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D O SÉCU LO X V II

João Adolfo Hansen


Sátira do engenho ou o engenho da sátira? João
Adolfo Hansen compõe, em A Sátira e o Engenho, um
vasto painel da vida literária e cultural da Bahia no
século x v ii. Aborda os poemas satíricos de Gregório de
Matos, os tratados retóricos da época e os documentos
históricos, como as delações de pecados e heresias ao
Santo O fício e as atas da Câmara de Salvador. Entre tais
papéis, encontram-se as cartas endereçadas a um certo
dr. Gregório de Matos e Guerra, procurador da Bahia
em Lisboa em 1673.
É a poesia de Gregório revolucionária, transgressora,
libertária? João A dolfo Hansen mostra que não: “ a sátira
não está, de modo algum, contra a moral” . A sátira
barroca fala mal de tudo e de todos, do governador
despótico aos mulatos atrevidos, passando pelos padres
sodomitas, comerciantes safados, mulheres adúlteras e
cornos conformados. M as essa crítica retórica e poética
de costumes se faz, segundo Hansen, para corrigir
excessos e desvios e preservar as normas e hierarquias
sociais. O riso da sátira é assim incidental, colocando
as convenções do ridículo a serviço da prudência e da
moderação.
Para chegar a essa visão radical e inovadora da poesia
barroca brasileira, João Adolfo Hansen analisou a sátira
de Gregório de M atos a partir da tradição retórica do
século x v ii, em que a obscenidade e a maledicência estão
previstas por regras precisas. Convida o leitor a um
fascinante mergulho na poética clássica de Aristóteles e
Quintiliano, e na barroca de Gracián e Tesauro.
Rompendo com a crítica biográfica, Hansen se afasta
dos clichês românticos sobre a suposta vida do poeta,
o Aristófanes das mulatas, retratado habitualmente
como ébrio, boêmio, louco, mordaz, vadio, obsceno e
libertino. Em A Sátira e 0 Engenho, emerge a figura difusa
do dr. Gregório de Matos e Guerra, a quem se atribuiu a
autoria dos poemas satíricos compilados no século xvm :
E mais não digo; que a M usa topa/Em apa, em epa, em
ipa, em opa, em upa” .

Roberto Ventura
A Sátira e o Engenho
AE
Ateliê Editorial
Editor
P línio M artins F ilho

UNICAMP

U niversidade E stadual de C ampinas

Reitor
C arlos H enrique de B rito C ruz

Coordenador Geral da Universidade


J osé T adeu J orge

e D T O R

Conselho Editorial
Presidente
P aulo F ranchetti

A lcir P écora - A ntônio C arlos B annwart - F abio M agalhães


G eraldo D i G iovanni - J osé A. R. G ontijo - Luiz D avidovich
L uiz M arques - R icardo A nido
J oão A d o l fo H ansen

A Sátira e o Engenho
Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII

1-6SM
^ N A S B f l« *> C *N

Ateliê Editorial
Copyright © 2004 by João Adolfo Hansen

Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.02.1998.


É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, das editoras.

Ia edição, Companhia das Letras, 1989.


2a edição revista, Ateliê Editorial e Editora da U nicamp, 2004.

Ficha catalográfica elaborada pelo Departamento Técnico do


Sistema Integrado de Bibliotecas da USP

Hansen, João Adolfo, 1942-


A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a
Bahia do século XVII / João Adolfo Hansen. - 2.
ed. rev. - São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas:
Editora da U nicamp, 2004.
528 p.

Inclui bibliografia.
ISBN 85-7480-136-4 (Ateliê Editorial)
ISBN 85-268-0677-7 (Editora da U nicamp)

1. Matos, Gregório de, 1636-1696? 2. Sátira e


humor (literatura). I. Título. II. Título: Gregório
de Matos e a Bahia do século XVII.

CDD 869

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Printed in Brazil 2004


Foi feito depósito legal
Correção.
Cesare Ripa. Iconologia, 1593.
Para meu pai, vivo em mim.
Leer un soneto de Quevedo
pensando que lo escribió
con una pluma de ganso.
C abrera I nfante , Exorcismos de Esti(l)o.
Sumário

Prefacio - Leon Kossovitch ......................................................................... 15


Agradecimentos ......................................................................................... 21
Nota à 2a Edição ......................................................................................... 23

I. Um Nome por Fazer.......................................................................... 29


II. A Murmuração do Corpo M ístico.................................................... 105
III. A Proporção do Monstro ................................................................... 191
IV O Ornato Dialético e a Pintura do M isto......................................... 291
V. Os Lugares do L u g a r........................................................................... 389

Bibliografia . 505
Prefácio

São cinco as divisões do livro; da retórica as partes cinco são. Cuida o


livro da sátira, logo, do vitupério; não prescreve o espelho deste, elogio (ad­
mita-se mantido o gênero demonstrativo), sendo indecoroso ornar o seu orna-
to, indecente louvar escrito muito louvado. Nada impede, porém, o maravi­
lhoso, que se preceitua: admire-se a agudeza dos censores do Hospital das Letras, o,
juízo de Bocalino, Lípsio, Quevedo e do discreto Dom Francisco Manuel de
Melo, debruçados sobre o livro de Hansenius, figurando dúvidas sobre algu­
ma parte dele, ampliando-as nos cuidados prescritos como mezinhas que a
curem de alguma traça metafórica, para melhor concluir pela autoria, assim,
pelo encômio, invertida a hipérbole, como se podia prever.
Tenha-se mão, contudo: distancie-se o óculo que escreve aqui, fixando-se
o foco de longe na pincelada larga, pois o leitor de João Hansen, reiterado
nele enquanto pelo escrito movido, é um seu contemporâneo e talvez também
uma extensa ruína de algum presente. Escavando a Bahia seiscentista, onde
acha sedimentos gregos, romanos e posteriores, pois superiores, matricial­
mente “clássicos” enquanto “medievais” ou “barrocos”, escreve-a como lugar
de onde tudo se divisa, descreve-a de além-mar e da mesma Cidade, dos con­
ventos e das câmaras, enquanto a salpica com açúcar (como se estivesse na
idade do horror ao vazio, quando o estilo tem o mundo e se pode descer às
pedras católicas das Missões, prosseguir ouvindo o espetáculo de oradores
nas igrejas de Lima, México e Macau, folhear miniaturas mogóis e, logo, persas,
despóticos o claro-escuro e a perspectiva, subir ao ícone russo graças ao ucasse
que virá do Báltico, navegar depois pelo Danúbio por onde começa a correr o

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A SÁTI RA E O E N G E N H O

Douro, parar na Paris que expulsa Bernini para melhor o adotar, contemplar
em Roma Vieira empenhado em certame de filósofos que choram e que riem,
pois sempre se vai deslocando com as lentes de Fontenelle, algum Cyrano e
muito Leibniz, nas quais a variedade dos lugares se lê como ornato da identi­
dade, desmanchado o aqui no ubíquo, dilatado o ponto na continuidade de
caminhos entrecruzados em toda a parte e o tempo todo, não colecionando a
viagem Outro algum e, tudo no lugar, de longe, itinerários, mapas e mapas de
mapas e, em abismo, o Mesmo, protótipo de versão e diversão.
O mapa desta capa fica boa xilogravura em livro seiscentista dentro; a
capa apaga com couro a figura, pois esta se grava em frontispício e, faltante
no livro, pode ser saturada pela escrita, ecfrase. Ficando-se dentro fora, des­
creve-se no micro o macro, brevidade helenístico-romana de pintura com-
pendiária, cômica, não satírica, numa Barbearia de pincelada preste e claro-
escuro de Magnasco, analogia que faz o leitor seguir qualquer dobra
desdobrando-a em alegoria abissal que escancara o mesmo sentido figurado
numa figura escrita. E digno, também, personificar com figura, Gregário de
Matos e Guena, não, porém, em guisa de oval do licenciado Rabelo cujo cará­
ter ou tipo se pintam como circunscrição. Para o de Hansen, não de todo in­
conveniente seria a de espécie arcimboldiana, o Livreiro de sinédoques
metaforizantes, cuja visibilidade, distante e próxima (ut pictura poesis), orna,
fantástica, e instrui, icástica, no livro quase como a figura direta, pois longín­
qua, de panfleto no Leviatã hobbesiano.
Escrevendo com os buracos da papelada, que a brasilidade dos arquivos
traça, João não petrifica o passado como o historiador antiquário Muratori ou
o preciso Piranesi das gravuras de ruínas romanas, cujos Cárceres lhe desfa­
zem a face precisa enquanto hiperbolizam muito gigantismo do século XVII,
livre o espaço da perspectiva trivial; são eles homólogos à amplificação do
nariz que proporcionaliza, veemente no monte de papéis, câmaras de toda
sorte, ralos e grades, dirigindo os óculos para o amor freirático, alguma simonia
e sodomia, muitos interesses de donos de açúcares e negros; as lentes orde­
nam uma história icástica enquanto o fantástico nariz se estica, enfia-se na
murmuração das carências e abusos e nos vícios de putas mazombas, indianas
sujas, falsos fidalgos e cristãos-novos blasfemos. Cenografia amplificadora:
vituperando, a sátira, voz torpe das sendas de cenário, corrige o que mostra
como vício na hierarquia pela qual e para a qual obra (fechamento). O livro
tampouco recicla a ruína, preservada de doutrina ou palavra de ordem de
moderna boca estética e política; desamparando o Grégorio-brasilidade, o
Gregório-afro, o Gregório-liberdade, o Gregório-profeta, retrospectivos de uma
prefiguração patrística, Hansen distingue, muito político, um nome, soltan­

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PREFÁCIO

do falas presas a hierarquias e não a homens que, sem louvor ou vitupério,


não há. Nada complacente com o tempo, com o atual, lança “Gregório” ana-
morfoticamente motivado, pois de matos, que encenam sátiras, e de guerra,
que na sátira corrige, assim, misto de sátira e sátira, satírico.
Cotejando sátiras, precariamente unificadas por um nome, que as diz, e
documentos, teorias do direito, da política, da teologia (unam-se elas com
hífen), como, principalmente, atas de câmara e cartas de senado, estas da
Bahia. Cruzando tais discursos, o livro evita anacronismo de doutrina, que
recorre ao diferimento do texto, por exemplo, ao “contexto”, órgão de falas
padronizadas como fatos, que emudecem as diferenças de matos e guerra.
Não parte de análise semântica, pois monta e intercepta pragmáticas; discur­
sos políticos, satíricos, teológicos, comerciais distinguem-se como gêneros e
não se hierarquizam nesta distinção: não se avança um primeiro, em qual­
quer sentido, que a um segundo explique, desafeiçoado efeito doador de sig­
nificado de um discurso a outro, postulado vazio. Modalização e perspec-
tivação: não se propondo precedências, estabelecem-se entrecruzamentos de
práticas discursivas que se especificam; a “hierarquia”, definida nos textos,
define a pragmática.
Enfeixam-se com a sátira Atas da Câmara, Cartas do Senado, Livro das
Denunciações, do Santo Ofício, assim como porção da massa jurídica e teológi-
co-política dos séculos XVI e XVII. Enquanto esta, doutrina, teoriza e prescre­
ve o bem comum, aquelas distinguem-se como práticas discursivas hierar-
quizadoras. Os temas são articulados por regras do bem comum, matizando-se
os discursos: as Atas não intervém pronta e pontualmente como as Cartas ou
as sátiras, podendo-se figurar a circulação destas por bocas e papéis. As Car­
tas, gênero deliberativo, pautam-se pela univocidade, enquanto as sátiras, como
gênero, têm muitas vozes, vácua apersona, ridículas, invertidas, dissonantes e
mesmo uníssonas: contemporaneamente políticas, são constituídas hierarqui­
camente, com o direito e a doutrina conexa do bem comum operante nelas (à
exclusão do Livro das Detiunciações, inspirado por outro Bem) e delas inter-
pretante. Assim, a murmuração, de que cuidam sátira e carta, nas duas ques­
tiona a hierarquia enquanto a pleiteia justa; conflitos de interesse e honra,
todas as sortes de queixas e tumultos são enquadrados e esquadrinhados pela
hierarquia hierática do Estado absolutista. Investida institucionalmente, a
persona satírica multiplica-se mista com os lugares, dinheiro, sexo, cor etc.;
rompida com o decoram, que se vai moralizando desde o século XVI contra-
reformista, mostra o monstro. O mal e seus mistos são vituperados no gênero
demonstrativo, cuja ponderação os desclassifica no ato mesmo de sua multi­
plicação pela fantasia: os monstros são rebaixados, quando não excluídos, pois

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A SÁTI RA E O E N G E N H O

retificados, por ausentes os bens deles, pela prudência e juízo que na sátira
operam proporções. A homologia alcança as extorsões discursivas do Santo
Ofício, que trata os blasfemos, sacrílegos, hereges, dos quais a sátira também
cuida. Mais que analogia dos temas, homologia das operações: a sucessão pro­
tocolar das questões do inquisidor pune os casos previstos, assim, produzidos,
pelos padrões do Bem. Também aqui cruzada, a sátira inclui procedimentos
da Inquisição, lançando na cena o que esta faz no sigilo. Retoricamente regu­
lada, a sátira enuncia, como os demais modos discursivos, os interditos e a
Lei, ou Bem. Punitiva como a Inquisição, ela também é arte como a arte polí­
tica, que, no XVII, defende a república do exterior e no interior, atribuição da
lei positiva que impõe a lei natural, atenção ao bem comum; também a sátira
tematiza a igualdade na submissão: é-se súdito de um poder transferido, sú­
plica ao rei, metáfora.
Quando ridícula, a sátira dói, como a retórica prescreve; maledicente, o
misto fere com a virtude: vício e vicioso, mal e mau são ausências culpadas de
bem. Falta representada, são operadas retoricamente: um evento, a fome de
bacalhau, constitui-se na sátira como um caso, vituperado enquanto mime-
tizado; referencialmente mimética, a sátira produz o caso como lugar da in­
venção fantástica, referindo-o à situação de censura que os discursos do
referencial semantizam. Adequando-se aos lugares da invenção, a narração se
vai particularizando como exposição retórica da causa, que se hiperboliza,
fantástica, excluído, historicamente, o fato (que é convenção literária apenas
nos séculos XIX e XX). A referencialidade da sátira articula a recepção, pois o
destinatário compartilha dos códigos, assim, dos casos criticados, situações
ou indivíduos. Ela cruza outras práticas discursivas, sendo dirigida pela uti­
lidade (prodesse), catarse na censura, que codifica moral e politicamente as
ações reguladas pelo bem. Neste sentido, mimeticamente fantástica, os mons­
tros a incluem no gênero baixo, enquanto, corretiva, é operada pela pondera­
ção prudente do elevado: o “vulgo” não se identifica, evidentemente, com o
“oprimido” ou o “dominado” da convenção do misto atual, imprevistos como
destinatário embora muito previsíveis hoje quando se trata do Gregório. Ain­
da, o vulgo e o néscio produzidos na sátira podem ser destinatários discretos
de muitas espécies, fidalgos, letrados, que a apreciam como convenção poética.
Embora articule o gosto, que delimita o néscio e o vulgo, não o judícíoso
ou o prudente, a sátira, como fantasia do misto, é engenhosa e aguda. Por
estas, conquanto baixa, eleva-se e, inclusiva, opera simultaneamente com vá­
rios gêneros, alto e baixo, trágico e cômico etc.: mistos são os satirizados e a
própria sátira. Como elocução engenhosa, está teorizada com noções da poé­
tica do tempo, quando substitui, no que concerne ao ornato, a invenção de

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P R E F Á C IO

retóricas anteriores: a elocução desloca os lugares da invenção ornada em be­


nefício da dialética ornada. Esta analisa metaforicamente enquanto desdobra
o “conceito”, ou “definição ilustrada”, a um tempo discursiva e imagética,
ornando o misto no movimento das divisões sem limites assinalado, podendo
o inverossímil, engenhosíssimo, intensificar-se como exercício pedante.
O livro tem as cinco partes da retórica, que o atravessam, combinadas;
pode ser lido em qualquer sentido, embora a quinta, “Lugares do lugar”, con­
figure-se como lugar dos lugares, assim, memória, que o retor distingue como
quinta, canonicamente. Lembrando-se, aqui, a discussão de Quintiliano so­
bre a unidade do discurso e a sua partição retórica, sendo una a leitura, pode
ser começada pelo fim, memória dicionária, ou acompanhando dicionaria-
mente as outras partes. Figure-se que a quarta, ornando o misto, pinta-se
dialeticamente como figura pura da elocução; que a terceira, proporcionali-
zando gestos excessivos, vultos caricatos e vozes estridentes, evidencia-se como
ação; que a segunda, medindo a murmuração, hierarquiza vários corpos
discursivos, disposição; que a primeira, deceptiva em título promissor, “Um
nome por fazer”, não o faz, desenvolvendo a evolução do homem, do retrato
fóssil de Rabelo, em que o louvor inventa uma “vida”, à crítica do XIX e XX
que começa, comumente, com o homem e acaba em obra. A invenção de
Hansen vela o retrato e dissolve o homem. O nome próprio, unificador da
massa textual, é desapropriado, atribuições sem fundamento, textos incertos,
derivações padronizadas de protótipos. O Livreiro cobre-se de pó no livro de
João; não sendo feito icasticamente de livros, inverte-se a relação visual, per-
to-longe, com que Arcimboldo constrói sua facécia: fantástico, o Livreiro é
icástico na visão próxima e os livros o são na distante. Quiasma, pelo qual o
Livreiro vira livros, assim, Livro, Mapa.

Leon Kossovitch

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Agradecimentos

A
João Alexandre Barbosa, Alfredo Bosi, Roberto de Oliveira Brandão, Maria
Lúcia Garcia Paliares Burke, Peter Burke,Raimundo Baptista Carneiro, Maria
de Lourdes Chagas de Carvalho, Marta Maria Chagas de Carvalho, Maria da
Graça Cassundé, Roger Chartier, Marilena Chauí, Maria Aparecida Corrêa,
Waldir da Cunha, João Roberto Gomes de Faria, José Carlos Garbuglio, Jai­
me Marcelino Gomes, Laura Hansen, Júlia de Carvalho Hansen, Jean Hébrard,
Itaí, Leon Kossovitch, Susana Kampf Lages, Sílvia Hunold Lara, Mayra
Laudanna, Luiz Costa Lima, Margarida, Antônio Dimas de Moraes, Antônio
Alcir Bernárdez Pécora, Fernando da Rocha Peres, Dirce Cortes Riedel, Carlos
Rincón, Rosângela, Petra Schumm, Jorge Schwartz, Jorge Ruedas de La Serna,
Mitz Hansen Tedesco, Ivan Prado Teixeira, André de Carvalho Tinoco, Ale­
xandre de Carvalho Tinoco, Maria Tereza Vianna Van Acker, Roberto Ventu­
ra - amigos que, empenhando-se pelo amigo, sabem desempenhá-lo.

(Este texto foi apresentado como tese de doutoramento à Faculdade de


Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em de­
zembro de 1988, com o título A Sátira e o Engenho (Um Estudo da Poesia Bar­
roca Atribuída a Gregário de Matos e Guerra, Bahia 1682-1694).

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Nota à 2- Edição

Escrevi este texto em 1987, como tese de doutorado em Literatura Brasi­


leira apresentada ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Fa­
culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Em 20 de dezem­
bro de 1988, foi examinada pelos Profs. Drs. João Alexandre Barbosa, Alfredo
Bosi, Roberto de Oliveira Brandão, Marilena de Souza Chauí e o orientador,
José Carlos Garbuglio. Após a defesa, Bosi publicou parte do seu terceiro
capítulo na Revista do Instituto de Estudos Avançados, com o título “Positivo/
natural: sátira barroca e anatomia política”1. João Alexandre Barbosa e Roberto
Ventura a indicaram ao editor Luís Schwarcz, da Companhia das Letras. Saiu
integralmente, em convênio com a Secretaria de Estado da Cultura, nos últi­
mos dias de dezembro de 1989, com o título A Sátira e o Engenho: Gregário de
Matos e a Bahia do Século X V II, “Prefácio” de Leon Kossovitch, capa que re­
produz uma mapa holandês da invasão de 1624, orelha e contra-capa de
Roberto Ventura. Mantive as informações programaticamente acumuladas
das notas, supondo pudessem ser úteis para outros que viessem a ocupar-se
do assunto.
O texto reconstitui a primeira legibilidade normativa da sátira atribuída
desde o século XVIII ao poeta seiscentista Gregório de Matos e Guerra. É
legibilidade modelada como retórica do conceito engenhoso e teologia-polí-
tica neo-escolástica, incluindo-se na racionalidade de Corte da “política ca­
tólica” portuguesa do século XVII. Para escrevê-lo, estudei os códigos

1. Revistas do Instituto de Estudos Avançados, São Paulo, IEA-USP, maio-agosto de 1989, vol. 3, n. 6.

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A SÁTI RA E O E N G E N H O

lingüísticos da fonna mentis dramatizada nos poemas: o grande bloco da retó­


rica aristotélica e suas versões latinas e neo-escolásticas, italianas e ibéricas; a
teologia-política católica providencialista, anti-maquiavélica, anti-luterana,
anti-calvinista, dopactum subjectionis de Suárez, como fundamento do poder
real, e da “ razão de Estado” de Botero, como fundamento do interesse mer­
cantilista; as duas vertentes aristotélicas do cômico, ridículo e maledicência-, o
sistema das virtudes e vícios da Ética a Nicômaco apropriados pela Contra-
Reforma; as emulações seiscentistas de Horácio e Juvenal; a doutrina da agu­
deza, conceito engenhoso ou ornato dialético, que especifica a prudência do
tipo discreto, em oposição à estupidez do vulgar, dramatizados na sátira como
temas e posicionamentos hierárquicos da enunciação.
Não tinha documentação suficientemente discursiva sobre a particularida­
de dos temas da Bahia nas três décadas finais do século XVII encenados na
sátira. Em Salvador, no início de 1986, consegui ler cem anos das Atas e das
Cartas do Senado da Câmara de Salvador, entre 1640 e 1740. Forneceram-me
um referencial, discursos, não um referente ou “real” empírico, que, sendo
sempre formulado da perspectiva dos oficiais da Câmara de Salvador, gente
diretamente ligada aos negócios do açúcar, informa sobre temas do local dra­
matizados na poesia em outro registro retórico. Sendo homens do poder real,
os oficiais da Câmara também eram homens de poder local. Assim, indireta­
mente, as Atas e as Cartas forneceram informações sobre tensões e conflitos
perspectivados por várias posições institucionais, Coroa, Câmara, Tribunal
da Relação, Santo Ofício, Alfândega, Companhia de Jesus, Terço da Infantaria,
Governo Geral, e informais, murmuração da população, legível nas entrelinhas
dos papéis. Nas Cartas, os oficiais alegam sempre defender a generalidade do
interesse do “bem comum” do “corpo místico” do Estado do Brasil postulado
pela Coroa como fim último da “razão de Estado”. A mesma generalidade se
evidencia, quase sempre, como a generalidade de seus interesses particulares
em tensão e contradição com as ordens reais e as representações de outros
poderes locais, transformadas comicamente na sátira.
Apropriando-se de normas sociais representadas nos discursos formais e
informais contemporâneos, a sátira as isola da função institucional de regulação
prática, estilizando-as ficcionalmente como metáforas de princípios éticos e
teológico-políticos da “política católica”. A verossimilhança das representa­
ções efetuadas dramatiza as opiniões sobre os assuntos do lugar tidas por ver­
dadeiras. Quando transforma temas de discursos formais - os do Senado da
Câmara, da administração de governadores, de ordens-régias, de pragmáticas
de tratamento e trajes, do Santo Ofício da Inquisição, do Tribunal da Relação,
etc. - e da murmuração informal sobre eventos, negócios, grupos e indivíduos

24
NOTA À 2* E D I Ç Ã O

locais - corrupção de governadores, escândalos conventuais, simonia e mancebia


de padres, contrabando de farinhas, falta de moeda, aumento de impostos,
confusões hierárquicas, rebelião de escravos, preços monopolistas dos gêne­
ros, crise da lavoura açucareira etc. - a sátira deforma a referência deles e cita
seu sentido legal e ortodoxo na vituperação das deformações. Figurando a com­
patibilidade entre as interpretações feitas pelos personagens satíricos em ato e
os atos de interpretação das recepções empíricas diferenciadas, que conferem
valor e sentido à representação2, a sátira não é realista, pois não imita supostos
“fatos” da empiria, mas encontra a realidade de seu tempo como prática
discursiva de verossimilhanças e decoros partilhados assimetricamente pelos
sujeitos de enunciação, destinatários e públicos empíricos.
No Rio de Janeiro, em 1986 e 1987, complementei as informações com a
leitura dos códices gregorianos, de cartas do governador Câmara Coutinho,
de ordens-régias e mais alguns documentos e livros da Seção de Manuscritos
e de Livros Raros da Biblioteca Nacional. Graças à gentileza dos funcionários
responsáveis pela Seção, Raimundo Baptista Carneiro e Waldir da Cunha,
que me emprestaram uma lupa, pude ler um exemplar bichado do “Trattato
de’ ridicoli”, de II Cannocchiale Aristotelico, de Emanuele Tesauro, numa edi­
ção veneziana de 1685 que pertenceu a Francisco Leitão Ferreira e ao acervo
da Biblioteca de D. João VI.
Ler com lupa o telescópio metafórico comido de bichos foi emblemático:
em condições pessoais e institucionais de conhecimento e trabalho precários,
tentando ajustar o foco da lente conforme a historicidade da prática observa­
da, trazer para perto e amplificar, repetidas vezes, o resíduo que, desde as
reformas pombalinas, no século XVIII, foi distanciado, diminuído, borrado e
eliminado em programas de invenção de tradições neoclássicas, românticas,
nacionalistas.
Por isso, também li a documentação infernal dos papéis do Santo Ofício
da Inquisição em sua visita à Bahia no início do século XVII e as denunciações
que se seguiram; a leitura de alguns manuais inquisitoriais, como o triste­
mente famoso de Eymerich e Pena, o Manual dos Inquisidores, além do Malleus
maleficarum e mais instrumentos do terror católico, me forneceu meios para a
reconstituição verossímil dos modelos e regras de uma tecnologia católica de
controle do corpo e produção da alma no século XVII ibérico. Evidenciou-se
que a sátira, gênero retórico-poético, é homóloga das práticas inquisitoriais
de denúncia e confissão, porque a interpretação que as regra é a mesma, fun­

2. Roger Chartier, “George Dandin, ou le social en représentation”, Annales. Lillérature et histoire,


Paris, Armand Colin, Mars-Avril 1994, p. 283, 49e, Année - n. 2.

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A SÁTI RA E O E N G E N H O

dando-se no Direito Canônico como doutrina da luz natural da Graça inata


em distinções especiosas de legal, legítimo, eterno, natural,positivo,puro e impu­
ro, metaforizadas ou aplicadas nos poemas pelas técnicas retóricas de uma
racionalidade não-psicológica em que a hierarquia é nuclear. Não pude, como
gostaria, tratar da recepção da sátira por públicos empíricos contemporâneos
dela, por não ter obtido documentação suficiente sobre seus usos e refrações.
Pude evidenciar, no entanto, que um mesmo princípio metafísico e político, a
oposição complementar de finito/infinito, ordena as práticas de representação
luso-brasileiras no século XVII como uma mathesis orientada hierarquicamente.
Ela recicla Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, principalmente, como dou­
trina da sindérese, a centelha acesa na consciência pela luz natural da Graça
inata, que evidencia a presença do infinito aconselhando o livre-arbítrio do
juízo finito na vituperação que repõe os bons usos do costume corrompidos
pelos abusos. Articulando-se com a doutrina do juízo silogístico d o De anima,
III, a doutrina faz com que também na poesia a ordem do conceito engenhoso,
composta agudamente segundo as três analogias escolásticas, atribuição, pro­
porção, proporcionalidade, dramatize o conceito teológico-político de ordem,
que regula virtude e vício.
Esta edição acontece quase 15 anos depois da primeira publicação. Ao
longo desse tempo, acumularam-se evidências que confirmam a tese e a vali­
dade de reeditá-la. Em arquivos brasileiros, portugueses, franceses e norte-
americanos, encontrei inúmeros documentos luso-brasileiros dos séculos XVI,
XVII e XVIII cujos princípios ordenadores são homólogos dos preceitos retórico-
poéticos e teológico-políticos dessa poesia, evidenciando as mesmas estrutu­
ras da forma mental especifica da “política católica” ibérica dramatizada nela.
Vários trabalhos sobre as letras e as artes coloniais feitos desde 1990 na perspec­
tiva aberta pela tese ratificaram-lhe os pressupostos, permitindo que os defi­
nisse melhor com novos documentos e particularizasse questões apenas
indicadas. A recepção positiva do livro em departamentos de Letras e de
História de universidades do país e do Exterior propiciou contatos, excelen­
tes amizades, trocas de informações e oportunidades para inventar novos
objetos e novos instrumentos de análise. Como esta é uma segunda edição
revista, inicialmente pensei em ampliar o texto, as notas e a biblio-grafia.
Não o fiz, pois teria que escrever outro livro. Desejei manter a torma inicial
de texto que não foi escrito como tratado, mas como estudo particular sobre
a tradição Gregório de Matos e Guerra. Mas tornei mais definidos alguns
conceitos da primeira versão, como o de persona satírica. Trouxe as notas
para o rodapé e as uniformizei. De acordo com Leon Kossovitch, mantive
seu generoso “Prefácio”. Também mantive o texto escrito por Roberto Ventura

26
NOTA À 2* E D I Ç Ã O

para a orelha da primeira edição. Suprimi redundâncias e também eliminei,


sempre que conveniente, a noção de “barroco” como classificação dos estilos
dessa poesia.
Quando escrevi o texto, em 1987, não pensava nisso, mas hoje sei que “o
Barroco” é Wõlfflin, ou seja, as categorias dedutivas do idealismo adaptado
teleologicamente em programas de invenção de tradições nacionais e nacio­
nalistas, sem maior pertinência ou interesse para dar conta da primeira
legibilidade normativa da poesia do século XVII. Nas interpretações brasilei­
ras dela, o interesse heurístico suplanta o histórico. Em 1987, reconstituí a
primeira legibilidade normativa da sátira pensando que inventava novos meios
de conhecimento do passado e que criticava a unilateralidade de leituras fei­
tas como universalização da particularidade das próprias categorias críticas.
Não sei se isso ainda é preciso, pois o movimento objetivo das coisas transfor­
mou as leituras heurísticas em ruínas. Hoje, quando se propõe que “o Barro­
co” é o Curvo, como as pernas de Garrincha e as montanhas de Minas Gerais,
a noção é descartável como um lanche do McDonald’s e aquele seu M curvo
ou barroco ou neobarroco ou pós-moderno ou pós-utópico.

27
I

Um Nome por Fazer

Tens mudado mais estados,


que formas teve Proteu,
não sei que estado é o teu,
depois de tantos mudados.
(OC, IV, p. 801.)

Em meados do século XVIII, um letrado colonial, o Licenciado Manuel


Pereira Rabelo, escreveu na Bahia uma Vida do Excelente Poeta Lírico, o Dou­
tor Gregário de Matos e Guerra1. Primeira “vida” do poeta, já no título classifi­
ca o sentido das obras que Rabelo compilou e atribuiu a Gregório de Matos e
Guerra no registro da moralidade virtuosa e da não menos idealização
petrarquista - “excelente poeta lírico” -, conferindo nome ilustre, com a uni­
dade das virtudes tipificadoras do personagem, ao nome falado dos causos e
anedotas escabrosos, que se havia desgarrado dos nomes de mor qualidade de
Salvador, em fins do século XVII.
Apologia, o texto estabelece a legibilidade doutrinária da sátira que atri­
bui ao poeta segundo critérios que o compõem e interpretam retórica e teo­
logicamente como personagem. Ficção, integra-se no gênero do retrato enco-

1. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, “Vida e Morte do Doutor Gregório de Mattos Guerra. Escrita pelo
Lecenciado Manuel Pereyra Rabello”, em Gregório de Mattos e Guerra, Obras Sacras e Divinas, tomo
I, I. E. II Part. Cofre 50, Códice 56, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, p.
56. Cf. também “Vida e Morte do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório de Matos e Guerra”, em
James Amado (org.), Obras Completas de Gregório de Matos e Guerra (Crônica do ViverBaiano Seiscenlista),
Salvador, Janaína, 1968, 7 vols., vol. VII. Esta obra é citada neste trabalho como OC.

29
A SÁTI RA E O E N G E N H O

miástico2. Como evidencia a leitura dos atos acadêmicos e sessões comemora­


tivas da Academia dos Esquecidos, também o Licenciado unifica em códice
tantas obras de gêneros e formas diversos, conferindo a sua autoria à unidade
do nome próprio, “Gregório de Matos e Guerra”, porque, como um letrado do
século XVIII, constitui uma tradição local. Considerado o padrão de distinção
social da inserção dos letrados na cultura da Colônia iletrada, supõe-se a ex­
celência também de Rabelo:

Estas são, curioso leitor, as notícias, que o meu afeto pôde descobrir das tristes
memórias daquele ilustre herói e crede-me, que tanto estimei a dá-las como em grande
mágoa o pondero emblema de tantos infortúnios; que suposto o cortasse a espada de
dois gumes, contudo sempre viverá in eterno ao mesmo tempo. Brasão ilustre-lhe este,
que eternizado na fama o não destrói o tempo3.

Não se sabe quais foram os critérios seletivos e ordenadores do Licencia­


do, o que excluiu na unificação, se transcreveu poemas das afamadas folhas
volantes que se diz terem corrido na Bahia em fins do século XVII, se teria tido
acesso aos livros improváveis que Dom João de Lencastre mandaria abrir em
Palácio para acolher poemas atribuídos a Gregório de Matos e Guerra, se os
coletou de fonte oral ou escrita. As didascálias dos poemas, devido à imediatez
referencial efetuada por seus detalhes, indicam que obteve informações sobre
as pessoas e as situações satirizadas pelos tipos e casos da compilação. Uma das
versões de seu texto fecha com um medalhão de Gregório de Matos:

Foi Gregório de Matos e Guerra de boa estatura, falto de vista, delgado de corpo,
membros delicados, poucos cabelos, e crespos: testa espaçosa, sobrancelhas arqueadas,
e grossas, os olhos grandes, nariz aguilenho, boca pequena, e engraçada, a barba sem
demasia, alvo na cor, e no trato cortesão. Trajava à cortesã de capa, e volta de fina renda,
cabeleira de bandas, suposto, que poucas se usavam naquele tempo4.

Evidenciando que o medalhão teve por modelo outro retrato, o Licencia­


do refere as “memórias” de “pessoas antigas” que lhe teriam fornecido crité­
rios para sua composição:

2. Como retrato, o texto desenvolve-se por aplicação de tópicas do gênero demonstrativo ou epidítico
da oratória, no subgênero “encômio” ou “louvor”, apresentando elementos de individuação e ele­
mentos caracteriaise tipificadores. Cf. Lomazzo, “Compositionedi ritrarredal naturale”, em Trattato
deli 'arte delia piltura, scoltura, et architcllura, Milano, Apresso Pier Paolo Gottardo Pontio, A instantia
di Pietro Tini, 1585.
3. Códice citado na nota 1, p. 56.
4. Op.cil., p. 55.

30
UM N O M E P O R FAZER

Fiz tirar dele a presente cópia, por um antigo pintor, que foi seu familiar, e confe­
rindo-a com as memórias que dele têm algumas pessoas antigas, tenho-a por mim con­
forme seu original. Naquele tempo era pouco versado o uso das cabeleiras, e ele a traja­
va: mas pareceu-me copiá-lo sem ela, porque a homem de talento devem patcntear-nos
as oficinas capitais que o produzem para informação dos judiciososs.

Não se sabe quais eram tais “pessoas antigas”, nem a matéria das “memó­
rias”, o que não tem importância, aliás. Melhor é pensar o que a referência a
elas permite inferir sobre a natureza da unificação. A questão da autoria dos
poemas assume outro sentido, pensando-se que o termo “memórias”, inde­
pendentemente de seu conteúdo, designa uma ação produtiva e deformante
sobre obras que Rabelo afirma ter recolhido já “destruncadas” pelo tempo.
Embora útil para delimitar e nomear um corpus, a autoria não é, considerada
a mesma constituição do corpus por Rabelo, pressuposto necessário para o
estudo dos poemas reunidos sob a rubrica “Gregório de Matos e Guerra”. A
autoria, no caso, é produzida pela unificação que se torna produtiva aposieriori\
“Gregório de Matos” é uma etiqueta ou um dispositivo discursivo, unidade
imaginária e cambiante nos discursos que o compõem contraditoriamente
numa hierarquia estética determinada pela “cadeia de recepções”, na expres­
são de Jauss56. Não-substancial, é efeito ou produto da leitura dos poemas atri­
buídos, não sua causa ou origem.
A “originalidade” dos poemas - tanto no sentido de “origem”, “autoria”,
quanto no de “novidade estética” -, implícita em muitos discursos críticos
que prescrevem o estabelecimento da autoria como indispensável para afir­
mar qualquer coisa válida sobre eles7, é, evidentemente, trabalho e função da
recepção e seus critérios avaliativos particulares. Lembrem-se, entre outros,
a exclusão das obras classificadas como “licenciosas” pelo critério moral da
edição da Academia Brasileira de Letras, em 1923, ou o entusiasmo demons­
trado por elas, a partir principalmente da década de 1970, por interpretações
que fazem do “prazer” e da “desrepressão” métodos e fim. Ambas as interpre­
tações entificam Gregório de Matos como autoria subjetivada, observando-se
que o mesmo valor/moral/ é, num caso, critério de constituição negativa da
legibilidade e, noutro, positiva, segundo duas posições ideológicas adversárias.

5. “Vida do Doutor Gregório de Mattos Guerra, pelo licenciado Manuel Pereira Rabello”. Biblioteca
Nacional, cofre 50, Códice 57 (Col. Carvalho), p. 42.
6. Cf. Hans Robert Jauss,Pourunecsiliétique dela réceplion,Traduil de 1’allemand par Claude Alaillard,
Préface de Jean Starobinski, Paris, Gallimard, 1978, p. 45 (Collection Idées).
7. Cf. Antônio Houaiss, “Tradição e Problemática de Gregório de Mattos”, em James Amado (org,),op.
cil., vol. VII.

31
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

Outro exemplo sugestivo dessa dispersão é o das interpretações de Sílvio Jú­


lio, ordenadas segundo o critério central de ‘‘plágio”: assumem previamente
a autoria individualizada dos poemas, para imediatamente desqualificá-los,
e ao seu autor suposto, como secundários e sem valor8.
Linguagem é consciência prática e, pelo critério pragmático deste traba­
lho, os poemas são propostos simultaneamente como o material e o produto
de uma intervenção presente, esta, que neles sedimenta um efeito particular
de sentido, deslocando outras sedimentações particulares. Fazendo-o, reorienta
o sentido das posições discursivas dramatizadas neles, encenando a sua inter­
venção nas práticas discursivas do século XVII, ao mesmo tempo em que en­
cena a contradição do lugar institucional da operação. Não é, por isso, análise
“correta”, “mais verdadeira” ou “verdadeira”, mas outra, cuja particularida­
de é a de propor os poemas conforme regras discursivas de seu tempo e, si­
multaneamente, a de criticar posições críticas “expressivas” e “representati­
vas”, que obliteram a historicidade da prática satírica, quando a efetuam como
exterior à sua própria história, ora como reflexo realista, ora como “ressenti­
mento” psicológico e “oposição” política expressivos. É este critério pragmá­
tico que, evitando substancializar as obras pelo efeito “autoria”, inclui em
sua análise a questão do estilo, historicamente determinada. Com isto, deslo-
ca-se a questão da autoria, considerada anacrônica nos termos romântico-
positivistas, unificadores e psicologistas em que geralmente é proposta.
Pressupondo a concepção romântica do poético como expressão e, por­
tanto, prescrevendo o conhecimento do vivido do Autor, o critério da “origi­
nalidade” - “autoria”, “novidade estética”, variantes como “plágio” - revela-
se anacrônico, no caso, quando se considera o estilo. A poesia engenhosa do
século XVII é um estilo, no sentido forte do termo, linguagem estereotipada de
lugares-comuns retórico-poéticos anônimos e coletivizados como elementos
do todo social objetivo repartidos em gêneros e subestilos. Evite-se o estereó­
tipo: “estereotipada” significa aqui, nem mais nem menos, fortemente regrada
por prescrições de produção e de recepção, não o pejorativo do desgaste dos
usos e redundância. Não é “inventiva” - no sentido rotineiro de “expressão
esteticamente desviante” -, mas engenhosa, aguda e maravilhosa, no sentido
das convenções sociais seiscentistas da discrição cortesã, do gosto vulgar, do
engenho agudo e da fantasia poética. Ao poeta seiscentista nada é mais estra­
nho que a originalidade expressiva, sendo a sua invenção antes uma arte
combinatória de elementos coletivizados repostos numa forma aguda e nova
que, propriamente, expressão de psicologia individual “original”, represen­

8. Cf. Sílvio Júlio, Reações na Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, If. Antunes, 1938.

32
UM N O ME POR FAZER

tação realista-naturalista do “contexto”, ruptura estética com a tradição etc.


Entre tais elementos, a obscenidade está prevista num sistema de tópicas,
articulando-se retórica e politicamente nos poemas segundo gcneros, temas e
destinatários específicos. Categorias como “pessimismo”, “ressentimento”,
“plágio”, “imoralidade”, “realismo”, “oposição nativista crítica”, “antropofa­
gia”, “libertinagem”, “revolução”, que vêm sendo aplicadas por várias críti­
cas desde o século XIX aos poemas ditos da autoria de Gregório de Matos,
podem ter algum valor metafórico de descrição de um efeito particular de
sentido produzido pela recepção. Não dão conta historicamente, contudo, do
seu funcionamento como prática discursiva de uma época que, desde a obra
de Heinrich Wólfflin, o século XX constitui neokantianamente como “barro­
ca”: como categorias analíticas, são apropriadas antes para o desejo e o inte­
resse do lugar institucional da apropriação que propriamente para o objeto
dela. Quando, por exemplo, Sílvio Júlio acusa o “plágio” de Quevedo ou
Góngora nos poemas que assume como sendo de Gregório de Matos, é o pres­
suposto da originalidade romântica que faz com que os tresleia. Quando a
recepção concretista os relê e deles isola procedimentos técnicos, autonomi-
zando-os apologeticamente em função de sua “poética sincrônica” ou “pre­
sente de produção”, a operação se valida heuristicamente, como invenção
poética. Os mesmos procedimentos, deglutidos oswaldianamente, via inter­
pretação da Antropofagia Cultural e do Tropicalismo, que entifica Gregório
de Matos como “precursor”, contudo, embora possam ter algum valor de ana­
logia na descrição do experimental da neovanguarda com a agudeza enge­
nhosa, que aproxima e funde conceitos distantes, ou de argumentação na con­
corrência mercadológica da vanguarda perene contra o não menos perene
stalinismo do realismo socialista, são evidentemente a-históricos, não poden­
do ter a mínima pretensão de interpretação histórica9.
Relacionando-se pragmática e estilo, pois, evidencia-se que “originalida­
de”, nos dois significados principais do termo, “autoria” e “criação”, é crité­
rio duplamentc exterior à poesia do século XVII: nela, a figura individualiza­
da do Autor, no sentido subjetivado do termo, não tem im portância,
rigorosamente falando, a não ser como elemento posterior ao poema, efetua­
do pela sua leitura. Nela, ainda, lembrando-se mais uma vez a combinatória
de tópicas retóricas coletivizadas que a compõem, a originalidade expressiva
não tem lugar. O mesmo critério encontra-se, aliás, na notícia do Licenciado
Rabelo, que informa sobre a ordem das obras compiladas, subordinando-a às
regras do gênero encotniástico e ao decoro da recepção:

9. Cf. Augusto de Campos, Poesia, Antipoesia, Antropofagia, São Paulo, Cortez & Moraes, 1978.

33
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

P or v e n e r a r e e s tim a r as ob r a s d e s t e in s ig n e P oeta as a ju n te i c o m g r a n d e tra b a lh o ,


e d e s v e lo p or as ter o t e m p o d estru n cad as: p o rém , p e lo m e lh o r m o d o as q u ero dar a
p ú b lic o n e s t e s v o lu m e s ; e será o p r im e ir o d e o b ra s sacras, q u e o se u c a tó lic o â n i m o
t a m b é m s a b i a l o u v a r a D E U S n a s u a L i r a e o s d e m a i s ir ã o s e g u i n d o c o n f o r m e a s p e s ­
soas, p r e fe r in d o s e m p r e as d e m a io r grad u ação: e a in d a q u e v ã o m is t u r a d a s as sátiras,
c o m o s e lo g io s , se faz a fim p reciso p or n ã o ro m p er o estilo pon d erad o"'.

A Vida do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregário de Matos e Guerra pas­


sou a ser tomada, com a sua publicação pelo cônego Januário da Cunha Bar­
bosa, em 1841", como um discurso fora do ato que o produziu. Os tempos
eram românticos e a ficção não foi lida como ficção. As tópicas retóricas do
gênero encomiástico “vida” petrificaram-se como vida empírica e o peso des­
ta expeliu, como vivido psicológico, o verossímil como sentido. O texto de
Rabelo não foi lido, enfim, segundo a especificidade da interpretação
seiscentista: desta se conservaram e deslocaram, contudo, as oposições mo­
rais, que no retrato têm articulação simultaneamente retórica e teológica,
compondo-se com elas o moralismo da crítica posterior. Vejam-se exemplos
dessa leitura que, interpretando tópicas retóricas como fato, postula a obra
como expressão, deslocando a função das oposições morais, quando aplica as
oposições como critério de censura e apreciação estética:

N e m a sua e sp o sa e s c a p o u ao seu g ê n io ex tra v a g a n te, p o is q u e d e se sp e r a d a p e lo


s e u d e s m a z e l o e p e l a s s u a s d e s e n v o l t u r a s , b e m f á c e i s d e se n o t a r e m q u a s e t o d a s a s s u a s
c o m p o s i ç õ e s p o é t i c a s , s a i u p a r a a c a s a d e s e u t i o 12.
10

E r a a E s p o s a u m p o u c o i m p a c i e n t e t a l v e z p e l o p o u c o p ã o q u e v i a e m c a s a , e tal
p e lo d i s t r a i m e n t o d e s e u M a r id o , c u ja s d e s e n v o lt u r a s c la ro se p a t e n t e i a m d e s t a s obras;
p o s t o q u e n e m a to d a s se d eva in te ir o c r é d ito , c o m o v e r e m o s p e la ru b r ic a d e cada
u m a : e e n f a d a d a d e u m a e o u t r a d e s e s p e r a ç ã o s a i u d e c a s a , e e n t r o u p e l a d e s e u T i o 13.

10. “Vida e Morte do Doutor Gregório de Mattos Guerra. Escrita pelo Lecenciado Manuel Percyra
Rabcllo”, Obras Sacras e Divinas, tomo I, cofre 50, Códice 56, Seção de Manuscritos da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, pp. 56-57.
11. Cônego Januário da Cunha Barbosa, “Biographia dos Brasileiros Distinctos por Lettras, Armas,
Virtudes etc.”, Revista Trimestral de História e Geographia ou Jornal do Instituto Histórico Geograpliico
Brasileiro. Fundado no Rio de Janeiro sob os auspícios da Sociedade Auxiliadora da Indústria Na­
cional. Debaixo da immediata protecção de S. M. I. o senhor D. Pedro II. Rio de Janeiro, Typographia
de J. E. S. Cabral, abril de 1841, n. 9, tomo III, pp. 333-337.
12. Cônego Januário da Cunha Barbosa, op. cit., p. 334.
13. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, “Vida c Morte do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório
de Matos e Guerra”, em James Amado (org.), op. cit., vol. VII, p. 1706.

34
UM N O ME P O R FAZER

A s suas p o esia s correm m an u scritas em 6 grossos v o lu m e s d e ¥, a lg u n s dos q u ais


p o s s u í m o s ; m a s é tal a s u a d e s e n v o l t u r a , q u e n ã o c o n v é m d a r - s e à l u z p ú b l i c a 14.

N o ó c io e m q u e se v iu , por lh e d e se r ta r e m o s p le ite a n te s a ss o m b r a d o s d a sua p e n a


ferin a, e f a lta n d o -lh e a c o m p a n h ia d e m u ito s a m ig o s, q u e ev ita ra m p r u d e n te s o co m -
p r o m e te r e m -s e para c o m in fin ita s p e ss o a s de r esp eito , g r a n d e m e n te ferid a s p e la s su a s
sátiras, n e m s e m p r e d is p a r a d a s so b re v íc io s , m a s tão a r tific io s a s q u e se p r o c u r a v a m c
lia m p o r to d o s, G r e g ó r io r eso lv eu -se a p ereg rin a r p e lo R e c ô n c a v o , até m e s m o para p ô r
e m m a i s s e g u r a n ç a o s s e u s d i a s , q u e já p e r i g a v a m c m m e i o d e t a n t o s o f e n d i d o s . A s u a
m usa d e sin q u ieta c o n tin u o u a converter em in im ig o s àq u eles q u e achava p ro n to s em
a c o l h ê - l o n a d e s g r a ç a ; e e r a ta l o s e u g ê n i o s a t í r i c o , q u e n ã o d u v i d a v a p e r d e r o b o m
a g a sa lh o q u e se lh e fr a n q u e a v a , c o n t a n t o q u e lh e n ã o e s c a p a s s e a o c a s iã o d e fa zer p ú ­
b l i c a s as f a l t a s q u e o b s e r v a v a , o u q u e s o m e n t e se c o n t a v a m , a t a v i a n d o - a s e l e d e c o r e s
tã o e n g r a ç a d a s q u e o s i n o c e n t e s se t o r n a v a m r i d í c u l o s , a i n d a c o n h e c i d a a i n j u s t i ç a d o
m a l i g n o p o e t a 15.

A c o s s a d o d a p o b r e z a , e se m e s p e r a n ç a a lg u m a d e r e m é d io e m u m a terra o n d e
s o m e n t e o te m , para tr iu n fa r da fo rtu n a , q u e m p or estr a d a s de in iq ü id a d e c a m in h a , se
e n t r e g o u o P o e ta a to d o o furor d a su a M u s a , f e r in d o a u m a e o u tr a p arte c o m o raio,
sem p e r d o a r c o m o s e d if íc io s altos a m a tér ia m a is d e b ilita d a . E , n ã o a c h a n d o r e s is t ê n ­
c i a , q u e t a l v e z d e s e s p e r a d o p r e t e n d i a ( n e g a ç ã o f a ta l e m t e m p o s b e l i c o s o s ) , e l e g e n d o
p e r e g r i n a r p e l a s c a s a s d o s a m i g o s , s a i u ao R e c ô n c a v o p o v o a d o d e p e s s o a s g e n e r o s a s .
Por este p a ra íso d e d e le it e s estragava a C itara d e A p o io c o m su a s h a r m o n io s a s c o n s o n â n ­
cias em a ss u n to s m e n o s d ig n o s de tão relevan te estro n d o . L a sc iv a s M u la t a s e to rp es
N e g r a s s e u f a n i z a r a m n o s t r o p o s e f i g u r a s d e tã o d e l i c a d a p o e s i a . M a s q u e m u i t o , s e
q u a n d o n au fraga o b a ix e i, q u a isq u e r B árbaros g a le ia m a m a is p recio sa m erca d o ria .
N ã o q u ero p ersu a d ir q u e a d esesp era çã o lh e o ca sio n o u d ese n v o ltu ra s; m a s d irei q u e do
g ê n i o , q u e já t i n h a , t i r o u a m á s c a r a p a r a m a n u s e a r o b s c e n a s e p e t u l a n t e s o b r a s , e m
tanta q u a n t id a d e c o m o se verá. M a s a p r ó d ig a d ifu s ã o d e m a l a p lic a d o s c o n c e i t u o s o s
d isp ê n d io s n a scia das e n c h e n te s p ro d ig io sa s d a q u ela M u sa , que se m esp e ra n ça de que
seus d e s c u id o s co rreríam na futura e stim a ç ã o , barateava v ersos à c o n ju n ç ã o d o s acasos,
f a c i l i t a n d o l i n g u a g e n s a o g ê n i o d o s s u j e i t o s 16.

Ainda em 1841, escreve Joaquim Norberto de Souza Silva em seu Modu-


laçoens Poéticas Precedidas de um Bosquejo da Historia da Poesia Brasileira:

14. Cônego Januário da Cunha Barbosa, op. cit., p. 335.


15. Idem, ibidem.
16. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, “Vida e Morte do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório
de Matos e Guerra”, op. cit., p. 1707.

35
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

Sua v id a é u m c o m p le x o d e e x c e sso s e ex travagân cias, e p o rv en tu ra dra m á tica . F oi


p r o d i g i o s o n a s á t i r a , m a s a o c a b o rara d e i x o u q u e d i g n a se ja d e le r - s e : o b s c e n i d a d e s ,
fra ses b o r d a le n g a s a n d a m d e e n v o lta c o m s e u s versos: c o n t u d o s e u e s tilo é s i m p l e s e
corre n te, c ise n to d e ss e s tro ca d ilh o s e an títeses, co m q u e os p o eta s se u s c o n te m p o r â ­
n e o s b o r r if a r a m s u a s o b r a s, p o i s q u e n ã o era para a f e ta ç õ e s , m a s t o d o n a tu r e z a , to d o
sa tírico , se b e m q u e i n f e liz m e n t e u m satírico to d o in d e c ê n c ia . A s sátiras Os Costumes da
Bahia e O Retrato de um Personagem; o s ep igram as O Músico Espancado e O Livreiro Golotão
s ã o a s c o m p o s i ç õ e s q u e l e r - s e p o d e m , q u e a i n d a a s s i m s e n õ e s t ê m q u e se l h e s n o t e 1'.

A partir, principalmente, da inclusão das interpretações de Cunha Bar­


bosa e Joaquim Norberto por Varnhagen, em seu Florilégio da Poesia Brasilei­
ra., de 1850, a moral fez fortuna:

Por fim , m a lq u is ta d o c o m a m u lh e r , d e sa m p a r a d o d os p le itc a n te s , q u e t e m ia m seu


g ê n io e d e sp r o p ó s ito , co n v e r te u -se retirad o a casas d e vá rio s se n h o r e s d o R e c ô n c a v o ,
n u m v a d i o D i ó g e n e s , q u e a b o r r e c i d o d o m u n d o d e t u d o s a t i r i z a v a c o m m o r d a c i d a d e 1*.

P lo n r a v a m -n o to d o s sc ria m cn te; m as, arrebatado d e seu fresco e o e s p a r c id o g ê n io ,


fu g ia d o s h o m e n s c ir c u n s p e c to s , e se in c lin a v a , c o m o na B a h ia , a m ú s i c o s e fo lg a zõ es;
e, s e n d o n a iu r a lm e n t e a ssea d o e g e n til, d e s c o m p u n h a a su a a u to r id a d e v iv e n d o en tre
e s t e s a o f i l ó s o f o 11'.

Em que “vadio Diógenes”, que constitui um Gregório de Matos cínico e


nada dado ao trabalho, segundo a ética burguesa de Varnhagen, traduz o “vi­
ver ao filósofo”, próprio do ócio e liberdade da elite senhorial do século XVII.
Retomando Cunha Barbosa e Norberto, ainda:

D e n e n h u m a u t o r b r a s i l e i r o p o s s u í m o s p o i s m a i s p o e s i a s q u e d e s t e : e e n t r e t a n t o se rá
t a l v e z d e l e q u e m a i o r p o r ç ã o t e r e m o s q u e reje it ar; n ã o t a n t a s p o r i n s u l s a s , c o m o q u a s e t o ­
d a s p o r m e n o s d e c o r o s a s. A in d a a s s im , para n ã o p r iv a r m o s o p ú b lic o d a l g u n s b e lo s tre­
c h o s , e para s e r m o s a n te s fav o r á v e is à m e m ó r ia d o p o eta (q u e só d e s e ja r ía m o s p o d e r e x a l ­
t a r ) , f a z e n d o - o a p a r e c e r e m l u g a r e s , o n d e se d e s c o b r e m a i s c l a r o o s e u e s t r o , l o m o s
o b r i g a d o s a c o r t a r às v e z e s a l g u m a s e x p r e s s õ e s , q u a n d o n ã o v e r s o s o u a té t r e c h o s i n t e i r o s ' 0.029187

17. Joaquim Norberto de Souza Silva, Modulaçoens Poelicas Precedidas de um Bosquejo da Historia da
Poesia Brasileira, Rio de Janeiro, Typographia Francesa, 1841, pp. 22-23.
18. Francisco Adolfo de Varnhagen, Florilégio da Poesia Brasileira (ou Coleção das mais Notáveis Composi­
ções dos Poetas Brasileiros Falecidos contendo as Biografias de muitos deles, tudo Precedido de um Ensaio
Histórico sobre as Letras no Brasil), Lisboa, Imprensa Nacional, 1850. Reed. Academia Brasileira de
Letras, 1946, 3 tomos. (Cita-se aqui pela reedição, tomo I, p. 73.)
19. Licenciado Manuel Pereira Rabelo,»/), cit., p. 1716.
20. “Não deixaremos uma linha de reticências por cada verso omitido por não nos expormos a ver
alguma vez uma página só de pontinhos. Economizaremos mais espaço convencionando que: 1.

36
UM N O M E P O R FAZER

Não se trata, obviamente, de fazer o processo das leituras de Gregório de


Matos e Guerra: não é este o objetivo deste trabalho, que aqui cita algumas
para evidenciar o critério pragmático da recepção. Boa análise dessas leitu­
ras, com outro enfoque, que tem por eixo a questão do “plágio”, encontra-se
no livro de João Carlos Teixeira Gomes, Gregório de Matos, o Boca de Brasa
(Um Estudo de Plágio e Criação Intertextual), principalmente o capítulo I, “Um
Poeta no Banco dos Réus”-1.
Vejam-se ainda mais exemplos da constituição de Gregório de Matos por
critérios morais, raciais, psiquiátricos, nacionalistas:

M a s s e g u in d o os d ita m e s de sua n atu ral im p e r tin ê n c ia h a b ita v a os e x t r e m o s da


v e r d a d e c o m e s c a n d a lo s a v ir tu d e , c o m o se n u n c a h o u v e r a m d e a c a b a r as s i n g e l e z a s da
p r i m e i r a i d a d e ; e b e m q u e se c o m u n i c a v a c o m o s d o u d o s d a q u e l a p r o d i g i o s a c h u v a ,
n u n c a se r e s o lv e u a m o lh a r a c a b e ç a , c o m o o d iz e x p r e s s a m e n t e e m seu lugar; e d esta
c o n t u m á c i a lh e n a s c i a m o s q u e b r a d o u r o s dela: n e m h a v ia lis o n j a q u e f o m e n t a s s e as
d u r e z a s d a q u e l e d e s e n g a n o 22.

N ã o era p o r é m G r e g ó r i o d e M a t o s h o m e m q u e r e n u n c i a s s e s e u s a n t i g o s h á b i t o s , e
não havia v a n ta g e m q u e lh e fizesse d esistir d o m a lig n o prazer de la n ça r u m e p ig ra m a .
[...] e , d o m i n a d o p e l a f u n e s t a p a i x ã o d e f a z e r rir, d e s p r e z a v a t o d o s o s r e s p e i t o s h u m a ­
n o s 23.

D is c o r d a n d o d o resp eitá v el p a recer d o cô n e g o J an u ário a c im a c ita d o , p e n s a m o s


q u e m u it o lu craria a n o ss a litera tu ra co m a p u b lic a ç ã o d as ob ras p o é t ic a s d e G r e g ó r io
d e M a to s in c u m b i n d o - s e u m d i l ig e n t e ed ito r d e e x p u r g á -la s d a s o b s c e n id a d e s q u e as
d e t u r p a m 24.

L o g o na u n iv e r sid a d e c o m e ç o u G reg ó rio d e M a to s a d ar as p ro v a s d o seu p o é tic o


e n g e n h o : n ã o sa b ia t o d a v ia d e s e n h a r c e n a s s u b l i m a d a s e m d e l i c a d o s q u a d r o s; n ã o era
a sua p o e sia d e c o r e s c e le s te s , d e fo r m a a n g é lic a , e filh a da im a g in a ç ã o e d o s e n t im e n to ;
a s e u s o u v i d o s n ã o m u r m u r a v a m o s rios, n ã o d e s c a r n a v a m o s p a s to r e s , n ã o s o n h a v a
m e n e a v a m as árvores; n ã o t in h a m as flores a ro m a , a n a tu r e z a , e n ã o se m a t i z a v a m o s

Quando sc omita um ou mais versos, que deviam completar a rima com outros que ficam, dar disso
sinal no verso anterior aos omitidos [...] 2. Quando num verso se suprima alguma palavra, deixar-
lhe tantos pontinhos quantas as letras omitidas [...] 3. Quando se omitam quadras, décimas, etc.
inteiras, supri-las só pelo sinal(.-.)", em Varnhagen, op. cil., p. 75.
21. João Carlos Teixeira Gomes, Gregório de Maios, o Boca de Brasa (Um Estudo de Plágio e Criação
Interlextual), Petrópolis, Vozes, 1985.
22. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, “Vida do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório de Matos
e Guerra”, em James Amado (org.), op. cil., p. 1700.
23. Cônego Doutor Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, Curso Elementar de Liueraiura Nacional, 2.
ed. melhorada, Rio de Janeiro, Livraria de B. L. Garnier, 1883, p. 204.
24. Idem, p. 208.

37
A SÁTI RA E O E N G E N H O

c a m p o s de v erd u ra , e n ã o soía ser o v e n to m e n sa g e ir o de am ores; para ele n ão fa ceira v a m


as b r a n d a s a u r a s , e n e m a s c r i a ç õ e s d a t e r r a e l e v a v a m o s s e u s h i n o s d e l o u v o r , e n t u s i a s ­
m o e g r a tid ã o para a q u e le E te r n o S e r q u e as h avia p r o d u z id o ; n ã o tin h a a sa s o e n g e ­
n h o , v o z e s s o n o r a s a r e lig iã o , e c o e t e r n o e im o r ta l o e s p ír it o d iv in o : era p ara e le a p o e sia
c o m o a terrível N ê m e s i s , arm ad a d e in st r u m e n t o s d e ca stig o e q u e a ço ita v a a to d o s q u e
c o m d e sa g r a d o a v ista v a m os seus o lh o s, ou a q u em qu eria a p lica r o fogo d o seu ó d io , ou
d o s s e u s c a p r ic h o s : n ã o via es tr e la s n o c éu , b o n d a d e n o s h o m e n s , e n e m m a g n if ic ê n c ia
e a m o r na n a tu r e z a ; c o n v i n h a - l h e e m e r e c ia - lh e a a t e n ç ã o s o m e n t e o q u e era m a u e
rid ícu lo ; e se lh e fa lta v a a r e a lid a d e, a im a g in a ç ã o lh e se rv ia , para fa n ta siá -la e
d ese n v o lv ê -la . F o lg a v a G regório d e M a to s d e en co n tra r d e fe ito s n os h o m e n s ou nas
c o u s a s , d e c e n s u r á - l o s , e e x a g e r á - l o s ; a l e g r i a v i v a , b u r l e s c a e f a c c i o s a s a l p i c a v a t o d a s as
s u a s c o m p o s i ç õ e s ; d o m i n a o e s p í r i t o e m t o d a s as s u a s o b r a s , o e s p í r i t o p o r é m d o ma!...-’5

[...] r e l e s b o ê m i o , q u a s e l o u c o , s u j o , m a l v e s t i d o , a p e r c o r r e r o s e n g e n h o s d o R e c ô n ­
c a v o , d e v io la ao la d o , to c a n d o lu n d u s e d e s c a r n a n d o p o e s ia s o b s c e n a s para regalo,
n a t u r a lm e n t e , d o s d e v a s s o s e e s tú p id o s M e c e n a s da roça q u e lh e n u tr ia m a g u lo d ic e
se n il. O fa u n o d e C o im b r a , e m ú ltim a a n á lise , d e g e n e r a v a n o v e lh o sá tiro d o m u la -
t a m e 26.
52

O v ila n a z A r istó la n e s das m ulatas, u m d esses avani-coureurs d a s n a c i o n a l i d a d e s 27.

[...] u m a a l m a d e v i t r í o l o , u m c a r á t e r d e v e l h a s o g r a r a n c o r o s a e m e x e r i q u e i r a , u m
e s p ír ito e m q u e h a v ia m a is arestas q u e facetas. N ã o é e x c e s s iv o c o m p a r á -lo a u m a b e x i­
ga d e ícl. M a d r a ç o p o r ín d o le , p a ra sita v it a líc io , d e v o r o u c i n i c a m e n t e o p ã o a lh e io , q u e
n ã o l h e s a b i a a b s o l u t a m e n t e a l á g r i m a s c o m o s o u b e a o p l a n g i t i v o D a n t e 28.

[...] u m n e r v o s o , q u i ç á u m n e v r ó t i c o , u m i m p u l s i v o , u m e s p í r i t o d e c o n t r a d i ç ã o e n e g a ­
ç ã o , u m m a l c r i a d o r a b u g e n t o e m a l é d i c o 29.

As Obras Completas de Gregório de Matos, da Academia Brasileira de Le­


tras30, tomam também como poemas efetivos de um indivíduo Gregório de
Matos o que foi resultado de precária unificação operada no século XVIII,

25. J. M. Pereira da Silva, Os Varões Illuslres do Brazil durante os Tempos Coloniaes, Paris, Franck
Guillaumin, 1X59, tomo I, pp. 160-161.
26. T. A. Araripe Júnior, Gregório de Mattos, 2. ed., Rio de Janeiro, Paris, Garnier, 1910, p. 55.
27. Euclides da Cunha, “Carta a Araripe Júnior (Lorena, 12.3.1905)”, em Obra Completa, Rio de Janei­
ro, Aguilar, 1966, vol. II, pp. 625-627. Devo a lembrança da existência desta carta a João Roberto
Gomes de Faria, a quem aqui agradeço.
28. Agripino Grieco, Evolução da Poesia Brasileira, Rio de Janeiro, Ariel, 1932, pp. 14-15.
29. José Veríssimo, “Gregório de Matos”, em História da Literatura Brasileira, Introdução de Heron de
Alencar, 4. ed., Brasília, Ed. da Universidade de Brasília, 1963, p. 72.
30. Gregório de Matos, Obras, ed. Afrânio Peixoto, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras,
1923-1933, 6 vols. (I - Sacra; II - Lírica; III - Graciosa; 1V-V- Satírica; VI - Última).

38
UM NO ME POR FAZER

entre outras. Produzem o produzido e censuram-no, fazendo pela exclusão da


obra dita “licenciosa” o que o licenciado Rabelo já fizera no registro da apolo­
gia: transformam o nome Gregório de Matos em "poeta lírico”, ei-lo “sacro”,
“lírico”, “gracioso”, “satírico” e “último”:

Da Licenciosa, imprópria para a tipografia, tiraram-se duas cópias datilografadas,


que se guardam nos reservados da Biblioteca Nacional e da Academia Brasileira, à dis­
posição dos que tenham o gosto (ou mau gosto) por semelhante gênero literário31.

A sina do epônimo é admitir outras nomeações que o sedimentam como


sinônimo, à imagem e semelhança do lugar institucional da sua apropriação;
lembrem-se ainda outras traduções, lugares. Interpretações mais recentes,
muito difundidas por faculdades de Letras a partir principalmente da edição
francesa e traduções brasileiras dos trabalhos de Mikhail Bakhtin sobre a sá­
tira menipéia, o skaz e a paródia, têm hipostasiado a última como gênero su­
premo da sátira, atribuindo com isso outras virtudes a Gregório. Confundin­
do-se “paródia” e “sátira menipéia”, desloca-se tanto Menipo de Gadara quanto
Yarrào*3. nos quais a sátira menipéia é simplesmente a mistura de prosa e
verso, buscando-se à poesia do século XVII o que possa validar o desejo e o
interesse atuais do intérprete. Pela generalização do valor “oposição crítica”
atribuído à paródia, costuma-se erigir Gregório de Matos como homem
libertário dos textos sempre supostos paródicos, porque satíricos. Encarnando-
se no século XVII como desejo do intérprete e reencarnando-se no século XX
como autor barroco e liberal “progressista”, crítico do oficialismo das insti­
tuições dominantes, o Espírito nacional-popular circula em metempsicoses
piedosas. Nessa circulação espiritual, materializa-se pela generalização da
paródia e, ainda, pela plasmação a-histórica da divisão retórica dos estilos -
alto, médio, baixo - nas classes sociais, de modo que o estilo alto da lírica e da
épica, entendido como sempre sério e oficial, seja mesmo dominante, e o bai­
xo do cômico e do tragicômico, contituído como risonho e desrepressor, ape­
nas dominado... Incorporação de Bakhtin que não se eleva ao que ele, conce­
dendo embora a oposição de “cultura oficial” c “cultura popular”, conceitua
como mediação, isto é, contradição na “circularidade da cultura”33:

31. Rodolfo Garcia, nota de pé de página em Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., tomo I, p. 76.
32. Cf. Al. Varro, Vaironis Menippearum reliquiae, em Pelronii Salirae et Liber Priapeorum JAdicctae sunt
Varronis ei Senecae salirae similesque reliquiae), ed. Buecheler, 3. ed., Berlin, Wcidmann, 1895.
33. Mikhail Bakhtin,Idoeuvre de FrunçeèRabelais et Ia cullurepopulaire au Afo.vcH.dtjt’et sotts laRenansanée,
Paris, Gallimard, 1970. Cf., também do mesmo autor, com o nome de Voloshinov, Le marxisme et la
philosophie. du langage, Paris, Alinuit, 1977; e La poétique dc Dosloievski, Paris, Seuil, 1970.

39
A SÁTI RA E O E N G E N H O

D e s t a f o r m a , a fa la d o p o d e r , o c ó d i g o poéúco postiço e importado, a t r a v é s da in stigan te


m o r d a c i d a d e d a s á t ir a g r e g o r i a n a , a f lo r a s u a f a c e d e s c o n h e c i d a e d i s s i m u l a d a : o artificia-
lismo mecânico e antinatural, a e m p o la ç ã o sem viço, o p r e c io sism o ex a u sto , autoritário e
u n ila tera l c o m o o reverso da s u b lim id a d e con sagr ada, d o ideal d e p o e t ic id a d e e x e m p la r e
a b so lu tiza n te. E, enquanto paródia da linguagem do poder, n o d e s m a s c a r a m e n t o d o ríctus
m e c â n ic o , d o a u to m a t is m o su b jacen te à n o rm a tiv id a d e co n sagrad a, a p oesia d e G regório
v a i c o n s t r u i n d o , a tr a v é s d e s u a í n d o l e m e t o n í m i c a , a r e j e i ç ã o progressiva d e s t e m esm o po­
de r, c o m o o p ç ã o d e v i d a , c o m o s i s t e m a d e p r o c e d i m e n t o s , c o m o v i s ã o d e m u n d o " .

G r e g ó r io , se m p erceb er , retrata a situ a ç ã o e f e t iv a m e n t e c o n s t a n t e e d r a m á tic a d o


artista brasileiro dos p rim eiros sécu los, enceguecidopelos valores europeus, s i t u a ç ã o q u e se
p e r p e t u a d e c e r t o m o d o a t é h o je : a d e s u b m e t e r - s e a o m o d e l o e s t r a n g e i r o , t i d o c o m o
m e l h o r e m a i s p e r f e i t o 35.
43

Sedimenta-se assim um Gregório de Matos cujo “[...] furor intrépido im­


perava dominante na massa sanguinária”36, interpretado pelos humores da
arte de prudência de Rabelo; um Gregório de Matos “[...] iniciador da nossa
poesia lírica de intuição étnica”, inconformista simbiótico e desbocadíssimo
crítico, uma vez que “[...] o seu brasileiro não era o caboclo, nem o negro, nem
o português; era já o filho do país, capaz de ridicularizar as pretensões separa­
tistas das três raças”37; um Gregório de Matos vagamente anarquista, misto
de vanguarda do proletariado, intelectual orgânico e libertinagem intelectual
e sexual, na paródia do estilo alto da cultura oficial38; um Gregório de Matos
hedonista, em versão freyriana da antropologia doce-bárbara39; um Gregório
de Matos concretista-oswaldiano, devorador do osso duro de Quevedo, da
pedraria aguda de Góngora e Camões, salpicando o moquém com o tempero
dos localismos bantos e tupis e o molho arcaizante de Garcia de Resende40;

34. Angela Maria Dias, O Resgate da Dissonância - Sátira e Projeto Literário Brasileiro, Rio de Janeiro,
Antares/INL, 1981, p. 77 (grifos meus).
35. Melânia Silva de Aguiar, “ ‘Vitalismo’ e ‘Abertura’ no Barroco Brasileiro”, O Eixo e a Roda, Revista
de Literatura Brasileira, Belo Horizonte, UFMG, nov. 1986, vol. 5, p. 92 (grifos meus). Para um
Gregório deleuziano, passado pelo simulacro, cf. p. 122.
36. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, “Vida do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório de Matos
e Guerra”, em James Amado (org.), op. cil., vol. VII, p. 1718.
37. Sylvio Romero, História da Literatura Brasileira, Rio de Janeiro/Brasília, José Olympio/INL, 1980,
vol. 11, pp. 373-379.
38. Cf. Angela Maria Dias, op. cil.
39. A citação do soneto Triste Bahia, ó quão dessemelhante por Caetano Veloso em seu LP Trama, de
1972, já tropicalizava Gregório alegoricamente. Hoje, ele retorna de seu exílio, sendo proposto
como exemplar típico da “baianidade”.
40 Augusto de Campos, op. cil.

40
UM N O ME P O R FAZER

um Gregório de Matos afro, à imagem de facções do movimento negro41; um


Gregório de Matos famosíssimo, nunca lido, invisível e interdito, obsceno,
pornográfico, impróprio; um Gregório de Matos sintético, das seletas para
uso colegial, catolicíssimo e padresco, do mesmo “Pequei, Senhor, mas não
porque hei...”, oposto exemplarmente ao outro Gregório de Matos, exagera­
do, lúdico, amaneirado e preciosíssimo de “Ardor em firme coração...”,
paradigmas do Conceptismo e do Cultismo do Estilo Barroco que se caracte­
riza pelo Dualismo e Angústia do Homem Barroco etc. E há mais este Gregório
de Matos: não é “mais verdadeiro”, nem sequer “verdadeiro”. Apenas evita o
anacronismo de noções interessadas como “expressão”, “ressentimento”, “pes­
simismo”, “nacionalismo”, “realismo”, “excesso”, “machismo”, “raça”, “an­
tropofagia”, “revolucionário”, “reacionário”, “libertinagem”, “moral” e simi­
lares, aplicadas ao estudo da poesia do século XVII português produzida no
Brasil e que hoje se conhece por “barroca”42.

A oposição “virtude/vício” da Vida de Rabelo divide a natureza humana


e o artifício poético do personagem Gregório de Matos e Guerra em pares de
oposições como “prudente/imprudente”, “lírico/satírico”, “conveniente/in-
conveniente”. As antíteses são construídas em tópicas retóricas muito tradi­
cionais do retrato biográfico encomiástico, segundo preceitos do gênero de­

41. Em fevereiro de 1987, o autor deste trabalho teve o privilégio de assistir, em Salvador, à última ence­
nação de Gregório de Maios de Guerras, peça montada com fragmentos da poesia atribuída ao poeta. Em
releitura afro, numa intersecção com episódios contemporâneos do quilombo de Palmares, e narrada,
principalmente, pelo foco do herói negativo Gregório, no momento de sua partida para o degredo em
Angola, a peça se faz como Jlashback da Bahia colonial, na linha proposta por James Amado em sua
edição das obras atribuídas ao poeta: “crônica do viver baiano seiscentista”. Cf. Gregório de Maios de
Guerras, Roteiro de Márcio Meirelles. Textos de Gregório de Matos e Guerra, J. C. Capinam, Myriam
Fraga, Cleise Mendes, Aninha Franco, Salvador, Fundação Gregório de Mattos, dezembro de 1986.
42. Outros estudos devem ser lembrados aqui. Entre eles, a análise de Segismundo Spina. Cf.
Segismundo Spina, Gregório de Matos, São Paulo, Assunção, 1945. Do mesmo autor, “Monografia
do Marinículas”, Revista Brasileira, Rio de Janeiro, ABL, jun.-set. de 1946; “Gregório de Matos”,
em A Literatura no Brasil (Introduções, Barroco, Neoclassicismo, Arcadismo), dir. Afrânio Coutinho,
Rio de Janeiro, Sul Americana, 1968; e “Gregório de Matos. A Língua Literária no Período Colonial:
o Padrão Português”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, USP, 1980, n. 22, pp. 63-
75. Mais recentemente, o estudo de João Carlos Teixeira Gomes, Gregório de Matos, o Boca de Brasa,
analisa o intertexto medieval e renascentista da tradição gregoriana. Cf. ainda a excelente biogra­
fia do poeta escrita por Fernando da Rocha Peres, Gregório de Manos e Guerra - Uma Revisão Bio­
gráfica, Salvador, Edições Macunaíma, 1983. Do mesmo autor, Gregório de Mattos e a Inquisição,
Salvador, Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia, n. 128, 1987; eA Família
Mattos na Bahia do Século XVII, Salvador, Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da
Bahia, n. 132, 1988. Sou grato ao autor pelo envio dessas obras.

41
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

monstrativo, pelos quais se deve falar da origem do retratado, de sua pátria e


cidade, de seus pais e familiares, de seu sexo, dc sua educação, de seus hábi­
tos, de seu nome, de suas inclinações e aspecto etc. Os lugares de louvor, que
Rabelo desenvolve um a um, recebem o tratamento descritivo - e assim nar­
rativo - das ações e dos exemplos que mimetizam o lugar de uma tempora-
lidade vivida e o de um espaço dela. Os mesmos pares opositivos de virtudes
e vícios atravessam ações e descrições, amplificando-as como contraste de
atos bons e maus. As ações principais do personagem retratado são intercala­
das, ainda, por ornamentos, peripécias, cuja função aristotelicamente deter­
minada é a de sensibilizar o sentido geral da ação, tornando-a evidente ou
pictórica para a recepção. Simultaneamente, intervém ponderações pruden­
tíssimas da enunciação sobre o temperamento do personagem, um “sangui­
nário”, segundo a antiga doutrina dos humores com que a medicina de então
distinguia os tipos humanos em melancólicos, fleumáticos, sangüíneos e co­
léricos. As ponderações recuperam hiperbolicamente ações, peripécias e
exemplos numa economia providencialista, alegoria de uma destinação su­
perior da vida do personagem. A metaforização continuada de tal destinação
unifica as antíteses de “virtude/vício” no estilo alto, explícito como virtude
humana e poética das palavras do título: “excelente poeta lírico”. A mesma
oposição moral e sua exageração antitética constituem um verossímil retórico,
assim, como um discurso que toma por matéria de sua mímesis a legenda oral
dos causos atribuídos à referência do retrato, o homem Gregório, submeten­
do tal matéria às tópicas da invenção epidítica. Proposta como introdução às
obras compiladas, a Vida do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório de Matos
e Guerra opera em duplo registro: propõe um sentido escatológico para as
“impertinências” que sc vão ler, enquanto lhes fornece uma orientação refe­
rencial, como memória que as recorda do mesmo homem cujo nome as unifi­
ca com a fama de “infame”. Ainda neste sentido, é útil lembrar que compor­
tamentos e causos atribuídos por Rabelo na Vida e nas didascálias a seu
personagem são encontráveis em outros discursos do século XVII, porque topoi
retóricos tradicionais, como o da falta de pão em casa, o da esposa impaciente
e desesperada, o da condução da esposa amarrada de volta ao lar, o dos hábi­
tos perdulários do poeta, o da facécia do “boi de um corno só”, o da morte
arrependida do poeta etc.
Nas contorções das hipérboles e dos hipérbatos com que ornamenta o
personagem de virtudes morais e intelectuais que o fazem aristotelicamente
“excelente” como poeta, mas “infame” como homem, Rabelo opera com
dicotomias escolásticas, lugares-comuns também na cultura ibérica renas­
centista, da vontade e da razão, do ato interior da vontade e seu fim, do ato

42

1
UM NO ME POR FAZER

exterior e seu objeto, da forma e da matéria etc. As dicotomias montam um


personagem movido o tempo todo pela visão do Bem e da racionalidade da
ordem sem atavios, mas com ações e palavras de uma vontade excessiva. For­
malmente virtuoso, materialmente vicioso: como aquele que sabe o que é o
honesto, mas que não o faz, por carência, ou que só o faz, por excesso:

Era o D o u t o r G reg ó rio de M a to s acérr im o in im ig o de toda a h ip o c r isia , v irtu d e ,


q u e se p u d e r a , d e v ia m o d e ra r, a t e n d e n d o a o s c o s t u m e s d o s p r e s e n te s s é c u lo s , e m q u e o
m a is r e tir a d o A n a c o r e ta se e n fa stia da v e r d a d e crua. M a s s e g u in d o os d i t a m e s d e sua
n a t u r a l i m p e r t i n ê n c i a h a b i t a v a o s e x t r e m o s d a v e r d a d e c o m e s c a n d a l o s a v i r t u d e 43.

A interpretação propõe o personagem como cativo do excesso: motivados


pelo zelo, seus atos têm a falta viciosa das paixões. Estando o bem, neo-
escolasticamente, no acordo com a razão, a moderação é a virtude intelectual
que pauta as ações. Rabelo compõe a memória de Gregório no topos da tradi­
ção greco-latina reciclada nos séculos XVII e XVIII, o da mediocridade ou
meio-termo, como critério do bem moral e político. Como adequação das ações
às contingências, o correlato político do meio-termo é a prudência. Por pa­
drões do mesmo século XVII de que o texto do Licenciado é tributário, o bio­
grafado rompe com as exigências do decoro de seu grupo, simultaneamente
branco, proprietário, católico, fidalgo, letrado, por misturar-se com o vulgo.
Mais: dotado embora das virtudes da inteligência e da ciência, que Rabelo
ilustra hiperbolicamente com várias anedotas, passando de “[...] uma corte
de sábios que o respeitavam grande, a uma colônia de presumidos, que o abor­
reciam crítico”44, Gregório não tem a recta ratio agibilium45, a reta razão das
coisas agíveis, a prudência, nem a virtude moral da temperança, devido ao
excesso de seu juízo. E a sua uma ação sem razão, abandonada às inclinações
do gosto sem as ponderações do juízo. Melhor, seguindo apenas as pondera­
ções do juízo, mas exacerbado como “inimigo de toda a hipocrisia” que, na
obstinação de verdade e justiça a todo custo, torna-se excessivo e pior: “[...]
como aquele que olhou para o sol, que qualquer sombra lhe parece abismo,
assim a ele, com a vista próxima de Lisboa, se representavam infernos as
confusões da Bahia, por indignas, e cavilosamente bárbaras”46.

43. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, “Vida e Morte do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório
de Matos e Guerra”, em James Amado (org.), op. cit., vol. VII, p. 1700.
44. Idem, p. 1701.
45. Santo Tomás de Aquino, Sumrna theologica I.IIa., 57,5, ad. Resp. em The Summa Theologica of Saint
Thomas Aquinas, translated by Fathers of the English Dominican Province, London/Chicago,
Enciyclopaedia Britannica, 1952, 2 vols.
46. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, op. cit.y p. 1701.

43
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Sempre nas tópicas de Rabelo, Gregório diz muitas coisas sem inteira in­
formação, arrependendo-se depois como bom católico. Também a inteireza de
seu ânimo patrocina somente a razão em matérias cíveis, conforme a oposição
justiça bastarda x justiça que, na compilação, o poeta descarna numas décimas
contra a Cidade. Sua inimizade de “toda a hipocrisia” se evidencia mais uma
vez quando se recusa a tomar as ordens sacras de que depende a conservação dos
cargos vantajosos que obtém ainda em Portugal. Ao arcebispo responde que;

f...l n ã o p o d i a v o t a r a D e u s a q u i l o q u e e r a i m p o s s í v e l d e c u m p r i r p e l a f r a g i l i d a d e d e
sua n a tu re za ; e q u e a troco de n ã o m en tir, a q u e m d ev ia in te ir a v e r d a d e , p erd ería to d o s
o s t e s o u r o s e d i g n i d a d e s d o m u n d o . Q u e o s e r m a u s e c u l a r n ã o era t ã o c u l p á v e l e e s c a n ­
d a l o s o c o m o s e r m a u s a c e r d o t e 47.

O gosto era ainda, segundo critérios ético-retóricos da racionalidade de


Corte vigente no momento em que Rabelo escrevia sua notícia, índice de uma
inclinação passional do ânimo perdido no sensível, diferentemente do juízo,
elaboração intelectual das ocasiões e árbitro do decoro48. No texto, o gosto se
produz nas ações extravagantes do personagem, como aquela de mandar des­
pejar os três mil cruzados de uma venda de propriedade a um canto da casa,
donde se retira para o gasto; a de escolher a companhia turbulenta de um jo­
vem poeta português, Tomás Pinto Brandão49; a de abandonar escandalosamen­
te a esposa dona Maria dos Povos e a de exigir, quando quer voltar para ele
depois que o larga, que venha amarrada, publicamente conduzida por capitão-
do-mato como negra fugida; a de fazer uma viola de cabaça com que no “[...]

47. Idem, p. 1702.


48. Cf. Baltasar Gracián, El Discreto, em Obras Completas, Madrid, Aguilar, 1967. Cf. também Emanueie
Tesauro, II Giudicio, em II Cannocchiale Aristotelico, scelta a cura di Ezio Raimondi, Torino, Einaudi,
1978; Robert Klein, “Giudizio et Gusto dans la ihéorie de l’art du Cinquecento”, em La forme ei
Pintelligible (Ecrils sur la Renaissance el Vart moderne), Paris, Gallimard, 1970 (Coleção “Idées”); José
Antonio Alaravall, La Cultura dei Barroco (Analisis de una Estniclura Histórica), 3. ed., Barcelona,
Editorial Ariel, 1983, p. 222.
49. Cf. “Procurei ir-me chegando, / A um Bacharel Mazombo; / Que estava para a Bahia, / Despacha­
do, e desgostoso, / De lhe não darem aquilo, / Com que rogavam a outros”, em Francisco Adolfo de
Varnhagen, Florilégio da Poesia Brasileira, op. cil., tomo I, p. 73. Cf. também licenciado Manuel
Pereira Rabelo, op. cil., p. 1699. Sobre Tomás Pinto Brandão, cf. Alfredo Vale Cabral, “Sátiras
Inéditas de T. Pinto Brandão. Gusmão, o Voador, Ridiculizado”, Annaes da Bibliotheca Nacional do
Rio de Janeiro, dir. Ramiz Galvão, Rio de Janeiro, Typ. G. Leuzinger e Filhos, 1876, vol. I. Cf. ainda
Poesias Eróticas e Inéditas de Thomaz Pinto Brandão; e, entre outros Escripios Jocosos, e Admiravelmente
Chistosos Discursos e Cartas dofr. Pedro de Sá, o Frade mais Engraçado e Mordaz do Século XVIII, Seção
de Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Cf. também Discursos e Documentos Vários e
Fábulas de Ezopo Moralizadas e Outras Obras e Vários Autores, 1739, Seção de Manuscritos, Bibliote­
ca Nacional do Rio de Janeiro.

44
UM N O ME POR FAZER

paraíso de deleites estragava a Citara de Apoio com suas harmoniosas conso­


nâncias cm assuntos menos dignos de tão relevante estrondo”50etc.
Grcgório de Matos e Guerra é produzido por Rabelo como confuso e irra­
cional (e, somente enquanto tal, como livre): escravo de si, as paixões o incli­
nam segundo a vulgaridade. Não por acaso tanto mulato pernóstico cioso de
suas sedas e veludos implica com o colete de pelica âmbar do Doutor. O gosto
é alinhavado, no avesso, pela integridade moral do seu juízo excessivo, nele
irredutível como “acérrimo inimigo de toda a hipocrisia”: “O gênio satírico [...]
não há dúvida que de justiça providencial se devia ao desgoverno destas con­
quistas, onde cada um trata de fazer a sua conveniência, gema quem gemer”51.
O poeta é excessivo, uma vez que sua mesma vida não é o exemplo das
virtudes cuja ausência vitupera em tantos: intemperante, imprudente, injus­
to. Falta-lhe o juízo - por excesso dele, conforme Rabelo -, o mesmo juízo
excessivo com que desqualifica os netos de Paraguaçu, reduzindo-os à mate­
rialidade da moqueca e da mandioca puba, quando os põe para fora da ordem
da cultura52. A mesma indignação satírica, embora vitupere os vícios da Ci­
dade perdida no luxo e na luxúria, é também viciosa como paixão.
As hipérboles de Rabelo formam sistema, evidentemente: porque segue os
ditames de sua “natural impertinência”, Gregório está nos “extremos da ver­
dade” com “escandalosa virtude”. Lugares para o excesso, caracterizam um
infame, bem à moda clássica, interpretado por Rabelo com o providencialismo:
Deus escreve reto por linhas tortas e, no infinito insondável da sua vontade, os
extremos se tocam. A crítica posterior, levada pela superstição positivista con­
tra a interpretação religiosa, obscureceu a alegorização do texto, patenteando
nele o moral dos vícios do personagem interpretado como homem53.
Se as paixões estão na natureza, a moderação prescrita como virtude é a
do decoro. As paixões não são informais, contudo, pois sua codificação é retó­
rica. Enquanto Cícero usa o decoro tecnicamente no De oratore, de grande
circulação nos séculos XVI e XVII, escrevendo que depende da sabedoria e da
dignidade pessoal encontrar o momento conveniente para fazer rir com as

50. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, op. cil., p. 1707.


51. Idem, p. 1701.
52. Cf. “Animal sem razão, bruio sem fé, / Sem mais Leis, que as do gosto, quando erra” (OC, IV. p. 841).
53. A crítica contemporânea insiste na biografia, propondo o homem Gregório como critério da obra:
“Quando se pensa que ele próprio, segundo parece, não rejeitava a prática de, pelo menos, uma
larga parte dos vícios e pecados que condena nos outros; quando se percebe a liberdade de compor­
tamento e de expressão que a si próprio concedia, concluímos desde logo que não se trata de um
moralista (nem mesmo no sentido literário da palavra), mas, ames, de uma testemunha mais ou
menos divertida e de um hedonista mais ou menos vulgar". Cf. Wilson Martins, História da Inieli-
gência Brasileira, 2. ed., São Paulo, Cultrix, 1977, vol. 1 (1550-1794), p. 226.

45
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

paixões, sendo preciso o conhecimento das regras para tanto, porque “a natu­
reza é senhora”54, o Licenciado o apropria moralmente, relendo o decoro neo-
escolasticamente: o homem Gregório não consegue em vida, devido à “intei­
reza indiscreta danosa das conveniências”55, a sindérese56. E pela mesma
natureza, contudo, que sua falta de prudência é interpretada como Presença e
que o excesso é adequação. Nesta translação do efeito de sentido obsceno dos
poemas para sua Causa Primeira, Rabelo escreve que, embora quisesse mode­
rar o humor sanguinário contra os desacertos do tempo, castigado já dos flagelos
da peste e da fome, Gregório não o podia:

[...] e n ã o é d e a d m i r a r q u e , d i s p a r a d a s d o t r o n o d a d i v i n a J u s t i ç a a q u e l a s d u a s l a n ç a s d e
s u a ir a, s e g u i s s e a t e r c e i r a c o m t ã o e s q u i s i t o g ê n e r o d e g u e r r a e m u m h o m e m q u e d e s u a
M ã e u n ic a m e n t e t o m o u e s te a p e lid o en tre o u tr o s partos. E la o d e u a p e lid a n d o -s e da G u e r ­
ra; e l e o f o i s e m a q u e l a p r e p o s i ç ã o da, p o r s e r a m e s m a g u e r r a , e n ã o o i n s t r u m e n t o d e l a 57.

Substantiva, a guerra no Guerra é, pois, providencial, escolasticamente ins­


crita na ordem das coisas e figurada profeticamente em seu nome. No epônimo,

54. M. T. Cicero, De oratore, texte établi, traduit et annoté par François Richard, Paris, Gamier, s/d., pp. 290-291.
55. Cf. Diego Saavedra Fajardo, Empresas Políticas (Idea de un Príncipe Político-Cristiano), ed. preparada
por Quintin Aldea Vaquero, Madrid, Nacional, 1976, 2 vols., Empresa by XXVIII: “Es la prudência
regia y medida de las virtudes; sin ella pasan a ser vicios. Por esto tiene su asiento en la mente, y las
demás en la voluntad, porque desde alli preside a todas. [...] Esta virtud es la que da a los gobiernos
las tres formas, de monarquia, aristocracia y democracia, y les constituye sus partes proporciona­
das al natural de los súbditos, atenta siempre a sua conservación y al fin principal de la felicidad
política. Ancora es la prudência de los Estados, aguja de marear dei príncipe: si en él falta esta
virtud, falta el alma dei gobierno. [...] Virtud es propia de los príncipes, y la que más hace excelente
al hombre; y así, la reparte escasamente la Naturaleza. A muchos dió grandes ingenios, a pocos,
gran prudência. Sin ella, los más elevados son más peligrosos para el gobierno, porque pasan los
confines de la razón y se pierden; y en el que manda es menester un juicio claro que conozca las
cosas como son, y las pese y dé su justo valor y estimación. Este fiel es importante en el cual tiene
mucha parte la Naturaleza, pero mayor el exercício de los atos”. Cf. também Charron, “La sagesse”,
em Henry Méchoulan (org.), VÉlal baroque - 1610-1652, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin,
1985, p. 193: “Pour garder justice aux choses grandes il faut quelquefois s’en détourner aux choses
petites, & pour faire droict en gros il est permis de faire tort en détail”.
56. “Quand notre conscience nous raproche le mal que nous avons fait, cela s’appelle syndérèse ou
remords de conscience.” Bossuet, Connaissance de Dieu et de soi-mème, cap. 1, § 7. O termo, utilizado
por São Jerônimo, falando da consciência, tem larga circulação escolástica. Santo Tomás de Aquino
o aplica à consciência moral e ao princípio do julgamento moral: “Basilius dicit quod Conscientia sive
Synderesis est lex intellectus noslrí", Sumrna theol. 2a, I, 94, art. I, § 2. Ou: “Synderesis dicitur insligare ad
bonum et murmurare de maio, in quantum per prima principia procedimus ad inveniendum eljudicamus
inventa”, ibidem, 1* parte, 79, art. XII. A sindérese é uma “centelha da consciência”: por ela, mesmo
quando se abandona às paixões, o homem sabe que faz o mal. Cf. André Lalande, Vocabulaire technique
et critique de la philosophie, 5imced., Paris, PUF, 1947, pp. 1066-1067.
57. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, op. cit., p. 1718.

46
UM N O M E P O R F A Z E R

o Anônimo inscreve a economia da sua Providência: como uma causa segunda,


as ações e as palavras viciosas do personagem são, segundo a interpretação mui­
to católica, essenciais, subordinando-se à vontade da Causa absolutamente Pri­
meira, conforme o providencialismo com que no século XVII ibérico a oposi­
ção a Maquiavel define o político e o jurídico58. Apelidado de “Boca do Inferno”
graças ao efeito de sentido tirânico e violento de sua poesia, a Causa sobrena­
tural dela faz entrever que o poeta também é “boca da verdade”59.
A interpretação, descartada do exagero apologético, prescreve tais efeitos
violentos e obscenos como arte de corrigir as vontades da Cidade. Rabelo
reativa o esquema patrístico e medieval da interpretação da história, figuran­
do tipologicamente a significação do nome do poeta como alegoria factual. A
tipologia implica, dada sua Causa primeira, a afirmação de justiça e adequa­
ção transcendentes para os eventos, mesmo os mais incongruentes e injus­
tos60, confirmando o Sentido no próprio acontecer do acontecimento. Propor
crises, ruínas, decadências, fomes, pestes, guerras e sátiras como flagelo de
Deus, insondável pelos meios escabrosos com que se manifesta no tempo,
implica a justiça nos males: “escandalosa virtude”, “extremo da verdade”. A
persona do romance em que a Bahia é prosopopéia, como “Senhora Dona Bahia,
/ nobre e opulenta cidade, / madrasta dos Naturais, / e dos Estrangeiros ma­
dre”, dá testemunho do providencialismo de sua ação:

S em p r e v ê e m , e se m p r e falam ,
até q u e D e u s lh es d ep a re,
q u e m lh e s faça d e ju stiça ,
e s t a s á t i r a à c i d a d e 61.

(O C , II, p. 4 3 4 . )

58. É, por exemplo, lugar-comum em Vieira, que faz da allegoria in factis um dos princípios de sua
interpretação tipológica da história. Cf. Padre Antônio Vieira, História do Futuro, Introdução, atua­
lização do texto e notas por Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1982; ou Defesa Perante o Tribunal do Santo Oficio, Introdução e notas de Hernani Cidade,
Salvador, Livraria Progresso Editora, 1957, 2 vols.
59. A bucca delia verità italiana dos séculos XVI e XVII é uma escultura colocada em igrejas, principal­
mente em Roma, para receber denúncias, acusações, sátiras, pasquins etc. Ela revela publicamente
a verdade. Cf. Peter Burke, “A Arte de Insultar na Itália do Século XVII”, texto de aula de 21.8.1986
sobre Nova História, curso ministrado no 2" semestre de 1986, na Faculdade de Educação da USP.
60. Por exemplo, a interpretação do adultério de Davi e Betsabá por Gregório Magno, em seu Moradia,
faz de Davi, o adúltero, um inocente, e de Urias, o marido traído e morto, um culpado, segundo a
providência divina.
61. Cf. por exemplo OC, V, p. 1076, sobre a peste da “bicha” de 1686: “Ah Bahia! bem puderas / de hoje
em diante emendar-te, / pois em ti assiste a causa / de Deus assim castigar-te”. Em 10.5.1686, a

47
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Decorre, segundo a concepção, que a sátira é sanção divina dos costumes.


A mesmapersona do poema referido figura tal sanção da qualidade moral das
obras no arremate do mesmo:

Tão queimada, e destruída


te vejas, torpe cidade,
como Sodoma, e Gomorra
duas cidades infames.
[...]
Que eu espero entre Paulistas
na divina Majestade,
Que a ti São Marçal te queime,
E São Pedro assim me guarde.

(OC, II, p. 434.)

Se o castigo - fome, guerra, peste, sátira - não é natural somente, mas


pressupõe Deus como Causa, seu remédio é a penitência. Na sátira, esta vem
sempre acoplada à reciclagem da catarse aristotélica como dirigismo “peda­
gógico” próprio das práticas poéticas do século XVII62. Por isso, como a peste
e como a fome, a sátira é guerra caritativa: fere para curar. Dramatização
amplificadora de vícios, monstruosidade e mistura, é também encenação de
falas de virtudes, racionalidade e harmonia. A sua “escandalosa virtude” - a

Câmara de Salvador dirigiu o seguinte petitório ao reitor do Colégio dos Jesuítas: “A violência com
que o presente mal continua, sem os remédios humanos o poderem atalhar, nos tem desenganado
ser a causa deste mal, mais a Ira de Deus irritada com nossos pecados, do que outra alguma causa
material: Pretende este Povo alcançar de Deus Misericórdia. E para Medianeiro desta Graça (com
grande confiança e particular devoção) tem feito eleição do Glorioso Apóstolo do Oriente São Fran­
cisco de Xavier: Temos feito assento de tomar por nosso Protetor para toda vida. E fazer-lhe todos
os Anos, uma festa aos Dez de Maio com Missa cantada e Sermão aí nesta Igreja do Colégio, e
procissão pela Cidade à custa deste Conselho Quando aprovado o pedido, ressalvou-se, man-
tendo-se as precedências hierárquicas, que “[...] nenhum prejuízo ou diminuição às preeminências
e prerrogativas do nosso principal titular, o Salvador do mundo” resultavam da eleição de São
Francisco Xavier. Cf. Affonso Ruy, História da Câmara Municipal da Cidade do Salvador, Salvador,
Câmara Municipal de Salvador, 1953, pp. 165-166.
62. Cf. Juan Eusébio Nierembcrg, S. J., Causay Remedio de los Males Públicos: “Pudiéranos castigar
Dios; con pestes y hambres, con que si quedáramos reconocidos, quizá no humildes. Mas el consejo
divino ha elegido a nuestra culpa tal gênero de pena que nos haga reconocer que Dios es el Senor
de los ejércitos, que las victorias que ha tenido Espana no tanto se deben a su valor cuanto al
favor divino. Reconozcamos esto, y humillémonos”. Cit. por Francisco Murillo Ferrol, Saavedra
Fajardoy la Política dei Barroco, Madrid, Instituto de Estúdios Políticos, 1957, p. 115. Ou Dom
Pedro de Portocarrero y Gusmán, patriarca das índias e arcebispo de Tiro, Theatro Monarchico de

48
UM N O M E P O R FAZER

fantasia desatada, a obscenidade crua, a inverossimilhança programática, a


mistura horrorosa - tem a finalidade política de afetar, produzindo, persua­
dindo e movendo os afetos. A admiração estuporada do excesso e do monstro,
fim sempre buscado pela elocução seiscentista aguda, subordina-se à utilida­
de ponderada da persuasão que vícios e virtudes teatralizados podem produ­
zir sobre um público determinado, a um tempo referente e receptor da sátira.
Baltasar Gracián o confirma: “[...] poco es conquistar el entendimiento si no se
gana la voluntad”63. Como linguagem de ação, portanto, a intervenção satírica
se dá como técnica da fantasia sensibilizadora das vontades: a sátira age como
castigo que, desvelando e amplificando o mal, impõe a penitência64.
Na sátira atribuída a Gregório, uma das grandes articulações é a que opõe
mito heróico e dinheiro, nobreza de sangue e arrivismo, prudência e oportu­
nismo. A sátira é também, por isso, não um olhar exterior sobre a Cidade,
tomada esta circunstancialmente como tema de um observador privilegiado,
mas olhar da Cidade: ela inclui, em sua formulação, a mesma teologia-política
que rege o bom uso da República na teoria e no controle da natureza humana.
Muito motivadamente, a persona satírica interpreta o que vive fazendo com

Espana: “Dios es principio de toda criatura animada, de cuya voluntad penden todas las cosas; es
absoluto Senor dc esta máquina hermosa dei mundo: en él, a su arbítrio, distribuye los Impérios,
a unos los da, a otros los quita: a aquéllos en prêmio de su virtud, a éstos en castigo de sus culpas
[...] no depende de la fortuna la transmigración de los Impérios, sino meramente dei Criador
universal, que, irritado de los pecados, los castiga desolando sus domínios, sin dejar más sena de
su poder que la confusa memória a la posteridad para el escarmiento común”. Cf. Ferrol,op. cit.,
pp. 116-117. Veja-se também o que relata A. J. R. Russel-Wood, Fidalgos c Filantropos - A Santa
Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1 TI5, trad. de Sérgio Duarte, Brasília, Ed. da UnB, 1981, p.
238: “No século XVIII, a Bahia podia rivalizar com Macau como cidade da luxúria e vício. O rei
temia vivamente que a Bahia tivesse o destino de Sodoma. Na noite de 19 de março de 1721
houve uma violenta tempestade elétrica sobre a Bahia. Um relâmpago fendeu uma pedra da
varanda da Ordem Terceira do Carmo. Outro caiu sobre a janela da casa de um juiz [...] Ao saber
desses acontecimentos, D. João V escreveu ao arcebispo da Bahia sugerindo que se aplacasse a
ira do Todo-Poderoso mediante a celebração de ofícios de devoção em todas as igrejas da Bahia.
Fizeram-se também procissões de penitência”. Cf., ainda, Antonio Freire, A Catarse em Aristóteles,
Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 1982.
63. Baltasar Gracián, “Discurso XII”, El Héroe, em Obras Completas, Madrid, Aguilar, 1967.
64. Cf. Padre Márquez, Gobemador Crisliano (1612), cit. por Ferrol, op. cit., p. 117: “[...] as leis das
Repúblicas cristãs têm mais necessidade de assistência e execução de seus governantes porque são
mais azedas para a sensualidade, e faltando ao olho a esperança do prêmio e o temor do castigo,
relaxa-se a obediência da gente vulgar, tão envolvida em deleites corporais; perigo menos conside­
rável em outras Religiões, que dão mais licença aos antolhos dos cidadãos e permitem-lhes ir atrás
deles, sem mais leis que as do gosto" (grifo meu). Lembre-se o soneto Aos Caramurus já referido: “sem
mais Leis, que as do gosto quando erra” (OC, IV, p. 841) (grifo meu), verso que repete literalmente o
final do texto do padre Márquez.

49
A SÁTI RA E O E N G E N H O

que as leis positivas da Cidade sejam um efeito racionalmente proporcionado


da lei natural da Graça. Aqui se encontra uma chave do conceptismo engenho­
so nela operado com tanta arte: sua agudeza e seu artifício montam um teatro
extremamente móvel e inclusivo que postula, pela translação metafórica dos
conceitos, os pontos de falha e de falta de antigas virtudes. Ao criticar, a sátira
propõe a correção dessa falta de Bem pela verdade providencialista, articulan­
do-a na vituperatio iatina, principalmente como doutrinada por Quintiliano e
Cícero ou praticada por Juvenal, fundindo-a na cristianíssima Civitas Dei, do
que decorre seu caráter de linguagem de ação teológico-política. É pelo gêne­
ro demonstrativo que se explicita a falta do abacaxi nativista registrada por
tanta crítica na poesia atribuída a Gregório de Matos. A não ser aquela estereo­
tipada no culteranismo das metáforas vegetais e minerais dos “cravos”, “ro­
sas”, “cristais”, “rubis”, que alegorizam qualidades elevadas da alma dos me­
lhores na poesia lírica e encomiástica, somente a natureza humana é objeto da
sátira, que determina tipos regidos por um sistema rígido de normas, no qual
se desenha a oposição da usura e do ganho honesto, da prostituição e do sexo
honesto, da tirania e da justiça honesta, do disforme e do belo honesto.
No ramilhete de víboras da sátira atribuída a Gregório de Matos e Guer­
ra algo falta irremediavelmente, contudo, flor ausente de todos os buquês,
hoje em terra, em cinza, em pó, em sombra e em nada convertida: falta o
passado mesmo, singularidade de um tempo, perfume e cor de um lugar e
suas práticas. O passado é uma ficção do presente, ponto evanescente, mas
não arbitrário de sua enunciação. Com a tenuidade e a descontinuidade
implicadas na operação, trata-se de compor aqui o lugar do morto, tempo e
espaço imaginários, hoje mudos, fragmentados pelos ecos das múltiplas
vozes silenciadas para sempre que vão falando nos textos. Este lugar é o
desta escrita: lugar do morto65, monta-se aqui uma encenação em que não
se escreve nunca sobre algo supostamente visto ou dito, antes sobre modos
históricos de ver e de dizer, conforme repertórios de lugares-comuns, argu­
mentos e formas da tradição retórico-poética e suas transformações locais.
Trata-se de fazer emergir, do emaranhado dos poemas e outros discursos do
século XVII, o esboço de um funcionamento da sátira e das posições políti­
cas que distribui num espaço efetuado. Em outros termos, trata-se de evi­
denciar uma dupla temporalidade, a das regras de funcionamento dos poe­
mas conforme um lugar e um trabalho nele produzido, Bahia do século
XVII, c a das regras do funcionamento desta escrita que, sendo produzida

65. Cf. Michel de Certeau, A Escrita da História, trad. Maria de Lourdes Menezes, Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 1982, p. 56.

50
UM N O M E P O R FAZ ER

num lugar institucional para um fim predeterminado, recusa-se a traba­


lhar com categorias românticas e positivistas. Sabendo sempre do anacro­
nismo em que pode incorrer, uma vez que o anacronismo romântico é vi­
gente, o morto fala, continua falando.
Ao contrário do que algumas interpretações contemporâneas vêm propon­
do, a sátira seiscentista produzida na Bahia não é oposição aos poderes consti­
tuídos, ainda que ataque violentamente membros particulares desses poderes,
muito menos transgressão liberadora de interditos morais e sexuais. O recep­
tor dos poemas geralmente os lê movido do interesse atual apenas, neles bus­
cando a expressão ou exteriorização de um vivido psicológico sedimentado no
fundo dos textos como inconformismo político ou libertinagem moral. Rediga-
se, brevemente, que não há liberalismo no século XVII ibérico e que a noção
burguesa de “indivíduo” como autonomia abstrata e livre-concorrência está
ausente da concepção neo-escolástica da República como “corpo místico”.
A retórica da maledicência satírica vem sendo entendida, desde que
Araripe Jr. assim a entendeu, como psicologia do ressentimento, gesticulação
pessimista do mazombo fidalgo arruinado contra o arrivismo mercantil66. Na
sátira, contudo, a maledicência é um efeito semântico ou um verossímil da
ira inventado em convenções retóricas pela fantasia poética. Convenções hoje
talvez não tão facilmente discernívcis como as de outros gêneros poéticos
mais puros, mas, não obstante, convenções. A sátira dramatiza paixões, que
estão na natureza, como se escreveu; não é informal, porém, nem psicologica­
mente expressiva, pois as paixões sofrem codificação retórica, que as regula,
distribui e amplifica como outra natureza discursiva. Efetuando paixões da
Cidade, a sátira avança como discurso duplamente regrado, em que o excesso
obsceno e agressivo é contraposto à racionalidade conceituosa, árbitro dos
afetos dapersona satírica67. O que se tem de determinar, por isso, é a natureza

66. Cf. X A. Araripe Júnior, op. cit. Cf. também Alfredo Bosi, “O Leitor de Gregório de Matos”, em
Araripe Júnior, Teoria, Critica e História Literária, seleção e apresentação de Alfredo Bosi, Rio de
Janeiro/Sào Paulo, Livros Técnicos e Científicos/Edusp, 1978.
67. “Os afetos pois veementes, crescidos, e obstinados, são os que engendram, e diminuem os objetos;
eles os desfiguram, e animam; eles os contrafazem, e corrompem; eles os dividem, e confundem,
mutilam, atam; unem; e finalmente eles, arrebatando a alma por vários movimentos, são como as
bravas ondas, que agitadas dos ventos, quebram sobre as praias, aonde apenas rolam nas areias, que
logo retrocedendo, se retiram, e tornando-se para os mares no mesmo súbito instante, sobem em
montes ao Céu, e descem em vales ao abismo. Nesta revolução tempestuosa, os mesmos afetos com­
põem a sua locução das idéias, que a fantasia lhes ministra, e como a vexação se comunica com o
engenho, engenhoso é também o seu estilo.” Francisco Leitão Ferreira, Nova Arte de Conceitos, vol. II,
p. 72, cit. por Aníbal Pinto de Castro, Retórica e Teorização Literária em Portugal (Do Humanismo ao
Neoclassicismo), Coimbra, Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1973, p. 213.

51
A SÁTI RA E O E N G E N H O

da operação maledicente em fins do século XVII. Autores contemporâneos,


como Tomás Pinto Brandão, Tomás de Noronha, Frei Lucas de Santa Catarina,
em Portugal; Lope de Vega e Quevedo, na Espanha; Lord Rochester e anôni­
mos, na Inglaterra; panfletistas anônimos, na França e em cidades da Itália,
entre outros, compõem obras satíricas orientadas com tópicas e sentido se­
melhantes e não são mazombos arruinados, pessimistas, ressentidos.
Trata-se, antes, de tópica ou tópicas da invenção poética, elencos de luga-
res-comuns mais ou menos petrificados como esquemas argumentativos ge­
néricos que se reativam e particularizam num estilo engenhoso pelo investi­
mento semântico local: misoginia, crítica à simonia, glutoneria, usura e luxúria
do clero, crítica dos judeus, do dinheiro, do mundo às avessas etc. A maledi­
cência, desenvolvimento dos lugares de vituperação, propõe a desonra do ata­
cado por meio de sua desqualificação moral referida politicamente: o satiri­
zado nunca está à altura do ideal hierárquico. Lugar-comum renascentista, a
desqualificação liga-se à defesa da ordem associada à defesa da posição hie­
rárquica, pois seu pressuposto é o de que a boa ordem política implica a ma­
nutenção da hierarquia ideal68. E de observar que a maledicência efetuada
pela sátira é extensiva a todas as partes do corpo político, não sendo exclusiva
da fixação agressiva de uma delas - por exemplo, os comerciantes portugue­
ses. Estendendo-se a todas, negros e índios e mulatos, oficiais mecânicos e
letrados, comerciantes e senhores de engenho, clero e putas e soldados e go­
vernadores, desde que suas ações ponham em risco a integridade da hierar­
quia, o sentido da maledicência satírica é traduzido pela ameaça, maior ou
menor, de desintegração do corpo místico do Estado, que a sátira constitui
em membros de grupos ou de ordens sociais. Tal ameaça por vezes se corpo-
rifica em portugueses - por exemplo, os negociantes da Junta do Comércio e
suas operações monopolistas que provocam a escassez dos gêneros e a fome -, o
que não significa que a sátira seja protonacionalista, liberal, libertária, anti-
Portugal, ou que seu autor tenha uma consciência trágica e togada e fora do
lugar, cujo dilaceramento social se expressa psicologicamente como ressenti­
mento e pessimismo.
No século XVII, o estilo de que a sátira é um gênero difunde-se por países
da área mediterrânea, principalmente os da Península Ibérica, como uma koiné.
Simultaneamente artifício literário engenhoso e padrão distintivo dos dis­
cretos cortesãos, potencializa-se nas produções poéticas da época como dis­
positivo sensibilizador da correção das maneiras, da moral e da boa ordem

68. Quentin Skinner, The Foundations of Modem Polüical Thought, Cambridge, Cambridge University
Press, 1978, 2 vols., vol. I, p. 240.

52
UM N O ME P O R FAZER

política. Geralmente aludida pelos autores, uma de suas motivações é a inter­


pretação da ocasião histórica em termos escolásticos69, como artifício sensibili-
zador da virtude política da prudência. Tal estilo é apto para juntar, nos dis­
cursos, os princípios universais da teologia, com que então se teoriza o Estado,
com a “ocasião”70. Ele é apto, basicamente, porque a racionalidade conceituosa
que nele circula é metafórica, permitindo aproximar os objetos e os conceitos
mais distantes e traduzir tudo por tudo devido ao princípio analógico, substan-
cialista, que subentende as suas similitudes retóricas71. A metaforização concei­
tuosa opera ao mesmo tempo na poesia seiscentista como exercício contínuo
de lugares-comuns e como hierarquização dos conceitos. Na grande disper­
são metafórica dos textos, que aproximam e fundem conceitos extremos, sem­
pre se propõem a unificação e a unidade, retóricas, políticas e religiosas, im­
plícitas nas semelhanças. Na hierarquizada proliferação das formas que as
fazem maravilhosas, as belas-letras (não “a literatura”) são arte da unificação
programática: elas a realizam, via de regra, por meio do que nelas é dispersão
e tensão metafóricas.
Segundo a preceptiva antiga, que se mantém reciclada, a arte ensina agra­
dando. Referido à poesia seiscentista, o verbo “agradar” não nomeia, contu­
do, aquele efeito secundário decorrente da ornamentação ponderada dos dis­
cursos que nos classicismos é virtude retórica subsidiária da ordem lógica das

69. Cf. o soneto de estrutura tipológica em que se monta uma analogia de proporção: Moisés : João de
Lencaslre:: Faraó : Câmara Coutinho (OC, 1, p. 224): “Quando Deus redimiu da tirania / da mào do
Faraó endurecido / o Povo hebreu amado, e esclarecido, / Páscoa ficou da redenção o dia. / Páscoa
de flores, dia de alegria / Aquele Povo foi tão afligido / O dia, em que por Deus foi redimido; / Ergo
sois vós, Senhor, Deus da Bahia. / Pois mandado pela alta Majestade / Nos remiu de tão triste
cativeiro, / Nos livrou de tão vi! calamidade. / Quem pode ser senão um verdadeiro / Deus, que
veio extirpar desta cidade / O Faraó do Povo Brasileiro”.
70. Escolasticamente, a ocasião é uma circunstância ou um conjunto de circunstâncias que favorecem
a ação de uma causa livre. Diferencia-se da condição, pois esta se refere a qualquer causa eficiente.
Supõe-se que a ocasião atua sobre a vontade do agente de modo imediato, uma vez que remove
obstáculos interpostos em sua ação e, ainda, porque induz a vontade a cooperar posiiivamente. A
ocasião é um incentivo para a ação. No século XVII, é um conceito político, com o sentido de
“concurso de causas que abre caminho à grandeza”. Ela é, assim, instrumento da ação. Cf. F. M.
Ferrol, op. cit., p. 123. Segundo o século XVII ibérico, neo-escolástico, três causas concorrem para
fundar o Estado, conservá-lo e aumentá-lo: Deus, prudência, ocasião.
71. Cf. Aníbal Pinto de Castro,op. cit., pp. 219-220: “Todo o Universo, como ensinava a filosofia tomista,
se ordena em função da harmonia, isto é, da correspondência estabelecida entre as coisas e os
seres, criados ou possíveis. E dessa harmonia derivam todos os conceitos metafóricos que tomam
nomes diferentes, conforme a agudeza sobre que se fundamentam. Esta consiste na semelhança e
proporção que o engenho e a fantasia estabelecem entre os diferentes elementos que o entendi­
mento lhes forneceu. O resultado do seu trabalho é a harmonia entre os objetos correlatos, que
seria tanto mais sutil e sonora, quanto mais afastados aqueles fossem”.

53
A SÁTI RA E O E N G E N H O

idéias. Ao contrário, a ornamentação propõe-se como central e, com ela, o


prazer: vai-se do prazer da maravilha para a didascália, do espanto para a
reflexão, mesmo quando se trata de um prazer paradoxalmente antiprazer,
como o que se articula no tema da morte e do desengano, extremamente roti­
neiro em muita epístola moral, na lírica, na tragicomédia, nas obras sacras,
na história. Porque a codificação do deleaare não está fixada primordialmente
como prazer intelectual advindo do entendimento dos temas razoavelmente
ornamentados - os temas são tópicas muito convencionais, já conhecidas, da
tradição -, mas como prazer sensível dos procedimentos ornamentais com
que os temas são desenvolvidos. Em outros termos, no engenho da invenção e
no artifício da ornamentação.
É só com anacronismo romântico próprio de idealistas alemães que se
pode falar de “formalismo”, pois tal prazer é operação que distingue e valida
o discreto, o cortesão, como “melhor”. Mas não só: funciona também como
hiperurbanismo, linguagem culta como pedante, com que burgueses em as­
censão selam seus foros de fidalguia. Efetuada pelos jogos da fantasia poéti­
ca, a ornamentação também visa o prazer do vulgo inculto, que se compraz no
exagero, nos efeitos sensíveis e na inverossimilhança. Quando Vieira se diri­
ge ao auditório no exórdio do sermão da Sexagésima e deseja que saia desen­
ganado da pregação assim como vem enganado com o pregador, refere-se ao
gosto, então dominante, pelo artifício como prazer, que reprova com Santo
Agostinho: no púlpito, a verdadeira voz é espiritual e o sermão prevê o seu
entendimento, não a diversão pela diversão.
Neste sentido, que se pode generalizar para toda a poesia do conceito
engenhoso, a sátira também ensina algo por uma teoria da catarse, nela arti­
culada como prazer do entendimento do artifício de sua convenção e, ainda,
de seu efeito, conforme a recepção discreta ou vulgar. Assim, por exemplo,
jogando quase que invariavelmente com a peripécia aristotélica, ação cuja
consecução é subvertida por evento inesperado e oposto produtor de incon­
gruência cômica, ou com a amplificação, operação da hipérbole que efetua o
fantástico, a sátira produz inversões e exagerações das quais a antítese e o
quiasma são dois processadores sempre muito explícitos e continuamente
aplicados. A inversão contínua, semântica pelas antíteses, sintática pelos
quiasmas, bem como a exageração dos traços tipificadores do satirizado de­
vem dar prazer ao público que nelas encontra, além do prazer de reconhecer
a deformação na caricatura, também o prazer de reconhecer um desempenho
adequado da técnica da fantasia poética. Neste prazer - ou prazeres - encon­
tra-se a utilidade, oprodesse. As agudezas conceituosas juntam o útil e o agra­
dável de tal forma que o prazer cie aprender o modo pelo qual dois conceitos

54
UM NO ME P OR FAZER

distantes ou opostos são aproximados e fundidos num único gênero metafóri­


co é também aprendizagem do prazer72.
Desta maneira, as descrições satíricas de tipos e caracteres, produzidas
por tropos e figuras de inversão e exageração, são retóricas, não realistas. O
que significa que, na sátira, os traços tipificadores constituem caricaturas,
segundo as regras de um estilo engenhoso que dá prazer e que evacua toda
psicologia73. É psicológico e realista propor que a sátira é uma “crônica do
viver baiano seiscentista”, como escreve James Amado no subtítulo de sua
edição, no sentido de uma notação verista da Bahia em fins do século XVII.
Ela é construtiva das “naturezas” (indicando-se pelo termo o referencial
discursivo transformado nela, não o referente): basta observar que, por exem­
plo, clérigos, profissionais mecânicos, magistrados, mulatos e governadores
são articulados nela em posições hierarquicamente diversas, mas intercam-
biáveis entre si devido à recorrência dos mesmos motivos de estilização gro­
tesca ou fantástica, aplicáveis às diversas posições. Pode-se falarem “crônica”,
evidentemente, descartando-se o realismo explícito do termo, significando-
se as convenções de ver e de dizer de um tempo. Preceito da sátira é o de que
o destinatário reconheça o apelo racional da caricatura, pois esta é uma con­
venção. Por isso mesmo, propor seu realismo implica afirmar que ela é ape­
nas documental e exterior, lendo-se a caricatura como se fosse a realidade,
ou, ainda, entendendo-se a deformação como reflexo de uma Bahia funda­
mentalmente caricata, o que é irracional. A operação descarta a historicidade
da sátira: basta ler as Cartas e as Atas do Senado da Câmara de Salvador para
se observar a perfeita racionalidade da ordem, segundo seus agentes74.
Dada sua direção conativo-referencial, a sátira abre-se para o público e
para o distante - esta abertura implica, em termos horacianos do ut piclura
poesis nela presente como ordenação metafórica da distância da visão, sua or­
denação como misto poético em que várias partes fundidas alegorizam a es­
pessura do visível e, assim, dos vícios. Embora haja muitos índices de que a
sátira era previamente escrita ao seu consumo público, segundo transforma­
ções miméticas da tradição escrita de topoi epidíticos, sua pragmática - a re­

72. Cf. Guido Atorpurgo Tagliabue, “La Reiorica Aiistotelica e il Barocco", em III Congresso
Internazionale di Studi Umanistici, a cura de Enrico Castelli, Venezia, 15-18 giugno 1954. Aui:
Reiorica e Barocco, Roma, Fratelli Bocca Edilori, 1955, p. 144.
73. Na sátira atribuída a Gregório, isto é muito evidente na caracterização dos governadores Antônio
de Sousa de Meneses, o “Braço de Prata”, e Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, e na
caracterização de religiosos, principalmente os frades.
74. Cf. argumentação semelhante em William S. Anderson, Essays on Roman Saiire, Princeton, Princeton
University Press, 1982, p. 313.

55
A SÁTI RA E O E N G E N H O

cepção em sua maioria analfabeta - a abria para a audição, não para a leitura.
Nesta linha, certo inacabamento dela, esboçada rapidamente como um bor­
rão entendido muitas vezes como marca de sua inferioridade estilística, é
bem a sua adequação à recepção, no mesmo sentido aristotélico da adequação
dos discursos do gênero demonstrativo às grandes assembléias movimenta­
das e ruidosas75.
Os poemas teatralizam não só um tema na circunstância de sua represen­
tação, mas também seu código de recepção. Lê-los não só por um nexo temá­
tico, mas também por sua articulação pragmática, à qual os temas se subordi­
nam, permite constituir tipos e caracteres dramatizados neles. Com a
terminologia de Austin76, pode-se dizer que a sátira é dupla também como
tipologia discursiva, uma vez que apresenta discursos assertivos ou constativos
e, simultaneamente, discursos performativos. Ela representa caracteres e ti­
pos referencialmente e, ao mesmo tempo, dobra-se sobre si mesma, tomando
a própria enunciação como tema, focalizando suas regras de intervenção e,
assim, seus interlocutores. Nela, a metáfora é simultaneamente referencial e
valorativa, mimética e judicativa: a mesma performatividade julga a carica­
tura efetuada, explicitando para destinatários discursivos e receptores empí­
ricos a natureza da sua convenção.
A sátira efetua performativamente várias situações jurídicas do século
XVII português: o estudo do modo pelo qual apersona satírica representa sua
situação de enunciação, articulando-a em valores de determinada posição na
ordem social que a autorizam a falar, deve relacioná-la com a situação da
segunda pessoa e, ainda, da terceira, satirizadas no enunciado em posições
inferiores. Seu procedimento principal é a distribuição dos corpos de lingua­
gem pela hierarquia e, simultaneamente, a constituição de regras da excelên­
cia ou código de honra, cuja referência central é o Direito Canônico. Violado
por paixões, que são a contrapartida viciosa de suas virtudes alegadas, o códi­
go de honra reitera a hierarquia e faz propaganda dela, quando efetua os vícios
como ridículos, imorais e irracionais, opondo a eles o ideal de integridade do
corpo místico da República:

75. Cf. Wesley Trimpi, “Horace’s ui Piciura Pocsis: The Argument for Stylistic Decorum”, Tradilio (Siudies
in Andem and Medieval Hislory, Thoughl and Religion), New York, Fordham University Press, vol.
XXXIV, p. 33, 1978. Cf. também, do mesmo autor, no mesmo volume, “The Early Metaphorical
Uses of SKIAGRAPHIA and SKENOGRAPHIA”
76. Cf. J. L. Austin, How lo Do Things wilh Words, Oxford, Clarendon Press, 1962. Cf., ainda, Osvvald
Ducrot, “Actos Linguísticos", em Enciclopédia Einaudi, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moe­
da, 1984, vol. 2 (Linguagem-Enunciação),

56
UM N O ME POR FAZER

E ia, e s ta m o s na B ah ia,
o n d e agrada a a d u lação,
o n d e a v erd a d e é b a ld ã o
e a v ir tu d e h ip ocrisia:
s ig a m o s esta h a r m o n ia
d e tão fátu a c o n so n â n c ia ,
e in d a q u e seja ig n o r â n c ia
seguir erros c o n h ecid o s,
S eja m -m e a m im p erm itid os,
s e e m s e r b e s t a e s t á a g a n â n c i a 77.

( O C , II, p. 4 4 8 . )

Como escreve Morpurgo Tagliabue, que retoma um lugar78 hoje não muito
comum no Brasil, os instrumentos retóricos constituíram esquemas da humanitas,
do século XV ao XVII. As categorias retórico-poéticas, nas quais se fixaram cer­
tas disposições de culturas hoje unificadas como “Barroco”, especificam práti­
cas, algumas hoje tombadas em dessuetude, fundamentais para a distinção da
atividade satírica no século XVII. A Retórica se impõe programaticamente, como
lá, aqui neste trabalho, buscando adequação histórica ao objeto estudado: evitan­
do o anacronismo da reconstituição expressiva ou realista de supostas
positividades supostamente depositadas na sátira. Emoções há, obviamente, al­
gumas intensas; mas é pela articulação retórica dos poemas que se podem cons­
truir, a partir dos verossímeis e inverossímeis que efetuam, as regras de produ­
ção dos afetos e imensidades dramatizados neles; entre eles, a obscenidade,
também codificada. Aliás, a má reputação da sátira , que a faz objeto do desejo
como discurso a ser censurado pudibundamente como indecência ou avançado
entusiasticamente como contestação, não leva em conta o básico de sua
preceptiva: a sátira não está, de modo algum, contra a moral. Ocorre nela, é certo,
alguma desproporção entre a racionalidade que prescreve e o desenvolvimento
obsceno e escabroso dos temas. Algo semelhante se encontra nos Exercícios Espi­
rituais, de Loyola, como método de educação da vontade, propondo a represen­
tação sensível e muitas vezes horrível dos objetos da meditação. É interessante
lembrar, com Michel de Certeau, que Inácio de Loyola,Teresa de Ávila e muitos
outros quiseram entrar para uma ordem “corrompida” não porque simpatizas­

77. Cf., ainda, OC, I, p. 205: “Porém Sua Majestade,/ Qual Príncipe Soberano, / que não se indigna de
humano/ sem dano da dignidade: / conhecida esta verdade,/ que é verdade conhecida, /fará justiça
cumprida, / para que se lhe agradeça, / que o mau nu própria cabeça / traga a justiça aprendida”.
78. Cf. Guido Morpurgo Tagliabue, op. cit., p. 128.

57
A SÁTI RA E O E N G E N H O

sem com a corrupção, mas porque esses lugares quase desfeitos, de abjeção e
prova, como em certo sentido poderíam ter sido os “desertos” para onde partiam
os monges a fim de combater os maus espíritos, como lugares que não garantem
a salvação nem a identidade, representavam a situação efetiva do Cristianismo
contemporâneo deles79. Contraponto: ocupar-se do vil, do ínfimo e do sórdido
como tática e estratégia de outra instauração é também o movimento moral
encontrável na sátira. Nela, a obscenidade produz monstros que ilustram a
normatividade da Lei. Movimento contraditório, aparentemente: se a virtude é
por definição racional, o que significa a intervenção irada da persona satírica,
quando efetua na sua indignação a ausência de racionalidade na Cidade? Signi­
fica, aparentemente, uma palavra virtuosa, que corrige - mas, se é irada, como é
virtuosa?80Isto, tanto quanto a obscenidade, está previsto pela amplificação re­
tórica da elocução, em função do delectare, como se vê ainda neste capítulo e no
capítulo IV.
A sátira seiscentista, prudente comédia das punições, obedece a regras preci­
sas, que a fazem funcionar, como na Vida escrita pelo licenciado Rabelo, como fei­
xe poético de relações anônimas de forças da Cidade. Está prevista institucional­
mente, uma vez que, conforme a tradição retórica reciclada, cabe aos mimos
etólogos ultrapassar a medida, cair na obscenidade e propor a virtude81:

[...] é já v e l h o e m P o e t a s e l e g a n t e s
o ca ir e m to rp eza s se m e lh a n te s.

( O C , I, p. 1 5 5 .)

Iludir a expectativa, zombar do caráter de outrem, ironizar o próprio,


usar de caricaturas, dissimulação e duplo sentido, fingir ingenuidade dizen­
do asneiras são os gêneros que fazem rir82. Reduzidos como gêneros, os sar­
casmos, as imprecações, as facécias, as burlas, as ridicularias, as jocosidades
de coisas e de palavras, as obscenidades e as agressões verbais são ilimitados
como relações de espécies na recepção. Ler a sátira segundo a tradição retóri­

79. Michel de Certeau, op. cil., p. 43.


80. Uma vez que a indignação é indigna, pois apaixonada. Em outros termos, a persona satírica fala
excessivamente contra os excessos: contraditoriamente, portanto. Cf. William S Anderson, “Seneca’s
Discussion of Anger”, op. cil. Cf. também Sêneca,De ira em Traitésphilosophiques, trad. par François
et Pierre Richard, Paris, Garnier, 1955, vol. I.
81. M. T. Cicero, op. cit., pp. 287-288. Na Antigüidade, os mimos eram pequenas peças muito cruas,
contendo cenas obscenas e grosseiras e máximas morais de tom elevado. O nome de etólogos (no
sentido de “tratadistas de costumes”) também era reservado aos bufões (scurrae) que, pelo riso,
vituperavam vícios.
82. M. T. Cicero, op. cit., pp. 316-317.

58
UM N O ME POR FAZER

ca rearticulada no século XVII consiste em estabelecer situações de aplicação


e difusão de tais gêneros, analisando-se a codificação moral de seus efeitos.
A referência da sátira não é postulada fora do funcionamento de um tipo
(ou tipos) e de uma convenção retórica no discurso poético8384. O que hoje in­
forma sobre modos codificados de representar e interpretar e não sobre obje­
tos positivamente dados nas representações. Exemplar, nesta linha, é o gêne­
ro de poema satírico genericamente moralizante que se faz comoparemiologia
ou desenvolvimento narrativo-descritivo de provérbios, numa transferência,
para a poesia, do conceito predicável fartamente desenvolvido pela oratória
sacra, sobretudo a demonstrativa e a deliberativa, dos séculos XVI e XVII.
Codificando tópicas e procedimentos conceptistas, Baltasar Gracián dá como
exemplo de crisis juiciosa as qualificações proverbiais que participam igual­
mente da prudência e da sutileza. Segundo ele, o artifício consiste em um
juízo profundo, em uma censura recôndita, nada vulgar, já dos erros, já dos
acertos. Tais conceitos têm muito de satírico e algo de sentencioso, mas a rara
observação e a qualificação judiciosa prevalecem neles84. Como exemplo,
Gracián transcreve composição do padre Dom Miguel de Dicastillo, do seu
Aula de Diós, Cartuja Real de Zaragoza85. O poema discorre sobre as falsas
opiniões do mundo, ponderando sobre elas:

E l parlero se da por elocuente,


el temerário pasa por valiente,
el rígido por justo,
el lascivo por hombre de bon gusto,
y el que es insolente
pasa en nuevo lenguaje por coniente.
La mentira es ingenio, y agudeza,
la sátira, y el chiste sacudido,
y su autor es jovial y entretenido,
la humildad es bajeza,
pundonor la venganza,
la afectada lisonja es alabanza
la cautela es prudência,
y el artificio dei astuto es ciência.
Llámase sanlidad la hipocresia,

83. Cf. Paul Zumthor, F.ssai de poélique médiévale, Paris, Seuil, 1972, pp. 134-137.
84. Cf. Baltasar Gracián, “Discurso XXVIII - De las Crisis Juiciosas”, Agudezay Arte de Ingenio em
Obras Completas, Aladrid, Aguilar, 1967, pp. 370-376.
85. Idem, p. 371.

59
A SÁTI RA E O E N G E N H O

el silencio ignorância,
d valor arrogancia,
la prodigalidad, domure,
el ser vicioso es gala,
y el no seguir esta opinión desaire e le .

Muito prosaico, o poema de Dicastillo é um rol de sentenças morais do


gênero contemptus mundi, denunciando a inversão dos valores, tema muito
caro ao desengano seiscentista. Sabe-se que Bernardo Vieira Ravasco dirigiu o
seguinte poema por consoantes forçados ao irmão, o padre Antônio Vieira:

Se q ueres v er d o M u n d o u m n o v o M a p a
O ite n ta a n o s, a ten ta d esta cep a
p o r o n d e e m r a m o s a c o b iç a trepa
e e m a r a n h a d a faz d o tr o n c o lapa.
M o r d e c o m d en te s, q u e n ão te m ca papa
c o m a lín g u a fere, c o m a m ã o d ecep a
so ld a n d o o p o sto , liv re de carcpa
q u e d e ta r d e , e m a n h ã r a iv o s o rapa.
O s o lh o s d e á g u a , as fa ces d e tu lip a
e cada u m d o s p e s d e p au g arlop a
a boca g ra n d e, o corp o de c h a lu p a
A b o fé m u i t o , e m u i t o p o u c a tripa
c a m i n h a M u s a , p o r q u e a t u d o topa
é A p a, Hpa, Ipa, O p a, U p a ' \

Por consoantes forçados - “apa, epa, ipa, opa, upa” - que na época são
codificados como jocosos ou cômico-burlescos, o soneto de Bernardo mantém
a estrutura definicional ou sentenciosa do poema citado por Gracián. A res­
posta de Vieira é outro soneto com os mesmos consoantes, mas decididamen­
te moral:

S ob e B e rn a rd o da E te r n id a d e ao M a p a
d eixa do v elh o A d ã o a m ortal cepa
p e lo L e n h o da C r u z ao L m p í r e o trepa
c o m e ç a n d o e m B e l é m n a p o b r e L a p a . 68

86. “Soneto dc Bernardo Vieyra Ravasco secret. do Estado do Brasil a seu Irman o padre Antonio
Vieyra consoantes forçados”, Poesias de Gregorio de Manos. Nota de Vale Cabral - “Cópia feita cm
Évora pelo dr. Lino de Assumpção em maio de 1989”. Cofre 50, Códice 56, Seção de Manuscritos da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

60

i
UM N O M E POR FAZER

M a i s q u e R e i p o d e ser, e m a i s q u e P a p a
q u em d e seu coração vício s d ecep a
q u e a g ren h a d e S an são, tu d o é carepa
e a g a d a n h a d a m o r t e t u d o rapa!
A flor da v id a , é co r d e tu lip a
t a m b é m d o s se co s a n o s é garlop a
q u e co rta , c o m o ao m ar, corta a c h a lu p a
N ã o h á m i s t e r q u e o f e r r o c o r t e a t r ip a
S e n a p a r l e v i t a l já t u d o t o p a
E m A p a , e p a , i p a , o p a , u p a * 7.

A solução do soneto atribuído a Gregório de Matos é melhor, pois condensa


o intento moralizante da crisis juiciosa na agressividade maledicente dos ver­
sos, articulados como variação disfórica dos topoi da virtude. Referidas todas
as definições a tipos vis e à vileza de suas ações, as rimas jocosas coletadas no
último verso traduzem ironicamente o conteúdo da tripa vazada pelo sujeito
discursivo no poema, mimetizando com obscenidade a sonoridade do ato in­
decente, “Em apa, em epa, em ipa, em opa, em upa”:

N e s t e m u n d o é m a i s r ic o o q u e m a i s r ap a;
Q u e m m a i s l i m p o se fa z t e m m a is carep a;
C o m s u a l í n g u a , a o n o b r e o v il d e c e p a ;
O v e lh a c o m a io r se m p r e te m capa.
M o stra o p a tife da n o b reza o m apa;
Q u e m t e m m ã o d e a g a r r a r , l i g e i r o tr e p a;
Q u e m m e n o s falar p o d e , m a is increpa;
Q u e m d i n h e i r o t iv e r , p o d e s e r P a p a .
A flor b a i x a se in c u l c a p o r Tu lip a;
B e n g a la h o je na m ã o , o n te m garlopa;
M a i s is e n t o se m o str a o q u e m a is ch u p a ;
P ara a t r o p a d o t r a p o v a z o a t r ip a ;
E m a is n ão digo; q u e a M u sa topa
E m a p a , e m e p a , c m i p a , e m o p a , e m u p a ss.87

87. “Soneto do padre Antonío Vieyra. Em resposta ao antecedente de seu irman pelos mesmos con­
soantes”, op. cit. na nota 86.
88. Cf. Antônio Dimas, “Gregório dc Mattos Guerra ao Português”, em Roberto Schwarz (org.), Os
Pobres na Literalura Brasileira, São Paulo, Brasiüense, 1983. Dimas demonstra bem como a estrutura
sintática do soneto diagrama posições sociais extremas - por exemplo, em “Bengala hoje na mão,
ontem garlopa”. A interpretação do soneto como ataque a portugueses comerciantes torna-se im­
provável, contudo, quando o ataque à corrupção deles é generalizado como oposição política
antimetropolitana.

61
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Independentemente de sua qualidade, contudo, os poemas são indicativos


da intensa circulação, que se estende no Brasil até às Academias do século
XVIII89, das tópicas elencadas por Gracián, como exercício poético do enge­
nho ou certame poético de letrados promovidos, por exemplo, pela Compa­
nhia de Jesus em seus colégios. Sua referência, como se escreveu, é produzida
por convenção retórica, como a das sentenças judiciosas e a das rimas jocosas,
e não é extradiscursiva. Basta observar, para tanto, a indefinição dos prono­
mes - “Quem mais limpo...” etc. - ou a generalidade dos tipos - “o velhaco”,
“o patife”, “a flor baixa” etc. - articulados, por sua vez, num presente atemporal
- “é”. Se isto é válido para poemas como os referidos, que na produção satíri­
ca atribuída a Gregório de Matos e Guerra são relativamente poucos, quase
sempre é a situação referencial efetuada pelo poema e o contexto discursivo
de sua comunicação que conferem a ele um sentido virulento e crítico.
A mistura satírica não decorre da violência metonímica, apenas, que jus­
tapõe nos poemas referências recortadas de diversos discursos contemporâ­
neos, mas também da tensa coexistência da oralidade e da escrita neles. Ela é,
aliás, uma questão difícil. Várias diacronias se imbricam nela e algumas con­
siderações podem ser avançadas.
Hoje, têm-se textos compilados no século XVIII sem indicação dos crité­
rios que presidiram à sua coleta. Como se escreveu, não se sabe se foram co­
lhidos da circulação oral anônima ou se transcritos das legendárias “folhas
avulsas” que se diz terem corrido na Bahia em fins do século XVII. Supondo-
se por instantes a unicidade da sua autoria, quais poemas foram escritos ou
oralizados no momento de sua produção? Se escritos, mimetizariam padrões
orais, como o dos diálogos dramáticos de muitos deles, e o fariam regrados
somente por critérios do decoro interno? Se oralizados, também mimetizariam
padrões da escrita, regrados por modelos mnemônicos, por exemplo?

89. Indicando a longa duração das tópicas paremiológicas, encontra-se, numa das sessões da Acade­
mia dos Esquecidos, realizada em continuação à Conferência do coronel José Pires Carvalho, em
21 de janeiro de 1725 , um “soneto burlesco” péssimo, de autor anônimo, que desenvolve o “Primei­
ro Assunto”: “Diógenes buscando com uma luz nas horas do dia um homem na Praça de Atenas”,
tema típico da diluição setccentista das agudezas do século XVII: “Diógenes faminto, pouca tripa /
Infrutífero tronco, inútil ccpa / Parto da fome, emprego da carcpa / Ilabitador do casco de uma
pipa. / A luz que um garabato [ste] participa / Em Atenas achar um homem increpa / Corre Praças,
vê becos, muros trepa / Iguais ao Panteon de Marco Agripa. / O Painel da pobreza, ocota capa [ste]
/ Que a escudela quebrou, fez das mãos copa / Quem cá o introduziu e fez de chapa. / Se na corte
da Grécia, homem não topa, / E capaz de não ver Mundo no Mapa / Nem no Bairro da Alfama uma
cachopa". Cf. José Aderaldo Castello, O Movimento Acadcmicisla no Brasil: l 641-1820-1S22, São
Paulo, Conselho Estadual de Cultura, Comissão de Literatura, 1969, vol. I, tomo 4, p. 191.

62
UM N O ME POR FAZER

Poemas de outros gêneros, líricos, épicos, encomiásticos, principalmente


os últimos, têm destinatários que referem letrados do governo, como o Conde
do Prado, o governador Matias da Cunha, o desembargador Dionísio Ávila
Vareiro, o secretário Bernardo Vieira Ravasco, o desembargador Pedro Unhão
de Castelobranco, ou do clero, como o arcebispo João da Madre de Deus,
entre outros. Não se sabe se originalmente escritos ou oralizados, codificam-
se segundo padrões da cultura letrada, muito convencionais, como referências
mitológicas clássicas, metaforização conceituosa e aguda, citações de Camões,
Góngora, Quevedo, Sá de Miranda, Jerônimo Baía, Francisco Rodrigues Lobo,
Garcilaso de La Vega e outros, além de lugares-comuns do encômio. Tanto
pelo gênero quanto pela destinação prescrita no gênero, evidencia-se neles o
padrão da escrita, escritos por um ator letrado para a leitura de personagens
letradas. Contrastivamente, aplicando a caricatura de tipos para referir pes­
soas do local, a sátira dirige-se sempre a um público que ela fantasia iletrado,
tematizando os discursos locais em sua forma mista e aberta. A anedota sobre
a viola de cabaça e as andanças do doutor Gregório de Matos pelo Recôncavo,
aplicadas por Rabelo ao retrato, além da caracterização que faz do seu perso­
nagem como “consumado solfista”90, indicam a improvisação oral, do gênero
mote e glosa, principalmente nos poemas de teor obsceno produzidos “ao gê­
nio dos sujeitos”.
A memória tem outro treinamento no século XVII baiano, bastando lem­
brar as técnicas mnemônicas eficientíssimas da Companhia de Jesus. A com­
posição oral de poemas longos, como é o caso de inúmeros romances atribuí­
dos a Gregório de Matos, era então prática corrente. Da tradição medieval, os
romances montam-se por justaposição de lugares-comuns de tipos e situa­
ções narrativas, evidenciando que era relativamente simples sua combinatória
numa trama típica como glosa de um mote determinado na ocasião. Drama­
tizando o referencial dos discursos locais segundo tais lugares e situações, a
sátira se faz como estereotipia de estereótipos: nela se recicla uma cultura
paradigmática, no dizer de Lotman91, em que tudo está de alguma forma já
dito e em que a inovação só é pensável como rearticulação de fórmulas da
tradição. Nela, assim, o tradicionalismo não é somente o das virtudes herói­
cas postuladas pelapersona, mas, antes de tudo, do próprio léxico medieval e
estereotipado, isomorfo do plano do conteúdo. A própria formulação do ro­
mance, sua divisão de versos iniciais em que a persona, o personagem satírico,

90. Cf. Rabelo, “Vida do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório de Matos e Guerra”, em James
Amado, op. cil., vol. VII, pp. 1706-1709.
91. Cf. Iuri Lotman, Sémaniique du nombre et lypes de culiure, Paris, Seuil, 1968.

63
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

fala como um arauto que anuncia publicamente o que tem a dizer, incorpo­
rando ao ato de fala um público produzido nele, evidencia a previsibilidade
do anúncio: apersona vai falar do falado, que é a medida do falável. Esta circu­
laridade de código é que faculta os procedimentos da metonímia, pelos quais
a inclusão e a justaposição de mais um retalho de fala estão previstas. A sátira
é estruturalmente aberta e, no caso em questão, a abertura faz dela uma for­
ma da oralidade e da audição, segundo a temporalidade curta da praça e das
ruas. A própria generalidade da caracterização dos tipos, suficientemente
esquemática para adaptar-se criticamente a pessoas de várias posições, indica
não uma falta de acuidade de observação “realista”, mas a reciclagem fácil92.
Tem-se hoje, quando ainda se é moderno, o hábito de ler esses poemas
com os olhos da modernidade, que são os nossos: ao fazê-lo, buscamos neles a
experiência de uma originalidade radical da letra, movidos que somos pela
estetização da experiência estética como esfera autônoma, negatividade e
promessa de felicidade utópica. Falamos, por exemplo, da “inventividade”
ou da “ruptura” e mesmo da “revolução” de tal metáfora ou poema. Talvez
nada fosse mais estranho à poesia satírica que correu em Salvador em fins do
século XVII que essa estetização, pois essa poesia é, antes de tudo, uma inter­
venção que produz um rosto anônimo em que alguém se reconhece: a “popu­
lação”, rusticamente aguda, com um gosto acentuadíssimo por pompas, apara­
tos, divertimentos e duplo sentido das palavras, que a sátira cuida de atender,
em sua linguagem excessiva, agudamente rústica, criticando-lhe os excessos.
Como escreve Zumthor para a Idade Média, também os poemas satíricos
seiscentistas funcionam em condições teatrais: como comunicação entre um
cantador e seu auditório93, tornando-se obras no ato da sua atualização oral. A
oralidade, que hoje lemos nos textos, implica o tempo curto da praça e da rua,
como foi dito, que é observável, por exemplo, nas variantes dos códices. Isto
também quer dizer que a sátira aplica dispositivos para simular o espaço pú­
blico do “bem comum” na formulação oral: ela é regulada em termos do m
picturapoesis horaciano, que implica o cálculo das distâncias a serem tomadas
para a sua recepção adequada por meio da maior ou menor abertura dos pro­
cedimentos descritivo-narrativos. Comum, por exemplo, é a formulação dra­
matizada da enunciação, cuja mobilidade diagrama as distâncias da emissão
de vozes. Além dessas distâncias espaciais, a polifonia esboça a distância hie­
rárquica das falas94.

92. Cf. Paul Zumthor, Essai de poéliquc médiévale, op. cit., p. 39,
93. Idem, p. 37.
94. Será mais improvável pensar que alguns poemas tenham sido compostos oralmente seguindo pa­
drões da escrita? A prática muito difundida do mole e glosa indica a permanência da oralidade

64
UM NO ME P O R FAZER

A oralidade está prevista, por exemplo, na técnica da diatribe, que nesse


corpus tem várias realizações, como a dos sonetos dialogados cujas didascálias
informam “As duas mulatas presas finge o poeta, que visita nestes dous sone­
tos interlocutores. Fala com a mãe” e “Fala o poeta com a filha”95. Dramática,
a sátira também articula o oral em quadros de tragicomédia em que ocorrem
diálogos, como os do poema em que falam Fonseca, Lima, Estrela, Chica,
discutindo a fuga de Ilária, mulata:

L im . - C h ic a , q u e é d e Ila r in h a ?
d iz e , n eg ra d o d iab o.
Vai v ê -la , s e n ã o te u rab o
p agará, p o r vid a m in h a ;
C h ie . - E u n ã o sei da m u la tin h a ,
n e m m e e n t e n d o c o m p ap éis:
q u e m d e u c in q ü e n ta m il-réis
e d e v e de ter em casa
p o r q u e a q u i n u n c a fez vaza.
L im . - O p u to n a , isso d izeis?

( O C , IV, p. 1 0 8 0 . )

nessa poesia; contudo, torna-se difícil determinar a circunstância da glosa, se foi produzida por
escrito imitando padrões ou da escrita ou da oralidade, se foi produzida oralmente imitando os
mesmos padrões. A anedota contada por Rabelo sobre Gonçalo, filho de Gregório e de dona Maria
dos Povos, proibido pela de mãe de pegar da pena sob ameaça de maldição, é sugestiva. O rapaz diz
a quem lhe dá o mote “Com que, porque, para que”: “Pegai vós da pena, porque a maldição de
minha Mãe parece que não me proíbe fazer versos, e sim pegar na pena para os escrever”, fazendo
a glosa: “Disse Clóri, que me amava / para o intento, que tem, / o qual não disse a ninguém, / nem
o porque declarava: / eu então lhe perguntava / com que gênero de fé, / suspensa a Dama se vê, /
que como nada respondeu, / não pude saber o seu / com quê, porquê, para quê”. Cf. Licenciado
Manuel Pereira Rabelo, “Vida do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório de Matos e Guerra",
em James Amado (org ), op. c i l . , vol. VII, p. 1720.
95. “As duas mulatas presas finge o poeta, que visita nestes dous sonetos interlocutores. Fala com a
mãe" (OC, V, p. 1171): “Perg. Dona Secula in seculis Ranhosa, / Por que estais aqui presa, Dona
Paio?/Resp. Dizem, que por furtar um Papagaio: / Porém mente a querela maliciosa. / Perg. Estais
logo por ladra, e por gulosa: / Não vos lembra o jantar de Fr. Pelaio? / Resp. Então traguei de carne
um bom balaio, / e de vinha uma selha portentosa. / Perg. Para tanto pecado é curta sala, / Ide para
a moxinga florescente, / Onde tanta vidrada flor exala. / Resp. Irei, que todo o preso é paciente; /
Porém se hoje furtei cousa, que fala,/' Amanhã furtarei secretamente”; / e “Fala o poeta com a filha”
(OC.V.p. 1172): “Perg. Bertolinha gentil, pulcra, e bizarra,/ Também vos trouxe aqui o Papagaio?
/ Resp. Não, Senhor: que ele fala como um raio, / E diz, que minha Mãe lhe pôs a garra. / Perg. Isso
está vossa Mãe pondo à guitarra, / E diz, que há de pagá-lo para Maio. / Resp. Ela é muito animosa,
e eu desmaio, / Se cuido no Alcaide, que me agarra. / Perg. Temo, que haveis de ser disciplinante /
Por todas estas ruas da Bahia, / E que vos há de ver o vosso amante. / Resp. Quer me veja, quer não:
estimaria, / Que os açoutes se dêem ao meu galante, / Porque eu também sei ver, e vê-lo-ia”.

65
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

A oralidade está representada também em vários poemas compostos por


epílogos, como o que começa:

Q u e m d e u à P e m b a f e i t i ç o s ? .................. M e s t i ç o s
E q u a is s ã o o s s e u s o b j e t o s ? ....................P r e to s
Q u a is d e l e s l h e s ã o m a is g r a t o s ? ..........M u la t o s .
É lo g o d e c ã e s e g a t o s
a P em b a p o r seu d e sd o u r o ,
p o is lh e v ã o s o m e n te ao c o u r o
M e s t i ç o s , P r e t o s , M u la t o s .

(OC, VI, p. 1430.)

Na enunciação interrogativo-perlocucionária, a pergunta constitui o desti­


natário como personagem capacitada para responder segundo o sentido ironica­
mente selecionado; na fala assertivo-constativa, enuncia-se como resposta algo
já contido na interrogação e que a ratifica, redupltcando-a em eco: “feitiços?
Mestiços; objetos? Pretos; gratos? Mulatos” etc. E coro, terceira voz ou vozes como
análise judiciosa que relaciona enunciados interrogativos e afirmativos em sua
enunciação prescritiva, propondo o epílogo como sentença irônica.
A maior parte dos sonetos da edição James Amado - líricos, satíricos,
encomiásticos, burlescos etc. - evidencia o padrão da escrita, ao contrário dos
romances, produção mais numerosa, cuja linguagem sincopada, com quadros
descritivo-narrativos justapostos como cenários em que se encaixam diálogos,
apresenta-se como mímesis de ritmos orais. O corpus da edição James Amado
tem 217 sonetos de metro italiano96. Deles, 206 são bastante convencionais
quanto ao esquema de rimas, seguindo os de Garcilaso, Camões, Quevedo e

96. Ou 218, se se considera a inserção, por falha de paginação no volume V, do soneto que começa
"Inda que de eu mijar tanto gosteis”, que se encontra no volume VI, p, 1334. Apresentam um
sistema de rimas bastante convencional: a) Do tipo ABBA/ABBS/CDC/DCD, clássico nas
preceptivas dos séculos XVI e XVII, 162 sonetos.
b) Do tipo ABBA/ABBA/CDE/CDBjomum na lírica de Camões, 45 sonetos-entre eles. a belíssima
imitação de Garcilaso de La Vega e Góngora, “Discreta, e formosíssima Maria”. “Discreta, c
formosíssima Maria,/Enquanto estamos vendo a qualquer hora / Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos, e boca o Sol, e ü dia: / Enquanto com gentil descortesia / O ar, que fresco Adônis
te namorajl Te espalha a rica trança voadora, / Quando vem passear-te pela fria: / Goza, goza da
flor da mocidade, / Que o tempo trota a toda ligeireza, / E imprime em toda a flor sua pisada. / Oh
não aguardes, que a madura idade / Te converta em flor, essa beleza / Em terra, em cinza, em pó,
em sombra, em nada” (OC, IV, p. 659).
Cf. também Garcilaso de ia Vega, Obrai, 5. ed., Prólogo de Antonio Marichalar, Buenos Aires,
Espasa-Calpe Argentina, 1951, p. 150: “En tanto que de rosa y azuccna / se muestra la color en
vuestro gesto, / y que vuestro mirar ardiente, honesto, / enciende al corazón y lo refrena: / y en

66
U M N O M E POR F A Z E R

Góngora. Os onze restantes se fazem como variáveis do padrão. Tipicamente


conceptistas, como reiteração de padrão retórico-poético renascentista, que pre­
vê a estilização e a paródia de suas formas altas, os sonetos apresentam formula­
ção sintática mais elaborada, recorrendo principalmente ao hipérbato e ao
quiasma. Lírico-amorosos, lírico-religiosos, encomiásticos, burlescos, satíricos
(como sátira genérica de vícios; como sátira de tipos referidos a pessoas locais;
como paródia da lírica), diferem bastante da linguagem dos romances, que é mais
“simples”, aproximando-se dela, contudo, nas composições dialogadas.
Os romances contêm a redundância própria da oralidade, geralmente não
encontrável nos sonetos, dada a estrutura de demonstração destes: montam um
intertexto pelas glosas e expressões estereotipadas que se repetem no poema
particular ou de poema a poema. Têm também formulação sintática menos
complexa, como se escreveu, orientando-se pela prescrição retórica da clareza:
“Quero das culteranias / hoje o hábito enforcar”, diz a persona em um deles.
São, por isso, muito imediatos, como poesia quase que “de gramática”, com
pouca ornamentação e índices freqüentes do destinatário. Neles, os quatro
primeiros versos de cada estrofe, seguidos de pausa representada na escrita por

tanto que el cabello, que en la vena / dei oro se escogió, con vuelo presto, / por el hermoso cuello
blanco, enhiesto, / el viento mueve, esparce y desordena: / coged de vuestra alegre primavera / el
dulce fruto, antes que el tiempo airado/ cubra de nicve la hermosa cumbre. / Marchitará la rosa el
viento helado, / todo lo mudará la edad ligera, / por no hacer mudanza en su costumbre”.
E, ainda, D. Luís de Góngora, Recopilación, Obras Completas, Prólogo y notas de Juan Mille y
Gimenez y Isabel Mille y Gimenez, Madrid, Aguilar, 1972, p. 447: “Mieniras por compelir con lu
cabello, / oro brunido el Sol relumbra en vano, / mieniras con menosprecio en medio el llano / mira tu blanca
frente al hlio bello: / mientras a cada labio, por cogello, / siguen más ojos que al clavel temprano, / y
mientras triunfa con desdén lozano / de el lucienie cristal lu gentil cuello; / goza cuello, cabello, labio y
frente, / antes que lo que fué en tu edad dorada / hlio, clavel, cristal lucienie / no solo en plala o viola
troncada / se vuelva, mas tú y ello juntamente / en tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada”. Cf.
também Góngora, op. cit., p. 450, o soneto que começa “Ilustre y hermosíssima Maria”.
c) Com tercetos ABA/ABA, repetindo-se rima e termos dos quartetos, dois sonetos, tratando-se de
variações do lugar-comum escolástico do “todo contido na parte”. A repetição de rima e termos,
em ambos, é devida ao binarismo da demonstração analógica que opõe c identifica “todo” e “par­
te . Encontram-se no vol. I da edição de James Amado, páginas 43 e 44: “Entre as partes do todo a
melhor parte” e “O todo sem a parte não é todo”.
d) Com tercetos CDD/CDD, dois sonetos (OC, III, p. 679; OC, VI, p. 1536).
e) Com tercetos CCC/CCC, um soneto (OC, IV, p. 841). É o que critica os Caramurus: “Um calção
de pindoba a meia zorra”.
f) Com tercetos CDE/DCE, um soneto (OC, IV, p. 853).
g) Com t e r c e t o s CDC/CCC, d o i s s o n e t o s (OC, IV, p . 8 9 1 ; OC, V I , 5 5 9 ) . p . 1 5 1 9 ) .
h) Com tercetos CDE/DED, um soneto (OC, V, p. 1206). É o que ironiza os sebastianistas, propos­
tos como “Bestianistas”.
0 Com quartetos AAAA/AAAA e tercetos convencionais CDC/DCD, um soneto (OC, VII, p. 1638).

67
A SÁTI RA K O ENGF. NHO

dois-pontos ou ponto-e-vírgula, têm a funcionalidade oral do exórdio ou pró­


logo. Como na oratória ou no teatro do século XVII, nos quatro primeiros ver­
sos a persona apresenta-se como um ator em cena e, fazendo pequeno resumo
ou consideração do tema, orienta o sentido para a recepção. Após o exórdio,
corre a narração, geralmente muito “solta”, sem conectores lógico-temporais,
composta como justaposição de quadros e cenas. Estes, como se escreveu, fun­
cionam como cenário de diálogos muito vivos, que são uma expansão
metalingüística do tema ou temas apresentados no exórdio. O verso de medi­
da velha faz a narração e os diálogos fáceis de memorizar. Padrões fixos e mui­
to redundantes indicam que um dos procedimentos principais de sua compo­
sição consistia em alinhar fragmentos de discursos sobre uma trama típica,
constituída por um conjunto de tópicas, montando-se muitas vezes uma rela­
ção mais ou menos exterior entre os fragmentos, na seqüência temporal do
discurso, mas não, necessariamente, na sua conseqüência.
Outro gênero de composição bastante numeroso na produção atribuída a
Gregório de Matos é a décima: dez versos redondilhos, divididos em 4, 3, 3,
geralmente, funcionando os quatro primeiros como consideração ou apresen­
tação do tema, os três seguintes como seu desenvolvimento e os três últimos,
por vezes os dois últimos, como espécie de arremate do exposto. Por exemplo:

N ã o v o s p u d e m erecer,
p o rq u e n ã o p u d e agradar,
m a s e u h e i d e m e v in g a r ,
C a t o n a , c m m a is v o s q u e r e r :
v ó s sem p re a m e aborrecer
c o m ó d i o m o r t a l, e a tr o z ,
e e u a s e g u i r - v o s v e lo z :
se s o is v e r e m o s e n f im
m a is f ir m e e m f u g ir - m e a m im ,
q u e e u e m s e g u ir - v o s a v ó s .

( O C , V I, p. 1 4 0 4 .)

Tanto décimas quanto romances compõem-se, como foi dito, com frag­
mentos de discursos repetidos em vários poemas. Por exemplo, padrões como:

H á cousa como: “ H á c o u s a , c o m o v e r o só M a n d u ” , “ H á c o u s a c o m o v e r u m P a ia iá ” ;
Senhor, Senhora: “ S e n h o r s o ld a d o d o n z e l o ”, “ S e n h o r c o n f r a d e d a b o t a ” , “ S e n h o r a C o ta
V ie ir a ” , “ S e n h o r a d o n a f o r m o s a ” ; “ S e n h o r a D o n a B a h i a ” ; Valha o diabo: “ V a lh a o d ia b o
o c o n c e r t o ” , “ V a lh a o s d ia b o s o s c a j u s ” ; Dou ao demo: “ D o u a o d e m o o s i n s e n s a t o s ” ,
“ D o u a o d e m o a g e n t e a s n a l ” ; Adeus: “A d e u s , A m i g o P e d r a l v e s ” , “A d e u s , m e u

68
UM NO ME POR FAZ ER

P e r n a m e r im ” , “A d e u s , p r a ia , a d e u s , C i d a d e ” ; Ai, quem : “A i, q u em so u b era q u erer-te”,


“A i, q u e m ta l b e m m e r e c e r a ” , “A i, S e n h o r , q u e m a lc a n ç a r a ” ; D iz e m que, J á que : “Já que
r e q u in t a a f i n e z a ” , “ já q u e a p u ta Z a b e l o n a ” , “ já q u e e n t r e a s c a l a m i d a d e s ” ; Meu: “ M e u
C a p i t ã o d o s I n f a n t e s ” , “ M e u a m a d o R e d e n t o r ” , “ M e u J o a n i c o ” , “M e u S e n h o r S e t e
C a r r e ir a s ” ; Neste, Nesta: “ N e s t e p r e c i p í c i o C o n d e ” , “ N e s t a t u r b u le n t a t e r r a ” , “ N e s t e
m u n d o é m a is r i c o ” ; Quem: “Q u e m h á d e ”, “ Q u e m a g u a r d a ” , “Q u e m cá q u i s e r ” , “Q u e m
v o s c h a m a ”; Ontem quando; Maldito seja e tc .

Ou aplicação de provérbios, frases feitas:

“g a t o p o r l e b r e ” ; “ c m c a s a c o m e B a le ia / n a ru a e n t o j a m a n j a r e s ”; “ u m f a la r p o r e n t r e
d e n t e s ” ; “ d o r m ir a o l h o s a le r t a ” ; “ m a n d a r b r in c o d e s a n g r ia s ” ; “ L iv r e D e u s ” ; “ B a n g u ê
q u e s e r á d e t i ” ; “ d a r à s d e V ila D i o g o ” e tc .

Ou, ainda, refrão, geralmente de Góngora e Quevedo:

“ n ã o te e n v e r g o n h a s , m a g a n o ? ” ; “ m ila g r e s d o B r a s il s ã o ” ; “ M a s n ã o o s a ib a n i n g u é m ”;
“ p o n t o e m b o c a ” ; “ B o a h i s t ó r i a ” , “ B o a a s n e ir a ” ; “A n j o b e n t o ”; “ q u e a m a n h ã v e m l o n ­
g e ” e tc .

Assim como um Anônimo pôde lançar mão do nome do vigário de Passé,


Lourenço Ribeiro, enunciando um poema em primeira pessoa com ele, deve-
se propor a continuidade seiscentista de uma ficção narrativa muito genera­
lizada na Idade Média, do gênero “eu vejo que...” e “eu digo que...”, adaptável
como uma fôrma a múltiplas situações e quase sempre anônima. Certos mo­
tivos satíricos tradicionais, do gênero conlemptus mundi91, como a decadência
e a corrupção dos costumes, a sodomia, a simonia e a luxúrta dos prelados, a
avareza e a dissimulação dos grandes, a desonestidade das mulheres, o reina­
do do dinheiro etc., formam séries cumulativas, assim formuladas pela repe­
tição do “eu” na enunciação, dispostas nos poemas como oposições lexicais e
semânticas paradigmáticas. Por exemplo, tanto a sátira do Anônimo contra
Gregório de Matos quanto a atribuída a este contra o vigário Lourenço Ribei­
ro operam com oposições do tipo vil/nobre, negro/branco, puta/honesta, irracio-
nal/racional. Outro exemplo é o de poemas compostos por sentenças, do gêne­
ro medieval in lacrimas risus vertitn, como o soneto paremiológico já referido.
Ou, ainda, sátiras contra negras, mulatas, frades, cristãos-novos e os dois go­
vernadores, Sousa de Meneses e Câmara Coutinho, utilizando o mesmo moti­
vo fantástico do “nariz de embono” e dos tipos “corno”, “asno”, “néscio” etc.978

97. Cf. Paul Zumthor, Essai de poélique médiévale, op. cil, pp. 134-137.
98. Idcm, p. 88.

69
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Ocorre também a glosa que estiliza ou parodia orações e preceitos do rito


católico, palavra por palavra ou frase por frase, por um comentário irônico -
por exemplo, glosa do Credo ou dos Dez Mandamentos, expressões como “Em
verdade vos digo” etc.
Estudar textos satíricos escritos - melhor dizendo, compilações de poe­
mas presumivelmente escritos quando produzidos - implica levantar proce­
dimentos e formas que são índices da enunciação neles representada como
escrita ou oralidade. Já que é impossível determinar se foram escritos ou
oralizados, propõe-se um deslocamento pelo qual se observam as marcas re­
presentadas da oralidade e da escrita. É possível distinguir:

a) uma referência genérica, forma-suporte das fontes escritas da sátira (a


tradição romana de Horácio e Juvenal, por exemplo; a medieval, sobretudo a
ibérica do Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende; a de poetas contemporâ­
neos, como Camões, Quevedo, Góngora e Lope de Vega, principalmente, imi­
tados pelo autor satírico);
b) uma referência local, discursos das instituições e “m urmuraçâo” infor­
mal, dramatizados na sátira como grotesco, ridículo e obscenidade, segundo
tópicas epidíticas, com traços descritivos caracterizadores do nome, como
retrato caricatural, e traços narrativos, como exposição de eventos do refe­
rencial;
c) uma articulação pragmática da enunciação ou dramatização de posi­
ções hierárquicas e de intervenções críticas e prescritivas, segundo a norma-
tividade do mesmo referencial.

Afirma-se com isto que a sátira produzida na Bahia no século XVII tem
tripla articulação: uma é metalingüística, entendendo-se pelo termo a tradu­
ção e a conexão do poema particular por determinada forma ou gênero retórico-
poéticos, seus modelizadores: tópicas do louvor e da vituperação do gênero
epidítico; formas poéticas; soneto, romance, décima, epílogo, mote e glosa,
medida nova, medida velha, tipos e esquemas de rimas etc.; motivos tradicio­
nais, como o da Fortuna, o do marido corno, o do órgão feminino como “vaso”,
o do amor da freira, o do tamanho do pênis, os da escatologia etc. A outra
articulação é a dos discursos locais, que tematizam personalidades e ações
propostas como eventos desviantes da normalidade institucional, dos quais
se mantêm poucos traços estilizados, amplificados e deformados fantastica­
mente nas tópicas. Por exemplo, relação sodomíta de Câmara Coutinho e seu
secretário, Luís Ferreira; revolta da Infantaria à falta das “farinhas tardas”;
crítica à “justiça bastarda” do Tribunal da Relação; ataque aos negociantes
monopolistas da Junta do Comércio; certa prostituta da Cajaíba; andanças

70
UM N O M E POR FAZER

por engenhos do Recôncavo; festas da Igreja e tipos populares; o pseudofidalgo


Pedralves da Neiva; as inúmeras putas; o deão Caveira; Frei Tomás dos
Franciscanos; os índios descendentes do Caramuru; etc. O registro misto, tanto
escrito quanto oral, é índice desses dois padrões de codificação discursiva que
confluem na sátira. Ambos são integrados em uma regra pragmática de inter­
venção da persona satírica - e daqueles que, ouvindo a recitação ou lendo nas
folhas avulsas, seguem repetindo os poemas de cor e transcrevendo-os em
códices, neles introduzindo glosas e alterações, constituindo a movência anô­
nima das suas variantes.
É pressuposto reiterado neste trabalho que a forma mista da sátira impli­
ca apropriação, interpolação, alteração, falsa atribuição etc. Nela, a emulação
hoje entendida anacronicamente como “plágio” é estrutural. Um poema cuja
didascália é “Contra outros satirizados de várias penas que o atribuíram ao
Poeta, negando-lhe a capacidade de louvar” dramatiza a atividade satírica na
Salvador de fins do século XVII":

S a iu a s á t ir a m á ,
e e m p u r r a r a m -m a os p rev erso s,
q u e n i s t o d e f a z e r v e r s o s e u só t e n h o j e i t o cá:
n o u t r a s o b r a s d e t a le n t o
e u s o u s ó o a s n e ir ã o ,
e m s e n d o s á t ir a , e n t ã o
e u só t e n h o e n t e n d i m e n t o .

( O C , III, p . 7 0 6 .)

A mesma produção e circulação anônimas da sátira incluem a falsa atri­


buição, dada a fama do seu autor suposto, e as conseqüentes diatribes que
envolvem ataque, revide, contra-ataque, interferência de terceiros, segundo o
ódio programático:

L a t is , c c u i d a i s q u e e u m o r r o
d e o u v ir o v o s s o la tir , 9

99. Cf., por exemplo, “Ao capitão José Pereyra por alcunha o Sete Carreiras com caprichos de poeta
sendo ele ignorantíssimo” (OC, II, p. 359). Cf, ainda, com a exageração típica da maledicência
satírica: “Que versistas a milhares / queiram só por seu regalo / andar no alado cavalo, / devendo
ser alveitares: / que intentem por singulares / todo o aplauso, que mais campa, / e depois saiam na
estampa / com uma destampatória! / Boa história / [...] / que hajam mil de escorricaques,/que com
satíricos modos / zingando estejam de todos: / e que não se temam mil coques: / que falando com
remoques, / eles não queiram ser lidos / por toleirões, e atrevidos, / tendo uma língua irrisória! /
Boa história” (OC, II, pp. 499-500). Ou ainda: “[...] anda aqui a poesia a trote” (OC, III, p. 711).

71
A SÁTI RA E O E N G E N H O

e e u z o m b o d e v ê - l o o u v ir ,
p o r q u e q u e m la t e , é c a c h o r r o :
v ó s la t is , e e u m e d e sfo r r o
d a n d o - v o s e s t a s p e d r a d a s [...]

(O C , III, p . 7 3 8 .)

O conjunto de poemas atribuídos a Lourenço Ribeiro, vigário de Passé, e


a Gregório de Matos e Guerra, cujo desenvolvimento temático permite dispô-
los cronologicamente como narrativa de eventos conexos, indica que, num
primeiro momento, um anônimo satiriza Gregório publicando a maledicên­
cia em nome do vigário. Pela didascália do poema, tem-se a informação de
que o autor anônimo, pessoa de autoridade, já havia sido satirizado por
Gregório100, ocultando-se sob a batina do vigário certamente por temer o revide.
Ou, ainda, atacando o vigário de modo oblíquo, prevendo o contra-ataque de
Gregório, que certamente viria violento, como vem, na compilação de Rabelo.
A sátira articula várias insolências e insultos convencionais'01. O principal
deles, segundo o código de honra também ibérico, é chamar Gregório de Ma­
tos de “corno”102. Para tanto, procedimento muito usual no século XVII, quan­
do homem insulta homem difamando mulheres de sua família, o nome de
dona Maria dos Povos é rebaixado publicamente, numa junção do topos do
insulto com o trocadilho maledicente propiciado por ele:

Q u is p o r s e r e m t u d o n o v o ,
q u e é s o m e n te o q u e e le q u er,
te r c o n s i g o u m a m u lh e r ,
que é também de todo o povo:
e u só n e s t a p a r t e o lo u v o
d e d is c r e to , e d e e n te n d id o ,
p o i s q u e q u i s s e r s e u m a r id o

100. A didascália diz “Esta satyra dizem que fez certa pessoa de auctoridade ao Poeta, pelo ter satyrizado,
como fica dito, e a publicou em nome do Vigário Lourenço Ribeyro” (OC, IV, p. 782).
101. O destinatário “Gregório” é chamado de “asninho parlafrém”, “corno” (OC, IV, p. 783); mau poeta:
“Nunca soube fazer verso, / senão como tiririca” (p. 785), “Letrado de três por dous vinténs” (p.
785)',juiz inepto: “asneirão” (p. 7&5); autor de furtos literários: “gato do Parnaso de Quevedo” (p. 786);
herético: “[...] nele a heresia sobra, / e lhe falta o ser cristão” (p. 788). Razões para os insultos: Já que
a todos descompõe, / quis agora por meu gosto, / que ele fosse o descomposto, / para ver se se
compõe: / mil males sobre si põe, / quem de todos fala mal / e assim que já cada qual / me pode
dizer amém: / mas não o saiba ninguém” (OC, IV, p. 788).
102. O outro insulto atroz consiste em chamar alguém de “ladrão”, devendo-se lembrar que a teologia-
política do século XVII conceitua o Tesouro como res quasi sacra.

72
UM N O M E POR FAZER

ju n ta m e n te co m m a is cem ;
m a s n ã o o s a ib a n i n g u é m .

( O C , IV, p . 7 8 3 .)

Segue o revide contra o vigário103. A sátira, como a antecedente, tem a


mesma estrutura: persona satírica indignada e prudente; satirizado infame;
estrofes de nove versos; redondilha maior; quatro primeiros versos com fun­
ção de exórdio, resumo ou comentário de cada estrofe; quatro seguintes como
exemplificação narrativo-descritiva de ações e tipificação do satirizado, se­
gundo tópicas binárias de virtude,/vício', último verso com refrão “milagres do
Brasil são” (na sátira antecedente, “mas não o saiba ninguém”).
Por exemplo:

Q u e há de pregar o cachorro,
s e n d o u m a v il c r ia t u r a ,
s e n ã o s a b e d a e s c r it u r a
m a is q u e a q u e la , q u e o p ô s fo r r o ?
Q u e m lh e d á a ju d a , e so c o rro ,
s ã o q u a tr o s e r m õ e s a n t ig o s ,
q u e l h e v ã o d a n d o o s a m ig o s ,
e se a m ig o s tem u m c ã o ,
m i la g r e s d o B r a s il s ã o .

(O C , IV , p . 7 9 1 .)

Tal identidade de estrutura indica que, embora inimigos ferozes, os vá­


rios autores e personae discursivas concordam quanto à prescrição retórico-
poética adequada para se destruírem discursivamente, lançando mão do mes­
mo gênero - o que afasta interpretações como a de Sílvio Júlio, que
desclassificam o suposto autor como plagiário. Seguem os insultos: como o
vigário Lourenço Ribeiro é pardo, no insulto, baseiam-se no critério ibérico
da “limpeza de sangue” e, intensificando a tópica “origem”, acusam-no de ser
“um canaz todo atrevido”. Outros insultos são amplificação de “Mulato” e
“Canaz”, segundo paradigmas/irracional/ e/racial/redundantes, pelos quais
os termos insultuosos são intercambiáveis. Os topoi compõem a ascendência

103. “Escandalizado o Poeta da sáiira antecedente, e ser publicada em nome do Vigário de Passe Lourenço
Ribeiro homem pardo, quando ele estava inocente de fatura dela, e calava porque assim lhe convi­
nha: lhe assenta agora o Poeta o cacheiro com esta petulante sátira” (OC, IV, pp. 790-793).

73
A SÁTI RA E O E N G E N H O

do vigário segundo convenção do gênero demonstrativo da oratória, como


lugar de louvor e vituperação: o genus]0\
As didascálias dos poemas não explicitam o porquê do silêncio do vigário
quando da falsa atribuição do poema a ele, mas seu eleito produz várias hipóte­
ses, que vão do pudor ao temor do autor real ou cumplicidade com ele. A resposta
contra Gregório de Matos vem violenta num terceiro poema, atribuído ao vigá­
rio10". É interessantíssima, pois acusa Gregório, inicialmente, de furto poético:

D o u t o r G r e g ó r io G u a r a n h a 1045106
p ir a t a d o v e r s o a l h e i o ,
c a c o , q u e o m u n d o tem c h e io ,
do q u e de Q u eved o apanha:
já s e c o n h e c e a m a r a n h a
d a s p o e s ia s , q u e v e n d e s
p o r tu a s , q u a n d o as e m p r e e n d e s
t r a d u z ir d o C a s t e lh a n o ;
n ã o te e n v e r g o n h a s, m a g a n o '

(O C , IV, p p . 7 9 4 - 8 0 3 .)

Supondo-se que, nesta comédia de erros, a didascália esteja correta na


atribuição da última sátira ao vigário Lourenço Ribeiro, uma vez que outro
anônimo poderia tê-la escrito por ele e, ainda,para ele e como ele, o interesse

104. Cf. Quintiliano, Inslilulio oraloria, trad. Henri Bornecquc, Paris, Garnier, s/d,, 4 vols 3, 7, 10-25.
Por exemplo: “um Cão revestido em Padre", “podengo asneiro” (OC, IV, p. 790); “lios e lias do
Congo”, “suando o mondongo”, “o cachorro”, “um cão" (p. 791); “o Perro” (p. 792); “o Mulato”, “o
insensato / do canzarrào”, “sangue de carrapato”, “estoraque de congo” (p. 793) etc.
105. “Resposta do Vigário Lourenço Ribeiro escandalizado de que o Poeta o satirizasse do modo que
fica dito” (OC, IV, pp. 794-803).
106. A edição James Amado dá “Guaranha”, sendo melhor a lição da Academia Brasileira de Letras,
“Gadanha”. O poema tem 28 estrofes de nove versos. As estrofes 1, 2, 3 e 4 desenvolvem o tema do
“furto literário”. Nas restantes, predomina a vituperação segundo a tópica da “origem”. Vejam-se,
resumidamente: 5 - gênio maledicente de Gregório; 6 - genealogia: Pai de Gregório; 7 - genealogia:
Avô; 8 - covardia de Gregório: “[...] porém se em nada és guerreiro / para que te chamas guerra, /
e a fazes a toda a terra / eo’a língua, que é maior dano?”; 9 - genealogia: Avó (avô cornô); 10 -
mulher de Gregório; 11 - difamação da mulher; 12 - genealogia: Pai, Mãe; 13 - genealogia: Irmãs
Putas; 14 - genealogia: sujeira do Pai; 15 - genealogia: Irmão “um labeu da Companhia” “outro
sequaz de Epicuro”; 16 - genealogia: Irmão sodomita e mau letrado; 17 - genealogia: Irmão metido
em confusão com negra; 18 - genealogia: Irmão pícaro; 19 - genealogia: Irmão pícaro; 20 - acusa­
ção de heresia; 21 - luxúria: recusa da murça capitular para “casar como insano”; 22 - mau jurista;
23-m au jurista: “tua ciência é falhada”; 24-falta de vergonha; 25 - maus antecedentes em Portu­
gal, fuga para a Bahia; 26 - covardia: “galinha entre gente”; 27 - vícios: “teus males, e não bens”; 28
- ameaça de agressão física: “[...] hás de apanhar / mais de quatro bordoadas, / e com maiores
pancadas, / que as do teu papel insano” (OC, IV, pp. 794-803).

