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Roberto Ventura
A Sátira e o Engenho
AE
Ateliê Editorial
Editor
P línio M artins F ilho
UNICAMP
Reitor
C arlos H enrique de B rito C ruz
e D T O R
Conselho Editorial
Presidente
P aulo F ranchetti
A Sátira e o Engenho
Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII
1-6SM
^ N A S B f l« *> C *N
Ateliê Editorial
Copyright © 2004 by João Adolfo Hansen
Inclui bibliografia.
ISBN 85-7480-136-4 (Ateliê Editorial)
ISBN 85-268-0677-7 (Editora da U nicamp)
CDD 869
Direitos reservados à
Bibliografia . 505
Prefácio
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A SÁTI RA E O E N G E N H O
Douro, parar na Paris que expulsa Bernini para melhor o adotar, contemplar
em Roma Vieira empenhado em certame de filósofos que choram e que riem,
pois sempre se vai deslocando com as lentes de Fontenelle, algum Cyrano e
muito Leibniz, nas quais a variedade dos lugares se lê como ornato da identi
dade, desmanchado o aqui no ubíquo, dilatado o ponto na continuidade de
caminhos entrecruzados em toda a parte e o tempo todo, não colecionando a
viagem Outro algum e, tudo no lugar, de longe, itinerários, mapas e mapas de
mapas e, em abismo, o Mesmo, protótipo de versão e diversão.
O mapa desta capa fica boa xilogravura em livro seiscentista dentro; a
capa apaga com couro a figura, pois esta se grava em frontispício e, faltante
no livro, pode ser saturada pela escrita, ecfrase. Ficando-se dentro fora, des
creve-se no micro o macro, brevidade helenístico-romana de pintura com-
pendiária, cômica, não satírica, numa Barbearia de pincelada preste e claro-
escuro de Magnasco, analogia que faz o leitor seguir qualquer dobra
desdobrando-a em alegoria abissal que escancara o mesmo sentido figurado
numa figura escrita. E digno, também, personificar com figura, Gregário de
Matos e Guena, não, porém, em guisa de oval do licenciado Rabelo cujo cará
ter ou tipo se pintam como circunscrição. Para o de Hansen, não de todo in
conveniente seria a de espécie arcimboldiana, o Livreiro de sinédoques
metaforizantes, cuja visibilidade, distante e próxima (ut pictura poesis), orna,
fantástica, e instrui, icástica, no livro quase como a figura direta, pois longín
qua, de panfleto no Leviatã hobbesiano.
Escrevendo com os buracos da papelada, que a brasilidade dos arquivos
traça, João não petrifica o passado como o historiador antiquário Muratori ou
o preciso Piranesi das gravuras de ruínas romanas, cujos Cárceres lhe desfa
zem a face precisa enquanto hiperbolizam muito gigantismo do século XVII,
livre o espaço da perspectiva trivial; são eles homólogos à amplificação do
nariz que proporcionaliza, veemente no monte de papéis, câmaras de toda
sorte, ralos e grades, dirigindo os óculos para o amor freirático, alguma simonia
e sodomia, muitos interesses de donos de açúcares e negros; as lentes orde
nam uma história icástica enquanto o fantástico nariz se estica, enfia-se na
murmuração das carências e abusos e nos vícios de putas mazombas, indianas
sujas, falsos fidalgos e cristãos-novos blasfemos. Cenografia amplificadora:
vituperando, a sátira, voz torpe das sendas de cenário, corrige o que mostra
como vício na hierarquia pela qual e para a qual obra (fechamento). O livro
tampouco recicla a ruína, preservada de doutrina ou palavra de ordem de
moderna boca estética e política; desamparando o Grégorio-brasilidade, o
Gregório-afro, o Gregório-liberdade, o Gregório-profeta, retrospectivos de uma
prefiguração patrística, Hansen distingue, muito político, um nome, soltan
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PREFÁCIO
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retificados, por ausentes os bens deles, pela prudência e juízo que na sátira
operam proporções. A homologia alcança as extorsões discursivas do Santo
Ofício, que trata os blasfemos, sacrílegos, hereges, dos quais a sátira também
cuida. Mais que analogia dos temas, homologia das operações: a sucessão pro
tocolar das questões do inquisidor pune os casos previstos, assim, produzidos,
pelos padrões do Bem. Também aqui cruzada, a sátira inclui procedimentos
da Inquisição, lançando na cena o que esta faz no sigilo. Retoricamente regu
lada, a sátira enuncia, como os demais modos discursivos, os interditos e a
Lei, ou Bem. Punitiva como a Inquisição, ela também é arte como a arte polí
tica, que, no XVII, defende a república do exterior e no interior, atribuição da
lei positiva que impõe a lei natural, atenção ao bem comum; também a sátira
tematiza a igualdade na submissão: é-se súdito de um poder transferido, sú
plica ao rei, metáfora.
Quando ridícula, a sátira dói, como a retórica prescreve; maledicente, o
misto fere com a virtude: vício e vicioso, mal e mau são ausências culpadas de
bem. Falta representada, são operadas retoricamente: um evento, a fome de
bacalhau, constitui-se na sátira como um caso, vituperado enquanto mime-
tizado; referencialmente mimética, a sátira produz o caso como lugar da in
venção fantástica, referindo-o à situação de censura que os discursos do
referencial semantizam. Adequando-se aos lugares da invenção, a narração se
vai particularizando como exposição retórica da causa, que se hiperboliza,
fantástica, excluído, historicamente, o fato (que é convenção literária apenas
nos séculos XIX e XX). A referencialidade da sátira articula a recepção, pois o
destinatário compartilha dos códigos, assim, dos casos criticados, situações
ou indivíduos. Ela cruza outras práticas discursivas, sendo dirigida pela uti
lidade (prodesse), catarse na censura, que codifica moral e politicamente as
ações reguladas pelo bem. Neste sentido, mimeticamente fantástica, os mons
tros a incluem no gênero baixo, enquanto, corretiva, é operada pela pondera
ção prudente do elevado: o “vulgo” não se identifica, evidentemente, com o
“oprimido” ou o “dominado” da convenção do misto atual, imprevistos como
destinatário embora muito previsíveis hoje quando se trata do Gregório. Ain
da, o vulgo e o néscio produzidos na sátira podem ser destinatários discretos
de muitas espécies, fidalgos, letrados, que a apreciam como convenção poética.
Embora articule o gosto, que delimita o néscio e o vulgo, não o judícíoso
ou o prudente, a sátira, como fantasia do misto, é engenhosa e aguda. Por
estas, conquanto baixa, eleva-se e, inclusiva, opera simultaneamente com vá
rios gêneros, alto e baixo, trágico e cômico etc.: mistos são os satirizados e a
própria sátira. Como elocução engenhosa, está teorizada com noções da poé
tica do tempo, quando substitui, no que concerne ao ornato, a invenção de
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P R E F Á C IO
Leon Kossovitch
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Agradecimentos
A
João Alexandre Barbosa, Alfredo Bosi, Roberto de Oliveira Brandão, Maria
Lúcia Garcia Paliares Burke, Peter Burke,Raimundo Baptista Carneiro, Maria
de Lourdes Chagas de Carvalho, Marta Maria Chagas de Carvalho, Maria da
Graça Cassundé, Roger Chartier, Marilena Chauí, Maria Aparecida Corrêa,
Waldir da Cunha, João Roberto Gomes de Faria, José Carlos Garbuglio, Jai
me Marcelino Gomes, Laura Hansen, Júlia de Carvalho Hansen, Jean Hébrard,
Itaí, Leon Kossovitch, Susana Kampf Lages, Sílvia Hunold Lara, Mayra
Laudanna, Luiz Costa Lima, Margarida, Antônio Dimas de Moraes, Antônio
Alcir Bernárdez Pécora, Fernando da Rocha Peres, Dirce Cortes Riedel, Carlos
Rincón, Rosângela, Petra Schumm, Jorge Schwartz, Jorge Ruedas de La Serna,
Mitz Hansen Tedesco, Ivan Prado Teixeira, André de Carvalho Tinoco, Ale
xandre de Carvalho Tinoco, Maria Tereza Vianna Van Acker, Roberto Ventu
ra - amigos que, empenhando-se pelo amigo, sabem desempenhá-lo.
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Nota à 2- Edição
1. Revistas do Instituto de Estudos Avançados, São Paulo, IEA-USP, maio-agosto de 1989, vol. 3, n. 6.
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NOTA À 2* E D I Ç Ã O
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NOTA À 2* E D I Ç Ã O
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I
1. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, “Vida e Morte do Doutor Gregório de Mattos Guerra. Escrita pelo
Lecenciado Manuel Pereyra Rabello”, em Gregório de Mattos e Guerra, Obras Sacras e Divinas, tomo
I, I. E. II Part. Cofre 50, Códice 56, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, p.
56. Cf. também “Vida e Morte do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório de Matos e Guerra”, em
James Amado (org.), Obras Completas de Gregório de Matos e Guerra (Crônica do ViverBaiano Seiscenlista),
Salvador, Janaína, 1968, 7 vols., vol. VII. Esta obra é citada neste trabalho como OC.
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Estas são, curioso leitor, as notícias, que o meu afeto pôde descobrir das tristes
memórias daquele ilustre herói e crede-me, que tanto estimei a dá-las como em grande
mágoa o pondero emblema de tantos infortúnios; que suposto o cortasse a espada de
dois gumes, contudo sempre viverá in eterno ao mesmo tempo. Brasão ilustre-lhe este,
que eternizado na fama o não destrói o tempo3.
Foi Gregório de Matos e Guerra de boa estatura, falto de vista, delgado de corpo,
membros delicados, poucos cabelos, e crespos: testa espaçosa, sobrancelhas arqueadas,
e grossas, os olhos grandes, nariz aguilenho, boca pequena, e engraçada, a barba sem
demasia, alvo na cor, e no trato cortesão. Trajava à cortesã de capa, e volta de fina renda,
cabeleira de bandas, suposto, que poucas se usavam naquele tempo4.
2. Como retrato, o texto desenvolve-se por aplicação de tópicas do gênero demonstrativo ou epidítico
da oratória, no subgênero “encômio” ou “louvor”, apresentando elementos de individuação e ele
mentos caracteriaise tipificadores. Cf. Lomazzo, “Compositionedi ritrarredal naturale”, em Trattato
deli 'arte delia piltura, scoltura, et architcllura, Milano, Apresso Pier Paolo Gottardo Pontio, A instantia
di Pietro Tini, 1585.
3. Códice citado na nota 1, p. 56.
4. Op.cil., p. 55.
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UM N O M E P O R FAZER
Fiz tirar dele a presente cópia, por um antigo pintor, que foi seu familiar, e confe
rindo-a com as memórias que dele têm algumas pessoas antigas, tenho-a por mim con
forme seu original. Naquele tempo era pouco versado o uso das cabeleiras, e ele a traja
va: mas pareceu-me copiá-lo sem ela, porque a homem de talento devem patcntear-nos
as oficinas capitais que o produzem para informação dos judiciososs.
Não se sabe quais eram tais “pessoas antigas”, nem a matéria das “memó
rias”, o que não tem importância, aliás. Melhor é pensar o que a referência a
elas permite inferir sobre a natureza da unificação. A questão da autoria dos
poemas assume outro sentido, pensando-se que o termo “memórias”, inde
pendentemente de seu conteúdo, designa uma ação produtiva e deformante
sobre obras que Rabelo afirma ter recolhido já “destruncadas” pelo tempo.
Embora útil para delimitar e nomear um corpus, a autoria não é, considerada
a mesma constituição do corpus por Rabelo, pressuposto necessário para o
estudo dos poemas reunidos sob a rubrica “Gregório de Matos e Guerra”. A
autoria, no caso, é produzida pela unificação que se torna produtiva aposieriori\
“Gregório de Matos” é uma etiqueta ou um dispositivo discursivo, unidade
imaginária e cambiante nos discursos que o compõem contraditoriamente
numa hierarquia estética determinada pela “cadeia de recepções”, na expres
são de Jauss56. Não-substancial, é efeito ou produto da leitura dos poemas atri
buídos, não sua causa ou origem.
A “originalidade” dos poemas - tanto no sentido de “origem”, “autoria”,
quanto no de “novidade estética” -, implícita em muitos discursos críticos
que prescrevem o estabelecimento da autoria como indispensável para afir
mar qualquer coisa válida sobre eles7, é, evidentemente, trabalho e função da
recepção e seus critérios avaliativos particulares. Lembrem-se, entre outros,
a exclusão das obras classificadas como “licenciosas” pelo critério moral da
edição da Academia Brasileira de Letras, em 1923, ou o entusiasmo demons
trado por elas, a partir principalmente da década de 1970, por interpretações
que fazem do “prazer” e da “desrepressão” métodos e fim. Ambas as interpre
tações entificam Gregório de Matos como autoria subjetivada, observando-se
que o mesmo valor/moral/ é, num caso, critério de constituição negativa da
legibilidade e, noutro, positiva, segundo duas posições ideológicas adversárias.
5. “Vida do Doutor Gregório de Mattos Guerra, pelo licenciado Manuel Pereira Rabello”. Biblioteca
Nacional, cofre 50, Códice 57 (Col. Carvalho), p. 42.
6. Cf. Hans Robert Jauss,Pourunecsiliétique dela réceplion,Traduil de 1’allemand par Claude Alaillard,
Préface de Jean Starobinski, Paris, Gallimard, 1978, p. 45 (Collection Idées).
7. Cf. Antônio Houaiss, “Tradição e Problemática de Gregório de Mattos”, em James Amado (org,),op.
cil., vol. VII.
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8. Cf. Sílvio Júlio, Reações na Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, If. Antunes, 1938.
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UM N O ME POR FAZER
9. Cf. Augusto de Campos, Poesia, Antipoesia, Antropofagia, São Paulo, Cortez & Moraes, 1978.
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E r a a E s p o s a u m p o u c o i m p a c i e n t e t a l v e z p e l o p o u c o p ã o q u e v i a e m c a s a , e tal
p e lo d i s t r a i m e n t o d e s e u M a r id o , c u ja s d e s e n v o lt u r a s c la ro se p a t e n t e i a m d e s t a s obras;
p o s t o q u e n e m a to d a s se d eva in te ir o c r é d ito , c o m o v e r e m o s p e la ru b r ic a d e cada
u m a : e e n f a d a d a d e u m a e o u t r a d e s e s p e r a ç ã o s a i u d e c a s a , e e n t r o u p e l a d e s e u T i o 13.
10. “Vida e Morte do Doutor Gregório de Mattos Guerra. Escrita pelo Lecenciado Manuel Percyra
Rabcllo”, Obras Sacras e Divinas, tomo I, cofre 50, Códice 56, Seção de Manuscritos da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, pp. 56-57.
11. Cônego Januário da Cunha Barbosa, “Biographia dos Brasileiros Distinctos por Lettras, Armas,
Virtudes etc.”, Revista Trimestral de História e Geographia ou Jornal do Instituto Histórico Geograpliico
Brasileiro. Fundado no Rio de Janeiro sob os auspícios da Sociedade Auxiliadora da Indústria Na
cional. Debaixo da immediata protecção de S. M. I. o senhor D. Pedro II. Rio de Janeiro, Typographia
de J. E. S. Cabral, abril de 1841, n. 9, tomo III, pp. 333-337.
12. Cônego Januário da Cunha Barbosa, op. cit., p. 334.
13. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, “Vida c Morte do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório
de Matos e Guerra”, em James Amado (org.), op. cit., vol. VII, p. 1706.
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UM N O ME P O R FAZER
A c o s s a d o d a p o b r e z a , e se m e s p e r a n ç a a lg u m a d e r e m é d io e m u m a terra o n d e
s o m e n t e o te m , para tr iu n fa r da fo rtu n a , q u e m p or estr a d a s de in iq ü id a d e c a m in h a , se
e n t r e g o u o P o e ta a to d o o furor d a su a M u s a , f e r in d o a u m a e o u tr a p arte c o m o raio,
sem p e r d o a r c o m o s e d if íc io s altos a m a tér ia m a is d e b ilita d a . E , n ã o a c h a n d o r e s is t ê n
c i a , q u e t a l v e z d e s e s p e r a d o p r e t e n d i a ( n e g a ç ã o f a ta l e m t e m p o s b e l i c o s o s ) , e l e g e n d o
p e r e g r i n a r p e l a s c a s a s d o s a m i g o s , s a i u ao R e c ô n c a v o p o v o a d o d e p e s s o a s g e n e r o s a s .
Por este p a ra íso d e d e le it e s estragava a C itara d e A p o io c o m su a s h a r m o n io s a s c o n s o n â n
cias em a ss u n to s m e n o s d ig n o s de tão relevan te estro n d o . L a sc iv a s M u la t a s e to rp es
N e g r a s s e u f a n i z a r a m n o s t r o p o s e f i g u r a s d e tã o d e l i c a d a p o e s i a . M a s q u e m u i t o , s e
q u a n d o n au fraga o b a ix e i, q u a isq u e r B árbaros g a le ia m a m a is p recio sa m erca d o ria .
N ã o q u ero p ersu a d ir q u e a d esesp era çã o lh e o ca sio n o u d ese n v o ltu ra s; m a s d irei q u e do
g ê n i o , q u e já t i n h a , t i r o u a m á s c a r a p a r a m a n u s e a r o b s c e n a s e p e t u l a n t e s o b r a s , e m
tanta q u a n t id a d e c o m o se verá. M a s a p r ó d ig a d ifu s ã o d e m a l a p lic a d o s c o n c e i t u o s o s
d isp ê n d io s n a scia das e n c h e n te s p ro d ig io sa s d a q u ela M u sa , que se m esp e ra n ça de que
seus d e s c u id o s co rreríam na futura e stim a ç ã o , barateava v ersos à c o n ju n ç ã o d o s acasos,
f a c i l i t a n d o l i n g u a g e n s a o g ê n i o d o s s u j e i t o s 16.
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A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
D e n e n h u m a u t o r b r a s i l e i r o p o s s u í m o s p o i s m a i s p o e s i a s q u e d e s t e : e e n t r e t a n t o se rá
t a l v e z d e l e q u e m a i o r p o r ç ã o t e r e m o s q u e reje it ar; n ã o t a n t a s p o r i n s u l s a s , c o m o q u a s e t o
d a s p o r m e n o s d e c o r o s a s. A in d a a s s im , para n ã o p r iv a r m o s o p ú b lic o d a l g u n s b e lo s tre
c h o s , e para s e r m o s a n te s fav o r á v e is à m e m ó r ia d o p o eta (q u e só d e s e ja r ía m o s p o d e r e x a l
t a r ) , f a z e n d o - o a p a r e c e r e m l u g a r e s , o n d e se d e s c o b r e m a i s c l a r o o s e u e s t r o , l o m o s
o b r i g a d o s a c o r t a r às v e z e s a l g u m a s e x p r e s s õ e s , q u a n d o n ã o v e r s o s o u a té t r e c h o s i n t e i r o s ' 0.029187
17. Joaquim Norberto de Souza Silva, Modulaçoens Poelicas Precedidas de um Bosquejo da Historia da
Poesia Brasileira, Rio de Janeiro, Typographia Francesa, 1841, pp. 22-23.
18. Francisco Adolfo de Varnhagen, Florilégio da Poesia Brasileira (ou Coleção das mais Notáveis Composi
ções dos Poetas Brasileiros Falecidos contendo as Biografias de muitos deles, tudo Precedido de um Ensaio
Histórico sobre as Letras no Brasil), Lisboa, Imprensa Nacional, 1850. Reed. Academia Brasileira de
Letras, 1946, 3 tomos. (Cita-se aqui pela reedição, tomo I, p. 73.)
19. Licenciado Manuel Pereira Rabelo,»/), cit., p. 1716.
20. “Não deixaremos uma linha de reticências por cada verso omitido por não nos expormos a ver
alguma vez uma página só de pontinhos. Economizaremos mais espaço convencionando que: 1.
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UM N O M E P O R FAZER
N ã o era p o r é m G r e g ó r i o d e M a t o s h o m e m q u e r e n u n c i a s s e s e u s a n t i g o s h á b i t o s , e
não havia v a n ta g e m q u e lh e fizesse d esistir d o m a lig n o prazer de la n ça r u m e p ig ra m a .
[...] e , d o m i n a d o p e l a f u n e s t a p a i x ã o d e f a z e r rir, d e s p r e z a v a t o d o s o s r e s p e i t o s h u m a
n o s 23.
Quando sc omita um ou mais versos, que deviam completar a rima com outros que ficam, dar disso
sinal no verso anterior aos omitidos [...] 2. Quando num verso se suprima alguma palavra, deixar-
lhe tantos pontinhos quantas as letras omitidas [...] 3. Quando se omitam quadras, décimas, etc.
inteiras, supri-las só pelo sinal(.-.)", em Varnhagen, op. cil., p. 75.
21. João Carlos Teixeira Gomes, Gregório de Maios, o Boca de Brasa (Um Estudo de Plágio e Criação
Interlextual), Petrópolis, Vozes, 1985.
22. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, “Vida do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório de Matos
e Guerra”, em James Amado (org.), op. cil., p. 1700.
23. Cônego Doutor Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, Curso Elementar de Liueraiura Nacional, 2.
ed. melhorada, Rio de Janeiro, Livraria de B. L. Garnier, 1883, p. 204.
24. Idem, p. 208.
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A SÁTI RA E O E N G E N H O
[...] r e l e s b o ê m i o , q u a s e l o u c o , s u j o , m a l v e s t i d o , a p e r c o r r e r o s e n g e n h o s d o R e c ô n
c a v o , d e v io la ao la d o , to c a n d o lu n d u s e d e s c a r n a n d o p o e s ia s o b s c e n a s para regalo,
n a t u r a lm e n t e , d o s d e v a s s o s e e s tú p id o s M e c e n a s da roça q u e lh e n u tr ia m a g u lo d ic e
se n il. O fa u n o d e C o im b r a , e m ú ltim a a n á lise , d e g e n e r a v a n o v e lh o sá tiro d o m u la -
t a m e 26.
52
[...] u m a a l m a d e v i t r í o l o , u m c a r á t e r d e v e l h a s o g r a r a n c o r o s a e m e x e r i q u e i r a , u m
e s p ír ito e m q u e h a v ia m a is arestas q u e facetas. N ã o é e x c e s s iv o c o m p a r á -lo a u m a b e x i
ga d e ícl. M a d r a ç o p o r ín d o le , p a ra sita v it a líc io , d e v o r o u c i n i c a m e n t e o p ã o a lh e io , q u e
n ã o l h e s a b i a a b s o l u t a m e n t e a l á g r i m a s c o m o s o u b e a o p l a n g i t i v o D a n t e 28.
[...] u m n e r v o s o , q u i ç á u m n e v r ó t i c o , u m i m p u l s i v o , u m e s p í r i t o d e c o n t r a d i ç ã o e n e g a
ç ã o , u m m a l c r i a d o r a b u g e n t o e m a l é d i c o 29.
25. J. M. Pereira da Silva, Os Varões Illuslres do Brazil durante os Tempos Coloniaes, Paris, Franck
Guillaumin, 1X59, tomo I, pp. 160-161.
26. T. A. Araripe Júnior, Gregório de Mattos, 2. ed., Rio de Janeiro, Paris, Garnier, 1910, p. 55.
27. Euclides da Cunha, “Carta a Araripe Júnior (Lorena, 12.3.1905)”, em Obra Completa, Rio de Janei
ro, Aguilar, 1966, vol. II, pp. 625-627. Devo a lembrança da existência desta carta a João Roberto
Gomes de Faria, a quem aqui agradeço.
28. Agripino Grieco, Evolução da Poesia Brasileira, Rio de Janeiro, Ariel, 1932, pp. 14-15.
29. José Veríssimo, “Gregório de Matos”, em História da Literatura Brasileira, Introdução de Heron de
Alencar, 4. ed., Brasília, Ed. da Universidade de Brasília, 1963, p. 72.
30. Gregório de Matos, Obras, ed. Afrânio Peixoto, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras,
1923-1933, 6 vols. (I - Sacra; II - Lírica; III - Graciosa; 1V-V- Satírica; VI - Última).
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UM NO ME POR FAZER
31. Rodolfo Garcia, nota de pé de página em Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., tomo I, p. 76.
32. Cf. Al. Varro, Vaironis Menippearum reliquiae, em Pelronii Salirae et Liber Priapeorum JAdicctae sunt
Varronis ei Senecae salirae similesque reliquiae), ed. Buecheler, 3. ed., Berlin, Wcidmann, 1895.
33. Mikhail Bakhtin,Idoeuvre de FrunçeèRabelais et Ia cullurepopulaire au Afo.vcH.dtjt’et sotts laRenansanée,
Paris, Gallimard, 1970. Cf., também do mesmo autor, com o nome de Voloshinov, Le marxisme et la
philosophie. du langage, Paris, Alinuit, 1977; e La poétique dc Dosloievski, Paris, Seuil, 1970.
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A SÁTI RA E O E N G E N H O
34. Angela Maria Dias, O Resgate da Dissonância - Sátira e Projeto Literário Brasileiro, Rio de Janeiro,
Antares/INL, 1981, p. 77 (grifos meus).
35. Melânia Silva de Aguiar, “ ‘Vitalismo’ e ‘Abertura’ no Barroco Brasileiro”, O Eixo e a Roda, Revista
de Literatura Brasileira, Belo Horizonte, UFMG, nov. 1986, vol. 5, p. 92 (grifos meus). Para um
Gregório deleuziano, passado pelo simulacro, cf. p. 122.
36. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, “Vida do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório de Matos
e Guerra”, em James Amado (org.), op. cil., vol. VII, p. 1718.
37. Sylvio Romero, História da Literatura Brasileira, Rio de Janeiro/Brasília, José Olympio/INL, 1980,
vol. 11, pp. 373-379.
38. Cf. Angela Maria Dias, op. cil.
39. A citação do soneto Triste Bahia, ó quão dessemelhante por Caetano Veloso em seu LP Trama, de
1972, já tropicalizava Gregório alegoricamente. Hoje, ele retorna de seu exílio, sendo proposto
como exemplar típico da “baianidade”.
40 Augusto de Campos, op. cil.
40
UM N O ME P O R FAZER
41. Em fevereiro de 1987, o autor deste trabalho teve o privilégio de assistir, em Salvador, à última ence
nação de Gregório de Maios de Guerras, peça montada com fragmentos da poesia atribuída ao poeta. Em
releitura afro, numa intersecção com episódios contemporâneos do quilombo de Palmares, e narrada,
principalmente, pelo foco do herói negativo Gregório, no momento de sua partida para o degredo em
Angola, a peça se faz como Jlashback da Bahia colonial, na linha proposta por James Amado em sua
edição das obras atribuídas ao poeta: “crônica do viver baiano seiscentista”. Cf. Gregório de Maios de
Guerras, Roteiro de Márcio Meirelles. Textos de Gregório de Matos e Guerra, J. C. Capinam, Myriam
Fraga, Cleise Mendes, Aninha Franco, Salvador, Fundação Gregório de Mattos, dezembro de 1986.
42. Outros estudos devem ser lembrados aqui. Entre eles, a análise de Segismundo Spina. Cf.
Segismundo Spina, Gregório de Matos, São Paulo, Assunção, 1945. Do mesmo autor, “Monografia
do Marinículas”, Revista Brasileira, Rio de Janeiro, ABL, jun.-set. de 1946; “Gregório de Matos”,
em A Literatura no Brasil (Introduções, Barroco, Neoclassicismo, Arcadismo), dir. Afrânio Coutinho,
Rio de Janeiro, Sul Americana, 1968; e “Gregório de Matos. A Língua Literária no Período Colonial:
o Padrão Português”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, USP, 1980, n. 22, pp. 63-
75. Mais recentemente, o estudo de João Carlos Teixeira Gomes, Gregório de Matos, o Boca de Brasa,
analisa o intertexto medieval e renascentista da tradição gregoriana. Cf. ainda a excelente biogra
fia do poeta escrita por Fernando da Rocha Peres, Gregório de Manos e Guerra - Uma Revisão Bio
gráfica, Salvador, Edições Macunaíma, 1983. Do mesmo autor, Gregório de Mattos e a Inquisição,
Salvador, Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia, n. 128, 1987; eA Família
Mattos na Bahia do Século XVII, Salvador, Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da
Bahia, n. 132, 1988. Sou grato ao autor pelo envio dessas obras.
41
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
42
1
UM NO ME POR FAZER
43. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, “Vida e Morte do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório
de Matos e Guerra”, em James Amado (org.), op. cit., vol. VII, p. 1700.
44. Idem, p. 1701.
45. Santo Tomás de Aquino, Sumrna theologica I.IIa., 57,5, ad. Resp. em The Summa Theologica of Saint
Thomas Aquinas, translated by Fathers of the English Dominican Province, London/Chicago,
Enciyclopaedia Britannica, 1952, 2 vols.
46. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, op. cit.y p. 1701.
43
A SÁTI RA E O E N G E N H O
Sempre nas tópicas de Rabelo, Gregório diz muitas coisas sem inteira in
formação, arrependendo-se depois como bom católico. Também a inteireza de
seu ânimo patrocina somente a razão em matérias cíveis, conforme a oposição
justiça bastarda x justiça que, na compilação, o poeta descarna numas décimas
contra a Cidade. Sua inimizade de “toda a hipocrisia” se evidencia mais uma
vez quando se recusa a tomar as ordens sacras de que depende a conservação dos
cargos vantajosos que obtém ainda em Portugal. Ao arcebispo responde que;
f...l n ã o p o d i a v o t a r a D e u s a q u i l o q u e e r a i m p o s s í v e l d e c u m p r i r p e l a f r a g i l i d a d e d e
sua n a tu re za ; e q u e a troco de n ã o m en tir, a q u e m d ev ia in te ir a v e r d a d e , p erd ería to d o s
o s t e s o u r o s e d i g n i d a d e s d o m u n d o . Q u e o s e r m a u s e c u l a r n ã o era t ã o c u l p á v e l e e s c a n
d a l o s o c o m o s e r m a u s a c e r d o t e 47.
44
UM N O ME POR FAZER
45
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
paixões, sendo preciso o conhecimento das regras para tanto, porque “a natu
reza é senhora”54, o Licenciado o apropria moralmente, relendo o decoro neo-
escolasticamente: o homem Gregório não consegue em vida, devido à “intei
reza indiscreta danosa das conveniências”55, a sindérese56. E pela mesma
natureza, contudo, que sua falta de prudência é interpretada como Presença e
que o excesso é adequação. Nesta translação do efeito de sentido obsceno dos
poemas para sua Causa Primeira, Rabelo escreve que, embora quisesse mode
rar o humor sanguinário contra os desacertos do tempo, castigado já dos flagelos
da peste e da fome, Gregório não o podia:
[...] e n ã o é d e a d m i r a r q u e , d i s p a r a d a s d o t r o n o d a d i v i n a J u s t i ç a a q u e l a s d u a s l a n ç a s d e
s u a ir a, s e g u i s s e a t e r c e i r a c o m t ã o e s q u i s i t o g ê n e r o d e g u e r r a e m u m h o m e m q u e d e s u a
M ã e u n ic a m e n t e t o m o u e s te a p e lid o en tre o u tr o s partos. E la o d e u a p e lid a n d o -s e da G u e r
ra; e l e o f o i s e m a q u e l a p r e p o s i ç ã o da, p o r s e r a m e s m a g u e r r a , e n ã o o i n s t r u m e n t o d e l a 57.
54. M. T. Cicero, De oratore, texte établi, traduit et annoté par François Richard, Paris, Gamier, s/d., pp. 290-291.
55. Cf. Diego Saavedra Fajardo, Empresas Políticas (Idea de un Príncipe Político-Cristiano), ed. preparada
por Quintin Aldea Vaquero, Madrid, Nacional, 1976, 2 vols., Empresa by XXVIII: “Es la prudência
regia y medida de las virtudes; sin ella pasan a ser vicios. Por esto tiene su asiento en la mente, y las
demás en la voluntad, porque desde alli preside a todas. [...] Esta virtud es la que da a los gobiernos
las tres formas, de monarquia, aristocracia y democracia, y les constituye sus partes proporciona
das al natural de los súbditos, atenta siempre a sua conservación y al fin principal de la felicidad
política. Ancora es la prudência de los Estados, aguja de marear dei príncipe: si en él falta esta
virtud, falta el alma dei gobierno. [...] Virtud es propia de los príncipes, y la que más hace excelente
al hombre; y así, la reparte escasamente la Naturaleza. A muchos dió grandes ingenios, a pocos,
gran prudência. Sin ella, los más elevados son más peligrosos para el gobierno, porque pasan los
confines de la razón y se pierden; y en el que manda es menester un juicio claro que conozca las
cosas como son, y las pese y dé su justo valor y estimación. Este fiel es importante en el cual tiene
mucha parte la Naturaleza, pero mayor el exercício de los atos”. Cf. também Charron, “La sagesse”,
em Henry Méchoulan (org.), VÉlal baroque - 1610-1652, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin,
1985, p. 193: “Pour garder justice aux choses grandes il faut quelquefois s’en détourner aux choses
petites, & pour faire droict en gros il est permis de faire tort en détail”.
56. “Quand notre conscience nous raproche le mal que nous avons fait, cela s’appelle syndérèse ou
remords de conscience.” Bossuet, Connaissance de Dieu et de soi-mème, cap. 1, § 7. O termo, utilizado
por São Jerônimo, falando da consciência, tem larga circulação escolástica. Santo Tomás de Aquino
o aplica à consciência moral e ao princípio do julgamento moral: “Basilius dicit quod Conscientia sive
Synderesis est lex intellectus noslrí", Sumrna theol. 2a, I, 94, art. I, § 2. Ou: “Synderesis dicitur insligare ad
bonum et murmurare de maio, in quantum per prima principia procedimus ad inveniendum eljudicamus
inventa”, ibidem, 1* parte, 79, art. XII. A sindérese é uma “centelha da consciência”: por ela, mesmo
quando se abandona às paixões, o homem sabe que faz o mal. Cf. André Lalande, Vocabulaire technique
et critique de la philosophie, 5imced., Paris, PUF, 1947, pp. 1066-1067.
57. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, op. cit., p. 1718.
46
UM N O M E P O R F A Z E R
S em p r e v ê e m , e se m p r e falam ,
até q u e D e u s lh es d ep a re,
q u e m lh e s faça d e ju stiça ,
e s t a s á t i r a à c i d a d e 61.
(O C , II, p. 4 3 4 . )
58. É, por exemplo, lugar-comum em Vieira, que faz da allegoria in factis um dos princípios de sua
interpretação tipológica da história. Cf. Padre Antônio Vieira, História do Futuro, Introdução, atua
lização do texto e notas por Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1982; ou Defesa Perante o Tribunal do Santo Oficio, Introdução e notas de Hernani Cidade,
Salvador, Livraria Progresso Editora, 1957, 2 vols.
59. A bucca delia verità italiana dos séculos XVI e XVII é uma escultura colocada em igrejas, principal
mente em Roma, para receber denúncias, acusações, sátiras, pasquins etc. Ela revela publicamente
a verdade. Cf. Peter Burke, “A Arte de Insultar na Itália do Século XVII”, texto de aula de 21.8.1986
sobre Nova História, curso ministrado no 2" semestre de 1986, na Faculdade de Educação da USP.
60. Por exemplo, a interpretação do adultério de Davi e Betsabá por Gregório Magno, em seu Moradia,
faz de Davi, o adúltero, um inocente, e de Urias, o marido traído e morto, um culpado, segundo a
providência divina.
61. Cf. por exemplo OC, V, p. 1076, sobre a peste da “bicha” de 1686: “Ah Bahia! bem puderas / de hoje
em diante emendar-te, / pois em ti assiste a causa / de Deus assim castigar-te”. Em 10.5.1686, a
47
A SÁTI RA E O E N G E N H O
Câmara de Salvador dirigiu o seguinte petitório ao reitor do Colégio dos Jesuítas: “A violência com
que o presente mal continua, sem os remédios humanos o poderem atalhar, nos tem desenganado
ser a causa deste mal, mais a Ira de Deus irritada com nossos pecados, do que outra alguma causa
material: Pretende este Povo alcançar de Deus Misericórdia. E para Medianeiro desta Graça (com
grande confiança e particular devoção) tem feito eleição do Glorioso Apóstolo do Oriente São Fran
cisco de Xavier: Temos feito assento de tomar por nosso Protetor para toda vida. E fazer-lhe todos
os Anos, uma festa aos Dez de Maio com Missa cantada e Sermão aí nesta Igreja do Colégio, e
procissão pela Cidade à custa deste Conselho Quando aprovado o pedido, ressalvou-se, man-
tendo-se as precedências hierárquicas, que “[...] nenhum prejuízo ou diminuição às preeminências
e prerrogativas do nosso principal titular, o Salvador do mundo” resultavam da eleição de São
Francisco Xavier. Cf. Affonso Ruy, História da Câmara Municipal da Cidade do Salvador, Salvador,
Câmara Municipal de Salvador, 1953, pp. 165-166.
62. Cf. Juan Eusébio Nierembcrg, S. J., Causay Remedio de los Males Públicos: “Pudiéranos castigar
Dios; con pestes y hambres, con que si quedáramos reconocidos, quizá no humildes. Mas el consejo
divino ha elegido a nuestra culpa tal gênero de pena que nos haga reconocer que Dios es el Senor
de los ejércitos, que las victorias que ha tenido Espana no tanto se deben a su valor cuanto al
favor divino. Reconozcamos esto, y humillémonos”. Cit. por Francisco Murillo Ferrol, Saavedra
Fajardoy la Política dei Barroco, Madrid, Instituto de Estúdios Políticos, 1957, p. 115. Ou Dom
Pedro de Portocarrero y Gusmán, patriarca das índias e arcebispo de Tiro, Theatro Monarchico de
48
UM N O M E P O R FAZER
Espana: “Dios es principio de toda criatura animada, de cuya voluntad penden todas las cosas; es
absoluto Senor dc esta máquina hermosa dei mundo: en él, a su arbítrio, distribuye los Impérios,
a unos los da, a otros los quita: a aquéllos en prêmio de su virtud, a éstos en castigo de sus culpas
[...] no depende de la fortuna la transmigración de los Impérios, sino meramente dei Criador
universal, que, irritado de los pecados, los castiga desolando sus domínios, sin dejar más sena de
su poder que la confusa memória a la posteridad para el escarmiento común”. Cf. Ferrol,op. cit.,
pp. 116-117. Veja-se também o que relata A. J. R. Russel-Wood, Fidalgos c Filantropos - A Santa
Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1 TI5, trad. de Sérgio Duarte, Brasília, Ed. da UnB, 1981, p.
238: “No século XVIII, a Bahia podia rivalizar com Macau como cidade da luxúria e vício. O rei
temia vivamente que a Bahia tivesse o destino de Sodoma. Na noite de 19 de março de 1721
houve uma violenta tempestade elétrica sobre a Bahia. Um relâmpago fendeu uma pedra da
varanda da Ordem Terceira do Carmo. Outro caiu sobre a janela da casa de um juiz [...] Ao saber
desses acontecimentos, D. João V escreveu ao arcebispo da Bahia sugerindo que se aplacasse a
ira do Todo-Poderoso mediante a celebração de ofícios de devoção em todas as igrejas da Bahia.
Fizeram-se também procissões de penitência”. Cf., ainda, Antonio Freire, A Catarse em Aristóteles,
Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 1982.
63. Baltasar Gracián, “Discurso XII”, El Héroe, em Obras Completas, Madrid, Aguilar, 1967.
64. Cf. Padre Márquez, Gobemador Crisliano (1612), cit. por Ferrol, op. cit., p. 117: “[...] as leis das
Repúblicas cristãs têm mais necessidade de assistência e execução de seus governantes porque são
mais azedas para a sensualidade, e faltando ao olho a esperança do prêmio e o temor do castigo,
relaxa-se a obediência da gente vulgar, tão envolvida em deleites corporais; perigo menos conside
rável em outras Religiões, que dão mais licença aos antolhos dos cidadãos e permitem-lhes ir atrás
deles, sem mais leis que as do gosto" (grifo meu). Lembre-se o soneto Aos Caramurus já referido: “sem
mais Leis, que as do gosto quando erra” (OC, IV, p. 841) (grifo meu), verso que repete literalmente o
final do texto do padre Márquez.
49
A SÁTI RA E O E N G E N H O
65. Cf. Michel de Certeau, A Escrita da História, trad. Maria de Lourdes Menezes, Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 1982, p. 56.
50
UM N O M E P O R FAZ ER
66. Cf. X A. Araripe Júnior, op. cit. Cf. também Alfredo Bosi, “O Leitor de Gregório de Matos”, em
Araripe Júnior, Teoria, Critica e História Literária, seleção e apresentação de Alfredo Bosi, Rio de
Janeiro/Sào Paulo, Livros Técnicos e Científicos/Edusp, 1978.
67. “Os afetos pois veementes, crescidos, e obstinados, são os que engendram, e diminuem os objetos;
eles os desfiguram, e animam; eles os contrafazem, e corrompem; eles os dividem, e confundem,
mutilam, atam; unem; e finalmente eles, arrebatando a alma por vários movimentos, são como as
bravas ondas, que agitadas dos ventos, quebram sobre as praias, aonde apenas rolam nas areias, que
logo retrocedendo, se retiram, e tornando-se para os mares no mesmo súbito instante, sobem em
montes ao Céu, e descem em vales ao abismo. Nesta revolução tempestuosa, os mesmos afetos com
põem a sua locução das idéias, que a fantasia lhes ministra, e como a vexação se comunica com o
engenho, engenhoso é também o seu estilo.” Francisco Leitão Ferreira, Nova Arte de Conceitos, vol. II,
p. 72, cit. por Aníbal Pinto de Castro, Retórica e Teorização Literária em Portugal (Do Humanismo ao
Neoclassicismo), Coimbra, Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1973, p. 213.
51
A SÁTI RA E O E N G E N H O
68. Quentin Skinner, The Foundations of Modem Polüical Thought, Cambridge, Cambridge University
Press, 1978, 2 vols., vol. I, p. 240.
52
UM N O ME P O R FAZER
69. Cf. o soneto de estrutura tipológica em que se monta uma analogia de proporção: Moisés : João de
Lencaslre:: Faraó : Câmara Coutinho (OC, 1, p. 224): “Quando Deus redimiu da tirania / da mào do
Faraó endurecido / o Povo hebreu amado, e esclarecido, / Páscoa ficou da redenção o dia. / Páscoa
de flores, dia de alegria / Aquele Povo foi tão afligido / O dia, em que por Deus foi redimido; / Ergo
sois vós, Senhor, Deus da Bahia. / Pois mandado pela alta Majestade / Nos remiu de tão triste
cativeiro, / Nos livrou de tão vi! calamidade. / Quem pode ser senão um verdadeiro / Deus, que
veio extirpar desta cidade / O Faraó do Povo Brasileiro”.
70. Escolasticamente, a ocasião é uma circunstância ou um conjunto de circunstâncias que favorecem
a ação de uma causa livre. Diferencia-se da condição, pois esta se refere a qualquer causa eficiente.
Supõe-se que a ocasião atua sobre a vontade do agente de modo imediato, uma vez que remove
obstáculos interpostos em sua ação e, ainda, porque induz a vontade a cooperar posiiivamente. A
ocasião é um incentivo para a ação. No século XVII, é um conceito político, com o sentido de
“concurso de causas que abre caminho à grandeza”. Ela é, assim, instrumento da ação. Cf. F. M.
Ferrol, op. cit., p. 123. Segundo o século XVII ibérico, neo-escolástico, três causas concorrem para
fundar o Estado, conservá-lo e aumentá-lo: Deus, prudência, ocasião.
71. Cf. Aníbal Pinto de Castro,op. cit., pp. 219-220: “Todo o Universo, como ensinava a filosofia tomista,
se ordena em função da harmonia, isto é, da correspondência estabelecida entre as coisas e os
seres, criados ou possíveis. E dessa harmonia derivam todos os conceitos metafóricos que tomam
nomes diferentes, conforme a agudeza sobre que se fundamentam. Esta consiste na semelhança e
proporção que o engenho e a fantasia estabelecem entre os diferentes elementos que o entendi
mento lhes forneceu. O resultado do seu trabalho é a harmonia entre os objetos correlatos, que
seria tanto mais sutil e sonora, quanto mais afastados aqueles fossem”.
53
A SÁTI RA E O E N G E N H O
54
UM NO ME P OR FAZER
72. Cf. Guido Atorpurgo Tagliabue, “La Reiorica Aiistotelica e il Barocco", em III Congresso
Internazionale di Studi Umanistici, a cura de Enrico Castelli, Venezia, 15-18 giugno 1954. Aui:
Reiorica e Barocco, Roma, Fratelli Bocca Edilori, 1955, p. 144.
73. Na sátira atribuída a Gregório, isto é muito evidente na caracterização dos governadores Antônio
de Sousa de Meneses, o “Braço de Prata”, e Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, e na
caracterização de religiosos, principalmente os frades.
74. Cf. argumentação semelhante em William S. Anderson, Essays on Roman Saiire, Princeton, Princeton
University Press, 1982, p. 313.
55
A SÁTI RA E O E N G E N H O
cepção em sua maioria analfabeta - a abria para a audição, não para a leitura.
Nesta linha, certo inacabamento dela, esboçada rapidamente como um bor
rão entendido muitas vezes como marca de sua inferioridade estilística, é
bem a sua adequação à recepção, no mesmo sentido aristotélico da adequação
dos discursos do gênero demonstrativo às grandes assembléias movimenta
das e ruidosas75.
Os poemas teatralizam não só um tema na circunstância de sua represen
tação, mas também seu código de recepção. Lê-los não só por um nexo temá
tico, mas também por sua articulação pragmática, à qual os temas se subordi
nam, permite constituir tipos e caracteres dramatizados neles. Com a
terminologia de Austin76, pode-se dizer que a sátira é dupla também como
tipologia discursiva, uma vez que apresenta discursos assertivos ou constativos
e, simultaneamente, discursos performativos. Ela representa caracteres e ti
pos referencialmente e, ao mesmo tempo, dobra-se sobre si mesma, tomando
a própria enunciação como tema, focalizando suas regras de intervenção e,
assim, seus interlocutores. Nela, a metáfora é simultaneamente referencial e
valorativa, mimética e judicativa: a mesma performatividade julga a carica
tura efetuada, explicitando para destinatários discursivos e receptores empí
ricos a natureza da sua convenção.
A sátira efetua performativamente várias situações jurídicas do século
XVII português: o estudo do modo pelo qual apersona satírica representa sua
situação de enunciação, articulando-a em valores de determinada posição na
ordem social que a autorizam a falar, deve relacioná-la com a situação da
segunda pessoa e, ainda, da terceira, satirizadas no enunciado em posições
inferiores. Seu procedimento principal é a distribuição dos corpos de lingua
gem pela hierarquia e, simultaneamente, a constituição de regras da excelên
cia ou código de honra, cuja referência central é o Direito Canônico. Violado
por paixões, que são a contrapartida viciosa de suas virtudes alegadas, o códi
go de honra reitera a hierarquia e faz propaganda dela, quando efetua os vícios
como ridículos, imorais e irracionais, opondo a eles o ideal de integridade do
corpo místico da República:
75. Cf. Wesley Trimpi, “Horace’s ui Piciura Pocsis: The Argument for Stylistic Decorum”, Tradilio (Siudies
in Andem and Medieval Hislory, Thoughl and Religion), New York, Fordham University Press, vol.
XXXIV, p. 33, 1978. Cf. também, do mesmo autor, no mesmo volume, “The Early Metaphorical
Uses of SKIAGRAPHIA and SKENOGRAPHIA”
76. Cf. J. L. Austin, How lo Do Things wilh Words, Oxford, Clarendon Press, 1962. Cf., ainda, Osvvald
Ducrot, “Actos Linguísticos", em Enciclopédia Einaudi, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moe
da, 1984, vol. 2 (Linguagem-Enunciação),
56
UM N O ME POR FAZER
E ia, e s ta m o s na B ah ia,
o n d e agrada a a d u lação,
o n d e a v erd a d e é b a ld ã o
e a v ir tu d e h ip ocrisia:
s ig a m o s esta h a r m o n ia
d e tão fátu a c o n so n â n c ia ,
e in d a q u e seja ig n o r â n c ia
seguir erros c o n h ecid o s,
S eja m -m e a m im p erm itid os,
s e e m s e r b e s t a e s t á a g a n â n c i a 77.
( O C , II, p. 4 4 8 . )
Como escreve Morpurgo Tagliabue, que retoma um lugar78 hoje não muito
comum no Brasil, os instrumentos retóricos constituíram esquemas da humanitas,
do século XV ao XVII. As categorias retórico-poéticas, nas quais se fixaram cer
tas disposições de culturas hoje unificadas como “Barroco”, especificam práti
cas, algumas hoje tombadas em dessuetude, fundamentais para a distinção da
atividade satírica no século XVII. A Retórica se impõe programaticamente, como
lá, aqui neste trabalho, buscando adequação histórica ao objeto estudado: evitan
do o anacronismo da reconstituição expressiva ou realista de supostas
positividades supostamente depositadas na sátira. Emoções há, obviamente, al
gumas intensas; mas é pela articulação retórica dos poemas que se podem cons
truir, a partir dos verossímeis e inverossímeis que efetuam, as regras de produ
ção dos afetos e imensidades dramatizados neles; entre eles, a obscenidade,
também codificada. Aliás, a má reputação da sátira , que a faz objeto do desejo
como discurso a ser censurado pudibundamente como indecência ou avançado
entusiasticamente como contestação, não leva em conta o básico de sua
preceptiva: a sátira não está, de modo algum, contra a moral. Ocorre nela, é certo,
alguma desproporção entre a racionalidade que prescreve e o desenvolvimento
obsceno e escabroso dos temas. Algo semelhante se encontra nos Exercícios Espi
rituais, de Loyola, como método de educação da vontade, propondo a represen
tação sensível e muitas vezes horrível dos objetos da meditação. É interessante
lembrar, com Michel de Certeau, que Inácio de Loyola,Teresa de Ávila e muitos
outros quiseram entrar para uma ordem “corrompida” não porque simpatizas
77. Cf., ainda, OC, I, p. 205: “Porém Sua Majestade,/ Qual Príncipe Soberano, / que não se indigna de
humano/ sem dano da dignidade: / conhecida esta verdade,/ que é verdade conhecida, /fará justiça
cumprida, / para que se lhe agradeça, / que o mau nu própria cabeça / traga a justiça aprendida”.
78. Cf. Guido Morpurgo Tagliabue, op. cit., p. 128.
57
A SÁTI RA E O E N G E N H O
sem com a corrupção, mas porque esses lugares quase desfeitos, de abjeção e
prova, como em certo sentido poderíam ter sido os “desertos” para onde partiam
os monges a fim de combater os maus espíritos, como lugares que não garantem
a salvação nem a identidade, representavam a situação efetiva do Cristianismo
contemporâneo deles79. Contraponto: ocupar-se do vil, do ínfimo e do sórdido
como tática e estratégia de outra instauração é também o movimento moral
encontrável na sátira. Nela, a obscenidade produz monstros que ilustram a
normatividade da Lei. Movimento contraditório, aparentemente: se a virtude é
por definição racional, o que significa a intervenção irada da persona satírica,
quando efetua na sua indignação a ausência de racionalidade na Cidade? Signi
fica, aparentemente, uma palavra virtuosa, que corrige - mas, se é irada, como é
virtuosa?80Isto, tanto quanto a obscenidade, está previsto pela amplificação re
tórica da elocução, em função do delectare, como se vê ainda neste capítulo e no
capítulo IV.
A sátira seiscentista, prudente comédia das punições, obedece a regras preci
sas, que a fazem funcionar, como na Vida escrita pelo licenciado Rabelo, como fei
xe poético de relações anônimas de forças da Cidade. Está prevista institucional
mente, uma vez que, conforme a tradição retórica reciclada, cabe aos mimos
etólogos ultrapassar a medida, cair na obscenidade e propor a virtude81:
[...] é já v e l h o e m P o e t a s e l e g a n t e s
o ca ir e m to rp eza s se m e lh a n te s.
( O C , I, p. 1 5 5 .)
58
UM N O ME POR FAZER
83. Cf. Paul Zumthor, F.ssai de poélique médiévale, Paris, Seuil, 1972, pp. 134-137.
84. Cf. Baltasar Gracián, “Discurso XXVIII - De las Crisis Juiciosas”, Agudezay Arte de Ingenio em
Obras Completas, Aladrid, Aguilar, 1967, pp. 370-376.
85. Idem, p. 371.
59
A SÁTI RA E O E N G E N H O
el silencio ignorância,
d valor arrogancia,
la prodigalidad, domure,
el ser vicioso es gala,
y el no seguir esta opinión desaire e le .
Se q ueres v er d o M u n d o u m n o v o M a p a
O ite n ta a n o s, a ten ta d esta cep a
p o r o n d e e m r a m o s a c o b iç a trepa
e e m a r a n h a d a faz d o tr o n c o lapa.
M o r d e c o m d en te s, q u e n ão te m ca papa
c o m a lín g u a fere, c o m a m ã o d ecep a
so ld a n d o o p o sto , liv re de carcpa
q u e d e ta r d e , e m a n h ã r a iv o s o rapa.
O s o lh o s d e á g u a , as fa ces d e tu lip a
e cada u m d o s p e s d e p au g arlop a
a boca g ra n d e, o corp o de c h a lu p a
A b o fé m u i t o , e m u i t o p o u c a tripa
c a m i n h a M u s a , p o r q u e a t u d o topa
é A p a, Hpa, Ipa, O p a, U p a ' \
Por consoantes forçados - “apa, epa, ipa, opa, upa” - que na época são
codificados como jocosos ou cômico-burlescos, o soneto de Bernardo mantém
a estrutura definicional ou sentenciosa do poema citado por Gracián. A res
posta de Vieira é outro soneto com os mesmos consoantes, mas decididamen
te moral:
S ob e B e rn a rd o da E te r n id a d e ao M a p a
d eixa do v elh o A d ã o a m ortal cepa
p e lo L e n h o da C r u z ao L m p í r e o trepa
c o m e ç a n d o e m B e l é m n a p o b r e L a p a . 68
86. “Soneto dc Bernardo Vieyra Ravasco secret. do Estado do Brasil a seu Irman o padre Antonio
Vieyra consoantes forçados”, Poesias de Gregorio de Manos. Nota de Vale Cabral - “Cópia feita cm
Évora pelo dr. Lino de Assumpção em maio de 1989”. Cofre 50, Códice 56, Seção de Manuscritos da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
60
i
UM N O M E POR FAZER
M a i s q u e R e i p o d e ser, e m a i s q u e P a p a
q u em d e seu coração vício s d ecep a
q u e a g ren h a d e S an são, tu d o é carepa
e a g a d a n h a d a m o r t e t u d o rapa!
A flor da v id a , é co r d e tu lip a
t a m b é m d o s se co s a n o s é garlop a
q u e co rta , c o m o ao m ar, corta a c h a lu p a
N ã o h á m i s t e r q u e o f e r r o c o r t e a t r ip a
S e n a p a r l e v i t a l já t u d o t o p a
E m A p a , e p a , i p a , o p a , u p a * 7.
N e s t e m u n d o é m a i s r ic o o q u e m a i s r ap a;
Q u e m m a i s l i m p o se fa z t e m m a is carep a;
C o m s u a l í n g u a , a o n o b r e o v il d e c e p a ;
O v e lh a c o m a io r se m p r e te m capa.
M o stra o p a tife da n o b reza o m apa;
Q u e m t e m m ã o d e a g a r r a r , l i g e i r o tr e p a;
Q u e m m e n o s falar p o d e , m a is increpa;
Q u e m d i n h e i r o t iv e r , p o d e s e r P a p a .
A flor b a i x a se in c u l c a p o r Tu lip a;
B e n g a la h o je na m ã o , o n te m garlopa;
M a i s is e n t o se m o str a o q u e m a is ch u p a ;
P ara a t r o p a d o t r a p o v a z o a t r ip a ;
E m a is n ão digo; q u e a M u sa topa
E m a p a , e m e p a , c m i p a , e m o p a , e m u p a ss.87
87. “Soneto do padre Antonío Vieyra. Em resposta ao antecedente de seu irman pelos mesmos con
soantes”, op. cit. na nota 86.
88. Cf. Antônio Dimas, “Gregório dc Mattos Guerra ao Português”, em Roberto Schwarz (org.), Os
Pobres na Literalura Brasileira, São Paulo, Brasiüense, 1983. Dimas demonstra bem como a estrutura
sintática do soneto diagrama posições sociais extremas - por exemplo, em “Bengala hoje na mão,
ontem garlopa”. A interpretação do soneto como ataque a portugueses comerciantes torna-se im
provável, contudo, quando o ataque à corrupção deles é generalizado como oposição política
antimetropolitana.
