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Direito penal

Magalhães Noronha E. MAGALHÃES NORONHA

OBRAS DO AUTOR

Dos crimes contra os costumes. In: Código Penal brasileiro comentado (coms.
aos arts. 213 a 226, e 108, VIII).
Crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos. Crimes
contra os costumes. In: Código Penal brasileiro comentado, v. 7. Direito Penal
Do crime culposo.
Crimes contra o património. In: Código Penal brasileiro comentado. 1." e 2.a
Partes, v. 5.
Curso de direito processual penal.
Volume 1
Direito penal; introdução e parte geral. v. 1.
INTRODUÇÃO E PARTE GERAL
Direito penal; dos crimes contra a pessoa — dos crimes contra o património, v. 2.
Direito penal; dos crimes contra a propriedade imaterial a crimes contra a se-
gurança dos meios de comunicação e transporte e outros serviços públicos.
v. 3. Atualizada por
ADALBERTO JOSÉ Q.T. DE CAMARGO ARANHA (Desembargador
Direito penal; dos crimes contra a saúde pública a disposições finais, v. 4. aposentado do Tribunal
de Justiça de São Paulo e Professor
da Faculdade de Direito Mackenzie e da
Faculdade de Direito da Unib)
a
Saraiva 36. edição revista, 2001
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

01-0217 Noronha, E. Magalhães, 1906-1982.


Direito penal / E. Magalhães Noronha. — São Paulo : Saraiva, 2001.
Edições atualizadas por Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha.
Conteúdo: V. 1. Introdução e parte geral. 36. ed. rev. — v. 2. Dos
crimes contra a pessoa; Dos crimes contra o património. 31. ed. atual.
— v. 3. Dos crimes contra a propriedade imaterial a crimes contra a
segurança dos meios de comunicação e transporte e outros serviços
públicos. 25. ed. atual. — v. 4. Dos crimes contra a saúde pública a
disposições finais. 22. ed. atual.

1. Brasil - Constituição (1988) 2. Direito penal 3. Direito penal -Brasil


I. Título.

CDU-343

índices para catálogo sistemático:


1. Direito criminal 343
2. Direito penal 343
2561

l Saraiva
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À saudosa memória de meus pais e de


minhas irmãs.
PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

O presente volume, com adaptações e acréscimos necessários, representa, em


grande parte, preleções ministradas na Faculdade de Direito da Universidade
Mackenzie, onde somos professor contratado.
Nenhuma originalidade de monta apresenta. Foi nosso objetivo expor a ma-
téria com simplicidade, evitando a linguagem excessivamente técnica, jamais ao
alcance do aluno, por ser ele uma pessoa que ouve, pela primeira vez, o que o
professor expõe. Conseqiientemente, deve o mestre ser o mais claro possível, indo
até o discípulo e não esperando que este venha até ele.
Evitamos também as questões puramente académicas, sem qualquer utilida-
de, tendo presente que o direito vive e palpita entre os homens e não nelle nuvole.
Na exposição do direito positivo, embora, algumas vezes, não concordando
com o Código, na distribuição da matéria, preferimos segui-lo, visando, dessarte,
à mais fácil compreensão dos discentes.
O estudo do direito normativo restringe-se — com algumas exceções — ao
Código Penal, deixando de lado outras leis da mesma natureza. Considerando-se
o número de aulas em cada ano, deve dar-se por satisfeito o professor se conseguir,
durante o curso, fazer exegese integral daquele diploma.
Destina-se o livro aos jejunos do direito penal. Como, entretanto, não nos
furtamos à discussão de diversos problemas de real interesse, acreditamos seja de
alguma utilidade para os que militam no foro criminal.
Com ele, iniciamos o estudo de todo o Código Penal brasileiro, que pretende-
mos fazer em quatro volumes.

O Autor.
ÍNDICE GERAL

INTRODUÇÃO

CONCEITO DO DIREITO PENAL


1. Denominação........................................................................................ 3
2. Definição............................................................................................... 4
3. Caracteres.............................................................................................. 4
4. Conteúdo............................................................................................... 7
5. Direito penal objetivo e direito penal subjetivo.................................... 7
6. Caráter dogmático................................................................................ 8
7. Direito penal comum e direito penal especial....................................... 9
8. Direito penal substantivo e direito penal adjetivo............................... 10

RELAÇÕES DO DIREITO PENAL


9. Relações do direito penal com as ciências jurídicas fundamentais ... 11
10. Relações do direito penal com outros ramos jurídicos....................... 12
11. O direito penal e a criminologia......................................................... 14
12. A penologia......................................................................................... 16
13. A política criminal.............................................................................. 17
14. O direito penal e as disciplinas auxiliares........................................... 18

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS IDEIAS PENAIS


15. Tempos primitivos............................................................................... 20
16. Vingança privada................................................................................. 20
17. Vingança divina.................................................................................. 21
18. Vingança pública................................................................................. 22
19. Período humanitário........................................................................... 24
20. Período criminológico........................................................................ 26
ÍNDICE GERAL XI
ÍNDICE GERAL resultados............................................................................................. 72
37. A analogia. A analogia in bonam partem............................................. 74
DOUTRINAS E ESCOLAS PENAIS
21. Correntes doutrinárias.......................................................................... 28
22. A Escola Clássica................................................................................. 30
23. A Escola Correcionalista..................................................................... 33
24. A Escola Positiva................................................................................. 34
25. A Terceira Escola................................................................................. 39
26. A Escola Moderna alemã..................................................................... 40
27. Outras escolas e tendências. Conclusão.............................................. 41

AS FONTES DO DIREITO PENAL


28. Fontes de produção ou materiais e fontes de conhecimento ou for
mais ...................................................................................................... 45

46

5
29. Fonte imediata: a lei. A lei penal. Caracteres e classificação. Norma 0
penal em branco...................................................................................
30. Fontes mediatas: a) o costume; b) a equidade; c) os princípios gerais 54
do direito; ã) a analogia. A doutrina. A jurisprudência. Os tratados 55
e convenções ....................................................................................... 56
59
HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO
31. O aborígene..........................................................................................
32. Brasil Colonial.....................................................................................
33. O Império.............................................................................................
34. A República..........................................................................................

PARTE GERAL

DA APLICAÇÃO DA LEI

I ANTERIORIDADE DA LEI
PENAL
35. Direito penal liberal. Reação ao princípio.......................................... 69
36. Interpretação da lei penal. Necessidade. O sujeito. Os meios. Os
II A LEI PENAL NO
TEMPO
38. Irretroatividade da lei penal. Retroatividade benéfica......................... 77
39. A lei mais benigna............................................................................... 78
40. Ultratividade da lei penal. Norma penal em branco........................... 80
41. Do tempo do crime. Delitos permanentes e continuados.................... 82

III
A LEI PENAL NO ESPAÇO E EM RELAÇÃO ÀS PESSOAS.
DISPOSIÇÕES FINAIS DO TÍTULO I
42. Direito penal internacional. Os princípios.......................................... 84
43. Territorialidade. Lugar do crime......................................................... 85
44. Território.............................................................................................. 86
45. Extraterritorialidade............................................................................ 89
46. A lei penal em relação às pessoas e suas funções............................... 91
47. Extradição........................................................................................... 93
48. Disposições finais do Título I............................................................. 94

DO CRIME

CONCEITO DO CRIME
49. Conceitos do crime............................................................................. 96
50. O conceito dogmático......................................................................... 97
51. A ação.................................................................................................. 98
52. A tipicidade......................................................................................... 99
53. A antijuridicidade................................................................................ 100
54. A culpabilidade................................................................................... 103
55. A punibilidade..................................................................................... 105
56. Pressupostos do crime e condições objetivas de punibilidade............ 106
57. Ilícito penal e ilícito civil................................................................... 107

II DIVISÃO DOS
CRIMES
58. Quanto à gravidade............................................................................. iQ8
XII ÍNDICE GERAL ÍNDICE GERAL XIII

59. Quanto à forma de ação 110 127 127 128 82. Esp
60. Outras categorias............ 111 écies de
130 133
culpa.................
III OS SUJEITOS E OS 83. A
OBJETOS DO DELITO fórmula
do
61. O sujeito ativo...................................................................................... 11
Código..............
62. O sujeito passivo.................................................................................. 3
84. Co
63. O objeto jurídico.................................................................................. 11
4 mpensa
64. O objeto material..................................................................................
11 ção da
5 culpa.................
IV RELAÇÃO
11 85. O
DE CAUSALIDADE 5 preterd
65. A ação e a omissão causais.................................................................. olo.
66. O resultado........................................................................................... Agrava
67. As teorias.............................................................................................. ção
68. A teoria do Código. O nexo causal...................................................... pelo
69. Superveniência causal......................................................................... 11 resultad
7 o
11 86. A
V DO CRIME
8 respons
CONSUMADO E DA TENTATIVA 11 abilidad
9
70. A consumação...................................................................................... e
12
71. O iter criminis...................................................................................... objetiva............
0
72. A cogitação........................................................................................... 87. A
12
73. Atos preparatórios e atos de execução................................................ excepci
2
74. Elementos da tentativa......................................................................... onalida
75. A pena da tentativa.............................................................................. de do
76. Inadmissibilidade da tentativa.............................................................
crime
77. Desistência voluntária, arrependimento eficaz e arrependimento
culposo.............
posterior................................................................................................
78. Crime impossível. Crime de flagrante preparado. Crime provocado .. 12 88. Act
4 io
12 libera
VI O DOLO
4 in
E A CULPA 12 causa................
79. O dolo................................................................. 5
80. Espécies de dolo................................................. 12
5 VII
81. A culpa...............................................................
DA CULPABILIDADE 14 1 162 163
A) O ERRO
3
14
89. Erro e ignorância. Erro de direito e erro de fato. Erro de tipo e erro 4
de proibição....................................................................................... 14
89. Erro de tipo........................................................................................ 5
90. Da inescusabilidade do desconhecimento da lei. Erro de proibição.. 14
91. Erro determinado por terceiro e erro sobre a pessoa.......................... 6 164 165 166
92. Erro na execução................................................................................ 14
93. Descriminantes putativas fáticas....................................................... 7
14
VIII DA 8
CULPABILIDADE
14
9
B) COAÇÃO IRRESISTÍVEL E OBEDIÊNCIA HIERÁRQUICA
95. Coação física e coação mora.............................................................
96. Causa excludente da culpabilidade....................................................
97. Estrita obediência..............................................................................
98. Causa de exclusão de culpa...............................................................

IX DA 15
0
CULPABILIDADE
15
C) DOENÇA MENTAL E DESENVOLVIMENTO MENTAL 1
INCOMPLETO OU RETARDADO 15
99. Imputabilidade e responsabilidade.................................................... 2
100. Inimputabilidade. Os critérios.......................................................... 15
101. Doença mental. Desenvolvimento mental incompleto ou retardado ... 4
15
5
15
8

16
0
16
XIV ÍNDICE GERAL ÍNDICE GERAL XV

102. Imputabilidade diminuída. 167 XIV DA


103. Medidas de segurança........ 169
ANTIJURIDICIDADE
X
DA CULPABILIDADE B) A LEGÍTIMA DEFESA
119. Definição. Fundamento e natureza. Requisitos................................ 195
D) A MENORIDADE 120. Agressão atual ou iminente e injusta................................................ 196
104. O menor infrator............................................................................. 121. Direito próprio ou alheio.................................................................. 198
17
105. A legislação pátria.......................................................................... 122. Moderação no emprego dos meios necessários............................... 200
0 123. Legítima defesa de terceiro, recíproca e putativa. Legítima defesa
106. Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13-7-1990). 17 e tentativa......................................................................................... 201
107. Legislação tutelar........................................................................... 3 124. Estado de necessidade e legítima defesa........................................... 202
17
4
17
6

XI DA 115. Requisitos........................................................................................... 189


116. Exclusão do estado de necessidade.................................................. 192
CULPABILIDADE
117. Causas do estado de necessidade. Estado de necessidade putativo ... 193
E) A EMOÇÃO E A PAIXÃO 118. Casos legais de estado de necessidade............................................. 194
108. A emoção e a paixão.......................................................................... 179
109. A posição do Código.......................................................................... 179
110. Actio libera in causa......................................................................... 180

XII DA
CULPABILIDADE

F) A EMBRIAGUEZ
111. O alcoolismo...................................................................................... 182
112. A orientação do Código..................................................................... 183
113. O fundamento: actio libera in causa................................................. 184

XIII DA
ANTIJURIDICIDADE 132.
133.
A) O ESTADO DE NECESSIDADE 134.
114. Conceito e fundamento...................................................................... 188 135.
136.
137
XV DA
ANTIJURIDICIDADE

C) ESTRITO CUMPRIMENTO DE DEVER LEGAL.


EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO
125. Estrito cumprimento de dever legal................................................. 204
126. Exercício regular de direito. O costume.......................................... 205
127. Consentimento do ofendido. Violência nos desportes. Intervenção
médico-cirúrgica............................................................................... 206

XVI DA ANTIJURIDICIDADE
DO EXCESSO PUNÍVEL
128. Do excesso........................................................................................ 208
129. Do excesso punível no estado de necessidade.................................. 208
130. Do excesso punível na legítima defesa............................................ 209
131. Do excesso punível no estrito cumprimento de dever legal e no
exercício regular de direito.............................................................. 210

XVII
DO CONCURSO DE PESSOAS
Noções.............................................................................................. 211
As teorias.......................................................................................... 212
A teoria do Código........................................................................... 214
Causalidade física e psíquica............................................................ 214
Co-participação e culpa................................................................... 216
Co-participação e omissão............................................................... 217
XVI ÍNDICE GERAL ÍNDICE GERAL XVII

138. Da punibilidade. Causas de redução da pena: pequena participação 156. Natureza jurídica................................................................................
e desvios subjetivos entre os partícipes............................................. 217 242
139. Requisitos: concurso necessário e concurso agravante....................... 220 157. Características....................................................................................
140. Comunicabilidade das circunstâncias................................................ 220 243
141. Co-participação e inexecução do crime............................................. 222 158. Espécies..............................................................................................
142. Autoria incerta.................................................................................... 222 244
143. A multidão delinquente...................................................................... 223

DA PENA

I CONSIDERAÇÕES
GERAIS
144. Teorias. Conceito. Fundamento. Fins................................................. 225
145. Caracteres e classificação................................................................... 227
146. A pena de morte................................................................................. 230

II

23
2
CLASSIFICAÇÃO ATUAL 233
147. Antecedentes históricos.........................................
148. Classificação atual..................................................

III DA PENA PRIVATIVA DE


LIBERDADE
149
. Natureza............................................................................................. 234
150 Formas de andamento. Sistema progressivo...................................... 235
. Sistemas penitenciários. Sistemas clássicos....................................... 236
151 Do trabalho e remuneração................................................................ 237
. Detração penal.................................................................................... 238
152 Direitos e deveres do preso................................................................ 239
. O problema sexual.............................................................................. 240

IV DA PENA RESTRITIVA DE
DIREITO 178. Considerações gerais.
179. Histórico....................
V
DA PENA DE MULTA
159. Natureza............................................................................................ 247
160. Pagamento. Conversão. Revogação................................................... 248

VI DA APLICAÇÃO DA
PENA
161. Arbítrio judicial................................................................................. 250
162. O art. 59............................................................................................. 251
163. A personalidade do agente e a gravidade objetiva do crime............... 251
164. Circunstâncias legais......................................................................... 253
165. Fixação da pena................................................................................. 254

VII CIRCUNSTÂNCIAS
AGRAVANTES
166. Considerações gerais......................................................................... 257
167. Circunstâncias agravantes................................................................. 259
168. A reincidência................................................................................... 264

VIII
CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES
169. Circunstâncias atenuantes.................................................................. 266

IX
CONCURSO DE CRIMES
170. Considerações gerais......................................................................... 270
171. Concurso material............................................................................. 271
172. Concurso formal................................................................................ 271
173. Crime continuado.............................................................................. 273
174. Sistemas de aplicação de penas......................................................... 276
175. Multa................................................................................................. 277
176. Limite das penas................................................................................ 277
177. Concurso de leis................................................................................ 278

X
SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA
282
283
XVIII ÍNDICE GERAL ÍNDICE GERAL XIX

180. Definição e natureza.......................................................................... 284 Medida de segurança e pena.............................................................. 314


181. Pressupostos....................................................................................... 285 Legalidade da medida de segurança.................................................. 315
182. Condições........................................................................................... 286 Pressupostos....................................................................................... 316
183. Revogação.......................................................................................... 287 Espécies.............................................................................................. 317
184. Inexecução da pena............................................................................ 288

XI LIVRAMENTO
CONDICIONAL
185. Considerações preliminares............................................................... 290
186. Definição. Natureza. Histórico.......................................................... 291
187. Pressupostos....................................................................................... 292
188. Concessão do livramento condicional............................................... 294
189. Revogação do livramento condicional............................................... 296
190. Incompatibilidade do livramento condicional. A expulsão de
estrangeiro.......................................................................................... 297

XII DOS EFEITOS DA


CONDENAÇÃO
191. Considerações gerais.......................................................................... 299
192. A sentença penal condenatória........................................................... 300
193. A sentença penal absolutória.............................................................. 301
194. Efeitos genéricos. Indenização........................................................... 303
195. Confisco............................................................................................. 304
196. Registro da condenação..................................................................... 306
197. Efeitos específicos.............................................................................. 307

XIII DA
REABILITAÇÃO
198 Considerações gerais. Conceito......................................................... 309
.
199 Pressupostos. Revogação................................................................... 311

DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA


200.
Histórico............................................................................................. 313
201.
202.
203.
204.
DA AÇÃO PENAL

I CONSIDERAÇÕES
GERAIS
205. Considerações preliminares................................................................ 318
206. Notitia críminis.................................................................................. 320
207. Espécies de ação................................................................................. 321
208. Procedimento ex officio...................................................................... 321

II
A AÇÃO PÚBLICA
209. O Ministério Público 323
32
210. Da iniciativa da ação .

III A AÇÃO DE INICIATIVA


PRIVADA
211. Natureza e fundamento...................................................................... 331
212. A queixa. Espécies de ação de iniciativa privada................................ 333
213. O ofendido e a ação penal................................................................. 336
214. Decadência. Renúncia. Perdão........................................................... 338
215. A ação penal no crime complexo....................................................... 342

DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE

I
CONSIDERAÇÕES GERAIS
216. Extinção da punibilidade......................................... 345
346
217. Classificação............................................................

II DA EXTINÇÃO DA
PUNIBILIDADE

A) MORTE DO AGENTE
218. Morte do acusado e do condenado................................. 349
XX ÍNDICE GERAL ÍNDICE GERAL XXI

III DA EXTINÇÃO DA VII PERDÃO


PUNIBILIDADE JUDICIAL

B) DA CLEMÊNCIA SOBERANA 234. Conceito............................................................................................ 380


235. Natureza jurídica............................................................................... 380
219. Considerações preliminares................................................................ 352
236. Extinção da punibilidade................................................................... 381
220. Anistia................................................................................................ '353
221. Graça e indulto................................................................................... 355
BIBLIOGRAFIA......................................................................................... 383

IV
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE

C) DECURSO DO TEMPO
222. Novatio legis.................................................................... 358
223. Prescrição. Decadência. Perempção............................... 358

V DA EXTINÇÃO DA
PUNIBILIDADE

D) DECURSO DO TEMPO
PRESCRIÇÃO
224. Conceito e fundamento...................................................................... 361
225. Penas e prescrição.............................................................................. 363
226. Prescrição retroativa........................................................................... 364
227. Termo inicial da prescrição................................................................. 366
228. Causas suspensivas............................................................................. 369
229. Causas interruptivas........................................................................... 370
230. Crimes de imprensa............................................................................ 372
231. Crimes falimentares............................................................................ 373

VI DA EXTINÇÃO DA
PUNIBILIDADE

E) REPARAÇÃO
232. Retratação........................
233. Subsequens matrimonium

J
INTRODUÇÃO
CONCEITO DO DIREITO PENAL
SUMÁRIO: 1. Denominação. 2. Definição. 3. Caracteres. 4. Conteúdo.
5. Direito penal objetivo e direito penal subjetivo. 6. Caráter dogmático.
7. Direito penal comum e direito penal especial. 8. Direito penal substantivo
e direito penal adjetivo.

1. Denominação. A denominação direito penal não é antiga. Segundo


Mezger, parece que o primeiro a empregá-la foi um Conselheiro de Estado,
Regnerus Engelhard, discípulo do filósofo Christian Wolff, em 17561.
Atualmente, na Alemanha, é largamente usada. O mesmo se diga da
Itália, não obstante o emprego também da expressão direito criminal, não
sendo ocioso lembrar que a monumental obra de Carrara lhe deu prefe-
rência.
Na Espanha e na França, parece-ios que as denominações derecho penal
e droit penal são mais frequentes que derecho criminal e droit criminei.
Outros nomes têm sido lembrados: direito repressivo (Puglia), princí-
pios de criminologia (De Luca), direito protetor dos criminosos (Dorado
Montero), direito restaurador ou sancionador (Valdés), direito de defesa so-
cial (Martínez), denominação adotada pelo Código de Cuba. Outras expres-
sões são ainda invocadas.
Dentre as denominações tradicionais — direito penal e direito criminal
— oscilam"as_prefergucias,, Argumentam alguns que a primeira é imprópria,
por não abranger as medidas de segurança cuja natureza preventiva as dis-
tingue da pena. Revidam outros que a punibilidade é a parte mais importan-
te, de maior proteção e de efeitos mais graves.
Consagradas pelo uso, qualquer uma das expressões pode ser emprega-
da na denominação de nossa disciplina. Optamos, entretanto, pela de direito
penal, em consonância com o Código, sendo marcante essa preferência dada
pelo legislador, visto haver rejeitado a adotada por Alcântara Machado, em

1. E. Mezger, Tratado de derecho penal, trad. Rodríguez Munoz, 2. ed., v. 1, p. 27.


CONCEITO DO DIREITO PENAL

seu Projeto de Código Criminal. Isso dizemos, não obstante reconhecermos to, pois o que se lhe transfere unicamente é o jus accusationis, cessando
que esta última expressão é mais compreensiva. qualquer atividade sua com a sentença transitada em julgado.
Odelito é, pois, ofensaj^sociedade, e a d
2. Definição. Numerosas são as definições do direito penal,
L é Et
frequentemente imperfeitas, lembrando-nos o famoso brocardo latino.
Sinteticamente, Von Liszt define-o como "conjunto das prescrições
emanadas do Estado, que ligam ao crime, como fato, a pena como conse-
qtienciã"7. Nao se afasta muito desta definição a de Mezger: "Direito Penal Odelito é, p o , j^ ^ ^ ^ j ^
em
é o conjunto de normas^rídiças^ue_£egulam o_pQderpuriLtiyp do Estado, função dos interessesi_desla. Logo é o Estado o titular do jus puniendi,
ligandjTjKjjielitQ^gjnQ p^ Bem mais que tem, dessarte, caráter público.
ampla é a de Asúa: "Conjunto de normas y disposiciones jurídicas que regulan É o direito penal ciênciafculúirallnormativaj^alorativaje finalista. ,
el ejercicio dei poder sancionador y preventivo dei Estado, estableciendo el Na divisão das ciências em naturais e culturais, pertence ele a esta clas-
concepto dei delito como presupuesto de Ia acción estatal, así como Ia se, ou seja, à das ciências do dever ser e não à do ser, isto é, à das ciências
responsabilidad dei sujeto activo, y asociando a Ia infracción de Ia norma naturais.
una pena finalista o una medida aseguradora"4. É ciência normativa, pois tem porobjeto o estudo da norma, contrapjon-do-se
Realmente, não se pode dizer que o direito penal se ocupa somente com o a outras que são causais-explicativas. Tem a norma por objeto a con-"quelfe
crime e a pena. Não só outras consequências oriundas do delito se apresentam, deve ou não fazer, bem como a consequência advinda da inobservância do
como também mais vasto é o campo dessa disciplina. Aliás, o próprio que impõe.
Mezger, em seguida à sua definição, acentua que o direito penal do presente As ciências causais-explicativas podem também estudar a norma, mas
saltou o marco dessa denominação e que seu conteúdo se estende mais além ocupam-se com o porquê e o como de sua génese, com os efeitos sociais, a
dos limites que lhe assinala o sentido gramatical do nome. Já não se pode causa de seu desaparecimento etc, como escreve Grispigni 6.
falar só da pena como consequência jurídica do crime 5. , "" É tamb^m^ojliíejjta.ppnal JiiaLnrMiMP- Como efeito, o direito não em-
Resumidamente: direito penal é o conjunto de normas jurídicas que regulam o presta às normas o mesmo valor, porém este varia, de conformidade com o
poder punitivo do Estado, tendo em vista os fatos de natureza criminal e as fato que lhe dá conteúdo. Nesse sentido, o direito valoriza suas normas, que
medidas aplicáveis a quem os pratica. se dispõem em escala hierárquica. Inaimfoejiojdireitpjjej^ lar os valores
mais elevados ou preciosos. Qu,jse.se.quiser, ele atua somente. ojide há
3. Caracteres. Pertence o dijejto^ejoal jQ_direito público. Violadaji transpTP.ssão de valores mais importantes ou fundamentais para a
norma penal, efetiva-se o jus puniendi do Estado, pois este, responsável pela sociedade.
harmonia e estabilidade sociais, é o coordenador das atividades dos indiví- Outro caráter seu é ser finalista. Embora alguns, como Kelsen, susten-
duos que comgõernj. spciedad£. tem que o fim não pertence ao direito, mas à política ou à sociologia, tem o
Os bens tutelados pelojiireUo_eenaXnão interessam exclusiyamente-aaJ direito urn_^sçogp_gue_se..resume najrqteção do bemj)ujiU£re^.&4ujidJ£Q.
indivíduo, mas a toda a coletividade,. A relação existente entre o autor de um Bem é tudojguanto pode satisfazer uma necessidade humana, e interesse é a
crime e a vítima é de natureza secundária, já que ela não tem o direito de r
Ç]á£Í9 que se estabelece entre o indivíduo e o bem. Ê frequente que as duas
punir. Mesmo quando exerce a persecutio criminis, não goza daquele direi- expressões sejam empregadas como sinónimas, o que não acarreta prejuízo,
pois, se o interesse é o resultado da avaliação que o indivíduo faz da idonei-
■t, Tratado de direito penal, trad. J. Higino, v. 1, p. 1-
dade de um bem, é claro que a norma, protegendo o bem, tutela igualmente
3 Mezger, Tratado, cit., v. 1, p. 27. o interesse7.
4. Luís Jiménez de Asúa, Tratado de derecho penal, v. 1, p. 27.
Esses benjuÊ interesses pertencem não só ao indivíduo, mas à socie.da-
5. Mezger, Tratado, cit., v. 1, p. 28.
de, e de sua coordenação e harmonia resultaraordem jurídica.
.É_o_direito penalrsanciúnãdoA A origem desta opinião parece ter sido

6. Filipo Grispigni, Diritto penale italiano, 2. ed., v. 1, p. 7.


7. Remo Pannain, Diritto penale, v. I, p. 23.
INTRODUÇÃO CONCEITO DO DIREITO PENAL

Rousseau, ao dizer que "as leis criminais, no fundo, antes que uma espécie 4. Conteúdo. Não somente ,p crime e ajíenajdã^çorjioaojiireito genal.
particular de leis, são sanções de todas as outras" 8. A esses elementos outros se acrescentam, como o delinquente. Erraria quem
Não estamos, entretanto, em zona pacífica: numerosos autores afirmam pensasse que a consideração do homem criminoso como objeto do direito
ser ele constitujiiío. penal é profissão de fé positivista. O_cnme é sobretudo um fato humano, e,
Cremos, com Grispigni e outros, que o preceito primário penal é com- no estudo deste, não sejjode olvidar o homem, para se permanecer em con
plemento e reforço de um extrapenal. Isso não importa que ele suceda sem- templação abstrata e formal da espécie delituosa. Ao contrário, há de se fa
pre a este, no tempo, mas sim que lhe é logicamente posterior. Trata-se de zer o estudo jurídico ànsujeitoativa edasjsituaçõesjurídicas por ele criadas.
sentido lógico e não cronológico. Acrescenta esse autor que bem se compreen- Por outro lado, o direito penal não se exaure com o fim repressivo, mas
de que, por princípio de economia do direito, quando o Estado pode comba- deve valer-se de medidas de caráter preventivo. Mesmo quando pertencen-
ter um mal com sanção menos grave, como a civil, não irá lançar mão da tes a outróTim^Io~3Írêrró, dévérn por ele ser consideradas.
mais severa, que é a penal — a qual, lembramos nós, pode chegar até a su- Ressalte-se também a importância que hoje têm as medidas de seguran-
pressão da vida humana. ça, mesmo que sejam consideradas como sanções punitivas, compreendidas
Conseqiientemente, compreende-se que, sob ponto de vista lógico-sis- no conceito unitário da pena.
temático, a sanção penal seja posterior a outras. E as próprias consequências que tradicionalmente são de natureza ci-
Reforçando seu ponto de vista, observa o eminente autor que todos os vil, como a indenização do dano causado pelo delito, superaram a concepção
Códigos Penais contêm disposição j^t^iidgntgjla./iintijiirid.içj.d.arift- quando o exclusivamente privada, para adquirirem valorização nova que as aproxima
fato é praticado no exercício regular de direito (CP, art. 23, III). Ora, se não de instituições de caráter público, pois o problema social que contêm trans-
há crime, quando o fato é praticado nessas condições, é porque, principal- cende ao mero interesse individual, já pelo objetivo da prevenção, já como
mente, ele há de ser vedado por outro ramo jurídico9. procedimento geral, para solucionar a questão econômico-social criada pelo
Em suma: parece-nos difícil sustentar.que um crime não é sempre um conjunto dos prejudicados pela delinquência12.
ilícito extrapenal. Há uma relação de mais para menos.
5. Direito penal objetivo e direito penal subjetivo. Já tivemos ocasião
Não obstante isso, não se lhe nega autonomia normativa, como escreve de reproduzir definições de ^ direito penql objetivo,; de Von Liszt, Mezger e
Maggiore: "In conclusione, dunque 1'ordinamento penale ha sempre valore Asúa (n. 2). Em resumo, constitui-se ele dj^r£mtosjegais que regulam,a
sanzionatorio, perche le sue norme, aderiscono o no a precetti posti da altri âção estatal, definindo crimes eJmpondo pjnas e outras medidas.
rami dei diritto, agiscono mediante quella particolare sanzione che è Ia pena.
J)ireito penal subjetivo é_o juspuniendi, qug.se^ manifesta pelo podgxde
Nè in tal modo esce menomata 1'autonomia dei diritto penale, perche in ogni
imperioso Estado. É este seujjtular, o que se justifica por sua razão teleológica,
caso Ia sanzione imprime una nuova forma ai precetto, anche se attinto ad
que é a consecução dobem£amjtia, em que pese às arremetidas do anarquismo
altro ordinamento giuridico"10.
puro, do anarquismo cristão de Tolstoi e do anarquismo conciliadoras Solovief
O mesmo diz Grispigni: "Essa autonomia, no sistema das normas jurí- e Kropotkin, quiméricos e insuficientes.
dicas, resulta, de um lado, do caráter específico da própria sanção (sanção
criminal) e, de outro lado, do fato de que o Direito Penal determina, de modo Compete ao Estado o direito de punir, porém não é este ilimitado_pjL
todo autónomo, quais são as ações que constituem crime, os elementos deste arbitràno._AJimitação está na lei. Ao mesmo tempo em que ele diz ao indi-
etc, determinando, pois, com inteira autonomia o próprio praeceptum legis"11. víduojjuais as acjifôs que-pod^ou-Jiãa 4xaticai;sãbãmeÍça"deTsançãQ —
restringindo, dessarte, os interesses ou facu ldades individual;, em bene-
fício da coletividade — vincula-se juridicamente a si mesmo . Com efeito,
8. J. J. Rousseau, Do contrato social, trad. B. L. Viana, Liv. II, Cap. XII.
hájuJo^imitajíliO.Rpr ele ditada, através da lei, pois, quando baixa uma
9. Grispigni, Diritto penale, cit., v. 1, p. 237 e s.
norma, impondo determinada conduta, concomitantemente está ditando
' lO.Giuseppe Maggiore, Diritto penale, 1949, v. 1, t. 1, p. 29.
11. Grispigni, Diritto penale, cit., v. 1, p. 235.
12. Sebastian Soler, Derecho penal argentino, 1945, v. 1, p. 42.
INTRODUÇÃO CONCEITO DO DIREITO PENAL

seu comportamento em relação a ela e criando direitos individuais contra ele naturalista desautoriza também os acanhados limites do raquítico positivismo
mesmo. jurídico.
O direito penal subjetivo delimita-se, portanto, com o direito penal objetivo. As reconstruções dogmáticas são formas jurídicas de conteúdo humano
e social, donde o jurista não há de olvidar a realidade da vida, com suas
6. Caráter dogmático. Como ciência jurídica, tem o direito penal cará- manifestações, exigências e vibrações sociais.
ter_dogmátic.o^não se compadecendo com tendências causais-explicativas.
Não tem por escopo considerações biológicas e sociológicas acerca do deli- 7. Direito penal comum e direito penal especial. Delimitando o con-
to e do delinquente, pois, como já se escreveu, é uma ciêncja normativa cujo ceito do direito penal, os autores distinguem-no em çomumt_esji££icd, apre-
objeto é não o ser, mas o dever ser, o que vale dizer, as ordenações e precei- sentando estevárias subdivisões. A primeira é ojlireito penal disciplinar. É
tos, ou antes, as normas legais, sem preocupações experimentais acerca do exercido pela administração e supõe, no destinatário da norma, relação de
fenómeno do crime. dependência de caráter administrativo ou de subordinação hierárquica, em-
Seu método é: oJécnico-jurídico, cujos meios nos levam ao conheci- pregando sanções de caráter meramente corretivo. Ao contrário do direito
mento preciso e exato da norma.. Orienta-nos no estudo das relações jurídi- penal comum, não se exterioriza em figuras típicasJ_mas^asjínfrações são
cas, na elaboração dos institutos e formulação do sistema. Tal método é de previstas de modo vago ou genericamente.
natureza lógico-abstrata, o que bem se compreende, já que, se a norma jurí- Fala-se também em direito penal administrativo, conjunto de disposi-
dica tem por conteúdo deveres, para conhecê-los bastam sua consideração e ções que, mediante uma pena, tem em vista o cumprimento, pelo particular,
estudo, nada havendo para observar ou experimentar. de um dever seu para com a administração. Apontam alguns, como seu capí-
Cumpre, entretanto, evitar excessos do dogrnatisirio^ pois a verdade é tulo mais importante, o direito penal fiscal ou financeiro.
que, como reação ao positivismo naturalista, que pretendia reduzir o direito Direito penal militar, aplicável somente a determinada classe de
penal a um capítulo da sociologia criminal, excessQs^jieJgni. ve.rifjca,do j.en- pessoas e por órgãos próprios. Direito penal político, em que atua justiça
tregando-se juristas a, deduções silogísticas infindáveis, a distinções ociosas, especialíssima, como no caso do impeachment (CF, art. 86).
a questões supérfluas, a temas de todo estranhos à teleologia penal, a discus- Enumeram-se ainda o direito penal económico, próprio dos regimes
sões terminológicas etc, desumanizando o ramo mais humano Ha ripny\d ^n autoritários ou de economia dirigida; direito penal do trabalho ou corporativo,
direito, De que vale — pergunta, por exemplo, Massimo Punzo — escrever muito em voga no fascismo, mas desaparecido com ele; djjrejto penal indus-
páginas e páginas, para se demonstrar ser a pena de morte desapropriação trial e intelectual, a que se quis dar injustificada amplitude, abrangendo toda
por utilidade pública? Esses exotismos, técnico-jurídicos é que devem cessar. a propriedade intelectual, nas suas manifestações industrial, intelectual e artística;
Não aplaudimos, entretanto, os que trilham caminho oposto, reduzindo di™loJl&MlAgJmt>r£nsa, de autonomia não justificada, pois compreende
a dogmática penal à contemplação estática e estéril dos textos legais. Certo crimes que apenas se diferenciam pelo modo de execução; direito penal elei-
é que ela tem por objeto o jus positum, porém não se deve circunscrever a toral, cuja consideração à parte não procede, já porque sua justiça é consti-
um positivismo" jurídico mofino e débil. Não lhe está vedado o devassar de tuída quase toda por juizes da comum, já porque os próprios crimes eleitorais
horizontes com o fim de propor meios mais eficazes de combate à criminalidade. são complementares da legislação penal ordinária.
A faina renovadora, que se verifica em outros ramos jurídicos, não teria
Geralmente, os autores se pronunciam pela autonomia do direito penal
razão de ausentar-se do direito penal. Com oportunidade, lembra Asúa que
disciplinar, militar, político e administrativo. Asúa não aceita a deste14.
a dogmática é a reconstrução científica do direito vigente, não da simples
lei13. A nosso ver, o melhor critério que estrema o direito penal comum dos
outros é o da consideração do órgão que os deve aplicar jurisdicionalmente.
Devemos ter presente que o direito penal, mais que qualquer outro
/CJomo escreve José Frederico Marques: "Se a norma penal objetiva somente
ramo jurídico, está em íntimo contato com o indivíduo e a sociedade, o
que, se não basta para autorizar as extremadas pretensões do positivismo l^se aplica através de órgãos constitucionalmente previstos, tal norma agendi

13. Asúa, Tratado, cit., v. 1, p. 67. 14. Asúa, Tratado, cit., v. 1, p. 44.
10 INTRODUÇÃO

f tem caráter especial; se sua aplicação não demanda jurisdições próprias, mas
se realiza através da justiça comum, sua qualificação será a de norma penal
\ comum .

8. Direito penal substantivo e direito penal adjetivo. Desde há muito,


autores de renome, como Feuerbach e Carmignani, consideram o direito penal RELAÇÕES DO DIREITO PENAL
processual, então chamado adjetivo ou formal, como integrante do direito
penal ou substantivo^
A consideração nãojlQS..parece exata. Tem ele autonomia. Se mantém SUMÁRIO: 9. Relações do direito penal com as ciências jurídicas funda -
estreita relação com o direito penal, também íntima, senão talvez maior, é a mentais. 10. Relações do direito penal com outros ramos jurídicos. 11.0
com o processual civil. Não se deve esquecer, aliás, que ele se ocupa tam- direito penal e a criminologia. 12. A penologia. 13. A política criminal.
14. O direito penal e as disciplinas auxiliares.
bém de direitos essencialmente substantivos como o de ação.
Consoante escreve Asúa, o fato de, em algumas Universidades, serem
lecionadas ambas as disciplinas na mesma cátedra tem sido o motivo dessa
conceituação; porém o direito penal processual possui indiscutível persona- 9. Relações do direito penal com as ciências jurídicas fundamentais.
lidade e conteúdo próprio, não podendo ser considerado elemento integrante Vincula-se o direito pqnal àfilnxnfin dn dirfjtn pois esta lhe fornece princí-
do direito penal stricto sensu[6. pios que não só circunscrevem seu âmbito como lhe definem as categorias è
conceitos. Como lembra Maggiore, as noções de delito, pena, imputabilidade,
culpa, dolo, ação, causalidade, liberdade, necessidade, acaso, normalida-
de, erro, e outros, sãoconceitos filosóficos antes de serem categorias jurí-
dicas1.
Quando a filosofia do direito descobre novas relações jurídiçaSjjêvela
tambjriyipj^jobjetgs pjxa.a função punitiva. Acentuado, como foi, o cará-
ter sancionador do direito penal, difícil é que transformações ou modifica-
ções de importância na legislação de um povo não atinjam também seu Có-
digo Penal.
Exato é, outrossim, que não sej3flde_elabprar o preceito penal, jern_prévio
juízo de valor — e por isso já se apontou também o caráter valorativo do
direito penal — o que é operação ética, prendendo-se ele, igualmente, à fi-
losofia moral.
Por fim sabido é que a "filosofia entra em casa sem ser convidada",
como lembra aquele jurista e, portanto, vão será qualquer esforço para se
repudiar a filosofia jurídica no estudo do direito penal.
Relação mantém ele com a teoria geral do direito, Jgoisjest^jelabora
tf-institutos juH^cõrcõi^uns a todos os ramos do direito. Há, por-
tanto, entre eles, a relação que existe entre a ciência geral e a particular.
Serve ela de vínculo entre a filosofia jurídica e o direito positivo, por
15. José Frederico Marques, Curso de direito penal, v. 1, p. 20.
16. Asúa, Tratado, cit., v. 1, p. 49. 1. Maggiore, Diritto penale, cit., v. 1, p. 49.
RELAÇÕES DO DIREITO PENAL 13

ser por seu intermédio que a primeira coordena e sistematiza os princípios além dos quais as leis — e, portanto, as penais — não poderão ir, sob pena de
inconstitucionalidade.
básicos do segundo.
Tal se opera, sem identificação matemática de todos os conceitos jurí- Direito penal e direito administrativo também se conjugam, pois a fun-
dicos. O sentido de um conceito pode variar nos diversos ramos jurídicos, ção de punir é eminentemente administrativa, já que a observância da lei
sem se quebrar a unidade substancial dos princípios gerais 2. penal compete a todos e é exigida pelo Estado.
Compreende-se o liame entre o direito penal e a sociologia jurídica. São suas relações manifestas porque, não poucas vezes, ambos tratam e
Esta estuda o ordenamento jurídico nas causas e na função social3. Tem por se ocupam dos mesmos institutos. Assim, no tocante à execução das sanções
objeto o estudo do fenómeno jurídico como fato social e resultante de pro- impostas pela lei penal. Aliás, as medidas de segurança são, para muitos,
cessos sociais, ocupando-se ainda dos efeitos das normas jurídicas na socie- providências de cunho administrativo— misure amministrative de sicurezza,
dizem os italianos — não obstante serem capituladas nos Códigos Penais.
dade.
Concebe-se a relação entre eles quando se reflete que as normas penais Finalmente, a lei penal não olvida punir fatos em defesa da ordem e
outra coisa não são que realidades sociais, revestidas de forma jurídica. regularidade da administração pública, como ocorre entre nós.
10. Relações do direito penal com outros ramos jurídicos. Com o direito íntima é a relação com o direito processual. Aliás, nas legislações de
constitucional apresenta o penal afinidades no tocante aos conceitos de antanho, preceitos penais e processuais penais apareciam juntos.
Estado, direitos individuais, políticos, sociais etc. Subordina-se, evidente- Divide-se o direito processual em civil e penal. Mesmo com o primeiro
mente, ao Constitucional, já que um Código Penal não pode fugir à índole da relaciona-se nossa disciplina, pois, não obstante a diferença de procedimento
Constituição. Se esta é liberal, liberal também será ele. Tal dependência é — penal e civil — ambos possuem normas comuns, como o ato processual e
tão íntima que leva Asúa a dizer que toda nova Constituição requer novo a sentença4.
Código Penal. Mais íntima é a relação com o processo penal. Enquanto no direito pe-
O delito político sofre remarcada influência da Constituição do Estado. nal se consubstancia o jus puniendi, o processual o realiza com o se ocupar
Nos regimes liberais não é ele tratado com a severidade dos autoritários. com a atividade necessária para apuiar, nos casos concretos, a procedência
Entre nós, a Constituição Federal é fonte formal das normas penais, da pretensão punitiva estatal.
quando, v. g., dispõe sobre a amplitude de defesa (art. 5.°, LV) e o juiz natu- Defendendo a função dos órgãos encarregados daquela realização, o
ral (art. 5.°, LIII), a individualização da pena (art. 5.°, XLVI) e sua retroatividade direito penal comumente pune fatos que a podem molestar ou ofender, ora se
(art. 5.°, XL), sua personalidade (art. 5.°, XLV) etc. Outros preceitos de ín- referindo exclusivamente ao processo penal (arts. 339, 340 e 341), ora ao
dole liberal podiam ainda ser apontados. civil (art. 358) e ora a ambos (arts. 342, 344, 346, 347 e 355). Com esse
Relações também se manifestam entre os dois direitos, quando a Cons- objetivo, os Códigos Penais costumam dispor de todo um capítulo que trata
tituição dispõe sobre a competência da União para legislar sobre o direito dos crimes contra a administração da justiça. Com a promulgação da Lei n.
penal, para conceder anistia etc. 10.028, de 19 de outubro de 2000, foi alterada a redação do art. 339 e acres-
Estreito é o liame quando o Código Penal passa a definir os crimes centou-se o Capítulo IV ao Título XI do Código Penal, com a denominação
contra o Estado e seus órgãos. Por outro lado, a Constituição Federal gene- específica "Crimes contra as Finanças Públicas", complementando-se a tute-
la em relação às ofensas à administração da justiça.
ricamente se refere a numerosos delitos, como os comuns, dolosos contra a
vida, políticos etc. Em suma, é freqiiente que problemas da maior importância interessem
Enfim, tutelando os direitos fundamentais do homem e cuidando do a ambos os ramos jurídicos, tal qual acontece com a tipicidade, cuja influên-
funcionamento dos órgãos da soberania estatal, a Constituição traça limites, cia no terreno processual, hoje, não é lícito negar.
2. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 1, p. 34.
3. Grispigni, Diritto penale, v. 1, p. 28. 4. Juan dei Rosal, Derecho penal; lecciones, 2. ed., p. 8.
14 RELAÇÕES DO DIREITO PENAL 15
INTRODUÇÃO

Com o direito internacional público, relaciona-se também o penal, tan- eles se ocupam e, dentre elas, a criminologia, denominação que comumente
to que alguns autores chegam a falar num direito penal internacional, quan- se atribui a Garofalo, mas que parece ter sido primeiramente empregada pelo
do se trata de capítulo de direito internacional privado (n. 42). antropólogo francês Topinard.
Atinências entre eles se verificam no tocante às leis penais no espaço. É ela ciência causal-explicativa. Estuda as leis e fatores da criminalidade
Cumpre, por fim, salientar o objetivo universal da luta contra a criminalidade, e abrange as áreas da antropologia e da sociologia criminal. Com o objetivo
exigindo a conclusão de acordos de caráter internacional, como os relativos de estudar o delito e o delinquente, encara os fatores genéticos e etiológicos
ao tráfico de brancas, objetos obscenos, extradição etc. da criminalidade, ao mesmo tempo que considera o crime em função da per-
Não é necessário acentuar a conjugação do direito penal com o peniten- sonalidade do criminoso.
ciário, chamado também executivo penal, considerado por muitos como ci- Acreditamos que sinceramente não se pode negar o valor da criminologia. Não
ência jurídica que se apartou daquele. Compõe-se de normas jurídicas que só é uma realidade a existência de leis que regem a criminalidade, bem
regulam a execução das penas e das medidas de segurança, desde o momento como real é também a influência de fatores individuais na génese do delito.
em que se torna exequível o título que legitima sua execução, consoante Novelli, Existe conexão entre ela e a dogmática penal, como relação existe entre as
o grande defensor de sua autonomia, reconhecida, aliás, pelo Congresso Pe- ciências causais-explicativas e as de conteúdo ético, a cujo encargo fica o
nal Internacional de Palermo, em 1932. juízo valorativo, pois aquelas não firmam juízos de valor sobre o seu objeto,
Nega-lhe Asúa o título de direito, que, ademais, segundo ele, estaria em deixando essa função às ciências de natureza ética.
elaboração. Com o advento da primeira lei específica de execução penal (Lei n. 7.210), a
Vincula-se também o direito penal ao direito privado, pois, de natureza criminologia ganhou a condição de matéria legislada com a introdução do
sancionatória, ele reforça a proteção jurídica contra os atos ilícitos. exame criminológico. O binómio delito-delinquente, numa interação de causa
Títulos do Código Penal há em que o caráter sancionador do direito e efeito, em sentido investigatório, passou a ser elemento essencial para a
execução da pena, como se constata dos arts. 5.° e s. da lei específica. O
privado se patenteia, como ocorre nos crimes patrimoniais: furto, esbulho
citado art. 5.° fala em classificação dos condenados, para efeito de
possessório, alteração de limites, apropriação indébita, estelionato, fraude no
individualização da execução penal, "segundo seus antecedentes e persona-
pagamento por meio de cheque, duplicata simulada, emissão irregular de warrant,
lidade", isto é, através do exame criminológico e do exame de personalidade.
fraudes ou abusos na fundação ou administração de sociedade por ações, para Vários outros dispositivos também se servem da criminologia como, a título
só citar alguns. de exemplo, o art. 112, parágrafo único, relativo ao regime para a execução
Como consequência da intervenção estatal, tendente a evitar os exces- da pena privativa de liberdade.
sos e desmandos do liberalismo económico, protegendo o fraco contra o for-
A criminologia, como escreve López Rey y Arrojo, estuda a causação
te, é compreensível que se amplie cada vez mais o campo da ilicitude puní-
do crime, ficando a cargo do direito penal a causalidade, compreendida aquela
vel, passando para sua órbita o que dantes se confinava na esfera do ilícito
como etiologia ou estudo das causas da delinquência, e entendida esta como
civil. o processo de realização do delito, o estudo da relação que existe entre a
Tal se dá não apenas nos domínios económicos. Vejam-se, por exemplo, manifestação da vontade e o evento produzido5.
figuras delituosas como o abandono de família (art. 244) e o perigo de con-
Em suma, embora ambos estudem o crime, fazem-no em campos dife-
tágio (art. 130), não considerados ilícitos penais pelos estatutos de 1830 e
rentes, acentuando-se, contudo, que, não obstante ser autónoma, recebe a
1890. criminologia do direito penal o juízo valorativo do fato delituoso.
Contato íntimo com o direito privado revela quando nele vai o penal
buscar conceitos para a definição de crimes: casamento, parentesco, direitos Da criminologia, destaca-se a antropologia criminal que estuda o ho-
autorais, títulos de crédito, concorrência desleal, sociedades comerciais etc. mem delinquente. Deve-se seu aparecimento a César Lombroso. Hoje é tam-
bém denominada biologia criminal.
11. O direito penal e a criminologia. Delito, delinquente e pena não são
estudados exclusivamente sob o ponto de vista jurídico. Outras ciências com
5. M. López Rey y Arrojo, iQué es el delito?, p. 155 e 156.
16 INTRODUÇÃO RELAÇÕES DO DIREITO PENAL 17

Tem por finalidade, com o estudo dos caracteres fisiopsíquicos do de- não se definiu ainda com toda a precisão seu âmbito ou conteúdo. Alguns a
linquente, em conjunto com a influência externa, esclarecer a génese do fato denominam ciência penitenciária, que teria por objeto os sistemas peniten-
delituoso. ciários e as espécies de pena e de medida de segurança.
Estudando o homem delinquente, na sua unidade de corpo e espírito, ela Cremos, entretanto, que razão têm os que, como Asúa, lhe negam o caráter
se divide em três partes: morfologia (estudo dos caracteres orgânicos), de ciência, por lhe faltar conteúdo próprio, já que, se a pena é encerrada sob
endocrinologia (estudo dos caracteres humorais) e psicologia criminal (estu- o aspecto sociológico, compete à sociologia criminal seu estudo, como que-
do dos caracteres psíquicos)6, não se vendo razão de destacar esta última, rem alguns, ou à sociologia penal, como propugna Grispigni; se é tomada
como coisa distinta, já que é antropologia criminal. Certo é que avulta em sua como consequência do crime, entra no campo do direito penal; se se tem em
importância, mas não nos parece que se deva estremá-la da antropologia, vista sua execução, é objeto do direito penitenciário; se, enfim, se cogita da
como faz Asúa7. apresentação de iniciativas e providências para reforma do sistema punitivo,
Ocupa-se ela ainda com as influências físicas e sociais (fatores exógenos), a matéria pertence à política criminal10.
já que o homem deve ser considerado juntamente com o meio em que vive.
Capítulo importante da criminologia é a sociologia criminal, que tem 13. A política criminal. Tem ela tido maior desenvolvimento na Alema-
por objeto o estudo do delito como fenómeno social. Deve-se o nome a Enrico nha, conquanto geralmente se aponte como seu berço a Itália.
Ferri, que sustentou ser ela a ciência enciclopédica do crime, concepção ina- Consideram-na alguns como o estudo dos meios de combater o crime
ceitável mesmo por ardentes positivistas-naturalistas. depois de praticado; outros, entretanto, ampliam-lhe o conteúdo, para a
Enquanto a antropologia estuda o crime atribuído ao indivíduo ou como conceituarem como crítica e reforma das leis vigentes. A maioria nega-lhe
fato individual, a sociologia ocupa-se com a criminalidade global, atribuída caráter científico, reduzindo-a antes à arte de legislar em determinado mo-
à sociedade em que se verifica. Aquela é a ciência do delinquente; a outra é mento, segundo as necessidades do povo e de acordo com os princípios
a da sociedade em relação ao delito, ou, como escreve Grispigni: "La scienza científicos imperantes.
che studia Ia società dal punto di vista dei fenomeni criminosi che in essa si É ela crítica e reforma. Crítica quando examina e estuda as instituições
verificano"8. jurídicas existentes, e reforma quando preconiza sua modificação e aperfei-
É, pois, a sociologia criminal o estudo da criminalidade como fenóme- çoamento.
no social. Seu método é o estatístico. Vincula-a Grispigni à criminologia: deve ela, "com fundamento nas
conclusões da Antropologia e da Sociologia Criminal, sugerir os meios mais
12. A penologia. Como ramo da criminologia apontam ainda alguns a idóneos para a prevenção e repressão dos crimes" 11. Entretanto, Asúa12, com
penologia. É que, como acentua Roberto Lyra9, o estudo filosófico e socioló- exatidão, tem-na como parte do direito penal, visto ser corolário da dogmática,
gico da pena adquiriu tal vulto que se sustenta a necessidade de uma ciência e exemplifica, dizendo que, se um dogmático, examinando o Código Penal
que a encare não só sob aqueles prismas, mas ainda quanto ao histórico, científico de um país e não encontrando aí esposado o sursis, e, ciente de sua necessi-
e jurídico. Não se ocuparia somente da pena, mas também das medidas de dade e eficácia pela dogmática, propuser a adoção, estará fazendo política
segurança e das instituições destinadas à readaptação dos egressos. criminal. Para o citado autor, elaé a arte de "traspasar en un momento deter-
O vocábulo penologia foi empregado pela primeira vez em 1834 por minado, a Ia legislación positiva, Ia aspiración proveniente de los ideales, ya
Francis Lieber, publicista germânico que viveu nos Estados Unidos. Todavia realizable", finalizando por dizer não ser uma ciência, tampouco a moderna
e promissora disciplina que Franz von Liszt pretendeu criar.

6. Grispigni, Diritto penale, cit., v. 1, p. 31.


7. Asúa, Tratado, cit., v. 1, p. 75. 10. Asúa, Tratado, cit., v. 1, p. 141 e 142.
8. Grispigni, Diritto penale, cit., v. 1, p. 39. 11. Grispigni, Diritto penale, cit, v. 1, p. 30.
9. Roberto Lyra, Comentários ao Código Penal, v. 2, p. 9. 12. Asúa, Tratado, cit., v. 1, p. 144.
Compreende-se sua estreita relação com a dogmática penal, porque pertence rem na génese do delito), e tem por objeto a obtenção da verdade no desen-
a esta a crítica objetiva da legislação vigente, e é dela que se há de partir para rolar do processo. Com esse fito, ocupa-se do acusado, juiz, ofendido, teste-
novas concepções e mesmo para a criação de um novo direito. munhas etc.
14. O direito penal e as disciplinas auxiliares. Ao lado do direito penal, Sua importância, hoje, avulta, após os numerosos e acurados estudos da
disciplinas apresentam-se que lhe auxiliam a realização ou aplicação das psicologia do testemunho, mostrando-nos suas imperfeições, deficiências etc,
normas. e, assim, patenteando a relatividade desse meio probatório.
A medicina legal é considerada, por Afrânio Peixoto, como aplicação De modo geral, compreende-se sua importância para a avaliação da
de conhecimentos científicos e misteres da justiça, advertindo o eminente prova.
professor que não é uma ciência autónoma, mas conjunto de aquisições de A estatística criminal mantém íntima relação com a sociologia crimi-
vária origem para fim determinado13. nal. Tem por objeto revelar, por meio de dados numéricos, as relações causais
Palmieri discorre, definindo-a como a aplicação de noções médicas e entre os fatores endógenos e, principalmente, os exógenos e a criminalidade.
biológicas às finalidades da justiça e à evolução do direito. Compreende Tem valor, entretanto, relativo, mesmo porque há elementos que influ-
concomitantemente o estudo das questões jurídicas, que podem ser resolvi- em na delinquência e escapam de seu campo.
das exclusivamente com os conhecimentos biológicos e principalmente mé- A polícia científica consiste, segundo Grispigni: "No estudo dos meios
dicos, e o estudo dos fenómenos biológicos e clínicos que servem à solução sugeridos por diversas ciências como os mais adequados aos fins da polícia
dos problemas judiciários14. judiciária de apuração do crime e da autoria"15. Com essa finalidade, ela se
Valioso é seu concurso no estudo dos crimes contra a vida, nos sexuais vale dos conhecimentos que outras disciplinas, como a medicina legal, lhe
etc. Aplicações suas diariamente temos na investigação de crimes, com o exame fornecem. Asúa considera-a como ramo da criminalística, disciplina mais
das manchas, impressões, pegadas, sinais e outros. De sua importância, entre ampla, que não se circunscreve ao estudo dos métodos e meios de elucidar o
nós, fala bem alto a existência da cadeira de Medicina Legal, em nossas Fa- crime e individualizar o autor, pois se ocupa dos conhecimentos que devem
culdades de Direito. possuir todos os que intervêm na administração da justiça criminal, membros
da polícia, advogados criminalistas etc. Capítulo de inegável importância da
A psiquiatria forense, a rigor, integra-se na medicina legal; porém, dado
criminalística é o da especialização dos juizes do crime[6.
seu desenvolvimento, é, hoje, considerada à parte.
Tem por escopo o estudo dos distúrbios mentais, em face dos problemas
jurídicos. Dupla é a tarefa do psiquiatra, ora colaborando com o legislador,
na definição e solução de problemas do direito, ora com o magistrado, na
aplicação da lei ao caso concreto.
Quanto à segunda, deve limitar-se a, pelo estudo e observação do delin-
quente psicopata, oferecer elementos seguros e necessários ao juiz, para de-
cidir, e nunca opinar sobre a responsabilidade jurídica, tarefa do julgador.
Com a adoção das medidas de segurança, mais se ampliou o campo da
psiquiatria forense.
A psicologia judiciária, ramo da psicologia aplicada, distingue-se da
psicologia criminal (estudo dos caracteres psíquicos do delinquente, a influí-

13. Afrânio Peixoto, Medicina legal, v. 1, p. 5. 15. Grispigni, Diritto penale, cit.,v. 1, p. 41.
14. V. M. Palmieri, in Florian, Niceforo e Pende, Dizionario di criminologia. 16. Asúa, Tratado, cit., v. 1, p. 145 e 147.
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS IDEIAS PENAIS 21

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS litando, enfraquecendo e extinguindo. Surge, então, como primeira conquis-
ta no terreno repressivo, o talião. Por ele, delimita-se o castigo; a vingança
IDEIAS PENAIS não será mais arbitrária e desproporcionada.
Tal pena aparece nas leis mais antigas, como o Código de Hamurabi, rei
da Babilónia, século XXIII a.C, gravado em caracteres cuneiformes e en-
SUMÁRIO: 15. Tempos primitivos. 16. Vingança privada. 17. Vingança contrado nas ruínas de Susa. Por ele, se alguém tira um olho a outrem, per-
divina. 18. Vingança pública. 19. Período humanitário. 20. Período derá também um olho; se um osso, se lhe quebrará igualmente um osso etc.
criminológico. A preocupação com a justa retribuição era tal que, se um construtor construísse
uma casa e esta desabasse sobre o proprietário, matando-o, aquele morreria,
mas, se ruísse sobre o filho do dono do prédio, o filho do construtor
15. Tempos primitivos. A história do direito penal é a história da huma perderia a vida. São prescrições que se encontram nos §§ 196, 197, 229
e230.
nidade. Ele surge com o homem e o acompanha através dos tempos, isso
porque o crime, qual sombra sinistra, nunca dele se afastou. Outras legislações também adotaram o talião. Veja-se, por exemplo, a
Claro é que não nos referimos ao direito penal como sistema orgânico hebraica: o Êxodo (23, 24 e 25), o Levítico (17 a 21) e outros a consagrarem
de princípios, o que é conquista da civilização e data de ontem. o "olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé".
A pena, em sua origem, nada mais foi que vindita, pois é mais que Conquista igualmente importante foi a composição, preço em moeda,
compreensível que naquela criatura, dominada pelos instintos, o revide à gado, vestes, armas etc, por que o ofensor comprava do ofendido ou de sua
agressão sofrida devia ser fatal, não havendo preocupações com a propor- família o direito de represália, assegurando-se a impunidade.
ção, nem mesmo com sua justiça. Adotaram-na o Código de Hamurabi, o Pentateuco, o de Manu e outros,
podendo dizer-se que permanece até hoje entre os povos, sob a forma de
Em regra, os historiadores consideram várias fases da pena: a vingança
indenização, multa, dote etc.
privada, a vingança divina, a vingança pública e o período humanitário.
Todavia deve advertir-se que esses períodos não se sucedem integralmente, 17. Vingança divina. Já existe um poder social capaz de impor aos ho-
ou melhor, advindo um, nem por isso o outro desaparece logo, ocorrendo, mens normas de conduta e castigo. O princípio que domina a repressão é a
então, a existência concomitante dos princípios característicos de cada um: satisfação da divindade, ofendida pelo crime. Pune-se com rigor, antes com
uma fase penetra a outra, e, durante tempos, esta ainda permanece a seu notória crueldade, pois o castigo deve estar em relação com a grandeza do
lado. deus ofendido.
16. Vingança privada. Como se observa nas espécies inferiores, a rea É o direito penal religioso, teocrático e sacerdotal. Um dos principais
ção à agressão devia ser a regra. A princípio, reação do indivíduo contra o Códigos é o da índia, de Manu (Manava, Dharma, Sastra). Tinha por escopo
indivíduo, depois, não só dele como de seu grupo, para, mais tarde, já o a purificação da alma do criminoso, através do castigo, para que pudesse
conglomerado social colocar-se ao lado destes. É quando então se pode falar alcançar a bem-aventurança. Dividia a sociedade em castas: brâmanes, guer-
propriamente em vingança privada, pois, até aí, a reação era puramente pessoal, reiros, comerciantes e lavradores. Era a dos brâmanes a mais elevada; a úl-
sem intervenção ou auxílio dos estranhos. tima, a dos sudras, que nada valiam.
Entretanto, o revide não guardava proporção com a ofensa, sucedendo- Revestido de caráter religioso era também o de Hamurabi. Aliás, pode-
se, por isso, lutas acirradas entre grupos e famílias, que, assim, se iam debi- mos dizer que esse era o espírito dominante nas leis dos povos do Oriente
antigo. Além da Babilónia, índia e Israel, o Egito, a Pérsia, a China etc.
Ao lado da severidade do castigo, já apontada, assinalava esse direito
penal, dado seu caráter teocrático, o ser interpretado e aplicado pelos sacer-
dotes.
22 INTRODUÇÃO EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS IDEIAS PENAIS 23

18. Vingança pública. Nesta fase, o objetivo é a segurança do príncipe No direito germânico, o crime é a quebra da paz. Esta é sinónimo de
ou soberano, através da pena, também severa e cruel, visando à intimi- direito.
dação'. Conheceram os germânicos o talião e a composição, variando esta con-
Na Grécia, a princípio, o crime e a pena inspiravam-se ainda no senti- soante a gravidade da ofensa. Compreendia o Wehrgeld, indenização do dano,
mento religioso. O direito e o poder emanavam de Júpiter, o criador e prote- segundo uns; verdadeiro ato de submissão do ofensor ao ofendido, segundo
tor do universo. Dele provinha o poder dos reis e em seu nome se procedia outros; a Busse, preço pelo qual o agressor comprava o direito de vingança
ao julgamento do litígio e à imposição do castigo. do agredido ou de sua família; e o Fredus, devido ao soberano. Os dois pri-
Todavia seus filósofos e pensadores haveriam de influir na concepção meiros distinguiam-se em que aquele se destinava aos crimes mais graves.
do crime e da pena. A ideia de culpabilidade, através do livre arbítrio de Pena de caráter severo era a da perda da paz, em que, proscrito o con-
Aristóteles, deveria apresentar-se no campo jurídico, após firmar-se no ter- denado, fora da tutela jurídica do clã ou grupo, podia ser morto não só pelo
reno filosófico e ético. Já com Platão, nas Leis, se antevê a pena como meio ofendido e seus familiares como por qualquer pessoa.
de defesa social, pela intimidação — com seu rigor — aos outros, advertin- O uso da força para resolver questões criminais foi do agrado dos po-
do-os de não delinqiiirem. vos germânicos, estando presente até nos meios probatórios. Consequências,
Dividiam os gregos o crime em público e privado, conforme a predomi- certamente, do caráter individual desse direito, em contraposição ao princí-
nância do interesse do Estado ou do particular. pio social do direito romano.
Certo é que, ao lado da vingança pública, permaneciam as formas an- Característico ainda das leis bárbaras é o relevo do elemento objetivo
teriores da vindita privada e da divina, não se podendo, como é óbvio, falar do crime. Não há grande preocupação com a culpa (sentido amplo), ou com
em direito penal. Entretanto, situam, em regra, os historiadores, na Grécia, o elemento subjetivo do delinquente; decide o dano material causado.
suas origens remotas. Caminho diverso trilharia o direito canónico, quer se opondo à influên-
Roma não fugiu às imposições da vingança, através do talião e da com- cia da força como prova judiciária, quer salientando o elemento subjetivo do
posição, adotadas pela Lei das XII Tábuas. Teve também caráter religioso crime.
seu direito penal, no início, no período da realeza. Não tardaram muito, en- Contra a vingança privada, criou o direito de asilo e as tréguas de Deus.
tretanto, a se separarem direito e religião, surgindo os crimina publica (perduellio, Combatendo aquela, sem dúvida, fortalecia o poder público.
crime contra a segurança da cidade, e parricidium, primitivamente a morte
do civis sui júris) e os delicia privata. Justo é também apontar-se, além do elemento voluntarístico do crime,
já mencionado, a finalidade que empresta à pena, objetivando a regeneração
A repressão destes era entregue à iniciativa do ofendido, cabendo ao ou emenda do criminoso, pelo arrependimento ou purgação da culpa. Puni-
Estado a daqueles. Mais tarde surgem os crimina extraordinária, interpon- ções rudes ou severas tolerou, mas com o fim superior da salvação da alma
do-se entre aquelas duas categorias e absorvendo diversas espécies ou figu- do condenado.
ras dos delicta privata. Finalmente, a pena se torna, em regra, pública.
Trouxe o grande benefício da consagração do princípio da ordem mo-
É inegável, então, que, apesar de não haverem os romanos atingido, no ral, ditado pelo Cristianismo, pois, até então, predominava o princípio social
direito penal, as alturas a que se elevaram no civil, se avantajaram a outros do direito romano ou o individual do germânico.
povos. Distinguiram, no crime, o propósito, o ímpeto, o acaso, o erro, a culpa
leve, a lata, o simples dolo e o dolus malus. Não esqueceram também o fim Esses três direitos, não obstante seus fundamentos diversos, iriam jun-
de correção da pena: "Poena constituitur in emendationem hominum" (Digesto, tamente contribuir para a formação do direito penal comum, que predomi-
Tít. XLVIII, Paulo — XIX, 20). nou durante toda a Idade Média, e mesmo posteriormente, em vários países
europeus.
Como acentuam os autores, revelou o direito penal em Roma, sobretu-
do, caráter social. Maior foi a influência do direito romano, máxime quando a obra dos
glosadores, através do comentário e da exegese dos velhos textos, viria a
1. Cuello Calón, Derecho penal, v. l, p. 55. revigorá-lo.
24 INTRODUÇÃO EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS IDEIAS PENAIS 25

A eles sucedem os pós-glosadores, cujos ensinamentos se inspiram nos vulgar e não em latim, como era de costume. Firma bases para a apreciação
deixados pelos precedentes. Finalmente, ospráticos: embora presos à casuística, da prova exigida para a prisão, ponderando que, diante dos rigores desta,
seus comentários, tendo por base o direito romano e sentindo a influência do aquela devia ser abundante e de bases sólidas. Lembra a seguir que, quando
germânico e do canónico, constituíram os primeiros delineamentos sólidos a desumanidade e a crueldade deixassem de reinar nas masmorras, então
do direito penal. Não exagera Aníbal Bruno quando diz que, até hoje, nos poder-se-ia contentar com indícios mais fracos para a prisão.
escritos de um Júlio Claro ou de um Próspero Farinacio, se encontra abun- No § VII, detém-se na consideração da prova do delito e na forma do
dante material de experiência e judiciosa observação, para o estudo técnico julgamento. Divide aquela em perfeita e imperfeita, declarando que quando
do direito penal2. a última ocorrer é mister que muitas se apresentem para haver condenação.
Não obstante, ainda não se saíra da fase da vingança pública. A preo- Bate-se pela publicidade dos julgamentos.
cupação era a defesa do soberano e dos favorecidos. Predominavam o arbí- São pontos também analisados: o testemunho humano, opondo-se à
trio judicial, a desigualdade de classes perante a punição, a desumanidade interdição, então reinante, de testemunhar um condenado, e as acusações
das penas (a de morte profusamente distribuída, como entre nós vemos nas secretas, invocando Montesquieu: "As acusações públicas são conformes ao
Ordenações do Livro V, e dada por meios cruéis, tais quais a fogueira, a espírito do governo republicano, no qual o zelo pelo bem geral deve ser a
roda, o arrastamento, o esquartejamento, a estrangulação, o sepultamento primeira paixão dos cidadãos".
em vida etc), o sigilo do processo, os meios inquisitoriais, tudo isso aliado Nos parágrafos seguintes, combate a tortura nos interrogatórios e jul-
a leis imprecisas, lacunosas e imperfeitas, favorecendo o absolutismo monárquico gamentos; fala sobre a duração dos processos, que deve variar conforme a
e postergando os direitos da criatura humana. importância do crime, e bate-se pela moderação das penas. Opõe-se à execu-
ção capital, que deve ser substituída pela prisão perpétua; defende o banimento
19. Período humanitário. Tal estado de coisas suscitava na consciência e impugna o confisco e as penas infamantes. Prega a celeridade e certeza do
comum a necessidade de modificações e reformas no direito repressivo. castigo, o que constitui verdade incontestável: "Quanto mais pronta for a
Intérprete desse anseio foi Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria. Nasceu pena e mais de perto seguir o delito, tanto mais justa e útil ela será"; acon-
em Milão, em 1738. Ao invés de se entregar à vida despreocupada e cómoda, selha a proporção entre ela e o delito; e passa a examinar, em sucessivos
que sua posição e mocidade lhe proporcionavam, preferiu volver suas vistas capítulos, diversas figuras delituosas (lesa-majestade, violências, injúrias,
para os infelizes e desgraçados que sofriam os rigores e as arbitrariedades da duelos, roubo, contrabando, falência e infrações contra a tranquilidade pú-
justiça daqueles tempos. blica).
Escreveu seu famoso livro Dei delitti e delle pene (1764), que tanta Não esquece a prevenção do crime e a profilaxia social. Escreve acerca
repercussão iria causar. Não era um jurista, mas filósofo, discípulo de Rousseau da ociosidade e do suicídio e fala sobre delitos difíceis de provar: o adulté-
e Montesquieu. Sua obra assenta-se no contrato social e logo, de início, chama rio, o infanticídio, a pederastia, achando quanto a estes que melhor fora não
a atenção para as vantagens sociais que devem ser igualmente distribuídas, defini-los como crimes: "Não pretendo enfraquecer o justo horror que de-
ao contrário do que sucedia. No § II, afirma que as penas não podem passar vem inspirar os crimes de que acabamos de falar. Eu quis indicar suas fontes
dos imperativos da salvação pública. A seguir, sustenta que só às leis cabe e penso que me será permitido tirar daí a consequência geral de que não se
cominar penas e somente o legislador as pode elaborar. pode chamar precisamente justa ou necessária (o que é a mesma coisa) a
punição de um delito, que as leis não procuraram prevenir com os melhores
Diante do arbítrio judicial, impugna a interpretação da lei pelo magis- meios possíveis e segundo as circunstâncias em que se encontra uma nação".
trado, acrescentando que "nada mais perigoso do que o axioma comum, de O argumento é interessante, mas improcedente.
que é preciso consultar o espírito da lei", o que evidentemente é insustentá-
vel, mas que se explica como reação à arbitrariedade e à injustiça reinantes. Nos últimos capítulos, ocupa-se de fontes gerais de erros e injustiças
Investe contra a obscuridade das leis, que deviam ser escritas em linguagem nas legislações, do espírito de família, do espírito do fisco e dos meios de
prevenir os crimes.
2. Aníbal Bruno, Direito penal, t. 1, p. 85.
Conclui sua obra, sintetizando-a em poucas palavras: "De tudo o que
26 INTRODUÇÃO EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS IDEIAS PENAIS 27

acaba de ser exposto, pode deduzir-se um teorema geral utilíssimo, mas con- escreve seu livro Uuomo delinquente, que bastante repercussão tem,
forme ao uso, que é legislador ordinário das nações: 'É que, para não ser um granjeando adeptos e provocando opositores.
ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública, Ao invés de considerar o crime como fruto do livre arbítrio e entidade
pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, jurídica, tem-no qual manifestação da personalidade humana e produto de
proporcionada ao delito e determinada em lei'". várias causas. A pena não possui fim exclusivamente retributivo, mas, so-
É a essência da obra: defesa do indivíduo contra as leis e a justiça da- bretudo, de defesa social e recuperação do criminoso, necessitando, então,
queles tempos, que se notabilizaram; aquelas, pelas atrocidades; e esta, pelo ser individualizada, o que evidentemente supõe o conhecimento da persona-
arbítrio e servilismo aos fortes e poderosos. lidade daquele a quem será aplicada.
Tem-se increpado à obra de Beccaria falta de originalidade, de nada O ponto nuclear de Lombroso é a consideração do delito como fenóme-
mais ser que repetição dos enciclopedistas e que, antes dela, outras já se no biológico e o uso do método experimental para estudá-lo. Foi o criador da
haviam feito ouvir na defesa do acusado. antropologia criminal. A seu lado surgem Ferri, com a sociologia criminal,
e Garofalo, no campo jurídico, com sua obra Criminologia, podendo os três
Não há mesmo profundidade no livro, que também não é original, pois ser considerados os fundadores da Escola Positiva.
suas ideias, inspiradas no Iluminismo, movem-se na corrente dos tempos.
Seu sucesso, sua grande repercussão (penetrando na Declaração dos Direi- Não é exato dizer que Lombroso só se preocupou com os fatores endógenos
na génese do delito. Os exógenos também lhe mereceram a atenção. De modo
tos do Homem, traduzido em vários idiomas e aceito por Códigos, como o
insuspeito, depõe Mezger: "Ya Io dicho hasta ahora muestra que el influjo de
francês de 1791), deve-se ao momento em que veio à luz; era o livro que a
Ias causas externas y sociales en el nacimiento dei delito no falta en absoluto
sociedade esperava. en Ia tesis lombrosiana"3.
Nem por isso é menor o desassombro do marquês; nem por isso se há de
Certo é que Lombroso cometeu exageros, máxime no que diz respeito
negar o extraordinário débito da humanidade para com ele. Foi o mais poten- aos caracteres morfológicos do criminoso e no querer reduzir este a uma
te brado que se ouviu em defesa do indivíduo. Com Beccaria raiava a aurora espécie à parte do género humano. Sua classificação de delinquentes não
do direito penal liberal. resistiu por muito tempo à análise dos estudiosos.
Outro nome que não deve ser olvidado é John Howard. Em terreno mais Todavia ele tem um mérito que não desaparecerá: o de haver iniciado o
prático e noutro cenário — a Inglaterra — encabeçou o movimento humani- estudo da pessoa do delinquente. Com ele, este deixou de ser considerado
tário da reforma das prisões. Percorreu as enxovias e calabouços da Europa abstratamente. Foi a antropologia criminal que pôs em evidência a pessoa do
e relatou os horrores que presenciou. (Aliás, ele mesmo já estivera preso.) criminoso, procurando investigar as causas que o levavam ao delito, ao mesmo
Fê-lo em 1770, em seu livro The state of prisons in England; anos depois, tempo que forcejava por indicar os meios curativos ou tendentes a evitar o
escrevia outro trabalho. crime.
Propugna Howard um tratamento mais humano do encarcerado, dando- Era, sem dúvida, uma estrada aberta na selva selvagem da luta contra a
lhe assistência religiosa, trabalho, separação individual diurna e noturna, criminalidade. Nesse novo caminho, é exato que Lombroso se perdeu por
alimentação sadia, condições higiénicas etc. veredas tortuosas e se equivocou ao fincar ou plantar marcos que o assina-
lariam, mas, como quer que seja, abriu nova estrada que seria doravante
Aos seus livros outros se seguiram, na Inglaterra, pregando melhor tra-
palmilhada por outros que a melhorariam e a tornariam mais firme.
tamento para os condenados. Por muitos é John Howard considerado o Pai
da Ciência Penitenciária. Ele e Beccaria, embora em rumos diversos, foram os dois césares no
estudo do crime e da pena. Na frase incisiva de Hafter, o marquês de Milão
20. Período criminológico. Após o período humanitário, novos rumos proclamou ao mundo: "Homem, conheça a Justiça!" — O médico de Verona
para o direito penal são traçados e que se ocupam com o estudo do homem diria: "Justiça, conheça o Homem!".
delinquente e a explicação causal do delito.
Quem primeiro os apontou foi um médico: César Lombroso. Em 1875, 3. Mezger, Criminologia, trad. Rodríguez Munoz, p. 24.
DOUTRINAS E ESCOLAS PENAIS 29

DOUTRINAS E ESCOLAS PENAIS As teorias relativas assinalam à pena um fim prático: a prevenção geral
ou especial. O crime, a bem dizer, não é causa da pena, mas ocasião para
que seja aplicada. Ela não se explica por uma ideia de justiça, mas de neces-
sidade social {punitur ne peccetur).
SUMÁRIO: 21. Correntes doutrinárias. 22. A Escola Clássica. 23. A Escola
Foram seus grandes vultos Feueibach, Bentham e Romagnosi.
Correcionalista. 24. A Escola Positiva. 25. A Terceira Escola. 26. A Escola
Moderna alemã. 27. Outras escolas e tendências. Conclusão. O primeiro, apontado por alguns como o Pai do Direito Penal moderno,
e por outros como precursor do Positivismo Penal, funda-se em que a fina-
lidade do Estado é a convivência humana, de acordo com o direito. Como o
crime é a violação deste, está ele na obrigação de impedi-lo. Tal função é
21. Correntes doutrinárias. Expostas já as concepções do Iluminismo,
conseguida mediante a coação psíquica e também pelafísica, através da pena.
que, no direito penal, encontra em Beccaria seu representante máximo, e de
passagem pelo Jusnaturalismo (Grocio, De jure belli ac pacis), com a con- O fim desta é, pois, a intimidação de todos para que não cometam cri-
cepção de um direito imutável e eterno, resultante da própria natureza huma- mes; é a ameaça legal. Caso o delito seja praticado, deve essa ameaça ser
na e superior às influências históricas, vê-se que a investigação do funda- efetivada, com o que ainda aqui se intimida o cidadão. A essência da doutrina
mento de punir e dos fins da pena distribui-se por três correntes doutrinárias: de Feuerbach é, portanto, a intimidação da coletividade, através da coação
as absolutas, as relativas ou utilitárias e as mistas. psicológica, conseguida por meio da pena, cominada em abstrato na lei, e
executada quando a cominação não foi suficiente. Deve-se a ele a formu-
As teorias absolutas baseiam-se numa exigência de justiça: pune-se porque
lação do famoso princípio nulla poenc sine lege, nulla poena sine crimine,
se cometeu crime (punitur quia peccatum esf). Grande vulto dessa corrente
nullum crimen sine poena legale, sintetizado depois puranullum crimen, nulla
foi Kant. Para ele, a pena é um imperativo categórico. Exigem-na a razão e
poena sine lege.
a justiça. É simples consequência do delito, explicando-se plenamente pela
retribuição jurídica. Ao mal do crime, o mal da pena, imperante entre eles a Bentham considera a pena um mal para o indivíduo, que a sofre, e para
igualdade. Só o que é igual é justo. Alega-se, dessarte, que, sob certo aspec- a coletividade, que lhe suporta os ónus. Justifica-se, entretanto, por sua uti-
to, o talião seria a expressão mais fiel dessa corrente. lidade. O fim principal é a. prevenção geral. Deve ela, ao ser aplicada, adver-
tir ao delinquente em potência que não pratique o delito. Recomenda, com
Hegel foi também outro grande representante seu.
esse fim, em especial a pena de prisão, impugnando os excessos punitivos
Em geral, as teorias absolutas negam fins utilitários à pena, que se ex- daquelas épocas.
plica tão-só pela satisfação do imperativo de justiça. É ela um mal justo,
oposto ao mal injusto do crime {malum passionis quod infligitur ob malum Não se esquece também da prevenção particular, que se deve dirigir a
actionis). Separam-se seus adeptos quanto à natureza dessa retribuição que, três fins: impedir o réu de praticar danos, intimidá-lo e corrigi-lo.
para uns, é de caráter divino; para outros, moral; e, para terceiros, de cará- Sua principal obra, Teoria das penas e das recompensas, foi publicada
ter jurídico. em 1818. Antes, porém, escrevera outros trabalhos, que não deixaram de
Outros grandes nomes podem ser apontados entre os adeptos dessas influir na Revolução Francesa.
doutrinas (Binding, Sthal, Kohler, Kitz etc.), convindo notar, entretanto, que Como lembra Basileu Garcia, Bentham entregou-se também a criações
nem sempre coincidem em suas construções. práticas, sendo o idealizador do Panoplicum, estabelecimento presidiário em
Justo é dizer que seus defensores depuram-nas, afastando a ideia de círculo, permitindo, assim, a observação de todas as celas de um ponto cen-
retribuição da de vingança. tral da construção1.
Caráter utilitário também tem a obra de Romagnosi, Genesi dei diritto
penale. No § 263, declara que, se depois do primeiro delito se tivesse cer-

1. Basileu Garcia, Instituições de direito penal, 1954, v. 1, p. 69.


30 INTRODUÇÃO DOUTRINAS E ESCOLAS PENAIS 31

teza moral de que não se seguiria outro, a sociedade não teria direito de Beccaria; no segundo, é seu expoente Francisco Carrara, justo sendo, entre-
castigá-lo. tanto, lembrar também o nome de J A. Carmignani, antecessor de Carrara na
cátedra de Pisa, seu professor e que sobre ele exerceu notória influência. Se
Para ele, o direito penal é um direito de defesa contra a ameaça perma-
Beccaria é o pioneiro do direito penal liberal, Carrara pode ser tido como o
nente do crime. Não se funda no Contratualismo, antes o combate, negando
da dogmática penal.
que os homens se hajam reunido em sociedade por um pacto. O direito não
preexiste à sociedade, mas sucede a ela, como meio de proteção e tutela, e, É o mestre de Pisa, sem qualquer contestação, o maior vulto da Escola
assim, essa é a finalidade do direito penal. A pena não é vingança, mas deve Clássica. Diversas foram suas obras — Programma dei corso di diritto criminale,
incutir temor no criminoso, para que não torne a delinqiiir. A sua medida Opuscoli, Reminiscenze di cátedra e foro etc. — mas é a primeira a maior, a
regular-se-á pela qualidade e intensidade do impulso delituoso (spinta cri- em que melhor expõe seu pensamento e que remarcada influência logrou, a
ponto de, ainda hoje, diversos de seus ensinamentos constituírem ponto de
minosa); ela é a controspinta. Deve, entretanto, ser empregada em último
partida obrigatório para o estudo e compreensão de institutos jurídico-pe-
caso, cedendo lugar aos meios preventivos.
nais. Como já se falou, os dizeres de Carrara parecem ter ficado gravados no
É Romagnosi antecipação à Escola Positiva. mármore homónimo.
Do entrechoque das teorias absolutas e relativas, como geralmente Em suas obras, defende a concepção do delito como um ente jurídico,
acontece, deviam surgir as mistas, participando da natureza de ambas. constituído por duas forças: a física e a moral; a primeira é o movimento
Sustentam a índole retributiva da pena, mas agregam os fins de reedu- corpóreo e o dano causado pelo crime; a segunda é a vontade livre e
cação de delinquente e de intimação. consciente do delinquente.
Essa corrente, dentre os seus iniciadores, conta como expoente Pelegrino Define o crime como sendo "a infração da lei do Estado, promulgada
Rossi. Afirma o caráter de retribuição da pena, mas aceita sua função utili- para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo do homem,
tária. Somente esta — diz ele, em seu Traité de droit penal — não a justifica, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente danoso"2.
pois nem sempre o que é útil é moral, e este deve prevalecer sobre aquele. Com a infração da lei do Estado, consagra o princípio da reserva legal:
As Escolas Ecléticas inspiram-se nas teorias mistas, que atualmente bastante se só é crime o que infringe a lei. Mas esta há de ser promulgada, isto é, jurí-
difundiram. dica, porque "Ia legge morale è rivelata all'uomo dalla coscienza. La legge
religiosa è rivelata espressamente da Dio"3. Tem a lei a finalidade de prote-
22. A Escola Clássica. Essas correntes, a que nos referimos, constituí- ger os cidadãos (a sociedade) , e o crime infringe essa tutela e, conseqiien-
ram o que foi chamado de Escola Clássica pelos Positivistas, que, para combatê- temente, a lei. Daí o dizer ser ele um ente jurídico. Devia a violação resultar
las mais facilmente, as fundiram ou reuniram sob essa denominação, aliás de um ato humano externo, positivo ou negativo, e, conseqiientemente, só o
dada em sentido pejorativo. homem podia praticar esse ato (afastada a possibilidade de o irracional de-
linqiiir); externo, porque a mera intenção não era punível, o que, aliás, Ulpiano,
Nela, portanto, se contêm tendências diversas, que, por sinal, até porfia-
em sua célebre máxima, já afirmara (Cogitationis nemo poenam patitur).
vam, antes do aparecimento da Escola Positiva, o que bem se explica, não só Positivo ou negativo o ato, advertindo, portanto, que a omissão, tanto quanto
por sua orientação diversa — tais quais as doutrinas absolutas e relativas — a ação, constituiria o delito; noutras palavras, este podia ser comissivo ou
como também porque apresentavam nuanças e matizes próprios, advindos omissivo. Moralmente imputável, pois, se o livre-arbítrio é fundamento
da natural influência da personalidade de quem as defendia, do país onde indeclinável da Escola Clássica, há de ser moralmente imputável o ato pra-
eram expostas etc. ticado, já que "Ia imputabilità moiale è il precedente indispensabile delia
Claro é que havia entre elas princípios básicos e caracteres comuns, imputabilità politica" 4. E politicamente danoso, elemento que, embora implici-
salientando-se por sua índole filosófica e orientação humanitária ou liberal.
Na Escola Clássica, dois grandes períodos se distinguiram: o filosófico 2. Programma dei corso di diritto criminale; parte generale, 10. ed., v. 1, § 21.
ou teórico e o jurídico ou prático. No primeiro, destaca-se como figura de 3. Programma, cit., v. 1, § 25.
incontestável realce — bastando para isso ter sido o iniciador — Cesare e 4. Programma, cit., v. 1, § 31.
32 INTRODUÇÃO DOUTRINAS E ESCOLAS PENAIS 33

tamente contido na segurança dos cidadãos, é repetido para esclarecer que por ela à altura de dogma. Quem nega a liberdade de querer — diziam os
o ato deve perturbar a tranquilidade destes, provocando, dessarte, um dano Clássicos — nega o direito penal. Só o livre-arbítrio pode justificá-lo.
imediato, isto é, o causado ao ofendido, e o mediato, ou seja, o alarma ou Negar o extraordinário valor da Escola Clássica seria vã arremetida de
repercussão social. sectarismo cego. Enorme foi sua influência na elaboração do direito penal,
Em rápidas palavras, esse o pensamento de Carrara acerca do delito. dando-lhe dignidade científica. Por outro lado, menor não foi sua ascendên-
Exposto isso, concomitantemente estão declarados quase todos os fun- cia sobre as legislações, já que a quase-totalidade dos Códigos e das leis
damentos e caracteres da Escola Clássica. penais, elaborados no século passado, inspiram-se totalmente em suas dire-
trizes, a que também permanecem fiéis Códigos de recente promulgação 7.
Vale-se ela do método dedutivo ou lógico-abstrato. Assentam os Clás-
sicos suas concepções sobre o raciocínio. Como escreve Asúa: "El Derecho Registre-se que ela foi a intrépida defensora do indivíduo contra o ar-
penal es para el clasicismo un sistema dogmático, basado sobre conceptos bítrio e a prepotência daqueles tempos.
esencialmente racionalistas"5. É uma ciência jurídica, nada tendo que ver
com o método experimental. 23. A Escola Correcionalista. Alguns autores dão autonomia a esta corrente
que denominam Correcionalista. Ela aparece com Carlos Davi Augusto Roeder,
Para eles, como já se viu, crime não é um ente de fato, mas entidade
professor de Heidelberg. Afirmam diversos autores que sua inspiração é
jurídica; não é uma ação, mas infração. É a violação de um direito. Tal prin-
clássica.
cípio é básico e fundamental na escola. Fórmula sacramental de que deve-
riam dimanar todas as verdades do direito penal. E assim escreveu Carrara: Concebe Roeder o direito como conjunto de condições dependentes da
"Acreditei ter achado essa fórmula sacramental; e pareceu-me que dela vontade livre, para cumprimento do destino do homem.
emanavam, uma a uma, todas as grandes verdades que o direito penal dos É, pois, norma de conduta indispensável à vida humana, tanto externa
povos cultos já reconheceu e proclamou nas cátedras, nas academias e no como interna, e daí incumbe ao Estado não só a adaptação do criminoso à
foro. Expressei-a, dizendo — o delito não é um ente de fato, mas um ente vida social como também sua emenda íntima. Com Roeder, o direito penal
jurídico. Com tal proposição, tive a impressão de que se abriam as portas à começa a olhar o homem e não apenas o ato. Não o homem abstrato, como
espontânea evolução de todo o direito criminal, em virtude de uma ordem sujeito ativo do crime, mas o homem real, vivo e efetivo, em sua total e ex-
lógica e impreterível. E esse foi o meu Programa" 6. clusiva individualidade8.
Outro característico da Escola Clássica, e também fundamental, é o No tocante à pena, o professor alemão avançou muito. Se o fim é cor-
relativo à pena. Esta é o meio de tutela jurídica. O crime é a violação de um rigir a vontade má do delinquente, deve ela durar o tempo necessário — nem
direito e, portanto, a defesa contra ele deve encontrar-se no próprio direito, mais, nem menos — para se alcançar esse objetivo. Será conseqiientemente
sem o que ele não seria tal. Conseqiientemente, ela não pode ser arbitrária, indeterminada.
mas há de regular-se pelo dano sofrido pelo direito. É retributiva. Deve Admitia Roeder que a execução da pena findasse, demonstrada que
importar também em coação moral que detenha os possíveis violadores do estivesse sua desnecessidade.
direito.
É inegável que, no terreno das ideias penais, reinantes na terceira déca-
Não é exato que, na Escola Clássica, a pena não tenha a finalidade de
da do século XIX, ele foi um revolucionário.
defesa. Tem-na, embora em sentido exclusivamente especulativo. Aliás, já
vimos isso com as teorias relativas, citando em especial Feuerbach, Bentham Suas concepções, entretanto, não tiveram grande influência na Alema-
e Romagnosi. nha. É principalmente na Espanha que vão encontrar entusiástica acolhida.
Finalmente, outro postulado da escola: a imputabilidade moral. É o Dorado Montero e Concepción Arenal são dois destacados nomes do
pressuposto da responsabilidade penal. Funda-se no livre-arbítrio, elevado Correcionalismo.

5. Asúa, Tratado, cit., v. 2, p. 32. 7. Cuello Calón, Derecho penal cit., 3. ed., t. 1, p. 45.
6. Carrara, Programma, cit., v. 1, Prefácio, p. 9 e 10. 8. Asúa, Tratado, cit., v. 2, p. 56.
INTRODUÇÃO DOUTRINAS E ESCOLAS PENAIS 35

Entre as numerosas obras do primeiro, surge El derecho protector de pelo Criador, para poder cumprir seus destinos), para os Positivistas, ele é o
los criminales. Mas nela os postulados correcionalistas conjugam-se com os resultante da vida em sociedade e sujeito a variações no tempo e no espaço,
positivistas. Concebe um direito penal sem pena. A finalidade dele é o trata- consoante a lei da evolução.
mento e a recuperação do delinquente. Com ser direito protetor dos crimino- Como deixamos dito do n. 20, seu pioneiro foi o médico-psiquiatra César
sos, também o é da sociedade, que assim é defendida e protegida. Em certos Lombroso. A concepção básica é a do fenómeno biológico do crime e a do
casos, as medidas contra aqueles podem mesmo assumir aspectos severos, método experimental em seu estudo.
sem, entretanto, o caráter de castigo.
Primeiramente, pretendeu explicar o delito pelo atavismo. O criminoso
Preconiza o direito penal do futuro, dizendo que os juizes do sistema
é um ser atávico, isto é, representa uma regressão ao homem primitivo ou
penal preventivo, higienistas e médicos sociais, não devem ter (como não as selvagem. Ele já nasce delinquente, como outros nascem enfermos ou sá-
têm os higienistas e médicos do corpo) leis que impeçam sua obra; não de- bios. A causa dessa regressão é o processo, conhecido em Biologia como
vem ter outras limitações, como não as têm ainda os médicos, senão as que degeneração, isto é, parada de desenvolvimento.
lhes ditarem sua prudência, honradez e competência científica, que devem
ser grandes9. Dito criminoso apresenta os sinais dessa degenerescência, com defor-
De Concepción Arenal é conhecida a frase: "Não há criminosos incor- mações e anomalias anatómicas, fisiológicas e psíquicas. Caracterizavam o
rigíveis e, sim, incorrigidos". Traduzem tais palavras a esperança na corre- delinquente nato a assimetria craniana, a fronte fugidia, as orelhas em asa,
ção de todos os delinquentes. zigomas salientes, arcada superciliar proeminente, prognatismo maxilar, face
ampla e larga, cabelos abundantes etc. A estatura, o peso, a braçada etc.
Dorado Montero fez numerosos discípulos. Entres eles cite-se, como
seriam outros caracteres anatómicos.
figura de singular projeção, Luís Jiménez de Asúa, um dos mais brilhantes
penalistas da atualidade. Notar-se-iam, também, insensibilidade física, analgesia (insensibilida-
Sem embargo do fim superior traçado ao direito penal, parece-nos que de à dor), mancinismo (uso preferencial da mão esquerda) ou ambidestrismo
o direito protetor dos criminosos, politicamente, leva às suas últimas conse- (uso indiferente das mãos), disvulnerabilidade (resistência aos traumatismos
quências os postulados da Escola Positiva, o que — consigne-se — é avan- e recuperação rápida), distúrbios dos sentidos e outros característicos fisio-
çar muito. Esse direito penal não é o mesmo para os nossos dias. lógicos.
Importantes são os caracteres psíquicos: insensibilidade moral,
24. A Escola Positiva. Inspirando-se no Iluminismo, a Escola Clássica
impulsividade, vaidade, preguiça, imprevidência etc.
exalçara, no campo penal, o princípio individualista, com esquecimento da
sociedade. Contra ela se ergueria a Escola Positiva, que se dizia socialista. Advertia, entretanto, Lombroso que só a presença de diversos estigmas
Por essa época, a filosofia e a ciência tomavam novos rumos, com o é que denunciaria o tipo criminoso, pois pessoas honestas e de boa conduta
positivismo de Augusto Comte e o evolucionismo de Darwin e Spencer. Da poderiam apresentar um ou outro sinal. Além disso, necessário era ter pre-
sociologia daquele surgiria a sociologia criminal. Do segundo, Lombroso sente que criminosos, como os ocasionais e passionais, podiam não apresen-
tiraria sua concepção do atavismo no crime. Spencer forneceria elementos tar anomalias.
aplicáveis à psicologia, à sociologia e à ética. O fundamento biológico da Todavia isso não explicava a etiologia do delito. Era necessário achar a
tese da defesa social provém das concepções da luta pela existência e da causa da degeneração, pensando encontrá-la Lombroso na epilepsia, que ataca
adaptação ao meio10. os centros nervosos e perturba o desenvolvimento do organismo, produzindo
A nova escola proclamava outra concepção do direito. Enquanto para a regressões atávicas.
Clássica ele preexistia ao homem (era transcendental, visto que lhe fora dado Finalmente, uma terceira explicação o médico italiano apresenta: a lou-
cura moral, sob a influência dos estudos de Maudsley. Ela aparentemente
9. P. Dorado Montero, Estúdios de derecho penal, 1901, p. 107 e 108. deixa íntegra a inteligência, porém suprime o senso moral. Seria, ao lado
10. Roberto Lyra, Direito penal; parte geral, 1936, v. 1, p. 73. daquelas outras causas, explicação biológica do crime.
36 INTRODUÇÃO DOUTRINAS E ESCOLAS PENAIS 37

Conseqiientemente, o criminoso, para o iniciador da Escola Positiva, é O criminoso louco, do fundador da escola, permanece na classificação
um ser atávico, com fundo epiléptico e semelhante ao louco moral". de Ferri, contrariando os postulados clássicos, para os quais a expressão era
Cumpre ressaltar que, ao lado do delinquente nato, Lombroso admite contraditória, pois o louco não pode sei delinquente, mas compreensível na
outras espécies. Justo é também salientar que ele, por fim, encarou os fatores Escola Positiva, para a qual a responsabilidade é social. A espécie, aliás,
exógenos ou sociais na génese do delito, a que Ferri deu importância capital. abrangia também os matóides, ou indivíduos situados na zona que se estende
Para a Escola Positiva, o crime longe está de ser o ente jurídico da entre a sanidade e a enfermidade psíquica.
Clássica, mas é um fato humano, oriundo de fatores individuais, físicos e O delinquente habitual é sobretudo produto do meio: mais do que os
morais. fatores endógenos, influem nele os exógenos. Em regra, inicia sua vida cri-
Não se restringiria a nova escola às concepções de Lombroso. Com minosa bem cedo e por pequenos delitos, a que correspondem penas de curta
efeito, ao lado destas que caracterizam a fase antropológica, outras se apre- duração; cumpre-as em prisões inadequadas, onde, em contato com outros
sentam: a sociológica e a jurídica, já mencionadas no n. 20. delinquentes, mais se corrompe. Reincide genérica ou especificamente, mas,
É Enrico Ferri o criador da sociologia criminal, com seu livro de idên- de ordinário, passa de pequenos delitos para mais graves.
tico nome, surgido em 1880, mas com o título de / nuovi orizzonti dei O criminoso ocasional é fraco de espírito, sem firmeza de caráter e
diritto e delia procedura penale. Seria ela a ciência enciclopédica do crime, versátil. É impelido pela ocasião, criada por fatores diversos, como a misé-
da qual o direito penal constituiria um capítulo, o que não nos parece ria, influência de outrem, esperança de impunidade etc.
procedente (n. 11). O passional, em regra, é honesto, mas de temperamento nervoso e sen-
Incontestavelmente, é, entretanto, Ferri o maior vulto da Escola Positi- sibilidade exagerada. Seu crime geralmente ocorre na juventude. Age sem
va. Mais do que qualquer outro, deu expansão ao trinômio causal do delito premeditação e sem dissimular. Confessa o delito e arrepende-se, pelo que,
— fatores antropológicos, sociais e físicos. Pregou a responsabilidade social frequentemente, se suicida.
em substituição à moral: o homem só é responsável porque vive em socieda- Dividindo as paixões em sociais e anti-sociais, o eminente autor, para
de; isolado em uma ilha, não tem qualquer responsabilidade. Respondia as- aquelas, preconiza tratamento excessivamente brando, que raia pela impuni-
sim à objeção dos Clássicos, de que, negado o livre-arbítrio, o determinismo dade, o que encontrou resistência dos próprios adeptos da escola. Lembra-se
levava à impunidade, pois iníquo seria punir quem fatalmente praticaria cri- ainda que, na prática forense, esse tipo de delinquente é desvirtuado, por-
mes. Acrescentava Ferri que, assim como o homem não é livre, também não fiando-se, com discursos mais ou menos hábeis, por que assim seja conside-
o é o Estado, na sua necessidade de reprimir o crime, para defesa do direito rado todo matador de mulher.
e da sociedade12.
A classificação de Ferri não é a única. Garofalo e Liszt também as tive-
Mais do que à repressão, deu ele importância à prevenção, sugerindo, ram. Modernamente, Benigno di Tullio apresenta a sua: ocasionais, constitu-
então, medidas que denominou substitutivos penais, destinadas a modificar cionais e enfermos mentais, compreendendo estes os delinquentes loucos e
condições mesológicas, principalmente as sociais e económicas, de efeitos os loucos delinquentes. Entre nós, aceita pelo Instituto de Biotipologia Cri-
criminógenos. minal, existe a classificação do Prof. Hilário Veiga de Carvalho —
Prega que a pena deve ser indeterminada, adequada ao delinquente, e mesocriminoso, mesocriminoso preponderante, mesobiocriminoso, biocriminoso
visar ao reajustamento para o convívio social. preponderante e biocriminoso — que obedece à prevalência do fator mesológico
Classificou os criminosos em cinco categorias: nato, louco, habitual, ou biológico.
ocasional e passional. Ferri procurou consagrar em lei suas concepções, embora condiciona-
O primeiro é o já considerado por Lombroso e cujo traço característico, das aos imperativos dela, elaborando em 1919 um "Projeto de Código Penal
para Ferri, é a atrofia do senso moral. para os delitos", como Presidente da Comissão de que faziam parte Garofalo,
Berenini, Florian, Ottolenghi etc, sendo secretários Grispigni, Ricci, Santoro
e outros.
11. Cuello Calón, Derecho penal, cit., t. 1, p. 19.
12. E. Ferri, La sociologie criminelle, trad. Léon Terrier, 2. ed., 1914, p. 392. Diversos são os trabalhos de Ferri, sendo o último os Princípios de di-
38 DOUTRINAS E ESCOLAS PENAIS 39
INTRODUÇÃO

reito criminal, exposição doutrinária de um sistema jurídico-penal, segundo O método empregado pela escola é o indutivo. Foi ela até chamada de
as ideias fundamentais da escola, com que ele encerrou a sua operosa e bri- Experimentalista. O crime e o criminoso devem ser expostos à observação e
lhante carreira científica13. à análise experimental, como os fenómenos naturais. O delito não é um ente
Rafael Garofalo é o iniciador da fase jurídica. Sua obra principal é jurídico, como queriam os Clássicos, mas um fato humano, resultante de
Criminologia. É o sistematizador das aplicações da antropologia e da socio- fatores endógenos e exógenos, que deve ser estudado sobretudo à luz da
logia ao direito penal. Divide seu livro em três partes — o delito, o delin- criminologia, ou, mais precisamente, pela antropologia e sociologia crimi-
quente e a repressão penal. É nesta última que se observa o labor jurídico. nal. Não podia a escola, determinista que era, aceitar a responsabilidade moral:
Buscando um conceito uniforme de crime, que pairasse acima das le- o homem é responsável por viver em sociedade, e a medida penal é dada pela
gislações, procura criar o delito natural, que é "a ofensa feita à parte do periculosidade. Finalmente, a pena tem por escopo a defesa social, não ha-
senso moral formada pelos sentimentos altruístas de piedade e probidade — vendo, por conseguinte, correspondência precisa entre ela e o crime. A san-
não, bem entendido, à parte superior e mais delicada deste sentimento, mas ção pode ser aplicada mesmo antes da prática delituosa, como sói acontecer
à mais comum, à que se considera património moral indispensável de todos com certas condutas compreendidas no estado perigoso: ociosidade, embria-
os indivíduos em sociedade"14. guez, desonestidade, falta de decoro etc.
Para ele, o delinquente não é um ser normal, mas portador de anomalia Erros podem ser apontados na orientação positivista, como já deixa-
do sentimento moral. Embora limitadamente, aceita a influência do ambiente mos dito. Não apenas em Lombroso, mas em Ferri, Garofalo e seus segui-
social na génese da criminalidade. dores. Entretanto, são inegáveis o mérito da escola, as altas contribuições
Da concepção de anomalia moral, chega à conclusão de que o critério suas na luta contra a criminalidade e na elaboração de institutos jurídico-
da medida penal deve ser apericolosità, expressão usada em Delia mitigazione penais. Disse bem José Frederico Marques: "Mesmo que se não abrace a
delle pene nei reati di sangue, trabalho publicado em 187715. Define-a como a orientação que o positivismo italiano imprimiu aos estudos penais — só
perversidade permanente e ativa do criminoso e a quantidade do mal pre- um extremado sectarismo poderia pretender obumbrar ou diminuir a reper-
visto que se deve temer por parte dele. cussão e valor do movimento científico inaugurado por Lombroso e toda a
Desse conceito de Garofalo advém o de periculosidade ou perigosidade nuova scuola" 16.
que hoje é tido em grande monta. 25. A Terceira Escola. Procurando conciliar as posições extremadas da
Estranhamente, no tocante à repressão, afasta-se da escola: o fim da Escola Clássica e do Positivismo'Naturalista, surgem correntes ecléticas, em
medida penal é principalmente a eliminação, seja pela pena de morte, seja diversos países europeus.
pela deportação ou relegação.
Na Itália, com Alimena, Carnevale e Impallomeni, aparece a Terza Scuola,
Com justiça, é Garofalo considerado o jurista dos primeiros tempos da também denominada Positivismo Crítico.
Escola Positiva. Situando-se entre aquelas duas, aceita os dados da antropologia e da
Outros grandes nomes se contam nessa corrente: Fioretti, Puglia, Berenini, sociologia criminal, ocupando-se do delinquente; mas, dando a mão ao
Magno, Altavilla, Florian, Grispigni etc. Classicismo, distingue entre o imputável e o inimputável.
De todo o exposto, podemos apontar como fundamentos e caracteres
Consoante Roberto Lyra, os pontos básicos dessa corrente podem sin-
dessa escola os seguintes: a) método indutivo; b) o crime como fenómeno
tetizar-se: 1) respeito à personalidade do direito penal, que não pode ser absorvido
natural e social, oriundo de causas biológicas, físicas e sociais; c) a respon-
pela sociologia criminal; 2) inadmissibilidade do tipo criminal antropológi-
sabilidade social como decorrência do determinismo e da periculosidade; d)
co, fundando-se na causalidade e não-fatalidade do delito; 3) reforma social
a pena tendo por fim a defesa social e não a tutela jurídica.
como imperativo do Estado, na luta contra a criminalidade17.