74

i
UM N O ME POR FAZER

deste poema consiste aqui, basicamente, no epíteto “Doutor Gregório


Gadanha” e em passagens que tematizam o furto poético, como esta:

O so n e to , q u e m a n d a ste
ao A r c e b is p o e le g a n te
é d o G õ n g o r a a o In fa n te
C a r d e a l, e o f u r ta s te :
lo g o m a l te a p e l i d a s t e
o M e s t r e d a p o e s ia
f u r t a n d o m a is e m u m d ia ,
q u e m il la d r õ e s e m u m ano:
n ã o te e n v e r g o n h a s , m a g a n o ?

(OC, IV, p. 795.)

João Carlos Teixeira Gomes relaciona “Gadanha”, da sátira em questão,


com o termo “gadanha”:

A lé m d o s e u s i g n i f i c a d o m a is u s u a l d e foice, r e c o r d e m o s q u e D o m i n g o s V ie ir a t a m ­
b é m d o c u m e n t a n a p a la v r a o s e n t id o d e “ la r a p ia r c o m a s t ú c ia , fu r ta r d e s t r a m e n t e ” ,
s i g n i f i c a d o s q u e s e a j u s t a m a o s o b j e t i v o s d o a c u s a d o r d e G r e g ó r io , n o s e u a fã d e
d e s m o r a liz á - lo . N ã o p o d e s e r d e s c a r ta d a , p o r é m , a h i p ó t e s e d a p r e d o m i n â n c i a d a s s i g n i ­
f ic a ç õ e s m a is c o r r e n t e s , p o i s “ g a d a n h a ”, n o s t e x t o s a n t ig o s , é p a la v r a q u e a p a r e c e s e m ­
p r e a s s o c ia d a à id é ia d e a lg o q u e fe r e , c o r ta o u a m e a ç a . T a l, o b v i a m e n t e , c o m o a p r ó p r ia
p o e s ia s a t ír ic a d e G r e g ó r io . S ó a s c o n t r ib u iç õ e s d a F il o l o g i a o u d a c r ít ic a t e x t u a l p o d e ­
rão e s c la r e c e r a d e q u a d a m e n t e o p r o b le m a : a d ic io n a r iz a ç ã o d e D o m i n g o s V ie ir a é r a r a 107108.

Esta interpretação de Teixeira Gomes - como seu livro sobre o intertexto


poético de Gregório de Matos - é bem-fundada e verossímil, embora não res­
salte a novela picaresca escrita em espanhol, El Siglo Pitagóricoy Vida de D.
Gregono Guadana'os, na qual o termo ocorre com o mesmo significado dicio-

107. Cf. João Carlos Teixeira Gomes, op. cil., p. 54.


108. Dedicada por seu autor, o português Antônio Henrique Gomes, a Monsenor François Bassompierre,
Marquês de Harouel, Caballero de Ias Hordencs de Su Magestad Cristianisima, Mariscai de Francia
y Coronel General de los Suisses, a novela saiu em Ruão, em 1644, na imprensa de Laurens Alarry.
Desenvolvendo o tema da metempsicose pitagórica, narra as aventuras de uma alma que se vai
encarnando em vários corpos, mantendo a forma genérica da picaresca, na qual a personagem
passa por várias situações dramáticas. O capítulo I, “Conta dom Gregório sua pátria e genealogia'’,
refere os feitos dos avós, pais, irmãos, irmãs e primos da personagem central, Gregorio Guadana,
pícaros todos eles. C f Antônio Henrique Gomes, “Conta dom Gregório sua Pátria e Genealogia”,
em João Palma Ferreira, Novelistas e Contistas Portugueses dos Séculos X V II e XVIII, Lisboa, Imprensa
Nacional Casa da Moeda, 1981.

75
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O

narizado por Domingos Vieira. O que é interessante, além da coincidência


do nome da personagem pícara e do autor satírico, que teria propiciado ao
vigário a qualificação de Gregório como “Gadanha”, é que o poema utiliza os
mesmos topoi e a mesma disposição retórica deles, tais como podem ser lidos
na novela, aproveitando-se da homonímia para conferir o mesmo tratamen­
to pejorativo ao tema da genealogia atribuída a Gregório de Matos e Guerra.
Isto evidencia mais uma vez o anacronismo do conceito de “plágio” aplicado
ao século X V I I . A sátira do vigário é convencionalíssima na emulação da
novela picaresca, pois atribui “Irmãs” a Gregório de Matos, tipificando-as
como “putas”, profissão das irmãs do personagem homônimo Gregorio
Guadana...109
No século X V I I , preceptistas conceituam o engenho e suas variedades, prin­
cipalmente o exercício, como imitação de modelos consagrados proposta como
louvável no sentido da emulação. Segundo Tesauro, imita-se para produzir
variedades da espécie, mas não o mesmo indivíduo. Neste sentido, a imitação
de Quevedo não é furto, ao passo que a apropriação do poema de Góngora, a
crer no que a sátira do vigário afirma, é evidentemente pirataria:

C h a m o p o i s im it a ç ã o u m a s a g a c id a d e c o m a q u a l, p r o p o s t a p a r a ti u m a m e tá f o r a
o u o u tr a f lo r d o h u m a n o e n g e n h o , a t e n t a m e n t e c o n s i d e r a s a s s u a s r a íz e s c , t r a n s p la n -

109. O que a estilização da sátira evidencia é a circulação de textos espanhóis e portugueses em Salva­
dor, em fins do século XVII, além daqueles presumivelmente também circulantes em outras lín­
guas. Lembre-se, por exemplo, que capuchinhos franceses e italianos vinham frequentemente do
Congo, no século XVII, fazendo escala na Bahia antes de embarcarem para a Europa. Um dos
códices gregorianos da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, cofre 50, o Códice 6.?, com
letra do século XVII, 535 fls., com o título Poesias, contém produções variadas, como “Fábula Joco­
sa”; “Os Amantes de Espanha”; “Amores de Píramo e Tisbe" (pp. 165-229); “O Roubo de Prosérpina
- O Ladrão Velhacão e a Gulosa dos Bagos”. Cena jocosa. Personagens. Plutão; Prosérpina; Júpiter;
Ceres; Radamanto; Ninfas; Paquete, criado de Plutão; Marabuto, diabrete; Malquetrefe, diabrete;
Maroto, diabrete; Sorrateiro, diabrete (pp. 229-340); “Fábula de Caco e Hércules”. Composta por
Manoel Pacheco Valadares, 94 oitavas (pp. 340-356); “Jornada” - que o senhor Francisco de Brito e
Meneses, reitor da Universidade de Coimbra, foi com a sua gente em socorro à vila de Buarcos,
estando quase assaltada dos holandeses. Descrevem-se os amores da Ninfa Coimbra, que deu nome
à cidade, e a origem de suas armas”, 97 oitavas (pp. 356-372); “Concilio dos bêbados”, poema
macarrônico, paródia d’Os Lusíadas. Pelo dr. Manoel do Valle, deputado do Santo Oíício de Évora.
“Dos Lusíadas” de Camões, contrafeito à bebedice. Veja-se a primeira oitava: “As armas e os Borra­
chos assinalados, / que de Alcochete, junto a vila Franca, / por vinhos nunca dantes navegados /
passaram muito além da Peramanca: / Em pagodes, e ceias esforçados / mais do que se permite à
gente branca, / em Évora cidade se alojaram / Onde Pipas, e Quartos, despejaram”. Essa scnsabo-
ria se arrasta por mais 105 estrofes; “El cortezano espanol, político, y moral; documento de un
padre, a su hijo que se iba a vivir en la Corte" (pp. 478-487) etc.

76
UM N O ME P O R FAZER

lando-a em diferentes categorias como em um solo cultivado e fecundo, propagas ou­


tras flores da mesma espécie, mas não os mesmos indivíduos110.

Nas preceptivas dos séculos XVI e XVII, que invariavelmente retomam a


Poética e a Retórica, o De oratore, a Institutio oratona e a Arte Poética, ressalta
sempre o empenho de prescrever o decoro, entendendo-se com ele a adequa­
ção da linguagem ao lugar-comum da invenção e ao grau das pessoas circuns-
tantes, como decoro interno e decoro externo:

Si deve inoltre servar decoro tra la figura e proprietà significante colla persona e suo
conceito, si che né da vil figura la nobile azione si spieghi, né da deforme la bella, né da ridicolosa
la grave; népensiero difortezza con cosa timida, né di oneslà la succida, né difierezza la mite;
e la ragion é primieramente perché come la probabilità nasce da convenienza, cosi quando si
vede sproporzione e disconvenienza, o nello stile o ne‘ concetti, o nel decoro, si pregiudica alia
probabilità e al verisimile"1.

Ou, ainda:

El poeta se ha de acomodar al lugar y ha de atemperar su argumento a la aprehensión


común112.

Baldassare Castiglione cita como exemplo de dito agudo e malvado, feito


para ferir e, portanto, levando justamente em conta a condição do destinatá­

110. Cf. Emanuele Tesauro, “Arguzie umane”,op. cit., p. 35.


111. “Deve-se além disso observar o decoro entre a figura e propriedades significantes com a pessoa e
seu conceito, para que não se explique da vil figura a nobre ação, nem da disforme a bela, nem da
ridícula a grave; nem pensamento de fortaleza com coisa timida, nem de honestidade com a suja,
nem de ferocidade com a suave; e a razão é primeiramente porque, como a probabilidade nasce da
conveniência, quando se vêem desproporções e inconveniência ou no estilo ou nos conceitos ou no
decore, prejudica-se a probabilidade e a verossimilhança”. Cf. Emanuele Tesauro, “Che nelfimpresa
devesi guardar il decoro”, Idea delle Perfene Imprese, testo inédito a cura di Maria Luisa Doglio,
Firenze, Leo S. Olschki, 1975, pp. 109-110; Baldassare Castiglione, II Libro dei Cortegiano em Opere
di Baldassare Castiglione, Giovanni delia Casa, Benvenuio Cellini, Milano-Napoli, Riccardo Ricciardi
Editore, 1960, pp. 146-186; Lodovico Castelvetro, Poética DAristolele Vulgarizzata e Sposta, a cura di
Werther Romani, Roma-Bari, Gius. Laterza & Figli, 1978, 2 vols.; Félix de Azevedo Carneiro e
Cunha, Diálogo entre o Deus Momo e o Censor (1726), edição crítica de Heitor Martins, em VIIAnuá­
rio do Museu da Inconfidência e do Grupo de Museus e Casas Históricas de Minas Gerais, Belo Horizonte,
SPHAN/MEC, 1984. O coronel José Pires de Carvalho também discorre sobre “as Leis que se hão
de observar nas graciosidades”, na Conferência de 21 de janeiro de 1725 da Academia dos Esqueci­
dos. Cf. José Aderaldo Castello, op. cit., pp. 161-165.
112. Cf. Padre José de Alcázar, Ortografia Casiellana (Madrid, 1690) em F. S. Escribano y A. P. Mayo,
Precepliva Dramática Espanola (Del Renacimientoy el Barroco), Madrid, Gredos, 1965, p. 241.

77
A SÁTI RA E O E N G E N H O

rio, um enunciado que em outro contexto discursivo seria anódino: “E onde


pões os óculos?”111 O destinatário não tem nariz. Outro exemplo de Casti-
glione, codificador renascentista de paradigmas da agudeza posta em voga no
século XVII pela ordenação de Gracián e de Tesauro, principalmente, é o de
Alonso Carrillo, nobre posto a ferros no reinado de Isabel, a Católica, por
uma inconveniência qualquer. Libertado, uma dama de suma prosápia, Beatriz
de Boadilla, marquesa de Moya, finge surpresa por vê-lo na Corte: “Senhor
Alonso, a mim muito me pesou essa vossa desventura porque todos os que vos
conhecem pensávamos que seríeis enforcado”.
A resposta de Alonso, que em outra ocasião poderia ser interpretada pe­
los códigos do amor cortês, é um insulto: “Senhora, realmente tive grande
medo disso; mas tinha esperança de que me pedirieis por marido”m . Era
costume, na Espanha, quando se levava alguém para enforcar, perdoar-se-lhe
o crime, se uma prostituta o pedia publicamente em casamento.
Em Artificioy Arte de Ingenio, Baltasar Gracián retoma Castiglione, defi­
nindo o procedimento da agudeza como adequação à “conjunção dos acasos”:
ela é uma glosa que interpreta, adivinha, torce (e talvez invente) a intenção, a
causa, o motivo da ação tomada como tema pelo discurso, seja para a malícia
e a maledicência, que é o mais comum, seja para o louvor111. Como maledi­
cência, pois, o discurso fere o decoro dos gêneros elevados em função de outra
adequação. O procedimento é apto também, pela ironia, para transformar
um artifício afetado em seu contrário - caso daquela dama citada por Casti­
glione como merecedora de ridicularização. Quando lhe perguntaram gentil­
mente por que não se divertia na festa, disse que se preocupava em pensar
que no Dia do Juízo todos estaremos nus1134516.
A teoria da agudeza, tal como vem desenvolvida em Castiglione, Gracián
e Tesauro, fornece regras para a produção de inconveniências convenientes,
enfim, sendo a situação em que são proferidas que lhes confere um sentido
determinado. Um mote pode ser engenhosíssimo, mas torna-se imediatamente
obsceno pela presença de mulheres de posição social determinada - o que
implica, mais uma vez, a partilha comum de uma convenção para a inconve­
niência, proposta diferencialmente, conforme a ocasião. Muitos palhaços sem
tato perderam excelentes amigos por não serem capazes de conter a maledi­
cência e os ditos agudos - lugar-comum também nos preceptistas citados.

113. Baldassare Castiglione, op. cit., p. 169.


114. IJcrn, p. 178.
115. Baltasar Gracián, “Discurso XXVI: De la Agudeza Crítica y Maliciosa”, ém Artificioy Arie de Ingenio
in Obras Completas, Madrid, Aguilar, 1967, p. 356.
116. B. Castiglione, p. 179.

78
UM N O M E POR FAZER

Mesclam-se com muita graça e artifício, segundo Gracián, a crítica judi-


ciosa e a irrisória, aquela ponderando gravemente e esta acusando ridicula­
mente. Neste sentido, a sátira é uma espécie de sentença aplicada à ocasião,
sacada de suas mesmas circunstâncias, que fornecem seu duplo desenvolvi­
mento sério-cômico117. Tem muito da condensação metafórica do mot d ’esprit
estudado por Freud, valendo dizer que o duplo sentido dos seus equívocos
irônicos só se lineariza na recepção, que confere à metáfora sua significação
pejorativa ou grave.
Um desses jogos, considerado mais fácil que sutil porque se vale justa­
mente da situação, é o da agudeza irônica por paronomásia ou trocadilho. Por
exemplo, no poema dirigido à freira que enviou um cará por pão:

D e s c o b r is t e s a in te n ç ã o ,
e o d e s e j o r e v e la s t e s ,
q u a n d o o cará e n c a ix a s te s ,
a q u e m v o s p e d ia pão:
c o m o q u e m d iz : m e u I r m ã o ,
s e q u e m t o m a , se o b r ig o u
a p agar, o q u e to m o u ,
v ó s o b r ig a d o a p a g a r - m e ,
fic a is e n s in a d o a d a r -m e
o cará, q u e v o s eu d ou .

(O C , IV , p . 8 7 5 .)

A troca de letras ou o acréscimo de sílaba à palavra produzem outra sig­


nificação, seja para encômio, seja para vituperação"8: “do cará a caralhada’'
(OC, IV, p. 876).
Na sátira, tais jogos que avaliam os objetos e o contexto discursivo da
comunicação são abundantes, invertendo-se situações e tipos pela figura da
ironia efetuada nos trocadilhos. Por exemplo, inventando-se que certo padre
calvo é “sacerdote calvino”, acusação violenta de heresia dirigida a clérigo
pós-tridentino contemporâneo da Inquisição; ainda, afirmando que o mesmo
cura, culpado dos males da Cidade, ocupa-se de moças que “seu cura são”119.

117. B. Gracián, op. cil., p. 381.


118. I d e m , p. 393. Castiglione dá como exemplo o do comparecimento, na Corte espanhola, de um
fidalgo feiíssimo, acompanhado da mulher, belíssima, trajados ambos de d a m a s c o branco. Pergun­
ta a rainha Isabel a Alonso Carrillo: - Que vos parecem? - Senhora, esta é a d a m a ; esse, o a s c o Cf.
B. Castiglione, op. cit., p. 180.
119. Cf., entre outros: “[...] nunca Loureiro vi / enxeriado em Limoeiro" (Limoeiro c o nome de prisão de
Lisboa (OC, II, p. 297); o Loureiro de escabeche, / o Chicória de salada" (OC, II, p. 299); “[...] O

79
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Não é “original”, contudo, pois o mesmo trocadilho “calvo/calvino” encon-


tra-se em Quevedo120, disseminando-se pela poesia do tempo. Fundados sobre
a figura da ironia, tais trocadilhos evidenciam que a função de uma fala en-
contra-se preenchida, na recepção, por uma outra fala121, de modo que um
significado e um significante, em princípio indissociáveis, são antiteticamente
destacados um do outro, produzindo o efeito terminal incongruente e irônico.
Há uma pragmática, assim, a reger a atividade satírica: de modo geral, o
discurso encena em sua forma a mesma situação à qual é aplicado. Com tal
auto-referencialidade, é performativo, apresentando não somente signos do
destinatário ou do objeto referencial de terceira pessoa satirizados, mas tam­
bém signos para o destinatário, tanto o satirizado quanto o ouvinte/leitor.
Indicam-lhes o modo pelo qual devem interpretar o discurso em que são arti­
culados. O trocadilho “calvo/calvino” aplicado a padre só funciona, neste sen­
tido, em sociedade católica em luta contra a heresia reformada, pressupondo
a partilha de um mesmo dogma pela recepção para que a ironia ou a agressão
se façam entender. Ainda, a sátira propõe várias traduções equívocas, malicio­
sas ou chulas de um termo utilizado inicialmente para referir uma situação,
um evento, um costume, uma ação, um tipo. O poema é construído como

incenso, o ouro, a mirra [...] / É, que vos hão de mirrar” (OC, II , p. 301), “[...] mostrais pregando de
falso, / que sendo um Frade descalço, / andais pregando de meias’’ (OC, I I , p. 314 - acusa-se o frade
de pregar sermão furtado); “[...] sendo um Frei Jumento, / és jumento sem freio" (OC, I I, p. 319); “[...]
nunca louvarei / Capitão, que diz, cuidei / nem Dama, que diz, cuidava" (OC, I I , p. 382); “[...] Do
monte Olimpo se conta, [...] / o Frade seria, / pelo que dele corria, / monte, mais o limpo não" (OC, I I ,
p. 346); “[...] a primeira entrou sem pejo, / mas a segunda pejada" (OC, I I , p. 365); “[...] eu não vi na
fidalguia / Mendonça sem ter Furtado" (OC, p. 367); “[...] estou sem voz desabrochado” (OC, p. 417 -
soneto ao desembargador Belquior da Cunha Brochado)', “[...] veio o Jardim esbofado / mais rosado,
que um jardim" (OC, I I I , p. 584); “(...] Fez-se a segunda jornada / de comédia ou comedia" (OC, I I I , p.
590); era Pissarro em piçarra” (OC, I I I , p. 596); “[...] parira, como com vinho, porém não como
convinha” (OC, I I I , p. 628); “[...] Que se ainda mais rosas lançais fora / Receio, que fiqueis posta na
espinha" (OC, I I I , p. 692 - “rosas” é metáfora de “sangrias”); “[...] não cegou da privação, ficou cego
da privada” (OC, I I I , p. 721); “[...] um Bártolo pareceis, / não sendo senão Bartolo” (OC, I I I , p. 735);
“[...] e à força de tanta pá / viveremos sempre em paz” (OC, IV , p. 859); “[...] com dois mil aqui d’El-
Reis" (OC, I I , p. 392); “[...] hoje sois mau soldado / porque ontem fostes rompido” (OC, II , p. 397);
“[...] a um raso soldado / lhe bastam cadeiras rasas” (OC, I I , p. 398); “[...) amizades de um Visconde, /
favores de um Conde vis” (OC, I V , p. 896); “[...] Peito em que o cego amor não tem sossego / Só cego por
não ver-lhe amor perfeito” (OC, IV , p. 921) etc. (Grifos meus.)
120. Cf. Francisco de Quevedo, La Hora de Todosy la Fortuna con Seso, Introduction, traduction et notes
par Jean Bourg, Pierre Dupont et Pierre Geneste, Paris, Aubier-Montaigne, 1980, cap. X X I I I , p.
236: “El Rey de Francia se fué llegando a Roma con piei de cardenal para no ser conocido; pero el
Rey de Espana, que entendió la maula de disfrazar el Monsiur en Monsenor háciendole al pasar la
cortesia, le obligó a que, quitándose el capelo, descubriese lo calvino de su cabeza” (grifo meu).
121. Cf. Paul Zumthor, Essai de poétique médiévale, op. cit., pp. 105-106.

80
UM N O M E P O R FAZER

dramatização de uma metáfora que se vai deslocando, enquanto incorpora o


destinatário como termo das traduções. Por exemplo, maliciosamente:

D a i- m e lic e n ç a , A n to n ic a ,
p a r a e u ir à v o s s a c a s a ,
p a r a b e ij a r - v o s a s m ã o s ,
e p ara, não digo nada.
(OC, III, p . 7 7 6 .)

com duplo sentido obsceno: “és carvoeiro infernal, / pois andas com saco em
pernas” (OC, II, p. 319); com humor escravista, jogando com a homofonia dos
termos:

E p a r d o ra ja d o e m p r e to ,
o u p r e to e m b u tid o em p a rd o ,
malhado o u já malhadiço
d o t e m p o e m q u e fo r a e s c r a v o .

(O C , II, p . 4 5 8 .)

Ainda, interpelando o destinatário constituído em posição inferior por ter­


mos ironicamente elevados, caso das mulheres públicas, “Damas”, quando
“putas”; ou com insultos diretos, que excluem o receptor da boa sociedade e
mesmo de toda sociedade, “putas” em oposição a “Damas”; “vacas” e “por­
cas” em oposição a /humano/. Caso também do extenso rol de frades e cléri­
gos, cuja atividade sexual é hiperbolizada na bestialidade:

R e v e r e n d o F rei C a rq u eja ,
q u e n t á r id a c o m c o r d ã o ,
m a g a n o d a r e lig iã o ,
e m a r io la d a Ig r e ja :
F r e i S a r n a , o u F r e i B e r to e ja ,
F r e i P ir t i g o [...]
F rei B urro d e L a n ça m en to
[...] s e n d o u m F r e i j u m e n t o ,
é s u m j u m e n t o s e m f r e io .

(O C , II, p . 3 1 9 .)

Ou, ainda, operando com signos de captado benevolentiae de receptores virtuais,


articulados pela enunciação como cúmplices na partilha dos valores que a
ridicularização propõe:

81
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

E u , q u e m e n ã o s e i c a la r ,
m a s a n te s te n h o p o r m ín g u a ,
n ã o p u r g a r - s e q u a l q u e r lín g u a
a r is c o d e a r r e b e n ta r :
v o s q u e r o , a m ig o , co n ta r,
p o i s s o i s o m e u s e c r e t á r io ,
u m s u c e s s o e x t r a o r d in á r io ,
u m c a s o t r e m e n d o e a tr o z ;
p o r é m f iq u e a q u i e n t r e n ó s .

( O C , II, p . 2 6 1 .)

A pragmática se evidencia, ainda, nas marcas intersubjetivas da enunciação,


como alternância irônica de louvor e insulto das formas de tratamento confor­
me o tipo significado por elas - por exemplo, como oposição hierárquica de
“tu”, vulgar, íntimo e inferior, e “vós”, nobilitante, distanciado, igual ou supe­
rior. Funcionando como um diagrama de posições sociais encenadas nos poemas,
os pronomes põem ênfase na própria situação de comunicação, independente­
mente do tema que é desenvolvido nela. Desta maneira, muitos poemas jogam
com a virtualidade da aplicação pronominal, cuja significação só é dada quan­
do são atualizados como designação de pessoas discursivas em ato. O jogo irô­
nico decorre do choque da codificação institucional da designação e significa­
ção pronominais com a circunstância em que os pronomes são empregados de
maneira programaticamente inadequada, isto é, irônica - o que, mais uma vez,
pressupõe uma recepção ciente do código institucional para compreender a
falsa atribuição, a diatribe e o sarcasmo. A articulação pronominal irônica re­
dobra o valor da efetuação semântica, assim, funcionando como técnica de
amplificação, hiperbolização ou redundância funcional. Em longo poema no
qual vitupera a Bahia personificando-a num quiasma como “madrasta dos Na­
turais/ e dos Estrangeiros madre” (OC, II, p. 429), apersona satírica começa por
chamá-la de “Senhora Dona” (expressão muito corrente nos poemas satíricos
iniciados por interpelação irônica), a que se segue o atributo implícito na for­
ma de tratamento, “nobre e opulenta cidade”. Uma ordenação filipina de 1597
reservara o tratamento de “Senhor Dom” aos postos mais elevados da burocra­
cia estatal e do clero: arcebispos, bispos, duques e seus filhos, marqueses e con­
des, o prior do Crato, bem como vice-reis e governadores e, ainda, o regedor da
justiça da Casa da Suplicação, o governador da Relação do Porto, os vedores da
Fazenda, os presidentes do Desembargo do Paço e Mesa de Consciência'” . Tra-12

122. Em 1596, na Espanha, e em 1597, em Portugal, Filipe II baixou leis que determinavam os limites
das formas de tratamento, fixando as penas em que incorreríam os que utilizassem fórmulas não

82
UM NO ME POR FAZER

tada por “Senhora Dona”, a Bahia continua sendo personificada e nobilitada


pelo “vós” até que, no final do poema, após a narração e a descrição de um
elenco de seus vícios, recebe a forma “tu”, que a hierarquiza no estilo baixo,
sendo então amaldiçoada. Assim, no início do poema:

Dizei-me p o r v id a vossa
e m q u e fundais o d i t a m e
d e e x a lt a r , o s q u e a í v ê m ,
e a b a te r , o s q u e a li n a s c e m ?
S e o fazeis p e l o i n t e r e s s e ,
d e q u e o s e str a n h o s vos g a b e m e tc .

(O C , II, p . 4 2 9 .)

E, no final:

T ã o q u e i m a d a e d e s t r u íd a
Te vejas, t o r p e c id a d e ,
com o S o d o m a e G om orra
d u a s c id a d e s in fa m e s .
Q ue eu zom b o de teus v i z i n h o s e tc .

(O C , II, p. 4 3 4 .)

Paralela à tipificação semântica do ataque, a articulação pronominal funcio­


na como um diagrama da distribuição política dos corpos pela hierarquia. A
inversão irônica é dupla: dando-se como substituição de “vós” por “tu”, evi­
dencia-se no final do poema como inversão de inversão, explicitando a
inadequação inicial do tratamento “Senhora Dona” e “vós”. Como um meca­
nismo auto-regulador, o tratamento inicial “vós” efetua o estado da Bahia
como ironia, segundo a persona satírica, pois a ele corresponde efetivamente o
vulgar “tu”. Se a “vós” corresponde a aparência e a presunção de honestidade

adequadas à sua posição. Tais pragmáticas ficaram conhecidas como “leis das cortesias". Quase sé­
culo e meio depois, no reinado de dom João V, em 1739, nova pragmática referente às formas de tra­
tamento foi baixada, para evitar o excesso e a vulgaridade no uso de “Senhoria”, por exemplo, que
confundiam a ordem e pervertiam a distinção que fazia os tratamentos estimáveis. Cf. Luís F. Lindley
Cintra, Sobre “Formas de Tratamento" na Língua Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1972. Numa c
noutra pragmática, a ordenação dos tratamentos visa a constituir e manter a hierarquia, sendo eles
exemplos vivíssimos do controle social no período que se conhece por “Barroco”. Tais formas, evi­
dentemente, não deixariam de ser incorporadas às letras, com referências às pragmáticas, sendo
índice muito seguro para determinar a posição das personagens representadas na sátira.

83
A SAI IRA E 0 E N G E N H O

e nobreza, “tu” produz a realidade baixa123 encoberta pela dissimulação. A


dramatização pronominal recupera e amplifica, desta maneira, a estrutura
do quiasma que, desde o início do poema, diagrama a Bahia como estado de
inversão viciosa a ser invertido pela vituperação. Para públicos contemporâ­
neos, a operação se evidenciava ironicamente desde a invocação “Senhora
Dona” do primeiro verso, dada a situação maravilhosa efetuada por ele: “in­
terpelação de cidade”. E que a recepção tinhaapriori uma opção binária para
julgar o poema: a cidade seria louvada/a cidade seria vituperada, segundo
regras do gênero demonstrativo em que “cidade” é uma tópica do louvor ou
do vitupério. Desta forma, ainda, o investimento semântico disfórico, as pon­
derações críticas da persona satírica, a estrutura do quiasma e a articulação
pronominal iam ao encontro de códigos da recepção, que nos procedimentos
reconhecia as marcas de um desempenho poético adequado.
Na sua Vida, o licenciado Rabelo critica aquilo que, na Bahia do século
XVII, funciona como adequação - já prevista no início do século por Lope de
Vega e Tirso de Molina, entre outros - da sátira a regras do gênero e da recepção:

[...] a p r ó d ig a d i f u s ã o d e m a l a p l i c a d o s c o n c e i t u o s o s d i s p ê n d i o s n a s c ia d a s e n c h e n t e s
p r o d i g i o s a s d a q u e la M u s a , q u e s e m e s p e r a n ç a d e q u e s e u s d e s c u i d o s c o r r e r ía m n a f u ­
tu r a e s t i m a ç ã o , barateava versos à conjunção dos acasos, facilitando linguagens ao gênio dos
sujeitos124.

Retoricamente, o decoro é especificadorde gêneros que prescreve a adequa­


ção do estilo aos temas do discurso, bem como à recepção. Interessado em con­
formar a personagem de sua biografia como “lírico”, Rabelo censura o estilo
baixo ou sórdido da sátira, evidenciando em sua crítica a escolha de um decoro,

1 2 3 . N a sua; " V i d a d o E x c e l e n t e P o e t a L í r i c o , o D o u t o r G r e g ó r i o d e M a t o s e G u e r r a ” o l i c e n c i a d o R a b e l o

in fo rm a : “ U m h o m e m d e b a ix a esfe ra , q u e p o r a q u e la in iq u id a d e , a q u e n o B rasil c h a m a m fo rtu n a ,

su b iu a d e sco n h e c e r seu A m o , c o m p ra n d o a vara d e Ju iz O r d in á rio na v ila de Igaraçu em

P e r n a m b u c o , fez u m a u to c r i m i n a l c o n tr a este p o r lhe h a v e r c h a m a d o p o r V ós, c o m o a n te s d e o v e r

J u iz c o s tu m a v a . D e f e n d ia o n o sso ju rista [G regório] o réu , c c o n fe s s a n d o a c u lp a , m o s tro u q u e o

n ã o e ra , c o m e ç a n d o as raz õ e s c o m este a rg u m e n to : "S c tr a ta m a D e u s p o r tu , / c c h a m a m a E i R ei

p o r v ó s , / c o m o c h a m a r e m o s n ó s / ao J u iz d e I g a r a ç u ? / T u , e vós, e vós, e tu". C f. R a b e lo , op. a í . , e m

J a m e s A m a d o , o p . c i t ., v o l . V I I , p . 1 7 0 5 . L e m b r e - s e t a m b é m o b i l i n g ü i s m o p o r t u g u ê s - c a s t e l h a n o d o

p e r í o d o . S e g u n d o P i a C á r c e l e s , “ [...] v o s e a r a u n a p e r s o n a i m p i i c a b a c u a n d o n o e n i n s u l t o , u n a

in tim a f a m ilia rid a d , o s u p e rio r c a te g o ria so cial p o r p a rte d e i q u e h a b la b a ” , d e s d e os p r in c íp io s d o

s é c u l o X V I . C f . P i a C á r c e l e s , R e v i s t a d e F ilo lo g ia E s p a n o l a , v o l . X , 1 9 2 3 , p . 2 4 5 , c i t . p o r J o s é F e r r e i r a

C a r r a t o , A C r is e d o s C o s tu m e s n a s M in a s G e r a is d o S é c u lo X V I I I , S e p a r a t a d a R e v i s t a d e L e t r a s , A s s i s ,

F a c u l d a d e d e F i l o s o f i a , C i ê n c i a s e L e t r a s , v o l . II I , p . 2 2 2 , 1 9 6 2 .

124. L ic e n c ia d o M a n u e l P e reira R a b e lo , “ V ida e M o rte d o E x c e le n te P o e ta L íric o , o D o u t o r G re g ó rio

d e M a t o s e G u e r r a ” , e m J a m e s A m a d o ( o r g . ) , op. c it., v o l . V II, p . 1 7 0 7 ( g r i f o s m e u s ) .

84
UM NO ME POR FAZER

entre outros, generalizado como representativo da excelência política e letrada.


Assim, aquilo que está retoricamente previsto para o prazer da deformação cô-
mico-maledicente - estilo baixo, translação sórdida, tópicas para a vileza, cari­
catura, deformação, adequação ao vulgo, mistura estilística etc. - é lastimado:
“mal aplicados conceituosos dispêndios”, “descuidos”, “barateava versos”, “fa­
cilitando linguagens”, “conjunção dos acasos”. A censura fez carreira e é
indicativa da reorientação do decoro como /moral/, iniciada no século XVI, e que
se naturaliza no XVIII. Em Tesauro já se explicita a moralização:

Non voglio però negare che o per bizzarria o per trastullo non si possa talvolta
voloniariamente sprezzar le leggi dei decoro, come fanno ipoeti ne’fescennini, perfar ridereL’5.

O decoro rebaixa a sátira a gênero misto, tornando-se impossível delimitá-


la numa forma fixa ou num procedimento exclusivo: as misturas e as situa­
ções são ilimitadas e ela é estruturalmente aberta. Escreve-se isto lembrando-
se novamente que no Brasil se tornou modismo hipostasiar a paródia, forma
sério-cômica entre outras, como sua definição125126.Veja-se, para melhor discu­
tir a questão, o seguinte soneto atribuído a Gregório de Matos e Guerra:

R u b i, c o n c h a d e p e r l a s p e r e g r in a ,
A n i m a d o C r i s t a l , v iv a e s c a r la t a ,
D u a s S a f ir a s s o b r e l i s a p r a t a ,
O u r o e n c r e s p a d o s o b r e p r a ta fin a .
E s t e o r o s t i n h o é d e C a t e r in a ;
E p o r q u e d o c e m e n t e o b r ig a , e m a ta ,
N ã o liv r a o s e r d i v i n a e m s e r in g r a t a ,
li r a io a r a io o s c o r a ç õ e s f u lm in a .
V iu F á b i o u m a t a r d e t r a n s p o r t a d o

1 2 5 . E m a n u e l e T e s a u r o , I d e a d c l l e P e r fe í te . I m p r e s e , o p . c i t . , p . 1 1 1 . T e s a u r o e s c r e v e q u e m u i t o s p o e t a s

p e c a m .co n tra a a rte , s a b e n d o q u e d e ix a m o decoro p o rq u e q u e re m d eix á-lo . A ssim , n ã o p e c am ,

c o m o n ã o p e c a c o n tra a arte o p in to r q u e faz m u ilo b e m um fo cin h o to rto . C o m o d iz A ristó teles,

to d a a rte (ex ceto a p ru d ê n c ia ) tem esse p riv ilég io de n ã o p e c a r c o n tra a a rte q u a n d o peca.

1 26. C f . , p o r e x e m p l o , A n g e l a M a r i a D i a s , O R e s g a te d a Dissonância - Sátira e Projeto Literário Brasileiro,


R io d e J a n eiro , A n ta re s /IN L , 1981; L ú cia H e le n a, Uma Literatura Anlropofágica, R i o d e J a n e i r o -
B ra sília , C á t e d r a / I N L , 1982. H c o m u m , n o s e s tu d o s so b re a p o esia a tr ib u íd a a G r e g ó r io d e M a to s ,

n ã o a n alisá-la s e g u n d o su a h isto ric id ad e , m a s p refix ar a p a ró d ia c o m o m o d e lo ou c â n o n e d e Io d a a

sá tira e le v a n ta r m o d a lid a d e s irô n ic as nos p o e m a s, id e n tific an d o -a s c o m p a ró d ia , c o m o re s u lta d o

q u e p ro v a o p ro v ad o . Isso ta m b é m te m lu g a r n o B rasil c o m a g e n e ra liz a ç ã o d o c o n c e ito d e “ sá tira

m e n ip é ia " e d e “c a rn a v a liz a ç ã o d a lin g u a g e m ”. I d e n tific a d a a sá tira m e n ip é ia c o m p a ró d ia , ap lica-

se o c o n c e ito d e p a ró d ia à p r o d u ç ã o sa tíric a d e m o d o q u e a p a ró d ia p a s sa a d e m o n s t r a r a sá tira .

C o m o a p a ró d ia é h ip o sta s ia d a c o m o o p o sição p o lítica, tem -se q u e to d a a sá tira faz o p o siç ã o p o lí­

tica: e is “ G r e g ó r i o ” a n á r q u i c o , l ib e r tin o , p r é - n a c io n a l is t a e o u t ro s m it o s d o c a rn a v a l.

85
A SÁTI RA E O E N G E N H O

B e b e n d o a d m ir a ç õ e s , e g a lh a r d ia s ,
A q u e m já t a n t o a m o r le v a n t o u a ra s:
D is s e ig u a lm e n te a m a n te , e m a g o a d o :
A h m u c h a c h a g e n t i l , q u e t a l s e r ia s
S e s e n d o tã o f o r m o s a n ã o c a g a r a s ! 127

( O C , V , p . 1 1 7 4 .)

Alegoria da beleza, a pedraria gongórica do primeiro quarteto é extrema­


mente convencional, a lembrar mil e outras composições líricas desse tempo,
que lançam mão de metáforas petrificadas dispostas simetricamente. Pro­
posta esta composição mineral muito sensível, posto que fria e razoavelmente
abstrata, ainda enigmática, o segundo quarteto apresenta seu sentido próprio
como tradução irônico-afetiva:

E s t e o r o s t i n h o é d e C a t e r in a

seguida da intervenção judiciosa da enunciação, que pondera, antiteticamente,


os males do amor como efeito de tanta beleza:

E p o r q u e d o c e m e n t e o b r ig a , e m a t a ,
N ã o liv r a o s e r d i v i n o e m s e r in g r a t a ,
E r a io a r a io o s c o r a ç õ e s f u l m i n a .

Tem-se aqui um status qualitatis determinado, basicamente, pela perífra-


se alegórica do primeiro quarteto, sensibilização do ser belo, e pela indivi-
duação do nome próprio, no segundo, e narrativa de ação que qualifica o tipo
feminino. Constitui-se este como beleza, petrificada no estilo alto dos mine­
rais como “ser divino”, vagamente mitológico - “raio a raio os corações
fulmina” - ação, enfim, das “Duas Safiras” etc.
O primeiro terceto introduz Fábio, personagem de muita epístola moral
do período, narrativamente:

127. O soneto em questão pode ser proposto como paródia, por exemplo, de outro, lírico, também
atribuído a Gregório de Matos e Guerra: “Vês esse Sol de luzes coroado? / Em pérolas a Aurora
convertida? / Vês a Lua de estrelas guarnecida? / Vês o Céu de planetas adornado? / O Céu
deixemos; vês aquele prado / A Rosa com razão desvanecida? / A Açucena por alva presumida? /
O Cravo por galã lisonjeado? / Deixa o prado; vem cá, minha adorada, / Vês desse mar a esfera
cristalina / Em sucessivo aljôfar desatada? / Parece aos olhos ser de prata fina? / Vês tudo isto
bem? pois tudo é nada / À vista do teu rosto, Caterina”. (“Pintura admirável de uma beleza”, OC,
V, p. 1171.)

86
UM N O M E P O R FAZER

V iu F á b i o u m a t a r d e t r a n s p o r t a d o
B e b e n d o a d m i r a ç õ e s [d o C r i s t a l ] , e g a lh a r d ia s [d a e s c a r la ta ]
A q u e m já t a n t o a m o r le v a n t o u a ra s.

(“aras”, pois amor cortês puramente inteligível, de ressonâncias camonianas)

D is s e , ig u a lm e n te a m a n te , e m a g o a d o :
A h m u c h a c h a g e n t i l , q u e t a l s e r ia s ,
S e s e n d o tã o fo r m o sa n ã o cagaras!

Introdução, no personagem Fábio, do princípio de distanciamento irôni­


co que desmobiliza o mito pelo estilo sórdido do ato. Contradição encenada,
pois, entre o alto de “amor levantou aras” e o sórdido de “cagaras” (o verbo,
aliás, espelha perversamente, numa rima perfeita, o termo “aras”, incluindo-
o em seu valor semântico/desvalor/, quando o traduz violentamente para bai­
xo). Observa-se no soneto, que se pretende agudo, um percurso trifásico de
degradação temático-lexical, que pode ser sintetizado por três versos:
Ia “Rubi, concha de perlas peregrina” (ou qualquer outro da primeira
estrofe, uma vez que são todos equivalentes, tanto por sua ordenação sintag-
mática quanto pelo paradigma lexical e sintático);
5a “Este o rostinho é de Caterina” (tradução ou sentido próprio da pri­
meira estrofe);
14a “Se sendo tão formosa não cagaras!” (degradação Final no estilo sórdido).
A relação disfórica é efetuada pelo próprio posicionamento dos termos,
rubi, cabeça do soneto e metáfora de “boca”, redundado pelas outras metáforas
minerais do mesmo valor semântico, na mesma posição sintagmática, desig­
nando “rosto” e significando /beleza/, por analogia com a parte superior, “no­
bre”, do corpo, e cagaras, termo que cai no final do soneto como recolha dinâ­
mica e espelhamento analítico, simetria perversa e irônica da “boca” que abre
o poema. Este se constrói como figura da surpresa, antítese, na qual a ironia é
o contrário da metaforização, como figura de oposição e divisão de “Caterina”
em duas, alta e baixa. A mesma antítese é o diagrama das operações disfóricas
de tradução como inversão do estilo alto dos minerais, comum na lírica da
época, passando pelo médio de “rostinho” e terminando pelo sórdido de “caga­
ras”. Rebaixamento do tipo, paródia de estilo a estilo e de gênero a gênero. O
soneto, que seria muito convencional fosse outro o verbo final (desde que
mantivesse a isotopia do primeiro quarteto), assume certa funcionalidade de
surpresa que busca a delectatio do destinatário. Neste sentido, é também total­
mente convencional, como ruptura prevista da codificação lírica por regra
produtora de inconveniência física na personagem. A ironia é aqui, como quer

87
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

Beda, o Venerável, antífrase: contra-sentido mediante o sentido do contexto


verbal imediato128.
A partir deste soneto, é adequado caracterizar a paródia como inversão
irônica de um discurso de estilo alto. Identificar o estilo alto como discurso da
classe dominante, contudo, propondo-se a paródia como crítica política pré-
nacionalista da mesma ordem dominante supostamente representada de ma­
neira unívoca pelo estilo alto parodiado, embora seja muito piedoso, é muito
inexato e anacrônico para a sátira na Colônia. Os poetas seiscentistas não são
exatamente vanguarda do nacional-popular e a postulação atual da “crítica”
às instituições, supostamente representadas de forma unívoca na lírica ou na
épica, não leva em conta a simultaneidade do sistema retórico-poético do sé­
culo XVII, cuja codificação retórica sempre prevê o decoro, interno e externo,
diferencialmente. É o caso deste e de outros poemas atribuídos a Gregório de
Matos e Guerra, geralmente sonetos, que são variações baixas da lírica
camoniana e que invertem o petrarquismo, substituindo a melancolia da
delectatio morosa da ausência do corpo da dama angelical pelas misturas do
corpo obsceno e seus fluidos malcheirosos. O procedimento irônico não signi­
fica ruptura da codificação lírica ou épica no sentido de sua crítica como lin­
guagem representativa da classe dominante, como é rotineiro e romântico pro­
por, mas um gênero também previsto por regras que prescrevem a inadequação
programática da linguagem a seus objetos. Tal inadequação, deve-se dizer, não
preexiste praticamente ao ato das recepções muito assimétricas do poema.
Segundo preceptistas do século XVII, a sátira é um subgênero do cômico
- o que não a faz necessariamente engraçada, porém, uma vez que o ridículo,
que no cômico é a inconveniência que faz rir sem dor, nela é maledicência129.
Por ser mista, opera com metonímias recortadas de vários discursos, vozes,
léxico e procedimentos, não tendo a pureza prescrita em outros gêneros. As­
semelha-se, por exemplo, à sátira menipéia de Varrão, mistura de prosa e

128. Cf. Beda, o Venerável, De Schematibus et Tropis Sacrae Scripturae, em J. P. Migne, Patrologiae Cursus
Completus, Series latina, Paris, 1844-1864, vol. 90, pp. 175-186.
129. Cf. Emanuele Tesauro, “Capitolo XII: Trattato de’ ridicoli”, em II Cannocchiale Aristotelico o sia,
Idea deliarguta, et ingegniosa elocutione, che serve à tutta Varte oratoria, lapidaria, et simbólica. Esaminato
co’principii dei divino Aristotele. Dal conte D. Emanuele Tesauro, cavalier Gran Croce de Santi Mauritio
&Lazaro. Acresciuta dalPautore di due novi trattati, cioè De’ Concetti Predicabili, et Degli Emblemi.
Con un nuovo indice alfabético, oltre à quello delle material. Consacrato ai clarisimo signore
Pietro Vanteylingen. In Venetia, apresso Martin Vincenzi, 1685, p. 356. (O exemplar consultado, da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, pertenceu a Francisco Leitão Ferreira e traz a inscrição:
“1687 - Livro que me mandou de mimo o F. Francisco [...] de Gênova com a Nau [...] F. Leitão
Ferreira”.)

88
UM NO ME POR FAZER

verso não necessariamente paródica por ser mista. Em outros termos, a sáti­
ra não apresenta unidade prefixada ao ato em que é enunciada: os motivos
associativos com que opera permitem inumeráveis jogos irônicos: um poe­
ma lírico, por exemplo, pode ser proposto como sátira numa situação deter­
minada que o faz ser assim entendido quando se infringe a pragmática de
sua recepção. É preciso lembrar, por exemplo, as figuras da ironia, com que
se satirizam indivíduos e eventos, quando a sátira assume a forma jâmbica
do asteísmos ou do sarcasmo130, sem recorrer a citações ou a inversões críticas
de textos. E que a formulação mista é hiperinclusiva: a fantasia poética tanto
cita e inverte textos líricos, épicos, trágicos, como paródia, quanto efetua
tipos monstruosos, montando-os pedaço por pedaço por translação metafó­
rica, como agressão, sarcasmo e maledicência. A sátira aparece sempre como
discurso de função poética mista, em que a adequação ao caso por satirizar
determina o procedimento das misturas da fantasia poética. Isto significa
que sua conceítuação deve considerar as regras de classificação e, assim, de
hierarquização d a persona satírica e seus objetos, antes mesmo que seus te­
mas e tipos, topoi estereotipados da tradição latina e medieval. A sátira é
constituída das tópicas retóricas da sua invenção, evidenciando sua transfor­
mação pelo investimento léxico-semântico particular, operado segundo a ade­
quação ou conveniência ao caso tratado e ao público receptor. Letrados
baianos empapados de retórica e pessoas analfabetas do vulgo propõem ade­
quações diversas para um mesmo poema, impondo a ele a refração específica
de sua posição. Como no soneto da donzela que vem da índia para casar-se
na Bahia:

S e t e a n o s a N o b r e z a d a B a h ia
S e r v iu a u m a P a s to r a i n d i a n a , e b e la ,
P o r é m s e r v i u a í n d i a , e n ã o a e la ,
Q u e à í n d i a s ó p o r p r ê m i o p e r t e n d ia .
M i l d ia s n a e s p e r a n ç a d e u m só d ia
P a s s a v a c o n t e n t a n d o - s e c o m v ê -la :
M a s F r e i T o m á s u s a n d o d e c a u t e la ,
D e u - l h e o v i l ã o , q u i t o u - l h e a f id a lg u ia .
V e n d o o B r a s i l , q u e p o r tã o s u j o s m o d o s
S e l h e u s u r p a r a a s u a D o n a E lv ir a ,
Q u a s e a g o l p e s d e u m m a ç o , e d e u m a g o iv a :
L o g o se a r r e p e n d e r a m d e a m a r to d o s,

1 3 0 . C f . M . F. Q u i n t i l i a n o , o p . c i t . , I I I - V I II , 4 4 , p . 2 3 8 .

89
A SÁTI RA E O E N G E N H O

E q u a l q u e r m a is a m a r a , s e n ã o fo ra
P a ra t ã o l i m p o a m o r tã o s u ja N o iv a .

(O C , IV , p . 8 9 1 .)

No caso da sátira ibérica seiscentista, mulheres não-brancas são, por de­


finição, uma sub-humanidade relegada ao topos da gentilidade e mesmo da
bestialidade pelos códigos teológico-políticos da Conquista e o estilo para
tratá-las como tema de poesia deve ser cômico ou baixo, para ser verossímil.
O poema é paródia de Camões, que poderia ser conhecido do vulgo, embora
isso não fosse determinante para o funcionamento satírico. Afinal, o conhe­
cimento de Camões é determinante para entender a paródia da forma lírica,
não a agressão satírica. Referindo-se à indiana como “suja Noiva”, a sátira se
faz pela inadequação da forma lírica mimetizada que se aplica ao objeto bai­
xo. Por isso, a inadequação se evidencia imediatamente como pragmática
paródica e também satírica. Para conhecedores de Camões, enfim, a recepção
se faz em dois níveis: como relação de gênero a gênero, o poema da indiana
evidencia-se como paródia do soneto “Sete anos de pastor Jacó servia...”; como
tematização narrativa de discursos contemporâneos cujo tema é a “limpeza
de sangue” ou boatos sobre Frei Tomás e sobre o noivo, o pseudofidalgo
Pedralves da Neiva, o poema aplica-se à indiana e a outros possíveis eventos
da Cidade, que envolvem Frei Tomás e outros homens, sendo motivo de mur-
muração. A tipificação da “pastora indiana” é intensificada, isto é, mais di­
vertida, quando se observa a inadequação do gênero e do objeto nele
tipificado pejorativamente. Para não-conhecedores de Camões, a paródia não
funciona, evidentemente, mas a sátira sim, sendo recebida como tal devido à
degradação do tipo - “suja Noiva” - e à referência a eventos supostamente
conhecidos na Cidade. O soneto fornece as informações sobre a indiana atra­
vés de narração. Por isso, embora seja mímese irônica do soneto camoniano,
faculta também a interpretação apenas referencial, o que a preceptiva poéti­
ca do século XVII prevê para o vulgo, por definição ignorante das convenções
letradas.
Um fabliau medieval referido por Wolfram Kròmer, De la Demoisellc qui
ne pouvait pas ouir de foutre, é elucidativo de parte da questão. A narrativa
conta que a personagem, filha de nobre, não podia mesmo ouvir falar de
“foutre". Um homem esperto e decidido a fazê-la não só ouvir finge-se de
casto e envergonhado, enredando-a de tal modo que ela termina por deitar-se
com ele. Durante a noite, ambos explicam as anatomias respectivas com ex­
pressões bretãs de lais e novelas de cavalaria, falando da “fonte guardada” e
do “potro com seu acompanhante”. A donzela o convida, finalmente, a dar de

90
UM N O M E POR FAZER

beber ao potro, o que se faz com satisfação de ambas as sedes131. Embora neste
fabliau a personagem feminina seja nobre, como filha de cavaleiro andante, o
texto não é dirigido univocamente contra a nobreza. Segundo Krõmer: “Ao
contrário, esta estória tem de dirigir-se precisamente a um público que sabia
apreciar o humor do singular emprego da mitologia bretã e que, por isso mes­
mo, estava familiarizado com a cultura cortesã”132.
O plano de referência da sátira é o funcionamento de um tipo literário e
de uma convenção dramática no discurso poético - em outros termos, o texto
também informa sobre os modos da sua recepção. No soneto da indiana, a
ironia é efetuada sobre um tipo cujos elementos figurativos de estilo alto são
substituídos um a um por outros, baixos: “Raquel”, dama petrarquista espiri­
tualizada e elevada, por “indiana”, suja de sangue e baixa. A troca segue um
paradigma que vai do nobre ao ignóbil, de “cima para baixo”, extremamente
rotineiro na poesia medieval133. Um elemento formal que, no soneto de Camões,
compõe o elogio das virtudes do amor que caracterizam o perfeito amante -
por exemplo, a perseverança de Jacó - torna-se elogio irônico de sua tolice
como amante de tipo disforicamente caracterizado134. O efeito de contraste
gera o riso, mas o contraste só é conseguido se há conhecimento do código da
lírica por parte da recepção e dos paradigmas institucionais que interpretam
o investimento semântico do poema na situação de ataque. Por isso, embora o
exemplo de Wolfram Krõmer seja adequado para descaracterizar a atribuição
do texto a uma classe social supostamente representada por ele de forma
unívoca, só o é em parte, pois não dá conta de outras recepções, como a de
hipotéticos ouvintes do fabliau que não conhecessem familiarmente a “cultu­
ra cortesã” e que poderíam, inclusive, entender a narrativa como ataque à
nobreza, dada a astúcia do personagem masculino que, não sendo caracteri­
zado, poderia ser interpretado como “vilão” em oposição a “nobre”. Bastaria,
para tanto, não considerar o humor das metáforas anatômicas, retendo-se
apenas a situação narrativa em que o homem esperto seduz a moça nobre.
Neste sentido é que a sátira, porque aberta, pode ser apropriada de ma­
neiras múltiplas, inclusive opostas: por exemplo, nos ataques aos governa­
dores Sousa de Meneses e Câmara Coutinho, a sátira propõe a correção dos

' 131. Cf. Wolfram Krõmer, Formas de la Narración Breve en las Literaturas Románicas hasta 1 700, Aladrid,
v Gredos, 1979, p. 70. Cf. também Philippe Alénard, Les fabliaux (Contes à rire du Moyen Age), Paris,
PUF, 1983. Sobre a relação do fabliau e da poesia, cf. Pierre Bec, Burlesque el obscénité chez les
troubadours (Le comre-texie au Moyen Age), Paris, Stock, 1984.
132. Cf. W. Krõmer, op. cil., p. 72.
133. Cf. Paul Zumthor, Essai de poétique médiévale, op. cil., pp. 105-106.
134. Idem, ibidem.

91
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

abusos - “tirania” - para que se reinstaure o bom uso administrativo da mo­


narquia representada com justiça. Ler os ataques contra os governadores e
generalizá-los como ataque à própria ordem monárquica é só isso: generali­
zação. Mas propor que o ataque é defesa unívoca da mesma ordem infringida
pela tirania local também é redutor, se não se considera a recepção.
No momento de sua intervenção, a sátira encena interesses diferentes -
por exemplo, aqueles que têm desafetos por Sousa de Meneses, caso de
Bernardo Vieira Ravasco e do clã do padre Vieira, ou outros: “Xinga-te o ne­
gro, o branco te pragueja” (OC, I, p. 158), refere um poema contra o governador.
O mesmo se pode dizer dos ataques muito reiterados e muito convencionais
ao clero local: a sátira opera, no caso, com os topoi medievais da avareza, gluto-
neria, luxuria e simonia dos frades e padres. Não importa saber se os religio­
sos baianos em fins do século XVII eram “realmente” simoníacos, lascivos,
glutões, avarentos e usurários. Muitos o seriam, outros não. E mais adequado
propor que, ao atacá-los, a sátira funciona como prática moralizante articulada
a outras práticas discursivas contemporâneas, que mediatizam e redirecionam
seu sentido.
Lembrando-se aqui os continuamente relatados conflitos entre senho­
res de engenho e padres, como os jesuítas, beneditinos e franciscanos pro­
prietários de grandes plantações de açúcar e tabaco, escravaria, gado e en­
genhos, a sátira contra eclesiásticos locais faz discursivamente o jogo dos
interesses senhoriais no conflito, ainda que não os tematize, quando refere
os tipos viciosos aos religiosos. Nesta linha, a intervenção satírica não só
desenvolve temas convencionais, adaptando-os ao referencial discursivo do
lugar quando os trata poeticamente, mas também alegoriza várias posições,
enquanto dramatiza partes interessadas em conflitos não necessariamente
tratados pelos poemas.
O jogo de linguagem assume dupla orientação: remetendo ao sistema
retórico-poético do qual é uma peça convencional, remete também ao con­
texto discursivo da comunicação, no qual intervém os repertórios variadíssimos
da recepção. Embora o tratamento dos temas possa valorizar a fidalguia ou o
vulgo - a sátira feita na Colônia postula as virtudes da primeira ela não é,
tanto quanto o fabliau medieval, nem cortesã nem plebéia, considerando-se as
deformações da sua recepção. Como qualquer outra poesia, épública, abrindo-se
para um consumo muito assimétrico dos valores que postula135.

135. Cf. Atikhail Bakhtin (Voloshinov), Le marxisme ei laphilosophie du langage, op. cil. A conceituação do
valor do signo como unidade contraditória é decisiva para impedir que o poema seja proposto
como representante unívoco de uma classe social. Cf. também Cristina Macário Lopes, “Literatu-

92
UM N O ME POR FAZER

Basicamente, há dois tipos de destinatários codificados pela preceptiva


retórica e dramatizados na formulação dos poemas satíricos, o discreto e o
néscio. Apresentando as virtudes do cortesão e do perfeito cavaleiro cristão, o
discreto distingue-se pelo engenho e pela prudência, que fazem dele um tipo
agudo e racional, capacitado sempre para distinguir o melhor em todas as
ocasiões. Quanto ao néscio, caracteriza-se pela falta de juízo, rústico e confu­
so. Néscio é o vulgo, termo também empregado em oposição a discreto e que
significa “população” do terceiro estado, genericamente, e os oficiais mecâni­
cos136e a “gente baixa”, especificamente. Embora por vezes a faça, a oposição
discreto/vulgo não é equivalente à oposição político-econômica senhor/homem
pobre livre ou fidalgo,/plebe, pois a oposição é antes de tudo intelectual, tendo
por núcleo o conceito de juízo, aristotelicamente definido. Poeticamente, o
termo “vulgo” também pode significar aqueles que, embora pertencentes aos
“melhores” pela propriedade e posição, são caracterizados como rústicos, fa­
lhos de discernimento e, portanto, como “néscios”137. A aplicação de tais clas­
sificações está condicionada, na sátira, à postulação da hierarquia subvertida
pela ação viciosa do vulgo.
E comum nas preceptivas poéticas do século XVII a discussão do abando­
no ou da permanência das regras aristotélicas - por exemplo, na tragicomé-
dia -, envolvendo as convenções do “gosto” e do “néscio”, a que se opõem a do
“juízo” e a do “discreto”. Segundo elas, a plebe se caracteriza pela falta de
discrição em matéria de juízo, sendo naturalmente rude e estúpida. Pensan­
do na mesma plebe, contudo, que vai à igreja, às procissões e festas litúrgicas,
aos sermões e ao teatro, que assiste aos açoites, aos enforcamentos, aos autos-
da-fé, que circula na praça, que murmura nas ruas, e que paga, letrados escre­
vem obras para ela enquanto a produzem nelas, nomeando-a. A prescrição
aristotélica do decoro se mantém; sendo a plebe naturalmente vulgar, como

ra Culta e Literatura Tradicional de Transmissão Oral. A Bipartição da Esfera Literária”, Cadernos


de Literatura, Coimbra, Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra/Instiluto
Nacional de Investigação Científica, n. 15, 1983.
136. Cf., por exemplo: “Tu és filho de um sastre de bainhas, / E botas muito mal as tuas linhas, / Pois
quando fidalgão te significas, / A ti mesmo te picas,/E dando pontos em grosseiro pano, / Mostras
pela entertela, que és magano” (OC, II, p. 341).
137. Os tipos do discreto e do vulgar podem ser referidos independentemente da situação social, pois são
categorias intelectuais. Imaginem-se, por exemplo, um senhor de engenho, riquíssimo e ignorante,
o que é comum, e um letrado, culto e paupérrimo, o que é ainda mais comum. Tanto o entendimento
de poesia do senhor quanto o do letrado não se deixam conformar pelo esquema sociológico domi­
nante/dominado. Quanto ao entendimento da poesia, o letrado é provavelmente o discreto, ao passo
que o outro, embora não a entenda, tem o dinheiro e o poder que lhe permitem comprar o letrado
que a produz para ele, haja vista a proliferação do gênero encomiástico ta m b é m no século XVII.

93
A SÁTI RA E O E N G E N H O

então se prescreve, propõem-se para ela, como diversão, vulgaridades natu­


ralmente vulgares (isto é, sem regras aparentes do juízo). O “gosto confuso” é
efeito, assim, do engenho dos letrados - Lope de Vega é paradigmático - que
afirmam que não seguir regras não nasce de ignorá-las e que o atendimento
ao gosto do vulgo é política perfeição. Neste sentido é que se pode esboçar o
funcionamento da oposição discrelo/vulgo na sátira corrente em Salvador no
final do século XVII. Posições análogas às de Lope de Vega e Tirso de Molina,
como ainda se verá, são efetuadas por ela.
Quando critica fidalgos locais, a sátira desqualifica-os como vulgo em nome
dos valores discretos que postula como distintivos dos fidalgos dirigentes, que
se enunciam como verdadeiros. Rebaixa-os violentamente, oferecendo a cari­
catura em espetáculo ao vulgo como objeto de chacota, diversão e, provavel­
mente, vingança. Expondo-os também ao desprezo dos verdadeiros fidalgos
encenados na voz prudente e aguda dapersona, em ambas as situações drama­
tiza o discurso contra o vulgar, de modo que ordens diferenciadas ou opostas
coincidem, na apreciação comum, pela ridicularização de uma mesma pes­
soa à qual a caricatura se aplica. Signos da discrição efetuam os mecanismos
institucionais de legitimação da nobreza: os mesmos encontráveis na poesia
lírica e encomiástica, na sátira são operados disforicamente. Dramatizam
padrões distintivos dos “melhores”: ortodoxia religiosa do desprezo católico
da carne, condição mesma da sensualidade crispadamente hedonista que per­
passa os corpos na lírica; genealogia de tipos superiores às artes mecânicas;
imaginário do cortesão e da dama vivendo o ócio; brancura da pele, sem ne­
nhum laço com as “raças infectas de mouros, judeus, negros e mulatos”, si­
multaneamente signo da ascendência pura e da religiosidade católica dos ti­
pos; deleite da agudeza conceituosa etc. O termo que unifica tais mecanismos
e signos, na poesia e nas práticas fidalgas do período, já se viu, é discreto, por
vezes entendido. Discreto é o “melhor”, caracterizado pelo juízo e pela prudên­
cia que o constituem como nobre, afirma a sátira seiscentista, quando recu­
pera a diatribe cínico-estóica e a sátira horaciana contra o dinheiro. O termo
designa um padrão cortesão e já tivera codificação na Itália renascentista.
Enquanto Castiglione propõe o discreto cortesão como modelo a ser seguido
por cortesãos discretos no século XVI das cortes italianas, Gracián dilata a
proposição, afirmando que é a aplicação das convenções, fornecidas por ele
como receita ao alcance de todos, que permite a qualquer um, nos limites
hierárquicos óbvios, tornar-se discreto138. A persona satírica acompanha iro­

138. Cf. Baltasar Gracián, El Discreto, op. cit.

94
UM N O ME POR FAZER

nicamente o movimento ascensional em sua narrativa, na qual o néscio se


apropria da prudência e sua circunspecção, fingindo-as. Estilizado negativa­
mente, o pseudodiscreto é identificado na sátira com o pseudofidalgo: embo­
ra o critério principal da discrição seja o padrão culto das letras, outros dispo­
sitivos operam a desqualificação, como os da genealogia, do nome de família,
das virtudes heróicas. Vulgar, o pseudofidalgo figura o tema da decadência
política e corrupção dos costumes, que a persona compõe como atos e aparên­
cia dos signos nobilitantes:

[...] sai um pobrete de Cristo [...]


cheio de drogas alheias
para daí tirar gages:
O tal foi sota-tendeiro
de um cristão-novo em tal parte
que por aqueles serviços
o despachou a embarcar-se [...]
e ei-lo comissário feito
de linhas, lonas, beirames.
Entra pela barra dentro,
dá fundo, c logo a entonar-se
começa a bordo da Nau
cum vestidinho flamante.
Salta em terra, toma casas,
arma a botica dos trastes,
em casa come Baleia,
na rua entoja manjares.
Vendendo gato por lebre,
antes que quatro anos passem,
já tem tantos mil cruzados,
segundo afirmam Pasguates.
Começam a olhar para ele
os Pais, que já querem dar-lhe
Filha, e dote, porque querem
homem, que coma, e não gaste.
[...]
Casa-se o meu matachim,
põe duas Negras, e um Pajcm,
uma rede com dous Minas,
chapéu-de-sol, casas-grandes.
Entra logo nos pilouros,
e sai do primeiro lance

95
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

Vereador da Bahia,
que é notável dignidade.
Já temos o Canastreiro,
que inda fede a seus beirames,
metamorfosis da terra
transformado em homem grande:
e eis aqui a personagem.
(OC, II, pp. 430-431.)

A agudeza conceituosa distingue o discreto do vulgo, uma vez que o enge­


nho e o juízo são aptos para compreender a dificuldade programática da poe­
sia, como então se prescreve - o que se evidencia, por exemplo, na diluição de
Góngora e Marino, cujo hermetismo sublime e melancolia sutilmente lasciva
distinguem “cultos”. A sátira efetua, como objeto de sua ironia, a hiperdeter-
minação da agudeza, a afetação, dos que não conhecem seu lugar e passam por
outro nos trajes, nos gestos, nas formas pronominais de tratamento, na dic­
ção, nas eleições, nas ocupações:

Bote sua casaca de veludo,


E seja Capitão sequer dous dias,
Converse à porta de Domingos Dias,
Que pega fídalguia mais que tudo.
Seja um magano, um pícaro abclhudo,
Vá a palácio, e após das cortesias
Perca quanto ganhar nas mercancias.
E em que perca o alheio, esteja mudo.
Sempre se ande na caça, e montaria.
Dê nova locução, novo epiteto,
E diga-o sem propósito à porfia;
Que cm dizendo: “facção, pretexto, efecto”
Será no entendimento da Bahia
Mui fidalgo, mui rico, e mui discreto139.
(OC, IV, p. 838.)

139. Cf. também: “Faça mesuras de A com pé direito, / Os beija-mãos de gafador de péla, / Saiba a todo
o cavalo a parentela, / O criador, o dono, e o defeito, / Se o não souber, e vir rocim de jeito, / Chame
o lacaio, e posto na janela, / Mande, que lhe passeie a mor cautela, / Que inda que o não entenda,
há respeito. / Saia na armada, e sofra piparotes, / Damas ouça tanger, não as fornique, / Lembre-
lhe sempre a quinta, o potro, o galgo: / Que com isto, e o favor de quatro asnotes / De bom ouvir, e
crer se porá a pique / De um dia amanhecer um grão fidalgo” (OC, IV, p. 839).

96
UM N O M E POR FAZER

A ascensão do personagem pseudodiscreto esbarra nos estereótipos de­


preciativos da enunciação, que postula o verdadeiro fidalgo: tratando-se de
comerciante, o desprezo discreto pode evocar o caráter fecal de sua riqueza
como manipulador do fisco e do crédito real. Termos que designam ou
metaforizam odores são freqüentes, assim, e o epíteto excremencial torna-se
adequado para a constituição da bastardia, segundo a tópica “origem”. De­
signando o absoluto não-valor, a circulação obsedante do termo “merda” e
sinônimos funciona, na sátira, como tradução negativa dos signos da agude­
za, aplicando-se à caracterização do arrivista. O mesmo tipo de depreciação
encontra-se, aliás, na Espanha, na França, na Áustria ou na Inglaterra do pe­
ríodo140.
Contra o vulgo tpara o vulgo, assim se pode caracterizar o modo pelo qual
a poesia seiscentista efetua o público não-discreto como tema e receptor. Con­
ta-se que Lope de Vega costumava ir disfarçado às representações de obras
de outros autores para observar quais situações dramáticas mais faziam o pú­
blico rir a fim de aproveitá-las em suas peças. Este lugar metaforiza a posi­
ção de seu discreto, que efetua o vulgo em sua receita de escrever tragicomé-
dias:

[...] escribo por el arte que inventaron


los que el vulgar aplauso pretendieron,
porque, como las paga el vulgo, es justo
hablarle en necio para darle gusto
(vv. 45-48)
[...]
Si pedis parecer de las que agora
están en posesióny que es forzoso
que el vulgo con sus leyes establezca
la vil quimera de este monstruo cômico,
diré el que tengo,y perdonad, pues debo
obedecer a quien mandarme puede,
que, dorando el error dei vulgo, quiero
deciros de qué modo las querría,

140. “II faut du fumier sur les meilleures terres”, diz Madame de Grignan a propósito das núpcias de
seu filho com a filha ricamente dotada de um grande proprietário burguês. A Duquesa de Chaulnes
declara ao filho, Duque de Picquigny, que contrata matrimônio com a filha do riquíssimo financis­
ta Bonnier: “Bon maríage, mon fils... 11 faut bien que vous preniez du fumier pour engrasser vos
terres”. Cf. “La famille de Grignan”, em Saint-Simoíi, Mémoires, Paris, Hachette, 1951, vol. I.

97
A S Á T I R A E 0 E NGE NHO

y a q u e se g u ir e l a r te n o h a y r e m e d io ,
e n e sto s d o s e x tr e m o s d a n d o u n m e d io .

(vv. 147-156.)U!

Tirso de Molina retoma Lope e evidentemente o ratifica:

Y h a b ie n d o e l [ L o p e ] p u e s to la c o m e d ia en la p e r f e c c i ó n y s u tile z a q u e a h o r a (ie n e , b a sta


h a c e r e s c u e la d e p o r si y p a r a q u e los q u e n o s p r e c ia m o s d e su s d is c íp u lo s n o s te n g a m o s p o r
d ic h o s o s d e t a l m a e s tr o y d e fe n d a m o s c o n s ta n te m e n te su d o c tr in a c o n tr a q u ie n c o n p a s ió n lo
im p u g n a r e .
Q u e si él, en m u c h a s p a r te s d e sus esc rito s, d ice q u e e l n o g u a r d a r e l a r te a n tig u o p a r a
c o n fo m ia r s e c o n lo g u s to d e la p le b e - q u e n u n c a c o n s in tió e l f r e n o d e la s le y e s y p r e c e p to s
d ic e lo p o r s u n a t u r a l m o d é s tia y p o r q u e n o a tr ib u y a la m a lic ia a a r r o g a n c ia lo q u e es p o lític a
p e r fe c c ió n ' .

Apersona satírica da poesia atribuída a Gregório de Matos dramatiza a


mesma “política perfeição” numas décimas que parodiam a convenção do
discreto fazendo ler, na inversão, a inversão do local da ação narrada, segun­
do o lugar do “mundo às avessas”: entre néscios, o prudente continua pru­
dente ou é néscio, segundo o julgamento dos néscios? E não será mais néscio
ainda agir por meios discretos, se são erro as ações em local onde, por vias
vulgares, os néscios têm acertos mui perfeitos?

O tempo me tem mostrado,


que por me não conformar
com o tempo, e co lugar
estou de todo arruinado:
na política de estado
nunca houve princípios certos,
e posto que homens espertos
alguns documentos deram,
tudo, o que nisto escreveram,
são contingentes acertos. [...]
De diques de água cercaram142

141. Cf. Lope de Vega, Arte Nueva de Hacer Comédias en Esie Tiempo (1609), vv. 43-48 e 147-156 em
Federico Sánchez Escribano y Alberto Porqueras Mayo, op. cit.
142. Cf. Tirso de Molina, Cigarrales de Toledo (1621), ed. Victor Said Armesto, Madríd, Biblioteca
Renacimiento, 191?, p. 12S.

98
UM N O ME POR FAZER

e s ta n o s s a c i d a d e l a ,
t o d o s s e m o lh a r a m n e la ,
e t o d o s t o n t o s f ic a r a m :
e u , a q u e m o s c é u s L ivraram
d e s t a á g u a f o n t e d e a s n ia ,
f iq u e i s ã o d a f a n t e s ia
p o r m e u m a l, p o i s n e s t e s tr a to s
e n tr e ta n to s in s e n s a to s
p o r s i s u d o e u só p e r d ia , [...]
C o n s i d e r e i lo g o e n t ã o
o s b a l d õ e s , q u e p a d e c ia ,
v a g a r o s a m e n t e u m d ia
c o m to d a a c ir c u n sp e c ç ã o :
a s s e n te i p o r c o n c lu s ã o
s e r d u r o d e o s c o r r ig ir ,
e liv r a r d o s e u p o d e r ,
d iz e n d o c o m g r a n d e m ágoa:
se m e n ã o m o lh o n e sta águ a,
m a l p o s s o e n t r e e l e s v iv e r , [...]
D e i p o r b e s t a e m m a i s v a le r ,
u m m e s e r v e , o u tr o m e p r e s ta ;
n ã o so u e u d e to d o b e sta ,
p o i s t r a te i d e o p a r e c e r :
a s s im v i m a m e r e c e r
fa v o r e s, e a p la u s o s ta n to s
p e lo s m e u s n é s c io s e n c a n to s ,
q u e e n f i m , e p o r d e r r a d e ir o
f u i g a lo d e s e u p o le ir o
e l h e s d a v a o s d i a s s a n t o s . [...]

(ÜC, II. P p. 446-449.)145

Enuncíando-se como discreto, a persona satírica evidencia seu engenho


(“são da fantesia”); sua prudência (“sisudo”); seu juízo (“com toda a circuns­
pecção”). Se o vulgo nunca consentiu “o freio das leis e preceitos”, a “política143

143. A última estrofe contradiz as anteriores: produzida como ironia contra as inversões da cidade até a
penúltima estrofe, a inversão paródica da convenção discreta evidencia-se como tal, quando apersona
reafirma sua prudência heróica, constituindo-se a si mesma como providencialismo: “Seja pois a
conclusão, / que eu me pus aqui a escrever,/o que devia fazer, / mas que tal faça. isso não: / decrete
a divina mão, / influam malignos fados, / seja eu entre os desgraçados / exemplo de desventura,
não culpem minha cordura, / que eu sei, que são meus pecados” (OC, II, p. 450).

99
A SÁTI RA H O E N G E N H O

perfeição” consiste justamente em satisfazer-lhe o gosto com o fingimento


discreto da necedade. O gosto vulgar é, já se viu, uma disposição estimativa
confusa e irracional - “tontos”, “asnia”, “insensatos” - que se deixa levar pela
multiplicidade da aparência. Satisfazê-lo consiste em “hablarle en necio”, como
escreve Lope, ou, com os versos sinônimos da sátira, “não sou eu de todo
besta, / pois tratei de o parecer”. Segundo apersona, assim, o discreto é aquele
que prudentemente avalia a ocasião e passa por néscio, tópica muito católica
da “dissimulação honesta” oposta à “simulação” maquiavélica no “grande
teatro do mundo”. No palco deste, por exemplo, por vezes o ator finge a clareza:

C a n sa d o de vos pregar
c u l t í s s i m a s p r o f e c ia s
q u e r o d a s c u lte r a n ia s
h o j e o h á b it o e n fo r c a r :
d e q u e s e r v e a r r e b e n ta r ,
p o r q u e m d e m im n á o t e m m á g o a ?
V e r d a d e s d ir e i c o m o á g u a
p o r q u e to d o s e n te n d a is
o s l a d i n o s , e o s b o ç a is
a M u sa p r a g u e ja d o r a .
E n t e n d e is - m e agora?
O f a la r d e i n t e r c a d ê n c ia
e n t r e s i l ê n c i o , e p a la v r a ,
crer, q u e a te sta se v o s ab ra,
e e n c a i x a r - v o s , q u e é p r u d ê n c ia :
a le r ta h o m e n s d e C i ê n c i a ,
q u e q u e r o X i s g a r a v is ,
q u e a q u ilo , q u e v o s n ã o d iz
p or lh o im p e d ir a r u d e z a ,
a v a lie is m a d u r e z a ,
s e n d o ig n o r â n c ia tr a id o r a .
E n t e n d e is - m e agora?

( O C , II, p . 4 7 2 .)

Enuncia-se nesses versos a adequação das formas da agudeza, conforme a


situação e o público. Ela é inadequada porque, sendo “cultíssima”, é herméti­
ca: aproxima conceitos muito distantes fundindo-os numa única metáfora cuja
interpretação demanda o juízo e o engenho ausentes no vulgo, segundo a con­
venção. Assim, o que a mesma sátira evidencia positivamente, em muitos pas­
sos, como discurso apto para discretos e também negativamente, como discur­
so apropriável por pseudodiscretos, aqui é proposto como inadequado.

100
UM NOME P OR F A Z E R

Postula-se a virtude retórica da clareza-“porque todos entendais” -, uma vez


que o vulgo também confunde o silêncio (no caso, de “Xisgaravis”) com um
índice de ponderação judiciosa e gravidade, não vendo que é “rudeza”, porque
também é rude. “Ladinos” e “boçais”, dois termos correntes no período colo­
nial para designar negros escravizados, “ladinos” os que falam Português, “bo­
çais” os que o não falam144, aplicam-se metaforicamente, estendendo-se sua
qualificação pejorativa para “todos” os destinatários, brancos e negros e mula­
tos, como traduções locais de “discreto” e “néscio”. Veja-se ainda que apersona
propõe a variante maledícente do cômico - “Musa praguejadora” - em que a
obscenidade, vulgar e claríssima, é totalmente adequada à recepção de “bo­
çais”, quando posta a operar sordidamente na desqualificação de tipos.
Articuladas na sátira seiscentista, as afirmações de Lope de Vega e Tirso
de Molina explicitam que, ao compor tipos e caracteres, a poesia satírica o faz
como se o poema independesse totalmente de qualquer regra para a sua for­
mulação, uma vez que a recepção do vulgo - “néscio” ou “boçal” - não domina
nenhum código discreto. Fingimento poético da fantasia, portanto, que efe­
tua o artifício de uma natureza estúpida, obscena e monstruosa, para divertir
os néscios com falas artificiosamente inventadas como néscias: “esjusto hablarle
en necio”, escreve Lope; “meus néscios encantos”, diz a persona satírica. Inép­
cia programática, obviamente, que compõe também uma adequação política.
Observe-se que, no poema transcrito, a persona se confirma racional: “fiquei
são da fantesia”. Esta é operação regrada, portanto, na produção de efeitos
sensíveis e maravilhosos, agradando sem postular o juízo:

O n é s c i o , o ig n o r a n t e , o in e x p e r t o ,
Q u e n ã o e le g e o b o m , n em m a u rep ro v a ,
P o r t u d o p a s s a d e s lu m b r a d o , e in c e r t o .
[...]
N é s c io : s e d i s s o e n t e n d e s n a d a , o u p o u c o ,
C o m o m o f a s c o m r is o , e a lg a z a r r a s ,
M u s a s , q u e e s t i m o te r , q u a n d o a s in v o c o ?

(OC, II, p. 470.)

144. O poema em questão encena a maledicência satírica como sarcasmo - “Musa praguejadora" - apto
para o entendimento vulgar. Num sentido semelhante, Vieira utiliza o “boçal" para caracterizar a
obscuridade, oposta à clareza retórica, e o fechamento hermético dos sermões gongóricos que cri­
tica no sermão da Sexagésima: “O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado”,
metaforizando, com a referencia ao travamento das línguas africanas, o travamento dos sermões de
seus adversários do Rossio, principalmente Frei Domingos de Santo Tomás. Cf. Padre Antônio
Vieira, Sermões, Porto, Lello & Irmãos Editores, 1959, 15 vols., vol. I, V, p. 20.

101
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Se o efeito da fantasia poética é maravilhoso e livre, assim, ela mesma


não é livre, porque é discreta e racionalmente controlada, seguindo regras na
composição, A fantasia é, segundo Gracián, Tesauro e Francisco Leitão
Ferreira, uma faculdade da alma, que apreende todos os objetos sensíveis e
suas imagens verdadeiras. A semelhança deles, concebe e produz, segundo a
adequação, outros de possível ou de impossível existência145. Isto significa
que, efetuando o vulgo ignorante dos preceitos retórico-poéticos - “os boçais”
(OC, II, p. 472) -, a sátira aplica convenções para cada caso. Adequando-se ao
verossímil, são convenções artificiosíssimas, como a que prescreve a virtude
retórica da clareza. Ou a que compõe mistos monstruosos, como os dos retra­
tos dos governadores Sousa de Meneses e Câmara Coutinho, aristotelicamente
inverossímeis porque sem unidade. Na sátira, tais convenções remontam à
Antigüidade clássica e à Idade Média: caracteres de Teofrasto’46, caracteriologia
das paixões da Ética a Nicômaco147, citações de Homero, Ovídio, Juvenal,
Sêneca, Lucano, Tácito, bem como definições e contradefinições escolásticas
da bondade e das paixões da alma14g, Ainda, técnicas retóricas, como as da
mesma fantasia, alegoria, amplificação, evidentia, translado sórdida, mistura
de animado e inanimado, substituição do gênero pela espécie e da espécie
pelo indivíduo, tópicas do gênero epidítico etc.
A sátira não é realista, como se vê, porque tem direção referencial,
mimetizando casos retóricos, não o referente. Opera, na constituição dos ca­
sos, o verossímil como caricatura, monstruosidade. Como artifício que calcu­
la a adequação ao público, é suficientemente inclusiva para ser entendida
também como paródia por discretos, que conhecem as mesmas referências

145. A fantasia relaciona-se com o entendimento de três maneiras: a) ou o entendimento atua só, servin­
do a fantasia para lhe fornecer as “espécies fantásticas”; b) ou ambas as faculdades operam em
conjunto, cabendo ao entendimento a censura prévia das imagens; c) ou a fantasia atua livremente,
prescindindo do entendimento. Cf. “Um Código do Barroco Português: A ‘Nova Arte de Conceitos’
de Francisco Leitão Ferreira”, em Aníbal Pinto de Castro, op. cit., p. 210.
146. Cf. Théophraste, Caractères, lexte établi et traduit par Octave Navarre, 2'1™ed., Paris, Belles Lettres, 1931.
147. Cf. Aristóteles, Éthique à Nicomaque, Introduction, Notes et Index par J. Tricot, 2™' ed., Paris, Vrin,
1967.
148. Cf., por exemplo: “A causa é melhor, que o efeito na boa filosofia” (OC, II, p. 309); “Amar o belo é
ação / que toca ao conhecimento / ame-se ao entendimento, / sem outra humana paixão” (OC, II I ,
p. 702); E: “Na boa filosofia, / e na retórica sei, / e li, que entre pouco, e muito / jamais distinção se
fez. / Pouco mal, e muito mal / o mesmo mal vêm a ser, / com que o mesmo bem será / pouco bem,
e muito bem. / Distingue-se em quantidade, / não na espécie, nem no ser, / na substância é sempre
o mesmo, / se em quantidade não é” (OC, IV, p. 819); “Pela razão natural / ninguém dá, o que não
te m ,/ e pela mesma razão ninguém / pede, o que não quer” (OC, IV, p. 823); “O mal sempre é
substituto / do bem, que a fortuna veda, / e que ao bem o mal suceda, / é já lei, é já estatuto: / um
do outro é flor, e fruto” (OC, IV, p. 945) etc.

102
UM N O M E P OR FAZER

letradas da persona, e como agressão e sarcasmo pelo vulgo que é produzido


inculto e se diverte com imagens grotescas e obscenas, ignorante das regras
de sua mesma produção149. Produto da intersecção de duas semióticas, a sáti­
ra as funde segundo a ocasião: uma delas é regrada como doutrina de precei­
tos para falar e escrever e para ouvir e ler, ao passo que a outra é uma teia
contingente de pleitos e murmurações do local, que se dramatiza como inves­
timento semântico de suas tópicas retóricas. A intersecção se evidencia na
mistura muito divertida de alusões mitológicas elevadas e de referências lo­
cais descritivas, baixas e vulgares: “Dafne” é, várias vezes, apelido irônico de
negras e putas.

149. E c o m o “ f i n g i m e n t o d o n a t u r a l ” q u e se e n t e n d e a h i p e r v a lo r i z a ç ã o c o n c e p t i s t a d o a r tif íc io e d a

m e tá fo r a . O a rtifíc io é u m l u g a r - c o m u m d e ficção, p r o p o n d o a c o n tr a f a ç ã o d o n a t u r a l c o m o e fe ito

“ h i p e r r e a l i s t a ” o b t id o p o r p r o c e d i m e n t o s q u e o c u lt a m a ficção . O a rtifíc io é u m i n s t r u m e n t o p a r a

a in v e n ç ã o d e m u n d o s c m q u e se v iv e a v id a d a a rte , c o m o d i z M a r a v a ll . É n e s ta l i n h a q u e p i n t u r a

e p o e s ia se i n t e r c e p t a m : a p i n t u r a é t a m b é m v a l o r i z a d a n o s é c u l o XVII p o r q u e , n ã o c o n t a n d o c o m

a p r o f u n d i d a d e , ela a fin g e p e r f e it a m e n t e b e m : é p o r e s ta r m a i s lo n g e d a n a tu r e z a q u e ela a im ita

m u ito b e m e a c o n t r a f a z c o m o m u i t o o u e x t r e m a m e n t e p r ó x i m a , e n f i m . P o r isso, c o m o se v ê n o

c a p í t u l o IV , a m e t á f o r a c o n c e p t i s t a é f u n d a m e n t a l m e n t c i m a g e m , s e g u n d o o u t p i c i u r a p o e s i s h o r a c i a n o

e o c o n c e ito a r i s t o t e l i c a m e n t e d e f i n i d o c o m o “ d e f i n i ç ã o i l u s t r a d a ” . H i s t o r i c a m e n t e , o s t e r m o s a r t i f í ­

c io e a r t i f i c i o s o n ã o t ê m , n o s é c u l o X V I I , o s e n t i d o p e j o r a t i v o c o n f e r i d o a e l e s p e l o e x p r e s s i v i s m o

r o m â n t ic o . S ig n if ic a m , b a s i c a m e n t e , “ té c n i c a ” , n o s e n ti d o g r e g o d o p o ie n , “ f a z e r ” .

103
II
A Murmuração do Corpo Místico

V ó s m e e n s in a s te s a s e r
d a s in c o n s tâ n c ia s a rq u iv o .

(O C , I, p. 4.)

Contemporâneas da sátira atribuída a Gregório de Matos e Guerra, as


Atas da Câmara e as Cartas do Senado registram intervenções da Câmara da
Cidade do Salvador, Bahia de Todos os Santos do Estado do Brasil, em ques­
tões do lugar1. Fazem-no como arquivamento de decisões e providências efe­
tivadas, caso das Atas, e como petição, exposição de motivos, advertência,
proposta, resposta e contraproposta ao Rei, seu destinatário principal, e, por
vezes, a procuradores da Bahia em isboa, caso das Cartas. Umas e outras são
estratégicas na constituição do referencial satírico, ou seja, os discursos for­
mais e informais do local transformados comicamente nos poemas.

1. Examinam-se aqui atas e cartas da segunda metade do século X V I I . Cf. Atas da Câmara, Prefeitura
do Município de Salvador, Documentos Históricos do Arquivo Municipal.
Atas da Câmara - 1641-1649, 1949, vol. 2; 1649-1659, 1949, vol. 3; 1659-1669, 1949, vol. 4; 1669-
1684,1950, vol. 5; 1684-1700,1951, vol. 6.
Cartas do Senado, Prefeitura do Município de Salvador, Documentos Históricos do Arquivo Muni­
cipal. - 1638-1673, 1951, vol. 1; 1673-1684, 1952, vol. 2; 1684-1692, 1953, vol. 3; 1692-1698, 1959,
vol. 4.
Constituída a Câmara de Salvador já no tempo de Tome de Sousa, muitos de seus documentos
anteriores a 1624 foram destruídos na invasão holandesa desse ano. Compõe-se de dois Juizes Ordi­
nários, ou da vara vermelha, de três Vereadores, de um Procurador da Cidade ou Procurador do
Conselho. Chamam-se todos “Oficiais da Câmara” e a pragmática de cortesia atribui-lhes o trata-

105
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Seu referente capital, a Cidade, hoje se encontra depositado nelas como


discursos da sociedade baiana de fins do século XVII que adquirem sentido
particular na elocução dos agentes. O notado por eles subordina-se a um
notandum, modo histórico de ver e dizer, que opera com regras hierárquicas e
hierarquizadoras do que é notável. Como hierarquizar é classificar, as regras
estendem a visibilidade política da Cidade pelo anotado, texto, dividindo-o
ou unificando-o segundo o que, para o sujeito discursivo, é visível, notável:
comércio do açúcar, privilégios, leis de precedência, trabalho escravo e das
classes profissionais, conflitos com o clero, impostos, murmuração etc. Por
isso, o sujeito discursivo, unificado como Câmara, expõe os temas segundo
sua posição de representante da comunidade dos interesses locais e do Impé-

mento de “Vossa Mercê”. Os Juizes Ordinários lêm funções judiciárias, até certo limite; os Verea­
dores deliberam sobre os negócios públicos, propriamente administrativos, do interesse local; o
Procurador da Cidade tem funções executivas. Pessoas “a quem tocava requerer o bem comum e
atender à prevenção dele por serem oficiais que representam a república”, como diz uma petição
de senhores de engenho do Recôncavo, em 1632, são escolhidas entre os “homens-bons” da Cida­
de, aqueles que “por sua pessoa, partes e qualidades” são tidos como aptos para o cargo. A eleição
é anual. Os trabalhos da Câmara começam em 1" de janeiro, quando, reunidos os que findam o
mandato do ano anterior, com a presença do Ouvidor Geral, se tirava o “pelouro” para os oficiais.
Cf., por exemplo, a sátira; “Entra logo nos pilouros, / e sai do primeiro lance / Vereador da Bahia,
/ que é notável dignidade” (OC, II, p. 431). Veja-se, por exemplo, a ata de 19.1.1685: “Termo de
eleição que se fez de juiz durante o impedimento do Capitão Francisco de Araújo de Azevedo e de
um Vereador em lugar de Manuel Botelho Carneiro que é falecido e do Procurador em lugar de
João de Matos de Aguiar que se julgou escuso os quais saíram no pelouro que se abriu o primeiro
de janeiro deste presente Ano, Aos dezenove dias do mês de janeiro de mil seiscentos e oitenta e
cinco anos nesta Cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos nas Casas da Câmara dela estando
aí presentes o juiz ordinário o Coronel digo o Sargento Major Luís de Mello de Vasconcellos e os
vereadores o Capitão Nicolau Carvalho e o Capitão José de Araújo de Goes para haverem de fazer
eleição de um juiz em lugar do Capitão Francisco de Araújo de Azevedo durante o seu impedimen­
to e um vereador por haver falecido o Capitão Manoel Botelho Carneiro e um Procurador cm lugar
de João de Matos de Aguiar que ao presente é provedor da Casa da Santa Misericórdia e Cavaleiro
da Ordem de Cristo por onde é escuso conforme o acórdão da Relação deste Estado pessoas todas
que saíram no pelouro que se abriu o primeiro de janeiro deste presente ano e para a dita eleição
ditos oficiais da Câmara mandaram tocar o sino e chamar os homens bons que costumam andar
nos pelouros e sendo junto lhes encarregaram que bem e verdadeiramente votassem em pessoas de
maior suficiência que bem servissem os ditos cargos e guardassem em tudo o serviço de Deus e de
Sua Majestade e do bem comum e eles assim prometeram fazer e para este efeito eu, João de
Couros Carneiro, escrivão da Câmara fui tomando os votos entre folhas de papel em as quais se
assentaram todos os nomes dos que foram propostos e em cada um riscando os votos que neles
estavam e depois de limpa a pauta pelos ditos oficiais da Câmara saiu para juiz o Capitão Domin­
gos Monteiro durante o impedimento do Capitão Francisco de Araújo de Azevedo e por vereador
o Capitão Manoel Teles de Meneses e por procurador o Capitão Baltasar Gomes dos Reis e saiu o
dito juiz com dezessete votos e o vereador com quinze votos e o procurador com vinte e um os quais
preferiram a todos os meses em que votaram como consta da pauta que fica no Cartório desta

106
A M U R M U R A Ç À O DO C O R P O M Í S T I C O

rio, unificando-os numa generalidade teológico-política alegada na opera­


ção, o “bem comum da República”, que é o tema nuclear da sátira.
As/lias e as Cartas tornam-se documentos decisivos, aqui, na análise da
sátira produzida na Colônia justamente porque não fornecem ao seu leitor de
hoje uma Bahia dada. Como atos discursivos contemporâneos da sátira, são
também intervenções particulares numa prática administrativa e, assim, pro­
tocolar, que hoje informam sobre modos históricos de ver e de dizer. Efetuan­
do em sua fórmula a circunstância em que são escritos, refratam-na hierar­
quicamente conforme a posição de seus agentes, fazendo com que visibilidades
e posições particulares se tornem visíveis, negando, com isso, a generalidade
postulada do “bem comum”.
Tanto Atas quanto Cartas permitem estabelecer uma cartografia móvel
de eventos e posições que, na circunstância de sua representação discursiva,
relacionam-se ora de modo conflitivo, ora de modo adesivo, entre si e com
seus objetos de intervenção, segundo a hierarquia. Descrevendo eventos e
narrando ações, as Cartas, principalmente, são muito minuciosas e redun­
dantes nas referências do local, efetuando a onipresença do Rei no mesmo
discurso que o produz como solene ausência. O suplemento discursivo funcio­
na, por vezes, como tática de negaceio e distanciamento, principalmente quan­
do o tema da Carta é o não-pagamento de impostos. Hoje, tanta minúcia e
protocolo avultam no estabelecimento da legibilidade particular dos interes­
ses ativados pelas interpretações dos temas nas Cartas. Também na sátira,
quando os discursos são cruzados.

Câmara de tudo mandaram fazer este termo em que assinaram e eu João de Couros Carneiro
escrivão da Câmara escrevi”. Cf. Atas da Câmara 1684-1700, vol. 6, pp. 11-12.
Além desses oficiais, há os almotacés, espécie de fiscais cuja função é fixar preços de mercadorias
e controlar pesos e medidas; o escrivão, funcionário vitalício; o porteiro, que bota pregão das deci­
sões; o Ministro da Cadeia, nome pomposo do carcereiro. Em 21.5.1641, determina-se dar a cada
grupo profissional um chefe com o encargo de controlar a atividade de seus pares, fixando preço ao
serviço prestado e avaliando obras executadas. Cf. Affonso Ruy, História da Câmara Municipal da
Cidade do Salvador, Bahia, Câmara Municipal de Salvador, 1953, p. 173. Determina-se que o núme­
ro de mesteres seja doze e que os doze elejam um Juiz do Povo e um escrivão para, juntos, represen­
tarem as classes mecânicas. Os Juizes do Povo passam a representar os interesses das classes profis­
sionais e mecânicas, entrando muita vez em confronto direto com os “homens-bons”, oficiais da
Câmara, e com comerciantes, a ponto dc se negar ao Juiz do Povo a assinatura das atas, em 1645.
Vários conflitos são rastreáveis nas atas: questão da aguardente (1646); denúncias contra o Ouvidor
Geral da Armada por sonegação de impostos (1648), contra comerciantes (1668), contra os ourives
(nas duas décadas finais do século); rebelião contra a nova taxação do sal (1711); etc. A carta régia
de 25.2.1713 extingue os cargos de Juizes do Povo e mestres no Brasil. Pouco antes, em 1696, são
extintos os cargos de Juiz Ordinário. Cf. também Theodoro Sampaio, História da Fundação da Cida­
de do Salvador (Obra póstuma), Bahia, Tipografia Beneditina Ltda., 1949; Affonso Ruy, op. cit.

107
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

Quando se propõem as Alas e as Cartas como documentos, o fim visado é


o de constituir o referencial discursivo da sátira, perspectivando-as. As/ltas e
as Cartas são discursos em geral mal escritos, banais e padronizados que, in­
dependentemente da sua qualidade, permitem estabelecer prescrições e te­
mas locais que aparecem como matéria transformada na sátira. Pressuposto
efetuado por ela são situações e pessoas criticáveis, às quais se refere hiperbo-
licamente com critérios retóricos, políticos, morais, religiosos etc. Embora
seja descritivo-narrativa, a sátira é bastante lacônica quando comparada a
esses papéis, pois efetua tipos fictícios cuja referência são pessoas empíricas,
citadas nas^ías e Cartas. Mista, dramatiza duas posições discursivas básicas:
uma é a dos objetos de intervenção, silenciados à força do ridículo ou falantes
por estilização e paródia; a outra, a dapersona satírica, afirmada como ordem,
é a do mesmo princípio de hierarquia que rege os documentos da Câmara.
Em sua pragmática, estes atuam como notícias de intervenções sobre a Cida­
de, coibindo, corrigindo, punindo e, simultaneamente, evidenciando o crité­
rio aplicado na intervenção. Uma mesma normatividade dispõe, em registros
retóricos diferentes, os agentes da sátira e de documentos da Câmara.
Quando se faz a relação de sátira e documentos da Câmara, não se propõe
nenhuma precedência, lógica ou temporal, deles em relação a ela. A sátira
não os ilustra ou vice-versa. A correlação formula um registro de intervenções
de várias formas - ordens, censuras, consenso, exclusão, inclusão - e de temas
- açúcar, comércio, fidalguia, escravaria, clero, farinha, soldados, revoltas,
murmuração, fomes, corrupção, moeda etc. - numa pragmática generalizada
na qual os temas e a posição dos agentes se perspectivam. Em outros termos,
Atas e Cartas são registros diferentes de um mesmo princípio hierárquico
também ordenador da sátira: não são expressão de vivido, não são contexto,
pretexto ou subtexto dos poemas, não são reflexo de práticas.
O discurso da sátira atravessa os da Câmara enquanto é atravessado por
eles. Dizendo-o doutro modo, o discurso da sátira cruza-se com os das^tas e
Cartas não porque os tome como temas, numa relação de exterioridade, mas
porque, no mesmo tempo e no mesmo lugar, efetua os mesmos temas com
outra ordenação discursiva cujas regras hierárquicas funcionam analogamente.
Como os oficiais da Câmara, a persona satírica unifica sua intervenção em
nome do “bem comum”2; como no discurso dos oficiais, o mesmo “bem co­

2. Aos oficiais da Câmara aplica-sc perfeitamente o que escreve Stuart B. Schwartz sobre os magistra­
dos coloniais: “Magistrados desinteressados, eram os guardiães da estrutura formal do Império,
segundo a visão da Coroa. Ao mesmo tempo, esses homens muitas vezes lutavam por objetivos
coletivos ou pessoais que conflitavam frontalmente com os padrões dos cargos que ocupavam. Era
este o paradoxo do governo colonial, paradoxo que, no entanto, dava vida ao regime ao conciliar os

108
A Al URMURAÇÃO DO C O R P O M Í S T I C O

mum” alegado é, quase sempre, a generalidade dos interesses particulares de


um grupo ou ordem; também como os oficiais, a persona exige providências
justas, segundo sua posição, para corrigir males e preencher carências; tam­
bém como eles, investe-se no discurso como “melhor” ou “discreto”, quando
se opõe aos vícios. Diferentemente da enunciação das Cartas, porém, porque
a vituperação satírica visa à correção que, caridade do castigo, aperfeiçoa, a
persona é móvel, como uma função geral por onde passam representadas inú­
meras outras. Fala a partir de vários lugares encenados da ordem, cuja inter­
venção diagrama como distribuição hierárquica de corpos de linguagem. Ela
opera, desta maneira, sobre um lapso discursivo postulado por ela mesma -
ausência de virtude -, preenchido na operação pela sua metáfora de persona
investida da autoridade de familiar do Santo Ofício, de magistrado da Rela­
ção, de oficial da Câmara, de ministro da Cadeia, de carrasco, de feitor, de
letrado e de cabeça do corpo místico da República, Rei.
A analogia não é identidade, decerto; assim, ao posicionamento basica­
mente unívoco da Câmara nos discursos opõem-se a abertura e a plurivocidade
das posições encenadas na enunciação da sátira. A Câmara fixa os eventos
enquanto os move no discurso; a sátira os teatraliza segundo várias perspecti­
vas. Em ambos os gêneros, contudo, epistolar e satírico, sujeitos discursivos
se auto-investem como autoridades na hierarquia, que figuram como natural
e, portanto, convencional. Na posição do privilégio donde agem para levar a
ação proposta a um termo efetivo ou para realizá-la no verossímil, doam um
sentido corretivo à Cidade, lugar da intervenção. Desta maneira, a pragmáti­
ca tem nítido recorte político, embora não a exclusividade deste, pois outras
regras - econômicas, religiosas, raciais, jurídicas, administrativas, protocola­
res - intervém. Na sátira, a matéria e o procedimento de composição dos mis­
tos são tais temas e prescrições, o referencial de discursos locais esboçado
nela como “arquivo das inconstâncias”.
As posições da persona por vezes coincidem com as posições da enunciação
de Atas e Cartas e é elucidativo lê-las para determinar o sentido da sátira no
referencial local. Como foi dito, ela é econômica quando encena discursos do
lugar para a tipificação de viciosos. Por exemplo, quando tipifica o negro e o
mulato, opera com dois procedimentos, empregados também para construir
outros tipos, como o fidalgo, o cristão-novo, o frade, a puta, o governador, o
sodomita etc. Ela propõe um traço individualizante - geralmente, o nome do
satirizado - justapondo a ele traços caracteriais anônimos ou coletivos, isto é,

inleresses da metrópole com os da colônia”. Cf. Stuar! B. Schwartz, Burocracia e Sociedade no Brasil
Colonial, São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 292.

109
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

estereótipos. Por exemplo, quando ataca o governador Sousa de Meneses,


mistura em sua figuração o apelido “Braço de Prata” e motivos fantásticos e
deformantes, como o dos “olhos cagões” dotados de terrível vida própria ou o
do “nariz” fálico, motivo encontrável também em Quevedo ou Rabelais ou
Marcial. Hoje, os traços individualizantes, óbvios para contemporâneos, sub­
sistem na leitura como ecos esgarçados de vozes mudas que vão falando nos
poemas de modo muitas vezes enigmático. É certo que os poemas podem ser
lidos prescindindo-se dessas informações: na autonomia de sua ficção, como
se diz. Tal autonomia é condicionada, contudo, pelos paradigmas históricos
que definem o que neles é evento: o que ocorre e poderia não ocorrer. Por que,
afinal, a sátira contra o governador Sousa de Meneses, mas não contra Roque
Barreto ou Matias da Cunha ou Teles de Meneses ou João de Lencastre? As
atas e as cartas permitem estabelecer alguns critérios que explicitam o senti­
do da sátira, gênero também político, principalmente quando ela não infor­
ma sobre eles. Por exemplo, na sátira, os governadores Sousa de Meneses e
Câmara Coutinho são sempre “tirânicos”. Algumas cartas figuram a mesma
“tirania”, mas de maneira diferencial; por exemplo, tratando do conflito de
Sousa de Meneses com o clã do padre Antônio Vieira, também referem as
arbitrariedades do governador. Mas sempre louvam Câmara Coutinho. Essa
perspectivação, que explicita os paradigmas contemporâneos pelos quais os
agentes se auto-representam nos discursos, é útil para reconstituir a particu­
laridade das versões contemporâneas de um mesmo tema e, com isso, útil
também para evitar o anacronismo que se apropria dos poemas generalizan­
do transistoricamente os valores da cultura do leitor, caso em que se treslêem.
E irônico, por exemplo, que a Fundação Gregório de Matos tenha o nome que
tem, inda mais quando o nome é emblema de essências ou ideologias como a
“baianidade” e a “negritude” de Gregório. Da mesma maneira, a interpreta­
ção nacionalista dessa poesia, que faz dapersona satírica um avatar da eman­
cipação política, nunca leu nos documentos portugueses do século X V I I a di­
visão dos poderes em ordinário e absoluto, pela qual a crítica às instituições
está prevista como aprimoramento da ordem. Mais ainda, as leituras realista-
positivistas, caudatárias do idealismo alemão, que, alegando que a sátira re­
flete a empiria, ignoram o estilo baixo - da sátira -, postulando que os objetos
supostamente refletidos nela eram, em essência, caricatos, numa interpreta­
ção que é historicamente caricata.
Isso posto, supõe-se que é razoável descrever alguns dos procedimentos
retóricos deAtas e Cartas. Basicamente, diferem pelo fim que se propõem: as
primeiras formam uma memória de atos e eventos bastante estereotipada pelas
fórmulas do resumo. Nelas, o acontecimento é efetuado segundo o modelo da

no
A M U R M U R A Ç À O DO C O R P O M Í S T I C O

crônica. Como memória, constituem uma tradição exemplar de atos modela­


res reaplicáveis com as ocasiões. Nesta linha, devido justamente ao gênero
deliberativo da sua escrita e aos deveres explícitos e implícitos que prescre­
vem, as Canas têm a temporalidade do presente da sua intervenção, diferen­
temente do tempo gasto do arquivo dasAías. Deliberativas, têm duplo registro,
funcionando como notícia histórica descritivo-narrativa de atos administrati­
vos da Câmara e como discurso performativo que se auto-referencia na comu­
nicação Câmara-Rei. É sua contemporaneidade que interessa, aqui, pois faculta
observar seus agentes em ato, posicionando-se nos negócios do tempo e em
seus interesses. Referindo-se à Cidade, dirigindo-se ao Rei, enunciando a
enunciação, alternam o registro optativo e o descritivo. Pelo primeiro, os agentes
visam a captar o assentimento para o que expõem; pelo segundo, demonstram
o que pedem, recusam ou propõem. Em outros termos, as referências descriti­
vas preenchem a argumentação como provas que a saturam. Por exemplo,
quando a Câmara escreve justificando a recusa de cumprir o que o Príncipe
ordena, em junho de 1671, que acuda anualmente com 2 mil cruzados para os
missionários que vão às Conquistas:

[...] n a d a f i z ê r a m o s , S e n h o r s e e s t e P o v o , s e n ã o a c h a r a tã o s o b r e c a r r e g a d o c o m o s u s -
le n t o d a I n f a n t a r ia , d o t e d a S e r e n ís s im a R a in h a d e G rã B r e t a n h a , e P a z d e H o l a n d a ,
d e sp e s a d a jo r n a d a q u e ora se v a i fa z e r a o g e n tio q u e te m d e s tr u íd o e s te R e c ô n c a v o
e s m o la s d o s R e l i g i o s o s F r a n c is c a n o s e d o s d e S a n ta T e r e s a , a f u n d a ç ã o p a r a a s R e l i g i o ­
sa s q u e V o s s a A lt e z a n o s c o n c e d e u , e in d a p a r a o s d e s s e R e i n o t u d o d e s p e s a g r a n d e a
m is é r ia d e s t e s V a s s a lo s a lé m d e m u i t o s c a t iv o s q u e d e o r d in á r io a n d a m n e s t a P r a ç a
p e d in d o p a r a s e u s r e s g a t e s 5.

Procedimento comum em outras Cartas, o discurso sofre uma amplifica­


ção horizontal, na qual cada imposto e cada gasto referidos funcionam como
extensão descritiva das razões da impossibilidade alegada de pagar. A Câma­
ra prossegue: “[...] Vossa Alteza nos deve haver por zelosos que as vontades
são grandes de servirmos a Vossa Alteza, e não faltar ao que nos ordena, mas
nossos cabedais não podem suprir este amor e vontade”34.
Os agentes escrevem pressupondo que o destinatário também prevê sua
disposição de não pagar antes mesmo de enunciá-la e se antecipam, integran­
do a antecipação no discurso - acumulando os índices protocolares iniciais
de fidelidade irrestrita e, depois, exemplificando casos de despesa, que am­
plificam a impossibilidade, tornando-a convincente, concluindo mais uma

3. Carta de 16.8.1671, vol. 1, p. 94.


4, Idem,ibidem.

111
A SÁTI RA E O ENGENHO:

vez o que já está concluído no inicio da carta: a impossibilidade de pagar,


uma vez que “[...] nossos cabedais não podem suprir este amor e vontade”. Na
dissimetria aberta entre “fidelidade” e “pagamento”, honra e negócio, a pró­
pria impossibilidade alegada de pagar - que, num nível, contraria frontal­
mente a vontade real - é absorvida nas imagens do “amor” e “vontade” como
projeções que reiteram a mesma fidelidade. Observe-se, ainda, a técnica retó­
rica de impor a veracidade do que vai sendo dito, quando os agentes se situam
na posição teoricamente compreensiva do destinatário, ordenando a este que
“[...] nos deve haver por zelosos” - em outros termos, fornecendo-lhe código
prescritivo, que lhe interpreta sua autopersuasão. Porque sofre denegação, a
ordem se mantém, uma vez que seu não-cumprimento é absorvido pelos sig­
nos de fidelidade e amor - arrolamento de todos os impostos e despesas e
dificuldades e honra - e, ainda, porque a recusa declarada num nível é
complementada pela adesão feita em outro.
Nesta linha, na relação Salvador-Lisboa, as Cartas sempre efetuam um
dever anterior ao ato de sua escrita. Esta se adapta a ele e o integra em sua
formulação, o que não significa que sempre lhe obedeça, pois propõe-lhe al­
ternativa, contrapõe-se a ele, faz de conta, até certo limite óbvio da violência
implícita na extrema cortesia, que o ignora, propondo-lhe outras realizações.
A soberania real é sempre reconhecida, contudo, e os impostos são recolhidos
e mantidos os princípios gerais da administração5.
A enunciação é que esclarece, portanto, o sentido da alternativa que se
propõe para o dever. Os discursos das Cartas são - e apresentam-se como - ori­
gem de um dever de seus agentes para outros, obrigados por um dever ao Rei,
no ato da elocução: homens de poder local, são homens do poder real6. Quan­
do os discursos são origem de um dever, cumpre-se a ordem real; quando se
apresentam, geralmente não se cumpre, e a disparidade tem de ser preenchida
de alguma forma. Uma dessas formas, já se viu, é a amplificação das dificul­
dades, como técnica de conseguir assentimento para decisões. Outra, muito
freqüente e conexa, consiste em deslocar o descumprimento da ordem e, as­
sim, a própria ordem, rearticulando-a num grau formalista do dever, como a
afirmação da irrestrita fidelidade e da manutenção da ordem.
Prevendo também que uma proposta local não será aceita pelo destinatá­
rio real, algumas Cartas são politemáticas, fazendo vários pedidos simultâneos.

5. Cf., a propósito, Stuart B. Schwartz.op. cil., p. 294.


6. Cf. Emmanuel Le Roy Ladurie, “Reflexions sur 1’essence et le fonctionnement de Ia monarchie
classique ( X V T - X V I I I ' siècles)”, em Henry Méchoulan (org.), CÉiai baroque 1610-1652, Paris,
Librairie Philosophique J. Vrin, 1985, pp. IX-XXXV.

112
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O MÍ S T I C O

Um deles, pelo menos, deverá ser atendido. Por exemplo, escrevendo ao pro­
curador Manoel de Carvalho, a Câmara avisa-o de que, depois de pedir inu­
tilmente ao Rei que alivie a finta que aflige “[...] a miséria com que geralmen­
te está todo este Povo”, depois de pedir que as religiosas do Convento de
Santa Clara do Desterro sejam convencidas a desistir da “[...] sucessão futura
[...] da maior parte dos bens de raiz desta Cidade”, depois de pedir a mercê de
“Lei irrevogável” que “[...] mande que nenhuma Pessoa venda fazendas fia­
das com pena de as não poderem cobrar por meios de justiça excetuando as
que se venderem para o fornecimento dos Engenhos, fazendas de Canas, e
Lenhas sem as quais não se poderão fabricar”78,vem a reiteração do pedido
que se faz ao Rei, em carta de 2 de julho de 1685:

[...] N a s P r o c i s s õ e s d e C o r p o d e D e u s e o u t r a s q u e p e l o d e c u r s o d o a n o s e f a z e m n e s t a
C id a d e a q u e s ã o o b r ig a d o s a s s i s t i r e ir e m o s O f ic ia i s d a C â m a r a c o m o O u v i d o r G e r a l
se d á a c a d a u m d o i s m il r é is d e p r o p in a p o r s e r a s s im c o s t u m e m u i a n t i g o a q u a l
d e s p e s a o P r o v e d o r M o r d a C o m a r c a c o s t u m a t o m a r t o d o s o s a n o s o s b e n s d o C o n s e lh o
d u v id a le v a r e m C o n t a s e m P r o v is ã o d e V o s sa M a j e s t a d e c o m o t e m m u i t a s C i d a d e s e
V ila s n e s s e R e in o ; e p o r q u e e s ta n ã o m e r e c e m e n o s e o s O f ic ia i s d a C â m a r a n ã o t ê m
o u tr o e m o l u m e n t o m a is , q u e e s ta p r o p in a , q u e é C o u s a li m i t a d a e m c o m p a r a ç ã o d o
m u it o q u e g a s t a c a d a u m e m v ir d e fo r a d e s u a s f a z e n d a s p a r a a s s i s t i r e m n e s t a C id a d e
e n q u a n t o d u r a o a n o d e s e u R e g i m e n t o p e d i m o s a V o s sa M a j e s t a d e q u e n o s fa ç a m e r c ê
c o n c e d e r P r o v is ã o p a r a o P r o v e d o r le v a r e m C o n t a a d e s p e s a d a s P r o c i s s õ e s referid a s® .

Legislando para o bem comum, os oficiais também legislam em causa


própria, quando pedem. Por exemplo, outra carta do mesmo dia, 2 de julho
de 1685, pede provisão para o pagamento do procurador assistente na Corte.
Como o provedor-mor dos Defuntos e Ausentes não leva em conta a despesa
com o salário arbitrado em 200 mil-réis por ano, a Câmara reclama: “[...]
porque não será justo que sendo despesa que se não pode escusar, e em bem
do Povo as paguemos nós das nossa [Rc] Fazenda”9.
Outra carta do mesmo dia rende graças ao destinatário real pela mercê:
“[...] que nos fez da sua Real Provisão em que ordena que as filhas dos Oficiais
da Câmara que servem, e tiverem servido neste Senado prefiram às outras na
entrada do Convento de Santa Clara desta Cidade”10.

7. Carta de 2.7.1685, vol. 3, p. 10.


8. Carta de 2.7.1685, vol. 3, p. 6. Em Carta de 2,12.1688, vol. 3, pp. 77-79, continuam pedindo.
9. Carta de 2.7.1685, vol. 3, p. 7.
10. Carta de 2.7.1685, vol. 3, p. 9.

113
A S A T I R A E O E NGE NHO

O trabalho contínuo na Câmara e a ausência de pagamento dos vereado­


res tornam-se, assim, signos nobilitantes deles como “homens de representa­
ção” ou “melhores”, fundamentando argumentos para legislar em causa pró­
pria e pedir privilégios":

[...] P o r é m d e p o i s fo i V. M a j e s t a d e s e r v id o e s c r e v e r a o A r c e b i s p o d e s t e E s t a d o , q u e a
p r e f e r ê n c ia s e e n t e n d i a n ã o h a v e n d o p r e j u íz o d e t e r c e ir o , e d a p ú b ü c a c o n s e r v a ç ã o d o
C o n v e n t o a s q u a is p a la v r a s a m b í g u a s d ã o m o t iv o a q u e a m e r c ê R e a l d e V o s s a M a j e s t a ­
d e n ã o v e n h a s u r t ir e f e i t o a lg u m c o n f o r m e a in t e r p r e t a ç ã o , q u e l h e q u is e r e m d a r e
c o m o V o s s a M a j e s t a d e n o s f e z d is t o fa v o r e m r e m u n e r a ç ã o d o t r a b a lh o c o n t í n u o , q u e
t e m o s d e S e r v ir n e s t e S e n a d o s e m S a lá r io a lg u m e s e r o d i t o C o n v e n t o c r ia d o p e lo s
o f i c i a is d a C â m a r a q u e s ã o o s l e g í t i m o s f u n d a d o r e s d e le n o s p a r e c e u j u s t o q u e V o s sa
M a j e s t a d e m a n d e o b s e r v a r a S u a R e a l P r o v is ã o s e m j u s t o d i g o s e m L i m i t a ç ã o a lg u m a
p a r a q u e n ã o h a ja n a s p r e f e r ê n c ia s d ú v id a s o u c o n t e n d a s 112.

Desta maneira, as Cartas operam alternando cumprimentos e descum-


primentos de ordens, que atendem o bem comum, e de pedidos e exigências,
que atendem o bem também comum dos senhores oficiais.

11. Stuart B. Schwartz demonstra que a Câmara de Salvador é dominada pelos interesses dos senhores
da terra, especialmente os do açúcar. Embora em seus quadros esteja presente a representação mer­
cantil, esta só cresce a partir do século XVIII. Numa tabela de seu texto, Schwartz demonstra que,
entre 1680 e 1729, a distribuição dos oficiais da Câmara é a seguinte: 50,8% de senhores de engenho,
12,7% de lavradores de canas, 16,6% de outras atividades relacionadas, ao açúcar, o que fornece
80,1% de interesse direto do setoraçucareiro. Cf. Stuart B. Schwartz, op. cit., pp. 277-278. Um pri­
meiro grupo deles adquire terras logo após a fundação de Salvador, por volta dos anos 1550 e 1560;
uma segunda leva aporta na Bahia em 15S0, quando o açúcar está em baixa. De 1620 a 1660, incor­
pora-se um terceiro grupo, principalmente após a invasão holandesa dos anos 20, quando a destrui­
ção de engenhos, as falências, as mortes e o desânimo propiciam a aquisição de terras por jovens
militares que vêm para a campanha contra o holandês, e por famílias fugidas de Pernambuco, como
os Argolo, Ferrão, Brandão Coelho, Pires de Carvalho etc. Quase sempre brancos ou assim tidos, os
senhores de engenho de fins do século XVII, como gente que acaba de chegar, desejam a nobreza e
o poder local. Até o fim do século XVII, quando as pestes tornam a Cidade perigosa, passam a maior
parte do tempo em Salvador, devido à proximidade dos engenhos que bordejam o Recôncavo: pela
baía, de barco, vai-se de Santo Amaro a Salvador em cerca de duas horas. Na Cidade, vivem em
casas assobradadas; sua participação nos negócios da Câmara, da Igreja e da Santa Casa de Miseri­
córdia indica a relação íntima entre Salvador e o Recôncavo. Demandam sempre a legitimação dos
foros de fidalguia que quase nunca vêm de Portugal. Funções públicas c a ostentação confirmam
sua posição na sociedade local como nobreza dos “melhores”. Cf. Stuart B. Schwartz, op. cit., pp.
265-267 e 281-282. Na sátira, são constantes as expressões “pobrete de Cristo", “cu breado", “mãos
dissimula em guantes”, “homem grande”, “grande dignidade”, que referem o tipo que ascende social­
mente através de negociatas e casamentos com filhas dos melhores do local.
12. Cf. Carta de 2.7.1685, vol. 3, p. 9.

114
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O MÍ S T I C O

A referencialidade das Cartas é efetuada por procedimentos retóricos


menos distanciados que os da sátira. Quando uma carta afirma, por exemplo,
que o preço do bacalhau subiu e que a população se vê obrigada mesmo assim
a comprá-lo, dado o monopólio de sua venda, c que há fome e descontenta­
mento e murmuração contra a Junta do Comércio13, o enunciado produzido é
efeito de um ato da enunciação que narra ao destinatário a elevação do preço
e suas conseqüências, interpretando-as em termos genéricos de "bem comum”.
O valor semântico do enunciado está previsto pelo valor que a frase assume
em enunciados econômicos referentes aos preços e, ainda, à situação discursiva.
O valor semântico da informação refrata-se, no entanto, uma vez que a Carta
que a enuncia subordina o enunciado à posição que o agente encena - no caso
do bacalhau, apreensão solícita e indignação - e, ainda, constitui a recepção.
Assim, a informação visa à adesão do destinatário, porque o agente afirma
“sentir” naquilo que informa. No caso, porque articula essa adesão a uma
medida superior, que venha corrigir o que ele diz tentar corrigir, dada sua
função administrativa, mas não pode, como afirma. O bacalhau, tomado aqui
como exemplificação a uma carta de 8 de maio de 1650 dirigida a Dom João
IV, alega penúria e fome, reiteradas em carta de 15 de julho de 1679, no gover­
no de Dom Pedro como Príncipe regente, e em várias outras do final do sécu­
lo. A fome, aliás, é lugar-comum intensificado principalmente na penúltima
década do século XVII, quando nas cartas a Bahia é assolada pela “bicha” - a
febre amarela - e por secas. A fome é tanto evento narrado quanto captação
de benevolência, na paixão de não pagar impostos.
As intervenções dos agentes discursivos das Cartas e, em outro registro,
da sátira, exemplificam-se não só como murmuração contra o fisco e a fome,
mas também como sedição de soldados, desrespeito das pragmáticas de ves­
tuário, cortesia e precedências, destruição de engenhos pelo gentio bravo,
operações monopolistas de comerciantes, assuadas de negros e mulatos bêba­
dos, conflitos com o clero, arbitrariedades do alcaide-mor e governador, feiti­
çaria e calundus, casos de insulto atroz, proliferação de vadios e prostitutas,
pendências entre senhores, atritos com o Tribunal da Relação, escândalos
conventuais, falta de moeda etc. Tais eventos, atos e discursos encontram-se
estilizados no verossímil satírico como várias “naturezas” discursivas mime-
ticamente deformadas pelo engenho da fantasia poética, que os desenvolve
aplicando tópicas ou casos retóricos. A sátira desenvolve, como tema de agres­
são e de caricatura, um tipo vicioso, que é referido a uma pessoa e à regulação

13. Carta de 8.5.1650, vol. 1, p. 23; Carta de 4.6.1650, vol. 1, p. 25. Fala-se de “grandíssimos Clamores”
do “Povo”, sobre o qual recaem os tributos.

115
A SÁTI RA E 0 E N G E N I I O

jurídica de sua ordem, num registro retórico-poético de paixões e vícios


estilizados moralmente. Na crítica muito rotineira aos clérigos, por exemplo,
que teatraliza o vício da ambição dos “ganhões de altares” ou “lacaios missa-
cantantes” no topos medieval da simonia, a sátira também metaforiza a mesma
posição dos padres na hierarquia, juntando o ataque ao seu privilégio de isenção
de impostos à crítica do aumento usurário das riquezas. Tal representação dos
religiosos vem, nas Atas e Cartas, azedada com muito descontentamento dos
senhores de engenho representados pelos oficiais da Câmara em suas reclama­
ções contra o que dizem ser excessivo privilégio dos padres. Representam os
interesses da população sobretaxada, dizem, exigindo do Rei que passe a cobrar
os impostos das ordens religiosas a fim de aliviá-la. A competição dos senhores
com o padroado alega a defesa do povo, na crítica à usura em que a fidelidade ao
monarca se ratifica: taxados os padres, a murmuração cessa, como escrevem ao
Rei14. Confrontando-se os discursos da Câmara com os da sátira, a desqualificação
moral dos padres - glutoneria, simonia, usura, luxúria - explicita o interesse
econômico dos senhores, mas também se pluraliza na recepção segundo vários
registros, nos quais o mesmo conflito pode tornar-se secundário ou desaparecer.
“Hierarquia” é termo-chave para o estabelecimento de tais posições. A hie­
rarquia não é ambígua, no século XVII, sendo entendida como reflexo da lei na­
tural ou como ditado de Deus revelado em uma Igreja visível e corporificado nas
leis positivas de um Estado absolutista, segundo seus teóricos:

[...] P o r q u e s i V. A í. es Ia c a b e z a , su s S e c r e tá r io s so n la g a r g a n ta d e i c u e r p o m ís tic o d e s ta
M o n a r q u ia , y p o r d c u e llo c o m u n ic a a lo s d e m á s m ie m b r o s d e su s re in o s e l a l im e n to d e su
g o b ie r n o : so n e l in té r p r e te d e su v o l u n t a d , p o r q u e lle v a n a l P r ín c ip e la s sú p lic a s d e i r e in o y
v u e l v e n c o n su r e s p o s ta l5.

O que circula nas Cartas:

[...] S e n h o r - R e q u e r i d o s n ó s d o P r in c ip a l d o P o v o d e s t a C id a d e d a B a h ia e d a n o s s a
o b r ig a ç ã o p o r C a b e ç a d e la : i m o s a o s R e a is P é s d e V o s sa M a j e s t a d e r e p r e s e n t a r o c o ­

14. A mesma posição de defesa dos interesses do Império é legível, ainda, na defesa, feita pela Câmara,
da Companhia de Jesus contra os capuchinhos franceses, que pretendem instalar sua ordem em
Salvador. Os oficiais noticiam ao Rei que os capuchinhos são responsáveis pelo levante dos índios
do sertão ensinando-lhes que os verdadeiros descobridores do Brasil são os franceses e que o domí­
nio dos portugueses é injusto. Além disso, segundo a Câmara, fornecem armas de fogo aos índios,
que atacam e queimam canaviais e engenhos. Mais uma vez, a defesa dos interesses do Império
coincide com a dos interesses dos senhores e lavradores de canas. Cf. Cartas tio Senado 1673-1684,
vol. 2, pp. 78-79.
15. Texto de Bermúdez de Pedrasa, citado por Francisco Murillo Ferrol, Saavedra Fajardoy la Política
dei Barroco, Madrid, Instituto de Estúdios Políticos, 1957, p. 307.

116
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O M Í S T I C O

m u m S e n t i m e n t o d e t o d o s p e la d e s e s t i m a ç ã o e m q u e e s t ã o o s n o s s o s F r u t o s d o B r a s il,
A ç ú c a r e T a b a c o 16.

E nos poemas:

L o g o e m b o a c o n s e q ü ê n c ia
n a P e s s o a r e a lç a d a
d e P ed ro e stá a te n u a d a
d e s t a P r o le a d e s c e n d ê n c ia :
lo g o c o m t o d a a e v i d ê n c i a
e a l u z d a d iv in a l u z
se v ê , q u e a P ed ro c o n d u z
o o lh a r , e v e r d e D e u s ,
q u e ao p r im e ir o R e i, e a os se u s
p r o m e te u na a r d e n te cru z.

( O C , V , p . 1 2 0 8 .)

Segundo as letras dos séculos X V I e X V I I sobre o tema, que se analisa


mais extensivamente no capítulo I I I , a doutrina do “corpo místico” referida
ao Estado significa o estado de natureza como “simples corpo místico” em
que todos os membros reconhecem as mesmas obrigações, pautam-se pelas
mesmas regras e “[...] são capazes de ser considerados, do ponto de vista mo­
ral, como único todo unificado”, como escreve Suárez17. A metáfora teológi-
co-política do “corpo do Estado” corresponde ao terceiro modo da unidade
dos corpos exposta por Santo Tomás de Aquino em seu comentário do Livro V
da Metafísica, de Aristóteles: unidade de integração, que não exclui a
multiplicidade atual e potencial. Partes de um todo, os membros do corpo são
instrumentos de um princípio superior, a alma. Por analogia de proporção, o
corpo humano é termo de comparação com o corpus Ecclesiae mysticum: a trans­
ferência metafórica é efetuada pelo termo caput, “cabeça”. Sede da razão, a
cabeça está para o corpo assim como Deus está para o mundo. Politicamente,
o Rei está no reino assim como a cabeça no corpo: razão dos membros, o Rei
os dirige em função de sua integração harmônica. Segundo Suárez, nenhum
corpo se conserva sem um princípio que promova o bem comum dos mem­
bros, uma vez que cada um procura o seu próprio bem, que nem sempre coin­
cide com o bem do todo, podendo inclusive contrariá-lo. Assim, como a socie­

16. Carta de 12.8.1687, vol. 3, p. 49.


17. Cit. por Quentin Skinner, The Foundations of Modem Polilical Thought, Cambridge, Cambridge
Uni versity Press, 1978, 2 vols., vol. II (The Age of Reformai ion), p. 165.

117
A SÁTI RA H 0 E N G E N H O

dade civil é natural, também o é a autoridade, como princípio racional que


evita a confusão: “[...] necessária, ita estpoteslasgubernandi illam, sine qua essent
summa confusio in tali communitate”18. O poder da cabeça sobre os membros, ou
do Rei sobre os súditos, justifica-se comopactum subjectionis.
Escolasticamente, o direito natural da liberdade não é absoluto: distin-
gue-se no direito natural o que é positivo do que é negativo, pois certas ações
são ordenadas ou proibidas pela lei natural, ao passo que outras são simples­
mente permitidas. E a mesma conceituação da liberdade que legitima o po­
der do soberano, pela comparação da liberdade da pessoa com a liberdade da
comunidade. Se, por direito natural, a pessoa é livre, isto significa que não
pode perdê-la senão por vontade própria ou por justa causa. Não significa,
contudo, que a conserve sempre, pois pode aliená-la. Da mesma maneira,
segundo Suárez, a comunidade pode transferir para um governante o poder
que tem sobre si mesma19.
O dogma luterano afirma que, devido à sua natureza decaída, o homem é
incapaz de entender a vontade de Deus e, assim, de viver de acordo com a lei
genuína. Legitima-se, desta maneira, o poder absoluto, imediatamente confia­
do por Deus ao soberano ao qual se deve obediência cega. Contra esta tese,
que também faz a Lei invisível pela postulação do livre exame das Escrituras
e pela negação da instituição visível da Igreja, o dogma católico afirma, na
Contra-Reforma, que o poder é uma instituição natural, fruto de um pacto,
visível numa Igreja. Derivado de Deus, certamente, que é sua Causa Primei­
ra, o poder do soberano não é absoluto como direito divino diretamente doa­
do por Deus, pois resulta de uma transferência pela qual a comunidade se
aliena dele na pessoa do governante, segundo um contrato: “Tal transferência
do poder da república para o príncipe não é delegação, mas quase alienação,
ou uma perfeita concessão do poder que estava na comunidade”20. Pela trans­
ferência do poder, o Rei é superior ao povo, mas pode ser privado do poder
quando degenera em tirano21.

18. Cit. por Cario Giacon, S. J., La Seconda Scolaslica, Milano, Fratelli Bocca Editori, 1950, 3 vols., vol.
III, p. 159.
19. Cf. Manuel Paulo Meréa, “Suárez, Jurista”, Revistada Universidade de Coimbra, Coimbra, Imprensa
da Universidade, 1917, vol. VI, p. 116.
20. Cf. Francisco Suárez, De legibus, lib. 5, cap. 4, n. 11: “Tahs translado potestatis a republica in principem
non est delegalio sed quasi alienatio, seu perfecta largilio polesiatis quae erat in communitate”, cit. por
Jean-François Courtine, “Chéritage scolastiquedans la problématique ihéologico-politique de l’Âge
Classique”, em Henry Méchoulan (org.), op. cit., p. 99.
21. Cf. Manuel Paulo Merêa.op. cit., p. 124: “Mais uma vez, Suárez começa por fazer a distinção consa­
grada em tirano quoad lilulum e tirano quoad administrationem. O primeiro, também chamado na
escola lyrannus usurpalionis, é o tirano propriamente dito, aquele que se apoderou do trono injusta-

118

i
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O M Í S T I C O

Acrescenta-se a tal interpretação a crítica dos adeptos de Maquiavel, cor­


rente em Portugal no século XVII e central na sátira como prescrição ética do
dever. Contra a interpretação política das leis conforme a ocasião, advogada
pelos partidários da “razão de Estado”, que propõem que o direito deixe de
ser limite e circunscrição natural do Estado para ser instrumento dele, a Con-
tra-Reforma afirma que o ius é sempre lei natural expressa em leis positivas -
portanto, Razão. No aconselhamento do fazer do Príncipe, contra os políticos
que propõem a conveniência segundo a ocasião, os juristas contra-reformis-
tas afirmam o dever22, limitando o poder do soberano pela ética e teologia do
direito natural.
Vários motivos concorrem, portanto, na hierarquia23: natural, visível nas
leis positivas da Cidade e nos ritos e sacramentos da Igreja, regula a unidade
sagrada do corpo do Estado, a pluralidade dos membros e a diversidade de
atribuições segundo um fim, o da “única vontade unificada” no bem comum.
Necessária, mantém a comunidade coesa como ordinata multitudo. Ostensiva,

mente e que só de fato ocupa o lugar de rei. O segundo - lyrarmus adminisiralionis ou tyrannus
regiminis - é o rei que, gozando de justo título, todavia governa tiranicamente, realizando de prefe­
rência os seus interesses pessoais, ou afligindo injustamente o seu povo - na qual categoria devem
incluir-se, entre os monarcas cristãos, aqueles que afastam seu povo da ortodoxia”.
22. Cf. Martim de Albuquerque, “Política, Moral e Direito na Construção do Conceito do Estado em
Portugal”, Esludos de Cultura Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1983, pp. 96-
9 7 : “Para os 'filósofos políticos’ lusitanos d o s séculos X V I e X V I I a razao de Estado constitui doutri­

na pestífera. A condenação da razão de Estado, no sentido em que se ligou este conceito a Maquiavel,
é correlativa e conseqüência lógica da condenação do Florentino. Como oposta quer à ordem divina
quer à ordem ética e jurídica nos aparece estigmatizada na generalidade dos autores. [...] A ratio
slatus, como supremo interesse, era pois geralmente repudiada, e quando se adotava a fórmula razão
de Estado fixavam-se-lhe fronteiras divinas e humanas; postulava-se a sujeição do poder estatal ao
comando divino, pelo que nâo se pressupunha a cisão da moral e da política e se afirmava a plena
vigência na esfera do governo do direito anterior c superior ao Estado - o ius divinum, naturale et
gentium - bem como, via de regra, também do próprio direito positivo, com a negação do princcps
legibus solutus". E neste sentido que o autor interpreta a criação da Mesa da Consciência e Ordens, no
século X V I , como controle judiciário do poder pela teologia e pela ética.
23. Le Roy Ladurie escreve que a Corte se erige em lugar geométrico das hierarquias, que subenten­
dem o sistema monárquico ou são subentendidas por ele. Os princípios hierárquicos propostos por
Ladurie para a França, a Espanha e Império valem também para Portugal, no século X V I I : subdivi­
sões extremamente minuciosas de ordens, ao longo de um eixo vertical, que desce da família real
aos simples gentis-homens; referências e distinções entre o sagrado e o profano, e também entre o
puro e o impuro, o bastardo e o legítimo; contrafenômenos de renúncia cristã da Corte e do mun­
do, de um lado, hipergamia feminina, de outro: graças ao casamento, as mulheres obtêm, através
de grandes dotes, maridos mais distintos que elas e uma posição acima da condição do seu nasci­
mento. “Elas sobem como trutas ao longo da cascata dos desprezos." Cf. Emmanuel Le Roy Ladurie,
“Reflexions sur 1’essence et le fonctionnement de la monarchie classique ( X V r - X V I I F siècles)”, em
Henry Méchoulan (org.), op. cit., p. X IV .

119
A SÁTI RA E O E N G E N H O

evidencia o absoluto do poder que a comunidade aliena no soberano e nas


instituições. Fundada no direito natural, é racional, ordem, regulando-se teo­
lógica e eticamente. Sua manutenção opõe-se ao pecado e à heresia, pois asse­
gura a concórdia das partes consigo mesmas, pelo controle dos apetites parti­
culares, e a paz do todo, pela unificação das vontades.
A pompa, a ostentação, o aparato e a propaganda rigidamente regulamenta­
dos, assim como a festa, operam como encenação teológico-política que repõe a
hierarquia espetacularmente: visível, natural, racional, necessária. Efetuada na
sátira, a dissolução da hierarquia é a morte, discórdia das partes desgarradas do
todo do corpo como pedaços de ódio e inimizade do bem comum:

Q u e im p o r ta , q u e n ã o se e n fo r q u e m
o s la d r õ e s , e o s a s s a s s in o s
o s f a ls á r io s , m a l d i z e n t e s ,
e o u t r o s a e s t e t o n ilh o ?
S e d e b a ix o d e sta p a z,
d e s t e a m o r f a ls o , e f i n g i d o
h á fe z e s tã o v e n e n o s a s ,
q u e o o u r o é c h u m b o m o f in o ?
É o a m o r u m m o r ta l ó d i o ,
s e n d o t o d o o in c e n t iv o
a c o b iç a d o d in h e ir o ,
o u a in v e j a d o s o f í c i o s .
T o d o s p e c a m n o d e se jo
d e q u e r e r v e r s e u s p a tr íc io s
o u d a p o b r e z a a r r a s ta d o s
o u d o c r é d it o a b a t id o s .
E s e m o u tr a c o u s a m a is
se d ã o a d e s t r o , e s in is t r o
p e la h o n r a , e p e la f a m a
g o lp e s c r u é is , e in fin ito s .

( O C , I, p . 2 2 .)

Veja-se, pois, o que aconselha Suárez, segundo o direito, quando respon­


de à questão de “[...] si es liçito a alguna persona recibir o pedir dadiva, ó cosa de
preçioy valor, por alcançar dei que tiene mano en el Gobierno, algun offiçio, plaça,
o digtiidad”. Questões do mesmo teor são comuns nas Cartas da Câmara, prin­
cipalmente em conflitos de atribuições com o Tribunal da Relação, em quei­
xas contra pessoas com foros falsos de fidalguia, em reclamações contra os
privilégios do clero, em acusações contra mercadores monopolistas, na re­
pressão aos contrabandistas de ouro e prata etc. Os mesmos eventos são

120
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O MÍ S T I C O

efetuados na sátira, aliás, que articula o mesmo critério teológico-político em


sua avaliação:

N o tr a ta m o s d e los M i n i s t r o s , y o ffiç ia le s R e a le s en e s ta d u d a , p o r q u e d e sto s es cosa lia n a ,


y ç ie r ta , q u e e n r e ç ib ir d a d iv a s , o p e d ir co sa d e v a lo r , d ir e c te o in d ir e c te p o r este f i n , y c o n c o lo r
d e o ffiç io , p e c a n m o r ta lm e n te c o n tr a la R e p u b lic a g r a v is s im a m e n te ’J.

Segundo Suárez, aqui citado como um paradigma hierárquico que se apóia


na autoridade de outros juristas, o ministro peca contra as leis da República
em coisa lícita e grave, da qual pende o “bom ser” do corpo do Estado. Logo,
peca mortalmente em grave detrimento dele, porque todo aquele que faz algo
contra a lei justa e boa em coisa grave peca desta maneira. E não só, porque
também peca contra o juramento que fez de guardar as leis do Reino, sendo
um perjuro manifesto, que as mesmas leis determinam seja tratado como tal
e castigado como traidor do juramento. Peca “gravissimamente”, ainda, por­
que pelo crime todas as coisas se vendem, a justiça se perverte, as letras e as
virtudes se acabam, os pobres são oprimidos, os ricos se fazem insolentes e,
finalmente, “[...]padeçe miserable naufragio la comunidad:y assi como a enemigos
dei bien comum los castigan gravissimamente las levs dichas, significando de alguna
manera con la gravedad de las penas el aborreçimiento que tienen a estos peccados”2-.
Ou, ainda: “[...] como el Salyrico dixo: ‘quid faciunt leges, ubi sola pecunia
regnal ?’ ”24256
Pela harmonia dos membros do “corpo místico” da República, infere-se
que não só tal ministro, mas também e principalmente o superior e adminis­
trador do governo, “[...] que lopermite sabiendolo, o deviendolo saber, o oyendolo,
o sospechandolo,y no lo averiguando, pecca mortalmente”2728.Em outros termos, a
todos os que são causa voluntária de um pecado ou dano imputam-se os mes­
mos, como se os tivessem feito. O mesmo se aplica também ao juiz que, encar­
regado de averiguar a verdade das acusações, tem indícios suficientes para
fazer inquisição e nada faz: “mutus, non manifestam”2*. Também os que pedem
e dão coisas eclesiásticas pecam mortalmente, uma vez que, por direito natu­

24. Cf, Francisco Suárez {Doaor Eximius), Conselhos e Pareceres, Coimbra, Imprensa da Universidade
de Coimbra, 1948, 3 tomos, tomo I, p. 225. “Ministro” e “oficial'’ são nomes para presidentes,
ouvidores e alcaides de Audiência; aleaides de Corte, juizes, relatores, escrivães de Câmara, procu­
radores, fiscais; contadores; secretários; alcaides; carcereiros; almotacés etc.
25. Idem, p. 226.
26. Idem, p. 227.
27. Idem,ibidem.
28. Idem, p. 228.

121
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

ral, a simonia é proibida, pois não é lícito dar coisa espiritual por preço tem­
poral nem tampouco recebê-la.
O fundamento da conclusão é claro, segundo Suárez:

[...] la r a ç o n d e a v e r t a n e s t r e c h a y g r a v e m e n te p r o h ib id o esto a lo s jfu e ç e s , M i n is t r o s , y o ffiç ia le s


es, p o r q u e tie n e n m a n o en e l g o v ie r n o : lu e g o si e s ta m a n o lie n e n o tro s , q u e t i e n e n e n tr a d a con
lo s q u e g o v ie r n a n , en ello s c m r e la m is m a ra ç o n , p u e s en los p r im e r o s se p r o h ib id o esto , p o r q u e
e r a m a i o . y n o c iv o (d e s u e r te q u e a n te s q u e lo p ro h ib ie s se n e r a p e r n i ç i o s o ,y p o r esso se h a lla r o n
o b lig a d o s los P r ín c ip e s a a ta ja r lo c o n leyes ta n n g u ro s a s). L u e g o en e sto tro s, a q u ie n e sta r e d u ç id a
la m a n o e n el g o v ie r n o , e sto m is m o s e ra p e r n iç io s o to ta lm e n te a u n q u e n o h a b le la le y p o s itiv a
h u m a n a co n e l lo s ,y a s s ip ite s en r e a lid a d d e V e rd a d tie n e n e l u s o , y e l o ffiç io , a u n q u e , no te n g a n
el t i t u l o y n o m b r e , d e v e u s e r c a s tig a d o s ,y r e m o v id o s , si a b u s a n d e i: p o r q u e , p o r e l m is m o caso,
q u e los a d n i i t e n , y tie n e n m a n o en d g o v ie r n o , a u n q u e se a p o r v i a d e in te rç e ss io n , e s ta n o b lig a d o s;
a u s a r d e lia c o n f i d e l i d a d , y lim p ie ç a , p o r q u e , d e o tr a s u e r te f u e r a esto m a s p e r n iç io s o , q u e lo de
los M in is tr o s , p u e s a q u e llo s co n el te m o r d e ia p e n a se r e fr e n a n a lg u n ta n t o , y e sto s (c o m o les
p a r e ç e n o la tie n e n ) j u e g a n a l se g u ro p a r a si c o n ç i e r t o y m a n ifie s to d a iio d e la R e p u b lic a , d o n d e
n o se p r o v e e cosa p o r J u s t i ç i a m e r e ç im ie n tu n i p a r te s , s in o p o r p u r o d in e r o , q u e es Ia s u m m a
m i s e n a d e u n a c o m u n i d a d 293
0.

Infere-se ainda, segundo o direito, que nem mesmo o Príncipe pode dar
licença para que os que têm mão no governo possam receber dádivas e subor­
nos porque “ [...] es muy maio acuerdo danar a muchos por aprovechar a u.no’m .
Peca o Príncipe que o permite, pois torna-se ocasião de inumeráveis pecados
e põe em perigo moral o bem de seu Estado. Peca, princípalmente, porque
não o pode permitir: “ [...] por ser derecho natural, y Divino, aunque pueda no
castigar, ni penar, comosu Ley positiva reza”3132.Finalmente, conclui Suárez que:

[...] s ie n d o e l c a s tig o d e s to s d e s a fu e r o s J r e n o d e ta n to s y ta n g r a v e s d a n o s y p e c c a d o s , e l no
h a ç e r lo q u ie n tie n e o b l ig a ç io n y p ite d e , se ra c a u sa v o l u n t á r i a d e to d o s e llo s ,y d e los q u e h iç ie r o n
estos ta le s , q u e tie n e n m a n o en e l g o v ie r n o , a c a u s a d e los p r e s e n te s , d a d iv a s , o a v a r iç ia , q u e no
p o d r a n s e r p o c o s , n i p e q u e n o s , p o r q u e c o m o el q u e f a ç i l i t a a u n o la V ir lu d , m e r e ç e m u c h ó , assi
d e s m e r e ç e g r a n d e m e n te q u ie n a b re c a m in o p a r a e l 1iç io e s p e ç ia lm e n te s i es e n d a iio d e la
C o m u n i d a d 12.

Estas considerações são feitas para recusar uma noção de “hierarquia”


proposta como quadro de oposições simples do tipo “dominante/dominado”

29. Cf. F. Suárez, op. cit., pp. 232-233.


30. / d e m , p. 235.
31. I d e m , p . 236.
32. I d e m , ibidem.

122
A M U R M U R A Ç Ã O 1) 0 C O R P O M Í S T I C O

muita vez aplicadas aos documentos do século X V I I . Também na Bahia, por


ser genericamente prescrita, a hierarquia é muito difusa, no que concerne às
práticas. Regida pela doutrina do “corpo místico” do Império, reiterada pe­
las virtudes medievais que a corporificam naturalmente - nobreza, lealdade,
coragem, fé, prudência -, a hierarquia é pontualmente destruída em vários
níveis simultâneos, enquanto se repropõe e reconstitui-se o tempo todo. Este
duplo movimento encontra-se em toda a sátira atribuída a Gregório de Matos
e Guerra e também nas Cartas do Senado da Câmara e em outros documentos
da época, sendo o índice de confusões entre transgressão e lei natural, um dos
temas prediletos da sátira. Como um sistema de normas, a hierarquia classi­
fica os corpos distribuindo-os por lugares sociais do “corpo místico” da Re­
pública. Feixe de relações, algaravia de posições conflitantes, nela se intertra-
duzem a propriedade, a limpeza de sangue, a fidalguia, a escravidão, o trabalho
manual, a religião, o saber letrado, o comércio, como classes jurídicas trans­
formadas na sátira como matéria semântica que preenche tópicas retóricas
tradicionais.
Quando aqui se lêem as Canas cAtas como documentos, mantém-se de­
les a regra de unificação da multiplicidade dos eventos que narram e que se
traduzem pela hierarquia, princípio generalíssimo aqui interpretado pelo
direito. Tal regra é a vontade unificada de todos na subordinação ao Rei, que
os oficiais apregoam nos papéis que escrevem como “bem comum”, “bem
comum deste povo”, “bem comum da República”, “bem comum deste Esta­
do” etc. Homens de “mor qualidade” ou “de representação” - proprietários,
livres, brancos - os senhores oficiais da Câmara declaram abdicar de suas
prerrogativas particulares de mando ao tratar dos negócios públicos como
vereadores: homens da República. Assim, como se escreveu, enunciados do
interesse geral muitas vezes entram em choque com enunciados dc interesse
particular.
A mesma unificação hierárquica inclui a “murmuração”, que a questio­
na, para solvê-la e repropô-la como hierarquia. A “murmuração”, evento, deve
ser evitada e corrigida, enfim, movimento também observável na sátira, que
murmura contra a murmuração ou que corrige a hierarquia que permite a
murmuração33.
Como a vontade do Rei constitui a lei, os súditos das Cartas cAtas subor­
dinam-se a d a formalmente, quase abrindo mão de seus direitos para em

33. A sátira costuma dramatizar a murmuração: “o vulgo tem murmurado" (OC. II , p. 251); “[...] diz
e s t a plebe inimiga” (OC, I I I , p. 317); “[...] veio ocasião/de todo o povo malvado / dizer...” (OC, IV,

p. 833) etc.

123
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O

troca receber os privilégios revogáveis a qualquer momento pela mesma von­


tade soberana. Pela subordinação de todos à unidade dessa vontade, funda­
menta-se a hierarquização que subordina a si outras vontades hierarquica­
mente inferiores, como as dos senhores proprietários. A sátira produz a
divagem entre a vontade dos homens bons, evidentíssima nas atas e cartas, e
as ocasiões em que, publicamente, ferindo o bem comum da República, os
deveres e os direitos são politicamente subvertidos pelos interesses particula­
res dessas vontades subordinadas. Critica tanto o não-reconhecimento dos
privilégios (pela infração de precedências, pela presunção de passar por ou­
tro, pela exorbitância da ambição) quanto o desvio no exercício dos mesmos
privilégios (pela corrupção da justiça dos magistrados da Relação, pelo su­
borno34, pelo abuso na isenção de impostos pelo clero, pela corrupção mono­
polista dos comerciantes da Junta do Comércio, pela tirania dos governado­
res etc.). Em outros termos, a sátira é reguladora: circulando como o sangue
por todo o corpo da República, prescreve as posições e as trocas hierárquicas
adequadas para sua boa saúde, criticando a falta e o excesso. Os efeitos grotes­
cos da vituperação subentendem, assim, a racionalidade das leis positivas da
Cidade.
Hierarquizada no bem comum, a população é constituída nos discursos
das Cartas e Atas como sobretaxada de impostos e miserável. E natural, se­
gundo os discursos, que seja taxada; o que desvirtua a naturalidade, contudo,
é justamente o excesso, tanto de impostos quanto de miséria e de murmura-
ção. Segundo a Câmara, cs membros do corpo místico da República “[...] não
faltam vendo que é igual a justiça”35, o que implica sua adesão à mesma. “Fal­
tam”, contudo, quando a desigualdade é excessivamente desigual - por exem-

34. Cf., por exemplo, Carta de 26.6.1678, vol. 2, p. 42: “Foi Vossa Alteza servido atender as queixas
deste Senado mandar informar como de fato se informou dos Desembargadores desta Relação com
toda a atividade e inteireza de que deve dar conta a Vossa Alteza [...] a justificada queixa deste
Senado c o procedimento destes Ministros por ausentes da Presença de Vossa Alteza e ainda muito
mais apareceriam suas culpas se o Escrivão dela não fosse um Ministro da mesma Relação que
ocasionou a muitos o pejo e o temor com que se lhe restringiu a liberdade de poderem jurar por
não se sujeitarem ao dios, e padecerem ao depois os golpes das vinganças que têm prontas nas
varas com que executam e nas penas com que o sentenciam, condenam como de fato já sabem a
maior parte dos jurados e dos jurantes segundo se diz, dissimulando para seu tempo com a vingan­
ça...’’. Veja-se a sátira: “Mas que o Juiz da ciência / por causa de alguns respeitos / não faça exame
nos feitos, / por forrar o da consciência: / que o tal com muita insolência / por descuido, ou por
preguiça / não reforme esta injustiça / da sentença lisonjeira! / Boa asneira” (OC, II, p. 482). Ou:
“[...] os três paus da Relação / sempre é carta de ganhar” (OC, II, p. 422).
35. Cf. Carta de 26.6.1678, vol. 2, p. 45.

124
A M UR MU RAÇÃO DO C O R P O M Í S T I C O

pio, pelo excesso dos privilégios, dos quais a mesma Câmara representante do
“comum Sentimento” dá índices de se aproveitar sempre que pode.
Miserável, faminta, empestada, como nas Cartas, a população é represen­
tada como temível porque amotinável. Ela murmura. Em uma Carta de 1678
sobre a cobrança de um donativo não pago, a Câmara informa ao Rei que ele
teria recebido informações falsas - o documento não informa de quem - de
que as quantias a serem enviadas ao Reino teriam sido “inferiores quantias”
porque, com saudável eufemismo, se “retardaram” em mãos dos tesoureiros
e encarregados da cobrança. A Câmara alega que a diminuição da quantia se
deve não ao desvio dela para as arcas dos tesoureiros, mas à diminuição dos
cabedais do povo (aqui, o termo “povo” se generaliza e inclui os senhores de
engenho e lavradores de canas), causada pelo pouco rendimento das lavouras
e pela falta de fábricas de açúcar. Segundo os oficiais, o movimento da Alfân­
dega o comprova, pois faz cinco anos (desde 1673) não vão para o Reino senão
dez mil caixas de açúcar ou menos, anualmente, “[...] quando nos anos passa­
dos lavrava esta Bahia dezessete e dezoito mil caixas”. A causa da diminui­
ção, alega a Câmara, são os excessivos direitos reais, que acrescem em cada
arroba de açúcar:

[...] d e q u e r e s u lt a a o n e g ó c i o v e n d e r m o s o s f o r n e c i m e n t o s p a r a a s la v o u r a s c o m a v a n ­
ç o d e c in q ü e n t a p o r c e n t o p a r a a s s im g a n h a r e m e p a g a r e m o s m u i t o s t r i b u t o s q u e se
tê m p o s t o s o b r e n o s s a s d r o g a s e t u d o r e d u n d a e m p r e j u íz o d e s t e E s t a d o e d e t o d o o
a r r u in a m a s e x e c u ç õ e s p r e s e n t e s a s s im a s p a r t ic u la r e s c o m o a s d a F a z e n d a d e V o ssa
A lt e z a 36.

Após o arrazoado, os oficiais referem-se à “parte não menos deste Povo”,


que consta de “ [...] Religiosos e Clérigos pobre fogeticos [síc] Vagabundos
mulheres vadias, homens quebrados e outros de semelhantes condições” que
não pagam o donativo. Excetuando-se os clérigos, as categorias relacionadas
pela Câmara formam a “gente baixa” ou “pessoas vis”, que, embora façam
parte da mesma população, são julgadas inferiores e desprezíveis: juntem-se
bêbados, ciganos, contrabandistas, gatunos aos “pobres fogeticos Vagabun­
dos mulheres vadias, homens quebrados e outros de semelhantes condições”.
A Câmara escreve que a ralé alega, nas “muitas inumeráveis petições” que o
Senado recebe diariamente, justa causa para não pagar o imposto, buscando
“todos, por todas as vias”, meios de isenção. O que, mais uma vez, também
implica que a população nomeada pela Carta não exige outra justiça, mas a

36. Idem, ibidem.

125
A SÁTI RA E O E N G E N H O

mesma, desde que “igual”: com o zelo e a inteligência do governador, afirma


a Carta, “[...] se tem remediado o que se reputaria descuido porque sabe jus­
tamente nos dar calor e ajuda para o fazermos dos pequenos e pobres os quais
não faltam vendo que é igual a justiça”37.
“O que se reputaria descuido” é o modo como a Câmara incorpora e con­
testa a acusação real, numa operação muito hábil, que alega o governador
como avalista da situação de penúria e da correção administrativa sempre
preocupadíssima, óbvio, com “os pequenos e pobres”: “[...] é de conhecer [fal­
ta trecho no documento] com a evidência [falta trecho] Governadores que
foram deste Estado lhe nascia a piedade para a dissimulação a que Vossa
Alteza chama omissão”38.
Segundo a Câmara, “[...] parece ser escusado haver Ministros e Oficiais
com novos ordenados para executar o que se dever da contribuição”39. A no­
meação dos novos oficiais, magistrados do Tribunal da Relação, evidencia a
desconfiança real quanto à lisura das cobranças. Segundo a Câmara, que se
opõe à criação dos novos cargos, mantendo para si a atribuição da cobrança
do donativo com a alegação de que o povo murmura e não confia na justiça e
seus magistrados, “[...] o fazemos sua [a cobrança pelos novos ministros e
oficiais] somente aveixado e atropelado aos miseráveis em um Donativo vo­
luntário que com tanto zelo ofereceram a Vossa Alteza e só tiveram lugar
outros Ministros”40. A Câmara alega, ainda, que o pagamento dos novos oficiais
será retirado da contribuição dos “miseráveis”:

[...] P o r q u e u m a d a s c o n d i ç õ e s c o m q u e e s t e P o v o a c e it o u s o b r e s i e s t e d o n a t i v o c o m tão
b o a v o n t a d e fo i q u e s e n d o c a s o q u e p o r a lg u m a c i d e n t e s e i n t r o m e t e s s e m i n i s t r o s d e
j u s t iç a n e s t a R e p a r t iç ã o e c o b r a n ç a d e s t e lo g o h a v ia m p o r le v a n t a d o d i t o d o n a t iv o e
n e s t a f o r m a p a r e c e u o a c e it a v a V o s sa A lt e z a n a a s s i s t ê n c i a d o s G o v e r n a d o r e s C o n d e d e
Ó b id o s , e F r a n c i s c o B a r r e t o 41.

Uma carta posterior a esta, provavelmente do mesmo ano de 1678,


rearticula a crítica aos ministros da cobrança e estende-a para a Relação, com
índices muito fortes de oposição contra ela, valendo a pena sua transcrição
integral:

37. Idem, p. 46.


38. Idem, p. 45.
39. Idem, p. 46.
40. hiem,ibidem.
41. Carla de 22.8.1678, vol. 2, pp. 45-46.

126
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O M Í S T I C O

R e g is t r o d e u m a C a r t a e s c r it a a S u a A lt e z a s o b r e o n ã o se t o m a r c o n h e c i m e n t o a s
E x e c u ç õ e s d a F a z e n d a R I . F o i V o s sa A lt e z a R e a l S e r v id o m a n d a r q u e n e s t a R e la ç ã o s e
n ã o t o m a s s e c o n h e c i m e n t o s d e m a t e r ia is e C a u s a s p e r t e n c e n t e s à s c o b r a n ç a s d a F a z e n ­
da R e a l d e V o s sa A lt e z a o c a s iã o d e s e a r g ü ir e m m u it a s q u e ix a s e m a n i f e s t a s d i l i g ê n c i a s
c o m n ã o p a r e ç a lá s t im a d e s t e P o v o e c o m e s ta o r d e m d e V o s sa A lt e z a p r o c e d e m o s M i ­
n is tr o s d e s t a R e a l c o b r a n ç a se g u n d o se u s a fe to s e v o n ta d e s se g u ro s e m q u e n ã o h á q u e m e m e n ­
de seu [sic] p r o c e d im e n to s p o r q u e p r o c e d e m e x e c u tiv a m e n te c o n tr a os d e v e d o r e s d e Vossa A l t e ­
z a se m e m b a r g o d a s L e is e m c o n tr á r io q u e Vossa A l t e z a ta n t o a m a p e n h o r a n d o o s s e u s b e n s q u e
os C o n tr a ta d o r e s d e Vossa A l t e z a n o m e ia m se u s d ig o n o m e ia m se m o u tr a f i g u r a d e J u í z o e s ta
v e r d a d e h á d e s e r m a n i f e s t a a V o s sa A lt e z a p o r q u e h á d e c o n s t a r q u e e s t e a n o f in d o d e
m enos f r u t o s se c o b r o u m a is q u e n o s p a s s a d o s e j á q u e Vossa A l t e z a é s e r v id o c o n s e r v a r a q u i e sta
R e la ç ã o s e r á r a z ã o p a r a q u e n o s s e ja e m a lg u m a m a n e ir a p r o v e it o s a p a r a e m e n d a r este
p r o c e d im e n to [sic] p e lo s m e io s o r d in á r io s d e u m a g r a v o p o r q u e d e o u tr a m a n e ir a n ã o só nos
fic a r á e sta R e la ç ã o m o le s ta m a s a i n d a in ú t i l su a a s s is tê n c ia is t o p r o p o m o s a V o s s a A lt e z a
p ela f i d e li d a d e d e n o s s o s â n i m o s q u e t e m o s d e o b s e r v a r a s o r d e n s d e V o s sa A lt e z a p o r
e s ta r m o s n o C o n h e c i m e n t o c e r t o s d e q u e V o s sa A lt e z a h á d e r e m e d ia r t u d o c o m o P r ín ­
c ip e tã o b e m i n c l i n a d o a q u e m d e s e j a m o s c o m o s a n g u e d e n o s s o s b r a ç o s a d q u ir ir - lh e
m a io r e s f e l i c i d a d e s p a r a o E s t a d o d e V o s sa A lt e z a n a s o c a s i õ e s p r e c i s a m e n t e n e c e s s á r i a s
q u e e s t a s a s n ã o t e m o s d e p r e s e n t e s e ja D e u s lo u v a d o p a r a se p r o c e d e r a s e x e c u ç õ e s se m
recurso; e o o r d in á r io n e s ta C id a d e h a v e n d o M in is tr o s n e la L e tr a d o s . G u a r d e D e u s a P e s s o a
d e V o ssa A lt e z a m u i t o s a n o s c o m o h a v e m o s m is t e r s e u s V a s s a lo s 42.

Segundo a Câmara, a Relação age à revelia, “sem embargo das Leis em


contrário”, que proíbem as execuções de dívidas dos senhores de engenho em
suas propriedades. Num lapso, o escrivão diz que os contratadores “nomeiam
seus” os bens que penhoram, para corrigi-lo por “nomeiam sem outra figura
de Juízo”. O pedido por intervenção real para que se emendem tais procedi­
mentos “pelos meios ordinários de um agravo” indica nitidamente a posição
da Câmara na defesa dos interesses senhoriais, uma vez que os “meios ordi­
nários” são atribuição dos Juizes Ordinários, dois homens-bons eleitos anual­
mente com os outros três componentes da Câmara, seus oficiais. Os conflitos
com a Relação intensificam-se nos documentos das décadas finais do século
XVII. Neles, a baixa geral dos preços do açúcar, a morte da mão-de-obra es­
crava pelas pestes, a falta de moeda circulante dramatizam a ruína dos se­
nhores cujas propriedades, safras e escravaria são penhoradas em pagamento
de dívidas. A mesma carta acima transcrita fornece pista da oposição entre
Juizes Ordinários, letrados formados no colégio local da Companhia de Jesus, e
magistrados da Relação, formados no Reino.

42. Carias do Senado 1673-1684, vol. 2, pp. 50-51 (grifos meus).

127
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

Tais conflitos são do conhecimento do doutor Gregório de Matos e Guer­


ra quando procurador da Bahia em Lisboa, nos anos de 1673 e 1674 - bem
antes, portanto, do seu retorno para a terra das bananeiras43. Vale ler a carta
endereçada a ele pela Câmara, pois nela se explicitam conflitos com a Rela­
ção, envolvendo Juizes Ordinários, e, ainda, as atribuições do procurador:

R e g is t r o d e u m a C a r t a e s c r it a a o P r o c u r a d o r G r e g ó r io d e M a t o s e G u e r r a e m L i s ­
b o a s o b r e a m e s m a m a t é r ia a tr á s d a C a r ta p a r a S u a A lt e z a .

N e s t e p a s s a d o a n o d e s e i s c e n t o s s e t e n t a e o it o d i g o s e t e n t a e tr ê s a c o r d a r a m o s
D e s e m b a r g a d o r e s e m R e la ç ã o f e s t e j a r a o E s p ír it o S a n t o e m u m a d a s S u a s o it a v a s n o
C o n v e n t o d o C a r m o a t í t u l o d e f e s t a d a j u s t iç a o b r ig a n d o a t o d a e la a a c o m p a n h a r o
r e g e d o r d e C a v a lo c o m p e n a d e v i n t e C r u z a d o s fo r a m o s J u i z e s n a v é s p e r a o b e d e c e r a
e s t e m a n d a t o e n ã o fo r a m a o d ia a s s im p o r n ã o s e r o b r ig a ç ã o c o m o n e s s a C o r t e c o m o
p e lo h a v e r e m f e i t o a s s im o s d o a n o p a s s a d o q u e t a m b é m s e n ã o a c h a r a m n e le : m a s o s d o
p r e s e n t e se a s s e m e l h a r a m a o s d o p a s s a d o n a a ç ã o n ã o o s i g u a la r a m n o m e r e c i m e n t o ou
f o r tu n a p o r q u e a tiv e r a m a q u e l e s d e q u e s e n ã o f i z e s s e c a s o d a s u a f a lta e e s t e s a d e q u e
s e o l h a s s e p a r a e s t a p a r a s e a r r o ja r e m d e m a n e ir a e s t e s M i n i s t r o s q u e f iz e r a m a t o d e le s
e s e m a t e n t a r e m a q u a l i d a d e d a s P e s s o a s n e m a d o C r i m e o f iz e r a m tã o a t r o z q u e o
s e n t e n c ia r a m e m v i n t e d i a s d e C a d e ia p ú b lic a e e m v i n t e m i l r é is a c a d a u m s e m r e s p e it o
a o s P r i v il é g i o s q u e p o r m u i t o s g r a n d e s p u d e r a m s e r i n v i o l á v e i s . I s t o m e s m o s e e s c r e v e
a S u a A lt e z a c o m o V o s s a M e r c ê v e r á n a C a r ta in c l u s a , e s e l h e m a n d a m o s a u t o s e C e r ­
t i d õ e s q u e s e r ã o c o m e s ta [sic] p o r m ã o d e V o s sa M e r c ê p a r a q u e o b r e n e s t e C a s o n ã o só
c o m o z e l o d e o b r ig a ç ã o q u e V o s s a M e r c ê t e m d e o fa z e r c o m o P r o c u r a d o r d e s t e S e n a d o
m a s c o m o f i lh o d a m e s m a p á tr ia q u e d e v e s e r o r e p a r a d o r d a s m o l é s t i a s v i t u p é r io s d e
s e u s p a t r í c i o s e v i z i n h o s r e q u e r e n d o m u it o a S u a A lt e z a a e m e n d a d e s t e d e s a c e r t o p ara
q u e s e e v i t e m a s s im o s m a is q u e p o d e m s u c e d e r , p o r q u e q u e m c o n s e n t e a p r im e ir a
a n im a p a r a a s e g u n d a , c o m o p o r q u e s e d is t o S e n h o r n ã o m a n d a r e s t r a n h a r m u i t o e s te
C a s o t e n h a V o s s a M e r c ê e n t e n d i d o p a r a o r e p r e s e n t a r a s s im a S u a A lt e z a q u e n ã o h á d e
a c h a r h o m e n s q u e o s ir v a m p o r q u e q u a n d o n ã o h á d e a c h a r h o m e n s q u e o s ir v a m p o r ­
q u e q u a n d o [síc] n ã o fo r a m b a s t a n t e s a s q u a lid a d e s e o s p r i v i l é g i o s c o m g r a n d e c o n s i d e ­
r a ç ã o s e p o d ia m r e s p e it a r a s V a r a s d e S u a A lt e z a a r e t e n ç ã o d o s D e s p a c h o s e a a lt e r a ç ã o
P o p u la r q u e s e p o d ia t e m e r d e s t a v i o l ê n c i a p a r a c u ja e m e n d a n ã o fo r a p e q u e n a [fa lta
t r e c h o d o d o c u m e n t o ] V o s s a M e r c ê a S u a A lt e z a m a n d a s s e c o b r a r d e s t e s M i n i s t r o s s e is
m il S o ld a d o s , q u e p õ e m d e p e n a a o s q u e n ã o g u a r d a r e m e s t e s s e u s P r i v il é g i o s c o m o
V o s sa M e r c ê h a v e r á a o p é d e le s . E p o r q u e s u a A lt e z a c o n c e d e t a m b é m a o s C id a d ã o s
d e s t a C id a d e o s m e s m o s P r i v il é g i o s , q u e t e m o s d e s s a d e L is b o a t o m e V o s sa M e r c ê ao
s e u c a r g o m a n d a r - n o s a C ó p ia e t r a s la d o d e l e s e m p ú b lic a fo r m a p a r a s e r e g is tr a r e m
n e s t a C â m a r a a in d a , q u e n o s n ã o V a lh a m , e a p r o v e it e m p a r a a s r e s p e it a r e m m a s e s p e r a ­

43. C f . OC, IV, p . 8 9 7 : “Ontem avistamos terra, / e quando na barra vi, / coqueiros e bananeiras, / disse

comigo: Brasil”.

128
A M U R M U R A Ç A O DO C O R P O M Í S T I C O

m o s m u i t o c e r t a m e n t e q u e c o m o f a v o r d e D e u s e b o a d i s p o s iç ã o d e V o s sa M e r c ê c o l h a ­
m o s o s f r u t o s d e n o s s a s e s p e r a n ç a s d e c u j o e f e i t o p e d i m o s a V o s sa M e r c ê s e h a ja p o r
m u it o e n c a r r e g a d o . G u a r d e D e u s a V o ssa M e r c ê B a h ia v i n t e d e d e z e m b r o d e m il s e i s ­
c e n t o s s e t e n t a e q u a tr o '14.

Nos documentos, volta e meia explode o conflito aberto entre a Câmara e


a Relação, como no caso referido da prisão dos Juizes Ordinários. Um desses
conflitos encontra-se no próprio emperramento burocrático da Justiça portu­
guesa, com suas várias instâncias de apelação e recursos. Os processos são
muito lentos e os altos custos implicados neles oneram o bolso dos senhores.
Por isso, a Câmara deseja a mediação dos Juizes Ordinários locais, apesar da
limitação dos poderes destes, substituindo o recurso legal moroso, caro e afi­
nal incerto da Relação por vias mais seguras4445. Nesses conflitos, a Câmara e a
Relação funcionam como instâncias públicas em que desejos e interesses de
senhores se modelam institucionalmente, de modo que a discussão jurídica e
administrativa de privilégios infringidos, de precedências desrespeitadas, de
abusos de atribuições etc. também significa lutas por demarcação de terras,
pela lenha escassa para as moendas, execução de dívidas, penhora de safras,
brigas familiares por heranças, atritos provocados por incêndios criminosos
em canaviais etc.
Não se têm mais informações, nas cartas, sobre o resultado da ação do
procurador Gregório de Matos e Guerra para desagravar os Juízes Ordinários
presos por ordem da Relação46. A Carta que o demite do cargo é instrutiva,
contudo, pois nela de novo o “Sentimento geral” é efetuado e, segundo a Câ­
mara, por iniciativa do Juiz do Povo, representante das classes mecânicas de
Salvador47. Mais uma vez, a murmuração e o “escândalo” dos novos impostos

44. Carta de 20.12.1674, vol. 2, pp. 15-17.


45. Cf. Stuart B. Schwartz, op. cii., pp. 281-282.
46. Carta de 27.7.1674, vol. 2, pp. 18-20, informa a demissão de Gregório de Matos e Guerra ao novo
procurador e pede-lhe dar continuidade à queixa junto ao rei: “Em particular encomendamos o da
queixa que se fez a Sua Alteza sobre o procedimento da Relação com os juizes por não assistirem no
ato da Festa do Espírito Santo”.
47. Carta de 26.7.1674, vol. 2, pp. 17-18, demite Gregório de Matos e Guerra do cargo de procurador da
Bahia na Corte. Há um equívoco na datação das Cartas, a menos que a data de 20.12.1674 seja a do
seu registro, pois a Carta de 26.7.1674 demite Gregório e a de 20.12.1674 passa-lhe as procurações
cujo não-atendimento alegado pela Câmara é causa de sua demissão. Leia-se a de demissão: “Com
esta enviamos a Vossa Mercê a Procuração que nos pede para confirmação do ato que Vossa Mercê fez
nas Cortes, que se celebraram este ano de Procurador desta Cidade. Aqui se tem grande escândalo do
que se diz de novos e pesados impostos sobre o Tabaco fruto deste Estado e também de vir esta Frota
com ordem de invernar, e ficarem os açúcares juntos com os da nova safra de que se seguem a este
Povo mui graves danos: e não nos diz Vossa Mercê que sobre pontos de tanta importância fizesse alguma

129
A SÁ T IR A E O E N G E N H O

são alegados, bem como a “alteração popular” que se “[...] podia temer desta
violência”. A carta de demissão evidencia ainda, no eufemismo irônico de
seus oficiais, que atribuem a Gregório de Matos, como causa de sua omissão
alegada, “suas maiores ocupações”, a auto-representação dos oficiais: “[...] e
assim nos pareceu, a requerimento do Juiz do Povo aliviar Vossa Mercê da
nossa que na verdade é bem grande e pede sujeito mais desocupado’'.
Nos conflitos e posições que relatam, as cartas evidenciam que no século
XVII o poder real se divide em poder ordinário, cujos limites são o direito pri­
vado, a lei comum e o interesse particular dos súditos, determinados num
contrato, e poder absoluto, que visa o bem comum, determinando meios e fins
da razão de Estado soberana*5. A divisão fica evidenciada em trechos das car­
tas citadas acima, por exemplo, como a referência ao “escândalo” dos “[...]
novos e pesados impostos sobre o Tabaco fruto deste Estado” ou aos “[...]
Privilégios que por muitos grandes puderam ser invioláveis”. A mesma divi­
são implica que, formalmente, o imposto real só é lançado com o consenti­
mento dos súditos - o que não significa, como se comprova facilmente nas
cartas e também nas sátiras, que o contrato seja sempre cumprido: alterações
do valor da moeda, aumentos de taxas, novos impostos etc. são muito co­
muns, acarretando carga pesada sobre o povo, tomado o termo, aqui, generi­
camente, já sobrecarregado. O efeito: “murmuração” e mesmo “tumultos”,

d ilig ê n c ia d e r e q u e r im e n to p r o p o n d o a S u a A l te z a o q u e m a is c o n v in h a a S e u S e r v iç o m a n d a n d o o C o n tr á r io

e n e m u m a só p a l a v r a n o s d i z V ossa M e r c ê n e s ta s m a té r ia s f o i o S e n ti m e n t o g e r a l d e s ta o m is s ã o d e V o ssa M e r c ê

q u e a t r i b u í m o s a s u a s m a i o r e s o c u p a ç õ e s e a s s im n o s p a r e c e u , a r e q u e r i m e n t o d o J u i z d o P o v o a l i v i a r a V ossa

M e r c ê d a n o s s a q u e n a v e r d a d e é b e m g r a n d e e p e d e s u je ito m a is d e s o c u p a d o p e lo q u e r e so lv e m o s q u e s u c e d a a

V ossa M e r c ê o C a p i tã o S e b a s tiã o d e B r i t o d e C a s tr o t a m b é m n o sso p a t r í c io q u e n o z e lo ig u a l a o s m a is e n a s

Vossa Mercê se sirva, de lhe noticiar de todos os ne­


o c u p a ç õ e s d e n e g ó c io s f a z v a n t a g e n s a V o s s a M e r c ê .

gócios que se tem encarregado muito des [falta trecho no documento] papéis a ele concernentes e as
Cartas para Sua Alteza que se acharem por despesa ao dito Capitão continuar os Requerimentos e
mandará Vossa Mercê Certidão do dia em que acabá-la a comissão que se fez a Vossa Mercê para cons­
tar cá e se mandar pagar a seu Procurador de Vossa Mercê o que se deve do ordenado e demos a Vossa
Mercê as graças do Zelo com que acudiu ao mais que se ofereceu Guarde Deus a Vossa Mercê Bahia
vinte e seis de julho de mil seiscentos setenta e quatro anos” (grifos meus).
48. Cf. José Antonio Maravall, “A Função do Direito Privado e da Propriedade como Limite do Poder
do Estado”, em Antônio Manuel Espanha (org.), P o d e r e I n s t i t u i ç õ e s n a h u r o p a d o A n t i g o R e g i m e ,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 240 e ss. Sobre a Península Ibérica dos séculos
XVI e XVII, Maravall escreve que a “propriedade baseada no contrato, a propriedade como relação
jurídico-privada, era o limite constituído do poder do Estado. Era, assim, como que o perfil em
negativo do próprio poder soberano. Isto encontrava-se em íntima conexão com o mundo burguês
da economia, regido pelas conveniências de mercado, e com a necessária formação de capital re­
querido por uma sociedade em vias de transformação”. A mesma divisão está implicada na doutri­
na da alienação do poder em mãos do soberano, aliás, tal como Suárez a expõe.

130
A M U R M U R A Ç Ã O DO CORPO M ÍST IC O

como refere outra carta da Câmara, sempre às voltas com a Relação. Assim,
por exemplo, Luís Gomes da Mata, correio-mor do Reino, elege por assisten­
te em Salvador a Bartolomeu Fragoso Cabral. Como a criação do novo cargo
demanda mais impostos para pagar o ordenado de Cabral, a Câmara apela
para a Casa da Suplicação, interpondo embargo contra a nomeação. O
postulante do cargo, porém, opõe embargo ao embargo e, apresentando uma
carta régia em seu favor, consegue que a Relação o nomeie. Segundo a Câma­
ra, seu embargo não foi considerado e nem ela ouvida. Não obstante isso, dá
posse ao nomeado, pois a Relação o ordena, juntando para isso a carta régia:

[•■■] E m v i r t u d e d a C a r t a d e V o s s a A l t e z a l h e m a n d a m o s d a r P o s s e e e s t a n d o e x e r c i t a n ­
do o d ito O f íc io d e a s s is t e n t e n o p r im e ir o d ia q u e tev e C artas tivemos nós um tumulto dos
moradores desta Cidade q u e c o n v o c a d o s v iera m a este S e n a d o req u erer -n o s n ã o p e r m itís ­
sem o s h o u v e s s e n o S e n a d o d ig o h o u v e ss e n esta C id a d e u m O fíc io tão o d io so à R e p ú b li­
ca sossegam osestes moradores e lhe prometemos fazer presente a Vossa Alteza o dano irreparável
que recebe esta Cidade c o m e s t e n o v o O f í c i o e q u e n ã o t e n d o e s t e E s t a d o f e i t o m e n o r e s
Serviços a V ossa A lte z a d o q u e t e m feito os E s ta d o s da ín d i a fic a r a m e le s i s e n t o s d e s te
O fíc io e e ste E s ta d o c o m o s c a r g o s e d a n o s q u e r e c e b e m c o m e s ta e l e iç ã o d o C o r r e io -
m o r d o R e i n o 49.05

Da mesma maneira, outra carta do mesmo dia expõe ao Rei “[...] o proce­
dimento dos ministros desta Relação e as vexações que este Povo fica pade­
cendo com eles”, afirmando que “[...] estão mais insuportáveis que nunca”'u.
Tanto as Cartas do Senado quanto as sátiras operam na circunscrição do
poder ordinário, tendo sempre como pressuposto do discurso o poder absolu­
to da razão de Estado, que é soberana. Desta forma, coisa não vista pela crítica
que postula o protonacionalismo de Gregório de Matos, podem até contestar,
em função de interesses particulares de grupos ou de súditos individuais, de­
terminadas ordens e imposições - por exemplo, recorrendo ao lugar-comum
do “miserável Povo” contra o excesso dos impostos mas não contestam, nun­
ca, a razão de Estado que determina tal excesso, nem seu fundamento, a sobe­
rania real: “[...] Porém por ocultos princípios, que não devem os Vassalos per­
guntar às Majestades, foi servido brevemente Mandar Sua Majestade, que
corresse toda a moeda de Selos pelo que tivessem a Respeito de tostão a oita­
va”, confirma uma “Protesta da Nobreza da Cidade da Bahia ao Senado da
Câmara para a fazer presente a Sua Majestade”, em 28 de julho de 169351.

