutura entre
imanência e transcendência, desatada na obra de Schmitt, expõe como o mecanismo de
secularização se enreda com o problema da contingência. Nas obras de Schmitt, sobretudo no
período weimariano, por secularização é compreendido uma estrutura de pensamento que, de
várias formas, delimita uma distância entre transcendência e imanência, entre ideia abstrata e
vida concreta, ao mesmo tempo em que exige uma representação ou uma necessidade de
adequação entre forma e experiência, segundo a qual a particularidade histórica sempre
haveria de ter um resíduo ou matriz universal, por exemplo, no trecho já aludido: “em grande
medida, o lugar de Deus para o homem moderno foi ocupado por outros fatores mundanos
(irdische), como a humanidade, a nação, o indivíduo, o desenvolvimento histórico ou também
a vida como vida por si mesma, em sua total banalidade (Geistlosigkeit) e mero movimento
(...) A isso chamo de secularização”370. No entanto, este mecanismo serviu como modelo para
destacar a transcendência da imanência e, por conseguinte, estabelecer um padrão universal e

369
NIETZSCHE, Fragmento Póstumo 16 [7], da primavera de 1888, KSA XIII, p. 485.
370
PR, 18: “Für den modernen Menschen sind weithin an die Stelle Gottes andere, und zwar irdische Faktoren
getreten: die Menschheit, die Nation, das Individuum, die geschichtliche Entwicklung oder auch das Leben als
Leben seiner selbst wegen, in seiner ganzen Geistlosigkeit und bloßen Bewegung. Das Denken und Empfinden
jedes Menschen behält immer einen bestimmten metaphysischen Charakter (...) Das nennen ich Säkularisierung“
358

necessário que atenda aos requisitos da razão. Em matéria de teoria política – que funcionou
como parâmetro de organização da ordem e unidade do poder político legítimo, isto é, como
critério para distinção entre validade e faticidade, tomando este como um mero arranjo de
força sem o princípio racional previamente decidido – a secularização busca evidenciar a
dimensão contingencial da realidade, desprovida ela mesma de validade ou normatividade.
Uma vez rejeitada, as opções disponíveis não seriam as mais adequadas, pois remeteriam
apenas a algo terreno. Em Schmitt, como demonstramos no capítulo anterior, em uma atitude
desesperada, a decisão política pela realização de um ideal, ou seja, a decisão pela
representação do período weimariano assume a forma política como parâmetro de
legitimidade do poder e transforma o conceito do político em uma chave de mediação do
teológico, retirando-lhe a autonomia e o caráter constitutivo em troca da tarefa da ligação
entre o céu e a terra. Em suma, ao mesmo tempo em que Schmitt aposta no teorema da
secularização como transferência, há uma implicação do gap entre imanência e
transcendência e, por conseguinte, na compreensão de que a realidade fática carece
originalmente de validade, pois o critério racional de avaliação das práticas não é outro senão
o universal, no caso da teoria política em Schmitt, a forma ou representação política, ou seja,
os institutos da ordem estabelecida pelo Estado de Direito. A modernidade, porém, não
consegue conferir forma à realidade371, por isso torna-se necessária a figura do herói/soberano
para remediar o caso concreto e conseguir realizar o ideal no real: no caso grego, um Teseu
para fundar o Estado; para Schmitt, a decisão do soberano. Caso contrário, só restaria a
interminável recherche de la réalité. Seria necessário neste momento, segundo Schmitt, algo
que a partir da imanência se negue como imanência e realize o universal na história.
A questão em jogo, porém, é: ao desvincular racionalidade e ação concreta, o jurista
considera um abismo entre as duas instâncias e o caso fica ainda mais sério quando,
paulatinamente, ele concebe um abandono da transcendência ou da decisão pela ordem estatal
e realiza uma virada rumo à realidade concreta. O abandono da simetria custa um preço muito
alto. Ora, estas são algumas das consequências: (1) a realidade concreta/ação política não
possui mais um horizonte normativo; (2) ela mesma é caracterizada como contingente e tecida
por relações de conflito. Estas consequências do político liberam a contingência e permitem

371
Helton Adverse possui uma leitura lúcida ao tratar deste período da obra de Schmitt em paralelo com
Maquiavel: “ambos os pensadores assinalam a ausência de fundamento último para a política moderna,
respondendo a ela, porém, com estratégias diferentes. Para Maquiavel a perda da transcendência implica a
retomada do político como lugar para a manifestação da virtù, única possibilidade de construção de uma nova
ordem política duradoura. Para Schmitt, abre-se o espaço para a teologia política na qual a transcendência apenas
é recuperada na exigência da forma, por meio da representação. Esta diferença é bastante clara no que concerne
ao tema do conflito” ADVERSE, 2016, p. 42.
359

pensar uma teoria política – como pretendemos, em termos de uma ontologia política – que
concede primazia à noção de contingência, numa palavra, ausência de fundamento, ou
melhor, o fundamento como ausência, desatado o nó entre as instâncias além-aquém. A chave
para compreender este deslocamento é a alteração no conceito do político que deixou de ser
considerado como uma mediação do teológico e passou a referir-se à relação concreta de
conflito: a ação é liberada do seu paradigma racionalista e, a partir disso, pergunta-se: onde
estaria seu elemento transcendente? Neste contexto, desenvolvemos a crítica à metafísica
através de uma estratégia pós-fundacional, mais especificamente, através (a) do argumento do
finitismo, (b) da constituição da (im)possibilidade da ordem/unidade política a partir da
relação e diferença. Isso implica na (c) a necessária configuração das relações e diferenças
como antagonismos e (d) no papel originário dos afetos. Além disso, como já apresentada
acima, (e) a noção de abertura entre político e política e, como veremos abaixo, implica ainda
na (f) noção de contingência que prepara, finalmente, uma abordagem pós-fundacionista em
teoria política ou, como preferimos, uma pós-política que, em conjunto, esboçam uma teoria
política que, provisoriamente, pode ser chamada de monismo político.
Sobre a contingência, podemos apanhar um trecho de um autor contemporâneo
importante para a compreensão de nossa própria teoria. Segundo Ernesto Laclau, “o momento
de instituição originária do social é o momento em que se mostra sua contingência (...) O
momento do antagonismo, em que se faz plenamente visível o caráter indecidível das
alternativas e sua resolução através das relações de poder é o que constitui o campo do
político” (LACLAU, 1993, p. 51-52). Com uma tonalidade nitidamente foucaultiana, Laclau
traz um argumento que já encontramos em Schmitt, qual seja, a noção de contingência como
algo impredicável, isto é, que não pode ser controlada, classificada ou prevista em esquemas
conceituais. Considerando que são afetos e não normas que constituem o corpo social e que o
medo, conforme vimos, seria este alegado afeto primordial e fundador da modernidade,
propomos que, através de uma ontologia do político, o antagonismo passa a ser este afeto que
envolve toda a realidade, não seja outro que não o antagonismo, tal como uma estrutura
afetiva antagonística ou um circuito afetivo movido pelas lutas partisans. A política moderna
se estruturou em torno da defesa contra a contingência, contra o caráter desestabilizador que a
contingência impredicável produz. A rigor, a contingência e o antagonismo compõem o
mesmo fenômeno e, na leitura que propomos, constituem os novos lugares da transcendência
e da imanência. Neste contexto, pensar a contingência significa a compreensão da ação
política sem laços externos, na ausência do além, na necessidade do reconhecimento do outro
não como violência inicial controlada que me torna possuidor (mesmo que na figura do
360

Estado que garante duração e estabilidade ao corpo social na base do “protego, ergo obligo” e
legitima sua proteção na inculcação contínua da lembrança da violência que haveria caso não
estivesse presente), mas sim como violência atual que despossui o sujeito, desestabiliza a
ordem e instaura outra configuração afetiva que impede a formação de autonomias ou
subjetividade justamente por apostar na experiência da contingência e despossessão via
antagonismo.
Após o abandono da concepção de ordem como algo natural, bem como da rejeição
da articulação entre céu e terra numa concepção de ordem teológica, o período moderno com
os teóricos do século XVII assume uma noção de ordem construída (ao invés de natural ou
divina) e, enquanto tal, um ato de instituição política. A ordem cosmológica é substituída pela
ordem hipotética. A denúncia do mito do dado e a impossibilidade de reconstruir a ordem sob
os auspícios de algum Deus concede razão a Nietzsche quando afirma que a ordem é um
artifício e a harmonia nada mais é do que um jogo de força, assim como a verdade ganha ares
de uma metáfora ao invés de algum princípio universal e abstrato. Assim, tomando a
contingência como única origem possível, uma origem que não se qualifica com longínqua,
pelo contrário, sempre presente, o primário na constituição da ordem passa a ser considerados
como aquele fluxo de forças que, na releitura que elaboramos, pode ser nomeado como
antagonismos. É a partir dessa constelação afetiva, imanente, necessária que a ordem pode ser
pensada. No lugar de normas, uma contingência originária que aparece como o dado último.
Se a modernidade é compreendida como uma resposta secular à ausência de um fundamento
transcendente da ordem; parece-nos que, efetivamente, esta ausência é levada à sério através
do pensamento pós-fundacionista, cuja categoria principal é a de contingência. Antes de
explorar esta categoria, cabe neste ponto uma citação bastante conhecida de Wittgenstein que
fora concebida para tratar, sobretudo, de questões relacionadas à teoria da linguagem e do
conhecimento, mas que expressa bem o terreno político no qual propomos nossa tese372:

Quanto mais precisamente considerarmos a linguagem real, tanto mais forte se torna
o conflito entre ela e a nossa exigência. (A pureza cristalina da lógica não se deu a
mim como resultado -, ela era, sim, uma exigência). O conflito torna-se
insustentável. A exigência corre o risco de se converter em algo vazio. – Entramos
por um terreno escorregadio, onde a falta de atrito, portanto, onde as condições, em
certo sentido, são ideais, mas nós, justamente por isso, também não somos capazes
de andar. Queremos andar. Então precisamos do atrito. De volta ao chão
áspero!”(WITTGENSTEIN, 2014, § 107, p. 70)

372
Poderíamos aqui antecipar uma crítica do leitor. Como é possível sustentar uma tese (monismo político) que
concilia: ontologia política (afeto do antagonismo como necessário no corpo político) e estrutura contingencial
da realidade (ausência de fundamentação)? Haveria algo contingente e necessário ao mesmo tempo? Parece-nos
que a questão deve ser posta em outros termos: sobre o estatuto de necessidade da contingência.
361