13. Aníbal Bruno, Direito penal, cit., t. 1, p. 115. 16. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 1, p. 75.
14. R. Garofalo, Criminologia, trad. Júlio de Matos, 1925, p. 64.
17. Roberto Lyra, Direito penal, cit., v. 1, p. 85.
15. In Florian, Niceforo e Pende, Dizionario di criminologia, cit.; V. Garofalo.
40 INTRODUÇÃO DOUTRINAS E ESCOLAS PENAIS 41

Do Positivismo, aceita a negação do livre-arbítrio, a concepção do de- "Puesto que el tratamiento eficaz resulta primeramente en Ia aplicación de Ia
lito como fato individual e social, o princípio da defesa da sociedade, que é pena, fue reclamada Ia sentencia indeterminada (cfr. más adelante § 32). En
o fim da pena, a qual, entretanto, não perde o caráter aflitivo. el transcurso de Ia lucha se formulo: No se ha de castigar el hecho sino ai
Concorda com a Clássica, admitindo a responsabilidade moral, embora autor"19.
não a fundamentando no livre-arbítrio. Distingue o imputável do inimputável, São caracteres dessa escola: a) método lógico-jurídico para o direito
como já se disse, pois, consoante Alimena, a imputabilidade surge da vonta- penal e experimental para as ciências penais; b) distingue o imputável do
de e dos motivos que a determinam, tendo por base a dirigibilidade do indi- inimputável, sem se fundar, porém, no livre-arbítrio, e sim na determinação
víduo, ou seja, a capacidade para sentir a coação psicológica. Somente é normal do indivíduo; c) aceita a existência do estado perigoso; d) tem o
imputável o que é capaz de sentir a ameaça da pena. Advoga, entretanto, crime como fato jurídico, mas também como fenómeno natural; e) a luta
para o inimputável, medidas de cunho notoriamente positivista. contra o crime far-se-á não só pela pena, mas também com as medidas de
Foi preocupação dessa escola evitar as discussões metafísicas do livre- segurança.
arbítrio e do determinismo, que frequentemente olvidavam as exigências reais Teve Von Liszt notáveis seguidores, como M. E. Mayer, Kohlrausch,
e impostergáveis do direito penal. Radbruch, Graf zu Dohna, Exner, Eberhard Schmidt, Kantorowicz e outros.
Essa escola foi fecunda no terreno das realizações práticas, pregando a
26. A Escola Moderna alemã. Eclética também é esta escola, surgida na necessidade de adotarem, as legislações, institutos como o das medidas de
Alemanha, por sinal antes da de Alimena, devido à iniciativa de Von Liszt. segurança, livramento condicional, sursis etc.
Sua denominação varia. Chamam-na uns, na Alemanha, de Escola Moderna;
outros de Positivismo Crítico; e terceiros, de Escola Sociológica, segundo Para a propagação e adoção dessas providências, muito contribuiu a
Sauer "equívocamente entendida y no de modo muy claro" 18. Asúa prefere a União Internacional de direito penal, criada por Von Liszt, Prins e Von Hamel.
denominação Escola da Política Criminal, embora reconheça que não se lhe Dessa escola diz Asúa: "... si en el aspecto teórico es poço estimable,
dá esse nome na Germânia. por su falta de firme critério unitário dirigente, es, en cambio, muy fecunda
en el área legislativa, puesto que ha logrado inspirar los códigos que se han
Apregoa a necessidade de estremar o direito penal da criminologia, devendo
puesto en vigência ultimamente y los numerosos proyectos de Europa y algunos
aquele limitar-se à dogmática dos textos legais, valendo-se do método lógi-
de América"20.
co. Finalidade diversa é a da criminologia, que estuda cientificamente o delito
no seu aspecto externo e nos fatores anteriores, sem o que será inócua a 27. Outras escolas e tendências. Conclusão. Longa seria a exposição
aplicação da pena. de outras escolas e tendências penais, sem qualquer proveito e, talvez, criando
A finalidade principal dessa escola alemã foi a adoção de medidas e confusões acerca das já mencionadas, mesmo porque não cremos que elas
providências de ordem prática no interesse da repressão e prevenção do delito, possam ser consideradas verdadeiramente escolas, representando posição
o que conseguiu, introduzindo nas legislações diversos institutos. filosoficamente definida. Nas mais das vezes são variações da Clássica ou da
Considera o crime um fato jurídico, mas não esquece que também apre- Positiva.
senta os aspectos humano e social. Não aceita o criminoso nato de Lombroso, Assim é que se fala em Neoclassicismo, abrangendo a chamada Escola
nem a existência de um tipo antropológico de delinquente; porém considera Humanista e, para muitos, a Técnico-Jurídica; em Neopositivismo, com as
real a influência de causas individuais e externas — físicas e sociais — com denominadas Escola Constitucionalista italiana, Socialista, Pragmática e
predominância das económicas. do Idealismo Atualístico, sendo duvidosa a exatidão da situação dessas cor-
A pena, para Liszt e seus seguidores, tem função preventiva geral e rentes, que, aliás, apresentam diferenças de vulto, tal seja o representante
especial, aquela advertindo a todos, esta quando recai sobre o delinquente. invocado.
Conferem à pena, sem o desprezo de outras providências, papel de relevo:
19. Sauer, Derecho penal, cit., p. 21.
18. W. Sauer, Derecho penal, trad. Juan dei Rosal, p. 21. 20. Asúa, Tratado, cit., v. 2, p. 91.
42 INTRODUÇÃO DOUTRINAS E ESCOLAS PENAIS 43

Das mencionadas, a que maior influência tem tido, nos últimos tempos, Seu fim é a delimitação do objeto de nossa disciplina e das ciências
é a Técnico-Jurídica. penais, no que está certo. Com efeito, o crime — quer queiram ou não____é
Dizem-na oriunda da Escola Clássica, inspirada principalmente em Carrara, um ente jurídico; porém é igualmente um fato biológico e social. É ente
porém sofrendo influência da doutrina germânica, máxime de Binding. A jurídico porque é o direito que valoriza o fato, é a lei que o considera crime.
Vicente Manzini, Asúa atribui a paternidade, embora acrescente que "por su Mas é também — e isso não se pode negar — um fenómeno natural e social,
mayor dinamismo, Arturo Rocco fue el más notório creador de esta escuela"21. isto é, oriundo de fatores biológicos e sociais.
Não obstante filiável ao Classicismo, sendo mesmo reação contra o O que é necessário fazer, então, é delimitar as zonas, caracterizadas por
Positivismo, registre-se que daquele se afasta pelo repúdio à intervenção da objetos diferentes. O direito penal não tem preocupações causais-explicativas;
filosofia no direito penal. estas situam-se no setor da antropologia e da sociologia criminal. Ele tem
É inegável ser o Tecnicismo Jurídico-Penal a corrente, hoje, dominante conteúdo dogmático e se vale do método técnico-jurídico; naquelas, o con-
na Itália. Inspirando-se nele o Código Penal italiano e considerando o pres- teúdo é causal-explicativo e o método é experimental.
tígio deste, é explicável a influência que tem tido também na doutrina penal É o que proclama o Tecnicismo Jurídico-Penal.
de outros países.
Por último, haveria que falar ainda no ecletismo de Longhi e Sabatini,
Em que pese à sua origem e à posição de combate ao Positivismo Na-
procurando — debalde, como é notório — coordenar "os princípios das dou-
turalista, não fugiu ele à influência de concepções deste, como periculosidade,
trinas opostas" "em uma unidade orgânica superior". É a concepção unitá-
o fato humano e social do crime, as medidas de segurança e outras, o que
ria, ou Escola Unitária.
leva diversos autores a acentuar seu colorido eclético22.
De modo geral, são caracteres do Tecnicismo Jurídico-Penal: a) nega- Em poucas palavras, é o que nos dizem as Escolas do Direito Penal.
ção das investigações filosóficas; b) o crime como relação jurídica de con- Posição definida, característica de escola, só duas apresentam: a Clássica e
teúdo individual e social; c) responsabilidade moral, distinguindo entre os a Positiva. As outras ou são ecléticas, buscando a conciliação das duas, ou
imputáveis e inimputáveis; d) pena retributiva e expiatória para os primeiros ramificações delas, com alguns matizes mais ou menos acentuados e roupa-
e medida de segurança para os segundos. gens novas.
Ponto básico é a autonomia do direito penal, estremado das chamadas Deu-se importância exagerada ao debate entre as escolas. Volumes e
ciências penais. Ele se reduz ao Positivismo Jurídico e o método empregado volumes foram escritos com a finalidade única de demonstrar a perfeição ou
em seu estudo é o que se denominou técnico-jurídico. Noutras palavras, di- supremacia dos postulados e princípios de uma sobre a outra.
reito penal é o que está na lei; só com este o jurista deve preocupar-se. Seu A verdade é que qualquer delas, por si só, não pode satisfazer aos im-
estudo se faz exclusivamente pela exegese, que dá o sentido verdadeiro das perativos sociais, diante do fenómeno do crime. A ortodoxia é inconciliável
disposições integrantes do ordenamento jurídico; pela dogmática, que inves- com o conteúdo e a finalidade do direito penal.
tiga os princípios que norteiam a sistemática do direito penal, fixando os
elementos de sua integralidade lógica; e pela crítica — restrita, como não O que sobretudo interessa ao indivíduo e à sociedade é o direito normativo,
podia deixar de ser — que orienta na consideração do direito vigente, de- e este não se pode rigorosamente encerrar nos limites impostos por qualquer
monstrando seu acerto ou a conveniência de reforma. escola, mas há de recolher de todas elas tudo quanto de útil e real oferecem,
sem se deixar empolgar por concepções ditadas pelo sectarismo estéril. Os
O Tecnicismo Jurídico-Penal não é bem uma escola, mas orientação,
exageros metafísicos da Escola Clássica, os excessos naturalistas da Positiva
direção no estudo do direito penal: é renovação metodológica no estudo desta
e as demasias técnico-jurídicas não podem passar para o terreno legal, que é
disciplina. Pode definir-se tal orientação como o estudo sistemático do direi-
to penal, com referência à lei promulgada pelo Estado. onde o direito se exterioriza e adquire sua força para atender às exigências
individuais e sociais.
21. Asúa, Tratado, cit., v. 2, p. 112. Um Código não se deve escravizar a preconceitos de escolas. Por isso,
21. Aníbal Bruno, Direito penal, cit., t. 1, p. 131 e 132; Basileu Garcia, Institui disse bem a Exposição de Motivos de nosso diploma que nele os postulados
ções, cit., v. 1, p. 112. clássicos fazem causa comum com os princípios da Escola Positiva.
44 INTRODUÇÃO

Muito mais que para as discussões e contendas filosóficas, que não devem
transpor o pórtico da lei, necessita o legislador atentar para o problema po-
lítico, aparando as arremetidas do direito penal autoritário, que asfixia o indivíduo
em proveito dos poderosos do momento, postergando direitos que são vitais
e inerentes à própria condição humana.
AS FONTES DO DIREITO PENAL

.JI____ SUMÁRIO: 28. Fontes de produção ou materiais e fontes de conhecimento


ou formais. 29. Fonte imediata: a lei. A lei penal. Caracteres e classifica -
ção. Norma penal em branco. 30. Fontes mediatas: a) o costume; b) a equi-
dade; c) os princípios gerais do direito; d) a analogia. A doutrina. A juris-
prudência. Os tratados e convenções.
28 as classes de suas fontes: as de produção, materiais ou substanciais, e as de
. conhecimento, cognição ou formais.
Fontes Fonte de produção é o Estado. Se o direito penal tem caráter público,
de como já acentuamos, só aquele é fonte material. Antigamente, a Igreja, as
produç sociedades, o pater famílias pbdiam apresentar-se como fontes.
ão ou
Entre nós, diz a Constituição Federal, no art. 22,1, que compete à União
materia
legislar sobre direito penal; esta é, portanto, fonte substancial.
is e
fontes Todavia o Estado não legisla arbitrariamente. As leis não nascem de
de fantasia ou capricho seu. Em regra, é a vida social, em seus imperativos e
conheci reclamos, é a civilização, é o progresso, são outros fatores e situações que
mento o solicitam a ditar o direito. Tudo isso, ainda que vago e impreciso, porém
ou for- presente e antecedente à atividade estatal legislativa, é também fonte de
produção.
mais.
No As fontes formais ou de conhecimento revelam o direito penal; são a
vernácu maneira por que ele se exterioriza e objetiva. Pode a fonte de cognição ser
lo, mediata ou imediata. Esta última é a lei. Como fonte mediata, grande núme-
fonte é ro de autores aponta os costumes. Outros há, ainda, que colocam nessa espé-
o lugar cie também a doutrina, a equidade e os princípios gerais do direito, a juris-
onde prudência, a analogia e os tratados, havendo ainda os que incluem as pro-
perene
mente
nasce
água.
Em
sentido
figurad
o é
sinónim
o de
origem,
princípi
o e
causa.
Fonte
do
direito
penal é,
pois,
aquilo
de que
ele se
origina
ou
proman
a.
D
uas são
46 INTRODUÇÃO AS FONTES DO DIREITO PENAL 47

vidências administrativas, os regulamentos, as instruções, circulares, postu- 393 do Código Penal; este texto, pelo contrário, adapta-se aos fatos pratica-
ras, recomendações, advertências da autoridade policial etc. 1. dos. O que ele viola é o princípio que proíbe matar" 2.
Binding distingue, por este modo, a norma da lei: aquela contém o prin-
29. Fonte imediata: a lei. A lei penal. Caracteres e classificação. Nor-
cípio proibitivo e esta é mera descrição da conduta, conferindo ao Estado o
ma penal em branco. É a lei a única fonte formal imediata do direito penal.
direito de punir, desde que haja violação da norma.
A função penal sobrepuja as demais pelo valor dos bens que tutela — vida,
honra, liberdade etc. — e pela severidade da sanção — a mais grave que a Mais certo parece-nos dizer que a lei é que revela a norma; ela é fonte
humanidade conhece — donde a necessidade de precisão e certeza, que so- desta.
mente ela pode proporcionar. Kelsen falou que, de um simples jogo de palavras, Binding constrói
Trata-se da lei material, do jus scriptum, único modo por que o Estado uma teoria.
pode definir crimes e cominar penas. Triunfante o princípio da reserva legal É inegável, assim nos parece, que ela se apega demais à técnica legislativa.
nullum crimen, nulla poena sine lege, a lei penal, sob o ponto de vista polí- Não é exato que a lei penal não contenha implicitamente o princípio proibitivo.
tico, vem a ser, como escreveu Von Liszt, a Charta Magna do delinquente. Tanto faz dizer: "Não matarás", como "Se matares serás castigado".
Com ela o indivíduo adquire o direito de não ser punido, desde que sua con- Observa-se que o jurista germânico considera na lei penal o preceito
duta não seja típica, isto é, não apresente tipicidade, ou ainda não se ajuste separado da sanção, quando, na verdade, são inscindíveis: "II frazionamento
ao tipo que ela descreve, e ainda: presente que seja a tipicidade, tem, por via delia norma nei due nuclei regola — coazione, che si rinviene nelle dotrine
da lei, o direito de não ser punido mais do que ela dita. Consequentemente, dei Thon e dei Binding, è, però, inaccetabile. Invero, i concetti di comando,
não só é a lei fonte do direito penal como também sua medida. precetto, regola, imperativo, da una parte, e di sanzione, pena, dall'altra,
Tão preponderante é o papel desempenhado por ela, que'forte corrente sono termini che non riesce possibile pensare isolatamente, ma che
de autores afirma ser a fonte exclusiva do direito penal, não tendo nenhuma concettualmente s'integrano e s'implicano e vicenda; e, come tali, essi sono
influência as fontes mediatas, ditas também indiretas ou primárias. accezioni inseparabile dei dovere giuridico, nuclei insceverabile e irreducibili,
e, quindi elementi trasfusi organicamente nella categoria di norma giuridica"3.
Consequentemente, a norma penal descreve condutas ilícitas, a que comina
pena. Compõe-se por isso de duas partes: o preceito e a sanção. No primeiro, Além disso, é notório que a técnica aludida não é só da lei penal. Lem-
declara-se qual a objetividade jurídica ou bem-interesse tutelado; na segun- bra com oportunidade José Frederico Marques que também o Código Civil,
vez por outra, ao cominar sanções, não o faz expressamente, como sói acon-
da, a punição pela violação desse objeto.
tecer com os arts. 80, onde se impõe a obrigação de reparar perdas e danos
A interdição imposta só o é indiretamente: os Códigos Penais não de- ao que deixar perecer a coisa, 159, que comina a obrigação de reparar o dano
claram "não matar", porém, "matar alguém, pena de tanto". A regra proibitiva, àquele que violar direito ou causar prejuízo a outrem etc. Ao passo que isso
por conseguinte, é implícita; só a sanção é que é expressa. Isso porque, na acontece com o diploma civil, o penal, por sua vez, quando não se trata de
primeira parte, a preocupação é descrever a conduta típica, à qual se há de regras que descrevem condutas puníveis, formula seus preceitos com outra
ajustar a ação (em sentido amplo) do delinquente, para haver lugar a sanção. técnica, onde se ostenta o conteúdo imperativo da norma, como se dá com os
Diante disso, Binding formulou, no seu Compêndio, a teoria de que o delin- arts. 29, 40, 58, 61 etc. do Código4.
quente não viola a lei penal, mas antes atua de acordo com ela. Quem, por
Na lei penal existem preceito e sanção, advindo implicitamente daí o
exemplo, furta não transgride a regra positiva, porém age de conformidade
princípio proibitivo. A exatidão do que se afirma melhor se demonstra pelo
com esta, violando, apenas, a norma "não furtarás". Como também escreve
confronto de uma disposição comum com a norma penal em branco, que
Prins, seu seguidor: "O agente que comete uma infração não viola a lei pe-
nal; viola o princípio que deu origem ao artigo do Código. Assim, por exem-
2. A. Prins, Ciência penal e direito positivo, trad. H. de Carvalho, 1915, p. 88.
plo, o indivíduo que comete um crime de morte não transgride o texto do art.
3. E. Massari, La norma penale, 1913, p. 60 e 61.
4. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 1, p. 105 e 106 (comentário ao Código
1. Roberto Lyra, Direito penal, cit., v. 1, p. 257. de 1940).
48 INTRODUÇÃO AS FONTES DO DIREITO PENAL 49

realmente se completa com o preceito de outra, como dentro em pouco se y complementarias dei Código en los casos en que estas formulan en primer
término Ia prohibición legal y después, en un parágrafo de conjunto, sancio-
verá. ne con una pena Ias infracciones de tales y tales parágrafos de Ia ley". Per-
Nem por isso se nega o caráter sancionatório do direito penal, confor- tencem, ainda, à mesma espécie aquelas cujo conteúdo se encontra "en otra
me se disse antes (n. 3). O ser sancionador não impede que contenha precei- ley, pêro emana de Ia misma instancia legislativa". É a lei penal em branco
tos acerca da conduta individual, para só se ater à sanção. em sentido estrito quando o complemento é fornecido por outra lei "pêro
É a lei penal imperativa, pois a violação de seu preceito acarreta a pena. emanada de otra instancia legislativa"6. Consequentemente, o complemento
É geral, por se destinar a todos: opõe-se erga omnes. Costuma discutir-se preceptivo nem sempre é porvindouro.
aqui o problema dos destinatários da norma penal, divergindo os autores em Entre nós, a Lei n. 1.521, de 26 de dezembro de 1951 (art. 2.°, VI), pune
que ela não se dirige aos inimputáveis. A nós nos parece opor-se a todos; quem transgredir tabelas oficiais de géneros, mercadorias ou de serviços
somente no caso concreto é que, conforme a individualidade do agente, en- essenciais.
tão, se lhe aplicarão outras medidas. Entretanto são também normas penais em branco, v. g., o art. 237, que
É também a lei penal impessoal e abstraía, por não se referir a uma pune o que contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento
pessoa, ou categoria de indivíduos. Por fim, ela só se pode dirigir a fatos que lhe cause nulidade absoluta, sendo óbvio que o impedimento é determi-
futuros. nado pelo Código Civil, e o art. 178, que apena a emissão de conhecimento
Classificam-se as normas penais em gerais ou locais, conforme o espa- de depósito ou warrant, em desacordo com disposição legal, sendo esta di-
tada pelas leis do warrant (Dec. n. 2.647, de 19-9-1860; Lei n. 1.746, de 13-
ço, sendo estas de exceção, ditadas por peculiaridades próprias de determi-
10-1869; Dec. n. 4.450, de 8-1-1870; Dec. n. 2.502, de 24-4-1897; Dec. n.
nado trecho do território nacional. Podem ser comuns ou especiais, tendo em
1.102, de 21-11-1903, e outros). Em tais casos, o complemento do preceito
vista a divisão do direito penal em comum ou especial, conforme se expôs no
em branco das disposições penais a elas preexiste, enquadrando-se na segunda
n. 7. Consoante o fator político, são ordinárias ou excepcionais, impostas classe mencionada por Mezger, pois as fontes formais são homogéneas.
estas por circunstâncias de emergência na vida da Nação.
Dizem-se ainda incriminadoras, explicativas e permissivas: as primei- Enquadra-se em outra espécie o art. 269 de nosso estatuto, impondo
sanção ao médico que não denunciar à autoridade pública doença cuja noti-
ras descrevem condutas típicas sob sanção; as segundas declaram o conteú-
ficação é compulsória, pois a^enumeração das enfermidades, cuja comunica-
do de outras normas, esclarecendo-o e dirimindo dúvidas; as últimas dis-
ção é imperativa, é feita por atos administrativos, ou seja, fonte heterogénea.
põem sobre condutas lícitas ou impuníveis, não obstante típicas. Finalmente,
são completas ou incompletas: aquelas, contendo o preceito e sanção inte- Ponto de capital importância a observar é que a norma penal em branco
não é destituída de preceito. Nela existe um comando, provido de sanção, de
grais; as segundas, necessitando de complemento, por ser o preceito
se obedecer ao complemento preceptivo que existe ou existirá em outra lei.
indeterminado ou genérico.
Deve ter-se em conta a observação, por sua influência no estudo da retroatividade
Como exemplo destas, cite-se a lei penui em branco. Nela o preceito, das normas penais em branco (n. 40).
quanto ao conteúdo, é indeterminado, sendo preciso somente quanto à san-
Asúa, com oportunidade, lembra que, diante dos princípios da reserva
ção. É aquele, pois, preenchido por outra disposição legal, por decretos, re-
legal e divisão de Poderes: a) a foite formal heterogénea tem por missão
gulamentos e portarias. Na conhecida frase de Binding, "a lei penal em bran-
apenas "determinar especificamente as condutas puníveis dentro do círculo
co é um corpo errante em busca de alma". em branco"; b) "o poder de regulamentação se reduz à faculdade específica
Autores há, como Nelson Hungria, que frisam dever o complemento do compreensiva somente das modalidades de interesse secundário ou de por-
preceito ser emitido in futuro5. Com Mezger, deve fazer-se distinção de normas menor, indispensável para melhor execução da vontade legislativa"7.
em branco em sentido amplo e estrito. Na primeira espécie, o complemento
pode estar na própria lei: "Tal forma es muy frecuente en Ias leyes accesorias 6. Mezger, Criminologia, cit., p. 381 e 382.
7. Asúa, Tratado, cit, v. 2, p. 321.
5. Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1949, v. 1, p. 80.
50 INTRODUÇÃO AS FONTES DO DIREITO PENAL 51

São limites ditados pela harmonia de Poderes. derrogatório da norma legislativa, de integrante seu e de norma de per sè
stante, não vacilando em afirmar que o princípio nullum crimen, nulla poena
30. Fontes mediatas: a) o costume; b) a equidade; c) os princípios ge- sine lege pode ceder ante ele, seja integrativo, derrogatório ou criador 10, e
rais do direito; d) a analogia. A doutrina. A jurisprudência. Os tratados e Maggiore, negando-lhe função criadora, reconhece-lhe a derrogatória e ab-
convenções, a) O costume é uma regra de conduta praticada de modo geral, rogatória".
constante e uniforme. Caracteriza-se por longa e reiterada prática, com a
É ele fonte indireta, mas no direito penal liberal não pode definir cri-
consciência de sua obrigatoriedade. mes e impor sanções.
Teve em épocas passadas grande fastígio. Por Beccaria foi chamado o M/Define-se a equidade como a correspondência jurídica e ética per-
legislador ordinário dos povos. Atualmente, entretanto, restringem-lhe o alcance, feita^a norma às circunstâncias do caso concreto a que é aplicada. É a de-
no direito penal, pois é certo que em outros ramos jurídicos, máxime no in- finição comum dos doutrinadores.
ternacional, continua a ter eficácia.
Ensina Manzini que ela pode sei considerada fonte de direito objetivo
O princípio da reserva legal impede que ele defina crimes, comine pe- não só quando completa a norma que a reclama, mas, também, quando a
nas ou as agrave. Não pode também derrogar ou ab-rogar a norma penal. vontade do Estado lhe reconhece a força de invalidar a norma de direito, no
Ainda que disposições incriminadoras da lei não sejam aplicadas durante caso individual ou em uma série de casos concretos. Como exemplo dessa
longo tempo, como acontecia com o duelo, na legislação passada, e sucede espécie, pode apontar-se o caso do perdão judicial, em que o juiz, não obstante
com o adultério, na atual, é óbvio que elas permanecem com toda a sua força provada a culpa do acusado, pode abster-se de pronunciar a condenação, isto
repressiva, tão logo o ofendido as invoque. é, pode omitir a aplicação da pena, não efetivando, desse modo, a norma que
Não se pode, entretanto, negar valor ao direito consuetudinário, mesmo a comina12.
no campo de nossa disciplina. Por outro lado, é inegável que tanto a doutrina como a jurisprudência a
Primeiramente, tipos delituosos existem que invocam o costume, ao invocam frequentemente, embora não o façam de modo explícito.
aludirem a certos elementos como honra, decoro, inexperiência, justificável c) Os princípios gerais do direito — nos quais se dilui a equidade, embora
confiança, mulher honesta etc. É impossível, então, o conhecimento da nor- Manzini os distinga, por ser esta subjetiva, ao passo que aqueles têm caráter
ma, desprezando-se o costume. objetivo, "venendo desunti non de un particolar modo, individuale o collettivo,
Depois, há casos em que ele indiretamente é integrador do direito pe- di sentire, bensi direitamente dal diritto positivo"13 — podem também suprir
nal, quando a norma deste faz remissão a outra de diverso ramo jurídico, lacunas e omissões da lei penal, desde que esta não seja incriminadora. A
como o civil ou o comercial, que não o repudiam, e pode ser diretamente tanto autoriza o art. 4.° da Lei de Introdução do Código Civil, aplicável não
integrante quando, no mesmo caso, a norma civil, v. g., a ele se referir de apenas às normas jurídicas de direito privado, mas também às de direito público.
modo direto, não obstante ser isso excepcional8. Como escreve José Frederico Marques: "No campo da licitude do ato,
há casos onde só os princípios do direito justificam, de maneira satisfatória
Aceita igualmente é sua influência, no tocante à extensão das causas e cabal, a inaplicabilidade das sanções punitivas. É o que sucede nas hipóte-
excludentes da antijuridicidade ou da culpabilidade. Em muitos casos, o pró- ses onde a conduta de determinada pessoa, embora perfeitamente enquadrada
prio fundamento da justificativa ou dirimente, ou a limitação de sua eficácia, nas definições legais da lei penal, não pode, ante a consciência ética e as
está no costume, na prática uniforme e constante, segundo os interesses e regras do bem comum, ser passível de punição"14.
tendências sociais e culturais9.
Registre-se, por fim, que a evolução doutrinária é no sentido de am- 10. Massari, La norma, cit., p. 28.
pliar-se sua eficácia. Massari, por exemplo, sustenta ser ela a mesma que nos 11. Maggiore, Diritto penale, cit., v. 1, p. 122 e s.
outros ramos jurídicos, assinalando ao costume tríplice função de elemento 12. V. Manzini, Trattato di diritto penale, 1941, v. 1, p. 266 e 267.
13. Manzini, Trattato, cit., v. 1, p. 265.
8. Soler, Derecho penal, cit., v. 1, p. 135. 14. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 1, p. 176.
9. Aníbal Bruno, Direito penal, cit., t. 1, p. 197.
52 INTRODUÇÃO AS FONTES DO DIREITO PENAL 53

Parece-nos que, desde que o imponham o interesse coletivo e as exi- da solução de casos idênticos como, principalmente, deduzida dos princípios
gências de justiça substancial, não repugna a invocação dos princípios ge- e preceitos gerais de direito. Em todo caso, a regra é que non exemplis sed
rais do direito na ampliação da órbita da licitude penal. legibus judicandum est, isto é, o juiz deve julgar, não pelos arestos, mas
d) A analogia é inadmissível para criar crimes e estabelecer sanções, pelas leis"16.
onde impere o princípio da reserva legal, como em outro lugar se verá (n. Os tratados e convenções internacionais são apontados por diversos
37). Já o mesmo não se pode dizer da analogia in bonam partem, que bene- autores, ora como fontes mediatas e ora imediatas. Roberto Lyra escreve: "A
ficia e favorece o acusado, podendo, então, ser invocada, não só quanto à nosso ver, os tratados e as convenções internacionais, como verdadeiras leis
licitude do ato como, também, na mitigação da pena. entre as partes, constituem, também, fonte imediata de Direito Penal. Em
A doutrina não é fonte formal do direito penal. É, porém, de grande nossos dias, sobretudo, quando se estreita a interdependência económica dos
utilidade na interpretação da lei, estudando-a desde o nascedouro, acompa- povos e se faz, com a maior franqueza, o jogo dos interesses em choque, ou
nhando-a na evolução, examinando os elementos jurídicos e metajurídicos das conveniências comuns, adquirem grande importância esses ajustes di-
que a informam. plomáticos"17.
Os ensinamentos contidos nos tratados, nas lições dos professores, nos Não comungamos da abalizada opinião, pois os tratados não têm força
Congressos, por serem de grande valia, não têm, entretanto, força obrigató- senão depois do referendum do Congresso (CF, art. 49, I), e, conseqiiente-
ria, não podem vincular o intérprete às suas conclusões. mente, passam a ser fontes como leis.
Apontando defeitos, mostrando lacunas, indicando aperfeiçoamento etc, De todo o exposto podemos concluir que, ao contrário do que muitos
a communis opinio doctorum presta relevante serviço na elaboração da nova sustentam, não é hermeticamente fechado o âmbito do direito penal.
lei, pois o legislador não pode ter ouvidos moucos para os erros da anterior Não se discute que, em matéria de definição de crimes ou agravação de
e às necessidades da porvindoura, apontados por aquela. penas, só a lei é fonte; todavia fora daí não se há de rejeitar a existência de
Não pode & jurisprudência constituir fonte do direito penal, já que ela outras. Assim o costume. Representa a consciência jurídica de um povo. Nasce
é o direito reproduzido nas decisões judiciais, por via de aplicação da lei. espontaneamente, forma-se pouco a pouco e impõe-se por sua necessidade e
Inquestionável, entretanto, é sua importância na interpretação dos textos legais; assentimento geral, não necessitando para isso da intervenção de qualquer
diga-se o mesmo de sua influência na elaboração de novas leis. órgão do Estado. Penetra o direito penal, através de outras leis, que dele se
integram, e participa do conteúdo de suas figuras típicas.
No mais, não é ela fonte de direito, mesmo porque o juiz, quando julga,
declara o direito aplicável somente àquele caso. A repetição de decisões num Outras fontes mediatas são a analogia in bonam partem e os princípios
gerais do direito.
mesmo sentido tem efeitos de sumo relevo, como se disse; porém não cria o
direito, que promana da lei que está em jogo.
Adverte, contudo, Soler15 que não se pode deixar de observar que,
modernamente, nos direitos penais revolucionários, ao afirmar-se o caráter
criador da jurisprudência e ao admitir-se o princípio analógico ou ao supri-
mir-se a especificação das figuras delituosas, atribui-se à jurisprudência for-
ça produtora de normas, outorgando-se ao juiz faculdade legiferante, de modo
que "en el acto de juzgar finca el devenir mismo de Ia norma".
Fora disso, "a jurisprudência dos tribunais nunca teve senão valor de
interpretação doutrinária, quando, por obscuridade ou deficiência da lei po-
sitiva, há uma razão de duvidar, exigindo uma razão de decidir, não só induzida

15. Soler, Derecho penal, cit., v. 1, p. 138. 16. João Mendes Júnior, Direito judiciário, 2. ed., p. 24 e 25.
17. Roberto Lyra, Direito penal, cit., v. 1,
p. 252 e 253.
HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO 55

32. Brasil Colonial. Verdadeiramente, foi o Livro V das Ordenações do


HISTÓRIA DO DIREITO PENAL Rei Filipe II (compiladas, aliás, por Filipe I, e que aquele, em 11-1-1603,
BRASILEIRO mandava fossem observadas) o nosso primeiro Código Penal. São as Orde-
nações Filipinas. É o Código Filipino.
Certo é que, na época em que o Brasil foi descoberto, vigoravam as
SUMÁRIO: 31. O aborígene. 32. Brasil Colonial. 33. O Império. 34. A Ordenações Afonsinas, logo substituídas pelas Manuelinas (1512), que, não
República. obstante o grande prestígio que tiveram, eram revogadas em 14 de fevereiro
de 1569 pelo Código de D. Sebastião.
Foram, porém, as Filipinas nosso primeiro estatuto, pois os anteriores
31. O aborígene. É intuitivo que as práticas punitivas dos homens que muito pouca aplicação aqui poderiam ter, devido às condições próprias da
aqui habitavam em nada podiam influir sobre a legislação que nos regeria, terra que ia surgindo para o mundo. Tudo estava por fazer e organizar. Para
após o descobrimento. Destituídos, pois, de interesse jurídico, os costumes se ter uma ideia de como iam as coisas referentes à justiça, naquela época,
penais dos nativos, limitar-nos-emos a apontar um ou alguns, mesmo porque basta lembrar o episódio ocorrido em Piratininga, em 13 de junho de 1587,
seu estudo melhor se situa em outro setor. em que o almotacel (magistrado de categoria inferior ao juiz ordinário) João
Maciel pediu aos vereadores que lhe dessem as Ordenações (certamente o
Conta-nos Rocha Pombo que, "entre os selvagens, o direito consuetu- Código Sebastiânico), pois não podia, sem elas, exercer suas funções. Taunay,
dinário entrega o criminoso à própria vítima ou aos parentes desta; e se aquele que nos narra esse episódio, acrescenta não se ter encontrado um só exem-
que delinquiu pertence a uma tribo ou taba estranha, o dano ou delito deixa plar!3
de ser pessoal e se converte numa espécie de crime de Estado". Acrescenta
Refletiam as Ordenações Filipinas o direito penal daqueles tempos. O
que não só o homicídio — por sinal que muito raro — mas também o adul-
fim era incutir temor pelo castigo. O "morra por ello" se encontrava a cada
tério, a perfídia, a deserção, principalmente, da tribo (onde melhor se conso-
passo. Aliás, a pena de morte comportava várias modalidades. Havia a morte
lidava o direito) e o roubo (praticado noutra taba, já que na mesma taba tudo
simplesmente dada na forca (morte natural); a precedida de torturas (morte
era comum) eram punidos1. natural cruelmente); a morte para sempre, em que o corpo do condenado
As penas, nos delitos de certa gravidade, eram aplicadas por um juiz. ficava suspenso e, putrefazendo-se, vinha ao solo, assim ficando, até que a
Havia outros casos, naturalmente em crimes mais graves ainda, em que o ossamenta fosse recolhida pela Confraria da Misericórdia, o que se dava
julgamento cabia a uma assembleia, constituída em tribunal, com aplicação uma vez por ano; a morte pelo fogo, até o corpo ser feito em pó. Cominados
das penas de castigos corporais e provações, até a morte. Às vezes, a puni- também eram os açoites, com ou sem baraço e pregão, o degredo para as
ção cifrava-se na entrega do criminoso aos parentes da vítima, se o crime era galés ou para a África e outros lugares, mutilação das mãos, da língua etc,
homicídio2. queimadura com tenazes ardentes, capela de chifres na cabeça para os ma-
É claro que esse direito consuetudinário nenhuma influência teria no ridos tolerantes, polaina ou enxaravia vermelha na cabeça para os alcovitei-
descobridor que para aqui veio, trazendo suas leis. Foram elas os nossos ros, o confisco, a infâmia, a multa etc.
primeiros Códigos. Quanto ao crime, era confundido com o pecado e com a mera ofensa à
moral. Começava pela incriminação dos hereges e apóstatas, prosseguindo
com a punição dos feiticeiros, dos que benziam cães etc. Realce especial
merecia o crime de lesa-majestade, comparável à lepra, infamando também
os descendentes, posto que não tenham culpa. Fatos que hoje depõem contra a decência e a moral eram considerados
1. Rocha Pombo, História do Brasil, v. 2, p. 169, 170 e 171.
2. Roberto Lyra, Direito penal, cit., v. 1, p. 382. 3. A. D'Escragnolle Taunay, São Paulo nos primeiros anos, p. 36.
56 INTRODUÇÃO HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO 57

delitos gravíssimos, haja vista, v. g., o Título XIII — Dos que cometem pe- Foi aprovado o Projeto em sessão de 20 de outubro de 1830 na Câmara,
cado de sodomia e com alimárias — em que era queimado, até ser o corpo sendo remetido ao Senado. Em 16 de dezembro, D. Pedro I sancionava-o.
reduzido a pó, o homem que tivesse relações carnais com um irracional, O Código honrava a cultura jurídica nacional. De índole liberal, a que,
declarando os anotadores que o mesmo sucedia a este. aliás, não podia fugir, em face do liberalismo da Constituição de 1824, ins-
Consagravam amplamente as Ordenações a desigualdade de classes perante pirava-se na doutrina utilitária de Bentham. Influenciavam-no igualmente o
o crime, devendo o juiz aplicar a pena segundo a graveza do caso e a qua- Código francês de 1810 e o Napolitano de 1819.
lidade da pessoa: os nobres, em regra, eram punidos com multa; aos peões Todavia a nenhum deles se submetia, sendo frequentes suas originali-
ficavam reservados os castigos mais pesados e humilhantes. dades. Roberto Lyra assim as enumera: "1.°) no esboço de indeterminação
Ao lado da preocupação com a pessoa do soberano, da confusão do relativa e de individualização da pena, contemplando já os motivos do cri-
crime com o pecado, e com a falta moral, vê-se a atenção que o legislador me, só meio século depois tentado na Holanda e, depois, na Itália e na No-
reinol dispensava aos fatos sexuais, enumerando-os em extensa lista, alguns ruega; 2.°) na fórmula da cumplicidade (co-delinqiiência como agravante)
até bizarros e estranhos, e estendendo a interdição aos contatos carnais de com traços do que viria a ser a teoria positiva a respeito; 3.°) na previsão da
circunstância atenuante da menoridade, desconhecida, até então, das legisla-
infiéis e cristãos, ainda com intento de defesa religiosa.
ções francesa e napolitana, e adotada muito tempo após; 4.°) no arbítrio ju-
Não se pode falar, nesse diploma, em técnica legislativa. Seus títulos dicial, no julgamento dos menores de 14 anos; 5.°) na responsabilidade su-
eram descritivos. Longas orações definiam os crimes. Imperava o casuísmo cessiva, nos crimes por meio de imprensa, antes da lei belga e, portanto, é
etc. esse sistema brasileiro e não belga, como é conhecido; 6.°) a indenização do
Em suma: tudo quanto, mais tarde, Beccaria verberou ostentava-se in- dano ex delicio como instituto de direito público, também antevisão positivista;
confundivelmente no Livro V. Mas tenha-se em vista que ele não era uma lei 7.°) na imprescritibilidade da condenação"4.
de exceção, pois as atrocidades, as confusões, as arbitrariedades, as defi - Claro é que apresentava defeitos. Não definira a culpa, aludindo apenas
ciências, as desigualdades etc. eram também de leis coevas. ao dolo (arts. 2.° e 3.°), embora no art. 6.° a ela já se referisse, capitulando
Foi o Código de mais longa vigência entre nós: regeu-nos de 1603 a mais adiante crimes culposos (arts. 125 e 153), esquecendo-se, entretanto,
1830, isto é, mais de duzentos anos. do homicídio e das lesões corporais por culpa, omissão que veio a ser supri-
da pela Lei n. 2.033, de 1871. Tal silêncio explica-se pela época em que veio
Tentativas de modificar a legislação do Reino houve. As mais impor-
à luz o Código, na qual os meios de transportes, a indústria etc. não ofere-
tantes consistiram nos projetos de Código Criminal, de autoria de Pascoal
ciam os perigos que mais tarde se fizeram sentir.
José de Melo Freire dos Reis, professor da Universidade de Coimbra, ho-
mem culto, liberal, inspirando-se nos pensamentos dos enciclopedistas. Seus Espelhara-se também na lei da desigualdade no tratamento iníquo do
trabalhos jamais foram convertidos em lei, ou porque não resistiram às crí- escravo. Cominava as penas de galés e de morte. Esta, por sinal, provocou
acalorados debates, quando foi da discussão do Projeto, dividindo-se libe-
ticas das comissões revisoras, ou porque só eram lembrados com receio, diante
rais e conservadores, prevalecendo por pequena maioria a opinião destes,
dos fatos da Revolução Francesa.
cujo argumento principal era a necessidade da pena capital para o elemento
33. O Império. Proclamada a Independência, era imperativo um novo servil, em face de seu nível inferior de vida, pelo que inócuas lhe seriam as
Código Penal. Como isso não se podia fazer de um momento para outro, outras penas.
mandou-se, pela Lei de 20 de outubro de 1823, que continuassem a ser ob- Não separada a Igreja do Estado, continha diversas figuras delituosas,
servadas as Ordenações, o que se daria até 1830, embora, no interregno, representando ofensas à religião estatal.
diversas leis houve que se destinavam a abrandar o rigor daquelas. Mas, como se disse, era um excelente Código, para a época. Grande foi
José Clemente Pereira e Bernardo Pereira de Vasconcelos foram encar- sua influência nas legislações espanhola e latino-americana. Era um dos poucos
regados da elaboração de projetos. Ambos foram apresentados às comissões
do Legislativo, sendo dada preferência ao de Vasconcelos. 4. Roberto Lyra, Introdução ao estudo do direito criminal, p. 89.
58 INTRODUÇÃO HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO 59

Códigos, no século passado, de índole liberal, e na América Latina foi o colocá-lo acima de todos os brasileiros de seu tempo 6. Rasgados elogios também
primeiro com independência e autonomia. lhe fez Clóvis Beviláqua, e Asúa igualmente não é parcimonioso, dizendo
Diz-se que Haus e Mittermayer aprenderam o português para estudá- que ele abrangeu horizontes técnicos invisíveis para a maior parte de seus
lo. É compreensível que, pertencente a um país que politicamente nascia, contemporâneos, inclusive os latinos da Europa, e, na monografia sobre os
devesse impressionar juristas e legisladores, pelas ideias avançadas que con- delitos de omissão, defendeu pontos de vista ignorados pelos escritores fran-
ceses de seus dias. Além de inovadoí de teses, institutos, e vulgarizador da
tinha.
doutrina alemã, foi crítico, equidistante de Carrara e de Lombroso, os quais
A ele seguiu-se também o magnífico Código de Processo (1832). combateu7.
Mas a consciência jurídica nacional que se manifestara por forma tão
Tobias Barreto foi, sem dúvida, a culminância do direito penal do
brilhante, através desses Códigos, seria perturbada por leis como a de 3 de Império.
dezembro de 1841, com o Regulamento n. 120, provocando até movimentos
sediciosos em São Paulo e Minas. Já em 1835, a Lei de 10 de junho subtraía- 34. A República. No último ano do regime imperial, fora o Conselheiro
se ao liberalismo das anteriores. João Batista Pereira encarregado, pelo Ministro da Justiça, de elaborar um
Dispunha esse diploma que, praticado um crime por escravo, contra projeto de reforma da legislação penal, não só porque sua vetustez exigia,
homem livre (brancos, pardos e pretos livres), reunia-se imediatamente o mas também porque a abolição da escravatura demandava modificações
júri do termo em que o mesmo ocorrera, proferindo sentença, após breve inadiáveis. Dedicou-se aquele jurista ao trabalho, quando veio a interrompê-
processo, a qual, ainda que fosse de condenação à morte, seria executada lo a Proclamação da República. Todavia Campos Sales, Ministro da Justiça
sem recurso. Dela, o ilustrado jurista Noé Azevedo diz: "Entregar a vida dos do Governo Provisório, não lhe retirou a incumbência, encarregando-o de
escravos ao Júri de um termo, onde o senhor de engenho mandava como um elaborar um Projeto de Código Penal. Em pouco tempo, era ele apresentado
régulo, era evidentemente o mesmo que dar ao senhor jus vitae necisque e convertido em lei pelo Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890.
sobre essa gente, tal como na antiga Roma"5. Dito diploma vigorou até 1886. Infelizmente o novo estatuto estava longe de seu antecessor e logo se
Como estatuto importante do Império, tivemos ainda a já citada Lei n. viu alvo de veementes e severas críticas. Carvalho Durão foi um dos que
2.033, de 20 de setembro de 1871, que não só definiu crimes culposos e o mais o criticaram. João Monteiro chegou a chamá-lo "o pior de todos os
estelionato como revogou a Lei de 3 de dezembro de 1841, passando nova- códigos conhecidos".
mente para o juiz a formação da culpa, que esta atribuíra às autoridades policiais. Era ele de fundo clássico. Procurou suprir lacunas da legislação passa-
No campo da doutrina, no Império, citam-se como mais eminentes os da. Definiu novas espécies delituosas. Aboliu a pena de morte e outras, subs-
nomes de Brás Florentino, Tomás Alves Júnior, Paula Pessoa, Carlos Perdi- tituindo-as por sanções mais brandas, e criou o regime penitenciário de ca-
gão, Francisco Luís e alguns mais. Lições de direito criminal, Anotações ao ráter correcional. Outras inovações de toda oportunidade podem ainda ser
Código Criminal, Código Criminal anotado e Manual do Código Penal bra- apontadas.
sileiro são, respectivamente, as obras dos autores aludidos. As críticas que lhe foram feitas, sem dúvida, exageravam, mas, a par
Entretanto o maior vulto no direito penal, nessa época, foi Tobias Barreto. das qualidades apontadas, os defeitos eram numerosos. Logo na Parte Geral,
Não é pequena a lista de suas obras: Menores e loucos, Delitos por omissão, a definição de crime (art. 7.°) merecia censura dos comentadores; no art. 27,
Ensaio sobre a tentativa criminal, Fundamento do direito de punir, Mandato § 4.°, deparava-se a famosa dirimente "Não são criminosos os que se acha-
criminal, Prolegômenos do estudo do direito criminal, Comentário e crítica rem em estado de completa privação de sentidos e inteligência". Foi grande
ao Código Criminal brasileiro e Estudos de direito. a celeuma provocada, alegando-se que a disposição se referia a quem estava
Tobias Barreto é um pensador profundo e de grande originalidade em de fato impedido de qualquer atividade, pois outra não é a situação de quem
suas obras. Gilberto Amado diz que bastava o último livro que citamos para se acha completamente privado dos sentidos e da inteligência.

5. Noé Azevedo, As garantias da liberdade individual em face das novas tendên- 6. Tobias Barreto, apud José Frederico Marques, Curso, cít., v. 1, p. 98.
cias penais, 1936, p. 37. 7. Apud Roberto Lyra, Introdução, cit., p. 354.
60 INTRODUÇÃO HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO 61

A explicação dada é que se tratava de erro tipográfico, sendo o vocábu- não terminada, devemo-la a António José da Costa e Silva, desembargador
lo perturbação. do Tribunal de Apelação do Estado de São Paulo. É o seu comentário sereno
Não ia pelo melhor o Código na Parte Especial. Aí, a classificação dos e desapaixonado, justo e preciso. A par da notável cultura jurídica que revela,
crimes não obedece a rigoroso espírito de sistema. A técnica, às vezes, é é o pensamento profundo. Encantam-nos o poder de síntese e a diafaneidade de
lamentável. Causava pasmo o nome dado ao título referente aos crimes con- estilo. São ainda de Nelson Hungria estas palavras: "Pela fiel informação
tra os costumes — Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade doutrinária, pela riqueza e solidez de ensinamentos, perfeição técnica, con-
cisão e clareza de estilo, esse livro foi e continua sendo a obra máxima do
das famílias e do ultraje público ao pudor — estando compreendidos como
Direito Penal brasileiro"10.
delitos contra a honra das famílias o estupro de meretriz, o lenocínio etc. Na
casuística do estelionato, deixava para enumerar em 5.° lugar (art. 338, n. 5) Realmente, Costa e Silva foi o maior vulto, entre nós, da dogmática
o tipo básico ou fundamental do delito. penal. Na República, ele ocupa o lugar que Tobias Barreto teve no Império.
Continha outras lacunas e imperfeições, não obstante a vigência de ótimos Grande é o número de autores que publicaram trabalhos doutrinários
diplomas, como o Código italiano de Zanardelli, que lhe podiam servir ou em torno do novo Código. Seria difícil citar todos. Acodem-nos à memória
serviram de modelo. os nomes de Virgílio de Sá Pereira, Viveiros de Castro, Cândido Mota, José
Quer por seus defeitos, quer pelo tempo que vigorou esse estatuto, Higino, Lima Drummond, MunÍ2 Sodré, Mendes Pimentel, Esmeraldino
numerosas foram as leis extravagantes que o completaram, tornando, às vezes, Bandeira, Raul Machado, José Duarte, Roberto Lyra, Nelson Hungria, Narcélio
aos homens do direito, embaraçosa a consulta e árdua a pesquisa. Foi o Des. de Queiroz, Beni de Carvalho, NoéAzevedo, Basileu Garcia, Soares de Melo,
Vicente Piragibe encarregado, então, de reunir em um só corpo o Código e as Ataliba Nogueira, Cândido Mota Filho, Percival de Oliveira, Sinésio Rocha,
Jorge Severiano, Ari Franco e Aníbal Bruno.
disposições complementares, daí resultando a Consolidação das Leis Penais,
que se tornou oficial pelo Decreto n. 22.213, de 14 de dezembro de 1932, e Mal nascido o Código da República, surgia a ideia de sua reforma. Logo
cuja vigência findou com o advento do atual diploma, com a redação origi- em 1893 João Vieira de Araújo apresentava um Projeto de Código Penal; em
nal de 1940. 1899, outro, pela Câmara dos Deputados, e em 1913 aparecia o de Galdino
Ao invés do que sucedeu no Império, a obra da doutrina foi, aos pou- Siqueira. Não vingaram, porém.
cos, avolumando-se e aprimorando-se. Contribuiu para isso o declínio do Virgílio de Sá Pereira, quatoize anos depois, apresenta um Projeto de
Tribunal do Júri, com a passagem da maioria dos crimes — depois a quase- Código Penal, para revê-lo tio ano seguinte (1928) e, dois anos após, apre-
totalidade — para o julgamento do juiz singular, tendo, então, os profissio- sentar novo Projeto. Também estes não lograram êxito; o mesmo acontecen-
nais do foro de abandonar a oratória lacrimejante e patética — tão do agrado do, aliás, com o outro, elaborado em 1935, por incumbência do Governo
daquele tribunal — para se apegar ao estudo exegético do Código e das leis Provisório, de autoria de uma Comissão composta de Sá Pereira (Presiden-
posteriores. É o que assinala Nelson Hungria8, em conferência realizada na te), Evaristo de Morais e Bulhões Pedreira.
Faculdade de Direito de São Paulo. Finalmente, é Alcântara Machado, após o golpe de 10 de novembro de
Dentre os principais comentadores do estatuto de 1890, apontam-se Oscar 1937, encarregado de elaborar um Projeto de Código Penal, que foi apresen-
de Macedo Soares, Oliveira Escorei, João Vieira de Araújo, Bento de Faria tado em 15 de maio de 1938. Em 12 de abril de 1940, o eminente professor,
e Galdino Siqueira. Mas a obra deste ocupa lugar de singular relevo. Na atendendo a críticas de juristas e da Comissão Revisora, composta por Nel-
palavra autorizada de Hungria: "Deu-nos um corpo de doutrina que nos li- son Hungria, Vieira Braga, Narcélio de Queiroz e Roberto Lyra, com assis-
gou ao pensamento jurídico-penal da época e rasgou amplos horizontes aos tência cotidiana de Costa e Silva, entrega ao Min. Francisco Campos o que
nossos olhos inexpertos"9. ele chamou de "Nova Redação do Projeto de Código Criminal do Brasil".
Todavia a maior obra de exegese do Código da República, infelizmente Tal projeto não foi, porém, convertido em lei. Pelo Decreto-lei n. 2.848
surgiu o Código Penal de 1940, em vigor desde 1.° de janeiro de 1942 e
8. Nelson Hungria, Novas questões jurídico-penais, p. 17 e s.
9. Novas questões, cit., p. 19. 10. Novas questões, cit., p. 24.
62 INTRODUÇÃO HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO 63

revogado parcialmente, já que atingido somente na Parte Geral pela Lei n. ções dos últimos anos. Mérito seu, que deve ser ressaltado, é que, não obstante
7.209, em vigência a partir do começo do ano de 1985. O citado Código, o regime político em que veio à luz, é de orientação liberal.
no tocante à parte atingida, teve um longo período de vigência — 45 anos — Ao contrário do que alguns pensam, assisadamente elevou as penas, em
e foi fruto da Comissão Revisora mencionada no item anterior. É exato que relação ao diploma anterior, lastimável sendo, entretanto, que as mantivesse
Nelson Hungria disse que "o projeto Alcântara Machado está, para o Código tão suaves no delito culposo. Outro ponto não digno de encómios é o de não
Penal, como o projeto Clóvis está para o Código Civil", e que o próprio ter fugido totalmente da responsabilidade objetiva. Todavia não é este o momento
Alcântara Machado achou que ele provinha do seu Projeto; porém um exame de apontarmos lacunas e deficiências que apresenta.
demorado de ambos mostra diferenças marcantes e substanciais entre eles.
Imperfeições ele tem, pois é obra humana, mas suas virtudes pairam
Assim também pensa Costa e Silva: "Entre ele (o Projeto Alcântara) e o Código
bem acima de seus pecados. O Congresso de Santiago do Chile, em 1941,
se encontram numerosos pontos de semelhança: são aqueles em que ambos
declarou que ele representa "um notável progresso jurídico, tanto por sua
(às vezes com pouca felicidade) copiaram os seus modelos prediletos — o
estrutura, quanto por sua técnica e avançadas instituições que contém".
Código italiano e o suíço —, mas traços inconfundíveis os distinguem" 11. O
eminente jurista, que colaborou com a Comissão Revisora, diz textualmente: Um fato devemos, contudo, lastimar: o de se ter feito seguir por anacró-
"A comissão organizou um substitutivo, deixando mais ou menos de lado nico e deficientíssimo Código de Processo, cuja reforma é imperiosa.
aquele projeto. Foi esse substitutivo que serviu de base aos trabalhos futu- O Código de 1940 provocou abundante produção na literatura penalista.
ros"12. Finalmente, o próprio Min. Francisco Campos, em sua Exposição de Diversas são as obras que o comentaram, lembrando-nos de citar as de Galdino
Motivos — item I — declara que "dos trabalhos da Comissão Revisora re- Siqueira, Jorge Severiano, Bento de Faria; também, o Tratado de direito penal,
sultou este projeto", para em seguida anotar que o Projeto Alcântara, em os Comentários ao Código Penal (Forense) e o Código Penal brasileiro co-
relação aos anteriores, representou um grande passo para a reforma da legis- mentado (Saraiva), estas a cargo de vários autores.
lação penal, foi valioso subsídio ao atual Projeto. Entre as obras que, por ora, se limitaram à Parte Geral do Código, re-
Entre a promulgação do Código e sua vigência mediou o espaço de comendam-se por seu indiscutível valor doutrinário: Instituições de direito
pouco mais de um ano. Ditava esse lapso não só a necessidade de conhecê- penal, de Basileu Garcia; Curso de direito penal, de José Frederico Mar-
lo como também dar tempo para que se elaborasse o novo Código de Proces- ques; Direito penaP4, de Aníbal Bruno; Sistema de direito penal brasileiro,
so, transformado em lei pelo Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. de Salgado Martins; e Código Penal (1943), de Costa e Silva; esta, infeliz-
Ambos os estatutos foram precedidos de Leis de Introdução. Como diploma mente, sem possibilidade de ir até seu termo, devido ao falecimento do
contemporâneo e complementar do Código Penal, deve ser apontada a Lei inolvidável autor.
das Contravenções Penais (Dec.-lei n. 3.688, de 3-10-1941). Sobre a Parte Especial do Código, podemos citar as obras de Bento de
Era e é um Código Penal eclético, como se falou e declara a Exposição Faria, Galdino Siqueira; e, ainda, o Código Penal brasileiro (Forense), o
de Motivos. Acende uma vela a Carrara e outra a Ferri. É, aliás, o caminho Direito penal, de Aníbal Bruno (1° volume dessa Parte); Lições de direito
que tomam e devem tomar as legislações contemporâneas (n. 27). penal, de Heleno Cláudio Fragoso, e mais algumas.
Nelson Hungria declarou que "respigamos, para o efeito de algumas Digna de realce tem sido a produção de Nelson Hungria, Roberto Lyra,
retificações, nos Códigos Penais suíço, dinamarquês e polonês"13. E marcante, José Duarte e outros, não só por seus comentários em obras coletivas como
entretanto, a influência do Código da Helvétia, e do italiano, acrescente-se. também por trabalhos individuais, a que têm emprestado a profundidade de
É o Código de 1940 obra harmónica: soube valer-se das mais modernas sua cultura.
ideias doutrinárias e aproveitar o que de aconselhável indicavam as legisla- Pelo Decreto n. 1.490, de 8 de novembro de 1962, foi publicado o
Anteprojeto de Código Penal, elaborado por Nelson Hungria. Submetido à
11. Costa e Silva, Código Penal, 1943, p. 8.
12. Código Penal, cit., p. 9. 14. Prosseguiu, depois, o autor em sua obra, sob o nome Tratado de direito penal,
13. Nelson Hungria, Novas questões, cit., p. 30. tendo sido publicado um volume da Parle Especial.
64 INTRODUÇÃO HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO 65

apreciação de uma Comissão Revisora, transformou-se em Código Penal, tiva ao abuso de autoridade (Lei n. 4.898/65), a falimentar (Dec.-lei n. 7.661),
pelo Decreto-lei n. 1.004, de 21 de outubro de 1969. a de economia popular (Lei n. 1.521), a Lei sobre preconceito de raça ou cor
Não foram poucos os adiamentos da entrada em vigor do novo estatuto. (Lei n. 7.716), a de imprensa (Lei n. 5.250), o Código Eleitoral (Lei n. 4.737),
Inicialmente, seu art. 407 estipulou o início de sua vigência para 1.° de janeiro o Código Florestal (Lei n. 4.771), a Lei das Contravenções Penais (Dec.-lei
de 1970. Posteriormente, a Lei n. 5.573, de 1.° de dezembro de 1969, n. 3.688), a dos crimes contra o sistema financeiro (Lei n. 7.492), a dos cri-
determinou que o Código entraria em vigor no dia 1.° de agosto do mesmo mes hediondos (Lei n. 8.072), a dos direitos do consumidor (Lei n. 8.078), a
ano, enquanto a Lei n. 5.597, de 31 de julho de 1970, alterou a vigência para de entorpecentes (Lei n. 6.368), a de proleção à fauna silvestre (Lei n. 5.197),
1.° de janeiro de 1972. Depois, a Lei n. 5.749, de 1.° de dezembro de 1971, a de incorporações imobiliárias (Lei n. 4.591), a dos crimes de sonegação
promoveria novo adiamento, determinando que o novo Código Penal entra- fiscal (Lei n. 4.729), a dos serviços postais (Lei n. 6.538) etc.
ria em vigor em 1.° de janeiro de 1973, mas a Lei n. 5.857, de 7 de dezembro
A Lei n. 8.069 (Estatuto da Criança e do Adolescente), além de manter
de 1972, determinaria novo adiamento, desta feita para o dia 1.° de janeiro
de 1974. Finalmente, a Lei n. 6.063, de 27 de junho de 1974, preconizou a inimputabilidade penal para os menores de dezoito anos, criou dez figuras
solução diferente, ao determinar que o novo diploma penal entraria em vigor típicas criminais tendo o menor como sujeito passivo (arts. 228 a 244) e
simultaneamente com o novo Código de Processo Penal (Projeto de Lei do estabeleceu para alguns casos o agravamento da pena, quando cometido o
Executivo n. 633/75). Contudo, foi revogado sem entrar em vigor. delito contra menor (art. 263).
Entrementes, a Lei n. 6.016, de 31 de dezembro de 1973, promoveu A Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, revogou o art. 335 e seu pará-
várias alterações ao texto do novo Código, ao passo que a Lei n. 6.368, de 21 grafo único do Código Penal e apresentou dez novas figuras típicas prote-
de outubro de 1976 (Lei de Tóxicos), veio revogar seu art. 311. gendo o procedimento das licitações.
Finalmente, por força da Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984, surgiu Por seu turno, a Lei n. 8.930/94, dando nova redação ao art. 1.° da Lei
uma nova estrutura legal atingindo a Parte Geral do Código Penal. n. 8.072 (25-7-1990), leis relativas aos crimes hediondos, também incluiu
A origem está situada numAnteprojeto, datado de 1981, elaborado pelos como tal o homicídio (art. 121 do CP) quando praticado em atividade típica
ilustres juristas Francisco Assis Toledo, Ricardo Antunes Andreucci, Miguel de grupo de extermínio, ainda que praticado por um só agente, bem como o
Reale Júnior, Serrano Neves, Hélio Fonseca, Rogério Lauria Tucci e René homicídio qualificado (art. 121, § 2.°, I, II, III, IV e V). Da mesma forma,
Ariel Dotti. Uma Comissão Revisora formada por Dinio Garcia, Miguel Reale excluiu o delito de envenenamento de água potável ou substância alimentí-
Júnior, Francisco Assis Toledo e Jair L. Lopes deu forma final ao Projeto, cia, com resultado morte, formas previslas no art. 270 c/c o art. 285, ambos
datado de 1983, surgindo a citada Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984, que do Código Penal.
diz respeito à nova Parte Geral do Código Penal.
Recentemente, surgiram novas legislações penais especiais, como as
As maiores e mais sensíveis modificações e inovações introduzidas dizem Leis n. 9.034, de 3 de maio de 1995, relativa à prevenção e repressão de
respeito à disciplina normativa da omissão, ao surgimento do arrependimen- ações praticadas por organizações criminosas, 9.279, de 14 de maio de 1996,
to posterior, à nova estrutura sobre o erro, ao excesso punível alargado para que instituiu o novo Código de Propriedade Industrial, 9.294, de 15 de julho
todos os casos de exclusão de antijuridicidade, ao concurso de pessoas, às
de 1996, referente à restrição ao uso e à propaganda de produtos fumígeros
novas formas de penas e à extinção das penas acessórias, à abolição de gran-
e bebidas alcoólicas e outros produtos, e 9.296, de 24 de julho de 1996, sobre
de parte das medidas de segurança com o fim da periculosidade presumida.
a interceptação telefónica.
Com a nova Parte Geral surgiu a primeira Lei de Execução Penal (Lei
n. 7.210), ambas em perfeita sintonia, como não poderia deixar de acontecer. Complementando as leis penais especiais podemos citar a Lei n. 9.434,
Hoje, no campo penal, em matéria legislada, temos: o Código Penal, de 4 de fevereiro de 1997, relativa à remoção de órgãos, tecidos e partes do
com a Parte Geral introduzida pela Lei n. 7.209, de 1984, a Parte Especial na corpo humano para transplante, a Lei n. 9.437, de 20 de fevereiro de 1997,
forma prevista pelo Decreto-lei n. 2.848 (Código de 1940); a Lei de Execu- instituidora do Sistema Nacional de Armas — Sinarm, respectivamente re-
ção Penal (Lei n. 7.210) e um grande número de leis esparsas, como a rela- gulamentadas pelos Decretos n. 2.368, de 30 de junho de 1997, e 2.222, de
8 de maio de 1997, a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, dispondo sobre os
66 INTRODUÇÃO

crimes de tortura, a Lei n. 9.459, de 13 de maio de 1997, acerca dos crimes


de preconceito de raça ou cor, etc.
Hoje podemos dizer sem medo de errar que o conjunto de leis penais
esparsas é de tal maneira volumoso que chega a comparar-se com o próprio
conjunto ordenado que forma a Parte Especial do Código Penal. PARTE GERAL

J
DA APLICAÇÃO DA LEI

ANTERIORIDADE DA LEI PENAL

SUMÁRIO: 35. Direito penal liberal. Reação ao princípio. 36. Interpreta-


ção da lei penal. Necessidade. O sujeito. Os meios. Os resultados. 37. A
analogia. A analogia in bonam partem.

35. Direito penal liberal. Reaçâo ao princípio. Consagra o Código, no


art. 1.°, o apotegma do direito penal liberal — nullutn crimen, nulla poena
sine praevia lese, síntese, como já se viu (n. 21), da parêmia formulada por
Feuerbach.{ fc, o princípio daTigiJídaie ou da reserva legaL^-
Aponta-se como sua origem a Magna Carta do Rei João, em 1215. Asúa,
porém, reivindica para o direito ibérico a prioridade, dizendo que já em 1188,
nas cortes de Leão, pela voz de Afonso IX, se concedia ao súdito o direito de
não ser perturbado em sua pessoa ou bens, "antes de llamado por cartas a mi
cúria para estar a derecho, según Io queordenare mi cúria; y si no se comprobara
Ia delación o el mal, el que hizo Ia dekción sufra Ia pena sobredicha y además
pague los gastos que hizo el delatado en ir y volver"1.
Não se pode negar, todavia, a influência de haver também sido procla-
mada, na Inglaterra, naquela Carta, a regra de que ninguém seria julgado a
não ser "por seus pares e pela lei da terra".
Entretanto apenas, no século XVIII esse princípio iria ser consagrado
em fórmula definitiva e difundir-se pelas nações. Transportado pelos imi-
grantes ingleses para a América do Norte, esta o via inscrito nas Constitui-
ções de Filadélfia (1774), Virgínia (1776) e Mariland, no mesmo ano.
Concomitantemente, como já dissemos, a filosofia daquele século (n. 19),
encontrando na voz desassombrada de Beccaria a sua maior expressão, pre-

1. Asúa, Tratado, cit., v. 2, p. 333.


70 PARTE GERAL DA APLICAÇÃO DA LEI 71

gava como básica e fundamental para os povos a sua adoção. Foi ele, então, e tribunais, já que seria absurdo supor que um só órgão pudesse conhecer de
inscrito na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agos- ( t o d a s as causas.
to de 1789: "La loi ne peut établir que des peines strictement et évidemment Tais^princípios encontram-se na Constituição Federal (art. 5.° , LIII e
nécessaires et nul ne peut être puni qu'en vertu d'une loi établie et promulguée XXXVII), quando declara que não haverá foro privilegiado nem juizes!;
anterieurement au délit et légalement appliquée". Daí propagou-se pelos diversos tribunais de exceção e alude à competência do juiz.
países. J . ;■ Em nossos dias, tem o direito penal liberal sofrido sérias investidas dos
Esse princípio "tem significado político e jurídico: no primeiro caso, é regimes totalitários.
garantia constitucional dos direitos do homem, e, no segundo^fixa o conteú- O Código Penal russo (art. 6.°] declarava que não seria considerada
do das normas incriminadoras, não permitindo que o ilícito penal seja esta- crime uma ação que não correspondesse a um artigo de lei, desde que, por
belecido genericamente, sem definição prévia da conduta jjunível e determi- suas circunstâncias, tivesse perdido o caráter de periculosidade social, e, no
nação da sanctio júris aplicável"2. art. 16, ao revés, tinha-se como delito uma ação ainda que não tivesse sido
Conseqiientemente, não existe crime nem pena sem prévia lei. Só esta especificamente prevista, desde que apresentasse periculosidade social, apli-
' pode definir delitos e cominar sanções. Só a lei é fonte imediata do direito cando-se, então, os artigos da lei que previsse delitos de índole análoga.
penal {n. 29). Era a analogia. O critério que norteava o juiz inspirava-se na política.
Firma-se, também, por essa regra, que o crime é pressuposto da pena. Não estava ele adstrito aos termos da lei, devendo, antes, verificar se o fato
lodernamente ela adquire outra expressão, com atipicidade, como mais molestava os interesses do Estado soviético.
/amplamente se verá (n. 52). F^a tipicidade a adequação do fato ao tipo Não obstante, a reforma de 25 de dezembro de 1958 ab-rogou essas
des-' crito pelo legislador. Não há crime sem que a conduta humana se disposições, dizendo o Código, no art. 1.°, que "...a legislação penal da URSS
ajuste à figura delituosa definida pela lei, ou, noutras palavras, não há e de suas Repúblicas define as ações socialmente perigosas consideradas
crime_sem DO, "não há delito sem tipicidade". crimes e comina as penas a serem aplicadas a seus agentes"; e, no art. 7.°,
que "crime é toda ação ou omissão socialmente perigosa e prevista em lei
(-"" ^Mas^> direito penaHiberal não se exaure na máxima apontada. Outras
penal..." É a volta ao princípio da reserva legal, que fora abandonado pela
| se lhe juntam como garantia da liberdade do indivíduo: nulla poena sine |
necessidade de consolidação do novo regime.
judicio enemojudex sine lege.
Na Alemanha de Hitler, a Lei de 28 de junho de 1935 ab-rogou o § 2.°
^-~^A primeira limita o poder do legislador, impedindo-o de votar leis que
do Código Penal de 1871. Devia o magistrado, no apreciar o fato delituoso,
já imponham pena a pessoa ou pessoas determinadas. É a chamada norma-
inspirar-se na "sã consciência do povo germânico". Não necessitaria, po-
sentença, ou o bill of attainder dos anglo-saxões. Conseqiientemente, nin-
rém, ir muito longe, pois a "sã consciência" era o que o Fuhrer ditava a
guém pode ser punido sem julgamento. É um direito que se refere sobretudo
todos, era o que o "Mein Kampf" pregava.
aos interesses individuais, é um direito de defesa, compreendendo as várias
garantias outorgadas pelos textos constitucionais, como ocorre com a nossa Entretanto, com a queda do nazismo e a ocupação aliada, o direito au-
Carta Magna, nos incisos XL, LIII e LV do art. 5 .<\ _ toritário teria de desaparecer. Surgiram, pois, leis, como as de 20 de setem-
bro de 1945, 30 de janeiro de 1946, 20 de junho de 1947 e, por fim, a de 25
A segunda regra afirma que a lei^penal não pode ser aplicada sen ão de agosto de 1953, que ab-rogaram diversos dispositivos daquela legislação,
pelo juiz com o poder de exercer a jurisdiçãcrrjenal e, por conseguinte, só ele dispondo, hoje, o Código, no art. 2.°, § 1.°, que nenhum ato será punido se-
pode julgar o acusado. Não se limita, porém, à exigência do Judiciário. E não quando seu caráter criminoso tenha sido declarado por lei anterior; e, no
necessário, ainda, que o magistrado tenha competência (medida de jurisdi- § 2.°, que a pena a ser aplicada é a cominada ao crime na data de sua prática,
ção), isto é, tenha o poder de julgar em sentido concreto, pois é óbvio que, retroagindo, porém, Ia loi plus douce. É o nullum crimen, nulla poena sine
devido a razões de ordem prática, o poder de julgar é distribuído entre juizes lege. É a volta ao passado.
Dos Estados totalitários, fez exceção a Itália, que, no art. 1.°, consagra
2. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 1, p. 132 e 133. a regra da legalidade. Quiçá tenha influído o fato de ser Arturo Rocco —
72 PARTE GERAL DA APLICAÇÃO DA LEI 73

eminente representante da Escola Técnico-Jurídica, defensora desse princí- É ainda doutrinária^ interpretação, quando realizada pelos escritores
pio — autor do Projeto do Código. Talvez haja influído a circunstância de os ou comentadores do texto. Tem valor, levando-se em consideração a pessoa
crimes políticos e contra a segurança do Estado serem julgados por juizes e que a faz; como, também, se a exegese reflete a opinião comum dos que
tribunais... impotentes diante da vontade do Duce. trataram o assunto. É a communis opinio doctorum.
ao meio) empregado pelo intérprete, duas são as formas de in-
36. Interpretação da lei penal. Necessidade. O sujeito. Os meios. Os terpretação: a gramatical, literal ou sintática, e a lógica ou teleológica.
resultados. Como reação ao arbítrio judicial então reinante, devido em parte
A primeira deve preceder a qualquer outro trabalho exegético, pois incumbe
ao grande número de leis contraditórias, entre as quais o magistrado tinha de
preliminarmente fixar a acepção dos termos usados pelo legislador. Todavia
optar no caso concreto, criando, assim, o direito, como escreve Asúa; ou, em
não se separa tão nitidamente, no tempo, da teleológica, que busca a vontade
parte, devido ao absolutismo monárquico, a que tudo se curvava, o Iluminismo
da lei. É necessário ter-se em vista o fim ou escopo desta (ratio legis), que é
do século XVIII opôs-se tenazmente à interpretação das leis. Proclamava
dado pela consideraçãojio bem jurídico tutelado. A procura da objetividade
Beccaria: "Resulta, ainda, dos princípios estabelecidos precedentemente, que
jurídica, resguardada pela norma, deve ser preocupação máxima do exegeta;
os juizes dos crimes não podem ter o direito de interpretar as leis penais, pela
é o seu ponto de partida para o conhecimento do conteúdo de toda a norma.
razão mesma de que não são legisladores. Nada mais perigoso do que o axio-
ma comum de que é preciso consultar o espírito da lei. Adotar tal axioma é É^destarte, a interpretação mais valiosa. Quando se harmoniza com a
romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões" 3. gramatical, dúvida^ alguma pode dominar o intérprete, mas, na colisão entre
ambas, deve el^ prevalecer.
O.en^ano_éjnanifesto. Interpretar não é função do legislador e, quanto
à consulta ao espírito da lei, não só não oferece perigo como é indispensável, O elemento sistemático, que nos leva a confrontar a disposição em aná-
sejuisermos fixar-lhe com exatidão o sentido. lise com outras da mesma lei ou com outras leis, referentes ao mesmo assun-
to e, às vezes, com os princípios gerais do direito, desempenha papel rele-
"Â interpretação nada mais é do que o processo lógico que procura es-
vante.
tabelecer a vontade contida na norma jurídica. Interpretar é desvendar o conteúdo
I da norma. A rubrica da lei é elemento de valor, porque delimita ou circunscreve
os preceitos a que se refere. ~
Relativamente ao\iujeito\\\xe a realiza, diz-se autêntica a interpretação
' quajido procede do legisIãdorTpor via de outra lei ou de outra disposição que O histórico também merece consideração, já que o direito objetivo não
se chama, zM&^jnterpretativa.Como tal não devem ser consideradas as se isola no tempo, pois é resultante de evolução histórica. Assumem relevo
os trabalhos preparatórios, anteprojetos, projetos, discussões parlamentares
exposições de motivos que antecedem os Códigos, pois, ainda que emanadas
e exposições de motivos.
de um ou de todos os autores da lei, não são rigorosamente interpretações
autênticas. Diga-se o mesmo do comentário do autor da lei. Em nenhum A legislação comparada, pois frequentemente uma lei se inspira em
desses casos há força obrigatória. Como exemplo de interpretação autêntica, outra de país estrangeiro; salutar, então, é conhecer esta em sua origem e
lembra Hungria o art. 327 do Código, dando o conceito de funcionário objetividade.
público4. Vale-se ainda a interpretação lógica de elementos extrajurídiços e
, ' Pode a interpretação ser também judicial. Produto da atividade extrapjnais, porque não só deve considerar o meio político-social em que a
judicante, éjfeita pelos juizes e tribunais, em suas decisões, só tendo força lei veio à luz como também frequentemente é preciso ter conhecimento de
em relação ao caso concreto; porém torna-se valiosa quando, repetindo-se ou conceitos de outras ciências a que ela se refere ou com que se relaciona.
perseverando, vem a constituir jurisprudência, sem que, contudo, seja esta ^oquejtocaaos resultados\ a interpretação pode ser declarativa, quan-
fonte do direito (n. 30). lfi^compreensão do texto, não há necessidade de restringi-KtfllLestendê-
lo. Diz-se restritiva, quando, consoante o próprio vocábulo, se restringe o
3. Beccaria, Dos delitos e das penas, trad. Paulo M. Oliveira, p. 37 e 38. alcance das palavras usadas no texto, impedindo se lhes dê toda a extensão
4. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 54. que parecem comportar. Oportunamente, Hungria cita o art. 28
74 PARTE GERAL DA APLICAÇÃO DA LEI 75

do Código Penal — que declara que a emoção, a paixão ou a embriaguez não griamejnejonrmjdejnieipretação legal, mas de aplicação. Com ela se procura
isentam de pena — o qual deve ser, assim, interpretado restritivamente, con- apjiçar um_greçeitQ de lei ou mesmo os princípios gerais do direito a um caso
siderando-se esses estados quando não-patológicos, pois, ao revés, a dispo- gu§_asjeis não previram. A interpretação tem o escopo de apurar a vontade
sição colidiria com o art. 265. daJeújL^nalqgia supre essa vontade, o que vale dizer que essa não existe.
/ Pode também ser extensiva, quando, para fazer as palavras corresponderem Tem J?ortanto,_função {integrqnteJâa. norma jurídica, e não interprelativa.
à vontade da lei, é mister ampliar seu sentido ou alcanceJÉ admissível no Dividem os autores a analogia em duas classes: a analogia "legis" e a
direito penal, não obstante muitos a impugnarem. É permitida quando os analogia "júris". Com a primeira, piocura-se aplicar uma norma legal a um
casos não previstos são abrangidos por força de compreensão. Assim, o que fato; a segunda trata da aplicação dos princípios gerais do direito.
é punido no menos o é, também, no mais; o que é permitido quanto ao mais Distingue-se a analogia da interpretação extensiva, porque, quando ela
o é, igualmente, quanto ao menos. Exemplo dessa interpretação temos no art. ocorre, o caso em apreço não está regulado nem implicitamente, o que não
169, parágrafo único, relativo à apropriação de tesouro, em que à palavra acontece com a segunda. Aqui o intérprete se torna senhor da vontade da lei,
proprietário deve ser dado um sentido amplo, para abranger também o enfiteuta, conhece-a e apura-a, dando, então, um sentido mais amplo aos vocábulos
que, com aquele, tem, pelo art. 609 do Código Civil, direito à metade do usados pelo legislador, para que correspondam a essa vontade; na analogia,
tesouro inventado. o que se estende, e amplia, é a própria vontade legal, com o fito de se aplicar
A admissibilidade da interpretação extensiva explica-se, pois ela tem a um caso concreto uma norma que se ocupa de caso semelhante. Pode resu-
por fim colocar em harmonia as palavras da lei com a vontade desta. Ora, se mir-se a distinção, dizendo-se que: numa falta a expressão lexicológica ade-
o que deve predominar em toda a matéria de interpretação é essa vontade, quada, conquanto patente a vontade; na outra falta também esta.
não se justifica seja vedado o processo extensivo. Com a interpretação analógica, mais fácil é a distinção, pois que esta se
Ainda quanto aos resultados, a interpretação pode serproeressiva. que faz em virtude de lei, que determina se aplique analogicamente o preceito.
se faz quando novas concepções entram no âmbito da lei. É o que diz Asúa, Consagrava expressamente a analogia o Código Penal russo, no art. 16,
ao escrever que "o juiz não pode viver alheio às transformações sociais, já citado no número anterior. Também o estatuto germânico, no regime na-
científicas e jurídicas. A lei vive e se desenvolve em ambiente que muda e cional-socialista, cujo § 2.° foi reyogado pela Lei de 28 de junho de 1935, em
evolui e, uma vez que não queiramos reformá-la frequentemente, é mister termos mais amplos e extensos que os do diploma soviético, aplicava a ana-
adaptar a norma, como sua própria vontade o permite, às novas necessidades logia. Tais dispositivos, como vimos, hoje não mais vigoram.
da época"6. Admite a analogia o dinamarquês de 1930; aliás, já o de 1886 a aceita-
Outra espécie é a chamada interpretação [analógica bu intra legem. É va. A prescrição "incide em sanção legal todo ato cuja punição seja prevista
permitida quando à fórmula casuística se segue uma genérica, devendo, en- pela legislação dinamarquesa, ou que lhe seja inteiramente assimilável" é
tão, admitir-se que esta compreende casos semelhantes ou análogos ao men- tida por alguns como caso de interpretação extensiva. Assim não pensamos:
cionado por aquela, tal como ocorre com os arts. 71, 61, II, c, e 157. Trata- trata-se da analogia, porém de limites menos amplos que os da lei nazista e
se, ainda aqui, de interpretação extensiva. que jamais serviu a fins políticos.
A interpretação da lei, mesmo a extensiva e analógica, não repugna, Diversos autores, como Rocco, Bettiol, Delitala e outros, acham que a
portanto, aos princípios do liberalismo penal. analogia, quando tem por fim favorecer o acusado (matéria de exclusão de
crime ou de isenção ou atenuação da pena, e de extinção da punibilidade),
37. A analogia. A analogia "in bonam partem". Distingue-se a analogia deve ser acolhida. É a analogia in bonam partem.
da interpretação extensiva e da analógica, e opõe-se ao princípio político- Segundo cremos, não é ela realmente impugnada pelo princípio da le-
liberal do nullum crimen, nulla poena sine lege. Aliás, a analogiajião é pro- galidade.
Pronunciam-se contra ela, entretanto, vários tratadistas, como Von Hippel,
5. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 69. Asúa e Hungria. Este acha que as fórmulas usadas por nossa lei têm bastante
6. Asúa, La ley y el delito, p. 141. ductilidade e que, por outro lado, diversos são os preceitos garantidores da

j,___
76 PARTE GERAL

liberdade do indivíduo, bem como de mitigação da pena, pouco espaço res-


tando, assim, para a aplicação da analogia in bonam partem1.
Também já fomos dessa opinião. Entretanto força é reconhecer que essa
espécie de analogia não se opõe ao princípio da reserva legal, e, depois,
casos há em que, na iminência da punição iníqua, deve lançar-se mão dela. II
Assim, v. g., em nosso estatuto, o art. 128, II, permite o aborto médico à
mulher estuprada e, portanto, pergunta-se: se a mulher violentada em seu A LEI PENAL NO TEMPO
pudor (art. 214) excepcionalmente engravidar, poderá abortar? Não há nor-
ma a respeito, e, assim, a punição será fatal. A não ser pela analogia in bonam
partem, aplicar-se-ão soluções diversas a casos idênticos, o que é iníquo. SUMÁRIO: 38. Irretroatividade da lei penal. Retroatividade benéfica. 39.
A lei mais benigna. 40. Ultratividade da lei penal. Norma penal em branco.
41. Do tempo do crime. Delitos permanentes e continuados.

38. Irretroatividade da lei penal. Retroatividade benéfica. /Como de-


corrência do princípio nullum crimen, nulla poena sine praevia lege, segue-
se o da irretroatividade da lei penal. Éj;laro que, se não hácrime sem lei, não
pode esta retroagir para alcançar um fato que, antes dela, não era considera-
rin rtelitn
" O princípio da irretroatividade sofre, entretanto, a exceção contida no
art. 2.°: "Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de consi-
derar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sen-
tença condenatória". Em outros termos,_aJeLpenal que beneficiar o acusado
(lex mitior) retroage. Hoje, tal exceção foi erigida em norma constitucional,
como prevê o art. 5.". XL: "A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar
SUéa".
Contém ainda, o artigo, princípio que faz a lex mitior retroagir, não só
no caso de estar sendo movida a persecutiq criminis como também no de
haver sentença definitiva com trânsito em julgado. Portanto^jnesmo que o
réuestiyes§e_cumprindo^rjgna, deveria ser posto em liberdade, poi&alei posterior
deixou de considerar delita o fata-por ele praticada.
Todavia é mister que se atente referir-se o dispositivo aos efeitos penais
da sentença, o que significa quâ os efèltõlTcivis permaneceín, já que a sen-
tença criminal também possui taiTereitõs^ que não desaparecem em virtude
da restrição explícita do artigo.
O^grincígif^é, pois, da irretroatividade da lex gravior e da retroatividade
da lex mffiVjrJ^r^ JrrptrnatiyiHaHp /« pejus e retroatividade in mellius.

7. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 78. Estatui o parágrafo único do art. 2.° do Código Penal: "A lei posterior,
que de qualquer modo favorecer o agente,
aplica-se aos fatos anteriores, ainda que
decididos por sentença condenatória
transitada em julgado".
78 PARTE GERAL DA APLICAÇÃO DA LEI 79

A novidade introduzida pela atual lei está na expressão vde qualquer modo" ção, unidade e pluralidade de crimes, reincidência, habitualidade,
QuaLo seu significado? profissionalismo, tendência a delinquir etc);'Kc) pela diversa determinação
da gravidade material da lesão jurídica constitutiva do crime; d) pela diversa
Abrange todas as hipóteses possíveis de benefícios, todas as situações que
determinação das condições de punibilidade positiva ou negativa (querela,
sejam mais benignas. Isto é, tudo o que seja favorável ao réu ou ao condenado.
extinção do crime e da pena); e) pela diversa determinação da espécie, da
Exemplificando: circunstâncias novas atenuantes, causas extintivas de duração da pena e dos efeitos penais1.
punibilidade até então desconhecidas, novos benefícios como o sursis e p
livramento condicional, causas de exclusão de antijuridicidade introduzidas, São características irrecusáveis, porém isso não impede que somente
penas menos rigorosas etc. diante do caso concreto á qi»» «^ rjQgsa dizer qual a lei mais benigna. Para
Pela redação primitiva da parte especial do Código Penal, por força de pena resolver a questão de saber se a lei nova é mais favorável ao acusado do que
acessória de imposição automática, todos os condenados a pena privativa de li- a lei em vigor, no momento em que ele praticou a infração, deve fazer-se a
berdade acima de dois anos recebiam como reprimenda a perda do cargo públi- comparação entre as duas leis, não in abstracto (v. g., tomando em conside-
co. Pela reforma da parte especial do Código Penal, a perda da função pública ração sua tendência geral de serem mais ou menos severas), m££_em-relaçãQ
passou a atuar como efeito da condenação, quando a pena aplicada fosse superior ao indivíduo que se trata de julgar em concreto2.
a quatro anos. Todavia, recentemente, a Lei n. 9.268, de 1.° de abril de 1996, que Emcaso de irredutível dúvida, He. qual a mais benigna, deve,
deu nova redação ao Código Penal, em seu art. 92,1, estabeleceu a perda automá- a lei_qava somente aos casos não. julgados. Lembra-se ainda o critério de
tica do cargo, função pública ou mandato eletivo, quando for imposta condena- ouvir o réu, pois, afinal de contas, é ele que sofrerá a pena 3.
ção por pena privativa de liberdade superior a um ano, quando o delito for prati- f\ *K Consideram os autores a hipótese da ocorrência de três leis em relação
cado com abuso de poder ou dever para com a administração pública, ou, então, ffiao fato e antes de seu julgamento (a vigente ao tempo em que foi cometido,
quando tal pena for superior a quatro anos, nos demais crimes. a intermediária e a posterior), para se saber se a segunda pode ser aplicada.
Em conclusão: ai lei penal retroage, a despeito da coisa julgada, nas hi- Cremos que o caso não oferece dificuldades: a intermediária, SfH"
póteses da abolitio criminisjajt., 2 . ° ) e da novatio legis in mellius (art. 2.°, benigna, deve ser aplicada, pois ah-roga a
parágrafo único). nignidade à terceira.
7 A nós nos parece estabelecido o princípio incondicional da retroatividade Ponto em que a doutrina não se concilia é no tocante à combinação de
in mellius. leis, pagã aplicação ao caso concreto
Objeta-se que o íuizjOEDpode combiná-las para extrair delas um conteúdo
39^^Aleirnais_benigna)\enficado que a lex mitior infringe o princípio
mais favorável ao réu: ele estaria, em tal hipótese, elaborando uma lei, lhe é
de que o aêlítcTdêve ser apreciado consoante a lei do tempo em que ocorreu
permitido F.ntrp nós, defendem essa opinião Costa e Silva,
(tempus regit actum), incumbe agora apurar-se qual a lei mais suave, ou Ia loi
Nelson Hungria e Aníbal Bruno. Na Itália, entre outros, Battaglini diz: "Uma
plus douce, no dizer dos juristas franceses. combinação de dois sistemas legislativos é inadmissível"4. É a opinião mais
Afere-se a benignidade, no caso concreto, confrontando as leis concor- comum5.
rentes. Mais benéfica será a que cominar pena de menor duração, de natureza
menos grave, de efeitos mais aceitáveis etc, como também a que der ao de- Não^Mtam, entretanto, os que pensam de maneira diversa. Petrocelli
lito configuração que favoreça o réu, tanto pela não-incriminação do fato assim se pronuncIãT"Noi nõrTisítiamo a ritenere preferibile uH sistema che
como por ver nele forma menos grave, outorgar-lhe circunstâncias minorativas consentisse ai giudice 1'applicazione contemporânea delia legge anteriore e
da pena e dispuser processo mais favorável.
1. Maggiore, Diritto penale, cit., v. 1, p. 152.
Maggiore, entre diversos autores, alinha os característicos da lei mais
benigna:<§})pela diversa configuração do crime; a diversidade pode referir- 2. Paul Logoz, Commentaire du Code Penal suisse, v. 1, p. 8.
se à natureza deste (delito ou contravenção), aos seus elementos integrantes 3. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 107.
(ação, antijuridicidade, culpabilidade) ou aos seus elementos acidentais (cir- 4. Giulio Battaglini, Diritto penale; parte generale, 1949, p. 76.
cunstâncias)^ fr), pela diversa configuração das formas (tentativa, participa- 5. É também aquela a que se filiava o Anteprojeto Nelson Hungria (art. 2.°, § 2.°).
80 PARTE GERAL DA APLICAÇÃO DA LEI 81

di quella successiva, di ciascuna accogliendo, per i vari punti dei rapporto da titucjpjialjiejiue a lei ret roage quando beneficiar o acusado (art. 5.°, XL).
regolare, le direttive e i limiti piu favorevoli ai reo"6. Comungam da mesma Não se trata gqui_de jgtroatividade, mas de ultratividade, isto é, a lei aplica-
opinião Basileu Garcia e José Frederico Marques 7, o primeiro invocando a se a fato cometido quando ela estava em vigor: permanece o princípio tempus
p n
spgiinHn nhspryando que o juiz, em tal caso, obedec e_ ij regti-£j£turn. ~ ""
pio constitucional e joga com elementos fornecidos pelo próprio legislador. Podesgr que, cessadas essas lekL£ÇJam^sjjtetjiuj^sj^ Deverá esta ser
Se lhe é dado, na aplicação do mandamento constitucional, escolher entre aplicada ao fato praticado na vigência daquelas? Estamos que não. Se a lei
duas leis a que é mais benigna, não se vê por que não se admitir que as temrjorária_ou excepcional deve ser aplicada, ainda que outra não
cojnblnê~pã7ã~ãsslm melhorjabedecer à.Lei Magna. Se pode escolher o lhe.tenha-sueedkkh ou seja, quando o Estado achou que não há maia
"todo" para favorecer o réu, poderá também tirar parte de um todo para necessidade-de legislar sobre a matéria, parece-nos que, com maior
combinar £om_a parte de outro todo_em obediência ainda ao preceito quando, se bem que com menos severidade, se le-
constitucional. ««"'"**»—p"r essa razão não concordamos com o Prof.
Tal opinião é aceitável. Ela apresenta solução equânime no período tran- qisla aind?
sitório^ entre duas leis, e é consentânea com o princípio do tratamento mais Basileu Garcia, quando se manifesta em sentido contrário9. Em qualquer hipótese
benigno ao acusado!..
Questão pertinente à matéria k sugerida pelas leis penais em branco. Já
40. Ultratividade da lei penal. Norma p enal em branco. No art. 3.°, vimos (n ?Q) qnp assjm SP Hi^ern agiipia^cnjopreceito é com plementad o
trata o Código das leis excepcional e temporária, consagrando suSL.ullratividade,
por outra norma. Pergunta-se agora: alterada esta, tornando-se ela mais be-
isto é, aplicarn-se ao fato praticado durante sua vigência, mesmo depois que
nigna para o acusado, deve retroagir?
esta cessou.
Õ assunto é profundamente controvertido, não apenas na doutrina indí-
Lei temporáriaé agugjjtcuja vigência é prefixada. Lei excepcional é a gena, mas também na alienígena. Enquanto, por exemplo, Manzini se mani-
<jue vige enquanto duram as circunstânciasquea_determinaram: guerra, comoção festa contra a retroatividade da norma complementar benéfica, Asúa apoia a
intestina, epidemia etc. Â esta o Código alude com a expressão "cessadas as tese oposta. Diga-se o mesmo da jurisprudência dos tribunais.
circunstâncias que a determinaram", e àquela, com os dizeres "decorrido o
período de sua duração". jintre nós, a matéria tem sido frequentemente ventilada, tendo-se em
vista as chamadas tabelas de preço, nos crimes contra a economia popular.
Conseqiientemente. praticada a violação delas, será o agente punido Ditas tabelas estão sendo continuamente modificadas, elevando-se cada vez
mesmo depois que cessou sua vigência. A razão da ultratividade é óbvia e mais o custo e^dessarte, podendo favorecer os que as transgrediram quando
vem declarada na Exposição de Motivos: "Esta ressalva visa impedir que, fixavam preços inferigxe^aos^uejjas virão a marcar, antes do julgamento.
tratando-se de leis previamente limitadas no tempo, possam ser frustradas as Nélsonj|ungria e José Frederico Marques opinam pela irretroatividade, en-
suas sanções por expedientes astuciosos no sentido do retardamento dos pro- quanto Basileu Garcia sustenta opinião contrária.
cessos penais".
E difícil apresentar argumentos novos, tão debatida é a questão e diante
Não sej)ode ver na_ultratiyidade dessas leis violação do princípio cons- da excelência das razões já expostas. O autor de Instituições de direito pe-
nal, entre outros exemplos, cita o art. 269 — Omissão de notificação de
6. Biagio Petrocelli, Principi di diritto penale, 1955, v. 1, p. 140. doença — perguntando SP <yria lfriTO p""'r ntn m4H;™ qno Hpivnn rfc dfnnn-
6. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 148; José Frederico Marques, Curso, çiar moléstia tida como contagiosa qnanHn posteriormente os responsáveis
cit., v. 1, p. 192. pela saúde pública reconhecem não ter aquela doença dito caráter10. Por seu
7. Não consagrava esse critério o Anteprojeto Nelson Hungria, art. 2.°, § 2.°: "Para t11010» pergunta o autor do Curso de direito penal se se devia declarar extinta
se conhecer qual a mais favorável, a lei posterior e a anterior devem ser consideradas
separadamente, cada qual no conjunto de suas normas aplicáveis ao caso vertente". Embora
ajmnibilidade de um motorista que fora condenado por imprudência, visto
mereça encómios, por ditar regra de aferição da benignidade da lei, não esposou o cri
tério mais humano. 9. Basileu Garcia, Instituições, dl, v. 1, p. 150.
10. Instituições, cit., v. 1, p. 156.
82 PARTE GERAL DA APLICAÇÃO DA LEI 83

dirigir_na contramão, quando o regulamento posterior dispôs ser esta a mão f l j p Ha arividade. É esta que mais intimamente está ligada à vontadg_Hn
de_direçãQÍ1. agente; é, por excelência, nesse momento que, conscientemente, ele incorre
Pronunciamo-nos, em princípio, pela irretroatividade. Já no n. 29 acen- no juízõ~dê1reprova£ão_social. O resultado nãodepende exclusivamente do
tuávamos a circunstância de que a norma ppnal pm hranro não é destituída ejgpiento voMyo daagente: há entre esse elemento e ele fãtores imponderáveis
; o comando, o mandamento. Ha apresenta, cenHn a nnma evtrapppal que se subtraem à vontade ou ação do agente — pense-se no fato de uma
simplesmente complementar. pessoa atirar contra outra, ocorrendo não acertar, feri-la de leve, gravemente
ou matá-la.
Tal afirmação não importa que não se estabeleçam concessões. A nosso
ver, a lição de Soler, sempre invocada, permanece em sua inteireza: só influi Conseqúentemente é a ação que determina qual a lei do tempo Ho He-
a variação da norma complementar quando importe verdadeira alteração da Jjto. E. hoje, a Opinião predominante
figura abstraía do direito penal, e não mera circunstância que, na realidade, Quanto ao crime permanente, em que a consumação se prolonga no
deixa subsistente a norma; assim, por exemplo, o fato de que uma lei tire a tempo, dependente da vontade doasente, se iniciado na vigência de uma lei,
certa moeda o seu caráter nenhuma influência tem sobre as condenações sua permanência se prolonga iá no império de outra3 rege-sejgor_esta. ainda
existentes por falsificação de moeda, pois não variou o objeto abstrato da que mais severa, pois presente está a vontade do delinquente de infringi-la.
tutela penal; não variou a norma penal que continua sendo idêntica 12. Relativamente ao crime continuado, constituído por pluralidade de vio -
Diga-se o mesmo da tabela de preços. A Lei n. 1.521, de 26 de dezem- lações jurídicas, sem intercorrenle.punição. a que a lei confere unidade, em
bro de 1951, no art. 2°, VI, não define como crime cobrar mais que determi- face da homogeneidade objetiva, obedece às regras seguintes. Se os fatos
nado preço, mas sim "transgredir tabelas oficiais de géneros e mercadorias anteriores jq eram piiniHn<: e a nnva lei p sjmrj^mpntp modificadora, aplica-
ou de serviços essenciais". Esta é a norma; a tabela é mera circunstância se a toda a conduta do sujeito ativo. que se apresenta como um conjunto
complementar, ditada pelas necessidades do momento. unitário Se se trata de incriminação original, só são punidos os atos execu -
tados em »pa vijyfriPai indiferentes gpnHr> ns antprjprp.s Se,JX>r fÍnT,_ela
Outra seria a solução, v. g., com o art. 173 do Código Penal, que inter-
descrimina m fatos é riam que rptrr>-jga. ^hrqngpnHn rw executados antes dela.
dita o abuso de menor, sendo óbvio que a menoridade é a civil e que, altera-
da esta, modificada está a norma penal, que não pode ter uma menoridade
civil.
Acrescente-se, por fim, como lembrou o saudoso Queiroz Filho, que,
se a tabela é lei, será temporária ou excepcional e, por isso, dotada de |
_ultratividade13.
41. Do tempo do crime. Delitos permanentes e continuados. Temos,
por mais de uma vez, nos referido à lei do tempo dn crime, incnmhindo.
portanto, dizer o que se deve ter como taL
Variam as opiniões na doutrina: unsacham que o tempus delicti é o do
momento da ação (teoria da atividadé): outros, o do resultado (teoria do efei -
to); e, finalmente, Outros, ora õ tempn Ha açãn e. nrfl q dn resultado (teoria

itual reforma, por força_de_seu_art 4.°i fnnftalgrr"1 p*prps

11. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 1, p. 207.


12. Soler, Derecho penal, cit., v. 1, p. 211.
13. #7; 792:563.
DA APLICAÇÃO DA LEI 85

III onde_quer_que o crime tenha ocorrido e qualquer que seja a nacionalidade do


i criminoso.
A LEI PENAL NO ESPAÇO E EM RELAÇÃO ÀS PESSOAS. ""'"" Finalmente, pelo princípio da justiça universal, o delinquente fica su-
DISPOSIÇÕES FINAIS DO TÍTULO I jeito à lei do país onde for detido, qualquer que seja o lugar onde o delito foi
praticado, a sua nacionalidade ou a do bem jurídico tuteladoJDito princípio
é mais ideal, é de difícil efetivação, considerando-se a dificuldade da coleta
SUMÁRIO: 42. Direito penal internacional. Os princípios. 43. Territorialidade.
Lugar do crime. 44. Território. 45. Extraterritorialidade. 46. A lei penal
de provas e a falta de uniformidade na conceituação do crime, pois o que
em relação às pessoas e suas funções. 47. Extradição. 48. Disposições fi - assim é considerado entre nós nem sempre o será em país de outro conti-
nais do Título I. nente.
Os Códigos não adotam com exclusjvidade qualquer desses princípios.
Vigora, às vezes, ora o da territorialidade, ora o da nacionalidadeTsêm^guê
sejãmfõlvidadoSj entretanto, os outros dois.
42. Direito penal internacional. Os princípios. Nem sempre um crime
viola interesse de um Estado apenas. Tal sua configuração, tal o objeto jurí- 43JFerritorialidade. Lugar do crime. Ficam sujeitos à lei brasileira os
dico tutelado etc, pode acontecer que dois ou mais países se arroguem o crimes praticados, no todo ou em parte, no território nacional, ou que, nele,
direito.de puni-lo*.Ao complexo de regras que objetiya umajei. aplicável no embora parcialmente, produziram ou deviam produzir seu resultado ^U
espaço, em tais hipóteses, muitos denominam direito penal internacional. põem os
Bem de ver, entretanto, que se trata ainda de direito interno, embora rela- Como se vê, é a adoção do princípio da territorialidade, gnjboraodis-
cionado com o direito alienígena. positiyg contenha a ressalva da existência de convenções, tratados e regras
Pierrô prinr.ípjps sãn..apnntaHns acerca, da efidêncJíLdj:,Xei^jrjeiialjio de direito internacional.
espaço: o da territorialidade. o_da nacionalidade, o de defesa e o da justiça A rubrica da disposição é lugar do crime. O que se deve entender_por re
universal ou cosmopolita^ constitui objeto de três teorias: a da atividade, a do resultado e a
O primeiro cinge-se ao território do país. Os crimes nele cometidos são unitária ou da ubiquidad,e.
regulados "por suas leis, qualquer que seja a nacionalidade do réu ou da víti- Pela primeira, lugar do delito é aquele em que o sujeito ativo ou delin-
ma. Não admite a concorrência de lei de outra nação e não ultrapassa as suas quente pratica os atos de execução, teoria essa que tem merecido a preferên-
próprias fronteiras, isto é, não se preocupa com o delito cometido fora delas. cia dos escritores germânicos1. A do resultado fixa como lugar do crime aquele
emjjue se consumou, o que nem sempre coincideTonTojda atividade, pois
O princípio da nacionalidade, também chamado da personalidade, de-
esta pode ser praticada em um Estado e a consumação ocorrer noutro, v. g.,
termina que a lei a ser aplicada é sempre a do país de origem do delinquen- o delito de homicídio, em que a vítima pode ser atingida em um país e vir a
te, onde quer que ele se encontre. Desdobra-se este princípio em ativo e falecer em outro. Já teve maior aceitação esse princípio que apresenta, além
passivo. Pelo primeiro, aplica-se a lei do país a que pertence o agente, sem do inconveniente da incerteza do lugar da consumação, o da renúncia do
se levar em consideração o bem jurídico. Pelo segundo, dita lei se aplica Estado em punir a ofensa a sua ordem jurídica, porque o resultado ocorreu
somente quando o bem jurídico ofendido pertença a pessoas da mesma além-fronteiras.
nação. Finalmente, a teoria da unidade ou ubiqiiidade. também conhecida corno tem
f~O princípio de defesa, também conhecido como de proteção ou real, diz por lugar do delito aquele em que for realizado qualquer um de
<jue a lei aplicável é a da nacionalidade do bem jurídico lesado ou ameaçado,
1. O Anteprojeto Nelson Hungria, no art. 6.° — "tempo do crime" — consagrava
essa teoria, que comportava, naturalmente, a exceção de seu art. 7." — "lugar do crime"
— assuntos, como se compreende, correlatos.
86 PARTE GERAL DA APLICAÇÃO DA LEI 87

s, seja o da execução, seja o do momento consumativo. rnmo indicada o in

Deíãdiz Costa e Silva ser a única cientificamente certa, praticamente satisfatória


e que impede a calamidade dos conflitos negativos de competência 2.
Foi a teoria abraçada por nosso Código, no art. 67\ Excetuados os_atos
preparatórios e os posteriores à consumação, basta que aqui tenha ocorrido
qualquer .parcela da atividade do indivíduo ou qualquer efeito que integre o
resultado do delito, para haver lugar a lei brasileira, punindo o crime todo, j^_
não apenas a fração que aqui se realizou.
Encara também o dispositivo a hipótese da tentativa. Para esta, lugar do
crime não é apenas_onde_se. desenrolou a atividade do agente, mas também
é a orientação do estatuto pátrio,
q
em confronto com outros Códigos, como o suíço: "Une tentative est reputée
commise tant au lieu ou son auteur l'a faite, qu'au lieu ou, d'après le dessin
de 1'auteur, le résultat devait se produire" (art. 7.°) — pois não tomam em
consideração o desígnio ou intenção do autor para caracterização do lugar
do resultado; este não é o em que o agente quis ocorresse, mas onde teria
ocorrido, se não fosse obstado de prosseguir.
A respeito desses crimes, denominados a distância, em que a execução
e o resultado ocorrem em países diferentes, dispõe nosso Código de Processo
Penal, no art. 70, §§ 1.° e 2.°, fixando a competência ratione loci da auto-
ridade judiciária brasileira.