61
A SÁTI RA E O E N G E N H O
89. Indicando a longa duração das tópicas paremiológicas, encontra-se, numa das sessões da Acade
mia dos Esquecidos, realizada em continuação à Conferência do coronel José Pires Carvalho, em
21 de janeiro de 1725 , um “soneto burlesco” péssimo, de autor anônimo, que desenvolve o “Primei
ro Assunto”: “Diógenes buscando com uma luz nas horas do dia um homem na Praça de Atenas”,
tema típico da diluição setccentista das agudezas do século XVII: “Diógenes faminto, pouca tripa /
Infrutífero tronco, inútil ccpa / Parto da fome, emprego da carcpa / Ilabitador do casco de uma
pipa. / A luz que um garabato [ste] participa / Em Atenas achar um homem increpa / Corre Praças,
vê becos, muros trepa / Iguais ao Panteon de Marco Agripa. / O Painel da pobreza, ocota capa [ste]
/ Que a escudela quebrou, fez das mãos copa / Quem cá o introduziu e fez de chapa. / Se na corte
da Grécia, homem não topa, / E capaz de não ver Mundo no Mapa / Nem no Bairro da Alfama uma
cachopa". Cf. José Aderaldo Castello, O Movimento Acadcmicisla no Brasil: l 641-1820-1S22, São
Paulo, Conselho Estadual de Cultura, Comissão de Literatura, 1969, vol. I, tomo 4, p. 191.
62
UM N O ME POR FAZER
90. Cf. Rabelo, “Vida do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório de Matos e Guerra”, em James
Amado, op. cil., vol. VII, pp. 1706-1709.
91. Cf. Iuri Lotman, Sémaniique du nombre et lypes de culiure, Paris, Seuil, 1968.
63
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
fala como um arauto que anuncia publicamente o que tem a dizer, incorpo
rando ao ato de fala um público produzido nele, evidencia a previsibilidade
do anúncio: apersona vai falar do falado, que é a medida do falável. Esta circu
laridade de código é que faculta os procedimentos da metonímia, pelos quais
a inclusão e a justaposição de mais um retalho de fala estão previstas. A sátira
é estruturalmente aberta e, no caso em questão, a abertura faz dela uma for
ma da oralidade e da audição, segundo a temporalidade curta da praça e das
ruas. A própria generalidade da caracterização dos tipos, suficientemente
esquemática para adaptar-se criticamente a pessoas de várias posições, indica
não uma falta de acuidade de observação “realista”, mas a reciclagem fácil92.
Tem-se hoje, quando ainda se é moderno, o hábito de ler esses poemas
com os olhos da modernidade, que são os nossos: ao fazê-lo, buscamos neles a
experiência de uma originalidade radical da letra, movidos que somos pela
estetização da experiência estética como esfera autônoma, negatividade e
promessa de felicidade utópica. Falamos, por exemplo, da “inventividade”
ou da “ruptura” e mesmo da “revolução” de tal metáfora ou poema. Talvez
nada fosse mais estranho à poesia satírica que correu em Salvador em fins do
século XVII que essa estetização, pois essa poesia é, antes de tudo, uma inter
venção que produz um rosto anônimo em que alguém se reconhece: a “popu
lação”, rusticamente aguda, com um gosto acentuadíssimo por pompas, apara
tos, divertimentos e duplo sentido das palavras, que a sátira cuida de atender,
em sua linguagem excessiva, agudamente rústica, criticando-lhe os excessos.
Como escreve Zumthor para a Idade Média, também os poemas satíricos
seiscentistas funcionam em condições teatrais: como comunicação entre um
cantador e seu auditório93, tornando-se obras no ato da sua atualização oral. A
oralidade, que hoje lemos nos textos, implica o tempo curto da praça e da rua,
como foi dito, que é observável, por exemplo, nas variantes dos códices. Isto
também quer dizer que a sátira aplica dispositivos para simular o espaço pú
blico do “bem comum” na formulação oral: ela é regulada em termos do m
picturapoesis horaciano, que implica o cálculo das distâncias a serem tomadas
para a sua recepção adequada por meio da maior ou menor abertura dos pro
cedimentos descritivo-narrativos. Comum, por exemplo, é a formulação dra
matizada da enunciação, cuja mobilidade diagrama as distâncias da emissão
de vozes. Além dessas distâncias espaciais, a polifonia esboça a distância hie
rárquica das falas94.
92. Cf. Paul Zumthor, Essai de poéliquc médiévale, op. cit., p. 39,
93. Idem, p. 37.
94. Será mais improvável pensar que alguns poemas tenham sido compostos oralmente seguindo pa
drões da escrita? A prática muito difundida do mole e glosa indica a permanência da oralidade
64
UM NO ME P O R FAZER
L im . - C h ic a , q u e é d e Ila r in h a ?
d iz e , n eg ra d o d iab o.
Vai v ê -la , s e n ã o te u rab o
p agará, p o r vid a m in h a ;
C h ie . - E u n ã o sei da m u la tin h a ,
n e m m e e n t e n d o c o m p ap éis:
q u e m d e u c in q ü e n ta m il-réis
e d e v e de ter em casa
p o r q u e a q u i n u n c a fez vaza.
L im . - O p u to n a , isso d izeis?
( O C , IV, p. 1 0 8 0 . )
nessa poesia; contudo, torna-se difícil determinar a circunstância da glosa, se foi produzida por
escrito imitando padrões ou da escrita ou da oralidade, se foi produzida oralmente imitando os
mesmos padrões. A anedota contada por Rabelo sobre Gonçalo, filho de Gregório e de dona Maria
dos Povos, proibido pela de mãe de pegar da pena sob ameaça de maldição, é sugestiva. O rapaz diz
a quem lhe dá o mote “Com que, porque, para que”: “Pegai vós da pena, porque a maldição de
minha Mãe parece que não me proíbe fazer versos, e sim pegar na pena para os escrever”, fazendo
a glosa: “Disse Clóri, que me amava / para o intento, que tem, / o qual não disse a ninguém, / nem
o porque declarava: / eu então lhe perguntava / com que gênero de fé, / suspensa a Dama se vê, /
que como nada respondeu, / não pude saber o seu / com quê, porquê, para quê”. Cf. Licenciado
Manuel Pereira Rabelo, “Vida do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório de Matos e Guerra",
em James Amado (org ), op. c i l . , vol. VII, p. 1720.
95. “As duas mulatas presas finge o poeta, que visita nestes dous sonetos interlocutores. Fala com a
mãe" (OC, V, p. 1171): “Perg. Dona Secula in seculis Ranhosa, / Por que estais aqui presa, Dona
Paio?/Resp. Dizem, que por furtar um Papagaio: / Porém mente a querela maliciosa. / Perg. Estais
logo por ladra, e por gulosa: / Não vos lembra o jantar de Fr. Pelaio? / Resp. Então traguei de carne
um bom balaio, / e de vinha uma selha portentosa. / Perg. Para tanto pecado é curta sala, / Ide para
a moxinga florescente, / Onde tanta vidrada flor exala. / Resp. Irei, que todo o preso é paciente; /
Porém se hoje furtei cousa, que fala,/' Amanhã furtarei secretamente”; / e “Fala o poeta com a filha”
(OC.V.p. 1172): “Perg. Bertolinha gentil, pulcra, e bizarra,/ Também vos trouxe aqui o Papagaio?
/ Resp. Não, Senhor: que ele fala como um raio, / E diz, que minha Mãe lhe pôs a garra. / Perg. Isso
está vossa Mãe pondo à guitarra, / E diz, que há de pagá-lo para Maio. / Resp. Ela é muito animosa,
e eu desmaio, / Se cuido no Alcaide, que me agarra. / Perg. Temo, que haveis de ser disciplinante /
Por todas estas ruas da Bahia, / E que vos há de ver o vosso amante. / Resp. Quer me veja, quer não:
estimaria, / Que os açoutes se dêem ao meu galante, / Porque eu também sei ver, e vê-lo-ia”.
65
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
Q u e m d e u à P e m b a f e i t i ç o s ? .................. M e s t i ç o s
E q u a is s ã o o s s e u s o b j e t o s ? ....................P r e to s
Q u a is d e l e s l h e s ã o m a is g r a t o s ? ..........M u la t o s .
É lo g o d e c ã e s e g a t o s
a P em b a p o r seu d e sd o u r o ,
p o is lh e v ã o s o m e n te ao c o u r o
M e s t i ç o s , P r e t o s , M u la t o s .
96. Ou 218, se se considera a inserção, por falha de paginação no volume V, do soneto que começa
"Inda que de eu mijar tanto gosteis”, que se encontra no volume VI, p, 1334. Apresentam um
sistema de rimas bastante convencional: a) Do tipo ABBA/ABBS/CDC/DCD, clássico nas
preceptivas dos séculos XVI e XVII, 162 sonetos.
b) Do tipo ABBA/ABBA/CDE/CDBjomum na lírica de Camões, 45 sonetos-entre eles. a belíssima
imitação de Garcilaso de La Vega e Góngora, “Discreta, e formosíssima Maria”. “Discreta, c
formosíssima Maria,/Enquanto estamos vendo a qualquer hora / Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos, e boca o Sol, e ü dia: / Enquanto com gentil descortesia / O ar, que fresco Adônis
te namorajl Te espalha a rica trança voadora, / Quando vem passear-te pela fria: / Goza, goza da
flor da mocidade, / Que o tempo trota a toda ligeireza, / E imprime em toda a flor sua pisada. / Oh
não aguardes, que a madura idade / Te converta em flor, essa beleza / Em terra, em cinza, em pó,
em sombra, em nada” (OC, IV, p. 659).
Cf. também Garcilaso de ia Vega, Obrai, 5. ed., Prólogo de Antonio Marichalar, Buenos Aires,
Espasa-Calpe Argentina, 1951, p. 150: “En tanto que de rosa y azuccna / se muestra la color en
vuestro gesto, / y que vuestro mirar ardiente, honesto, / enciende al corazón y lo refrena: / y en
66
U M N O M E POR F A Z E R
tanto que el cabello, que en la vena / dei oro se escogió, con vuelo presto, / por el hermoso cuello
blanco, enhiesto, / el viento mueve, esparce y desordena: / coged de vuestra alegre primavera / el
dulce fruto, antes que el tiempo airado/ cubra de nicve la hermosa cumbre. / Marchitará la rosa el
viento helado, / todo lo mudará la edad ligera, / por no hacer mudanza en su costumbre”.
E, ainda, D. Luís de Góngora, Recopilación, Obras Completas, Prólogo y notas de Juan Mille y
Gimenez y Isabel Mille y Gimenez, Madrid, Aguilar, 1972, p. 447: “Mieniras por compelir con lu
cabello, / oro brunido el Sol relumbra en vano, / mieniras con menosprecio en medio el llano / mira tu blanca
frente al hlio bello: / mientras a cada labio, por cogello, / siguen más ojos que al clavel temprano, / y
mientras triunfa con desdén lozano / de el lucienie cristal lu gentil cuello; / goza cuello, cabello, labio y
frente, / antes que lo que fué en tu edad dorada / hlio, clavel, cristal lucienie / no solo en plala o viola
troncada / se vuelva, mas tú y ello juntamente / en tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada”. Cf.
também Góngora, op. cit., p. 450, o soneto que começa “Ilustre y hermosíssima Maria”.
c) Com tercetos ABA/ABA, repetindo-se rima e termos dos quartetos, dois sonetos, tratando-se de
variações do lugar-comum escolástico do “todo contido na parte”. A repetição de rima e termos,
em ambos, é devida ao binarismo da demonstração analógica que opõe c identifica “todo” e “par
te . Encontram-se no vol. I da edição de James Amado, páginas 43 e 44: “Entre as partes do todo a
melhor parte” e “O todo sem a parte não é todo”.
d) Com tercetos CDD/CDD, dois sonetos (OC, III, p. 679; OC, VI, p. 1536).
e) Com tercetos CCC/CCC, um soneto (OC, IV, p. 841). É o que critica os Caramurus: “Um calção
de pindoba a meia zorra”.
f) Com tercetos CDE/DCE, um soneto (OC, IV, p. 853).
g) Com t e r c e t o s CDC/CCC, d o i s s o n e t o s (OC, IV, p . 8 9 1 ; OC, V I , 5 5 9 ) . p . 1 5 1 9 ) .
h) Com tercetos CDE/DED, um soneto (OC, V, p. 1206). É o que ironiza os sebastianistas, propos
tos como “Bestianistas”.
0 Com quartetos AAAA/AAAA e tercetos convencionais CDC/DCD, um soneto (OC, VII, p. 1638).
67
A SÁTI RA K O ENGF. NHO
N ã o v o s p u d e m erecer,
p o rq u e n ã o p u d e agradar,
m a s e u h e i d e m e v in g a r ,
C a t o n a , c m m a is v o s q u e r e r :
v ó s sem p re a m e aborrecer
c o m ó d i o m o r t a l, e a tr o z ,
e e u a s e g u i r - v o s v e lo z :
se s o is v e r e m o s e n f im
m a is f ir m e e m f u g ir - m e a m im ,
q u e e u e m s e g u ir - v o s a v ó s .
( O C , V I, p. 1 4 0 4 .)
Tanto décimas quanto romances compõem-se, como foi dito, com frag
mentos de discursos repetidos em vários poemas. Por exemplo, padrões como:
H á cousa como: “ H á c o u s a , c o m o v e r o só M a n d u ” , “ H á c o u s a c o m o v e r u m P a ia iá ” ;
Senhor, Senhora: “ S e n h o r s o ld a d o d o n z e l o ”, “ S e n h o r c o n f r a d e d a b o t a ” , “ S e n h o r a C o ta
V ie ir a ” , “ S e n h o r a d o n a f o r m o s a ” ; “ S e n h o r a D o n a B a h i a ” ; Valha o diabo: “ V a lh a o d ia b o
o c o n c e r t o ” , “ V a lh a o s d ia b o s o s c a j u s ” ; Dou ao demo: “ D o u a o d e m o o s i n s e n s a t o s ” ,
“ D o u a o d e m o a g e n t e a s n a l ” ; Adeus: “A d e u s , A m i g o P e d r a l v e s ” , “A d e u s , m e u
68
UM NO ME POR FAZ ER
“g a t o p o r l e b r e ” ; “ c m c a s a c o m e B a le ia / n a ru a e n t o j a m a n j a r e s ”; “ u m f a la r p o r e n t r e
d e n t e s ” ; “ d o r m ir a o l h o s a le r t a ” ; “ m a n d a r b r in c o d e s a n g r ia s ” ; “ L iv r e D e u s ” ; “ B a n g u ê
q u e s e r á d e t i ” ; “ d a r à s d e V ila D i o g o ” e tc .
“ n ã o te e n v e r g o n h a s , m a g a n o ? ” ; “ m ila g r e s d o B r a s il s ã o ” ; “ M a s n ã o o s a ib a n i n g u é m ”;
“ p o n t o e m b o c a ” ; “ B o a h i s t ó r i a ” , “ B o a a s n e ir a ” ; “A n j o b e n t o ”; “ q u e a m a n h ã v e m l o n
g e ” e tc .
97. Cf. Paul Zumthor, Essai de poélique médiévale, op. cil, pp. 134-137.
98. Idcm, p. 88.
69
A SÁTI RA E O E N G E N H O
Afirma-se com isto que a sátira produzida na Bahia no século XVII tem
tripla articulação: uma é metalingüística, entendendo-se pelo termo a tradu
ção e a conexão do poema particular por determinada forma ou gênero retórico-
poéticos, seus modelizadores: tópicas do louvor e da vituperação do gênero
epidítico; formas poéticas; soneto, romance, décima, epílogo, mote e glosa,
medida nova, medida velha, tipos e esquemas de rimas etc.; motivos tradicio
nais, como o da Fortuna, o do marido corno, o do órgão feminino como “vaso”,
o do amor da freira, o do tamanho do pênis, os da escatologia etc. A outra
articulação é a dos discursos locais, que tematizam personalidades e ações
propostas como eventos desviantes da normalidade institucional, dos quais
se mantêm poucos traços estilizados, amplificados e deformados fantastica
mente nas tópicas. Por exemplo, relação sodomíta de Câmara Coutinho e seu
secretário, Luís Ferreira; revolta da Infantaria à falta das “farinhas tardas”;
crítica à “justiça bastarda” do Tribunal da Relação; ataque aos negociantes
monopolistas da Junta do Comércio; certa prostituta da Cajaíba; andanças
70
UM N O M E POR FAZER
S a iu a s á t ir a m á ,
e e m p u r r a r a m -m a os p rev erso s,
q u e n i s t o d e f a z e r v e r s o s e u só t e n h o j e i t o cá:
n o u t r a s o b r a s d e t a le n t o
e u s o u s ó o a s n e ir ã o ,
e m s e n d o s á t ir a , e n t ã o
e u só t e n h o e n t e n d i m e n t o .
( O C , III, p . 7 0 6 .)
L a t is , c c u i d a i s q u e e u m o r r o
d e o u v ir o v o s s o la tir , 9
99. Cf., por exemplo, “Ao capitão José Pereyra por alcunha o Sete Carreiras com caprichos de poeta
sendo ele ignorantíssimo” (OC, II, p. 359). Cf, ainda, com a exageração típica da maledicência
satírica: “Que versistas a milhares / queiram só por seu regalo / andar no alado cavalo, / devendo
ser alveitares: / que intentem por singulares / todo o aplauso, que mais campa, / e depois saiam na
estampa / com uma destampatória! / Boa história / [...] / que hajam mil de escorricaques,/que com
satíricos modos / zingando estejam de todos: / e que não se temam mil coques: / que falando com
remoques, / eles não queiram ser lidos / por toleirões, e atrevidos, / tendo uma língua irrisória! /
Boa história” (OC, II, pp. 499-500). Ou ainda: “[...] anda aqui a poesia a trote” (OC, III, p. 711).
71
A SÁTI RA E O E N G E N H O
e e u z o m b o d e v ê - l o o u v ir ,
p o r q u e q u e m la t e , é c a c h o r r o :
v ó s la t is , e e u m e d e sfo r r o
d a n d o - v o s e s t a s p e d r a d a s [...]
(O C , III, p . 7 3 8 .)
Q u is p o r s e r e m t u d o n o v o ,
q u e é s o m e n te o q u e e le q u er,
te r c o n s i g o u m a m u lh e r ,
que é também de todo o povo:
e u só n e s t a p a r t e o lo u v o
d e d is c r e to , e d e e n te n d id o ,
p o i s q u e q u i s s e r s e u m a r id o
100. A didascália diz “Esta satyra dizem que fez certa pessoa de auctoridade ao Poeta, pelo ter satyrizado,
como fica dito, e a publicou em nome do Vigário Lourenço Ribeyro” (OC, IV, p. 782).
101. O destinatário “Gregório” é chamado de “asninho parlafrém”, “corno” (OC, IV, p. 783); mau poeta:
“Nunca soube fazer verso, / senão como tiririca” (p. 785), “Letrado de três por dous vinténs” (p.
785)',juiz inepto: “asneirão” (p. 7&5); autor de furtos literários: “gato do Parnaso de Quevedo” (p. 786);
herético: “[...] nele a heresia sobra, / e lhe falta o ser cristão” (p. 788). Razões para os insultos: Já que
a todos descompõe, / quis agora por meu gosto, / que ele fosse o descomposto, / para ver se se
compõe: / mil males sobre si põe, / quem de todos fala mal / e assim que já cada qual / me pode
dizer amém: / mas não o saiba ninguém” (OC, IV, p. 788).
102. O outro insulto atroz consiste em chamar alguém de “ladrão”, devendo-se lembrar que a teologia-
política do século XVII conceitua o Tesouro como res quasi sacra.
72
UM N O M E POR FAZER
ju n ta m e n te co m m a is cem ;
m a s n ã o o s a ib a n i n g u é m .
( O C , IV, p . 7 8 3 .)
Q u e há de pregar o cachorro,
s e n d o u m a v il c r ia t u r a ,
s e n ã o s a b e d a e s c r it u r a
m a is q u e a q u e la , q u e o p ô s fo r r o ?
Q u e m lh e d á a ju d a , e so c o rro ,
s ã o q u a tr o s e r m õ e s a n t ig o s ,
q u e l h e v ã o d a n d o o s a m ig o s ,
e se a m ig o s tem u m c ã o ,
m i la g r e s d o B r a s il s ã o .
(O C , IV , p . 7 9 1 .)
103. “Escandalizado o Poeta da sáiira antecedente, e ser publicada em nome do Vigário de Passe Lourenço
Ribeiro homem pardo, quando ele estava inocente de fatura dela, e calava porque assim lhe convi
nha: lhe assenta agora o Poeta o cacheiro com esta petulante sátira” (OC, IV, pp. 790-793).
73
A SÁTI RA E O E N G E N H O
D o u t o r G r e g ó r io G u a r a n h a 1045106
p ir a t a d o v e r s o a l h e i o ,
c a c o , q u e o m u n d o tem c h e io ,
do q u e de Q u eved o apanha:
já s e c o n h e c e a m a r a n h a
d a s p o e s ia s , q u e v e n d e s
p o r tu a s , q u a n d o as e m p r e e n d e s
t r a d u z ir d o C a s t e lh a n o ;
n ã o te e n v e r g o n h a s, m a g a n o '
(O C , IV, p p . 7 9 4 - 8 0 3 .)
104. Cf. Quintiliano, Inslilulio oraloria, trad. Henri Bornecquc, Paris, Garnier, s/d,, 4 vols 3, 7, 10-25.
Por exemplo: “um Cão revestido em Padre", “podengo asneiro” (OC, IV, p. 790); “lios e lias do
Congo”, “suando o mondongo”, “o cachorro”, “um cão" (p. 791); “o Perro” (p. 792); “o Mulato”, “o
insensato / do canzarrào”, “sangue de carrapato”, “estoraque de congo” (p. 793) etc.
105. “Resposta do Vigário Lourenço Ribeiro escandalizado de que o Poeta o satirizasse do modo que
fica dito” (OC, IV, pp. 794-803).
106. A edição James Amado dá “Guaranha”, sendo melhor a lição da Academia Brasileira de Letras,
“Gadanha”. O poema tem 28 estrofes de nove versos. As estrofes 1, 2, 3 e 4 desenvolvem o tema do
“furto literário”. Nas restantes, predomina a vituperação segundo a tópica da “origem”. Vejam-se,
resumidamente: 5 - gênio maledicente de Gregório; 6 - genealogia: Pai de Gregório; 7 - genealogia:
Avô; 8 - covardia de Gregório: “[...] porém se em nada és guerreiro / para que te chamas guerra, /
e a fazes a toda a terra / eo’a língua, que é maior dano?”; 9 - genealogia: Avó (avô cornô); 10 -
mulher de Gregório; 11 - difamação da mulher; 12 - genealogia: Pai, Mãe; 13 - genealogia: Irmãs
Putas; 14 - genealogia: sujeira do Pai; 15 - genealogia: Irmão “um labeu da Companhia” “outro
sequaz de Epicuro”; 16 - genealogia: Irmão sodomita e mau letrado; 17 - genealogia: Irmão metido
em confusão com negra; 18 - genealogia: Irmão pícaro; 19 - genealogia: Irmão pícaro; 20 - acusa
ção de heresia; 21 - luxúria: recusa da murça capitular para “casar como insano”; 22 - mau jurista;
23-m au jurista: “tua ciência é falhada”; 24-falta de vergonha; 25 - maus antecedentes em Portu
gal, fuga para a Bahia; 26 - covardia: “galinha entre gente”; 27 - vícios: “teus males, e não bens”; 28
- ameaça de agressão física: “[...] hás de apanhar / mais de quatro bordoadas, / e com maiores
pancadas, / que as do teu papel insano” (OC, IV, pp. 794-803).
74
i
UM N O ME POR FAZER
O so n e to , q u e m a n d a ste
ao A r c e b is p o e le g a n te
é d o G õ n g o r a a o In fa n te
C a r d e a l, e o f u r ta s te :
lo g o m a l te a p e l i d a s t e
o M e s t r e d a p o e s ia
f u r t a n d o m a is e m u m d ia ,
q u e m il la d r õ e s e m u m ano:
n ã o te e n v e r g o n h a s , m a g a n o ?
A lé m d o s e u s i g n i f i c a d o m a is u s u a l d e foice, r e c o r d e m o s q u e D o m i n g o s V ie ir a t a m
b é m d o c u m e n t a n a p a la v r a o s e n t id o d e “ la r a p ia r c o m a s t ú c ia , fu r ta r d e s t r a m e n t e ” ,
s i g n i f i c a d o s q u e s e a j u s t a m a o s o b j e t i v o s d o a c u s a d o r d e G r e g ó r io , n o s e u a fã d e
d e s m o r a liz á - lo . N ã o p o d e s e r d e s c a r ta d a , p o r é m , a h i p ó t e s e d a p r e d o m i n â n c i a d a s s i g n i
f ic a ç õ e s m a is c o r r e n t e s , p o i s “ g a d a n h a ”, n o s t e x t o s a n t ig o s , é p a la v r a q u e a p a r e c e s e m
p r e a s s o c ia d a à id é ia d e a lg o q u e fe r e , c o r ta o u a m e a ç a . T a l, o b v i a m e n t e , c o m o a p r ó p r ia
p o e s ia s a t ír ic a d e G r e g ó r io . S ó a s c o n t r ib u iç õ e s d a F il o l o g i a o u d a c r ít ic a t e x t u a l p o d e
rão e s c la r e c e r a d e q u a d a m e n t e o p r o b le m a : a d ic io n a r iz a ç ã o d e D o m i n g o s V ie ir a é r a r a 107108.
75
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O
C h a m o p o i s im it a ç ã o u m a s a g a c id a d e c o m a q u a l, p r o p o s t a p a r a ti u m a m e tá f o r a
o u o u tr a f lo r d o h u m a n o e n g e n h o , a t e n t a m e n t e c o n s i d e r a s a s s u a s r a íz e s c , t r a n s p la n -
109. O que a estilização da sátira evidencia é a circulação de textos espanhóis e portugueses em Salva
dor, em fins do século XVII, além daqueles presumivelmente também circulantes em outras lín
guas. Lembre-se, por exemplo, que capuchinhos franceses e italianos vinham frequentemente do
Congo, no século XVII, fazendo escala na Bahia antes de embarcarem para a Europa. Um dos
códices gregorianos da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, cofre 50, o Códice 6.?, com
letra do século XVII, 535 fls., com o título Poesias, contém produções variadas, como “Fábula Joco
sa”; “Os Amantes de Espanha”; “Amores de Píramo e Tisbe" (pp. 165-229); “O Roubo de Prosérpina
- O Ladrão Velhacão e a Gulosa dos Bagos”. Cena jocosa. Personagens. Plutão; Prosérpina; Júpiter;
Ceres; Radamanto; Ninfas; Paquete, criado de Plutão; Marabuto, diabrete; Malquetrefe, diabrete;
Maroto, diabrete; Sorrateiro, diabrete (pp. 229-340); “Fábula de Caco e Hércules”. Composta por
Manoel Pacheco Valadares, 94 oitavas (pp. 340-356); “Jornada” - que o senhor Francisco de Brito e
Meneses, reitor da Universidade de Coimbra, foi com a sua gente em socorro à vila de Buarcos,
estando quase assaltada dos holandeses. Descrevem-se os amores da Ninfa Coimbra, que deu nome
à cidade, e a origem de suas armas”, 97 oitavas (pp. 356-372); “Concilio dos bêbados”, poema
macarrônico, paródia d’Os Lusíadas. Pelo dr. Manoel do Valle, deputado do Santo Oíício de Évora.
“Dos Lusíadas” de Camões, contrafeito à bebedice. Veja-se a primeira oitava: “As armas e os Borra
chos assinalados, / que de Alcochete, junto a vila Franca, / por vinhos nunca dantes navegados /
passaram muito além da Peramanca: / Em pagodes, e ceias esforçados / mais do que se permite à
gente branca, / em Évora cidade se alojaram / Onde Pipas, e Quartos, despejaram”. Essa scnsabo-
ria se arrasta por mais 105 estrofes; “El cortezano espanol, político, y moral; documento de un
padre, a su hijo que se iba a vivir en la Corte" (pp. 478-487) etc.
76
UM N O ME P O R FAZER
Si deve inoltre servar decoro tra la figura e proprietà significante colla persona e suo
conceito, si che né da vil figura la nobile azione si spieghi, né da deforme la bella, né da ridicolosa
la grave; népensiero difortezza con cosa timida, né di oneslà la succida, né difierezza la mite;
e la ragion é primieramente perché come la probabilità nasce da convenienza, cosi quando si
vede sproporzione e disconvenienza, o nello stile o ne‘ concetti, o nel decoro, si pregiudica alia
probabilità e al verisimile"1.
Ou, ainda:
77
A SÁTI RA E O E N G E N H O
78
UM N O M E POR FAZER
D e s c o b r is t e s a in te n ç ã o ,
e o d e s e j o r e v e la s t e s ,
q u a n d o o cará e n c a ix a s te s ,
a q u e m v o s p e d ia pão:
c o m o q u e m d iz : m e u I r m ã o ,
s e q u e m t o m a , se o b r ig o u
a p agar, o q u e to m o u ,
v ó s o b r ig a d o a p a g a r - m e ,
fic a is e n s in a d o a d a r -m e
o cará, q u e v o s eu d ou .
(O C , IV , p . 8 7 5 .)
79
A SÁTI RA E O E N G E N H O
incenso, o ouro, a mirra [...] / É, que vos hão de mirrar” (OC, II , p. 301), “[...] mostrais pregando de
falso, / que sendo um Frade descalço, / andais pregando de meias’’ (OC, I I , p. 314 - acusa-se o frade
de pregar sermão furtado); “[...] sendo um Frei Jumento, / és jumento sem freio" (OC, I I, p. 319); “[...]
nunca louvarei / Capitão, que diz, cuidei / nem Dama, que diz, cuidava" (OC, I I , p. 382); “[...] Do
monte Olimpo se conta, [...] / o Frade seria, / pelo que dele corria, / monte, mais o limpo não" (OC, I I ,
p. 346); “[...] a primeira entrou sem pejo, / mas a segunda pejada" (OC, I I , p. 365); “[...] eu não vi na
fidalguia / Mendonça sem ter Furtado" (OC, p. 367); “[...] estou sem voz desabrochado” (OC, p. 417 -
soneto ao desembargador Belquior da Cunha Brochado)', “[...] veio o Jardim esbofado / mais rosado,
que um jardim" (OC, I I I , p. 584); “(...] Fez-se a segunda jornada / de comédia ou comedia" (OC, I I I , p.
590); era Pissarro em piçarra” (OC, I I I , p. 596); “[...] parira, como com vinho, porém não como
convinha” (OC, I I I , p. 628); “[...] Que se ainda mais rosas lançais fora / Receio, que fiqueis posta na
espinha" (OC, I I I , p. 692 - “rosas” é metáfora de “sangrias”); “[...] não cegou da privação, ficou cego
da privada” (OC, I I I , p. 721); “[...] um Bártolo pareceis, / não sendo senão Bartolo” (OC, I I I , p. 735);
“[...] e à força de tanta pá / viveremos sempre em paz” (OC, IV , p. 859); “[...] com dois mil aqui d’El-
Reis" (OC, I I , p. 392); “[...] hoje sois mau soldado / porque ontem fostes rompido” (OC, II , p. 397);
“[...] a um raso soldado / lhe bastam cadeiras rasas” (OC, I I , p. 398); “[...) amizades de um Visconde, /
favores de um Conde vis” (OC, I V , p. 896); “[...] Peito em que o cego amor não tem sossego / Só cego por
não ver-lhe amor perfeito” (OC, IV , p. 921) etc. (Grifos meus.)
120. Cf. Francisco de Quevedo, La Hora de Todosy la Fortuna con Seso, Introduction, traduction et notes
par Jean Bourg, Pierre Dupont et Pierre Geneste, Paris, Aubier-Montaigne, 1980, cap. X X I I I , p.
236: “El Rey de Francia se fué llegando a Roma con piei de cardenal para no ser conocido; pero el
Rey de Espana, que entendió la maula de disfrazar el Monsiur en Monsenor háciendole al pasar la
cortesia, le obligó a que, quitándose el capelo, descubriese lo calvino de su cabeza” (grifo meu).
121. Cf. Paul Zumthor, Essai de poétique médiévale, op. cit., pp. 105-106.
80
UM N O M E P O R FAZER
D a i- m e lic e n ç a , A n to n ic a ,
p a r a e u ir à v o s s a c a s a ,
p a r a b e ij a r - v o s a s m ã o s ,
e p ara, não digo nada.
(OC, III, p . 7 7 6 .)
com duplo sentido obsceno: “és carvoeiro infernal, / pois andas com saco em
pernas” (OC, II, p. 319); com humor escravista, jogando com a homofonia dos
termos:
E p a r d o ra ja d o e m p r e to ,
o u p r e to e m b u tid o em p a rd o ,
malhado o u já malhadiço
d o t e m p o e m q u e fo r a e s c r a v o .
(O C , II, p . 4 5 8 .)
R e v e r e n d o F rei C a rq u eja ,
q u e n t á r id a c o m c o r d ã o ,
m a g a n o d a r e lig iã o ,
e m a r io la d a Ig r e ja :
F r e i S a r n a , o u F r e i B e r to e ja ,
F r e i P ir t i g o [...]
F rei B urro d e L a n ça m en to
[...] s e n d o u m F r e i j u m e n t o ,
é s u m j u m e n t o s e m f r e io .
(O C , II, p . 3 1 9 .)
81
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
E u , q u e m e n ã o s e i c a la r ,
m a s a n te s te n h o p o r m ín g u a ,
n ã o p u r g a r - s e q u a l q u e r lín g u a
a r is c o d e a r r e b e n ta r :
v o s q u e r o , a m ig o , co n ta r,
p o i s s o i s o m e u s e c r e t á r io ,
u m s u c e s s o e x t r a o r d in á r io ,
u m c a s o t r e m e n d o e a tr o z ;
p o r é m f iq u e a q u i e n t r e n ó s .
( O C , II, p . 2 6 1 .)
122. Em 1596, na Espanha, e em 1597, em Portugal, Filipe II baixou leis que determinavam os limites
das formas de tratamento, fixando as penas em que incorreríam os que utilizassem fórmulas não
82
UM NO ME POR FAZER
Dizei-me p o r v id a vossa
e m q u e fundais o d i t a m e
d e e x a lt a r , o s q u e a í v ê m ,
e a b a te r , o s q u e a li n a s c e m ?
S e o fazeis p e l o i n t e r e s s e ,
d e q u e o s e str a n h o s vos g a b e m e tc .
(O C , II, p . 4 2 9 .)
E, no final:
T ã o q u e i m a d a e d e s t r u íd a
Te vejas, t o r p e c id a d e ,
com o S o d o m a e G om orra
d u a s c id a d e s in fa m e s .
Q ue eu zom b o de teus v i z i n h o s e tc .
(O C , II, p. 4 3 4 .)
adequadas à sua posição. Tais pragmáticas ficaram conhecidas como “leis das cortesias". Quase sé
culo e meio depois, no reinado de dom João V, em 1739, nova pragmática referente às formas de tra
tamento foi baixada, para evitar o excesso e a vulgaridade no uso de “Senhoria”, por exemplo, que
confundiam a ordem e pervertiam a distinção que fazia os tratamentos estimáveis. Cf. Luís F. Lindley
Cintra, Sobre “Formas de Tratamento" na Língua Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1972. Numa c
noutra pragmática, a ordenação dos tratamentos visa a constituir e manter a hierarquia, sendo eles
exemplos vivíssimos do controle social no período que se conhece por “Barroco”. Tais formas, evi
dentemente, não deixariam de ser incorporadas às letras, com referências às pragmáticas, sendo
índice muito seguro para determinar a posição das personagens representadas na sátira.
83
A SAI IRA E 0 E N G E N H O
[...] a p r ó d ig a d i f u s ã o d e m a l a p l i c a d o s c o n c e i t u o s o s d i s p ê n d i o s n a s c ia d a s e n c h e n t e s
p r o d i g i o s a s d a q u e la M u s a , q u e s e m e s p e r a n ç a d e q u e s e u s d e s c u i d o s c o r r e r ía m n a f u
tu r a e s t i m a ç ã o , barateava versos à conjunção dos acasos, facilitando linguagens ao gênio dos
sujeitos124.
1 2 3 . N a sua; " V i d a d o E x c e l e n t e P o e t a L í r i c o , o D o u t o r G r e g ó r i o d e M a t o s e G u e r r a ” o l i c e n c i a d o R a b e l o
J a m e s A m a d o , o p . c i t ., v o l . V I I , p . 1 7 0 5 . L e m b r e - s e t a m b é m o b i l i n g ü i s m o p o r t u g u ê s - c a s t e l h a n o d o
p e r í o d o . S e g u n d o P i a C á r c e l e s , “ [...] v o s e a r a u n a p e r s o n a i m p i i c a b a c u a n d o n o e n i n s u l t o , u n a
s é c u l o X V I . C f . P i a C á r c e l e s , R e v i s t a d e F ilo lo g ia E s p a n o l a , v o l . X , 1 9 2 3 , p . 2 4 5 , c i t . p o r J o s é F e r r e i r a
C a r r a t o , A C r is e d o s C o s tu m e s n a s M in a s G e r a is d o S é c u lo X V I I I , S e p a r a t a d a R e v i s t a d e L e t r a s , A s s i s ,
F a c u l d a d e d e F i l o s o f i a , C i ê n c i a s e L e t r a s , v o l . II I , p . 2 2 2 , 1 9 6 2 .
84
UM NO ME POR FAZER
Non voglio però negare che o per bizzarria o per trastullo non si possa talvolta
voloniariamente sprezzar le leggi dei decoro, come fanno ipoeti ne’fescennini, perfar ridereL’5.
R u b i, c o n c h a d e p e r l a s p e r e g r in a ,
A n i m a d o C r i s t a l , v iv a e s c a r la t a ,
D u a s S a f ir a s s o b r e l i s a p r a t a ,
O u r o e n c r e s p a d o s o b r e p r a ta fin a .
E s t e o r o s t i n h o é d e C a t e r in a ;
E p o r q u e d o c e m e n t e o b r ig a , e m a ta ,
N ã o liv r a o s e r d i v i n a e m s e r in g r a t a ,
li r a io a r a io o s c o r a ç õ e s f u lm in a .
V iu F á b i o u m a t a r d e t r a n s p o r t a d o
1 2 5 . E m a n u e l e T e s a u r o , I d e a d c l l e P e r fe í te . I m p r e s e , o p . c i t . , p . 1 1 1 . T e s a u r o e s c r e v e q u e m u i t o s p o e t a s
to d a a rte (ex ceto a p ru d ê n c ia ) tem esse p riv ilég io de n ã o p e c a r c o n tra a a rte q u a n d o peca.
tica: e is “ G r e g ó r i o ” a n á r q u i c o , l ib e r tin o , p r é - n a c io n a l is t a e o u t ro s m it o s d o c a rn a v a l.
85
A SÁTI RA E O E N G E N H O
B e b e n d o a d m ir a ç õ e s , e g a lh a r d ia s ,
A q u e m já t a n t o a m o r le v a n t o u a ra s:
D is s e ig u a lm e n te a m a n te , e m a g o a d o :
A h m u c h a c h a g e n t i l , q u e t a l s e r ia s
S e s e n d o tã o f o r m o s a n ã o c a g a r a s ! 127
( O C , V , p . 1 1 7 4 .)
E s t e o r o s t i n h o é d e C a t e r in a
E p o r q u e d o c e m e n t e o b r ig a , e m a t a ,
N ã o liv r a o s e r d i v i n o e m s e r in g r a t a ,
E r a io a r a io o s c o r a ç õ e s f u l m i n a .
127. O soneto em questão pode ser proposto como paródia, por exemplo, de outro, lírico, também
atribuído a Gregório de Matos e Guerra: “Vês esse Sol de luzes coroado? / Em pérolas a Aurora
convertida? / Vês a Lua de estrelas guarnecida? / Vês o Céu de planetas adornado? / O Céu
deixemos; vês aquele prado / A Rosa com razão desvanecida? / A Açucena por alva presumida? /
O Cravo por galã lisonjeado? / Deixa o prado; vem cá, minha adorada, / Vês desse mar a esfera
cristalina / Em sucessivo aljôfar desatada? / Parece aos olhos ser de prata fina? / Vês tudo isto
bem? pois tudo é nada / À vista do teu rosto, Caterina”. (“Pintura admirável de uma beleza”, OC,
V, p. 1171.)
86
UM N O M E P O R FAZER
V iu F á b i o u m a t a r d e t r a n s p o r t a d o
B e b e n d o a d m i r a ç õ e s [d o C r i s t a l ] , e g a lh a r d ia s [d a e s c a r la ta ]
A q u e m já t a n t o a m o r le v a n t o u a ra s.
D is s e , ig u a lm e n te a m a n te , e m a g o a d o :
A h m u c h a c h a g e n t i l , q u e t a l s e r ia s ,
S e s e n d o tã o fo r m o sa n ã o cagaras!
87
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
128. Cf. Beda, o Venerável, De Schematibus et Tropis Sacrae Scripturae, em J. P. Migne, Patrologiae Cursus
Completus, Series latina, Paris, 1844-1864, vol. 90, pp. 175-186.
129. Cf. Emanuele Tesauro, “Capitolo XII: Trattato de’ ridicoli”, em II Cannocchiale Aristotelico o sia,
Idea deliarguta, et ingegniosa elocutione, che serve à tutta Varte oratoria, lapidaria, et simbólica. Esaminato
co’principii dei divino Aristotele. Dal conte D. Emanuele Tesauro, cavalier Gran Croce de Santi Mauritio
&Lazaro. Acresciuta dalPautore di due novi trattati, cioè De’ Concetti Predicabili, et Degli Emblemi.
Con un nuovo indice alfabético, oltre à quello delle material. Consacrato ai clarisimo signore
Pietro Vanteylingen. In Venetia, apresso Martin Vincenzi, 1685, p. 356. (O exemplar consultado, da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, pertenceu a Francisco Leitão Ferreira e traz a inscrição:
“1687 - Livro que me mandou de mimo o F. Francisco [...] de Gênova com a Nau [...] F. Leitão
Ferreira”.)
88
UM NO ME POR FAZER
verso não necessariamente paródica por ser mista. Em outros termos, a sáti
ra não apresenta unidade prefixada ao ato em que é enunciada: os motivos
associativos com que opera permitem inumeráveis jogos irônicos: um poe
ma lírico, por exemplo, pode ser proposto como sátira numa situação deter
minada que o faz ser assim entendido quando se infringe a pragmática de
sua recepção. É preciso lembrar, por exemplo, as figuras da ironia, com que
se satirizam indivíduos e eventos, quando a sátira assume a forma jâmbica
do asteísmos ou do sarcasmo130, sem recorrer a citações ou a inversões críticas
de textos. E que a formulação mista é hiperinclusiva: a fantasia poética tanto
cita e inverte textos líricos, épicos, trágicos, como paródia, quanto efetua
tipos monstruosos, montando-os pedaço por pedaço por translação metafó
rica, como agressão, sarcasmo e maledicência. A sátira aparece sempre como
discurso de função poética mista, em que a adequação ao caso por satirizar
determina o procedimento das misturas da fantasia poética. Isto significa
que sua conceítuação deve considerar as regras de classificação e, assim, de
hierarquização d a persona satírica e seus objetos, antes mesmo que seus te
mas e tipos, topoi estereotipados da tradição latina e medieval. A sátira é
constituída das tópicas retóricas da sua invenção, evidenciando sua transfor
mação pelo investimento léxico-semântico particular, operado segundo a ade
quação ou conveniência ao caso tratado e ao público receptor. Letrados
baianos empapados de retórica e pessoas analfabetas do vulgo propõem ade
quações diversas para um mesmo poema, impondo a ele a refração específica
de sua posição. Como no soneto da donzela que vem da índia para casar-se
na Bahia:
S e t e a n o s a N o b r e z a d a B a h ia
S e r v iu a u m a P a s to r a i n d i a n a , e b e la ,
P o r é m s e r v i u a í n d i a , e n ã o a e la ,
Q u e à í n d i a s ó p o r p r ê m i o p e r t e n d ia .
M i l d ia s n a e s p e r a n ç a d e u m só d ia
P a s s a v a c o n t e n t a n d o - s e c o m v ê -la :
M a s F r e i T o m á s u s a n d o d e c a u t e la ,
D e u - l h e o v i l ã o , q u i t o u - l h e a f id a lg u ia .
V e n d o o B r a s i l , q u e p o r tã o s u j o s m o d o s
S e l h e u s u r p a r a a s u a D o n a E lv ir a ,
Q u a s e a g o l p e s d e u m m a ç o , e d e u m a g o iv a :
L o g o se a r r e p e n d e r a m d e a m a r to d o s,
1 3 0 . C f . M . F. Q u i n t i l i a n o , o p . c i t . , I I I - V I II , 4 4 , p . 2 3 8 .
89
A SÁTI RA E O E N G E N H O
E q u a l q u e r m a is a m a r a , s e n ã o fo ra
P a ra t ã o l i m p o a m o r tã o s u ja N o iv a .
(O C , IV , p . 8 9 1 .)
90
UM N O M E POR FAZER
beber ao potro, o que se faz com satisfação de ambas as sedes131. Embora neste
fabliau a personagem feminina seja nobre, como filha de cavaleiro andante, o
texto não é dirigido univocamente contra a nobreza. Segundo Krõmer: “Ao
contrário, esta estória tem de dirigir-se precisamente a um público que sabia
apreciar o humor do singular emprego da mitologia bretã e que, por isso mes
mo, estava familiarizado com a cultura cortesã”132.
O plano de referência da sátira é o funcionamento de um tipo literário e
de uma convenção dramática no discurso poético - em outros termos, o texto
também informa sobre os modos da sua recepção. No soneto da indiana, a
ironia é efetuada sobre um tipo cujos elementos figurativos de estilo alto são
substituídos um a um por outros, baixos: “Raquel”, dama petrarquista espiri
tualizada e elevada, por “indiana”, suja de sangue e baixa. A troca segue um
paradigma que vai do nobre ao ignóbil, de “cima para baixo”, extremamente
rotineiro na poesia medieval133. Um elemento formal que, no soneto de Camões,
compõe o elogio das virtudes do amor que caracterizam o perfeito amante -
por exemplo, a perseverança de Jacó - torna-se elogio irônico de sua tolice
como amante de tipo disforicamente caracterizado134. O efeito de contraste
gera o riso, mas o contraste só é conseguido se há conhecimento do código da
lírica por parte da recepção e dos paradigmas institucionais que interpretam
o investimento semântico do poema na situação de ataque. Por isso, embora o
exemplo de Wolfram Krõmer seja adequado para descaracterizar a atribuição
do texto a uma classe social supostamente representada por ele de forma
unívoca, só o é em parte, pois não dá conta de outras recepções, como a de
hipotéticos ouvintes do fabliau que não conhecessem familiarmente a “cultu
ra cortesã” e que poderíam, inclusive, entender a narrativa como ataque à
nobreza, dada a astúcia do personagem masculino que, não sendo caracteri
zado, poderia ser interpretado como “vilão” em oposição a “nobre”. Bastaria,
para tanto, não considerar o humor das metáforas anatômicas, retendo-se
apenas a situação narrativa em que o homem esperto seduz a moça nobre.
Neste sentido é que a sátira, porque aberta, pode ser apropriada de ma
neiras múltiplas, inclusive opostas: por exemplo, nos ataques aos governa
dores Sousa de Meneses e Câmara Coutinho, a sátira propõe a correção dos
' 131. Cf. Wolfram Krõmer, Formas de la Narración Breve en las Literaturas Románicas hasta 1 700, Aladrid,
v Gredos, 1979, p. 70. Cf. também Philippe Alénard, Les fabliaux (Contes à rire du Moyen Age), Paris,
PUF, 1983. Sobre a relação do fabliau e da poesia, cf. Pierre Bec, Burlesque el obscénité chez les
troubadours (Le comre-texie au Moyen Age), Paris, Stock, 1984.
132. Cf. W. Krõmer, op. cil., p. 72.
133. Cf. Paul Zumthor, Essai de poétique médiévale, op. cil., pp. 105-106.
134. Idem, ibidem.
91
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
135. Cf. Atikhail Bakhtin (Voloshinov), Le marxisme ei laphilosophie du langage, op. cil. A conceituação do
valor do signo como unidade contraditória é decisiva para impedir que o poema seja proposto
como representante unívoco de uma classe social. Cf. também Cristina Macário Lopes, “Literatu-
92
UM N O ME POR FAZER
93
A SÁTI RA E O E N G E N H O
94
UM N O ME POR FAZER
95
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
Vereador da Bahia,
que é notável dignidade.
Já temos o Canastreiro,
que inda fede a seus beirames,
metamorfosis da terra
transformado em homem grande:
e eis aqui a personagem.
(OC, II, pp. 430-431.)
139. Cf. também: “Faça mesuras de A com pé direito, / Os beija-mãos de gafador de péla, / Saiba a todo
o cavalo a parentela, / O criador, o dono, e o defeito, / Se o não souber, e vir rocim de jeito, / Chame
o lacaio, e posto na janela, / Mande, que lhe passeie a mor cautela, / Que inda que o não entenda,
há respeito. / Saia na armada, e sofra piparotes, / Damas ouça tanger, não as fornique, / Lembre-
lhe sempre a quinta, o potro, o galgo: / Que com isto, e o favor de quatro asnotes / De bom ouvir, e
crer se porá a pique / De um dia amanhecer um grão fidalgo” (OC, IV, p. 839).
96
UM N O M E POR FAZER
140. “II faut du fumier sur les meilleures terres”, diz Madame de Grignan a propósito das núpcias de
seu filho com a filha ricamente dotada de um grande proprietário burguês. A Duquesa de Chaulnes
declara ao filho, Duque de Picquigny, que contrata matrimônio com a filha do riquíssimo financis
ta Bonnier: “Bon maríage, mon fils... 11 faut bien que vous preniez du fumier pour engrasser vos
terres”. Cf. “La famille de Grignan”, em Saint-Simoíi, Mémoires, Paris, Hachette, 1951, vol. I.
97
A S Á T I R A E 0 E NGE NHO
y a q u e se g u ir e l a r te n o h a y r e m e d io ,
e n e sto s d o s e x tr e m o s d a n d o u n m e d io .
(vv. 147-156.)U!
141. Cf. Lope de Vega, Arte Nueva de Hacer Comédias en Esie Tiempo (1609), vv. 43-48 e 147-156 em
Federico Sánchez Escribano y Alberto Porqueras Mayo, op. cit.
142. Cf. Tirso de Molina, Cigarrales de Toledo (1621), ed. Victor Said Armesto, Madríd, Biblioteca
Renacimiento, 191?, p. 12S.
98
UM N O ME POR FAZER
e s ta n o s s a c i d a d e l a ,
t o d o s s e m o lh a r a m n e la ,
e t o d o s t o n t o s f ic a r a m :
e u , a q u e m o s c é u s L ivraram
d e s t a á g u a f o n t e d e a s n ia ,
f iq u e i s ã o d a f a n t e s ia
p o r m e u m a l, p o i s n e s t e s tr a to s
e n tr e ta n to s in s e n s a to s
p o r s i s u d o e u só p e r d ia , [...]
C o n s i d e r e i lo g o e n t ã o
o s b a l d õ e s , q u e p a d e c ia ,
v a g a r o s a m e n t e u m d ia
c o m to d a a c ir c u n sp e c ç ã o :
a s s e n te i p o r c o n c lu s ã o
s e r d u r o d e o s c o r r ig ir ,
e liv r a r d o s e u p o d e r ,
d iz e n d o c o m g r a n d e m ágoa:
se m e n ã o m o lh o n e sta águ a,
m a l p o s s o e n t r e e l e s v iv e r , [...]
D e i p o r b e s t a e m m a i s v a le r ,
u m m e s e r v e , o u tr o m e p r e s ta ;
n ã o so u e u d e to d o b e sta ,
p o i s t r a te i d e o p a r e c e r :
a s s im v i m a m e r e c e r
fa v o r e s, e a p la u s o s ta n to s
p e lo s m e u s n é s c io s e n c a n to s ,
q u e e n f i m , e p o r d e r r a d e ir o
f u i g a lo d e s e u p o le ir o
e l h e s d a v a o s d i a s s a n t o s . [...]
143. A última estrofe contradiz as anteriores: produzida como ironia contra as inversões da cidade até a
penúltima estrofe, a inversão paródica da convenção discreta evidencia-se como tal, quando apersona
reafirma sua prudência heróica, constituindo-se a si mesma como providencialismo: “Seja pois a
conclusão, / que eu me pus aqui a escrever,/o que devia fazer, / mas que tal faça. isso não: / decrete
a divina mão, / influam malignos fados, / seja eu entre os desgraçados / exemplo de desventura,
não culpem minha cordura, / que eu sei, que são meus pecados” (OC, II, p. 450).
99
A SÁTI RA H O E N G E N H O
C a n sa d o de vos pregar
c u l t í s s i m a s p r o f e c ia s
q u e r o d a s c u lte r a n ia s
h o j e o h á b it o e n fo r c a r :
d e q u e s e r v e a r r e b e n ta r ,
p o r q u e m d e m im n á o t e m m á g o a ?
V e r d a d e s d ir e i c o m o á g u a
p o r q u e to d o s e n te n d a is
o s l a d i n o s , e o s b o ç a is
a M u sa p r a g u e ja d o r a .
E n t e n d e is - m e agora?
O f a la r d e i n t e r c a d ê n c ia
e n t r e s i l ê n c i o , e p a la v r a ,
crer, q u e a te sta se v o s ab ra,
e e n c a i x a r - v o s , q u e é p r u d ê n c ia :
a le r ta h o m e n s d e C i ê n c i a ,
q u e q u e r o X i s g a r a v is ,
q u e a q u ilo , q u e v o s n ã o d iz
p or lh o im p e d ir a r u d e z a ,
a v a lie is m a d u r e z a ,
s e n d o ig n o r â n c ia tr a id o r a .
E n t e n d e is - m e agora?
( O C , II, p . 4 7 2 .)
100
UM NOME P OR F A Z E R
O n é s c i o , o ig n o r a n t e , o in e x p e r t o ,
Q u e n ã o e le g e o b o m , n em m a u rep ro v a ,
P o r t u d o p a s s a d e s lu m b r a d o , e in c e r t o .
[...]
N é s c io : s e d i s s o e n t e n d e s n a d a , o u p o u c o ,
C o m o m o f a s c o m r is o , e a lg a z a r r a s ,
M u s a s , q u e e s t i m o te r , q u a n d o a s in v o c o ?
144. O poema em questão encena a maledicência satírica como sarcasmo - “Musa praguejadora" - apto
para o entendimento vulgar. Num sentido semelhante, Vieira utiliza o “boçal" para caracterizar a
obscuridade, oposta à clareza retórica, e o fechamento hermético dos sermões gongóricos que cri
tica no sermão da Sexagésima: “O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado”,
metaforizando, com a referencia ao travamento das línguas africanas, o travamento dos sermões de
seus adversários do Rossio, principalmente Frei Domingos de Santo Tomás. Cf. Padre Antônio
Vieira, Sermões, Porto, Lello & Irmãos Editores, 1959, 15 vols., vol. I, V, p. 20.
101
A SÁTI RA E O E N G E N H O
145. A fantasia relaciona-se com o entendimento de três maneiras: a) ou o entendimento atua só, servin
do a fantasia para lhe fornecer as “espécies fantásticas”; b) ou ambas as faculdades operam em
conjunto, cabendo ao entendimento a censura prévia das imagens; c) ou a fantasia atua livremente,
prescindindo do entendimento. Cf. “Um Código do Barroco Português: A ‘Nova Arte de Conceitos’
de Francisco Leitão Ferreira”, em Aníbal Pinto de Castro, op. cit., p. 210.
146. Cf. Théophraste, Caractères, lexte établi et traduit par Octave Navarre, 2'1™ed., Paris, Belles Lettres, 1931.
147. Cf. Aristóteles, Éthique à Nicomaque, Introduction, Notes et Index par J. Tricot, 2™' ed., Paris, Vrin,
1967.
148. Cf., por exemplo: “A causa é melhor, que o efeito na boa filosofia” (OC, II, p. 309); “Amar o belo é
ação / que toca ao conhecimento / ame-se ao entendimento, / sem outra humana paixão” (OC, II I ,
p. 702); E: “Na boa filosofia, / e na retórica sei, / e li, que entre pouco, e muito / jamais distinção se
fez. / Pouco mal, e muito mal / o mesmo mal vêm a ser, / com que o mesmo bem será / pouco bem,
e muito bem. / Distingue-se em quantidade, / não na espécie, nem no ser, / na substância é sempre
o mesmo, / se em quantidade não é” (OC, IV, p. 819); “Pela razão natural / ninguém dá, o que não
te m ,/ e pela mesma razão ninguém / pede, o que não quer” (OC, IV, p. 823); “O mal sempre é
substituto / do bem, que a fortuna veda, / e que ao bem o mal suceda, / é já lei, é já estatuto: / um
do outro é flor, e fruto” (OC, IV, p. 945) etc.