49. Carta de 15.7.1679, vol. 2, pp. 53-55.


50. Idem, p. 55.
51. Cartas do Senado 1693-1698, vol. 4, p. 4.

131
A SÁTIRA E O E N G E N H O

Por isso, é possível afirmar mais uma vez que as intervenções das cartas e
da sátira incidem sempre sobre abusos em questões do poder ordinário, por­
que o pressuposto de sua intervenção é o uso estabelecido sempre alegado
como o bom uso - e este se encontra predeterminado na vontade do Rei, que é
intocável52. É neste sentido, ainda, que se pode entender a solicitude freqüen-
tíssima com que as Cartas do Senado insistem em questões de fisco. Além de,
obviamente, formalizarem a questão do direito privado dos senhores de enge­
nho e do direito do Estado, permitem ver que o Tesouro, na medida em que
pertence à potência pública, é res quasi sacra, coisa quase sagrada, que consti­
tui e mantém a vida da República como corpo dinamicamente integrado: o
Tesouro é sua alma e substância, nela circulando como o sangue, que é sagra­
do e que ocorre como sua metáfora. É nesta linha que também se esclarece
por que o termo “ladrão”, assacado contra qualquer membro desse corpo, é
um “insulto atroz”, juntamente com o termo “corno”. Ambos incidem sobre a
harmonia hierárquica ao desqualificar os laços de sangue pela imputação de
“puta” à mulher do atacado ou às mulheres de sua família e pela acusação de
corrupção da parte e do todo do corpo místico do Estado.
Porque o Tesouro é coisa quase sagrada, certamente, é que uma carta, não
da Cântara, mas de senhores de engenho e lavradores de canas, endereçada
ao Rei em 20 de j unho de 1662 contra os interesses de Bernardo Vieira Ravasco,
irmão do Pe. Vieira, afirma que “ [...] quem diz Brasil diz açúcar e o açúcar é a
cabeça deste corpo místico que é o Brasil”, numa síntese felicíssima das vir­
tudes do sistema, negócio, teologia, hierarquia, docemente dosados53. As crí­
ticas e as denúncias, tanto dos oficiais da Câmara quanto da persona satírica,
da corrupção da Junta do Comércio, por exemplo, que em suas transações
monopolistas eleva ou baixa os preços dos gêneros, conforme os venda ou
compre, têm por fim indicar os pontos em que o açúcar azeda e o corpo mís­

52. Em 1678, os oficiais da Câmara fazem sugestão à Coroa que é interpretada como interferência
direta na razão de Estado. A resposta de Lisboa é severa, recolocando os oficiais em suas atribuições
de poder ordinário.
53. Cf. Maria lzabel de Albuquerque, "Liberdade e Limitação dos Engenhos d’Açúcar”, em Anais do
Primeiro Congresso de História da Bahia, Salvador, Instituto Geográfico e Histórico, 1955, p. 494. Em
1662, Bernardo Vieira Ravasco, secretário do Estado, pretende que seja proibido o estabelecimento
de novos engenhos, alegando a suficiência dos já existentes. A Carta de 20.6.1662, de mais de cem
“cidadãos”, afirma que Bernardo pretende a limitação dos engenhos por necessitar das lenhas para
mover o seu. Escrevem que “[...] porque o açúcar é a cabeça deste corpo místico do estado do Brasil
e conforme a qualidade dos engenhos são as quantias que se lançam nos dízimos e de seus açúcares
se pagam grandes direitos à fazenda real com que engrossam os comerciantes navegantes; e dc 150
anos a esta parte temos experiência que nas capitanias donde houve muitos engenhos houve mais
gente e mais comércio e mais cabedal e mais navegações”,

132
A M U R M U R A Ç À O DO CORPO M ÍST IC O

tico se corrompe e apodrece em misturas monstruosas contra naturam: visam


a purgação da escureza dos males, enfim, para o bom funcionamento das par­
tes e do todo purificados do corpo da República.
Falou-se de teologia, vamos à Igreja. Em carta de julho de 1643, bastante
anterior, portanto, à circulação das sátiras atribuíveis a Gregório de Matos e
Guerra e aqui tratada por exemplificar um gênero de conflito muito comum
na Cidade do Salvador durante todo o século XVII, a Câmara escreve ao Rei
relatando “[...] o excesso e a insolência do Bispo Dom Pedro da Silva”, pedin­
do providências54. Segundo a Câmara, na procissão de Corpus Christi daquele
ano, dom Pedro saiu para o adro da Sé sem dar tempo para que a procissão
saísse. Ao fazê-lo, não espera que a Câmara chegue para acompanhá-la, “como
é costume”, nem espera haver músicos na Sé, nem “gente de qualidade como
convinha” para levar o pálio, apesar de o deão e outras pessoas eclesiásticas o
advertirem. A Câmara afirma que dom Pedro faz “tudo dc propósito”. Assim,
“[...] tomando o Senhor nas mãos saiu tão antecipadamente e escandalosa­
mente que fez força com a pouca gente para sair a Procissão”. Vindo o gover­
nador à pressa, busca a procissão. O bispo, contudo, persiste em seu “tudo de
propósito”, entrando pela rua Direita com “[...] toda esta descompostura”. Aí
chegando, larga o Senhor das mãos e, saindo-sc fora do pálio, larga também a
Custódia do chantre, “com admiração de todo o povo”. Aproximando-se de
um homem bom, vereador no ano anterior, o bispo o empurra publicamente,
segundo a carta, dizendo-lhe vá adiante com o guião da Câmara sob pena de
excomunhão. O bispo o “[...] fez ir assim intimidado para onde iam as ban­
deiras e insígnias das mecânicas afrontosa e escandalosamente”55. Segundo a

54. Este gênero de conflito e reclamação é rotineiro desde o século XVI - lembrem-se, por exemplo, os
desentendimentos do bispo Dom Pero Fernandes Sardinha com o padre Manuel da Nóbrega e,
ainda, com o filho do governador Duarte da Costa. Cf., por exemplo, Frei Vicente do Salvador, “Das
Fortificações e Outras Boas Obras que Fez o Governador Diogo de Mendonça Furtado na Bahia e
Dúvidas que Houve entre Ele e o Bispo e Outras Pessoas”, em História do Brasil: 1500-1627, rev.
Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia e Frei Venâncio Willeke, OFM; apres. Aureliano Leite, 7.
ed., Belo Horizonte, São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1982, cap. 21. Cf. também Affonso Ruy, op. cit., pp.
158-159; Padre Manuel da Nóbrega, “Carta do Padre Manuel da Nóbrega ao Padre Simão Rodrigues,
Lisboa”, em Serafim Leite, S. J., Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil, São Paulo, Comissão do IV
Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, pp. 367-375.
55. Em 4.6.1699 {Atas da Câmara, vol. 6, pp. 374-375), os juizes Ordinários e mais pessoas nomeadas
determinam as insígnias que devem ter os oficiais mecânicos e mais obrigações para assistirem nas
procissões da Cidade em louvor de Deus e de seus santos. Propõem que se devam conservar e au­
mentar as “antigualhas que se costumavam”, encarregando-se os alfaiates da confecção das novas
insígnias e bandeiras. Os ofícios de carpinteiro, torneiro, marceneiro e entalhador são obrigados a
dar uma bandeira e quem a leve; os ofícios de alfaiate, palmilhador, botoeiro são obrigados a dar,
com a sua bandeira, a madeira e “pano pintado para a Serpe e negros que a carreguem”; os sapatei-

133
A SÁ T IR A E O E N G EN H O

mesma carta, a população é testemunha e o governador e a Câmara se por­


tam, por isso mesmo, “[...]com toda a prudência e dissimulação para não se
alterar o povo, e romper em outro sucesso que julgava merecia o seu”56.
O conflito hierárquico se evidencia, no relato, na relação bispo e governa­
dor e Câmara, bispo e povo, governador e Câmara e povo. Interpretada pela
Carta como “teima” pessoal, a ação do bispo se evidencia como possível pelo
respaldo de sua autoridade, que lhe confere o poder, por exemplo, de exco­
mungar um homem-bom (o vereador do ano anterior) e, mais, o de fazê-lo
publicamente, quando lhe ordena andar junto das “mecânicas”, misturando-
se aos grupos representativos de corporações de ofícios, numa nítida quebra
de regras protocolares que evidencia seu arbítrio e exorbitância no uso do
privilégio. Primeiro, por ordená-lo em frente da mesma população, toman­
do-a como testemunha desigual de seu arbítrio; segundo, por ordena-lo de­
gradando o vereador e o emblema da Câmara numa posição socialmente in­
ferior e, portanto, indecorosa para a pessoa do vereador, que é de “mor
qualidade”. É justamente o olhar da população presente57 que impõe um li­
mite a medidas imediatas contra a afronta. Governador e oficiais da Câmara
dissimulam o insulto para “não se alterar o povo” - o que, supõe-se pela carta,
faz-se também sob o olhar do mesmo, “com admiração de todo o povo”.
Aqui se tem um espelhamento generalizado de visões e de visadas, em
cujos reflexos a hierarquia se estilhaça e simultaneamente se recompõe: o

ros, cortadores e hachureadores são obrigados a dar “a sua bandeira e o drago aparelhado de tudo
e negros para carregarem”; os pedreiros dão uma bandeira e quem a leve; padeiros e confeiteiros
são obrigados a dar “dois gigantes, uma giganta e um anão e quem carregue”; os tanoeiros e sirgueiros,
“uma bandeira e quatro cavalinhos frescos e quem carregue”; os ferreiros, serralheiros, barbeiros,
armeiros e caldeireiros “todos ditos oficiais darão o guião e São Jorge a cavalo com todo o necessá­
rio e o pajem deceniemente vestido e o Alferes da mesma sorte vestido, trombetas, tambores e seus
alabardeiros de guarda do Santo, tudo vestido decentemente”; os vendeiros e vendeiros de porta
são obrigados a dar “quatro lanças”; e os prateiros e os marchantes são obrigados a dar “três
tourinhos”. Observa-se, pela atribuição dos encargos das várias corporações, a riqueza de algumas
em relação a outras - por exemplo, ferreiros, serralheiros, armeiros etc. Pelas atribuições, pode-se
imaginar a sua disposição hierárquica na procissão. Na carta contra o bispo Dom Pedro da Silva,
ínfere-se que todas essas classes mecânicas estão assistindo ao conflito com o bispo.
56. C a n a s do S e n a d o 1 6 3 8 - 1 6 7 3 , vol. 1, pp. 18-19. Cf., a respeito de Dom Pedro da Silva, Anita Novinsky
(introd.), U m a D e v a s s a d o B i s p o D o m P e d r o d a S i l v a 1 6 3 5 , 1 6 3 7 , separata do tomo XXII dos A n a i s d o
M u s e u P a u l i s l a , São Paulo, 1968; I. Accioli, & B. Amaral, M e m ó r i a s H i s t ó r i c a s e Políticas da B a h i a ,

Salvador, Imprensa Oficial do Estado, 1937, vol. V, p. 265.


57. “As Ordenações Filipinas determinavam o comparecimento obrigatório dos habitantes da Cidade
e dos moradores dos termos distantes uma légua do local onde se verificava o cerimonial, sob pena
de serem multados em mil réis, divididos entre o denunciante e o Conselho”. Cf. Affonso Ruy, o p .
cm., pp 167-168.

134
A M U KM U RAÇÃO DO CORPO M ÍS T IC O

povo vê o bispo e o vereador em situação irregular, o governador e a Câmara


vêem o bispo e o vereador sendo vistos, vendo-se a si mesmos ultrajados, en­
quanto vêem que o povo os vê. A decisão final é política: a quebra da hierar­
quia não é punida imediatamente em função da mesma hierarquia. Assim, o
incidente de desestabilização momentânea da ordem é, pela mesma prudên­
cia e dissimulação políticas, absorvido na mesma ordem, em função de um
bem maior, que é o bem comum da República. O que não impede, evidente­
mente, a queixa posterior ao Rei, responsável pelo padroado, para o ressarci­
mento do dano.
Como os bispos têm poder de excomunhão, o poder local da Câmara é,
aparentemente, inoperante contra a ameaça que Dom Pedro da Silva já fez
contra o vereador na procissão, por isso os oficiais remetem a queixa para a
instância superior à qual se subordina o bispo e da qual pode vir eventual­
mente a correção da falta, o Rei. Aqui, os agentes da carta constituem-se como
representantes e impetrantes da ordem hierárquica contra o bispo, exigindo
que a hierarquia, os decoros e os privilégios, visíveis na distribuição espacial
das várias ordens e dos vários corpos na procissão, sejam mantidos. Situam-se
na própria posição do destinatário real, exigindo-lhe a providência que deve
dar™.
E preciso lembrar que, neste quadro colonial de divisão do poder em or­
dinário e absoluto, a justiça é sempre dita pelos poderes locais, nunca dada,
pois só o Rei pode conferir o direito, ao passo que outros - Juizes Ordinários,
Juizes da Relação, por exemplo - só podem dizê-lo. Essa distinção implica
uma concepção muito legalista da soberania real, forte e centralizada como
fonte de direitos e deveres, que também abre a brecha para a multiplicidade
das interpretações e dos casuismos determinados, por exemplo, pelos inte­
resses dos “homens bons” locais entretecidos das relações de favor, compadrio,
parentesco, suborno e violência5859. Assim é que, prevendo justamente a versão
do bispo, a Câmara outra vez se antecipa, avisando o Rei de que Dom Pedro
também está escrevendo para pedir providências contra ela. O bispo afirma
existir uma provisão do rei Filipe de Castela (Filipe II) sobre a posição em
que há de ir o guião da Câmara nas procissões. Segundo sua alegação, que a
Câmara supõe esteja comunicando ao Rei nos mesmos termos que a expõe na
carta, a provisão determina que o guião vá “diante [...] por evitar inconvenien­

58. Lembre-se mais uma vez que, no período, soberania e lei são identificadas.
59. “Através de alianças políticas com os burocratas, os grupos, famílias e indivíduos da colônia adqui­
riam um apoio poderoso que poderia vir a ser eficiente na aplicação da lei e na maneira de seguir as
linhas políticas.” Cf. Stuart B. Schwartz,op. cil., p. 292.

135
A S A T I R A li 0 E N GE N H O

tes”. O bispo acusa a Câmara, segundo os agentes da carta, de “[...] não estar
por esta verdade”. A Câmara alega desconhecimento de tal provisão, referin­
do-se a registros escritos, como as Atas: “[...] nem está registrado”. E ainda
comunica ao Rei que, nas procissões de Santa Isabel e do Anjo, comparece­
ram os oficiais, juntamente com o governador Antônio Teles da Silva, “[...]
sem Guião por não tornar a haver com o mesmo Bispo segunda ocasião de
sucesso ou perigo de se perder com ele este povo”60.
Nunca se poderá saber das motivações de Dom Pedro da Silva, famoso por
sua intolerância contra os cristãos-novos - o que não tem importância, aliás,
pois a carta do Senado faz antes falar precedências, privilégios e cuidados com
a coisa pública. Neste sentido, a quebra das disposições protocolares da hie­
rarquia dos membros da procissão evidencia o “[...] perigo de se perder [...] este
povo”. Que seria tal “perigo”, cuja precaução faz com que a desestabilizaçâo
hierárquica de que acusam Dom Pedro seja “esquecida”, isto é, intencional­
mente dissimulada pelo governador e pela Câmara em função de uma estabi­
lidade superior do bem comum, determinada pela “prudência”?61
Trata-se de evitar a todo custo a murmuração do vulgo. Em outros ter­
mos, trata-se de manter intactas a reputação e a honra dos cargos, bem como
a reverência que lhes é devida. Honra, reputação e reverência são, neste sen­
tido, praticamente sinônimas no século XVII62, sendo doutrinadas politica­
mente como função da opinião, que se aplica sobre um ponto social determi­
nado, conferindo-lhe a forma da “honra”. A honra é constituída pela opinião
alheia, devendo ser mantida a todo custo como moral da aparência e aparên­
cia da moral: a reputação do vereador obrigado pelo bispo a andar junto das
mecânicas seria duplamente ultrajada, se o governador e a Câmara intervies-
sem publicamente, fornecendo ocasião ao vulgo presente para testemunhar
um duplo conflito em que representantes do poder real se exporiam publica­
mente à murmuração popular63. Conserva-se a honra, portanto, mantendo-se
as aparências, para impedir que a reputação seja abalada: paradoxalmente,

60. Carta de julho de 1643, vol. 1, p. 20 (grifo meu).


61. “Q u i é n n o s a b e d i s i m u l a r e s a s c o s a s l ig e r a s , n o s a b i á Ia s m a y o r e s ”, escreve Saavedra Fajardo a propósito
da opinião e murmuração da plebe, recitando Tácito: “Magnarum r e r u m c u r a m n o n d i s s i m u l a l u r o s ,
q u i a n i m u r n e l i a i n l e v i s s i m u m a d v e r l e r e n l " (Tac., A n n a l e s , lib. 3). Cf. D. Diego Saavedra Fajardo,

E m p r e s a s P o l í t i c a s . I d e a d e u n P r í n c i p e P o l í l i c o - C r i s l i a n o , ed. preparada por Quintin Aldea Vaquero,

Madrid, Ed. Nacional, 1976, 2 vols., Empresa XIV, vol. 1, pp. 178-179.
62. “H o n r a d o es e l q u e e s t á b i e n r e p u t a d o , y m e r e c e q u e p o r s u v i r l u d y b u e n a s p a r l e s s e le h a g u h o n r a y
r e v e r e n c i a ’’ (Covarrubias, T e s o r o d e l a L e n g u a C a s t e l l a n a , 1612).

63. Algo semelhante ocorre na Corte de Luís XIV quando se recebe com toda a pompa o embaixador
turco que, dcscobre-se tarde demais, é um simples mercador. Nada se diz e a recepção continua. Cf.
Phillipe Beaussant, V e r s a U le s O p e r a , Paris, Gallimard, 1981.

136
A M U R M U R A Ç Ã O D O C O R P O A lIS T IC O

não é o vereador e não é a Câmara que têm honra e merecem reverência, mas
aqueles que, não a tendo, podem deixar de atribuí-la, o povo64. Se o fizesse,
deixaria também de reconhecer a autoridade merecedora da obediência: em
outros termos, tem honra quem pode tirá-la de outro e assim, paradoxalmen­
te, os grandes se mantêm em evidência e recebem a fama e a glória devidas à
sua posição por parte daqueles que institucionalmente não a têm, o vulgo,
mas que pode tirá-la pela murmuração. A honra está constituída, desta ma­
neira, na opinião alheia, para que esta seja temida e, dependendo as ações da
censura e do juízo de outros, para que se procure satisfazer a todos agindo
bem656. Funcional, a honra é uma relação que implica sempre o ver e o dizer, um
testemunho e uma opinião sedimentados em juízo. Quando ultrapassa os limites,
portanto, a murmuração transforma-se em sedição e é crime de traição. As­
sim como é monstruoso um pé falante ou um braço reflexivo, pois quem de­
tém tais atribuições é a cabeça, é também monstruoso que os membros subor­
dinados do corpo político se rebelem contra a soberania da razão de Estado
visível nas instituições:

[...] E n m e d io d e ta n t o vulgo, a p a r e c ió u n r a r o m o n s tr u o , q u e n o te n ía c a b e z a , a u tiq u e le n g u a


si, n i b r a z o s n i o m b r o s y manos ta m p o c o , a u n q u e s i d e d o s p a r a s e n a la r ; e r a fu r i o s o e n a c o m e te r ,
pero fá c il de a c o b a rd a r [...] ese m o n s tr u o es e l V u lg a c h o ,p r im o g ê n ito d e la I g n o r â n c ia , p a d r e d e
la M e n t i r a , h e r m a n o d e la N e c e d a d , m a r id o d e la M a l ic ia M.

Como o monstro inventado por Gracián, a murmuração da plebe pode


tornar-se excessiva, constituindo um perigo para a conservação do poder. É
justamente por isso, também, que está prevista como mecanismo de consti-

64. O q u e é e v i d e n t e , p o r e x e m p l o , e m L o p e d e V e g a , n a p e ç a Los comendadores de Côrdoba: “Veiniecualro -


cSabes que es la honra? / Rodrigo - Sé que es una cosa que no la liem el hombre. / Veiniecualro - Bien has
dicho. / Honra es aquello que consiste en olro. / Ningún hombre es honrado por si mismo, / que dei olro recibe la
honra un hombre. / Ser virluoso un hombrey lener méritos / no es ser honrado; pero dar las causas / para que los
que iraian les den honra. / El que quita la gorra cuando posa / el amigo o mayor, le da la honra; / el que le da
su lado, el que le asienta / en el lugar mayor; de donde es cierto / que la honra está en oiroy no en él mismo. /
Rodrigo - Bien dices que consiste la honra en otro. /Porque si tu mujer no la tuviera / no pudera quitártela. De
suerte / que no la lienes lú: quien le la quita".
65. C f . S a a v e d r a F a j a r d o , op. cit., H m p r e s a XIV, p . 1 7 8 . F e r r o l c i t a M e n é n d e z y P e la y o (El Sentimienlo
dei Honor en el Teatro de Calderón. Est.ydisc. de Crítica Histórica Literaria, t o m o I II, p p . 3 7 9 - 3 8 0 ) , q u e
c o n s id e r a a b s u r d o ta l c o n c e ito d e h o n r a , a tr ib u in d o - o a “ u m a p o é tic a d a h o n r a e a u m a ju r i s p r u ­
d ê n c i a t a m b é m a b s u r d a e d e t e s t á v e l , c o n f o r m e a q u a l n ã o s e e n f r e n t a m o s v íc io s p r ó p r i o s , m a s a
i n s o l ê n c i a a l h e i a , n ã o s e e n f r e n t a a p r ó p r i a la s c í v i a , m a s a d a e s p o s a ” . C f . F r a n c i s c o A l u r i l l o F e r r o l ,
op. cit., p. 310.

66. C f. B a l t a s a r G r a c i á n , “ C r i s i V: P l a z a d e i P o p u l a c h o y C o r r a l d e i V u l g o ” , El Criticón, em Obras


Completas, M a d r i d , A g u ila r, 1967.

137
A SÁT IR A E O E N G E N H O

tuição e manutenção da fama de honradez e justiça dos que aplicam o poder


sobre a população. Ir e vir de visadas, reciprocidade do espelhamento genera­
lizado: sempre é outro o que tem honra, sempre é outro o que pode tirá-la de
outrem. Nominalismo exacerbado da convenção hierárquica naturalizada,
torna-se evidente na sátira, em que costumeiramente personagem masculino
ataca a honra de personagem masculino por meio da desonra atribuída à
mulher. Por exemplo, na constituição da imoralidade hiperbólica do com­
portamento sexual feminino, ilustre produtor de cornos e bastardos, mancha
irreparável em sociedade fidalga. Como já se disse, a “murmuração”, muito
referida nos documentos, é índice do evento, o acontecimento transgressor
das normas vigentes que, muitas vezes, identifica-se com a mesma “murmu­
ração”. Nesse tempo, é evento o incidente com o bispo na procissão, uma
rebelião de soldados, desordens de mulatos, recusa de pagar impostos por
parte da população, fuga e revolta de escravos, contrabando de moeda, roubo
da Fazenda, uso inadequado de formas de tratamento e de trajes, heresia,
fome, peste etc.
Em carta de 6 de novembro de 1669, a Câmara dirige-se ao Rei pedindo-
lhe tome providências contra o clero local, principalmente os padres da Com­
panhia de Jesus. A Câmara alega que foi levada a pagar a Infantaria com
donativos e imposições de dízimos sobre a população já sobretaxada com a
contribuição do dote de Paz de Holanda. Argumenta: “[...] em Angola man­
dou Vossa Alteza que pagassem todos os Direitos impostos os Religiosos da
Companhia, livrando-lhes somente os direitos de 26 escravos para seu uso”.
Pede que “[...] nenhuma pessoa se possa isentar das imposições que temos
lançado ao Povo para o sustento da Infantaria”. Explica que “[...] os Religio­
sos não querem contribuir com o que lhes toca”. Generaliza: “[...] sendo que
nestas partes negociam e lucram com vantagens dos mais moradores”67. Aqui,
representando o interesse comercial dos senhores de engenho enquanto alega
o bem comum, a enunciação da carta propõe que os privilégios dos jesuítas
não sejam considerados. Retorna, pois, o lugar-comum deste capítulo: o bem
comum proposto deliberativamente ao Rei como fim das medidas a serem
tomadas serve interesses particulares.
Outros privilégios eclesiásticos são criticados pela Câmara. Por exemplo,
o referido em uma carta de julho de 16726S. Como os familiares do Santo
Ofício da Inquisição são isentos do pagamento, Simão de Sotomaior, religio­
so da Companhia, afirma ser comissário do Santo Ofício e ameaça de excomu-

67. Carta de 6.11.1669, vol. 1, p. 20.


68. Carta de julho de 1672, vol. 1, p. 35.

138

Â
A M U R M U R A Ç Ã O DO CORRO M ÍST IC O

nhão os oficiais da Câmara que querem cobrar-lhe os donativos e as imposi­


ções. Ainda uma vez, a função de árbitro é atribuída ao Rei, mas a Coroa nada
faz, de modo que a indignação dos melhores da Câmara tem seu limite evi­
denciado tanto pelo privilégio dos padres, que continuam sem pagar, quanto
pelo silêncio real, palavra muda que confirma os padres, ainda os que chanta-
geiam tão explicitamente, como Simão de Sotomaior.
Da mesma maneira, quando os oficiais pedem ao Rei uma ordenação para
que nenhuma ordem religiosa possa ter ou comprar bens de raiz, alega-se o
acrescentamento contínuo das riquezas de jesuítas, carmelitas e beneditinos
para a persuasão do real destinatário. Não se convence, pois nada ocorre69,
apesar da reiteração do pedido em outras cartas. Lembrando ao Rei sua or­
dem - a de que nenhuma ordem religiosa possa comprar bens imóveis -, a Câma­
ra relata que os religiosos da Bahia não só se desfazem dos herdados, como
também compram sempre mais, enunciado este seguido de enumeração de­
monstrativa: engenhos, canaviais, terras de gado, casas, escravaria. A Câmara
afirma que não pede a expropriação das propriedades, mas a proibição de que
as ordens religiosas comprem mais, alegando duas razões que diz acreditar
serem bastante fortes: as propriedades são “bastantíssimas” para seu sustento
e, uma vez que as possuem contra as ordens reais, “parece ser razão” concor­
rerem para as necessidades da Fazenda Real, o que evitará que o povo conti­
nue a pagar por elas: “[...] que é certo que se este povo possuira suas proprie­
dades havia concorrer com o que se lhes lançasse logo eles que o possuem
devem pagar”.
Silogismo perfeito o da Câmara, mas do tipo non sequitur: nada ocorre, ape­
sar da sanção implícita, que também constitui os oficiais como detentores de um
poder de barganha, quando afirmam que a Câmara se julga isenta de fornecer o
vinho e o azeite dos religiosos enquanto o que propõem ao Rei não for ordenado
às Religiões e aos demais sacerdotes do hábito de São Pedro. A ordem hierárqui­
ca e seus privilégios tradicionais são mantidos, entretanto: a Câmara continua a
fornecer azeite e vinho às ordens religiosas e, como sempre, o povo paga.
Observou-se que os agentes das Cartas chegam a interpelar o Rei, fazen­
do-lhe ameaças mais ou menos veladas de não-cumprimento ou desacato de
determinadas ordens se uma petição ou providência não forem efetivadas.
Ao fazê-lo, os oficiais se autoconferem poderes pelas sanções com que amea­
çam - o que a mesma distância hierárquica desmente, contudo, uma vez que
o silêncio do Rei e outras determinações da Coroa colocam os oficiais da Câ­
mara em seu lugar de homens de poder local representantes do poder real. A

69. Carta de 6.2.1656, vol. 1, pp. 54-55.

139
A SÁ T IR A E 0 E N G E N IIO

mesma hierarquia, tomada como tema desenvolvido positiva ou negativamente


pelos comentários das cartas, é, segundo a situação da escrita, o mecanismo
pragmático que filtra os temas, dando solução aos problemas que levantam.
A hierarquia é, assim, matéria das cartas, como descrição e narração de even­
tos sintetizáveis como “Cidade” e também regulação das posições dos agen­
tes discursivos. Desta maneira, a solução confirma-os em seu lugar de repre­
sentantes e, para isso, por vezes os ignora e mesmo anula, segundo o interesse
real nunca explicitado diretamente, mas sempre operante nas cartas como
origem legal do poder, que elas encenam.
Quando está em jogo seu poder de intervir - por exemplo, nos conflitos
com a Relação os enunciados performativos tornam-se predominantes.
Neles, a enunciação se auto-referencia e tenta captar o favor real como forma
de suas decisões, validando-as, ora por ameaças veladas, ora por pedidos in­
sistentes, ora por declaração protocolarmente encomiástica, ora por anteci­
pação, no discurso, da forma e do teor da ordem real. As cartas evidenciam,
portanto, também a razão por que procuram transmitir um sentido e não
outro ao destinatário - e, por isso, o porquê de escolherem, para transmiti-lo,
um enunciado e não outro. Por exemplo, uma carta de 2 de julho de 1685
rende graças ao Rei pela provisão em que ordena que as filhas de oficiais da
Câmara que servem e tiverem servido ao Senado tenham preferência sobre
outras na entrada do Convento de Santa Clara - “[...] a qual mercê fez Vossa
Majestade sem limitação alguma”. A expressão “sem limitação alguma” é
oposta pelos oficiais à informação que retransmitem ao Rei: “[...] Porém de­
pois foi V. Majestade servido escrever ao Arcebispo deste Estado, que a prefe­
rência se entendia não havendo prejuízo de terceiro, e da pública conserva­
ção do Convento as quais palavras ambíguas dão motivo a que a mercê Real
de Vossa Majestade não venha surtir efeito algum conforme a interpretação
que aqui lhe quiserem dar”70.
Desfazendo a ambigüidade alegada, os oficiais reafirmam o lugar-comum
de que o favor real foi concedido “[...] em remuneração do trabalho contínuo,
que temos de servir neste Senado sem salário algum e ser o dito Convento
criado pelos Oficiais da Câmara que são os legítimos fundadores dele”. E
prescrevem: “[...] nos pareceu justo que Vossa Majestade mande observar a
sua real provisão sem limitação alguma para que não haja nas preferências
dúvidas ou contendas”71. Uma carta de 12 de agosto de 1688 evidencia, po­
rém, o “legítimo fundador” do convento: “[...] Foi Vossa Majestade servido

70. Carta de 2.7.1685, vol. 3, p. 9.


71. Idem,ibidem.

140
A M U R M U R A Ç A O DO CORPO M ÍST IC O

conceder a este Povo o Convento de Santa Clara por requerimento que ti­
nham feito muitos anos aos Senhores Reis antecessores de Vossa Majestade
os Moradores desta terra”72. A carta evidencia, ainda, a pretensão de fidalguia
dos senhores locais representados pela Câmara, quando se refere às vagas do
convento: de “véu preto” para as mulheres “de representação”, de “véu bran­
co” para outras que, não fazendo os votos, ocupam-se dos trabalhos manuais
próprios de mulheres de outra condição social. É elucidativo ler que nenhu­
ma das vagas do véu branco é preenchida:

[...] V o s s a M a j e s t a d e [...] l h e s p r o m e t e u e s t a c o n c e s s ã o c o m n ú m e r o d e C i n q ü e n t a
R elig io sa s d e V éu P reto, c v in te e c in c o de V éu b ra n co , q u e ta m b é m são R e lig io sa s , m a s
com o não têm voto , até h o je não h o u v e m u lh e r a lg u m a que in te n ta sse a lg u m d e sse s
lugares. E p o r q u e o n ú m e r o d a s C in q ü e n ta d e V é u P reto está c o m p le t o , e fic a r a m q u e
as p e s s o a s n o b r e s , f i l h a s d e C i d a d ã o s q u e t ê m s e r v i d o , e s e r v e m a V o s s a M a j e s t a d e s e m
recurso para e n t r a r e m , M o t i v o q u e n o s o b rig a a p e d i r a V ossa M a j e s t a d e c o m o e m
r e m u n e r a ç ã o d o s S e n d ç o s [...] n o s p e r m i t a V o s s a M a j e s t a d e c o n c e d e r f a c u l d a d e p a r a
q u e o s V i n t e e C i n c o l u g a r e s q u e se d e r a m p a r a a s m u l h e r e s d e V é u B r a n c o s e c o m u t e m
em q u e s e ja m to d a s d e V é u P reto p o r q u e d e sta S o rte n ã o se a c r e s c e n ta o N ú m e r o da
C o n c e s s ã o , n e m se falta ao r e m é d io d e m u i t a s m u l h e r e s n o b r e s c a u to r iz a d a s , q u e p o r
n ã o t e r e m d o t e s c o m p e t e n t e s p a r a c a s a r e m , s e a c o m o d a m a o d e R e l i g i o s a s 73.

Em carta de 23 de julho de 1695, os oficiais pedem “mais trinta lugares”,


afirmando que o fazem movidos da “[...] desconsolação que têm as filhas dos
homens nobres de irem a Ser Religiosas nesse Reino, e Ilhas, sendo dobrada
a despesa, e incômodos; e mais que tudo o Risco do mar, do Mouro, e Vidas”74.
Reiterando que falam em nome das “[...] amiudadas lágrimas de muitas mu­
lheres filhas da principal Nobreza”, informam que são “seus poucos cabedais”
a principal causa do pedido de vagas, que desejam exclusivas, evidenciando a
concorrência local:

[...] q u e n ã o s e j a m a i s q u e p a r a as f i l h a s d o s q u e s e r v e m , e t ê m s e r v i d o a V o s s a M a j e s t a ­
d e , n a o c u p a ç ã o d e V e r e a d o r , o u j u i z , n a f o r m a q u e s e p e d i u a V o s s a M a j e s t a d e e fo i
s e r v i d o m a n d a r d e c l a r a r p o r C a r t a S u a d e 16 d e n o v e m b r o d e 1 6 9 4 , c u j a o r d e m s e n ã o
g u a r d a p o r se e n t e n d e r s e r e m o s l u g a r e s p r e b e n d a s a n e x a s à R e g a l i a d a M i t r a 75.

72. Carta de 12.8.16S8, vol. 3, p. 58.


73. Idetn, ibidem.
74. Carta de 23.7.1693, vol. 4, p. 54.
75. Idetn, ibidem.

141
A SÁ T IR A H O E N G E N H O

A reclusão social, mais que religiosa ou sexual das mulheres, visa a ga­
rantir “[...] estas casar [...] com homens de maior esfera do que muitas são”,
tornando-se evidente na carta o temor dos pais proprietários de que venham
a casar-se com maus partidos, o que não ocorre se conseguem vaga no conven­
to: “[...] se evitarão as Ruínas que podem suceder a muitas mulheres nobres
por não terem seus Pais com que as possam mandar como outros fizeram, e
menos para as Casarem com Pessoas de igual qualidade”76. Como se verá na
tópica “amor freirático” do capítulo V, ao imaginário da nobreza somam-se a
avareza, a falta de dinheiro ou sua destinação como herança de filho primogê­
nito, ou a mera ênfase: “[...] por andar a Nobreza pobre, e desgraçada, assim
se experimenta com grande lástima, e mágoa choram os homens Nobres, e
temem se arruinem suas honras, vendo preferir às suas filhas as dos homens
de menor Condição, sem utilidade, ou Crédito do Convento”77.
A mesma alegação de privilégio e nobreza dos senhores locais encontra-
se, por exemplo, em cartas sobre pessoas que “ [...] se consideram aí na Corte
bem apadrinhadas e nesta Cidade com pouca suficiência para servirem os
Ofícios que por posse e regalia imemorial provê este Senado”, como distin­
gue uma carta de 22 de julho de 1686. Segundo a Câmara, tais pessoas apre-
sentam-se com provisões reais contrárias ao serviço do Rei, pois os provimen­
tos muitas vezes se fazem em pessoas reprovadas pela Ordenação e “[...]
justamente contra nossa posse, privilégios e foros que por esta via se nos que­
bram”. Contra tais pessoas com foros falsos, a Câmara exige do Rei que o
Conselho do Ultramar não admita as petições e os provimentos e “[...] no caso
que se façam se julgue por obreptícios e subreptícios”78.
Em 23 de julho de 1697, a Câmara dirige-se ao Rei repropondo-lhe um
tema tratado em outras cartas, o da concessão à Bahia dos mesmos privilégios
do Porto. Lembrando que Dom João IV os concedeu em 1646, pedem ao Rei
que especifique se os privilégios concedidos à Cidade são extensivos aos cida­
dãos ou “homens de mor qualidade” porque “[...] se têm argüido muitas dú­
vidas pelos Ministros de Vossa Majestade para não gozarem os ditos privilé­
gios”79. Mais uma vez, o argumento persuasório é o do serviço “[...] com
detrimento de suas Pessoas e fazendas sem ordenado algum”80. Os oficiais
tentam convencer o destinatário, alegando que a Bahia é “[...] autorizada com
uma Relação que tem Regimento da Casa da Suplicação e um Arcebispo

76. Idem, ibidem.


77. Idem, ibidem.
78. Carta de 22.7.1686, vol. 3, p. 24.
79. Carta de 23.7.1697, vol. 4, p. 76.
80. Idem, ibidem.

142

i
A M U R M U R A Ç A O DO CORPO M ÍS T IC O

Metropolitano de todo o Estado”, concluindo que os vereadores devem estar à


altura de tanta importância, pelo que se declaram “leais obedientes Vassalos”
enquanto aguardam a Carta de Conformação que os confirme e faça gozar
dos privilégios8182.
A reiteração de pedidos semelhantes em inúmeras outras cartas é índice
da auto-representação dos oficiais como “melhores”. Viu-se há pouco que exis­
tem muitos falsos pretendentes a cargos de representação, apadrinhados em
Lisboa, segundo os oficiais, com provimentos ilegais e foros falsos de fidalguia.
A mesma reiteração dos pedidos de privilégios e as várias medidas para garan­
tir a exclusividade deles - como as vagas do convento - indiciam o desejo e o
interesse de fixar os autênticos pretendentes, ameaçados em suas pretensões
locais pelos que vêm de Portugal. Em 23 de julho de 1695, a Câmara relata a
Manoel de Carvalho, seu procurador em Lisboa, a decisão de mandar o filho
de Bernardo Vieira Ravasco, o coronel Gonçalo Ravasco Cavalcante e Albu­
querque, representado como “verdadeiro Pai da Pátria”, substituí-lo:

[...] O i n t e r e s s e q u e l e v a v a o d i t o J u i z e r a o t e r - l h e m o s t r a d o a e x p e r i ê n c i a d e d o i s a n o s
q u e s e r v i u , s e r p r e c i s o ir a S u a p e s s o a , e i s t o o f a z s e m R e p a r a r n a p e r d a d a F a z e n d a ,
fa lta d a S u a C a s a , e R i s c o d e S u a P e s s o a , e v i d a , ir R e p r e s e n t a r a S u a M a j e s t a d e n e g ó ­
cios g r a v ís s im o s t o c a n d o ao se u R e a l S e r v iç o , e a u t ilid a d e p ú b lic a , o s q u a is n ã o se
p o d e m f ia r d e p a p é i s p e l a c e r t e z a q u e t e m o s d e t o r n a r e m às m ã o s d a s p e s s o a s d e q u e m
não q u e ir a m o s , d e q u e R e s u lta o d ia r -n o s , e se v i n g a m c o m a f in g id a c a p a da J u stiça ,
tira n d o -n o s as h o n ra s, e fa zen d a s, e n ão p o d e m o s R e m e d ia r este d a n o p ela d esg r a ça d e
viv erm o s tão a fa sta d o s d o s R ea is P é s d e S ua M a jesta d e, e nesta c o n sid e r a ç ã o n o s R e ­
s o l v e m o s a p a d e c e r , e c a la r * 2.

Enigmática, a Câmara, que talvez esteja se referindo obliquamente à


Relação ou a juizes da Casa da Suplicação, quando alegoriza seu prejuízo
referindo “[...] a fingida capa da justiça, tirando-nos as honras, e fazendas”.
Os temas do “ir para Portugal” e privar com os grandes da Corte, do apadri­
nhamento, do foro falso, da jactância danosa das conveniências no “vir de
Portugal” são também dramatizados na sátira segundo a oposição discreto/
vulgo. Não que, no caso, Gonçalo Ravasco Cavalcante e Albuquerque seja um
arrivista - também nem chega a ir, como a mesma carta evidencia, quando
refere estar impedido pelo mal das vias respiratórias.
A condição de tal fidalguia proclamada insistentemente pelos vereado­
res como exclusiva deles nas cartas por vezes é cômica, a se levarem em conta

81. Idem, pp. 76-77.


82. Caria de 23.7.1695, vol. 4, pp. 55-56.

143
1

A SÁ T IR A E O E N G E N H O

seus mesmos critérios hierárquicos de precedência: na Bahia, a nobreza tam­


bém é responsável pela coleta do lixo, como uma carta de 30 de julho de 1694
evidencia. Escrevem os oficiais que, tendo conseguido do Rei concessão para
nomear dois Almotacés da Limpeza, logo o fizeram para “[...] se evitarem por
este meio as doenças grandes que costuma haver nestes Povos, por falta de
semelhantes prevenções”83. Como os almotacés são “pessoas de ínfima condi­
ção”, escrevem, não conseguem o menor efeito junto à população, evidenciando
novamente a hierarquia: “[...] assim pelo pouco caso que deles faz o Povo,
como por não se atreverem a executar as penas e Condenações impostos nos
Escravos que nelas caem ou temor de seus Senhores”84.
As doenças, segundo os oficiais, são ocasionadas pela malignidade dos
ares corruptos por causa das imundícies que se lançam, de dia e de noite, na
maior parte das ruas, as quais têm três ou quatro lugares “[...] no meio delas
em que o Povo acostuma fazer barbaramente despejos”85. Aos males da terra
juntam-se os do mar: navios de São Tomé e da Costa da Mina trazem enfermi­
dades contagiosas. Isto posto, os oficiais pedem ao Rei os autorize nomear
um “[...] Provedor da Saúde [...] por cuja conta corra a Limpeza desta Bahia,
e que o Senado possa fazer da primeira nobreza da Cidade o sujeito que lhe
parecer mais capaz [...] porque não sendo desta qualidade, nem Vossa Majes­
tade ficará bem servido nem o Povo com remédio”86.

Os temas da baixa dos preços do açúcar, da escassez da moeda, da falta de


“efeitos” (impostos) para pagar a Infantaria, das farinhas falsificadas e atra­
vessadas, da rebelião de soldados, da peste, da escravaria e da murmuração
do povo configuram, nas/Lus e Cartas, desordem, traduzida por expressões
como “ruína de todo este povo”, “perigo de todo este Estado”, “miserável
estado deste povo”, “clamor geral”, “clamor dos pobres”, “sentimento geral”,
“dor geral”, “lágrimas das viúvas” etc., que hiperbolizam o narrado. São abun­
dantes as informações sobre a chegada de navios negreiros pestilentos, vin­
dos de Angola e da Costa da Mina; sobre a morte em massa de africanos;
sobre execuções de dívidas dos senhores de engenho nos escravos; sobre rebe­
liões deles e seu controle através da jeribita, a aguardente etc. A comemora­
ção festiva com luminárias e a missa solene em agradecimento a Deus pela

83. Carta d e 30.7.1694, v o l. 4, p. 32.


84. I d e m , i b i d e m .
85. I d e m , i b i d e m .
86. I d e m , p. 33.

144
A M U R M U R A Ç Á O DO CORPO M ÍS T IC O

destruição do quilombo de Palmares efetuam, na ata que as registra, índices


de alívio pela restauração da ordem87.
Numa carta de 25 de abril de 1681, a Câmara informa ao Príncipe que o povo
representa ao Senado sua ruína e falta de cabedais, causadas pelo pouco rendi­
mento e saída das drogas e, sobretudo, pelo “irremediável dano” que “[...] de
presente padecem com as bexigas de que lhe eram mortos mais de dois mil escra­
vos, e que esta falta lhe prometia não poderem acudir a suas culturas e ficarem
mui diminutos seus cabedais”88. Como sempre, os oficiais declaram-se “[...] in­
capazes de poderem acudir a nenhum pedido mais para que se não faltem as
obras de tanta utilidade como eram as do Convento das Religiosas e Cadeia”89.
A perda da mão-de-obra escrava com as bexigas torna mais crítica a situa­
ção dos engenhos devido à diminuição ou suspensão da produção, segundo a
Câmara. Diminuem os preços do açúcar, faltam capitais e os credores conti­
nuam executando dívidas. Assim, em Carta de D de julho de 1681, após es­
crever mais uma vez sobre a “[...] imensidade do dano que causou o pestilento
contágio das bexigas que este presente ano experimentou esta Cidade de Vos­
sa Alteza ficando tão atenuado pelas diminuições das fábricas e pouco lucro
dos frutos”90, os oficiais solicitam ao Príncipe que, como “Pai e Senhor”, con­
ceda a faculdade de não serem os donos de engenhos e plantadores de canas

87. Ata de 25.12.1694, Alas da Câmara 1684-1700, vol. 6, pp. 239-240: “Aos vinte e cinco dias do mês de
fevereiro de 1694 nesta Cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos nas Casas da Câmara dele cm
Mesa de vereação foi vista uma Carta do Senhor governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara
Coutinho que está no Cartório desta Casa da Câmara e em dita Carta ordena dito Senhor governador
se fizessem luminárias e se dessem graças a Deus pelo feliz sucesso das nossas armas vencedoras con­
tra os negros dos Palmares o qual se havia destruído com morte, e prisioneiros do que resultava parti­
cular serviço a Sua Majestade e maior utilidade aos moradores de Pernambuco que viviam desde a sua
Restauração oprimidos e avexados com as insolências de insultos mortes e roubos que amiudadamente
faziam os ditos negros dos Palmares dos quais eram prejudicados de assaltos amiudados os moradores
do Porto Calvo Pojuca e Rio de São Francisco e por tão particular serviço em que DEUS foi servido
fazer àqueles moradores e ainda os desta Cidade e seu Recôncavo que experimentavam a perda de
alguns negros que lhe fugiam de suas casas e lavouras e saíam a matarem ditos mocambos dos Palmares
fazendo-se salteadores como os mais e por estas e outras Razões úteis e Convenientes à utilidade pú­
blica resolveram e assentaram que se mandasse apregoar por esta Cidade e que se Fizessem as Luminá­
rias e se incorporassem os oficiais que de presente servem com o Senhor com a nobreza (a que se deu
recado) fossem à Santa Sé desta Cidade e nela se dessem graças a Deus nosso Senhor por tão particular
mercê e benefício como havia feito a estes moradores e aos de Pernambuco na destruição de ditos
Palmares”.
88. Carta de 25.4.1681, Carias do Senado 1673-1684, vol. 2, p. 94.
89. Idem, ibidem. Num lapso, o escrivão dá “Convento que tanto desejamos”, corrigindo imediatamente
por “desejavam”. Como se viu, a Câmara pretende a exclusividade do privilégio das vagas do con­
vento para as filhas dos oficiais e congêneres.
90. Carta de 1.7.1681, Cartas do Senado 1673-1684, vol. 2, p. 103.

145
A SA T IR A E O E N G E N H O

constrangidos com a execução de dívidas “de cinqüenta mil réis para cima”,
pedindo-lhe também dilatar o prazo de pagamento por três anos “[...] para
que melhor e com mais suavidade se possam as fazendas fabricar”91. Suavida­
de dos senhores, certamente, haja vista a notícia dos dois mil negros mortos e
outras, que convém rastrear.
Em 23 de dezembro de 1663, o Rei passou uma provisão de que não se
fizessem penhoras e execuções por dívidas nas fábricas dos engenhos. Deter­
minou então que os credores fossem pagos com os rendimentos do açúcar
vendido. O açúcar que vinha à praça por execuções de dívidas também não
podia ser arrematado, uma vez que se costumava fazê-lo por preço muito
inferior ao estabelecido. Visando a proteger os senhores e a garantir a expor­
tação do produto, outra provisão real, de 3 de novembro de 1681, proíbe que
os credores, fraudando os devedores executados, façam as execuções do açú­
car e de outros gêneros da terra no tempo em que seu valor é baixo por não ser
a época da sua carga nas frotas. Determina-se então que seja avaliado segun­
do o valor do tempo das frotas por duas pessoas indicadas pela Câmara, que
faz esta recapitulação quando reclama contra os credores, que continuam em
ação e tratam de cobrar por execuções. Assim, em carta de 6 de julho de 1683,
os oficiais escrevem que esperam medidas da Coroa para coibir-lhes os abu­
sos. Reencenando o mesmo quadro de misérias já descrito em cartas de 1680
e 1681, acusam a ação dos credores que, não podendo penhorar fazendas,
engenhos e açúcar, fazem-no nos escravos do serviço de casa. Levam-nos à
praça, segundo os oficiais, e os arrematam “[...] por muitos baixos preços pela
mesma causa da falta de moeda”92:

[...] c o m q u e t i r a n d o e s t e s , q u e t a m b é m e m m u i t a s o c a s i õ e s j u n t o c o m a s f á b r i c a s s e r ­
v e m n o s co rtes d as can as, e cargas, e d escargas, e b e n e f íc io s d o s fru tos, fica m o s m o r a ­
d o res se m o s escra v o s d o seu serv iço e c o m o não há n o B ra sil o u tr o s se r v e n te s lh es é
n e c e s s á r io tira rem d a s fá b r ica s d o s e n g e n h o s e la v o u ra s o u tr o s ta n to s para se u serviço
co m q u e se v ã o d i m i n u i n d o as fábricas d e escravaria e la v o u ra c o m ela s e p o r esta cau sa
se f a z e m t a m b é m m e n o s a ç ú c a r e s e m e n o s f r u t o s 93.

O trecho é totalmente elucidativo do fundamento mercantil que regula a


relação entre senhores e escravos na Colônia. Dominação local e simultanea­
mente produção mercantil orientada para a exportação, tal relação atravessa
todas as outras práticas coloniais, como as relações dos homens pobres livres

91. I d e i n , íb id e m .

92. Carta de 67.1682, vol. 2, p. 11?,


93. hkm, p. 116.

146
A M U R M U R A Ç Ã O DO CORPO M ÍS T IC O

com os senhores, nos laços de favor e cooptação. É a mesma relação, aliás, que
a pragmática satírica efetua como ordenação jurídica dos corpos de linguagem
na hierarquia prescrita pela persona. É a mesma relação que também fornece,
para o satírico, o referencial de discursos dramatizados como investimento
semântico dos poemas. Uma mesma normatividade hierárquica, unificada na
relação senhor-escravo, permeia os discursos das Atas e Canas, assim, encon­
trando-se também atuante na sátira, em registro paralelo. Veja-se que, no tre­
cho transcrito, a falta de escravos é causa de “menos açúcares e menos frutos”,
ou diminuição da produção e do lucro. Evidencia-se, pelo documento, que tan­
to o escravo doméstico, supostamente mais próximo do senhor e recebendo,
supostamente, tratamento mais suave, quanto o escravo da lavoura, suposta­
mente mais distante e recebendo obviamente tratamento mais duro, estão efe­
tivamente subordinados a um mesmo e único interesse mercantil, que deter­
mina as duas situações, casa e eito. Facilmente se troca a posição dos negros no
trabalho, como se evidencia pelo trecho em que os da casa “[...] servem nos
cortes das canas, e cargas, e descargas, e benefícios dos frutos”. Veja-se que os
das fábricas de açúcar vão sendo retirados, na situação referida pela carta, para
o serviço doméstico. Não há dois tratamentos, suave ou duro, mas, sim, uma
unidade de violência e de benignidade94. Esta relação atravessa todas as outras,
como arbitrariedade exercida pelas autoridades locais sobre o restante da po­
pulação livre, como se evidencia na cobrança e no desvio de impostos, na ad­
ministração irregular da justiça, na desigualdade da proteção pessoal, na ge­
neralidade sempre alegada do tema do “bem comum” etc.
A falta da mão-de-obra escrava, causa da baixa produtividade e do lucro
escasso, já é motivo de uma carta de l2de dezembro de 1674, aliás, pedindo ao
Príncipe Regente que proíba o embarque para o Reino de negros de Angola

94. Cf. Ataria Sylvia Carvalho Franco, “Organização Social do Trabalho no Período Colonial”, Discur­
so, São Paulo, FFLCH-USP/Hucitec, maio 1978, n. 8, pp. 39-40: “Assim, enquanto núcleo domésti­
co, o latifúndio colocou o escravo em contato contínuo e estreito com os membros da camada
dominante, tecendo os fios firmes da dependência pessoal: o tratamento condescendente dado á
ama-de-leite, à mucama, ao pajem, exprime esses aspectos mais brandos de suas relações. No ex­
tremo oposto, encontramos o homem ‘coisificado’, submetido à dura disciplina requerida pela
produção mercantil. Essa diversidade de ajustamentos possíveis prende-se, sem dúvida, às situa­
ções particulares, onde se determinaram os contatos entre o senhor e o escravo, isto é, a casa e o
eito. Mas é preciso não escorregar numa dissociação e sublinhar que essas duas situações compu­
nham uma unidade socioeconômica: isto nos permite notar que as relações entre senhor e escravo
permanecem essencialmente as mesmas, em quaisquer das posições diferenciadas que possam ocu­
par na estrutura do latifúndio. Significa isto que estão implícitos e sintetizados no curso de suas
relações tanto a compulsão e a violência como os seus contrários, a quebra do rigor e a mercê".

147
A SÁT IR A K 0 K X G E N H O

trazidos para a Bahia. Mais uma vez, explicita-se a relação entre a mortanda­
de escrava e o lucro mercantil:

[...] n ã o h ã o u t r o s s e r v i d o r e s s e n ã o o s n e g r o s d e A n g o l a q u e a q u i v ê m v e n d e r - s e e s ã o
tão p o u c o s o s q u e aq u i estã o d ig o o s q u e en tra m n esta P raça e n a s m a is d o lista d o e
tantos os que morrem pelo contínuo trabalho q u e p o r n ã o t e r e m os m o ra d o res q u a n to s hão
m i s t e r e d e m a n d a m e s t a s f á b r i c a s sc perde muito lucroA

Afirmando que toda a África é um inesgotável celeiro de escravos, pois


tem “gente infinita”, reclamam os oficiais da Câmara de que, dos inúmeros
que são carregados de Angola para a Bahia, mandem-se muitos para Portu­
gal. Afirmam também que, embora se necessite deles no Reino, nenhuma
utilidade produtiva têm lá para a Fazenda Real. Homens de poder local, pro­
põem-se os oficiais neste passo da Carta como homens do poder real; no caso,
a defesa dos interesses da Coroa identifica-se com a defesa dos seus interesses
como produtores locais:

[...] n o s p a r e c e u r e p r e s e n t a r a V o s s a A l t e z a o g r a n d e d a n o q u e s e s e g u e ao S e r v i ç o d e
V ossa A lt e z a e ao b e m c o m u m d e s t e p o v o p e d i n d o se sir va V ossa A lt e z a m a n d a r sob
g r a v e s p e n a s q u e n e n h u m m e s t r e n e m p e s s o a a l g u m a l e v e e s c r a v o a l g u m d a n d o a is s o
fia n ça n e sta C â m a r a q u a n d o despachar'*.

Sempre preocupada com a falta de mão-de-obra escrava, em 21 de maio


de 1685 a Câmara registra em ata as providências tomadas quanto a um navio
chegado de Luanda que traz negros com bexigas. A Bahia já conhecera uma
epidemia de bexigas em 1666, com grandes perdas na escravaria, atribuída
então ao aparecimento de um cometa, em dezembro de 166595967, que profetizava
desastres às vésperas do ano de número cabalístico. A ata registra narrativa­
mente a ida a bordo do Santa Marta do médico Manoel de Mattos de Viveiros
e de oficiais da Câmara, relatando o escrivão, João de Couros, que “[...] vimos
negros com bexiga e um deles com bexiga dentro da costa”98. Pela experiência

95. Carta de 1.12.1674, C a n a s d o S e n a d o 1 6 7 3 - 1 6 8 4 , vol. 2, p. 21 (gritos meus).


96. hlcin, ibidem.
97. Cf. Sebastião da Rocha Pita, H i s t ó r i a d a A m é r i c a P o r t u g u e s a , Belo Horizonte-São Paulo, Itatiaia/
Edusp, 1976, Livro VII, 33, p. 196: “Principiou este terrível contágio em Pernambuco no ano dc mil
e seiscentos e oitenta e seis, e devendo atribuir-se aos pecados dos moradores destas províncias,
corruptos de vícios e culpas graves, a que os provocava a liberdade e riqueza do Brasil”. Cf. tam­
bém Dr. José Carlos Bahiana Machado, “As Grandes Epidemias na Bahia - A Peste da Bicha de
1686 e a c o l e m m o r b u s de 1885”, em Primeiro Congresso de História da Bahia, A n a i s , Salvador,
Instituto Geográfico e Histórico, 1955, pp. 267-275.
98. Ata de 21.5.1685, A t a s d a C â m a r a 1 6 8 4 - 1 70 0 , vol. 6, p. 23.

148
A m u r m u r a ç Ao d o c o r r o m ís t ic o

anterior da morte de “muitas mil Almas” pelo contágio da Madre de Deus, nau
que trouxe escravos infectados “sem dar por isso”, o médico justifica seu re­
querimento de que não se desembarquem os cativos, propondo que se avisem
todas as vilas do Recôncavo. Considerando os oficiais da Câmara “[...] tão gran­
de ruína que além da mortandade que seriamente havia de haver se arruinar os
engenhos efazendas se deu nas bexigas passadas que muitos engenhos não moeram por
haver morto os negros de munas fazendas”, determinam a quarentena do Santa
Marta no morro (ilegível) a quatro léguas da Cidade09.
Outras cartas e atas também informam, com muita naturalidade, o medo
da doença, sempre relacionado ao horror principal, a perda da mão-de-obra e
do lucro. Quase dois meses após o registro da chegada do .Santa Marta, em 16
de julho de 1685, registra-se que chega de Luanda com escravos a nau N. S. da
Conceição e São Francisco infestada de bexigas, sendo enviada para a quaren­
tena. A Câmara relata o que o capitão do navio requer: “[...] morrendo algu­
mas cabeças protestava não pagar os direitos delas nem um real”, declarando-
se forçado à quarentena e sem responsabilidade pelas mortes que ocorressem
durante o recolhimento99100.
Nas cartas e atas das duas décadas finais do século XVII, o contágio é ameaça
sempre referida. Causa pânico na população, constituída como atemorizada após
a epidemia do “mal da bicha” de 1686, febre amarela que ataca endemicamente os
documentos até a década seguinte. Assim, em 27 de janeiro de 1694, o governador
Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho determina que, “[...] estando esta
Cidade corrupta pelas contínuas enfermidades que se experimentam degeneran­
do os ares aquele saudável clima que havia nesta Cidade”, sejam evitados todos os
navios, especialmente os que vêm de Angola, São Tomé e Costa da Mina, como
prevenção contra os danos que “[...] com certeza julgavam os médicos e homens
experimentados vinham de ditas partes a corromper e infeccionar esta Cidade que
com tão lamentável lástima se tem experimentado”101.
Acompanhando o médico, o escrivão da Câmara sobe, na ata, a bordo de
um navio vindo da Costa da Mina e transcreve a decisão dos oficiais. Nova­
mente, explicita-se o interesse mercantil na violência com que a naturalidade
da escravidão é referida:

[...] n ã o c o n v i n h a q u e d e s e m b a r c a s s e m g e n t e q u e v i n h a e m d i t a e m b a r c a ç ã o p o r v i r
m u itas d ela s danificada e m u ita d ela com sarna e lepra, e c o n s ta n d o ao d ito m e d ic o por

99. Itlám. ibidem.


100. Ata de 16.7.1685, vol. 6, p. 30.
101. Ata de 27.1.1694, vol. 6, p. 237.

149
A SÁ T IR A H O E N G E N H O

declaração do Capitão do dito patacho se lhe havia mono 15, ou 16 negrosfora outros que
se mataram por quererem alevantar [...] viu dito médico dois mortos em dito navio c muitos
deles incapazes de se poderem alevantar do lugar em que estando deitados o que julgou ser
doença

Decidem o médico e o escrivão “[...] pelo que toca ao cargo e consciência”


que não convém “[...] se comunicasse esta sobredita gente com a dita Cidade
por estarem os moradores dela com doença de febres, e por se não acrescentar
maior mal e evitar este dano em prejuízo do povo”. O navio da Costa da Mina
é recolhido em quarentena na ilha de Itaparica, “no sítio que chamam de
Manguinho”, apesar da segunda petição de seu capitão, João Godinho da Maia,
para que os negros sejam logo desembarcados102103104.
Rotineira nas atas e cartas do final do século XVII, tal situação narrativa
efetua-se contraditoriamente: a falta local de mão-de-obra escrava determina
a chegada constante dos negreiros que, quase sempre empestados, são ameaça
muito temida à mão-de-obra existente. Embora necessária para o “bem co­
mum” da população atacada de febres, a quarentena é também fator de atra­
so na reposição dos braços nas fábricas do açúcar e, assim, na produção, im­
plicando a diminuição geral dos lucros, hajam vista as petições dos capitães
negreiros, inconformados com a quarentena que lhes impede o negócio ime­
diato e que os descapitaliza com as mortes prováveis de escravos doentes. A
essa dificuldade somam-se outras nas cartas, tal a da situação relatada como
produzida por uma ordem régia de dezembro de 1689, que determina a
sustação do fabrico de aguardente pelos engenhos, para assim se evitarem
mortes e doenças que, diz-se, a bebida causa no reino de Angola.
Em 18 de junho de 1690, os oficiais da Câmara escrevem ao Rei afirman­
do-lhe que:

[...] muita parte dos moradores desta Cidade e quase todos os do Recôncavo vivem
deste gênero, e o têm quase por fruto, e com ele pagam comumente os escravos que traba­
lham nas suas lavouras, e há lavrador que para este efeito faz esta bebida das próprias
canas de que se faz o açúcar; e com esta droga sefacilita a condução dos negros, efaltando
fica cessando o traio e negócio'"*.

Afirmam ainda que, se a aguardente não puder ser remetida para Angola,

102. Idem, p. 238 (grifos meus).


103. Idem,ibidem.
104. Carta de 18.6.1690, Cartas do Senado 1684-1692, vol. 3, p. 94 (grifos meus).

150

4
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R PO M ÍS T IC O

[...] f i c a m p e r d i d o s o s i n t e r e s s e s q u e g r a n j e i a m e s t e s m o r a d o r e s , q u e n ã o b a s t a m p a r a
o s e r v i ç o d a s m a n d i o c a s , t a b a c o s , c a n a s , e e n g e n h o s , e p r o ib in d o - s e e s ta n a v e g a ç ã o é u m
d a n o t o ta l d e s te E s t a d o p o r q u e v i v e m q u a s e t o d o s o s m o r a d o r e s d e s t a d r o g a , u n s d e a
v e n d e r e m , o u t r o s d e a f a b r i c a r e m , e m u i t o s d e s e m b a r c a r e m " 15.

Mais uma vez, a Câmara enuncia o fundamento mercantil da sua inter­


pretação das relações Bahia-Angola-Portugal. No caso, a proibição da remes­
sa da pinga para a África é prejudicial aos interesses locais, por isso a Câmara
pede ao rei mande despachar “por Ministros desinteressados”, que deverão
examinar o requerimento da Câmara de Angola pedindo a proibição da aguar­
dente brasileira:

[...] q u e a n ó s a s s e g u r a m s e r f i n g i d o e c o m a c a p a d o b e m d o r e a l s e r v i ç o p r e t e n d e a
n o s s a r u í n a , p e r s u a d id o s d e m u ito s p o u c o s H o m e n s d e N e g ó c io q u e m e t e m o s [ f a l t a t r e c h o ]
d o r e i n o n a q u e l a P r a ç a , e c o m o l h e f a l t a m e s t e s i n t e r e s s e s p r o c u r a a su a a m b iç ã o a n o ssa
r u ín a se m r e p a r a r n o g r a n d e d a n o q u e f a z e m a to d o este E s ta d o s o lic ita m p r o ib iç ã o d a s a g u a r ­
d e n te s p a r a a ss im s e r e m m a is c e r to s os se u s in te re ss e s q u e h ã o d e [ a c h a r ] n a v e n d a d o s v in h o s , e
dos neg ro s, q u e u m a e o u tr a c o u s a h ã o d e v e n d e r p e la m e d id a d e se u d e s e jo m .

Resumindo-se o exposto em cartas das três décadas finais do século XVII,


evidencia-se que, devido sobretudo às crescentes barreiras alfandegárias im­
postas à distribuição e venda dos açúcares brasileiros nos mercados europeus
por Inglaterra, França e Holanda, que se assenhoreiam da sua produção nas
Caraíbas e no Oriente, os estoques se avolumam em Lisboa, abarrotando os
armazéns. A partir de 1675, a Coroa determina redução dos preços, visando a
torná-los competitivos. A baixa afeta imediatamente as folhas de pagamento
do clero e da burocracia, tendo outras ramificações numerosas: eleva o valor e
o preço dos escravos e do fornecimento de cobre, ferro e breu indispensáveis
aos engenhos; descapitaliza os senhores, leva-os ao crédito, à impossibilidade
de saldar dívidas, às execuções, às falências e ao fogo morto; afeta a cobrança
dos donativos, favorece a especulação e o lucro dos mercadores; intensifica a
miséria da população. Acompanha-se a crise da desvalorização da moeda
metropolitana de prata e ouro, fixada num valor facial inferior ao da moeda
circulante no Brasil, o que produz grande evasão do metal para Portugal,
acompanhada da alta dos gêneros metropolitanos. A crise atinge o auge por
volta de 1688, quando, após a desvalorização espanhola da pataca em 20%, a
moeda portuguesa de ouro e prata se torna mais vulnerável ao contrabando e1056

105. Idetn> pp. 94-95.


106. Idem, ibidem.

151
A SÁ T IR A K O E N G E N H O

a outras práticas de desvio, como a do corte de seus bordos e fundição das


aparas, transformadas em metal, prata ou ouro.
Em carta de 12 de agosto de 1688, um mês após as medidas protecionistas
do Conde da Ericeira lamentadas em outras, os agentes relatam ao destinatá­
rio o “notável prejuízo” da produção e comércio do açúcar, resultante da lei
que sobretaxa o produto e o breu, o treu, o ferro, o cobre e os escravos necessá­
rios às fábricas dos engenhos. Como vítimas, seu arrazoado tenta persuadir o
Príncipe da justeza do que alegam, afirmando que o “notável prejuízo” é o da
Fazenda Real. Reiterando protocolarmente os signos de fidelidade irrestrita,
afirmam que é imposto a que estão prontos a obedecer e a dar execução, haja
vista o “notável prejuízo” da Fazenda Real se não o pagam. Escrevem, contu­
do, que recorrem à clemência real para propor-lhe a dificuldade grande e
inconveniências decorrentes da taxação. E nesta figuração, em que o “notável
prejuízo” se refrata, que o arrazoado avança.
Todos vivem “arrastados em dívidas”, segundo os agentes, alegando que
são testemunhas fidedignas de sua situação os governadores e ministros que,
nos últimos dez anos, assistiram na Bahia. Segundo alegam, até o presente -
12 de agosto de 1688 - os açúcares venderam-se por preço mais alto do que
lhes concede a lei e, custando muito menos do que custam todos os gêneros
necessários para sua fabricação, é muito pouco o que os senhores de engenho
e os lavradores de canas lucram. Há, dizem, e houve visível diminuição dos
cabedais. Se um maior preço já não era suficiente no passado que relatam
para que, pagos os gastos e os fornecimentos, sobrasse lucro suficiente para se
conservarem com os mesmos cabedais, vão-se no presente empenhando mais
e mais. Como e possível, perguntam muito enfaticamente, lavrar no presente
o açúcar, quando o vendem por preços tão abatidos?107
Segundo os agentes, a experiência mostra que todos os que vêm tomando
dinheiro emprestado para se abastecerem de gêneros vendidos fiados para
produzir o açúcar vão ficando destruídos em breves anos. Lei especial de 15 de
novembro de 1683 determina que sejam nulos todos os contratos de dinheiro e
açúcar, prevendo que basta uma pequena diminuição para que se arruinem os
que fazem tal negócio. Na carta, lamentam os agentes a nova lei que taxa os
açúcares em baixa a 750 réis: “[...] há de ser a total ruína do Brasil”108. A razão
da ruína é manifesta quando consideram a grande despesa da lavoura e fábri­
ca do açúcar. Seu rendimento, pelo preço passado de 10 e 11 tostões, deixava

107. Carta dc 12.8.1688, vol. 3, p. 63.


108. Idem, p . 6 4 .

152

À
A M U R M U R A Ç A O DO CORPO M ÍST IC O

líquido “[...] um limitado lucro para quem o lavrava”109. Passam a demonstrar,


pois, que as despesas sobrepujam no presente todo lucro: para as soldadas dos
oficiais, são necessários 100 réis para o mestre, 100 réis para dois banqueiros,
100 réis para barqueiros, 80 réis para um feitor-mor, 40 réis para um feitor da
moenda e 50 réis para o caixeiro. A partida de lenhas que se queimam nas
moendas importa em 26 títulos cada safra, “pouco mais ou menos”, segundo a
“mais ou menos” cana que se tem para moer. Os caixões do açúcar custam,
levantados, 1200 réis, 2060 o milheiro de tijolos de alvenaria para a reforma da
fornalha a cada dois anos. Empregam-se 2 ou 3 mil fôrmas de barro “[...] que
quase se quebram todas na mesma safra a 80 réis cada uma”. O conserto das
barcas é de 80 mil-réis cada ano; o frete da condução do açúcar para a Cidade
é de 320 réis por caixa, 200 réis de entrada nos trapiches, além de um vintém
da estada cada mês. Acresce o sustento da escravaria e as miudezas que, “[...]
por serem muitas, se não podem referir”. Mas referem, pois nelas entram o
breu, o ferro e o treu taxados pela nova lei11012.
Afirmam os agentes, ainda, que tais fornecimentos, oferecidos por preços
exorbitantes em relação aos do passado de seu relato, poderíam tolerar-se,
caso o açúcar do Brasil “[...] se pudera lavrar sem tão grande numero de Es­
cravos, Bois e Cavalos, de que morrem todos os anos uma grande parte, que
precisamente se há de refazer, com que só para os escravos que se vendem a
50-60 e 70 [mil-] réis é necessário uma grande soma de dinheiro”1". Conclui-
se com evidência, segundo eles, que, “[...] se não houver remédio para que se
conserve no valor de dez e onze tostões”, que é o do açúcar no passado, em
“brevíssimos anos” não haverá na Bahia quem se possa abastecer, ficando
inúteis as propriedades de engenhos e fazendas de canas fabricados em “[...]
tantos anos de tanto trabalho”: “[...] com diminuição excessiva dos dízimos e
alfândegas de Vossa Majestade; e prejuízo das folhas eclesiástica e secular e
outras aplicações”" 2.
Amplificando o alcance da argumentação, os agentes afirmam não serem
apenas os senhores de engenho e lavradores de canas os prejudicados na bai­
xa do açúcar, mas também os mercadores:

[...] p o r q u e é c e r i o q u e n ã o l h e t e n d o c o n t a a s u a l a v o u r a , n e c e s s a r i a m e n t e a h ã o d e d a r
p or p e r d i d o s , e d e i x a [sir] a m o n t e o s c a n a v ia is, e n ã o te n d o e s ta d ro g a q u e se v e n d e

109. Idem, ibidem.


110. Idem, ibidem.
111. Idem, ibidem.
112. Idem, pp. 64-65.

153
A SÁTI RA H O E N G E N H O

(que era o Dinheiro e Riqueza do Brasil) não lhe fica ouira com que possam comprar as
Fazendas que vêm de fora"5.

O Brasil cambaleia:

[...] O Brasil, Senhor, desde o seu nascimento se sustentou sempre em duas Colunas,
uma era a do Tabaco, é a outra o Açúcar: a do Tabaco arruinou-se há alguns anos,
ficando perdida a pobreza do Brasil que, por depender de pouca fábrica a sua lavoura,
se ocupavam dela"4.

O Brasil desmorona, pois, arruinada a “Coluna do Açúcar”: “[...] porque para


todos se acabaram as Colunas em que se sustentava”" 5.
Após a ênfase apocalíptica, segue-se a encenação da resignação permeada
de ameaça da perda do monopólio do comércio. E que, como “a necessidade é
muito industriosa”, escrevem os oficiais, ela os ensinará a buscar na mesma ter­
ra com que vivam, seguindo o exemplo da índia. Esta faz, dizem, de algodão,
panos; de cocos, vinhos, vinagres, azeite. Se no Brasil abundam esses gêneros e
outros muito melhores e mais convenientes para a “sustentação da vida” que os
da índia, por que não fará o mesmo? Pois falta-lhe ou vai-lhe faltando tabaco e
açúcar com que compre os gêneros que vêm de fora. Arrematam: “[...] se isto é
convenierte para esse Reino, Vossa Majestade o mandará ponderar”"6.
Feita essa pequena previsão, continuam, no presente. Definindo “negó­
cio” como “conveniência das partes”, os agentes afirmam que a taxa não pode
ser conveniente. Passam, neste passo da carta, a criticar e a culpar os merca­
dores de Lisboa, responsáveis por especulações e interpretações errôneas, se­
gundo sua interpretação. Os mercadores de Lisboa desconsideram a inconve­
niência da taxa do açúcar, fazendo taxar os quatro gêneros, cobre, breu, ferro
e treu “[...] por lhes parecer (erradamente)” que neles estão compreendidos
todos os fornecimentos para a fábrica do açúcar. Taxando o açúcar por preço
que “não tem conta”, fazem taxar os quatro gêneros por preços mais altos:

[...] querendo nesta forma, com anos [sua] perda certa, segurar a sua ganância infalível,
pois vendendo-se nestes anos próximos passados o cobre a 320, o breu a 1600, o ferro a
3200 e o treu a 35 reis, os fazem taxar agora o cobre a 350, o breu a 2800, o lcrro a 4800
e o treu a 51 réis"7.134
7
56

113. Idem, p. 65.


114. [dem, ibidem.
115. Idem, ibidem.
116. ídem, p. 66.
117. Idem, ibidem.

154
A M U R M U R A Ç A O DO C O R P O MÍ S T I C O

Segundo os agentes, os comerciantes metropolitanos entendem que a baixa


do açúcar e as poucas vendas são devidas ao preço excessivo que tem o produ­
to na Bahia e aos “[...] vícios com que ele se fabricava”. A carta passa a rebater
o que afirma ser uma alegação interesseira dos comerciantes, defendendo
que de nenhuma dessas duas coisas nasce a pouca saída que o açúcar tem no
Reino. Quanto aos “vícios”: “[...] é certo que se lavra hoje com o mesmo cui­
dado, cultura e diligência com que se lavrava e fabricava nos anos passados”.
Melhor, segundo a enunciação: “[...] com algumas circunstâncias melhora­
das, que foi ensinando e aperfeiçoando a experiência”118.
O “maior estudo” e cuidado dos produtores de açúcar é fazê-lo bom e fino
e, segundo os agentes, nunca acharam remédio para assim ser, alegando-se a
experiência holandesa em Pernambuco que, com “toda a sua indústria”, nada
descobre em 24 anos. Outro argumento: não se sabe como fazê-lo menos cus­
toso: “[...] esta obra não tem medida nem compasso, nem se tempera pelo
gosto, toda a sua bondade pende da Ventura”" 9. Exemplos dos oficiais da
Câmara: se o mestre não acerta em fazê-lo bom, o senhor de engenho e o
lavrador perdem, embora o mestre continue cobrando o mesmo, como quan­
do o faz fino: “Nenhum mestre sabe o que faz”, senão depois de sessenta dias,
quando se quebram as fôrmas para secar o açúcar. Se o vêem ruim, não sabem
a causa para poder emendar-se na tarefa seguinte. O melhor mestre, que em
uma safra acerta fazê-lo bom, na outra o faz “broma”. Na mesma tarefa em
que o açúcar é moído e cozido, em 24 horas saem as fôrmas dele muito dife­
rentes, umas boas, outras más. Com o que, concluem, de nenhum modo se
pode dizer que o vício do açúcar é voluntário, fundando-se essa “falsa pre­
sunção” apenas naquele (o comerciante) que “[...] tem o preço dele a seu arbí­
trio”120. Além disso, insistem, nunca a Câmara ou os lavradores “[...] lhe puse­
ram preço a seu arbítrio”. Desde sempre é mandado pelas portarias dos
Governadores, como ainda fazem as alfândegas para ajustar os fretes, o servi­
ço do Rei e o apresto das frotas:

[...] Em esta consideração mandamos se ajuntasse muitos dos vendedores, e outros [...] dos
compradores nesta Câmara, e com efeito ajuntando, sem a Câmara intervir nisso de que
fazia termo nos livros dela, que o açúcar que se vendesse a dinheiro fosse a Convença das
Partes, e o que se deu em pagamento de fazendas que se devessem fosse a mil cento e ses­
senta: havendo respeito ao maior preço porque os mercadores as davam fiadas121.

118. Idem, ibidem.


119. Idem, p. 66.
120. Idem , p. 67.
121. Idem, ibidem.

155
A SÁTI RA E O E N G E N H O

A “Convença das Partes” é de 1665, quando o Rei foi servido ordenar que
o preço dos açúcares devia ser acordado. Assim, afirmam os agentes da carta,
mentem os mercadores que dizem que o preço do açúcar depende do arbítrio
dos senhores porque sempre que os preços foram livres os mercadores recorre­
ram ao Rei. É o que fazem em 1665, sendo atendidos com a “Convença das
Partes”, que desde então proíbe que se faça “o chamado preço”. Os açúcares
vêm sendo dados em pagamento de fazendas pelo mesmo preço de 1160 réis,
alegam. Quando os negociantes vendiam os gêneros e os lavradores os compra­
vam, faziam-no com o ajuste de que receberíam os pagamentos pelo dito pre­
ço. Escrevem ainda que nem o preço de 1160 réis em pagamento se pode achar
excessivo, uma vez que os lavradores do açúcar também perdem com ele:

[...] a maioria que vai deste preço ao que vale o açúcar a dinheiro é muito menos do que
os maiores que vai do valor das fazendas a dinheiro ao valor por que se vendem fiado; e
suposto que todos os moradores do Brasil conhecem claramente o quanto ficam enga­
nados em comprarem e venderem na sobredita forma, a sua necessidade os faz sujeitar
[-se] a estes danos por não poderem evitá-los comprando de contado porque nenhuma
que de seus frutos lhe fique para fornecer-se na nova safra1” .

Defendem-se os agentes, ainda, contra acusação dos “vícios do açúcar”,


que consistem em irem algumas caixas falsificadas com diferentes açúcares:
os “batidos” (mascavos) por “machos” (brancos) ou misturados... Propõem ao
destinatário que o mesmo tem o remédio “[...] na pena gravíssima que pode
pôr aos caixeiros por cuja conta correm os engenhos o secá-lo e encaixá-lo,
sem que os donos estejam presentes”12123. A intervenção dos oficiais da Câmara
se faz como prescrição simultaneamente semantizada: constitui-se, com a afir­
mação de que os senhores devem eleger com cuidado os caixeiros do açúcar, a
honestidade dos senhores partilhada pela auto-representação dos agentes. A
mesma é, contudo, mediatizada por outros enunciados que referem a descon­
fiança dos mercadores, que não aceitam receber o açúcar em pagamento nem
comprá-lo sem examinar caixa por caixa com furos e canas: “[...] e pelo que
acham nela fazem a compra”. Denegando a falsificação, os oficiais a confir­
mam, contudo, quando escrevem que alguns engenhos costumam pôr o me­
lhor do açúcar - “macho” - por cima do pior - “batido” informação que se
reforça pela justificativa de práticas semelhantes, pois afirmam que é corren­
te no Reino e nos demais países da Europa pôr para fora a melhor parte do
tecido nas caixas com peças de linho, seda e lã, ocultando-se na de baixo os

122. Idem, p. 68.


123. Idem, ibidem.

156
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O M Í S T I C O

panos com côvados e varas diminuídos. Com isso, afirmam, quem as compra
sempre o faz pelo que “descobre na entranha”12'1.
Não se pode generalizar a falsificação, evidentemente, a partir de um
documento apenas, mas as prescrições, denegações e justificativas são índi­
ces da “murmuração” sobre as condições do comércio, comum nos discursos
do período como reclamação contra os mercadores, que a sátira constitui como
tipos desonestos, pois só interessados na “medida de seu desejo”, como já se
leu.
Rebatendo o que chamam de “opinião” dos compradores metropolitanos
- a de que a pouca venda do açúcar na Europa é devida aos preços altos por
que se vende no Brasil -, os agentes a propõem como “engano manifesto”124125.
Ao “engano manifesto” opõem a “razão manifesta”: a concorrência holande­
sa, inglesa e francesa, que demonstram conhecer plenamente. Segundo eles,
Inglaterra, França e Holanda “[...] com o decurso do tempo foram acrescen­
tando outras fábricas e aperfeiçoando-as de modo que já têm tanta quantida­
de de açúcares que abundam a toda Itália, vendendo-lho refinado a 1200
réis”126.
Esta é a “manifesta razão”, segundo os oficiais da Câmara, de não ter
saída o açúcar do Brasil - o que, afirmam, é a ruína do local e a causa da
miséria, do descontentamento e da murmuração do povo. Açúcar e pimenta
são comparáveis:

[...] Sucedeu ao açúcar do Brasil o mesmo que sucedeu à pimenta da índia, que dando-
se alvitre a El-Rei de Castela no ano de 1598, lhe acrescentasse o preço, porque os
estrangeiros a não achavam em outra parte, e de necessidade haviam de comprá-la em
Portugal127.

Os holandeses, porém, logo desfazem o monopólio, pois em 1600 fir­


mam a Companhia das índias e não só têm a pimenta fina de Cochim, mas
também o cravo e a canela do Ceilão: “[...] recebem todos os anos frotas ri­
quíssimas”. Fazem o mesmo ingleses, franceses e outras nações do Norte,
“[...] com que ficou perdido aquele grande comércio que o Reino tinha na­
quele Estado”128.

124. Idem, p. 69.


125. Idem, ibidem.
126. Idem, ibide?n.
127. Idem, p. 70.
128. Idem, ibidem.

157
A SÁTI RA E O E N G E N H O

A análise da crise é relacionada pelos oficiais ao tema dos impostos e da


“ruína”. Recordam que o rei Dom João IV, atendendo à necessidade da guerra
contra a Espanha e a Holanda, determinou que fosse acrescentado ao valor do
açúcar o tributo de 220 réis pagos na Alfândega de Lisboa. O tributo chegou a
580 réis por arroba, cobrados a partir de 1650 para cobrir os gastos da Compa­
nhia Geral do Comércio, então fundada, com as 26 naus de guerra para o com­
boio das frotas. Com a Paz de Holanda, reduziram-se a quatro, depois a duas.
Reclamam os agentes de que, embora a Paz de Holanda tenha sido firmada há
mais de vinte anos, nem por isso se suspende ou diminui o tributo. Assim, con­
cluem, o açúcar brasileiro não pode concorrer com os estrangeiros porque a
baixa do preço que o faria competitivo deveria implicar a suspensão do tribu­
to, o que não se faz. Referem-se ainda à diminuição do comércio português com
outras nações, desde que “[...] as drogas [...] cujo preço é Ganância”129 foram
proibidas (aludem à política protecionista do Conde da Ericeira, que restrin­
ge a importação de bens suntuários, como as sedas e as lãs, que a aristocracia e
o clero continuam usando). Como falta aos mercadores estrangeiros o negócio
de darem saída às suas drogas, deixam também de carregar seus navios com o
açúcar. Interessados na suspensão do tributo, os oficiais afirmam que não bas­
ta a sua diminuição para que o açúcar tenha saída:

[...] Estas são, Senhor, as causas que teve a baixa dos açúcares, que Vossa Majestade
deve mandar ponderar com toda a atenção, advertindo-se que ainda que o açúcar se
pudera lavrar pelos preços da taxa, sem sua total destruição, não bastava só a diminui­
ção dela para terem segura saída; é que de lhe faltar esta, se segue não somente a ruína
de todos estes moradores, que não têm outro gênero de que possam lançar mão para o
negócio, mas também das rendas de Vossa Majestade: porque é certo que o contrato dos
dízimos não havendo açúcar, não há de chegar a pagar nem ainda a folha eclesiástica; e
que faltando os cabedais a estes vassalos, necessariamente hão de faltar aos tributos c
contribuições que pagam. [...] Pagam estes Povos, Senhor, tirando Forças de Fraqueza,
sem embargo dos empenhos, e apertos com que vivem por leais, e por servir a Vossa
Majestade: 40 donativos cada ano da Paz de Holanda e Dote da Sereníssima Rainha da
Grã-Bretanha, e pagam mais cada ano 50 donativos para o sustento da Infantaria por
imposto que aceitaram sobre os vinhos desde o tempo da Aclamação do Senhor Rei
Dom João (que até ali, se pagava pela Fazenda Real, por meio de assentistas com que
ajustava este negócio)1"1.

Segundo os oficiais, Dom João IV determinou que a Bahia devia susten­


tar a sua defesa contra Holanda enquanto o Reino sustentava a sua contra

129. I d c n t i i h i d e m .
130. Ideniy p. 71.

158

â
A M U R M U R A Ç À O DO C O R P O M Í S T I C O

Castela. Findas as guerras, a Bahia continua a pagar os tributos como se ain­


da existissem. Os oficiais afirmam não terem requerido sua suspensão até o
momento em que escrevem porque respeitam mais ao serviço de Sua Majes­
tade que à própria impossibilidade... As contribuições importam “melhor de
90000 cruzados cada ano” e faltarão caso os açúcares não sejam vendidos “ao
menos” por 10 e 11 tostões para poderem os lavradores continuar lavrando
sem perdas. Doutra forma, escrevem, “[...] não terão sustância para que pos­
sam pagá-los”. Neste passo final da carta, os oficiais evidenciam para o Rei
que sabem o que ele pode:

[...] porque suposto que nos primeiros anos se cobrem com violência e por força tiran­
do-lhe as peças de ouro e prata que tiverem, é certo que cm poucos se hão de esgotar
dessas alfaias, e parar também com elas a contribuição, e os impostos, de que se seguem
conseqüências muito prejudiciais131.

A mesma referência se encontra com outra figuração, ainda, em carta de


Ia de julho de 1693, em que o Estado é corpo de hierarquias e o Tesouro, ves
quasi sacra, fluido vital das trocas que o acumulam:

[...] tirando-nos o sangue na paz, o não teremos para derramar se por pecados houver
guerra como muitas vezes fizemos; o Sangue, Senhor, que sustenta e anima toda a M o­
narquia, é a abundância da moeda assim o confessam todos e o confirmam muitos
Ministros de Vossa Majestade por cuja razão pretendem tirar o sangue dos braços para
com ele se acudir a cabeça: pede-o assim a razão, e o julgamos conveniente mas deve-se
primeiro considerar que se faltar o maior rio com a contribuição de suas águas ao Mar
que não se há de enxergar esta falta132.

A mesma metaforização escorre, por exemplo, na Representação do gover­


nador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho ao Rei, datada de 4 de julho
de 1692:

[...] Toda a opressão, Senhor, e ruína que se teme, nasce da falta do dinheiro, que c
aquele nervo vital do corpo político, ou o sangue dele, que derivando-se e correndo
pelas veias deste corpo, o anima e lhe dá forças; e do contrário, como sucede no corpo
natural, desmaia e enfraquece não só quanto às partes principais, e que animam as
outras, senão quanto aos membros, que são aqueles de cujas operações tomam seu va­
lor, c eficácia as superiores; sendo certo que são muito mais generosas e muito melhor

131. Id e m , p . 72.

132. C a r t a d e 1 . 7 .1 6 9 3 , v o l. 3, p p . 1 1 4 -1 1 5 .

159
A SÁTI RA E O E N G E N H O

reputadas, e ainda temidas as resoluções daquele Príncipe, República, ou Estado aonde


sobra o Erário, que as daquele onde totalmente falta o dinheiro133.

A doença se alastra pelo corpo político, contudo, como “ruína de toda a


República”, no dizer dos oficiais da Câmara, que determinam medidas rigo­
rosas para saná-la, ordenando, por exemplo, a repressão e a prisão dos ouri­
ves. A falta da moeda é um evento que, modulando os discursos baianos dos
anos finais do século XVII como gesticulação de intervenções, medidas, pres­
crições, simultaneamente fornece os signos que preenchem o vazio do evento,
semantizando as medidas segundo as posições dos agentes no acontecimento.
No “Treslado do Requerimento que fez o Juiz do Povo e Mesteres sobre a
moeda e prata feito aos 11 de fevereiro”, requerimento dirigido aos vereado­
res e ao procurador do Senado da Câmara pelo juiz do Povo Francisco Ribei­
ro Velho e os mesteres Domingos Pais e José Carvalho, fala-se do “[...] miserá­
vel estado a que se tem reduzido a antiga opulência desta Cidade e a presente
ruína dos negócios”13'1. Duas causas da “ruína” são apresentadas: a falta da
moeda, que se envia para Portugal pelos comerciantes, e a sua fundição pelos
ourives. No requerimento, os três agentes, representantes de interesses das
corporações e outros grupos populares, alinham-se contra interesses de mer­
cadores de açúcar, argumentando que o abatimento do preço, as despesas dos
fretes, o comboio para a Europa, a demora da sua venda e “[...] os mais incon­
venientes que lhe suspende [sic] o lucro e diminuem o cabedal e a facilidade
de o poderem engrossar na prontidão de novos empregos, sempre mais segu­
ros à vista do dinheiro”135são causas do “miserável estado”. O principal negó­
cio dos mercadores, segundo o Juiz do Povo e os mesteres, consiste em man­
dar o dinheiro para o Reino, “como é notório”, sem reparo algum da “utilidade
do Estado”.
E contra os ourives, contudo, que o requerimento concentra o fogo. Se­
gundo os requerentes, devem-se coibir os ourives, que batem e lavram a prata
das moedas à vista de todos: “[...] com dor e escândalo e admiração de toda
esta Cidade”136. Segundo eles, a sua ação é pior que a dos mercadores mono­
polistas: “[...] é mais atroz esta ruína que a de se levar o dinheiro pois aquele
que foi pode voltar”. A moeda convertida em baixelas e usos extraordinários

133. Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, “Representação do Governador Antônio Luís Gon­
çalves da Câmara Coutinho ao Rei sobre o Estado do Brasil”, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, MEC, 1939, vol. LVII, p. 147.
134. Alas da Câmara 1684-1700, vol. 6, p. 202.
135. Idem, p. 203.
136. ídem3ibidem.

160

i
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O MÍ S T I C O

não torna, o que é delito sem perdão: embora se enriqueçam as casas particu­
lares, o todo do corpo político da República se enfraquece, pois só se conserva
com “[...] a substância comum do dinheiro, como a alma que mais vivamente
anima as Cidades, os Reinos e as Monarquias”137. Reiteram que por isso “[...]
se deve preferir sempre o bem universal ao apetite ou luzimento particu­
lar”138.
O Juiz do Povo e os mesteres lembram que é bem presente que antes,
quando vinham de Buenos Aires dois ou três navios carregados de prata, só
havia na Bahia um ourives, Francisco Vieira, o Fanha, com quatro ou seis
oficiais. No momento (1693), não entra mais prata - o que se dá desde a acla­
mação de Dom João IV - e há “uns vinte e cinco ourives” na Cidade, que
batem “[...] as moedas do México de colunas e as mais cuja qualidade toca em
21 dinheiros”139140.Lavram a prata com “[...] engano dos donos e evidência dos
danos”, enquanto “o Povo clama”. A prata derretida e lavrada é empregada
no tráfico de escravos de Angola: “[...] como a riqueza natural dos de Angola
consiste em panos e em vidas fundem o mais permanente nas baixelas de
prata lavrada que mandam ir desta Cidade da qual vão para aquele Reino
cada ano nesta espécie vinte e cinco e trinta mil cruzados”1411.
Referindo a Representação de Câmara Coutinho, escrevem que o remédio
proposto pelo governador141 fica sujeito ao prejuízo e à indústria dos ourives,
que continuam não respeitando nenhuma das novas leis sobre a moeda: “[...]
são mais prejudiciais os ourives em desfazê-la que os mercadores em levá-
la”142. Por isso, solicitam que os oficiais da Câmara requeiram ao capitão-
geral o lançamento de um bando que proíba, antes que partam os navios para
Angola, que nenhuma pessoa da Bahia, de qualquer qualidade e condição,

137. Idcm, ibidem.


138. Idern, ibidem.
139. Idem, p. 204.
140. Idem, ibidem.
141. Em 4.12.1692, Câmara Coutinho pede ao Rei que mande lavrar “dois milhões de moeda provincial,
assi de prata, como de ouro, para todo o Estado do Brasil [...] a qual moeda tenha tanto mais valor
extrínseco quanto baste para obrigar a que se não leve do Estado: com proibição e pena grave [...]
aos ourives para que desta soma de moeda não lavrem prata ou ouro algum que sirva a outros
usos". Também pede, em nome da “pobreza deste Estado [...] muita e grande, tanto mais digna de
ser ouvida quanto são as suas vozes mais fracas”, que se fabriquem mais “40000 cruzados em
moeda miúda” para o troco c as esmolas dos mendigos. Cf. A. L. G. C. Coutinho, op. cit., pp. 151 e
ss. Por lei de 8.3.1694, a Coroa manda montar na Bahia uma Casa da Moeda e refundir o numerá­
rio existente.
142. “Requerimento que fez o Juiz do Povo e Mesteres sobre a Moeda e prata feito aos 11 de fevereiro",
Alas da Câmara 1684-1700, vol. 6, p. 205.

161
A SÁTI RA F. 0 E N G E N H O

mande fazer prata lavrada para Angola sob pena de 500 cruzados, nem reme­
ta o que está feito sob pena de se tomarem duas partes para a Fazenda Real e
outra para o denunciante público ou secreto. Na mesma pena devem incorrer
o mestre ou passageiro que aceitem levar a prata: duzentos açoites o mari­
nheiro ou mandador do navio a quem a prata for entregue. O ourives que
dentro de 24 horas da publicação do bando não vem declarar ao procurador-
mor da Fazenda a prata que tem lavrado para Angola e quem a encomenda
paga o mesmo valor dela. Incorre na pena vil (açoites) o obreiro que, passado
aquele termo, não o denuncia. Os ourives devem comunicar, dentro de três
dias a partir do bando, toda a prata fundida que possuem, seja para Angola,
seja para Salvador. Nenhum ourives pode aceitar prata velha para fazer obra
nova sem primeiro apresentar à Câmara o registro dos marcos, que lhe são
entregues pesados pelo contratador na presença do juiz e do escrivão da Câ­
mara. Deve-se ainda declarar o dono da prata, identificá-la com um sinal
apropriado e também identificar os novos oficiais ourives da Cidade143. Os
mesmos procedimentos devem ser seguidos quanto à prata do culto divino144.
Evidencia-se neste requerimento e em inúmeras cartas e atas que a eva­
são da moeda e sua fundição atingem todo o Império, principalmente a partir
da metade do século XVII, quando a prata peruana de Potosí contrabandeada
de Buenos Aires deixa de chegar à Bahia. Toda a segunda metade do século
vive a crise da falta da moeda circulante, acumulando-se medidas para saná-
la. Como demonstra Carl A. Flanson, as Cortes de Lisboa de 1668 propõem
desvalorizar a moeda de ouro em 20% como meio de reduzir a quantidade do
metal precioso necessária para pagar salários de mercenários franceses e in­
gleses, principalmente, que trazem as montarias para Portugal. O sustento e
o transporte dos animais somam-se aos salários, que orçam por 100 mil cru­
zados mensais145. Propõe-se então que, aumentando-se o valor facial da moe­
da de ouro pela cunhagem de moedas com valores superiores ao valor intrín­
seco, salva-se um quinto do metal que foge para o estrangeiro. Os reajustes
monetários fazem parte da legislação protecionista146intensificada pelo Con­
de da Ericeira na década de 1680. Em 1663, a moeda de prata é desvalorizada
em 25%. Por volta de 1680, a Câmara de Lisboa demonstra serem necessários
160 réis para em Portugal comprar um artigo que se compra por 100 na Ingla­
terra. Em 1668, como a evasão do metal continua, a Junta e o Conselho ale­

143. Idem, p. 206.


144. Idem, p. 207.
145. Carl A. Ilanson, Economia e Sociedade no Portugal Barroco 1668-1703, Lisboa, Publicações Dom
Quixote, 1986, p. 167.
146. Idem, p. 168.

162
A M U R M U R A Ç Ã O DO CORPO M ÍST IC O

gam que as reservas de ouro e prata estão mais reduzidas com a desvaloriza­
ção, uma vez que os comerciantes estrangeiros colocam mais facilmente seus
produtos em Lisboa, vendendo-os em maior quantidade e, assim, levando
mais prata e ouro para seus países147.
E prática rotineira, como se leu no requerimento do Juiz do Povo, raspar
os bordos das peças de ouro e prata, apagar-lhes o valor facial, fundir as apa­
ras acumuladas ou as moedas e vender o metal. Apesar das penas governa­
mentais, que incluem multas pesadas e degredo de quatro anos em Angola
para os infratores, na década de 80 o corte e a fundição se intensificam. A
desvalorização de 1688, que acompanha a desvalorização espanhola da pataca,
de 1686, torna precária a situação no Brasil. Por ordem da Coroa, a moeda
brasileira deve circular de acordo com seu valor intrínseco, não com o valor
facial148. A cotação da moeda metropolitana com um valor inferior ao da moe­
da do Brasil acelera a evasão da prata e ouro coloniais, como se leu no reque­
rimento. A conseqüência da falta crônica de moeda corrente é o recurso aos
empréstimos a crédito por parte dos senhores de engenho, como se viu, geral­
mente com hipoteca dos engenhos ou parte deles e, principalmente, das sa­
fras. Torna-se rotineira, segundo as cartas, a prática de garantir o empréstimo
com a colheita seguinte, cujo preço é fixado antecipadamente abaixo do pre­
ço do mercado149, com grande murmuração dos senhores contra os negocian­
tes. Como se viu, muitos credores executam as dívidas nos escravos.
Em 14 de fevereiro de 1693, os oficiais da Câmara determinam que ne­
nhum ourives pode lavrar prata sem que primeiro venha à Câmara registrá-
la, declarando o nome do destinatário da obra. A intervenção da Câmara con­
tra os ourives prescreve medidas severas: trinta dias de cadeia para o ourives
e 6 mil-réis de recompensa para o denunciante. A murmuração entre os oficiais
mecânicos intensifica-se, bem como a murmuração das denúncias motivadas
pela cobiça. As penas da Câmara são mais severas ainda para os ourives que
fazem obra de prata não registrada. Executa-se neles a pena da Ordenação,
livro V, título 12, parágrafo 5: dez anos de degredo na África, com perda da
metade da fazenda150. A lei atinge não só os que fundem moeda, mas também
todos os que a mandam fundir. Contradição, portanto, uma vez que a mesma

147. Idem, ibidem.


148. Idem, p. 242.
149. Cf. Stuart B. Schwartz, Sugar Planlations in lhe Formalion of Brazilian Society, Bahia 1550-1835,
Cambridge, Cambridge University Press, 1985, p. 205. [Trad. bras.: Segredos lutemos, São Paulo,
Companhia das Letras, 1988.]
150. “Termo de acórdão que tomaram os oficiais da Câmara sobre o requerimento que fez o juiz do Povo
da moeda e prata lavrada”, Alas da Câmara 1684-1700, vol. 6, p. 209.

163
A SÁ T IR A K O E N G E N H O

prata lavrada a mando de senhores compra escravos em Angola para suprir a


falta crônica de mão-de-obra que diminui os lucros senhoriais, principalmente
após as epidemias de 1686-1690. Ao mesmo tempo em que tomam tais medi­
das, os oficiais continuam reclamando providências ao Rei, lamentando-se:

[...] a l é m d a s R a z õ e s q u e a S u a M a j e s t a d e se t ê m R e p r e s e n t a d o , e d a s q u e p o r p a r t e d o s
B r a ç o s E c le s i á s t i c o s e N o b r e z a , n e sta o c a siã o t a m b é m se a le g a m , q u e to d o s p r o p o m o s ,
e a p r o v a m o s, a t e n d e n d o m a is e m p a rticu la r no ú ltim o , e m a is m ise r á v e l e sta d o nosso,
do q u al tod avia se c o m p õ e o g ra n d e C o r p o desta R e p ú b lic a , n ã o d e ix a r e m o s d e exp or
a o s C l e m e n t í s s i m o s o l h o s d e S u a M a j e s t a d e c o m o P ai, e P r ín c ip e n o s s o , o q u e d e sta
g r a n d e falta d e d i n h e i r o p a d e c e e s te s e u P ovo. P rim eiro : u m a g r a n d e , e q u a s e e x t r e m a
n e c e s sid a d e d o n e c e s sá r io para su s te n to da v id a , p o rq u e o s N o b r e s , e E c le siá stic o s,
vivem , ou das S u as F azendas, ou das suas C ôn gru as, e su p osto ten h am grande dano e
d e t r im e n t o na falta da M o e d a é s e g u n d o m a is o u m e n o s a v iv e r c o m m a is lim ita ç ã o ,
p o r é m o P o v o , q u e s o m e n t e se a lim e n t a d o tra b a lh o d e su a s m ã o s , e d o su o r d e seu
R o s t o n a s o b r a s m e c â n i c a s , e f a l t a n d o o c o m q u e s e m a n d e m f a z e r , o u já f e i t a s , c o m q u e
se p a g u e o q u e n e l a s s e o b r o u , f i c a m e a n d a m o s O f i c i a i s f a m i n t o s e o c i o s o s , e n e s t e
e s ta d o p e la m a io r p a rte se a c h a o P o v o da B a h ia , d e p o is q u e n ela falta a m o e d a . S e g u n ­
do, q u e p o r esta ca u sa a s T e n d a s de m u it o s O fic ia is tra b a lh a m m u it o m e n o s d o que
c o s t u m a v a m , e m u i t a s d e t o d o s e f e c h a m , p o r q u e c o m a f a l t a d a m o e d a c a d a u m se
r es tr in g e, e r e m e d e ia c o m m e n o s obra do q u e p e d e a S u a n e c e s s id a d e , d e q u e R esu lta
p a g a r e m -s e as ob ra s p o r m e n o s p reço p o rq u e s o b e ja m e m g r a n d e n ú m e r o o s O f ic ia is e
O b reiros, e p ela m a io r parte a n d a m v a g a b u n d o s, p o rq u e o s q u e h a v ia m de ocu p á -lo s,
c o m o a s o b r a s s ã o m e n o s se m e d e i a m c o m m e n o s o b r e i r o s p o r n ã o p o d e r e m p a g a r
m ais; o u tr o s d e p o is de tra b a lh a r em , fica m sem p aga do S eu trab alh o, c o m q u e se vão, e
fica m im p o s s ib ilita d o s a ex erc ita r se u s O fíc io s, e c o n s e g u in t e m e n t e a v iv e r e m v a d io s, o
q u e m a i s c la r a m e n te se v ê n o S e r v iç o d o s E n g e n h o s , e m a is F a z e n d a s , p o r q u e , i m p o s s i ­
b i lit a d o s o s S e n h o r e s d e l e s a p a g a r o s jo rn a is q u e sã o m u i t o s a d i n h e i r o , p e lo n ã o te­
rem , n e m h a v ê -lo d e s p e d e m s e u s se rv en te s, e fica m i m p o s s ib ilit a d o s para as F á b r ic a s
d o A çú car. T e rceiro: p o r q u e e s s e s tais v e n d o q u e tr a b a lh a m s e m fru to , m o r r e m d e ío m e ,
e se m e t e m p e lo in te r io r d o S ertã o d e sta C id a d e , q u e é i m e n s o , e h o je m u i t o p o v o a d o de
C u rra is m a io r e s p o r o n d e d isco r rem fa zen d o m il in s o lê n c ia s a q u e o s ob rig a , p or um a
p arte a fo m e , e n e c e s s id a d e , p o r ou tra o p e c a r e m se m m e d o d a J u stiç a a D iv in a , p o r que
a n ã o v ê e m , e a H u m a n a n ã o r e c e i a m p o r q u e l h e f ic a m u i t o l o n g e 1' 1.

Longa a citação porque é admirável seu poder de figurar eventos como o


desemprego das mecânicas, o descontentamento, a fome, a ociosidade, as in­
solências da crise. Segundo os oficiais da Câmara, são os comerciantes que
lucram, pois fazem o dinheiro render só na venda: 5 cruzados de bacalhau em15

151. Carias do Senado 1692-1698, vol. 4, p. 11.

164
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O MÍ S T I C O

Lisboa tornam-se 20 cruzados na Bahia152. Uma carta de 1689 pede ao Rei


ordene a cunhagem de moedas de vintém, 2 vinténs, meio tostão, 3 vinténs, 4
vinténs e tostões: “[...] que tenha toda de valor intrínseco 25 ou 30% menos,
para assim se não poder levar”. Representam os agentes da Carta “[...] a geral
queixa da Pobreza, e Povo”, referindo “[...] os descômodos que padecem por
falta de troco” para compras miúdas, além do grande prejuízo da caridade:
não há moedas para as esmolas dos mendigos...153
Como um índice muito explícito de controle da murmuração da “Pobre­
za” e também da absoluta naturalidade da hierarquia que prevê os mendigos
e suas esmolas, pedidos semelhantes são reiteradamente feitos. Por exemplo,
em l2 de julho de 1693, após repisar o lugar-comum da “ruína de toda a Re­
pública” e novamente tratar do crédito, das execuções de dívidas e falências
de senhores, a Câmara escreve que as missas faltam, pois os capelães se vêem
sujeitos a dizê-las fiadas por não haver dinheiro para pagá-las; que os mendi-
cantes não têm esmolas; que perece o culto divino nas celebrações dos santos,
na pompa das armações, no ornato dos altares; que tudo o mais fenece: “[...] o
que podia ser exemplo da grandeza dos ânimos vai passando a ser mágoa da
piedade cristã”154. Piedosamente, propõe-se outra vez que se reduza a moeda
provincial, conferindo-lhe maior valor extrínseco que impeça o saque para
fora do Brasil. Que se abra Casa da Moeda em Salvador para fundir a moeda
havente - por exemplo, com o ouro que vem da Costa da Mina, suprindo com
ela a falta155.
Desde os anos de 1670, os oficiais pedem a criação da Casa da Moeda
Provincial, comparando o Brasil com a índia, onde a Coroa tem três “em Goa,
Rio e norte”156. A resposta do Rei é legível, por exemplo, em Carta de 24 de
julho de 1680, tomada aqui como exemplo do que se repete em outras até o
final do século: “Não foi Vossa Alteza servido deferir até agora”157.
E com essas referências de crise açucareira e falta crônica da moeda que
outras “conseqüências muito prejudiciais” que desordenam a hierarquia se
ordenam nos discursos das atas e cartas. Entre elas, a murmuração e subleva-
ção dos soldados do Terço da Infantaria por falta de soidos e farinha para o
pão do seu sustento. Conflitos com a Infantaria agitam Salvador nas cartas
dos anos finais do século XVII, envolvendo a Câmara, mercadores, membros

152. Carias do Senado 1673-1684, vol. 2, p. 101.


153. Carta de 16.7.1689, Carias do Senado 1684-1692, vol. 2, p. 85.
154. Carta de 1.7.1693, vol. 3, p. 116.
155. Idem, ibidem.
156. Carta de 15.7.1679, vol. 2, p. 54.
157. Carta de 24.7.1680, vol. 2, p. 83.

165
A SATIRA E 0 E N G E N H O

da Relação, produtores de farinha, o clero, governadores, além da população


genericamente referida como sobretaxada de impostos, descontente e mur-
muradora, e, evidentemente, os soldados. Alguns dos envolvidos são citados
nominalmente na sátira, como o governador Câmara Coutinho, os desembar­
gadores Cristóvão de Burgos e José de Freitas Serrão, o “Rabo de Vaca”. Ou­
tros, como oficiais da Câmara e mercadores, são referidos genericamente, como
tipos. A sátira também dramatiza o referencial dos discursos quando representa
as “farinhas: tardas”, os “sírios mesquinhos”, “guardas”, “meirinhos”, “sar­
gentos”, “mulatos”, “fome” e “murmuração”.
Cerca de 2500 homens compõem o Terço da Infantaria acantonado em
Salvador em fins do século XVII. Estabelecido no tempo de Dom João IV num
contrato pelo qual a população se obriga a pagar e alimentar os soldados, o
Terço defende a Cidade contra inimigos externos. Como só entra em ação
quando há guerra, sua situação é ambígua: desfruta uma ociosidade mantida
pela população sobretaxada. A murmuração é grande: pagam-se impostos para
alimentar o ócio de soldados que produzem distúrbios que ameaçam os que
pagam... Uma carta de 12 de agosto de 1688 sintetiza o que se acha dissemina­
do por muitas outras dos trinta anos finais do século XVII:

[...] não chegam hoje estes efeitos [recursos do açúcar e dos vinhos] à conta de 50 Quin­
tos, que monta o Sustento desta Gente de Guerra, c é força repartir no Povo por Finta o
que falta de que ele Clama, Sentido de tantas Contribuições, e mais neste tempo em
que Seus frutos não têm estimação, e lhe faz maior o Sentimento ter-se acabado a Guer­
ra, e comprada a Paz à Custa deste Estado, e esta Cidade Só em um milhão e 280
Quintas, e não ser escusada do Sustento da Guerra, que aceitou só porém quanto ela
durasse. Para nisto ter este Povo algum alívio nos pareceu propor e Pedir a Vossa Majes­
tade com a humildade devida seja Servido mandar reformar um Terço dos Dous que
tem esta Praça, reduzindo a um toda a Infantaria que há em ambos, e a dos Artilheiros
não exceda de Sessenta, que por gozarem de seus Privilégios assentam muitos esta
praça sem dela entenderem, nem saberem. Também não parece justo, que as reformações
Sejam pagas à Custa do Povo, pois é Mercê Real, e não o Sustento a que nos Sujeitamos,
assim mesmo as Casas, e Cavalo do Tenente General e seu Ajudante, e outros oficiais;
Cujos aluguéis montam também Despesa considerável; E se dão por Despachos do
General, Sem atenção a que não é Fazenda Real mas só de Serviço que faz o Povo; e há
Casas tomadas pelos Tenentes e seus Ajudantes de Cincoenta mil-réis de Aluguel: Tudo
isto Senhor pede reformação158.15

15S. Carta de 12.8.1 688, vai. 3, pp. 56-57.

166
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R PO M ÍS T IC O

Já em 24 de novembro de 1673, os oficiais da Câmara escrevem ao Prínci­


pe informando-lhe que, como falta o dinheiro do pagamento da Infantaria e
como a despesa procede da taxação dos vinhos de Portugal e da terra, a Câma­
ra se vale de um empréstimo de 8 mil cruzados em vinhos da ilha da Madeira,
feito pelo rendeiro deles, João Rodrigues Reis. Informam que os fazem “[...]
repartir pela vendagem das tavernas recebendo 2000 réis de cada pipa”159. Os
mercadores que têm o mesmo negócio julgam-se lesados, contudo, e agravam
da Câmara para a Relação, argumentando que o Rei proíbe o estanco, contra­
tado com um tal Sebastião Duarte. Defendendo-se, a Câmara responde que
na preferência da venda de oitenta pipas de vinho que se gastam em um mês
não se faz estanco, nem há ordem real em contrário, afirmando que são “efei­
tos” da Câmara. Alega que se prefere sua venda a todos para remediar a ne­
cessidade dos soldados “[...] contra os quais havia queixas de roubos que se
faziam atualmente de noite a que dava ocasião ser a necessidade”160. A carta
evidencia, desta maneira, a precariedade da situação dos soldados, aos quais
faltam o soldo, a farda e a farinha. Para “[...] prevenir maiores excessos mui­
tas vezes vistos” é que as medidas são tomadas, afirmam os oficiais da Câma­
ra, declarando que nisto não se prejudicava o negócio dos Particulares” e
alertando para “[...] o maior respeito e atenção aos danos que procedem de
Soldados inquietos por mal pagos”161162.Os agentes ainda alegam que há muitos
exemplos de procedimento semelhante, lembrando a venda “[...] dos açúca­
res dos Dízimos de Vossa Alteza lançados violentamente pelos homens de
negócio quando falha dinheiro por eles ao Contratador”163.
Apesar da “necessidade” e das “ruins conseqüências de Soldados mal
pagos”, a Relação julga que os mercadores de vinho estão agravados. A Câ­
mara recorre diretamente ao Príncipe, assim, pedindo-lhe resolver o que há
por seu serviço, pois “[...] este é o meio mais fácil e pronto de remediar-se o
socorro dos Soldados nas ocasiões de necessidade sem vexações do Povo”163.
Não há notícia do prosseguimento da pendência, mas uma carta de 30 de
janeiro de 1675 repropõe o tema sob outro aspecto. Segundo os oficiais da
Câmara, o desembargador sindicante Sebastião Cardoso de Sampaio diz ter
ordem real para remeter o dinheiro recolhido a fim de pagar a Infantaria
para o Conselho Ultramarino, em Portugal. Por esta razão, alegam os oficiais,

159. Carta de 24.11.1673, vol. 2, p. 3.


160. Idem, p. 4.
161. Idem, ibidem.
162. Idem, íbidem.
163. Idem, ibidem.

167
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

o sindicante não permite que se despenda no sustento dos soldados, retendo o


imposto nas mãos do tesoureiro. Novamente, o Príncipe é invocado como su­
prema instância na apelação dos agentes: a Câmara pede-lhe ordenar que o
dinheiro seja efetivamente gasto no sustento do Terço. A referência do “senti­
mento geral do Povo” efetua, no discurso, a indignação dos que pagam o im­
posto da Infantaria:

[...] pois assim foi condição quando tomamos sobre nós o sustento dela e o Juiz do Povo
nos fez presente o sentimento geral do Povo por se lhe querer levar o dinheiro que
pagam para este serviço de Vossa Alteza e ser necessário lançar-se-lhe finta para outro
sendo que sempre pagam que por não chegar se está sempre devendo aos Soldados
alguns meses de seus socorros1'’4.

A sonegação continua, porém, e a pendência se arrasta indefinidamente,


embaraçada nos trâmites da burocracia. Medidas paliativas são tomadas, com
outros desdobramentos. Por exemplo, em 31 de agosto de 1678, a Câmara
registra uma carta dirigida ao governador Roque da Costa Barreto. Nela, re­
corda-se que Barreto lhe passa despacho que ordena pagar a Infantaria com
sal, uma vez que algumas rações de farinha estão atrasadas. A Câmara contes­
ta-lhe a ordem, alegando que os “efeitos” mais imediatos que se têm para o
sustento da Infantaria são “[...] o líquido da pensão que paga o sal”. Com o
dinheiro dele, alega-se, a Câmara compra farinha com preço mais baixo às
“Vilas de Baixo”, Cairu, Camamu e Boipeba: “e o damos aos soldados pelo
mais alto, donde resulta o ganho de 100%”. A Câmara alega que, “dando em
sal e dinheiro” o pagamento, deixa de lucrar165. Citando o lucro, voltam os
oficiais ao tema do dinheiro da carta de 1675, afirmando ao governador que
esperam ordem para pagar-se à Câmara o dinheiro que “[...] Sua Alteza man­
da das de sua real Fazenda que se nos está doando, e com elas suprimos estes
atrasados”. Junta-se no discurso outro prejuízo à miséria dos “pobres solda­
dos”166. Quando pagos em sal, que não lhes serve de matar a fome, vendem-no
com muita perda: “[...] dando-se-lhe o alqueire a pataca o vendem por meia”.
Porém, dizem, se o governador ordena tal pagamento, deve fazê-lo por porta­
ria que os exima da responsabilidade: “[...] será necessário que conste que
não provam esta perda de nossa negligência e omissão senão de que Vossa
Senhoria assim o entendeu”167.

164. Carta de 30.1.1675, Cartas do Senado 1673-1684, vol. V, p. 22.


165. Carta de 31.8.1678, vol. V, p. 37.
166. Idem, ibidem.
167. Idcm,ibidem.

168

á
A M U R M U R A Ç À O DO CORTO M ÍST IC O

Em 30 de julho de 1681, a Câmara torna a escrever ao Príncipe sobre a


ordem de entregar o dinheiro que o sindicante Sampaio, referido na carta de
24 de novembro de 1673, deixa depositado. Lembrando outra carta de 1675
sobre o mesmo Sampaio, “[...] que não entregava os efeitos digo cobrava per­
tencentes a este Senado”168, afirmam os agentes que esperam do Príncipe a
ordem, uma vez que consta do encargo do tesoureiro entregar várias partidas
de dinheiro. Ocorre que, por ordem real, o desembargador José de Freitas
Serrão substitui Sebastião Cardoso de Sampaio. Indo para a Corte, Serrão
deixa “400 e tantos mil-réis” depositados com o tesoureiro Antônio de Azeve­
do Moreira, os quais pertencem ao sustento da Infantaria. Informam os agen­
tes que, pedindo a Câmara a quantia ao desembargador Bento de Barros Rosei­
ra, nomeado pelo governador Roque da Costa Barreto na forma de uma ordem
régia para acabar os negócios da Sindicatura, ele responde “[...] não ter ordem
para entregar dito dinheiro”169. Mais uma vez, assim, a Câmara representa a
sonegação junto ao Príncipe, pedindo-lhe mandar entregar o dinheiro “[...]
visto serem de efeitos pertencentes a este Senado e aplicado para a paga da
Infantaria”170.
A falta dos “efeitos” causada pela sonegação e pelos casuísmos soma-se o
não-pagamento das quantias tributadas. São extremamente comuns os re­
querimentos para que sejam cobradas. Por exemplo, o de 11 de dezembro de
1686, do capitão Baltasar Carvalho da Cunha, tesoureiro do Senado:

[...] O T e s o u r e i r o d e s t e S e n a d o B a l t a s a r C a r v a l h o d a C u n h a r e q u e r a v o s s a s m e r c ê s
m a n d em cobrar todas as p esso a s q u e d e v e m a este S en a d o o q u e é p e r te n c e n te ao s u s ­
tento da I n f a n ta r ia , e q u e lh e faça p a g a r o q u e o d ito S e n a d o d e v e e p a ra q u e se n ã o
p e r c a m a l g u n s d e s t e s e f e i t o s p e l a d i l a ç ã o c o m q u e h ã o c o m q u e m o s d e v e m [s ic ] 171.

Ou, ainda, em 27 de janeiro de 1687, quando os vereadores Domingos


Dias Machado e Miguel Gomes, mais o procurador Domingos Pires de
Carvalho, requerem aos Juizes do Ordinário “[...] que presentes estavam
que mandassem cobrar todas as dívidas pertencentes aos oficiais da Infan­
taria para assim lhe acudir com a ração ordinária em que se lhe costuma
dar”172.

168. Carta de 30.7.1681, Carias do Senado 1673-1684, vol. 2, p. 100.


169. Idem,ibidem.
170. Idem,ibidem.
171. “Termo de Vereaçào e Requerimento que fez o Tesoureiro o Capitão Baltasar Carvalho da Cunha
em 27.1.1687”, Atas da Câmara 1684-1700, vol. 6, p. 65.
172. Ata de 27.1.1687, Alas da Câmara 1684-1700, vol. 6, p. 73.

169
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Concorrem para o não-pagamento do tributo a baixa geral do açúcar e a


escassez da moeda, conforme se viu, além de outros fatores locais, como o
“sentimento geral” e o “escândalo” da população, que se recusa a pagar quan­
do vê a sonegação do dinheiro ou o desvio das farinhas. Carta de 25 de março
de 1688 para o procurador da Bahia na Corte, o capitão Manuel de Carvalho,
expõe-lhe que:

[...] d e p r e s e n t e n ã o c h e g a m o s e f e i t o s a p l i c a d o s a o s u s t e n t o d a d i t a I n f a n t a r i a , p e l a
d i m i n u i ç ã o c o m q u e se a r r e m a t a m , o q u e t a m b é m e x p e r i m e n t a a F a z e n d a R e a l, o c a s i o ­
n a d o d a p o u c a sa íd a d o açúcar, q u e é a total ru ín a d e s te E s ta d o , e n e s t e s te r m o s, n ão
p o d em os p ovos con sigo, q u an to m ais com novas co n trib u içõ e s, que certamente se hão de
fazer, se n o s n ã o a l i v i a r e m p a r t e d a c a r g a d a I n f a n t a r i a 173.

Em 20 de agosto de 1688, o juiz Ordinário, coronel Francisco Dias d’Avila,


requer que se executem todas as cobranças pertencentes à Infantaria para
assim se lhe não faltar com a ração ordinária a que são obrigados. Pede listas
das pessoas deventes para passar os mandatos das execuções. Os oficiais da
Câmara determinam, na ocasião, que, não pagando os devedores ou fiadores,
sejam presos na forma da lei174.
Em 23 de outubro de 1688, os soldados se rebelam. A Bahia acha-se asso­
lada do “mal da bicha”. Morre na mesma data o governador Matias da Cunha,
assumindo o cargo interinamente o arcebispo. Grande confusão e medo, pois
os soldados ameaçam entrar na Cidade e saqueá-la, especialmente as casas
dos oficiais da Câmara:

F o r a m o s s e u s c a b o s ao c a m p o a so s s e g á -lo s e r e d u z i- lo s , s e g u r a n d o - l h e s d a parte
d o g o v e r n a d o r e d o S e n a d o a p r o n t i d ã o d o s s o i d o s q u e se l h e d e v i a m , a f e a n d o - s e a q u e l e
m o t i m s e m p r e d e t e s t á v e l , e m a i s f e i o n a q u e l a o c a s i ã o d e t r â n s i t o m o r t a l e m q u e se
ach ava o seu g e n e r a l, m a s n ã o p u d e r a m p ersu a d i-lo s. A m e s m a d ilig ê n c ia fez o a rceb is­
p o e m u m a c o n c e r ta d a p rá tica , e a in d a q u e se m o d e r a r a m n o s e x c e s s o s q u e fa z ia m em
t o d a s a s p e s s o a s q u e c o m c a r g a s d a s fa z e n d a s v i z i n h a s p a s s a v a m p o r a q u e la estrada,
n ã o s e r e d u z i r a m , c o n t i n u a n d o n a m e s m a r e s o l u ç ã o 175.

Consegue-se, às pressas, juntar a quantia devida. Levada ao Campo do


Desterro, pagam-se os nove meses de soidos atrasados. Os soldados mantêm-

173. Carta de 25.3.1688, Carias do Senado 1684-1692, vol. 3, p. 75 (grifo meu).


174. Ala de 20.8.1688, vol. 6, p. 111.
175. Cf. Sebastião da Rocha Pita, op. cil., p. 201.

170

Á
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O M Í S T I C O

se armados, contudo, exigindo o perdão geral do governador Matias da Cunha,


que ainda vive, e do arcebispo, seu sucessor. O indulto é concedido e eles
entram na Cidade para assistir ao enterro do governador. São traídos, contudo.
Uma carta do novo governador, Antônio Luís Gonçalves da Câmara
Coutinho, ao Rei, datada de 16 de junho de 1691, depois de referir que mais de
trezentos soldados se rebelaram e que muitos se encontram foragidos no ser­
tão e que outros estão degredados para Angola e Pernambuco, pede ordem:

[•■■] S ó J o ã o d a S i l v e i r a d e M a g a l h ã e s [...] q u e e s t á n e s t a p r a ç a p o r o r d e m d e V o s s a
M a j e s t a d e t e n h o p r e s o n a e n x o v i a d e s t a C i d a d e , p o r q u e fo i c a b e ç a d e s t a a l t e r a ç ã o , e o
que d ava as r e s p o s ta s a o s C a b o s , q u a n d o o s iam red u zir, a n d a n d o c o m u m a e s p a d a e
rodilha c a p it a n e a n d o o s le v a n ta d o s , e ju n t a m e n te fez n esta C id a d e c o u s a s q u e n ã o são
p ara s e d i z e r e m p r e s e n ç a d e V o s s a M a j e s t a d e , e n e s t e p a r t i c u l a r p o d e r á V o s s a M a j e s t a ­
d e o r d e n a r - m e o q u e h e i d e f a z e r l7,\

A ordem régia é ditada em Lisboa, em 16 de fevereiro de 1692:

G o v e r n a d o r d o E s t a d o d o B r a sil. E u E l- R e i v o s e n v i o m u i t o sau d ar. Vi a v o s s a


carta e m q u e m e d a i s c o n t a d o q u e t í n h e i s o b r a d o c o m o s c u l p a d o s e m o m o t i m q u e
h ou ve n essa c id a d e n o s ú lt im o s d ia s da v id a d o G o v e r n a d o r M a t ia s da C u n h a c o q u e
vos p a r e c e u so b r e a m e s m a m a té r ia e m e c o n f o r m o c o m o q u e m e r e p r e s e n t a is ser m a i s
co n v en ien te a p ro v a n d o -v o s tu d o o que ten d e s obrado e m que p r o c e d e ste s c o m a p r u ­
dência e acerto q u e e u d e v ó s esperava. N o q u e resp eita a João d e M a g a lh ã e s q u e t e n d e s
preso p or ser c u l p a d o n o m e s m o m o t im . H e i p o r b e m q u e n a p r im e ir a e m b a r c a ç ã o q u e
p a r tir p a r a o R e i n o d e A n g o l a o m a n d e i s c o m c o m i n a ç ã o d e n ã o t o r n a r a e n t r a r e m
tem po a lg u m n essa c id a d e p or se co n sid er a r q u e n ão c o n v é m p assar-se a m a io r d e m o n s ­
tração p o r n ã o s e r a ú n i c a p e s s o a c o m q u e m s e faça e m u m d e lit o e m q u e h o u v e m u i t o s
c u l p a d o s , o q u e a s s i m e x e c u t a r e i s 177.
671

Controlado o motim dos soldados, o atraso dos pagamentos continua sen­


do praxe, porém, apesar do medo legível na enunciação de cartas imediata­
mente posteriores à sedição. Assim, por exemplo, em 2 de dezembro de 1688,
os agentes repisam o lugar-comum colonial do “ser hoje a despesa maior que
a receita”, avisando o Rei de que estão utilizando como empréstimo parte do

176. Cf. Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, “Carta para Sua Majestade sobre o Motim dos
Soldados desta Praça. Bahia 16.6.1691 ”, Livro de Carias que o senhor Antônio Luís Gonçalves da Câma­
ra Coutinho escreveu a Sua Majestade, sendo governador, e capitão geral do Estado do Brasil, desde o
princípio do seu governo até ofim dele (que foram as primeiras na frota que partia em 17 de julho do ano de
1691), Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
177. I. Accioli & Brás do Amaral, op. cit., vol. II, p. 247.

171
A SÁTIRA F- O E N G E N H O

donativo do dote de Paz de Holanda e do que se cobra para a construção do


cais de Viana:

[...] p a r a s e a c u d i r a s b o c a s d o s s o l d a d o s c o m a r a ç ã o o r d i n á r i a ; e a i n d a a s s i m s e n ã o
s a t i s f i z e r a m ; e p a r a s e l h e s c o n t i n u a r a s a t i s f a z e r o q u e se d e v e n o s p a r e c e m u i t o c o n v e ­
n ie n t e ao se r v iç o d e V ossa M a j e s t a d e trazer por o r d e m m u i t o ap e r ta d a o G o v e r n a d o r
q u e V o s s a M a j e s t a d e f o r s e r v i d o m a n d a r g o v e r n a r e s t a P r a ç a 1'*.

O novo governador deve, segundo os agentes, mandar cobrar executivamen­


te as pessoas devedoras dos “efeitos” da Infantaria e rendas da Câmara. A situa­
ção é tão grave em sua representação que pedem ao Rei que os “efeitos” sejam
excetuados da mercê de não se “[...] desfabricarem as fazendas e engenhos”1'9.
Todos devem pagar, enfim, sem exceções; o que não se dá, bastando lembrar aqui
a ordem-régia de 23 de setembro de 1692, que determina que Câmara Coutinho
apure queixas da Câmara contra o desembargador Cristóvão de Burgos, os pa­
dres da Companhia de Jesus, os artilheiros e bombardeiros, que se recusam a
pagar alegando privilégios e conseguindo sentenças favoráveis da Relação. Cris­
tóvão de Burgos é isentado de pagar as taxas de aguardente que destila em seus
alambiques. Quanto aos jesuítas, não se contentam com as 25 pipas de vinho que
recebem grátis mensalmente, e passam a exigir todas as pipas que seu reitor jul­
ga necessárias para o consumo mensal do Colégio e dos aldeamentos anexos. A
ordem régia evidencia também que é comum o expediente do alistamento como
artilheiro ou bombardeiro para isentar-se das contribuições e fintas, segundo
antigo privilégio180. A “população”, genericamente referida, também se esquiva
ao pagamento, segundo a Câmara, lançando mão de vários expedientes. Por isso,
ainda em 4 de dezembro de 1688, os oficiais pedem ao tesoureiro Antônio de
Azevedo Moreira um empréstimo de 5 mil cruzados para pagar a Infantaria “[...]
por se arrecear que fizessem algum levantamento”181. O levantamento temido é
efeito não só de andarem os soldados descalços e sem fardamento, ou do atraso
dos soidos, mas também da fome.
Anualmente, os oficiais da Câmara de Salvador reúnem-se com os procu­
radores das “Vilas de Baixo”, Camamu, Cairu e Boipeba, para fazerem o con­
chavo das farinhas de mandioca fornecidas aos soldados da Infantaria em
substituição do pão. Uma ata de 3 de outubro de 1687 relata o procedimento:

178. Carta de 2.12.1688, C a r i a s d o S e n a d o 1684-1692, vol. 3, p. 80.


179. Idem, ibidem.
180. I. Accioli & B. Amaral, o p . c i l . , vol. II, p. 254.
181. Ata de 4.12.1688, Alas da C â m a r a 1 6 8 4 - 1 700, vol. 6, p . 116.

172

A
A A1URM URAÇA0 DO CORPO M ÍST IC O

[...] s e a j u s t o u c o m o p r o c u r a d o r d a v i l a d o C a m a m u o L i c e n c i a d o V a r j ã o q u e d e v i a d i t a
v i l a 5 0 0 0 s í r i o s d e f a r i n h a [...] c o m a m e d i d a d e s e t e q u a r t a s d a m e d i d a d e s t a C i d a d e
q u e são 2 a lq u e ir e s da d ita v ila , a p r e ç o d e 3 2 0 réis e m e i o to stã o d e frete q u e ao to d o faz
3 7 0 r é i s v i n d a p o r c o n t a e r i s c o d e s t e S e n a d o d a C â m a r a [...] C a i r u [...] c a d a a n o 2 2 5 0
s í r io s d e f a r i n h a q u e s ã o o s m e s m o s d o a n o p a s s a d o p e l o p r e ç o d e 3 2 0 r e i s e 2 v i n t é n s d e
f r e t e q u e a o t o d o f a z 3 6 0 r é i s 1*2.

Outra ata, de 28 de fevereiro de 1693, relata o modo como a farinha é distri­


buída. Lê-se nela que os oficiais da Câmara determinam que o procurador re­
parta a farinha pelos soldados na forma do assento feito pelo Senado com o go­
vernador Conde de Castelo Melhor: “[...] 9 tostões e três quartos de farinha por
mês”182183. Os agentes do documento não querem que o procurador seja substituí­
do por outro porque “[...] passando a outra pessoa é sem dúvida certo não dar a
grande sobra que costumam dar os procuradores que servem com zelo [...] e faltando
são necessários mais de 200 mil-réis cada ano para se ajustar a Infantaria e pou­
pam estes porquanto se lhe ajusta com dita sobra”184. Ou seja: o procurador dis­
tribui menos que o necessário para os soldados, não ficando explícito se outros
que não ele desviam a farinha ou a dão na quantidade adequada. A Câmara de­
termina, no caso, que o procurador Jacinto de Guisenrode continue com a obri­
gação de recebere distribuira farinha na forma dos procuradores anteriores, não
aceitando seu requerimento “[...] que fazia de se livrar da moléstia e enfado de
repartir a farinha”185. Segundo a Câmara, distribuir farinha não diminui “[...] a
qualidade da pessoa” e, o que é muito elucidativo sobre a natureza do negócio,
“[...] de tal recebimento da farinha se dava conta a ministro algum, salvo por
ordem expressa de Sua Majestade, e somente para clareza se dava de uns a ou­
tros oficiais no que se mostrava claramente serem estes efeitos de muito diferente
qualidade e natureza”186. Facilmente se conclui do documento que a farinha pode
ser e é desviada, uma vez que seu distribuidor não presta contas a ninguém. Na
mesma ata se arquiva o que diz Guisenrode na sessão em que requer a dispensa:
“[...] somente a consideração de fazer o tal serviço o fazia aceitar sem reparar o
grande trabalho e maior moléstia que se tinha com os Sargentos e infantaria desta
Praça [...] e por evitar as queixas da infantaria”187- o que também é índice das
reivindicações e do descontentamento dos soldados.

182. Ata de 3.10.1687, vol. 6, pp. 94-95.


183. Ata de 28.2.1693, vol. 6, p. 214.
184. Idem, p. 215 (grifos meus).
185. Idem, p. 215.
186. Idem, ibidem (grifos meus).
187. Idem, ibidem.

173
A SÁTI RA H O E N G E N H O

A variação das medidas dos sírios, os danos sofridos por eles no transpor­
te, a desonestidade dos produtores, a conivência do governador ficam razoa­
velmente explicitados em outro requerimento de Jacinto de Guisenrode, em
1“ de agosto de 1693. Nele, o procurador da Câmara alega que está a seu cargo
o recebimento das farinhas dos conchavos que o Senado faz com as “Vilas de
Baixo” para o sustento dos soldados da Cidade. Guisenrode acusa a “conheci­
da falsidade” da medida dos sírios, atribuindo-lhe várias razões. No seu en­
tender, uma delas é não trazerem os ditos sírios uma divisão por onde se reco­
nheçam os pertencentes à Infantaria. Como o Senado paga 320 réis as vilas
referidas e como, na falta da farinha, quem a manda buscar “[...] paga 800 e
900 réis, os produtores diminuem a quantidade dos sírios da Câmara devido
ao aumento de seu valor quando os vendem a outros. Devendo ser de oito,
saem os sírios de Camamu, Cairu e Boipeba com sete medidas, “havendo-se a
respeito a ruptura da palha e avarias do mar e descuido no embarcar responsá­
reis pelas 7 medidas sempre perfeitas que o suplicante constata”188. Constata com
ironia, evidentemente, não se sabe se de Guisenrode ou do escrivão da Câma­
ra que a atribui a ele.
Guisenrode também relata, em seu requerimento, que dá parte da falsifi­
cação ao governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, falando-
lhe da falta das farinhas para o sustento da Infantaria. Segundo o documento,
o governador “[...] ordenou ao suplicante que as não registrasse ainda que viesse
com qualquer falta $onhecida”m . Não há indícios de envolvimento do governa­
dor no desvio das farinhas e o procurador Jacinto de Guisenrode aparece ho­
nesto nos documentos:

[...] e como os ditos sírios recebe o suplicante por 6 quartas e só acha trazerem 5 quartas
e pouco mais e isto prejudicar ao seu crédito [...] e como a este Senado toca o resolver
este incidente em ordem as contas que de futuro está o suplicante para dar do dito
recebimento requer o suplicante a este Senado para determinar o que deve o suplicante
haver sobre o recebimento da dita farinha falsificada1"".

A Câmara dirige-se ao governador, dando-lhe conta e pedindo-lhe provi­


dências, uma vez que o Senado não tem j urisdição sobre os moradores das “Vi­
las de Baixo”. A margem esquerda do documento, lê-se, anotado pelo escrivão:18

1S8. “Requerimento que fez o Procurador e Juiz do Povo e mesteres ao diante assinados sobre digo do
Procurador Jacinto de Guisenrode”, dias da Câmara I6S4-1700, vol. 6, p. 224 (grifes meus).
189. [dem, ibidem (grifo meu).
190. Idem, ibidem.

174

i
A M U R M U R A Ç À O D O C O R P O MÍ S T I C O

[...] d e f e r i u o S e n h o r G o v e r n a d o r p o r c a r t a s u a d e 2 2 d o c o r r e n t e [...] C o m o s e m p r e f o i
e s t i l o c o m c o m i n a ç ã o d e se t o m a r p o r p e r d i d o s t o d o s o s s í r i o s q u e s e a c h a r a m d e f e i t u o ­
sos o u s e ja m d a c o n t a d o c o n c h a v o o u para se v e n d e r ao p o v o a m e t a d e p a r a o p r e s í d i o
e a o u t r a p a r a o d e n u n c i a d o r d i t a c a r t a e s t á n o c a r t ó r i o 191.

Assim, os discursos dos oficiais da Câmara em atas e cartas recortam-se


em um espaço móvel de intervenções, temas e posicionamentos, no qual o
fundamento mercantil é o principal ordenador das trocas discursivas, segun­
do temas particularizados na ocorrência: produção do açúcar, exportação, baixa
de preços e prejuízos; importação de gêneros e preços monopolistas; impos­
tos e murmuração do “povo”; controle dos escravos e das classes mecânicas;
falsificação de gêneros e corrupção administrativa; falta de moeda e desesta-
bilização hierárquica; temor das pestes e urgência da mão-de-obra escrava;
descapitalização senhorial e crédito; autoridade dos oficiais da Câmara em
conflitos com magistrados da Relação, com eclesiásticos, com o governador;
imaginário fidalgo, reclusão social das mulheres solteiras e lucro mercantil,
enfim.
O “povo”, termo genérico nas Cartas e Atas, aparece diferencialmente
conforme a intervenção: fidalgos e foros falsos; clero e privilégios; mercado­
res e monopólio; ourives e fundição de metais; soldados ociosos e rebeliões;
escravos e doenças; mendigos e esmolas etc. Cada grupo de interesse, ordem
e indivíduos são, por sua vez, particularizados na ocorrência: pseudofidalgo
vindo de Lisboa com foro falso e apadrinhamento; certo magistrado da Rela­
ção; padres da Companhia de Jesus; freiras do Convento de Santa Clara do
Desterro; capuchinhos franceses; negociantes de vinhos, mercadores de açú­
car, financiadores do crédito; ourives que transformam a prata em baixelas;
mulatos e negros forros do Terço da Infantaria ou comerciantes de carnes192;
distribuidores de farinhas; governadores, conflitos e negócios de clãs ou pes­
soas particulares etc.

Discursos paralelos que efetuam temas comuns como designado, o da


Câmara e o da sátira interceptam-se, conforme se escreveu. Fazem-no dife-

191. [dem, pp, 224-225.


192. Muitas atas da Câmara de Salvador registram determinações baixadas pelos vereadores de que a
carne seja exposta pendurada para que o sangue escorra todo e não pese; açougueiros mulatos insis­
tem em expõ-la amontoada, contudo. As atas registram, neste sentido, intervenções dos juizes do
Povo contra eles, afirmando “porque são inimigos do Povo” como justificativas das medidas. Em
fins do século XVII, a Câmara chega a baixar ordens que proíbem a permanência dos mulatos
dentro do termo da Cidade.

175
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

rencialmente, contudo, pois ao posicionamento basicamente unívoco da Câ­


mara quanto aos temas opõe-se a abertura das posições encenadas na sátira.
Apersona satírica é, como diz a voz etimológica, vazia: convenção retóri­
ca, é um ator móvel que pode ser investido por posições institucionais que
asseguram, em cada ocorrência, o efeito de unidade virtuosa e contrastiva do
eu discursivo, bem como a possibilidade de sua mudança quando efetuado
em outras posições, segundo outros registros. Estes misturam-se nos poemas,
afastam-se, tornam a aproximar-se, traduzem-se uns pelos outros, sendo o caso
desenvolvido que unifica, no poema particular, os múltiplos valores que o
referencial discursivo que o preenche assume na posição institucional drama­
tizada, interpretando-se para o destinatário. Seja, por exemplo, o tema do
“mulato”: preceituário ético, pelo qual o “mulato” é aristotelicamente mau,
porque misturado; regulamentação jurídica, pela qual se classifica na “gente
baixa”, quando livre, e fora do corpo político, quando escravo; troca sexual, na
qual é “puta” e “animal”; fundamentação teológica, pela qual é naturalmente
escravo; classificação hierárquica, no fim do fim, abaixo dos brancos mais bai­
xos; pragmática de precedência, traje, formas de tratamento, pela qual é “atrevi­
do”, “vão”, “arrogante”, “desavergonhado”; referência letrada, na qual é “ladino”
ou “boçal”; transação econômica, pela qual é peça e mercadoria; ortodoxia cató­
lica, pela qual é “gentio” ou “herege”, “feiticeiro” dado ao calundu, ao sexo
nefando, a Satanás etc.
Um termo como “mulato”, assim, condensa uma hierarquia de níveis
efetuados na sátira segundo o relevo e o direcionamento dados a eles pela
persona satírica no poema particular. Tem por correlato não um indivíduo
empírico supostamente refletido ou dado na sátira, mas o campo institucional
em que o termo ocorre, segundo registros diversos, definindo um dever, uma
transgressão, um evento, um caráter, um tipo. Por isso, um termo como “mu­
lato” ocorre na sátira para referir tanto o branco quanto o não-branco, como
dramatização dos valores institucionais condensados nele. Por isso, ainda, o
tema dos poemas não é copiado diretamente da vida cotidiana, mas liga-se
sistemicamente a temas de outros discursos contemporâneos que se intertra-
duzem produzindo o evento e variantes dele para destinatários compostos
como cientes dos mesmos valores. Tal interpretação encontra-se em atas e
cartas como princípio ordenador e limite: além de temas, elas permitem esta­
belecer padrões de auto-representação de um grupo enquanto constitui o que
aí se dá como seu outro, segundo a hierarquia.
Da mesma maneira que o “bacalhau”, nas Cartas do Senado da Câmara, o
valor semântico de enunciados em que o termo “mulato” ocorre é condicio­
nado pelo valor particular que o enunciado assume em discursos éticos, jurí-

176

J
A A lU R M U R A Ç A O DO C ORPO M ÍS T IC O

dicos, sexuais, teológicos, econômicos, hierárquicos etc. O valor semântico da


informação refrata-se, uma vez que a sátira que a enuncia subordina o enun­
ciado à posição que a persona encena - no caso do “mulato”, por exemplo,
indignação e desprezo próprios dos “melhores”, “brancos” por definição.
Refrata-se, principalmente, porque o enunciado é justaposto a outro, para
compor mistos em que ocorrem enunciados de outros registros, como mescla
de valores raciais, religiosos, morais, econômicos, políticos etc.
Por isso, ainda, seria ingenuamente esquemático postular a empiria, pro­
pondo-se um nexo mimético imediato, sem mediação do artifício poético,
entre “farinha” (e “açúcar”, “moeda”, “soldados”, “padres”, “governadores”,
“mulatos”, “senhores” etc.) e “sátira”: tal nexo é redutor, pois a sátira não é
segunda em relação às farinhas e outros: seu discurso é tão real quanto elas,
constituindo de maneira muito ativa, como prática, a mesma realidade de
que faz parte e que acusa. A falsificação das farinhas e o atraso dos pagamen­
tos dos soldados, contudo, são condições materiais da produção dos discursos
locais que a sátira encena. Não determinam a significação da sátira de modo
unívoco, evidentemente, uma vez que ela é mista e genérica, pois opera com
tipos. São condições, porém, para especificar outras posições hierárquicas no
referencial local, donde a pertinência da análise das cartas e atas.
A univocidade das cartas, representada na posição do sujeito coletivo
“Câmara”, encontra-se disseminada nas posições da persona satírica. A sátira,
já se repetiu bastante, é retoricamente mista e esta sua inclusividade a dife­
rencia dos outros discursos, fazendo-a extremamente plástica, apta para mol­
dar um tema segundo outras posições discursivas diferenciadas. É o que se
dá, por exemplo, na dramatização do tema da “fome”:

1. T o d a a c i d a d e d e r r o t a
e s ta f o m e u n i v e r s a l ,
un s dão a c u lp a total
à C â m a r a , o u t r o s à fr ota:
a f r o ta t u d o a b a r r o t a
dentro d o s e s c o tilh õ e s
a carne, o p e ix e , os feijões,
e se a C â m a r a o l h a , e ri
p o r q u e a n d a fa r ta a t é a q u i ,
é c o u s a , q u e m e n ã o to ca:
Ponto em boca.

2. S e d i z e m , q u e o M a r i n h e i r o
nos p reced e a toda a L e i,
p o r q u e é s e r v i ç o d ’E l - R e i ,

177
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

c o n c e d o , q u e esta p rim eiro:


m a s t e n h o p o r m a is in te ir o
o c o n se lh o , q u e reparte
c o m ig u a l m ã o , ig u a l arte
p o r t o d o s , j a n t a r , e c e ia :
m a s frota c o m trip a c h e ia ,
e p o v o c o m p a n ç a oca !
P o n to em boca.

3. A f o m e n t e t e m já m u d o ,
q u e é m u d a a boca esfaim ad a;
m a s se a frota n ã o traz n a d a ,
p o r q u e razão leva tud o?
q u e o P ovo por ser sisu d o
la r g u e o o u r o , e la r g u e a prata
a u m a frota p a ta r a ta ,
q u e e n t r a n d o c o ’a v e l a c h e i a ,
o la str o q u e traz d e areia,
p o r l a s t r o d e a ç ú c a r tr o c a !
P o n to em boca.

(O C , II, pp. 4 3 5 -4 3 6 .)

Submetidos à interpretação econômica da enunciação, os enunciados têm


função referencial e avaliativa, mimética e judicativa: representam a fome da
Cidade e simultaneamente a interpretam como indigna. A informação eco­
nômica visa a obter a adesão do destinatário porque a persona afirma sentir
naquilo que informa. No caso, principalmente, porque articula a adesão a
uma medida superior, hierárquica, que venha corrigir o que critica. Apropriado
em Góngora, o refrão “Ponto em boca”, neste contexto discursivo, avalia e
explicita o limite da voz satírica, sendo reproposto por ela como função irôni­
ca de auto-imposição de silêncio. A enunciação diagrama, assim, vários pon­
tos da hierarquia, pelo menos três: teatraliza em sua dicção a fome da Cidade,
que murmura indignada através dela; representa a posição da Câmara como
suspeita ou omissa e, de qualquer modo, como diversa da posição do povo,
pois “olha, e ri”; produz, na troca sarcástica de areia por açúcar, a posição da
frota. Operando uma divisão de vozes, que opõe “boca esfaimada”, “Câmara
farta até aqui” e “frota com tripa cheia”, alegoriza posições conflitantes. Por
exemplo, pela identificação emotiva da persona com o povo, condensa-se no
governador a crítica à Câmara e à frota, numa denegação irônica que diz não
culpá-lo, não lhe pondo “alguma culpa”:

178

ã
A M U R M U R A Ç À O DO CORPO M ÍS T IC O

5. Eles tanto em seu abrigo,


e o povo todo faminto,
ele chora, e eu não minto,
se chorando vo-lo digo:
tem-me cortado o embigo
este nosso General,
por isso de tanto mal
lhe não ponho alguma culpa;
mas se merece desculpa
o respeito, a que provoca,
Ponto em boca.
(OC, II, p. 436.)

Quem é, pois, o destinatário da sátira? Supostamente, toda a população


esfaimada com que a persona se identifica no pranto, na medida mesma em
que, na sociedade portuguesa do século XVII, o “público” é justamente a esfe­
ra do “bem comum”. Indiretamente, porém, é a mesma Câmara e o governa­
dor, constituídos como cabeças irresponsáveis donde uma medida deveria vir
para sanar a carência dos membros do corpo político. Não vem, e a Câmara,
ironicamente elevada no início da estrofe, é rebaixada pela tradução do mau
alimento, que a persona diz ser fornecido por ela, em “cristéis”, num gesto
obsceno que penetra as cabeças mandantes bem embaixo:

6. Com justiça pois me torno


à Câmara Nó Senhora
que pois me trespassa agora,
agora leve o retorno:
praza a Deus, que o caldo morno,
que a mim fazem cear
de má vaca no jantar
por falia do bom pescado
lhe seja em cristéis lançado;
mas se a saúde lhe toca:
Ponto em boca.
(OC, II, p. 437.)

Na sua isenção irônica - “é cousa, que me não toca: / Ponto em boca” a


persona denuncia aquilo que, nas cartas, é pretextado pela Câmara, o descon­
tentamento popular. Como intervenção que também postula o bem comum
da República pela correção de seus vícios, a sátira explicita os limites do bem

179
A SÁ T IR A E O E N G EN H O

comum alegado pela Câmara nas cartas e atas. Por exemplo, quando a fari­
nha, que não entra na boca dos soldados, sai, espalhando-se como murmura-
ção, ingrediente de misturas que diagramam posições e interesses em jogo:

Q u e m f a z o s s í r i o s m e s q u i n h o s ? .................. M c i r i n h o s
Q u e m f a z a s f a r i n h a s t a r d a s ? ......................... G u a r d a s
Q u e m a s t e m n o s a p o s e n t o s ? ......................... S a r g e n t o s .
O s s í r i o s lá v ê m a o s c e n t o s ,
e a terra fica e s f a i m a n d o ,
p orq u e os vão atravessando
M e ir in h o s, G u ard as, Sargentos.

A C â m a r a n ã o a c o d e ? ............................................. N ã o p o d e
P o i s n ã o t e m t o d o o p o d e r ? ............................. N ã o q u e r
É q u e o g o v e r n o a c o n v e n c e ? ...........................N ã o v e n c e .
Q u e m h a v e r á q u e tal p e n s e ,
q u e u m a C â m a r a tão n ob re
p or ver-se m ísera , c p ob re
N ã o p o d e, n ão quer, n ão vence.

( O C , I, P P . 3 2 - 3 4 . )

A crítica à Câmara, representante da Cidade junto ao Rei, não pode ser


generalizada como crítica protonacionalista ao Rei e defesa liberal do povo,
contudo: “[...] porque é serviço d’El-Rei, / concedo, que está primeiro” (OC,
II, p. 435). A generalização - que a sátira à frota admite - é desmentida no
mesmo poema e por inúmeros outros, que encenam as virtudes políticas da
mesma ordem corporificada na pessoa do Rei, volta e meia convocado como
soberania curadora de outras partes corruptas do corpo místico. A voz “povo”
que fala na sátira tem de ser matizada, enfim, pois não há oposição contra o
poder constituído193: a sátira corrige o abuso para propor o uso ou a ordem
preestabelecidos no pacto de sujeição.

193. A população do século XVII, tanto cm Portugal quanto na Bahia, não demonstra interesse em mu­
dar a ordem do Amigo Regime. Reivindicações existem, contudo, c são pela melhoria de posição
nos quadros do sistema, sendo a fidalguia o alvo de todos. Nesta linha, rebeliões como a do Porto,
em 1661, ou a do sal, na Bahia, em 1711, são feitas em geral contra o cobrador de impostos, contra
o imposto, não contra a ordem que o impõe. Desta maneira, muitas vezes membros da população
propõem medidas que, em nome do bem comum, terminam por prejudicar a mesma população e
favorecer os interesses senhoriais. Por exemplo, em 11 de agosto de 1646, o juiz do Povo Alves
Camanho, apoiado dos mesteres Antônio Manuel da Fonseca e Domingos Gonçalves, propõe a

180
A M U K MU K A Ç Ã O DO C O R P O M Í S T I C O

Por isso mesmo, outras posições críticas do “povo” ou contrárias a ele são
legíveis:

[...] este povo c tão ruim,


tão jocoso, e tão burlesco.
(OC, IV, p. 898.)

[...] tanto mecânico vil


que na ordent mercantil
são criados dos criados!
(OC, IV, p. 907.)

G u a rd a i-v o s, Israelita,
que se me chega a mostarda,
talvez que a casa vos arda,
porque é casa de mesquita.
(OC, III, p. 739.)

proibição de fabricar aguardente, e vinho de mel (cachaça), alegando que a bebida, popularíssima,
é “muito ao bem comum e que não servia mais que de grande escândalo”. A jcribha ou aguardente,
principalmente quando bebida por escravos, é causa dos excessos que perturbam a Cidade. A medi­
da provoca o descontentamento dos senhores de engenho fabricantes, que interpõem recurso con­
tra a Câmara, justificando a fabricação. Os comerciantes de vinho, por sua vez, apoiam a medida,
pois têm grande quantidade dele armazenada c pensam vendê-la com lucro quando as outras bebi­
das forem proibidas. Sempre interessada nas taxas, a Coroa apóia a decisão da Câmara, com a
condição de que os comerciantes de vinho paguem ao Tesouro Real os 6 mil cruzados anuais da
taxação da aguardente. Para tazê-lo, os comerciantes seguem a indicação metropolitana de lançar a
taxa em outros gêneros, e taxam com mais 400 réis cada barril de azeite importado. A população,
que não bebe a aguardente, supondo-se a eficácia das medidas proibitivas, passa a pagar o dobro
pelo azeite. O episódio é esclarecedor de posições conflitivas: o juiz do Povo proíbe a bebida em
nome do bem comum e ainda consegue sobretaxa do azeite, além de favorecer duplamente os co­
merciantes de vinho. Se existe, no caso, oposição contra os senhores de engenho, não fica claro. De
qualquer maneira, são atingidos em seus negócios. Cf. Affonso Ruy,op. aí., pp. 179 e ss. Uma carta
de 14.8.1671 retoma a bebida, afirmando que com ela se enriquecem os poderosos e enfraquecem os
pequenos. A Câmara então representa ao Governo “o dano que se seguia de uns a fazerem e outros
não”. Os senhores de engenho se recusam a dar o preço de seus alambiques ao contratador e, embo­
ra proíbam a bebida aos escravos, “porque os ditos Escravos do que é remédio, fazem vício”, conti­
nuam a fabricação. Como oticialmente os engenhos não fabricam, também não pagam impostos
sobre a aguardente: a população passa a arcar com os impostos para o sustento da Infantaria
acantonada na Cidade (o contrato da fabricação de aguardente fora aplicado para seu sustento). Os
senhores têm “um estanco irremediável da dita bebida”, afirma-se na carta. Já em carta de 31.5.1652,
o procurador da Câmara João de Góis escreve que, ames do estabelecimento da Companhia Geral
do Comércio, quando a aguardente era livre, Salvador contava com mais de duzentas tavernas e
“agora somente há cerca de vinte”. O que, a acreditar na notícia, faz a Bahia mais sisuda, bem
menos espirituosa. Cf. Carta de 14.8.1671, vol. 1, pp. 106-107; Carta de 31.5.1652, vol. 1, p. 9.

181
A SÁ T IR A E O E N G E N H O

É pardo rajado em preto,


ou preto embutido em pardo,
malhado, ou já malhadiço
do tempo em que fora escravo.
(OC, II, p. 458.)

Dramatizando o referencial de um conflito de poderes em que se opõem


Juizes Ordinários locais, representantes de senhores de engenho, e Juizes
do Tribunal da Relação, representantes do poder metropolitano envolvidos
nas relações locais de parentesco e favor, a sátira concentra-se contra os da
Relação, como no poema dirigido ao Ouvidor Geral do Crime, quando se
embarca para Lisboa194, ou os que referem o desembargador Pedro Unhão
de Castelo Branco e Antônio Roiz da Costa, o “Doutor Gilvaz” ou “Cutila-
da”. A “molesta” e “inútil assistência” da Relação, como a define a Câmara,
é similar ao entendimento efetuado na sátira, que afirma que a justiça não
é “de graça distribuída”, mas “bastarda”, “vendida”, aplicando à desqua-
lificação os critérios do Direito Canônico encenado na posição avaliativa
dapersona satírica:

E que justiça a resguarda?.............Bastarda


É grátis distribuída?...................... Vendida
Que tem, que a todos assusta?...... Injusta.
Valha-nos Deus, o que custa,
o que El-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.
(OC, I, p. 32.)

É equivocado, contudo, postulá-lo tão univocamente, pois a sátira tam­


bém se faz contra Juizes Ordinários, que são desqualificados como maus le­
trados ignorantes do Direito, enquanto a sátira prescreve como excelência a
formação ministrada em Coimbra, que é a dos Juizes da Relação, oposta à
formação local do Colégio dos jesuítas:

1 9 4 . L e i a - s e o s o n e t o d i r i g i d o a o o u v i d o r g e r a l d o C r i m e : “ L o b o c e r v a l , f a n t a s m a p e c a d o r a , / A lim á r ia
c r i s t ã , s a l v a g e h u m a n a , / Q u e e r a s c o m v a r a p e s c a d o r d e c a n a , / Q u a n d o d e v i a s s e r b u r r o d e n o ra .
/ L e v e - t e B e r s a b u , v a i - t e e m m á h o r a , / L e v a n t a já d a q u i f a t o , e c a b a n a , / E n ã o p a r e s s e n ã o n a
T r a p o b a n a ,/ O u n o c e n tr o d a L íb ia a b ra s a d o ra . / P a rta -te u m r a io , q u e im e - te u m c o ris c o / N a ca m a
e s t e j a s t u , s e j a n a r u a , / S e p u l t u r a t e d ê e m m o n t e s d e c i s c o . / E t o d a a q u e l a c o u s a , q u e f o r tu a /
C o r r a s e m p r e c o n t i g o o m e s m o r i s c o , / O s a lv a g e c r i s t ã , ó b e s t a c r u a ” ( O C , II, p . 4 1 5 ) .

182

i
A A1URM URAÇÃ0 DO CORPO M ÍST IC O

Vós graduado a borrões


em uma universidade
que fundou nesta cidade
o braço dos asneirões:
fazeis tais alegações
nas lides, causas, e pleitos,
que vos dão alguns sujeitos,
que afirmam letrados velhos
fedem os vossos conselhos
tanto, como vossos feitos.
[...]
Não vos culpo, asno barbado,
senão a esta simples gente,
que de um tão mau requerente
quer formar um bom letrado.
(OC, III, pp. 734-735.)

Da mesma forma, encena-se a desqualificação do “asno barbado” com


trocadilhos - por exemplo, alegando-se autoridade no ensino do Direito na
Península Ibérica e no curso de Cânones de Coimbra:

[...] um Bártolo pareceis


não sendo senão Bartolo.
(OC, III, p. 735.)

Ou, ainda:

O Bártolo de improviso,
o subitâneo Licurgo,
que anoitece um sabe nada,
e amanhece um sabe tudo.
(OC, II, p. 279.)

O tema dos fidalgos com foros falsos, comum nas demandas dos senhores
locais, também se encontra encenado genericamente na sátira, interpretando-se
a posição satírica segundo os topoi do “dinheiro”, da “origem” e da “ocupação”:

Que se despache um caixeiro


criado na mercancia
com foro de fidalguia
sem nobreza de Escudeiro!

183
A SÁ T IR A E 0 E N G E N H O

e que a poder de dinheiro,


e papéis falsificados
se vejam entronizados
lanio mecânico vil,
que na ordem mercantil
são criados dos criados!
( O C , I V , p. 9 0 7 . )

Particularizando-se contra Pedralves da Neiva, fidalgo “obreptício e


subreptício”, a sátira o compõe na oposição discreto/vulgo, generalizando o
ataque para outros senhores locais, fidalgos, traduzidos como vulgo nas tópi­
cas do “dinheiro”, “ofício mecânico”, “heresia” e “bastardia”:

Quem quer ser bem despachado


a seu Rei serviços faz,
a vida entre as balas traz
como valente soldado:
mas por serviço comprado,
com as premissas a pares,
ou mentiras como os mares
faz ser caso lastimoso,
que, o que deu honra a um Barroso,
o merecesse um Cazares.
Quando hábito se traz
co dinheiro poderoso,
torne outra vez o Barroso,
e venha o Doutor Gilvaz195:
também nesta conta jaz
Fuão Maciel Teixeira,
Manuel Dias Filgueira,
o Marruás do sertão,
e o Lobato patifão
marido da confeiteira.
Também vai a Escudeiro
Marinículas da praia196,

195. “ D o u t o r C iilv a z " c o a p e l i d o q u e a s á t i r a a p l i c a a o d o u t o r A n t ô n i o R o d r i g u e s ( o u R o i z ) d a C o s ta ,


C a v a le iro d o H á b ito d e C r is to : “ D a q u i a g e n te m a lv a d a / v e n d o -v o s n a c a r a u m z á s, / n ã o c u id a ,
mas c u i d a ,
q u e fo i g ilv a z , / q u e fo i c o r n a d a ” (O C , III, p. 717). Em o u t r a s á tir a , G ilv a z é “ C u tila d a ”
(O C , III, p. 725).
196. A s á t i r a r e m e te a o u t r a s , e f e t u a n d o u m s is te m a d e r e f e r ê n c ia s in t e r n a s . C f ., p o r e x e m p lo :
“ M a r in í c u la s to d o s o s d ia s / o v e io n a s e g e p a s s a r p o r a q u i / c a v a lh e ir o d e tã o lin d a s p a r t e s / co m o

v e r b i g r a tia L o n d r e s , e P a r is ” (O C , VII, p . 1 6 6 2 ).

184
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R PO M ÍS T IC O

porque para isso sc ensaia


a fiúza do dinheiro197:
por direito um canastreiro
é homenzarrão de chapa,
mas a cruz, que anda em tal capa,
o faz com maior desonra
sambenitado da honra
porque não c cruz, é aspa.
(OC, IV, p. 908.)

A sátira também teatraliza uma prática rotineira, segundo as cartas, que


propõem a ida do coronel Gonçalo Ravasco Cavalcante e Albuquerque para
Lisboa. Apersona irônica depõe a indignação e faz-se jocosa, desdenhosamente
amável, ao figurar códigos cortesãos de discrição e a sua afetação vulgar que
esperam o viajante na Corte:

Mas vos heis de ir a Lisboa


apesar do vilão ruim,
El-Rei vos há de fazer
com mil mercês honras mil.
Os cavalheiros da Corte
Trazendo-vos junto a si,
vos hão de dar como uns doudos
piparotes no nariz.
E como vós sois doente
de fidalgos frenesis,
por ficar enfidalgado
toda a mofa heis de rustir.
O que trareis de vestidos!
uns assim, outros assim:

197. M u i t o r i c o s e i n f l u e n t e s , o s s e n h o r e s d e e n g e n h o n ã o s e i n t e r e s s a m p e l a s l e t r a s . A l é m d e b a r r a d o
p e l a c e n s u r a m e t r o p o l i t a n a , o li v r o n ã o é u m a n e c e s s i d a d e . S t u a r t B. S c h w a r t z r e f e r e u m a e x c e ç ã o ,
q u e c o m p a re c e c ila d a n a s á tira c o m o p e rs o n a g e m p s e u d o d is c re ta e p s e u d o fid a lg a , a d e J o ã o L o p e s
F iú z a , p o r tu g u ê s c h e g a d o a S a lv a d o r e m 1 6 9 0 e a í e s ta b e le c id o c o m o s e n h o r d e e n g e n h o e h o m e m
in f lu e n te . F iú z a é d o s h o m e n s m a is ric o s d o B ra s il c o lo n ia l. Q u a n d o m o r r e , e m 1 7 4 1 , d e ix a u m a
b ib lio te c a d e c e rc a d e c in q ü e n ta v o lu m e s e m la tim , e s p a n h o l e p o r tu g u ê s , e m q u e s e a l in h a m C íc e ro ,
V ir g í l i o , C e r v a n t e s , L o p e d e V e g a , S á d e M i r a n d a , F r a n c i s c o M a n u e l d e M e l o , e n t r e o u t r o s . C f .
S tu a r t B. S c h w a rtz , Burocracia..., op. cil., p . 28 7 . O b s e rv e -s e q u e , c o m p o n d o o tip o d o p s e u d o f íd a lg o ,
a s á tir a fa z r e f e r ê n c ia a F iú z a , m u i to ir o n ic a m e n te , tr a n s f o r m a n d o o n o m e p r ó p r io e m c o m u m ,
co m o s ig n if ic a d o a r c a ic o d e “ c o n f ia n ç a ” : “fiúza d o d i n h e i r o " . H la o f a z e n c e n a n d o o u t r o s n o m e s
d e s e n h o r e s , d e s q u a l i f i c a d o s c o m o v u lg o .

185
A SÁ T IR A E O E N G EN H O

sereis o molde das modas,


e o modelo dos Turins.
A conta disto me lembra,
quando em Marapé vos vi,
vestido de pimentão
com fundos de flor de Li.
Lm verdade vos afirmo,
que então vos supus, e cri
surrada tapeçaria,
tisnado guadamecim.
O que direis de mentiras,
quando tornares [síc] aqui!
amizades de um Visconde,
favores de um Conde vis.
Valido de um tal Ministro,
Cabido de um tal Juiz,
e até mesmo do Cabido
leiguíssimo Mandarim.
El-Rei me fez mil favores:
mil favores? mais de mil;
bem fez, com que lá ficasse,
mas uao o pude servir.
Quem casou, como eu casei
com Mulher tão senhoril1'"1,
é cativo de um Terreiro,
não me posso dividir.
D’E1-Rei é minha cabeça,
porém o corpo gentil
todo é de minha Mulher,
não tem remédio, hei de me ir.
(OC, IV, pp. 895-897.)

A s várias posições satíricas ordenam o evento segundo m otivos poéticos


associados em tópicas retóricas, que se estudam no capítu lo V. C on stituin do a
desonra com o torpeza execrável, castigando-a logo quando a d ivu lg a publica- 19
8

198. “ M u l h e r t ã o s e n h o r i l " é a q u a l i f i c a ç ã o i r ô n i c a d e “A n a M a r i a " , a d o n z e l a n o b r e e r ic a q u e v e m d a


í n d i a e q u e é p e r s o n a g e m d e s o n e t o p a r ó d i c o : “ S e t e a n o s a n o b r e z a d a B a h i a / S e r v i u a u m a P a s to ra
i n d i a n a , e b e l a ” ( O C , IV , p . 891). T a m b é m é r e f e r i d a e m o u t r a s á t i r a c o n t r a P e d r o A l v a r e s d a N e iv a ,
o n o iv o : “ C a n t o u - s e - l h e e m p r o f e c i a , / p o r q u e c o r r e n d o a l g u n s a n o s / v e i o c a s a r p o r e n g a n o s / c o m
M a d a m a A n a M a r i a : / p o r f o r ç a d e c a n t o r i a / s e m e t e u P e r ic o e n t r e e l a s ” ( O C , IV, p . 892).

186
A M U R M U R A Ç Â O DO CORPO M ÍST IC O

mente como murmuração e vulgaridade199, a sátira funciona como opinião do


testemunho formalizado como murmuração. Acusando o que obra mal, su­
põe a virtude do obrar bem: justiça, prudência, discrição, hierarquia. Funcio­
na, portanto, como um dispositivo de supervisão e distribuição hierárquicas
da opinião: a censura efetua a honra, a calúnia avança a boa reputação, o
ataque prescreve a reverência. Como murmuração, o juízo da persona pode
exceder-se como “acérrimo inimigo de toda hipocrisia”, muito além da joco­
sidade zombeteira do poema acima. Lembre-se o relato das causas do degre­
do de Gregório de Matos para Angola, interpretado na Vida do Licenciado
Rabelo como generosa proteção de Dom João de Lencastre, que evita que o
poeta seja assassinado pelo filho de Câmara Coutinho, vindo para vingar o
pai ultrajado na sátira como “fanchono beato”, “putana”, “mamaluco em quar­
to grau”, “Rabi” e “sodoma”200. Fazer falar o interdito, modulando-o mons­
truosamente no discurso para capturá-lo numa formulação que o controla -
este procedimento da hierarquia, de que a persona se faz avalista, propõe-se
como exemplaridade do testemunho racional: não se fala para o delinqüente,
mas para todos os outros, instados a temer e a obedecer.

199. “ T r a t a i s a e s t e e a a q u e l e / p o r e l e d e p u r o h o n r a d o , / q u e o S e n h o r b e m i n c l i n a d o / e m l u g a r d e u m
v ó s d á u m e le : / m a s q u e o c h a n t r e s e d e s v e l e / e m v i s i t a r - v o s c a d a h o r a , / e l h e d i g a i s , v e n h a
e m b o r a , / C h a n t r e , f o lg a d e o v e r b e m , / i s s o é s e r s e m t o m n e m s o m / a s n e i r ã o d e f o z d e f o r a ” ( O C ,
IV, p . 9 0 1 ) ( “A o m e s m o P e d r o A l v a r e s d a N e i v a q u e c h e g a n d o à B a h i a , c o m h á b i t o , e f o r o f a l s o ,
e n t r a d e s v a n e c i d a m e n t e c o n f i a d o a t r a t a r o s h o m e n s n o b r e s p o r t e r c e i r a p e s s o a ” ). S e g u n d o a persona
s a tír ic a , P e d ra lv e s n ã o te m p o s iç ã o p a r a c o n s ti tu ir o u tr o s c o m o ig u a is o u in f e r io r e s , tr a ta n d o - o s
e m 3‘ p e s s o a ; a o d e n u n c i á - l o , a persona p o s tu la a c o n v e n ç ã o h ie rá rq u ic a d a s c o m p e tê n c ia s e d a
h o n r a , d e q u e e la se fa z a c a u ç ã o . A s á tir a e v id e n c ia , n o c a so , q u e a s h o n r a s d e P e d ra lv e s s ã o
d e s o n ra s : P e d ra lv e s u ltr a ja o s m e lh o r e s q u a n d o o s h o n r a c o m s e u tr a ta m e n to d e fid a lg o , e n fim . A o
d e s o n ra r P e d ra lv e s , a persona p r o p õ e a v e r d a d e i r a h o n r a , d a q u a l é a v a l i s t a . C f . C a r t a d e 4 .8 .1 6 8 4 ,
v o l. 2, p . 126, e m q u e a C â m a r a n o tic ia q u e P e d r o Á lv a re s d a N e iv a a le g a s e r C a v a le ir o d o H á b it o
d e C ris to e re c u s a -s e a s e rv ir o c a rg o d e p ro c u ra d o r d o S e n a d o d a C â m a ra .
200. C f . L i c e n c i a d o M a n u e l P e r e i r a R a b e l o , “ V id a d o E x c e l e n t e P o e t a L í r i c o , o D o u t o r G r e g ó r i o d e M a ­
to s e G u e r r a ” , e m J a m e s A m a d o ( o r g .) , Obras Completas de Gregório de Matos e Guerra ( C r ô n i c a do
1968, 7 v o ls ., v o l. VII, p . 1708: “ G o v e r n a v a e n t ã o
V iv e r B a i a n o S e i s c e n t i s t a ) , S a l v a d o r , J a n a í n a , D.
J o ã o d e L e n c a s tr e , s e c re to e s ti m a d o r d a s v a lc n tia s d e s ta M u s a , q u e a to d a a d ilig ê n c ia lh e c n te s o u r a v a
a s o b r a s d e s p a r c i d a s , f a z e n d o - a s c o p i a r p o r e l e g a n t e s le t r a s : q u a n d o d e u m a N a u d e g u e r r a d e s e m ­
b a rc o u o F ilh o d e u m a c e rta P e rs o n a g e m c o m â n im o v in g a tiv o c o n tr a o P o e ta p o r h a v e r s a tir iz a d o a
h o n ra d e se u P a i g o v e r n a n d o e s ta te rra ; e b e m q u e d is fa rç a v a s u a m a lig n a in te n ç ã o , to d a a in te n ç ã o
m a lig n a p e r c e b e u D . J o ã o d o s m e s m o s d is f a r c e s d e la . E r a e s te C a v a lh e iro g e n e r o s a m e n te c o m p a d e ­
c id o : e e x c o g ita n d o m e io s d e liv r a r u m a v id a , e m q u e a n a tu r e z a d e p o s ita r a tã o s in g u la r e s p r e n d a s ,
a c h o u tr a ç a s d e s e g u r a r - lh e o p e rig o n o s f in g im e n to s d e r ig o ro s o ju s tic e ir o . O r d e n o u a u n s o fic ia is
d e m ilíc ia q u e , s a in d o fo ra d a c id a d e a to d a a c a u te la , lh e tr o u x e s s e m p r e s o o D o u to r G re g ó r io d e
M a to s ” .

187
A SÁ T IR A E O E N G E N IIO

Como se leu páginas atrás, Câmara Coutinho não enforca João de Maga­
lhães, o soldado sedicioso, embora enforque inúmeros outros criminosos, sendo
alvo de referências elogiosíssimas da Câmara quando é substituído por Dom
João de Lencastre. Apersona satírica assume posição simetricamente inversa,
chamando-o de “amigo de enforcados” (OC, I, p. 215), polvilhando a desqua-
lificação com as “farinhas” da murmuração local:

Sois amigo de enforcados,


quem vo-lo pode impedir?
oxalá fôreis amigo
de levar o mesmo fim.
Ora vamos a farinha,
foi pouca, cara, e ruim:
mas vós não sois sol, nem chuva,
para haver de a produzir.
Eu confesso que houve fome,
governando vós aqui,
sois mofino, e por contágio
ficou mofino o Brasil.
(O C , I, P . 216.)

Acumulados até aqui para evidenciar o misto e a variedade das posições


da persona, os exemplos recortam-se no mesmo referencial das “conseqüên-
cias muito prejudiciais” da “falta da moeda”, como advertência e prudência
experientes, ligeiramente céticas:

Tratam de diminuir
o dinheiro a meu pesar,
que para a coisa baixar
o melhor meio é subir2111:
quem via tão alto ir,
como eu vi ir a moeda,
lhe pronosticou a queda,
como eu lha pronostiquei:
dizem, que o mandou El-Rei,20
1

2 0 1 . " P a r a a c o u s a b a i x a r / o m e l h o r m e i o é s u b i r ” : o m e s m o t e m a s e e n c o n t r a d e s e n v o l v i d o p o r S a a v e d ra
F a ja rd o e m s e u Empresas Políticas c o m o títu lo d e “ O subir o bajar", s e g u n d o a id é ia d e q u e o a u g e da
a s c e n s ã o - d e u m a f l e c h a n o e s p a ç o , d e u m h o m e m , d e u m i m p é r i o - já é o p r i m e i r o m o m e n t o de
s u a q u e d a e i r r e p r i m í v e l d e c a d ê n c i a . C f. D . D i e g o S a a v e d r a F a j a r d o , op. cit., E m p r e s a LX.

188
A M U R M U R A Ç A O DO CORPO M ÍST IC O

quer creiais, quer não creiais.


Não vos espanteis, que inda lá vem mais.
(OC, II, p. 438.)

O prognóstico de que as trocas comerciais serão feitas em espécie é parale­


lo de discursos contemporâneos, como os dos senhores de engenho, cujos em­
préstimos são pagos com o açúcar e o tabaco das colheitas, ou os da Câmara,
que advertem o Rei de que a Bahia, arruinada, nada terá para trocar, passando
a dedicar-se às manufaturas, como fpz a índia com azeites, vinhos, vinagres:

Porque como em Maranhão


mandam novelos à praça,
assim vós por esta traça
mandareis o algodão:
haverá permutação,
como ao princípio das gentes,
e todos os contraentes,
trocarão droga por droga,
pão por sal, lenha por soga,
vinhas por canaviais:
Não vos espanteis,
que inda lá vem mais.
(OC, II, p. 439.)

Os exemplos condensam-se na metáfora da “doença” que contamina a


sátira e outros discursos da época. Em sua circulação, a metáfora efetua a
equivalência de circulação monetária e circulação sangüínea: “[...] a moeda
[...] sendo ela o mais precioso sangue que alimenta esta República”202. Na
sátira, diagrama a corrupção e a morte da acumulação pela circulação defei­
tuosa das trocas. Encena-se, assim, também o discurso que lamenta e critica
os impostos que sobretaxam o açúcar, referidos na carta em que se pede sua
suspensão ou diminuição, demonstrando-se a impossibilidade de pagar o
donativo do dote da rainha de Grã-Bretanha e Paz de Holanda:

O açúcar já se acabou?.......................... Baixou


E o dinheiro se extinguiu?..................... Subiu
Logo já convalesceu?............................. Morreu.
À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece

202. Cf. Alas da Câmara 1684-17 00, v o l. 6, p. 204.

189
A SÁ T IR A E 0 E N G E N H O

cai na cama, o mal lhe cresce,


Baixou, Subiu, e Morreu.
(OC, I, p. 33.)

É essa pragmática que hierarquiza na sátira, enfim, o mesmo referencial


discursivo das atas e cartas, prescrevendo o bem comum, a unidade e a unifi­
cação do corpo místico da Cidade nas virtudes da política católica mercanti­
lista. Isto é matéria do capítulo III, em que se analisa o código de honra da
persona satírica relacionado com outros discursos contemporâneos, como os
do Santo Ofício da Inquisição e os dos juristas ibéricos contra-reformistas.
Para tanto, volta-se agora ao Licenciado Rabelo, focalizando-se o final da sua
Vida.

190
III
A Proporção do Monstro

Lá ides por esses mares,


que são vidraças de anil,
semeando de asnidades
ioda a margem de Zafir.
( O C , IV , p . 8 9 5 . )

A Vida do licenciado Rabelo fecha-se com a figuração óptica com que


este capítulo se abre. Segundo ela, Gregório de Matos e Guerra tinha “fantesia
natural no passeio, e quando algumas vezes por recreação surcava os quietos
mares da Bahia a remo compassado com tão bizarra confiança, interpunha os
óculos, examinando as janelas de sua cidade, que muitos curiosos iam de pro­
pósito a vê-lo”1.
O passeio pelo mar compõe um hábito idílico da personagem, sendo um
ornamento do discurso e, como tal, um acessório. Nunca foi considerado pela
crítica, a não ser anedoticamente, como mais uma das esquisitices do ho-

1. C f. L i c e n c i a d o M a n u e l P e r e i r a R a b e l o , “ V id a d o E x c e l e n t e P o e t a L í r i c o , o D o u t o r G r e g ó r i o d e
M a to s e G u e r r a ” , e m J a m e s A m a d o ( o r g .) , Obras Completas de Gregório de Matos e Guerra (Crônica do
Viver Baiano Seiscentista), S a l v a d o r , J a n a í n a , 1 9 6 8 , 7 v o ls ., v o l. V II, p . 1 7 2 1 . H á v a r i a n t e d e s t a v e r ­
sã o : “ T i n h a f a n t e s i a n a t u r a l n o p a s s e i o , e q u a n d o a l g u m a s v e z e s p o r r e c r e a ç ã o s u r c a v a o s i n q u i e t o s
m a r e s d a B a h i a , h a v i a d e s e r a r e m o s c o m p a s s a d o s : c o m tã o b i z a r r a c o n f i a n ç a e n t r e p u n h a o s ó c u l o s ,
e x a m in a n d o c o m e le s a s ja n e la s , q u e m u ita s v e z e s c h e g a v a m c u r io s a s D a m a s s ó d e p r o p ó s ito a vê-
lo , d e o n d e n a s c i a s c r e i e p a r a e l a s t ã o á s p e r o n o s s e u s v e r s o s ” . C f . “ V id a e M o r t e d o D o u t o r G r e g ó r i o
de M a tto s e G u e r r a ” , Obras Sacras e Divinas (Códice Imperador)> S e ç ã o d e M a n u s c r it o s d a B ib lio te c a
N a c i o n a l , t o m o I, C o f r e 5 0 , 5 6 , p p . 5 5 -5 6 .