44.jTerritório.: O art. 5." refere-se ao territt^wjig£ignalíçm§&^a&jít-


nhuma dúvida_apjresenta^ gjuandg_se considera apenas o espaço^ compreendi-
do_entre nossas fronteiras.
Entretanto a noção de território vai mais longe: abrange todiojo. espaço
onde impera a soberania do Esta do.
Território também é a faixa de mar ao longo da costa: mar territorial.
Seu limite, primitivamente, era dado pela distância a que alcançasse um tiro
de canhão postado na costa. Mais tarde abandonou-se esse critério. Entre
nós, isso aconteceu por ocasião da primeira Conflagração Mundial, quando
circular do Ministério do Exterior fixou para o mar territorial a distância de
três milhas, a partir da costa. No Governo Castello Branco, o Decreto-lei n.
44, de 18 de novembro de 1966, aumentou essa área para seis milhas marí
timas, que são acrescidas de outras seis. Hoje, o marMerritorial pátrio "com:

Ho lifr,™!

ejiojej^ partir da
nas cartas náuticas de grande escala, reconhecidas oficialmente no Brasil". petência da justiça do país a que pertencem. geBresfintarrLa_s_oberania do
ff o que dispõe o art. 1.° da Lei n. 8.617, de 4 de janeiro de 1993. O art. 3.° Estado e, dessarte, têm o respeito das outras nações.
da citada lei reconhece aos navios estrangeiros o direito de passagem ino- Os navios privaHns (mercantes, de recreio ete), em alto-mar, estão su-
cente (simples trânsito, sem quaisquer atividades estranhas à navegação) em jeitos\h lei do pavilhão que ostentam A respeito, faz Basileu Garcia as con-
nosso mar territorial. siderações seguintes. Se o crime se der em alto-mar, numa jangada construída
Os §§ 1." e 2." do art. 5." falam sobre os delitos cometidos em embarca- com destroços do navio que naufragou, ainda é a lei do navio que vige, pois
ções e aeronaves, variando de acordo com a_class[fícação e localização. A a improvisada embarcação representa o vapor sinistrado; se houve abalroamento
nós parecia melhor a redação primitiva do art. 4.° do Código Penal, que não de duas naus e a jangada for construída com material de ambas, opina-se que
conceituava o território jurídico, deixando as soluções para as leis especí- o criminoso fique sujeito à lei de seu país3.
ficas. Se se encontram em mar territorial, os navios privados ficam sujeitos a
^No mar te rritorial, naturalmente., domina a lei da nação a que ele justiça da nação a que eles pertencem.
pertence. Todavia n direito internaHnnai ahrp rxce.çõps A respeito dos navios públicos, surtos em porto estrangeiro, concede-se
navios. que, se um tripulante seu desce à terra, em serviço, e aí comete um crime, fica
piyidenbsc-eles em públicos ou privados. Qs primejros são os vasos- ainda sujeito à lei do Estado do navio. Sejlesce a passeio epratiça_delito de
de-guerra, os empregados em serviços militares, em serviçosjjúblicos (alfân- pequena gravidade, admite-se ainda fique submetido àquela lei.
dega, polícia marítima ete), e os que transportam soberanos ou chefes j e Quando alguém, praticado um crime em terra, se abriga em navio de
Estado e representantes diplomáticos. Tais navios, quer em alto-mar, quer no guerra, surto em porto estrangeiro, tem-se entendido que, se o delito é polí-
territorial- ficam sujpjtn»; a «ia lei; OS crimes praticados a bordo são da cõnT- tico, não está o comandante obrigado a devolvê-lo a terra; porém, se é co-

2. Costa e Silva, Código Penal, cit., p. 34. 3. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 116.
PARTE GERAL DA APLICAÇÃO DA LEI 89

mum, deve entregá-lo, mediante requisição do governo local. É o que estipu- guando_em_alto-mar ou em território que não pertença a nenhum..Estad^ouL
lou a Sexta Conferência Pan-Americana de Havana, em 1928. ainda em vôo sobre esses (art. 3.°, II). Ç^r^idjrairjisje_^ni_teintórip_de um
Quanto aos rios, podem ser considerados como nacionais e Estado quaisquer aeronaves privadas que nele se encontrem, ou quando em
internacio-«givjQs primeiros correm pelo território He; um Estado apenas. sobrevôojlê §guje.rritórío (art. 3.°, parágrafo único). Reputam-se praticados
Os segundos ou separam_os territórios de_dois ou mais Estados ou passam no Brasil os atos que, originados de aeronave considerada território estran-
por seus territórios. geiro, produzirem ou vierem a produzir efeitos ou quaisquer danos no terri-
Se o_rio é divisa natural entre dois países, algumas questões se apresen- tório nacional (arj. 4.°). São cumulativamente do domínio das leis brasileiras e
tam. Caso pertença a um dos Estados ribeirinhos., a. fronteira passará_gela estrangeiras os atos originados de aeronave considerada território brasileiro
margem oposta. Mas, se ele pertence aos dois Estados, a divisa pode passar se as suas consequências atingirem território estrangeiro (art. 5.°). Os direitos
reais e privilégios de ordefn privada sobre aeronave regulam-se pela lei de
por uma linha detgrminada_p_ela eqiiidistância das margens, linha mediana,
sua nacionalidade (art. 6.°). O art. 7.° determina que as medidas
do leito do rio, ou por uma linha que acompanha a de maiorprofundidade da
assecuratórias referidas no texto do Código Brasileiro do Ar regulam-se sempre
corrente (talvegutú. Pode tambémacontecer que o rio seja cqmum_aQS dois
pela lei do país onde se encontrar a aeronave. São de ordem pública interna-
países, e, nesse caso, é indiviso,.sendo comum a jurisdição _sobrej;le4.
cional as normas que vedam, no contrato de transporte aéreo, cláusulas que
Se o rio internacional é sucessivo, cada Estado exerce jurisdição sobre exonerem de responsabilidade o transportador, estabeleçam para a mesma
o trecho de seu território, sendo ele equiparada ao mar territorial. limite inferior ao fixado no Código ou prescrevam outro foro que não o do
Quanto aos rio^jiacionais, claro.que,é plenaa.soberania£&tatal^iBdem, lugar do destino (art. 10,1, II e III).
entretanto, ser concedidas vantage.as.-a outros-Estados. O crime praticado em avião não militar, em vôo por nosso território,
Três teorias falam sobre o domínio aéreo: uma prega absoluta liberdade será punido pela lei pátria; também esta será aplicada ao delito cometido a
do ar; a outra, a soberania.sQb_re JodaACoiuitaatmosférica doJEstadQ subjacente;, bordo de aeronave militar estrangeira, desde que produza efeitos no territó-
e a terceira, a soberania até a altura dos prédios mais elevados que se conhe- _rio pátrio.
cem ou a do alcance de baterias antiaéreas. Observa Basileu Garcia que, se o fato, ocorrido no espaço aéreo nacional,
É a segunda que tem prevalecido, sendo adotada por nós, consoante o não tem relação alguma com o País ou seus habitantes, nem perturba a sua
anterior Decreto n. 20.914, de 6 de janeiro de 1932 (art. 1.°), e o atual Códi- tranquilidade — o que acontece se o avião de caráter privado sobrevoa o
go Brasileiro de Aeronáutica (Lei n. 7.565, de 19-12-1986), art. 11, ambos território nacional, sem pousar nele — não há razão para aplicar-se a lei
estabelecendo que .oJJrasil exerce_sjia::sgbgrania em tn^" n espaço aéreo local. Nesse sentido se pronuncia o Código Bustamante5 e 6
correspondente ao seu território e águas territoriais. ,
_As aproria.vp^ djviHpm-se em çjyjs e. militares (CBAr, art. 107), sendo _ 45.(Extraterritorialidade7,
que_as civis compreendem as aeronaves públicas e privadas (CBAr, art. 107, Código Penàl^é o princípio da territorialidade fundamental. Todavia esse
§ 2.°), aplicando-se-lhes, em regra, os princípios referentes aos navios, por pfõprio dispositivo ressalva_a-existência de tratados, convenções e regras de_
sua yezjambém públicos e particulares. djrejjtojntejiiaciQjiaLque, então, preponderam, e, logo_a seguir, no art. 7.°,
O art. 1.°, § 2.°, regula a aplicação da lei brasileira e da alienígena às
aeronaves. O Brasil exerce completa e exclusiva soberania sobre o espaço 5. Basileu Garcia, Instituições, cit., r. 1, p. 172.
aéreo acima de seu território e respectivas águas jurisdicionais (art. 11). 6. O Anteprojeto Nelson Hungria (art. 7.°, §§ 1." e 2.°) ocupava-se com a navega
Consideram-se território do Esta/In dr sua nprinnaliHarlp, as aeronaves mih- ção aérea e a marítima, omitindo, entretanto, a fluvial.
tares e as públicas, onde^qju^r^gue^e_enc_Qiuxein (art. 3.°, I). Consideram-se, 7. Tratava mais amplamente da matéria o Anteprojeto citado (art. 8.°), incluindo
também, território do Estado de sua nacionalidade as aeronaves privadas os delitos de genocídio, tráfico de mulheres, comércio ilícito de entorpecentes, de publi
cações obscenas. Incluía também os delitos contra a independência, segurança ou inte
gridade nacional ou a ordem constitucional e excluía os contra a vida ou a liberdade do
4. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 141. Presidente da República, o que não nos parece justificável, máxime se considerarmos
que nem sempre tais crimes estão compreendidos nos imediatamente anteriores.
90 PARTE GERAL DA APLICAÇÃO DA LEI 91

passa_a tratar de diversos casgs que é mister que o fato seja também punido no país em que ocorreu. A alínea
alcançando então a lei brasileira Q ,^ s^^íi3iclãrãlser^ 'ne^esiájJQ-eMarxtxrime-i nel u ido entre-aquel£s_4ue-a.IeT
pratiç_| brasileira permite a entrega de-um condenado, ou acusado, ao Estada que_o
No art. 7.°, I, faz o legislador aplicação do princípio real ou de prote- tgçjarna, Xextradiçãe).
ção, tendo em vista a relevância das objetividades jurídicas ou bens-interesses As alíneas de e impõem, como condições, não ter sido o agente absol-
tutelados, como> a vida_ou__a liberdade do Presidente da República, o crédito vido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; não ter sido aí perdoado
ou a fé jiíhn^a ja TTnjãn, o gpnorídjo etc, todos distribuídos pelas alíneas a ou não" estar, por outra razão, .extinta a punibilidade. Ditas prescrições são
a d do inciso. E tamanho é o apreço que por eles demonstra, que, no § 1.°, facilmente compreensíveis. Seria estranho que um acusado, livre em outro
declara que o agente será punido pela lei brasileira, ainda que absolvido ou país, fosse perseguido, processado e condenado aqui, quando nossa lei, nes-
condenado forajjejiossas fronteiras. Todavia o rigor desse preceito, em caso sas hipóteses, tem função supletória.
de condenação em outro país, é suavizado pelo art. 8.°, ao ^ieclarar que a No § 3.°, volta o legislador a aplicar o princípio real ou de proteção:
gena cimipiida.xiQ e&trangeirp atenua a imposlajui Brasil, pelo mesmo deli- pune o apent£.qiiP comete, crime rnntra brasileiro, fora rto RrqsJI, J^araJ^gn
to, quando diversas,, ou neja^cojnrrutada^ quando idênticas. entretantqéjiecessário ocorrerem as circunstâncias já-aludidas no § 2_° —
No inc. II a lei brasileira atua ainda fora de nosso território, quando se entre elas a de haver entrado o agente no território nacional — acrescidas de
tratar de crimes que, por tratado ou convenção, nós nos obrigamos a repri-\ não ter sido solicitada ou concedida a extradição — concebível, dessarte,
mir, os cometidos por brasileiro, e os cometidos a bordo de aeronaves ou ! que aqui se processe e julgue o delinquente — e de haver requisição do
embarcações brasileiras. Ministro da Justiça, a cargo de quem ficará decidir da conveniência do pro-
"" Naj)rimeira hipótese, consagra-se o princípio da justiça cosmopolita cesso, visto ter sido o delito cometido no estrangeiro.
ou uniyersg}. Têm-se em vista aqui os delitos júris gentium, cuja repressão j3jtrt_9.° ocupa^se-com-aeficácia-da-^entenç^ penal proferida em outro
necessita de ação harmónica dos Estados, como ocorre com o tráfico de mulheres pa^TjatacSfi-deJiorma de. exceçãQ. de. efeitos limitados. Em primeiro lugar,
(art. 231), o comércio de objetos obscenos (art. 234), a moeda falsa etc. é hnprescjr^ívejjque_ajeijbrasileira produza, no casjo^as mesmas conse-
quências. Depois, a eficácia se cinge aos efeitos civis da sentença criminal,
Na alínea b do inc. II, cogita-se dos crimes cometidos por brasileiro.
e, rio campo penal, às medidas de segurança. O parágrafo único diz acerca
Adota-se o princípio da. personaUdade ativa. Fundamenta o dispositivo a
das condições necessárias para a homologação, que compete ao Supremo
aversão que, em regra, têm os países de entregar seus nacionais, por delitos
Tribunal Federal.
que cometeram no estrangeiro. Entre nós, a Constituição Federal (art. 5.°,
LI) e a Lei n. 6.815, de 19 de agosto de 1980 (art. 77,1), vedam seja extra- Há outros casos em que a sentença estrangeira também produz efeitos
ditado brasileiro. Todavia, a Carta Magna abriu duas exceções exclusiva- em nosso país: a reincidência, o sursis e o livramento condicional8. Em tais
mente para os brasileiros naturalizados: quando o crime for cometido antes hipóteses, porém, não depende seu reconhecimento da homologação, como
da naturalização e se tratar de envolvimento com o tráfico ilícito de entorpe- se verifica a contrario sensu do art. 787 do Código de Processo Penal. A
sentença atua, então, como fato jurídico. A homologação só é necessária,
centes e drogas afins é possível a extradição.
diante do citado dispositivo e do art. 9.°, quando se instaura o juízo executório,
A alínea c foi uma inovação e refere-se às aeronaves e embarcações isto é, quando tiver a sentença de ser executada aqui, para os efeitos
brasileiras em território estranho. mencionados no último dispositivo.
Todavia a aplicação da lei pátria, nas hipóteses das alíneas aacdo inc.
\ II, fica, na forma do § 2.°, subordinada a diversas condições que ele passa a 46. Ai lei peynl em relnçnn nspexxnnx p xunx funçnex. Em todo Estado
^_enumerar. São condições de. pe.rse.guihilidade. domina o princípio da territnrialin-aHp r|a |ei penal- jplira-se a todas as pessoas
A primeira é a do agente entrar no território pátrio. No silêncio da lei, 8. O Anteprojeto Nelson Hungria (art. 10, III) incluía a reincidência e a criminalidade
não h* "YjgM: '^rM"^y'?':a hreve ou prolongada võTnritária ou cnmnul- habitual. Não o fez, porém, quanto ao sirsis. A razão parece-nos ser a de que a conde-
sória. nação no estrangeiro não o impedirá, como se depreende de seu art. 67,1, flagrantemente
A alínea b do § 2° invoca áflex loç$ Esta é o pressuposto da punição: diverso do nosso art. 57, I (redação original), orientação esta que achamos preferível.
92 PARTE GERAL DA APLICAÇÃO DA LEI 93

g arham p.m SP.H território. É, aliás, imperativo do princípio da igualda- No que diz respeito aos vereadores, o art. 29, VII, da Constituição Fede-
de de todos perante a lei, conquista do liberalismo do século XVIII. ral estabeleceu, como inovação, a inviolabilidade por suas opiniões, pala-
Tal princípio, entretanto, sofre exceções, oriundas das funções exercidas vras e votos, desde que no exercício do mandato e nos limites da circunscri-
por certas e determinadas pessoas. Entre estas, apontam-se o^chefes de Estado, ção do Município.
quando em outro país, e os representantes de governo estrangeiro. Pratican- A Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994, Estatuto da Advocacia, regula-
do~críme, não ficam sujeitos às sanções das leis da nação onde se encontram. mentando o art. 133 da Constituição Federal, por força de seu art. 7.°, § 2.°,
Ainda que ilícito, o ato subtrai-se à pena. Responderão pelo crime emjseu estabeleceu que os advogados têm imunidade penal, de natureza profissio-
país. Não se trata evidentemente de privilégio à pessoa física do represen- nal, quando, no exercício da atividade, em juízo ou fora dele, praticarem
tante estrangeiro, mas de acatamento à soberania da nação que ele represen- atos que podem ser classificados como crimes de difamação, injúria ou de-
ta. Claro é que essas Imunidades diplomáticas devem ser recíprocãs:~EsíeTi- sacato. É mais uma forma de imunidade penal, exigindo como requisito pes-
dèm-se aos funcionários do corpo diplomático e aos membros da família do soal o de ser advogado e ter praticado o ato atacado quando no exercício da
representante. Abrangem, outrossim, a sede da representação, com o que profissão.
contém; porém não mais perdura, hoje, a ficção de que ela é porção do ter-
ritório estrangeiro. Sua inviolabilidade decorre da imunidade do represen- 47. Extradição. Com ser a luta contra a criminalidade objetivo comum
tante. Consequentemênte, um crime praticado aí, por pessoa que não goze de de todas as nações, não há dúvida de que a punição de um crime interessa,
imunidade, fica sujeito à lei do país onde aquela sede se situa. sobretudo, ao Estado onde ele foi praticado. Daí a extradição, que é o ato
pelo qual uma nação entrega a outra um criminoso para ser julgado ou
Releva, por fim, notar que as imunidades se referem a qualquer delito, punido.
e não apenas aos cometidos no exercício das funções.
As fontes que a regulam são de direito internacional e de direito inter-
Não gozam os cônsules — agentes administrativos — salvo convenção no. Promana de tratados entre as nações, assentando-se no princípio da reci-
em contrário, das referidas imunidades. procidade e adotados e completados por leis internas.
Quanto aos chefes do governo, há a considerar que os soberanos das Nosso Código, ao contrário de outros, como o italiano, não contém dis-
monarquias constitucionais são invioláveis por suas Constituições: não res- posições acerca do instituto. Regula-o a Lei n. 6.815, de 19 de agosto de
pondem perante a lei penal. Trata-se de privilégio oriundo da permanência 1980, em seus arts. 76 a 94, e vige também o Código Bustamante, oriundo do
no trono enquanto viverem. Congresso Internacional de Havana, em 1928, e aprovado por nós.
Não assim os presidentes de repúblicas, embora fiquem sujeitos a regi- Em regra, para a extradição são consideradas determinadas circunstân-
me especial. Entre nós, será ele julgado, nos crimes comuns, pelo Supremo cias que se referem ao delinquente e ao delito.
Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, e nos de responsabilidade
Quanto ao primeiro, em princípio, toda pessoa pode ser extraditada.
perante o Senado Federal, mas, em ambos os casos, somente depois que a
Todavia, em face de nossas leis, em regra, só o pode ser o estrangeiro, já que
Câmara dos Deputados, pelo voto de dois terços de seus membros, admitir a
a extradição do brasileiro nato é proibida e a do brasileiro naturalizado é
acusação. É o que diz o art. 86 da Constituição Federal.
admitida em duas hipóteses: quando o crime foi cometido antes da naturali-
Além das imunidades diplomáticas, outras existem: as parlamentares. zação e quando se tratar de envolvimento com o tráfico de drogas, como
Diferem, entretanto, daquelas, pois são causas de irresponsabilidade ou con- deixa claro o art. 5.°, LI, da Constituição Federal. Com efeito, o art. 76 da
dições de procedibilidade, ao passo que as diplomáticas não excluem o cri- mencionada Lei n. 6.815 estabelece que a extradição poderá ser concedida
me; deferem apenas a outro país sua apreciação. quando o governo requerente se fundamentar em convenção, tratado ou quando
O art. 53 da Constituição Federal estabelece que os Deputados e Sena- prometer ao Brasil a reciprocidade; mas o art. 77, I, adverte que não será
dores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos, sendo que, por concedida a extradição quando se tratar de brasileiro, salvo se a aquisição
força do § 1.°, não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, dessa nacionalidade verificar-se após o fato que motivar o pedido. Em re-
nem processados criminalmente, sem prévia licença da Casa. gra, não se admite a extradição para se aplicar a pena de morte. Contudo o
94 PARTE GERAL DA APLICAÇÃO DA LEI 95

art. 91 da Lei n. 6.815, ao determinar que não será efetivada a entrega do dece a Razões de ordem prática e evita o exagero das legislações passadas,
extraditando sem que o Estado requerente assuma determinados compromis- ó i ã d i s , minutos e frações de mil-réis.
sos em benefício daquele, estabelece no inc. III que não será efetivada a Dispõe o art. 12 que as regras gerais do Código aplicam-se a fatos
entrega sem que o Estado requerente assuma o compromisso de comutar em inair|ujytdj}| j)or lei especial, desde que elanao disponha deTnodõ diverso.
pena privativa de liberdade a pena corporal ou de morte, ressalvados, quanto
à última, os casos em que a lei brasileira permitir a sua aplicação. Se dúvida houvesse de que nãoé o Código a única lei penal, bastaria ler
o art. 360. A finalidade daquele dispositivo é que as leis penais constituam
Desta forma, além daquilo que dispõe o inc. III do art. 91 citado, não um todo harmónico. Consequentemente, desde que uma delas não dite re-
haverá extradição nos seguintes casos previstos em tal dispositivo: não ser o gras diversas do estatuto básico — o que pode fazer, evidentemente, tangida
extraditando preso nem processado por fatos anteriores ao pedido (inc. I); pela natureza da matéria de que trata e por outros imperativos — desde que
compromisso do Estado requerente de computar o tempo de prisão que, no silencie, as normas gerais daquele são-lhe aplicáveis.
Brasil, foi imposta por força da extradição (inc. II); compromisso de não ser
o extraditando entregue, sem consentimento do Brasil, a outro Estado que o
reclame (inc. IV); e compromisso de não considerar qualquer motivo políti-
co para agravar a pena (inc. V). Importante frisar que nenhuma extradição
será concedida sem prévio pronunciamento do Plenário do Supremo Tribu-
nal Federal sobre sua legalidade e procedência, não cabendo recurso da de-
cisão (art. 83). Concedida a extradição, será o fato comunicado por meio do
Ministério das Relações Exteriores à Missão Diplomática do Estado reque-
rente que, no prazo de sessenta dias da comunicação, deverá retirar o extra-
ditando do território brasileiro (art. 86). Negada a extradição, não se admi-
tirá novo pedido baseado no mesmo fato (art. 88).

48. Disposições finais do Título I. O art. 10 do Código dispõe sobre ji


contagem do prazo. Refere-se^ ao tempo (da condenação, da prescrição, da
suspensão da pena etc), para^ dizer que o dia do começo indujUsje_ejmjseu..
cômputo, diversamente dcTque dispõe o art. 798, § 1.°, do Código de Processo
Penal, que não considera o dia do início e conta jo_do vencimento. Tem a
regra do estatuto substantivo o fim de beneficiar o acusado, permitindo,
v. g., que se contem, como um dia, algumas horas de prisão. Consequente-
mente, a regra do Código prefere à do diploma adjetivo, quando ambos tra-
tarem dos mesmos institutos.
A segunda parte do artigo diz que os diaSj meses e anos serão contados
pelo calendárJQ CQmumTTJão seguiu a leTlTexemplo do Código Civil"(ãrt.
125, § 3.°), preferindo o da lei penal italiana (art. 4.°). Ao contrário, pois,
daquele, para quem o mês é sempre de 30 dias e o ano de 360, a contagem se
fará de acordo com o calendário. Conseqiientemente, se a pena de um ano,
v. g., começar a ser cumprida em 10 de janeiro, terminará em 9 do mesmo
mês do ano seguinte.
O art. 11 manda desprezar, naipeng privativa de liberdade^jiajrestritiya
de Hirpjjtn^asjra£gfts_x1e. Hiar e.T na .multa, as de real. P-dispnsítivn obg-
y DO CRIME 97
^ . . ■

. . ■ / ,

Com efeito, não se nega ter o d elito aspecto biossociológico: todavia


eleexiste^jrenascojnqja|o 1. ante.s_que._a..Jiojma.jurjdiça o defina~cõmolãl,
DO CRIME syjeitando:O_à_sanção.
Cremos que o conceito substancial do delito pode ser obtido em outros
termos.
Finalidade do Estada é a «etisecução do bem coletivo. É a sua razão
teleológica. Mas, para a efetivação, além da independência no exterior, há
CONCEITO DO CRIME ele de manter a ordem no interior. Cabe-lhe, então, ditar as norma s necessá-
riasjj. Jiarmonia & equilíbrio, spçjaú, ~~
SUMÁRIO: 49. Conceitos do crime. 50. O conceito dogmático. 51. A ação. É exato que variam os modos por que pode conseguir essa finalidade,
52. A tipicidade. 53. A antijuridicidade. 54. A culpabilidade. 55. A como ela própriaNem determinado momento, apresentará um conteúdo dis-
punibilidade. 56. Pressupostos do crime e condições objetivas de punibilidade. tinto e diferente, de acordo com a evolução e peculiaridades históricas e
57. Ilícito penal e ilícito civil. sociais. Mas, de qualquer maneira, como co ndição da própria existência,
tem ele de velar pela paz, segurança P. ^síaibjjjjdfl^.f-..ÇÇletivas, nõ^ênttichogue
dejuteresses dqsJndÍ¥&luQvdetemiinado por condições naturais e sociais
49. Conceitos do crime. Já vimos, nos n. 22 e 24, as considerações de diversas -
Carrara e Garofalo acerca do delito. Sua conceituação varia conforme o ângulo Asnormas legais, por ele ditadas, têm, entã o, a finalidade de tutelar
por que é visto, o que depende da compreensão e extensão que se der ao bejis-interesses. r^ecejsárÍQS_àxoexistência sociaiT£jatendendp-se_con2p bêrh
direito penal. o que satisfaz às necessidades da existência do indivíduo na vida em so cie-
Em regra, definem_os_autores..ojerimejob_o aspecto formal ou subs - dâde, e como interesse a representação psicológica desse bem, a sua estima,
como pondera Rocco2.
tancial. -
O primeirpjem como ppnto_de.xeferênçia a lei: crime éj^fato irtdivi- Mas_oJEsjad^^lray.4s_^.toeitp J.ra^íza_esse.s bens^iiiteresses^ pois a
á b ^ l t humana (JV infringp a..lpipggg1 Nesse sentido, ofensa à alguns deles fere maísfnniin o bem comum, já por atingir condições
define-o Maggiore como "ogni azione legalmente punibile" 1. materiais basilares para a coletividade, já por atentar contra condições éticas
fundamentais. Dada, então, sua relevância, protege-os com a sanção mais
Todaviaa^efinição^formal nãa.esgola ..aassiinto. Há nela sempre uma
severa, que é a pena.
peticãõWprmcípiã Por que essa conduta transgride a lei? Qual a razão que
levou o legislador a puni-la? Qual o critério que adotou para distingui-la de Consequentemente, crime é a crmdnr.a humana que, le.sa ou expõe a perigo
1
outras ações também lesivas? Diversas outras questões podem ainda ser for - um bem jurídico protegido pela lei penal. Sua essência é a ofensa ao bem
muladas. jurídico^...pois, toda norma penal tem por finalidade sua tutela.
Visa a definição substancial à consideração ontológica do delito. Garofalo,
como àpõhTarrios, procurou-a no delito natural, tendo-o como a ofensa aos p jy^
sentimentos altruístas de piedade e probidade comuns aos indivíduos na 4eJ5JUJídiciÊÍricorrendo seu autor no juízo de censura ou repjroyaçãq^gcial.
comunhão social. Essa concepção do delito natural, entretanto, não procede, Considera-se, então, o delito como a arão típica, antijurídica e culpável. Ele
como não se justificam outras dos Positivistas-Naturalistas. não existe sem uma arãn (rnmprRRnrte.nHo tamhém a omissão\ a qual se
deve ajustar à figura ije.srrita na 1?i npr.r-çp ar> d;reito e ser atribuível ao
indivíduo a título de_culpa lato sensu (dolo ou culpa).
50. O conceito dogmático. A ação humana, para ser criminosa, há de corresponder objetivamente à condi!tã'7ta?CTrr;r-prtn teir õ ^ f B l 4
1. Maggiore, Diritto penale, cit., v. 1, p. 189. 2. Arturo Rocco, Uoggetto dei recto, 1913, p. 444 e s.
98 PARTE GERAL DO CRIME 99

51. A ação. É a ação o primeiro momento objetivo ou material do deli- Acreditamos não ser de seguir-se o ensinamento de Welzel: ele leva ao
to. Sem ela, este não existe. Dá-lhe corpo e, não raro, é somente ela que o juízo valorativo da ação em momento não-oportuno; na análise do elemento
revela no mundo exterior. Compreende a ação propriamente dita, em sentido subjetivo do delito é que é seu lugar adequado.
estrito ou positivo, e a omissão ou ação negativa. Ambas são comportamento Ocorre que o vigente Código Penal, em razão da modificação introduzida
Humano, importando em fazer ou nãojazer. Tanto uma como outra integram quanto à estrutura do erro e somente por tal motivo, tornou polémica a ques-
o fato humano e conseqiientemente o crime. tão sobre se adotada a teoria da ação finalista. Em sentido afirmativo, isto é,
A ação positiva é sempre constituída pelo movimento do corpo, quer houve modificação para a adoção da teoria finalista, manifestaram-se os ilustres
por meio dos membros^locomotores, quer por meio de músculos, como se dá Professores Damásio E. de Jesus, Manuel Pedro Pimentel e Heleno Fragoso.
com a palavra ou o olhar. A nós parece que não ocorreu tal inovação, continuando a legislação a
Quanto íi Jição negativa ou omissão, entra no conceito de ação (genus) trilhar seu caminho tradicional.
dengue é espécie. Ê também um comportamento ou conduta e, conseqiiente- Com relação ao erro, a modificação introduzida consistiu apenas na
mente, manifestaição externa, que, embora não se concretize namaterialidade adoção de uma solução que em absoluto se restringe ao finalismo, tanto que
de um movimento Corpóreo — an^.^f ahvtpn^ãnj]^^. movimento — por compatível com a teoria social da ação. Tal fato, isto é, a nova estrutura do
de um movimento Corpó ^^f ^j] p erro, não obriga necessariamente a aceitação de uma nova estrutura do cri-
nós,é percebida covA&realidade^camosucedido ou realizado. Pergunta, com me. Saliente-se que os nobres autores e mestres citados já adotavam como
oportunidade, Massimo Punzo, se não é exato que as flores secam tanto fixação doutrinária a teoria da ação finalista, seguidores de Hans Welzel, o
quando o jardineiro não as rega, como quando as água com uma solução de que também os teria levado a concluir pela modificação, aplaudindo o prin-
sublimado?3 cípio por eles prestigiado.
E ambas são sujeitas à vontade, mesmg^uandojculposas^porque a.cul- O juiz e jurista Ricardo Andreucci, um dos autores do Anteprojeto do
pa é oriunda da falta de atengão e esta acha-se sob o domínio jaqueta. A vigente Código, portanto, em interpretação autêntica, afirmou que na verdade
vontade concentra a atenção sobre um objeto ou a afasta. Não se pode, ao não surgiu um novo Código, mas apenas uma lei de reforma, conservando a
mesmo tempo, omitir e estar atento em relação a uma coisa ou um fato. filosofia do anterior5.
Sumarissimamente exposto, é o que ocorre com a ação e omissão sob
o ponto de vista naturalista. Mas ao direito penal elas só interessam miando 52. A tipicidade. Para ser crime, é mister ser típica a agãosjstoé^deve
têm relevância, quandojmportam o descun>primpJqto_4orn dever JVT'4Í.-cp a atuaçãojdo' sujeito ativo do delito ter tipicidade, Átuar tipicamente. é_agir_de
ou se opõeni_ao_cQ^<7"/^n ^a norma le,gal, o que lhes dá o conteúdo acordo com O tipo. Este^ é, a âetcri^nn dtí.aanãutn, humnryq fejtq pela-LiLf
Mr
normativc ""fi?nrffnff nn crime -Mn sua integralidade, compõe-se do núcleo, desig-
nado por um verbo {matar, subtrair, seduzir ete); de referências ao sujeito
Ulteriormente, tem tido muita divulgação o conceito da ação finalista,
ativo, isto é, condições ou qualidades que se devem encontrar no agente (militãrT
máxime devido aos estudos de Hans Welzel: "La acción humana es el ejercicio
funcionário público, pai, médico ete), ao sujeito passivo (Estado, mãe, filho
de Ia actividad finalista. La acción es, por Io tanto, un acontecer 'finalista' y
menor ete), ao objeto material (coisa móveí, íõcuníênto, selo ete), que
no solamente 'causal' "4.
frequentemente se confunde com o sujeito passivo, v. g., no homicídio, em
Não se nega seja a ação finalista;_g\2Lé a-atividade dirigida a um fim. que o homem é sujeito passivo e objeto material; referências não raras en-
Entretanto dita teoria desloca apenas o problema: considera o fim no estudo contramos, ainda, ao tempo, lugar, ocasião e meios empregados.
da ação, tirando-o da culpabilidade e tornando vazio o dolo.
São esses elementos que dão estrutura aos tipos de mera descrição ob-
jetiva, tipos normais, consoante Asiía.
3. Massimo Punzo, // problema delia causalità materiale, 1951, p. 75. Sem a devida
atenção, Paulo José da Costa Jr. (Do nexo causal, p. 37, nota 137) considera-nos natu Outros elementos, entretanto, existem que, às vezes, aparecem, tirando
ralista, por havermos citado Punzo. Fizemo-lo apenas para contrariar os que negam a
realidade da omissão. Linhas adiante do texto, verifica-se que nos filiamos à teoria normativa. 5. Reforma penal, p. 117.
4. Hans Welzel, Derecho penal, trad. Fontán Balestra, 1956, p. 38.
100 PARTE GERAL DO CRIME 101

ao tipo sua característica objetiva e descritiva. São elementos subjetivos do fato e o direito. Ela se reduz a um juízo, a uma estimativa do comportamento
injusto e normativos, que informam os tipos anormais, ainda segundo o humano, pois o direito penal outra coisa não é que um complexo de normas
mesmo autor. que tutelam e protegem as exigências ético-sociais. O delito é, pois, a viola-
Os elementos subjetivos do injusto estremam-se de outros de natureza ção de uma dessas normas.
subjetiva, que se referem à culpabilidade (como quando a lei exige no homi- Taj_conceito se completajjor eiccl nsã£&Jsto_é, pela consideraçãode
cídio a voluntariedade, para distingui-lo do culposo), por serem ambivalentes, causasjgue excluem a antijundicjdjde^^Será.antijurídico um fato definidojia.
pois, conquanto se refiram à culpabilidade, relacionam-se também ao injus- lei^enal^sempxÊjqiie. não for protegido por causas justificativas, também
to, como acontece com o crime do art. 289, § 2.°, do Código, com a expres- eslabelecidas-por ela, como se dá com o art. 23 do Código.
são "depois de conhecer a falsidade"; ou que aludem ao fim do agente nos
Assim, se um homem mata outro em legítima defesa, realiza tipicamen-
chamados delitos de intenção; ou que correspondem ao motivo delituoso.
te um homicídio (art. 121), porém não há crime, por inexistir antijuridicidade,
São propriamente elementos subjetivos do injusto, perante nossa lei, os que em face do art. 23, II. Vê-se, pois, mais uma vez, que a tipicidade é elemento
se designam sob expressões como "em proveito próprio ou de outrem" (art. indiciário da antijuridicidade.
161, § 1.°, I), "com o intuito de" (art. 171, § 2.°, V), "para fim" (arts. 219 e
221), "conhecendo essa circunstância" (art. 235, § 1.°), "por motivo de" (art. Assunto dejrelgyo_é_flue esta jode ser considerada sob os aspectos for-
208), e outros. maLs.maí£XÍaL A_rjrimeira é aquelaa que nos estamos referindo: a oposição
a uma norma legal. A segunda projeta-se fora do direito^)osiTfv"o~,~pÕIs~sé
Os elementos normativos dizem respeito à antijuridicidade e são desig-
constitui da contrariedade do fato às condições vitais de coexistência social
nados por expressões como "indevidamente" (art. 151), "sem justa causa" ou de vida comunitária, as quais, protegidas pela norma, se transformam em
(arts. 153, 154 e 244), "sem consentimento de quem de direito" (art. 164), bens jurídicos, como se falou no n. 49, sendo óbvio que a matéria, 4&-que-ofa
"sem licença da autoridade competente" (art. 166), "fraudulentamente" (art. sejtrata, se encontra estritamente relacionada com o conceito material e for-
177), e mais algumas. maLdo, crime, objeto do citado parágrafo.
São esses os elementos que entram na constituição dos tipos normais e Tais considerações levam à essência da antijuridicidade, mas acham-se
anormais, segundo a classificação de Asúa. em terreno metajurídico. Outras concepções existem para dar o fundamento
Ao mesmo tempo en^que o legisladas definindo o delito, cria o tipo , da antijuridicidade material, como a de Alexander Graf zu Dohna — a do
exige o interesse individual, em todo tegime.de liberdade. que_a acjío huma- meio justo para um fim justo: "Esta falta, cuando Ia acción concreta, medida
na se lhe~ãluste. É o que se denomina tipicidade. Consequentemente, não con Ia idea básica dei derecho como un orden de protección de nuestra cul-
existe crime sem tipicidade, istCLê^sem que," fato se enquadre, p.m um tipo. tura social, aparece como un médio justo para un fin justo"6, concepção que
4) q^iiTl^ãFWTf^yjTJ^JigJJ imp sprn )pi anterior que, o defina (Nullum não deixa de ser vaga. Apontam-se, ainda, as normas de cultura de Mayer
crimen sine lege). (normas de religião, costumes, educação, intercâmbio moral, cultural, eco-
nómico, social, técnico etc), quando o ilícito é violação delas, o que não
Deve-se a Beling a criação da doutrina da tipicidade, que recebeu no-
impede, entretanto, de, uma vez ou outra, o legislador se pôr em contradi-
tável impulso com Mayer, insistindo em que ela é elemento indiciário da ção com elas, de modo que nem sempre as leis cristalizam normas dessa
antijuridicidade. natureza7.
Realmente, a função punitiva não se contenta apenas com a tipicidade. Não há dúvida de que a antijuridicidade. material, romo a
Um fato pode ser típico e não ser criminoso ou antijurídico, como veremos O^CjOJU^Údp_da_formal. Fila jTrjffnfa n lepistaHnr nn Q^ntirln
dentro em pouco. norma aqueles imperativos e exigências, da vida coleliyjLjQxmflLessência,
A tipicidade vem a ser, assim, indício ou ratio cognoscendi da Çoisjajíei, ela entra no texre.no juridico,-
antijuridicidade.
6. Alexander Graf zu Dohna, La estructura de Ia teoria dei delito, trad. Fontán
.S3./4 7intíjuríãlcidãde}A_^ão é antiiurídica ou ilícita quando é contrá- Balestra, p. 45.
ria ao direitCv-A-antijuridicidade exprime uma relação de oposição entre o 7. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 200, nota 21.
102 PARTE GERAL DO CRIME 103

Todavia, se um fato atentar contra os interesses sociais, mas não for 54. A culpabilidade. Além de típica e antijurídica, deve a ação ser cul-
contemplado pela norma, não poderá ser tido como antijurídico ou ilícito pável. Trata-se do elemento subjetivo do delito^ O resultado lesivo ao direi
penal. A preponderância há de ser da antijuridicidade formal. Nem a outra ttvoriundo da ação dcTsujeito ativo, ha dFser-lhe atribuído a título de culpa,
conclusão leva o princípio da reserva da lei, o nullum crimen, nulla poena em sentido amplo, isto é, dolo ou culpa.
sine lege. Inadmissível é a responsabilidade objetiva, triunfante de há muito o
A antijuridicidade represpnta nni jnf/n He valor em relação ao fato le- princípio nullum crimen sine culpa. ~
sivo do^êrnjurídico^ E sua apreciação é puramente objetiva, não dependen - ~~
do de condições próprias do autor do fato: tanto é ilícito o homicídio come- Mas cifra-se a culpabilidade exclusivamente no elemento subjetivo, ou,
tido por um homem normal como por ujn^lienadoJ_Em ambos os casos há além deste, outros existem a informá-la?
antijuridicidade; a diferença é que no último não existe agente culpável e,
consequentemente, punição. Mas a consideração que se faz das condições Duas teorias disputam, hoje, a primazia na formulação de seu conceito:
psíquicas do autor do fato, para se aferir a culpabilidade, é estranha à ilicitude. uma denominada psicológica e outra, normativa.
Noutras palavras, sintetiza Aníbal Bruno: "A vontade com que o sujeito atua, Para_aj>rjmeirat a culpabilidade exauie-se no dolo ou na culpa. Culpá-
ineficaz para formar o núcleo da culpabilidade, é válida para constituir a veLéLQJndiyíduo que consciente ou inadvertidamente praticou a ação vedada
ação ilícita"8. emjei^agindo com dolo no primeiro caso e culpa stricto sensu no segundo.
Isso, sem embargo de se reconhecer, como já ficou dito, que o tipo, às Consoante a teoria normativa, a culpabilidade é, sobretudo, um juízo
vezes, contém elementos de natureza subjetiva, que dão a medida do juízo de reprovação contra o autor de um ato, porque a todos compete agir de
valorativo acerca do fato. Os coeficientes subjetivos do tipo são conditio acordo com a norma, segundo o dever jurídico, que tutela os interesses
sine qua non do juízo objetivo que se formula ao indagar-se da ilicitude do sociais. O procedimento contrário é que, então, dá substância à culpabilidade.
fato. Sem esses elementos subjetivos, este não pode ser objeto do juízo de Estamos que as duas opiniões se conciliam e mesmo se completam.
valor: eles representam, como diz Bettiol, "il limite ai di là dei quale non c'è
alcuna possibilita di valutazione"9. Primeiramente, diga-se que falar de culpabilidade, prescindindo do dolo
e da culpa, é olvidar de todo a realidade. O conteúdo da vontade_culp_áyeXé
Assunto por demais controvertido é o das causas supralegais de
i para ser relegado a jsegundíi-plano. Será culpável o louco
antijuridicidade — ligado, aliás, ao das fontes do direito e à antijuridicidade
que pratica um ato contrário à lei? Incorre no juízo de reprovação social o
formal e material — provocando acalorados debates e congregando nomes
ato do absolutamente incapaz?
do maior realce do mundo jurídico. Entre nós, entusiasticamente é por
sua admissão José Frederico Marques; combate-as com ardor Nelson Por outro lado, a teoria normativa se impõe, por ser a que nos mostra_
Hungria. vontade encontraria à que o. indivíduo devia ter, à que. ele_era
A nós nos parece que a opinião afirmativa de que nem toda causa excludente obrigado.
do injusto está contida na lei vai predominando. A culpabilidade, como reprovabilidade que é, não prescinde do antagp-
Certo é que, em matéria do ilícito, deve ser o direito penal impenetrá- ^ S í ^ S - (elemento psicológico) e_ a von-
vel, a tudo presidindo e dominando os tipos legais que ele define. ^^_^^èÉd^MSí^S ( p g ) _
Mas, no tocante à licitude, a vida prática pode apresentar casos que tade da norma (elemento valorativo). Já que esta dita ao indivíduo, um pro-
C
verdadeiramente mostram que a lei não esgota o direito, e, então, excepcio- ®ÉÊLÍ?-.deteiminadafeEQaadfcífproya^o por assim ,não ter3JQdo,J^o facto
nalmente, há de se ir buscar em preceitos de outros ramos jurídicos, no cos- não pode negar a existência de-juna vontade contrária à sua.
tume e na analogia, a extraordinária licitude da ação típica. As duas teorias operam em setores diferentes; porém não se repudiam^
porque~ã~psicològlca vincula, estritamente o indivíduo ao ato, enquanto JT
8. Aníbal Bruno, Direito penal, cit., t. 1, p. 351. n^ma^a refere-se £i^çitjidej£sse proceder. Destacam-se, pois^ na culga-
9. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 2, p. 111. bilidade, esses dois elementos: o normativo, ligando a pessoajLordejmjurí-
dica, e o psicológico^ vincujandj^jmbjejj^^ praticado.
É^pois, a culpabilidade psicológico-normativa .
104 PARTE GERAL DO CRIME 105

Elemento seu é também a imputabilidade. Imputável dizjjgjjjndivíduo tos e determinados, máxime na esfera dolosa. Além de ser necessária bastan-
mentalmente^o^ou, na linguagem do art. 26 do Código — quando define o te atenção ao juízo de avaliação dos bens jurídicos, fazendo-se com que o de
inimputável — o capaz de entender o caráter criminoso de seu ato ou de maior valor prevaleça, é mister cautelas especiais em matéria de dolo. Com
determinar-se de acordo com esse entendimento. Adquire ele tal capacidade efeito, na culpa tem-se um resultado reprovável, porém possível apenas, ao
com o desenvolvimento biológico e com a vida em sociedade. passo que, no dolo, o evento é certo, o que faz, portanto, que mais
Se a culpabilidade é juízo deieprovação social, é censurabilidade; compõe- facilmente lá não se exija outra conduta. Nos exemplos citados, mais
se de outro elemento: a exigibilidade de outra conduta. Culpável é a pessoa aceitável é a absolvição do cavalariço do que a da obstetra12.
que praticou o fato, quando outra conduta lhe era exigida, e, ao revés, ex- Como quer que seja, a exigibilidade de conduta diversa é decorrência
clui-se a culpa pela inexigibilidade de comportamento diverso do que o in- da concepção normativa da culpabilidade13.
divíduo teve.
Do exposto conclui-se que esta se compõe da imputabilidade, do ele-
O Tribunal do Reich aplicou esta causa excludente da culpabilidade no mento psicológico-normativo e da exigibilidade de outro comportamento. .N
conhecido caso do proprietário de um cavalo indócil, que, sob pena de des-
pedir o empregado, mandou que cavalgasse em plena rua, do que resultou o Finalizando, diremos que, de acordo com as considerações tecidas em
atropelamento de um transeunte. Negaram os juizes a culpabilidade do acu- torno do conceito dogmático do delito, o princípio nullum crimen sine lege
sado, pois ele não podia ter outra conduta: inexigível era que perdesse o adquire, hoje, maior vigor e precisão com a fórmula nullum crimen sine
emprego, não executando a ordem dada. typo, sine culpa et nisi contra jus.
Aplicação da referida causa ainda houve, no mesmo tribunal, no caso Uma observação necessária: para os que adotam a teoria da ação
dos mineiros que combinaram que, no dia do nascimento do filho de um finalista, o estudo sobre o dolo fica deslocado do capítulo da culpabilidade
deles, o pai não iria trabalhar e perceberia do mesmo modo seu jornal, pelo para o da ação.
que impuseram à obstetra da região, sob pena de não se valerem de seus
serviços, que, caso algum nascimento ocorresse em domingo, declarasse ter- 55. A punibilidade. Crime é a ação típica,, antijurídica ej:uÍBáveL Não
se dado em dia útil, o que a levou a várias inscrições falsas no Registro. se deverá apontar Jambérr^ a_pjnibilidade como elemento seu?
Reconheceu-se igualmente a inexigibilidade de outra conduta. Diversos autores opinam pela afirmativa, e já nos manifestamos, nesse
Advirta-se que não estamos em zona pacífica. Numerosos autores a sentido, embora incidentemente14. Battaglini defende calorosamente a inclu-
aceitam apenas como fundamento de causa prevista em lei — como ocorre são da punibilidade no conceito do delito; tem-na como elemento inte-
com o estado de necessidade (art. 24) — não, porém, como supralegal10. grante15.
Outros, entretanto, aceitam-na com amplitude: "Cabe admitir a não- Prevalece, entretanto, a opinião contrária. Para Sauer, o_crimeé pressu-
exigibilidade de conduta diversa com o caráter de causa geral de exclusão da posto da pena: a antijuridicidcde tipificada e a culpabilidade "tienen que
culpabilidade, em qualquer de suas formas, dolo ou culpa. Tal princípio está satisfacer a cada paso en su más amplia configuración ai espíritu de Ia
realmente implícito no Código e pode aplicar-se por analogia a casos seme- punibilidad; deben ser ai mismo tiempo presupuestos de Ia punibilidad"16.
lhantes aos expressamente previstos no sistema. Na realidade, são casos de
verdadeiras lacunas da lei, que a analogia vem cobrir pela aplicação de um
12. E. Magalhães Noronha, Do crime culposo, p. 131.
princípio latente no sistema legal. É a analogia in bonam partem, que reco-
12. Consagrava, expressamente, como causa excludente da culpabilidade a não-
nhecemos como tendo aplicação no Direito Penal"". exigibilidade de outra conduta, o Anteprojeto Nelson Hungria (art. 22), limitando-se,
A respeito, tivemos ocasião de escrever que, hoje, a doutrina dominante prudentemente, à defesa de direito só do parente em linha reta, irmão ou cônjuge, nisso
admite a não-exigibilidade de outra conduta, mas em casos muito restri- acompanhando o Código grego (art. 32).
13. Do crime culposo, cit., p. 102.
10. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 202. 14. Battaglini, Diritto penale, cit., p. 275 e s.
11. Aníbal Bruno, Direito penal, cit., t. 2, p. 484. 15. Sauer, Derecho penal, cit., p. 38.
DO CRIME 107

Também Mezger: "Delito en sentido amplio es Ia acción punible entendida com as condições de procedibilidade e terceiros ainda as consideram diver-
como el conjunto de los presupuestos de Ia pena"17. samente.
A pena, então,jião integra o delito^jjoj^ser este seu pressuposto. Real- Não vemos sempre nítida a distinção entre condições objetivas de
punibilidade e de procedibilidade. Para alguns, até, como Asúa, "son autênticas
mente, tê-la como constitutiva do crimeé considerar coma elemento da cait_
condiciones objetivas y extrínsecas de penalidad los presupuestos procesales
s_a.Q._efeito, expresa o tacitamente exigidos en Ias leyes punitivas, ai describir y penar
Se é exato que ela é inseparável dele, no momento da cominação, não una concreta figura de delito"20. E aponta como casos de condição de punibilidade
é menos certo que pode faltar na aplicação. Com segurança escreve Hungria a declaração da falência e a sentença de divórcio, para o processo por
que um fato pode ser típico, antijurídico, culpado e ameaçado com pena (m adultério.
thesi), isto é, criminoso, e, no entanto, anormalmente deixar de acarretar a Se a punibilidade efetiva está sujeita a procedibilidade — nulla poena
efetiva imposição de pena, como nas causas pessoais de exclusão de pena sine judicio — parece-nos que realmente as duas circunstâncias se confun-
(eximentes, escusas absolutórias), tal qual se dá no furto familiar (art. 181, dem. De qualquer maneira, se distinção houver, será nenhuma no terreno
I e II) e no favorecimento pessoal (art. 348, § 2.°), nas causas de extinção de prático.
punibilidade e nas extintivas condicionais (livramento condicional e sursis), Em regra, tem-se como condição objetjyja (estranha, portanto, à culpa
em que não há aplicação de pena, mas o crime permanece 18. do agente) de punibilidade a circunstância extrínseca ao delito^ daxnial de-
A pena vem a ser, então, um efeito do delito. É sua consequência ou^ pende a punição deste. Além dos casos apontados, pode citar-se ainda a sen-
resultado. tença anulatória do casamento, no delito do art. 236.

56. Pressupostos do crime e condições objetivas de punibilidade. 57. Ilícito penal e ilícito civil. Várias teorias têm sido excogitadas para
Comumente falam os autores nos pressupostos do delito, dando-lhes, aliás, se traçar uma linha divisória entre o ilícito penal e o civil; porém nenhuma
conceitos diversos. Para outros, carecem de importância na análise do cri- delas satisfaz, nenhuma resistiu às críticas que lhe foram opostas.
me: "Invero, sulla base dia una considerazione finalistica Ia categoria dei Realmente, não há distinção ontológica entre o delito penal e o delito
presupposti dei reato perde Ia sua ragione di esistenza perche essa risponde ^Ji^ g
ad una esigenza di puro ordine sistemático che non ha a che vedere con i esta é um mal, não só para o delinquente e para sua família (que por ele
valore tutelati"19. sempre paga) como para o próprio Estado, obrigado a gastos e dispêndios.
Muitos, entretanto, costumam distinguir os pressupostos dos elementos Conseqiientemente, toda vez que a ordem jurídica se contenta com san-
integrantes do crime. A distinção é cabível, tendo-se em vista o crime como ção diversa da penal, não há razão para não ser aplicada.
fato, pois, no terreno normativo, eles integram o tipo. O problema é antes valorativo. A_sanção penal destina-se, em regra, às
Pressupostos são, então, os estudos, situações ou circunstância^ anterio- ofensas de maior vulto, que mais seriamente atentam contra os interesses
sociais. Cabe ao legislador a valorização do bem jurídico, determinando quais
rfts^pygrii£ãn d.0 fãtn r.riminnsõf j]i|ifjhf- fâtt Mrnrtpris.úrn Jfll. f- ntnr> ^
os que devem ficar sob a égide da sanção extrema que é a pena.
qualidã3ê"de7^nciongn'g público, v. g., no crime de peculato, (art. 312), que
Diferença de essência não apresentam, assim, os dois ilícitos. A distin-
não4iassa-de_apror)riação indébita (art. 168) pratica^ p"r aq»plp nr> pygrrí- a só. Em regra devia importar sempre uma pena, porém
cio da juncão. l
Quanto às condições objetivas de punibilidade, não se trata também de
matéria pacífica: uns negam a utilidade da distinção, outros confundem-nas
17. Mezger, Criminologia, cit., p. 159.
18. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 203. 20. Asúa, La ley, cit., p. 456.
19. Bettiol, Diritto penale, 1945, p. 137.

Diga-se o mesmo do ilícito administrativo.


DO CRIME 109

II ético universal, mas é punida exclusivamente por mera utilidade social.


Um atentaria contra a segurança social; outra somente lesaria a prospe-
DIVISÃO DOS CRIMES ridade.
Outros viram a diferença em que o crime ou delito é sempre a ofensa a
um direito subjetivo, ao passo que a contravenção será simples desobediência.
SUMÁRIO: 58. Quanto à gravidade. 59. Quanto à forma de ação. 60. Ou-
tras categorias. Doutrina existe, ao que parece, inspirada no Código de Zanardelli, sus-
tentando que o crime produz sempre uma lesão, ao passo que a contravenção
importa somente um perigo.
58. Quanto à gravidade. Podem as infrações penais, quanto à sua gra- Para Rocco, a fim de se estabelecer o conceito de contravenção, deve
vidade, dividir-se em crimes, delitos e contravenções (sistema tricotômico) partir-se da administração estatal, declarando: "II concetto delle contravvenzione
e crimes ou delitos e contravenções (sistema dicotômico ou bipartido). si ricava appunto dal concetto di amininistrazione. Invero le contravvenzione
sono azioni e ommissione contrarie all'interesse di amministrazione o inte-
Na França, Alemanha e Bélgica, adota-se o primeiro. O Código Penal resse amministrativo dello Stato..."2.
francês dispõe no art. 1.°: "A infração que as leis punem com penas de po-
lícia é uma contravenção. A infração que as leis punem com penas correcionais Inútil parece-nos prosseguir na enumeração de teorias, pois a verdadç.
é um delito. A infração que as leis punem com uma pena aflitiva ou infamante é jjué"nênhuma^apresenta urnjyitério seguro e constante, pelo qual se distin-
é um crime". Este é julgado pelos tribunais criminais; os correcionais julgam êa_2.dejhojda_contrjvenç.ão. Assim, a distinção pelo dano concreto e o peri-
^onãoTproçgjd,eJ^)Qxqu&McrimesJambJnijd^p^rigoLeste_não_.éjjrivativo da
os delitos; e os de polícia, as contravenções.
contravenção. Distingui-lQSJ.pela segurança e prosperidade é improcedente,
Entre nós?_a_d_iyisão dicotômica é tradicional. Consagrou-a o Código de poig^ a ofensa a esta é também àquela. Quanto ao interesse administrativo do
1830 e mantiveram-na os posteriores. Estado^éjle_observar a existência de crimes contra a administração e o inte-
Não vemos a utilidade da divisão tripartida. Ontologicamente não se resse estatal puramente administrativo.
distinguem crime e delito: a diferença reside na pena. É o que vemos tam- Não existejtiferp.nçi^ ^itíjfitntivíi entre, crime e contravenção. Esta, em
bém no Código Penal belga (art. 1.°), dizendo Goedseels: "Les infractions se pontojnejnqr, _pode apresentar todos os característicos do delito. A contra-
divisent théoriquement, d'après le Code Penal, en crimes, en délits et en vençâoT cojno s^e^^slUJia.dizejj^Jjiiaxrjrpe. nnãn. BalHnrlos serão os esfor-
contraventions suivant que les lois ou les règlements les sanctionnent de peines ços para, substancialmente, querer diferenciá-los. Se, como dissemos no número
criminelles, correctionelles ou de police"1. anterior, a ilicitude é uma só, vão será querer buscar distinção ontológica
Não há dúvida de que os mesmos elementos que se deparam no crime entre eles. A diferença é quantitativa: a contravenção é um crime menpr t é
se apresentam igualmente no delito. Tnexíste diferença de essencTFéntrê^eles; menos grave que o delito.
aliás, se, como deixamos dito, não se distinguem ontologicamente o ilícito Mais profícuo será, por certo, encontrar critérios que os distingam, não
penal e o civil, menos ainda se estremarão crime e delito. ou
especulativamente, mas de modo concreto, diante do direito po-
Dá-se o mesmo com a contravenção. Várias têm sido as teorias formu-
^ : ,
ladas. Carrara e Carmignani quiseram ver diferença ontológica entre eles, r

Eçn^nossa, legislação^é_ele_dado^ pelajpencL O nosso primeiro Código


dizendo que a contravenção não ofende ao direito naturalcomum e ao princípio
Penal já classificava os ilícitos penais em duas categorias: crimes e contra-
1. Jos. M. C. X. Goedseels, Commentaire du Code Penal belge, 1948, v. 4, p. 8. venções. Tal distinção tem sua origem no direito romano, para o qual o crime
seria a infração ofensiva aos direitos naturais, ao passo que a contravenção
constitui a ofensa dos direitos criados pela conveniência do bem-estar de
todos. É o ensinamento de Ulpiano.

2. Rocco, Voggetto, cit., p. 353.


110 PARTE GERAL DO CRIME 111

A classificação dicotômica (crimes ou delitos e contravenções) foi con- perigo concreto,não estando os autores
servada em todas as legislações posteriores. A classificação tripartida (cri-
3. S. Ranieri, Reato progressivo e progressione criminosa, 1942, p. 13.
mes, delitos e contravenções) é hoje puramente histórica, sem nenhum fun-
damento científico razoável.
59. Quanto à forma de açãõ^O delito é ação, donde, consequentemen-
te, a forma desta pode oferecer um critério para sua classificação._Segundo_
ela, diz-se instantâneo o crime, quando se exaure com o resultado aque está
subordinado. A instantaneidade não significa rapidez ou brevidade física da
ação, como sói acontecer com o homicídio, que pode apresentar diversas
fases ou fatos, mas cuja consumação se realiza em um instante.
Delito permanente é aquele cuja consumação se prolonga no tempo,
dependente da atiyidade^ acjíojm omissão, do_jaiieito_jJiyfl^cjQmp sucede no
^^^l. Não se. confu nde^om o^^Qjnstantâne o de efeitos per-
rarcfj_^^^iíl
manentes, em que^_p^mian^cia dkjjifeito não depende do prolongamento
da ação do delinquente: homicídio, furto etc.
Crime continuado, na forma do art. 71, é. o constituído por duas ou mais
wolaçõesjurídicas da mesma espécie, praticadas por uma ou pelas mesmas
pessoas, sucessivamentej^sjm^ocorrência de puniçãojm^ quglguer_daquelasT
as quais cons^tuejnjumjo^ojimitgrJQ,.eiQ virtude jdajiompgeneidade objeti-
VJL .Quando se trata de bens jurídicos ou objetividades jurídicas, eminente-
mente pessoais, com pluralidade de vítimas, não se configura o crime conti-
nuado; assim, dois ou três homicídios, duas ou três seduções (art. 217) etc.
^Crime progressivo se tem quando um tipo, abstratamente considerado,
contém outro, dejnodoquesua realização não se pode verificar, senão pas-

se.
p pela realização án que ele contém3.
Delito material é ac^m\et^m
-^Crimes formais ou de simples atividade são OS..quejÃQ exigem a produ-
ção de um resultado estranho ou exterjLQ^ nrónria acão do delinquente. Di-
Zelri^sejambém crimes de mera conduta ou sem resultado. Sua característica
èque a lesão ao bem jurídico (evento) se dá tão-só com a simples ação ou
conduta, ao passo que os outros só o conseguem com a consequência ou
efeito da ação. São crimes formais a injúria, ajdifamação e a calúnia.
Crimes de dnnn são os qi^e só se consumam com a efetiva lesão do bem
jurídico tutelado: JiomW^i^ Wrfrs corporais etc
> os que se contentam com a probabilidade de dano.
C^rim^jjfjrpr^i q ^ A respeito, fala-se em perigo abstraio e
concordes em seu conceito. Já tivemos ocasião de escrever que há perigo
abstrato quando a lei o considera como resultantejlej:ertas ações, baseada
em regras HítãcTas pela experiência ou pela lição dos fatos. Há, então, pre-
sunçãode perigo. Será concreto, quandojiecessitarde^er investigado e pío-
vã3õ7cãso por casch Assim^enayanto no perigo abstrato a atuação perigosa
éjíresumidc^ no concreto há de ser demonstrada no fato.
Delitos comissiyçsjão os^§_gxi^em atividadejgositiva produtora-Ho evento.
Crimes omissivps são QiQjj^QiendjrtnjpJbejnji^ cãõrconstítuj^fellsía,
dem^iila. integrante JJCLlipo. Assim, o crime do art. 269 — "deixar o
médico de denunciar..." — o do art. 135 — "deixar de prestar assistência..."
— trata-se de crimes omissivos próprios. São< imgró-prios ou comissivos-
omissivos, quando a omissão é meio ou forma de se al- um rps|||tadn pnstpriar.-
o homicídio, em que a mãe deixa de aleitar o
filho
Crime unilateral é o que,pode-ser praticado por um jumeaindividuQ;
exige o encontro de_duas pessoas,.embora uma não seja cul-
páveL v. g., o adultério, a bigamia e o rapto consensual.
Ainda podem, os crimes^ ser /tflfc/i^g^çiuanç^tgduzgmuni mada~oa
estilo de vida, como n curnnApirismn (art. 284). Profissionais, quando a
AafcifHfl/irfaJej^caracteriza^pelo propósito de viver dos rendimentQS_do cri-
me, e não, em sentido restrito, como pretendem alguns, quando a pessoa faz da
profissão meio de praticar crimes, v. g., o obstetra, a parteira, o serralheiro etc.
Confunde-se criminoso profissional com profissional criminoso.
Ejcauridos&jliz um crime, quando, após a consumaçãq^é levado a outras
cgnsequênciasiejsiyas. Assim, no delito do art. 159, quando, após sequestrar a
pessoa com fim de resgate, o delinquente consegue este. A consecução do
resgate não é elemento do delito; basta ser o fim do delinquente.
Crime de ação múltipla é aquele em que o tipo contém várias modali-
dades de conduta delituosa, as quais. praticadas_cela.agente, constituem fa-
ses do mesmo crime, como ocorre com o art. 234.

60. Outras categorias. DÍ2em-se simples os crimes quando o tipo legal é


único, por exemplo, o homicídio. Neles, a lesão jurídica^jina. Complexo, em
sentido amplo, é não.só o que encerra em si outro, v. g., a denunciação
càTuTlIosá (ârt. J39) — pois contém a calúnia (art. 138) — como o que, além de
um delito, comporta outro elemento que não o é, tal qual ocorre com o
constrangimento ilegal (art. 146), que, ademais da violência física ou ameaça
(crimes), possui outro elemento (a ação ou omissão do ofendido), que, em si,
não é delito. É a concepção de alguns autores, como se poderá ver em
112 PARTE GERAL

Antolisei4. Complexo, em sentido estrito, que é_o_maÍ5 vulgarmente ejrnprej-


gado, é aquele cujo tipo é constituído pela fusão de dois QU mais tipos, por
exempIõTolatrocínio (furto e morte).,.
Delito unissubsistente é o que se compõe de apenas umato^como a
injilriaoraLjião admitindo tentativa; diz-se plurissubsistente quando os átõs" III
sãcTvários, havendo, àessarte, fases que podem ser cindidas; é possíveLen-
tãó,~ a tentativa" ~~ OS SUJEITOS E OS OBJETOS DO DELITO
O crime é qualificado quando o legislador, ao tipo básico, ou funda-
mental, agrega acidentalia que elevam ou majoram a pena, tal qual se dá SUMÁRIO: 61. O sujeito ativo. 62. O sujeito passivo. 63. O objeto jurídi-
como homicídio (art. 121 e § 2.°). Sejas_ circunstâncias são minorativas, isto co. 64. O objeto material.
é, se atenuam a pena, diz-se privilegiado, como ocorre ainda com o mesmo
delito (art. 121 e § 1.°). Às vezes, tendo em vista as referidas circunstâncias,
o legislador prefere definir novo tipo, inteiramente à parte, como sucede
com o roubo (art. 157), que é furto (art. 155) agravado pela violência, e com 61. O sujeito ativo. É queiygatica_a figura típica descrita na lei-É o
o infanticídio (art. 123), que é homicídio atenuado pela circunstância de a homem, é ajcriatura humana, isolada ou associada^ isto é, por autoria singu-
morte do filho ser dada pela própria mãe, durante o estado puerperal. O cri- larjju co-autoiâa-Só ele pode ser agente ou autor do crime.
me privilegiado denomina-se também exceptum. Pondo de lado a questão, inadmissível, nos dias de hoje, se os irracio-
Crime especial é o que exige determinada qualidade no sujeito ativo, nais ou entes inanimados podem ser agentes de delitos, surge o assunto rela-
seja de natureza social — funcionário público, militar etc., seja nátúraT71— tivo às pessoas jurídicas. Não nos referimos às de direito público externo,
mãeTTTtúTHirétcT É comum quando qualquer pessoa o pode cometer. situadas no campo do direito internacional público (onde, aliás, não existem
penas), mas às de direito privado.
Delito coletivo ou plurissubietivo, no dizer de Ranieri, é aquele para "cuja
noção abstraía é indispensável a conduta criminosa de várias pessoas, que a A respeito d^s^^^ojrrtr^rsiajibujTinária. Opinam unsjque as socie-
lei considera puníygis"5. Assim o delito do art. 288 — quadrilha ou bando. dadjes»!ãssociaçõevcorporações etc. podem delinqúir. enquanto outros regu-
djam a possibilidade.
Os crimes podem ainda ser principais e acessórios, conforme antece-
dem ou pressupõem outros: o furto é principal relativamente à receptação, Estes representam a corrente tradicional, que se mantém fiel ao princí
que é, então, acessório. pio do direito romano — societas delinquere non potest— correlativo a outro
concernente à individualidade da pena — peccata suos teneant auetores.
Finalmente, são os crimes comuns e políticas; enquanto "os primeiros
^ pessoas jurídi.casJaltamJmpmabiUdade, consciência e
atacam os bens ou interesses jurídicos do indivíduo, da família e da socieda-
por elas deliberando o} seres humanos que,as dirigem. Acrescen-
de, penalmente protegidos pelo Estado, os crimes políticos agridem a pró-
tam que as penas_de_iiireito penal não lhes são adequadas e que frequentemente
pria segurança interna ou externa do Estado ou são dirigidos contra a própria
^ J P"r aH"girp;'12_"(!J'"1iP^nentes inocentes.
personalidade deste"6.
Outras categorias delituosas podem ser apontadas, do que, entretanto,
nos dispensamos, ou por não oferecerem interesse, ou por constituírem ob-
jeto de estudo à parte, como acontece com os dolosos e culposos, de ação
pública e privada etc. Conquanto ela seja uma realidade jurídica, não nos parece que com
isso se resolva o problema. Aquela capacidade não se confunde com a de
4. Francesco Antolisei, Manuale di diritto penale; parte generale, 1949, p. 278 e s.
direito e obrigações de que goza no direito privado.
5. S. Ranieri, // concorso di piú persone in un reato, 1949, p. 265. Com efeito, é ela inconciliável com a culpabilidade, que, como vimos,
6. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 229. é psicológico-normativa, o que impede sua atribuirão à~pessda Túridicà. '
114 PARTE GERAL DO CRIME 115

Ao que se disse, acrescente-se, agora, a especialização e a individualização Concomitantemente^esLamQSjyendo que podem ser sujeitos passivos
da pena, como também a finalidade de reajustamento, tudo isso impraticável^ cjjgdvidades.destituídas-dfi personalidade jurídica, como a sociedade, o público,
cõrh á~pessõajurídica, pois requer:a exisl^da_.dQ^emelnto]6ísSõçiológico_. a_jamflia_etc.. A tais delitos os juristas germânicos denominam vagos.
Aliás, há dispositivos do Código Penal, onde o repúdio da responsabi- Distinguem-se o sujeito passivo de um crime e o prejudicado por ele.
lidade penal das pessoas jurídicas é expressamente declarado, como ocorre Este é qualquer pessoa a quem o delito haja causado um dano patrimonial
com o art. 177, onde, tratando de sociedade por ações, a lei sempre se refere ou não, tendo por consequência direito a ressarcimento e ação civil 3, ao
ao diretor, gerente ou fiscal. passo que aquele, como se falou, é o titular do interesse tutelado pela nor-
ma penal.
Cumpre, por fim, lembrar que a sociedade civil que se dedicar a fins
ilícitos ou imorais pode ser dissolvida, nos termos do Código de Processo 63. O objeto jurídico. Não obstante a variedade de opiniões e doutrinas
Civil (art. 670). que procuram conceituar o obieto jurídico de um crime, estamos que é ele o
Enfim, parecem-nos exatos os dizeres de Maggiore: "O conceito de bem-interesse protegido pela norma pepal. Bem é o qiiift_sgíis£a7-.aJWM_ne-
culpa_^estritamente pessoal: e a única, verdadeira Ê não=íictícia-persoaali- cessidade do homejn^^eiajje-natutega-flaaterial ou imaterial; vida, honra ejt£.
é. ^íã^ l ó i i d í e L Interesse é a rpi?ffi? psi^olágira em tornn í^fiss? bem, é sua estimativa, sua
Onde há um corpo e uma alma,.Munia vontade» uma liberdade^ vajorização. _
sabilidade. Todo o resto_aão á-senãajnetáfora .e ficção"1... Í——^Pode, evidentemente, o bem-interesse ser social, quando satisfaz dire-
itamente a imperativos sociais.
62. O sujeito passivo. É o titular do bem jurídico lesado ou ameaçado. Em regra, classificam os Códigos os delitos, tendo em atenção a obje-
É o homem. Protege-o a lei, mesmo antes de seu nascimento, iniciada-que~. tividade jurídica que a norma protege. Por meio dela, constituem os seus
seja apenas a gestação, punindo o crime de abortamento. Não obstante a títulos, que se dividem em capítulos. Aqueles se referem ao objeto jurídico
inexistêncTaTãf, da criatura humana.^TIêi sé"ãnTéeip¥," protegendo a vida no genérico, e estes, ao específico ou particularizado. Assim, no Título I do
sentido biológico. Bastante expressivo é haver o Código classificado tal cri- Código, deparamo-nos com os Crimes contra qj^essoa, onde se protege a
me como contra a vida e, no título dos delitos, contra a pessoa. criatura humana^cxuno unidade mcral^material^puiundp-se osjielitos que
A pessoajurídica tamhé.m pfwjg^f gnjfitn p^sivo de rrimes , v. g., os mais intimamente a ofendem É esta preservação que se tem em vista. No
Capítulo I especificasse um hem-interesse: é a vida, como pressuposto da
patrimoniais. AViás^o_Rstado é sempre sujeito passivo, em sentido genérico.
personalidade. ^gjLgÇÍtlllo P. <* a ;"^0lUF>'^"^" mrpnren que cnrge rnmn
atingido ne.ln crime, aue perturba as condições de harmonia ' ' '"' J~
condição para_atuac,ão e pif?diitiviflafl'» Ha pescna Nr> Capítulo V^o objeto
atingido pe J^g_Cgr
jurídico especificQ-já-^òssui outra natureza: é moral. Resguarda-se a honra
sociais, Hécissárias à consecução do bem comum, que é a sua finalidade.
do indivíduo, na defesa de sua dignidade e mesmo como norma de cautela
Será sujeito passivo direto de crimes que atentam contra sua entidade política para a tranquilidade social. E^ assim^sucessivamente.
ou administrativa. Ofendido (expressão sinónima de sujeito passivo)júndíi_
A consideração do objeto jurídico é vital no entendimento da norma. É
éjiosj:rimes contra £uemjp_personificaje_Eepresenta. Por fim, também é ofendido,
o ponto de partida. Busca-o a interpretação teleológica.
juntamente com ontra pessoa. CUJQJyjH é lesado no âmhito de interesses que
lhe_ são próprios, comoocorre com a moedaialsa e_ a prevaricação2. 64. O objeto material. Quase sempre a objetividade jurídica de um cri-
O homem, depois de morto, não é sujeito passivo de crime. Os delitos me se corporific^jno. infliv"Tí^*^^>|in|i T»i<:q São eles que suportam a açao do
integrantes do Capítulo II do Título V têm por objeto jurídico um bem-inte- delinquente Objet^material do deljtf» f, p™<=, r. hom^m ™^£wa sobre^
resse dos vivos: o sentimento de respeito aos mortos. Quanto à calúnia (art. Qjjg inçjde a conduta darsajertftAti\P- Mais adequado seria, talvez, chamá-lo
138, § 2.°) , atinge sua família e a sociedade. Qbjeto de
1. Maggiore, Diritto penale, cit., v. 1, p. 357.
2. Petrocelli, Principi, cit., v. 1, p. 226. 3. Petrocelli, Principi, cit., v. 1, p. 227.
116 PARTE GERAL

O objeto materjpl p"tra na constituição do tipo. Assim, no homicídio é


alguém; no furto é a coisa; no arremesso de projétil (art. 264) é o veículo etc.
Pode confundir-se com o sujeito passivo, tal qual se dá no homicídio,
em que o homem é também objeto material. Difere, entretanto, do instru-
mento do delito, que é aquilo com que a ação é praticada. IV
Embora controvertida a questão, somos dos que opinam que nem todo
crime tem objeto material. Pode ele existir serri este. Dá-se isto nos delitos de RELAÇÃO DE CAUSALIDADE
mera atividade (n. 59). Assim, no crime do "ato obsceno" (art. 233), que se
satisfaz com o comportamento impudico do sujeito ativo e com a possibili-
SUMÁRIO: 65. A ação e a omissão causais. 66. O resultado. 67. As teo-
dade de ser visto. rias. 68. A teoria do Código. O nexo causal. 69. Superveniência causal.
Há casos em que oobjeto md^Méimpmpzin^daxiàahigaT a qneJiaja
^^í^f^^ r*rt *7V H"3"^0 v- 8- uma Pessoa atira contra
seu desafeto, deitado em uma cama, não sabendo que momentos antes ele
65. A ação e a omissão causais. Após o que dissemos, no n. 51, acerca
falecera. Há, no caso, impropriedade absoluta de objeto. A matéria será abordada
da ação, cremos desnecessárias outras considerações, desde que não tratem
no n. 78.
de seu caráter de causa. Interessa, contudo, acrescentar que_elaJiidg ser
acompanhada do contingente subiêtivp. F.xistentp. a aipãr^mas ausente a von-
jade, como nos estados de inconsciência, nãohá falar em ação. Igualmente,
inexistirá esta, na coação absoluta, quando se pode dizer que ela é do coator,
sendo o coagido mero instrumento.
Diante do art. 13 do Código, a ação é causa quando sem ela o resultado
não teria ocorrido, ou. em outras palavras. ejQtre a ação e o resultado de.ve.
existir uma relaçãode causa e efeito.
Acerca da omissão, já dissemos também no mesmo parágrafo. Ela é tão
real_£ojrioj|jicjíoljwis é expressãoda vontade do omitente, porquê^e~rècõ-^
nhecível e verificável no tempo e no espaço, e porque não é um não-ser,
porém modo de ser do autor. E, se tem um conteúdo real, não é um nada, mas
alguma coisa suscetível de determinação e percepção. Como tal, pode dar
lugar a um processo causal1.
"5 Mas quando a omissão deve ser considerada causa no terreno jurídico?
A resposta é que só é causal a omissão quando há o dever de impedir o
«vento, o dever de agir.—■
O § 2.° do art. 13 cuida da relevância da omissão, estabelecendo as três
hipóteses, isto é, quando o agente: <^)tenha por lei obrigação de cuidado,
proteção ou vigilânciatSpde outra forma assumiu a responsabilidade de impedir
o resultado; ^c>com seu comportamento anterior criou o risco da ocorrência
do ^^

1. S. Ranieri, Causalità nel diritto penale, 1936, p. 225.


118 PARTE GERAL DO CRIME 119

O dever de impedir o resultado, de agir, pode advir de uma norma ju- é a lesão do bem jurídico. O que se temjyn jnente_é_salientarjjue ação é uma
rídica, de submissão particular do agente a esse dever, ou de comportamento coisa e resultado é outra<D que se quer dizer é que, se realmente todo delito
seu que lhe imponha obstar aquele2. ataca um bem jurídico, fuTõs que já o fazem tão-só com a simples ação ou
) pode provir da lei, de conãttia, ao passo que outros só o conseguem com o resultado ou conse^-
mandamento equivalente à lei ou do direito costumeiro. Aí se compreendem, quêhcia da ação^J,
por exemplo, os deveres de proteção e assistência de um para outro cônjuge, Os arts. 13, 1." parte, e 18 parecem negar a existência de crimes sem
dos pais para com os filhos, o que Schónke classifica como deveres resultan- evento. Deu-se aqui o que se passou com o legislador italiano, como acentua
tes do vínculo natural entre duas pessoas3. Grispigni5, a respeito dos arts. 40 e43 do Código de sua pátria, que teve sob
À aceitação particular do dever pelo agente (letra b) pode resultar de as vistas somente o tipo comum e frequente de crimes de evento, deixando de
relação contratual, função, profissão ou situação análoga, como a do banhista lado os casos excepcionais dos delitos de mera ação. Mas o poder do legis-
profissional, encarregado de velar pela segurança dos que se banham no lador tem limites e não pode destruir a realidade. Por outro lado, é uma ver-
mar, a do guia de alpinistas etc. dade inconcussa que os dispositivos de uma lei não podem ser considerados
Quanto ao dever oriundo de comportamento anterior (letra c), o princí- isoladamente, mas como integrantes de um sistema, componentes de um todo
pio dominante é: quem criou o perigo de um resultado tem a obrigação de orgânico, confrontados com outros, a fim de evitar-se choque ou colisão entre
impedir que ele se realize, como acontece, v. g., no fato de alguém inscientemente eles; exemplo eloquente temos com o art. 18 de nosso estatuto que só define
provocar um incêndio; corre-lhe o dever de impedir que se propague. o dolo e a culpa, não impedindo que na parte especial surjam crimes
preterdolosos. Assim, qualquer que seja o entendimento que se dê aos arts.
[São as situações em que a omissão é causal)
13, 1." parte, e 18, não há negar que o legislador capitulou delitos de mera
66. Ú resultãdo\ Nos termosda lei, devejyiçjçtou a omissão ser causa nnn^r^^ornoj^yiiQlagãO df. HomjgílifL Q JLtQ obsceno e outros.
do_evento. Que vem aJser_esle? Não há dúvida, entretanto, de_que o art._13_ só se refere_ap_sjcrimesjde_
Sob O ponto de vista naturalista ou mnte.ri.nl, resultado é. a modificação o tipo não se limita à descrição de uma
que sp ppgra no mundo ^fr^or <*m consequência ria açã», S^h fí fLsçf£t2 condutajjemjeferên£ÍíLao^xe.sultadQ da ação.
jurídico^Qll/i^gLé-IUtaPf1" plp *■ mnsiHp.rarin ppia lpj, fazendo partf_jnt<*-
67. As teorias. Havendo falado sobre a ação em sentido amplo (com-
grante doJipo^ssxmo doutrina Beling: "... o bien de Ia concurrencia de un
preendendo a omissão) e o resultado, incumbe agora ver quando aquela é
evento o estado temporalmente posterior a Ia acción, como resultado (ya
elevada à categoria de causa.
físico, p. ej., Ia muerte de un hombre, o espiritual, como, p. ej., tomar
conocimiento, escandalizar)"4. É o objetivo de diversas teorias. Não é pequeno seu número, de modo
que nos limitaremos à menção de algumas apenas.
Assim, evento ou resultado não_é necessariamente sinónimoÚP._ef§ÍLQ3
não é toda e qualquer transformação ân mundo exterior, já que somente quando I A teoria da causalidade adequadalé a que, ao Jado da^esposada por
ela é considerada pela lei é que_passa~a ser resultado no-sen.údflLJ.urídiçoxjpr. nosso estatuto, goza de maiorjprestfgró: causa é a condição mais adequada
cpmpor o tipo. a produzir o eventç. Dentre os diversos fatores que condicionam um resulta-
do, estrema-se aquele que, consoante o que geralmente sucede, a experiên-
Há^»osç[ue não se integrain no^vento^São os delitos sem resultado ou
cia e a apreciação humana, é mais apto a produzi-lo. É, então, a causa. Von
de simples atividade (n. 59). Não se nega que todo crime tem um evento que
Knes, Von Bar e Max Rumelin são os nomes de maior projeção.
Tem-se objetado a essa teoria que ela ultrapassa o terreno da causalida-
2. O Anteprojeto Nelson Hungria (art. 14, § 1.°) tratava expressamente da omissão
de^nenetrando^j^da responsabilidaVle penal' por^ iifíTTyTar o critério da
causal, referindo-se às três hipóteses.
Jgrevisibilidade. Por outro lado, como escreve Massimo Punzo, não se com*
3. Aníbal Bruno, Direito penal, cit., v. 1, p. 305.
4. Beling, Esquema de derecho penal. La doctrina dei delito-tipo, trad. Soler,
1944, p. 45. 5. Grispigni, Diritto penale, cit., v. 1, p. 66.
120 PARTE GERAL DO CRIME 121

preende realmente por que não se deve ter como causado pela ação humana Von Buri, no terreno jurídico, e tendo tido em Kostlin e Berner seus antecessores,
um resultado, que, de fato, se verificou, somente porque aquela ação não é é, no campo filosófico, oriunda de Stuart Mill.
geralmente idónea a produzi-lo. O havê-lo produzido é mais que suficiente Consoante ela, tudo quanto cojcorre para o resultad_ai-£ausa. Mãase
para dizer que a conduta é causal6. distingue entre causa e condição, causa e ocasião, causa e concansa Todas
Outras opiniões constituem ateoria que saxlenominarfa eficiência: causa as forças concorrentes para o evento, no caso concreto, apreciadas, queTisõ 1
é a^nHiçãfvmai_s pfir.a3-na^ur»Hiiçãn ân pvpptrt (StoppatO, Binding, Oertmann). lãdaT quer conjuntamente, equivalem-se na causalidade. Nem uma só delas
Dela diz ainda Punzo que o mais grave defeito que apresenta está na impos- pode ser abstraída, pois, de certo modo, se teria de concluir que o resultado,
sibilidade de distinguir a causa eficiente dos outros antecedentes de que se na sua fenomenalidade concreta, não teria ocorrido. Formam uma unidade
compõe o processo causal7. infragmentável. Relacionadas ao evento, tal como este ocorreu, foram todas
Aj£oús^d& relevância jurídica, criada por Miiller e desenvolvida por igualmente necessárias, ainda que qualquer uma, sem o auxílio das outras,
Mezger, encontra em Beling sua forma definitiva: a corrente causal não ési não tivesse sido suficiente. A_agão ou a omissão, como cada uma das outras
simples atuar do agente, mas jdeye ajustar-seiis_figuras penais. Não basta ser causas concorrentes, é condlção^gin^qua non dojgsultado. O nexo causal
condido sine qua non; é mister produzir o tipo descrito em lei. Tem-se dito, enfre a ação (em sentido amplo) e o evento não é interrompido pela interfe-
com razão, que a teoria vai além do terreno da pura causalidade: subor- rência cooperante de outras causas. Assim, no homicídio, o nexo causal en-
dinada à existência de uma norma legal. tre a conduta do delinquente e o resultado, morte, não deixa de subsistir,
ainda quando para tal resultado haja contribuído, por exemplo, a particular
A teoria da causa humanade Antolisei sofre alterações, para finalmen- condição fisiológica da vítima ou a falta de tratamento adequado10.
te assentar que "a exclusão da relação jurídica de causalidade se apresenta
quando no processo causal há intervenção de um acontecimento excepcional Em consequência desse princípio, as concausas não mais têm o efeito
que, concorrendo com a ação do homem, teve influência decisiva na realiza- de que gozavam na lei anterior, onde as condições personalíssimas do ofen-
dido e a não~observância do regime médico reclamado pelo estado da vítima
ção do resultado. Tem influência decisiva o fato sem o qual se teria verifica-
(Consolidação das Leis Penais, art. 295, §§ 1." e 2.°) desclassificavam o cri-
do resultado diferente, sob o ponto de vista jurídico" 8. O conceito de influên-
me de morte. Diante de nosso Código, o homicídio não deixa de ser tal, ainda
cia decisiva é vago e incerto, não proporcionando um critério idóneo para as
que para o exício concorram outras causas, como, v. g., se o golpe é dado em
questões que surgem a respeito. um hemofílico ou em um diabético, ou se o ofendido não tiver seguido, ainda
Essa teoria, aliás, é variante da causalidade adequada, o mesmo de- que voluntariamente, as observações médicas impostas por seu estado. To-
vendo dizer-se da de Grispigni — da condição perigosa — declarando que das jão_causa&.concorrentes para o resultado e não se há de excluir a devida
uma conduta, sob o ponto de vista normativo, é causa quando tiver sido con- enter-
dição do resultado, e, considerada relativamente ao momento em que se Claro é que a teoria_dajeQuivalência dos antecedentes se situa exclusi-
desenvolveu, constituir um perigo em relação à ocorrência do resultado 9. vamente no terreno do elemento físico ou material do delito, e por isso mes-
Entre as críticas que se lhe fazem, sobreleva a da noção imprecisa do perigo, mo, por si só. não pode satisfazer à punibilidade' É mister a consideração da
deixado, no caso concreto, à apreciação do juiz. çflusalidade suhjftivn: é necessária apresençj^dj^cw/gajem sentido amplo),
casojcontrário haveria n gnp RP Hprrtmipa regressus ad infinitum: j^riam
68. A teoria do Código Ap nexo causalJDentre as teoriasque maior responsáveis pelo resultado todos quantos houvessem física ou materialmente
prestígio desfrutam, salienta-se a abraçada por nosso estatuto, noart. 13: a conjcorride-pafa o evento; no homicídio, v. g., seriam responsabilizados tam-
da equivalência dos antecedentes^a^a^gnditigjiine^quajmã^ Originária de bém o comerciante que vendeu a arma, o industrial que a fabricou, o mineiro
que extraiu o minério etc.
6. M. Punzo, II problema, cit., p. 18. Enaltece Hungria essa teoria, declarando^a preferível a todas as outras
7. // problema, cit., p. 17. que versam a causalidadejriatenal,_£ois^ejve^_ujma_^alu^ãCL^irrrDles e prá-
8. Antolisei, Manuale, cit., p. 165.
9. Grispigni, Rivista Italiana di Diritto Penale, 1935, p. 3 e s. 10. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 238.
122 PARTE GERAL DO CRIME 123

tica do problema, apontando-nosjsem esforçQ_a^açã_o_causal, pelo processo guém, por exemplo, pensaria em imputar a morte de um homem à pessoa que
de eliminãçaõlupõiétíca de Tryren: à pergunta de que quandg_a ação é cau- o feriu, porque, ao se dirigir para casa, foi fulminado por um raio. A causa
sajjresponde-se: quando Q\imm&à&mjnên[e, o resultado in concreto não te- superveniente na hipótese é inteiramente independente. '
l1 A atual reforma (Parte Geral) incluiu o advérbio modal "relativamen-
Essa teoria que, a nosso ver, sobreleva às outras, não tem ficado isenta te" visando dissipar as dúvidas surgidas com a redação dada ao parágrafo
de críticas, apontando-se quase sempre como objeção mais séria a já mencio- único do art. 11 do Código. O exemplo clássico é o da pessoa que, ferida, se
nada re^ressãojn^rúta: "In secondo luogo, giova rammentare che, Ia teoria recolhe a um hospital, vindo a morrer, vítima do incêndio que aí lavrou. A
in esame, non solo considera condizioni e quindi causa dell'evento le vere e causa é relativamente independente: se não tivesse sido ferida, não se acha-
proprie condizioni, ma altesi le condizioni delle condizioni e cosi via ria no nosocômio. Todavia não há negar que surgiu um outro processo causal
all'infinito"12. que, isoladamente, isto é, sem o concurso de qualquer outra causa, produz o
Como dissemos, não é de recear a imputação nesses moldes, dada a evento. Pouco importa que o ferido pudesse vir a morrer da lesão. Como
limitagão^ubjetiya13 e outros corretivos, como o constituído pelo § 1.° do art. escreve Battaglini: "È nella sua fornia concreta, hic et nunc, che bisogna
13. Além disso, tão-só a causalidade, nãn acqrrp-ta conseqiiênriasjurídico- considerare 1'evento. Ora, quella morte avvenuta prima non è causalmente
há de s er .típica derivata dall'azione dei colpevole; e perciò Ia serie causale da lui posta, e
culpável^ tuttora in sviluppo, subisce arresto per rinframmettersi dell'evento sopravvenuto;
Q_art quest'ultimo ne apre un'altra, nuova e autónoma, per cui si ha Ia c. d.
'interruzione' dei nesso causale"15. É, pois, outra série nova e autónoma que se
a
apresenta, e que não se achava na linha de prossecução ou desdobramento
Çã° atribuíyelao agente e que é causa do resultado: físico da ação anterior. Montalbano prefere dizer que não se encontrava na
Jjjgígjj g Ç y q linha de desdobramento anátomo-patológico do resultado da ação prece-
ao mesmo tempo, nosdiz que a_gausa, absolutamente independente do sujei- dente16.
to~atrvgu_ajLle não_pode ser imputada. Assim, no exemplo conhecido de quem
fere mortalmente uma pessoa que antes havia sido envenenada: não pode ser Fez bem o Código, ao contrário da lei anterior, em dispensar um dispo-
responsabilizado por homicídio, mas apenas por tentativa de morte ou lesões sitivo para a causalidade. Todavia, como se escreveu e ora se acentua, no
corporais. Ainda: se A e B, com armas de calibre diferente, atiram contra C direito, a causalidade não se limita ao terreno natural: em todos os momen-
(afastada a hipótese de co-autoria) e ficar provado que o projétil de B é que, tos há de se ter presente a subjetiva. Como escreve Bruera: "En Ia causalidad
atingindo o coração da vítima, a matou, ao passo que o de A a alcançou natural hay una causa que produce un efecto; en Ia causalidad jurídica hay
levemente em um braço, somente aquele responde por homicídio, restando una acción dei hombre que pretende producir un resultado y algunas veces
Io consigué"".
sf-r atribuída ao agente^ POT ilação

ao outro a imputação por lesão corporal leve ou tentativa de morte. Portanto


â£SU&a-preexistente ou concomitante que, por si só, produz o resultado, sen-
do absolutamente independer te, naP
13.

causal. ípeclara o § 1.° do art. 13 que a causa


superveniente exclui almputaçã&JiujpdQaKKALM Tra-
ta-se de outra restrição à doutrina da conditio sine qua non.
Tem-se em vista agora a causa relativamente independente, já que, como
falamos, a de independência absoluta está compreendida no artigo14. Nin-
11. Comentários, cit., v. 1, p. 239.
12. M. Punzo, // problema, cit., p. 13.
13. Para essa limitação não atenta Paulo da Costa Jr. (Do nexo, cit., p. 95). 15. Battaglini, L'interruzione dei nesso causale, 1954, p. 47.
14. O Anteprojeto Nelson Hungria (art. 14, § 2.°) frisava textualmente: "ainda que 16. Apud Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 241.
relativamente independente". 17. J. J. Bruera, El concepto filosófico-jurídico de causalidad, 1944, p. 245.
DO CRIME 125

DO CRIME CONSUMADO E DA TENTATIVA O fato delituoso apresenta esquematicamente uma trajetória, um cami
nho — o iter criminis — que se compõe das seguintes etapas: cogitação, atos
i Hf» pvpn]çfjn p. consumação Dá-se a tentativa quando o
SUMÁRIO: 70. A consumação. 71.0 iter criminis. 72. A cogitação. 73. nptnân É, pois, no plano físico ou
Atos preparatórios e atos de execução. 74. Elementos da tentativa. 75. A agente não «jhf-ga g ronv im n ç /ín 01 1 p p p
pena da tentativa. 76. Inadmissibilidade da tentativa. 77. Desistência vo - material que ela se distingue do crime consumado. Neste, o que se passa no
luntária, arrependimento eficaz e arrependimento posterior. 78. Crime
impossível. Crime de flagrante preparado. Crime provocado.

70. A consumação. Diz-nos o Código, no art. 14,1, que o crjroft é con-


surnado quando re.rjne todos os elementos de sua def inição lepal Noutras
tipn
A

qi
iandn há
palavras, £gj
integralidade deste não importa 3 exaustão (n. 59), pois ele é perfeito, embo-
ra não tenha sido levado a suas últimas consequências. Crime consumado é
aurido é outra, como ficou dito naquele parágrafo
uma coisa e
corrupção passiva (art . 317), o delito consuma-se quando o agente aceita
promessa de vantagem para praticar um ato, e exaure-se quando realiza este.
Omomento da consumação varia conforme a natureza do delito. Nos
crimes materiais em que há ação e resultado, o instante consumativo é o do
evento. Nos delitos de mera atividade a realização desta marca a consumação.
No crime permanente, dá-se do mesmo modo a consumação, quando
ele se integra de todos os seus elementos, embora aquela se protraia.
Quanto aos delitos subordinados à condição objetiva de punibilidade
(n. 56), a consumação independe da efetivação daquela.

71. O "iter criminis". No inc. II do mesmo artigo, a lei define o delito


tentado, para dizer que tal existe quando, iniciada a execução, ele não_se
consuma, por circunstânçia&jilheias à vontade do agente.
plano externo corresponde ao elemento subjetivo do delinquente; naquela, o
sujeito ativo ficou aquém do elemento volitivo, não o realizou no mundo
exterior.

72.^cogitação) O que se passa nojgro_nitirnojle uma pessoa nãojéjlos


domínios do direito penal. Persiste ainda hoje a máxima de Ulpiano —
cogitationis nemo poenam patitur. Ou como falam os italianos — pensiero
non paga gabella (o pensamento não paga imposto ou direito). Em intenção
todos podem cometer crimes.
Mesmo quando exteriorizada, se ela não passa de certo ponto, se não
£raujiejeju^ativa,, nãoé punível, como acontece com a determina^ ção, a
inst^ação_p^_auxílÍQI1isentos de pena pelo art. 31.
IÍ essa ajregra. TodayLajsasosM ^m_quej>e observa já constituir delito
o^esígnio ou propósito de vir a cometê-lo, como sucede com a conspiração,
a incitação aojrime (art. 286), o bando ou quadrilha (art. 288), e ainda
outros, em que há o propósito delituoso, ou a intenção revelada de vir a praticá-
lo. A impaciência do legislador, então, antecipa-se e não espera que ele se
venfigu.e^ punindo, em última análise, a intenção, o projeto delituoso. I "
Fora desses e outros casos, em que evidentemente já há lesão à ordem
jurídica, a intenção não está sujeita a pena.

73. Atos preparatórios e atos de execução. Da fase subjetiva, passa o


sujeito ativojaojJlano físiÇP_ou doLrnundo externo. De ordinário^sãoatos^
ptggaratórios que, primeiro^ratica. Se homicídio é o que pretende cometer,
toma da arma, dirige-se ao local etc. Se furto, mune-se dos petrechos neces-
sários, e assim por diante.
Em nosso Código, não são puníveis os atos preparatórios, exceto
quando o legislador, com eles, já tipifica um crime, como sucede com as
figuras há pouco citadas, e ainda com outras, como a do art. 291 —
"petrechos para falsificação de moeda".
Não os possuindo, afastou-se nosso estatuto de um de seus modelos: o
Código de Rocco.
Não são poucos os que defendem a punibilidade deles. O Positivismo
Naturalista, apegado à orientação sintomática do crime e ao fim apontado
ao direito penal, prega a necessidade de sanção ao ato preparatório.
Parajiossa lei, só há tentatiya^aandojiá ato de execução. Difere este
daquele; porém é árdua a tarefa de distingui-los. Tem a doutrina buscado
um critério apriorístico e constante que possa estremá-los; porém vãos têm
sido os esforços das várias teorias excogitadas.
126 PARTE GERAL DO CRIME 127

^ opinião que hoje predomina funda-se em dois critérios: um. o do bitória que anula a spinta criminosa?3
ataque ao bem jurídico tutelado; o outro, o do início da re.ali7açãn Ao tipo:
um_éjie natureza material, e o outro, formal. Para Sauer: "El principio de~ 1. Sauer, Derecho penal, cit., p. 167.
ejecución se puede determinar según esto como Ia transacción de un peligro 2. Welzel, Derecho penal, cit., p. 194.
hasta ahora solo general, indeterminado, ai estádio de Ia peligrosidad con- 3. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 252.
creta de un determinado bien de protección" 1. Já para Welzel: "La tentativa
comienza en aquella actividad con Ia cual el autor inicia inmediatamente, de
acuerdo con su plan de delito, Ia concreción dei tipo penal" 2.
5^ do._Se o ato não representar
pw ppriB"
^critériojormal sustenta que o ato executiv a HPW Hirigir-g ção do
tipo, deve ser o infcio âe. sua rp.alj7.acad Noutras palavras,_éjnister
rnrr Hr>
' Ppl° hp™ jurídico

ção do tipo, deve ser o f c


ser examinado em relação ao tipo legal, tomando-sej;m_consideração, natu-
ralmente, o fim que o sujeito atiyotem em yista^ojis^guejitejiifijite^xoníbr-
nie _o_típ_o1_o mesmo ato pode ou não ser de execução. r Tal critério tem
obtido maior preferência que o anterior; todavia parece-nos que ele o
compreende, pois difícil é imaginar ataque ao bem jurídico tutelado pela
norma (e, portanto, punível), sem que se dê nas condições impostas pelo tipo. Se
na tentativa a tipicidade não se completou, parece-nos inegável que ela é uma
fase sua, um trecho ou fração. Ato de execução é, pois, início
darealizaçãa^dcLJtipQ.-
FjngjnHn a le.i n ato He pxeçyção. abraçou ãteoria obietiva. Não sufragou,
como já se disse, a doutrina subjetiva, para a qual basta a revelação da inten-
ção delituosa, ainda que em atos preparatórios.
Apesar da ancianidade daquela, estamos que melhor corresponde ao
ideal da justiça e aos interesses sociais. Refutando a teoria subjetiva, Hungria
formula o seguinte exemplo: Tício recebe uma bofetada de Caio, corre a um
armeiro, adquire um revólver, carrega-o com seis balas e volta à procura do
agressor que, entretanto, não mais ali se encontra. Vai, então, postar-se nas
imediações da casa deste, à espera que ele retorne. Sucede, entretanto, que
Caio, desconfiado, toma rumo diverso. Conclui o eminente ministro que os
atos preparatórios revelam inequivocamente a intenção de matar, e não obstante
não se pode falar em tentativa: não teria Tício, ao se aproximar de Caio,
desistido do crime? Não teria, no derradeiro momento, triunfado a força ini-
Realmente, na hipótese, não há falar em tentativa de homicídio. Em que
pese à revelação da voluntas sceleris, não houve princípio de realização do
tipo previsto em lei.

74. Elementos da tentativa. Exposto o que já foi, podemos declinar "_s


elementos integrantes do crimejentado^jLacãaUateCBlpSãP da p.yp.niçã.o_r>gr
circunstâncias alheias ao agente: o elemento-subjetivo. É o que se infere do
inc. II do art. 14.
Como já se falou, para haver tentativa é necessário início de execução
— o commencemênt d'exécution dos franceses — ou seja, ação traduzida em
atos executórios, parecendo-nos dispensável voltar a este ponto.
Iniciada a execução, deve ela interromper-se em qualquer momento,
antes da consumação. Essa interrupção não se pode vincular àyojitjdj;_do_
agente; ao contrário, deve ser-lhe estranha, isto é, provir de fatores que lhe
são alheios.
Tal seja o momento em que se dê a interrupção da execução, a tentativa
/se dirá perfeita ou acabada e imperfeita ou inacabada. A perfeita é também
chamada crime falho.
^^Verifica-se, esta, quando o agente fez tudo quanto lhe era possível, para
alcançar o resultado, v. g., se ministra dose mortal de veneno a seu inimigo,
porém este, por qualquer circunstância, se salva.
A tentativa é imperfeita quando a ação não chega a exaurir-se, quando
o sujeito ativo não esgotou em atos de execução sua intenção delituosa. A
distinção entre as duas espécies de tentativa tem toda a oportunidade, quando
se trata da desistência voluntária e do arrependimento eficaz (n. 77).
Ojerceiro elemento da tentativa é subjetivo. É o dolo do agente. É o
mesmo do crime consumado, por isso já dissemos que o crime tentado se
distingue daquele s* n" p'ano físirg (n 77).^A_ representação subjetiva e a
vontade, na tentativa, não discregarn^as^existentes no (felíto consumado.
Quem mata age com o mesmo dolo daquele que tentou matar, simplesmente
porque a tentativa de homicídio é apenas o homicídio mutilado, sem a con-
sumação. Consequentemente, vão seria buscar um elemento subjetivo diverso
no crime tentado. Não existe dolo de tentativa.

75. A pena da tentativa. É a do crime consumado, diminuída de um a


dois terçog. Sendo ela objetivamente menos que o crime consumado, natural
que sua pena seja menor que a deste A lei atende à gravidade objetiva do
fato. Em um há lesão efetiva do bem jurídico, no outro houve perigo, houve
ameaça somente.
128 PARTE GERAL DO CRIME 129

Ainda aqui, foi nosso Código objetivista, não comungando da opinião Foi o que escrevemos na 1." edição. Contudo convém esclarecer a hipó-
dos subjetivistas, que manda atender-se antes à intenção delituosa do agente, tese do crime permanente, como faz Petrocelli 6, observando que ele pode
não devendo a pena ser outra que não a do crime consumado. admitir a tentativa, tal a forma de sua manifestação. Assim, o cárcere priva-
Em regra, as leis não podem, no tratamento penal, olvidar o dano obje- do aceita a tentativa quando o sujeito ativo se apodera da vítima para encarcerá-
tivo do crime. Exemplo frisante disso temos no infanticídio e no aborto pro- la; não, porém, quando a forma é omissixa: não libertar quem já se acha em
vocado pela própria gestante (arts. 123 e 124), em que a pena do primeiro, seu poder. Impossível, então, é a tentativa, como se falou linhas atrás.
em nosso Código, é o dobro da do segundo, quando, entretanto, o agente No crime de perigo é possível & tentativa, pois ele pode apresentar um iter,
daquele — a mulher em estado puerperal — será, em princípio, menos peri- comporte deTãses, suscetívek portanto,-de fracionameatQTxomo-ocxirc a
goso que o deste, que friamente extingue uma vida em formação. Todavia art.2317.
naquele há uma criatura humana e neste, apenas uma esperança de vida. Lá Não se admite a tentativa quan^oj^lei^condiciona ajmnibilidade à
é muito maior a lesão jurídica. consumação, como ocorre com a figura do art. 122 — "Induzimento, instiga-
Além disso, é óbvio que razões de política criminal aconselham a pena ção ou auxílio a suicídio" — pois o fato do induzimentpjá, se realizou antes
minorada para a tentativa. É o que, em regra, dizem os Códigos, excetuados doatentado da própria pessoa.
uns poucos, como o francês (art. 2.°). isjiívd a tentativa. É, aliás, o que declara o
O dispositivo, ao cominar a pena, acrescenta: "salvo disposição em art. 4.° do Decreto-lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contraven-
contrário". Refere-se a casos em que excepcionalmente a tentativa é punida ções Penais). Como se diz, a tentativa de contravenção seria um perigo de
com a mesma pena, tal qual ocorre com a Lei n. 4.737, de 15 de julho de perigo.
1965 (Cód. Eleitoral), apenando de modo igual quem "votar ou tentar votar, No crime complpmT ela ocorre com o princípio de execução do crime
mais de uma vez, ou em lugar de outrem" (art. 309). que inicia a constituição do tipo, ou com a prática de apenas um dos crimes
que o compõem, como observa Ranieri: "Neste caso, a tentativa pode ter por
Não a comportam os delitos constituídos por único ato {único actuperficiuntur) objeto o crime isolado, que se coloca ou como antecedente ou como concomitante
como a injúria oral. Nos crimes omissivqsjprÓ£rios: ou como subsequente a outro delito isolado, com o qual forma, segundo um
determinado tipo criminal, um único crime complexo... E, na verdade, o delito
õ
complexo, sendo único, é incompleto ou imperfeito, ainda que se tenha con-
76. Inadmissibilidade da tentativa. Nem todo crime admite tentativa.
sumado um dos delitos que o compõem'".
q Quanto ao crime culposo, já tivemos ocasião de tecer as considerações
o agente pode praticar o &tõ, a ausência deste.não cxuicretizajt tentativaj se 9ue seguem^Tentativa e culpa são noções antitéticas: naquela o agente fica
não mais o pode, o delito se consuma. Possível é, entretanto, nos delitos aquém do que queria; nesta vai além do que desejava^7
comissivos-omissivos, quando, v. g., a mãe tenta matar o filho de inanição, Todavia há uma espécie de culpa denominada por extensão, equipara-
sendo obstada antes que o evento se realize (n. 59). ção ou assimilação, em que o resultado é querido, mas o agente labora em
Perime habitual nãojtdmite, em regra, tentativa, Assim, a figura delituosa erro de fato inescusável. Assim, se uma pessoa, à noite, divisa um vulto, nas
proximidades da edícula de sua casa e sem dar conta que pode ser o caseiro,
do art. 230, a respeito dãTquãTJá tivemos ocasião de escrever 4. No delito
mas pensando tratar-se de ladrão — sendo, pois, o erro vencível ou censurá-
habitual, não há propriamente iter. ou a repetição dos atos é bastante para a
vel — atira contra ele, na defesa de sua propriedade e própria segurança, e
consumação, ou ainda não ocorreu, de modo a que se possa falar em
acerta o projétil no alvo, haverá homicídio culposo. E se não acertar? Por que
tentativa.
Os delitos permanente e continuado não cojnportam a_forma tentada5,
compreendendo-se que ela seja admissível, no último, somente nos crimes
que o integram (n. 59).
4. Dos crimes contra os costumes, in Código Penal brasileiro comentado, 1954, v. 6. Petrocelli, // delito tentato, 1959, p. 48 e 49.
7, p. 461. 7. E. Magalhães Noronha, Dos crimes..., in Código, cit., v. 7, p. 473.
5. Ottorino Vannini, II problema giuridico dei tentativo, 1943, p. 121 e 122. 8. S. Ranieri, // reato complesso, 1940, p. 189 e 191.
132 PARTE GERAL DO CRIME 133

É exato inexistir, no caso, desistência: esta só é possível na tentativa quando por previsão da própria figura típica, tanto no material como no
imperfeita ou inacabada, e, aqui, só aquele tiro bastava para eliminar o desafeto. formal.
Por que não ver, entretanto, no fato, arrependimento eficaz? Não é exato
Arrependimento eficaz e arrependimento posterior têm momentos dis-
que, não repetindo os disparos, o agente abandonou o propósito criminoso?
tintos, realidades diferentes. Ocorre o arrependimento eficaz (art. 15) no curso
Se em outras hipóteses — como, por exemplo, quando alguém lança ao mar
da ação executiva, porém antes do momento consumativo, em razão de um
um inimigo e, a seguir, atira-se às ondas, impedindo que se afogue — onde
ato em sentido reversivo, praticado voluntariamente pelo agente; o arrepen-
há consequências lesivas para o ofendido, o impedimento do resultado favo-
dimento posterior (art. 16) dá-se quando, já consumado o crime, agente, por
rece ao agente, por que, aqui, onde não há dano para aquele (o sujeito ativo
vontade própria, repara o dano ou restitui a coisa.
poderá quando muito incorrer no art. 132 do CP ou no art. 28 da LCP), não
se dará o mesmo? / Contudo, observe-se, a lei restringe sua aplicação aos crimes cometi-
i_dos sem violência ou grave ameaça à pessoa.
Ao argumento de Costa e Silva responde Hungria, que, diante do fato
de um agente dispor de mais projéteis, e não usá-los, tem-se de se render à No arrependimento eficaz o agente fica isento de pena; no arrependi-
evidência de que ele não quis prosseguir; ao passo que, tendo o outro apenas mento_rjosterior, de modo obrigatório, há mitigação da reprimenda.
uma bala que foi deflagrada, não passaria de mera conjetura supor que se O referido dispositivo (art. 16) foi instituído como medida de política
teria abstido de novos disparos, se mais munição possuísse. criminal e em alguns casos, como na fraude pelo pagamento através de che-
Resta, por fim, dizer que não desiste da consumação de um crime quem que desprovido de fundos, por construção pretoriana já era empregado como
a adia. Desistênçia_é uma_a3j^e_a^amgnío outra, como quando^ v. g., o uma causa extintiva da punibilidade.
ladrão, após a perfuração do telhado, suspende a execução para continuá-la A retratação não se confunde com o arrependimento eficaz, asseme-
depois15. lhando-se ao posterior e sendo uma das causas de extinção da punibilidade,
Uma inovação relevante apresentada pela atual reforma penal: o arre- na forma do art. 107, VI, do Código Penal.
pendimento posterior à consumação do crime.
78. Crime impossível. Crime de flagrante preparado. Crime provoca-
Preceitua o art. 16: "Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça do. Na forma do art. 17 não se pune a tentativa quando há ineficácia absoluta
à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denún- de meio ou impropriedade absojuta_dej)bjeto.
cia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a
Diz-se iripfíca? ou inidôneo o meio, quando, por si, não pode produzir
dois terços".
o resultado: por exemplo, alguém quer envenenar seu inimigo e dá-lhe açú-
No dizer da Exposição de Motivos tal inovação foi introduzida mais em car ao invés dè arsénico. Há integral impropriedade de objeto, quando o bem
benefício da vítima do que em favor do criminoso, objetivando levar o últi- jurídico inexiste: por exemplo, a mulher erroneamente se julga prenhe e pra-
mo a reparar o dano causado, minimizando o prejuízo do atingido. tica manobras abortivas.
O. arrependimento postfactum benéfico preconizado pelo art. 16 só pode Em ambos os casos, não há tentativa, por não haver início de execução
ser aplicadojio crime.material^jpjs.jerji rnmn pressuposto p^ra o squ reco- da ação "típica (n. 73): o agente, ministrando açúcar, não começou a matar,
nhecimento a "reparação do dano ou a restituição da coisa"^indicando cla : como a mulher não começou a abortar.
ramente a natureza.
Assim dispondo, o legislador pátrio abraçou a teoria objetiva tempera-
Contudo o Código Penal, em sua Parte Especial, já trazia a possibilida- <&^_exige sejam absolutas a ineficácia e a impropriedade. Caso contrário,
de do arrependimento posterior aproveitar ao acusado (ex.: calúnia e difa- haverá tentativa punível. Diz-se relativamente ineficaz o meio, quando, nor-
mação: art. 143; subtração de incapazes: art. 249, § 2." ete), algumas figuras malmente apto para o resultado, falha no caso concreto, como vulgarmente
típicas relativas a crimes formais, sendo hipóteses que não se confundem. acontece com armas que negam fogo. Hájmpropriedade relativa de objeto
Quando reconhecido com base no art. 16, só é possível no crime material; quando o bem jurídico existe, mas por circunstância fortuita não é lesado:
alguém desfecha um tiro contra outra pessoa e a bala alcança seu relógio de
15. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 270. bolso; o punguista mete a mão no bolso direito da vítima para lhe surripiar a
DO CRIME 135

larápio houvesse, por descuido, se munido de um instrumento qualquer de


carteira, que, entretanto, se encontra no esquerdo. Em tais ocorrências existe matéria plástica, ou papelão, incapaz de arrombar o cofre.
tentativa.
No caso figurado, parece-nos certo haver início da ação típica. A dispo-
À teoria objetiva, adotada pelo Código, com temperamento, opõe-se a
sição da força policial é a circunstância alheia à vontade do agente, que pode
subjetiva: o decisivo é a vontade do delinquente, pois toda tentativa é inidônea,
impedir a consumação.
já que não alcança o resultado. O que conta, para essa corrente doutrinária,
é a convicção do agente de que havia idoneidade no caso. Ela sobrepõe a Dúvidas também suscita o crime provocado. Assemelha-se ao prece-
importância da exteriorização voluntarística ao perigo corrido pelo bem ju - dente, apenas diferindo em que o delinquente é impelido ao delito por um
rídico. Von Buri é o principal nome dos subjetivistas. agente provocador (Inspetor de Polícia, delinquente a serviço desta etc).
A teoria subjetiva não satisfaz; ela conduz a situações aberrantes, como Acontece isso geralmente quando a autoridade, não tendo provas contra al-
aponta Mezger. a do indivíduo que, desejando produzir um descarrilamento, Igum ladrão, mas sabendo que ele é o autor de vários crimes, provoca-o a
Icometer um, com o fito de prendê-lo.
manobra os binários, acontecendo que, naquele dia, o funcionário ferroviá -
rio erroneamente os havia acionado, de modo que é a ação daquele que vai Hungria acha inidôneo o conatusli. Assim não pensamos. O caso com-
salvar o comboio16. porta a mesma solução que a do delito de flagrante predisposto, anterior -
mente aludido. Igualmente, tivemos ocasião de escrever sobre a espécieJDesde
f No sistema do direito penal da atualidade, não basta o elemento subje-
que não haja^inefkáçia absoluta de meio,, Qiujnpiopriedade total de objeto,
tivo; é mister que ele se exteriorize tipicamente, isto é, que, pelo menos, dê o^cnrne não é impossível. Os que sustentam opinião diversa deveriam expli-
início à realização do tipo, e isso não existe na tentativa absolutamente inidônea. car qual a solução que dariam se, não obstante todas as providências tomadas,
O Código não considerou o crime impossível figura delituosa, como, entre o executor lograsse a consumação, o que certamente não seria sobrenatural.
outros, propugnava, em magnífica tese, Soares de Melo 17. Aliás, juristas existem que vão mais longe: sustentam a responsabilida-
Diverso do crime imposs.ÍYeL é_o\delila putativo] que alguns denomi- de do próprio agente provocador, como o faz Maggiore: "Quando os meios
nam imaginário. Sõ existe na imaginação do agente. Acredita ser delituosa a
são relativamente inidôneos, o provocador responderá por tentativa junta-
açâo'que pratica; entretanto falta a norma que a interdite: assim, o comerciante
mente com o executor, por haver exposto a perigo o bem agredido. Tal é o
que cobra certo preço por mercadoria, julgando-o acima da tabela oficial,
caso do delito começado e sucessivamente interrompido pela intervenção
quando é o contrário o que acontece. Difere, pois, do crime impossível. Aliás,
predisposta da polícia"19. Vejam-se, ainda, Notarbartolo, Impallomeni 20 e outros,
diversas legislações punem este, ao passo que o delito putativo é geralmente
sustentando o mesmo ponto de vista.
por elas ignorado.
^ Acontece, Até aí não vamos. A impunidade do agente provocador é corolário da
íi d ime coisa que Qujís^ãojíejt^n^ynatéj^^
às vezes, que o sujeito passivo sabe que vai ser vítima de crime, coisa que
acontece, máxime nos patrimoniais. Avisa, então, a polícia, que toma pre-
cauções, distribui seus agentes pela casa etc. Vem o ladrão, salta o muro,
força a porta da entrada, penetra a residência, vareja os quartos, e, quando
está arrombando o cofre de dinheiro, é preso. É punível a tentativa?
Já nos manifestamos pela afirmativa. A idoneidade não se desfigura
pela vigilância policial, porque esta não é elemento que torne absolutamente
inidôneo o meio usado, frustrando de qualquer modo a empresa delituosa.
Embora raro, já tem havido casos em que o delinquente consegue burlar as
cautelas policiais, consumando o delito. Diversa seria a solução se, v. g., o
16 Mezger, Criminologia, cit., v. 2, p. 249.
17. J. Soares de Melo, O delito impossível, 1936, p. 226. ausência de dolo. Para a tentativa, não basta querer expor a perigo o bem, é
mister querer o evento. Quem tenta um delito, tenta consumá-lo. Dolo de
tentativa é dolo de consumação, motivo por que dissemos não haver um dolo
especial de tentativa (n. 71 e 74).
__Em suma, para as hipóteses ventiladas, é mister atentar a que nossa lei
só_considera impossível o crime quando há ineficácia absoluta de meio ou
absoluta impropriedade de objeto. Desde que a inidoneidade do meio não
seja total, e uma vez que o bem exista, não há falar em crime impossível.

18. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 279.