No contexto em que expomos a teoria política, a categoria da contingência não


significa meramente a ausência de fundamento, mas o próprio fundamento como ausência que
evidencia a categoria de abertura marcada pelo antagonismo. A diferença ontológica entre o
político e a política se localiza na diferença enquanto abertura em torno da institucionalização
da ordem: não se refere à instância empírica, mas sim à ausência de estrutura central diante do
“jogo interminável entre a política e o político no cerne de muitas teorias políticas pós-
fundamentais contemporâneas” (VIRIASONA, 2011, p. 8). Este movimento pode ser
compreendido como uma dialética negativa, ou seja, a noção de abertura ou ausência causada
pela política como forma da interrupção da irrupção do político, a negação da negatividade.
Neste quadro, “O político (localizado, por assim dizer, no lado "ontológico" do Ser-como-
fundamento) nunca será capaz de atuar plenamente como fundamento - e, no entanto, ele deve
ser atualizado sob a forma de uma política sempre concreta que necessariamente não
consegue entregar o que prometeu” (MARCHAT, 2007, p. 8), ou seja, ausência de
fundamento da ordem, que identificamos aqui como contingência, impõe a tarefa de pensar
movimento e imobilismo nem tanto a partir do antagonismo das relações do corpo social, mas
num segundo nível de antagonismo, também insolúvel, qual seja, o do político e da política.
Este deslocamento contínuo provoca a abertura como tema primordial da filosofia política.
Se a diferença ontológica na metafísica pode ser caracterizada entre ser e ente, a
diferença especificamente política poderia, de maneira correspondente, ser definida entre o
político e a política. Haveria, portanto, um paralelo entre a diferença política e a diferença
ontológica que, uma vez aceito, destituiria a possibilidade de fundamentação “in einem
soliden Fundament, in einer Essenz oder in einem Zentrum” (MARCHAT, 2010, p. 146),
tornando possível, em última instância, algo (quase) transcendente, ou melhor, um
transcendente que se refere a algo particular. Em outras palavras, diante da dissolução da
simetria entre transcendência e imanência ou universal e particular – por conseguinte, a
impossibilidade de fundamento último – resta ao pensamento político não eleger um
fundamento contingente que, por sua própria estrutura, deve ser compreendido como
ausência, mas, ao contrário, pensar um ultrapassamento da fundamentação com a própria
noção de contingência373. A contingência passa a desempenhar o papel de transcendente da ou
na imanência.

373
Em um trecho que bem poderia ter sido escrito, em parte, por um discípulo de Schmitt, Foucault trata desse
tema: “se, em compensacão, dizer ‘renunciar a fazer uma teoria do Estado’ significa não começar por analisar
em si e por si a natureza, a estrutura e as funções do Estado, se renunciar a fazer uma teoria do Estado quiser
dizer não procurar deduzir, a partir do que é o Estado como uma espécie de universal politico (...) Sim, claro, a
essa forma de análise estou decidido a renunciar. Nao se trata de deduzir todo esse conjunto de práticas do que
362

A diferença política expôs esta ausência de fundamento do corpo social e a


necessidade de repensá-lo: “como uma diferença, a diferença política não é outra coisa, de
acordo com a tese, como uma divisão paradigmática das idéias tradicionais da política, que
surgiu devido a um novo conceito, o político teve de ser introduzido para indexar a dimensão
‘ontológica’ da sociedade, a dimensão seu estabelecimento, enquanto a política como um
conceito para as práticas 'ôntica' da política convencional” (MARCHAT, 2010, p. 145). O
problema é saber se o fundamento permanece como sua ausência. Para Heidegger, quando se
diagnostica a ausência de fundamento, ele se refere à imagem de um abismo. A língua alemã
mesma lhe dá essa possibilidade semântica entre Grund e Abgrund e lhe permite tratar deste
tema com frases um tanto esotéricas, tal como, permita-nos citar no original, “Der Grund
gründet als Ab-grund (Beiträge, GA 65, p. 29), ou seja, numa tentativa de tradução, “o
fundamento se funda como não-fundamento/abismo”. Este fundamento seria rigorosamente
não-fundamento, abismo. Ora, isso quer dizer que o necessário ou o princípio último da
realidade, para utilizar uma linguagem dos fundacionistas em geral, é considerado por
Heidegger como o lugar da ausência. É precisamente este lugar onde ocorre a abertura,
disclosure ou Lichtung (GA, 65, p. 379) que garante que o lugar do fundamento percebido
como abismo não assuma uma forma. Esta disposição de forma cruzada entre fundamento e
abismo – em Heidegger, recebe o nome de quiasma – demonstra que apesar de ser possível
diferenciar, em geral, os dois termos, em algum momento, eles são indistinguíveis, pois
atravessados um pelo outro o que garante uma reversibilidade entre os termos ao mesmo
tempo de sua não identidade.
É, precisamente, este quiasma que o pensamento pós-fundacionista recupera: a
ausência de fundamento não é niilismo, não-fundamento apenas como uma negação
determinada, mas o fundamento como ausência374. A argumentação que assumimos de
Heidegger, ao nosso ver, se encaixa na concepção de teoria política esboçada nesta tese,
sustenta que este fundamento como não-fundamento, numa palavra, como abismo é a

seria a essência do Estado em si mesma e por si mesma. É preciso renunciar a tal análise, primeiro, simplesmente
porque a história nao é uma ciência dedutiva, segundo, por outra razão mais importante, sem dúvida, e mais
grave: é que o Estado não tem essência. O Estado não é um universal, o Estado náo é em si uma fonte autônoma
de poder. O Estado nada mais é que o efeito, o perfil, o recorte móvel de uma perpétua estatização, ou de
perpétuas estatizações, de transações incessantes que modificam, que deslocam, que subvertem, que fazem
deslizar insidiosamente, pouco importa, as fontes de financiamento, as modalidades de investimento, os centros
de decisão, as formas e os tipos de controle, as relações entre as autoridades locais, a autoridade central, etc. Em
suma, o Estado não tem entranhas, como se sabe, nao só pelo fato de não ter sentimentos, nem bons nem maus,
mas não tem entranhas no sentido de que não tem interior. O Estado não é nada mais que o efeito móvel de um
regime de govemamentalidades múltiplas” FOUCAULT, 2008, p. 105-106.
374
Parece-nos que esta noção fora explorada inicialmente na filosofia políica por Jean-Luc Nancy e Phillipe
Lacue-Labarthe como o retrait (Entzug) do político. Sobre isso, o texto já clássico: NANCY; LABARTHE,
1981.
363

interminável retirada ou adiamento de si, uma retirada ou impossibilidade de fixação que


pertence à própria natureza do fundamento e não pode ser separada dele, isto é, não comete
uma petitio princpii e consegue a cada tentativa de estabelecimento do fundamento último
demonstrar sua própria impossibilidade como um mise en abyme que gera a hesitação
(Zögerung) e impossibilidade características do pensamento contemporâneo. Esta experiência
é descrita por Heidegger como a Lichtung, ou seja, o evento (Ereignis) na qual a verdade do
ser (Seyn) é desvelada. Assim, Heidegger pretende descontruir a noção fundamento sem negá-
lo – esta teria sido, na leitura heideggeriana, o erro de Nietzsche, ou seja, ao negar o
fundamento ou o ser, terminar por entrar em relação com o objeto de sua negação e, por
conseguinte, afirmando-o – ao invés, demonstra o modo de funcionamento do fundamento
como ausência de fundamento e, por isso, por tanto tempo, esta lógica do fundamento e
desfundamento permanecera incompreendida.

O nível ontológico não pode ser acessado imediatamente, pois isso exigiria que o
considerasse como um terreno sólido (como Ser). Se é para cumprir sua função de
fundação, no entanto, o fundamento, como vimos, é simultaneamente um abismo.
Uma vez que não há motivo de ser, o nível ontológico é irremediavelmente separado
do nível ôntico. E é precisamente porque não podemos acessar o nível ontológico
diretamente que (...) devemos necessariamente passar pelo nível ôntico, a fim de
"agitar" algo que sempre escapará do nosso entendimento devido ao fosso
irremediável entre o ontológico e ônitco. (MARCHAT, 2007, p. 24).
Apesar de reconhecermos em Schmitt como paradoxo do político (entre político e política),
parece-nos que o jurista não percebeu a capacidade ontológica de suas considerações. Diante
do gap que ele também diagnosticou, o jurista rompe a simetria entre imanência e
transcendência, mas não alcança este nível de reflexão ontológica. Neste contexto, tentamos
demonstrar o esforço de não empreender qualquer conceito de carga substancialista ou
essencialista, mas sim que atenda a noção de processo interminável, de ininstitucionalização,
da dialética negativa ou qualquer outra noção que figure a impossibilidade e ausência como
padrão não contextual. Reiner Schürmann reforça nossa compreensão quando afirma sobre a
herança propiciada por Heidegger:

Uma vez descoberto no coração de cada fenômeno, o "colapso das fundações": o


evento é grundstürzend. As conseqüências práticas, que serão articuladas
posteriormente, surgirão dessa descoberta, pois fornece como imperativo que se
conforme a agir apenas para chegar à presença de polimorfo. Está, portanto,
frustrado pelo desejo de um fundamento inabalável de teoria e ação e, em particular,
o desejo de um fundamento da teoria da ação (SCHÜRMANN, 1995, p. 305).
Portanto, ao considerar o contingente como um transcendental (histórico), afirmamos
apenas que significa a ausência de fundamento, ou melhor, o fundamento como ausência que,
apesar de atravessar o corpo social e condicionar a ação humana como efetivo horizonte de
ação, ainda merece a qualificação de transcedente, a única possível que sustentamos ser
364

provocada pelo antagonismo do corpo social. O argumento da diferença enquanto diferença


estabelece que não apenas a questão da constituição da ordem é relativa aos afetos do corpo
social, isto é, ao ser-com concreto, mas também que nem o político nem a política tenham
alguma primazia na constituição da ordem, uma vez que a abertura provocada por sua
dialética negativa de remissão infinita de um ao outro, tem como consequência o
estabelecimento da contingência como aquele transcendente na imanência.