102
UM N O M E P OR FAZER
149. E c o m o “ f i n g i m e n t o d o n a t u r a l ” q u e se e n t e n d e a h i p e r v a lo r i z a ç ã o c o n c e p t i s t a d o a r tif íc io e d a
“ h i p e r r e a l i s t a ” o b t id o p o r p r o c e d i m e n t o s q u e o c u lt a m a ficção . O a rtifíc io é u m i n s t r u m e n t o p a r a
a in v e n ç ã o d e m u n d o s c m q u e se v iv e a v id a d a a rte , c o m o d i z M a r a v a ll . É n e s ta l i n h a q u e p i n t u r a
e p o e s ia se i n t e r c e p t a m : a p i n t u r a é t a m b é m v a l o r i z a d a n o s é c u l o XVII p o r q u e , n ã o c o n t a n d o c o m
m u ito b e m e a c o n t r a f a z c o m o m u i t o o u e x t r e m a m e n t e p r ó x i m a , e n f i m . P o r isso, c o m o se v ê n o
c a p í t u l o IV , a m e t á f o r a c o n c e p t i s t a é f u n d a m e n t a l m e n t c i m a g e m , s e g u n d o o u t p i c i u r a p o e s i s h o r a c i a n o
e o c o n c e ito a r i s t o t e l i c a m e n t e d e f i n i d o c o m o “ d e f i n i ç ã o i l u s t r a d a ” . H i s t o r i c a m e n t e , o s t e r m o s a r t i f í
c io e a r t i f i c i o s o n ã o t ê m , n o s é c u l o X V I I , o s e n t i d o p e j o r a t i v o c o n f e r i d o a e l e s p e l o e x p r e s s i v i s m o
r o m â n t ic o . S ig n if ic a m , b a s i c a m e n t e , “ té c n i c a ” , n o s e n ti d o g r e g o d o p o ie n , “ f a z e r ” .
103
II
A Murmuração do Corpo Místico
V ó s m e e n s in a s te s a s e r
d a s in c o n s tâ n c ia s a rq u iv o .
(O C , I, p. 4.)
1. Examinam-se aqui atas e cartas da segunda metade do século X V I I . Cf. Atas da Câmara, Prefeitura
do Município de Salvador, Documentos Históricos do Arquivo Municipal.
Atas da Câmara - 1641-1649, 1949, vol. 2; 1649-1659, 1949, vol. 3; 1659-1669, 1949, vol. 4; 1669-
1684,1950, vol. 5; 1684-1700,1951, vol. 6.
Cartas do Senado, Prefeitura do Município de Salvador, Documentos Históricos do Arquivo Muni
cipal. - 1638-1673, 1951, vol. 1; 1673-1684, 1952, vol. 2; 1684-1692, 1953, vol. 3; 1692-1698, 1959,
vol. 4.
Constituída a Câmara de Salvador já no tempo de Tome de Sousa, muitos de seus documentos
anteriores a 1624 foram destruídos na invasão holandesa desse ano. Compõe-se de dois Juizes Ordi
nários, ou da vara vermelha, de três Vereadores, de um Procurador da Cidade ou Procurador do
Conselho. Chamam-se todos “Oficiais da Câmara” e a pragmática de cortesia atribui-lhes o trata-
105
A SÁTI RA E O E N G E N H O
mento de “Vossa Mercê”. Os Juizes Ordinários lêm funções judiciárias, até certo limite; os Verea
dores deliberam sobre os negócios públicos, propriamente administrativos, do interesse local; o
Procurador da Cidade tem funções executivas. Pessoas “a quem tocava requerer o bem comum e
atender à prevenção dele por serem oficiais que representam a república”, como diz uma petição
de senhores de engenho do Recôncavo, em 1632, são escolhidas entre os “homens-bons” da Cida
de, aqueles que “por sua pessoa, partes e qualidades” são tidos como aptos para o cargo. A eleição
é anual. Os trabalhos da Câmara começam em 1" de janeiro, quando, reunidos os que findam o
mandato do ano anterior, com a presença do Ouvidor Geral, se tirava o “pelouro” para os oficiais.
Cf., por exemplo, a sátira; “Entra logo nos pilouros, / e sai do primeiro lance / Vereador da Bahia,
/ que é notável dignidade” (OC, II, p. 431). Veja-se, por exemplo, a ata de 19.1.1685: “Termo de
eleição que se fez de juiz durante o impedimento do Capitão Francisco de Araújo de Azevedo e de
um Vereador em lugar de Manuel Botelho Carneiro que é falecido e do Procurador em lugar de
João de Matos de Aguiar que se julgou escuso os quais saíram no pelouro que se abriu o primeiro
de janeiro deste presente Ano, Aos dezenove dias do mês de janeiro de mil seiscentos e oitenta e
cinco anos nesta Cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos nas Casas da Câmara dela estando
aí presentes o juiz ordinário o Coronel digo o Sargento Major Luís de Mello de Vasconcellos e os
vereadores o Capitão Nicolau Carvalho e o Capitão José de Araújo de Goes para haverem de fazer
eleição de um juiz em lugar do Capitão Francisco de Araújo de Azevedo durante o seu impedimen
to e um vereador por haver falecido o Capitão Manoel Botelho Carneiro e um Procurador cm lugar
de João de Matos de Aguiar que ao presente é provedor da Casa da Santa Misericórdia e Cavaleiro
da Ordem de Cristo por onde é escuso conforme o acórdão da Relação deste Estado pessoas todas
que saíram no pelouro que se abriu o primeiro de janeiro deste presente ano e para a dita eleição
ditos oficiais da Câmara mandaram tocar o sino e chamar os homens bons que costumam andar
nos pelouros e sendo junto lhes encarregaram que bem e verdadeiramente votassem em pessoas de
maior suficiência que bem servissem os ditos cargos e guardassem em tudo o serviço de Deus e de
Sua Majestade e do bem comum e eles assim prometeram fazer e para este efeito eu, João de
Couros Carneiro, escrivão da Câmara fui tomando os votos entre folhas de papel em as quais se
assentaram todos os nomes dos que foram propostos e em cada um riscando os votos que neles
estavam e depois de limpa a pauta pelos ditos oficiais da Câmara saiu para juiz o Capitão Domin
gos Monteiro durante o impedimento do Capitão Francisco de Araújo de Azevedo e por vereador
o Capitão Manoel Teles de Meneses e por procurador o Capitão Baltasar Gomes dos Reis e saiu o
dito juiz com dezessete votos e o vereador com quinze votos e o procurador com vinte e um os quais
preferiram a todos os meses em que votaram como consta da pauta que fica no Cartório desta
106
A M U R M U R A Ç À O DO C O R P O M Í S T I C O
Câmara de tudo mandaram fazer este termo em que assinaram e eu João de Couros Carneiro
escrivão da Câmara escrevi”. Cf. Atas da Câmara 1684-1700, vol. 6, pp. 11-12.
Além desses oficiais, há os almotacés, espécie de fiscais cuja função é fixar preços de mercadorias
e controlar pesos e medidas; o escrivão, funcionário vitalício; o porteiro, que bota pregão das deci
sões; o Ministro da Cadeia, nome pomposo do carcereiro. Em 21.5.1641, determina-se dar a cada
grupo profissional um chefe com o encargo de controlar a atividade de seus pares, fixando preço ao
serviço prestado e avaliando obras executadas. Cf. Affonso Ruy, História da Câmara Municipal da
Cidade do Salvador, Bahia, Câmara Municipal de Salvador, 1953, p. 173. Determina-se que o núme
ro de mesteres seja doze e que os doze elejam um Juiz do Povo e um escrivão para, juntos, represen
tarem as classes mecânicas. Os Juizes do Povo passam a representar os interesses das classes profis
sionais e mecânicas, entrando muita vez em confronto direto com os “homens-bons”, oficiais da
Câmara, e com comerciantes, a ponto dc se negar ao Juiz do Povo a assinatura das atas, em 1645.
Vários conflitos são rastreáveis nas atas: questão da aguardente (1646); denúncias contra o Ouvidor
Geral da Armada por sonegação de impostos (1648), contra comerciantes (1668), contra os ourives
(nas duas décadas finais do século); rebelião contra a nova taxação do sal (1711); etc. A carta régia
de 25.2.1713 extingue os cargos de Juizes do Povo e mestres no Brasil. Pouco antes, em 1696, são
extintos os cargos de Juiz Ordinário. Cf. também Theodoro Sampaio, História da Fundação da Cida
de do Salvador (Obra póstuma), Bahia, Tipografia Beneditina Ltda., 1949; Affonso Ruy, op. cit.
107
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
2. Aos oficiais da Câmara aplica-sc perfeitamente o que escreve Stuart B. Schwartz sobre os magistra
dos coloniais: “Magistrados desinteressados, eram os guardiães da estrutura formal do Império,
segundo a visão da Coroa. Ao mesmo tempo, esses homens muitas vezes lutavam por objetivos
coletivos ou pessoais que conflitavam frontalmente com os padrões dos cargos que ocupavam. Era
este o paradoxo do governo colonial, paradoxo que, no entanto, dava vida ao regime ao conciliar os
108
A Al URMURAÇÃO DO C O R P O M Í S T I C O
inleresses da metrópole com os da colônia”. Cf. Stuar! B. Schwartz, Burocracia e Sociedade no Brasil
Colonial, São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 292.
109
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
no
A M U R M U R A Ç À O DO C O R P O M Í S T I C O
[...] n a d a f i z ê r a m o s , S e n h o r s e e s t e P o v o , s e n ã o a c h a r a tã o s o b r e c a r r e g a d o c o m o s u s -
le n t o d a I n f a n t a r ia , d o t e d a S e r e n ís s im a R a in h a d e G rã B r e t a n h a , e P a z d e H o l a n d a ,
d e sp e s a d a jo r n a d a q u e ora se v a i fa z e r a o g e n tio q u e te m d e s tr u íd o e s te R e c ô n c a v o
e s m o la s d o s R e l i g i o s o s F r a n c is c a n o s e d o s d e S a n ta T e r e s a , a f u n d a ç ã o p a r a a s R e l i g i o
sa s q u e V o s s a A lt e z a n o s c o n c e d e u , e in d a p a r a o s d e s s e R e i n o t u d o d e s p e s a g r a n d e a
m is é r ia d e s t e s V a s s a lo s a lé m d e m u i t o s c a t iv o s q u e d e o r d in á r io a n d a m n e s t a P r a ç a
p e d in d o p a r a s e u s r e s g a t e s 5.
111
A SÁTI RA E O ENGENHO:
112
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O MÍ S T I C O
Um deles, pelo menos, deverá ser atendido. Por exemplo, escrevendo ao pro
curador Manoel de Carvalho, a Câmara avisa-o de que, depois de pedir inu
tilmente ao Rei que alivie a finta que aflige “[...] a miséria com que geralmen
te está todo este Povo”, depois de pedir que as religiosas do Convento de
Santa Clara do Desterro sejam convencidas a desistir da “[...] sucessão futura
[...] da maior parte dos bens de raiz desta Cidade”, depois de pedir a mercê de
“Lei irrevogável” que “[...] mande que nenhuma Pessoa venda fazendas fia
das com pena de as não poderem cobrar por meios de justiça excetuando as
que se venderem para o fornecimento dos Engenhos, fazendas de Canas, e
Lenhas sem as quais não se poderão fabricar”78,vem a reiteração do pedido
que se faz ao Rei, em carta de 2 de julho de 1685:
[...] N a s P r o c i s s õ e s d e C o r p o d e D e u s e o u t r a s q u e p e l o d e c u r s o d o a n o s e f a z e m n e s t a
C id a d e a q u e s ã o o b r ig a d o s a s s i s t i r e ir e m o s O f ic ia i s d a C â m a r a c o m o O u v i d o r G e r a l
se d á a c a d a u m d o i s m il r é is d e p r o p in a p o r s e r a s s im c o s t u m e m u i a n t i g o a q u a l
d e s p e s a o P r o v e d o r M o r d a C o m a r c a c o s t u m a t o m a r t o d o s o s a n o s o s b e n s d o C o n s e lh o
d u v id a le v a r e m C o n t a s e m P r o v is ã o d e V o s sa M a j e s t a d e c o m o t e m m u i t a s C i d a d e s e
V ila s n e s s e R e in o ; e p o r q u e e s ta n ã o m e r e c e m e n o s e o s O f ic ia i s d a C â m a r a n ã o t ê m
o u tr o e m o l u m e n t o m a is , q u e e s ta p r o p in a , q u e é C o u s a li m i t a d a e m c o m p a r a ç ã o d o
m u it o q u e g a s t a c a d a u m e m v ir d e fo r a d e s u a s f a z e n d a s p a r a a s s i s t i r e m n e s t a C id a d e
e n q u a n t o d u r a o a n o d e s e u R e g i m e n t o p e d i m o s a V o s sa M a j e s t a d e q u e n o s fa ç a m e r c ê
c o n c e d e r P r o v is ã o p a r a o P r o v e d o r le v a r e m C o n t a a d e s p e s a d a s P r o c i s s õ e s referid a s® .
113
A S A T I R A E O E NGE NHO
[...] P o r é m d e p o i s fo i V. M a j e s t a d e s e r v id o e s c r e v e r a o A r c e b i s p o d e s t e E s t a d o , q u e a
p r e f e r ê n c ia s e e n t e n d i a n ã o h a v e n d o p r e j u íz o d e t e r c e ir o , e d a p ú b ü c a c o n s e r v a ç ã o d o
C o n v e n t o a s q u a is p a la v r a s a m b í g u a s d ã o m o t iv o a q u e a m e r c ê R e a l d e V o s s a M a j e s t a
d e n ã o v e n h a s u r t ir e f e i t o a lg u m c o n f o r m e a in t e r p r e t a ç ã o , q u e l h e q u is e r e m d a r e
c o m o V o s s a M a j e s t a d e n o s f e z d is t o fa v o r e m r e m u n e r a ç ã o d o t r a b a lh o c o n t í n u o , q u e
t e m o s d e S e r v ir n e s t e S e n a d o s e m S a lá r io a lg u m e s e r o d i t o C o n v e n t o c r ia d o p e lo s
o f i c i a is d a C â m a r a q u e s ã o o s l e g í t i m o s f u n d a d o r e s d e le n o s p a r e c e u j u s t o q u e V o s sa
M a j e s t a d e m a n d e o b s e r v a r a S u a R e a l P r o v is ã o s e m j u s t o d i g o s e m L i m i t a ç ã o a lg u m a
p a r a q u e n ã o h a ja n a s p r e f e r ê n c ia s d ú v id a s o u c o n t e n d a s 112.
11. Stuart B. Schwartz demonstra que a Câmara de Salvador é dominada pelos interesses dos senhores
da terra, especialmente os do açúcar. Embora em seus quadros esteja presente a representação mer
cantil, esta só cresce a partir do século XVIII. Numa tabela de seu texto, Schwartz demonstra que,
entre 1680 e 1729, a distribuição dos oficiais da Câmara é a seguinte: 50,8% de senhores de engenho,
12,7% de lavradores de canas, 16,6% de outras atividades relacionadas, ao açúcar, o que fornece
80,1% de interesse direto do setoraçucareiro. Cf. Stuart B. Schwartz, op. cit., pp. 277-278. Um pri
meiro grupo deles adquire terras logo após a fundação de Salvador, por volta dos anos 1550 e 1560;
uma segunda leva aporta na Bahia em 15S0, quando o açúcar está em baixa. De 1620 a 1660, incor
pora-se um terceiro grupo, principalmente após a invasão holandesa dos anos 20, quando a destrui
ção de engenhos, as falências, as mortes e o desânimo propiciam a aquisição de terras por jovens
militares que vêm para a campanha contra o holandês, e por famílias fugidas de Pernambuco, como
os Argolo, Ferrão, Brandão Coelho, Pires de Carvalho etc. Quase sempre brancos ou assim tidos, os
senhores de engenho de fins do século XVII, como gente que acaba de chegar, desejam a nobreza e
o poder local. Até o fim do século XVII, quando as pestes tornam a Cidade perigosa, passam a maior
parte do tempo em Salvador, devido à proximidade dos engenhos que bordejam o Recôncavo: pela
baía, de barco, vai-se de Santo Amaro a Salvador em cerca de duas horas. Na Cidade, vivem em
casas assobradadas; sua participação nos negócios da Câmara, da Igreja e da Santa Casa de Miseri
córdia indica a relação íntima entre Salvador e o Recôncavo. Demandam sempre a legitimação dos
foros de fidalguia que quase nunca vêm de Portugal. Funções públicas c a ostentação confirmam
sua posição na sociedade local como nobreza dos “melhores”. Cf. Stuart B. Schwartz, op. cit., pp.
265-267 e 281-282. Na sátira, são constantes as expressões “pobrete de Cristo", “cu breado", “mãos
dissimula em guantes”, “homem grande”, “grande dignidade”, que referem o tipo que ascende social
mente através de negociatas e casamentos com filhas dos melhores do local.
12. Cf. Carta de 2.7.1685, vol. 3, p. 9.
114
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O MÍ S T I C O
13. Carta de 8.5.1650, vol. 1, p. 23; Carta de 4.6.1650, vol. 1, p. 25. Fala-se de “grandíssimos Clamores”
do “Povo”, sobre o qual recaem os tributos.
115
A SÁTI RA E 0 E N G E N I I O
[...] P o r q u e s i V. A í. es Ia c a b e z a , su s S e c r e tá r io s so n la g a r g a n ta d e i c u e r p o m ís tic o d e s ta
M o n a r q u ia , y p o r d c u e llo c o m u n ic a a lo s d e m á s m ie m b r o s d e su s re in o s e l a l im e n to d e su
g o b ie r n o : so n e l in té r p r e te d e su v o l u n t a d , p o r q u e lle v a n a l P r ín c ip e la s sú p lic a s d e i r e in o y
v u e l v e n c o n su r e s p o s ta l5.
[...] S e n h o r - R e q u e r i d o s n ó s d o P r in c ip a l d o P o v o d e s t a C id a d e d a B a h ia e d a n o s s a
o b r ig a ç ã o p o r C a b e ç a d e la : i m o s a o s R e a is P é s d e V o s sa M a j e s t a d e r e p r e s e n t a r o c o
14. A mesma posição de defesa dos interesses do Império é legível, ainda, na defesa, feita pela Câmara,
da Companhia de Jesus contra os capuchinhos franceses, que pretendem instalar sua ordem em
Salvador. Os oficiais noticiam ao Rei que os capuchinhos são responsáveis pelo levante dos índios
do sertão ensinando-lhes que os verdadeiros descobridores do Brasil são os franceses e que o domí
nio dos portugueses é injusto. Além disso, segundo a Câmara, fornecem armas de fogo aos índios,
que atacam e queimam canaviais e engenhos. Mais uma vez, a defesa dos interesses do Império
coincide com a dos interesses dos senhores e lavradores de canas. Cf. Cartas tio Senado 1673-1684,
vol. 2, pp. 78-79.
15. Texto de Bermúdez de Pedrasa, citado por Francisco Murillo Ferrol, Saavedra Fajardoy la Política
dei Barroco, Madrid, Instituto de Estúdios Políticos, 1957, p. 307.
116
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O M Í S T I C O
m u m S e n t i m e n t o d e t o d o s p e la d e s e s t i m a ç ã o e m q u e e s t ã o o s n o s s o s F r u t o s d o B r a s il,
A ç ú c a r e T a b a c o 16.
E nos poemas:
L o g o e m b o a c o n s e q ü ê n c ia
n a P e s s o a r e a lç a d a
d e P ed ro e stá a te n u a d a
d e s t a P r o le a d e s c e n d ê n c ia :
lo g o c o m t o d a a e v i d ê n c i a
e a l u z d a d iv in a l u z
se v ê , q u e a P ed ro c o n d u z
o o lh a r , e v e r d e D e u s ,
q u e ao p r im e ir o R e i, e a os se u s
p r o m e te u na a r d e n te cru z.
( O C , V , p . 1 2 0 8 .)
117
A SÁTI RA H 0 E N G E N H O
18. Cit. por Cario Giacon, S. J., La Seconda Scolaslica, Milano, Fratelli Bocca Editori, 1950, 3 vols., vol.
III, p. 159.
19. Cf. Manuel Paulo Meréa, “Suárez, Jurista”, Revistada Universidade de Coimbra, Coimbra, Imprensa
da Universidade, 1917, vol. VI, p. 116.
20. Cf. Francisco Suárez, De legibus, lib. 5, cap. 4, n. 11: “Tahs translado potestatis a republica in principem
non est delegalio sed quasi alienatio, seu perfecta largilio polesiatis quae erat in communitate”, cit. por
Jean-François Courtine, “Chéritage scolastiquedans la problématique ihéologico-politique de l’Âge
Classique”, em Henry Méchoulan (org.), op. cit., p. 99.
21. Cf. Manuel Paulo Merêa.op. cit., p. 124: “Mais uma vez, Suárez começa por fazer a distinção consa
grada em tirano quoad lilulum e tirano quoad administrationem. O primeiro, também chamado na
escola lyrannus usurpalionis, é o tirano propriamente dito, aquele que se apoderou do trono injusta-
118
i
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O M Í S T I C O
mente e que só de fato ocupa o lugar de rei. O segundo - lyrarmus adminisiralionis ou tyrannus
regiminis - é o rei que, gozando de justo título, todavia governa tiranicamente, realizando de prefe
rência os seus interesses pessoais, ou afligindo injustamente o seu povo - na qual categoria devem
incluir-se, entre os monarcas cristãos, aqueles que afastam seu povo da ortodoxia”.
22. Cf. Martim de Albuquerque, “Política, Moral e Direito na Construção do Conceito do Estado em
Portugal”, Esludos de Cultura Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1983, pp. 96-
9 7 : “Para os 'filósofos políticos’ lusitanos d o s séculos X V I e X V I I a razao de Estado constitui doutri
na pestífera. A condenação da razão de Estado, no sentido em que se ligou este conceito a Maquiavel,
é correlativa e conseqüência lógica da condenação do Florentino. Como oposta quer à ordem divina
quer à ordem ética e jurídica nos aparece estigmatizada na generalidade dos autores. [...] A ratio
slatus, como supremo interesse, era pois geralmente repudiada, e quando se adotava a fórmula razão
de Estado fixavam-se-lhe fronteiras divinas e humanas; postulava-se a sujeição do poder estatal ao
comando divino, pelo que nâo se pressupunha a cisão da moral e da política e se afirmava a plena
vigência na esfera do governo do direito anterior c superior ao Estado - o ius divinum, naturale et
gentium - bem como, via de regra, também do próprio direito positivo, com a negação do princcps
legibus solutus". E neste sentido que o autor interpreta a criação da Mesa da Consciência e Ordens, no
século X V I , como controle judiciário do poder pela teologia e pela ética.
23. Le Roy Ladurie escreve que a Corte se erige em lugar geométrico das hierarquias, que subenten
dem o sistema monárquico ou são subentendidas por ele. Os princípios hierárquicos propostos por
Ladurie para a França, a Espanha e Império valem também para Portugal, no século X V I I : subdivi
sões extremamente minuciosas de ordens, ao longo de um eixo vertical, que desce da família real
aos simples gentis-homens; referências e distinções entre o sagrado e o profano, e também entre o
puro e o impuro, o bastardo e o legítimo; contrafenômenos de renúncia cristã da Corte e do mun
do, de um lado, hipergamia feminina, de outro: graças ao casamento, as mulheres obtêm, através
de grandes dotes, maridos mais distintos que elas e uma posição acima da condição do seu nasci
mento. “Elas sobem como trutas ao longo da cascata dos desprezos." Cf. Emmanuel Le Roy Ladurie,
“Reflexions sur 1’essence et le fonctionnement de la monarchie classique ( X V r - X V I I F siècles)”, em
Henry Méchoulan (org.), op. cit., p. X IV .
119
A SÁTI RA E O E N G E N H O
Q u e im p o r ta , q u e n ã o se e n fo r q u e m
o s la d r õ e s , e o s a s s a s s in o s
o s f a ls á r io s , m a l d i z e n t e s ,
e o u t r o s a e s t e t o n ilh o ?
S e d e b a ix o d e sta p a z,
d e s t e a m o r f a ls o , e f i n g i d o
h á fe z e s tã o v e n e n o s a s ,
q u e o o u r o é c h u m b o m o f in o ?
É o a m o r u m m o r ta l ó d i o ,
s e n d o t o d o o in c e n t iv o
a c o b iç a d o d in h e ir o ,
o u a in v e j a d o s o f í c i o s .
T o d o s p e c a m n o d e se jo
d e q u e r e r v e r s e u s p a tr íc io s
o u d a p o b r e z a a r r a s ta d o s
o u d o c r é d it o a b a t id o s .
E s e m o u tr a c o u s a m a is
se d ã o a d e s t r o , e s in is t r o
p e la h o n r a , e p e la f a m a
g o lp e s c r u é is , e in fin ito s .
( O C , I, p . 2 2 .)
120
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O MÍ S T I C O
24. Cf, Francisco Suárez {Doaor Eximius), Conselhos e Pareceres, Coimbra, Imprensa da Universidade
de Coimbra, 1948, 3 tomos, tomo I, p. 225. “Ministro” e “oficial'’ são nomes para presidentes,
ouvidores e alcaides de Audiência; aleaides de Corte, juizes, relatores, escrivães de Câmara, procu
radores, fiscais; contadores; secretários; alcaides; carcereiros; almotacés etc.
25. Idem, p. 226.
26. Idem, p. 227.
27. Idem,ibidem.
28. Idem, p. 228.
121
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
ral, a simonia é proibida, pois não é lícito dar coisa espiritual por preço tem
poral nem tampouco recebê-la.
O fundamento da conclusão é claro, segundo Suárez:
Infere-se ainda, segundo o direito, que nem mesmo o Príncipe pode dar
licença para que os que têm mão no governo possam receber dádivas e subor
nos porque “ [...] es muy maio acuerdo danar a muchos por aprovechar a u.no’m .
Peca o Príncipe que o permite, pois torna-se ocasião de inumeráveis pecados
e põe em perigo moral o bem de seu Estado. Peca, princípalmente, porque
não o pode permitir: “ [...] por ser derecho natural, y Divino, aunque pueda no
castigar, ni penar, comosu Ley positiva reza”3132.Finalmente, conclui Suárez que:
[...] s ie n d o e l c a s tig o d e s to s d e s a fu e r o s J r e n o d e ta n to s y ta n g r a v e s d a n o s y p e c c a d o s , e l no
h a ç e r lo q u ie n tie n e o b l ig a ç io n y p ite d e , se ra c a u sa v o l u n t á r i a d e to d o s e llo s ,y d e los q u e h iç ie r o n
estos ta le s , q u e tie n e n m a n o en e l g o v ie r n o , a c a u s a d e los p r e s e n te s , d a d iv a s , o a v a r iç ia , q u e no
p o d r a n s e r p o c o s , n i p e q u e n o s , p o r q u e c o m o el q u e f a ç i l i t a a u n o la V ir lu d , m e r e ç e m u c h ó , assi
d e s m e r e ç e g r a n d e m e n te q u ie n a b re c a m in o p a r a e l 1iç io e s p e ç ia lm e n te s i es e n d a iio d e la
C o m u n i d a d 12.
122
A M U R M U R A Ç Ã O 1) 0 C O R P O M Í S T I C O
33. A sátira costuma dramatizar a murmuração: “o vulgo tem murmurado" (OC. II , p. 251); “[...] diz
e s t a plebe inimiga” (OC, I I I , p. 317); “[...] veio ocasião/de todo o povo malvado / dizer...” (OC, IV,
p. 833) etc.
123
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O
34. Cf., por exemplo, Carta de 26.6.1678, vol. 2, p. 42: “Foi Vossa Alteza servido atender as queixas
deste Senado mandar informar como de fato se informou dos Desembargadores desta Relação com
toda a atividade e inteireza de que deve dar conta a Vossa Alteza [...] a justificada queixa deste
Senado c o procedimento destes Ministros por ausentes da Presença de Vossa Alteza e ainda muito
mais apareceriam suas culpas se o Escrivão dela não fosse um Ministro da mesma Relação que
ocasionou a muitos o pejo e o temor com que se lhe restringiu a liberdade de poderem jurar por
não se sujeitarem ao dios, e padecerem ao depois os golpes das vinganças que têm prontas nas
varas com que executam e nas penas com que o sentenciam, condenam como de fato já sabem a
maior parte dos jurados e dos jurantes segundo se diz, dissimulando para seu tempo com a vingan
ça...’’. Veja-se a sátira: “Mas que o Juiz da ciência / por causa de alguns respeitos / não faça exame
nos feitos, / por forrar o da consciência: / que o tal com muita insolência / por descuido, ou por
preguiça / não reforme esta injustiça / da sentença lisonjeira! / Boa asneira” (OC, II, p. 482). Ou:
“[...] os três paus da Relação / sempre é carta de ganhar” (OC, II, p. 422).
35. Cf. Carta de 26.6.1678, vol. 2, p. 45.
124
A M UR MU RAÇÃO DO C O R P O M Í S T I C O
pio, pelo excesso dos privilégios, dos quais a mesma Câmara representante do
“comum Sentimento” dá índices de se aproveitar sempre que pode.
Miserável, faminta, empestada, como nas Cartas, a população é represen
tada como temível porque amotinável. Ela murmura. Em uma Carta de 1678
sobre a cobrança de um donativo não pago, a Câmara informa ao Rei que ele
teria recebido informações falsas - o documento não informa de quem - de
que as quantias a serem enviadas ao Reino teriam sido “inferiores quantias”
porque, com saudável eufemismo, se “retardaram” em mãos dos tesoureiros
e encarregados da cobrança. A Câmara alega que a diminuição da quantia se
deve não ao desvio dela para as arcas dos tesoureiros, mas à diminuição dos
cabedais do povo (aqui, o termo “povo” se generaliza e inclui os senhores de
engenho e lavradores de canas), causada pelo pouco rendimento das lavouras
e pela falta de fábricas de açúcar. Segundo os oficiais, o movimento da Alfân
dega o comprova, pois faz cinco anos (desde 1673) não vão para o Reino senão
dez mil caixas de açúcar ou menos, anualmente, “[...] quando nos anos passa
dos lavrava esta Bahia dezessete e dezoito mil caixas”. A causa da diminui
ção, alega a Câmara, são os excessivos direitos reais, que acrescem em cada
arroba de açúcar:
[...] d e q u e r e s u lt a a o n e g ó c i o v e n d e r m o s o s f o r n e c i m e n t o s p a r a a s la v o u r a s c o m a v a n
ç o d e c in q ü e n t a p o r c e n t o p a r a a s s im g a n h a r e m e p a g a r e m o s m u i t o s t r i b u t o s q u e se
tê m p o s t o s o b r e n o s s a s d r o g a s e t u d o r e d u n d a e m p r e j u íz o d e s t e E s t a d o e d e t o d o o
a r r u in a m a s e x e c u ç õ e s p r e s e n t e s a s s im a s p a r t ic u la r e s c o m o a s d a F a z e n d a d e V o ssa
A lt e z a 36.
125
A SÁTI RA E O E N G E N H O
[...] P o r q u e u m a d a s c o n d i ç õ e s c o m q u e e s t e P o v o a c e it o u s o b r e s i e s t e d o n a t i v o c o m tão
b o a v o n t a d e fo i q u e s e n d o c a s o q u e p o r a lg u m a c i d e n t e s e i n t r o m e t e s s e m i n i s t r o s d e
j u s t iç a n e s t a R e p a r t iç ã o e c o b r a n ç a d e s t e lo g o h a v ia m p o r le v a n t a d o d i t o d o n a t iv o e
n e s t a f o r m a p a r e c e u o a c e it a v a V o s sa A lt e z a n a a s s i s t ê n c i a d o s G o v e r n a d o r e s C o n d e d e
Ó b id o s , e F r a n c i s c o B a r r e t o 41.
126
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O M Í S T I C O
R e g is t r o d e u m a C a r t a e s c r it a a S u a A lt e z a s o b r e o n ã o se t o m a r c o n h e c i m e n t o a s
E x e c u ç õ e s d a F a z e n d a R I . F o i V o s sa A lt e z a R e a l S e r v id o m a n d a r q u e n e s t a R e la ç ã o s e
n ã o t o m a s s e c o n h e c i m e n t o s d e m a t e r ia is e C a u s a s p e r t e n c e n t e s à s c o b r a n ç a s d a F a z e n
da R e a l d e V o s sa A lt e z a o c a s iã o d e s e a r g ü ir e m m u it a s q u e ix a s e m a n i f e s t a s d i l i g ê n c i a s
c o m n ã o p a r e ç a lá s t im a d e s t e P o v o e c o m e s ta o r d e m d e V o s sa A lt e z a p r o c e d e m o s M i
n is tr o s d e s t a R e a l c o b r a n ç a se g u n d o se u s a fe to s e v o n ta d e s se g u ro s e m q u e n ã o h á q u e m e m e n
de seu [sic] p r o c e d im e n to s p o r q u e p r o c e d e m e x e c u tiv a m e n te c o n tr a os d e v e d o r e s d e Vossa A l t e
z a se m e m b a r g o d a s L e is e m c o n tr á r io q u e Vossa A l t e z a ta n t o a m a p e n h o r a n d o o s s e u s b e n s q u e
os C o n tr a ta d o r e s d e Vossa A l t e z a n o m e ia m se u s d ig o n o m e ia m se m o u tr a f i g u r a d e J u í z o e s ta
v e r d a d e h á d e s e r m a n i f e s t a a V o s sa A lt e z a p o r q u e h á d e c o n s t a r q u e e s t e a n o f in d o d e
m enos f r u t o s se c o b r o u m a is q u e n o s p a s s a d o s e j á q u e Vossa A l t e z a é s e r v id o c o n s e r v a r a q u i e sta
R e la ç ã o s e r á r a z ã o p a r a q u e n o s s e ja e m a lg u m a m a n e ir a p r o v e it o s a p a r a e m e n d a r este
p r o c e d im e n to [sic] p e lo s m e io s o r d in á r io s d e u m a g r a v o p o r q u e d e o u tr a m a n e ir a n ã o só nos
fic a r á e sta R e la ç ã o m o le s ta m a s a i n d a in ú t i l su a a s s is tê n c ia is t o p r o p o m o s a V o s s a A lt e z a
p ela f i d e li d a d e d e n o s s o s â n i m o s q u e t e m o s d e o b s e r v a r a s o r d e n s d e V o s sa A lt e z a p o r
e s ta r m o s n o C o n h e c i m e n t o c e r t o s d e q u e V o s sa A lt e z a h á d e r e m e d ia r t u d o c o m o P r ín
c ip e tã o b e m i n c l i n a d o a q u e m d e s e j a m o s c o m o s a n g u e d e n o s s o s b r a ç o s a d q u ir ir - lh e
m a io r e s f e l i c i d a d e s p a r a o E s t a d o d e V o s sa A lt e z a n a s o c a s i õ e s p r e c i s a m e n t e n e c e s s á r i a s
q u e e s t a s a s n ã o t e m o s d e p r e s e n t e s e ja D e u s lo u v a d o p a r a se p r o c e d e r a s e x e c u ç õ e s se m
recurso; e o o r d in á r io n e s ta C id a d e h a v e n d o M in is tr o s n e la L e tr a d o s . G u a r d e D e u s a P e s s o a
d e V o ssa A lt e z a m u i t o s a n o s c o m o h a v e m o s m is t e r s e u s V a s s a lo s 42.
127
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
R e g is t r o d e u m a C a r t a e s c r it a a o P r o c u r a d o r G r e g ó r io d e M a t o s e G u e r r a e m L i s
b o a s o b r e a m e s m a m a t é r ia a tr á s d a C a r ta p a r a S u a A lt e z a .
N e s t e p a s s a d o a n o d e s e i s c e n t o s s e t e n t a e o it o d i g o s e t e n t a e tr ê s a c o r d a r a m o s
D e s e m b a r g a d o r e s e m R e la ç ã o f e s t e j a r a o E s p ír it o S a n t o e m u m a d a s S u a s o it a v a s n o
C o n v e n t o d o C a r m o a t í t u l o d e f e s t a d a j u s t iç a o b r ig a n d o a t o d a e la a a c o m p a n h a r o
r e g e d o r d e C a v a lo c o m p e n a d e v i n t e C r u z a d o s fo r a m o s J u i z e s n a v é s p e r a o b e d e c e r a
e s t e m a n d a t o e n ã o fo r a m a o d ia a s s im p o r n ã o s e r o b r ig a ç ã o c o m o n e s s a C o r t e c o m o
p e lo h a v e r e m f e i t o a s s im o s d o a n o p a s s a d o q u e t a m b é m s e n ã o a c h a r a m n e le : m a s o s d o
p r e s e n t e se a s s e m e l h a r a m a o s d o p a s s a d o n a a ç ã o n ã o o s i g u a la r a m n o m e r e c i m e n t o ou
f o r tu n a p o r q u e a tiv e r a m a q u e l e s d e q u e s e n ã o f i z e s s e c a s o d a s u a f a lta e e s t e s a d e q u e
s e o l h a s s e p a r a e s t a p a r a s e a r r o ja r e m d e m a n e ir a e s t e s M i n i s t r o s q u e f iz e r a m a t o d e le s
e s e m a t e n t a r e m a q u a l i d a d e d a s P e s s o a s n e m a d o C r i m e o f iz e r a m tã o a t r o z q u e o
s e n t e n c ia r a m e m v i n t e d i a s d e C a d e ia p ú b lic a e e m v i n t e m i l r é is a c a d a u m s e m r e s p e it o
a o s P r i v il é g i o s q u e p o r m u i t o s g r a n d e s p u d e r a m s e r i n v i o l á v e i s . I s t o m e s m o s e e s c r e v e
a S u a A lt e z a c o m o V o s s a M e r c ê v e r á n a C a r ta in c l u s a , e s e l h e m a n d a m o s a u t o s e C e r
t i d õ e s q u e s e r ã o c o m e s ta [sic] p o r m ã o d e V o s sa M e r c ê p a r a q u e o b r e n e s t e C a s o n ã o só
c o m o z e l o d e o b r ig a ç ã o q u e V o s s a M e r c ê t e m d e o fa z e r c o m o P r o c u r a d o r d e s t e S e n a d o
m a s c o m o f i lh o d a m e s m a p á tr ia q u e d e v e s e r o r e p a r a d o r d a s m o l é s t i a s v i t u p é r io s d e
s e u s p a t r í c i o s e v i z i n h o s r e q u e r e n d o m u it o a S u a A lt e z a a e m e n d a d e s t e d e s a c e r t o p ara
q u e s e e v i t e m a s s im o s m a is q u e p o d e m s u c e d e r , p o r q u e q u e m c o n s e n t e a p r im e ir a
a n im a p a r a a s e g u n d a , c o m o p o r q u e s e d is t o S e n h o r n ã o m a n d a r e s t r a n h a r m u i t o e s te
C a s o t e n h a V o s s a M e r c ê e n t e n d i d o p a r a o r e p r e s e n t a r a s s im a S u a A lt e z a q u e n ã o h á d e
a c h a r h o m e n s q u e o s ir v a m p o r q u e q u a n d o n ã o h á d e a c h a r h o m e n s q u e o s ir v a m p o r
q u e q u a n d o [síc] n ã o fo r a m b a s t a n t e s a s q u a lid a d e s e o s p r i v i l é g i o s c o m g r a n d e c o n s i d e
r a ç ã o s e p o d ia m r e s p e it a r a s V a r a s d e S u a A lt e z a a r e t e n ç ã o d o s D e s p a c h o s e a a lt e r a ç ã o
P o p u la r q u e s e p o d ia t e m e r d e s t a v i o l ê n c i a p a r a c u ja e m e n d a n ã o fo r a p e q u e n a [fa lta
t r e c h o d o d o c u m e n t o ] V o s s a M e r c ê a S u a A lt e z a m a n d a s s e c o b r a r d e s t e s M i n i s t r o s s e is
m il S o ld a d o s , q u e p õ e m d e p e n a a o s q u e n ã o g u a r d a r e m e s t e s s e u s P r i v il é g i o s c o m o
V o s sa M e r c ê h a v e r á a o p é d e le s . E p o r q u e s u a A lt e z a c o n c e d e t a m b é m a o s C id a d ã o s
d e s t a C id a d e o s m e s m o s P r i v il é g i o s , q u e t e m o s d e s s a d e L is b o a t o m e V o s sa M e r c ê ao
s e u c a r g o m a n d a r - n o s a C ó p ia e t r a s la d o d e l e s e m p ú b lic a fo r m a p a r a s e r e g is tr a r e m
n e s t a C â m a r a a in d a , q u e n o s n ã o V a lh a m , e a p r o v e it e m p a r a a s r e s p e it a r e m m a s e s p e r a
43. C f . OC, IV, p . 8 9 7 : “Ontem avistamos terra, / e quando na barra vi, / coqueiros e bananeiras, / disse
comigo: Brasil”.
128
A M U R M U R A Ç A O DO C O R P O M Í S T I C O
m o s m u i t o c e r t a m e n t e q u e c o m o f a v o r d e D e u s e b o a d i s p o s iç ã o d e V o s sa M e r c ê c o l h a
m o s o s f r u t o s d e n o s s a s e s p e r a n ç a s d e c u j o e f e i t o p e d i m o s a V o s sa M e r c ê s e h a ja p o r
m u it o e n c a r r e g a d o . G u a r d e D e u s a V o ssa M e r c ê B a h ia v i n t e d e d e z e m b r o d e m il s e i s
c e n t o s s e t e n t a e q u a tr o '14.
129
A SÁ T IR A E O E N G E N H O
são alegados, bem como a “alteração popular” que se “[...] podia temer desta
violência”. A carta de demissão evidencia ainda, no eufemismo irônico de
seus oficiais, que atribuem a Gregório de Matos, como causa de sua omissão
alegada, “suas maiores ocupações”, a auto-representação dos oficiais: “[...] e
assim nos pareceu, a requerimento do Juiz do Povo aliviar Vossa Mercê da
nossa que na verdade é bem grande e pede sujeito mais desocupado’'.
Nos conflitos e posições que relatam, as cartas evidenciam que no século
XVII o poder real se divide em poder ordinário, cujos limites são o direito pri
vado, a lei comum e o interesse particular dos súditos, determinados num
contrato, e poder absoluto, que visa o bem comum, determinando meios e fins
da razão de Estado soberana*5. A divisão fica evidenciada em trechos das car
tas citadas acima, por exemplo, como a referência ao “escândalo” dos “[...]
novos e pesados impostos sobre o Tabaco fruto deste Estado” ou aos “[...]
Privilégios que por muitos grandes puderam ser invioláveis”. A mesma divi
são implica que, formalmente, o imposto real só é lançado com o consenti
mento dos súditos - o que não significa, como se comprova facilmente nas
cartas e também nas sátiras, que o contrato seja sempre cumprido: alterações
do valor da moeda, aumentos de taxas, novos impostos etc. são muito co
muns, acarretando carga pesada sobre o povo, tomado o termo, aqui, generi
camente, já sobrecarregado. O efeito: “murmuração” e mesmo “tumultos”,
d ilig ê n c ia d e r e q u e r im e n to p r o p o n d o a S u a A l te z a o q u e m a is c o n v in h a a S e u S e r v iç o m a n d a n d o o C o n tr á r io
e n e m u m a só p a l a v r a n o s d i z V ossa M e r c ê n e s ta s m a té r ia s f o i o S e n ti m e n t o g e r a l d e s ta o m is s ã o d e V o ssa M e r c ê
q u e a t r i b u í m o s a s u a s m a i o r e s o c u p a ç õ e s e a s s im n o s p a r e c e u , a r e q u e r i m e n t o d o J u i z d o P o v o a l i v i a r a V ossa
M e r c ê d a n o s s a q u e n a v e r d a d e é b e m g r a n d e e p e d e s u je ito m a is d e s o c u p a d o p e lo q u e r e so lv e m o s q u e s u c e d a a
gócios que se tem encarregado muito des [falta trecho no documento] papéis a ele concernentes e as
Cartas para Sua Alteza que se acharem por despesa ao dito Capitão continuar os Requerimentos e
mandará Vossa Mercê Certidão do dia em que acabá-la a comissão que se fez a Vossa Mercê para cons
tar cá e se mandar pagar a seu Procurador de Vossa Mercê o que se deve do ordenado e demos a Vossa
Mercê as graças do Zelo com que acudiu ao mais que se ofereceu Guarde Deus a Vossa Mercê Bahia
vinte e seis de julho de mil seiscentos setenta e quatro anos” (grifos meus).
48. Cf. José Antonio Maravall, “A Função do Direito Privado e da Propriedade como Limite do Poder
do Estado”, em Antônio Manuel Espanha (org.), P o d e r e I n s t i t u i ç õ e s n a h u r o p a d o A n t i g o R e g i m e ,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 240 e ss. Sobre a Península Ibérica dos séculos
XVI e XVII, Maravall escreve que a “propriedade baseada no contrato, a propriedade como relação
jurídico-privada, era o limite constituído do poder do Estado. Era, assim, como que o perfil em
negativo do próprio poder soberano. Isto encontrava-se em íntima conexão com o mundo burguês
da economia, regido pelas conveniências de mercado, e com a necessária formação de capital re
querido por uma sociedade em vias de transformação”. A mesma divisão está implicada na doutri
na da alienação do poder em mãos do soberano, aliás, tal como Suárez a expõe.
130
A M U R M U R A Ç Ã O DO CORPO M ÍST IC O
como refere outra carta da Câmara, sempre às voltas com a Relação. Assim,
por exemplo, Luís Gomes da Mata, correio-mor do Reino, elege por assisten
te em Salvador a Bartolomeu Fragoso Cabral. Como a criação do novo cargo
demanda mais impostos para pagar o ordenado de Cabral, a Câmara apela
para a Casa da Suplicação, interpondo embargo contra a nomeação. O
postulante do cargo, porém, opõe embargo ao embargo e, apresentando uma
carta régia em seu favor, consegue que a Relação o nomeie. Segundo a Câma
ra, seu embargo não foi considerado e nem ela ouvida. Não obstante isso, dá
posse ao nomeado, pois a Relação o ordena, juntando para isso a carta régia:
[•■■] E m v i r t u d e d a C a r t a d e V o s s a A l t e z a l h e m a n d a m o s d a r P o s s e e e s t a n d o e x e r c i t a n
do o d ito O f íc io d e a s s is t e n t e n o p r im e ir o d ia q u e tev e C artas tivemos nós um tumulto dos
moradores desta Cidade q u e c o n v o c a d o s v iera m a este S e n a d o req u erer -n o s n ã o p e r m itís
sem o s h o u v e s s e n o S e n a d o d ig o h o u v e ss e n esta C id a d e u m O fíc io tão o d io so à R e p ú b li
ca sossegam osestes moradores e lhe prometemos fazer presente a Vossa Alteza o dano irreparável
que recebe esta Cidade c o m e s t e n o v o O f í c i o e q u e n ã o t e n d o e s t e E s t a d o f e i t o m e n o r e s
Serviços a V ossa A lte z a d o q u e t e m feito os E s ta d o s da ín d i a fic a r a m e le s i s e n t o s d e s te
O fíc io e e ste E s ta d o c o m o s c a r g o s e d a n o s q u e r e c e b e m c o m e s ta e l e iç ã o d o C o r r e io -
m o r d o R e i n o 49.05
Da mesma maneira, outra carta do mesmo dia expõe ao Rei “[...] o proce
dimento dos ministros desta Relação e as vexações que este Povo fica pade
cendo com eles”, afirmando que “[...] estão mais insuportáveis que nunca”'u.
Tanto as Cartas do Senado quanto as sátiras operam na circunscrição do
poder ordinário, tendo sempre como pressuposto do discurso o poder absolu
to da razão de Estado, que é soberana. Desta forma, coisa não vista pela crítica
que postula o protonacionalismo de Gregório de Matos, podem até contestar,
em função de interesses particulares de grupos ou de súditos individuais, de
terminadas ordens e imposições - por exemplo, recorrendo ao lugar-comum
do “miserável Povo” contra o excesso dos impostos mas não contestam, nun
ca, a razão de Estado que determina tal excesso, nem seu fundamento, a sobe
rania real: “[...] Porém por ocultos princípios, que não devem os Vassalos per
guntar às Majestades, foi servido brevemente Mandar Sua Majestade, que
corresse toda a moeda de Selos pelo que tivessem a Respeito de tostão a oita
va”, confirma uma “Protesta da Nobreza da Cidade da Bahia ao Senado da
Câmara para a fazer presente a Sua Majestade”, em 28 de julho de 169351.
131
A SÁTIRA E O E N G E N H O
Por isso, é possível afirmar mais uma vez que as intervenções das cartas e
da sátira incidem sempre sobre abusos em questões do poder ordinário, por
que o pressuposto de sua intervenção é o uso estabelecido sempre alegado
como o bom uso - e este se encontra predeterminado na vontade do Rei, que é
intocável52. É neste sentido, ainda, que se pode entender a solicitude freqüen-
tíssima com que as Cartas do Senado insistem em questões de fisco. Além de,
obviamente, formalizarem a questão do direito privado dos senhores de enge
nho e do direito do Estado, permitem ver que o Tesouro, na medida em que
pertence à potência pública, é res quasi sacra, coisa quase sagrada, que consti
tui e mantém a vida da República como corpo dinamicamente integrado: o
Tesouro é sua alma e substância, nela circulando como o sangue, que é sagra
do e que ocorre como sua metáfora. É nesta linha que também se esclarece
por que o termo “ladrão”, assacado contra qualquer membro desse corpo, é
um “insulto atroz”, juntamente com o termo “corno”. Ambos incidem sobre a
harmonia hierárquica ao desqualificar os laços de sangue pela imputação de
“puta” à mulher do atacado ou às mulheres de sua família e pela acusação de
corrupção da parte e do todo do corpo místico do Estado.
Porque o Tesouro é coisa quase sagrada, certamente, é que uma carta, não
da Cântara, mas de senhores de engenho e lavradores de canas, endereçada
ao Rei em 20 de j unho de 1662 contra os interesses de Bernardo Vieira Ravasco,
irmão do Pe. Vieira, afirma que “ [...] quem diz Brasil diz açúcar e o açúcar é a
cabeça deste corpo místico que é o Brasil”, numa síntese felicíssima das vir
tudes do sistema, negócio, teologia, hierarquia, docemente dosados53. As crí
ticas e as denúncias, tanto dos oficiais da Câmara quanto da persona satírica,
da corrupção da Junta do Comércio, por exemplo, que em suas transações
monopolistas eleva ou baixa os preços dos gêneros, conforme os venda ou
compre, têm por fim indicar os pontos em que o açúcar azeda e o corpo mís
52. Em 1678, os oficiais da Câmara fazem sugestão à Coroa que é interpretada como interferência
direta na razão de Estado. A resposta de Lisboa é severa, recolocando os oficiais em suas atribuições
de poder ordinário.
53. Cf. Maria lzabel de Albuquerque, "Liberdade e Limitação dos Engenhos d’Açúcar”, em Anais do
Primeiro Congresso de História da Bahia, Salvador, Instituto Geográfico e Histórico, 1955, p. 494. Em
1662, Bernardo Vieira Ravasco, secretário do Estado, pretende que seja proibido o estabelecimento
de novos engenhos, alegando a suficiência dos já existentes. A Carta de 20.6.1662, de mais de cem
“cidadãos”, afirma que Bernardo pretende a limitação dos engenhos por necessitar das lenhas para
mover o seu. Escrevem que “[...] porque o açúcar é a cabeça deste corpo místico do estado do Brasil
e conforme a qualidade dos engenhos são as quantias que se lançam nos dízimos e de seus açúcares
se pagam grandes direitos à fazenda real com que engrossam os comerciantes navegantes; e dc 150
anos a esta parte temos experiência que nas capitanias donde houve muitos engenhos houve mais
gente e mais comércio e mais cabedal e mais navegações”,
132
A M U R M U R A Ç À O DO CORPO M ÍST IC O
54. Este gênero de conflito e reclamação é rotineiro desde o século XVI - lembrem-se, por exemplo, os
desentendimentos do bispo Dom Pero Fernandes Sardinha com o padre Manuel da Nóbrega e,
ainda, com o filho do governador Duarte da Costa. Cf., por exemplo, Frei Vicente do Salvador, “Das
Fortificações e Outras Boas Obras que Fez o Governador Diogo de Mendonça Furtado na Bahia e
Dúvidas que Houve entre Ele e o Bispo e Outras Pessoas”, em História do Brasil: 1500-1627, rev.
Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia e Frei Venâncio Willeke, OFM; apres. Aureliano Leite, 7.
ed., Belo Horizonte, São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1982, cap. 21. Cf. também Affonso Ruy, op. cit., pp.
158-159; Padre Manuel da Nóbrega, “Carta do Padre Manuel da Nóbrega ao Padre Simão Rodrigues,
Lisboa”, em Serafim Leite, S. J., Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil, São Paulo, Comissão do IV
Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, pp. 367-375.
55. Em 4.6.1699 {Atas da Câmara, vol. 6, pp. 374-375), os juizes Ordinários e mais pessoas nomeadas
determinam as insígnias que devem ter os oficiais mecânicos e mais obrigações para assistirem nas
procissões da Cidade em louvor de Deus e de seus santos. Propõem que se devam conservar e au
mentar as “antigualhas que se costumavam”, encarregando-se os alfaiates da confecção das novas
insígnias e bandeiras. Os ofícios de carpinteiro, torneiro, marceneiro e entalhador são obrigados a
dar uma bandeira e quem a leve; os ofícios de alfaiate, palmilhador, botoeiro são obrigados a dar,
com a sua bandeira, a madeira e “pano pintado para a Serpe e negros que a carreguem”; os sapatei-
133
A SÁ T IR A E O E N G EN H O
ros, cortadores e hachureadores são obrigados a dar “a sua bandeira e o drago aparelhado de tudo
e negros para carregarem”; os pedreiros dão uma bandeira e quem a leve; padeiros e confeiteiros
são obrigados a dar “dois gigantes, uma giganta e um anão e quem carregue”; os tanoeiros e sirgueiros,
“uma bandeira e quatro cavalinhos frescos e quem carregue”; os ferreiros, serralheiros, barbeiros,
armeiros e caldeireiros “todos ditos oficiais darão o guião e São Jorge a cavalo com todo o necessá
rio e o pajem deceniemente vestido e o Alferes da mesma sorte vestido, trombetas, tambores e seus
alabardeiros de guarda do Santo, tudo vestido decentemente”; os vendeiros e vendeiros de porta
são obrigados a dar “quatro lanças”; e os prateiros e os marchantes são obrigados a dar “três
tourinhos”. Observa-se, pela atribuição dos encargos das várias corporações, a riqueza de algumas
em relação a outras - por exemplo, ferreiros, serralheiros, armeiros etc. Pelas atribuições, pode-se
imaginar a sua disposição hierárquica na procissão. Na carta contra o bispo Dom Pedro da Silva,
ínfere-se que todas essas classes mecânicas estão assistindo ao conflito com o bispo.
56. C a n a s do S e n a d o 1 6 3 8 - 1 6 7 3 , vol. 1, pp. 18-19. Cf., a respeito de Dom Pedro da Silva, Anita Novinsky
(introd.), U m a D e v a s s a d o B i s p o D o m P e d r o d a S i l v a 1 6 3 5 , 1 6 3 7 , separata do tomo XXII dos A n a i s d o
M u s e u P a u l i s l a , São Paulo, 1968; I. Accioli, & B. Amaral, M e m ó r i a s H i s t ó r i c a s e Políticas da B a h i a ,
134
A M U KM U RAÇÃO DO CORPO M ÍS T IC O
58. Lembre-se mais uma vez que, no período, soberania e lei são identificadas.
59. “Através de alianças políticas com os burocratas, os grupos, famílias e indivíduos da colônia adqui
riam um apoio poderoso que poderia vir a ser eficiente na aplicação da lei e na maneira de seguir as
linhas políticas.” Cf. Stuart B. Schwartz,op. cil., p. 292.
135
A S A T I R A li 0 E N GE N H O
tes”. O bispo acusa a Câmara, segundo os agentes da carta, de “[...] não estar
por esta verdade”. A Câmara alega desconhecimento de tal provisão, referin
do-se a registros escritos, como as Atas: “[...] nem está registrado”. E ainda
comunica ao Rei que, nas procissões de Santa Isabel e do Anjo, comparece
ram os oficiais, juntamente com o governador Antônio Teles da Silva, “[...]
sem Guião por não tornar a haver com o mesmo Bispo segunda ocasião de
sucesso ou perigo de se perder com ele este povo”60.