19. Maggiore, Diritto penale, cit., v. 1, t. 2, p. 595.
20. Notarbartolo, Rivista Italiana di Diritto Penale, 1:90,1934; Impallomeni, Istituzioni
di diritto penale, 1908, p. 382.
DO CKlMb

mento de sua ilicitude. Dolo é vontade e representação do resultado, mas,


igualmente, é ciência de_ogosi£ão jc"dever etico^jurídiçQiJjiçãçuio sentido
do ilí it

VI Age dolosamente quem atua com conhecimento ou ciência de agir no


sentido do ilícito ou antijurídico, ou. numa palavra: com conhecimento da
O DOLO E A CULPA antiiuridícTdãde do fato.
Esta^não^conhecimento da.lei. Se assim fosse, somente os juristas e
SUMÁRIO: 79. O dolo. 80. Espécies de dolo. 81. A culpa. 82. Espécies de advogados poderiam cometer crimes. Para o ladrão saber que furtar é delito,
culpa. 83. A fórmula do Código. 84. Compensação da culpa. 85.0 preterdolo. não necessita cientificar-se de que o fato está definido no art. 155 do Código
Agravação pelo resultado. 86. A responsabilidade objetiva. 87. A Penal. Conhecimento da antijuridicidade é a ciência de sg_ojgor à ordem ju-
excepcionalidade do crime culposo. 88. Actio libera in causa. rídica, é a convicção de. incorrer no juízo de reprovação social. E por nascer-
mos e vivermos em sociedade que cedo adquirimos essa consciência de agir
no sentido do lícito ou permitido. Em regra, o crime, antes de se achar defi-
79. O dolo. A culpabilidade e a imputabilidade constituíram objeto do nido em lei, já é, para nós, ato nocivo e contrário aos interesses individual e
n. 54, pelo que, aqui, incumbe apenas apreciarmos as formas por que aquela epletivo. Há leis porque existem crimes.
se pode apresentar. Mezger diz que consciência da antijuridicidade é o conhecimento pro-
Menciona-as o Código no art. 18: o dolo e a culpa. Reserva o inc. I para fano do caráter proibido do ato. Asúa, repetindo esses dizeres, lembra-nos
aquele, ressaltando o elemento volitivo. Para ele, dolo é vontade, mas von- que sabemos o que seja um automóvel sem conhecermos mecânica; o que
seja pneumonia sem conhecimentos de medicina; logo devemos saber o que
tade livre_e consciente.
é antijurídico sem conhecermos o direito.
DoisjiãOjjjOTtanto, os elementos do dolo. A consciência há de abranger
a ação ou a omiss|p_do_agente, tal qual é caracterizada pela lei, devendo Admitindo o elernento normativo, claro está que a boa-fé£xcju^ojdolo,
igualmente compreender o resultado, e, portanto, o nexo causal entre este e pois ela é a crença sincera e honesta de agir no sentido do lícito ou permiti-
a atividade desenvolvida pelo sujeito ativo. Age, pois, dolosamente quem do. Desde que não incida sobre o erro de direito que, só por disposição, não
pratica a ação (em sentido amplo) consciente e voluntariamente. aproveita ao agente, quem com ela se conduz não age dolosamente: ajga-fé
éj^antítese do conhecimento da antijuridicidade,
Alguns definem o dolo simplesmente como a representação do resulta-
do, teoria que se opõe à da vontade. Todavia é difícil aceitar-se que a repre- Jem^se^objetado quejiojsjjejjiâ^inçluj_o_ejejn^to_riormativo no con-
sentação possa excluir a vontade, pois esta pressupõe aquela. Não se pode Aponta-se, para isso, o art. 18, I, e alega-se q~uéTqiranttõ~o
querer conscientemente senão aquilo que se previu ou representou à nossa Código exige o conhecimento da antijuridicidade, di-lo expressamente com
mente, pelo menos em parte. Como assevera Florian, a representação sem as expressões: "indevidamente", "ilicitamente", "sem justa causa" etc.
vontade é coisa inexpressiva, e a vontade sem representação é impossível. Mas o critério de uma lei não pode ser deduzido do que apenas um artigo
Consequentemente, para agir com dolo, não basta que o evento tenha sido seu contém. É mister enquadrá-lo no sistema, é necessário entendê-lo de
previsto pelo indivíduo, é mister seja querido. Esse resultado é a meta, o fim acordo com o que dispõem outros, para se ter conhecimento integral seu.
que o sujeito ativo busca com sua atividade consciente e dirigida. Costuma Assim é que, dois artigos depois, vemos isento de pena o agente que comete
dizer-se, por isso, abreviando o conceito, que dolo_é_a vontade de executar o crime por erro de tipo. Ora, o fundamento deste é a boa-fé: não é
ura respojn-.^cre^itando^estar agindo de acordo com a ordem jurídica e,
Mas o dolo não se exaure na_Ypntade e representa£ão_do_eitento. Não
basta o agente querer praticar o fato típico, é necessário também ter conheci- Além disso, há, na lei, exigência expressa do conhecimento da
antijuridicidade. Quando, no art. 26, o Código alude á "... entender o caráter
138 PARTE GERAL DO CRIME 139

criminoso do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento", ou- ta, aceita-o; v. g., o chofer que em desabalada corrida, para chegar a deter-
tra coisa não faz senão se referir ao conhecimento da ilicitude do fato. minado ponto, aceita de antemão o resultado de atropelar uma pessoa. Estrema-
Quanto às expressões "indevidamente", "ilicitamente" etc, caracteri- se da,€úlpa consciente] como dentro em pouco veremos, porque nesta o agente,
zam os tipos anormais. São elementos normativos (n. 52), que se referem à conquanto preveja o resultado, jyíoojyier,/esperando insensatamente que
antijuridicidade e que o legislador achou dever salientar, por várias razões. não se verifique. Hungria cita um caso ocorrido no Rio de Janeiro, em que a
Mas esse proceder da lei não autoriza aquela ilação. Estamos até que é um dona de um cão e uma criança do vizinho foram por ele mordidas. Havendo
reforço para os normativistas, pois inaceitável seria que a lei fosse exigir, suspeitas de que estivesse hidrófobo, a proprietária matou-o e adquiriu outro
nesses crimes, um elemento totalmente estranho ao dolo de outros delitos. A em tudo semelhante a ele. Ambas as vítimas iniciaram o tratamento médico,
conclusão é diversa: o que existe sempre em todo o crime — a consciência porém o da criança suspendeu-se logo, quando, examinado o segundo ani-
da antijuridicidade — a íei achou conveniente, por determinadas razões, mal, verificou-se estar são. Assim, enquanto a proprietária levava seu trata-
mencioná-lo expressamente, entrando ele, então, como elemento do tipo. mento a termo, o menor morria, vítima do terrível mal. É clara a existência
do dolo eventual. Para se furtar aos percalços de um processo por incúria na
Mas, para o Código, o. dolo nãai ar^na^e^resejUa^ãOjj/ontadee^ cons- guarda do cão, aquela mulher assumira o risco da morte da criança, pois não
ciência da ilicitude do resultado, É também anuência a este. Ele não olvida tinha certeza do estado de saúde do irracional.
a teoria do consentimento. Age dolosamente não apenas o que quer livre e
conscientemente um resultadoTmãs também quem, embora não o querendo O ilustrado jurista, precisando o conceito do dolo eventual, lembra a
de modo principal, aceita-o ou a ele anui. Na primeira hipótese, diz-se direto fórmula de Frank: "Seja como for, dê no que der, em qualquer caso não
o dolo; na segunda, eventual. Na oração que enuncia o dolo, acha-se com- deixo de agir"1. Sinteticamente, costuma estremar-se o dolo direto do even-
preendido na expressão "ou assumiu o risco de P£oduzi-loj?. Para o Código, tual, dizendo-se que o primeiro é a vontade por causa do resultado; o outro
querer um resultado ou assumir o risco de causá-lo são situações equivalen- é a vontade apesar do resultado.
tes. Equiparou-as. Fala-se ainda em dolo de dano e de veriso. No primeiro, o que se quer
Nos_delitos de simples_atividade ou mera conduta^em <jue jião^existe é um dano, a lesão efetiva a um hem; p. no segundo, somente um perigo.
resultado, o dolo é representação, vontade e consciência da ilicitude da ação. Rocco escreve que ele "si distingue dal dolo di danno, che si riscontra nei
delitti di danno o di lesione, appunto per ciò, che in questi, ciò che è voluto
-^ De todo o exposto, podemos concluir que ele pressupõefa) consciência
è un danno, in quelli soltanto un pericolo"2.
da ação, e do evento, e conhecimento do nexo causal entre eles;///) consciên-
cia da ilicitude da conduta; (ç) vontade da ação e do resultado. A existência do dolo de perigo, como coisa distinta e substancialmente
diversa, é contestada por numerosos autores. Florian fala que existe apenas
Para os que entendem que a reforma penal adotou a teoria da ação finalista,
diversidade de objeto num e noutro, mas o conceito deste é o mesmo 3. Von
o dolo deixou de ser o dolo mau, dolo valorado, para ser o dolo natural, que Hippel diz não se tratar de conceito particular de dolo, mas simplesmente do
se identifica com a intencionalidade que caracteriza qualquer ação humana. fato de que alguns crimes requerem não uma lesão dolosa, mas somente perigo
80. Espécies de dolo. Acabamos de aludir ao [dolo direto) Existe ele para os bens jurídicos. A expressão justa é perigo doloso*. O mesmo pensa
Antolisei5.
quando o evento corresponde à vontade do sujeito ativo. E o que diz o Có-
digo: "... quando õ~agente quis o resultado". Exemplo: um indivíduo quer Autores numerosos distinguem Hnln p esppcíf[cr> O primeiro
matar outro, desfecha-lhe um tiro e prostra-o sem vida. g reside na vontade
É[indireto) quando, apesar de querer o resultado, a vontade não se ma- de realizar o tipo descrito na lei.
nifesta de modo único e seguro em direção a ele, ao conlxáxip do que sucede
na espécie anterior. Comporta duas formas: o alternativo e o eventuaL Dá-se o 1. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 289.
primeiro quando o agente quer um dos eventos que sua ação pode causar: 2. Rocco, Uoggetto, cit., p. 332.
atirar para matar ou ferir. Do eventual já dissemos no parágrafo anterior:_o_ 3. E. Florian, Trattato di diritto penale; parte generale, 1934, v. 1, p. 470.
suieito_ativo prevê a rpg|llta^n p, ^mhora não seja este a razão de sua condu- 4. Robert von Hippel, Diritto penale, trad. R. Vozzi, 1936, p. 192.
5. Antolisei, Uazione e Vevento nel reato, 1938, p. 124.
140 PARTE GERAL DO CRIME 141

considerado comojim^jLespecial e próprio rio delito. Marcelo Finzi conceitua-o sando os séculos. Carrara já definira a culpa como "a voluntária omissão de
como a volição dirigida a um resultado que se acha fora dos atos externos diligência em calcularias çonsequências_possíveis e previsíveis do próprio
de execução do delito6. Em regra, nas figuras delitivas, é indicado por ex- fato", acrescentando que "Ia essenza delia colpa stà tutta nella prevedibilità".
pressões como: "com o fim de", "com o intuito de", "com o escopo" etc, ou A doutrina da previsibilidade impõe-se porque, realmente, sem ela é difícil
com o emprego da preposição para: "para isto" ou "para aquilo" etc. fundamentar ou justificar um juízo de culpabilidade ou reprovação, pois é
É o dolo específico o elemento que distingue delitos, cujo aspecto material somente fundado na possibilidade de se prever o que não foi previsto que se
é o mesmo. Assim, o rapto de mulher, que se aparta do sequestro, pelo fim pode censurar alguém, por não ter tido conduta que evitaria o resultado
libidinoso. danoso. A culpa tem também conteúdo normativo.
Adianta Finzi que, às vezes, a lei não usa expressões para indicá-lo, Previsibilidade é a possibilidade de se prever um fato. Diz-se haver
porém, ele está implícito na oração; v. g., o furto, na lei argentina: "... apode- prevísibilidade quando o indivíduo, nas circunstâncias em que se encontra-
rar-se ilegitimamente de coisa móvel, total ou parcialmente alheia", em que va, podia ter-se representado como possível a consequência de sua ação.
o verbo apoderar-se indica a atitude espiritual de se tornar dono de uma Distingue-se da previsão, porque esta a contém. O previsto é sempre previ-
coisa, submetendo-a a seu poder. sível. A previsão é o desenvolvimento natural da previsibilidade.
Outros juristas, entretanto, impugnam essa distinção do dolo, dizendo Dois são os critérios apontados para aferi-la. Um, o objetivo, tem em
que tal intenção ulterior é elemento subjetivo do injusto (n. 52). vista o homem médio, isto é. sua diligência e. perspicácia Previsível é um
A questão é mais de situação dessa espécie de dolo. Quer integrante do resultado quando a previsão de seu advento pode ser exigida do homem comum
tipo anormal, como elemento subjetivo do injusto, quer não, a verdade é que e normal, do indivíduo de atenção e diligência ordinárias, exigíveis da gene-
ele tem existência real, oferecendo o característico de vários delitos. ralidade das pessoas. Entre outros, defendem esse critério Rocco, Florian,
Impallomeni e Battaglini.
81. A culpa. O vocábulo culpa, em sentido amp_lQj7ato sensu), equivale O outro critério, o subjetivo^ rejeita o paradigma do homem médio, que
^culpabilidqde^cqmpreenàendo o dolo e a culpa em^êntido~estrito (stricuT é abstração, gara_recomendar que se Heve tff em vkta a_rjfr.fjnnaliriadf d"
sensu). Consequentemente, esta é uma das formas da culpabilidade, e é a que indivíduo em tela^jsto é. suas_condições personalíssimas: idade, sexo, grau
nos irá tomar a atenção. de cultura eta_
A elaboração da doutrina da culpa não cessou; continua em nossos dias. Um terceiro critério surge, procurando conciliar os anteriores. Foi es-
Inúmeras são as teorias que procuram fundamentá-la, e, em outro livro, ocupamo- posado pelo diploma suíço, no art. 18, que, após definir o delito culposo,
nos demoradamente com sua exposição e crítica7. acrescenta: "A imprevidência é culpável quando o autor do ato não usou das
De modo geral, elas podem reunir-se em duas grandes classes: as sub- precauções exigidas peias circunstâncias e por sua situação pessoal". Co-
jetiyaitzs objetivas. As primeiras apontam, no elemento psicológico, o conteúdo mentando o texto, diz Paul Logoz: "Para haver imprevidência culpável, é
característico da culpa; as segundas, ao revés, não se preocupam com a re- necessário, em primeiro lugar, objetivamente, que o autor não tenha usado
lação psíquica entre o agente e o fato, mas encontram a essência da culpa em das precauções que eram exigidas pelas circunstâncias. Segundo as circuns-
uma especificação qbjetiyadaconduta, em modalidade sua, no nexo causal tâncias do caso em espécie, é exigível do agente uma diligência ou precau-
entre a conduta e o evento, ou^finaMenle^najiatureza do^bemjlfflLdiço viola- ções maiores ou menores". E passando ao outro requisito: "Para haver
do ou. ofendido8. imprevidência culpável, é necessário que, subjetivamente, o autor tenha omitido
Não há júvida^entretanto, de que a opiniãgjjjjúsj^jejjgrizada é a que as precauções exigidas por sua situação pessoal". E esclarece que, a esse
fundamenta a culpa na ferevisibilidade} Remonta aos romanos e vem atraves- respeito, é preciso saber se se está autorizado a dizer ao agente: "Tel que tu
es, tu as fait preuve d'une imprévoyance coupable. Si tel n'est pas le cas, il
6. M. Finzi, El llamado dolo específico, 1943, p. 15 e s. ne saurait être question de negligence: à 1'impossible, nul n'est tenu" 9.
7. E. Magalhães Noronha, Do crime culposo, cit., p. 29 e s.
8. Stefano Riccio, // reato colposo, 1952, p. 95. 9. Paul Logoz, Commentaire, cit., p. 68 e 69.
PARTE GERAL DO CRIME 143

Cremos que esse critério éjustoe corresponde à realidade^ Ojuiz_deye 82. Espécies de culpa. T>ktin£iieiTi-se primeiramente a culpa teji a
ter em vista, primeiramente, o fato em si, com suas circunstâncias etc, a inconsciente. Nesta, o resultado previsível não é previsto peloagente. São os
exlgii cautela: e atenção ordinárias; depois, a consideração do sujeito_atmi; casos comuns de crimes culposos: manejo de arma, sem verificar
podíãTêle deixar de agir, como o fez, ou, por outra, estaria à altura de empre- previamente se está carregada, direção de veículo com velocidade inadequa-
gar a diligência comum dos homens? O critério objetivo, por si só, não é da etc. É a chamada culpa ex ignorantia.
justo, pois, se se procura apurar a responsabilidade de uma pessoa, não se Na culpa consciente ou com previsão (culpa ex lascívia), o sujeito ativo
compreende que se investigue o fato, não em relação a ela, mas ao homem ^rW_njgsii)tado. porém espera que não se efetiye. Avizinha-se bastante do
médio. O subjetivo também não satisfaz. Não se pode considerar exclusiva- Holõeventual, mas nem por isso constitui modalidade mais grave do que
mente a pessoa do autor, sem relacioná-la com o fato e todas as suas circuns- aquela.
tâncias, a exigirem atenção e diligência que não podem ser as de um indiví- É certo que variam as opiniões, mas estamos que a culpa consciente
nem sempre traduz maior periculosidade ou desajuste da pessoa. Um homem
duo excepcional, mas as do homem médio.
previdente pode, após madura reflexão, praticar um ato do qual antevê o
Para nós, diz-se o cnme_aúgos_ojquandoj> agente, deixando de empre- resultado, contando com que, devido à sua cautela, este não sobrevirá, o que,
gar a atenção^ ou diligência de que era capaz em face das circunstâncias, entretanto, não impede que se verifique. Não necessita de maior corretivo do
não previu o,.cíixáte,L delituoso jdgjsug ação ou o resultado desta, ou, tendo-o que o estabanado, o desatento, o imprudente que pratica o mesmo ato, sem
previsto^ supôs levianamente que aãQ^szJcexúhjiúa: bem como quando quis que nem por um momento perceba a consequência funesta.
oresultado^mi\\landp_^entretm A culpa stricto sensu ainda oferece a modalidade conhecida como im-
Dâ definição exposta, podemos extrair os elementos do fato culposo: própria, ou culpa por extensão, equiparação ou assimilação. É ela de evento
(l}/\ção (em sentido amplo) causativa do resultado. Tratasse de condu- voluntário. Constitui objeto de nossa atenção no n.76. Agora, o agente, ao
tSLjmlunféria. O agente quer praticar a ação com a mesma vontade do fato contrário do que acontece com as outras formas culposas, quer o evento,
porém sua vontade está lastreada por erro de fato vencível ou inescusável.
doloso: o chofer, que dirige seu automóvel a 120 km por hora e desastrada-
Ele acredita encontrar-se em situação de fato que torna lícita a ação, porém
mente atropela alguém, quer a ação de dirigi-lo assim, do mesmo modo que labora em erro grosseiro ou vencível, e, portanto, age com culpa. Se invencível
a quer aquele que imprime essa velocidade a seu veículo para atirá-lo propo- fosse, ocorreriam as chamadas descriminantes putativas: estado de necessi-
sitadamente sobre o pedestre, seu inimigo. Em ambos os casos a ação causal dade, legítima defesa, exercício regular de direito ou cumprimento de dever
é voluntária. legal.
\2))o evento antijurídico não querido, ou pj3r_njLo ser preyist", "" p"r- Pode ainda a culpa ser presumida ou in re ipsa. Aceitava-a o Código
que, tendo sido previsto, rejeitou-se a possibilidade de se verificar. Se o agente anterior, fazendo-a derivar da inobservância de disposição regulamentar.
previu e quis, haverá dolo direto; se o previu, e, embora não o querendo de Assim, v. g., a pessoa que não tivesse carta de habilitação para guiar automó-
vel, mas fosse habilíssimo condutor, se acontecesse atropelar alguém, res-
modo exclusivo, o aceitou, existirá dolo eventual. ponderia por delito culposo, ainda que taxativamente provasse ter sido pura-
<H3)^O evento antijurídico querido, mas fruto de erro de fato inescusável. mente casual o fato, havendo ele se portado com a maior diligência possível.
Se não previsto o resultado^^deve .ele_enjxe;tanto, sp.r previ síy£L_çomo_ Rejeitou-a o atual estatuto, e em boa hora, pois ela traduz responsabilidade
se falou: não há culpa sem previsibilidade. Constitui ela o nexo psíquico objetiva.
entre o indivíduo e o evento. Só por um resultado previsível é que ele poderá Alude-se ainda à culpa lata, leve e levíssima. É distinção que vem do
responder. Além da previsibilidade, penetra-se nos domínios do caso fortui- direito romano privado e corresponde antes a graus da culpa. A primeira
to, onde a responsabilidade não tem sentido. ocorreria no caso em que qualquer pessoa pudesse prever o evento. Seria
A definição que demos esposa o caráter misto (subjetivo e objetivo), leve a culpa quando somente o indivíduo bastante diligente previsse o resul-
tado. Levíssima quando só a excepcional cautela o impediria. Aproxima-se
abrange o crime formal e o material e compreende a culpa inconsciente, a esta do caso fortuito. Excepcionalmente pode, entretanto, ser punida.
consciente e a por extensão, equiparação ou assimilação, das quais passa-
A consideração do grau da culpa é tarefa do juiz, consoante o art. 59.
mos a falar.
144 PARTE GERAL DO CRIME 145

Para os finalistas, a teoria da culpa tradicional sofre profunda modifi- provir ou da falta de prática ou da ausência de conhecimentos técnicos de
cação, já que incompatível com a estrutura do crime doloso. profissão, ofício ou arte, pois todos eles têm princípios e normas que devem
ser conhecidos pelos que a eles se dedicam.
83. A fórmula do Código. Nãojgfinjujiossa lei a culpa'°._Preferiujreferir-se
Pode a imperícia ocorrer fora da arte ou profissão, mas, sob o ponto de
às suas modalidades.
vista jurídico, será imprudência ou negligência. Assim, se uma parteira cau-
A primeira é a negligência. É expressão ampla. Na doutrina e nas leis sa a morte de gestante, será imperita; se for uma curandeira, será impruden-
frequentemente é usada como equivalente à culpa em sentido estrito, dando- te. Por outro lado, embora a imperícia seja privativa de arte ou profissão,
lhe, então, todo o substrato e abrangendo, pois, a imprudência e a imperícia. comportam estas também a imprudência e a negligência. Imprudente seria,
No sentido do Código, ej^éjjiaçãn, inércia p. passrvirlarle. Jjecorre^de por exemplo, o operador que, podendo fazer intervenção cirúrgica por pro-
inatividade material (corpórea) ou subjetÍYa_(psíquica). Reduz-se a um com- cesso simples e conhecido, empregasse um mais complexo e difícil, resul-
portamento negativo. Negligente é quem, podendo e devendo agir de deter- tando a morte do paciente. Negligente, o cirurgião que, operando, deixasse
minado modo,por indolência ou preguiça mentaLnMage ou se comporta de nas vísceras do paciente um tampão de gaze.
modo~díverso. Exemplos frequentes de negligência temos no fato de não se Não se confunde a imperícia com erro profissional. Imperito é quem
colocãrêm^visos em aberturas ou obstáculos do leito carroçável; não se tra- não possui o cabedal normalmente indispensável ao exercício de uma profis-
zer convenientemente preso um cão bravio; deixar-se ao alcance de criança são. Não existindo essa ignorância, não se poderá falar em imperícia, mas
tóxico ou arma etc. ter-se-á o erro profissional que, em regra, é escusável. Ele é consequência da
A imprudência tem forma ativa. Trata-se de um agir sem a cautela ne- precariedade dos conhecimentos humanos e não resultado da falta de obser-
cessária. É forma militante e positiva da culpa,£Ojm^ejitfijíiLalu^o_agente_ vância das regras e princípios que a ciência sugere. É no caso prático que se
com precipitaçJOjJnsensatez ou inconsideração, já por não atentar_gara a poderá distingui-lo da imperícia, e será escusável, em regra, quando invencível
lição dos fatos ordinários, já por não atender às circunstâncias especiais do à média dos profissionais e atendidas as circunstâncias do fato e a situação
caso, já póTnão perseverar no que a razão indica etc. Na negligência, como pessoal do agente.
escreve Riccio, não se usam os poderes de atividade; na imprudênciafaltam
os poderes inibitórios. Agem com imprudência: o chofer que conduz seu 84. Compensação da culpa. Aojnyerso do que sucede no direito priva-
auto com velocidade inadequada às circunstâncias de tempo e lugar; quem do, não admite o penal a compensação de culpas. O_prpceder_çulgoso_do
maneja arma carregada, na presença de outras pessoas, ou caça em local tttendido não elide o do agenteTEm face de nossa lei, que consagra a teoria
onde há excursões, convescotes etc. da equivalência dos antecedentes causais, seria absurdo advogar-se a com-
pensação de culpas. Só se isentará de pena alguém quando o resultado for
Podem coexistir a imprudência _e_ a negligência. Quem conduz seu au-
atribuível exclusivamente à culpa da vítima.
tomóvel com velocidade excessiva e não verifica o estado dos freios é im-
prudente e negligente. um choferdeixa^em declive, sgu^ automóvel malbrecado e
í, vindo a ferir-se pela precipitação ladeira abaixo do
A impenda supõe arte ou profissão. Consiste na incapacidade, na falta
Veículo, lespunderá por ctrrpa:
de conhecimento ou habilitação para o exercício de determinado mister. Pode
Se, ao contrário, uma pessoa toma, sem que o condutor a possa ver, a
traseira de seu veículo e vem a machucar-se, não existe responsabilidade
10. Fê-lo, porém, o Anteprojeto Nelson Hungria (art. 16, II). Não achamos, entre- daquele, pois o fato voluntário e ilícito do ofendido é que torna danosa sua
tanto, feliz a redação adotada. Embora diga ter abraçado o critério misto dos Códigos açâb lícita.
suíço e grego, sua fórmula não o consagra, pois declarava: " ...culposo, quando o agente,
deixando de empregar a atenção ou diligência ordinária ou especial, a que estava obri - g^ responsa bilidade do agente existe q uandoaação causal de
gado em face das circunstâncias, não prevê o resultado...". Consagrava o critério obje- revisível para ele: •-----------------------------------------------------
tivo e não o misto. E a prova temo-la na receptação culposa (art. 193 do Anteprojeto),
quando se dizia "deve presumir-se obtida (a coisa) por meio criminoso", onde iniludivelmente Compreende-se a compensação de culpas no direito privado, dada sua
é aceito o critério objetivo. orientação económica. O direito penal, entretanto, tem outra finalidade em
146 PARTE GERAL DO CRIME 147

vista: é a ordem pública, são os interesses sociais que o norteiam e que não previsibilidade do efeito mais grave e é nisso que se funda qjresp£nsabilida-
se podem sujeitar à compensação dos fatos culposos. de do agente.
85. O preterdolo. Agravação pelo resultado. Além do dolo e da culpa, A atual reforma penal cuidou dos casos de agravação pelo resultado no
outra forma de culpabilidade existe: o/preterdolo ou preterintenção. Existe árt. 19J, que estatui: "Pelo resultado jpe^agrava especialmente a pena só res-
delito preteFdoloso quando o resultado vai além do dolo do sujeito atiyo. ponde o agente que o houver causado ao menos culposamente".
Assim, no caso em que umFpêssoa desfere em outra um soco, com intenção É uma inspiração do § 18 do Código Penal alemão e do art. 18 do Có-
de machucá-la, acontecendo, entretanto, que ela, perdendo o equilíbrio, vai digo Penal português, ambos com redações semelhantes. Por sua vez, tam-
ao chão e, batendo com a cabeça na guia da calçada, fratura a base do crânio, bém reproduz o art. 19 do Decreto-lei n. 1.004/69, que não chegou a entrar
vindo a falecer. em vigor.
Discute-se acerca da estrutura desse delito. Uns afirmam existir nele Para que ocorra tal hipótese é necessária a conjugação de três elemen-
um misto de dolo e acaso; outros, somente um crime doloso; alguns, apenas tos:ajunifatobágico. criminoso. dojoso_[prinri/M/gdelictum. minusdp.licium)-.
delito culposo; e, finalmente, diversos, uma figura bifronte: dolosa e culposa b) um resultado não desejado (majus delictum); e c) um liame entre o fato
ao mesmo tempo. básico doloso e o resultado não desejado (nexo de"pfeTerfhTêncionalidade).
Para estes, há dois crimes na figura preterdolosa:_ o minus delictum (o Por força de tal dispositivo normativo o agente só responderá pelo re-
que o delinquente queria praticar), atnbjuvela_títulode.dplo, e o majus delictum sultado, pelas consequências agrav adoras, quando as causar ao menos
(õ~qu¥TeiIniêl5te~sTvem ^verificar), imputado a título de culpa. Parece-nos culposamente^
ser essa a opinião mais fundamentada. O dispositivo em questão veio resolver o problema dos crimes qualifi-
cados pelo resultado que, no Código de 1940, eram uma decorrência da sim-
Com efeito, no exemplo atrás citado, a consequência ou efeito (resulta-
ples imputatio facti, sem qualquer exame sobre a situação psicológica do
do final) não foi querido e, não tendo sido previsto, também não foi aceito
agente.
pelo agressor. Não há, pois, dolo direto nem eventual. Caso fortuito também
não houve. Este rompe o nexo causal entre a ação do agente e o resultado, e, Há em tal artigo uma coerência com o princípio da culpabilidade, pois,
na espécie, não houve rompimento algum entre a ação de desferir o soco na em relação ao evento mais grave, o autor por ele responderá culposamente.
vítima e sua queda. A responsabilidade do agente vem fundada na previsibilidade do efeito mais
grave.
Consequentemente, a nós nos parece que o evento só pode ser atribuído
a título de culpa, não colhendo a objeção de que não se pode imputar um 86. A responsabilidade objetiva. O art. 18 consagra a regra nullum crimen
único fato a título de dolo e culpa ao agente. A objeção procederia se o efei- sine culpa, declarando não haver delito sem dolo ou culpa stricto sensu.
to, ou consequência, fosse um só, o que, entretanto, não ocorre, pois, no caso Repudia, dessarte, o dispositivo d^w^à&j^spon~sãbiiidadêohietiva. con-
citado, há dois efeitos: a lesão física proveniente do soco recebido e a fratura ceituada porVincenzo Cavallo como "laresponsabifità per un evento addebítãbile
resultante da queda. Nada impede, pois, que em relação a um haja dolo, e ali'agente per semplice nesso di causalità materiale, escluso ogni contributo
culpa relativamente ao outro. Quem tem apenas intenção de ferir deve em- di elementi spirituali conoscitivi o volontaristici", que acrescenta tratar-se
pregar diligência ao executar o crime, não se excedendo no uso dos meios e da responsabilidade do homem esbulhado de tudo quanto nele existe de ver-
dirigindo a atividade executiva de modo que, da mesma, não resulte evento dadeiramente humano, isto é, da luz espiritual que vivifica todas as ações
mais grave do que o querido, que, encontrando-se na mesma direção, era nas que executa, bem como seus possíveis eventos, equiparando-o em seus atos,
mais da vezes previsto e, fora de qualquer dúvida, previsível". qual simples ser físico, aos animais e às forças brutas da natureza12.
no crime, preterdoloso, há dolo no antecedente (minus De feito, no estado presente do direito penal, é ela incompreensível.
delictum) pni2llla nn consequente (majus delictum). Há culpa porque há Representa um retrocesso a tempos primitivos, em que o homem pagava pelo

11. Bettiol, Diritto penale, cit., p. 303. 12. V. Cavallo, La responsabilità obbiettiva nel diritto penale, 1937, p. 538.
148 PARTE GERAL DO CRIME 149

que fizera, sem quaisquer preocupações com o elemento subjetivo. Era o 88. "Actio libera in causa". Exposta, como já foi, a culpabilidade
resultado, o dano causado, a clamar sempre por uma pena, que nada mais era (n. 54), com o seu elemento — a imputabilidade, sobre a qual ainda nos
que vingança. A responsabilidade só pode ter por fundamento a vontade humana. deteremos ao examinarmos o art. 26, e considerados, agora, o dolo e a culpa,
Infelizmente, o que o art. 18 proclama não é observado. Assim no to- já se está a ver que um fato só pode ser imputado ao agente quando este, no
cante" à embriaguez, à emoção e à paixão (art. 28), onde o elastério dado à momento de praticá-lo, apresenta capacidade ou condições pessoais que per-
teoria da actio libera in causa é inadmissível, caindo-se na responsabilidade mitam a imputação.
objetiva. Esta domina também em matéria das contravenções. Consequentemente, a regra é que o sujeitojitivo, no momento da exe-
Para outros^ ela também existe nos crimes qualificados pelo resultado, cução do fato delituoso, tenha capacidade de entender o caráter criminoso
tmjres£onsabilidade_jucessiva nos crimes de imprensa. Tal não procede. dcTrato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Naqueles, como vimos, há previsibilidade do majus delictum, e, nestes, há Todavia casos há em que ele não se encontra, naquele instante, em tais
culpa dos responsáveis sucessivos (diretores e redatores) pelo que se publica condições, e, mesmo assim, é responsável: deverá arcar com as consequên-
no jornal. /V^ V i cias jurídicas do fato. Tal ocorre, v. g., no exemplo de quem coloca uma bomba-
relógio a bordo de uma aeronave, e, horas depois, voando o avião sobre outro
(87. A excepcionalidade do crime culposo. O parágrafo único do art. 18
país, aquela explode, estando, entretanto, o agente dormindo em sua casa.
soa que o deJito-CiilpQ^gJiá-dê.sgr expressamente declarado na lei; nojúlên-
cio desta, quanto ao elemento subjetivo, a punição só se yerifica_a^título de A imputabilidade_agora se faz em virtude da teoria das actiones liberae
dõlQ, É a interpretação a dar ao parágrafo, não tendo cabida a que pretende mj^owíãljlul^^ e volitiva)
ver aí consagrada a responsabilidade objetiva. Contra essa exegese se opõe no momento_daxrime. mas responsável o agente por ser livre na causa, isto
a técnica da lei, fazendo da prescrição o parágrafo de um artigo, que só se é^noinstante anterior, quando desejaya_pjati£ai^o delito. O estado de
refere ao dolo e à culpa. inimputabilidade é, então, por ele procurado, como ocorre, v. g., na embria-~
guez preordenada (beber para cometer o crime). Em tal hipótese, como es-
É exoe^dcmal_ajpunibilidade_da culpa. Geralmente a norma penal pres-
creve Sauer, cTsujeito ativo é "simultaneamente autor mediato imputable, e
supõe no destinatário uma vontade diretamente contrária ao preceito, ou seja,
instrumento inimputable"15. Pode, ainda, em casos excepcionais, a imputação
vontade dirigida ao evento proibido ou a um resultado imposto e obrigatório.
fazer-se a título de culpa: o guarda-freios que em determinada hora tem de
A derrogação há de ser expressamente indicada, isto é, devem ser declara-
fazer certa manobra e, não obstante, põe-se a beber, devendo prever que
dos taxativamente os casos em que a vontade seja punível, conquanto não
dessa conduta poderá advir o resultado preciso do abalroamento de comboios.
dirigida nem ao evento interditado nem ao imposto. Nj^uJrojUejTno^_aj>sen-
tada a nojmalidad£_úo dolo, resulta a excepcianalidade da rnlpa, dnnde o O assunto será mais amplamente abordado ao tratarmos da embriaguez.
imperativoA& declaração expressal\ Por ora, cumpre apenas assinalar ter nosso Código dado amplitude demasiada
A incriminação do fato culposo tem por fundamento sua gravidade com à teoria da actio libera in causa, aceitando a responsabilidade objetiva que
os crimes contra a pessoa, ou sua relação direta com a proteção da coletivi- repudiou no art. 18.
dade (crimes contra a incolumidade pública). É o que de ordinário acontece,
embora, às vezes, outros fatores determinem a punibilidade, como na recep-
tação culposa.
Dividem-se os juristas, quanto à capitulação dos crimes culposos: uns
são pelo aumento de seu número; outros, pela diminuição. Procedente é a
opinião de Von Hippel: "A repressão deve limitar-se, como até agora, tendo
por base o critério de absoluta necessidade"14.

13. Riccio, // reato, cit., p. 20.


14. Von Hippel, Diritto penale, cit., p. 206. 15. Sauer, Derecho penal, cit., p. 145.
DO CRIME 151

independência de que os elementos sejam descritivos ou normativos, jurídi-


VII DA co^Tõu fáticos. Erro de proibição é.todo erro sobre a_antijiiridiçidade~aè~nma
ação_conheçida como típica pelo autor" 1.
CULPABILIDADE
~~
A) O ERRO
Em trabalho ofertado ao Eg. Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo,
ao qual pertence, o jurista Ricardo Andreucci externou o seguinte ensinamento:
SUMÁRIO: 89. Erro e ignorância. Erro de direito e erro de fato. Erro de
"Venceu-se o extremismo implícito entre erro de fato e de direito, substituí -
tipo e erro de proibição. 90. Erro de tipo. 91. Da inescusabilidade do des-
conhecimento da lei. Erro de proibição. 92. Erro determinado por terceiro dos, agora, pelo erro sobre os elementos objetivos da infração penal, vistos
e erro sobre a pessoa. 93. Erro na execução. 94. Descriminantes putativas em seus dois aspectos, tipo e ilicitude, e, pois, dentro, definitivamente, da
fáticas. teoria do crime. O primeiro abrange o erro sobre o conteúdo, descritivo o u
normativo, sem que o intérprete tenha necessidade, para impedir injustiça s,
de usar recurs o^dogmaticamente incorretos^como^oerro de direito extrapenal
equiparado ao erro de fato. O segundo, sem invalidar o preceito dejjue p
89. Erro e ignorância. Erro de direito e erro de fato. Erro de tipo e erro
dèscoriEecimento 3a Tei é inescusável, mas reduzido, em síntese, ao erro quanto
de proibição. Distinguem-se erro e ignorância, poisoj)rimeiro_ éjo_ggnheci-
à vlgência,_aprejrjqssibiíidades, entre, outras^, ao^ reconheçjme.nlo do errojie
mento falso acercajiejmTjobjetõ,jic[passó""guêTignorância é a ausência total
s_yj2Siínção".
desse conhecimento. Seus efeitos jurídicos são, entretanto T4dêoticos, pois
tratados da mesrriajííirna. Exemplificando: se o agente apanha um objeto alheio, supondo ser de
sua propriedade, está diante de um erro de tipo; se o credor trabalhista por
A doutrina tradicional, até agora prestigiada pelas legislações anterio -
salário apanha dinheiro do empregador, acreditando ter o direito de assim se
res, dividia o erro em erro de fato e erro de direito. O primeirQ_é_pjue_£ecai
pagar, encontra-se diante de um erro de proibição. No primeiro caso o agen te
sobre o fato constitutivo do delito ou sobre um de seus elementos integran -
supôs inexistir a elementar "alheio", elemento constitutivo do crime de
tes, ao passo que o outro — erro de direito — incide .sobre a proibição iu rí-
furto. No segundo, desconhecia a proibição legal agindo sobre a antij uridiçidade
dica~dõ^ ta-piãScada-Atente-se, entretanto, a que os elementos objetivos do
do fato.
crime podem ser de natureza jurídica.
A moderna doutrina penal não mais alude a erro de fato e erro de direi - 90. Erro de tipo. Erro de tipo, segundo definição de Damásio E. de
to, mas sim a erro de tipo ou erro sobre elementos do ti po (Tatbestandsirrtum) Jesus, "é o que incide sobre as elementares ou circunstâncias da figura típi-
e erro de proibição ou sobre a ilici tudg do fato (Verbotsirrtum). ca, sobre os pressupostos de fato de uma causa de justificação ou dãj EjjTsè-
A nova legislação sobre a Parte Geral do Código Penal, seguindo o que cundário s da normjt_pgnaj_ineriminadora" 2.
já ocorrera com o Anteprojeto de 1969, adotou a moderna classificação: erro Como referido pelo ilustre autor citado, o erro de tipo também pode
de tipo (art. 20) e erro de proibição (art. 21). Contudo tal modificação não foi recair sobre uma circunstância qualificadora, sobre uma agravante genérica
tão radical como desejam alguns, pois a dicotomia erro de direito e erro de ou sobre um pressuposto de fato de uma excludente de ilicitude.
fato continua presente, como se depreende do § 1.° do art. 20 e da primeira Em palavras simples: o erro de tipo é o que faz o agente supor a inexistência
parte do art. 21. de um elemento ou circunstância que compõe a figura típic a. O agente que
A diferença entre ambos foi bem exposta por Maurach: "Erro de tipo_é__ contrai matrimónio com pessoa já casada, desconhecendo a existência do
o Hesf-onhecirnento de circunstânciasjiofato pertencentes jio tipojegal, com casamento anterior, supõe não existir um dos componentes da figura típica
caracterizadora do crime de bigamia.
^O_erjQ_de. tipo exclui o dolo, podendo o agente responder por crime.

1. Tratado de derecho penal, 1962, v. 2, p. 142.


2. Direito penal, v. 1, p. 426.
152 PARTE GERAL DO CRIME 153

culposo. "Se o dolo exige antes de tudo o conhecimento material do fato Acidental
criminoso, o erro do agente sobre qualquer elemento dele — seja sobre um
elemento que preexista à conduta, seja sobre um dos produzidos por ela — 91. Da inescusabilidade do desconhecimento da lei. Erro de
exclui o dolo": é o ensinamento de Eduardo Correia. proibição. Consagrou a lei, no art. 21, primeira parte, o princípio error
Por sua vez o erro de tipo pode ser essencial ou aciden tal. júris nocef. o erro de direito prejudica. Fundamento da irrelevância desse
O erro essencial é o que recai sobre elementares ^^drcunstâncias do erro é uma razão
crime, o que faz com qjigjn^j)ge.nte(_amj:azãojdo_falso conhecimento ou do
deic^níecimentoijião__pjpssa^ compreender a naturezaj;nmijK)s_a_dgJatojmi-
ticã3õTNo exemplo já citado, por não saber do casamento anterior do outro
contraente, o agente não sabia da realização da figura típica correspondente
à bigamia.
Por seu turno^o erro essenciaXrjode_serinye.nr,ívp,l pn pcnwáv<»|e
vencível o primeiro quando não poderia ser evitado,
agindp o
q
agente com a normal diligência que é exigível a qualquer pessoa; o segundo
quando poderia ser evitado diante de uma diligência normal, uma prudência
comum ou um comportamento exigível para o homem médio.
Apura-se a invencibilidade do erro pelo critério já mencionado no es-
tudo da culpa, consistente na consideração das circunstâncias do fato e da
situação pessoal do autor.
O erro de tipo invpnrfvpi nu p.sf.usável exclui o dolo e^onseqtiente-
mente. o agente não responde po*- rrímp alg"ny. oleiro de tipo essençiallSJaciy^l
ou inescusável exclui o dolo^masjião ju^ljja^jialjj^jSibilidade de o agen-
te responder por crime culposo, se assim previsto em lei.
/•""" Ó erro de tipo acidental é o que recai sobre elementos secundários da
^figura típica e não aproveita ao agente.

invencível não há dolo nem


culpa.
ou
escusável
Erro de tipo
não há dolo, porém
(art. 20) Essencial - vencível pode importar em
culpa.
ou
inescusável

não aproveita.
de política criminal. "Se fosse possível invocar como escusa a ignorância da
lei, estaria seriamente embaraçada a ação social contra o crime, pois ter-se-ia
criado para os malfeitores um pretexto elástico e dificilmente contestável.
Impraticável seria, em grande número de casos, a prova contrária à exceção
do réu, fundada na insciência da lei": sábias as palavras do Min. Francisco
Campos na sua Exposição de Motivos de 1940.
Quanto ao indivíduo, diz Hungria, transcrevendo Von Bar, que não há
injustiça em que lhe não aproveite o erro de direito: "Cresce ele como membro
da comunhão social, a cuja consciência jurídica deve corresponder a lei penal
e por isso tem, de regra, a clara intuição do que deve evitar para não violar a
ordem jurídica"3.
Não obstante, a tendência é tornar menos rígido o princípio. Códigos
como os da Letónia, Suíça e Noruega têm orientação mitigadora, pois o pri-
meiro não distingue os erros, ambos excludentes do dolo (art. 41); o segundo
declara: "A pena poderá ser atenuada livremente pelo juiz (art. 66) em relação
a quem cometeu um delito, na razoável suposição de que lhe assistia o direito
de agir" e que "O juiz poderá, também, isentar o agente de toda a pena",
procedendo o último de igual modo.
Para os que aceitam a existência de um elemento normativo no dolo,
para os que acham que este não é apenas representação e vontade, mas cons-
ciência da antijuridicidade, é difícil justificar a irrelevância do erro de direito
ou erro de proibição, como se diz na moderna dogmática penal. Se a cons-
ciência da ilicitude falta, não há dolo e sem dolo não existe crime. A nosso
ver a parêmia error júris nocet choca-se com o conceito da culpabilidade
normativa.
Vimos que, atento ao princípio que a ignorantia legis nenimem excusat, o
desconhecimento formal da lei não exclui a culpabilidade, podendo, quando
muito, funcionar como atenuante genérica (art. 65, II). Na atual reforma tal
rigorismo foi atenuado pelo legislador, pois, baseado na relevância da falta
de consciência da antijuridicidade do fato, a falta de conhecimento da norma
proibitiva pode levar à exclusão da culpabilidade ou reduzir o juízo de
censurabilidade.
Erro de proibição pode ser traduzido como aquele no qual incide o agente
que, por falso conhecimento ou desconhecimento, Tilo tem possibilidadê~de
venncar que^õ_cornr>ortamento é ilícito, sendo inevitável tal situação. Por
tanto exige dois elementos: a inevitabilidade e a impossibilidade do conhe
cimento sobre a ilicitude do fato. Trata-se, portanto, de um erro sobre a ilicitude
do fato, através do qual o agente supõe lícita a ação cometida! "

3. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 388.


154 PARTE GERAL DO CRIME 155

O erro de proibição pode ser representado de duasJorrnas diferentes:^ Podem, na hipótese, sobrevir situações curiosas, como quando, ardilo-
escusável ou inevitável e inescusável ou evitável.
Éesçusávelou. ine.vitáyeli}uanílQÍnâfiistáve
É

}
isto é, ao prudente, e com discernimento. É o que.se. deflui doart. 21, pará-
grafo único, contrario sensu.
É inescu^yjeLcuiJSYil^jdjqujfld^jíjj»^^
cia, descuido, desídia, isto é, quando lhe era possível nas_circunstâncias em
que se encontrava ter_um correto conhecimento.
Novamente repetimos que o critério diferenciador está no estudo da
culpa, consistente na consideração das circunstâncias do fato e da situação
pessoal do autor.
O erro de proibição, segundo Damásio E. de Jesus, pode ser encontrado
em três situações diferentes4:
™ erro ou ignorância de direito: o sujeito sabe o que faz, porém não
conhece a norma jurídica ou não a conhece bem e a interpreta mal (erro de
proibição direto);
b)) suposição errónea da existência de causa de exclusão da ilicitude
não reconhecida juridicamente (erro indireto), e
fà\ descriminantes putativas: o sujeito supõe erradamente que ocorre
uma causa excludente da ilicitude".
O erro de proibição atinge a punibilidade: exclui a pena quando escu-
sável, mitiga a reprime.nria (de. um sexto a um terço) quando inescusável..

escusável ou isenta de pena


inevitável
Erro de
proibição
inescusável ou _T reduz a pena
evitável

92. Erro determinado por terceiro e erro sobre a pessoa. Se quem co-
mete o erro a ele foi levajo_p^rj)utrem:_responde este pelo fato, que_será
dõlõsQ^iTculposo, conforme sua conduta. Se um médico entrega à pessoa da
casa uma droga trocada para ministrá-la ao enfermo, sobrevindo morte ou
lesão deste, responde o profissional por crime contra a pessoa, doloso ou
culposo, consoante o elemento subjetivo.
samente, um indivíduo induz outro a casar com pessoa já casada. Ignorando se quis matar seu pai e mata um terceiro, será parricida; ao contrário, não
o matrimónio, o contraente não comete crime, ao passo que o instigador é haverá homicídio agravado se desejou matar outrem que não o genitor, que,
co-autor de bigamia5. por erro, vem a ser atingido.
Cumpre notar que também o induzido pode agir culposamente: se uma Juristas alemães pretendem ver, na hipótese, concurso de delitos: tenta-
pessoa entrega a outra uma arma, dizendo-lhe estar descarregada, e lhe su- tiva dolosa contra a pessoa que se pretendeu alcançar e crime culposo contra
gere que, por gracejo, atire contra uma terceira, que vem a ser ferida, quem a atingida. A construção é artificiosa. Frequentemente, a tentativa contra
atirou pode igualmente agir com culpa. Se ela age com dolo, isto é, se sabe aquela não passará de simples intenção. Suponha-se que, no caso apontado,
que a arma está carregada e vale-se da ocasião para cometer um homicídio, A, em São Paulo, fere C, tomando-o por B, que se encontra, no instante, no
imputando a culpa em quem lhe aconselhou o gracejo, não há falar em Rio de Janeiro. É claro>que o bem jurídico de B esteve livre de qualquer
indução a erro, de modo que uma responde por homicídio doloso e a outra é ataque, esteve longe de correr perigo.
isenta de pena por não haver determinado erro algum. O Código vê, na espécie, apenas um crime doloso, em face da
São as considerações que comporta o § 2.° do art.20.■ 6--"- ■— acidentabilidade do erro: o bem jurídico — a vida — de uma pessoa equivale
ao da outra.
<----No § 3.° do art. 20, a lei do error in objecto ou error in persona. É uma
espéciejjo. erro acidental. Recai sobre elemento não-fundamental do fato, 93. Erro na execução. Do error in persona difere o de execução, que
de modo que sgm_ele o crime exjjtiria do mesmo Inõdo. A quer matar B e constitui objeto dos arts. 73 e 74. Já agora não existe representação subjetiva
toma C por este, alvejando-o e prostrando-o morto. É claro que há crime, errónea do sujeito ativo, que age contra o que desejava atuar, mas vem a
pois a vida de C vale tanto quanto a de B. alcançar objeto diverso, embora da mesma espécie, por erro, desvio ou falha
Manda o Código se tenham em consideração as condições ou qualida- na execução. Trata-se da aberratio ictus: A atira em B, mas o projétil atinge
des da pessoa contra quem o agente quis agir, e não as do ofendido. Assim, C, que se acha próximo.

4. Direito penal, cit., v. 1, p. 427. 5. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 281.


156 PARTE GERAL
DO CRIME 157

Ainda aqui, o Código vê apenas um crime: um homicídio. Já era solu- do local, pois isso também pode ocorrer na tentativa simples: a mesma ação
ção proposta por Carrara, "perche Ia volontà deli'agente era diretta alia morte pode ou não caracterizá-la. Entretanto, na grande maioria de casos de aberratio,
di un cittadino ed il suo braccio l'ha operata" 6. É também, dentre outros, a o que há, realmente, é tentativa dolosa contra uma vítima e crime consuma-
opinião de Beling, para quem "el delito-tipo solo requiere 'matar a un (otro) do culposo contra a outra.
hombre', y que, en consecuencia de acuerdo ai § 59, I, basta para el dolo,
que el autor se haya propuesto matar 'un' hombre (no importa cual)" 7. Mal não haveria em o Código ter adotado essa opinião, que está de
Mas a opinião de Beling não é predominante na Alemanha; ao contrá- acordo com a noção realística do crime.
rio, a maioria dos juristas inclina-se para o concurso de delitos: tentativa Matéria pertinente à aberratio ictus, e sem dúvida complexa, é a refe-
dolosa contra a pessoa a que o agente visou e crime culposo quanto à atingi- rente à hipótese em que o agente, julgando já ter conseguido o evento busca-
da. É na Itália que, se não nos enganamos, predomina a teoria da unidade de do, pratica outro ato e é aí, então, que realmente vem a consegui-lo. Exem-
delito. plo: A desfecha um tiro em B, que, emocionado, desfalece. Julgando-o morto
Parece-nos que a primeira opinião é mais procedente, pois está de acor- e com o fim de apagar os vestígios do crime, lança o corpo a um rio, morren-
do com a realidade dos fatos. No error in persona, é defensável o pensamen- do a vítima afogada.
to do Código, pois realmente a tentativa contra a pessoa visada dificilmente Uns sustentam que há somente um crime: homicídio doloso. Outros opinam
se configurará, como se viu. existir tentativa dolosa em concurso com homicídio culposo.
Mas, na aberratio ictus seu actus, frequentemente o delinquente age Por essa opinião, manifesta-se José Frederico Marques9. Costa e Silva
contra a pessoa que pretende alcançar: tem-na sob sua mira ou golpe, desfe- refere-se ao assunto, sem concluir.
re o ataque e só por acidente a outra é atingida. É inegável a tentativa. Analiticamente, pode sustentar-se que são dois os delitos. Há entre o
Aliás, nossa lei não é muito coerente, em face do art. 73, que versa a primeiro evento e o segundo um erro de fato: supor morto quem não o está.
aberratio delicti, mandando que se puna como crime culposo o resultado Todavia cremos que o caso comporta solução diversa da aceita por nós no
diverso do pretendido pelo agente (se como tal for definido), e se ocorreu caso da aberratio ictus, onde existe pluralidade de ofendidos.
também o desejado, se apliquem as regras do concurso formal. Já agora o
Com efeito, nessa outra hipótese, chamada por alguns aberratio causae,
erro não se verifica a persona in personam, mas a persona in rem, ou a re in
a vítima é uma só. A vontade do agente é eliminá-la. Age impelido pelo
personam, o que se costuma ilustrar com o exemplo de Maggiore, da pessoa
animus occidendi e busca o resultado — morte — que acaba por alcançar.
que, lançando uma pedra contra uma vitrina, vem a alcançar e ferir um tran-
seunte. Em tal hipótese, vê nossa lei um crime de lesão culposa ao lado do O erro ocorre após o desfalecimento do ofendido e não rompe o nexo
dano. Não se explica, entretanto, em confronto com o que dantes ficou esta- causal entre a ação posterior e a anterior. O fato de o sujeito ativo haver
belecido, por que a mudança do objeto material transforma o dolo em culpa. atirado contra a vítima é doloso e é ele que determina o erro. Conseqiiente-
Realmente, não se percebe por que o fato de agora ser, v. g., uma vitrina a mente, o evento corresponde ao dolo de que se originou o fato em toda a sua
coisa a que o sujeito ativo visa (e não um homem), transforma o elemento contextura. A ação inicial é dolosa e é a causa sem a qual a outra — também
psíquico, permitindo ver-se dolo na ação contra ela e culpa relativamente à dolosa, registre-se — não teria ocorrido.
pessoa atingida8. Defendendo essa opinião Von Hippel fala emdolus generalis10. Já Ottorino
Não invalida nosso entendimento o fato de acontecer que em alguns Vannini repudia tal espécie de dolo, dizendo que o homicídio doloso se ex-
casos de aberratio ictus — como o de envenenamento em que uma pessoa plica pela relação causal: "Inefficace è 1'errore che, se puré essenziale, non
toma o tóxico destinado a outra — acha-se o ofendido a que se visou distante esclude, in quanto dolosamente provocato un nesso causale doloso fra 1'evento
morte e 1'azione dei reo"11.
6. Carrara, Pmgramma, cit., v. 1, § 262.
7. Beling, Esquema, cit., p. 84. 9. José Frederico Marques, Curso, cit., p. 257.
8. O desacerto ainda se tornava mais patente no Anteprojeto Nelson Hungria 10. Von Hippel, Diritto penale, cit., p. 195, nota 6.
(art. 20, § 1.°). 11. Vannini, // delitto di omicidio, 1935, p. 29.
Circunstância a que os autores não dão a devida importância é que, nos E
\ou ameaçado; ao passo que na outra não: quem se julga defender é que, de
crimes dolosos, não é mister que o dolo persista durante todo o fato: basta j, agride. É por agir crente de fazê-lo de acordo com o direito e, portanto,
que a ação desencadeante do processo causal seja dolosa. Exemplo: uma consciência da antijuridicidade ou sem dolo que o sujeito ativo fica isen-flp de
pessoa envenena outra, mas, arrependida (cessou, pois, inteiramente o dolo), pena. Há erro essencial de fato, há falsa representação da realidade que ide a
ministra-lhe o antídoto, sem conseguir salvá-la; responde evidentemente por culpa (em sentido amplo), pois a pessoa julga agir no sentido do lícito, de
homicídio doloso. É o chamado dolo precedente. Ora, se assim é aqui, em boa-fé e esta é incompatível com o dolo (n. 79).
que o agente foi impelido por impulso generoso (embora ineficaz), antitético São fundamentais, pois, as diferenças entre a legítima defesa real e a va;
ao dolo, por que dar solução diversa àquele caso, em que a ação posterior uma é causa excludente da antijuridicidade ou justificativa e a outra Té
ainda é má ou dolosa (ocultar o cadáver, impedir a descoberta do crime etc.)? elidente do dolo ou dirimente. Inadmissível é a legítima defesa objetiva
Como quer que seja, o evento que o réu dolosamente buscava ocorreu, ^contra legítima defesa objetiva; porém pode haver legítima defesa
ainda que houvesse intervindo um erro de fato, irrelevante na espécie, pois objetiva !^Contra legítima defesa putativa, e pode ocorrer esta contra aquela.
foi determinado por ação antecedente criminosa e porque não faz desapare- Atente-se, entretanto, a que a lei, no art. 20, § 1.°, frisa que o erro há de
cer o fim procurado pelo agente: a morte. hnet plenamente justificado pelas circunstâncias: é mister que seja invencível
Essa solução não deve ser repudiada por nosso Código, que não vacila i òu escusável, pois, se vencível ou inescusável, haverá culpa, praticando o |
em ver, na aberratio ictus, um crime doloso no fato culposo contra a pessoa agente delito culposo (n. 92, 82 e 76).
que não se pretendia atingir. Finalmente, tenha-se presente que a legítima defesa putativa, como ser H?
iÉBOmpatível com o dolo, pode, entretanto, admitir o excesso doloso: é o caso fe';
94. Descriminantes putativas fálicas. Pode o sujeito ativo agir, supondo O» que, putativamente se defendendo e já tendo feito o necessário, o agente jj§
a existência de situação de fato que, se existisse, tornaria sua ação legítima. cientemente prossegue na ação lesiva. Se o fizer por culpa, será culposo o
É o estado das descriminantes putativas: legítima defesa, estado de necessi- excesso.
dade, exercício regular de direito e estrito cumprimento de dever legal. As-
sim, se uma pessoa se julga na iminência de ser agredida por um inimigo,
cujo gesto, ao se aproximar dela, toma como de agressão; se, em uma sala de
espetáculos, playboys gritam fogol e os espectadores precipitam-se para as
portas, acontecendo de uns pisarem outros; se uma pessoa toma coisa de
outrem supondo-a sua e a destrói; ou, no exemplo de Nelson Hungria, se a
sentinela atira sobre o vulto que se aproxima, crendo-o um inimigo, quando
é um companheiro que, fugindo do campo adversário, procura retornar às
suas linhas; ocorrem, nestes casos, causas de justificação putativas.
Em tais hipóteses, o que se passa na imaginação do agente não corresponde
à realidade. Esta lhe é inteiramente adversa. Assim, v. g., na legítima defesa
putativa, que é o caso mais frequente: uma pessoa que havia sido ameaçada
de morte por um inimigo vê que ele se aproxima e, já perto, olhando fixa-
mente para ela, tira do bolso um objeto metálico, que é tomado por um revól-
ver; julgando que vai ser atirada, mais rápida saca de sua arma e a dispara
contra ele. Este, entretanto, estava desarmado e seu intuito exclusivo era
mostrar uma cigarreira que desfaria a desinteligência entre ambos.
Não existe dolo no pseudodefendente e trata-se, portanto, de dirimente.
Distingue-se, então, a legítima defesa putativa da real. Esta é objetiva, re-
pousa numa situação de fato: quem se defende está realmente sendo atacado
DO CRIME 161

VIII Exemplos de coação física temos no crime comissivo: por exemplo, o


fato de o indivíduo impelir o braço de outrem, para dar o golpe mortal, fato
DA CULPABILIDADE que Hungria chama, com razão, hipótese exótica; no omissivo, quando, v. g.,
no exemplo do mesmo autor, o guarda ferroviário é amarrado, para não
B) COAÇÃO IRRESISTÍVEL E OBEDIÊNCIA movimentar os binários2. Caso de coação moral há no romance de Eça de
HIERÁRQUICA Queiroz, O primo Basílio, em que a criada Juliana obtém vantagens ilícitas
de sua patroa Luísa, sob a ameaça de revelar seus adúlteros amores ao
SUMÁRIO: 95. Coação física e coação moral. 96. Causa excludente da patrão.
culpabilidade. 97. Estrita obediência. 98. Causa de exclusão de culpa.
Qualquer que seja o constrangimento, há de ser apreciado no caso con-
creto, tendo-se em vista as condições pessoais do coagido. Na vis atrox é o
grau de resistência física que, em regra, se tem presente. Na moral, é a for-
95.jCoa£ão física e coação moral. É a coação irresistível causa que taleza de ânimo, disposição etc. do ofendido que serão apreciadas. Claro é
^xclui a culparem sentido amplo). Ocorre quando uma pessoa, mediante que a ação constrangedora, em si, não pode ser desprezada: na física, sua
força física ou moral, obriga outra a fazir^irnlQlIãzetãlguãia^cõIsaT Duas intensidade, duração etc; na moral, o dano que deve ser grave, iminente,
são, portanto, as espécies: ajxmção física e ajnoral. A primeira, também dependente da vontade do coator etc.
chamada vis corporalis, atrox ou absoluta, situa-se antes no campo da cau- jyrjLarribas as hipóteses — diz a lei no art. 22 — a coação tem de ser
salidade: não há propriamente ação do coagido; ele é um instrumento nas irresistível. Se ela podia ser vencida, não ocorre a excludente da culpa: po-
mãos do coator, a ação que desenvolve e produz o evento não lhe pode ser derá haver, quando muito, a atenuante do art. 65, III, c.
imputada fisicamente. Ela é, antes, de quem o coage, isso considerando-se
como coação física somente a empregada corporalmente sobre a pessoa do A violência pode ainda ser praticada por meio de inebriantes, entorpe-
coato, traduzindo-se no próprio movimento corpóreo dirigido ao evento cri- centes etc, não se exigindo sejam ministrados à força. Quanto ao hipnotis-
minoso1. Compreende-se ser, então, bastante rara nos crimes comissivos, apre- mo, tendo-se em vista tudo quanto ele oferece à discussão, será também meio
sentando-se antes nos omissivos ou nos comissivos-omissivos. violento, a ser apreciado no caso concreto.
Diversa é a coação moral (vis compulsiva, vis conditionalis), em que a 96. Causa excludente da culpabilidade. Considerando-se a técnica do
ação coatora se exerce sobre o ânimo do coagido, compelindo-o a agir ou Código, é a coação irresistível uma dirimente ou causa de exclusão da culpa
deixar de agir. É a ameaça a forma típica da coação moral: consiste em pro- (em sentido amplo), pois soa o art. 22: "... só é punível o autor da coação...".
meter um mal a alguém. Noutros termos: não é^punível o coato.
EiajornajMulpjh^ELa^^x^Qjçoa^dp. É exato que este, ao contrário
Não se trata de questão pacífica, já que outros sustentam tratar-se antes
do que ocorre no constrangimento físico, pode deliberar e resolver; porém
de causa excludente da ilicitude, justificativa ou descriminante.
sua vontade não é livre, já que está subordinada à necessidade de evitar um
dano maior. Ilícita é sua conduta, porém não culpável, dada a anormalidade Tal modo de ver é improcedente. Na coação irresistível, (fato do coa-
do elemento volitivo. gido não é lícito: o que ocorre, como em outras causas semelhantes, é que
Pode a coação moral ser efetivada com meios físicos, como quando, v. g., ele não é livre. Não há conseqiientemente dolo, porque este não pode existir
a pessoa ameaça outra com um revólver, para que execute certo ato. sem vontade livre e consciente.JÉjle_j>e_te2^ambjínij?mj^ não-exigibilidade
de outra conduta3, elemento, como vimos, integrãnte~dã culpabilidade (n.
1. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 422. 54).
Refutando Von Hippel, que pensa daquele modo, escreve Mezger que

2. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 420.


3. Salgado Martins, Sistema de direito penal brasileiro, p. 316.
162 DO CRIME 163
PARTE GERAL

"tal critério não pode convencer, porque, então, o que exerce a coação não atinentes ao executor — rusticidade, atraso, tempo de serviço etc. —, tudo,
poderia ser castigado, nem como participante, nem tampouco como autor em conjunto, há de ser apreciado no caso concreto.
mediato (pois o que se executa pela pessoa, vítima da coação, seria, nesse O dispositivo reza que a obediência tem de ser estrita, isto é, o autor
caso, conforme ao Direito)"4. imediato não deve exceder ao que lhe foi ordenado; se o fizer, responderá
Aliás, se lícito fosse o ato do coagido, a pessoa, a que seu gesto crimi- pelo excesso, como quando, por exemplo, um oficial diz ao subordinado para
noso visa, não poderia defender-se, já que não há legítima defesa contra ato correr atrás de um ladrão e prendê-lo, e o inferior, na corrida, saca do revól-
daquela natureza. ver e prostra a tiros, ferido ou morto, o perseguido.
Expressamente diz o art. 22 que o coator é punido, isto é, responde pelo A execução da ordem, pois, não deve apresentar "excesso nos atos ou
crime executado pelo coagido. Como, também, pela ação contra este, que na forma da execução".
tipifica o constrangimento ilegal (art. 146).
98. Causa de exclusão de culpa. Como para a anterior, nossa lei confe-j-
97. Estrita obediência. Isenta o Código, no mesmo dispositivo, o que e_a_esta causa a jiatureza de excludente da culpabilidade.
cumpre ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico. Somente Não se trata, contudo, de orientação pacífica. Muitos consideram-na
este é punido — é o que declara o legislador. corno_causa de exclusão da antijuridicidade. Assim pensa Basileu Garcia5.
Abre-se, aqui, exceção para ojrrro de proibição. Com efeito, enganan- Entre alguns, na Alemanha, Beling também se manifesta: "Él que cumpla Ia
do-se sobre a Íegãlí3a3é da ordem, tendo-a como lícita quando não o é, o orden obra, pues, como debe, es decir no antijurídicamente..." 6.
agente imediato erra quanto à sua admissibilidade jurídica. Mais procedente, segundo cremos, é a opinião do Código. Qujwri_cuin-
Claro é que não há de ser manifestamente ilegal, quando, então, não pre uma ordem, considerando-a legal,_isto_éij3uj^ tem j) dever de executar,
poderia ensejar o erro do executor. não age com dolo. Como se falou, existe aqui erro de proibição de excepcional
Pressupõe ela a existência de certos requisitos: subordinação hierárqui- relevância. O que mentalmente se representa ao agente não corresponde à
ca; competênciafuncional_de_qugm a dá; formaJegal. É mister que o execu- realidade, e, portanto, o fato se prende ao elemento subjetivo. Objetivamen-
tor se ache em situação de dependência funcional, relativamente a quem dá te é. o flto Hfrifír^ se não fosse, não permitiria à pessoa, a quem a ordem visa,
a ordem. Exclui-se qualquer outra subordinação: é somente a hierárquica p q
que se considera. Deve haver competência, isto é, emanar de pessoa habili- defender-se do ato de executor, pois tal defesa tipificaria, então, o crime de
tada a dá-la, bem como enquadrar-se dentro das atribuições do destinatário. resistência (art. 329).
Finalmente, a legitimidade da ordem depende do modo ou do veículo pelo A outra conclusão leva, ainda, à consideração da presente causa como
qual é transmitida, v. g., o escrito. excludente da ilicitude: não se punir quem deu a ordem, já que o ato é lícito.
Se o subordinado reconhece sua ilegalidade e a cumpre, não se exime Por outro lado, convenha-se em que, se é ilícita, não é por cumpri-la o subor-
de pena. Haverá, no caso,(co-autoriajem fato delituoso. dinado que ela passa a ter licitude.
Às vezes a responsabilidade do executor salta aos olhos. Assim, se o Não obstante estas considerações, não é pequeno o número dos que a
oficial diz a sua ordenança para quebrar certa vitrina com uma pedrada, quando consideram justificativa. Na Itália, em face do art. 51, é a opinião comum
ambos passam por um magazine, e ela cumpre a ordem, não há negar sua dos juristas: "Giustificata è altresi 1'azione criminosa compiuta per obbedienza
responsabilidade de autor material. Outras vezes, entretanto, o caso requer all'ordine gerarchico"7.
cautelas e exame mais ponderado das circunstâncias do fato e da situação
pessoal do subordinado. É caso referido por Hungria o do soldado bisonho
que atende à ordem do superior, que manda matar o criminoso que se acha
em fuga. Consequentemente, não só a ordem, mas também as circunstâncias
5. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 288 e 290.
4. Mezger, Criminologia, cit., v. 2, p. 197, nota 9. 6. Beling, Esquema, cit., p. 28.
7. Maggiore, Diritto penale, cit., v. 1, p. 298.
DO CRIME 165

IX A verdade é que as expressões "responsável" e "imputável", "respon-


sabilidade" e "imputabilidade" se revezam como equivalentes, na doutrina e
DA CULPABILIDADE nas leis. A este respeito, anota Costa e Silva que os alemães, tão amigos de
sutilezas, não fazem questão da diferença entre as expressões, embora de
C) DOENÇA MENTAL E DESENVOLVIMENTO preferência empreguem a palavra imputabilidade; e, quanto aos italianos,
MENTAL INCOMPLETO OU RETARDADO uns identificam-nas e outros a estremam1.
O fundamento da imputabilidade é a vontade humana, livre e cons-
SUMÁRIO: 99. Imputabilidade e responsabilidade. 100. Inimputabilidade. ciente.
Os critérios. 101. Doença mental. Desenvolvimento mental incompleto ou
retardado. 102. Imputabilidade diminuída. 103. Medidas de segurança. Realmente, juízo de reprovação ou censura no conceito da culpabilida-
de, sem livre arbítrio, não se compreende facilmente.

100. Inimputabilidade. Os critérios. O Código não define diretamente


99. Imputabilidade e responsabilidade. Já no n. 54 incidentemente to- a imputabilidade ou o imputável. Fê-lo indiretamente, pois se referiu ao
camos na imputabilidade, dizendo ser elemento da culpabilidade. Agora tor- inimputável.
namos ao assunto, mas para tecermos poucas considerações. Como já dissemos mais de uma vez, a imputabilidade é elemento da
A imputabilidade é o conjunto de requisitos pessoais que conferem ao culpabilidade. Faltando ela, esta desaparece ou, pelo menos, é atenuada.
indivíduo capacidade, para que, juridicamente, lhe possa ser atribuído um Inimputável, para a lei, é o portador de doença mental ou desenvolvi-
fato delituoso. Pelos próprios termos do art. 26, imputável é a pessoa capaz mento mental incompleto ou retardado.
de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse
Três são os critérios que buscam defini-lo. O biológico ou etiológico
entendimento. Sinteticamente, pode dizer-se que imputabilidade é a capaci- condiciona a imputabilidade à rigidez mental do indivíduo. Presente a enfer-
dade que tem o indivíduo de compreender a ilicitude de seu ato e de livre- midade mental, ou o desenvolvimento psíquico deficiente ou a perturbação
mente querer praticá-lo. transitória da mente, é ele, sem quaisquer outras investigações psicológicas,
Responsabilidade é a obrigação que alguém tem de arcar com as con- considerado inimputável. Seguem esse sistema os Códigos da França, Espanha,
sequências jurídicas do crime. É o dever que tem a pessoa de prestar contas Chile, Bélgica e poucos mais. O último, por exemplo, reza: "II n'y a pas
de seu ato. Ela depende da imputabilidade do indivíduo, pois não pode sofrer d'infraction, lorsque 1'accusé ou le prévenu était en état de demence au moment
as consequências do fato criminoso (ser responsabilizado) senão o que tem du fait..." (art. 7.°). Tem ele o inconveniente de admitir uma relação causal
a consciência de sua antijuridicidade e quer executá-lo (ser imputável). constante entre a enfermidade e o crime, quando isso não é exato, já que
Com ser a imputabilidade um pressuposto da responsabilidade, a ver- depende de outros fatores, como da etiologia do mal, sua intensidade, mo-
dade é que os dois termos, para muitos, são, a bem dizer, sinónimos; usam- mento etc. Ademais, suprime o caráter ético da imputabilidade e coloca o
juiz na absoluta dependência do perito.
se indiferentemente. Não apenas na doutrina, mas também nas leis. Assim é
que, enquanto o Código italiano, no Título IV, Capítulo I, usa a expressão O segundo sistema — o psicológico — é o contrário do anterior: con-
"delia imputabilità", o suíço, no art. 10, emprega a rubrica "responsabilitè". tenta-se com as condições psíquicas do autor, no momento do fato, sem in-
O legislador de 1940 usou a expressão "responsabilidade", enquanto o atual, dagar da existência de causa patológica que as tenha determinado. Basta,
com melhor precisão técnica, adotou a locução "imputabilidade penal". portanto, a ausência da capacidade intelectiva e volitiva para exculpar o agente.
Como se vê, é ele vago e impreciso, ensejando abusos na prática e dilatando
desmesuradamente a esfera da inimputabilidade.
O outro sistema é o biopsicológico e foi adotado por nossa lei. Conjuga

1. Costa e Silva, Código Penal, cit., p. 177, nota 1.


166 PARTE GERAL DO CRIME 167

os dois anteriores: inimputável é a pessoa que, em virtude de enfermidade ou Deve mesmo a expressão ser tomada em sentido amplo, abrangendo até
deficiência mental, não gozava, no momento do fato, de entendimento ético- estados de inconsciência que não são doenças, como o sono natural.
jurídico e autodeterminação. Como escreve Aníbal Bruno, por esse critério, Claro que a natureza da enfermidade mental não conta: crónica ou tran-
a presença dos estados de perturbação mental determina apenas uma presun- sitória, constitucional ou adquirida, a consequência será a mesma.
ção de inimputabilidade ou uma inimputabilidade condicionada, que será Como desenvolvimento mental retardado, apresentam-se, primeiramente,
julgada efetiva quando verificada realmente a ausência daqueles atributos as oligofrenias, que vão desde a simples debilidade mental até a idiotia, pas-
psíquicos, que compõem a imputabilidade2. sando pela imbecilidade. A primeira é vizinha da higidez mental, ao passo
Para nossa lei, há inimputabilidade quando o estado patológico, com- que o idiota é o ponto extremo. Consequentemente, a imputabilidade do
preendido nas expressões "doença mental" ou "desenvolvimento mental in- oligofrênico é questão de perícia.
completo ou retardado", acarretar a consequência de suprimir, no agente, a O mesmo ocorre com a surdo-mudez, que impede ou empece a comu-
capacidade de compreender o caráter delituoso do fato ou de se determinar nicação do indivíduo com o mundo exterior. Aliás, frequentemente, é um
consoante essa compreensão. sintoma de enfermidade mental. É ele equiparável, por sua deficiência, ao
A existência ou não de uma causa biológica, no fato, é matéria a ser oligofrênico. Entretanto casos há em que é educável e ajustável às condições
investigada pelo perito, pelo psiquiatra. Mas ao seu pronunciamento não está do meio circundante. O Código Penal suíço contém dispositivo expresso —
adstrito o juiz que, aqui como sempre, conserva, no tocante às provas, a o art. 13, segunda parte — impondo a obrigatoriedade do exame pericial do
faculdade de livre convencimento. surdo-mudo.
É o sistema biopsicológico seguido por diversas leis: o Código italiano, Com desenvolvimento mental incompleto compreendem-se os meno-
o suíço, o argentino, o da Alemanha Ocidental e outros. res, fora, entretanto, do Código Penal, ex vi do art. 27, e os silvícolas não
ajustados à vida civilizada. Não se trata de patologia, mas de inadaptação a
101. Doença mental. Desenvolvimento mental incompleto ou retarda- um viver de nível cultural que não possuem.
do. É a doença mental, ao lado das já mencionadas causas, e juntamente com As expressões usadas pelo art. 26, sem especificarem entidades
o desenvolvimento mental incompleto ou retardado, e a embriaguez completa psicopatológicas, englobam enfermidades, defeitos e anormalidades que
e acidental, causa excludente da culpabilidade. apresentam um traço comum: incapacidade de entender o caráter ilícito do
Considerou-a o Código no art. 26, que se inspirou no art. 10 do Código fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Pela primeira,
suíço, embora não haja reproduzido a expressão "grave altération de Ia entende-se a faculdade que tem a pessoa de compreender o significado do
conscience" mencionada por este. ato que pratica, de avaliá-lo, de emitir sobre ele um juízo de valor. Capaci-
Tem-se censurado ao legislador a denominação preferida. Fala-se em dade de determinação é capacidade de querer, é a vontade livre e consciente
alienação mental e psicopatia, como a mais adequada. Todavia a crítica não de fazer ou não fazer alguma coisa, consoante os motivos, os fins etc.
procede, pois, como escreve Costa e Silva, não se encontrou ainda fórmula Advirta-se que a falta de capacidade de entender e querer há de ser
que sinteticamente compreenda toda e qualquer manifestação nosológica, de total. Nem a outra compreensão leva o advérbio inteiramente usado pelo
natureza psíquica, que exclua ou minore a imputabilidade 3. legislador.
Esclarece Hungria abranger a expressão as psicoses, quer as orgânicas Finalmente, esse estado deve existir no momento da ação ou omissão,
e tóxicas, quer as funcionais. Compreende ainda perturbações da atividade ou, se se quiser, da execução. Não antes (atos preparatórios) ou depois (re-
mental, ligadas a estados somáticos ou fisiológicos mórbidos de caráter tran- sultado), considerada, entretanto, a hipótese da actio libera in causa, da qual
sitório, como o delírio febril e o sonambulismo*. já tratamos (n. 88) e à qual ainda tornaremos (n. 113).

102. Imputabilidade diminuída. Entre a zona da sanidade psíquica ou


2. Aníbal Bruno, Direito penal, cit., t. 1, p. 511. normalidade e a da doença mental, situa-se uma que compreende indivíduos
3. Costa e Silva, Código Penal, cit., p. 181. que não têm a plenitude da capacidade intelectiva e volitiva. São eles os
4. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 493 e 494. fronteiriços, semi-imputáveis ou de imputabilidade reduzida.
168 PARTE GERAL DO CRIME 169

Considerou-os o Código, no parágrafo único do art. 26, facultando re- feita por este pudesse chegar até a impunidade. Igual cautela teve o Código
dução de pena. suíço, declarando, no art. 66, que o julgador fica adstrito ao mínimo legal de
Não se está em terreno pacífico. Não são poucos os que negam a exis- cada género de pena.
tência da semi-imputabilidade, como também os que rejeitam para eles a
pena. 103. Medidas de segurança. Isentando uns de pena e permitindo que se
Assim não pensou o Código e, a nosso ver, se houve com acerto. Tais diminua a de outros, a lei, entretanto, não olvida a periculosidade dos delin-
indivíduos não têm supressão completa do juízo ético e são, em regra, mais quentes compreendidos no artigo em questão e seu parágrafo. Aliás, não são
perigosos que os insanos. Não são insensíveis à pena e conseqiientemente apenas os interesses relativos à segurança social que se tem em vista, mas os
ela não é ociosa, como pretendem alguns. dos próprios inimputáveis ou semi-imputáveis.
Ficou o Código em boa companhia, pois também essa é a orientação Com essa dupla finalidade, impõe-se-lhes medidas de segurança. Os
dos estatutos suíço e italiano, que, entretanto, impõe a redução (arts. l i e isentos de pena, pelo art. 26, são considerados perigosos (art. 97), o mesmo
89). Facultativamente, como o nosso, se conduziu o alemão, dispondo, no acontecendo com os semi-imputáveis que, se assim for recomendável, pode-
art. 51, § 2.°, que "Ia peine pourra être reduite". rão ser internados ou submetidos a tratamento ambulatorial, como preconiza
o art. 98. Em relação a estes últimos houve profunda inovação, já que não
Compreende a imputabilidade restrita os casos benignos ou fugidios de sujeitos a medida de segurança obrigatória, mas facultativa e alternativa,
certas doenças mentais, as formas menos graves de debilidade mental, os quando recomendável.
estados incipientes, estacionários ou residuais de certas psicoses, os estados
interparoxísticos dos epiléticos e histéricos, certos intervalos lúcidos ou períodos
de remissão, certos estados psíquicos decorrentes de especiais estados fisio-
lógicos (gravidez, puerpério, climatério) etc, e, sobretudo, o vasto grupo
das chamadas personalidades psicopáticas (psicopatias em sentido estrito)5.
Confrontando-se o parágrafo com o artigo, verifica-se, primeiramente,
que este se refere à plenitude da inimputabilidade, ao passo que aquele se
contenta com a existência de alguma imputabilidade. A seguir, observa-se
que a expressão "doença mental" foi substituída por "perturbação da saúde
mental". Refutando as críticas feitas, explica Nelson Hungria que assim se
fez porque, aqui, o legislador quis se referir também a estados que não são
propriamente doenças mentais, pois, se toda doença psíquica é uma pertur-
bação, a recíproca não é verdadeira: "O parágrafo único do art. 26 tinha de
cuidar não só do caso em que a doença mental apenas reduz alibertas intellectus
ou a libertas propositi, como do caso em que tal redução provém de outras
causas que, embora afetando a higidez psíquica, não têm direito ao nome de
doença"6.
A redução penal, como se falou, é facultativa: pode o juiz deixar de
aplicá-la; a oração do parágrafo não dá margem a dúvidas.
Ao revés do que escrevemos na l.a edição deste, já dizíamos, no volu-
me 2, que o Código fixara limite mínimo ao juiz, receoso de que a redução

5. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 497 e 498.


6. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 496.
DO CRIME 171

X Envereda então pelo crime. Primeiramente é a subtração de uma coisa


de somenos: um fruto tirado da árvore do vizinho, uma quinquilharia subtraída
DA CULPABILIDADE da própria casa etc. Depois, já é um objeto de algum valor que o atrai e,
assim, vai, num crescendo, pela escala do crime, aprendendo e aperfeiçoan-
D) A MENORIDADE do-se. O anjo de cara suja, o capitão da areia, aproxima-se da maioridade
penal. É agora um ladrão, um viciado e um corrupto, estando a penitenciária
SUMÁRIO: 104. O menor infrator. 105. A legislação pátria. 106. Estatuto à sua espera.
da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13-7-1990). 107. Legislação
tutelar. Não se soube ou não se pôde ampará-lo. Nós, que fomos Curador de
Menores desta Capital e Diretor-Geral do Departamento de Presídios, tive-
mos a desoladora oportunidade de ver menores abandonados e infratores
integrando a população carcerária de nossas cadeias e penitenciárias. A
104. O menor infrator. O problema do menor infrator é dos mais graves maioridade penal sempre chega um dia...
que um povo tem de enfrentar e sua solução não é simples. Enquanto o maior
sofrer privações, como poderá o menor subtrair-se aos seus efeitos? Inúme- Há todo um programa a cumprir em torno da menoridade desvalida.
ros são os que começam por não apresentar condições orgânicas que os ha- Diversas são as providências que devem ser tomadas. Não cabe, na análise
bilitem a enfrentar as vicissitudes da vida. Gerados em ventres famélicos, de um texto do Código Penal, apontá-las, mas sumariamente se pode dizer
corroídos pela sífilis e pelo álcool, são fisicamente destituídos de condições que a efetivação de algumas, que são do conhecimento geral, é necessidade
necessárias para os embates da existência. inadiável.
Que é que se pode esperar dessas crianças que vemos a perambular A colocação do menor abandonado, sempre que possível, em lar bem
pelas ruas? Magras, pálidas, pés descalços, peito nu, cobertas com andrajos, constituído é medida recomendável, por ser este ainda a melhor escola.
levam o dia a estender a mão à caridade pública. A vida, sem dúvida, é-lhes Não se pode abrir mão, entretanto, dos abrigos e educandários. O reco-
madrasta. Escorraçado quase sempre, sem ter uma palavra de carinho, con-
lhimento do menor infrator é uma triste necessidade. Mas devem esses esta-
forto ou estímulo, vai, então, o menor criando-se e aproximando-se da maio-
belecimentos ser o mais possível lar e escola. Imprescindível é a triagem,
ridade, animado por um espírito de revolta, que o faz revelar-se contra os
separando-se o infrator do abandonado, o pervertido do desvalido, a fim de
que não o compreendem ou não vêem o que ele sofre, ele que outra culpa
não tem a não ser a de ter vindo a um mundo sem que pedisse... que uns não contaminem os outros.
No terreno material, tudo lhe falta. Nem sempre tem a maloca que o Mas a seleção também deve ser feita entre o funcionalismo. É necessá-
possa abrigar da chuva que alaga, do frio que enregela, do vento que vergas- rio ter vocação para lidar com crianças. Não pode nunca o Estado fazer dos
ta e do sol que cáustica. Dorme frequentemente em plena via pública, nos respectivos cargos sinecuras, para distribuir a afilhados e protegidos. Deve
desvãos das casas, sob pontes, viadutos etc. Durante o dia bate a rua, essa lembrar-se principalmente que o problema do menor é, por excelência, um
grande escola do crime, à espreita da oportunidade propícia para obter aqui- problema de coração, exigindo devotamento e sacrifícios dos que o enfren-
lo que não lhe dão. tam.
Encontra-se o menor nessa fase que é a da formação do caráter. É ele Deve esse funcionalismo contar com aparelhamento necessário aos justos
amoldável e ajustável, sofrendo, por isso, a influência do ambiente em que reclamos do amparo e proteção da infância e adolescência. Alimentar o menor,
vive. E, agora, ao invés da mão amiga que o ampare e conduza para o viver tratá-lo quando doente, instruí-lo, submetê-lo à laborterapia adequada, mi-
honesto e útil, é o exemplo do companheiro maior que irá influir sobre ele. nistrar-lhe cultura física, recreação etc. são providências imprescindíveis, a
fim de ajustá-lo e prepará-lo para a vida em sociedade.
Assim agindo, o Estado nenhum favor lhe prestará, já que, cuidando de
suas necessidades, está provendo aos seus próprios e vitais interesses. Estará
cumprindo, aliás, a lei, a Constituição Federal, que, no art. 227, soa:

i.
172 DO CRIME 173
PARTE GERAL

§ 5.° A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que
"É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros.
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimenta- § 6.° Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção,
ção, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá- discriminatórias relativas à filiação".
los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violên-
O problema não é apenas dos governos. Entre nós, a iniciativa privada
cia, crueldade e opressão.
não tem correspondido. O dinamismo bandeirante, que assombra o próprio
§ 1.° O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da estrangeiro e que fazia Saint-Hilaire pensar numa raça diferente, nesse setor
criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governa- não tem operado os milagres de que é capaz.
mentais e obedecendo os seguintes preceitos:
Oxalá o problema do menor venha a despertar ainda a atenção de
I — aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde governantes e governados, como merece. Lembremo-nos, embora sem exa-
na assistência materno-infantil; geros ou excessos, que a génese do crime está, em grande parte, na infância
II — criação de programas de prevenção e atendimento especializado e na adolescência abandonadas, e que "as Nações caminham pelos pés da
para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de criança".
integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treina
mento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e 105. A legislação pátria. 0 Código do Império declarava não-crimino-
serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos. so o menor de quatorze anos (arl. 10), dizendo, entretanto, no art. 13, que, se
§ 2.° A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos ele tivesse obrado com discernimento, podia ser recolhido à casa de corre-
edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a ção, até os dezessete anos, o que levara Tobias Barreto a dizer que, se o
fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência. legislador houvesse haurido com mais cuidado nas fontes romanas, outros
teriam sido seus preceitos a respeito dos menores, "pelo menos no que per
§ 3.° O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
tence ao vago discernimento de que trata o art. 13, e que é possível, na falta
I — idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, obser de restrição legal, ser descoberto pelo Juiz até em uma criança de cinco anos!"1.
vado o disposto no art. 7.°, XXXIII; Aliás, consigne-se que um menor, contando quatorze anos e um dia, estava
II — garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; sujeito a ser condenado à prisão perpétua! Convenhamos que, consideradas
III— garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola; as condições próprias de nosso país, àquela época, era tudo isso por demais
IV— garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato estranho. *
infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissio O Código de 1890 continuou apegado ao discernimento. No art. 27, §
nal habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica; 1.°, dispunha não ser criminoso o menor de nove anos, bem como o maior
V — obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e res dessa idade e menor de quatorze anos, que tivesse agido sem discernimento
peito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplica (§ 2.°). Tal dispositivo foi derrogado pela Lei n. 4.242, de 5 de janeiro de
1921 (art. 3.°, § 16), que dispôs cão ser submetido a processo algum o menor
ção de qualquer medida privativa da liberdade;
de quatorze anos, autor de crime ou contravenção. O revogado Código de
VI — estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incen
Menores (Dec. n. 17.943-A, de 12-10-1927) também assim prescreveu (art.
tivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de 68), de modo que a Consolidação das Leis Penais, no art. 27, § 1.°, soava:
guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado; "Não são criminosos os menores de 14 anos". Ainda o mencionado diploma
VII — programas de prevenção e atendimento especializado à criança legal trazia outras alterações: mantinha a inimputabilidade do menor de quatorze
e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins. anos (art. 68), e determinava, no artigo seguinte, que o compreendido entre
§ 4.° A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual
da criança e do adolescente. Tobias Barreto, Menores e loucos, 1926, p. 21.
174 PARTE GERAL DO CRIME 175

quatorze e dezoito anos seria submetido a processo especial, podendo ser tes de autoria e materialidade", demonstrada, mais, a imperiosidade da me-
internado em escola de reforma pelo prazo mínimo de três anos e máximo de dida privativa de liberdade.
sete (art. 69, § 3.°). No art. 71, considerava outra categoria de menores — O procedimento judicial para a apuração do ato infracional atribuído a
dezesseis e dezoito anos — que, cometendo crime grave e sendo perigosos, um adolescente inicia-se por representação do Ministério Público, que se
podiam ser punidos com as penas da cumplicidade e da tentativa de cumpli- assemelha a uma denúncia (ECA, art. 182 e seus parágrafos).
cidade; nunca, porém, as cumprindo em companhia de adultos.
A novidade da atual legislação foi a possibilidade de remissão por parte
Atualmente a matéria está prevista na Lei n. 8.069, de 13 de julho de
do Ministério Público, ato que nos parece ser o meio-termo entre o pedido de
1990, que dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
arquivamento e o oferecimento de representação. A remissão, prevista em
A reforma atual, através de seu art. 27, reproduziu o Código de 1940 todo um capítulo (de n. V), consiste numa forma de exclusão do processo,
(art. 23), estabelecendo que os menores de dezoito anos são inimputáveis, atendendo-se às circunstâncias e às consequências do fato, ao contexto social,
ficando, porém, sujeitos às normas estabelecidas em legislações específicas. bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participa-
Abre nosso estatuto exceção ao sistema biopsicológico por ele abraçado, ção no ato infracional. Embora remissão signifique literalmente "livramento
pois outro é o critério aqui acolhido: o biológico. Basta não ter completado das consequências de uma falta ou de um crime", assemelhando-se a uma
dezoito anos para não estar sujeito ao Código Penal. Não há, como faziam as
extinção de punibilidade, a lei declara que sua concessão não implica o re-
outras leis, preocupação com o discernimento do menor.
conhecimento ou comprovação de responsabilidade nem prevalece para efeito
106. Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13-7-1990). de antecedente.
A questão do menor infrator, atualmente, está regida pelo Estatuto da Crian- O processo para a apuração de ato infracional inicia-se por representa-
ça e do Adolescente, Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. ção do Ministério Público, tem procedimento contraditório, e é obrigatória a
Referido estatuto, reproduzindo o previsto no Código Penal e seguindo defesa técnica.
nossa tradição, estabeleceu a imputabilidade penal para os menores de de- A remissão é possível a qualquer tempo e, aplicada após a representa-
zoito anos, à época do fato (ECA, art. 104), porém os tornou sujeitos a me- ção, importa na extinção ou suspensão do processo.
didas terapêuticas, educacionais e repressivas, denominadas "medidas só- As medidas sócio-educativas, decorrentes do reconhecimento da pro-
cio-educativas". cedência de um fato que configure uma infração, são as seguintes: advertên-
A matéria pode ser abordada sob três prismas: natureza jurídica, for- cia, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liber-
mação do processo e medidas aplicáveis. dade assistida, inserção em regime de semiliberdade, internação em estabe-
Todo o menor de 18 anos, ao tempo do fato, que praticar um ato ou tiver lecimento educacional ou encaminhamento aos pais, orientação e apoio tem-
uma conduta descrita na lei penal como crime ou contravenção, portanto, porários, matrícula e frequência obrigatória em estabelecimento oficial de
ilícito penal, praticará uma infração, sujeitando-se a uma medida sócio-educativa. ensino e inclusão em programa comunitário, na forma enumerada pelo art.
Portanto, para que haja uma infração, é preciso, por primeiro, que este- 112 do Estatuto.
jamos diante de um fato típico, isto é, uma figura prevista como crime ou A medida a ser aplicada pelo juiz será resultante de três fatores: a ca-
contravenção. Logo, menor infrator é aquele cuja conduta subsume-se numa pacidade do infrator em cumpri-la, as circunstâncias do fato e a gravidade da
figura típica criminosa ou contravencional. infração.
O menor infrator tem seus direitos individuais e suas garantias proces- Salvo a advertência, as medidas restantes exigem, para sua aplicação,
suais. provas suficientes de autoria e materialidade. Por provas suficientes enten-
Poderá ser privado da liberdade, se apanhado em flagrante por um ato de-jgp as que tornem o fato induvidoso, quer quanto à sua existência, quer no
infracional ou então por ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial referente à autoria.
competente (ECA, art. 106). A internação não poderá ser superior a quarenta A advertência (ECA, art. 115), forma mais branda, constitui uma ad-
e cinco dias e exige decretação fundamentada, diante de "indícios suficien- moestação verbal, reduzida a termo.
176 PARTE GERAL
DO CRIME 177

A obrigação de reparar o dano (ECA, art. 116) importa na restituição da objeto, sejam de caráter tutelar. Não se trata de punição, e sim de pedagogia
coisa, no ressarcimento do prejuízo ou em outra forma de compensação corretiva. Não há pena, mas providência educacional. É o que diz esse mo-
patrimonial. É aplicável nas infrações patrimoniais, sendo substituída por delo de Juiz de Menores que foi Melo Matos: "As ideias de discernimento,
outra, diante da eventual impossibilidade de o menor cumpri-la. culpabilidade, responsabilidade, penalidade estão definitivamente banidas
Consiste a prestação de serviços comunitários (ECA, art. 117) na rea- das leis novas relativas aos infantes e adolescentes. À descabida noção de
lização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não superior a seis pena houve de se substituir a medida educativo-disciplinar, mais elevada e
meses, efetuadas pelo menor, em entidades assistenciais, hospitais, escolas, mais humana, porque a lei deve pensar em educar e regenerar, antes que em
estabelecimentos congéneres ou então em programas comunitários ou go- reprimir e punir"2.
vernamentais. Mas essas leis de proteção e tutela devem ser aplicadas pelo Juiz da
A tarefa será sempre de acordo com a aptidão do menor, em jornadas Infância e da Juventude, cujas funções são acentuadamente administrativas.
de fins de semana, de tal sorte que não interfiram no estudo ou no trabalho. Ao juiz, curador e demais funcionários aplica-se o que ficou dito no n. 104.
A liberdade assistida (ECA, art. 118) consiste no acompanhamento, auxílio Nem o órgão da magistratura, nem o do Ministério Público terão que se ha-
ou orientação do adolescente infrator, em prazo mínimo de seis meses, pror- ver com intrincadas e complexas teses jurídicas, no desempenho de suas funções.
rogável, se necessário, por pessoa ou entidade capaz de realizá-la. Devem, entretanto, apresentar predicados excepcionais de dedicação e ex-
pediente, pois as questões que se desenrolam naquele juízo exigem, de re-
O regime de semiliberdade (ECA, art. 120), aplicável desde o início ou
gra, soluções imediatas e práticas. Não é erudição que se exige do Juiz de
como forma de transição para o regime aberto, consiste na possibilidade da
Menores: é coração.
realização de tarefas externas.
A forma mais grave é a internação (ECA, art. 121), considerada medida A tutela do infante abandonado e infrator é básica na luta contra a
excepcional, consistente na privação do direito de liberdade. Trata-se de medida criminalidade. Esta jamais poderá ser feita com êxito e plenitude se olvidar
sem prazo determinado, devendo ser reavaliada a cada seis meses. Não po- o problema do menor.
derá exceder o máximo de três anos, e a liberdade será decretada compulso- Ao Juiz da Infância e da Juventude, entre outras, é atribuída a compe-
riamente aos vinte e um anos de idade. Trata-se de medida reservada a atos tência de conhecer e decidir as representações promovidas pelo Ministério
de excepcional gravidade ("Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, Público, para a apuração de atos infracionais.
havendo outra medida adequada" — ECA, art. 122, § 2.°), sendo aplicada Por seu turno, novas e importantes atribuições foram conferidas ao
em estabelecimentos apropriados e exclusivos para adolescentes, como pre- Ministério Público, avultando-se entre elas a concessão de remissão com a
ceitua o art. 123 do Estatuto: "A internação deverá ser cumprida em entidade consequente exclusão do menor do processo, o que exige, antes de tudo, um
exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, profundo discernimento sobre nossa realidade social.
obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e
gravidade da infração". Reforçando ainda mais a tutela deste, em 1.° de julho de 1954 foi pro-
mulgada a Lei n. 2.252, que versa a corrupção de menores. Visa esse diplo-
As medidas restantes — encaminhamento aos pais, orientação tempo-
ma coibir a prática de crimes por adultos, em que há exploração de incapa-
rária, matrícula e frequência obrigatória em estabelecimento oficial de ensi-
zes, ou melhor, de infrações penais, em que há intervenção de menor de
no e inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à
dezoito anos.
criança e ao adolescente — ficam na dependência de sua adequação ao fato.
Os menores infratores, portadores de doenças e/ou deficiências men- A atual Lei n. 8.069, Estatuto da Criança e do Adolescente, trouxe todo
tais, receberão tratamento individual e especializado, e em local adequado um título, o de n. VII, sobre crimes e infrações administrativas nas quais os
menores são sujeitos passivos.
às suas condições.
107. Legislação tutelar. Predomina hoje, entre os países, como regra, 2. Melo Matos, Prefácio, in Beatriz Sofia Mineiro, Código de Menores, 1929
P- VIII.
que o menor deve ficar fora do direito penal e que as leis, que o tiverem por
178 PARTE GERAL

Temos dezessete figuras típicas criminais, em razão do acréscimo do


art. 244-A à Lei n. 8.069/90 (do art. 228 ao 244-A), algumas de natureza
funcional (arts. 230, 231, 234 etc), outras visando a proteção à saúde e a
identificação (arts. 228, 229 etc.) e, por fim, a integridade física e moral do
menor (arts. 232, 240, 241 etc).
XI
O Estatuto da Criança e do Adolescente também estabeleceu aumento
de pena nos delitos previstos nos arts. 121 e § 4.° e 136, quando a vítima for DA CULPABILIDADE
menor de quatorze anos.
Ao lado das figuras criminais, temos as infrações administrativas, apenadas E) A EMOÇÃO E A PAIXÃO
com multa, destinadas também à proteção e visando abusos praticados por
órgãos de comunicação (arts. 247, 254 etc), por médicos (art. 245), por res- SUMÁRIO: 108. A emoção e a paixão. 109. A posição do Código. 11|
Actio libera in causa.
ponsáveis por estabelecimentos de ensino (art. 245), por casas de espetáculos
(arts. 252, 253 etc), por hospedarias (art. 250), pelos pais (art. 249) e outras,
indo do art. 245 ao 258.
No plano legislativo não temos descurado. Mas, no terreno das realiza- 108. A emoção e a paixão. Escreve Maggiore que a emoção é um estí
ções práticas, muito há por fazer. do afetivo que, sob uma impressão atual, produz repentina e violenta pei
turbação do equilíbrio psíquico. Emoções são: a ira, o medo, a alegria, a ansn
dade, o susto, a surpresa, o prazer erótico, o pudor, a vergonha etc. A paixã
é a emoção permanente e mais intensa (Kant, Ribot): traduz-se em profund
e duradoura crise psicológica que ofende a integridade do espírito e do coi
po, arrastando muitas vezes ao crime; nesta categoria entram o amor, o ódk
a vingança, o fanatismo, a inveja, a avareza, a ambição, o ciúme etc. 1.
Em poucas palavras: a emoção é caracteristicamente transitória, ao pass
que a paixão é duradoura; é um estado crónico, embora possa apresente
períodos agudos. Aquela é subitânea; esta é permanente.
Alguns classificam as paixões em sociais e anti-sociais. As primeira
inspiram-se em motivos úteis e de valor, ao passo que as segundas se orig:
nam de móveis nocivos e nefastos ao interesse social.
O Positivismo Naturalista deu grande apreço a essa distinção.

109. A posição do Código. Determina-a o art. 28: "Não excluem


imputabilidade penal a emoção ou a paixão". Não são, pois, causas d
inimputabilidade. Quem comete um crime impelido pela emoção, ou em estad
passional, não fica isento de pena.
A posição do Código é antes ditada por motivos de política crimina
Foi sob a impressão deixada pela famigerada perturbação de sentidos e d
inteligência que nosso legislador se orientou.

1. Maggiore, Diritto pende, cit., v. 1, p. 429 e 430.


180 PARTE GERAL DO CRIME 181

Todavia é mister atentar-se a que há paixões que são doenças mentais e, abordamos e que ocupará nossa atenção no capítulo seguinte, ao tratarmos
assim, excluem a imputabilidade, na forma do art. 26. Patológica que seja, da embriaguez.
estamos que o art. 28 deve ceder a essa. Diga-se o mesmo da emoção. Como Outros, entretanto, repudiam tamanho elastério concedido à teoria. Escreve
fala Nerio Rojas, ela apresenta dois aspectos: um moral e outro psiquiátrico. Aníbal Bruno: "Com muito menos razão ainda do que em relação à embria-
O primeiro atenua o crime ante a consciência normal da sociedade. O segun- guez voluntária ou culposa, se aplicaria à emoção ou paixão o princípio da
do compreende o caso patológico, apesar de sua fugacidade, e teria (o Códi- actio libera in causa. Ninguém procura voluntária ou culposamente entrar
go argentino não admite) o valor de uma causa de inimputabilidade, fundada em estado emocional. Não é possível equiparar esse estado ao de
em razões médicas de perturbação grave na vontade e na inteligência 2. inimputabilidade provocada dolosa ou imprudentemente, pelo sujeito, para a
É o que pensamos, embora grande seja o número dos que não dispen- prática de um crime ou prevendo ou devendo prever a prática de um crime"4.
sam à emoção e à paixão a força de dirimente. Lembram-se, sem dúvida, da A nosso ver, a teoria das actiones liberae in causa não comporta a la-
advertência de Cogliolo de que sem paixão não há crime, e sem este é inútil titude que se lhe quer dar.
o Código. O art. 28, como falamos, justifica-se como exigência de política
Inspirou-se nossa lei no Código de Mussolini, que, no art. 90, declarou: criminal.
"Os estados emotivos ou passionais não excluem nem diminuem a
imputabilidade". Foi este, como se vê, mais além do que aquela. Não obstante,
há incongruência na lei peninsular, pois enquanto nesse dispositivo declara
que a imputabilidade não é diminuída, em outros procede de modo diverso,
como ocorre com o art. 587, punindo apenas com três a sete anos de reclusão
quem mata o cônjuge, a filha ou a irmã em flagrante adultério!
Além da exceção da emoção ou da paixão patológicas, compreendidas,
segundo cremos, no art. 26, não deixou a lei pátria de transigir com elas, ora
aceitando-as como atenuantes genéricas (art. 65, III, a e c) ora como causas
de diminuição de pena (art. 121, § 1.°).
No motivo de relevante valor moral e social pode abrigar-se a paixão.
Quanto à emoção, há diferença para os efeitos dados pelo Código. No art.
65, III, c, considera-se o crime praticado sob influência de violenta emoção
provocada por ato injusto da vítima; e no § 1.° do art. 121 tem-se em vista o
domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da víti-
ma. Conseqiientemente, lá, há influência e, aqui, domínio, sendo este, sem
dúvida, mais absorvente que aquela. Depois, lá, basta que a emoção tenha
origem em um ato injusto da vítima; aqui, é mister que a emoção se verifique
logo em seguida, isto é, logo após a provocação da vítima.

110. "Actio libera in causa". Procuram alguns juristas3 fundar a posi-


ção do Código, tomada no art. 28, na teoria da actio libera in causa, que já

2. Nerio Rojas, Medicina legal, v. 2, p. 185.


3. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 525, e Narcélio de Queiroz, Teoria 4
- Aníbal Bruno, Direito penal, cit., v. 2, p. 541, nota 9.
da "actio libera in causa", 1936, p. 74 e s.
DO CRIME 183

XII satisfatórios, como também que se devem acautelar quanto à consagração da


responsabilidade objetiva a que podem ser conduzidas.
DA CULPABILIDADE
112. A orientação do Código. Declara este, no art. 28, II, que não pro-
F) A EMBRIAGUEZ duzem inimputabilidade a embriaguez voluntária ou a culposa.
Diz-se voluntária quando o agente bebe para se embriagar; culposa quando
SUMÁRIO: 111. O alcoolismo. 112. A orientação do Código. 113. O fun- não tem esse propósito, mas isso sucede.
damento: actio libera in causa.
Inspirou-se nossa lei na italiana, cuja prescrição, entretanto, tem mere-
cido censuras de vários de seus comentadores.
Conseqiientemente, aquele que cometeu um delito por estar embriaga-
111. O alcoolismo. Em sua Criminologia1, formula Afrânio Peixoto
do, seja sua ebriedade voluntária ou se tenha originado de culpa, não é isento
verdadeiro libelo-crime acusatório contra o alcoolismo. Começa por dizer
de pena.
que é irrisão ter o homem feito das fezes de uma bactéria — o álcool é o
produto de desassimilação de um saccharomyces — sua delícia. Mostra as Cumpre notar, todavia, que se exclui a embriaguez patológica (psicose
desastrosas consequências sobre o organismo humano e sobre a descendên- alcoólica, cocaínica etc). O Código Penal italiano contém dispositivo ex-
cia do alcoólatra. Aponta as estatísticas da criminalidade, registrando seus presso — o art. 95 — que considera a embriaguez crónica como equivalente
índices mais elevados nos sábados e domingos e decrescendo daí por diante. a outras causas que excluem ou diminuem a inimputabilidade. Tal fato tem
Chama a atenção para a conduta dos governos, que não vacilam em auferir levado alguns a acharem estranho que se puna o indivíduo moderado ou abstêmio
rendas a sua custa. Lembra a dizimação que ele produziu no pele-vermelha que comete crime em estado etílico e se isente de pena o que assim atravessa
da América do Norte e em nosso selvagem, queimando-se antes com o cauim os seus dias. É o que faz Ondei, acrescentando tratar-se de "persone
e mais tarde com o cauimtatá (cachaça) que o civilizado lhe deu. fondamentalmente viziose e immorali"2, Forçoso é convir, entretanto, que,
Realmente, é o álcool um dos flagelos da humanidade. O pior é que é em tal caso, se trata de moléstia mental. Entre nós, têm toda a aplicação o art.
nas classes menos favorecidas que produz seus maiores danos. Sem aludir a 28 e seus parágrafos.
outros fatores, a verdade é que o pobre se intoxica muito mais que o rico, Distingue-se a embriaguez crónica da habitual. Diz Antolisei que "devesi
pois sua bebida é a aguardente, ao passo que as deste são o uísque, o vinho tener presente che Ia prima costituisce un'alterazione patológica di natura
fino e o champanha. Mais tóxica aquela e agindo em organismos subalimentados, permanente, mentre Ia seconda è un'intossicazione acuta che presumibilmente
suas consequências são profundamente desastrosas. cessa col cessare dell'uso delle sostanze alcooliche" 3.
Esforços têm sido envidados, é certo, porém têm malogrado como na Nos §§ 1.° e 2.° do art. 28, o legislador trata da embriaguez acidental,
grande República americana. Talvez o malogro se prenda à ausência de ou- para dizer que ela exclui ou diminui a imputabilidade.
tras providências que devem acompanhar a interdição de sua venda.
E acidental quando provém de caso fortuito ou força maior. Embriaga-
Certamente, por isso é que as leis penais se têm estremado na punição se, fortuitamente, quem ignora que o está sendo. Assim, se, v. g., pessoa
do delito sob a ação do álcool e de substâncias análogas, esquecidas, entre- muito sensível ao álcool toma várias doses de um refrigerante, para ela des-
tanto, que não é somente por meio delas que se conseguirão resultados conhecido, mas ao qual foi adicionado álcool. Dá-se a força maior quando,
embora ciente de que se está embriagando, a pessoa não o pode evitar, tal
1. Afrânio Peixoto, Criminologia, 1933, p. 218 e s. <pial acontece em camadas inferiores, com o mau costume de obrigar-se outrem
a beber, frequentemente sob ameaça de arma em punho.