a impossibilidade do solo é uma ausência necessária de um fundamento final. Ele


descreve a necessidade de um fundamento final. Uma ausência que, como deve ser
observado, é uma ausência produtiva, e não meramente negativa. O que pode ser
chamado de fundamento "ausente" não é de modo algum um anti-fundamento. Para
rastrear este argumento de volta à sua origem teórica, devemos agora voltar para
Martin Heidegger (MARCHAT, 2007, p. 18).
Por isso, a reinterpretação proposta do político como relações no corpo social. A partir de
então, o argumento desfaz a dialética tradicional entre ser e aparecer e inaugura outra forma
de pensar: a diferença entre a política e o político. Nesta distinção, ação e validade se
confundem, pois este movimento ou diferença política é distinto da mera criação ou
manutenção da ordem uma vez que passa a compreendê-lo como a diferença e pluralidade, ou
seja, ao invés de perguntar-se sobre o papel da instância constituidora de um fundamento,
torna-se necessário pensar o paradoxo político como a diferença enquanto diferença, isto é,
abertura – há um reenvio constante da relação de conflito à tentativa de institucionalização via
algum tipo de ordem – que, no movimento pendular e instável que a caracteriza, não encontra
algo como um fundamento ou norma, resultando na ausência de fundamento, ou seja, em
poucas palavras, no centro da ordem há contingência ineliminável. Essa dialética negativa
entre político e política pode ser levada adiante contra a imunização do poder, rejeitando o
fechamento da política por alguma transcendentalização da unidade e da ordem. Como afirma
mais uma vez Oliver Marchat “mas a política e o político, o momento do fundamento e o
momento da atualização deste fundamento, nunca se encontrarão por causa do inconcluso
desastre da diferença entre esses termos, o que em si é apenas a assinatura da nossa condição
de pós-fusão” (MARCHAT, 2007, p. 8). O movimento de abertura, como relação entre
político e política, surge na pesquisa como uma tentativa de evitar os deslocamentos
crescentes de radicalização aos extremos do discurso político. Da mesma forma, como uma
tentativa de remodelar as instituições de organização dos antagonismos políticos que
desembocam no abismo ou ausência de sua própria condição. Assim, Ojakangas explicita
sobre o evento como aquilo que foge dos esquemas racionalistas e caracteriza uma das
contribuições da teoria schmittiana à filosofia política:
365

O evento pressupõe tal exterior. Na verdade, o evento é um exterior, ele vem do


exterior. No entanto, este fora não é o exterior absoluto de Meier, nem mesmo fora
como o oposto do interior - é um dentro do interior, a transcendência dentro da
imanência. É, em outras palavras, o mesmo exterior que o próprio Derrida constrói e
constrói sua própria filosofia, embora, no caso de Schmitt, esse exterior não seja
diferido infinitamente. O exterior ocorre aqui e agora, ou melhor, essa ocorrência
aqui e agora é muito fora (OJAKANGAS, 2005, p. 38-39).
Neste ponto, é necessário reafirmar a diferença entre Schmitt e Derrida 375: enquanto
Schmitt tende a encerrar a dialética entre político e política – apesar da ambiguidade acerca da
solução sobre a decisão, o político ou a apropriação originária – o argelino percebe a
irresolução, tal como Benjamin, da tensão entre dentro e fora, sobretudo, quando analisa que o
Partisan é a declaração de que Schmitt mesmo percebera as consequências do Politischen em
Der Begriff des Politischen. O que pretendemos nesta tese é repensar o esforço de deixar em
aberto, o entre enquanto diferença a que se refere qualquer teoria política: dissolução das
separações entre dentro e fora, imanência e transcendência, normativo e descritivo, pois
mesmo em Schmitt, podemos pensar a abertura como diferença entre política e político não
apenas como algo impossível, mas como uma impossibilidade sempre presente. Estas
considerações explicam em parte o interesse da esquerda em suas teses: a revolução é uma
questão em aberto, pois, na verdade, um movimento contínuo de fechamento e abertura de
mundo que toma lugar aqui e acolá encontra alguma forma precária e hegemônica. Schmitt
pode ser utilizado para pensar que nenhuma ordem possui inscrita em si uma determinação
eterna das coisas humanas. Esta constatação consiste numa estranha contradição entre vida e
obra: um conservador que contribui, direta ou indiretamente, para a teoria da revolução ou da
emergência, mesmo que determinado em relação à constituição duradoura da ordem – pode-se
dizer até mesmo que era um teórico da ordem376 –, aposta nas origens irracionais do poder, na
violência constitutiva, na ausência de princípio para além da ação que tornam seu pensamento
uma útil caixa de ferramenta para pensar linhas de fuga para além do Estado.

3.4 A comunidade do antagonismo: relação, ausência e conflito.

Outra vez a pergunta é posta, afinal, qual o objeto da filosofia política? Talvez uma
resposta, mesmo que tradicional, seja a seguinte: a natureza do poder e suas formas de
governo. De fato, a filosofia política desde Platão e Aristóteles tem se empenhado em elaborar
as bases do viver junto na polis. Todavia, outra pergunta que poderia ser elaborada para
compreender a teoria política seria: como o poder cria coesão, unidade? Ou ainda, como e que
375
Sobre a interpretação de Derrida sobre Schmitt, seção 1.9.
376
Sobre isso, cf. SÁ, 2009.
366

tipo de coesão se torna necessária ao corpo social? Em suma, quais as condições para este
viver juntos? Quais as condições do viver juntos para a instauração do governo não
simplesmente como coerção, mas como adesão, não como dominação, mas liberdade? É
possível pensar em liberdade ou democracia, termos tão caros até hoje, fora do paradigma da
subjetividade ou da autonomia? Em outros termos, no contexto das críticas às democracias
representativas e no esgotamento e percepção dos limites da participação política, como é
possível uma filosofia política contemporânea que escape dos estereótipos da reflexão sobre o
governo ou sobre o poder e utilize outra semântica? Desde início das análises, propomos tratar
a questão do político como a questão sobre a natureza dos vínculos sociais através dos afetos
que mobilizam e circulam no corpo: tratamos relações sociais como relações marcadas por
afetos e estas, por sua vez, não se configuram de outra forma senão como relações de poder.
É possível imaginar um contexto social onde não haja dominação, aliás, o poder não é, de
maneira necessária, uma forma de dominação: não é algo fixo como uma estrutura natural
nem compreendido por meio de instituições normativas, mas se refere a relações e a contextos
fáticos e, enquanto tais, marcadas pela contingência e ausência de fundamento. Assim, a
resposta à pergunta sobre qual elemento, se é que existe, seja capaz de ordenar a experiência
política passa pela compreensão das condições da forma de vida concreta. No entanto, mesmo
ao considerar as relações no corpo social, percebe-se que não há uma simetria entre imanência
e transcendência ou cálculo e indivíduos portadores de direitos naturais/subjetivos: por mais
que se tente tornar os afetos previsíveis, seguros e certos com algum tipo de homogeneização
dos desejos e interesses, o resultado a que se chega não é o de uma vontade que submete outra
vontade, mas sim, a despeito das tentativas de capturas e racionalizações, a circulação de algo
que submete todas as vontades, no caso da ontologia proposta, este aspecto da totalidade ou
este afeto que perpassa por todas as vontades, denominamos antagonismo. Este elemento é o
transcendental histórico, aquele espectro que Derrida se refere, que serve de condição do
corpo social. Da mesma maneira, este afeto provoca uma ruptura da estrutura tradicional da
teoria política através da diferença política (paradoxo do político) que implica na questão do
fundamento como ausência. O que nos resta é encontrar uma configuração (afetiva) do poder,
isto é, um circuito de antagonismos que não encontre nem a estabilização definitiva nem a
dominação assujeitadora, nem a redução simplificadora e formal a normas, mas que através
dela seja possível a liberdade. O início da solução passa pela questão de como pensamos o
problema da comunidade hoje. A leitura que realizamos sustenta que a comunidade é uma
questão não de essência ou substância, mas, tal e qual a diferença política estabelece, remete à
relação e às práticas sociais. Desse modo, ao insistirmos nos movimentos dos afetos do corpo
367

social como elementares para a comunidade, ressaltamos o antagonismo como dado último ao
qual se pode chegar a reflexão política: os afetos como temas e conteúdo do político é uma
expressão da suspeita acerca das narrativas de fundamentação racional da ação.
Evidentemente, nossa proposta assume alguns pressupostos schmittianos e tenta lê-los pelo
avesso. Ou melhor, procuramos elaborar uma interpretação da categoria de comunidade
através desse novo quadro conceitual, qual seja, a tese da diferença política como relação, o
político como afetos, a estratégia da finitude da ação (imanência), a ausência de fundamento
ou o fundamento como ausência e a concepção de pós-política, da inevitabilidade do conflito,
bem como o esboço de uma ontologia do político (antagonismo como afeto central) e a
impossibilidade de sua juridificação ou institucionalização.

***

A questão acerca da comunidade tem sofrido releituras desde as investigações de


Georges Bataille que recusa compreendê-lo como uma comunidade positiva fundada em um
pressuposto comum. No contexto herdado de crítica à estrutura normativa do poder e à noção
de soberania, Maurice Blanchot em La Communauté inavouable (1983), Jean-Luc Nancy em
La communauté desoeuvreé (1986) e Giorgio Agamben em La comunità che viene (1990)
repercutem a leitura batailliana: a recusa de uma identidade ou substância partilhada e a
experiência da morte como impossibilidade da comunidade. Os estudos comunitaristas das
décadas de 1980 e 1990 tomam como base as pesquisas do Centre de recherche
philosophique sur le politique e pensam o político, assumidamente, a partir da noção de
ausência de fundamento e da diferença entre política e político, como uma “retrait” ou
retirada (Entzug) do político, isto é, conforme a matriz heideggeriana, expressando a
impossibilidade de fundamentação através da noção de um fundamento como ausência. O
diálogo estabelecido entre Claude Lefort, Maurice Blanchot e Giorgio Agamben, por
exemplo, sob uma pitoresca influência de Heidegger e Bataille, situa a tarefa do pensamento
político contemporâneo: pensar a comunidade. Esta análise, porém, dá-se fora dos paradigmas
da Rehabilitierung des praktischen Philosophie377, do neocontratualismo, do comunitarismo
ou da ética do discurso e representa um novo fôlego na filosofia política contemporânea.
Nesta seção final, pretendemos trazer as discussões de um dos herdeiros privilegiados do