191
A SÁ T IR A E 0 E N G E N H O

mem. O ornamento metaforiza vários procedimentos da prática satírica, con­


tudo, e aqui é proposto como um emblema dela. Seu desenvolvimento é útil,
assim, para explicitá-la2.
Ressalta no exemplo a dimensão do ver e do ser visto. Mais, do ver como
técnica da visão privilegiadamente exterior e distante, que se concentra num
ponto, “janela” que se põe entre a coisa privada e a visibilidade pública. Invi­
sível e insignificante, pois não visto e não dito no fechamento e, alegoricamen-
te, na dissimulação de seu estado no anonimato dos eventos cotidianos da Ci­
dade, o ponto torna-se visível e dizível pela invenção do olho, ganha volume
pela ampliação dos óculos, ressalta estranhado e continua a aumentar, fantas­
ticamente desproporcional, ei-lo misturado e borrado se espalha obsceno na
confusão programática de seus pedaços amplificados, que ocupam todo o cam­
po da visão. Técnica, portanto, do olhar distanciado e distanciador que inter­
põe - verbo de Rabelo - óculos de aumento entre si e o que traz para fora e para
perto de si enquanto o desfoca e deforma, evide?itia e amplificado retóricas.
Seja um nariz pinçado pelos óculos atrás de uma das janelas discursivas,
nariz que vai crescendo sacada afora, nariz que vai avançando por ladeiras,
nariz que vai dobrando esquinas muito antes de seu dono, nariz obsceníssimo,
que fere toda verossimilhança em sua autonomização fantástica3; seja uma
panela de doce em mãos de padre guloso do melindre freirático, cujo conteú­
do se derrete horrorosamente merda, corrupção do açúcar amoroso no desvalor
absoluto4; seja a gesticulação pública, na Praça e no Terreiro, da intimidade

2. O gênero satírico articula a informação acerca de boatos c, portanto, a vigilância. Cf. John Harold
Wilson, Courl Saiires of lhe Resioralion, Columbus, Ohio Univcrsity Press, 1976, pp. X-XI:
“According lo Bishop Burnel, Loul Rochester dressed a footman as a guardsman senlinel *and kepl hitn
all lhe winler long every nighl ai lhe doors of such ladies as lie believed mighi be in intrigues*. We are
lold by lheir rival thai Ilugh, Lord Cholmondeley, used his foolmen as spies to follozv suspccied sinners
aboul tozvn, and lhai Jack Ilozoe sem fonh his sisters to zvatch lhe aclions of lheir friends and
acquainlances. The aulhorof A satyr (1680), accuscd NedRussel, ihirdson ofWilliam, Earl ofBcdford,
of spying on the tozvn: ‘[...] Like a cur zoho’s taughi to fetch he goes / From place to place lo bring back
zohat he knozvs; / Tells zvho’s i ’th’Park, zvhat coached lurned aboul, / Who zvere the sparks, and zvhom
lhey followed ouT. Eighl years later Sir George Etherege commenied thai Ned had speni most ofhis
life joliing aboul lhe sireeis in a hackney coach ‘lo find out lhe harmless lusis of lhe Tozvn’. Finally,
Capiain Robert Julian, a busy purveyor of satires, trotted from coffee houses to bazvdy houses zvith his
pockcls full of verses for sale, picked up the latesi scandal, and passed it on lo the siable of poels zvho
supplied him zvith labeis
3. C f “Chato o nariz de cocras sempre posto: Te cobre todo o rosto, / De gatinhas buscando algum
jazigo / Adonde o desconheçam por embigo: / Até que se esconde, onde mal o vejo / Por fugir do
fedor do teu bocejo” (OC , I, p. 156).
4. Cf. “A hora foi temerária, / o caso tremendo, e atroz, / e essa merda para vós / se não serve, é
necessária” (OC, II, p. 317).

192
A PROTORÇAO DO M O NSTRO

arfante dos quartos onde o sodomita pratica o ato estéril contra naturam5; se­
jam a fusão e a confusão, enfim, de mil e um pontos obsessivamente vistos e
diagramados, que se amplificam e afluem selvagens para amalgamar-se em
híbridos monstruosos, índio fidalgo em cujo sangue deságua a mandioca puba,
o vinho de caju e a carne humana6, mulato pernóstico que arroja as precedên­
cias da brancura7, marrano em que se funde e queima o cisma de Lutero,
Calvino e Melanchton8, anatomias grotescamente moralizadas de órgãos, in­
versões do corpo místico, cabeças que obedecem, pés que ordenam, sexos que
se crispam falantes, murmurações, humores, fedores, gestos, cores, ecos...9
No mar onipresente, a distância, o olho esquadrinha: não copia o que ob­
serva, antes o produz como dissimetria entre unidade e mistura, numa forma
que o retrata como tipo e o destrata como infame, excluindo-o como falha en­
quanto o inclui na mesma operação: o vício é relacionai, só ganha consistência
quando conjurado, assim como o Diabo. Segundo registros de adequação dos
tipos ao referencial de discursos, a moral do olho adapta-se ao caso e utiliza,
em benefício da operação, todas as possibilidades da moral10. Invariante, sua
pragmática compõe múltiplos ilegalismos, formalizando-os exemplarmente -
entre eles, o ilegalismo da persona satírica, cujo olhar desce no vício, estilo bai­
xo das paixões, para subir em virtude, estilo alto de seu juízo, compondo-se
como parte da mesma visibilidade da Cidade diagramada em seu ver-dizer.
Preceitos regulam sua prática: a sátira é inversão de regras que segue regras.
Como anatomia e medicina das almas, o discurso do olho inventa-lhes corpos,

5. C f. “ E s te s , q u e se d e b r e i a m m a n o a m a n o , / D is c ip lin a r - s e - á o d e q u a r t o e m q u a r t o , / E o q u e d e
m a i s s u b s t â n c i a e s t i v e r f a r t o , / A v ia b u s q u e , q u e o n e g ó c i o é c a n o . / C o n h e ç a a I n q u i s i ç ã o e s t a s
v e r d a d e s , / E c o m o é c e r t o , o q u e o s o n e t o d i z , / P a g u e m - s e e m v iv o f o g o e s t a s m a l d a d e s ” ( O C , I, p .
210 ).
6. C f . “A l i n h a f e m i n i n a é c a r i m á / A l o q u c c a p i t i t i n g a c a r u r u . / M i n g a u d e p u b a , e v i n h o d e c a j u /
P is a d o n u m p ilã o d e P ir a j á ” (O C , IV, p. 8 4 1 ).
7. C f. “ P a r a o b ê b a d o m e s t i ç o , / e f i d a l g o a t r a v e s s a d o , / q u e t e n d o o p e r n i l t o s t a d o , / c u i d a , q u e é
b r a n c o c a s t i ç o : / e d e ( l a t o s e n f e r m i ç o / s e a t a c a d e j e r i b i l a , / c r e n d o , q u e o s l l a t o s lh e q u i t a , /
q u a n d o o s v o m ita e m r e to r n o s : / s e is c o r n o s ” (O C , II, p . 4 5 3 ).
8. C f. “ G u a r d a i - v o s , I s r a e l i t a , / q u e s e m e c h e g a a m o s t a r d a , / ta l v e z , q u e a c a s a v o s a r d a , / p o r q u e é
ca sa d e m e s q u ita ” (O C , III, p . 7 3 9 ).
9. C f . “ [...] o s f e d o r e s d a b o c a é u m s e p u l c r o / A c ã e s m o r t o s t e f e d e a d e n t a d u r a ” ( O C , II, p . 3 4 1 ) ; “ [...]
e fe d e c o m o o d ia b o / a o b u d u m d o tra p e z a p e ” (O C , IV, p . 8 5 7 ) ; “ [...] p o r q u e é m u l a t o : / t e r s a n g u e
d e c a r r a p a t o / te r e s to ra q u e d e c o n g o /c h e ir a r - lh e a ro u p a a m o n d o n g o / é c ifra d e p e rfe iç ã o ” (O C ,
IV, p . 7 9 3 ); “ N in g u é m c o m M a r ta S o a re s / q u e r tr o c a r o d re p o r o d re , / p o r q u e d e p o d r e , e m a is
p o d re / n ã o há d is tin ç ã o d e a z a re s ” (O C , III, p . 6 3 0 ) ; “ [...] v o s t r e s a n d a , / ( q u a n d o lá p o n d e s o c u ) / o
so v a c o a p u t i ú , / e q u e a c a tin g a a p e la n d a ” (O C , II, p . 3 8 3 ) ; “ [...] e n jo a , p o r f e d e r a b a c a lh a u ” (O C ,
III, p . 5 7 1 ) ; “ [...] o v u l g o t e m m u r m u r a d o ” ( O C , II, p . 2 5 1 ) e t c .
10. C f. J o sé A n to n io M a r a v a ll, La cultura dd Barroco, 3. e d ., B a r c e l o n a , A r i e l , 1 9 8 3 , p . 1 3 9 .

193
1

A SÁT IR A E 0 E N G E N H O

define-os como culpados de uma falta para cuja correção receita o remédio de
seu dogma. Distribuindo os corpos de linguagem pelos múltiplos espaços
efetuados da Cidade, o olho os retalha e detalha públicos, segundo ordenação
jurídica, sendo o avalista deles e do seu próprio regime de crenças, que articu­
la como instrumento político11. Dois princípios complementares modulam a
visada: a exclusão dos corpos que o olho constitui, remetidos para os modos
negativos da ausência de Bem - falha, falta, erro, pecado - e a sua inclusão, que
os traduz poeticamente como ridículos, moralmente como viciosos, politica­
mente como culpados na luz da sua verdade. Ridículo, vício e culpa se reco­
brem, segundo o rebatimento extensivo dos pedaços; intervém a voz do mes­
tre, porém, que aplica o corretivo da virtude como gravidade, prudência, bem
comum da República, discrição. Ao fazê-lo, a voz magistral assume corpo, in­
flação católica da bondade mercantil e fidalga, ela que é somente um olhar
vazio e obsessivo. Embora enuncie em primeira pessoa do singular, nela ecoa
um nós majestático e terrível, força de coesão, hierarquia que unifica a tudo e
a todos, ditada como um se impessoal e anônimo, imagem onipresente de au­
sências solenes, Deus e Rei. As mesmas regras valem para vícios opostos às
virtudes estabelecidas e um único piscar do olho evidencia que sabe que não
se pode louvar um homem de bem com justiça e abundância sem conhecer-lhe
as virtudes, nem vituperar o vicioso com aspereza e sarcasmo sem conhecer-
lhe os vícios12. O olho é princípio e limite, assim.
A distância do mar à terra alegoriza outra: o olho põe-se fora e longe para
pôr-se acima e perto, hierarquicamente. Por isso distingue, permite-se pene­
trar janela adentro, descer, espionar e subir. Entre ele, os óculos e o ponto,

11. Cf., por exemplo: “O Ministro há de ser são, / justo, e não desobrigado, / há de ter ódio ao pecado,
/ e ao pecador compaixão: / que se tem má propensão, / faz justiça, mas com vício” (OC, I, p. 201).
Ou: “Os fidalgos, e os Senhores/ faltos de jurisdição/ fazem tudo, e tudo dão/ a amigos, e servido­
res: / os que jogam de maiores / por sangue, e não por poder / fazem jogo de entreter: / porque o
sangue desigual / sempre brota ao natural, / e o mando bota a perder” (OC, I, p. 192).
12. M. T. Cicero, De oralore, texte établi, traduit et annoté par François Richard, Paris, Garnier, s/d.,
pp. 349-350. Cf., por exemplo, tratado como integração política neste capítulo: “O bem, que os
mais bens encerra, / e as glórias todas contem, / é reinar quem reina bem, / pois figura a Deus na
terra: / eu cuido, que o mundo erra / nesta alta reputação, / que se o Rei erra uma ação, / paga o seu
alto atributo, / um tristíssimo tributo, / e misérrima pensão” (OC, I, p. 202). O Decrelum de peccaio
originali do Concilio de Trento fixou a doutrina católica no sentido de que o pecado original não
destrói a natureza nem a lança imediatamente ao mal. Manchada embora pelo pecado, mantêm-se a
luz natural, a virtude natural, o livre-arbitrío. As artes e as letras sciscentistas encenam tal doutrina
do pecado e sua lição pós-tridentina, afirmando que a natureza humana é perfectíve! também pela
arte. Nesta linha, a sátira é uma arte educativa. Cf. também, a respeito, “Deleitando ensina”, em
Diego Saavedra Fajardo, Empresas Poltlicas, ed. preparada por Quintin Aldea Vaquero, Madrid,
Nacional, 1976, 2 vols., vol. I, Empresa II.

194
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

várias linhas imaginárias são traçadas como visibilidade do corpo místico da


República. Perpassam todos os poemas e nelas opera uma técnica de recortes
que, sendo sempre uma engenhosa invenção e disposição retórico-poéticas,
também é política. A operação finge seccionar um corpo ou um campo como
notável e o expõe, amplificando-o como anotado cm que se corrige o notado.
Ordena a operação um notandum, paradigma que orienta e interpreta a sele­
ção. Modo histórico de hierarquizar, nele tramam a ética senhorial, o catoli­
cismo pós-tridentino, o comércio açucareiro, a racionalidade engenhosa, a
prudência política.
Os óculos, interpostos, transpõem os paradigmas do olho projetando-os
em mistos amplificados numa proporcionada deformação. Nesta convergem
conceitos, agudezas, ironias, paródias, trocadilhos, facécias, insultos, peripé­
cias, alegorias, tolices, indignidades, inverossimilhanças, burlesco, obsceni­
dades, pedaços... Como uma cenografia, a convergência de pedaços de corpos
e vozes do ponto amplificado no foco da lente é um jogo óptico de deforma­
ções proporcionadas13.
Por que, assim, o recurso dos óculos? O ver de longe é a correta distância
posta entre o olho e a Cidade para deformar com proporção. Ao amplificar
certas partes e proporções de um corpo - seja o nariz -, as lentes deixam de
ampliar outras proporções e partes, que se tornam deformadas pela distân­
cia. Simultaneamente, parles e proporções amplificadas - o nariz - é que
apresentam desproporção para aquele que as vê pelas lentes. Efeito óptico
em que a distância aproxima e a proximidade distancia, o ridículo surge como
incongruência ou deformidade na relação de duas proporções. Feio, também
é desonesto: o visível alegoriza o moral. Por isso, o mesmo jogo perto/longe e

13. No Sofista, o Estrangeiro eleata distingue a imitação (234bc), subdividindo-a numa distinção entre
imagem icástica efantástica (235b-236c). Porque o observador está mais distanciado de certas partes
de uma grande pintura ou escultura do que de outras, a desproporção aparente entre as partes pode
conflitar com seu conhecimento prévio do assunto figurado e alerta-o para a discrepância da veros­
similhança. Para compensar a distorção visual, ao invés de reproduzir as dimensões reais do modelo
com precisão icástica, o artista as altera de modo que a imagem fantástica resultante parecerá estar
proporcionada quando vista de um ponto de observação “próprio” (ikanós, 236b). Tal arte é a ceno­
grafia de tratados de óptica posteriores. Em cenografia, não se trata simplesmente de distância ou de
proximidade, mas da correia distância, nem tão longe, nem tão perto. Se o objeto pudesse ser toma­
do como um todo a partir de uma hipotética posição ideal, as mesmas compensações efetuadas pelo
artista apareceríam como distorção e teriam de ser corrigidas. Cf. Platão, Le sophiste, 2. ed. revue et
corrigée, texte établi et traduit par Auguste Diès, Paris, Belles Lettres, 1950. Cf. também o ensaio
fundamental de Wesley Trimpi, “The early metaphorical uses of SKIAGRAPHIA and SKENOGRA-
PHIA”, Traditio. Studies inAncient and Medieval History, Thought and Religion, New York, Fordham
University Press, 1978, vol. XXXIV, pp. 406-408.

195
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

proporção/desproporção elabora os hábitos: pela lente, o olho perspectiva tipos


hiperbólicos em sua mania, desproporcionais na unicidade de uma paixão
que os escraviza e desfigura, frade e luxúria, mercador e usura, fidalgo e hi­
pocrisia, mulato e presunção, judeu e heresia, puta e comércio etc. A alternân­
cia de longe/perto, desproporcional!proporcional, amplificação/redução também
faz ver que o olho efetua seus recortes como visibilidade comum àqueles que
vão à praia para verem que são vistos. São eles que sabem as medidas daquilo
que o olho esquadrinha por detrás de janelas e que julgam as proporções de
sua imagem deformada pela lente. É a mesma população que se vê sendo
vista, quando vê, que avalia sua imagem refratada segundo os mesmos crité­
rios. Desta maneira, o olho no mar não reproduz as proporções do que vê:
pelas lentes interpostas, ele as altera fantasticamente de modo que, de um
ponto de vista “próprio”, que é o do bem comum, a desproporção efetuada
parece verossímil justamente porque é inverossímil: ela é inadequada à vir­
tude que reina no lugar do olho, lugar do qual a população é instada a parti­
cipar e, a partir dele, ver e ver-se. A desproporção está prescrita como verossímil
porque é muito proporcionada a um fim, como técnica de afetar as vontades,
prodesse ou utilidade. Referido a Sousa de Meneses ou a Câmara Coutinho, o
mesmo nariz dotado de vida própria estabelece à distância o ridículo dos go­
vernadores, trazidos para perto dos que os conhecem segundo vários graus
hierárquicos. Na caricatura, vêem a proporção adequada às arbitrariedades
que o olho condena e, rindo, aprendem.
Corpos e ações ordenados pela proporção racional do olho se multipli­
cam, cruzam-se em inversões e misturas monstruosas, deformadas todas
pelo recurso das lentes interpostas. As misturas são desprezíveis, obscenas
e divertidas, porque desproporção, e, convergindo todas no olho, que as
irradia e absorve, tornam-se graves, prudentes, proporcionadas: ensinam
divertindo, castigam rindo, movem rebaixando. Ut pictura poesis: a sátira
enfatiza graus intermediários da distância entre o excelente e o ignóbil.
São numerosíssimos e não se resolvem como um contínuo, mas permane­
cem distintos uns dos outros, dispostos em duas séries, compostas na sátira
como vozes paralelas, uma racional e grave, outra fantástica e livre. Confli-
tam, assim como bem comum e corrupção conílitam, mas é a voz grave que
dá o tom, interpretando as misturas fantásticas para si e para o público
como distância regulada da visão. A série fantástica é, por isso, como exem-
plaridade do vício, composta por justaposição de várias naturezas que re­
presentam um tipo ou um caráter como mistura. Por não ter unidade,
figura a monstruosidade da ausência de Bem irrepresentável e que, sem
forma racional, é infame. A sátira o faz visto e dito, pelo jogo perto/longe,

196
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

proporção/desproporção, para capturá-lo como semelhança negativa da uni­


dade que a voz grave prescreve14.
Efetuação, portanto, não só do espaço estirado entre o olho e o tipo, mas,
principalmente, efetuação sensibilizadora da distância ideal, hierárquica, que
os une e separa, como os pólos complementares da excelência, racional e clara,
e da infâmia, confusa e obscura.
Nesta alegoria de alegorias, é oportuno detalhar as regras retórico-políti-
cas da seleção do olho: por que esse ponto e não aquele, por que tal janela e não
outra? Visão naturalíssima, pois o olho só vê o que historicamente pode ver, sua
“fantesia natural” é sistêmica, como artifício e arte de engenho. Convenção
para o ver, também é oportuno estabelecer outras proporções dessa distância,
seu código, medidas e marcas. A distância, o olho no mar é ponto de constru­
ção e de inversão do visível e do dizível. Ele é ao mesmo tempo limite dos vícios
pululantes que recorta e amplifica como excesso exemplar e princípio de sua
ordenação como tipos15. E pelo olho que os pontos focalizados assumem a iden­
tidade genérica de tipos reconhecíveis nas imagens deformadas das lentes:
chim, brâmane, judeu, negro, mulato, índio, mameluco, mazombo, turco,
muçulmano, fidalgo, luterano, freira, padre, soldado, puta, dama, marido cor­
no, sodomita etc. Subdividindo seu elenco, o olho infla os caracteres, faz dis­
tinções meticulosas entre sagrado e profano, puro e impuro, legítimo e bastar­
do, adaptando-as a pontos mais particularizados da mesma visibilidade:
fidalgo/não-fidalgo, mulher honesta/puta, padre virtuoso/simoníaco ou usurá-
rio, governador justo/tirano etc. Os costumes, ou o caráter, são produzidos pela
ação do olho, assim, em toda espécie de condição: talvez uma mulher possa ser
boa, se for branca, nobre e honesta, também um escravo talvez o possa, se sub­
misso, embora seja certo que o negro é, segundo a mesma visibilidade, quase
que absolutamente mau, e a mulher, de uma bondade inferior à do homem16.
O homem, por sua vez, alguns são fidalgos, muitos não, outros trabalham ma­
nualmente, todos se dedicam ao dinheiro, poucos não são escravos da ambição
que os rouba, pois há homens livres escravos de suas paixões e... as subdivisões
são ilimitadas, conforme o rebatimento tabular da hierarquia. Unindo a todos,
porém, o mesmo pecado e o mesmo livre-arbítrio: decaída, a natureza humana
é perfectível também pelas artes.

14. Levado ao extremo, o estilo cenográfico propõe o objeto pintado para ser visto de um ponto de
vista calculado, como uma pintura anamorfótica; levado ao extremo verbal, o objeto deve ser enten­
dido em termos alegóricos. Cf. W. Trimpi, op. cit., p. 412.
15. Cf. Michel de Certeau, La fable mysiique, XVl-XVIPsiècles, Paris, Gallimard, 1982, p. 71.
16. Cf. J. Racine, Príncipes de Ia iragédie, Paris, Vinaver, 1951, p. 27.

197
A SÁ T IR A E O E N G E N H O

Como subdivisão particularista dos tipos unificados pelo olho segundo


padrões aristotélico-escolásticos de virtudes proporcionais e vícios despro­
porcionais, a lente interpõe outros efeitos ópticos que, continuando a defor­
mar, individualizam. Existe a Mulata: “Eva atroz” (OC, II, p. 386), tipo dispo­
nível; e assiste-se ao lundu, avançam-se os nomes que retratam Maribonda,
Agueda e Jelu: “Macotinha a foliona/bailou rebolando o c u / duas horas com
Jelu / mulata também bailona: / senão quando outra putona / tomou posse do
terreiro” (OC, III, p. 622). Há o Cristão-Novo: eis o nome, o traço, o tique que
individualizam aquela mulher da perversa sinagoga17, esse letrado rabino,
este escrivão judaizante etc.
Entre o efeito particularista do enunciado e o princípio ordenador da
enunciação, perpassa argumento de autoridade que recicla Cícero: o olho é
porta-voz de um código de honra que o autoriza a falar. Aconselhando sobre
os negócios da Cidade, a distância em que se posiciona figura a distância
discreta daquele que proclama conhecer bem a República e o homem que nela
habita:

E s to s e n g a n o s y a r te s p o lític a s n o se p u e d e n co n o cer, s i n o se c o n o c e b ie n la n a t u r a l e z a d e i
h o m b r e , c u y o c o n o c im ie n to es p r e c is a m e n te n e c e s a r io a l q u e g u b ie r n a p a r a s a b e r r e g ílle y
g u a r d a r s e d é l '8.

Como os costumes mudam freqüentemente, conforme a posição das “na­


turezas”, acarretam também modificação no tom e na elevação dos discursos
que tratam deles. Especularidade, aqui, da visão e da teoria que lhe informa a
visada: o olho efetua a Cidade como baixa, corrupta, pecaminosa, vendo-a
por uma doutrina do vício e seus topoi, construindo-a segundo a concepção
tradicional da lei que deriva da rigorosa hierarquia dos valores19. Referida
pela persona a pessoas e situações, a dispersão empírica das descrições faz
com que a lei seja deduzida de casos caracterizados por elas, que ratificam a
lei pelo avesso, desproporção e proporção. Da doutrina para o caso, do caso
para a doutrina, a remo compassado sobre os quietos mares do texto de Rabelo,
o olho espia, pesquisa e esquadrinha a Cidade - é o “bem freqüente olheiro”
que vitupera como malvado - para levar à Praça e ao Terreiro o que diz ver:

17. Cf., por exemplo: “[...] aquela má mulher / da preversa sinagoga / fez no sermão tal chinoga, / que
o não deixou entender” (OC, II, p. 253).
18. Diego Saavedra Fajardo, op. cit., vol. I, Empresa XLVI.
19. Cf. F. M. Ferrol, Saavedra Fajardoy la Política dei Barroco, Madrid, Instituto de Estúdios Políticos,
1957, p. 83.

198

1
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

sua ação é a de tornar público, a de mostrar àqueles que vão vê-lo na praia que
são vistos, que Alguém providencial provê, prevê20.
Elevação petrarquista de dona Maria dos Povos acima da Cidade nas len­
tes de Garcilaso e Góngora, pastoral galante de Marfída21, Sílvia22, Gila23, Lise24,
Clóri25, Tisbe26, Maricas27; paródia camoniana nas definições do amor; fanta­
sia hiperbólica da feiura do Braço de Prata, da luxúria de padres e frades;
corrupção da Junta do Comércio, faminta sempre de açúcar e lucro; roman ­
ces alegóricos28; figuração misógina de brancas, negras, pardas, índias, casa­
das, solteiras, viúvas, freiras, putas; baixo corporal, fluidos do corpo, humo­
res, secreções, calores, cheiros, merda - tantas são as janelas focalizadas, tantas
são as visadas, tantas as adequações da lente, tantas as proporções e despro-
porções, virtudes e vícios.
A força da eloqüência da enunciação permanece a mesma, como escreve
Cícero, e porque a suprema dignidade é a da coisa pública, o discurso deve
levar o destinatário à esperança, à prudência, à paz, e, mais freqüentemente,
deve desviá-lo da intemperança, da injustiça, da estupidez, das esperanças
fúteis29. Cada virtude comporta deveres e obrigações fixos, merecendo um
elogio que lhe é próprio. Em todas, portanto, deve-se fazer ver o acordo entre
os atos, o gênero, a natureza e o nome de cada uma30. As mesmas regras
valem, como se escreveu, para vícios opostos: o olhar no mar é técnico em
evidenciar o desacordo entre os atos e o gênero da virtude ausente - injustiça,

20. O Concilio de Trento determinou a ordenação hierárquica e jurídica exterior, pública, como propa­
ganda da fé - lembre-se o caráter de ostentação dos signos do poder na grande festa seiscentista,
nos sermões, nos castra doloris. Lembre-se ainda que, segundo os juristas ibéricos contra-reformis­
tas, o livre exame luterano transforma a Igreja numa instituição invisível. Cf. Richard Alewyn, “La
fête de cour”, üunivers du Baroque. Paris, Gonthier, 1959; Ugo Spirito, “Barocco e Controriforma”,
em III Congresso Internazionale di Studi Umanistici, Venezia, 15-18 giugno 1954, A cura di Enrico
Castelli, Retórica e Barocco. Alli, Roma, Fratelli Bocca Editori, 1955; André Chastel, “Le Baroque
et la mort”, íbidcm; Jan Bialostocki, “Arte y vanitas”, Estiloy Iconografia (Conlribución a una Ciência
de las Artes), Barcelona, Barrai Editores, 1973.
21. Cf. Gregório de Matos e Guerra, em Amado James (org.), op. cit., vol. III, p. 660.
22. Idem, p. 680.
23. Idem, p. 681.
24. Idem, p. 682.
25. Idem, p. 685.
26. Idem, p. 692.
27. Idem, p. 695.
28. Cf., por exemplo, “Os Gatos”, romance (OC, II, pp. 455-461).
29. M. T. Cicero, op. cit., p. 342.
30. Idem, p. 343.

199
A SATI RA E 0 E N G E N H O

tirania, discórdia - e também entre os atos e os nomes - simulação, dissi­


mulação, aparência, hipocrisia, mentira. A “fantesia natural” faz-se “acérri-
ma inimiga de toda a hipocrisia”, como se leu no capítulo I, entendendo-se
por “hipocrisia”, genericamente, toda espécie de desacordo de atos e nomes
de atos com o gênero e a natureza postulados. Como imita segundo as nature­
zas muito misturadas dos desacordos de casos, o excesso mesmo da “fantesia
natural” é linguagem adequada, uma vez que as mesmas naturezas são ridí­
culas, viciosas, excessivas. Neste sentido, a sátira e sua obscenidade têm uma
função alegórica de dirigismo político aristotelicamente determinada: pro-
põem-se como catarse, purgação de paixões, como arte de persuasão. Como
caricatura, a sátira menospreza o aptum e, reduzindo ao mínimo a verossimi­
lhança com o excesso e a mistura, tem em vista o destinatário, de quem espe­
ra a cumplicidade e o deleite favoráveis à causa que a move3132.Como subgênero
do cômico, ensina: apersona se constitui como mestre do público, pois depen­
de de seus avisos o ensinamento do que expõe. Mais que ensinar ou agradar,
porém, ela quer mover: o mestre procura que o público tire escarmento e não
exemplo das ações más, exemplo e não escarmento das boas:

P a r a lo q u a l c o n v ie n e q u e a p u r e lo s c o lo res a la e lo c u e n c ia y p i n t e los v ic io s t a n fe o s ,
d e s c rib a los d e lito s t a n a b o m in a b le s y r e p r e s e n te la s c u lp a s ta n h o n i b i l e s q u e e l m o z o in a d v e r t i ­
d o , la d o n c e lla in c a u ta , e l h o m b r e m a d u r o , la m u je r e x p e r im e n ta d a y to d o lin a je d e g e n te s les
c o b ren h o r r o r y n o d ese o , y v a y a n p e r s u a d id o s c o n a q u e lla a p a r ie n c ia e s c a n d a lo s a a o ir la
tr a ic ió n v i é n d o la c a s tig a d a , e l a d u lté r io r e p r e h e n d id o , a c u s a d o d h o m ic íd io , r e p r o b a d a la
liv i a n i d a d , in f a m a d a la c o b a r d ía , p a r a e v i t a r s e m e ja n te s in s u lto s a l v e r d e s a ir a d a la e n v id ia ,
a fr e n to s a la m a lic ia , c u lp a d o e l e n g a n o , d e s h o n r a d a la m e n tir a , m a l v i s ta la to r p e z a , a b o rr e c i­
d a la m a l d a d y d e s c u b ie r ta la a le iv o s ía 22.

A sátira seiscentista é, nesta pragmática, técnica política de extrema apro­


ximação que mantém todas as distâncias adequadas à hierarquia que encena
como porta-voz, ponto por ponto, caso por caso. Há variação, deslocamentos
de posição dos tipos e hábitos efetuados por ela, conforme o maior ou o me­

31. Cf. Heinrich Lausberg, Manual de Retórica Literaria (Fundamentos de una Ciência de la Literatura),
Atadrid, Gredos, 1968, 3 tomos, tomo III, p. 320.
32. José Pelliccr dc Tovar, “Idea de la Comedia de Castilla (1635)”, em F. S. Escribano y A. P. Aiayo,
Precepliva Dramática Espaiiola (Del Renacimientoy el Banoco), Atadrid, Gredos, 1965, pp. 219-220.
Cf. ainda Aíicer Andrés Rey de Artieda, “Carta al Ilustríssimo Alarqués de Cúellar sobre la come­
dia (1605)”, Discursos, Epístolasy Epigramas de Artemidoro, em F. S. Escribano y A . P. Atayo, op. cil.,
p. 112. Observe-se que, segundo Tovar, a “aparência escandalosa" faz ver as paixões viciosas, que
são corrigidas - “desonrada a mentira” - para que o vício do público sofra o mesmo efeito de
correção do vício representado hiperbolicamente, tornando-se virtude.

200
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

nor empenho da persuasão e, ainda, da distância delineada pelo olho. Ela não
é transparência do vivido, mas espécie de complemento e, quase sempre, seu
reverso, na medida em que, moralizadora e hierarquizante, enuncia aquilo
que é seu princípio de proporção, postulado como ausente na Cidade: a
racionalidade.
Toda virtude é uma justiça e a justiça é todas as virtudes33 segundo um
fim, que é o bem comum. Na ordenação dupla, teatralizam-se a desonestidade,
a tolice, a hipocrisia, a desmedida, em várias instituições e ocasiões; simulta­
neamente, a honra, o juízo, a verdade, o equilíbrio. Assim, a sátira é sempre
dupla quanto ao seu efeito de sentido, afirmando uma ausente plenitude do
bem comum, identificada com a boa política e a boa religião, oposta à deca­
dência do presente mau e corrupto, negado como teatro da falha, falta e cul­
pa. Pela oposição da ordem mítica e da temporalidade presente, rebaixamen­
to ou dejeto da ordem, a sátira tenta constantemente fazer o tempo ser
absorvido no mito. Na dissimetria aberta entre o vazio da Ausência e a espes­
sura dos corpos, a ponderação judiciosa dapersona recolhe e une aquilo que,
na outra série que encena, é disparatado como mistura fantástica e jogo do
conceptismo engenhoso das semelhanças negativas34. Nela, a dissimetria das
formas misturadas está a serviço da simetria do sentido virtuoso.
Encenada como intervenção da prudência, arte do juízo, a enunciação da
persona atua na complexidade dos discursos que se disseminam, coletando-os
ha experiência de casos análogos já ocorridos no passado35. Exemplos morais
da tradição, princípios imutáveis da teologia e modelos poéticos convergem

33. Cf. Aristóteles, Elhique a Nicomaque, Introd., Notes et Index par J. Tricot, Paris, Librairie
Philosophique Vrin, 1967, V, 3, 1130-9-10.
34. Cf., por exemplo, em OC, I, p. 155, as liras dirigidas contra Antônio de Sousa de Meneses, o Braço
de Prata, quando da sua entrada em Salvador: “visão de palha sobre um Mariola”, “rosto de azarcão
afogueado”, “O bigode fanado feito ao ferro”, “olhos cagões”, “Chato o nariz de cocras sempre pos­
to”, “rocim das Alpujarras”, “descendente de lampreia” etc. são algumas das caracterizações
caricaturais, que fazem a personagem grotesca, monstruosa, não só pela hipérbole, mas também
pela participação, nela, de várias naturezas. Tais caracterizações são unificadas pela voz da persona
satírica: “cuidei, que a esta cidade, tonta, e fátua / mandava a Inquisição alguma estátua”; “[...] o
julguei um saco e melões”; "vi-te o braço [...]"; “Cuidei, que eras rocim [...]”; “o tive por um odre
esfuracado”; etc. Quanto ao conceptismo, onipresente nesta produção como racionalidade enge­
nhosa da fantasia, bom exemplo também são as décimas dirigidas a um padre Baltasar, amancebado
com duas mulheres, uma negra e uma mulata, poema cuja imaginação pode comparar-se à dos
ingleses metafísicos, como Dryden, Cowley e, principalmente, Donne, pelas fusões súbitas de con­
creto e abstrato, pela violenta aproximação de conceitos distantes, pelos trocadilhos, pelo desen­
volvimento expositivo-dissertativo de “casos” tratados hiperbolicamente (cf. OC, II, p. 287).
35. Cf. por exemplo, OC, I, p. 155: “Da Pulga acho, que Ovídio tem escrito, / Lucano do mosquito, /
Das Rãs Homero, e destes não desprezo, / Que escreveram matérias de mais peso”.

201
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

no olhar distanciado e distanciador, código não só do que ocorre, mas do que


vai ocorrer. É da relação entre a memória dos signos e sua experiência, os
modelos e seus princípios e os eventos do referencial, que vive a sátira como
técnica política da ação prudente - prudência que, por bem julgar, critica o
presente, recicla o passado e corrige o futuro. A sátira é providencialista, pois
esforça-se em dar conta do presente através da anamnese do Ditado: o vício,
imprudência e falta de juízo, dilui-se como gosto, afetação irracional do ins­
tante que foge. O passado se soletra, assim, não só como memória de casos,
mas como visada ideal: circularidade da intervenção, em que a memória arti­
culada tem sempre corte teológico, que funde razão de Estado com Razão
divina. Representação no sentido teatral do termo - ação posta em cena -
ainda quando carregado de descrições, o discurso mantém-se discurso de
persuasão36, reiterando que a Ausência encontrou, no eu que a enuncia, a figu­
ra adequada.
Nesta linha, ainda, a sátira seiscentista funciona como subgênero cômi-
co-sério do conceptismo engenhoso dos poemas de temática religiosa e estilo
elevado, como os que desenvolvem a Epístola Moral a Fábio, de Andrada. O
mesmo princípio ordena os dois gêneros de poesia, diferindo quanto à técni­
ca e ao efeito de sentido: a gravidade estóica dos poemas sacros intercepta o
burlesco das composições satíricas, como oposição de estilo alto dos primei­
ros, unificados para cima, tanto no léxico quanto na referência inatingível do
discurso, Deus e a Graça, e de estilo cômico dos segundos, misturados para
baixo, tanto no léxico quanto na referência irônica ou maledicente do discur­
so, a falta e a culpa. Direcionando ambos os gêneros de composição como
modelos da experiência moral exemplar, contudo, a mesma teologia política
da unidade e da unificação é metaforizada pela enunciação.
Em sua reativação neo-escolástica dos séculos XVI e XVII, a história é
uma compilação de contingentes passados que, ciceronianamente, formam
um análogo prático para a ação e experiência presentes. Como magistra vitae,
a história fornece, enquanto narração política, a exemplaridade dos modelos
da experiência moral prudente vivida por varões ilustres e proféticos, espe­
lho de príncipes. Acrescentando-se do objetivo pedagógico, é previdente: His­
tória do Futuro é bem o título que figura a especularidade da doutrina da
história como a conservação da experiência passada como padrão futuro que
pressupõe a repetição da Identidade divina nos diferentes tempos históricos
tornados análogos pela participação na substância metafísica incriada. Or­

36. Cf. Paul Zumthor, La masque ei la lumicre (La poélique des grands rhétoriqueurs), Paris, Seuil, 1978, p.
50.

202
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

dem natural figurada por Deus no tempo, a especularidade da tipologia im­


plica obediência política, uma vez que o governante é causa segunda da Cau­
sa Primeira e desobedecer-lhe é não só um erro político, mas também pecado
contra a Vontade.
Na poesia, a esse padrão ibérico providencialista dos séculos XVI e XVII
corresponde a grande quantidade de poemas de tema mitológico, principal­
mente romano, com deuses moralizados alegoricamente. Tais figurações
acoplam-se à experiência presente, má e decaída, teatro do mundo, sonho e
passagem, determinando a coexistência e o conflito de pelo menos duas vo­
zes. Uma delas é a das razões morais e políticas da persona dos poemas, figu­
radas na marca dos cultos da época, a agudeza, que os fazem solenes, erudi­
tos, pesadões de alusão clássica alegorizante. A outra voz - que são muitas no
referencial da Cidade - só se deixa ouvir recortada na outra, surgindo pelo
avesso ou interstício das razões morais alegadas. Desenvolvendo a concepção
da vida como desengano, o topos antigo da fugacidade do tempo vem entretecido
de motivos religiosos que, embora fortíssimos, não o determinam como for­
ma artística produzida diretamente pela Contra-Reforma, como é costumeiro
ouvir e ler, dada sua anterioridade mesma. Os motivos religiosos reinterpretam
o topos na propaganda da fé, não o inventam.
Nesses poemas, quando líricos, a interpretação conceptista do petrarquis-
mo efetua uma cisão no modelo, propondo-se os corpos do homem e da mu­
lher como objetos de gozo e, simultaneamente, como cadáveres antecipados
pela luz pálida do fim em que o prazer se absorve. Como se neles confluíssem
dois tempos, um mítico-heróico, já gasto, outro contemporâneo, que, no seu
“ainda não”, deságua com o outro continuamente no mar da morte. De grande
circulação no século XVII ibérico, tais poemas compõem até à exaustão a dis­
crição de suas personagens no estilo alto das metáforas exuberantemente
minerais, cuja riqueza alegoriza não apenas a juventude e a beleza dos corpos
precários, como tipificação dos amantes, mas também a posição dos tipos da
hierarquia como “melhores”, disponibilidade discreta da dama, virilidade
ociosa do cortesão. A excelente emulação de Garcilaso de la Vega e Góngora
atribuída a Gregório de Matos e Guerra - “Discreta e formosíssima Maria” -
é uma das obras-primas desse gênero.
Tanta pompa fúnebre e tanta ocasião aristocratizante estão rebatidas na
sátira, na voz prudente da persona que as encena como teatro do vício e utopia
política. Enquanto gesto de intervenção na Cidade, a sátira postula a unifica­
ção de todos em torno das virtudes do bem comum. O gesto fracassa a priori,
contudo, pois são essas mesmas virtudes as que o poder estatal alega e o poder
é, efetivamente, divisão hierárquica. Assim, a unicidade do bem comum

203
A SÁ T IR A E 0 E N G E N H O

apregoado na sátira visa a manter a mesma hierarquia, como lei natural da


divisão a que não faltam as cores do pecado e da morte:

U m a só n a tu r e z a n o s fo i dada:
N ã o c r io u D e u s o s n a t u r a i s d i v e r s o s ,
U m só A d ã o fo r m o u , e e s se d e n ad a.
T o d o s s o m o s r u in s , to d o s p r e v e r so s
S ó n o s d i s t i n g u e o v í c i o , e a v ir t u d e ,
D e q u e u n s sã o c o m e n s a is , o u tr o s a d v erso s.

(O C , II, p. 471.)

Dramatizando a mesma divisão natural em sua estrutura, a sátira unifica


quando divide e só divide para unificar - politicamente:

D e s e jo , q u e to d o s a m em ,
s e ja p o b r e , o u s e ja r ic o ,
e se c o n te n te m c o m a so r te ,
q u e tê m , e e s tã o p o s s u in d o .

(O C , I, p . 2 8 .)

Como sua dicção é dupla, deve-se perguntar pela posição dos corpos de
linguagem inventados pelo olho e amplificados pelos óculos interpostos. A
caracterização da visão pelos crivos com que pensa o que vê e vê o que pensa,
ora alargando, ora estreitando as malhas, ora agredindo maledicentemente,
ora ironizando jocosamente, esfumaçando ou clareando os contornos na mo­
dulação dos casos ridículos e obscenos, estabelece o código de honra dapersona
nos poemas. Como é sempre a instituição que produz a perversão, simultanea­
mente também estabelece outras codificações, rebaixadas como deformidade
ridícula e obscena.
O código de honra é enunciado na sátira como moral sentenciosa, em
cuja composição vários saberes concorrem, determinantemente a teologia-
política da divisão hierárquica. Nela se imbricam virtudes medievais, rearti-
culadas como mito épico-cavalheiresco e padrão cortesão discreto. Como mito,
a virtude brilha em ausência e estabelece a legalidade fundamentando-a no
nascimento nobre, segundo o Direito natural37. No código de honra atuam

37. Como se vê no capítulo IV, a sátira opera com procedimentos do gênero epidítico ou demonstrati­
vo, como arte de vituperação. Desta maneira, é simetricamente inversa da poesia encomiástica. A
relação entre louvor e viluperação permite, portanto, também relacionar poesia encomiástica e poe­
sia satírica, uma vez que o mesmo princípio, presente no encômio, é efetuado como ausente na

204

M
A PROPORÇÃO DO M O NSTRO

formulações religiosas, ainda, como distinção sempre operante de católico/


herege/gentio. Antiluteranismo, anticalvinismo, antierasmismo, antijudaísmo,
antimaquiavelismo, desprezo radical pelas práticas religiosas de negros, ín­
dios, mulatos, árabes, mouros, indianos, em discursos em que a razão teológi­
ca não se dissocia da razão prática: seja a concorrência com os holandeses
calvinistas no riquíssimo comércio do açúcar e do tráfico negreiro, seja a es­
poliação dos capitais judaicos na Península e no Brasil pelo Santo Ofício alia­
do da nobreza fundiária, seja o escravismo e as técnicas pedagógicas oportu­
nas do jesuitismo como catequese e destribalização, controle, castigo exemplar
e produção contínua da mais-valia dos corpos pela fabricação de almas.
Efetuada como intervenção reguladora, a sátira é mimética, não no senti­
do da cópia realista, mas como mímica do caráter, “dramatização estamental”38
de princípios e casos retóricos cuja exageração esboça um sentido desfigura­
do e desfigurador. Não obstante a deformação por vezes extrema, tal sentido
mantém-se35 como apelo verossímil da referência que preenche o caso, cons­
truindo o destinatário como capaz de identificar a pessoa satirizada pela com­
paração do tipo grotesco e dos traços individualizantes extraídos do referencial
que o compõe. A sátira estiliza alguns elementos individualizadores - geral­
mente, o nome ou a ocupação - montando-os seletivamente. Ao mesmo tempo,
intercala-os em outros motivos caracteriais, fantásticos, formulando carica­
turas40:

O q u e te v ir s e r t o d o r a b a d ilh a
D i r á , q u e te p e r f ilh a
U m a q u a r e sm a (c h a to p e r c e v e jo )
P o r A r e n q u e d e f u m o , o u p o r B a d e jo :
S e m c a r n e , e o s s o , q u e m h á a l i , q u e c r e ia ,
S e n ã o q u e é s d e s c e n d e n t e d e L a m p r e ia .

sátira. Cf. também os poemas laudatórios dirigidos ao Conde do Prado, OC, I, pp. 170, 176-177,
183, 191-192 ctc.
38. A expressão é de Maravall e aqui c utilizada para designar a rearticulação da virni medieval pela
sátira seiscentista, não sua adequação à Colônia, que não é feudal. Cf. José Antonio Maravall, op.
cil.
39. “Mantem”, supondo-se o presente de enunciação da sátira, que efetua o destinatário articulando-
o com a referência local. Seria difícil sustentar que sempre “mantém”, contudo, porque hoje tal
referência inexiste, de modo que aquilo que é o presente evidente para destinatários contemporâ­
neos da enunciação da sátira hoje é muita vez um passado enigmático.
40. Cf. Lomazzo, “Compositione di ritrarre dal naturale", em Traltato dcWarle delia pitlura, scollura ct
architeltura, Mílano, Apresso Pier Paolo lo Gottardo Pontio, 1585. A instantia di Pietro Tini.

205
A SÁ T IR A E O E N G E N H O

N a m ã o e s q u e r d a t r a z ia s a b e n g a la
o u p o r f o r ç a , o u p o r g a la :
N o s o v a c o p o r v e z e s a m e t ia s ,
S ó p o r fa z e r e n fim d e s c o r te s ia s ,
T ir a n d o a o p o v o , q u a n d o te d e s t a p a s ,
E n to n c e s o c h a p é u , ago ra a s ca p a s.

F u n d ia -s e a c id a d e e m c a r c a ja d a s,
V en d o as d u a s e n tr a d a s,
Q u e f i z e s t e d o M a r a S a n t o I n á c io ,
E d e p o i s d o c o l é g i o a t e u p a lá c io :
O R a b o e r g u id o e m c o r t e s ia s m u d a s ,
C o m o q u e m p e lo c u t o m a v a a j u d a s .

(O C , I, p p . 1 5 7 - 1 5 8 .)

O que produz a verossimilhança dessas “Liras” que se ocupam de Antô­


nio de Sousa de Meneses, governador, é duplo: a semelhança positiva da
estilização, reconhecível no referencial local de discursos - “Braço de Prata”,
“palácio”, “bengala na mão esquerda”, “entrada do Mar a Santo Inácio” etc. -
assegura a mímese como abstração, conforme critérios aristotélicos. A seme­
lhança negativa das deformações da fantasia - “ser todo rabadilha”, “Aren­
que”, “Badejo”, “sem carne, e osso”, “descendente de Lampreia”, “pelo cu
tomava ajudas” etc. - traduz, na desproporção irracional e estúpida das mis­
turas, a adequação aristotélica: a desproporção, como já se viu, é proporcio­
nada para caracterizar o vício e o vicioso tipificados. Assim, os motivos fan­
tásticos, alternados com motivos icásticos, deslocam a estes, propondo-os
também amplificados: a caricatura conserva os traços individualizantes, como
um retrato “comentado” pela metaforização grotesca. Por isso, também, a
sátira se torna muita vez enigmática hoje, quando para seu leitor falta a signi­
ficação da referência estilizada, sobrando-lhe o segundo movimento, a defor­
mação. Esta também é obscura, muitas vezes, pois é uma glosa metafórica e
avaliativa de um sentido literal mimético, supostamente um discurso refe­
rencial ausente na leitura e que, para contemporâneos, era evidente. Com
isto, afirma-se que a formulação grotesca condensa duas funções, representa­
tiva e avaliativa, mimética e judicativa, como ainda se vê no capítulo IV.
Pelo cotejo de poemas e outros textos do século X V I I , alguns critérios
dessa dupla funcionalidade, representativa e avaliativa, puderam ser estabe­
lecidos. Entre eles, os da persona e de seu tema de eleição, o bem comum da
República, articulado como unidade das ordens do corpo místico do Estado.
Tal discurso, já se viu, é o sentido próprio das Atas da Câmara e das Cartas do

206
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

Senado analisadas no capítulo II. Dupla, a sátira opera este sentido próprio,
que é o de uma normatividade generalizada, e com glosas dele, alterando-o e
deformando-o conforme os casos. Em outros termos, ela pode fazer-se como
variação mista de um sentido próprio encontrável em discursos contemporâ­
neos segundo outros fins. Este sentido, diga-se ainda uma vez, é critério de
representação e de avaliação. Lugar-comum dele, como se leu nas Atas e Car­
tas, é a miséria da população.
Toda essa população murmura, como se viu no capítulo II. Murmura: os
impostos, a justiça, a administração da Câmara, os mercadores monopolistas,
os escândalos de convento, os cristãos-novos, os contrabandos dos ourives, o
atravessamento das farinhas, a vida alheia. Se a convivência na Cidade4142de­
termina a prescrição das liberdades pela administração e a imposição das leis
de precedência, controle hierárquico e outras formas mais óbvias de controle,
como a milícia, os almotacés, a Infantaria, os açoites, o degredo e a forca, o
relativo anonimato dessa população efetuada nos documentos implica, por
sua vez, a liberdade da isenção relativa do controle, que os mesmos documen­
tos exemplificam. De modo que: “La ciadad que por la concordia era una ciudad,
sin ella es dosy a veces tres o cuatro,faltándole el amor, que reducía en un cuerpo los
ciudadanos”*1.
Essa mesma falta de amor, virtus unitiva da República, caracteriza na sá­
tira a corrupção efetuada do bem comum, que desagrega a ordem e divide a
Cidade em duas, três e quatro. A sátira se faz como distância dramatizada do
sentido próprio de sua intervenção, bem comum, em glosas que o encenam
em situações diferenciadas. Num longo romance, em que a Bahia é personi­
ficada e fala em primeira pessoa, queixando-se das críticas da mesma sátira,
confessa que as culpas que lhe increpam não são suas, mas dos moradores
viciosos que alberga. Como um mapa de culpas, ou um arquivo de incons-
tâncias, o poema perspectiva a distância hierárquica ideal, segundo a técnica
do confessionário, numa alegoria que estiliza os Dez Mandamentos cristãos.
No exórdio, a Bahia encena a contrição, dispondo-se a confessar-se em res­
posta aos que a atacam. Movimento irônico, a sátira encena a desqualificação
da sátira e de seus autores, caracterizados como “murmuradores nocivos” a
que se atribuem “culpas, e delitos”:

41. Cf. José Antonio Maravall, op. dl., p. 262. “A cidade é, por antonomásia, o lugar problemático da
época barroca” (idern, p. 264).
42. D. Saavedra Fajardo, op. cit., vol. II, Empresa LXXXIX.

207
A SÁ T IR A E O E N G E N H O

Já q u e m e p õ e m a to r m e n to
m u r m u r a d o r e s n o c iv o s ,
c a r r e g a n d o s o b r e m im
s u a s c u l p a s , e d e lit o s :
P o r c r é d it o d e m e u n o m e ,
e n ã o p o r te m e r c a s tig o
co n fessa r q u ero os p eca d o s,
q u e f a ç o , e q u e p a t r o c in o .

(OC, I,p. 11.)

O móvel da confissão é, ironicamente, a defesa da honra ultrajada: “por


crédito de meu nome”. Dissimetria, logo a seguir, entre honra e estilização da
referência local, a população:

T e n h o T u rco s, te n h o P ersa s
h o m e n s d e n a çã o ím p io s
M a g o r e s , A r m ê n io s , G r e g o s,
in fié is , e o u tr o s g e n tio s .
T e n h o o u s a d o s M e r m id ô n io s ,
te n h o ju d e u s , te n h o A s s ír io s ,
e d e q u a n ta s ca rta s h á ,
m u i t o t e n h o , e m u i t o a b r ig o .

(OC, I,p. 12.)

“Infiéis” e “gentios” são padrões da hierarquização, conforme já se escre­


veu, efetuados como tipos - por exemplo, índios, negros e cristãos-novos. Como
amplificação metafórica, transformam-se em “Persas”, “Mermidônios”, “As­
sírios”, classificações buscadas à tradição clássica ou bíblica como exemplos
de maldade. Assim estilizados os “infiéis, e outros gentios” - entre os quais
também se alinham homens de negócio, como os ciganos magiares, armênios
e gregos -, segue-se um elenco de vícios estilizados negativamente nas dez
partes do poema após o exórdio, como preceitos que retomam, pela ordem, os
Mandamentos:

E sc n ã o d ig a m a q u e le s
p r e z a d o s d e v in g a tiv o s ,
q u e s a n t i d a d e t e m m a is ,
q u e u m T u r c o , e u m M o a b it o ?
D i g a m id ó la t r a s f a ls o s ,
q u e e s to u v e n d o d e c o n tin o ,
a d o r a r e m a o d in h e ir o ,

208
A PROPORÇÃO DO M O N ST RO

g u la , a m b i ç ã o , c a m o r ic o s .
Q u a n t o s c o m c a p a c r is tã
p r o fe ss a m o ju d a ís m o ,
m o str a n d o h ip o c r ita m e n te
d e v o ç ã o à L e i d e C r is to !
Q u a n t o s c o m p e l e d e o v e lh a
s ã o lo b o s e n f u r e c i d o s ,
la d r õ e s , f a l s o s , e a l e i v o s o s ,
e m b u s t e i r o s , e a s s a s s in o s !
E s t e s p o r s e u m a u v iv e r
se m p r e p é s s im o , e n o c iv o
são, os q u e m e a c u sa m d a n o s,
e p õ e m l a b é u s in a u d i t o s .

(OC, I,p. 12.)

Ira, idolatria, heresia, hipocrisia, gula, luxúria, usura, maledicência, rou­


bo, assassínio, ambição, vingança - suficientemente genérico para referir
qualquer ocasião negativa, o rol dos topoi é muito convencional e, como ainda
se vê no capítulo V deste livro, próprio dos discursos do gênero demonstrativo
da oratória, que opera com lugares de louvor e vituperação. A generalidade
das tópicas é particularizada, contudo, em cada preceito que o poema desen­
volve como exemplo, depois do exórdio em que fala a Bahia. Assim, cada
vício do referencial local - a macumba dos negros, os amores ilícitos, as agres­
sões, a dissimulação, os negócios escusos - é estilizado como semelhança in­
fernal da verdade de cada preceito bíblico. Incluído no modelo genérico dos
vícios, o vício local é caracterizado negativamente, traduzido como transgres­
são da unidade virtuosa: por exemplo, as práticas religiosas africanas são ido­
latria, heresia, pecado mortal. E a mesma tradução que funciona como metá­
fora deformadora e amplificação, segundo a fantasia poética. A mesma
tradução é operada por traços descritivos das naturezas locais, observando-se
o procedimento já referido acerca da caracterização do governador Sousa de
Meneses. O que efetua, ainda esta vez, generalização do alcance da crítica,
“sem andar excogitando / para quem se aponta o tiro”. Assim é que a Bahia
ainda finge uma causa maior de seus tormentos, os pasquins anônimos e,
entre eles, a sátira e a temporalidade curta de sua recepção na praça:

M a s o q u e m a is m e a t o r m e n t a ,
é v er, q u e o s c o n t e m p l a t i v o s ,
sa b e n d o a m in h a in o c ê n c ia ,
d ã o a s e u m e n t i r o u v id o s .

209
A SÁTI RA E O E N G E N H O

A té o s m e s m o s c u lp a d o s
tê m to m a d o p o r c a p r ic h o ,
p a r a m a is m e d i f a m a r e m ,
p o r e m p e la p r a ç a e s c r it o s .
O n d e e screv em se m v erg o n h a
n ã o só b r a n c o s, m a s m e s tiç o s ,
q u e p a r a o s b o n s s o u in f e r n o ,
e p a r a o s m a u s p a r a ís o .

( O C , I , p . 1 3 .)

Alegada a inversão, lugar-comum da C olônia-“para os bons sou inferno,/


e para os maus paraíso” -, a fala da Bahia é recortada, ironicamente, como
inversão de inversão, ou fala retificadora cuja articulação é, ainda, a hierar­
quia. Muito racionalmente, num discurso deliberativo, a Bahia argumenta
com seus detratores, retomando o início do poema como confissão:
Ó v e lh a c o s in s o le n t e s ,
in g r a t o s , m a l p r o c e d i d o s ,
se e u so u e s s e , q u e d iz e is ,
p o r q u e n ã o l a r g a is m e u s ít io ?
P o r q u e h a b i t a i s e m t a l te r r a ,
p o d e n d o e m m e l h o r a b r ig o ?
e u p e g o c m v ó s ? e u v o s ro g o ?
r e s p o n d e i! d i z e i , m a ld it o s !
M a n d e i a ca so c h a m a r -v o s
o u p o r c a r t a , o u p o r a v is o ?
n ã o v ie s te s p ara a q u i
p o r v o s s o liv r e a lv e d r io ?
A to d o s n ã o d e i e n tr a d a ,
t r a t a n d o - v o s c o m o a f ilh o s ?
q u e razão te n d e s agora
d e d if a m a r - m e a t r e v id o s ?
M e u s m a le s , d e q u e m p r o c e d e m ?
não é d e v ó s ? c la r o é is s o :
q u e eu n ã o fa ç o m a l a n a d a
p o r s e r t e r r a , e m a t o a r is c o .

(O C , I, p . 1 4 .)

Depois da imprecação e de um retrospecto43de sua história segundo o


modelo da parábola do semeador e da conclusão de que “o que produzia ro­

43. O procedimento de retrospecto encontra-se em outros poemas cuja tópica é “Cidade”.

210
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

sas, / hoje só produz espinhos” (OC, I, p. 14), a Bahia enuncia o tema do


poema, anunciando o desenvolvimento dos preceitos:

V ó s m e e n s in a s te s a ser
d a s i n c o n s t â n c i a s a r q u iv o ,
p o is n e m a s p e d r a s , q u e g e r o ,
g u a r d a m fé a o s e d i f íc io s .
P or v o ss o r e s p e ito d e i
c a m p o fr a n c o , e g r a n d e a u x ílio
para q u e se q u e b r a n ta s s c m
o s m a n d a m e n to s d iv in o s .
C ad a um p o r su a s ob ra s
c o n h e c e r á , q u e m e u x i n g o 44,
se m a n d a r e x c o g ita n d o
p a r a q u e m s e a p o n t a o tir o .

(O C , I, p p . 1 4 -1 5 .)

A seguir, em dez preceitos, o poema estiliza os Dez Mandamentos,


efetuados como seu sentido próprio positivo. A negativa de cada preceito,
deformado e descritivo, funciona duplamente, pois, como glosa do discurso
bíblico, modelo do bem comum, e como referência da Cidade, lugar do vício.
Como um mapa desse “arquivo das inconstâncias”, uma vez que seu sentido
próprio são os Dez Mandamentos centrais na fundamentação da hierarquia,
o poema é útil para fixar os principais vícios que afligem a Cidade, segundo a
enunciação, e, assim, as virtudes de seu código de honra. Vale lembrar que a
estilização é, em cada preceito, dramatização montada por quadros justapos­
tos nos quais a Bahia é um ator emissário, desdobramento metafórico da
persona. Veja-se o primeiro deles: “Amar a Deus sobre todas as coisas”.

Q u e d e q u ilo m b o s q u e te n h o
c o m m e s tr e s su p e r la tiv o s ,
n o s q u a is s e e n s i n a m d e n o it e
o s c a lu n d u s , e fe itiç o s .
C o m d e v o ç ã o o s fr e q ü e n ta m
m il s u j e i t o s f e m i n i n o s ,
e ta m b é m m u ito s b a r b a d o s,
q u e s e p r e z a m d e n a r c is o s .

44. “Quem eu xingo” é mais adequado, neste contexto, que “quem m eu xingo” da e d ição de Ja m e s
Amado.

211
A SA T IR A E 0 E N G E N H O

V en tu ra d iz e m , q u e b u sc a m ;
n ã o s e v iu m a io r d e lír io !
e u , q u e o s o u ç o , v e j o , e c a lo
p o r n ã o p o d e r d iv e r t i- lo s .
O q u e s e i, é , q u e c m t a i s d a n ç a s
S a ta n á s an d a m e tid o ,
e q u e só ta l p a d r e - m e s t r c
p o d e e n s i n a r t a is d e l í r i o s .
N ã o h á m u lh e r d e sp r e z a d a ,
g a lã d e s f a v o r e c id o ,
q u e d e i x e d e ir a o q u i l o m b o
d a n ç a r o se u b o c a d in h o .
E g a s t a m b e l a s p a ta ç a s
c o m o s m e s tr e s d o c a c h im b o ,
q u e s ã o t o d o s j u b ila d o s
e m d e p e n a r t a is p a t in h o s .
E q u a n d o v ã o c o n fe ss a r -s e ,
e n c o b r e m a o s P a d r e s is t o ,
p o rq u e o têm por p a ssa te m p o ,
p o r c o s tu m e , o u p or e s tilo .
E m c u m p r i r a s p e n i t ê n c ia s
r e b e ld e s sã o , e r e m is s o s ,
e m u i t o p io r se a s t a is
sã o d e je ju n s, e c ilíc io s .
A m u ito s o u ç o g e m e r
c o m p e sa r m u ito e x c e s s iv o ,
n ã o p e lo h o r r o r d o p e c a d o ,
m a s s im p o r n ã o c o n s e g u i - l o .

(O C , I, p p . 1 5 -1 6 .)

Ficção narrativa, a voz da Bahia ocupa o mesmo lugar do olho a distância


do início deste capítulo, como olhar do testemunho: “eu, que os ouço, vejo, e
calo”; “o que sei”; “A muitos ouço”. O ponto-tema do olho, a religião africana,
é idolatria e heresia, segundo a lente deformante da ortodoxia católica. A
mesma religião que constitui Deus e sua falta, “Satanás”, ordena a visão da
Bahia, quando opõe práticas católicas a africanas: a sátira exclui o negro da
boa semelhança, incluindo-o na operação como seu outro idólatra, herético,
pactário. Propõe, ainda, que os hábitos e práticas católicos se imponham a
todos, lamentando que estejam alterados, o que se observa na estilização das
perguntas do confessionário - sobre o sacrilégio, por exemplo: “Calaste

212

j
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

sacrilegamente, por vergonha, algum pecado numa confissão passada?”45,


estilizado como: “E quando vão confessar-se, / encobrem aos Padres isto, /
porque o têm por passatempo, / por costume, ou por estilo”. Desqualificação
do negro, mas também de outros, não-negros: “mil sujeitos femininos, / e
também muitos barbados,/que se prezam de narcisos”.
Se a heresia é soletrada pela legibilidade doutrinária da hierarquia, aqui,
pela mediação de “Satanás”, a prática religiosa não-católica é “delírio”, “lou­
cura”, classificação de irracionalidade que se estende ao judaísmo, islamismo,
bramanismo, luteranismo, calvinismo etc., enquanto o catolicismo se eleva
como racionalidade e verdade.
A interpretação da voz prudente da p e r s o n a articula o imaginário do sis­
tema - ética, religião, divisão jurídica - como qualidade positiva ausente na
Cidade, sobredeterminando as imagens de sua referência. Na sobredetermi-
nação, o discurso divide-se para unificar seu efeito amplificado: a voz descri-
tívo-narrativa mimetiza a Cidade e sua corrupção; a voz prescritiva avalia o
sentido de tais imagens, dividindo-as pela antítese virtude/vício como tradu­
ção moralizante, como acusação de culpa, como normatividade de medidas a
serem tomadas para sanar o mal. O vício é investido nas imagens torpes, como
metaforização disfórica da ponderação da voz que dramatiza a virtude. Com
isto se repete que é a virtude que gera os vícios, não o oposto: a sátira constrói
uma imagem amplificada da corrupção de um tipo decaído porque, simulta­
neamente, alega a ordem, paralela à mesma corrupção. Como opera com tra­
ços estilizados que individualizam, compõe o destinatário como capacitado
para estabelecer analogia entre a imagem deformada e o evento referido pela
deformação e, ainda, como capaz de preencher a ausência efetuada pela voz
virtuosa quando identifica a imagem e o evento. A sátira atinge seu fim, que
é o de fazer com que a imagem apenas verossímil seja tida como dada ou
positiva, quando o destinatário adetp ao lugar da enunciação e assume a pon­
deração como critério avaliativo e corretivo do mal. Assim, a ordem mítica
das virtudes absorve em sua idealidade a mesma dissimetria que sua mera
postulação implica: para ela flui toda a corrupção das imagens dos maus há­
bitos do presente, inclusive os do destinatário e a sua murmuração, que adere
à ordem quando ri com a catarse de sua encenação.
A utilização de outros documentos do século XVII, que efetuam uma
regulação prática dos discursos de seu tempo, permite posicionar a regulação

45. Cf., por exemplo, A Pérola Eucarística das Crianças. Lembrança da Primeira Comunhão pelo Pbro.
Vicente-Jimenez C. Aí., versão por um padre jesuíta, 3. ed., Czechoslovakia, Casa Ed. Católica J.
Steinbrener, A. N. Vimperk, s/d., p. 27. Cf, principalmente, “Exame pelos Mandamentos”.

213
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

moral do verossímil satírico, indicando outros motivos para a constituição de


tanto monstro que nele pulula. Como já ficou dito no capítulo II, são perspec­
tivados: quando um mesmo tema é tratado neles e na sátira, sua comparação
permite evidenciar outras posições da crítica a determinados eventos. Sirva
de exemplo a encenação constante do “mulato” na sátira, criticado sempre
por meio do estereótipo ibérico da “limpeza de sangue”. Segundo a encena­
ção satírica, a mesma “limpeza de sangue” é limite da pretensão e da arrogân­
cia mulatas:

Alerta Pardos do lrato,


a quem a soberba emborca,
que pode ser hoje forca,
o que ontem foi mulato.
(OC, II, p. 423.)

ou

[...] porque é mulato:


ter sangue de carrapato
ter estoraque de Congo
cheirar-lhe a roupa a mondongo
é cifra de perfeição:
milagres do Brasil são.
(OC, IV, p. 793.)

Além da obviedade da classificação do negro e seus descendentes como


“peças”, “bestas”, “alimárias” para os brancos em sociedade escravista, há
outras razões da crítica a eles, mais particulares, englobadas no quadro geral
do escravismo. Quando se lêem asAfas da Câmara e as Cartas do Senado en­
contram-se várias providências da Câmara para proibir a entrada ou a per­
manência dos mulatos na Cidade, indicando-se que devem ser mantidos fora
de seu termo. Conforme o verossímil satírico, a interpretação exclusiva da
aversão pelos mulatos é a “limpeza de sangue”, como um estereótipo. Contu­
do, como se leu no capítulo II, o Terço da Infantaria que protege Salvador
chega ao efetivo de 2500 homens, mercenários quase todos, que volta e meia
se rebelam nas Cartas pelo não-recebimento de soidos e de sírios da farinha
que substitui o trigo, prometidos pela mesma população que se autotributa
para comprá-los de Cairu, Camamu e Boipeba. No capítulo II, os sírios são
desviados, têm peso menor, são revendidos, o que efetua a rebelião da solda-

214

à
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

desca indignada e faminta, como se leu. Os soldados são também propensos à


prática de arruaças e assuadas quando, aos bandos, metem-se em encrencas
nas ruas dos documentos e quando bebem a jeribita, a aguardente proibida e
vendidíssima, nas tavernas espalhadas pelas notícias das Cartas eAtas. Gran­
de parte do efetivo do Terço é composta de mulatos. Num soneto satírico,
andam

Muitos Mulatos desavergonhados,


Trazidos pelos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.
(OC, I, p. 3.)

Aqui, as cartas de nobreza mulata, as palmas brancas das mãos, são fusti­
gadas pela sátira de maneira bastante tradicional, segundo a tópica medieval
do mundo às avessas, pela presunção e pelo excesso do não-reconhecimento
de seu lugar de membros ínfimos no corpo da República. Pela condensação
de “pícaro” e de “picard”, os mulatos são desqualificados como os pícaros de
outra estirpe que a sátira figura insultuosamente: rufiães, gente vil. PelasAms
e Cartas, sabe-se que os soldados do Terço, principalmente oficiais, também
sargentos e outros, costumam desalojar os habitantes, passando a morar sem
pagar aluguel, privilégio que se alastra perigosamente, pois torna-se murmu-
ração. Eis aqui uma espécie de metaforização das razões: o que nas Atas e
Cartas é questão de controle da população, independentemente da cor, pois a
“limpeza de sangue” está incluída naturalmente no controle exercido, na sá­
tira é enquistamento metafórico na cor, posição fidalga que o povoamento do
Recôncavo já torna um arcaísmo no mesmo século XVII, pela miscigenação
crescente que é, inclusive, ambígua política oficial, dada a falta de gente16.
No soneto referido, o motivo central do ataque contra os mulatos encontra-se
no verso: “Trazidos pelos pés os homens nobres”, que pode ser metaforizado
aqui pela notícia de arruaças, rebeliões e ocupação dos imóveis, segundo as
Atas e as Cartas, que também referem que o negócio das carnes está, geral­
mente, em mãos de açougueiros mulatos que as vendem com alteração no
peso. Muitas/Pas da Câmara de Salvador registram, aliás, determinações dos
vereadores de que a carne seja exposta pendurada, para que o sangue escorra
todo e não pese. Os açougueiros mulatos insistem, segundo elas, em expô-la
amontoada. As Atas registram também, neste sentido, intervenções de juizes
do Povo contra eles, afirmando “porque são inimigos do Povo” como justifi-46

46. Cf. C. R. Boxer, O Império Colonial Português (1415-1825), Lisboa, Edições 70, 1981, pp. 250*255.

215
A S Á T I R A E O E N GE N H O

cativa das medidas. Tal referencial de discursos é dramatizado, na sátira, pelo


verso “Posta nas palmas toda a picardia”, segundo o topos convencional “ori­
gem”. Pode-se afirmar, portanto, que intervém dois princípios miméticos: o
da seleção e o da abstração corretora dos casos da invenção. Por eles, a inter­
pretação da ameaça mulata das Cartas eAtas é encenada como improprieda-
de de tal ameaça e abuso, vistos à luz da hierarquia e da limpeza de sangue47.
As referências disfóricas a negros e a mulatos adaptam-se, economica­
mente, a ocasiões muito variadas em que há interesse em denegri-los e que a
sátira não nomeia, necessariamente: a deformação funciona como um chavão,
estereótipo aplicável a várias ocasiões e pessoas. Por exemplo, revoltas de
escravos, bebedeiras e arruaças, confusões nas festas da Igreja, feitiçaria,
calundus, a própria proximidade dos negros etc.
Dada a orientação descritiva e prescritiva das Atas e Cartas, viu-se que é
possível construir outras versões de um tema determinado, pois tais docu­
mentos são também articulados pelo referencial dos discursos locais. Preços
do azeite, bacalhau e vinho, cotação do açúcar, estanco do sal, eleição da Câ­
mara, disposições sobre festas religiosas e provisões da Santa Casa de Miseri­
córdia e do Convento de Santa Clara, petições de senhores de engenho, novas
máquinas para a moagem da cana, relatórios de avarias de navios e cargas,
reclamações contra impostos, providências para a coleta de lixo, pendências
com religiosos de várias ordens, proibição de trajes e porte de arma, querelas
com ouvidores, desembargadores, juizes de Órfãos e dos Defuntos e Ausen­
tes, elogios ou críticas de governadores e bispo, protestos protocolares de
vassalagem, afirmação reiterada da ponderação e prudência na boa condução
do navio da República, precedências infringidas, casos de prisão, contraban­
do e naufrágios etc. desenham mapas imaginários da delinqüência e da os­
tentação, da ordem e da desordem, de fomes e de fartura, de murmuração e
de adesão, de distribuição, enfim, de práticas muito diversificadas no mesmo
lugar e tempo dos textos, Salvador em fins do século XVII.
Propondo sempre a experiência dos casos, a mímese satírica dramatiza
em suas formas a mesma movimentação das trocas discursivas legíveis em
Atas e Cartas. Sua gesticulação é a do dinamismo tenso característico da épo­
ca e talvez se explicite melhor quando se lembram os dois tempos que postu­
la: este, presente mau e decaído, e que passa como esvaziamento contínuo do

47. “Esse preto de rabo ao léu” - assim o venerável Patriarca jesuíta da Etiópia, Dom Afonso Mendes,
costumava referir-se a seu colega, um brâmane cristianizado, Dom Mateus de Castro, bispo de
Crisópolis. Cf. C. R. Boxer,/l Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770), Lisboa, Edições 70, 1981, p.
26.

2 16
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

outro, aquele, perfeito e pleno, que não passa nunca, porque já passou desde
sempre. Nesse dinamismo, a mesma linguagem circula como diagrama das
trocas48 que dramatiza e efetua: "troca”, "trocar”, “ligeireza”, “trote”, “su­
bir”, “baixar”, “mudança”, “cuidado”, “fortuna”, “fortunilha”, “roda”, “aca­
so”, “ocasião”, “fogo ativo”, “de contínuo”, “hoje-ontem”, “ontem-hoje”, “mu­
dar”, “mudar-se”, “mudança” são exemplares do léxico que, na desordem
dinâmica de tudo, compõe o próprio dizer como passagem para a solução
conservadora, desejosa de agarrar o instante que passa fixando-o, ao instante,
numa duração que é a medida precária do tempo que o leva para sua autodis-
solução.
Olho no mar, lente interposta, ponto: tópicas, tipologia, topologia. Nas três
classificações das trocas discursivas, aqui um artifício que lineariza sua si-
multaneidade na sátira, funcionam regras: regras retóricas para a mímese,
para a invenção dos corpos de linguagem, fundindo a retórica com o aparato
jurídico-teológico, para sua ordenação por lugares encenados da hierarquia.
Funcionam como crivos da intervenção, metaforizando e classificando a tudo
e a todos pelas normas ja aludidas do Bem. Dividcm-se em verossímeis, com­
põem cruzamentos ibéricos e italianos, reiteram, estilizam ou parodiam o
petrarquismo, reativam o escárnio, as burlas, a diatribe, o entremez e a farsa,
movimentam o conceptismo engenhoso, retomam resíduos quinhentistas...49
Tais regras efetuam a adequação, segundo o decoro, da invenção, dispo­
sição e elocução dos casos, como arte que subordina seus procedimentos
retóricos e código de honra a um fim, a hierarquia. Segundo ela, a ordem
retórica dos conceitos nos poemas é homóloga do conceito teológico-políti-
code ordem. O extensocorpus dos poemas é, desta maneira, um rebatimento
discursivo de uma ordenação vertical, imanente, gravada nos corpos e ins­
tituições, figura de El-Rei, metáfora encarnada da Lei transcendente que
nele se atualiza e expande dilatando a Fé e o Império, descendo com sua
imagem, vestígio e sombra escolásticos até a prostituta negra mais desgra­
çada, fluindo pelos desvãos sombrios que toda afirmação da Qualidade fun­
damenta, prescreve e cega em sua luz. Infinitismo da lei, a sátira também

48. Cf. José Miguel Soares W isnik (Seleção, Introdução e Notas), Pontua'Escolhido* de Gregário de
Maios, São Paulo, Cultrix, 1975. W isnik vê num "mundo trocado pela troca [...] uma das chaves da
poética gregoriana", p. 19.
49. Lembre-se que, entre outros, a sátira da “vã cobiça” e da “glória de mandar" tinha-se tornado um
topos das letras portuguesas quinhentistas, como se pode ler em O Soldado Prático, de Diogo do
Couto; em Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto; em Lusitânia Transformada, de Fernão Álvares do
Oriente; em relatos da História Trágico-maritima; cm Sá de Miranda, Antônio Ferreira, Gil Vicente
e, obviamente, Camões.

217
A SÁTI RA E O E N G E N H O

é disseminação do olho, espalhamento dos corpos de linguagem por múlti­


plos escaninhos da ordem, segundo o ritmo ilimitado das trocas, amorosa,
mercantil, religiosa. Na cartografia que opõe e inclui a Cidade Alta e a
Cidade Baixa, o olho escorre, vai do Rosário dos Pretos enfrascados de
jeribita para a festa à Praia onde se joga o lixo, detém-se em São Bento onde
as ruas são buracos e a procissão tropeça, volta uma vez mais ao Dique onde
há memórias de holandeses, desce e sobe ladeiras rumo à Misericórdia e
não a encontra, esbarra em São Pedro com a guarnição esfarrapada que
reclama farinhas tardas, desvia-se para a Sé, faz reverência muda ao arce­
bispo, vê a Câmara e sua prisão, entra, perscruta o crime, atenta para uma
gola de renda ou para o veludo cor de pimentão com fundos de flor-de-lis
da roupa de um vereador, sai, vai a Palácio, espia a bengala do Braço de
Prata e a cama de Câmara Coutinho, passa pelo Terreiro de Jesus, namori­
ca as putas, diverte-se com a cavalhada dos mouros e cristãos, enfada-se
com o cheiro do peixe que ali se vende, participa de certame letrado no
Carmo, no Colégio e na Quinta do Tanque, glosa um mote, discute na Al­
fândega a baixa do açúcar e a moeda, despreza outro mulato, observa São
Francisco e certo frade freirático, avança para Santa Clara onde a freira
geme o desterro atrás do ralo e grade, retorna, desce bamboleando pelos
guindastes, passa pela Conceição da Praia donde enxerga a frota abarrota­
da de dizimo, tabaco e açúcar, gira sobre si, entra mar adentro até as ilhas
de nomes doces, Maré, Madre de Deus, Itaparica, desce a Porto Seguro e a
Camamu onde inspeciona as farinhas reclamadas em São Pedro ou canta
em estilo épico a expedição contra bandidos paulistas, retorna, sobe aos
navios que vêm da índia com a canela e o escorbuto, esquadrinha o contra­
bando de prata e peles de Buenos Aires, desvia-se dos negreiros bexiguentos
de Luanda e Mina, viaja para Sergipe do Conde e Pernambuco, manda novas
de Palmares, acompanha cartas do Senado e caixas de açúcar até Lisboa,
passa por Coimbra, revê a Universidade, retorna, da barra vê os incultos
matos da Bahia, coqueiros, bananeiras que sussurram “Brasil” na brisa
quente, navega para os reinos de África, Congo, Zambézia, Moçambique,
Mombaça, horroriza-se com animais de estranhas raças qual bárbara milí­
cia, é capturado por piratas, vendido em Argel, naufraga, emerge, adorme­
ce ao som de seu tormento entre cafres, vai além, Macau e Goa, atinge os
confins do Pegu, onde encontra o brâmane primaz da greparia, avô de um
Rolim da Bahia, e retorna, para cantar as excelências do cono, as cruzes de
dois ladrões, o atrevimento de criados, a Sé da Bahia, o ardor em coração
firme nascido, os que campam no mundo, os memoriais de afligidos, as
damas presas no xadrez, as mesuras de A com pé direito, a turbulenta terra,

218

â
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

as queixas da esperança e o desengano de viver. Cartografia, enfim, que


funciona como um mapa da referência do evento, como envelope imaginá­
rio sempre movediço, cujas coordenadas balizam e interpretam os mil e
um acidentes, gestos, vozes, cheiros, murmurações, casos, crimes, mesqui­
nharias, depravações, ridículos, obscenidades, pompas e circunstâncias desse
lugar, Bahia, onde “se gastam as mais das fazendas que do reino vêm e dos
engenhos de açúcar saem [...] porque o açúcar é a cabeça deste corpo mís­
tico do estado do Brasil”50.
Intervenção neste “corpo místico do Estado do Brasil”, a sátira é uma
prática que define um modus loquendi e um modus agendi, falas, ações e suas
trocas. Encena os pontos de azedume do açúcar e a corrupção das doçuras do
ócio: discursos e ações das partes mecânicas desse corpo, articulações em que
a máquina emperra, mau funcionamento das peças, podridão dos órgãos.
Assim, dramatiza na encenação a direção especulativa da ciência política ibé­
rica do século X V II, segundo sua interpretação neo-escolástica que doutrina a
política como um item da Teologia. No campo da ação, traduz as causas por
normas do fazer e do agir afirmando, no que se refere àquilo que é operávei,
factível e agível, conhecimento universal das normas:

A causa é melhor, que o efeito


na boa filosofia.
(OC, II, p. 309.)

No primeiro caso, o saber é arte ou técnica, como recta ratiofactibilium; no


segundo, o produto de um hábito do entendimento prático, recta ratio agibilium,
que permite conhecer os primeiros princípios na ordem da ação: a sindérese,
com uma virtude, moral e intelectual, a prudência, que ajusta a norma univer­
sal à ocasião temporal51.
A noção rotineira de “crítica de costumes” com que se caracteriza a sátira
seiscentista explicita-se historicamente segundo esses mesmos paradigmas de
uma Escolástica reinventada pelos séculos XVI e XVII ibéricos para regulamen­
tar o fazer e o agir. A “crítica de costumes”, aliás, está implícita na mesma
conceituação da ordem monárquica da época, não sendo oposta ou exterior a
ela, mas operação teológico-moral que condena os abusos para reiterar o bom

50. Cf. Maria Izabel de Albuquerque, “Liberdade e Limilação dos Engenhos d’Açúcar”, em Primeiro
Congresso de História da Bahia, Anais, Salvador, Instituto Geográfico e Histórico, 1955, p. 494. C f
nota 53 do capítulo II.
51. C f F. M urilo Ferrol, op. cil., p. 60.

219
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

uso, combatendo as partes doentes do corpo da República porque ele é corpo


místico, sagrado, que tem o Rei por cabeça. Por isso, se o Estado é um artifício
montado por analogia com o corpo humano, a ação política inclui-se no campo
prático de suas ações regidas por normas e pela virtude da prudência52. Como
arte da ponderação judiciosa e discreta, a prudência isola e classifica, baseada
indutivamente em casos, aquilo que é criticável e indesejável53. A sátira
seiscentista funciona como uma arte de prudência: técnica da encenação de
eventos como inversão de regras do decoro e transgressão de interditos, segue
regras de um gênero misturado, muito conforme ao conselho moral e ao
dirigismo político de sua voz magistral. Tem dois movimentos: o da ruptura
do decoro, que expõe o evento aberrante, disforme e ridículo, sempre mau, e
o da sua ponderação, que identifica e analisa o monstro como ausência de
Bem, presentificado pela mesma ponderação como norma da excelência, que
é a sua. Claro e escuro, luz da ponderação judiciosa e sombra do gosto confu­
so, ordem e desordem, razão de Estado e sem-razão das paixões, virtudes e
vícios, enfim, a sátira teatraliza duas direções que o olho recorta como visibi­
lidade da Cidade: no caso, o olho relega ao silêncio e à invisibilidade, depois
de fazê-lo falar e evidenciar-se grotescamente, aquilo que não é da sua alçada,
segundo norma de sua autoconstituição que postula, nuclearmente, uma de­
finição racista da ordem: não é “nascido” quem quer54.
Para fazê-lo, repita-se ainda esta vez, a sátira encena o evento como aqui­
lo que ocorre e que poderia não ocorrer: como ruptura indevida na homoge­
neidade de sua visibilidade. Resulta disto que

[...] nenhuma descrição de um fato ou de uma ação em sua relação com um referente
real ou com o sistema semântico da língua pode ser definida como evento ou não-
evento antes que se resolva a questão acerca de seu lugar no campo semântico estrutu­
ral segundo, definido por um tipo de cultura55.

O trecho de Lotman é útil para explicar, por exemplo, a baixa freqüência,


no corpus dos poemas atribuídos a Gregório de Matos e Guerra, de sátiras
contra negros e índios. Pela classificação hierárquica, são invisíveis e
irrepresentáveis. Por isso também, quando descritos ou narrados, a sátira os

52. Fusão de particularismo, que visa a dar coma de todas as ocasiões, com a concepção tradicional da
lei, como derivação de uma rigorosa hierarquia de normas repetidoras de um ditado divino.
53. Cf. Baltasar Gracián, Obras Completas, Madrid, Aguilar, 1967.
54. As mesmas regras funcionam, por exemplo, na França do século XVII. Cf. Hélène Duccini, “Discours
et réalité sociale: le révélateur des pamphlets”, em Henry Méchoulan (org.), CE tal baroque (1610-
1652). Regards sur la pensée politique de la France du premier XVII1siècle, Paris, Vrin, 1985, p. 395.
55. Cf. Iuri Lotman, La struciure du lexte artistique, Paris, Gallimard, 1973, p. 326.

220
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

faz vistos e ditos como aquilo que é indigno de ver e de dizer, propondo-os
comoà parte, sub-humanidade gentia, ou fora, irracionalidade, do campo de
sua visão, afirmada como luminosa, racional, verdadeiramente humana:

Não posso sofrer


que um tangarumanga
use de pendanga
com língua asneirona:
forro minha cona.
(OC, II, p. 463.)

ou

[...] um homem bronco


racional como um calhau,
mamaluco em quarto grau,
e maligno desde o tronco.
(OC, I, p. 203.)

E ainda:

Animal sem razão, bruto sem fé,


Sem mais Leis, que as do gosto, quando erra,
De Paiaiá virou-se em Abaeté.
(OC, IV, p. 841.)

Fique claro que esta é uma das regras de hierarquização: o mesmo episó­
dio - por exemplo, a desqualificação do índio ou do mulato - pode ser situa­
do em níveis estruturais diferentes, sendo ou não um evento conforme sua
posição no campo institucional dos discursos que lhe definem o valor. Ao
lado da ordenação semântica geral do texto, há nele lugar também para orde­
nações parciais. O evento pode ser efetuado como uma hierarquia de eventos
parciais, como uma cadeia de eventos, isto é, como tema principal caracteri­
zado por subtemas secundários. Neste sentido, aquilo que em um poema par­
ticular é um evento - por exemplo, a arrogância mulata - pode ser deslocado
como elemento descritivo de tipo em outro. Da mesma maneira, o topos “ne­
gro” ou “mulato”, por vezes tema, por vezes subtema, pode ser deslocado
como insulto no ataque de não-negros e não-mulatos. Assim entendido, o
tema não representa algo independente, diretamente extraído do vivido ou
passivamente recebido, mas associa-se a paradigmas que fornecem a escala

221
A SÁTI RA E O E N G E N H O

do que é evento e daquilo que é uma variante dele, não comunicando nada de
novo56no contexto em que ocorre como caracterização de tipo. Quando tratado
como tema, torna-se evento. A sátira se ocupa de preferência dos homens-bons
católicos, brancos e livres, inflados do excesso da Bondade que o mesmo siste­
ma postula, corruptos e hipócritas. No caso, a prudência é articulada em termos
de natureza fidalga, boa e racional, e a vituperação se faz em termos da bastardia
e ilegalidade das ações, pela desqualificação “mulato”, “mamaluco”, “negro”.
Referidos a pessoas brancas, os termos sensibilizam a falta das virtudes fidalgas.
Se o que hoje se convenciona como “Barroco” pode também ser concebi­
do como um efeito literário ou pictórico das refrações do Absoluto relativizado,
da potência indivisa dividida, do incontestável contestado57, conflitos de de­
ver e de poder em poemas satíricos do século XVII dramatizam as divisões
múltiplas e a unificação de um Estado difuso, onipresente, que fala por bocas
de inferno privilegiadas como bocas da verdade providencial. Como as divi­
nas lanças, vomitam fogo e maldição - seu fim é cauterizar, queimar, purgar
as partes gangrenadas do corpo da República.
Se o olho fidalgo se compraz na vileza que produz e que condena, o que é
sua ação de descer tão baixo na infâmia do ramilhete de víboras? Volte-se uma
vez mais para o mar inumerável, para perto do olho, mantendo-se a distância
conveniente para vê-lo enquanto ele vê. Eis a Cidade - Alta e Baixa -, feliz
partição topográfica que alegoriza a mesma divisão moral e política de virtude
e vício, discreto e vulgo. Quando o de baixo subir, deverá moralmente descer, e
vice-versa, segundo os movimentos da compensação que a prudência prescre­
ve: “Las dos mudanzas propias a la comedia ya dicho que son que el bueno suba dei
miserable estado a la grandeza, y el maio baje de la grandeza al miserable estado”58.
Articulação da antítese própria das operações da prudência, que aproxi­
ma e compara extremos para distingui-los e opô-los, o olhar satírico diagrama-
se como quiasma que processa a visibilidade da Cidade. Como quiasma, figu­
ra a feliz intersecção do meio-termo, ponto de equilíbrio dos extremos. Entre
eles - “bom/miserável” e “grandeza/mau” - desenrola-se o campo de inversões
a serem invertidas e postas no lugar adequado. O quiasma esquematiza a au­
sência de virtudes, aparência, ilusão e teatro do mundo, que é um desacordo a
ser preenchido pela fala que traz a ordem. O ato de enunciação da persona é,
por isso, referencial de seus enunciados: a sátira dramatiza as classes da inver­

56. [dem, pp. 326-327.


57. Cf. André Robinet, “Prcface”, em Henry Méchoulan (org.),op. cil., pp. V-VI.
58. Cf Jusepe Antonio Gonzálcz de Salas, “Nueva idea de la Tragédia Antigua (Madrid, 1633)", em F.
S. Escribano y A. P. Mayo, op. cil., p. 215.

222
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

são - amor, comércio, religião, administração, política - e os viciosos que as


ocupam - puta, negociante, padre, oficial, fidalgo. As glosas metaforizam, pelo
negativo de sua carência, o lugar cheio de “eu” com autoridade para dizer o
Ditado e, portanto, para fixar e confirmar a culpa, a falha. Efeito de circula­
ridade discursiva, portanto, como passagem continua de posição extrema para
posição extrema, tendo por instrumento o lugar da enunciação. A persona se
desdobra, toma-se como tema da fala, apresenta-se para o destinatário em
micronarrativas que tematizam seu lugar de origem e de pertença, ação e qua­
lidade, e, ainda, fazendo tal lugar ser preenchido por fábulas, exemplos, cita­
ções de outros textos que intensificam a interpretação judiciosa.
Em muitos dos poemas, principalmente os mais longos, os romances, opera
procedimento análogo ao do prólogo da comédia espanhola do século XVII59.
Apersona é personagem que se apresenta em qualquer ponto do poema, geral­
mente no início, captando a benevolência do destinatário comendativamente,
recomendando-lhe a fábula, a história ou o “eu” que o compõem:

E pois coronista sou


desta grã festividade,
tenho de falar verdade,
e dizer, o que passou:
(OC, III, p. 643.)

Um segundo modo consiste no que os preceptistas espanhóis do século


XVII chamam de “modo relativo”: nele se vitupera o vicioso ou se rendem
graças aos benévolos ouvintes, logo no início, como neste poema em que as
interrogações constituem o destinatário:

Estamos na cristandade?
Sofrer se há isto em Argel,
que um convento tão novel
deixa um leigo por um Frade?
que na roda, ralo, ou grade
Frades de bom, e mau jeito
comam merenda a eito,
e estejam a seu contento
feitos papas do convento,
porque andam co papo feito?
(OC, IV, p. 855.)

59. Cf. Luís Alfonso de Carvailo, “Cisne de Apoio (1602)”, em F. S. Escribano y A. E Alayo, op. cil., p. 92.

223
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

Um terceiro modo é argumentativo, apresentando-se logo no início do


poema um resumo da fábula que se vai desenrolar - por exemplo, no monólo­
go do Braço Forte, auxiliar do Braço de Prata:

Preso entre quatro paredes


mc tem Sua Senhoria
por golotão de despachos,
por fundidor de mentiras.
(OC, I, p. 162.)

Um quarto modo, ainda, é misto, por participar dos três anteriores, apre­
sentando uma espécie de intróito em que a persona se dirige ao público, um
desenvolvimento chamado “faraute” pelos preceptistas espanhóis da época,
e que consiste na declaração do argumento do poema, e uma “loa”, em que se
louva a mesma sátira, o público ou a situação - no caso, ironicamente:

Cansado de vos pregar


cultíssimas profecias,
quero das culteranias
hoje o hábito enforcar:
de que serve arrebentar,
por quem de mim não tem mágoa?
verdades direi como água,
porque todos entendais
os ladinos, e os boçais
a Musa praguejadora.
Entendeis-me agora?
(OC, II, p. 472.)

A persona da sátira é lugar de uma condensação de motivos e esquemas.


Funcional, nela coexistem vários paradigmas ou conjuntos de possibilidades de
ação, segundo códigos do século XVII ibérico. No caso, tais códigos são, basica­
mente, três- direito, ética, religião -, relacionados como matrizes interpretantes
das posições da persona e de suas personagens. Retomando-se a citação de
Lotrnan, religião, ética e direito constituem o código que determina o que é even­
to, segundo critérios comparativos de lei natural e lei positiva. Apersona se cons­
trói, assim, como uma convenção semiótica que ordena e distribui convenções -
nela se condensam funções metalingüísticas que operam traduções, definição e
distribuição dos temas para o destinatário, principalmente como tradução
conativa do tipo. Como hierarquização, o código é operado binariamente:

224
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

branco X não-branco
católico X herege, gentio
discreto X vulgo
fidalgo X plebeu
honesto X desonesto
livre X escravo
masculino X feminino.

Como paradigmas, os termos da coluna à esquerda são semanticamente


eufóricos e é a partir deles que se estabelecem os termos marcados disforica-
mente. Admitem várias subcategorizações, segundo a referência efetuada pelo
caso retórico ou pela encenação do insulto:

branco X não-branco
católico X luterano, calvinista, judeu, muçulmano, brâmane, gentio
discreto X poeta medíocre, pregador inepto, mau letrado, mau jurista,
pseudofidalgo
fidalgo X mecânico, negro, índio, mulato, mamaluco, vulgo
honesto X ladrão, simoníaco, usurário, hipócrita, simulado
livre X escravo, escravo de si mesmo
masculino X mulher, puta, corno, sodomita

É com eles, simultaneamente limite e princípio dos termos negativos, que


a sátira fixa, pelo ponto de vista do olho, o que é evento: ruptura das normas
visível e dizível como afastamento diferencial da unidade encenada que a
interpreta. Assim, a persona satírica tem função contrastiva: no lugar de sua
efetuação no poema associa-se o conceito cultural de verdade60 (o direito, a
ética, a religião) com o ponto de vista único, estabelecido como válido, da
persona que partilha nessa verdade das classes positivas-branco,fidalgo,cató­
lico, discreto, honesto, livre, masculino - como um ator móvel. Desta maneira,
também no lugar da enunciação são dramatizadas não só virtudes, generica­
mente, mas postos e funções institucionais: a fala mimetiza o discurso da
Justiça, da Igreja e da Moral e, mais particularmente, é convenção para a
mímese do discurso do juiz, do magistrado, do ouvidor, do oficial da Câmara,
do inquisidor, das cartas monitorias do Santo Ofício, do governador etc. Isto
implica grande movimentação, dadas as múltiplas ordens e funções dramati­
zadas e, simultaneamente, unificação na norma ideal - racionalidade, ordem,
bem comum - que fundamenta tais funções e ordens. Juízo que analisa e enge-

60. Cf. Iuri Lotman, op. cit., p. 373.

225
A SÁTI RA H 0 E N G E N H O

nho que funde, divisão e integração, a sátira opera macro-estruturalmente os


mesmos procedimentos da elocução engenhosa de antíteses e metáforas como
ornato dialético. Ao encenar o ponto de vista como reiteração da verdade de
que é emissária, a persona estabelece uma oposição de dois pontos de vista, o
seu e o de outros, simetricamente inversos:

racional x irracional
prudente x néscio
sábio x ignorante
discreto x rústico

Ela é o detentor do protocolo61 e, por isso, joga com a dupla hierarquia de


seu ponto de vista. Pragmaticamente, a persona fixa o lugar do monstro,
posicionando-o embaixo, ao lado, fora, como extra ou bastardo, em relação ao
lugar da verdadeira personagem, posicionada por sua vez como semelhança
positiva da unidade virtuosa. Além de constituir semanticamente uma tipo­
logia, a sátira diagrama pragmaticamente uma topologia: a (des)constituição do
tipo prova a (im)propriedade política do topos. Fundamenta-se com isso um ve­
rossímil, pois a estrutura de repetição encenada no lugar da persona não é
dominada pelo valor de verdade. Ação deceptiva, típica da moralidade: o ato
de fundar a virtude não implica apenas o de fundamentar a técnica de um
discurso prudente que a estabelece, mas, ironicamente, também a sua distorção
incontrolável. Na sátira, tal distorção é construída pela justaposição de traços
descritivo-narrativos individualizantes e traços caracteriais fantásticos. O
sentido geral da justaposição é uma alternância da expectativa que é produ­
tora de humor, pois a passagem de um segmento para outro, no poema, abre-
se para duas possibilidades, sua continuidade, como reiteração individua-
Iizante, ou segmento grotesco. A alternância é, aliás, índice da enunciação
produtora do ridículo aristotelicamente qualificado, pela sua desconformi-
dade, que sobredetermina partes do discurso em detrimento de outras. Siste­
ma classificatório, atualiza-se no lugar da persona o imaginário do sistema,
adaptado a várias ordenações particulares, conforme o caso mimetizado-por
exemplo, reiteração de texto de estilo alto em contexto não-sério, como paró­
dia; acumulação de metáforas fantásticas do corpo, extraídas como sinédoques
de vários campos discursivos; dupla ordenação do ponto de vista sério, com
encenação irônica do ponto de vista rebaixado, postulando-se o estilo baixo
como discreto e o alto como vulgar, em adequação a um mundo irracional

61. Expressão de Lotman, op. cá., p. 370.

226
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

(auto-ironia, portanto); constituição do destinatário como discreto e cúmpli­


ce na crítica; formulação do destinatário como vulgo que se diverte sem en­
tender que a fábula se ocupa dele etc.62634
Como um ator, a persona é modelizada pela mesma convenção que, ainda
quando refere com muita verossimilhança o homem Gregório de Matos e Guer­
ra, nunca é psicológica, pois sua representação se faz pela estilização de signos
convencionais de origem, profissão e posição - por exemplo, pela tópica “ve­
lho”, nas inúmeras declarações de amor licenciosas em que retorna a conven­
ção medieval legível em Gil Vicente, no Cancioneiro de Resende etc.; e, ainda,
por outras tópicas, como “ministro”, “advogado”, “letrado”, “branco” etc. Na
generalidade dos tipos, mesmo a invectiva mais feroz é convenção: trata-se
sempre de uma construção proporcionalmente ordenada para figurar o não-
ordenado, produção de uma estrutura recebida como ausência de estrutura53.
Essa voz que nos poemas se coloca para dar nascimento a um corpo veros­
símil de linguagem é anônima, assim, ainda que avance mascarada de pri­
meira pessoa. Ela antes encena os princípios que a regulam como voz autori­
zada que propriamente se expressa. Nesta posição, constitui os outros corpos
como lugares de inscrição hierárquica das instituições, fixando o espaço do
lícito, do interdito e do abominável, atentando à qualidade das pessoas, ca­
sos, tempo, lugares e outras circunstâncias54. O lugar ideal da persona, diga-se

62. Cf., por exemplo, OC, II, pp. 446-450.


63. Cf. Iuri Lotman,op. cil., p. 370.
64. O Regimento da Relação da Casa da Bahia, dado pelo rei Dom João IV, no ano de 1652, dispõe
sobre as coisas da Justiça e ordem que o governador há de ter. Ele explicita alguns princípios dessa
distribuição hierárquica, pois faz ver o que então se considera crime ou vício, isto é, evento ou
acontecimento desviante da normalidade institucional:
“12. Poderá o Governador conceder ação de perdão despachar em Relação com aquelas pessoas
com quanto despacham Alvarás de fiança, conformes a este Regimento, não sendo agravo de peti­
ção de penas pecuniárias e oferecendo-se perdão da parte; e poderá comutar a condenação ou
penas que pelas culpas mereciam em penas pecuniárias ou em outras, as que melhor parecer; e
parecendo-lhe que há causas para algumas culpas, ou apenas em que os culpados estão condenados
deverem ser perdoados, principalmente atenta a qualidade das pessoas, tempo e lugares e outras
circunstâncias o poderá fazer sem outra comutação pecuniária; porém, não tomará petições de
perdões em casos declarados abaixo. Blasfemar de Deus e de seus Santos, moeda falsa, falsidade,
testemunho falso, matar ou ferir com besta, arcabuz ou espingarda, posto que não mate nem fira;
de dar peçonha, ainda que morte se não siga; de morte cometida atreiçoadamente, quebrantar
prisões por força, pôr fogo acintemente, forçar mulheres, fazer ou dar feitiços, nem de carcereiro
que soltar presos por vontade ou peitas, ou de entrar em Mosteiro de freiras com propósito deso­
nesto, fazer dano ou qualquer mal por dinheiro, de passadores de gado, salteadores de caminho,
ferimento de propósito em Igreja ou procissão onde for ou estiver o Santíssimo Sacramento,
ferimento de qualquer a juiz ou pancadas; posto que pedâneo ou vintaneiro seja, sobre seu ofício,
ferir ou espancar alguma pessoa tomada às mãos, furto que passe de marco de prata, manceba de

227
1

A SÁTI RA E O E N G E N H O

assim, lugar em que as virtudes se unem, jamais ocupado e somente referido,


é um ponto cego, condição mesma da visão e do preenchimento discursivo de
todos os lugares: o lugar mítico do Rei, não o Rei como pessoa, mas como
personaficta (mystica ou idealis, como os teólogos políticos escrevem).
Rebatimento dos avessos, o burlesco propõe a retidão, como técnica orto­
pédica de produção de monstros morais que, capturados nas malhas da ética,
são catalogados pelos rótulos da religião, teologia que naturaliza a divisão, e
do direito, instituição que a regula positivamente. Neste sentido, a sátira é
procedimento típico do dirigismo generalizado de sua época, funcionando
como exclusão inclusiva. Com isto se diz que ela finge rebaixar para fora da
sociedade dos melhores alguns vícios e viciosos, excluindo-os da República e
das relações ditas naturais, pelo ridículo e pela infâmia. Ela só o faz, porém,
referindo-os ao seu princípio, o Rei, para capturar as monstruosidades como
categorias ou subclasses da mesma regra que as determina, moralizando-as
como falta enquanto o Bem político é proposto.
A “gravidade e liberdade da sátira”, no dizer do espanhol Francisco de
Barreda65, não são arbitrárias, pois seguem preceitos: entre eles, o da eleição
criteriosa do “caso” a satirizar, seja histórico ou apócrifo. Para tal, o poeta
deve valer-se do “juízo” e do “conselho”, segundo José Pellicer de Tovar, por­
que há sucessos na história e casos na invenção incapazes de publicidade,
como tiranias, sedições de príncipes e vassalos, que não devem ser propostos
aos olhos de nenhum século66, prevendo-se o efeito político deles na recepção.
Também não se devem inventar casos de poderosos livres, fiados em sua ma­
jestade, que se atrevem absolutos a violências e insultos, violando a gravidade
pública com torpezas. Tais prescrições, bastante genéricas, têm em vista a
adequação. Apersona dos poemas, contudo, não é tão horaciana que evite cui­
dadosamente a invectiva agressiva ou os abusos obscenos; pelo contrário, se
fosse o caso de estabelecer uma genealogia para eles, boa analogia é o nome de

clérigo ou frade, se pedir perdão segunda vez, quer seja das portas adentro, quer das portas afora,
nem de adultério com levada de mulher fora da casa de seu marido, nem da ferida dada pelo
rosto com tenção de dar; da culpa de a mandar dar-se com efeito deu; nem de perda de direito na
cadeia na casa da Relação ou da Cidade do Salvador, nem de ladrão”. I. Accioli & B. Amaral,
Memórias Históricas e Políticas da Bahia, Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1925, vol. 11, pp. 104-
105.
65. Cf. Francisco de Barreda, “Invectiva a las comédias que prohihió Tra jano y apologia por las nuestras"
(Madrid, 1622), em F. S. Escribano y A. P. Mayo, op. cit., p. 192.
66. Cf. José Pellicer de Tovar, “Idea de la Comedia de Castilla” (1635) em F. S. Escribano y A. P. Mayo,
op. cit., p. 223. A prescrição é formal - basta lembrar, por exemplo, os discursos violentos contra
Filipe IV de Espanha, evidenciando-se que a generalidade da norma se adaptava às situações.

228
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

Juvenal, principalmente pela sua obscenidade e enunciação irada, aparente­


mente contraditória, porque irracional, na vituperação das paixões. Não há
contradição alguma na indignação satírica, contudo, a não ser que seja postu­
lada psicologisticamente como expressão da fraqueza de caráter do autor, na
linha do “canalha genial”, de Araripe Jr., ou do “nervoso, quiçá um nevrótico”,
de José Veríssimo.
E preceito retórico o de que o orador enraivecido obtém mais sucesso que
o tranqüilo. O sucesso não decorre de o orador estar efetivamente irado, mas
de imitar a ira com precisão. Na sátira, a ira é convenção para a ira. Assim
como muitos romanos da audiência de Juvenal, também muitos letrados
baianos estão preparados não só para reconhecer a máscara da indignação,
mas também para criticá-la67. Em outros termos, o poeta é mesmo um fingidor
e a persona satírica é um ator, personagem, máscara, persona: o famigerado
“pessimismo” de Gregório de Matos é a prescrição retórica da maledicência
satírica.
Da mesma maneira, a obscenidade. Em um romance dirigido a uma dama
por nome Maria Viegas, duplamente virtuosa por ser “francesa nas obras, /
Portuguesa nas palavras”, apersona detém-se na convenção do léxico sórdido:

Tudo c h a m a is p or seu n o m e
tão p r o p r ia m e n te , tão d a r a ,
q u e ao c o n o lh e c h a m a i s c o n o ,
c h a m a is c a r a lh o à caralh a.
M ald itas da m a ld içã o
de D e u s sejam as tavascas,
que de surradas nas obras
p õ e m d e b io c o as palavras.
H á cousa c o m o cham ar,
o q u e u m a c o u s a se c h a m a ,
p o rq u e sirva d e s u s te n t o
à lu x ú ria , q u e d esm a ia .
H á c o u s a c o m o falar,
c o m o o P ai A d ã o falava,
pão por pão, v in h o por vin h o,
e ca ra lh o p o r caralh a.
Q u e m p ô s o n o m e d e crica

67. Cf. William S. Anderson, Essays on Roman Satire, Princeton, Princeton University Press, 1982, p.
326. Cf. também Sêneca, De ira, em Trailésphüosophiques, texte établi, traduit et annoté par François
et Pierre Richard, Paris, Garnier, 1955, vol. I.

229
A SÁTIRA E O E N G E N H O

à crica, que se esparralha,


senão nosso Pai Adão
quando com Eva brincava?
Pois se pôs o nome às cousas
o Pai da nossa prosápia,
porque Deus lho permitiu,
nós por que hemos de emendá-las?
(OC, III, pp. 568-569.)

Jocosamente, a convenção é naturalizada como um grau zero da inocên­


cia do sentido literal, como lei natural prévia à formação do corpo político do
Estado e das leis positivas da Cidade. A formulação é ortodoxa, ainda que
jocosa, e efetua a duplicidade de uso, haja vista a referência ao “bioco” das
palavras. Embora convenção naturalizada, o léxico continua prescrição, par­
ticularidade da regra para um fim determinado: entre eles, no caso, a mesma
adequação retórica (“porque sirva de sustento / à luxúria”) e a crítica da hi­
pocrisia (“surradas nas obras”).
Certa concepção da assim chamada “época barroca” como tempo de forte
censura intelectual e moral, principalmente através da Igreja e de seu Tribu­
nal do Santo Ofício, correta quanto à censura6*, não leva em conta, geralmen­
te, que ela se exerce primordialmente sobre atos e palavras que podem confi-
gurar-se como heresia, sendo censura antes de tudo religiosa. Por hipótese:
caso a Inquisição se ocupasse do trecho referido acima, não o censuraria pelos
termos como “caralho”, “cono”, “crica” - como tem sido o critério da censura
exercida sobre os poemas desde a edição das muitas reticências do Florilégio68

68. Cf. José Timóteo da Silva Bastos, História da Censura Intelectual em Portugal (Ensaio sobre a Compres­
são do Pensamento Português), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926. Uma das atribuições do
Conselho Geral do Santo Ofício da Inquisição, de acordo com as decisões do Concilio de Trento,
consistia em ordenar visitas ás “livrarias públicas e particulares, fazer os róis dos livros proibidos
e conceder licença para a impressão de livros novos” (p. 63). Nas Constituições Sinodais do Bispado
de Coimbra, de 1598, tit. 1“, lè-se: “E conformando-nos com o Concilio Latcranense & Tridentino &
Extravagàtc do Papa Gregorio XIII & breves apostolicos neste caso passado: mandamos a todos os
Impressores, & Livreiros deste nosso Bispado que não imprimão, nem vendâo, nem tenhâo, nem
fação imprimir, nem vender livro algum de qualquer qualidade que seja, sem ser primeyro visto &
aprovado pelo concelho geral do saneio officio, & por nos: por atalhar aos grandes males que contra
nossa saneia fee catholica & etc.” No tit. 1“, foi. 11, intitulado Da fe catholica “[...] Assi defendemos
a todos os Impressores do nosso bispado sob a pena posta no concilio latcranense a qual he exco­
munhão ipso facto e perdimento dos livros impressos q nã imprima livro algum sem ser primeyro
examinado por nos ou por pessoa que nos deputarmos para isso: pollos errores que se causaram e
introduzirá entre os Chrístàos por maas e suspeitas doutrinas de livros q se imprimiam e pubricavâ
sem serem vistos examinados pelos prelados" \idem, p. 68).

230
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

de Varnhagen até a da Academia (só por publicá-los James Amado merece


louvor) -, mas pela citação do par bíblico em situação não-ortodoxa passível
de ser interpretada heterodoxamente como heresia. Em outros termos, a obs­
cenidade não seria censurada enquanto obscenidade sexual, segundo critérios
da moralidade burguesa hoje dominante, mas pela sua interpretação como
judaísmo, erasmismo, libertinagem, maquiavelismo ou luteranismo, em ter­
mos de heresia69. Por isso mesmo, a prescrição retórica do movere também é
tematizada pela persona satírica, que opõe boa e má convenção:

Que alguém que aqui se consome


com a sátira abundante,
diga, que está mui picante,
mas quem se queima, alhos come:
que este por si mesmo a tome,
quando eu falando bem claro,
a ninguém hoje declaro
nesta carta monitoria!
Boa história.
Mas que outros por vários modos
satirizem muito bem e sem monir a ninguém
queiram declarar a todos:
que estes tais com mil apodos
assim queiram ganhar fama,
quando a dos outros se infama,
levantada tal poeira!
Boa asneira.
(O C , II, p. 509.)

A sátira é má, portanto, quando nada ensina, “sem monir a ninguém”,


atacando indiscriminadamente a todos em função da fama individual do
satirista, que se exalta com a desonra alheia. Clareza (como a clareza do léxi­
co obsceno referido antes), generalidade e didatismo determinam seu bom
funcionamento, supondo-se também a eleição criteriosa do “caso”.
Cândida moral, portanto, a do satírico - não se disse que disse Vieira que
um poema de Gregório aproveitava mais que dez sermões de Vieira? o que
não significa não seja moral obscena, pois os monstros pululam como efeito
seu. Lembre-se que é a mesma instauração do princípio ordenador do Bem

69. Cf. Kenneth R. Scholberg, Algunos Aspectos de la Sáliraãf el Siglo XVI, Berna, Frankfurt am Main; Las
Vegas, Peter Lang Publisher.s, 1979, vol. 12, p. 181 (Ltah Studies in Literature and Linguistics).

231
A SÁTI RA E O E N G E N H O

pela enunciação satírica que torna verossímeis os desvios, prevendo-os como


variações ou semelhanças negativas da mesma lei que os proscreve. Exemplar
é um pequeno poema que glosa o mote “Bêbado está Santo Antônio”:

Entrou um bêbado um dia


pelo templo sacrossanto
do nosso Português Santo,
e para o Santo investia:
a gente, que ali assistia,
cuidado, tinha o demônio,
lhe acudiu a tempo idôneo,
gritando-lhe todos, tá,
tem mão, olha, que acolá,
Bêbado, está Santo Antônio.
(OC, I, p. 78.)

O poema é anedótico e secundário, mas explicita que a proposição de


motes semelhantes como matéria para transformações poéticas é prática muito
rotineira da inversão sacrílega, num tempo em que se colocam coroas de cor­
nos em cruzes ou se jura pelo pentelho da Virgem e simultaneamente se ins­
titui seu culto piedosíssimo, principalmente após a vitória cristã de Lepanto,
em 157170. Aliás, o crime de blasfêmia e sacrilégio não é passível de ter a pena
comutada, como se deve ter lido na nota 64 deste. A Inquisição ocupa-se dos
blasfemos desde que a formulação da blasfêmia seja herética ou suspeita de
heresia. Reconhecem-se dois tipos de blasfemadores: aqueles que não se opõem
aos artigos da fé e que, “agitados pela ingratidão, amaldiçoam o Senhor, ou a
Virgem Maria ou negligenciam prestar-lhes graça”71. Blasfemadores simples,
a Inquisição costuma abandoná-los às punições da justiça secular. São heréti­
cos os blasfemadores que atacam artigos da fé: por exemplo, os que dizem que
Deus não pode fazer chover, opondo-se diretamente, segundo o Santo Ofício,
ao dogma da onipotência divina proclamado no primeiro artigo do Credo, ou
aqueles que desonram Maria, tratando-a como puta, ataque direto ao dogma
da maternidade virginal72.

70. Cf. G. Tüchle & C. A. Bouman, “Luta contra a Meia Lua”, em líislória da Igreja: Reforma e Contra•
Reforma, trad. Waldomiro Pires Martins, 2. cd., Petrópolis, Vozes, 1983, vol. III, p. 240.
71. Cf. Nicolau Eymerich & Francisco Pena, Le manuel des inquisiteurs, Introduction, Traduction et No­
tes de Louis Sala-Molins, Paris, La Haye, Mouton-École Pratique des Hautes Études, 1973, p. 63.
72. Idem, pp. 63-64. O sacrilégio não é apenas uma idiossincrasia, desvio de singularidade, nem mes­
mo uma perversão. Antes, é a metáfora de uma oposição que, ao atacar o santo, toma-o como
sinédoque e alegoria da ordem ortodoxa em que funciona - a Igreja, seus padres, a Inquisição.

232
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

Como se verá adiante, essas distinções sutis dos inquisidores permitem


capturar qualquer ação não-ortodoxa como blasfêmia e sacrilégio. O poema a
captura com uma vírgula: dado o mote sacrílego, a correção moral da pontua­
ção transforma um predicativo referencial e assertivo em segunda pessoa
discursiva, deslocando através do vocativo - “Bêbado, está Santo Antônio” - a
referência do enunciado para um vicioso, recapturado performativamente
dentro da igreja pela Igreja, enquanto o santo se safa e sobe em sua pureza. O
mesmo verbo “estar”, que no enunciado declarativo do mote rebaixa o santo,
atribuindo-lhe o vício, na glosa prescritiva eleva-o na Presença plena, impon­
do silêncio ao vicioso intruso. Não obstante a correção, observe-se que o poe­
ma continua a propor a voz discordante e herética, que a glosa retifica, como
um subtexto irônico do sentido literal: “Santo Antônio está bêbado”.

A sátira seiscentista tem, desta maneira, muita afinidade com as técnicas


inquisitoriais católicas, principalmente as da delação ao Santo Ofício, que
cabe aqui referir, descrevendo-se seu funcionamento discursivo.
Na Bahia, desde o final do século XVI, em 1591-1593, o Santo Ofício está
atuante - em 1618, em 1646, durante o restante do século. O mito ibérico da
pureza de sangue, presente na sátira como topos racista distintivo da origem
fidalga, amalgama então o imaginário de cristãos-velhos de todas as ordens,
validando a perseguição às heresias, notadamente a judaica, como adesão à
hierarquia73. Entre as várias técnicas de perseguição e expropriação dos ju­
deus ou das pessoas assim constituídas conforme a economia teológica do
Santo Ofício, as delações avultam como prática generalizada, certamente com
várias motivações pessoais, funcionando todas como validação das práticas
inquisitoriais como onipresença da ortodoxia e teatro pedagógico do medo74.
Terror, as delações fornecem o material necessário para o funcionamento
do Tribunal, sendo coletadas pelos auxiliares que o Santo Ofício mantém tan­
to em territórios portugueses quanto em países estrangeiros75. Pelo juramen­
to solene de guardar segredo dos assuntos delatados, as denúncias de 1618
evidenciam, como as outras de outras datas, que o julgamento dos denuncia-

73. O Judaísmo é uma religião infiel, apenas, segundo o Cristianismo; mas a conversão forçada dos
judeus permitiu ao Santo Ofício ocupar-se dos cristãos-novos com muito zelo.
74. Cf. Nicolau Eymerich & Francisco Pena, o/>. ctí., p. 195: “18. O inquisidor pode perseguir indistin-
tamente todo mundo, do rei até o último dos leigos? Muito evidentemente. O inquisidor persegui­
rá todo leigo, qualquer que seja seu grau ou sua condição, quer ele seja herético, suspeito, ou
simplesmente difamado. Está dito explicitamente na bula Prae cunclis de Urbano IV” .
75. Cf. Anita Novinsky, “O Cristão-novo em Portugal no Século XVII”, em Cristãos-novos na Bahia
(1624-1654), São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1972 (Estudos, 9).

233
A SÁTI RA E O E N G E N H O

dos é sigiloso, de modo que não ficam sabendo a causa de sua prisão nem o
conteúdo das acusações76. É neste contexto de fé ardorosa que a sátira colonial
toma posição, sobretudo quando encena publicamente os temas do cristão-
novo, da sodomia e da bruxaria.
As delações são práticas discursivas que nomeiam dissidências e que, ao
fazê-lo, as excluem como marginais e heréticas, sejam elas comprovadamente o
luteranismo, o judaísmo, o erasmismo e o maquiavelismo, sejam elas virtual­
mente heréticas, como manifestações de autonomia de pensamento ou ações
não-costumeiras conforme a ortodoxia - por exemplo, lavar-se em noite de sex­
ta-feira, cruzar as pernas na igreja, comentar as coisas sagradas, ler uma Bíblia
em castelhano, ter uma égua chamada Maria Parda etc. No século XVII ibérico,
esse terror é sistêmico, tornando-se passível de denúncia qualquer ação, desde
que interpretada ou interpretável como herética - uma só testemunha é o bas­
tante, conforme rezam os manuais de inquisidores77. Delação e confissão pro­
duzem uma culpa, os culpados e também as medidas práticas para seu expur­
go78 como urgente socorro do bem comum ameaçado e obediência política. O
que interessa, neste trabalho, é evidenciar que a sátira seiscentista dramatiza
em sua formulação não só o léxico inquisitorial - as referências aos “casos”,
“mariolas”, “monitórios”, “sambenitos”, “rabis”, “sinagoga”, “Fortuna” (como
metáfora da imprevisibilidade do Tribunal do Santo Ofício) etc. - ou seus te­
mas - a sinagoga proibida, o cristão-novo que pratica secretamente os ritos
israelitas, o judeu queimado, a desconfiança do excessivo zelo católico de cris-
tãos-novos etc. -, mas, principalmente, o próprio procedimento da delação, que
ela efetua como verossímil poético. Com uma diferença, contudo, fundamen­
tal. Para evidenciá-la, é oportuno inquirir os documentos da delação católica.
O Livro das Denunciações que se Fizeram na Visitação do Santo Ofício à Ci­
dade do Salvador da Bahia de Todos os Santos do Estado do Brasil, no ano de
161879 apresenta os casos de denúncias praticadas por homens e mulheres de
11 de setembro de 1618 a 26 de janeiro de 1619. Neste intervalo, presidiu a

76. Cf. Anita Novinsky, “A Posição dos Cristãos-novos na Sociedade Baiana”, op. cil., pp. 69-72.
77. Cf. N. Eymerich e F. Pena, “Les lémoins”, op. cit., pp. 212-219.
78. Cf., por exemplo, na sátira: “Conheça a Inquisição estas verdades / H como é certo, o que o soneto
diz, / Paguem-se em vivo fogo estas maldades” (OC, I, p. 210); “O caso tocou logo a Inquisi-” (OC,
1, p. 207); “Verão um Doutor / em Judá nascido / mais entremetido/ que um grande fedor” (OC, II,
p. 464); etc. Cf. também José Timóteo da Silva Bastos, op. cil., principalmente pp. 54 e ss.
79. Cf. Livro das Denunciações que se Fizerão na Visitação do Samo à Cidade do Salvador da Bahia de Todos
os Samos do Estado do Brasil, no anno de 1618. Inquisidor e visilador o licenciado Marcos Teixeira.
Introdução de Rodolfo Garcia, Annaes da Bibliolheca Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
Biblioteca Nacional, 1927, vol. XLIX, pp. 75-198.

234

Â
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

duas sessões diárias, pela manhã e pela tarde, o licenciado Marcos Teixeira,
protonotário apostólico, deputado do Santo Ofício, seu inquisidor e visitador
na Cidade do Salvador, seu Recôncavo e Angola, por comissão de Dom Fernão
Martins Mascarenhas, bispo e inquisidor-geral dos reinos e senhorios de Por­
tugal80. Marcos Teixeira ouviu 52 denunciantes, que acusaram 134 pessoas.
Os pecados denunciados podem unificar-se sob a rubrica genérica de heresia,
consistindo, em sua maioria, de blasfêmias, desrespeito às imagens santas e
aos recintos sagrados, leitura de livros proibidos e práticas heréticas como o
judaísmo e a sodomia. Como na sátira, nas denúncias o pecado nefando da
sodomia é traduzido como prática judaizante, o que evidencia que a morali­
dade sexual tem recorte teológico-político. Quase todas as denúncias baseiam-
se num “ouvir dizer” e, ainda, numa lembrança que o denunciante afirma ter
de gestos, ações ou palavras do denunciado, geralmente datados de meses ou
anos antes. Cada denúncia é ordenada pelo notário inquisitorial conforme
fórmula narrativa estereotipada, que explicita a técnica rigorosa da seqüên-
cia dos procedimentos de gênero judicial durante a entrevista com o inquisidor.
Segui-los permite algumas considerações sobre os códigos interpretativos da
heresia, intertexto da sátira, segundo denunciante e inquisidor. Faz-se aqui
uma descrição sumária da estrutura da denúncia, utilizando-se exemplos re­
cortados em várias delas.
Começando por situar o evento de que o texto é narração sob as graças
divinas - “Em nome de Deus amém” -, os documentos figuram de início a
partição dos poderes, eclesiástico e secular, bem como a sacralidade incontes­
tável do ato que narram: nele são expostos e prejulgados os crimes de lesa-
majestade divina, como escreve o dominicano Eymerich comentado por Pena,
em seu minuciosíssimo manual de inquisidor81. Segue-se uma data e a indi-

80. Idem, p. 95.


81. No século XVI, Francisco Pena, doutor em Cânones e Direito Civil, comenta e aperfeiçoa o manual
de inquisidores escrito por Eymerich no século XIV. Pena assim conceitua “heresia”: “Na sua acepção
primitiva, a noção de heresia nada tinha de infamante: eram ‘heréticos’ todos os que adotavam
uma escola filosófica, simplesmente. Mas hoje este termo é odioso e infame porque designa aque­
les que acreditam ou ensinam coisas contrárias à Fé do Cristo e de sua Igreja. Mas, vão retrucar-
nos, no sentido grego do termo, escolher a verdade católica constituí também uma ‘heresia’, pois
escolher uma doutrina é também escolher uma ‘seita’? Respondemos, com Tertuliano, que não há
‘divisão’ na ‘eleição’ da fé católica, pois não nos cabe escolher, neste caso, segundo nosso livre
arbítrio, mas ‘seguir’ o que nos é proposto por Deus. Há heresia, e há seita, quando há compreen­
são ou interpretação do Evangelho não conforme com a compreensão e com a interpretação tradi­
cionalmente defendidas pela Igreja católica. Consequências da heresia? Blasfêmias, sacrilégios,
ataques aos fundamentos mesmos da Igreja, a violação dos julgamentos e leis sagradas, injustiças,
calúnias e crueldades de que os católicos são vítimas. Pelo efeito da heresia, a verdade católica se

2 35
A S Á T IR A E O EN G EN H O

cação do lugar - por exemplo, 11 de setembro de 1618, Cidade da Bahia,


Colégio dos Jesuítas -, citando-se a seguir a pessoa do inquisidor que preside
a sessão: “o senhor Inquisidor e Visitador o Licenciado Marcos Teixeira”.
Segue-se uma fórmula: “perante ele apareceu sem ser chamado”, indica­
tiva da espontaneidade narrada da denúncia82, ratificada no final, quando o
denunciante afirma que delata por “descargo de consciência” - em outros
termos, por motivos de “foro íntimo”. Dado o nome do denunciante - no caso
da data referida acima, um deles é Melquior de Bragança -, arrolam-se ori­
gem, raça, religião, idade, estado civil, ocupação e, por vezes, razões que o
fizeram vir para o Brasil:

Melquior de Bragança hebreu de nação, que disse ser doutor converso à nossa San­
ta Fé, de idade de quarenta anos natural da cidade de Marrocos em África, casado na
cidade de Lisboa e residente nesta, degradado pela culpa de uma morte de homem, e
disse que tivera em Espanha por ofício ensinar a língua hebraica com exposição da
sagrada escritura83.

Segue-se o juramento do denunciante com as mãos postas sobre os San­


tos Evangelhos, pelo qual declara agir “para em tudo dizer verdade e ter se­
gredo”. Entre verdade e segredo, transcrevem-se a seguir as intenções decla­
radas pelo denunciante: “disse que com zelo da Santa Fé e por descargo de
sua consciência denunciava bem e verdadeiramente de Domingos Alvares de
Serpa da nação”84.
As denúncias são muito indeterminadas quanto ao tempo e ao lugar das
ações pecaminosas, lendo-se nos documentos a confiança aparente dos
inquisidores na memória do denunciante, capaz por vezes de lembrar ações
triviais ocorridas muitos anos antes, como é o caso da denúncia culinária de
uma Margarida Jorge. No dia 13 de setembro de 1618, denuncia Felipa Gon­
çalves e Margarida Dinis como judaizantes, pelo que afirma ter visto durante
a preparação de comida em casa das denunciadas, doze anos antes, em Lisboa:

enfraquece e se extingue nos corações; os corpos e os bens materiais definham, nascem tumultos e
sediçòes, a paz e a ordem pública são perturbadas”. Cf. N. Eymerich & F. Pena, op. cit., p. 43.
82. O governador Antônio Teles da Silva “obriga a população a ir denunciar, e pede o estabelecimento
do Tribunal da Bahia. Ante a resistência oferecida por uma parte da população, coloca um guarda
de sua milícia ao lado de cada cidadão, forçando-o assim a comparecer à Mesa no Colégio da Com­
panhia”, escreve Anita Novinsky, “A posição dos Cristãos-novos na Sociedade Baiana”, op. cit-, pp.
72-73.
83. Cf. Livro das Denunciações que se fizerão na Visilação do Santo Officio [...], p. 97.
84. Idem, p. 97.

236

A
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

“se cozeu a carne com azeite na casa da dita Felipa Gonçalves”; “viu ela que a
dita Margarida Dinis tirava a gordura da carne da vaca antes de a salgar”85.
Ocorre ainda, quando não se trata de declaração de testemunho, a de­
núncia baseada no “ouvi dizer”. João de Sevalhos denuncia Manoel ou Fran­
cisco de Oliveira (a própria flutuação do nome próprio já diz muito ou tudo),
afirmando que “o qual denunciado ouviu ele denunciante dizer haverá dois
anos pouco mais ou menos geralmente no Rio de São Francisco, que pusera a
boca sacrilegamente na pureza e virgindade da Virgem Maria Nossa Senhora
afirmando que parira duas vezes”86. A indeterminação, como se vê, é dupla:
tanto da datação da ocorrência denunciada - “haverá dois anos pouco mais
ou menos” -, quanto da fonte - “ouviu ele denunciante dizer que [...]”. No
caso desta denúncia, o denunciante aproveita-se da situação para prestar mais
serviços, valendo transcrever o trecho na íntegra, pois a hipertrofia do proce­
dimento evidencia a regra:

E assim disse mais ele denunciante que Diogo Fernandes castelhano tambor mor
desta cidade, casado e morador nela à porta de Santa Luzia na banda de dentro lhe disse
haverá quinze dias que ouvira dizer a certa pessoa que dissera uma mulher por um
homem: “ Não basta açoitar-me a mim, senão açoitar ao Cristo” . E disse que a dita teste­
munha referida lhe dissera que a seu tempo declararia quem lhe dissera o que tem dito
neste caso87.

A aceitação de tais asserções indica que, para o Santo Ofício, certamente


era mais oportuna a própria prática institucional das denúncias que a veraci­
dade delas, produzindo-se praticamente culpas e culpados pela simples insta­
lação do aparato inquisidor, capaz de traduzir como heresia as mais variadas
acusações - ao que tudo indica, muitas vezes articuladas como vingança. Não
importam as motivações, contudo, os documentos fazem ler os códigos inter-
pretativos da heresia encenados na sátira. Vejam-se alguns exemplos de blas­
fêmia e sacrilégio:

[...] pusera a boca sacrilegamente na pureza e virgindade da Virgem Maria Nossa Se­
nhora afirmando que parira duas vezes88.

85. Idern, p. 143.


86. Idem, pp. 102-103.
87. Idem, p. 103. A fórmula canônica da denúncia é, assim, do tipo:“A diz que B diz que Cdiz que DfazX".
88. Idem, p. 103.

237
A SÁTI RA E O E N G E N H O

[...] p e d i n d o o s p r e s o s e s m o l a p o r a m o r d e D e u s N o s s o S e n h o r J e s u s C r i s t o d i s s e p a r a
o s p r e s o s a s s e g u i n t e s p a l a v r a s : N ã o v a i aí N o s s o S e n h o r J e s u s C r i s t o , p o r q u e v o s n ã o
t i r a d a c a d e i a ? 89

A r r e n e g o d a O n i p o t ê n c i a D i v i n a 90.

D i s s e q u e n e s t a terra h á a lg u n s m a u s cristã o s, p o r q u e s e g u n d o se d iz g e r a lm e n t e nela,


há q u atro o u c in c o a n o s q u e a m a n h e c e u u m a cru z d o s P a sso s q u e está às portas desta
C id a d e in d o para o C a r m o c o m u m a co ro a de c o r n o s e m lu g a r de co ro a d e e s p in h o s . E
n o m e s m o t e m p o a m a n h e c e u o u t r a c r u z e n f o r c a d a n a f o r c a p ú b l i c a d e s t a c i d a d e 91.

[...] a n d a r a p o r c i m a d o A l t a r m o r q u e é o n d e e s t á o S a n t í s s i m o S a c r a m e n t o , c o m o
c h a p é u n a c a b e ç a e e s p a d a n u a c o m g r a n d í s s i m o d e s a c a t o e i r r e v e r ê n c i a r e v o l v e n d o as
c o r t i n a s , d o q u e h o u v e g r a n d e e s c â n d a l o e m t o d a a p e s s o a q u e s a b i a d o c a s o 92.

[...] o r d i n a r i a m e n t e c h a m a v a m t o d o s à d i t a é g u a M a r i a P a r d a [...] o q u e e r a c a s o d e
g r a n d e e s c â n d a l o p o r s e r m u i t o d e s a c a t o e i r r e v e r ê n c i a d a V i r g e m N o s s a S e n h o r a 9-’ .

[...] q u a n d o j o g a v a e p e r d i a s e ia p a r a c a s a e a ç o i t a v a u m c r u c i f i x o q u e t i n h a 94.

[...] p e g a n d o p e l a b a r b a a u m a i m a g e m d e S ã o P e d r o [ d i s s e ] c o m o e n c a i x a r i a e s t e v i l ã o
r u i m e m s e u t e m p o u m a b o r r a c h a q u a n d o a n d a v a p e s c a n d o 95.

[...] a o t e m p o d e d i z e r o s a c e r d o t e Domine non sum dignus, q u a n d o toda a g e n te estava de


g i o l h o s e b a t i a n o s p e i t o s , v i u e l e d e n u n c i a n t e a D o m i n g o s A l v a r e s d e S e r p a [...] e s t a r
a s s e n t a d o e m u m b a n c o [...] a m ã o e s q u e r d a e n c o s t a d a à p a r e d e c o m u m a p e r n a s o b r e
o u t r a d a n d o e b o l i n d o c o m a p e r n a q u e t i n h a s o b r e a o u t r a , s e m b a t e r n o s p e i t o s 96.

B o to a C risto m u ita m erd a , e p ela h ó stia sagrada m u ita m erd a , p ela V irg em M aria
m u i t a m e r d a 97.

E d is s e q u e era v e r d a d e q u e e s ta n d o o te r ceiro d o m in g o d e A g o s to p r ó x im o p a ssa d o


n a Sé d e s t a C id a d e , e a c a b a n d o d e p reg a r o P a d re F rei  n g e lo da O r d e m e M o s te ir o

89. Idem, p. 105.


90. Idem, p. 110.
91. Idem, p. 111.
92. Idem, p. 113.
93. Idem, p. 115.
94. Idem, ibidem.
95. Idem, p. 121.
96. Idem, p. 123.
97. Idem, p. 160.

238
A PROPORÇ Ã O DO M O N ST RO

d e S ã o B e n t o d e s t a c i d a d e a p r o p ó s i t o d e h a v e r p o u c o s d ia s q u e se a c h a r a j u n to da
d ita S é u m A u t o d a p a ix ã o d e C r is t o n o s s o R e d e n t o r q u e t in h a u m a i m a g e m d e u m
c r u c ifix o c o m o rosto su jo d e e ster co d e g e n te , e s ta n d o o a u to to d o li m p o , o q u e o
d ito P r e g a d o r a f ir m o u q u e vira c o m se u s o lh o s , e e s tr a n h o u q u a n to d e v ia tão e n o r m e
sa c r ilé g io e b la s f ê m ia , d isse r a S iin ã o d e L e ã o da n a çã o , n a tu r a l d e L is b o a , c a s a d o e
m orad or nesta cid a d e, e con tratad or dos d ízim o s dos açú cares, m o stra n d o -se m u ito
in d i g n a d o , q u e se e s tiv e r a m a is p e r to d o d ito P r e g a d o r l h e h o u v e r a d e d i z e r q u e era
um d e sa v e r g o n h a d o a m a n c e b a d o , o q u e d issera e s ia n d o a sse n ta d o ju n to da M esa d o
S a n t í s s i m o S a c r a m e n t o e m q u e e l e d e n u n c i a n t e e s t a v a a s s e n t a d o [...] t o d o s o s q u e
o u v ir a m as d i t a s p a la v r a s d e v i a m fic a r e s c a n d a l i z a d o s d e l a s , e e l e d e n u n c i a n t e se
e s c a n d a liz o u m u it o p o r q u e lh e p a recera e p a recia q u e n ão se p o d ia ta n t o e s tr a n h a r
a so b redita irr e v e r ê n c ia e d esa c a to feito à im a g e m d o c r u c ifix o q u e m u it o m a is n ã o
d ev esse ser e s tr a n h a d o d e q u e m fosse b o m cristã o e te m e n te a D e u s , e q u e p o r o
d e n u n c i a d o se r da n a ç ã o e e s t a r a c o m p a n h a d o d e g e n t e d e la q u e n e sta terra era m u i ­
to p o d e r o s a e s o b e r b a , l h e p a r e c i a q u e n e n h u m d o s c r i s t ã o s v e l h o s q u e l h e o u v i u a s
d i t a s p a l a v r a s s e a t r e v e r í a a i r - l h e à m ã o 98.

No último caso, evidencia-se que o excesso de zelo facilmente se torna


sacrílego - mas o que mais interessa é a afirmação de que “gente dela [...]
nesta terra era muito poderosa e soberba”, indicativa de interesses que ultra­
passam a simples questão pessoal.
Embora as blasfêmias e os sacrilégios sejam atribuídos a denunciados
muitas vezes classificados como cristãos-velhos, são facilmente interpretáveis
como oposição e afirmação de heterodoxia, principalmente o judaísmo. Nes­
te sentido, a blasfêmia permite dupla leitura: sendo uma infração do dogma
católico, o sentido da infração pode ser traduzido como infração simples, mas
também como heresia, como se a blasfêmia fosse um momento de negação de
artigos da fé, a heresia. Referências diretas a práticas judaizantes são menos
numerosas, assim, sendo o judaísmo uma inferência construída a partir de
exemplos de atos não-ortodoxos:

[...] f u r t a n d o - s e n e s t a c i d a d e u m e s c r i t ó r i o a o d e n u n c i a d o F e l i p e T o m á s s e l h e a c h a r a
d e n t r o u m a T o u r a [ T o r á ] 99.01

[...] [ o u v i u ] g a b a r u m l i v r o i n t i t u l a d o Belial a J e r ô n i m o R u i z [...] d i z e n d o - l h e q u e t r a t a ­


va o l i v r o d e u m a d e m a n d a q u e o D i a b o p u s e r a a C r i s t o 1™.

98. Idem, pp. 157-158.


99. Idem, p. 108.
100. Idem, p. 119.

239
A SÁTI RA E O E N G E N H O

[...] o u v i r a d i z e r G a y a s , G a v a s , q u e é p a l a v r a d e j u d e u 101.

[...] o l i v r o [...] t i n h a p o r r u b r i c a Processo judiciário [...] a m a t é r i a [...] e r a d e u m a d e m a n ­


d a q u e B e l i a l p r o p u n h a d i a n t e d e D e u s s o b r e n ã o s e r M e s s i a s C r i s t o N o s s o S e n h o r 103.

[...] [o d e n u n c i a d o d i s s e r a ] C o i t a d o d e t i , d e s a m p a r a s t e a l e i q u e s e d e u n o m o n t e
S i n a i 103.

[...] o b s e r v â n c i a d o s á b a d o [ , . . ] 104

[...] q u e r i a e n s i n a r - l h e a l e i d e M o i s é s p o r q u e f o l g a r i a m u i t o d e o s a b e r ? 103

[...] s e x t a s - f e i r a s à n o i t e l a v a v a m o s p é s e t o d o o c o r p o e m u m a c a l d e i r a g r a n d e d e
e n g e n h o d e a ç ú c a r c o m á g u a m o r n a , e v e s t i a m c a m i s a s l a v a d a s [...] l h e s n ã o v i u c o m e r
c a r n e d e p o r c o 106.

[...] o d i t o M a n o e l h o m e m a p o s t a t a r a d a n o s s a S a n t a F é c a t ó l i c a e s e f i z e r a J u d e u na
d i t a c i d a d e d e N o s t r a D a m a 107.

[...] e a í e s t a v a m a t é m e i a n o i t e e s c a v a n d o e m u m l i v r o g r a n d e , l h e d i s s e r a e l e d e n u n ­
c ia n te q u e seria o liv r o d e c o n t a s q u e fa z ia m , e o d ito M a t e u s d e S o u sa r e s p o n d e r a q u e
n ã o e r a s e n ã o o l i v r o d a c o n f r a r i a d o s J u d e u s 108.

[...] r e s p o n d e r a P a s c o a l B r a v o [...] q u e o s d i t o s q u e i m a d o s m o r r i a m m á r t i r e s 109.

Outro crime, simulação demoníaca do coito, a sodomia, é castigado com o


fogo. Nas denúncias, é a principal fornicação delatada:

[...] m a t o u p e l o t e r a c u s a d o d e c o m e t e r e m a m b o s o p e c a d o n e f a n d o d e s o d o m i a 110.

[...] h a v e r á q u a t r o o u c i n c o a n o s m a i s o u m e n o s c o m e t e r a o p e c a d o n e f a n d o d e s o d o m i a
c o m u m m u l a t o fo r r o p o r n o m e J o s é 111.

101. Idem, p. 123.


102. Idem, p. 125.
103. Idem, p. 130.
104. Idem, ibidem.
105. Idem, p. 131.
106. Idem, p. 134.
107. Idem, p. 163.
108. Idem, p. 185.
109. Idem, p. 194.
110. Idem, p. 107.
111. Idem, p. 112.

240

Â
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

[...] n e s t a te r r a s e d i z i a v u l g a r m e n t e q u e o d i t o L i c e n c i a d o F e l i p e T o m á s d e M i r a n d a
c o m e t i a o p e c a d o n e f a n d o d e s o d o m i a c o m u m s e u c r i a d o p o r n o m e A n t ô n i o R u i z [...]
e a ss im t a m b é m c o m e t ia o m e s m o p e c a d o c o m B e n to C o rreia , o C a la m b a u z i n h o p o r
a l c u n h a [...] d i z e m v u l g a r m e n t e q u e o d i t o d e n u n c i a d o m a t a r a u m m o ç o q u e o s e r v i a
por ter c o m e t id o c o m e le o d ito p e c a d o e p o r q u e o n ã o d e s c o b r is s e , c é tão in fa m a d o
d e s te p e c a d o n e s t a terra e n a d e P e r n a m b u c o d o n d e v e i o para e la q u e a n d a e m p r o v é r ­
b i o e n t r e b r a n c o s e n e g r o s [ , . . ] 112

[...] P e r o G a r c i a [...] c o m e t i a o P e c a d o n e f a n d o d e s o d o m i a c o m u m m o ç o d e q u a t o r z e
o u q u i n z e a n o s n a t u r a l d e V i a n a e c o m u m m u l a t o s e u p o r n o m e J o s é 1".

[...] E d i s s e q u e e l a d e n u n c i a v a b e m e v e r d a d e i r a m e n t e d o P a d r e B a l t a s a r M a r i n h o ,
c l é r i g o d e m i s s a , v i g á r i o d e J a g u a r i p e [...] p o r q u e h a v e r á c i n c o o u s e i s a n o s [...] q u e n a
e r m i d a d e S ã o F r a n c i s c o [...] n a T a p o ã [...] s e n d o c a p e l ã o d a d i t a e r m i d a o d i t o P a d r e
B a lta sa r M a r i n h o e c o n f e s s a n d o - s e ela d e n u n c i a n t e c o m e le , a c o m e t e r a n o a to da c o n ­
f i s s ã o p a r a d o r m i r c o m e l e c a r n a l m e n t e [...] d i s s e m a i s [...] q u e u m s e u f i l h o p o r n o m e
M an oel d e M a c e d o , e s tu d a n te h averá quatro a n o s p o u c o m a is o u m e n o s q u e se n d o da
id ad e d e q u a to r z e a n o s o c o m e te r a o d e n u n c ia d o para o p e c a d o n e f a n d o d e s o d o m ia , e
que haverá n o v e ou d ez an os q u e o m e s m o d e n u n c ia d o co m etera o m e s m o p eca d o a
P a s c o a l S o a r e s já d e f u n t o f i l h o d e l a d e n u n c i a n t e " 4.

Outra prática denunciada é reminiscência de ritos pagãos; uma delas con­


siste, por exemplo, em pôr uma moeda na boca de um morto"5. E, ainda, o
sexo ilícito, fora das especificações do matrimônio:

[...] d i s s e r a m [...] G o n ç a l o C o r r e i a e J o ã o G a r c i a m e s t r e d e a ç ú c a r e s c r i s t ã o - v e l h o [...]


que d o r m ir c a r n a l m e n t e c o m u m a m u l h e r so lteira o u c o m u m a n eg ra n ã o era p e c a d o
m o r t a l " 6.

Relatado o caso pelo denunciante, o inquisidor pergunta-lhe se havia


mais testemunhas, ao que responde o denunciante que, quando ocorreu, não
estavam mais que ele e o denunciado, ou então as indica, citando-as nomi­
nalmente, comprometendo-as com o Santo Ofício, que as convoca. No caso
da denúncia contra o padre Baltasar Marinho, a viúva Madalena de Góis
indica duas mulheres já defuntas. Outras questões do inquisidor, prova­
velmente atenuantes: “se estava o denunciado em seu perfeito juízo ou se123456

112. Idem, pp. 160-161.


113. Idem, p. 170.
114. Idem, p. 180.
115. Idem, p. 189.
116. Idem, p. 177.

241
A SATIRA E O E N G E N H O

era falto dele ou costumava a emborrachar-se, ou lhe dissera as ditas pala­


vras zombando?”" 7
As respostas geralmente afirmam que estava em perfeito juízo e, por vezes,
admitem que costumava beber, muito ou pouco. As questões seguintes do
inquisidor são acerca das relações do denunciado com outras pessoas: “se o denun­
ciado era infamado de culpas de judaísmo e se fora já preso e penitenciado pelo
Santo Ofício ou algum parente seu?”118 Estabelecida a trama da heresia, o de­
nunciante é ainda interrogado “pelo costume”, isto é, acerca das relações existen­
tes entre ele e o denunciado. As respostas são muito elucidativas - por exemplo:

E perguntado pelo costume disse que o denunciado o tratava mal de palavras, dizendo
que por ele denunciante ter dito mal dele ao Vigário geral desta cidade, e que arremete-
ra sobre isso para lhe dar com um pau, dando-lhe a entender que por ele denunciante
ter denunciado dele, como na verdade o tinha feito diante do Bispo desta cidade, ser­
vindo de Notário o Vigário geral dela, mas que ele denunciante lhe não queria mal, e
tinha dito a verdade119.

ou

[...] disse que bem e verdadeiramente denunciava de Dinis Bravo da nação senhor dc
engenho casado e morador nesta cidade [...] que haverá ano e meio pouco mais ou
menos, que mandando-lhe ele denunciante pedir por escrito uma esmola, e responden­
do-lhe o denunciado que fosse falar com ele foi ele denunciante por esta causa à sua
casa que é nesta cidade, a um dia à tarde segundo sua lembrança e estando só com ele,
lhe disse o denunciado desta maneira. Vós sois, vós sois, vós sois o doutor hebreu? é
possível que éreis pregador da lei de Moisés e desamparaste-la? bem dizem que a
desamparastes senão por necessidade. I-vos embora que temos cá muito a que acudir. E
levantando-se ele denunciante para se ir o fez o denunciado assentar, e lhe disse: Vós
cuidais que todos os que comem porco são cristãos? pois sabei que os que são judeus cm
Espanha, são melhores judeus que os que receberam a lei de Moisés no monte Sinai. Ao
que ele denunciante não respondeu cousa alguma por temor de se ver na casa do de­
nunciado que é muito rico e poderoso nesta terra, e assim se saiu calado e escandaliza­
do do caso e com mau conceito do denunciado1211.

Segue-se, nos documentos, mais uma questão: se o denunciante sabe de


mais culpados. Nada havendo a declarar, a narração fecha com outra fórmula:
“Estiveram a tudo presentes pessoas honestas e Religiosos”, reiterando-se os

117. Idetn , p. 98.


118. Idetn, ibidem.
119. Idetn, ibidem.
120. Idetn, pp. 98-99.

242

à
A P RO PORÇ Ã O DO M ON ST RO

votos de dizer verdade e guardar segredo, seguindo-se assinaturas ou marcas


dos participantes.
A mesma disposição das mesmas questões do inquisidor em todas as denún­
cias compõe o rigor do método: nada é deixado ao acaso, tratando-se de traduzir
todos os casos particulares de denúncias pela letra pré-inscrita da ordem dog­
mática, que se corporifica na instituição do Santo Ofício e na pessoa terrível do
inquisidor, senhor dos protocolos. Por isso, tanto quanto as confissões, as denún­
cias são discursos formalistas - no sentido de que obedecem sempre ao padrão
das fórmulas nas quais a Regra é dramatizada pelo avesso, através dos exemplos
de pecados e heresias, marcas de sua privação. Desta maneira, as normas da or­
todoxia pressupostas e dispostas em cada denúncia particular contra sodomitas,
blasfemos e judaizantes têm, em todas as delações, sempre a mesma função de
regulação prática, propiciando-lhe a intervenção providencial para purificar os
pontos de falha e falta da ordem plena, que o Santo Ofício encarna.
Além de pressuporem que a distinção e a perseguição das pessoas caracteriza­
das como cristãos-novos, judaizantes, sodomitas etc. estão fundamentadas de di­
reito na Palavra Absoluta de que a Inquisição é representante, as denúncias impli­
cam também uma reiteração obsessiva dos dogmas da ortodoxia: basta lembrar que
tanto a fala solícita do denunciante quanto a audição inspiradíssima do inquisidor
interpretam ações e discursos como textos pré-inscritos, inseparáveis do sentido
de seu destinador terrível e essencial, Deus - a própria denúncia assume, por isso,
a exemplaridadc mítica da reiteração da narrativa da Queda, ação dramática que
repropõe o conflito e a culpa, referindo-os a uma instância fundante in absentia,
sanáveis pela intervenção providencial e curativa do Santo Ofício.
Horror e lógica, parodiando um autor russo, é porque Deus existe que tudo
é permitido, principalmente a falta e o fogo. Assim, a denúncia produz não só
a culpa e os culpados, mas também se reproduz a si mesma como teatro da falha
e ao Santo Ofício, que se alimenta da falha, como onipresença da ortodoxia e
das medidas práticas válidas e validadas como verdades da Fé: prisão, inqué­
rito, tortura, auto-da-fé, que hoje chocam a consciência iluminista, são lógicas
aplicadas. A denúncia faz falar aquilo que não se pode falar ou fazer para pro­
duzi-lo e capturá-lo na forma que o controla e aniquila, a sublime verdade re­
presentada pelo inquisidor. A prática da denúncia não tem por alvo apenas o
denunciado, assim, mas a todos os outros, a começar pelo mesmo denunciante,
movido pela caridade, e pelo mesmo inquisidor, absolvido na regra, como
exemplaridade do olhar do testemunho onipresente121.

121. C f. P i e r r e L e g e n d r e , O Amor do Censor (Ensaiosobre a Ordem Dogmática) , t r a d . C o lé g io F r e u d ia n o d o


R io d e J a n e i r o , R i o d e J a n e i r o , F o r e n s e / U n i v e r s i t á r i a , 1 9 8 3 , p p . 1 1 2 -1 2 7 .

243
A SÁTI RA K O E N G E N H O

Tal função prática das normas da ortodoxia não é tematizada nas denún­
cias, tanto pelo denunciante quanto pelo inquisidor. Além de indicar sua na­
turalidade, isso significa também a extrema generalidade e abrangência das
mesmas normas que, afinal, pretendem legislar o erro e são aptas, por isso,
para capturar como herética qualquer diferença. Na superfície das denúncias,
tais normas aparecem como auto-evidentes, indiscutivelmente justas e incon­
troversas, porque fundamentadas como profundeza da Fé: “Em nome de Deus
amém” é a fórmula que inicia ritualmente os relatos de denúncias: questioná-
las é pouco ortodoxo e impróprio de Fiéis.
Teatro do perfeito funcionamento da ordem dogmática, em todas as de­
núncias de 1618 os denunciantes insistem sempre em relatar sua reação quan­
do referem a heresia que dizem ter testemunhado: traduzem-na como “es­
cândalo” e ainda como “silêncio” imposto ao pecador por palavras de censura
e atos físicos. João Rodrigues denuncia Antônio Velho em 13 de setembro de
1618, contando ao inquisidor que, seis meses antes, tendo ido à casa do de­
nunciado na rua da Fonte da Urina, “tratando entre eles das prisões que se
fizeram por parte do Santo Ofício na dita cidade do Porto, os anos passados,
dissera o denunciado Antônio Velho que prendiam a gente da nação por lhe
tomarem as fazendas”1” .
A lucidez de Antônio Velho é herética: “E indo-lhe ele denunciante à
mão e mais a testemunha referida, dizendo-lhe que não falasse aquelas cousas
que eram mal faladas, não respondera cousa alguma o denunciado”12123.
Não importa saber se as afirmações de tanto zelo por parte dos denuncian­
tes são expressões sinceras da fé ou ênfase retrospectiva muito oportuna para
captar as boas graças do inquisidor, principalmente quando o denunciante é
de origem comprovadamente judaica e alega ser cristão fervoroso ou, ainda,
quando ambiguamente afirma ser amigo de heréticos tão perigosos. Tais ex­
pressões de “escândalo”, de censura, de indignação e de imposição de silên­
cio apenas ratificam,praticamente, o consenso quanto à validade inquestionável
das normas do dogma.
Ao mesmo tempo que encena tal função prática da denúncia pela qual a
obediência que é seu ponto de partida é rearticulada em vários exemplos, a
sátira colonial a modifica. As normas inquisitoriais deixam de funcionar, nela,
apenas como reguladores práticos da ação ou paradigmas dogmáticos natura­
lizados. Na sátira, as mesmas normas tornam-se evidentes como metáforas,
pois, sendo deslocadas do discurso inquisitorial, são objeto de formulação

122. Livro das Denundações que se fizerão na Visitação do Santo Officio [ ...] , p p . 1 3 2 -1 3 3 .
123. Idem, p . 133.

244
A P RO P O RÇ Ã O DO M ON ST RO

“teórica”124. Em outros termos, a sátira encena os mesmos paradigmas dogmá­


ticos de avaliação prática de situação de culpa em outro nível do sentido, no
qual eles são comentário e interpretação metafórica, sendo propostos pública
e positivamente. Desta maneira, a sátira efetua uma evidenciação discursiva
das normas que, nas denúncias, são implícitas porque ortodoxamente natu­
rais. Lembre-se, uma vez mais, que a denúncia e a atividade do Santo Ofício
são secretas, ao passo que a sátira é pública. O que implica, de imediato, uma
função tautológica de reconhecimento público, por parte de seus destinatários,
daquilo que teoricamente já deve ser muito bem sabido por eles como verda­
de da Fé. Metaforizando tais normas, que culturalmente formam uma isotopia
paradigmática ou sistema da ortodoxia, adaptando-as aos “casos” dos boatos
e convenções retóricas que dramatiza, a sátira as transforma sintagmatica-
mente, produzindo um “horizonte de expectativa” inerente aos poemas125.
Em outros termos, a matéria do poeta são formas discursivas contemporâ­
neas: a sátira se faz como expansão e variação de um sistema semiótico con­
temporâneo, do qual encena as normas, tematizando-as metaforicamente como
verossímil. Neste concorrem as regras do gênero misto com que se compõe, a
forma e os temas de obras anteriores e contemporâneas cuja referência, en­
quanto citação, estilização, paródia, é dramatizada como conhecida dos desti­
natários e, no caso em questão, como metaforização poética dos discursos or­
todoxos do Santo Ofício. Por isso, ainda, o reconhecimento do destinatário é
efetuado segundo dois planos simultâneos, próprios da formulação composta,
que justapõe a dicção grave e prudente com a dicção fantástica e burlesca: di­
retamente, as normas dos discursos inquisitoriais são tema tratado positiva­
mente pela voz icástica da enunciação satírica - lembre-se que, tanto na de­
núncia quanto na sátira, a caução da autoridade é uma Palavra essencial, donde
emanam a racionalidade, a prudência, a boa religião e o bom Estado; indireta­
mente, ainda, a positividade das normas é legível pelo avesso da fantasia poé­
tica e da descrição negativa de tipos, propostos misturados, como desvios ou
erros em relação às mesmas normas, assim como nas denúncias. Por isso, pro­
cedimentos, léxico e temas legíveis nas denúncias ao Santo Ofício e que nelas
funcionam como linguagem da regulação ortodoxa dos corpos, na sátira são o

124. C f. W . I s e r , Der implizile Leser: Kommunikalionsformen dei Romans von Bunyan bis Beckcil, p . 8: “A s
n o r m a s s ã o r e g u la d o r e s s o c ia is q u e , tr a n s p o r ta d o s p a r a o u n iv e r s o d o r o m a n c e , a í p e r d e m im e d ia ­
ta m e n te s e u c a r á te r p rá tic o . S ã o in s e rid o s e m u m n o v o c o n te x to q u e m o d ific a s u a fu n ç ã o n o s e n tid o
d e q u e n ã o a g e m m a is c o m o re g u la d o re s (c o m o e le s o fa z ia m n o c o n te x to d a s o c ie d a d e ) , m a s t o r ­
n a m - s e e le s m e s m o s o b je to s d e u m a f o r m u la ç ã o te ó r ic a ” . C it. p o r H a n s R o b e r t J a u s s , “ D e Ylphigénie
d e R a c in e à c e lle d e G o e th e ” , Pour une eslhélique de la réceplion, P a ris , G a llim a r d , 19 7 8 , p. 260.
125. C f. H . R . J a u s s , op. cil., p p . 4 9 -5 1 .

245
A SATI RA E O E N G E N H O

sentido próprio de transformações poéticas e também critérios interpretativos,


teatralizados como código para os casos e tipos que os poemas metaforizam.
Não se trata, por isso, de pensar mecanicamente as práticas inquisitoriais como
um resultado histórico que seria origem da sátira: não há tal relação de exterio-
ridade da representação entre seus discursos, mas uma simultaneidade que
impede ver a sátira como um reflexo ou cópia estilizada, decalque a posteriori
de formas preexistentes. Simultâneos, os discursos se interceptam e transfor­
mam, observando-se neles dois registros diversos.
Desta maneira, a sátira trata metaforicamente procedimentos, léxico e
temas inquisitoriais, compondo-os, através de sua fusão em formas literárias
contemporâneas ou da tradição medieval e latina reativada, em outra situa­
ção discursiva: uma situação pública, aberta para recepções muito assimétricas,
em que funciona como metáfora crítica ou dramatização de denúncia. Desta,
mantém a estrutura de narração e descrição de pecados-metáforas de desejos
censurados e o intuito declarado de falar a verdade; afasta-se da denúncia
inquisitorial, contudo, ao transformar o segredo em coisa pública e, ainda, ao
submeter os temas blasfemos, sodomitas e hereges à fantasia poética, que os
sobredetermina e deforma como caricaturas e insultos. Desta maneira, pro­
pondo-se aqui uma função extremamente dinâmica de sua intervenção polí­
tica, que é a do bom pastor que a toda parte leva a verdade de sua indignação
moral, a sátira não reflete conteúdos preexistentes e acabados das práticas
inquisitoriais contemporâneas a ela. A manter a metáfora óptica, seria mais
adequado dizer, com Bakhtin, que ela refrata significados de discursos con­
temporâneos. Ao fazê-lo, produz uma redistribuição das normas inquisitoriais
conforme outras regras discursivas verossímeis, adequadas retoricamente à
comunicação de seu tema. Ao fazer-se como denúncia pública, a sátira pro­
põe a partilha coletiva da falta para a qual receita o remédio.
Inversão, a persona satírica ocupa metaforicamente a posição de um
inquisidor que, ao invés de ouvir denúncias e confissões através de “questões”
(perguntas e tortura), fala as respostas, propondo ao pecador que sofre de seu
desejo proibido o substitutivo sublime de sua Lei, transformada em objeto de
amor. Na inversão, mais uma vez a sátira encontra o Santo Ofício: a represen­
tação fantástica, exagerada e deformante de culpas e culpados, funciona nega­
tivamente como representação de desejos censurados, fazendo entrever o Di­
reito, que regula o medo e os monstros126. Veja-se um exemplo dessa pedagogia:
num dos inúmeros ataques ao governador Câmara Coutinho, invariavelmen­
te acusado do pecado nefando de sodomia, aparece a referência judaica:

126. C f. P ie rrc L e g e n d r e , op. c r í., p . 12 7 .

246
A P RO PORÇ Ã O DO M ON ST RO

A vós, fanchono beato,


sodomita com bioco,
e finíssimo rabi
sem nasceres cristão-novo:
A vós, cabra dos colchões,
que estoqueando-lhe os lombos,
sois físgador de lombrigas
nas alagoas do olho [...]
(OC, I, pp. 213-214.)

Observe-se, inicialmente, a identificação metafórica de “sodomita” e “ju­


deu”, que nas denúncias inquisitoriais é uma virtualidade de constituição de
heresias:

Mandou-vos El-Rei acaso


a Sodoma, ou ao Brasil?
Se não viveis em Judá,
quem vos meteu a Rabi?
(OC, I, p. 217.)

Conforme a sátira, Câmara Coutinho, por ser sodomita, habita Sodoma;


Sodoma é Judá; logo, por entimema, Câmara Coutinho é judeu proeminente -
“Rabi” - com conotação escatológica. O significado do termo “rabi”, neste tre­
cho e no anterior, violentamente ofensivo ao referir o governador segundo as
normas vigentes da limpeza de sangue, é acrescido da violência metafórica ine­
rente ao contexto discursivo do poema, em que Câmara Coutinho vai sendo
caricaturizado como “sodomita”. Deslocado do contexto inquisitorial em que
tem valor pejorativo, o termo mantém sua referência e seu significado heréticos,
mas é sobredeterminado com outro valor disfórico pelo trocadilho “rabi/rabo”,
evidenciado pelo verso “sem nasceres cristão-novo”, que lhe reorienta o sentido
como metáfora anal amplificada ironicamente pelo superlativo “finíssimo”.
Nesta linha, como nas denúncias, a sátira também produz heréticos, quando
encena publicamente o léxico inquisitorial como metáfora para referir fantasti­
camente pessoas cristãs-velhas, como o governador fidalgo. O léxico judaizante
torna-se, no caso, metáfora para o insulto e sua convenção. Por isso, ainda e mais
uma vez, diga-se que a metáfora satírica dramatiza discursos, não “fatos”. Veja-
se a sátira contra Luís Ferreira de Noronha, criado de Câmara Coutinho:

Estas as novas são de Antônio Luí-


No que passa sobre um gato de algá-

247
A SÁTIRA E Q E N G E N H O

Que algália tira com colher de Itá-


Que coze e corcoja em fonte Rabi-
Se lhe escalda ou não a serventi-
Isto tem já provado o mesmo ga-
Porque passando os rios de cuá-
O caso locou logo a Inquisi-
Há cousa mais tremenda e mais atró-,
Que em terra, onde ha tanta fartu-,
E haja quem por um cu enjeite um có-?
E que por mau gosto seja um pu-?
Eu me benzo, e arrenego do demô-
E do pecado, que é contra a natu-127.

Os versos agudos de cabo roto diagramam o tema cômico-escabroso. To­


dos os motivos dos discursos das denúncias encontram-se aqui: o procedi­
mento de designar um culpado; a partição ortodoxia/heresia; a identificação
de sodomia, pecado nefando contra a natureza, com judaísmo, heresia contra
a fé católica; a metaforização anal do léxico judaizante (“fonte Rabi-”); a ade­
são à normatividade do dogma vigente etc. Observe-se ainda que a alegorização
de Câmara Coutinho como um “gato de algália” do qual se extrai algo com
“colher de Itá-” obscena faz o poema jogar com o duplo sentido do provérbio
popular “gato escaldado tem medo de água fria”, acendendo, pela conotação
de “escaldar”, o calor da fé do Santo Ofício. Observe-se, também, que Câma­
ra Coutinho é referido em uma representação que o sobredetermina como
vicioso: sendo “sodomita”, é “judeu”; sendo “judeu”, é um “puto”, de modo
que “sodomita = judeu = puto”. O corpo fantástico do governador torna-se,
assim, ponto de convergência dos maiores insultos de sua época: pecador con­
tra naturam, herege e bastardo.
A partir das conceituações de Jauss sobre a recepção, pode-se afirmar que
a função comunicativa de poemas como os referidos - função de reiteração de
normas sociais vigentes e de produção social de significações novas em outras
situações, como no exemplo de “rabi” - não ocorre simplesmente no momen­

127. C f. t a m b é m o u t r o s o n e t o d e v e rs o s d e c a b o ro to : “ Q u e a g u a r d e L u í s F e r r e i r a d e N o r ô = / T ã o

g r a n d e p e s p e g a r p e lo b e s b ê = ! / P a r a o P u t o , q u e a g u a r d a tal p e s p é = / H f a z s e r v i r s e u c u d e c o c ó = .

/ S u b v erteu -se a c id a d e de S o d ô = / Pelo m u ito , q u e a n d o u d e c a r a n g u ê = : / A P alácio tam b ém

creio, s u c é = / O m esm o , q u e à c id a d e de G o m ô = . / Q u e desse e m p escad o r A n tô n io L u í = ? /

N e f a n d o g o sto te m o seu c a rá = / E m n ã o q u e r e r t o p a r p o n t a d e c r i = . / P o is t a n t o se n a m o r a do

p e s c a = , / A c u a m a s e v á p e s c a r l o m b r i = , / E e m c a s t i g o d e D e u s m o r r a q u e i m a = " ( O C , I, p. 2 0 8 )

248
A 1' ROl’O R ÇAO DO M O N S T R O

to em que um destinatário isolado se torna “um ator da história associando-se


a outros indivíduos cujo esforço vai no mesmo sentido”. Tal função já opera
quando o destinatário, figurado como ciente das práticas do Santo Ofício,
retoma, por coma própria, certas normas, certas expectativas, aprendendo,
pela identificação estética, aquilo que pode ser a experiência e o papel social
de outros e dele mesmo. Assim, o poema particular pode reforçar seu com­
portamento no sentido da imitação de modelos antijudaicos e da morali­
dade sexual “natural”, certamente, mas também no sentido de uma modifi­
cação consciente e de uma mudança de sua experiência futura12812930.
Neste sentido do reconhecimento público das normas implícitas por par­
te dos destinatários contemporâneos da sátira, os discursos inquisitoriais de
delação fornecem, aqui, um modelo interpretativo da encenação satírica da
delação. Transposição e metáfora, a sátira constitui um verossímil judaico ou
herege segundo tal ou qual ator particular, tematizado pelo léxico judaizante,
referindo-o a um indivíduo em situação determinada, cristão-novo ou cris-
tão-velho.
Regra da delação ao Santo Ofício, como se viu, é a pergunta, feita sempre
pelo inquisidor no final do depoimento do denunciante, "pelo costume”, ou
relação que mantém com o denunciado. Muito comum é a resposta de que
são amigos. Veja-se um pequeno exemplo muito piedoso em que o amor da
ortodoxia católica justifica a traição da amizade. Manoel Rabelo, cii- tão-ve-
lho de 19 anos de idade, denuncia Cristóvão Henriques, “da nação”, de 22
anos, no dia 13 de setembro de 1618, contando ao inquisidor que “[...] um mes
e meio pouco mais ou menos [...] em um dia de que não está lembrado”, es­
tando na casa de Francisco Henriques, um alfaiate irmão do denunciado, fa­
lou-se que vinha a Inquisição para a Bahia e que muitos judeus morreríam
queimados:

[...] respondera o mesmo Cristóvão Henriques que alguns morriam mártires, ou todos
segundo lembrança dele denunciante que não se afirmava bem se o denunciado disse
todos, se alguns, mas que estava bem lembrado que dissera ou todos, ou alguns
[...] E perguntado pelo costume disse que era amigo do denunciado133.

A sátira põe em cena a mesma situação equívoca - amizade com cristãos-


novos tematizando-a negativamente como imprudência, no sentido que se
dá ao termo no século XVII: irracionalidade, gosto, “asneira”. Publicamente, a

op. c i t p p . 2 6 0 - 2 6 1 .
128. H . R . J a u s s ,
129. Livro das Denunciações que se fizerão na Visitação do Santo Officio [...], p . 1 3 9 .
130. Idem, p . 141.

249
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

censura funciona como “monitório”, advertência do provável comprometimen­


to com a heresia e seu castigo. Publicamente, a sátira propõe a discriminação e o
isolamento dos tipos suspeitos de heresias ou passíveis de suspeição. Ao fazê-lo,
dramatiza também uma recepção que, ciente da onipresença da pedagogia do
medo do Santo Ofício, reorienta o comportamento futuro, “aprendendo” a lição:

Que hajam turcos belicosos [sic]


filhos da perversidade,
havendo na cristandade
Monarcas tão poderosos:
que não se juntem zelosos
para prostrar seus furores,
mandando-se embaixadores
de eloqüéncia persuasória!
Boa história.
Mas que hajam com mais extremos [sic]
entre cristãos batizados
sacrílegos, renegados
ímpios, judeus, e blasfemos:
que algum cristão (como vemos)
dos t a i s seja muito amigo,
tendo tão grande perigo
de pagar-se-lhe a manqueira!
Boa asneira.
(O C , II, p . 4 77.)

Quando o inquisidor pergunta ritualmente ao denunciante a causa da


delação, a resposta invariável é a de que delata “com bom zelo”, “por descargo
de consciência” ou para obedecer ao “Édito da fé”, expressões sinônimas da
mesma economia unitária da alma implícita também no trecho do poema
citado acima, em que o “bom zelo” da enunciação constitui “sacrílegos, rene­
gados,/ ímpios, judeus, e blasfemos”, expressões que recobrem os crimes das
denúncias: sacrilégio, blasfêmia, heresia. Embora muitas delações obedeces­
sem certamente a motivos de “foro íntimo”, como a vingança, o efeito prático
da declaração do denunciante é o de ratificar a fé na Fé: delata-se porque se é
bom católico; em outros termos, por caridade e submissão ao corpo visível da
Igreja. Afinal, a Igreja Católica é inquestionavelmente uma instituição visível
e jurídica, cuja estrutura e tradições derivam diretamente da inspiração do
Espírito Santo, doutrina defendida e consolidada pelos dominicanos e jesuí­
tas que a debateram em Trento, em 1546, contra os luteranos, os erasmianos e

250
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

os maquiavélicos: conforme o Decreto sobre as Escrituras Canônicas, promulga­


do então, ninguém vive uma vida plenamente cristã se vive fora da Igreja
Católica visível. E a mesma visibilidade dos ritos e tradições que implica o
segredo, no caso das denúncias ao Santo Ofício, como adesão incondicionada
ao “poder diretivo e coercitivo” de que fala Suárez131 e que a Inquisição repre­
senta, como senhora do dogma. O dogmatismo é absoluto, a ponto de arrogar-
se a força de condenar os judeus culpando-os de heresia contra a sua própria
fé - porque, segundo a Igreja, alterar o rito judaico é profanar um testemu­
nho válido da fé cristã... Assim, os papas Gregório XI e Inocêncio III fizeram
queimar livros judaicos contendo grande número de heresias e de erros con­
tra o judaísmo, castigando os que os propagavam e ensinavam132.
E a mesma visibilidade que se recorta na sátira: a amizade com cristãos-
novos é uma infração de tal visibilidade, sombra que a mancha, mistura
indevida “tendo tão grande perigo / de pagar-se-lhe a manqueira”. Qual é o
perigo que a sátira evidencia ao ameaçar não apenas os cristãos-novos, mas
também os “cristãos batizados” (expressão que, ao ocultar que os cristãos-
novos também são batizados, propõe mais uma vez a visibilidade dos rituais
católicos como critério distintivo do autêntico cristão)? O perigo, óbvio dizê-
lo neste contexto, é o braço de mil olhos do Santo Ofício. Como se viu, sua
ação não implica a verificação de culpas, antes sua constituição, de modo que
qualquer um - cristão-velho ou cristão-novo - está sujeito ao fogo:

Serão legilimamente considerados heréticos, conforme opinião unânime de teólo­


gos e canonistas, aqueles que visitam os heréticos, ou que os mantêm, assistem ou acom­
panham. As suspeitas são, neste caso, suficientemente fortes para justificar por si só os
processos de heresia133.

Por isso mesmo, o zelo - demonstrado também por denunciantes cris­


tãos-novos - é efetuado na sátira como suspeito:

Quantos com capa cristã


professam o judaísmo,
mostrando hipocritamente
devoção à Lei de Cristo.
(OC, I,p. 12.)

131. C f . Q . S k i n n c r , " T h e R e v i v a l o f T h o m i s m ” , e m The Foundations of Modem Political Thoughl,


II (The Age of Refonnation), p . 14 5 .
C a m b r i d g e , C a m b r i d g e U n i v e r s i t y P r e s s , 1 9 7 8 , 2 v o ls ., v o l.
132. C f . N . E y m e r i c h & F. P e n a , op. cil., p . 77.
133. ídem, p . 54.

251
A SÁTI RA E O E N G E N H O

OU

Verão um Doutor
em Judá nascido
mais entremetido
que um grande fedor:
Grande assistidor
de Igreja festeira,
que ao longe lhe cheira
como mangerona:
forro minha cona.
(OC, II, p. 464.)

e, ainda, propondo o zelo cristão-novo como gênero cômico:

Deixe, Senhor Beato, a Beati-,


Que se é via do Céu a via sa-
Ninguém o quer já crer nesta cidá-
Porque é você da casta Israeli-.
Quando devoto corre a sacra vi-
E a cada pé de Cruz estende os bra-
Parece um entremez da Lei da gra-
Que a toda a cristandade causa ri-.
Deixe-se disso, e trate do escritó-
Que esse lhe há de render o pão da me-,
E o céu também, se com bom zelo advó-,
Mas se quer, que por Santo o reconhê-
E na paixão de Deus faz o graciô-,
Embolsará as risadas da comé-.
(OC, III, p. 728.)

Quando demonstrado por cristãos-velhos e mesmo por padres, o zelo ca­


tólico também pode ser criticado pela sátira, como denúncia da denúncia.
Ela o critica pela metáfora do judeu contra não-judeus. A sátira ao deão André
Gomes Caveira, por exemplo, faz trocadilho com seu nome e, traduzindo-o
como judeu:

Como não há de acabar-se,


se uma Caveira tão feia
ao Prelado galanteia

252
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

a risco de enamorar-se!
onde se viu galantear-se
o roxete carmesi
pela caveira de Heli?
(OC, II, p. 259.)

termina por invalidar-lhe as ações:

Aqui anda, e aqui está


rosnando sempre entre nós,
Deão com cara de algoz,
e pertensão de Bispá:
ele é, o que os pontos dá,
e os vícios vai acusando
com zelo torpe, e nefando,
com que nos bota a perder:
porque quem não há de crer
uma Caveira falando.
(OC, II, p. 260.)

Desta maneira, o léxico judaizante é composto como metaforização de


várias ações interpretadas como viciosas, não importando sua adequação
referencial como representação de judeus ou cristãos-novos, mas como teatra-
lização de uma norma cultural conhecida, que, referindo a situação da invec-
tiva, funciona como insulto que significa não importa qual pessoa ou condição.
A desqualiftcação opera não só como insulto racial - como subitem do topos
“raça”, também desqualifica as relações de parentesco, associando-se a ela os
motivos da “puta”, do “bastardo” e do “corno”, fundamentais no imaginário
fidalgo:

Verão um sandeu
que quer sem disputa
ser filho da puta,
por não ser judeu:
se hábitos perdeu
por ser cristão-novo,
a mim todo o povo
de velho me abona:
forro minha cona.
(OC, II, p. 463.)

253
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

Amplificação da degradação, observe-se mais uma vez a estrutura da de­


núncia dramatizada no trecho como exposição pública de um tipo - “Verão
um sandeu” - objetivado pelo olho prudente como “louco” - extremo da im­
prudência - que prefere ser “filho da puta / por não ser judeu” (OC, II, p.
463). A desqualificação é absoluta, indicativa da posição das mulheres cris-
tãs-novas nesses discursos de fé muito ardorosa, que as situam abaixo das
“putas”. Por isso, o mesmo topos da origem racial e parentesco é operado como
metáfora pejorativa de práticas sexuais ilícitas. Por exemplo, na crítica a clé­
rigos:

Clérigo verão
que porque em Cantabra
nasceu de uma cabra
cresceu a cabrão:
Tão fino ladrão
que até a filha alheia
com ser cananéia
furta à mãe putona:
forro minha cona.
íOC, II, p. 464.)

Como ocorre com o termo “rabi” referindo sodomitas, aqui “cananéia” e


sua equivalência “puta” são qualificações do insulto e convenções para ele. É
a mesma desqualificação radical do herético que atribui várias qualificações
metafóricas, extraídas de contextos discursivos diversos, a um mesmo tipo
satirizado:

O Galileu Requerente,
Macabcu solicitante,
quem vos deu tamanho guante,
tendo-vos de gozo o dente?
Se me dais cá por agente,
sois homem de tantas partes
que me ganhais estandartes:
eu zombo de vossos pleitos,
porque são vossos direitos
de Pedro de malas artes.
Latis, e cuidais, que eu morro
de ouvir o vosso latir,
e eu zombo de vê-lo ouvir,
porque quem late, c cachorro:

254
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

vós latis, e eu me desforro


dando-vos estas pedradas,
que quando um cão nas estradas
late ao manso caminheiro,
assentando-lhe o cacheiro
deixa as partes sossegadas.
Guardai-vos Israelita,
que se me chega a mostarda,
talvez, que a casa vos arda,
porque é casa de mesquita:
se à força da jeribita
tendes a idéia turbada,
com que vos não dais de nada,
vede, que a minha Camena
como vos corta co’a pena
vos pode cortar co’a espada134.
( O C , III, p p . 7 3 8 - 7 3 9 . )

Pela semelhança negativa que as liga, as metáforas são intercambiáveis,


produzindo-se grande dinamismo no poema, correspondente à sua intertra-
dução que vai compondo o tipo como mescla de discursos. Assim, por exem­
plo, o epíteto “Galileu”, buscado ao dogmatismo da Inquisição italiana ini­
miga da ciência heliocêntrica, conota /herege,/ e é traduzido na sequência do
poema por “Macabeu”, equivalente metafórico que, ao remeter o poema à
referência das Escrituras, direciona e explicita o significado herético do nome
“Galileu” quando o judaíza. Segundo tópica retórica do insulto, as ações de
“Galileu” e “Macabeu” são categorizadas como/bestial id a d e /-“gozo” (cão),
“dente”, “latir”, “cachorro”, “cão” - de maneira que a significação herética
dos dois epítetos é acrescida do significado /irracionalidade/. “Homem de
muitas partes”, acrescenta-se mais uma ao tipo, que interpreta os significa­
dos acumulados passando-os pela tradição oral e pela figura do pícaro, comum
nas letras contemporâneas da sátira: “Pedro Malasartes”. A contínua inter-
tradução tem efeito cumulativo de conceitos e intensificação grotesca do tipo
que os epítetos compõem como mescla. Como se viu, as denúncias ao Santo
Ofício narram ações e nomes muito variados, habilmente conduzidos pelas
questões do inquisidor para dentro da grade conceituai da heresia e sua tra­
dução como judaísmo. A sátira teatraliza a mesma operação, mas de modo
simetricamente inverso: ela parte de um significado genérico -/ju d e u /-q u e ,

134. A d i d a s c á l i a d e s s e p o e m a d i z “A o u t r o r e q u e r e n t e d a m e s m a c i ê n c i a e d a m e s m a p r e s u n ç ã o , m a s

i n f a m a d o d e c r i s t ã o - n o v e e d e m u l a t o c h a m a d o P e d r o d e T a l ” ( O C , [It , p . 7 3 8 ) .