2. Emílio Ondei, II soggetto attivo dei reato, 1948, p. 85.


3. Antolisei, Vazione, cit., p. 343.
186 PARTE GERAL DO CRIME 187

desesperadamente, clamando que sua filha era tudo para ele na vida, pro- ticar ação certa e determinada e embriaga-se, devendo saber que em tal es-
testando ignorar qual o móvel que o impeliu àquele gesto, dizia que se teria tado não a poderia executar. Haverá, então, culpa stricto sensu.
suicidado, caso houvesse sacrificado a menor6. Sauer nitidamente distingue as hipóteses dolosa e culposa: "Ya no era
Agora, pergunta-se: podia passar pela cabeça desse homem, ao sair de imputable en el momento de Ia acción, que es Io que interesa, sino solamente
casa desgostoso e ao procurar o botequim, que ele iria tentar contra a vida de en el momento de Ia decisión de voluntad; pêro el querer y el obrar forman
sua filhinha? A imputação só lhe poderá ser feita a título objetivo. A embria- un todo conexo de manera que el dolo actua también hasta Ia comisión dei
guez não é ato executivo delituoso, de modo que a responsabilidade não decorre hecho; el autor divide su querer y obrar solo externamente en dos actos, para
da actio libera in causa. Em tal hipótese, estamos que haverá mesmo impro- liberarse de Ia responsabilidad; es decir, es simultaneamente autor mediato
priedade da expressão "ação livre na causa", pois a causa não é a embria- imputable e instrumento inimputable. Del mismo modo cuando se pone en
guez, e o que é livre é ela. estado de embriaguez aunque podia prever Ia comisión dei delito (un conductor
de automóvil se emborracha)"9.
Nosso legislador criou um caso de imputabilidade ex vi legis. Trata-se
de ficção jurídica. Consagrou-se a responsabilidade objetiva, rejeitada pelas Também Mezger disserta: "La actio libera in causa puede, según Ias
leis, repudiada pela doutrina e várias vezes impugnada pela Comissão Revisora. circunstancias concretas, ser una acción positiva o una omisión, una conducta
dolosa o culposa". E ilustra a espécie culposa com os exemplos do ferroviário
Inexistente o nexo psicológico (dolo ou culpa) em relação ao delito, só que se embriaga e deixa de fazer a manobra com os binários, e da mãe de
pode evidentemente ser objetiva a responsabilidade. sono agitado, que costuma revolver-se na cama, e, mesmo assim, coloca perto
Defende a orientação do Código, com o brilho que lhe é peculiar, Nel- de si o recém-nascido, vindo a matá-lo por sufocamento e compressão 10.
son Hungria7; todavia é obrigado a afirmar que o delito será atribuído a título Em tais casos, é claro que um evento certo e determinado é previsível,
de dolo ou culpa, conforme o elemento subjetivo existente no estado de e, portanto, há culpa stricto sensu.
ebriedade. Se assim é, não sabemos por que invocar-se a teoria da actio Tudo isso é bem diferente, entretanto, do que se responsabilizar alguém
libera in causa. Se o ébrio pode agir com dolo ou culpa, a esse título será por um fato que não lhe era dado prever, quando em estado de imputabilidade.
responsabilizado, sem ser necessária qualquer incursão nos domínios da ci-
A teoria das actiones liberae in causa é aplicável em casos de
tada teoria.
inimputabilidade preordenada (dolo) e culpa stricto sensu, nas circunstâncias
Ainda mais: se considerarmos que o bêbado tem dolo ou culpa, no apontadas.
momento, devido a uma "atitude da residual vontade", nas expressões do
Isto posto, não há dúvida de que, embora louvável o intuito do legisla-
douto ministro8, temos também de admitir a possibilidade de erro. Respon- dor, ele, aqui, consagrou a responsabilidade objetiva1'.
sabilizar-se-ia, então, o ébrio que tirasse o chapéu de outrem, pensando ser
o seu, ou que, acreditando ser agredido, agredisse?
A teoria das actiones liberae in causa supõe a supressão da capacidade
ética (intelectiva e volitiva) no momento do crime, porém responsável o agente
por ser livre no instante antecedente, quando, então, desejava cometer o delito
(imputação a título de dolo), ou devia, pelas circunstâncias em que se encon-
9. Sauer, Derecho penal, cit., p. 145.
trava, prever que poderia vir a praticar determinado fato delituoso (imputa-
ção a título de culpa). 10. Mezger, Criminologia, cit., p. 60.
11. O Anteprojeto Nelson Hungria (art. 31) cedeu em parte às críticas feitas ao art.
Esta, a culpa, pode ser atribuída somente quando a pessoa tem que pra- 24. II, do Código, em sua redação original, mas não o fez de maneira completa, pois se
esqueceu de considerar a embriaguez voluntária, não, porém, preordenada nem conducente
6. Mezger, Criminologia, cit., p. 47. ao crime culposo. A nosso ver, em tal hipótese, haverá imputabilidade a título de dolo,
7. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 529. consagrando-se a responsabilidade objetiva, ainda, e mostrando-se que o § 1." do citado
dispositivo é insuficiente.
8. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 529.
DO CRIME 189

XIII conducta traspasa los limites de Ia juridicidad es ciertamente antij uri dica
pêro puede ser disculpada, porque y en Ia medida en que el autor en estado
DA ANTIJURIDICIDADE de necesidad está coacionado psiquicamente, en consecuencia, en su libre
decisión de Ia voluntad por una situación extraordinária de necesidad..." 3.
A) O ESTADO DE NECESSIDADE Tal concepção admite variações: uns acham que, se o bem sacrificado é de
menor valor, o ato da pessoa será excludente da antijuridicidade; se for equi-
SUMÁRIO: 114. Conceito e fundamento. 115. Requisitos. 116. Exclusão valente, alguns têm o fato como indiferente à ordem jurídica, e outros acham-
do estado de necessidade. 117. Causas do estado de necessidade. Estado de no causa de exclusão da culpabilidade.
necessidade putativo. 118. Casos legais de estado de necessidade.
Q Código, a nosso ver acertadamente, considera-o como descriminante:
"<Não há crime" (art. 23). Não age__£ontraa ojdemjurídjça o que lesa direito
de outrem para salvar o seu. Sendo ambos juridicamente protegidos, é certo
114. Conceito e fundamento. Nos Capítulos VII a XII, ocupamo-nos que a lesão aos interesses sociais sempre haveria, se o agente não tivesse
com as causas relativas à culpabilidade, umas excluindo-a e outras não. As ofendido o bem jurídico alheio, porque seria então o seu sacrificado. Em
que constituirão objeto dos capítulos a seguir são relativas a antijuridicidade situação tal, é legítimo o procedimento da pessoa, pois a lei não lhe pode
(n. 53) e, elidindo-a, denominam-se descriminantes, justificativas, excludentes impor conduta de santo ou mártir, permitindo a ofensa a seu bem-interesse.
da_antijuridicidade etc. Não age conseqiientemente contra o direito. É lícita a ação.
A primeira destas é o estado de necessidade, definido no art. 23, I, e Não se impõe, ao mesmo tempo, quejj_pgssoa. oíenda^o^xKJXo alheio.
conceituado no art. 24. JLjwa&Jiaculdade que ela possui — diz bem Nelson Hungria4 — e não um
Diz-se_gm estado de nec gssidajie_a pessoa qne, para salvar "m direito, porque a este corresponde uma obrigação, e no estado de necessidade
jurídico seu ou alheio, expos to a perigo arnai ou iminente sar.rifira o de não há obrigação para nenhum dos agentes de sacrificar seus bens jurí-
outrem. dicos. Isso porque pode haver estado de necessidade contra estado de ne-
jjxiste nq_estado de necessidade um conflito rif* hpns-intfr^sscs] A or- cessidade.
dem jurídica, considerando a importância deles igual, aguarda a solução para
proclamá-la como legítima. É óbvio que, na colisão de dois bens igualmente 115. Requisitos. No art. 24, conceituando a excludente de ilicitude, a lei
tutelados, o Estado não pode intervir, salvando um e sacrificando outro. Há traça seus requisitos. O pressuposto é a existência de um direito do agente ou
de manter-se em expectativa, à espera que se resolva o conflito. de terceiro, que_é salvo^cpm o sacrifício do de outrem. São casos clássicos:
SraõT3óisnáufragos, em pleno oceano, sobre uma tábua que apenas pode
Nem todos conceituam o estado de necessidade como faz o Código. A
sustentar um deles; o do espectador de uma casa de diversões que se incen-
Escola Clássica, por exemplo, tem-no como excludente da imputabilidade.
deia e que para se salvar fere ou mata outro espectador; o do alpinista que
O autor não age livremente, mas, antes, sob pressão de circunstâncias que
precipita no abismo o companheiro, visto que a corda que os sustenta não
produzem coação psicológica. Florian, da Escola Positiva, também o consi-
suporta o seu peso etc.
dera como excludente da imputabilidade1. Mezger acha que "no procede
culpablemente el que actua en el estado de necesidad"2. Para Sauer, "si una São elementos da justificativa: atuáidade do perigo; inevi|abilidade.dele;
involuntariedade em sua causação: e inexigihilirinHp dn sarriffrin Hn frgtn
ameaçado.
A) Atualidade do perigo. Este é conceituado como a probabilidade de
Ofensa ou lesão ao bem jurídico.

1. Florian, Trattato, cit., v. 1, p. 542. 3. Sauer, Derecho penal, cit., p. 196.


2. Mezger, Criminologia, cit., v. 2, p. 197. 4. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 436.
190 PARTE GERAL DO CRIME 191

Peve ser atual ou iminente > isto é, presente ou prestes_ajealizar-se. "Lo Não se pode afirmar ser esta a opinião de nosso estatuto. O fato de no
mismo que en Ia legítima defensa, el peligro puede ser actual o inminente. art. 24 ler-se "... perigo atual, que não provocou por sua vontade..." não é
Esto no ofrece duda alguna."5 AJmt/^m^é.ajmjhabilidade. de elevado grau indicativo de dolo, já que na culpa (stricto sensu) também existe vontade —
Conforme o caso, bastará ela. Exigir sempre a efetivação do perigo será tor- vontade na ação causal e, por exceção, até no próprio resultado. A nós nos
nar impossível à pessoa a proteção do bem jurídico. Não comungamos, dessarte, rtarece que ftmhtm nppriç>n rulpnan impp.He. ou ohsta o psraHn HP neçessjda-
da opinião de José Frederico Marques6, que não admite o perigo iminente, dgj A ordem jurídica não pode homologar o sacrifício de um direito, favore-
opondo-se, aliás, à opinião dominante7. cendo ou beneficiando quem já atuou contra ela, praticando um ilícito, que
Mesmo que o dano já se esteja efetivando, é lícito à pessoa proteger seu até pode ser crime ou contravenção.
bem, para Impedir que aquele se avolume ou aumente de proporções. Reconhecemos, entretanto, que na prática é difícil aceitar solução uni-
Assim como um perigo futuro não autoriza a justificativa, não a permi- tária parálodos os casos. Será justo punir"quem, por imprudência, pôs sua
tirá o passado. Deve ele, pois, ser efetivo, quer pela atualidade, quer pela vida em perigo e não pôde salvar-se senão lesando a propriedade alheia?9
iminência. D) O quarto requisito é a inexigibilidade do sacrifício do bem ameaça-
B) É mister seja inevitável o perigo, pois a transgressão à ordem jurídi do. Invoca-se aqui a importância do bem ameaçado em relação ao que se
ca só pode ser admitida se o agente não tiver outro meio de conjurá-lo, A Sgçrifica. É mister sejam confrontados. Claro é que a comparação não há de
própria fuga, que na legítima defesa não é exigível, aqui SP impõp, pnis nãn ser rigorosa, não se olvidando o lado subjetivo que se apresenta na aferição
há o vexame que, naquela^ a retirada acarreta. do valor dos bens. É exato também que a lei, ao contrário da anterior, já não
Sem rigorosa apreciação, antes atendendo-se às circunstâncias do fato mais fala em mal maior, estando, assim, sem a menor dúvida, compreendi-
dos como estado de necessidade os casos da tábua e dos dois náufragos (ta-
e ao estado do agente, é exigível deste o emprego do meio menos nocivo
bula unius capax), e de antropofagia, em que, em expedições, morrendo à
possível: se podia apenas ferir e matou, não há, em princípio, estado de ne-
fome, os expedicionários combinam matar e comer um companheiro etc.
cessidade.
f~ Todavia os bens jurídicos oferecem uma graduação, há uma escala
C) A i y ^ ^ ^ ^ j ^ ^ p pg p /valorativa e, conseqiientemente, nío se pode deixar de, no caso concreto,
rigo que exclui o estado de necessidade é só o intencionalmente provocado / avaliá-los objetivamente, embora não olvidando a situação, o estado de âni-
ou também o originado de culpa (stricto sensu)! í—mo da pessoa.TNinguém se recusaria a aceitar o estado de necessidade do
> É questão das mais controvertidas. Entre nós, de um lado se alinham comandante de uma aeronave, que, na iminência de um sinistro, mandasse
r\ Basileu Garcia, Aníbal Bruno e Costa e Silva, para os quais a provocação atirar fora a bagagem dos tripulantes; mas por certo o condenaria — se é que
Y ele fosse imputável — se, para salvar a bagagem, mandasse... precipitar no
* culposa do perigo não impede o estado de necessidade. De outro lado, Nel-
son Hungria e José Frederico Marques sustentam o contrário. espaço os passageiros.
No estrangeiro, Manzini, Antolisei e Pannain acham que o perigo pro- f ""A consideração objetiva do valor do bem e a subjetiva, referente à
vocado dolosa ou culposamente impede a descriminante, ao passo que Battaglini, importância que lhe confere o indivíduo, bem como a situação deste, no
Florian, Maggiore e Asúa defendem a opinião contrária: só o dolo, só o pe- momento, fornecerão os elementos necessários para se apurar a inexigibilidade
rigo doloso obsta o estado de necessidade. A Costa e Silva esta parece a do sacrifício. Se este era razoavelmente exigível, desaparece a causa excludente
opinião mais difundida8 — e de fato o é —, concluindo que com ela está o 4§_ilicitude; porém o juiz pode reduzir a pena de um a dois terços, na forma
Código. l-do § 2.° dolirt. 24.
Como deixamos dito no início deste número, o estado de necessidade
C) A inyolnnl^ned^d^^ajTr^uln^ãp do perigo é. ontrn p.ie.mp.nro O pe- tem por fundamento a proteção de um direito, o que exige algumas conside-
d rações. Primeiramente, pode o direito ser do próprio agente ou de terceiro.

5. Asúa, La ley, cit., p. 334. 9. Paul Logoz, Commentaire, cit., v. 1, p. 140.


6. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 1, p. 131.
7. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 437; Costa e Silva, Código Penal,
cit., p. 156; Soler, Derecho penal, cit., v. 1, p. 425; Manzini, Trattato, cit., v. 2, p. 353.
8. Costa e Silva, Código Penal, cit., p. 158.

__i_______
192 PARTE GERAL DO CRIME 193

Conseqiientemente, não é excluída a regra do art. 24, quando a pessoa agiu No direito indígena, Galdino Siqueira, Bento de Faria, Costa e Silva e
na defesa de um bem de outrem, o que, aliás, taxativamente diz o dispositi- José Frederico Marques opinam que a relação contratual é impediente do
vo. E cumpre notar que a licitude da intervenção do agente não depende da pstadojle necessidade. Em sentido adverso se manifestam Nelson Hungria e
vontadè~lIõ~TituIãr do bem em defendê-lo ou da percepção que ele tenhajio Basileu Garcia, este embora lamentando a redação da lei.
perigo. Em segundo lugar, deve considerar-se que a lei fala em direito_a//i<?io, É exato que a Exposição de Motivos fala em^dever jurídico, porém ela
isto é, de qualquer outra pessoa, inclusive a jurídica. Não foi seguido o exemplo nã£jJntjer2!IJ^ão_autjMiçQ^g_ Código; q intérprete não está obrigado a
de alguns estatuíeis", como o alemão (art. 54), que limitam o estado de neces- incondicionalmente se lhe submeter...
sidade à preservação do corpo ou da vida do autor ou de um parente.
Há um argumento forte a favor dos que incluem na exceção o dever
Concomitantemente, verifica-se que o Código, em boa hora, não restringiu a
contratual, e que já tivemos ocasião de expor em crónica na imprensa; é que
espécie do bem protegido: não só o corpo ou a vida, mas qualquer direito. a omissão é causa de delito quando há o dever jurídico de impedir o resulta-
O Código Penal, em relação ao estado de necessidade, continuou con- do, e um dos casos desse dever jurídico é estar o agente vinculado por con-
sagrando a teoria unitárja, pela qualjnãase. estabelece-a ponderação de bens, trato. Noutras palavras: não impedir um evento, quando a isso se é obrigado
não define a natureza dos bens em conflito ou mesmo as condições de seus por uma relação contratual, equivale a causá-lo. Ora, se em tal situação se
titulares. Por adotar a teoria unitária e não a diferenciada não há relevância pode invocar o estado de necessidade, parece-nos real a contradição. Lá, a
na distinção entre o estado de necessidade justificante e o estado de neces- inércia — existente um contrato — é criminosa por ser causa do delito; aqui,
sidade exculpante. não há^ crime, pois quem deveria agir no integral cumprimento de sua obriga-
ção, e não o fez, assim se conduziu por se achar em estado de necessidade12.
116. Exclusão do estado de necessidade. Não pode invocar estado de
necessidade quem tem o dever legal de enfrentar o perigo — reza o § 1.° do Não obstante essa objeção, é de convir-se que o § 1.° do art. 24 é res-
art. 24. Há pessoas cujo ofício, ou função, as expõe constantemente a perigo, triçãojmposta a um benefício, a uma faculdade, não nos parecendcTãdmissívej^
donde não lhes é lícito sacrificar o bem de outrem para defender o próprio, ampjiá-la em detrimento do acusado.
como acontece com o soldado, bombeiro, guarda de penitenciária, coman- Falando a lei em dever legal, isto é, emanado de lei, decreto ou regula-
dante de navio etc. mento, não é fácil ampliar-se a expressão para compreender também o dever
jurídico e, assim, o proveniente de relação contratual.
Surge aqui a séria questão: a lei fala em dever legal; e o dever jurídico
impede também de invocar o estado de necessidade? Quem está preso a uma Não aplaudimos, entretanto, a orientação tomada pelo legislador. Me-
relação contratual, v. g., o banhista profissional, o guia de alpinistas, o mé- lhor fora se, ao invés de usar termos tão restritos, empregasse outros dizeres,
dico etc, não pode sacrificar o direito de outrem para proteger o seu? como os do estatuto italiano: "particolare dovere giuridico".
Na doutrina alienígena responde-se negativamente. Assim Sauer: "Ciertas 117. Causas do estado de necessidade. Estado de necessidade putativo.
personas, incluso sin deber legal expreso, deben tomar sobre si graves peligros", Pode a excludente de antijuridicidade, contemplada no art. 24, provir de qualquer
e exemplifica não só com o soldado e o marinheiro, mas também com o causa, exceto do próprio agente, como se expôs no n. 115. Pode originar-se,
médico, o enfermeiro, o sacerdote, o professor, o pessoal de laboratório etc.10. pois, do ato humano, do fato de um irracional, da força da natureza, de um
Veja-se Battaglini: "Onde subsiste a obrigação jurídica de enfrentar o perigo acidente etc.
(militares, particulares vinculados a contrato etc.) não pode invocar-se o estado A esse respeito, apresenta-se a questão bastante controvertida da agres-
de necessidade"". No mesmo sentido, Mezger, Pannain, Bettiol etc. De ob- são do insano. A pessoa agredida por ele age em estado de necessidade ou
servar, entretanto, que estas leis diferem da nossa. Assim, o Código italiano em legítima defesa? Na Alemanha, a maior parte dos juristas inclina-se por
é expresso ao falar em dever jurídico e não legal, como faz o estatuto pátrio.

10. Sauer, Derecho penal, cit., p. 200. 12. O Anteprojeto Nelson Hungria continuava a falar em dever legal (art. 26), sen-
11. Battaglini, Uinterruzione, cit., p. 336. do patente sua contradição com o art. 14, § 1.°, onde se alude à omissão causal por
inobservância de relação contratual.
194 PARTE GERAL

esta. Na Itália não ocorre o mesmo. Manzini e Levi, por exemplo, opinam
pelo estado de necessidade. Tal opinião é mais humana, pois torna exigível
a fuga do ameaçado ou agredido, o que não é desdouro, já que o agressor é
um alienado, e protege-se, ao mesmo tempo, a vida deste. É exato que os
juristas germânicos, aceitando a legítima defesa, sugerem, entretanto, a
fuga. Cremos, todavia, não ser esta muito conciliável com a justificativa
XIV
do art. 25.
DA ANTIJURIDICIDADE
Se o sujeito ativo supõe, por erro de fato plenamente justificado pelas
circunstâncias, achar-se em estado de necessidade, quando, na realidade, B) A LEGÍTIMA DEFESA
este não existe, é ele putativo e regulado pelo art. 20, § 1.°. Trata-se, entre-
tanto, de causa elidente de culpa (em sentido amplo) ou dirimente. Se o erro SUMÁRIO: 119. Definição. Fundamento e natureza. Requisitos. 120. Agressão
advém de culpa (stricto sensu), responderá por delito culposo. atual ou iminente e injusta. 121. Direito próprio ou alheio. 122. Moderação
no emprego dos meios necessários. 123. Legítima defesa de terceiro, recí -
118. Casos legais de estado de necessidade. Com ser excludente da proca e putativa. Legítima defesa e tentativa. 124. Estado de necessidade
ilicitude e aplicável à proteção de qualquer direito, há dispositivos legais e legítima defesa.
que têm por fundamento o estado de necessidade.
Assim, no art. 128, I — "aborto necessário" —, permite-se ao médico
praticá-lo, se não houver outro meio de salvar a vida da gestante. Trata-se de 119. Definição. Fundamento e natureza. Requisitos. Diz-se em legítima
estado necessário de terceiro. Se o caso não fosse expressamente contempla- defesa quem, empregando moderadamentgjneios necessários, repele injusta
do em lei, dúvida não há de que teria aplicação a norma geral do art. 24. agressão, atual ou iminente. contm_um bem jurídico próprio ou alheio.
No art. 150, dispondo acerca da violação de domicílio, diz a lei no § 3.°, Diversas são as teorias que procuram explicar sua natureza e funda-
II, não ocorrer o delito se a entrada em casa alheia se der quando algum mento, costumando os autores reuni-las em dois grupos: o dos subjetivistas
crime ali estiver sendo cometido ou na iminência de o ser. A penetração pode e o dos objetivistas. Os primeiros ligam a legítima defesa ao estado de espí-
ocorrer tanto para a legítima defesa como pelo estado de necessidade de rito da pessoa, perturbada ou coagida pela agressão (Puffendorf), ou aos motivos
outrem. determinantes da repulsa do agredido, a evidenciarem sua ausência de
periculosidade (Escola Positiva).
Trata o art. 154 da violação de segredo profissional, punindo quem o
revelar sem justa causa. Esta pode integrar-se no estado de necessidade. Já os objetivistas pensam de outra maneira. Carrara, por exemplo, parte
Suponha-se o médico que trate de certa ama, portadora de moléstia contagiosa. da ideia de que a defesa, em sua origem, é privada, justificando-se a tutela
Se denunciar o fato à família da criança, não praticará o delito em questão, estatal por delegação do indivíduo: conseqiientemente, toda vez que o Esta-
pois haverá justa causa — elemento normativo do tipo — que nada mais é do não puder defendê-lo, retoma ele o direito de defesa. Outros invertem os
que estado de necessidade de terceiro. termos do conceito, declarando que a delegação é do Estado, a quem compe-
te defender o indivíduo; não o podendo fazer, transfere-lhe esse direito. Autores
Outros dispositivos ainda existem, v. g., art. 269, em que não será difí- há que afirmam existir, na legítima defesa, colisão de bens jurídicos, devendo
cil apurar ser o interesse de terceiro ou terceiros o fundamento da norma. prevalecer o mais valioso, que é o agredido.
Todas essas opiniões não procedem, como é fácil verificar. Os subjetivistas
transportam a legítima defesa para o terreno da culpabilidade, o que é insus-
tentável, enquanto os objetivistas ou se fundam na ideia contratualista, ou
desconhecem a essência do instituto, onde não há conflito de interesse —
como no estado de necessidade — mas ofensa a um interesse juridicamente
tutelado.
196 PARTE GERAL
DO CRIME 197

Hoje, a opinião mais comum é que a legítima defesa é causa excludente lícitoou_jperrnitido. Opondo-se ao que é ilícito, o defendente atua consoante
de iliotude. A ordem jurídica exige respp.itn ao. direito de ontrem. Se este o direito. E certo praticar um ato típico. Assim, quem mata em legítima de-
não fosse protegido, seria impossível a coexistência social. É mister respei- fesTexêcuta a conduta descrita no art. 121, porém não comete crime, porque
tarmos o direito do próximo para que o nosso respeitado também seja. Ora, seu gesto não é ilícito; conta a seu favor com uma causa que £&ç_lui_a
a legítima defesa, como o próprio nome está dizendo, é tutela do direito pró- antijuridicidade do fato. Por isso é que se diz ser a tipicidade elemento indiciado
prioou de terceiro, e, portanto,Jntp,gra-sp na prHp.m jurídica; çonsequenje- desta.
mente é um direito.
Conseqiientemente, não se lhe pode opor qualquer causa excludente do
É causa objetiya excludente da antijuridicidade. "Objetiva" porque se
ilícito. É inadmissível estrito cumprimento de dever legal, exercício regular
reduz à apreciação "do fato", qualquer que seja o estado subjetivo do agente,
de direito ou estado de necessidade contra ela. Pode haver estado de neces-
qualquer que seja sua convicção. Ainda que pense estar praticando um cri-
sidade contra estado de necessidade, v. g., no caso clássico da tabula unius
me, se a "situação de fato" for de legítima defesa, esta não desaparecerá. O
capax; não, porém, contra legítima defesa.
que está no psiquismo do agente não pode mudar o que se encontra na rea-
lidade do acontecido. A convicção errónea de praticar um delito não impede, Pode ela, entretanto, coexistir com essas outras justificativas. Se, por
fatal e necessariamente, a tutela de fato de um direito. exemplo, A é injustamente agredido por B, e, na repulsa, vibra neste uma
É, portanto, a legítima^defesa "causa objetiva" de exclusão de pancada com uma estatueta de C, quebrando-a, age em legítima defesa con-
tra B e em estado de necessidade relativamente ao dano causado a C.
antijur idieidade.
São seus requisitos/^ agressão atual ou iminente e injustafè) direito Aagressão há de ser atual ou inevitável. Todavia»_ao contrário do_que
ocorrg_com a justificativa do art. 24. não é exigível a /Mgflijiojs_a lei_não
próprio ou alheio a ser preservado; (cy moderação no emprego de meios ne-
pode impor ao indivíduo seja pusilânime ou covarde;___
cessários à repulsa.
Questão pertinente à atualidade ou iminência da agressão é a do uso
120. Agressão atual ou iminente e injusta. Agressão é o ato que lesa ou preordenado de aparelhos (pffendicula ou offensacula) para a defesa. Assim,
gm^reito^ Implica, em_regra, ideia de violência. Nem sempre, po- quem eletrifica, por exemplo, as portas e janelas de sua casa, contra possí-
rém. Nos delitos omissivos não há violência, e mesmo em certos crimes veis assaltantes, à noite. Argumentamjdguns que a disposição do aparelho se
comissivos, como o furto com destreza (a punga, na gíria criminal), pode dÊiLquândojão havia agressão, ao que replicam outros, e com procedência,
inexistir violência. que_ele. atua só no momento da ofensa.
Deve ela ser atual ou iminente. A legítima defesa não se funda no temor É perfeitamente possível, por esse modo, a legítima defesa. Aliás, não
de ser agredido nem nõTevide de quem o foi. Há de ser presente a agressão, se vê a diferença que existe entre o uso de um dispositivo qualquer e o em-
isto é, estar se realizando ou prestes a se desencadear. Não existe contra prego de um cão para a defesa da propriedade.
agressão futura nem contra a que já cessou. O argumento de que pode ser colhido quem não está agredindo não
Nada ela tem que ver com a culpabilidade do agressor: pode ser procede. Tudo^e resume na apr^Haçãn do fato^que^como nosputrosj:asos
inimputável, como quando se tratar de um menor de dezoito anos. Lícita é a de legítima defesjijjode comportar excesso. Quem eletrifica a porta de sua
repulsa contra seu ataque. Relativamente ao insano, já tivemos ocasião de casa, que dá para a calçada da rua, age com culpa manifesta, senão com
dolo, pois qualquer transeunte pode tocar ou encostar nela. Entretanto, quem
abordar o assunto (n. 117).
assim fizer com a porta de uma casa rodeada de jardins e quintais e cercada
É perfeitamente compreensível a legítima defesa nos delitos perma- por altos gradis e muros, de modo que é necessária a escalada, à noite, para
nentes, ou seja, naqueles em que a agressão ou consumação se protrai no tocar naquela, não age com culpa stricto sensu. De observar ainda que na
tempo e no espaço, dependente da pessoa do agente, como no sequestro e no predisposição de meios deve harer também moderação — outro requisito da
cárcere privado, em que a vítima legitimamente se pode defender em qual- ■Justificativa. Para se proteger o património, v. g., com uma corrente elétrica,
quer momento da consumação. não é preciso que seja fulminante: uma descarga forte dissuadirá o mais animoso
Devejgmbém a agressão ser injusta, contra o direito, contra o que é amigo do alheio.
198 PARTE GERAL DO CRIME 199

Quanto à ausência de provocação, o Código de 1940 modificou o ante- deve atentar-se, como pondera o ilustre magistrado Célio de Melo Almada,
rior que exigia a sua inexistência no art. 34, n. 4: "Ausência de provocação a que, na prática, o que geralmente sucede é que as ofensas verbais geram
que ocasionasse a agressão". A reforma atual reproduziu integralmente o uma discussão acalorada e um estado de exaltação de ânimos que prenuncia
Código de 1940. Em princípio, a injustiça da agressão provém da ausência o perigo de uma agressão real3.
de provocação, porém tal não é exigível. Ela existe, mesmo que haja provo- A honra, como substrato sexual ou de pudor, pode ser legitimamente
cação do defendente, pela simples razão de que ele não pode, por esse mo- defendida. Ninguém certamente negará legítima defesa à mulher que esbofeteia
tivo, ficar à discrição do provocado. Costuma dizer-se que o auctor rixae o desclassificado que indecorosamente a está importunando, ou mata o que
não fica à disposição do auctor pugnae. Excetuam-se, naturalmente, os ca- tenta estuprá-la.
sos em que a provocação já é agressão ou simples pretexto ardiloso para
provocar o ataque e ofender o agressor. Ponto forçado a considerar é se age em legítima defesa da honra o marido
que mata a esposa colhida em flagrante adultério.
"A agressão há de ser atual ou iminente, porém não se exclui a justifica-
tiva contra os atos preparatórios, sempre que estes denunciarem a iminência Não existe legítima defesa no caso. A honra é um atributo pessoal, pró-
de agressão: o subtrair a pessoa a arma que um indivíduo comprou para matar prio e individual. Por que se dizer desonrado o marido que, ao se saber ilu-
jjm terceiro não constitui furto, agindo ela em legítima defesa de terceiro 1. dido, divorcia-se ou desquita-se? Se ele se porta com dignidade e correção
no convívio social, por que será desonrado? E sobretudo por que se colocar
Pode, na repulsa legítima, o defendente atingir outra pessoa (aberratio sua honra na conduta abjeta de outra pessoa e, principalmente, numa parte
ictus). O fato, consoante a regra do art. 20, § 3.°, deve ser considerado como não adequada de seu corpo? Desonrada é a prevaricadora. É absurdo querer
se praticado fora contra o agressor. que o homem arque com as consequências de sua falta. É dizer com Sganarello:
"Elles font Ia sottise et nous sommes les sots". Não existe legítima defesa
121. Direito próprio ou alheio. A agressão pode ser dirigida contra qualquer
no caso; o que há é, na frase brutal mas verdadeira de Léon Rabinovicz,
existe mais, hoje em dia, a limitação à tutela da vida ou da
orgulho de macho ofendido. Aliás, em regra, esses pseudodefendentes da
incolumidade física. Como declara expressamente a lei, o direito tanto será honra não passam de meros matadores de mulheres: maus esposos e péssi-
do defendente como de terceiro. mos pais. A-opjnjão generalizada^ de não existir legítima defesa dihonra
r"~~~~A honra, sendo um bem, pode ser defendida legitimamente. Possui ela envtaisjcasos.
/ várias acepções que devem ser consideradas isoladamente. / Questão mais complexa surge. Se a mulher, colhida em adultério, é atacada
Comporta o instituto a repulsa física contra as injúrias verbais? /ou, na iminência de o ser pelo marido, mata-o, age em legítima defesa? Basileu
Alguns entendem que não. Inscreve-se nesse número Basileu Garcia 2: í Garcia, que não coqcede a justificativa ao cônjuge enganado, não a outorga,
só os direitos suscetíveis de violação material podem ser protegidos. Assim Xfeste outro caso, também à esposa4.
não entendemos. O injuriado pode opor-se fisicamente às ofensas, fazendo-o, Ainda aqui não concordamos.
entretanto, com o necessário comedimento. Se uma pessoa está sendo ofen- Com efeito, como já ficou dito, a provocação não deixa à disposição do
dida por outra e lhe desfecha um tiro de revólver, é difícil sustentar-se em- provocado o provocador. Depois, se o marido não age em legítima defesa,
prego de meio adequado. Todavia, se ela se limitar a subjugar fisicamente o como negar-se esta à mulher? De duas uma: ou a agressão do marido é justa
adversário, tapar-lhe a boca, ou mesmo dar-lhe um tapa ou um soco, não é de ou injusta. Se justa, não se lhe pode negar a legítima defesa da honra, porém,
se excluir peremptoriamente a legítima defesa. se é injusta, tem a mulher o direito de se defender.
Argúi-se que, no caso, a repulsa ocorre quando a agressão cessou, pois A ideia de que esta, em tal hipótese, comete delito, vem de longe.
a injúria já foi proferida. Parece-nos claro, entretanto, que ela é exercida Impallomeni chega a sustentar que ela pratica crime culposo, pois agiu com
contra a continuação das ofensas e, dessarte, na iminência de outras. Aliás,

1. José Frederico Marques, Curso, cit., p. 119. 3. Célio de Melo Almada, Legítima defesa, p. 70.
2. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 310. 4. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 312 e 313.
200 PARTE GERAL
DU UKlMfc 201

imprudência ou falta de observância de disciplina, ao que jocosamente Manzini Mas ncLexame do fato não se pode desprezar o valor dos bens: o amea-
diz: "E perche non d'imperizia profissionale?"5. çado ou agredido pelo ataque e o lesado pela repulsa. Discordamos, dessarte,
De toda a procedência as palavras desse jurista: "Isto posto, surge cer- do eminente Hungria, quando defende ponto de vista contrário, não aceitan-
tamente no provocador agredido a faculdade de repelir pela força a violência do o sentimentalismo latino*, que se opõe à corrente germânica. Já não se
vingadora do outro, que é bastante desproporcionada à causa, pelo menos fala em casos como o do avarento ctiacareiro que abate mortalmente o me-
para os que colocam a honra em uma sede mais nobre do que a venerada nino que lhe está tirando uma fruta de sua árvore; mas mesmo em outros
pelos diversos escritores que declamam a favor dos sanguinários". E linhas casos, v. g., do indivíduo que prostra com tiro de revólver o ladrão que lhe
adiante conclui que o marido deve agir sob a própria responsabilidade e correr está subtraindo um lenço. O meio empregado não pode olvidar o valor do
bem em perigo. Têm aplicação ainda, aqui, dizeres de Asúa: "Si Ia legítima
o risco de sua violência, coisas às quais, em todas as relações da vida, deve
defensa es más que un estado de necesidad, pêro presupone este, ha de quedar
qualquer pessoa submeter-se6.
limitada por Ia regia dei interés preponderante debido a su legitimidad y
Uma coisa parece-nos inegável: no estágio atual da civilização, o ma- naturaleza. Por ende, no podemos sacrificar el bien superior para defender
rido não tem o jus vitae ac necis sobre a mulher e seu amante. otro insignificante, con Io que llegamos a conclusiones opuestas a Ias mantenidas
Quanto a este requisito do instituto, pode dizer-se que todos os direitos en Alemania"9.
são suscetíveis de defesa, não se exigindo a ofensa material, já por falar a lei / É comum sustentar-se que só existe legítima defesa quando há consciên-/
genericamente em direito, já porque a palavra agressão não tem o sentido cia ou vontade de defender-se, como escreve o eminente Aníbal Bruno10.
restrito de ataque físico ou corpóreo. Não_c_omungamos dessa_opinião. A legítima defesa é causa objetiya
122. Moderação no emprego dos meios necessários. Trata-se da mode- excludente da antijuxidindade. Situa-se no terreno físico ou material do fatõT
prescindindo de elementos subjetivos. O que conta é o fim objetivo da ação,
ração da repulsa ao ato diLagressor. É a legítima defesa moderamen inculpatae
e não o fim subjetivo do autor. Como acentua Mezger, "não pertence à defesa o
tutelae. Exige^o. uso moderado de meios necessários, indo desde a simples
conhecimento do ataque, nem a intenção de defender-se ou defender outro"11.
defesa até a ofensiva violenta. Judajdeo£adeiidQ_da intensidade^da agressão.
Se, v. g., um criminoso se dirige à noite para sua casa, divisando entre arbustos
Deve atentar-se para a situação em que se viu o defensor, pesar e medir um vulto que julga ser um policial que o veio prender e, para escapar à
as circunstâncias que o rodeavam, a fim de se concluir se os meios foram os prisão, atira contra ele, abateido-o, mas verifica-se a seguir que se tratava
devidos. A proportionalidade^ue deve jexistir entrej3s_jneifl£_âgressivos e os de um assaltante que, naquele momento, de revólver em punho, ia atacá-lo,
defensiyf^s^j;gj£tiy^^ão_£gdg_sgr exigida com rigor_ absoluto. Se um ho- age em legítima defesa, porque de legítima defesa era a situação. O que se
mem é atacado pelo campeão mundial de boxe, luta livre ou judo e defende- passa na mente da pessoa não pode ter o dom de alterar o que se acha na
se com um revólver, não há negar-lhe a legítima defesa. Estranho seria que realidade do fato externo (n. 119).
lhe fôssemos exigir troca de golpes com ele. Consequentemente, não se exclui a legítima defesa do ébrio, do insano
A moderac_ão_na emprego dos meios e sua necessidade hão de ser etc, quando a situação externa era a de quem legitimamente se defende.
verificadas objetivamente, no caso concreto. Como escreve Asúa: "Para que
se dê legítima defesa perfeita, há de existir proporcionalidade entre a repulsa 123. Legítima defesa de terceiro, recíproca e putativa. Legítima defesa
e o perigo causado pelo ataque, medida individualmente em cada caso, e tentativa. Já se disse que a defesa tanto pode ser própria, como de outra
porém não subjetivamente, mas consoante o critério proporcionado pelo pessoa. A ordem jurídica tutela o bem do indivíduo contra a agressão injusta
homem comum (razonable) que nesse instante e circunstâncias se vê agre- ainda que a proteção se efetive por outra pessoa. E mais: se o titular do di-
dido"7.
8. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 463.
5. Manzini, Trattato, cit., v. 2, p. 329, nota 3. 9. Asúa, La ley, cit., v. 4, p. 213.
6. Manzini, Trattato, cit., v. 2, p. 329 e 330. 10. Aníbal Bruno, Direito penal, cit., t. 1, p. 372.
7. Asúa, La ley, cit., v. 4, p. 219. 11. Mezger, Criminologia, cit., t. 1, p. 438.
202 PARTE GERAL DO CRIME 203

reito ameaçado não tiver disponibilidade dele, é lícita a intervenção de ter- irracional e da força da natureza (incêndio, terremoto, inundação etc). Na
ceiro ainda que aquele consinta na lesão, tal qual se dá na eutanásia. legítima defesa a repulsa é sempre dirigida contra o agressor, ao passo que
A lei não podia olvidar a legítima defesa de terceiro, que se funda no na outra descriminante a ação do necessitado pode dirigir-se contra outrem,
elevado sentimento da solidariedade humana. alheio ao fato: se um ciclista vê que um automóvel está para ir de encontro
Não existe legítima defesa recíproca. Têm sido apontados exemplos a ele e lança mão de qualquer meio contra o chofer, para que se detenha na
que aparentemente parecem contradizer o que se afirma, mas não procedem. marcha, age em legítima defesa; se, entretanto, precipita sua bicicleta para o
Se, para haver legítima defesa, é mister existir agressão injusta, não se com- passeio, ferindo um transeunte, atua em estado necessário em relação a este.
preende como esta possa ser ao mesmo tempo justa e injusta: ilícita para Costuma-se dizer que na legítima defesa há uma relação entre indivíduos,
caracterizar a legítima defesa de um, e lícita (quando não será agressão) ao passo que no estado de necessidade há sempre relação entre o agente e o
para autorizar a justificativa do outro. Estado.
É exato que na prática, tratando-se de lesões recíprocas, e não podendo Sintetizando, pode dizer-se que o estado necessário é ação e a legítima
o juiz estabelecer a prioridade da agressão, absolve os dois por legítima defesa. defesa, reação.
Trata-se de mero recurso, para não se condenar um dos protagonistas que é
inocente. Isso, entretanto, não destrói a impossibilidade da legítima defesa
recíproca.
Pode ocorrer legítima defesa putativa («. 95) contra a real ou objetiva.
Assim, se A, julgando justificadamente que vai ser agredido por B, dispara
um tiro de revólver neste, que, antes de ser atirado pela segunda vez, atira
também contra A. Esse age em legítima defesa putativa, pois as circunstân-
cias o levaram a erro de fato essencial, e B atua em legítima defesa objetiva.
As situações, porém, são diversas: um tem a seu favor uma dirimente ou
causa de exclusão da culpa (em sentido amplo), ao passo que o outro se
socorre de excludente da antijuridicidade.
Se a legítima defesa exclui a ilicitude do crime consumado, exclui tam-
bém a do tentado. Noutras palavras: nada impede, ao contrário do que o
Tribunal de Justiça deste Estado tem sustentado, algumas vezes, que alguém
em legítima defesa tente matar seu agressor. Se a tentativa se distingue do
crime consumado, exclusivamente porque num ocorre o evento ou resulta-
do, ao passo que no outro não, sendo o elemento subjetivo o mesmo (não
existe dolo de tentativa) e a mesma a execução, não se compreende por que
se possa matar em legítima defesa e não se possa tentar matar.

124. Estado de necessidade e legítima defesa. Do estudo dos dois ins-


titutos verifica-se que eles apresentam característicos próprios que os distin-
guem. No estado necessário há conflito de interesses jurídicos. Na legítima
defesa há ataque a um bem tutelado. Naquele inexiste agressão, pois cada
um dos personagens defende o seu direito, ao passo que não há legítima
defesa sem agressão. Só existe legítima defesa contra a ação humana, ao
passo que o estado de necessidade pode provir desta, como da de um
DO CRIME 205

XV cindível da organização jurídica, que se distingue das outras normas regula-


doras da conduta social, precisamente pela coerção física das suas sanções
DA ANTIJURIDICIDADE pessoais ou patrimoniais. Os funcionários e agentes públicos têm o dever de
executar e de fazer executar a lei, usando das faculdades a eles reconhecidas
C) ESTRITO CUMPRIMENTO DE DEVER LEGAL. pela própria lei. Pelo que os atos por eles realizados no cumprimento deste
EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO dever — mesmo com o uso das armas, nos casos previstos pela lei —, muito
embora danificando ou suprimindo interesses e direitos individuais (proprieda-
SUMÁRIO: 125. Estrito cumprimento de dever legal. 126. Exercício regu - de, liberdade pessoal, vida etc), são secundum jus e, portanto, sem caráter
lar de direito. O costume. 127. Consentimento do ofendido. Violência nos criminoso, a menos que não ultrapassem em excessos, determinados por mo-
desportes. Intervenção médico-cirúrgica. tivos anti-sociais, pelos quais o funcionário público abusa do seu poder"1.
Entende Soler que a violência empregada pelo agente do Poder Público
para vencer a resistência não constitui legítima defesa, mas estrito cumpri-
125. Estrito cumprimento de dever legal. O fundamento desta descriminante mento do dever legal2. É óbvio, entretanto, que as duas excludentes de ilicitude
salta aos olhos: a lei não pode punir quem cumpre um dever que ela impõe. podem coexistir: se um soldado fere um criminoso, pego em flagrante, não só
Seria estranho, por exemplo, punir-se o carrasco porque executa as penas para efetivar a prisão como para repelir a agressão por ele praticada, não há
capitais. negar a coexistência das duas descriminantes.
Por esta razão, alguns acham supérfluo o dispositivo. Todavia a men- Vem a talho o art. 292 do Código de Processo Penal, autorizando o exe-
ção expressa tem o mérito de esclarecer que se deve ter presente qualquer cutor a empregar os meios necessários para se defender ou vencer a resistência
lei, como também por que a descriminante fica subordinada ao rigoroso cum- oposta à prisão em flagrante ou determinada por autoridade competente.
primento do dever. Advirta-se, por fim, que dever legal não é só o referente ao funcionário
Vê-se, portanto, que este promana tanto da lei penal como da extrapenal, público e atinente a seu cargo ou função, mas também ao particular.
isto é, civil, comercial, administrativa etc. Mas há de provir de uma regra de
direito positivo: lei, decreto, regulamento, enfim, a norma geral, ditada pela 126. Exercício regular de direito. O costume. Direito e crime são antí-
autoridade pública na esfera de suas atribuições. Consequentemente, não contam teses: onde há delito não há direito, onde existe direito não é possível crime.
os deveres sociais, morais e religiosos. Em face disso, pode conjeturar-se da desnecessidade de a lei configurar
Vários são os casos em que um fato típico pode ser praticado em estrito o exercício regular de direito. Entretanto não é ociosa a capitulação porque,
cumprimento de dever legal, sendo um dos mais comuns o emprego da força uma vez efetivada, temos ocasião de inteirar-nos de problemas que surgem
pública. Na manutenção da ordem é facultado à autoridade usar violência, acerca dessa causa £xcludjnte_Jajjitijuridicida4e.
desde que esta seja necessária para triunfar o princípio de autoridade e reinar Frequentemente, pode praticar-se um fato típico sem que, hajaxrune~Q
a paz e a tranquilidade necessária à vida comunitária. Ao contrário, o não- maisj:omuni. talvez, seja o castigo paterno, em que é atingida a incolumidade
emprego da força em casos tais pode traduzir, no mínimo, frouxidão, incor- físiéa; o que se justifícj43eJb-exercícÍD regular de direito, pois o castigo cor-
rendo a autoridade em sanções administrativas, quando não penais, por cri- PgraljHnerente ao pátrio poder, embora paulatinamente vá desaparecendo.
me contra a administração pública. Se, entretanto, exceder os limites da lei, Tem ele, entretanto, de se conservar dentro de certos limites; não deve
responderá pelo excesso. ultrapassar determinado linde porque, caso contrário, já não haveria exercí-
cio regular de direito, porém o delito do art. 136 do Código Penal, denomi-
Como escreve Ferri: "A execução da lei é uma necessidade impres- n
*do "maus-tratos", que veda o uso abusivo de meios de correção ou disci-
plina.

• Ferri, Princípios de direito criminal, trad. Lemos d'Oliveira, 1931, p. 449 e 450. 2.
Soler, Derecho penal, cit., v. 1, p. 361.
PARTE GERAL DO CRIME 207

O exercício regular de direito pode propiciar também a figura delituosa O dissenso é, então, elemento típico. Faltando ele, não tem o fato tipicidade.
do art. 345 — "Exercício arbitrário das próprias razões". A violência é elemento
Dá-se o reverso outras vezes: o consentimento do ofendido é elemento
constitutivo dessa figura, e, se alguma dúvida pudesse haver, bastaria
io tipo — o rapto consensual (art. 220), ou seja, a tirada do lar doméstico de
ler o parágrafo único, que encara a hipótese em que não há emprego de
nulher maior de quatorze e menor de vinte e um anos, com seu consenti-
violência.
mento, e para fim libidinoso.
No art. 502 do Código Civil, vemos tratado o "Esbulho possessório"; o
Finalmente, casos existem em que o consentimento do ofendido funciona
possuidor, turbado ou esbulhado em sua posse, pode manter-se ou restituir- como excludente da ilicitude. São requisitos do consentimento: uma vontade
se com o emprego de força, contanto que o faça logo. Permite-se o emprego juridicamente válida, isto é, que a pessoa que o deu o possa realmente dar, e
de força no caso de turbação ou esbulho desde que, entretanto, o prejudicado a disponibilidade do bem pelo consenciente, já que, se ele a não tiver, se ela
a use imediatamente. couber ao Estado, é irrelevante, conforme se acentuou há pouco. Como es-
É comum dizer-se que no caso de esbulho há legítima defesa de um creve Aníbal Bruno, cujas considerações temos acompanhado: "Os crimes
bem, que é a posse. Nem sempre, porém. Suponha-se o caso de um senhorio contra o património constituem a grande categoria de fatos cuja antijuridicidade
expulsar violentamente o inquilino da casa que ele ocupa, mediante contra- pode ser impelida pelo consentimento. Aí, o interesse predominante é evi-
to. A posse é do locatário, que pode empregar força para recuperá-la. Não dentemente de ordem privada, salvo os casos de exceção, em que o interesse
existe legítima defesa, porém. A agressão já cessou e não se compadece essa público torna o bem irrenunciável. Mesmo naqueles em que o fato de ser o
justificativa com agressão finda. Ao revés, o esbulhado estará no exercício ato do agente contrário à vontade do ofendido não é elemento do tipo, o
regular de direito, recuperando a posse. consentimento exclui a possibilidade de crime, por ausência de antijuridicidade.
Vê-se, pois, que a excludente de ilicitude, aqui capitulada, tem concei- Não há, por exemplo, crime de dano, se o dono da coisa consente na sua
to bastante amplo, podendo advir de preceitos extrapenais. destruição, nem viola direito de autor quem age com o consentimento do
titular do bem"4.
O costume, como lembra José Frederico Marques, legitima também certos
fatos típicos. Assim, o trote académico, em que as violências, injúrias e cons- No mais, o consentimento é inoperante.
trangimentos que não são antijurídicos porque longo e reiterado costume Assunto que tem aqui sua oportunidade é a violência desportiva.
consagra o "trote" como instituição legítima 3. Esportes há, como o boxe, a luta livre, o jiu-jitsu, o futebol e outros, em
que há emprego de violência. Esta, contudo, não constitui delito porque ocorre
127. Consentimento do ofendido. Violência nos desportes. Intervenção exercício regular de direito, que se funda na permissão e regulamentação do
médico-cirúrgica. Não contém nosso Código disposição idêntica à do art. 50 Estado e no consentimento válido dos que participam dessas práticas. Aquele
do Código Penal italiano: "Não é punível quem lesa ou põe em perigo um dita as regras que têm de ser observadas e assegura a realização. Estes,
direito, com o consentimento da pessoa que desse direito pode validamente tomando parte em tais jogos, sabem que irão dar e receber golpes.
dispor". Tal disposição não é inteiramente despicienda, como se pretende,
embora não seja sua omissão de graves consequências. Claro é que, como em outros casos de exercício regular de direito, po-
dem intervir o caso fortuito, o dolo e a culpa. Se, entretanto, o participante
A matéria do consentimento do ofendido apresenta alguns aspectos. se conserva estritamente dentro em as regras do esporte, por piores que se-
Primeiramente, direito há, para cuja lesão é inoperante o consentimen- jam as consequências (como a morte que não é a finalidade de qualquer deles),
to do titular. São fundamentais para os Estados, são eminentemente sociais, a conduta é lícita.
como, v. g., a vida humana. Diga-se o mesmo da intervenção médico-cirúrgica, em que também, ao
Outros bens jurídicos existem que não são lesados desde que haja lado do consentimento do paciente, há a regulamentação da cirurgia, cuja
consentimento do ofendido. Assim, no furto, a subtração da coisa alheia só necessidade é irrecusável, incumbindo-se o Estado de regulá-la, fiscalizá-la
se dá invito domino, isto é, contra a vontade do senhor (dono ou possuidor). etc, de tudo isso se originando o exercício regular de quem a pratica.

3. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 1, p. 141. 4. Aníbal Bruno, Direito penei, cit., t. 1, p. 404.
DO CRIME 209

XVI ocorre, a título de exemplo, com o pescador que danifica e afunda um outro
barco para salvar sua rede de pesca que nele se enganchara.
DA ANTIJURIDICIDADE DO Na terceira (intensifica além do razoável) há o excesso, pois ao início
EXCESSO PUNÍVEL o agente encontrava-se numa real situação de necessidade, exorbitando ao
depois, quando do uso dos meios de execução para a defesa do bem. Em
outras palavras: o agente usa dos meios necessários e proporcionais, mas vai
SUMÁRIO: 128. Do excesso. 129. Do excesso punível no estado de neces- além do necessário a tanto. É o excesso, conhecido como excesso na ação ou
sidade. 130. Do excesso punível na legítima defesa. 131. Do excesso puní - excesso no meio.
vel no estrito cumprimento de dever legal e no exercício regular de direito.
Exemplificando: para fugir de um prédio em chamas o agente danifica
uma parede intermediária que permite a passagem a um outro edifício. No
segundo prédio, já seguro, quando não mais em perigo, danifica um obstáculo
128. Do excesso. No que diz respeito aos casos de exclusão de ilicitude, para ganhar o exterior. O excesso está na segunda fase, no segundo dano, em
a legislação atual apresenta uma inovação feliz ao aplicar o excesso punível relação ao qual responderá.
a todas as hipóteses contempladas (art. 23, parágrafo único), o que não ocor O excesso em questão poderá ser doloso, quando o agente consciente-
ria com o Código de 1940, que apenas aludia à legítima defesa e assim mes mente supera os limites razoáveis, ou culposo, quando vai além em razão de
mo tão-só à forma culposa. uma das formas representativas da culpa.
Excesso significa a diferença a mais entre duas quantidades. Há, em Responderá pelo excesso — excesso punível — doloso ou culposo,
tese, excesso nos casos de exclusão de ilicitude quando o agente, ao início conforme a hipótese.
sob o abrigo da excludente, em sequência vai além do necessário.
130. Do excesso punível na legítima defesa. Ao reagir à agressão injus-
129. Do excesso punível no estado de necessidade. No estado de neces ta que está sofrendo, ou em vias de sofrê-la, em relação ao meio usado o
sidade (art. 24), agindo em defesa de um bem jurídico colocado em situação agente pode encontrar-se em três situações diferentes:
de perigo, o agente, no que diz respeito aos meios usados, pode apresentar a) usa de um meio moderado e dentro do necessário para repelir a agressão;
três comportamentos distintos: b) de maneira consciente emprega um meio desnecessário ou usa
a) usa de um meio proporcional ao perigo; imoderadamente o meio necessário; e
b) usa de um meio desproporcional em relação ao perigo apresen c) após a reação justa (meio e moderação) por imprevidência ou cons-
tado; e cientemente continua desnecessariamente na ação.
c) usa de um meio proporcional, porém intensifica desnecessariamen No primeiro caso haverá necessariamente o reconhecimento da legíti-
ma defesa.
te sua conduta.
No segundo caso (meio desnecessário ou sem moderação) a legítima
Na primeira hipótese (proporcionalidade) há o reconhecimento do es- defesa fica afastada por excluído um de seus requisitos essenciais. Note-se
tado de necessidade, com todos os seus requisitos. que a exclusão pode ocorrer quer por imoderação quanto ao uso do meio,
Na segunda (desproporcionalidade) fica excluído o estado de necessi- quer pelo emprego de um meio desnecessário.
dade por não haver um de seus elementos constitutivos, justamente a propor- No terceiro (início justo, continuidade desnecessária) agirá com exces-
ção entre a situação fática de perigo e o meio removedor usado. É o que so, isto é, o agente intensifica demasiada e desnecessariamente a reação ini-
cialmente justificada.
O excesso poderá ser doloso, quando conscientemente o agente vai além
do necessário à reação, ou culposo, quando, por imprevisão em relação à
ffidd do ataque ou modo de repulsa, ultrapassa o necessário.
210 PARTE GERAL

O agente responderá pela conduta constitutiva do excesso.


Saliente-se que a afirmativa feita por certos ilustres autores de que o
excesso doloso exclui a própria legítima defesa não é rigorosamente cientí-
fica. O excesso doloso exclui a legítima defesa somente a partir do instante
em que o agente pratica a conduta representativa e constitutiva do próprio XVII DO CONCURSO DE
excesso. Há um exemplo clássico e sempre repetido: numa primeira fase,
presentes os requisitos do meio usado e da moderação, o defendente pratica PESSOAS
lesões graves no ofensor; depois, já dominado o atacante, continua agredin-
do, resultando lesões leves. Na primeira (lesões graves) estará acobertado
pela legítima defesa; na segunda, responderá pelo excesso, isto é, pelas le- SUMÁRIO: 132. Noções. 133. As teorias. 134. A teoria do Código. 135.
sões leves. Causalidade física e psíquica. 136. Co-participação e culpa. 137. Co-parti-
cipação e omissão. 138. Da punibilidade. Causas de redução da pena: pe -
131. Do excesso punível no estrito cumprimento de dever legal e no quena participação e desvies subjetivos entre os partícipes. 139. Requisi-
tos: concurso necessário e concurso agravante. 140. Comunicabilidade das
exercício regular de direito. O excesso também abrange as hipóteses do exercício circunstâncias. 141. Co-participação e inexecução do crime. 142. Autoria
regular de direito e do estrito cumprimento do dever legal, embora a realida- incerta. 143. A multidão delinquente.
de prática indique uma raridade fática.
A construção é a mesma dos casos anteriores, mutatis mutandi.
Na hipótese da obediência hierárquica o elemento chave está na "estri- 132. Noções. O crime é um fato humano e como tal pode ser praticado
ta obediência", agindo o subordinado com excesso e por ele respondendo se por uma ou várias pessoas. Neste último caso há co-delinqiiência; existe o
for além do determinado pelo superior. concursus delinquentium, que difere do concursus delictorum, pois ele é
No exercício regular de direito o elemento chave está no "exercício constituído por um crime cometido por dois ou mais indivíduos, ao passo
regular", pelo que deverá atender aos requisitos objetivos traçados pelo po- que, no último, há dois ou mais delitos.
der público. A excludente ficará afastada se houver uso irregular ou abuso Existe co-delinqiiência quando mais de uma pessoa, ciente e voluntaria-
de direito e haverá excesso se for além do preconizado. mente, participa da mesma infração penal (crime ou contravenção). Há con-
Em ambas as hipóteses o excesso poderá ser doloso ou culposo. vergência de vontades para um fim comum, aderindo uma pessoa à ação da
outra, sem que seja necessário prévio concerto entre elas. Pode também o
concurso de delinquentes apresentar-se inexistindo o objetivo do fim comum,
devendo, porém, os co-partícipes pievê-lo. Naquele caso, haverá co-partici-
pação dolosa, e, neste, culposa.
Advirta-se que nem sempre a participação de várias pessoas em um
cnme importa co-participação. Assim nos chamados delitos plurissubjetivos
(n. 60) como o de bando, ou quadrilha (art. 288), em que a pluralidade de
agentes é elemento do tipo, não se podendo falar em co-autoria. Nos crimes
bilaterais, ou de encontro (n. 59), há também participação física de duas
pessoas, podendo inexistir co-autoria, como na bigamia e no adultério, em
que um dos co-partícipes está insciente da ilicitude do fato, sendo até vítima,
*bmo ocorre no primeiro crime. Outras vezes, apesar de o co-participante ter
ciência da ilicitude do fato e praticá-lo, não é co-autor, mas sujeito passivo
Jo ofendido, por tutelá-lo a norma, como sucede no crime de rapto consensual
* • 220) e na usura.
212 PARTE GERAL DO CRIME 213

No concurso de agentes, como se constata do art. 29, nem todos os e menos a outros; como podem concorrer para um crime pessoas não revestidas
participantes praticam a mesma ação. Há os que executam a constitutiva do da qualidade constitutiva e como podem ser punidos os co-partícipes, se houver
núcleo do tipo (autor, co-autores), representada pelo verbo usado na oração inimputabilidade do autor principal1.
que descreve a conduta delituosa, e há os que de qualquer modo concorrem A teoria pluralística sustenta que cada um dos concorrentes pratica um
para o crime, sendo partícipes, embora não pratiquem a ação principal. crime próprio, sendo eles autónomos e distintos. Não há, para essa teoria,
Portanto há que se examinar as figuras do autor, do co-autor e do participação, mas sim simultaneidade de delitos. Massari foi ao ponto de
partícipe. afirmar que a ação do partícipe é elemento de um crime que subsiste por si,
Autor é o agente que, como já mencionado, executa a ação descrita crime que se poderia denominar com propriedade "delito de concurso"2.
pelo verbo contido na figura típica delitiva: o que "subtrai", "sequestra", Outras teorias de menor vulto surgem. Manzini já sustentou opinião
"mata", "induz" etc. Quando a execução é praticada por duas ou mais pes- que se pode chamar dualística, consistente em considerar a participação principal
soas, em cooperação e conscientemente, temos a co-autoria, como, a título e secundária, havendo, então, um crime só para os autores e outro para os
de exemplo, ocorre quando dois ou mais agentes agridem simultaneamente cúmplices.
a mesma vítima. Note-se que, na co-autoria, não há necessidade do mesmo Carnelutti inclui o concurso de delinquentes na doutrina do delito com-
comportamento por parte de todos, podendo haver a divisão quanto aos plexo, falando, então, em delito concursal, que seria a soma de delitos sin-
atos executivos. No roubo, um agente vigia, o outro ameaça e o terceiro gulares, cada um dos quais se chamaria "delito em concurso". O caráter deste
despoja. "consiste en no ser un delito autónomo, sino un elemento dei delito complejo.
Partícipe é o agente que, embora não pratique atos executórios, concor- Entre el delito en concurso y el concursual hay Ia misma diferencia que entre
re de qualquer modo para o resultado. Partícipe, assim, é o que pratica um Ia parte y el todo"3. Tal opinião nos parece filiável à doutrina unitária.
ato que contribuiu para a realização do crime, ato este diverso do realizado São as duas primeiras as de maior prestígio. Todavia é a unitária ou
pelo autor ou autores. Sua conduta, ainda que não típica, incide nas penas monista a preferida pela maioria dos Códigos e a que nos parece mais pro-
cominadas ao crime por ser acessória ou subordinada à considerada no tipo. cedente.
É que, na defesa dos interesses sociais, a lei amplia o âmbito do delito para
compreender não só a ação que integra a figura delitiva como também outras Com efeito, se o resultado é uno e se as ações convergem para ele, não
que a ela se agregam e são necessárias para sua efetivação. há falar em multiplicidade de delitos, isolando-se ou separando-se os parti-
cipantes e correndo-se até o risco de deixar impunes alguns deles quando
Em conclusão: autor é o que pratica a ação típica, enunciada pelo verbo sua conduta não atingii a fase da execução do tipo. É ir de encontro à reali-
da oração: se homicídio — o que matou; se furto — o que subtraiu; se rapto dade negar que o delito é somente um, embora várias as ações ou os atos,
— o que raptou etc. Ao lado dele há o participante, o que pratica atos não todos eles convergindo para fim único.
típicos, mas cuja conduta é punida. Autor é o executor do ato compreendido
pelo núcleo do tipo. Partícipe é o que adere ao crime, praticando atos diver- Com acerto, escreve Esther de Figueiredo Ferraz: "Praticado por um só
sos daquele. ou por vários indivíduos, o delito é sempre único. Porque, na co-delinqiiên-
cia, cada ato individual adquire significado, adquire valor jurídico-penal,
133. As teorias. Em torno da co-delinqiiência, várias teorias se dispu- pelas relações que mantém com as outras condutas convergentes"4. Cindi-
tam a primazia, no sentido de determinar se, dada a colaboração diversa dos los, separá-los do todo que é o crime único, não parece possível.
agentes, há um ou mais delitos.
A teoria unitária ou monista prega que a pluralidade de delinquentes e 1. S. Ranieri, // concorso, cit., p. 5.
a diversidade de condutas não são óbices à unidade do crime. Embora ela 2. E. Massari, // momento esecutivo dei reato, 1934, p. 198.
reúna grande número de adeptos, podendo mesmo ser considerada tradicio- 3. Carnelutti, Teoria general dei delito, trad. V. Conde, p. 255.
nal, tem sofrido censuras, argumentando-se não ser compreensível, se várias 4. Esther de Figueiredo Ferraz, A co-delinqiiência no moderno direito penal bra-
*U*im, 1947; p. 29.
condutas dão existência a um crime só, como pode ser este atribuído mais a uns
214 PARTE GERAL DO CRIME 215

134. A teoria do Código. O Código Penal de 1890 estabelecia, a priori agentes, pois é de suma importância o elemento subjetivo, que apresenta
e de maneira expressa, a distinção entre os participantes do crime, entre autor aspectos que não podem ser ignorados. Assim, por exemplo, seAeB dese-
principal e secundário, entre autor e cúmplice. jam matar C, mas não se conhecem e, sem que se vejam, no mesmo dia e
O legislador de 1940, em razão da adoção da teoria da equivalência das hora, postam-se numa estrada, ocultos, e atiram contra a vítima comum, não
condições, por força da qual tudo quanto concorre para o resultado é causa, há falar em co-participação. Cada um age de per si; não há vínculo psicoló-
acrescida da teoria extensiva, esta fundada na causação do resultado, estabe- gico irmanando-os. Trata-se de autoria colateral. Mas, se, no mesmo exem-
leceu a profunda modificação e através dela todos os que, de qualquer modo, plo, AeB concebem o plano de matar C, dirigem-se armados ao local, atiram
contribuíssem para o resultado eram considerados autores (CP de 1940, art. contra a vítima e apenas um deles nela acerta, ambos respondem por homi-
25). Todos os que fornecessem uma parcela, qualquer que fosse, para que o cídio. Há co-participação: existe convergência de vontades para um fim comum,
crime ocorresse eram considerados autores. com ciência de um aderir à ação do outro e, em tal caso, pouco importa a
A atual reforma, embora não repudiasse o condicionalismo, passou da atuação física individual. Podia, na hipótese, até um deles não executar
teoria extensiva (todos são autores) para a teoria restritiva, estabelecendo a materialmente o crime e mesmo assim seria participante.
distinção entre autor e partícipe, como se deduz claramente do art. 29 e seus Vê-se, portanto, que na co-participação é mister um vínculo psicológi-
parágrafos. Seguiu a tendência já demonstrada no Código de 1969. co unindo as várias condutas, o que importa em que elas tenham um objetivo
A inovação, sem dúvida, foi para melhor. comum, havendo ciência, pelo menos, de um autor aderir à ação do outro; é
É que, na co-delinqiiência, devem ser examinadas as contribuições objetiva necessário que ele tenha vontade livre e consciente de concorrer à ação de
(a que deu causa) e subjetiva (a vontade do agente). Logo, participar de um outrem.
crime não significa somente produzir o resultado (contribuição objetiva), Tal não importa a necessidade de pactum sceleris ou acordo prévio.
mas também a vontade consciente de produzir o mesmo resultado (contri- Será ele a regra, porém é dispensável. Basta que um partícipe consciente-
buição subjetiva). Em consequência, a punição do agente não tem como fa- mente adira à ação do outro. Pode haver até ignorância deste, como ocorre
tor único a eficácia causal, mas também a relevância causal. no exemplo clássico do criado que, para se vingar do amo, deixa a porta
Abraçou a nossa lei a teoria unitária ou monística. Equipara, em prin- aberta para um ladrão entrar. A insciência deste não impede a co-participa-
cípio, o art. 29 todos os que intervêm no delito, quem de qualquer modo ção. É possível até ir-se mais longe. Concurso haverá ainda que um dos par-
concorre para ele, mitigando, contudo, seus efeitos, pois estabelece fórmu- ticipantes se oponha à intervenção do outro, como sucede no caso em que
las pelas quais a punição de cada um está condicionada ao seu grau de cul- um marido, percebendo que sua mulher pretende intervir no homicídio, que
pabilidade. vai praticar, proíbe-lhe terminantemente que o faça, mas ela, à socapa, mo-
Note-se, e tal observação é relevante e necessária: o Código Penal não mentos antes do crime, retira da vítima a arma com que se podia defender, ou
diz que todos os concorrentes no crime sejam autores, mas sim que todos ministra-lhe um narcótico etc, frustrando-lhe qualquer possibilidade de de-
respondem pelo resultado, na medida de sua participação. fesa.
Na co-participação, é indispensável ^homogeneidade do elemento subje-
135. Causalidade física e psíquica. Já vimos que a teoria abraçada por tivo. Tratando-se de crime doloso, devem os agentes proceder com dolo; e,
nossa lei é corolário da adotada em matéria de causalidade. Por ela, todos os Com culpa (stricto sensu), se culposa for a figura. Não existe co-participação
que concorrem à produção do resultado são participantes (autores ou partícipes). culposa e crime doloso e vice-versa, o que é bem compreensível, visto que
Podem fazê-lo em qualquer fase do iter criminis, desde a deliberação até o todo crime compõe-se de dois planos — um físico e outro psíquico — não
momento consumativo. Só depois deste é que é impossível a co-participa- podendo este ser diferente para os partícipes, sob pena de ser diverso o de-
ção; o fato então praticado será delito autónomo, como ocorre com a recep- nto. Assim, se uma pessoa dolosamente instiga um chofer a imprimir grande
tação. Atente-se a que o delito permanente, cuja consumação se protrai, per velocidade a seu automóvel, para atropelar um inimigo, e, se aquele assim
mite a co-participação depois que ela se iniciou e ainda não está finda. Procede ignorando o desígnio do passageiro, o atropelamento ocorrido cons-
Não apenas a causalidade física merece considerada no concurso de tituirá delito doloso para este e culposo para o condutor do veículo.
216 PARTE GERAL DO CRIME 217

Não é possível também co-participação culposa em crime doloso. Se A, casa que imprudentemente deixa certa porção de arsénico na cozinha e a
supondo estar descarregada uma arma, diz a B que, para gracejar com C, cozinheira ministra-o como se fora sal. Ambas respondem distintamente,
atire contra ele, e, se B, que deseja matar C e sabe que a arma contém pro- podendo, aliás (tais sejam as circunstâncias), uma delas não ter agido com
jéteis, vale-se da oportunidade para levar a cabo seu propósito, jogando a culpa. O segundo caso ocorre quando, v. g., dois automóveis colidem, resul-
culpa em A, não se pode falar em cooperação culposa em crime doloso. A tando a morte de uma pessoa: não haverá co-autoria ou participação crimi-
fica isento de pena. A atuação dolosa de B apaga ou elide a ação causal nosa, mas imputação distinta. Ranieri fala, nessa hipótese, em concurso de
culposa de A. causas culposas6.

136. Co-participação e culpa. Nada impede o concurso de pessoas no 137. Co-participação e omissão. Desde que a omissão é causa (art. 13),
delito culposo. Na culpa, como se viu, há vontade da ação causal e, excep- não há negar a co-participação cmissiva. Nos delitos propriamente omissivos,
cionalmente, do resultado. Ora — atendo-nos ao caso frequente — se a ação v. g., os do art. 269 — "Omissão de notificação de doença" —, compreende-
causativa é voluntária, compreende-se que possa haver co-participação. Se, se facilmente que possa alguém instigar ou determinar a outrem manter a
v. g., uma pessoa instiga o condutor de um automóvel a dirigi-lo a toda a conduta criminosa. Há apenas a salientar que a co-participação, em tais hi
velocidade, disto resultando o atropelamento de um pedestre, ambos são póteses, dá-se por omissão de quem instiga o comparsa.
responsáveis por delito culposo, pois ambos foram causa culposa do resulta- Pode o concurso dar-se mediante omissão, quando há o dever jurídico
do: um instigando e outro executando materialmente o crime. A cooperação, de evitar o evento, pois em tá caso a conduta omissiva é causal («. 65).
aliás, pode ocorrer na própria ação, como, v. g., se dois operários tomam de Faltando esse dever, não haverá co-participação, a menos tenha sido assegu-
uma trave e a atiram na calçada, atingindo um transeunte (exemplos esses rada a inércia ao executor material. Há, então, um plano entre os agentes,
tirados de Nelson Hungria). cabendo a um atividade e a oulro, omissão.
É compreensível, portanto, a cooperação no crime culposo, visto exis- Ocorrendo o dever jurídico de obstar o evento, é mister atentar ao ele-
tir neste vontade na ação causal e previsibilidade do evento. Não comunga- mento subjetivo do obrigado. Faltando a vontade de colaborar ou cooperar
mos, assim, da opinião da douta Esther de Figueiredo Ferraz, quando afirma no fato, não pode este ser-lhe imputado; responderá a pessoa ou por falta
que o concurso de agentes propriamente dito não é possível no crime culposo, disciplinar ou por outro delito. Hungria exemplifica com o caso do banhista
pois o concurso pressupõe não apenas a consciência de estar concorrendo à que vê alguém atirar às ondas uma criança e por indiferença não intervém,
ação de outrem, mas também a vontade de contribuir com sua própria con- praticando, então, o delito do art. 135; e do soldado que, por covardia, assiste
duta para que se realize o evento criminoso5. Primeiramente, já vimos que a um assalto sem tomar qualquer providência, incorrendo, dessarte, em
falta disciplinar7.
existe culpa com resultado querido (culpa por extensão ou assimilação) (n.
76 e 83); depois, porque na culpa há consciência do concurso na ação (no Crime algum praticará o que não intervier, desde que não lhe corra o
exemplo, há pouco citado, dos dois operários atirando a trave à rua, não há dever jurídico de impedir o evento. Assim, se um homem vê alguém sendo
consciência de ambos estarem praticando concomitantemente a ação?); fi- espancado por duas pessoas e se afasta. A falta de solidariedade que revela
nalmente, porque, se a imputabilidade pelo resultado, na autoria singular está longe de constituir delito.
culposa, se assenta na previsibilidade, por que não se dará o mesmo na co-
138. Da punibilidade. Causas de redução da pena: pequena participa
participação? Ainda no exemplo último citado, é irrecusável que o crime é ção e desvios subjetivos entre os partícipes. A lei penal, vimos capítulos
uno: uma é a ação física (sem o concurso do outro, um operário não poderia atrás, adotou a teoria unitária, porém, visando abrandar seus efeitos, estabe
lançar na via a trave) e a mesma a previsibilidade do resultado para ambos. leceu na parte final do art. 29 que todos os participantes do crime incidiriam
A assertiva da autora, a nosso ver, procede quando se trata de ações nas penas a ele cominadas "na medida de sua culpabilidade". E os seus dois
culposas sucessivas ou simultâneas mas independentes. No primeiro caso parágrafos completam a intenção do legislador.
está o exemplo, formulado por Nelson Hungria e outros autores, da dona-de-
6. S. Ranieri, // concorso, cit., p. 271.
5. Esther de Figueiredo Ferraz, A co-delinquência, cit., p. 107. 7. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 561.
O fato é um só e comum; o crime é único; a culpabilidade, porém, in- a) Os agentes realizam a mesma figura típica desejada. As penas
dividualizada. A pena imposta ao agente fica estabelecida na medida e de sponderão às do crime praticado, apenas individualizadas.
acordo com o seu grau de culpa. A quantidade da reprimenda imposta a um b) Houve deficiência de execução, de tal maneira que realizam crime
dos agentes é aplicada independentemente da culpabilidade do outro. aos grave que o desejado. O resultado beneficia a todos e respondem pelo
Preceitua o § 1.° do art. 29 que, "se a participação for de menor impor- efetivamente cometido.
tância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço". Observe-se que, no Anteprojeto Alcântara Machado, estava previsto que
A respeito da participação de somenos por parte de um dos agentes, ria um aumento de pena "para quem houver querido participar de cri- Í
devem ser feitas quatro observações: mais grave do que o cometido". Punia-se a simples intenção e não o
a) Em primeiro lugar, aplica-se somente ao partícipe, pois incompatí ltado.
vel com a posição do autor. Quem realiza o tipo obviamente não pode agir c) Houve excesso na execução, de tal modo que o resultado represen-
com pequena parcela para o crime. o cometimento de um crime maior que o desejado por um deles. Em
b) Em segundo lugar, por "menor importância", somenos, deve ser as palavras: um dos agentes queria ou aceitou a realização de um crime
entendida a de leve eficiência causal. aos grave que o resultante.
O entendimento ficará por conta de uma jurisprudência ainda por ser O excesso quanto à execução pode ser de duas espécies: qualitativo ou
construída, porém devem ser observados os seguintes requisitos na sua apre- Ipantitativo.
ciação: o momento da participação no iter criminis, a intensidade do ele- * O excesso é qualitativo quando o crime mais grave, o resultado obtido,
mento subjetivo, a natureza da cooperação diante do resultado final e, por ajio se insere na mesma linha de desejo do outro agente. Exemplificando: um
fim, o grau de reprovabilidade da ação. «riado, à noite, deixa aberta a porta para que um parceiro entre na casa e
ipfte o patrão. Este entra, furta e estupra. No caso, houve desvio qualitativo,
No dizer de Damásio E. de Jesus, "quanto mais a conduta se aproximar
H fois é evidente que o estupro não estava na mesma linha de desejo do criado.
do núcleo do tipo, maior deve ser a pena: quanto mais distante do núcleo,
responderá pelo furto e pelo estupio, em concurso material; outro, o
menor deverá ser a resposta penal"8.
|«rtícipe, apenas pelo furto.
c) Em terceiro, é incompatível com as agravantes contidas no art. 62, O excesso é quantitativo quando o executor, dentro da mesma linha de 1
todas elas referentes ao concurso de pessoas. Isto porque ninguém pode ter
ij&fflduta desejada, apenas intensifica a execução, resultando um crime mais
uma participação de somenos e ao mesmo tempo promover, coagir etc.
sj§iaive. Como exemplo temos o roubo objetivado por todos e que termina com
d) Por derradeiro, a redução da reprimenda é facultativa e não obriga cínio porque um dos agentes, apavorado, atirou. Pelo que responderá gente
tória. O verbo, da forma usada — "pode ser" —, indica uma faculdade judi que ficou no portão da casa, em atitude de vigilância?
cial a ser usada com prudência e não arbítrio. Ou, se desejarem, o consagra
Preceitua o § 2.° do art. 29: "Se algum dos concorrentes quis participar
do e tão mencionado "prudente arbítrio do juiz".
■crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será au-
Desvios subjetivos entre os partícipes é o nome que Florian usa para intada até a metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais
enunciar a questão do concurso de agentes, quando o resultado é diverso do íve".
que um deles queria. Carrara falava em "anomalias da imputação na cumpli-
cidade" e outros se referem a "cooperação dolosamente distinta". Pode ocor- No caso de excesso qualitativo o participante que desejou o crime menos jive
rer tanto na participação material como na moral, embora mais frequente responderá apenas por ele, já que falta a relação de causalidade, uma que o
nesta última, como nos casos de mandato e instigação. ato praticado não se situa na linha de desdobramento causal da > desejada
pelo outro agente, como também lhe falta o elemento subjeti-|jpK>,que se
No concurso de pessoas, tendo em vista o liame subjetivo, podem ocor- dirija ao outro crime. No exemplo enunciado linhas atrás, o criado, i«ixando a
rer três hipóteses diversas: porta aberta, não criou a causa da causa da violência.
No caso de excesso quantitativo, por primeiro deve ser afastada a hipó-
8. Damásio E. de Jesus, Comentários ao Código Penal, v. 1, p. 540.
220 PARTE GERAL DO CRIME 221

tese do dolo eventual, pois, se o agente assumiu o risco de um crime mais ias que são elementos fundamentais do crime ou que modificam, isentam ou
grave, é óbvio que responderá pelo resultado. extinguem a punibilidade).
Afastada a hipótese do dolo eventual, no excesso quantitativo o agente Em regra, as leis empregam a expressão "circunstância" em sentido
que apenas quis um crime menos grave responderá por ele; contudo, se o amplo, o que a Pannain parece "impróprio, poichè, in senso próprio, sono
evento de maior gravidade lhe era previsível, a pena será aumentada pela tali solo gli accidentalia delicti, non puré le circostanze di esclusione delia
metade. pena" e "le circostanze che fanno mutare il titolo dei reato", e "tanto meno
Vale dizer: o agente que quantitativamente desejou crime menos grave, quelle che influiscono sulla capacita o imputabilità"10.
fora o dolo eventual, responderá na medida e grau de seu dolo, recebendo Tem-se em vista aqui as circunstâncias e condições pessoais, inerentes
a pena correspondente; se previsível o resultado, haverá agravação pela a pessoa, agente ou autor. Não se referem a ação material ou física do delito
metade. (circunstâncias reais ou objetivas). No elenco daquelas apontam-se a reinci-
dência, os motivos, o ser ascendente, descendente, funcionário público etc.
139. Requisitos: concurso necessário e concurso agravante. De tudo No destas, citam-se o emprego de veneno, fogo, explosivo, a ancianidade ou
quanto temos exposto, cremos poder assentar como elementos da co-parti- anciania da vítima etc.
cipação: a) pluralidade de agentes; b) relação causal física entre as condu
tas dos partícipes e o evento; c) relação causal psicológica entre essas con Costuma citar-se, como exemplo de comunicabilidade de circunstância
dutas e o resultado; d) ciência, pelo menos, de um agente aderir à ação do pessoal elementar, a qualidade de funcionário público no peculato (art. 312).
outro. Este pode ser considerado, de modo geral, como apropriação indébita, qua-
lificada por aquela qualidade do agente. Pois bem, o terceiro não-funcioná-
Como já deixamos dito (n. 132), nem sempre a participação de várias
rio, que pratica o fato juntamente com o funcionário, comete aquele delito.
pessoas importa co-delinqiiência, como ocorre nos delitos de bando ou qua-
drilha, conspiração, adultério, bigamia etc, os dois primeiros chamados delitos Questão sumamente controvertida é a proporcionada pelo art. 123 —
coletivos e os outros dois, bilaterais ou de encontro. Trata-se de concurso "infanticídio". Trata-se de crime privilegiado, em face do estado puerperal
necessário. Nada impede, entretanto, que mesmo em tais casos exista co- da mãe que mata o filho durante o parto ou logo após. Pergunta-se, então:
o terceiro que a auxilia é co-partícipe de infanticídio ou pratica homicídio?
participação. Se no adultério, além das pessoas necessárias ao tipo, intervém
Hungria é pela última hipótese, dizendo que o estado puerperal é
terceiro, instigando ao crime, será co-partícipe.
personalíssimo e incomunicável. A figura contém um privilégio que só à
Além do concurso necessário, há o agravante, previsto diversas vezes mulher aproveita".
em nossa lei: arts. 146, § 1.°; 150, § 1.°; 155, § 4.°; 157, § 2.°, II etc. Em
Não comungamos da abalizada opinião. Preliminarmente, nossa lei não
regra, a união propositada de agentes tem sido considerada como motivo de
distingue: ela só conhece circunstância pessoal, sendo arbitrária a invocação
agravar a punição. Como diz Paul Cuche 9, a união de agentes torna mais
de outra espécie, e, portanto, o princípio firmado no art. 236 só pode ceder
fácil a execução do crime, e é um modo de diminuir o risco profissional,
diante de texto expresso. Depois porque a douta opinião quebra o todo uni-
dividindo-se a tarefa. Graças à conjugação de esforços, podem praticar de-
tário do crime, constituído por fato material único, e vinculados psicologica-
litos mais graves. O concurso favorece não apenas à gravidade do delito,
mente os participantes pela convergência de vontades. ,. Por argumento a
mas à sua multiplicação. Finalmente, inclinação a se associar observa-se, em
contrario do art. 30, comunicam-se as circunstâncias íeais ou objetivas. O
regra, nos delinquentes mais perigosos.
Código não esclarece se elas se comunicarão sempre. O estatuto italiano foi
140. Comunicabilidade das circunstâncias. Prescreve nosso diploma, bem mais explícito que o nosso, dispensando mais de um tttigo acerca da
no art. 30, que as circunstâncias e as condições pessoais só se comunicam comunicabilidade das circunstâncias, para dispor, no art. 118, que as
quando elementares do crime. A lei abrange aqui tanto as accidentalia delicti objetivas ou reais, ainda que não conhecidas, se comunicam. E
(circunstâncias que majoram ou diminuem a pena), como as essentialia delicti

9. Paul Cuche, Précis de droit criminei, 1929, p. 139. 10. Remo Pannain, Gli elementi essenziali t accidentali dei reato, 1936, p. 150.
11. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 574.
99? DO CRIME 223
PARTE GERAL

mais uma consagração da responsabilidade objetiva. Para evitá-la, estamos venenar uma terceira, desconhecendo ima a intenção da outra, e ambas dei-
que se deve atender aos princípios da causalidade física e psíquica. tam certa substância na água que ela vai beber, apurando-se mais tarde que
uma delas ministrou um líquido inócuo, sem se saber, porém, qual delas o
141. Co-participação e inexecução do crime. Dispõe a lei, no art. 31, fez' dois indivíduos com armas perfeitamente idênticas, ignorando um a ação
que, não sendo, pelo menos, tentado o delito, não se punem o ajuste, a deter- do outro, atiram ao mesmo tempo contra a vítima, que é alcançada por um
minação ou instigação e o auxílio. tiro apenas, não se podendo provar a que arma pertencia o projétil. Em tais
Determinar é provocar outrem a cometer um crime, é fazer nascer o hipóteses, e outras que podem ser formuladas, um dos agentes é inocente.
propósito delituoso. Instigar é reforçar, é robustecer um desígnio criminoso. No último caso, ainda se pode dizer que houve tentativa para o que não acer-
Ajuste é o acordo realizado para o cometimento do delito. Auxiliar é ajudar tou na vítima, mas, no outro, uma das pessoas cometeu um crime impossível,
na preparação ou na execução. São formas de participação que ficam impu- por ineficácia absoluta de meio.
nes, nos termos do dispositivo. Tais casos não encontram solução no Código. Na iminência de se con-
Todavia este ressalva: a menos que haja disposição em contrário. É porque denar um inocente, absolver-se-ão naturalmente os dois acusados.
aquelas formas, às vezes, constituem delitos. Assim, o art. 286 — "incitar, Fora disso, desde que haja convergência de vontades para um fim co-
publicamente, à prática de crime" —, onde há instigação delituosa; o art. mum, aderindo um dos agentes à ação do outro, a não-identificação do resul-
288 — "quadrilha ou bando" —, em que existe ajuste para delinqiiir etc. tado não importa autoria incerta, pois ambos responderão por ele.
Não se pode louvar o Código por haver omitido o oferecimento para
delinqiiir, como já têm salientado vários juristas e cuja necessidade foi res- 143. A multidão delinquente. O estudo das multidões delinquentes foi
feito principalmente por Sighele. Tarde 2 Le Bon estudaram a psicologia das
saltada pelo caso de um belga que se ofereceu a um clérigo para matar o multidões.
chanceler Bismark.
É a multidão um agregado, uma reunião de indivíduos, informe e
Hungria declara que também o oferecimento não é punível 12. É exato. inorgânico, surgido espontaneamente e também espontaneamente desapare-
Mas o que se salienta é que devia ele ficar submetido ao mesmo tratamento cendo.
que as outras formas, isto é, sujeito a medida de segurança. Para a lei é indi- Levada a multidão pelo paroxismo do ódio, vingança, amor etc, che-
ferente13. ga a excessos inauditos, atemorizando seus próprios componentes ou in-
Não pensam assim outros Códigos. tegrantes.
142. Autoria incerta. Ocorre essa quando, sendo diversos os executo- Possui ela uma como que alma, que não resulta da soma das que a com-
res, não se sabe a qual deles atribuir o resultado. põem, mas, na realidade, da adição das qualidades negativas, dos defeitos,
dos sentimentos primitivos que residem em todo homem.
Adotando a teoria monista e dispensando o acordo prévio de vontades,
E a multidão dirigida por essa alma e entrega-se a excessos. Frequentemente
o Código resolveu a vexata quaestio da autoria incerta.
duce, no dizer dos italianos, o meneur, na expressão dos franceses, que
Nem sempre, porém. Em casos de autoria colateral, em que os agentes
provoca a eclosão, o tumulto; porém, desencadeada a tempestade, precipi-
podem atuar sem ter conhecimento da ação do outro (n. 135), não se podendo
tando-se cega, desordenada e arrasadora, nem mais ele a pode deter. É fácil
identificar o resultado, incerta será a autoria. Serão raríssimos os casos, mas *"nbrar-se do estouro da boiada, tão magistralmente descrito por Euclides
podem ocorrer. Figurem-se hipóteses como estas: duas pessoas querem en- Cunha e Rui Barbosa, dois gigantes da pena no Brasil.
Sob a influência da multidão, deixa o indivíduo de ser o que ordina-
12. Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 576.
riamente é, ocorrendo, então, o rompimento de outros sentimentos, de ou-
13. Mais radical ainda era Hungria, em seu Anteprojeto (art. 93), suprimindo todo tra
s forças que traz em si. Na multidão delinquente existe o que se chama
o art. 27 da redação primitiva do Código. Parece-nos que a modificação não procede.
Devia a espécie continuar subordinada a medida de segurança (o que não sucede), como
'ral de agressão: cada um procura não ficar aquém do outro no propósito
se verifica ainda dos arts. 87 e s. daquele.
tfituoso.
224 PARTE GERAL

Compreende-se, então, por que a lei vê razão de atenuar a pena. Leva-


se em consideração que a faculdade de pensar, examinar e ponderar fica
debilitada. O indivíduo, a bem dizer, não age por si, é impelido e sugestionado
pelos outros.
Daí considerar nossa lei atenuante o haver cometido o crime sob a in-
fluência de multidão em tumulto, desde que o agente não haja provocado DA PENA
esse tumulto, seja lícita a reunião e não se trate de reincidente, requisitos
facilmente compreensíveis. É o que dispõe o art. 65, III, e.
Em regra, as leis prevêem essa circunstância. Trata-se, aliás, de con- I
quista da Escola Positiva.
CONSIDERAÇÕES GERAIS

SUMÁRIO: 144. Teorias. Conceito. Fundamento. Fins. 145. Caracteres e


classificação. 146. A pena de morte.

144. Teorias. Conceito. Fundamento. Fins. Ao abordarmos as correntes


doutrinárias do direito penal (n. 21), tivemos ocasião de dizer que o estudo
da pena (fundamento e fins) é feito por três grupos que compreendem as
teorias absolutas, as relativas e as mistas.
As absolutas fundam-se numa exigência de justiça: pune-se porque se
cometeu crime (punitur quia peccatum est). Negam elas fins utilitários à
pena, que se explica plenamente pela retribuição jurídica. É ela simples con-
sequência do delito: é o mal justo oposto ao mal injusto do crime.
As teorias relativas procuram um fim utilitário para a punição. O delito
não é causa da pena, mas ocasião para que seja aplicada. Não repousa na
ideia de justiça, mas de necessidade social {punitur ne peccetur). Deve ela
dirigir-se não só ao que delinquiu, mas advertir aos delinquentes em potên-
cia que não cometam crime. Conseqiientemente, possui um fim que é a pre-
venção geral e a particular.
As teorias mistas conciliam as precedentes. A pena tem índole retributiva,
porém objetiva os fins de reeducação do criminoso e de intimidação geral.
Afirma, pois, o caráter de retribuição da pena, mas aceita sua função utili-
tária.
Realmente, uma coisa é afirmai o conceito da pena e outra, seu fim. A
pena é retribuição, é privação de bens jurídicos, imposta ao criminoso em
face do ato praticado. É expiação. Antes de escrito nos Códigos, está profun-
<lamente radicado na consciência de cada um que aquele que praticou um
226 PARTE GERAL DA PENA

mal deve também um mal sofrer. Não se trata da lex talionis, e para isso a Enfim, o binómio "retribuição e prevenção" explica a pena. Ela nÈ
humanidade já viveu e sofreu muito; porém é imanente em todos nós o sen- deixa de ser um mal, apesar da evolução que sofreu, porém, no estágio atua
timento de ser retribuição do mal feito pelo delinquente. Não como afirma- na civilização em que vivemos, é indispensável e imprescindível.
ção de vindita, mas como demonstração de que o direito postergado protesta
e reage, não apenas em função do indivíduo, mas também da sociedade. 145. Caracteres e classificação. Já vimos que a pena há de ser pn
Com efeito, o Estado, como já se disse mais de uma vez, tem como porcionada ao crime e individualizada. A esses caracteres, outros, entretai
finalidade a consecução do bem coletivo, que não pode ser alcançado sem a to, se juntam: personalidade, legalidade, igualdade, inderrogabilidade, ecc
preservação do direito dos elementos integrantes da sociedade, e, portanto, nomia, moralidade, humanidade etc.
quando se acham em jogo direitos relevantes e fundamentais para o indiví- Deles, os principais são a legalidade, a personalidade e a proporcionalidadí
duo, como para ele próprio, Estado, e as outras sanções são insuficientes ou pois os outros são até consequências suas.
falhas, intervém ele com o jus puniendi, com a pena, que é a sanção mais A primeira reduz-se ao apotegma nulla poena sine lege. É a garanti
enérgica que existe, pois, como já se falou, pode implicar até a supressão da suprema do indivíduo contra o jus puniendi estatal. Não somente garantis
vida do delinquente. pois, se se assinala à pena o fim intimidativo, é mister ser cominada em le
Punindo não olvida, entretanto, o Estado, a dignidade da criatura hu- é necessário seja conhecida. Sem isso não poderá eficazmente intimidar o
mana, por mais desprezível que seja o criminoso. Conseqiientemente, a pena, indecisos e vacilantes. A legalidade não diz respeito, portanto, somente a
sobre ser proporcional ao mal que ele praticou, deve tê-lo sempre em consi- indivíduo, mas relaciona-se à prevenção geral, já apontada.
deração. Como escreve Mezger, proporcionada ao ato, ela cai, consoante seu
A personalidade impõe-se pela finalidade retributiva. Se a pena é o ma
conceito, sob o dogma do ato, porém não apenas isso, pois tem de ser ade-
da sanção oposto ao mal do crime, se é retribuição de um mal por outro,
quada à personalidade do agente, caindo, então, sob o dogma do autor1.
evidente que deve recair sobre quem praticou aquele mal e somente sobr
Soler define a pena como um mal, primeiramente ameaçado e depois ele. Daí a abolição do confisco, pena iníqua, que se projetava à descendênci
imposto ao violador de um preceito legal; como retribuição, consistente na do criminoso. Privado este de seus bens patrimoniais, a família também vi
diminuição de um bem jurídico e cujo fim é evitar os delitos2. Vê-se, nessa nha a sofrer as consequências.
definição, que o autor conjuga o fundamento da sanção com sua finalidade.
É exato que a pena privativa de liberdade gera ainda esse efeito, pois
Esta é dupla, como já se viu. Cifra-se na prevenção geral e especial. A
privado o chefe da família de seu trabalho, sofrem os que vivem em SUÍ
primeira dirige-se à sociedade, tem por escopo intimidar os propensos a delinquir,
dependência. Tal consequência, que realmente existe, é, entretanto, indiretí
os que tangenciam o Código Penal, os destituídos de freios inibitórios segu- e sobre ela prevalece a necessidade da punição. Advirta-se, todavia, que nã(
ros, advertindo-os de não transgredirem o mínimo ético. se trata de problema insolúvel, porque em um Estado perfeitamente organi
Além dessa finalidade de caráter geral, há a especial. Com efeito, o zado deve existir assistência social a amparar a família do sentenciado, que
delito é resultado de condições endógenas, próprias do criminoso, e exógenas, de fato, não pode sofrer punição consequente; como, também, proteger z
isto é, do meio circundante. A pena não deve ignorar, então, a influência família da vítima, muita vez votada à miséria e ao abandono.
daquelas, e justo é assinalar que, nesse terreno, se tem avançado bastante. Já
Entre nós, o princípio da personalidade da pena está consagrado no inc
não se admite exclusivamente a sanção como retributiva — o mal da pena ao XLV do art. 5.° da Constituição Federal: "Nenhuma pena passará da pessoz
mal do crime — mas tem-se em vista a finalidade utilitária, que é a reeduca- do condenado...".
ção do indivíduo e sua recuperação. Deve a pena, para isso, ser individuali-
zada, o que, aliás, constitui princípio constitucional, consoante o inc. XLVI A proporcionalidade penal está intimamente vinculada ao fundamento
do art. 5.° de nossa Magna Carta. atributivo, sobre o que já se falou no número anterior. Em princípio, a pena
deve guardar proporção com o delito: não se punem, igualmente, o furto e o
homicídio. O crime tem sua quantidade, que deve, de modo geral, ditar a
1. Mezger, Criminologia, cit., v. 2, p. 383.
2. Soler, Derecho penal, cit., v. 2, p. 399.
■"""""itidade da sanção.
PARTE GERAL DA PENA 229

Assinala Antolisei3 que esse princípio tem sofrido duas derrogações. Conhecem-nas, todavia, outras nações, que empregam o desterro, o
Uma, proveniente da reincidência (CP, art. 63), a segunda referente à aplica- confinamento, a relegação, a transportação etc, notando-se, entretanto, que
ção da pena, pois que deve o magistrado ter em conta a personalidade do as duas últimas também são privativas da liberdade, já que o sentenciado é
condenado (CP, art. 59). submetido a prisão e trabalho.
Há um outro princípio, a que os autores emprestam capital importância: Em algumas ocasiões tem havido exílio, entre nós. Contudo trata-se de
é o da inderrogabilidade penal. A punição deve ser certa, pois a sua eficácia situações anormais, em que é imposto.
depende mais da certeza do que da severidade. De que vale uma pena seve- Outras penas, como a de desterro, existem; não são, porém, propria-
ra, se é problemática sua aplicação? Nesse sentido, pode-se dizer que, entre mente, de direito penal. A própria expulsão do estrangeiro é medida admi-
nós, mais eficaz que a pena de morte, advogada por muitos, seria a supressão nistrativa.
do júri, que não tem provado bem.
Como pena pecuniária, os povos conhecem, em regra, a multa e o con-
Entretanto a inevitabilidade penal tem sofrido restrições impostas pela fisco.
finalidade da prevenção especial, ditando medidas como o livramento con-
A primeira consiste em o condenado pagar determinada importância,
dicional, o sursis, o perdão judicial, a graça e o indulto. Devem esses insti-
fixada entre o mínimo e o máximo, na lei. A segunda, não capitulada em
tutos, principalmente os últimos, ser aplicados com parcimônia e critério nosso Código, não é frequentemente encontrada nas legislações, pois é iní-
para não se consagrar como norma a impunidade. qua, já que atinge outras pessoas, violando, assim, o princípio da personali-
Várias são as classificações da pena. A mais comum é a que diz respei- dade da sanção.
to ao bem jurídico por ela alcançado. Segundo esse critério, ela pode ser:
Confisco, no Código Penal, só conhecemos o do art. 91, II, que recai
corporal, privativa da liberdade, restritiva da liberdade, pecuniária e priva-
sobre o produto direto ou indireto do delito, ou sobre os instrumentos empre-
tiva de direitos. gados na sua execução. Não é pena; é efeito da condenação.
À primeira classe pertencem as penas que recaem sobre a pessoa física
Consagra, finalmente, a doutrina a privativa de direitos, aplicável, ge-
do delinquente, suprimindo-lhe a vida ou atingindo-o na integridade corpórea: ralmente, a crimes em que o delinquente se revelou incapaz ou indigno do
a pena de morte e os castigos físicos. Estes chegam até nossos dias sob a exercício de alguns direitos. Pode consistir, às vezes, na perda da profissão
forma de açoites, existentes em algumas legislações. ou de atividade. Outrora, nela predominava o caráter infamante, o que veio
São as penas privativas da liberdade as mais comumente empregadas a desaparecer com a humanização do direito penal.
pelas leis. Pode a privação ser perpétua, como ocorre, por exemplo, na Itália, Não se pode aludir ao caráter infamante, sem se lembrar da morte civil.
com o ergastolo. Era verdadeiramente atroz essa pena. Era tornar morto um homem em vida;
Ao contrário do que se poderia pensar, não são elas das mais antigas. A era reduzi-lo a cadáver, apesar de não haver morrido, já que, para todos os
segregação da liberdade foi, a princípio, conhecida como meio de assegurar efeitos, era tido como morto. Perdia os direitos civis e políticos. Destituído
a aplicação de outras sanções, como a morte e a tortura. Só mais tarde é que do pátrio poder e da autoridade marital, era seu casamento dissolvido, não
se difundiu, tendo sido grande a influência do direito canónico, que adotava podendo contrair outras núpcias. Vedada lhe era a doação ou aquisição causa
o recolhimento celular. O clérigo era mantido em sua célula, expiando a falta mortis. Perdia também o património. Era, como se vê, o castigo infamante
e praticando penitência, disso advindo os nomes de cela e penitenciária. por excelência.
Delimitam o direito de locomoção as restritivas da liberdade, como acontece Tais sanções não condizem com o estado atual do direito penal, pois o
no exílio local, na proibição de frequentar determinados lugares e na liber- que infama não é a pena, é o crime. Ela é o caminho da redenção. A expiação
dade vigiada, que não existem entre nós como tais, pois foram adotadas an- quia peccatum est — não degrada, é o princípio da reabilitação. E, além
tes como medidas de segurança. disso, não se deve olvidar o fim superior, que é o da recuperação do crimi-
■ noso, o que não se poderá conseguir com o aniquilamento da criatura hu-
3. Antolisei, Vazione, cit., p. 381. t*&ana.
230 PARTE GERAL DA PENA 231

146. A pena de morte. Por constituir tema em permanente debate não há Não receamos dizer que, se adotada fosse essa pena, entre nós, a lei não
mal que se abra um parágrafo destinado à pena capital. passaria de letra morta. Seria verdadeiro acontecimento sua aplicação. Veja-
Apregoam seus adeptos o efeito dissuasivo que ela possui, sem que se se a raridade de o júri aplicar a pena máxima de trinta anos de reclusão, não
firmem em dados científicos. Com efeito, não obstante o seu valor relativo, obstante saber que difícil é algum réu cumpri-la em sua totalidade, à custa de
a estatística pode esclarecer-nos a respeito, e, por certo, surpreender-se-iam indultos, graças e livramentos condicionais. No juízo singular o mesmo acon-
os advogados da eliminação da vida do delinquente, se examinassem dados teceria. São nossos juizes e tribunais avessos às penas longas. Que se diria,
estatísticos, como, v. g., apresenta Sutherland, em Princípios de criminologia4. então, da capital?
Aponta o eminente criminólogo norte-americano fatos como estes: a taxa de E que efeitos teve ela entre nós? Esquecem-se ou ignoram os que a
homicídios nos Estados que autorizam a pena de morte é o dobro da apresen- propugnam que o Brasil, desde seu descobrimento até a Lei de 20 de setem-
tada pelos que a aboliram, verificando-se o mesmo, embora com menor di- bro de 1890, isto é, durante 390 anos, contou-a entre suas penas. E não sabe-
ferença, em Estados vizinhos ou da mesma região; que, nas circunscrições mos que maravilhosos efeitos lhe podem ser atribuídos.
territoriais que a aboliram, não se verificou qualquer aumento de criminalidade; Diz-se que ela tem a virtude de afastar os inadaptáveis, os irrecuperáveis.
finalmente, que na própria Europa o número de homicídios é menor nos países O argumento não tem valor. Tal objetivo se pode conseguir perfeitamente
que não adotam esse meio repressivo. através da medida de segurança detentiva, que deve durar enquanto não ces-
Conhecemos o valor relativo das estatísticas, porém, se elas não de- sar a periculosidade do delinquente. Aplique-se com exatidão nosso Código
monstram a inutilidade da pena capital, não sabemos com que elemento mais Penal, criem-se casas de custódia e tratamento, manicômios judiciários, co-
seguro contam os que apregoam sua eficácia. lónias agrícolas etc, e o país não terá de pensar em pena de morte.
O efeito intimidativo que possui não é maior que o de outras penas Aliás, a tendência geral é para aboli-la, como ocorreu na Alemanha
também severas. Sabem os que se dão a estudos penológicos que nos países Ocidental. Na tradicionalista Inglaterra, a Lei de 9 de novembro de 1965 —
onde havia execuções públicas as multidões, aos poucos, se acostumavam "Abolishment of death penalty act" — também a aboliu pelo prazo de cinco
com o espetáculo, disputando homens e mulheres os melhores lugares. anos, findos os quais poderá continuar interditada ou restabelecida por nova
Frequentemente, após a execução, pendente ainda da forca o condenado, a lei e, ao que saibamos, não voltou a vigorar. Aliás, na Europa Ocidental,
turba ali se conservava noite adentro, entregando-se a libações, desordens e poucos são os Códigos que adotam essa pena. Nos Estados Unidos da Amé-
orgias. rica do Norte, uma decisão da Suprema Corte julgou-a inconstitucional. Honra
Mais eficaz que essa pena é a certeza da punição — como já falamos —, seja feita a Portugal, que já comemorou, com grandes celebrações, o cente-
o que só se consegue com aparelhamento judiciário adequado e leis justas. E nário de sua abolição.
nada mais contrário à certeza do castigo do que a pena de morte. Em nações Enquanto não ficar demonstrado cabalmente que a pena de morte é o
europeias e províncias dos Estados Unidos da América do Norte, juizes e meio mais eficaz na luta contra o crime, não tem o homem o direito de invocá-
jurados vacilam diante da eliminação da vida humana, decidindo-se pela la. De todas as penas é a que mais se reveste do caráter de vingança. É a lex
absolvição toda vez que a pena extrema é a única aplicável, conforme teste- talionis: vida por vida. Ao homicídio ilícito responde-se com o homicídio
munho ainda de outro criminólogo americano, Parmelee 5. Tègal e friamente executado. É repetir com Koestler: "Uma vida não vale
Contra ela se invoca sempre a possibilidade do erro judiciário. É outro nada, mas nada vale uma vida".
argumento de peso. Certamente tal erro é raro, porém não impossível, por-
que é próprio da condição humana dos juizes.
Dispensamo-nos, entretanto, de comentá-lo, porque sua importância
constitui verdadeiro truísmo.

4. Edwin Sutherland, Princípios de criminologia, 1949, p. 632 e s.


5. Maurice Parmelee, Criminologia, p. 400 e s.
DA PENA 233

II 148. Classificação atual. A atual reforma foi bem simples. As penas são
de três espécies: privativas de liberdade, restritivas de direitos e multa (art
CLASSIFICAÇÃO ATUAL 32,1, II e III).
A recente Constituição estabeleceu quais as penas possíveis (art. 5.°
XLVI) e quais as não admitidas (art. 5.°, XLVII).
SUMÁRIO: 147. Antecedentes históricos. 148. Classificação atual.
São possíveis, entre outras, as seguintes penas:
a) privação ou restrição de liberdade;
b) perda de bens;
147. Antecedentes históricos. A nossa lei penal avoenga, as Ordena-
ções Filipinas, em seu Livro 5.°, que tratava da matéria criminal, estabele- c) multa;
ciam, de maneira desordenada, como penas, a morte, a mutilação através do d) prestação social alternativa;
corte de membros, o degredo, o tormento, a prisão, o açoite e a multa consis- e) suspensão ou interdição de direitos.
tente no pagamento em dinheiro. Não são admitidas as seguintes penas:
O Código Criminal do Império, através de seu art. 43, prescrevia como a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art 84
modalidades de penas a morte pela forca, a prisão simples, a prisão com XIX;
trabalhos, a galé com trabalho público, a multa, a suspensão e a perda do a) de caráter perpétuo;
emprego e o açoite.
b) de trabalhos forçados;
O Código Penal Republicano (Consolidação das Leis Penais) estabele-
c) de banimento;
cia como reprimenda a prisão celular cumprida em estabelecimento especial
com trabalho e isolamento celular, o banimento que privava dos direitos de d) cruéis.
cidadania, a reclusão cumprida em fortalezas ou praças de guerra, a prisão Notam-se três princípios norteadores: a eliminação, o quanto possível,
com trabalho, que era cumprida em penitenciária agrícola, a prisão discipli- da pena segregativa imposta pelo cárcere, a humanização das penas e a
nar a ser cumprida em estabelecimentos industriais, a interdição de direito, individualização da reprimenda.
a suspensão e perda de cargo público e, por fim, a multa. A eliminação, o quanto possível, da pena carcerária está demonstrada
O Código Penal de 1940 classificou as penas em principais (reclusão, na possibilidade de sua substituição através de um elenco de outras penas,
detenção e multa) e acessórias (perda da função pública, interdição de direi- mormente pelas restritivas de direito (CP, art. 43) com as formas inovadoras
da prestação de serviços comunitários e a limitação de fins de semana.
tos e publicação da sentença), as primeiras sempre aplicáveis, enquanto as
segundas eventualmente impostas e cumulativamente com aquelas. Além do A humanização é sensível não somente em relação à natureza das penas
mais, introduziu as medidas de segurança para os considerados perigosos, escolhidas como também pelas formas de execução preconizadas pela lei
específica.
dividindo a periculosidade em real e presumida. Houve a inovação, porém a
classificação em principais (prisão, relegação, detenção, exílio local e mul- Por seu turno, a individualização da pena está presente não só quando
ta) e acessórias (interdição de direitos, publicação da sentença, confisco de da aplicação da reprimenda, como preceitua o art. 58 do Código Penal, que
bens e expulsão de estrangeiros) já fora preconizada em 1927 pelo Projeto estabelece as formas para escolha da qualidade e da quantidade, como tam-
bém e marcantemente quando da execução, através do exame classificatório,
Sá Carneiro. o qual, pelos exames criminológicos e da personalidade, estabelece as condi-
Ções para o cumprimento.
O Código Penal fixou como norte o princípio da proporcionalidade da
Pena, enquanto a Lei de Execução traçou o caminho para a
individualização e personalização quando do cumprimento.
DA PENA 235

nais. A exigência dogmática da proporcionalidade da pena está igualmente


atendida no processo de classificação, de modo que a cada sentenciado,
conhecida a sua personalidade e analisado o fato cometido, corresponda o
tratamento penitenciário adequado".