377
Sobre uma filosofia prática em termos normativos, é notório o movimento de reabilitação da filosofia prática
representado sobretudo por Rudiger Bubner, Otfried Höffe, Karl Heinz Ilting, Manfred Riedel e Joachim Ritter,
partindo da releitura de Aristóteles e Kant na tentativa de fundamentar uma concepção normativa do direito e da
política, sobre isso, cf. por todos M. Riedel (Hrsg.) Rehabilitierung der praktischen Philosophie. Band I,
"Geschichte, Probleme, Aufgabe". Freiburg i./B., Rombach: 1972; Band II, "Rezeption, Argumentation,
Diskussion". Freiburg i./B., Rombach: 1974.
368

debate contemporâneo sobre comunidade, Roberto Esposito, à guisa de contextualizar a


discussão e apresentar alguma contribuição com uma leitura autoral acerca da comunidade ao
utilizar o quadro categorial adquirido neste capítulo: uma releitura da noção de comunidade
através da ontologia do político e da noção de abertura/contingência.
A questão surge, mais uma vez, na leitura da obra de Roberto Esposito, mais
especificamente, no texto Communitas (Comunidade) de 1998: a noção de communitas como
a partilha de um munus, isto é, de algo que equivale à dívida ou ausência imanente à relação
comunitária e, por conseguinte, desestabiliza os laços comunitários. O livro Communitas se
esboça desde as últimas páginas do Categorie dell’impolitico, mais especificamente, nos
capítulos sobre Heidegger e Bataille como um “desenvolvimento, mas também deslocamento
do centro de gravidade semântico” (ESPOSITO, 2009, p. XXIX). Esposito analisa
alternativas ao comunitarismo de Sandel, Taylor, MacIntyre, Klymlicka, entre outros, bem
como à concepção subjetivista em geral ao propor uma análise que ao invés de garantias e
direitos subjetivos, expõe o sujeito à experiência de seu próprio vazio, isto é, ao esvaziá-lo e
reduzi-lo, revela a experiência do impróprio como modo de ser da comunidade. A chave de
interpretação da política moderna é descrita por Esposito como uma imunização do corpo
social pela neutralização do conflito e do vazio dele decorrente e, por conseguinte, como um
processo de tentativa de institucionalização do político. Este paradigma imunitário busca
repelir a violência constitutiva das relações sociais a partir da proteção da vida e impedir a
potencial deriva comunitária como ameaça do munus que degenera as relações humanas.
Segundo Esposito, através das tecnologias imunitárias, a política moderna tornou-se uma
ambígua biopolítica378. Entretanto, o que está em jogo é o pensamento da communitas – o
comum ou a relação que provoca a perda e a ausência – e como estes são rejeitados na
instauração da ordem jurídica e da unidade política através dos mecanismos de soberania e
representação, pois a modernidade com seu princípio “nolli me tangere” rejeita o contato
direto entre os indivíduos e estabelece a exclusividade do liame jurídico entre os portadores
de direitos subjetivos, reduzindo a possibilidade de contágio, uma vez que não haveria relação
válida que não seja mediada pela forma jurídica, institucionalizada pela sociedade como uma
comunidade perdida.
Para Esposito, a discussão sobre a comunidade refere-se, paradigmaticamente, à
distinção entre Gemeinschaft e Gesellschaft definida no referencial teórico de uma metafísica
substancialista: literalmente, uma propriedade ou qualidade em comum que dá unidade e

378
ESPOSITO, 2008.
369

homogeneidade ao grupo de pessoas a partir de um “dado” partilhado por todos. O apelo ao


fundamento é explícito e repete-se o gesto universalista de pensar um ser-comum segundo o
modelo de um ser-geral com as irrenunciáveis conotações metafísicas das noções de unidade,
absoluto, interioridade que se configuram como forma política e instituição jurídica, ou seja,
como Estado no modo de uma extensão (homogênea) da categoria do sujeito. A leitura
moderna da comunidade pode ser exemplificada, com a obra de Ferdinand Tönnies
Gemeinschaft und Gesellschaft (“Comunidade e Sociedade”) de 1887, na qual, sustenta o
autor, a comunidade seria uma “apropriação originária da própria essência. A propriedade de
uma substância, uma qualidade, ou seja, um pleno ou uma totalidade como um nosso próprio
que se deve apropriar” (ESPOSITO, 2006, p. 12). Em Max Weber, entretanto, a teoria da
comunidade ganha sua formulação paradigmática: “uma relação social se deve definir
comunidade se, e na medida em que, a disposição à ação repousa sobre um comum
pertencimento subjetivamente sentido (afetiva ou tradicionalmente) pelos indivíduos que
participam nela” (ESPOSITO, 2006, p. 12). Em última instância, Esposito confirma o
diagnóstico de que o caráter metafísico da comunidade é compreendido de maneira naïve sem
reflexão sobre seu pressuposto como meramente uma subjetividade mais vasta, mais ampla,
uma unidade composta de unidades menores:

uma "propriedade" dos assuntos que ele compartilha: um atributo, uma


determinação, um predicado que os qualifica como pertencendo ao mesmo conjunto.
Ou mesmo uma "substância" produzida por sua união. Em qualquer caso, é
concebido como uma qualidade que é adicionada à natureza do assunto, tornando-os
também sujeitos a comunidade. Mais assuntos. Sujeitos de uma entidade maior,
superior ou melhor, do que a simples identidade individual - da qual originou e
especulou no final. Deste ponto de vista - apesar das óbvias diferenças históricas e
conceituais, lexicaminar a sociologia organicista da Gemeinschaft, o neo-
comunitarismo americano e as diversas éticas da comunicação (mas, de certa forma,
e apesar de um caráter categórico muito diferente, mesmo a tradição Comunistas)
estão na mesma linha que os mantém na impenitente da comunidade (ESPOSITO,
2006, p. VIII).
Dessa forma, o pressuposto essencialista é o da partilha comum de uma qualidade,
atributo ou propriedade que une, algo como um predicado que determina a pertença ao mesmo
conjunto ou, inclusive, uma substância produzida por sua união como algo maior, melhor e
superior que, entretanto, apenas duplica a noção de unidade e rejeita a diferença: conduz a
multiplicidade à ordem, a multidão ao povo e, por conseguinte, a redução do outro ao mesmo
como semelhantes ou participantes de uma raça, sangue, cultura, natureza ou língua, cujo
essencialismo estimula a exclusão do diferente, consequência, aliás, observada não raro nas
democracias contemporâneas.
370

Além do essencialismo assumido, outra característica do pensamento político


moderno apontado por Esposito é considerar que este momento de identidade substancial não
é presente ou atual, mas sim compreendido como algo anterior, puro ou atemporal: a
comunidade perdida como um ideal ou lamento que inspira à ação ou reflexão sobre a pureza
de si. Ainda assim, a imagem da Gemeischaft perdida serve como um padrão ético de
comportamento na Gesellschaft, esta como local da ação histórica do indivíduo, bem como
para a organização da soberania e da representação política, para a questão sobre a forma ou
unidade política e da relação entre bem e poder que encontra na instituição estatal o horizonte
sacrificial determinante da política moderna através do conservadorismo da origem e da
homogeneização infinita. Ter em comum aquilo que é próprio, uma propriedade étnica ou
espiritual, produziria indivíduos proprietários do comum, possuidores do ser comum como
uma qualidade essencial ou um ser geral. Esta concepção da comunidade como partilha de
substância ou pertencimento do comum faz parte da expressão metafísica do tradicional
problema “ad unum” e sofre um decisivo ataque na leitura dos autores contemporâneos desde
Bataille.
Neste contexto, Esposito rejeita o pensamento de uma substância política, anuncia o
fim das essências comunitárias baseado em noções como raça ou natureza, povo ou sangue,
origem ou território, ou seja, a partir de algum dado ou identidade orgânica ou mística e lança
o desafio de pensar o ser-comum fora dos paradigmas da partilha de essência ou
pertencimento de substância, tal como já haviam feito Blanchot, Nancy, Agamben, entre
outros. O esforço de Esposito é pensar na contramão da modernidade: nem em torno de
identidades que serviriam de fundamento, nem como conjunto de sujeitos dotados de
propriedades específicas, muito menos tomar a comunidade como um objeto nas tentativas do
discurso filosófico-político de reduzir em termos de individualidade, identidade ou origem
que deixam impensado o nada de sentido exposto na comunidade. A tese de Esposito é que a
comunidade refere-se, precisamente, a este nada, à ausência, falta e finitude ao invés de
fundamento, da apropriação ou da posse plena de uma substância: como uma comunidade da
não propriedade, mas sim a partilha do dever, da carência, da dívida ou, numa palavra, a
exigência de um “dom-a-dar”, pois:

communitas é o conjunto de pessoas unidas não por uma propriedade, mas


justamente por um dever ou dívida. Não por um ‘mais’, mas por um ‘menos’, por
uma falta, por um limite que se configura como um ônus, ou inclusive como uma
modalidade defectiva (modalitá difettiva), para quem está ‘afetado’, diferente
daquele que está isento ou isentado (ESPOSITO, 2006, p. XIII).
371

O argumento espositiano é tão sofisticado quanto simples: inicia ao distinguir entre


comum e próprio, público e privado, ou seja, aquilo que é mais de um não pode ser tomado
como proprium ou particular; logo após, analisa o termo latino communitas e a partir dele
ressalta sua formação etimológica composta pelo prefixo cum e o radical munus: ao passo que
o prefixo cum revela a presença incontornável do outro e da relação, o radical munus
apresenta um rico complexo semântico, pois significa, onus, officium e donum. Segundo o
autor, o significado do termo munus “oscila por sua vez entre três significados não totalmente
homogêneos entre si, que parecem expulsar do sentido, ao menos reduzir a relevância, a
justaposição inicial entre ‘público’/’privado’ (...) a favor de outra área conceitual que pode ser
remetida à ideia de ‘dever’” (ESPOSITO, 2006, p. X). Segundo Esposito, o conceito de
communitas não se refere à partilha de uma substância, tal como a tradição moderna sustenta,
mas sim a um curioso dom obrigatório marcado pela transação doadora sem a contrapartida a
receber. Figura estranha ao valor de aquisição e estabilidade do contratualismo moderno,
existiria ainda outro sentido de cessão ou transferência é trazido pela partícula munus. Esta
característica do munus concede à relação da communitas um caráter desinvidualizador, ou
melhor, desapropriador do indivíduo, pois ao invés de constituí-lo a partir da garantia de uma
propriedade (privada) ou direito (subjetivo) – algo fechado em si mesmo – provoca, ao
contrário, a exposição da pessoa à finitude do outro que subtrai, isto é, à desapropriação que o
munus implica no paradoxal sentido de uma “obrigação a dar”:

Um tom de dever tão nítido que modifica e até interrompe a biunivocidade do


vínculo entre doador e donatário: ainda que gerado por um benefício recebido
precedentemente, o munus indica só o dom que se dá, não o que se recebe. Projeta-
se por completo no ato transitivo do dar. Não implica de modo algum a estabilidade
da posse [...] senão perda, subtração, cessão: é uma “prenda”, ou um “tributo”, que
se paga obrigatoriamente. O munus é a obrigação que se contraiu com o outro e
requer uma adequada desobrigação (ESPOSITO, 2006, p. XI-XII).
Nota-se o fato de que donum (dom) pertence a um mesmo conjunto semântico que
indica dever, dívida, obrigação. Entretanto, a questão decisiva seria: “como um dom pode ser
obrigatório?” (ESPOSITO, 2006, p. XI). Não haveria de ser algo espontâneo? Com habilidade
genealógica, o autor chega à seguinte conclusão: se donum institui uma doação obrigatória e
cum refere-se à presença insistente de outrem (que está oculto, mas diferente), cum + munus
significa um tipo de relação em que o sujeito se doa incondicionalmente ao outro (qualquer,
indefinido); onde compartem um dever e não um direito. Este é, conforme Esposito, o
significado arcaico da comunidade, ou seja, como aquele externo ou relação que subtrai ou
corroi o sujeito. Assim, cum+munus seria uma conjunção e disjunção originária: enquanto o
termo munus expressa a abertura, finitude e ausência, a partícula cum se refere ao entre, isto é,
372

ressalta o caráter de diferença na qual é irredutível ao mesmo ou à unidade. Na estrutura deste


vazio, não há subjetividade possível e, por isso, o pensamento moderno subjetivista cuidou de
obliterar esta concepção e neutralizar o munus, ou seja, patrocinar as formas de imunização do
corpo social.
Esposito desconstroi a noção de substância política ao afirmar que a relação do corpo
social que traz consigo o cum-munus expressa um dever como experiência da ausência de
substância ou fundamento, pois a communitas é uma existência partilhada que descentraliza a
subjetividade no sentido de que a relação não pode ser pensada a não ser na retirada da
subjetividade ou ainda, nas palavras do autor: “Não sujeitos. Ou sujeitos de sua própria
ausência, da ausência de próprio. De uma impropriedade radical que coincide com uma
absoluta contingência ou simplesmente ‘co-incide’: cai conjuntamente” (ESPOSITO, 2006, p.
XIV). É o complexo semântico entre dádiva-dívida do munus que indica o dom particular da
reciprocidade ou neutralidade entre os comprometidos que formam, a partir desta condição
precária, ao invés de uma comunidade de proprietários ou portadores de direitos subjetivos ou
essência partilhada e, portanto, plenos em si mesmo, uma comunidade em torno da falta, do
negativo como desapropriação, movimento constitutivo através da desconstituição ou
desapropriação. O que caracteriza o comum não seria o próprio ou uma identidade, mas sim o
impróprio, isto é, uma comum ausência de identidade, uma ausência do próprio e do sujeito:

sujeitos finitos recortados por um limite que não pode interiorizar porque constitui
precisamente seu ‘fora’. A exterioridade sobre a qual aparece e que os penetra em
seu comum não-pertencer. Por isso, a comunidade não pode ser pensada como um
corpo, uma corporação, uma fusão de indivíduos que dê com resultado um indivíduo
maior (ESPOSITO, 2006, p. XIV).
Para Esposito, a principal – e mais perigosa – consequência do munus como falta ou
ausência é esta expropriação e, por conseguinte, desapropriação num sentido centrípeto que
implica compreender a subjetividade de maneira radicalmente distinta: como outro e não
como mesmo, a rigor, como um sacrifício ou uma compesatio. A compensatio é implicação
social do munus como uma partilha da ausência que caracteriza o comum e os leva ao vazio
da comunidade e, paradoxalmente, ao niilismo. A referência polissêmica do munus a uma
carga, dívida, dom e dádiva não apenas reforça a compreensão da condição de finitude e
negatividade, mas põe como constitutiva da relação ou do ser-comum a questão do
fundamento como vazio ao invés de plenitude ou liame que vincula indivíduos antes isolados,
pelo contrário, é a exposição ao fora, ao outro ou relação que a constitui, pois “a comunidade
não é um modo-de-ser – menos ainda, de ‘fazer’ – do sujeito individual (...) mas a exposição
que interrompe seu fechamento e o inverte ao exterior (la rovescia all’esterno), uma vertigem,
373

uma síncope, um espasmo na continuidade do sujeito” (ESPOSITO, 2006, p. XV). Em


resumo, como em Bataille: um nada de sujeito:

A coisa pública é inseparável do nada. Nosso fundo comum é, justamente, o nada de


qualidade ou substância. Todos os relatos sobre o delito fundacional, remissões
coletivas, assassinato ritual, sacrifício que acompanham como um obscuro
contraponto a histórica da civilização, não fazem outra coisa que citar de uma
maneira metafórica o delinquere – no sentido técnico de “faltar”, “carecer” que nos
mantem juntos: a falta, o trauma, a lacuna da qual se dá nossa proveniência; não é
origem, mas sim sua ausência, sua retirada. O munus originário que nos constitui, e
nos destitui, em nossa finitude mortal (ESPOSITO, 2006, p. 33-34).
A desapropriação radical na qual nenhuma propriedade mantém-se própria, mas nos
lances do impróprio, torna este ser-comum sem centro ou fundamento, tal e qual abordamos
como uma das consequências das teses schmittianas: é caracterizado como um impróprio que
não constitui sujeitos, mas sim, de certa forma, sujeitos de sua própria ausência, a partir do
outro, cujo reforço subtrativo não é concebido apenas pelo munus, mas, sobretudo, pelo cum
imanente, pela relação desapropriadora. Segundo Esposito, o que determina uma comunidade
é o dever ou obrigatoriedade diante de outrem, uma nada de substância que relaciona as
pessoas entre si, uma impropriedade. Se uma comunidade se instaura através de uma
ausência, de um vazio, gap ou distância, o comum desta ausência torna-se obrigatoriedade, o
dever de dar e a condição deficitária não permite a auto-afirmação como sujeito. A
comunidade expressa um antisubjetivismo e crítica à metafísica: não há presença de uma
identidade, mas apenas relação e diferença. Neste ponto, não apenas Esposito, mas também
Nancy, poderiam se surpreender: se pretendiam partir de onde Schmitt para, encontram o
jurista bem próximo a eles na linha de chegada.
Ao contrário dos intérpretes da modernidade, Esposito não compreende a política a
partir das categorias de legitimidade, racionalidade ou secularização, mas sim por uma
proposta bastante original: o paradigma moderno é o paradigma da imunização, isto é, a
proteção contra este munus, uma negação da negação que o munus representa, como
mecanismo para evitar o contágio, a relação desinvidualizadora. O conceito de immunitas
seria a forma pela qual a modernidade protege cada um dos outros, individualizando-os,
protegendo-os do contato desapropriador e niilista do munus, isto é, ao invés do cum-munus, o
im-munus. Ao invés da aceitação da communitas e suas consequências, a immunitas evita a
relação ao constituir sujeitos e identidades isoladas: um solipsismo político expresso como um
individualismo liberal ou possessivo, afastando o perigo do impróprio através da
subjetividade autônoma e, por conseguinte, articulando a noção de liberdade a esta autonomia.
A imunização tem a função de romper o vínculo com a dimensão originária do viver em
comum (mera multidão), instituindo outra origem, artificial, que coincide com a figura
374

jurídica e logicamente privatista do contrato/vontade privada: refere-se ao seu poder


imunizante, asséptico que fundamenta a política moderna379.
Segundo Esposito, a immunitas é a expressão da subjetividade contra a ausência e
perda e, por conseguinte, se a comunidade conserva como originária a ausência e a falta, o
delito e o medo, a imunização da comunidade é, precisamente, o delito contra o delito, ou
seja, contra a própria comunidade que revela a estrutura violenta e sacrificial da filosofia
política:

Não é mais o mecanismo imunológico uma função da lei, mas a função certa do
mecanismo imunológico. Este passo decisivo [...] tem origem na relação estrutural
entre lei e violência. Não é mais do que apenas o papel desempenhado pela lei, a
imunização da comunidade pela ameaça de violência, caracterizada pelos mesmos
procedimentos imunes: mais do que eliminados, a violência está incorporada no
dispositivo destinado a repressá-lo - ainda violentamente (ESPOSITO, 2002, p. 12).
A relação comunitária é portadora de um perigo mortal e diante deste a única saída
seria suprimi-la através de um terceiro ao qual todos se vinculem e sem que devam vincular-
se imediatamente entre si. Evidentemente, a relação retorna à cena, porém sob a forma estatal,
controlada juridicamente, ou seja, sob a forma da mediação racional/institucional
possibilitadora da ordem e da pacificação. Assim, a imunização da communitas refere-se à
redução da relação do munus apenas ao terceiro que garante que o munus não destrua o corpo:
introduz-se um antígeno para provocar a proteção. O Estado é a proteção contra a relação
imanente desapropriadora ou contra o impróprio e instaura o motto: proteção e obediência,
certeza e segurança. Pode-se afirmar que o Estado existe em função da propriedade ou da
apropriação do sujeito e o direito conserva esta lógica imunitária. Segundo Esposito, a relação
entre direito e comunidade é paradoxal:

Ao protegê-lo do risco de expropriação - o que traz como sua mais intrínseca


vocação - o vazio de seu núcleo de significado. Pode-se dizer que a lei preserva a
comunidade através da sua remoção. O que o torna destituído. E isso - para o
paradoxo extremo - exatamente na medida em que ele tenta fortalecer sua
identidade. Para garantir seu domínio. Para trazê-lo de volta ao seu "direito" - é
verdade que "certo" é exatamente o que não é "comum". Se esforçando para tornar a
comunidade mais pessoal, o seu direito torna-se necessariamente menos comum
(ESPOSITO, 2002, p. 26-27).
A immunitas é a forma negativa substitutiva da communitas: se a comunidade é a
relação que, vinculando seus membros a um empenho em doação recíproca, põe em perigo a
379
Aquele que recebe o immunas é um ingratus, ou seja, “o que conserva sua própria substância, é liberado da
exigência da dívida. Numa associação interessante, parece-nos muito similar à estrutura cristã da dispensação da
graça: um projeto de imunização teológico político. Pode-se argumentar, por paralelismo, que se o pecado
original é o munus, a graça divina é a immunitas, isto é, a dívida paga de uma vez por todoas no sacrifício de
Cristo, segundo os dispensacionalistas e os que adotam a salvação pela fé e não por obras, revela a mesma
estrutura da violência contra a violência para constituir a ordem. Em suma, a immunitas provoca a compesatio da
mesma forma que o sacrifício de Cristo traz a salvação: não precisaria passar pelo sofrimento ou despossessão,
pois todos são liberados da dívida mediante a obediência.
375

identidade individual, então a immunitas é a condição de dispensa de tal obrigação e, por isso,
de defesa nos confrontos de seus efeitos expropriativos. O autor refere-se à generalização do
munus provocado pelo cum, por isso a lógica do sistema imunitário contra o sistema de
reciprocidade tributária, pois a proteção imunitária da vida combate aquilo que nega através
de neutralizações, visto que “o que se sacrifica é precisamente o cum que é a relação entre os
homens e portanto, de certo modo, os próprios homens” (ESPOSITO, 2006, p. XXIII). Se, por
um lado, a communitas torna inviável a identidade individual por conta da obrigação
originária diante do outro; por outro, a immunitas é a neutralização dessa obrigação e, por
conseguinte, a proteção contra os efeitos expropriativos da relação. Da mesma forma, que o
político enquanto antagonismo é neutralizado pela ordem. Esse dispositivo de proteção da
vida provoca uma homogeneização a partir da neutralização do externo (ou internalização da
exceção ou do fora, que desestabiliza), isto é, indistinção entre dentro e fora através da
produção da identidade (indivíduos) e da compreensão do outro como outro-eu e não como
diferença, pressuposto elementar da relação. Entretanto, tal dispositivo imunitário exige um
sacrifício, aparentemente menor do que a obrigação do munus: as pulsões e os afetos. A
mediação racionalista se revela como um útil mecanismo de controle dos afetos, se localiza
entre a conservação e a exclusão da vida. Tal como em Schmitt, o expediente imunitário
consiste num processo de insensibilização e despolitização do espaço político. Se a
comunidade vê-se diante da obrigatoriedade do tributo que anula a individualidade, isto é,
sobre a negatividade ou ausência de fundamento, então o sistema imunitário é o mecanismo
que bloqueia as consequências deletérias desta lógica imanente.
A questão que se põe neste momento é a seguinte: tal modelo societário não seria
melhor do que a deriva comunitária? Não seria um sacrifício válido diante da auto-dissolução
ou do niilismo? O caso em questão, no entanto, exige outra pergunta mais radical: o
mecanismo imunitário do Estado moderno preenche o vazio constitutivo da comunidade? Se
levarmos as considerações de Esposito a sério, de fato, a comunidade mostra-se insustentável
e precisa da prevenção, do controle, segurança e esterilização contra seu imanente conteúdo
relacional. Todavia, quando imunizada, é exposta ao contágio mais uma vez, pois o sistema
imunitário como proteção negativa da vida combate aquilo que se faz o tempo inteiro
presente: possibilita a conservação da comunidade, mas paradoxalmente pela negação de seu
horizonte originário de sentido “as estratégias imunitárias (que) visam salvar a comunidade do
fardo de seu niilismo de base, tendem por isso a entregar a comunidade ao nada do qual
pretendem salvá-las” (ESPOSITO, 2008, p. 94.), ou ainda, “(...) sacrificada para sua própria
conservação. Nesta coincidência entre conservação e sacrifício da vida, a imunização
376

moderna alcança o ápice da potência destrutiva” (ESPOSITO, 2006, p. XXIII). A questão em


jogo é perceber como a solução imunitária torna-se uma doença autoimune, pois aquilo que
combate se faz o tempo todo presente, possibilita a conservação da comunidade, mas
paradoxalmente ao conservar implica na própria negação de seu horizonte originário de
sentido. Ao compreender a modernidade por esta filigrana, no texto Bios, Esposito acessa o
paradoxo da biopolítica ou, como ele denomina, abre-se a caixa-preta biopolítica que consiste
no seguinte: como a biopolítica que é voltada a proteger a vida humana, pode ganhar
contornos tanatopolíticos? Se o sistema imunitário se situa entre a conservação e a exclusão
da vida, se “exclui incluindo e reivindicando a negação (...) Isto significa que o mecanismo da
imunidade pressupõe a presença do mal que deve contradizer” (ESPOSITO, 2002, p. 10-11).
A obra de Schmitt também pode ser tratada por este viés e o expediente imunitário, mais uma
vez, pode ser visto como o processo de despolitização do espaço comunitário, isto é, do
político.
Esposito reconhece a importância do prefixo cum e discute o significado desta
partícula no contexto da analítica existencial de Ser e Tempo de Heidegger. Segundo o autor
italiano, a lição política a ser extraída da reflexão heideggeriana sobre a co-existência é a
descoberta do caráter originalmente singular e plural – propriamente extática – da existência
compartilhada: cada um é abertura a todos enquanto singular e não apesar de sê-lo, isto é, o
contrário de um in-divíduo. A co-existência é a própria constituição do Dasein que identifica,
sem novidades, ser e ser-com, de maneira distinta da mera congregação de existentes. No
entanto, a pergunta é: a comunidade, então, está antes da sociedade? É uma condição que
deve ser superada ou neutralizada? Para sua realização, funcionaria como um retorno ou uma
meta? Já que não consiste no resultado de uma ou várias vontades, qual seria a origem ou
fundamento pretendido do ser-comum? Para Esposito, seguindo Heidegger, comunidade:
“parte sempre da relação do compartir... (...) Ou a existência é ‘com’, coexistência, ou não
existe. O cum não é algo que se agregue desde o exterior ao ser da existência. É precisamente
o que a faz ser o que é. Por isto, em Heidegger não é possível um ego ou um ipse que já não
seja desde sempre um nós” (ESPOSITO, 2003, p. 156-157). Para os autores, há uma “simples
dado fático de que não existem indivíduos fora de seu ser-em-um-mundo-comum”
(ESPOSITO 2003, p. 156-157), que relembra em grande medida as críticas desde Espinosa
acerca do contrato social.
O estar em relação implica algo que rompe e subtrai, descentra e exterioriza no
sentido de que a relação expressa a retirada da subjetividade e da abertura: a existência
política como relação (ser-com) é resistência à dimensão da subjetividade. Segundo Esposito,
377

a lição política a ser extraída da reflexão heideggeriana sobre a coexistência é a


descoberta do caráter originariamente singular e plural -- propriamente extático -- da
existência compartida: cada um é abertura a todos enquanto singular e não apesar de
sê-lo. O contrário do in-divíduo. Um não pode abordar o outro, absorvê-lo,
incorporá-lo -- ou vice-versa — porque um já está com o outro, dado que um não
existe sem o outro. Neste sentido, não se pode nem mesmo falar de um ‘nós’ que
não seja simultaneamente um ‘nós-outros’. Isto significa, para Heidegger, não partir
do ‘eu’ ou do ‘não eu’, mas do cum: nós somos junto aos outros, não como pontos
que em determinado momento se agregam, nem tampouco como um conjunto
subdividido, mas desde sempre uns-com-os-outros e uns-dos-outros. (ESPOSITO,
2003, p. 158-159).
A questão é que a comunidade não é algo construída a partir da relação, mas é o ser
mesmo como relação, por isso não é possível abordar algum desses elementos isoladamente
ou absorvê-lo, incorporá-lo porque um já está com o outro, dado que são co-extensivos:

É precedida por um “fora-da-lei” mais originário ainda, que é justamente esse cum
ao qual pertencemos desde sempre enquanto existência temporal: a coexistência. Isto
que dizer que a comunidade é irrealizável não pelo fato de estar presa por um nomos
cruel que nos impede de acessá-la, mas sim porque ela está aqui e agora em seu
constitutivo a-partamento (ESPOSITO, 2006, p. 47).
Neste sentido, não se pode nem mesmo falar de um nós que não seja também um
nós-outros. Isto significa o seguinte: não partir do eu ou do não-eu, mas do cum, da relação:
nós somos juntos aos outros, não como pontos que em determinado momento se agregam,
nem tampouco com um conjunto subdividido, mas desde sempre uns-com-os-outros e uns-
dos-outros” (ESPOSITO, 2003, p. 158-159). Em nossa reinterpretação, poderíamos ler esta
relação de perda ou ausência em Schmitt como a relação do político, ou seja, do antagonismo:
tanto a communitas quanto o antagonismo tentam ser exorcizados pela ordem politica. A
mesma relação desapropriadora que Schmitt enxerga como relação de antagonismo, do
externo constitutivo, também pode ser vista, mutatis mutandi, na leitura de Esposito. Não
obstante, mais refinada e assertiva, é possível pensar uma influência oblíqua de Schmitt na
obra de Esposito tal como sustentamos no capítulo 1 haver uma influência quanto à categoria
de impolítico, cf. 1.8 (supra). A partir da ontologia do conflito que esboçamos neste capítulo,
talvez deveríamos acrescentar: uns-contra-os-outros, visto que parece-nos que a relação mais
constitutiva não é outra senão aquela do antagonismos, ela mesma provocadora do desamparo
ou ausência.

* * *

Assim como as teses que avançamos a partir de Schmitt, os teóricos da comunidade


compreendem-na fora da questão da substância e sustentam que o que está em jogo é o
problema da relação, no caso, como algo que não é apenas ausência, mas com uma ausência
provocada pelo outro. Em nossa leitura, esta ausência é tratada, para além de Blanchot, Nancy
378

e Esposito, como relação de antagonismo. Além de pensar a comunidade e o político fora do