Nunca se poderá saber das motivações de Dom Pedro da Silva, famoso por
sua intolerância contra os cristãos-novos - o que não tem importância, aliás,
pois a carta do Senado faz antes falar precedências, privilégios e cuidados com
a coisa pública. Neste sentido, a quebra das disposições protocolares da hie
rarquia dos membros da procissão evidencia o “[...] perigo de se perder [...] este
povo”. Que seria tal “perigo”, cuja precaução faz com que a desestabilizaçâo
hierárquica de que acusam Dom Pedro seja “esquecida”, isto é, intencional
mente dissimulada pelo governador e pela Câmara em função de uma estabi
lidade superior do bem comum, determinada pela “prudência”?61
Trata-se de evitar a todo custo a murmuração do vulgo. Em outros ter
mos, trata-se de manter intactas a reputação e a honra dos cargos, bem como
a reverência que lhes é devida. Honra, reputação e reverência são, neste sen
tido, praticamente sinônimas no século XVII62, sendo doutrinadas politica
mente como função da opinião, que se aplica sobre um ponto social determi
nado, conferindo-lhe a forma da “honra”. A honra é constituída pela opinião
alheia, devendo ser mantida a todo custo como moral da aparência e aparên
cia da moral: a reputação do vereador obrigado pelo bispo a andar junto das
mecânicas seria duplamente ultrajada, se o governador e a Câmara intervies-
sem publicamente, fornecendo ocasião ao vulgo presente para testemunhar
um duplo conflito em que representantes do poder real se exporiam publica
mente à murmuração popular63. Conserva-se a honra, portanto, mantendo-se
as aparências, para impedir que a reputação seja abalada: paradoxalmente,
Madrid, Ed. Nacional, 1976, 2 vols., Empresa XIV, vol. 1, pp. 178-179.
62. “H o n r a d o es e l q u e e s t á b i e n r e p u t a d o , y m e r e c e q u e p o r s u v i r l u d y b u e n a s p a r l e s s e le h a g u h o n r a y
r e v e r e n c i a ’’ (Covarrubias, T e s o r o d e l a L e n g u a C a s t e l l a n a , 1612).
63. Algo semelhante ocorre na Corte de Luís XIV quando se recebe com toda a pompa o embaixador
turco que, dcscobre-se tarde demais, é um simples mercador. Nada se diz e a recepção continua. Cf.
Phillipe Beaussant, V e r s a U le s O p e r a , Paris, Gallimard, 1981.
136
A M U R M U R A Ç Ã O D O C O R P O A lIS T IC O
não é o vereador e não é a Câmara que têm honra e merecem reverência, mas
aqueles que, não a tendo, podem deixar de atribuí-la, o povo64. Se o fizesse,
deixaria também de reconhecer a autoridade merecedora da obediência: em
outros termos, tem honra quem pode tirá-la de outro e assim, paradoxalmen
te, os grandes se mantêm em evidência e recebem a fama e a glória devidas à
sua posição por parte daqueles que institucionalmente não a têm, o vulgo,
mas que pode tirá-la pela murmuração. A honra está constituída, desta ma
neira, na opinião alheia, para que esta seja temida e, dependendo as ações da
censura e do juízo de outros, para que se procure satisfazer a todos agindo
bem656. Funcional, a honra é uma relação que implica sempre o ver e o dizer, um
testemunho e uma opinião sedimentados em juízo. Quando ultrapassa os limites,
portanto, a murmuração transforma-se em sedição e é crime de traição. As
sim como é monstruoso um pé falante ou um braço reflexivo, pois quem de
tém tais atribuições é a cabeça, é também monstruoso que os membros subor
dinados do corpo político se rebelem contra a soberania da razão de Estado
visível nas instituições:
137
A SÁT IR A E O E N G E N H O
138
Â
A M U R M U R A Ç Ã O DO CORRO M ÍST IC O
139
A SÁ T IR A E 0 E N G E N IIO
140
A M U R M U R A Ç A O DO CORPO M ÍST IC O
conceder a este Povo o Convento de Santa Clara por requerimento que ti
nham feito muitos anos aos Senhores Reis antecessores de Vossa Majestade
os Moradores desta terra”72. A carta evidencia, ainda, a pretensão de fidalguia
dos senhores locais representados pela Câmara, quando se refere às vagas do
convento: de “véu preto” para as mulheres “de representação”, de “véu bran
co” para outras que, não fazendo os votos, ocupam-se dos trabalhos manuais
próprios de mulheres de outra condição social. É elucidativo ler que nenhu
ma das vagas do véu branco é preenchida:
[...] V o s s a M a j e s t a d e [...] l h e s p r o m e t e u e s t a c o n c e s s ã o c o m n ú m e r o d e C i n q ü e n t a
R elig io sa s d e V éu P reto, c v in te e c in c o de V éu b ra n co , q u e ta m b é m são R e lig io sa s , m a s
com o não têm voto , até h o je não h o u v e m u lh e r a lg u m a que in te n ta sse a lg u m d e sse s
lugares. E p o r q u e o n ú m e r o d a s C in q ü e n ta d e V é u P reto está c o m p le t o , e fic a r a m q u e
as p e s s o a s n o b r e s , f i l h a s d e C i d a d ã o s q u e t ê m s e r v i d o , e s e r v e m a V o s s a M a j e s t a d e s e m
recurso para e n t r a r e m , M o t i v o q u e n o s o b rig a a p e d i r a V ossa M a j e s t a d e c o m o e m
r e m u n e r a ç ã o d o s S e n d ç o s [...] n o s p e r m i t a V o s s a M a j e s t a d e c o n c e d e r f a c u l d a d e p a r a
q u e o s V i n t e e C i n c o l u g a r e s q u e se d e r a m p a r a a s m u l h e r e s d e V é u B r a n c o s e c o m u t e m
em q u e s e ja m to d a s d e V é u P reto p o r q u e d e sta S o rte n ã o se a c r e s c e n ta o N ú m e r o da
C o n c e s s ã o , n e m se falta ao r e m é d io d e m u i t a s m u l h e r e s n o b r e s c a u to r iz a d a s , q u e p o r
n ã o t e r e m d o t e s c o m p e t e n t e s p a r a c a s a r e m , s e a c o m o d a m a o d e R e l i g i o s a s 73.
[...] q u e n ã o s e j a m a i s q u e p a r a as f i l h a s d o s q u e s e r v e m , e t ê m s e r v i d o a V o s s a M a j e s t a
d e , n a o c u p a ç ã o d e V e r e a d o r , o u j u i z , n a f o r m a q u e s e p e d i u a V o s s a M a j e s t a d e e fo i
s e r v i d o m a n d a r d e c l a r a r p o r C a r t a S u a d e 16 d e n o v e m b r o d e 1 6 9 4 , c u j a o r d e m s e n ã o
g u a r d a p o r se e n t e n d e r s e r e m o s l u g a r e s p r e b e n d a s a n e x a s à R e g a l i a d a M i t r a 75.
141
A SÁ T IR A H O E N G E N H O
A reclusão social, mais que religiosa ou sexual das mulheres, visa a ga
rantir “[...] estas casar [...] com homens de maior esfera do que muitas são”,
tornando-se evidente na carta o temor dos pais proprietários de que venham
a casar-se com maus partidos, o que não ocorre se conseguem vaga no conven
to: “[...] se evitarão as Ruínas que podem suceder a muitas mulheres nobres
por não terem seus Pais com que as possam mandar como outros fizeram, e
menos para as Casarem com Pessoas de igual qualidade”76. Como se verá na
tópica “amor freirático” do capítulo V, ao imaginário da nobreza somam-se a
avareza, a falta de dinheiro ou sua destinação como herança de filho primogê
nito, ou a mera ênfase: “[...] por andar a Nobreza pobre, e desgraçada, assim
se experimenta com grande lástima, e mágoa choram os homens Nobres, e
temem se arruinem suas honras, vendo preferir às suas filhas as dos homens
de menor Condição, sem utilidade, ou Crédito do Convento”77.
A mesma alegação de privilégio e nobreza dos senhores locais encontra-
se, por exemplo, em cartas sobre pessoas que “ [...] se consideram aí na Corte
bem apadrinhadas e nesta Cidade com pouca suficiência para servirem os
Ofícios que por posse e regalia imemorial provê este Senado”, como distin
gue uma carta de 22 de julho de 1686. Segundo a Câmara, tais pessoas apre-
sentam-se com provisões reais contrárias ao serviço do Rei, pois os provimen
tos muitas vezes se fazem em pessoas reprovadas pela Ordenação e “[...]
justamente contra nossa posse, privilégios e foros que por esta via se nos que
bram”. Contra tais pessoas com foros falsos, a Câmara exige do Rei que o
Conselho do Ultramar não admita as petições e os provimentos e “[...] no caso
que se façam se julgue por obreptícios e subreptícios”78.
Em 23 de julho de 1697, a Câmara dirige-se ao Rei repropondo-lhe um
tema tratado em outras cartas, o da concessão à Bahia dos mesmos privilégios
do Porto. Lembrando que Dom João IV os concedeu em 1646, pedem ao Rei
que especifique se os privilégios concedidos à Cidade são extensivos aos cida
dãos ou “homens de mor qualidade” porque “[...] se têm argüido muitas dú
vidas pelos Ministros de Vossa Majestade para não gozarem os ditos privilé
gios”79. Mais uma vez, o argumento persuasório é o do serviço “[...] com
detrimento de suas Pessoas e fazendas sem ordenado algum”80. Os oficiais
tentam convencer o destinatário, alegando que a Bahia é “[...] autorizada com
uma Relação que tem Regimento da Casa da Suplicação e um Arcebispo
142
i
A M U R M U R A Ç A O DO CORPO M ÍS T IC O
[...] O i n t e r e s s e q u e l e v a v a o d i t o J u i z e r a o t e r - l h e m o s t r a d o a e x p e r i ê n c i a d e d o i s a n o s
q u e s e r v i u , s e r p r e c i s o ir a S u a p e s s o a , e i s t o o f a z s e m R e p a r a r n a p e r d a d a F a z e n d a ,
fa lta d a S u a C a s a , e R i s c o d e S u a P e s s o a , e v i d a , ir R e p r e s e n t a r a S u a M a j e s t a d e n e g ó
cios g r a v ís s im o s t o c a n d o ao se u R e a l S e r v iç o , e a u t ilid a d e p ú b lic a , o s q u a is n ã o se
p o d e m f ia r d e p a p é i s p e l a c e r t e z a q u e t e m o s d e t o r n a r e m às m ã o s d a s p e s s o a s d e q u e m
não q u e ir a m o s , d e q u e R e s u lta o d ia r -n o s , e se v i n g a m c o m a f in g id a c a p a da J u stiça ,
tira n d o -n o s as h o n ra s, e fa zen d a s, e n ão p o d e m o s R e m e d ia r este d a n o p ela d esg r a ça d e
viv erm o s tão a fa sta d o s d o s R ea is P é s d e S ua M a jesta d e, e nesta c o n sid e r a ç ã o n o s R e
s o l v e m o s a p a d e c e r , e c a la r * 2.
143
1
A SÁ T IR A E O E N G E N H O
144
A M U R M U R A Ç Á O DO CORPO M ÍS T IC O
87. Ata de 25.12.1694, Alas da Câmara 1684-1700, vol. 6, pp. 239-240: “Aos vinte e cinco dias do mês de
fevereiro de 1694 nesta Cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos nas Casas da Câmara dele cm
Mesa de vereação foi vista uma Carta do Senhor governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara
Coutinho que está no Cartório desta Casa da Câmara e em dita Carta ordena dito Senhor governador
se fizessem luminárias e se dessem graças a Deus pelo feliz sucesso das nossas armas vencedoras con
tra os negros dos Palmares o qual se havia destruído com morte, e prisioneiros do que resultava parti
cular serviço a Sua Majestade e maior utilidade aos moradores de Pernambuco que viviam desde a sua
Restauração oprimidos e avexados com as insolências de insultos mortes e roubos que amiudadamente
faziam os ditos negros dos Palmares dos quais eram prejudicados de assaltos amiudados os moradores
do Porto Calvo Pojuca e Rio de São Francisco e por tão particular serviço em que DEUS foi servido
fazer àqueles moradores e ainda os desta Cidade e seu Recôncavo que experimentavam a perda de
alguns negros que lhe fugiam de suas casas e lavouras e saíam a matarem ditos mocambos dos Palmares
fazendo-se salteadores como os mais e por estas e outras Razões úteis e Convenientes à utilidade pú
blica resolveram e assentaram que se mandasse apregoar por esta Cidade e que se Fizessem as Luminá
rias e se incorporassem os oficiais que de presente servem com o Senhor com a nobreza (a que se deu
recado) fossem à Santa Sé desta Cidade e nela se dessem graças a Deus nosso Senhor por tão particular
mercê e benefício como havia feito a estes moradores e aos de Pernambuco na destruição de ditos
Palmares”.
88. Carta de 25.4.1681, Carias do Senado 1673-1684, vol. 2, p. 94.
89. Idem, ibidem. Num lapso, o escrivão dá “Convento que tanto desejamos”, corrigindo imediatamente
por “desejavam”. Como se viu, a Câmara pretende a exclusividade do privilégio das vagas do con
vento para as filhas dos oficiais e congêneres.
90. Carta de 1.7.1681, Cartas do Senado 1673-1684, vol. 2, p. 103.
145
A SA T IR A E O E N G E N H O
constrangidos com a execução de dívidas “de cinqüenta mil réis para cima”,
pedindo-lhe também dilatar o prazo de pagamento por três anos “[...] para
que melhor e com mais suavidade se possam as fazendas fabricar”91. Suavida
de dos senhores, certamente, haja vista a notícia dos dois mil negros mortos e
outras, que convém rastrear.
Em 23 de dezembro de 1663, o Rei passou uma provisão de que não se
fizessem penhoras e execuções por dívidas nas fábricas dos engenhos. Deter
minou então que os credores fossem pagos com os rendimentos do açúcar
vendido. O açúcar que vinha à praça por execuções de dívidas também não
podia ser arrematado, uma vez que se costumava fazê-lo por preço muito
inferior ao estabelecido. Visando a proteger os senhores e a garantir a expor
tação do produto, outra provisão real, de 3 de novembro de 1681, proíbe que
os credores, fraudando os devedores executados, façam as execuções do açú
car e de outros gêneros da terra no tempo em que seu valor é baixo por não ser
a época da sua carga nas frotas. Determina-se então que seja avaliado segun
do o valor do tempo das frotas por duas pessoas indicadas pela Câmara, que
faz esta recapitulação quando reclama contra os credores, que continuam em
ação e tratam de cobrar por execuções. Assim, em carta de 6 de julho de 1683,
os oficiais escrevem que esperam medidas da Coroa para coibir-lhes os abu
sos. Reencenando o mesmo quadro de misérias já descrito em cartas de 1680
e 1681, acusam a ação dos credores que, não podendo penhorar fazendas,
engenhos e açúcar, fazem-no nos escravos do serviço de casa. Levam-nos à
praça, segundo os oficiais, e os arrematam “[...] por muitos baixos preços pela
mesma causa da falta de moeda”92:
[...] c o m q u e t i r a n d o e s t e s , q u e t a m b é m e m m u i t a s o c a s i õ e s j u n t o c o m a s f á b r i c a s s e r
v e m n o s co rtes d as can as, e cargas, e d escargas, e b e n e f íc io s d o s fru tos, fica m o s m o r a
d o res se m o s escra v o s d o seu serv iço e c o m o não há n o B ra sil o u tr o s se r v e n te s lh es é
n e c e s s á r io tira rem d a s fá b r ica s d o s e n g e n h o s e la v o u ra s o u tr o s ta n to s para se u serviço
co m q u e se v ã o d i m i n u i n d o as fábricas d e escravaria e la v o u ra c o m ela s e p o r esta cau sa
se f a z e m t a m b é m m e n o s a ç ú c a r e s e m e n o s f r u t o s 93.
91. I d e i n , íb id e m .
146
A M U R M U R A Ç Ã O DO CORPO M ÍS T IC O
com os senhores, nos laços de favor e cooptação. É a mesma relação, aliás, que
a pragmática satírica efetua como ordenação jurídica dos corpos de linguagem
na hierarquia prescrita pela persona. É a mesma relação que também fornece,
para o satírico, o referencial de discursos dramatizados como investimento
semântico dos poemas. Uma mesma normatividade hierárquica, unificada na
relação senhor-escravo, permeia os discursos das Atas e Canas, assim, encon
trando-se também atuante na sátira, em registro paralelo. Veja-se que, no tre
cho transcrito, a falta de escravos é causa de “menos açúcares e menos frutos”,
ou diminuição da produção e do lucro. Evidencia-se, pelo documento, que tan
to o escravo doméstico, supostamente mais próximo do senhor e recebendo,
supostamente, tratamento mais suave, quanto o escravo da lavoura, suposta
mente mais distante e recebendo obviamente tratamento mais duro, estão efe
tivamente subordinados a um mesmo e único interesse mercantil, que deter
mina as duas situações, casa e eito. Facilmente se troca a posição dos negros no
trabalho, como se evidencia pelo trecho em que os da casa “[...] servem nos
cortes das canas, e cargas, e descargas, e benefícios dos frutos”. Veja-se que os
das fábricas de açúcar vão sendo retirados, na situação referida pela carta, para
o serviço doméstico. Não há dois tratamentos, suave ou duro, mas, sim, uma
unidade de violência e de benignidade94. Esta relação atravessa todas as outras,
como arbitrariedade exercida pelas autoridades locais sobre o restante da po
pulação livre, como se evidencia na cobrança e no desvio de impostos, na ad
ministração irregular da justiça, na desigualdade da proteção pessoal, na ge
neralidade sempre alegada do tema do “bem comum” etc.
A falta da mão-de-obra escrava, causa da baixa produtividade e do lucro
escasso, já é motivo de uma carta de l2de dezembro de 1674, aliás, pedindo ao
Príncipe Regente que proíba o embarque para o Reino de negros de Angola
94. Cf. Ataria Sylvia Carvalho Franco, “Organização Social do Trabalho no Período Colonial”, Discur
so, São Paulo, FFLCH-USP/Hucitec, maio 1978, n. 8, pp. 39-40: “Assim, enquanto núcleo domésti
co, o latifúndio colocou o escravo em contato contínuo e estreito com os membros da camada
dominante, tecendo os fios firmes da dependência pessoal: o tratamento condescendente dado á
ama-de-leite, à mucama, ao pajem, exprime esses aspectos mais brandos de suas relações. No ex
tremo oposto, encontramos o homem ‘coisificado’, submetido à dura disciplina requerida pela
produção mercantil. Essa diversidade de ajustamentos possíveis prende-se, sem dúvida, às situa
ções particulares, onde se determinaram os contatos entre o senhor e o escravo, isto é, a casa e o
eito. Mas é preciso não escorregar numa dissociação e sublinhar que essas duas situações compu
nham uma unidade socioeconômica: isto nos permite notar que as relações entre senhor e escravo
permanecem essencialmente as mesmas, em quaisquer das posições diferenciadas que possam ocu
par na estrutura do latifúndio. Significa isto que estão implícitos e sintetizados no curso de suas
relações tanto a compulsão e a violência como os seus contrários, a quebra do rigor e a mercê".
147
A SÁT IR A K 0 K X G E N H O
trazidos para a Bahia. Mais uma vez, explicita-se a relação entre a mortanda
de escrava e o lucro mercantil:
[...] n ã o h ã o u t r o s s e r v i d o r e s s e n ã o o s n e g r o s d e A n g o l a q u e a q u i v ê m v e n d e r - s e e s ã o
tão p o u c o s o s q u e aq u i estã o d ig o o s q u e en tra m n esta P raça e n a s m a is d o lista d o e
tantos os que morrem pelo contínuo trabalho q u e p o r n ã o t e r e m os m o ra d o res q u a n to s hão
m i s t e r e d e m a n d a m e s t a s f á b r i c a s sc perde muito lucroA
[...] n o s p a r e c e u r e p r e s e n t a r a V o s s a A l t e z a o g r a n d e d a n o q u e s e s e g u e ao S e r v i ç o d e
V ossa A lt e z a e ao b e m c o m u m d e s t e p o v o p e d i n d o se sir va V ossa A lt e z a m a n d a r sob
g r a v e s p e n a s q u e n e n h u m m e s t r e n e m p e s s o a a l g u m a l e v e e s c r a v o a l g u m d a n d o a is s o
fia n ça n e sta C â m a r a q u a n d o despachar'*.
148
A m u r m u r a ç Ao d o c o r r o m ís t ic o
anterior da morte de “muitas mil Almas” pelo contágio da Madre de Deus, nau
que trouxe escravos infectados “sem dar por isso”, o médico justifica seu re
querimento de que não se desembarquem os cativos, propondo que se avisem
todas as vilas do Recôncavo. Considerando os oficiais da Câmara “[...] tão gran
de ruína que além da mortandade que seriamente havia de haver se arruinar os
engenhos efazendas se deu nas bexigas passadas que muitos engenhos não moeram por
haver morto os negros de munas fazendas”, determinam a quarentena do Santa
Marta no morro (ilegível) a quatro léguas da Cidade09.
Outras cartas e atas também informam, com muita naturalidade, o medo
da doença, sempre relacionado ao horror principal, a perda da mão-de-obra e
do lucro. Quase dois meses após o registro da chegada do .Santa Marta, em 16
de julho de 1685, registra-se que chega de Luanda com escravos a nau N. S. da
Conceição e São Francisco infestada de bexigas, sendo enviada para a quaren
tena. A Câmara relata o que o capitão do navio requer: “[...] morrendo algu
mas cabeças protestava não pagar os direitos delas nem um real”, declarando-
se forçado à quarentena e sem responsabilidade pelas mortes que ocorressem
durante o recolhimento99100.
Nas cartas e atas das duas décadas finais do século XVII, o contágio é ameaça
sempre referida. Causa pânico na população, constituída como atemorizada após
a epidemia do “mal da bicha” de 1686, febre amarela que ataca endemicamente os
documentos até a década seguinte. Assim, em 27 de janeiro de 1694, o governador
Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho determina que, “[...] estando esta
Cidade corrupta pelas contínuas enfermidades que se experimentam degeneran
do os ares aquele saudável clima que havia nesta Cidade”, sejam evitados todos os
navios, especialmente os que vêm de Angola, São Tomé e Costa da Mina, como
prevenção contra os danos que “[...] com certeza julgavam os médicos e homens
experimentados vinham de ditas partes a corromper e infeccionar esta Cidade que
com tão lamentável lástima se tem experimentado”101.
Acompanhando o médico, o escrivão da Câmara sobe, na ata, a bordo de
um navio vindo da Costa da Mina e transcreve a decisão dos oficiais. Nova
mente, explicita-se o interesse mercantil na violência com que a naturalidade
da escravidão é referida:
[...] n ã o c o n v i n h a q u e d e s e m b a r c a s s e m g e n t e q u e v i n h a e m d i t a e m b a r c a ç ã o p o r v i r
m u itas d ela s danificada e m u ita d ela com sarna e lepra, e c o n s ta n d o ao d ito m e d ic o por
149
A SÁ T IR A H O E N G E N H O
declaração do Capitão do dito patacho se lhe havia mono 15, ou 16 negrosfora outros que
se mataram por quererem alevantar [...] viu dito médico dois mortos em dito navio c muitos
deles incapazes de se poderem alevantar do lugar em que estando deitados o que julgou ser
doença
[...] muita parte dos moradores desta Cidade e quase todos os do Recôncavo vivem
deste gênero, e o têm quase por fruto, e com ele pagam comumente os escravos que traba
lham nas suas lavouras, e há lavrador que para este efeito faz esta bebida das próprias
canas de que se faz o açúcar; e com esta droga sefacilita a condução dos negros, efaltando
fica cessando o traio e negócio'"*.
Afirmam ainda que, se a aguardente não puder ser remetida para Angola,
150
4
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R PO M ÍS T IC O
[...] f i c a m p e r d i d o s o s i n t e r e s s e s q u e g r a n j e i a m e s t e s m o r a d o r e s , q u e n ã o b a s t a m p a r a
o s e r v i ç o d a s m a n d i o c a s , t a b a c o s , c a n a s , e e n g e n h o s , e p r o ib in d o - s e e s ta n a v e g a ç ã o é u m
d a n o t o ta l d e s te E s t a d o p o r q u e v i v e m q u a s e t o d o s o s m o r a d o r e s d e s t a d r o g a , u n s d e a
v e n d e r e m , o u t r o s d e a f a b r i c a r e m , e m u i t o s d e s e m b a r c a r e m " 15.
[...] q u e a n ó s a s s e g u r a m s e r f i n g i d o e c o m a c a p a d o b e m d o r e a l s e r v i ç o p r e t e n d e a
n o s s a r u í n a , p e r s u a d id o s d e m u ito s p o u c o s H o m e n s d e N e g ó c io q u e m e t e m o s [ f a l t a t r e c h o ]
d o r e i n o n a q u e l a P r a ç a , e c o m o l h e f a l t a m e s t e s i n t e r e s s e s p r o c u r a a su a a m b iç ã o a n o ssa
r u ín a se m r e p a r a r n o g r a n d e d a n o q u e f a z e m a to d o este E s ta d o s o lic ita m p r o ib iç ã o d a s a g u a r
d e n te s p a r a a ss im s e r e m m a is c e r to s os se u s in te re ss e s q u e h ã o d e [ a c h a r ] n a v e n d a d o s v in h o s , e
dos neg ro s, q u e u m a e o u tr a c o u s a h ã o d e v e n d e r p e la m e d id a d e se u d e s e jo m .
151
A SÁ T IR A K O E N G E N H O
152
À
A M U R M U R A Ç A O DO CORPO M ÍST IC O
[...] p o r q u e é c e r i o q u e n ã o l h e t e n d o c o n t a a s u a l a v o u r a , n e c e s s a r i a m e n t e a h ã o d e d a r
p or p e r d i d o s , e d e i x a [sir] a m o n t e o s c a n a v ia is, e n ã o te n d o e s ta d ro g a q u e se v e n d e
153
A SÁTI RA H O E N G E N H O
(que era o Dinheiro e Riqueza do Brasil) não lhe fica ouira com que possam comprar as
Fazendas que vêm de fora"5.
O Brasil cambaleia:
[...] O Brasil, Senhor, desde o seu nascimento se sustentou sempre em duas Colunas,
uma era a do Tabaco, é a outra o Açúcar: a do Tabaco arruinou-se há alguns anos,
ficando perdida a pobreza do Brasil que, por depender de pouca fábrica a sua lavoura,
se ocupavam dela"4.
[...] querendo nesta forma, com anos [sua] perda certa, segurar a sua ganância infalível,
pois vendendo-se nestes anos próximos passados o cobre a 320, o breu a 1600, o ferro a
3200 e o treu a 35 reis, os fazem taxar agora o cobre a 350, o breu a 2800, o lcrro a 4800
e o treu a 51 réis"7.134
7
56
154
A M U R M U R A Ç A O DO C O R P O MÍ S T I C O
[...] Em esta consideração mandamos se ajuntasse muitos dos vendedores, e outros [...] dos
compradores nesta Câmara, e com efeito ajuntando, sem a Câmara intervir nisso de que
fazia termo nos livros dela, que o açúcar que se vendesse a dinheiro fosse a Convença das
Partes, e o que se deu em pagamento de fazendas que se devessem fosse a mil cento e ses
senta: havendo respeito ao maior preço porque os mercadores as davam fiadas121.
155
A SÁTI RA E O E N G E N H O
A “Convença das Partes” é de 1665, quando o Rei foi servido ordenar que
o preço dos açúcares devia ser acordado. Assim, afirmam os agentes da carta,
mentem os mercadores que dizem que o preço do açúcar depende do arbítrio
dos senhores porque sempre que os preços foram livres os mercadores recorre
ram ao Rei. É o que fazem em 1665, sendo atendidos com a “Convença das
Partes”, que desde então proíbe que se faça “o chamado preço”. Os açúcares
vêm sendo dados em pagamento de fazendas pelo mesmo preço de 1160 réis,
alegam. Quando os negociantes vendiam os gêneros e os lavradores os compra
vam, faziam-no com o ajuste de que receberíam os pagamentos pelo dito pre
ço. Escrevem ainda que nem o preço de 1160 réis em pagamento se pode achar
excessivo, uma vez que os lavradores do açúcar também perdem com ele:
[...] a maioria que vai deste preço ao que vale o açúcar a dinheiro é muito menos do que
os maiores que vai do valor das fazendas a dinheiro ao valor por que se vendem fiado; e
suposto que todos os moradores do Brasil conhecem claramente o quanto ficam enga
nados em comprarem e venderem na sobredita forma, a sua necessidade os faz sujeitar
[-se] a estes danos por não poderem evitá-los comprando de contado porque nenhuma
que de seus frutos lhe fique para fornecer-se na nova safra1” .
156
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O M Í S T I C O
panos com côvados e varas diminuídos. Com isso, afirmam, quem as compra
sempre o faz pelo que “descobre na entranha”12'1.
Não se pode generalizar a falsificação, evidentemente, a partir de um
documento apenas, mas as prescrições, denegações e justificativas são índi
ces da “murmuração” sobre as condições do comércio, comum nos discursos
do período como reclamação contra os mercadores, que a sátira constitui como
tipos desonestos, pois só interessados na “medida de seu desejo”, como já se
leu.
Rebatendo o que chamam de “opinião” dos compradores metropolitanos
- a de que a pouca venda do açúcar na Europa é devida aos preços altos por
que se vende no Brasil -, os agentes a propõem como “engano manifesto”124125.
Ao “engano manifesto” opõem a “razão manifesta”: a concorrência holande
sa, inglesa e francesa, que demonstram conhecer plenamente. Segundo eles,
Inglaterra, França e Holanda “[...] com o decurso do tempo foram acrescen
tando outras fábricas e aperfeiçoando-as de modo que já têm tanta quantida
de de açúcares que abundam a toda Itália, vendendo-lho refinado a 1200
réis”126.
Esta é a “manifesta razão”, segundo os oficiais da Câmara, de não ter
saída o açúcar do Brasil - o que, afirmam, é a ruína do local e a causa da
miséria, do descontentamento e da murmuração do povo. Açúcar e pimenta
são comparáveis:
[...] Sucedeu ao açúcar do Brasil o mesmo que sucedeu à pimenta da índia, que dando-
se alvitre a El-Rei de Castela no ano de 1598, lhe acrescentasse o preço, porque os
estrangeiros a não achavam em outra parte, e de necessidade haviam de comprá-la em
Portugal127.
157
A SÁTI RA E O E N G E N H O
[...] Estas são, Senhor, as causas que teve a baixa dos açúcares, que Vossa Majestade
deve mandar ponderar com toda a atenção, advertindo-se que ainda que o açúcar se
pudera lavrar pelos preços da taxa, sem sua total destruição, não bastava só a diminui
ção dela para terem segura saída; é que de lhe faltar esta, se segue não somente a ruína
de todos estes moradores, que não têm outro gênero de que possam lançar mão para o
negócio, mas também das rendas de Vossa Majestade: porque é certo que o contrato dos
dízimos não havendo açúcar, não há de chegar a pagar nem ainda a folha eclesiástica; e
que faltando os cabedais a estes vassalos, necessariamente hão de faltar aos tributos c
contribuições que pagam. [...] Pagam estes Povos, Senhor, tirando Forças de Fraqueza,
sem embargo dos empenhos, e apertos com que vivem por leais, e por servir a Vossa
Majestade: 40 donativos cada ano da Paz de Holanda e Dote da Sereníssima Rainha da
Grã-Bretanha, e pagam mais cada ano 50 donativos para o sustento da Infantaria por
imposto que aceitaram sobre os vinhos desde o tempo da Aclamação do Senhor Rei
Dom João (que até ali, se pagava pela Fazenda Real, por meio de assentistas com que
ajustava este negócio)1"1.
129. I d c n t i i h i d e m .
130. Ideniy p. 71.
158
â
A M U R M U R A Ç À O DO C O R P O M Í S T I C O
[...] porque suposto que nos primeiros anos se cobrem com violência e por força tiran
do-lhe as peças de ouro e prata que tiverem, é certo que cm poucos se hão de esgotar
dessas alfaias, e parar também com elas a contribuição, e os impostos, de que se seguem
conseqüências muito prejudiciais131.
[...] tirando-nos o sangue na paz, o não teremos para derramar se por pecados houver
guerra como muitas vezes fizemos; o Sangue, Senhor, que sustenta e anima toda a M o
narquia, é a abundância da moeda assim o confessam todos e o confirmam muitos
Ministros de Vossa Majestade por cuja razão pretendem tirar o sangue dos braços para
com ele se acudir a cabeça: pede-o assim a razão, e o julgamos conveniente mas deve-se
primeiro considerar que se faltar o maior rio com a contribuição de suas águas ao Mar
que não se há de enxergar esta falta132.
[...] Toda a opressão, Senhor, e ruína que se teme, nasce da falta do dinheiro, que c
aquele nervo vital do corpo político, ou o sangue dele, que derivando-se e correndo
pelas veias deste corpo, o anima e lhe dá forças; e do contrário, como sucede no corpo
natural, desmaia e enfraquece não só quanto às partes principais, e que animam as
outras, senão quanto aos membros, que são aqueles de cujas operações tomam seu va
lor, c eficácia as superiores; sendo certo que são muito mais generosas e muito melhor
131. Id e m , p . 72.
132. C a r t a d e 1 . 7 .1 6 9 3 , v o l. 3, p p . 1 1 4 -1 1 5 .
159
A SÁTI RA E O E N G E N H O
133. Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, “Representação do Governador Antônio Luís Gon
çalves da Câmara Coutinho ao Rei sobre o Estado do Brasil”, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, MEC, 1939, vol. LVII, p. 147.
134. Alas da Câmara 1684-1700, vol. 6, p. 202.
135. Idem, p. 203.
136. ídem3ibidem.
160
i
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O MÍ S T I C O
não torna, o que é delito sem perdão: embora se enriqueçam as casas particu
lares, o todo do corpo político da República se enfraquece, pois só se conserva
com “[...] a substância comum do dinheiro, como a alma que mais vivamente
anima as Cidades, os Reinos e as Monarquias”137. Reiteram que por isso “[...]
se deve preferir sempre o bem universal ao apetite ou luzimento particu
lar”138.
O Juiz do Povo e os mesteres lembram que é bem presente que antes,
quando vinham de Buenos Aires dois ou três navios carregados de prata, só
havia na Bahia um ourives, Francisco Vieira, o Fanha, com quatro ou seis
oficiais. No momento (1693), não entra mais prata - o que se dá desde a acla
mação de Dom João IV - e há “uns vinte e cinco ourives” na Cidade, que
batem “[...] as moedas do México de colunas e as mais cuja qualidade toca em
21 dinheiros”139140.Lavram a prata com “[...] engano dos donos e evidência dos
danos”, enquanto “o Povo clama”. A prata derretida e lavrada é empregada
no tráfico de escravos de Angola: “[...] como a riqueza natural dos de Angola
consiste em panos e em vidas fundem o mais permanente nas baixelas de
prata lavrada que mandam ir desta Cidade da qual vão para aquele Reino
cada ano nesta espécie vinte e cinco e trinta mil cruzados”1411.
Referindo a Representação de Câmara Coutinho, escrevem que o remédio
proposto pelo governador141 fica sujeito ao prejuízo e à indústria dos ourives,
que continuam não respeitando nenhuma das novas leis sobre a moeda: “[...]
são mais prejudiciais os ourives em desfazê-la que os mercadores em levá-
la”142. Por isso, solicitam que os oficiais da Câmara requeiram ao capitão-
geral o lançamento de um bando que proíba, antes que partam os navios para
Angola, que nenhuma pessoa da Bahia, de qualquer qualidade e condição,
161
A SÁTI RA F. 0 E N G E N H O
mande fazer prata lavrada para Angola sob pena de 500 cruzados, nem reme
ta o que está feito sob pena de se tomarem duas partes para a Fazenda Real e
outra para o denunciante público ou secreto. Na mesma pena devem incorrer
o mestre ou passageiro que aceitem levar a prata: duzentos açoites o mari
nheiro ou mandador do navio a quem a prata for entregue. O ourives que
dentro de 24 horas da publicação do bando não vem declarar ao procurador-
mor da Fazenda a prata que tem lavrado para Angola e quem a encomenda
paga o mesmo valor dela. Incorre na pena vil (açoites) o obreiro que, passado
aquele termo, não o denuncia. Os ourives devem comunicar, dentro de três
dias a partir do bando, toda a prata fundida que possuem, seja para Angola,
seja para Salvador. Nenhum ourives pode aceitar prata velha para fazer obra
nova sem primeiro apresentar à Câmara o registro dos marcos, que lhe são
entregues pesados pelo contratador na presença do juiz e do escrivão da Câ
mara. Deve-se ainda declarar o dono da prata, identificá-la com um sinal
apropriado e também identificar os novos oficiais ourives da Cidade143. Os
mesmos procedimentos devem ser seguidos quanto à prata do culto divino144.
Evidencia-se neste requerimento e em inúmeras cartas e atas que a eva
são da moeda e sua fundição atingem todo o Império, principalmente a partir
da metade do século XVII, quando a prata peruana de Potosí contrabandeada
de Buenos Aires deixa de chegar à Bahia. Toda a segunda metade do século
vive a crise da falta da moeda circulante, acumulando-se medidas para saná-
la. Como demonstra Carl A. Flanson, as Cortes de Lisboa de 1668 propõem
desvalorizar a moeda de ouro em 20% como meio de reduzir a quantidade do
metal precioso necessária para pagar salários de mercenários franceses e in
gleses, principalmente, que trazem as montarias para Portugal. O sustento e
o transporte dos animais somam-se aos salários, que orçam por 100 mil cru
zados mensais145. Propõe-se então que, aumentando-se o valor facial da moe
da de ouro pela cunhagem de moedas com valores superiores ao valor intrín
seco, salva-se um quinto do metal que foge para o estrangeiro. Os reajustes
monetários fazem parte da legislação protecionista146intensificada pelo Con
de da Ericeira na década de 1680. Em 1663, a moeda de prata é desvalorizada
em 25%. Por volta de 1680, a Câmara de Lisboa demonstra serem necessários
160 réis para em Portugal comprar um artigo que se compra por 100 na Ingla
terra. Em 1668, como a evasão do metal continua, a Junta e o Conselho ale
162
A M U R M U R A Ç Ã O DO CORPO M ÍST IC O
gam que as reservas de ouro e prata estão mais reduzidas com a desvaloriza
ção, uma vez que os comerciantes estrangeiros colocam mais facilmente seus
produtos em Lisboa, vendendo-os em maior quantidade e, assim, levando
mais prata e ouro para seus países147.
E prática rotineira, como se leu no requerimento do Juiz do Povo, raspar
os bordos das peças de ouro e prata, apagar-lhes o valor facial, fundir as apa
ras acumuladas ou as moedas e vender o metal. Apesar das penas governa
mentais, que incluem multas pesadas e degredo de quatro anos em Angola
para os infratores, na década de 80 o corte e a fundição se intensificam. A
desvalorização de 1688, que acompanha a desvalorização espanhola da pataca,
de 1686, torna precária a situação no Brasil. Por ordem da Coroa, a moeda
brasileira deve circular de acordo com seu valor intrínseco, não com o valor
facial148. A cotação da moeda metropolitana com um valor inferior ao da moe
da do Brasil acelera a evasão da prata e ouro coloniais, como se leu no reque
rimento. A conseqüência da falta crônica de moeda corrente é o recurso aos
empréstimos a crédito por parte dos senhores de engenho, como se viu, geral
mente com hipoteca dos engenhos ou parte deles e, principalmente, das sa
fras. Torna-se rotineira, segundo as cartas, a prática de garantir o empréstimo
com a colheita seguinte, cujo preço é fixado antecipadamente abaixo do pre
ço do mercado149, com grande murmuração dos senhores contra os negocian
tes. Como se viu, muitos credores executam as dívidas nos escravos.
Em 14 de fevereiro de 1693, os oficiais da Câmara determinam que ne
nhum ourives pode lavrar prata sem que primeiro venha à Câmara registrá-
la, declarando o nome do destinatário da obra. A intervenção da Câmara con
tra os ourives prescreve medidas severas: trinta dias de cadeia para o ourives
e 6 mil-réis de recompensa para o denunciante. A murmuração entre os oficiais
mecânicos intensifica-se, bem como a murmuração das denúncias motivadas
pela cobiça. As penas da Câmara são mais severas ainda para os ourives que
fazem obra de prata não registrada. Executa-se neles a pena da Ordenação,
livro V, título 12, parágrafo 5: dez anos de degredo na África, com perda da
metade da fazenda150. A lei atinge não só os que fundem moeda, mas também
todos os que a mandam fundir. Contradição, portanto, uma vez que a mesma
163
A SÁ T IR A K O E N G E N H O
[...] a l é m d a s R a z õ e s q u e a S u a M a j e s t a d e se t ê m R e p r e s e n t a d o , e d a s q u e p o r p a r t e d o s
B r a ç o s E c le s i á s t i c o s e N o b r e z a , n e sta o c a siã o t a m b é m se a le g a m , q u e to d o s p r o p o m o s ,
e a p r o v a m o s, a t e n d e n d o m a is e m p a rticu la r no ú ltim o , e m a is m ise r á v e l e sta d o nosso,
do q u al tod avia se c o m p õ e o g ra n d e C o r p o desta R e p ú b lic a , n ã o d e ix a r e m o s d e exp or
a o s C l e m e n t í s s i m o s o l h o s d e S u a M a j e s t a d e c o m o P ai, e P r ín c ip e n o s s o , o q u e d e sta
g r a n d e falta d e d i n h e i r o p a d e c e e s te s e u P ovo. P rim eiro : u m a g r a n d e , e q u a s e e x t r e m a
n e c e s sid a d e d o n e c e s sá r io para su s te n to da v id a , p o rq u e o s N o b r e s , e E c le siá stic o s,
vivem , ou das S u as F azendas, ou das suas C ôn gru as, e su p osto ten h am grande dano e
d e t r im e n t o na falta da M o e d a é s e g u n d o m a is o u m e n o s a v iv e r c o m m a is lim ita ç ã o ,
p o r é m o P o v o , q u e s o m e n t e se a lim e n t a d o tra b a lh o d e su a s m ã o s , e d o su o r d e seu
R o s t o n a s o b r a s m e c â n i c a s , e f a l t a n d o o c o m q u e s e m a n d e m f a z e r , o u já f e i t a s , c o m q u e
se p a g u e o q u e n e l a s s e o b r o u , f i c a m e a n d a m o s O f i c i a i s f a m i n t o s e o c i o s o s , e n e s t e
e s ta d o p e la m a io r p a rte se a c h a o P o v o da B a h ia , d e p o is q u e n ela falta a m o e d a . S e g u n
do, q u e p o r esta ca u sa a s T e n d a s de m u it o s O fic ia is tra b a lh a m m u it o m e n o s d o que
c o s t u m a v a m , e m u i t a s d e t o d o s e f e c h a m , p o r q u e c o m a f a l t a d a m o e d a c a d a u m se
r es tr in g e, e r e m e d e ia c o m m e n o s obra do q u e p e d e a S u a n e c e s s id a d e , d e q u e R esu lta
p a g a r e m -s e as ob ra s p o r m e n o s p reço p o rq u e s o b e ja m e m g r a n d e n ú m e r o o s O f ic ia is e
O b reiros, e p ela m a io r parte a n d a m v a g a b u n d o s, p o rq u e o s q u e h a v ia m de ocu p á -lo s,
c o m o a s o b r a s s ã o m e n o s se m e d e i a m c o m m e n o s o b r e i r o s p o r n ã o p o d e r e m p a g a r
m ais; o u tr o s d e p o is de tra b a lh a r em , fica m sem p aga do S eu trab alh o, c o m q u e se vão, e
fica m im p o s s ib ilita d o s a ex erc ita r se u s O fíc io s, e c o n s e g u in t e m e n t e a v iv e r e m v a d io s, o
q u e m a i s c la r a m e n te se v ê n o S e r v iç o d o s E n g e n h o s , e m a is F a z e n d a s , p o r q u e , i m p o s s i
b i lit a d o s o s S e n h o r e s d e l e s a p a g a r o s jo rn a is q u e sã o m u i t o s a d i n h e i r o , p e lo n ã o te
rem , n e m h a v ê -lo d e s p e d e m s e u s se rv en te s, e fica m i m p o s s ib ilit a d o s para as F á b r ic a s
d o A çú car. T e rceiro: p o r q u e e s s e s tais v e n d o q u e tr a b a lh a m s e m fru to , m o r r e m d e ío m e ,
e se m e t e m p e lo in te r io r d o S ertã o d e sta C id a d e , q u e é i m e n s o , e h o je m u i t o p o v o a d o de
C u rra is m a io r e s p o r o n d e d isco r rem fa zen d o m il in s o lê n c ia s a q u e o s ob rig a , p or um a
p arte a fo m e , e n e c e s s id a d e , p o r ou tra o p e c a r e m se m m e d o d a J u stiç a a D iv in a , p o r que
a n ã o v ê e m , e a H u m a n a n ã o r e c e i a m p o r q u e l h e f ic a m u i t o l o n g e 1' 1.
164
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O MÍ S T I C O
165
A SATIRA E 0 E N G E N H O
[...] não chegam hoje estes efeitos [recursos do açúcar e dos vinhos] à conta de 50 Quin
tos, que monta o Sustento desta Gente de Guerra, c é força repartir no Povo por Finta o
que falta de que ele Clama, Sentido de tantas Contribuições, e mais neste tempo em
que Seus frutos não têm estimação, e lhe faz maior o Sentimento ter-se acabado a Guer
ra, e comprada a Paz à Custa deste Estado, e esta Cidade Só em um milhão e 280
Quintas, e não ser escusada do Sustento da Guerra, que aceitou só porém quanto ela
durasse. Para nisto ter este Povo algum alívio nos pareceu propor e Pedir a Vossa Majes
tade com a humildade devida seja Servido mandar reformar um Terço dos Dous que
tem esta Praça, reduzindo a um toda a Infantaria que há em ambos, e a dos Artilheiros
não exceda de Sessenta, que por gozarem de seus Privilégios assentam muitos esta
praça sem dela entenderem, nem saberem. Também não parece justo, que as reformações
Sejam pagas à Custa do Povo, pois é Mercê Real, e não o Sustento a que nos Sujeitamos,
assim mesmo as Casas, e Cavalo do Tenente General e seu Ajudante, e outros oficiais;
Cujos aluguéis montam também Despesa considerável; E se dão por Despachos do
General, Sem atenção a que não é Fazenda Real mas só de Serviço que faz o Povo; e há
Casas tomadas pelos Tenentes e seus Ajudantes de Cincoenta mil-réis de Aluguel: Tudo
isto Senhor pede reformação158.15
166
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R PO M ÍS T IC O
167
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
[...] pois assim foi condição quando tomamos sobre nós o sustento dela e o Juiz do Povo
nos fez presente o sentimento geral do Povo por se lhe querer levar o dinheiro que
pagam para este serviço de Vossa Alteza e ser necessário lançar-se-lhe finta para outro
sendo que sempre pagam que por não chegar se está sempre devendo aos Soldados
alguns meses de seus socorros1'’4.
168
á
A M U R M U R A Ç À O DO CORTO M ÍST IC O
[...] O T e s o u r e i r o d e s t e S e n a d o B a l t a s a r C a r v a l h o d a C u n h a r e q u e r a v o s s a s m e r c ê s
m a n d em cobrar todas as p esso a s q u e d e v e m a este S en a d o o q u e é p e r te n c e n te ao s u s
tento da I n f a n ta r ia , e q u e lh e faça p a g a r o q u e o d ito S e n a d o d e v e e p a ra q u e se n ã o
p e r c a m a l g u n s d e s t e s e f e i t o s p e l a d i l a ç ã o c o m q u e h ã o c o m q u e m o s d e v e m [s ic ] 171.
169
A SÁTI RA E O E N G E N H O
[...] d e p r e s e n t e n ã o c h e g a m o s e f e i t o s a p l i c a d o s a o s u s t e n t o d a d i t a I n f a n t a r i a , p e l a
d i m i n u i ç ã o c o m q u e se a r r e m a t a m , o q u e t a m b é m e x p e r i m e n t a a F a z e n d a R e a l, o c a s i o
n a d o d a p o u c a sa íd a d o açúcar, q u e é a total ru ín a d e s te E s ta d o , e n e s t e s te r m o s, n ão
p o d em os p ovos con sigo, q u an to m ais com novas co n trib u içõ e s, que certamente se hão de
fazer, se n o s n ã o a l i v i a r e m p a r t e d a c a r g a d a I n f a n t a r i a 173.
F o r a m o s s e u s c a b o s ao c a m p o a so s s e g á -lo s e r e d u z i- lo s , s e g u r a n d o - l h e s d a parte
d o g o v e r n a d o r e d o S e n a d o a p r o n t i d ã o d o s s o i d o s q u e se l h e d e v i a m , a f e a n d o - s e a q u e l e
m o t i m s e m p r e d e t e s t á v e l , e m a i s f e i o n a q u e l a o c a s i ã o d e t r â n s i t o m o r t a l e m q u e se
ach ava o seu g e n e r a l, m a s n ã o p u d e r a m p ersu a d i-lo s. A m e s m a d ilig ê n c ia fez o a rceb is
p o e m u m a c o n c e r ta d a p rá tica , e a in d a q u e se m o d e r a r a m n o s e x c e s s o s q u e fa z ia m em
t o d a s a s p e s s o a s q u e c o m c a r g a s d a s fa z e n d a s v i z i n h a s p a s s a v a m p o r a q u e la estrada,
n ã o s e r e d u z i r a m , c o n t i n u a n d o n a m e s m a r e s o l u ç ã o 175.
170
Á
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R P O M Í S T I C O
[•■■] S ó J o ã o d a S i l v e i r a d e M a g a l h ã e s [...] q u e e s t á n e s t a p r a ç a p o r o r d e m d e V o s s a
M a j e s t a d e t e n h o p r e s o n a e n x o v i a d e s t a C i d a d e , p o r q u e fo i c a b e ç a d e s t a a l t e r a ç ã o , e o
que d ava as r e s p o s ta s a o s C a b o s , q u a n d o o s iam red u zir, a n d a n d o c o m u m a e s p a d a e
rodilha c a p it a n e a n d o o s le v a n ta d o s , e ju n t a m e n te fez n esta C id a d e c o u s a s q u e n ã o são
p ara s e d i z e r e m p r e s e n ç a d e V o s s a M a j e s t a d e , e n e s t e p a r t i c u l a r p o d e r á V o s s a M a j e s t a
d e o r d e n a r - m e o q u e h e i d e f a z e r l7,\
176. Cf. Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, “Carta para Sua Majestade sobre o Motim dos
Soldados desta Praça. Bahia 16.6.1691 ”, Livro de Carias que o senhor Antônio Luís Gonçalves da Câma
ra Coutinho escreveu a Sua Majestade, sendo governador, e capitão geral do Estado do Brasil, desde o
princípio do seu governo até ofim dele (que foram as primeiras na frota que partia em 17 de julho do ano de
1691), Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
177. I. Accioli & Brás do Amaral, op. cit., vol. II, p. 247.
171
A SÁTIRA F- O E N G E N H O
[...] p a r a s e a c u d i r a s b o c a s d o s s o l d a d o s c o m a r a ç ã o o r d i n á r i a ; e a i n d a a s s i m s e n ã o
s a t i s f i z e r a m ; e p a r a s e l h e s c o n t i n u a r a s a t i s f a z e r o q u e se d e v e n o s p a r e c e m u i t o c o n v e
n ie n t e ao se r v iç o d e V ossa M a j e s t a d e trazer por o r d e m m u i t o ap e r ta d a o G o v e r n a d o r
q u e V o s s a M a j e s t a d e f o r s e r v i d o m a n d a r g o v e r n a r e s t a P r a ç a 1'*.
172
A
A A1URM URAÇA0 DO CORPO M ÍST IC O
[...] s e a j u s t o u c o m o p r o c u r a d o r d a v i l a d o C a m a m u o L i c e n c i a d o V a r j ã o q u e d e v i a d i t a
v i l a 5 0 0 0 s í r i o s d e f a r i n h a [...] c o m a m e d i d a d e s e t e q u a r t a s d a m e d i d a d e s t a C i d a d e
q u e são 2 a lq u e ir e s da d ita v ila , a p r e ç o d e 3 2 0 réis e m e i o to stã o d e frete q u e ao to d o faz
3 7 0 r é i s v i n d a p o r c o n t a e r i s c o d e s t e S e n a d o d a C â m a r a [...] C a i r u [...] c a d a a n o 2 2 5 0
s í r io s d e f a r i n h a q u e s ã o o s m e s m o s d o a n o p a s s a d o p e l o p r e ç o d e 3 2 0 r e i s e 2 v i n t é n s d e
f r e t e q u e a o t o d o f a z 3 6 0 r é i s 1*2.
173
A SÁTI RA H O E N G E N H O
A variação das medidas dos sírios, os danos sofridos por eles no transpor
te, a desonestidade dos produtores, a conivência do governador ficam razoa
velmente explicitados em outro requerimento de Jacinto de Guisenrode, em
1“ de agosto de 1693. Nele, o procurador da Câmara alega que está a seu cargo
o recebimento das farinhas dos conchavos que o Senado faz com as “Vilas de
Baixo” para o sustento dos soldados da Cidade. Guisenrode acusa a “conheci
da falsidade” da medida dos sírios, atribuindo-lhe várias razões. No seu en
tender, uma delas é não trazerem os ditos sírios uma divisão por onde se reco
nheçam os pertencentes à Infantaria. Como o Senado paga 320 réis as vilas
referidas e como, na falta da farinha, quem a manda buscar “[...] paga 800 e
900 réis, os produtores diminuem a quantidade dos sírios da Câmara devido
ao aumento de seu valor quando os vendem a outros. Devendo ser de oito,
saem os sírios de Camamu, Cairu e Boipeba com sete medidas, “havendo-se a
respeito a ruptura da palha e avarias do mar e descuido no embarcar responsá
reis pelas 7 medidas sempre perfeitas que o suplicante constata”188. Constata com
ironia, evidentemente, não se sabe se de Guisenrode ou do escrivão da Câma
ra que a atribui a ele.
Guisenrode também relata, em seu requerimento, que dá parte da falsifi
cação ao governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, falando-
lhe da falta das farinhas para o sustento da Infantaria. Segundo o documento,
o governador “[...] ordenou ao suplicante que as não registrasse ainda que viesse
com qualquer falta $onhecida”m . Não há indícios de envolvimento do governa
dor no desvio das farinhas e o procurador Jacinto de Guisenrode aparece ho
nesto nos documentos:
[...] e como os ditos sírios recebe o suplicante por 6 quartas e só acha trazerem 5 quartas
e pouco mais e isto prejudicar ao seu crédito [...] e como a este Senado toca o resolver
este incidente em ordem as contas que de futuro está o suplicante para dar do dito
recebimento requer o suplicante a este Senado para determinar o que deve o suplicante
haver sobre o recebimento da dita farinha falsificada1"".
1S8. “Requerimento que fez o Procurador e Juiz do Povo e mesteres ao diante assinados sobre digo do
Procurador Jacinto de Guisenrode”, dias da Câmara I6S4-1700, vol. 6, p. 224 (grifes meus).
189. [dem, ibidem (grifo meu).
190. Idem, ibidem.
174
i
A M U R M U R A Ç À O D O C O R P O MÍ S T I C O
[...] d e f e r i u o S e n h o r G o v e r n a d o r p o r c a r t a s u a d e 2 2 d o c o r r e n t e [...] C o m o s e m p r e f o i
e s t i l o c o m c o m i n a ç ã o d e se t o m a r p o r p e r d i d o s t o d o s o s s í r i o s q u e s e a c h a r a m d e f e i t u o
sos o u s e ja m d a c o n t a d o c o n c h a v o o u para se v e n d e r ao p o v o a m e t a d e p a r a o p r e s í d i o
e a o u t r a p a r a o d e n u n c i a d o r d i t a c a r t a e s t á n o c a r t ó r i o 191.
175
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
176
J
A A lU R M U R A Ç A O DO C ORPO M ÍS T IC O
1. T o d a a c i d a d e d e r r o t a
e s ta f o m e u n i v e r s a l ,
un s dão a c u lp a total
à C â m a r a , o u t r o s à fr ota:
a f r o ta t u d o a b a r r o t a
dentro d o s e s c o tilh õ e s
a carne, o p e ix e , os feijões,
e se a C â m a r a o l h a , e ri
p o r q u e a n d a fa r ta a t é a q u i ,
é c o u s a , q u e m e n ã o to ca:
Ponto em boca.