III Como a segregação absoluta não é recomendável e o trabalho a melhor


terapia, o condenado, na medida de suas possibilidades e aptidões, fica su-
jeito ao trabalho coletivo no período diurno e ao isolamento no noturno (CP,
DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE art. 34, §§ l.°e 2.°, e Lei de Execução, art. 31). Como forma de exceção é
possível o trabalho externo, desde que em serviço ou obra pública (CP, art.
SUMÁRIO: 149. Natureza. 150. Formas de andamento. Sistema progressi- 34, § 3.°, e Lei de Execução, art. 36).
vo. 151. Sistemas penitenciários. Sistemas clássicos. 152. Do trabalho e O regime semi-aberto compreende a execução da pena em colónia agrícola,
remuneração. 153. Detração penal. 154. Direitos e deveres do preso. industrial ou estabelecimento similar (CP, art. 33, § 1.°, b). O condenado
155. O problema sexual.
igualmente fica sujeito ao exame criminológico para a individualização (CP,
art. 35), ao trabalho em comum no próprio estabelecimento (CP, art. 35, §
1.°), sendo possível o trabalho externo bem como a frequência a cursos su-
149. Natureza. A natureza da pena privativa de liberdade está contida pletivos ou profissionalizantes (CP, art. 35, § 2.°).
em seu próprio nomem júris: retira do condenado, de uma forma mais rígida Por fim, o regime aberto é cumprido em casa de albergado ou similar
ou menos branda, o direito à liberdade. É a que restringe, com maior ou (CP, art. 33, § 1.°, c), caracterizando-se pelo sentido de autodisciplina e res-
menor intensidade, a liberdade do condenado, consistente em permanecer ponsabilidade do condenado (CP, art. 36). O albergado trabalhará fora do
em algum estabelecimento prisional, por um determinado tempo, tudo na estabelecimento e sem vigilância, permanecendo recolhido no período no-
conformidade do regime imposto. turno ou de folga (CP, art. 36, § 1.°).
As penas privativas de liberdade são duas: reclusão e detenção, previs-
150. Formas de andamento. Sistema progressivo. A pena privativa de
tas e impostas na conformidade da gravidade do crime. liberdade é cumprida em regime progressivo, todo ele tendo como base única
A pena de reclusão, mais grave, é cumprida em três regimes: fechado, e exclusiva o mérito do condenado (CP, art. 33, § 2.°, e Lei de Execução, art.
semi-aberto e aberto; a de detenção comporta apenas dois regimes: semi- 112). Da mesma forma é possível a regressão, por desmérito do próprio
aberto e aberto (CP, art. 33). Por regime entende-se a maneira pela qual é condenado, como previsto no art. 118 da Lei de Execução.
cumprida a pena privativa de liberdade, tendo em vista a intensidade ou grau Os critérios fixadores são os estabelecidos no quadro seguinte:
em que a liberdade de locomoção é atingida.
Regime fechado é o de segurança máxima ou média (CP, art. 33, § 1.°, - estabelecimento de
a) regime fechado,
a). Embora o legislador não diga o que se pode entender por segurança máxima mais de 8 anos
segurança máxima
ou média, não se pode negar ter-se referido às penitenciárias — os estabele- - estabelecimento de
(art. 34)
segurança média
cimentos prisionais de segregação.
A execução em tal regime, como igualmente acontece nos restantes, é - colónia agrícola Pena privativa
individualizada, resultante de um exame criminológico de classificação (CP, reclusão -J colónia industrial de liberdade
art. 34, e Lei de Execução, art. 5.°). A classificação dos condenados, como estabelecimento (CP, art. 33,
diz a Exposição de Motivos, "é requisito fundamental para demarcar o início similar §§ 1." e 2.°)
da execução científica das penas privativas de liberdade e da medida de se-
casa de albergado
gurança detentiva. Além de constituir a efetivação de antiga norma geral do
estabelecimento
regime penitenciário, a classificação é desdobramento lógico do princípio adequado
da personalidade da pena, inserido entre os direitos e garantias constitucio-
b) regime semi-aberto não
reincidente, igual ou
mais de 4 anos e menos
de 8 anos (art. 35)

c) regime aberto não


reincidente, igual ou |_
menos de 4 anos (art. 36)
236 PARTE GERAL DA PENA 237

ta o inconveniente de permitir contato íntimo entre o sentenciado e os ele-


Pena privativa
de liberdade Ta) regime semi-aberto (salvo regressão) mentos que estão fora do estabelecimento, bem como o destes com os con-
detenção -1 ,' . .
(CP, art. 33, denados que ainda não atingiram esse estágio, por intermédio do semiliberado.
§§ l. o e2.°) Parece-nos certo, entretanto, que tal regime há de repousar em seleção ou
\_b) regime aberto triagem precisa e rigorosa, providência, aliás, que é fundamental em qual-
quer sistema penitenciário.
A atual reforma não adotou rigorosamente o sistema irlandês ou de Crofton,
151. Sistemas penitenciários. Sistemas clássicos. Três são os sistemas porém um sistema próprio progressivo ou evolutivo, com feições inteira-
penitenciários que podemos chamar clássicos: o de Filadélfia, o de Auburn mente peculiares.
e o Inglês ou Progressivo.
O primeiro foi aplicado inicialmente na Pensilvânia e também adotado 152. Do trabalho e remuneração. Qualquer que seja o regime ou o lo-
na Bélgica, pelo que muitos o têm como sistema belga. Consiste em o sen- cal onde a pena é cumprida, penitenciária agrícola, estabelecimento indus-
tenciado ficar fechado na cela, sem sair, a não ser de vez em quando, para trial etc, o trabalho é obrigatório. Diz o art. 28 da Lei de Execução que o
passeios em pátios cerrados. Trabalha na própria cela, onde recebe as visitas trabalho é um dever social, tendo finalidade educativa e produtiva.
do religioso, pastor ou sacerdote, dos diretores do estabelecimento, funcio- A recuperação do homem há de ser feita pela laborterapia. Qualquer
nários e médico. Dali também assiste aos ofícios religiosos. É um sistema estabelecimento penitenciário sem trabalho torna-se antro de vício e perver-
rigorosamente celular, ao qual se pode aplicar a conhecida expressão: A cela são. Como readaptar indivíduos que passam os dias de braços cruzados, dormindo
é o túmulo do vivo. ou entregues a distrações, sem o meio educacional do trabalho?
Esse sistema foi suavizado pelo de Auburn, em que o isolamento é so- Mas trabalho cientificamente orientado. Ocupação de acordo com as
mente noturno, pois, durante o dia, o sentenciado trabalha juntamente com aptidões, temperamento etc. do sentenciado e a ser indicada pelo órgão téc-
os outros. Há trabalho comum, porém feito em silêncio. nico, encarregado de sua observação e estudo. Trabalho que também redunde
Mais brando é o sistema Inglês ou Progressivo. A princípio, o sentenciado em proveito material, já suavizando o ónus que a pena representa para o
fica recluso na cela. É o chamado período inicial ou de prova, com prazo Estado, já proporcionando remuneração ao sentenciado, o que, nos termos
determinado. Depois, passa a trabalhar em comum, e, finalmente, é posto em do art. 39 do Código, é obrigatório.
liberdade sob condição. Vê-se que esse sistema apresenta estágios, sendo o Infelizmente, o salário foi sempre insignificante. Claro é que ele não se
último o de liberdade sob fiscalização. pode pautar pelos moldes do estipêndio aqui fora, porém deve ser o suficien-
Foi ele adotado na Irlanda, por Crofton, que lhe introduziu mais um te para atender a certas necessidades do sentenciado no estabelecimento (com
estágio: o trabalho em colónia agrícola. Antes da liberdade condicional, o a chamada parte disponível) e para ser a outra fração (denominada reserva)
sentenciado trabalha ao ar livre, em colónia penal. É esse sistema, como se depositada em estabelecimento de crédito, formando um pecúlio, que lhe
vê, bastante suave. será entregue no dia da saída e destinado a auxiliá-lo nos primeiros embates
da vida em liberdade. Releva notar que a prisão-albergue, proporcionando
De modo geral pode dizer-se que a colónia agrícola tem, hoje, prefe-
salários maiores ao sentenciado, vem, em parte, melhorar sua situação eco-
rência nos sistemas penitenciários. O trabalho ao ar livre, como se verá ain- nómica e suavizar os ónus do Estado na execução da pena.
da, é mais eficaz que o confinamento, na tarefa da recuperação ou readaptação
A remuneração obrigatória do trabalho do preso foi introduzida pela
do sentenciado. Lei n. 6.416, de 1977, a qual também estabeleceu a forma de aplicação e
Inovações também vão sendo feitas. Assim, P. Amor, Advogado-Geral divisão do produto.
na Corte de Apelação de Paris, escreve que o tratamento aplicado nos esta-
. Pela atual legislação específica, Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84),
belecimentos que sofreram reformas conduz às fases da semiliberdade e da
^remuneração não poderá ser inferior a três quartos do salário mínimo (art. 29)
liberdade condicional. O regime da semiliberdade consiste em o condenado *o produto destina-se a atender:
trabalhar fora do estabelecimento, sem fiscalização, e retornar somente à
hora fixada. Tem produzido bons resultados a prática, que, todavia, apresen-
238 PARTE GERAL DA PENA 239

a) à indenização causada pelo crime; A reforma penal, eliminando uma dúvida surgida com a omissão exis-
b) à assistência familiar; tente na redação primitiva do Código, fato que gerou controvérsias doutriná-
c) às pequenas despesas pessoais; rias, declarou de maneira expressa que o tempo de uma prisão administrativa
também seria computado na execução da pena.
d) ao ressarcimento ao Estado das despesas realizadas com a manuten
ção do condenado. Computado também é o tempo de internação em nosocômio. O Código
de 1932 dispunha de modo diverso. Tal opinião se esteia em que, se a pena
E o § 2.° estabelece que a importância que sobejar será aplicada em é castigo, o insano não pode senti-lo, e, se é meio educativo, não pode
caderneta de poupança, visando constituir um pecúlio para atender o conde- compreendê-lo.
nado quando posto em liberdade.
A nosso ver, mais procedente é esse modo de pensar. Juridicamente é
153. Detração penal. Após declarar, no art. 41, que o sentenciado, a indefensável a opinião que manda computar o tempo de manicômio. Contu-
que sobrevêm moléstia mental, deverá ser internado em manicômio ou esta- do razões de humanidade ditam, frequentes vezes, ao legislador, a adoção
belecimento adequado, passa a lei no artigo seguinte a tratar do que tecnica- desse princípio.
mente se denomina detração penal, ou seja, do cômputo na pena definitiva A divergência, porém, continua. Exemplo disso oferecem-nos dois
do tempo de prisão preventiva ou provisória e do de internação em hospital modernos Códigos: o italiano e o suíço. O primeiro, no art. 148, suspende a
ou manicômio. execução da pena, no caso de enfermidade psíquica; o segundo manda des-
Prisão preventiva é a decretada contra o indiciado antes do julgamento contar o tempo que o condenado passar em manicômio ou hospital, excluin-
final do processo. Era obrigatória ou facultativa, ocorrendo a primeira nos do, entretanto, o cômputo quando houver fraude por parte dele (art. 40).
crimes apenados, no máximo, com dez ou mais anos de reclusão; a segunda Esta é sempre possível, devendo os nossos juizes usar do máximo rigor,
poderia ter lugar como garantia da ordem pública, por conveniência da ins- a fim de que criminosos astutos não se furtem ao cumprimento da pena, pela
trução criminal ou para assegurar a aplicação da lei repressiva. Era o que detração do tempo em que estiverem em hospital ou manicômio, livres do
dispunham os arts. 312e313do Código de Processo Penal. Todavia a Lei n. regime penitenciário, que lhes foi imposto por sentença condenatória, como
5.349, de 3 de novembro de 1967, pôs termo à prisão preventiva obrigatória. meio de reeducação e expiação1.
É ela, hoje, somente facultativa.
Prisão provisória é tanto a flagrante como a oriunda da sentença de 154. Direitos e deveres de preso. O art. 38 estabelece que o preso con-
servará todos os seus direitos não atingidos pela perda da liberdade, com
pronúncia.
respeito total à sua integridade física. A Constituição, em seu art. 5.°, XLIX,
Silenciou nossa lei a respeito de questão de monta, no cômputo da pri- declarou expressamente: "é assegurado aos presos o respeito à integridade
são preventiva ou provisória na pena aplicada a final: a do nexo ou relação física e moral".
entre elas.
E o art. 41 da Lei de Execução enumera com precisão e clareza, de
Divergem as opiniões. Na Itália, requer-se que o crime seja o mesmo maneira expressa, o elenco de direitos atribuídos: alimentação suficiente e
que constitui objeto da sentença. Na Alemanha, é suficiente a conexão for- vestuário; atribuição de trabalho e sua remuneração; previdência social;
mal, podendo os delitos ser vários. Assim, se alguém é acusado por homicí- constituição de pecúlio; proporcionalidade na distribuição do tempo para o
dio e ferimentos leves em um mesmo processo e foi preso preventivamente tçabalho, o descanso e a recreação; exercício das atividades profissionais,
devido ao primeiro delito, pelo qual vem, entretanto, a ser absolvido, sendo intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a
condenado no segundo, deve aquela prisão ser computada nessa pena.
Tal opinião parece-nos mais justa. Ainda que a prisão tenha sido de- Justificadamente o Anteprojeto Nelson Hungria acrescentava, aos casos apon-, o de
cretada pelo outro crime, a verdade é que ela assegurou a boa marcha processual "excesso de tempo, reconhecido em grau de recurso ou revisão, ou em habeas <*>»P HÍ,
(referente aos dois delitos) e o cumprimento da pena que poderia ser imposta na pena cumprida por outro crime, desde que a decisão seja posterior ao crime «que se
trata".
a final.
240 PARTE GERAL DA PENA

execução da pena; assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social solução, pois ele se destina a presos de todas as regiões do Estado; imprati
e religiosa; proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; entrevista cável, assim, que os casados possam ter relações com as esposas, quand
pessoal e reservada com o advogado, visita do cônjuge, da companheira, de residentes no interior do Estado.
parentes e amigos em dias determinados; chamamento nominal; igualdade Quanto ao solteiro, não é de decoro a posição do Estado, favorecend
de tratamento, salvo quanto às exigências da individualização da pena; au- o meretrício.
diência especial com o diretor do estabelecimento; representação e petição a
Quando fomos Diretoi-Geral do Departamento de Presídios, diverss
qualquer autoridade em defesa de direito; contato com o mundo exterior por
vezes conversamos com reeducandos casados sobre o desejo que tinham d
meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação
receber em sua cela a esposa e quase sempre a resposta era negativa. Parec
que não comprometam a moral e os bons costumes.
que receavam a quebra de pudor da mulher, atravessando corredores so
Os deveres estão contidos no art. 39 da Lei de Execução e entre eles olhares maliciosos, quando não cúpidos, e a enfiar-se cela adentro para ui
avultam-se o comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença, fim de todos sabido. Talvez também o receio de facilitarem o adultério,
urbanidade e respeito para com os demais condenados, submissão à sanção ensejo de paternidade que lhes podia ser atribuída.
disciplinar imposta, higiene pessoal e da cela ou alojamento, conservação Por essas e outras circunstâncias é que não nos parece aconselhável
dos objetos recebidos etc. alvitre de Asúa.
155. O problema sexual. Embora não seja aqui propriamente o lugar de A solução do problema sexual nas prisões é complexa, pois está intimí
se tratar do assunto, cremos que não haverá mal em fazer-se rápida e per- mente ligada a outras questões e deve ter sempre em vista o decoro e a con
functória análise desse tema que preocupa os penitenciaristas e os governos. postura. Ele encontra sua solução natural nas penitenciárias agrícolas, ond
Várias são as soluções aventadas. se permite ao sentenciado viver com a família. Nos outros estabelecimento
o trabalho, os desportes, as leituras sadias, a assistência religiosa etc. podei
No Presídio do Solknik, na Rússia, pretende solucionar-se o proble-
tornar menos árdua a abstinência.
ma dando-se saídas periódicas aos sentenciados e até férias. Observe-se
desde já que tal regalia só poderá ser concedida aos que inspirem con- Lembremo-nos, aliás, que não é essa a única restrição que a pena in
fiança, caso contrário, é o mais formal convite à fuga. Não se pode tratar, põe, como também que, apesar da evolução operada, ela não perdeu de tod
então, de medida comum. Mais racional parece-nos a solução da Colónia seu caráter aflitivo ou expiatório.
Agrícola de Bolchevo, no mesmo país, em que o sentenciado mora com a
família.
Em Sing-Sing, permite-se a visita da mulher ao sentenciado. No Méxi-
co, admite-se não só a da esposa como a da amante ou a da profissional que
ele frequenta.
Entre nós, no ex-Estado da Guanabara, têm-se permitido as relações
carnais ao sentenciado de boa conduta, em cela destinada exclusivamente a
esse fim. Tal prática, no Rio de Janeiro, não traz maiores dificuldades, sabi-
do que sua Penitenciária só recebe sentenciados ali residentes, que, ao entra-
rem no estabelecimento, inscrevem o nome da esposa, da amante, ou da profissional
que conhecem.
Asúa, escrevendo sobre o assunto, pensa que as relações sexuais po-
diam ser facultadas, suprimindo-se os locutórios, passando, então, as visitas
a serem feitas nas celas. Tal opinião não nos convence.
Em relação ao Instituto de Reeducação do Carandiru, cremos difícil a
DA PENA 243

IV bem como alargou a sua aplicação para as penas privativas de liberdade até
quatro anos.
DA PENA RESTRITIVA DE DIREITO 157. Características. As características das penas restritivas de direito
são as seguintes:
SUMÁRIO: 156. Natureza jurídica. 157. Características. 158. Espécies. a) em primeiro lugar são substitutivas, pois visam afastar a aplicação da
pena privativa de liberdade, quando estas demonstrarem que sua imposição
desnatura a sua finalidade ressocializadora;
156. Natureza jurídica. A pena restritiva de direito consiste na inibição b) ao depois, gozam de autonomia, pois têm características e formas de
temporária de um ou mais direitos do condenado ou então na perda de parte execução próprias (o art. 44 deixa bem claro tais características ao afirmar
de seu património, imposta em substituição e cuja espécie escolhida tem re- textualmente: "As penas restritivas de direitos são autónomas e substituem as
lação direta com a infração cometida. privativas de liberdade");
Não se trata de modalidade nova de pena, porém a inovação da reforma c) as penas substitutivas têm seus requisitos objetivos e subjetivos, não
da Parte Geral do Código Penal consistiu no seu caráter substitutivo. Segundo sendo de aplicação automática.
alguns penalistas, pensamento que vem ganhando sensível reforço com o tempo, 1. Entre os requisitos objetivos, o mais importante é a quantidade da
a pena privativa de liberdade, o cárcere, já cumpriu sua missão histórica e pena privativa de liberdade, pois pode ser aplicada nos crimes culposos com
deve ficar reservada aos casos mais graves, principalmente aos crimes em qualquer quantidade de pena privativa de liberdade e nos dolosos com reprimenda
que houver violência ou grave ameaça à pessoa e cuja natureza repele pro- de até quatro anos, desde que não caracterizado por violência ou grave amea
funda periculosidade por parte do agente. Além do mais, a experiência reve- ça à pessoa.
lou que o cumprimento da pena carcerária de pequena duração sempre foi A reincidência (art. 44, II) em crime doloso impede sua aplicação, salvo
muito mais maléfica ao criminoso do que benéfica à sociedade, agora aliada forma excepcional prevista no art. 44, § 3.°, quando pode ser admitida desde
a uma nova situação, representada pelas péssimas condições carcerárias exis- que socialmente recomendável e não corresponda ao mesmo crime, isto é,
tentes em quase todos os presídios pelo mundo. O criminoso que, no cárcere, não seja reincidente específico.
cumpria pena de pequena duração deixava o presídio contagiado em razão do 2. As condições subjetivas estão contidas no art. 44, III, e dizem respei
convívio com criminosos contumazes e perigosos. Agora temos mais um fa- to à culpabilidade do agente e às circunstâncias do crime. Nos termos deste
tor representado pelas precárias e péssimas condições de nossos presídios artigo, em sua nova redação, para a substituição devem ser examinados a
que de maneira alguma permitem falar em ressocialização. culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do conde
A pena restritiva de direito, surgida com a reforma da Parte Geral, foi nado, bem como os motivos e as circunstâncias do crime. Feita a análise, a
instituída para substituir a pena privativa de liberdade, não perdendo o seu conversão só será possível se recomendável diante dos princípios que nortearam
caráter de castigo, porém com o objetivo de evitar os malefícios carcerários. a própria substituição, que são a ressocialização do condenado por meio de
Referida pena, como se disse, surgiu com a reforma da Parte Geral do uma atividade fora dos muros prisionais e evitar o contágio deletério do cár
Código Penal, atingindo as penas até um ano para crimes dolosos e de qual- cere. A lei fala em pena "suficiente", dando a entender que o objetivo seria
quer duração para os culposos, sendo seu campo enormemente alargado pela unicamente examinar se a reprimenda substitutiva alcançaria a finalidade
Lei n. 9.714, de 25 de novembro de 1998, que alterou alguns dispositivos do mtunidativa da pena. A nós parece que todos os elementos mencionados de
Código Penal, como os arts. 43,44,45,46,47,55 e 77. Esta última lei criou mais vem ser examinados num conjunto, numa unidade. Da mesma forma, se re
duas penas substitutivas, a prestação pecuniária e a perda de bens e valores, jeitada a conversão, deve ela ser fundamentada, baseada num inconveniente
determinado, sob pena de nulidade da própria decisão.
' A conversão da pena substitutiva na pena primitiva, isto é, uma conver-
*&> às avessas, um retorno à pena que veio substituir, é possível em duas
Wpóteses, a saber:
244 PARTE GERAL DA PENA 245

a) quando houver descumprimento injustificado da pena restritiva im a critério do juiz e não da vítima, pois o magistrado, a título de exemplo,
posta, oportunidade em que apenas deve ser feito o desconto do tempo já poderia operar com uma variante maior, como a entrega de cestas básicas ou
cumprido (é o que diz o art. 44, § 4.°); outros bens de primeiro consumo, com o que o ofendido ou mesmo uma en-
b) na hipótese de uma nova condenação por pena privativa de liberdade tidade assistencial estaria melhor atendida.
e por outro crime, dando-se ao magistrado a faculdade de mantê-la, desde b) A segunda inovação consiste na perda de bens e valores em favor do
que possível e recomendável a sua continuidade, como deixa claro o art. 44, Fundo Penitenciário Nacional, cujo teto será o prejuízo causado pelo crime
§ 5.°. Embora hipótese difícil e improvável como realidade fática, temos a
ou então o proveito obtido pelo agente. Adotou-se como fundamento de sua
previsão legal.
criação a chamada teoria do desestímulo do crime, visando retirar do agente
158. Espécies. Como se disse anteriormente, cinco são as penas restri- o que ele obteve como produto do crime.
tivas de direito, diante da Lei n. 9.714/98. c) A prestação de serviço comunitário consiste na atribuição ao conde
a) A prestação pecuniária consiste numa das inovações e traz as carac- nado, de maneira compatível e de acordo com suas aptidões, de tarefas gra
terísticas da antiga composição juntamente com o caráter indenizatório em tuitas junto a entidades assistenciais, escolas, orfanatos ou outros estabeleci
relação ao dano ou ao prejuízo decorrente do crime. A sua vantagem pode ser mentos congéneres. O serviço prestado é gratuito, surgindo como exceção ao
vislumbrada no comentário contido no item 159 desta obra. princípio geral do trabalho remunerado. Para não haver sacrifício à subsis
Na prestação pecuniária o juiz fixará um valor a ser pago pelo condena- tência do condenado deve ser realizado aos sábados, domingos e feriados,
do, entre 1 (um) e 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos, pagamento salvo o interesse do condenado em substituir por um outro dia da semana,
este, em regra, previsto como sendo em dinheiro. completando as oito horas.
A respeito devem ser feitas duas observações: O tempo de cumprimento de tal pena substitutiva poderá ser menor que
1. O destinatário da condenação poderá ser a vítima, um terceiro inte a fixada primitivamente, a critério do juiz, porém não poderá ser inferior à
ressado e atingido pelo crime (a lei fala em dependentes, mas poderemos metade da pena de liberdade fixada, se esta for maior que um ano, como
falar em terceiro atingido patrimonialmente pelo crime) ou então uma entidade preceitua o art. 46, § 4.°.
pública ou privada com finalidade social, quando não houver vítima determi d) A interdição de direitos, prevista no art. 47 do Código Penal, é de
nada. quatro espécies:
O valor a ser pago poderá ser compensado em eventual condenação 1. proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem
indenizatória de natureza civil, desde que coincidentes os beneficiários. como de mandato eletivo;
2. A sua fixação não pode ser livre ou arbitrária, mas sim amplamente
fundamentada, uma vez que, constitucionalmente, adotamos o princípio 2. proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que de
pendam de habilitação especial, de licença ou autorização do poder pú
da individualização da pena. No nosso entender a decisão deverá ser fun
blico;
damentada, adotando-se três princípios, a saber: a situação económica de
quem a suportará, para que não possa constituir um impedimento à pró 3. suspensão de autorização ou habilitação para dirigir veículos; e
pria substituição; o dano ou prejuízo decorrente do crime, para que se
4. proibição de frequentar determinados lugares.
possa falar em eventual compensação e a situação económica do beneficiário,
de modo que não se torne um estímulo de exigências absurdas por parte é) A derradeira restrição de direitos consite na limitação de fins de se-
do ofendido. mana, traduzindo-se na obrigação de permanecer, aos sábados e domingos,
O § 2.° do art. 45 prevê a substituição do pagamento em dinheiro por por cinco horas, em casa de albergado ou congénere, aproveitando o tempo
pagamento em espécie, desde que haja aceitação por parte do beneficiário. em tarefas educativas ou palestras, ludo com o escopo de reeducar e ressocializar
No nosso entender, melhor teria agido o legislador se deixasse tal faculdade o condenado.
246 PARTE GERAL

O gráfico ora apresentado demonstra a forma e condições de substi-


tuição.

Condições objetiva I — penas privativas — até quatro anos se crime doloso ou qual-
e subjetiva da quer quantidade se culposo (art. 44, II);
substituição (art. II — sem violência ou grave ameaça à pessoa;
44) III — não reincidente em crime doloso (art. 44, II);
IV — culpabilidade, antecedentes, conduta social e personalidade
do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias DA PENA DE MULTA
indicativas da substitutiva mostrem ser ela suficiente (art.
44, III).
SUMÁRIO: 159. Natureza. 160. Pagamento. Conversão. Revogação.

a) isolada (art. 44, § 2.°)


cumulada com J — outra pena restritiva (art. 56)
Substituição -I — (art. 44, § 2.°) - de licença ~~1 poder
multa
|^— - de autorização _| público
c) independente de cominação (art. 54) • proibição de frequentar determinados lugares
(art. 47, IV)
Por seu turno, o quadro a seguir estabelece a visualização das penas
restritivas de direitos. 5. Limitação ■ permanência aos sábados e domingos, por
de fins de cinco horas diárias, em casa do albergado, ou
1. Prestação pecuniária (art. 43,1) semana (art. outro estabelecimento adequado
2. Perda de bens e valores (art. 43, II) 43, VI) - cursos e palestras
— entidade assistencial
3. Prestação de programa
serviço à I— comunitário
comunidade ou estatal
(art. 43, IV)
— hospital
— escola
— orfanato
— estabelecimento congénere

proibição ■ cargo
do exercício _| - função L público
(art. 56)
?atividade
?mandato eletivo
Penas restriti-
vas de direitos 4. Interdição - profissão habilitação
(arts. 43) temporária ■ atividade especial
de direitos - ofício
(art. 43, V)
proibição
do exercício -|
159. Natureza. A pena de multa é uma modalidade de pena patrimonial
que consiste no pagamento por parte do sentenciado, a um fundo penitenciário,
de uma importância correspondente, no mínimo de dez e no máximo de tre-
zentos e sessenta dias-multa, calculado de modo a corresponder a um trigé-
simo do salário mínimo vigente à época da sentença.
Já tivemos ocasião de falar que a composição é o traço mais remoto da
multa. Dissemos também que o direito germânico teve o Wehrgeld, importân-
cia pela qual o delinquente, que havia "perdido a paz", comprava do ofendi-
do, ou de sua família, o direito de se vingar. Contou ainda com o Fredum,
quantia menor paga ao representante do poder público.
Modernamente, reconheceu-se o valor dessa pena. Substitui com vanta-
gens as privativas de liberdade, quando de pequena duração. Condenado o
indivíduo a pena diminuta, não há tempo de submetê-lo à terapêutica penal,
e, ao revés, só se poderá piorá-lo, pois sabemos ser muito mais rápida a influên-
cia nefasta e nociva, contaminando-o, do que sua recuperação.
Todavia a vantagem não se cifra só nisto. Frequentemente, os crimes
são cometidos com objetivos ditados pela cobiça, cupidez aos bens alheios,
ç, então, a multa vai ferir o delinquente nesse sentido subalterno. Dói-lhe
toarem-lhe seu dinheiro. Ele, que se seduz e fascina com tanta facilidade
jpelos haveres de outrem, sente profundamente quando "lhe levam o seu", na
pxpressão avoenga do Livro V das Ordenações. A multa tem, pois, a vanta-
gem de atacar o sentenciado nessa paixão anti-social que não deve merecer
quartel.
As legislações reconhecem sua utilidade. O Código Penal italiano, até
silêncio da lei, confere ao juiz a faculdade de aplicá-la. Na Inglaterra é
profusamente empregada. Na Europa, máxime nos países nórdicos, seu
248 PARTE GERAL DA PENA 249

uso é constante. Também na Alemanha, embora o Projeto do Código Penal a) deve ser paga no prazo máximo de dez dias após o trânsito em jul
nazista a tivesse restringido bastante. gado da decisão condenatória;
Vários são os critérios conhecidos pelas legislações para o estabeleci- b)é admissível o pagamento em parcelas, a pedido do condenado e atendida
mento da pena pecuniária, como, a título de exemplo, uma parte do património quando indicada pelas circunstâncias;
do condenado, uma parte proporcional de sua renda, o dia-multa e a cominação c) pode ser exigida mediante desconto no vencimento ou salário do conde
abstrata entre um mínimo e um máximo prefixado pelo legislador. nado, desde que aplicada isoladamente ou então cumulativamente com a restritiva
Na reforma temos como prestigiado o dia-multa. de direito ou ainda se houver a suspensão condicional da pena;
Trata-se de um sistema adotado por vários países (Códigos da Dinamar- d) o desconto não pode atingir o necessário ao sustento do próprio
ca, Alemanha, Peru, Finlândia, Suécia etc.) e que tem a sua vantagem de condenado ou de sua família.
permitir uma fixação flutuante, evitando seu desgaste diante da desvaloriza- A recente Lei n. 9.268, de 1.° de abril de 1996, dando nova redação ao
ção da moeda, com a consequente obrigatoriedade de sucessivas leis art. 51 do Código Penal, extinguiu a possibilidade da conversão da pena de
atualizadoras. multa em pena privativa de liberdade, estabelecendo que a pena de multa será
Algumas leis esparsas apresentam como pena pecuniária um determina- considerada dívida de valor; na hipótese de não-pagamento, será considerada
do número de salários mínimos, como o Código Florestal (Lei n. 4.771), a de dívida ativa da Fazenda Pública.
incorporação imobiliária (Lei n. 4.591), a do parcelamento do solo urbano
(Lei n. 6.766), e outras.
A nós nos parece que, diante do disposto no art. 7.°, IV, da Constituição
Federal, não mais é possível a pena graduada num determinado número de
salários mínimos, pois referido dispositivo constitucional declarou expressa-
mente que o mesmo não poderia ser vinculado a qualquer outra finalidade
que não o pagamento como contraprestação de um serviço recebido. A parte
final do dispositivo constitucional diz expressamente: "sendo vedada sua
vinculação para qualquer fim".
Portanto, parece-nos que, com a promulgação da Constituição Federal
de 1988, não mais é possível a aplicação da pena de multa de tantos salários
mínimos, diante da expressa vedação do art. 7.°, IV, do Capítulo "Dos direi-
tos sociais".
A Lei n. 8.245, que regula a locação predial urbana, em seu art. 43, traz
uma curiosa pena de multa: um valor correspondente de três a doze do valor
do último aluguel vigente à época da infração. Adotou, como se vê, como
medida da pena pecuniária o aluguel vigente ao tempo da infração cometida
contra a locação protegida. E mais curiosamente afirmou, contrariando o dis-
posto no art. 49 do Código Penal, que a pena de multa é imposta e "revertida
em favor do locatário". Verifica-se, assim, que a vítima tornou-se beneficiária
da pena de multa.
160. Pagamento. Conversão. Revogação. Em capítulo próprio e relativo
à fixação da pena (n. 165) será estudado o modo de sua aplicação.
O pagamento da pena de multa obedece a quatro critérios básicos:
DA PENA 251

VI A pena não tem mais em vista somente o delito. Ao lado da apreciação


dos aspectos objetivos que ele apresenta, há de o juiz considerar a pessoa de
DA APLICAÇÃO DA PENA quem o praticou, suas qualidades e defeitos, fazendo, em suma, estudo de sua
personalidade, sem olvidar sobretudo a possibilidade de tornar a delinqiiir,
ou a periculosidade.
SUMÁRIO: 161. Arbítrio judicial. 162. O art. 59. 163. A personalidade do
agente e a gravidade objetiva do crime. 164. Circunstâncias legais. 165. 162. O art. 59. Tem a aplicação da pena sede principal no art. 59, que
Fixação da pena. impõe ao juiz determinar a pena justa, dentre as cominadas alternativamente,
e fixar, dentro em os limites legais, a quantidade. Aliás, o princípio da
individualização da pena foi consagrado constitucionalmente pelo art. 5.°,
161. Arbítrio judicial. No estudo da evolução histórica das ideias penais XLVI, que determinou que a lei, no caso o art. 59 do Código Penal, regulará
(«. 15 e s.) vimos que, primeiramente, predominou na justiça o arbítrio judi- a individualização da pena, isto é, estabelecerá os princípios individualizadores
cial, com a desigualdade de classes na punição, a desumanidade das penas, o da reprimenda.
sigilo do processo, os meios inquisitoriais, a imprecisão das leis etc, até que, Duas são, pois, as operações que ele fará. Se, v. g., a pena cominada à
no século XVIII, raiasse o Iluminismo que iria conduzir a justiça ao pólo infração for de dois ou três meses de detenção ou multa, compete-lhe a esco-
oposto, com a exaltação do individualismo e reação contra o estado de coisas lha, no caso concreto, aplicando uma ou outra. Escolhida que seja a pena,
então reinante. passa, então, a dosá-la, isto é, fixará sua quantidade dentro em os extremos
O juiz passou, agora, a ser considerado quase um autómato na aplicação que a lei fornece — o máximo e o mínimo. Para isso, terá em vista, nos ter-
da pena. Esta já era fixada em lei e dividida em graus, a que ele ficava sujeito mos do mesmo artigo, os antecedentes e a personalidade do agente, a inten-
na sentença. Entre nós, até o advento do Código de 1940, predominou essa sidade do dolo ou grau da culpa, os motivos, as circunstâncias do delito, alia-
concepção. Ao aplicar a pena, o magistrado estava jungido aos graus máxi- dos a outras accidentalia, como se verá.
mo, mínimo, médio, submáximo e submédio, pouco ou quase nada restando Pela redação do artigo, parece-nos inegável que ele deu realce à capaci-
para seu subjetivismo ou determinação pessoal. dade de delinqiiir do agente, em relação à gravidade objetiva do delito. Esta
Não pensou assim a reforma atual, como já ocorrera na redação primi- deduz-se da natureza, espécie, meios, objeto, tempo, lugar e qualquer outra
tiva do Código. Na aplicação da pena foi dada certa latitude ao juiz, não modalidade da ação; da gravidade do dano e do perigo causado à pessoa
somente em relação à quantidade, mas também à escolha entre as penas alter- ofendida pelo crime; e da intensidade do dolo e do grau da culpa (estes refe-
nativamente cominadas, à faculdade de aplicar cumulativamente penas de rem-se antes ao indivíduo). A capacidade se infere dos motivos de delinqiiir
espécie diversa e deixar de aplicar qualquer uma das cominadas. e do caráter do réu, dos antecedentes penais e jurídicos, da vida anterior do
O julgador não se pode limitar à apreciação exclusiva do caso, mas tem mesmo réu, do procedimento contemporâneo ou posterior deste, e das suas
de considerar também a pessoa do criminoso, para individualizar a pena. Como condições de vida individual, familiar e social.
escreve Soler, é uma tarefa delicada, para a qual o juiz, além da competência A lei refere-se à outra somente em último lugar e com a simples expres-
jurídica teórica, deve possuir conhecimentos psicológicos, antropológicos e são: "circunstâncias e consequências do crime", ao passo que àquela dispen-
sociais, aliados a uma fina intuição da realidade histórica e uma sensibilidade sa maior consideração, não só por mencioná-la em primeiro lugar como tam-
apurada'. aéxa por se demorar mais ao enunciar os elementos que a compõem.
1. Soler, Derecho penal, cit., v. 2, p. 473. 163. .A personalidade do agente e a gravidade objetiva do crime. Como
elemento para aferir a capacidade de delinqiiir do agente, a lei menciona em
Primeiro lugar a culpabilidade. Portanto, como primeiro elemento a ser ana-
lisado, temos a intensidade do dolo e o grau da culpa. A intensidade daquele
sua quantidade. Costuma distinguir-se, a respeito, o dolo premeditado do
252 PARTE GERAL DA PENA 253

de ímpeto. Este é o que surge de improviso, ao passo que aquele traduz refle- O motivo, ou seja, a razão pela qual a vontade se determina é um
xão e ponderação. A lei não se preocupou com o dolo premeditado ou com a outro requisito, máxime para a Escola Positiva, que afirmou ser ele a pedra
premeditação. Já teve grande fastígio nas legislações precedentes. Hoje, en- de toque da periculosidade individual. A gravidade do crime reside
tretanto, sua importância é relativa, pois o espaço de tempo que se intercala principalmente nele, pois tem o condão de transformar um delito
entre a deliberação e a execução pode traduzir vacilação, luta íntima do cri- execrável em tolerado. Sua relevância não é apenas no crime doloso, mas
minoso, embate entre o impulso delitivo e os freios inibitórios. Nada impede, no culposo também, pois, como escreve Santoro, tanto se pode correr
entretanto, considerando-se o arbitrium judieis, que, no caso concreto, o julgador desenfreadamente com o automóvel, impelido pelo desejo de buscar um
tenha a premeditação como reveladora de intensidade dolosa, se, de fato, ela prazer abjeto, como para comprar medicamento para um moribundo.
demonstra cálculo, frieza de ânimo etc.
A gravidade objetiva do crime é dada pelas circunstâncias que o
Outra distinção é a do dolo direto e do eventual, o primeiro mais grave. rodeiam, isto é, as que se prendem ao tempo, lugar, modo de agir, meios
A culpa, como vimos, tem graus. Vai desde a aquiliana, na sua modali- empregados, atitude durante o fato etc.
dade de levíssima, até o grau mais avançado de culpa consciente. O último elemento são as consequências, isto é, o maior ou menor
Esta, em princípio, representa forma de maior gravidade. Nem sempre, vulto do dano ou perigo de dano, que sempre é inerente ao delito, não só
porém. A culpa consciente, muita vez, importa necessidade de menor disci- para a vítima como para a sociedade, o sentimento de insegurança
plina do que a inconsciente, pois ali o agente prevê as consequências do ato, provocado nesta e outros efeitos ainda que mais afastados.
embora espere que não se verifiquem, dada sua habilidade, cautela, cuidado
O derradeiro elemento é uma inovação da recente reforma penal: o
etc, ao passo que na culpa ex ignorantia, tão desatento, descuidado ou negli-
comportamento da vítima. A participação do ofendido no crime, como as
gente é, que nem por um momento previu os efeitos da ação (n. 82). Também
circunstâncias pessoais, o relacionamento existente, o modo de agir, uma
aqui é no caso concreto que se avaliará a importância da espécie de culpa.
possível provocação e outros assemelhados igualmente devem ser
Os antecedentes entram como segundo elemento para o exame. São tanto examinados como elementos fixadores da pena a ser escolhida e
os bons como os maus, tanto os judiciais como os extrajudiciais. Aprecia-se, calculada.
assim, o fato de haver o réu sido condenado anteriormente (abstraída a
reincidência), de terem existido outros processos contra ele, de estar sendo 164. Circunstâncias legais. Além das circunstâncias do art. 59, a
processado por mais delitos etc. Além disso, é mister ser examinada sua con- lei, nos arts. 61 a 65, menciona outras que se denominam legais ou
duta de pai, esposo, filho, amigo etc, ou seja, o comportamento familiar e obrigatórias. As dos arts. 61 a 64 sempre agravam a pena, enquanto as do
social. É a vida pregressa ou anteacta que deve ser investigada. art. 65 atenuam. Pitas circunstâncias serão examinadas em momento
A conduta social, isto é, a sua integração e o relacionamento dentro dos oportuno, mas devem aqui ser mencionadas porque entram no cálculo da
grupos sociais dos quais participa, desde o núcleo familiar até os agrupamen- pena, como se verá.
tos maiores, deve ser analisada como terceiro fator. Não são elas, entretanto, as únicas circunstâncias legais; há outras
A personalidade do criminoso é outro elemento para o qual deve o que são especiais, assim denominadas por se referirem a certos e
magistrado volver suas vistas. Com isso, "quer-se dizer", escreve o douto determinados «rimes e definidas na Parte Especial do Código, ao passo
Hungria, "antes de tudo caráter, síntese das qualidades morais do indiví - que as dos arts. 61 Ç 65 são genéricas, referem-se aos crimes em geral.
duo. É a psique individual, no seu modo de ser permanente. O juiz deve ter Assim, enquanto a em-tyiaguezpreordenada (art. 61, II, /), v. g., é uma
em atenção a boa ou má índole do delinquente, seu modo ordinário de sen- agravante genérica, apaga o* promessa de recompensa é especial ou
tir, de agir ou reagir, a sua maior ou menor irritabilidade, o seu maior ou específica do homicídio (art. 121,
menor grau de entendimento e senso moral. Deve retraçar-lhe o perfil psí-
quico"2. Não é só, porém. Há outras circunstâncias que também devem ser
con-Hdas: são as causas de aumento ou diminuição de pena, que se
2. Nelson Hungria, Novas questões, cit., p. 155. encon-
ora na Parte Geral, ora na Especial do Código. As causas de
aumento obrigatórias, exceção feita à do art. 60, parágrafo único,
onde o verbo *r exprime faculdade. As de diminuição são
facultativas. O parágrafo ° do art. 14 contém uma causa de diminuição
de pena obrigatória; já no
254 PARTE GERAL DA PENA
255

§ 2.° do art. 155 — "furto privilegiado" — ela é facultativa. Exemplo de No que diz respeito à pena restritiva de direito, quando escolhida, a espécie
causa de aumento temos, v. g., no art. 168, § 1.°: a pena (i. é, da apropriação deve guardar relação direta com o crime cometido. A perda da função pública
indébita) é aumentada de um terço. nos crimes contra a administração ou que tornem necessário o afastamento
Não se confundem, pois, essas circunstâncias com as obrigatórias (arts. do condenado do serviço público, a suspensão do direito de dirigir automotores
61a 65). Nestas, o julgador não está adstrito a graus; elas agravam ou atenuam nos crimes de trânsito etc, tudo como preconizado pelos arts. 56 e 57 do
a pena, porém a majoração e abrandamento não estão declarados na lei, go- Código Penal.
zando, dessarte, o juiz de latitude quanto aos efeitos que produzirão no côm- A fixação da pena de multa obedece a um critério próprio e peculiar.
puto da pena. Porém aquelas, como já se viu, ou fixam um aumento ou dimi- Para a fixação da pena de multa o julgador deve ater-se a um fator prin-
nuição certos, ou fixam-nos entre dois extremos legais. cipal e essencial e outro secundário e acidental, realizando duas operações
Conseqiientemente, em nossa lei, as circunstâncias são judiciais (art. sucessivas.
59), legais ou obrigatórias (arts. 61 a 65), especiais (art. 155, § 4.°) e causas Diz o art. 60 que na fixação da pena de multa o julgador deve ater-se
de diminuição (art. 26, parágrafo único) ou aumento de pena (art. 157, § 2.°). "principalmente" à situação económica do réu.

165. Fixação da pena. A atual reforma, através de seu art. 68, espancan- O advérbio modal "principalmente" demonstra que, ao lado de um fator
essencial, outros também intervêm na escolha e fixação. O elemento essen-
do todas as dúvidas geradas pela redação originária do Código, dúvidas essas
cial e preponderante é a situação económica do condenado, que deve ser ana-
que ensejaram profícuos debates doutrinários e jurisprudenciais, estabeleceu
lisada e sopesada, servindo como base; outros, secundários e acidentais, como
que o cálculo da pena será feito em três fases. Prestigiou, destarte, o sistema
o dano sofrido pela vítima, a avidez do infrator, o proveito obtido ou a ser
preconizado pelo pranteado Nelson Hungria. obtido com o crime etc, também influenciam a fixação.
A primeira fase, segundo o dispositivo legal citado, corresponde à fixa- As agravantes e as atenuantes não têm aplicação na pena pecuniária.
ção da pena-base, tendo como norte o estatuído no art. 59, já estudado. Por
pena-base, segundo Hungria, entende-se o quantum encontrado pelo juiz com Depois, duas operações sucessivas, já que a norma incriminadora não
fixa a quantidade e o valor do dia-multa.
fundamento nas circunstâncias judiciais, tirante as circunstâncias legais ge-
néricas (agravantes e atenuantes) e as causas de aumento ou de diminuição. Por primeiro, a fixação da quantidade, que deve situar-se entre um mí-
É a pena individualizada, isto é, a obtida pelo juiz através do exame dos an- nimo de dez e um máximo de trezentos e sessenta dias-multa.
tecedentes e da personalidade do agente, a intensidade do dolo ou o grau da Em seguida, o valor, que não pode ser inferior a um trigésimo do maior
culpa, os motivos, as circunstâncias e as consequências do crime, excluídas as salário mínimo mensal vigente nem ultrapassar a cinco vezes o mesmo salá-
circunstâncias legais. rio (art. 49, § 1.°).
A segunda fase corresponde à análise e respectivo exame das circuns- Quando a quantidade máxima possível revelar-se ineficaz diante da si-
tâncias agravantes e atenuantes (CP, arts. 61a 65) existentes e, por fim, con- tuação económica do condenado, a quantidade em questão pode ser aumen-
siste no resultado através do cotejo entre as reconhecidas, na forma mencio- tada até o triplo. É o que deixa claro o art. 60 em seu § 1.°.
nada pelo art. 67. O quadro abaixo demonstra as duas operações: valor e limite.
A fase derradeira consiste em fazer incidir as causas de aumento ou
diminuição previstas na Parte Geral ou na Parte Especial do Código Penal. - menor: 1/30 do maior salário
Vigente ao
A pena definitiva pode surgir em quaisquer das fases (a pena-base se Valor do dia-multa tempo do fato
tornará definitiva se não houver circunstâncias legais genéricas nem causas (art. 49, § l.°) mínimo • maior:
de aumento ou diminuição) e, quando encontrada, ensejará duas novas ope- 5 vezes o maior
salário mínimo
rações, também realizadas com base no art. 59: qual o regime inicial para o
cumprimento da pena, se fechado, semi-aberto ou aberto, se escolhida a pri- Limites da pena
de multa — mínimo: 10 vezes o valor do menor dia-multa (art. 49);
vativa de liberdade (art. 59, III) ou a substituição da privativa de liberdade («t. 58) — máximo: 360 vezes o valor do maior dia-multa (art. 49);
por outra, se cabível (art. 59, IV). — especial: 360 vezes o valor do maior dia-multa vezes 3, ou
seja, a multa máxima vezes 3 (art. 60, § 1.°).
256 PARTE GERAL

Quanto à aplicação, o gráfico abaixo indica a escolha.

Multa isolada (art. 50, § 1.°, a);


?cumulada (art. 44, § 2.° e art. 50, § 1.°, b);
?substitutiva (art. 44, § 2.°; art. 58; e art. 60, § 2.°);
- independente de cominação (art. 44, § 2.°; art. 58, parágrafo único;
VII
e art. 60, § 2.°);
- somada (art. 72). CIRCUNSTANCIAS AGRAVANTES

SUMÁRIO: 166. Considerações gerais. 167. Circunstâncias agravantes. 168.


A reincidência.

166. Considerações gerais. Circunstância é tudo que modifica um fato


em seu conceito sem lhe alterar a essência1. Sendo o crime um fato, é indubitável
que apresente peculiaridades que o alterem. Assim é que o mesmo crime, v.
g., o furto, pode ser praticado com particularidades que lhe dão outra feição
— subtrair coisa de valor mínimo e subtrair móvel mediante escalada.
Vê-se, pois, que circunstâncias são elementos que se agregam ao delito
sem alterá-lo substancialmente, mas produzindo efeitos e consequências re-
levantes.
É mister, entretanto, distingui-los. Como o próprio art. 61 diz, há algu-
mas que são elementares ou qualificadoras do delito. As primeiras integram
o tipo, constituem elemento seu; sem elas, ele inexistiría, tal qual se dá com
a circunstância da idade maior de quatorze e menor de dezoito anos da vir-
gem, no crime de sedução (art. 217).
Entretanto essa mesma circunstância deixa de ser elementar para tor- nar-
se qualificadora no crime de posse sexual mediante fraude (art. 215), em que a
menoridade da virgem não constitui um tipo fundamental ou básico, '--—mas
qualificado (parágrafo único).
Registre-se, ainda, como se falou antes, que circunstâncias existem, ora
na Parte Geral, ora na Especial, que funcionam como condições de maior ou
Menor punibilidade (causas de aumento ou diminuição de pena), como a do
8rt. 168, § 1.°, que enumera circunstâncias que agravam a sanção de um
terço.
Mas as que os arts. 61 a 65 tratam são diferentes porque podem juntar-
*& a qualquer tipo sem alterá-lo na essência, apenas aumentando ou dimi-
1. Asúa, La ley, cit., p. 476.
258 PARTE GERAL DA PENA 259

nuindo a pena, e sem o fazer dentro de limites previamente fixados. Tradu- ao fato típico (circunstâncias objetivas) e às consequências (circunstâncias
zem, conseqiientemente, maior ou menor gravidade do fato. São as denomi- extrínsecas).
nadas accidentalia delicti, que se opõem às essentialia. Também do elenco fornecido pelos arts. 61 a 65 se observa referirem-se
São também circunstâncias legais obrigatórias que, consoante se viu (n. as circunstâncias, ora ao sujeito ativo, ora ao fato típico e ora ao sujeito pas-
164), diferem das judiciais, compreendidas no art. 59. sivo, como razões de majorar ou minorar a pena.
Elas alteram ou modificam os efeitos da responsabilidade, sem suprimi-
167. Circunstâncias agravantes. Menciona o Código, em primeiro lu-
la e sem mudar o tipo. Como escreve Pannain, os "elementos constitutivos gar, como circunstância que sempre deve ser considerada — a reincidência,
imprimem ao delito sua configuração peculiar, a qualidade, o título; as cir- que, disciplinada como é nos arts. 63 e 64, II, constituirá objeto de estudo,
cunstâncias inerentes valem para caracterizá-lo em sua quantidade criminosa após o exame das demais contidas no art. 61.
e punitiva"2. Objeto da alínea a do inc. II deste dispositivo é haver o crime sido pra-
As circunstâncias obedecem às classificações feitas na doutrina e na lei. ticado por motivo fútil ou torpe. Já dissemos que motivo é a razão pela qual
Elas podem ser subjetivas e objetivas (n. 162), conquanto Asúa ache que toda a vontade se determina; é, segundo Maggiore, o antecedente psíquico da ação,
circunstância é subjetiva3. O Código italiano reconhece-as, expressamente, força que movimenta o querer e o transforma em ato 5. Qualifica-o, na alínea
no art. 70, dizendo: "1.° São circunstâncias objetivas aquelas que dizem res- em apreço, o ser fútil. Este é a que se reduz a questão de somenos, destituída
peito à natureza, à espécie, aos meios, ao objeto, ao tempo, ao lugar e a qual- de importância, ninharia. Não chega à ausência, pois todo delito, como ação
quer outra modalidade da ação, à gravidade do dano ou do perigo, ou ainda (em sentido amplo) que é, tem um motivo. O crime gratuito é mera lucubração
às condições ou às qualidades pessoais do ofendido. 2.° São circunstâncias cerebrina de romancistas ou fruto de mente enferma. A futilidade do móvel
subjetivas as que se referem à intensidade do dolo ou ao grau de culpa, ou às se afere pela desproporção com o crime. Fútil é o motivo do marido que
condições e qualidades pessoais do culpado, ou às relações entre o culpado e espanca ou mata a mulher, por não estar pronto o jantar ao chegar em casa; do
o ofendido, ou às inerentes à pessoa do culpado". Tal distinção tem capital homem que assassina outrem, por haver o clube de futebol deste vencido o
importância em matéria de co-autoria (n. 137). seu etc.
São ainda intrínsecas ou extrínsecas. As primeiras são as que se refe- Refere-se também a lei à torpeza do motivo. Diz-se torpe o móvel quan-
rem à execução ou consumação do fato incriminado, caracterizando-o como do é ignóbil, indigno, abjeto e vil. O indivíduo que mata a esposa porque esta
mais grave ou mais leve, e são anteriores ao momento consumativo do pró- não se quer sujeitar mais à prostituição por ele explorada, age por motivo
prio crime ou à cessação da permanência. Circunstâncias extrínsecas são, ao torpe. Também assim se conduz o que comete um crime por paga ou promes-
invés, as que agravam ou diminuem a responsabilidade do culpado, por cau- sa de recompensa, que é qualificadora do homicídio (art. 121, § 2.°, I), quan-
sas que não têm atinência com a execução ou com a consumação do crime e do a lei deixa bem claro sua natureza, acrescentando "ou por outro motivo
que consistem em relações, fatos ou resultados sucessivos ao exaurimento do torpe".
delito, ou, por qualquer forma, a este estranho (arrependimento ativo, reinci- A majorativa da alínea b também foi capitulada no Código italiano (art.
dência etc.)4. ~6i, § 2.°). Tem ela como fundamento a existência de dois crimes, presos por
Outros ainda apontam circunstâncias gerais ou especiais, simples e com- um nexo de meio e fim ou de causa e efeito. Ocorre o primeiro, v. g., se um
plexas ou compostas, como faz Santoro. indivíduo mata ou fere um outro, para estuprar-lhe a filha, agora sem defesa.
O Código não ignora essas distinções. Já no art. 30 se refere às circuns- Dá-se o segundo, ao reverso, quando, havendo violentado uma donzela e já
tâncias subjetivas (pessoais) e no art. 59 alude também a estas (antecedentes 8e retirando do local, percebe que o ato foi presenciado por uma pessoa, e,
e personalidade do agente, intensidade do dolo ou grau da culpa, e motivos), então, a abate, com o fim de não poder ser provado o primeiro delito.
Pode o crime-fim não ser cometido, que o delito-meio será agravado,
2. Pannain, Gli elementi essenziali, cit., p. 170. pois basta sua prática, tendo aquele por escopo. Se ambos forem praticados,
3. Asúa, La ley, cit., p. 483.
4. Manzini, Trattato, cit., v. 1, p. 551. 5. Maggiore, Diritto penale, cit., v. 1.
260

haverá concurso material ou formal, cabendo a agravante exclusivamente ao atacando o ofendido, sem este ter tempo sequer, na maior parte das vezes,
crime-meio. Nos exemplos citados ela incide sobre os delitos contra a pes- para saber de onde partiu a agressão.
soa, e não sobre o estupro. Dissimulação — escreve Roberto Lyra7 — é o encobrimento dos pró-
Ocultar é impedir que apareça; relaciona-se ao fato. Impunidade é asse- prios desígnios, o "disfarce" — conceituado no direito anterior — supondo a
gurar a não-incidência de pena, apesar de conhecido o fato; relaciona-se ao ocultação e não a afetação, como na simulação do sexo, da fisionomia, da
sujeito ativo. A vantagem, na maior parte das vezes, será patrimonial, mas cor, da voz, do estado de espírito etc. O agente faz a fraude preceder à violên-
nada impede que seja de outra natureza. cia, associando as formas características da criminalidade atávica e da
A alínea c enumera várias agravantes. A primeira é a traição. Atualmen-te criminalidade evolutiva.
lhe dão os juristas o conceito de ataque de inopino, brusco, inesperado, Em todos esses modos de execução, inclusive o outro recurso, é mister
colhendo a vítima de surpresa. A nosso ver, entretanto, a noção dessa majorativa haver idoneidade: a dificuldade ou impossibilidade de defesa deve resultar
devia ser dada antes pela quebra de fidelidade, da confiança que era deposi- deles e não do procedimento da vítima ou de um acontecimento fortuito.
tada no agente. Deve ela ter conteúdo moral. Corresponde à aleivosia das
Ordenações do Livro V, que era "huma maldade commetida atraiçoeiramente Das agravantes que integram a alínea d, surge em primeiro lugar o
sob mostrança de amizade". Aliás, os comentadores do Código de 1890 não veneno para a prática do crime. Não é fácil conceituá-lo; difícil, aliás, é
lhe davam outro significado. Vejam-se as obras de Galdino Siqueira, Bento de estabelecer limites entre ele, o alimento e o medicamento. Às vezes, tudo
Faria, Rodrigues Teixeira e Costa e Silva. Este, no comentário àquele diploma, depende da dose. A morfina, a cocaína, a estricnina e outros alcalóides são
escreve: "A traição significa perfídia e deslealdade. É o ocultamento moral (na medicamentos e são tóxicos. O açúcar é alimento e pode ser veneno para
frase carrareana) que, dificultando a reação e a defesa, aumenta o perigo para a um diabético.
vítima e causa maior alarma social"6. A dificuldade de conceituar o veneno não pode trazer empecilhos ao
Em estudo feito acerca dessa agravante, ressaltávamos seu conteúdo moral, julgamento ou à apreciação da agravante, pois, no caso, a perícia médica o
alinhando as seguintes considerações: a) a tradição de nossas leis; b) que, se definirá.
o caráter da agravante fosse dado só pelo elemento físico ou material, não Deve ter-se em vista que ele é um meio insidioso e com insídia deve ser
havia necessidade de, em especial, capitular outras majorativas, como a em- empregado. Quem, em luta corporal, deitasse goela abaixo do contendor um
boscada, a dissimulação, o veneno etc, porque todas elas se reduzem à agres- veneno, não cometeria homicídio qualificado, a menos que este produza tam-
são, ao atentado inesperado pelo ofendido, sendo de notar que a lei ainda bém a morte por meio cruel, sendo esse o objetivo do agente, quando, então,
usou expressão genérica — "ou outro recurso" — onde qualquer outro aco- a agravante se verifica nesta outra modalidade.
metimento brusco ou repentino tem lugar; c) que, conquanto todas essas agra-
O fogo pode não só ser um meio cruel — como há tempos se registrou
vantes apresentem como elemento comum a surpresa para a vítima, têm ca-
racterísticos próprios, não encontrados nas outras, informando especialmente nesta Capital, em que certa esposa, aproveitando o sono do marido, ateou-lhe
a traição o fator moral, a lealdade, a amizade, a fidelidade etc; d) que essa fogo nas vestes embebidas de querosene — como também representar um
interpretação é tanto mais aceitável quando verificamos não haver nossa lei meio de perigo comum.
capitulado a do abuso de confiança, do Código ab-rogado, que com ela tem ^ Também oferece perigo comum o explosivo, que é a substância que atua
pontos de contato; e) finalmente, que não é aceitável a esquecesse, com esse <?Qm maior ou menor detonação ou estrondo. É a matéria capaz de produzir ,,
característico, o legislador, como expressivo índice de periculosidade do agente, rebentação. O art. 2.° do Decreto n. 6.911, de 19 de janeiro de 1935, alinha
quando se preocupou com outras menos graves. W substâncias consideradas explosivas.
Emboscada é o ato de esperar, oculto ou escondido, a vítima para agre- Por último, a alínea cita a tortura: é a inflição de um mal, tormento ou
di-la; é o assalto de quem se esconde. É a tocaia do nosso sertanejo, o agguato 8
°frimento etc, desnecessário e fora do comum. Estamos que pode ser física
dos italianos e o guet-apens dos franceses. Há insídia e covardia do agente, * moral, pois a lei fala ou outro meio cruel, e este participa de ambas as
6. Costa e Silva, Código Penal dos E. U. do Brasil, 1930, v. 1, p. 322.
1- Roberto Lyra, Comentários, cit., p. 253.
262 PARTE GERAL DA PENA 263

naturezas. Deve o agente ter o objetivo de produzir o sofrimento: antes de ou que a de médico ou sacerdote aumentaria a pena do delito de violação de
matar, v. g., vazar os olhos da vítima, arrancar-lhe a língua etc. segredo profissional (arts. 312 e 154).
A enumeração legal é exemplificativa, já que se menciona outro meio A majorativa da letra h funda-se em maior periculosidade, em princípio,
insidioso (de que o veneno é típico), cruel (tortura e asfixia) e de perigo do agente, assentada em sua covardia e perversidade. A criança merece-nos
comum (fogo e explosivo)8. proteção; o velho, respeito; o enfermo, amparo e paciência; e a mulher grá-
A alínea e considera agravado o crime se cometido contra ascendente, vida, cuidados especiais com a sua saúde e a própria saúde do nascituro. Com
descendente, irmão ou cônjuge. Trata-se de relações de parentesco, que, con- razão agrava-se a pena do que não observa esses princípios, ao mesmo tempo
forme a natureza do delito, importam em falta ética alarmante, ao passo que que se vale de sua superioridade física para ofendê-los.
em outros constituirão, ao revés, imunidades penais (arts. 181 e 182). Funda- A agravante da letra / revela, sem dúvida, acentuada periculosidade do
menta também a agravante a maior facilidade da prática do delito. agente que não vacila em delinqiiir, embora o ofendido esteja sob a proteção
Com oportunidade, lembra Basileu Garcia que o "Código Penal, aqui, da autoridade. Ao crime, o delinquente junta o desrespeito ao representante
não explica se o parentesco natural, resultante de consanguinidade, é equipa- do poder público. A proteção da autoridade deve ser imediata — frisa o dis-
rado, para os efeitos penais, ao civil, proveniente de adoção e que se limita ao positivo — já que, de maneira geral, todos estão sob proteção daquela. Os
autores ilustram a agravante com o linchamento de criminosos presos (Costa
adotante e ao adotado (Cód. Civil, art. 376). Deve entender-se que ocorre a
e Silva, Basileu Garcia etc). Todavia é mister distinguir: o fato não agravará
equiparação"9.
o crime cometido contra o ofendido, quando por si já constituir delito, como
A alínea/é quase reprodução do art. 61, 11, do Código Penal italiano. o do art. 353, ocorrendo, então, um concurso de crimes.
Abuso é o uso ilegítimo, é usar mal, no caso, a autoridade que possui, seja de
natureza particular ou pública, desde que não compreendida na alínea se- Finalmente, a alínea j assenta-se ainda em maior falta de sentimento de
guinte. Relações domésticas são as estabelecidas entre os componentes de humanidade, revela perfídia, procedimento soez do delinquente que não se
uma família, entre patrões e criados, empregados, professores e amigos da detém diante de circunstâncias que inspiram antes solidariedade e auxílio ao
casa. A coabitação importa convivência sob o mesmo teto ainda que por pouco próximo. Caso comum é aproveitar-se o agente da ocasião de calamidade
pública para furtar.
tempo. Diversa é a hospitalidade (em regra passageira ou momentânea) 10. A
agravante repousa ainda na maior facilidade da prática delituosa, como tam- A alínea / capitula a embriaguez preordenada. O agente vai buscar no
bém em situações que traduzem confiança, amizade, frequência, convivência álcool a coragem que lhe falta para o delito. Tem aqui plena aplicação a teoria
etc, a exigirem maior consideração ou cautela. da actio libera in causa, pois, se o criminoso não é livre no momento da
Também reprodução de dispositivo do Código de Rocco é a alínea h. execução ou do evento, era-o antes, quando formulou o desígnio delituoso. Neces-
Refere-se à função pública (cargo ou ofício, podendo este, entretanto, signi- sário, portanto, haver nexo entre o resultado do crime e a conduta inicial livre.
ficar profissão de natureza material), ao ministério (sobretudo o religioso, Esta antecede à ebriedade proposital, com o objetivo de delinquir mais resoluta
abrangendo qualquer culto) e à profissão (atividade de natureza intelectual). ou desembaraçadamente. Notória, pois, a periculosidade do sujeito ativo".
Conforme o delito, essas circunstâncias apontadas o facilitam, ao mesmo Essas agravantes são quase todas só aplicáveis ao crime doloso. Exce-
tempo que traduzem maior falta por parte do agente. Cumpre notar, todavia, tua-se a reincidência. E queremos crer que cabíveis são também as da viola-
que elas não devem ser elementares ou integrantes do tipo. Seria estranho ção de dever inerente a cargo, ofício, ministério, ou profissão, e abuso de
pensar-se que a qualidade de funcionário público agravaria o crime de peculato, autoridade ou prevalecimento de relações domésticas, de coabitação ou de
hospitalidade. Como estas duas últimas, também a do motivo, porque se re-
8. O Anteprojeto Nelson Hungria, na fórmula genérica final (art. 52, II, d), esque fere à conduta causal voluntária e não ao evento querido12.
ceu o "outro meio de que possa resultar perigo comum", limitando-se ao dissimulado ou
cruel, de que são típicos o veneno, a asfixia e a tortura. Superior é a fórmula do Código. 11. Não vemos razão para o Anteprojeto Nelson Hungria ter suprimido a agravante
8. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 474. da embriaguez preordenada (art. 52).
9. Costa e Silva, Código Penal, cit., 1930, p. 254. 12. E. Magalhães Noronha, Do crime culposo, cit., p. 164.
264 PARTE GERAL DA PENA 265

As agravantes mencionadas no art. 62 relacionam-se ao concurso de Na doutrina, distingue-se a reincidência real da fwta. A primeira ocorre
agentes, e a elas já aludimos no n. 134. A lei tem em consideração situações quando o réu delinqiie após haver cumprido, no todo ou em parte, pena por
que patentemente importam maior responsabilidade do agente, quer por ser a crime anterior; para a segunda, basta haver antes sentença condenatória tran-
causa principal do delito, quer porque sua atuação revela, em princípio, maior sitada em julgado.
periculosidade, estando, neste último caso, o criminoso mercenário. Nas outras Não há dúvida de que, no primeiro caso, mais alarmante, em regra, é a
hipóteses, ou o agente tem conduta de maior relevo (incs. I e II) ou pode até personalidade do agente, demonstrando de modo mais expressivo a inanidade
ser a causa única (inc. III), quando o instigado for inimputável, v. g., um da terapêutica penal. Todavia, no segundo, a denúncia, o processo, o julga-
menor de dezoito anos, o que, aliás, também pode suceder no inc. II, tal seja mento e a condenação não deixam também de ser advertência ao criminoso
a quantidade de coação13. que revela pertinácia e menosprezo pela justiça. A opinião mais generalizada
Com a Constituição Federal e a Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e contenta-se com a reincidência fícta, como fazem nosso estatuto e o italiano
do Adolescente) surgiu mais uma forma de agravamento da pena, tendo por (art. 99). Optou pelo outro critério o Código Penal suíço (art. 67).
base o sujeito passivo.
Quanto à sentença condenatória anterior, não prevalece para efeito de
Preceitua o art. 227, § 4.°, da Constituição Federal que a "lei punirá seve- reincidência, consoante dispõe o inc. I do art. 64, se entre a data do cumpri-
ramente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente". mento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de
O advérbio modal usado pela Constituição significa que a lei não deve tempo superior a cinco anos.
ter condescendência, sendo aplicada com exata e estrita justiça, afastadas Considere-se, ainda, que pelo art. 64, II, para efeito de reincidência, não
todas as possibilidades de benefício ao sujeito ativo. Embora não fale em se consideram crimes militares ou puramente políticos.
agravamento, a severidade traz um sentido de gravidade maior.
Complementando o dispositivo constitucional, a Lei n. 8.069 estabele-
ceu o aumento de um terço da pena nos casos de homicídio doloso, lesões
corporais dolosas, maus-tratos, atentado violento ao pudor e estupro.
Acrescente-se que leis esparsas também podem trazer circunstâncias
agravantes especiais e a elas aplicadas, como ocorre com o Código do Con-
sumidor (Lei n. 8.078/90), por via de seu art. 76.

168. A reincidência. Trata dessa agravante o Código nos arts. 63 e 64. O


primeiro define-a: ocorre a reincidência quando o réu é condenado por crime
cometido depois de haver transitado em julgado sentença que o condenou por
delito anterior praticado no país ou no estrangeiro.
Juristas há que contestam a legitimidade da reincidência, visto quebrar a
proporcionalidade entre a pena e o crime, já que, exacerbando a pena, o réu está
pagando por circunstância de todo estranha ao delito por que está sendo punido.
Maior é, entretanto, o número dos que a aceitam, legitimando-a, seja
por se ter revelado ineficiente a primeira pena, seja por manifestar patente- projetos argentino e alemão, amenizava a disciplina da reincidência, dispondo que ela se
mente o criminoso sua inadaptação ou rebeldia à ordem constituída, donde a não verificava se decorreu período superior a cinco anos, entre a data do cumprimento ou
da extinção da pena e o crime posterior. Suavizava ainda, dispondo que a aplicação da pena
necessidade de repressão mais severa14. acima da metade da soma do mínimo com o máximo só se dava na reincidência de crimes
dolosos, e, finalmente, que não se consideravam para o efeito da reincidência os crimes
13. Nelson Hungria em seu Anteprojeto suprimia a agravante da coação, que, a nosso puramente militares e os políticos ou anistiados. Mal também não haveria se, a exemplo de
ver, foi bem capitulada pelo Código. outros Códigos e Anteprojetos, excluísse a reincidência quando ocorresse a menoridade do
14. O Anteprojeto Nelson Hungria (art. 53, § 1.°), seguindo o exemplo dos Ante- agente.
DA PENA 267

Cremos, entretanto, não fugir à realidade dizer que razões de humanida-


de inspiraram o legislador, procurando evitar a inútil longa pena a quem já se
acha no tramontar da existência.
Os mesmos efeitos da menoridade, já apontados, apresentam-se aqui
também.
VIII
Consagrando princípio jurisprudencial, a reforma declarou de maneira
CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES expressa que a menoridade teria como base a época da prática do fato consi-
derado como criminoso, enquanto a maioridade de setenta anos o momento
da sentença.
SUMÁRIO: 169. Circunstâncias atenuantes.
A minorativa do inc. II também já foi objeto de consideração, ao estu-
darmos o erro de direito, representando transigência da lei com ele. Se tal
erro não exime de pena, consoante o art. 21, vê-se que pode atenuá-la. Houve
169. Circunstâncias atenuantes. No art. 65, perfilha o Código as profunda modificação em relação à redação de 1940, pois esta restringia o
minorativas, sendo a primeira a da menoridade. desconhecimento à lei penal, tão-somente, o que revelava grande injustiça.
É ela tradicional em nossas leis e sempre foi fixada no limite de vinte e Se o erro sobre a lei penal atenua, com maior razão deve atenuar o de direito
um anos. Estando, hoje, o menor de dezoito anos fora do Código Penal, com- extrapenal. A lei penal, dispondo sobre o crime, que é a violação do mínimo
ético, está mais ao alcance de todos; por todos é mais facilmente conhecida
preende-se que ela se situe entre esses limites.
e compreendida, o que não ocorre com a de direito civil, comercial etc. Con-
O fundamento é natural. Como escrevia Melo Matos, trata-se de uma
seqiientemente, se o legislador admite o mais, há de admitir o menos, isto é,
fase de transição, quando ainda não está completo o desenvolvimento mental
também mitiga a pena o erro de direito extrapenal.
e moral da pessoa, por suas condições psicológicas e éticas; é ela fortemente
É mister ser escusável, não advir de culpa stricto sensu. Se for vencível
influenciável no sentido do bem e do mal, por falta de reflexão perfeita e de ou inescusável não abrandará a punição.
plena força de resistência aos maus impulsos. Era o que falava o grande Juiz
de Menores, no preâmbulo do Decreto de 24 de fevereiro de 1933, relativo à A reforma penal não diferencia, logo aproveita tanto o desconhecimen-
to da lei penal como da extrapenal, sem qualquer restrição.
prescrição para os menores.
No inc. III, a, volta o Código a ocupar-se com o motivo do delito. Se
A atenuante tem outro efeito: reduz à metade o prazo prescricional
agrava o fútil ou o torpe, atenua o do relevante valor social ou moral. Trata-
(art. 115). se de circunstância também prevista pelo Código italiano.
A menoridade persiste ainda que tenha havido emancipação. Não se Para Maggiore, a expressão empregada é pleonástica: "Como já salien-
trata de capacidade civil, mas de imputabilidade com fundamento na idade tamos, bastaria para qualificar o móvel o adjetivo moral, já que a ética é
biológica. individual e social ao mesmo tempo: a expressão social é pleonástica e equí-
Na segunda parte do inc. I considera-se a maioridade de setenta anos. voca"1. Realmente, é difícil encontrar-se motivo moral que não seja social,
Também é óbvia a razão da atenuante, pois não há quem ignore os efeitos e assim os inspirados no amor da pátria, honra, liberdade, solidariedade, ma-
consequências da senectude. É a decadência, é a degenerescência que se ternidade etc. Contudo as leis referem-se a ambos.
manifesta. Não apenas no físico, mas no psíquico também. O raciocínio é O motivo que a lei tem em vista "é o aceito pela consciência de um
tardo; a memória, falha; e a imaginação, pueril. Torna-se a pessoa desconfiada, povo, em determinado momento". Não compete evidentemente ao criminoso
sugestionável e presa de manias. Senectus est morbus é o aforisma. Não se sua apreciação, mas ao juiz, que é o intérprete daquela consciência.
trata, entretanto, de enfermidade, pois para esta existe o art. 25 com seu pa-
rágrafo; mas com razão se vê na anciania, com a decadência somática e psí- 1. Maggiore, Diritto penale, cit., v. 2, p. 512.
quica, motivo de se atenuar a responsabilidade.
268 PARTE GERAL DA PENA 269

A circunstância informa tipos privilegiados, como ocorre nos arts. 121, Código, é tida por ele ora como atenuante genérica, consoante se verifica, ora
§ 1.°, e 129, §4.°. como causa de diminuição de pena (art. 121, § 1.°), diferindo ambas em que,
A alínea b versa o arrependimento do agente. Arrependimento ativo, nesta alínea, o réu age sob influência da emoção, ao passo que, naquele dis-
quer por haver o delinquente procurado com eficiência evitar ou mitigar as positivo, atua sob o domínio, que é mais absorvente; como também porque
consequências delituosas, quer por haver reparado o dano produzido. Apre- aqui a emoção é apenas provocada por ato injusto da vítima, enquanto no
senta a atenuante duas faces: uma subjetiva — o arrependimento; e outra, homicídio privilegiado ela há de se manifestar logo em seguida a injusta pro-
objetiva — constituída por sua ação enunciada pelo dispositivo. vocação. Diga-se o mesmo do art. 129, §§ 4.° e 5.°, I.
A alínea diz que a minoração dos efeitos do delito deve ser espontânea, A alínea d também não comporta longas considerações, em face do que
não apenas voluntária, sabido que espontaneidade é uma coisa e voluntariedade se disse sobre a alínea b. Como esta, repousa no arrependimento.
outra, bastando apontar o exemplo clássico do ladrão que, perseguido, joga Não se pode dar, à minorativa, a elasticidade que alguns pretendem. A
fora a res furtiva, agindo voluntária, porém não espontaneamente. A lei frisa, confissão que a lei tem em vista é a espontânea.
também, o requisito da eficiência. Tanto pode a confissão ser feita perante a autoridade policial como pe-
Quanto à reparação pode não ser espontânea. rante a judiciária. Os móveis não contam; basta, como já se escreveu, que
seja espontânea.
Roberto Lyra acha o Código Penal italiano redundante, por exigir repa-
ração completa1, pois quem diz reparação, diz reparação integral. Não con- A atenuante da alínea e foi amplamente ventilada no n. 143.
cordamos com o eminente professor, pois a verdade é que a reparação pode A Lei n. 8.072/90, que cuida dos chamados crimes hediondos, nos apre-
ser total ou parcial. Outro Código também foi explícito e tomou orientação sentou uma nova causa de atenuação de pena, ligada ao arrependimento.
diversa do diploma de Mussolini, não exigindo sua inteireza. É o suíço: "Lorsqu'il Segundo o art. 8.°, parágrafo único, aquele que, participando ou asso-
aura manifeste par des actes un repentir sincère, notamment lorsqu'il aura ciando-se a uma quadrilha ou bando (CP, art. 288), com a finalidade de praticar
réparé le dommage autant qu'on pouvait 1'attendre de lui" (art. 64). A verda- um dos crimes considerados hediondos, tortura, tráfico ilícito de entorpecen-
de é que a lei pode ver na reparação do dano, proporcionada pelas possibili- tes e drogas afins ou terrorismo, denunciar sua existência à autoridade, de
dades do réu, mas não total, motivo de abrandar a pena. Todavia, diante da forma a possibilitar o desmantelamento, terá sua pena reduzida de um a dois
expressão tout court "ter reparado o dano", acreditamos deva ser integral. terços.
São distintos os momentos da resipiscência. O da minoração das conse- Embora ligada ao arrependimento, não é necessário que ele seja fruto
quências delituosas deve ser efetivado logo após o delito. O Código Penal de uma denúncia ligada a um ato penitenciai, podendo, mesmo, ter como
italiano, tratando dessa hipótese, fixa o termo: antes do julgamento. Diverge, interesse a própria redução da pena. Para surtir efeito como fator de redução
portanto, do nosso. A expressão deste é algo imprecisa. Todavia há de ser da pena, basta que haja a denúncia e de tal sorte que permita desmantelar o
considerada, como logo depois, isto é, a seguir, de pronto, sem demora etc. bando celerado formado.
A ação executada muitos dias depois está fora da cogitação legal. O que a lei
quer que se dê logo em seguida é a ação do sujeito ativo, embora seus frutos
ou efeitos se concretizem mais tarde.
Quanto à reparação, há de ser antes do julgamento, isto é, da sentença,
para que possa ser considerada; é como em situação análoga dispõe o art.
143.
A letra c dispensa comentários, em face do que se expôs nos n. 95, 108
e 709, cumprindo, apenas, ressaltar que a emoção, que não é dirimente, no

2. Roberto Lyra, Introdução, cit., p. 329.


DA PENA 271

IX Nosso Código, como se vè dos arts. 69 e 70, distingue os dois con-


cursos.
CONCURSO DE CRIMES
171. Concurso material. Este, como se acaba de falar e consoante dis
põe o art. 69, é integrado por várias ações ou omissões (ex diversis factis),
SUMÁRIO: 170. Considerações gerais. 171. Concurso material. 172. Con- constituindo crimes. Diverge do ideal ou formal, que provém de uma e mes
curso formal. 173. Crime continuado. 174. Sistemas de aplicação de penas. ma ação {ex uno eodemque facto).
175. Multa. 176. Limite das penas. 177. Concurso de leis.
Ocorre, pois, o concurso material quando o agente comete mais de um
crime mediante duas ou mais açôes, como, v. g., se hoje furta, para dias após
estuprar e um mês depois matar uma pessoa, praticando os delitos dos arts.
170. Considerações gerais. O estudo do concurso de delitos é, hoje, 155, 213e 121.
um problema de dogmática do crime. Já o foi de aplicação da pena. Não altera o concurso o fato de os crimes serem objeto de um ou vários
Reservamo-nos, entretanto, para o fazer aqui, obedecendo ao critério adotado processos e, consequentemente, de uma ou mais sentenças. Há, entretanto,
pelo Código. casos em que os vários delitos cometidos guardam relação entre si, havendo
Já vimos que, quando várias pessoas praticam um crime, há o chamado conexão e, por conseguinte, impondo-se as regras dos arts. 76 e s. do Código
concursus delinquentium; porém, quando um indivíduo comete dois ou mais de Processo.
delitos, ocorre o que se denomina concursus delictorum.
A lei diz que os crimes podem ou não ser idênticos, donde o concurso
Este encontra seu desenvolvimento doutrinário amplo na Alemanha, mas será homogéneo (crimes da mesma espécie) e heterogéneo (delitos de espé-
justo é dizer que foram os penalistas italianos e espanhóis dos séculos XV e cies diferentes).
XVI que iniciaram seu estudo.
Nesse concurso as penas aplicam-se cumulativamente: a cada crime sua
Hoje consideram-se duas espécies de concurso: o ideal, ideológico ou
formal, e o real ou material. Juristas há, entretanto, que julgam desnecessário pena. Todavia há um limite, do qual não se poderá passar, como lembra Antolisei:
distingui-los, argumentando, por exemplo, não haver diferença em uma pes- "Tal sistema, entretanto, é aplicado com opportuni temperamenti, especial-
soa deitar veneno na jarra ou bilha de água de que várias pessoas se vão mente mediante a fixação de limites máximos que não podem ser supera-
servir, e ministrá-lo na água que cada uma já tem em seu copo. Na primeira dos"2. Entre nós, o limite é dado pelo art. 75. Não prevalece o limite, é claro,
hipótese a ação é única, havendo concurso ideal, enquanto na segunda é material; na hipótese da reincidência, isto é, quando, já tendo cumprido a pena máxima
porém a consequência é a mesma. Outros penalistas negam que de uma ação de trinta anos, vem o agente a delinquir de novo.
possam resultar dois ou mais crimes. Sendo as penas aplicadas de reclusão e detenção, é executada antes a
Não obstante a autoridade dos que emitem essas opiniões, a verdade é primeira, por comportar, como já se falou, com seus estágios mais rigorosos,
que a doutrina e as leis distinguem as espécies de concurso, atribuindo-lhes o sistema progressivo definido pelo Código.
consequências diversas. Em regra, pode dizer-se que o concurso formal é Os §§ 1.° e 2.° do art. 69 são de entendimento imediato. Diz o primeiro
menos grave que o material. O primeiro compõe-se de ação única, ao passo que, no concurso material, quando a pena privativa de liberdade de um dos
que no segundo há pluralidade de ações, que indicam ainda mais a gravidade crimes não for suspensa, para os demais não será possível a substituição pre-
da conduta quando são diversas as violações legais1. vista no art. 44 do Código. O segundo afirma que, quando aplicadas duas ou
1. Nelson Hungria, em seu Anteprojeto (art. 61), não fazia distinção entre o concur -
mais penas restritivas de direitos, serão cumpridas simultaneamente, se pos-
so formal e o material. Preferimos o sistema de nossa lei. sível, ou sucessivamente, na impossibilidade.
172. Concurso formal. Ocorre quando o agente, mediante uma ação
(em sentido amplo), pratica dois ou mais crimes da mesma espécie ou de

2. Antolisei, Vazione, cit., p. 268.


272 PARTE GERAL DA PENA 273

espécie diversa. A atira contra B, mas vem a alcançar C, matando ambos. O parágrafo único do art. 70 reproduz uma construção jurisprudencial:
Certo indivíduo contaminado de moléstia venérea estupra uma donzela, ex- a pena resultante do concurso formal não pode ser superior a que seria apli-
pondo-a a perigo de contágio. Em ambas as hipóteses há concurso ideal, pois cada pelo cúmulo material.
com única ação o sujeito ativo praticou dois crimes: na primeira há
homogeneidade do objeto jurídico — a vida; ao passo que, no segundo, o 173. Crime continuado. É a última figura prevista por nosso diploma.
concurso é heterogéneo, dada a diversidade do bem jurídico — a liberdade Sua criação é geralmente atribuída aos práticos; porém alguns autores, como
sexual e a saúde. Massimo Punzo, citam fragmentos de Glosadores e Pós-Glosadores, onde se
A lei não se referiu à homogeneidade. Bastaria repetir a expressão do depara a origem da figura em questão. Reconhece, entretanto, ainda o mesmo
artigo — "idênticos ou não". Acreditamos ter havido esquecimento. Mais jurista que os práticos do 500 e do 600 lhe deram maior relevo, "diante da
preciso é o Código italiano: "... violar diversos dispositivos de lei ou praticar severidade das penas, especialmente para o furto" 5. Razão, assim, não falta
várias violações do mesmo dispositivo legal" (art. 81). No entanto, no item de todo ao insigne Carrara quando escreve que o crime continuado "deve sua
27 da Exposição de Motivos apresentada em 1940, o legislador nos adverte origem à benignidade dos Práticos, os quais, com seus estudos, tentaram evitar
do concurso homogéneo, dizendo residir na identidade das penas. a pena de morte cominada ao terceiro furto" 6. Foi, porém, o Código toscano
Na doutrina, separam-se os autores, uns dando ao concurso formal base que com mais precisão delineou os contornos da figura, tornando-se modelo
exclusivamente objetiva, enquanto outros a esta acrescentam o elemento sub- das legislações que o seguiram.
jetivo da unidade de desígnio. Defende, entre nós, esta opinião, o eminente Nem todos os Códigos o definem. Assim o argentino e o alemão, o que
Costa e Silva: "Em síntese: no sistema de nosso Código, o concurso formal não impede que os juristas germânicos se tenham dele ocupado com notório
exige unidade de ação ou omissão e unidade de desígnio" 3. carinho.
Acreditamos, entretanto, não ter sido essa a opinião de nossa lei, por-
O contrário acontece com as leis italianas que costumeiramente o
que, se a exigisse, não se compreende houvesse omitido esse requisito, na
definem.
primeira parte do artigo, máxime diante do precedente do Código de 1932,
que, no art. 66, § 3.°, referia-se expressamente a "uma só intenção". Divergem as doutrinas ao conceituá-lo. Na Itália predomina a teoria objetivo-
Tal requisito cria o escolho desse concurso no delito culposo, onde não subjetiva, em que se exige um requisito subjetivo. Com efeito, enquanto o
há desígnio ou propósito, sendo unicamente a ação causal querida, estando Código de Rocco fala em mesmo desígnio, o de Zanardelli e o toscano men-
ainda presente na memória de todos a injustiça de certas soluções, no império cionavam a mesma resolução.
do Código anterior. Reina, entretanto, discordância acerca do alcance desse elemento. Uns
O concurso formal tem sua característica na ação única. Como escreve acham que desígnio é deliberação; outros, ideação; e, ainda outros, dolo.
Aldo Moro: "Entre o concurso ideal e o real existe de comum a pluralidade Massimo Punzo, que expõe todas essas opiniões, acha que o legislador se
de eventos juridicamente relevantes, mas a diferença reside nisto: no concur- referiu aoprojeto ou propósito inicial de o agente conseguir um determina-
so real concorrem vários delitos; no ideal, só relações de um idêntico agir do bem1.
delituoso, com diversos eventos"4. A doutrina germânica ou objetiva prescinde da unidade de desígnio. No
Todavia essa distinção não tem razão de ser quando o agente, com uma terreno subjetivo contenta-se com o dolo ou a culpa. Deve haver homogeneidade
só ação ou omissão, busca obter mais de um evento danoso. É o que resolve da culpa (lato sensu), isto é, quando diante de idêntica realidade objetiva
a parte final do art. 70. O Código, não obstante a unidade de conduta do toma o agente resolução igual: ou dolosamente realizando o mesmo delito ou
delinquente, trata o caso como concurso material. Não haveria despropósi- se conduzindo com igual culpa (em sentido estrito). Como escreve Sauer, "el
to algum se essa parte final integrasse o art. 69, quando se definiu o concur-
so real.
5. M. Punzo, Reato continuato, 1951, p. 4 e 5.
3. Costa e Silva, Código Penal, cit., p. 299. 6. Carrara, Programma, cit., § 514.
4. Aldo Moro, Unità e pluralità di reati, 1951, p. 137. 7. M. Punzo, Reato, cit., p. 97.
274 PARTE GERAL DA PENA 275

delito continuado es una pluralidad de acciones naturales iguales, ligadas en superior a que resultaria no caso de cúmulo material; eb) o seu cumprimento
una unidad de delito por Ia unidad de culpabilidad e injusto" 8. não pode ser superior a trinta anos.
Considerando-se o caso clássico de crime continuado, em que o empre- Perante nossa lei, são elementos do crime continuado: pluralidade de
gado, em dias sucessivos, furta da gaveta do patrão várias quantias, a doutri- ações ou omissões; pluralidade de delitos da mesma espécie; e a continuação,
na alemã contenta-se com a identidade das ações e a homogeneidade subje- já que os delitos posteriores devem continuar o primeiro.
tiva, ou seja, o dolo, ao passo que a itálica investiga, além disso, o propósito Não deixa a lei ao arbítrio do juiz caracterizar a continuação, pois lhe
do agente: conseguir determinada importância, adquirir uma coisa, fazer uma dá, para orientá-lo, dados objetivos: condições de tempo, lugar, maneira de
viagem etc, enlaçando esse desígnio todas aquelas ações. Consequência dis- execução e outras semelhantes. Ocorre aqui o que se chama analogia intra
so é que — afirmam alguns — enquanto esta doutrina não admite a continua- legem: a lei faculta a investigação de circunstâncias que se assemelham às
ção no delito culposo, é este compreensível naquela. enunciadas e que podem revelar o delito continuado.
Mezger alinha os elementos da continuação na teoria objetiva: "Há de É mister serem os crimes da mesma espécie e como tal não se há de
exigirse unidad dei tipo básico, unidad dei bien jurídico lesionado, homogeneidad entender somente os previstos no mesmo artigo (tanto que o art. 71 se refere
de Ia ejecución y una conexión temporal adecuada, y en los ataques personales a penas diversas), mas também os integrados pelos mesmos elementos subje-
también identidad de Ia persona ofendida"9. Cremos que mais sinteticamente tivos e objetivos, como ocorre, v. g, com o furto com fraude e o estelionato,
se poderão alinhar como elementos: a) unidade de tipo; b) homogeneidade de quando a distância que os separa é mínima.
execução; c) certa conexão temporal; d) identidade de ofendido, tratando-se
de bens jurídicos pessoais. Dissemos que o Código filiou-se à doutrina teutônica, que prescinde da
unidade de desígnio. Entretanto juristas do tomo de Roberto Lyra — membro
Quanto ao último requisito, insistem os autores em sua presença, che- da Comissão elaboradora do Projeto do Código — Aníbal Bruno e Basileu
gando alguns a dizer que, a rigor, não existe crime continuado, mas o que há Garcia acham difícil que na apreciação do caso concreto não tenha o juiz de
são bens jurídicos que só por modo descontínuo podem ser ofendidos. As- investigar o elemento subjetivo do agente para concluir pela continuação 10.
sim, se um homem mata alguém e a seguir elimina outro, ainda que estejam Realmente a nós sempre nos pareceu que, diante da dificuldade de se distin-
presentes os demais requisitos da continuação, ela não se verifica: a morte da guir, no caso, entre um crime continuado e o concurso material, não se pode-
segunda vítima não foi continuação da morte da primeira; também não se ria desprezar o elemento subjetivo do desígnio". Isso é perfeitamente com-
dirá de um indivíduo, que com intervalo de horas estuprou duas moças, que preensível se se ponderar que a conexão temporal não está subordinada a
o segundo estupro foi continuação do anterior. prazo certo e preciso, podendo o mesmo lapso de tempo apresentar-se no
Com o objetivo de afastar as dúvidas geradas pelo Código de 1940, o crime continuado e no concurso real, que, como aquele, também pode ter
parágrafo único do art. 71 da reforma estabeleceu e de maneira expressa a homogeneidade objetiva (lugar, modo de execução etc). Será então necessá-
admissibilidade do reconhecimento da continuidade delitiva, ainda que atin- rio recorrer-se à unidade de resolução, para se apurar a unidade do aspecto
gidos bens personalíssimos. material do delito.
Por força do citado dispositivo, toda a discussão doutrinária e Três teorias existem acerca da natureza do crime continuado. A teoria
jurisprudencial tornou-se ociosa, já que possível o reconhecimento da con- da unidade real entende que a pluralidade de violações jurídicas forma um
tinuidade, ainda que diversas as vítimas e atingidos bens personalíssimos. ato delituoso único. A da ficção jurídica afirma também a existência da uni-
Contudo, se doloso e cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, o dade, porém esta é uma fictio júris; não é substancial, mas provém da von-
juiz "poderá" (indica faculdade e não dever), tendo em vista os elementos tade do legislador. A teoria mista nega a unidade ou pluralidade de violação,
norteadores do art. 59 do Código Penal, aumentar a pena de um dos crimes vendo antes um terceiro crime. Parece-nos, ao contrário do que sustenta o
até o triplo, observados dois princípios: a) a pena resultante não pode ser

8. Sauer, Derecho penal, cit., p. 346. 10. Roberto Lyra, Introdução, cit., p. 377; Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p.
9. Mezger, Criminologia, cit., p. 358. >; Aníbal Bruno, Direito penal, cit., t. 1, p. 679.
11. Magalhães Noronha, Dos crimes..., in Código Penal, cit., 1943, p. 49.
276 PARTE GERAL DA PENA 277

11 eminente Roberto Lyra12, que mais exata é a da ficção jurídica. No delito Como já ficou dito, o delito continuado pode ocorrer na culpa (stricto
continuado há multiplicidade de crimes — de cada vez o agente realiza o tipo sensu), v. g., se uma pessoa, por erro vencível, todos os dias, em vez de um
definido em lei — mas por política criminal considera-se que se trata de cri- medicamento, ministra um tóxico a outra, causando-lhe dano à saúde. Existe
me único. É esta teoria, aliás, a que está de acordo com as fontes históricas do a continuação aqui, como há no caso em que um homem, senhor de um grave
instituto, como já se viu. segredo de certa mulher, a possui por diversas vezes, sob ameaça de revelá-
O caráter unitário do delito continuado tem singular importância pelas lo. Em ambos os casos — lesão corporal e estupro — há pluralidade de ações,
consequências que disso decorrem, v. g., o prazo prescricional começa no dia constituindo crimes da mesma espécie, devendo os posteriores ser tidos como
em que cessar a continuação (art, 111,1); e a sentença condenatória faz com continuação do primeiro.
que ela cesse. 174. Sistemas de aplicação de penas. Lendo-se os arts. 69, 70 e 71 e
Nada impede a continuação entre o crime consumado e o tentado, que seus parágrafos, tem-se logo a atenção voltada para a cominação penal, veri-
é apenas a execução inicial do tipo. ficando-se, aliás, que ela não se faz do mesmo modo. É a fixação da pena
Não se deve confundir o crime continuado com o permanente. Este, uma das consequências mais importantes do concurso de delitos. Dois são os
como se escreveu, ocorre quando a consumação se protrai, dependente da objetivos do legislador: cuidar que nenhum crime fique impune e evitar que
vontade do sujeito ativo, tal qual o cárcere privado. Tanto não se confundem qualquer deles seja apenado mais de uma vez.
que o continuado pode existir no permanente. Assim, se uma pessoa em cár- Vários têm sido os sistemas propostos. Um é o do cúmulo material, em
cere privado, logrando fugir, é logo alcançada por seu detentor e novamente que cada crime é punido com sua pena (quot delicia totpoenae). Estas cumulam-
enclausurada, dá-se a continuação. se ou somam-se, aplicadas que são aos delitos que integram o concurso.
O Código, dados seus dizeres expressos, não permite dúvidas sobre a
12. Roberto Lyra, Introdução, cit., p. 380.
continuação, nos crimes omissivos.
N sentenciado, pois, ainda que conseguida com a primeira pena, terá que
ão tem cumprir as demais, que são inúteis.
mereci Modalidade desse sistema é o do cúmulo jurídico, consistente não na
do soma das penas concorrentes, mas na aplicação de única pena superior à mais
aplaus grave daquelas. Os inconvenientes desse sistema foram revelados pelo Códi-
os go de Zanardelli.
esse
Constitui a absorção outro princípio (poena major absorbet minorem):
sistem
aplica-se a pena mais grave, que, portanto, absorve as outras. Aduz-se, e com
a,
aponta razão, que ela importa injustiça frequentemente com a impunidade dos ou-
ndo-se tros delitos, já que não se pode ir além do máximo da pena mais grave.
contra Outro sistema existe: o da exasperação. Aplica-se a pena do crime mais
ele grave, que, entretanto, é aumentada ou elevada devido à presença dos outros
que delitos. Esse sistema {poena major cum exasperatione) tem recebido críticas
pode e louvores.
redund Nosso legislador não se fixou em um apenas. No art. 69 emprega o cúmulo
ar em material: "... aplicam-se cumulativamente as penas...". No art. 70, sur-^ge o
uma princípio da exasperação. Aplique-se a pena mais grave ou uma delas, quando
pena idênticas, e haverá sempre o aumento de um sexto até metade. Já na
total «segunda parte do artigo é o cúmulo material que volta à cena.
despro O princípio da exasperação é ainda adotado na figura unitária do crime
porcio Continuado: aplica-se uma das penas ou a mais grave, ocorrendo, entretanto,
nada, sempre o aumento de um sexto a dois terços.
pela
soma 175. Multa. No que diz respeito à multa, o art. 72 do Código reproduz
de o previsto no art. 52 da redação primitiva. A pena de multa não sofre efeito
peque cencursal, sendo, sempre, aplicada cumulativamente.
nas
penas
176. Limite das penas. Já mais de uma vez incidentemente tocamos no
relativ limite das penas, reservando-nos agora para considerar questão que se pode
as a apresentar no tocante às penas privativas de liberdade. Diz o art. 75 que em
infraç caso algum elas serão superiores a trinta anos, o que, sem dúvida, pode cau
ões de sar embaraços.
somen
os; Interpretando-o, a l.a Conferência de Desembargadores firmou: "Em
que caso algum poderá a duração das penas privativas de liberdade exceder de
ele 30 anos; verificada nova condenação, o restante da primeira pena é acresci-
não
está de
acordo
com a
finalid
ade da
readap
tação
do
278 PARTE GERAL DA PENA 279

do à pena posteriormente imposta, mas de sorte que a sua soma não ultrapas- Outro princípio é o da <o(k
se 30 anos"13. e ocorre, segundo ainda Grispigni, quando
Significa isso que, se um sentenciado, no último dia de sua pena de
trinta anos, cometer no presídio um crime e for novamente condenado a trinta Assim, c^ÊÊÊItláÊÊÊÊÊt0KKfÊKÊH^IKKKÊÊÊ9f^94M^miÊf^i^s. Há aí crime
anos, não será computado nesta nova pena aquele dia que resta da outra. progressivo porque em virtude de único ato de vontade o agente, de uma
Mas mude-se o caso, supondo-se que o segundo crime ocorra logo nos conduta inicial, já constituindo um tipo, passa, no mesmo contexto de ação,
primeiros dias da primeira condenação. Agora, a pena desta — vinte e nove a atividade posterior que realiza uma forma de crime mais grave, que inclui
anos, onze meses e dias — não poderia ser acrescida à segunda de trinta anos, entre os seus elementos constitutivos aquele delito mais simples e menos grave.
pois sua soma daria quase sessenta anos. Na consunção, o crime consuntivo é como que o vértice da montanha que se
alcança, passando pela encosta do crime consumido.
Todavia, se isso se fizer, ter-se-á de antemão assegurado a impunidade
ao reincidente, por todos os crimes que cometer num presídio, desde que O princípio da consunção aplica-se não só ao crime progressivo, mas
esteja condenado a trinta anos. também ao complexo.
A conclusão ainda é mais estranha se ponderarmos que o reincidente Devemos, aqui, nos referir à ocorrência de tipos especiais, como os cri-
que comete crime em liberdade está sujeito ao cumprimento da nova pena, mes privilegiados e os qualificados, tal qual sucede com o art. 155, § 2.°
seja ela qual for. Por que, pois, regime diferente para o que reincide, estando (furto mínimo), e o art. 155, § 4.°, II (escalada), ou com o homicídio do § 1."
na prisão, cuja periculosidade, aliás, se revela muito maior? do art. 121 (violenta emoção logo em seguida a injusta provocação do ofen-
A verdade é que a cláusula em caso algum é demasia, e o dispositivo dido) e o do § 2.°, III, do mesmo dispositivo (asfixia), quando o crime quali-
exige modificação14. ficado exclui o privilegiado, como em outro livro já sustentamos a respeito
do primeiro delito16, bastando para tanto atentar-se à disposição técnica dos
177. Concurso de leis. MsUlllu1 parágrafos, para se ver que os primeiros só se aplicam aos tipos fundamentais
PS. 8LUUL LfHlllllIll llUlW antes enunciados.
OU O terceiro princípio é o da QKÊHtfttNQÊHlÊè. Diz-se qBB^WlRrtPfteifl
ta
A-------------!„

Em torno do assunto giram três princípios: dai


O primeiro é enunciado pela fórmula! V. Prevalece, então, a regra
________[Em tal caso, às vezes, a própria norma declara que
só será aplicada se o fato não constituir crime mais grave, tal qual ocorre com
p(chamados especializantes), em virtude dos quais os delitos definidos no art. 177, § l.c. Há aqui subsidiariedade explícita. É ela
jão15. Em virtude desse princípio, v. g., o (os implícita quando o fato incriminado pela norma subsidiária "entra como ele-
tipos privilegiados ou qualificados mento componente ou agravante especial de fato incriminado pela outra nor-
afastam 0sfundamentais))^tHtÊÍHÍllÊÊmÊtÊ^àÊÊÁÊÊííÍM^UBÊèÊíÉÊà^ÊÍ^^ ma, de modo que a presença do último exclui a simultânea punição do pri-
meiro"18. Assim, o estupro exclui o constrangimento ilegal e a lesão corporal
leve; o roubo exclui o furto e a violência física ou grave ameaça.
13. Anais da 1." Conferência de Desembargadores, p. 207.
14. No Anteprojeto Nelson Hungria (art. 63), já não se notava a expressão "em caso 16. Crimes contra o património, ir Código Penal, cit., 1958, v. 5, 1.* Parte, p.
136 e s.
algum", mas a verdade é que o dispositivo podia ser mais explícito.
15. Grispigni, Diritto penale, cit., v. 1, p. 504. 16. Asúa, La ley, cit., p. 169.
17. Nelson Hungria, Novas questões, cit., p. 120.
280 PARTE GERAL DA PENA 281

A subsidiariedade aproxima-se da especialidade, porém diferem porque se-ia com a necessidade prática de avaliação do fato. Encontrar-nos-íamos
naquela, ao contrário do que sucede nesta, os fatos previstos em uma e outra em colisão com as mais elementares exigências de justiça"23.
norma não estão em relação de espécie e género, e, se a pena do tipo principal Na Itália, por exemplo, na concorrência de falso e estelionato não se
(sempre mais grave que a do tipo subsidiário) é excluída por qualquer causa, reconhece que o delito mais grave absorve o outro, ou que o estelionato ex-
a pena do tipo subsidiário pode apresentar-se como "soldado de reserva" e clui o falso por ser este meio para a sua prática. O reconhecimento de ambos
aplicar-se pelo residuum — diz Hungria19. os crimes é jurisprudência costante o pacifica1*.
Há, ainda, segundo alguns juristas, o princípio da altematividade, que Todavia força é reconhecer que os princípios aqui aludidos, inspirados
se apresenta quando dois dispositivos legais se repelem com referência ao em razões de equidade e justiça, têm geralmente aceitação na doutrina e na
mesmo fato. Tem-se objetado com procedência que tal princípio não interes- jurisprudência25.
sa ao concurso de leis, já que, se os requisitos do delito estão em contradição,
significa que as duas leis não se podem aplicar a um mesmo fato.
A matéria do concurso ou conflito aparente de normas é bastante con-
trovertida.
Assim é que Antolisei acha insubsistente qualquer construção jurídica
com fundamento na consunção e na subsidiariedade, e rejeita-as na ausência
de expressa disposição legal, como acontece com nosso Código 20. Bettiol
fala que "concurso de normas não se pode ter, quando os fatos são vários ou
diversos"21. Certo é que muitos confundem a concorrência de fatos diversos
com concurso de normas. Assim, quando se dá o furto e o estelionato da
venda da res furtiva a terceiro de boa-fé. Há dois delitos perfeitamente distin-
tos e consumados diferentemente no tempo e no espaço. Do que se poderia
falar, então, seria da impunidade de um fato punido. Mas mesmo este princí-
pio, para muitos, é inaplicável à hipótese, como frisa Grispigni: "Dito prin-
cípio — como se falou — não encontra aplicação, quando, não obstante in-
terpor-se entre os dois fatos relação de meio e fim (crimes conexos), trata-se
de ofensa a bens diversos, ou ao mesmo bem, mas pertencente a pessoas
diversas22.
É o que ocorre no exemplo por nós prefigurado, em que o furto recai
sobre a coisa subtraída, e a venda fraudulenta, sobre o dinheiro pago pelo
terceiro de boa-fé.
Registre-se ainda que mesmo para os que aceitam os princípios do con-
curso de normas, seu fundamento repousa não em uma razão ontológica, mas
de equidade: "... não porque isto seja imposto por um rígido cânone de
lógica, mas porque a aplicação de todas as normas concorrentes chocar-
23. Bettiol, Diritto penale, cit., p. 419.
19. Nelson Hungria, Novas questões, cit., p. 120. 24. Rivista Italiana di Diritto Penale, 1938, p. 354; 1939, p. 235 e 499; 1949, p. 378;
1953, p. 670; 1954, p. 423; 1956, p. 356.
20. Rivista Italiana di Diritto Penale, 1948, p. 8, 9, 12 e 13.
25. O Anteprojeto Nelson Hungria passava para o terreno normativo a matéria, con
21. Bettiol, Diritto penale, cit., p. 318. siderando, no art. 5.° e parágrafo único, os princípios aqui expostos, o que nos parecia de
22. Grispigni, Diritto penale, cit., v. 1, p. 420. todo procedente.
DA PENA 283

SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA por falta de tempo necessário à terapêutica penal, mas possui também o de
animar o delinquente a conduta correta, a procedimento morigerado e hones-
to, não se compreende se restrinja tão-só a pena detentiva. Costa e Silva acha
SUMÁRIO: 178. Considerações gerais. 179. Histórico. 180. Definição e antiquado o ponto de vista do Código'.
natureza. 181. Pressupostos. 182. Condições. 183. Revogação. 184. Inexecução
da pena. A verdade é que diversas leis o estendem à pena pecuniária, como fa-
zem o Código português (art. 52), o italiano (art. 163), o argentino (art. 26)
e outros. O suíço (art. 41) aplica-o às penas acessórias.
178. Considerações gerais. Instituto de grande alcance, certamente, é o Cremos preferível esse critério.
que na prática forense se denomina sursis, nome sem dúvida tirado da Lei Note-se que a suspensão condicional passou a atuar como uma verda-
Béranger, na França, que se referia a "sursis à Féxécution de Ia peine". Dois deira sanção, como se verifica da Lei de Execução, que a colocou no Título
são os tipos que oferece: o da suspensão do pronunciamento da sentença e o II nominado como "Da execução das penas em espécie", tornando uma ver-
da suspensão da condenação. Mereceu o último nossas preferências dadeira pena restritiva de direito, tanto que, no primeiro ano, o condenado
justificadamente, pois, se é certo que não evita a condenação do denunciado, deverá prestar serviços comunitários ou ter limitado o fim de semana (art. 78,
tem a vantagem de não impedir a ação da justiça durante o prazo estabeleci- § 1-°).
do, o que, atendendo-se às nossas condições peculiares, redundaria quase
179. Histórico. Divergem os autores no apontar as fontes do instituto.
sempre no desaparecimento das provas.
Uns fazem-no remontar aos Estados Unidos da América do Norte, na metade
Como geralmente acontece, a princípio teve o instituto opositores, que do século passado, porém aí se tratava da suspensão da sentença (suspension
alegavam principalmente que ele iria ferir a certeza da punição e dar ensancha ofthe sentence) e não da execução da condenação, como se dá entre nós.
ao arbítrio judicial. A prática, porém, demonstrou serem infundados tais te-
O instituto, nos moldes do que possuímos, aparece na França com o
mores, e, ao contrário, grandes vantagens trouxe na aplicação da justiça, bastando
Projeto Béranger, de 26 de maio de 1884, que foi origem do chamado sistema
para isso apontar a maior delas: evitar o contato de réus condenados por cri- continental europeu, ao qual nos filiamos.
me de pequena monta com delinquentes de periculosidade estremada. Favo-
receu até a certeza da punição, impedindo que juizes temerosos da promis- Entre nós, ele surge com o Decreto n. 16.588, de 6 de setembro de
cuidade dos delinquentes, nas prisões, absolvessem frequentemente acusa- 1924, sendo Ministro da Justiça João Luís Alves. Como o próprio diploma
dos de crimes leves e que nenhuma periculosidade apresentavam. reza, ele "estabelece a condenação condicional em matéria penal", decla-
rando, aliás, no § 2.° do art. 1.°, que "será a condenação considerada
Nossos legisladores, ao adotarem a suspensão condicional da pena, apro- inexistente".
ximaram-se do sistema a que podemos chamar belga-francês, que consiste
em o juiz proferir a condenação, suspendendo, ao mesmo tempo, a execução Caminho diverso adotou o legislador atual: não se trata de condenação
sob condição e que se torna inexistente, preenchidas as obrigações impostas;
penal por determinado prazo e mediante condições.
a condenação persiste, não desaparece; o que não se efetiva é a execução da
Nossa lei limitou o instituto à pena privativa de liberdade; não o esten- pena. Isso, aliás, é bem claro nos arts. 708 e 709 do Código de Processo
deu à multa. A respeito há divergência na doutrina. Se ele não tem exclusi- Penal, o primeiro dizendo: "Expirado o prazo de suspensão ou a prorrogação,
vamente o escopo de evitar a promiscuidade das prisões e a sua nocividade, sem que tenha ocorrido motivo de revogação, a pena privativa de liberdade
será declarada extinta"; e o segundo: "A condenação será inscrita com a nota
de suspensão, em livros especiais...".
A orientação tomada pelo Código já fora esposada pelo Projeto Sá
Pereira.