paradigma da substância partilhada ou do pertencimento da essência, este argumento tem em
vista uma relação concreta e não uma unidade ou substância anterior e superior que seria mais
próximo a um conflito compartilhado do que um munus compartilhado, daí sua radicalidade
diante das teses de Esposito e seus antecessores, pois o termo cum ganha maior densidade na
teoria schmittiana: o que determinam o ser-comum das comunidades são relações (de
conflito), marcam sua origem como ausência, falta, porém não como passividade ou
recebimento, numa ética quase cristã que marca o autor italiano, mas sim como antagonismo e
inter-esse, este sim, de fato, provocadores da ausência. A ação política ocorre na negatividade
e em torno dela Schmitt orbita ao lançar o argumento da finitude contra teorias normativistas
e a crítica à legitimidade racionalista da ordem, aliás, como abordamos. Da mesma maneira, o
político em Schmitt se torna, a despeito do autor, indeterminado, pois impossível uma forma
transcendente; é o avesso ou aquilo ininstitucionalizável pelo direito. O negativo que marca a
comunidade ou o político não é uma dívida, mas sim um antagonismo. Isso acrescenta algo
retrospectivamente à estrutura do argumento de Esposito e dos demais autores que tratam da
comunidade: é até mesmo possível compreender a immunitas como a reação contra a relação
da communitas, ou seja, contra o nada que ela implica de maneira próxima à forma que
Schmitt compreende a reação contra o político, visto que a ordem e segurança contra a morte,
ou melhor, uma reação política autodeclarada apolítica contra o político em estado bruto
também se verifica nas teses do jurista. Não obstante, se Schmitt assume – mesmo que de
forma tímida, como vimos – o afeto mais intenso como constitutivo negativo da ordem
sempre provisória, e não como o que deve ser evitado, mas a partir do qual deve ser
compreendido a política; então, a questão se torna: por que Esposito e outros autores como
Nancy e Agamben obliteram o conflito? A ausência e o nada da comunidade advêm de um
pacificismo burguês (aliás, uma acusação bastante comum feita pelas renitentes fileiras
marxistas aos pensadores da Linksheideggerianismus) ou apenas de uma postura demasiada
teológica ainda à espera de um reino dos mil anos?
A exposição percorreu este argumento de Esposito ao partir da hipótese de um ponto
cego: após realizar uma reconstrução dos conceitos de communitas e immunitas, percebemos
uma deficiência na análise da violência ou do conflito. Assim, acreditamos que de posse da
caixa de ferramentas conceituais que extraímos de Schmitt seja possível elaborar uma análise
filosófica e filológica sobre estes termos para demonstrar que Esposito e os autores da
comunidade deixam de considerar uma possibilidade presente no prefixo cum: seu significado
como “contra” e não apenas como “com” ou justaposição. Esta possibilidade semântica
379

ressalta o argumento de que não é o munus como relação desapropriadora, mas o cum
compreendido como relação conflitiva que sofre a neutralização, por isso a individualização
moderna teria como objetivo rejeitar o conflito (cum) e não apenas o munus, pois este não
seria mais do que consequência daquele. O que pretendemos neste momento é demonstrar que
a neutralização do munus não se dá pela compensatio do complexo de dívida-dádiva ou do
dom a dar obrigatório, mas sim pela exclusão do cum, este sim a origem da desestabilização e,
sub-repticiamente, o problema enfrentado pela política ocidental. É este o ponto fundamental
que Esposito e demais autores não dão a relevância devida: o problema é o cum, isto é, a
relação e não o munus, uma vez que aquele é matriz deste. Esposito chega a afirmar que “se
em definitivo a privação concerne ao munus, o ponto de confrontação que dá sentido à
imunização é o cum no qual se generaliza em forma de communitas” (ESPOSITO, 2009, p.
15), mas compreende o cum como apenas um fator de generalização do munus e não como a
relação que provoca o conflito como Schmitt explicitamente elabora não apenas na origem da
ordem, mas também, como interpretamos, na duração da ordem. Além disso, o cum como
antagonismo implica numa releitura da tese ou desenvolvimento diferente da perspectiva
espositiana. Senão, vejamos.
A suspeita do sentido de cum não apenas como uma partícula aditiva, mas também
como “contra”, designando uma contraposição é confirmada ao analisar os mesmo textos e
dicionários que Esposito cita na sua reconstrução filológica acerca dos termos cum e munus.
Parece-nos que Esposito deixou de considerar uma possibilidade semântica bastante plausível
presente no termo cum: esta partícula não significa apenas uma partilha ou uma relação de
adição ou justaposição, mas também pode ser considerada como uma oposição e significar
uma relação de conflito. No Dictionnaire etymologique de la langue latine (1951) de Alfred
Ernout e Antoine Meillet (4ª ed. 2001) e no Lateinisches etymologisches worterbuch (1910)
de Alois Walde – dicionários que Esposito se utiliza no texto para aduzir argumentos para sua
análise filológica sobre os termos -cum e -munus – respectivamente, afirmam nossa tese380.

380
Nos verbetes abaixo: cum (ancienne forme com ; con- co-) : « avec », préverbe et préposition accompagnée
de l'ablatif-instrumental (et, à basse époque, avec l'accusatif, ou plutôt le cas régime unique). Un emploi
adverbial n'est pas attesté. Souvent joint à des adverbes marquant l'égalité ou la simultanéité : simul cum, pariter
cum ; marque la simultanéité : cum prima lûce, ou le moyen avec lequel on fait quelque chose, ou les
circonstances qui accompagnent l'action. Avec certaines expressions telles que agere cum, bellum gerere cum, le
sens est voisin de celui de contra, le partenaire étant aussi l'adversaire. L'indépendance originelle de la place de
la préposition apparaît encore dans certains emplois comme quïcum, mëçum, etc., où la particule est postposée.
Usité de tout (temps; conservé dans les langues romanes) (MEILLET, 2001, p. 156.); e Com-, cum “mit” (...)
*kom “mit” steht in Beziehung (...) aus dem Lat. selbst contra “gegenüber, dagegen, gegen” (...) doch ist das mit
com in der Vokalstufe stimmende contro- (gegen-über kelt. gr. n) wohl in *com-tro zu zerlegen und hat als eine
Komparativbildung wir al-ter (: alius) spez. die aus dem “beisammen” bloSS zweier erklärbare Bed. des.
“gegenüber” (WALDE, p. 180-181). Em português, no tradicional Novíssimo Diccionario Latino-Portuguez de
380

Na leitura que realizamos, Schmitt pensa a mesma ausência ou falta e separação que
os teóricos da comunidade que segue uma linha argumentativa baseada em Heidegger e
Bataille também insistem, mas não assume a relação diante do outro como dívida ou culpa,
mas sim como conflito: aquilo que dá medida não é a dívida-dádiva, mas sim o antagonismo.
Da mesma maneira, a falta é caracterizada por um antagonismo (como em Nietzsche, afinal
de contas) que implica, inclusive, na luta e violência que leva à morte. Este argumento,
entretanto, não leva ao extermínio ou ao totalitarismo, pelo contrário, pode ser considerado
que apesar de possuir um critério discriminatório e estar próximo ao horizonte sacrificial da
política moderna, não é um elogio à morte, tal como Derrida mesmo reconhece. Por outro
lado, o cum-munus em nossa releitura não torna a comunidade im-munus: na verdade, apenas
explicita algo mais originário: não a dívida, mas o antagonismo. Nesta interpretação, o mais
perigoso não é o complexo semântico de dívida-ônus-dádiva que determina o munos, mas a
relação que o cum propicia: o antagonismo (expresso no sentido de cum como contra) que
aproxima e repele, demonstra que apesar da identidade ser constituída a partir do outro, ela
mesma se mostra sem fundamento possível, pois se baseia em sua própria ausência ou
impossibilidade, qual seja, o inimigo; o conflito do contra que também é cum: neste sentido
que a teoria schmittiana ganha atualidade ao possibilitar o desenvolvimento de uma dialética
entre com e contra. Todavia, não seria ela precisamente a tese do cum e do contra como uma
teoria política realista tal como Esposito afirma? Da relação como antagonismo, ou seja, do
amigo e inimigo interpretado no sentido mais próximo ao que Schmitt propôs, portanto sem
as simplificações ingênuas ou de má-fé dos autores, isto é, sem elaborar uma interpretação do
amigo ou do inimigo, mas compreender o político como diferença e relação, afinal, como já
demonstramos. A novidade é aplicação à leitura da comunidade: resta à teoria política seguir
esta trilha e buscar uma teoria do contra-hegemônico ou uma teoria da comunidade que aceite
violência e conflito como algo inscrito na própria possibilidade de ser, pensar a ação política
como abertura381.

Francisco dos Santos Saraiva380: “1 Cum, prep. de abl. 1º Com em companhia de; ao mesmo tempo que; 2º Com
ajuda de, com auxílio (...) 8º Com, contra. (...) §8º Bellum gerere cum aliquo (Fazer a guerra contra alguém)”.
(SARAIVA, S/D, 5ª ed. p. 324).
381
Ao dissociar todas as relações ou liames que sejam estranhas à estrutura institucional da proteção-obediência
(vertical), a ordem se estabelece instaurando uma relação através da não-relação. Se a comunidade é marcada
pelo delito, então a política é o delito contra o delito, isto é, a forma de precaver-se contra a comunidade. Se,
conforme Esposito, “o que se sacrifica é precisamente o cum que é a relação entre os homens” (ESPOSITO,
2006, p. 45), o que ponho em interpretação é que o que se sacrifica não é apenas a relação, mas a violência, o
conflito que este cum traz consigo. Ora, no decorrer do texto, o autor ressalta a neturalização da obrigação e
desapropriação que o munus representa. Paradoxalmente, sacrifica-os a sua própria sobrevivência e vivem em e
da renúncia a conviver.
381

Neste ponto surge uma crítica inevitável às teses apresentadas: até que ponto a
irrepresentabilidade pode ser pensada? Não tornaria o político uma aporia? Da mesma forma,
a communitas não seria impossível? A violência (ou niilismo) seria apenas destrutivo?
Esposito sustenta a relação entre niilismo e communitas, analisa a immunitas assimilando a
questão ao tema da biopolítica e, além disso, afirma que o que constitui a comunidade é um
“nada” e a partir disso conecta com o tema do niilismo. Portanto, faltaria à Esposito sustentar
que este nada ou ausência não é gratuito, mas refere-se (conforme podemos analisar com
Schmitt) ao conflito mais originário. Esposito e demais autores contemporâneos da
comunidade dissociam a ação política do conflito (“comune è solo la macanza”(...) “la
comunità è ‘esteriozzazzione dell’interno” ESPOSITO, 2006, p. 150) e perde um potente
argumento para sua reflexão, tornando aporético o pensamento da comunidade. Se a violência
é compreendida como alheio à communitas, pois refere-se à immunitas ou outra causa não
descrita, então a violência não desempenharia nenhum papel no pensamento político. Parece-
nos preocupante um pensamento sobre/da comunidade que imuniza-se da violência e não trata
de um dos temas principais da filosofia política. A tese de Esposito poderia tomar outros
rumos se, de fato, assumisse a influência schmittiana: apenas dessa forma, ele compreenderia
o fato de que a comunidade “expor o sujeito ao risco mais extremo: perder, com sua
individualidade, os limites que garantem a intangibilidade do outro” (ESPOSITO, 2006,
p.151) não advém de um romântico “nada”, mas do conflito de morte, aliás, esta tese da
Gefährlichkeit (periculosidade) do ser humana e da rejeição da futilidade do mundo burguês-
liberal e técnica-científico. O paradoxo que encontramos na leitura de Esposito é que nela não
há lugar para pensar a violência ou o antagonismo: o tema salta aos olhos, mas não é
abordado. É bastante plausível que haja ausência, nada, falta, desapropriação, impróprio, etc.,
mas parece-nos que há um déficit no conceito de relação em Esposito e nos teóricos da
comunidade que uma ontologia do político poderia sanar.
Em última instância, o político mostra sua inevitabilidade e totalidade como tensão e
antagonismo, na sua vocação à conjunção e disjunção, relação não calculável e não
compreendida em termos normativos nem metafísicos. Assim, não apenas fornece munição
para uma crítica ao individualismo, à fundamentação metafísica, mas também aponta para a
instabilidade da ordem e, por conseguinte, para a luta por hegemonias. O principal limite da
reflexão sobre a comunidade é que não dá conta do conflito ou, quando o faz, elabora
considerações em tons negativos. Ao contrário, a partir de Schmitt, é possível conceber o
político como um entre: a possibilidade como relação; isto é, o ser como aparência, sem
pressupor identidades metafísicas ou essências políticas e, por isso, mesmo suportar a tensão
382

desestabilizadora da ausência de paradigma racionais da ação humana. Assumimos a chave


hermenêutica immunitas-commmunitas para a leitura da modernidade, porém ao pensar estes
termos, precisamos acrescentar não a obrigação que o munus implica como principal, mas o
antagonismo como causa da instabilidade e da abertura que desapropria. Portanto, seria
necessária uma compreensão mais apurada da partícula cum, visto que não possui apenas a
função de espalhar ou viralizar o munus. mas, sobretudo, é o elemento que denota o
antagonismo e a abertura da relação. Pensar a communitas é também pensar o
382
antagonismo .