255
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

conotando /heresia/, é um hiperinclusivo, signo que üngüistas chamam de


arqui-semema, que pode incluir e designar não importa qual significado não-
ortodoxo: /judeu/ pode conotar, assim, não-ortodoxia científica (Galileu),
referência bíblica (Macabeu), bestialidade e irracionalidade (cão), pícaro e
ação picaresca (Pedro Alalasartes): o poema funciona como um repertório de
nomes para a heresia. Quando a terceira estrofe passa a advertir o tipo, tradu-
zindo-o por “Israelita”, explicita-se o sentido próprio de “cão”, “Pedro
Malasartes”, “Macabeu” e “Galileu”, e é justamente a encenação da identifi­
cação de um culpado - o “judeu” - que faz o poema abrir-se para o teatro
violento de um auto-da-fé. Como a Inquisição também mata mouros, a ope­
ração de inclusão estende-se um pouco mais e o “judeu” é identificado ao
“muçulmano”, por meio da substituição de um termo logicamente previsível
segundo o paradigma /judaísmo/ - “sinagoga” - por outro - “mesquita” -
trazido para o poema como metáfora ou equivalência herética135. Observe-se,
ainda, que a esses significados mais um se acrescenta, como retomada e refor­
ço da /irracionalidade/ já produzida: a “jeribita”, que turva a idéia, ou o vício
da embriaguez.
A flutuação das metáforas encena, assim, o processo mesmo da denomi­
nação da heresia nas delações, como elenco de nomes e ações que, podendo
ser traduzidos por termos da referência judaica, nas denúncias são aproxi­
mados e fundidos, passando a designar uma ação herética própria de judeus,
conforme o Santo Ofício. A sátira opera como que a partir dos resultados prá­
ticos de denúncia e confissão - ela efetua a identificação do herético como
que prévia ao ato de torná-la pública, produzindo uma disseminação meta­
fórica da heresia por termos análogos e negativos, que remetem o significado
/judeu/a diversas heterodoxias, traduzindo-as e unificando-as nele e através
dele.
Observe-se, ainda, a encenação do extermínio dos judeus através da reto­
mada, no fim da terceira estrofe, do topos renascentista da “pena e espada” ou
das “letras e guerra”, comum nos Galateos, oráculos manuais e artes de pru­
dência dos séculos XVI e XVII: aqui, a metáfora torna-se literal, ameaçando o
herético com o sentido próprio contido no corte metafórico da pena.
A mesma desqualificação já referida, quando se mencionou a tópica “fi­
lho da puta”, é efetuada neste poema que se analisa, funcionando como inten-

135. S á tira q u e m is tu r a o s topoi d a s o d o m ia e d a h e re s ia c o n tra C â m a r a C o u tin h o é m u ito e x p líc ita a


r e s p e i t o d o s m u ç u l m a n o s : “ Q u e , p o r q u e 1 'u rto , o q u e c o m a , / m e e n f o r q u e m , p o d e p a s s a r , / m a s q u e
m e m a n d e e n f o r c a r / a b e n g a la d e u m S o d o m a ! / q u e m s o fre rá , q u e M a fo m a / m c q u e im e p o r m a u
c ris tã o , / v e n d o , q u e M a fo m a é c ã o , / v e lh a c o , e d e s u ja a lp a r c a , / e o m a is to r p e h e r e s ia r c a , / q u e
h o u v e e n t r e o s filh o s d e A d ã o ” (O C , I, p. 201).

256

â
A 1’R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

sificação e, pela mistura e apagamento da origem, como encenação do aniqui­


lamento do tipo:

Dizem, que um ílebreu vos fez


entre o Porto, e entre Judá,
por isso não falais cá
nem hebreu, nem português:
temo, que caiais de vez
neste, ou noutro qualquer porto,
porque culpado no Horto,
e do Egito no desterro,
não podeis me pegar, Perro,
como eu a vós, Perro morto.
Quem vos meteu, canzarrão,
co demo, que vos atiça,
a ser membro da justiça,
se não sois membro cristão?
Corre de vós opinião,
que bem pouco vos aflige,
que o mais a que se dirige
o vosso negro saber,
é somente o requerer
crucifige, crucifige.
Dirigi pois os sapatos
caminho da Terra Santa,
onde heis de fincar a planta
no Pretório de Pilatos:
Lá tão sacrílegos tratos,
como em pretório fiel
fareis, Escriba cruel,
porque vejais entre os cães,
que há na Bahia escrivães,
e Escribas cm Israel.
(OC, III, pp. 739-740.)

A indeterminação metafórica da origem - “entre o Porto, e entre Judá” -


leva à crítica da língua, que a sátira doutrina como “torpe idioma” quando
trata do índio, do negro, do judeu e do muçulmano, como linguagem da au­
sência e, no limite, como ausência de linguagem, segundo a interpretação
escolástica renovada da participação das línguas na Letra revelada por Deus
na Escritura e na natureza. É essa mesma ausência de linguagem alegada que

257
A SÁ T IR A E O EN GEN H O

faz rosnar o topos do “animal” no final da estrofe, como encenação da ameaça


e prepotência: “não podeis me pegar, Perro, / como eu a vós, Perro morto”. A
intensificação prossegue: o tipo judaico é Judas (“culpado no Horto”), ho­
mem pecador submetido ao inferno (“do Egito no desterro”) e, crime máxi­
mo, deicida (“crucifige, crucifige”). Donde, portanto, o pacto com o diabo
(“co demo, que vos atiça”) (“negro saber”), participante no julgamento de
Jesus Cristo (“Pretório de Pilatos”) etc. Para concluir pela oposição: “há na
Bahia escrivães, / e Escribas em Israel”, na qual “Escribas” se torna o termo
hiperinclusivo das ofensas e desqualificações referidas, ao passo que “Escri­
vães”, simetricamente oposto, se eleva em excelência.
O poema funciona, assim, como uma exposição pública de estereótipos
antijudaicos correntes no século XVII ibérico, sendo muito valioso porque
condensa a maior parte deles. Segundo ele, o judeu é herético, não-ortodoxo,
bestial, irracional, misturado, vulgar, pícaro, muçulmano, bêbado, indeter­
minado, de língua torpe que não espelha nenhum Bem, traidor, pecador, pac-
tário, necromanta, deicida, sacrílego, cruel - o que, segundo a sátira, é mui­
tíssimo mais que suficiente para a aplicação da “mostarda”. A Inquisição a
aplicava por muito menos e mesmo por nada, conforme o interesse da ortodo­
xia católica posta a arder.
Ainda é oportuno lembrar que poemas de outros gêneros dramatizam
referências inquisitoriais e judaicas como elementos descritivos de um cená­
rio. Muito plásticas, têm horrível força sensibilizadora, brilhando sombria­
mente na lírica, em que o “sol inquisidor” arde pelos montes, ou em poemas
encomiásticos que celebram personalidades da Igreja. Umas décimas que
descrevem a magnificência com que os moradores da vila de São Francisco
recebem o ilustríssimo senhor Dom João Franco de Oliveira, que já tinha
sido bispo em Angola, iluminam-se com os artifícios de fogos metafóricos por
mar e terra de antíteses. Neles, o judeu queimado é termo para uma compara­
ção com o mar, segundo o binarismo do conceptismo engenhoso posto a enca­
recer a luz de Sua Ilustríssima:

A p a r e c e r a m tão b elas
n o m ar can oas, e truzes,
q u e se o c é u é m a r d e l u z e s ,
o m a r e r a u m c é u d e e s t r e la s :
era u m a a r m a d a s e m v e la s
m o v id a dc outro e lem en to ,
er a u m p r o d í g i o , u m p o r t e n t o
ver c o m tanto desa fo g o
esta n a v e g a r e m fogo,

258
A PROPORÇ Ã O DO MONST RO

se o u tr a s a r r ib a m c o m v en to .
S ua Ilu s tr ís sim a estava
a ssu sta d o sob absorto,
p o r q u e v i a u m r io m o r t o
o f o g o , e m q u e s e a b r a s a va:
g ra n d e c u id a d o lh e dava
ve r , q u e o m a r m o r r i a e n t ã o
in fa m a d o na o p in iã o ,
e co m o u m judeu q u eim ad o,
se n d o , q u e o m ar é sagrado,
q u e in d a é m a is q u e ser cristão.

ÍOC, II, p. 244.)

Fernando da Rocha Peres edita uma denúncia contra Gregário dc Matos


e Guerra, datada de 1685, ao Tribunal do Santo Ofício em Lisboa. O denuncian­
te é um Antonio Rodrigues da Costa:

(f. n. 4 6 6 ) “ I l u s t r í s s i m o s S e n h o r e s [...] P a r e c e u - m e a g o r a d a r c o n t a a V o s s a s S e ­
n h o r i a s d e a l g u m a s c o i s a s p e r t e n c e n t e s a e s s e t r i b u n a l p a r a q u e n o s s a S a n t a F é s e ja
s e m p r e e x a l t a d a e s e d ê c a s t i g o à q u e l e s q u e e r r a r a m s e u S a n t o C a m i n h o . [...]
(f. n . 4 6 7 ) N e s t a C i d a d e v i v e u m B a c h a r e l c h a m a d o G r e g ô r i o d e M a t o s e G u e r r a
n a t u r a l d e s t a C i d a d e q u e n e s s a C o r t e foi J u i z d o C í v e l , h o m e m s o l t o s e m m o d o d e
C r i s t ã o , e n a s c o i s a s p e r t e n c e n t e s a e s s e T r i b u n a l f a l a c o m n o [ - ] (f. n . 4 6 7 v.J n o t á ­
vel d e s p r e z o e n o tó r io e s c â n d a lo e s e n d o T c s o u r e ir o -m o r da S a n ta Sé d e s ta C id a d e
e D e s e m b a r g a d o r E c l e s i á s t i c o d i s s e q u e era tão g r a n d e le t r a d o q u e se a t r e v ia a m o s ­
trar c o m o J e s u s C r i s t o n o s s o R e d e n t o r f o r a N e f a n d o p o r o u t r a p a l a v r a m a i s t o r p e , c
e x e c r a n d a , e s t a n d o p r e s e n t e u m C l é r i g o c h a m a d o A n t o n i o da C o s t a q u e n a Ilha T e r ­
c e i r a f o i v i g á r i o d e u m [sic] I g r e j a d a q u e l e B i s p a d o e n a s c o n v e r s a ç õ e s d i z e m t a m ­
b ém o d isse r a , te m n o tíc ia desta B la s fê m ia ta m b é m o D o u t o r M a n o e l A n t u n e s C u ra
da S a n t a S é d e s t a C i d a d e e o P a d r e S u b - C h a n t r e S o l a n o d e L i m a , e e m o u t r a s o c a ­
siões d is s e q u e to m a r a m o r r e r s u b i t a m e n t e p o r n ã o o u v i r e s ta r o n d e lh e d i s s e s s e u m
P a d r e d a C o m p a n h i a [ d e ] J e s u s q u e o e n f a s t i a v a ; e o u t r a s m u i t a s (f. n . 4 6 8 ) M u i t a s
co isa s e s c a n d a lo s a s , e p a s s a n d o p e la sua p orta a p r o c is s ã o d o s P a s s o s d e C r is to , p a s ­
s a n d o o A n d o r d o S e n h o r c o m a C r u z as c o s t a s se d e i x o u e s ta r c o m u m b a r r e t e b r a n ­
co n a c a b e ç a s e m f a z e r n e n h u m a i n c l i n a ç ã o a o S e n h o r e p o r o p o v o m u r m u r a r a p e ­
nas fe z a c a t a m e n t o c o m a c a b e ç a ao S a g r a d o lignum crucis com que por seus n u nca
ja m a is v is t o s c o s t u m e s foi p r iv a d o d o o f íc io , e m e s ta terra é h a v i d o p o r u m a te ísta ,
g e r a l m e n t e d e t o d o s , ( f i n a l d a d e n ú n c i a c o n t r a G r e g o r i o d e M a t o s e G u e r r a ) . [...] (f.
n. 4 6 8 v.) I s t o é o d e q u e p o r h o r a p o s s o f a z e r p r e s e n t e a V o s s a s S e n h o r i a s . S e h o u v e r
de n o v o ou tra co isa d c q u e o faça n ão serei e m n a d a m o r o s o e m tu d o o q u e tocar a
esse S a g r a d o T r ib u n a l. G u a r d e D e u s a V ossas S e n h o r ia s c o m o d e s e jo para S a n to R e ­

259
A S ATI HA E O E N G EN H O

g i m e n t o d e s s e T r ib u n a l e e x t ir p a ç ã o d a s h e r e sia s. B a h ia l ü d e M a io d e 1 685. P r o s ­
trado a so m b r a d o R e s p e ito d e V ossas S e n h o r ia s I lu s tr ís sim a s
A n t o n i o R o d r i g u e s d a C o s t a 136.

A denúncia, muito convencional, compõe-se de tópicas encontráveis em


inúmeras outras da época: acusação de blasfêmia, como a de alegar a sodomia
de Jesus, ou a de não se descobrir quando passa o andor, acrescidas da nomea­
ção da heresia - no caso, o ateísmo. Não importa saber se o homem Gregório
de Matos foi blasfemo e herege - o que aliás é improvável; o documento mes­
mo, justamente por ser denúncia, não permite afirmá-lo. Mas importa dizer
que a denúncia não é conclusiva sobre a sátira atribuída ao nome Gregório de
Matos, principalmente quando se interpretam as representações desta sem
mais evidências como “prova” do ateísmo suposto em poemas supostamente
produzidos por um homem que supostamente se expressaria neles. Fazê-lo
implica motivar expressivamente as convenções retóricas da época e, com
isso, substancializar o pronome “eu”, ator ficcional, como pessoa empírica.
Toda linguagem é consciência prática e, independentemente das supostas in­
tenções ou crenças do suposto autor dos poemas, a sátira seiscentista que se
atribui ao nome Gregório de Matos e Guerra é, objetivamente, antijudaica sem­
pre, encenando a adesão também objetiva ao Santo Ofício da Inquisição. Quan­
to à obscenidade como a das rimas “cu/Jesu”137 ou à dramatização da dúvida
religiosa, deve-se lembrar que nada há de libertinagem ou heresia nelas, ain­
da que efetivamente as rimas sejam ousadas. A poesia seiscentista desenvol­
ve, na doutrina, invenção e elocução do conceito, também a vertente neoplatô-

136. Cf. Fernando da Rocha Peres, Gregório de Mattos e a Inquisição, Salvador, Centro de Estudos Baianos
da Universidade Federal da Bahia, 1987, n. 128, pp. 18-19. Segundo informação do autor, o docu­
mento encontra-se em Cadernos do Promotor n. 58 (antigo 56), ANTT, fólio 466 até fólio 475 -
Inquisição de Lisboa, tendo sido atualizada a grafia na transcrição. Agradeço ao autor, aqui, a
gentileza de me enviar exemplar de seu trabalho. Lembre-se, como se viu no capítulo I, que o
vigário de Passé, Lourenço Ribeiro, encena a denúncia na sátira contra Gregório: “De Cristão não
é, senão / de herege, tudo, o que obra, / pois nele a heresia sobra, / e lhe falta o ser cristão: / remcté-
lo à Inquisição / já uma vez se intentou, / mas bem veis, que atalhou, / senhores, tão grande bem:
/ mas não o saiba ninguém" (OC, IV, p. 788). Quanto a Antônio Roiz da Costa, denunciante, é a ele
que a sátira aplica os apelidos de “Doutor Gilvaz” e “Cutilada”. Fernando da Rocha Peres informa
que foi “solicitador” da Câmara, em 1666. Cf. op. cit., p. 47.
137. Cf., por exemplo: “Passou o surucucu,/e como andava no cio, / com um e outro assobio, / pediu a
Luísa o cu: / Jesu nome de Jesu, / disse a Mulata assustada” (OC, II, p. 387); “Catona, Ginga, e
Babu, / com outra pretinha mais / entraram nestes palhats/ não mais que a bolir co cm : / eu vendo-
as, disse, Jesu, / que bem jogam as cambetas!” (OC, VI, p. 1368); “A mim me tremia o cu / co’as
moquecas, não em vão, / pois sendo da vossa mão / qualquer peixe é Baiacw: / Jesu nome de Jestí!”
(OC, VI, p. 1533).

260
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

nica da metáfora e da alegoria sem semelhança com o termo próprio, aptas


para figurar o Infigurável e dizer o Inefável138. Técnica da negação ou apophasis,
no que concerne aos mistérios divinos, só negações são verdadeiras, pois toda
afirmação a respeito de Deus é inadequada. A negação é, aqui, uma conven­
ção do inexprimível e para ele: valoriza-se o sentido figurado, para evidenciar
que é inadequado e, ainda, só adequado quando totalmente inadequado, pois
o que realmente importa é o sentido próprio inexprimível139140. Lembre-se o
“Cristo é um verme”, do Pseudo-Areopagita, o “mitero porque no nntero” de
Santa Teresa; o “Entre a conceição e o parto não meteu o anjo mais que o seu
e t ” , do sermão de N. Senhora do Ó, de Vieira; e, ainda, passagens de São João
da Cruz, como:

E n tr e m e d o n d e n o s u p e
y q u e d e m e , n o s a b ie n d o
to d a s c ie n ç ia ir a ç e n d ie n d o .
Yo n o su p e d o n d e e n tr a v a ,
p e r o q u a n d o a lli m e v i ,
s in s a b e r d o n d e m e e s la v a
g r a n d e s c o sa s e n te n d i.
N o d ir è lo q u e s e n ti
q u e m e q u e d e n o s a b ie n d o
to d a s c ie n ç ia t r a ç e n d ie n d o m .

Deve-se ressaltar, enfim, que é típica da poesia seiscentista a dúvida


hiperbólica como dramatização da certeza por meio da oposição montada,

138. Cf., por exemplo: “Se é possível figurar o infigurável, dar forma ao que é sem forma, tal se dá não
só porque somos incapazes de contemplar diretamente o inteligível, porque nos são necessárias
metáforas espirituais adaptadas à medida dos nossos meios, imagens que coloquem à nossa altura
espetáculos sem figura e maravilhosos - mas também porque convém perfeitamente às passagens
mísiicas das Escrituras ocultar sob enigmas indizíveis a santa e misteriosa unidade dessas inteli­
gências que não pertencem ao nosso mundo”. Pseudo-Dionísio, o Areopagita, “La hierarchie celes­
te”, O e u v r e s c o m p l è i c s d u P s e u d o - D e n y s , V A r é o p a g i t e , Trad., Préf. et Notes de Maurice de Gandillac,
Paris, Aubicr Montaigne, 1943, pp. 189-195.
139. Cf., por exemplo: “Assim, duma parte, os segredos divinos permanecem inacessíveis aos profanos
enquanto que aqueles que sabem interpretar as imagens santas ultrapassam as figuras; doutra
parte, esses mesmos segredos divinos recebem a homenagem que lhes é devida através da verda­
deira negação e dessas metáforas destituídas de qualquer semelhança, retiradas dos ecos mais
longínquos da Tearquia” Pseudo-Dionísio, o p . cil., pp. 194-195. Trata-se da questão em João Adolfo
Hansen, A l e g o r i a ( C o n s t r u ç ã o e I n t e r p r e t a ç ã o d a M e t á f o r a ), São Paulo, Atual, 1986, pp. 59-64.
140. Cf. San Juan de La Cruz, “Copias dei mismo hechas sobre un estasi de harta contemplación", T h e
P o e m s o f S t . J o h n o f lhe C r o s s , New English version by John Frederick Nims, New York, Grove Press,

1959, p. 24.

261
I

A SÁ T IR A E O EN GEN H O

quase sempre, entre o insondável da Providência e a pequenez do entendi­


mento humano. Comum, por exemplo, é o procedimento de figurar o “eu” do
poema como indigno e pecador:

A vossa m e sa d iv in a
com o poderei chegar-m e,
se é tria g a da v ir tu d e ,
e v e n e n o da m aldad e?

( O C , I, p. 4 9 . ) ul

É sedutor, é simpático, é anacrônico propor um Gregório de Matos e Guer­


ra crítico do dogma, contestador das Escrituras e do Sacramento da Eucaris­
tia, livre-pensador, panteísta, ateísta. Trechos como

L o u v e-v o s m in h a rudeza,
p or m a is q u e so is in efá v el,
p o rq u e se o s b ru tos vos lo u v a m ,
se r á a r u d e z a b a s t a n t e .
T o d o s o s b r u t o s v o s l o u v a m , 14

141. Fernando da Rocha Peres propõe que o poema de que se extraem os trechos lidos “denota a sua
visão ‘desconstrutora’ interior, a sua dúvida e a sua 'praxis' religiosa ao contestar, com ‘perplexida­
de', as Escrituras e o Sacramento da Eucaristia”. Nesta linha, Gregório de Matos e Guerra aproxi-
ma-se de Pascal (“Le silence éternel de ces espaces infinis nTcffraye”): “ele reconhece, como saída,
o insondável do desconhecido (vida eterna) e retruca, com uma divindade ‘criadora' única, sem as
imperfeições da religião revelada (histórica), a qual deve ser (re)conhecida e adorada pela sua
‘natureza’, dentro de uma visão (pan)teísta”. Cf. Fernando da Rocha Peres, op. cii., pp. 27-28. A
aceitar a interpretação, Gregório é luterano, ou quase, por recusar a Igreja visível, dogma
reconfirmado em Trento. Veja-se todo o poema: “Tremendo chego, meu Deus, / ante vossa divinda­
de, / que a fé é muito animosa, / mas a culpa mui cobarde. / À vossa mesa divina / como poderei
chegar-me, / se é triaga da virtude, / e veneno da maldade? / Como comerei de um pão, / que me
dais, porque me salve? / Um pão, que a todos dá vida,/e a mim temo, que me mate. / Como não hei
de ter medo / de um pão, que é tão formidável / vendo, que estais todo em todo, / e estais todo em
qualquer parte? / Quanto a que o sangue vos beba,/ isso não, e perdoai-me: / como quem tanto vos
ama, / há de beber-vos o sangue? Beber o sangue do amigo / é sinal de inimizade; / pois como
quereis, que o beba, / para confirmarmos pazes? / Senhor, eu não vos entendo; / vossos preceitos
são graves,/ vossos juízos são fundos, / vossa idéia incscrutávcl. / Eu confuso neste caso / entre tais
perplexidades / de salvar-me, ou de perder-me, / só sei, que importa salvar-me. / Oh se me dêreis
tal graça, / que tendo culpas a mares, / me vira salvar na tábua / de auxílios tão eficazes! / E pois já
à mesa chegueí, / onde é força alimentar-me / deste manjar, de que os Anjos / fazem seus próprios
manjares: / Os anjos, meu Deus, vos louvem, / que os vossos arcanos sabem, / e os Santos todos da
glória, / que, o que vos devem, vos paguem. / Louve-vos minha rudeza, / por mais que sois inefável,
/ porque se os brutos vos louvam, / será a rudeza bastante. / Todos os brutos vos louvam, / troncos,
penhas, montes, vales, / e pois vos louva o sensível, / louve-vos o vegetável" (OC, I, pp. 49-50).

262
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

tro n co s, p e n h a s, m o n t e s , vales,
e p o is v o s lo u v a o se n s ív e l,
lo u v e -v o s o veg etá v el.

( O C , I, p. 5 0 .)

são ortodoxos, encenando nada mais que o reconhecimento neo-escolástico


da unidade divina como Causa Primeira das sombras, vestígios e imagens da
multiplicidade sensível do mundo criado, também várias vezes tratada, como
ocorre no poema em pauta, segundo a tópica do “todo e parte”:

[...] e s t a i s t o d o e m t o d o ,
e e s ta is to d o e m q u a lq u e r parte.

( O C , I, p. 4 9 . )

A persona satírica não é néscia', logo, não pode ser imprudente, em termos
católicos, isto é, atéia ou herética. Ao contrário, ela é metáfora emissária da persona
mystica do Rei, cabeça teológico-política do Estado, cujo poder é reposto na
anatomia dos vícios.
Pspersona satírica também não é etapista: não veste a toga sociológica que
alguma vez se costuma alinhavar. O engenho dos intérpretes intenta excessos
e consegue prodígios, certamente, mas é apenas divertido imaginar a livre
expressão e o jansenismo em Portugal, no século XVII.

Como técnica retoricamente regrada de enunciar a Lei na forma mons­


truosa dos interditos, confirmando o Um no misto e no múltiplo, a sátira
seiscentista encena a punição. Ao evidenciar publicamente no monstro moral
que a pulsão é pecado e que o pecado é uma culpa, propõe o remédio e o alívio
de sua prudência política: teatro da persuasão e pastoral do remorso. Referi­
do à sátira, o termo “política” tem aqui o significado, corrente nos séculos
XVI e XVII, de uma arte que, além de garantir a segurança da República con­
tra seus inimigos externos, também cuida de sua concórdia interna, manten­
do a ordem e a paz apesar das divergências de posições e conflitos de interes-
ses1'12. Na chave típica do providencialismo ibérico que se opõe ferrenhamente
a Maquiavel, o termo “ política” também é tomado no “mau sentido”, signifi­
cando uma arte de triunfar nas competições da Cidade por meio da simula-142

142. Cf. R. Pillorget, “Lc mouvement insurreciionnel comme pratique politique dans Ia I-rancc du X V '
sièclc”, em Théoric cí pratique poliliques à la Reitaissance, XV II'' Colloque International de Tours,
Paris, Librairie Philosophique Yrin, 1977, p. 106.

263
A SÁ T IR A E 0 EN GEN H O

ção, da hipocrisia e de outros meios adequados à ocasião. O termo aplica-se,


assim, tanto à caracterização de uma técnica de “policiar” o Estado, “primei­
ra parte da moral” que visa a felicidade do bem comum, quanto ao jogo livre
das paixões e à satisfação das ambições pessoais servidas por diversos expedien­
tes, como arte de triunfar143.
A sátira seiscentista é política segundo esse duplo registro: funciona como
uma técnica que hierarquiza metaforicamente a segurança da população ence­
nando seu controle no discurso epelo discurso. Impondo normas aos corpos de
linguagem, ela os interpreta como adequação ou desvio da lei positiva reflexo
da lei natural de que se faz emissária, fundamentando a crítica, de direito, para
a mesma população, a um tempo referência e testemunha de sua intervenção.
Ao propor a correção dos vícios - políticos no “mau sentido” referido -, ela o
faz em nome do ideal de bem comum ausente que sua enunciação racional
efetua, ditando a retificação do que expõe. Sua validação é o Direito Canônico,
principalmente em sua versão contra-reformista, que regula a hierarquização
jurídica das práticas do Antigo Regime. Desta maneira, um de seus pólos de
referência, lugar da unificação e unidade ideais do bem comum, é a figura do
Rei, sempre presente ainda quando não nomeado. Dele emana e para ele con­
verge o sentido superior das ações: à sombra da sua luz difusa e onipresente, a
infelicidade e o erro das diferenças cobram sentido pleno, o de serem seme­
lhanças próximas ou distantes de seu Um, senhor, sacerdote, pai, quase deus.
A mesma tensão do Um e do múltiplo metafóricos, rebatida nas variações
do mesmo e do outro, do puro e do impuro, do permanente e do fugaz, e sua
intertradução contínua como antíteses unificadas precariamente em uma e
mais outra metáfora sempre diferida e fugidia, legíveis nos jogos do concep-
tismo engenhoso, têm aqui um de seus fundamentos. Cabe descrever sumaria­
mente essa teologia-política para tentar evidenciar alguns princípios hierár­
quicos que na sátira constituem apersona como voz autorizada para falar.
Opondo-se à afirmação papista da plenitudo potestatis, relativizada e
criticada pelos próprios contra-reformistas no século XVI, como Vitoria e
Bellarmino, o Estado moderno afirma sua soberania144 incorporando contra

143. Idcm, p. 106. É neste sentido, por exemplo, que se faz a sátira do vigário Lourcnço Ribeiro contra
Gregório de Matos.
144. Cf. Kantorowicz, “Mysteries of State, an absolutist concept and íts late medíaeval origins”, p. 382,
cit. por Jean-François Courtíne, “Chéritagescolastique dans la problématique théologico-politique
de l’Ãge Classique”, em Ilenry Mcchoulan (org.), op. crí., p. 110: “Sob a autoridade do Papa en­
quanto princeps el vents imperator, o aparelho hierárquico da Igreja romana [...] mostrou uma ten­
dência de tornar-se o protótipo perfeito de uma monarquia absoluta e racional sobre uma base

264
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

Roma a mesmaplenitudopotestatis na caracterização do poder real145. Trata-se


de uma determinação teológica de novas estruturas políticas146, feita nos ter­
mos de uma reatualização de doutrina principalmente nos países católicos,
como Portugal e Espanha, em que a Escolástica reciclada pelos dominicanos
e jesuítas contra-reformistas do século X V I e início do X V I I é difundida como
ortodoxia pelas instituições universitárias, como Coimbra, Évora, Salamanca,
sendo o modelo não só do ensino do Direito, mas também das doutrinas
providencialistas do Estado monárquico então produzidas para fazer frente
às teses “ímpias” de Maquiavel, Erasmo, Lutero, Calvino e Melanchton. Si­
multaneamente, mantidas as proporções desta generalização, a arte dita
“barroca” do século X V I I ibérico corresponde a uma reinterpretação de tópi­
cas da retórica antiga, principalmente Aristóteles, Cícero, Quintiliano, Séneca
e Hermógenes, que são mantidas - basicamente, a elocução, reproposta como
ornato dialético agudo - pela doutrina escolástica da analogia de atribuição e
proporção com que nessa época se interpreta o conceito engenhoso. Essa
reinterpretação, operada em vários graus e intensidades, mantém a norma-
tividade antiga dos gêneros, da divisão dos estilos e da verossimilhança, adap­
tando-a aos novos fins da centralização monárquica. É ela que permite pensar
o espetáculo maravilhoso da arte como proliferação retoricamente ordenada
em função da unidade de sua Causa Primeira implícita que, por isso, sempre
efetua os vestígios do sagrado, mesmo quando cortesã e programaticamente
ornamental. A mesma reinterpretação já implicara, no século X V I , até certo
ponto, a redução dos paradoxos ditos “maneiristas”, depois que se tornaram
convencionalmente previsíveis, ao binarismo sóbrio da tensão dos opostos e
contraditórios da arte “barroca”. Os procedimentos “maneiristas” muitas ve­
zes coincidiram com as sugestões da situação política introduzida pela Con-
tra-Reforma - e, em Portugal, com o afundamento beato da vida que o Santo
Ofício e a fortíssima censura intelectual impuseram. Assim, certos procedi­
mentos artísticos foram apropriados pela máquina católica da propaganda da

mística enquanto que, simultaneamente, o Estado manifestou mais e mais uma tendência de tor­
nar-se uma quase Igreja e, em muitos aspectos, uma monarquia mística sobre uma base racional”.
145. Por exemplo, na proposição de Jaime I, da Inglaterra: “regem non apflpulo, sed immediaie a Deosuam
poieslatem habere". É contra tal doutrina absolutista do direito divino que se opõe a versão dos
contra-reformistas ibéricos, noiadamente Suárcz, que conceitua o absolutismo como quase aliena­
ção popular do poder em mãos do soberano. Tal determinação teológica de novas estruturas políti­
cas é que permite pensar a sacralização do poder, o ritual e o espetáculo próprios das artes
conceptistas do século XVII. Ela implica também, nas mesmas artes, a posição de defesa dos estilos
“clássicos”, como é o caso, por exemplo, do ataque de Vieira aos dominicanos gongóricos e, ainda,
do provincial d3 Companhia de Jesus, Aluzio Vítelleschi, em relação aos sermões de Gracián,
146. Cf. Jean-François Courtine, “Chéritage...”, em Henry Aléchoulan (org.),«/>. cil., p. 109.

265
A S Á T I R A E O E N G EN H O

fé: por exemplo, o binarismo das antíteses, a construção geométrica do poe­


ma como oposição de “sensível”/ “inteligível”, que poetas portugueses e espa­
nhóis desenvolvem como diluição de Camões e Góngora, são muito coníor-
mes com a piedade católica e seu dogma da natureza humana decaída. Da
mesma maneira, a reciclagem do aticismo, com a valorização da clareza, é
adaptada à propaganda147.
É a mesma reinterpretação que permite pensar também a defesa dos esti­
los “clássicos”, durante todo o século XVII148149:caso, entre outros, da posição de
Vieira contra os gongóricos dominicanos, oposição artística cuja fundamen­
tação é teológico-política. Nela, o apelo às virtudes retóricas tradicionais de
clareza, brevidade e verossimilhança visa a representação adequada da har­
monia preestabelecida da Causa Primeira, como estilo natural que teologica­
mente alegoriza a escrita divina natural. Trata-se, enfim, do que Tirso de
Molina chama, em outro contexto, de “política perfeição”. Para tratar dela é
útil, portanto, um pequeno excurso escolástico.
Escolasticamente, a metáfora do corpo do Estado, presente nas letras do
período, corresponde ao terceiro modo da unidade dos corpos exposto por
Santo Tomás de Aquino em seu comentário do Livro V da Metafísica, de
Aristóteles: unidade de integração, que não exclui a multiplicidade atual ou
potencial. É o modo correspondente ao corpo humano:

[...] q u ia e iu s p e r fe c tio in te g r a l u r e x d iv e r s is m e m b r is , s ic u t e x d iv e r s is a n i m a e in s tr u m e n tis ;


u n d e e t a n i m a d i c i t u r esse a c tu s c o r p o ris o r g a n ic i, id e s t e x d iv e r s is o r g a n is c o n s titu tis ip.

147. A ultima sessão do Concilio de Trento, em 3 e 4 de dezembro de 1563, baixou algumas determina­
ções genéricas, que encontraram reciprocidade na arte sóbria e religiosa dos pintores da segunda
metade do século XVI que se fazia em Roma ames das determinações do Concilio. Estas especifica­
vam que a finalidade das imagens religiosas é instruir os crentes e confirmá-los na prática de sua
fé. O uso de imagens que possam conter doutrina falsa ou encorajá-la é proibido. As imagens não
devem encorajar a superstição; devem conformar-se às exigências da modéstia e da moderação;
nenhuma imagem extraordinária ou de forma muito imprevisível poderá ser exposta na igreja sem
permissão do bispo etc. Cf. S. J. Freedberg, Painting in Italy 1500-1600, 2nd ed., London, The
Pelican History of Art, 1983, p. 702.
148. Por exemplo, a partir de fins do século XVI, os jesuítas começam a lançar mão dos livros de emble­
mas como veículo pedagógico e propaganda da fé, substituindo os motes dos emblemas por apólogos
e moralizando as imagens. Com o objetivo de substituir o herói pagão pelo cristão, a fábula mito­
lógica pela parábola evangélica, a linguagem se adapta ao Ratio studwrum, tornando-se clara. Cf.
Maria Luisa Doglio, “Introduzione”, em Emanuele Tesauro, Idea delle Perfette Intprese, Firenze,
Leo S. Olschki, 1975, p. 11.
149. Santo Tomás, “Lectio 3 ad Corinth. XII”, cit. por F. M. Ferrol, o/>. cit., pp. 210-216.

2 66
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

Partes de um todo, os membros do corpo humano são instrumentos para


um princípio superior, a alma. O tema é comum na poesia dos séculos XV, XVI
e XVII, lembrando-se aqui dois sonetos atribuídos a Gregório de Matos e
Guerra150. Unidade do corpo, pluralidade dos membros, diversidade das fun­
ções das diferentes partes são as três articulações com que Santo Tomás pro­
põe o corpo, de modo que a integração de suas partes num todo harmônico é
ordem', o pé é instrumento do olho, pois o leva de lugar a lugar; o olho, instru­
mento do pe, porque o guia em sua marcha151. Por analogia, o corpus hominis
naturale é termo de comparação com o corpus Eclesiae mysticum: é o termo
caput (cabeça) que, basicamente, efetua a relação. Analogicamente, assim, as
metáforas da cabeça e do corpo humano podem nomear a parte superior e
inferior de outros corpos analógicos: referem-se à Igreja como corpus Christi, à
sociedade como ordinata multitudo e ao homem, ser natural, como corpus
naturale'-2. Transferido para a esfera política, o termo “corpo” mantém o signi­
ficado da analogia teológica. A cabeça, sede da razão, é proporcionalmente,
para o homem individual, o que Deus é para o mundo. Como o homem é
naturalmente social, a semelhança com o universo não se encontra apenas no
homem individual, mas também na sociedade regida pela razão de um só
homem, o Rei, cabeça do corpo político do Estado153. O Rei está no reino
assim como a alma está no corpo e Deus, no mundo. Como princípio regente
da sociedade que analogicamente é um corpo, o Rei é sua cabeça ou razão
suprema, que o dirige em função da integração de todas as suas partes e fun­
ções - enfim, da sua harmonia ou ordem. Pertencer ao corpo político do Esta­
do implica, por isso, a imediata responsabilidade pessoal para com os demais
homens partes dele. Isto só se atinge pela concórdia, coincidência da vontade
de todos quanto ao fim do corpo político. Uma vez que pode ser imposta à
força, porém, a concórdia não é suficiente, se não houver também a concórdia
de cada um consigo mesmo. É preciso reduzir a uma unidade comum da
tranqüilidade da alma a diversidade dos apetites individuais que concorrem

150. Este topos, reciclado pela interpretação neoplatônica de Pico delia Mirandola, no século XV, que em
seu Heptaplus escreve haver encontrado toda a sabedoria de Moisés em cada verso de Moisés, retorna
na poesia seiscentista na forma de conceptismo engenhoso e lúdico. Cf., por exemplo, os dois
sonetos de Gregório de Matos “Entre as partes do todo a melhor parte” (OC, I, p. 43) e “O todo sem
a parte não é todo” (OC, I, p. 44).
151. Santo Tomás, “Lectio 2 ad Rom. XII”, em F. M. Ferrol, op. cit., pp. 210 e ss.
152. Santo Tomás, ,Suntma lheolog., III, 9, VIII, a.l., em The Summa Theologica of Sainl Thomas Aquinas,
translated by Fathers of the English Dominican Province, London, Encyclopaedia Britannica, 1952,
2 vols.
153. Cf. F, M. Ferrol, op. cit., pp. 210 e ss.

267
A S Á T IR A E O EN GEN H O

na situação social de concórdia154 - em outros termos, as paixões devem ser


evitadas ou, como são inevitáveis, controladas. Desta maneira, o modo de
união mais perfeito do corpo político do Estado é a paz, como conformitas e
proponio dos apetites1551567:

E s d im p é r io u n ió n d e v o lu n ta d e s en la p o te s ta d de u n o ; si é s ta s si m a n t i e n e n c o n c o r d e s,
■ vivey c r e c e ; si se d i v i d e n , c a e y m u e r e , p o r q u e n o es o lr a cosa la m u e r te s in o u n a d is c ó r d ia d e la s
p a r l e s '- 1'.

No século XVII ibérico, a virtns unitiva do amor do bem comum aparece


traduzida na metáfora estóico-aristotélica da amizade, como se lê no mesmo
Saavedra Fajardo:

E n la s r e p ú b lic a s es m á s im p o r ta n te la a m is la d q u e la j u s l i c i a ; porque, si to d o s fu e s e n
a m ig o s , n o s e r ia n m e n e s te r la s le yes n i lo s j u e c e s ; y a u n q u e to d o s f u e s e n b u e n o s , n o p o d r ía n v i v i r
si n o fu e s e n a m i g o s '’' .

A enunciação satírica encena tais asserções escolásticas, recicladas pelos


juristas contra-reformistas dos séculos XVI e XVII, como Vitoria, De Soto,
Bellarmino, Ribadeneyra, Molina, Botero e Suárez, segundo os quais a legiti­
midade real é acompanhada inevitavelmente da legalidade das distinções e
dos costumes que o próprio monarca não pode tocar:

[...] e u c o m p u r a c l a r i d a d e
d ig o e m literal se n t id o
q ue o R ei por D e u s p rom etid o
é: q u e m ? S u a M a j e s t a d e

154. Idem, pp. 215 e ss.


155. Summa lheolog. / / - / / , q. XXIX, a.l.: “Pax el iranqmUúas ordinis; quae quidem iranquillilas consislit in
hoc quod omnes motus appelilivi in uno homine conquiescunl". A paz implica, assim, o sossego interior
e a união dos apetites.
156. D. Saavedra Fajardo, Corona Gólica, cit. por Ferrol, op. cil., p, 223. Cf. ainda, do mesmo Saavedra
Fajardo, a Empresa LXXX1X: “I,a ciudad que por la concórdia era una ciudad, sin ella es dos y a
veees tres o cuatro, faltándole cl amor, que reducia en un cuerpo los ciudadanos”. A sátira encena
a virtus uniliva da caridade e do amor como critérios da concórdia e da paz: “[...] para os bons sou
inferno / e para os maus paraíso”, fala a Bahia personificada (OC, 1, p. 13); ou “[...] debaixo desta
paz, / deste amor falso, e fingido / há fezes táo venenosas, / que o ouro é chumbo mofino" (OC, I, p.
22). Veja-se que a persona satírica efetua a virtus unitiva como o que falta na Cidade, dominada pelo
mal. Cf. D. Saavedra Fajardo, Empresas políticas, op. cit
157. D. Saavedra Fajardo, Empresas políticas, op. cil., Empresa XCI.

268

A
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

Logo em boa conscqücncia


na Pessoa realçada
de Pedro está atenuada
desta Prole a descendência:
logo com toda evidência
c a luz da divina luz
se vê, que a Pedro conduz
o olhar, e ver de Deus,
que ao primeiro Rei, e aos seus
prometeu na ardente cruz
(OC, Y,p. 1208.)

Se outro princípio da monarquia afirma que Princeps legibus solutus - “O


Príncipe está livre das leis”-, isto se dá menos para submeter os súditos ao
arbítrio de um só que para afirmar o direito real de tomar iniciativas em
matéria de poder legislativo, como os interesses do governo exigem. Por di­
reito, assim, os súditos têm sempre o que dizer, desde que não saiam do qua­
dro da lei positiva e da lei natural que regulam a harmonia do corpo político.
Basta-lhes, por exemplo, exaltar a lei, para que defendam seus direitos e seus
bensI5S, uma vez que a exaltação corresponde a um reforço da legalidade, numa
espécie de movimento de adesão das partes do corpo à cabeça - o que tam­
bém é uma chave para o dimensionamento político de tanta poesia enco-
miástica158159 e da mesma sátira feitas como apologia da “cabeça” decisória:

Porém Sua Majestade,


qual Príncipe Soberano,
que não se indigna de humano
sem dano da dignidade:
conhecida esta verdade,
que é verdade conhecida,
fará justiça cumprida,
para que se lhe agradeça,
que o mau na própria cabeça
traga a justiça aprendida.
(OC, I, p. 205.)

158. Cf. Jean-François Courtine, “Chéritage...", em Hcnry Méchoulan (org.), op. cil., pp. 98-99.
159. O gênero encomiástico, hoje ilegível, figura a potência, a sabedoria e o amor dos “melhores”, se­
gundo o modelo teológico da Trindade.

269
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

Os temas entrelaçados da unidade do bem comum e da amizade das par­


tes do corpo político são centrais na sátira seiscentista, aliás, que os dispõe
como oposição de mundo das relações pessoais virtuosas (amizade) versus mundo
da ordem definida pelas relações econômicas impessoais e viciosas, que tiram de si
mesmas sua justificação, traduzido como “amor falso” e “mortal ódio”. E a
metáfora corporal dessas relações pessoais de amizade do bem comum (como
concórdia epaz) opostas ao ódio de sua ausência (como discórdia e guerra) que
se dá na sátira como evento discursivo: comportamentos, hábitos, atos, gestos,
falas, metaforizados conforme elencos de vícios da tradição aristotélico-
escolástica, figuram o mau funcionamento do corpo político.
Afinal, se a justiça não é de graça distribuída, mas vendida, em várias
acepções do termo, é justiça bastarda - e da bastardia brotam frutos de
corrupção160. Segundo a articulação dos deveres recíprocos que ligam súdito
e Estado, a sátira ataca pessoas não exclusivamente por alguma peculiarida­
de que as faça imorais - afinal, somos todos filhos do mesmo Adão - enquan­
to particulares, mas pelo vício político que tal peculiaridade vem a ser como
desordem na harmonia de todas as partes e do todo do corpo político, que se
corrompe:

Nem ao sagrado perdoam,


seja Rei, ou seja Bispo,
ou Sacerdote, ou Donzela
metida no seu retiro.
A todos enfim dão golpes
de enredos, e mexericos
tão cruéis, e tão nefandos,
que os despedaçam em cisco.
Pelas mãos nada; porque
não sabem obrar no quinto;
mas pelas línguas não há
leões mais enfurecidos.
(OC, I, pp. 22-23.)

Assim, é mesmo a caridade cristã e, num nível abaixo, a amizade que


exigem que os maus sejam amputados do corpo da República, de modo que
sua corrupção não contamine outros, virtuosos e honestos. Por isso, ainda,

160. Cf., por exemplo: “E que justiça a resguarda?..............Bastarda / É grátis distribuída?................


Vendida / Que tem, que a todos assusta?............Injusta. / Valha-nos Deus, o que custa, / o que El-
Rei nos dá de graça, / que anda a justiça na praça, / Bastarda, Vendida, Injusta” (OC, I, p. 32).

270
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

embora encene o imaginário fidalgo, a sátira é genérica, extensiva a todo o


corpo político. A mesma sombria caridade agostiniana, em outra circunstân­
cia, propõe diretamente o amor do próximo para a concórdia e a paz:

Desejo, que todos amem,


seja pobre, ou seja rico,
e se contentem com a sorte,
que têm, e estão possuindo.
(OC, I, p. 28.)

Dois elementos concorrem para a paz social do corpo do Estado, segundo


tal doutrina: um é o da concórdia quanto ao bem comum e não aparente, sem
o qual a paz é o “amor falso, e fingido” e “fezes tão venenosas”; outro, o da
tranquilidade da alma ou sossego interno dos apetites de cada homem, sem a
qual “todos pecam no desejo”. O tema estóico, retomado do Sêneca de De
tranquillilate anirni, tem intensa circulação nas belas letras do século XVII,
aliás, sendo adaptado ao desenvolvimento político de temas correlatos, como
o do desengano, o da vanitas e o da concórdia ausente da sociedade vivida como
teatro de enganos ou sonho. A paz social do corpo do Estado, perfeita integração
de suas partes e funções, combina a concórdia de todos no bem comum e a
adesão de cada membro ao corpo político pelo controle da vontade161.
Os teóricos contra-reformistas, como Molina e Suárez, interpretam tal par­
ticipação das partes no corpo pelo viés agostiniano da natureza humana enlu-
tada pelo pecado original. A mesma sátira, como se viu, dramatiza tal crença:

Uma só natureza nos foi dada:


Não criou Deus os naturais diversos,
Um só Adão formou, e esse de nada.
Todos somos ruins, todos preversos,
Só nos distingue o vício, e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos.

(OC, II, p. 471.)

Neste trabalho, a obra de Quentin Skinner, tal um Virgílio-guia nos mean­


dros neo-escolásticos do Boca do Inferno, serve de roteiro para um sumário

161. O tema cstóico, tratado por Sêncca em De iranquillitalc anirni, é frequentíssimo nas belas-letras
seiscentistas, articulando a virtude individual, que consiste no domínio dos apetites, como con­
córdia (ou discórdia) com os restantes indivíduos, no que toca ao bem comum. Cf. Sêneca, op. cil
vol. II.

271
A SÁTI RA E O E N G E N H O

dos principais pontos das doutrinas teológico-políticas encenadas na sátira.


Não se trata de teorizá-las aqui, antes de construir um pequeno paradigma
avaliativo da sátira. Assim, certo tom positivo deve ser atribuído à exposição
documentadíssima de Skinner, não a qualquer pretensão de exaustividade do
assunto, aliás muito complexo e apenas secundariamente objeto deste texto,
que o trata como instrumento.
Assim, se o homem tem capacidade inata racional e volitiva para enten­
der os ditames da lei natural nele inscrita por Deus, também é certo que é
criatura decaída, manchada pelo pecado original - como escreve Suárez, “[...]
paz e justiça não podem ser mantidas sem leis convenientes” porque “[...] os
homens individuais ordinários acham difícil entender o que é necessário para
o bem comum e dificilmente fazem qualquer tentativa para atingi-lo por si
próprios”162. Deve haver, desta maneira, uma conexão da lei natural, que Deus
inscreve nas almas para que entendam seus desígnios e ajam segundo o livre-
arbítrio, e a lei positiva, que os homens ordenam para si mesmos em função
do governo das comunidades políticas que fundam. Em outros termos, as leis
positivas devem ter a autoridade de leis genuínas - para tanto, devem ser
compatíveis em todos os tempos com os teoremas da justiça natural fornecida
pela lei natural163. Esta fornece a moldura moral de todas as leis positivas.
Basicamente, por isso, o fim da lei positiva é simplesmente evidenciar (in foro
externo) uma lei superior que todo homem já conhece em sua consciência (in
foro interno)m .
Tal doutrina, presente na sátira seiscentista, faculta-lhe operar em dois
sentidos: um deles consiste em denunciar o que passa por lei, por não estar
caracterizado por tal justiça ou retidão natural, evidenciando que não tem for­
ça legítima para impor coisa alguma e que não deve ser obedecida jamais, como
escreve Suárez. É, por exemplo, o teor das críticas contra os governadores, acu­
sados de tirania, e, mais particularmente, o da maledicência contra Câmara
Coutinho, cuja justiça nos enforcamentos se pauta pelo prazer de ver morrer:

Enforcastes muita gente?


mente, quem tal coisa diz;
Gabriel os enforcava,
que eu com estes olhos vi.
É verdade, que gostáveis
vós muito de vê-los ir,

162. Cf. Quentin Skinner, op. cil., vol. II (The Age of Reformatiotl), p. 160.
163. Idem, p. 149.
164. Idem, ihidem.

272

A
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

sois amigo de enforcados,


ter-lhes ódio, isso fora ruim165.
(OC, I, p. 215.)

O outro sentido, complementar, consiste em denunciar aquelas ações que


infringem a lei positiva existente, tida como adequada expressão da lei natu­
ral - por exemplo, é esse o teor das sátiras aos religiosos luxuriosos, aos co­
merciantes usurários, aos cristãos-novos heréticos, aos feiticeiros idólatras etc.
Em ambos os casos, evidencia-se como enunciado metaprescritivo da sá­
tira a afirmação dos dominicanos e jesuítas contra-reformistas: sem a lei po­
sitiva para impor a lei natural, viver-se-ia um estado de “total confusão”. Por
auto-interesse, segundo os mesmos juristas, os homens abrem mão de sua
liberdade .natural em função das limitações da lei positiva; fazem-no movi­
dos “[...] a criar alguma autoridade pública cuja tarefa é manter e promover o
bem comum”166. Por isso, ainda, a conceituação do direito como ius (“aquilo
que é certo”) - mas também como “uma certa capacidade moral que todos
possuem” - implica, na doutrina política dos juristas contra-reformistas, prin­
cipalmente Suárez, uma reinterpretação da doutrina tomista tradicional do
direito como lei objetiva. Segundo Skinner, a subjetivação da interpretação
do direito, posta a funcionar para afirmar a luz inata da Graça divina contra
o protestantismo e o maquiavelismo, implica também a questão política da
obediência ou não do súdito individual a um príncipe tirano. Referindo-se à
pessoa individual, parte do corpo político do Estado, Suárez escreve que é
direito pessoal fundamental a manutenção da própria vida. Como em seu
ataque papista às pretensões do direito divino de Jaime I da Inglaterra, afir­
ma que “[...] é legal a comunidade resistir contra seu príncipe, e mesmo matá-
lo, se ela não tem outros meios de se preservar”167. Com restrições: se o gover­
nante não estiver engajado numa guerra agressiva destinada a destruir a
comunidade e a matar grande número de cidadãos, mas, sim, “[...] meramen­
te ferindo a comunidade por outros e menores modos [...] neste caso não há
lugar para a defesa da comunidade seja pela força, seja pela traição, direcio­
nadas contra a vida do príncipe”168. Em outros termos, a comunidade deve
“sofrer em silêncio”. A questão, portanto, presente nas críticas ao poder
monárquico, é a de onde e quando tal direito de até matar o Príncipe pode

165. Cf. também, no mesmo poema, estrofes 8, 9, 14, 16 etc. (OC, I, pp. 198-206).
166. Q. Skinner, op. cit., p. 161.
167. Idem, pp. 176-177.
168. Idem, p. 177.

273
A SÁTI RA E O E N G E N H O

vigorar. Suárez propõe assembléias representativas da vontade popular; só


depois que a ação é discutida e aceita por várias cidades do reino, consultan­
do-se os cidadãos, um ato de deposição pode ser legalmente executado169. Não
se pense, porém, que os padres contra-reformistas são “democráticos”: a dou­
trina visa, antes de tudo, a fortalecer a Santa Sé em sua ação contra os segui­
dores de Erasmo, Maquiavel e Lutero, além de opor-se às teses tradicionais
do poder político, como as de Bártolo e Ockham, que teorizam o poder
monárquico como delegação popular170. Os contra-reformistas afirmam, como
já se viu no capítulo anterior, que o poder monárquico não é delegação, mas
quase alienação do poder popular.
É nesse teatro monárquico que a sátira atua, determinando papéis para
seus atores discursivos: ela também postula que as instituições são legais por­
que fundamentadas na legitimidade do poder da população quase alienado
na pessoa do Rei, segundo um contrato que o faz cabeça do corpo político do
Estado. Na ambigüidade da interpretação do que é natural e do que é positi­
vo, oscila, identificando as inadequações, para sempre propor que a lei positiva
é justa se é expressão da lei natural. Oscila, por exemplo, naturalizando uma
convenção humanista, quando postula a inferioridade natural do gentio ou
do herege, como ocorre na desqualificação dos Caramurus da Bahia, reduzi­
dos à bestialidade, e dos cristãos-novos, aproximados do pecado mortal.
No Concilio de Trento e em Valladolid, em 1550, na conferência convocada
por Carlos V para discutir a questão da conquista espanhola do Novo Mundo,
o dominicano Juan Ginés de Sepúlveda legitimou os massacres, defendendo
a tese de que, desde que não possuíam nenhum conhecimento da fé cristã, os
índios não poderíam estar vivendo uma vida de “genuína liberdade política e
dignidade humana”171. A mesma argumentação, baseada na Política, de
Aristóteles, constituía os índios como “escravos por natureza”. Vivendo eles
uma natural bruteza e inferioridade, a conquista espanhola seria uma guerra
justa contra infiéis: sua escravização traduzia-se na economia da salvação de
suas almas pela conversão ao cristianismo172. E esta doutrina que permanece

169. Idem, p. 178.


170. Idem, p. 179.
171. Cf. Lcwis Hanke,“0 Grande Debate de Valladolid - 1550-1 551: A Aplicação da Teoria de Aristóteles
da Escravidão Natural aos Indígenas Americanos”, em Aristóteles e os índios Americanos, trad. Maria
Lúcia Galvão Carneiro, São Paulo, Martins, s/d.; Georg Thomas, Política Indigenisla dos Portugueses
no Brasil 1500-1640, trad. Padre Jesús Hortal, S. J., São Paulo, Ed. Loyola, 1981
172. Os cronistas portugueses do século XVI propõem a mesma interpretação da Conquista: “gente
bestial”, “bárbaro sem lei”, “multidão de bárbaro gentio”, “falta de F, L, R” são lugares-comuns em
Caminha, Gândavo, Gabriel Soares de Sousa. A versão huguenote de Léry, por exemplo, faz fortu-

274
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

na sátira seiscentista, observando-se que não partilha da doutrina dos padres


contra-reformistas, que nas teses de Sepúlveda viram analogia com a tese
luterana herética de que toda sociedade política genuína deve fundar-se na
divindade. Contra Sepúlveda e seus partidários, os padres da Contra-Refor-
ma afirmam que qualquer grupo humano segue a lei natural, mesmo que não
conheça a Revelação; portanto, como conclui Vitoria, é ilegítima a conquista
baseada na noção de doação do poder pela Graça divina173. Dramatizando o
que a teologia propõe como vício contra naturam, porém, a sátira é ortodoxa -
por exemplo, quando seu tema é a usura, a simonia, a sodomia - pois tais
paixões ameaçam a harmonia da lei natural expressa na harmonia do bem
comum do corpo político, não havendo nenhuma lei positiva que possa
legitimá-las. Por isso, a sátira toma como casos de sua invenção justamente os
pontos de não-coincidência ou de não-cumprimento dos deveres recíprocos
da relação corpo social/Rei e súdito individual/Rei, relação ordenada pela lei
positiva como expressão da lei natural. Desde que o Príncipe é a cabeça de
todo o corpo da comunidade, como escreve o dominicano contra-reformista
De Soto174, ele “[...] deve em conseqüência ser maior que todos os seus mem­
bros considerados juntos {maior universis)” e também “[...] maior que todos os
seus cidadãos individuais {maior singulis)". A sátira funciona como crítica fe­
roz de toda veleidade de ação isolada ou autônoma, classificada como paixão
próxima do pecado mortal, como a ação dos comerciantes usurários, brichotes
estrangeiros e mazombos baianos, que elevam artificialmente os preços dos
gêneros básicos, como a farinha, o azeite, o vinho, o bacalhau, levando a po­
pulação à ruína e à fome que desestabilizam a concórdia e a paz do corpo
político e que atingem, por isso mesmo, a cabeça desse corpo. Tais pessoas e
ordens não têm como fim de sua ação a paz da República, mas a satisfação de
seus próprios apetites175. Sua ação individual é tirânica. A sátira assume, por
isso, função de integração política quando, advertindo contra a tirania, lem­
bra a prescrição da harmonia de todas as partes da República. O tema da
tirania, significando genericamente os apetites individuais, particulariza-se
politicamente, em chave aristotélica, quando encenado na crítica aos gover­
nadores Sousa de Meneses e Câmara Coutinho:

na literária quando, estilizada por Ronsard e admiravelmente incorporada por Montaignc aos
Ensaios, passa a metaforizar a “idade do ouro” virgiliana, dando origem ao mito do “bom selva­
gem”.
173. Q. Skinner, op. cil., p. 169.
174. Idem, p. 182.
175. Este é o teor das críticas, por exemplo, aos comerciantes da Junta do Comércio, aos magistrados do
Tribunal da Relação, aos governadores e à Câmara.

275
A SÁTI RA n 0 E N G E N H O

O bem, que os mais bens encerra,


e as glórias iodas contém,
c reinar, quem reina bem,
pois figura a Deus na terra:
eu cuido, que o mundo erra
nesta alta reputação,
que se o Rei erra uma ação
paga a seu alto atributo
um tristíssimo tributo,
e misérrima pensão.
O Príncipe soberano,
bom cristão temente a Deus,
se o não socorrem os céus,
pensões paga ao ser humano:
está sujeito ao tirano,
que adulando ambicioso
c áspide venenoso,
que achacando-lhe os sentidos,
turbado o deixa de ouvidos,
de olhos o deixa ludoso176.
(OC, I, p. 202.)

Vários motivos das teorias jurídicas dos padres contra-reformistas con­


correm neste trecho de sátira contra o governador Antônio Luís Gonçalves da
Câmara Coutinho - entre eles, o do providencialismo, o da divisão da pessoa
real em duas pessoas, o da soberania do poder real, o do povo vítima de um
erro pessoal do Príncipe e, ainda, o da sua murmuração justa contra um desa­
certo que o faz sofrer:

Sc fosse El-Rei informado,


de quem o Tucano era,
nunca à Bahia viera
governar um povo honrado:
mas foi El-Rei enganado,
c eu com o povo o paguci,
que é já costume, e já lei

176. Cf. também as décimas cuja didascália diz: “Na era de 16S6 quimeriavam os sebastianistas a vinda
do Encoberto por um cometa que apareceu. O poeta pretende em vão desvanecc-los traduzindo um
discurso do Pe. Antônio Vieira que se aplica a El Rei D. Pedro II”. Os versos finais são, aliás: “que
em prosa o compôs Vieira, / traduziu cm versos Matos” (OC, V, pp. 1207-1211).

276
A P R O P O R Ç Ã O DO . MONSTRO

dos reinos sem intervalo,


que pague o triste vassalo
os desacertos de um Rei.
(OC, I, p. 202.)

Não considerar tais pressupostos jurídicos leva, geralmente, a interpre­


tar a crítica da sátira como oposição nativista aos poderes constituídos ou
como ação de uma consciência liberal progressista ou possível contra os pri­
vilégios; ou ainda, como no caso dos versos “eu cuido, que o mundo erra /
nesta alta reputação”, contrapostos ortodoxamente à teoria luterana do direi­
to divino dos reis, a interpretá-la como oposição libertina, atéia, herética ou
libertária. O que ocorre, porém, é que a sátira está perfeitamente integrada à
ortodoxia teológico-política de sua época, podendo-se afirmar que o trecho
acima é uma glosa da doutrina. Para mostrá-lo, é preciso inicialmente
relativizar a noção de “direito divino” que, aplicada indistintamente ao sécu­
lo XVII ibérico, transpõe para ele formulações talvez válidas na França de
Luís XIV ou na Inglaterra de Jaime I, mas não em Portugal, onde a ação con-
tra-reformista dos jesuítas e dominicanos está intensificada no mesmo sécu­
lo177. Não fazê-lo implica, como já se escreveu, postular um Gregório de Ma­
tos subversivo e profético da crise do sistema colonial, crítico da mesma
monarquia em função de um desejo de liberação atual de seu intérprete.
Lutero, seguido de Melanchton e outros protestantes, afirma que, devido
à Queda, a natureza humana corrompida não é capaz de entender a vontade do
verus Deus Absconditus e, desta forma, não é capaz de produzir um reflexo da
justiça divina na ordenação da vida. A conclusão lógica é a de que os poderes
que existem - e que devem necessariamente existir - foram diretamente orde­
nados por Deus aos homens para remediar a insuficiência moral da natureza
humana corrompida. Os defensores da rngione di stato, identificados em Portu­

177. Cf. L. Cabral dc Aloncada, “Restauração do Pensamento Político Português”, em Estudos de Histó­
ria do Direito, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1948, vol. I, pp. 189-226. A Restauração dc
1640 opõe a tese contra-reformista do “tirano” contra Castela, no sentido com que Suárez a teoriza
quando trata da transferência do poder do povo para o rei. A doutrina de Suárez faz clara distinção
entre o rei e o tirano, garantindo ao povo o direito de resistência contra a opressão injusta. Veja-se
o assento das Cortes gerais de 1641, que recebem o duque de Bragança como rei legítimo de Portu­
gal: “Porquanto, conforme às regras do Direito natural c humano, ainda que os reinos transferis­
sem nos reis todo o seu poder e império para os governarem, foi isso debaixo de uma tácita condi­
ção de o regerem e mandarem com justiça e sem tirania, e tanto que no modo de governarem e
usarem deles podem os povos privá-los dos reinos em sua legítima e natural defensão, e nunca
nestes casos foram vistos obrigarem-se, nem o vínculo do juramento estender-se a eles” (pp. 216-
217).

277
A SÁTI RA H 0 E N G E N H O

gal como maquiavélicos, não pressupõem a natureza humana como dada pela
Queda original, irremediavelmente corrompida, segundo os protestantes,
perfectível, segundo os católicos, mas propõem o poder político como virtude
da ocasião. Em outros termos, Lutero e Maquiavel coincidem, segundo os ju­
ristas contra-reformistas, porque ambos rejeitam a lei natural como base mo­
ral apropriada para a vida política. Sua crítica a eles visa a provar que é falsa a
assunção maquiavélica de que o objetivo do Príncipe é a conservação de seu
Estado e de que, para tal fim, deve usar de todos os meios, bons e maus, justos
e injustos, que possam assisti-lo178. Contra a “hipocrisia” maquiavélica, que
prescreve que o Príncipe seja a raposa e o leão, afirmam que a “honestidade”
católica é o maior poder para manter a paz e a felicidade políticas179180:o Prínci­
pe deve ser, como no discurso da sátira, “bom cristão temente a Deus”, “socor­
rido pelos céus”. Contra a heresia luterana, cuja implicação política é a afir­
mação de que o Príncipe governa pela vontade divina para impor a lei e a ordem
à natureza humana corrompida, os contra-reformistas retrucam com a doutri­
na da “graça inata”, pela qual os homens, certamente pecadores, são aptos não
obstante para apreender a lei natural inscrita em suas almas pela vontade e
inteligência divinas. Ao sublinhá-lo, o principal fim dos padres, como demons­
tra Skinner, é o de repudiar a tese herética de que o estabelecimento da socie­
dade política é diretamente ordenado por Deus e, portanto, de que o Rei é in­
falível. Ao fazê-lo, reforçam a autoridade papal quando, por exemplo,
repudiam como herética a tese de Marsilio de Pádua de que todo poder coerci­
tivo deve ser, por definição, secular. Vitoria, exemplifica Skinner, ataca aque­
les que “[...] isentam os governantes seculares da jurisdição da Igreja num tal
grau que quase nada é deixado ao poder eclesiástico, e mesmo as causas espiri­
tuais são remetidas a cortes civis e decididas lá”lso.
Assim, desde que “[...] príncipes seculares são ignorantes da relação en­
tre matérias espirituais e temporais, não podem ocupar-se da consideração
de causas espirituais”181. Em outros termos, se o Papa não tem nenhum poder
direto de controlar os negócios seculares, tem poderes indiretos, muito exten­
sos. Como Vigário de Cristo ou Vice-Cristo, tem a extensão de seu poder limi­
tada pelo modelo de Cristo. Criticando Lutero e reforçando os poderes do
Papa, os juristas contra-reformistas demonstram a necessidade de criar a so­
ciedade política para afirmar que é realmente um erro postular que ela é um

178. A crítica é de Ribadeneyra e é citada por Q. Skinner, op. dl., p. 143.


179. A "honestidade” é proposta por Suárez, cit. por Q. Skinner, op. cil., p. 175.
180. Idem, p. 179.
181. Idem, ibidem.

278
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

dom de Deus e não uma convenção meramente humana182. A questão do con­


trato origina] entre população e Príncipe torna-se, assim, fundamental para
os juristas da Contra-Reforma. E ela que está encenada na sátira, confirman­
do a solução dos padres.
Quentin Skinner evidencia que, segundo Bártolo e Ockham, todo o po­
der conferido a um governante no momento da instituição de uma sociedade
política foi-lhe conferido pelo povo. Este nunca confere ao governante pode­
res maiores do que o que ele mesmo, povo, possui. Assim, ao transferir seus
direitos para o Príncipe, este se torna uma espécie de reitor ou ministro da
comunidade183184.Contra tal teoria, os contra-reformistas opõem a da transfe­
rência do poder como alienação - com ela, justificam a monarquia absoluta e
a legalidade das instituições monárquicas com restrições, como a do direito
de desobediência do súdito, se o contrato, baseado na lei natural, deixar de
segui-la. Ao mesmo tempo, pela teoria do contrato, demonstram o erro das
teses luteranas, segundo as quais o poder monárquico é diretamente ordena­
do pela justiça divina.
O poder político pertence a priori eperius naiurale (“por direito natural”)
ao povo como tal, isto é, ao povo constituído como estado de natureza prévio
ao momento da transferência do poder. O estado de natureza não é, segundo
Suárez, uma comunidade qualquer de indivíduos, mas “um único corpo mís­
tico” no qual todos os membros reconhecem as mesmas obrigações e “do pon­
to de vista moral são um único todo unificado” - em outros termos, têm uma
única vontade unificada18'1. O estado de natureza (status naturae) corresponde
à situação em que se encontraram todos os homens depois da Queda antes da
criação das sociedades políticas. Neste estado, todos eram livres e sem leis
positivas. A ausência da lei positiva não significava ausência de lei, contudo,
pois existia a lei natural. Os contra-reformistas, como Molina e Suárez, expli­
cam que o homem escolheu perder a liberdade do estado de natureza, para
transformar-se em animal político, submetendo-se ao poder de outros por­
que sua vida seria marcada pela injustiça crescente se não o fizesse: a mancha
do pecado original levaria à “total confusão”. Por isso, a passagem do estado
de natureza para a sociedade política consiste na constituição da lei positiva
que impõe a lei natural, numa mescla muito contra-reformista, que no século
XVII luso-brasileiro é fundamental, de política e moral. Segundo Suárez, a

182. Suárez o demonstra, como se viu, pela doutrina da alienaçao do poder.


183. Idem, p. 181.
184. Idem, p. 165. Repete-se aqui, com ampliação, o que se escreveu no capítulo II quando se tratou da
hierarquia.

2 79
A SÁTI RA E O E N G E N H O

soberania do príncipe é recebida, hic et nunc: sua autoridade pressupõe o povo


corporificado e a vontade popular como mediação essencial do poder". Em
outros termos, fundamentais contra os luteranos, a autoridade política e sem­
pre instituída de iure humano (“por direito humano”). Assim, Suárez escreve
que é certamente permitido afirmar que todo poder provém de Deus, mas não
que Deus confere imediata eformalmente um poder ao soberano. Deus é, escolasti-
camente, causa próxima et universalis, causa próxima e universal, mas não cau­
sa próxima e imediata (“causapróxima, seu voluntate conferem talem potestatem”)
quando confere tal poder ao monarca185186187. O mesmo Suárez, ainda, teoriza o
absolutismo: “Tal transferência de poder da república para o príncipe não é
delegação mas quase alienação, ou um perfeito abandono do poder que estava
na comunidade”1", A transferência do poder é tão próxima da total alienação
- quasi alienado que se deixa interpretar analogicamente segundo o modelo
jurídico da escravidão:

[...1 assim quando um homem particular se vende e sc entrega a outro como escravo,
este dominiuin é puramente e simplesmente instituído pelo homem. Com efeito, estan­
do suposto este contrato, o escravo é obrigado, por direito divino como por direito
natural, a obedecer a seu mestre. Da mesma forma, o poder (potestas), tendo sido trans­
ferido ao rei, este é feito por ele superior ao reino que o deu a ele, porque, dando-se a

185. Em 1614, livros de Suárez são queimados na França. Cf. Richelieu,Mémoires, année 1614: “Environ
ce temps, le Parlement fit brüler, par la main du bourreau, un livre de Suárez, jésuite, intitulé La
defere:: de la fui catholique, apostoliqui^tontre les eirewm.de la secle d'Angleterre comme enseignani qu'il
ctoit loisible aux sujets et aux étrangers d’attcnter à la personne des souverains”. Cf. Joel Cornctte,
“L’État baroque dans la France du premier XVIPSièdc: une approche par la chronologie”, em
Henry Méchoulan (org.), op. cit., p. 463 (Années 1614-1615).
186. Cit. por Jcan-François Courtine, “ilhéritage...”, em Henry Méchoulan (org.), op. cit., p. 98.
187. Suárez, De legibus, V, 4,11, cit. porJean-François Courtine, “Ehéritage...”, em Henry Méchoulan (org.),
op. cit., p. 99. Como muito bem demonstra Courtine em seu estudo excelente, não há possibilidade de
tratar uniformemente as doutrinas do direito divino dos reis - por exemplo, na França, Jurieu propõe
a necessidade de um pacto mútuo entre o povo e o soberano, assim como Bossuet, por exemplo,
certamente sc alinharia com Jaime I, contra Suárez, segundo seu galicanismo explicitado no 1“ artigo
da declaração de 1682 que, entre outras coisas, diz: "Celui donc qui s’oppose aux puissances résiste à
1’ordre de Dieu. Nous déclarons en conséquence que les Rois et les Souverains ne sont soumiss dans
les choses temporelles à aucune puissance cclésiastique par 1'ordre de Dieu; qifils ne peuvent ètre
déposés directement ni indirectement par 1’autorité des chefs de 1’Église; que leurs sujets nc peuvent,
au nom de cette même autorité, être dispenses de la soumission et de 1’obéissance qu’ils leur doivent,
ou absous du serment de fidélité; et que cette doctrine, nécessaire pour la tranquillité publique, et non
moins avantageuse à 1’Eglise qu’à l’État, doil être inviolablement gardée comme conforme à la parole
de Dieu, à la tradition des saints Pères et aux exemples des saints”. Cit. por Joel Cornette, “I) Etat
baroque...”, em Henry Méchoulan (org),op. cit., p. 115.

280
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O

cle, o reino se submeteu como súdito (sc subjecil) c privou-se da liberdade anterior,
como se conclui, guardadas as proporções, do exemplo da escravidão1**.

Ao teorizar o poder monárquico como transferencia de poder da popula­


ção para o Príncipe, os juristas contra-reformistas, principalmente Suárez,
repudiam também duas interpretações políticas tradicionais na Europa cris­
tã. Demonstra Skinner que a primeira é a tese dos canonistas, pela qual o
poder político é divinamente conferido a um príncipe particular, devendo
sempre continuar em uma pessoa particular por um processo de sucessão
hereditária. Segundo Suárez, tal tese esquece que “[...] é essencial que o pri­
meiro detentor deva ter derivado seu poder supremo imediatamente da co­
munidade; de modo que seus sucessores, menos diretamente mas ainda fun­
damentalmente, devem ainda derivar seu poder da mesma origem”189. A
implicação da postura contra-reformista é a de que um direito de sucessão
não pode ser de fato a fonte básica do poder de um príncipe, reforçando-se
ainda uma vez a tese da transferência do poder da comunidade para o gover­
nante. A outra tese é a dos imperialistas, pela qual há um príncipe particular
com domínio temporal através de todo o mundo. Baseado em sua teoria da
transferência do poder, Suárez escreve que isto é uma “impossibilidade mo­
ral”, pois a condição para existir tal poder é a de tê-lo recebido dos homens e
“[...] nunca aconteceu que homens tenham alguma vez consentido cm confe­
rir tal poder ou em instituir tal única cabeça sobre eles mesmos”. A implica­
ção da tese de Suárez é a de que, mesmo se existisse, um Império universal
seria ilegítimo. Central em todas as críticas e retificações dos contra-refor­
mistas é, assim, a doutrina da transferência do poder como alienação.
Se a comunidade transfere o poder para constituir uma sociedade políti­
ca, cria o poder do Imperium acima dela - o poder do Rei - de fazer leis e
manejar a espada da justiça: “que o mau na própria cabeça / traga a justiça
aprendida” (OC, I, p. 205), como recita a sátira. Em outros termos, o momen­
to da constituição da sociedade política é também o da constituição do poder
“pela força da razão natural”190. Skinner demonstra que, segundo a interpre­
tação tradicional de bartolistas e ockhamistas do poder como delegação, a
comunidade pode obrigar o governante a cumprir as leis positivas. Proposta a
teoria da transferência - quasi ahcnatio - do poder, os contra-reformistas de-18

1S8. Suárez, De legibus, III-IV, 6, cit. por Jean-François Courtine, “Uhéritage...", em Henry Méchoulan
(org.), o/i, cit., p. 115.
189. Cf. Q. Skinner, op. cit., vol. II, p. 164.
190. Idetn, p. 181.

2S1
A SÁTI RA E O E N G E N H O

monstram a impossibilidade lógica de tais exigências populares: desde que o


Príncipe não tem superior, como escreve Suárez, não há ninguém que possa
obrigá-lo a nada - mesmo que se afirme que, “em consciência”, ele deveria
seguir as leis que promulga. O Príncipe é legibussolutus, livre do poder coerci­
tivo e das leis positivas. O que deve fazer, como “bom cristão temente a Deus”,
é seguir a lei natural para que sua ação seja legítima. Por isso mesmo, “[...] se
um reino surgir baseado em meios injustos, o governante não possui nenhu­
ma autoridade legislativa legítima”191. Ou ainda, como escreve Bellarmino,
“[...]uma lei civil justa é sempre uma conclusão da divina lei moral”19-. Por
isso, ainda, a interpretação do poder real como transferência é dirigida contra
Lutero: segundo Suárez, ao afirmar o direito, em certas circunstâncias, de
desobedecer às ordens emanadas de um governante legítimo, a heresia luterana
está com efeito afirmando que é possível desobedecer à lei natural. Ora, qual­
quer um que se desvie da lei, natural ou positiva, divina ou humana, deve, em
qualquer caso, estar pecando contra a eterna lei de Deus, como escreve Bel­
larmino193194.A posição luterana torna-se, assim, não apenas erro, mas blasfê­
mia. Observe-se, aqui, uma das razões doutrinais da intensa sacralização do
poder político pelas artes e letras no século XVII: desde que a lei natural é
também a vontade de Deus, os preceitos e as proibições das leis positivas
divinas da Bíblia não podem diferir dos preceitos da lei natural, estando con­
tidos neO. Por isso, qualquer código legal genuíno ou legítimo deve incluir
todos os preceitos e proibições feitos por Deus no Decálogom .
A potência do Príncipe é absoluta porque se constitui, formalmente, da
inteira submissão dos súditos. O que define a soberania é a sujeição completa
dos súditos, que - sendo legítimo o Princípe - abrem mão de todos os direitos
para em troca receber os “privilégios”, temporários e sempre revogáveis pela
vontade soberana do Rei195: “que o cair é dos validos”, como diz a sátira, nas
décimas em que se censura o Conde de Ericeira, Dom Luís de Meneses, que
se suicidou atirando-se de uma janela:

191. Idem, p. 163.


192. Idem,p. 167.
193. Idem, p. 168.
194. Idem, p. 150.
195. Como escreve Bodin: “Quando o chefe de família sai de sua casa onde comanda para tratar e
negociar com os outros chefes de família aquilo que lhes toca a todos em geral, então ele se despoja
do título de mestre, de chefe, de senhor, para ser companheiro, par e associado dos outros; deixan­
do sua família para entrar na Cidade, e os negócios domésticos para tratar dos negócios públicos:
em vez de senhor ele se chama cidadão”. Cf. Jean-François Courtine, “IJhéritage...”, cm Henry
Mcchoulan (org.),op. cil., p. 105. Bodin também escreve que: “C’est la reconnaissance et obéissance
du franc sujet envers son Princc souverain, et la tuition, justice et défense du Prince envcrs le sujet,
qui fait le citoyen” (idem, p. 117).

282
A PROPORÇ Ã O DO M ON ST RO

T in h a o C o n d e d e m orrer;
to d o o m o rta l n isto pára,
e se e le se n ã o m a ta ra ,
c o m o q u e m l h o h a v i a d e fa z e r ?
f e z b e m o C o n d e a m e u ver,
q u a n d o ao ja r d im se arrojou,
e en tre as flo res ex p iro u :
v e n t o é a v i d a e m r ig o r ,
e c o m o o C o n d e e r a flor,
en tre as flores acabou.
Se ign orou algu n s sen tid os,
p o r q u e t a n to m a l se u r d iu ,
era v a lid o , e c a iu ,
q u e o ca ir é d o s valid os:
tão certos são, e sa b id o s
n o m o n t e , n o lar, n a p r a ç a
estes rev eses da graça,
q u e é já d o s P a l á c i o s l e i ,
q u e q u e m d a g r a ç a d ’E l - R e i
cai, cai da su a d esg ra ça .

( O C , I, p p . 1 4 3 - 1 4 4 . )

A sátira seiscentista encena esse ponto de igualdade formal de todos na


submissão da transferência do poder, pela qual os membros do corpo político
são cidadãos e, portanto, súditos. Neste mesmo sentido, a igualdade simbóli­
ca da submissão homogênea de todos pelo contrato é a desigualdade real dos
privilégios de alguns, segundo a vontade soberana, que escalona os súditos
em ordens, hierarquicamente, e que ao mesmo tempo os guia como cabeça do
corpo político. Dificuldade, aqui, do conceito de propriedade privada: segun­
do a doutrina escolástica tradicional, o direito à propriedade é parte da lei
natural. Segundo os juristas contra-reformistas, se a lei das nações é apenas
lei positiva, o direito à propriedade deve ter sido estabelecido inicialmente
por uma autoridade também apenas humana. Portanto, o direito dos proprie­
tários poderia ser alterado e abolido a qualquer momento, sem ferir direta­
mente os princípios da lei natural. A consequência é, obviamente, subversi­
va. Assim, os juristas alegam que o direito à propriedade deve ser um direito
natural, não um simples privilégio derivado da lei positiva196. Ou, como es­
creve Suárez, se a posse comunitária se opõe à particular e se isso pode ser

196. Q. Skinner, op. cit., p. 153.

283
A S Á T IR A E O E N G E N H O

uma injunção da lei natural, é, contudo, apenas uma injunção negativa, ser­
vindo para lembrar que “[...] toda propriedade deveria ser possuída em co­
mum pela força desta lei se não tivesse ocorrido que os homens decidissem
introduzir um sistema diferente”197. Em outros termos, a lei natural pode
ser avocada tanto para sancionar a continuidade quanto a abolição da pro­
priedade comunitária e, assim, a decisão de dividir a propriedade é deixada
para a decisão da lei positiva, mas de tal forma que a decisão de instituir a
própria divisão não é um mero aspecto da lei positiva. Interpretando a con­
cessão do “privilégio”, tal doutrina implica que o privilégio é uma lei posi­
tiva que pode ser revogada a qualquer momento, segundo o casuísmo das
interpretações, mas que, ao concedê-lo ou retirá-lo, o Rei se pauta pela lei
natural.
A sátira desenvolve como um de seus temas principais essa desigualdade
de direito para ratificá-la como harmonia preestabelecida e criticar atos que
publicamente a desestabilizam quando infringem os deveres de cada or­
dem: não se critica, portanto, o privilégio, mas os efeitos de seu excesso ou de sua
carência. Tanto o excesso quanto a falta ameaçam a concórdia do bem co­
mum, desordenando a harmonia das partes do corpo político. Segundo a
sátira, a desigualdade é natural, pois adaptada ao fim superior da paz social.
As ordens sociais, assim como cada indivíduo, devem contentar-se com o
que são e com o que fazem, em função do bem comum. Em outros termos, a
virtude moral é sempre virtude política, porque é a vontade real que, sendo
legítima, expressa nas leis positivas aquilo que é lícito ou ilícito conforme a
lei natural. Como o Papa, cujaplenitudopotestatis decorre de ser o Vigário de
Cristo: contestá-lo é sacrilégio, tanto quanto ousar restringir a potência
de Deus198.
Assim como o Papa se quer Vicarius Christi, os reis do século XVII afir­
mam-se vigários de Deus: são deuses199, observando-se que a doutrina contra-
reformista não se opõe ao absolutismo, mas o retifica para introduzir a ques­

197. Idem , pp. 153-154.


198. Declaração de Urbano VI: “omitia possum el ita voto".
199. Cf. Bossuet: “Vous êtes des dieux... Mais ôdieuxdechairetde sang, ô dieuxde terreet de poussière,
vous mourez comme des hommes. N’importe, vous êtes des dieux, encore que vous mourriez, et
votre autorité ne meurt pas; cet esprit de royauté passe tout entier à vos successeurs [...] Uhomme
meurt, il est vrai, mais le roi, disons-nous, ne meurt jamais: l’image de dieu est immortelle” (2 de
abril de 1662), cit. por Jean-François Courtine, “Chéritage. .”, em Henry Méchoulan (org.),<t/>. cil.,
p. 111. C f ainda trecho de carta dejaim e I,dc Inglaterra, a seu filho: “É-vos preciso acima de toda?
as coisas aprender a conhecer e a amar a Deus a quem deveis dupla obrigação: primeiramente por
vos haver feito homem e em seguida porque fez de vós um pequeno deus para sentar-se sobre seu
trono e reinar sobre os outros homens” (idem, p. 107).

284
A PR OPORÇ ÃO DO M ON ST RO

tão do contrato, como transferência do poder, e, legitimando o poder real,


propô-lo como expressão da lei natural - em outros termos, como metáfora
expressiva do divino, quando legítimo o contrato. Virtude, honra e glória são
os corolários dessa doutrina que, desde o século XVI, foi sendo minada pelo
maquiavelismo e, mais tarde, pela teoria de Hobbes sobre a universalidade
do auto-interesse na condução da coisa pública2'10. Passando ao largo dessas
criticas, a sátira seiscentista postula virtude, honra e glória em termos de sua
concepção tradicional e providencialista.
Skinner demonstra que a tradição humanista produz duas concepções
principais sobre a virtú ética e política. Por uma delas, a virtude é uma qua­
lidade que capacita o governante a atingir seus fins mais nobres. A outra,
complementar, afirma que a posse da virtú pode ser equiparada à posse de
todas as virtudes maiores20201. Segundo a renovação escolástica, se um prín­
cipe deseja manter seu Estado e alcançar a honra, a fama e a glória, deve
acima de tudo cultivar o elenco completo das virtudes cristãs, donde a pro­
liferação, nos séculos XVI e XVII, dos textos que recuperam o estoicismo -
Marco Aurélio, Sêneca - fundindo-o com os exempla da tradição patrística
e medieval.
Maquiavel propõe que o alvo do Príncipe é, efetivamente, a honra, a glória e
a fama, rejeitando a crença cristã dominante de que o meio seguro para alcançá-
las ou mantê-las é um meio virtuoso. Para agir sempre virtuosanrente, não se
deve ser virtuoso o tempo todo. Nada mais importante que manter as aparências
porque “[...] o golfo existente entre o como se deveria viver e o como se vive é tão
largo que um homem que negligencia o que realmente é feito pelo que deveria
ser feito aprende o caminho da autodestruição antes que o da autopreservação”202.
Numa política maquiavélica, ainda, a sátira - como variedade da murmuração -
poderia, até certo limite, ser perfeitamente tolerada e mesmo incentivada pelo
Príncipe, pois manteria em evidência sua pessoa, evidenciando também sua
magnanimidade... Assim, a crítica às virtudes tradicionais203propõe que o Prín­
cipe deve ver que é essencial, positivamente vantajoso, agir contrariamente à
boa fé, à caridade, à bondade, à religião. Inversão divertida: há imensa utili­
dade política nos vícios que os leais conselheiros, galateos e espelhos de prín­
cipes, oráculos manuais e artes de prudência, comuníssimos nos séculos XVI
e XVII, descrevem e propõem sejam evitados: a avareza, a fraude, a mentira, a

200. Q. Skinner, op. cil., p. 101.


201. Idem, p. 131.
202. N. Maquiavel, The Prince, Harmondsvvorth, 1961, p. 91, cit. por Q. Skinner, op. cil., p. 133.
203. A crítica se faz, principalmcnte, em “ 16 - De liberalilate ei parsimonia ’, “ 17 - De crudelilaie ei piciaie”
e “ 18 - Quomodo fides a principibus sil scrvanda". Cf. N. Maquiavel, The Prince, op. cil.

285
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

crueldade são virtudes básicas para governar. Não se trata, como propõe
Skinner, de uma diferença entre uma visão moral da política e uma visão da
política divorciada da moralidade, pois o contraste essencial é antes entre
duas moralidades políticas diferentes e inimigas204. Não seria preciso tal­
vez lembrá-lo, mas a política dos reis católicos ibéricos realiza, muitas
vezes, a virtú maquiavélica de maneira exemplar: citem-se, como exem­
plo, a ação de Filipe II nos Países Baixos e, ainda, o episódio da anulação
do casamento de Dom Afonso VI e Dona Maria Francisca Isabel de Sabóia,
e o casamento desta com o príncipe Dom Pedro, irmão do Rei, em 28 de
março de 1668205.
É útil lembrar, ainda, que a reativação da escolástica aplica um esquema
tipológico à figura do Rei: assim como Cristo é, em sua humanidade, instru­
mento da divindade (insvrumentum divinitatis), também o Rei é proposto dupla­
mente, como sendo o que é por aquilo que está nele mesmo e além dele mesmo.
Tem duas pessoas: persona personalis, mortal, tpersona idealis (mystica,ficta).
Os dois corpos do Rei permitem, entre outras coisas, afirmar a perpetuidade
do poder e seu absoluto: para além da sucessão temporal dos reis, mortais e
falíveis, a potência pública permanece imutável em sua identidade sagrada206.
A dupla pessoa aplica-se à esfera do poder político: este é ordinário, conforme
se trate do direito privado, quando se tem em vista o interesse particular dos
súditos, e absoluto, quando se exerce em vista do bem comum e se determina
cm função da razão de Estado.
Os vários topoi teológicos encontráveis na sátira e em outros discursos do
século XVII, como os da oratória sacra, têm assim, antes de serem mera orna­
mentação de uma retórica do poder “voltando”, como se costuma dizer, à
Idade Média, uma função determinante na elaboração e confirmação do con­
ceito moderno de poder soberano absoluto. Gregório dc Matos e Guerra está
na doutrina teológico-política e seus topoi que perpassam a obra de autores
como Lope de Vega, Quevedo, Saavedra Fajardo, Gracián, Calderón de la
Barca, Vieira, Bossuet. Por vezes opondo a soberania do Estado e a Santa Sé,
por vezes aproximando-os num misto indiscernível de razão de Estado e
providencialismo divino, prega-se a virtude do ideal ou o ideal da virtude. O

204. Q. Skinner, op. cit., p. 135.


205. Cf., por exemplo, Antonio Álvaro Dória, A Rainha Dona Maria Francisca de Sabóia (1646-
1683): Ensaio biográfico, Porto, Livraria Civilização, 1944; Carl A. Hanson, “Pedro, o Pacífi­
co”, em Economia e Sociedade no Portugal Barroco 1668-1703, Lisboa, Publicações Dom Quixote,
1986.
206. Cf. Baldo, “Dignilas (Majestas) regia nunquam moritur”, cit, por Jean-François Courtine, “Lhéritage...”,
em Henry Méchoulan (org.), op. cit., p. 102.

286
A P RO P O RÇ Ã O DO M ON ST RO

amor de Deus, a justiça, a verdade, a concórdia e a paz permitem, teorica­


mente, a honra a Deus, a dignidade honrosa, a prosperidade material, a tran-
qüilidade da alma e os bons exemplos, tópicas freqüentes nas letras seiscentis-
tas parenéticas e elegíacas. Contudo, a mesma dignidade contém os germes
do orgulho desmedido; a prosperidade material, os da cobiça e da fatuidade;
a tranqüilidade da alma propicia ocasião para maquinações contra o Estado;
e mesmo o bom exemplo pode vir a ser arte do demônio, como glorificação
maligna. Equilíbrio sempre instável na desordem dinâmica de tudo, inter­
vém a prudência, que afirma que toda iniciativa pessoal deve submeter-se à
legalidade instituída para ser legitima.
Um epitáfio composto para o Marquês de Marialva é bastante significati­
vo dessa unidade de integração visada pela sátira e que é dominante no sécu­
lo XVII ibérico:

E m tr ê s p a r t e s e n t e r r a d o
está o c o r p o d o M a r q u ê s
d e M arialva: p o r q u e em d ez
m íl seu n o m e é ven erad o:
e foi d e s t in o a c e r ta d o ,
que em tanta parte estivesse,
para q u e o m u n d o s o u b e s se ,
que este v a lero so M arte
m o rto assiste e m q u a lq u e r parte,
c o m o se a i n d a v i v e s s e .

(OC, I, p. 15 0 .)

O mesmo topos “todo/parte” aqui é desenvolvido: as partes de Marialva,


enterradas cm lugares diferentes, alegorizam a mesma unidade do corpo po­
lítico do Estado, da qual ele, como fidalgo, foi exemplar: nele a honra, a glória
e a fama, sintetizadas no epíteto “valeroso Marte”.
Assim, a exemplo do que ocorre com a Bíblia católica, não se admite o
livre exame: também em política por parte dos súditos, mas uma concordada
consonância, obediência e repetição de padrões estabelecidos*7. Entre outros207

207. Cl. D. Saavedra l-ajardo, op. cit., vol. I, Empresa XXVII: “Quando o povo começar a opinar cm
religião: e quiser introduzir novidades nela é preciso aplicar logo o castigo, e arrancar pela raiz a
má semente ames que cresça e se multiplique”. Lembre-se ainda que, no século XVII ibérico, a
liberdade de consciência é equiparada ao maquiavelismo. Cf. também Richclieu, “Tcstament
poli tique 1, 4)”, em Joèl Cornette, "IiÉtat baroque...”, em Henry Méchoulan {Org ), op. cit., p. 470
(Années 1629-1630): "Tous les politíques sont d’accord que si les peuples stoient trop a leur aise, íl
seroit impossible de les contenir dans les règles de leur devoir; leur fondement est qu'ayam moins

287
A SÁTI RA I; O E N G E N H O

fins, a arte articula-se como dirigismo pedagógico, educação do gosto por meio
do mito épico: cada qual se contente com o seu, faça cada um o seu papel, no
lugar e na ordem em que, como parte, está colocado no todo do corpo político
do Estado. Apologia da cabeça, portanto, que sabe o seu papel, sabendo os
papéis das partes no todo:

Con este fu i (de mantener ÍS unión) poneft todas sus fnerzas los reyes dc hispana en que
los pueblos, reinos v estados a Èloi sujetos se amen entre si con la unidad de la católica
Tfligión, no pernntiendo vivir com ellos judio, moro, ni hereje alguno que pueda ser parte ni
impidimenlopara desatar esk' laso de unión. In orden a esto, han instituído tantos a Estúdios
v Universidades, en especial la muy jlorida de Salamanca | y dotado en cilas tan grande
número de cátedras, donde florecen y resplandeceu tanto las letras en todas ciências, como
hacen fe los eminentes hombres que cada día estampan tan ingeniosasy eruditas obras, asi en
Teologiay Leves como en todas las detnás ciênciasy facultades; los predtcadores insignes, que
con singular honor suyoy colmado fruto de los oyentes, ocupan y ejcrcitan los púlpitos; los
maestrosy doctores, pozos de ciência que, como por semilla, retienen en si las Universidades
para que se continue en ellas la ensenansay doctrina. Coit este escuadróil de letrados, que son
por la mayor parte religiosos o eclesiásticos scglares (a quienes los católicos Reyes, por el
respeto que les tiene, gradas y mercedes que les hacen, tienen de sua parte), forlifican su
impérioy monarquia, no menos que con los presídiosy tercios de soldados; porque liana cosa
es que en un império tan grandey de naciones tan diversas fuera fácil resbalar unas a olras en
algum pcasión de digusto contra el príncipe, temendo cabeza a quien seguiesen; y es lambicn
cierto que quien las tiene sujetasy rendidasy obedientes al superior, son los hombres doctosy
eclesiásticos, en especial los religiosos y predtcadores, a quienes dan crédito por la promesa que
les hacen de los eternos bienes, v por el desprecia que ven en ellos en sus accionesy vidas de los
caducosy temporales, de suerte que predicando ellos continuamente alpueblo que es volunlad
de Dios obedecer a los reyes, y que a los trabajos y misérias que se padeceu en esta vida
corresponderá en la otra eterno prêmio y amenazando asímismo de ordinário en los
confesionarios y púlpitos con ta divina justicia humana a los homicidas, ladrones, sensuales,
rebeldesy sediciosos,y confirmando a los buenosy virtuosos (por otra parle) con la esperanza
de Ia eterna felicidad, que es Ia perenne y clara vista de Dios, no hallan los desalmados y
perdidos quien se junte a ellos, ni quien siga su parecer y opinión, nipueden unirse con ellos

de connaissance que les aulres ordres de l’Étal beaucoup plus cullivex ou mstruits, s’ils n’étoient
retenus par quelques necessites, difficilemcnt demeureroiens-ils duns les règles qui leur som
prescritos par la Raison et par les Loix. La Raison ne permet pas de les exempter de toutes charges
parce qu’en perdam en lei cas la marque de leur sujettion, ils perdroient aussi ia mémoire de leur
condítion et que s'i 1,s stoient libres de tributs, ils penseroient 1’ètre de 1'obcissance. II les iam
comparer aux mulets qui étanl accoutumez à Ia charge se gâtent par un long repos plus que par le
travail; mais ainsi que le travail doit êlre modere, et qu’il faut que la charge de ces animaux soit
proportionnee à leurs forces, ii en est de rnérne des subsides à 1’égard des peuples s'ils n etoient
moderes, lors racmc qu’ils seroient utiles au pubiic, ils ne laisseroient pas d’être injustes”.

288
A PROPORÇ Ã O DO .MONSTRO

muchos de la república, en cuyas manos está la fuerza, aunque lo descen, ni brotan la ponzona,
aunque estean avenenados2uli.

Longa a citação, certamente, mas sintetiza, uma por uma, várias direções
do olho satírico analisadas neste capítulo. O seguinte ocupa-se das regras re­
tóricas da lente e da visão integradora.

20S. Fray Juan de Salazar, Política Espanofa Prop. 5a, III, cit. por F. M. Ferrol, op. cit., pp. 232-233. As
afirmações de Salazar são generalizávèis para Portugal no século XVII. Neste plano de mando, por
exemplo, a Inquisição funciona acoplada ao poder de Estado.

289
IV
O Ornato Dialético e a
Pintura do Misto

V á d e r e tr a to
p o r c o n s o a n te s
q u e e u s o u T im a n te s .

(P C , h p. 219.)

O te m p o d e s o r d e n a d o
se o r d e n o u e m c a s o
ta l...

(OC,V, p. 1250.)

NoApologéticode las Comédias Espaüolas, de 1616, Ricardo de Turia escre­


ve contra os “terensiarcos” e “plautistas”, os adeptos da preceptiva dramática
aristotélica tradicional, que julgam as tragicomédias monstruosas na inven­
ção e na disposição e impróprias na elocução. Defendendo-as, Turia teoriza o
discurso misto, utilizando uma figura emblemática, o sátiro do Pastor Fido,
de Guarini, que discorre sobre temas especulativos, em estilo alto, e lascivos,
em estilo baixo. Segundo Turia, o sátiro fala à semelhança dos antigos que,
sob essa figura, vituperavam os vícios das repúblicas, donde o nome de “sáti­
ras” aplicado aos versos mordazes1. É o mesmo Guarini que define o poeta
satírico e seu estilo pela boca da personagem Corisca:

1. Ricardo de Turia, Apologélico de las Comédias Espanolas (1616), em F. S. Escribano y A. P. Mayo,


Preceptiva Dramática Espanola, Madrid, Gredos, 1965, p. 152. Cf. também “Dryden e Alguns Temas
dos Fins do Século XVIII”, em William K. Wimsatt Jr. & Cleanth Brooks, Critica Literária. Breie
História, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1971, principalmente pp. 252-255.

291
A SÁTIRA E O ENGENHO

M e s s o k o m o , m e s so c a p r a , l u t o b e s tia [sic]2.

Motivando a etimologia do termo3, a imagem do sátiro de Turia metaforiza


a estrutura e o funcionamento da sátira e é lugar-comum no século XVII. Como
o sátiro em que duas naturezas formam um terceiro, ela não tem a unidade
prescrita de outros gêneros: é mista, como mescla de alto e baixo, grave e livre,
trágico e cômico, sério e burlesco. É, por isso, composta de duas vozes básicas:
uma, alta e grave, icástica; a outra, baixa e mista, fantástica. Basicamente in-
clusiva - “dependente”4 ou “polifônica”5-, a sátira mistura tópicas variadas
da invenção retórico-poética, amplificando e deformando procedimentos e
estilos da elocução. Ressalta, na sua voz fantástica, o hibridismo, na medida
mesma em que é construída de citações eruditas, de sentenças irônicas, de
descrições hiperbólicas, de agudezas baixas, de vilezas sórdidas, de paródias
dos gêneros elevados etc. Constitui-se, parte por parte, de sinédoques e
metonímias de gêneros oratórios e poéticos e pode assumir qualquer forma67.
Partes e partes conflitam, conforme a referência de cada uma delas ao gênero
que efetuam e, ainda, segundo a inverossimilhança programática do misto,
como efeito da fantasia que fere o decoro, o verossímil poético (eikon) e os
opináveis retóricos (endoxa)1do discurso. Em outros termos, a sátira encena

2. Ricardo de Turia, op. cil., p. 152.


3. O termo satyra surge da motivação etimológica do termo latino salura pelo grego salyros, identifica­
ção facilitada pelo fato de a salura latina ser uma mistura de discursos c o salyros grego ser também
misturado, metade homem, metade bode. Cf. “Origine e nome delia satira”, em Ulrich Knoche, I.a
Salira Romana, Brescia, Paideia Editrice, 1969. Cf. também Lexicon toiius lalinilalis (abAegidio Forcellini
seminari Palavini alumno lucubratum deinde a Iosepho Furlaneiio eiusdem seminari alumno eimnendatum
el auclum nunc vero curanlibus etc.), Patavii, Typis Seminarii, MCM XXXX, tomo IV, p. 229: “Salira vel
eliam Satyra, otini Salura, ae. f. I. Scaliger. ad 1.5. Manilii el Casaubonus 1. de satyra, scribere jubetil
satira, vel more anliquo satura. Qui satyra scribunl, co idfaciuni, quia hoc canninisgenus a Salyris liabere
nomen arbilranlur, idque ob dicacilaiem... Aliqui causam afferunl, qitod in hoc genere canninis res ridiculae
pudendaeque scribunlur, quemadmodum proferri a Salyris solebanl, vel quod in antiqua satyra
inlroducebanlur satyrorum personae, aul si quae eram ridiculae similes Salyris. Qui satura maluni, ca re
adducuntur, quia genus hoc poesis dictum censunl ob canninis varietalem, el propier copiam rerum, quae ibi
traclantur".
4. Hans Robert Jauss, “Littérature médiévale et théorie des genres”, em Poétique, Paris, Seuil, 1970,
vol. 1, p. 83.
5. Mikhail Bakhtin, Iloeuvre de François Rabelais el Ia cullurepopulairc au Moyen Age el sous la Renaissauce,
Paris, Gallimard, 1970 (Col. “Idees”).
6. Como formas fixas, com grande variação e mistura internas, o corpus atribuído a Gregório de Matos
e Guerra lança mão, preferencíalmente, do romance medieval de medida velha e do soneto de medida
italiana.
7. Aristóteles, Retórica, 1408. Não se fala de coisas elevadas com familiaridade, nem de coisas simples
com ênfase; também não se aplicam ornamentos inúteis a palavras comuns. A sátira infringe progra-
maticamente todos esses preceitos.

292
0 ORNA T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O

códigos da recepção: cada parte que nela é misturada às outras remete o des­
tinatário a um todo ausente, seu gênero e sua prescrição, efetuados como
subtexto interpretante da parte e da incompossibilidade das misturas. Como
incongruência e inverossimilhança, as misturas fantásticas são categorizadas
pelo destinatário em outro registro de adequação, o do delectare, prazer do
vulgo8, a que se associa oprodesse da enunciação icástica, utilidade da catarse
e da aprendizagem.
Viram-se, no capítulo III deste, regras de constituição da voz icástica e
virtuosa da enunciação; como um misto de discursos, a voz fantástica funcio­
na por referência interna de partes a gêneros e de gêneros a partes, o que mais
se evidencia quando, em sua formulação, opera a ironia como metáfora de
inversão, agressão, jocosidade e paródia, que desnuda o procedimento cons­
trutivo9. A sátira é estruturalmente “plagiária”, porque gênero misto: junta fa­
las heteróclitas e sobredetermina o discurso10, recorrendo a fragmentos varia­
dos para compor monstros poéticos ou maravilhosos. A inclusividade e a
compossibilidade de linguagens fazem-na homóloga da regra áurea das le­
tras seiscentistas, a agudeza, que aproxima e funde conceitos distantes e ex­
tremos11, tendendo a integrá-los como mistos. Engenhosamente, a sátira
seiscentista sobredetermina a operação aguda, pois reúne fragmentos de vá­

8. Cf., por exemplo, Padre José Alcázar, Ortografia Caslellana (1690) em F. S. Escribano y A. P. Mayo,
op cit., p. 237: “En el teatro eljuezes el vulgo nccioy sin letras, que no distingue el relâmpago dei rayo, que
no penetra los conceptosy solamente se deleita con la Iransposición desusada de las palabras. Noson el vulgo
los ciudadanos, ni los maestros de las artes más nobles, sino los sastres, los zapateros, los cocheros, los lilereros
y otros semejanles, que por el ruido que meten se llaman 'mosqueleros' ”. A classificação espanhola de
Alcázar corresponde à da poesia da tradição Gregório de Alatos e à de outros poetas italianos e
franceses do século XVII, sendo um lugar-comum.
9. Cf, por exemplo, “Definição de Amor” (OC, V, p. 1223), poema joco-sério em que a sátira se faz
como inversão irônica de lopoi e estilo alto da lírica de tradição petrarquista, particularmente o
soneto camoniano Amor é fogo que arde sem se ver. Enunciados montados por adynata - “É glória,
que martiriza, / uma pena, que recria / é um fel, com mil doçuras [...] / Uma prisão toda livre, /
uma liberdade presa” etc. - são confrontados com outros, já mistos, com mescla de conceptismo
engenhoso e estilo baixo, que os traduzem e rebaixam segundo um eixo de oposições alto / baixo
ou alto / sórdido: “fogo selvagem nas bolsas, / e uma sarna nas moedas / [...] um embaraço de
pernas, / uma união de barrigas, / um breve tremor de artérias [...] / um reboliço de ancas” etc.
Veja-se também, em OC, II, p. 237, poema em que a dicção jocosa faz citação irônica de Sá de
Miranda e Francisco Rodrigues Lobo: “[...] quem me vira neste instante / tão solteiro, qual eu era,
/ que na Ordem mais austera / comera o vosso maná! / mas nunca direi, que lá / virá fresca Prima­
vera”.
10. Por exemplo, com a hipérbolc, com a redundância.
11 ■ Baltasar Gracián, “Discurso I - Panegírico al arte y al objecto”, Agudezay Arte de Ingcnio em Obras
Completas, Madrid, Aguilar, 1967, p. 241: “Consiste, pues, este artificio conceptuoso, cn una pri­
morosa concordância, en una armónica correlación entre dos o tres cognoscibles extremos, expres-

293
A SÁTI RA E O E N G E N H O

rios gêneros, ironicamente, como agudeza ridícula ou maledicente. Misto


retórico-poético, variante “livre” do conceptismo engenhoso efetuado nela
como jogo metafórico ou amplificação da fantasia, a sátira é um gênero “não-
gênero”, uma vez que lhe falta unidade.
Dramatizando o sistema de prescrições retórico-poéticas que a regem,
nela também se evidencia a franca direção referencial, como ridicularização e
agressão de indivíduos e situações. Ela é mimética, mas não realista, como se
costuma propor quando se traduz inadequadamente, da perspectiva do subli­
me romântico, a representação fantástica e deformante do estilo baixo, pois
seu trabalho é a adulteração das “naturezas” de casos retóricos. Se há realismo
nela, é antes o de um sentido referencial do caso retórico, referido em uma
situação determinada como convenção de topoi partilhada pela recepção, que
propriamente uma cópia verista do referente. Lembre-se que a hipervalorização
seiscentista da elocução propõe o discurso como metáfora pictórica; por isso,
o artifício é um lugar-comum de ficção nas preceptivas e nos poemas, prescre­
vendo e efetuando a contrafação do natural como efeito inclusive “hiper-rea-
lista”, que oblitera a ficção por excesso dela. Sendo fundamentalmente ima­
gem, segundo o ut pictura poesis horaciano e a concepção do conceito como
“definição ilustrada”, a metáfora seiscentista é artificiosíssima como fingi­
mento do natural que mais o supera quanto mais o finge. Como estereotipia,
as mesmas imagens são aplicáveis a tipos diversos, referindo pessoas de dife­
rentes graus hierárquicos, como os governadores Sousa de Meneses e Câmara
Coutinho, as putas Chica e Zabelona, uma dama corcovada, um negro de nome
Logra, um frade franciscano, um pseudodiscreto etc.12
O riso, por exemplo, é incidental na sátira, uma vez que a ridicularização
de vícios é antes uma convenção para várias tópicas graves e vários tipos vicio­
sos que uma correspondência verista e imediata do discurso com a pessoa
empírica ou a situação referidas nele13. Lembrem-se, por exemplo, as tópicas

sada por un acto dei entendimiento”; Fmanuele Tesauro, “Cagion formale delParguzia circa le
figure”, em // Cannocchialc Arisioielico, Scelta a cura di Ezio Raimondi, Torino, Finaudi, 1978, p.
40: “Ogni arguzia é un parlar figurato, mas non ogni parlar figurato é un’arguzia... Quelle figure
propriamente si chiamano argute, le quai consistono nella significazione ingegnosa”.
12. C. Petrônio, Saiira in Pctronii Saiirae ci Libcr Priapeorum, ed. Franciscus Buecheler, Berlin,
Wcidmannos, MDCCCLXXII, 118, p. 84: “non enim res gestae comprehendendae sunt, quod longe
melius historiei faciunt, sed per ambages deorumque ministeria et fabulosum sentemiarum
tormentum praecipitandus est liber spiritus, ut potius furentis animi vaticinatio appareat quam
religiosae orationis sub testibus fides”.
13. As mesmas tópicas, o mesmo sistema de insultos são aplicados aos governadores Sousa de Meneses c
Câmara Coutinho, ao padre Lourenço Ribeiro, a negras, mulatas c cristàos-novos, com a recorrência
dos motivos caricaturais - por exemplo, o do nariz fálico, rastreável em Marcial, Rabelais e Quevcdo.

294
0 O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O

do ridículo judaizante que constituem personagens que são aplicadas para


figurar ou referir pessoas simultaneamente efetuadas como não-judeus; ou as
tópicas da “puta” e do “corno”, também aplicadas a mulheres e homens de
várias honestidades e honras. Técnica de uma “indignation recollected in tran-
quility"u, as convenções do ridículo não são realistas, nem meramente cômicas,
no sentido aristotélico daquilo que faz rir sem dor, pois estão ao serviço de
um ponto de vista prudente, movido do interesse ético e político: na sátira, o
cômico é um meio para o sério. Quando os preceptistas dos séculos X V I e
X V I I reatualizam Cícero, que propõe o cômico aristotelicamente como imilatio
vitae,speculum consueludinis, imago verilatis, é justamente o efeito de deforma­
ção e inversão de casos retóricos produzido pelas misturas da sátira e da tra-
gicomédia que impede o reflexo anacrônico de tal espelho. Hoje, quando se
reflete sobre os costumes encenados na sátira, interpretando-os como realis­
mo, ignora-se a codificação retórica da mesma nos séculos X V I e X V I I .
Aristotelicamente mista, a sátira corresponde à mímesis como correção de ca­
sos retóricos, tratando-se sempre de mímesis fantástica que, ao propor a cari­
catura como ridículo por meio da elocução amplificada, também faz intervir
a voz grave que, com muito juízo, pondera o desacerto vicioso, recuperando-
o em chave moral ou política. Em outros termos, a mesma voz grave eviden­
cia para o destinatário a convenção da maledicência, insulto e deformação
aplicada ao satirizado. A codificação aristotélica permanece no século X V I I I
neoclássico, aliás, linearizando-se a disposição e aclarando-se a elocução:

[...] u m a e s t r i t a v e r o s s i m i l h a n ç a [...] n ã o é n e c e s s á r i a n a s d e s c r i ç õ e s d e s t a v a r i e d a d e
v isio n á ria e a leg ó rica d e p o e sia , q u e a d m ite to d o e q u a lq u e r d e sv a ir a d o o b je to q u e a
fa n ta sia p o s s a a p r e s e n ta r e m s o n h o s , e na q u a l b asta q u e o s ig n if ic a d o m o r a l sirva d e
c o m p e n s a ç ã o p a r a a i m p r o b a b i l i d a d e 15.

Ouiro exemplo são os nomes dos frades, convenção do insulto estudada no capítulo V: Frei Garrafa
(OC, II, p. 314); Frei Carqueja, Frei Sarna, Frei Bertoeja, Frei Pirtigo, Frei Burro de Lançamento,
Frei Jumento (OC, II, p. 319); Frei Azar, Frei Piorno (OC, II, p. 322); Frei Jalapa (OC, II, p. 323); Frei
Al 1X0 (OC, II, p. 323); Frei Fodcribus (OC, 11, p. 324); Frei Caziqui (OC, II, p. 325); Frei Porraz (OC,
II, p. 326); Frei Sovela (OC, II, p. 237); Frei Basilisco (OC, II, p. 339); Frei Fodaz (OC, II, p. 342); Frei
Ataganão (OC, IV, p. 805); Frei Alonturo ou Frade Cisco (OC, IV, p. 805); Frei Burro ou Frei Cavalo
(OC, IV, p. 806); Frei Bolório (OC, IV, p. 806); Frei Fustiga, Frei Fedor (OC, IV, p. 860) etc.
14, A citação paródica de Wordsworth é feita por John Harold Wilson, Coun Salires of lhe liestoraiion,
Columbus, Ohio University Press, 1976, p. IV. Cf. também Emanuele Tesauro, op. dl., p. 32: “Ou­
tras são as metáforas atrozes e sério-ridículas, que simultaneamente produzem riso e espanto,
quando algum fantasma horrível é fomentado pelo humor negro”.
15. Alexander Pope, The Temple of Fume (1715), cit. por William K. Wimsatt Jr. & Cleanth Brooks, op.
cit., p. 406.

295
A SÁTI RA E O E N G E N H O

O estilo baixo ou sórdido da voz fantástica não é apenas divertido, assim:


há um valor sério do ridículo e da maledicência propostos em chave moral.
Por isso, a sátira efetua tipos caricaturais, modelando-os por seleção e abstra­
ção de “realidades” de casos:

P ariu a s e u t e m p o u m c u co ,
u m m o n str o (d ig o ) in u m a n o ,
q u e n o b ic o era t u c a n o
e n o sa n g u e m a m a lu co .

( O C , I, p. 1 9 9 . )

Assim, a sátira mistura a origem de Câmara Coutinho, deformando-o


fantasticamente no tipo não-unitário como “corno”, “monstro”, “animal” (“Tu­
cano” é, aliás, o apelido do governador, segundo o motivo do nariz fálico),
“mestiço”. Simultaneamente, como contraste, intensifica de significação moral
positiva e grave a voz da enunciação, árbitro icástico da mistura:

O M i n i s t r o há d e se r são,
justo, e n ã o d e so b r ig a d o ,
há d e ter ó d io ao p e c a d o ,
e ao p e c a d o r c o m p a ix ã o .

( O C , I, p. 2 0 1 . )

Oscilando entre a referência do indivíduo e da espécie, entre a particu-


larização dos traços individualizantes e o tipo, a sátira deforma não segun­
do o que seu autor supostamente observa na empiria, mas segundo mode­
los ou paradigmas convencionados para a deformação que ele aplica: Câmara
Coutinho é bastardo, vilão, sujo de sangue, critérios fidalgos do insulto.
Abandonando a medida aristotélica proposta como decorosa e verossímil,
a desmedida das misturas aplica outro decoro, o da inverossimilhança que
sensibiliza o fingimento da indignação. A mesma desmedida é, desta ma­
neira, moldura ou palco para a encenação da medida. Neste sentido, a
metáfora aguda amplificada como hipérbole grotesca de ações e caracteres
é um elemento técnico para a fantasia poética efetuar o áprepon: na sátira,
a relação entre as imagens não corresponde à relação entre coisas, necessa­
riamente:

O lh o s c a g õ e s , q u e c a g a m s e m p r e à porta,
M e t ê m e s ta a lm a torta,
P r in c ip a lm e n te v e n d o -lh e s as vid raças

296
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O

N o g r o sseiro c a ix ilh o das couraças:


C a n g a lh a s, que form aram lu m in o sa s
Sobre arcos de p ip a s d u a s ventosas.

( O C , I , p . 1 5 6 .)

Antônio de Sousa de Meneses é produzido como misto, em imagens de


materiais (“vidraças”, “caixilhos”, “couraças”, “cangalhas”, “arcos de pipas”),
de vegetais (“saco de melões”), de animais (“ventosas”, “rocim das Alpujarras”,
“frisão”, “todo rabadilha”, “chato percevejo”, “Arenque de fumo”, “Badejo”,
“lampreia”) etc. Aristotelicamente, sua figuração não tem unidade, sendo
inverossímil. No caso, inverossímilprogramático, como figuração funcional de
misturas para o sarcasmo que o exclui da ordem humana quando o metamor-
foseiam em mistos irrepresentáveis numa forma unitária. A inverossimilhan-
ça das misturas é apta, no caso, para figurar a falta de unidade dos vícios. Sem
unidade, Antônio de Sousa de Meneses é vicioso, falso e tirânico. Esta não-
correspondência de imagens e coisas, que em outros gêneros é inépcia, na
sátira é apta segundo um fim:

T o le r a r e m o s c a v a lo s v o a d o r e s , c is n e s n e g r o s , h id r a s , c e n t a u r o s , h a r p ia s e sátiros;
p orq u e são m o n s t r u o s i d a d e s , r a rid a d es o u e n tã o fa n ta s ia s p o é t ic a s , c u ja s m o r a lid a d e s
i n d e c i s a s e v a g a s s e r v e m d c r e c o m p e n s a p a r a a s s u a s f a l s i d a d e s s u b s t a n c i a i s 16.

E que a sátira encontra a realidade não na empiria, mas nas convenções


da recepção, pautadas ora pelo juízo, ora pelo gosto, ou seja, na concordância
da recepção com a imagem caricatural que elabora, ao mesmo tempo em que
mantém em circulação o estereótipo de grupos, pessoas ou situações que cri­
tica. É esta imagem, que confere sempre a mesma incansável tipificação
deformante ao vilão, ao índio, ao negro, ao mulato, ao cristão-novo, ao frade,
à freira, à puta, ao sodomita etc., que é aceita pelo destinatário como conve­
niente para figurar o vício e o vicioso, não importa a inconveniência da sua
deformação. Ela é, por isso mesmo, verossímil17. Adiante se trata do misto
como formulação dessa inconveniência conveniente; antes, porém, é oportu­
no examinar outras convenções e outros procedimentos.

16. Sir Thomas Browne, Pseudodoxia F.pulemica (1646),\, 19, cit. por William K. Wimsalt Jr. & Cleanth
Brooks,op. cit., p. 405.
17. Wolfram Kròmer, Formas de Ia Narración Breve en Ias Literaturas Románicas Hasta 1700, Madrid,
Gredos, 1977, p. 87.

297
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Operando com protótipos1**, que efetuam uma distribuição pragmática


do ridículo e da culpa, a sátira produz a última como ausência de caráter
virtuoso, quando a convenção da caricatura é referida a pessoas e situações
diversas. Assim, a mesma metaforização e a mesma tópica do insulto são apli­
cáveis em diferentes ocasiões para produzir o mesmo vício criticável, por ve­
zes como encenação de um evento do referencial discursivo, outras sem que
tal ação apareça. O que pode tornar-se mais claro, supõe-se, quando se consi­
dera a ordenação hierárquica dos pecados sexuais: na sátira, circula o imagi­
nário cristão de um sexo natural anterior a qualquer prática, segundo o Di­
reito Canônico. Por isso, postula que é vergonhoso que homem se divirta com
mulher de maneira contrária à natureza - para tal situação dramática, corres­
ponde uma cena e tipificação grotescas19; se é mais vergonhoso o gozo solitá­
rio, amplifica-se a caricatura20; se é muitíssimo vergonhoso o coito contia
naturam em que homens se propiciam o gozo estéril num simulacro demonía­
co da morte da espécie no ato individual, as convenções da sodomia são
hiperbolizadas1819201; finalmente, se homem ou mulher se excitam com animais
ou com o próprio Demônio, o que é bestial, mais intensa é a anatomia do
vício22. Referidas a pessoas, tais situações dramáticas e tipificações grotescas
produzem, por exemplo, putas, masturbadores, sodomitas e bestiais, numa
gradação da culpa muito querida do Direito Canônico e da Inquisição23.
Em outros termos, a mistura monstruosa da sátira também quer, como
toda a arte seiscentista o quer, ser simultaneamente utile et dulci. Sua exagera-
ção fantástica, matéria de apreciação do gosto, que é vulgar e néscio24, visa
sempre o deleite do vulgo, que a mesma sátira despreza quando o efetua como
tema ou destinatário. Aristóteles propõe que o primeiro fim do poeta é o aplau­
so do público - a sátira sobredetermina o preceito, principalmente quando

18. Por exemplo, o frade sempre lascivo, avaremo, grosseiro e glutão; o |udeu sempre narigudo, hipó­
crita c usurário; o mulato sempre insolente, arrogante, desavergonhado; o negociante sempre ava­
rento, desonesto; etc.
19. Cf., por exemplo, OC, II, p. 387: "Passou o Surucucu / e como andava no cio, / com um e outro
assobio, / pediu a Luísa o cu: / Jcsu nome de Jcsu, / disse a Alulata assustada, / se você é cobra
mandada / que me quer ferir da escolta / dê uma volta, e na volta / poderá dar-me a dentada”. O
nome próprio "Surucucu” torna-se comum, “surucucu”, cobra óbvia.
20. OC, VI, p. 1335.
21. Cf. OC, I, p. 210, sobre a sodomia, invocando a Inquisição: “Conheça a Inquisição estas verdades".
22. Cf., no capítulo V, na tópica “Sexo”, análise de poemas que tematizam o coito com o Demônio.
23. Cf. Pierre Legendre, O Amor do Censor (Ensaio sobre a Ordem Dogmática), trad. Aluízio Menezes, M.
D. Magno c Potiguara Mendes da Silveira Jr., Rio de Janeiro, Forense Univcrsitária/Colégio
Freudiano, 1983, pp. 135 e ss.
24. No sentido comentado no capítulo I.

298
0 O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O

compõe a mistura para o vulgo como destinatário, levando a prescrição até o


inverossímil como incongruência ou mala affectatio para produzir o maravi­
lhoso. A mala affectalio ou incongruência é construída como mescla de
sinédoques e metáforas que, por pertencerem a campos semânticos dispara­
tados, não se ordenam como proporção numa única isotopia. Nela se dá uma
contrariedade no gênero das imagens, não se respeitando as diferenças espe­
cíficas que são condição de um conceito proporcionado ou da figuração orde­
nada: “Olhos cagões”. A incongruência produz hibridismos ou monstros poé­
ticos, juntando determinações distantes, inadequadas, heteróclitas. Embora
o procedimento da figuração seja posto a funcionar, não há especificação ou
especificidade na combinação dos termos, o que embaraça ou mesmo impede
a continuidade da compreensão harmônica do conceito representado. Classi-
camente, a incongruência é inépcia, pois o figurado passa violentamente para
o primeiro plano do discurso como exagero da elocução, enquanto a ordem
lógica da disposição das idéias fica obscurecida25. O que é defeito clássico,
contudo, é virtude na tragicomédia e na sátira: segundo os preceptistas do
século XVII, que falam da “política perfeição” da arte assim produzida para
efetuar o gosto pelo maravilhoso no público ignorante, erra quem pensa que
deixar de seguir regras nasce de ignorá-las26. A catacrese é programática: na
sátira, a falta de especificação ou especificidade na combinação dos termos é
específica do seu decoro, como se pode ler nos dois poemas atribuídos a
Gregório de Matos, que se dispõem paralelamente para que se observe a cons­
tância do procedimento:

Vá de retrato Vá de ap arelh o,
por consoantes, vá de p a in el,
que eu sou T im a n te s v e n h a u m pin cel
de u m n ariz de tu ca n o retratarei a C h ic a
p és de p ato. c seu b e sb elh o .

25. Cf. João Adolfo Hansen, Alegoria (Conslnição e Interpretação da Metáfora), São Paulo, Atual, 1986,
pp. 30 e ss.
26. Cf. Ricardo dc Tuna, Apologético de Ias Comédias Espanolas (1616), em F. S. Escribano & A. P. Mayo,
op. cil., p. 150: "Cuando por los espanoles fuera inventado este poema (tragicomédia), antes es digno de
alabanza que de reprehensión, dando por constante una máxima que no se puede negar ni cavilar,y es que
los que escriben es a fui de salisfacer el gusto para quien escriben, aunque echen de ver que no van confor­
me las regias que pide aquella compostura, y hace mal él que piensa que el dejar de seguillas nace de
ignoralias”.

2 99
A SÁTI RA E O E N G E N H O

P elo ca b elo É pois o caso


c o m e ç o a obra, q u e a arte o b riga,
q u e o t e m p o sobra q u e p in te a espiga
p ara p in ta r a g ib a da urtiga p r im e ir o
do ca m elo . e logo o vaso.

C au sa-m e en gu lh o A n egra testa


o p êlo un tad o, de cu iam b u ca
que de m olh ad o a p õ e tão cu ca,
p a r e c e , q u e sai s e m p r e q u e testa n a sce , e e m cu ia
de m erg u lh o . d esem b esta .

N ã o p in t o as faltas O s dou s o lh in h o s
d o s o lh o s b aios, c o m ser p e q u e n o s
q u e v e r s o s raios são d o is v e n e n o s,
n u n c a foram senão não do m esm o tam an h o
a c o u s a s altas. m a io rzin h o s.

M as a fachada N a r iz de preta
da so b ra n celha de cocras posto,
se m e a s s e m e l h a q u e p e lo rosto
a u m a negra vassoura anda sem p re b u scan d o,
esparram ada. o n d e se m eta .

N a riz de em b ono Boca sacada


c o m tal s a c a d a , c o m tal l a r g u r a ,
q u e entra na escada que a d en tad u ra
d u a s horas p rim eiro p a s s e i a p o r ali
q u e seu don o. d esencalm ad a.

N a r i z , q u e f a la B arbin h a aguda
lo n g e d o rosto, c o m o sovela,
p o is na Sé posto n ã o t e m o a ela,
na Praça m a n d a pôr m a s h e i m e d o à barba:
a g u a r d a e m ala. D e u s m e acuda.

M e m b r o d e olfatos, P esco ço lo n g o
m a s tão q u a d ra d o , S o c ó c o m s a ia ,
que um R ei coroado a q u e m d ã o vaia
o p o d e ter p o r c o p a n e g r o s , c o m q u e m se fa r ta
d e c e m pratos. de m ondongo.

T ã o tem erá rio Tenho chegado


é o tal n a r i z , ao m e u feitio
q u e p o r u m triz do corpo esguio,

300
0 ü RN ATO D I A L É T I C O F. A T I NTUR A DO MI S T O

n ão fico u can tareira chato de em b ig o ,


d e u m arm ário. e r g u i d o a c a d a la d o .

V ocê p erd o e, P eito lazeira


n ariz n e fa n d o , tã o d e r r i b a d o ,
q ue eu vou cortando, qu e é retratado
e in d a fica n ariz, ao p e it o c s p a ld a r
e m q u e se assoe. d e b a ix o da v isc ir a .

A o p é da altura J u n to às ca v ern a s
no n aso oiteiro, t e m as p e r n i n h a s
tem o send eiro , tão d e lg a d in h a s ,
o que a boca n asceu, e é n ã o se i, c o m o se tem
rasgadura n a q u e l a s p e r n a s [...]

V a m o s à g ib a : V a m o s ao s u n d o
m as eu q u e in tento, d e tão m a u jeito,
se n ã o s o u v e n t o q u e é largo, e estre ito
para p o d e r trepar d o ro sto e s tr e ito , e largo
lá t a n t o a r r ib a ? do profundo.

S em p r e e u in sisto , U m va so atroz,
q ue no h orizon te cuja portada
d e s te alto m o n t e é debruada
foi te n ta r o d ia b o com releixos na boca,
a Jesu C risto. co m noz.

( O C , I, p p . 2 1 9 - 2 2 1 . ) (O C , V, pp. 1119-

O mesmo procedimento pinta Câmara Coutinho, governador, e Chica,


puta, achando-se disseminado por toda a sátira atribuída a Gregório de Ma­
tos e Guerra27. Hiperbolicamente, as formas se autonomizam, ressaltando-se
o procedimento compositivo das misturas, como operação que aproxima di­
versas sinédoques extraídas de campos semânticos disparatados: “nariz de
tucano”, “pés de pato”, “giba de camelo”, “raios”, “vassoura”, “cuia”, “nariz
de cocras”, “sovela”, “socó com saia” etc. As formas disparatadas estão conti­
das num mesmo corpo: a fantasia poética encena a contrariedade entre o tipo

27. Cf., por exemplo, o retrato de Sousa de Meneses (OC, I, p. 155); o da puta Zabelona (OC, IV, p. 831);
o do vigário Antônio Marques da Perada (OC, I, p. 274); o do padre Dámaso da Silva (OC, I, p. 281);
oda negra como lancha e urca (OC, II, p. 380); o de Maria Viegas (OC, III, p. 571); o do letrado Fulano
Coelho (OC, III, p. 729); a descrição de uma boca larga (OC, V, p. 1097); o romance dedicado a Tomás
Pinto Brandão sobre uma mula e uma mulata (OC, V, p. 1113); a pintura graciosa de uma dama
corcovada (OC, V, p. 1265); a perfeição de uma dama pelos naipes da baralha (OC, V, p. 1274) etc.

301
A SÁTI RA E O E N G E N H O

representado e as várias espécies que nele se agitam e concorrem para deformá-


lo como monstro. Os corpos do governador e da negra são, assim, figuradamente
bestas, devido à incongruência das partes que os misturam, e também malva­
dos, porque efetuados como irracionais.
A utilidade das misturas decorre de que ensinam algo, com certeza,
tematicamente desenvolvido como “virtude” ou “bem comum da Repúbli­
ca”, ética ou política, mas ensinam também, como é próprio da arte seiscen-
tista, a encenação maravilhosa da convenção de seu funcionamento. Se o prazer
com os discursos é, aristotelicamente, prazer de uma aprendizagem adequa­
da a valores da opinião, a fantasia poética da sátira propõe não só o prazer de
uma aprendizagem como moral sentenciosa, mas também a aprendizagem
de um prazer28. Guarini, entre tantos, teoriza a utilidade da agudeza da fanta­
sia na comédia pastoral, agradável e lasciva:

[...] a f i n e d e p u r g a r e c o l d i l e t t o la m e s l i z i a d e g li a s c o l ta t o r i 29.

A deformação é palco da virtude, enfim, e se a ordem retórica da elocução


fantástica esmaga a ordem lógica da disposição congruente, de modo que a
livre associação das idéias pela analogia suplanta a repartição e ligação das
idéias congruentes, o público extrai prazer do discurso ao se tornar cúmplice
na fantasia proposta, agudo como ela ou observador do efeito maravilhoso
das misturas. Veja-se que, em ambos os poemas, a enunciação direciona o
destinatário para as regras que vão sendo aplicadas: “E pois o caso/que a arte
obriga”. Como pintura, o caso é desenvolvido segundo um eixo vertical,
comuníssimo no retrato, da cabeça para os pés: a cada segmento efetuado,

28. Cf. Guido Morpurgo-Tagliabue, “La retórica aristotelica e il Barocco”, em III Congresso
Internazionale di Studi Umanistici, Venezia, 15-18 giugno 1954, a cura di Enrico Castelli,Retórica
e Barocco. Atti, Roma, Eratelli Bocca Editori, 1955, p. 144.
29. Citado por Tagliabue, op. cit., p. 167. No século XVII, a “Mestizia” é reconhecida como o estado
natural do homem. Cf. E. Mâle, Vart religieux après le Concile de Trente, Paris, 1932, pp. 220 e ss. Cf.
G. B. Marino, Adone, VII: “Musica e poesia son due sorelle / Ristorairici delVafflite genti”, Cf. também
Jean Delumeau, El Catolicismo de Lulero a Voltaire, Barcelona, Editorial Labor, 1973. Assim, tam­
bém, a questão do delectare é dominante nas discussões dos preceptistas da poesia do século XVII.
Na França, por exemplo, Honoré d'Urfé escreve que a religião assumiu a função do docere; para
não ser de todo inútil, a poesia deve agradar: “[...] maintenant nostre Pocsie a pour bout essetitiel de
plaire, et par accideni de profiter. Mais nous qui par la grace de Dieu sommes en un siècle si riche de
Predicateurs, qui enseignenl si assiduellemenl les hommes dc toute qualilé, les retirem du vice et les poussent
à la vertu, nostre Poésie infailliblement demeureroil inulile si elle faisoil seulement profession d'mstruire",
em Yves Hersant, “Comique et pastoral”, V Convegno delia Società Universitária per gli Studi di
Lingua e Letteratura Francese, Bologna, 29-30 ottobre 1977, Forme dei Comico, Melodologie delia
Critica Lelteraria. Atti, Bologna, Patron Editore, 1979, p. 29.

302

2
0 O R N A T O D I A L É T I C O H A P I N T U R A DO A1ISTO

assim, a enunciação também efetua a expectativa do destinatário, conhece­


dor da convenção do gênero “retrato”.
Se a sátira é uma “concordante discórdia”, na expressão de Suárez de
Figueroa30, porque junta e deforma vários discursos, interpretando-os pela
virtude intelectual da prudência, ela o é, também, não só pelo tratamento
sério-cômico dos temas, mas pela própria orientação geral da poética da agu­
deza, que reduz os preceitos retóricos que regem a prática dos discursos
oratórios e poéticos à elocução - preferencialmente incongruente - em con­
flito ou síntese disjuntiva com a disposição.
Até o século XVI, pelo menos, a invenção (inventio) retórico-poética é um
conjunto de argumentos elencados em tópicas31 ou lugares-comuns propos­
tos na poesia conforme o gênero do discurso e outros critérios, como verossi­
milhança, clareza, adequação ao público etc. Os elencos da invenção formam
“argumentos opináveis” {endoxa) e verossímeis poéticos (eikona), cuja utili­
zação é prescrita como conveniente, desde que a tópica seja ordenada numa
disposição (dispositio) adequada. Classicamente, pois, a disposição do discur­
so subordina-se aoapium e ao juízo da recepção. Esta deve julgar, pela análise
da boa ordem sintática da disposição, o desenvolvimento decoroso do lugar-
comum tratado na obra particular. Desta maneira, a disposição do discurso
orienta-se primordialmente para a utilidade, adequando-se à recepção e ao
seu prazer. A utilidade é obtida pela subordinação das coisas da invenção (res,
endoxa, eikona) e das palavras da elocução (verba, ornamentos) à boa ordem
lógica das idéias, que efetua a clareza programática e a persuasão do público.
Aristotelicamente, a elocução (elocutio) do discurso não pode nunca prescin­
dir da disposição e autonomizar-se - a não ser em alguns gêneros restritos,
como o epidítico -, não só porque a pressupõe, mas também porque repete
seus processos. Lembre-se que todo discurso é metafórico, segundo o mesmo
Aristóteles32.
Tanto a tragédia quanto a comédia, por exemplo, devem ter a ação princi­
pal breve, não havendo possibilidade verossímil de solução de continuidade
entre o início da ação principal e seu término, ordenados seqüencialmente
segundo o verossímil e o necessário. Porque a disposição da ação é breve,

30. Suárez de Figueroa, Plaza Universal de Todas Ciênciasy Aries (1615), cit. por José Antonio Maravall,
La Cultura dei Barroco, 3. ed., Barcelona, Ariel, 1983, p. 325. Aplicada à sátira, a definição de
Figueroa é semelhante à do Doutor Johnson, que conceitua o wil dos poetas ingleses metafísicos
(“Discórdia concors, combinação de imagens dessemelhantes ou descoberta de ocultas semelhanças
em coisas aparentemente diversas"), Life of Cowley, cit. por Tagliabue, op. cit., p. 145.
31. Aristóteles, Retórica, Livro I.
32. Aristóteles, Poética; Retórica, passim.

303
A SÁTI RA E O E N G E N H O

contudo, prescreve-se como conveniente a interpolação regrada de ornamen­


tos - no caso, episódios - que a enfeitam e simultaneamente interrompem,
como intervalo regrado, para o prazer do público. Antídoto do tédio, o prazer
dos ornamentos deve ser momentâneo, porque apenas demonstra inépcia o
poeta que desvia a atenção para fábulas acessórias, perdendo o senso da me­
dida adequada da elocução. Genericamente, pois, para compor o poema, o
poeta seleciona temas de um elenco prefixado da tradição do gênero em que
escreve, ordena-os segundo uma disposição logicamente adequada, ornamen­
ta-os com ponderação.
Este funcionamento retórico da poesia antiga, descrito sumária e generi­
camente aqui, muda quanto à clareza e à congruência em fins do século XVI e
no século XVII, na poesia que hoje se conhece por “barroca”: o prazer do orna­
mento torna-se então central, o episódico passa a ser proposto como funda­
mental, a incongruência e a obscuridade se fazem programáticas. Em outros
termos, a elocução e seus ornamentos passam a preencher os lugares tradicio­
nais da invenção poética: a poesia passa a ser produzida como desenvolvi­
mento ornamental de ornamentos de base. Tornado “elocução engenhosa” ou
“ornato dialético”, na base do procedimento encontra-se o conceito, termo de
grande polissemia e várias aplicações, muitas vezes equivalente a agudeza,
argúcia, entimema, silogismo retórico, também nomes do efeito de maravilha.
Valoriza-se a elocução não pela simplicidade acessória de ornato, mas pelo
oposto, pela complexidade da relação imagem/conceito que produz um novo
conceito que, sendo também imagem, traduz muito indiretamente o concei-
to-imagem ou “definição ilustrada” inicial. O discurso é identificado à ex­
pressão figurada: a poesia “mostra”, pictórica e visualizante, porque é princi­
palmente imagem. Os temas são imagens de conceitos, ou seja, metáforas
tomadas ao pé da letra em infindáveis variações. A passagem da metáfora de
simples tropo de estilo para a base da representação poética visual e a explo­
ração das imagens assim obtidas tornam-se nucleares no conceptismo enge­
nhoso. A mesma semelhança sofre um deslocamento, nesta prática: de rela­
ção acessória de adequação mimética a um discurso próprio, passa a ser
operada como pano de fundo na teatralização dos discursos em que atua uma
produtividade imaginária aparentemente imotivada. O conceptismo - como
estilo poético ou subgênero ornado - é possível porque a metáfora é nele ope­
rada à maneira de um pensamento revestido como imagem antes da expres­
são: como uma imagem que é, ao mesmo tempo, discursiva e passível de re­
presentação visual33. Nele, a metáfora tende a autonomizar-se, tornando-se

33. Cf. Robert Klein, La forme ei 1’intelligible, Paris, Gallimard, 1970, p. 133.

304

d
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O

relação aparentemente arbitrária de imagens. Como na modernidade, tende


à representação da natureza da linguagem, negatividade e diferença: ao traba­
lhar a língua como matéria, a convenção artificiosa figura o mundo eclipsado
em dor e gozo. Diferentemente da modernidade, contudo, a metáfora
seiscentista postula unificação e unidade, dada a concepção neo-escolástica
que reinterpreta substancialmente o aristotelismo nela presente.
Nos séculos XVI e XVII, portanto, poetas e preceptistas hoje conhecidos
como “barrocos” passam a atribuir à dialética a função até então prescrita à
invenção retórica e seus lugares. Ao fazê-lo, a invenção deixa de ser, assim, o
que sempre fora, um sistema razoavelmente estável de elencos de argumen­
tos opináveis e verossímeis poéticos. Proposta como dialética, a invenção poé­
tica é uma aplicação, a qualquer argumento, de uma técnica da divisão dos
conceitos ou da análise ornada34. Lembre-se, por exemplo, que a poesia do
século XVII costuma propor a invenção também como exercício ou imitação
de gêneros e formas da poesia anterior e contemporânea, como composição
que junta analiticamente partes de outras obras, como é o caso dos inumerá­
veis centões que utilizam poemas de Camões, ou como técnica da alusão
intrincada, paródia ou burlesco, que também efetuam o declínio do heróico35.
Lembre-se também a hipervalorização da metáfora engenhosa pelo mais
aristotélico dos preceptistas do século XVII, Emanuele Tesauro36. Ao defini-la
como “mãe do engenho”, retomando e amplificando o que outros preceptistas
como Sforza Pallavicino, Matteo Peregrini e Baltasar Gracián doutrinam,
Tesauro a desloca de sua função tradicional de simples ornamento da dispositio
para matriz do engenho poético. Segundo sua concepção, que unifica a da
poética conceptista, a metáfora é dupla, pois operação do engenho, que apro­
xima e funde semelhanças num único gênero ou espécie comuns, e operação
do juízo, que divide e opõe as semelhanças em diferenças, oposições e antíte­
ses, quando as interpreta. Propondo-se a imagem poética como metáfora que
preenche os lugares tradicionais da invenção pela fusão e pela divisão de con­
ceitos, a poesia é produzida, como foi dito, como variação metafórica de me-

34. G. Morpurgo-Tagliabue, op. cit., p. 134.


35. W. K. Wimsatl Jr. & C. Brooks, op. cit., p. 263: “Se não era possível ser um Homero ou um Virgílio
inglês, ou mesmo traduzir adequadamente as obras sérias destes autores, podia, contudo, ter-se o
prazer de utilizar o seu vasto significado e a autoridade enorme de sua presença no espírito da
época para construir modelos mais pequenos [sic], quer no gênero do delicado rococó, quer no do
grotesco pungente. Pode ter sido um divertimento - a uma pessoa de alta posição a revestir-se de
uma máscara para a grande quermesse que é a vida de todos os dias - mas era um divertimento
astuto e poderoso”.
36. Emanuele Tesauro, “Trattato delia metafora”, op. cit., pp. 67 e ss., e Idea delle Perfetle Imprese, Testo
inédito a cura di Maria Luisa Doglio, Firenze, Leo S. Olschki, 1975.

305
A SÁTI RA E O E N G E N H O

táforas de base: como metaforização de metáforas propostas como frase fei­


ta3738.Como preferencialmente aproxima, divide e funde conceitos semelhan­
tes e extremos, a metáfora é semanticamente aguda e, geralmente, hermética:
a poesia funciona como “ornato dialético enigmático”.
Racionalidade figurai, o procedimento estruturante nuclear dessa poéti­
ca consiste em analisar metaforicamente a tópica da invenção e a ordem da
disposição, que são divididas, subdivididas e juntadas como metáfora silogís-
tica. A metáfora é “perfeita”, segundo Tesauro, quando funciona a simili ad
símile: por exemplo, assim como o ouriço tem espinhos, assim se têm armas
como ouriço; e, assim como os espinhos ferem de longe e de perto, assim
também as armas fazem sentir seu efeito a inimigos próximos e distantes. Tal
“silogismo poético” é uma indução, evidentemente, uma vez que nele não se
vê fingimento poético, mas simplesmente uma comparação. O conceito tor­
na-se poético quando se toma a coisa significante pela significada, de modo
que a coisa significante, suas paixões e suas propriedades sejam entendidas
como propriedades e paixões da significada, como escreve Tesauro em seu
Idea delle Perfette Imprese3S.
O conceito é, por exemplo, o gênero comum que reúne duas espécies de
conceitos aproximados por semelhança. Em outros termos, uma coisa pode
ser significada por três espécies de signos e de relações: por simples conven­
ção; por certa conexão de inclusão ou sinédoque entre a coisa significante e a
significada; e por semelhança entre elas. Pela simples convenção, fala-se da
conexão arbitrária entre signos sem relação, a não ser a da convenção. Por
exemplo, a pena à direita ou à esquerda significa a facção dos guelfos ou dos
gibelinos; um traje vermelho, a guerra; etc. Muito corrente, é o caso das “me­
táforas fósseis”, como “cristal”, que significa qualquer coisa lisa, transparen­
te ou líquida: água, mar, céu, espelho, rosto, colo, olhos etc. Quanto à segunda
relação, é a de duas ou mais coisas que não têm semelhança entre si, mas que,
por alguma razão, podem juntar-se num gênero comum, como causa, instru­
mento, conseqüência, hábito etc. Por exemplo, certas sinédoques alegorizantes,
como a espada pela guerra, a pena pela doutrina, o arado pela agricultura etc.
A terceira relação é a de duas coisas semelhantes entre si, ambas físicas, ou

37. \X'. K. Wimsatt Jr. & C. Brooks, op. cit., p. 282: “Uma expressão, em determinada altura metafórica,
como ‘chama' de amor, vem a transformar-se em frase feita; assume um sentido firme e autorizado,
se bem que não intensamente realizado. Num estádio final 'chama' de amor vem a significar uma
coisa sem qualquer relação com ‘chama’ proveniente de combustão, e não se torna de modo algum
necessário pensarmos nesta última quando nos referimos à primeira”.
38. Emanuele Tesauro, “Che questo segno é per modo di poético sillogismo”, em Idea delle Perfeile
Imprese, op. cit., pp. 47-48.

306
O 0 RN ATO D I A L É T I C O F. A P I N T U R A DO M I S T O

uma física e a outra moral, ambas animadas, ou uma animada e a outra inani­
mada etc. Voltam aqui o ouriço e seus espinhos, comparáveis a um soldado e
suas armas etc. Tais espécies de signos dão origem a três famílias de metáfo­
ras: a primeira, quando convencionalmente se toma um signo por outro; a
segunda, que fundamenta metáforas de atribuição por vezes bastante vagas -
veja-se um exemplo do mesmo Tesauro: “[...] un altropinse unagravida elefante
col motlo CITIUS PARITELEPHAS per riprender la lentezza d’un capitano nelle
militari sue imprese"09. A terceira, enfim, é a relação baseada na semelhança,
aristotelicamente proposta3940.
A semelhança que permite substituir signo por signo pode ser de duas
espécies: a de duas coisas que participam numa única forma, chamada “uní-
voca”; a de duas coisas que não têm uma forma comum, mas duas proporcio­
nalmente semelhantes. Em outros termos, a primeira semelhança é a de duas
espécies de um gênero comum; a outra, a de duas de gênero diverso. Da pri­
meira, por exemplo, têm-se coisas diferentes em essência, mas semelhantes
entre si segundo uma propriedade comum: o lírio e a neve, segundo a brancu­
ra. Ou o fogo e o amor, porque aquele é fisicamente impetuoso e este o é
moralmente. Pela primeira espécie de semelhança, pois, transfere-se espécie
a espécie: fala-se da neve como “lírio do inverno”, do lírio como “neve do
prado”, ou do rosto como “lírio”, “neve”, “alabastro”. São as segundas, contu­
do, que exigem maior engenhosidade, pois aproximam duas coisas diversas,
dando muito prazer ao destinatário quando este é capaz de entender as ope­
rações do engenho que condensa duas coisas bastante distantes, Por exemplo,
“maio” e “serpe”, num verso como “a serpe / é maio errante de torcidas flo­
res”, de Manuel Botelho de Oliveira41.
Metáfora construída como transferência de espécie a espécie ou de gêne­
ro a gênero, o conceito é um ato do entendimento, segundo Gracián. O enten­
dimento é mesmo a principal potência do artifício de aproximar e condensar
os mais diferentes objetos. É a dialética que atende a tal conexão do entendi­
mento para formar um argumento ou entimema. Em outros termos, o concei­
to é também um artifício, como quer Gracián, ou “ornato silogístico”: uma
primorosa concordância ou harmônica correlação entre dois ou três cognos-
cíveis extremos que se expressa em um ato do entendimento. A definição de
Gracián só dá conta, evidentemente, do conceito unívoco: a “harmônica cor-

39. Idem, p. 52.


40. Aristóteles, Retórica, 3, 10.
41. Manuel Botelho de Oliveira, Música do Pamasso, Prefácio c organização do texto por Antenor Nas­
centes, Rio de Janeiro, MEC/INL, 1953, tomo I, p. 16.

307
A SÁTI RA li O E N G E N H O

relação”, nome do procedimento sintático da transferência de signo a signo,


faz entrever a clareza de seu investimento semântico. Vários outros são
factíveis, contudo, principalmente quando se leva em conta que os conceitos
aproximados são de preferência extremos. Afinal, “é do poeta o fim a maravi­
lha”, como o hipérbato de Marino teoriza. Pela aproximação e fusão de con­
ceitos extremos, a poesia da agudeza opera com procedimentos rigidamente
regrados, até mecânicos, para produzir conceitos engenhosamente incon­
gruentes, cujo efeito de sentido é o maravilhoso.
Entre as metáforas, prefere-se a “metáfora de proporção”, pela qual, por
exemplo, “o copo é o escudo de Baco”, assim como “o escudo é o copo de
Marte”, como se lê na Poética. O aristotelismo permite a regulação técnica da
metáfora no século XVI e, por extensão, no XVII, pois postula que:
a) a expressão metafórica imita as articulações do pensamento, que são as
da coisa. Assim, a formulação metafórica admite uma lógica do conceito, ope­
rada dialeticamente como classificação, definição, divisão, subdivisão etc.;
b) a invenção e a representação poéticas refazem o conceito em uma ma­
téria, de modo que o processo fundamenta uma técnica de produção de ima­
gens, metáforas e alegorias. Como o conceito a ser figurado é, antes de tudo,
um pensamento, a metáfora (a elocução) torna-se invenção, ou seja, uma
técnica artística de dar forma a um pensamento em uma matéria por meio de
imagens.
Desta maneira, o procedimento geral da poética conceptista baseia-se
nos seguintes pressupostos: a invenção é um produto do pensamento; a imi­
tação de modelos artísticos é um instrumento da invenção; a arte é o ato da
execução4’. A sátira opera, como a poesia conceptista de outros gêneros ope­
ra, como “ornato dialético”43. É oportuno, por isso, discuti-lo genericamente,
para determinar seu funcionamento específico nela.
Quando se escreve que a poesia conceptista funciona como “ornato
dialético”, afirma-se que seu principal procedimento estruturante consiste
na análise da tópica da invenção e de sua disposição sintática, que as divi­
de e subdivide como metáfora silogística. Em outros termos, como gênero
que reúne em seu conceito duas espécies de conceitos aproximados por
analogia:

O engenho natural é uma maravilhosa força do Intelecto, que compreende dois


naturais talentos: PERSPICÁCIA e VERSATILIDADE. A perspicácia penetra nas mais

42. Cf. Robcrt Klein, op. cit., p. 137.


43. Guido Morpurgo, Tagliabue, »/>. cit., p. 151.

308

J
0 ORNATO D 1 A L K T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O

distantes e diminutas circunstâncias de cada assunto, como Substância, Matéria, For­


ma, Acidente, Propriedades, Causas, Efeitos, Fins, Simpatias, os semelhantes, o Con­
trário, o Igual, o Superior, o Inferior, as divisas, os Nomes próprios e os Equívocos; e
estas coisas jazem em cada assunto cnovcladas e ocultas [...] A versatilidade velozmcntc
confronta todas essas circunstâncias entre si, ou com o assunto: junta-as ou divide-as;
aumenta-as ou diminui-as; deduz uma de outra, mostra uma pela outra, e com maravi­
lhosa destreza coloca uma no lugar da outra, como os jogadores'1'1.

A mesma operação metafórica de aproximação e fusão de conceitos tam­


bém prevê, portanto, a antítese silogística, cujos termos opostos são as duas
espécies metafóricas de conceitos extremos em busca de um gênero comum
que os integre, produzindo a maravilha: como “ardor” e “pranto”, remetafo-
rizados como “incêndio” e “mares”, misturados e opostos como “neve arden­
te” e “chama fria”, recuperados no gênero comum “paixão erótica”. Do gênero
metafórico para suas espécies metafóricas antitéticas ou destas para o gênero,
do todo para as partes ou destas para o todo, o procedimento atuante na divi­
são - seja como engenho natural, exercício ou furor - é sempre a agudeza ou
argúcia. Ela é simultaneamente dialética, como técnica da análise das partes e
oposição das partes divididas e subdivididas, e retórica, como técnica da sín­
tese da metáfora e suas espécies45.
Se a agudeza faz com que sempre se ressalte o caráter ornamental e acu­
mulado das composições ditas “barrocas” - por exemplo, na forma da sua
crítica anacrônica e moralista como “jogo de linguagem”, “formalismo”, “fu­
tilidade”, “angústia” é útil lembrar que nela também atua o culto dialético,
de matriz aristotélico-escolástica, da divisão e da subdivisão das tópicas da
invenção e da disposição. Extremamente analítico, ele é base do intelectua-

44. E. Tesauro, op. cil., p. 26. Tesauro aproxima a prudência do engenho, distinguindo-os: o engenho é
mais perspicaz, veloz, considera a aparência, tem por fim a admiração e o aplauso (deleclare). A
prudência é mais sensala, lenta, considera a verdade, tem por fim a própria utilidade (prodesse). A
fusão de engenho e prudência define, pois, o tipo do discreto presente na sátira como árbitro do gosto
e iuiz dos vícios.
45. G. M. Tagliabue, op. cil., p. 137. Tesauro propõe oito espécies de metáforas em II Cannoechiale
Aristotelico, p. 79:
1. De semelhança Homo quadralus
2. De atribuição Regnal Gladius
3. De equívoco Ius Verrinum, malum
4. De hipotipose Ponlem indignalus Araxes
5. De hipérbole Insiar monlis equus
6. De laconismo Carpathii leporem
7. De oposição Mens amem
8. De decepção Vale apud Orcutn

309
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

lism o con ceptista46, sendo redutor entendê-lo apenas com o “ ornato” , no sen­
tido que se dá ao term o em expressões com o “ excesso de orn am en tação” , que
ju lgam o conceptism o neoclassicam ente.
D ialé tica e retórica, lógica e ornam ento, a n álise e síntese, d isp ersão e
integração, a agudeza posta a fu n cion ar na poesia conceptista consiste, por
exem plo, em d iv id ir a peripécia poética que está sendo narrada em várias
sub-ações ep isód icas, tradu zidas com o m etáforas que, por sua vez, são su b d i­
vid id as e recategorizadas m etaforicam ente, eviden cian do-se a elocução como
nuclear. O poem a com põe-se, desta m aneira, com o p o litem atism o m etafóri­
co, espécie de retom ada bin ariam en te estru tu rada d as v á ria s p erspectivas si­
m u ltâneas da poesia do conceito engenhoso - por exem plo, a de G óngora -
com o reciclagem do ut pictura poesis horaciano. A cessó ria na poesia antiga,
aqui a elocução é p rin c ip a l, com o se escreveu: os lu gares da invenção são
ornam entos a serem ornam entados47. Veja-se exem plo:

Ardor em firme coração nascido;


Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:
Tu, que em um peito abrasas escondido;
Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo, em cristais aprisionado;
Quando cristal, em chamas derretido:
Se és fogo, como passas brandamente?
Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!
Pois para temperar a tirania,
Como quis que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria.
(OC, III, p. 671.)

O gênero com um é “ paixão erótica” , divid id o em duas espécies m etafóri­


cas disp ostas sim etricam ente com o antíteses. “A m o r” , por exem plo, é paixão

46. G. M. Tagliabue, o p . c i t . , p. 137.


47. Cf. Robert Weimann, “Metaphor and Ilistorical Criticism”, em S t r u c l u r e a n d S o c i e t y i n L i t e r a r y
H i s t o r y ( S t u d i e s i n t h c H i s t o t y a n d T h e o r y o f I l i s t o r i c a l C r i t i c i s m ) , expanded edition, Baltimore/London,

The Johns Hopkins University Press, 1984. As excelentes conceituações de Weimann permitem
afirmar que a qualidade metafórica da poesia seiscentista, mais que simples ornamentação do
discurso, é um agente do seu modo social de ser. Assim, a metáfora é tanto um processo retórico
quanto um modo histórico de conceber e interpretar a história. Cf., por exemplo, p. 186.

310
0 O R N A T O D I A L É T I C O K A P I N T U R A DO M I S T O

e faz sofrer, tendo-se duas categorias aristotélicas da “perspicácia” dialética:


ação e efeito. Como resultado da divisão conceituosa, um termo metafórico
como “logo” substitui o significado da ação ardorosa; outro termo metafóri­
co, como “água”, equivale ao efeito da paixão. Tem-se uma primeira divisão:
Paixão = ação e efeito; uma primeira metaforização: Paixão = ardor (fogo) e
pranto (água)-, e também uma primeira oposição: Paixão = / = fogo =/= água.
A mesma divisão produz oposições semânticas passíveis de ser exploradas:
“fogo” = /quente/, /seco/-, "agua” = /frio/, /úmido/; etc. Dispostas simetrica­
mente no enunciado, as metáforas efetuadas funcionam como matrizes de
subdivisões engenhosas, que as substituem por outras metáforas cada vez mais
distantes, como amplificação, mantendo-se sempre, porém, a relação analógica
de substituição e de oposição semântica. Em outros termos, o procedimento é
sintético e analítico, “ornato dialético”, de efeito pictórico. Tem-se, nele, algo
“maravilhoso”, segundo os seiscentistas: semanticamente opostas, metáforas
como “fogo” e “água” são formalmente equivalentes, pois se definem por uma
relação comum, que é a própria diferença que as faz metáforas. É a equiva­
lência formal que faculta o jogo engenhoso da diferença como equivalência
semântica que produz os efeitos de contradição ou contrariedade, incongruên­
cia e maravilha na recepção. Efeito evidenciado como efeito: a própria técnica
da “disseminação e coleta”, ou seja, da divisão, figuração, substituição e opo­
sição de uma metáfora pelo texto todo por outras metáforas, e de sua repetição,
geralmente no último verso, ora como semelhança, ora como oposição, forma
um diagrama das operações do engenho, no poema. Ele mesmo, enquanto
diagrama, é ordenado como quiasma, dando-se a ver como procedimento téc­
nico encenado. Assim, no poema acima, a cerrada isotopia metafórica forma
antíteses desdobradas em metáforas de metáforas, cujo efeito maravilhoso é o
da passagem contínua de um oposto para dentro de outro, ao mesmo tempo
em que se mantêm rigidamente separados no exagero da amplificação. Muito
aplicado e banalizado em mil e outros poemas semelhantes do século XVII e
das Academias do século X V III, o procedimento evidencia-se na disposição
simetricamente cruzada dos termos, de modo que a articulação sintática vai
predicando as operações do engenho que joga com equivalências e oposições
como ornato dialético. O procedimento da elocução evidencia-se, assim, não
como técnica clássica de ornamentar um discurso próprio, mas como opera­
ção dominante, que se dá a ver como encenação da convenção retórica. O que é
também claramente legível, por exemplo, nas interrogações da enunciação
no primeiro terceto ou no verbo “temperar”, do verso 12, que interpreta a
mistura que o poema realiza em vários níveis, repropondo-a misturada quan­
do, nos dois versos finais, inverte-se a posição das metáforas. Como a substi­

311
A SÁTI RA E O E N G E N H O

tuição e a oposição metafóricas são continuadas, tem-se uma alegoria que se


enquadra classicamente na mala affectatio ou incongruência, pois formula­
ções como “rio de neve em fogo convertido”, “incêndio em mares de água
disfarçado”, “neve ardente”, “chama fria” etc. afastam-se dos opináveis, não
sendo verossímeis. Metáforas de metáforas, dão-se como simulacros, uma es­
puma de linguagem cujo sentido é também o diferencial do sentido, seu
inexpresso, “anais diáfanos do vento”, para citar um poeta maior, Góngora48.
O longo poema de 106 estrofes cuja didascália é “Torna o poeta a dar
outra volta ao mundo com esta segunda crisi” (OC, II, pp. 476-511) permite
observar o procedimento articulado macro-estruturalmente, em termos de
disposição, como silogismo retórico ou entimema. As estrofes, de nove versos,
narram peripécias variadas, dispondo-se binariamente, eufórica a estrofe
ímpar, disfórica a estrofe par, como uma dramatização de vozes dissonantes
cuja matriz é a diatribe cínico-estóica. Como tópicas ou lugares-comuns ob­
jetos das vozes divergentes, têm-se, entre outros: a ausência da justiça, a
corrupção do dinheiro, a nobreza do homem pobre, a estupidez, a usura, a
crítica do culteranismo, a dissimulação etc. Assim, as ações narradas na es­
trofe 1 (e em 3, 5, 7,9,11,..., 105) iniciam-se sempre por optativo: “Que ande
o mundo mascarado”, “Que hajam turcos belicosos”, “Que tantas almas pere­
çam”, “Que muitos salvar-se esperem”, “Que os consoantes se acabem”. O
optativo, índice forte da enunciação, estabelece imediatamente o destinatá­
rio como árbitro da hipótese desenvolvida e julgada a seguir, nos restantes
versos da estrofe. A ação é desenvolvida até o quarto verso, aliás, quando ou­
tra ação, da mesma personagem ou de outra, é introduzida através da mesma
fórmula: “que nenhum desenganado”, “que não se juntem zelosos”, “que
muitos não se ofereçam”, “e que jamais considerem”, “que as cousas, que

48. Cf. João Adolfo Hansen.op. c i t . , pp. 33-34. Cf. também Rosemond Tuve,E U z a b e t h a n a n d M e t a p h y s i c a l
I m a g e r y . R e n a i s s a n c e P o e t k a n d T w e n l i e t h - c e n t u r y C r i l i c s , Chicago, 1947, pp. 43 e ss.: “ T h e e a r lie r

a u t h o r ’s s u b j e c t w a s d i f f e r e n t , h m o e v e r s i m i l a r h i s s t u f f ; h i s s u b j e c t w a s s t i l l 'h is m e a n i n g ’, n o l ‘h im s e lf-

s e c in g iT . O n e f i n d s lh e c h o ic e o f im a g e s m a d e u p o n d iffe r e n t g r o u n d s , a n d th e ir s tr u c lu r a l f u n a io n

d i f f e r e n t l y a f f e c l i n g t h e i r n a t u r e [ ...] T h e m e a s u r e o f l h e d i f f e r e n c e is l h e s t r i c t l o g i c a l c o h e r e n c e o f D o n n e ’s

im a g e s . T h is d o e s n o l m e a n t h a i lh e im a g e s a r e n o l s e n s u o u s ly v i v i d ; o n ly l h a l th e y a r e n o l p r im a r ily s o .

E a c h i s c h o s e n a n d p r e s e n t e d a s a ‘s i g n i f i c a m ’ p a r i o f a n o r d e r e d p a i t e r n [ . . . ] . ”

A conceituosidade seiscentista é, enfim, programaticamente aguda, semamicamente incongruen­


te, mas de uma incongruência operada logicamente, como padrão distintivo dos “melhores” c a p a ­
zes de produzi-la e de entendê-la, É também, no século XVII, linguagem híperurbana e pedante de
burgueses arrivistas. E, ainda, segundo outra adequação “pedagógica”, linguagem apta p a r a a f a n ­
tasia poética fornecer ao vulgo divertimentos fantásticos, grotescos e brilhantes, que aparentemen­
te não seguem regra alguma, “política perfeição”, no dizer de Tirso de Molina.

312
0 ORNATO D l A L K T I C O H A P I N T U R A DO MI S T O

aqui não cabem”. Montadas as duas séries de ações que mantêm relação de
especularidade enquanto figuram costumes, eventos, atos nem sempre virtuo­
sos, mas passavelmente veniais, a estrofe é sintetizada pela voz “exterior” da
enunciação que, algo cúmplice, julga o que foi dito e conclui com o refrão:
“Boa história”.
As estrofes pares, iniciadas todas pela adversativa “mas”, índice da
enunciação negativa, propõem-se como comentário antitético dos mesmos te­
mas tratados positivamente nas estrofes ímpares: “Mas que alguns queiram
viver”, “Mas que hajam com mais extremos”, “Mas que muitos professores”,
“Mas que quando alguns resolvam”, “Mas que eu fizesse hoje estudo”. Sime­
tricamente às ímpares, as estrofes pares retomam o caso e o redefinem, desen­
volvendo uma ação nos quatro primeiros versos, interrompidos por pausa con­
clusiva seguida de novas ações que ou retomam o tema ou introduzem outro,
como comentário dos quatro primeiros versos. Da mesma forma que nas es­
trofes ímpares, as pares arrematam com refrão - “Boa asneira” comentário
disfórico da enunciação. Vejam-se, por exemplo, as quatro primeiras estrofes:

1 Que ande o mundo mascarado


jogando conosco o entrudo,
e que cada qual sisudo
ande atrás dele esgalgado!
que nenhum desenganado
este patifão conheça,
que lhe quebre a cabeça
para ter dele vitória!
Boa história.
2 Mas que alguns queiram viver
vida tão bruta, e fera,
como que se não houvera
mais que nascer, e morrer:
que estes mesmos queiram ser
tão nobres, tão absolutos,
como desbocados brutos
correndo pela carreira!
Boa asneira.
3 Que hajam turcos belicosos
filhos da perversidade,
havendo na cristandade
Monarcas tão poderosos:
que não se juntem zelosos
para prostrar seus furores,

313
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O

mandando-se embaixadores
de eloqüência persuasória!
Boa história.
4 Mas que hajam com mais extremos
entre cristãos batizados
sacrílegos, renegados,
ímpios, judeus, e blasfemos:
que algum cristão (como vemos)
dos tais seja muito amigo,
tendo tão grande perigo
dc pagar-se-lhe a manqueira!
Boa asneira.
(OC, II, pp. 476-477.)

Tem-se, desta maneira, um sistema de intertradução metafórica: relação


de dois grupos de versos em cada estrofe, como amplificação ou redundância
metafórica; relação do refrão “Boa história” (ou “Boa asneira”) com o conjun­
to da estrofe em que comparece; relação de refrão a refrão, “Boa história” e
“Boa asneira”, como oposição; e relação de estrofe ímpar e par. A extrema
redundância do procedimento, invariável nas 106 estrofes do poema, é com­
pensada de certa forma pela variedade de situações, tipos e ações - o que é
correto quanto aos enunciados, não quanto à enunciação, pois a mesma re­
dundância recupera todas as diferentes versões da “volta ao mundo” num
único par antitético: “Boa história” x “Boa asneira”, formulado como juízo da
voz enunciadora. A grande movimentação do poema, derivada da contínua
tradução de partes por partes, de todo por parte e de parte pelo todo, está
prefixada: cada conjunto de estrofe ímpar e par (1 e 2; 3 e 4, ..., 105 e 106)
forma uma pequena alegoria moral em que situações e tipos metaforizam
uma divisão ideal, operada pela enunciação, do mundo em bons e maus. Por
isso, da relação entre a estrofe 1 e a estrofe 2, integradas pela enunciação dos
refrões “Boa história” e “Boa asneira”, tem-se um terceiro termo, que só é
dado na relação: encenação de lugar de total visibilidade, ponto ideal de ob­
servação em que age a prudência, ou o juízo, que pondera racionalmente. As
ações que a sátira narra são condensadas por metáfora cuja função é definir o
sentido dos tipos e das situações, enfim: “Boa história”, “Boa asneira”. Bina-
riamente, na relação de oposição contínua, as expressões metafóricas formam
antíteses que, por sua vez, são unificadas por outra metáfora interpretante, a
do lugar racional e judicioso da enunciação capaz de dar mais outra volta ao
mundo. Em outros termos, disseminação e coleta generalizadas que lembram

314

A
O ORNATO D IALÉTICO E A PINTURA DO M ISTO

o claro-escuro pictórico: diferenças formam semelhanças ou vice-versa, para


alegorizar um gênero ou identidade que as absorve a todas.
Outro bom exemplo da difusão seiscentista desse procedimento de divi­
dir, nomear, integrar, nomear, redividir, nomear e reintegrar num termo au­
sente, que é inferido apenas por meio da relação dos elementos divididos e
integrados, é o proposto por Morpurgo-Tagliabue sobre o Adone, de Marino.
Depois de narrar várias peripécias de seu herói, Marino faz que um javali
entre no cio quando uma flecha de Adone o atinge. Flecha amorosa, retirada
da aljava de Eros, como convém à ambigüidade erótico-obscena “barroca”.
Vendo Adone, que foge, enquanto o vento estrategicamente traiçoeiro lhe le­
vanta as vestes e desnuda-lhe a coxa sempre mais branca que a metáfora “neve”,
o javali amoroso precipita-se para beijá-la e, porco que é, morde-a:

Dal fier dente la stampa entro vi impresse,


vezzi fu r gli uni. A tti amorosi e gesli
no gli insegnò natura altri che questi49.

Como deseja Tagliabue, o que parece uma cena sádica e pornográfica - e


que não parece, pois o é - resolve-se silogisticamente como gosto da miniatu­
ra pictórica, conclusão condensada que surge como comentário dos contrários.
O contraste epigramático de “beijo” e “mordida”, duas espécies de conceitos
eróticos propostos por antítese, como os conceitos políticos de “Boa história”
e “Boa asneira” do poema atribuído a Gregório de Matos, é reduzido à unida­
de metafórica de um gênero comum que os funde numa conclusão que prova
sem provar, pois é apenas um entimema verossímil, efeito da analogia dos
termos opostos. Todos os incidentes da peripécia revelam-se aspectos episó­
dicos de um único valor genérico, “paixão erótica” em Marino, “prudência
política” em Gregório, alegoricamente.
Lembre-se uma vez mais que, aristotelicamente, define-se a metáfora
como entimema50, termo que designa ora o argumento, ou seja, a coisa (res)
utilizada para provar outra, ora sua elocução (verbum, palavra ou tropo). O
entimema opera, geralmente, por uma proposição seguida imediatamen­
te da sua prova, sem uma das premissas, como um silogismo incomple­
to51. Também procede - caso dos exemplos de Marino e de Gregório - por ter-

49. Cf. G. M. Tagliabue, op. cil., p. 165.


50. Aristóteles, Analíticos, I; Retórica, passim. Cf. também Quintiliano, Inslilulio oraloria, V, 10; V, 14.
51. Quintiliano dá como exemplo um discurso de Cícero no Pro Ligaria: "A causa então era duvidosa
porque, em cada uma das partes, havia algo de provável; agora se deve julgar como a melhor aquela
que também os deuses favoreceram”. Cf. Quintiliano, Jnsiinuio oraloria, Paris, Garnier, s/d., V, 14,
p. 263. Cf. ainda límanuele Tesauro, “Trattato delia metafora”, op. dl., pp. 67-68: “E questo ò quel

315
A SÁTI RA K O ENGHNI I O

mos incompatíveis, forma que, segundo alguns retores, é a única própria dele.
Retomando Aristóteles, Cícero e Quintiliano, os seiscentistas os radicalizam
binariamente: a agudeza é silogístico-retórica, como escreve Quintiliano, ou,
como já escrevera Aristóteles, ao tratar da astéia, a formulação brilhante pró­
pria do discurso civil. Ela é técnica da análise que divide e subdivide o tema
em várias peripécias e cenas, fazendo com que razões e provas se relacionem
continuamente, deixando a conclusão para o destinatário agudo. Ao mesmo
tempo, técnica da elocução metafórica dos termos analisados, que faz pictóri­
cas, muito plásticas, as oposições e fusões da divisão: por meio de antíteses,
“beijo/mordida”, e metáforas, “paixão”. A metáfora funciona, assim, como sig­
no da operação que opõe para condensar, ou entimema, signo de uma conclu­
são verossímil: “beijo” x “mordida” = /paixão/.
A operação dialética da análise dos conceitos é virtualmente ilimitada e
abre a poesia para uma contínua experimentação metafórica de outros e ou­
tros conceitos relacionados ao argumento da tópica que é desenvolvida por
meio da mesma analogia que opera a divisão em espécies, gêneros etc. Isto
pode esclarecer - em termos de disposição - a redundância da poesia seiscen-
tista, ao mesmo tempo muito variada e tautológica. O procedimento é bas­
tante usual nos sonetos ditos cultistas, que vão sempre dizendo a mesma coisa
com novos conceitos sinônimos produzidos como subdivisão de uma metáfo-
ra-matriz - o que, fático, efetua uma mantida preterição do sentido. Exem­
plar é o soneto referido há pouco, “Ardor em firme coração nascido”. O mes­
mo procedimento de preterição derivada da análise contínua da disposição
permite encenar poemas jocosos, como burlas, variações irônicas da diatribe.
Veja-se, por exemplo, o soneto dedicado ao Conde da Ericeira, Dom Luís de
Meneses, feito como imitação de Lope de Vega:

Um soneto começo em vosso gabo;


Contemos esta regra por primeira,
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.
Xa quinta torce agora a porca o rabo:
A sexta vá também desta maneira,
Na sétima entro já com grã canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.

veloce e facil ínsegnamento da cui nasce il diletto, parendo alia mente di chi ode vcdere in un
rocabolo solo un pien teatro di meraviglie".

316
O ORNATO D IALÉTICO E A PINTURA DO M ISTO

Agora nos tercetos que direi?


Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,
Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.
Nesta vida um soneto já ditei,
Se desta agora escapo, nunca mais;
Louvado seja Deus, que o acabei.
(OC, I, p. 141.)

A sátira costuma jogar, aliás, com o procedimento de dramatizar a mes­


ma divisão de um conceito, figurando-o de modo diverso e sinônimo em cada
nova divisão com efeito irônico. Embora o discurso figurado “ande”, como
encadeamento seqüencial, não avança o tema reiterado nos sinônimos, que o
acumulam. O descompasso é cômico, porque produz desarmonia por meio da
acumulação apta para caracterizar tipos viciosos que, por definição, são de-
sarmônicos e cômicos. Antes de tratar de outras técnicas, é oportuno discutir
rapidamente o limite da experimentação metafórica referida.
Nas discussões poéticas do século XVII, é sempre presente a questão da
proporção, ou relação, que estabelece o nexo analógico entre dois conceitos
mantendo-se verossímil. Como os restantes preceptistas, Gracián propõe a
proporção como relação simétrica, metafórica e antitética, de dois conceitos
extremos: “[...] harmônica correlação entre dois ou três cognoscíveis extre­
mos, expressa por um ato do entendimento”52. Quando Manuel Botelho de
Oliveira escreve, no exemplo referido de Música do Parnasso, que “a serpe” é
“maio errante de torcidas flores”, aproxima réptil e tempo, através da analo­
gia de /cor/ e /movimento/. Tal harmônica correlação ordena os conceitos
segundo categorias aristotélicas - substância, quantidade, qualidade, ação,
paixão, relação, lugar etc. O cânone de termos assim repertoriados em vários
elencos metafóricos divididos e subdivididos integra-se com outro, que facul­
ta outra divisão e a continuidade do procedimento. Vejam-se os exemplos
que Tesauro fornece como receitas para alegorizar o eco. Inicialmente, divi­
são e oposição deposilivo e negativo:

É uma alma inane, ao mesmo tempo muda e eloqüente, que fala sem língua; ho­
mem e não homem, que forma a voz sem ar; imagem sem figura, que no ar pinta as
vozes sem cor. Não é teu filho e o geraste; tu o ouves e não o vês, ele te responde c não
te ouve; ele é um ninguém falante que não sabe falar e contudo fala, ou fala sem saber
o que diz. Não entende latim nem grego; porém fala grego e latim.

52. Cf. Baltasar Gracián, “Discurso II”, op. cil., p. 241.

317
A SÁTIRA E O E N G E N H O

Em seguida, elocução como divisão e conjunção de positivo e positivo:

Ninfa do ar, pedra falante, filho do ar. habita nas selvas e fala todos os idiomas:
sibila selvagem que responde nos antros. Adulador e zombador simultaneamente, que
ri se ris, chora se choras, canta se cantas, amaldiçoa-te se o amaldiçoas, louva-te se o
louvas. Vive só enquanto falas: respira com tua respiração, raciocina com tua língua,
vive com tua vida. Um só vive e dois falam. Um só fala e a si mesmo responde. E um
outro de ti; e, se partes, parte; se retornas, retorna; e se tu morres, morre.

E, ainda, divisão e conjunção de negativo e negativo:

Não é homem nem fera. Não sabe falar nem calar. Não sabe mentir nem dizer a
verdade. É sem silêncio e sem língua. Não está preso e não pode sair de sua cela. Não te
ouve nem o vês; contudo, responde-te e tu o ouves53.

Os termos divididos, dispostos por oposição e conjunção, são extraídos


da substância física: “homem, não homem”; da substância metafísica: “forma
informe, é um outro de ti”; da quantidade: “um só vive e dois falam”; da qua­
lidade: “adulador e zombador”; de relações: “imagem da voz, filho do sopro”;
de ações: “chora, se choras”; do tempo: “vive só enquanto falas”; do lugar: “sibi­
la selvagem que responde nos antros”; do movimento: “se partes, ele parte”; de
instrumentos: “fala sem língua”; etc. A operação dialética da análise permite,
ainda, produzir imagens misturando as categorias, como “habita nas selvas e
fala todos os idiomas”, mescla de lugar e ações.
Tanto no exemplo de Manuel Botelho de Oliveira quanto nos de Tesauro,
a relação entre os termos é muito artificiosa - pense-se o termo no sentido
técnico do fazer do século XVII, não no sentido pejorativo neoclássico e ro­
mântico dos séculos XVIII, XIX e XX - e deve ter limites. Muito rígidas como
esquemas binários do engenho e do artifício, as convenções da divisão dialética
e da ornamentação retórica de conceitos visam a maravilha. Prescrição do
costume antigo que se mantém, contudo, deve-se utilizar o decoro, como re­
gulador das proporções analógicas, pois “[...] a beleza é um tal conceito de
partes ordenadas ao seu fim que nada, sem deformidade, pode ser-lhe acres­
centado, extraído ou transposto”, como doutrina o mesmo Tesauro54.
E por prever a indeterminação de uma abertura radical da operação
dialético-retórica que Tesauro e outros preceptistas, como o mesmo Gracián
e, no início do século XVIII, Francisco Leitão Ferreira, a delimitam. Fazem-

53. \i. Tesauro, “II mirabile”, op. cii., p. 85.


54. lilcvi, p. 9.