1. Costa e Silva, Código Penal, cit., p. 319.


284 PARTE GERAL DA PENA 285

180. Definição e natureza. É a suspensão condicional da pena medida citando Capitant, de nada adianta dizer-se que é um benefício, pois este é
jurisdicional que determina o sobrestamento da pena, preenchidos que sejam também direito6.
certos pressupostos legais e mediante determinadas condições impostas pelo Tanto é obrigatória a concessão do sursis, uma vez preenchidos os re-
juiz. quisitos legais, e daí, portanto, ser um direito do sentenciado, que o art. 697
Manzini define-a como "uma decisão jurisdicional, com a qual o juiz, do Código de Processo Penal, com a nova redação que lhe atribui a Lei n.
ao mesmo tempo que declara a culpabilidade e inflige a pena (reconhecendo, 6.416, ordena, in verbis: "O juiz ou tribunal, na decisão que aplicar pena
assim, o poder de punir do Estado, no caso individual), concede ao condena- privativa de liberdade não superior a dois anos, deverá pronunciar-se,
do, de quem pode presumir a resipiscência, aquelas possibilidades jurídicas, motivadamente, sobre a suspensão condicional, quer a conceda, quer a denegue".
com cujo êxito se atuará a renúncia do Estado, ao poder de realizar a própria E que, como ensina Manzini, ao direito do acusado é correlativo o dever do
pretensão punitiva, renúncia feita legislativa e preventivamente, mas subordi- juiz de responder ao pedido regularmente feito1.
nada a uma escolha limitada do juiz e à verificação de determinadas condi- Não é, pois, discricionária a concessão.
ções exigidas pela lei ou oponíveis pelo Estado"2. Quanto à natureza do instituto, ocorre ainda ponderar que é a de condi-
É um instituto de direito substantivo, não pela simples colocação no ção resolutiva, já que a execução da pena fica subordinada a acontecimento
Código Penal, mas pela natureza jurídica de suas relações, isto é, pelos efei- futuro. Não cumprida a cláusula imposta, a indulgência deixa de haver lugar,
tos que provoca. Como escreve Vannini, são de direito penal substantivo as executando-se a pena. Difere, portanto, do indulto, que é perdão definitivo, e
normas que se referem ao nascimento, modificação e extinção da relação da prescrição — perda do direito de agir, pela negligência8.
jurídica punitiva3.
181. Pressupostos. Vê-se pelo art. 77 que a concessão do benefício é
Trata-se de um direito do condenado. O assunto é bastante controverti- subordinada a duas ordens de pressupostos: objetivos e subjetivos.
do, porém acreditamos estarem com a razão os que pensam desse modo. A) À primeira categoria correspondem a natureza e a quantidade da pena.
Satisfazendo o réu a todos os requisitos legais e denegando-o o juiz, pode ele A suspensão, por primeiro, somente é aplicável à pena privativa de liberdade,
até impetrar habeas corpus, conforme têm decidido o Tribunal deste Estado como deixa claro o art. 80 do Código Penal. A recente Lei n. 9.714, de 25 de
e o Pretório Excelso4. novembro de 1998, acrescentou ao §2.° do art. 77 mais uma hipótese, traduzida
É exato que o art. 77 fala que a pena pode ser suspensa. Isso, entretanto, pela expressão "ou razões de saúde justifiquem a suspensão". A introdução
não significa que o juiz possa arbitrariamente negá-lo. O que se quer dizer é desse dispositivo visa retirar a obrigatoriedade de se encarcerar, por não ha-
que, de acordo com o sistema de nossas leis penais, o juiz tem liberdade de ver a possibilidade da suspensão da pena, pessoas com enfermidades graves,
apreciação, formando seu íntimo convencimento para decidir. E isso não apenas doentes terminais ou então com dificuldade de locomoção, pessoas estas que
no sursis, mas sempre que se deve pronunciar. não tinham no presídio qualquer tratamento para seu triste estado de saúde.
Portanto, ao lado dos idosos, a legislação nova apresenta mais uma hipótese,
Trata-se de um direito, como escreve José Frederico Marques, pois,
tornando possível a suspensão da pena não superior a quatro anos por enfer-
"ampliando o campo do status libertatis com o sursis, este se torna um direi-
midade. Depois, cabível somente às condenações até dois anos, salvo a exce-
to público subjetivo de liberdade e cujo reconhecimento o réu pode preten- ção prevista no art. 77, § 2.°. Este dispositivo diz respeito à possibilidade da
der reconhecido em juízo"5. Como ainda fala o mencionado desembargador, pena privativa de liberdade ser suspensa até a condenação por quatro anos,
quando o condenado for maior de setenta anos de idade. Por fim, não pode
2. Manzini, Trattato, cit., v. 3. beneficiar quem seja reincidente em crime doloso (art. 77, I).
3. Vannini, in Ugo Conti, // Códice Penale illustrato articolo per articolo, 1934, v.
1, p. 666. 6. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 1, p. 274.
4. RT, 166:500, 169:122, 172:96; Revista do Supremo Tribunal Federal, 85:477 e 7. Manzini, Trattato, cit., v. 3, p. 594.
509. 8. F. Whitaker, Condenação condicional, 1920, p. 11.
5. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 1, p. 274.
286 PARTE GERAL DA PENA 287

B) A segunda categoria diz respeito à personalidade do condenado. Através trás, expressamente previstas, como a proibição de frequentar determina-
do exame dos requisitos enumerados (art. 77, II), que na verdade correspondem dos locais, de ausentar-se da comarca, comparecimento obrigatório mensal a
aos fixadores da pena-base (art. 59), o julgador verificará a conveniência ou juízo etc.
não da concessão, além de não ser recomendável a transformação da privati- Portanto, no tocante às condições obrigatórias, o juiz deverá, ao conce-
va de liberdade em outra substitutiva (art. 77, III). der o sursis, fazer a escolha entre as hipóteses previstas nos §§ 1.° e 2.° do art.
Com efeito, a lei manda que se atenda aos antecedentes do condenado. 78, impondo uma das três para o primeiro ano: prestação de serviços comuni-
Não apenas os judiciários, mas também a vida pregressa, com os anteceden- tários ou limitação de fins de semana ou as previstas no § 2.° do art. 78.
tes familiares e sociais. Consideram-se também: a personalidade, isto é, ca- B) Além das obrigatórias, outras podem ser impostas, facultativas, des-
ráter, índole etc; os motivos, que são as razões por que a vontade se determi- de que adequadas e relacionadas com o fato e de acordo com as condições
na e que constituem a pedra de toque da personalidade; e as circunstâncias, pessoais do condenado. É o que estabelece o art. 79 do Código Penal.
que rodeiam o delito e que se referem ao modo de agir, atitude durante o fato
etc, tudo, aliás, como foi exposto no n. 163. 183. Revogação. A suspensão da pena é condicional, donde natural-
É o sursis medida de política criminal, que tem o fim de estimular o mente pode ser revogada.
condenado a viver, doravante, de acordo com os imperativos sociais, crista- Duas são as espécies de revogação: obrigatória e facultativa.
lizados na lei penal, donde, logicamente, para ser concedido é necessário Ocorre a revogação obrigatória quando, no decurso do período de pro-
haver convicção de que a semente será lançada em bom terreno. va, o condenado beneficiado sofrer nova pena, em sentença irrecorrível, por
Infelizmente este requisito legal não merece grande consideração na prática. Em crime doloso.
regra, permitindo-o a pena, contenta-se com a inexistência de condenação Segundo o art. 81, I, a revogação dar-se-á em caso de condenação
sofrida. Não está certo. O juiz deve fazer o estudo psicológico do réu, irrecorrível, durante o período probatório, a pena privativa de liberdade, por
através do processo, e exigir documentos que reflitam sua conduta social ou crime doloso.
vida anteacta. Sem isso, muito mal se poderá dizer convencido de que ele não Tratando-se de nova condenação, há lugar a pergunta: pode ela ser a
tornará a delinqíiir. Concisa e precisamente diz o Código suíço que o sursis proferida em sentença estrangeira?
deve ser concedido se os antecedentes e o caráter do condenado fazem prever
Damásio E. de Jesus, referindo-se ao tema, disserta: "Não pode ser re-
que esta medida o dissuadirá de cometer novos crimes ou delitos (art. 41).
vogado o sursis, pois o art. 81 não prevê a hipótese. Tratando-se de norma
Não se tomando essa cautela legal, arrisca-se a desmoralizar um instituto de
que permite restrição ao direito penal de liberdade do beneficiário, não pode
evidente necessidade e relevantes efeitos. ser empregada a analogia e nem a interpretação extensiva. Quanto a esta, os
182. Condições. A suspensão da pena por prazo que vai de dois a quatro métodos gramatical e teleológico não permitem a conclusão de que a lei quis
anos (art. 77) fica subordinada a condições legais (obrigatórias) ou judiciais referir-se no art. 81,1, à sentença nacional ou estrangeira. Daí a impossibili-
dade de extensão da norma restritiva de liberdade"9.
(facultativas) que devem ser especificadas na sentença.
A) As condições legais estão previstas no art. 78 do Código Penal. Realmente, os efeitos da sentença estrangeira constituem exceção que
não pode ser admitida no silêncio da lei. Trata-se de direito estrito. Veja-se
No período de prova, no primeiro ano, o condenado deverá prestar ser-
Manzini: "Entende-se que a condenação por um novo crime deve ser pronun-
viços comunitários (art. 46) ou submeter-se à limitação de fins de semana ciada por juiz italiano. As condenações estrangeiras, ainda que por fatos
(art. 48). As condições confundem-se com duas modalidades de penas inibidoras considerados crimes por nossa lei, não produzem efeitos jurídicos na Itália,
de direito. fora dos casos contemplados no art. 12 do Código Penal"10. Lei expressa,
Contudo, diz o § 2.° do art. 78, se houver reparado o dano, salvo a im- portanto.
possibilidade de fazê-lo, e as circunstâncias norteadoras da fixação da pena-
base (art. 59) forem favoráveis, as condições anteriores (prestação de serviço 9. Damásio E. de Jesus, O novo sistema penal, 1977.
comunitário e limitação de fins de semana) podem ser substituídas por ou- 10. Manzini, Trattato, cit., v. 3, p. 606.
288 PARTE GERAL DA PENA 289

A nova condenação por crime tanto se refere ao anterior como ao pos- vogação, a pena privativa de liberdade será declarada extinta". Vê-se, portan-
terior ao delito em que foi o sursis concedido. Não é só a reincidência que o to, que o que se extingue é tão-somente a pena privativa de liberdade. Não
impede: a lei não faz distinção. Não há dois "sursis", como deixa claro o art. vacilou a esse respeito o legislador, visto que no art. 81, II, do Código Penal,
81, I. Pode ocorrer que, por qualquer circunstância, um crime anterior seja coerente com o que dispusera no art. 80, declarou que o sursis é revogado se
apenado quando o réu estiver em gozo de sursis e, então, por força do inc. I o beneficiário, solvente, frustra o pagamento da multa, ou não efetua, sem
do art. 81, ele será revogado; o mesmo se dará se for posterior o delito. A motivo justificado, a reparação do dano. No art. 50, § 1.°, c, também presen-
disposição genérica do referido inciso não diz outra coisa. ciamos a lei se ocupando da pena de multa, embora concedida a suspensão
A lei é rigorosa, sem dúvida, máxime quando se pondera que, havendo condicional da privativa de liberdade.
conexidade entre dois crimes objetos de único processo, e autorizando suas De tudo isso se conclui que, tendo o sursis por objeto a pena que tolhe
penas a suspensão, pode esta ser concedida, o que não ocorrerá quando os a liberdade ao indivíduo, o cumprimento das condições impostas por ele só
mesmos delitos forem processados separadamente. pode extinguir essa pena, como dispõe o mencionado art. 82 do Código Penal
Ocorre ainda, em duas outras hipóteses: frustra, embora solvente, o e como diz expressamente o aludido art. 708 do Código de Processo, que,
pagamento da pena de multa ou não repara o dano e descumpre as condições aliás, é corroborado por várias outras disposições dessa lei.
obrigatórias impostas pelo art. 78, § 1.°. Ora, se é tão-somente a pena em questão que se extingue, continuando
A revogação torna-se facultativa em duas hipóteses: por descumprimento as outras, é porque existe uma condenação que as impôs.
de qualquer outra condição que não a prevista no art. 78, § 1.°, ou em razão
de nova condenação em crime culposo ou contravenção, recebendo pena pri-
vativa de liberdade ou restritiva de direito (art. 81, § 1.°).
Em tais hipóteses permite o § 3.° do art. 81 ao juiz dilatar o período de
prova até o máximo, se este não foi fixado, ao invés de revogar o benefício.
Tolera-se ainda a liberdade do condenado, mas aumenta-se o prazo, durante
o qual ele fica sujeito à justiça.
A prorrogação desse lapso de prova é obrigatória, nos termos do § 2.°
do art. 81, sempre que, durante esse período, o condenado estiver sendo pro-
cessado por outro crime ou contravenção. Essa prorrogação, como se vê do
citado dispositivo, só tem um limite: o do julgamento definitivo da nova in-
fração. Injusto seria revogar o sursis tão-só pelo fato de outro processo, do
qual o réu pode ser absolvido; ineficiente dá-lo por cumprido (pela expiração
do prazo fixado) quando há suspeita veemente, quando não certeza, de não
ser ele digno do benefício.
184. Inexecução da pena. Preceitua o art. 82 do Código Penal que, "ex-
pirado o prazo sem que tenha havido revogação, considera-se extinta a pena
privativa de liberdade". E, se agora lermos o art. 80 e se observarmos que ele
declara não abranger a suspensão a multa e a pena restritiva de direitos, che-
garemos à conclusão de que o sursis não é causa de extinção de punibilidade,
mas sim incidente de execução da pena privativa de liberdade, que é suspensa
condicionalmente.
Leia-se, agora, o art. 708 do Código de Processo Penal: "Expirado o
prazo de suspensão ou a prorrogação, sem que tenha ocorrido motivo de re-
DA PENA 291

XI Infelizmente, em grande número de casos é o que se vê. Condenados a


penas de três ou quatro anos de reclusão, dos quais cumpridos pouco mais de
LIVRAMENTO CONDICIONAL ano e meio em cadeia do interior do Estado, pedem livramento condicional,
exibindo um atestado do carceiro... como prova de readaptação à vida em
sociedade.
SUMÁRIO: 185. Considerações preliminares. 186. Definição. Natureza.
É de grande alcance o instituto do livramento condicional, porém exige
Histórico. 187. Pressupostos. 188. Concessão do livramento condicional. 189.
Revogação do livramento condicional. 190. Incompatibilidade do livramen to
aparelhamento competente — não só o das penitenciárias como também o
condicional. A expulsão de estrangeiro. relativo à fiscalização e assistência na vida em liberdade — para que possa
surtir os desejados efeitos.
Como o sursis, é um instituto que atinge um dos caracteres da pena —
a inderrogabilidade — sendo, portanto, necessário que a concessão se firme
185. Considerações preliminares. É o livramento condicional, em nos-
em diagnósticos e prognósticos crimínológicos seguros e animadores para
so diploma substantivo, a última fase de cumprimento da pena. Adotando,
que aquela não se desmoralize e abastarde.
como já vimos, um sistema progressivo, em que a pena oferece várias etapas
que vão sendo paulatinamente conquistadas pelo sentenciado, é a da liberda- 186. Definição. Natureza. Histórico. O livramento condicional é a con-
de sob condição a derradeira. cessão, pelo poder jurisdicional, da liberdade antecipada ao condenado, me-
Se a pena não é expiação somente e se, sobretudo, não é vingança, mas diante a existência de pressupostos, e condicionada a determinadas exigên-
tem caráter utilitário, que é a recuperação do delinquente, reajustando-o e cias durante o restante da pena, que deveria cumprir preso.
readaptando-o à vida em sociedade, compreende-se perfeitamente que se lhe É um direito do sentenciado estreitamente ligado à sua liberdade; direito
antecipe a liberdade, para que, ainda aqui, seja ele observado, já agora em de não cumprir o total da pena imposta, pelo preenchimento de requisitos
suas condições normais de vida, para se concluir mais seguramente por sua legais. Com acerto, escreve Nelson Hungria: "O livramento condicional é,
readaptação. em relação ao condenado, inquestionavelmente um direito: direito ao benefí-
É o livramento condicional medida de caráter administrativo de cio, à recompensa da liberdade antecipada. Ao cometer o crime no regime de
individualização da pena, pois incumbe aos funcionários — desde o diretor uma lei penal que concede o livramento, surge para o réu a obrigação de
até o simples guarda — a observação direta e constante do sentenciado, fa- sofrer a pena que lhe venha a ser imposta, mas também, simultaneamente, o
zendo-se, através de estudos científicos e considerações quanto ao comporta- direito de, ao fim de certo tempo, e dadas as condições prefixadas na lei,
obter que lhe seja dispensado o efetivo cumprimento do restante da pena"1.
mento, adaptação ao trabalho etc, juízo sobre sua personalidade e prognós-
tico acerca da possibilidade de retornar, antes do término da pena, à vida Comumente se fala que ele é um benefício, porém, como para o sursis,
social. não significa isso que não seja um direito, como lá ficou dito.
É a individualização administrativa precedida pela legal e pela judiciária, É um incidente de execução da pena e, por isso, concedido pelo Juiz das
como já tivemos ocasião de dizer. Torna-se, então, indispensável que o Esta- Execuções, em processo próprio, e mediante sentença que atinge a condenatória,
do adote providências necessárias para que essa individualização se faça de não mais prevalecendo o tempo de prisão nela prefixado, por ser, em parte,
modo preciso e eficiente, devolvendo à sociedade um elemento que, tudo cumprida pelo sentenciado em liberdade fiscalizada.
indica, se integrará na vida útil, e não um reincidente em potência que, dentro Não há muita certeza quanto às origens do instituto. Atribui-se geral-
em dias ou meses, retornará à prisão. mente sua concepção a Bonneville de Marsangy, autor do livro Les diverses
institutions complémentaires du système pénitentiaire, quando então já lhe
fazia referências. Todavia observa Garraud que, "desde o ano de 1832, uma

1. Nelson Hungria, Novas questões, cit., p. 143.


292 PARTE GERAL DA PENA 293

circular ministerial de 3 de dezembro recomendava seu emprego a jovens 2) O segundo requisito objetivo é o tempo do cumprimento da pena:
presos. Alguns anos mais tarde, era ele aplicado a menores de dezesseis anos, mais de um terço, se não reincidente em crime doloso (CP, art. 83,1), e me
encerrados na prisão celular de La Roquette". Acrescenta que a experiência tade, se reincidente em crime doloso (CP, art. 83, II). No caso dos crimes
teve lugar em Paris; portanto em condições bastante desfavoráveis, mas lo- hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e
grou inteiro sucesso, sendo mais tarde aplicado em outros lugares, notadamente terrorismo, o prazo alonga-se para mais de dois terços, se não reincidente em
em Lion2. crime de tal natureza. É o que diz o art. 83, V, do Código Penal, com a reda
Daí se difundiu pela Europa, cabendo à Inglaterra a aplicação em larga ção dada pela Lei n. 8.072.
escala. 3) O terceiro requisito é a reparação do dano, se possível (CP, art.
Em nosso país foi o instituto previsto pelo Código de 1890 (arts. 50 a 83, IV).
52), embora somente em 6 de novembro de 1924, pelo Decreto n. 16.665, B) O pressuposto subjetivo está contido no inc. III do art. 83 e diz res-
tenha recebido regulamentação, incorporado à Consolidação das Leis Penais. peito ao bom comportamento carcerário e à aptidão para prover sua subsis-
Podia ser concedido a todos os condenados a penas restritivas de liberdade, tência através de trabalho honesto.
por tempo não menor de quatro anos de prisão de qualquer natureza, desde
que se verificassem as condições seguintes: a) cumprimento de mais da metade Pressuposto subjetivo é o bom comportamento carcerário.
da pena; b) bom comportamento durante o tempo da prisão; c) cumpri- Ainda aqui incumbe advertência preliminar: não se cinge o bom com-
mento, pelo menos, de uma quarta parte da pena, em penitenciária agrícola portamento à falta de transgressões disciplinares. Não se trata de inércia, mas
ou em serviços externos de utilidade pública. de conduta militante. É por isso que o Código de Processo Penal determina
O atual Código, tanto pela redação primitiva como pela reforma, deu ao diretor do estabelecimento penal minucioso relatório ao Conselho Peni-
feição mais definida ao instituto, pois são para ele características: a) integrar tenciário, onde informe sobre o caráter do sentenciado, revelado por sua con-
um sistema penitenciário progressivo; b) não ser um benefício, porém medi- duta na prisão; procedimento nesta, aplicação ao trabalho e trato com os
da finalística de um plano de política criminal; c) pressupor a existência de companheiros e funcionários do estabelecimento; relações, quer com a famí-
indivíduo que se revelou desajustado à ordem social, mas cuja periculosidade lia, quer com estranhos (visitas, correspondência). É o que impõe o art. 714,
já cessou; d) ser antecipação da liberdade, a título precário, ficando o senten- I, II e III.
ciado sujeito a condições e sob fiscalização. Repetimos: boa conduta não é apenas não haver brigado com compa-
nheiros, desacatado guarda, ou se entregado ao comércio ou uso de tóxicos
187. Pressupostos. Os pressupostos para a concessão do livramento no presídio... Com a costumeira oportunidade escreve Roberto Lyra: "A pro-
condicional, tal como a suspensão, são de duas ordens: objetivos e subjetivos. va do procedimento não se pode reduzir ao atestado negativo de transgres-
A) Os pressupostos objetivos são: sões disciplinares, impondo-se documentação que atribua à conduta forma
1) Uma pena privativa de liberdade imposta, igual ou superior a dois expressa, militante, inconfundível. Â prova negativa independeria d^exame,
anos. O réu condenado à reclusão ou detenção por prazo inferior a dois anos expondo o julgamento à indiferença generalizadora, à simplicidade vaga, à
pode obter o sursis; por prazo igual pode obter o sursis ou livramento condi- abstenção superficial". E em outra página: "Toda a vida do sentenciado deve
cional; por fim, condenação superior a dois anos enseja o livramento condi- ser dominada e discriminada para o julgamento da conduta. Não é lícito so-
cional. negar qualquer elemento ao Conselho Penitenciário e ao juiz, seja a que pre-
texto for"3.
Uma exceção: a condenação por prazo menor que dois anos que não
receba o sursis, em razão da reincidência em crime doloso, permite o livra- A liberdade do sentenciado é antecipada e, portanto, nada mais natural
mento condicional desde que cumprida metade da pena. E o que deixa claro do que saber-se se está em condições de levar vida honesta e útil. Donde,
o art. 83, II, do Código Penal. então, mais esse pressuposto subjetivo: "Aptidão para prover à própria sub-
sistência mediante trabalho honesto". Daí o impor ainda o diploma proces-
2. Garraud, Traité théorique et pratique du dwit penal français, 1914, v. 2, p. 190
e 192. 3. Roberto Lyra, Introdução, cit., p. 419 e 420.
294 PARTE GERAL DA PENA 295

suai que aquele relatório informe acerca do grau de instrução, aplicação e sas condições, pois não se acha em contato diário com o detento. Ademais,
aptidão profissional, indicando os serviços em que haja sido empregado e da todos sabemos que a conduta do condenado não é o único requisito para o
especialização anterior ou adquirida na prisão; situação financeira e propósi- livramento condicional. Uma vista d'olhos aos arts. 83 do Código Penal e
to quanto ao futuro meio de vida, juntando-se promessa de colocação e indi- 713 do Código de Processo convencerá disto qualquer pessoa.
cação do serviço e salário, firmado por pessoa idónea (art. 714, IV e V). Não atinamos mesmo porque se há de distinguir onde a lei não distingue
A readaptação do indivíduo à vida comunitária importa, evidentemente, e onde inexistem inamovíveis circunstâncias de fato impedindo sua execu-
na possibilidade de um viver honesto. ção.
188. Concessão do livramento condicional. Requerido pelo próprio Hoje, mesmo a indulgentia principis não dispensa de todo a audiência
sentenciado, por seu cônjuge, ou parente, ou por iniciativa do Conselho Pe- de órgãos técnicos, na forma do art. 81, XXII, da Constituição Federal.
nitenciário, será julgado pelo juiz da execução. É o que dispõe o art. 712 do Quanto ao parecer do Colégio Penitenciário, no livramento condicio-
Código de Processo Penal, modificado pelo Decreto-lei n. 6.109, de 16 de nal, sempre se entendeu obrigatório. Desde a lei que o criou: "Em caso algum
dezembro de 1943 (art. 1.°), que, além de suprimir a referência à linha reta do poderá o livramento condicional ser concedido por ato de qualquer autorida-
parentesco, ao diretor da prisão, à parte final daquele dispositivo, suprimiu de administrativa; nem sem prévia audiência do Conselho Penitenciário, sen-
também o parágrafo único. do nula de pleno direito e inexeqiiível a concessão dada com preterição dessa
Antes, porém, da decisão haverá audiência obrigatória do Conselho formalidade e das constantes do art. 8.° e seus parágrafos" (Dec. n. 16.665,
Penitenciário. Não pode o juiz decidir sem ouvir esse órgão consultivo (Lei de 6-11-1904, art. 12).
de Execução Penal, art. 131). Além da audiência do Conselho Penitenciário, ouvirá o juiz também o
Decisões têm sido proferidas em sentido contrário, por se tratar de réus órgão do Ministério Público (CPP, art. 716, § 2.°, e Lei de Execução Penal,
presos em cadeias do interior. A respeito já tivemos ocasião de nos manifes- art. 131).
tar. A oração do art. 713 do Código de Processo Penal não dá margem a Tanto o Colégio Penitenciário como o Promotor Público emitirão pare-
dúvidas: é imperativa ao dizer que as condições de admissibilidade, conve- cer ao qual o juiz não está vinculado. Da denegação ou concessão cabe recur-
niência e oportunidade da concessão do livramento serão verificadas e não — so para a Instância Superior (CPP, art. 581, XII).
podem ser — pelo Conselho Penitenciário. Além do mais, a própria parte
Concedido o livramento, a sentença mencionará expressamente as con-
final do dispositivo, declarando não ficar o juiz adstrito ao parecer daquele
dições a que fica subordinado (CP, art. 85). Tais condições são obrigatórias
órgão, mostra supor a lei sempre presente dito parecer. Fosse dispensável e ou facultativas.
despicienda seria, por certo, tal declaração. O que é facultativo não pode
obrigar. As condições obrigatórias são as seguintes:
Pensamos, entretanto, hoje não haver lugar qualquer exegese, em face a) obter ocupação lícita, dentro do prazo razoável se for apto ao traba
da clareza do art. 131 da Lei de Execução Penal: "O livramento condicional lho;
poderá ser concedido pelo juiz da execução, presentes os requisitos do art. b) comunicar periodicamente ao juiz sua ocupação;
83, incisos e parágrafo único, do Código Penal, ouvidos o Ministério Público c) não mudar do território da comarca do Juízo da Execução, sem prévia
e o Conselho Penitenciário" (grifo nosso). Aliás, o art. 69 da mesma lei esta- autorização deste.
belece que o Conselho Penitenciário, órgão consultivo e fiscalizador da exe- É o que dispõe expressamente o art. 131, § 1.°, da Lei de Execução
cução da pena, tem, entre outras atribuições, "emitir parecer sobre livramento Penal.
condicional, indulto e comutação de pena" (art. 70,1).
O art. 131, § 2°, da mesma lei estabelece as condições facultativas, que
O argumento de que o Conselho não conhece as condições peculiares são as seguintes:
do preso do interior estadual improcede. Seria ele aplicável também ao caso
do sentenciado da Capital, já pelo fato de a lei não distinguir, já porque, tanto a) não mudar de residência sem comunicação ao juiz e à autoridade
lá como aqui, não é mesmo o Conselho Penitenciário que informa sobre es- incumbida da observação cautela: e de proteção;
296 DA PENA 297
PARTE GERAL

b) recolher-se à habitação em hora fixada; durante o período de prova (CP, art. 86,1, e CPP, art. 726) ou por condenação
c) não frequentar determinados lugares. relativa a fato ocorrido anteriormente, observada a possibilidade da soma de
Fica também o livramento subordinado ao pagamento das custas do processo penas, como previsto no art. 84 do Código Penal.
e da taxa penitenciária, excetuado o caso de insolvência comprovada — é o A revogação facultativa, com fundamento no art. 87 do Código Penal,
que dispõe o art. 719 do Código de Processo. pode ocorrer em duas hipóteses: á) descumprimento das obrigações impos-
tas; e b) condenação irrecorrível, poi crime ou contravenção, a pena de multa
Ao sair, o liberado ficará sob observação e proteção através de serviço
ou restritiva de direitos.
social penitenciário, Patronato ou Conselho da Comunidade. A proteção
cautelar, diz claramente o art. 139 da Lei de Execução, tem dupla finalida- A primeira é de entendimento imediato; a segunda, por sua vez, atinge
de: I — fazer observar o cumprimento das condições especificadas na sen- tanto a fatos ocorridos antes ou no decorrer do período de prova e diz respeito
à natureza da pena imposta.
tença concessiva do benefício; e II — proteger o beneficiário, orientando-
o na execução de suas obrigações e auxiliando-o na obtenção de atividade Revogado o livramento condicional, não mais poderá ser concedido outro
laborativa. para a mesma condenação. É o que dispõem os arts. 729 do Código de Pro-
O art. 137 da Lei de Execução fala da cerimónia do livramento condicio- cesso Penal e 88 do diploma substantivo. Não se desconta, então, da pena, o
tempo em que o sentenciado esteve solto.
nal, realizada de modo solene, com a leitura da sentença ao liberado, na
presença dos demais presos, com a explicação das condições impostas e de- Entretanto, obtido o livramento, pode ele vir a ser condenado por delito
claração do sentenciado se as aceita. cometido antes da concessão do benefício. Já agora, revogado o livramento
condicional, terá de cumprir a pena, mas admite-se, então, que o tempo em
A cerimónia em questão será realizada pelo presidente do Conselho
que esteve solto seja computado no restante da condenação, como também
Penitenciário, no estabelecimento onde o liberado cumpria a pena. possa ele lograr novo livramento, somando essa pena com a nova e cumpri-
É um momento auspicioso na vida de um presídio e que deve ser apro- dos que sejam os mínimos legais.
veitado para exemplo e estímulo aos outros detentos. Justifica-se a orientação da lei, pois, em tal hipótese, força é convir que
189. Revogação do livramento condicional. Fica o sentenciado sujeito o sentenciado nenhum ato posterior à concessão praticou que o mostrasse
às condições que lhe foram impostas na sentença, durante o prazo que lhe indigno do livramento alcançado. Bem diverso é o caso em que, em liberda-
de, comete novo crime. Agora somente em relação a este poderá ele obter
falta para cumprir a pena.
livramento condicional.
Nossa lei não adotou o sistema abraçado por outras, mais cauteloso e
também mais severo, que não limita esse período — período de prova, equi- 190. Incompatibilidade do livramento condicional. A expulsão de es-
valente ao do sursis — ao restante da pena, mas a uma duração mínima, pro- trangeiro. Como sucede para o sursis, há delitos que não comportam a liber-
longando-se além do tempo da pena, por tempo variável, conforme a legisla- dade sob condição. Assim a já citada Lei n. 1.521, de 26 de dezembro de
ção. Assim na Áustria, Inglaterra, Bélgica etc. 1951, que, no art. 5.°, declara incabível o livramento condicional, exceção
Suspensa a pena privativa de liberdade, se o liberado transgredir uma feita ao empregado do estabelecimento que não ocupe cargo ou posto de di-
das condições impostas, poderá ser revogado o livramento. reção.
A exemplo de outras legislações, nossos Códigos, ao disciplinarem o As contravenções com pena de prisão também não comportam o bene-
livramento condicional, consagram duas espécies de revogação: a obrigató- fício.
ria e a facultativa. Nas edições anteriores longamente discutimos sobre a possibilidade de
A revogação obrigatória é decorrente da própria lei, não ficando, por- livramento condicional e expulsão de estrangeiro, concluindo não ser ele
admissível em face desta.
tanto, a critério do juiz.
Ocorre, nos termos do art. 86, em razão de uma nova condenação a Hoje não nos parece necessário discorrer sobre o assunto, diante dos
pena privativa de liberdade, com trânsito em julgado, por crime cometido expressos termos das leis que regulam a matéria. Com efeito, a Lei n. 6.815,
298 PARTE GERAL

de 19 de agosto de 1980, que define a situação jurídica do estrangeiro no


Brasil e cria o Conselho Nacional de Imigração, dispõe taxativamente a res-
peito: "Desde que conveniente ao interesse nacional, a expulsão do estran-
geiro poderá efetivar-se, ainda que haja processo ou tenha ocorrido condena-
ção" (art. 67).
XII
Ora, se a expulsão é facultada no caso de réu condenado, pouco importa
haja ou não livramento condicional: a medida de competência exclusiva do
DOS EFEITOS DA CONDENAÇÃO
Executivo (Lei n. 6.815, de 19-8-1980, art. 65) efetivar-se-á de qualquer maneira.
Aliás, mesmo no regime do Decreto-lei n. 479, de 8 de junho de 1938,
SUMÁRIO: 191. Considerações gerais. 192. A sentença penal condenatória.
que não continha disposição semelhante, citávamos a conclusão da l.a Confe-
193. A sentença penal absolutória. 194. Efeitos genéricos. Indenização. 195.
rência de Desembargadores (Anais, p. 313) e acórdãos de nosso Tribunal de Confisco. 196. Registro da condenação. 197. Efeitos específicos.
Justiça (RT, 276:151) proclamando a impossibilidade de livramento condicio-
nal e expulsão de estrangeiro.
Não há alegar, hoje, que a Lei n. 6.815 só se aplica aos crimes contra a
191. Considerações gerais. 0 crime é a ofensa a um bem-interesse, donde
segurança nacional, pois basta ler, respectivamente, os arts. 64 e 91 da refe-
acarreta geralmente uma lesão que pode ser efetiva ou potencial e que atinge
rida lei para se constatar a amplitude da medida: ela é aplicável também a o titular daquele bem jurídico ou o sujeito passivo do delito.
crimes comuns.
Justa, pois, a preocupação de se ressarcir à vítima do crime, chegando
algumas leis a impor indenização mesmo no caso de dano puramente moral.
Não é de hoje que os escritores se ocupam do assunto, incumbindo res-
saltar os esforços da Escola Positiva, com Rafael Garofalo à frente, procuran-
do imprimir à indenização carátei público. Consequência disso é que quase
todas as leis contêm disposições que visam tutelar o sujeito passivo, como
faz a nossa, não só nos arts. 91 e 92, mas em outros, como o art. 83, IV,
subordinando à reparação civil o livramento condicional; o art. 81, II, revo-
gando o sursis no caso de frustração da reparação, como, aliás, já vimos.
No termo civil, lembra Costa e Silva a hipoteca legal sobre os imóveis
do criminoso ao ofendido, ou seus herdeiros, e o sequestro, como medida
preliminar, no processo de especialização, e quanto aos imóveis adquiridos
pelo indiciado com os proventos da infração1.
Merece especial menção, poi traduzir a tendência publicística da repa-
ração, a incumbência de o Ministério Público pleiteá-la quando o ofendido
pobre o requerer, consoante dispõe o art. 68 do Código de Processo Penal.
Por fim, justo é lembrar que em nossa legislação, desde o nascedouro,
medidas já haviam sido ditadas nesse terreno. O Livro V das Ordenações
Filipinas, Título 127, previa o confisco. O Código de 1830 admitiu a repara-
ção do dano — "A satisfação será sempre a mais completa que for possí-
1. Costa e Silva, Código Penal, cit., p. 357.
300 PARTE GERAL DA PENA 301

vel..." (art. 22) — convertendo-a em prisão com trabalho, até conseguir o Duas, pois, são as situações: ou já houve trânsito em julgado da senten-
condenado meios para efetivá-la (art. 32). O de 1890, no art. 69, b, impunha ça condenatória e, então, o ofendido inicia a execução, ou ainda não houve,
a "obrigação de indenizar o dano". e, em tal caso, pode a ação de indenização também ser proposta no juízo
Todavia essas providências, legais todas, em regra, tornam-se inoperantes cível (CPP, arts. 63 e 64).
na realidade, em face da pobreza do condenado. Mas não pode, por isso, a lei Não apenas ao ofendido cabe intentar a ação, pois pode ele até faltar,
quedar de braços cruzados, deixando de providenciar acerca da reparação. v. g., no homicídio, mas também a seus herdeiros, na forma do citado art. 63.
Assim é que o Código Civil, no art. 159, dispõe: "Aquele que, por ação ou Caso incapaz, agirá seu representante legal.
omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo Cumpre notar que o ressarcimento do dano não compete tão-só ao criminoso.
a outrem, fica obrigado a reparar o dano". Vai mais longe ainda a lei, no A responsabilidade civil não está subordinada aos mesmos princípios que a
sentido de oferecer reparação ao ofendido, não se esgotando com a pecuniária, penal: não é, como esta, estritamente pessoal. Falecido o sujeito ativo do
mas proporcionando outra de espécie diferente, como a publicação da sen- delito, a obrigação de indenizar transmite-se aos herdeiros, como todas as
tença condenatória. outras dívidas e encargos da herança.
Aliás, não só o dano material pode ser ressarcido, porém, também o
193- A sentença penal absolutória. Declara o art. 65 do Código de Pro-
moral: "O dano não-patrimonial (ou moral) se repara, em regra, como o cesso Penal: "Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter
económico, mediante indenização pecuniária, a qual, porém, não objetiva a sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito
reintegração do património, mas tende a dar ao lesado uma satisfação em cumprimento de dever legal, ou exercício regular de direito". Trata-se das
compensação ao prejuízo sofrido"2. Alguns Códigos Penais dispõem ex- causas excludentes de antijuridicidade, mencionadas no art. 23. Reconheci-
pressamente acerca do assunto. Assim o italiano — art. 185: "... dano da, por sentença transitada em julgado, qualquer delas, não mais se admite
patrimonial ou não-patrimonial..." — e o argentino — art. 29: "... dano material sua discussão no juízo cível. Não é necessário dizer que a legítima defesa não
e moral..." — não só, portanto, admitindo o ressarcimento do dano moral abrange a putativa, pois, como já se viu, ela não é justificativa, mas dirimen-
como o prevendo no próprio estatuto repressivo. Vê-se, pois, que a opinião te, e, para esta, outros são os princípios, como se verá.
predominante no direito civil — da reparação de todo dano — entra para o Quem, pois, pratica ato lícito não está sujeito a indenizar o ofendido que
direito penal. provocou esse ato. Se A legitimamente ofende B, desfechando-se da agressão
por este iniciada, não lhe deve reparação. Os outros casos de justificativa (art.
192. A sentença penal condenatória. A sentença condenatória faz coisa
23) são contemplados no art. 160 do Código Civil. Conseqiientemente, nada
julgada no cível; quer dizer que não mais se pode indagar da procedência ou demais que o art. 65 do estatuto penal adjetivo impeça a discussão da excludente
improcedência da condenação. Dita sentença vale como título executório, da antijuridicidade no cível.
não obstante não conter a obrigação expressa de o condenado reparar o dano,
Cumpre, entretanto, ponderar que o ato penal lícito nem sempre o é fora
pois se completa com mandamentos legais, como os arts. 159 e 1.525 do
desses domínios. No exemplo dado, se A, defendendo-se, não atingir seu agressor,
Código Civil, 63 do Código de Processo Penal e 91 do Código Penal. mas um terceiro, por erro na execução (art. 73), responde civilmente para
O Título IV do segundo estatuto trata da ação civil (arts. 63 e 68). Mas com o atingido, consoante o determina expressamente o art. 1.540 do Código
não são apenas esses os dispositivos a observar, senão também os do diploma Civil, mas tem ação regressiva contra aquele, que também lhe assiste, quan-
civil (arts. 1.518 a 1.532 e 1.537 a 1.553). do, dele se defendendo, danificar coisas de outrem, na forma do art. 1.520,
Todavia não está o ofendido obrigado a aguardar o desfecho da ação parágrafo único.
penal para pleitear o ressarcimento do dano, já que o art. 64 do Código de O art. 160, II, do Código Civil refere-se ao estado de necessidade, reme-
Processo Penal permite seja proposta ação no juízo cível contra o autor do tendo aos arts. 1.519 e 1.520, pelos quais se vê que, se o dono da coisa não
crime, conforme o caso, contra o responsável civil. se houve com culpa, tem direito a indenização pelo prejuízo sofrido, a ser
paga por quem agiu em estado necessitado, o qual terá ação regressiva contra
2. Antolisei, L'azione, cit., p. 435. terceiro, se deste foi a culpa.
302 PARTE GERAL DA PENA 303

O que se vem de dizer não é pacífico, já que muitos acham haver o art. cunstâncias, por não serem reparáveis somente os prejuízos determinados
65 do Código de Processo Penal revogado os arts. 1.540 e 1.519, como parece por atos puníveis7. No mesmo sentido, Clóvis Beviláqua8.
a José de Aguiar Dias3. Mas é inegável o acerto de Basileu Garcia: "A Outra coisa não se verifica com a culpa (stricto sensu). Absolvido, no
linguagem de que a sentença penal absolutória por estado de necessidade, juízo criminal, o condutor de automóvel ou outro veículo, tem-se admitido
legítima defesa etc, faz coisa julgada no cível, não tem outro efeito que o de possa a ação civil ser instaurada com o fim de obrigá-lo a indenização, mes-
enunciar a impossibilidade de reabrir-se, no setor civil, a discussão sobre a mo porque é de todos sabido que a culpa no direito penal não é a mesma do
intercorrência dessas justificativas no caso concreto. Mas o legislador pro- direito civil, como, aliás, já foi dito.
cessual não dispôs — nem era sua missão fazê-lo — acerca de não caber ou O art. 67 do Código de Processo Penal deflui do antecedente e obedece
caber, sempre ou às vezes, a indenização, em havendo alguma daquelas jus- ao mesmo princípio de que não são ressarcíveis somente os atos puníveis.
tificativas"4.
Não é só, porém, a sentença que reconhece excludentes de antijuridicidade 194. Efeitos genéricos. Indenização. O Código Civil, nos arts. 1.537 e
que impede a discussão no cível; também a que reconhece categoricamente s., trata de vários casos de indenização, determinando também o modo de
a inexistência material do fato. Proferida pelo juiz criminal sentença que absolve efetivá-la. No art. 1.537 cogita-se do homicídio, cujo ressarcimento consiste
o réu, concluindo taxativamente que o fato não ocorreu, não haverá mais no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, o funeral e o luto da
discussão no outro juízo. Mas a declaração há de ser categórica — diz a lei família; na prestação de alimentos às pessoas a quem o defunto os devia. Nos
processual, e como tal não se deve entender a que declarar não se achar pro- arts. 1.538 e 1.539 é a lesão corporal que constitui preocupação da lei. A
vado o fato, ou haver dúvida sobre sua ocorrência etc. indenização compreende as despesas do tratamento, os lucros cessantes até
que termine a convalescença, e a multa, na forma daquele primeiro artigo, in
Carvalho Santos5 lembra que a decisão do júri não impedirá a propositura
fine. De observar, entretanto, quanto à multa, que na lesão corporal ela só
da ação cível, pois, negado o primeiro quesito que engloba a existência do
existe na hipótese do § 5.° do art. 129 do Código Penal. Veja-se, a respeito,
fato e a autoria, nunca se saberá qual das negativas os jurados afirmaram, não
Carvalho Santos (Código Civil, cit., v. 21, p. 128), referindo-se ao Código
ficando, pois, em boa hora, trancada a via cível. anterior.
Pelo mesmo art. 66 conclui-se que a sentença absolutória fundada em
Tratam os parágrafos do art. 1.538 da reparação no caso de deformida-
excludente da culpa (lato sensu) não impede a propositura da ação cível: o
de, destacando a hipótese em que o ofendido for mulher ainda capaz de casar.
autor de ilícito penal, isento de pena, não fica excluído do ressarcimento.
O art. 1.539, além da indenização comum, obriga ao pagamento de pensão
Noutras palavras, quem cometeu o fato nas condições expostas nos arts. 20,
correspondente à importância do trabalho, para o qual se inabilitou, ou da
22, 26 e 28 do Código Penal não está livre de indenizar a vítima: trata-se de depreciação sofrida.
ilícito penal que não pode ser ato civil lícito. Falta apenas a responsabilidade
penal que não subordina a civil, na forma do art. 1.525: ambas são indepen- O art. 1.541 trata da usurpação e do esbulho. A respeito, escreve Clóvis
dentes. Beviláqua: "Não se refere o Código aos melhoramentos encontrados na coisa
usurpada ou adquirida por esbulho. Prevalecem as regras dos arts. 517 e 518.
Não concordamos, pois, com Basileu Garcia, quando sustenta o contrá-
Porque o possuidor é de má-fé, indenizam-se-lhe as benfeitorias necessárias.
rio6 . Neste caso, não se nega a existência do fato, reconhecida no juízo pe-
O melhoramento, que advém, independentemente de trabalho ou despesa do
nal; mas, unicamente, se verifica e confirma que a absolvição do acusado
devedor, não cria obrigação de indenizá-lo"9. Os arts. 1.542 e 1.543 tratam
(por não existirem as condições de imputabilidade) não tem influência na
ainda do mesmo objeto do art. 1.541.
instância civil porque é lícito exigir a indenização do acusado nessas cir-
Quanto aos arts. 1.545 e 1.546, versam exclusivamente atos culposos de
3. José de Aguiar Dias, Da responsabilidade civil, 1944, v. 2, p. 402. certos profissionais.
4. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 578.
5. J. M. Carvalho Santos, Código Civil brasileiro interpretado, 1937, v. 20, p. 7. Carvalho Santos, Código Civil, cit., v. 20, p. 304.
8. Clóvis Beviláqua, Código Civil, 1934, y. 6, p. 306.
301.
6. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 581. 9. Clóvis Beviláqua, Código Civil, cit., v. 6, p. 327.
304 PARTE GERAL DA PENA 305

O artigo seguinte ocupa-se de crimes contra a honra (injúria ou calú- Ao reverso de certas leis, nosso Código não o limita aos crimes dolosos;
nia), determinando o ressarcimento do dano ainda que não se prove prejuízo cabe também nos culposos, pois nada existe no dispositivo que o restrinja
material, na forma do parágrafo único, o que, sem dúvida, consagra a repa- àqueles delitos.
ração do dano moral. Recai o confisco, primeiramente, sobre os instrumenta do delito. São as
O art. 1.548 tem por objeto fatos que atentam contra a honra da mulher, coisas materiais que serviram para a sua prática, isto é, a execução, pensando
mesmo que não constituam delitos contra os costumes, tal qual se dá com a com razão Costa e Silva que, nos dizeres do Código, não se compreendem os
sedução de mulher maior de dezoito anos, que, com não mais ser sujeito passivo meros meios preparatórios 12.
do crime do art. 217 do Código Penal, tem, entretanto, o direito ao dote, Todavia não comungamos da opinião do insigne jurista quando reputa
indenização específica de que aqui se trata. injusta a cláusula restritiva de que devem ser "coisas cujo fabrico, alienação,
No inc. I do art. 1.548 não se exige a sedução, enquanto os dois outros uso, porte, ou detenção, constitua fato ilícito", que tira quase todo o valor do
(incs. II e IV) são crimes previstos na lei penal. De crimes dessa natureza dispositivo, sendo conseqiientemente mais perfeito o Projeto Alcântara Ma-
cogita igualmente o art. 1.549. chado13. Nosso Código foi mais liberal que o anterior e teve em vista evitar a
Seguem-se, no Capítulo II desse Título, os arts. 1.550 a 1.552, que têm perda de utensílios profissionais, de trabalho, estudo etc. Sem a cláusula adotada,
confiscar-se-ia o livro com que o estudante agrediu o companheiro, ou o
em mira fatos contra a liberdade pessoal, considerados delitos. A enumera-
automóvel que atropelou o pedestre etc. Conseqiientemente, o confisco só
ção, entretanto, não é taxativa.
será decretado quando os instrumema sceleris forem de uso ilícito. É o que
Finalmente, nos casos não previstos no referido capítulo. dispõe o art. 122 do Código de Processo Penal. Quanto aos outros, admite o
art. 123 do mesmo Código sejam reclamados pelo réu. Observe-se,
195. Confisco. O artigo 91 do Código Penal não obriga apenas a inde-
concomitantemente, que o confisco deve ser decretado — embora pareça a
nizar o dano resultante do delito, mas determina a perda a favor da União, muitos, como Costa e Silva14, que ele opera ipso jure — como efeito da sen-
ressalvado o direito do lesado ou do terceiro de boa-fé, dos instrumentos e do tença condenatória, adquirindo logo a União o domínio da coisa confiscada.
produto do crime.
O Código ressalva o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé. Mas,
É o confisco. Já vimos que em tempos de antanho foi ele conhecido tratando-se do objeto ilícito, é procedente essa ressalva? Deverá ser restituído
como pena. Hoje, nossa Constituição Federal (art. 5.°, XLVI) não mais o a uma daquelas pessoas? É exato que há casos excepcionais em que objetos
admite. Alguns o consideram pena acessória; outros, medida de segurança; e ilícitos podem ser fabricados ou possuídos por certa e determinada pessoa;
outros, ainda, efeito da sentença condenatória. porém, nesse caso particularizado, eles não serão ilícitos porque haverá auto-
Nossa lei tem-no como consequência da condenação. Costa e Silva opina rização ou permissão para produzi-los ou possuí-los. No mais, se se ressalva
que: "De lege ferenda, a confiscação deve ser sempre medida de segurança, o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, ipso facto diz-se que o confisco
aplicável quando os instrumenta ou producta sceleris forem perigosos. Nes- só pode recair sobre coisa pertencente a quem tomou parte no crime.
se sentido se manifesta muito bem o criminalista Hafter. E, nesse ponto, a Recai também o confisco sobre os producta sceleris, na forma da alínea
nossa lei se acha tanto ou quanto antiquada"10. O mesmo escreve Logoz, que b do art. 91, que tem amplitude que não possui o dispositivo anterior. Produ-
termina dizendo: "La confiscation doit être une mesure et seulement cela"". tos do crime são as coisas adquiridas diretamente com o crime (coisa rouba-
Dois Códigos modernos — o suíço e o italiano (arts. 58 e 240) — conside- da), ou mediante sucessiva especificação (jóia feita com ouro roubado), ou
ram-no medida de segurança. conseguidas mediante alienação (dinheiro da venda do objeto roubado), ou
Nem sempre o confisco é obrigatório; sê-lo-á quando os instrumenta criadas com o crime (moeda falsa). Também se inclui no confisco outro qualquer
forem proibidos ou importarem perigo.
12. Costa e Silva, Código Penal, cit.,p. 359.
13. Costa e Silva, Código Penal, cit.,p. 360.
10. Costa e Silva, Código Penal, cit., p. 358.
11. Paul Logoz, Commentaire, cit., v. 1, p. 253. 14. Costa e Silva, Código Penal, cit., p. 359.
306 PARTE GERAL DA PENA

bem ou valor que importe proveito, desde que haja sido auferido pelo agente, gistro se relativo a pena pecuniária, pois que esta é muito menos grave que
e não por terceiros, com a prática do crime. Assim, o preço deste, os bens qualquer pena privativa de liberdade"17. Tal conclusão é lógica e humana.
economicamente apreciáveis, dados ou prometidos ao agente para que cometa
o crime, a contraprestação que corresponde à prestação da atividade crimi- 197. Efeitos específicos. Os efeitos específicos da condenação estão contidos
nosa, à retribuição desta (arts. 62, IV, e 121, § 2.°, I)15. no art. 92 do Código Penal e são de três ordens:
A Lei n. 6.368 (repressão ao tráfico de substâncias entorpecentes) apre- a) Art. 92,1 — Com o advento da Lei n. 9.268, de 1.° de abril de 1996,
sentou uma nova forma de confisco, a de "veículos, embarcações, aeronaves que deu nova redação ao referido art. 92, I, um dos efeitos da condenação'
ou quaisquer outros meios de transportes, assim como maquinismo, utensí- criminal por pena privativa de liberdade igual ou superior a um ano, quando
lios, instrumentos e objetos de qualquer natureza", desde que usados no tráfico o crime for praticado com abuso de poder ou violação de dever para com a
de entorpecentes. É o que preconiza o art. 34 da citada lei. Administração Pública, ou então por tempo superior a quatro anos nos de
A propriedade das coisas confiscadas não se regula pelo tempo em que mais casos, é a perda imediata do cargo, função pública ou mandato eletivo.
o delito foi praticado, mas pelo da sentença condenatória transitada em julga- Nos chamados "crimes funcionais" surge a incompatibilidade para o
do. O confisco prescreve com a condenação. A suspensão desta não importa exercício do cargo ou função pública.
a do confisco16. O entendimento das expressões "cargo" e "função pública" deve ser
examinado tendo em vista o que dispõe o art. 327 do Código Penal, disposi-
196. Registro da condenação. Um dos efeitos da condenação é ser lan-
tivo este que conceitua a figura do funcionário público para os efeitos penais:
çado o nome do réu no rol dos culpados. Determina-o o art. 393, II, do Có-
"Considera-se funcionário público para os efeitos penais, quem, embora tran-
digo de Processo Penal, antes mesmo que transite em julgado a sentença
sitoriamente e sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública".
condenatória. Igualmente se fará o lançamento no caso de pronúncia (CPP,
"Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função
art. 408, § 1.°). Dessa forma se documenta a condenação, ou a pronúncia do
em entidade paraestatal" (parágrafo único).
réu, que passarão a constar de outros assentos.
Para surtir o efeito específico a pena privativa de liberdade deve ser
Tem-se observado que isso, perdurando, importa em reviver a antiga superior a quatro anos.
pena de infâmia, de tempos em que ela se sobressaía pela crueldade física ou
moral. Diante de tal fato, algumas leis têm adotado medidas com o fim de b) Art. 92, II — O segundo caso diz respeito à incapacidade para o exer
conjurar esse mal. O art. 175 do Código Penal italiano, em casos em que a cício do pátrio poder, tutela ou curatela.
pena é branda, permite que "não se faça menção da condenação no certifica- Sua aplicação exige a conjugação de dois fatores: 1) que o crime seja
do do registro criminal, extraído a pedido de particulares, salvo por motivo doloso; e 2) que tenha sido aplicada pena de reclusão.
de direito eleitoral". Caso venha a cometer novo crime, deixa de existir a c) Art. 92, III — O derradeiro efeito específico é uma inovação: inibição
proibição da menção. No Código Penal suíço a reabilitação permite ao con- do direito de dirigir automotores quando o veículo for usado como um meio
denado alcançar o cancelamento do registro criminal. instrumental para a prática do crime.
Quanto a nós, observa o Des. José Frederico Marques que "não há re- O veículo no âmbito penal, como sabiamente analisado por José Frederico
gra tão específica, como a do art. 175 do Código Penal italiano; e a reabili- Marques18, pode figurar de três modos: a) como causa da prática de crimes;
tação não é por todos admitida com a extensão que o instituto possui no b) como objeto material do crime; e c) como instrumento para a prática de
direito suíço e francês". Lembra, entretanto, o art. 709, §§ 2.° e 3.°, do Có- crimes.
digo de Processo Penal, acerca do sursis, e conclui que, "se o registro deve
ser secreto quando se trata de pena de detenção, cuja execução está con- No presente capítulo interessa a terceira hipótese: quando o veículo for
dicionalmente suspensa, com maior razão será também secreto o mesmo re- usado pelo agente como meio instrumental para a prática de um crime, como

15. Roberto Lyra, Introdução, cit., p. 462 e 463. 17. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 1, p. 314.
16. Costa e Silva, Código Penal, cit., p. 360. 18. Tratado de direito penal, Y. 4, p. 241.
308 PARTE GERAL

meio material executório, como, a título de exemplo, para a prática de lesões


corporais, homicídio, perigo para a vida ou saúde de outrem, tráfico de entor-
pecente etc.
A sua aplicação exige o uso como meio instrumental para um crime
doloso. XIII DA
O parágrafo único do art. 92 declara que o efeito não é automático,
devendo ser motivado e fundamentado na sentença condenatória. REABILITAÇÃO

SUMÁRIO: 198. Considerações gerais. Conceito. 199. Pressupostos. Revo-


gação.

198. Considerações gerais. Conceito. A reabilitação, historicamente, passou


por fases diversas e distintas finalidades, de tal maneira que torna um tanto
difícil o exame de sua natureza jurídica.
O instituto é um legado do direito romano e tinha como finalidade res-
taurar os direitos do condenado, principalmente os de cidadania e os patrimoniais.
Por ela restituíam-se bens e dignidades.
Não foi conhecida no direito português reinol.
Entre nós surgiu com a Consolidação das Leis Penais de Vicente Piragibe,
tendo como finalidade corrigir possíveis injustiças cometidas pela jurisdição
penal. No regime do Código de 1890, como se verifica de seu art. 86, a rea-
bilitação era consequência da sentença favorável, obtida pelo réu no pedido
de revisão de seu processo. Revisão extraordinária, julgada pelo Supremo
Tribunal Federal (acentuava o dispositivo), com a declaração de inocência do
requerente. Reconhecida esta, era o acusado reintegrado em todos os direitos
que havia perdido pela condenação, acrescidos ainda de justa indenização
ço\ que respondia a União ou o Estado.
Coisa bem diversa se lia no art. 119 do Código, em sua redação primi-
tiva. Com efeito, por esse dispositivo verifica-se que o instituto objetivava as
interdições de direitos impostas expressa ou implicitamente ao réu, pela sen-
tença que o condenara. Ficavam fora duas outras penas acessórias: a perda da
função pública eletiva ou de nomeação e a publicação de sentença, previstas
no art. 47.
Era, pois, somente aquela pena a alcançada pela reabilitação. Caso não
bastassem os termos claros do art. 119 (redação primitiva), teríamos a Expo-
sição de Motivos interpretando-o de maneira insofismável: "A reabilitação,
segundo a disciplina do projeto, não é, como no Direito vigente, a restitutio
310 PARTE GERAL DA PENA 311

in integrum, no caso exclusivo de condenação injusta, mas um benefício que, sentença definitiva. Conseqiientemente, abrangia assim as penas acessórias
consistente no cancelamento da pena acessória de interdição de direito, pode como as principais, consoante, aliás, fazem os Códigos alienígenas citados.
ser concedido ao condenado, sempre que este revele, ulteriormente, constân-
A reforma atual, como previsto no art. 93 e seu parágrafo único, deu ao
cia de boa conduta e haja reparado o dano causado pelo crime".
instituto a finalidade de assegurar ao condenado o sigilo dos registros sobre
Outra coisa não dizia um dos mais abalizados intérpretes do Código: seu processo de condenação.
"Segundo o método tradicional, a reabilitação consiste na simples extinção
das penas acessórias, isto é, na reintegração do condenado em todos os direi- Como se verifica, instituto com variados entendimentos e aplicações:
tos e capacidades que a sentença, complementarmente, lhe haja tirado ou restitutio in integrum, ação específica contra sentenças injustas, medida
suspenso; e, além disso, não opera ex tunc, mas ex nunc (somente da data em restabelecedora de direitos cívicos, canceladora de pena acessória ou restau-
que é declarada). Não apaga coisa alguma do passado". E linhas adiante: "Se radora de todos os direitos, causa suspensiva de punibilidade ou extintiva de
o moderno princípio do Direito Penal se baseia no princípio da individualização, punibilidade etc.
relativamente ao tratamento dos que delinqiiem, seria contrário a esse critério Atualmente, por força da reforma de 1984, é uma ação própria destinada
o radical cancelamento da condenação, pois tanto importaria em criar-se um a guardar sigilo ou silêncio sobre a condenação, atingindo os registros
obstáculo à pesquisa sobre a inteira vida passada, sobre o exato curriculum criminais, tendo por finalidade colocar o condenado regenerado e quite com
vitae do condenado, sobre sua personalidade real e completa" 1.
a justiça em situação exterior idêntica à do primário. A reabilitação impõe
Em edições anteriores havíamos criticado o Código; primeiramente, dizendo silêncio sobre a condenação anterior, na folha de antecedentes do reabilitado
que ele abandonara seus modelos preferidos — os Códigos italiano e suíço. e em certidões extraídas dos livros do juízo, a menos que requisitadas por
Depois, porque a persistência de uma condenação, a marcar para o resto da juiz criminal. Não se trata de efeito de somenos, pois importa em ter o sen-
vida a pessoa, não obstante o cumprimento de tudo quanto lhe foi imposto e tenciado folha corrida limpa, cuja vantagem não necessita ser encarecida.
o resgate de anos de boa conduta, de viver honesto e útil, não condiz com o Ressalte-se que a lei processual (CPP, art. 748) restringe extraordinariamente
direito penal de nossos dias.
a exceção, referindo-se exclusivamente ao juiz criminal: não excetua outro
Havia, por fim, o ilogismo da concessão nos crimes mais graves, e, por juiz ou qualquer autoridade, como o delegado de polícia. Visa, também, os
via de consequência, aos delinquentes que se revelaram mais perigosos (du- efeitos específicos da sentença condenatória, não rescindindo a condenação,
plamente condenados: pena principal e pena acessória) . porém restaurando o direito inibido, vedada a reintegração na situação ante-
Essas as razões, certamente, de alguns acórdãos de nossos tribunais darem rior nos casos de perda da função ou cargo público e na incapacidade para o
amplitude ao instituto, declarando ser ele cabível mesmo não havendo aquela exercício da tutela, curatela ou pátrio poder.
pena acessória, e, assim, o elevando à altura de poderoso estímulo para o
condenado regenerar-se plenamente, seguro de que seu passado não o segui- Dupla finalidade: dar ao reabilitado um boletim de antecedentes crimi-
rá para sempre — qual sombra sinistra e fatídica a lembrar-lhe o erro come- nais sem anotação e restaurar os direitos atingidos pelo efeito secundário
tido — e que a sentença condenatória não será um estigma a apartá-lo dos específico da condenação, salvo as ressalvas expressas.
homens e a tornar-lhe mais áspero, quando não intransitável, o caminho a
percorrer. Dizíamos, finalmente, que essa orientação não se conciliava com o 199. Pressupostos. Revogação. A reabilitação tem como pressupostos
preceito constitucional, que assegurava a todos trabalho digno e o considera- para a sua obtenção os seguintes requisitos:
va obrigação social. 1.°) Por primeiro somente pode ser pedida decorridos mais de dois anos
Foi o que a Lei n. 5.467, de 5 de julho de 1968, veio a atender, dando do término da execução da pena. É um prazo considerado como de exame da
nova redação aos arts. 119 e 120 do Código Penal. readaptação à vida em sociedade. Em tal período computa-se o de prova da
Ela declarava que a reabilitação alcança quaisquer penas impostas na suspensão e de livramento condicional, desde que não revogados.
2.°) O segundo requisito é o domicílio no País, nos dois anos anteriores
1. Nelson Hungria, Novas questões, cit., p. 124. ao pedido.
312 PARTE GERAL

3.°) O terceiro é um bom comportamento, tanto na vida pública como na


privada, isto é, no meio social e no familiar.
4.°) O derradeiro é o ressarcimento do dano causado com o crime come-
tido, salvo a total impossibilidade de fazê-lo. A renúncia do direito indenizatório
por parte da vítima ou a novação suprem o ressarcimento. Aliás, civilmente,
tanto a renúncia como a novação constituem forma de pagamento. DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA
O não-atendimento do pedido não impede nova formulação (art. 94,
parágrafo único), a qualquer tempo, desde que surjam novos elementos vi-
sando suprir os requisitos anteriormente não atendidos. SUMARIO: 200. Histórico. 201. Medida de segurança e pena. 202. Legali-
dade da medida de segurança. 203. Pressupostos. 204. Espécies.
Embora ação própria e não incidente executório, é uma ação sui generis,
pois não faz coisa julgada, não tem força definitiva, já que passível de revo-
gação a qualquer tempo, de ofício ou por provocação ministerial, desde que
o reabilitado seja condenado definitivamente por pena que não seja a de multa. 200. Histórico. É no Projeto de Código Penal suíço de Stoos que, no
terreno normativo, surge pela primeira vez a medida de segurança como con-
junto sistemático de providências de cunho preventivo individual.
Todavia a definição de certas medidas contra os inimputáveis, visando
à defesa social, é bem mais antiga, mesmo no plano legislativo. Assim é que
no Código Penal francês (1810) já deparamos disposições referentes aos menores
de dezoito anos que tivessem agido sem discernimento, os quais, livres de
pena, eram submetidos a medidas tutelares.
Em nossa legislação, encontramos no Código do Império (arts. 12 e 13)
providências acerca dos inimputáveis: os loucos eram recolhidos a casas para
eles destinadas, ou entregues às suas famílias, e os menores de quatorze anos
que houvessem agido com discernimento seriam recolhidos às casas de cor-
reção.
O Código da República, no art. 30, dispunha também sobre medidas
tutelares aos menores de dezoito anos que tivessem obrado com discernimento,
determinando fossem recolhidos a estabelecimentos disciplinares indus-
triais, e, no art. 29, prescrevia que os inimputáveis por "afecção mental" se-
riam entregues à família ou internados em hospitais de alienados.
Foi, entretanto, no Projeto Sá Pereira que o instituto surgiu com o nome
de "medidas de defesa social", que é substituído pelo de "medidas de segu-
rança" quando o Projeto é revisto pela Sub-comissão Legislativa. Alcântara
Machado também as previu em seu Projeto, com a mesma denominação.
Apesar de constarem do Projeto Stoos, aparecem elas, antes, no Código
de Rocco, como "misure amministrative di sicurezza", havendo também sido
adotadas pelo Código Penal suíço (em 1937), que, por sinal, entrou em vigor
na mesma data que o nosso.
Como escreve o Min. Francisco Campos, trata-se de inovação capital.
314 PARTE GERAL DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA 315

E Ataliba Nogueira ainda é mais expressivo: "É a maior novidade, a mais Distinções que apresentam — por exemplo a pena é determinada, ao
profunda modificação ao sistema penal anterior, a introdução, no novo códi- passo que a medida de segurança só expira com a cessação da periculosida-
go, do instituto das medidas de segurança. Nenhum outro assunto sobreleva de; aquela só se aplica aos imputáveis, enquanto a outra cabe aos inimputáveis
a este, nenhuma outra novidade é maior do que esta'". — não mostram diferença de essência entre elas, como se verá.
201. Medida de segurança e pena. Como a pena, é a medida de seguran- A medida de segurança é um reforço à prevenção, já antevista na pena.
ça sanção penal. Bem sabemos que esta concepção não é pacífica, mas Esta não deixa de considerar a personalidade do agente (art. 59): a outra in-
ontologicamente, para nós, elas não apresentam distinção. São outras dife- vestiga sua periculosidade, objetivando o mesmo fim que aquela quando a
renças que as caracterizam, e de natureza quantitativa antes que de qualida- personalidade oferece maior perigo. Por isso, insistem certos autores em que
de. Na pena prevalece o cunho repressivo, ao passo que na medida de segu- a consideração da periculosidade é exclusivamente da medida de segurança,
rança predomina o fim preventivo; porém, como já se fez sentir, a prevenção o que não ocorre na outra sanção. Isso não é totalmente exato, pois à fixação
também não é estranha à pena. Ambas pressupõem a prática de ato ilícito. da pena não é estranha a periculosidade do réu, como se vê do art. 59 de
nosso Código. Observa-se, portanto, que objetivos e efeitos de uma e outra se
Ademais, se a pena também possui fim preventivo, por seu lado a medi- entrelaçam e se confundem, dificilmente se observando nítida linha divisória
da de segurança participa de sua natureza, já que não deixa de ser reação entre ambas.
contra o ataque ao bem jurídico. Ambas são manifestação do jus puniendi
estatal, colimando que o indivíduo que delinqiiiu e se revelou perigoso não Consoante escreve Grispigni, são traços comuns entre elas: a) ambas
torne a delinqiiir, e ambas são aplicadas jurisdicionalmente. importam diminuição de bens jurídicos; b) baseiam-se as duas na existência
de um crime; c) servem tanto para a intimidação da massa — prevenção ge-
O argumento de que a medida de segurança tem antes caráter adminis- ral, como para a readaptação do delinquente — prevenção especial; d) ambas
trativo, ao passo que a outra possui o jurisdicional, não procede. "O direito de são aplicadas jurisdicionalmente3.
punir emana do Estado-administração, de igual modo que o direito de impor
a medida de segurança, que, aliás, não deixa de ser manifestação também do Afastada da pena a ideia exclusiva de expiação, e admitida a de preven-
jus puniendi. O juiz pune ou impõe a medida de segurança, no exercício do ção, não existe entre pena e medida de segurança diferença de natureza, embora
poder jurisdicional, isto é, aplicando a lei penal, a norma de direito objetivo. na primeira predomine o caráter repressivo, enquanto na segunda impera o
Sua função é tão-só a de tornar efetivos os mandamentos da ordem jurídica, preventivo4.
uma vez que não é ele o titular do direito de punir do Estado. Sendo assim, Não obstante a identidade entre elas, não há dúvida de que no terreno
nem a pena nem a medida de segurança, embora jurisdicionalmente aplica- normativo estão sujeitas a regulamentação diversa.
das, têm a natureza de ato jurisdicional. Ambas se filiam à atividade adminis-
trativa do Estado, atividade essa que, por ser de coação indireta, necessita de 202. Legalidade da medida de segurança. Como a pena, está a medida
prévio controle jurisdicional"2. de segurança sujeita à lei, isto é, não é imposta discricionariamente como
sucede com outras medidas pertinentes às funções administrativas do Estado;
Não colhe, pois, o argumento do caráter administrativo.
mas sofre restrições e limitações em nome do interesse individual.
Pena e medida de segurança ainda se aproximam quando vemos que
Assegurado no Código Penal o princípio da legalidade, claro é que ele
também nesta não falta o caráter aflitivo que aquela apresenta, ao entrarem
também deve imperar no tocante ao processo, tendo inteira aplicação as garantias
em jogo as detentivas.
do art. 5.°, LV e LXVIII, fixadas pela Constituição Federal. Mesmo que iso-
Diferença marcante haveria entre elas se uma fosse exclusivamente re-
tribuição e a outra, prevenção, o que, entretanto, não ocorre, pois a pena tem 3. Grispigni, Le problème de 1'umfication de Ia peine et des mesures de súreté, in
finalidade preventiva, geral e especial {n. 144). Scuola Positiva, 1953, p. 434.
4. As considerações expendidas encontraram amplo apoio no Anteprojeto Nelson
1. Ataliba Nogueira, As medidas de segurança no novo Código Penal (Conferências Hungria, que extinguia a dualidade de pena e medida de segurança detentiva (art. 89) tal
na Faculdade de Direito de São Paulo), 1942, v. 1, p. 125. como se dá hoje, sendo que, muitas vezes, na prática, a medida de segurança é simples
2. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 3, p. 188. prosseguimento da pena.
316 PARTE GERAL DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA 317

lada a medida de segurança, mesmo só ela tendo lugar, amplas garantias são 204. Espécies. Como mencionado no capítulo anterior, a reforma penal
concedidas ao interessado, como se verifica dos arts. 549 e s. do Código de de 1984 apresentou profunda inovação em relação à situação primitiva, no
Processo Penal. que diz respeito às medidas de segurança, já que sua aplicação aos imputá-
Vê-se, pois, que, como para a pena, a medida de segurança só é aplicada veis foi extinta, restando os inimputáveis e os semi-responsáveis.
após processo regular com amplas garantias, em que sejam defendidos a li- A legislação conservou duas espécies de medidas de segurança: detentiva
berdade e outros direitos do indivíduo. Somente depois de proclamada sua e restritiva. A primeira consiste na internação em hospital de custódia e tra-
periculosidade é que ela se torna aplicável. tamento psiquiátrico, enquanto a segunda resulta de tratamento ambulatorial.
Ao inimputável por enfermidade mental (CP, art. 26) aplica-se a medida
203. Pressupostos. A medida de segurança tem dois pressupostos: a prática
de segurança detentiva, baseada num juízo de periculosidade que substitui o
de fato previsto como crime e a periculosidade do agente.
juízo de culpabilidade.
O Código adota, como regra, a medida de segurança pós-delitual. Para
A internação é a regra. Contudo, se a pena in abstraio prevista para a
haver lugar, é mister a prática de fato objetivamente criminoso, já que o agente
figura delituosa violada for detenção, o agente poderá (indica faculdade) ser
deve ser inimputável ou semi-responsável. Códigos há que definem medida
submetido a tratamento ambulatorial (CP, art. 97).
de segurança pré-delitiva. Não seguiu esse exemplo nossa lei, receosa, talvez,
de dar ensanchas ao arbítrio judicial. Não quis ficar no terreno da apreciação O prazo é indeterminado, vigorando aaplicação enquanto a perícia médica
exclusiva da personalidade do agente, mas exigiu um elemento obje-tivo — não constatar a cessação da periculosidade (CP, art. 97, § 1.°). Tal exame
o crime ou fato a ele semelhante — a demonstrar a capacidade delituosa do deve ser realizado após um prazo mínimo que é de um a três anos (CP, art. 97,
autor. Antes de tudo — diz Antolisei — é mister que o fato praticado §§ l. oe2.°).
esteja conforme a uma figura delituosa descrita pelo legislador. É necessário, É possível a desinternação (CP, art. 97, § 3.°), porém, como a mesma é
por outro, que não ocorra nenhuma causa de justificação 5. condicional, poderá ser restabelecida a situação anterior.
Não basta a prática de fato previsto como crime: é mister que, conjun- A reforma atual, ao revés da anterior, em relação ao semi-responsável
tamente, haja periculosidade do autor. Reconhece-se esta quando a persona- adotou o sistema alternativo: reduz-se a pena ou aplica-se medida de segu-
lidade do agente e sua vida anteata, aliadas aos motivos e circunstâncias do rança. Extinto, portanto, o sistema de duplo binário: aplicação cumulativa e
fato, mostram a probabilidade de tornar ou vir a delinqiiir. sucessiva de pena reduzida e medida de segurança.
Não se trata de possibilidade de vir a cometer delito, mas da probabili- No atual regime, diante do caso concreto, o juiz optará pela aplicação
dade demonstrada por quem vive em estado perigoso, estado subjetivo de da pena ou medida de segurança. Escolhida esta (internação ou tratamento
criminalidade latente. ambulatorial) executa-se como se fosse a um inimputável.
Pela lei anterior havia cinco categorias de perigosos, de prováveis
cometedores de fatos considerados ilícitos penais: os agentes portadores de
periculosidade real, os inimputáveis por enfermidade mental (art. 22 da re-
dação primitiva), os semi-imputáveis (art. 22, parágrafo único, da redação
primitiva), os viciados em álcool ou substância de análogo efeito, isto é, a
ebriedade habitual, os reincidentes em crimes dolosos e os condenados por
crimes cometidos como filiados a associação, bando ou quadrilha de mal-
feitores.
Após a reforma somente foram considerados perigosos os inimputáveis
e os semi-responsáveis.

5. Antolisei, Uazione, cit., p. 420.


DA AÇ\O PENAL 319

DA AÇÃO PENAL pede ao Estado-juiz que aplique o direito objetivo no caso concreto. "O direito
de ação penal", diz Grispigni, "consiste na faculdade de exigir a intervenção
do poder jurisdicional para que investigue a procedência da pretensão
punitiva do Estado-administração, nos casos concretos"1. Nessa pretensão
punitiva conjugam-se, portanto, o direito de punir e o jus persequendi, agora
realizados ou transformados em atos.
CONSIDERAÇÕES GERAIS Mas, como lembra Canuto Mendes de Almeida, "o aparelho judiciário
é, geralmente, inerte. Seu funcionamento depende de solicitação exterior; a
jurisdição só se move mediante esse impulso. Essa solicitação ou impulso,
SUMÁRIO: 205. Considerações preliminares. 206. Notitia criminis. 207.
que à lei incumbe determinar, é a açâo: uma atividade de pessoas que querem
Espécies de ação. 208. Procedimento ex officio.
ou que devem garantir pela coaçâó do poder público a efetividade de um
direito e que, nos termos legais, constitui condição do procedimento jurisdicio-
nal"2. A ação é, pois, o direito de invocar a jurisdição do juiz; é um atributo
205. Considerações preliminares. O crime é um fato humano que lesa do autor; é o direito de requerer em juízo aquilo que é devido ao autor —jus
não só direitos do indivíduo como da sociedade, ofendendo-a nas condições persequendi in judicio, quod sibi debetur, como define Celso, reproduzido
de harmonia e estabilidade necessárias à sua coexistência. O Estado, na pre- nas Instituías, de Actionibus*.
servação dessas condições, na busca do bem comum, opõe-se ao delito, quer Todavia advirta-se que a ação penal não é a persecução criminal, senão
prevenindo-o, quer reprimindo-o. Dispõe, para isso, do jus puniendi, do di- um momento seu. A persecutio criminis tem início com as investigações policiais,
reito de punir, que apresenta essa face subjetiva. Trata-se de direito que lhe é que constituem o inquérito, procedimento preliminar ou preparatório da ação
próprio e necessário para que realize suas finalidades. que o seguirá. Para ele, basta existir tão-só a notitia criminis. Concluídas as
Não é, porém, um direito ilimitado, já que o Estado se autolimita, se investigações e diligências policiais, habilitado fica o Estado-administração
vincula a si mesmo, por meio da lei. Como vimos, o jus puniendi encontra a comparecer a juízo e pedir ao Estado-juiz que aplique o direito objetivo.
limitação no direito objetivo. Ao mesmo tempo que o Estado dita ao indiví- Nasce, nesse momento, a ação penal.
duo que este não pode praticar tal ato, declara concomitantemente que não o Mas o Estado-administração não dispõe arbitrariamente da ação, já que
poderá punir, se ele não o executar. Nullum crimen, nullapoena sine praevia ela se subordina a condições. Com efeito, assentado que é inadmissível a
lege. ação sem interesse de agir, requisito ínsito em toda a persecutio criminis,
Mas, praticado o fato vedado no direito objetivo, não pode, mesmo as- verifica-se que a ação está subordinada a outras exigências, declinadas no
sim, o Estado aplicar discricionariamente a sanção. Cometido o fato típico, art. 43 do Código de Processo Penal, que se refere ao momento inicial — a
queixa ou denúncia. É mister que o fato nela descrito tenha tipicidade, isto é,
antijurídico e culpável (o crime), é mister haver lugar sua consequência (a
seja subsumível em um tipo — nullum crimen sine typo — consoante o inc.
pena), que, todavia, não poderá ser imposta senão mediante processo e julga-
I do referido artigo. O inc. II refere-se à extinção do jus puniendi: desapare-
mento: nulla poena sine judicio. cido este, é absurdo pensar-se em ação, que objetiva o pronunciamento do
Donde o Estado dispõe de outro direito, do jus persequendi ou jus Estado-juiz sobre a pretensão punitha. No inc. III, a lei trata da titularidade
persecutionis, direito subjetivo que lhe outorga o poder de promover in abstracto da ação; deve esta ser agitada por quem tem qualidade legal para fazê-lo.
a persecução do autor do crime. Dito direito é o Estado-administração, mas
não se efetiva ou se exterioriza senão na persecutio criminis, na qual ele 1. Grispigni, Diritto penale, cit., v. 1, p. 296.
2. Joaquim Canuto Mendes de Almeida, Ação penai, análises e confrontos, 1938,
p. 14.
3. João Mendes de Almeida Júnior, Direito judiciário brasileiro; processo criminal,
3. ed., p. 102.
320 PARTE GERAL DA AÇAO PENAL 321

Ainda nesse mesmo dispositivo, vê-se que a ação está subordinada igualmen- penal, já que ele é senhor desta. A própria requisição do Ministro da Justiça,
te a que não falte condição exigida pela lei para seu exercício. Cogita-se aqui como fala o art. 100, § 1.°, do Código Penal, não tem esse efeito.
das condições de punibilidade ou procedibilidade, v. g., a representação do
ofendido e a requisição do Ministro da Justiça, conforme declara o art. 24 do 207. Espécies de ação. Pelo que já ficou dito e pelo que o art. 100 do
Código de Processo Penal, ou a entrada do agente no território nacional, e a Código reza, duas são as espécies de ação penal: a pública e a de iniciativa
sentença anulatória de casamento, nos casos dos arts. 7.°, § 2.°, a, e 236, privada. Da primeira é titular o Ministério Público e se inicia com a denúncia
parágrafo único, do Código Penal. (CPP, art. 24); na segunda, o direito de acusar pertence ao ofendido ou seu
representante. É a ação exclusivamente privada.
206. "Notitia criminis". Em regra, o inquérito policial inicia-se com o Pode ela ser, entretanto, subsidiariamente privada, quando, sendo pú-
pedido do ofendido, seu representante, ou qualquer do povo, que levam à blica, o promotor deixou escoar o prazo para a denúncia, sem que a ofereces-
autoridade policial a notitia criminis, a qual tem especificamente o nome de se, ou requeresse o arquivamento (CPP, art. 29). Para essa distinção da ação
delatio criminis, que pode ser simples ou postulatória. A primeira consiste privada chama a atenção Canuto Mendes de Almeida4.
em simples comunicação, ao passo que a segunda pede também se instaure o
São as espécies de ação que têm importância no direito penal, embora
persecutio criminis, como ocorre com a representação a que alude o § 1.° do outras classificações possam ser citadas, como faz, em sua lição, José Frederico
art. 100 do Código Penal. Marques, apontando a divisão de estrutura tripartida (ação de conhecimento,
Pode a notícia do crime ser levada não só à polícia (CPP, art. 5.°, II e §§ ação executiva e ação cautelar), que "não é monopólio do Direito Processual
3.° e 5.°), como também ao Ministério Público (arts. 27, 39 e 40, dispositivos Civil, visto que decorre da Teoria Geral do Processo, aplicando-se também
todos do estatuto processual). Como se verifica do art. 39, pode ainda a no- ao Direito Processual Penal, e isto pela simples razão de que neste também
tícia do delito ser comunicada ao juiz. Tal faculdade também é consagrada no existe um processo de conhecimento, ao lado do processo de execução e do
art. 531 do Código de Processo Penal. processo cautelar", lembrando que a ação penal de conhecimento pode ser
Comunicado o fato à autoridade policial, como já se disse, tem início o declaratória, constitutiva e condenatória, que a de execução tem por fim dar
inquérito, a investigação, que é preparatória da ação. Participado o fato ao atuação à sanção, e a cautelar se destina a instaurar processo de idêntico
Ministério Público, tem-se em vista já a propositura da ação penal. nome5.
Entretanto o que ocorre, geralmente, entre nós é que o Ministério Públi- Pode-se apontar ainda, quanto à iniciativa, a ação popular, exercida por
co, não dispondo de meios e recursos de investigação, requisita a abertura de qualquer do povo, consagrada no art. 5.°, LXXIII, da Constituição Federal.
inquérito policial, conforme lhe permite o art. 5.°, II. Contudo o que interessa ao direito penal é a ação em sentido estrito,
ação que implica o direito de agir ligado à pretensão punitiva, dando existên-
Há uma distinção a fazer. Quando o ofendido ou qualquer do povo re-
cia a processo cognoscitivo de natureza condenatória. É a ação de que tratam
querer a abertura do inquérito, a autoridade policial pode indeferir o reque-
os arts. 100 e 105 do Código Penal.
rimento, não instaurando a investigação, consoante se vê no art. 5.°, § 2.°. Já
assim não será quando houver requisição do promotor público ou do juiz, 208. Procedimento "ex officio".0 procedimento de ofício, tão criticado
pois estes não requerem, mas requisitam. por nós, foi abolido pela recente Constituição, que, em seu art. 129, I, esta
Dissemos que a notitia criminis pode ser comunicada ao juiz. Se o for beleceu ser função institucional do Ministério Público, privativamente, pro
por meio de representação, na forma do art. 39, o magistrado a encaminhará mover ação penal pública.
à autoridade policial, consoante o § 4.° desse dispositivo. Outra, entretanto, Repetimos nesta edição nossas palavras anteriores, de crítica a tal tipo
será a solução, se for o Ministério Público que requerer a instauração do de procedimento: "Não se compreende esse papel de juiz e parte ao mesmo
processo por contravenção: o juiz baixará a competente portaria (CPP, art.
531), ou determinará o arquivamento. 4. Joaquim Canuto Mendes de Almeida, A ação penal no novo Código Penal (Con
Quando a notitia criminis for levada ao Ministério Público, seja por qual- ferências sobre o Código Penal), p. 175.
quer do povo, seja pelo juiz (CPP, art. 40), ela não o obriga a iniciar a ação 5. José Frederico Marques, Curso, dl, v. 3, p. 343, 344 e 345.
322 PARTE GERAL

tempo; não se explica mais, hoje em dia, que acuse quem julga, a lembrar os
ominosos tempos do sistema inquisitório".
Hoje, os antigos procedimentos de ofícios, aplicados nas contravenções
e nos delitos culposos de homicídio e lesão corporal, consoante a Lei n. 4.611/
65, desapareceram, pois ao Ministério Público, privativamente, cabe o início
da ação penal pública, portanto, através da denúncia. Foram consagradas nossas
II
palavras em edições anteriores: "É o Ministério Público o senhor da ação
penal. Deve a iniciativa caber-lhe exclusivamente. Que se reserve ao juiz a A AÇÃO PÚBLICA
excelsa função de julgar".
SUMÁRIO: 209. O Ministério Público. 210. Da iniciativa da ação.

209. O Ministério Público. Titular da ação pública — que é a regra em


nosso processo penal — é o Ministério Público.
Instituição cujas origens alguns vão buscar no direito romano, nos
procuratores Caesaris; ao passo que outros a fazem remontar à Itália: seja
em Veneza — com os avogadori di comum; seja em Florença — com os
conservadores de Ia ley; seja em Nápoles— com o abogado de Ia Gran Corte;
enquanto muitos, com maior fundamento, vêem suas bases em tempos mais
próximos, no se instaurar o Estado Constitucional e na aplicação do princípio
da distinção dos poderes, invocando a Assembleia Constituinte francesa de
1790.
Não menos incertas são as origens entre nós, que alguns encontram na
existência de certos funcionários a serviço do rei ou do conquistador, com os
escultetos do Brasil holandês. Certo é que, mesmo no Império, ainda não se
podia falar verdadeiramente em Instituição. Poucos eram seus representan-
tes, disseminados pelo vasto território pátrio, com funções delimitadas e sem
garantias. Na verdade, eram meros instrumentos do governo.
É só na República, com a Lei n. 1.030, de 14 de novembro de 1890, que
se traçam os primeiros característicos, de acordo com o relevo das funções da
Corporação. Mas, entre nós, verdadeiramente, a carreira surge em 1931, com
a Lei de 27 de agosto, devida a um antigo promotor, depois excelso magistra-
do: Laudo Ferreira de Camargo — nome que declinamos com profunda gra-
tidão.
Daí para diante, não há negar o aperfeiçoamento do Ministério Público,
acentuando-se, sobretudo, com a exigência do concurso. E assim era mister.
Necessária se fazia rigorosa seleção de seus membros, dada a importância
das funções. No Ministério Público, qualquer cargo é de sacrifício e lutas.
Onde se apresente o promotor de justiça — denominação que hoje abrange
324 PARTE GERAL DA AÇÃO PENAL

a de curador — haverá sempre um combate, para que triunfe a justiça e im- Mas isso não implica que lhe seja vedada a imparcialidade, pois o Esta-
pere a lei. Quando outros se entibiam e vacilam, arroja-se e porfia o promo- do não deseja a punição do inocente. Conseqiientemente, quando as provas
tor; não arrefece seu ímpeto o retraimento de alguns, não o atemoriza o poder patentemente não autorizam a condenação, quando a inocência do acusado
dos fortes, porque ele se bate por um ideal superior e, nesse terreno, só ouve está demonstrada, deve o promotor público confessar a improcedência da
os ditames da consciência e só se inspira no cumprimento do dever. pretensão punitiva e pedir a absolvição. Tal fato não lhe tira a qualidade de
Esse dinamismo do Ministério Público melhor se destaca em confronto parte no processo. Muito mais pode o ofendido, sem que deixe de ser parte,
com a magistratura, cujas excelsas funções não exigem a combatividade da- quando autor da ação, já que dispõe da renúncia, da desistência e da perempção
quele, porque a imparcialidade, nota mais bela e difícil da arte de julgar, da instância, pelo pedido de absolvição, na forma do art. 60, III, do Código
exige do magistrado imobilidade, de modo que evite as suspeitas que adviriam de Processo Penal.
de um excesso de iniciativas. Contrastando com esse imobilismo, o Ministé- A Constituição Federal estabeleceu um capítulo novo, nominado como
rio Público deve ser eminentemente pugnaz; sua qualidade suprema, sem a "Das funções essenciais à justiça" (Capítulo IV), nele incluindo o Ministério
qual seriam inúteis as demais, é o espírito de luta. Sem o destemor e a pugnacidade Público, a Advocacia-Geral da União e a Advocacia e a Defensoria Pública.
para arrostar os perigos, para enfrentar os riscos de que são pródigos os com-
O Ministério Público foi definido constitucionalmente como sendo "uma
bates incruentos do foro, jamais cumpriria ele sua missão.
instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incum-
Quão árdua é a função do promotor de justiça! Como foi feliz Sussekind bindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
de Mendonça ao escrever estas palavras: "Há cargos que representam, por si sociais e individuais indisponíveis (art. 127). Embora a questão não seja pa-
sós, um prémio e que não pedem dos que os ganham mais que o cuidado fácil cífica, continuamos entendendo que é órgão administrativo, pois o exercício
de guardá-los. O Ministério Público, entretanto, se afasta inteiramente destes da persecutio criminis é função administrativa.
casos. Qualquer dos seus lugares é um posto de sacrifícios, de conquista diá-
ria à opinião, de disputa sem trégua contra a malícia da advocacia, contra as No processo penal guarda ele inteira independência, não podendo so-
frer injunções de quem quer que seja. Sobre ele nenhum poder disciplinar ou
reservas dos juizes, contra a ambição naturalíssima de seus próprios colegas.
de orientação tem o Judiciário. Claro que o juiz, como ordenador do proces-
Nenhuma das funções judiciais é tão sujeita às críticas da imprensa, tão ex-
so, profere despachos que dizem respeito a atos do promotor, porém não lhe
posta aos embates dos interessados, tão acessível às explosões legítimas das
pode ordenar que proceda em determinado sentido, ditando-lhe o que deve
partes ou de seus procuradores. Se o ocupante é digno do cargo, se está à
fazer, a maneira por que agirá etc. Nesse sentido é que devem ser interpreta-
altura de exercê-lo, moral e intelectualmente, não sabemos de ensancha mais
dos os arts. 40, 384, parágrafo único, e 418 do Código de Processo Penal.
propícia aos surtos rápidos no foro. Se não o é, porém, sucumbe, arreia, cai
Concomitantemente se verifica dos arts. 419, 448, parágrafo único, e outros
por força — e cai do pior modo, aos poucos, dia a dia" 1.
que o poder disciplinar sobre o promotor é atribuído ao Procurador-Geral da
No processo penal é ele parte, como senhor da ação; é o titular da pre- Justiça.
tensão punitiva e, por isso, propõe aquela, enumera e fornece as provas, luta
e porfia para o triunfo final da pretensão, que deverá ser proclamado pelo juiz \ O próprio poder deste há de ser convenientemente entendido, pois não
contra o réu. Participa, pois, do juízo — actum trium personarum — onde pode penetrar a esfera de convicção íntima do promotor, determinando-lhe,
por exemplo, que ofereça certa denúncia, recorra de determinada sentença
existem autor, réu e juiz.
etc. A liberdade de tais atos é inerente à independência que lhe é assegurada
Objetam alguns contra sua qualidade de parte, invocando a imparciali- no desenrolar da ação penal.
dade de que deve ser dotado. É de ser entendido em termos o argumento. O
Ministério Público, na lide penal, representa o Estado-administração que, O art. 28 do estatuto processual não se opõe ao que dissemos. Mesmo
perante o Estado-juiz, expõe a pretensão punitiva. Ele o representa, conse- quando o Procurador-Geral, concordando com o magistrado, ache ser caso
qiientemente. Representa-o como titular do jus puniendi. (Se não for ele o de denúncia, este não ordena ao promotor que ofereça, mas designa outro
representante do Estado, quem o será?) para oferecê-lo. Já agora, diversa é a situação. O Procurador-Geral, podendo
oferecer a denúncia, delega a um promotor essa função. É faculdade que ele
1. Apud Roberto Lyra, O Ministério Público e o júri, p. 66. possui, por virtude do princípio da devolução, pelo qual um funcionário de
326 PARTE GERAL DA AÇÃO PENAL 327

categoria superior pode exercer a função própria de um que lhe é subordi- les actes de poursuite nécessaires, etrequiert à 1'audience 1'application de Ia
nado. loi pénale"4.
O poder de direção, corretivo, de punição etc, não invade a esfera de Como fiscal, sua função acentua-se, sobretudo, quando a ação é movida
convicção íntima do promotor público. "II Pubblico Ministero è sempre libe- por outrem. Ainda aqui, ele atua em nome de interesses públicos, velando
ro di conchiudere nel modo che Ia sua coscienza d'uomo e di magistrato gli pela regularidade da lide e providenciando por uma sentença justa.
detta... È questo il suo diritto, il suo dovere: in ciò stà Ia sua independenza e
Ia sua dignità"2. 210. Da iniciativa da ação. Nos crimes de ação pública — soa o art. 24
do Código de Processo Penal — esta será promovida por denúncia do Minis-
Em suma: quando se trata do mérito da causa, a inspiração do promotor tério Público. Como dominus litis, promove a ação, mediante o requisitório
público só lhe pode emanar da própria consciência. inicial.
Falando no princípio da devolução, incidentemente tocamos na O art. 41 do mesmo diploma dita os requisitos que ele deve conter. Fun-
unidade e indivisibilidade do Ministério Público. É ele uno e indivisível. da-se a denúncia na opinio delicti do Ministério Público. Já vimos que para
Significa isso que todos os promotores distribuídos pelas diversas comarcas o inquérito basta a notitia criminis. Recebendo-a, estuda-a o promotor e, então,
integram um órgão só, sob direção única. É a sua unidade. É indivisível ou inicia a ação penal, ou requer o arquivamento, ou pede a devolução à
porque seus membros podem ser substituídos por outros, entendido isto, polícia, para diligências necessárias.
naturalmente, dada nossa organização, relativamente ao Ministério Público Para a denúncia basta a suspeita de crime; não é necessário o corpo de
de cada Estado da União. delito, como alguns pretendem, dizendo-se, de passagem, que muitos o con-
Consequências da unidade e indivisibilidade são a devolução e a subs- fundem com exame de corpo de delito. A respeito do assunto, tivemos oca-
tituição de que há pouco falamos. sião de emitir parecer, que passamos a reproduzir.
A indisponibilidade da ação é outro princípio. Como já vimos, o Minis- "O douto Defensor, em suas contra-razões (fls.), aponta, como já assi-
tério Público é o titular da ação penal. Intenta-a e acompanha-a, porém dela nalamos, confusão da Promotoria acerca de 'exame de corpo de delito' e
não dispõe. Sua atuação é obrigatória; não pode declinar do exercício ou 'corpo de delito'. Realmente, são coisas que se distinguem, porém, não nos
transigir, embora, segundo já se disse e se repete, conserve sua liberdade de parece — em que pese à admiração que sempre nos inspirou o ilustrado Ju-
consciência, que o orienta na ação, na escolha de provas, na interposição de rista — que o conceito que formula sobre o corpo de delito seja exato.
recursos etc. "Corpus delicti é equivalente a 'fato típico', isto é, fato que tem tipicidade
É o Ministério Público independente. Independência funcional — é o ou que se subsume ou ajusta ao 'tipo', o qual nada mais é que a descrição,
que dizemos. Qualquer ingerência do Poder Executivo ou de outro poder, no feita pela lei, da conduta correspondente a cada crime, traçando-lhe os ele-
exercício da ação pública, é vedada, por ser ele o "vigilante e intransigente mentos integrantes. Vê-se, pois, que nele cabem até elementos 'subjetivos' \
advogado da sociedade, cuja missão altíssima de promover e defender seus — como o dolo específico: 'com o fim de ...', 'com o intuito de ...' etc. —; ou
interesses supremos sobressai com o relevo escultural de uma notável função 'normativos da antijuridicidade' — como: 'indevidamente', 'sem justa causa',
'ilegitimamente' etc.
social de autoconservação e de justiça"3.
No processo penal, as funções do Ministério Público estão sintetizadas "Não se trata de questão terminológica, pois, se assim fosse, não estaría-
no art. 257 do diploma adjetivo: promover a execução da lei e fiscalizá-la. No mos tomando a preciosa atenção da Col. Câmara. O assunto é de efeitos
primeiro caso, ele é agent de poursuite, é — como escreve Roux — "partie substanciais, embora dentre eles não se conte o que o ilustrado Causídico
poursuivante; en cette qualité, il exerce 1'action publique, se fait communiquer pretende tirar. Com efeito, não nos paiece exato dizer que não se pode ofere-
Ia procédure d'information toutes les fois qu'il le juge à propôs, accomplit cer denúncia sem o 'corpo de delito', porque a 'comprovação' deste é matéria
da instrução criminal. Ao oferecer a denúncia, não necessita o Promotor possuir
2. Canónico, apud Auto Fortes, Questões criminais, p. 75.
3. José Duarte, Tratado de direito penal brasileiro, p. 64. 4. J. A. Roux, Cours de droit penal et de procédure pénale, 1920, p. 449.
328 PARTE GERAL DA AÇÃO PENAL 329

o corpus criminis, pois se o tivesse, então, o fato 'típico' (com todos os ele- em pouco se verá. Outras vezes, entretanto, apesar do interesse público do-
mentos integrantes) já estaria demonstrado. minante, a lei não olvida conveniências respeitáveis do sujeito passivo do
"O corpus delicti é imprescindível no 'flagrante', na 'prisão preventiva' delito e daí subordina a ação à provocação sua.
e na 'pronúncia'. Em tais casos, em que já há 'coação efetiva' contra o indi- A iniciativa do Ministério Público depende, pois, dela; mas, efetiva que
víduo, em que ele é atingido em seu status libertatis, em que não mais é um seja, não se vincula o órgão da acusação ao ofendido: age com inteira inde-
liber homus, então sim, é mister estar provado o crime, ou seja, comprovada pendência, e não só a representação é irretratável, depois de oferecida a
a existência do 'fato típico' ou do corpus criminis. Outra coisa não diz a lei denúncia, como também qualquer procedimento do ofendido, durante a
processual, nos arts. 311 e 409, quando, tratando da prisão preventiva, e da persecutio criminis, não influirá na atuação do representante do Ministério
pronúncia, se refere à 'existência do crime'. Público. Não obstante a suma autoridade, não nos convencem julgados em
"Para a denúncia, não. Basta a opinio delicti do Ministério Público; é sentido contrário do e. Supremo Tribunal (Súmula n. 388) e do e. Tribunal de
suficiente a 'suspeita' de crime. Desde que os elementos com que conta a Justiça deste Estado (RJTJSP, 75:396). O assunto é também por nós aborda-
Promotoria revelem a possibilidade de ocorrência de delito, oriunda da pre- do nos n. 841 e 849 do 3.° volume.
sunção de haver sido praticado fato típico, está ela habilitada a oferecer Não são poucos os delitos, em nosso Código, cuja ação penal depende
denúncia. de representação, bastando citar os crimes contra os costumes (art. 225, §
"Consequentemente, para esta, basta a opinio delicti, como para o pro- 2.°), contra o património (art. 182) e contra a honra (art. 143).
cesso preliminar ou preparatório, que é o inquérito policial, é suficiente a Condicionada também é a ação quando dependente de requisição do
notitia criminis. Ministro da Justiça. No dizer de Manzini, é o ato administrativo discricioná-
"Convenha-se com Manzini que 'promover Ia 'acción penal' no signifi- rio e irrevogável, com o qual aquele ministro autoriza se mova a ação penal 6.
ca necesariamente investir ai juez con acto que exija el castigo dei imputado, Em nosso Código Penal é ela imprescindível nos crimes contra a honra do
sino simplemente requerir dei juez una decisión 'positiva', o también 'nega- Presidente da República ou chefe de governo estrangeiro (art. 145, parágrafo
tiva' sobre Ia imputación, o sea, sobre Ia pretención punitiva' 5. único) e nos delitos de estrangeiro contra brasileiro, no exterior (art. 5.°, §
3.°, b). Exige ainda requisição ministerial, para ser homologada a sentença da
"Trata-se, por conseguinte, de mera pretensão punitiva. E esta, não só
pode, mas 'deve' o Ministério Público agitar sempre que, 'em face do pro- justiça estrangeira (art. 1°, parágrafo único, b).
cesso preparatório', 'suspeitar' que alguém praticou fato subsumível em A lei subordina a ação penal à dita requisição porque há outros interes-
um tipo. ses a atender e razões de ordem política que não podem ser sacrificadas e que
"É o quanto basta para a denúncia." encontram, no Ministro da Justiça, o árbitro de sua conveniência.
Entretanto nem sempre pode o Ministério Público oferecê-la, apesar de Todavia, como na representação, ela não obriga o Ministério Público,
tratar-se de ação pública. É que, para tanto, necessita às vezes de representa- que pode deixar de oferecer a denúncia, desde que não formou a opinio delicti.
ção do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça, consoante o § 1.° do Fora desses casos, a ação pública é incondicionada e é a regra em nosso
art. 100 do Código Penal. O art. 39 e parágrafos do Código de Processo tra- direito penal.
tam da representação. Resta dizer que, no tocante ao exercício da ação pelo Ministério Públi-
Diz-se, agora, que a ação pública é condicionada, em face de sua subor- co, vige, entre nós, o princípio da legalidade. Não se adotou o da oportuni-
dinação, àquelas exigências, conforme já expressamos no n. 205. dade, como na França, em que o Ministério Público pode ou não propor a
Inspira-se a representação no interesse do ofendido que a lei atende. ação, consoante motivos de interesse público, de conveniência, utilidade etc.
Quando tal interesse é proeminente, a ação torna-se privada, como dentro Pelo outro princípio, o Ministério Público, embora dono da lide, é obrigado
a denunciar desde que os elementos do processo preparatório ou preliminar

146. 5. Manzini, Tratado de derechoprocesalpenal, trad. S. Melendo e A. Redin, v. 4, p.


6. Manzini, Tratado, cit., v. 4, p.
152.
PARTE GERAL

traduzam a suspeita de crime. Isso não contravém ao que dissemos acerca da


opinio delicti, pois ainda que vinculado a esta, ainda que ela apresente uma
face subjetiva, tal não traduz capricho ou arbítrio do senhor da persecutio
criminis. O próprio pedido de arquivamento não é arbitrário, como vimos no
número anterior e como prescreve o art. 28 do diploma processual.
III
A AÇÃO DE INICIATIVA PRIVADA

SUMÁRIO: 211. Natureza e fundamento. 212. A queixa. Espécies de ação


de iniciativa privada. 213. 0 ofendido e a ação penal. 214. Decadência. Re-
núncia. Perdão. 215. A ação penal no crime complexo.