382
A interpretação mais interessante de Schmitt parece apontar para a noção do cum ou do contra (em todo caso,
da contradição que o político expressa) para compreender a ação política como finitude e, sobretudo, abertura: a
possibilidade de outra ordem. O desafio é conceber com Schmitt e o conflito como constitutivo, caso contrário,
incorre-se na mesma análise equivocada, gira em falso, da homogeneização do político (amigo) contra os
inimigos, sem perceber que o que está em jogo não é a determinação dos polos, mas a relação como conflito co-
institutivo. Evidentemente, potencializados por Bataille e Heidegger, Esposito propõe teses que Schmitt nunca
assumiria, mesmo que seu débito inicial, a intuição da diferença ontológica entre política e político e a noção do
político como não normativo ou ininstitucionalizável, assim como a compreensão do político como relação e
conflito são temas em pauta em qualquer discussão política de matriz não normativa. Após demonstrar a tradição
recebida às escondidas pela discussão política contemporânea, o próximo passo seria aproximar Schmitt de
Maquiavel e, sobretudo, Espinoza: uma tarefa a ser realizada.
383

Conclusão – Recapitulação das teses

Esta pesquisa procurou realizar uma leitura de Carl Schmitt, tomando como fio
condutor a intensificação do argumento da finitude em sua obra que revela a tentativa de
ruptura da simetria entre transcendência e imanência. À guisa de conclusão, gostaríamos de
explicitar o mais breve possível quais os principais lances da interpretação elaborada e a quais
posições e conceitos a análise da obra schmittiana levou. Ainda, como uma explicitação das
teses propostas, o que efetivamente consideramos de relevante nas investigações realizadas,
como a seguir:
(1) A proposta de uma releitura das leituras de Schmitt (status quaestionis) demonstra
uma constância interpretativa nos comentadores abordados: o apelo à imanência na obra
schmittiana, sobretudo, na forma dos antagonismos. A história da política é a história da
morte/dissolução do impulso ao conflito; é a história da neutralização do político, contra o
contato e conflito, fechamento e estabilidade. Contra o afeto do antagonismo, direitos e
normas. Por isso, ao contestar a possibilidade de unidade (transcendente) e fechamento da
ordem, aproxima-se de uma postura assumidamente pós-política que encontramos
paradoxalmente em Schmitt.
384

(2) Elaboramos uma espécie de mapa conceitual da teoria política em 4 tipos de


pensamento pautados em gradações em torno do problema da relação entre transcendência e
imanência: políticas da transcendência, políticas da exceção, políticas da imanência e políticas
da abertura.
(3) A secularização possui um papel fundamental na compreensão da realidade
concreta como uma instância regida pela contingência. Além disso, há uma releitura na
década de 1920 sobre o conceito do político: do político como mediação para o político como
relação. Assim, o político se aproxima da negatividade: ausência de
forma/substância/essência, mesmo assim, configurando uma totalidade, a única possível: das
relações e diferenças.
(4) O político como relação e afeto expõe a origem da ordem como conflito e
violência: uma ordem nada mais é do que uma hegemonia, contingente e carente de
universais, pois resultados das relações imanentes. A consequência do finitismo, através da
secularização, provoca o desinflacionamento da teoria política e sua compreensão como
abertura e pluralidade, sem universais ou parti pris racionalista
(5) Schmitt executa um movimento – não finalizado pelo autor – de ruptura da relação
entre transcendência e imanência, provocando, ao liberar esta daquela, uma finitização ou
desinflacionamento da teoria política.
(6) Este movimento pode ser visto na tentativa de periodicização da obra schmittiana
(mais como exemplificativo do que dogmático a respeito de sua obra): formalismo, realismo
fraco ou ante rem e realismo forte ou in re. A partir disso, afirmamos que as teses
schmittianas dão ensejo a uma teoria peculiar que não se enquadra sequer no realismo e, por
isso, denominamos como pragmatismo político.
(7) Uma vez liberada da constante referência ao externo universal, o autor passa a
considerar a realidade marcada por uma insolúvel contingência que, em nossa leitura, ocupa o
lugar do fundamento da teoria política, mais precisamente, como um fundamento enquanto
ausência.
(8) Esta característica insere Schmitt, mesmo com certo desconforto, nos autores
contemporâneos, sobretudo, ao pensar o paradoxo do político: a diferença entre die Politik e
das Politischen. A rejeição da identidade entre político e Estado (política) – a dupla inscrição
entre político e política: político se refere ao conflito e negatividade, à stasis ineliminável
dentro do corpo social, aos antagonismos que provocam uma abertura constitutiva que, não
obstante as tentativas da política como normalização institucional ou gentrificação das
385

relações sociais, sempre permanece como insolúvel, nunca adquire uma configuração final. O
elemento pragmático do político se refere à recusa de enquadrar-se em esquemas normativos.
(9) A distinção entre imanência e transcendência é reavaliada como distinção
(concreta) entre amigo e inimigo. Entretanto, conforme nossa proposta, esta exige que se
enfatize não um dos polos em questão, mas sim a própria relação como relação de
antagonismo.
(10) Conforme nossa tese, o político compreendido como antagonismo revela que na
base das considerações schmittianas, mesmo que não desenvolvidas, estaria o argumento de
que qualquer abordagem em política tem que levar em conta o âmbito dos afetos e não a
estrutura normativa como mais fundamental.
(11) Ao compreender o político como antagonismo, ressaltamos que as
consequências do pensamento schmittiano não permitem afirmar que ele seja, sem mais, um
“autor da ordem”, isto é, apesar de sua explícita vocação para garantir a ordem, suas teses não
permitem tirar esta conclusão, inserindo um elemento desestabilizador na teoria política: o
incessante movimento entre político e política.
(12) O antagonismo retorna neste ponto ao garantir uma dialética negativa entre
político e política, impossibilitando o fechamento da ordem ao apostar que qualquer ordem
constituída nada mais é do que o resultado provisório de uma relação de afetos (antagonismo)
no corpo social. Daí, argumentamos que haja uma espécie de transcendência da ou na
imanência, demonstrando sua origem nos lances dos jogos de poder, estritamente contextuais
ou pragmáticos. Schmitt percebe algo nesta direção ao estabelecer o antagonismo como
princípio que, no entanto, não funciona tipicamente como um fundamento: a partir dele, é
possível uma crítica à razão/metafísica. Ao criticar a possibilidade da simetria entre forma e
experiência (a noção de representação), Schmitt impossibilita a estrutura teológico-política da
distinção entre ser e aparecer: como a política refere-se sempre ao político e vice-versa,
Schmitt estabelece um critério hermenêutico importante, qual seja, qualquer transcendência é
da imanência. Como não há referência a algo externo (forma política, ideia de direito,
representação, etc.) a pergunta pela unidade ou melhor ordem ou forma política não faz mais
sentido. A pós-política ignora a distinção entre faticidade e validade, dissolve-a assim como a
distinção entre analítico e sintético, sujeito e objeto, entre outras.
(13) A partir disso, ao mesmo tempo em que propomos esta contingência como origem
da ordem (por conta do movimento entre política e político que causa a ausência), isto é,
como uma fundamentação que se nega enquanto tal, pois ausência de fundamentação; também
arriscamos uma ontologia do político, como aquele fluxo de afetos no qual o antagonismo é o
386

principal e, por isso, determinante desta estrutura da realidade que não está nem além nem
aquém, mas que reside inteiramente no contexto sócio-prático. Denominamos isto de
ontologia do antagonismo como a própria condição do ser-com: multiplicidade, conflito e
fragmentação.
(14) A ontologia do antagonismo pode ser vista como um argumento útil na
compreensão do tema contemporâneo da comunidade: compreendê-la como a ausência de
substância, de centro ou de fundamento provocada, precisamente, pelo antagonismo próprio
das relações do corpo social, dado último a que podemos chegar através das considerações
acerca da realidade política.
(15) Desenvolvemos por conta própria as teses schmittianas e, para além do autor,
esboçamos uma teoria política pós-fundacionista que denominamos de monismo político:
ausência de unidade e estabilidade, bem como de um saber seguro acerca da ação política, ou
seja, a desvinculação entre ação e racionalidade, entre ser e aparecer. Numa expressão: a
dissolução da representação a partir da ruptura entre imanência e transcendência não por
escolher um dos lados da questão, mas por considerá-las como co-extensivas, uma vez que
toda constituição transcendental é uma instituição social.
(16) O abandono da semântica política moderna e a assimilação dos ganhos teóricos
de outras áreas da filosofia na teoria política: as dicotomias normativo-descritivo, forma-
conteúdo, natureza-cultura, ser-aparecer, etc, se tornam sem sentido.
(17) A abertura refere-se a algo constante no movimento político: se fundamento é
ausência de fundamento, nem o político nem a política conseguem se impor e moldar a
realidade e as instituições. Quando sustentamos a abertura, estamos nos referindo à diferença
entre os elementos: esta diferença que é por definição instável, ininstitucionalizável, o avesso
ou a fronteira esquecida que denuncia a falácia de fundar a cidade e a ação política no
universal e na razão. O que enfatizamos na noção de abertura é a dimensão não institucional
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