2. S e d i z e m , q u e o M a r i n h e i r o
nos p reced e a toda a L e i,
p o r q u e é s e r v i ç o d ’E l - R e i ,
177
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
3. A f o m e n t e t e m já m u d o ,
q u e é m u d a a boca esfaim ad a;
m a s se a frota n ã o traz n a d a ,
p o r q u e razão leva tud o?
q u e o P ovo por ser sisu d o
la r g u e o o u r o , e la r g u e a prata
a u m a frota p a ta r a ta ,
q u e e n t r a n d o c o ’a v e l a c h e i a ,
o la str o q u e traz d e areia,
p o r l a s t r o d e a ç ú c a r tr o c a !
P o n to em boca.
(O C , II, pp. 4 3 5 -4 3 6 .)
178
ã
A M U R M U R A Ç À O DO CORPO M ÍS T IC O
179
A SÁ T IR A E O E N G EN H O
comum alegado pela Câmara nas cartas e atas. Por exemplo, quando a fari
nha, que não entra na boca dos soldados, sai, espalhando-se como murmura-
ção, ingrediente de misturas que diagramam posições e interesses em jogo:
Q u e m f a z o s s í r i o s m e s q u i n h o s ? .................. M c i r i n h o s
Q u e m f a z a s f a r i n h a s t a r d a s ? ......................... G u a r d a s
Q u e m a s t e m n o s a p o s e n t o s ? ......................... S a r g e n t o s .
O s s í r i o s lá v ê m a o s c e n t o s ,
e a terra fica e s f a i m a n d o ,
p orq u e os vão atravessando
M e ir in h o s, G u ard as, Sargentos.
A C â m a r a n ã o a c o d e ? ............................................. N ã o p o d e
P o i s n ã o t e m t o d o o p o d e r ? ............................. N ã o q u e r
É q u e o g o v e r n o a c o n v e n c e ? ...........................N ã o v e n c e .
Q u e m h a v e r á q u e tal p e n s e ,
q u e u m a C â m a r a tão n ob re
p or ver-se m ísera , c p ob re
N ã o p o d e, n ão quer, n ão vence.
( O C , I, P P . 3 2 - 3 4 . )
193. A população do século XVII, tanto cm Portugal quanto na Bahia, não demonstra interesse em mu
dar a ordem do Amigo Regime. Reivindicações existem, contudo, c são pela melhoria de posição
nos quadros do sistema, sendo a fidalguia o alvo de todos. Nesta linha, rebeliões como a do Porto,
em 1661, ou a do sal, na Bahia, em 1711, são feitas em geral contra o cobrador de impostos, contra
o imposto, não contra a ordem que o impõe. Desta maneira, muitas vezes membros da população
propõem medidas que, em nome do bem comum, terminam por prejudicar a mesma população e
favorecer os interesses senhoriais. Por exemplo, em 11 de agosto de 1646, o juiz do Povo Alves
Camanho, apoiado dos mesteres Antônio Manuel da Fonseca e Domingos Gonçalves, propõe a
180
A M U K MU K A Ç Ã O DO C O R P O M Í S T I C O
Por isso mesmo, outras posições críticas do “povo” ou contrárias a ele são
legíveis:
G u a rd a i-v o s, Israelita,
que se me chega a mostarda,
talvez que a casa vos arda,
porque é casa de mesquita.
(OC, III, p. 739.)
proibição de fabricar aguardente, e vinho de mel (cachaça), alegando que a bebida, popularíssima,
é “muito ao bem comum e que não servia mais que de grande escândalo”. A jcribha ou aguardente,
principalmente quando bebida por escravos, é causa dos excessos que perturbam a Cidade. A medi
da provoca o descontentamento dos senhores de engenho fabricantes, que interpõem recurso con
tra a Câmara, justificando a fabricação. Os comerciantes de vinho, por sua vez, apoiam a medida,
pois têm grande quantidade dele armazenada c pensam vendê-la com lucro quando as outras bebi
das forem proibidas. Sempre interessada nas taxas, a Coroa apóia a decisão da Câmara, com a
condição de que os comerciantes de vinho paguem ao Tesouro Real os 6 mil cruzados anuais da
taxação da aguardente. Para tazê-lo, os comerciantes seguem a indicação metropolitana de lançar a
taxa em outros gêneros, e taxam com mais 400 réis cada barril de azeite importado. A população,
que não bebe a aguardente, supondo-se a eficácia das medidas proibitivas, passa a pagar o dobro
pelo azeite. O episódio é esclarecedor de posições conflitivas: o juiz do Povo proíbe a bebida em
nome do bem comum e ainda consegue sobretaxa do azeite, além de favorecer duplamente os co
merciantes de vinho. Se existe, no caso, oposição contra os senhores de engenho, não fica claro. De
qualquer maneira, são atingidos em seus negócios. Cf. Affonso Ruy,op. aí., pp. 179 e ss. Uma carta
de 14.8.1671 retoma a bebida, afirmando que com ela se enriquecem os poderosos e enfraquecem os
pequenos. A Câmara então representa ao Governo “o dano que se seguia de uns a fazerem e outros
não”. Os senhores de engenho se recusam a dar o preço de seus alambiques ao contratador e, embo
ra proíbam a bebida aos escravos, “porque os ditos Escravos do que é remédio, fazem vício”, conti
nuam a fabricação. Como oticialmente os engenhos não fabricam, também não pagam impostos
sobre a aguardente: a população passa a arcar com os impostos para o sustento da Infantaria
acantonada na Cidade (o contrato da fabricação de aguardente fora aplicado para seu sustento). Os
senhores têm “um estanco irremediável da dita bebida”, afirma-se na carta. Já em carta de 31.5.1652,
o procurador da Câmara João de Góis escreve que, ames do estabelecimento da Companhia Geral
do Comércio, quando a aguardente era livre, Salvador contava com mais de duzentas tavernas e
“agora somente há cerca de vinte”. O que, a acreditar na notícia, faz a Bahia mais sisuda, bem
menos espirituosa. Cf. Carta de 14.8.1671, vol. 1, pp. 106-107; Carta de 31.5.1652, vol. 1, p. 9.
181
A SÁ T IR A E O E N G E N H O
1 9 4 . L e i a - s e o s o n e t o d i r i g i d o a o o u v i d o r g e r a l d o C r i m e : “ L o b o c e r v a l , f a n t a s m a p e c a d o r a , / A lim á r ia
c r i s t ã , s a l v a g e h u m a n a , / Q u e e r a s c o m v a r a p e s c a d o r d e c a n a , / Q u a n d o d e v i a s s e r b u r r o d e n o ra .
/ L e v e - t e B e r s a b u , v a i - t e e m m á h o r a , / L e v a n t a já d a q u i f a t o , e c a b a n a , / E n ã o p a r e s s e n ã o n a
T r a p o b a n a ,/ O u n o c e n tr o d a L íb ia a b ra s a d o ra . / P a rta -te u m r a io , q u e im e - te u m c o ris c o / N a ca m a
e s t e j a s t u , s e j a n a r u a , / S e p u l t u r a t e d ê e m m o n t e s d e c i s c o . / E t o d a a q u e l a c o u s a , q u e f o r tu a /
C o r r a s e m p r e c o n t i g o o m e s m o r i s c o , / O s a lv a g e c r i s t ã , ó b e s t a c r u a ” ( O C , II, p . 4 1 5 ) .
182
i
A A1URM URAÇÃ0 DO CORPO M ÍST IC O
Ou, ainda:
O Bártolo de improviso,
o subitâneo Licurgo,
que anoitece um sabe nada,
e amanhece um sabe tudo.
(OC, II, p. 279.)
O tema dos fidalgos com foros falsos, comum nas demandas dos senhores
locais, também se encontra encenado genericamente na sátira, interpretando-se
a posição satírica segundo os topoi do “dinheiro”, da “origem” e da “ocupação”:
183
A SÁ T IR A E 0 E N G E N H O
v e r b i g r a tia L o n d r e s , e P a r is ” (O C , VII, p . 1 6 6 2 ).
184
A M U R M U R A Ç Ã O DO C O R PO M ÍS T IC O
197. M u i t o r i c o s e i n f l u e n t e s , o s s e n h o r e s d e e n g e n h o n ã o s e i n t e r e s s a m p e l a s l e t r a s . A l é m d e b a r r a d o
p e l a c e n s u r a m e t r o p o l i t a n a , o li v r o n ã o é u m a n e c e s s i d a d e . S t u a r t B. S c h w a r t z r e f e r e u m a e x c e ç ã o ,
q u e c o m p a re c e c ila d a n a s á tira c o m o p e rs o n a g e m p s e u d o d is c re ta e p s e u d o fid a lg a , a d e J o ã o L o p e s
F iú z a , p o r tu g u ê s c h e g a d o a S a lv a d o r e m 1 6 9 0 e a í e s ta b e le c id o c o m o s e n h o r d e e n g e n h o e h o m e m
in f lu e n te . F iú z a é d o s h o m e n s m a is ric o s d o B ra s il c o lo n ia l. Q u a n d o m o r r e , e m 1 7 4 1 , d e ix a u m a
b ib lio te c a d e c e rc a d e c in q ü e n ta v o lu m e s e m la tim , e s p a n h o l e p o r tu g u ê s , e m q u e s e a l in h a m C íc e ro ,
V ir g í l i o , C e r v a n t e s , L o p e d e V e g a , S á d e M i r a n d a , F r a n c i s c o M a n u e l d e M e l o , e n t r e o u t r o s . C f .
S tu a r t B. S c h w a rtz , Burocracia..., op. cil., p . 28 7 . O b s e rv e -s e q u e , c o m p o n d o o tip o d o p s e u d o f íd a lg o ,
a s á tir a fa z r e f e r ê n c ia a F iú z a , m u i to ir o n ic a m e n te , tr a n s f o r m a n d o o n o m e p r ó p r io e m c o m u m ,
co m o s ig n if ic a d o a r c a ic o d e “ c o n f ia n ç a ” : “fiúza d o d i n h e i r o " . H la o f a z e n c e n a n d o o u t r o s n o m e s
d e s e n h o r e s , d e s q u a l i f i c a d o s c o m o v u lg o .
185
A SÁ T IR A E O E N G EN H O
186
A M U R M U R A Ç Â O DO CORPO M ÍST IC O
199. “ T r a t a i s a e s t e e a a q u e l e / p o r e l e d e p u r o h o n r a d o , / q u e o S e n h o r b e m i n c l i n a d o / e m l u g a r d e u m
v ó s d á u m e le : / m a s q u e o c h a n t r e s e d e s v e l e / e m v i s i t a r - v o s c a d a h o r a , / e l h e d i g a i s , v e n h a
e m b o r a , / C h a n t r e , f o lg a d e o v e r b e m , / i s s o é s e r s e m t o m n e m s o m / a s n e i r ã o d e f o z d e f o r a ” ( O C ,
IV, p . 9 0 1 ) ( “A o m e s m o P e d r o A l v a r e s d a N e i v a q u e c h e g a n d o à B a h i a , c o m h á b i t o , e f o r o f a l s o ,
e n t r a d e s v a n e c i d a m e n t e c o n f i a d o a t r a t a r o s h o m e n s n o b r e s p o r t e r c e i r a p e s s o a ” ). S e g u n d o a persona
s a tír ic a , P e d ra lv e s n ã o te m p o s iç ã o p a r a c o n s ti tu ir o u tr o s c o m o ig u a is o u in f e r io r e s , tr a ta n d o - o s
e m 3‘ p e s s o a ; a o d e n u n c i á - l o , a persona p o s tu la a c o n v e n ç ã o h ie rá rq u ic a d a s c o m p e tê n c ia s e d a
h o n r a , d e q u e e la se fa z a c a u ç ã o . A s á tir a e v id e n c ia , n o c a so , q u e a s h o n r a s d e P e d ra lv e s s ã o
d e s o n ra s : P e d ra lv e s u ltr a ja o s m e lh o r e s q u a n d o o s h o n r a c o m s e u tr a ta m e n to d e fid a lg o , e n fim . A o
d e s o n ra r P e d ra lv e s , a persona p r o p õ e a v e r d a d e i r a h o n r a , d a q u a l é a v a l i s t a . C f . C a r t a d e 4 .8 .1 6 8 4 ,
v o l. 2, p . 126, e m q u e a C â m a r a n o tic ia q u e P e d r o Á lv a re s d a N e iv a a le g a s e r C a v a le ir o d o H á b it o
d e C ris to e re c u s a -s e a s e rv ir o c a rg o d e p ro c u ra d o r d o S e n a d o d a C â m a ra .
200. C f . L i c e n c i a d o M a n u e l P e r e i r a R a b e l o , “ V id a d o E x c e l e n t e P o e t a L í r i c o , o D o u t o r G r e g ó r i o d e M a
to s e G u e r r a ” , e m J a m e s A m a d o ( o r g .) , Obras Completas de Gregório de Matos e Guerra ( C r ô n i c a do
1968, 7 v o ls ., v o l. VII, p . 1708: “ G o v e r n a v a e n t ã o
V iv e r B a i a n o S e i s c e n t i s t a ) , S a l v a d o r , J a n a í n a , D.
J o ã o d e L e n c a s tr e , s e c re to e s ti m a d o r d a s v a lc n tia s d e s ta M u s a , q u e a to d a a d ilig ê n c ia lh e c n te s o u r a v a
a s o b r a s d e s p a r c i d a s , f a z e n d o - a s c o p i a r p o r e l e g a n t e s le t r a s : q u a n d o d e u m a N a u d e g u e r r a d e s e m
b a rc o u o F ilh o d e u m a c e rta P e rs o n a g e m c o m â n im o v in g a tiv o c o n tr a o P o e ta p o r h a v e r s a tir iz a d o a
h o n ra d e se u P a i g o v e r n a n d o e s ta te rra ; e b e m q u e d is fa rç a v a s u a m a lig n a in te n ç ã o , to d a a in te n ç ã o
m a lig n a p e r c e b e u D . J o ã o d o s m e s m o s d is f a r c e s d e la . E r a e s te C a v a lh e iro g e n e r o s a m e n te c o m p a d e
c id o : e e x c o g ita n d o m e io s d e liv r a r u m a v id a , e m q u e a n a tu r e z a d e p o s ita r a tã o s in g u la r e s p r e n d a s ,
a c h o u tr a ç a s d e s e g u r a r - lh e o p e rig o n o s f in g im e n to s d e r ig o ro s o ju s tic e ir o . O r d e n o u a u n s o fic ia is
d e m ilíc ia q u e , s a in d o fo ra d a c id a d e a to d a a c a u te la , lh e tr o u x e s s e m p r e s o o D o u to r G re g ó r io d e
M a to s ” .
187
A SÁ T IR A E O E N G E N IIO
Como se leu páginas atrás, Câmara Coutinho não enforca João de Maga
lhães, o soldado sedicioso, embora enforque inúmeros outros criminosos, sendo
alvo de referências elogiosíssimas da Câmara quando é substituído por Dom
João de Lencastre. Apersona satírica assume posição simetricamente inversa,
chamando-o de “amigo de enforcados” (OC, I, p. 215), polvilhando a desqua-
lificação com as “farinhas” da murmuração local:
Tratam de diminuir
o dinheiro a meu pesar,
que para a coisa baixar
o melhor meio é subir2111:
quem via tão alto ir,
como eu vi ir a moeda,
lhe pronosticou a queda,
como eu lha pronostiquei:
dizem, que o mandou El-Rei,20
1
2 0 1 . " P a r a a c o u s a b a i x a r / o m e l h o r m e i o é s u b i r ” : o m e s m o t e m a s e e n c o n t r a d e s e n v o l v i d o p o r S a a v e d ra
F a ja rd o e m s e u Empresas Políticas c o m o títu lo d e “ O subir o bajar", s e g u n d o a id é ia d e q u e o a u g e da
a s c e n s ã o - d e u m a f l e c h a n o e s p a ç o , d e u m h o m e m , d e u m i m p é r i o - já é o p r i m e i r o m o m e n t o de
s u a q u e d a e i r r e p r i m í v e l d e c a d ê n c i a . C f. D . D i e g o S a a v e d r a F a j a r d o , op. cit., E m p r e s a LX.
188
A M U R M U R A Ç A O DO CORPO M ÍST IC O
189
A SÁ T IR A E 0 E N G E N H O
190
III
A Proporção do Monstro
1. C f. L i c e n c i a d o M a n u e l P e r e i r a R a b e l o , “ V id a d o E x c e l e n t e P o e t a L í r i c o , o D o u t o r G r e g ó r i o d e
M a to s e G u e r r a ” , e m J a m e s A m a d o ( o r g .) , Obras Completas de Gregório de Matos e Guerra (Crônica do
Viver Baiano Seiscentista), S a l v a d o r , J a n a í n a , 1 9 6 8 , 7 v o ls ., v o l. V II, p . 1 7 2 1 . H á v a r i a n t e d e s t a v e r
sã o : “ T i n h a f a n t e s i a n a t u r a l n o p a s s e i o , e q u a n d o a l g u m a s v e z e s p o r r e c r e a ç ã o s u r c a v a o s i n q u i e t o s
m a r e s d a B a h i a , h a v i a d e s e r a r e m o s c o m p a s s a d o s : c o m tã o b i z a r r a c o n f i a n ç a e n t r e p u n h a o s ó c u l o s ,
e x a m in a n d o c o m e le s a s ja n e la s , q u e m u ita s v e z e s c h e g a v a m c u r io s a s D a m a s s ó d e p r o p ó s ito a vê-
lo , d e o n d e n a s c i a s c r e i e p a r a e l a s t ã o á s p e r o n o s s e u s v e r s o s ” . C f . “ V id a e M o r t e d o D o u t o r G r e g ó r i o
de M a tto s e G u e r r a ” , Obras Sacras e Divinas (Códice Imperador)> S e ç ã o d e M a n u s c r it o s d a B ib lio te c a
N a c i o n a l , t o m o I, C o f r e 5 0 , 5 6 , p p . 5 5 -5 6 .
191
A SÁ T IR A E 0 E N G E N H O
2. O gênero satírico articula a informação acerca de boatos c, portanto, a vigilância. Cf. John Harold
Wilson, Courl Saiires of lhe Resioralion, Columbus, Ohio Univcrsity Press, 1976, pp. X-XI:
“According lo Bishop Burnel, Loul Rochester dressed a footman as a guardsman senlinel *and kepl hitn
all lhe winler long every nighl ai lhe doors of such ladies as lie believed mighi be in intrigues*. We are
lold by lheir rival thai Ilugh, Lord Cholmondeley, used his foolmen as spies to follozv suspccied sinners
aboul tozvn, and lhai Jack Ilozoe sem fonh his sisters to zvatch lhe aclions of lheir friends and
acquainlances. The aulhorof A satyr (1680), accuscd NedRussel, ihirdson ofWilliam, Earl ofBcdford,
of spying on the tozvn: ‘[...] Like a cur zoho’s taughi to fetch he goes / From place to place lo bring back
zohat he knozvs; / Tells zvho’s i ’th’Park, zvhat coached lurned aboul, / Who zvere the sparks, and zvhom
lhey followed ouT. Eighl years later Sir George Etherege commenied thai Ned had speni most ofhis
life joliing aboul lhe sireeis in a hackney coach ‘lo find out lhe harmless lusis of lhe Tozvn’. Finally,
Capiain Robert Julian, a busy purveyor of satires, trotted from coffee houses to bazvdy houses zvith his
pockcls full of verses for sale, picked up the latesi scandal, and passed it on lo the siable of poels zvho
supplied him zvith labeis
3. C f “Chato o nariz de cocras sempre posto: Te cobre todo o rosto, / De gatinhas buscando algum
jazigo / Adonde o desconheçam por embigo: / Até que se esconde, onde mal o vejo / Por fugir do
fedor do teu bocejo” (OC , I, p. 156).
4. Cf. “A hora foi temerária, / o caso tremendo, e atroz, / e essa merda para vós / se não serve, é
necessária” (OC, II, p. 317).
192
A PROTORÇAO DO M O NSTRO
arfante dos quartos onde o sodomita pratica o ato estéril contra naturam5; se
jam a fusão e a confusão, enfim, de mil e um pontos obsessivamente vistos e
diagramados, que se amplificam e afluem selvagens para amalgamar-se em
híbridos monstruosos, índio fidalgo em cujo sangue deságua a mandioca puba,
o vinho de caju e a carne humana6, mulato pernóstico que arroja as precedên
cias da brancura7, marrano em que se funde e queima o cisma de Lutero,
Calvino e Melanchton8, anatomias grotescamente moralizadas de órgãos, in
versões do corpo místico, cabeças que obedecem, pés que ordenam, sexos que
se crispam falantes, murmurações, humores, fedores, gestos, cores, ecos...9
No mar onipresente, a distância, o olho esquadrinha: não copia o que ob
serva, antes o produz como dissimetria entre unidade e mistura, numa forma
que o retrata como tipo e o destrata como infame, excluindo-o como falha en
quanto o inclui na mesma operação: o vício é relacionai, só ganha consistência
quando conjurado, assim como o Diabo. Segundo registros de adequação dos
tipos ao referencial de discursos, a moral do olho adapta-se ao caso e utiliza,
em benefício da operação, todas as possibilidades da moral10. Invariante, sua
pragmática compõe múltiplos ilegalismos, formalizando-os exemplarmente -
entre eles, o ilegalismo da persona satírica, cujo olhar desce no vício, estilo bai
xo das paixões, para subir em virtude, estilo alto de seu juízo, compondo-se
como parte da mesma visibilidade da Cidade diagramada em seu ver-dizer.
Preceitos regulam sua prática: a sátira é inversão de regras que segue regras.
Como anatomia e medicina das almas, o discurso do olho inventa-lhes corpos,
5. C f. “ E s te s , q u e se d e b r e i a m m a n o a m a n o , / D is c ip lin a r - s e - á o d e q u a r t o e m q u a r t o , / E o q u e d e
m a i s s u b s t â n c i a e s t i v e r f a r t o , / A v ia b u s q u e , q u e o n e g ó c i o é c a n o . / C o n h e ç a a I n q u i s i ç ã o e s t a s
v e r d a d e s , / E c o m o é c e r t o , o q u e o s o n e t o d i z , / P a g u e m - s e e m v iv o f o g o e s t a s m a l d a d e s ” ( O C , I, p .
210 ).
6. C f . “A l i n h a f e m i n i n a é c a r i m á / A l o q u c c a p i t i t i n g a c a r u r u . / M i n g a u d e p u b a , e v i n h o d e c a j u /
P is a d o n u m p ilã o d e P ir a j á ” (O C , IV, p. 8 4 1 ).
7. C f. “ P a r a o b ê b a d o m e s t i ç o , / e f i d a l g o a t r a v e s s a d o , / q u e t e n d o o p e r n i l t o s t a d o , / c u i d a , q u e é
b r a n c o c a s t i ç o : / e d e ( l a t o s e n f e r m i ç o / s e a t a c a d e j e r i b i l a , / c r e n d o , q u e o s l l a t o s lh e q u i t a , /
q u a n d o o s v o m ita e m r e to r n o s : / s e is c o r n o s ” (O C , II, p . 4 5 3 ).
8. C f. “ G u a r d a i - v o s , I s r a e l i t a , / q u e s e m e c h e g a a m o s t a r d a , / ta l v e z , q u e a c a s a v o s a r d a , / p o r q u e é
ca sa d e m e s q u ita ” (O C , III, p . 7 3 9 ).
9. C f . “ [...] o s f e d o r e s d a b o c a é u m s e p u l c r o / A c ã e s m o r t o s t e f e d e a d e n t a d u r a ” ( O C , II, p . 3 4 1 ) ; “ [...]
e fe d e c o m o o d ia b o / a o b u d u m d o tra p e z a p e ” (O C , IV, p . 8 5 7 ) ; “ [...] p o r q u e é m u l a t o : / t e r s a n g u e
d e c a r r a p a t o / te r e s to ra q u e d e c o n g o /c h e ir a r - lh e a ro u p a a m o n d o n g o / é c ifra d e p e rfe iç ã o ” (O C ,
IV, p . 7 9 3 ); “ N in g u é m c o m M a r ta S o a re s / q u e r tr o c a r o d re p o r o d re , / p o r q u e d e p o d r e , e m a is
p o d re / n ã o há d is tin ç ã o d e a z a re s ” (O C , III, p . 6 3 0 ) ; “ [...] v o s t r e s a n d a , / ( q u a n d o lá p o n d e s o c u ) / o
so v a c o a p u t i ú , / e q u e a c a tin g a a p e la n d a ” (O C , II, p . 3 8 3 ) ; “ [...] e n jo a , p o r f e d e r a b a c a lh a u ” (O C ,
III, p . 5 7 1 ) ; “ [...] o v u l g o t e m m u r m u r a d o ” ( O C , II, p . 2 5 1 ) e t c .
10. C f. J o sé A n to n io M a r a v a ll, La cultura dd Barroco, 3. e d ., B a r c e l o n a , A r i e l , 1 9 8 3 , p . 1 3 9 .
193
1
A SÁT IR A E 0 E N G E N H O
define-os como culpados de uma falta para cuja correção receita o remédio de
seu dogma. Distribuindo os corpos de linguagem pelos múltiplos espaços
efetuados da Cidade, o olho os retalha e detalha públicos, segundo ordenação
jurídica, sendo o avalista deles e do seu próprio regime de crenças, que articu
la como instrumento político11. Dois princípios complementares modulam a
visada: a exclusão dos corpos que o olho constitui, remetidos para os modos
negativos da ausência de Bem - falha, falta, erro, pecado - e a sua inclusão, que
os traduz poeticamente como ridículos, moralmente como viciosos, politica
mente como culpados na luz da sua verdade. Ridículo, vício e culpa se reco
brem, segundo o rebatimento extensivo dos pedaços; intervém a voz do mes
tre, porém, que aplica o corretivo da virtude como gravidade, prudência, bem
comum da República, discrição. Ao fazê-lo, a voz magistral assume corpo, in
flação católica da bondade mercantil e fidalga, ela que é somente um olhar
vazio e obsessivo. Embora enuncie em primeira pessoa do singular, nela ecoa
um nós majestático e terrível, força de coesão, hierarquia que unifica a tudo e
a todos, ditada como um se impessoal e anônimo, imagem onipresente de au
sências solenes, Deus e Rei. As mesmas regras valem para vícios opostos às
virtudes estabelecidas e um único piscar do olho evidencia que sabe que não
se pode louvar um homem de bem com justiça e abundância sem conhecer-lhe
as virtudes, nem vituperar o vicioso com aspereza e sarcasmo sem conhecer-
lhe os vícios12. O olho é princípio e limite, assim.
A distância do mar à terra alegoriza outra: o olho põe-se fora e longe para
pôr-se acima e perto, hierarquicamente. Por isso distingue, permite-se pene
trar janela adentro, descer, espionar e subir. Entre ele, os óculos e o ponto,
11. Cf., por exemplo: “O Ministro há de ser são, / justo, e não desobrigado, / há de ter ódio ao pecado,
/ e ao pecador compaixão: / que se tem má propensão, / faz justiça, mas com vício” (OC, I, p. 201).
Ou: “Os fidalgos, e os Senhores/ faltos de jurisdição/ fazem tudo, e tudo dão/ a amigos, e servido
res: / os que jogam de maiores / por sangue, e não por poder / fazem jogo de entreter: / porque o
sangue desigual / sempre brota ao natural, / e o mando bota a perder” (OC, I, p. 192).
12. M. T. Cicero, De oralore, texte établi, traduit et annoté par François Richard, Paris, Garnier, s/d.,
pp. 349-350. Cf., por exemplo, tratado como integração política neste capítulo: “O bem, que os
mais bens encerra, / e as glórias todas contem, / é reinar quem reina bem, / pois figura a Deus na
terra: / eu cuido, que o mundo erra / nesta alta reputação, / que se o Rei erra uma ação, / paga o seu
alto atributo, / um tristíssimo tributo, / e misérrima pensão” (OC, I, p. 202). O Decrelum de peccaio
originali do Concilio de Trento fixou a doutrina católica no sentido de que o pecado original não
destrói a natureza nem a lança imediatamente ao mal. Manchada embora pelo pecado, mantêm-se a
luz natural, a virtude natural, o livre-arbitrío. As artes e as letras sciscentistas encenam tal doutrina
do pecado e sua lição pós-tridentina, afirmando que a natureza humana é perfectíve! também pela
arte. Nesta linha, a sátira é uma arte educativa. Cf. também, a respeito, “Deleitando ensina”, em
Diego Saavedra Fajardo, Empresas Poltlicas, ed. preparada por Quintin Aldea Vaquero, Madrid,
Nacional, 1976, 2 vols., vol. I, Empresa II.
194
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
13. No Sofista, o Estrangeiro eleata distingue a imitação (234bc), subdividindo-a numa distinção entre
imagem icástica efantástica (235b-236c). Porque o observador está mais distanciado de certas partes
de uma grande pintura ou escultura do que de outras, a desproporção aparente entre as partes pode
conflitar com seu conhecimento prévio do assunto figurado e alerta-o para a discrepância da veros
similhança. Para compensar a distorção visual, ao invés de reproduzir as dimensões reais do modelo
com precisão icástica, o artista as altera de modo que a imagem fantástica resultante parecerá estar
proporcionada quando vista de um ponto de observação “próprio” (ikanós, 236b). Tal arte é a ceno
grafia de tratados de óptica posteriores. Em cenografia, não se trata simplesmente de distância ou de
proximidade, mas da correia distância, nem tão longe, nem tão perto. Se o objeto pudesse ser toma
do como um todo a partir de uma hipotética posição ideal, as mesmas compensações efetuadas pelo
artista apareceríam como distorção e teriam de ser corrigidas. Cf. Platão, Le sophiste, 2. ed. revue et
corrigée, texte établi et traduit par Auguste Diès, Paris, Belles Lettres, 1950. Cf. também o ensaio
fundamental de Wesley Trimpi, “The early metaphorical uses of SKIAGRAPHIA and SKENOGRA-
PHIA”, Traditio. Studies inAncient and Medieval History, Thought and Religion, New York, Fordham
University Press, 1978, vol. XXXIV, pp. 406-408.
195
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
196
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
14. Levado ao extremo, o estilo cenográfico propõe o objeto pintado para ser visto de um ponto de
vista calculado, como uma pintura anamorfótica; levado ao extremo verbal, o objeto deve ser enten
dido em termos alegóricos. Cf. W. Trimpi, op. cit., p. 412.
15. Cf. Michel de Certeau, La fable mysiique, XVl-XVIPsiècles, Paris, Gallimard, 1982, p. 71.
16. Cf. J. Racine, Príncipes de Ia iragédie, Paris, Vinaver, 1951, p. 27.
197
A SÁ T IR A E O E N G E N H O
E s to s e n g a n o s y a r te s p o lític a s n o se p u e d e n co n o cer, s i n o se c o n o c e b ie n la n a t u r a l e z a d e i
h o m b r e , c u y o c o n o c im ie n to es p r e c is a m e n te n e c e s a r io a l q u e g u b ie r n a p a r a s a b e r r e g ílle y
g u a r d a r s e d é l '8.
17. Cf., por exemplo: “[...] aquela má mulher / da preversa sinagoga / fez no sermão tal chinoga, / que
o não deixou entender” (OC, II, p. 253).
18. Diego Saavedra Fajardo, op. cit., vol. I, Empresa XLVI.
19. Cf. F. M. Ferrol, Saavedra Fajardoy la Política dei Barroco, Madrid, Instituto de Estúdios Políticos,
1957, p. 83.
198
1
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
sua ação é a de tornar público, a de mostrar àqueles que vão vê-lo na praia que
são vistos, que Alguém providencial provê, prevê20.
Elevação petrarquista de dona Maria dos Povos acima da Cidade nas len
tes de Garcilaso e Góngora, pastoral galante de Marfída21, Sílvia22, Gila23, Lise24,
Clóri25, Tisbe26, Maricas27; paródia camoniana nas definições do amor; fanta
sia hiperbólica da feiura do Braço de Prata, da luxúria de padres e frades;
corrupção da Junta do Comércio, faminta sempre de açúcar e lucro; roman
ces alegóricos28; figuração misógina de brancas, negras, pardas, índias, casa
das, solteiras, viúvas, freiras, putas; baixo corporal, fluidos do corpo, humo
res, secreções, calores, cheiros, merda - tantas são as janelas focalizadas, tantas
são as visadas, tantas as adequações da lente, tantas as proporções e despro-
porções, virtudes e vícios.
A força da eloqüência da enunciação permanece a mesma, como escreve
Cícero, e porque a suprema dignidade é a da coisa pública, o discurso deve
levar o destinatário à esperança, à prudência, à paz, e, mais freqüentemente,
deve desviá-lo da intemperança, da injustiça, da estupidez, das esperanças
fúteis29. Cada virtude comporta deveres e obrigações fixos, merecendo um
elogio que lhe é próprio. Em todas, portanto, deve-se fazer ver o acordo entre
os atos, o gênero, a natureza e o nome de cada uma30. As mesmas regras
valem, como se escreveu, para vícios opostos: o olhar no mar é técnico em
evidenciar o desacordo entre os atos e o gênero da virtude ausente - injustiça,
20. O Concilio de Trento determinou a ordenação hierárquica e jurídica exterior, pública, como propa
ganda da fé - lembre-se o caráter de ostentação dos signos do poder na grande festa seiscentista,
nos sermões, nos castra doloris. Lembre-se ainda que, segundo os juristas ibéricos contra-reformis
tas, o livre exame luterano transforma a Igreja numa instituição invisível. Cf. Richard Alewyn, “La
fête de cour”, üunivers du Baroque. Paris, Gonthier, 1959; Ugo Spirito, “Barocco e Controriforma”,
em III Congresso Internazionale di Studi Umanistici, Venezia, 15-18 giugno 1954, A cura di Enrico
Castelli, Retórica e Barocco. Alli, Roma, Fratelli Bocca Editori, 1955; André Chastel, “Le Baroque
et la mort”, íbidcm; Jan Bialostocki, “Arte y vanitas”, Estiloy Iconografia (Conlribución a una Ciência
de las Artes), Barcelona, Barrai Editores, 1973.
21. Cf. Gregório de Matos e Guerra, em Amado James (org.), op. cit., vol. III, p. 660.
22. Idem, p. 680.
23. Idem, p. 681.
24. Idem, p. 682.
25. Idem, p. 685.
26. Idem, p. 692.
27. Idem, p. 695.
28. Cf., por exemplo, “Os Gatos”, romance (OC, II, pp. 455-461).
29. M. T. Cicero, op. cit., p. 342.
30. Idem, p. 343.
199
A SATI RA E 0 E N G E N H O
P a r a lo q u a l c o n v ie n e q u e a p u r e lo s c o lo res a la e lo c u e n c ia y p i n t e los v ic io s t a n fe o s ,
d e s c rib a los d e lito s t a n a b o m in a b le s y r e p r e s e n te la s c u lp a s ta n h o n i b i l e s q u e e l m o z o in a d v e r t i
d o , la d o n c e lla in c a u ta , e l h o m b r e m a d u r o , la m u je r e x p e r im e n ta d a y to d o lin a je d e g e n te s les
c o b ren h o r r o r y n o d ese o , y v a y a n p e r s u a d id o s c o n a q u e lla a p a r ie n c ia e s c a n d a lo s a a o ir la
tr a ic ió n v i é n d o la c a s tig a d a , e l a d u lté r io r e p r e h e n d id o , a c u s a d o d h o m ic íd io , r e p r o b a d a la
liv i a n i d a d , in f a m a d a la c o b a r d ía , p a r a e v i t a r s e m e ja n te s in s u lto s a l v e r d e s a ir a d a la e n v id ia ,
a fr e n to s a la m a lic ia , c u lp a d o e l e n g a n o , d e s h o n r a d a la m e n tir a , m a l v i s ta la to r p e z a , a b o rr e c i
d a la m a l d a d y d e s c u b ie r ta la a le iv o s ía 22.
31. Cf. Heinrich Lausberg, Manual de Retórica Literaria (Fundamentos de una Ciência de la Literatura),
Atadrid, Gredos, 1968, 3 tomos, tomo III, p. 320.
32. José Pelliccr dc Tovar, “Idea de la Comedia de Castilla (1635)”, em F. S. Escribano y A. P. Aiayo,
Precepliva Dramática Espaiiola (Del Renacimientoy el Banoco), Atadrid, Gredos, 1965, pp. 219-220.
Cf. ainda Aíicer Andrés Rey de Artieda, “Carta al Ilustríssimo Alarqués de Cúellar sobre la come
dia (1605)”, Discursos, Epístolasy Epigramas de Artemidoro, em F. S. Escribano y A . P. Atayo, op. cil.,
p. 112. Observe-se que, segundo Tovar, a “aparência escandalosa" faz ver as paixões viciosas, que
são corrigidas - “desonrada a mentira” - para que o vício do público sofra o mesmo efeito de
correção do vício representado hiperbolicamente, tornando-se virtude.
200
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
nor empenho da persuasão e, ainda, da distância delineada pelo olho. Ela não
é transparência do vivido, mas espécie de complemento e, quase sempre, seu
reverso, na medida em que, moralizadora e hierarquizante, enuncia aquilo
que é seu princípio de proporção, postulado como ausente na Cidade: a
racionalidade.
Toda virtude é uma justiça e a justiça é todas as virtudes33 segundo um
fim, que é o bem comum. Na ordenação dupla, teatralizam-se a desonestidade,
a tolice, a hipocrisia, a desmedida, em várias instituições e ocasiões; simulta
neamente, a honra, o juízo, a verdade, o equilíbrio. Assim, a sátira é sempre
dupla quanto ao seu efeito de sentido, afirmando uma ausente plenitude do
bem comum, identificada com a boa política e a boa religião, oposta à deca
dência do presente mau e corrupto, negado como teatro da falha, falta e cul
pa. Pela oposição da ordem mítica e da temporalidade presente, rebaixamen
to ou dejeto da ordem, a sátira tenta constantemente fazer o tempo ser
absorvido no mito. Na dissimetria aberta entre o vazio da Ausência e a espes
sura dos corpos, a ponderação judiciosa dapersona recolhe e une aquilo que,
na outra série que encena, é disparatado como mistura fantástica e jogo do
conceptismo engenhoso das semelhanças negativas34. Nela, a dissimetria das
formas misturadas está a serviço da simetria do sentido virtuoso.
Encenada como intervenção da prudência, arte do juízo, a enunciação da
persona atua na complexidade dos discursos que se disseminam, coletando-os
ha experiência de casos análogos já ocorridos no passado35. Exemplos morais
da tradição, princípios imutáveis da teologia e modelos poéticos convergem
33. Cf. Aristóteles, Elhique a Nicomaque, Introd., Notes et Index par J. Tricot, Paris, Librairie
Philosophique Vrin, 1967, V, 3, 1130-9-10.
34. Cf., por exemplo, em OC, I, p. 155, as liras dirigidas contra Antônio de Sousa de Meneses, o Braço
de Prata, quando da sua entrada em Salvador: “visão de palha sobre um Mariola”, “rosto de azarcão
afogueado”, “O bigode fanado feito ao ferro”, “olhos cagões”, “Chato o nariz de cocras sempre pos
to”, “rocim das Alpujarras”, “descendente de lampreia” etc. são algumas das caracterizações
caricaturais, que fazem a personagem grotesca, monstruosa, não só pela hipérbole, mas também
pela participação, nela, de várias naturezas. Tais caracterizações são unificadas pela voz da persona
satírica: “cuidei, que a esta cidade, tonta, e fátua / mandava a Inquisição alguma estátua”; “[...] o
julguei um saco e melões”; "vi-te o braço [...]"; “Cuidei, que eras rocim [...]”; “o tive por um odre
esfuracado”; etc. Quanto ao conceptismo, onipresente nesta produção como racionalidade enge
nhosa da fantasia, bom exemplo também são as décimas dirigidas a um padre Baltasar, amancebado
com duas mulheres, uma negra e uma mulata, poema cuja imaginação pode comparar-se à dos
ingleses metafísicos, como Dryden, Cowley e, principalmente, Donne, pelas fusões súbitas de con
creto e abstrato, pela violenta aproximação de conceitos distantes, pelos trocadilhos, pelo desen
volvimento expositivo-dissertativo de “casos” tratados hiperbolicamente (cf. OC, II, p. 287).
35. Cf. por exemplo, OC, I, p. 155: “Da Pulga acho, que Ovídio tem escrito, / Lucano do mosquito, /
Das Rãs Homero, e destes não desprezo, / Que escreveram matérias de mais peso”.
201
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
36. Cf. Paul Zumthor, La masque ei la lumicre (La poélique des grands rhétoriqueurs), Paris, Seuil, 1978, p.
50.
202
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
203
A SÁ T IR A E 0 E N G E N H O
U m a só n a tu r e z a n o s fo i dada:
N ã o c r io u D e u s o s n a t u r a i s d i v e r s o s ,
U m só A d ã o fo r m o u , e e s se d e n ad a.
T o d o s s o m o s r u in s , to d o s p r e v e r so s
S ó n o s d i s t i n g u e o v í c i o , e a v ir t u d e ,
D e q u e u n s sã o c o m e n s a is , o u tr o s a d v erso s.
(O C , II, p. 471.)
D e s e jo , q u e to d o s a m em ,
s e ja p o b r e , o u s e ja r ic o ,
e se c o n te n te m c o m a so r te ,
q u e tê m , e e s tã o p o s s u in d o .
(O C , I, p . 2 8 .)
Como sua dicção é dupla, deve-se perguntar pela posição dos corpos de
linguagem inventados pelo olho e amplificados pelos óculos interpostos. A
caracterização da visão pelos crivos com que pensa o que vê e vê o que pensa,
ora alargando, ora estreitando as malhas, ora agredindo maledicentemente,
ora ironizando jocosamente, esfumaçando ou clareando os contornos na mo
dulação dos casos ridículos e obscenos, estabelece o código de honra dapersona
nos poemas. Como é sempre a instituição que produz a perversão, simultanea
mente também estabelece outras codificações, rebaixadas como deformidade
ridícula e obscena.
O código de honra é enunciado na sátira como moral sentenciosa, em
cuja composição vários saberes concorrem, determinantemente a teologia-
política da divisão hierárquica. Nela se imbricam virtudes medievais, rearti-
culadas como mito épico-cavalheiresco e padrão cortesão discreto. Como mito,
a virtude brilha em ausência e estabelece a legalidade fundamentando-a no
nascimento nobre, segundo o Direito natural37. No código de honra atuam
37. Como se vê no capítulo IV, a sátira opera com procedimentos do gênero epidítico ou demonstrati
vo, como arte de vituperação. Desta maneira, é simetricamente inversa da poesia encomiástica. A
relação entre louvor e viluperação permite, portanto, também relacionar poesia encomiástica e poe
sia satírica, uma vez que o mesmo princípio, presente no encômio, é efetuado como ausente na
204
M
A PROPORÇÃO DO M O NSTRO
O q u e te v ir s e r t o d o r a b a d ilh a
D i r á , q u e te p e r f ilh a
U m a q u a r e sm a (c h a to p e r c e v e jo )
P o r A r e n q u e d e f u m o , o u p o r B a d e jo :
S e m c a r n e , e o s s o , q u e m h á a l i , q u e c r e ia ,
S e n ã o q u e é s d e s c e n d e n t e d e L a m p r e ia .
sátira. Cf. também os poemas laudatórios dirigidos ao Conde do Prado, OC, I, pp. 170, 176-177,
183, 191-192 ctc.
38. A expressão é de Maravall e aqui c utilizada para designar a rearticulação da virni medieval pela
sátira seiscentista, não sua adequação à Colônia, que não é feudal. Cf. José Antonio Maravall, op.
cil.
39. “Mantem”, supondo-se o presente de enunciação da sátira, que efetua o destinatário articulando-
o com a referência local. Seria difícil sustentar que sempre “mantém”, contudo, porque hoje tal
referência inexiste, de modo que aquilo que é o presente evidente para destinatários contemporâ
neos da enunciação da sátira hoje é muita vez um passado enigmático.
40. Cf. Lomazzo, “Compositione di ritrarre dal naturale", em Traltato dcWarle delia pitlura, scollura ct
architeltura, Mílano, Apresso Pier Paolo lo Gottardo Pontio, 1585. A instantia di Pietro Tini.
205
A SÁ T IR A E O E N G E N H O
N a m ã o e s q u e r d a t r a z ia s a b e n g a la
o u p o r f o r ç a , o u p o r g a la :
N o s o v a c o p o r v e z e s a m e t ia s ,
S ó p o r fa z e r e n fim d e s c o r te s ia s ,
T ir a n d o a o p o v o , q u a n d o te d e s t a p a s ,
E n to n c e s o c h a p é u , ago ra a s ca p a s.
F u n d ia -s e a c id a d e e m c a r c a ja d a s,
V en d o as d u a s e n tr a d a s,
Q u e f i z e s t e d o M a r a S a n t o I n á c io ,
E d e p o i s d o c o l é g i o a t e u p a lá c io :
O R a b o e r g u id o e m c o r t e s ia s m u d a s ,
C o m o q u e m p e lo c u t o m a v a a j u d a s .
(O C , I, p p . 1 5 7 - 1 5 8 .)
206
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
Senado analisadas no capítulo II. Dupla, a sátira opera este sentido próprio,
que é o de uma normatividade generalizada, e com glosas dele, alterando-o e
deformando-o conforme os casos. Em outros termos, ela pode fazer-se como
variação mista de um sentido próprio encontrável em discursos contemporâ
neos segundo outros fins. Este sentido, diga-se ainda uma vez, é critério de
representação e de avaliação. Lugar-comum dele, como se leu nas Atas e Car
tas, é a miséria da população.
Toda essa população murmura, como se viu no capítulo II. Murmura: os
impostos, a justiça, a administração da Câmara, os mercadores monopolistas,
os escândalos de convento, os cristãos-novos, os contrabandos dos ourives, o
atravessamento das farinhas, a vida alheia. Se a convivência na Cidade4142de
termina a prescrição das liberdades pela administração e a imposição das leis
de precedência, controle hierárquico e outras formas mais óbvias de controle,
como a milícia, os almotacés, a Infantaria, os açoites, o degredo e a forca, o
relativo anonimato dessa população efetuada nos documentos implica, por
sua vez, a liberdade da isenção relativa do controle, que os mesmos documen
tos exemplificam. De modo que: “La ciadad que por la concordia era una ciudad,
sin ella es dosy a veces tres o cuatro,faltándole el amor, que reducía en un cuerpo los
ciudadanos”*1.
Essa mesma falta de amor, virtus unitiva da República, caracteriza na sá
tira a corrupção efetuada do bem comum, que desagrega a ordem e divide a
Cidade em duas, três e quatro. A sátira se faz como distância dramatizada do
sentido próprio de sua intervenção, bem comum, em glosas que o encenam
em situações diferenciadas. Num longo romance, em que a Bahia é personi
ficada e fala em primeira pessoa, queixando-se das críticas da mesma sátira,
confessa que as culpas que lhe increpam não são suas, mas dos moradores
viciosos que alberga. Como um mapa de culpas, ou um arquivo de incons-
tâncias, o poema perspectiva a distância hierárquica ideal, segundo a técnica
do confessionário, numa alegoria que estiliza os Dez Mandamentos cristãos.
No exórdio, a Bahia encena a contrição, dispondo-se a confessar-se em res
posta aos que a atacam. Movimento irônico, a sátira encena a desqualificação
da sátira e de seus autores, caracterizados como “murmuradores nocivos” a
que se atribuem “culpas, e delitos”:
41. Cf. José Antonio Maravall, op. dl., p. 262. “A cidade é, por antonomásia, o lugar problemático da
época barroca” (idern, p. 264).
42. D. Saavedra Fajardo, op. cit., vol. II, Empresa LXXXIX.
207
A SÁ T IR A E O E N G E N H O
Já q u e m e p õ e m a to r m e n to
m u r m u r a d o r e s n o c iv o s ,
c a r r e g a n d o s o b r e m im
s u a s c u l p a s , e d e lit o s :
P o r c r é d it o d e m e u n o m e ,
e n ã o p o r te m e r c a s tig o
co n fessa r q u ero os p eca d o s,
q u e f a ç o , e q u e p a t r o c in o .
T e n h o T u rco s, te n h o P ersa s
h o m e n s d e n a çã o ím p io s
M a g o r e s , A r m ê n io s , G r e g o s,
in fié is , e o u tr o s g e n tio s .
T e n h o o u s a d o s M e r m id ô n io s ,
te n h o ju d e u s , te n h o A s s ír io s ,
e d e q u a n ta s ca rta s h á ,
m u i t o t e n h o , e m u i t o a b r ig o .
E sc n ã o d ig a m a q u e le s
p r e z a d o s d e v in g a tiv o s ,
q u e s a n t i d a d e t e m m a is ,
q u e u m T u r c o , e u m M o a b it o ?
D i g a m id ó la t r a s f a ls o s ,
q u e e s to u v e n d o d e c o n tin o ,
a d o r a r e m a o d in h e ir o ,
208
A PROPORÇÃO DO M O N ST RO
g u la , a m b i ç ã o , c a m o r ic o s .
Q u a n t o s c o m c a p a c r is tã
p r o fe ss a m o ju d a ís m o ,
m o str a n d o h ip o c r ita m e n te
d e v o ç ã o à L e i d e C r is to !
Q u a n t o s c o m p e l e d e o v e lh a
s ã o lo b o s e n f u r e c i d o s ,
la d r õ e s , f a l s o s , e a l e i v o s o s ,
e m b u s t e i r o s , e a s s a s s in o s !
E s t e s p o r s e u m a u v iv e r
se m p r e p é s s im o , e n o c iv o
são, os q u e m e a c u sa m d a n o s,
e p õ e m l a b é u s in a u d i t o s .
M a s o q u e m a is m e a t o r m e n t a ,
é v er, q u e o s c o n t e m p l a t i v o s ,
sa b e n d o a m in h a in o c ê n c ia ,
d ã o a s e u m e n t i r o u v id o s .
209
A SÁTI RA E O E N G E N H O
A té o s m e s m o s c u lp a d o s
tê m to m a d o p o r c a p r ic h o ,
p a r a m a is m e d i f a m a r e m ,
p o r e m p e la p r a ç a e s c r it o s .
O n d e e screv em se m v erg o n h a
n ã o só b r a n c o s, m a s m e s tiç o s ,
q u e p a r a o s b o n s s o u in f e r n o ,
e p a r a o s m a u s p a r a ís o .
( O C , I , p . 1 3 .)
(O C , I, p . 1 4 .)
210
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
V ó s m e e n s in a s te s a ser
d a s i n c o n s t â n c i a s a r q u iv o ,
p o is n e m a s p e d r a s , q u e g e r o ,
g u a r d a m fé a o s e d i f íc io s .
P or v o ss o r e s p e ito d e i
c a m p o fr a n c o , e g r a n d e a u x ílio
para q u e se q u e b r a n ta s s c m
o s m a n d a m e n to s d iv in o s .
C ad a um p o r su a s ob ra s
c o n h e c e r á , q u e m e u x i n g o 44,
se m a n d a r e x c o g ita n d o
p a r a q u e m s e a p o n t a o tir o .
(O C , I, p p . 1 4 -1 5 .)
Q u e d e q u ilo m b o s q u e te n h o
c o m m e s tr e s su p e r la tiv o s ,
n o s q u a is s e e n s i n a m d e n o it e
o s c a lu n d u s , e fe itiç o s .
C o m d e v o ç ã o o s fr e q ü e n ta m
m il s u j e i t o s f e m i n i n o s ,
e ta m b é m m u ito s b a r b a d o s,
q u e s e p r e z a m d e n a r c is o s .
44. “Quem eu xingo” é mais adequado, neste contexto, que “quem m eu xingo” da e d ição de Ja m e s
Amado.
211
A SA T IR A E 0 E N G E N H O
V en tu ra d iz e m , q u e b u sc a m ;
n ã o s e v iu m a io r d e lír io !
e u , q u e o s o u ç o , v e j o , e c a lo
p o r n ã o p o d e r d iv e r t i- lo s .
O q u e s e i, é , q u e c m t a i s d a n ç a s
S a ta n á s an d a m e tid o ,
e q u e só ta l p a d r e - m e s t r c
p o d e e n s i n a r t a is d e l í r i o s .
N ã o h á m u lh e r d e sp r e z a d a ,
g a lã d e s f a v o r e c id o ,
q u e d e i x e d e ir a o q u i l o m b o
d a n ç a r o se u b o c a d in h o .
E g a s t a m b e l a s p a ta ç a s
c o m o s m e s tr e s d o c a c h im b o ,
q u e s ã o t o d o s j u b ila d o s
e m d e p e n a r t a is p a t in h o s .
E q u a n d o v ã o c o n fe ss a r -s e ,
e n c o b r e m a o s P a d r e s is t o ,
p o rq u e o têm por p a ssa te m p o ,
p o r c o s tu m e , o u p or e s tilo .
E m c u m p r i r a s p e n i t ê n c ia s
r e b e ld e s sã o , e r e m is s o s ,
e m u i t o p io r se a s t a is
sã o d e je ju n s, e c ilíc io s .
A m u ito s o u ç o g e m e r
c o m p e sa r m u ito e x c e s s iv o ,
n ã o p e lo h o r r o r d o p e c a d o ,
m a s s im p o r n ã o c o n s e g u i - l o .
(O C , I, p p . 1 5 -1 6 .)
212
j
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
45. Cf., por exemplo, A Pérola Eucarística das Crianças. Lembrança da Primeira Comunhão pelo Pbro.
Vicente-Jimenez C. Aí., versão por um padre jesuíta, 3. ed., Czechoslovakia, Casa Ed. Católica J.
Steinbrener, A. N. Vimperk, s/d., p. 27. Cf, principalmente, “Exame pelos Mandamentos”.
213
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
ou
214
à
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
Aqui, as cartas de nobreza mulata, as palmas brancas das mãos, são fusti
gadas pela sátira de maneira bastante tradicional, segundo a tópica medieval
do mundo às avessas, pela presunção e pelo excesso do não-reconhecimento
de seu lugar de membros ínfimos no corpo da República. Pela condensação
de “pícaro” e de “picard”, os mulatos são desqualificados como os pícaros de
outra estirpe que a sátira figura insultuosamente: rufiães, gente vil. PelasAms
e Cartas, sabe-se que os soldados do Terço, principalmente oficiais, também
sargentos e outros, costumam desalojar os habitantes, passando a morar sem
pagar aluguel, privilégio que se alastra perigosamente, pois torna-se murmu-
ração. Eis aqui uma espécie de metaforização das razões: o que nas Atas e
Cartas é questão de controle da população, independentemente da cor, pois a
“limpeza de sangue” está incluída naturalmente no controle exercido, na sá
tira é enquistamento metafórico na cor, posição fidalga que o povoamento do
Recôncavo já torna um arcaísmo no mesmo século XVII, pela miscigenação
crescente que é, inclusive, ambígua política oficial, dada a falta de gente16.
No soneto referido, o motivo central do ataque contra os mulatos encontra-se
no verso: “Trazidos pelos pés os homens nobres”, que pode ser metaforizado
aqui pela notícia de arruaças, rebeliões e ocupação dos imóveis, segundo as
Atas e as Cartas, que também referem que o negócio das carnes está, geral
mente, em mãos de açougueiros mulatos que as vendem com alteração no
peso. Muitas/Pas da Câmara de Salvador registram, aliás, determinações dos
vereadores de que a carne seja exposta pendurada, para que o sangue escorra
todo e não pese. Os açougueiros mulatos insistem, segundo elas, em expô-la
amontoada. As Atas registram também, neste sentido, intervenções de juizes
do Povo contra eles, afirmando “porque são inimigos do Povo” como justifi-46
46. Cf. C. R. Boxer, O Império Colonial Português (1415-1825), Lisboa, Edições 70, 1981, pp. 250*255.
215
A S Á T I R A E O E N GE N H O
47. “Esse preto de rabo ao léu” - assim o venerável Patriarca jesuíta da Etiópia, Dom Afonso Mendes,
costumava referir-se a seu colega, um brâmane cristianizado, Dom Mateus de Castro, bispo de
Crisópolis. Cf. C. R. Boxer,/l Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770), Lisboa, Edições 70, 1981, p.
26.
2 16
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
outro, aquele, perfeito e pleno, que não passa nunca, porque já passou desde
sempre. Nesse dinamismo, a mesma linguagem circula como diagrama das
trocas48 que dramatiza e efetua: "troca”, "trocar”, “ligeireza”, “trote”, “su
bir”, “baixar”, “mudança”, “cuidado”, “fortuna”, “fortunilha”, “roda”, “aca
so”, “ocasião”, “fogo ativo”, “de contínuo”, “hoje-ontem”, “ontem-hoje”, “mu
dar”, “mudar-se”, “mudança” são exemplares do léxico que, na desordem
dinâmica de tudo, compõe o próprio dizer como passagem para a solução
conservadora, desejosa de agarrar o instante que passa fixando-o, ao instante,
numa duração que é a medida precária do tempo que o leva para sua autodis-
solução.