318

M
O ORNATO DIALÉTICO E A PINTURA DO MISTO

no em termos aristotélico-horacianos e a propõem não como agudeza de uma


liberdade livre - leitura heurística da “poesia barroca” feita pelas vanguardas
do século XX - mas como agudeza livre num intervalo cujos limites são o
hermetismo total e a total clareza. Por exemplo, quando o gênero é sublime
ou tende para ele, é excesso a falta de majestade do tema; de conceitos gravís­
simos e ricamente ornados; de afetos suaves e altivos; de razões sólidas e con­
vincentes; de hipérboles, metáforas e alegorias; de períodos arredondados,
perfeitos. Aquele que é incapaz de sustentar-se na eminência dos conceitos
cai nas licenças do gênero popular: move pelo riso, quando queria mover pelo
espanto. O oposto também é válido: nos gêneros populares, é falta o mesmo
excesso: por exemplo, quando se transforma o púlpito do Evangelho, na prega­
ção, em cena de Aristófanes55.
Em outros termos, a poesia seiscentista hipervaloriza os efeitos mara­
vilhosos como programa, mas mantém da preceptiva aristotélica tradicio­
nal os critérios que fazem a maravilha adequada aos gêneros particulares.
A mesma prescrição da agudeza, contudo, torna o decoro por vezes muito
fluido: é que, nos discursos muito claros, a agudeza perde todo o seu bri­
lho, como as estrelas que, se brilham na escuridão, empalidecem com a
luz56. Há uma prescrição genericamente implícita de obscuridade para a
agudeza, portanto, formulada pelos preceptistas e poetas em termos hora-
cianos de at pictura poesis.
Aristóteles contrasta o estilo ágil e imediatista dos debates públicos orais,
apreciado à distância nas grandes assembléias deliberativas, com o estilo
meticulosamente ornamental dos discursos epidíticos escritos para serem li­
dos e analisados de perto, em particular57. Demonstra-se, na Retórica, que há
uma distância conveniente da apreciação em cada gênero: por exemplo, quan­
do se compara a extensão apropriada de uma peça oratória, determinada pelo
que a memória consegue reter como unidade, com o tamanho de um ser vivo
que o olho apreende num relance58. No ruído e movimentação da assembléia,
por exemplo, o orador que usa de refinamentos, minúcias ornamentais e ar­
gumentação intrincada, que exigem muita atenção, não é seguido nem apre­
ciado pelos ouvintes. O discurso deve ser genérico, apresentando o tema em
grandes traços. Da mesma maneira, uma pequena peça descritiva, escrita,

55. Idem, pp. 9-10.


56. Idem, p. 33.
57. Wesley Trimpi, “The Early Atetaphorical Uses of S K IA G R A P U IA and S K E N O G R A P H IA ”, Tradaio
(Sludies in Aliciem and Medieval Ilistory, Thoughl and Religion), New York, Eordham Uníversity Press,
1978, vol. XXXIV, p. 408.
58. Aristóteles, Retórica, 3, 9, 3, 140.

319
A SÁTIRA E O E N G E N H O

deve ser examinada várias vezes, de perto, não sendo adequada à oralidade,
que a executa uma vez só.
A doutrina do ut pictura poesis horaciana retoma Aristóteles e estabelece
analogia entre pintura e poesia, ilustrando a natureza do decoro estilístico
necessário em cada gênero poético para ser verossímil e agradar o destinatá­
rio. Horacianamente, a tessitura intrincada dos pequenos poemas alexandrinos
de Virgílio, por exemplo, não deve ser apreciada da mesma maneira que a
Eneida. Por ser um poema longo, a epopéia necessita da distância, para apare­
cer como um todo aos olhos do destinatário, mais do que da proximidade que
revela seus detalhes. Da mesma maneira, uma pequena pintura de desenho
muito elaborado, com sombreamentos, deve ser examinada de uma distância
específica - de perto, um número determinado de vezes, não em plena luz so­
lar da praça pública, mas na “obscuridade” de um aposento particular59:

[...] ittpictura poesis: ent quae, si propius stes,


te capial magis, et quaedam, si longius abstes;
haec amat obscurum, volet haec sub luce videri,
iudicis argutum quae non formidat acumen;
haec placuit semel, haec deciens repetita placebitm.

Segundo o excelente ensaio de Wesley Trimpi, três critérios regulam hora­


cianamente o decoro poético: a) distância (“si propius stes”/ “si longius abstes”),
em termos de perto/longe', b) claridade (luz) (“obscurum ”/ “sub luce”), em termos
de clareza/obscuridade; e c) número (“semel”/ “repetita”), em termos de uma vez/
várias vezes. Segundo esses critérios, certas composições escritas com estilo
carregado de ornamentos, que as fazem intrincadas, exigem exame de perto,
repetidas vezes, “obscuramente” (privadamente). Outras composições orais,
de estilo pouco ornamentado, exigem exame à distância, uma vez, publica­
mente (“claramente”). Em termos genéricos, as categorias “perto”, “clarida­
de”, “várias vezes” são marcadas positivamente como “melhores”, ao passo
que “distante”, “obscuridade”, “uma vez” são negativas, “piores”, lembre-se
o quanto Horácio valoriza o acabamento e não admite o hibridismo. Os três
pares de critérios são, em termos de ut pictura poesis, meios para o juízo, árbi­
tro da obra bem realizada, isto é, adequada estilisticamente como decoro

59. Cf. Wesley Trimpi, “Horace’s ut pictura poesis: The argument for stylistic decoram", Traditio (Sjudies
in ancient and medieval histoty, ihouglu and religion), New Y ork, F o r d h a m University Press, 1978, vol.
XXXIV, p. 33.
60. Q. Horácio, Horali Flacá Opera, ed. F. Klingner, Leipzig, 1959, p. 307, cit. por Wesley Trimpi,
“I Ioracc’s ul pictura poesis...’’, op cit,., p. 30.

320

J
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O

interno ao gênero e decoro externo, à recepção. Por isso mesmo, são diferen­
ciais, relativos, pois às vezes o “pior” é o mais adequado e efetivamente o
“melhor”. “Obscuridade”, por exemplo, é tanto característica estilística, de­
signando o fechamento semântico da ornamentação que faz um poema ser
hermético e enigmático, quanto condição adequada para que seja bem rece­
bido. O tema elevado da épica, por exemplo, que exige grandes traços
caracterizadores e amplas ações, é, por isso, menos articulado visualmente,
em termos de minúcias descritivas e ornamentais. Como o poema épico é
longo, exige distância e luz plena para a recepção: a épica é própria para a
declamação pública. Já os temas familiares, tratados com maior meticulosi-
dade, exigem também o exame de perto, feito várias vezes, em local “obscu­
ro” ou fechado, particular61. E nesta linha, aliás, que Horácio escreve que a
comédia, porque retira seus temas da vida vulgar, exige menos trabalho apa­
rente, mas na verdade carrega um peso maior, pois a indulgência permitida é
menor. Assim, escreve Trimpi, o estilo de Eurípides, de argumentação sutil e
verista no tratamento da vida cotidiana, claramente composto em oposição à
“obscuridade” de Esquilo, põe a audiência de sobreaviso para as menores
impropriedades da verossimilhança. O estilo sublime de Esquilo implica cer­
ta incompletude da representação e, por isso mesmo, é para ser visto à distân­
cia; o de Eurípides, devido ao detalhismo verista, exige a apreciação de perto62.
Reproposto durante o Renascimento em chave aristotélica e neo-escolás-
tica, o ut pictura poesis é parâmetro de poetas e preceptistas conceptistas. Faz
ver que certos gêneros de peças pequenas - como sonetos líricos e composi­
ções elegíacas e pastorais - admitem e mesmo exigem a obscuridade quase
hermética, a leitura repetida muitas vezes, o exame meticuloso e atento feito
de perto, levando-se em conta que o público preferencial de tais gêneros é
efetuado como cortesão, agudo e discreto, diferenciando-se pela mesma agu­
deza do vulgo, apto talvez para entender tais composições, mas codificado
como preferindo outras, de estilo familiar, baixo ou sórdido. A mesma obscu­
ridade torna-se inadequada em gêneros populares orais, portanto, como a
oratória sacra, na qual se prescreve a visão a distância, que apreende o todo da
peça e relega como secundária a minúcia ornamental. Se admite certo inaca-
bamento dos detalhes, que facilita seja ouvida uma única vez, a oratória sacra
não admite a obscuridade nem da elocução, nem da recepção: deve ser clara
porque é pública. Uma das razões das críticas seiscentistas generalizadas aos
sermonistas gongóricos encontra-se na doutrina horaciana. É ela que permite

61. Cf. Wesley Trimpi, “The Early Metaphorical Uses...”, op. cit., p. 49.
62. Idcm, pp. 44-46.

321
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

a Vieira dizer, no Sermão da Sexagésima, por exemplo, que o estilo dos domini­
canos é “negro boçal”.
A crise do mito heróico no século XVII e a concepção da invenção poética
como ornato dialético ou silogismo retórico incluem, por exemplo, a reposi­
ção de topoi épicos e líricos como exercício do engenho poético, em variações
que levam a um fechamento da elocução, dada a sobredeterminação da agu­
deza em tais imitações: em termos horacianos, obscuridade. É, por exemplo,
o que ocorre na poesia de Góngora, que trata em estilo sublime os temas que
tradicionalmente deveriam ser compostos com estilo humilde. Assim, aquilo
que, segundo o ulpicturapoesis, deve ser visto de longe, em função da apreen­
são da unidade do todo - por exemplo, um poema épico como Os Lusíadas -
passa a ser retomado e variado como detalhismo ornamental, que deve ser
visto de perto. Em outros termos, a poesia conceptista mantém as mesmas
tópicas da épica, da lírica e da preceptiva tradicional, mas para transpô-las
como incongruência, anamorfose: o tema desenvolvido exige um ponto de
vista artificiosamente calculado63. Arte cenográfica, visa antes o efeito fantás­
tico das imagens proporcionalmente desproporcionais que a reprodução de
uma imagem icástica, clara e congruente:

N ã o d ã o o p a ra b ém à nova A urora
F lo r e s ca n o ra s, p á ssa ro s fragrantes,
N e m s e u â m b a r r e s p i r a a r ic a F l o r a .
P o rém a b rin d o S ílv ia o s d o is d ia m a n tes
T u d o à S ílvia festeja, e tu d o a adora,
A v es c h e ir o s a s , flores re s so n a n te s.

( O C , III, p. 6 8 0 . )

Assim termina um soneto atribuído a Gregório de Matos, em que as hipá-


lages - “Flores canoras, pássaros fragrantes”/ “Aves cheirosas, flores ressonan­
tes”- são programaticamente aplicadas em função da “obscuridade” do ul
pictura poesis, efetuando um análogo discursivo do tenebrismo e claro-escuro
da pintura.
Em termos do ut pictura poesis, que mantém como ordenador de suas ope­
rações engenhosas, a poesia conceptista costuma tratar o que está perto ob­
servando-o à distância, vê repetidas vezes o que pede uma só, obscurece
programaticamente o que é claro e vice-versa. Como a “loja de costureiro”,
expressão de Longino que critica uma descrição de Teopompo, ela é hiperacu-

63. Cf. Wcsley Trimpi, “The Earlv Metaphorical Uses...”, op. cil., p. 412.

322
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O

mulada, faltando-lhe em coesão estilística o que lhe sobra como acúmulo e


desfocamento sistemáticos de detalhes da divisão dialética dos conceitos e da
sua ornamentação retórica. Cada detalhe deve brilhar obscuramente, como a
estrela-agudeza de Tesauro, que perde a luz com a claridade e que exige a
maciça noite enigmática dos conceitos para ofuscar o olho maravilhado do
espectador64.
A sátira mantém os três critérios horacianos do ut pictura poesis, variando-
os - principalmente o par clareza/obscuridade - em função de seu fim ético-
político. Genericamente, ela se faz como uma espécie de rascunho rápido de
tipos, como uma caricatura cuja deformação é para ser ouvida ou lida uma
única vez: “o Tucano”, “o Lagarto”, “o fanchono beato”, o “lacaio missa-can-
tante”, “Frei Fodaz”, “o frisão”, “o Galileu requerente” etc. Sendo pública,
demanda visão à distância: sua formulação caricatural é sintética, não exigin­
do análise atenta, pois comunica-se imediatamente. Dadas as duas vozes que
nela dialogam - racionalidade prudente da enunciação icástica e misturas
irracionais do enunciado fantástico -, é simultaneamente aberta e fechada,
clara e obscura, icástica e fantástica. É a sua mesma abertura para o público,
enfim, que lhe prescreve a clareza, como adequação ao entendimento (por
exemplo, a aplicação de obscenidades, sempre claríssimas); simultaneamen­
te, é também a adequação ao gosto do vulgo que exige sua “obscuridade”,
tanto a dos temas privados tratados publicamente quanto a do efeito das mis­
turas da fantasia poética: clareza do docere, obscuridade do delectare.
Veja-se, inicialmente, a categoria “distância”, articulada com a abertura
pública. Abrindo-se para o vulgo, a sátira também se abre para o distante -
tema e público propondo-se não como estilo de grande refinamento que
exige atenção meticulosa e visão de perto, mas como esquema genérico que,
sendo esboço de uma situação ou tipo como protótipos, é facilmente apreen­
dido pelo público. Como já se viu, a persona satírica efetua a consciência da

64. Idem>pp. 412-413: “In the Renaissance, lhe connection betzueen an anamorphicpainting andan allegorical
narrative is unforgettably made by Galileo in his Considerazioni al Tasso [...] Tassofs abrupi transilions
and disconnecied conceils resemble a ‘tarsia’picture - recalling the ancienl metaphor of tesserulae for
fragmenlary lumina (cf Cícero, Orat., 149) - while Ariosto’s lines gradually merge the narrative delails
with one another like colors in an oil painting. Ariosto’s poem is like a long high gallery which displays, in
its extension, importam works of art in a clear relalion to one another as if they formed a unijied zehole.
Tasso’s poem, on lhe contrary, is like a manneristic *Kunst -und Wunderkammer>full of trivial curiosities to
be individually picked up and scrutinized. Ariosto’s is seen from in front and is *skiagraphiceach detail
will, in Longinu’s setise, ‘shade’into the whole ihroughout its luminous atmospheric space. Tasso’s isoblique
and fanlastic’; each detail must glint into the obscurum of the studietto in order to strike and hold the
eye

323
A SÁTI RA E O E N G E N H O

adequação, evidenciando que a poesia culta - para ser lida de perto, várias
vezes, em particular - é própria de outros gêneros e de outras situações:

C a n sa d o de vos pregar
c u ltís s im a s p r o fe c ia s ,
quero das cu lteran ias
h o je o h á b ito enforcar:
d e q u e serve arrebentar,
por q u em de m im não tem mágoa?
v e r d a d e s d ir e i c o m o á g u a
p o r q u e to d o s e n te n d a is
os la d in o s, e os b o ça is
a Musa p r a g u e ja d o r a .
E n t e n d e i s - m e agora?

( O C , II, p. 4 7 2 . )

É a mesma abertura para o público e para a apreensão à distância que


implica, em termos do utpicturapoesis, a encenação das posições da enunciação.
A sátira é poesia em que várias sinédoques recortadas pelo olho da persona
metaforizam quantitativamente, em termos de visualidade das imagens, a
perspectiva da observação da espessura e simultaneidade do espaço que efe­
tua. E, qualitativamente, o fundo irracional dos vícios, representados na falta
de unidade das partes perspectivadas pelo olho. Leia-se, por exemplo, a ence­
nação da partida, à distância:

A d e u s p raia, a d e u s C id a d e ,
e agora m e deverás,
V elh aca, d ar eu a d eu s,
a q u e m d e v o a o d e m o dar.
[...]
A d e u s P ov o , a d e u s B a h ia ,
d ig o , C a n a lh a in fe rn a l,
e n ã o falo na n o b reza
tá b u la , em q u e se n ão dá.

( O C , VII, p. 1 5 9 3 . )

A categoria horaciana do “uma vez” articula-se à de “distância”. Há mui­


tos índices nos poemas satíricos de que são escritos. Não são escritos para
serem lidos em particular, contudo, pois tanto os temas baixos quanto a re­
cepção deles pelo vulgo implicam a sua audição pública, quando oralizados:

324

A
O 0 R N A T 0 D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O

M a s o q u e m a is m e atorm enta,
é ve r , q u e o s c o n t e m p l a t i v o s ,
sab en d o a m in h a in ocên cia,
d ã o a seu m e n tir ou vid os.
A té os m e sm o s cu lp a d o s
têm to m a d o p or ca p rich o ,
para m a is m e d ifa m a rem ,
p o r e m p e la p raça escritos.
O n d e escrev em sem vergonha
n ã o só b r a n c o s , m a s m e s t i ç o s ,
q u e para o s b o n s sou in fe rn o,
e para o s m a u s p a ra íso .

( O C , I. p p . 1 2 - 1 3 . )

Lembre-se que, segundo Aristóteles e Horácio, a elaboração castigada


dos poemas escritos para serem lidos de perto é inadequada para a sátira:
sendo pública e dirigindo-se ao vulgo, não possibilita o exame minuciosa­
mente repetido, apropriado às composições escritas para serem lidas em par­
ticular. A audição imediata, de uma única vez, impõe-se: articula-se com a
distância, que exige generalidade65.
A categoria “uma vez” relaciona-se, desta maneira, com a técnica da
caricatura esquemática. Como escreve Horácio, o olho é mais difícil de con­
vencer que o ouvido, principalmente quando o olho lê. Certo inacabamento
da metrificação de muitos poemas - descontando-se também as alterações
de copistas -, marca da sua inferioridade estilística, quando o critério apli­
cado a eles é o da apreciação de gêneros escritos para serem lidos, é a mar­
ca efetiva da sua adequação à audição, no mesmo sentido aristotélico da
adequação do gênero deliberativo às grandes assembléias movimentadas e
barulhentas.
O que faz a sátira muito interessante e certamente mais complexa, contu­
do, é ser simultaneamente clara e obscura - em termos platônicos presentes
na codificação horaciana do ul piciura poesis, icástica e fantástica. Lembre-se
novamente a alegoria óptica do capítulo III, a do olho à distância, no mar,
que focaliza pontos particulares da Cidade através de óculos de aumento.

65. Cf. M. T. Cícero, De oraiore, 72. F. indecoroso empregar “tópicas gerais” e estilo elevado quando se
discutem casos deslillicide frente a um único juiz (unum uidican): também é indecoroso falar calma
e sutilmente (summisse et subliliter) quando se discute a majestade do povo romano. Cf. também,
sobre a adequação da distância e tema, Soneca, “Retor”, C o n t r o v e f s i a e e t s u a s o r i a e , nouvelle édition
revue et corrigée par Henri Bornccque, Paris, Garnier, 1932, 2 vols., vol. II, 9, 1-5.

325
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Viu-se, nesse capítulo, que o olho aproxima para distanciar e distancia para
aproximar. Veja-se agora como funcionam as lentes de seus óculos em termos
de utpictura, utilizando-se aqui os óculos de Wesley Trimpi.
No Sofista, Platão faz com que o estrangeiro eleata opere uma subdivisão
da mimesis em imagem icástica e imagem fantástica, depois de distinguir en­
tre imagem e idéia66. Trata-se da percepção que o observador tem da distorção
óptica das imagens e das compensações que o artífice produz para corrigi-las.
A mesma distinção entre imagem icástica - proporcional ao paradigma - e
fantástica - deformação da imagem icástica - está presente no critério
horaciano do “sub luce”/ “obscurum”. Trata-se, ainda esta vez, da proporção e
da desproporção das imagens da pintura e da poesia, identificando-se o crité­
rio de sua percepção com o critério de sua maior ou menor participação no
paradigma ou, em outros termos, de sua maior ou menor distância da essên­
cia. Conforme Platão, o observador de uma grande pintura ou escultura está
mais distante de certas partes que de outras, de modo que a desproporção
aparente entre as partes conflita com o conhecimento prévio que ele tem do
assunto figurado na obra. A desproporção faz com que o observador fique
atento para as incongruências da verossimilhança, pois compara o que vê
com o que sabe. Para compensar a distorção visual, o pintor ou o escultor não
reproduzem as dimensões reais do modelo com perfeição icástica. Se o fizes­
sem, produziríam deformação. Por isso, alteram as proporções, deformam-
nas, para que a imagem fantástica resultante pareça proporcional, isto é,
icástica, quando vista de um ponto de observação próprio: perspectiva, aumento
ou diminuição de partes, como a da cabeça desproporcional de Palas Atena.
Erigida no Pártenon, torna-se proporcionada quando observada de um ponto
próprio, a base da estátua; se permanecesse deitada, como estava antes de ter
sido erigida, seria desproporcional. Em outros termos,proporção/desproporção
é função da distância do ponto de observação próprio: não qualquer distân­
cia, mas distância adequada, correta, em cada caso67.

66. Cf. Platão, Le sopkiste, 2. ed. revue et corrigée, texte établi et traduit par Auguste Diès, Paris, Belles
Lettres, 1950, 235 b, 236 c. O exemplo platônico é desenvolvido por Wesley Trimpi, op. cit., que sigo
de perto, aqui.
67. Cf. a discussão de Sócrates e Glauco, na República, sobre a visão dos dedos da mão. Aproximados
do olho, os dedos médio, anular e mínimo são percebidos com confusão: o olho identifica-os como
dedos, mas vacila quando o dedo anular parece menor em relação ao médio e maior em relação ao
mínimo. Ele parece ser pequeno e grande ao mesmo tempo, aparência da sensação e escândalo da
inteligência que, dialeticamente, através de sucessivas análises, deve chegar às idéias de Pequenez e
Grandeza para desfazer a ilusão. O dedo anular parece grande se observado junto com um dedo, o
mínimo; pequeno, se observado com outro, o médio. Trata-se do tamanho relativo - da proporção.
Cf. Wesley Trimpi, “The Early Metaphorical Uses...”, op. cit., p. 405.

326
0 O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O

A manipulação das grandezas icásticas pelo artífice permite, como no


caso da observação dos dedos da mão, solver a contradição na mente do obser­
vador: o artífice deforma para estabelecer a proporção correta segundo um
ponto de vista apropriado. Em outros termos, a deformação é produto de uma
relação: dois elementos, no mínimo, devem ser postos em correlação. É o que
ocorre exemplarmente na sátira, técnica da deformação proporcionada.
A sátira pinta vícios e virtudes, em termos do ut pictura poesis. Pela sim­
plificação esquemática das caricaturas, ela deforma como imagem incongruen­
te a imagem verossímil do referencial discursivo contemporâneo dela. Ela
deforma de modo que o público observe a contradição existente entre o co­
nhecimento prévio que tem do tema, como opinável retórico ou verossímil
poético, e a deformação com que o tema é figurado. A imagem inverossímil,
contudo, é posta em relação com outra: a imagem clara e icástica da enunciação,
que teatraliza a virtude que reina no lugar do olho, sem deformá-la. Por ser
proporcionada ao ideal de virtude, a voz icástica da enunciação é o árbitro das
deformações fantásticas, caracterizadas pela ausência de unidade. Assim, a
relação enunciação/enunciado - ou imagem icástica/imagem fantástica - eviden­
cia-se para o destinatário como deformação programática que diverte com o
exagero e ensina com a correção. E o que se vê, aliás, na alegoria do olho
satírico no mar, à distância.
A distância, o olho focaliza um ponto - situação, pessoa, parte de pessoa,
parte de parte de pessoa (por exemplo, órgão sexual, fluidos do corpo) ou
uma ação moral (por exemplo, sodomia) -, deformando-o, amplificando-o
intensamente para o destinatário: seja o “rabo” de Câmara Coutinho, que se
torna maior que o corpo, ou sua sodomia alegada, que faz dele um tipo de
uma ação só, desproporcionalmente. O destinatário que está “perto” do sati­
rizado - “perto” metaforicamente, significando a imagem verossímil que faz
do referencial discursivo - deve ver uma imagem “distante”, que o amplifica
como caricatura inverossímil, desproporcional em relação à medida da ima­
gem verossímil conhecida. Quanto ao olho satírico, está “distante” do
referencial (fisicamente, “no mar”; moralmente, “acima”) e o efetua como
“perto”, pela amplificação das lentes de aumento, que o aproximam com vio­
lência e o borram. Portanto, o “perto” do olho equivale ao “distante” do desti­
natário, assim como o “distante” do olho equivale ao “perto” do receptor.
Quiasma: como as duas visadas não coincidem, a persona satírica - como o
artífice platônico-também corrige a mesma deformação. Ela o faz pela ence­
nação do ponto de vista ideal, a partir do qual todas as deformações se eviden­
ciam como tais a serviço do Bem da Proporção. Este ponto fixo é o da
racionalidade do bem comum, claríssima, encarnada hierarquicamente nas

327
A SÁTI RA K O E N G E N H O

figuras maiores do Rei e Deus. A sátira teatraliza, desta maneira, uma distân­
cia dupla: uma, que se estende entre a forma clara e a forma obscura, propor­
cional e desproporcional, icástica e fantástica, alcgoriza a outra, a distância
hierárquica, que dá sentido pleno a todas as formas, claras e obscuras, próxi­
mas e distantes, particulares e públicas, icásticas e fantásticas.
Platão também escreve que os afetos de dor ou de prazer, quando vistos
de muito perto ou de muito longe, aparecem maiores ou menores que na
realidade. Se o observador pudesse ajustar sua distância apropriadamente,
seria capaz de abstrair de ambas as imagens o aparente e irreal excesso ou
inferioridade. Em outros termos, sua percepção fantástica da magnitude dos
afetos de dor ou de prazer se tornaria uma percepção icástica das suas imen­
sidades relativas68. Em termos do ut pictura poesis, a sátira ajusta a distância
apropriada que o destinatário deve assumir frente às deformações para mais
e para menos, quando faz a voz grave e séria da enunciação tematizar as mes­
mas deformações, conferindo-lhes o sentido disfórico capturado pela sua in­
terpretação prudente. Por isso mesmo, a fantasia satírica é uma técnica regrada
para a desproporção proporcionada: em outros termos, ela produz imagens
inverossímeis segundo imagens verossímeis do objeto satirizado. Ela as pro­
duz, contudo, para propor o inverossímil em outro registro de adequação:
aquele em que a voz da enunciação, também apenas verossímil, avança suas
metáforas como palavras de verdade:

A essas p ersonagens vam os,


so b re e la s será o d e b a te ,
e q u eira D e u s , q u e o v en cer-v o s
para e n v e r g o n h a r - v o s b a sle .
[...]
V ê e m isto o s F i l h o s d a terra,
e en tre tanta in iq ü id a d c
são tais, q u e n e m in d a t o m a m
lic e n ç a para q u eix a r-se.

S e m p r e v ê e m , e se m p re falam ,
até q u e D e u s lh e s d e p a r e ,
q u e m lh e s faça d e ju stiç a
e s ta sátira à c id a d e .

(OC, II, pp. 430-434.)

68. Platão, Philèbe, texte établi et traduit par A, Diés, Paris, Belles Lettres, 1949, 42 a c; W. Trimpi, op.
dl . p. 407.

328
O O R N A T O D I A L É T I C O E A T I N T U R A DO MI S T O

A sátira opera com uma desproporção programática entre disposição e


elocução, produzindo discursos inverossímeis, segundo a preceptiva tradicio­
nal dos opináveis retóricos e verossímeis poéticos. Com uma dupla finalida­
de: atender ao gosto do público, interessado em fantasias e não em regras, e
adequar o discurso à técnica da caricatura - seres moralmente monstruosos e
baixos demandam discursos retoricamente baixos e monstruosos. Leia-se a
propósito o que escreve Tesauro sobre o Hercules furens, de Sêneca:

[...] s e n d o d e p l o r á v e l o n d e s e r e p u t a v a f e l i z , o s t e n t a v a c o m o t r o f é u s a s s u a s r u í n a s .
E stas e r a m a g u d e z a s e s p a n t o s a s e m e tá fo r a s f le b ilm e n t e r id íc u la s, im it a d a s d e p o is p e ­
lo s m o d e r n o s p o e t a s d a l o u c u r a d e O r l a n d o e d e A r m i d a : o n d e t u o u v e s tam os despropó­
sitos a propósito, c o m o a c o n t e c e c o m o s grillos d o s p i n t o r e s , nada é mais artificioso que
pecar contra a arte, n a d a m a i s s e n s a t o q u e p e r d e r o s e n s o 60.

Triunfo parcial do alexandrinismo, que durante o Renascimento perma­


necera como uma virtualidade discursiva - como arte ornada, leggiadria, gê­
nero epidítico -, em fins do século XVI e no XVII o prodesse e o delectare efe­
tuam-se equivocadamente nos discursos, sendo opostos para se integrarem
ou vice-versa. A elocução sai agora diretamente das partes do discurso, pois é
ela que fornece as tópicas da invenção e que ordena as partes da disposição:
antes da representação exterior, como representação mental dos objetos, o
conceito já é metáfora. Lembre-se, uma vez mais, como Peregrini, Gracián ou
Tesauro hipervalorizam a metáfora como matriz dos discursos. Ela é “teatro
de maravilhas”, no dizer de Tesauro, de modo que

A p o e sia n ã o d e v e ser n e m clara n e m p r e c isa , d e v e ser p r i n c ip a lm e n t e m a g n í f i ­


c a 70.
96

Para tanto, a preceptiva aristotélica tradicional é deslocada, pois é preci­


so, como escreve Marino, saber romper as regras segundo o tempo e o lugar,
acomodando-se ao gosto do século71. O que configura, como já se escreveu,
todo um programa: produção da maravilha, artifício, agudeza, inverossimi-
Ihança programática para o gosto, que não sabe de regras nem as segue. A
maravilha, contudo, é a dos efeitos e do efeitismo, pois a técnica da sua produ­

69. Emanuele Tesauro, op. cil., p. 33 (grifos meus, com exceção dçgrillos).
70. Paolo Beni, Aristotelis Poelicam Commeniarii (1613), cit. por Guido Morpurgo-Tagliabue, op. cit., p.
141.
71. G. Marino, “Lettera alio Stigliani”, Letiere dal I. G. B. Marino etc., Venezia, 1673, cit. por G. M.-
Tagliabue, op. cit., p. 149.

329
A SATI RA E O E N G E N H O

ção é rígida e binária, nada havendo nela do mito romântico da “liberdade”,


“exuberância”, “imaginação” e outros incondicionados com que se costuma
caracterizar essa poesia como “barroca”. Arte do excesso, certamente, mas excesso
regrado; arte da inverossimilhança, sim, mas inverossimilhança tornada verossí­
mil segundo a adequação dos estilos ao tipo e ao público', arte lúdica, certamente,
mas de um jogo cujos lances e resultado estão previstos. E que a agudeza não é
individual, mas social, no sentido forte de estilo, estilo de época, que põe em
cena representações do todo social objetivo. Seu material de transformações
poéticas - lugares-comuns, argumentos, léxico, modelos poéticos - é basica­
mente a memória de um uso dos signos que é distintivo dos melhores72, articu­
lado segundo a convenção da elegância cortesã em tempos de ascensão bur­
guesa, ideal cavalheiresco do discreto e seus doces objetos, damas, política, letras.
Gracián, por exemplo, é autor de vários galateos73, tratados de arte de prudên­
cia e formas de falar dirigidos a todos aqueles que, guardadas as proporções
hierárquicas, trotam a estrada do sucesso rumo à consumação do talento. Nes­
ta linha, os códigos da dicção culta e aguda estão em intersecção com os códi­
gos da vida cortesã e fidalga, quando recuperam tópicas medievais, como o
amor cortês, ou, principalmente, o imaginário da vida fidalga assumido prati­
camente por tanto arrivista, misto de hipócrita ingênuo e discretíssimo
maquiavélico que dorme “ninguém” e acorda “homem grande”74.

72. Nos dois primeiros capítulos do Levialhan, Hobbes conceitua a imaginação como uma “sensação
enfraquecida” e a identifica com a memória. Neste sentido, por ser operada por imagens, a agudeza
é fruto da memória. Observe-se também que a fantasia e o juízo são posicionais, conforme o mes­
mo autor: no capítulo VIII, por exemplo, após conceituar o wil de forma muito semelhante à
conceituação de Tesauro e Gracián, Hobbes propõe que a fantasia encontra semelhanças ao passo
que o juízo descobre diferenças. Nesta linha, a agudeza pode decorrer de juízo sem fantasia, nunca
da fantasia sem juízo. Este é, como nos preceptistas italianos e ibéricos, condição da discrição. É o
mesmo juízo, manifesto como discrição, que justifica as maiores vulgaridades da fantasia. Cf. T.
Hobbes, Levialhan, London, Everymans Library, 1973.
73. Galaleo (Ovvero de’ costumi) é o tratado em que Giovanni delia Casa inventa a figura de um velho
iletrado que educa um rapaz e que raciocina sobre os modos que devem ser usados na conversação
comum. Como II libro dei Cortegiano, de Castiglione, fornece tópicas da conversação e das maneiras,
tendo sido adotado pela Companhia de Jesus em seus colégios. De Ballasar Gracián, vejam-se El
Discrclo, El Héroe, El Crilicón, Oráculo Manualy Arle de Prudência. O último deles - muito gira a
roda da Fortuna - foi traduzido no Maranhão, em edição proposta à recepção em chave astrológico-
cabalística muito adequada à maranha do país. Oráculo Manualy Arte de Prudência é um repertório
de ocasiões e de receitas para a dissimulação prudente com que o discreto deve agir. Cf. Giovanni
Delia Casa, Opere di Castiglione, Delia Casa, Cellini, a cura di Cario Cordié, Milano-Napoli, Riccardo
Ricciardi Editore, 1960; Baltasar Gracián, Obras Completas, Madrid, Aguilar, 1967.
74. Cf. OC, II, p. 431: “já temos o Canastreiro, / que inda fede a seus beirames, / metamorfosis da terra
/ transformado em homem grande”.

330
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O

Como função da memória dos signos e de sua convenção mundana de


distinção, na agudeza conceptista é determinante o imaginário da ordem
hierárquica, causa e tema dos discursos. São os valores desta mesma ordem que
se encenam como autoridade dapersona satírica para desmascarar, por exem­
plo, os falsos fidalgos, cujos falsos modos e falsos donaires são agudezas falsas
e obras não-verdadeiras. Ao fazé-lo, a sátira dramatiza a filosofia, afirmando
que, se as obras são más, também os discursos não estão fundados de direito.
Não seria preciso dizê-lo, a sátira propõe a boa agudeza, distintiva dos cultos,
que são os melhores, entre os quais a persona se perfila. Para fazê-lo, como se
viu, ela opera com misturas e desproporções proporcionadas.
A concepção seiscentista do poético como ornato dialético mediante a
agudeza implica, pois, não o abandono ou a rejeição das tópicas tradicionais
elencadas por temas, argumentos e gêneros, mas sua reelaboração em novos
termos, que os hiperbolizam: simultaneamente, uma redução intensificada
dos procedimentos e uma extensão da aplicação dos procedimentos reduzi­
dos. Assim, reelaboram-se as formas não-miméticas da poesia do século XVI,
hoje ditas “maneiristas”, corrigidas com a preceptiva antiga, que reintroduz
a mímese icástica e, por conseqüência, a unidade, em termos restritos de uma
retórica da elocução. Por exemplo, o que na poesia quinhentista é uma extre­
ma proliferação de perspectivas e pontos de vista, politematismo intelec-
tualista75, na poesia do conceito engenhoso é transformado em síntese disjun-
tiva, na qual os paradoxos da maniera se reduzem, binariamente, a oposição e
a contradição. E própria do “maneirismo” a hipervalorização da bellezza e
grazia, figuradas em paradoxos que, via de regra, são o próprio tema intelec-
tualista do poema. A poesia seiscentista apropria-se da dicção paradoxal, ate-
nuando-a, porém, em função da unidade contraditória de opostos em que o
paradoxo é convertido. Basta ler os preceptistas do século XVII para observar
que, agudíssimos, são “clássicos” na prescrição de harmonia e unidade das
partes da obra em função de um fim didático superior, a moralidade absorvi­
da no mito estatal e divino76. Assim também a linguagem satírica: impura

75. Cf. Emílio Orozco, “Estructura Manierista y Estructura Barroca en Poesia (Con el Comentário de
unos Sonetos de Góngora)”, Manierismoy Barroco, 2. ed., Madrid, Ediciones Cátedra, 1975.
76. Em termos genéricos, o “maneirismo” propõe a obra como fim, o “barroco” a instrumentaliza,
mesmo o mais metafórico e hermético “cultismo”, porque todas as oposições são espelhos da seme­
lhança, que neo-escolasticamente remete à unidade da Causa Primeira. Cf., a propósito da redução
estilística do “maneirismo” à tensão de opostos “barroca”, Mareia B. Hall, Renovalion and Counicr-
Refonnalion. Vasari and Duke Cosimo in Sia. Maria Novella and Sia. Croce 1565-1577, Oxford, Warburg
Studies, Clarendon Press, 1979, pp. 43-51.

331
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

porque mista, é inverossímil, por isso mesmo apta para representar o tipo
vulgar para um público efetuado como vulgar.
Não importa seu efeito maravilhoso de aproximação e fusão de concei­
tos distantes, não importa sua técnica analítica de divisão prismática de
metáforas e argumentos, a agudeza permanece sempre binária e, princi­
palmente, dependente de uma teoria da analogia - portanto, da unidade
metafísica alegada nas semelhanças quando o poeta opera dialética e
retoricamente o jogo das diferenças, oposições e contradições. O gênero
metafórico que sintetiza espécies antitéticas mantendo-as em tensão sem­
pre funde duas espécies de conceitos, sendo a fusão uma alegoria da unida­
de pressuposta em acidentes, velho tema teológico das linguagens mudas
da natureza, sombras e vestígios agostinianos e escolásticos do divino, re­
batidos na natureza da linguagem77. Da mesma maneira, a operação
dialética exercida sobre a disposição do discurso sempre resulta em estru­
turas sintáticas que são diagramas da mesma operação intelectual de apro­
ximar coisas e imagens extremas de forma binária. A presença absoluta do
quiasma nessa poesia - como anagrama, antimetábole, inversão da ação,
trocadilho, labirinto e outras formas da especularidade - é decisiva. E re-
dutor propor o quiasma como figura acessoriamente ornamental do estilo,
apenas, pois ele é a concreção da síntese disjuntiva da agudeza. Inversão
dialética de sujeito e predicado, o quiasma também é, simultaneamente,
alegorização do Um onipresente sempre em fuga, desejo maníaco de Tota­
lidade refratada em pedaços:

M ad rasta d o s N a tu r a is
e dos Estrangeiros madre.
(<O C , II, p. 4 2 9 . )

Visconde,
[...] a m i z a d e s d e u m
favores de u m Conde vis.
(OC, IV, p. 896.)

Nos extremos, as substâncias opostas e as qualidades, acidentes; na inter-


secção dos extremos, a passagem vertiginosa de um para dentro do outro,

77. Por exemplo, como allegoria in factis e interpretação tipológica da História, corrente em Vieira,
Saavedra Fajardo, Bernardes, Gracián, Tesauro, na tradição Gregório de Matos e outros autores do
século XVII, cujo discurso encena a Escolástica reciclada.

332

A
O ORNATO D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O

movimento dramático que efetua o ponto ideal de seu encontro e integração


em que toda especularidade - o duplo que faz a vida ser um sonho mau e que
teatraliza o desengano - é absorvida na unidade da qual deriva. O quiasma é,
como a metáfora, figura-matriz do mundo seiscentista: enquanto a metáfora
apresenta a condensação dos opostos e contrários já efetuada e sempre pronta
a desatar-se em novas cascatas de metáforas, o quiasma diagrama o mesmo
movimento de aproximação e condensação, remetendo seus termos para o
ideal da Unidade irrealizável. Na desordem dinâmica de tudo, o mundo é
passagem harmonicamente concertada pela intervenção do providencialismo,
efetuado na mesma figura-matriz. O que foi figura o que há de ser: História do
Futuro, alegoriza Vieira, e os contingentes passados delineiam o mapa espe­
cular e especulativo da diferença do tempo ainda por vir. A língua assume
volume, plástica e profunda: profundidade da superfície dos signos, que es­
correm do vazio para o vazio, refletindo-se, pois todas as partes alegorizam o
Todo ausente. Daí, ainda, a obsessão da morte e sua anatomia moral mesmo -
e principalmente - na sátira mais desbragada, quando se estende a significa­
ção dos conceitos para outros. A minúcia exaustiva das mil e muitas glosas
das epístolas morais, a redundância prismática das metáforas fósseis, cristali­
zadas em “neve” ou congeladas em “cristal” para dourar-se em “rosas” ou
desfolhar-se em “ouro” e outros jogos agudos da incongruência; a prolifera­
ção do discurso em torno de si, eixo cego, produzindo mundos pastorais, idí­
licos, em que se vive a pura vida da arte na contemplação também melancóli­
ca da ruína, são meticulosas: cheias de medo minuciosamente prazeroso. Para
inverter Karamázov, é porque Deus existe que tudo é permitido: é a Unidade
pressuposta na gesticulação das semelhanças em migração contínua nas dife­
renças que ordena, justamente, sua proliferação78.
A poesia conceptista tende ao sublime, maravilhosa que é, pelo ideal
mítico-heróico que a anima. É, muitas vezes, apenas pedante, na justa pro­
porção dos materiais coletivos atualizados nas transformações poéticas do
engenho: basta lembrar a inverossimilhança mesma do mito heróico, que
propõe o Rei como cabeça do corpo místico do Estado que age através de
grupos corporativos, como a burocracia e os negociantes, ou que tem
desmentida, na prática, a mística real - lembre-se Afonso VI, em Portugal,
sua mania e o episódio tragicômico de sua impotência publicamente di­
fundida e a anulação de seu casamento; seu irmão Pedro e seu gosto por

78. C f. G i l l e s D e l e u z e , “ N o t e s u r le s r a p p o r t s d e la p e i n t u r e a n c i e n n e a v e c la f i g u r a t i o n ” , e m Francis
Bacon, Logique de la sensation, 2 mce d . a u g m e n t é e , L a C o l l e - s u r - L o u p , A u x É d i t i o n s d e la d i f f é r e n c e ,
1 9 8 4 , 2 v o ls ., v o l. I, p . 14.

333
A SÁTIRA E 0 ENGENHO

freiras, mulatas e cunhada79; as escapadas noturnas de Carlos II, de Ingla­


terra, com criadas8081;os Habsburgos espanhóis estúpidos e fanáticos, capta­
dos pela ironia prudente de Velázquez; a ópera-bufa contínua que é a corte
de Luís XIV8'.
O que hoje se conhece por “cultismo” - e que são tópicas, léxico e meneios
sintáticos da poesia antiga recuperados segundo a concepção do ornato
dialético formulado em estilo sublime para o gozo dos que se prescrevem
discretos - é objeto de controvérsia no mesmo século XVII. Ela é índice seguro
de sua aceitação e disseminação, principalmente quando encenado como tea­
tro do estupor, arte artificiosa que atordoa os sentidos e a mente pelo excesso
do efeito regrado. Há no cultismo, como já se indicou no capítulo I, uma com­
ponente de hiperurbanismo que, se o faz imediatamente apropriado para o
cortesão, também faz dele uma arte para “néscios” e “vulgares”. Seus críticos
- como na poesia atribuída a Gregório de Matos -, baseados na mesma con­
cepção da agudeza, repropõem o uso tradicional, em termos que hoje se dirí­
am wõlfflinianos, de valorização da linha, do desenho e das formas nítidas,
em oposição à cor, às massas, ao tenebrismo:

Mas que eu fizesse hoje estudo


para cousas importantes,
por estéreis consoantes,
que não podem dizer tudo:
que algum diga carrancudo,
quando escrevo para todos,
que não falo em cultos modos
mas em frase corriqueira!
Boa asneira.
(OC, II, p. 511.)

A censura da agudeza hermética se faz em termos horacianos de uipictura


poesis: quando se escreve para todos, como diz a persona, falar em “cultos mo­
dos” é “asneira”, pois é a “frase corriqueira” que se impõe em função da dis­
tância, da generalidade e da clareza requeridas pela abertura pública do poe­
ma: “porque todos entendais, / os ladinos e os boçais” (OC, II, p. 472). Os
“cultos modos” implicam o exame de perto, repetidas vezes, em círculos par­

79. C f. A n t o n i o Á l v a r o D o r i a , A Rainha dona Maria Francisca dc Sahóia (1646-1683): Ensaio Biográfico,


P o rto , L iv r a r ia C iv iliz a ç ã o , 1944.
80. C f. G r a h a m G r e e n e , Lord Rochesier’s Monkiy, N e w Y o r k - B a l t i m o r e , P e n g u in B o o k s, 1976.
81. C f. P h illip e B e a u s s a n t, Versailles, Opéra, P a r is , G a l l i m a r d , 1981

334
O ORNATO D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O

ticulares. São obscuros, intricados, e o brilho agudíssimo de seu hermetismo


só se revela claramente quando o poema é decifrado. Ou queimado, como
propõe Quevedo contra Góngora, identificando o cultismo a uma heresia poé­
tica. Assim, a sátira também deixa evidente que ser discreto consiste em saber
que às vezes é preciso não o ser. O “carrancudo” referido no poema é o pedan­
te que, com pretensão de legislar universalmente o ideal da discrição, perde a
medida das adequações e torna-se excessivo em sua pretensão, o que é índice
de vulgaridade e asneira. Lendo-se poetas e preceptistas do século XVII, ob­
serva-se também que sua crítica aos “cultos modos” - produzida em discur­
sos cultos e artificiosos - ataca o artificial da ornamentação dos discursos. E,
quase sempre, a inadequação do estilo ao gênero da composição. É o que ocorre
exemplarmente nos ataques à Fábula de Polifemo e Galatéia e às Soledades, de
Góngora, que compõe em estilo sublime matérias que tradicionalmente exi­
giam o estilo humilde. A crítica aguda à agudeza parece contradição e não o é,
sendo preciso levar em conta a pragmática do decoro que, em termos de ut
picturapoesis, por vezes prescreve justamente os “cultos modos”. Leia-se, por
exemplo, o que escreve Tesauro:

Vós lereis uma composição agudíssima à maneira moderna. Cada cláusula é uma
sentença e cada sentença leva sob si a sua ponta; cada forma de dizer tem sua luz
ecada luz observa aoutra como esquadro; cada epíteto é um conceito em quintessência e
cada conceito fala mais do que diz ou diz mais do que soa: nenhuma palavra, em suma,
entra pelo olho que não passe pelo arco do triunfo do cílio admirador82.

“Vós lereis”, escreve Tesauro, referindo composição escrita para ser lida
de perto e várias vezes: os “cultos modos” são adequados. Louvando o ornato
dialético como agudeza e proporção simétrica da analogia que são legíveis na
mesma articulação binária e sintaticamente paralelística de seu texto, Tesauro
também postula o discurso como ut pictura. Por propor a condensação dos
significados, por desdobrá-los aos pares, por afirmar a maravilha como efeito
sempre louvável, a mesma composição hipervaloriza o artifício. O que, em
função do mover os afetos produzindopathos, facilmente é incongruência. In­
congruência regrada, contudo, como “composição agudíssima”, que maravi­
lha quando lida de perto, repetidas vezes, em particular. Em outros termos, a
mesma preceptiva que prescreve a agudeza como proporção incongruente
adaptada ao maravilhamento da leitura - “arco do triunfo do cílio admira­
dor” - também delimita seu outro: na audição pública, a mesma agudeza fere

82. C f. E m a n u e l e T e s a u r o , op. cil., p . 6.

335
A S Á T I R A F, 0 E NGE NHO

o decoro. A crítica da agudeza se faz como censura tradicional da generaliza­


ção da incongruência aguda e hermética para todos os gêneros de discurso -
por exemplo, para os discursos públicos, que exigem “frase corriqueira” para
maravilhar com a agudeza.
A crítica dos “cultos modos” é lugar-comum convencional do século XVII83
- nela, é sempre determinante a pragmática da recepção. Repropõe, por isso
mesmo, a querela que opôs partidários do aticismo e do asianismo84. O crité­
rio da crítica ao “falar culto” não é propriamente, assim, a recusa de uma
linguagem ou estilo - (uma vez que, segundo os fins da sua adequação, a
sátira costuma operar com os mesmos procedimentos) - , mas ataque de seu
uso inadequado, que fere o decoro. Por exemplo, seu uso inadequado pelo
pseudofidalgo ou pseudoletrado, que, passando por discretos, são constituí­
dos como pícaros, néscios, abelhudos:

83. A c o n tr o v é r s ia é e x te n s a , a r t ic u l a d a e m s itu a ç õ e s d iv e r s a s , m a s s e m p r e te m p o r e ix o a clareza. Sem


f a la r d o e u f u ís m o e d o p r e c io s is m o , le m b re m -s e a q u i as c e n s u r a s d e M u z io V ite lle s c h i a G r a c iá n e
os a ta q u e s - i n j u s t o s - d e Q u e v e d o e L o p c a G ó n g o ra . T e s a u ro ta m b é m c r itic a a a g u d e z a h e r m é tic a
e d e s p r o p o r c io n a l n o s g ê n e ro s p ú b lic o s , c o m o a o r a tó r ia s a c r a (cf. II Cannocchiale Arislolelico, p.
10). N o s e rm ã o d a S e x a g é s im a , V ie ira c la s sific a o “ e s tilo a g u d o ” d e “ n e g r o b o ç a l” , m e tá f o r a de
d e t e r m i n a ç ã o e s c r a v is ta q u e , e m c h a v e lin g iiís tic o - te o ló g ic a , a r t ic u l a S a n to A g o s tin h o . T e o lo g ic a ­
m e n te p e n s a d o , o s e r m ã o s a c ro e m q u e a e lo c u ç ã o é d o m i n a n te é, p o r s e r e x c e s s iv a m e n te ''f a l a n t e ”,
q u a s e q u e t o t a l m c n t e “ m u d o ” : o s e n t i d o in t e l i g í v e l o u “ i n t e r i o r ” , r e v e l a d o , d is s o lv e - s e na
p la s t ic i d a d e , s o n o ra e p ic tó r ic a , “ e x t e r io r " , d o s tro p o s e fig u r a s . T a m b é m d e V ie ira são as e x p r e s ­
s õ e s “ a r te d e a z u le ja r ” e “ x a d r e z d e p a la v r a s ” , d e s ig n a n d o a o p e r a ç ã o a n a ló g ic a q u e , n a a g u d e z a ,
faz a to ta l s im e tr ia d a s a n t íte s e s , e “ d e s m a ia r ja s m in s ” , “ d e r r e t e r a u r o r a s ” , “ lis o n je a r p r e c ip íc io s ”,
r e f e r id a s à liv re a s s o c ia ç ã o d a s id é ia s e e fe ito d e in c o n g r u ê n c ia d a e lo c u ç ã o e n g e n h o s a . A c r ític a de
V ie ira a o s e r m ã o o rn a d o , c o m o fa rs a , é s e m e lh a n te à d e T e s a u ro , q u e fa la d a tr a n s f o r m a ç ã o d o
p ú l p i t o d o E v a n g e lh o e m c e n a d e A ris tó fa n e s . C f, P a d r e A n tô n io V ie ira , “ S e r m ã o d a S e x a g é s im a ”,
Sermões, P o rto , L e ã o e I r m ã o s , 1 9 5 9 , v ol. I, p p . 18-21; E m a n u e l e T e s a u ro , op. cit., p . 11. A u to r
s u p o s t o d e m u ita c o m p o s iç ã o à m o d a c u lta , G re g ó rio d e M a to s ta m b é m c r itic a o “ e s tilo c u l t o ” . Cf.
OC. II, p p . 4 8 0 ; 4 8 6 ; 511: O C , IV, p p . 889 e tc ., e m te r m o s m u n o s e m e lh a n t e s a o s d e Q u e v e d o c o n tra
G ó n g o ra . A c r í tic a e s tá p r e v i s t a p e lo m e s m o s is te m a r e tó r ic o , c o n t u d o , e n ã o é c o n tr a d iç ã o (do
g ê n e ro “ fa z o q u e c r i tic a ”), b a s ta n d o o b s e rv a r q u e s e u c r ité r io é o d e c o ro , ta n to o in t e r n o , a d e q u a ­
ç ã o d a li n g u a g e m ao te m a , q u a n t o o e x te r n o , a d e q u a ç ã o d o d is c u r s o à r e c e p ç ã o . A c r í tic a ao
“ c u l tis m o ” , n o s c c u lo XVII, in te g ra -s e ao m o v im e n to d e r e d u ç ã o d e p a d r õ e s r e n a s c e n tis ta s nâo-
m im é tic o s , c o m o os d o “ m a rte íris m o " , ao b m a r is m o d o d ir i g is m o e s ta ta l e re lig io s o . G r a n d e p a rte
d e s s a re d u ç ã o é d e v id a a o fo rte in flu x o d a C o m p a n h ia d e J e s u s , q u e o r d e n a os d is c u r s o s se g u n d o
o Ralio sludiorum.
84. T a n to o e s tilo a s iá tic o q u a n t o o á tic o s ã o escrito s. A a u s te r id a d e , a d ic ç ã o a r c a iz a n te , a s im p lic id a d e
a b r u p t a , a c la re z a a u to c o n s c ie n te d o e s tilo á tic o o p õ e m -se à r e p e tiç ã o h is tr iô n ic a , à a b u n d â n c ia v er­
b a l, à v o lu b ilid a d e e à o b s c u rid a d e ta m b é m a u to c o n s c ie n te s d o e s tilo a s iá tic o . C f. W e sley T rim p i,
“ H o r a c e ’s ut piclurapoesis", op. cil., vol. XXXIV, p. 42.

336

É
O O R N A T O D I A L É T I C O F. A P I N T U R A D O M I S T O

Queimada veja eu a terra,


onde o torpe idiotismo
chama aos entendidos néscios,
aos néscios chama entendidos.
(OC, I, p. 172.)

Que pregue um douto sermão


um alarvc, um asneirão,
e que esgrima em demasia,
quem nunca já na Sofia
soube pôr um argumento:
Anjo bento.
(OC, II, p. 44.)

Ou, com Tesauro:

Conheci um engenho muito bom, mas impetuoso, que, quando lhe tocava a vez de
pregar, julgava-se muito glorioso secom conceitos mordazes eescrituras de duplo senti­
do podia trespassar aquele que tomava por alvo; donde costumava dizer: “Vamos à sáti­
ra”. Isto évício danoso para quem fala e para quem escuta: porque aquele, emvez de vir­
tuoso sedeclara malvado; eeste, nãocompungido, mas pungido eescandalizado separte55.

Como subgênero cômico8586ou espécie sério-cômica do conceptismo enge­


nhoso, a sátira também opera com o ornato dialético próprio do “cultismo” -
agudeza metafórica na elocução e disposição dos conceitos. Ela o faz, contu­
do, para explorar as virtualidades críticas da analogia, da maneira proporcio­
nalmente desproporcional já referida quando se tratou da imagem icástica.
Comum, por exemplo, é a divisão e a subdivisão de um termo, que vai sendo
distribuído por séries de termos que o metaforizam, tendo-se por critério da
equivalência metafórica a homofonia ou a homonímia. Como trocadilho e
antanáclase, a cada ação narrada ou a cada aspecto descrito aplica-se o homô-

85. C f. E m a n u e l e T e s a u ro , “ II G iu d íc io ” , op. cit., p . 11.


86, XII”, op. cit., p p . 3 5 1 -3 5 8 : “Egli é ben vero,
C f. E m a n u e l e T e s a u ro , “ T r a tta to d e ’ r id ic o li - C a p ito lo
che lalvolta la Tema Ridicola per la Matéria; diverrà Satírica per la maniera: se si mottegia in guisa, che si
contamini Taltrui riputalione, peroche allora chiamar non sipuó Defonnilas sine dolore: pongendo il vivo”
(pp. cit., p . 3 5 6 ). C f. ta m b é m L o p e d e V ega, Arte Nuevo de llacer Comédias en este Tiempo (1 6 0 9 ): “Ya
todos saben que silencio tuvo, por sospechosa, un tiempo la comedia, v que de allí nasció tambien la sátira,
que, siendo más cruel, cesó más prestoy dió licencia a la comedia nueva". F. S. E s c r i b a n o y A . P. A lay o , op.
cit., w . 9 6 -1 0 0 , p. 128.

337
A S ÁT I RA E 0 E N GE N H O

nimo - mesmo nome para duas coisas - fazendo as vezes de sinônimo - dois
nomes para uma coisa só de modo que todas as diferenças da homonímia,
efetuadas segundo extensa abertura semântica, são absorvidas na semelhança
sonora dos termos, “sinonímia”, como técnica vocabular da disseminação e
coleta. Assim, por exemplo, “Cura” (padre), “cura” (cuidado; preocupação);
“cura” (salvação; remédio); “curado” (prelazia; sanado); “cura são” (coração;
objeto erótico); “curador” (curandeiro; pactário; bruxo); “cuidar” (cuidar;
pensar; preocupar-se), além dos ecos em “procura”, “loucura”, espelhamento
generalizado em que tudo significa tudo - e nada:

O Cura, a quem toca a cura


de curar esta cidade,
cheia a tem de enfermidade
tão mortal, que não tem cura:
dizem, que a si só se cura
de uma natural sezão,
que lhe dá na ocasião
de ver as Moças no eirado,
com que o Cura é o curado,
e as Moças seu cura são.
Desta meizinha se argúi,
que ao tal Cura assezoado
mais lhe rende o ser curado,
que o Curado, que possui,
grande virtude lhe influi
o curado exterior:
mas o vício interior
Amor curá-lo procura,
porque Amor todo loucura,
se a cura é de louco amor.
Disto cura o nosso Cura,
porque é curador maldito,
mas ao mal de ser cabrito
nunca pôde dar-lhe cura:
É verdade, que a tonsura
meteu o Cabra na Sé,
o quando vai dizer “Te
Deum laudamus” aos doentes,
se lhe resvala entre dentes,
eem lugar de Te diz me [etc.].
(OC, II, pp. 255-256.)

338
O ORNATO D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O

Como espécie sério-cômica do conceptismo engenhoso, a sátira trabalha


com a técnica retórica da evidentia, descrição minuciosa e viva de um objeto
pela enumeração de suas partes sensíveis, reais ou inventadas pela fantasia
poética. Geralmente, a função da evidentia é pôr em relevo o caráter grotesco
de tipos caricaturais: à deformação física da descrição hiperbólica correspon­
dem o ridículo e a deformidade moral, postulados do vício. Para efetuar de­
formação, a evidentia é compositiva, recorrendo tanto à representação seletiva
e padronizada de ações do tipo criticado quanto à sua descrição individua-
lizante87. Geralmente, ainda, alterna narração com descrição, de modo que
circunstâncias da ação são descritivizadas e partes da descrição são narrati-
vizadas. Em ambos os procedimentos, a sátira efetua uma hipertrofia do tipo,
proposto como misto de várias naturezas aproximadas compositivamente
pela fantasia. A amplificação é, portanto, recurso retórico extensivo, de acu­
mulação de partes descritas hiperbolicamente para produzir o efeito
desordenado. Mais uma vez, técnica do utpiclurapoesis: há inúmeros poemas
cujo exórdio afirma a disposição de “pintar”. Termos como “retrato”, “pin­
tor”, “tábua”, “Timantes”, “pincel”, “pincel esfarrapado” são recorrentes. A
fantasia poética ordena os traços discursivos do tipo como quem pinta um
retrato a distância, rápido e generalizante: como um rascunho esquemático.
O detalhismo da descrição é derivado da aproximação e mistura de várias
partes, assim, não necessariamente de minúcia descritiva de cada parte par­
ticular. A sátira costuma iniciar a pintura à maneira medieval, segundo um
eixo vertical correspondente ao movimento do olho, que desce progressiva­
mente da cabeça para os pés. Cada parte do corpo é comparada a coisas mui­
to heteróclitas ou metaforizada por elas, que o traduzem como acumulação
ordenada de pedaços disparatados, segundo o efeito de simultaneidade da
visão das partes. A técnica compositiva de mistos funciona, na poesia, como
a dos grillos88, seres multicéfalos ou acéfalos, de caras duplas, cabeças com
pernas e penas, híbridos feitos de peças heteróclitas da pintura. A amplifica­
ção não é somente extensiva ou quantitativa - como hipérbole, também é
intensiva:

87. C f. Q u i n t i l i a n o , De inslilutione oraloria, t r a d . H e n r i B o r n e c q u e , P a r is , G a r n i c r , 1 9 3 3 , 4 v o ls ., 8 , 3,


61; 8 , 3, 70.
88. Os grillos p u lu l a m n o s q u a d r o s d e B o s c h , c o m o m is to s , q u e D o m F ilip e d e G u c v a r a , p o r v o lta d e
1560, refere em seu s Comentários de la Pintura p o r “ e s t e g ê n e r o d e p i n t u r a q u e s e c h a m a grillo". C f.
J u rg is B a ltru s a itis , Le Moyen Age fantaslique, P a r i s , A . C o l i n , 1 9 5 5 , p p . 1 1 -5 3 . T e s a u r o f a l a d e “ d e s ­
p ro p ó s ito s a p r o p ó s ito ” e d e “ in c o n v e n iê n c ia s c o n v e n ie n te s ” .

339
A SÁTIRA E O ENGENHO

Eu vos retrato, Gregório,


desde a cabeça à tamanca
cum pincel esfarrapado
numa pobríssima tábua.
Tão pobre é vossa gadelha,
que nem de lêndeas é farta,
e inda que cheia de anéis,
são anéis de piaçaba.
Vossa cara é tão estreita,
tão faminta, e apertada,
que dá inveja aos Buçacos,
e que entender às Tebaidas.
Tendes dous dedos de testa,
porque da testa a fachada
quis Deus, e avossa miséria,
que não chegue à polegada.
Os olhos dous ermitães,
que numa lôbrega estância
sempre fazem penitência
nas grutas da vossa cara.
Dous arcos quiseram ser
as sobrancelhas, mas para
os dous arcos se acabarem,
até de pêlo houve faltas.
Vosso pai vos amassou,
porém com miséria tanta,
que temeu a natureza,
que algum membro vos faltara.
Deu-vos tão curto o nariz,
que parece uma migalha,
e no tempo dos catarros
para assoar-vos não basta.
Vós devíeis de ser feito
no tempo, em que a lua anda
pobríssima já de luz,
correndo a minguante quarta [etc.]m.
(OC, VI, pp. 1308-1309.)89

89. C f ., d o m e s m o r o m a n c e , e x e m p l o d e a ç ã o n a r r a d a c o m f u n ç ã o d e s c r i t i v a , t i p i f i c a d o r a : “ V o s s o p a i
v o s a m a s s o u , / p o r é m c o m m i s é r i a t a n t a , / q u e t e m e u a n a t u r e z a , / q u e a l g u m m e m b r o v o s f a lta r a ,
/ [...] / V ó s d e v í e i s d e s e r f e i t o / n o t e m p o , e m q u e a l u a a n d a / p o b r í s s i m a já d e l u z , / c o r r e n d o a

m in g u a n te q u a r ta ” .

340
O ORNATO D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O

Observe-se que a hipérbole é exagero para menos: o léxico, como “esfar­


rapado”, “pobríssima”, “tão pobre”, “estreita”, “faminta”, “apertada”, “misé­
ria”, “polegada”, “penitência”, “faltas”, “tão curto”, “migalha”, “não basta”,
“minguante” etc., constitui a isotopia negativa distribuída parte por parte de
Gregório de Negreiros, o retratado. Física, alegoriza a tibieza moral: tem-se
um tipo de virtude escassa, minguante, mínima, ou nenhuma.
A hipérbole como exagero para mais também é muito generalizada na sá­
tira, compondo monstruosidades. Veja-se a oitava dedicada à puta Andresona:

Esse vaso encharcado, qual Danúbio


dá a crer, que és puta inda ames do dilúvio:
tão velha puta és, que ser podias
Eva das putas, mãe das putarias,
e por puta antiqüíssima puderas
dar idade às idades, e era às eras;
e havendo feito putarias artas,
inda hoje dás a crer, que te não fartas.
( O C ,V , p. 1167.)

Ao narrar ações, a sátira não as leva necessariamente a seu termo de con­


secução lógica, uma vez que funcionam como descrições parciais do tipo, fi­
gurado por retalhos da ação, e também são mescladas pelos comentários irô­
nicos da enunciação, que freqüentemente as interrompe, reorientando-lhes o
sentido. Vejam-se, por exemplo, os seis versos finais da segunda das duas
décimas transcritas abaixo, referentes a um facínora chamado “Surucucu”,
nome de cobra explorado semanticamente como sugestão obscena, sem que
se fale de suas virtualidades de associação fônica. Entre elas, a rima audacio­
samente carnavalizada de “cu/Jesu”, que funde e opõe o baixo e o alto, o sór­
dido e o sublime:

Passou o surucucu,
e como andava no cio,
com um e outro assobio,
pediu a Luísa o cu:
Jesu nome de Jesu,
disse a Mulata assanhada,
se você é cobra mandada
que me quer ferir da escolta
dê uma volta, e na volta
poderá dar-me a dentada.

341
A SATIRA E 0 E N G E N H O

Apenas isto escutou,


quando a boa cobra solta
deu a volta, mas a volta
não foi, a que a namorou:
porque o bom Adão achou
no Paraíso, ao entrar,
sem poder a Eva falar,
jurando o seu nome em vão,
pecou no segundo então,
por no sexto não pecar.
(OC, II, p. 387.)

O andamento entrecortado das ações corresponde à composição dramati­


zada, em que a acumulação efetua rapidez esquemática da cena, ordenando-
a segundo o padrão próprio da oralidade do causo ou da anedota pesada, feita
ao gosto popularesco. Além dos comentários irônicos que a interrompem e
reorientam, a ação também pode ser interrompida por fábula puramente fan­
tástica e divergente, derivada da virtualidade da associação dos motivos de
conceitos aparentemente apenas acessórios da elocução. No caso da décima
acima, por exemplo, os seis versos finais funcionam como um correlato ale­
górico da ação narrada, transpondo-a em outro registro. A composição é mis­
ta, assim, não só pelo léxico, mas pela coexistência, no caso, de “Surucucu” e
“Bíblia”, por exemplo, na referência a Adão.
Outro procedimento consiste em propor um termo, cujo significado é
próprio, como que figurando outro termo de significado próprio que não se
evidencia em um primeiro momento, e que só se revela como metáfora toma­
da ao pé da letra quando uma ação extremamente engenhosa é narrada como
seu desenvolvimento amplificado. A técnica, de muito rigor alegórico no arti­
fício, assemelha-se à da poesia metafísica de Donne ou Cowley, por exemplo.
Leia-se a glosa90:

1 Sois Silvestre tão mancmo,


tão cagão, e tão coitado,
que antes que branco afogado,

90. O m o t e é: “ E m q u a l q u e r r i s c o d e m a r / q u e r e i s , S i l v e s t r e , s e r E m a ; / s e a E m a n o m a r n ã o r e m a , /
c o m o v o s h e i d e s a l v a r ? ” ( O C , V I, p . 1 3 1 2 ) . N a e d i ç ã o J a m e s A m a d o , o m o t e c o n j u g a “ h e i ” , em
p r im e ir a p e s s o a ; c o m o se v e rá , a e s tr u t u r a a le g ó ric o -s ilo g ís tic a d o p o e m a e x ig e “ h e is ” , s e g u n d a do
p lu ra l.

342
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O

d ese ja is ser n egro Em o:


se ao E m o lh e falta o r e m o
d a p ata p a ra nadar,
q u e m se n ão há de espantar,
d e ve r , q u e u m b r a n c o i n d i s c r e t o
se p asse d e branco a preto
E m q u a l q u e r R i s c o d e m ar.
2 A s E m as no m ar não vogam ,
q u e n ão são patos m o d ern o s,
o s p retos n ã o são etern o s,
as av es t a m b é m se afogam :
logo c o m o assim avogam
à d iv in d a d e su p rem a
v o s s o s ais c o m ta n to e m b le m a ,
e v ir a n d o o p a p a -fig o
para livrar d o p erig o
Q u ereis, Silvestre, ser E m a.
3 N e s ta h eresia tão crassa
d u m P itá g o r a s g e n t io ,
c r e n d o , q u e a a lm a é tão vil,
q u e d e u m c o r p o a o u t r o passa:
a vossa sim tem m a is graça,
p o rq u e é a sn eira da gem a:
senão ved e o e n tim em a ,
c o m o t r o c a i s e m tal c a l m a
em E m a o co rp o , e a a lm a ,
Se a E m a n o m a r n ã o rem a.
4 S e n d o erro o tran sm igrar-se
(c o m o P itá g o ra s d isse )
a a lm a é grã p arvoíce
a lm a , e c o r p o tran sm u tar-se:
e se d ev e co n d en a r-se
alm a , e c o r p o tran sm igrar,
e v ó s vos p o ss a is trocar
em E m a , isso nada v o g a ,
p o r q u e se a E m a se afo g a ,
C o m o v o s h e i s d e salvar?

( O C , VI, p p . 1 3 1 2 - 1 3 1 3 . )

Engenhosíssimo, o poema é quase abstrato, pois baseado numa parono-


másia continuada, cujo significado próprio é inverossímil: “Silvestre ser Ema”.

343
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Todas as décimas apresentam a divisão habitual que faz dos quatro primeiros
versos um exórdio e, dos restantes, uma demonstração dos primeiros, por meio
de ações narradas. Assim, por exemplo, a primeira décima se constrói como
demonstração amplificada do ridículo de Silvestre, já efetuado no exórdio
pelas qualificações “manemo”, “cagão”, “coitado”. A disposição é silogística,
feita como entimema que apresenta a conclusão como resultado da analogia
de duas proposições91. Desta forma, Silvestre passa de branco a preto porque
deseja ser Ema, a que falta o remo da pata para nadar.
A relação de “branco”, “preto”, “Ema” e “nadar” não é clara, num pri­
meiro momento, mas explicita-se artificiosamente como conceituosidade
engenhosa, quando se retoma o exórdio da primeira décima e aí se lê a carac­
terização da Ema, no masculino: “negro Emo”. Referido à ave a que falta o
“remo da pata” -trocadilho de “pé”, “remo” e “ave”, reciclado em “patos”,da
segunda décima, e “gema”, da terceira - o adjetivo “negro”, que denota a cor
das penas da ave, funde vários conceitos, com o/raça/,/'imprudência/,/here­
sia/. Seu uso denotativo como adjetivo para a cor da ave e sua aplicação meta­
fórica simultânea permitem afirmar a inadequação ridícula do desejo de Sil­
vestre. Ele é um “branco indiscreto”, isto é, imprudente e néscio: é que, ao
desejar ser “negro Emo” (/cor/, /ave/), Silvestre deseja passar de “branco” a
“preto”, mudando de raça. A caracterização acidental da cor da ave - “negro”
- é retomada como substancial, segundo outra referência - /raça/. Em outros
termos, o sentido literal de um registro - “negro” - é interpretado como cono­
tação de raça e, simultaneamente, a metáfora é reproposta como literalidade:
da qualidade “negro” passa-se ao ridículo de uma ação despropositada, inviável
e estúpida, porque indiscreta: ação própria de negro, segundo tópica retórica
do escravismo colonial. Como deslocamento, a ação é retomada na forma de
sentenças programaticamente ineptas, que mimetizam parodicamente as pre­
missas negativas e a conclusão positiva de um silogismo. Não chegam a for­
mar premissas, aliás, mas enunciados analógicos:

As Em as no m ar não vogam ,
q u e n ã o são p a to s m o d e r n o s,
os p reto s n ã o são etern os.

Pela semelhança, induzem uma conclusão muito artifictosa, que é: “as


aves também se afogam”, em que “aves” é o gênero de “Emas”, espécie, e
“pretos” é termo concluído do jogo conceituoso da expressão “negro Emo” da

91. Ema não nada, Silvestre deseja ser Ema, / Silvestre deseja não nadar.
0 0 RN A I D D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O

primeira décima. Observe-se, o que é retomado no final, a introdução do motivo


da morte pela proposição que refere a temporalidade: “os pretos não são eter­
nos”.
A segunda parte da segunda décima é conclusão de conclusão ou nova
divisão dos conceitos concluídos, que amplia o conceito à “divindade supre­
ma”, outro conceito que será coletado no fina!, em conjunção com “os pretos
não são eternos”.
A terceira décima introduz um análogo distante, “Pitágoras”92. Como se
trata do desejo de transformar-se em ave, a doutrina da metempsicose é ence­
nada com a redivisão de “Silvestre” em “alma” e “corpo”. Sua estupidez, que
é física - deseja trocar o corpo em Ema, que não nada, e morrer afogado no
mar - e política - deseja passar de branco a preto -, tem conclusão moral e
religiosa. O entimema “prova” que, ao desejá-lo, Silvestre sc faz pitagórico,
isto é, hercge. Postulando que a transmigração se dá e que “a alma é tão vil”,
perde-a; por isso, a sua estupidez é “asneira da gema”, em que mais uma vez
se joga com o sentido literal de “gema”, no paradigma das aves.
A quarta décima, finalmente, recupera as anteriores e conclui em chave
alegórico-moral das trocas postuladas por Silvestre - que o poema “troca” o
tempo todo, dramatizando-se tanto no conceptismo engenhoso quanto na re­
dundância: “Sendo o erro transmigrar-se/ (como Pitágoras disse) / a alma, é
grã parvoíce / alma, e corpo transmutar-se [...]/ alma, e corpo transmigrar/ e
vós vos possais trocar” etc. As trocas desejadas por Silvestre são “parvoíce”,
traduzida admiravelmente pelo trocadilho “isso nada voga” = /isso nada vale/,
em termos de crítica cristã do pitagorismo, mas também /isso nada nada/,
com “nada”, indefinido, e “nada”, do verbo “nadar” (das emas, das patas, do
remo, de Silvestre etc.):

p o rq u e se a E m a se afoga

perde-se, segundo a alegoria, a alma:

C o m o v o s h e i s d e s a lv a r ?

A conceituosidade das agudezas é postulada como sendo primeiramente


das coisas e, depois, das palavras - em outros termos, os conceitos engenhosos
da elocução são ornatos que nascem de um juízo da disposição. E, mais uma

92. A referência de Pitágoras como herético é lugar-comum cristão, çríticando-se a doutrina da


metempsicose.

345
A SÁTI RA E O E N G E N H O

vez, como nos exemplos da poesia atribuída a Gregório e do poema de Marino


referidos páginas atrás, a dispersão da peripécia leva a uma unificação final,
proposta como uma variante muito distante do topos metafísico da viagem por
mar, como alegoria da travessia da alma humana pelos perigos da vida terrena.
A sátira, evidentemente, também faz referência interna ao sistema das tópi­
cas retóricas, aqui degradadas em “ema”, “pata”, “negro”, “preto”, como va­
riação conceptista que tende ao estilo baixo, conforme a finalidade sério-gra-
ve, de advertência moral.
Ao operar tanto com descrição quanto com narração, a sátira lança mão
de alguns procedimentos invariantes e sempre presentes. Sem falar do
conceptismo engenhoso da agudeza que os modula a todos, um deles, já refe­
rido, relaciona-se não apenas com a elocução, mas com a disposição dos enun­
ciados. Consiste em manter a isotopia da ação narrada intensificando-a por
meio da elocução como redundância metafórica. A uma ação a, metaforizada
por caracterização a,, segue-se uma ação b, metaforizada por termo que tra­
duz av e assim por diante - ações a, b, c, d, e... traduzidas por outra e outra
metáfora, sempre sinônimas de av A redundância dos termos metafóricos
estabelece descompasso entre si mesma e o andamento sintático do discurso.
Aristotelicamente, se o cômico é sempre uma desarmonia sem dor, a falta de
unidade entre disposição e elocução faz com que os diversos conceitos narra­
dos sejam sempre um metáfora epigramática que funde duas ou mais espécies
de ação, enquanto vai apontando para um ideal fugidio de inteireza atemporal
sempre desfeito por outra ação narrada e, simultaneamente, sempre reproposto
pela elocução metafórica93. E certamente um jogo de muito humor propor
discursos que avançam, segundo a disposição consecutiva de suas partes, para
simultaneamente sabotar-lhes a seqüência, interrompendo-os com “obstácu­
los” metafóricos. Desta maneira, com a técnica da preterição, a sátira produz
um análogo visual das várias ações disseminadas do tipo satirizado: mostra­
do em processo temporal dinâmico, ele é ao mesmo tempo fixado como qua­
dro, na simultaneidade dos traços de sua caricatura. Efeito de estranhamento
contínuo do enunciado pela enunciação, que o reinterpreta com as variações
de um sinônimo em todas as suas diversas ações. Espécie de conflito lógico
entre a extrema mobilidade e variedade das ações, que se encavalam, e a uni­

93. Exemplo jocoso é o de poemas como preterição, em que a enunciação fática metaforiza a vileza ou
insignificância do lipo e da pessoa a que o tipo é referido, como o soneto dirigido ao Conde de
Ericeira, referido páginas atrás. Outro exemplo é o do jogo das formas homônimas que efetuam o
sinônimo e a identidade na grande dispersão dos eventos narrados. É o caso do poema já referido
em que tal jogo se faz com o termo “Cura”.
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O

dade redundante de uma mesma interpretação delas. Implícita na rede con­


ceituai dos sinônimos, tal unidade alegada permite, mais que a significação
particular deles, evidenciar o ponto de onde se faz a enunciação: ponto abs­
trato de fusão e divisão do quiasma, experimentação contínua de várias posi­
ções hierárquicas, morais, políticas, religiosas, sexuais, alegorizadas pelo sen­
sível que as unifica racionalmente, quando operado pelo juízo, que pondera
todas as agudezas. Teatro abstrato, enfim, da unidade e do múltiplo, da subs­
tância e dos acidentes, do eterno e do tempo, do Bem unívoco e de suas ausên­
cias proliferantes em ecos distanciados e próximos.
A sátira também opera de outra maneira: por exemplo, quando narra uma
ação principal interrompida por metáforas pictóricas cuja relação não é de
semelhança semântica, mas de incongruência, pois extraídas de campos se­
mânticos incompossíveis: “eu sou Timantes”, diz a persona quando propõe
a pintura de Câmara Coutinho. O que traz para o quadro é muito variado,
adynata: “um nariz de tucano”, “pés de pato”, “giba de camelo”, “olhos baios”,
“negra vassoura esparramada”, “nariz de embono / com tal sacada, / que en­
tra na escada / duas horas primeiro / que seu dono”, gargantona”, “voz
fanchona”, “dorso burlesco”, “um caracol”, “canastra”, “Etna abrasado” e,
citando o lampadário de Jerônimo Baía, “Alpe nevado”94.
Não levando em conta as regras de uma disposüio bem ordenada, segundo
uma técnica programaticamente inepta - e, por isso, levando-as totalmente
em conta com outra adequação - a sátira abre-se para os jogos da elocução.
Fático, o princípio de ornamentação, que na rígida preceptiva antiga é aces­
sório em relação à ação principal, assume funcionalidade forte, sobrepuja
mesmo as ações narradas, em função do utpicturapoesis: praticamente, tudo é
matéria da elocução.
Relacionada com a fantasia e sua redundância, a amplificação é proce­
dimento central no ornato dialético satírico. Ela isola da ação narrada ou
do aspecto descrito do tipo em pauta determinada sinédoque do físico -
como “nariz”, “vaso”, “cu”, “cara”, “boca”, “braço” - ou da moral - como
“presunçoso”, “arrogante”, “incontinente”, “dissimulado”, “falso” etc. - e
a propõe como emblema moral ou alegoria pictórica do satirizado. Para tan­
to, recorre ainda à subdivisão das partes evidenciadas, como gestualidade,
vestes, modos de falar, odores do corpo e das partes do corpo, hábitos, ti­
ques, emblematizando-as. O “vaso” da dama Josefa abre-se monstruoso,
recebe o buscapé pelo São João e arde, ruína de muitos homens, amplifica­

94. Cf. OC, I, p. 219.

347
A SÁTI RA E O E N G E N H O

do como alusão épica parodicamente efetuada, ubi TroiafuitK', o “mondongo”


do padre Lourenço Ribeiro se espalha e faz feder, retrospectivamente, toda
a sua ascendência mulata até à África capturada em sua “definição ilustra­
da”9596; o “nariz de cocras” do governador Sousa de Meneses, deformidade
física alegorizante da feiura moral de quem vai “O Rabo erguido em corte­
sias mudas, / como quem pelo cu tomava ajudas”97, tem horror da voz tirâ­
nica e põe-se a fugir do “fedor do bocejo”; o “cu de pescar lombrigas” do
governador Câmara Coutinho98910; os incontáveis “cós”, “conos” e “cricas” de
mulatas e outras desfrutáveis"; o “sangue de tatu” dos caramurus'ü0; o
“vestidinho flamante” dos pseudofidalgos101; a “jeribita” dos negros102; aque­
la “parte de cavalo” dos frades103 são exemplares. Técnica de fazer total­
mente visível uma particularidade por meio de sua autonomização fantás­
tica, funciona como sinédoque que,parspro toto, emblematiza um caráter
de tipo ou posição jurídica e o imaginário deles. A parte autonomizada
como emblema funciona, assim, como definição ilustrada de tipos e ações104.
É por ela que se estabelece relação de contigüidade entre os apelidos dos
tipos e as ações preferenciais deles, concentradas na parte: “Frei Porraz”,
“Frei Foderibus”, “Frei Jum ento”, “Frei Sovela”, “Frei Fedor”, “Frei
Fodaz”, “Frei Basilisco”, apelidos de frades em que a parte autonomizada
se fala; ou “Braço de Prata”, por Sousa de Meneses105;” “Tucano”, que repõe
o nariz fálico de Câmara Coutinho; “Lagarto”, que metaforiza os hábitos

95. OC,VI, p. 1357.


96. OC, IV, p, 791.
97. OC, I, p. 158.
98. OC, I, p. 208.
99. Por exemplo, OC, VI, pp. 1303-1307.
100. OC, IV, p. 840.
101. OC, II, p. 430.
102. OC, I, p. 186.
103. OC, I, p. 340.
104. Aristoielicamente, o asléion ou agudeza é um entimema que funciona, como já se viu em exemplos
anteriores, como o gênero comum de duas ou mais espécies de conceitos, que são suas premissas.
As espécies estão prefixadas em tópicas da invenção, pois o asléion é mimético. Assim, a relação das
imagens deve corresponder à relação de coisas, como relação de verba e res. Metáfora aguda, mas
incompatível com o argumento, com a espécie, com a opinião corrente sobre as coisas, com a
clareza etc. c áprepon, inconveniente: o decoro é adequação da linguagem à opinião verossímil. Os
procedimentos da sátira infringem esta preceptiva de unidade, podendo resumir-se como incon­
gruência. Incongruência também prescrita, diga-se bem, pois varia-se a distância, segundo temas e público.
105. “Antonio de Souza de Meneses sucedeu a Roque da Costa Barreto naquele dia [4 de junho de 1682]:
tinha militado na guerra contra os holandeses em Pernambuco, na qual perdeu um braço, que
substituiu por outro de prata, apelido com que cra conhecido, e o seu governo foi cm verdade um

348
0 O R N A T O D I A L É T I C O E A T I N T U R A DO MI S T O

sexuais de Luís Ferreira, seu amante; “Eva atroz”, emblema de putas e,


ainda, da Mulher misoginamente efetuada106 etc. O detalhe amplificado
como emblema e o apelido dos tipos são inverossímeis de aplicação: um mes­
mo epíteto é, muita vez, aplicado a tipos muito diversos que são referidos
a várias pessoas. Da mesma maneira, uma mesma parte, como “nariz”,
“vaso”, “cu” etc., é peça de um código da maledicência.
Emblematizadas pelos epítetos, as partes do corpo e suas operações se
autonomizam dele, assumindo vida própria: são obscenas pela própria au-
tonomização, independentemente do investimento semântico baixo e sór­
dido que possam ter. Geralmente o têm, com intensificação do efeito bur­
lesco da obscenidade. O burlesco expõe justamente o contrário do ideal e
do estilo alto, conferindo sentido moralista à virtude figurada negativamente
nas partes107:

D iz e m , q u e é m u i form osa D o n a Urraca.


Q u e m o sa b e , ou q u e m v iu esta m in h o c a ?
P o d e rá ter f o c in h o d e T aoca,
E p a recer-m e a m im u m a m acaca.

H e i d e qu erê-la, se m v er-lh e a m alaca


E m risco d e esla r p o d re a Sereroca?
E se ela aca so for g a lin h a ch oca,
C o m o h ei d e d a r p o r ela u m a pataca?

A m im m e ten h a m tod os por velh aco


S e a m a r a tal fragon a p o r c a p r ic h o ,
S e m p r im e ir o revê-la até o bu raco.

Q u e p o d e f a c ilm e n t e o m u it o lixo,
Por não lim p a r às v ez e s o m ataco,
T e rem -lh e o s c a x a n d és tapad o o esg u ich o .

(OC,V,p. 1110.)

O mesmo princípio da mistura estilística, que é sempre inadequação


programática entre disposição e elocução, entre discurso tipificador e
referencial discursivo objeto de vituperação, faz a sátira operar como inver­
são irônica do fim previsível da ação ou da descrição efetuadas, lembrando-se

complexo de arbitrariedades e desconcertos.” Cf. I. Accioli & Brás Amaral, Memórias Históricas e
Políticas da Bahia, Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1925, vol. II, p. 136.
106. Cf. OC, II, p. 387.
107. Cf. Wolfram Krõmer, op. cií., p. 79.

349
A SÁTI RA E O E N G E N H O

a conceituação aristotélica da “peripécia”108. Para fazê-lo, a sátira encena dois


amplos paradigmas: o que se refere a pessoas, tendo evidente direção referen­
cial; o que não se refere a elas, mas que opera genericamente, como variante -
estilização, citação, paródia, deformação - de um elenco de caracteres mistu­
rados conforme a fantasia poética10910.
O primeiro subgênero da sátira - “a notícia” ou “ao natural”, conforme
terminologia do século XVII espanhol - centra-se no que os preceptistas do
período conceituam como “verdadeira imitação”. Basicamente, consiste da
mistura estilística de linguagens proporcionalmente aplicada como caricatura
de pessoas do referencial discursivo criticáveis por alguma razão, pessoal,
ética, religiosa, política etc. Funde o gênero épico com o dramático, em narra­
tivas de primeira ou terceira pessoa, que representam, expositiva ou dialogica-
mente, ações de personagens aplicadas a pessoas conhecidas do público: por
exemplo, governadores, magistrados da Relação, comerciantes da Junta do
Comércio, frades e padres, os caramurus da Bahia, certos mulatos, mulheres
públicas, cristãos-novos etc. Geralmente, o modo dramático de tais poemas
consiste em narrarem não o que ocorreu, mas o que sua enunciação vai desen­
volvendo como contemporâneo dela"0. Ocorre, no caso, outra figura da
evidentia: o uso de verbos no presente. Visão direta, na sua maior vivacidade e

108. Exemplar é o soneto paródico, já visto no capítulo I, do ato fisiológico da “dama”.


109. Cf. Bartolomé Torres Naharro, Propalladia (1517), em F. S. Escribano y A. P. Mayo, op. cit., p. 62:
“[...] Comedia a noticia y comedia a fantasia. A noticia se entiende de cosa notay vista en realidade de
verdad [...] a fatnasia, de cosa fantástica ofingida, que tenga color de verdad, aunque no lo sea”. Naharro
está, evidentemente, repropondo a distinção platônica do Sofista de mímese icástica e fantástica.
Cf. também Jacopo Mazzoni, On lhe Defense of lhe Comedy (1587), cit. por William K. Wimsatt Jr. &
Cleanth Brooks, op. cit., p. 404: “Quando Aristóteles disse no princípio da Poética que toda a moda­
lidade de poesia era imitativa, ele pretendeu referir-se àquela imitação que tem por objeto a ima­
gem que brota inteiramente do artifício humano... Platão deixou no Sofista uma exposição das
duas variedades de imitação. A uma deu o nome de icástica; representa coisas verdadeiras deriva­
das de qualquer obra já existente [...] A outra, a que chamou fantástica, é exemplificada em qua­
dros feitos pelo capricho do artista”.
110. São exemplares os dois sonetos em que mãe e filha mulatas presas dialogam com a persona. Veja-se
também a pequena peça dramática cuja didascália diz: “Fugindo uma mulatinha com o sujeito, que
a tinha forrado, descreve o poeta os excessos, e sentimento que mostrava uma Fulana de Lima, sua
senhora” (OC, V, p. 1077). Por exemplo, em diálogos vivíssimos: “Lima - Que hei de ter, minha
Fonseca? / Um tormento, que me mata. / Fugiu Ilária, a mulata, / porque já não quer ser peca: /
despediu-se assim tão seca. / Fonseca - Não chore, que ela virá. / Lima - Jesus! que o mundo dirá! /
que a mandei a Sor Martinho. / Fonseca - Veja em casa do vizinho. / Lima - Meu Estrela, tem-na
lá?” etc. Outro exemplo é o dos poemas polifônicos compostos de epílogos, em que múltiplas vozes
montam um referencial discursivo, diagramando vários pontos de emissão e posições da fala: “Que
falta nesta cidade?.................Verdade / Que mais por sua desonra?.................. Honra / Falta mais
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO . MISTO

simultaneidade, de processos de vida e sua representação deformante1", pro­


põe em ato os atos criticáveis, o que confere maior força ao pathos. Afinal, o
presente atua emotivamente devido à sua concreteza e imediatez, movendo
os afetos"2:

P reza s-ie d e galã, b o n ito , c pu lcro,


E os fed o res da boca é u m sepulcro
A cã es m o r to s te fed e a d en ta d u ra ,
E se h á p u ta , q u e te atura
T a is a le n t o s d e b o c a , o u d e traseiro
E p o r q u e tu as in c e n s a s c o m d in h e iro .
O h á b ito lev a n ta s n o p asseio,
E c u id a s , q u e está n is s o o g a la n te io ,
M o str a s a p ern a m u i lavad a, e e n x u ta ,
se n d o m a n h a de puta
E r g u e r a saia p o r m o str a r as p ern a s,
C o m q u e é s h e r m a f r o d i t a n a s c a v e r n a s [e tc .].

( O C , II, p. 3 4 1 . )

O outro subgênero, menos freqüente na poesia atribuída a Gregório de


Matos e Guerra, é o que o século XVII chama de “fantástica” (na acepção de
comédia fictícia). Opera com a constituição de caracteres, virtudes, vícios e
tipos genericamente tratados, montando-se o poema ora como alegoria enig­
mática, ora como alegoria imperfeita, lota aliegoria oupennixta apertis allegoria.
Bom exemplo é o longo poema “Os Gatos”, imitação de Quevedo, em que
várias espécies de vícios são montados nas falas dos felinos em reunião notur­
na sobre os telhados da Cidade"3. Inclui-se neste subgênero o gênero de poe­
ma paremiológico, como o referido no capítulo I, que começa “Neste mundo
é mais rico quem mais rapa” etc.
Tanto a sátira “ao natural” quanto a “fantástica” operam os mesmos pro­
cedimentos retóricos analisados - ornato dialético, redundância, preterição e

que se lhe ponha?..................Vergonha / O demo a viver se exponha, / por mais que a fama a
exalla, / numa cidade, onde falta / Verdade, Honra, Vergonha”. (OC, I, p. 31.)
111. Cf. Heinrich Lausbcrg, Manual de Retórica Lileraria (Fundamentos de una Ciência de Ia Literatura),
Madrid, Gredos, 1975, 3 vols., vol. 11, pp. 230-231.
112. Cf. Quintiliano, De institutione oratoria, 6, 1,31.
113. Cf. “Satiriza o poeta alegoricamente alguns ladrões, que mais se assinalaram na República, abomi­
nando a variedade, e o modo de furtar” (OC, II, pp. 455-461).

351
A SÁTI RA E O E N G E N H O

inversão de ações, descrição tipifícadora, amplificação intensiva, descompasso


cômico entre elocução e disposição, mistura estilística. Assim, a diferença
entre a mímese “ao natural” e a mímese “fantástica” é determinável segundo
o caso retórico e o tipo e grau de (in)verossimilhança. Lembre-se, rapidamen­
te, que a mímese “ao natural” é particularizante, ao passo que a mímese “fan­
tástica” (no sentido de “fictícia”) é genérica.
Os poemas satíricos sempre aplicam topoi, o que significa que as sátiras
“ao natural”, ainda que refiram pessoas e situações da Cidade, não as imitam
diretamente, mas exploram inadequações entre algumas de suas ações,
criteriosamente selecionadas e amplificadas, e as ações prescritas, nos casos
retóricos aplicados, como virtuosas e justas, segundo uma convenção oratória
e poética do louvor e do vitupério. A deformação incide sobre o tipo como
caricatura, mantendo-se o apelo do verossímil justamente pela inverossimi-
lhança da deformação, que é cômica para a recepção conhecedora da conven­
ção"4. Quanto à mímese “fantástica”, opera por adequação direta de discurso
poético e caso retórico, necessariamente, pois é alusiva e alegórica, jogando
com variações genéricas dos topoi. Em ambos os subgêneros, ainda, e isto é
fundamental, leva-se em conta o público: poemas cujos argumentos constituem
“fábulas verdadeiras” são mais admirados pelo público porque, sendo conhe­
cidas dele, não duvida de sua verossimilhança. Poemas de “fábulas fingidas”,
se também forem verossímeis, são bem aceitos - à semelhança dos grillos e
caprichos de Bosch, como escreve preceptista espanhol"5. O que, muito aristo-
telicamente, implica que a poesia, tanto “natural” quanto “fantástica”, não é
imitação servil das naturezas, uma vez que o objeto proposto como represen­
tação também pode não ser conhecido previamente de nenhum público"6.1456

114. A sátira elimina do criticado tudo quanto não é pertinente no ataque, articulando alguns traços carac­
terísticos. Por exemplo, em Quevedo: “Habíale crecido lanlo el ojo, que no lo cabia en la cara”, referindo-
se à vítima de um alquimista, que pensa nos milhões que ele promete. Cf. F. de Quevedo, “Alquimis-
ta”, La Hora de Todosy la Fortuna con Seso, Paris, Aubier, 1980, cap. XXX, p. 256 (Collection Bilingue).
Cf. na poesia atribuída a Gregório: “Angelinha do Sapato, / valeria um pino de Ouro, / porém tem o
cagadouro/ muito abaixo” (OC, VII, p. 1589); “Vestido de burel um salvajola / Que partes podes ter?
/ de mariola” (OC, II, p. 340); “como sois Padre Miranda, / o vosso podre tresanda” (OC, II, p. 287);
“passeia farfante / muito prezado de amante, / por fora luvas, galões” (OC, II, p. 443); etc.
115. Cf. Ricardo de Turia,Apologético de las Comédias Espanolas (1616), em F. S. Escribano y A. P. Mayo,
op. cit., p. 152. As críticas que são de ocasião e tomadas das especialidades das circunstâncias são as
mais engenhosas, segundo Gracián, porque se conceitua com fundamento. Cf. Baltasar Gracián,
“Discurso XXVII - De las crisis irrisórias”, Artificioy Arte de Ingenio em Obras Completas, Madrid,
Aguilar, 1967, p. 364.
116. Cf. Aristóteles, Poética, 4 ,144Bb 17. Cf. também K S. Escribano y A. P. Mayo, “La Comédia Espanola
en el Siglo XVII” , op. cit., pp. 47-48: “Por encima dei 'decoro’, el siglo XVII, por un forte sentido estético,
cubrió la acción - esto es, la represento - con una leclónica pictórica en que la bellesa e no la mera imilación

352
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O

Por isso, o fim da sátira é a imitação como mímese de caso, discurso de ações
e de caracteres, pintura cuja execução contrafaz o natural, ora por efetuação
de mistos, ora por “hiper-realismo” do fingimento do natural. Justapostas
como mistura estilística, as metáforas pictóricas da sátira deformam, inver­
tem e intensificam aquilo que, na conceituação aristotélica do trágico, é uno
e justo: o caráter.

Con extraneza en todo has de mostrarte


admirable, vistiendo lasfiguras
conforme al tiempo, a la edady al arte.
Al viejo avaro, envuelto em desventuras,
al mancebo, rabiando de celoso,
aljuglar decir mofasy locuras.
Al siervo sin lealtady cauteloso,
a la dama amorosay desabrida,
ya con semblante alegre, ya espantoso.
A la tercera astuta y atrevida,
al lisonjero envuelto en novedades,
y al rufián dar cédulas de vida.
Los afetos aplica a las edades,
si no es que, dando algún ejemplo, quieras
trocar la edad, oficioy calidades.

Los versos han de ser sueltosy bellos


en lenguay propiedad, siempre apartados
que en la trágica alteza puedan vellos.
Si te agradare, pueden ser llegados
al satírico estilo, en que tuvieron
por principio los cômicos osados.
Guarda el decoro quejamás perdieron
en dar conforme el caso que tratares
el estiloy el verso cual hicieron"7.

es más importante que esa acción, por lo que lo psicológico queda mitigado y oscurecido. Este esteticismo
responde a dos princípios estéticos: la idea de que la Naturaleza por mucho cambiar es bella e el principio de
ul pictura poesis. Desde eslepunto de vista podria decirse que toda acción de la comedia espanola es siempre
um metáfora pictórica. Es, pues, errôneo creery seguir afirmando, como todavia se hace, que a los personajes
de la comedia espanola lesfalta psicologia opersonalidadpropia". O que é válido para a sátira , substituin-
do-se “beleza” por “grotesco”.
117. Cf. Juan de la Cueva, Ejemplar Poético (1606), em F. S. Escribano y A. P. Mayo, op. cit., p. 119.

353
A SÁTIRA E O E N G E N H O

A preceptiva é tradicional e, genericamente, postula a unidade dos carac­


teres. Um caráter trágico deve ser grave e nobre, e também conforme à sua
natureza: homem, se for homem; mulher, se for mulher; etc. A sátira tipifica
viciosos e, para atingir seu fim, mescla trágico e cômico, Sêneca com Terêncio,
fazendo grave uma parte, ridícula outra, como escreve Lope de Vega sobre a
tragicomédia, com que a sátira tem afinidade:

Lo trágico v to cômico mezclado,


y Terencio con S é n e c a , a u n q u e sea
como otro Minotauro de Pasife,
harán grave una pane, otra ridícula,
que aquesta variedad deleita mucho;
buen ejemplo nos da la naturaleza,
que por tal variedad tiene belleza

Assim, a sátira troca sexos, idade, ofício e qualidades, pintando misturas


grotescas de caracteres não-conformes com a natureza unitária: homens que
são mulheres, como os sodomitas; servos que são senhores, como os mulatos;
sujos de sangue que passam por limpos, como os cristãos-novos e a restante
gentilidade; religiosos que vivem o mundo, como os padres e frades freiráticos;
pessoas de classes profissionais ou mecânicas que passam por outro, como os
letrados ignorantes e os comerciantes fidalgos; homens de justiça injustos,
como os oficiais da Relação... A esses caracteres falta justamente a unidade
corporificada aristotelicamente na nobreza e na justiça trágicas: a mesma
preceptiva do decoro exige que se fale deles com linguagens despropositadas
que vêm muito a propósito, fazendo-se verossímil a mistura inverossímil do
híbrido. O conselho de Aristóteles não é mantido, num nível do decoro, por­
que já se perdeu o respeito por ele quando se mescla a sentença trágica com a
humildade da baixeza cômica, escreve Lope de Vega"9. Em outro nível, po­
rém, permanece: torna-se adequada a inadequação

porque a la reces lo que es contra el justo


por la mistna razón deleita el gustom.

Assim, pela relação do olhar satírico e do objeto efetuado, a incongruên­


cia das misturas alegoriza o princípio irracional que as agita no tipo satiriza-18920

118. Cf. Lope de Vega, Arte Mucvo dc hacer Comédias en este Tiempo, em F. S. Fscribano v A. P. Mayo, op.
cil., w. 174-180, p. 130.
119. Idcm, w. 190-193, p. 130.
120. Idem, w. 375-376, p. 135.

354
O O R N A T O D IA L É T I C O L: A P I N T U R A DO ,M ISTO

do e, pelo avesso, a proporção do olho, política perfeição da prudência, que é


nobre e justa.
Aristotelicamente, o caráter trágico deve estar conformado à tradição
mítica ou histórica, modelo a ser emulado. Seguindo o preceito comicamente,
a sátira aplica-se tanto a religiosos quanto a seculares que, por não seguirem a
Cristo nem aos ideais épicos da ordem medieval vividos por homens ilustres,
dignos de imitação, tornam-se passíveis de censura121. Também por isso a poe­
sia encomiástica, comum no século X V I I devido à inserção do letrado como
entretenedor e apologista da classe senhorial, é o complemento positivo da
negatividade satírica: a poesia encomiástica ostenta, de forma hiperbólica
impossível de ler hoje sem tédio e ironia, as virtudes da lei natural e positiva
cuja ausência a sátira censura na Cidade. E censura estilizando, sobretudo, a
figura do fidalgo, teoricamente sua encarnação perfeita:

O F id a lg o esclarecid o
traz d e lo n g e a d e s c e n d ê n c ia :
m a s F id a lg o de in flu ên cia
se m ter so la r c o n h e c id o ,
c F id a lg o in tr o d u z id o
e n f r o n h a d o e m f i d a l g u i a 122.

Quando morre o governador Matias da Cunha, vitimado pela “bicha”


que assola Salvador em 1688, um soneto que se atribui a Gregório de Matos
faz-lhe o elogio fúnebre em que um trocadilho, muito gracioso, faz ler a uni­
dade dessas virtudes épicas, cristãs e cortesãs,gentis, em oposição às misturas
viciosas, vulgares, gentias:

121. Cf., por exemplo, OC, IV, p. 857, em que se contrapõem mito cavalheiresco e vulgaridade: “O secu­
lar entendido, / encolhido e mesurado / não pede de envergonhado, / não toma de comedido: /
cortesmente de advertido; / e de humilde cortesão,/ se declara a sua afeição, e como se agravo fora,
/ chama-lhe sua Senhora, / chama-lhe, e pede perdão”.
122. Cf. também OC, IV, p. 907. A título de exemplário das virtudes do cavaleiro cristão, veja-se El
Condi Lucanor, do Infante Dom Juan Alanuel, Ciudad de La Ilabana, Editorial Arte y Literatura,
1984. Nos séculos XVI e XVII El Conde Lucanor é recomendado como livro de cabeceira de discretos
por Castiglione e Gracián. Cf., ainda, sobre tais virtudes - honra, coragem, liberalidade, fé, genti­
leza: OC, I, pp. 5, 142, 152, 153, 154, 165, 170, 176, 177, 178, 179, 182, 183, 191, 192, 199, 203, 213,
217, 226, 227; OC, II, pp. 250, 279, 297, 340, 341, 352, 355, 357, 358, 405, 408, 430, 443, 453, 465,
466,468, 473, 474, 475, 491; OC, III, pp. 646, 647, 649, 651, 716, 723,737; OC, IV, pp. 804, 805, 83S,
839, 895, 896, 898, 899, 900, 901, 902, 904, 910; etc.

355
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Quem há de dar lições de gentileza


A toda a gentileza da Bahia?
(PC, I, p. 154.)

O estoicismo das sentenças paradoxais de Sêneca, que na poesia laudató-


ria vem desenvolvido como elogio do desprendimento exemplar no tema do
desengano, do teatro do mundo e da Fortuna, na sátira se propõe como baliza
do mundo às avessas. A “gentileza”, como síntese cavalheiresca das virtudes
compassivas e letradas - “lealdade, / Valor, prudência” (OC, II, p. 408) -, que
fazem de alguém um “sábio e entendido / de Pedro a imagem” (OC, II, p.
408), fundamenta o código de honra do perfeito cavaleiro cristão, metaforizado
na persona. Assim, uma vez que todo caráter deve ser coerente consigo mes­
mo, devendo ser representado, como quer Aristóteles, na coerência de sua
incoerência quando incoerente, a sátira constrói mistos que, deformando pelo
excesso a proporção virtuosa, não deixam de efetuá-la como pressuposto in-
terpretante.
Quatro leis da unidade e da coerência do caráter perpassam a sátira como
um subtexto positivo e elevado: coerência consigo mesmo; com a tradição mítica
ou histórica; com a condição natural; com o humor grave e sério do trágico. Não são
quatro variedades de tipos ideais a que toda lei se refira isoladamente, mas
quatro variedades de normas de uma única lei positiva: a unidade'21. Exem­
plar desta unidade heróica é a tipificação do Conde do Prado, “Luz” e “flor”,
cuja qualidade sonetos elegíacos ponderam como “sujeita à pensão fera do
morrer”123124. Como quatro aspectos positivos, sua falta ou mistura também
implicam quatro variedades negativas de vícios, defeitos e erros, que infrin­
gem a unidade: caráter ridículo (por exemplo, a pusilanimidade de Pedralves
da Neiva, a gestualidade do Braço de Prata, a presunção genealógica dos
Caramurus, a afetação do comerciante afidalgado etc.), a que se opõe o grave;
caráter excessivo (por exemplo, a crueldade de Câmara Coutinho, que goza ao
fazer e ao ver enforcar; a usura dos negociantes da Junta do Comércio; a tira­
nia do Braço de Prata etc.), a que se opõe o ponderado; caráter contra naluram

123. Cf. Manara Valgimigli, “Introduzione", em Aristóteles, Poética, Bari, Laterza, 1946, pp. 26 e ss.
124. Cf. OC, I, pp. 175-178. Por exemplo, elogio do bom governo: “Digo, que vai desta Praça, / onde em
público teatro / vemos do melhor governo / os mais heróicos ensaios”; tradução das virtudes por
“luz” e afins: “Luminar esclarecido” (175); “Por vossa ausência / às escuras / fica a terra, e não me
espanto,/de que quando o sol se ausenta, / se ausentem da Luz os raios” (177); “A vista dos nossos
olhos/éreis [...] / sem vós cegos ficamos” (177); sublimidade da virtude: “Nesta assistência tão breve
/ nos mostrou o desengano / não ser para pecadores/o comércio de tal Anjo” (178). Cf. também os
sonetos elegíacos - OC, 1, pp. 179, 180, 181, 182 - que ornamentam o Conde em “flor” e “luz”,
“sujeita à pensão fera do morrer” (OC, I, p. 181).

356

jt
O ORNA T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O

(por exemplo, a sodomia de Luís Ferreira, de Câmara Coutinho, do Mariní-


culas; a luxúria dos padres e frades amancebados com negras e mulatas; a
hipocrisia herética dos cristãos-novos; o sexo ilícito das putas etc.), a que se
opõe o caráter segundo a natureza; caráter vicioso (genericamente, todos os sa­
tirizados), a que se opõe o virtuoso. A reclassifícação, aqui, é feita para eviden­
ciar que se trata de variedades, aplicáveis de acordo com a situação, de uma
única oposição: unidade x não-unidade e suas equivalências (puro x impuro,
legítimo x bastardo, discreto x vulgo, entendido x néscio), disseminadas nos poe­
mas como reflexão político-moral que metaforiza a filosofia, segundo um sis­
tema convencional de tópicas epidíticas estudado no capítulo V .
A mesma conceituação seiscentista da sátira como “burlar burlando” que
produz os mistos ridículos para a finalidade moral séria125 permite observar
que suas duas espécies, “ao natural” e “fantástica”, se mesclam com freqüên-
cia. Muitos poemas decididamente referenciais ou “ao natural”, de ataque a
pessoas conhecidas em Salvador em fins do século X V I I - são exemplares os
dos governadores -, alternam a estilização de ações do satirizado com peripé­
cias e alegorias “livres” da fantasia poética, sem relação imediata com o
referencial discursivo da Cidade, como se viu. É o caso da glosa paródica da
mitologia ou da descrição de objetos disparatados. Funcionam como expan­
são metafórica sensibilizadora das ações estilizadas, figurando-as em outros
acidentes e temas, como amplificação. Embora “livres”, não são ilimitadas
enquanto expansões, nem incondicionadas enquanto invenção - pelo contrá­
rio, acham-se repetidas em vários poemas, tornando-se evidente que também
formam repertórios fechados de lugares-comuns fantásticos aplicáveis a várias
situações, como casos. Alguns deles serão estudados adiante, quando se tratar
do gênero demonstrativo e da sua relação com a sátira. Por ora, vejam-se mais
alguns princípios ordenadores do misto poético e de seus casos.
No poema composto de decassílabos agrupados em tercetos, dos quais
alguns já foram citados e cuja didascália ensina que “Defende o Poeta por

125. Cf. Francisco de Quevedo, “Dedicatória” (“A Don Álvaro de Monsalve, Canónigo de la Santa Iglesia
de Toledo, Primada de las Espanas”), op. cit., p. 176: uEl iraiadillo, burla burlando, es de veras. Tiene
cosas de las cosquillas, pucs hace reír con enfado y desesperación
Como se leu no capítulo III deste, subentende tal concepção a interpretação da natureza humana
de Santo Agostinho, reciclada em chave contra-reformista pelos jesuítas ibéricos dos séculos XVI e
XVII. Como na sátira romana de Juvenal, a representação efetua a convicção de que o homem é
malvado por natureza e de que os contemporâneos atingiram o limite da corrupção. Cf. Michele
Bevilacqua, Sulla Storia delia Salira Romana, Roma, Editrice Elia, s/d., p. 118, Ed. litográfica.
Subentende tal concepção o pressuposto racional; cf. OC, IV, p. 939: “A diferença, que há / entre o
homem, e entre o bruto, / é da razão o atributo, / que Deus aos homens nos dá: / logo mais homem
será / o homem, que é mais sagaz, / mais homem o mais racional”.

357
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Seguro, Necessário, e Recto seu Primeiro Intento sobre Satyrizar os Vicios”


(OC, II, p. 469), alguns desses princípios são encenados:

E u sou aq u ele que os p assad os anos


c a n t e i n a m i n h a li r a m a l d i z e n t e
to r p e z a s d o B rasil, v íc io s, e en g a n o s.

E b em q u e os d ecan tei b astan tem en te,


c a n t o s e g u n d a v e z n a m e s m a li ra
o m e s m o a s s u n to e m p le c tr o d ife ren te.

Já s i n t o , q u e m e i n f l a m a , o u q u e m e i n s p i r a
T alia, q u e A n jo é da m in h a g u ard a,
D ê s q u e A p o io m a n d o u , q u e m e assistira.

A rd a B a io n a , e to d o o m u n d o arda,
Q u e , a q u e m d e p r o f is s ã o falta à v e r d a d e ,
N u n c a a D o m i n g a d a s v e r d a d e s tarda.

N e n h u m te m p o e x c e tu a a C rista n d a d e
A o p o b r e p e g u r e ir o do P arnaso
Para falar e m su a lib e r d a d e .

A na rra çã o há d e ig u a la r ao caso,
E se ta lv e z ao c a s o n ã o ig u a la ,
N ã o te n h o por P oeta, o q u e é Pegaso.

D e q u e p o d e s e r v i r c a la r , q u e m c a l a ,
N u n c a s e h á d e f a la r , o q u e s e s e n t e ?
S e m p r e s e h á d e s e n t i r , o q u e s e fala!

Q u a l h o m e m p o d e h aver tão pacien te,


Q u e v e n d o o triste e s ta d o da B a h ia ,
N ã o c h o r e , n ã o su s p ir e , e n ã o la m en te?

Isto faz a d is c r e ta fantesia:


D isc o r r e em u m , e outro d esc o n c erto ,
C o n d e n a o ro u b o , e in crep a a h ip o crisia .

O n é sc io , o ig n o ra n te , o in ex p erto ,
Q u e n ã o e le g e o b o m , n e m m a u reprova,
P or t u d o p assa d e s lu m b r a d o , e in certo.

E q u a n d o v ê t a lv e z na d o c e trova
L o u v a d o o b e m , e o m al v itu p era d o ,
A t u d o faz fo c in h o , c n a d a aprova.

358
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO Al ISTO

D iz logo p ru d en ta ço , c repousado,
F u la n o é u m satírico, c u m lou co,
D e lín gu a m á, de coração danado.

N éscio : se d isso e n te n d e s nada, ou p ou co,


C o m o m o f a s c o m riso, e algazarras
M u s a s , q u e e s t i m o ter, q u a n d o as i n v o c o ?

S e s o u b e r a s fala r, t a m b é m f a l a r a s ,
T a m b é m satirizaras, se sou b eras,
E se f o r a s P o e t a , p o e t i z a r a s .

A ig n o râ n cia d o s h o m e n s d esta s eras


S isu d o s faz ser u n s, o u tr os p r u d e n te s,
Q u e a m u d e z c a n o n i z a b e s t a s fe r a s.

H á b o n s, por n ão p o d e r ser in so le n te s,
O u tr o s há c o m e d id o s d e m ed ro so s,
N ã o m o r d e m o u tr o s n ão, por n ão ter d en tes,

Q u a n to s há, q u e os te lh a d o s têm vid rosos,


E d e ix a m d e atirar sua p ed ra d a
D e su a m e s m a telh a receosos.

U m a s ó n a t u r e z a n o s fo i d a d a :
N ã o crio u D e u s os n a tu ra is d iv erso s,
U m só A d ã o f o r m o u , e e s s e d e n a d a .

T o d o s s o m o s ru in s, to do s preversos,
Só n o s d is tin g u e o v ício , e a v irtude,
D e q u e u n s são c o m c n s a is , ou tr os adversos.

Q u e m m a i o r a t iv e r , d o q u e e u t e r p u d e ,
E s se só m e c e n s u r e , esse m e n ote,
C a l e m - s e o s m a is , c h i t o m , e h aja sa ú d e.

( O C , II, p p . 4 6 9 - 4 7 1 . )

Dobrando-se sobre si mesma, a enunciação instaura distanciamento tem­


poral entre o ato presente de fala e a experiência passada, que efetua como
lembrança. Objetivando-se em um demonstrativo de terceira pessoa, apersona
identifica-se, no ato, com a imagem pública de si mesma, construída como
passado que se atualiza para o destinatário:

E u sou a q u ele, q u e os p assad os anos


c a n t e i n a m i n h a li r a m a l d i z c n t c
to rp eza s d o B rasil, v íc io s, e en g a n o s.

359
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

Já neste primeiro terceto, expiicitam-se princípios retórico-poéticos do


procedimento sistemático de mistura e de inversão crítica: apresenta-se a
matéria do canto - “torpezas do Brasil, vícios, e enganos” - e a maneira de
tratá-la - “na minha lira maldizente”. Como já se viu, a sátira relaciona-se
com o gênero cômico, pois sua matéria são deformidades ridículas, físicas e
morais, ou apenas cômicas. É o adjetivo “maldizente” que a especifica:

A t é a q u i e u e s p e c i f i q u e i p a r a ti d u a s d i f e r e n ç a s d e D e f o r m i d a d e s r id í c u l a s : u m a F í ­
sica, a ou tr a M oral: e d e m o n s t r e i q u e a M o r a l c o n s is te n o s V íc io s v e r g o n h o s o s , n ã o n o s
O p o s t o s , a i n d a q u e e s t e s s e j a m m a i s n o c i v o s . A s s i m , o d i z e r “ Z o i l o é u m l a s c i v o ” se r á
M a t é r i a d e b r i n c a d e i r a s r i d í c u l a s , “ Z o i l o é u m p a r r i c i d a ” : n ã o se r á M a t é r i a d e r is o , m a s d e
e s p a n t o . A s s i m , o m o t e j o s o b r e a p r i m e i r a é R I D ÍC U L O ; s o b r e a o u t r a , M A L E D I C Ê N C I A ^ .

Segundo Tesauro, que interpreta Aristóteles1-7, é a maledicência que dis­


tingue a sátira da comédia, observando-se uma possibilidade de intercâmbio
delas determinada não pela matéria deformada, objeto do canto, mas pelo
modo. Em outros termos, um tema ridículo pela matéria - “torpezas do Bra­
sil, vícios, e enganos” - torna-se satírico, se o riso for articulado com dor. Quando
se zomba de alguém atacando-lhe a reputação, por exemplo, o ridículo efetuado
não pode ser considerado como deformidade sem dor, tratando-se de ridículo
próprio da sátira. O inverso também é válido: uma matéria geralmente trata­
da de maneira mordaz torna-se apenas cômica, se o motejo é feito não para
agredir, mas para brincar, jogar etc. O cômico é uma deformidade sem dor.
Como exemplifica o mesmo Tesauro:

P o i s u m a D e s o n e s t i d a d e a t r i b u í d a a T a i s se r á j o c o s i d a d e ; a L u c r é c i a , s e r á m a l e d i ­
c ê n c ia . T a m b c m u m g r a v e d e lito , p o r q u e é d ifa m a d o e p ú b li c o , se to rn a rá M a té r ia de
r i s í v e i s M o t e j o s 128.
7216

A persona satírica evidencia conhecer a distinção:

E b em que os d ecan tei b astan tem en te


C a n t o s e g u n d a v e z n a m e s m a lira
O m e s m o a s s u n to e m p le c tr o d ife ren te.

126. Cf. Emanuele Tesauro, “Capitolo XII: Trattato de’ ridicoli”, op. cit , p. 355.
127. Aristóteles, Poética, 2.
128. E. Tesauro, op. cil., p. 356.

360
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O

Concedendo ter-se ocupado da matéria baixa “bastantemente” a ponto de


ter-se tornado famosa pela maledicência, apersona se propõe a ocupar-se dela
outra vez - “segunda vez [...] o mesmo assunto”. Muda agora a maneira: “em
plectro diferente”. O poema enuncia-se para o destinatário não como maledi­
cência ou cômico, mas como avaliação grave e séria da matéria e da maneira,
evidenciando-se como espécie de “arte poética” ou código metaprescritivo da
prática satírica. Observe-se que, para isto, sua formulação mimetiza as partes
tradicionais da epopéia. Se os dois primeiros tercetos formam o que se pode
chamar de proposição do tema, os três seguintes glosam a invocação:

Já s in t o , q u e m e i n f la m a , o u q u e m e in sp ir a
T alia, q u e A n j o é da m in h a gu a rd a ,
D ê s q u e A p o io m a n d o u , q u e m e assistira.

A r d a B a io n a , e to d o o m u n d o arda,
Q u e , a q u e m d e p r o f i s s ã o f a l t a à v e r d a d e 1-1'
N u n c a a D o m i n g a d a s v e r d a d e s tarda.

N e n h u m te m p o ex cetu a a C rista n d a d e
A o p ob re p e g u r e ir o d o P arnaso
Para falar e m sua lib erd a d e.

Fingindo o engenho animado pelo furor - “me inflama [...] me inspira” -


de Talia, musa da comédia cujos objetos são, genericamente, “torpezas, vícios,
e enganos”, a persona a metaforiza como “Anjo da guarda”. A equivalência
“Talia-Anjo” efetua sua atividade em chave providencialista: neo-escolasti-
camente, sua poesia é causa segunda, instrumento da ação da vontade divina
no tempo129130. “Boca do Inferno” pelo efeito de maledicência, a persona é uma
“boca da verdade” como causa segunda alegórica. A isotopia / providencia-
lism o/ articula-se nas duas estrofes seguintes, que a amplificam em “Domin­
ga das verdades” e “Cristandade”. A referência ao dia santificado de oração e
confissão, em contraponto à desordem universal do optativo - “Arda Baiona,
e todo o mundo arda” - opera um contraste para a profissão de fé da persona,
ressaltando-lhe a missão: “falar a verdade”. Todo o tempo é tempo para
ela, pois essencial. Por isso, confirmando-se a persona como inspirada e

129. O verso “Que, a quem de profissão fala a verdade” c mais lógico neste contexto, pois “falar a
verdade” é próprio da atividade satírica inflamada por Talia; “falta à verdade” implica uma tercei­
ra pessoa, objeto virtual de sátira, que é tematizada adiante.
130. Cf. Emanuele Tesauro, op. c i t . , p. 29: “ Q u e s t o s i v e d e a c h i a r o n e ’ s a c r i p r o f e l i , le c u i m e r a v i g l i o s e v i s i o n i
a l l r o n o n e r a n o c h e s i m b o l i m e t a f o r i c i e a r g u t e z z e d i v i n e , s u g g e r i t e lo r o d a l s a c r o S p i r i t o ” .

361
A SÁTI RA E O E N G E N H O

porta-voz da revelação que a faz falar em qualquer tempo e lugar, a mesma


“Cristandade” articulada no providencialismo é o destinador e o destinatário
coletivo da ação maledicente, confirmando apersona em sua fé: “em sua liber­
dade”. A expressão, que se refere à inspiração que irrompe a qualquer hora,
como furor, designa também os casos e o léxico, “livres” até à obscenidade,
que concorrem na maledicência satírica para “falar a verdade”. Observe-se,
como reforço desta interpretação, que a persona figura-se como “pobre
pegureiro do Parnaso” em sua profissão de porta-voz, intensificada pela de­
claração de “humildade”. O topos ocorre várias vezes em outros poemas, aliás:

S e m p r e v e e m , e se m p r e falam ,
a té q u e D e u s l h e s d e p a r e ,
q u e m l h e s faça d e justiç a
esta sátira à c id a d e .

( O C , II, p. 4 3 4 . )

ou, lembrando o remédio/veneno dophármakon platônico:

O torrão é f e c u n d o
P a r a a ta l e r v a S a n ta :
P o r q u e e s t a n e g r a t erra
N a s p r o d u ç õ e s , q u e erra,
C ria v e n e n o s m a is q u e b o a planta:
C o m ig o a prova ord en o,
Q u e m e cr io u para m ortal v e n e n o .

( O C , V , p. 1 2 2 2 . )

Apresentadas tais credenciais, passa-se à narração. As ações e descrições


referem tipos viciosos e alternam-se com comentários da enunciação, que as
exemplificam e explicam por mais doze estrofes. As três estrofes finais funcio­
nam como peroração e epílogo.

A n arração há d e ig u a la r ao caso,
E se t a lv e z ao c a s o n ã o ig u a la ,
N ã o te n h o por P oeta, o q u e é Pegaso.

“Caso”, termo por excelência retórico-jurídico, designa não o evento


empírico, como o imaginário policial de hoje costuma propor, mas o lugar-
comum da invenção que deve ser mimetizado e referido à situação da crítica,
sendo investido semanticamente de discursos de seu referencial. Em outros

362

Â
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O

termos, “caso” é matéria e forma para as transformações verossímeis da


elocução poética131. Assim, “igualar ao caso” significa o adequar-se da narra­
ção a tópicas da invenção. A prescrição da distância adequada, não só espa­
cial, mas ideal, como relação de discurso e modelo - “igualarão caso” (e não
“igualar o caso”) - deixa-se ler neste terceto. Neste contexto, “narração” não
significa o que usualmente o termo denota - relato de ações mas uma expli­
cação detalhada da causa que está em questão no caso, já apresentada na pro­
posição: “torpezas do Brasil, vícios, e enganos”. Nesta linha, “igualar ao caso”
significa esgotar a causa por meio de vários procedimentos técnicos adequa­
dos132, como descrições. A narração é, portanto, uma exposição detalhada,
particularizante, daquilo que se apresentou genericamente no início133134.
Teoricamente, a narração deve igualar ao caso apresentado como tema pela
partição da matéria - “torpezas, vícios, e enganos” - em seus elementos. (Sabe-
se que são seis os elementos da narração: pessoa, causa, lugar, tempo, matéria e
coisanA.) O que a persona satírica faz nas onze estrofes seguintes, aliás, ora como
descrição e exposição parcial do estado da causa, como se estivesse ante um
tribunal representado pelo destinatário135, ora por digressões, que interpõem
variantes amplificadoras do que se descreve ou narra. A prescrição retórica
fielmente seguida, “A narração há de igualar ao caso”, implica, justamente, a
crítica dos que não “igualam”: “Não tenho por Poeta, o que é Pegaso”136. Em

131. Cf. José Pellicer de Tovar, Idea de la Comedia de Caslilla. Precepios dei Teatro de Espana y Arte dei
Estilo Moderno Cômico etc., em 1: S. Escribano y A. P. Mayo, op. cit., p. 223: “El octavo precepto es la
elección dei caso, ya sea histórico, ya apócrifo. Porque hay sucesos cn la história y casos en la invención
incapaces de la publicidad dei lealro...” (grifos meus).
132. Quintiliano, De insliluiione oratória, 4,2, 31: “narralio est reifaclae aui ul faclae iililis adpersuadendum
exposilio, vel- ui Apollodorus finit - oralio docens audilorem quid in controvérsia sit”.
133. Cf. Heinrich Lausberg, op. cit., vol. II, p. 261.
134. Martianus M. 1). Capella,Liberde arte rhelorica, em Rhetores LatiniMinores, Ex Codicibus Maximam,
Partem Primum Adhibitis, Emmendabat Carolus Halm, Lipsiae, em Aedibus B. G. Teubneri A.
M D CCCLXIII. Reed. por Brown, Wm. C., Dubuque, Reprint Library, s/d., 46, p. 486. Cf. ainda H.
Lausberg, op. cit., p. 261.
135. Cf. Quintiliano, op. cit., 4, 2, 31: “ncgolii de quo apud iudiccs quaerilur exposilio".
136. Segismundo Spina, Gregário de Matos, São Paulo, Ed. Assunção, s/d., p. 1Ü7. Comentando este verso,
Spina escreve: “Pegaso - por Pégaso, o cavalo alado, nascido do sangue de Medusa, que com uma
patada fez nascer a fonte de Hipocrene, inspiradora dos poetas. Deve entender-se: se o talento literá­
rio do poeta não for bastante para a elaboração poética do assunto, pouco valor tivera a invocação de
Ilipocrene”. Podendo certamente designar o cavalo alado da mitologia - “Não tenho tal por poeta o
que é cavalo" -, conferindo-se a “Pegaso” a conotação de irracionalidade corrente nos muitos “nés­
cio”, “burro", “asno”, “jumento", “frisãode Alpujarras” das sátiras, sugere-se aqui mais uma conotação
de “Pegaso”, que situa o poema no intertexto da sátira romana. Na “Sátira IV”, Juvenal refere um
enorme peixe pescado perto de Ancona, quando Domiciano é imperador. O César convoca o conse-

363
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O

todo caso, “igualar ao caso” não implica “realismo”137. Observe-se que, após esta
estrofe, o poema começa a fazer o que prescreve: as duas estrofes seguintes são
uma digressão que amplifica as razões para satirizar:

D e q u e p o d e se r v ir calar, q u e m cala,
N u n c a se h á d e f a la r , o q u e s e s e n t e ?
S e m p r e s e h á d e s e n t i r , o q u e s e fala!

Q u a l h o m e m p o d e h a v e r tão p a c ie n te ,
Q u e v e n d o o triste e s ta d o da B a h ia ,
N ã o ch o re, n ã o su sp ire, e n ão la m en te?

Nelas, dois temas são entrelaçados: o do “falar a verdade”, já apresenta­


do, e o da indignação do homem justo, comum na sátira romana e na oratória,
em que é recurso retórico para a persuasão. E a estrofe seguinte, contudo, que
permite criticar a noção positivista de “realismo” correntemente aplicada à
sátira. Tem-se de qualificar o termo, aliás, que usualmente é utilizado para
significar “visualidade” e “deformação”, sem se considerar a mediação do
estilo baixo. Não há realismo nas misturas satíricas porque são misturas e não
têm a unidade implícita na noção de reflexo pressuposta no termo:

Isto faz a d is c r e ta fantesia:


D isc o r r e em u m , e ou tro d esc o n c erto ,
C o n d e n a o ro u b o , in c r e p a a h ip ocrisia.

Mais uma vez, ut pictura poesis: a “fantesia”, aqui identificada a uma fa­
culdade do engenho, que “iguala ao caso” ou naturalmente, ou por furor, ou

lho para decidir o melhor modo de cozinhá-lo. A situação é muito ridícula, pelo contraste entre a
solenidade dos argumentos e a futilidade do caso em deliberação. Entre os versos 72 e 118, Juvenal
elenca os conselheiros: o jurisconsulto Pegaso; Crispo, amante da boa vida; Rúbrio, um canalha;
Catulo, monstro de insensibilidade; etc. Depois da discussão, prevalece o parecer de um deles: cons­
truir com urgência um prato capaz de conter o peixe. Basicamente, a sátira evidencia que as discus­
sões igualam ao caso de modo ridículo. Cf. Alichele Bevilacqua, op. cit., p. 92. “Pegaso” admite, pois,
tal conotação, como “letrado néscio”.
137. No sentido, por exemplo, em que o texto abaixo interpreta o poema: “No decorrer da poesia, são
explicitados detidamente o pragmatismo crítico de sua postura lírica e determinadas tendências
marcantes de sua obra satírica. Uma delas é o realismo que, como característica inerente à crítica
de costumes pretendida, é desenvolvido através do visualismo das imagens e da utilização do léxi­
co, eivado de coloquialismos e mesmo de palavras de baixo calão”. Cf. Angela Maria Dias, O Res­
gate da Dissonância: Sátira e Projeto Político Brasileiro, Rio de Janeiro, Centro Dom Vital/INL, 1981,
p. 78.

364

à
O 0 RN ATO D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO . MISTO

por exercício138, é justamente a da agudeza, porque “discreta”139. À maneira


aristotélica, a “fantesia” é um instrumento do entendimento, neste caso: racio­
nal e prudente, é abstrativa e seletiva. Assim, inventa segundo tópicas, junta-
as segundo modelos, enquanto distingue, guiada pelo juízo, que fundamenta
um princípio ou norma ética ideal. Como já se leu, o da unidade. Observe-se
que, no poema em questão, a estrofe seguinte é o desenvolvimento lógico do
tema do juízo, como atividade de ponderação racional atuante na fantasia,
implícito em “discreta fantesia”:

O n é sc io , o ig n o r a n te , o in ex p erto ,
Q u e n ã o e le g e o b o m , n e m m a u reprova,
P or tu d o p a ssa d e s lu m b r a d o , e incerto.

138. Cf. Emanuele Tesauro, II Cannochiale Arislotelico, p. 26: “II nosiro autore [Arist.] discorrendo delta
melafora, la quale (si come per addielro accennammo e per inanzi dimostraremo) possiam chiamare grau
madre di tulle le argulczze, ci’nsegna che ire cose or separate, or congiunle fccondano la menle umana di si
marazigliosi conceui: cioè 1’ingegno, il furore e Vesercizio".
139. Citando e traduzindo Aluratori c Tesauro, Francisco Leitão Ferreira explicita as operações da
fantasia poética: “[...] de três modos se formam dentro de nós todas as imagens. O primeiro modo
é quando o entendimento as produz por si com a sua inata e eficaz virtude, sem que a fantasia se
ocupe em outro ministério mais que servi-lo com as espécies fantásticas, ministrando-lhas por
matéria. O segundo é quando o entendimento e a fantasia se unem para a produção das tais ima­
gens. O terceiro é quando a fantasia por si só as fabrica, sem se aconselhar com o entendimento.
“A primeira produção acontece todas as vezes que o entendimento depois de haver bem julgadas e
escolhidas as imagens, que a fantasia primeiro apreendeu e lhe ministrou, deduz delas outras
imagens novas, que antes não concebera a fantasia. Vê o nosso entendimento que fantasia apreen­
deu e o serviu com as imagens de inumeráveis homens; ele então as ajunta todas e de tantas ima­
gens, ou apreensões particulares, que a apreensiva inferior havia recolhido, produz uma imagem
que antes não havia, concebendo a risibiltdade dos homens em abstrato, ou que todos os homens
são um só risível. Estas e semelhantes imagens são intelectuais e engenhosas, pelo artífice e pelo
artifício; e no grande número e formosura delas entram todos os raciocínios e reparos que faz o
entendimento; e porque os sentidos corporais não podem mandar nem produzir esta imagem, o
entendimento é só quem as concebe, e depois as faz apreender à fantasia. [...]
“A segunda produção sucede quando a fantasia aconselhando-se com o entendimento e ajudando-se
da sua luz, expõe as imagens que apreendeu por meio dos sentidos; ou também quando, unindo ou
separando tais imagens, dá forma e ser a outras novas, que antes não tinha em si; mas com tal
sujeição ao entendimento, que primeiro o consulta, que as exponha. [.,,]
“A última e terceira produção se faz quando a fantasia manda absolutamente com império na alma,
isto é, sem escutar ou executar os conselhos do entendimento, sem se ajudar da sua luz nem procu­
rar a sua aprovação. Assim sucede nos sonhos, nos delírios, nos afetos veementes, nos frenesis e
hipocondrias e em outros sintomas semelhantes que acometem e desordenam o cérebro; porque
então o entendimento não exercita o seu governo, nem tem ação o seu domínio; a mão da fantasia
é que empunha então o cetro e rege a seu modo o reino das imagens”. Cf Francisco Leitão Ferreira,
“Nova Arte de Conceitos”, em Aníbal Pinto de Castro, Retórica e Teorização Literária cm Portugal
(Do Humanismo ao Neoclassicismo), Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1973, pp. 170-172.

365
A SÁTI RA E O E N G E N H O

A crítica se faz aqui, genericamente, como crítica do gosto, marca do “in­


certo”: oposto ao juízo, o gosto é incapacidade de discernimento, indetermi-
nação que “não elege o bom, nem mau reprova”. Próprio do gosto é o deslum­
bramento irracional. A sátira se afirma, assim, como a inversão poética de
uma inversão prática: como inversão de inversão, retifica um abuso, ratifica o
bom uso:

Diz logo prudcntaço, e repousado,


Fulano é um satírico, um louco.
De língua má, de coração danado.

Legível em “prudentaço”, pejorativo da prudência do discreto, o gosto é


irracional: sua estupidez cega sobre si mesma é que o faz presunçoso e afeta­
do, propondo-se como árbitro arrogante que determina, por exemplo, que o
discreto verdadeiro - no caso, “verdadeiro” segundo apersona satírica que é
o prudente capaz de eleger o bom e de reprovar o mau, é irracional (traduzido
por “satírico”, “louco”, que se equivalem neste contexto; pelo efeito “língua
má”; e pela causa “coração danado”). Tópica do contemptus mundi: porque o
mundo anda às avessas, a sátira se propõe para “igualar ao caso”. Além de
significar a adequação da narração a tópicas, conforme o verossímil, a expres­
são também significa os procedimentos que invertem discursivamente as re­
presentações num mundo de inversões, atribuindo a cada tipo seu lugar con­
veniente em discursos convenientes140.
É redutor ler a sátira considerando apenas a deformação grotesca maledi-
cente, pois a voz da prudência, que produz os monstros, captura-os em sua
ponderação como um teatro da transgressão controlada. Assim, as estrofes
seguintes se fazem como amplificação do tema da prudência e da indignação
satíricas:

140. José Pellicer de Tovar, Idea de la Comedia de Caslilla, em F. S. Escribano y A. P. Mayo, op. cit., p. 224:
“Para hablar de las cosas sagradas en actos sacramentales; y en comédias divinas, donde suelen plalicarse
disputas con herejes,forzosa es la teologia, tanto positiva como escolástica. Para decidir o sentenciar muchos
casos legales, la jurisprudência. Para sutilizar en la naturaleza dei amor, sus dislinciones y diferencias, la
füosojia naturaly moral. Para la aplicación de remédiosy antídotos, que son talvez necesarios, la medicina.
Para formar los escuadrones militares que se describen, la matemática, perspectiva, maquinaria y estática.
Para hablar de los cielos, la astrologia. Para pintar el globo terrestrey esférico, la cosmografía. Para demar­
car el mundo, la geografia. Para manejar el computo de los tiempos, la cronologia. Para tratar los sucesos, la
historia. Para entender las cosas dei gobiemo, la política. Para las pinturas, la simetria. Y no esjusto que él
que trata de escribir con propried vaya a consultar cada matéria destas? Pues si no las esludia, ya se ve
cuantos errores ha de contraer”.
“Igualar ao caso” supõe, assim, o domínio de vários códigos, o que é característica do discreto, aliás.

366
O 0 R N A T O D I A L É T I C O 15 A P I N T U R A D O M I S T O

Néscio: se disso entendes nada, ou pouco,


Como mofas com riso, e algazarras
Musas, que estimo ter, quando as invoco?
Se souberas falar, também falaras,
Também satirizaras, se souberas,
E se foras Poeta, poetizaras.
A ignorância dos homens destas eras
Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a mudez canoniza bestas feras.

O tema da prudência rebate-se, como se lê, no da aparência, pela oposi­


ção “sisudos” x “prudentes”. Aparentemente cheios de siso, ou juízo, os “si­
sudos” nem sempre o têm: “[...] a mudez canoniza bestas feras”, reduzindo-se
eles a uma irracionalidade hiperbolizada pela adjetivaçâo pleonástica de “bes­
tas leras”. As duas estrofes seguintes continuam “igualando ao caso”: particu-
larizam “torpezas, vícios, e enganos” da proposição do poema:

Há bons, por não poder ser insolentes,


Outros há comedidos de medrosos,
Não mordem outros não, por não ter dentes.
Quantos há, que os telhados têm vidrosos,
E deixam de atirar sua pedrada
De sua mesma telha receosos.

Amplificação do tema da aparência de prudência, os tipos elencados são


exemplos de hipocrisia determinada por astúcia: “bons [...] não poder ser inso­
lentes”, “comedidos de medrosos”, “não mordem [...] não ter dentes”, “telhados
vidrosos, [...] telha receosos” etc. Termina aqui a narração, generalizando-se o
poema como retomada da matéria da proposição, “torpezas, vícios, e enganos”:

Uma só natureza nos foi dada:


Não criou Deus os naturais diversos,
Um só Adão formou, e esse de nada.

A introdução do tema do Pecado original remete o destinatário ao


providencialismo das estrofes iniciais, funcionando como explicitação teoló­
gica da prudência satírica, reiterada na penúltima estrofe:

Todos somos ruins, todos preversos,


Só nos distingue o vício, e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos.

367
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Reativação da doutrina do Concilio de Trento: a natureza humana está


irremediavelmente manchada da Culpa original, mas é dotada de livre-arbí-
trio aconselhado da luz natural da Graça inata. Inflada de tanta catolicidade,
a persona satírica escolhe evidentemente o caminho do reto agir:

Quem maior a tiver, do que eu ter pude,


Esse só me censure, esse me note,
Calem-se os mais, chitom, e haja saúde.

O poder encenado de mandar calar os que não são virtuosos, isto é, poder
de hierarquizar e classificar desclassificados, na sátira é complementar da
assunção da ação reta. Tecnicamente, portanto, implica a mistura satírica,
tratada aqui conforme os casos a que a narração deve igualar e os procedi­
mentos metafóricos que ordenam os caracteres e tipos viciosos. Trata-se das
tópicas e processos de uma ars laudandi et vituperandi. Em outras palavras, do
gênero epidítico ou demonstrativo.
No Apologético de las Comédias Espanolas referido no início deste capítu­
lo141, Ricardo de Turia defende a tragicomédia de seus críticos tradicionalis­
tas, como se viu. Segundo estes, a poesia cômica não pode admitir persona­
gens graves e sérias, como reis, imperadores e mesmo papas, nem o estilo
adequado a elas, uma vez que o cômico, por implicar o ridículo e o ínfimo,
exige também caracteres inferiores e estilo baixo. Da mesma maneira, são
inverossímeis pastores tão discretos, tão filósofos morais e naturais, como se
tivessem freqüentado as universidades mais famosas142. Rebatendo as críti­
cas, Turia escreve que nenhuma comédia espanhola contemporânea é apenas
cômica, mas tragicomédia, que define: “[...] um misto formado do cômico e do
trágico, tomando deste as pessoas graves, a ação grande, o terror e a comisera­
ção; daquele, o negócio particular, o riso e os donaires”143.
A seguir, recitando Aristóteles, demonstra a diferença entre uma obra
composta e outra mista. A distinção de Turia é pertinente para caracterizar a

141. Ricardo de Turia, Apologético de las Comédias Espanolas (1616), em F. S. Escribano y A. P. Mayo, op.
cit., p. 152.
142. Idem, p. 148. A argumentação de Turia é dirigida contra, por exemplo, críticos como Cristóbal
Suárez de Figueroa, adepto dos antigos, que escreve: “No se acaban de persuadir estos modernos
que, para imitar a los antiguos, debrían llenar sus escritos de sentencias morales, poniendo delante
los ojos aquel loable intento de ensenar el arte de vivir sabiamente, como conviene al buen cômico,
no obstante tenga por fin mover !a risa”. Cf. Cristóbal Suárez de Figueroa, Plaza Universal de Todas
Ciênciasy Aries (Madrid, 1615), em F. S. Escribano y A. P. Mayo, op. cit., p. 146.
143. Ricardo de Turia, Apologético de las Comédias Espanolas, em F. S. Escribano y A. P. Mayo, op. cit., pp.
148-149.

368

Â
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O

sátira, assim, tanto pelos casos, quanto pelos caracteres e tipos que esta ence­
na como misto poético.
A diferença fundamental entre o composto e o misto é a da ordem e a do
resultado: no misto, várias partes juntadas perdem sua forma original e fazem
uma terceira matéria muito diferente delas; no composto, cada parte se conserva
como era antes, sem alterar-se. Segundo Turia, o que decorre da composição não
é um terceiro alterado em diferente forma, mas dois “corpos” que permanecem
o que eram antes de serem compostos, tanto em ato quanto em potência. Assim,
o resultado do misto é comparável ao fabuloso Hermafrodita, por contraste:

Este de homem e mulher formava um terceiro participante de uma e outra nature­


za, de tal maneira misto que não se podia separar uma da outra. O composto é como um
homem e uma mulher que se abraçam e depois voltam, cada um, a seu ser144.

Deslocando a questão do gênero para a da adequação das misturas tragi-


cômicas ao gosto do público contemporâneo, Turia passa a defender os mistos
ab effectu. Quando o público deseja ver sucessos cômicos, trágicos e tragicô-
micos no curto espaço de duas horas, esperando o que é meramente cômico
para o intervalo dos entremezes, deixar de seguir regras não decorre de ignorá-
las. Lugar-comum de ficção, como se vê, também articulado por Lope de Vega,
Tirso de Molina e na sátira atribuída a Gregório de Matos e Guerra, como se
expôs no capítulo I. O mesmo público aftccionado da tragicomédia, informa
Turia, exige que a música das comédias, que começa num tom grave, logo se
torne não só alegre, mas ligeira e buliçosa, avivada com sainetes e mesclas de
danças145. Como sua argumentação é pragmática, Turia teoriza a percepção
que receptores contemporâneos têm de uma obra composta ou mista. Ele o
faz em termos pictóricos do utpictura poesis horaciano, e temporais, da narra­
tiva seqüencial da história.
Escrevendo segundo um velho topos, o de que à natureza mesma não re-
pugna a coexistência de graves e humildes, justificando assim o misto como
mímesis, Turia traduz a oposição como história/pintura. A tragédia e a comédia
antigas, pensadas em termos de extensão e de acabamento, são compostas e,
portanto, graças à unidade de suas partes encadeadas, só são representáveis
de modo seqüencial: “ [...] é na seqüência dos livros ou capítulos que o autor
as distribui”146. Como “história”, oferecem-se ao entendimento ou à memória

144. Idem, pp. 149-150.


145. Idem, p. 151. Cf. também sobre o vulgo, P. José Alcázar, Ortografia Casiellana (1690), em F. S. Escribano
y A. P. Mayo, op. cit., nota 8.
146. Ricardo de Turia, cm F. S. Escribano y A. P. Mayo, op. cit., p. 151.

369
A SÁTI RA E O E N G E N H O

do público com mais dificuldade, contudo, justamente porque se dão parte


por parte e não de uma vez. Em outros termos, argumenta Turia, se é fácil o
entendimento de uma parte isolada, muito clara, não são fáceis a memorização
e a compreensão de seu encadeamento.
A tragicomédia mescla não só gêneros, caracteres, ações e léxico, mas
também a temporalidade das partes, propondo-se à recepção como um análo­
go, plástico ou espacializante, da simultaneidade de vários tempos, categorias
de ação e tipos humanos integrados em cada parte. Muito pictórica, ela com­
prime a seqüência na simultaneidade. Segundo Turia, ela é mais “fácil” por­
que seu apelo é sensível e ilusório, dependendo menos da reflexão e mais da
imediatez das sensações. Como exige menos reflexão, é também mais praze­
rosa, atendendo ao princípio retórico do delectare, principalmente quando
seu público é o vulgo. Levado da sua natureza mista, o público da tragicomé­
dia nela vê “[...] não só o nascimento prodigioso de um príncipe, mas as faça­
nhas que prometeu tão estranho princípio, até ver o fim de seus dias, se gozou
as glórias que seus heróicos feitos lhe prometeram”147.
Da oposição composto/misto e sua tradução como história/pintura, a poesia
conceptista do século XVII retém, geralmente, os segundos termos, hipervalo-
rizando-os como princípio de integração e misto pictórico. Retomando-se o
que já se disse antes sobre a crise renascentista dos lugares-comuns tradicio­
nais da invenção retórico-poética - os opináveis retóricos (endoxa) e os veros­
símeis poéticos (eikona) -, pode-se dizer que a poesia seiscentista os reelabora
como ornato dialético cujo fim principal é o prazer, seja pelo hermetismo
agudo das metáforas que prescrevem a análise discreta do juízo, seja pelas
figurações grotescas da fantasia que atende ao gosto pelo maravilhoso. Como
redução dos vários planos compostos simultaneamente como politematismo na
poesia “maneirista”, o misto é próprio da integração conceptista da agudeza,
como técnica de divisão e fusão metafórica de duas ou mais espécies num
gênero comum. Técnica da fantasia poética, a elocução engenhosa opera o
misto como incongruência programática. Em outros termos, o misto pictóri­
co é o resultado do processo de transferência de um termo metafórico para o
lugar de um termo próprio ou metafórico, sem relação necessária de equiva­
lência semântica com ele, o que produz impropriedades, quebra do decoro,
obscuridade, segundo a preceptiva tradicional contemporânea dessa poesia148.

147. Idem, ibidcm.


148. Emilio Orozco interpreta a oposição composto/misto de Turia, propondo que a defesa da mistura
corresponde à concepção dramática de integração, própria do “barroco”, ao passo que a composi­
ção é característica do pluritematismo "maneirista”. A integração da cena cômica e cantos no tea­
tro de Lope de Vega, por exemplo, obedece a esse sentido do misto, segundo o autor. Assim, compos-

370
O ORNATO DIALÉTICO E A PINTURA DO M ISTO

Desaparecido o conhecimento ativo do sistema doutrinário desses luga-


res-comuns, hoje a incongruência dita “barroca” facilmente é apreendida como
metaforização “livre” - no sentido, por exemplo, da livre associação da ima­
gem surrealista ou de uma originalidade radical, leitura heurística de neovan-
guardas como o concretismo. Para poetas e público do século XVII, contudo, a
incongruência não é um resultado livre nem tampouco a expressão de um modo
singularíssimo e autonomizado de ver o tema. É antes o efeito de representa­
ção do processo pelo qual a metáfora do poema se relaciona com o sistema
tradicional e atuante de tópicas retórico-poéticas nela implícitas como pa­
drões avaliativos de seu desempenho. Basta lembrar, rapidamente, que as cons­
tantes querelas entre defensores dos estilos “clássico” e “moderno”, comuns
no século XVII, assumem a normatividade retórica como árbitro da avaliação.
Assim, a transferência metafórica de um epíteto animado e obsceno para um
objeto inanimado - por exemplo, os “olhos cagões” do governador Sousa de
Meneses - é totalmente programática e prevista para produzir incongruência,
quando infringe a conveniência entre verba e verba, para que o vício retórico
da mescla produza o efeito cômico ou grotesco149. Observe-se também que o
indecoroso é conseguido pela inadequação de res e verba: a translatio sórdida de
“cagões” também fere o decoro externo ao autonomizar “olhos” pela personifi­
cação fantástica. Em outras palavras, na sátira a transferência metafórica que
efetua os mistos incongruentes também se evidencia como processo, à luz de
critérios retóricos normativos, presentes tanto na poesia “clássica” quanto na
“barroca”. No caso desta, que não é “barroca”, mas engenhosa e aguda, o pro­
cesso opera com semelhanças muito distantes entre os termos - por exemplo,
quando “dorso” é traduzido por“Alpe nevado”; com a dessemelhança entre eles
- por exemplo, quando “cara” é traduzido por “fardo de arroz”; com a contrarie­
dade - por exemplo, quando “índios” são efetuados como “pedestre cavalaria”
ou “pênis” é traduzido por “lombriga racional”. Na sátira, não seria preciso
dizê-lo, tais mesclas visam a ironia e o sarcasmo próprios da sua maledicência
indignada, devendo-se observar, contudo, que o procedimento da agudeza é
generalizado, encontrando-se na poesia lírica e em outros gêneros conforme
outros fins. Determinante nas querelas de “clássicos” e “modernos”, assim,
não é a questão da superação das regras, que se mantêm nuns e noutros. A
questão central é a do intervalo da regra, ou seja, a da maior ou menor elastici­
dade de sua aplicação, segundo os verossímeis e os decoros.

to e misto se opõem como desintegração “maneirista” e integração “barroca”. Cf. Emilio Orozco, op.
dl., p. 169.
149. Aristóteles, Retórica, 3, 7, 2.

371
A SÁTI RA li 0 E N G E N H O

Vários lugares-comuns e casos da invenção, desta maneira, são metafori-


zados na poesia seiscentista de forma incongruente, de modo que a inadequação
efetuada é muito conveniente para a representação avaliadora de caracteres
viciosos sem unidade. A elocução conceptista como incongruência ou mala
affeclatio não é, portanto, apenas “excessivamente ornada”, segundo a con­
cepção neoclássica e ornamental da metáfora, muito menos “irracional”, se­
gundo a concepção expressiva romântica e positivista. A formulação mescla­
da, que regradamente constrói caracteres desregrados, é inversão programática
dos preceitos aristotélicos tradicionais de unidade que, no entanto, se man­
têm como padrões avaliativos da deformação. Se, na tragédia, por exemplo, a
pintura dos caracteres subordina-se à ação15015e recebe dela a verossimilhança,
a sátira aproxima-se mais uma vez da comédia quando dissocia a ação - mal­
vada, corrupta - da pintura do caráter - ridículo, sórdido, ínfimo etc. O pro­
cedimento de dissociação subordina-se às deformações da maledicência, con­
tudo, ao contrário do que acontece na comédia, em que a deformação apenas
visa o ridículo. Ao contrário da deformação cômica, enfim, a deformação satí­
rica instrumentaliza os mistos como sensibilização do vício, tendendo à
alegorização.
A pintura dos caracteres viciosos é realizada, via de regra, por meio de
quatro variações metafóricas de uma única oposição. Muito tradicional, é
aquela que retoricamente opõe animado e inanimado15'. Desta maneira, o mis­
to incongruente resulta da transferência metafórica de: a) animado para ani­
mado', b) inanimado para inanimado', c) animado para inanimado', d) inanimado
para animado.
Antes de tratar dessas subdivisões, é oportuno observar que, nos poemas,
a transferência não resulta apenas em uma única isotopia mista, antes em
vários mistos misturados, cujo efeito semântico é intensivo. Opera-se, assim,
com isotopias disparatadas extraídas de vários campos sêmicos, ora como tra­
duções incongruentes de um único termo próprio, dispostas cumulativamen­
te, ora como sucessão sintagmática de várias partes incongruentes acumula­
das e justapostas. Veja-se, como exemplo de várias traduções acumuladas de
um único termo, um pedaço do nariz de Câmara Coutinho:

Nariz de embono
com tal sacada

150. Aristóteles, Poética, 6, 12-21.


151. Quintiliano, De insiituiione oratoria, 8, 6, 9.

372

á
O O RN' ATO D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO . MISTO

que entra na escada


duas horas primeiro
que seu dono.
Nariz, que fala
longe do rosto,
pois na Sé posto
na Praça manda pôr
a guarda em ala.
Membro de olfatos,
mas tão quadrado,
que um Rei coroado
o pode ter por copa
de cem pratos.
Tão temerário
é o tal nariz,
que por um triz
não ficou cantareira
de um armário [etc.].
(OC, 1, p. 220.)

Embora o efeito da correlação metafórica de conceitos distantes, des­


semelhantes e contrários seja invariavelmente incongruente, nunca é incon­
gruente o fundamento de seu processo nem o das próprias metáforas, extraídas de
campos sêmicos de diversas práticas do século XVII. Assim, se alguns poemas
da tradição Gregório de Matos figuram o corpo feminino e o ato sexual em
termos incongruentes e herméticos de alegoria náutica, os mesmos termos
que constituem parte por parte a metáfora continuada e monstruosa do
corpo e do ato são buscados a práticas comerciais e militares ou à tecno­
logia da navegação da época, que explicitam a natureza contemporânea da
ligação dos termos. E muito trivial dizê-lo, mas no Brasil é necessário: a
fantasia poética está sempre limitada pelos paradigmas culturais de inter­
pretação do que é evento digno de ser visto e dito. Esta trivialidade é enun­
ciada programaticamente, aqui, pois descarta de imediato as noções idealis­
tas rotineiras sobre a “Literatura Barroca” como “liberdade de imaginação”,
“constante do espírito humano”, “angústia”, “barroco eterno” e outros mi­
tos do intérprete. É a partir desta trivialidade que se podem enunciar duas
funções da metaforização dessa poesia, evitando-se ainda uma vez sua in­
terpretação psicologista.
Para o poeta do conceito engenhoso, o significado dos temas tratados é
ainda muito mais fundamental que o modo pessoal ou “original” de vê-los;

373
A SÁTI RA li O E N G E N H O

em outras palavras, já se disse inúmeras vezes neste trabalho, as convenções


retóricas de gênero, tópicas, léxico e estilo são absolutamente preliminares,
sobrepujando toda postura “expressiva”. Nada é mais estranho ao poeta en­
genhoso que a “originalidade”, numa sociedade que não conhece a livre-
concorrência burguesa; isto não significa, contudo, como também é muito
rotineiro propor, que as imagens da poesia conceptista sejam “mecânicas”,
“áridas”, “frias”, “fúteis”. Ao contrário, elas dirigem-se a vários sentidos,
muito sensorialmente, sendo útil dizer, porém, que só o fazem por meio de
um cálculo precisamente regrado de suas diferenças e semelhanças152.
Como escreve Robert Weimann, para o poeta “barroco” o que importa é o
processo poético e o resultado da transferência verbal, e não o termo trans­
posto, apenas153. Embora produza resultados semanticamente arbitrários, o
processo de transposição metafórica não é, ele mesmo, como técnica regrada
por preceitos, arbitrário, uma vez que o poeta não aliena o procedimento abs­
traindo o termo metafórico de seu termo próprio, nem tampouco aliena o
termo próprio do figurado, autonomizando a este como elemento meramente
ornamental, acessório. Para ele e para receptores contemporâneos dele, fun­
damental é a ligação de termo a termo. Numa sociedade em que a agudeza é
tanto um processo poético generalizado quanto uma concepção providen-
cialista da história articulados em toda prática, do comércio ao gosto acentuado
pelos trocadilhos e jogos engenhosos de palavras, é justamente a capacidade
de determinar a natureza e o valor das relações de troca simbólica que está
em questão na metáfora incongruente e aguda, o que pressupõe a partilha de
paradigmas culturais através dos quais a transferência é processada, avaliada
e fruída. Com isto, afirma-se algo muito óbvio, mas geralmente obliterado
pela não-consideração dos procedimentos técnicos em muitas análises: o
mesmo poema significa algo muito diverso para um receptor contemporâneo
dele e outro, diga-se, do século XX, dados os paradigmas interpretativos e sua
experiência cultural articulados na recepção em termos de “horizonte de ex­
pectativa”, para falar com Jauss. Por isso mesmo, se a liberdade do processo
de transferência metafórica sofre a restrição dos modelos retóricos, que fun­
cionam como limites convencionais do arbítrio poético, a análise dos poemas
permanece parcial se não leva em conta que a metaforização seiscentista se
faz como ligação aguda de conceitos de uma experiência ou conhecimento
socialmente partilhados por poeta e receptores contemporâneos. Em outros

152. Cf. Rosemond Tuve, op. cit., pp. 43 e ss.


153. Cf. Robert Weimann, Siruciure andSocieiy in Lilcrary History (Sludies in Ilistory and Theory of Hisloncal
Criiicism), expanded edition, Baltimore/London, The Johns Hopkins University Press, 1984, p. 228.

374
0 O R N A T O D I A L É T I C O H A P I N T U R A DO M I S T O

termos, partilha dos paradigmas culturais que, como um crivo semântico do


sentido, definem para eles o que é evento representável e interpretável. Con­
siderar a prática seiscentista da metáfora incongruente como interação dinâ­
mica entre poeta e público, que ativam uma experiência comum refratada e
interpretada segundo várias posições hierárquicas, pode evitar a autonomi-
zação a-histórica de sua estrutura e o conseqüente anacronismo da interpre­
tação15415. Leia-se, a título de exemplo, o soneto:

Ilha de Itaparica, alvas areias,


Alegres praias, frescas, deleitosas,
Ricos polvos, lagostas deliciosas,
Farta de Putas, rica de baleias.
As Putas tais, ou quais não são más preias,
Pícaras, ledas, brandas, carinhosas,
Para o jantar as carnes saborosas,
O pescado excelente para as ceias.
O melão de ouro, a fresca melancia,
Que vem no tempo, em que aos mortais abrasa
O sol inquisidor de tanto oiteiro.
A costa, que o imita na ardentia,
E sobretudo a rica, e nobre casa
Do nosso Capitão Luís Carneiro.
(OC, VI, p. 1522.)

Abstrata em relação ao contexto verbal do poema, em que é dominante


a visualidade pictórica dos elementos naturais que compõem a paisagem
idílica da ilha, é a personificação “inquisidor”, entretanto, que ressalta ime­
diatamente à primeira leitura, como resultado de uma ligação artificiosa,
congruente e incongruente, de conceitos distantes. Em “sol inquisidor” - e
o procedimento é generalizável para toda a poesia do conceito engenhoso -
tal efeito de relevo é obtido porque a metáfora acumula duas funções si­
multâneas. Esquematicamente, uma função mimética, de representação, e
outra intensiva, de avaliação'55, que só se fazem plenamente inteligíveis
quando se leva em conta o padrão cultural da experiência que as integra.

154. Idem, p. 192. Weimann o propõe para todo texto.


155. Idem, pp. 220-221.

375
A SATIRA E O E N G E N H O

Como função mimética ou representativamente fantástica de “sol”, tem-


se na expressão uma transferência de /animado/ para /inanimado/ que efe­
tua uma mescla abstrato-sensorial muito aguda, enquanto objeto e qualidade
metafóricos, de uma situação e de um conceito. Assim, “sol inquisidor” reme­
te o destinatário tanto ao calor tropical da referência “Itaparica” quanto à
idéia ou experiência da ortodoxia do Santo Ofício da Inquisição. Simultânea
a tal representação, que se pode chamar de referencial, a outra função da metá­
fora é valorativa: por ela, a representação proposta substitui um termo pró­
prio, adequado a “sol” - por exemplo, “abrasador” -, evidenciando-se para o
destinatário como procedimento intencional da enunciação devido à incon­
gruência do termo “inquisidor” em relação ao termo “sol” e ao tema tratado
no soneto. Em outras palavras, ao traduzir “sol” pelo valor semântico do prin­
cípio institucional, o “ardor” inquisitorial que prescreve a natureza humana
e o valor das ações, a transferência opera como intensivo da descrição. Por
isso, a metáfora é cumulativa: função representativa, relaciona-se mimetica-
mente com o tema, figurando-o de maneira mais ou menos fantástica; função
valorativa, traça uma perspectiva para o destinatário, relacionando a repre­
sentação com o ponto de vista da enunciação. Esta introduz um sema /políti­
ca156/, bastante estranho ao contexto verbal imediato do poema. “Sol inquisi­
dor” acumula, portanto, várias conotações, algumas bastante abstratas, como as
de /poder político/ ou /ortodoxia religiosa/, outras muito sensórias, como
as de /dinamismo/, /força/ e /calor/. Congruente pelo sema /calor/ e incon­
gruente pelo sema /política/, a metáfora “inquisidor” derrete o mesmo “sol”
como mescla dos dois semas, aquecendo-o com outro calor, o das fogueiras
dos autos-da-fé que ardem no sufixo dinâmico da personificação: “inquisidor”.
A expressão conota, assim, um calor hiperbólico, constante, onipresente e -
suponha-se um destinatário cristão-novo ou judeu - sufocante e terrível, mor­
tal. Tanta luz projetada pela enunciação também ilumina um buraco negro
de ausência: muitas de suas reverberações estão irremediavelmente extintas
para o leitor de hoje, a quem muito felizmente falta a experiência, vivida no
próprio corpo, das práticas terroristas do Santo Ofício.
Retornando aos poemas das mulheres alegorizadas como “barco”, pode-
se dizer agora que sua representação é incongruente e inverossímil, enquanto
efeito mimético, dada a distância dos conceitos/mulher/ e /embarcação/. A
extrema deformação efetuada pela função valorativa das metáforas continua­
das nesses poemas, como hipérbole do ponto de vista da enunciação sobre os
temas “mulher” e/ou “sexo”, contudo, torna a ligação semanticamente in­

156. “Política” no sentido da “teologia política” tratada no capítulo III.

376
0 ORNATO DIALÉTICO E A PINTURA DO M ISTO

congruente das idéiaspragmaticamenie congruente, evidenciando-se como pro­


cesso intencional e resultado irônico-grotesco para público contemporâneo.
Para ele, os paradigmas culturais da misoginia, da limpeza de sangue, da cul­
pa original e da desonra das artes mecânicas, que interpretam tais metáforas,
são natureza inquestionada gravada nos corpos e nas práticas, sem que se fale
do conhecimento náutico.
Na sátira, as transferências metafóricas incongruentes são programáticas;
a avaliação de sua estrutura, função e valor deve, portanto, levar em conta as
duas funções acumuladas na metaforização. Pode-se mesmo dizer que, quan­
to mais incongruente é o efeito, mais ativa é a função valorativa da enunciação
que dramatiza a congruência adequada para o destinatário. Retomam-se aqui
a oposição animado./inanimado e exemplos de suas transferências. Podem ser
substituídos ou multiplicados por outros, facilmente encontráveis nos poe­
mas: o procedimento de transferência é sistêmico.

A n im a d o para A n im a d o

Comum na caracterização pejorativa de tipos como /bestialidade/, a


transferência os exclui da racionalidade neo-escolástica da boa ordem do
corpo político do Estado, representando-os como natureza exterior à cul­
tura, isto é, como obscenidade. Por oposição, a enunciação afirma-se justa
e racional:

[...] mui formosa Dona Urraca / [...] quem viu esta minhoca? / [...] focinho de Taoca, /
[...] a mim uma macaca (OC, V, p. 1110); Caveira mula galega,/ o D eãobw rinhaparda,/
Pereira besta de albarda (OC, II, p. 234); Cônego Abestruz (OC, IV, p. 871); [...] foi Lacaio
de libréia,/ passa aqui de rocinante (OC, IV, p. 904); Frade caracol, / bote esses cornos ao
sol (OC, II, p. 337); Por Frei Basílio sais de São Francisco / E entras Frei Basilisco (OC,
II, p. 339); Frei Buiro, ou Frei Cavalo (OC, IV, p. 801); [...] um Mulataço harpia (OC, II,
p. 329); [...] porque é mulato: / ler sangue de carrapato (OC, IV, p. 793); pedestre cavala­
ria / toda de beiço furado (OC, I, p. 199); Furão das tripas, sanguessuga humana, / com a
lombriga racional se dana / [...] Papagaio humano tc perdeste (OC, II, p. 306); Vós sois
mulata tão mula (OC, VII, p. 1563) etc.

Observe-se ainda que a transferência metafórica de/animado/ para/ani­


mado/ encontra na sátira uma subcategorização que corresponde a qualificar,
com léxico marcado disforicamente como /hum ano/ (metáforas negativas do
judeu, do cristão-novo, do índio, do mulato, do negro, do mercador, do oficial

377
A SÁTIRA E O E N G E N H O

mecânico, da puta), várias situações e vários tipos. Traduzidos invariavelmente


como vis, alinham-se no paradigma /irracionalidade/ das metáforas animais,
como descrição pejorativa e insulto.

I n a n im a d o para I n a n im a d o 157

Transferência operada, geralmente, como descrição fantástica:

A cara é um fardo de arroz,


que por larga, e por comprida
é ração de um Elefante [...]
A boca desempenada
é a ponte de Coimbra.
(OC, II, pp. 281-282.)

Veja-se ainda, como exemplo de transferência em que a função valorativa


da metáfora é levada ao auge da ironia transformada em sarcasmo, a “pintura
graciosa de uma Dama corcovada”. A transferência metafórica dos termos,
que pela função de representação nomeiam “frente” e “costas”, é hiperbolizada
pela equivalência incongruente deles, índice da enunciação como função irô-
nico-valorativa:

Laura minha, o vosso amante


não sabe, por mais que faz,
quando ides para trás,
nem quando para diante:
olha-vos para o semblante,
e vê no peito a cacunda,
pois olha para o espinhaço,
e vendo segundo inchaço,
o tem por cara segunda. [...]
Vindo para mim andando,
cuido (que é cousa nova
trazer no peito a corcova)
que vos ides ausentando:
cuido (estando-vos olhando

157. Quintüiano, De insliiutione oratória, 8, 6, 10: “inanima pro aliis generis eiusdem sumunlur, ul 'classtqM
iminil hahenas”’.

378
O ORNATO DIALÉTICO K A PINTURA DO MISTO

no peito o corcoz tremendo)


que às costas vos estou vendo:
e porque vos vejo assim
vir co’a giba para mim,
que as costas me dais, entendo. [...]
(OC, V, pp. 1265-1266.)

A n im a d o para I n a n im a d o

Como escreve Cícero, toda metáfora judiciosa é emprestada dos senti­


dos, sobretudo da visão, o mais sutil de todos1-8. A transferência metafórica
de/animado/para /inanimado/ como personificação faz com que a coisa per­
sonificada se autonomize, permanecendo contida num mesmo corpo. Pela
personificação, a fantasia encena a contrariedade entre o indivíduo e as espé­
cies que nele se agitam dotadas de vida própria, como insubordinação obsce­
na das operações fisiológicas159. A personificação produz monstros dinâmi­
cos, muito pictóricos:

Chato o nariz de cocras sempre posto:


Te cobre lodo o rosto,
De gatinhas buscando algum jazigo
Adonde o desconheçam por embigo:
Até que se esconde, onde mal o vejo
Por fugir do fedor do teu bocejo.
(OC, I, p. 156.)

Olhos cagões, que cagam sempre à porta,


Me têm esta alma torta.
(OC, I, p. 156.)

Os olhos dous ermitães,


que numa lôbrcga estância
sempre fazem penitência
nas grutas da vossa cara.
(OC, VI, p. 1308.)

D8. M. 3: Cícero, De oralore, 3, 4, 160.


159. Cf. Pierrc Klossmvski, Sade mm prochain (Precede de Le philosophe scélcral), Paris, Scuil, 1967.

379
A SATI RA E 0 H N G H M I O

I n a n im a d o para A n im a d o

Esta transferência faculta os jogos de engenho de maneira muito aguda,


uma vez que os objetos mais disparatados passam a figurar tipos e ações hu­
manas. Exemplar é o poema da negra figurada como barco, em que a
metaforização continuada se faz ler como alegoria imperfeita,permixta apertis
allegoria, de uma relação sexual. A seleção das metáforas é feita com adequa­
ção pragmática à ocupação do destinatário, que é “Capitão”, representado
como personagem muito ativo e eficaz na condução do barco alegórico. O
léxico náutico - prancha, lancha,proa, banda,popa, quilha, fazer água, calafetar,
dar à bomba, brear etc. - tem conotações erótico-obscenas, evidenciando-se
como tal por meio de vocabulário contrastivo - do gênero gentil - próprio de
outro contexto discursivo lírico-amoroso. Evidencia-se, desta maneira, a fun­
ção valorativa da enunciação, cúmplice do destinatário. Veja-se, por exem­
plo, como encena o conhecimento da navegação em lancha mazomba, que
joga de quilha:

Ontem, senhor Capitão


vos vimos deitar prancha,
embarcar-vos numa lancha
de gentil navegação:
a lancha era um galeão,
que joga trinta por banda,
grande proa, alta varanda,
tão grande popa, que dar
podia o cu a beijar
a maior urca de Holanda.
Era tão azevichada,
tão luzente, e tão flamante,
que eu cri, que naquele instante,
saiu do porto breada:
estava tão estancada
que se recusava outra frágua
e assim teve grande mágoa
da lancha por ver, que quando
a estáveis calafetando
então fazia mais água.
Vós destes logo à bomba
com tal pressa, e tal afinco,
que a pusestes como um brinco
mais lisa, que uma pitomba:

380
O OKNATO DIALÉTICO E A PINTURA DO MISTO

como a lancha era mazomba,


jogava tanto de quilha,
que tive por maravilha,
não comê-la o mar salgado,
mas vós tínheis, o cuidado,
de lhe ir metendo a cavilha.
Desde então toda esta terra
vos fez por aclamação
Capitão de guarnição
não só, mas de mar, e guerra:
eu sei, que o Povo não erra,
nem nisto vos faz mercê,
porque sois soldado, que
podeis capitanear
as charruas d’além-mar,
se são urcas de Guiné.
(OC, II, p p . 3 8 0 - 3 8 1 . )

A oposição /animado/ e /inanimado/ e suas quatro combinações, como se


viu, funcionam como operadores de transferências metafóricas que mistu­
ram, aristotelicamente, o gênero, a espécie e o particular. Em outros termos,
através da transferência, o significado de um gênero pode ser transportado
para outro gênero, para a espécie nele incluída, para a espécie não incluída
nele, para um particular nele incluído por meio da espécie, para um particu­
lar nele não incluído por meio da espécie. Desta maneira, pode haver cinco
transferências de gênero: de gênero a gênero, de gênero a espécie, de gênero a
espécie não incluída, de gênero a particular, de gênero a particular não incluí­
do. O significado da espécie pode ser transferido para o seu gênero, ou para
um gênero estranho a ela; ou para um particular nela compreendido, ou para
um particular estranho a ela, compreendido numa outra espécie. Assim, tam­
bém o particular160.
Pelos procedimentos de mistura citados, a elocução da sátira opera com
tópicas de gêneros retóricos tradicionais, principalmente as da ars laudandiet
vituperandx do gênero epidítico ou demonstrativo da oratória.
Este gênero, razoavelmente diferenciado dos outros dois, o genus delibera-
tivum (ars snadendi et dissuadendi) e o genus iudiciale (ars accusandi et venerandi),
é-o devido à sua autonomia relativa de “exercício” verbal, cujo fim se esgota

160. Cf. Lodovico Castelvetro, Poética DArislolele Vulgarízzala eSposla, a cura di Werther Romani, Roma-
Bari, Gius. Laterza & Figli, 1979, 2 vols., vol. II, pp. 37-38.

381
A SÁTIRA K O E N G E N H O

no próprio desempenho do discurso. Enquanto o gênero deliberativo e o judi­


cial tratam de assuntos particulares, levando os ouvintes a uma decisão práti­
ca através do desenvolvimento argumentativo, silogístico, da causa em ques­
tão, o gênero demonstrativo visa a “imprimir suas idéias sobre eles, sem ação
como fim”161. Ele prova com exemplos: sua formulação abreviada é o entimema,
conclusão resultante de duas comparações. Por isso, causa admiração tam­
bém movendo os afetos do público. Ele os move, contudo, pela engenhosidade
das comparações e dos exemplos com que opera, não em termos de prova e
ação, mas de adesão maravilhada ao brilho da elocução. Desta maneira, no
século XVII, as prescrições oratórias do gênero demonstrativo convergem com
as do ornato dialético, principalmente porque este hipervaloriza a ostentação
verbal da analogia - como metáfora, como alegoria hermética, como incon­
gruência, como trocadilho, como aproximação de conceitos distantes, como
agudeza, enfim16-’. Os temas tratados pelo gênero demonstrativo são, aliás, os
que mais se prestam às “cultíssimas culteranias” dos discretos seiscentistas:
os objetos belos e, por oposição, os feios.
Escreve Quintiliano que ao elogio corresponde simetricamente o vitupé-
rio: as regras para louvar o belo (kalón, honestum) são as que valem para vitupe-
rar o feio (aiskrón, turpe), o que se faz segundo modalidades163. Se o elogio de
algo verdadeiramente belo é elogio sério164, é a própria dominante do gênero
demonstrativo - a exibição de virtuosismo verbal - que propicia as modalida­
des em que o elogio, apropriado a coisas sérias, pois verdadeiramente belas, é
aplicado a objetos indignos e ridículos por sua baixeza, insignificância ou feiu­
ra. Aristóteles chama os louvores irônicos d eparádoxa encómia - “encômios
paradoxais”165- e especifica que o encômio tem por tema os atos e suas circuns­

161. Harry Caplan, Rethoric ad Herennium, Cambridge, Harvard University Press, 1954, p. 173.
162. Ileinrieh Lausberg, op. cit., vol. I, p. 211. “Tanto o elemento ‘yirtuosista’ (Vari pour l’art) como
também a seleção dos assuntos do discurso fazem que o gentis demonstrativum se aproxime da poe­
sia, da qual definitivamente se distingue apenas pela ausência da forma métrica. As influências
são recíprocas, pois o gentis demonslraúvum aceita a técnica da poesia tradicional, c, por sua vez,
devolve à poesia como um instrumento a técnica elaborada com detalhe na oratória.”
163. Quintiliano, De instiiulione oraloria, 3, 7, 1: “constai laude ac viluperulione". Cf. também \\ illiam S.
Anderson, Essays on Roman Salire, Princeton, Princeton University Pres.s, 1982, p. 443.
164. Aristóteles, Retórica, 1, 9, 1366a.
165. Idetn, 1, 9, 1366a; 1367b. Os parádoxa encómia são articulados na agudeza conceptista na forma de
iulynala, do gênero “neve ardente” ou “lombriga racional”. A questão da crítica ao “cultismo”,
aflorada páginas atrás, poderia ser reorientada aqui em termos de defensores da oratória deliberativa
- caso de Vieira no Sermão da Sexagésima - e adeptos do gênero demonstrativo - caso dos gongóricos
portugueses, como Frei Domingos de Santo Tomás, pregador famoso na Corte portuguesa em meados
do século XVII, alvo de Vieira no sermão da Sexagésima. A propósito da oratória demonstrativa, cf.

382
0 O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O

tâncias, ao passo que o elogio focaliza a virtude e seus graus como origem de
ações honestas. Aqui, utiliza-se indiferentemente “elogio” e “encômio”, uma
vez que a sátira ataca tanto vícios quanto ações, aproximando-se os dois ter­
mos da tradução latina de Quintiliano, laus, louvor, em oposição a vitvperatio,
vituperação166.
O sistema de defensabilidade elogiosa dos objetos do gênero demonstra­
tivo, segundo classificação de Menandro, tem quatro graus:
1. elogio de objetos inquestionavelmente dignos de elogio-Deus (endoxa);
2. elogio de males graves - demônios (ádoxa);
3. elogio de coisas parcialmente e evidentemente dignas de elogio, parcial­
mente criticáveis, defendendo-se as propriedades criticáveis de maneira par­
cial - (amphidoxa);
4. elogio paradoxal de objetos indignos de qualquer elogio - morte, vile-
za, pobreza, escravidão etc. (parádoxa)'67.
As mesmas regras do elogio valem para a vituperação, ocupando-se esta
dos vícios e, complementarmente, da fixação dos critérios do que é honesto. A
diferença entre o discurso ádoxon eparádoxon é determinada, na sátira, pela
categorização do cômico. Já se viu, com Tesauro, que as deformações satíricas
não são meramente ridículas, no sentido aristotélico da deformidade que faz
rir sem dor, pois trabalham para um ponto de vista sério, movido pelo interes­
se ético e político. A deformação é cômica porque viciosa, apaixonada, embo­
ra não necessariamente ridícula, uma vez que nem todo vício é matéria ridí­
cula. Aristotelicamente, a virtude equivale sempre ao termo médio de dois
extremos: um deles é sempre mais vil e vergonhoso que o outro, segundo os
preceptistas do século XVII, sendo por isso também ridículo. Tome-se a Hon­
ra: menos vergonhoso é o extremo Tirania que o outro, Servidão. O primeiro
é vício mesclado com a força e a altivez do coração, ao passo que o segundo
pressupõe um ânimo vil e impotente. Por isso, o tirano é representado como
deformidade cômica, mas não é ridículo no sentido aludido. Causa riso, mas
com dor. Fosse outro o caráter e fosse o vício o mais vergonhoso dos dois extre-

John W. OWlalley, Praisc and Blame in Renaissance Rome (Rethoric, Doctrine and Reform in lhe
Sacred Oraiors of lhe Papal Court c. 1450-1521), Durham, North Carolina, Duke University Press,
1979.
166. Sobre a etimologia da viluperatio, cf. A. Ernout & A. Meillet, Dictionnaire éiymologique de la langue
Laiine (Hisioire des mois), nouvellc édition revuc, corrigée et augmentcc d’un index, Paris,
Klincksieck, 1939, p. 1118: “vituperare - Le rapport avcc uiiium apparait cncorc dans Rhéi. and
l l e r 2, 27, 44; aviem aut scientiam aul siudium quodpiam uiluperare proplcr corum uilia qui in eo sludio
suni".
167. Cf. Heinrich Lausbcrg, op. cit.y p. 215.

383
A SÁTI RA F. O E N G E N H O

mos, sua encenação também seria ridícula, além de cômica: na Amizade, por
exemplo, mais ridículo é o Adulador que o Traidor, porque a adulação nasce
do ânimo servil, e a traição, do orgulho e da astúcia, que não causam riso, mas
horror168.
Riso com dor e riso sem dor, ridículo e horror são, desta maneira, critérios
distintivos do discurso ádoxon e parádoxon na sátira: como bem escreve
Lausberg, o ádoxon afeta males morais que não comportam nenhuma classe
de jogo, enquanto o parádoxon refere-se a coisas em que o jogo está previsto169.
Assim, como técnica da maledicência satírica, evidencia-se a figura da ironia
como articulação invertida do mesmo virtuosismo verbal ou tradução negativa
de metáforas dos gêneros elevados. A ironia é um dos principais operadores
do ataque em poemas que, desenvolvendo a crítica indireta, utilizam tópicas
do gênero demonstrativo, como “raça” e “sexo”, de maneira programatica-
mente inadequada, produzindo efeitos ridículos na recepção. É, por exem­
plo, o caso já referido do soneto atribuído a Gregório de Matos, cuja formula­
ção lírica apropriada de Camões é alterada, evidenciando-se parodicamente
irônica, quando a convenção alta é referida ao tema vil, como a mulher não-
branca. O mesmo efeito ridículo ocorre quando um vocábulo estranho ao con­
texto discursivo do poema evidencia o jogo depreciativo da maledicência sa­
tírica, como o termo que designa a inconveniência fisiológica de Caterina,
tratada até o final do 14“ verso do soneto com léxico lírico. Pode-se dizer,
portanto, que na sátira osparádoxa encómia vêm articulados, geralmente, na
qualificação ridícula de vícios que fazem rir sem dor. Quanto ao discurso
ádoxon - elogio de males inquestionáveis -, refere-se a vícios que, embora
cômicos pela deformidade, não são ridículos, já que causam dor. No caso, a
ironia evidencia-se intensificada como sarcasmo ou agressão, sendo exempla­
res os poemas contra os governadores, principalmente Câmara Coutinho, ca­
racterizado como “fanchono beato” e mais insultos. Observe-se, ainda, que a
agudeza conceptista e seu pendor para os adynata como “neve ardente”, “pe­
destre cavalaria”, “lombriga racional” etc. são extremamente adequados para
tais jogos da inversão irônica, produzindo incongruências aptas para figurar
fantasticamente o vício e a sua correção pela voz maledicente da enunciação,
senhora dos protocolos.