211. Natureza e fundamento. Ao lado da ação pública, que corresponde


ao jus puniendi estatal e é movida pelo promotor público, mediante denún-
cia, estabelece o § 2.° do art. 100 do Código a ação de iniciativa privada.
Diz-se de iniciativa privada a ação porque pertence ao particular, ao
indivíduo. Transfere-se-lhe o jus accusationis exclusiva ou subsidiariamente.
É tão-somente este que o Estado transfere; o jus puniendi continua a perten-
cer-lhe, tanto que, transitada em julgado a sentença condenatória, o particu-
lar nenhuma ingerência tem na execução, que cabe exclusivamente àquele.
Compete a ação de iniciativa privada ao ofendido ou a seu representante
— diz o dispositivo. A distinção entre as duas espécies de ação repousa na
diferença de sujeitos, pois não há dúvida de que ambas as ações são públicas,
já que toda ação tem essa natureza por ser um direito público subjetivo contra
o Estado, representado pelo Judiciário. Conseqiientemente, será pública a
ação quando movida pelo Ministério Público, e de iniciativa privada quando
pelo ofendido.
Não são poucos os que se opõem à ação de iniciativa privada, tachando-
a de vingança do ofendido. Tal não se dá, bastando dizer que, como linhas
atrás se falou, a execução da pena fica a cargo do Estado, que é também quem
a impõe, por um dos seus órgãos — o Judiciário —limitando-se o particular
a exclusivamente promover a persecutio criminis.
A ação de iniciativa privada atende a ponderosos imperativos individuais
que não deixam de ser também da sociedade.
Com efeito há casos em que ou o interesse do ofendido tem proemi-
nência sobre o relativo interesse público, ou a lei não se pode permitir uma
atuação que redunde em aumentar a aflição ao aflito, não só arrastando seu
332 PARTE GERAL DA AÇÃO PENAL 333

nome para os tribunais judiciários como para os das esquinas, com inegável apontando meios probatórios, quer avisando de expedientes do acusado etc.
escândalo a enodoar-lhe mais o nome e a produzir lesão sensível à própria Sem o interesse do ofendido a prova se debilita e a ação geralmente redunda
moral pública. Em tais hipóteses, o mal da lei seria maior que o mal do em fracasso.
crime. Se não houvesse a ressalva da ação de iniciativa privada poderíamos até
Contra esse modo de pensar avultam nomes insignes do mundo jurídi- ir ao extremo de assistir à estranha luta do promotor público não só com o
co, apresentando argumentos que, na realidade, são eloquentes. Dizem ser réu, mas também com a vítima. Máxime nos crimes contra os costumes, isso
inadmissível entregar-se ao indivíduo o arbítrio da punição do culpado. Se é afetaria a própria moral. Atirar-se-ia sobre a ofendida, além do escândalo do
exato que tais delitos importam para o ofendido lesão que, muita vez, preferi- crime do estrépito do processo, a suspeita infamante da venda da honra, quando,
rá ocultar, não é menos exato haver interesse sobrelevando o seu, interesse entretanto, o que ela deseja é o silêncio. Disso tudo, a regra seria a absolvição
que é da sociedade, a qual não pode admitir fique impune o delinquente, do acusado. Quem tem prática de acusar ou julgar sabe perfeitamente com
permanecendo como ameaça constante para os demais membros da comu- quantas dificuldades conta na prova desses crimes, não obstante ter a seu
nhão. lado as declarações da vítima e sua família, de modo que pode pesar a difi-
culdade — melhor seria dizer impossibilidade — de obter prova suficiente
Diversos comentadores nossos, principalmente em matéria de crimes
para a condenação, quando aqueles se negam a esclarecer o fato.
contra os costumes, opinavam por esta forma. Salientavam-se pelo vigor com
que defendiam a exclusividade da ação pública Crisólito de Gusmão e Vivei- Em resumo. Há, na verdade, casos em que seria doloroso para a vítima
ros de Castro. Aos argumentos já expostos, acrescentavam que a ação privada o descobrimento da verdade dos fatos. Imagine-se o estupro de uma donzela
seria sempre oportunidade para mercadejar com a honra da ofendida. de nível social elevado por um homem de outra raça e de esfera ínfima. Não
viria o processo criminal arrasar totalmente com a vida de quem já é tão
Na doutrina alienígena igualmente nomes de inegável projeção do mes-
desgraçado? Pode invocar-se, entretanto, o interesse social, incompatível com
mo modo se pronunciavam. Ferri escrevia: "On pourrait ajouter que Ia necessite
a impunidade de homem tão perigoso. É coisa que perfeitamente se pode
de Ia plainte privée se prête trop facilement d'une part aux vexations, de 1'autre aceitar. Mas, passando do terreno da teoria para a prática, que é afinal de
aux marchandages entre offenseurs et offensés, qui certainement ne contribuente contas onde o direito vive, poderia a defesa social atualizar-se, realizar-se
pas à élever dans le public Ia conscience moral et juridique" 1. E Pozzolini: "E plenamente ante a oposição do ofendido? Cremos que, neste ponto, a tutela
isto por uma dúplice ordem de razões: porque é absurdo que perigosíssimos da sociedade e o interesse da vítima devem marchar paralelamente, receben-
delinquentes tenham a possibilidade legal de fugir à sanção penal, e porque do aquela o concurso, o auxílio desta, inestimável e imprescindível.
a queixa privada em crimes desta natureza (os sexuais) é incentivo ao comér-
cio torpe, porque não é verdade que ela acode à paz e à honra do lar, pois este Justifica-se, pois, a exceção da ação de iniciativa privada.
não será nem perturbado nem desonrado pelo fato do processo. Antes, quan-
212. A queixa. Espécies de ação de iniciativa privada. "O direito de
do isto acontecer e a violência ficar provada, não será o escárnio, mas a pie- queixa outorgado ao ofendido é um direito instrumental, subordinado aos
dade que cercará a vítima"2. princípios e regras do direito processual penal. É o próprio direito de ação
De todos os argumentos lançados pelos defensores da ação pública, projetado no campo da justiça penal, uma vez que se liga a uma pretensão
consideramos o mais sério o que, ao interesse do ofendido em ocultar sua punitiva, sobre a qual deverá incidir o pronunciamento judicial que é
desonra, contrapõe o superior interesse social em não deixar impune um de- impetrado."3
linquente. Diz-se direito de queixa porque esta, a queixa, é o ato inicial da ação
Todavia há um lado da questão que tem sido olvidado com frequência privada. Não se deve confundi-la com a queixa — como vulgarmente se fala
pelos juristas. É que, em regra, para que a ação penal vingue se faz necessário — que é a comunicação do crime, feita, em regra, à autoridade policial.
o concurso da vítima ou seus parentes, quer constituindo a prova, quer A queixa de que aqui se trata é o ato processual em que a acusação se
exterioriza ou formaliza, consoante o art. 100, § 2.°. Contém os mesmos re-
1. Ferri, La sociologie, cit., p. 501.
2. Pozzolini, in Florian, Trattato, cit., v. 1, p. 17. 3. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 3, p. 378.
334 PARTE GERAL DA AÇÃO PENAL 335

quisitos que a denúncia, como bem claro deixa o art. 41 do Código de Proces- "Mantendo sempre essa opinião, apesar de alguns julgados em contrá-
so Penal, dizendo que elas devem conter "a exposição do fato criminoso, com rio, escrevíamos em 4 de dezembro de 1949, nestas colunas, artigo de que ora
todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos reproduzimos algumas considerações.
pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando neces- "A matéria é disciplinada pelo art. 29 do Código de Processo Penal:
sário, o rol das testemunhas". 'Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for
A queixa e a denúncia só se diferenciam pelo sujeito que as apresenta intentada no prazo legal...'. O dispositivo, a nosso ver, diz respeito ao caso
ou subscreve, podendo dizer-se que a queixa é a denúncia subscrita pelo ofendido em que o órgão do Ministério Público, por desídia, deixa escoar o prazo
ou seu representante, que, então, toma o nome de queixoso ou querelante. sem se manifestar. Desde, entretanto, que, após o exame dos autos de inqué-
Querelado é o acusado, que, na ação pública, antes da pronúncia ou da con- rito, ele se pronuncia pelo arquivamento, e assim o decide o Juiz, não nos
denação, chama-se denunciado. parece admissível que o ofendido, com base no mesmo inquérito, possa
A ação de iniciativa privada pode ser exclusiva ou principal e subsidiária. intentar a ação.
Diz-se principal quando só o ofendido, ou seu representante legal, pode movê- "A lei não pode ir contra a lógica dos fatos, porque se o Magistrado
la. Fala-se, então, sei privativa do ofendido. Em regra, quando isso ocorre, o achou que os autos não oferecem base para uma denúncia, não iria permitir
Código Penal declara expressamente: "Só se procede mediante queixa". Afastado que, apoiada nesses mesmos elementos informativos, a parte oferecesse queixa,
fica, pois, o Ministério Público da ação, não podendo intentá-la. pois o resultado seria evidentemente novo despacho arquivando o inquérito.
Em recente decisão e relativa a crime contra a honra praticado contra "Tanto a disposição se refere ao caso de, por desleixo, o Promotor Pú-
funcionário público e no exercício de sua função, o Supremo Tribunal Fede- blico não iniciar a ação, que, em seguida, lhe dá o direito de aditar a queixa,
ral entendeu haver legitimação concorrente entre o Ministério Público (ação repudiá-la e oferecer denúncia, providências que certamente não teria em
penal pública condicionada) e o ofendido (ação penal privada). No entender mira prescrever se se estivesse referindo à hipótese de inquérito arquivado,
do pretório excelso, o princípio pelo qual se dá a atribuição de propor a ação pois é muito pouco provável que, havendo o órgão da Acusação se manifes-
ao Ministério Público tem por objetivo desonerar o funcionário dos ónus tado pelo arquivamento, tomasse agora a iniciativa, repudiando a queixa, e
decorrentes da própria ação, porém a Constituição Federal, em seu art. 5.°, X, denunciando o indiciado, ou aditando-a.
admite a defesa da honra pela ação privada, mesmo quando propter officium,
"Os que se decidem pela querela do ofendido trazem à colação o art. 38
havendo, assim, legitimação concorrente. A decisão em questão foi proferida
do mesmo estatuto. Mas, na verdade, em nada ele favorece essa interpreta-
no AR n. 720-0, relatada pelo Min. Sepúlveda Pertence.
ção, pois são coisas diversas o escoamento do prazo para oferecer denúncia
É subsidiária quando o promotor público se conserva inerte, sem ofere- e o não-oferecimento, porque dentro em o prazo a Promotoria requereu o
cer denúncia, pedir arquivamento ou requisitar diligências. Em tal caso, não arquivamento.
obstante ser pública a ação, permite a lei, excepcionalmente, a iniciativa do
"Receia-se o arbítrio do Promotor. Olvida-se, porém, que sua petição
ofendido, consoante se vê dos arts. 100, § 3.°, do Código Penal e 29 do Có- será apreciada pelo Juiz que, afinal de contas, é quem irá julgar a ação. E
digo de Processo. tanto aquele não é árbitro exclusivo do merecimento da denúncia, que a lei
Nem todos pensam que a ação subsidiária só cabe em havendo inércia faculta ao Julgador, quando em discordância, a remessa dos autos ao Procu-
do Ministério Público, afirmando que também tem lugar quando o inquérito rador-Geral, podendo, então, este oferecer denúncia ou designar Promotor
foi arquivado a seu pedido. para fazê-lo. Só no caso de o Ministério Público de Segunda Instância insistir
Refutando este modo de ver, tivemos ocasião de escrever crónica, no no arquivamento é que o Juiz será obrigado a atender, consoante os termos
Diário de S. Paulo, que passamos a reproduzir: "Cremos que fomos nós quem, do art. 28 do citado diploma.
primeiro, nesta Capital, teve a oportunidade de abordar a questão do ofereci- "Contra esse modo de ver alinhavam-se nomes de singular prestígio,
mento de queixa privada, em crime de ação pública, quando o Promotor re- como Hélio Tornaghi, Basileu Garcia, Vicente de Azevedo e José Frederico
quereu o arquivamento, que foi deferido. Opinamos pela inadmissibilidade Marques.
daquela. Ocorreu isso em princípios de 1942. "Todavia, a legião dos que opinam pela impossibilidade da ação parti-
336 PARTE GERAL DA AÇÃO PENAL 337

cular acaba de ser enriquecida com o concurso do jurista último citado. Não Cabe-lhe também o direito de assistência ao Ministério Público. Os arts.
só em seu livro Curso de Direito Penal, vol. 3.°, págs. 378 e 379, mas também 268 e s. do Código de Processo Penal tratam da figura do assistente. Permite-
com crónica de 24 de agosto do fluente ano, ele modifica sua opinião, usando se-lhe intervir na ação enquanto não passar em julgado a sentença, propor
argumento de subido valor, que passamos a reproduzir: 'Suponha-se que o meios de provas, reperguntar testemunhas, aditar o libelo e articulados, par-
ofendido dê queixa criminal, depois de arquivado o inquérito, e que no curso ticipar do debate oral e arrazoar recursos interpostos pelo Ministério Público,
da relação processual permaneça estático e inerte, dando causa a que ocorra ou por ele próprio. Os arts. 584, § 1.°, e 589 autorizam-no a recorrer, sendo
a perempção, por ser crime de ação pública; o Ministério Público deve 'reto- que o último dá essa faculdade ac ofendido, ainda que não se tenha habilita-
mar a ação como parte principal', segundo diz o art. 29, infine, do Código de do como assistente.
Processo Penal. Ora, não é um absurdo que o Promotor, depois de entender Habilitando-se, é ele considerado litisconsorte do Ministério Público, o
inexistir elementos para a persecutio criminis, venha a funcionar na ação que se compreende, já que pode até oferecer queixa, em se tratando de crime
penal como parte principal? E o absurdo é tanto maior quando, no art. 28 do de ação pública, no caso de inatividade do promotor.
estatuto de processo penal, determinado vem que o Promotor que pede o ar-
quivamento não mais funcionará no processo como órgão da ação penal, se o A assistência tem o objetivo primacial de reforço da acusação pública,
pedido não for atendido'. não se podendo negar, entretanto, que, de modo mediato, se visa ao ressarci-
mento do dano oriundo do crime.
"A matéria para nós reside em ponto simples e fundamental. O Estado
é o titular da ação, pois que o é áojus puniendi, e por isso tem órgão próprio A lei, referindo-se ao ofendido, menciona a seguir, sempre, o represen-
para agitá-la. Só ele pode punir, e conseqúentemente lhe deve caber a iniciativa tante legal, pois é compreensível que frequentemente o sujeito passivo do
do processo, que tem por escopo apurar o crime e aplicar com exatidão a lei. delito não possa estar em juízo, \. g., no crime de homicídio ou em caso de
A queixa privada é excepcional"4. Em última análise, a opinião contrária ele- ausência declarada judicialmente, a que alude o § 4.° do art. 100 do Código
va o ofendido à posição do Procurador-Geral da Justiça, em relação ao pro- Penal, que também declara passai o direito de oferecer queixa ou prosseguir
motor público... na ação ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. O art. 31 do Código
de Processo contém a mesma prescrição5.
Não se esqueça, além do mais, que, mesmo quando a ação é privativa do
ofendido, caberá ao Ministério Público "intervir em todos os termos subse- Não são esses os únicos casos de o ofendido não estar em juízo. Pode
ele ser incapaz, absoluta ou relativamente. Sua situação é regulada não só
quentes do processo" (CPP, art. 45). Ainda que mero fiscal da regularidade
pelas regras de direito civil como pelas de processual. O art. 34 dispõe diver-
processual — quando não aditou a queixa — deve velar para que a lei seja
samente da lei civil, permitindo que o relativamente incapaz — menor de
aplicada com exatidão, vigiando para que não ocorram nulidades ou sejam
vinte e um e maior de dezoito anos — exerça o direito de queixa, sem assis-
sanadas, tendo sempre em mira que o processo, de acordo com as normas
tência de representante — pai ou tutor. Aliás, o mesmo artigo permite que o
legais, atinja sua finalidade. Não é de se lhe recusar igualmente pedido de
representante aja individualmente no juízo criminal, o que significa poder
diligências, com o objetivo de esclarecer a verdade. Inspirado no mesmo fim,
oferecer queixa, independentemente de assistir ao menor. Em tal caso, ambos
opinará sobre o mérito da causa. Tudo isso é consoante com as funções de
podem agir. Poderia haver, assim, colisão entre a conduta dos dois, renun-
fiscal da lei (CPP, art. 257). ciando um ao direito de queixa ou perdoando o ofensor, propósitos repelidos
Embora a nova legislação tenha, de fato, ampliado bastante os direitos pelo outro; mas os arts. 50, parágrafo único, e 52 do estatuto processual re-
de ofendido, como se verá a seguir, não se pode ir ao extremo de quase se solvem as hipóteses.
reduzir a nada a titularidade da ação pública que cabe ao Ministério Público. A representação, a que temos aludido, é a chamada legal ou necessá-
213. O ofendido e a ação penal. Pelo que já ficou dito, verifica-se que
5. Não seria demais que o Anteprojeto Nelson Hungria cuidasse do direito de ação
o ofendido pode mover a ação privativamente ou de modo subsidiário, na nos crimes contra a honra do morto. Oirt. 105 não o fez: ele regulou apenas o direito de
forma exposta. queixa no caso de morte do ofendido (i e., ofendido que morreu), ou, se se quiser, no de
ofendido morto, e não de morto ofendido. Também não cogitou da espécie o Anteprojeto
4. Diário de S. Paulo, 21 abr. 1957. Hélio Tornaghi. Lançar-se-ia mão, assim, da analogia.
338 PARTE GERAL DA AÇÃO PENAL 339

ria, que ocorre ainda nos casos dos arts. 33, 35 e 37 da lei adjetiva. Além Battaglini: "Nas legislações que exigem o conhecimento do autor surge ques-
dessa representação há a chamada voluntária, prevista nos arts. 32 e 44, que tão quando se trata de vários participantes: — Necessário é que se conheçam
se assenta na capacidade de postular. todos, antes que comece o termo? Prevalece a opinião que basta o conheci-
mento de um partícipe"6 e 7.
214. Decadência. Renúncia. Perdão. Decadência é a perda do direito de
A terceira solução — isto é, que haverá vários prazos contados respec-
ação, por não havê-lo exercido o ofendido durante o prazo legal. Não se con- tivamente dos dias em que se teve conhecimento de cada um dos partícipes
funde com a prescrição, pois esta alcança também a ação já em curso e a — visivelmente não poderá ser admitida, já que atenta contra o princípio da
condenação. indivisibilidade da ação penal, aceito pelo legislador expressamente no art.
Tendo o ofendido o direito de perseguir o ofensor, não há esse direito de 48 do Código de Processo Penal.
ser infinito, pairando durante toda a vida, como constante ameaça, sobre a Questão também interessante, aliás, já aflorada no parágrafo anterior, é
cabeça do agressor. a condizente com a representação do incapaz e que repousa no art. 103 do
O prazo para o oferecimento da queixa ou representação é de seis me- Código — que tem seu equivalente no art. 38 do estatuto processual — e no
ses, salvo disposição em contrário — soa o art. 103 do Código Penal. Uma art. 34 deste: "Se o ofendido for menor de 21 e maior de 18 anos, o direito de
das exceções temos no próprio Código, no art. 240, § 2.°, que fixa o prazo queixa poderá ser exercido por ele ou seu representante legal". Se o ofendido
para a ação penal no crime de adultério em um mês. completar dezoito anos, antes de operada a decadência do direito de seu re-
Geralmente três são os critérios adotados para a fixação do prazo da presentante, como se lhe contará o prazo? Segundo cremos, ele poderá exer-
decadência, isto é, para o início de sua contagem: o da data do delito, confor- cer seu direito durante o lapso que faltar para caducar o direito de quem o
me, aliás, dispunha o art. 275 da lei anterior; o da data da ciência do fato, pela representava. Se, por exemplo, se tornar maior após quatro meses da data em
pessoa ofendida; o do dia em que tem conhecimento de quem é o ofensor. que o representante soube quem é o autor do crime, deverá oferecer queixa
Alguns propugnam a combinação dos dois últimos critérios. O Código, como no prazo de dois meses, que é o quanto falta para se operar a decadência do
se vê do art. 105, abraçou o do conhecimento de quem é o autor do delito. direito de quem o representa.
Não oferecem dificuldades casos como o da carta injuriosa, a saber se o A mesma solução deve ser dada ao caso em que, se tornando maior de
prazo é contado da data em que foi escrita ou da remessa ou do recebimento dezoito e menor de vinte e um anos a vítima, o representante vier a saber
pelo ofendido, pois é este, pelo Código, o dia do início, compreendendo-se quem é o autor do delito: o prazo para ele será constituído do restante que
facilmente que, na hipótese de anonimato, o prazo comece a correr na data faltar para se tornar caduco o direito daquela, que já se tornou capaz de per-
em que ele identificou o ofensor. seguir o ofensor.
Questão mais interessante surge quando vários são os autores do deli- Parecerá que o silêncio de quem pode exercer o direito em espécie
to: como se contará o prazo quando se tiver conhecimento deles em datas importe renúncia e conseqiientemente se deva ter em vista o parágrafo úni-
co do art. 50.
diferentes? Três são as soluções apontadas: o prazo começa da data em que
se descobriu o primeiro autor; do dia em que se apurou qual o último crimi- Não nos parece razoável a dúvida. A renúncia de um não prejudica o
noso; dos dias em que sucessivamente se foram conhecendo os partícipes, direito de outro, "quando não se operou ainda a decadência do prazo para um
correndo para um deles um lapso que se inicia na data do respectivo conhe- deles". Se, v. g., o maior de dezoito anos renuncia à queixa, poderá o repre-
cimento. sentante agir durante o prazo que faltava para operar-se a decadência do di-
reito daquele.
A nós nos parece mais aceitável a primeira opinião. Descoberto um dos
autores do delito, tem o ofendido os elementos necessários para mover a ação, Caso contrário, haveria "dois prazos" de decadência: um para o menor
não sendo imprescindível a ciência de quem são os outros co-delinqiientes, e outro para o representante, o que seria estranho; estranho por duas razões:
não se justificando, aliás, que o conhecimento posterior destes (segunda so-
6. Battaglini, // diritto di querela, p. 190, nota 3.
lução) viesse a interromper o prazo fatal que já começou a correr com a no-
7. Foi o critério adotado pelo Anteprojeto Nelson Hungria (art. 99).
tícia de um dos agentes. De acordo com este ponto de vista se manifesta
340 PARTE GERAL DA AÇÃO PENAL 341

1 .a) porque, quando se tratasse de decadência da representação por parte do Em doutrina, discute-se se o efeito deve ser extensivo a todos os agen-
maior de dezoito, ela não existiria ou, pelo menos, ficaria subordinada ao tes, ou restrito só àquele ou àqueles a que se refere a renúncia. Os que optam
direito do representante, ao contrário do art. 34 que a considera capaz para a pelo primeiro critério fundam-se em que o Estado não se pode submeter to-
representação ou queixa; 2.a) porque, se o prazo não for "um só", será de talmente ao arbítrio do ofendido, na ação de iniciativa privada, permitindo
somenos a decadência do direito do representante, já que o ofendido, ao se que ele, a seu bel-prazer, escolha aquele a quem perseguira. Os que defen-
tornar maior de dezoito anos, poderá ter a iniciativa da queixa ou repre- dem o critério restritivo insistem em que é compreensível que, dentre todos,
sentação.
o ofendido exclua, por exemplo, o que deu demonstração pública de arrepen-
Assim, como consumada a decadência para o representante, não pode dimento, o que se prontificou a ressarcir ou ressarciu o dano etc.
ter iniciativa a vítima, quando se tornou maior; não pode também aquele agir
O Código não se manifestou por nenhum dos critérios, porém a lacuna
quando esta, podendo fazê-lo, deixou escoar-se o prazo de caducidade. Não
deixam de ter aplicação à hipótese estas palavras do autor citado: "Mudança foi preenchida pelo Código de Processo Penal, que optou, no art. 49, pelo
de representante (pai que morre e é substituído por um tutor; troca de pre- critério extensivo: a renúncia ao direito de queixa em relação a um co-autor
sidente na associação dotada de personalidade jurídica etc.) não influi sobre abrange a todos os outros9.
o decurso do prazo; vale dizer, para quem sucede ao outro na representação No art. 106 passa a lei a tratar do perdão, que, como causa de extinção
'não corre um novo prazo' "8. de punibilidade, vem mencionado no art. 107, V, o qual também se reporta à
A lei diz claramente, e por isso não é necessário insistir, que o mesmo renúncia do direito de queixa. Mas no art. 106 o legislador ocupa-se com as
prazo de seis meses vigora para a ação penal subsidiária e que começa a espécies de perdão, sua extensão, requisitos, consequências etc.
correr na data em que se extingue o lapso para ser oferecida a denúncia. Distinguem-se o perdão e a renúncia. Esta tem por objeto direto e ime-
O art. 104 do Código Penal diz acerca da renúncia, que, como ele mes- diato o direito de querela, ao passo que no perdão existe revogação do ato já
mo fala, pode ser expressa ou tácita. Para a primeira é mister haver declara- praticado. Aquela é ato unilateral, antecedente à apresentação da queixa; este
ção inequívoca, exigindo o Código de Processo (art. 50) seja assinada pelo é ato bilateral, posterior à propositura da ação privada.
ofendido, por seu representante legal ou procurador com poderes especiais. Não se confunde também o perdão com o consentimento do ofendido
A tácita resulta da prática de ato incompatível com o direito de queixa e que para a prática do delito, pois este é anterior ou concomitante ao crime, ao
deve ser considerado no caso concreto, de acordo com os usos e costumes passo que o outro é posterior e colima justamente evitar suas consequências
locais, o nível social dos sujeitos ativo e passivo do crime, a razão preponde- penais. Neste, o crime foi praticado contra a vontade do ofendido, que, mais
rante no momento etc. Se, v. g., o fato de o ofendido, depois do crime, jantar tarde, o esquece, ao passo que no outro a vítima concordou com sua prática.
em casa do ofensor importa renúncia do direito de queixa; já não se dará o
mesmo quando, principalmente em se tratando de pessoas de nível social Pela cabeça do art. 106 e seu § 2.°, verifica-se que não há perdão da
elevado, o ofendido cumprimentar o ofensor em reunião na casa de um amigo pena aplicada, já que tem de ser concedido antes que transite em julgado
comum. sentença condenatória. Ele obsta o prosseguimento da ação, mas não impede
a execução da sentença, pois aqui se trata de domínio exclusivo do Estado.
O Código teve a cautela de consignar expressamente que o recebimento
Este em hipótese alguma transfere ao particular o jus puniendi; o que lhe
de indenização pelo dano causado não importa renúncia, ao contrário do que
outorga é o direito de ação.
pensam espíritos que só se preocupam com o lado económico dos fatos e por
isso mesmo propensos a ver no caso a compra do direito de queixa, ou a sua Pode o perdão ser processual e extraprocessual, como declara o art.
perda, porque o ofensor já ressarciu o dano. 106. O primeiro é dado nos próprios autos do processo. O segundo, como
A lei silenciou acerca do caso em que, sendo vários os sujeitos ativos do para a renúncia, será feito por declaração assinada pelo ofendido, seu repre-
delito, a renúncia do direito de queixa em relação a um deles abrange ou não sentante legal ou procurador, com poderes especiais (CPP, arts. 50 e 56),
os demais, cuidado que teve no perdão (art. 106, I).
9. Como a queixa contra um co-autor, deve estender-se a todos os outros. Era o que,
aliás, expressamente dizia o AnteprojetoNelson Hungria (art. 99), estendendo logicamente
8. Battaglini, // diritto, cit., p. 192. o princípio à denúncia.
342 PARTE GERAL DA AÇÃO PENAL 343

destinado a produzir efeitos nos autos do processo. Não se lhe exigem requi- Como exemplos de delitos que caem sob a prescrição do art. 101, temos
sitos especiais; basta a declaração inequívoca de perdoar, revestida apenas a injúria real (arts. 140, § 2.°, e 145) e o crime sexual violento, do qual resulte
das formalidades destinadas a lhe darem autenticidade. morte ou lesão grave (art. 223). No primeiro caso, há a injúria, que é de
O mesmo dispositivo ainda fala que ele pode ser expresso ou tácito, ação privada, e há a ofensa física, que é de ação pública. No segundo, temos,
como ocorre para a renúncia, aplicando-se-lhe as considerações feitas a res- v. g., o estupro, que só se processa mediante queixa, e a morte e a lesão grave,
peito desta. cuja ação é pública. Em ambos os casos, a persecutio criminis caberá ao
Ministério Público.
Como já se escreveu, é o perdão ato bilateral. Não basta ser concedido;
é mister que seja aceito. O art. 58 do Código de Processo Penal mostra que a Advirta-se, entretanto, que o mesmo não ocorre para o estupro simples,
aceitação pode ser expressa ou tácita: no primeiro caso, o querelado a decla- cuja ação é privada. Improcede a afirmação em contrário de Hélio Tornaghi
rará expressamente nos autos; no segundo, silenciando durante três dias após e, uma vez ou outra, de nosso tribunal10. Não prevalece a regra do art. 101,
a intimação, considerar-se-á aceito o perdão. Quanto à aceitação fora do pro- porque a respeito domina a consagrada no art. 225 — nos crimes definidos
cesso, está sujeita aos mesmos requisitos que o perdão extraprocessual. nos capítulos anteriores somente se procede mediante queixa — regra que
O querelado, recusando este, não está obrigado a fundamentar sua recu- não vige para o delito preterdoloso do art. 223 (estupro e morte ou lesão
sa, o que evidentemente agravaria ainda mais a situação entre ofensor e ofen- grave) porque este não se acha nos capítulos anteriores.
dido. O que há, na espécie, é um conflito aparente entre os arts. 101 e 225,
Tanto o perdão como a aquiescência são incondicionais. Perdoa-se sem cuja solução é dada pela regra da especialidade.
exigências e aceita-se sem condições. O art. 101 é genérico, refere-se aos crimes complexos em geral, ao pas-
O inc. I do art. 106 torna extensível a todos os querelados o perdão so que o art. 225 tem suas vistas voltadas exclusivamente para os delitos
concedido a um deles, pois o direito de queixa é indivisível. Movida contra contra os costumes. O segundo dispositivo é uma norma específica, já que
um dos co-autores, abrangerá a todos, como expressamente diz o art. 48 do contém a outra — pois, como o art. 101, alude ao crime complexo — tendo,
Código de Processo Penal, donde a consequência de que, concedido o perdão além disso, circunstâncias próprias e especiais, que importam "una descripción
a um deles, concedido está aos outros, evitando-se a situação de privilégio do más próxima o minuciosa de un hecho"", porque se refere exclusivamente a
perdoado em relação ao que o não foi, quando ambos são autores do crime. uma espécie de crimes: os contra os costumes.
A lei não se pode compadecer com tal situação. Ora, desde que se aceite que a regra do art. 225 é específica em relação
Pode ser que haja pluralidade de ofendidos e somente um deles haja à do art. 101, não há como fugir ao princípio lex specialis derogat legi generali.
perdoado. O inc. II do art. 106 regula a hipótese, declarando expressamente É ele que resolve o conflito aparente entre as duas disposições mencionadas
que tal fato não prejudica o direito dos outros, o que bem se compreende, já e o soluciona fazendo com que o art. 225 derrogue o art. 101 ou prevaleça
que o perdão obedece a motivos íntimos ou pessoais, que podem existir so- sobre ele.
mente em relação a um ou alguns. Cumpre também atentar para o caso de concurso formal, quando, ao
contrário do que às vezes se tem decidido, não há aplicação da regra do art.
215. A ação penal no crime complexo. Delito complexo (em sentido 101. A respeito do assunto, já escrevemos em outro livro (exemplificando
estrito) é aquele cujo tipo é constituído pela fusão de dois ou mais tipos. Pode com o concurso ideal de ato obsceno e adultério — arts. 233 e 240) palavras
ocorrer, então, que um deles seja de ação pública, e outro, de ação privada. O que passamos a reproduzir, lembrando primeiramente que crime complexo é
art. 101 do Código Penal destina-se a regular a hipótese, firmando que cabe- uma coisa e concurso formal é outra, pois aqui há ação única, constituindo
rá, nesse caso, ação pública. mais de um crime, mas não formando um delito-tipo da Parte Especial, como
O dispositivo, aliás, era desnecessário. Estabelecido no art. 100 (caput) acontece com o crime complexo. Não existe, no Código Penal nem no de
que a ação penal é pública, exceto quando a lei a declarar privativa do ofen-
dido, segue-se que, sempre que a disposição penal não se referir à ação, esta 10. Hélio Tornaghi, Processo penal, 1953, p. 201 e 204, e RT, 226:119.
será pública. 11. Asúa, Tratado, cit., v. 2, p. 472.
344 PARTE GERAL

Processo, dispositivo que determine, de modo geral, que, no concurso de


crimes de ação privada e pública, uma deva preferir à outra. O art. 101 refere-
se ao crime complexo, e o art. 77, II, do Código de Processo Penal tem em
vista a competência em caso de continência que ele vê no concurso ideológi-
co. Conseqiientemente, no concursus delictorum de ato obsceno e adultério
deve o réu ser processado exclusivamente pelo primeiro, desde que o cônjuge
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
ofendido, nos termos do art. 240, § 2.°, não ofereça a competente queixa.
Existirá somente a ação pública para aquele delito. Se, todavia, a queixa for
oferecida, haverá procedimento para os dois delitos, tendo lugar agora o art.
77, II, do estatuto adjetivo12e l3.
O que se diz se aplica em geral ao concurso ideológico, que não pode CONSIDERAÇÕES GERAIS
ser regulado pela regra do art. 101, que diz respeito exclusivamente ao crime
complexo. Têm aplicação, pois, os princípios do art. 100: cada ação é movida
SUMÁRIO: 216. Extinção da punibilidade. 217. Classificação.
por seu titular.

12. E. Magalhães Noronha, Código Penal, cit., v. 7, p. 293 e 494. 216. Extinção da punibilidade. A pena não é elemento do crime e sim
13. O Anteprojeto Nelson Hungria não regulou a espécie (arts. 100 e s.). Igual pro seu efeito ou consequência, donde, assisadamente, o Código previu aqui
cedimento teve o Anteprojeto Hélio Tornaghi. causas que extinguem a punibilidade ou ojus puniendi do Estado. Não seguiu
o exemplo de outras legislações, que se referem à extinção do crime, como
faz o Código Penal italiano, colocando-a ao lado da extinção da pena. O
que existe, no caso, é renúncia do direito de punir, de que é titular o Estado,
como com toda a precisão diz o Min. Francisco Campos, na Exposição de
Motivos do Código de 1940, em sua redação primeira: "O que se extingue,
antes de tudo, nos casos enumerados, no art. 108 do projeto, é o próprio
direito de punir por parte do Estado (a doutrina alemã fala em Wegfall des
staatlichen Staatsanspruchs). Dá-se, como diz Maggiore, uma renúncia, uma
abdicação, uma derrelição do direito de punir do Estado. Deve dizer-se,
portanto, com acerto, que o que cessa é a punibilidade do fato, em razão de
certas contingências ou por motivos vários de conveniência ou oportunida-
de política".
Extinguem elas a pretensão punitiva do Estado ou impedindo a persecutio
criminis, ou tornando inexistente a condenação. O delito, como fato, como
ilícito penal, permanece, gerando efeitos civis e criminais, como o reconhe-
cimento da reincidência, a impossibilidade do sursis, a agravação da pena, no
caso de delitos conexos. O crime subsiste, pois uma causa posterior ou suces-
siva não pode apagar o que já se realizou no tempo e no espaço.
Oportuna a observação de Antolisei: "O Código distingue estas causas
em duas classes: causas que extinguem o crime e causas que extinguem a
pena. Tal terminologia não é absolutamente feliz, porque o crime, como fato
346 PARTE GERAL DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 347

histórico, uma vez realizado, não desaparece (quodfactum infectumfieri nequif). considera-a Hungria causa geral, ao passo que Aloísio de Carvalho Filho a
Não é também exato que o delito se extingue como ente jurídico, pois, no tem como particular3. São também naturais e políticas, conforme provenham
sistema de nossa lei, o referido crime extinto continua a produzir vários e de impossibilidade de fato (tal qual a morte do agente), ou de motivos ditados
importantes efeitos jurídicos'". pelo interesse público.
Mesmo a novatio legis, que faz desaparecer o delito, como ilícito pe- Outra classificação é a exposta por José Frederico Marques: fatos jurí-
nal, permanecendo os efeitos civis, não deixa de ser causa extintiva da puni- dicos que extinguem o direito de punir e atos jurídicos de que pode provir a
bilidade. extinção da punibilidade4.
Extinguindo esta, elas não fazem desaparecer a condenação, exceto quando Nosso Código englobou no art. 107 diversas causas extintivas, sem dis-
houve anistia ou ocorreu a abolitio criminis, cessando, então, os efeitos tinguir sua espécie. Outras foram consideradas em apartado, em dispositivos
penais. vários.
Cumpre, desde logo, atentar para o art. 108, que declara não se estender Vê-se, portanto, não ser taxativa a enumeração feita nesse artigo. Real-
a um crime a extinção de punibilidade do delito que é seu pressuposto, ele- mente, diversas estão capituladas em outros dispositivos: a desistência e o
mento constitutivo ou circunstância agravante, e que, em caso de conexidade, arrependimento eficaz (art. 15); o perdão judicial (arts. 180, § 3.°; 240, § 4.°
a causa extintiva de punição relativa a um deles não impede quanto aos rema- etc); a restitutio in integrum (art. 249, § 2.°); a suspensão condicional da
nescentes a elevação da pena, devido a conexão. Dessarte, se estiver, por pena; o livramento condicional; as hipóteses previstas no art. 7.°, § 2.°, d, e II,
exemplo, prescrito, por qualquer forma, o direito de punir relativamente ao b, isto é, cometido um crime por brasileiro no estrangeiro, o Estado pode
furto, não ficará, por isso, isento de pena o receptador. No outro caso, v. g., puni-lo desde, entretanto, que ele não tenha sido absolvido ou cumprido, lá,
se o agente, após um estupro, tenta matar a pessoa que viu o fato e, posteriormen- a pena imposta; e os casos mencionados também no mesmo art. 7.°, na alínea
te, casa com a ofendida, a extinção da pena de estupro não impede ocorrer a e do § 2.°.
agravante do art. 61, II, b, para a tentativa de homicídio que, aliás, será qua-
Justifica Hungria a exclusão dessas causas, no citado art. 107, porque
lificada (art. 121, §2.°, V).
este só considerou as causas extrínsecas — não imediatamente ligadas ao
Havendo co-participação, incumbe distinguir se as causas são comuni- momento da causação do fato criminoso — incondicionadas e obrigatórias5.
cáveis ou incomunicáveis. Conforme escreve o douto Hungria: "Comunicá- Ora, se aí estão alinhadas essas causas, devia haver lugar para a mencionada
veis são sempre as causas objetivas ou atinentes à reparação do dano, ainda no art. 235, § 2.°, do Código: "Anulado, por qualquer motivo, o primeiro
quando representem arrependimento eficaz de um só dos co-partícipes (exemplo: casamento ou o outro, por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente
o subsequens matrimonium em certos crimes sexuais). A exceção da renún- o crime". Diga-se também que o Código, aqui, se afastou de seu critério,
cia e do perdão do ofendido, são, ao contrário, incomunicáveis as causas declarando inexistente o delito. À luz desse dispositivo, se o delinquente vier
subjetivas ou fundadas em circunstâncias de caráter pessoal (arg. do art. 30)"2. a cometer novo crime, não será reincidente. Devia a lei ter dito extingue-se,
como, aliás, se fala na Exposição de Motivos de 1940, item 76.
217. Classificação. Diversas são as classificações das causas extintivas
da punibilidade. Além da já apontada — comunicáveis e incomunicáveis — Lembra Basileu Garcia6 que oportuno teria sido incluir no elenco do
outras se apresentam. Podem ser gerais ou especiais, ou comuns e particula- art. 107 a morte do ofendido no adultério. Como se verifica do art. 240, § 2.°,
res. As primeiras referem-se a todos os delitos; as segundas dizem respeiío a o direito de queixa é personalíssimo: pertence somente ao cônjuge ofendido.
determinado crime ou grupo de crimes. Pertencem àquelas: a morte do agen- A outra conclusão não se chega, confrontando esse dispositivo com outros
te, anistia, graça ou indulto, prescrição, abolitio criminis. As segundas com- que versam a ação privada (arts. 145; 16L, § 3.°; 167; 179, parágrafo único
preendem o ressarcimento do dano, casamento do ofensor com a ofendida,
retratação, renúncia privada e perdão do ofendido. Quanto à reabilitação, 3. Aloísio de Carvalho Filho, Comentários ao Código Penal, p. 67.
4. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 3, p. 401 e 402.
1. Antolisei, Uazione, cit., p. 399. 5. Nelson Hungria, Novas questões, cit., p. 106.
2. Nelson Hungria, Novas questões, cit., p. 106. 6. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 659 e s.
etc), tendo aquele fórmula diversa destes, a indicar que o direito de ação não
se transmite, ao revés do que fala o § 4.° do art. 100.
Diga-se o mesmo para o art. 236, onde também seus dizeres levam a
idêntica conclusão.
II

DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
A) MORTE DO AGENTE

SUMÁRIO: 218. Morte do acusado e do condenado.

218. Morte do acusado e do condenado. É a primeira causa de extinção


da punibilidade e consagração do princípio mors omnia solvit — a morte faz
desaparecer, solve ou apaga tudo.
Por ele, se não se intentou ação contra o acusado, ela não mais pode ter
lugar; se se acha em curso e ele falece, o processo não prossegue; se foi
condenado e morre, não se executa a pena. Não há, pois, procedimento penal
contra o morto.
Nem sempre foi assim. A História conta-nos casos de pessoas julgadas
mesmo depois da morte. Além disso, houve as penas infamantes, que não só
atingiam a memória do morto como também seus descendentes. Na Idade
Média, ao lado à&damnatio memoriae, conheceram-se a condenação em efígie
e a execução de cadáver.
Hoje, dificilmente se encontrarão tais penas na legislação dos povos
cultos. É exato que no direito inglês existe a pena sui generis da negação de
sepultura cristã aos suicidas. Tal coisa não é defensável e é resquício da re-
cusa de sepultura de outras eras, como lembra Hans von Hentig: "A recusa
de sepultura constituía uma pena acessória da capital, executada por meios
infamantes, tais como a crucificação e a decapitação, ou da pena capital exe-
cutada em um dia de festa nacional ou nc cárcere"1.
Com a morte cessam apersecutio criminis, a condenação e seus efeitos.
Não, porém, as consequências civis. A herança do condenado responde pelo
dano do crime. Não se trata, contudo, de pena, tanto que a multa, imposta
como condenação, não pode ser cobrada dos herdeiros. Ela, como pena que
é, não foge ao princípio da responsabilidade pessoal, ao passo que a ação

1. Hans von Hentig, La pena, trad. M. Piacentini, 1942, p. 276.


350 PARTE GERAL DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 351

civil — destinada à reparação — é real: responde a herança que se transmite Trata-se de causa pessoal, que não se comunica aos co-partícipes. O
aos herdeiros com direitos e obrigações. ilustrado Aloísio de Carvalho Filho faz exceção quanto ao adultério, dizendo
Há apenas a distinguir se a morte ocorre antes ou depois da condenação. que a morte da mulher casada aproveita ao co-réu adúltero, apoiando-se na
Se antes, a vítima poderá pleitear indenização, ajuizando ação, para haver autoridade de Goedseels, cuja obra aqui já citamos 5. De fato, esse jurista
dos herdeiros do falecido perdas e danos. Se depois de transitada em julgado defende tal opinião: "A qualidade de esposo no queixoso é condição neces-
a condenação, a sentença condenatória é título executório civil contra os sária para que a ação seja exercida. Em consequência, se o casamento extin-
guir-se pela morte de um dos cônjuges, a ação pública está extinta. A conde-
herdeiros e sucessores do réu.
nação do cúmplice da mulher adúltera torna-se, pelo mesmo fato, legalmente
A prova do óbito se faz pela competente certidão, consoante o art. 62 do impossível"6. Mas ele mesmo cita julgado da Corte de Liège que declarou
Código de Processo Penal. subsistir a ação do marido contra o cúmplice de adultério, apesar de haver
Pode a extinção da punibilidade provir de erro ou fraude, e, havendo a assassinado sua mulher, colhida em flagrante7.
sentença transitado em julgado — como se fará? — pergunta Basileu Garcia, Aquela opinião talvez se justifique à luz de disposições próprias das leis
e responde: "Indiferente a sugestões do Direito comparado, em que é prevista belgas, mas não cremos que se imponha perante nosso Código. O argumento
a absoluta ineficácia do julgado, a nossa legislação não cogitou da hipótese, de que não mais existe sociedade conjugal não colhe, porque o crime ocorreu
que, assim, permanece irremediável, salvo proceder-se por falsidade contra em sua plena vigência. De lembrai que o Código reconhece existir adultério
os responsáveis pela elaboração e pelo uso do documento destinado a provar mesmo quando o fato se deu, estando os cônjuges desquitados, e apenas nega
o óbito fictício"2. ao ofendido o direito de querela.
Realmente, em outras legislações cuidou-se da hipótese. A respeito, Manzini Contra a opinião do insigne Àloísio de Carvalho Filho manifestam-se
escreve: "Se, portanto, for pronunciada em qualquer estado, ou grau do pro- Basileu Garcia e Romão Cortes de Lacerda, este invocando também a juris-
cedimento, uma sentença de extinção, tornada irrecorrível, por morte do acu- prudência da Corte de Cassação de Roma: "A morte do cônjuge culpado extingue
sado, e depois faz-se prova que tal morte foi erroneamente declarada, consi- a punibilidade (art. 108, I), salvo quanto aos co-réus (Cassação de Roma,
dera-se a sentença como não proferida e ela não impede a ação penal pelo 1931), pois, ao contrário do que ocorre na hipótese de anulação do casamen-
mesmo fato e contra a mesma pessoa, se não sobreveio uma causa extintiva to, não há insubsistência do crime"8.
do crime ou pela qual não mais se pode proceder" 3. É o que taxativamente diz A extinção da punibilidade do denunciado, ou réu falecido, pode ser
o Código de Processo Penal italiano, no art. 89 — última parte — sob a ru- decretada ex officio pelo juiz ou a requerimento de qualquer das partes em
brica Dúvida sobre a morte do acusado: ... "Ia sentenza di proscioglimento ambas as hipóteses, diante, evidentemente, da prova necessária.
non piu soggetta ad impugnazione si considera come non pronunciata...".
A presunção legal da morte (CC, art. 10) é suficiente para a extinção da
punibilidade.
Esta, ocorrendo pela morte de um autor, não se comunica aos co-auto-
res. Mesmo nos chamados crimes próprios ou especiais, "a morte do co-
partícipe, cuja qualidade fez caracterizar o título do crime, não acarreta a
modificação deste. Assim, no peculato, a morte do co-réu funcionário públi-
co não determina, em relação aos outros, a desclassificação para o crime
patrimonial comum"4. 5. Aloísio de Carvalho Filho, Comentários, cit., p. 81 e 82.
6. Jos. M. C. X. Goedseels, Commentaire, cit., 2. ed., v. 2, p. 107.
2. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 665. 7. Jos. M. C. X. Goedseels, Commentaire, cit., v. 2, p. 107.
3. Manzini, Tratado, cit., v. 3, p. 357 e 358. 8. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 665; Romão Cortes de Lacerda, Comen
4. Nelson Hungria, Novas questões, cit., p. 108. tários ao Código Penal, v. 8, p. 350.
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 353

III Têm elas sofrido impugnação de não poucos, dentre os quais se aponta
Florian. Depois de citar Beccaria, Filangieri, Bentham, Kant e Feuerbach, e
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE de dizer que elas foram causa de gravíssimos abusos na Idade Média e mes-
mo em tempos mais próximos, escreve: "Um dilema evidente aqui se apre-
B) DA CLEMÊNCIA SOBERANA senta: ou aqueles institutos se aplicam por via do arbítrio, de pedidos, de
pressões, ou têm lugar quando a justiça c exige. No primeiro caso, faltaria a
SUMARIO: 219. Considerações preliminares. 220. Anistia. 221. Graça e causa justificadora; no segundo, a justiça deveria realizar-se não por via da
indulto. indulgência soberana e a mancheias, mas com métodos preestabelecidos, seguros
e iguais para todos. E, assim, se porventura algumas categorias de crimes não
representam mais uma lesão jurídica, em lugar de promulgar-se anistia, de-
ver-se-iam abolir francamente as sanções penais correspondentes; se alguns
219. Considerações preliminares. São formas de extinção da punibilidade ou muitos indivíduos foram condenados injustamente, antes de aplicar-se a
a anistia, a graça e o indulto, previstas no inc. II do art. 107. Tem a graça dois graça ou indulto, conviria recorrer à revisão ou a outro instituto processual
sentidos: um amplo e outro restrito. No primeiro, abrange a anistia e o indul- idóneo"1.
to; no segundo, constitui medida de clemência como os outros dois.
Realmente, há muito que falar contra o direito de graça (em sentido
Distinguem-se eles, pois a graça (em sentido restrito) refere-se a indiví- amplo), pois ele tem servido para dar liberdade a condenados, não apenas por
duo determinado, ao passo que a anistia e o indulto visam amimem indeterminado juizes togados, mas pelos tribunais populares, graças à influência política ou
de pessoas, a coletividades de indivíduos, tendo em vista certos delitos; são social, a pressões ou necessidade de agradar a determinadas esferas da comu-
também espontâneos, ao passo que a graça, em regra, é pedida (CPP, art. nidade e a razões ou motivos vários, ao sabor da oportunidade ou do momen-
734). A anistia pode ser concedida antes ou depois da condenação, enquanto to. Todavia não há negar também seu lado bom. Ele se destina a temperar o
o indulto e a graça só são aplicáveis a réus condenados. A anistia extingue a rigor da lei, a qual é norma geral e, assim, pode, em determinado caso, não
punibilidade, ao passo que a graça e o indulto podem ser parciais, apenas ser justa, como lembra Von Liszt, dizendo que a graça "deve servir para aten-
comutando ou diminuindo a pena. Reserva-se, geralmente, a anistia para cri- der às exigências da equidade, em face das disposições genéricas e rígidas do
mes políticos, ao passo que as duas outras medidas de clemência se destinam direito", acrescentando ainda que ela é "emenda da própria justiça e 'válvula
a crimes comuns. A anistia é de competência exclusiva do Congresso Nacio- de segurança do direito', na expressão de Ihering"2.
nal (CF, art. 48, VIII), enquanto a graça e o indulto são prerrogativas do
Chefe do Executivo (CF, art. 84, XII). Por outro lado, é de convir que ocasiões há em que o esquecimento é
preferível à punição, no próprio interesse público, apaziguando ódios e res-
Advirta-se que, na prática, há certa confusão entre graça e indulto, sentimentos, máxime após movimentos políticos e sociais, buscando por essa
empregando-se comumente o último vocábulo para indicar o outro. Diz-se forma criar um clima de harmonia e entendimento que, conforme a hipótese,
que o sentenciado pede indulto ao Presidente da República — aliás, indulto jamais seria conseguido com a aplicação ou persistência das rígidas normas
ou perdão — quando, realmente, está pedindo graça. Tal fato acha-se consa-
de direito penal.
grado na Constituição Federal, no último dispositivo citado, onde se emprega
a expressão indulto, abrangendo também a graça. Todavia o Código de Pro- Os inconvenientes não são dos institutos, porém, causados por quem os
cesso Penal distingue-os, tratando da graça nos arts. 734 a 740, e da anistia aplica. Mas isso não acontece somente com eles. É peculiaridade do direito.
e do indulto, respectivamente, nos arts. 742 e 741. Como se vê também do Aliás, alguém — não sem alguma razão — já disse: "não temeria as más leis,
dispositivo em análise, o estatuto substantivo refere-se às três medidas de se elas fossem aplicadas por bons juizes"
indulgência soberana (indulgentia principis).
220. Anistia. É a primeira das causas de extinção de punibilidade men-
cionadas no inc. II. Seu escopo é o olvido do crime, ou, como se exprime

1. Florian, Trattato, cit., v. 1, p. 1125.


2. Von Liszt, Tratado, cit., v. 1, p. 469.
Aurelino Leal: "O fim da anistia é o esquecimento do fato ou dos fatos crimi- nenhum efeito penal as condenações"6. Se o fim do Código era outro, se era
nosos que o poder público teve dificuldade de punir ou achou prudente não ir de encontro à índole do instituto, não bastava a adoção daquela cláusula,
punir. Juridicamente os fatos deixam de existir; o Parlamento passa uma es- mas mister seria, ao revés, declaração expressa, o que não se fez.
ponja sobre eles. Só a História os recolhe"3.
Já o mesmo não sucede com os efeitos civis. Não alcança a reparação
Aplica-se, em regra, a crimes políticos, tendo por objetivo apaziguar civil a anistia, já que ela é tão-somente renúncia ao jus puniendi. Conseqiien-
paixões coletivas perturbadoras da ordem e da tranquilidade social; entretan- temente não abrangerá direitos — como a indenização do dano — que não
to tem lugar também nos crimes militares, eleitorais, contra a organização do pertencem ao Estado. Qualquer dúvida, a respeito, desapareceria em face do
trabalho e alguns outros. art. 67, n, do Código de Processo Penal: "Não impedirão igualmente a propositura
A qualquer momento ela é cabível: antes ou depois do processo e mes- da ação civil: ... II — A decisão que julgar extinta a punibilidade".
mo depois da condenação. Se for concedida antes da sentença condenatória Como já dissemos, a anistia é lei e, portanto, sujeita a interpretação do
transitar em julgado, diz-se própria, pois é consoante com seu fim de fazer Judiciário. Logo, quando de sua aplicação, a este podem os interessados re-
esquecer o delito cometido; se depois daquela sentença, fala-se que é impró- correr. E é princípio que aos textos dessa lei deve dar-se a interpretação mais
pria, visto recair sobre a pena. ampla possível, de acordo com sua índole. Com razão, dela falou João Barbalho:
Como já dissemos, é concedida pelo Congresso Nacional, o que vale "Núncia de paz e conselheira de concórdia, parece antes do céu prudente
dizer que é lei. aviso que expediente de homens"7.
É o mais amplo dos institutos enumerados pelo Código, pois colima o Pode a anistia ser plena ou parcial, conforme se refira a todos os crimi-
esquecimento do crime, que, a bem dizer, desaparece, visto a lei da anistia nosos ou fatos, ou exclua alguns deles, notando-se, entretanto, que em rela-
revogar, no caso, a penal. Cessam, assim, os efeitos penais do fato, o que ção aos beneficiados, ela não é restrita.
significa que, se o anistiado vier a praticar um delito, depois, não será consi- A anistia não pode ser recusada, visto seu objetivo ser de interesse pú-
derado reincidente. blico. Todavia, se for condicionada, já o mesmo não acontece: submetida a
Nem todos assim pensam. O ilustrado Min. Nelson Hungria escreve: "É clemência a uma condição, podem os destinatários recusá-la, negando-se a
de notar que o Código não reproduz sequer a cláusula final do art. 75 do cumprir a exigência a que está subordinada.
Código de 90 (mantida no Projeto Alcântara Machado), declaratória de que a Os crimes hediondos, a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpe-
anistia 'põe perpétuo silêncio ao processo'. Segue-se daí que a anistia extin- centes e drogas afins e o terrorismo não admitem a anistia, bem como a graça
gue a punibilidade (art. 107), mas não o crime ou a intercorrente condenação, e o indulto. É o que deixa claro o art. 2.°, I, da Lei n. 8.072.
salvo quanto à execução da pena imposta. A condenação, se já passada em
julgado, persiste para o efeito de declaração da reincidência e exclusão de 221. Graça e indulto. Em sentido restrito, a graça é espécie da indulgentia
sursis por novo crime que venha o anistiado a cometer"4 e5 . principis de ordem individual, pois só alcança determinada pessoa. Na for-
Não obstante a abalizada opinião, parece-nos que o silêncio sobre o ma do art. 734 do Código de Processo Petal, pode ser pedida pelo condena-
crime e suas consequências penais não depende de declaração da lei, mas é do, por qualquer do povo pelo Conselho Penitenciário ou pelo Ministério
próprio do instituto. Como escreve Carlos Maximiliano, a anistia "é um ato Público. Pode, contudo, o Presidente da República concedê-la espontanea-
do poder soberano que cobre com o véu do olvido certas infrações criminais, mente.
e, em consequência, impede ou extingue os processos respectivos e torna de Como se verifica dos arts. 735 e s. do Código de Processo Penal, e 189
e 190 da Lei de Execução Penal, função de relevo será reservada ao Conselho
3. Aurelino Leal, Teoria e prática da Constituição Federal brasileira, 1925, p. Penitenciário, incumbido de opinar sobre o pedido. Tràta-se de um corpo
754.
3. Nelson Hungria, Novas questões, cit., p. 111. 6. Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição brasileira de 1946, 1954, v. 1,
4. Como se verifica no Anteprojeto (art. 53, § 3.°), Nelson Hungria abandonou sua p. 155.
opinião, para abraçar a que sempre defendemos. 7. João Barbalho Ulhôa Cavalcanti, Constituição Federal brasileira, 1924, p. 179.
eclético, constituído por "professores de Direito ou juristas e professores de decisões, o que aberra da separação de Poderes. Contra sentenças iníquas, ou
Medicina ou clínicos profissionais", além de membros do Ministério Público nulas, tem o réu sempre os recursos legais. Dispõe da revisão, a qualquer
Federal e do Estado (Dec. n. 4.365, de 31-1-1928, e Lei de Execução Penal, tempo, e, por meio dela, pode ser plenamente restaurado seu direito. Conta,
art 69, § 1.°). Recrutados seus membros, em regra, dentre os expoentes da ainda, com o habeas corpus. Qualquer desses remédios é mais célere do que
classe a que pertencem — por seus dotes intelectuais e ilibada reputação — o pedido de graça.
devem manifestar-se sobre o pedido, com a imparcialidade de juizes, tendo Em sua obra, aqui citada, José Frederico Marques estende-se em consi-
sempre em vista não apenas o interesse do condenado, mas também o da derações de todo procedentes, mostrando ser incabível fazer-se do Executivo
sociedade, em cujo seio pretende ele voltar a viver. A justa medida da dosa- órgão revisional das decisões da justiça, acentuando que a graça existe "para
gem exata dos dois interesses há de ser sempre o fim em vista. Ainda aqui se corrigirem os rigores da aplicação da lei com os temperamentos da equi-
têm oportunidade palavras de jurista francês: "Deux intérêts également puissants, dade"8. Podia acrescentar que ela é também medida de individualização pe-
également sacrés, veulent être à Ia fois proteges: 1'intérêt general de Ia société nal, a que faz jus o réu, quando demonstre cabalmente, por seu aproveita-
qui veut Ia juste et Ia prompte répression des délits: 1'intérêt des accusés, qui mento, a inutilidade da pena total.
est bien aussi un intérêt social et que exige complete garantie des droits".
Com maior discrição e parcimônia devem ser aplicados a anistia e o
Com o parecer do Conselho, os autos sobem ao Presidente da Repúbli- indulto.
ca. (Cremos, entretanto, que a audiência do Conselho Penitenciário, infeliz-
mente, hoje, não é indeclinável, pois a Constituição — art. 84, XII — diz que Se assim não se fizer, esses institutos, já combatidos por tantos, acaba-
a concessão se dará "com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em rão por se desmoralizar.
lei".) Concedida a graça, o respectivo decreto será junto, por cópia, aos autos
de execução de sentença, incumbindo, agora, ao juiz executá-lo.
O indulto é medida de caráter coletivo, como já se falou. É da atribui-
ção privativa do Presidente da República, conforme prescreve a Constituição
Federal, no art. 84, XII. O art. 741 do Código de Processo Penal regula a
espécie.
Tanto ele como a graça podem ser parciais, limitando-se a diminuir a
pena ou comutá-la, substituindo-a por outra de qualidade mais benigna. Po-
dem, além disso, não cancelar todas as penas.
Ao contrário da anistia, o indulto e a graça só têm lugar após a sentença
condenatória transitar em julgado, pois se referem tão-só a seus efeitos executório-
penais. Nenhuma influência têm sobre as consequências civis.
Em princípio, não podem o indulto e a graça ser recusados, conforme a
ilação que se tira dos arts. 738 e 739 da lei processual. Só o poderão ser
quando se limitarem a comutar a pena, isto é, a substituírem esta por outra,
e não a extinguirem ou diminuírem. Recusa também poderá haver quando
forem condicionados, como sucede com a anistia.
Já tivemos ocasião de apontar a utilidade dessas medidas integrantes da
indulgentia principis, como também suas desvantagens.
Deve a graça ser aplicada com prudência e cautela, não se transforman-
do em recurso habitual das decisões do Judiciário. Será isto intromissão do
Executivo na órbita desse Poder; será transformá-lo em supervisor de suas 8. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 3, p. 436.
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 359

IV Naquele número definimos a decadência como a perda do direito de


ação, por não se tê-lo exercido no prazo legal. Refere-se ao direito de agir
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE diretamente na ação privada e indiretamente na ação pública, quando esta
depende de representação. Incide ela sobre um direito instrumental, sem que
C) DECURSO DO TEMPO deixe de alcançar também o direito material.
Difere da prescrição, como já dissemos, não só porque esta alcança a
SUMÁRIO: 222. Novatio legis. 223. Prescrição. Decadência. Perempção. ação em curso e a condenação, como também porque pode ser suspensa ou
interrompida. Aliás, a prescrição diz respeito diretamente ao jus puniendi.
A perempção não está subordinada ao decurso de tempo, como a deca-
222. "Novatio legis". Extingue-se a punibilidade pela retroatividade de dência e a prescrição; todavia não nos recusamos a incluí-la neste parágrafo,
lei que não mais considera o fato como criminoso — é a oração do inc. III do seguindo, mais uma vez, a ordem do Código.
art. 107. Distingue-se a perempção da decadência porque esta ocorre antes da
Volta aqui o Código a tratar do mesmo princípio já consagrado no art. lide, antes que se instaure a instância—que, segundo o preclaro Jorge Americano,
2.°: a retroatividade da lex mitior. Ocorre inovação extintiva, isto é, a nova lei "é o juízo enquanto funciona no curso da causa" 1 — ao passo que aquela se
não dá ao fato, ao contrário da anterior, caráter criminoso. Observam alguns verifica durante a ação. A decadência extingue o direito de querelar ou repre-
que aquela não extingue o crime, mas a lei. sentar para a ação pública por se ha\er conservado inerte o titular durante
certo tempo, enquanto a perempção é inércia no processo, e inação consis-
Cremos, contudo, que se opera abolitio criminis, por força do art. 2.° do
tente em não movimentá-lo.
Código. O fato deixa de ser considerado delito, e, consequentemente, se ini-
Só quando a ação é exclusivamente de iniciativa privada é que pode
ciado o processo, ele não prossegue, e, se condenado o réu, a sentença é
ocorrer a perempção. Se a queixa é subsidiária (CP, art. 100, § 3.°), não exis-
rescindida: nenhum efeito penal subsiste, inclusive para a reincidência, sursis
te perempção porque a inércia do queixoso fará com que o Ministério Públi-
etc. A lei retroage, não vendo empecilho mesmo diante da coisa julgada, como
co retome a ação, como parte principal (CPP, art. 29). Com maior razão, não
aquele artigo. Persistem, entretanto, os efeitos civis da sentença.
tem ela lugar na ação pública.
A lei nova pode revogar a anterior por duas formas: expressa ou tacita-
A perempção vem regulada no art. 60 do diploma processual, que espe-
mente. A revogação é expressa quando, regulando o assunto, o novo diploma cifica as diversas hipóteses em quatro incisos.
não o incrimina. É tácita quando há incompatibilidade entre a incriminação
O primeiro diz respeito ao fato de o querelante não dar andamento ao
feita pela lei anterior e a nova.
processo durante trinta dias consecutivos. É uma sanção à negligência do
Como já se fez sentir, a retroatividade in mellius não é apenas princípio ofendido. Dito isto, está claro que, se o estacionamento da ação se der não
do direito penal, mas preceito constitucional. por inércia do querelante, mas por expediente do acusado ou desídia do fun-
cionário, não pode isso ser levado a cargo daquela. O Código de Processo
223. Prescrição. Decadência. Perempção. Constituem objeto do inc. IV
Civil é bastante claro neste sentido: ocorre a absolvição da instância "quan-
do artigo. A primeira será matéria de um capítulo à parte, devido a sua exten do, por não promover os atos e diligências que lhe cumprir, o autor abando-
são e importância. nar a causa por mais de 30 (trinta) dks" (art. 267, III).
Quanto à decadência, foi tratada no n. 214, de modo que, aqui, quase O inc. II do art. 60 estabelece a ressalva do falecimento ou interdição do
nada resta a dizer. querelante. Em tal caso, dentro em o prazo de sessenta dias, o represen-
tante poderá apresentar-se em juízo para mover a ação. O prazo conta-se do
dia do falecimento ou da data em que foi decretada a incapacidade, não se

1. Jorge Americano, Comentários ao Código de Processo Civil, 2. ed., v. 1, p. 290.


360 PARTE GERAL

computando nele o tempo em que a ação esteve parada, desde que não se
tenha tornado perempta. Em caso de interdição, dará andamento ao processo
o representante legal do querelante; na hipótese de falecimento, observar-se-
ão os arts. 31 e 36 da lei processual. No caso de declaração judicial de ausên-
cia, observa-se o mesmo que para o falecimento, podendo o curador prosse-
guir no processo se o cônjuge e os parentes, com preferência, não o fizerem.
Cumpre notar, quanto ao disposto no art. 36 do Código de Processo, que
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
a ordem ali mencionada só se observará quando as pessoas com direito de
queixa quiserem exercê-lo, para isso comparecendo a juízo, sendo significa- D) DECURSO DO TEMPO
tivo que a lei usa o verbo comparecer, não basta, pois, a existência dessas PRESCRIÇÃO
pessoas.
O inc. III do art. 60 encara, primeiramente, hipótese de descaso do que- SUMÁRIO: 224. Conceito e fundamento. 225. Penas e prescrição. 226.
relante, por não comparecer, sem motivo justificado, a ato a que deve estar Prescrição retroativa. 227. Termo inicial da prescrição. 228. Causas
presente, cabendo ao Ministério Público o prosseguimento, se a ação penal é suspensivas. 229. Causas interruptivas. 230. Crimes de imprensa. 231. Crimes
falimentares.
subsidiária. Sendo a ação exclusiva do ofendido ocorrerá a perempção. Em-
bora o Código Penal, como também o Código de Processo Penal, fale expres-
samente em querelante, o entendimento jurisprudencial é no sentido de que
não há necessidade da presença pessoal do ofendido à audiência, salvo quan- 224. Conceito e fundamento. O jus puniendi do Estado extingue-se tam-
do chamado a depor como vítima, bastando a de seu procurador. A perempção bém pela prescrição. Esta é a perda do direito de punir, pelo decurso de tem-
só se operará se ausentes ambos, de modo a não ser impulsionada a ação po; ou, noutras palavras, o Estado, por sua inércia ou inatividade, perde o
penal privada. Outra hipótese é a do abandono da instância por ele, em face direito de punir. Não tendo exercido a pretensão punitiva no prazo fixado em
de não formular o pedido de condenação em suas alegações finais, ou seja, lei, desaparece o jus puniendi.
antes da sentença.
Tem o instituto da prescrição sofrido críticas. Beccaria escreveu que,
Por fim, no art. 60, IV, do Código de Processo, cogita-se da perempção "quando se trata desses crimes atrozes, cuja memória subsiste por muito tem-
quando, sendo querelante pessoa jurídica, esta extinguir-se sem deixar su- po entre os homens, se os mesmos forem provados, não deve haver nenhuma
cessor. prescrição em favor do criminoso que se subtrai ao castigo pela fuga"1. É um
Quando da dissolução da pessoa jurídica, no próprio ato que a dissolver estímulo à fuga — proclamam alguns, São relativos os argumentos da cessa-
pode determinar-se qual a sociedade em que ela se transforma, dando-se ção do interesse de punir e da fraqueza ou desaparecimento das provas —
então a sucessão. À sucessora, pois, incumbe dentro do prazo de sessenta dizem outros. Os filiados à Escola Positiva aceitam-na somente quando ces-
dias (art. 60, II) prosseguir na ação, sob pena de esta tornar-se perempta, o sada a periculosidade.
que também ocorrerá se ela não houver deixado sociedade ou associação Outras críticas ainda se fazem à prescrição, porém não procedem, pois
sucessora. ela atende não só ao interesse do acusado como também aos interesses de
A esses casos de perempção outros podem ser acrescentados, aliás, por caráter público.
nós já mencionados: a morte do querelante nos delitos de adultério e induzimento O tempo, que tudo apaga, não pode deixar de influir no terreno repres-
a erro essencial e ocultação de impedimento, previstos respectivamente nos sivo. O decurso de dias e anos, sem punição do culpado, gera a convicção da
arts. 240 e 236 do Código Penal. Trata-se, como já se frisou, de direito sua desnecessidade, pela conduta reta que ele manteve durante esse tempo.
personalíssimo do ofendido, de modo que a morte deste acarreta a cessação Por outro lado, ainda que se subtraindo à ação da justiça, pode aquilatar-se
da instância e, portanto, a perempção, pela impossibilidade subjetiva de se
prosseguir no feito.
1. Beccaria, Dos delitos, cit., p. 82.

HL-. . .
362 PARTE GERAL DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 363

de sua intranquilidade, dos sobressaltos e terrores por que passou, influindo 225. Penas e prescrição. Sendo a prescrição a extinção da punibilidade
esse estado psicológico em sua emenda ou regeneração. pela fluência do tempo, lógico é que as leis tratem de fixar este.
Se não se trata de prescrição da sentença condenatória, é inegável que o O nosso Código Penal, nos arts. 109 a 118, trata das várias hipóteses
decurso do tempo enfraquece ou faz mesmo as provas desaparecerem, de que surgem acerca da fixação desse tempo.
modo que a sentença que viria a ser proferida não mais consultaria aos inte- A reforma de 1984 tornou todas as penas prescritíveis, o que não ocor-
resses da justiça, por não corresponder à verdade do fato criminoso. ria anteriormente com as acessórias.
Pense-se, também, que o clamor público, a indignação, o sentimento de As privativas de liberdade e as restritivas de direitos (art. 109, parágrafo
insegurança etc, que o crime em regra provoca, diluem-se, arrefecem-se e único) prescrevem em prazos variáveis, de acordo com a sua quantidade, enquanto
mesmo desaparecem pela ação do tempo. a de multa, quando isoladamente aplicada ou não cumprida, prescreve em
Outros argumentos e teorias fundamentam o instituto. Estabelecem al- dois anos.
guns, por exemplo, correlação entre ele e a prescrição aquisitiva do direito Fora disso, as penas mais leves prescrevem com as mais graves, na for-
civil: o criminoso adquire o direito de não ser punido, pela inércia dos órgãos ma do art. 118.
estatais incumbidos da punição. Outros invocam a equidade como razão. E
No art. 109, o legislador trata do lapso prescricional, tomando como
diversos fundamentos podem ser apontados ainda.
base a quantidade da pena e fazendo-o variar entre vinte anos — limite má-
Nem todos são procedentes; porém alguns se impõem, e fato é que as ximo, e dois anos — limite mínimo. Não havendo condenação, regula a pres-
legislações têm aceitado, sem vacilação, o instituto, que realmente se justifica. crição o máximo da pena in abstracto. Após transitar em julgado a sentença
Com efeito, não se pode admitir que alguém fique eternamente sob ameaça condenatória, é a pena in concreto que fixa. No primeiro caso, trata-se de
da ação penal, ou sujeito indefinidamente aos seus efeitos, antes de ser pro- prescrição da ação; no segundo, da condenação. (Bem sabemos que não é
ferida sentença, ou reconhecida sua culpa (em sentido amplo). Seria o vexa- exato falar-se em prescrição da ação, todavia a expressão figura amplamente
me sem fim, a situação interminável de suspeita contra o imputado, acarre- nos tratados e nos julgados dos tribunais, inclusive do Pretório Excelso.)
tando-lhe males e prejuízos, quando, entretanto, a justiça ainda não se pro-
Os prazos prescricionais são reduzidos à metade quando o criminoso
nunciou em definitivo, acrescentando-se, como já se falou, que o pronuncia-
era, ao tempo do delito, menor de vinte e um ou maior de setenta anos, aten-
mento tardio longe estará, em regra, de corresponder à verdade do fato e ao
dendo-se naturalmente às condições de inferioridade de ambos, existentes,
ideal de justiça.
em regra, em relação aos outros homens: a um, devido à falta de maturidade;
Em se tratando de condenação, força é convir que o longo lapso de a outro, por sua decrepitude.
tempo, decorrido após a sentença transitada em julgado, sem que o réu haja
praticado outro delito, está a indicar que por si mesmo ele foi capaz de No tocante à multa, a reforma de 1984 corrigiu uma omissão havida na
alcançar o fim que a pena tem em vista, que é o de sua readaptação ou primitiva redação, ao acrescentar a hipótese da pena em questão ser a única
reajustamento. cominada. Pela atual redação (art. 114), apena de multa, sendo a única cominada
ou aplicada, prescreve em dois anos.
E, quando assim não fosse, é indisfarçável que, ao menos aparentemente
— e, portanto, com reflexos sociais nocivos — a pena tão tardiamente Transitada em julgado a sentença condenatória, é a pena in concreto
aplicada surgiria sem finalidade, e antes como vingança. Como escreve Manzini: que regula a prescrição. Novo prazo começa a fluir, regulado agora por aquela
"A implacável vontade de punir, se se pode conceber como um ato de psico- pena, que não retroage para alcançar a pretensão punitiva, já que se trata
logia individual inferior, não é compreensível qual fato de psicologia coleti- agora da pretensão executório-penal. É o que claramente se vê do art. 110,
va, em relação a ações individuais, como o delito, em povos civilizados, e que diz serem os mesmos prazos do art 109, com a particularidade do acrés-
quando o tempo alterou as condições em que normalmente é exercido o po- cimo, de um terço se o condenado for reincidente.
der público punitivo"2. Cumprindo a pena o sentenciado, mas evadindo-se, o lapso prescricional
é regulado pelo restante que deixou de cumprir, o mesmo sucedendo se se
2. Manzini, Tratado, cit., v. 3, p. 451. tratar de revogação do livramento condicional. Compreende-se facilmente a
364 PARTE GERAL DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 365

razão: ainda que a pena não seja — ao contrário do que alguém afirmou — o interpretação; para outros, a súmula era profundamente justa, pois tinha como
preço por que o criminoso compra o direito de praticar o crime, não há dúvi- base a pena merecida e adequada ao caso e não a possível.
da de que não se pode regular a prescrição pela pena que lhe foi imposta, pois Com a reforma introduzida pela Lei n. 6.416, de 1977, principalmente
esta, pelo cumprimento parcelado, já não é a mesma; é outra, está reduzida. pelo acréscimo do § 2.° do art. 110 (primitiva redação), toda discussão termi-
Quanto ao livramento, advirta-se, como lembra Hungria, que "a revogação nou, pois o novo preceito declarou de maneira nítida que a prescrição retroati-
opera ex tunc (sem desconto do tempo em que esteve solto o condenado, va importava "tão-somente em renúncia do Estado à pretensão executória da
quando motivada por condenação do beneficiário em virtude de crime ou pena principal".
contravenção posterior à concessão do benefício), mas opera ex nunc (des- Ficou, então, estabelecido que:
contando-se na pena o já transcorrido tempo de livramento), quando resulta
a) a prescrição depois da sentença com trânsito em julgado para a acu
de condenação do liberado por crime ou contravenção anterior à outorga do
sação ou não provido o recurso acusatório, regulava-se pela pena concretiza
benefício (art. 88)"3.
da; e
De tudo quanto se expôs, podemos resumir: a) antes de sentença transi-
tada em julgado, a pretensão punitiva rpg"1a-Rff P^lr> máximo da pp.na cominaria b) a prescrição atingia apenas a pretensão executória, isto é, o direito de
idenatória desclassificar o crime, excepcional- executar a sanção imposta pela sentença condenatoria.
(art. 109); b) se
mente retroage. regulando-se 3 prescrição pelo máximo da pena abstratamgnte A atual reforma (de 1984) deu nova guinada à prescrição retroativa,
cominada ao novo delito, ainda que o Ministério Piihlirn remira,; ç) depois prestigiando a já mencionada Súmula 146.
de sentença condenatoria,-com o trânsito fim jiilgadn, fixa-se a prescrição Pelo exame dos parágrafos do art. 110 do Código Penal conclui-se que:
pela pena imposta (art. 110); d) com exceção do referido na alínea j^jjnter- a) a prescrição retroativa voltou a atingir a pretensão punitiva, com ca
__ i consoante o art 117, tono~õ pagft-ánrneça goyamerite racterística própria, sendo uma exceção à regra geral prevista no art. 109. A
do Hia <ja intprriip r-pjn, ^e sa pareriHQ e ineyictente n que f| iijii a^ a
prescrição em questão rescinde a sentença condenatoria, atingindo seus efei
data da interrupção. tos principais e secundários;
226. Prescrição retroativa. O parágrafo único do art. 110 do Código b) aplica-se tanto não havendo reeurso da acusação como igualmente na
Penal, em sua redação primitiva, estabelecia que: "A prescrição depois de hipótese do recurso não ser provido;
sentença condenatoria de que somente o réu tenha recorrido, regula-se, tam- c) aplica-se e atinge três períodos: do fato ao recebimento da denúncia,
bém, pela pena imposta e verifica-se nos mesmos prazos". se houver, desta à publicação da sentença e, por fim, desta ao julgamento em
Tal dispositivo enunciava que, transitada em julgado a decisão condenatoria segundo grau, havendo, obviamente, recurso das partes.
para a acusação, havendo recurso da defesa, iniciava-se um novo lapso Voltou-se, portanto, ao princípio ensejador da jurisprudência sumulada.
prescricional, agora tendo como base a pena concretizada em primeiro grau. Da análise da atual situação chegamos à conclusão de que a prescrição
Com base em tal dispositivo, porém alargando-o, o e. Supremo Tribunal retroativa obedece aos seguintes princípios:
Federal construiu a Súmula 146, nos seguintes termos: "A prescrição da ação
1.°) não há necessidade de recurso da defesa para o seu reconhecimento;
penal regula-se pela pena concretizada na sentença, quando não há recurso
da acusação". 2.°) o prazo, como já realçado, pode ser contado do fato ao recebimento
da denúncia, desta à publicação da sentença e desta última ao julgamento do
A súmula em questão passou por várias e pequenas variações (aplicava-
recurso. Na sentença absolutória, provido o recurso acusatório em segundo
se ou não ao período anterior à denúncia, aplicava-se ou não havendo recurso
grau, temos apenas dois lapsos prescricionais: do fato à publicação da sen-
acusatório improvido etc), ensejando, sempre, profundas e férteis discus-
tença e desta ao julgamento do apelo;
sões. Para uns, a prescrição da pretensão punitiva somente poderia ter como
base o máximo da pena in abstracto, não sendo possível qualquer outra 3.°) pode ser considerada a pena imposta ou reduzida em segundo grau
e mesmo a elevada, desde que, na última hipótese, não modifique o prazo
3. Nelson Hungria, Novas questões, cit., p. 116. prescricional;
366 PARTE GERAL DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 367

4.°) o recurso acusatório, mesmo provido, só impedirá a prescrição re- esta perdura ele não se finda. Como pode, então, um ato processual (a denún-
troativa se alterar o lapso prescricional. cia, a portaria, ou o auto de flagrante) dizer que cessou aquela permanência,
Como se nota, no fim da caminhada há sempre um retorno ao passado. para daí se contar o lapso prescricional, quando, entretanto, o delito está se
realizando?
227. Termo inicial da prescrição. Antes que a sentença transite em jul- Suponha-se o crime de cárcere privado (art. 148). Realizado o inquérito
gado, nosso Código adotou como termo inicial da prescrição dois critérios: o e oferecida a denúncia, faz-se o processo. Prova-se taxativamente estar a ví-
da consumação do crime e o do dia de sua ciência (art. 111). O inc. I desse tima enclausurada; apenas, não se sabe qual o lugar da clausura, cuja conti-
artigo diz que o lapso prescricional conta-se do dia em que o crime se consu- nuação, entretanto, é provada, v. g., por testemunhas que ouviram o réu, le-
mou, e, pelo art. 14, I, diz-se consumado um crime quando nele se reúnem ram cartas suas etc. Pois bem, apesar de tudo isso, apesar de o ofendido não
todos os elementos do tipo. Conseqiientemente, começa-se a contar o prazo aparecer, se o réu for expedito e, foragido, aguardar a prescrição da condena-
desde o momento em que o delito se integra de todos os elementos, o que ção, ficará impune, não obstante seu crime estar ainda em plena consumação.
nem sempre se dá na mesma ocasião. Assim, no homicídio, v. g., a ação de O argumento de que então se fará novo processo não colhe, porque seria
ferir pode ser bem espaçada do evento morte; no estelionato, o ardil separa- autêntico bis in idem, já que o delito é um só, é o mesmo. Não se poderia
se, muitas vezes, da consecução da vantagem ccpn prejuízo alheio etc. atribuir ao agente outro crime, pois lhe faltariam vários elementos, como a
No inc. II cogita-se da tentativa, frisando-se que o dia do início é o em ação inicial de enclausurar, que não se realiza após a prescrição.
que cessa a atividade, o que bem se compreende, em falta do evento ou re- O que sustentamos não tem qualquer cunho de originalidade. Primeiro,
sultado, podendo acontecer, também, que a execução se dê em diversos dias, é a lei a dizer iniciada a prescrição quando houver cessado a permanência.
sendo, então, o último o marco inicial da prescrição. Depois, são inúmeras as opiniões que sufragam esta tese. Aloísio de Carva-
Referência especial da lei merece o crime permanente, objeto do inc. lho Filho, após citar como crimes psrmanentes o sequestro, o cárcere privado
III. Crime permanente é aquele cuja consumação se prolonga no tempo, de- e o bando, ou quadrilha, diz: "A prescrição, pois, não poderá correr senão da
pendente da atividade (ação ou omissão) do agente (n. 59). data em que a societas houver sido desfeita, em que o sequestro ou o cárcere
No delito permanente, se a consumação se protrai ou se prolonga, a houverem sido levantados. Porque só então cessou a permanência da ação
razão manda que o lapso prescricional se inicie quando a permanência ces- criminosa"6. José Duarte, que também comunga dessa opinião, cita Binding,
sou. É o que, aliás, diz a lei. Pode acontecer que, instaurada a ação contra o Wachter, Massari, Sabatini, Manzini, Leone, Battaglini e Appiani, todos sus-
delinquente, a permanência não cesse, e, nesse caso, como se contar o prazo tentando que a prescrição se inicia quando cessa a permanência 7. Com inteira
prescricional? Basileu Garcia e José Frederico Marques sustentam que, não propriedade escreve o jurista pátrio: "Nesse crime, não há um momento, mas
um período consumativo, no qual podemos encontrar o momento inicial e o
obstante o delito permanecer, o prazo começa a correr da instauração da ação4.
final, ao que observa Leone — há um evento continuativo e uma consumação
Têm os eminentes juristas vários acórdãos que os sustentam 5.
continuativa"B.
Mas a tese longe está de ser pacífica. Primeiramente, registre-se que as
E o que dizíamos há pouco: o crime permanente tem, como qualquer
decisões, que frequentemente apoiam esse ponto de vista, referem-se a casos
outro, seu momento inicial e final, com a diferença de que nele estes são
em que não está provada a permanência, após o início do processo. São,
espaçados, afastados um do outro pela permanência. Conseqiientemente não
aliás, decisões quase sempre proferidas no caso da contravenção de va -
nos parece seguro dizer que a denúncia corta esse período, fracionando-o, de
diagem. modo que se pode sustentar que, ocorrida a prescrição, novo processo se
Depois, porque a estrutura do delito permanente não se concilia muito instaurará. Com efeito, considerando-se o sequestro, o cárcere privado e o
com essa opinião. É que a característica desse crime é a permanência, e enquanto bando, ou quadrilha, onde estaria o termo inicial — elemento dos delitos —

4. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 699; José Frederico Marques, Curso, 6. Aloísio de Carvalho Filho, Comentários, cit., p. 346.
cit., v. 3, p. 417. 7. José Duarte, Tratado, cit., v. 5, p. 206 e s.
5. RT, 182:&0, 205:364 e 191:661.
8. José Duarte, Tratado, cit., v. 5, p. 210.
368 PARTE GERAL DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 369

da subtração da vítima, do enclausuramento, da organização do bando, se die scientiae. Refere-se a lei aos delitos de bigamia e falsificação ou altera-
isso já constitui matéria julgada no primeiro processo e se, no segundo, o que ção de assentamento de registro civil. São crimes instantâneos, porém de
existe é apenas permanência de um crime, ou melhor, da consumação? efeitos permanentes e que, dissimulados ou ocultos, tardam em vir ao conhe-
Manzini, na sustentação deste ponto de vista, vai ao extremo: "Quando cimento da autoridade, de modo que, se se contasse o prazo da consumação,
o crime permanente se protrai também durante o curso da ação penal, a pres- frequentemente aconteceria ter-se operado a prescrição quando fossem eles
crição não corre nem mesmo depois da condenação em primeiro ou segundo descobertos. O conhecimento a que a lei alude é o da autoridade pública, que
grau"9. não pode, evidentemente, alegar ignorância quando o fato é notório.
O argumento de que o delito permanente seria imprescritível não tem O art. 112 versa o marco inicial da prescrição, depois que a sentença
qualquer procedência: prescreve, como qualquer outro, quando cessou sua condenatória transitou em julgado para a acusação, para afirmar que ele co-
consumação. meça a correr desse dia, ou do em que foi revogado o sursis ou o livramento
A opinião que esposamos obedece a princípio elementar de justiça e condicional. É a primeira hipótese. A segunda trata da interrupção da execu-
atende inteiramente aos interesses da ordem jurídica: desde que a atividade ção, para dizer ser o dia inicial o da interrupção, salvo quando o tempo desta
delituosa do agente não cessou, deve ojus puniendi estar presente e efetivo. deve ser computado na pena (art. 42). Interrompido o cumprimento desta
pela fuga ou pela revogação do livramento condicional, regula-se a prescri-
Acerca dos delitos qualificados pelo resultado ou preterdolosos, é do ção pelo restante, como já se fez sentir no número anterior.
majus delictum que o prazo se inicia; assim, no crime do art. 129, § 3.°, é do
resultado morte que a prescrição começa a correr. 228. Causas suspensivas. Trata o art. 116 da suspensão da prescrição.
Razão assiste a Basileu Garcia, quando escreve a respeito do crime con- Esta pode ser suspensa ou interrompida, ocupando-se desta última hipótese o
tinuado e do concurso formal: "O acréscimo de um sexto a dois terços da artigo seguinte. Distinguem-se a suspensão e a interrupção, como escreve
pena, atribuível à continuação do crime (art. 51, § 2.°), não influi no lapso Battaglini: "Pela suspensão da prescrição, não perde eficácia (vale dizer, continua
prescricional. Se o réu respondesse por infrações autónomas, a prescrição com vida) a parte do prazo prescricional já decorrida; na interrupção da pres-
regular-se-ia pela pena mais grave, sem esse acréscimo (art. 118). Sendo o crição, ao revés, perde qualquer eficácia (vale dizer, torna-se nula) a parte do
crime continuado uma criação da equidade, não se concebe que possa piorar prazo antes decorrida. Noutras palavras, cessando a suspensão, a parte escoa-
a posição do réu. De igual modo, no concurso formal (art. 70) não se deve da do prazo prescricional junta-se com a fração sucessiva do próprio lapso;
considerar, para fins de prescrição, o aumento de um sexto até metade, pois cessando, ao contrário, a interrupção, o prazo da prescrição começa a correr
isso tornaria mais grave essa modalidade que o concurso material (art. 69), ex novo do dia da interrupção (dies a quo)"12.
sob o particular aspecto da extinção da punibilidade" IOe". A primeira causa suspensiva é a existência de questão prejudicial. Dela
Em face do art. 10 do Código Penal, o dia do início — que é o da con- trata nosso Código de Processo Penal nos arts. 92 a 94.
sumação — conta-se a favor do acusado. Como deixamos dito no n. 48, a Define-a Vicente de Azevedo como a "questão prévia de direito civil
regra do Código Penal prefere à do Código de Processo (art. 798, § 1.°) por- levantada no curso da ação penal, tendo por objeto elemento constitutivo do
que beneficia o acusado. crime, cuja importância determine a incompetência do juízo criminal e a
No inc. IV nosso diploma usa o critério da ciência do fato: conta-se a consequente suspensão do procedimento"13.
prescrição do dia em que o fato se tornou conhecido, isto é, o prazo corre a Questões de direito civil — frise-se — porque são as únicas admitidas
entre nós, embora a expressão seja tomada em sentido amplo. Não há ques-
9. Manzini, Tratado, cit., 1942, v. 3, p. 461. tões prejudiciais de direito penal. Os citados artigos da lei processual dei-
10. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 700. xam bem claro isso. O primeiro alude à prejudicial fundada sobre o estado
11. O Anteprojeto Nelson Hungria dispunha acerca do assunto: "No caso de con
curso de crimes ou de crime continuado, a prescrição é referida, não à pena unificada, 12. Battaglini, p. 363.
mas à de cada crime considerado isoladamente". Filiava-se, como se vê, à opinião ex 13. Vicente de Paulo V. de Azevedo, AÍ questões prejudiciais no processo penal bra
posta. sileiro, 1938, p. 23.
370 PARTE GERAL DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 371

civil das pessoas. Assim, se alguém está acusado por bigamia e o fato é ob- da prescrição, a mais de uma aludimos, como a sentença condenatória recorrível
jeto de ação cível, apresenta-se uma prejudicial. É mister se decida no outro e a denúncia.
juízo a questão, para ter prosseguimento a ação penal. O art. 117 do Código Penal tem por objeto essas causas, as que inter-
O art. 39 da lei adjetiva refere-se a questão de competência do juízo rompem o prazo prescricional, isto é, extinguem-no, reduzem-no a nada, para
cível, diversa da pertinente ao estado civil das pessoas. Como dissemos, e depois novo prazo começar a fluir, como, aliás, frisa o § 2.°.
agora melhor se vê, as prejudiciais podem ser de qualquer natureza (civil, Também vimos que a prescrição começa a correr do dia em que o delito
comercial, constitucional, administrativa etc), exceto penal: a expressãojMízo se consumou, porém interrompe-se com o recebimento da denúncia ou da
cível é empregada como antinômica de juízo criminal. queixa — diz o inc. I do artigo. A lei fala em recebimento (e não oferecimen-
As causas mencionadas no art. 92 são obrigatórias — "...o curso da to), ou seja, do despacho interlocutório simples do juiz que as recebe.
ação penal ficará suspenso..."; e as do art. 93 são facultativas — "... o juiz Não há referência ao processo que tem início com a portaria, tal qual no
criminal poderá... suspender o curso do processo...". Mas ambas, existentes, das contravenções. Não obstante abalizadas opiniões de que o dispositivo
suspendem o curso da ação penal, como claramente fala o art. 94 do diploma também aproveita ao processo contravencional, nosso tribunal tem rejeitado
adjetivo. a analogia, lembrando ser a prescrição instituto de direito substantivo 15. Real-
A segunda causa suspensiva é o cumprimento da pena no estrangeiro. É mente, a lei referiu-se tão-somente à denúncia e à queixa que não compreen-
óbvia a razão. Cumprindo pena fora do país, o acusado não pode ser extradi- dem a portaria.
tado e, assim, a prescrição decorreria, favorecendo-o. Lógico, pois, que o Causa interruptiva é também & pronúncia. Tem-se em vista agora o pro-
legislador veja, no fato, motivo para que fique suspenso o prazo prescricional. cesso do júri (CPP, arts. 406 e s). Convencido o juiz da existência do crime,
O parágrafo único do art. 116 declara que, depois de passada em julga- e de indícios da autoria, pronunciará o réu, e essa sentença interrompe o pra-
do a sentença condenatória, a prescrição fica suspensa durante o tempo em zo prescricional que começara a correr novamente depois da denúncia. Se,
que o condenado se acha preso por outro motivo. A expressão "outro motivo" impronunciado o acusado, houver recurso, e a instância superior o pronun-
é ampla: toda e qualquer razão que não seja a da sentença condenatória de ciar, certamente a decisão interrompe o prazo, o mesmo ocorrendo no caso de
que trata o dispositivo. Preso por outro motivo, não pode ele cumprir a pena absolvição sumária (art. 411), reformada por aquela, pronunciando o réu. Se
que lhe foi imposta, donde seria absurdo que esse outro comportamento ilí- este for pronunciado e recorrer, a decisão que mantiver a pronúncia interrom-
cito, que lhe determinou a prisão, fosse causa para que ele não cumprisse a pe também o curso prescricional — é o que reza o inc. III.
pena que foi imposta naquela sentença. Quanto à sentença condenatória recorrível, já mais de uma vez a invo-
O Código de Processo Penal (como já tivemos ocasião de aludir), no camos. Fluindo o prazo, após o recebimento da denúncia ou queixa, a primei-
art. 152, determina fique suspenso o processo se, depois do crime, sobre- ra causa interruptiva que se segue — não se tratando de processo em que há
veio moléstia mental ao acusado. Em tal hipótese não se suspende o lapso pronúncia — é a sentença condenatória recorrível. Observa com acerto José
prescricional, como nota Basileu Garcia, citando Logoz, que, no silêncio Frederico Marques que o acórdão embargado é também sentença recorrível
do Código suíço, aborda a questão para dizer que "a prescrição continua a e, portanto, interrompe a prescrição, já o mesmo efeito não tendo o recurso
correr — ela não se suspende — em caso de alienação mental do delinquente extraordinário, que não suspende a condenação, passando-se a contar desta,
sobrevinda após o delito", apontando, a seguir, os doutrinadores Chauveau et e pela pena que ela fixou, a prescrição da pretensão executório-penal16.
Hélie, Faustin-Hélie e Garraud, que sustentam o mesmo ponto de vista 14. De acordo com a redação dos incs. II, III e IV, cremos que a interrupção
Assim também entendemos. Os casos de suspensão da prescrição são de se opera com o ato, desnecessária sendo sua intimação às partes.
direito estrito. O inc. V constitui outra circunstância interruptiva: o início ou continua-
ção do cumprimento da pena. Tornando-se res judicata a sentença, o novo
229. Causas interruptivas. Já mostramos, no parágrafo anterior, sua
diferença em relação às suspensivas, e, no decurso da exposição do instituto
15. RT, 173:91 e 595, 779:69, 780:153, 184:29.
14. Paul Logoz, Commentaire, cit., 1939, v. 1, p. 307. 16. José Frederico Marques, Curso, cit., v. 3, p. 421.
372 PARTE GERAL DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 373

prazo que começou a correr se interrompe com a prisão (no país ou no estran- da publicação ou transmissão; e da condenação, no dobro do tempo em que
geiro, por via de extradição) ou pelo fato de prosseguir o cumprimento da esta for fixada (art. 41), o que nos parece razoável.
pena.
No § 1.° desse artigo, trata da caducidade do direito de queixa ou repre-
É também causa interruptiva a reincidência (art. 63). O preceito é salu- sentação, que se opera em três meses, após a data aludida da publicação ou
tar. Como já tivemos ocasião de dizer, uma das razões da prescrição é o de- transmissão.
curso de tempo para o delinquente, que, não sendo alcançado pela justiça,
Nas alíneas a e b desse parágrafo, cogita da interrupção da caducidade,
conduz-se durante anos de modo escorreito, demonstrando, em regra, que o
e no § 3." trata dos prazos para os periódicos que não indiquem a data, decla-
efeito da pena a cumprir já foi alcançado. Ora, se o indivíduo, nessas condi-
rando que a prescrição e a caducidade começarão a correr do último dia do
ções, torna a ser condenado, não se justifica que cesse o jus puniendi estatal.
mês ou outro período a que corresponder a publicação.
Interrompe-se a prescrição na data do segundo crime. Trata-se de causa de
caráter personalíssimo e por isso incomunicável aos co-partícipes — soa o A atual lei é sensivelmente superior à ab-rogada, já por dilatar os pra-
§ 1.°. Quer isso dizer que, em caso de co-participação, correndo a prescrição, zos, já por dispor melhor a matéria.
o fato de um dos co-partícipes praticar novo crime interrompe-a somente em Todavia ela está subordinada ao Código Penal, ex vi do art. 12 deste e do
relação a ele, prosseguindo o lapso quanto aos demais. seu próprio art. 48, desde que não disponha de modo contrário. Assim, por
Idêntica situação para o inc. V, pois o início ou continuação do cumpri- exemplo, ela se referiu apenas à interrupção da caducidade do direito de queixa
mento da pena de um dos participantes não importa em interrupção para os ou representação, silenciando quanto à da prescrição, de modo que, por força
demais. Assim, se um deles for preso, não interrompe a prescrição para os daqueles dispositivos, é aplicável o art. 117 do Código, como aplicáveis são
demais, inovação trazida pela reforma de 1984, corrigindo injustiça da reda- os arts. 115, 116 e outros.
ção primitiva. 231. Crimes /alimentares. Revezam-se os julgados dos Tribunais dos
Quanto às outras causas interruptivas, são comunicáveis por força do Estados e do Pretório Excelso acerca da prescrição do delito falimentar. Dis-
mesmo dispositivo. põe a Lei de Falências no art. 199: "A prescrição extintiva da punibilidade de
O mesmo parágrafo versa crimes conexos, objeto de único processo, crime falimentar opera-se em dois anos. Parágrafo único. O prazo prescricional
para declarar que a interrupção relativa a um deles estende-se aos outros. começa a correr da data em que transitar em julgado a sentença que encerrar
Trata-se de princípio geral, não comportando exceção. Observe-se que a lei a falência ou que julgar cumprida a concordata". O art. 132, em seu § 1.°,
fala expressamente em crimes conexos, objetivando, pois, a conexão real ou declara qual o prazo desse encerramento: "Salvo caso de força maior, devida-
substancial, e não a simplesmente formal ou determinada por conveniências mente provado, o processo de falência deverá estar encerrado dois anos de-
processuais. pois do dia da declaração".
Duas correntes se formaram a respeito. Uma esteia-se na disposição do
230. Crimes de imprensa. Em matéria de crimes de imprensa, a lei an- art. 199: enquanto não encerrada, por sentença, a falência, não corre a pres-
terior, no art. 52, consagrava, a bem dizer, a impunidade, uma vez que fixava crição — como bem claro deixa esse artigo. Não se objete com a iniquidade
o prazo absurdo de dois meses para a prescrição da ação — tendo nós, então, de um processo criminal, pendente durante anos a fio sobre o falido; este,
tecido comentários que hoje não têm cabida. É exato que, posteriormente, a como interessado maior que é, tem meios de promover o encerramento da
Lei n. 2.728, de 16 de fevereiro de 1956, dilatara o prazo para um ano, o que falência. Se não o fez, não se pode por isso prevalecer de sua inércia.
ainda era insuficiente. A outra corrente insiste em que a matéria não é regulada apenas pelo
Hoje, vigora a Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, modificada pelos art. 199, pois, se existe esse mandamento legal, outro há também imperativo,
Decretos-lei n. 207, de 27 de fevereiro de 1967, 510, de 20 de março de 1969, que impõe esteja a falência encerrada no prazo de dois anos, a contar de sua
pela Lei n. 6.071, de 3 de julho de 1974, pela Lei n. 6.640, de 8 de maio de declaração, salvo caso de força maior. E mesmo esta exceção destina-se ape-
1979, e pela Lei n. 7.300, de 27 de março de 1985. nas a possibilitar o processo de liquidação da falência, além daquele prazo.
Fixou ela o prazo prescricional da ação em dois anos, contado da data Acrescente-se que a desídia e ainércia, procrastinando indefinidamen-
374 PARTE GERAL DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 375

te o processo, não devem reverter contra o falido, não sendo exato que ele ser preferida19. Consagra-a hoje o Supremo Tribunal Federal, na Súmula 147:
pode promover o encerramento, pois forças muito maiores que a sua estão "A prescrição de crime falimentar começa a correr da data em que deveria
presentes na falência. Conseqiientemente, é estranho fazer-se o lapso estar encerrada a falência, ou da do trânsito em julgado da sentença que a
prescricional depender da vontade da pessoa, de manobras e expedientes de encerrar ou que julgar cumprida a concordata".
interessados ou da desídia dos que devem zelar pela marcha normal do pro- Qualquer que seja a opinião que se adote, como se falou no número
cesso falimentar. anterior, as regras relativas à prescrição, estatuídas pelo Código, aplicam-se
Assim, se há disposição que diz que este deve estar encerrado no prazo aos delitos falimentares, no silêncio do respectivo diploma. Assim, v. g., de-
de dois anos, o lapso prescricional deve ser contado dessa data, ainda que não corrido o prazo de um ano depois da data em que a falência devia estar encer-
tenha havido encerramento, pois o não haver cumprido a lei não é razão para rada, se recebida a denúncia do Ministério Público, o prazo de dois anos
se declarar inexistente seu comando. interrompe-se, por força dos arts. 177, I, e 10, do Código Penal, e dado o
silêncio da lei falimentar.
Para a primeira corrente, a prescrição consuma-se no prazo de dois anos,
depois do encerramento da falência. Para a segunda, ela se esgota no prazo de Vale dizer, o prazo prescricional antes do oferecimento da denúncia,
quatro anos, após a declaração da falência: dois anos, dessa data até o dia em para os crimes falimentares, é de três anos da data da declaração da quebra,
que devia estar encerrada (art. 132, § 1.°) e mais dois anos, a contar dessa sendo um ano para o período em que deveria estar encerrada a falência, quan-
data (art. 199 e parágrafo único). A favor da primeira opinião inúmeros são do se iniciará o prazo de dois anos para a propositura da ação penal.
os julgados17. Não menos numerosos, os que sustentam a outra18.
Difícil é, no debate, trazer argumento novo. Filiamo-nos à segunda cor-
rente. Parece-nos que ela harmoniza melhor os textos da lei falimentar; é
mais consoante com a natureza do instituto da prescrição e evita a iniquidade
de um processo penal eternamente em perspectiva contra o falido.
De fato, não cremos que tão-só a interpretação gramatical ou lexicológica
do art. 199, parágrafo único, resolva a questão, pois não se pode fazer tábua
rasa do art. 132, § 1.°; ao contrário, eles devem harmonizar-se. Depois, é
contra a índole do instituto que ele fique dependendo da vontade da pessoa,
da solércia ou inércia do Ministério Público ou do juiz, ou de expedientes de
interessados. Finalmente, porque, a se adotar a data do trânsito em julgado da
sentença de encerramento da falência, ter-se-á, na maior parte das vezes,
consagrada a imprescritibilidade dos crimes falimentares, sem se saber por
que razão. É chocante pensar-se que um falido que cometeu o crime de gastos
excessivos com sua família, em relação ao seu cabedal (Lei de Falências, art.
186,1), e cujo processo se arrastou por vinte anos, possa ainda ser processado
por esse delito, ao passo que, se esse falido houver assassinado alguém, es-
tará, no mesmo lapso, livre de punição.
Se a segunda exegese melhor harmoniza nossas leis, estamos que deve

17. RT, 257:60, 241:71,242:59,246:80,259:71,272:77,253:371;A/, &5:533,59:177;


Direito, 46:253; RF, 84:190. 19. O Anteprojeto Nelson Hungria adotava o prazo de dois anos, a contar da data da
18. RT, 237:60, 255:97, 253:129, 275:164, 272:95, 253:127; Direito, 89:1%, 90:563, sentença declaratória da falência, repudiando cabalmente a opinião que mandava contar o
96:122, 97:179; AJ, «5:533, 65:26, 29:94. prazo da data do encerramento (art. 110, VI e § 2.°, e).
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 377

VI exemplo, que alguém é caloteiro, eles se diluem ou são expressos por forma
genérica, ou subentendidos.
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE Todavia a razão não é bastante. Desde que retratação implica arrependi-
mento, este não é privativo de quem imputou um fato, mas também de quem
E) REPARAÇÃO
emitiu juízo ou opinião. A retratação não é apenas ensejada pela falsidade,
mas também pelo comportamento leviano ou apressado. É sempre uma con-
SUMÁRIO: 232. Retratação. 233. Subsequens matrimonium.
fissão ou mea culpa.
Lembra, a propósito, Basileu Garcia1 que a oportunidade concedida ao
ofensor, pelo art. 144, de dar explicações ao ofendido quando este as pedir,
232. Retratação. Os incs. VI, VII e VIII do art. 107 têm por fundamento em se tratando de expressões ambíguas, proporciona àquele retratação indi-
a reparação devida ao ofendido. Não obstante o ressarcimento do dano não reta. Embora retratação seja uma coisa e explicação em juízo, outra, é exato
ser causa de extinção de punibilidade, a lei aqui abre exceções, como se verá que se poderá, em caso de injúrias equívocas, chegar-se a idêntico resultado.
a seguir.
Diga-se o mesmo da conciliação (CPP, art. 520) — não obstante distin-
O primeiro caso é a retratação. Essa é o ato de retratar, que, ao lado de guir-se da retratação, que é ato unilateral, enquanto ela é bilateral — consti-
outro significado, tem o de retirar o que disse, desdizer-se, confessar que tuída pela harmonização de ofensor e ofendido.
errou etc.
A atual Lei de Imprensa não seguiu o exemplo do Código. Definindo os
Exposto isto, vê-se logo qual o fundamento da causa extintiva: embora crimes de calúnia, difamação e injúria (arts. 20, 21 e 22), dispôs no art. 26:
não se trate de arrependimento eficaz, não deixa de haver arrependimento. "A retratação ou retificação espontânea, expressa e cabal, feita antes de ini-
Há um impulso honesto em declarar que se foi leviano, que não se deveria ter ciado o procedimento judicial, excluirá a ação penal contra o responsável
ofendido etc. Para a vítima, também é melhor essa reparação do que a pro- pelos crimes previstos nos arts. 20 a 22".
porcionada pela sentença, que não tem o mesmo valor, conforme as circuns-
Nos §§ 1.° e 2.° disciplina a retratação.
tâncias, o meio social etc. Ela é, sem dúvida, mais ampla. Quanto aos crimes
de falso testemunho e falsa perícia, mais proveitosa que a condenação do réu, Esta é pessoal e, por isso, aproveita apenas ao que se retratou, não se
para a justiça, é a apuração definitiva da verdade. comunicando aos co-partícipes, quando houver co-participação na calúnia
ou na difamação.
Os crimes em que a lei admite a retratação são os definidos nos arts.
138, 139 e 342, conforme o art. 143 e o § 3.° do citado art. 342. São os de Já o mesmo não sucede com o falso testemunho ou falsa perícia, quando
calúnia, difamação e falso testemunho ou falsa perícia, que não são puníveis a retratação de um co-partícipe aproveita aos demais, pois extingue a possi-
se antes da sentença o agente se retrata ou declara a verdade. bilidade do dano existente na afirmação falsa anterior. Entretanto, se a co-
participação se deu por via de suborno, não se comunica a retratação, persis-
Excetuou a lei o delito de injúria (art. 140); a razão comumente aduzida tindo o delito do art. 3432.
é que, ao contrário da calúnia e da difamação, não existe nela um tema probandi.
Realmente, enquanto a primeira é a imputação falsa a alguém de fato defini- 233. "Subsequens matrimonium". É o casamento a maior reparação que
do como crime, e a difamação é a imputação consciente de fato ofensivo à o agente pode conceder à ofendida, nos delitos contra os costumes. Dando-
reputação, a injúria é juízo que se faz de uma pessoa; não há a atribuição de lhe o nome, ele a protege, pondo-a a salvo do menosprezo social, ou, pelo
um fato. Se é exato que, às vezes, ela envolve fatos, como quando se diz, por menos, da desconfiança, tributo invariável que lhe é cobrado, na desgraça
que a aflige.

1. Basileu Garcia, Instituições, cit., v. 1, p. 686.


2. Nelson Hungria, Novas questões, cit., p. 126.
378 PARTE GERAL DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 379

Acerca dessa causa extintiva da punibilidade tivemos ocasião de, em se não tiver ocorrido a prescrição. O contrário é favorecer a fraude do réu-
outro livro, dar maior desenvolvimento3. aqui, evita a condenação pelo matrimónio; lá, se furta às obrigações deste
Como se verifica do dispositivo, tal causa não se estende a todos os anulando-o. Assim já julgou o Pretório Excelso5 e se pronuncia também o
delitos do Título VI, ficando fora os dos Capítulos IV, V e VI. eminente Nelson Hungria6.
É mister que o casamento seja realizado. Não basta a vontade de o réu Advirta-se, ainda, que a anulação do casamento por coação é coisa es-
casar; é necessário que case; tanto basta para dizer que, se a ofendida não tranha; é pôr em choque a lei civil e a penal. Com oportunidade, Pozzolini
anuir a essa vontade, por si ou seu representante, cumprirá ele a pena, pois a dizia tratar-se de "consideração evidentemente unilateral e absolutamente inexata,
causa extintiva é estabelecida primacialmente em benefício dela. No caso de pois confunde-se consentimento não-livre com consentimento não-espontâ-
ser esta, ainda, menor, e injusta a recusa do representante, pode o juiz suprir neo. Ele não é espontâneo, por ser ditado pela necessidade de subtrair-se ao
o consentimento (CC, art. 188). processo e à pena, mas não é por isso menos livre"7.
Em qualquer tempo, o casamento aproveita ao agente: antes da ação, a O casamento com o ofensor é causa objetiva que exclui ojus puniendi,
impedirá; durante a ação, a deterá; e, depois da condenação, evitará seu cum- abrangendo os co-participantes. Entre várias outras razões que podem ser
primento. Na última hipótese, só a pena se extingue, permanecendo a conde- levantadas em prol dessa extensão está a já apontada de que essa causa não
nação para o efeito da reincidência e negação do sursis. visa à pessoa do réu, mas à da ofendida: seu fim principal ainda é a vítima; é
Anteriormente à vigência da Lei n. 6.416, o casamento da ofendida com a reparação o que se lhe quer proporcionar.
terceiro não gerava efeitos, pois o Código Penal referia-se, expressamente, Que se dizer, então, desse benefício quando, feita pela vítima a repre-
ao casamento do agente com aquela (art. 108, VIII, da redação primitiva). Foi sentação, sobreviesse o casamento, mas devesse o processo prosseguir em
acrescentado pela nova lei, entretanto, um novo inciso a este dispositivo, o IX relação aos co-participantes? Não se torna visível que nenhum efeito moral e
(redação primitiva), que determina a extinção da punibilidade pelo casamen- social teria esse casamento?
to da ofendida com terceiro, nos crimes referidos no inc. VIII (redação primi- Os efeitos de tal ocorrência seriam até mais nocivos à vítima, pois, de-
tiva), salvo se cometidos com violência ou grave ameaça e se ela não requerer saparecido da trama criminosa o agente principal, pelo casamento realizado,
o prosseguimento da ação penal no prazo de sessenta dias a contar da cele- a ação dos co-participantes teria de ser salientada e ressaltada, para contra
bração. eles vingar o processo, assistindo a tudo isso a vítima e seu esposo que outra
A reforma de 1984, sabiamente, manteve a inovação introduzida pela coisa não desejam senão o silêncio sobre o fato.
mencionada Lei n. 6.416, agora pelo art. 107, VIII, fazendo um correto acréscimo: Se a lei tornou regra o procedimento privado nesses crimes, atendendo,
obsta também o prosseguimento de inquérito policial, enquanto a lei anterior antes de tudo, ao interesse da vítima, aão pode coerentemente deixar de es-
referia-se apenas à ação penal. tender o benefício aos autores.
Desta forma, mantida a regra do antigo inc. VIII do art. 108 (atual art. O parágrafo único do art. 74, da Lei n. 9.099, apresentou mais uma
107, VIII), foi introduzida uma nova figura jurídica no Código, qual seja a do causa de extinção da punibilidade, qual seja, a homologação do acordo feito
casamento da ofendida com terceiro. Frise-se que o subsequens matrimonium entre as partes, na forma do art. 74, em se tratando de ação privativa do ofen-
com terceiro não extingue a punibilidade nos casos de estupro, de atentado dido ou dependente de representação. Portanto, em tal hipótese, a composi-
violento ao pudor e de rapto violento, pois que delitos cometidos com violên- ção dos danos produz como efeito a extinção da punibilidade.
cia ou grave ameaça. Ocorre o inverso com a posse sexual mediante fraude,
a sedução, a corrupção de menores e o rapto mediante fraude ou consensual4.
Deve ser válido o matrimónio. Se ele for anulado, desaparece a causa
extintiva da punibilidade, devendo a pena ser cumprida ou a ação intentada,
5. RF, 68:617.
3. E. Magalhães Noronha, Código Penal, cit., v. 7, 1954, p. 403 e s. 6. Nelson Hungria, Novas questões, cit., p. 127.
4. Damásio E. de Jesus, O novo sistema, cit., p. 132 e 133. 7. Pozzolini, in Florian, Trattato, cit., v. 5, p. 406.
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE 381

cidência, lançamento no rol dos culpados e responsabilidade pelas custas


VII PERDÃO processuais.
2) Uma segunda corrente propugna no sentido de que a sentença que
JUDICIAL concede o perdão judicial é condenatória, mas libera o réu de todos os seus
efeitos, entre os quais a responsabilidade pelas custas, o lançamento no rol
SUMÁRIO: 234. Conceito. 235. Natureza jurídica. 236. Extinção da dos culpados e o referente à reincidência.
punibilidade. Em número de seguidores é a que vem em segundo lugar.
3) Para uma terceira corrente a sentença que concede o perdão judicial
é absolutória. Partem os seguidores do princípio de que uma sentença
234. Conceito. O perdão judicial pode ser traduzido como uma faculda condenatória necessariamente tem que impor uma reprimenda.
de dada pela lei ao juiz de, declarada a existência de uma infração penal e sua 4) A derradeira corrente afirma que a sentença aplicadora do perdão
autoria, deixar de aplicar a pena em razão do reconhecimento de certas cir judicial é declaratória de extinção da punibilidade, excluindo-se dela todos
cunstâncias excepcionais e igualmente declinadas pela própria lei. os efeitos penais. Para os partidários não é nem condenatória nem absolutória,
O perdão é, em primeiro lugar, uma faculdade dada ao julgador de não mas extintiva da punibilidade.
aplicar a pena, daí por que nominado como perdão judicial. Depois, tem como Perfilhamos a primeira corrente, justamente aquela que, pelo número de
pressuposto, obviamente, o reconhecimento de um fato delituoso e sua auto- seguidores, forma um caudal: é uma decisão condenatória, pois reconhece a
ria: por primeiro o juiz reconhece o crime e a autoria, condenando o acusado, procedência do fato ilícito e seu autor, apenas excluindo os efeitos principais,
para, depois, aplicando o perdão, não impor qualquer sanção. Por derradeiro, porém mantém os efeitos secundários.
embora faculdade judicial, a concessão fica bitolada ao reconhecimento de Significativa a manifestação de Damásio E. de Jesus: "Para nós o per-
certas circunstâncias preestabelecidas pela lei. dão judicial constitui causa extintiva da punibilidade a ser decretada pelo juiz
As hipóteses não são numerosas: homicídio culposo (art. 121, §§ 3.°e na própria sentença condenatória. Significa que o juiz deve efetivamente condenar
5.°), lesões corporais culposas (art. 129, §§ 6.° e 8.°), crimes decorrentes de o réu, somente deixando de aplicar a sanção penal. A fixação da pena é des-
outras fraudes (art. 176, parágrafo único), receptação culposa (art. 180, §§ 1.° necessária, uma vez que não teria nenhuma validade. Nos termos da nossa
e 3.°), subtração de incapazes (art. 249, § 2.°), crimes falenciais (Dec.-lei n. posição, a sentença que concede nãoé absolutória nem meramente declaratória
7.661, art. 186, parágrafo único) etc. da extinção da punibilidade. Somente se perdoa quem errou. A simples con-
Por sua vez, as circunstâncias que ensejam a faculdade podem ser vá- cessão do perdão judicial já significa que o juiz entendeu existir o delito. A
rias: as consequências ao próprio agente, como nos casos de homicídio e le- não ser assim, inexistiria diferença entre sentença absolutória e concessiva de
perdão judicial"1.
sões culposas, e restituição do menor sem maus-tratos ou privações, na sub-
tração de incapazes, a instrução insuficiente e o comércio exíguo, no crime O perdão judicial é causa extiitiva da pretensão executória, significan-
falencial etc. do que o Estado renunciou, através do juiz, da pretensão de impor uma pena
a quem cometeu um crime, reconhecido judicialmente.
235. Natureza jurídica. Sobre a natureza jurídica formaram-se quatro
correntes, todas elas com inúmeros e doutos seguidores. 236. Extinção da punibilidade A reforma de 1984 estabeleceu o perdão
judicial como causa de extinção da punibilidade (art. 107, IX), demonstrando
1) Para uma primeira corrente, a mais numerosa, a sentença que conce-
que o pensamento do legislador foi o de afastar a sua natureza condenatória,
de o perdão judicial é condenatória, subsistindo os seus efeitos quanto à rein-
estabelecendo a condição de declaratória da responsabilidade e extintiva da
punibilidade.

1. Damásio E. de Jesus, Comentários, cit., v. 2, p. 894.


382 PARTE GERAL

Ricardo Andreucci, um dos autores da reforma, afirmou: "Daí por que


não se pode falar em sentença condenatória, pois tal não é aquela que fixa um
juízo sobre a culpabilidade, mas não condena, remanescendo, portanto, ao
mesmo tempo, como declaratória de responsabilidade e extintiva de
punibilidade"2.
E, completando o pensamento, o art. 120 de maneira expressa declarou
que a outorga do perdão judicial não é considerada para os efeitos da reinci- BIBLIOGRAFIA
dência, ou seja, contrario sensu, declara explicitamente que o acusado con-
serva a sua condição de primário.
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