Olho no mar, lente interposta, ponto: tópicas, tipologia, topologia. Nas três
classificações das trocas discursivas, aqui um artifício que lineariza sua si-
multaneidade na sátira, funcionam regras: regras retóricas para a mímese,
para a invenção dos corpos de linguagem, fundindo a retórica com o aparato
jurídico-teológico, para sua ordenação por lugares encenados da hierarquia.
Funcionam como crivos da intervenção, metaforizando e classificando a tudo
e a todos pelas normas ja aludidas do Bem. Dividcm-se em verossímeis, com
põem cruzamentos ibéricos e italianos, reiteram, estilizam ou parodiam o
petrarquismo, reativam o escárnio, as burlas, a diatribe, o entremez e a farsa,
movimentam o conceptismo engenhoso, retomam resíduos quinhentistas...49
Tais regras efetuam a adequação, segundo o decoro, da invenção, dispo
sição e elocução dos casos, como arte que subordina seus procedimentos
retóricos e código de honra a um fim, a hierarquia. Segundo ela, a ordem
retórica dos conceitos nos poemas é homóloga do conceito teológico-políti-
code ordem. O extensocorpus dos poemas é, desta maneira, um rebatimento
discursivo de uma ordenação vertical, imanente, gravada nos corpos e ins
tituições, figura de El-Rei, metáfora encarnada da Lei transcendente que
nele se atualiza e expande dilatando a Fé e o Império, descendo com sua
imagem, vestígio e sombra escolásticos até a prostituta negra mais desgra
çada, fluindo pelos desvãos sombrios que toda afirmação da Qualidade fun
damenta, prescreve e cega em sua luz. Infinitismo da lei, a sátira também
48. Cf. José Miguel Soares W isnik (Seleção, Introdução e Notas), Pontua'Escolhido* de Gregário de
Maios, São Paulo, Cultrix, 1975. W isnik vê num "mundo trocado pela troca [...] uma das chaves da
poética gregoriana", p. 19.
49. Lembre-se que, entre outros, a sátira da “vã cobiça” e da “glória de mandar" tinha-se tornado um
topos das letras portuguesas quinhentistas, como se pode ler em O Soldado Prático, de Diogo do
Couto; em Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto; em Lusitânia Transformada, de Fernão Álvares do
Oriente; em relatos da História Trágico-maritima; cm Sá de Miranda, Antônio Ferreira, Gil Vicente
e, obviamente, Camões.
217
A SÁTI RA E O E N G E N H O
218
â
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
50. Cf. Maria Izabel de Albuquerque, “Liberdade e Limilação dos Engenhos d’Açúcar”, em Primeiro
Congresso de História da Bahia, Anais, Salvador, Instituto Geográfico e Histórico, 1955, p. 494. C f
nota 53 do capítulo II.
51. C f F. M urilo Ferrol, op. cil., p. 60.
219
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
[...] nenhuma descrição de um fato ou de uma ação em sua relação com um referente
real ou com o sistema semântico da língua pode ser definida como evento ou não-
evento antes que se resolva a questão acerca de seu lugar no campo semântico estrutu
ral segundo, definido por um tipo de cultura55.
52. Fusão de particularismo, que visa a dar coma de todas as ocasiões, com a concepção tradicional da
lei, como derivação de uma rigorosa hierarquia de normas repetidoras de um ditado divino.
53. Cf. Baltasar Gracián, Obras Completas, Madrid, Aguilar, 1967.
54. As mesmas regras funcionam, por exemplo, na França do século XVII. Cf. Hélène Duccini, “Discours
et réalité sociale: le révélateur des pamphlets”, em Henry Méchoulan (org.), CE tal baroque (1610-
1652). Regards sur la pensée politique de la France du premier XVII1siècle, Paris, Vrin, 1985, p. 395.
55. Cf. Iuri Lotman, La struciure du lexte artistique, Paris, Gallimard, 1973, p. 326.
220
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
faz vistos e ditos como aquilo que é indigno de ver e de dizer, propondo-os
comoà parte, sub-humanidade gentia, ou fora, irracionalidade, do campo de
sua visão, afirmada como luminosa, racional, verdadeiramente humana:
ou
E ainda:
Fique claro que esta é uma das regras de hierarquização: o mesmo episó
dio - por exemplo, a desqualificação do índio ou do mulato - pode ser situa
do em níveis estruturais diferentes, sendo ou não um evento conforme sua
posição no campo institucional dos discursos que lhe definem o valor. Ao
lado da ordenação semântica geral do texto, há nele lugar também para orde
nações parciais. O evento pode ser efetuado como uma hierarquia de eventos
parciais, como uma cadeia de eventos, isto é, como tema principal caracteri
zado por subtemas secundários. Neste sentido, aquilo que em um poema par
ticular é um evento - por exemplo, a arrogância mulata - pode ser deslocado
como elemento descritivo de tipo em outro. Da mesma maneira, o topos “ne
gro” ou “mulato”, por vezes tema, por vezes subtema, pode ser deslocado
como insulto no ataque de não-negros e não-mulatos. Assim entendido, o
tema não representa algo independente, diretamente extraído do vivido ou
passivamente recebido, mas associa-se a paradigmas que fornecem a escala
221
A SÁTI RA E O E N G E N H O
do que é evento e daquilo que é uma variante dele, não comunicando nada de
novo56no contexto em que ocorre como caracterização de tipo. Quando tratado
como tema, torna-se evento. A sátira se ocupa de preferência dos homens-bons
católicos, brancos e livres, inflados do excesso da Bondade que o mesmo siste
ma postula, corruptos e hipócritas. No caso, a prudência é articulada em termos
de natureza fidalga, boa e racional, e a vituperação se faz em termos da bastardia
e ilegalidade das ações, pela desqualificação “mulato”, “mamaluco”, “negro”.
Referidos a pessoas brancas, os termos sensibilizam a falta das virtudes fidalgas.
Se o que hoje se convenciona como “Barroco” pode também ser concebi
do como um efeito literário ou pictórico das refrações do Absoluto relativizado,
da potência indivisa dividida, do incontestável contestado57, conflitos de de
ver e de poder em poemas satíricos do século XVII dramatizam as divisões
múltiplas e a unificação de um Estado difuso, onipresente, que fala por bocas
de inferno privilegiadas como bocas da verdade providencial. Como as divi
nas lanças, vomitam fogo e maldição - seu fim é cauterizar, queimar, purgar
as partes gangrenadas do corpo da República.
Se o olho fidalgo se compraz na vileza que produz e que condena, o que é
sua ação de descer tão baixo na infâmia do ramilhete de víboras? Volte-se uma
vez mais para o mar inumerável, para perto do olho, mantendo-se a distância
conveniente para vê-lo enquanto ele vê. Eis a Cidade - Alta e Baixa -, feliz
partição topográfica que alegoriza a mesma divisão moral e política de virtude
e vício, discreto e vulgo. Quando o de baixo subir, deverá moralmente descer, e
vice-versa, segundo os movimentos da compensação que a prudência prescre
ve: “Las dos mudanzas propias a la comedia ya dicho que son que el bueno suba dei
miserable estado a la grandeza, y el maio baje de la grandeza al miserable estado”58.
Articulação da antítese própria das operações da prudência, que aproxi
ma e compara extremos para distingui-los e opô-los, o olhar satírico diagrama-
se como quiasma que processa a visibilidade da Cidade. Como quiasma, figu
ra a feliz intersecção do meio-termo, ponto de equilíbrio dos extremos. Entre
eles - “bom/miserável” e “grandeza/mau” - desenrola-se o campo de inversões
a serem invertidas e postas no lugar adequado. O quiasma esquematiza a au
sência de virtudes, aparência, ilusão e teatro do mundo, que é um desacordo a
ser preenchido pela fala que traz a ordem. O ato de enunciação da persona é,
por isso, referencial de seus enunciados: a sátira dramatiza as classes da inver
222
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
Estamos na cristandade?
Sofrer se há isto em Argel,
que um convento tão novel
deixa um leigo por um Frade?
que na roda, ralo, ou grade
Frades de bom, e mau jeito
comam merenda a eito,
e estejam a seu contento
feitos papas do convento,
porque andam co papo feito?
(OC, IV, p. 855.)
59. Cf. Luís Alfonso de Carvailo, “Cisne de Apoio (1602)”, em F. S. Escribano y A. E Alayo, op. cil., p. 92.
223
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
Um quarto modo, ainda, é misto, por participar dos três anteriores, apre
sentando uma espécie de intróito em que a persona se dirige ao público, um
desenvolvimento chamado “faraute” pelos preceptistas espanhóis da época,
e que consiste na declaração do argumento do poema, e uma “loa”, em que se
louva a mesma sátira, o público ou a situação - no caso, ironicamente:
224
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
branco X não-branco
católico X herege, gentio
discreto X vulgo
fidalgo X plebeu
honesto X desonesto
livre X escravo
masculino X feminino.
branco X não-branco
católico X luterano, calvinista, judeu, muçulmano, brâmane, gentio
discreto X poeta medíocre, pregador inepto, mau letrado, mau jurista,
pseudofidalgo
fidalgo X mecânico, negro, índio, mulato, mamaluco, vulgo
honesto X ladrão, simoníaco, usurário, hipócrita, simulado
livre X escravo, escravo de si mesmo
masculino X mulher, puta, corno, sodomita
225
A SÁTI RA H 0 E N G E N H O
racional x irracional
prudente x néscio
sábio x ignorante
discreto x rústico
226
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
227
1
A SÁTI RA E O E N G E N H O
clérigo ou frade, se pedir perdão segunda vez, quer seja das portas adentro, quer das portas afora,
nem de adultério com levada de mulher fora da casa de seu marido, nem da ferida dada pelo
rosto com tenção de dar; da culpa de a mandar dar-se com efeito deu; nem de perda de direito na
cadeia na casa da Relação ou da Cidade do Salvador, nem de ladrão”. I. Accioli & B. Amaral,
Memórias Históricas e Políticas da Bahia, Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1925, vol. 11, pp. 104-
105.
65. Cf. Francisco de Barreda, “Invectiva a las comédias que prohihió Tra jano y apologia por las nuestras"
(Madrid, 1622), em F. S. Escribano y A. P. Mayo, op. cit., p. 192.
66. Cf. José Pellicer de Tovar, “Idea de la Comedia de Castilla” (1635) em F. S. Escribano y A. P. Mayo,
op. cit., p. 223. A prescrição é formal - basta lembrar, por exemplo, os discursos violentos contra
Filipe IV de Espanha, evidenciando-se que a generalidade da norma se adaptava às situações.
228
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
Tudo c h a m a is p or seu n o m e
tão p r o p r ia m e n te , tão d a r a ,
q u e ao c o n o lh e c h a m a i s c o n o ,
c h a m a is c a r a lh o à caralh a.
M ald itas da m a ld içã o
de D e u s sejam as tavascas,
que de surradas nas obras
p õ e m d e b io c o as palavras.
H á cousa c o m o cham ar,
o q u e u m a c o u s a se c h a m a ,
p o rq u e sirva d e s u s te n t o
à lu x ú ria , q u e d esm a ia .
H á c o u s a c o m o falar,
c o m o o P ai A d ã o falava,
pão por pão, v in h o por vin h o,
e ca ra lh o p o r caralh a.
Q u e m p ô s o n o m e d e crica
67. Cf. William S. Anderson, Essays on Roman Satire, Princeton, Princeton University Press, 1982, p.
326. Cf. também Sêneca, De ira, em Trailésphüosophiques, texte établi, traduit et annoté par François
et Pierre Richard, Paris, Garnier, 1955, vol. I.
229
A SÁTIRA E O E N G E N H O
68. Cf. José Timóteo da Silva Bastos, História da Censura Intelectual em Portugal (Ensaio sobre a Compres
são do Pensamento Português), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926. Uma das atribuições do
Conselho Geral do Santo Ofício da Inquisição, de acordo com as decisões do Concilio de Trento,
consistia em ordenar visitas ás “livrarias públicas e particulares, fazer os róis dos livros proibidos
e conceder licença para a impressão de livros novos” (p. 63). Nas Constituições Sinodais do Bispado
de Coimbra, de 1598, tit. 1“, lè-se: “E conformando-nos com o Concilio Latcranense & Tridentino &
Extravagàtc do Papa Gregorio XIII & breves apostolicos neste caso passado: mandamos a todos os
Impressores, & Livreiros deste nosso Bispado que não imprimão, nem vendâo, nem tenhâo, nem
fação imprimir, nem vender livro algum de qualquer qualidade que seja, sem ser primeyro visto &
aprovado pelo concelho geral do saneio officio, & por nos: por atalhar aos grandes males que contra
nossa saneia fee catholica & etc.” No tit. 1“, foi. 11, intitulado Da fe catholica “[...] Assi defendemos
a todos os Impressores do nosso bispado sob a pena posta no concilio latcranense a qual he exco
munhão ipso facto e perdimento dos livros impressos q nã imprima livro algum sem ser primeyro
examinado por nos ou por pessoa que nos deputarmos para isso: pollos errores que se causaram e
introduzirá entre os Chrístàos por maas e suspeitas doutrinas de livros q se imprimiam e pubricavâ
sem serem vistos examinados pelos prelados" \idem, p. 68).
230
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
69. Cf. Kenneth R. Scholberg, Algunos Aspectos de la Sáliraãf el Siglo XVI, Berna, Frankfurt am Main; Las
Vegas, Peter Lang Publisher.s, 1979, vol. 12, p. 181 (Ltah Studies in Literature and Linguistics).
231
A SÁTI RA E O E N G E N H O
70. Cf. G. Tüchle & C. A. Bouman, “Luta contra a Meia Lua”, em líislória da Igreja: Reforma e Contra•
Reforma, trad. Waldomiro Pires Martins, 2. cd., Petrópolis, Vozes, 1983, vol. III, p. 240.
71. Cf. Nicolau Eymerich & Francisco Pena, Le manuel des inquisiteurs, Introduction, Traduction et No
tes de Louis Sala-Molins, Paris, La Haye, Mouton-École Pratique des Hautes Études, 1973, p. 63.
72. Idem, pp. 63-64. O sacrilégio não é apenas uma idiossincrasia, desvio de singularidade, nem mes
mo uma perversão. Antes, é a metáfora de uma oposição que, ao atacar o santo, toma-o como
sinédoque e alegoria da ordem ortodoxa em que funciona - a Igreja, seus padres, a Inquisição.
232
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
73. O Judaísmo é uma religião infiel, apenas, segundo o Cristianismo; mas a conversão forçada dos
judeus permitiu ao Santo Ofício ocupar-se dos cristãos-novos com muito zelo.
74. Cf. Nicolau Eymerich & Francisco Pena, o/>. ctí., p. 195: “18. O inquisidor pode perseguir indistin-
tamente todo mundo, do rei até o último dos leigos? Muito evidentemente. O inquisidor persegui
rá todo leigo, qualquer que seja seu grau ou sua condição, quer ele seja herético, suspeito, ou
simplesmente difamado. Está dito explicitamente na bula Prae cunclis de Urbano IV” .
75. Cf. Anita Novinsky, “O Cristão-novo em Portugal no Século XVII”, em Cristãos-novos na Bahia
(1624-1654), São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1972 (Estudos, 9).
233
A SÁTI RA E O E N G E N H O
dos é sigiloso, de modo que não ficam sabendo a causa de sua prisão nem o
conteúdo das acusações76. É neste contexto de fé ardorosa que a sátira colonial
toma posição, sobretudo quando encena publicamente os temas do cristão-
novo, da sodomia e da bruxaria.
As delações são práticas discursivas que nomeiam dissidências e que, ao
fazê-lo, as excluem como marginais e heréticas, sejam elas comprovadamente o
luteranismo, o judaísmo, o erasmismo e o maquiavelismo, sejam elas virtual
mente heréticas, como manifestações de autonomia de pensamento ou ações
não-costumeiras conforme a ortodoxia - por exemplo, lavar-se em noite de sex
ta-feira, cruzar as pernas na igreja, comentar as coisas sagradas, ler uma Bíblia
em castelhano, ter uma égua chamada Maria Parda etc. No século XVII ibérico,
esse terror é sistêmico, tornando-se passível de denúncia qualquer ação, desde
que interpretada ou interpretável como herética - uma só testemunha é o bas
tante, conforme rezam os manuais de inquisidores77. Delação e confissão pro
duzem uma culpa, os culpados e também as medidas práticas para seu expur
go78 como urgente socorro do bem comum ameaçado e obediência política. O
que interessa, neste trabalho, é evidenciar que a sátira seiscentista dramatiza
em sua formulação não só o léxico inquisitorial - as referências aos “casos”,
“mariolas”, “monitórios”, “sambenitos”, “rabis”, “sinagoga”, “Fortuna” (como
metáfora da imprevisibilidade do Tribunal do Santo Ofício) etc. - ou seus te
mas - a sinagoga proibida, o cristão-novo que pratica secretamente os ritos
israelitas, o judeu queimado, a desconfiança do excessivo zelo católico de cris-
tãos-novos etc. -, mas, principalmente, o próprio procedimento da delação, que
ela efetua como verossímil poético. Com uma diferença, contudo, fundamen
tal. Para evidenciá-la, é oportuno inquirir os documentos da delação católica.
O Livro das Denunciações que se Fizeram na Visitação do Santo Ofício à Ci
dade do Salvador da Bahia de Todos os Santos do Estado do Brasil, no ano de
161879 apresenta os casos de denúncias praticadas por homens e mulheres de
11 de setembro de 1618 a 26 de janeiro de 1619. Neste intervalo, presidiu a
76. Cf. Anita Novinsky, “A Posição dos Cristãos-novos na Sociedade Baiana”, op. cil., pp. 69-72.
77. Cf. N. Eymerich e F. Pena, “Les lémoins”, op. cit., pp. 212-219.
78. Cf., por exemplo, na sátira: “Conheça a Inquisição estas verdades / H como é certo, o que o soneto
diz, / Paguem-se em vivo fogo estas maldades” (OC, I, p. 210); “O caso tocou logo a Inquisi-” (OC,
1, p. 207); “Verão um Doutor / em Judá nascido / mais entremetido/ que um grande fedor” (OC, II,
p. 464); etc. Cf. também José Timóteo da Silva Bastos, op. cil., principalmente pp. 54 e ss.
79. Cf. Livro das Denunciações que se Fizerão na Visitação do Samo à Cidade do Salvador da Bahia de Todos
os Samos do Estado do Brasil, no anno de 1618. Inquisidor e visilador o licenciado Marcos Teixeira.
Introdução de Rodolfo Garcia, Annaes da Bibliolheca Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
Biblioteca Nacional, 1927, vol. XLIX, pp. 75-198.
234
Â
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
duas sessões diárias, pela manhã e pela tarde, o licenciado Marcos Teixeira,
protonotário apostólico, deputado do Santo Ofício, seu inquisidor e visitador
na Cidade do Salvador, seu Recôncavo e Angola, por comissão de Dom Fernão
Martins Mascarenhas, bispo e inquisidor-geral dos reinos e senhorios de Por
tugal80. Marcos Teixeira ouviu 52 denunciantes, que acusaram 134 pessoas.
Os pecados denunciados podem unificar-se sob a rubrica genérica de heresia,
consistindo, em sua maioria, de blasfêmias, desrespeito às imagens santas e
aos recintos sagrados, leitura de livros proibidos e práticas heréticas como o
judaísmo e a sodomia. Como na sátira, nas denúncias o pecado nefando da
sodomia é traduzido como prática judaizante, o que evidencia que a morali
dade sexual tem recorte teológico-político. Quase todas as denúncias baseiam-
se num “ouvir dizer” e, ainda, numa lembrança que o denunciante afirma ter
de gestos, ações ou palavras do denunciado, geralmente datados de meses ou
anos antes. Cada denúncia é ordenada pelo notário inquisitorial conforme
fórmula narrativa estereotipada, que explicita a técnica rigorosa da seqüên-
cia dos procedimentos de gênero judicial durante a entrevista com o inquisidor.
Segui-los permite algumas considerações sobre os códigos interpretativos da
heresia, intertexto da sátira, segundo denunciante e inquisidor. Faz-se aqui
uma descrição sumária da estrutura da denúncia, utilizando-se exemplos re
cortados em várias delas.
Começando por situar o evento de que o texto é narração sob as graças
divinas - “Em nome de Deus amém” -, os documentos figuram de início a
partição dos poderes, eclesiástico e secular, bem como a sacralidade incontes
tável do ato que narram: nele são expostos e prejulgados os crimes de lesa-
majestade divina, como escreve o dominicano Eymerich comentado por Pena,
em seu minuciosíssimo manual de inquisidor81. Segue-se uma data e a indi-
2 35
A S Á T IR A E O EN G EN H O
Melquior de Bragança hebreu de nação, que disse ser doutor converso à nossa San
ta Fé, de idade de quarenta anos natural da cidade de Marrocos em África, casado na
cidade de Lisboa e residente nesta, degradado pela culpa de uma morte de homem, e
disse que tivera em Espanha por ofício ensinar a língua hebraica com exposição da
sagrada escritura83.
enfraquece e se extingue nos corações; os corpos e os bens materiais definham, nascem tumultos e
sediçòes, a paz e a ordem pública são perturbadas”. Cf. N. Eymerich & F. Pena, op. cit., p. 43.
82. O governador Antônio Teles da Silva “obriga a população a ir denunciar, e pede o estabelecimento
do Tribunal da Bahia. Ante a resistência oferecida por uma parte da população, coloca um guarda
de sua milícia ao lado de cada cidadão, forçando-o assim a comparecer à Mesa no Colégio da Com
panhia”, escreve Anita Novinsky, “A posição dos Cristãos-novos na Sociedade Baiana”, op. cit-, pp.
72-73.
83. Cf. Livro das Denunciações que se fizerão na Visilação do Santo Officio [...], p. 97.
84. Idem, p. 97.
236
A
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
“se cozeu a carne com azeite na casa da dita Felipa Gonçalves”; “viu ela que a
dita Margarida Dinis tirava a gordura da carne da vaca antes de a salgar”85.
Ocorre ainda, quando não se trata de declaração de testemunho, a de
núncia baseada no “ouvi dizer”. João de Sevalhos denuncia Manoel ou Fran
cisco de Oliveira (a própria flutuação do nome próprio já diz muito ou tudo),
afirmando que “o qual denunciado ouviu ele denunciante dizer haverá dois
anos pouco mais ou menos geralmente no Rio de São Francisco, que pusera a
boca sacrilegamente na pureza e virgindade da Virgem Maria Nossa Senhora
afirmando que parira duas vezes”86. A indeterminação, como se vê, é dupla:
tanto da datação da ocorrência denunciada - “haverá dois anos pouco mais
ou menos” -, quanto da fonte - “ouviu ele denunciante dizer que [...]”. No
caso desta denúncia, o denunciante aproveita-se da situação para prestar mais
serviços, valendo transcrever o trecho na íntegra, pois a hipertrofia do proce
dimento evidencia a regra:
E assim disse mais ele denunciante que Diogo Fernandes castelhano tambor mor
desta cidade, casado e morador nela à porta de Santa Luzia na banda de dentro lhe disse
haverá quinze dias que ouvira dizer a certa pessoa que dissera uma mulher por um
homem: “ Não basta açoitar-me a mim, senão açoitar ao Cristo” . E disse que a dita teste
munha referida lhe dissera que a seu tempo declararia quem lhe dissera o que tem dito
neste caso87.
[...] pusera a boca sacrilegamente na pureza e virgindade da Virgem Maria Nossa Se
nhora afirmando que parira duas vezes88.
237
A SÁTI RA E O E N G E N H O
[...] p e d i n d o o s p r e s o s e s m o l a p o r a m o r d e D e u s N o s s o S e n h o r J e s u s C r i s t o d i s s e p a r a
o s p r e s o s a s s e g u i n t e s p a l a v r a s : N ã o v a i aí N o s s o S e n h o r J e s u s C r i s t o , p o r q u e v o s n ã o
t i r a d a c a d e i a ? 89
A r r e n e g o d a O n i p o t ê n c i a D i v i n a 90.
[...] a n d a r a p o r c i m a d o A l t a r m o r q u e é o n d e e s t á o S a n t í s s i m o S a c r a m e n t o , c o m o
c h a p é u n a c a b e ç a e e s p a d a n u a c o m g r a n d í s s i m o d e s a c a t o e i r r e v e r ê n c i a r e v o l v e n d o as
c o r t i n a s , d o q u e h o u v e g r a n d e e s c â n d a l o e m t o d a a p e s s o a q u e s a b i a d o c a s o 92.
[...] o r d i n a r i a m e n t e c h a m a v a m t o d o s à d i t a é g u a M a r i a P a r d a [...] o q u e e r a c a s o d e
g r a n d e e s c â n d a l o p o r s e r m u i t o d e s a c a t o e i r r e v e r ê n c i a d a V i r g e m N o s s a S e n h o r a 9-’ .
[...] q u a n d o j o g a v a e p e r d i a s e ia p a r a c a s a e a ç o i t a v a u m c r u c i f i x o q u e t i n h a 94.
[...] p e g a n d o p e l a b a r b a a u m a i m a g e m d e S ã o P e d r o [ d i s s e ] c o m o e n c a i x a r i a e s t e v i l ã o
r u i m e m s e u t e m p o u m a b o r r a c h a q u a n d o a n d a v a p e s c a n d o 95.
B o to a C risto m u ita m erd a , e p ela h ó stia sagrada m u ita m erd a , p ela V irg em M aria
m u i t a m e r d a 97.
238
A PROPORÇ Ã O DO M O N ST RO
d e S ã o B e n t o d e s t a c i d a d e a p r o p ó s i t o d e h a v e r p o u c o s d ia s q u e se a c h a r a j u n to da
d ita S é u m A u t o d a p a ix ã o d e C r is t o n o s s o R e d e n t o r q u e t in h a u m a i m a g e m d e u m
c r u c ifix o c o m o rosto su jo d e e ster co d e g e n te , e s ta n d o o a u to to d o li m p o , o q u e o
d ito P r e g a d o r a f ir m o u q u e vira c o m se u s o lh o s , e e s tr a n h o u q u a n to d e v ia tão e n o r m e
sa c r ilé g io e b la s f ê m ia , d isse r a S iin ã o d e L e ã o da n a çã o , n a tu r a l d e L is b o a , c a s a d o e
m orad or nesta cid a d e, e con tratad or dos d ízim o s dos açú cares, m o stra n d o -se m u ito
in d i g n a d o , q u e se e s tiv e r a m a is p e r to d o d ito P r e g a d o r l h e h o u v e r a d e d i z e r q u e era
um d e sa v e r g o n h a d o a m a n c e b a d o , o q u e d issera e s ia n d o a sse n ta d o ju n to da M esa d o
S a n t í s s i m o S a c r a m e n t o e m q u e e l e d e n u n c i a n t e e s t a v a a s s e n t a d o [...] t o d o s o s q u e
o u v ir a m as d i t a s p a la v r a s d e v i a m fic a r e s c a n d a l i z a d o s d e l a s , e e l e d e n u n c i a n t e se
e s c a n d a liz o u m u it o p o r q u e lh e p a recera e p a recia q u e n ão se p o d ia ta n t o e s tr a n h a r
a so b redita irr e v e r ê n c ia e d esa c a to feito à im a g e m d o c r u c ifix o q u e m u it o m a is n ã o
d ev esse ser e s tr a n h a d o d e q u e m fosse b o m cristã o e te m e n te a D e u s , e q u e p o r o
d e n u n c i a d o se r da n a ç ã o e e s t a r a c o m p a n h a d o d e g e n t e d e la q u e n e sta terra era m u i
to p o d e r o s a e s o b e r b a , l h e p a r e c i a q u e n e n h u m d o s c r i s t ã o s v e l h o s q u e l h e o u v i u a s
d i t a s p a l a v r a s s e a t r e v e r í a a i r - l h e à m ã o 98.
[...] f u r t a n d o - s e n e s t a c i d a d e u m e s c r i t ó r i o a o d e n u n c i a d o F e l i p e T o m á s s e l h e a c h a r a
d e n t r o u m a T o u r a [ T o r á ] 99.01
239
A SÁTI RA E O E N G E N H O
[...] o u v i r a d i z e r G a y a s , G a v a s , q u e é p a l a v r a d e j u d e u 101.
[...] [o d e n u n c i a d o d i s s e r a ] C o i t a d o d e t i , d e s a m p a r a s t e a l e i q u e s e d e u n o m o n t e
S i n a i 103.
[...] o b s e r v â n c i a d o s á b a d o [ , . . ] 104
[...] q u e r i a e n s i n a r - l h e a l e i d e M o i s é s p o r q u e f o l g a r i a m u i t o d e o s a b e r ? 103
[...] s e x t a s - f e i r a s à n o i t e l a v a v a m o s p é s e t o d o o c o r p o e m u m a c a l d e i r a g r a n d e d e
e n g e n h o d e a ç ú c a r c o m á g u a m o r n a , e v e s t i a m c a m i s a s l a v a d a s [...] l h e s n ã o v i u c o m e r
c a r n e d e p o r c o 106.
[...] o d i t o M a n o e l h o m e m a p o s t a t a r a d a n o s s a S a n t a F é c a t ó l i c a e s e f i z e r a J u d e u na
d i t a c i d a d e d e N o s t r a D a m a 107.
[...] e a í e s t a v a m a t é m e i a n o i t e e s c a v a n d o e m u m l i v r o g r a n d e , l h e d i s s e r a e l e d e n u n
c ia n te q u e seria o liv r o d e c o n t a s q u e fa z ia m , e o d ito M a t e u s d e S o u sa r e s p o n d e r a q u e
n ã o e r a s e n ã o o l i v r o d a c o n f r a r i a d o s J u d e u s 108.
[...] m a t o u p e l o t e r a c u s a d o d e c o m e t e r e m a m b o s o p e c a d o n e f a n d o d e s o d o m i a 110.
[...] h a v e r á q u a t r o o u c i n c o a n o s m a i s o u m e n o s c o m e t e r a o p e c a d o n e f a n d o d e s o d o m i a
c o m u m m u l a t o fo r r o p o r n o m e J o s é 111.
240
Â
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
[...] n e s t a te r r a s e d i z i a v u l g a r m e n t e q u e o d i t o L i c e n c i a d o F e l i p e T o m á s d e M i r a n d a
c o m e t i a o p e c a d o n e f a n d o d e s o d o m i a c o m u m s e u c r i a d o p o r n o m e A n t ô n i o R u i z [...]
e a ss im t a m b é m c o m e t ia o m e s m o p e c a d o c o m B e n to C o rreia , o C a la m b a u z i n h o p o r
a l c u n h a [...] d i z e m v u l g a r m e n t e q u e o d i t o d e n u n c i a d o m a t a r a u m m o ç o q u e o s e r v i a
por ter c o m e t id o c o m e le o d ito p e c a d o e p o r q u e o n ã o d e s c o b r is s e , c é tão in fa m a d o
d e s te p e c a d o n e s t a terra e n a d e P e r n a m b u c o d o n d e v e i o para e la q u e a n d a e m p r o v é r
b i o e n t r e b r a n c o s e n e g r o s [ , . . ] 112
[...] P e r o G a r c i a [...] c o m e t i a o P e c a d o n e f a n d o d e s o d o m i a c o m u m m o ç o d e q u a t o r z e
o u q u i n z e a n o s n a t u r a l d e V i a n a e c o m u m m u l a t o s e u p o r n o m e J o s é 1".
[...] E d i s s e q u e e l a d e n u n c i a v a b e m e v e r d a d e i r a m e n t e d o P a d r e B a l t a s a r M a r i n h o ,
c l é r i g o d e m i s s a , v i g á r i o d e J a g u a r i p e [...] p o r q u e h a v e r á c i n c o o u s e i s a n o s [...] q u e n a
e r m i d a d e S ã o F r a n c i s c o [...] n a T a p o ã [...] s e n d o c a p e l ã o d a d i t a e r m i d a o d i t o P a d r e
B a lta sa r M a r i n h o e c o n f e s s a n d o - s e ela d e n u n c i a n t e c o m e le , a c o m e t e r a n o a to da c o n
f i s s ã o p a r a d o r m i r c o m e l e c a r n a l m e n t e [...] d i s s e m a i s [...] q u e u m s e u f i l h o p o r n o m e
M an oel d e M a c e d o , e s tu d a n te h averá quatro a n o s p o u c o m a is o u m e n o s q u e se n d o da
id ad e d e q u a to r z e a n o s o c o m e te r a o d e n u n c ia d o para o p e c a d o n e f a n d o d e s o d o m ia , e
que haverá n o v e ou d ez an os q u e o m e s m o d e n u n c ia d o co m etera o m e s m o p eca d o a
P a s c o a l S o a r e s já d e f u n t o f i l h o d e l a d e n u n c i a n t e " 4.
241
A SATIRA E O E N G E N H O
E perguntado pelo costume disse que o denunciado o tratava mal de palavras, dizendo
que por ele denunciante ter dito mal dele ao Vigário geral desta cidade, e que arremete-
ra sobre isso para lhe dar com um pau, dando-lhe a entender que por ele denunciante
ter denunciado dele, como na verdade o tinha feito diante do Bispo desta cidade, ser
vindo de Notário o Vigário geral dela, mas que ele denunciante lhe não queria mal, e
tinha dito a verdade119.
ou
[...] disse que bem e verdadeiramente denunciava de Dinis Bravo da nação senhor dc
engenho casado e morador nesta cidade [...] que haverá ano e meio pouco mais ou
menos, que mandando-lhe ele denunciante pedir por escrito uma esmola, e responden
do-lhe o denunciado que fosse falar com ele foi ele denunciante por esta causa à sua
casa que é nesta cidade, a um dia à tarde segundo sua lembrança e estando só com ele,
lhe disse o denunciado desta maneira. Vós sois, vós sois, vós sois o doutor hebreu? é
possível que éreis pregador da lei de Moisés e desamparaste-la? bem dizem que a
desamparastes senão por necessidade. I-vos embora que temos cá muito a que acudir. E
levantando-se ele denunciante para se ir o fez o denunciado assentar, e lhe disse: Vós
cuidais que todos os que comem porco são cristãos? pois sabei que os que são judeus cm
Espanha, são melhores judeus que os que receberam a lei de Moisés no monte Sinai. Ao
que ele denunciante não respondeu cousa alguma por temor de se ver na casa do de
nunciado que é muito rico e poderoso nesta terra, e assim se saiu calado e escandaliza
do do caso e com mau conceito do denunciado1211.
242
à
A P RO PORÇ Ã O DO M ON ST RO
243
A SÁTI RA K O E N G E N H O
Tal função prática das normas da ortodoxia não é tematizada nas denún
cias, tanto pelo denunciante quanto pelo inquisidor. Além de indicar sua na
turalidade, isso significa também a extrema generalidade e abrangência das
mesmas normas que, afinal, pretendem legislar o erro e são aptas, por isso,
para capturar como herética qualquer diferença. Na superfície das denúncias,
tais normas aparecem como auto-evidentes, indiscutivelmente justas e incon
troversas, porque fundamentadas como profundeza da Fé: “Em nome de Deus
amém” é a fórmula que inicia ritualmente os relatos de denúncias: questioná-
las é pouco ortodoxo e impróprio de Fiéis.
Teatro do perfeito funcionamento da ordem dogmática, em todas as de
núncias de 1618 os denunciantes insistem sempre em relatar sua reação quan
do referem a heresia que dizem ter testemunhado: traduzem-na como “es
cândalo” e ainda como “silêncio” imposto ao pecador por palavras de censura
e atos físicos. João Rodrigues denuncia Antônio Velho em 13 de setembro de
1618, contando ao inquisidor que, seis meses antes, tendo ido à casa do de
nunciado na rua da Fonte da Urina, “tratando entre eles das prisões que se
fizeram por parte do Santo Ofício na dita cidade do Porto, os anos passados,
dissera o denunciado Antônio Velho que prendiam a gente da nação por lhe
tomarem as fazendas”1” .
A lucidez de Antônio Velho é herética: “E indo-lhe ele denunciante à
mão e mais a testemunha referida, dizendo-lhe que não falasse aquelas cousas
que eram mal faladas, não respondera cousa alguma o denunciado”12123.
Não importa saber se as afirmações de tanto zelo por parte dos denuncian
tes são expressões sinceras da fé ou ênfase retrospectiva muito oportuna para
captar as boas graças do inquisidor, principalmente quando o denunciante é
de origem comprovadamente judaica e alega ser cristão fervoroso ou, ainda,
quando ambiguamente afirma ser amigo de heréticos tão perigosos. Tais ex
pressões de “escândalo”, de censura, de indignação e de imposição de silên
cio apenas ratificam,praticamente, o consenso quanto à validade inquestionável
das normas do dogma.
Ao mesmo tempo que encena tal função prática da denúncia pela qual a
obediência que é seu ponto de partida é rearticulada em vários exemplos, a
sátira colonial a modifica. As normas inquisitoriais deixam de funcionar, nela,
apenas como reguladores práticos da ação ou paradigmas dogmáticos natura
lizados. Na sátira, as mesmas normas tornam-se evidentes como metáforas,
pois, sendo deslocadas do discurso inquisitorial, são objeto de formulação
122. Livro das Denundações que se fizerão na Visitação do Santo Officio [ ...] , p p . 1 3 2 -1 3 3 .
123. Idem, p . 133.
244
A P RO P O RÇ Ã O DO M ON ST RO
124. C f. W . I s e r , Der implizile Leser: Kommunikalionsformen dei Romans von Bunyan bis Beckcil, p . 8: “A s
n o r m a s s ã o r e g u la d o r e s s o c ia is q u e , tr a n s p o r ta d o s p a r a o u n iv e r s o d o r o m a n c e , a í p e r d e m im e d ia
ta m e n te s e u c a r á te r p rá tic o . S ã o in s e rid o s e m u m n o v o c o n te x to q u e m o d ific a s u a fu n ç ã o n o s e n tid o
d e q u e n ã o a g e m m a is c o m o re g u la d o re s (c o m o e le s o fa z ia m n o c o n te x to d a s o c ie d a d e ) , m a s t o r
n a m - s e e le s m e s m o s o b je to s d e u m a f o r m u la ç ã o te ó r ic a ” . C it. p o r H a n s R o b e r t J a u s s , “ D e Ylphigénie
d e R a c in e à c e lle d e G o e th e ” , Pour une eslhélique de la réceplion, P a ris , G a llim a r d , 19 7 8 , p. 260.
125. C f. H . R . J a u s s , op. cil., p p . 4 9 -5 1 .
245
A SATI RA E O E N G E N H O
246
A P RO PORÇ Ã O DO M ON ST RO
247
A SÁTIRA E Q E N G E N H O
127. C f. t a m b é m o u t r o s o n e t o d e v e rs o s d e c a b o ro to : “ Q u e a g u a r d e L u í s F e r r e i r a d e N o r ô = / T ã o
g r a n d e p e s p e g a r p e lo b e s b ê = ! / P a r a o P u t o , q u e a g u a r d a tal p e s p é = / H f a z s e r v i r s e u c u d e c o c ó = .
N e f a n d o g o sto te m o seu c a rá = / E m n ã o q u e r e r t o p a r p o n t a d e c r i = . / P o is t a n t o se n a m o r a do
p e s c a = , / A c u a m a s e v á p e s c a r l o m b r i = , / E e m c a s t i g o d e D e u s m o r r a q u e i m a = " ( O C , I, p. 2 0 8 )
248
A 1' ROl’O R ÇAO DO M O N S T R O
[...] respondera o mesmo Cristóvão Henriques que alguns morriam mártires, ou todos
segundo lembrança dele denunciante que não se afirmava bem se o denunciado disse
todos, se alguns, mas que estava bem lembrado que dissera ou todos, ou alguns
[...] E perguntado pelo costume disse que era amigo do denunciado133.
op. c i t p p . 2 6 0 - 2 6 1 .
128. H . R . J a u s s ,
129. Livro das Denunciações que se fizerão na Visitação do Santo Officio [...], p . 1 3 9 .
130. Idem, p . 141.
249
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
250
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
251
A SÁTI RA E O E N G E N H O
OU
Verão um Doutor
em Judá nascido
mais entremetido
que um grande fedor:
Grande assistidor
de Igreja festeira,
que ao longe lhe cheira
como mangerona:
forro minha cona.
(OC, II, p. 464.)
252
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
a risco de enamorar-se!
onde se viu galantear-se
o roxete carmesi
pela caveira de Heli?
(OC, II, p. 259.)
Verão um sandeu
que quer sem disputa
ser filho da puta,
por não ser judeu:
se hábitos perdeu
por ser cristão-novo,
a mim todo o povo
de velho me abona:
forro minha cona.
(OC, II, p. 463.)
253
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
Clérigo verão
que porque em Cantabra
nasceu de uma cabra
cresceu a cabrão:
Tão fino ladrão
que até a filha alheia
com ser cananéia
furta à mãe putona:
forro minha cona.
íOC, II, p. 464.)
O Galileu Requerente,
Macabcu solicitante,
quem vos deu tamanho guante,
tendo-vos de gozo o dente?
Se me dais cá por agente,
sois homem de tantas partes
que me ganhais estandartes:
eu zombo de vossos pleitos,
porque são vossos direitos
de Pedro de malas artes.
Latis, e cuidais, que eu morro
de ouvir o vosso latir,
e eu zombo de vê-lo ouvir,
porque quem late, c cachorro:
254
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
134. A d i d a s c á l i a d e s s e p o e m a d i z “A o u t r o r e q u e r e n t e d a m e s m a c i ê n c i a e d a m e s m a p r e s u n ç ã o , m a s
i n f a m a d o d e c r i s t ã o - n o v e e d e m u l a t o c h a m a d o P e d r o d e T a l ” ( O C , [It , p . 7 3 8 ) .
255
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
256
â
A 1’R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
257
A SÁ T IR A E O EN GEN H O
A p a r e c e r a m tão b elas
n o m ar can oas, e truzes,
q u e se o c é u é m a r d e l u z e s ,
o m a r e r a u m c é u d e e s t r e la s :
era u m a a r m a d a s e m v e la s
m o v id a dc outro e lem en to ,
er a u m p r o d í g i o , u m p o r t e n t o
ver c o m tanto desa fo g o
esta n a v e g a r e m fogo,
258
A PROPORÇ Ã O DO MONST RO
se o u tr a s a r r ib a m c o m v en to .
S ua Ilu s tr ís sim a estava
a ssu sta d o sob absorto,
p o r q u e v i a u m r io m o r t o
o f o g o , e m q u e s e a b r a s a va:
g ra n d e c u id a d o lh e dava
ve r , q u e o m a r m o r r i a e n t ã o
in fa m a d o na o p in iã o ,
e co m o u m judeu q u eim ad o,
se n d o , q u e o m ar é sagrado,
q u e in d a é m a is q u e ser cristão.
(f. n. 4 6 6 ) “ I l u s t r í s s i m o s S e n h o r e s [...] P a r e c e u - m e a g o r a d a r c o n t a a V o s s a s S e
n h o r i a s d e a l g u m a s c o i s a s p e r t e n c e n t e s a e s s e t r i b u n a l p a r a q u e n o s s a S a n t a F é s e ja
s e m p r e e x a l t a d a e s e d ê c a s t i g o à q u e l e s q u e e r r a r a m s e u S a n t o C a m i n h o . [...]
(f. n . 4 6 7 ) N e s t a C i d a d e v i v e u m B a c h a r e l c h a m a d o G r e g ô r i o d e M a t o s e G u e r r a
n a t u r a l d e s t a C i d a d e q u e n e s s a C o r t e foi J u i z d o C í v e l , h o m e m s o l t o s e m m o d o d e
C r i s t ã o , e n a s c o i s a s p e r t e n c e n t e s a e s s e T r i b u n a l f a l a c o m n o [ - ] (f. n . 4 6 7 v.J n o t á
vel d e s p r e z o e n o tó r io e s c â n d a lo e s e n d o T c s o u r e ir o -m o r da S a n ta Sé d e s ta C id a d e
e D e s e m b a r g a d o r E c l e s i á s t i c o d i s s e q u e era tão g r a n d e le t r a d o q u e se a t r e v ia a m o s
trar c o m o J e s u s C r i s t o n o s s o R e d e n t o r f o r a N e f a n d o p o r o u t r a p a l a v r a m a i s t o r p e , c
e x e c r a n d a , e s t a n d o p r e s e n t e u m C l é r i g o c h a m a d o A n t o n i o da C o s t a q u e n a Ilha T e r
c e i r a f o i v i g á r i o d e u m [sic] I g r e j a d a q u e l e B i s p a d o e n a s c o n v e r s a ç õ e s d i z e m t a m
b ém o d isse r a , te m n o tíc ia desta B la s fê m ia ta m b é m o D o u t o r M a n o e l A n t u n e s C u ra
da S a n t a S é d e s t a C i d a d e e o P a d r e S u b - C h a n t r e S o l a n o d e L i m a , e e m o u t r a s o c a
siões d is s e q u e to m a r a m o r r e r s u b i t a m e n t e p o r n ã o o u v i r e s ta r o n d e lh e d i s s e s s e u m
P a d r e d a C o m p a n h i a [ d e ] J e s u s q u e o e n f a s t i a v a ; e o u t r a s m u i t a s (f. n . 4 6 8 ) M u i t a s
co isa s e s c a n d a lo s a s , e p a s s a n d o p e la sua p orta a p r o c is s ã o d o s P a s s o s d e C r is to , p a s
s a n d o o A n d o r d o S e n h o r c o m a C r u z as c o s t a s se d e i x o u e s ta r c o m u m b a r r e t e b r a n
co n a c a b e ç a s e m f a z e r n e n h u m a i n c l i n a ç ã o a o S e n h o r e p o r o p o v o m u r m u r a r a p e
nas fe z a c a t a m e n t o c o m a c a b e ç a ao S a g r a d o lignum crucis com que por seus n u nca
ja m a is v is t o s c o s t u m e s foi p r iv a d o d o o f íc io , e m e s ta terra é h a v i d o p o r u m a te ísta ,
g e r a l m e n t e d e t o d o s , ( f i n a l d a d e n ú n c i a c o n t r a G r e g o r i o d e M a t o s e G u e r r a ) . [...] (f.
n. 4 6 8 v.) I s t o é o d e q u e p o r h o r a p o s s o f a z e r p r e s e n t e a V o s s a s S e n h o r i a s . S e h o u v e r
de n o v o ou tra co isa d c q u e o faça n ão serei e m n a d a m o r o s o e m tu d o o q u e tocar a
esse S a g r a d o T r ib u n a l. G u a r d e D e u s a V ossas S e n h o r ia s c o m o d e s e jo para S a n to R e
259
A S ATI HA E O E N G EN H O
g i m e n t o d e s s e T r ib u n a l e e x t ir p a ç ã o d a s h e r e sia s. B a h ia l ü d e M a io d e 1 685. P r o s
trado a so m b r a d o R e s p e ito d e V ossas S e n h o r ia s I lu s tr ís sim a s
A n t o n i o R o d r i g u e s d a C o s t a 136.
136. Cf. Fernando da Rocha Peres, Gregório de Mattos e a Inquisição, Salvador, Centro de Estudos Baianos
da Universidade Federal da Bahia, 1987, n. 128, pp. 18-19. Segundo informação do autor, o docu
mento encontra-se em Cadernos do Promotor n. 58 (antigo 56), ANTT, fólio 466 até fólio 475 -
Inquisição de Lisboa, tendo sido atualizada a grafia na transcrição. Agradeço ao autor, aqui, a
gentileza de me enviar exemplar de seu trabalho. Lembre-se, como se viu no capítulo I, que o
vigário de Passé, Lourenço Ribeiro, encena a denúncia na sátira contra Gregório: “De Cristão não
é, senão / de herege, tudo, o que obra, / pois nele a heresia sobra, / e lhe falta o ser cristão: / remcté-
lo à Inquisição / já uma vez se intentou, / mas bem veis, que atalhou, / senhores, tão grande bem:
/ mas não o saiba ninguém" (OC, IV, p. 788). Quanto a Antônio Roiz da Costa, denunciante, é a ele
que a sátira aplica os apelidos de “Doutor Gilvaz” e “Cutilada”. Fernando da Rocha Peres informa
que foi “solicitador” da Câmara, em 1666. Cf. op. cit., p. 47.
137. Cf., por exemplo: “Passou o surucucu,/e como andava no cio, / com um e outro assobio, / pediu a
Luísa o cu: / Jesu nome de Jesu, / disse a Mulata assustada” (OC, II, p. 387); “Catona, Ginga, e
Babu, / com outra pretinha mais / entraram nestes palhats/ não mais que a bolir co cm : / eu vendo-
as, disse, Jesu, / que bem jogam as cambetas!” (OC, VI, p. 1368); “A mim me tremia o cu / co’as
moquecas, não em vão, / pois sendo da vossa mão / qualquer peixe é Baiacw: / Jesu nome de Jestí!”
(OC, VI, p. 1533).
260
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
E n tr e m e d o n d e n o s u p e
y q u e d e m e , n o s a b ie n d o
to d a s c ie n ç ia ir a ç e n d ie n d o .
Yo n o su p e d o n d e e n tr a v a ,
p e r o q u a n d o a lli m e v i ,
s in s a b e r d o n d e m e e s la v a
g r a n d e s c o sa s e n te n d i.
N o d ir è lo q u e s e n ti
q u e m e q u e d e n o s a b ie n d o
to d a s c ie n ç ia t r a ç e n d ie n d o m .
138. Cf., por exemplo: “Se é possível figurar o infigurável, dar forma ao que é sem forma, tal se dá não
só porque somos incapazes de contemplar diretamente o inteligível, porque nos são necessárias
metáforas espirituais adaptadas à medida dos nossos meios, imagens que coloquem à nossa altura
espetáculos sem figura e maravilhosos - mas também porque convém perfeitamente às passagens
mísiicas das Escrituras ocultar sob enigmas indizíveis a santa e misteriosa unidade dessas inteli
gências que não pertencem ao nosso mundo”. Pseudo-Dionísio, o Areopagita, “La hierarchie celes
te”, O e u v r e s c o m p l è i c s d u P s e u d o - D e n y s , V A r é o p a g i t e , Trad., Préf. et Notes de Maurice de Gandillac,
Paris, Aubicr Montaigne, 1943, pp. 189-195.
139. Cf., por exemplo: “Assim, duma parte, os segredos divinos permanecem inacessíveis aos profanos
enquanto que aqueles que sabem interpretar as imagens santas ultrapassam as figuras; doutra
parte, esses mesmos segredos divinos recebem a homenagem que lhes é devida através da verda
deira negação e dessas metáforas destituídas de qualquer semelhança, retiradas dos ecos mais
longínquos da Tearquia” Pseudo-Dionísio, o p . cil., pp. 194-195. Trata-se da questão em João Adolfo
Hansen, A l e g o r i a ( C o n s t r u ç ã o e I n t e r p r e t a ç ã o d a M e t á f o r a ), São Paulo, Atual, 1986, pp. 59-64.
140. Cf. San Juan de La Cruz, “Copias dei mismo hechas sobre un estasi de harta contemplación", T h e
P o e m s o f S t . J o h n o f lhe C r o s s , New English version by John Frederick Nims, New York, Grove Press,
1959, p. 24.
261
I
A SÁ T IR A E O EN GEN H O
A vossa m e sa d iv in a
com o poderei chegar-m e,
se é tria g a da v ir tu d e ,
e v e n e n o da m aldad e?
( O C , I, p. 4 9 . ) ul
L o u v e-v o s m in h a rudeza,
p or m a is q u e so is in efá v el,
p o rq u e se o s b ru tos vos lo u v a m ,
se r á a r u d e z a b a s t a n t e .
T o d o s o s b r u t o s v o s l o u v a m , 14
141. Fernando da Rocha Peres propõe que o poema de que se extraem os trechos lidos “denota a sua
visão ‘desconstrutora’ interior, a sua dúvida e a sua 'praxis' religiosa ao contestar, com ‘perplexida
de', as Escrituras e o Sacramento da Eucaristia”. Nesta linha, Gregório de Matos e Guerra aproxi-
ma-se de Pascal (“Le silence éternel de ces espaces infinis nTcffraye”): “ele reconhece, como saída,
o insondável do desconhecido (vida eterna) e retruca, com uma divindade ‘criadora' única, sem as
imperfeições da religião revelada (histórica), a qual deve ser (re)conhecida e adorada pela sua
‘natureza’, dentro de uma visão (pan)teísta”. Cf. Fernando da Rocha Peres, op. cii., pp. 27-28. A
aceitar a interpretação, Gregório é luterano, ou quase, por recusar a Igreja visível, dogma
reconfirmado em Trento. Veja-se todo o poema: “Tremendo chego, meu Deus, / ante vossa divinda
de, / que a fé é muito animosa, / mas a culpa mui cobarde. / À vossa mesa divina / como poderei
chegar-me, / se é triaga da virtude, / e veneno da maldade? / Como comerei de um pão, / que me
dais, porque me salve? / Um pão, que a todos dá vida,/e a mim temo, que me mate. / Como não hei
de ter medo / de um pão, que é tão formidável / vendo, que estais todo em todo, / e estais todo em
qualquer parte? / Quanto a que o sangue vos beba,/ isso não, e perdoai-me: / como quem tanto vos
ama, / há de beber-vos o sangue? Beber o sangue do amigo / é sinal de inimizade; / pois como
quereis, que o beba, / para confirmarmos pazes? / Senhor, eu não vos entendo; / vossos preceitos
são graves,/ vossos juízos são fundos, / vossa idéia incscrutávcl. / Eu confuso neste caso / entre tais
perplexidades / de salvar-me, ou de perder-me, / só sei, que importa salvar-me. / Oh se me dêreis
tal graça, / que tendo culpas a mares, / me vira salvar na tábua / de auxílios tão eficazes! / E pois já
à mesa chegueí, / onde é força alimentar-me / deste manjar, de que os Anjos / fazem seus próprios
manjares: / Os anjos, meu Deus, vos louvem, / que os vossos arcanos sabem, / e os Santos todos da
glória, / que, o que vos devem, vos paguem. / Louve-vos minha rudeza, / por mais que sois inefável,
/ porque se os brutos vos louvam, / será a rudeza bastante. / Todos os brutos vos louvam, / troncos,
penhas, montes, vales, / e pois vos louva o sensível, / louve-vos o vegetável" (OC, I, pp. 49-50).
262
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
tro n co s, p e n h a s, m o n t e s , vales,
e p o is v o s lo u v a o se n s ív e l,
lo u v e -v o s o veg etá v el.
( O C , I, p. 5 0 .)
[...] e s t a i s t o d o e m t o d o ,
e e s ta is to d o e m q u a lq u e r parte.
( O C , I, p. 4 9 . )
A persona satírica não é néscia', logo, não pode ser imprudente, em termos
católicos, isto é, atéia ou herética. Ao contrário, ela é metáfora emissária da persona
mystica do Rei, cabeça teológico-política do Estado, cujo poder é reposto na
anatomia dos vícios.
Pspersona satírica também não é etapista: não veste a toga sociológica que
alguma vez se costuma alinhavar. O engenho dos intérpretes intenta excessos
e consegue prodígios, certamente, mas é apenas divertido imaginar a livre
expressão e o jansenismo em Portugal, no século XVII.
142. Cf. R. Pillorget, “Lc mouvement insurreciionnel comme pratique politique dans Ia I-rancc du X V '
sièclc”, em Théoric cí pratique poliliques à la Reitaissance, XV II'' Colloque International de Tours,
Paris, Librairie Philosophique Yrin, 1977, p. 106.
263
A SÁ T IR A E 0 EN GEN H O
143. Idcm, p. 106. É neste sentido, por exemplo, que se faz a sátira do vigário Lourcnço Ribeiro contra
Gregório de Matos.
144. Cf. Kantorowicz, “Mysteries of State, an absolutist concept and íts late medíaeval origins”, p. 382,
cit. por Jean-François Courtíne, “Chéritagescolastique dans la problématique théologico-politique
de l’Ãge Classique”, em Ilenry Mcchoulan (org.), op. crí., p. 110: “Sob a autoridade do Papa en
quanto princeps el vents imperator, o aparelho hierárquico da Igreja romana [...] mostrou uma ten
dência de tornar-se o protótipo perfeito de uma monarquia absoluta e racional sobre uma base
264
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
mística enquanto que, simultaneamente, o Estado manifestou mais e mais uma tendência de tor
nar-se uma quase Igreja e, em muitos aspectos, uma monarquia mística sobre uma base racional”.