168. Cf. Emanuele Tesauro, “Trattatodc’ ridicoli”, cit., pp. 351-352. A comédia representa caracteres
inferiores (Aristóteles, Poética, 5, 1), mas o vício nela representado não abarca a totalidade do
inferior, mas só uma parte, aquilo que não causa dor nem perturbação (Poética, 5). A comédia
representa o guclóion, parle do aiskrón - o ridículo, parte do feio. Lembre-sc o rosto deformado pelo
riso que não causa dor quando é visto.
169. Cf. Heinrich Lausberg, e[>. cit., vol. II, p. 215.

384
0 O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O

As descrições da sátira ordenam-se segundo os paradigmas epidíticos


“beleza” e “feiúra”. Aristotelicamente, conotam a moral, uma vez que só é
belo o que é eticamente bom, sendo o feio moralmente mau170. Nesta linha, os
afetos parciais do gênero demonstrativo são o amor admirativo e a veneração
ou o ódio execrador e o desprezo171. Poesia encomiástica e poesia satírica são
complementares, portanto, simetricamente inversas.
Observe-se aqui, conforme faz Quintiliano, a relação da poesia demons­
trativa com o gênero deliberativo da oratória: aquilo que se aconselha num
gênero (suadere, suasoriae) é louvado em outro, o que implica que a função de
vituperação se acompanha imediatamente da função de prescrição. A relação
suadere/laudare indica que, na poesia demonstrativa, apersona encomiástica ou
satírica se enuncia com as características daquele virboíius dicendi peritus da
oratória172, que domina as técnicas discursivas aptas para representar afetos
adequados à situação e ao caso: amor e ódio, veneração e desprezo, tranqüili-
dade e indignação. Justamente por isso, as descrições satíricas funcionam,
assim como na poesia encomiástica e na oratória demonstrativa, como defini­
ção sensibilizadora de caracteres e tipos: a descrição é uma perífrase sensível
do indivíduo173, fazendo ver também a posição assumida pela persona em rela­
ção ao tema. Como perífrase definidora do objeto de elogio ou vituperação, a
descrição epidítica recorre às misturas já estudadas, quando o discurso é satí­
rico. A descrição junta-se a narração de ações, quando o objeto é humano,
como elemento integrante da definição que está sendo efetuada174. Na sátira,

170. Como escreve Lausberg, “elogio” e “vitupério” encontram-se na divisória do plano ético e
estético. Cf. Heinrich Lausberg, op. cit., vol. II, p. 214. Cf. ainda J. Tricot (Introduction, notes
et index), em Aristote, Ethique a Nicomaque, Paris, Librairie Philosophique Vrin, 1967, p. 78:
“C ’esl le domaine du relalif el non de Vabsolu. [...] La valeur d'une action dépend de la manière dom
le group réagil. La louange ei le blârne conslilueni ainsi des crilèrcs assurés du bien ei du mal. Ceiie
iniervention consiante du facleur social s’expnrne par Videnlilé des nolions de bon el de beau: un acie
esl bon s’ilparail beau el s’il esl par conséquenl généralemeni approuvé; un acie esl mauvais s’il esl laid
el blâmé”.
171. Heinrich Lausberg, op. cil., p. 214. Nesta linha, “vício” é “feiúra humana”, dividida em duas, do
corpo e do ânimo. Cada uma delas se divide, por sua vez, em duas: feiúra do ânimo derivada da
maldade e feiúra do ânimo derivada da estupidez; feiúra corporal dolorosa e nociva, feiúra do
corpo não dolorosa nem nociva. Cf. Lodovico Castelvetro, “Seconda parte principale 1449a”, op.
cil., vol. I, p. 127. A sátira opera, basicamente, com as duas feiuras do ânimo - maldade e estupidez
- figuradas nas descrições da feiúra corporal dolorosa e nociva. Nela, o visível metaforiza o moral,
de modo que o feio é também o malvado ou o estúpido.
172. Quintiliano, De instilulione oraioria, 12, 1, 1.
173. Heinrich Lausberg, op. cil., p. 222.
174. Idern, p. 223.

385
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O

assim, a deformação sensível de seres heteróclitos, monstruosos, é metafori-


zação pictórica - “feio” - da deformidade moral postulada - “mau” - e, ainda,
da perspectiva prudente da enunciação. Como já se viu, a deformação acu­
mula duas funções, a de amplificação mimeticamente fantástica e a de
valoração afetiva da enunciação. A mesma mistura se faz, desta maneira, como
um análogo incongruente da ausência de virtude do caráter e do tipo: escolas-
ticamente, lembre-se mais uma vez, todo mal é ausência de Bem. Por isso
mesmo, as perífrases descritivas da sátira definem o indefinível, propondo
para ele a metaforização equivalente à ausência de forma: incongruência, de­
formidade, obscenidade.
É nesta linha, muito convencional, que se deve entender a obscenidade:
além de ser uma técnica do insulto aplicado como apóstrofe, a obscenidade -
geralmente escatológica - alegoriza com partes, substâncias e operações fisio­
lógicas - do gênero “merda”, “cu”, “cagar”, “porra”, “mênstruo”, “mijar”, “va­
so”, “cono”, “có”, “crica” etc. - a qualidade moral ou posição hierárquica ínfi­
mas do caráter e tipo criticados. Embora não aconselhável pelo decoro, a
obscenidade está prescrita como translado sórdida ou genus turpe. Levando-se
em conta a concepção de política do século XVII ibérico, já tratada no capítulo
III, a obscenidade da sátira é sempre semiótica, ou seja, retórica, convenção simbó­
lica para as partes vis e baixas do corpo do Estado que ousam pensar e agir sem
a cabeça ou que devem ser mantidas em seu lugar natural. A convenção, note-
se bem, efetua o obsceno como natureza aos pedaços fora da ordem da cultura
definida pelo código de honra da persona satírica. Embora estejam na natureza,
assim, as paixões não são informais, pois têm codificação retórica. Desta maneira, a
cegueira histórica de muito censor que confunde o signo com o designado não
vê que o fim da sátira, principalmente na obscenidade, é moral. E a metáfora
corporal das relações de amizade e amor do bem comum subvertido pelo ódio
que se efetua nela como evento monstruoso e obsceno, objeto de vituperação.
Para tratar da obscenidade, da incongruência e da monstruosidade das
descrições satíricas, é preciso, portanto, analisá-las segundo tópicas do insulto
e da vituperação. Conforme Quintiliano, que retoma Alenandro, os objetos do
elogio (vituperação) dividem-se por quatro classes: deuses, homens, animais
e seres inanimados175. Elogio e vitupério destas quatro classes de objetos são
formalizados, ainda, segundo subdivisões176que formam lugares-comuns, prin­

175. Quimiliano, De inslilulione oraioria, 3, 7, 6: “[...] quae maieria praecipue quidem in deos ei homines
cadit, esl lamcn et aliorum animalium, etiam carenlium anima”.
176. Quintiliano, op. cit., 3, 7, 10-25. Estes lugares também são articuláveis em outros gêneros, como o
judicial e o deliberativo, quando se subordinam ao fim proposto da decisão quanto ao futuro
(deliberativo) ou da ação quanto ao passado (judicial).

386
O O R N A T O D I A L É T I C O H A P I N T U R A DO M I S T O

cipalmente lugares-comuns de pessoa (loci a persona), que mantêm relação


com a literatura prosopográfica, no gênero do retrato, e biográfica177. Alguns
deles já foram referidos no capítulo I, quando se tratou da “ Vida” escrita pelo
Licenciado Rabelo.
A sátira atribuída a Gregório de Matos e Guerra ocupa-se preponderan­
temente da segunda classe dos objetos exposta por Quintiliano - “homens”.
Para fazê-lo, opera os outros alegoricamente, por vezes: é o caso da classe “ani­
mais”, aplicada em descrições baixas conforme a transferência metafórica já
referida de /animado/ para /animado/. Por vezes, ainda, a sátira também en­
cena a classe /inanimado/ como objeto de ataque. É o caso de “cidade”, trata­
da referencialmente em muitos poemas, ou “Bahia” e “Angola”. A dominan­
te, contudo, é /humano/: lembrem-se os muitos poemas em que “cidade” é
personificada, dramatizando-se suas falas.
É preciso lembrar, ainda, que a recorrência aos lugares-comuns se faz
também como relação entre gênero, espécie, características específicas e di­
ferenças. A relação fornece argumentos para a descrição e narração dos
caracteres e tipos178. Algumas considerações são oportunas, antes de fechar
este capítulo: como escreve Quintiliano, o gênero pouco serve para provar a
espécie, mas é fundamental para excluí-la. Por exemplo, se “árvore”, não se
segue que seja “plátano”; o que não é “árvore”, contudo, não pode de modo
algum ser “plátano”. Assim, também, uma virtude não é forçosamente a jus­
tiça, mas o que não é virtude não pode ser justiça etc. Da mesma maneira, a
espécie fornece meios de provar o gênero; é meio difícil para refutá-lo, contu­
do: o que é justiça sempre é virtude; mas o que não é justiça também pode ser
virtude, como a temperança, a coragem etc. Quanto às características próprias
e diferentes, as primeiras confirmam a definição que está sendo efetuada, ao
passo que as segundas a destroem. A falta de característica própria destrói a
definição, portanto, como definição congruente. Segue-se que a transferência
e mistura de gênero, espécie, característica própria e diferença produzem
indefinição, que na sátira é programática179.
Isto posto, passa-se a cada um desses loci a persona presentes na sátira
atribuída a Gregório de Matos e Guerra, com suas subdivisões mais freqüen-
tes. Como elencos de argumentos, modelam os discursos do referencial local.
Cabe, agora, descrevê-los.

177. Cf. Heinrich Lausberg, op. cil., p. 321. Cf. também Prisciano, “De laude”, Praexercilamina Prisciani
Grammatiãex Hennogene Versa in Rheiores Laüni Minores, Lipsiae, 1863, reed. Brown-Reprint Librarv,
Dubuque, Iowa, s/d., pp. 556 c ss. Cf. também Emporius, Demonstrativa matéria, idcm, pp. 567 e ss.
178. Quintiliano, De institutione oratoria, 5, 10, 15.
179. Idcm, 5, 10, 55-58.

387
_ v_
Os Lugares do Lugar

[...] esta prosa envolta em verso


de um poeta tão perverso.

(OC,V, p. 1077.)

Exibida como efeito grotesco da aplicação de regras da fantasia poética


para agredir rindo, é a obscenidade que abre este capítulo. Não deve provocar
pruridos, senão os das cócegas de Quevedo, que fazem rir com enfado e
desesperação, nem espantar, senão como maravilha do engenho, pois prescre­
ve-se como técnica moral e política de afetar a vontade com a monstruosidade
exemplar. Lida segundo seu funcionamento retórico, que é histórico, a obsce­
nidade se evidencia nos poemas como maledicência que hierarquiza tipos vis
em nome do bem comum. Contra o vulgo, viu-se, é efetuada como diversão do
mesmo, que se delicia com os mistos sórdidos e fantásticos. Tripla articulação,
pois, em que retórica, moral e política se integram para mover e subordinar.
Quando se escreve que não deve escandalizar, fala-se do corpo: sempre
convencional, pois sempre tatuado pela cultura, é absolutamente impossível
pensá-lo num grau zero de si mesmo. A obscenidade metaforiza justamente a
não-linguagem impossível do corpo que não se vê como signo quando exibi­
do e, por isso, dá-se todo à representação cega, ocupando a cena imaginária
com sua natureza monstruosa. Esta é obscena porque, como a sábia etimologia
latina ensina, é ob scaenajora da cena, pondo-se impossivelmente fora da con­
venção simbólica como natureza bestial animada de horrível vida própria.
Na sátira, por isso, o obsceno nunca é o erótico, porque é sempre explícito.

389
A SÁTI RA F. 0 E N G E N H O

O obsceno irrompe do intervalo entre o designado, corpo metaiorizado


pelos pedaços vivos, monstruosamente sobredeterminados do misto poético,
e a teologia-política, que os regula com a economia unitária da alma. Neste
intervalo, quando se anula o contrato que proíbe o fantasma de um corpo
natural, o obsceno surge violentamente, como discurso em que a ortodoxia
inscreve o interdito e o ilícito. São obscenos muitos dos poemas atribuídos a
Gregório de Matos e Guerra não tanto pelos signos óbvios, que se confundem
sempre com o baixo corporal, com a escatologia e com a paixão do resíduo,
antes pela operação simbólica que, postulando a Unidade, apaga a convenção
do uso desses mesmos signos e efetua os corpos como naturalmente bestiais,
isto é, viciosos, e para eles prescreve os remédios da prudência. Na sátira
seiscentista, a natureza é o monstro a exorcizar, tratando-se sempre de produ­
zi-la regrada numa forma unitária que leva tatuada a mancha do Pecado ori­
ginal que a faz carente do consolo das instituições. Negativa, a obscenidade é
sua semelhança malvada, derivada delas. Assim, convém lembrar que é tão
padronizada que seus termos são antes peças de um código, como topoi do
insulto - do gênero “corno”, “puta”, “porca”, “cão”, “perro”, “asno”, “sodoma”,
“cu”, “cono”, “crica”, “pica”, “porra”, “merda” etc. -, que designações
referenciais. Ela é diferencial, flutuando conforme a convenção de tempo,
lugar e imaginário. Por exemplo, nos séculos XVI e XVII, os insultos compos­
tos dos paradigmas animais do “bode” e do “corno” explicitam o código de
honra, já referido, com que homens insultam homens alegando o comporta­
mento sexual padronizadamente obsceno de mulheres. O epíteto “cuco”, por
exemplo, corrente em Gil Vicente e em Shakespeare para significar “corno”,
encontra-se também na sátira ao governador Câmara Coutinho, combinado
na desqualificação de sua ascendência:

P ariu a se u t e m p o u m c u c o ,
u m m o n str o (d igo) in u m a n o ,
q u e n o b ic o era tu c a n o
e n o sa n g u e m a m a lu co .

( O C , I, p. 19 9 .)

Encontra-se também em Quevedo e em Lope de Vega e, na sua variante


“bode”, por exemplo, neste cartello infamante romano do século XVII:

Vi sía li grandíssimo breco


Ferdinando Ricamaior
E putanissima la sua moglie
Rifiulu de’giudei

390
OS LUGARES DO LUGAR

Che sol il boia resta


Dami la querella beccone
Te ho in citlo
Dove solete tener il cazzo
Che ve se tagliara il mosticci'.

No mesmo século XVII, contudo, na Holanda calvinista, o insulto mais


violentamente obsceno e ofensivo é “falido”, uma vez que o termo implica
“danado”, segundo a doutrina da predestinação2.
Lembrando aqui o admirável Klossowski das análises finíssimas de Sade,
a obscenidade é uma insubordinação das funções fisiológicas que só existe
pela permanência das normas3. Em outros termos, só tem vigência em um
sistema de normas que a tornam visível e emolduram. Neste sentido relacionai
é que a sátira opera, não para levá-la a um termo de transgressão utópica -
como tem afirmado a leitura “libertina” de Gregório, ruína de maio de 68 que
na pornografia dos poemas erige o desejo absurdo de liberação de toda norma -,
mas para efetuar o obsceno como contraste negativo e alegoria da ordem. A
monstruosidade obscena, tanto quanto a festa litúrgica, as pompas fúnebres,
os autos-da-fé, a oratória sacra e a pintura religiosa de tema macabro do sécu­
lo XVII, postula unificação e unidade. Neste sentido, a sátira é uma regulação
da alma pela scopia do corpo3: trata-se nela, sempre, de produzir uma alma
virtuosa pelo esquadrinhamento do corpo. Os pedaços fantásticos, órgãos,
fluidos, resíduos, cheiros, membros obscenos que ocupam toda a visibilidade
instaurada pela representação ordenam-se nela por razão programaticamente
perversa, que constrói os monstros em ato para imobilizá-los com o ultraje e
capturá-los na economia unitária da alma. A sátira teatraliza unidade e mis­
tura, estabelecendo dissimetria entre elas: como, por definição, algo sempre
falta na ordem humana, a obscenidade é funcional, explicitando o “não-po-
des” da lei. E o celibato clerical que produz a incontinência, é a inflação cató-

1. Citado por Peter Burke em “A Arte do Insulto na Itália do século XVII”, conferência na Faculdade
dc Educação da USP, 21.8.1986.
Em tradução aproximada: “Aqui está o grandíssimo corno / Fcrdinando Recamador/ E sua mulher
putíssima / Recusada dos judeus / Com quem só o carrasco trepa / Briga comigo, cornudo, / Te
tenho no cu / Onde costumas ter o pau / Que te cortara os bigodes”.
2. Devo esta informação a Pctcr Burke, a quem aqui agradeço.
3. Cf. Pierre Klossowski, Sade mon prochain (Precede de Le philosophe scéléml), Paris, Seu il, 1967, pp.
51-52.
4. Cf. Jacques Lacan, “Du Ba roque”, em Encare, texte ctabli par Jacques-Alain Aliller, Paris, Seuil,
1975, p. 103 (Le Seminaire, livre XX): “La dit-mension de 1'obscénitc, voilà ce par quoi le christia-
nisme ravive la religion des hommes”.

391
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

lica da Bondade que preceitua a hipocrisia, assim como é a oposição comple­


mentar dos sexos masculino e feminino, proposta pelo Cristianismo como
natural, que recua na sodomia5. Não se deveria dar muita importância, en­
fim, à obscenidade dos poemas da tradição Gregório de Matos e Guerra: im­
portância, diga-se, no sentido da moralidade do filisteu que a doutrina como
pouco recomendável para as famílias. A obscenidade é irrisória, pois ultraja o
vicioso com o desvalor absoluto, figurando-o indizível, irrepresentável, infa­
me, pelo mesmo excesso reiterado em dizê-lo, em representá-lo, em fazê-lo
público. Sua irrisão é dupla, voltando-se sobre si mesma, uma vez que a Uni­
dade mítica que seus monstros ilustram é uma solene Ausência. A serviço de
uma utopia política - a correção da Cidade e o bem comum de um mundo
ideal em que o próprio obsceno não teria lugar -, a obscenidade cai sempre
aquém do seu próprio gesto, como lembra Klossowski6. Cega, é pueril, bastan­
do observar sua estrutura de repetição. A repetição dá conta do gesto do sati­
rizado; como um tipo, é personagem do gesto único, da ação única, do desejo
único, maníaco: mercador e usura; padre e luxúria; puta e desonestidade; go­
vernador e tirania; cristão-novoe heresia; pseudofidalgoe presunção; letrado
e estupidez. Relação, portanto, de repetição e de descrição que sempre ence­
nam para o destinatário a memória de uma convenção coletiva do corpo, e
que aqui explicita uma das articulações políticas da sátira.
Ao construir seu tipo como maníaco, a sátira constrói também a interpre­
tação obsessiva dele que o faz não-livre, pois em todas as ocasiões só obedece à
mesma paixão que o escraviza. A não-liberdade do vício faculta à persona satí­
rica aproximar todos os tipos com que opera, genericamente, daquilo que não
tem valor-de-troca nem valor-de-uso, absoluto não-valor investido semiotica-
mente de valores hierárquicos da “política católica” ibérica, a merda onipoten­
te e onipresente nos poemas. Simetricamente inversa do “ouro” do estilo alto
que caracteriza personagens discretas da lírica, espalha-se como estilo sórdi­
do. Por extensão, os órgãos excretores são politizados, segundo as mesmas nor­
mas hierárquicas que, ao proporem a sociedade como um corpo político, pos­
tulam a cabeça como órgão dos melhores, Rei e fidalguia, e as partes inferiores
e ínfimas como órgãos do vulgo e da gente baixa naturalmente subordinados.
Satiricamente, a obscenidade é o efeito da transformação do corpo em
outro, e nela opera o procedimento do ornato dialético do engenho conceptista,
que aproxima e condensa análogos distantes como incongruência. Desta
maneira, a prescrição retórica da adequação da linguagem ao lugar e às pes­

5. Cf. Pierre Klossowski, op. cil., p. 52.


6. Idem, ibidem.

392
OS LUGARES DO LUGAR

soas implica sua deformação obscena como vituperação de viciosos. O efeito é


o de um engenho tomado do furor: “[...] são metáforas atrozes e sério-ridícu-
las, que a um tempo movem o riso e o espanto, quando algum fantasma horrí­
vel é fomentado pelo humor negro”7.
Mímesis fantástica, opera com lugares-comuns de pessoa do gênero demons­
trativo. Como esquemas argumentativos recorrentes em toda a sátira seiscentista,
comparecem aplicados à vituperação segundo misturas determinadas pela figu­
ração do caráter ou tipo. Em todos efetua-se o feio e o imoral. São tabulares, in-
tegrando-se em uma hierarquia de níveis ou subtemas, tratados descritiva e nar­
rativamente. Por exemplo, na caracterização do tipo “tirano”, aplicado aos
governadores Sousa de Meneses e Câmara Coutinho, topoi de “constituição físi­
ca”, “nação”, “origem” e “sexo” formam isotopias pictóricas que amplificam o
tema da tirania interpretando-a segundo vários registros semânticos, como de­
formação corporal, ridículo dos trajes, rusticidade do gesto, vulgaridade, sodomia
etc. De grande coesão, os mesmos topoi repetem-se de poema a poema, como
procedimento de definição ilustrada e constituição de mistos. Como representa­
ção, os topoi modelizam os discursos locais conforme regras do decoro, do ut
picturapoesis, do estilo baixo, da transferência metafórica etc. Simultaneamente,
fazem-no como avaliação ou encenação do julgamento dapersona, refratando-se
as tópicas segundo padrões institucionais do século XVII, como a hierarquia, o
código de honra, o Direito Canônico, a ortodoxia religiosa etc. Assim, o investi­
mento semântico dos topoi recorta-se como dupla ordenação, que determina o
que é o evento dizível e visível, segundo convenções poéticas e teológico-políti-
cas, e o que deve ser sua interpretação adequada.
O inventário que a seguir se faz é sincrônico e pretende, antes de tudo, ser
um levantamento descritivo de esquemas modelizadores de temas e subtemas:
é evidentemente restrito, podendo subdividir-se. São vistos segundo a
preceptiva retórica e o referencial das práticas discursivas do local, acumulan­
do-se os exemplos recortados a poemas diversos para evidenciar o sistema.

H a b it u s C o r p o r is ( C o n stitu iç ã o F ísica )

Segundo Quintiliano e outros retores que retomam Aristóteles, freqüen-


temente se invoca a beleza como prova da luxúria ou a força como prova de
insolência. Seus contrários, a feiura e a fraqueza, inversamente8.

7. Cf. Emanuele Tesauro, II Cannocchialc Aristotelico, p. 32.


8. Quintiliano, De inslitutione oralona, 5, 10, 26: “habilus corporis, duciiur enim frequenier in argumentum
species libidinis, roburpeiulanúae, his contraria in diversum

393
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

Esta tópica aplica-se na sátira como matriz modelizadora de outras - “na­


ção”, “origem”, “sexo”, “idade”, “nome” etc. que fornecem as sinédoques e
as metáforas que a preenchem semanticamente: é por ela que os tipos satiri­
zados são qualificados e, principalmente, é por ela que se efetuam as defor­
mações das anatomias horrorosas, segundo o ut picturapoesis. Posta a operar a
maledicência satírica, a tópica é encenada como falta de unidade das várias
partes justapostas no misto, traduzindo-se como “feio” e, portanto, “imoral”
e “infame”. Mimética e judicativa, a deformidade física alegoriza a deforma­
ção da alma, lembrando-se que a falta de unidade equivale à falsidade:

A boca desem p en ad a
é a p o n te de C oim b ra,
onde não entram , n em saem ,
m a is q u e m en tiras.
O u ça m , olh em ,
v e n h a m , v e n h a m , verão
o F risã o d a B ah ia
q u e está retratado
às m a r a v i , m a r a v i , m a r a v i l h a s .

( O C , II, p. 2 8 2 . )

C a d a pc junto
form a a p eanha,
o n d e se a m a n h a
a e stá tu a d o p ern il,
e do presunto.
A n ca de vaca
m u i d errib ad a,
m a is cavalgad a,
q u e sela de rocim ,
c h a r e l d e faca.
Puta ca n a lh a ,
to r p e , e m a l feita,
A q u e m se ajeita
u m a es tá tu a d e trapo
c h e ia d e p alh a.

( O C , V , p . 1121.)

Técnica do retrato cujo efeito maravilhoso é o monstro, corresponde ao ut


pictura poesis horaciano: pela fusão das partes, efetua-se como indistinção pic­

394
OS LUGARES DO LUGAR

tórica, espécie de esboço programaticamente rápido e grosseiro que, sem a


minúcia descritiva do desenho claro e nítido, apresenta-se de perto como um
borrão. Exige, pois, visão à distância, sendo apropriada para a recepção pú­
blica. Em outros termos, a amplificação das descrições visa também a recep­
ção, adequando-se a ela: a mesma exageração, muito sumária, é apreendida
imediatamente como tal, não exigindo o juízo ou a análise demorada e exaus­
tiva. Muito “intelectual” como composição de mistos, a descrição satírica da
constituição física do tipo aparece como ingênua e sem artifícios, o que agra­
da imediatamente. Um de seus procedimentos consiste não propriamente em
juntar uma parte do corpo a outra parte inanimada ou animada num misto,
mas em autonomizá-la. A insubordinação da parte e da sua função, obscena­
mente dotadas de vida própria, corresponde ao movimento de várias espécies
que se agitam num mesmo indivíduo, com o efeito de incongruência malvada
e irracional. É o que costumeiramente se dá com “nariz”, “olhos”, “boca” ou
“vaso”:

O lh o s ca g õ es, q u e c a g a m se m p r e à porta,
M e t ê m e s ta a lm a torta,

[■••]
C h a t o o n a r iz d e c o c r a s s e m p r e posto:
Te c o b r e to d o o rosto,
D e g a t in h a s b u s c a n d o a lg u m jazigo
A d o n d e o d e s c o n h e ç a m p or em b igo:
A té q u e se e s c o n d e , o n d e m al o vejo
P or fu g ir d o fed or d o teu b ocejo.

( O C , I, p. 15 6 .)

Como na comédia, por esta tópica se representa oguelóion, parte do aiskrón


- o ridículo, parte do feio, mas com dor. “Vício” é, nesta linha, feiúra humana,
dividida em duas, na sátira: do ânimo e do corpo. Cada uma delas se subdivide,
por sua vez, em duas: feiúra do ânimo derivada da maldade ou da estupidez',feiú­
ra do corpo dolorosa e nociva ou não-dolorosa e inócua9. A sátira sobredetermina
a feiúra misturando-lhe as espécies. Assim, o malvado também é estúpido,
pois falta-lhe a prudência do discreto, demonstrando a vileza em expressões e
gestos rústicos e desencontrados, que causam horror. É, por exemplo, o que se
dá na descrição fantástica do governador Sousa de Meneses, o Braço de Prata:
é feio o modo como leva a bengala, metendo-a no sovaco, pois não condiz com

9. Lodovico Castelvetro, “Seconda parte principale”, Poética D’AristoteIe Vulgarizzla e Sposla, a cura di
Werther Romani, Roma-Bari, Gius. Laterza & Figli, 1978, vol. I, p. 127.

395
A SÁTI RA E O E N G E N H O

pessoa da sua condição. Junta-se à deselegância do gesto a descrição do porte:


anda empinando o fim da espinha, “o Rabo erguido em cortesias mudas /
como quem pelo cu tomava ajudas”, o que é ridículo de ver. As descrições
hiperbolizadas do físico juntam-se outras, por exemplo, dos trajes; isolada­
mente e pelo acúmulo, esboçam um monstro moral, estúpido e tirano. Vejam-
se dois trechos:

X a esq u e r d a trazias a b en g a la
o u p o r força, o u p o r gala;
X o sovaco por v ez e s a m etia s,
só p o r f a zer e n f i m d e s c o r t e s ia s ,
T ir a n d o ao p o v o , q u a n d o te d e s ta p a s ,
E n to n c e s o c h a p é u , agora as capas.
F u n d ia -se a c id a d e e m carcajadas,
V endo as d u a s entradas,
Q u e fizeste d o M a r a S an to Inácio,
E d e p o i s d o c o lé g io a teu palácio:
O R a b o er g u id o e m co rtesia s m u d a s,
C o m o q u e m p e lo cu to m a v a ajudas.

( O C , I, p. 15 8 .)

E, ainda, partes do corpo e trajes:

O rosto de azarcão a fo g u e a d o
E e m partes m al u n tad o,
T ã o c h e i o o c o r p a z i l d c g o d o l h õ e s [...]
V i - t e o b r a ç o p e n d e n t e d a g a r g a n t a [...]
O b i g o d e f a n a d o feito ao ferro
E s tá ali n u m d e ste r r o ,
E c a d a p ê l o e m s o l i d ã o t ã o rara .

( O C , I, p. 1 5 6 .)

U m c a s a q u im . trazias so b re o cou ro,


Q u a l o d r e [...]
Tal v i n h a o t e u v e s t i d o d e e n r u g a d o ,
Q u e o tive p or u m o d re esfu ra ca d o .

( O C , I, p. 1 5 7 .)

O procedimento é sistêmico, adequado na sátira para caracterizar padres:


“[...] qual jumento sois tão grande velhaco / que a pura excomunhão meteis

396
OS LUGARES DO LUGAR

no saco / [...] tendes de Saturno a natureza qual uma harpia” (OC, II, p. 272);
damas-, “O papinho, que se enxerga / por baixo da barba airosa, / me está
dizendo-comei-me,” (OC, IV, p. 8 0 8 fidalgos: “[...] vestido de pimentão/com
fundos de flor de Li /[...] então vos supus, e cri / surrada tapeçaria, / tisnado
guadamecim” (OC, IV, p. 896)\frades: “O hábito levantas no passeio,/E cui­
das, que está nisso o galanteio, / Mostras a perna mui lavada, e enxuta, /
sendo manha de puta / Erguer a saia por mostrar as pernas, / com que és
hermafrodita nas cavernas” (OC, II, p. 341 )-,judeus: “E encaixando o barrete, e
seu roupão / Representa um fatal Jacó Baru” (OC, III, p. 737); “um herege de
tão grão nariz” (OC, V, p. 1061); mulatos: “Inácia, chamada Ilhoa / para cada
beiçarrão / não bastava um canjirão / com sopas de pão, e broa” (OC, III, p.
632); negros: “o Preto é porra tisnada/ mas sobre ser porra dura, / é porra dura,
que atura, / o Branco mais lindo, e belo / é porra de caramelo, / desfaz-se na
cozedura” (OC, IV, p. 832); índios: “A tal era uma Tapuia / grossa como uma
jibóia, / que roncava de tipóia, / e manducava de cuia” (OC, I, p. 198); etc.
Em todos os casos, a medida unitária da feiúra física é a harmonia das
partes e do todo do corpo, a que moralmente corresponde a virtude da pru­
dência e sua codificação como discrição fidalga. Logo, segundo esta tópica, o
belo e o bom são harmônicos, prudentes e discretos, dando-se a deformação
como falta de uma dessas virtudes. Pictóricas, as articulações deformantes da
tópica “constituição física” são coloridas pelos motivos de outras, vistas a
seguir.

G enus (O rigem )

Acredita-se que, geralmente, os filhos se assemelham aos pais e aos an­


cestrais, postulando-se que a semelhança influi na vida honesta ou desonesta
objeto de elogio ou vituperação10.
Inúmeros poemas desenvolvem este lugar-comum, constituindo a ascen­
dência do tipo satirizado o modelo argumentativo de sua vituperação como
de baixa extração social - comerciante, oficial mecânico, cozinheira, rascoa,
alfaiate, índio, negro, cristão-novo - e moral - ladrão, corno, alcoviteira, puta,
pícaro. A atribuição do caráter “puta” à mulher da vítima satirizada produz
dois efeitos insultuosos complementares: o filho do atacado torna-se “bastar­
do”, pela suspeição da paternidade, desonrando-se o pai como “corno”. “Cuco”,

10. Quintiliano, De inslitulioneoraloria, 5,10,23: “[...] nam similesparenlibus ac maioribus suisfiliiplerumque


credunlur, et nonnumquam ad honeste lurpilerque vivenditm inde causae fiunl”.

397
A SÁTIRA E O ENGENHO

já referido, termo muito freqüente na sátira medieval ibérica e em Gil Vicente,


costuma ocorrer neste contexto discursivo. Pelo topos “origem”, ainda, as des­
crições e os ataques satíricos são investidos semanticamente da oposição jurí­
dica “fidalgo”/ “não-fidalgo” e categorias dela, como “limpo de sangue”/ “sujo
de sangue”, “bem-nascido”/ “mal-nascido”, e, por extensão, “honra”/ “deson-
ra”. Vejam-se exemplos:

A vós, merda dos fidalgos, / a vós, escória dos Godos, / Filho do Espírito Santo, / E
Bisneto de um caboclo (OC, I, p. 213); Filho da puta com dita,/ alcoviteiro sem lucro,
/ cunhado do Mestre Escola, / parente que preza muito (OC, I, p. 279); [...] vilão agres­
te, / se não sabes a parte, onde nascestes? (OC, II, p. 340); Tu és filho de um sastre de
bainhas, / E botas mui mal as tuas linhas, / Pois quando fidalgão te significas, / A ti
mesmo te picas (OC, II, p. 341); Verão um inocente, / que a fidalgo vai / e calando o pai
/ a mãe diz somente. / A este impertinente / lembro-lhe o godim / do pai matachim,/ e
a mãe vendilhona (OC, II, p. 465); [...] alvar fidalgo tendeiro, / que o pai sapateiro / lhe
fez o solar (OC, II, p. 466);[...] sangue vil, humor meretricano, / pois nascestes de sê­
men franciscano,/ E sobre vossa Mãe em tempos francos / Caíram mil tamancos (OC,
IV, p. 805); [...] o sangue linhajudo / fora da imaginação / fará, que fiqueis vilão, / mas
heis de ficar sisudo (OC, IV, p. 901) etc.

N atio (N ação)

Segundo Quintiliano, nações diferentes têm diferentes costumes e a mes­


ma coisa tem interpretação diferente de um bárbaro, de um romano ou de um
grego'1.
A sátira relaciona este topos com o de “origem”, numa desqualificação
dupla e intensiva. Além dos critérios de moral - mãe puta, pai corno - e dos
ofícios - mãe cozinheira, pai sastre, pai padre, pai lacaio etc. que implicam
a extração social do tipo como “gente baixa” e, portanto, o desprezo, a sátira
opera com estereótipos mistos. Funde características raciais e religiosas pró­
prias do topos “nação”, sendo um deles o da classificação teológico-jurídica
ibérica de povos e indivíduos como “gentios” e “hereges”, aos quais se opõe
“católico”. Bm tempos contra-reformistas, protestantes e judeus são eviden­
temente hereges, pois a sátira da tradição Gregório de Matos é absolutamente
católica. Da mesma maneira, encenando a posição colonialista da Conquista1

11. Idem, 5, 10, 24: “[...] nam el gentibus proprii mores sunt, nec idem in barbaro, Romano, Graeco probabile
est”.

398
OS LUGARES DO LUGAR

ibérica, índios bravos e semicatequizados, bem como negros “boçais”, são


“gentios”.
Ao padrão religioso, proposto como próprio de “nação”, articula-se o da
raça. Basicamente, o investimento semântico opõe /branco/ a /não-branco/,
sendo o primeiro termo eufórico. Como os estereótipos se misturam, há que
observar que o paradigma “branco” admite a subclasse “branco católico” x
“branco não-católico”, principalmente quando a sátira metaforiza “holandês”,
“irlandês” e “tudesco” como termos de caracterização pejorativa.
Na articulação do topos “nação”, que inclui “raça” e “religião”, a visibili­
dade epidítica da enunciação satírica é hiperinclusiva, encenando toda a visi­
bilidade política do Império Português: América, África, Ásia12. Assim, o olhar
satírico fixa os índios, mamelucos, mulatos, crioulos, pardos, mazombos lo­
cais, mas não se detém neles com exclusividade, pois passa à África, referindo
Angola, Mina, Congo, Zambésia, figurando negros, mouros, bérberes, árabes.
Prosseguindo viagem, passa pela Pérsia, índia, China, chega aos confins da
Birmânia, onde aporta entre brâmanes e budistas do Pegu, chamando-os a
todos, indistintamente, de “gentio” e “mamelucos”: mestiços, escravos, bár­
baros sem fé. Quanto aos judeus e cristãos-novos, já se viu no capítulo III, a
Inquisição é católica também etimologicamente: o léxico hebraizante quali­
fica qualquer tipo segundo os topoi “raça” e “religião”.
Para efeitos de amostragem desses topoi incluídos em “nação”, vejam-se
algumas qualificações e definições. Ora descritivas, ora narrativas, por vezes
operando alusivamente com trocadilhos e metaforização, todas se incluem
na vituperação ridícula {sem dor) e maledicente {com dor). Para economia deste
texto, indica-se uma classe racial e religiosa, conforme a efetuação da sátira:
por exemplo, “árabe”. O termo é hiperinclusivo, significando qualquer se­
guidor de Maomé ou não-católico passível de ser caracterizado como tal. Por
isso, o termo pode equivaler a “mouro”, “bérbere”, “turco”, “persa”, “armênio”,
“assírio”, “magiar”, “mermidônio” etc. A equivalência é efetuada por um sema
comum encontrável, já se viu, no topos “nação” - /religião/ ou /raça/ -, que
faz os termos intercambiáveis como metáforas pejorativas.

Arabe - armênio, assírio, magores (magiares), mouro, persa, turco

[...] quem sofrerá, que Mafoma / me queime por mau cristão, / vendo, que Mafoma é
cão, / velhaco, e de suja alparca, / e o mais torpe heresiarca, /que houve entre os filhos
de Adão (OC, 1 , p. 201); [...] como na lei de Mafoma /não se argumenta, e se briga,/ele,

12. A f i n a l “ [ ...] q u e m a n d a p e lo m a r / h á d e le r, e m q u e e s m o e r " ( O C , II, p . 4 2 0 ) .

399
A SÁTIRA E O ENGENHO

que não argumenta, / tudo porfia (OC, II, p. 284); [...] Vem um Clérigo idiota, / desmaia­
do como um jalde, / os vícios com seu bioco, / com seus rebuços as maldades: / Mais
Santo do que Mafoma / na crença de seus Árabes (OC, II, p. 432); [...] Qualquer Bispo da
Turquia / sem igreja é Bispo fiel (OC, IV, p. 889); [...] Que hajam turcos belicosos/ filhos
da perversidade, / havendo na cristandade / Monarcas tão poderosos (OC, II, p. 477).

Veja-se ainda, por sinédoque; “Sofrer-se-á isto em Argel, / que um con­


vento tão novel / deixe um leigo por um frade?” (OC, IV, p. 855).
A tópica comparece em romances graciosos, como o da vaca Camisa:

“ [...] A vaca é terror da aldeia, [...] todo o mundo se receia / de inimiga tão comua, /
porque armada a meia lua / parece pelo cruel / talvez Fatimá de Argel, / talvez de Salé
Gazua.” (OC, III, p. 602.)

Aqui, a “meia lua” dos cornos do animal metaforiza o Crescente islâmico,


aproximando e fazendo equivaler “vaca” e “Fatimá de Argel”.
Segundo esta tópica, aliás, as décimas que traduzem em verso um discur­
so sebastianista do Padre Antônio Vieira figuram o “[...] poder tirano / do
pequeno Maometano” (OC, V, p. 1209), profetizando “[...]o fim da gente
Agarena,/ e seita do vil Mafoma” (OC, V, p. 1209).

Europeu - francês, frisão, holandês, irlandês, italiano, noruego, ludesco

Articulada no topos “nação”, a tipificação atribui qualidades “naturais”


da nação - muito comum, por exemplo, é a referência do “mal gálico”, efetua­
da como exclusiva de “francês”. A referência às nacionalidades encena, aliás,
os estereótipos morais e políticos correntes sobre elas. Assim, “italianos” são
sodomitas, “franceses” têm sífilis ou são peritos nas artes meretrícias, “holan­
deses” são selvagens hereges, “tudescos” (alemães) são burlescos etc. Como a
qualificação “raça” não opera negativamente no topos “europeu”, sobrede-
terminam-se “religião” e “sexo”. Ser “francesa nas obras”, por exemplo, signi­
fica vida dissoluta, perícia nas artes amatórias, com conotação moral de /pu­
ta/; ser “portuguesa nas palavras” significa grosseria e linguagem crua.
Comum em toda a sátira é o qualificativo “frisão”, termo que designa
uma raça de cavalos holandeses (Frísia) de tração. Vários motivos se associam
nele, como /bestialidade/, /estupidez/, /trabalho manual/, /intemperança
sexual/,/holandês/. Por extensão,/calvinismo/, /heresia/ e/irracionalidade/:

[...] aquele madraço, / que em pés, mãos, e mais miúdos / pode bem - dar seis, e às / ao
maior Frisão dc Hamburgo (OC, II, p. 277); [...] Quando o Frisão considero, / o menos
que dele cuido, / é ser Pároco boneco / feito de trapos imundos (OC, II, p. 280); [...] Este

400
OS L U G A R E S DO L U G A R

Padre Frisão, este sandeu / [...] Não sabe musa, musae, que estudou, / Mas sabe as
ciências, que nunca aprendeu / Fntre catervas de asnos se meteu, / E entre corjas de
bestas se aclamou (OC, II, p. 286); [...] Presbítero montês, / Cara frisona, garras de
Irlandês / com boca de cagueiro de alcatruz (OC, IV, p. 871); [...] E o Frisão as Irmãs
pondo ao pespego, / Era força tirar grande tesouro, / Pois soube em ouro converter
pentelhos (OC, II, p. 286).

Vejam-se, ainda:

[...] e assim francesa nas obras / Portuguesa nas palavras / Tudo chamais por seu nome
/ tão propriamente, tão clara, / que ao cono lhe chamais cono, / chamais caralho à
caralha (OC, III, p. 568); [...] Verão um Galego grande salvajola, / veste à mariola, /
anda ao palacego: / Fidalgo Noroego / em cruz de Calvário, / que um certo falsário /
nos peitos lhe entona (OC, II, p. 465).

Como trocadilho que integra os lopoi “nação” e “origem”:


[...] Clérigo verão / que porque em Cantabra / nasceu de uma cabra / cresceu a cabrão:
/tão fino ladrão / que até a filha alheia / com ser cananéia / furta à mãe putona (OC, II,
p. 464).

Articulando “religião”:
[...] com calva sacerdotal / é sacerdote calvino (OC, II, p. 256).

Também como trocadilho que condensa “religião”, “origem” e “nome”,


efetuando /bestialidade/, faz-se a sátira dos sebastianistas, por ocasião do
aparecimento de um cometa, em 1686:

Estamos em noventa era esperada


De todo o Portugal e mais conquistas,
Bom ano para tantos Bestianistas,
Melhor para iludir tanta burrada.

Vê-se uma estrela pálida, e barbada,


E deduzem logo astrologistas
A vinda de um Rei morto pelas listas,
Que não sendo dos Magos é estrelada.

Oh quem a um Bestianista perguntara13,


Com que razão, ou fundamento, espera
Um Rei, que em guerra d’Africa, acabara?

13. Correção em “perguntara”, que a edição James Amado dá “pergunta”.

401
A SÁTIRA E 0 ENGENHO

E se com Deus me dá; eu lhe dissera,


Se o quis restituir, não o matara,
E se o não quis matar, não o escondera.

(OC,V, p. 1206.)

índio - cobepá, caboclo, Caramuru, Paiaiá, tapuia

Conforme classificação teológico-política da Conquista ibérica, o índio


na sátira é “gentio”, como nas descrições dos cronistas do século XVI, como
Gândavo e Gabriel Soares de Sousa. “Gente” pela semelhança corporal, é
sempre misto pelo sema /bestialidade/, metaforizado nos poemas: “gente bes­
tial”14. A caracterização condensa as tópicas “nação” e “origem”.

[...] A tal era uma Tapuia / grossa como uma jibóia, / que roncava de tipóia,/ e manducava
de cuia (OC, 1, p. 198); [...] Há cousacomo ver um Paiaiá/M ui prezado de ser Caramuru,
/ Descendente do sangue do tatu, / cujo torpe idioma é copebá (OC, IV, p. 840); [...]
Adão de Massapé (OC, IV, p. 841); [...] Tenha embora Avô nascido lá,/ Cá tem três para
as partes do Cairu, / Chama-se o principal Parauaçu, / Descendente este tal de um
Guinamá. / Que é fidalgo nos ossos, cremos nós, / Que nisto consistia o mor brasão /
Daqueles que comiam seus avós (OC, IV, p. 842); [...] A linha feminina é carimá /
Moqueca, pititinga caruru / Mingau de puba, e vinho de caju / pisado num pilão de
Piraguá (OC, IV, p. 840).

Retratado como irracional (“Alarve sem razão” - OC, I V , p. 841), gentio


(“bruto sem fé” -O C , I V , p. 841),presa do gosto confuso (“Sem mais Leis, que as
do gosto, quando erra” - OC, I V , p. 841), bestial (“comiam seus avós” - OC, I V ,
p. 841), integra-se ao “índio” das tópicas “nação” e “origem” o topos “consti­
tuição física”, pelo qual a feiura corporal, efetuada como simulacro de pa­
drões ibéricos, é o correlato pictórico da feiúra moral dos netos da Parauaçu:

Um calção de pindoba a meia zorra


Camisa de Urucu, mantéu de Arara,

14. A s á tira e n c e n a , n o c a so , o “ b á rb a ro g e n tio ” d o s d is c u rs o s c o n te m p o râ n e o s s o b re o s ín d io s na

B a h ia e o u tra s c a p ita n ia s , e m q u e c o m p a re c e m c o m o tra b a lh a d o r e s b ra ç a is q u e re c e b e m 25% do

s a lá r io p a g o a t r a b a lh a d o r e s b r a n c o s , q u a n d o a ld e a d o s , o u a m o tin a d o s p e lo s c a p u c h in h o s f ra n c e ­

s e s q u e lh e s f o rn e c e m a r m a s , q u a n d o n o s e rtã o , e n s ín a n d o - lh e s q u e o s v e r d a d e ir o s d o n o s d a te rra

s ã o o s f ra n c e s e s , q u a n d o a ta c a m e n g e n h o s e p la n ta ç õ e s d e m a n d io c a d e C a ir u , C a m a m u e B o ip e b a ,

c o m o s e v i u n o c a p í t u l o I I.

402
OS L U G A R E S DO L UGA R

Em lugar de cotó arco, e taquara,


Penacho de Guarás, em vez de gorra.
Furado o beiço, e sem temor que morra,
O pai, que lhe envazou cuma litara,
Senão a Mãe, que a pedra lhe aplicara,
A reprimir-lhe o sangue, que não corra.
[...]
D e P aiaiá v ir o u - s e e m A b a e té .

(OC, IV, p. 841.)

Um dos códices da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional'5traz a


versão “Um calção de pindoba a meia porra”. Embora a leitura de “meia”
como substantivo seja adequada em “meia zorra” pela isotopia “vestimenta”
da caracterização irônica de “calção”, “camisa”, “mantéu”, “penacho”, não é
descabida a versão “meia porra”, em que “meia” é adjetivo. É versão obscena
e verossímil, dado o estilo sórdido da maledicência satírica e a contigüidade
associativa de “calção” e “porra”, intensificada por “pindoba”, que figura um
calção de folhas de palmeira entreaberto. Lembre-se o imaginário do tama­
nho comparado do pênis de brancos, índios e negros, topos muito difundido
em textos dos cronistas, já incorporado à literatura como matéria jocosa. Por
exemplo, em Macunaíma, nas referências divertidas à urtiga e outros ingre­
dientes amatórios dos brinquedos camonianos do herói com a cunhada Sofará
etc.

Judeu - cristão-novo, hebreu, israelita, marrano, rabí

Como se viu no capítulo I I I , a caracterização “judeu” encena os significa­


dos /heresia/ e/limpeza de sangue/, incluindo-se nos topoi “nagfp” (“religião”
e “raça”) e “origem”. O termo e equivalentes, viu-se, são descrição pejorativa
e insulto tanto de cristãos-novos quanto de cristãos-velhos, estereotipadamente.
Como se mostrou, a des se associa o significado /contra naturam/ da tópica
“sexo”, pois conotam “sodomia” pela motivação de “Judá” e “Sodoma”. As­
sim, “judeu” e equivalentes se empregam com dupla funcionalidade, como na
expressão “sol inquisidor” do poema referido no capítulo anterior: ao mesmo
tempo que representam o tipo segundo traços estereotipados, a caricatura é
avaliativa, indiciando o julgamento negativo da enunciação que prescreve o15

15. Cf. códice J. A. Alves de Carvalho, n. 57, Cofre 50, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro, 1S9 fls., p. 79.

403
A S Á T I R A E 0 E N GE N H O

Santo Ofício. Assim, o judeu é sodomita, o judeu é bígamo, o judeu profana as


imagens sagradas, o judeu é rico porque é desonesto, o judeu é hipócrita, o
judeu envenena os cristãos-velhos, o judeu é narigudo, o judeu é impuro de
sangue, o judeu não come porco nem lebre ou marisco, o judeu homem mens­
trua, o judeu é judas, o judeu é deicida, o judeu deve ser queimado.
Anedotas, burlas, facécias, trocadilhos e agudezas que desenvolvem tais
tópicas estereotipadas16são comuníssimos em Portugal nos séculos XVI e XVII,
intensificando-se nas décadas finais deste último. Os estereótipos circulam

16. Como um discurso anônimo disseminado, os estereótipos antijudaicos não são propriedade exclu­
siva de uma classe ou grupo de interesse que os articulariam para “ocultar”, como se diz, interesses
econômicos e políticos particulares. Em outros termos, não são exclusividade de membros da aris­
tocracia proprietária que os manipularia para obstar os avanços políticos e econômicos da classe
mercantil cristà-nova, nem dos dominicanos do Santo Ofício, que os utilizariam para justificar a
expropriação das fortunas. Isto não implica, obviamente, que o Santo Ofício ou grupos da aristo­
cracia da terra, entre outros, não lançassem mão deles como técnicas de difamação, de sublevaçào
popular e de pressão sobre a Coroa quando a ocasião era oportuna. É, por exemplo, o que ocorre
com muita freqüência nos anos de 1670-1680. Detentores em grande parte do capital comercial e
financeiro, participando majoritariamente na Junta do Comércio (anteriormente, Companhia Ge­
ral do Comércio do Brasil), donos de navios ou proprietários de ações deles, com contatos comer­
ciais nos principais entrepostos da Europa, propostos como financiadores potenciais de uma ja­
mais criada Companhia das índias Orientais por simpatizantes de sua causa, como os padres Antônio
Vieira e Manuel Fernandes, a prosperidade e a riqueza dos cristãos-novos asseguram a muitos
deles a ascensão a posições de prestígio, que os estereótipos correntes criticam e interpretam como
perigo de contaminação das linhagens pela mescla do sangue impuro. Ao ressentimento e ao temor
partilhados generalizadamente pelas três ordens soma-se o horror do mito muito difundido de que
os judeus são deicidas cuja natureza, predisposta sempre a trair, nem mesmo a conversão forçada
de 1497 domesticou quando a capturou no aprisco da verdadeira fé. O cristão-novo é “Judas” e
“veste capa”, como então se apregoa, e embora muitos deles sejam católicos convictos, o mito da
limpeza de sangue, a ortodoxia e o ressentimento econômico os fazem irremediavelmente impu­
ros, traidores, heréticos, confundindo-se no estereótipo “judeu” tanto o cristão-novo católico quanto
o israelita ortodoxo que pratica os ritos em segredo ou o marrano que os funde sincreticamente.
Crenças religiosas e raciais fundem-se inextricavelmente, assim, com interesses, temores, frustra­
ções e ressentimentos de toda ordem, pessoais, econômicos, políticos. Acredita-se mesmo que os
estereótipos são sempre expressão da mais sincera e pura crença no mito, o que não implica afir­
mar que sempre são expressão da sinceridade dos que os emitem, dados os interesses que articu­
lam quando emitidos. São expressão da mais sincera e pura crença no mito, contudo, principal­
mente numa sociedade como a portuguesa, em que o longuíssimo contato com a África obscurece
qualquer veleidade de origem e pureza das linhagens, dada a miscigenação óbvia, transformando-
se a questão da “limpeza de sangue”, também por isso, em verdadeira obsessão nacional. Lembre-
se ainda que a atividade mercantil a que desde cedo se dedicam os fidalgos portugueses faz muito
precária, para observadores fidalgos exteriores, como viajantes, a mesma questão da “limpeza”.
Investigações que se realizam ainda no século XVII em Portugal revelam que a maioria das famílias
fidalgas tem ascendência judaica, quando não moura.

404
OS LUGARHS DO L UGA R

então da mais alta aristocracia à ralé, na forma de pasquins, murmuração,


livros, sermões, sátiras.
Lamenta a estrofe final de um poema antijudaico anônimo de 167317:

A Divindade offendida,
Nosso Deos ultrajado,

17. Cit. por A. Carl Hanson, Economia e Sociedade no Portugal Barroco - 1668-1 703, Lisboa, Publica­
ções Dom Quixote, 1986, p. 91. Uma interprciaçào já clássica propõe a questão cm termos de
conflito de classes que opõe “aristocracia da terra” c “classe mercantil”. Nele, a aristocracia teria
sido aliada do Santo Ofício da Inquisição, recebendo também o apoio da “pequena burguesia”
portuguesa. Aqui não é o lugar para discutir tal tese, mas, sim, a interpretação que hoje se costuma
propor para o eventual leitor da sátira sciscentista antijudaica, que a toma por pressuposto. Segun­
do a interpretação, que opera uma dicotomia, a sátira é expressão de uma consciência de classe
aristocrata na defesa de seus interesses políticos através da representação de crenças religiosas e
raciais de natureza não-econômica. Conforme a interpretação, é usual afirmar que os debates reli­
giosos que agitam o século XVII português costumam obscurccer - o verbo é típico - a verdadeira
natureza do conflito, as relações econômicas. Levando-se em conta, por exemplo, a recepção da
sátira, essa linha de argumentação propõe que a sátira apenas expressa crenças, uma vez que à
maior parte da população ibérica do século XVII são alheios os debates de natureza econômica e
política. Concebendo-sc o imaginário restritivamente, como auto-reílexão e auto-representação,
implicam-se as noções de alienação das consciências e de ocultamento da realidade pelas crenças
que a deformam. Assim, as práticas discursivas são interpretadas como representação diferida de
seu momento, apenas, não como práticas. Justamente porque expressa crenças, a sátira oculta as
determinações do conflito do qual passa a ser um produto. A interpretação é insatisfatória porque,
embora possa acertar quanto à natureza do conflito como luta de classes, atribui à poesia uma
função diferida de representação mais ou menos realista e posterior, diga-se assim, ao seu próprio
tempo e ao conflito do qual é parte. Como exteriorização de conteúdos preformados na consciência
de poeta e público, a sátira é estranhamente muito alienada de seu próprio tempo, que ela busca
com muita aplicação perseguir, só o conseguindo, evidentemente, de forma expressiva que é neces­
sário interpretar para se evidenciar o que já se sabia de antemão: o poeta estava enganado e enga­
nava os receptores enganados, pois falava-lhes de Judas quando efetivamente se tratava dos trinta
dinheiros. Por essa concepção, a sátira tem uma função social de reconhecimento, isto é, de conhe­
cimento segundo, ficando razoavelmente embaraçoso advogar o interesse de seu estudo como ins­
trumento de reposição de algo já posto e dado como infra-estrutura pelas ciências sociais. A mesma
concepção, aliás, que propõe a poesia como representação de um social exterior e preformado a ela
e nela perspectivado, ocultado, falseado e invertido, não leva em conta a historicidade da mesma
poesia, de modo algum exterior ou posterior à sua própria história, a menos que se postule a
preexistência de um lugar em que a verdade do social esteja limpidamente depositada à espera das
deformações posteriores. Geralmente, esse lugar existe, e é o do desejo do intérprete e de suas leis
históricas necessárias etc. Lm ambos os casos complementares - expressão de conteúdos preformados
e representação que oculta o real -, a sátira é a representação da intenção comunicativa de dois
sujeitos prévios a ela, poeta e receptor, que já conceberam, antes mesmo do discurso em que apare­
cem os pronomes “eu” e “tu”, a sociedade referência dela. Por essa concepção, enfim, o “judeu”
preexiste à sátira na sátira, a laia religiosa ou racista oculta o conflito econômico de base, o homem
Gregório de Alatos e Guerra era intensamente ressentido ou mesmo tragicamente dilacerado,pessimis-

405
A SÁTIRA E 0 ENGENHO

O Príncipe enganado,
A Christandade vendida,
A Igreja escurecida,
O Triumpho da fé sem palma

la etc. Para nào propor aqui a sátira como um gesto perdido, exterior ou posterior ao ato que o
produz, é conveniente começar por não interpretá-la, uma vez que nada oculta, antes relacioná-la
com outras práticas e eventos contemporâneos dela, como se vem fazendo. Os estereótipos podem
ser a expressão sincera de crenças, como se escreveu, podendo mesmo ser a expressão de crenças
sinceras. Isto, porém, não tem nenhuma pertinência, porque mais pertinente é propor que assu­
mem configuração prática, de intervenção, numa prática discursiva - murmuração, panfleto, pas­
quim, sermão, anedota, sátira - em que várias posições imaginárias são encenadas como conflito
no conflito. Em outros termos, o conflito não é preexistente às práticas discursivas contemporâneas
que são parte dele e nele. E neste sentido, aliás, que a sátira antijudaica atribuída a Gregório de
Matos e Guerra deve ser lida: como nunca defende os cristãos-novos, como sempre os difama e
injuria, como sempre propõe as medidas mais drásticas contra eles, isto imediatamenle implica que
toma posição contra eles, sem hesitação, independentemente da “sinceridade” do homem Gregório
de Matos, impossível de averiguar, e que não vem ao caso. As tópicas articuladas são religiosas e
raciais, geralmente interpretadas como ocultação ou falseamento do conflito econômico de base,
ou seja, como reflexo, supostas a expressão e a representação. Levando-se em conta sua produtivi­
dade e sua intervenção num determinado estado de coisas contemporâneo, contudo, ela é absolu­
tamente visível, embora a mesma visibilidade seja interpretável de maneiras muito diversas. Não
se trata de ocultação, mas de apropriação assimétrica do que na metáfora pode ser mais oportuno
para cada posição nela dramatizada, enfim. Por isso, é prática, no sentido de que, tanto na
metaforização “judeu” quanto na dapersona satírica, lêem-se pontos de condensação e de disjunção
de posições imaginárias. São contemporâneas do ato discursivo, sendo efetuadas como transfor­
mação poética de estereótipos que os dramatiza e opõe: “ortodoxo” x “herege”, “puro” x “impuro”.
Assim, tanto a metáfora “judeu” quanto a metáfora do “eu” só adquirem valor dramatizadas na
situação discursiva que articula metaforicamente os poderes e os interesses. Várias posições se
lêem na dramatização, conforme a perspectiva assumida quanto ao valor semântico de “judeu” e
das metáforas do “eu” satírico: a da Coroa; a da Cúria romana e dos dominicanos do Santo Ofício;
a dos jesuítas; a do clero regular; a de grupos da aristocracia aliados a jesuítas, como Vieira; a de
grupos da aristocracia inimigos deles; a de grupos corporativos, como os ourives, os comerciantes
cristãos-velhos; a da gente baixa; etc. Levando-se em conta justamente a recepção, que faz a sátira
eficiente como discurso aberto, torna-se difícil, se não historicamente impossível, reduzir o anti-
semitismo dela a uma oposição simples do gênero “aristocracia da terra” x “classe mercantil cristã-
nova”, incluída na oposição genérica “nobreza” x “burguesia”, incluída, por sua vez, na necessida­
de das leis históricas do interesse do intérprete. Pouco se sabe da situação material de recepção da
sátira: era lida em voz alta para todos? era afixada em pasquins? circulava anônima em folhas
volantes? havia intervenções quando recebida? qual o tom de voz com que era falada, se falada? só
homens ouviam? se não, em que condições estavam presentes as mulheres? que homens ouviam?
etc. Pode-se afirmar, contudo, que a partilha dos estereótipos nela encenados era bastante assimétrica.
Suponha-se, como receptores, figurados pelo destinatário, um mulato; um familiar do Santo Ofí­
cio; um jesuíta como Vieira; um comerciante cristão-velho concorrente de um cristão-novo; um
comerciante cristão-velho sócio de um cristão-novo na especulação dos gêneros alimentícios; um
fidalgo engastado na burocracia; um letrado da Relação; o próprio cristão-novo quando católico,
quando israelita, quando indiferente à religião; um negro escravo; um senhor de engenho branco,
catolicíssimo, cujos avós cristãos-novos vieram com os primeiros donatários cruzando-se com as

406
OS L U G A R E S DO l . UGAR

Desvalida a Lei dos Ceos.


Ai de ti, Reino sem Deos!
Ai de ti, povo sem alma!1*

netas de Paraguaçu; etc. As combinatórias são praticamente ilimitadas, ainda que finitas, demons­
trando o quanto a sátira é, para utilizar conceito de Roland Banhes, “plural”. Embora encene uma
uniiicação imaginária do gênero “ortodoxo” x “herético”, a mesma unificação é apropriada de
modos diversos, conforme a posição dos receptores. Em outros termos, não se unifica totalmcnte,
sendo refratada e reunificada segundo outros registros. Com tudo isto, enfim, afirma-se o óbvio:
engrossando o lugar-comum, a sátira intervém posicionando-se como termo do conflito que, po­
dendo aparecer apenas religioso e racial, é simultaneamente econômico e político.
O descrédito dos cristãos-novos na intervenção fortalece as posições de seus inimigos, indepen­
dentemente do posicionamento de seu autor suposto c da sua validade como representação semân­
tica “justa”, “falsa”, “verdadeira”, de descrédito.
18. Um caso historiado por Carl A. Ilanson permitirá demonstrar melhor como tais posições antijudaicas
são dramatizadas na sátira numa relação de homologia. Em 10 de maio de 1670, ocorre um furto
que, insignificanie, assume proporções emblemáticas dada a instrumentalização de que é objeto.
Antônio Ferreira, um jovem camponês, assalta a igreja de Odivelas, aldeia próxima de Lisboa, rou­
bando objetos sagrados e causando alguns danos ao edifício. A notícia da profanação espalha-se
rapidamente por todo o país, provocando intensa comoção e reações da piedade católica, como
missas, procissões etc. Em janeiro de 1671, quando a notícia chega à Bahia, as reações são similares,
ordenando o governador várias manifestações de pesar e desagravo. Imediaiamente atribuída aos
cristãos-novos, segundo o estereótipo de que são sempre os judeus que profanam templos católi­
cos, a profanação de Odivelas provoca a ira da população em várias cidades de Portugal, ocorrendo
muitos ataques a cristãos-novos e depredações de suas propriedades. Em Lisboa, a população desce
às ruas, exigindo o fogo purificador para os culpados. Lembre-se que a população, aliás, é adepta
fervorosa dos rituais do Santo Ofício, deles extraindo grande prazer na medida mesma do seu res­
sentimento. Embora a identidade do ladrão não esteja estabelecida, o príncipe Dom Pedro promul­
ga, nas seis semanas seguintes ao furto, um conjunto de leis contra os cristãos-novos; entre elas, um
decreto que ordena a expulsão de todos que hajam abiuradode vehemenii, isto é, confessado trans­
gressões graves. A ordem é extensiva a todos os cristãos-novos que tenham abjurado desde 1604,
atingindo grande número deles. O Santo Ofício opõe-se à medida, entretanto, defendendo junto ao
príncipe que, expulsos os cristãos-novos, sua investigação será seriamente prejudicada. Em julho e
agosto de 1671, novos decretos proíbem a ocupação de cargos públicos por todos que forent “sujos
de sangue”. Simultaneamente, intensificam-se os boatos contra os judeus, bem como as manifesta­
ções piedosas nos templos. Em 1672, o Santo Ofício intensifica o terror: os acusados de judaísmo
ficam, a partir da data, proibidos de possuir contratos reais e cargos honoríficos, além de não pode­
rem exercer funções públicas. Também são proibidos, a partir de 1671, de montar a cavalo, de usar
seda, ouro e jóias, de passear em liteira ou coche. Antônio Ferreira é preso em outubro de 1671.
Descobre-se que seus país são cristãos-novos, confirmando-se a crença com a crença: a profanação
de lugares sagrados é sempre obra de judeu. Descrito como ignorante, falho de raciocínio e mesmo
doido, Ferreira é torturado, confessando tudo quanto é preciso confessar. Em seguida condenam-no
à morte: “Em 20 de novembro, Ferreira desfilou, em parada, pelas ruas de Lisboa até o Rossio, onde
a execução iria ter lugar. Uma vez na praça, foi entregue aos executores, que lhe cortaram as mãos,
queimaram-lhe os olhos e em seguida enforcaram-no num poste alto. O carrasco queimou depois o
corpo do infeliz gatuno, e os poucos bens que possuía eram entregues à igreja que ele tinha pro­
fanado”. Executado o ladrão, intensificam-se as perseguições, atingindo-se os cristãos-novos da

407
A S Á T I R A E O E N GE N H O

É neste referencial que um poema não referido no capítulo III assume


relevância. Sua didascália diz: “A dous irmãos Fulanos da Cruz, que foram
presos por furtarem um espadim a um surdo da Praia, tendo já furtado umas
salvas, que pediram emprestado para tirarem esmola para N. Senhora da Pal­
ma em que foram degradados para Angola”. O tema do poema é o furto de
objetos sagrados e o castigo da profanação. Após um exórdio e uma narração
do furto, a terceira décima propõe:

E fora mui justa lei,


que a qualquer ladrão previsto,
inda chamando por Cristo,
lhe não valesse o pequei:

Junta do Comércio; segue-se um regimento que cria um conselho de cinco membros para ela, no qual
os comerciantes só ocupam dois lugares. Em 1673, apresenta-se a Dom Pedro uma proposta de um
perdão geral. Jesuítas, como os padres Baltasar da Costa e Alanuel Fernandes, estão entre os princi­
pais responsáveis por ela. A Coroa aceita a decretação de um perdão geral pelo Papa; em troca, os
cristâos-novos deverão financiar uma Companhia Portuguesa das índias Orientais. Três cristãos-
novos riquíssimos se dispõem a financiá-la: Pedro Álvares Caldas, Manuel da Gama de Pádua, Antô­
nio Correia Bravo. A murmuração aumenta: os cristãos-novos vão ser autorizados a praticar seus
ritos publicamente; vai-se construir uma sinagoga em Lisboa; somente cristãos-velhos serão recruta­
dos como soldados para a nova Companhia das índias; haverá concessão de perdão às transgressões
da fé; articula-se a vingança dos cristãos-novos contra os cristãos-velhos. Uma conspiração palaciana
contra Dom Pedro, em 1673, articula o retorno de Dom Afonso VI, evidenciando ter o apoio dos anti-
semitas contra o príncipe. As Cortes de Lisboa de 1674, que se opõem ferozmente ao perdão, fazem
a Coroa recuar do projeto de fundar a Companhia das índias Orientais. Os comerciantes cristãos-
novos continuam despendendo somas enormes: por exemplo, como forma de obter os favores da
Santa Sé, oferecem 500 mil cruzados para a guerra da Polônia contra os turcos. Em 1674, o Papa
emite ordem de cessação dos autos-da-fé, do sentenciamento e compilação dos processos, para rever
as atividades da Inquisição portuguesa. Apesar do ultimato papal de que os processos sejam remeti­
dos a Roma para exame, o príncipe Dom Pedro proíbe o inquisidor-geral de fazê-lo. Murmurações,
pasquins, piedade: “Quem desejar ser judeu, herege, sodomita, e casar três vezes, vá falar com o
padre Manuel Fernandes, confessor de Sua Majestade, e com Manuel da Gama de Pádua e Pedro
Álvares Caldas, que têm bulas do padre Quental para tudo”. As Cortes de 1679-1680 informam a
dom Pedro seu desejo de que o Santo Ofício retome as atividades anteriores à intervenção papal. Em
1675, Vieira chega a Lisboa com a imunidade que lhe concede o Papa; pretende, mais uma vez,
influenciar a Corte a favor dos cristãos-novos, sem sucesso. Em 1681, retorna para o Brasil. Em 1680,
morre Alanuel da Gama de Pádua, o comerciante que conseguiu interessar, riquíssimo, a Cúria ro­
mana na causa dos cristãos-novos. Manuel Fernandes, um dos autores do projeto da Companhia das
índias Orientais, demite-se de sua função de confessor real, obedecendo ao Geral da sua Ordem.
Dois processos muito exemplares que o Santo Ofício envia para Roma atendendo à ordem do Papa
de anos antes são investigados e aprovados. Em agosto de 1681, o Papa restabelece a Inquisição em
Portugal, com todas as suas prerrogativas e funções. Ainda em 1681 e 1682, muitos comerciantes
cristãos-novos são presos. O auto-da-fé realizado em Lisboa, em 1682, tem a patrociná-lo o príncipe
Dom Pedro. Grande espetáculo, para ele são trazidos os presos de outras cidades do país, a ele assis­
tindo toda a população de Lisboa, festivamente. Cf. Carl A. Hanson, op. cil., pp. 89-123.

408
OS L U G A R E S DO L UGA R

e se hoje o memento mei


não acode a um patifão
por judaica geração,
se tira por conseqüência,
que é por sua violência
cada qual mui mau ladrão.
(OC,V,p. 1231.)

Nada permite afirmar que os dois irmãos Fulanos da Cruz referidos na sáti­
ra não sejam cristãos-novos; nada permite afirmar, portanto, que o sejam. No
poema, porém, são judeus, e é o que importa, pois indicativo do posicionamento
da enunciação no tratamento do tema. Como uma isotopia paradigmática, o
estereótipo de que o profanador de coisas sagradas é sempre um judeu transfor-
ma-se, no poema, à medida que este se desenvolve, como metaforização de um
“horizonte de expectativa” sintagmaticamente distribuído pelo texto19. O poe­
ma se ordena, desta maneira, como extensão e transformação metafóricas de
estereótipos encenados segundo uma expectativa estereotipada. Como a sátira
propõe, trata-se de “ladrão previsto” que “chama por Cristo” e que é um “patifão
/p o r judaica geração”: tem-se, no caso, uma perfeita definição do cristão-novo
como aquele que, convertido ao catolicismo, permanece essencialmente “judeu”,
segundo as tópicas “raça” e “origem” e seu interpretante/limpeza de sangue/.
Daí também o duplo sentido do verso final da décima - “cada qual mui mau
ladrão” -, que, referindo o furto efetuado pelos dois irmãos Fulanos da Cruz,
metaforiza-os no intertexto bíblico do “mau ladrão” que renega a Cristo. Pela
encenação bíblica, os Cruz são alçados à exemplaridade da Cruz, produzindo-se
a metáfora com os estereótipos dominantes do judeu como renegado e deicida:

Outros crimes mais atrozes


têm os dous Judas malvados,
que justamente culpados
os Publicam muitas vozes:
porque os delitos ferozes
no seu inútil estado
os criminam de contado
e são no erro inaudito
um Judas para o bendito
inimigo do Louvado.
(OC,V,p. 1232.)

19. Cf. Hans Robert Jauss, Pour une euhétique de la réceplion, Paris, Gallimard, 1978, pp. 49-51.

409
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

Aqui, a enunciação encena a partilha da mesma posição dos estereótipos


do caso de Odivelas: exige punição drástica para os “Judas”, lamentando a
“sentença de água fria” (o degredo para Angola), a que opõe o “fogo”:

E se p elo a trev im e n to
de tão g ra n d es desaforos
m e r e c e m d o u s m il esto u ro s,
n ã o é ca stig o v iolen to:
q u e se fora a m e u c o n t e n to ,
o s q u e im a r a m lo g o logo,
e n ã o sa tisfa z m e u rogo
ter s e n t e n ç a d e á g u a fria,
q u e m so m e n te m erecia ,
q u e lh e p u s e s s e m o fogo.

( O C , V , p. 1 2 3 3 . )

Mazombo

O termo nomeia o “brasileiro”, genericamente, opondo-se a “brichote”,


provável corruptela dcbrítish. Aplica-se a mestiços e a todos os brancos e assim
classificados. Referindo os últimos, perde os semas raciais de desqualificação,
avultando os do caráter frouxo e perdulário: os mazombos são “matulões”,
não têm habilidades, temem as autoridades, amam a ostentação e o luxo, pas­
sam por fidalgos:

[...] u m M a z o m b o / d e s t e s c á d o m e u p a v i o , / q u e s e m t e r e i r a , n e m b e i r a , / e n g e n h o ou
j u r o s a b i d o / t e m a m i g a , e j o g a l a r g o / v e s t e s e d a , p õ e p o l v i l h o s ( O C , I, p. 2 6 ) ; [...] Q u e
esse m a l há n o s m a z o m b o s , / têm tão p ou ca h a b i l i d a d e , / q u e o se u d in h e ir o d e sp e n d e m
/ p a r a h a v e r d e s u s t e n t a r - s e ( O C , II, p. 4 3 1 ) ; [...] C o m o n a d a v ê e m / e a n d a m s e m p r e
a o s t o m b o s / q u e r e m o s m a z o m b o s / q u e e u c e g u e t a m b é m : / n ã o t e m o n i n g u é m , e se
o s m a t u l õ e s / h ã o m e d o a p r i s õ e s , / e u s o u d e c a r o n a : / f o r r o m i n h a c o n a ( O C , II, p.
462).

Em muitos poemas, termos como “vulgo” e “povo” equivalem a “mazom­


bo”, sempre desqualificados: “o povo bárbaro” (OC, II, p. 326); “[...] veio oca­
sião / de todo o povo malvado dizer” (OC, IV, p. 883); “[...] este Povo é tão
sisudo [...]” (OC, IV, p. 898); “[...] este povo é tão ruim / tão jocoso, e tão
burlesco” (OC, IV, p. 900). Observe-se ainda que, por sinédoque, “cidade” pode
equivaler ao termo que significa os habitantes, “povo”, “plebe”, “gente”, “vul­
go”, “mazombos”, caracterizados pejorativamente.

41 0
OS LUGARES DO LUGAR

Mulato - cabra, crioulo, mameluco, pardo

Com o termo “mulato”, a sátira refere o mestiço. Assim, embora empre­


gue “mameluco” para o descendente de índio e branco, também equipara
“mameluco” e “mulato”, uma vez que nela o critério dominante é a desquali-
fícação genérica segundo as tópicas “raça” e “origem”, não a especificidade
da raça desqualificada. Além disso, “mameluco” é utilizado conservando-se
seu significado árabe de “escravo”. Nesta linha, ainda, um termo como “par­
do” é hiperinclusivo: significa o “mulato”, mas também qualquer mestiço.
Quanto a “crioulo”, a sátira o emprega para significar o homem de origem
africana nascido no Brasil:

[...] n o s a n g u e m a m a l u c o / [...] u m t r o ç o d e f i d a l g u i a / p e d e s t r e c a v a l a r i a / t o d a d e
b e i ç o f u r a d o ( O C , I, p. 1 9 9 ) ; [...] u m h o m e m b r o n c o / r a c i o n a l c o m o u m c a l h a u , /
m a m a l u c o e m q u a r t o g r a u , / e m a l i g n o d e s d e o t r o n c o ( O C , I, p . 2 0 3 ) ; [...] n e t o d e
c u r i b o c a ( O C , 1, p. 2 1 8 ) ; [...] M u i t o s m u l a t o s d e s a v e r g o n h a d o s ( O C , 1, p. 3); [...] u m
M u la ta ço h a rp ia / arro g a n te ap a receu (O C , II, p . 3 2 9 ) ; [...] L a d r ã o c o m o m e n t e c a p t o /
no p ro fu n d o do p o r ã o ,/ p a ssa d o co m o la d r ã o ,/ e fino c o m o m u la to (O C , II, p . 3 6 7 ) ; [...]
Para o b ê b a d o m e s t i ç o , / e f i d a l g o a t r a v e s s a d o , / q u e t e n d o o p e r n i l t o s t a d o , / c u i d a , q u e
é b ran co ca stiço : / e d e fla to s e n f e r m i ç o / se ataca d e j e r ib it a ,/ c r e n d o , q u e o s fla to s lh e
q u i t a , / q u a n d o o s v o m i t a e m r e t o r n o s ; / s e i s c o r n o s ( O C , II, p. 4 5 3 ) ; [...] U m B r a n c o
m uito e n c o lh id o , / U m M u la to m u ito o u sa d o / U m B r a n c o todo co ita d o , / U m ca n a z
todo a tr e v id o (O C , IV, p . 7 9 0 ) ; [...] s e n ã o p o r q u e é m u l a t o : / t e r s a n g u e d e c a r r a p a t o : /
m ilagres d o B r a sil são (O C , IV, p . 7 9 3 ) ; [...] Q u e v o s d i r e i d o M u l a t o , / q u e v o s n ã o t e n h a
já d i t o , / s e s e r á a m a n h ã d e l i t o / f a l a r d e l e s e m r e c a t o ? ( O C , IV, p. 7 9 3 ) .

Quatro versos condensam os motivos da tópica:

É p a rd o rajado em p reto,
ou preto e m b u tid o e m pardo,
m a l h a d o , o u já m a l h a d i ç o ,
d o t e m p o e m q u e for a e s c r a v o .

(O C , II, p . 4 5 8 . )

Neles, o trocadilho define o mulato pela homofonia dos termos “malha­


do” e “malhadiço”, que metaforizam cor e castigo, ou raça e trabalho, segundo
as tópicas de “origem” e “condição”. Institucionalmente, a persona postula
que a semelhança sonora dos termos é identidade, natural e semântica, da cor
“malhada” (ou “misturada”, portanto aristotelicamente inferior porque não-
unitária) e da coisa “malhadiça” (ou própria para ser malhada, portanto na­

411
A SÁTI RA H 0 E N G E N H O

turalmente castigável). Da mesma maneira, como “cor” implica naturalmen­


te a subordinação e o castigo, também significa o castigo máximo, como sinis­
tramente adverte a persona em outro poema:

A le r ta p a r d o s d o trato,
a q u em a soberba em borca,
q u e p o d e ser h o je forca,
o q u e o n t e m foi m u la to .

( O C , II, p . 4 2 3 . )

Negro

Em código picaresco, “negro” opõe-se a “branco” e significa “astuto”,


“homem de truques”20. Em toda a picaresca, “negro”, negro ou não, mulato
ou não, mourisco ou não, significa também (da mesma forma que seus sinô­
nimos “mulato”, “preto”, “pardo”, “crioulo”, “cabra”, “fosco”, “malhado”,
“tostado” etc.) o homem que joga com arma branca: é, por exemplo, o
“Mulatazo” de Quevedo, em El Buscón2'.
Na sátira seiscentista, esses valores são condensados pelo discurso da moral
que encena o aparato jurídico, efetuando o “negro” como/bestialidade/, pela
maledicência e ridicularização. Este padrão é encenado como linguagem do
sexo e da distância hierárquica: é o que se dá, por exemplo, no procedimento
de fusão das características de “puta”, “mulata” (ou “negra”) e “animal”, per­
passada de valores afetivos e mercantis. A “bestialidade” metaforiza a relação
desigual em que a “mulata” é desejada segundo o estilo baixo:

q u e d e M u la t a sai m u la ,
c o m o d e m u la M u la ta .

( O C , V , p. 1 1 1 3 . ) 22

20. Cf. Hidalgo, Vocabulário: “Negro: astuio o laymado"; “Blanco: bobo o necio”.
21. Cf. Francisco de Quevedo, El Buscón, edición Carlos Vaíllo, texto estabelecido por F. Lázaro Carreter,
Barcelona, Bruguera, 1980, II, 1. “Negro" ta m b é m significa “rufião proxeneta”. Cf. Francisco de
Quevedo, La Hora de Todosy la Fortuna con Seso, Paris, Aubier-Montaigne, 1982, p. 430 (Collection
Bilingue).
22. Cf., por exemplo, “Fesceninas”, Sonetos de Gregário de Maios, cópia datilogafada, 251 lis., Códice
55, cofre 50, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, p. 1: “A huma mulata
que chamam Jelu”: “Jelú, vós sois Rainha das mulatas, / e sobretudo sois Deusa das putas / tendes
o mando sobre as dissolutas / que moram na quitanda dessas gatas. / Tendes muito distantes as
saparatas / por poupar de resoens e disputas, / porque são humas putas absolutas, / presumidas,

412
OS LUGARES DO LUGAR

A ridicularização do “negro” ordena-se na sátira como referência dos


“calundus”, subordinados poeticamente à estilização dos Dez Mandamentos
bíblicos, recitados como preceitos que os constituem como heresia:

Q u e de q u ilo m b o s que tenho


c o m m estres su p erlativos,
n o s q u a is se e n sin a m de noite
o s c a lu n d u s , e feitiços.
[...]
O q u e sei, é q u e e m ta is d a n ça s
S a ta n á s an d a m etid o .

(OC, I, p. 15.)23

Segundo as tópicas “nação” (“religião”, “raça”) e “origem”, o termo “ne­


gro” tem função contrastiva, que evidencia o corte hierárquico, segundo a
concepção aristotélica de que o escravo é naturalmente mau. Acusa apersona,
para postular que seu mundo anda às avessas:

[...] o u p o r l i m p o , o u p o r b r a n c o
fui na B a h ia m o fin o .

( O C , I , p . 17 1 .)

Desta maneira, o léxico relativo a “negro” aplica-se extensivamente, como


as metáforas estereotipadas de “judeu” e “corno”, como caracterização pejo­
rativa e insulto. Disposto binariamente como oposição racial - “branco/não-
branco” - e genérica - “humano/bestial” -, o léxico também significa ho­
mens brancos livres, mecânicos, letrados, juizes, senhores etc. Desta maneira,

faceyras, pataratas. / Mas sendo vós mulata tão ayrosa, / tão linda, tão galharda e folgazona /
tendes hum mal que sois mui guaguarroza. / Pois perante a mais ínclita persona / desenscrrando a
alcatra alteroza, / o que branca ganhais, perdeis cagona".
23. Já se calculou que, de cada lote de mil escravos, 750 morriam em dez anos, em média, taxa
elevadíssima que determinava a carência crônica da mão-de-obra e um fluxo continuo da África
para a Bahia. Com um efeito talvez não previsto, contudo: a reposição contínua dos africanos
também repõe os padrões culturais de suas nações de origem, por exemplo língua, sexualidade,
religiões, que a sátira visa a expropriar pela ridicularização e constituição deles como heresia. Cf,
a respeito da mortalidade escrava, Sluart B. Schwartz, “The Bahian Slave Population”, Sugar
Planiations in lhe Formalion ofBrazilian Societv, Bahia 1500-1835, Cambridge, Cambridge University
Press, 1985.

413
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

termos ou expressões como “denegrir”, “enegrecer”, “negregado”, “cu breado”,


“alvaneeer”, “malhar”, “malhadiço”, “malhado”, “mulato”, “tostado”, “tos­
tar”, “pardo”, “defumado” e afins são itens para o insulto. Por exemplo, umas
décimas dirigidas ao capitão João Teixeira de Mendonça Furtado, magistrado
preso quando fugia com a fazenda dos Defuntos e Ausentes, ironizam-lhe a
fidalguia pela predicação verbal de qualidades de “negro” de seus parentes:

A p a r e n t e l a s e ria,
que é gente, que aqui negreja,
p o r q u e lhe c a u sa v a in veja
ver, q u e lh e d ava h on raria.

(O C , II, p. 36K.)

O procedimento é semelhante na sátira contra o Padre Lourenço Ribeiro,


como técnica contrastiva:

Se a este p o d e n g o a sn eiro
o Pai o alvanece já,
a M ã e lh e le m b r e , q u e está
r o en d o e m u m tam oeiro:
que im p o rta u m b ran co cu eiro,
se o c u é t ã o denegridol
m a s se no m isto sen tid o
se l h e e s c o n d e a negridão:
m i l a g r e s d o B r a s i l sã o .

(O C , IV, p. 791.)

Referências ao trabalho escravo demonstram simpatia pelo negro apenas


se univocamente lidas. Por exemplo, no mesmo poema que estiliza os Man­
damentos, fala a Bahia no preceito terceiro, que toca a guardar dias santos e
domingos:

N e m aos m íse r o s escravos


d ão tais d ia s d e v a zio ,
p o rq u e nas leis do in teresse,
e p receito p roibido.

( O C , I, p. 17.)

A referência de “míseros escravos” funciona, no caso, como contraste


sensibiltzador não da piedade por eles, apenas, mas da piedade religiosa, que

414
OS LUGARES DO LUGAR

acusa a impiedade de seus proprietários24. Não se trata, como é costumeiro


propor, de crítica à exploração mercantil, mas de ortodoxia católica. Da mes­
ma maneira, é um misto de jocosidade irônica e de distância hierárquica a
referência dos africanos no memorial que, dirigido a Câmara Coutinho,
impetra uma licença para os negros da irmandade de Nossa Senhora do Rosá­
rio saírem mascarados numa parada militar a que chamam “alarde”:

Senhor: os N e g r o s J u izes
da S en h o ra d o R osário
fa zem por u so o rd in ário
a l a r d e n e s t e s P a ís e s :
c o m o são tão in fe liz e s ,
que por seus negros pecados
an d am sem pre em ascarados
c o n tr a a lei d e p o líc ia ,
a n te V ossa S e n h o r ia
p e d e m licen ça prostrados.
A u m G en eral C a p itã o
su p lic a a Ir m a n d a d e preta,
q u e n ão irão d e careta,
m a s d e s c a r a d o s irão:
todo o negregad o Irm ão
desta Ir m a n d a d e b en d ita
p e d e , q u e se lh e p e r m ita
ir a o a l a r d e é n f r a s c a d o s
n ã o d e p ólvora atacados,
c a lc a d o s d e jeribita.

(OC, I, p. 1 8 6 . )

Embora os “Negros Juizes” “são tão infelizes”, o poema atribui-lhes pe­


cados metaforicamente equivalentes à sua cor, “negros pecados”, estereótipo
corrente nos séculos X V I e X V I I sobre o estado de servidão natural do africano
como descendente de Cam, filho de Noé amaldiçoado por ter visto o pai nu,
motivando-se a mesma “infelicidade” e jogando-se ironicamente com o ter­
mo “Juizes”, pois juizes sem discernimento do bem. Como paródia da prag­
mática das petições de mercês, o poema também metaforiza jocosamente o

24. (.f., a propósito, padre Jorge S. J. Benci, Economia Cristã dos Scnhens no Governo dos Escravos ('Livro
Brasileiro dc 1 700), estudo preliminar de Pedro de Alcântara Figueira e Claudinei M. M. Mendes,
São Paulo, Grijalbo, 1977.

415
A SÁTI RA E O E N G E N H O

que, em muitos discursos das autoridades baianas do século X V I I , é signo de


apreensão e de medidas repressivas, como se viu no capítulo I I . No caso, o
costume de embebedar-se e promover arruaças ou assuadas que perturbam a
ordem pública, geralmente atribuído aos negros. Observe-se o trocadilho: não
vão ao alarde “emascarados” ou “de careta”, o que é proibido, mas vão masca­
rados doutra forma pela metáfora “enfrascados” (de “jeribita”, a pinga), que
os faz duplamente “descarados”...
Efetuado sempre como naturalmente escravo, tudo no negro é bestial,
conforme a sátira: “caterva etiópia” (OC, V, p. 1074). Assim, o insulto ao Bra­
ço de Prata é hiperbolizado pela declaração: “Xinga-te o negro, o branco te
pragueja” (OC, I, p. 158), pois a distância hierárquica entre o governador e o
negro faz inconcebível o evento, encenando-se ainda uma vez o código de
honra fidalgo. O negro não tem nenhuma, segundo a sátira, no entanto é figu­
rado como árbitro da honra de Sousa de Meneses, absoluta desqualificação.
Como na Roma antiga, em que a declaração de amor de um escravo por mu­
lher patrícia era recebida como inverossímil e proposta como matéria de co­
média. A situação dramática em que o negro xinga o governador é modelar:
nela se condensam os motivos de uma relação que integra lar e negócio, con­
vivência e dominação econômica25. Outros elementos dos topoi “negro” e “mu­
lato” são tratados adiante na análise da tópica “sexo”.

Outros

As referências a outras raças - metaforizadas sempre em termos das tópi­


cas “nação” e “origem” - são poucas: entre elas, a da donzela indiana que vem
para casar na Bahia com o fidalgo de foros falsos, Pedralves da Neiva, e que é
caracterizada na paródia do soneto camoniano como “suja Noiva” (OC, IV, p.
891). Outra é a dos brâmanes ou budistas do Pegu, Birmânia, figurados em
algumas versões como “cafres” e, em todas, como “gentio” e “sujos de sangue”:

U m R o h m de M on ai B on zo Bramá
P r im a z da G rep a ria (C afraria) d o P egu ,
Q u e s e m ser d o P e q u i m , p o r s e r d o A ç u ( A c u ),
Q u e r s e r f i l h o d o S o l n a s c e n d o cá.

( O C , IV, p. 8 4 2 .)

25. Cf. Maria Sylvia Carvalho Franco, “Organização Social do Trabalho no Período Colonial”, Discur­
so, São Paulo, FFLCH-USP/Hucítec, maio 1978, n. 8, p. 39. Sobre o escravo na poesia romana, é
útil ler Paul Veyne, üélégie érolique romaine (L’amour, la poésie ei l' Occident), Paris, Scuil, 1983. Trad.
brasileira de Milton Meira Nascimento e Maria das Graças de Souza Nascimento,/! Elegia Erótica
Romana (O Amor, a Poesia e o Ocidente), São Paulo, Brasiliense, 1985.

416
OS LUGARES DO LUGAR

P a t r ia (P á t r ia o u C id a d e )

Segundo Quintiliano, as cidades têm leis, costumes e instituições dife­


rentes, tanto quanto as nações26. É esta diferença o objeto do elogio ou da
vituperação.
A sátira ordena este topos segundo três procedimentos:
a) personificação da Cidade e representação de sua fala em discurso direto;
b) interpelação da Cidade, personificada ironicamente como alta - “Se­
nhora” - e/ou vituperada como baixa - “Sodoma”;
c) descrição ou narração referenciais da Cidade, personagem do enuncia­
do, cujos vícios se montam pelo acúmulo de detalhes pejorativos ou de ações
corruptas.
No caso, a prosopopéia é recurso dramático muito eficiente, uma vez que,
fundamentando a estrutura dialógica do poema ao figurar a referência do ata­
que como interlocutor da persona satírica, faz com que seja simultânea à
enunciação, o que lhe confere grande concretude pictórica que figura os vícios
como presentes, contemporâneos do destinatário da sátira. O topos “Cidade” é,
assim, dos que mais facultam o investimento semântico como estilização e/ou
paródia de discursos coetâneos, como a murmuração do vulgo, os estereótipos,
os causos, as anedotas, os pasquins, a própria sátira que corre solta em Salva­
dor etc. Ao falar, a Cidade é uma duplicação da persona, por vezes lhe assumin­
do a prudência e a gravidade sérias. A dramatização intensifica a ironia, assim,
pois o objeto do ataque passa a sujeito da enunciação, ao passo que a persona
vem a ser personagem do enunciado. A dramatização invertida diagrama, des­
ta maneira, o tema do “mundo às avessas”, como convenção para o riso e a
crítica conhecida do público. Na recepção, este deve ocupar imaginariamente
os lugares da inversão, consistindo o entendimento da sátira na inversão da
inversão. Veja-se, por exemplo, como a Cidade critica os autores de críticas:

Já q u e m c p õ e m a t o r m e n t o
m u r m u ra d o res n ocivos,
carregand o sobre m im
su a s c u lp a s , e delitos:
P or cred ito d e m e u n o m e ,
e n ã o por te m e r castigo
con fessar q u ero os p ecados.

(OC, I,p. 11.)

26. Quintiliano, De inslitutione oratória, 5, 10, 25: “patria, quia simililer diam civitatium leges, instituía,
opiniones habenl differenliam".

417
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

A duplicação dapersona por vezes é apenas grave: “Desejo, que todos amem,
/ seja pobre, ou seja rico, / e se contentem com a sorte / que têm, e que estão pos­
suindo” (OC, I, p. 28). Como duplicação da prudência, ainda, a fala distingue: “Se
por minha desventura /estou cheia de percitos,/como querem,/que haja em mim
/ fé, verdade, ou falar liso” (OC, I, p, 27). Encena-se outro lugar-comum da Con­
quista ibérica, o do trópico como “paraíso terrenal” ou “inferno verde”, com sen­
tido moral: “[...] para os bons sou inferno,/e para os maus paraíso” (OC, I, p. 13).
Constituída interlocutora, a Cidade é figurada antiteticamente, em opo­
sição de "alto” “baixo”. Por exemplo, em discurso que inicialmente mimetiza
o da poesia encomiástica ou lírica (“Senhora Dona Bahia, / nobre e opulenta
cidade”) -, e imediatamente rebaixada no quiasma que diagrama a inversão
poética da inversão metaforizada que a enunciação corrige:

m adrasta d os N a tu ra is,
e d o s E stra ng eiro s m adre.

(OC, II, p. 429.)

Com desenvolvimento do topos “pátria” mesclado aos de “nação” e “origem”:

O c e r t o é, P á tr ia m i n h a ,
q u e f o s t e s terra d e alarves,
e in d a os ressá b ío s v o s d u ra m
d esse te m p o , e d essa idade.
E n tã o v o s p isa v a m ín d io s,
e v o s h a b ita v a m eafres,
hoje c h isp a is fidalgu ias,
arrojando personagens.

(O C , II, p. 4 3 0 . )

atinge-se, depois da representação de personagens viciosas, o final apocalíptico:

T ã o q u e im a d a , e destru íd a
te v e j a s , t o r p e c i d a d e ,
co m o S od om a, e G om orra
d u a s c id a d e s in fa m es.

(O C , II, p. 4 3 4 . )

O belo romance “Embarcando o poeta para seu degredo, e postos os olhos


na sua ingrata pátria lhe canta desde o mar as despedidas” se faz como inte­

418
OS LUGARES DO LUGAR

gração metafórica de vários motivos de ataque. Nele, a persona estiliza a voz


de Cipião, de quem teatraliza o non possedebis ossa mea, dirigindo-o contra
Salvador rebaixada a Roma:

Adeus praia, adeus Cidade,


e agora me deverás,
velhaca, dar eu adeus,
A quem devo ao demo dar:
[...] estás tão caída,
que nem Deus te quererá.
Adeus Povo, adeus Bahia,
digo, Canalha infernal [...]
E tu, Cidade, és tão vil.
(OC, VIJ3 p. 159 3 .)

Essa tópica de maldição é encontrável em outros poemas: “Oh assolada


veja eu / Cidade tão suja, e tal, / avesso de todo 0 mundo, / só direita em se
entortar” (OC, VII, p. 1596). E, em outro, ainda:

Fica-te em boa, Bahia,


que eu me vou por esse mundo
cortando pelo mar fundo
numa barquinha.
Porque inda que és pátria minha,
sou segundo Cipião,
que com dobrada razão
a minha idéia
te diz “non possedebis ossa mea”.
(OC, V II, p. 1 5 9 1 . )

Como tipificação referencial, acumulam-se descrições e narrações hiper-


bolizadas como pejorativo, por vezes de sentido obsceno pelos trocadilhos: “À
Bahia aconteceu / 0 que a um doente acontece /c a i na cama, o mal lhe cresce,
/ Baixou, Subiu, e Morreu” (OC, I, p. 33). A doença da pátria, segundo as
qualificações, é a necedade: “néscia”, variantes “grosseira”, “crassa”, “asnal”
etc. Disseminado por toda a sátira, 0 termo “néscio” interpreta-se cscolastica-
mente, significando a desordem ou a corrupção da ordem natural pela falta
de prudência, justiça e temperança. Por ele, a Bahia é injusta, louca, concu-
piscente, usurária, simoníaca, idólatra, hipócrita, infame: “Esta mãe univer­
sal, / esta celebre Bahia” - no paradigma da Queda, Eva, mãe de todos os

419
A SÁTI RA I-: O KMGKNTIO

pecados, logo puta: “De dous ff se compõe / esta cidade a meu ver / um furtar
outro foder” (OC, 1, p. 9).
Vejam-se mais exemplos de falha e falta: “[...] esta mofina, e mísera Cida­
de” (OC, II, p. 416); “[...] a terra / sempre propícia aos infames” (OC, II, p.
432); [...] “Bem merece esta cidade / esta aflição que a assalta, / pois os di-
nheiros exalta / sem real autoridade” (OC, II, p. 440); [...] “Eia, estamos na
Bahia,/ onde agrada a adulação,/ onde a verdade é baldão /e a virtude hipo­
crisia” (OC, II, p. 448); [...]” Guardai-vos, digo mil vezes,/de pôr os olhos nas
torres/dessa traidora cidade, / que tal basalisco encobre” (OC, IV, p. 950);
“[...] Doutor com borla de osso? mau agouro: / Adonde pode achar-se? Na
Bahia, / Que de um manso Coelho faz um Touro” (OC, III, p. 735); “[...] Esta
mãe universal, / esta célebre Bahia, / que a seus peitos toma, e cria, / os que
enjeita Portugal: / que ao que nasceu natural / seu Filhote em tenra idade / o
mate à necessidade, / porque lhe tem ódio interno / Oh praza a Deus, que no
inferno / se subverta esta Cidade” (OC, IV, p. 909).

S e x u s (S exo)

Segundo Quintiliano, acredita-se que um roubo seja cometido por um


homem e que o veneno seja ministrado por m ulher7.
Em outros termos, a divisão sexual implica convenção de ações e caracteres
conforme a natureza dos contrários supostos, masculino e feminino. Nature­
za e oposição encenadas pela sátira, entenda-se bem, como sexo anterior a
qualquer prática, segundo a teologia do “macho e fêmea os criou”. A infração
sexual é assim, antes de tudo, infração da lei natural expressa nas leis positi­
vas da Cidade: o crime contra naturam corrompe a harmonia do bem comum.
Por isso, nos vícios pessoais se figura, de maneira exemplar, o teatro do medo
em que se representa a negação do gozo e a apologia da falta, formalizadas na
voz magistral do diretor da cena como prescrição de virtudes políticas. Dis­
tinções sutis de canonista são legíveis na formulação dos vícios, não vindo
certamente ao caso saber que seu suposto autor é homem formado em Cânones,
uma vez que a teologia política da culpa sexual está intimamente ligada à
concepção jurídica do corpo místico e bem comum do Estado para ser, diga-
se assim, apenas expressiva ou fruto da particularidade biográfica.
Ao desenvolver os lugares do sexo desonesto, a sátira propõe ao público
culpado de desejos análogos a representação caricata e monstruosa deles guia-27

27. Quintiliano, De insiitulione oraioria, 5, 10, 25: “sexus, ul lalrocinium facilius in viro, veneticium in
femina credas".

420
OS LUGAR F S DO LUGAR

da pela pastoral da sua prudência para a cena sacrifieial do remorso e da


catarse. Basicamente, seu pressuposto efetuado é o de que a corrupção do cor­
po falseia a ordem natural expressa no bem comum pela irrupção do gozo
impuro2*.
Trata-se, em todos os casos, de regulação do sexo, segundo padrões con-
tra-reformistas. Mau é o duplo, impuro sempre: Eva, seu séquito de crimes.
Assim, como ditado da razão (dictamen rationis), a voz prudente intervém como
portadora da consciência moral que designa a regra para casos particulares29
estabelecendo o lícito e o ilícito. Dramatiza uma ascese, desloca para outro
lugar a culpa, metaforiza o alívio da adesão. Sistêmica, fazendo da unidade
virtuosa a regra de derivação de todos os usos lícitos e ilícitos, nenhum misto
escapa da inquisição do olho e seu ditado: todo erro, ainda o mais venial, tem
sua casa marcada na tabela das culpas - da blasfêmia à viuvez insatisfeita, do
sexo matrimonial incontinente ao adultério, da masturbação ao amor freirá-
tico, da sodomia à bestialidade dos que gozam com o Diabo. Horror e mons­
truosidade são simetricamente proporcionais à aplicação da regra segundo
casos: a obscenidade encontra, aqui, sua Razão.
À primeira vista, a partição fundamental da sátira quando desenvolve a
tópica é a dos sexos em “masculino” e “feminino”, segundo a teologia dos
dois sexos naturais e do niulier corpusviri, a mulher como corpo do homem e
parte dele, que a ela atribui a inferioridade da diferença submissa e submeti­
da ao poder do homem como compensação da falta-10: só o homem foi feito à
imagem de Deus, lembre-se. A mulher é “vaso do marido”, segundo a piedo­
sa expressão paulina. Como hipertrofia dessa hierarquia natural, a sátira
autonomiza o “vaso”, constituindo a “puta”, a mulher-vaso por excelência,
paradigma do duplo impuro e duplo do paradigma virginal: “Eva atroz” (OC,
II, p. 387). Na metáfora “puta”, a função “vaso” está insubordinada selvage-
mente, contra naturam: “[...] jamais a ninguém te negas, / tendo um vaso
vaganau” (OC, III, p. 571).
O termo “puta” pode ser operado, desta maneira, para significar a potên­
cia do duplo em todos os casos em que a Regra não é observada. Generica­
mente, significa /contra naturam/. Exemplo: quando o governador Câmara
Coutinho é efetuado a falar “como putana”, o termo significa o pecado políti-28930

28. Cf. Pierre Legendre, O Amor do Censor (Ensaio sobre a Ordem Dogmática), Rio de Janeiro, Forense
Universitária/Colégio Freudiano, 1983, p. 114.
29. H. S. J. Busembaum, “O que é a consciência e se é preciso segui-la” (qttidconscientuisit et an seqttenda
sit). Do scculo XVII, o jesuíta Busembaum é citado por Pierre Legendre, op. cil., p. 110.
30. Pierre Legendre, op. cil., p. 124.

421
A SÁTI RA E O E N G E N H O

co da tirania31. Em outros casos, aplicado como insulto, como na locução “fi­


lho da puta”, liga-se ao imaginário fidalgo e seus topoi de “origem” e “limpeza
de sangue”. Como se escreveu, o insulto opera, na injúria da mãe, a constitui­
ção do filho como “bastardo” e do marido como “corno”, coisas gravíssimas,
segundo a Honra.
Postulada como natural, uma vez que a mulher não foi feita à imagem
de Deus, a marca da falha e sua falta inscrevem-se em todas, ainda as hones­
tas:

Mujer eras, falsa fuiste,


falsa devias de ser,
puessi nasciste mujer,
obras como qual nasciste.
(OC, IV, p. 948.)

Marcada originalmente como/negativo/, porque dupla, a classe “mulher”


é conatural às subdivisões da mesma falha constitutiva: “honesta”/ “desones­
ta”: “[...] A mulher fonte de enganos / por melhor aproveitar-se/começa hoje
a desonrar-se, / e acaba de hoje a dez anos” (OC, V, p. 1248). De todo modo,
potencial e atualmente, é sempre Eva a mulher: “Eva falta, e Eva mente, / e
tem-me enganado enfim, / com o que a Eva para mim / é pior, que uma ser­
pente” (OC,V,p. 1256).
À distinção teológica juntam-se outras, não menos institucionais, na de­
terminação particularista da culpa sexual: distinções raciais, como as de “mu­
lata”, “negra”, “branca”; jurídicas, como as de “solteira”, “casada”, “viúva”,
“freira”; morais, como de “ casada” e “amancebada”, “séria”, “de vida airada”
etc.;políticas, enfim. Neste sentido, opõem-se “masculino” e “feminino” - a
sátira é misógina. A misoginia não é especifica da poesia atribuída a Gregório
de Matos, contudo, antes antiga tópica da tradição greco-romana retomada,
por exemplo, por Castiglione, como complemento disfórico do amor cortês3132,
e difundida nos séculos XVI e XVII em inúmeros livros de Cortes de Amor e
preceptivas da agudeza cortesã:

31. Cf. OC, , p. 203: “Pagamos ver esta Hiena / que com a voz nos engana, / pois fala como putana,/c
1

como fera condena: / que uma terra táo amena, / tão fértil, c tão fecunda / a tornasse tão imunda /
falta de saúde, e pão; / mas foi força, que tal mão / peste, e fome nos infunda”.
32. Cf. Baldassare Castiglione, II Libro dei Conegiano em Opere dl Baldassarc Casliglwne, Giovanni delta
Casa, Benvenulo Cellini, a cura di Cario Tardié, Alilano-Napoli, Riccardo Ricciardi Editore, 1960,
capítulos XXXI-XU.

422
OS LUGARES DO LUGAR

M u l h e r A t a lia , m u l h e r J e z a b e l, m u l h e r V asti, m u l h e r M i c o l , m u l h e r B e r s a b é ,
m u lh er fin a lm en te Eva. E e m t o d a s e l a s s e m p r e p o d e m a i s a v a i d a d e , q u e a v i r t u d e 3-'.

A oposição “masculino”/ “feminino” não é pertinente para a sátira, entre­


tanto, se não se levar em conta que a partição fundamental que nela circula é
a de “pecado”/ “não-pecado”, extensiva a todos os corpos, tanto machos quan­
to fêmeas. O alvo da sátira dos costumes sexuais, independentemente do sexo
do tipo satirizado, é tudo quanto é duplo: sexo venal ou promíscuo ou incon-
tinente; atos contra naturam, masturbação, sodomia, bestialidade; sinédoques
do duplo: genitais, esperma, mênstruos, escatologia, fluidos, gases do corpo.
Se há um sexo honesto, lícito segundo regras - a do “melhor casar-se que
abrasar-se”, a do “engendrar servos do Deus-Pai”, a do “dar o devido ao espo­
so requerente” -, torna-se ilícito como prática contra naturam: “Nada é mais
vergonhoso que amar sua mulher como à adúltera e à prostituta. O amante
demasiado devorado de amor por sua mulher é adúltero”3334.Assim também a
sodomia, o coito impetuoso, os jogos amatórios que não visam a reprodução.
Por isso, ainda, termos como “machismo” e “homossexualismo”, aplicados
para referir os costumes sexuais do século XVII luso-brasileiro, costumam ser
anacronismos.
O Direito Canônico que rege as trocas sexuais não doutrina a diferença
sexual como variante posicionai livre de um ser só, o sexo humano, antes pos­
tula dois sexos, um à imagem do Deus-falo, outro marcado pela falha,
substancializando-os a ambos como opostos complementares em um pecado
comum de toda a humanidade. A não-complementaridade deles não é, as­
sim, possibilidade de inscrição diferencial do corpo noutra e noutra e mais
outra convenção da sexualidade, mas erro, pecado contra naturam. Entre ou­
tros, o “vício nefando da sodomia” tem, antes de tudo, determinação teológi­
ca, sendo inútil tentar buscar nos documentos que atestam sua prática qual­
quer moralidade “transgressora” de interditos. É preciso lembrar que, entre
falta e gozo, nenhum vazio é deixado: a sátira e o discurso da excomunhão
católica se mimetizam um ao outro. E que, pela apologia da virtude em todos
os casos monstruosos, a sátira assegura que a inocência e a pureza são proprie­
dades exclusivas da instituição. Por isso mesmo, todo erro é apenas uma espé­
cie ou diferença previstas pelo gênero supremo de que a voz prudente se faz
emisssária: a rebeldia é um caso, também a transgressão. Ler a sátira sem

33. Cf. Padre Antônio Vieira, Sermão da Rainha Santa Isabel, Pregado em Roma na Igreja dos Portugue­
ses no Ano de 1674, Coimbra, Confraria da Rainha Santa Isabel, Atlântida, MCMXLVIII, p. 12.
34. Graciano, Causa 32, questão 4, cânon 5, cit. por Pierre Lcgendre, op. cit., p. 135.

423
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

considerar esses crivos também teológicos propõe sua libertinagem, moral e


intelectual, sua potência crítica de oposição e transgressão - e é, enfim, ro­
manticamente piedoso, por isso ingênuo e sentimental. As inumeráveis vezes
em que na sátira ocorre a locução “dou ao demo” só o corroboram: lembre-se
que, agostinianamente, a excomunhão entrega o culpado ao Diabo, que está
fora da Igreja. Ao encenar o “dou ao demo”, a voz satírica prudente e justa
assegura para o público do seu teatro que só ela detém o segredo tremendo da
inocência e que da instituição ninguém sai35.
Fundindo os caracteres da tópica “sexo” com os de outras, como “raça”,
“religião” e “origem”, a sátira constrói vários tipos, principalmente femini­
nos, da corrupção -p o r exemplo, donzela, branca eputa: “[...] uma donzelíssima
donzela” (OC, III, p. 732);freira, branca eputa: “[...] Confessa Sor Madame de
Jesus, / Que tal ficou de um tal Xesmeninês, / Que indo-se os meses, e che­
gando o mês, / Parira enfim de um Cônego Abestruz” (OC, IV, p. 871); negra,
escrava eputa: “[...] e quando a negra se agasta, / e co Padre se disputa, / lhe
diz, que antes quer ser puta,/que fazer com ele casta” (OC, II, p. 288);mw/aía,
forra e puta: “[...] Macotinha a foliona / bailou rebolando o cu / duas horas
com Jelu/mulata também bailona: / senão quando outra putona/ tomou pos­
se do terreiro” (OC, III, p. 622).
A dominante do estilo baixo é, em todos os casos, “puta”, caráter que,
significando genericamente o sexo contra naturam, sofre a refração específica
da combinatória discursiva em que ocorre como descrição caracterizadora ou
insulto do tipo sórdido. Regras hierarquizadoras intervém: combinado com o
termo “freira”, por exemplo, embora signifique /contra naturam/, seu valor
semântico é delimitado por outros termos relacionados, como os que caracte­
rizam “freira” como branca, livre, filha de senhor de engenho afidalgado,
discreta, católica etc. Aplicado aos termos “negra” e “mulata”, acoplam-se ao
termo “puta” os significados da tópica “nação” - /sujeira de sangue/, /genti-
lidade/- e “origem” -/anim alidade/-, em chave fática, que lhe intensifica o
valor pejorativo. Embora possam ser honestas, a negra e a mulata são “sujas
de sangue” por definição; logo, por extensão semântica, os termos “mulata” e
“negra” podem significar/puta/, independentemente de outra qualificação:
“[...] Não há no Brasil Mulata / que valha um recado só” (OC, VII, p. 1591).
Tal não se dá com “freira”, por exemplo: na sátira, o termo não implica neces­
sariamente /puta/, ao passo que “mulata” e “negra” sempre o conotam. A
“negra” e a “mulata” são fundamentalmente dissolutas, ao passo que as mu­
lheres brancas - no caso, a “freira” -, marcadas como toda mulher pela falta

35. Picrre Legendre, op. n/., p. 148.

424
OS LUGARES DO LUGAR

do pecado original, só são dissolutas por atos explícitos em ruptura com as


regras hierárquicas do corpo místico que operam como crivo interpretante da
seleção e combinação semânticas do léxico.
Isto posto, vejam-se, pois, “[...] as disputas/de putas tão dissolutas” (OC,
V, p. 1124). Sem eufemismos, a sátira compõe a “putaria anciana” (OC, III, p.
624) descompondo-a como um mal contra naturam que corrompe a Cidade:
desejo incontinente e poder de “vender amor a todo o mundo” (OC, V, p.
1127). A “puta” é onipresente enquanto se particulariza num retrato: “[...]
Helena, a cu de borralho,/asmática, porém gorda” (OC, III, p. 629). Caráter
e tipo, sua estrita nomeação figura a inimizade de relações que mimetizam
sinistramente - o que não exclui o cômico de sua caracterização - a virtus
unitiva do amor. Não por acaso se associa a “puta” ao Demônio e à Morte.
Fingimento, dissimulação do amor, a “puta” é “dissoluta”, termo de extrema
freqüência na sátira, que a traduz como causa e efeito do mal: corrompida,
corrompe. O termo tem valor de hiperinclusivo, assim, podendo significar
não só a mulher, mas todos aqueles tipos e casos em que a concórdia e a paz
do bem comum se encontram subvertidas por relações de troca ilícita:
comerciantes usurários, frades simoníacos e lascivos, governadores tirâni­
cos, magistrados venais, pseudofidalgos etc. Para reter aqui a metaforização
sexual do termo, metaforiza os devotos “[...] do nefando Deus Cupido” (OC,
I, p. 23). Eles são, na sátira, todos aqueles fora das especificações canônicas
que prescrevem o sexo como natural e lícito apenas no matrimônio, restriti­
vamente, lembre-se, para a reprodução de servos do Senhor, para não desejar
o outro do próximo, para não se abrasar nas prestações módicas do dever
conjugal:

Seja so lteiro , ou c a sa d o ,
é q u e s t ã o , é já s a b i d o
n ã o e s ta r s e m ter b or r a c h a
seja d o b o m , ou m a u v in h o .
E m ch eg a n d o a em b eb ed ar-se
d e sorte p e r d e os se n tid o s,
q u e d eixa a m u lh e r em couros,
e traz o s f ilh o s fa m in to s:
M a s a sua c o n c u b in a
há de a n d a r c o m o u m p a lm ito ,
para cu jo efeito e m p e n h a m
as b o ta s c o m s e u s a tilh o s.
E la s p o r n ã o se o c u p a r e m
c o m co stu ra s, n e m c o m bilros,

425
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

an tes d e ch eg a r aos d o ze
v e n d e m o s ig n o d e V irgo.
O u ç o d izer v u lg a rm en te
(não sei, é certo este d ito)
q u e fa z e m p o u c o reparo
e m ser caro, o u b a ra tin h o .
O q u e sei é, q u e e m m a g o te s
de d u a s , três, q u atro, c in c o
as v e jo to d a s a s n o ite s
sair d e se u s e s c o n d e r ijo s
E c o m o há tal a b u n d â n c ia
d esta fru ita n o m e u sítio
para ver se h á , q u e m a s c o m p r e ,
d ã o p e la s ru a s m il giros.
E é para sentir, o q u a n to
se d á D e u s p o r o f e n d i d o
n ã o só p o r e s t e p e c a d o ,
m a s p e lo s se u s co n jun tiv o s:
c o m o são ca n tig a s torp es,
b a ile s, e to q u e s la sc iv o s,
v en tu r a s, e fervedouros,
p a u d e forca e p u c a r in h o s .

( O C , I, p p . 2 3 - 2 4 . )

Pelo mesmo pressuposto teológico de um sexo natural tatuado nos corpos


de homem e mulher anteriormente a toda prática, a mulher casada torna-se
dissoluta se pratica atos ilícitos com o marido, entre eles a sodomia e outros
segredos penitenciais de confessionário. Apersona satírica é sempre masculi­
na, aliás, pois é a partir do masculino que se determina a “puta”:

A Puta c o m seu s e x trem o s


v o s q u is d a v ia torcer,
q u e n ós p or um a m u lh er
a ca b eça , e p és torcem os:
to d o s o m e sm o fa zem o s,
e o te m o s to d o s à a sn ice ,
se n ã o eu , q u e lo g o disse,
q u a n d o o p é se v o s e n t r e v a ,
q u e se A d ã o se a ch ou c o m Eva,
era fo rça , q u e caísse.

( O C , II, p. 3 7 5 . )

426
OS LUGARES DO LUGAR

E vão caindo todos, segundo a sátira, “[...] os ricos pelos tostões/ e os pobres
por caridade,/os leigos por amizade,/os Frades pelos pismões” (OC, II, p. 338),
uma vez que a natureza pecadora do macho não dispensa fêmea. Traduzida pe­
los signos da troca, a “puta” é metaforizada como aquela em que o ato intransitivo
de vender é mais fundamental que o valor: “ [...] fazem pouco reparo / em ser caro,
ou baratinho” (OC, I, p. 24), declara a Bahia personificada. Veja-se, ainda: “[...]
Mulatinhas da Bahia,/que toda a noite em bolandas/ correis ruas, e quitandas
/ sempre na perpétua folia,/porque andais nesta porfia, / [...]) vós dizeis arrom­
ba arromba” (OC, V, p. 1274). Descrições hiperbólicas e narração de ações obsce­
nas compõem quadros muito dinâmicos que figuram a troca e a venda contínuas
do ser “puta”. Troca ilícita, também tem convenções hierárquicas: “[...] o falar
da janela, e da varanda,/só se achará em putas da quitanda./Cal-te, que a puta
grave, qual donzela,/geme na cama e cala na janela” (OC, V, p. 1168). O tipo é
evidentemente vil e sórdido, como baixa e vil é a “perpétua folia” do “dar-ven-
der-comprar”. O tipo exige o estilo baixo e a translado sórdida, portanto.
Em um dos poemas dirigidos contra o Padre Lourenço Ribeiro, a persona
se antecipa ironicamente à indignação do destinatário com índices metalin-
güísticos de que o insulto do chamar-lhe a mãe de “puta” nada mais é que
uma convenção retórica para insultar. Em outros termos, estilo torpe adequa­
do ao caso, que não admite o tratamento épico ou lírico, a não ser como paró­
dia. Observe-se o deslocamento do alto para o baixo:

E se a ca so v o s to ca a p u ta ria
Q u e ali p i n t o u a m i n h a fa n te s ia ,
N ã o v o s c a n se is e m d e fe n d e r as putas,
P o is se n d o d iss o lu ta s ,
N ã o vos q u e r e m so ld a d o a ventureiro,
Q u e r e m , q u e lh e a c u d a is co m b om d inheiro.

(OC, IV, p. 805.)

Fundida com a do “amor”, a tópica do “dinheiro” encena o código de


honra do tipo que trata com “putas”: inversão das convenções do cortesão no
trato com as damas: “Não hão mister as putas gentilezas, / Que arto bonitas
são, arto belezas: / O que querem somente, é dinheiro” (OC, II, p. 340). Paro­
diando a lírica e o amor cortês, o termo “Dama” metaforiza “puta”:

Para a s D a m a s d a C i d a d e ,
B ra n ca s, M u la ta s, e P retas,
que c o m so r tíleg a s tretas
ro u b a m to d a a lib erd ad e:

427
A SÁTI RA F. O E N G E N H O

e eq u iv o ca n d o a verdade
d iz e m , q u e são u m feitiço,
n ã o o te n d o e m o cortiço
tanto c o m o ca ld o s m ornos:
oito corn os.

( O C , II, P . 4 5 3 . )

Com auto-apologia irônico-obscena: “Se da Dama de alto colo / (diz a histó­


ria, que dizia) / que para o que ela queria, / arto sabia o seu preto / de teolo­
gia, um discreto / sabe inda mais teologia” (OC, IV, p. 938). Com metonímia,
nome próprio por “dama”, e inversãoparódica: “Por isso nunca vos peço, / que
não sois a Beatriz,/que rne hei de fazer ditoso/com vossa graça a ceitis” (OC,
III, p. 761); “Mas que Amariles mui vã / saiba muito bem de cor, / toda a
cartilha de amor, / não a doutrina cristã: / [...] Boa asneira” (OC, II, p. 4 8 1).
Com obscenidade moralizante: “As Damas, que mais lavadas / costumam trazer
as peças, / e disso se prezam, essas / são Damas mais deslavadas: / porque
vivendo aplicadas / a lavar-se, e mais lavar-se / deviam desenganar-se, / de
que se não lavam bem, / porque mal se lava, quem / se lava para sujar-se”
(OC, III, p. 766)36.
Exposta monstruosamente ao olhar da Cidade-destinatário, a “puta” pode
ser só um órgão por vezes devorante e assustador, fixado na unicidade de sua
paixão contra naturam: “Dize-me, Maria Viegas / qual é a causa, que te move,
/ a quereres, que te prove / todo o homem a quem te entregas?” (OC, III, p.
571); “Não terás vergonha, puta, / de com tão ruim pentelho, / sobre seres
vaso velho, / tomes a capa de enxuta?” (OC, III, p. 575). A enunciação satírica
expõe a convenção do estilo torpe de seus nomes:

A o b u r l e s c o se r á c o n o ,
ao tu d e sc o ch an caron a,
c u m a crica d e a zeito n a ,
o n d e en crica todo o m ono:
d aq u i a razão en to n o
para te satirizar,
e se o u tr a v e z p e s p e g a r
qu iseres, bu sca, garoupa,

36. Na forma masculina, “Damo” é personificação obscena do pênis (OC, V, p. 1251): “É tenro, amoro­
so, e brando, / sendo no trabalho duro, / e se com queixas o apuro, / dá satisfações chorando: / de
sorte que vive amando, / e diz, que tanto se inflama, / que ele só sente, e derrama, / e que ele só pena,
e adora, / que chora na grade, e chora / muitas lágrimas na Cama”.

428
OS I.U GARES DO LUGAR

q u em n o vaso e m u p a a roupa,
se a ro u p a o p o d e e n tu lh a r.

( O C , III, p. 5 7 4 . )

Todas as ações e as descrições do tipo se absorvem no “vaso” de dimen­


sões arquetípicas, fantasticamente amplificadas: “Esse vaso encharcado, qual
Danúbio / dá a crer, que és puta inda antes do dilúvio:/ tão velha puta és, que
ser podias / Eva das putas, mãe das putarias,/ e por puta antiqüíssima pude­
ras/ dar idade às idades, e era às eras” (OC, V, p. 1167). O “vaso” metonímia
é obsessivamente descrito de modo hiperbólico, pejorativo, ironicamente de­
finido: “[...] um vaso vaganau, / e sobretudo tão mau, / que afirma toda a
pessoa, / que o fornicou já, que enjoa,/por feder a bacalhau” (OC, I I I , p. 571);
“[...] o teu vaso furta-fogo” (OC, I I I , p. 571); “[...] tens vaso ardido” (OC, I I I , p .
572); “[...] havendo nele tanta água, / sempre esteja emporcalhado” (OC, III,
p. 572); “[...] o teu vaso/ é a fonte do Parnaso/ nas águas, que está manando”
(OC, I I I , p. 574); [...] na estrebaria /daquele tremendo vaso” (OC, I I I , p. 574);
“[...] bainha de agulha/ é força, que esteja aberta” (OC, I I I , p. 731); etc.
Confecção e defecção do corpo-pedaço grotesco e corpo-buraco excessi­
vo, as imagens de atos, funções e formas aberrantes são aberrações estruturadas
logicamente: há método em sua mistura. Ao fazê-lo, a sátira doutrina o corpo
próprio, segundo o Ditado37. A obscenidade é o efeito desproporcional da trans­
formação do corpo próprio em outro, da função própria em outra: satirica-
mente, a obscenidade faz um corpo se meter para dentro de outro, vir a ser
outro, como metamorfose bestial. Assim, a obscenidade irrompe como não-
linguagem na sua linguagem emissária da linguagem institucional, que pos­
tula a economia unitária da alma segundo a ordenação teológico-política do
corpo e das funções dos corpos. Legalismo do crime, que a instituição pres­
creve, a obscenidade é o efeito de total exposição discursiva de algo que, pro­
priamente, deveria permanecer invisível: atos fisiológicos, fluidos e resíduos;
obsessão de tematizar as funções excretoras etc.
Além deste, o outro procedimento já referido do obsceno, que autonomiza
órgão ou função, desloca pela hipérbole o corpo e suas funções de sua “natu­
reza” postulada, caso do “vaso” onipotente das “putas”. A autonomização do
órgão e da função decompõe a ordem corporal e alegoriza-se com ela a de­
sintegração da ordem política. Função sensibilizadora do vício, politizado
simultaneamente como falha e intervenção. Outro procedimento, o da reite­
ração obsessiva, faz com que todos os espaços do corpo discursivo sejam in­

37. Pierre Klossovvski, op. cil., p. 52.

429
A S ÁT I RA E O E NGE NHO

vadidos pela imagem autonomizada, aos pedaços: tal é a “puta”, invadida


sempre pelo “vaso”; o “sodomita”, perseguido sempre pelo “cu”, transforma­
dos em corpos-buraco, corpos-receptáculo da sujeira universal:

E n tr a m na tua casa a se u s co n tra to s


F ra d es, S a rg en to s, P ajen s, e M u la to s,
p o r q u e é t u a v i l e z a tã o n o t ó r i a ,
q u e e n tr e o s h o m e n s n ã o a ch a s m a is q u e escória.

(0 (7 , V, p. 1168.)

Tanta figuração de estilo sórdido, que modela nos excretos e na bestiali-


dade as figuras da infâmia infigurável, tem articulação teológica, como se
disse. Lembre-se mais uma vez que a sátira postula que o bem de cada ato é
sempre aquilo que lhe convém dada a sua forma. Formalmente, finalistica-
mente, materialmente, eficientemente: as ações recebem sua espécie do fim
para o qual tende o ato interior da vontade; e do objeto a que o ato exterior se
aplica. Se o ato interior da vontade visa outro Fim - por exemplo, o gozo pelo
gozo -, também o ato exterior visa outro objeto - o dinheiro cobrado, o corpo
sem a alma, o “vaso”, o “cu”, a “puta” -, subvertendo-se a ordem natural pre­
fixada no Ditado. Mal c aquilo que contradiz a forma, destruindo-lhe a or­
dem, por falta, ou negando a existência do que existe naturalmente, por ex­
cesso, ou afirmando a existência do que não tem existência. Essencialmente,
os fins e os “doces objetos” das ações da “puta” são contra naturam porque
ilegítima é sua vontade, que se autonomiza como “vaso” monstruoso. A dis­
córdia dos atos e a discórdia das vontades figuradas exemplarmente na “puta”
são irracionais, o que é uma das razões da extrema freqüência da metaforização
“animal” e dos termos insultuosos que formulam a bestice, a estupidez e a
loucura, como “zote”, “néscio”, “besta”, “asnal” etc.
Construído como irracional, o tipo vicioso não é livre, pois em todas as
ocasiões só obedece à vontade, que o escraviza: não deseja, é desejado do seu
desejo, como um ladrão levado do furto que leva. Como se viu, a operação
aproxima todos os viciosos daquilo que é desvalor radical, a “merda” onipo­
tente das trocas discursivas da infâmia. Por extensão, os viciosos são metoni-
mizados pelos órgãos excretores, politizados segundo as mesmas normas hie­
rárquicas que compõem o corpo político. Irrisória, a sátira ultraja o vicioso
com o desvalor, fazendo-o indizível e infigurável, pelo excesso reiterado em
dizê-lo e figurá-lo. Isomorfismo de corpo/Estado, relação especular em que o
micro alegoriza o macro, a obscenidade das partes fora do lugar, embora não
nacionalista, é também autoritária, pois a serviço da unificação e da unidade
do status quo.

430
OS LUGARES DO LUGAR

A sátira não se limita à abstração da metonímia, contudo, como a do “vaso”


fantasticamente autonomizado, pois também pinta retratos vivíssimos de
“putas”, individualizando-as com um único traço estilizado como múnesis do
“verdadeiro”, à semelhança do Villon da “gorda Margot” e da Ballade des domes
du tempsjadis. Perífrases funcionam, no caso, como traços descritivos de “vi­
das” e “casos” de “putas”, ou metáforas pictóricas de sua definição.
Mas onde estão a caríssima Vicência, que punha cornos de cabidela, e
Clara, e Bina, e Lourencinha e a Gaguinha celebrada? Onde está Angelinha,
manjuba de palafréns e máscara de lagosta, e Inácia, chamada a Ilhoa, e
Anastácia, a dos corais, e a Surda, que gaga era, e Apolônia, uma demônia?
Onde estão Custódia, formosa e linda, e Marta Soares, já podre, com quem
ninguém queria juntar odre com odre, e Joana Lopes, que dormia com o Dia­
bo à destra, e Teresa, em quem a natureza artificiosa sobre sombras pintou
cara formosa? Onde estão Macotinha, a foliona, e Brazia, que excedia a toda
parda, e Pelica, que bebia um almude, e a Mangá, moça de alfiniques, e a
Garça e Luzia a Sapata? Onde Helena, a cu de borralho, asmática porém gor­
da, e Maribonda, que picava na alma, e Mariquita, filha de Zabelona, e a Jelu,
mulata bailona, e Babu, vagarosamente altiva, e Antonica e a Domingas? Onde
estão Agrela, do jantar que era um vício, e a Agueda do Michelo e Bertola e
Luzia Sacrifício, juíza de refestelo, putinhas da Bahia? Mas onde, mas onde
estão? Estão todas na bailia, melancólica e lasciva, que as imobiliza para sem­
pre em movimento dançando o paturi:

A o so m d e u m a g u ita r rilh a ,
q u e tocava u m c o lo m im
v i b ailar n a águ a B ru sca
as m u l a t a s d o Brasil:
Q u e b e m b a ila m as M u latas,
q u e b e m b a ila m o P aturi.

N ã o u sa m de ca stan h etas,
p orq u e cos d ed o s g en tis
fa z e m tal e s tr o p e a d a ,
q u e d e o u v i-la s m e estru gi:
Q u e b e m b a ila m as M u la ta s ,
q u e b e m b a ila m o P aturi.

A ta d a s p ela s v irilh a s
c u m a cin ta ca r m e sim
d e ver tão g r a n d e s barrigas
lh e t r e m ia m o s q u ad ris.

431
A SÁTI RA E O E N G E N H O

Que bem bailam as Mulatas,


que bem bailam o Paturi.

Assim as saias levantam


para os pés lhes descobrir,
porque sirvam de ponteiros
à discípula aprendiz.
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi.

(OC, III, pp. 581-582.)

A grande dispersão dos motivos e estilemas obscenos pelas possibilida­


des combinatórias da analogia apresenta, já se viu, linhas de unificação ou
pontos de identidade, condensados como lugar de sua emissão, “eu”. Função
geral, ponto de condensação de falas disparatadas que figuram a coerência de
sua unidade comopersona particular em cada caso, “eu” dramatiza a lei natu­
ral, de que as leis positivas da Cidade são a expressão. Teatro abstrato de um
ato do intelecto, pelo qual a lei natural é indicativa e justa, porque racional, e
de um ato da vontade, pelo qual a mesma lei é imperativa, porque vontade de
Deus, o “eu” da persona satírica prescreve a racionalidade imperativa das ins­
tituições portuguesas do século XVII38. Não há nenhuma “profundidade” nes­
sas vozes a exigir exegese: a metáfora obscena é claríssima, pois, pictórica,
seu sentido é sempre já outra metáfora pictórica, rebatendo-se indefinida­
mente segundo o jogo de sua aproximação e afastamento sistemáticos.
As tópicas retóricas da culpa sexual contra naturam apresentam-se hierar-
quizadas segundo seu afastamento mais e mais “atroz”, “abominável”, “ne-
fando”, do sexo natural e lícito teatralizado pela persona institucional: como
se viu no capítulo IV, gozo com puta; gozo solitário; gozo com outro do mesmo
sexo; gozo com animal e com o Diabo39. As classes de crimes contra naturam
são grandes unidades de enunciação, repetidas e mescladas conforme os ca­
sos dos enunciados: atos de sodomia entre homem e mulher; masturbação e
felação de putas em culto do Demônio; sodomia entre mulheres etc. Trevor-
Roper interpreta, na identidade dos pormenores obscenos sempre reiterados

38. Summa lheol. I, II, 64, 1, ad.; I, II, 57, 5 etc.


39. Thomaz de Chobham, Summa confessorum, Louvain, Nauwelaerts, 1968, cit. por Pierre Legendre,
op. cit., p. 152: “Turpe aulem esl innaiuraliler virum irt viuliere, turpius in membris propriis, lurpissimus
mulieres inter se et viros inter se, diaboliemn si vir vel mulier exerceat cum bruto animali”. Segundo o
Direito Canônico, o incesto com a mãe, por exemplo, é menos grave que o coito contra naturam com
a mulher (quod contra naturam fil, ui si membro mulieris non ad hoc concesso volueril uli). Graciano,
Causa 32, questão 7, cânon 11, idem, p. 151.

432
OS LUGARKS DO I. UGAR

nos relatos de caça às bruxas dos séculos XVI e XVII, uma conexão psicológica
entre a ortodoxia perseguidora e a lascívia sexuallí;. Na sátira, tal conexão é
evidente, por exemplo, entre o tema da “puta” e os do “adultério” e seu casti­
go prescrito pela instituição. Em vários poemas, a persona é um adúltero que,
na proposta do gozo ilícito, figura a regra de sua proibição e conseqüências:
“[...] casemo-nos, que o perigo,/que eu corro, é ser açoutado/ por duas vezes
casado” (OC, III, p. 755); “[...] casemos, se vos contento, / e a segunda vez
casado / se me virdes açoutado, / isso mesmo é casamento” (OC, IV, p. 821),
encenando-se o gozo do castigo, que se sexualiza:

Se a justiça me açoutar
por casar segunda vez,
açoutado, em que me pês,
vos hei de alegre gozar:
quero as ruas passear
arrastando mil baraços
entre os alcaides madraços
e o algoz após de mim [...]
e se o algoz falseante
me puser por mais rigor
alguma marca ao traidor
por duas vezes casado,
dirão, que é vosso estreado
homem de marca maior.
(O C , IV, p. 8 2 2 . )

Duplicidade da moral: uma vez que, no século XVII, a honra é atribuída


pelo olhar do testemunho e pela voz da murmuração, a desonra se honra no
imaginário masculino cúmplice, ao passo que a mulher decai na abjeção.
Filho da bigamia e do adultério, o “corno” é alçado agudamente como
tipo. O elisabetano Thomas Wythorne fala amargamente da situação ridícula
em que “[...] a man’s honesty and credit doth depend and lie in his wife’s mi/”4
041.
Vários motivos se esgalham, pois, na elevação que rebaixa: o amor contra
naturam, a incontinência fora do casamento, a limpeza de sangue, a confusão
das descendências, a suspeição da virilidade, a transmissão da propriedade, a
honra ultrajada etc. Sobre o “corno”, por isso, é muito elucidativa e divertida

40. H. R. Trevor-Roper, Religião, Reforma e Transformação Social, Lisboa, Editorial Presença/Martins


Fontes, 1981, p. 99.
41. Lawrence Stone, 'lhe Family, Sex andMarriage in Fngland 1500-1800, Original unabridged edition,
London, Weidenfeld and Nicolson, 1979, p. 504.

433
A SATI RA K O E N G E N H O

a didascália de umas décimas: “A outro Capitão que tinha sido de Couraças


em Portugal que se casou com uma filha de certo letrado Fulano Coelho, de
quem já falamos a fls. 360 que se casara com uma mulher, que deu uns pontos
no vaso; e desta também se dizia ser já corrupta, e cristã-nova” (OC, II, p.
389). A quarta décima do poema faz intervir, uma vez mais, o estereótipo
misógino da mulher predisposta naturalmente ao pecado:

Que a mulher, que se requesta,


ou seja dama, ou casada,
de quem se vê mais amada,
põe logo o dado na testa:
e veja você, que desta
ter muitos zelos convinha,
que, quem foi levianazinha,
não é grande maravilha,
siga os passos, como filha
da mãe, que vai pela vinha.
(OC, II, p. 390.)

A articulação sintática “ou ... ou”, que efetua a disjunção desonesto/hones­


to, finge na hipótese da alternativa o que é a convenção generalizada do “e...
e”, provando-a com o evento particular que a exemplifica: a “filha da mãe” é
“puta” e filha de “puta”, segundo a herança do sangue mau. O destinatário é
convidado, pois, a conhecer o já conhecido. Traduzida a seguir por outros
campos semânticos /contra naturam/, a tópica “puta” imbrica-se com a de
“feitiçaria”. Na citação de Homero, efetua-se o “corno” como um porco em
que a “puta” faz crescer predicados baixos. Lembre-se que o Malleus male-
ficorum, batidíssimo no século XVII, prescreve que “[...] toda feitiçaria pro­
vém da concupiscência carnal, que nas mulheres é insaciável”:

Fizeram estas traidoras


com seus feitiços sutis
semelhantes os ardis
das Circes encantadoras:
as quais com traças sonoras
(muitos nas fábulas leram)
que alguns homens converteram
em porcos; mas estas duas
com feitiçarias suas
mais do que porco o fizeram.

(OC, II, p. 391.)

434
OS LUGARES DO LUGAR

Várias posições dapersona satírica podem ser traçadas, assim, conforme a


ocorrência da tópica “corno” - o que se dá, aliás, com as demais. Isso posto,
vejam-se mais vícios.
A sátira figura genericamente a “molície”, a masturbação, como carica­
tura, reconhecível segundo regras do referencial citado. Chançoneta obscena
glosa a onomatopéia “Trique trique, zapete zapete”, ruído que a sátira atribui
a leigos, casados, solteiros e religiosos:

Trique trique, zapete,


O casado de enfadado
por não ter, a quem lhe aplique
anda já tão desleixado,
que inda depois de deitado
não faz senão trique trique.

O soldado de lampeiro,
quando chega ao batedouro,
vai lhe sacudindo o couro,
e com a força, que bate
faz trique zapete zapete.

O Frade, que tudo sabe,


e corre os caminhos todos,
vai dando por vários modos,
e olhando por toda a parte,
faz trique zapete zapete.
(OC, VI, p. 1335.)

Veja-se que o presente contínuo dos enunciados, paralelo ao da sua enun-


ciação, efetua a simultaneidade da ação obscena, generalizando-a para toda a
Cidade. O falo é o objeto predileto dos demônios, desde que introduziu o
pecado no mundo; conjura-se o falo na masturbação, ato contra naturam. Lem­
bre-se o estereótipo, corrente no século XVII, de que o Diabo só expele como
incubo, aparência masculina com que visita as bruxas, o que recolhe como
súcubo, aparência feminina com que se insinua tentadoramente à imagina­
ção de homens concupiscentes e solitários.
Um poema obsceno, cujo “eu” discursivo é produzido como crispação
fisiológica, faz do ato sexual uma ocasião de “descarga”, literalmente, que é
correlata da masturbação. Sua torpeza talvez se refine um pouco, contudo,
considerando-se que a medicina dos fluidos, vigorante no século XVII, reativa
o semen retentum venenum est do preceito de Galeno: “[...] se esta semente na­

435
A SÁTI RA K O E N G K N H O

tural for retida por longo tempo (em algumas partes) transforma-se em vene­
no”42. Além da doença física, tal veneno também produz melancolia, como
reconhece Robert Burton43. Veja-se o poema:

D e sc a r to -m e da tronga, que m e ch u p a,
Corro por u m co n ch ego todo o m apa,
O ar d a f e i a m e a r r e b a t a a c a p a ,
O g a d a n h o da lim p a até a garu p a.

B u s c o u m a F reira, q u e m e d e se n tu p a
A via , q u e o d e s u s o às v e z e s tapa,
T opo-a, to p a n d o -a todo o b o lo rapa,
Q u e as cartas lh e d ão se m p r e c o m ch a lu p a .

Q u e h e i d e fazer, se s o u d e b o a c e p a ,
E na h o ra d e v er rep leta tripa,
D a r e i, por q u e m m o vase toda a Europa?

A m ig o , q u em se a lim p a da carepa,
O u sofre u m a m u c h a c h a , q u e o d issip a ,
O u faz da sua m ã o sua cach op a.

( O C ,V ,p . 12 1 8 .)

A fixação obsessiva nos órgãos genitais e suas substâncias não corresponde


à irrupção, no discurso, da estrutura mesma da Falta, em moldes teológicos?
Pois o pecado do pai Adão foi a não-ignorância da paixão do ato gerador: a
corrupção do corpo mancha para sempre a ordem natural, afirma texto de
Santo Agostinho glosado infinitas vezes44. Muitos poemas, num arabesco

42. Citado por Lawrence Stone, op. cit., p. 497.


43. Cf. Robert Burton, Anatomy of Melattcholy, London, Ed. H. Jackson, 1932, 1, pp. 234-235. Cf. tam­
bém trecho deThomas Cogan (1589), citado por Lawrence Stone, op. dí.,p. 497: “[...] the commodüies
which come by moderale evacuation thereof (semcn) are greal. For ii procureih appetite to meai and helpeih
concoclion; it maketh the body more Ught and nimble, it opcnelh lhe pores and conduils, and purgeth
phlegm; it quickenelh lhe mind, súrreth up lhe tuil, reneweth the senses, drivelh away sadness, madness,
anger, melancholy, fury”.
44. “Uma vez que o homem pecou, cabe-lhe como quinhão, segundo justiça de Deus, a corrupção, pena
do pecado; é nisto que ele pode sentir o gozo, que se achou fundado nas partes genitais dos pais. Daí
também ter sido escrito sobre os primeiros pais: após terem pecado, seus olhos foram abertos, desde
então conheceram sua nudez; não que tenham sido criados cegos, mas porque após o pecado a lei do
pecado desceu às partes genitais (post peecalum lex peccati in genitalia descendil). Essa lei, digo, se
achou fundada nesse membro ao invés de um outro, pois dele descende a geração universal. De
uma raiz ruim, todos os humanos se disseminaram, do mesmo modo, em virtude da pena do pecado
original, cada ser humano, por sua vez, sente o pecado original.” Em Pierre Legendre, op. cit.

436
OS I. UGARKS DO LUGAR

conceptista que lembra os de Donne, fundem função excretora e função


reprodutora, hiperbolizando ato e matéria com jocosidade e redundância
exibicionistas, que no grotesco fazem ler a concepção sombria.
Por exemplo:

In d a q u e d e eu m ija r tan to go steis,


q u e v o s m ij e is c o m riso, e a legria,
h a v e is d e v e r d e sis o in d a a lg u m d ia,
p o rq u e d e p u ro g o sto vos m ijeis.

E n t ã o d e s t e s d o is g o sto s sab ereis,


q u a l é o m e l h o r , e q u a l d e m a i s v a li a :
s e m i j a r e s - v o s [ste] v ó s n a p e d r a fr ia ,
se m i j a n d o e u tapar, q u e n ã o m ije is .

À fé , q u e a í f i q u e i s d e s e n g a n a d a ,
e e n tã o c o n h e c e r e is d e entre a m b o s nós,
q u a l é m e lh o r , m ijar, o u ser m ija d a .

P o i s se n ó s n o s m i j a m o s s ó s p o r s ó s ,
h a v e is d e festejar u m a m ijad a,
p o r q u e e u a m ij a r e n t r o d e n t r o e m vós.

(OC, V I, p. 1334.)4?

Tal fixação obscena é hipertrofiada pela sátira quando desenvolve a tópica


“sodomia”, deslocando-a por várias formulações literais e metafóricas, buscadas
à natureza, à religião, à gestualidade e a outras tópicas, como “nação”. Tanto na
formulação literal quanto na metafórica, o interpretante é/analidade/, figurada
ironicamente, por exemplo, em poema que parodia convenções do encômio:

D e sta v ez acabo a obra,


p o rq u e este é o q u arto to m o
das ações d e u m S od o m ita ,
d o s p rogressos de u m fanchono.
E sta é a d e d ica tó ria ,
e b em q u e preverto o m odo,
a o r d e m p r e p o s t e r a n d o 54

45. C f. ta m b é m OC, V , p . 1 1 0 8 : “ E o c a ld o u m a q u i n t a - e s s ê n c i a ,/ c ta l, q u e u m a g o ta f r ia / p r o d u z u m a
S e n h o r ia , / e ta lv e z u m a E x c e l ê n c i a : / s e te n d e s d e le c a r ê n c ia , /e p o r fa rta r a v o n ta d e ,/o q u e re is em
q u a n t i d a d e , / n ã o t r a t e i s n ã o d e e s g o t a r / o s c u l h õ e s d e u m s e c u l a r / id e à b a r g u i l h a d e u m F r a d e " ;
(OC, VII, p. 1 5 7 9 ): “ Q u e tê m o s m e n s tr o s c o m ig o ? / o r d in á r io s q u e m e q u e r e m , / q u e d e o r d in á r io
m e m a t a m , / e c a d a h o r a m e p e r s e g u e m " e tc .

4 37
A S Á T IR A E 0 E N G EN H O

dos p ró lo g o s, os p rológios.
N ã o va i esta na d ia n te ir a ,
a n tes n o traseiro a p o n h o ,
p or ser traseiro o S en h or,
a q u e m d e d ic o m e u s tom os.

( O C , l , p . 213.)

Vejam-se as principais dessas formulações. Inicialmente, as literais: “por


um cu enjeitar um có” (OC, I, p. 207); “servir cu de cocó” (OC, I, p. 209); “não
querer topar ponta de crica” (OC, I, p. 20S); “jamais tocar vaso”; “não embocar
vaso” (OC, I, p. 218); as metafóricas: “andar de caranguejo” (OC, I, p. 208); “na-
morar-se do pescado” (OC, I, p. 208); “comer sempre cuscus” (OC, 1,209); “pes­
car lombriga” (OC, I, p. 208); “fisgar lombrigas nas alagoas do olho” (OC, I, p.
209); “debrear-se mano a mano” (OC, I, p. 210); “disciplinar-se de quarto em
quarto” (OC, I, p. 210); “buscar a via” (OC, I, p. 210); “a ordem preposterando”
(OC, I, p. 213); “desgovernar os quadris” (OC, I, p. 217); “danar-se com a lombri­
ga racional” (OC, II, p. 306); “pregar a doutrina da lei culatrina” (OC, II, p. 466);
“algália tirar com colher de Itália” (OC, I, p. 207); “passar os rios de quatro” (OC,
I, p. 207); “cozer e corcojar em fonte Rabina” (OC, I, p. 207).
Vejam-se, ainda, os epítetos para o sodomita: “esfola-rabo” (OC, II, p.
467); “capitão mulher” (OC, I, p. 204); “puta dos calções” (OC, I, p. 204);
“gato de algália” (OC, I, p. 207) (“algália” designa tanto a substância de odor
acre quanto o clister); “fanchono” (OC, I, p. 213); “fanchono beato” (OC, I, p.
214); “finíssimo rabi” (OC, I, p. 214) (“rabi”, como se viu no capítulo III,
trocadilho com “rabo”, funde heresia judaica e sodomia, como em “fonte
Rabina”); “algália sempre” (OC, I, p. 214); “bomba dos rins” (OC, I, p. 217);
“pajem meretriz [é] madrasta dos filhos [do sodomita]” (OC, I, p. 217); “Ca­
pitão de cama, e lado” (OC, II, p. 251); “um nefando de Sodoma” (OC, II, p.
251); “Lot ao burlesco” (OC, V, p. 1162); etc.
O que determina a abominação da sodomia é, basicamente, sua absoluta
esterilidade. A relação sodomita é um simulacro do sexo honesto que, intro­
duzindo nos indivíduos a transformação pela qual vêm a ser outros, efetua a
prostituição universal, obra do Demônio. Poema obsceno, que metaforiza
com o termo “beco” a sinédoque corporal envolvida no ato sodomita, hiperbo-
lizando-a, evidencia tal concepção do coito estéril quando figura a outra par­
te como “come-em-vão”. O poema é exemplar, uma vez que condensa vários
motivos associados à sodomia. A metaforização “beco”, que significa hiperbo-
licamente a parte posterior do corpo, encontra similar no intertexto de
Quevedo, aliás, em que arrabal também se emprega com o mesmo sentido

438
OS L U G A R E S D O L U G A R

burlesco46. Após a narrativa da primeira estrofe, a segunda moraliza: pela


relação morte-obscenidade, dramatizada na voz da caveira, que também fala
espanhol, figura-se o pecado do Tucano (o governador Câmara Coutinho) e
do Ferreira (Luís Ferreira de Noronha, capitão da Guarda). O pecado mortal
é o inferno já em vida - portanto, ação dos demônios, no trocadilho obsceno
“btijus/beijos”, que encena o estereótipo, corrente na demonologia do século
XVII, de que o Diabo jamais dá a boca a beijar, mas a outra parte, num simu­
lacro zombeteiro do amor:

\ ' o b eco d o c a g a lh ã o
n o d e esp era -m e r a p a z ,
n o d e c a ta q u e f a r á s
e e m q u e b r a -c u s o a c h a r a m ,
q u e tir a n d o ao co m e -e m -v ã o
q u e era e s p e r a d o r d e c u s ,
lh e a rreb en to u o arcabuz;
n o b eco d e la v a - r a b o s ,
o n d e lh e ca n ta m d ia b o s
três o fíc io s d e catruz.
T o m e m p o is e x e m p lo aqui
o T u ca n o e o F erreira,
p o is lh e s d iz esta caveira,
a p r e n d e d , f l o r e s , d e m i:
m a i s a q u i , o u m a i s ali
s e m p r e o s d e m ô n io s sã o artos
se m p r e b ic h o s, e lagartos,
e d a r-lh e -ã o sobre b eiju s
a com er sem p re cuscus,
a v e r se se d ã o p o r fartos.

( O C , I, p . 2 0 9 . )

Na anatomia horrorosa dos pecados mortais, resta a classe da bestialida-


de ou do amor nefando do Diabo. A sátira dramatiza, no caso, os estereótipos
da demonologia, constituindo os tipos da “bruxa” e do “feiticeiro”, aos quais
se associam os pecados sexuais das “putas” e dos “sodomitas”. Os mesmos
motivos elencados por Trevor-Roper para a Europa dos séculos XVI e XVII
ocorrem47, acrescentando-se a eles referências a religiões africanas e objetos

46. C f. F ra n c isc o d e Q u e v e d o , op. cit., p . 2 2 0 : “A l r u i d o s u b i ó u n a l g u a c i l c o n t o d o s s u s a r r a b a l e s ” .


47. C f. H . R . T re v o r-R o p e r, op. cit., p . 9 4 .

439
A SÁ T IR A E O E N G E N H O

mágicos da natureza local, cujas práticas e propriedades são interpretadas


pela tópica “heresia”. Nas anatomias horrorosas da sátira fundem-se, por­
tanto, a abominação sexual e a abominação religiosa em mistos antipe-
trarquistas que invertem hiperbolicamente o estilo alto. Emblemático desta
inversão é o coito demoníaco em que a bruxa beija do demônio a parte
outra. E equivocado ler nesses poemas qualquer ética “transgressora” de
interditos sexuais e religiosos, supondo-se que expressam a vida espanto­
samente libertina de seu autor, o homem Gregório de Matos: não há ne­
nhuma evidência de que sejam efetivamente dele e, ainda que fossem, são
poesia, ficção, e seu antipetrarquismo é antes o dos efeitos monstruosos
cuidadosamente dosados, cujos estereótipos fazem visível não a afirmação
da bruxaria e seu pecado mortal, mas aquilo que os interpreta como sua
conscqüência lógica - a ortodoxia e sua obsessão maníaca de unidade e
unificação:

D o r m i co d ia b o à destra,
e fa z e i-lh e o reb olad o
p orque o m estre do pecado
t a m b é m q u er a p u ta m estra:
e se na to rp e p a le str a
tiv e r d e s a lg u m desar,
n ão ten d es, q u e reparar
q u e o D ia b o , q u a n d o em b oca,
n u n c a dá a b eija r a b oca,
e n o c u o h e i s d e b e ij a r .

(OC, V,p. 1153.)

Várias situações dramáticas e narrativas do bruxedo aplicam-se, geral­


mente, em romances nos quais o diálogo é central. Nele, com horror do co­
nhecimento das práticas demoníacas, apersona constitui os tipos da “bruxa” e
do “feiticeiro” como destinatários mudos. Elementos narrativos funcionam
como suporte da fala, montando-lhe um quadro referencial ou fornecendo-
lhe informações que interpretam o que se diz no diálogo. A codificação opõe
“ virtude” e “pecado mortal”, encenando a oposição segundo os estereótipos
da demonologia: a bruxaria é noturna, sendo a meia-noite a hora propícia
para a invocação, a orgia do sabath, a colheita de membros de cadáveres e
outros objetos empregados na magia negra (OC, V, p. 1282); a bruxaria pode
alterar a forma natural dos órgãos sexuais: é corrente na sátira a tópica do
“cano torto” e das práticas negras que o endireitam (OC, V, p. 1283); a bruxa

440
OS L U G A R E S D O L U G A R

amanhece lanhada, arranhada e suja de barro e folhas após passar a noite com
o Diabo (OC, III, p. 74); o mestre do pecado prefere as putas velhas e dissolu-
tas no mal (OC, V, p. 1153); o Cujo não é beijado na boca (OC, V, p. 1153); o
Demo vem na forma de bode & cabrito & cão & galo & touro preto, por vezes
também na de mulato encapuzado, “cabra” e “cabrão” (OC, V, p. 1283); à
noite, as bruxas desenterram cadáveres nos cemitérios para preparar poções
obscenas - “caldos” (OC, V, p. 1284); a bruxaria se propaga do mestre-feiticei-
ro para as discípulas-putas (OC, V, p. 1283); é sacrilégio enterrar adeptos de
Satã em terra consagrada (OC, V, p. 1282); os diabos e sequazes rezam “ofícios
de catruz”, expelindo gases cujo odor e ruído parodiam a Santa Missa (OC, I,
p. 209); o sêmen do Demônio ora é gelado, ora quente como o Inferno (OC, V,
p. 1153); como incubo ou aparência masculina, o Belzebu bestial tem um
“príapo à faísca” (OC, V, p. 1153); à noite, o bruxedo leva a morte às casadas
honestas, induzindo maridos ao adultério (OC, III, p. 746); o comércio com o
Ele é morte da alma (OC, III, p 768); só o fogo purifica os malefícios e se o
corpo de um bruxo é atirado ao mar, por exemplo, a ingestão dos peixes e
caranguejos que o comeram transmite a sodomia (OC, V, p. 1282); etc. Certos
objetos e substâncias correspondem-se simpaticamente e, malignos, sua pos­
se faculta convocar Satã; a noite mais propícia é o São João; o local, adros de
igreja e fundos de quintais (OC, V, p. 1283).
Longo poema que satiriza Pedro Cabra da índia, “feiticeiro infernal” da
Cajaíba, dramatiza-lhe a fala em primeira pessoa: à hora da morte, com mil
diabos à espera da sua alma danada, Pedro recita uma paródia do Credo: “Creio
na Trindade Santa, / porém creio muito mais / na trindade das Mulatas / de
Dona Marta Sobral” (OC, V, p. 1280). O número “três”, muito rotineiro e
ligado a atores animados ou inanimados no romanceiro oral tradicional48, tem
valor mágico de inversão paródica e hierarquia das “putas”. As três irmãs -
Quita, Marana, Isabel - são dadas às práticas nefandas como discípulas de
Pedro Cabra da índia:

Q u a n d o a p ica m e ch u p ava,
e A n to n ic a por d etrás
n os co m p a n h eir o s pegava
para o c a n o en d ireita r,
M a r a n a s e p u n h a a rir,
m a s tra ta v a d e ajudar.

( O C , V, p. 1 2 8 4 . )

48. C f. J . D a v i d P i n t o - C o r r c i a ( o r g .), Romanceiro Tradicional Português, L isb o a , E d ito ria l C o m u n ic a ­


çã o , 198 4 , p. 39.

441
A SÁ T IR A E O E N G E N H O

Ironicamente, Pedro Cabra da índia dita um testamento, fazendo da mais


velha, Quita, sua herdeira universal. Os motivos da demonologia referidos
são figurados, sendo alguns deles os mesmos legíveis na cena em que as três
weird sisters preparam uma poção99, em Macbeth, o que evidencia a dissemina­
ção européia dos lugares-comuns e das imagens da bruxaria como um
referencial imaginário coletivizado, nos séculos XVI e XVII. Vale ler o trecho
do legado de Pedro Cabra da índia, observando-se que as tópicas dos objetos
malignos têm investimento semântico de práticas culinárias e religiosas afri­
canas e indígenas:

In stitu o a Q u ita e n fim


por h erd eira u n iv ersa l
d o s m ó v e is e d a s raízes,
q u e g a n h e i c o m Satanás.
O m eu cabaço de em a s
c u m b u c a d e ca rim á ,
a tig ela d o s an gu s,
o ta c h o d e aferventar.
O s u r r ã o d e p e l e d ’O n ç a ,
que tu d o c h e io achará
de c o u sa s m u i im p o r ta n te s
para v e n tu r a ganhar.
O braço de um enforcado,
d o u s d e n te s, qu atro q u eix a is,
b u ço d e L ob o m arin h o,
s a n g u e d e P o m b a tr o c a z :
u m o lh o d e g a lo p reto,
cab o d e touro negral,
as e n x ú n d ia s d a rap osa,
a c a q u in h a de u m rapaz,
M ijo d e v e lh a ro u p eira ,
ra m cla d o la g rim a l
d e N e g r o torto, e c a m b a io ,
T i n h a r ó s e M a n g a r á . 94

49. Macbeth, L o n d o n , L o n g m a n s , G r e e n & C o . L t d . , 1 9 6 1 , A c t IV , s c e n e I , p p .


C f. W illia m S h a k e s p e a r e ,
“Scale of dragon, looth of zvolf; / Witches’ nnwmty’ maw, and gulf, / 0 / lhe
1 4 1 -1 4 3 . P o r e x e m p lo :
ravined sall-sca shark; / Rool ofhemlock, digged i ' üddark; / Liver ofblasphemingjew; / Gall ofgoal, and
slips ofyew / Slivered in lhe m o o n ’s e c lip se ; / Nose ofTurk, and Tartar’s lips; / Finger of birth-nrangled
babe, / Ditch-delivered by a drab, / Make iliegruel iliick and slab: / Add iherclo a iigcr's ckaudron, / Foi'
lh’ingredien!s of ottr cauldron”.

442
OS L U G A R E S D O L U G A R

Q u e tu d o isso vale u m R e in o ,
se o so u b er aferventar
nas n o ite s de São João
p o r ad ros, e p o r q u in ta is:
N a form a, q u e lh e e n sin e i,
q u a n d o m e vin h a ch u p ar
a p ica to d a s a s n o ite s,
té q u e v i m a a rrebentar.

( O C , V , p p . 1 2 8 3 - 1 2 8 4 . ) 50

André Chastel lembra com agudeza que um dos grandes gestos da arte
“barroca” é o movimento simultaneamente teatral e ameaçador de abrir um
túmulo na frente da corte reunida51. Luxo e miséria, horror e pompa, o gosto
pelo macabro - e também pelo obsceno, lembrando-se que este figura o peca­
do mortal - propõe a espiritualidade. Sua regra de intervenção, já se viu,
figura o Um, inscrito nos corpos como lei natural prévia a qualquer prática.
Linguagem das paixões levadas ao seu grau mais torpe de não-linguagem, a
obscenidade encena experiência análoga à da visão do túmulo, cuja decom­
posição “[...] quer edificar-nos e trabalhar na obra da nossa salvação”52. O
despedaçamento do corpo, a fixação obsessivamente redundante das partes
excretoras e genitais, a redução do sexo à fisiologia, a autonomização fantás­
tica de órgãos e funções, o excesso das misturas, a metamorfose burlesca do
Um ideal no pecado da carne insubordinada são procedimentos que mimeti-
zam a desagregação de toda finalidade. Pela reiteração do gesto obsceno, figu­
ram a mecânica do cadáver e sua mímica sinistramente cômica. “Barroca­

50. R o m a n c e d i r i g i d o a B a b u ( O C , III, p p . 7 4 6 - 7 4 7 ) f u n d e j o c o s a m e n t e o s t e m a s d a “ b r u x a ” , d o “ a m o r
c o rtê s ” e p ra g m á tic a s d e c o rte s ia , te rm in a n d o : “ N ã o q u e r o , q u e s e j a a b r u x a , / o u h e i d e s ê - lo
ta m b é m / p a r a a c o m p a n h a r d e n o ite , / e d e d ia a re c o lh e r. / A liá s h e i d e a c u s á - la / a s e u P a i, q u a n d o
v ie r, / p o r q u e s e e m p r is õ e s m e m a ta , / e m p r is õ e s m o r r a t a m b é m ” . C f. ta m b é m o p o e m a c u ja
d i d a s c á l i a d i z : “A B á r b o r a u m a M u l a t a m e r e t r i z a q u e m c e r t o s f r a d e s l h e p a s s a r a m u m g e r a l , d o
q u a l fic o u tã o p e r ig o s a q u e v e io a s a c r a m e n ta r - s e ” (O C , III, p . 7 6 7 ). A ú lt im a d é c im a p o n d e r a ,
d e p o is d e d is c o rre r s o b re o s p e c a d o s d e B á rb o ra (B a b u ): “ C h e g a s te d o c a so ta l, / a to m a re s o S e n h o r,
/ e fo ra m u ito m e lh o r / d a r - te B e rz a b u b e s tia l: / q u e q u e m p e c a d o m o r ta l / c o m e te , e d e le e n f e r m o u ,
/ lo g o o d i a b o o le v o u , / e q u e m s e s e r v e d o d e m o , / n a v e g a n d o a v e l a , e r e m o / n o s i n f e r n o s
a n c o ro u ” .
51. C f . A n d r é C h a s t e l , “ L e B a r o q u e e t la m o r t ” , e m I I I C o n g r e s s o I n t e r n a z i o n a l e d i S t u d i U m a n i s t i c i ,
Retórica e Barocco.Atti, R o m a ,
V e n e z i a , 1 5 -1 8 g i u g n o 1 9 5 4 , a c u r a d i E n r i c o C a s t e l l i , F ra te lli B occa
E d ito r i, 1 9 5 5 , p . 34. C f. ta m b é m , Cartas do Senado 1638-1673, S a l v a d o r , P r e f e i t u r a d o M u n ic íp io
d e S a l v a d o r , 1 9 5 1 , v o l. 1, p . 1 0 2 , c a r t a s o b r e n e g r o s f e i t i c e i r o s e e n v e n e n a d o r e s .
52. E . M â le , L'art religieux après le Concile de Trente, P a r i s , 1 9 3 2 , p p . 2 1 4 -2 1 5 , c it. p o r A n d r é C h a s te l, op.
cit., p . 34.

443
A SÁT IR A K O KNOltXHO

mente”, a obscenidade figura o inferno em vida, a falta de amor e de esperan­


ça das partes desgarradas. É a extensão lógica, retoricamente regrada, da sal­
vação e das formas mais puras da ascese, segundo a ortodoxia religiosa e o
bem comum político, morte da alma antecipada nas misérias do corpo.
Lembre-se, uma vez mais, Loyola e a sua proposta dos lugares corrompi­
dos como sensibilização da espiritualidade; lembrem-se as pompas fúnebres
dos castra doloris, a disseminação dos livros da ars moricndi, o gosto do macabro,
da crueldade e do sangue. Retórica contra-reformista piedosa que reativa o
fantástico medieval, mais um elemento se acrescenta a ela nos séculos XVI e
XVII, como demonstra Chastel, o das anatomias moralizadas. Produzidas como
mescla de ciência empirista e moralidade estóico-cristã, muito concorrem
para a iconografia da morte seiscentista as novas imagens da anatomia, quan­
do o desenvolvimento técnico do livro de pranchas ilustradas se confunde
largamente com o das ciências descritivas e inversamente. Lembra Chastel
que a ortodoxia da doutrina cristã, visível nas poses melancólicas dos cadáve­
res, nas inscrições bíblicas que emblematizam a cena do corpo morto, nos
provérbios estóicos, na postura grave, quase triste, dos médicos anatomistas
etc., pressupõe a deformação: basta exagerá-la um pouco, exorbitando a
gestualidade e amplificando a ruína, para que a medida adequada seja ultra­
passada e o cômico irrompa como desproporção'3.
É também oportuno propor que a obscenidade, crua, clara e literal, ad­
mite recepção equívoca. A sátira ao tirano, ao comerciante, ao pseudofidalgo,
por exemplo, opera com tópicas cujo investimento semântico é genérico -
“bem comum”, “justiça”, “nobreza”, “temperança” etc. - e de apelo relativa-
mente tênue, se comparadas às da obscenidade sexual. O destinatário pode
ouvi-las e lê-las e, simultaneamente, não se sentir concernido por elas. As
partes obscenas, ao contrário, evidenciam-se claríssimas, como pedaços bru­
tos de matéria, muito sensórias, referindo o que há de mais universal e singu­
lar, o corpo, que traz tatuadas na própria pele, corpo de destinatário, as regras53

53. C f A n d r é C h a s t e l , op. cil., p . 3 9 : "IIy a la une arliculatwn considérable, rarement dcgagée, d’oú l’on
aperçoit de loin, mais irès dislincletnent, les caracteres majeurs de la cullure du monde b a r o q u e : uneprécision
cl une richesse nouvelles dans les objets qui occupenl 1’imagination el se trouvenl pourvus de stmctures
ncltes, definis coinme appareils et mécanismes, donc au teime: les deux infinis de Pascal ou le traité de
1’komme de Descartes..., mais loul le savoir passe par V inslrument graphique et se règlc sttr lui. Du mème
coup, se trottve accru et mis sous tous lesyeux le senliment de la comingence el de la singularité des étrcs,
quand on fouillelle ces planches superbes oú le délail d'un crime, d’tme oreille, dime main, s’expose dans
loule son élrangelé. Ce n’esl plus Vobjet dime médilalion pieuse; c’esl la Science qui mel, presque malgré elle,
le myslère de 1’organisme sous lesyeux de tous”.

444
OS LUGARES UO LUGAR

que as prescrevem como partes malditas e interdito. Nisto a obscenidade é


certamente equívoca: encena o momento violentamente mecânico e imanente,
a nada referido, em que o corpo se desengonça desagregado no poema, como
se fora de qualquer controle na agitação das partes livres de toda ordenação e
fim. Tal movimentação horrorosa de desestruturação dá prazer intenso, como
metáfora de autonomização de todo vínculo com as instituições e de toda
finalidade. Outro movimento simultâneo e complementar, contudo, captura
a liberação obscena como sentido piedoso que reinstaura a Unidade. Gozan­
do na catarse liberadora do interdito, o destinatário é barrado pela considera­
ção do horror de quanto é ilusória tal liberação e, em termos do século XVII
luso-brasileiro, pecaminosa, contra naturam.
Ao encenar a morte da alma na vida solta das partes viciosas, a obscenida­
de é, assim, um teatro do medo: seu gesto também abre um túmulo e este é um
significado plausível para “Boca do Inferno”. Só pode crer nela e temê-la -
tanto por sua depravação quanto por seu didatismo - aquele que as instituições
nela dramatizadas tatuam com suas marcas. Aquele, enfim, contemporâneo
dela, para quem o espetáculo da morte dá o sentido providencialista da vida.
A mesma obscenidade encontra-se figurada num subgênero da poesia
satírica, o do “amor freirático”, de grande difusão nos séculos XVII e XVIII. O
amor da freira, tópica de burlas, fabliaux e facécias medievais, em que a
misoginia e o sexo ilícito são convenções do riso54, é representado na sátira
segundo o investimento pragmático e semântico de discursos que, no século
XVII ibérico, refratam seus motivos por posições e registros conflitantes. As­
sim, honra sexual, interesse econômico, prestígio social e isolamento, con­
venções do cortesão etc. associam-se ao imaginário do convento55. A sátira do

54. O te m a d a “ a b a d e s s a g r á v id a ”, p o r e x e m p lo , o c o rre n o O r lo d o E sp o so ; ta m b é m a s é tim a c a n tig a d a s


C a n t i g a s d e S a r n a M a r i a , d e A f o n s o X , a r t i c u l a o t e m a d a f r e i r a . C a s t i g l i o n e t a m b é m o r e f e r e . C f.

B a l d a s s a r e C a s t i g l i o n e , o p . c i t ., L i b r o S e c o n d o , p . 16 1 .
55. S e g u n d o o C o n d e d o s A rc o s , e m c a rta a o C o n d e d a s G a lv e a s , a B a h ia é “ te r r a d e h o te n to te s ” ,
r e f e r in d o - s e a o c o s tu m e d o is o la m e n to d a s m u lh e r e s f id a lg a s , d iz e n d o q u e o s p a is m e te m a s filh a s
e m r e c lu s ã o “ c o m o p r e t e x to d e fa lta d e c a s a s d e e d u c a ç ã o , m a s c o m o fim d e la s n ã o c a s a r e m c o m
o f ic ia is d a g u a r n i ç ã o ” . C f. T h a le s d e A z e v e d o , “ F r e ir a s e P a d r e s ” , P o v o a m e n io d a C id a d e d o S a l v a ­
d o r , 3 . e d ., B a h i a , E d . I t a p u ã , 1 9 6 9 , p . 1 7 9 . A z e v e d o c i t a o i n g l ê s C o s t i g a n q u e , n a s e g u n d a m e t a d e

d o s é c u l o X V III, d i z q u e e m P o r t u g a l “ a n o b r e z a é m u i t o p o b r e , e c o m o é d e m a s i a d o o r g u l h o s a p a r a
t r a ta r d e g a n h a r a v id a , o u p a r a d a r s u a s filh a s e m c a s a m e n to a p e s s o a s in f e r io r e s a e la s , n ã o te m
o u tr o r e c u r s o , s e g u n d o ju lg a , s e n ã o m a n d á - la s d e f in h a r p a r a u m c o n v e n to , se m c o n s u lt a r s u a s
te n d ê n c ia s , d e p r e f e r ê n c ia a c a s á -la s , e se m p e n s a r a q u e a c id e n te s e x p õ e as s u a s c o n s titu iç õ e s
f ís ic a s ” . E m 1 7 3 9 , o C o n d e d a s G a lv e a s e s c re v e a o R e i r e l a ta n d o - l h e q u e , n o s q u a t r o a n o s d e s e u
g o v e rn o , h o u v e n a B a h ia a p e n a s d o is c a s a m e n to s d e g e n te d e r e p r e s e n ta ç ã o , u m a v e z q u e a s m o ç a s
n o b r e s o u r i c a s v ã o t o d a s p a r a o c o n v e n t o . C f. I g n á c i o A c c i o li & B r á s A m a r a l , M e m ó r i a s H i s t ó r i c a s

445
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O

amor freirático se produz, no caso, como dramatização de boatos, como rei­


teração ou deslocamento de discursos oficiais sobre o assunto, como desen­
volvimento retórico-poético de convenções do amor cortesão e suas técnicas
eróticas - o que inclui, por exemplo, a paródia da lírica, o insulto, a difama­
ção, a chalaça, a imitação obscena da troca de correspondência e alimentos.
Outras tópicas tradicionais, como as da gula, luxúria, usura e simonia dos
frades, cruzam-se na do amor freirático, com efeito de desproporção viciosa
dos religiosos e apologia dos discretos seculares freqüentadores de conventos,
como ainda se vê.
Para entrar no “convento conversativo”, este texto agora acompanha o
governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho até ao pé do obstá­
culo de pedra e cal erguido por sua prudência. Ultrapassado, entrarão em
cena outros atores, o freirático, a freira, a persona satírica:

e Políticas da Bahia, Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1926, vol. II, p. 126: “[...] reconhecendo [o
Conde das Galveas] o dano resultante do grande número de freiras, e dos que se votavam ao estado
eclesiástico, pediu por Vezes providências ao governo, declarando em ofício de S de abrd de 1739
que, à falta de tais providências, se devia o ter havido, no espaço de quatro anos de seu governo,
dois únicos casamentos de pessoas de representação, porque os da classe ordinária, ainda que
poucos, comparativamente à população, eram apenas movidos pelo receio de recrutamento para os
corpos de primeira Unha”; “Numa terra de mulatos e cristãos-novos, ha poucos homens bons sol­
teiros e os oficiais do Terço de Infantaria disponíveis são péssimo partido, equivalente a perda da
virgindade das moças. Pior que ela, aliás, porque afinal sempre se pode encontrar um nobre arrui­
nado, disposto a não pôr reparo no pequeno detalhe anatômico em troca de um belo dote”. Cf. A. J.
R Russel-Wood, Fidalgos c Filantropos. .4 Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755, rrad
Sérgio Duarte, Brasília, Ed. da UnB, 1981, p 254. Moral da aparência e aparência da moral, por­
tanto, em que o parecer fidalgo é fundamental, como a sátira acusa: um cristão-novo enriquecido no
comércio dos trastes pode achar a brecha oportuna para a ascensão, obtendo pelo dinheiro o que o
sangue barra: tornar-se “homem grande”, botar casas na Cidade, abrir engenhos, trajar roupas
suntuosas, ostentar escravos caros, vir a ser vereador da Câmara, coroando a carreira com o casa­
mento com uma donzelíssima donzela local: "Começam a olhar para ele / os Pais, que ja querem
dar-lhe / Filha, e dote, porque querem homem, / que coma, e que não gaste” (OC, II, p. 431).
Quando o convento de Santa Clara do Desterro é fundado, em 1677, prevéem-se vagas para 50
freiras do véu preto e 25 do véu branco, como se leu no capítulo II. Os oficiais da Câmara sempre
pressionam junto ao Rei para garantir o privilégio do lugar para suas lilhas entre as religiosas do
véu preto, cujas vagas são rapidamente preenchidas quando da fundação. Ter filha em convento é,
além da conveniência econômica e sexual, distintivo de alia posição: a admissão é pautada por
critérios rigorosos de limpeza de sangue, tornando-se um atestado público da brancura ortodoxa da
família da moça. Muitos pais senhores de engenho são obrigados, assim, a mandar as filhas para
Portugal, onde sua aceitação é nrais fácil, apesar da mulatice ou da ascendência cristã-nova. Na
mesma linha, a reclusão social das mulheres fidalgas não significa que “morrem para o mundo”;
pelo contrário, vivem, e muito. Talvez nenhuma das Claras Pobres do Desterro tenha tido em sua
ceia os volumes que, na mesma época, tinha Sor Juana ines de La Cruz na Cidade do México, nem
o conhecimento de línguas, filosofia, teologia, astronomia, poesia e pintura da religiosa mexicana.
Cf. C. R Boxer,. 1 Mulher na Expansão Ultramarina Ibérica 1415-1815, Lisboa, Livros Horizonte,

446
OS LUGARES DO LUGAR

P o r c a r t a d e V o s s a M a j e s t a d e d e 18 d e m a r ç o d o a n o p a s s a d o m e m a n d a V o s s a
M a j e s t a d e s a b e r se as g r a d e s d o s l o c u t ó r io s d a s F r e ir a s e s tã o e m d i s t â n c i a d e se is p a l ­
m o s c r a v eiro s , t a p a n d o -s e as rod as d o s lo c u t ó r io s de p ed ra e cal q u e é o m e s m o q u e o s
P r e la d o s R e g u la r e s o r d e n a r a m ; e se tem m a n d a d o e x e c u t a r n o s C o n v e n t o s d a s F reira s
das F r e g u e s ia s e j u n ta m e n te n ã o c o n sin ta h aver a m iz a d e s ilícitas n o C o n v e n t o d a s Freiras
d esta C id a d e , e q u e a lém d a s leis q u e n esta s m a tér ia s e s tã o p o sta s, o e v it e m p e lo c a m i ­
n h o q u e m a is m e d ita a p r u d ê n c ia , a ju d a n d o ao A r c e b is p o n esta m a téria e m tu d o o q u e
e s tiv e r n o m e u p od er. A s g r a d e s estã o c o m o V ossa M a j e s t a d e m a n d a . A s ro d a s d o
lo c u tó r io fech a d a s. A s F reira s v iv e m , c o m o c o n v é m , d e que t e n h o m u it o p a rticu la r
c u id a d o ; a s s im p e lo q u e toca ao s e r v iç o d e D E U S , c o m o ao m a n d a t o d e V o s sa M a j e s t a ­
de. E e n q u a n t o e u g o v e r n a r s e g u r e - s e V ossa M a j e s t a d e q u e n e s t a p a r te p o d e e s ta r s e m
c u id a d o ; p o r q u e t o d o o m e u d e s v e lo , é n ã o faltar u m p o n t o ao q u e V ossa M a j e s t a d e m e
m a n d a 56.

Algo não passa mais, segundo o governador, algo não penetra mais, algo
não sai mais: as grades estão fixadas na medida exigida pela moral, pedra e

1977. p. 49. Eram muito ricas, contudo, famosas pela pureza racial e divertimentos que organiza­
vam durante o carnaval. Em 1717, Le Gentil de La Barbinais escreve sobre as poses pouco conve­
nientes dos atores de uma peça a que assistiu no Desterro, em seu N oiiíB ê u Voyage, vol. 3, pp. 207-
210. Cf. A. J. R. Russel-Wood, op. cit., p. 245. Cada uma delas pode ter duas empregadas, geralmente
moças órfãs pobres, por vezes escravas; algumas se dedicam aos negócios, emprestando dinheiro
ou vendendo terras. Boatos sobre encontros com homens, festas e outras práticas do gênero cir­
culam cm Salvador para escândalo de virtuosos e regozijo de maledicentes, ocasionando severas
reprimendas da Coroa. Cí. A. ]. R. Russel-Wood, op. cit., p. 254. É esclarecedor lembrar que as 25
vagas do véu branco não foram preenchidas, pois eram de categoria inferior, destinadas aos tra­
balhos manuais. Cf. lhalcs de Azevedo, op. cm, p. ISO. Cf. também Cartas sobre o assunto no
capítulo II.
56. Em 19 de junho de 1691, Cântara Coutinho escreve ao Rei sobre o Convento de Santa Clara do
Desterro, prestando-lhe contas das providências tomadas para cumprir urna ordem régia. A carta
de Coutinho duplica a ordem real, inicialmente por um resumo que a recorda, em seguida pela
exposição das providências efetivadas para cumpri-la. Ao fazê-lo, o sujeito da enunciação identifi-
ca-se com a posição real da ordem, evidenciando que é a mesma de outras autoridades, como o
arcebispo e prelados regulares. A carta de Câmara Coutinho evidencia, assim, a posição oficial
sobre o assunto. Ci. Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, “Carta para Sua Majestade sobre
as Religiosas do Convento de Santa Clara - 19.6.1691’, Livro de Canas que o senhor Antônio Luís
Gonçalves da Câmara Coutinho escreveu ,i Sua Majestade, sendo governador. e capitão geral do Estado do
Brasil, desde o princípio de seu governo até oJim dele (One foram as primeiras na frota qtte partia em 17 de
julho do ano de 1691), Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. A ordem
régia a que a carta responde encontra-se cm I. Àecioli & B. do Amaral, op. cit., vol. II, p. 25S:
“Governador do estado do Brasil Amigo.
“Lu El Rei vos envio muitos saudares. - Ao Arcebispo dessa cidade mando recomendar se refor­
mem as grades dos conventos das freiras pondo-se em distância de seis Palmos de grossura e tapan-
do-sc em redor dos locutórios de pedra e cal que é o mesmo que os Prelados Regulares e ordinários
têm mandado executar nos conventos das freiras da sua obediência deste Reino, recomendando-

447
A SÁTI RA E O E N G E N H O

cal que tapam as rodas do locutório. “As Freiras vivem como convém”: dester­
radas, sem as trocas das rodas, os sussurros dos ralos, os braços da grade, proi­
bidas de ter “amizades ilícitas”. A enunciação da carta ordena-se segundo
três temas, materializados todos em “pedra e cal”: a conveniência, moral da
aparência e aparência da moral, medida a ser mantida conforme a posição
oficial representada nas falas e atos de governador, prelados, arcebispo e Rei
e, certamente, na de muitos pais afidalgados; o ilícito das “amizades”, segun­
do a mesma conveniência e seus códigos (moral sexual, moral religiosa, mo­
ral econômica); e a interdição, efeito da articulação do discurso da conveniên­
cia sobre o do ilícito, reiterada na materialidade mesma da pedra e da cal:
“pecados de pedra, e cal” (OC, II, p. 264), como confirma a enunciação de
poema satírico dirigido a padre acusado de roubo:

A s F reiras, c o m sa n ta s se d e s,
saem co n d en a d a s em pedra,
q u a n d o o la d ro n a ço m ed ra
rou b an d o pedra, e paredes.