145. Por exemplo, na proposição de Jaime I, da Inglaterra: “regem non apflpulo, sed immediaie a Deosuam
poieslatem habere". É contra tal doutrina absolutista do direito divino que se opõe a versão dos
contra-reformistas ibéricos, noiadamente Suárcz, que conceitua o absolutismo como quase aliena
ção popular do poder em mãos do soberano. Tal determinação teológica de novas estruturas políti
cas é que permite pensar a sacralização do poder, o ritual e o espetáculo próprios das artes
conceptistas do século XVII. Ela implica também, nas mesmas artes, a posição de defesa dos estilos
“clássicos”, como é o caso, por exemplo, do ataque de Vieira aos dominicanos gongóricos e, ainda,
do provincial d3 Companhia de Jesus, Aluzio Vítelleschi, em relação aos sermões de Gracián,
146. Cf. Jean-François Courtine, “Chéritage...”, em Henry Aléchoulan (org.),«/>. cil., p. 109.
265
A S Á T I R A E O E N G EN H O
147. A ultima sessão do Concilio de Trento, em 3 e 4 de dezembro de 1563, baixou algumas determina
ções genéricas, que encontraram reciprocidade na arte sóbria e religiosa dos pintores da segunda
metade do século XVI que se fazia em Roma ames das determinações do Concilio. Estas especifica
vam que a finalidade das imagens religiosas é instruir os crentes e confirmá-los na prática de sua
fé. O uso de imagens que possam conter doutrina falsa ou encorajá-la é proibido. As imagens não
devem encorajar a superstição; devem conformar-se às exigências da modéstia e da moderação;
nenhuma imagem extraordinária ou de forma muito imprevisível poderá ser exposta na igreja sem
permissão do bispo etc. Cf. S. J. Freedberg, Painting in Italy 1500-1600, 2nd ed., London, The
Pelican History of Art, 1983, p. 702.
148. Por exemplo, a partir de fins do século XVI, os jesuítas começam a lançar mão dos livros de emble
mas como veículo pedagógico e propaganda da fé, substituindo os motes dos emblemas por apólogos
e moralizando as imagens. Com o objetivo de substituir o herói pagão pelo cristão, a fábula mito
lógica pela parábola evangélica, a linguagem se adapta ao Ratio studwrum, tornando-se clara. Cf.
Maria Luisa Doglio, “Introduzione”, em Emanuele Tesauro, Idea delle Perfette Intprese, Firenze,
Leo S. Olschki, 1975, p. 11.
149. Santo Tomás, “Lectio 3 ad Corinth. XII”, cit. por F. M. Ferrol, o/>. cit., pp. 210-216.
2 66
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
150. Este topos, reciclado pela interpretação neoplatônica de Pico delia Mirandola, no século XV, que em
seu Heptaplus escreve haver encontrado toda a sabedoria de Moisés em cada verso de Moisés, retorna
na poesia seiscentista na forma de conceptismo engenhoso e lúdico. Cf., por exemplo, os dois
sonetos de Gregório de Matos “Entre as partes do todo a melhor parte” (OC, I, p. 43) e “O todo sem
a parte não é todo” (OC, I, p. 44).
151. Santo Tomás, “Lectio 2 ad Rom. XII”, em F. M. Ferrol, op. cit., pp. 210 e ss.
152. Santo Tomás, ,Suntma lheolog., III, 9, VIII, a.l., em The Summa Theologica of Sainl Thomas Aquinas,
translated by Fathers of the English Dominican Province, London, Encyclopaedia Britannica, 1952,
2 vols.
153. Cf. F, M. Ferrol, op. cit., pp. 210 e ss.
267
A S Á T IR A E O EN GEN H O
E s d im p é r io u n ió n d e v o lu n ta d e s en la p o te s ta d de u n o ; si é s ta s si m a n t i e n e n c o n c o r d e s,
■ vivey c r e c e ; si se d i v i d e n , c a e y m u e r e , p o r q u e n o es o lr a cosa la m u e r te s in o u n a d is c ó r d ia d e la s
p a r l e s '- 1'.
E n la s r e p ú b lic a s es m á s im p o r ta n te la a m is la d q u e la j u s l i c i a ; porque, si to d o s fu e s e n
a m ig o s , n o s e r ia n m e n e s te r la s le yes n i lo s j u e c e s ; y a u n q u e to d o s f u e s e n b u e n o s , n o p o d r ía n v i v i r
si n o fu e s e n a m i g o s '’' .
[...] e u c o m p u r a c l a r i d a d e
d ig o e m literal se n t id o
q ue o R ei por D e u s p rom etid o
é: q u e m ? S u a M a j e s t a d e
268
A
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
158. Cf. Jean-François Courtine, “Chéritage...", em Hcnry Méchoulan (org.), op. cil., pp. 98-99.
159. O gênero encomiástico, hoje ilegível, figura a potência, a sabedoria e o amor dos “melhores”, se
gundo o modelo teológico da Trindade.
269
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
270
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
161. O tema cstóico, tratado por Sêncca em De iranquillitalc anirni, é frequentíssimo nas belas-letras
seiscentistas, articulando a virtude individual, que consiste no domínio dos apetites, como con
córdia (ou discórdia) com os restantes indivíduos, no que toca ao bem comum. Cf. Sêneca, op. cil
vol. II.
271
A SÁTI RA E O E N G E N H O
162. Cf. Quentin Skinner, op. cil., vol. II (The Age of Reformatiotl), p. 160.
163. Idem, p. 149.
164. Idem, ihidem.
272
A
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
165. Cf. também, no mesmo poema, estrofes 8, 9, 14, 16 etc. (OC, I, pp. 198-206).
166. Q. Skinner, op. cit., p. 161.
167. Idem, pp. 176-177.
168. Idem, p. 177.
273
A SÁTI RA E O E N G E N H O
274
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
na literária quando, estilizada por Ronsard e admiravelmente incorporada por Montaignc aos
Ensaios, passa a metaforizar a “idade do ouro” virgiliana, dando origem ao mito do “bom selva
gem”.
173. Q. Skinner, op. cil., p. 169.
174. Idem, p. 182.
175. Este é o teor das críticas, por exemplo, aos comerciantes da Junta do Comércio, aos magistrados do
Tribunal da Relação, aos governadores e à Câmara.
275
A SÁTI RA n 0 E N G E N H O
176. Cf. também as décimas cuja didascália diz: “Na era de 16S6 quimeriavam os sebastianistas a vinda
do Encoberto por um cometa que apareceu. O poeta pretende em vão desvanecc-los traduzindo um
discurso do Pe. Antônio Vieira que se aplica a El Rei D. Pedro II”. Os versos finais são, aliás: “que
em prosa o compôs Vieira, / traduziu cm versos Matos” (OC, V, pp. 1207-1211).
276
A P R O P O R Ç Ã O DO . MONSTRO
177. Cf. L. Cabral dc Aloncada, “Restauração do Pensamento Político Português”, em Estudos de Histó
ria do Direito, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1948, vol. I, pp. 189-226. A Restauração dc
1640 opõe a tese contra-reformista do “tirano” contra Castela, no sentido com que Suárez a teoriza
quando trata da transferência do poder do povo para o rei. A doutrina de Suárez faz clara distinção
entre o rei e o tirano, garantindo ao povo o direito de resistência contra a opressão injusta. Veja-se
o assento das Cortes gerais de 1641, que recebem o duque de Bragança como rei legítimo de Portu
gal: “Porquanto, conforme às regras do Direito natural c humano, ainda que os reinos transferis
sem nos reis todo o seu poder e império para os governarem, foi isso debaixo de uma tácita condi
ção de o regerem e mandarem com justiça e sem tirania, e tanto que no modo de governarem e
usarem deles podem os povos privá-los dos reinos em sua legítima e natural defensão, e nunca
nestes casos foram vistos obrigarem-se, nem o vínculo do juramento estender-se a eles” (pp. 216-
217).
277
A SÁTI RA H 0 E N G E N H O
gal como maquiavélicos, não pressupõem a natureza humana como dada pela
Queda original, irremediavelmente corrompida, segundo os protestantes,
perfectível, segundo os católicos, mas propõem o poder político como virtude
da ocasião. Em outros termos, Lutero e Maquiavel coincidem, segundo os ju
ristas contra-reformistas, porque ambos rejeitam a lei natural como base mo
ral apropriada para a vida política. Sua crítica a eles visa a provar que é falsa a
assunção maquiavélica de que o objetivo do Príncipe é a conservação de seu
Estado e de que, para tal fim, deve usar de todos os meios, bons e maus, justos
e injustos, que possam assisti-lo178. Contra a “hipocrisia” maquiavélica, que
prescreve que o Príncipe seja a raposa e o leão, afirmam que a “honestidade”
católica é o maior poder para manter a paz e a felicidade políticas179180:o Prínci
pe deve ser, como no discurso da sátira, “bom cristão temente a Deus”, “socor
rido pelos céus”. Contra a heresia luterana, cuja implicação política é a afir
mação de que o Príncipe governa pela vontade divina para impor a lei e a ordem
à natureza humana corrompida, os contra-reformistas retrucam com a doutri
na da “graça inata”, pela qual os homens, certamente pecadores, são aptos não
obstante para apreender a lei natural inscrita em suas almas pela vontade e
inteligência divinas. Ao sublinhá-lo, o principal fim dos padres, como demons
tra Skinner, é o de repudiar a tese herética de que o estabelecimento da socie
dade política é diretamente ordenado por Deus e, portanto, de que o Rei é in
falível. Ao fazê-lo, reforçam a autoridade papal quando, por exemplo,
repudiam como herética a tese de Marsilio de Pádua de que todo poder coerci
tivo deve ser, por definição, secular. Vitoria, exemplifica Skinner, ataca aque
les que “[...] isentam os governantes seculares da jurisdição da Igreja num tal
grau que quase nada é deixado ao poder eclesiástico, e mesmo as causas espiri
tuais são remetidas a cortes civis e decididas lá”lso.
Assim, desde que “[...] príncipes seculares são ignorantes da relação en
tre matérias espirituais e temporais, não podem ocupar-se da consideração
de causas espirituais”181. Em outros termos, se o Papa não tem nenhum poder
direto de controlar os negócios seculares, tem poderes indiretos, muito exten
sos. Como Vigário de Cristo ou Vice-Cristo, tem a extensão de seu poder limi
tada pelo modelo de Cristo. Criticando Lutero e reforçando os poderes do
Papa, os juristas contra-reformistas demonstram a necessidade de criar a so
ciedade política para afirmar que é realmente um erro postular que ela é um
278
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
2 79
A SÁTI RA E O E N G E N H O
[...1 assim quando um homem particular se vende e sc entrega a outro como escravo,
este dominiuin é puramente e simplesmente instituído pelo homem. Com efeito, estan
do suposto este contrato, o escravo é obrigado, por direito divino como por direito
natural, a obedecer a seu mestre. Da mesma forma, o poder (potestas), tendo sido trans
ferido ao rei, este é feito por ele superior ao reino que o deu a ele, porque, dando-se a
185. Em 1614, livros de Suárez são queimados na França. Cf. Richelieu,Mémoires, année 1614: “Environ
ce temps, le Parlement fit brüler, par la main du bourreau, un livre de Suárez, jésuite, intitulé La
defere:: de la fui catholique, apostoliqui^tontre les eirewm.de la secle d'Angleterre comme enseignani qu'il
ctoit loisible aux sujets et aux étrangers d’attcnter à la personne des souverains”. Cf. Joel Cornctte,
“L’État baroque dans la France du premier XVIPSièdc: une approche par la chronologie”, em
Henry Méchoulan (org.), op. cit., p. 463 (Années 1614-1615).
186. Cit. por Jcan-François Courtine, “ilhéritage...”, em Henry Méchoulan (org.), op. cit., p. 98.
187. Suárez, De legibus, V, 4,11, cit. porJean-François Courtine, “Ehéritage...”, em Henry Méchoulan (org.),
op. cit., p. 99. Como muito bem demonstra Courtine em seu estudo excelente, não há possibilidade de
tratar uniformemente as doutrinas do direito divino dos reis - por exemplo, na França, Jurieu propõe
a necessidade de um pacto mútuo entre o povo e o soberano, assim como Bossuet, por exemplo,
certamente sc alinharia com Jaime I, contra Suárez, segundo seu galicanismo explicitado no 1“ artigo
da declaração de 1682 que, entre outras coisas, diz: "Celui donc qui s’oppose aux puissances résiste à
1’ordre de Dieu. Nous déclarons en conséquence que les Rois et les Souverains ne sont soumiss dans
les choses temporelles à aucune puissance cclésiastique par 1'ordre de Dieu; qifils ne peuvent ètre
déposés directement ni indirectement par 1’autorité des chefs de 1’Église; que leurs sujets nc peuvent,
au nom de cette même autorité, être dispenses de la soumission et de 1’obéissance qu’ils leur doivent,
ou absous du serment de fidélité; et que cette doctrine, nécessaire pour la tranquillité publique, et non
moins avantageuse à 1’Eglise qu’à l’État, doil être inviolablement gardée comme conforme à la parole
de Dieu, à la tradition des saints Pères et aux exemples des saints”. Cit. por Joel Cornette, “I) Etat
baroque...”, em Henry Méchoulan (org),op. cit., p. 115.
280
A P R O P O R Ç Ã O DO M O N S T R O
cle, o reino se submeteu como súdito (sc subjecil) c privou-se da liberdade anterior,
como se conclui, guardadas as proporções, do exemplo da escravidão1**.
1S8. Suárez, De legibus, III-IV, 6, cit. por Jean-François Courtine, “Uhéritage...", em Henry Méchoulan
(org.), o/i, cit., p. 115.
189. Cf. Q. Skinner, op. cit., vol. II, p. 164.
190. Idetn, p. 181.
2S1
A SÁTI RA E O E N G E N H O
282
A PROPORÇ Ã O DO M ON ST RO
T in h a o C o n d e d e m orrer;
to d o o m o rta l n isto pára,
e se e le se n ã o m a ta ra ,
c o m o q u e m l h o h a v i a d e fa z e r ?
f e z b e m o C o n d e a m e u ver,
q u a n d o ao ja r d im se arrojou,
e en tre as flo res ex p iro u :
v e n t o é a v i d a e m r ig o r ,
e c o m o o C o n d e e r a flor,
en tre as flores acabou.
Se ign orou algu n s sen tid os,
p o r q u e t a n to m a l se u r d iu ,
era v a lid o , e c a iu ,
q u e o ca ir é d o s valid os:
tão certos são, e sa b id o s
n o m o n t e , n o lar, n a p r a ç a
estes rev eses da graça,
q u e é já d o s P a l á c i o s l e i ,
q u e q u e m d a g r a ç a d ’E l - R e i
cai, cai da su a d esg ra ça .
( O C , I, p p . 1 4 3 - 1 4 4 . )
283
A S Á T IR A E O E N G E N H O
uma injunção da lei natural, é, contudo, apenas uma injunção negativa, ser
vindo para lembrar que “[...] toda propriedade deveria ser possuída em co
mum pela força desta lei se não tivesse ocorrido que os homens decidissem
introduzir um sistema diferente”197. Em outros termos, a lei natural pode
ser avocada tanto para sancionar a continuidade quanto a abolição da pro
priedade comunitária e, assim, a decisão de dividir a propriedade é deixada
para a decisão da lei positiva, mas de tal forma que a decisão de instituir a
própria divisão não é um mero aspecto da lei positiva. Interpretando a con
cessão do “privilégio”, tal doutrina implica que o privilégio é uma lei posi
tiva que pode ser revogada a qualquer momento, segundo o casuísmo das
interpretações, mas que, ao concedê-lo ou retirá-lo, o Rei se pauta pela lei
natural.
A sátira desenvolve como um de seus temas principais essa desigualdade
de direito para ratificá-la como harmonia preestabelecida e criticar atos que
publicamente a desestabilizam quando infringem os deveres de cada or
dem: não se critica, portanto, o privilégio, mas os efeitos de seu excesso ou de sua
carência. Tanto o excesso quanto a falta ameaçam a concórdia do bem co
mum, desordenando a harmonia das partes do corpo político. Segundo a
sátira, a desigualdade é natural, pois adaptada ao fim superior da paz social.
As ordens sociais, assim como cada indivíduo, devem contentar-se com o
que são e com o que fazem, em função do bem comum. Em outros termos, a
virtude moral é sempre virtude política, porque é a vontade real que, sendo
legítima, expressa nas leis positivas aquilo que é lícito ou ilícito conforme a
lei natural. Como o Papa, cujaplenitudopotestatis decorre de ser o Vigário de
Cristo: contestá-lo é sacrilégio, tanto quanto ousar restringir a potência
de Deus198.
Assim como o Papa se quer Vicarius Christi, os reis do século XVII afir
mam-se vigários de Deus: são deuses199, observando-se que a doutrina contra-
reformista não se opõe ao absolutismo, mas o retifica para introduzir a ques
284
A PR OPORÇ ÃO DO M ON ST RO
285
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
crueldade são virtudes básicas para governar. Não se trata, como propõe
Skinner, de uma diferença entre uma visão moral da política e uma visão da
política divorciada da moralidade, pois o contraste essencial é antes entre
duas moralidades políticas diferentes e inimigas204. Não seria preciso tal
vez lembrá-lo, mas a política dos reis católicos ibéricos realiza, muitas
vezes, a virtú maquiavélica de maneira exemplar: citem-se, como exem
plo, a ação de Filipe II nos Países Baixos e, ainda, o episódio da anulação
do casamento de Dom Afonso VI e Dona Maria Francisca Isabel de Sabóia,
e o casamento desta com o príncipe Dom Pedro, irmão do Rei, em 28 de
março de 1668205.
É útil lembrar, ainda, que a reativação da escolástica aplica um esquema
tipológico à figura do Rei: assim como Cristo é, em sua humanidade, instru
mento da divindade (insvrumentum divinitatis), também o Rei é proposto dupla
mente, como sendo o que é por aquilo que está nele mesmo e além dele mesmo.
Tem duas pessoas: persona personalis, mortal, tpersona idealis (mystica,ficta).
Os dois corpos do Rei permitem, entre outras coisas, afirmar a perpetuidade
do poder e seu absoluto: para além da sucessão temporal dos reis, mortais e
falíveis, a potência pública permanece imutável em sua identidade sagrada206.
A dupla pessoa aplica-se à esfera do poder político: este é ordinário, conforme
se trate do direito privado, quando se tem em vista o interesse particular dos
súditos, e absoluto, quando se exerce em vista do bem comum e se determina
cm função da razão de Estado.
Os vários topoi teológicos encontráveis na sátira e em outros discursos do
século XVII, como os da oratória sacra, têm assim, antes de serem mera orna
mentação de uma retórica do poder “voltando”, como se costuma dizer, à
Idade Média, uma função determinante na elaboração e confirmação do con
ceito moderno de poder soberano absoluto. Gregório dc Matos e Guerra está
na doutrina teológico-política e seus topoi que perpassam a obra de autores
como Lope de Vega, Quevedo, Saavedra Fajardo, Gracián, Calderón de la
Barca, Vieira, Bossuet. Por vezes opondo a soberania do Estado e a Santa Sé,
por vezes aproximando-os num misto indiscernível de razão de Estado e
providencialismo divino, prega-se a virtude do ideal ou o ideal da virtude. O
286
A P RO P O RÇ Ã O DO M ON ST RO
E m tr ê s p a r t e s e n t e r r a d o
está o c o r p o d o M a r q u ê s
d e M arialva: p o r q u e em d ez
m íl seu n o m e é ven erad o:
e foi d e s t in o a c e r ta d o ,
que em tanta parte estivesse,
para q u e o m u n d o s o u b e s se ,
que este v a lero so M arte
m o rto assiste e m q u a lq u e r parte,
c o m o se a i n d a v i v e s s e .
(OC, I, p. 15 0 .)
207. Cl. D. Saavedra l-ajardo, op. cit., vol. I, Empresa XXVII: “Quando o povo começar a opinar cm
religião: e quiser introduzir novidades nela é preciso aplicar logo o castigo, e arrancar pela raiz a
má semente ames que cresça e se multiplique”. Lembre-se ainda que, no século XVII ibérico, a
liberdade de consciência é equiparada ao maquiavelismo. Cf. também Richclieu, “Tcstament
poli tique 1, 4)”, em Joèl Cornette, "IiÉtat baroque...”, em Henry Méchoulan {Org ), op. cit., p. 470
(Années 1629-1630): "Tous les politíques sont d’accord que si les peuples stoient trop a leur aise, íl
seroit impossible de les contenir dans les règles de leur devoir; leur fondement est qu'ayam moins
287
A SÁTI RA I; O E N G E N H O
fins, a arte articula-se como dirigismo pedagógico, educação do gosto por meio
do mito épico: cada qual se contente com o seu, faça cada um o seu papel, no
lugar e na ordem em que, como parte, está colocado no todo do corpo político
do Estado. Apologia da cabeça, portanto, que sabe o seu papel, sabendo os
papéis das partes no todo:
Con este fu i (de mantener ÍS unión) poneft todas sus fnerzas los reyes dc hispana en que
los pueblos, reinos v estados a Èloi sujetos se amen entre si con la unidad de la católica
Tfligión, no pernntiendo vivir com ellos judio, moro, ni hereje alguno que pueda ser parte ni
impidimenlopara desatar esk' laso de unión. In orden a esto, han instituído tantos a Estúdios
v Universidades, en especial la muy jlorida de Salamanca | y dotado en cilas tan grande
número de cátedras, donde florecen y resplandeceu tanto las letras en todas ciências, como
hacen fe los eminentes hombres que cada día estampan tan ingeniosasy eruditas obras, asi en
Teologiay Leves como en todas las detnás ciênciasy facultades; los predtcadores insignes, que
con singular honor suyoy colmado fruto de los oyentes, ocupan y ejcrcitan los púlpitos; los
maestrosy doctores, pozos de ciência que, como por semilla, retienen en si las Universidades
para que se continue en ellas la ensenansay doctrina. Coit este escuadróil de letrados, que son
por la mayor parte religiosos o eclesiásticos scglares (a quienes los católicos Reyes, por el
respeto que les tiene, gradas y mercedes que les hacen, tienen de sua parte), forlifican su
impérioy monarquia, no menos que con los presídiosy tercios de soldados; porque liana cosa
es que en un império tan grandey de naciones tan diversas fuera fácil resbalar unas a olras en
algum pcasión de digusto contra el príncipe, temendo cabeza a quien seguiesen; y es lambicn
cierto que quien las tiene sujetasy rendidasy obedientes al superior, son los hombres doctosy
eclesiásticos, en especial los religiosos y predtcadores, a quienes dan crédito por la promesa que
les hacen de los eternos bienes, v por el desprecia que ven en ellos en sus accionesy vidas de los
caducosy temporales, de suerte que predicando ellos continuamente alpueblo que es volunlad
de Dios obedecer a los reyes, y que a los trabajos y misérias que se padeceu en esta vida
corresponderá en la otra eterno prêmio y amenazando asímismo de ordinário en los
confesionarios y púlpitos con ta divina justicia humana a los homicidas, ladrones, sensuales,
rebeldesy sediciosos,y confirmando a los buenosy virtuosos (por otra parle) con la esperanza
de Ia eterna felicidad, que es Ia perenne y clara vista de Dios, no hallan los desalmados y
perdidos quien se junte a ellos, ni quien siga su parecer y opinión, nipueden unirse con ellos
de connaissance que les aulres ordres de l’Étal beaucoup plus cullivex ou mstruits, s’ils n’étoient
retenus par quelques necessites, difficilemcnt demeureroiens-ils duns les règles qui leur som
prescritos par la Raison et par les Loix. La Raison ne permet pas de les exempter de toutes charges
parce qu’en perdam en lei cas la marque de leur sujettion, ils perdroient aussi ia mémoire de leur
condítion et que s'i 1,s stoient libres de tributs, ils penseroient 1’ètre de 1'obcissance. II les iam
comparer aux mulets qui étanl accoutumez à Ia charge se gâtent par un long repos plus que par le
travail; mais ainsi que le travail doit êlre modere, et qu’il faut que la charge de ces animaux soit
proportionnee à leurs forces, ii en est de rnérne des subsides à 1’égard des peuples s'ils n etoient
moderes, lors racmc qu’ils seroient utiles au pubiic, ils ne laisseroient pas d’être injustes”.
288
A PROPORÇ Ã O DO .MONSTRO
muchos de la república, en cuyas manos está la fuerza, aunque lo descen, ni brotan la ponzona,
aunque estean avenenados2uli.
Longa a citação, certamente, mas sintetiza, uma por uma, várias direções
do olho satírico analisadas neste capítulo. O seguinte ocupa-se das regras re
tóricas da lente e da visão integradora.
20S. Fray Juan de Salazar, Política Espanofa Prop. 5a, III, cit. por F. M. Ferrol, op. cit., pp. 232-233. As
afirmações de Salazar são generalizávèis para Portugal no século XVII. Neste plano de mando, por
exemplo, a Inquisição funciona acoplada ao poder de Estado.
289
IV
O Ornato Dialético e a
Pintura do Misto
V á d e r e tr a to
p o r c o n s o a n te s
q u e e u s o u T im a n te s .
(P C , h p. 219.)
O te m p o d e s o r d e n a d o
se o r d e n o u e m c a s o
ta l...
(OC,V, p. 1250.)
291
A SÁTIRA E O ENGENHO
M e s s o k o m o , m e s so c a p r a , l u t o b e s tia [sic]2.
292
0 ORNA T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O
códigos da recepção: cada parte que nela é misturada às outras remete o des
tinatário a um todo ausente, seu gênero e sua prescrição, efetuados como
subtexto interpretante da parte e da incompossibilidade das misturas. Como
incongruência e inverossimilhança, as misturas fantásticas são categorizadas
pelo destinatário em outro registro de adequação, o do delectare, prazer do
vulgo8, a que se associa oprodesse da enunciação icástica, utilidade da catarse
e da aprendizagem.
Viram-se, no capítulo III deste, regras de constituição da voz icástica e
virtuosa da enunciação; como um misto de discursos, a voz fantástica funcio
na por referência interna de partes a gêneros e de gêneros a partes, o que mais
se evidencia quando, em sua formulação, opera a ironia como metáfora de
inversão, agressão, jocosidade e paródia, que desnuda o procedimento cons
trutivo9. A sátira é estruturalmente “plagiária”, porque gênero misto: junta fa
las heteróclitas e sobredetermina o discurso10, recorrendo a fragmentos varia
dos para compor monstros poéticos ou maravilhosos. A inclusividade e a
compossibilidade de linguagens fazem-na homóloga da regra áurea das le
tras seiscentistas, a agudeza, que aproxima e funde conceitos distantes e ex
tremos11, tendendo a integrá-los como mistos. Engenhosamente, a sátira
seiscentista sobredetermina a operação aguda, pois reúne fragmentos de vá
8. Cf., por exemplo, Padre José Alcázar, Ortografia Caslellana (1690) em F. S. Escribano y A. P. Mayo,
op cit., p. 237: “En el teatro eljuezes el vulgo nccioy sin letras, que no distingue el relâmpago dei rayo, que
no penetra los conceptosy solamente se deleita con la Iransposición desusada de las palabras. Noson el vulgo
los ciudadanos, ni los maestros de las artes más nobles, sino los sastres, los zapateros, los cocheros, los lilereros
y otros semejanles, que por el ruido que meten se llaman 'mosqueleros' ”. A classificação espanhola de
Alcázar corresponde à da poesia da tradição Gregório de Alatos e à de outros poetas italianos e
franceses do século XVII, sendo um lugar-comum.
9. Cf, por exemplo, “Definição de Amor” (OC, V, p. 1223), poema joco-sério em que a sátira se faz
como inversão irônica de lopoi e estilo alto da lírica de tradição petrarquista, particularmente o
soneto camoniano Amor é fogo que arde sem se ver. Enunciados montados por adynata - “É glória,
que martiriza, / uma pena, que recria / é um fel, com mil doçuras [...] / Uma prisão toda livre, /
uma liberdade presa” etc. - são confrontados com outros, já mistos, com mescla de conceptismo
engenhoso e estilo baixo, que os traduzem e rebaixam segundo um eixo de oposições alto / baixo
ou alto / sórdido: “fogo selvagem nas bolsas, / e uma sarna nas moedas / [...] um embaraço de
pernas, / uma união de barrigas, / um breve tremor de artérias [...] / um reboliço de ancas” etc.
Veja-se também, em OC, II, p. 237, poema em que a dicção jocosa faz citação irônica de Sá de
Miranda e Francisco Rodrigues Lobo: “[...] quem me vira neste instante / tão solteiro, qual eu era,
/ que na Ordem mais austera / comera o vosso maná! / mas nunca direi, que lá / virá fresca Prima
vera”.
10. Por exemplo, com a hipérbolc, com a redundância.
11 ■ Baltasar Gracián, “Discurso I - Panegírico al arte y al objecto”, Agudezay Arte de Ingcnio em Obras
Completas, Madrid, Aguilar, 1967, p. 241: “Consiste, pues, este artificio conceptuoso, cn una pri
morosa concordância, en una armónica correlación entre dos o tres cognoscibles extremos, expres-
293
A SÁTI RA E O E N G E N H O
sada por un acto dei entendimiento”; Fmanuele Tesauro, “Cagion formale delParguzia circa le
figure”, em // Cannocchialc Arisioielico, Scelta a cura di Ezio Raimondi, Torino, Finaudi, 1978, p.
40: “Ogni arguzia é un parlar figurato, mas non ogni parlar figurato é un’arguzia... Quelle figure
propriamente si chiamano argute, le quai consistono nella significazione ingegnosa”.
12. C. Petrônio, Saiira in Pctronii Saiirae ci Libcr Priapeorum, ed. Franciscus Buecheler, Berlin,
Wcidmannos, MDCCCLXXII, 118, p. 84: “non enim res gestae comprehendendae sunt, quod longe
melius historiei faciunt, sed per ambages deorumque ministeria et fabulosum sentemiarum
tormentum praecipitandus est liber spiritus, ut potius furentis animi vaticinatio appareat quam
religiosae orationis sub testibus fides”.
13. As mesmas tópicas, o mesmo sistema de insultos são aplicados aos governadores Sousa de Meneses c
Câmara Coutinho, ao padre Lourenço Ribeiro, a negras, mulatas c cristàos-novos, com a recorrência
dos motivos caricaturais - por exemplo, o do nariz fálico, rastreável em Marcial, Rabelais e Quevcdo.
294
0 O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O
[...] u m a e s t r i t a v e r o s s i m i l h a n ç a [...] n ã o é n e c e s s á r i a n a s d e s c r i ç õ e s d e s t a v a r i e d a d e
v isio n á ria e a leg ó rica d e p o e sia , q u e a d m ite to d o e q u a lq u e r d e sv a ir a d o o b je to q u e a
fa n ta sia p o s s a a p r e s e n ta r e m s o n h o s , e na q u a l b asta q u e o s ig n if ic a d o m o r a l sirva d e
c o m p e n s a ç ã o p a r a a i m p r o b a b i l i d a d e 15.
Ouiro exemplo são os nomes dos frades, convenção do insulto estudada no capítulo V: Frei Garrafa
(OC, II, p. 314); Frei Carqueja, Frei Sarna, Frei Bertoeja, Frei Pirtigo, Frei Burro de Lançamento,
Frei Jumento (OC, II, p. 319); Frei Azar, Frei Piorno (OC, II, p. 322); Frei Jalapa (OC, II, p. 323); Frei
Al 1X0 (OC, II, p. 323); Frei Fodcribus (OC, 11, p. 324); Frei Caziqui (OC, II, p. 325); Frei Porraz (OC,
II, p. 326); Frei Sovela (OC, II, p. 237); Frei Basilisco (OC, II, p. 339); Frei Fodaz (OC, II, p. 342); Frei
Ataganão (OC, IV, p. 805); Frei Alonturo ou Frade Cisco (OC, IV, p. 805); Frei Burro ou Frei Cavalo
(OC, IV, p. 806); Frei Bolório (OC, IV, p. 806); Frei Fustiga, Frei Fedor (OC, IV, p. 860) etc.
14, A citação paródica de Wordsworth é feita por John Harold Wilson, Coun Salires of lhe liestoraiion,
Columbus, Ohio University Press, 1976, p. IV. Cf. também Emanuele Tesauro, op. dl., p. 32: “Ou
tras são as metáforas atrozes e sério-ridículas, que simultaneamente produzem riso e espanto,
quando algum fantasma horrível é fomentado pelo humor negro”.
15. Alexander Pope, The Temple of Fume (1715), cit. por William K. Wimsatt Jr. & Cleanth Brooks, op.
cit., p. 406.
295
A SÁTI RA E O E N G E N H O
P ariu a s e u t e m p o u m c u co ,
u m m o n str o (d ig o ) in u m a n o ,
q u e n o b ic o era t u c a n o
e n o sa n g u e m a m a lu co .
( O C , I, p. 1 9 9 . )
O M i n i s t r o há d e se r são,
justo, e n ã o d e so b r ig a d o ,
há d e ter ó d io ao p e c a d o ,
e ao p e c a d o r c o m p a ix ã o .
( O C , I, p. 2 0 1 . )
O lh o s c a g õ e s , q u e c a g a m s e m p r e à porta,
M e t ê m e s ta a lm a torta,
P r in c ip a lm e n te v e n d o -lh e s as vid raças
296
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O
( O C , I , p . 1 5 6 .)
T o le r a r e m o s c a v a lo s v o a d o r e s , c is n e s n e g r o s , h id r a s , c e n t a u r o s , h a r p ia s e sátiros;
p orq u e são m o n s t r u o s i d a d e s , r a rid a d es o u e n tã o fa n ta s ia s p o é t ic a s , c u ja s m o r a lid a d e s
i n d e c i s a s e v a g a s s e r v e m d c r e c o m p e n s a p a r a a s s u a s f a l s i d a d e s s u b s t a n c i a i s 16.
16. Sir Thomas Browne, Pseudodoxia F.pulemica (1646),\, 19, cit. por William K. Wimsalt Jr. & Cleanth
Brooks,op. cit., p. 405.
17. Wolfram Kròmer, Formas de Ia Narración Breve en Ias Literaturas Románicas Hasta 1700, Madrid,
Gredos, 1977, p. 87.
297
A SÁTI RA E O E N G E N H O
18. Por exemplo, o frade sempre lascivo, avaremo, grosseiro e glutão; o |udeu sempre narigudo, hipó
crita c usurário; o mulato sempre insolente, arrogante, desavergonhado; o negociante sempre ava
rento, desonesto; etc.
19. Cf., por exemplo, OC, II, p. 387: "Passou o Surucucu / e como andava no cio, / com um e outro
assobio, / pediu a Luísa o cu: / Jcsu nome de Jcsu, / disse a Alulata assustada, / se você é cobra
mandada / que me quer ferir da escolta / dê uma volta, e na volta / poderá dar-me a dentada”. O
nome próprio "Surucucu” torna-se comum, “surucucu”, cobra óbvia.
20. OC, VI, p. 1335.
21. Cf. OC, I, p. 210, sobre a sodomia, invocando a Inquisição: “Conheça a Inquisição estas verdades".
22. Cf., no capítulo V, na tópica “Sexo”, análise de poemas que tematizam o coito com o Demônio.
23. Cf. Pierre Legendre, O Amor do Censor (Ensaio sobre a Ordem Dogmática), trad. Aluízio Menezes, M.
D. Magno c Potiguara Mendes da Silveira Jr., Rio de Janeiro, Forense Univcrsitária/Colégio
Freudiano, 1983, pp. 135 e ss.
24. No sentido comentado no capítulo I.
298
0 O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O
Vá de retrato Vá de ap arelh o,
por consoantes, vá de p a in el,
que eu sou T im a n te s v e n h a u m pin cel
de u m n ariz de tu ca n o retratarei a C h ic a
p és de p ato. c seu b e sb elh o .
25. Cf. João Adolfo Hansen, Alegoria (Conslnição e Interpretação da Metáfora), São Paulo, Atual, 1986,
pp. 30 e ss.
26. Cf. Ricardo dc Tuna, Apologético de Ias Comédias Espanolas (1616), em F. S. Escribano & A. P. Mayo,
op. cil., p. 150: "Cuando por los espanoles fuera inventado este poema (tragicomédia), antes es digno de
alabanza que de reprehensión, dando por constante una máxima que no se puede negar ni cavilar,y es que
los que escriben es a fui de salisfacer el gusto para quien escriben, aunque echen de ver que no van confor
me las regias que pide aquella compostura, y hace mal él que piensa que el dejar de seguillas nace de
ignoralias”.
2 99
A SÁTI RA E O E N G E N H O
N ã o p in t o as faltas O s dou s o lh in h o s
d o s o lh o s b aios, c o m ser p e q u e n o s
q u e v e r s o s raios são d o is v e n e n o s,
n u n c a foram senão não do m esm o tam an h o
a c o u s a s altas. m a io rzin h o s.
M as a fachada N a r iz de preta
da so b ra n celha de cocras posto,
se m e a s s e m e l h a q u e p e lo rosto
a u m a negra vassoura anda sem p re b u scan d o,
esparram ada. o n d e se m eta .
N a r i z , q u e f a la B arbin h a aguda
lo n g e d o rosto, c o m o sovela,
p o is na Sé posto n ã o t e m o a ela,
na Praça m a n d a pôr m a s h e i m e d o à barba:
a g u a r d a e m ala. D e u s m e acuda.
M e m b r o d e olfatos, P esco ço lo n g o
m a s tão q u a d ra d o , S o c ó c o m s a ia ,
que um R ei coroado a q u e m d ã o vaia
o p o d e ter p o r c o p a n e g r o s , c o m q u e m se fa r ta
d e c e m pratos. de m ondongo.
300
0 ü RN ATO D I A L É T I C O F. A T I NTUR A DO MI S T O
A o p é da altura J u n to às ca v ern a s
no n aso oiteiro, t e m as p e r n i n h a s
tem o send eiro , tão d e lg a d in h a s ,
o que a boca n asceu, e é n ã o se i, c o m o se tem
rasgadura n a q u e l a s p e r n a s [...]
V a m o s à g ib a : V a m o s ao s u n d o
m as eu q u e in tento, d e tão m a u jeito,
se n ã o s o u v e n t o q u e é largo, e estre ito
para p o d e r trepar d o ro sto e s tr e ito , e largo
lá t a n t o a r r ib a ? do profundo.
S em p r e e u in sisto , U m va so atroz,
q ue no h orizon te cuja portada
d e s te alto m o n t e é debruada
foi te n ta r o d ia b o com releixos na boca,
a Jesu C risto. co m noz.
( O C , I, p p . 2 1 9 - 2 2 1 . ) (O C , V, pp. 1119-
27. Cf., por exemplo, o retrato de Sousa de Meneses (OC, I, p. 155); o da puta Zabelona (OC, IV, p. 831);
o do vigário Antônio Marques da Perada (OC, I, p. 274); o do padre Dámaso da Silva (OC, I, p. 281);
oda negra como lancha e urca (OC, II, p. 380); o de Maria Viegas (OC, III, p. 571); o do letrado Fulano
Coelho (OC, III, p. 729); a descrição de uma boca larga (OC, V, p. 1097); o romance dedicado a Tomás
Pinto Brandão sobre uma mula e uma mulata (OC, V, p. 1113); a pintura graciosa de uma dama
corcovada (OC, V, p. 1265); a perfeição de uma dama pelos naipes da baralha (OC, V, p. 1274) etc.
301
A SÁTI RA E O E N G E N H O
[...] a f i n e d e p u r g a r e c o l d i l e t t o la m e s l i z i a d e g li a s c o l ta t o r i 29.
28. Cf. Guido Morpurgo-Tagliabue, “La retórica aristotelica e il Barocco”, em III Congresso
Internazionale di Studi Umanistici, Venezia, 15-18 giugno 1954, a cura di Enrico Castelli,Retórica
e Barocco. Atti, Roma, Eratelli Bocca Editori, 1955, p. 144.
29. Citado por Tagliabue, op. cit., p. 167. No século XVII, a “Mestizia” é reconhecida como o estado
natural do homem. Cf. E. Mâle, Vart religieux après le Concile de Trente, Paris, 1932, pp. 220 e ss. Cf.
G. B. Marino, Adone, VII: “Musica e poesia son due sorelle / Ristorairici delVafflite genti”, Cf. também
Jean Delumeau, El Catolicismo de Lulero a Voltaire, Barcelona, Editorial Labor, 1973. Assim, tam
bém, a questão do delectare é dominante nas discussões dos preceptistas da poesia do século XVII.
Na França, por exemplo, Honoré d'Urfé escreve que a religião assumiu a função do docere; para
não ser de todo inútil, a poesia deve agradar: “[...] maintenant nostre Pocsie a pour bout essetitiel de
plaire, et par accideni de profiter. Mais nous qui par la grace de Dieu sommes en un siècle si riche de
Predicateurs, qui enseignenl si assiduellemenl les hommes dc toute qualilé, les retirem du vice et les poussent
à la vertu, nostre Poésie infailliblement demeureroil inulile si elle faisoil seulement profession d'mstruire",
em Yves Hersant, “Comique et pastoral”, V Convegno delia Società Universitária per gli Studi di
Lingua e Letteratura Francese, Bologna, 29-30 ottobre 1977, Forme dei Comico, Melodologie delia
Critica Lelteraria. Atti, Bologna, Patron Editore, 1979, p. 29.
302
2
0 O R N A T O D I A L É T I C O H A P I N T U R A DO A1ISTO
30. Suárez de Figueroa, Plaza Universal de Todas Ciênciasy Aries (1615), cit. por José Antonio Maravall,
La Cultura dei Barroco, 3. ed., Barcelona, Ariel, 1983, p. 325. Aplicada à sátira, a definição de
Figueroa é semelhante à do Doutor Johnson, que conceitua o wil dos poetas ingleses metafísicos
(“Discórdia concors, combinação de imagens dessemelhantes ou descoberta de ocultas semelhanças
em coisas aparentemente diversas"), Life of Cowley, cit. por Tagliabue, op. cit., p. 145.
31. Aristóteles, Retórica, Livro I.
32. Aristóteles, Poética; Retórica, passim.
303
A SÁTI RA E O E N G E N H O
33. Cf. Robert Klein, La forme ei 1’intelligible, Paris, Gallimard, 1970, p. 133.
304
d
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O
305
A SÁTI RA E O E N G E N H O
37. \X'. K. Wimsatt Jr. & C. Brooks, op. cit., p. 282: “Uma expressão, em determinada altura metafórica,
como ‘chama' de amor, vem a transformar-se em frase feita; assume um sentido firme e autorizado,
se bem que não intensamente realizado. Num estádio final 'chama' de amor vem a significar uma
coisa sem qualquer relação com ‘chama’ proveniente de combustão, e não se torna de modo algum
necessário pensarmos nesta última quando nos referimos à primeira”.
38. Emanuele Tesauro, “Che questo segno é per modo di poético sillogismo”, em Idea delle Perfeile
Imprese, op. cit., pp. 47-48.
306
O 0 RN ATO D I A L É T I C O F. A P I N T U R A DO M I S T O
uma física e a outra moral, ambas animadas, ou uma animada e a outra inani
mada etc. Voltam aqui o ouriço e seus espinhos, comparáveis a um soldado e
suas armas etc. Tais espécies de signos dão origem a três famílias de metáfo
ras: a primeira, quando convencionalmente se toma um signo por outro; a
segunda, que fundamenta metáforas de atribuição por vezes bastante vagas -
veja-se um exemplo do mesmo Tesauro: “[...] un altropinse unagravida elefante
col motlo CITIUS PARITELEPHAS per riprender la lentezza d’un capitano nelle
militari sue imprese"09. A terceira, enfim, é a relação baseada na semelhança,
aristotelicamente proposta3940.
A semelhança que permite substituir signo por signo pode ser de duas
espécies: a de duas coisas que participam numa única forma, chamada “uní-
voca”; a de duas coisas que não têm uma forma comum, mas duas proporcio
nalmente semelhantes. Em outros termos, a primeira semelhança é a de duas
espécies de um gênero comum; a outra, a de duas de gênero diverso. Da pri
meira, por exemplo, têm-se coisas diferentes em essência, mas semelhantes
entre si segundo uma propriedade comum: o lírio e a neve, segundo a brancu
ra. Ou o fogo e o amor, porque aquele é fisicamente impetuoso e este o é
moralmente. Pela primeira espécie de semelhança, pois, transfere-se espécie
a espécie: fala-se da neve como “lírio do inverno”, do lírio como “neve do
prado”, ou do rosto como “lírio”, “neve”, “alabastro”. São as segundas, contu
do, que exigem maior engenhosidade, pois aproximam duas coisas diversas,
dando muito prazer ao destinatário quando este é capaz de entender as ope
rações do engenho que condensa duas coisas bastante distantes, Por exemplo,
“maio” e “serpe”, num verso como “a serpe / é maio errante de torcidas flo
res”, de Manuel Botelho de Oliveira41.
Metáfora construída como transferência de espécie a espécie ou de gêne
ro a gênero, o conceito é um ato do entendimento, segundo Gracián. O enten
dimento é mesmo a principal potência do artifício de aproximar e condensar
os mais diferentes objetos. É a dialética que atende a tal conexão do entendi
mento para formar um argumento ou entimema. Em outros termos, o concei
to é também um artifício, como quer Gracián, ou “ornato silogístico”: uma
primorosa concordância ou harmônica correlação entre dois ou três cognos-
cíveis extremos que se expressa em um ato do entendimento. A definição de
Gracián só dá conta, evidentemente, do conceito unívoco: a “harmônica cor-
307
A SÁTI RA li O E N G E N H O
308
J
0 ORNATO D 1 A L K T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O
44. E. Tesauro, op. cil., p. 26. Tesauro aproxima a prudência do engenho, distinguindo-os: o engenho é
mais perspicaz, veloz, considera a aparência, tem por fim a admiração e o aplauso (deleclare). A
prudência é mais sensala, lenta, considera a verdade, tem por fim a própria utilidade (prodesse). A
fusão de engenho e prudência define, pois, o tipo do discreto presente na sátira como árbitro do gosto
e iuiz dos vícios.
45. G. M. Tagliabue, op. cil., p. 137. Tesauro propõe oito espécies de metáforas em II Cannoechiale
Aristotelico, p. 79:
1. De semelhança Homo quadralus
2. De atribuição Regnal Gladius
3. De equívoco Ius Verrinum, malum
4. De hipotipose Ponlem indignalus Araxes
5. De hipérbole Insiar monlis equus
6. De laconismo Carpathii leporem
7. De oposição Mens amem
8. De decepção Vale apud Orcutn
309
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
lism o con ceptista46, sendo redutor entendê-lo apenas com o “ ornato” , no sen
tido que se dá ao term o em expressões com o “ excesso de orn am en tação” , que
ju lgam o conceptism o neoclassicam ente.
D ialé tica e retórica, lógica e ornam ento, a n álise e síntese, d isp ersão e
integração, a agudeza posta a fu n cion ar na poesia conceptista consiste, por
exem plo, em d iv id ir a peripécia poética que está sendo narrada em várias
sub-ações ep isód icas, tradu zidas com o m etáforas que, por sua vez, são su b d i
vid id as e recategorizadas m etaforicam ente, eviden cian do-se a elocução como
nuclear. O poem a com põe-se, desta m aneira, com o p o litem atism o m etafóri
co, espécie de retom ada bin ariam en te estru tu rada d as v á ria s p erspectivas si
m u ltâneas da poesia do conceito engenhoso - por exem plo, a de G óngora -
com o reciclagem do ut pictura poesis horaciano. A cessó ria na poesia antiga,
aqui a elocução é p rin c ip a l, com o se escreveu: os lu gares da invenção são
ornam entos a serem ornam entados47. Veja-se exem plo:
The Johns Hopkins University Press, 1984. As excelentes conceituações de Weimann permitem
afirmar que a qualidade metafórica da poesia seiscentista, mais que simples ornamentação do
discurso, é um agente do seu modo social de ser. Assim, a metáfora é tanto um processo retórico
quanto um modo histórico de conceber e interpretar a história. Cf., por exemplo, p. 186.
310
0 O R N A T O D I A L É T I C O K A P I N T U R A DO M I S T O
311
A SÁTI RA E O E N G E N H O
48. Cf. João Adolfo Hansen.op. c i t . , pp. 33-34. Cf. também Rosemond Tuve,E U z a b e t h a n a n d M e t a p h y s i c a l
I m a g e r y . R e n a i s s a n c e P o e t k a n d T w e n l i e t h - c e n t u r y C r i l i c s , Chicago, 1947, pp. 43 e ss.: “ T h e e a r lie r
a u t h o r ’s s u b j e c t w a s d i f f e r e n t , h m o e v e r s i m i l a r h i s s t u f f ; h i s s u b j e c t w a s s t i l l 'h is m e a n i n g ’, n o l ‘h im s e lf-
s e c in g iT . O n e f i n d s lh e c h o ic e o f im a g e s m a d e u p o n d iffe r e n t g r o u n d s , a n d th e ir s tr u c lu r a l f u n a io n
d i f f e r e n t l y a f f e c l i n g t h e i r n a t u r e [ ...] T h e m e a s u r e o f l h e d i f f e r e n c e is l h e s t r i c t l o g i c a l c o h e r e n c e o f D o n n e ’s
im a g e s . T h is d o e s n o l m e a n t h a i lh e im a g e s a r e n o l s e n s u o u s ly v i v i d ; o n ly l h a l th e y a r e n o l p r im a r ily s o .
E a c h i s c h o s e n a n d p r e s e n t e d a s a ‘s i g n i f i c a m ’ p a r i o f a n o r d e r e d p a i t e r n [ . . . ] . ”
312
0 ORNATO D l A L K T I C O H A P I N T U R A DO MI S T O
aqui não cabem”. Montadas as duas séries de ações que mantêm relação de
especularidade enquanto figuram costumes, eventos, atos nem sempre virtuo
sos, mas passavelmente veniais, a estrofe é sintetizada pela voz “exterior” da
enunciação que, algo cúmplice, julga o que foi dito e conclui com o refrão:
“Boa história”.
As estrofes pares, iniciadas todas pela adversativa “mas”, índice da
enunciação negativa, propõem-se como comentário antitético dos mesmos te
mas tratados positivamente nas estrofes ímpares: “Mas que alguns queiram
viver”, “Mas que hajam com mais extremos”, “Mas que muitos professores”,
“Mas que quando alguns resolvam”, “Mas que eu fizesse hoje estudo”. Sime
tricamente às ímpares, as estrofes pares retomam o caso e o redefinem, desen
volvendo uma ação nos quatro primeiros versos, interrompidos por pausa con
clusiva seguida de novas ações que ou retomam o tema ou introduzem outro,
como comentário dos quatro primeiros versos. Da mesma forma que nas es
trofes ímpares, as pares arrematam com refrão - “Boa asneira” comentário
disfórico da enunciação. Vejam-se, por exemplo, as quatro primeiras estrofes:
313
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O
mandando-se embaixadores
de eloqüência persuasória!
Boa história.
4 Mas que hajam com mais extremos
entre cristãos batizados
sacrílegos, renegados,
ímpios, judeus, e blasfemos:
que algum cristão (como vemos)
dos tais seja muito amigo,
tendo tão grande perigo
dc pagar-se-lhe a manqueira!
Boa asneira.
(OC, II, pp. 476-477.)
314
A
O ORNATO D IALÉTICO E A PINTURA DO M ISTO
315
A SÁTI RA K O ENGHNI I O
mos incompatíveis, forma que, segundo alguns retores, é a única própria dele.
Retomando Aristóteles, Cícero e Quintiliano, os seiscentistas os radicalizam
binariamente: a agudeza é silogístico-retórica, como escreve Quintiliano, ou,
como já escrevera Aristóteles, ao tratar da astéia, a formulação brilhante pró
pria do discurso civil. Ela é técnica da análise que divide e subdivide o tema
em várias peripécias e cenas, fazendo com que razões e provas se relacionem
continuamente, deixando a conclusão para o destinatário agudo. Ao mesmo
tempo, técnica da elocução metafórica dos termos analisados, que faz pictóri
cas, muito plásticas, as oposições e fusões da divisão: por meio de antíteses,
“beijo/mordida”, e metáforas, “paixão”. A metáfora funciona, assim, como sig
no da operação que opõe para condensar, ou entimema, signo de uma conclu
são verossímil: “beijo” x “mordida” = /paixão/.
A operação dialética da análise dos conceitos é virtualmente ilimitada e
abre a poesia para uma contínua experimentação metafórica de outros e ou
tros conceitos relacionados ao argumento da tópica que é desenvolvida por
meio da mesma analogia que opera a divisão em espécies, gêneros etc. Isto
pode esclarecer - em termos de disposição - a redundância da poesia seiscen-
tista, ao mesmo tempo muito variada e tautológica. O procedimento é bas
tante usual nos sonetos ditos cultistas, que vão sempre dizendo a mesma coisa
com novos conceitos sinônimos produzidos como subdivisão de uma metáfo-
ra-matriz - o que, fático, efetua uma mantida preterição do sentido. Exem
plar é o soneto referido há pouco, “Ardor em firme coração nascido”. O mes
mo procedimento de preterição derivada da análise contínua da disposição
permite encenar poemas jocosos, como burlas, variações irônicas da diatribe.
Veja-se, por exemplo, o soneto dedicado ao Conde da Ericeira, Dom Luís de
Meneses, feito como imitação de Lope de Vega:
veloce e facil ínsegnamento da cui nasce il diletto, parendo alia mente di chi ode vcdere in un
rocabolo solo un pien teatro di meraviglie".
316
O ORNATO D IALÉTICO E A PINTURA DO M ISTO
É uma alma inane, ao mesmo tempo muda e eloqüente, que fala sem língua; ho
mem e não homem, que forma a voz sem ar; imagem sem figura, que no ar pinta as
vozes sem cor. Não é teu filho e o geraste; tu o ouves e não o vês, ele te responde c não
te ouve; ele é um ninguém falante que não sabe falar e contudo fala, ou fala sem saber
o que diz. Não entende latim nem grego; porém fala grego e latim.
317
A SÁTIRA E O E N G E N H O
Ninfa do ar, pedra falante, filho do ar. habita nas selvas e fala todos os idiomas:
sibila selvagem que responde nos antros. Adulador e zombador simultaneamente, que
ri se ris, chora se choras, canta se cantas, amaldiçoa-te se o amaldiçoas, louva-te se o
louvas. Vive só enquanto falas: respira com tua respiração, raciocina com tua língua,
vive com tua vida. Um só vive e dois falam. Um só fala e a si mesmo responde. E um
outro de ti; e, se partes, parte; se retornas, retorna; e se tu morres, morre.
Não é homem nem fera. Não sabe falar nem calar. Não sabe mentir nem dizer a
verdade. É sem silêncio e sem língua. Não está preso e não pode sair de sua cela. Não te
ouve nem o vês; contudo, responde-te e tu o ouves53.
318
M
O ORNATO DIALÉTICO E A PINTURA DO MISTO
319
A SÁTIRA E O E N G E N H O
deve ser examinada várias vezes, de perto, não sendo adequada à oralidade,
que a executa uma vez só.
A doutrina do ut pictura poesis horaciana retoma Aristóteles e estabelece
analogia entre pintura e poesia, ilustrando a natureza do decoro estilístico
necessário em cada gênero poético para ser verossímil e agradar o destinatá
rio. Horacianamente, a tessitura intrincada dos pequenos poemas alexandrinos
de Virgílio, por exemplo, não deve ser apreciada da mesma maneira que a
Eneida. Por ser um poema longo, a epopéia necessita da distância, para apare
cer como um todo aos olhos do destinatário, mais do que da proximidade que
revela seus detalhes. Da mesma maneira, uma pequena pintura de desenho
muito elaborado, com sombreamentos, deve ser examinada de uma distância
específica - de perto, um número determinado de vezes, não em plena luz so
lar da praça pública, mas na “obscuridade” de um aposento particular59:
59. Cf. Wesley Trimpi, “Horace’s ut pictura poesis: The argument for stylistic decoram", Traditio (Sjudies
in ancient and medieval histoty, ihouglu and religion), New Y ork, F o r d h a m University Press, 1978, vol.
XXXIV, p. 33.
60. Q. Horácio, Horali Flacá Opera, ed. F. Klingner, Leipzig, 1959, p. 307, cit. por Wesley Trimpi,
“I Ioracc’s ul pictura poesis...’’, op cit,., p. 30.