( O C , II, p. 2 6 4 . )

O mesmo discurso oficial da conveniência e da interdição está investido


na persona satírica, ator que assume a gesticulação prudente dos atos do go­
vernador e dos prelados regulares para estancar as “santas sedes” das freiras.
O poema já analisado neste trabalho, cujas estrofes se opõem pelos refrões
“Boa história” e “Boa asneira”, trabalha com duas versões do mesmo discur-

lhe também o grande cuidado que deve pôr para que se evitem todas as amizades ilícitas escanda­
losas com as Religiosas desse Convento e vos recomendo muito que eviteis semelhantes amizades
pelos meios que vos for possível, não só por aqueles que mandam as leis mas por todos os que a
prudência vos ditar, para que as Religiosas vivam sem inquietação alguma espiritual causada por
pessoas seculares ou eclesiásticas e quando o Arcebispo (o que eu não espero do seu grande zelo e
virtude) falte em proceder contra as pessoas da sua jurisdição que nesse convento tiverem amizade
ou trato ilícito me o fareis presente e quando lhe não dê remédio conveniente me dareis conta,
mandando primeiro tomar alguma informação quando não conste das devassas que se tirarem
judicialmente a qual informação se não tirará por via de jurisdição mas somente a fim de poder ser
informado da verdade, e para o Arcebispo fazer a reforma que lhe recomendo lhe dareis toda a
ajuda e favor até que com efeito se consiga. Escrita em Lisboa, 18 de março de 1690. Rei".
O costume das visitas masculinas a conventos c generalizado no século XVII. Octavio Paz escreve
que, na Nova Espanha, alcançou tais proporções que uma das primeiras medidas do arcebispo Aguiar
y Seijas foi combatê-lo. Paz cita passagem do Diário de Sucesos Notables, de Antonio de Robles: “5 de
enero de 1682. Nolificación a Ias monjas de Ia Concepción y San Jerónimo no tengan nin consienlan
devotos en las rcjasy portcrias". Cf. Octavio Paz, "Las celdas y sus celadas”, Sorjuana Inés de Ia Cruz
o Las Trampas de la Fe, México, Fondo de Cultura Econômica, 1982, pp. 171-172.

448
OS LUGARES DO LUGAR

so. Inicialmente, dramatizando a conveniência econômica dos pais e validan­


do as regras de transmissão da herança segundo a linha masculina, encena os
mesmos pais como destinatários do que enuncia, identificando-se com eles:

Q u e o Pai p ela d e sc e n d ê n c ia
d o filh o , o u d o seu a u m e n t o
m e ta a filh a n u m c o n v e n t o
freira d a c o n v e n iê n c ia :
q u e n ão faça c o n s c iê n c ia ,
se a casá-la o p ersu a d e,
d e lh e forçar a v o n ta d e,
e c o m o r d e m p erem p tó r ia !
B o a h istória.

( O C , II, p. 4 8 9 . )

Representando a conveniência da interdição que mantém a aparência da


moral, a sátira se enuncia como murmuração em que atua a personagem do
freirático: a sinédoque “cabeleira” compõe sua ordem e seu tipo de homem
afidalgado e discreto. Observe-se também que a fala dapersona é homóloga do
discurso de governadores, como o do Conde dos Arcos, acusando não o costu­
me de pôr filhas em convento, mas a avareza que muitas vezes o determina:

M a s q u e o P ai, q u e a filh a tem


ú n ic a , a n ã o vá casar,
p o r n ão se desapossar,
se d o te lh e p e d e algu ém :
q u e f a ç a c o m tal d e s d é m ,
q u e a filh a a n d e às fu r ta d ela s
b u sc a n d o p e la s janelas
a lg u é m , q u e traz cab eleira!
B o a asn eira.

( O C , II, p . 4 8 9 . )

A persona satírica, contudo, é cumulativa-, ela também é o freirático, que


enuncia o discurso da maledicência contra a freira quando seu desejo é equi­
vocado, ou que faz público, segundo convenção do imaginário masculino e
fidalgo, aquilo que afirma experimentar no convento: “[...] só porque digam
que ele tem freira, venderá a camisa por uma hora no ralo”57 ou “[...] fica

57. Cf. Frei Lucas de Santa Catarina, “Carta 14 de frei Lucas de Santa Catherina em que persuade aos
Freiraticos, que o nãosejão. Quartel de Desenganos, e Advertências Freiraticas, para todo o Padecente

4 49
A SÁTI RA E O E N G E N H O

muito satisfeito quando tem a ocasião de conversar com a servente”58, escreve


Frei Lucas de Santa Catarina em sua “Carta 14”, na qual persuade aos frei-
ráticos que o não sejam.
No lugar da persona satírica, assim, dois discursos se interceptam: o da
conveniência., oficial e paterna, que postula o ilícito das “amizades” de convento
e o interdito do amor conventual; o do ilícito, que é alvo e matéria do frei-
rático. Conveniência e ilícito são, desta maneira, complementares, explici­
tando-se reciprocamente quando são definidos pela voz da persona. Pouco há
de “original” nesta, se pelo termo se entende a absoluta novidade e mesmo a
novidade do que diz; ao contrário, estiliza discursos que, como uma teia in­
formal de tópicas da discrição, da dissimulação honesta, da simulação, do
amor, da lei, da propriedade, do sexo, da moralidade etc., definem as relações
erótico-econômicas das trocas entre homens e mulheres, fidalgos ou aspiran­
tes à fidalguia e freiras fidalgas ou quase, filhas de senhor de engenho ou de
pessoa muito principal.
Amor excludente, o freirático: por definição, não entram no convento
conversativo as maneiras da “gente baixa” e dos ofícios mecânicos. Além das
razões óbvias, de estatuto jurídico e de sangue, avulta a razão econômica: a
corte da freira é dispendiosa e “[...] se o freirático tem faltas de respiração na
bolsa, ou se é esfaimiado de algibeira, não é fácil admitir-se nem tem fei­
ção”59. Discretas, as freiras fazem petitórios, esperam que o freirático vista
chapéus de plumas, casacas agaloadas para comédias, espadins, golas de fina
volta, cabeleiras com polvilhos; na Quaresma, é preciso gastar com capelas
para os anjos, espadas para os penitentes, vestes para as irmandades60.0 amor
da freira, rica e afidalgada, joga-se segundo as trocas das convenções do dis­
creto cortesão: dança elegante de mesuras e salamaleques da sedução, estra­
tégia de aproximações e de recuos, agudezas da aparência em que o gesto
estudado disfarça o desejo bruto, enovelando-o artificiosamente nas galante-
rias, nos mimos, nos agrados, nos melindres:

O secu la r e n te n d id o ,
e n co lh id o e m esurado
não pede de envergonhado,

de Grade, Mártir de Roda, e Paciente do Rallo. Pelo Inventor dos Sonhos, e Revedor dos Alentos".
Graça Almeida Rodrigues, Literatura e Sociedade na Obra de Frei Lucas de Santa Catarina (1660-
1740), Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983, p. 189.
58. Idern, p. 193.
59. Idcm, p. 200.
60. Idem, p. 190.

450
OS LUGARES DO LUGAR

n ão tom a d e com ed id o:
c o r te s m e n te de a dvertido,
e d e h u m ild e cortesão
d ecla ra a su a a feição,
e c o m o se a g r a v o fora,
c h a m a -lh e sua S e n h o r a ,
ch a m a -lh e, e ped e perdão.

( O C , IV, p. 8 5 7 . )

A interdição materializada em pedra e cal, ou ralo e grade, é objeto dis­


cursivo a ser transposto, atravessado com arte pelo desejo do freirático. Pontos
de conexão entre ele e a freira, ao mesmo tempo que de exclusão, o ralo, a roda
e a grade são sobredeterminados, pois neles vários códigos se condensam -
religioso, racial, econômico, jurídico, sexual - e, no caso da sátira atribuída a
Gregório, etário, pois muita vez é a persona de um velho que se dirige à freira:

R o g o ao d e m o , q u e vo s tom e,
por d eix a r m orrer à fom e
u m p o b re fa m in to velh o:
rogo ao d e m o , q u e ao se u relho
v o s p r e n d a c o m força tanta,
q u e n u n c a a rred eis a p lan ta,
e q u e a esp in h a m u ita , ou pouca,
q u e m e tirastes da b oca,
se vos crave na garganta.

(O C , IV, p . 8 7 3 . )

Por isso, espaço ambíguo de penetrações, frestas por onde o olho, os bra­
ços, as mãos..., roda, ralo e grade têm conotação erótico-obscena, separação e
junção dos corpos:

Sofrer-se-á isto e m A rgel,


q u e u m c o n v e n to tão n ovel
d e ix e u m le ig o por u m Frade?
q u e na rod a, ralo, o u grad e
F r a d e s d e b o m , e m a u jeito
c o m a m m e r e n d a e eito,
e estejam a seu c o n te n to
feitos p a p a s d o c o n v e n to ,
p o r q u e a n d a m c o p a p o f e it o ?

(O C , IV, p. 8 5 5 . )

45 1
A SÁTI RA E O E N G E N H O

E, braço horrorosamente metafórico:

E m c h eg a n d o à grade u m Frade
sem m a is ca rin h o , n em graça,
o braço logo arregaça,
e o tresp a ssa p ela grade:
e é tal a q u a lid a d e
de q u a lq u e r F rad e fam in to,
que e m u m á tim o su cin to
se vê a F r e ir a c o ita d a
c o m o u m figo a p o leg a d a ,
e m o lh a d a c o m o u m p in to.

( O C , IV, p . 8 5 6 . )

Ralo, roda e grade são sobredeterminados, como se escreveu; útil talvez é


descrevê-los; na sátira, o termo “ralo” significa uma lâmina perfurada, geral­
mente quadrada, incrustada em porta ou janela à altura do rosto, permitindo
que se fale de um aposento para outro e que o ver não seja visto, mantendo-se
a conveniência da porta (ou janela) trancada. Na sátira, a freira usa um
banquinho: “[...] quando a Freira sobre o banco/ no ralo me aguardará” (OC,
IV, p. 859). Do ralo vai-se para a grade: “Daí para a grade iremos, / e apenas
terei entrado,/quando o braço arregaçado/aos ofícios nos poremos” (OC, IV,
p. 859). A grade é, como já se sabe, as barras que separam a freira do visitante
no locutório do convento. “Roda” significa a espécie de armário provido de
mecanismo giratório que, montado numa janela ou na grade, movimenta-se
para dentro e para fora. Vão nas prateleiras para dentro as prendas do aman­
te, metonímias do desejo - flores, bilhetes, fitas, lenços, açúcar, cartas, relógios,
anéis, holandas, livros, poemas - hierarquizadas segundo o grau do amor e da
persuasão freirática. Saem as da freira - geralmente, doces, suavidades meta­
fóricas do amor. Na sátira, cará e chouriços, com conotação óbvia, ou “verme­
lho”, nome de peixe apto para o trocadilho obsceno, e, por vezes, “merda”
alegórica do desprezo:

[...] P o r t a n t o , e u v o s a d m o e s t o , / q u e o m i m o , o r e g a l o , o d o c e / o s e c u l a r v o - l o a l m o c e ,
/ que a u m F ra d e b asta u m cab resto (O C , IV, p. 8 5 7 ) ; [...] T r o c a i o d o c e e m fa v o r , / c
c u r a i m e u m a l t ã o g r a v e / c o ’a q u e l a a m b r o s i a s u a v e , / c o m q u e f o i c r i a d o o A m o r ( O C ,
IV, p. 8 6 9 ) ; [...] t e n h o p o r m á c a r i d a d e / d a r d e s v ó s , F r e i r a , u m c a r á : ( O C , IV, p. 8 7 5 ) ; [...]
A ssim c o m o isto é v e r d a d e , / q u e p elo v o sso c o n se lh o / p erd i eu o m e u v e r m e lh o , /
percai v ó s a v irg in d a d e: / q u e vo -la arrebate um frade (O C , IV, p. 8 7 4 ) ; [...] v ó s t e n d e s
m e l h o r p a r t i d o , / m a i s l i b e r a l , e m a i s f r a n c o , / p o i s c o m o e m re a l e s t a n c o / ta l s e g u r o
vos p r o m e to / q u e p or u m c h o u riço preto / h eis d e levar o m e u bra n co (O C , IV, p. 8 7 8 ) .

452
OS LUGARES DO LUGAR

Ralo, roda e grade são objetos da constância do freirático, “louco de


Cupido” que caça “harpias”, segundo a sátira de Frei Lucas de Santa Catarina,
em que a freira é sempre movida pelo cálculo. Hidrópico de humor freirático61,
chega ao convento, entra risonho, troca as pernas em sinal de cortesia, ergue
alto a cabeça para fazer mais airosa a cabeleira empoada de polvilhos, calça
botas de cano longo, faz tinir as esporas de prata fidalgas quando anda. A mão
direita brinca no cabo do azorrague, a esquerda vai de prego para o chapelão
de plumas, pois assim o vulto fica mais galante e inglês, mais ainda quando
todo desabotoado. Dirige-se à freira que, posta na grade, fabrica donaires
com sinais do beicinho, falando tiple, em falsete. Ela o espera “ [...] assada
pelo que deseja, e não pelo que espera”, segundo a sátira de Frei Lucas de
Santa Catarina62. Chegando à grade, pois, o freirático deixa descair os braços,
põe-se de joelhos, dirige-se à freira começando por “Minha Senhora”. Vários
gestos galantes vão compondo o amor: arreganhar a boca, torcer o pescoço,
sentar-se de arremesso, abrir as pernas, fazer caretas, puxar a caixeta do taba­
co, dizer algo gracioso e agudo com um risinho seco que pontua o fim da
frase, fingir ciúme: a freira estava conversando com outro? aguardava-o ansio­
sa? ficou feliz por vê-lo? teve saudade? ainda o ama?63 A freira: “[...] umas
patas, e uns bicos, com uns decotados, e uns repolegos que não é possível
deixar de fazer tédio ver uma cara metida de golinha perpétua com dous abanos
por orelhas, duas sacolas por manga, e um lençol por cauda”64. O freirático,
contudo, que “[...] anda metido em um labirinto de ciúmes, em uma Babilônia
de pensamentos, e em uma confusão de receios”65, vê sempre outra cena:

Tratai d e m e fartar esta v o n ta d e


em um a grade, co m o em um a boda,
Q u e é p o u c o e m cad a m ê s u m a só grade.

( O C , IV, p. 8 5 0 . )

A mesma limitação da clausura é liberdade da freira, que “[...] acaba de


falar convosco, e vai logo para dentro coçar-se com a mana, se não tem mais
meia dúzia de amantes, que muitas vezes vós os sustentais à vossa custa; que
as freiras são primorosas com uns, com as despesas dos outros”66. Engata-se

61. Idem, p. 183.


62. Idem, p. 184.
63. Idem, p. 188.
64. Idem, p. 192.
65. Idem, p. 200.
66. Idem, p. 199.

453
A SÁTI RA F. O E N G E N H O

assim ao amor freirático o imaginário do “corno”: “Andar um homem cá fora


estazado de amante, e lá dentro nomeado por burro”6768. Ou, ainda, discreto
fora, e burro dentro:

Q u e a l g u é m p a g u e às e s p i a s
para ter F r e ir a s d e v o ta s,
e d e p o is d e m il derrotas
a n d e p e la s p ortarias:
q u e a n d e este to d o s o s d ia s
c o m cargas, e se m carreto,
e te n d o -s e por d iscreto
s e ja o b u r r i n h o d a fe ir a!
B oa asneira!

( O C , II, p. 5 0 4 . )

S e n h o r a M a ria n a , e m q u e v o s pês,
H a v e is d e m e p agar por esta cruz,
P orq u e n isto d e corn os n u n ca os pus,
E s e i , q u e m e p u s e s t e s m a i s d e três.

( O C , IV, p. 8 6 3 . )

ironiza apersona, imitando Dom Tomás de Noronha em um soneto que este


faz a certa freira e que principia por “Sóror Dona Bárbara”. Por isso, ainda, a
pragmática do amor freirático é uma arte de enganos em que saber simular é
a regra principal, tanto do amante quanto da freira: esta, visando o próprio;
ele, a ela. Assim, o bom freirático deve saber que:

A s f r e i r a s h ã o - s e d e c o n h e c e r , e n ã o tratar. P o r q u e e n q u a n t o c o n h e c i d a s , d i v e r t e m ;
e tr a ta d a s , c o n s o m e m . A freira se é m ú s ic a , o u v i-la ; se é d is c r e ta , e s c u tá -la ; se é d e s v a ­
n e c i d a , l o g r á - l a ; s e é t o l a , e n g a n á - l a ; s e é p r i m o r o s a , s a t i s f a z ê - l a ( m a s d e p a l a v r a ) , e se
é c a r in h o s a , a n im á -la m a s n ã o a d m iti-la q u e n iss o está a p e r d iç ã o d o s fr eirá tic o s, e o
g a n h o d a f r e i r a 6*.

Estilo baixo e sórdido, a sátira inverte tais lugares da elegância discreta:


“burro” por discreto', “corno” por amante-, “braço arregaçado” por gestos gentis',

67. Idem, p. 199.


68. Idem, p. 197.

454
OS LUGARES DO LUGAR

“figo apolegado” por dama do ideal, “estrondo do tamanco” por tinirfidalgo de


espora; “chouriço”, “cará”, “mangará” de banana e “vermelho” por doce-, etc. -
principalmente quando dramatiza a oposiçãofrade/ secular***. Na competição,
o frade é caracterizado com estilo sórdido:

A lto: v o u - m e m e t e r F r a d e / na o r d e m d e F rei T o m á s , / serei p e r p é t u o l a m b a z / d o


r a lo , d a r o d a , e g r a d e : / m a m a r e i p a t e r n i d a d e , / D e o g r a t i a s se m e d a r á , / e a p e n a s s e m e
o u v i r á / o e s t r o n d o d o m e u t a m a n c o ( O C , IV, p. 8 5 9 ) ; [...] a u m F r a d e b a s t a u m c a b r e s t o
(O C , IV, p. 8 5 7 ) ; [...] u m F r a d a l h ã o / q u e l h e s d o m i n a o c o n v e n t o ( O C , IV, p. 8 5 8 ) .

E, contraposição sórdida ao discreto:

A las o F ra d e m a lcria d o ,
o vilão, o m a lh a d e ir o
n o s m o d o s é m u i g rosseiro,
nos gostos m u i depravado:
bram a, qual lobo esfaim ad o,
p o r q u e a F reira se d e s ta p e ,
e quer, p o r q u e n a d a e s c a p e ,
lev a r lo g o a ca u sa ao cabo,
e fed e c o m o o d ia b o
ao b u d u m d o trap e-zape.

( O C , IV, p. 8 5 7 . )

Na oposição discreto/frade, a persona vitupera a freira desdenhosa de sua


discrição. A agressão teatraliza a honra sexual e a “limpeza de sangue”, efetuando
a mistura inconcebível nos termos da honra fidalga das religiosas do véu preto:

A s s im c o m o isto é verd a d e,
q u e p elo v o sso c o n se lh o
perdi eu o m eu verm elh o ,
percai v ó s a virg in d a d e:
q u e v o - la a r r e b a te u m frade;
m a s i s t o q u e p r a g a é? 96

69. Cf. OC, IV, p. 860. “Não sabeis a diferença / entre um Frade e um secular? / pois é esta a diferença:
/ tendo o leigo a capa imensa / como homem racional / nada lhe parece mal, / toda a Freira é uma
flor, / mas em sendo Frei Fedor, / a melhor é um cardal”. “Cardal”, de “cardo”, e também do
espanhol “corda”, “gente de la corda”', metaforicamente, os que são uma quadrilha de valentões,
rufiães, ou que têm outro modo de vida, mau c vicioso. Cf. Francisco de Quevedo, La llora de Todos
v la Fortuna con Seso, op. cit., p. 393.

455
A SÁTI RA E O E N G E N H O

praza ao d e m o , q u e u m c o b é
v o s p la n te tal m a n g a r á ,
q u e p a ra is u m P aiaiá,
m a is negro do q ue u m G u in é.

( O C , IV, p. 8 7 4 . )

Afinal, segundo os discursos da conveniência, o perigo máximo que ron­


da as freiras é o filho ilegítimo, fruto de amores de convento70. Reciclando a
tópica medieval da “freira grávida”, soneto cuja didascália diz “A outra Frei­
ra que estranhou o Poeta satirizar ao Pe. Damaso da Silva, dizendo-lhe que
era um clérigo tão benemérito, que já ela tinha emprenhado, e parido dele”71
é explícito:

C o n fessa Sor M a d a m a de Jesus,


Q u e ta l f ic o u d e u m tal X e s m e n i n ê s ,
Q u e in d o -se os m eses, e ch eg a n d o o m ês,
P arira e n f i m d e u m C ô n e g o A b e s tr u z .

D i z , q u e u m X isg a r a v is d eitara à lu z
M o r g a d o d e u m P resb ítero m o n tês,
C ara frison a, garras d e Ir la n d ês
C o m b o ca d e c a g u e ir o d e a lcatru z

D o u , q u e n a s c e s s e o tal X is g a r a v is ,
Q u e o p a r is s e u m a Freira: v a d e e m p az,
M a s q u e o g e r a s se o S e n h o r Padre! arroz

70. Sobre filhos ilegítimos, também frutos de amores de convento, cf. A. J. R. Russel-Wood, “A Roda
dos Expostos”, op. cit., pp. 233-251.
71. Sobre amores de padre e freira, cf. I. Accioli & B. do Amaral, op. cit., vol. V, pp. 489-495: “Pela Mesa
da Consciência e Ordens se fez presente a S. M. a queixa que a abadessa do Mosteiro de Santa Clara
do Desterro dessa cidade fez Inácio Moreira Franco, vigário do dito Mosteiro que também é da
paróquia, não só tratando ilicitamente com Josefa Clara religiosa nele, jactando-se de cometer cri­
mes em desdouro da comunidade, chegando a intentar pelos forros da capela-mor passar aos dormi­
tórios, comendo e bebendo com a dita religiosa nos postigos das grades da igreja e por já ser público
o escândalo lhe proibira o Cabido dessa Sé vacante o ingresso na clausura para administrar os Sacra­
mentos às enfermas e o suspendeu da ocupação de capelão que interinamente exercia, [...] e inten­
tando ultimamente a perdição daquele mosteiro introduziu por via da dita religiosa Josefa Clara
uma parcialidade na clausura com o título de rancho do vigário de que tem resultado muitas desu-
niões e discórdias, achando proteção a favor em muitos capitulares. Lisboa, 25.4.1738”. (Idem, pp.
491-492). Sobre devassas de freiráticos, cf. também op. cit., p. 493: “Manuel de Sousa de Brito, Escri­
vão da Ouvidoria Geral da Correição da Cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos [...] no dito
ofício se acha a devassa efoi a décima dosfreiráticos que no presente ano sefez em a dita cidade [...] o Padre
Gonçalo com uma freira harpista e o Padre Duarte com uma freira. Bahia, 29.8.1738” (grifos meus).

456
OS LUGARES DO LUGAR

V erd a d e p o is o co ra çã o m e d iz,
Q u e o F i l h o f o i s e m d ú v i d a a l g u m tr á s ,
Para as b a r b a s d o P ai, o n d e se p ôs.

(O C , IV, p. 871.)

Conveniência oficial e amizade ilícita, sedução e desprezo, convenção


discreta e rusticidade, corte de amor e insulto, pedra e cal e ralo e roda e
grade, a sátira freirática refrata-se por várias posições discursivas. Quem sabe
seu secreto ânimo seja o da ponderação judiciosa:

O h ! l á s t i m a d a c e g u e i r a f r e i r á t ic a ! q u e n a s c e n d o u m d e s t e s e n t r e g e n t e c a t ó l i c a ,
h a ja d e s e c o n d e n a r p e l a s e n s a b o r i a d o a p e t i t e m a i s i n ú t i l d o s h o m e n s ? o n d e o q u e é
e n t e n d i d o , s e r e p u t a p o r n é s c i o ; o q u e é l i b e r a l , f ic a m í s e r o ; o q u e é a g u d o , f i c a e n g a n a ­
do ; o q u e é a r d i l o s o , f i c a c o r r i d o ; o q u e é d e s v a n e c i d o , f i c a t o l o 72.

Mas certamcnte esta é mais uma das cenas para a persona satírica, ator
complexo, como se vê a seguir, segundo outra tópica.

A etas (I dade)

Segundo Quintiliano e a tradição retórica rearticulada no século XVII,


certas inclinações convêm mais a determinadas fases da vida: um velho pue­
ril é cômico, tanto quanto um menino senil é fantástico73.
Pelo nexo da “inclinação” é que se analisará esta tópica, discutindo-se
uma vez mais a constituição da persona e seus afetos. Geralmente, a sátira
encena uma voz masculina, sem menção de idade: pela prudência de seus
conselhos virtuosos e, ainda, pelo gênero de atividade a que se entrega, como
o amor, o personagem evidencia-se para o destinatário como adulto, discreto,
entendido, melhor etc. Poucos poemas caracterizam sua idade, sendo dignos de
menção os que o constituem como velho:

N ã o vos entra n o m io lo ,
que é de v a lo r m a is su b id o
um velh o, send o en ten d id o
q u e u m m e n i n o , s e n d o tolo?

(O C , IV, p. 9 3 8 . ) ,

72. Frei Lucas de Santa Catarina, op. cit., p. 190.


73. Quintiliano, De instilutione oratoria, 5, 10, 25: “aetas, quia aliud aliis annis magis convenil".

457
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

OU

T á tá,
n ã o m e m a t e i s tá,
q u e in d a q u e so u v e lh o ,
n ã o h e i d e cansar.

( O C ,I V , p. 9 4 2 .)

O mesmo velho enuncia seu passado de doutor em Cânones formado por


Coimbra, sua vida de juiz na Corte, seu casamento na Bahia, seu filho Gonça-
lo etc. O personagem é Gregório de Matos, infere-se74:

M a s ela m e t e m tal ó d io ,
q u e fu g ir á té d e ser
m adrasta do G o n ça lin h o ,
q u e é l i n d o e n t e a d o à fé .

( O C , III, p. 7 4 7 . )

Postulando a moralidade, o personagem também costuma fazer propos­


tas indecentes a mulheres de vária condição e honra, vituperando-as com
acrimônia quando se recusam a lhe satisfazer o desejo. Levado de sua indig­
nação, o mesmo velho é auto-indulgente em seu exagero erótico e impruden­
te: não sabe seu lugar, é agressivo, pueril, obsceno e ridículo.
Como se viu no capítulo I, desde o século XIX a crítica brasileira vem
atribuindo ao homem Gregório de Matos e Guerra, suposto autor da sátira
produzida na Bahia no final do século XVII, as características do personagem
dos poemas. Eliminando, com a atribuição, o preceito retórico-poético que
lhe modela o caráter comopersona ficcional, a crítica rotineiramente propõe a
poesia como expressão da psicologia e da psicopatologia do homem, em várias
versões: “Simplesmente um nervoso, quiçá um nevrótico, um impulsivo, um
espírito de contradição e de negação, um malcriado rabugento e malédico”
(José Veríssimo); “[...] um reles boêmio, quase louco, sujo, malvestido, a per­
correr os engenhos do Recôncavo [...] o fauno de Coimbra [...] degenerava no
velho sátiro do mulatame” (Araripe Júnior); “Madraço por índole, parasita
vitalício” (Agripino Grieco); “Negligente e obsceno tocador de viola” (Sílvio
Júlio).

74. Sobre os ascendentes de Gregório, cf. Fernando da Rocha Peres, A Família Mattos na Bahia do
Século XVII, Salvador, Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia, 1988, n. 132.

458
OS LUGARES DO LUGAR

Os críticos biográficos parecem pressupor que o personagem satírico é


uma imagem exata de seu inventor ou um porta-voz de suas convicções pes­
soais. Muito ironicamente, como lembra Kernan a respeito da crítica inglesa
sobre a sátira renascentista, o que os críticos biográficos dizem sobre os ho­
mens autores dos poemas tende a confirmar a existência de um caráter satíri­
co básico, em Juvenal, Pope, Byron, Swift ou João da Silva , como se os críti­
cos estivessem sempre falando de um mesmo homem arrogante, intolerante e
irascível, que ninguém gostaria de ter como vizinho. Como diz Kernan, em­
bora possa até ser verdadeiro que muitos desses autores satíricos não foram
homens muito estáveis, o que efetivamente se esquece com a falácia biográfi­
ca é que muitas das características atribuídas à psicologia deles derivam da
própria natureza da sátira, gênero que, por definição, figura paixões excessi­
vas. Assim, lembrando o óbvio - que a sátira é poesia; que a poesia é ficção;
que o “eu” satírico é um personagem; que o personagem é um tipo fictício;
que seu caráter de tipo também é fictício e inventado tecnicamente pelo poe­
ta para a finalidade satírica de expor o vício e a depravação - é útil também
lembrar que os autores de sátiras manipulam o personagem satírico de ma­
neira dramática, constituindo-o como um ator75.
Etimologicamente, o termopersona significa máscara. Na sátira, apersona
é uma convenção, ou seja, uma máscara aplicada pelo poeta para figurar as
duas espécies aristotélicas do cômico, o ridículo e a maledicência, ou o vício
não-nocivo, que causa riso, e o vício nocivo, que causa horror. Para dar conta
das duas espécies cômicas, a persona é inventada como um ator investido se­
mântica e pragmaticamente por valores e posições institucionais que assegu­
ram o efeito de sua unidade virtuosa e/ou de sua indignação agressiva e obs­
cena. Na sátira atribuída a Gregório de Matos, a persona é inventada com
categorias e preceitos jurídicos, teológico-políticos e retóricos, repetidos de
poema a poema como esquemas de ação verbal. Já foram referidos no capítu­
lo III deste texto:

75. A. Kernan, The Cankered Muse: Salire of lhe English Renaissance, New Haven, 1959, pp. 16-28. Dis­
cussão acurada do livro de Kernan acha-se em William S. Anderson, “Anger in Juvenal and Seneca”,
Essays on Roman Salire, Princeton, Princeton University Press, 1982. Este trabalho ratifica as teses
de Anderson, que observa que as conclusões de Kernan também são válidas para a sátira romana de
Juvenal, lembrando que a “musa cancerosa” da Renascença inglesa aparenta-se com a do satírico
raivoso de Juvenal, mais que qualquer outro autor romano, uma vez que sua sátira foi apropriada
pelas doutrinas inglesas da sátira no Renascimento (p. 295). A presença de Juvenal e Marcial é
forte também na sátira ibérica, lembrando-se aqui as traduções de Marcial feitas por Quevedo.
Geralmente, a sátira romana encontra-se na sátira seiscentista como citaçáo, personagens, situa­
ções dramáticas e, evidentemente, desenvolvimento de lopoi do gênero demonstrativo.

459
A SÁTI RA E O EMG E N H O

+
brancura X não-brancura;
catolicismo X heresia e gentilidade;
discrição X vulgaridade;
fidalguia X plebe;
liberdade X escravidão;
honestidade X desonestidade;
masculino X feminino

Nos poemas, como se viu, o ponto de vista da /


construído por meio dessas oposições. Formulando-se a si mesma como se­
melhança virtuosa das categorias positivas, apersona compõe e descompõe os
tipos viciosos como semelhanças malvadas das categorias negativas. Modela­
da como o vir bonus peritus dicendi da oratória, a persona é geralmente um tipo
virtuoso, assim, e por isso mesmo indignado contra a corrupção da sua Cida­
de, segundo uma afetação retórica de indignação, como ocorre, por exemplo,
na Sátira 1, 79, de Juvenal: “[...] si natura negat,facit indignado versum”.
Quando afirma que a ordem racional do seu mundo está corrompida e
que é a sua indignação que faz o verso, a persona de Juvenal também afirma
ignorar o valor da disciplina poética. Com verossimilhança dramática, pro­
põe que vive em um mundo caótico e que, por isso, também representa sua
indignação caoticamente, como se o discurso da sátira fosse a expressão infor­
mal da sua ira. Obviamente, é artifício retórico dizer que “não há retórica” no
que é dito retoricamente. Ou seja: se é verdade que as paixões são naturais,
nunca são informais, quando poeticamente representadas, porque sua repre­
sentação é fictícia, ou seja, mediada por uma forma pseudo-expressiva e
pseudo-referencial, construída por técnicas precisas. A irracionalidade da
indignação da persona é construída muito racionalmente, enfim, como técni­
ca de contrafacção ou fingimento poético que produz estruturas “indigna­
das” e “excessivas”, que podem ser recebidas como ausência de estrutura,
como no caso da crítica que ignora a mediação técnica do artifício construti­
vo do efeito, folclorizando a poesia com interpretações improváveis.
Como lembra Kernan, a máscara do vir bonus peritus dicendi modela gene­
ricamente o caráter (éthos) público da persona satírica, como se ela fosse ao
mesmo tempo Dr. Jekyll e Mr. Hyde, com uma personalidade pública e uma
personalidade privada. A persona da sátira atribuída a Gregório de Matos tam­
bém apresenta tais inconsistências e contradições, como tipo ao mesmo tempo
discreto e vulgar, virtuoso e vicioso, digno e infame. Segundo a crítica român-
tico-positivista, a causa das mesmas é a psicologia do homem Gregório de

460
OS LUGARES DO LUGAR

Matos, sempre positivado como causa ou origem dos poemas, apesar de não
se conhecer nenhum autógrafo e de nada ter editado em vida: doente, fauno
de Coimbra, tarado, mestiço, mazombo nativista, protonacionalista, nacio­
nalista, crítico da ideologia oficial, carnavalesco, antropófago cultural, ateu,
liberal, libertino, transgressor, revolucionário, ressentido, pessimista, reacio­
nário, machista, plagiário, desclassificado, canalha etc. Segundo a convenção
retórica, as inconsistências e contradições da persona são convenções aplica­
das tecnicamente para figurá-la como persona dramática. Ou seja: supondo-se
que o homem chamado Gregório de Matos e Guerra tenha querido publicar
poeticamente seu ponto de vista individual sobre um assunto qualquer da
sociedade baiana do século XVII, ele não poderia fazê-lo sem aplicar as con­
venções retóricas das paixões que modelam o “eu” poético como tipo não-
psicológico, ou seja, como tipo formalizado retoricamente. Em seu tempo,
era impossível fazê-lo de outra maneira.
Kernan lembra que, se o personagem satírico permanecesse coerente ape­
nas como personalidade pública, a simplicidade esquemática de seu caráter
seria totalmente compreensível, mas também parecería ingênua demais para
dar conta de um mundo muito complicado como o seu. No caso, a convenção
retórica da sátira prescreve que, em decorrência dos seus violentos ataques
aos vícios, a persona também adquire características por assim dizer “desa­
gradáveis”, que tornam suspeita sua pose de defensor da verdade nua. Assim,
o poeta satírico constrói as inconsistências da persona por meio de cinco pares
de tensões encontráveis na sátira de Juvenal, na poesia satírica medieval e,
como demonstra Kernan, na sátira elisabetana. Os cinco pares ordenam a
invenção do “eu” da enunciação da sátira atribuída a Gregório de Matos, o
que parece ser uma evidência não propriamente da psicopatologia de homens
tão diversos que produziram sátiras em situações históricas tão diferentes,
mas, sim, da longa duração histórica da técnica retórica de figurar as incon­
sistências da persona que caracteriza o gênero. Os cinco pares de tensões
desautorizam a atribuição das inconsistências poéticas, que são inconsistên­
cias fictícias, produzidas sempre pelo cálculo muito racional de uma técnica,
à psicologia suposta num homem suposto autor dos poemas.
E útil lembrar que, na interpretação antiga das inconsistências da persona
agressiva e obscena, há duas vertentes: a peripatética e a estóica. A versão
peripatética propõe que a persona satírica é o vir bonus, o homem honesto,
eives, o cidadão, que se indigna contra os viciosos e os vícios que corrompem a
sua Cidade; por isso mesmo, sua ira e sua agressão muitas vezes obscenas
estão previstas. A vertente estóica, como a que é exposta por Sêneca, em De
ira, propõe que a indignação também é indigna, porque irracional ou excessi­

461
A SÁTI RA E O E N G E N H O

va como qualquer outro vício. Sêneca propõe que a indignação é auto-indul-


gência e megalomania tirânica. Ou seja, que apersona satírica indignada tam­
bém é um tipo vicioso. Assim, conforme a vertente peripatética, o persona­
gem indignado é um tipo nobre, superior, honesto e virtuoso; conforme a
vertente estóica, não passa de um louco ou apaixonado, que vem a público
para se vingar. (A concepção estóica aparece diluída psicologisticamente, aliás,
na crítica brasileira que propõe o “ressentimento” do homem Gregório de
Matos como causa da poesia etiquetada por seu nome.)
De todo modo, a tensão peripatético/estóico constitui a persona na sátira
gregoriana e na poesia satírica em geral. Tal tensão é tema tratado em vários
poemas da tradição Gregório de Matos, evidenciando-se como mais uma con­
venção. Quando não é considerada ou é ignorada, confunde-se o personagem
ficcional com o homem empírico, o efeito obsceno com uma causa psicológica e o
artifício técnico, retórico, com a falta de artifício de uma expressão subjetiva infor­
mal. Vejam-se, a seguir, os cinco pares de tensões. A persona satírica
1. afirma ser um homem razoável, dado à simplicidade virtuosa e à con­
versação pedestre, mas faz um uso extremamente complexo de técnicas retó­
ricas e poéticas para dizê-lo;
2. afirma a absoluta veracidade do que diz, mas distorce as ações
hiperbolicamente, para ênfase;
3. vitupera o vício, mas demonstra particular inclinação pelo sensaciona-
lismo e pelo escândalo;
4. postula a finalidade moral da crítica, mas demonstra prazer perverso
em rebaixar as vítimas;
5. é sóbrio e racional, mas freqüentemente adota posições desmedidas e
irracionais.
Com pequenas restrições ao primeiro deles, uma vez que a persona da
sátira seiscentista faz questão de alardear sua cultura cortesã de discreto, que
a faz melhor que os “néscios”76 nas convenções da agudeza hermética (o que
não a impede, contudo, de também criticar as culteranias gongóricas e defen­
der a convenção da simplicidade e clareza), os outros pares de tensões são
generalizáveis para toda a sátira gregoriana, bastando lembrar aqui o entrecho
de alguns poemas já analisados neste trabalho. Assim, no poema que critica
Babu ironicamente como “puta” e “bruxa”, a persona proclama o desejo de
também se embruxar para que a esposa morra logo e, livre dela, possa come­

76. Poucos poemas compõem a persona satírica como “simplicidade”; exemplar é o romance dialogado,
em forma de carta, dedicado ao Conde do Prado e que desenvolve o fugere urbem.

462
OS LUGARES DO LUGAR

ter o amor com a bruxa, transformada em madrasta de seu filho Gonçalo; no


conjunto das sátiras às freiras, a maledicência da persona despeitada é
construída como auto-apologia das virtudes viris do secular desprezado, que
fala contra os frades freiráticos; de modo geral, a indignação do seu ataque
costuma exceder em muito a fraqueza moral do atacado, quase sempre um
pobre-diabo indefeso, principalmente mulheres, mulatos e negros; a persona
é misógina e simultaneamente cativa das mulheres; a persona as ataca violen­
tamente quando se recusam a fazer com ela o que acusa como vício em outros;
a persona odeia a Cidade e seus habitantes; no entanto, permanece nela, con­
vive com eles, tem conhecimento de tudo quanto lhes ocorre; a persona de­
monstra um conhecimento minuciosíssimo da mecânica dos vícios, parte por
parte, ato por ato, nome por nome, como se freqüentasse os rituais obscenos
das bruxas, as camas dos sodomitas, as putas espacejantes, a intimidade dos
quartos, os vícios secretos de freiras e frades; a persona é pueril, auto-indul-
gente, vaidosa, estúpida, violenta, malévola, maledicente, despropositada,
incoerente - em suma, estoicamente viciosa. Como a crítica romântico-
positivista do homem Gregório rotula: “notabilíssimo canalha”, “um nevrótico,
quiçá um nervoso”, “negligente e obsceno tocador de viola”, “malcriado ra­
bugento e malédico”, “parasita vitalício”, “vadio Diógenes” e mais sustos da
psicologia impressa.
O licenciado Rabelo é, mais uma vez, guia valioso:

M u i t o s e r a m o s fe r id o s d e se u ferro, q u e c o n s u lta r a m o r e m é d io n o m e s m o in s t r u ­
m e n to da c h a g a b e ija n d o A q u ile s a lan ça, q u e os trespassara. R aro t e st e m u n h o d esta
fa ta lid a d e foi a re s p o sta q u e d e u a u m q u e ix o s o , certo G o v e r n a d o r s e v e r a m e n te r e s o lu ­
to: “N ã o f a ç a u m c a s o ( d i s s e ) p o r q u e i s s o t a m b é m p a s s a p o r m i m s e m q u e p o r m i m
p a s s e a m í n i m a t e n ç ã o d e o c a s t i g a r ”77.

Por “fatalidade”, evidentemente, Rabelo está propondo o providencialis-


mo do castigo da sátira, segundo o qual os “extremos da verdade” do poeta
são uma causa segunda, instrumento temporal da Causa Primeira, como se
viu no capítulo I. O que a anedota permite propor, ainda, é a encenação da
convenção retórico-poética: “[...] porque isso também passa por mim, sem
que por mim passe a mínima tenção”. No poema, “eu” e “tu” são topoi, diz a
personagem. Inúmeros índices dessa convenção disseminam-se por toda a
poesia atribuída a Gregório como pragmática que especifica os esquemas de

77. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, “Vida do Excelente Poeta Lírico, o doutor Gregório de Matos
e Guerra”, em James Amado (org.), Obras Completas de Gregório de Maios (Crônica do Viver Baiano
Seiscentista), Salvador, Ed. Janaína, 1968, 7 vols., vol. VII, p. 1718.

463
A SÁTI RA E O E N G E N H O

ação verbal para a recepção. São tão explícitos que invalidam a noção rotinei­
ra de que as incoerências dapersona são motivadas como expressão da persona­
lidade doentia de um indivíduo empírico. Ao contrário, permitem demonstrar
que as incoerências da persona são fictícias, ou seja, construídas retoricamente
como “despropósitos a propósito” ou “inconveniências convenientes”, para
repetir Tesauro. Supõe-se que tal construção tenha ficado explicitada no de­
correr deste trabalho. Para ratificá-la, contudo, vão mais exemplos.
Começando por poema já analisado no capítulo IV, que afirma que “A
narração há de igualar ao caso”, a questão nuclear da racionalidade é proposta,
encenando-se o pleno conhecimento dela púapersona, que não é néscia e, por
isso, conhece a técnica do fingimento poético:

O n é sc io , o ig n o ra n te , o in ex p erto ,
Q u e n ã o e le g e o b o m , n e m o m a u reprova,
P or t u d o p a ssa d e s lu m b r a d o , e in certo.

( O C , II, p . 4 7 0 . )

Outro poema, que satiriza Pedralves da Neiva por seus falsos foros de
fidalgo, afirma-lhe que

tu d o , o q u e aq u i v o s d igo,
ora é z o m b a n d o , o ra rin d o .

( O C , IV, p . 8 9 8 . )

Os dois gerúndios efetuam a síntese disjuntiva do cômico, segundo


Aristóteles, Cícero, Quintiliano, Castelvetro e preceptistas do conceptismo,
como Gracián, Pallavicino, Tesauro e Leitão Ferreira: “zombando”, maledi­
cência do riso com dor; “rindo”, ridículo do riso sem dor. Opostas segundo o topos
freqüentíssimo das “lágrimas de Heráclito e riso de Demócrito,” com que a
poesia seiscentista encena o desengano e seus sucessos, a maledicência agres­
siva (“zombando”) e a ironia brincalhona (“rindo”) implicam, como deve ter
ficado evidente, ora o fingimento da indignação e das iras da fantasia poética,
ora o fingimento dos jogos das facécias e da ironia sorridente, pelos quais a
persona ora é aquele vir bonus dicendi da oratória, douto e experiente, por isso
indignado segundo uma afetação de indignação, ora aquele tipo horaciana-
mente urbano, que dos pecados alheios extrai antes o divertimento amável,
levemente desdenhoso, que a reprovação irada.
Em poema dirigido a Betica, a enunciação é auto-referencial e a persona
também é sujeito do enunciado ou objeto de si mesma. As classificações que

464
OS LUGARES DO LUGAR

a t ip if ic a m c o m o / d e s c l a s s i f i c a d o / o u / i n f a m e / s ã o as c o r r e n te s n o s é c u lo X V II,

v a le n d o ler o p o e m a in t e g r a lm e n t e , p o is é e lu c id a tiv o d o f in g im e n t o p o é tic o .

V eja -se o q u e p r o p õ e su a d id a sc á lia : “P a sso u o P o e ta p e la p o rta d e s ta D a m a ,

a r r ib a n d o d e fora p o r c a u sa d a c h u v a , c o m u m c a s a c ã o , e u m a c a r a p u ç a , e ela
lh e d is s e , q u e se fora p o e ta , c o m o e le , o h a v ia d e sa tir iz a r p e lo d e sc o c o : ao q u e
ele fe z esta s d é c im a s ” .

Q u e n ão v o s e n g a n a is, d igo,
B etica , e a n te s cu id a i,
q u e u m a sátira a m e u Pai
fa rei, se b u lir c o m ig o :
fá-la-ei ao m o r a m ig o ,
q u a n d o a le iv o s o m e toe,
e p o r q u e m e lh o r v o s soe,
se v o s p u s e m tanta calm a,
s e n d o o m e u í d o l o d ’a l m a ,
a q u e m q u ereis, q u e perdoe?
E se m a l v o s p a r e c e u ,
q u e eu fosse por esse p osto
tão d e s p id o , e d e sc o m p o s to ,
s e m ter r e s p e ito a e s s e c é u ,
b e m sab eis vós, q u e ch oveu ,
e eu v in h a d e m e em barcar:
p o r é m e n t o l d o u - s e o ar,
e p ara c a sa arrib ei,
c o m q u e se d e s a g r a d e i
q u e r o - m e satirizar.
B e tica, eu sou u m magano,
um patife, u m m a r i o l a ,
u m sátiro, u m salvajola,
e m a i s doudo q u e u m galhano'.
d e p o is d e ser v o ss o m a n o ,
e m t e m p o , q u e e u era h o n r a d o ,
fui m u ito desaforad o
e m v ir p e la v o s s a rua
c o m b a rrete d e falua,
e o pá de gato pin gado.
Sou um sujo, e u m patola,
de mau ser, má propensão,
p o r q u e se g a s t o o t o s t ã o
é só c o m n e g r a s d e A n gola:

465
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

um sátiro salvajola,
a quem a universidade,
não melhorou qualidade,
nem juízo melhorou,
e s e a c a s o lá e s t u d o u ,
si f o i loucura, e asnidade.
Sou u m tonto, e u m cabaça,
p o is fui qual bruto indigesto,
o n d e os m a is c o m p õ e m o gesto
p o r c a i r n a v o s s a gr aç a:
e se e n t ã o fu g i d a p raça,
o n d e estã o h o m e n s d e porte,
b e m é, q u e a praça m c corte,
p o i s a t e n t o à v o s s a fé
d evia d e e n te n d e r , q u e
o n d e v ó s e s ta is , é corte.
Se da sátira e n t e n d e r e s ,
q u e p o u c o p e s a d a vai,
vós, B etica , a acrescentai
c h a m a n d o - m e , o q u e q u iseres:
q u an tos n o m e s m e puseres,
to d o s m e v ira m frisan d o,
c se e n f i m a c r e s c e n ta n d o
não v o s pa recer b astante,
m u d a i- o s d e in sta n te a in sta n te,
p o n d o - m e u n s , e o u tr o s tiran do.

( O C , IV, p p . 9 6 3 - 9 6 5 . )

Auto-ironia e muito humor dapersona que, ao voltar contra si mesma seu


arsenal de pejorativos, evidencia para o destinatário a pragmática que rege a
sua prática: a sátira se faz quando há aleivosia - “se desagradei / quero-me
satirizar”. Observe-se que os termos grifados compõem, com maior ou menor
aproximação, o tipo do “pícaro”, que a sátira codifica como “vulgar” e “nés­
cio” e, portanto, com o valor semântico de /inconsistência /, /incoerência/. O
“pícaro” não tem juízo, mas gosto. A quarta estrofe é bastante explícita, tanto
pela intensificação de “sátiro salvajola”, lembrando-se que o século XVII uti­
liza o sátiro como emblema do “misto”, “sátiro sátiro”, misto misturado, quanto
pela citação irônica da “universidade”, invertida com muita justeza como
“asnidade” que não melhora o “juízo” ou a capacidade racional de efetuar
distinções própria do discreto. A mesma auto-nomeação muito redundante,
como “magano”, “patife”, “mariola”, “sátiro”, “salvajola”, “doudo”, ..., “bruto

46 6
OS LUGARES DO LUGAR

indigesto” etc., opera as distinções discretas que a persona afirma não ter ca­
pacidade de efetuar enquanto as efetua e aplica a si mesma. Em outros ter­
mos, a convenção da irracionalidade picaresca é figurada como sendo de ple­
no conhecimento da persona, um discreto que aqui desdobra o fingimento
poético, fingindo-se incapaz de fingir, pois declara-se “néscio”. É como cômi­
co sem dor que o poema se enuncia: “Se da sátira entenderes, / que pouco
pesada vai”, implicando-se nesses versos a outra convenção, a da maledicên­
cia, pela qual a sátira “muito pesada vai”. A “asnidade” da persona explicita-
se, desta maneira, como uma evidenciação das convenções para efetuar a “asni­
dade”: a irracionalidade, a incoerência e a inconsistência são efetuadas muito
racionalmente, muito coerentemente e muito consistentemente, enfim, lem­
brando-se mais uma vez o quanto há de cálculo no distanciamento auto-irô-
nico da persona.
Outro poema, em que a vítima do ataque é o Braço de Prata, o governador
Sousa de Meneses, expõe-lhe no exórdio-dedicatória:

Q u e é já v e l h o e m P o e t a s e l e g a n t e s
O ca ir e m to r p e z a s se m e lh a n te s.
D a P u lg a a c h o , q u e O v íd io tem escrito,
L u ca n o do M o sq u ito ,
D a s Rãs H o m ero , e d estes não desprezo,
Q u e escrev era m m a tér ia s de m a is p eso
D o q u e eu , q u e ca n to co u sa m a is delgada
M a is ch ata, m a is su til, m a is esm agad a.

(OC, I, p. 155.)

Aqui, mais uma vez a persona evidencia a convenção poética que prescre­
ve o estilo baixo - “cair em torpezas semelhantes” -, encenando-a em sua fala
como digna de emulação - “Poetas elegantes” -, do porte de Ovídio, Lucano,
Homero. Observe-se que as obscenidades que continuam a pintura fantástica
de Sousa de Meneses no poema estão também prescritas pela intensificação
do estilo baixo como translalio sórdida: na comparação das matérias, a da persona
satírica é mais vil - “mais delgada, / Mais chata, mais sutil, mais esmagada”
- que a pulga, o mosquito e as rãs dos poetas elencados. Logo, impõe-se a
linguagem adequada a essa matéria ínfima, a agressão e a obscenidade, que a
persona conhece e domina com perfeição.
Muitos outros exemplos poderiam ser expostos e discutidos, mas acredi­
ta-se já ter ficado patente o caráter retórico da persona e de suas “incoerências”.
Pode-se afirmar que ela não é monolítica ou unitária, ainda quando postula a

467
A SÁTIRA E O E N G E N H O

unidade, mas construção complexa de tensões: é persona dramática, muito


tradicionalmente, aliás, segundo a proposição horaciana da sátira como gê­
nero dialógico, conversacional. Assim, se postula a virtude, que é unitária, a
mesma persona apresenta-se também dividida por tensões, como as do cômi­
co sem dor e as da maledicência com dor. Há três hipóteses para explicá-la:
a) a sátira é a expressão contraditória de um homem contraditório;
b) a sátira constrói um personagem que vitupera o vício, mas o faz de modo
inepto, incoerente e poeticamente falho, pois o mesmo personagem é vicioso;
c) a sátira constrói um personagem que vitupera o vício, e sua incoerên­
cia é produzida programaticamente, segundo convenções retóricas para figu­
rar a inépcia.
Descarta-se a primeira por ser obviamente anacrônica, à luz da mesma
sátira (“A narração há de igualar ao caso” etc.) e de documentos do século
X V I I (preceptistas como Gracián e Tesauro, por exemplo, que propõem a con­

venção). Descarta-se também a segunda, pois é desmentida pelo engenho de


fingir-se a persona de néscio para os néscios, como inversão irônica, paródia,
polêmica secreta, facécia etc. Resta a terceira, que é adequada: quem quer
tenha sido o homem Gregório de Matos e Guerra, a sátira atribuída a ele é
uma obra-prima no gênero. Não só constitui vícios e viciosos como também
constrói os índices que impedem identificar ações e palavras da persona dos
poemas com a suposta personalidade de seu autor suposto. Personagem dra­
mática complexa, a persona satírica é ator capacitado a ocupar várias posições
discursivas opostas, consecutivas ou simultâneas, conforme a matéria e a oca­
sião dos poemas. Por exemplo, quando descreve o tipo do “corno”, a persona
vitupera o adultério das mulheres interpretadas em tópicas misóginas. O
marido traído é tão desprezado, contudo, tão ridicularizado, que se evidencia
imediatamente o fantástico de uma crítica que destrói a vítima do vício e não
tanto o vicioso. Supõe-se que, para destinatários contemporâneos conhecedo­
res da convenção retórica, o jogo era plausivelmente evidente.
Por isso, ainda, quando a persona está investida semanticamente como
“velho”, por vezes dramatizando a virtude como saber todo de experiência
feito, por vezes avançando a libertinagem às mulheres, vituperando-as por
não cederem, na sua constituição como complexidade de humores são legí­
veis, como convenção dramática, duas expectativas culturais do século X V I I
para o velho: adequação à idade, códigos da sapiência, da experiência e da
prudência, e inadequação à idade, códigos da estultície, da puerilidade e da
demência senil. As tópicas são encontráveis, aliás, na poesia medieval, nos
autos de Gil Vicente, na tragicomédia espanhola contemporânea da sátira,
em textos de aconselhamento de príncipes etc.

468
OS LUGARES DO LUGAR

O investimento semântico da tópica pode inclusive dramatizar motivos


de contrafação, selecionados e abstraídos do referencial discursivo segundo
as regras retóricas do retrato: o nome “Gregório”, a formação “Direito Canô­
nico”, a profissão “juiz em Lisboa”, a pátria “Bahia”, a caracterização “letra­
do”, a condição “casamento na Bahia” ou “paternidade”, a origem “branco”, a
idade “velho” etc. são estilemas que caracterizam, por exemplo, o retrato que
o licenciado Rabelo faz de Gregório de Matos e Guerra. O mesmo Gregório de
Matos pode muito bem tê-los articulado, enfim, para referir a sua própria
vida. Supondo-se que ele o tenha feito, ele o fez segundo a convenção retórica
que prescreve modelos para falar como velho de modo verossímil. Fingimento
poético para falar como velho, insista-se, utilizado por autores seiscentistas
jovens e velhos, porque tópica retórica. Caudatária do romantismo, a inter­
pretação dessa poesia como expressão psicológica transforma o ator em autor
e apaga justamente o que caracteriza a poesia, a ficção: eis aí a persona satírica
metamorfoseada no fauno senil, Gregório, o canalha protonacionalista res­
sentido, da terra baiana em que o lundu abunda.

E d u c a t io et D is c ip l in a ( E ducação e I n str u ç ã o )

Segundo Quintiliano e a tradição do gênero epidítico, para o encômio ou


para a vituperação importa saber por quem e de que maneira alguém se for­
mou78.
A sátira aos letrados inclui-se nesta tópica, dividindo-se por dois paradig­
mas, sátira de poetas e pregadores e sátira de magistrados, conforme o investimen­
to semântico do referencial local. Em ambas, é nuclear a conceituação da dis­
crição e do discreto; por oposição, a da necedade e do néscio, interpretadas
sempre pela oposição juízo x gosto. Alguns motivos associados ocorrem em
ambas, como a inépcia jurídica e poética; a ignorância do latim; a falta de zelo
na advocacia; o hermetismo gongórico; a má formação universitária; a presun­
ção de passar por melhor; a afetação do arrivismo e seus signos sobredeter-
minados de dignidade, importância e fineza; o furto literário etc.
A caracterização do bom letrado, a sátira aplica a metaforização da
fidalguia do sangue, que fixa a posição e a discrição interpares segundo topoi
de “origem”, como o que postula a hereditariedade da nobreza, pois “não é

78. Quintiliano, De insiüulione oraioria, 5, 10, 25: “educatio ei disciplina, quoniam referi a quibus ei quo
quisque modo sil insiituius”.

4 69
A SATI RA E O E N G E N H O

nascido quem quer”. Virtudes letradas e virtudes fidalgas se unificam, desta


maneira, na tipificação seiscentista dos “melhores”.
Discussões sobre a pena e a espada, sobre a afeminação ou a virilidade
das letras e das armas são muito comuns nos tratadistas da discrição no sécu­
lo XVI, como Baldassare Castiglione e Giovanni delia Casa, cujo Galateo foi
manual nos colégios da Companhia de Jesus e, ainda, nos preceptistas do
século XVII, como Baltasar Gracián, Emanuele Tesauro, Saavedra Fajardo,
integrando-se à definição do “perfeito cortesão” das sociedades de Corte de
então. Um soneto atribuído a Gregório de Matos desenvolve o tema:

É q u e s t ã o m u i a n tig a , e altcrca d a
E n tre o s L etrad os, e os M ilic ia n o s,
S em as h aver d ec id id o em tantos anos,
Q u a l é m a i s n o b r e a p e n a , se a espa d a .

D is c o r r e m e m m a tér ia tão travada


A lto s e n t e n d im e n t o s m a is q u e h u m a n o s,
E j u lg a m ter b r a s õ e s m a i s s o b e r a n o s
U n s , q u e P a la s to g a d a , o u tr o s , q u e arm ad a.

E sta p o i s c o n tr o v é r s ia tão r e n h id a ,
T ã o d isp u ta d a , q u an to d u vidosa
C e s s o u co d e sp o s ó r io , q u e se ord en a.

U m a p en a a soltou m u i en ten d id a ,
U m a e sp a d a a co rto u m u i va lero sa ,
P o i s já s e d ã o a s m ã o s e s p a d a , e p e n a .

(“A o m e s m o D e s e m b a r g a d o r [ D i o n í s i o d ’A v i l a V a r e i r o ] c a s a n d o - s e c o m a f i l h a d o
C a p i t ã o S e b a s t i ã o B a r b o s a ”)

( O C , II, p. 4 1 3 . )

Em 1692, Câmara Coutinho enviara a Porto Seguro uma tropa de cin-


qüenta soldados comandados pelo desembargador Dionísio d’Avila Vareiro
para dar combate a “[...] uns trinta Paulistas, de que eram cabeças um Do­
mingos Leme de Moraes e seu Irmão Veríssimo de Moraes da Silva que como
Régulos se tinham levantado”79. Tornando vitorioso o desembargador, cinco
cabeças foram executados, degredando-se os restantes trinta e seis para An­

79. Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, Livro de Cartas que o Senhor Antônio Luís Gonçalves
da Câmara Coutinho escreveu etc. (Cartas ao Rei, 1692), Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacio­
nal do Rio de Janeiro, pp. 67-70.

470
OS LUG A R E S DO LUGAR

gola. O desembargador foi objeto de um poemeto épico-encomiástico, imita­


ção de Camões, cuja estrofe 29 relaciona “armas” e “letras” como virtudes
cívicas:

E ssa s a rm as por estes caracteres


P in ta n o e s c u d o d e o u r o tr a n sp a r e n te ,
P o rq u e o m u n d o c o n h e ç a , s e m p r e seres
P or L etras, e por arm as excelen te:
D e s d e a T é t i s fu r io sa e fiava C e r e s
T e u n o m e se e t e r n iz e p e r m a n e n te
L e v a n d o -o por a ssu n to à d o ce C lio
C a m . D e s d e o t r ó p i c o a o c i n t o f r i o 80.

( O C , II, p . 4 0 9 . )

Na sátira, como se viu no capítulo II, a oposição do letrado formado em


Coimbra ao formado no local desqualifica o letrado ntazombo:

V ós graduado a borrões
e m u m a u n iv ersid a d e
q u e fu n d o u nesta cid a d e
o b r a ç o d o s a s n e i r õ e s 81:

( O C , III, p. 7 3 4 . )

80. Exposição minuciosa e diacrônica desse topos encontra-se em Luís de Sousa Rebelo, “Armas e
Letras, um topos do Humanismo Cívico”, A Tradição Clássica na Literatura Portuguesa, Lisboa, Li­
vros Horizonte, 1982.
81. Francisco Rodrigues Lobo indica quem são os letrados no século XVII: “Têm as escolas, além
destes, um bem, que favorece esta opinião, e é que de ordinário os que as buscam, ou são filhos
segundos e terceiros da nobreza do Reino, que, por instituição dos morgados de seus avós, ficaram
sem heranças e procuraram alcançar a sua pelas letras; ou são filhos dos homens honrados e ricos
dele, que os podem sustentar com comodidade nos estudos; ou religiosos escolhidos nas suas pro­
víncias, por de mais habilidade e confiança para as letras”. Cf. Francisco Rodrigues Lobo, “Diálo­
go 16", Corte na Aldeia e Noites de Inverno, 1619, cit. por Vitorino Magalhães Godinho, Estrutura da
Antiga Sociedade Portuguesa, 3. ed., Lisboa, Arcádia, 1977, p. 251. Os oficiais da Câmara de Salvador
dirigem-se várias vezes à Coroa fazendo a mesma demanda. Por exemplo, em 10.4.1674 e em 7.7.1681,
pedem por uma universidade a exemplo da Universidade de Évora ou afirmam ser mais que justi­
ficável sua fundação, tanto pela distância da Bahia quanto pelas despesas e riscos de mar a que se
expõem os moços que vão a estudar em Coimbra. Pedem também que se conceda o grau de licenciado
ou mestre em Artes àqueles que seguem os cursos ministrados pelos padres da Companhia de
Jesus, caso a universidade não seja possível. A carta de 7.7.1681 é explícita. Após as manifestações
protocolares de lealdade irrestrita, os senhores alegam que, castigados pelo Céu com duas pestes
de bexigas e tendo perdido grande número de filhos e de escravos, esta é a causa por que “[...]
desejando nos acrescentar nossos filhos com o lustre das boas artes e Ciências nas Universidades

471
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O

Segundo apersona satírica, a culpa não é propriamente do letrado, mas da


“simples gente, / que de um tão mau requerente / quer formar um bom letra­
do” (OC, I I I , p. 735). Tão mau que o trocadilho se impõe: “Um Bártolo pareceis,
/não sendo senão Bartolo” (OC, I I I , p. 735)82. Não só os letrados da terra são
alvo da sátira, também os que vêm de Portugal são caracterizados nela como
“papagaios”, “asnos”, “néscios”. É, por exemplo, o teor da crítica ao doutor
Antônio Rodrigues da Costa, Cavalheiro do Hábito de Cristo, chegado de
Portugal com um vestido verde e canhões de veludo, aborrecido por mau le­
trado e por jurista intruso: “Verde cor de papagaio, / que há de vos esperar?”,
indaga a persona satírica. Por sinédoque que metonimiza a cor, responde “haveis
de papagaiar” (OC, I I I , p. 716). E papagaia, num arremedo de latim:

C a s u s est iste, d iz e is,


reveren te: é g rã o L atim !
d issera u m v ilã o ru im
t i r a d o a n t ’o n t e d a s c a b r a s
tais la t in s , n e m tais palavras?
vá la v a r -se ao m a r E u x i n o
o la tim d o C a le p in o ,
e o do P adre M a n u e l Abrás.

( O C , III, p. 7 1 8 . )

do Reino e autorizá-los com os graus de Licenciados, e Doutores, o não podemos fazer por falta de
cabedais para os enviar e sustentar no Reino como convém; e porque nesta Cidade da Bahia os
Religiosos da Companhia de Jesus além da Gramática e letras humanas ensinam a Filosofia e
Teologia assim moral como especulativas com grande aplauso, e proveito dos ouvintes os quais
com esperança do prêmio melhor se animarão ao estudo, Prostrados aos Reais Pés de Vossa Alteza
em recompensa dos Serviços referidos, vista a impossibilidade de Cabedal que alegamos, e sobre­
tudo por nos fazer Vossa Alteza essa honra à nossa Cidade lhe pedimos queira ser servido de con­
ceder aos que aqui se agraduarem com os mesmos graus de Licenciados na Filosofia e Doutores na
Teologia cheios os anos, e feitos os atos Literais os mesmos privilégios, que goza a universidade de
Évora no qual nos faz Vossa Alteza uma Grande de mercê”. Cf. Carias d o S e n a d o 1673-1684, Salva­
dor, Prefeitura do Município do Salvador/Bahia, 1952, 2üvol., pp. 10-11 e 105-106. Os privilégios
não vêm, não se funda a Universidade, o colégio dos jesuítas continua a ensinar a sua Filosofia,
Teologia, Gramática (Latim), Retórica, Lógica, sem que os graus sejam conferidos aos formados no
local.
82. Bártolo ou Bartolomeu de Sassoferrato (1314-1357), professor das universidades de Pisa e Perúsia.
Suas obras foram estudadíssimas nos cursos de Cânones de Coimbra até as reformas pombalinas.
Cf. “Bártolo e bartolismo na história do direito português” em Martim de Albuquerque, Estudos de
Cultura Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, 1" vol., pp. 39-123. Para uma
exposição da estrutura do curso de Cânones em Coimbra, cf. Estatutos da Universidade de Coimbra do
anuo de MDCCLXX1I. Livro 11 Que contém os cursos jurídicos das Faculdades de Cânones e de Leis, Lis­
boa, na Régia Officina Typografica, Anno M DCCLXXIII.

472
OS LUGARHS DO LUGAR

Os insultos descompõem posição, ignorância do latim, desconhecimento


do Direito, confusão da linguagem e, sobretudo, a grosseria, a que se opõe a
discrição da persona:

O la ca io a la tin a d o ,
ó m a c a r r ô n ic o ilu stre,
ó Ju rista b a la ú stre
ao m a c h a d o torneado.

( O C , III, p. 7 1 8 . )

Nos ataques aos magistrados que, por astúcia ou por inépcia, não exer­
cem a “vocacia honrada” (OC, I I I , p. 735), a sátira lança mão mais uma vez do
topos “pena e espada”, equiparando “letras” a “armas” na maledicência, as­
sim como as equipara no encômio dos poemas citados: “a minha Camena /
como vos corta co’a pena / vos pode cortar co’a espada” (OC, I I I , p. 739). O
mau letrado é, enfim, um “velhaco embusteiro”, “caco” (OC, I I I , p. 742) e
“asno barbado” (OC, I I I , p. 735); tem “[...] direitos / de Pedro de malas artes”
(OC, I I I , p. 738) e um “negro saber”, sendo “escriba cruel” (OC, I I I , p. 740);
quer ser “[...] como Bruto um grão talento” (OC, I I I , p. 737), não passa de “[...]
um simples e um coitado” (OC, I I I , p. 742). Tão coitado que umas décimas
dirigidas ao “Doutor Gilvaz”, ou “Cutilada”, têm a seguinte didascália: “Ao
mesmo letrado que havendo articulado contra huma parte em total perjuizo
de huma herança, esta huma noyte lhe metteo na cabeça uma panella de merda,
dizendo, que eram camarões. O poeta lhe chama aqui Gilvaz, porque tinha
huma cutilada na cara” (OC, I I I , pp. 720-724).
Quanto aos poetas e oradores sacros, a sátira os acusa de imperícia técni­
ca no uso dos consoantes, de falta de concerto harmoniosamente agudo dos
conceitos, de ação que fere o decoro do púlpito, de mania gongórica de escu­
recer tanto o poema que logo acodem morcegos, como diz Quevedo, que tam­
bém propõe que tais versos não podem ter luz e ser claros senão quando quei­
mados83. Contra a “ignorância / de Idiotas tão supinos” (OC, I, p. 173), afirma
a persona que “Anda aqui a poesia a todo trote” (OC, I I I , p. 711), implicando-
se os autores como “Pégaso”, ou “cavalos” e “asnos”, com tradução obscena de
seu valor: “[...] enfermou de caganeiras, / e fez muito verso solto” (OC, I I I , p.

83. Francisco de Quevedo, La Hora de Todosy la Foriuna con Seso, Paris, Aubier, 1980, p. 196: “Llegóse
uno lanto con un cabo de vela al poeta noche de invierno, de las que llaman boca de lobo, que se encendió
el papel por en medio. Dúbase el autor a los diablos de ver quemada su obra, cuando el que la pegófuego le
dijó: “Estos versos no pueden ser claros y lener luz si no los queman: más resplandeceu luminaria que
canción

473
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

706). No divertido testamento do cavalo de Pedralves da Neiva, o animal é


discreto, criticando a asnice do dono, numa retomada do “macho de Luís
Freire”, do Cancioneiro de Resende, em que se fala de um burro e sua alma:

M e u C o r p o vá a m o r t a lh a d o
no h áb ito de cacoetes,
que te m m e u a m o entre asn etes
d e falar a g o n g o r a d o .

(OC, IV, p. 889.)

Quanto aos pregadores, vejam-se dois exemplos suficientes. Um deles


critica a falta de decoro da invenção e da elocução do sermão:

In d a está p or d ecid ir,


m e u P adre provin cial,
se a q u e l e s e r m ã o fa ta l
f o i d e c h o r a r , s e d e rir:
[...]
C erto, q u e este lava-pés
m e d e ix o u escan galh ad o,
e q u a n to a m i m foi traçad o
para r is o n h o e n t r e m e z :
e u l h e q u e r o d a r d a s tr ê s
a ou tro q u a lq u e r Pregador,
s e ja e l e q u e m q u e r for,
já f i l ó s o f o , o u já l e t r a d o ,
e quero perder dobrado,
s e f i z e r o u t r o p io r.

( O C , II, p . 2 5 3 . )

O outro é uma crítica à ação do pregador no púlpito, referindo não um


letrado particular mas, genericamente, os missionários aos quais o arcebispo
Dom Fr. João da Madre de Deus recomenda as vias sacras e que, enchendo a
Cidade de cruzes, chamam do púlpito as pessoas por seus nomes, repreen­
dendo a quem falta, conforme ensina a didascália do soneto:

V ia d e p e r f e i ç ã o é a s a c r a v i a ,
V ia d o c é u , c a m i n h o d a v e r d a d e :
M a s ir a o C é u c o m tal p u b l i c i d a d e ,
M a is q u e à v ir tu d e , o b o to à h ip o crisia .

4 74
OS LUGARES DO LUGAR

O ó d i o é d ’a l m a i n f a m e c o m p a n h i a ,
A p a z d e ix o u -a D e u s à crista n d a d e.
M a s arrastar p o r força, u m a v o n ta d e ,
E m v e z d e p e r f e i ç ã o , é t i r a n ia .

O dar p reg õ es d o p ú lp ito é in d e c ê n c ia ,


Q u e d e F u la n o ? v e n h a aq u i sicrano:
P o r q u e o p e c a d o , o p e c a d o r s e veja:

É p r ó p r i o d e u m p o r t e i r o d ’a u d i ê n c i a
E se n isto m a ld ig o , ou m al m e en g a n o ,
E u m e s u b m e t o à S a n t a M a d r e I g r e ja .

( O C , II, p. 2 5 2 . )

Na crítica aos pregadores, “geringonça”, um termo buscado na crítica de


Quevedo contra Góngora, define o estilo escuro:

S e n d o u m z o te tão s u p in o ,
é s t ã o c o n f i a d o a lv ar ,
q u e andas por i a pregar
g e r i n g o n ç a s a o d i v i n o 84.

( O C , II, p. 2 7 6 . )

Genericamente, o pregador é “[...] grande conibricense [...] / sabe mais


que galinha” (OC, I I , p. 281), “asneirão” que prega um “douto sermão” e que
“[...] nunca já na Sofia / soube pôr um argumento” (OC, I I , p. 444). E ainda:
“Não sabe musa, musae, que estudou,/Mas sabe as ciências, que nunca apren­
d eu / Entre catervas de asnos se m eteu,/E entre corjas de bestas se aclamou”
(OC, I I , p. 286). O termo genérico para o insulto do padre assim tipificado
pela sátira é “zote” - “clérigo zote” (OC, I, p. 172); “[...] Reverendo vigário,/
que é título de zotes ordinário [...] ( O C , I I , p. 271); “[...] um zote tão supino”
(OC, I I , p. 276); “[...] zotes de Réquiem” ( O C , I I , p. 433); etc. -, substituído
por sinônimos como “asno”, “alarve”, “idiota”, “sandeu”.
O que a sátira aos letrados propõe como lição bastante generalizável até
hoje é, enfim, a prudência da persona:

D e q u e m c o m L etras secretas
t u d o , o q u e a lc a n ç a é p o r tretas,

84. Cf. Francisco de Quevedo, Aguja de navegar cultos: “Quien quisiere ser atilo en sólo un dia, / lajeri
(aprenderá) goma siguienle" e, ironizando o autor da F á b u l a d e P o l i f e m e G a l a t é i a : “Este alajcringonza
quitó el nombre, / pites después que escribió ciclopemente, / Ia llama jeringóngora Ia gente La Hora de
Todos y Ia Fortuna con Scso, p. 406.

475
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

baculejando sem pejo


por m atar o seu desejo
dês de m anhã até a tarde:
Deus me guarde.
( OC, II, p. 443.)

F o r tu n a ( D in h e ir o ; R iq u e z a x P o b r e z a )

Segundo Quintiliano e outros retores85, a mesma conduta não é verossí­


mil da parte de um rico ou de um pobre.
“Poderoso caballero es don dinero”, escreve Quevedo, e

[...] foi sempre D. D inheiro


poderoso Cavalheiro,
que com poderes iguais
faz iguais aos desiguais,
e Conde ao vilão cad’hora.
(OC, II, p. 473.)

parafraseia a sátira. Nela, a tópica da pobreza honesta oposta à riqueza deso­


nesta, comum na diatribe cínico-estóica, na sátira romana como andax
paupertas e na sátira medieval, recebe o investimento semântico de vários
motivos associados, vividos pela persona satírica. Típicas, as tópicas são apli­
cadas para referir pessoas e situações do referencial local, opondo riqueza e
fidalguia, riqueza e discrição, riqueza e origem etc.: a nobreza do dinheiro nada
é; a riqueza é um bem falso; o rico verdadeiro é o discreto, rico de dons; a
virtude do discreto é perfeita; o rico é néscio; a presunção do fidalgo é estúpi­
da, porque a nobreza verdadeira nada mais é que o despojamento dos bens
terrenos; o homem prudente despreza a riqueza; a simplicidade da vida cam-
pestre é melhor que o luxo da vida urbana etc.
Nesta tópica, a sátira ataca, basicamente, o arrivismo, a ruptura das con­
venções hierárquicas e a fidalguia comprada pelo dinheiro. O topos do di­
nheiro articula-se com outro, que genericamente opõe vida e morte, segundo a
crítica das aparências e a propaganda da ascese cristã. Mais uma vez, tam­
bém, a verdadeira nobreza defendida pela persona satírica é a do sangue, oposta
à fidalguia dos parvenus:

85. Quintiliano, De inslitulione oraioria, 5,10, 26: “[...] fortuna, neque enim credibile esl in divile acpaupere,
propinquis, amicis, clietuibus abundante et his onmibus destituto

47 6
OS L U G A R E S DO L UGA R

N ã o p resu m a m , porque têm ,


q u e são m a is q u e os p o b r e s n ob res,
p o is há m u ito s h o m e n s pobres,
m u i b e m n a scid o s tam bém :
ao p e q u e n o n ã o c o n v é m
p o r p e q u e n o desprezar;
q u e s e e s t e q u i s e r f a la r ,
achar p o d e a lg u m d efeito
q u e n e n h u m há tão p erfeito ,
e m q u e m se n ã o p o d e achar.

( O C , III, p . 6 5 1 . )

Generalizável para qualquer membro do corpo político da República, a


crítica da riqueza apropria-se das tópicas medievais da “usura” e da “simonia”:

Q u e v a i p e l a c l a r e z i a ? ........................S i m o n i a
E p e l o s m e m b r o s d a I g r e j a ? ............ I n v e j a
C u i d e i , q u e m a i s se l h e p u n h a ? ..............U n h a .

( O C , I, p. 3 3 .)

O n te m sim p le s Sacerdote,
h o je u m a grã d ig n id a d e ,
o n te m sa lv a g e n otório,
h o je en co b erto ignorante.
A o tal B e a to f in g id o
é força, q u e o p o v o a c la m e,
e os d o g o v e r n o se o b r ig u e m ,
p o is e d ific a a cid ad e.
[...]
C resce e m d in h e iro , e resp eito ,
vai r e m e t e n d o as fu n d a g e n s ,
c o m p r a to d a a sua terra,
c o m q u e fica h o m e m g ra n d e,
e eis aqui a personagem .

( O C , II, p. 4 3 2 . )

[...] p o r q u e s o i s t ã o m a u c r i s t ã o
q u e o q u e v o s cu sta u m tostão
v e n d e i s p o r d u z e n t o s r é is .

( O C , II, p. 3 9 2 . )

477
A SATI RA E O E N G E N H O

Q u e h ajam certas m crca n cia s


não de cou sas tem p orais
m a s d e o u tr a s e sp ir itu a is,
q u e se c h a m a m s im o n ia s:
q u e h aja, q u e m to d o s os d ias
c o m m o d o tão p ereg rin o
s e ja L a d r ã o a o d i v i n o
c o m tã o f a l s a n a r r a t ó r i a !

(OC, II, p. 493.)

Desenvolvendo o topos da riqueza e sua corrupção, a sátira monta qua­


dros descritivos em que o processo de enriquecimento e o afidalgamento são
ordenados sobre uma trama típica, cujas situações narrativas, léxico e frases
feitas se repetem por vários poemas, formando uma arte combinatória aplicá­
vel à ocasião de cada caso. A trama é uma seqüência - “chegar, estabelecer-se,
enriquecer, afidalgar-se” - analisada parte por parte pela persona, que geral­
mente a narra no presente: “sai”, “chega”, “entra” etc. A simultaneidade de
enunciação e de enunciado faz com que a persona, o destinatário e o tipo sati­
rizado sejam contemporâneos, de modo que o destinatário visualiza as ações
do arrivista não segundo esquema narrativo “do passado para o presente”,
mas como uma pintura muito viva, hic et nunc, como evidentia. O que se dia­
grama sintaticamente: a seqüência narrativo-descritiva é montada por
assíndetos, que esquematizam a rapidez do processo e a simultaneidade das
ações, efetuadas como contemporâneas ao ato que as descreve. Pela amplifi­
cação negativa do tipo, a personagem é ou um criado ou um lacaio ou um
mecânico ou um degredado ou um cristão-novo, genericamente um “pícaro”
e equivalentes (“marau”, “matachim”, “birbante”, “tratante”), descrevendo-
se seu trabalho anterior à chegada à Bahia e/ou seus traços caracteriais, entre
os quais a roupa nobilitante, geralmente ironizada por diminutivos (“vesti-
dinho flamante”, por exemplo). Caracterizado por epítetos pejorativos -
“Unhate”, derivado de “unha”, conotando a usura, é típico -, é vil, néscio e
falso na medida mesma de sua elevação, dignidade e importância. Num des­
ses poemas, por exemplo, é traduzido por “homem grande” (não “grande ho­
mem”), posição do adjetivo que designa a mera quantidade referencial como
índice da enunciação irônica, que opõe sua qualidade virtuosa e pobre à
pseudoqualidade do tipo satirizado. Vejam-se exemplos:

Sai u m p o b r e ie de C risto S a n t o U n h a t e , i r m ã o d e C a c o [...]


de P o rtu g a l, ou do A lg a rv e O u d egred ad o por crim es
ch eio de drogas a lh eias ou por M o ç o ao Pai fugid o,

478
OS L U G A R E S DO L UGA R

para d a í tirar gages: ou p or n ã o ter q u e c o m e r


O ta l foi s o t a - t e n d e i r o n o lu gar, o n d e é n ascid o:
d e u m c r i s t ã o - n o v o e m tal p a r t e , E sa lt a n d o no m e u cais
q u e por a q u e le s serv iço s d e s c a lç o , roto, e d e s p id o ,
o d e sp a c h o u a em barcar-se sem trazer m a is ca b ed a l,
F ez-lh e u m a carregação q u e p io lh o s , e assob ios:
entre a m ig o s, e com padres: A p e n a s se o f e r e c e a U n h a t e
e ei-lo c o m iss á r io feito de g u ard ar seu c o m p r o m is s o ,
de lin h a s, lo n a s, b e ir a m e s tom ando com devoção
E n tra p ela barra d en tr o , sua regra, e seu b e n tin h o :
dá fu n d o , e lo g o a en to na r-se Q u a n d o u m a s casas alu ga
com eça a bordo da N a u de p reço , e valor su b id o
c u m v e s tid in h o fla m a n te e se p õ e e m t e m p o breve
S a l t a e m t e r r a , t orn a c a s a s , c o m d in h e ir o , e c o m navios?
arm a a b o tic a d o s trastes, P ode h aver m a io r portento,
e m casa c o m e B a leia , n e m m ila g r e e n c a r e c id o ,
n a rua e n t o ja m a n j a r e s com o d e ver um M azo m b o
V e n d e n d o g a to p o r leb re, d e s t e s cá d o m e u p a v io ,
an tes q u e q u atro a n o s p a ssem , q u e s e m ter cira, n e m b e ir a ,
já t e m t a n t o s m i l c r u z a d o s , e n g e n h o , ou juro sa b id o
se g u n d o a firm a m P asgu ates te m a m ig a , e joga largo
C o m e ç a m a o lh a r p ara ele veste sedas, p õe p o lv ilh o s?
o s P a i s , q u e já q u e r e m d a r - l h e D o n d e lh e v em isto tudo?
F ilh a , e d o te , p o rq u e q u erem C a i d o C é u ? Tal n ã o a f i r m o :
a h o m e m q u e c o m a , e n ã o g a s t e [...] o u S a n to U n h a te Iho dá,
Já t e m o s o C a n a s t r e i r o , ou d o C a lv á rio c p ro d íg io .
q u e in d a fed e a se u s b e ira m es, (O C , I , P P . 2 6 -2 7 .)
m e t a m o r f o s i s da terra
tr a n sfo r m a d o em h o m e m grande:
e eis aqui a personagem .

( O C , II, p p . 4 3 0 - 4 3 1 . )

V em o u tr o d o m e s m o lote [...] u m c r i s t ã o
tão p o b re, e tão m iserá v el q u e a p e n a s b e n z e r - s e sa b e :
v e n d e o s r e t a l h o s , c tir a F i c a e m te r r a r e s o l u t o
c o m iss ã o c o m co u ro , e carne. a en trar na o r d e m m e r c a n te ,
C o p r in c ip a l se lev a n ta , troca p o r c ô v a d o , e vara
e tudo em p reg a no Iguapc, tim ã o , b a le stilh a , e m ares.
q u e u m e n g e n h o , e três fa zen d a s A r m a -lh e a ten d a u m ricaço,
o tê m feito h o m e m grande: q u e a terra c h a m a M a g n a t e
e eis aqui a p erso n a g e m . co m p a cto d e p arceria,

( O C , I I , p. 4 3 1 . ) que e m direito é so cied a d e.

47 9
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O

C o m isto o M a r in h e ir a z
d o p r im e ir o jacto, o u la n c e
b o t a fo r a o c u b r e a d o ,
as m ã o s d i s s i m u l a e m g u a n t e s .
V ende o cabedal a lh eio ,
e dá c o m ele em L evante,
vai, e v e m , e ao d ar d as co n ta s ,
d im in u í, e n ã o reparte.

(OC, II, p. 431.)

Em poemas jocosos, a tópica da riqueza e do negócio metaforiza o comér­


cio amoroso, com sugestões obscenas:

[...] e m c a s a n d o - m e a b s o r t o
c u id a o B rasil, q u e sou m orto
para n e g ó c io s de amor.
O B rasil é u m v e lh a c o ,
u m falso, e u m e m b u s t e ir o ,
p o r q u e o u c a sa d o , o u solteiro,
q u a n d o en saco, desensaco:
e a vez que m e desataco,
a p e c ú n ia tanta, ou q u a n ta
d e u p o r p a g a r m e r c ê tanta;
p o r q u e sei, q u e na B a h ia
a c o i s a p o r q u a l q u e r v ia
v a i , c o n f o r m e se l e v a n t a 86.

(OC, III, p. 754.)

Com a tópica “dinheiro” ou “riqueza x pobreza”, a sátira também desen­


volve a oposição vida urbana x vida campesire. Ao encenar o fugere urbem, faz
equivalentes simplicidade rústica e pobreza digna, opondo-as ao luxo e à
corrupção da Cidade, lugar da venalidade e da hipocrisia. A pastoral recupe­
ra motivos estóicos correntes na sátira romana e na tragédia de Sêneca, como
o do desprezo do vulgo ou o do autodomínio e conhecimento de si propiciado
pela tranqüilidade da alma. O romance formulado como carta ao filho do
Conde do Prado se desenvolve como amável conversa entre a persona e o des­

86. Cf. também OC, III, p. 776: “Sede mercador dc amor, / onde um favor, que se gasta, / rende qui­
nhentos por cento / em finezas de ouro e prata. / Fazei negócio comigo: / e se heis medo, à minha
barca, / quem não se arrisca não perde / mas no risco está a ganância”.

480
OS LUGARES DO LUGAR

tinatário, ambos discretos. Enquanto dirige os encômios de praxe ao nobre


poderoso, horacianamente a persona também expõe razões que a fazem fugir
da cidade e escolher a solidão dos mariscos da Praia. Muito convencional,
comparece na tópica inclusive o lavrador bucólico, simples e sincero. Con-
trastivamente, assim, a persona pinta a vida da cidade: à sua simplicidade
discreta e à simplicidade rústica do lavrador opõe o embuste e a presunção de
vários néscios:

D a q u i d e s ta P raia g r a n d e ,
O n d e à cid a d e fu gin d o,
c o n v e n t u a l d a s areias
e n t r e o s m a r i s c o s h a b i t o : [...]
G raças a D e u s , q ue não vejo
n e s t e tão d o c e retiro
h ip ócritas e m b u steiro s,
v e l h a c o s e n t r e m e t i d o s . [...]
V isita -m e o lavrador
sin c e r o , s im p le s , e liso ,
q u e e n t r a c o ’a b o c a f e c h a d a ,
e sai co q u e i x o ca íd o .

( O C , I, p p . 1 7 0 - 1 7 1 . )

Os tipos inferiores são, como sempre, os convencionais: “visitadores pro­


lixos”, “políticos enfadonhos”, “cerimoniosos vadios” (OC, I, p. 171), “néscios”
todos eles, ou “asnos”. Por exemplo, “o clérigo zote” (OC, I, p. 172), “regatão
das piaçavas”, “ambicioso”, avarento”, “[...] das próprias negras amigo / só
por fazer a gaudere / o que aos outros custa jimbo”87 (OC, I, p. 172). Ou “[...]
certo Beca / no pretório presidindo, / onde é salvagé em cadeira” (OC, I, p.
172): “Idiotas tão supinos” (OC, I, p. 173).
Afirmando rir dos reis de Espanha e de seu célebre retiro, a persona cita
Virgílio e reafirma a pobreza solitária como melhor:

Se, a q u e m v iv e e m so lid ã o ,
c h a m o u b ea to u m g en tio ,
e s p e r o e m D e u s , q u e h e i d e ser
p o r b ea to in d a b e n q u isto .

( O C , I, p. 1 7 4 .)

87. “Jimbo”. Nzimbu é o nome da moeda, geralmente uma espécie de concha, da ilha de Luanda.

481
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O

C o n d ic io (C o n d iç ã o e D ist â n c ia )

Segundo Quintiliano, o louvor e a vituperação devem sempre considerar


a distância entre a condição de um homem ilustre e a de um obscuro, de um
magistrado e um simples particular, de um homem livre e um servo, de
um casado e um solteiro, de um pai e um filho etc.8s
Na sátira, esta tópica é genericamente desenvolvida como posicionamento
jurídico de personagens, sendo tratada semanticamente como teatro dos en­
ganos políticos da estultície em que se critica a corrupção dos valores da or­
dem natural. Interpretando a hierarquia teologicamente, a sátira figura o
mundo como cena da passagem vertiginosa para a decomposição final de que
a monstruosidade das misturas é a prefiguração alegórica. Inversão, sofrem
os bons, os maus triunfam: paradigma do perfeito cavaleiro cristão, bom
governante em “público teatro” (OC, I, p. 176), cujas qualidades se condensam
na metáfora-síntese do Bem, “luz”, também o Conde do Prado está sujeito à
“pensão fera do morrer”. A virtude, metáfora proporcionada da unidade e da
graça, claras e racionais, anda invertida e simulada: o vício é teatro da pre­
sunção, um fazer-se passar por outro que põe o mundo de ponta-cabeça, como
escureza e irracionalidade do brilho falso. O vício é a morte em vida, admira­
velmente figurada na metáfora da “puta”,

C o n fessa i v o ssa s cu lp a s, Frei M o n tu r o ,


Q u e anda a m o rte em ronda p elo m uro,
E se na esfera v o s to p a r a p u ta ,
V os h e is d e a c h a r n o in fe r n o a p ata en x u ta .

( O C , IV, p. 8 0 6 . )

Porque a condição natural dos corpos na hierarquia não é respeitada, con­


fundem-se as distâncias, desagrega-se a ordem, a simulação é lei:

[...] p r e s u m i u d e f i d a l g u i a , / c u i d o u , q u e era o u t r a B a h i a / o n d e b a s t a a p r e s u n ç ã o /
p a r a f a z e r - s e a u m c r i a d o / m u c h í s s i m a c o r t e s i a ( O C , I, p. 1 9 9 ) ; [...] c o m s e r b e s t a d e lei
/ t a n t o o s e r v i l ã o e s c o n d e , / q u e v e m d a V i l a d o C o n d e / m o r a r n a c a s a d ’E l - R c i ( O C , II,
p. 2 9 7 ) ; [...] h o j e c h i s p a i s f i d a l g u i a s / a r r o j a n d o p e r s o n a g e n s ( O C , II, p . 4 3 0 ) ; [...] po r
fo r a l u v a s , g a l õ e s , / i n s í g n i a s , a r m a s , b a s t õ e s , / p o r d e n t r o p ã o b o l o r e n t o ( O C , II, p.
4 4 3 ) ; [...] F i d a l g o N o r o e g o / e m c r u z d e C a l v á r i o / q u e u m c e r t o f a l s á r i o / n o s p e i t o s lh e 8

88. Quintiliano, Dc inslilulione oratona, 5,10, 26: “Condicionis eliam distanlia esl: mm clams an obscurus,
magistralus an privalus, pater an Jilius, civis an peregrinas, liber an servas, marilus an caelebs, parens
liberornm an orbus sil, plurimum distai”.

482
OS LUGARES DO LUGAR

entona (OC, II, p. 4 4 3 ) ; [...] M o s t r a o p a t i f e d a n o b r e z a o m a p a ; O v e l h a c o m a i o r s e m p r e


te m cap a; A flo r b a ix a se in c u lc a p o r T u lip a (OC, II, p , 4 7 5 ) ; [...] m a s q u e p o d e c o n h e c e r
/ u m p r e s u m id o se m ter / m a is h o n ra s, q u e a c ab eleira / o n d e se estrib a a p o e ir a / de
seu v a n í s s i m o se r (OC, IV, p. 8 8 2 ) ; [...] o s f i d a l g o s d a B a h i a / s ã o f i d a l g o s d e p a r o l a s
(OC, IV, p . 8 9 8 ) ; [...] Q u e se d e s p a c h e u m c a i x e i r o / c r i a d o n a m e r c a n c i a / c o m f o r o d e
fid a lg u ia / se m n o b reza d e E scu d eiro ! / E q u e a p o d e r d e d in h e ir o , / e p a p é is fa lsific a ­
d o s / se v e ja m e n t r o n i z a d o s / tanto m e c â n ic o v i l , / q u e na o r d e m m e r c a n til / são c ria d o s
dos criad os (OC, IV, p. 8 0 7 ) ; [...] Q u e a n d e m o s o f i c i a i s / c o m o f i d a l g o s v e s t i d o s , / e q u e
seja m p r e s u m i d o s / os h u m i l d e s c o m o os m ais: / e q u e se ja m p r e s u m id o s / c a v a lg a r
s e m a m a l e t a / e q u e e s t e j a tã o q u i e t a / a c i d a d e , e o p o v o m u d o ! (OC, V, p. 1 2 1 5 ) ; [...]
Q ue n ã o veja, o q u e há d e ver / m al no b em , e b em n o m a l, / e se m eta ca d a qual, / no
q u e n ã o se h á d e m eter: / q u e q u e ir a c a d a u m ser / C a p i t ã o s e m ter g i n e t a , / s e n d o
i g n o r a n t e p r o f e t a , / s e m ve r , q u e m f o i , e q u e m é! (OC, V, p. 1 2 1 6 ) ; e t c .

“Presumir”, “presumido”, “presunção”, “esconder”, “chispar”, “por fora”,


“por dentro”, “falsário”, “entonar”, “patife”, “velhaco”, “capa”, “inculcar-se”,
“vão”, “vaníssimo”, “parolas”, “papéis falsificados”, “querer ser”, “não ver”,
“não ser” etc.: léxico típico do jogo da aparência, simulação e falsidade
maquiavélicas da ocasião que faz o ladrão, a ser corrigida no teatro da virtu­
de. A moda burlesca, a sátira desenvolve os temas que circulam na poesia
religiosa e moral - a crítica da vaidade e presunção, por exemplo, em nome
da Morte89- e no teatro, lembrando-se aqui o La Vida es Suerio, de Calderón,
paradigmático. Efetuando a crítica, a prudência se opõe à estultície assim
como a racionalidade do Bem e do desejo do Bem se opõe à irracionalidade
da sua falta, vivida pelo presunçoso como arrogante auto-suficiência. É tam­
bém paradigmático o texto de Juan Pérez de Moya, que trata da “descendên­
cia dos néscios”. Forma um conjunto alegórico de crisisgenerales que, segundo
Gracián, são tópicas aplicáveis a várias ocasiões para censurar o desacerto
moral e material das distâncias e condições equivocadas. Todas elas referem o
tempo, a tolice e a morte, encontrando-se disseminadas na sátira como quali­
ficação negativa, conforme a condição e a distância hierárquicas dos tipos
satirizados:

E l Tiempo Perdido casó con la Ignorância, tuvieron un hijo, a quien llamaron Penséque;
este casó con lajuvenlud, en quien hubo muchos hijos: a No pensaba, No sabia, No di en ello,
Quiéti creyra. Esta casó con el Descuido, y tuvieron por hijos a Bien está, Mahana se hará,

89. A sátira recupera, como já s e viu, a concepção estóica da fundamental maldade humana. Cf., por
exemplo, Sêneca,De ira, em Trailés philosophiques, trad. François e Picrre Richard, Paris, Garnier,
1955, vol. I.

483
A SÁTIRA E O E N G E N H O

Tiempo hay, Olra ocasión vendrá. Tiempo hay casó con dona No pensaba,y tuvieron por hijos
a Descuidéme, Yo me enliendo, No se enganará nadie, Deseje deso, Yo me lo passaré. Yo me
entiendo casó con la Vanidad, y tuvieron por hijos Aunque no queráis, Yo saldré con la mia,
Galas quiero; esta casó con No faltará,y dellos nacieron Holguémonosy ha Desdicha, que tuvo
por marido a Poco seso, y por hijos a Bueno está eso, Qué le va a el, Paréceme a mí, No es
posible, No me diga más, Una muerte debo a Dios, Ello dirá, Verlo heis, Excusado es el consejo,
Esto es hecho, Aunque me maten, Diga quen dijere, Preso por mil, Qué se me da a mí, Nadie
murió de hambre, No son lanzadas que dineros son. Enviudó Galas quiero, y casó segunda vez
con la Necedad,y gastó lodo su patrimônio; dijo el uno al otro: Tened paciência, que a censo
tomaremos dinero con que nos holguemos este ano,y el otro, Dios proverá; y aconsejados con No
faltará, hicieron así,y como al plazo no hubiese con qué pagar lo que debían a censo, el Engano
los metió en la cárcel. Fueron visitados por Dios hará merced. La Pobreza los llevó al hospital,
donde acabaron la autoridad de Galas quieroy No miré en ello. Enterráronlos con su bisabuela,
la Necedad; dejaron muchos hijosy nietos, que andan derramadosy perdidos por el mundo*1.

Q u id A ffectet (O que A parente)

Segundo Quintiliano, o louvor e a vituperação devem considerar o que a


pessoa aparenta ser9091.
Este topos, que mantém relação estreita com os anteriores, vem desenvol­
vido na sátira também como crítica da presunção, segundo o motivo clássico
da mutabilidade da Fortuna, rotineiro nas letras dos séculos XVI e X V II. Em
La Hora de Todosy la Fortuna con Seso, por exemplo, Quevedo monta quarenta
quadros sistematicamente simétricos. Cada um deles tem duas cenas, dispos­
tas em termos temporais de antes e depois. O evento que parte o tempo em
duas metades é a intervenção da Fortuna, que evidencia, na inversão que ope­
ra, a verdade sob a aparência. Formando uma oposição, as duas cenas
alegorizam um dos topoi centrais da arte seiscentista, o do grande teatro do
mundo em que a simulação impera. O topos tem vários motivos associados,
como os da presunção, da vaidade, da estupidez, da decadência, do memento
mori etc., interpretados como “aparência”, “engano”, “ilusão”, “sonho”. Veja-
se, por exemplo, o quadro II, “Azotado”:

90. Juan Pcrez dc Moya, Philosophia Secreta, Aladrid (1585), lib. II, cap. XLII, cit. por Baltasar Gracián,
“Discurso XXVII - De las crisis irrisórias”, Agudeza y Arte de Ingcnio em Obras Completas, Aladrid,
Aguilar, 1960, pp. 365-366.
91. Quintiliano, De insiüutione oraloria, 5, 10, 28: “Intuendum etiam quid affeciet quisque, locuples videri
an disertus, jusius an polcns. Spcctantur ante acta dictaque; cx praeterilis enim aeslwiari praesentia”.

48 4
OS LUGARES DO LUGAR

Por la misma calle, poco detrás, venía un azotado, con la palabra dei verdugo delante
chillando,y con las mariposas dei sepancuantos detrás,y el susodicho en un borrico, desnudo de
medio aniba, como nadador de rebenque. Cogióle la HOK4,y, derramando un rocín dal alguacil
que llevabay el borrico al azotado, el rocín se puso debajo dei azotado y el borrico debajo dei
alguacil, y mudando lugares, empezó a recibir lospencazos que acompanaba al que los recebia,
y el que los recibía a acompanar al que lo acompanaba. E l escribano se apeópara remediarlo,y,
sacando la pluma, le cogió la H O RA,y se la alargó en remo,y empezó a bogar cuando queria
escribid2.

Um soneto dirigido ao Braço de Prata, o governador Antônio de Sousa de


Meneses, encena alguns motivos do quadro de Quevedo, alegorizando a ins­
tabilidade das coisas do mundo:

S en h or A n tão de Souza de M en eses,


Q u e m s o b e a alto lu gar, q u e n ã o m e r e c e ,
H o m e m so b e , a sn o vai, burro p arece,
Q u e o su b ir é desgraça m u ita s vezes.

A fo r tu n ilh a autora d e e n tr e m e z e s
T r a n sp õ e e m b u rro o H e r ó i, q u e in d ig n o cresce:
D e s a n d a a roda, e lo g o o h o m e m desce,
Q u e é d iscreta a fortu n a e m se u s reveses.

H o m e m (sei e u ) q u e foi V o s se n h o r ia ,
Q u a n d o o p isava da fortuna a R o d a ,
B u r r o foi a o s u b ir tã o a lto c lim a .

P o is vá d e s c e n d o d o a lto , o n d e jazia,
V erá, q u a n to m e l h o r se lh e a c o m o d a
S er h o m e m e m b a ix o , d o q u e b u rro e m cim a .

( O C , I, p . 1 6 5 .)

O motivo do “subir/descer”, a intervenção da Fortuna e sua roda, a inver­


são da situação, a evidenciação de que a posição e a virtude aparentes são
vícios, o julgamento moral implícito na inversão são comuns a ambos os tex­
tos e é a partir deles que se trata aqui da tópica da Fortuna relacionada à do
“parecer”.
Classicamente, a Fortuna é deusa e leva uma roda em que os destinos
humanos giram ao acaso de seus caprichos. Ela é mulher, cabendo-lhe a ca­
racterização misógina de Belisa:92

92. Francisco de Quevedo, “Azotado”, em La Hora de Todosy la Fortuna con Seso, cap. II, p. 188.

485
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O

M u je r eras, falsa fu iste ,


f a l s a d e v i a s d e ser,
p u e s si n a c i s t e m u j e r ,
ob ras, c o m o qual n aciste.

( O C , IV, p. 9 4 8 . )

Em outros termos, a Fortuna é fundamentalmente inconstante, alegori-


zando estados de crise e insegurança:

[...] v á r i a a f o r t u n a t o d a
d e s a n d a v a a su a roda.

( O C , II, p. 2 4 5 . )

E m p e c e u - v o s a fortu n a,
q u e a fortu n a é v ilã o ru im ,
para os s e u s se m p r e a ch eg a r-se ,
e d e v ó s s e m p r e a fug ir .

( O C , II, p. 3 5 9 . )

[...] c o u s a s t ã o d i s p a r a t a d a s
ob ra-as a sorte im p o r tu n a ,
q u e d e in d ig n o s é co lu n a ,
e se m e h á d e ser p r e c is o
lo g r a r fo r tu n a s e m siso,
eu r e n u n c io à fortu n a.

( O C , II, p . 4 4 7 ) .

[...] n ã o q u i s a f o r t u n a e s q u e r d a ,
[...] d e s i g u a l a r - n o s .

( O C , III, p. 7 2 3 . )

E ntre o p a ssa d o e o p resente


não d istin g u e a p a ciên cia ,
se é m a i s a t i v a a f o r t u n a ,
n o s lo g r o s o u se n a s p erd a s.

( O C , III, p. 7 7 2 . ) e t c .

Durante o Renascimento, é muito comum nas letras e nas artes o topos


que opõe a virtude à Fortuna, desenvolvendo-se o tema do favorecimento dos
bravos pela deusa inconstante: Fortuna fortes adjuvat. Como se leu no soneto,

48 6
OS LUGARES DO LUGAR

paródia do topos, ela “[...] transpõe em burro o Herói, que indigno cresce”.
Sendo inconstante, a Fortuna é injusta e, ao mesmo tempo, sua injustiça é
justa - “discreta” - quando inverte o que de costume anda invertido. A sátira
moraliza o topos em chave teológico-política: opondo a virtude à Fortuna -
proposta esta como alegoria do desengano encena a interpretação agostinia-
na segundo a qual acreditar na Fortuna nega a providência divina9394.Como na
Divina Comédia, em que a Fortuna é instrumento da vontade divina93, reto­
mando-se Boécio, que interpreta as ações incompreensíveis da deusa como
imagem e vestígio da Providência.
A sátira costuma desenvolver a tópica segundo as duas versões: na linha da
tradição antiga, a figura da Fortuna alegoriza o jogo cego dos acasos, aparência
e engano políticos, que fazem a vida invertida, opondo-se à firmeza da virtude.
No caso, a Fortuna tem significação negativa, como força irracional: “[...]se me
há de ser preciso / lograr fortuna sem siso, / eu renuncio à fortuna” (OC, I I , p.
447); “[...Jfortuna esquerda” (OC, I I I , p. 723); etc. A outra versão a propõe como
desconcerto concertado, bem ao gosto conceptista: instrumento justo, posto que
incompreensível, da Providência. Nela, ao tema da aparência - como indigni­
dade, corrupção e presunção do grande teatro do mundo - a sátira opõe o da
unidade ideal e secreta da fé e seus corolários, o desprendimento estóico-cris-
tão, a ascese, a resignação, a obediência. Em outros termos, a oposição ético-
poética figura a oposição política, corrente no Portugal do século X V I I , de
maquiavelismo x providencialismo e suas variantes como tirania/monarquia, here-
sia/'ortodoxia, irracionalidade/racionalidade. Criticando a concepção clássica da
Fortuna e seus azares, a sátira toma partido dos segundos termos das oposições,
o que é indicativo de sua inserção católica contra-reformista, tipicamente ibé­
rica, já tratada no capítulo I I I . Leia-se, por exemplo:

Isto, q u e o u ç o ch a m a r p or todo o m u n d o
F o r t u n a , d e u n s c r u e l , d ’o u t r o s i m p i a ,
E n o rigor d a boa t e o lo g ia
P r o v id ê n c ia d e D e u s alto, e p ro fu n d o .

V a i-se c o m t e m p o r a l a N a u ao f u n d o
C a r r e g a d a d e r ic a m e r c a n c i a ,
Q u e ix a -se da F o rtu n a , q u e a en via,

93. Santo Agostinho, C i v i t a s D e i , O b r a s d e S a n A g a s l i n , edición bilingue, prep. por Fr. O. S. A. José


Moran, Aladrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1958, caps. XIX, XX, XXI, Lib. IV, tomo XVI.
94. Dante Alighieri, “Inferno, 7", L a D i v i n a C o m e d i a em O b r a s C o m p l e i a s d e D a n l e A l i g h i e r i , Aladrid,
Biblioteca de Autores Cristianos, 1956, p. 67, w. 67-99.

487
A SÁTI RA E O E N G E N H O

E eu sei, que a subm ergiu D eus iracundo.

Mas se faz tudo a alia Providência


De Deus, como reparte justamente
A culpa bens e males à inocência!-'

Xão sou tão perspicaz, nem tão ciente,


Que explique arcanos d ’alta Inteligência,
Só vos lembro que Deus é o providente,
(OC, 1 , p. 59.)

S erm o ; Ve r b a P e r e g r in a e t E xterna ( L ín g u a ; T erm o s R aros e

E s t r a n g e ir o s )

Na Poética, Aristóteles determina que a elocução deve ser clara, embora


não comum: poema constituído só de termos próprios é claríssimo, mas tam­
bém pedestre em excesso, sem nenhuma magnificência, o que se deve evi­
tar9596.Para tanto, prescreve-se o léxico ornamentado, seja por translação meta­
fórica, seja por termo raro ou estrangeiro. Ornamentação regrada: composto
apenas de metáforas, o poema é alegoria perfeita ou enigmática, cujo defeito
maior é a obscuridade; composto de verba peregrina ou externa - não só os
termos estrangeiros, também os raros e os alterados ou pronunciados com
acento estrangeiro -, o poema é invadido pelo barbarismo. A prescrição, tam­
bém rastreável na Retórica, encontra-se em Horácio que, teorizando a sátira
como gênero dialógico sobre tópicas morais, propõe como adequado a ela o
sermo cotidianas, mais apto para a urbanitas da conversação entre amigos inte­
ligentes e civilizados. Repetida também por Quintiliano: “ [...] hic non alienum
est admonere ut sint quam minimeperegrina et externa...”90, a prescrição é lugar-
comum da poesia antiga, lembrando-se aqui a ironia de Catulo contra um
Árrio que pronuncia o latim aspirando-o como um grego, com hiperurbanismo
típico de neto de libertos que ingressa no patriciado97.

9 5 . A ris tó te le s , Poética, 1 4 5 8 a , 1 8 ; 1 4 5 9 a , 16.


96. Q u in fííia n o , De institulione oratoria, 8, 12; 8 , 1 , 3 3 ; e tc . C f. t a m b é m L o d o v t c o Ç a s t e l v e t r o , op. c i / . , v o l . I I ,
p p . 7 2 e s.s.
Poésies, t e x t e é t a b l i e t t r a d u i t p a r G e o r g e s L a f a y e , 2 . e d . , P a r i s , B e l le s L e t t r e s , 1 9 3 2 , p p .
9 7 . C f. C a tu lle ,
"Chommoda dicebat, si quando commoda vcllel / Dicere, et insidias Arnus hinsidias. / Et lum
8 3 -8 5 :
mirifice spcrabat se esse loculum, / Cum quantum poleral dixeral hinsidias. / Credo, sic matei, sic liber
auunculus eius, / Sic maternus auus dixeral atque auia. / Hoc misto in Syriam requieranl omtubus aures /
Audibant eadenx haec leniler ct leuiler, / Cum súbito affertur nunlius honibilts, / Ionios fluclus, poslquam
illuc Arnus isset, / Iam non Ionios esse, sed Hionios”.

488
OS LUGARES DO LUGAR

Como a falta de clareza faz o poema enigmático, os verba peregrina ei ex­


terna são evitados, pois os sons e os conceitos deles geralmente são desconhe­
cidos do público. A menos que a inadequação de sua obscuridade e estranhe­
za seja vício programático, como pode ocorrer na comédia, o que Aristóteles
também prevê, quando escreve sobre caricaturas do hexâmetro épico produ­
zidas pelo alongamento artificioso das sílabas98. Em outros termos, a inépcia
programaticamente efetuada é apta, conforme o gênero: o barbarismo é cô­
mico e, latinamente, satírico, uma vez que sua deformação - pronúncia alte­
rada, sonoridade estranha, hermetismo - tem sentido ridículo ou maledicente.
Exemplar é a poesia de Juvenal, em que apersona satírica, muito indigna­
da com a corrupção de Roma, atribui-a aos gregos que proliferam na cidade.
Vituperando-os, Juvenal utiliza inúmeros helenismos com o mesmo número
de sílabas métricas de termos latinos equivalentes, o que indica que a seleção
do léxico grego é programática. Inexistente, a contradição de utilizar a língua
do povo satirizado resolve-se como artifício poético, quando se lembra a mes­
ma prescrição retórica partilhada pelo público da sátira, como demonstra
William S. Anderson99. E oportuno lembrar, como escreve Marouzeau, que para
romanos o /y / grego soa agradavelmente, mas muito desagradável é o /x/, as­
sim como o ///, o/ p! e o /g/ latinos, considerados não muito eufônicos100. No
trecho abaixo, Juvenal combina helenismos eufonicamente desagradáveis para
a audição romana, em contexto discursivo no qual se atacam os excessos ali­
mentares. Pela nomeação de Trypheros, figura-se como evidente a responsabili­
dade dos gregos pela introdução dos exotismos culinários101102:

[...] sed nec structor erit cui cedere debeat omnis


pérgula, discipulus T r y p h e r i doctoris, apud quem
sumine cum magno lepus atque aper et p y g a r g u s
et Scythicae volucres et p h o e n i c o p t e r u s ingens
et Gaetulus o r y x habeti lautissima ferro
caeditur et lota sonat ulmea cena Suburam .

Como recurso da amplificado retórica, a sonoridade dos termos gregos


evoca a generalidade da corrupção. Motivada, a sonoridade conota, pelo seu

98. Aristóteles, IW ncj, 1458a, 18; 1459a, 16.


99. William S. Anderson, op. cil., p. 459.
100. J. Marouzeau, Trailé de Slylislique Latim, Paris, Belles Lettres, 1946, pp. 92-93.
101. William S. Anderson, op. cil., p. 448.
102. 1. Juvenal, “Satura XI”, w. 136-141, cit. por William S. Anderson, op. cil., p. 448. Cf. I. Juvenal,
Satires, texte établi et traduit par Pierre de Labriolle et François Villeneuve, 11“ ed., Paris, Belles
Lettres, 1974, p. 145.

489
A S Á T I R A E O E NGE NHO

exotismo, aquilo que os termos significam semanticamente - a corrupção é


duplicada, assim, no isomovüsmo som/significado. O procedimento de Juvenal
encontra eco, aliás, no Cícero do In Pisonem, cujo uso de expletivos associa
Piso com Filodemus, o filósofo epicurista odiado. Ou em Pérsio, que ironiza
as consoantes exóticas; ou em Marcial, que se diverte em enumerar os nomes
rudes da Espanha103. Como escreve um crítico de Juvenal, o poeta serve-se
conscientemente do léxico grego para figurar seu desprezo104105.
I5rocedimento semelhante de emprego de verba peregrina et externa com
fim satírico encontra-se no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende. Por exem­
plo, num poema de dezessete estrofes de nove versos cada uma, escrito por
Luís Anriques, pergunta-se a Katerina, moça cristã, o porquê de haver casado
com um judeu. Na estrofe 16, lê-se o seguinte:

Quando vyeer ho comer


que for ho partir do pam,
dyr-vos-ha hum oraçam
sabe-lhe vos rresponder:
baru ata adonay eloenu
sam as palavras que diz:
amocy leha minariz
lhe rresponderes & peno
poys meu bem foi tam pequeno1115.

“Marital ( I V , 5 5 , gss.) s’amuse à paire défiler devam ses lecleurs les


1 0 3 . J . M a r o u z e a u , op. Cie, p p . 9 4 - 9 5 :
noms rudes de 1’Espagne, sou pays natal: ‘Noslrae nomina dunosa lerrae / Grato non pudeal referre
versu: / Saluo Bilbilin optimam metallo... / El ferro Plateam suo sonanlem... / Tutelamque chorosque
Rixamarum / El convivia fesla Carduarum / El lexlis Peterin rosis rubeniem / Alque antiqua patrum
ihenlra Rigas [...]’ Puis, s’adressanl à son lecleur romain: ‘Haec tam rústica, dehcale leclor, Rides
nomina-'”
104. A . S e r a f i n i , Studio sulla Satira di Giovenale, F i r e n z e , 1 9 5 7 , p . 3 6 6 , c i t. p o r W i l l i a m S. A n d e r s o n , o/>.
cie, p . 4 4 8 : “Ma quel che importa notare e il falto che quesl'uso cosl abbondanle di parole greche non
significa que Vodiata língua slraniera si sia insinuala, nonoslanle lullo, nel lessico di G.; tult’altro! IIpoeta
infatti se ne serve coscientemenle per esprimere il suo disprczzo per ció che piü detesta”.
105. C f. K e n n e t h R . S c h o lb e r g , “ I n v e c t iv a s a n t i s e m i t a s e n el s ig lo X V ", S á t i r a e I n v e e t i v a e n la E s p a n a M e d i ­
e v a l , M a d r i d , G r e d o s , 1 9 7 1 . S o b r e p o e m a s b i l í n g u e s , q u e se f a z e m c o m o b a r b a r i s m o e t c ., c f. ta m b é m

F e r n a n d o d e H e r r e r a , “ O b r a s d e G a r c i l a s o d e la V e g a , c o n a n o t a c i o n e s ” ( S e v il h a , 1 5 8 0 ) e m E m ili a n o
D i e z E c h a r r i , T e o r ia s M é t r i c a s d e i S i g l o d e O r o , M a d r i d , C o n s e jo S u p e r i o r d e I n v e s t i g a c i o n e s C ie n tíf i c a s ,
1 9 4 9 , p . 2 6 3 : “M u c h o s se h a n i n c l i n a d o a c n l r e l a z a r v e r s o s i t a l i a n o s y e s p a h o le s , p a r e c e m e q u e s e p u e d e d e z i r p o r
lo s q u e h a z e n e s to Io q u e se d i x o p o r los q u e e s c r i v ía n j u n t o v e r s o y p r o s a ; q u e e r a n d o s v e c e s s in j u i c i o , p o r q u e es

m e s c la m a l c o n s id e r a d a a g e n a d e la p n t d e n c i a y d e c o r o p o é t i c o , y g r a n d e m e n t e h u i d a i a b o m i n a d a d e Io d o s. A s i

d i z e e t P r í n c i p e d e l a e l o q u e n a a R o m a n a q u e n o q u e r r i a u s a r m a s v o z e s e n o r a c ió n L a t i n a , q u e lo q u e u s a n los

G r ie g o s d e I a s L a t i n a s e n d G r i e g o ”. V e ja , a i n d a , J u a n d e la C u e v a , “ E j e m p l a r p o é t ic o , w . 2 9 2 -3 0 6 " e m

E m i t i a n o D i e z E c h a r r i , o p . c i t ., p . 2 6 3 : “G u a n d o e n v u l g a r d e E s p a n a se r a z o n a / n o m e z d e s v e r s o e s tr a d o ,

490
OS L U G A R E S DO I.U GA R

Outro exemplo de sátira construída como barbarismo é o do conjunto de


sonetos com que Quevedo ridiculariza Góngora. Neles, a mímesis satírica
estiliza as culteranias, efetuando sua paródia como peregrinismo e iatinismo
léxico e sintático, freqüentes na poesia do autor das Soledades. Por exemplo,
sobredeterminando a composição de termos eruditos, a divisão cômico-
burlesca de palavras, o pasticho da morfologia latina, as citações mitológicas
e literárias, como as dos poetas neotéricos:

S u l q u i v a g a n t e , p r e t e m o r d e E s to lo ,
p u e s q u e lo e x p u e s to a l N o t o s o lijic a s
y o b tu s a s s p e lu n c a s c o m u n ic a s ,
d e s p e c h o d e la s m u s a s a ti solo,

h u y e n o c a r p a d e tu D a f n e A p o io
s u r c u lu s sla b r o s d e te r e ta s p is c a s ,
p o r q u e c o n tu s p e r -v e r s o s d a m n ific a s
los in s titu to s d e su sa c ro Tolo.

l i a s a c a b a d o M u n d o su P a r n a s o ;
a d u lte r a s la c a s ta p o e s ia ,
v e n t i l a s b a n d o s , n iiio s in q u ie ta s ,

p a r c o c e r u le o , v e te r a n o v a s o :
p iá - c u lo s p e r p e tr a tu p o r fía ,
e s tr u p a n d o n e o té r ic o s p o e ta s " * .

Um poema de Jáuregui - “Epílogo más que poético de la Vida de Santa Tere­


sa” - efetua a sintaxe latinizante num hipérbato forçadíssimo, que divide o
advérbio “altamente” em dois, também como sátira ao falar agongorado e
“bárbaro”:

M u s a , si m e d a s tu a r d ie n te
F u r o r , d e la s a n ta n u a ,

como Lasso: / Non cssenni passaio ohra Ia gotma / [...] / Citalquiera cosa destas es viciosa / 1 no Ia deve usar el
que no quiere / padecer de censura rigurosa”.
106. Francisco de Quevedo, Obras Completas, Madrid, Aguilar, 1978, tomo II, p. 440 (Obras en ver­
so). Cf. também, à p. 441: “Que captas noclurnal en tus canciones, / Góngora bobo, con crepusculallas,
/ si cuando anhelas mas garcibolallas / las reptilizas más y sublcrponcs? / Microcosmote Dios de
inquiridiones, / y quiere te investigue por medallas / como priscos, estigmas o anliguallas, /por dcsilinerar
vales lirones. / Tu forasteidad es tan eximia, / que te ha delractar el que te rumia, / pues ruelas
viscerable cacoquimia. / Farmacofolorando como numia / si eslomacabundancia das tan nimia, /
metamorfoseando el arcadumia

491
A SÁTIRA E O E N G E N H O

C o n tu b u e n a lic e n c ia ,
Alta e sp e ro c a n ta r mente107.

Em todos os exemplos referidos, a prescrição retórica da clareza pelo con­


trole do barbarismo é infringida, portanto, como “despropósito a propósito”
ou “inconveniência conveniente” a um fim determinado - ridículo, ironia,
maledicência. Somente quando se oblitera essa prescrição reciclada infindas
vezes é que se pode enxergar “protonacionalismo”, “forma revolucionária”
ou “antropofagia cultural” nos poemas satíricos atribuídos a Gregório de Matos
que fundem léxico português, tupi e banto. Somente a autonomização a-his-
tórica da preceptiva seiscentista permite afirmar que a lente com que o poeta
focaliza a Colônia passa a identificar-se com ela nos poemas “tupis”, propon­
do-se sub-repticiamente o mito romântico do tupi como raça e língua proto-
nacionais. É o desconhecimento da prescrição retórica que faz escrever, por
exemplo, que a presença do léxico tupi e banto nos poemas é rompimento do
compromisso da palavra poética com as convenções formais que o poeta tra­
zia da metrópole108.
Central na sátira ibérica, já se viu, é a concepção jurídica da “limpeza de
sangue”, que classifica indistintamente não-brancos e não-católicos como

107 Jáuregui, “Epílogo más que poético de la vida de santa Teresa”, Epístola moral a Fábio y Otras
Poesias dei Barroco Seinllano, ed. José Onrubia de Mendoza, Barcelona, Bruguera, 1974, p. 301.
108. Cf. Luís Koshiba,/i Divina Colônia (Contribuição à História Social da Literatura). São Paulo, PFLCH-
USP, 1981, p. 139, mimeografado. Cf. também Augusto de Campos, Poesia, Antipoesia, Antropofagia,
São Paulo, Cortez & Moraes, 1978, p. 97: “[Gregório] é uma das raras aparições da alguma América
Latina que existe (e que o grande Borges desconhece) e de um Brasil que os próprios brasileiros, no
que lhes toca, teimam em camuflar com o museu de cera dos ‘grandes vultos’ das histórias da
carochinha literárias. Se não me digam: que literatura tinham na epoca os puritanos listados Uni­
dos para contrapor a garra e à farra verbal de Gregório? Há nessa poesia acentos novos, mesmo em
relação ao modelo quevediano que inspirou o seu barroco tardio. Sem a boca do inferno do nosso
primeiro antropófago, esse baiano e estrangeiro que deglute e vomita o barroco europeu e o
retempera na mulatália e no sincretismo tropical, não há formação - por mais bem intencionada -
que informe o que há de vivo por trás dessa coisa engraçada chamada literatura brasileira . Rcal-
mente engraçada. Os Estados Unidos na época não tinham nenhuma literatura a altura para con­
trapor à garra e à farra da América Latina de Gregório porque nào existiam os Estados Unidos nem
a América Latina na época. Por que não Dryden, Lord Rochester, Milton, Donne? Quanto ao
“nosso” primeiro antropófago, por que não Cunhambebe? Era mais literal, posto que não literário.
José Veríssimo vê bem a questão do nacionalismo: “A primeira geração de poetas brasileiros, inclu­
sive Gregório de Matos, é unicamente portuguesa. Supor que há em Gregório de Matos alguma
originalidade de forma ou de fundo é mostrar desconhecer a poesia portuguesa do seu tempo e a
espanhola, que tão afim lhe era”. “O Primeiro Poeta Brasileiro: Bento Teixeira Pinto”, Estudos de
Literatura Brasileira, M série., Introdução de Letícia Malard, Belo Horizonte-São Paulo, Itatiaia/
Edusp, 1977, p. 31.

4 92
OS LI J GARKS DO L UGA R

“raças infectas de mouros, negros, judeus e mulatos”. Leiam-se, por exemplo,


as excelentes primeiras cartas do Padre Manuel da Nóbrega, em que o termo
“negro” designa os índios101'. Articulado à concepção da “limpeza de sangue”
e ao topos da “escravidão natural”, lugar-comum freqüente nos cronistas do
século XVI é o da falta das letras F ,L e R na língua dos índios, interpretada
em termos da similitude renascentista, que captura o índio como semelhança
negativa, “[...] multidão de bárbaro gentio que semeou a natureza por toda
esta terra do Brasil”109110:

[...] A língua deste gentio toda pela Costa he, huma: carece de ires letras scilicet, não se
acha nella F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé, nem Lei,
nem Rei; e desta maneira vivem sem justiça e desordenadamente11112.

Veja-se, ainda, todo o teatro da evangelização jesuíta e os modos pelos quais


nele a cultura tupi fala tupi sempre como boca do inferno, evidenciando-se a
língua como falha e falta. Lido por lentes aristotélico-escolásticas como escravo
por natureza ou como bárbaro distanciado do Código na Tetra papagaiorum"2,
nômade, nu, antropófago, sem F , L e R , o índio chega ao século XVII como “gen­
te bestial”, evidentemente, conforme a teologia política da conquista ibérica:

I lá cousa como ver um Paiaiá


Mui prezado de ser Caramuru
Descendente do sangue de Tatu
Cujo torpe idioma é cobé pá?
A linha feminina é carimá
Moqueca, pititinga caruru
Míngau de puba, e vinho de caju
Pisado num pilão de Piraguá.
A masculina é um Aricobé
Cuja filha Cobé um branco Paí
Dormiu no promontório de Passé.

109. Cf. Serafim Leiie S. J., Carias dos Primeiros Jesuítas do Brasil, São Pauio, Comissão do IV Centenário
da Cidade de São Paulo, 1954, vol. I (1538-1 553).
110. Cf. Pero de Magalhães Gândavo, “Da Condição e Costumes dos índios da Terra”, Tratado da Terra
do Brasil. História da Província Santa Crus, Belo Horizonte-São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1980, cap.
V I I , p . 5 2 (Reconquista do Brasil, 1 2 ) .
111. Idetn, ibidem.
112. Cf. Luiz Felipe Baêta Neves, O Combale dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios (Colonialismo e
Repressão Cultural), Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1978.

493
A SÁTIRA E O E N G E N H O

0 Branco era um marau, que veio aqui,


Ela era uma índia de Maré
Cobé pá, Aricobé, Cobé Pai.
( O C , IV, p. 8 4 0 . )

Para ouvidos lusitanos habituados à sonoridade do latim ou do espanhol,


muito semelhante à sua, o “torpe idioma” é desagradável e escuro: “língua
travada”, ainda quando língua geral, língua bárbara. Veja-se, por exemplo,
como o poema dispõe as oxítonas, comuns no tupi, fazendo-as acoplar-se à
prescrição poética do emprego dos consoantes agudos. Como é sabido, os ver­
sos oxítonos não são tidos como muito convenientes por preceptistas dos sé­
culos XVI e XVII:

7 que s ie m p r e te g u a r d e s i r e tir e s
q u ’e n a g u d o n o a c a b e s e l a c e n to ,
p o r q u e la u n a sila b a n o tires.

B o s c á n d i x o , s m m a s c o n o c im ie n to ,
a q u e lla R e y n a q u ’e n la m a r n a c ió ,
1 u so d e s te tr o n c a d o a b a tim ie n to .

I G a r c ila s s o d i x o i n o a d v i r ti ó
A m o r , A m o r , u n a b ito v e s ti,
Y D o n D ie g o e n m i l v e r s o s la s usó.

L o m is m o a o r a a v r a d e se r d e m i
q u e c ita n d o los v e r s o s q u e d ix e r o n
in c u r r o en lo q u e s ie m p r e a b o ir e c i [...]1,3.

Assim, a torpe sonoridade tupi transposta no poema e identificada na posi­


ção final do verso segundo a preceptiva métrica é inconveniente e imediatamente
cômica, independentemente de seu valor semântico: a sonoridade aguda é
sobredeterminada, enfim, pois já é “naturalmente” deformada na língua tupi,
conforme a convenção portuguesa, fundindo-se na comicidade do esquema poé­
tico: “Paiaiá, Caramuni, Tatu, cob épá / carimá, carura, ca.ju, Piraguá / Aricoòé,13

113. Cf. Juan de la Cueva, “Ejemplar Poético” , w. 178-190” cm Emiliano Diez Echarri, op. cit., p. 233.
Cf. também Rengifo, XIII, 17: “[...] aunque no sean tan elegantes y sonoros como los de onze sílabas,
puedense usar algunas veces sin escrúpulo, y sin que para ello sea necesaria licencia. Verdad es que quantos
menos huviese destos claudicanles v mudos, irá mas llena, y grave, la composición", em Echarri, op. cit.,
pp. 234-235. Ou Caramuel, “Rhythmica”, 11, I, III, 56-57: “Sino que sin acelaeión alguna, creo será
lícito usarlo con arte, i a liempo, ipoco" (idem, p. 235).

494
OS L U G A R E S D O L U G A R

Pa/, Passe / Ma ré, Pa/”. Lembre-se ainda, como faz Castelvetro, que a translação
de coisas vis pela invenção poética faz a fábula vil114: uma terceira inconveniên­
cia junta-se às anteriores, e é a dos nomes bárbaros de alimentos, plantas, subs­
tâncias. Por ela, a materialidade misturada da natureza índia funde-se com a falta
de clareza, com a sonoridade desagradável, com a comicidade dos agudos:
“carimá”, “moqueca”, “pititinga”, “mingau de puba”, “caruru”, “vinho de caju”.
Desqualificando a cultura índia, o soneto se faz como sua desqualificaçãona lín­
gua: todo o sangue tupi se converte em estilo baixo, sobredeterminação de “ter­
ra”. A genealogia caramuru lança raízes em matérias pisadas, pastosas ou líqui­
das, cuja falta de solidez figura o código cultural índio, diagramado na sonoridade
irônica como “torpe”, cômico-burlesco das misturas. Genealogia e língua, pisa­
das nas batidas dos consoantes agudos, fundem-se e se espalham misturadas na
recolha metafórica “Cobé pá Aricobé Cobé Paí”.
Da mesma maneira opera o soneto que ironiza a pretensão de Cosme
Moura Rolim à fidalguia, distribuindo sabiamente os consoantes agudos como
rima interna:

Um R o li m de Monai Bonzo brawd


Prim á s da Greparia do Pegtt,
Que sem ser do P e q u im , por ser do A ç u ,
Quer ser filho do S o l nascendo cá .
(OC, IV, p. 842.)

Tanto os barbarismos quanto os solecismos têm dupla funcionalidade


dramática: são descritivos, caracterizando o tipo e sua condição; como ence­
nação de diálogos burlescos, são avaliativos, perspectivando a ironia da
enunciação. E, por exemplo, o que ocorre nas décimas que celebram “A car­
reira que deu um caboclo a um sujeito que achou com uma negrinha angola,
com quem ele falava”. As falas tupi e africana, no caso, figuram a confusão da
cena, ação do índio e reação da negra, caricaturalmente efetuadas:

[...] logo que os achou


um de lá, outro de cã,
disse a ambos a r r e lá ,
n a m i n h a c a s a , v e lh a c a ,
v o s t ir a c á o m e u f a c a ,
m i n h a c o m e r c a tu c á .
A negra, que nisto estava,

114. Cf. Lodovico Castelvetro, op. cit., vol. II, p. 72.

495
A SÁTIRA E 0 EN G EN HO

já que fazer não sabia,


porque se de um gosto ria,
também de um susto chorava:
desta maneira gritava:
Paí na matá, a lá lá,
aqui sã tu mangalá,
saiba Deus e todo o mundo,
que me inguizolo mavundo
mazanha, mavunga, e má.
(OC,V, pp. 1191-1192.)

Como narrativa de persona satírica da variante “rindo”, irônica e não-


indignada, é exemplar o romance de três estrofes com verso de redondilha
maior e léxico tupi:

Indo à caça de tatus


encontrei Quatimondé
na cova de um jacaré
tragando treze Teiús:
eis que dous Surucucus
como dous Jaratacacas
vi vir atrás de umas Pacas,
e a não ser um Preá
creio, que o Tamanduá
não escapa às Gebiracas.
De massa um tapiti,
um cofo de Sururus,
dous puçás de Baiacus,
Samburá de Murici:
com uma raiz de aipi
vos envio de Passé,
e enfiado num imbé
Guaiamu, e Caiaganga,
que são de Jacaracanga
Bagre, Timbó, Inhapupê.
Minha rica Cumari,
minha bela Camboatá
como assim de Pirajá
me desprezas tapiti:
não vedes, que murici
sou desses olhos timbó

496
OS L U G A R K S D O L U G A R

amante mais que um cipó


desprezado Inhapupê,
pois se eu fora Zabelê
vos mandara um Miraró"5.

Como se lê, não há nexo temático entre a primeira estrofe e as duas se­
guintes: a forma narrativa é suporte da sonoridade, que ressalta11516. Relacio­
nam-se, contudo, pela estrutura e pela posição da enunciação: em todas -
com exceção do penúltimo verso da terceira estrofe, “Zabelê” - o termo final
é tupi, com rima aguda e grave (versos 6, 7 e 10 na primeira e 8 e 9 na segunda
estrofes); tanto Quatimondé (Ia) quanto Cumari/Camboatá (2a, 3a) são
ironizados pela enunciação. O primeiro, pela caracterização fantástica da si­
tuação narrativa em que passa de caçador a caça; os demais, pela inversão da
declaração erótico-alimentar pelo termo “Miraró”. Veja-se que “Quatimondé”,
que significa “armadilha de quati” ou “pintado como armadilha”, também
está pintado fantasticamente, hiperbolizado rabelaisianamente pela ação de
engolir treze lagartos, pela perseguição das duas surucucus, pela equivalên­
cia com “Tamanduá”, que o fazem pantagruélico, monstruoso, animalesco. Já
as duas estrofes seguintes desenvolvem outro tema, o da corte amorosa a uma
índia interpelada ironicamente pela enunciação: “Minha rica ... minha bela”.
As prendas amorosas são alimentos: coelho (tapiti), mariscos (sururus), pei­
xes (baiacus), frutas (murici), raízes (aipi), caranguejo (guaiamu) e, de novo,
peixes vários. Ela é Cumari (pimenta) ou Camboatá (peixe) e, figurada na
posição de dama, despreza o amor alimentício. Ironicamente, a enunciação
reclama de seu desprezo substituindo termos portugueses previsíveis em poe­
ma de corte de amor por termos tupis que os metaforizam no estilo baixo:
“não vedes que murici” (“murici”: fruta doce; metaforicamente, /doçura/);
“sou desses olhos timbó” (“timbó”: veneno de peixe; como a cunhã é “Camboa-

115. Códice 62, cofre 50, Seção de i\lanuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, p. 505. A
edição James Amado indica a p. 1147 do volume V para este poema, mas não se encontra lá, devido
a um erro de paginação que aí insere poemas do volume VI.
116. Sobre este poema, Antônio Dimas comenta: “Aparentemente, o significado isolado das palavras
deste poema é menos importante do que o ritmo sincopado que sua acentuação propícia. A sonori­
dade dos versos acaba por se constituir seu princípio norteador e o significado, ainda que existen­
te, deixa de ser prioritário. A prioridade, parece, é do significante”, em Antônio Dimas (Seleção de
textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico), Gregário de Matos, 2. ed., São Paulo, Nova
Cultural, 1988, p. 103. Na linha do que se vem expondo, trata-se de prioridade do significante
semantizado como sonoridade de barbarismo, independentemente da forma do conteúdo nele re­
cortada.

497
A SÁTIRA E O EN G EN H O

tá”, “timbó” equivale metaforicamente a/atração/,/sedução/,/envolvimento/


etc,); “amante mais que um cipó” (“cipó”: trepadeira roliça e grossa; conotação
obscena óbvia, redundando “amante”); “desprezado Inhapupê” (de “yapucê”:
amigo de mentir; ser mentiroso; falsário)11718;“pois se eu fora Zabelê” (“zabelê”:
termo africano, significa o nhambu); “vos mandara um Miraró” (“Mirará”:
de “irarõ”, “irritar”, “atacar”, “dar soco em”1,s;ou “miroiro” - “desprezo”,
“desprezado”, “repudiado”) 119.
A declaração jocosamente amorosa termina pela inversão, pois, em que o
amante declara seu desejo de agredir o objeto amado. Pode-se generalizar,
desta maneira, o sentido dos barbarismos tupis ou africanos encontráveis em
outros poemas. Produzindo efeitos cômico-burlescos, constituem o tipo como
inferior, propondo-o como objeto de ironia ou de maledicência da enuncíação,
por vezes indignada, por vezes jocosa, nunca empática. A ocorrência do léxi­
co tupi e africano nos poemas corrobora o procedimento de integração de
várias espécies de conceitos em um gênero comum do conceptismo engenho­
so da poesia seiscentista. Aqui, a integração efetua mistos, ridículos e críticos.

N om en (N o m e )

Atributo da pessoa louvável ou vituperável, o nome próprio é motivo fre-


qüente de jocosidades - Quintiliano cita as de Cícero contra Verres, por exem­
plo120.
Na sátira, além de índice de uma propriedade de seu portador, o nome
próprio é figurado segundo sua (in)adequação ao tipo satirizado, evidencian­
do-se, neste sentido, como classificação tipificadora cujo interpretante é, ain­
da uma vez, a hierarquia e suas oposições:

Daquele em tudo primeiro


João, em nada segundo
sois, e bem conhece o mundo,
descendente verdadeiro:
também da casa de Aveiro
m uita nobreza alcançais:

117. Cf. Dr. Baptista Caetano de Almeida Nogueira, Vocabulário das Palavras Guaranis Usadas pelo Tra­
dutor da Conquista Espiritual do Padre A. Rutz de Monloya - s/e., s/d., p. 371.
118. Cf. Padre A. Lemos Barbosa, Pequeno Vocabulário Tupi-Porluguês, Rio de Janeiro, São José, 1955, p. 70.
119. Dr. Baptista Caetano de Almeida Nogueira, op. cit., p. 270.
120. Quintiliano, De institutione oratoria, 5, 10, 30: “Ponunt iti persona et nomen; quod quidem accidere a
necesse est, sed in argumentum raro cadil, nisi cutn aui ex causa datum est, ui Sapiens, Magnus, Pius [...]”.

498
OS I . Ü G A R E S D O L U G A R

Alencastre vos chamais


de Duarte Inglês potente
claríssimo descendente,
Silva sois, e nada mais.

(OC, III, p, 646.)

Como se viu anteriormente, são os mesmos os lugares para o louvor e a


vituperação, e os mesmos também os procedimentos da amplificação. A dife­
rença é dada pelo investimento semântico eufórico ou disfórico dos topai, con­
forme o caso. Por exemplo, o romance já referido sobre o Conde do Prado
motiva-lhe o nome, sendo formalizado como desenvolvimento metaforica­
mente eufórico de motivos vegetais associados a “Prado”; também sonetos
elegíacos sobre a morte do mesmo conde no mar, quando retorna para Lis­
boa, aplicam lugar e procedimentos relacionados ao nome: “Flor foste, ó Conde
[...]” (OC,I, P. 179) etc.
Na vituperação satírica, o poema se faz como metaforização disfórica do
nome tomado como referência do poema, geralmente através de paronomásias.
A homofonia dos termos encena a contrariedade ou a oposição semântica dos
significados, com efeito irônico, hiperbolicamente maledicente:

Por F r e i B a s í ü o sais de São Francisco,


E entras F r e i B a s ilis c o ,
Pois que deixas à morte as Putas todas,
Ou já pela má vista, ou pelas fodas.
(OC, II, p. 339.)

Disfórica, pois, a antonomásia funciona como inversão maledicente do


nome encomiástico: “Luzia Sapata”, que cai sobre outra mulata “[...] em for­
ma de sodomia” (OC, III, p. 625); “Dona Urraca” (OC, V, p. 1110), tipo horro­
roso de mulher; ou “Dona Secula in seculis Ranhosa”, também “Dona Paio”
(OC, V, p. 1 171) etc. são a contrapartida cômico-burlesca de “Sílvia” (OC, III,
p. 680), “Gila” (OC, III, p. 681), “Lise” (OC, III, p. 682), “Clóri” (OC, III, p.
685), “Tisbe” (OC, III, p. 692), nomes das ninfas pastoris da lírica de Garcilaso,
Góngora, Jáuregui e outros, contemporânea da sátira.
Como trocadilho, o nome é recurso de amplificação retórica, com função
de descrição hiperbólica e irônica. Por exemplo, o do deão André Caveira:
“Aqui anda, e aqui está/ rosnando sempre entre nós, / [...] uma Caveira falan­
do” (OC, II, p. 260). Como trocadilho, ainda, o nome próprio também é deslo­
cado para funções adjetivas e, por vezes, ironicamente situado no contexto

499
A SÁTIRA E O E N G E N H O

discursivo pela análise de sua etimologia. Por exemplo, nas décimas contra o
vigário Antônio Marques da Perada, lê-se o jogo com “pera”:

Da tua Perada mica


não te espantes, que me enoje,
porque é força, que a entoje,
sendo doce de botica:
o gosto não se me aplica
uma conserva afamada.
(OC, II, P. 274.)

Jocoso ou maledicente, este gênero de trocadilho é abundante:

[...] veio o Jardim / mais rosado que um jardim (OC, III, p. 584); [...] era Pissarro em
piçarra (OC, III, p. 596); [...] sendo Conde de Unlião / já quer ser Marquês de Unhate
(OC, II, p. 452); [...] eu não vi na fidalguia / Mendonça sem ler Furtado (OC, II, p. 367);
[...] a todos nos pareceis / não somente João dos Reis, / senão o Rei dosjoãos (OC, II, p.
355); [...] Mas eu muito mais mc ri, / pois nunca Loureiro vi/enxertado em Limoeiro (OC,
II, p. 297) [“Limoeiro”: prisão de Lisboa]; [...] veio o grande Mergidhão / da casa dos
Mergulhandos (OC, IV, p. 910); [...] Dizem, que o vosso c u , Cota,/ assopra sem zombaria
(OC, III, p. 576) etc.

Soneto jocoso opera o trocadilho “Matos/matos”:

Hoje os Matos incultos da Bahia


Se não suave for, ruidosamente
Cantem a boa vinda do Eminente
Príncipe desta Sacra Monarquia.
[...]
Oh se quisera Deus, que sendo ouvida
A Musa bronca dos incultos Matos
Ficasse a vossa púrpura atraída!
(“A Chegada do Ilustríssimo Senhor D. João Franco de Oliveira tendo
sido já Bispo em Angola”).
(OC, II, p. 241.)

Além do trocadilho de nomes satirizados, o nome próprio também ocorre


como termo de comparação. Por exemplo, em romance dirigido a Babu, uma
puta, a persona a desqualifica pela comparação com o estilo alto condensado
em um nome: “[...] não sois vós a Beatriz, que me hei de fazer ditoso / com
vossa graça a ceitis” (OC, III, p. 61). Da mesma maneira, o nome pode ser

500
OS LUGARES DO LUGAR

empregado inadequadamente, lendo-se nele a desproporção irônica entre o


significado mítico, heróico e lírico da sua referência clássica e a situação ou
tipo baixos a que se aplica: “O Adônis da manhã, / o Cupido em todo o dia, /
que anda correndo a Coxia/com recadinhos da Irmã” (OC, I, p. 8); “Segundo
Lot ao burlesco/ temos hoje em Andrezão,/comosodomita não,/como bebe­
dor tudesco” (OC, V, p. 1162). Comum, segundo este uso, é o nome “Dafne”
para figurar negras e putas:

Ia o L o g r a p e r s e g u i n d o
p e la rua d e S ã o B e n t o
certo ca lca n h a r b ich en to ,
e ia -lh e a N e g r a fu g in d o :
q u a n d o a D a f n e foi s e g u in d o
A p o io p a sto r d e A d m eto:
d a p o r alto d e creto
em L o u ro tra n sfig u ro u -se,
e agora d esfig u ro u -se
ao L o g r a , q u e fica e m preto.

(OC, V ,p. 1238.)

Se a antonomásia condensa as características do tipo que nomeia, há poe­


mas que se fazem como definição metalingüística do nome. Analíticos e re­
dundantes, obedecem a uma fórmula definicional do gênero “X = Y” ou com­
parativa, “X parece Y”. É o caso de poema obsceno que glosa o nome “Príapo”
a pedido de umas freiras:

[...] é c í r i o , q u a n d o s e a c e n d e ,
é reló g io , q u e n ão m e n te ,
é p ep in o de sem en te,
te m ca n o c o m o fun il,
é p au para tam b oril,
bate os c o u r o s lin d a m e n te .

(OC, V, p. 1195.)

Interpretado segundo o topos “origem”, “Príapo”

[...] f a z h a v e r M e n e s e s ,
A lm a d a s , e V a sco n celo s,
R o c h a s , F arias, e T e le s,
C o e lh o s , B r ito s , P ereira s,

501
A SÁ TIRA E O E N G E N H O

S o u sa s, e C a stro s, e M eira s,
L a n ca str o s, C o u tin h o s , M eio s.

( O C , V , p . 1198.)

O e x te n s o rol d e e p íte to s p e jo ra tiv o s , a p lic a d o s g e r a lm e n te à tip ific a ç ã o


d e fra d e s e p a d re s , re la c io n a -se aos lopoi d a s im o n ia , da lu x ú r ia , d a g u la e d a
u s u ra . P e r m itir á o b s e r v a r a q u i m a is a lg u m a s re g ra s d a c la s sific a ç ã o c ô m ic o -
m a l e d i c e n t e . N o m e s d e p l a n t a s , a n i m a i s , d o e n ç a s , o b je t o s , c o s t u m e s etc. são
h ip e rb o liz a d o s e fix am n e g a tiv a m e n te u m a carac te rístic a d o tip o sa tiriz a d o ,
c o m p o n d o -a c o m o p rin c ip a l. In d ic a m , a ssim , q u e o s a tiriz a d o age c o m o e sc ra ­
vo d a p aix ão fig u ra d a n o n o m e: po u co h á que p e n s a r sobre a d ev o ção de u m
relig io so c h a m a d o “Frei Foderibus” (OC, II, p . 324). A d e s i n ê n c i a l a t i n a c o n o ta ,
p e la s o n o r id a d e , te x to s la tin o s d o rito c a tó lico ; a ir o n ia ir r o m p e d e s u a a p li c a ­
ção i n c o n g r u e n t e a te r m o q u e in v e r te as v ir tu d e s d a a b s t in ê n c i a p r e g a d a s n e s ­
sa r e lig iã o . A c r e s c e n t a - s e à ir o n ia , p o is , a c r ític a d a h ip o c r is i a :

D e fo r n ic á r io e m lad rão
se c o n v e r t e u F rei F o d e r ib u s
o la sc iv o e m m u lie r ib u s,
o m u i alto fo d ín c h ã o .

(O C , II, p . 3 2 4 . )

O s n o m e s in s u ltu o s o s p a r a fra d e s e p a d re s são, c o m o o u tr o s , e s te re o ti­


p a d o s, o rd e n a n d o - s e se g u n d o p a r a d ig m a s d is fó ric o s, g e r a lm e n te h ip e r b ó ­
lico s, c u jo i n v e s t i m e n t o s e m â n t i c o p r e e n c h e tó p ic a s m e d i e v a i s d a lu x ú r i a ,
g u la e s im o n ia , em g e ra l m e s c la d a s . U m d eles, b a s ta n te fre q ü e n te , é o p a r a ­
d ig m a / a n i m a l / , p e lo q u a l se te m , e m fu n ç ã o a d je tiv a e s u b s ta n tiv a :

C aveira m u la g a leg a , D e ã o burrinha p a r d a , P e r e i r a b e s t a d e a l b a r d a ( O C , II, p.


234); C a v eira asnavat ( O C , II, p. 2 5 9 ) ; P a d r e Cabrão ( O C , II, p. 2 9 0 ) ; P a d r e Frisão (OC,
II, p. 2 8 6 ) ; C ô n e g o Abestruz (OC, IV, p. 8 7 1 ) ; F r e i Burro de Lançamento ( O C , II, p. 3 1 9 ) ;
F r e i B u r r o , F r e i Cavalo (OC, IV, p. 8 0 6 ) ; Frei Jumento (OC, II, p. 3 1 9 ) e t c .

O s te r m o s “ a s n o ” , “b u r r o ” , “ c a v a lo ”, “ j u m e n to ” , “ m u l a ” e s im ila re s têm
d u p l a s ig n if ic a ç ã o : a i r r a c i o n a l i d a d e o p o s t a à p r u d ê n c i a d is c r e ta e, s i m u l t a ­
n e a m e n te , a su g e s tã o o b sc e n a d o ta m a n h o do m e m b ro v iril d o p o rta d o r do
nom e: “ Sendo um Frei Jumento, / és um jumento sem freio” ( O C , I I , p. 3 1 9 ) .
Q u a n to a “ c a b ra ”, “c a b rito ” e “ca b rã o ” , fu n d e m a in c o n tin ê n c ia sex u al atri­
b u íd a ao b o d e c o m a m is tu r a ra c ia l, s e g u n d o o topos “ o r i g e m ” , c o m c o n o taç õ es
d i a b ó l i c a s e h e r é t i c a s (o D i a b o c o s t u m a a p a r e c e r n a f o r m a d e b o d e o u d e

502
OS LUGARES DO LUGAR

mulato encapuzado), por vezes associadas ao motivo “corno”. Por este para­
digma, o nome é sobredeterminado irracionalmente para sobredeterminar o
sentido das ações viciosas de seu portador. Assim, opera como “definição ilus­
trada”: pictórico, define o tipo por sinédoque, fazendo ver imediatamente as
suas ações, que hiperboliza.
Nesta linha, outro paradigma de nomes insultuosos é constituído de
sinédoques metaforizadas, extraídas de dois campos semânticos, aspecto físi­
co e práticas dos religiosos:

o Paternidade (OC, I, p. 8); [...] um Rodela (OC, III, p. 464); [...] Frei Garrafa (OC,
II, p. 314); [...] Frei Fodaz (OC, II, p. 341); [...] Frei Foderibus (OC, II, p, 324), [...] Frei
Porraz (OC, II, p. 326) etc.

“Paternidade”, forma de tratamento de Abades, simula ironicamente a


autoridade que o mesmo poema em que ocorre desautoriza, aludindo às rela­
ções ilícitas produtoras de bastardos da roda dos expostos. Mais uma vez,
imbricam-se as tópicas da luxúria, simonia e usura:

Se virdes um Dom Abade


sobre o púlpito cioso,
não lhe chameis Religioso,
chamai-lhe embora de Frade:
e se o tal Paternidade
rouba as rendas do Convento
para acudir ao sustento
da puta, [...]
(OC, I, p. 8.)

“Rodela”, metonímia de “celibato”, significa a tonsura, signo da castra­


ção simbólica; “Garrafa” é metonímia de embriaguez e tonsura. Observe-se
que os sufixos aumentativos - “Fodas”, “Porraz” - relacionam o nome com o
paradigma /bestial/, conotando incontinência sexual e tamanho. São, por isso,
insultos intercambiáveis: “Frei Fodaz” ou “Frei Cavalo”, “Frei Porraz” ou
“Frei Jumento”. Da mesma maneira, embora um frade seja “Frei Antoninho”
(OC, I I , p. 339), o diminutivo tem função ironicamente pejorativa pela
denegação do tamanho, uma vez que, no poema, o mesmo é rebatizado como
“louco Durandarte” - nome que, efetuando o intertexto da novela de cavala­
ria, encena a sugestão obscena metonimicamente, como nomeação de uma
espada grande, desproporcional em relação ao tamanho do tipo “Antoninho”
(OC, II, p. 341). No mesmo paradigma, ainda, alinham-se “Frei Sovela” (OC,

503
A SÁTI RA E O E N G E N H O

II, p. 337) e “Frei Fustiga” (OC, IV, p. 860), também com conotações obscenas
pela ação perfurante significada no nome dos instrumentos. Da mesma ma­
neira, o termo “Pirtigo” significa o pênis: “Frei Pirtigo” (OC, II, p. 319): “De
um pirtigo tão velhaco,/que tão súbito engrossa,/que direi, senão que almo­
ça / vinte picas de Macaco” (OC, II, p. 343).
“Frei Sarna” (OC, II, p. 319) e “Frei Bertoeja” (OC, II, p. 319), nomes de
doenças da pele, associam o “coçar-se” a práticas sexuais incontinentes, ten­
do aspecto freqüentativo, se é válido deslocar para o nome uma categoria do
verbo. No caso, certamente, pois a definição ilustrada Figura ações. No mes­
mo paradigma /doença/, hiperbolizado como excreção e resíduo, têm-se “Frei
Monturo” (OC, IV, p. 805); “Frade Cisco” (OC, IV, p. 805) (também trocadilho
de “Francisco”); “Frei Fedor” (OC, IV, p. 860); “Frei Mixo” (OC, II, p. 323);
“Frei Bolório” (OC, IV, p. 860).
Outros nomes, como “Frei Carqueja” (OC, II, p. 319), “Frei Jalapa” (OC,
II, p. 323), “Frei Maganão” (OC, IV, p. 805), “Frei Caziqui” (OC, II, p. 325),
“Frei Azar ou Frei Piorno” (OC, II, p. 322), “Padre Alvar” (OC, II, p. 294)
assumem significação obscena no contexto discursivo que os interpreta. Por
exemplo, “Padre Alvar”, em que “alvar” significa “néscio” ou “asno”, faz-se
como trocadilho do nome satirizado, o do padre Manuel Álvares, capelão de
Marapé. “Caziqui” pertence ao topos “origem”, como insulto: atribui caracte­
rística de índio a frade branco. Quanto a “Jalapa”, planta cuja raiz é purgati-
va, tem conotação escatológica. O mesmo ocorre com “Piorno”, nome de uma
giesta brava e amarga, utilizada em depurações e purgantes. Sabe-se que, no
século XVII, as cartas do baralho emblematizam os vícios121. Por metonímia,
“Frei Azar” é nome de vicioso. Por metáfora, com Azar é acabada a obra.

121. Por exemplo, a edição de 1666 das Sátiras, de Boileau, traz na capa um desenho em que a Sátira
arranca a máscara ao Vício, de cujas mãos caem cartas de baralho.

504
Bibliografia

C ódices G regoriaxos da S eçào de M anuscritos da B iblioteca N acional


do R i o de J aneiro

Cofre 50, 55.


a) “ F e s c e n i n a s ” . Sonetos de Gregário de Matos. C ó p i a d a t i l o g . 2 5 1 f ls . 3 2 x 21 c m . A d ­
q u i r i d o à A c a d e m i a B r a s i l e i r a d e L e t r a s , p o r d o a ç ã o , c m 15 d e s e t e m b r o d c 1 9 3 4 .

b) Portuguese Matiuscripts Colleclion o f lhe Library o f Congress. A Guide.


290 - M attos G uerra, G r e g ó r i o d e . 1 6 3 3 - 1 6 9 6 . Poetry, 2 v o l s . , / 1 7 5 / a n d pp. 2 5 3 .2 5 4 /
1 6 5 /le a v e s . O n S p in e : O b r a s d e G r e g ó r io d e M a tto s . L e a th e r b in d in g . In s c r ib e d in
p e n c il is th e fo llo w in g : “E ste s d o is v o lu m e s d e P o e sia s d e G r e g o r io d e M a t to s p e r ­
t e n c e m a o Sr. L u i z A n t o n i o A l v e s d e C a r v a l h o F i l h o , q u e m ’o s e m p r e s t o u . V .C . ‘1 /
ettra d e V alle C a b ra l d a B / i b l i o t e c a / P /u b lic a a q u e m e m p r e s t e i e s te s d o u s v o lu m e s
para a su a ed iç ã o d a s obras d e G regório de M a tto s, L. C ”. O n e v o lu m e o p e n s w ith
“A h u a d a m a d o r m i n d o j u n t o a h u a f o n t e ” ; t h e o t h e r , w i t h “A I l h a d e I t a p a r i c a ” .
291 - M attos G uerra, G r e g o r i o de. 1 6 3 3 -1 6 9 6 . V á ria s P o esia s C o m p o s t a s p e lo F a m o ­
so D o u to r , e in s ig n e P oeta d e n o sso sé cu lo , G reg o rio de M a tto s e G u erra , ju n to s
n e ste v o lu m e por u m cu rioso, e no fim c o m u m in d ice d e tu d o o q u e n e lle se
c o n t e m . E h u m a b e c e d a r io d a s obras; por fo rm a , e o r d e m a lfa b é tic a . C id a d e da
B a h i a . A n n o 1 7 1 1 . 4 0 7 p. O n s p i n e : V á r i a s o b r a s d o D r . G r e g o , d e M a t t o s . L e a t h e r
b in d in g . I n d e x f o llo w s text. T h i s c o d e x w a s u se d e x t e n s iv e ly in th e c o m p i la t i o n
o f th e p o etry o f G r e g o r io d e M a to s in C r ô n ic a d o V iver B a ia n o , e d it e d b y J a m e s
A m a d o (B a h ia : E d ito r a J a n a ín a L td a ., 1 9 6 9 ). A f a c s im ile o f its title p a g e se r v e s
as th e c o v e r d e s ig n for th e A m a d o E d itio n .

Cofre 50, 56.


V id a e M o r te d o D o u to r G regorio d e M a tto s G uerra. I tom o. D e obras sacras e D i v i ­
n a s . I. E . II, P A R T . s é c u l o X V II, 1 1 3 fls. 2 0 0 x 1 5 0 m m . A d u a s c o r e s , c o m p r o f u s ã o

505
A SÁTI RA F. O E N G E N H O

d e v e r m e lh o e m títu lo s, in ic ia is e d e se n h o s . P r e c e d id o d e u m a V id a d o D o u t o r
G reg o rio d e M a tto s G uerra. E scritta p elo L e c e n c ia d o M a n o e l P ereyra R a b ello . E x ­
c e le n te p ela ru sticid a d e. N o final, d ecla ra çã o e a ssin atu ras d e su c e ss iv o s p o s s u id o ­
r e s d o c ó d i c e , n o s é c u l o X V I II , u m d e l e s , A n t o n i o d a R o c h a P it t a . A d q u i r i d o e m f i n s
d o séc. p a s s a d o . C o l. T e resa C r is tin a M a r ia . C o n s t a p o r letra d e V / a l l e /C /a b r a l:
“ P e r t e n c e a S u a M a g e s t a d e o I m p e r a d o r ” , s. r e g i s t r o B . N . P a p e l : E n c a d e r n a d o . R e s ­
t a u r a ç ã o p r i m i t i v a . C a t . E x p . P e r g a m i n h o s I l u m i n a d o s e D o e s . P r e c i o s o s , n . 1 11.

Cofre 50, 57.


“ V id a d o D r. G r e g ó r io d e M a t to s G u e r r a ” . P elo lic e n c ia d o M a n u e l P ereira R a b e llo .
C ó p i a d o s é c u l o X I X . 1 8 7 f l s . 1 1 8 d o e s . 2 7 x 19 c m . C ó d i c e e n c a d e r n a d o c o m a s
s e g u i n t e s n o t a s : a l á p i s “ F o i - m e e m p r e s t a d o p e l o D r . J. A . A . d e C a r v a l h o ; m a s
h o je é da B ib lio te c a N a c io n a l. O 2S v o lu m e en treg u ei a E x m a . Snra. D . Joanna
T h e r e z a d e C a r v a l h o , a q u e m e n i ã o p e r t e n c i a ” ; a t i n t a “A n o t a a l á p i s e d e V a l l e
C a b r a l, o c o p is ta d o c ó d ic e fo i M . F rco. L a g o s ” 2 a m e ta d e d o s é c u lo XIX. D /
a r e i” . “ C o l. C a r v a lh o . C a t. E x p . H i s t ó r i a d o B r a s il, n. 1 5 6 7 4 . P u b l i c a d o n o R io
d e Jan eiro, T ip o g r a fia N a c io n a l, 1881.

Cofre 50, 5 7 -A
D o u t o r G r e g . d e M a t t o s G u e r r a . T o m o 5 ° s é c . X V I I . 1 9 4 f ls . 2 0 3 x 1 5 2 m m . R ú s t i c o . A
d u a s cores. T ít u lo s e m v e r m e lh o ; n u m e r o s o s d e s e n h o s a tin ta . M u it o s e m e lh a n ­
te a o a n te r io r (5 6 ). C o m n o ta d o a n t ig o p o ssu id o r : “ D o C a p p i t a m M ó r J o zê
R o d r i g u e s L i m a ” . A d q u i r i d o e m 1 9 3 9 . R e g . B. N . S ., m a s . 3 9 / 1 9 4 8 C a t . E x p .
P e r g a m in h o s I l u m i n a d o s e D o e s . P r e c io so s , n. 112.

Cofre 50, 5S -5& 4


P o e s i a s p o r G r e g o r i o d e M a t t o s G u e r r a . T o m o s I-II. L e t r a d o s é c u l o X V I I . 2 t o m o s .
2 2 3 f ls . e 2 2 1 f ls . 2 2 x 1 6 c m . E n c a d e r n a ç ã o a n t i g a . O c o r r e c a r i m b o : “A d o l p h o
S o a r e s C a r d o z o - P o r t o ”, e nota: “O f f e r e c id o p o r m e u a m ° V a s c o d e C a s tr o . P o r to
- m a io d e 1 8 9 1 ”. A d q u ir id o p ela B ib l. N a c io n a l e m 29 d e a g o sto d e 1 9 6 1 , por
c o m p r a a L iv ra r ia S ã o José. P reço: C r $ 1 0 0 .0 0 0 ,0 0 . R e g . B N 3 2 3 1 3 9 -1 4 0 /1 9 6 1 .
C a t . E x p . P e r g a m i n h o s I l u m i n a d o s e D o e s . P r e c io s o s , n. 1 16.

Cofre 50, 59-59A


P o e s i a s . L e t r a d o s é c . X V I II . 2 t. 1 8 2 e 1 9 7 f l s . 2 0 4 x 1 4 5 m m . O Io t o m o p e r t e n c e u a
A f r â n io P e ix o t o , e foi o f e r e c id o à B ib lio t . N a c i o n a l e m 1 9 3 3 ; o 2a e n c o n t r a - s e em
m a u e s t a d o e v e m d o f u n d o a n tig o . P o r c o i n c i d ê n c i a , v ie r a m ter à B ib lio t e c a p o r
d i f e r e n t e s v i a s ; o s t o m o s q u e s e c a s a v a m : c o n s t a n a l o m b a d a : “A f r â n i o P e i x o t o .
C ó d i c e I” . C a t . E x p . P e r g a m i n h o s I l u m i n a d o s e D o e s . P r e c i o s o s , n . 1 1 7 .

Cofre 50, 60
P o e z i a s d o D o u t o r G r e g ó r i o d e M a t t o s G u e r r a . L e tr a d o s é c u l o XVII. 3 2 7 fls. 2 0 5 x
1 5 5 m m . T r a z u m e s c u d o h e r á l d i c o c o l a d o s o b o t í t u l o . N a f l. l v . , d u a s n o t a s : “ C .
C a s t e llo M . ” e “ F o i d a L iv r a r ia d e Pera. e S z a ” . R e s ta u r a ç ã o e e n c a d e r n a ç ã o
m o d e r n a s . E x c e l e n t e e x e m p l a r c a lig r á fic o . P o r letra d if e r e n t e , c o n sta : “ ( I n é d i­
t a s ) ” . A d q u ir id o e m 1 9 6 0 . R e g is tr o B N 3 3 7 6 9 6 /1 9 6 3 . C o m p r a à L iv ra r ia São

506
B I BLI OGRAFI A

J osé. P reço: C r$ 1 5 0 .0 0 0 ,0 0 . N a ú ltim a fo lh a c o n sta a láp is: “C a m i l lo in t.”. C at.


E x p . P e r g a m i n h o s I l u m i n a d o s e D o e s . P r e c io s o s , n. 114.

Cofre 50, 61
A s O b ras P o é tic a s d o D or. G reg o rio d e M a tto s G uerra D iv id id a s e m 4 to m o s. E m q u e
se c o n t e m as o b ra s sa cra s, jo co ser ia s, e sa tírica s, q u e a b r e v id a d e n ã o p e r m itt io
s e p a r a r . T o m o 2 ° . B a h i a a n n o d e 1 7 7 5 . 2 2 9 f ls . 2 0 4 x 1 4 7 m m . C o m n o t a m a n u s ­
c r i t a a l á p i s : “ P e r t e n c e a S . M a g 1'. O I m p e r a d o r , V / a l l e / C / a b r a l / . A d q u i r i d o e m
fin s d o s é c u lo p a ssa d o . C o l. T h e r e z a C r istin a M a ria . C at. E x p . P e r g a m in h o s I lu ­
m i n a d o s e D o e s . P r e c io s o s , n. 114. s e m r e g is tr o

Cofre 50, 62
O b r a s V arias A u t h o r o F a m o s o S a tír ic o o D o u t o r G r e g o r io d e M a t t o s n a tu r a l d a
C id a d e d a B a h ia . L e tr a d o s é c u lo XVIII. 4 2 3 f ls . 2 0 5 x 1 5 0 m m . C o n s t a n a c a p a :
“A f r â n i o P e i x o t o . C ó d i c e II”. O II t o m o p o s s u i e x - l i b r i s g r a v a d o c o m a s i n i c i a i s :
“ L ib r i b o n i a m i c i ” - L ib ra ria d e F r a n c is c o T e ix e ir a . C o m as s e g u i n t e s n o ta s:
“ D e F r a n c ° X e r d e B a s t o ” - 1 6 5 0 - e “A B i b l i o t e c a N a c i o n a l o f e r e c e A f r â n i o P e i ­
x o to . 2 0 -X II -l 9 3 3 , 3“ c e n t e n á r io d o n a s c i m e n t o d o P o e ta ” . A d q u i r i d o e m 1 9 3 3 .
R e g . B N 2 6 / 1 9 3 3 . C a t. E x p . P e r g a m i n h o s I l u m i n a d o s e D o e s . P r e c i o s o s , n. 1 13.

Cofre 50, 63
G u erra , G r e g o r io d e M a to s. P o esia s. L etra do sé c u lo XVII. 5 3 5 fls. 2 1 0 x 145 m m .
í n d i c e a d u a s c o r e s . C o m a d e d i c a t ó r i a : “A A l b e r t o d e F a r i a L ó J d o a m i g o d o
c o r a ç ã o J o ã o R i b e i r o . 2 4 d e j u n h o d e 1 9 1 7 ” . A d q u i r i d o e m 14 d e s e t e m b r o d e
1 9 2 6 , p o r c o m p r a ao D r. M á r io d e A le n c a r . C o n s t a a lá p is o p r e ç o d e “ 1 6 :0 0 0 $ ” .
Reg. B N 1 0 / 1 9 2 6 . C a t . E x p . P e r g a m i n h o s I l u m i n a d o s e D o e s . P r e c i o s o s , n.
115.

Cofre 50, 64-65


O b r a s d o D o u t o r G r e g o r i o d e M a t t o s . C ó p i a p o r l e t r a a t u a l . 2 t o m o s . 1 6 3 f ls . - 2 6 4
f l s . 2 5 x 1 9 c m . C o n s t a a s e g u i n t e n o t a : “O o r i g i n a l d o n d e f o i e x t r a h i d a e s t a
c ó p ia g u a rd a -se na B ib lio th e c a N a c io n a l de L isb o a , S eção d e M a n u s c r ip to s , c o m
a m a r c a ç ã o L / 3 / 5 9 ” . C ol. M o r e ir a d a F o n se c a . R eg. B N n .o s 22 5 95 e 22 6 0 0 /
1946.

Cofre 50, 66
“ P o e s i a s d e G r e g o r i o d e M a t t o s ” . C ó p i a d o s é c u l o X I X . 3 3 fls . 2 2 x 16 c m . N o t a p o r V /
a l l e / C / a b r a l ” : “ C ó p ia feita e m É v o r a p e lo Dr. L in o d e A s s u m p ç ã o e m m a io d e
1 8 8 9 ” . A lá p is a z u l “ D e A V C ” . C o p ia d o na B ib lio t e c a d e É v o r a , c ó d ic e C X X X /t.
1 7 a f ls . 1 8 3 - 2 3 2 e 3 2 8 . A d q u i r i d o p o r O f e r t a d o D r . L i n o d e A s s u n ç ã o a B . N . e m
1 8 8 9 . A n e x o s : 1) “ C a r t a q u e e s c r e v e u G r e g ó r i o d e M a t t o s a o C o n d e d o p a r d o
e s t a n d o n a B a h ia c o m se u pay. M a r q u e z d a s M i n a s ” . B i b l i o t e c a d e É v o r a C ó d i c e
C V / l - 9 . 2) “ S o n e to D e B e r n a r d o V iey ra R a v a sc o S e c r e to d o E s ta d o d o B r a sil a
se u Ir m a m o P adre A n t o n io V ieyra C o n so a n t e s fo rça d o s.”

507
A SÁTI RA K O E N G E N H O

E dições

M attos, G r e g ó r i o de. Obras Completas (Crônica do Viver Baiano Seisccntista). E stu d os e


c o la çã o d e texto, ela b o ra çã o d e a p ó g ra fo s e p la n e ja m e n to e d ito r ia l d e J a m e s A m a ­
do; c ó p ia s fin a is d o tex to para im p r e ss ã o e m a p e a m e n to d o s c ó d ic e s p or J a m e s
A m a d o e M a r ia d a C o n c e iç ã o P a ra n h o s. Salvad or, E d ito r a J a n a ín a , 1 9 6 8 . 7 v o ls.
P oesias. S e l e ç ã o , I n t r o d u ç ã o e n o t a s p o r A n t ô n i o D ir n a s . S ã o P a u lo , A b r il C u l t u r a l ,
1982. Gregório de Mattos, 2. e d . S ã o P a u l o , N o v a C u l t u r a l , 1 9 8 8 .
“ G r e g ó r io d e M a t t o s G u e r r a ” . Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial. Por
S érg io B u a r q u e d e H o lla n d a . R e v is ã o crítica por A u r é lio B u a r q u e d e H o lla n d a
F erreira. R io d e J a n eiro , D e p a r t a m e n t o d e Im p r e n s a N a c io n a l- M in is té r io d e
E d u c a ç ã o e S a ú d e / I n s t i t u t o N a c i o n a l d o L i v r o , 1 9 5 3 . 2 v o l s . , v o l . 1.
________ Obras. E d iç ã o d e A fr â n io P eixoto. R io d e Jan eiro, A c a d e m ia B ra sileira d e L etras,
1 9 2 3 - 1 9 3 3 . 6 v o l s . (I - Sa c r a ; II - L í r i c a ; III - G r a c i o s a ; IV-V - S a t í r ic a ; VI - Ú l t i m a ) .
_______ “ G r e g ó r i o d e M a t o s ” . Poesia Barroca. In trod u ção, seleçã o e n otas por P cricles
E u g ê n io d a S ilv a R a m o s . S ã o P a u lo , M e lh o r a m e n t o s , 1967.
________ Gregório de Matos. In tro d u çã o , se leçã o e n o ta s por S e g is m u n d o S p in a . São
P a u lo , E d it o r a A s s u n ç ã o s /d . (P e q u e n a B ib lio t e c a d e L ite r a tu r a B r a sile ir a , 2).
Florilégio da Poesia Brasileira ( o u Coleção das mais Notá­
________ “ G r e g ó r i o d e M a t o s ” .
veis Composições dos Poetas Brasileiros Falecidos Contendo as Biografias de muitos Deles,
tudo Precedido de um Ensaio Histórico sobre as Letras no Brasil). L i s b o a , I m p r e n s a
N a c io n a l, 1850. R e e d . A c a d e m ia B rasileira d e L etras. P o r F r a n c isc o A d o lfo d e
V a r n h a g e n . R i o d e J a n e i r o , A c a d e m i a B r a s i l e i r a d e L e t r a s , 1 9 4 6 . 3 t o m o s , t o m o I,
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a Roda, Revista de Literatura Brasileira. B e lo H o r iz o n t e , U F M G , v o l. 5, nov. 1 986.
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Guerra (Crônica do Viver Baiano Seiscentista). S a l v a d o r , J a n a í n a , 1 9 6 8 . 7 v o l s . ,
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________ “ R e l a ç ã o d o s C ó d i c e s E s t u d a d o s ” . Obras Completas de Gregório de Matos e Guerra
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do Instituto Histórico Geographico Brasileiro. F u n d a d o n o R i o d e J a n e i r o s o b o s
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508
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U n i v e r s i d a d e F e d e r a l d a B a h i a , 1 9 8 7 , n. 1 2 8 .
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P inheiro, C ô n e g o D o u to r Joa q u im C aetan o F ern an des. Curso Elementar de Litteratura
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509
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R abelo, L i c e n c i a d o M a n u e l P e r e i r a . “ V i d a e M o r t e d o E x c e l e n t e P o e t a L í r i c o , o D o u t o r
G r e g ó r i o d e M a t o s e G u e r r a ” . I n : A mado, J a m e s (o r g .) . Obras Completas de Gregário
de Matos e Guerra (Crônica do Viver Baiano Seiscentista). S a l v a d o r , J a n a í n a , 1 9 6 8 .
7 v o l s . , v o l . VII.
________“ V i d a d o D o u t o r G r e g ó r i o d e M a t t o s G u e r r a . P e l o l e c e n c i a d o M a n u e l P e r e i r a
R a b e l l o ” . C o f r e 50, códice 5 7 , S e ç ã o d e M a n u s c r i t o s d a B i b l i o t e c a N a c i o n a l d o
R io d e J a n e i r o (C ol. C a r v a lh o ) .
________“ V i d a e M o r t e d o D o u t o r G r e g ó r i o d e M a t t o s e G u e r r a . E s c r i t a p e l o l e c e n c i a d o ,
M a n u e l P e r e y r a R a b e l l o ” . I n : G uerra, G r e g ó r i o d e M a t t o s e. Obras Sacras e D ivi­
nas, t o m o I J . E . I I P A R T . C o f r e 5 0 , códice 56, S e ç ã o d e M a n u s c r i t o s d a B i b l i o t e c a
N a c io n a l d o R io d e Ja n e iro .
R o m er o , Sylvio. História da Literatura Brasileira. R i o d e J a n e i r o - B r a s í l i a , J o s é O l y m p i o /
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510
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A tas da Câmara: 1669-1684. S alv ad o r, P re fe itu ra d o M u n i c íp i o d o S alv ad o r, B ah ia,
1 9 5 0 ( D o c u m e n t o s H i s t ó r i c o s d o A r q u i v o M u n i c i p a l , 5a v o l .) .
A tas da Câmara: 1684-1700. Salvador, P re fe itu ra d o M u n i c íp i o d o S alv ad o r, B ah ia,
1 9 5 1 ( D o c u m e n t o s H i s t ó r i c o s d o A r q u i v o M u n i c i p a l , 6 a v o l .) .
Cartas do Senado: 1638-1673. S alv ad o r, P re fe itu ra d o M u n i c íp i o d o S alv ad o r, B ah ia,
1 9 5 1 ( D o c u m e n t o s H i s t ó r i c o s d o A r q u i v o M u n i c i p a l , I a v o l.) .
Cartas do Senado: 1673-1684. Salvador, P re fe itu ra d o M u n i c íp i o d o S alv ad o r, B a h ia ,
1 9 5 2 ( D o c u m e n t o s H i s t ó r i c o s d o A r q u i v o M u n i c i p a l , 2 a v o l.) .
Cartas do Senado: 1684-1692. Salvador, P re fe itu ra d o M u n i c íp i o d o S alv ad o r, B a h ia ,
1 9 5 3 ( D o c u m e n t o s H i s t ó r i c o s d o A r q u i v o M u n i c i p a l , 3a v o l .) .
Cartas do Senado: 1692-1698. S a l v a d o r , P re fe itu ra d o M u n ic íp io d o S alvador, B ah ia,
1 9 5 9 ( D o c u m e n t o s H i s t ó r i c o s d o A r q u i v o M u n i c i p a l , 4 a v o l .) .
Códice 311: Cópia dos Alvarás, Provisões, Títulos, Regimentos etc., do D Tomo do Livro
Dourado da Relação da Bahia. A r q u i v o N a c i o n a l d o R i o d e J a n e i r o .
Códice 540: Cópia do Livro dos Assentamentos da Relação da Bahia. A r q u i v o N a c i o n a l
d o R io d e Ja n e iro .
L u í s G o n ç a l v e s d a C â m a r a . Livro de Cartas que o Senhor Antônio
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Luís Gonçalves da Câmara Coutinho escreveu a Sua Majestade, sendo Governador, e
Capitão Geral do Estado do Brasil, desde o princípio do seu governo até ofim dele (Que
foram as primeiras na frota que partiu em 17 de junho do ano de 1691), S e ç ã o d e
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tô n io L u ís G o n çalv es da C â m a r a C o u tin h o ao Rei sobre o E s ta d o do B ra sil”.
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523
% .

........
Engano.
C esare Ripa.Iconologia, 1593.
Título A Sátira e o Engenho
Autor João Adolfo Hansen
Revisão Geraldo Gerson de Souza
Capa Ricardo Assis
Editoração Eletrônica Aline E. Sato
Amanda E. de Almeida
Formato 16 x 23 cm
Tipologia Aldine 721 Lt BT
Papel do Miolo Pólen Rustic 85 g/m2
Papel de Capa Cartão Supremo 250 g/m2
Número de Páginas 528
Fotolito Liner Fotolitos
Impressão Lis Gráfica
JLaa&
oayi.a7iw
Imagem da capa: serlio , Sebastiano. Libro pruno(quarto'j d’
archilettura. Venctia, Senese & Z. Krugher, 1566.

D a C ena S atírica ( L ibro S econdo , p. 47)


A cena satírica é para representar sátiras, nas quais se
repreendem & se mordem todos aqueles que vivem
licenciosamente & sem respeito. Nas sátiras antigas os homens
viciosos & de má vida eram quase que apontados com o dedo.
Mas pode-se compreender que tal licença fosse concedida a
personagens que falavam sem respeito como gente rústica;
porque Vitrúvio, tratando das cenas, quer que esta seja ornada
de árvores, seixos, colinas, montanhas, ervas, flores & fontes;
quer também que ai estejam algumas choupanas rústicas,
como aqui se demonstra. E porque nos nossos tempos essas
coisas quase sempre são feitas no inverno, quando há poucas
árvores & ervas com flores, bem artificiosamente se poderão
fazer coisas semelhantes de seda, as quais serão mais louvadas
ainda que as naturais, porque, assim como na cena cômica e na
trágica se imita o casario & outros edifícios com o artifício da
pintura, nesta bem se poderão imitar as árvores & as ervas com
flores. E essas coisas serão mais louváveis quando forem mais
custosas porque verdadeiramente são próprias dos generosos,
magnânimos & ricos patronos inimigos da feia avareza.

João Adolfo Hansen é Professor de Literatura Brasileira na


Universidade de São Paulo.
Foto: Júlia de Carvalho Hansen
A Sátira e o Engenhe reconstitui a primeira legibilidade normativa da
sátira atribuída desde o século xvm ao poeta seiscentista Greuório
de Matos e Guerra. Demonstra que "A Musa bronca dos incultos
Matos ’ é complexa, civil e discreta, quando Unge a vulgaridade
rústica do sátiro habitante dos matos para vituperar torpezas, ví­
cios e enganos da Bahia. Inventada aristotelicamente como ridículo
e maledicência, sua vituperação inclui-se na racionalidade de Corte
da “política católica" portuguesa do século xvn, como ataque de
abusos que repõe os usos do costume. Sua matéria são os discursos
formais das instituições portuguesas e a murmuração informal da
população sobre eventos, negócios, grupos e indivíduos do lugar.
Para transformá-los poeticamente, a sátira imita tópicas da poe­
sia antiga, aplicando técnicas retóricas do conceito engenhoso e
princípios da teologia-política neo-escolástica. “A Musa bronca”
não é psicológica, doente, tarada, liberal, antropófaga cultural,
tropicalista, protonacionalista, pessimista, ressentida, realista, ou
seja, positivista, mas artifício ficcional incluído na realidade de
seu tempo como prática simbólica produtora de verossimilhanças
e decoros partilhados assimetricamente pelo personagem satírico,
seus destinatários textuais c seus públicos empíricos.

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