320
J
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O
interno ao gênero e decoro externo, à recepção. Por isso mesmo, são diferen
ciais, relativos, pois às vezes o “pior” é o mais adequado e efetivamente o
“melhor”. “Obscuridade”, por exemplo, é tanto característica estilística, de
signando o fechamento semântico da ornamentação que faz um poema ser
hermético e enigmático, quanto condição adequada para que seja bem rece
bido. O tema elevado da épica, por exemplo, que exige grandes traços
caracterizadores e amplas ações, é, por isso, menos articulado visualmente,
em termos de minúcias descritivas e ornamentais. Como o poema épico é
longo, exige distância e luz plena para a recepção: a épica é própria para a
declamação pública. Já os temas familiares, tratados com maior meticulosi-
dade, exigem também o exame de perto, feito várias vezes, em local “obscu
ro” ou fechado, particular61. E nesta linha, aliás, que Horácio escreve que a
comédia, porque retira seus temas da vida vulgar, exige menos trabalho apa
rente, mas na verdade carrega um peso maior, pois a indulgência permitida é
menor. Assim, escreve Trimpi, o estilo de Eurípides, de argumentação sutil e
verista no tratamento da vida cotidiana, claramente composto em oposição à
“obscuridade” de Esquilo, põe a audiência de sobreaviso para as menores
impropriedades da verossimilhança. O estilo sublime de Esquilo implica cer
ta incompletude da representação e, por isso mesmo, é para ser visto à distân
cia; o de Eurípides, devido ao detalhismo verista, exige a apreciação de perto62.
Reproposto durante o Renascimento em chave aristotélica e neo-escolás-
tica, o ut pictura poesis é parâmetro de poetas e preceptistas conceptistas. Faz
ver que certos gêneros de peças pequenas - como sonetos líricos e composi
ções elegíacas e pastorais - admitem e mesmo exigem a obscuridade quase
hermética, a leitura repetida muitas vezes, o exame meticuloso e atento feito
de perto, levando-se em conta que o público preferencial de tais gêneros é
efetuado como cortesão, agudo e discreto, diferenciando-se pela mesma agu
deza do vulgo, apto talvez para entender tais composições, mas codificado
como preferindo outras, de estilo familiar, baixo ou sórdido. A mesma obscu
ridade torna-se inadequada em gêneros populares orais, portanto, como a
oratória sacra, na qual se prescreve a visão a distância, que apreende o todo da
peça e relega como secundária a minúcia ornamental. Se admite certo inaca-
bamento dos detalhes, que facilita seja ouvida uma única vez, a oratória sacra
não admite a obscuridade nem da elocução, nem da recepção: deve ser clara
porque é pública. Uma das razões das críticas seiscentistas generalizadas aos
sermonistas gongóricos encontra-se na doutrina horaciana. É ela que permite
61. Cf. Wesley Trimpi, “The Early Metaphorical Uses...”, op. cit., p. 49.
62. Idcm, pp. 44-46.
321
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
a Vieira dizer, no Sermão da Sexagésima, por exemplo, que o estilo dos domini
canos é “negro boçal”.
A crise do mito heróico no século XVII e a concepção da invenção poética
como ornato dialético ou silogismo retórico incluem, por exemplo, a reposi
ção de topoi épicos e líricos como exercício do engenho poético, em variações
que levam a um fechamento da elocução, dada a sobredeterminação da agu
deza em tais imitações: em termos horacianos, obscuridade. É, por exemplo,
o que ocorre na poesia de Góngora, que trata em estilo sublime os temas que
tradicionalmente deveriam ser compostos com estilo humilde. Assim, aquilo
que, segundo o ulpicturapoesis, deve ser visto de longe, em função da apreen
são da unidade do todo - por exemplo, um poema épico como Os Lusíadas -
passa a ser retomado e variado como detalhismo ornamental, que deve ser
visto de perto. Em outros termos, a poesia conceptista mantém as mesmas
tópicas da épica, da lírica e da preceptiva tradicional, mas para transpô-las
como incongruência, anamorfose: o tema desenvolvido exige um ponto de
vista artificiosamente calculado63. Arte cenográfica, visa antes o efeito fantás
tico das imagens proporcionalmente desproporcionais que a reprodução de
uma imagem icástica, clara e congruente:
N ã o d ã o o p a ra b ém à nova A urora
F lo r e s ca n o ra s, p á ssa ro s fragrantes,
N e m s e u â m b a r r e s p i r a a r ic a F l o r a .
P o rém a b rin d o S ílv ia o s d o is d ia m a n tes
T u d o à S ílvia festeja, e tu d o a adora,
A v es c h e ir o s a s , flores re s so n a n te s.
( O C , III, p. 6 8 0 . )
63. Cf. Wcsley Trimpi, “The Earlv Metaphorical Uses...”, op. cil., p. 412.
322
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O
64. Idem>pp. 412-413: “In the Renaissance, lhe connection betzueen an anamorphicpainting andan allegorical
narrative is unforgettably made by Galileo in his Considerazioni al Tasso [...] Tassofs abrupi transilions
and disconnecied conceils resemble a ‘tarsia’picture - recalling the ancienl metaphor of tesserulae for
fragmenlary lumina (cf Cícero, Orat., 149) - while Ariosto’s lines gradually merge the narrative delails
with one another like colors in an oil painting. Ariosto’s poem is like a long high gallery which displays, in
its extension, importam works of art in a clear relalion to one another as if they formed a unijied zehole.
Tasso’s poem, on lhe contrary, is like a manneristic *Kunst -und Wunderkammer>full of trivial curiosities to
be individually picked up and scrutinized. Ariosto’s is seen from in front and is *skiagraphiceach detail
will, in Longinu’s setise, ‘shade’into the whole ihroughout its luminous atmospheric space. Tasso’s isoblique
and fanlastic’; each detail must glint into the obscurum of the studietto in order to strike and hold the
eye
323
A SÁTI RA E O E N G E N H O
adequação, evidenciando que a poesia culta - para ser lida de perto, várias
vezes, em particular - é própria de outros gêneros e de outras situações:
C a n sa d o de vos pregar
c u ltís s im a s p r o fe c ia s ,
quero das cu lteran ias
h o je o h á b ito enforcar:
d e q u e serve arrebentar,
por q u em de m im não tem mágoa?
v e r d a d e s d ir e i c o m o á g u a
p o r q u e to d o s e n te n d a is
os la d in o s, e os b o ça is
a Musa p r a g u e ja d o r a .
E n t e n d e i s - m e agora?
( O C , II, p. 4 7 2 . )
A d e u s p raia, a d e u s C id a d e ,
e agora m e deverás,
V elh aca, d ar eu a d eu s,
a q u e m d e v o a o d e m o dar.
[...]
A d e u s P ov o , a d e u s B a h ia ,
d ig o , C a n a lh a in fe rn a l,
e n ã o falo na n o b reza
tá b u la , em q u e se n ão dá.
( O C , VII, p. 1 5 9 3 . )
324
A
O 0 R N A T 0 D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O
M a s o q u e m a is m e atorm enta,
é ve r , q u e o s c o n t e m p l a t i v o s ,
sab en d o a m in h a in ocên cia,
d ã o a seu m e n tir ou vid os.
A té os m e sm o s cu lp a d o s
têm to m a d o p or ca p rich o ,
para m a is m e d ifa m a rem ,
p o r e m p e la p raça escritos.
O n d e escrev em sem vergonha
n ã o só b r a n c o s , m a s m e s t i ç o s ,
q u e para o s b o n s sou in fe rn o,
e para o s m a u s p a ra íso .
( O C , I. p p . 1 2 - 1 3 . )
65. Cf. M. T. Cícero, De oraiore, 72. F. indecoroso empregar “tópicas gerais” e estilo elevado quando se
discutem casos deslillicide frente a um único juiz (unum uidican): também é indecoroso falar calma
e sutilmente (summisse et subliliter) quando se discute a majestade do povo romano. Cf. também,
sobre a adequação da distância e tema, Soneca, “Retor”, C o n t r o v e f s i a e e t s u a s o r i a e , nouvelle édition
revue et corrigée par Henri Bornccque, Paris, Garnier, 1932, 2 vols., vol. II, 9, 1-5.
325
A SÁTI RA E O E N G E N H O
Viu-se, nesse capítulo, que o olho aproxima para distanciar e distancia para
aproximar. Veja-se agora como funcionam as lentes de seus óculos em termos
de utpictura, utilizando-se aqui os óculos de Wesley Trimpi.
No Sofista, Platão faz com que o estrangeiro eleata opere uma subdivisão
da mimesis em imagem icástica e imagem fantástica, depois de distinguir en
tre imagem e idéia66. Trata-se da percepção que o observador tem da distorção
óptica das imagens e das compensações que o artífice produz para corrigi-las.
A mesma distinção entre imagem icástica - proporcional ao paradigma - e
fantástica - deformação da imagem icástica - está presente no critério
horaciano do “sub luce”/ “obscurum”. Trata-se, ainda esta vez, da proporção e
da desproporção das imagens da pintura e da poesia, identificando-se o crité
rio de sua percepção com o critério de sua maior ou menor participação no
paradigma ou, em outros termos, de sua maior ou menor distância da essên
cia. Conforme Platão, o observador de uma grande pintura ou escultura está
mais distante de certas partes que de outras, de modo que a desproporção
aparente entre as partes conflita com o conhecimento prévio que ele tem do
assunto figurado na obra. A desproporção faz com que o observador fique
atento para as incongruências da verossimilhança, pois compara o que vê
com o que sabe. Para compensar a distorção visual, o pintor ou o escultor não
reproduzem as dimensões reais do modelo com perfeição icástica. Se o fizes
sem, produziríam deformação. Por isso, alteram as proporções, deformam-
nas, para que a imagem fantástica resultante pareça proporcional, isto é,
icástica, quando vista de um ponto de observação próprio: perspectiva, aumento
ou diminuição de partes, como a da cabeça desproporcional de Palas Atena.
Erigida no Pártenon, torna-se proporcionada quando observada de um ponto
próprio, a base da estátua; se permanecesse deitada, como estava antes de ter
sido erigida, seria desproporcional. Em outros termos,proporção/desproporção
é função da distância do ponto de observação próprio: não qualquer distân
cia, mas distância adequada, correta, em cada caso67.
66. Cf. Platão, Le sopkiste, 2. ed. revue et corrigée, texte établi et traduit par Auguste Diès, Paris, Belles
Lettres, 1950, 235 b, 236 c. O exemplo platônico é desenvolvido por Wesley Trimpi, op. cit., que sigo
de perto, aqui.
67. Cf. a discussão de Sócrates e Glauco, na República, sobre a visão dos dedos da mão. Aproximados
do olho, os dedos médio, anular e mínimo são percebidos com confusão: o olho identifica-os como
dedos, mas vacila quando o dedo anular parece menor em relação ao médio e maior em relação ao
mínimo. Ele parece ser pequeno e grande ao mesmo tempo, aparência da sensação e escândalo da
inteligência que, dialeticamente, através de sucessivas análises, deve chegar às idéias de Pequenez e
Grandeza para desfazer a ilusão. O dedo anular parece grande se observado junto com um dedo, o
mínimo; pequeno, se observado com outro, o médio. Trata-se do tamanho relativo - da proporção.
Cf. Wesley Trimpi, “The Early Metaphorical Uses...”, op. cit., p. 405.
326
0 O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O
327
A SÁTI RA K O E N G E N H O
figuras maiores do Rei e Deus. A sátira teatraliza, desta maneira, uma distân
cia dupla: uma, que se estende entre a forma clara e a forma obscura, propor
cional e desproporcional, icástica e fantástica, alcgoriza a outra, a distância
hierárquica, que dá sentido pleno a todas as formas, claras e obscuras, próxi
mas e distantes, particulares e públicas, icásticas e fantásticas.
Platão também escreve que os afetos de dor ou de prazer, quando vistos
de muito perto ou de muito longe, aparecem maiores ou menores que na
realidade. Se o observador pudesse ajustar sua distância apropriadamente,
seria capaz de abstrair de ambas as imagens o aparente e irreal excesso ou
inferioridade. Em outros termos, sua percepção fantástica da magnitude dos
afetos de dor ou de prazer se tornaria uma percepção icástica das suas imen
sidades relativas68. Em termos do ut pictura poesis, a sátira ajusta a distância
apropriada que o destinatário deve assumir frente às deformações para mais
e para menos, quando faz a voz grave e séria da enunciação tematizar as mes
mas deformações, conferindo-lhes o sentido disfórico capturado pela sua in
terpretação prudente. Por isso mesmo, a fantasia satírica é uma técnica regrada
para a desproporção proporcionada: em outros termos, ela produz imagens
inverossímeis segundo imagens verossímeis do objeto satirizado. Ela as pro
duz, contudo, para propor o inverossímil em outro registro de adequação:
aquele em que a voz da enunciação, também apenas verossímil, avança suas
metáforas como palavras de verdade:
S e m p r e v ê e m , e se m p re falam ,
até q u e D e u s lh e s d e p a r e ,
q u e m lh e s faça d e ju stiç a
e s ta sátira à c id a d e .
68. Platão, Philèbe, texte établi et traduit par A, Diés, Paris, Belles Lettres, 1949, 42 a c; W. Trimpi, op.
dl . p. 407.
328
O O R N A T O D I A L É T I C O E A T I N T U R A DO MI S T O
[...] s e n d o d e p l o r á v e l o n d e s e r e p u t a v a f e l i z , o s t e n t a v a c o m o t r o f é u s a s s u a s r u í n a s .
E stas e r a m a g u d e z a s e s p a n t o s a s e m e tá fo r a s f le b ilm e n t e r id íc u la s, im it a d a s d e p o is p e
lo s m o d e r n o s p o e t a s d a l o u c u r a d e O r l a n d o e d e A r m i d a : o n d e t u o u v e s tam os despropó
sitos a propósito, c o m o a c o n t e c e c o m o s grillos d o s p i n t o r e s , nada é mais artificioso que
pecar contra a arte, n a d a m a i s s e n s a t o q u e p e r d e r o s e n s o 60.
69. Emanuele Tesauro, op. cil., p. 33 (grifos meus, com exceção dçgrillos).
70. Paolo Beni, Aristotelis Poelicam Commeniarii (1613), cit. por Guido Morpurgo-Tagliabue, op. cit., p.
141.
71. G. Marino, “Lettera alio Stigliani”, Letiere dal I. G. B. Marino etc., Venezia, 1673, cit. por G. M.-
Tagliabue, op. cit., p. 149.
329
A SATI RA E O E N G E N H O
72. Nos dois primeiros capítulos do Levialhan, Hobbes conceitua a imaginação como uma “sensação
enfraquecida” e a identifica com a memória. Neste sentido, por ser operada por imagens, a agudeza
é fruto da memória. Observe-se também que a fantasia e o juízo são posicionais, conforme o mes
mo autor: no capítulo VIII, por exemplo, após conceituar o wil de forma muito semelhante à
conceituação de Tesauro e Gracián, Hobbes propõe que a fantasia encontra semelhanças ao passo
que o juízo descobre diferenças. Nesta linha, a agudeza pode decorrer de juízo sem fantasia, nunca
da fantasia sem juízo. Este é, como nos preceptistas italianos e ibéricos, condição da discrição. É o
mesmo juízo, manifesto como discrição, que justifica as maiores vulgaridades da fantasia. Cf. T.
Hobbes, Levialhan, London, Everymans Library, 1973.
73. Galaleo (Ovvero de’ costumi) é o tratado em que Giovanni delia Casa inventa a figura de um velho
iletrado que educa um rapaz e que raciocina sobre os modos que devem ser usados na conversação
comum. Como II libro dei Cortegiano, de Castiglione, fornece tópicas da conversação e das maneiras,
tendo sido adotado pela Companhia de Jesus em seus colégios. De Ballasar Gracián, vejam-se El
Discrclo, El Héroe, El Crilicón, Oráculo Manualy Arle de Prudência. O último deles - muito gira a
roda da Fortuna - foi traduzido no Maranhão, em edição proposta à recepção em chave astrológico-
cabalística muito adequada à maranha do país. Oráculo Manualy Arte de Prudência é um repertório
de ocasiões e de receitas para a dissimulação prudente com que o discreto deve agir. Cf. Giovanni
Delia Casa, Opere di Castiglione, Delia Casa, Cellini, a cura di Cario Cordié, Milano-Napoli, Riccardo
Ricciardi Editore, 1960; Baltasar Gracián, Obras Completas, Madrid, Aguilar, 1967.
74. Cf. OC, II, p. 431: “já temos o Canastreiro, / que inda fede a seus beirames, / metamorfosis da terra
/ transformado em homem grande”.
330
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O
75. Cf. Emílio Orozco, “Estructura Manierista y Estructura Barroca en Poesia (Con el Comentário de
unos Sonetos de Góngora)”, Manierismoy Barroco, 2. ed., Madrid, Ediciones Cátedra, 1975.
76. Em termos genéricos, o “maneirismo” propõe a obra como fim, o “barroco” a instrumentaliza,
mesmo o mais metafórico e hermético “cultismo”, porque todas as oposições são espelhos da seme
lhança, que neo-escolasticamente remete à unidade da Causa Primeira. Cf., a propósito da redução
estilística do “maneirismo” à tensão de opostos “barroca”, Mareia B. Hall, Renovalion and Counicr-
Refonnalion. Vasari and Duke Cosimo in Sia. Maria Novella and Sia. Croce 1565-1577, Oxford, Warburg
Studies, Clarendon Press, 1979, pp. 43-51.
331
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
porque mista, é inverossímil, por isso mesmo apta para representar o tipo
vulgar para um público efetuado como vulgar.
Não importa seu efeito maravilhoso de aproximação e fusão de concei
tos distantes, não importa sua técnica analítica de divisão prismática de
metáforas e argumentos, a agudeza permanece sempre binária e, princi
palmente, dependente de uma teoria da analogia - portanto, da unidade
metafísica alegada nas semelhanças quando o poeta opera dialética e
retoricamente o jogo das diferenças, oposições e contradições. O gênero
metafórico que sintetiza espécies antitéticas mantendo-as em tensão sem
pre funde duas espécies de conceitos, sendo a fusão uma alegoria da unida
de pressuposta em acidentes, velho tema teológico das linguagens mudas
da natureza, sombras e vestígios agostinianos e escolásticos do divino, re
batidos na natureza da linguagem77. Da mesma maneira, a operação
dialética exercida sobre a disposição do discurso sempre resulta em estru
turas sintáticas que são diagramas da mesma operação intelectual de apro
ximar coisas e imagens extremas de forma binária. A presença absoluta do
quiasma nessa poesia - como anagrama, antimetábole, inversão da ação,
trocadilho, labirinto e outras formas da especularidade - é decisiva. E re-
dutor propor o quiasma como figura acessoriamente ornamental do estilo,
apenas, pois ele é a concreção da síntese disjuntiva da agudeza. Inversão
dialética de sujeito e predicado, o quiasma também é, simultaneamente,
alegorização do Um onipresente sempre em fuga, desejo maníaco de Tota
lidade refratada em pedaços:
M ad rasta d o s N a tu r a is
e dos Estrangeiros madre.
(<O C , II, p. 4 2 9 . )
Visconde,
[...] a m i z a d e s d e u m
favores de u m Conde vis.
(OC, IV, p. 896.)
77. Por exemplo, como allegoria in factis e interpretação tipológica da História, corrente em Vieira,
Saavedra Fajardo, Bernardes, Gracián, Tesauro, na tradição Gregório de Matos e outros autores do
século XVII, cujo discurso encena a Escolástica reciclada.
332
A
O ORNATO D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O
78. C f. G i l l e s D e l e u z e , “ N o t e s u r le s r a p p o r t s d e la p e i n t u r e a n c i e n n e a v e c la f i g u r a t i o n ” , e m Francis
Bacon, Logique de la sensation, 2 mce d . a u g m e n t é e , L a C o l l e - s u r - L o u p , A u x É d i t i o n s d e la d i f f é r e n c e ,
1 9 8 4 , 2 v o ls ., v o l. I, p . 14.
333
A SÁTIRA E 0 ENGENHO
334
O ORNATO D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O
Vós lereis uma composição agudíssima à maneira moderna. Cada cláusula é uma
sentença e cada sentença leva sob si a sua ponta; cada forma de dizer tem sua luz
ecada luz observa aoutra como esquadro; cada epíteto é um conceito em quintessência e
cada conceito fala mais do que diz ou diz mais do que soa: nenhuma palavra, em suma,
entra pelo olho que não passe pelo arco do triunfo do cílio admirador82.
“Vós lereis”, escreve Tesauro, referindo composição escrita para ser lida
de perto e várias vezes: os “cultos modos” são adequados. Louvando o ornato
dialético como agudeza e proporção simétrica da analogia que são legíveis na
mesma articulação binária e sintaticamente paralelística de seu texto, Tesauro
também postula o discurso como ut pictura. Por propor a condensação dos
significados, por desdobrá-los aos pares, por afirmar a maravilha como efeito
sempre louvável, a mesma composição hipervaloriza o artifício. O que, em
função do mover os afetos produzindopathos, facilmente é incongruência. In
congruência regrada, contudo, como “composição agudíssima”, que maravi
lha quando lida de perto, repetidas vezes, em particular. Em outros termos, a
mesma preceptiva que prescreve a agudeza como proporção incongruente
adaptada ao maravilhamento da leitura - “arco do triunfo do cílio admira
dor” - também delimita seu outro: na audição pública, a mesma agudeza fere
335
A S Á T I R A F, 0 E NGE NHO
336
É
O O R N A T O D I A L É T I C O F. A P I N T U R A D O M I S T O
Conheci um engenho muito bom, mas impetuoso, que, quando lhe tocava a vez de
pregar, julgava-se muito glorioso secom conceitos mordazes eescrituras de duplo senti
do podia trespassar aquele que tomava por alvo; donde costumava dizer: “Vamos à sáti
ra”. Isto évício danoso para quem fala e para quem escuta: porque aquele, emvez de vir
tuoso sedeclara malvado; eeste, nãocompungido, mas pungido eescandalizado separte55.
337
A S ÁT I RA E 0 E N GE N H O
nimo - mesmo nome para duas coisas - fazendo as vezes de sinônimo - dois
nomes para uma coisa só de modo que todas as diferenças da homonímia,
efetuadas segundo extensa abertura semântica, são absorvidas na semelhança
sonora dos termos, “sinonímia”, como técnica vocabular da disseminação e
coleta. Assim, por exemplo, “Cura” (padre), “cura” (cuidado; preocupação);
“cura” (salvação; remédio); “curado” (prelazia; sanado); “cura são” (coração;
objeto erótico); “curador” (curandeiro; pactário; bruxo); “cuidar” (cuidar;
pensar; preocupar-se), além dos ecos em “procura”, “loucura”, espelhamento
generalizado em que tudo significa tudo - e nada:
338
O ORNATO D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O
339
A SÁTIRA E O ENGENHO
89. C f ., d o m e s m o r o m a n c e , e x e m p l o d e a ç ã o n a r r a d a c o m f u n ç ã o d e s c r i t i v a , t i p i f i c a d o r a : “ V o s s o p a i
v o s a m a s s o u , / p o r é m c o m m i s é r i a t a n t a , / q u e t e m e u a n a t u r e z a , / q u e a l g u m m e m b r o v o s f a lta r a ,
/ [...] / V ó s d e v í e i s d e s e r f e i t o / n o t e m p o , e m q u e a l u a a n d a / p o b r í s s i m a já d e l u z , / c o r r e n d o a
m in g u a n te q u a r ta ” .
340
O ORNATO D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O
Passou o surucucu,
e como andava no cio,
com um e outro assobio,
pediu a Luísa o cu:
Jesu nome de Jesu,
disse a Mulata assanhada,
se você é cobra mandada
que me quer ferir da escolta
dê uma volta, e na volta
poderá dar-me a dentada.
341
A SATIRA E 0 E N G E N H O
90. O m o t e é: “ E m q u a l q u e r r i s c o d e m a r / q u e r e i s , S i l v e s t r e , s e r E m a ; / s e a E m a n o m a r n ã o r e m a , /
c o m o v o s h e i d e s a l v a r ? ” ( O C , V I, p . 1 3 1 2 ) . N a e d i ç ã o J a m e s A m a d o , o m o t e c o n j u g a “ h e i ” , em
p r im e ir a p e s s o a ; c o m o se v e rá , a e s tr u t u r a a le g ó ric o -s ilo g ís tic a d o p o e m a e x ig e “ h e is ” , s e g u n d a do
p lu ra l.
342
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O
( O C , VI, p p . 1 3 1 2 - 1 3 1 3 . )
343
A SÁTI RA E O E N G E N H O
Todas as décimas apresentam a divisão habitual que faz dos quatro primeiros
versos um exórdio e, dos restantes, uma demonstração dos primeiros, por meio
de ações narradas. Assim, por exemplo, a primeira décima se constrói como
demonstração amplificada do ridículo de Silvestre, já efetuado no exórdio
pelas qualificações “manemo”, “cagão”, “coitado”. A disposição é silogística,
feita como entimema que apresenta a conclusão como resultado da analogia
de duas proposições91. Desta forma, Silvestre passa de branco a preto porque
deseja ser Ema, a que falta o remo da pata para nadar.
A relação de “branco”, “preto”, “Ema” e “nadar” não é clara, num pri
meiro momento, mas explicita-se artificiosamente como conceituosidade
engenhosa, quando se retoma o exórdio da primeira décima e aí se lê a carac
terização da Ema, no masculino: “negro Emo”. Referido à ave a que falta o
“remo da pata” -trocadilho de “pé”, “remo” e “ave”, reciclado em “patos”,da
segunda décima, e “gema”, da terceira - o adjetivo “negro”, que denota a cor
das penas da ave, funde vários conceitos, com o/raça/,/'imprudência/,/here
sia/. Seu uso denotativo como adjetivo para a cor da ave e sua aplicação meta
fórica simultânea permitem afirmar a inadequação ridícula do desejo de Sil
vestre. Ele é um “branco indiscreto”, isto é, imprudente e néscio: é que, ao
desejar ser “negro Emo” (/cor/, /ave/), Silvestre deseja passar de “branco” a
“preto”, mudando de raça. A caracterização acidental da cor da ave - “negro”
- é retomada como substancial, segundo outra referência - /raça/. Em outros
termos, o sentido literal de um registro - “negro” - é interpretado como cono
tação de raça e, simultaneamente, a metáfora é reproposta como literalidade:
da qualidade “negro” passa-se ao ridículo de uma ação despropositada, inviável
e estúpida, porque indiscreta: ação própria de negro, segundo tópica retórica
do escravismo colonial. Como deslocamento, a ação é retomada na forma de
sentenças programaticamente ineptas, que mimetizam parodicamente as pre
missas negativas e a conclusão positiva de um silogismo. Não chegam a for
mar premissas, aliás, mas enunciados analógicos:
As Em as no m ar não vogam ,
q u e n ã o são p a to s m o d e r n o s,
os p reto s n ã o são etern os.
91. Ema não nada, Silvestre deseja ser Ema, / Silvestre deseja não nadar.
0 0 RN A I D D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O
p o rq u e se a E m a se afoga
C o m o v o s h e i s d e s a lv a r ?
345
A SÁTI RA E O E N G E N H O
93. Exemplo jocoso é o de poemas como preterição, em que a enunciação fática metaforiza a vileza ou
insignificância do lipo e da pessoa a que o tipo é referido, como o soneto dirigido ao Conde de
Ericeira, referido páginas atrás. Outro exemplo é o do jogo das formas homônimas que efetuam o
sinônimo e a identidade na grande dispersão dos eventos narrados. É o caso do poema já referido
em que tal jogo se faz com o termo “Cura”.
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O
347
A SÁTI RA E O E N G E N H O
348
0 O R N A T O D I A L É T I C O E A T I N T U R A DO MI S T O
Q u e p o d e f a c ilm e n t e o m u it o lixo,
Por não lim p a r às v ez e s o m ataco,
T e rem -lh e o s c a x a n d és tapad o o esg u ich o .
(OC,V,p. 1110.)
complexo de arbitrariedades e desconcertos.” Cf. I. Accioli & Brás Amaral, Memórias Históricas e
Políticas da Bahia, Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1925, vol. II, p. 136.
106. Cf. OC, II, p. 387.
107. Cf. Wolfram Krõmer, op. cií., p. 79.
349
A SÁTI RA E O E N G E N H O
( O C , II, p. 3 4 1 . )
que se lhe ponha?..................Vergonha / O demo a viver se exponha, / por mais que a fama a
exalla, / numa cidade, onde falta / Verdade, Honra, Vergonha”. (OC, I, p. 31.)
111. Cf. Heinrich Lausbcrg, Manual de Retórica Lileraria (Fundamentos de una Ciência de Ia Literatura),
Madrid, Gredos, 1975, 3 vols., vol. 11, pp. 230-231.
112. Cf. Quintiliano, De institutione oratoria, 6, 1,31.
113. Cf. “Satiriza o poeta alegoricamente alguns ladrões, que mais se assinalaram na República, abomi
nando a variedade, e o modo de furtar” (OC, II, pp. 455-461).
351
A SÁTI RA E O E N G E N H O
114. A sátira elimina do criticado tudo quanto não é pertinente no ataque, articulando alguns traços carac
terísticos. Por exemplo, em Quevedo: “Habíale crecido lanlo el ojo, que no lo cabia en la cara”, referindo-
se à vítima de um alquimista, que pensa nos milhões que ele promete. Cf. F. de Quevedo, “Alquimis-
ta”, La Hora de Todosy la Fortuna con Seso, Paris, Aubier, 1980, cap. XXX, p. 256 (Collection Bilingue).
Cf. na poesia atribuída a Gregório: “Angelinha do Sapato, / valeria um pino de Ouro, / porém tem o
cagadouro/ muito abaixo” (OC, VII, p. 1589); “Vestido de burel um salvajola / Que partes podes ter?
/ de mariola” (OC, II, p. 340); “como sois Padre Miranda, / o vosso podre tresanda” (OC, II, p. 287);
“passeia farfante / muito prezado de amante, / por fora luvas, galões” (OC, II, p. 443); etc.
115. Cf. Ricardo de Turia,Apologético de las Comédias Espanolas (1616), em F. S. Escribano y A. P. Mayo,
op. cit., p. 152. As críticas que são de ocasião e tomadas das especialidades das circunstâncias são as
mais engenhosas, segundo Gracián, porque se conceitua com fundamento. Cf. Baltasar Gracián,
“Discurso XXVII - De las crisis irrisórias”, Artificioy Arte de Ingenio em Obras Completas, Madrid,
Aguilar, 1967, p. 364.
116. Cf. Aristóteles, Poética, 4 ,144Bb 17. Cf. também K S. Escribano y A. P. Mayo, “La Comédia Espanola
en el Siglo XVII” , op. cit., pp. 47-48: “Por encima dei 'decoro’, el siglo XVII, por un forte sentido estético,
cubrió la acción - esto es, la represento - con una leclónica pictórica en que la bellesa e no la mera imilación
352
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O
Por isso, o fim da sátira é a imitação como mímese de caso, discurso de ações
e de caracteres, pintura cuja execução contrafaz o natural, ora por efetuação
de mistos, ora por “hiper-realismo” do fingimento do natural. Justapostas
como mistura estilística, as metáforas pictóricas da sátira deformam, inver
tem e intensificam aquilo que, na conceituação aristotélica do trágico, é uno
e justo: o caráter.
es más importante que esa acción, por lo que lo psicológico queda mitigado y oscurecido. Este esteticismo
responde a dos princípios estéticos: la idea de que la Naturaleza por mucho cambiar es bella e el principio de
ul pictura poesis. Desde eslepunto de vista podria decirse que toda acción de la comedia espanola es siempre
um metáfora pictórica. Es, pues, errôneo creery seguir afirmando, como todavia se hace, que a los personajes
de la comedia espanola lesfalta psicologia opersonalidadpropia". O que é válido para a sátira , substituin-
do-se “beleza” por “grotesco”.
117. Cf. Juan de la Cueva, Ejemplar Poético (1606), em F. S. Escribano y A. P. Mayo, op. cit., p. 119.
353
A SÁTIRA E O E N G E N H O
118. Cf. Lope de Vega, Arte Mucvo dc hacer Comédias en este Tiempo, em F. S. Fscribano v A. P. Mayo, op.
cil., w. 174-180, p. 130.
119. Idcm, w. 190-193, p. 130.
120. Idem, w. 375-376, p. 135.
354
O O R N A T O D IA L É T I C O L: A P I N T U R A DO ,M ISTO
O F id a lg o esclarecid o
traz d e lo n g e a d e s c e n d ê n c ia :
m a s F id a lg o de in flu ên cia
se m ter so la r c o n h e c id o ,
c F id a lg o in tr o d u z id o
e n f r o n h a d o e m f i d a l g u i a 122.
121. Cf., por exemplo, OC, IV, p. 857, em que se contrapõem mito cavalheiresco e vulgaridade: “O secu
lar entendido, / encolhido e mesurado / não pede de envergonhado, / não toma de comedido: /
cortesmente de advertido; / e de humilde cortesão,/ se declara a sua afeição, e como se agravo fora,
/ chama-lhe sua Senhora, / chama-lhe, e pede perdão”.
122. Cf. também OC, IV, p. 907. A título de exemplário das virtudes do cavaleiro cristão, veja-se El
Condi Lucanor, do Infante Dom Juan Alanuel, Ciudad de La Ilabana, Editorial Arte y Literatura,
1984. Nos séculos XVI e XVII El Conde Lucanor é recomendado como livro de cabeceira de discretos
por Castiglione e Gracián. Cf., ainda, sobre tais virtudes - honra, coragem, liberalidade, fé, genti
leza: OC, I, pp. 5, 142, 152, 153, 154, 165, 170, 176, 177, 178, 179, 182, 183, 191, 192, 199, 203, 213,
217, 226, 227; OC, II, pp. 250, 279, 297, 340, 341, 352, 355, 357, 358, 405, 408, 430, 443, 453, 465,
466,468, 473, 474, 475, 491; OC, III, pp. 646, 647, 649, 651, 716, 723,737; OC, IV, pp. 804, 805, 83S,
839, 895, 896, 898, 899, 900, 901, 902, 904, 910; etc.
355
A SÁTI RA E O E N G E N H O
123. Cf. Manara Valgimigli, “Introduzione", em Aristóteles, Poética, Bari, Laterza, 1946, pp. 26 e ss.
124. Cf. OC, I, pp. 175-178. Por exemplo, elogio do bom governo: “Digo, que vai desta Praça, / onde em
público teatro / vemos do melhor governo / os mais heróicos ensaios”; tradução das virtudes por
“luz” e afins: “Luminar esclarecido” (175); “Por vossa ausência / às escuras / fica a terra, e não me
espanto,/de que quando o sol se ausenta, / se ausentem da Luz os raios” (177); “A vista dos nossos
olhos/éreis [...] / sem vós cegos ficamos” (177); sublimidade da virtude: “Nesta assistência tão breve
/ nos mostrou o desengano / não ser para pecadores/o comércio de tal Anjo” (178). Cf. também os
sonetos elegíacos - OC, 1, pp. 179, 180, 181, 182 - que ornamentam o Conde em “flor” e “luz”,
“sujeita à pensão fera do morrer” (OC, I, p. 181).
356
jt
O ORNA T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O
125. Cf. Francisco de Quevedo, “Dedicatória” (“A Don Álvaro de Monsalve, Canónigo de la Santa Iglesia
de Toledo, Primada de las Espanas”), op. cit., p. 176: uEl iraiadillo, burla burlando, es de veras. Tiene
cosas de las cosquillas, pucs hace reír con enfado y desesperación
Como se leu no capítulo III deste, subentende tal concepção a interpretação da natureza humana
de Santo Agostinho, reciclada em chave contra-reformista pelos jesuítas ibéricos dos séculos XVI e
XVII. Como na sátira romana de Juvenal, a representação efetua a convicção de que o homem é
malvado por natureza e de que os contemporâneos atingiram o limite da corrupção. Cf. Michele
Bevilacqua, Sulla Storia delia Salira Romana, Roma, Editrice Elia, s/d., p. 118, Ed. litográfica.
Subentende tal concepção o pressuposto racional; cf. OC, IV, p. 939: “A diferença, que há / entre o
homem, e entre o bruto, / é da razão o atributo, / que Deus aos homens nos dá: / logo mais homem
será / o homem, que é mais sagaz, / mais homem o mais racional”.
357
A SÁTI RA E O E N G E N H O
Já s i n t o , q u e m e i n f l a m a , o u q u e m e i n s p i r a
T alia, q u e A n jo é da m in h a g u ard a,
D ê s q u e A p o io m a n d o u , q u e m e assistira.
A rd a B a io n a , e to d o o m u n d o arda,
Q u e , a q u e m d e p r o f is s ã o falta à v e r d a d e ,
N u n c a a D o m i n g a d a s v e r d a d e s tarda.
N e n h u m te m p o e x c e tu a a C rista n d a d e
A o p o b r e p e g u r e ir o do P arnaso
Para falar e m su a lib e r d a d e .
A na rra çã o há d e ig u a la r ao caso,
E se ta lv e z ao c a s o n ã o ig u a la ,
N ã o te n h o por P oeta, o q u e é Pegaso.
D e q u e p o d e s e r v i r c a la r , q u e m c a l a ,
N u n c a s e h á d e f a la r , o q u e s e s e n t e ?
S e m p r e s e h á d e s e n t i r , o q u e s e fala!
O n é sc io , o ig n o ra n te , o in ex p erto ,
Q u e n ã o e le g e o b o m , n e m m a u reprova,
P or t u d o p assa d e s lu m b r a d o , e in certo.
E q u a n d o v ê t a lv e z na d o c e trova
L o u v a d o o b e m , e o m al v itu p era d o ,
A t u d o faz fo c in h o , c n a d a aprova.
358
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO Al ISTO
D iz logo p ru d en ta ço , c repousado,
F u la n o é u m satírico, c u m lou co,
D e lín gu a m á, de coração danado.
S e s o u b e r a s fala r, t a m b é m f a l a r a s ,
T a m b é m satirizaras, se sou b eras,
E se f o r a s P o e t a , p o e t i z a r a s .
H á b o n s, por n ão p o d e r ser in so le n te s,
O u tr o s há c o m e d id o s d e m ed ro so s,
N ã o m o r d e m o u tr o s n ão, por n ão ter d en tes,
U m a s ó n a t u r e z a n o s fo i d a d a :
N ã o crio u D e u s os n a tu ra is d iv erso s,
U m só A d ã o f o r m o u , e e s s e d e n a d a .
T o d o s s o m o s ru in s, to do s preversos,
Só n o s d is tin g u e o v ício , e a v irtude,
D e q u e u n s são c o m c n s a is , ou tr os adversos.
Q u e m m a i o r a t iv e r , d o q u e e u t e r p u d e ,
E s se só m e c e n s u r e , esse m e n ote,
C a l e m - s e o s m a is , c h i t o m , e h aja sa ú d e.
( O C , II, p p . 4 6 9 - 4 7 1 . )
359
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
A t é a q u i e u e s p e c i f i q u e i p a r a ti d u a s d i f e r e n ç a s d e D e f o r m i d a d e s r id í c u l a s : u m a F í
sica, a ou tr a M oral: e d e m o n s t r e i q u e a M o r a l c o n s is te n o s V íc io s v e r g o n h o s o s , n ã o n o s
O p o s t o s , a i n d a q u e e s t e s s e j a m m a i s n o c i v o s . A s s i m , o d i z e r “ Z o i l o é u m l a s c i v o ” se r á
M a t é r i a d e b r i n c a d e i r a s r i d í c u l a s , “ Z o i l o é u m p a r r i c i d a ” : n ã o se r á M a t é r i a d e r is o , m a s d e
e s p a n t o . A s s i m , o m o t e j o s o b r e a p r i m e i r a é R I D ÍC U L O ; s o b r e a o u t r a , M A L E D I C Ê N C I A ^ .
P o i s u m a D e s o n e s t i d a d e a t r i b u í d a a T a i s se r á j o c o s i d a d e ; a L u c r é c i a , s e r á m a l e d i
c ê n c ia . T a m b c m u m g r a v e d e lito , p o r q u e é d ifa m a d o e p ú b li c o , se to rn a rá M a té r ia de
r i s í v e i s M o t e j o s 128.
7216
126. Cf. Emanuele Tesauro, “Capitolo XII: Trattato de’ ridicoli”, op. cit , p. 355.
127. Aristóteles, Poética, 2.
128. E. Tesauro, op. cil., p. 356.
360
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O
Já s in t o , q u e m e i n f la m a , o u q u e m e in sp ir a
T alia, q u e A n j o é da m in h a gu a rd a ,
D ê s q u e A p o io m a n d o u , q u e m e assistira.
A r d a B a io n a , e to d o o m u n d o arda,
Q u e , a q u e m d e p r o f i s s ã o f a l t a à v e r d a d e 1-1'
N u n c a a D o m i n g a d a s v e r d a d e s tarda.
N e n h u m te m p o ex cetu a a C rista n d a d e
A o p ob re p e g u r e ir o d o P arnaso
Para falar e m sua lib erd a d e.
129. O verso “Que, a quem de profissão fala a verdade” c mais lógico neste contexto, pois “falar a
verdade” é próprio da atividade satírica inflamada por Talia; “falta à verdade” implica uma tercei
ra pessoa, objeto virtual de sátira, que é tematizada adiante.
130. Cf. Emanuele Tesauro, op. c i t . , p. 29: “ Q u e s t o s i v e d e a c h i a r o n e ’ s a c r i p r o f e l i , le c u i m e r a v i g l i o s e v i s i o n i
a l l r o n o n e r a n o c h e s i m b o l i m e t a f o r i c i e a r g u t e z z e d i v i n e , s u g g e r i t e lo r o d a l s a c r o S p i r i t o ” .
361
A SÁTI RA E O E N G E N H O
S e m p r e v e e m , e se m p r e falam ,
a té q u e D e u s l h e s d e p a r e ,
q u e m l h e s faça d e justiç a
esta sátira à c id a d e .
( O C , II, p. 4 3 4 . )
O torrão é f e c u n d o
P a r a a ta l e r v a S a n ta :
P o r q u e e s t a n e g r a t erra
N a s p r o d u ç õ e s , q u e erra,
C ria v e n e n o s m a is q u e b o a planta:
C o m ig o a prova ord en o,
Q u e m e cr io u para m ortal v e n e n o .
( O C , V , p. 1 2 2 2 . )
A n arração há d e ig u a la r ao caso,
E se t a lv e z ao c a s o n ã o ig u a la ,
N ã o te n h o por P oeta, o q u e é Pegaso.
362
Â
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O
131. Cf. José Pellicer de Tovar, Idea de la Comedia de Caslilla. Precepios dei Teatro de Espana y Arte dei
Estilo Moderno Cômico etc., em 1: S. Escribano y A. P. Mayo, op. cit., p. 223: “El octavo precepto es la
elección dei caso, ya sea histórico, ya apócrifo. Porque hay sucesos cn la história y casos en la invención
incapaces de la publicidad dei lealro...” (grifos meus).
132. Quintiliano, De insliluiione oratória, 4,2, 31: “narralio est reifaclae aui ul faclae iililis adpersuadendum
exposilio, vel- ui Apollodorus finit - oralio docens audilorem quid in controvérsia sit”.
133. Cf. Heinrich Lausberg, op. cit., vol. II, p. 261.
134. Martianus M. 1). Capella,Liberde arte rhelorica, em Rhetores LatiniMinores, Ex Codicibus Maximam,
Partem Primum Adhibitis, Emmendabat Carolus Halm, Lipsiae, em Aedibus B. G. Teubneri A.
M D CCCLXIII. Reed. por Brown, Wm. C., Dubuque, Reprint Library, s/d., 46, p. 486. Cf. ainda H.
Lausberg, op. cit., p. 261.
135. Cf. Quintiliano, op. cit., 4, 2, 31: “ncgolii de quo apud iudiccs quaerilur exposilio".
136. Segismundo Spina, Gregário de Matos, São Paulo, Ed. Assunção, s/d., p. 1Ü7. Comentando este verso,
Spina escreve: “Pegaso - por Pégaso, o cavalo alado, nascido do sangue de Medusa, que com uma
patada fez nascer a fonte de Hipocrene, inspiradora dos poetas. Deve entender-se: se o talento literá
rio do poeta não for bastante para a elaboração poética do assunto, pouco valor tivera a invocação de
Ilipocrene”. Podendo certamente designar o cavalo alado da mitologia - “Não tenho tal por poeta o
que é cavalo" -, conferindo-se a “Pegaso” a conotação de irracionalidade corrente nos muitos “nés
cio”, “burro", “asno”, “jumento", “frisãode Alpujarras” das sátiras, sugere-se aqui mais uma conotação
de “Pegaso”, que situa o poema no intertexto da sátira romana. Na “Sátira IV”, Juvenal refere um
enorme peixe pescado perto de Ancona, quando Domiciano é imperador. O César convoca o conse-
363
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O
todo caso, “igualar ao caso” não implica “realismo”137. Observe-se que, após esta
estrofe, o poema começa a fazer o que prescreve: as duas estrofes seguintes são
uma digressão que amplifica as razões para satirizar:
D e q u e p o d e se r v ir calar, q u e m cala,
N u n c a se h á d e f a la r , o q u e s e s e n t e ?
S e m p r e s e h á d e s e n t i r , o q u e s e fala!
Q u a l h o m e m p o d e h a v e r tão p a c ie n te ,
Q u e v e n d o o triste e s ta d o da B a h ia ,
N ã o ch o re, n ã o su sp ire, e n ão la m en te?
Mais uma vez, ut pictura poesis: a “fantesia”, aqui identificada a uma fa
culdade do engenho, que “iguala ao caso” ou naturalmente, ou por furor, ou
lho para decidir o melhor modo de cozinhá-lo. A situação é muito ridícula, pelo contraste entre a
solenidade dos argumentos e a futilidade do caso em deliberação. Entre os versos 72 e 118, Juvenal
elenca os conselheiros: o jurisconsulto Pegaso; Crispo, amante da boa vida; Rúbrio, um canalha;
Catulo, monstro de insensibilidade; etc. Depois da discussão, prevalece o parecer de um deles: cons
truir com urgência um prato capaz de conter o peixe. Basicamente, a sátira evidencia que as discus
sões igualam ao caso de modo ridículo. Cf. Alichele Bevilacqua, op. cit., p. 92. “Pegaso” admite, pois,
tal conotação, como “letrado néscio”.
137. No sentido, por exemplo, em que o texto abaixo interpreta o poema: “No decorrer da poesia, são
explicitados detidamente o pragmatismo crítico de sua postura lírica e determinadas tendências
marcantes de sua obra satírica. Uma delas é o realismo que, como característica inerente à crítica
de costumes pretendida, é desenvolvido através do visualismo das imagens e da utilização do léxi
co, eivado de coloquialismos e mesmo de palavras de baixo calão”. Cf. Angela Maria Dias, O Res
gate da Dissonância: Sátira e Projeto Político Brasileiro, Rio de Janeiro, Centro Dom Vital/INL, 1981,
p. 78.
364
à
O 0 RN ATO D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO . MISTO
O n é sc io , o ig n o r a n te , o in ex p erto ,
Q u e n ã o e le g e o b o m , n e m m a u reprova,
P or tu d o p a ssa d e s lu m b r a d o , e incerto.
138. Cf. Emanuele Tesauro, II Cannochiale Arislotelico, p. 26: “II nosiro autore [Arist.] discorrendo delta
melafora, la quale (si come per addielro accennammo e per inanzi dimostraremo) possiam chiamare grau
madre di tulle le argulczze, ci’nsegna che ire cose or separate, or congiunle fccondano la menle umana di si
marazigliosi conceui: cioè 1’ingegno, il furore e Vesercizio".
139. Citando e traduzindo Aluratori c Tesauro, Francisco Leitão Ferreira explicita as operações da
fantasia poética: “[...] de três modos se formam dentro de nós todas as imagens. O primeiro modo
é quando o entendimento as produz por si com a sua inata e eficaz virtude, sem que a fantasia se
ocupe em outro ministério mais que servi-lo com as espécies fantásticas, ministrando-lhas por
matéria. O segundo é quando o entendimento e a fantasia se unem para a produção das tais ima
gens. O terceiro é quando a fantasia por si só as fabrica, sem se aconselhar com o entendimento.
“A primeira produção acontece todas as vezes que o entendimento depois de haver bem julgadas e
escolhidas as imagens, que a fantasia primeiro apreendeu e lhe ministrou, deduz delas outras
imagens novas, que antes não concebera a fantasia. Vê o nosso entendimento que fantasia apreen
deu e o serviu com as imagens de inumeráveis homens; ele então as ajunta todas e de tantas ima
gens, ou apreensões particulares, que a apreensiva inferior havia recolhido, produz uma imagem
que antes não havia, concebendo a risibiltdade dos homens em abstrato, ou que todos os homens
são um só risível. Estas e semelhantes imagens são intelectuais e engenhosas, pelo artífice e pelo
artifício; e no grande número e formosura delas entram todos os raciocínios e reparos que faz o
entendimento; e porque os sentidos corporais não podem mandar nem produzir esta imagem, o
entendimento é só quem as concebe, e depois as faz apreender à fantasia. [...]
“A segunda produção sucede quando a fantasia aconselhando-se com o entendimento e ajudando-se
da sua luz, expõe as imagens que apreendeu por meio dos sentidos; ou também quando, unindo ou
separando tais imagens, dá forma e ser a outras novas, que antes não tinha em si; mas com tal
sujeição ao entendimento, que primeiro o consulta, que as exponha. [.,,]
“A última e terceira produção se faz quando a fantasia manda absolutamente com império na alma,
isto é, sem escutar ou executar os conselhos do entendimento, sem se ajudar da sua luz nem procu
rar a sua aprovação. Assim sucede nos sonhos, nos delírios, nos afetos veementes, nos frenesis e
hipocondrias e em outros sintomas semelhantes que acometem e desordenam o cérebro; porque
então o entendimento não exercita o seu governo, nem tem ação o seu domínio; a mão da fantasia
é que empunha então o cetro e rege a seu modo o reino das imagens”. Cf Francisco Leitão Ferreira,
“Nova Arte de Conceitos”, em Aníbal Pinto de Castro, Retórica e Teorização Literária cm Portugal
(Do Humanismo ao Neoclassicismo), Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1973, pp. 170-172.
365
A SÁTI RA E O E N G E N H O
140. José Pellicer de Tovar, Idea de la Comedia de Caslilla, em F. S. Escribano y A. P. Mayo, op. cit., p. 224:
“Para hablar de las cosas sagradas en actos sacramentales; y en comédias divinas, donde suelen plalicarse
disputas con herejes,forzosa es la teologia, tanto positiva como escolástica. Para decidir o sentenciar muchos
casos legales, la jurisprudência. Para sutilizar en la naturaleza dei amor, sus dislinciones y diferencias, la
füosojia naturaly moral. Para la aplicación de remédiosy antídotos, que son talvez necesarios, la medicina.
Para formar los escuadrones militares que se describen, la matemática, perspectiva, maquinaria y estática.
Para hablar de los cielos, la astrologia. Para pintar el globo terrestrey esférico, la cosmografía. Para demar
car el mundo, la geografia. Para manejar el computo de los tiempos, la cronologia. Para tratar los sucesos, la
historia. Para entender las cosas dei gobiemo, la política. Para las pinturas, la simetria. Y no esjusto que él
que trata de escribir con propried vaya a consultar cada matéria destas? Pues si no las esludia, ya se ve
cuantos errores ha de contraer”.
“Igualar ao caso” supõe, assim, o domínio de vários códigos, o que é característica do discreto, aliás.
366
O 0 R N A T O D I A L É T I C O 15 A P I N T U R A D O M I S T O
367
A SÁTI RA E O E N G E N H O
O poder encenado de mandar calar os que não são virtuosos, isto é, poder
de hierarquizar e classificar desclassificados, na sátira é complementar da
assunção da ação reta. Tecnicamente, portanto, implica a mistura satírica,
tratada aqui conforme os casos a que a narração deve igualar e os procedi
mentos metafóricos que ordenam os caracteres e tipos viciosos. Trata-se das
tópicas e processos de uma ars laudandi et vituperandi. Em outras palavras, do
gênero epidítico ou demonstrativo.
No Apologético de las Comédias Espanolas referido no início deste capítu
lo141, Ricardo de Turia defende a tragicomédia de seus críticos tradicionalis
tas, como se viu. Segundo estes, a poesia cômica não pode admitir persona
gens graves e sérias, como reis, imperadores e mesmo papas, nem o estilo
adequado a elas, uma vez que o cômico, por implicar o ridículo e o ínfimo,
exige também caracteres inferiores e estilo baixo. Da mesma maneira, são
inverossímeis pastores tão discretos, tão filósofos morais e naturais, como se
tivessem freqüentado as universidades mais famosas142. Rebatendo as críti
cas, Turia escreve que nenhuma comédia espanhola contemporânea é apenas
cômica, mas tragicomédia, que define: “[...] um misto formado do cômico e do
trágico, tomando deste as pessoas graves, a ação grande, o terror e a comisera
ção; daquele, o negócio particular, o riso e os donaires”143.
A seguir, recitando Aristóteles, demonstra a diferença entre uma obra
composta e outra mista. A distinção de Turia é pertinente para caracterizar a
141. Ricardo de Turia, Apologético de las Comédias Espanolas (1616), em F. S. Escribano y A. P. Mayo, op.
cit., p. 152.
142. Idem, p. 148. A argumentação de Turia é dirigida contra, por exemplo, críticos como Cristóbal
Suárez de Figueroa, adepto dos antigos, que escreve: “No se acaban de persuadir estos modernos
que, para imitar a los antiguos, debrían llenar sus escritos de sentencias morales, poniendo delante
los ojos aquel loable intento de ensenar el arte de vivir sabiamente, como conviene al buen cômico,
no obstante tenga por fin mover !a risa”. Cf. Cristóbal Suárez de Figueroa, Plaza Universal de Todas
Ciênciasy Aries (Madrid, 1615), em F. S. Escribano y A. P. Mayo, op. cit., p. 146.
143. Ricardo de Turia, Apologético de las Comédias Espanolas, em F. S. Escribano y A. P. Mayo, op. cit., pp.
148-149.
368
Â
O O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO M I S T O
sátira, assim, tanto pelos casos, quanto pelos caracteres e tipos que esta ence
na como misto poético.
A diferença fundamental entre o composto e o misto é a da ordem e a do
resultado: no misto, várias partes juntadas perdem sua forma original e fazem
uma terceira matéria muito diferente delas; no composto, cada parte se conserva
como era antes, sem alterar-se. Segundo Turia, o que decorre da composição não
é um terceiro alterado em diferente forma, mas dois “corpos” que permanecem
o que eram antes de serem compostos, tanto em ato quanto em potência. Assim,
o resultado do misto é comparável ao fabuloso Hermafrodita, por contraste:
369
A SÁTI RA E O E N G E N H O
370
O ORNATO DIALÉTICO E A PINTURA DO M ISTO
to e misto se opõem como desintegração “maneirista” e integração “barroca”. Cf. Emilio Orozco, op.
dl., p. 169.
149. Aristóteles, Retórica, 3, 7, 2.
371
A SÁTI RA li 0 E N G E N H O
Nariz de embono
com tal sacada
372
á
O O RN' ATO D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO . MISTO
373
A SÁTI RA li O E N G E N H O
374
0 O R N A T O D I A L É T I C O H A P I N T U R A DO M I S T O
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A SATIRA E O E N G E N H O
376
0 ORNATO DIALÉTICO E A PINTURA DO M ISTO
A n im a d o para A n im a d o
[...] mui formosa Dona Urraca / [...] quem viu esta minhoca? / [...] focinho de Taoca, /
[...] a mim uma macaca (OC, V, p. 1110); Caveira mula galega,/ o D eãobw rinhaparda,/
Pereira besta de albarda (OC, II, p. 234); Cônego Abestruz (OC, IV, p. 871); [...] foi Lacaio
de libréia,/ passa aqui de rocinante (OC, IV, p. 904); Frade caracol, / bote esses cornos ao
sol (OC, II, p. 337); Por Frei Basílio sais de São Francisco / E entras Frei Basilisco (OC,
II, p. 339); Frei Buiro, ou Frei Cavalo (OC, IV, p. 801); [...] um Mulataço harpia (OC, II,
p. 329); [...] porque é mulato: / ler sangue de carrapato (OC, IV, p. 793); pedestre cavala
ria / toda de beiço furado (OC, I, p. 199); Furão das tripas, sanguessuga humana, / com a
lombriga racional se dana / [...] Papagaio humano tc perdeste (OC, II, p. 306); Vós sois
mulata tão mula (OC, VII, p. 1563) etc.
377
A SÁTIRA E O E N G E N H O
I n a n im a d o para I n a n im a d o 157
157. Quintüiano, De insliiutione oratória, 8, 6, 10: “inanima pro aliis generis eiusdem sumunlur, ul 'classtqM
iminil hahenas”’.
378
O ORNATO DIALÉTICO K A PINTURA DO MISTO
A n im a d o para I n a n im a d o
379
A SATI RA E 0 H N G H M I O
I n a n im a d o para A n im a d o
380
O OKNATO DIALÉTICO E A PINTURA DO MISTO
160. Cf. Lodovico Castelvetro, Poética DArislolele Vulgarízzala eSposla, a cura di Werther Romani, Roma-
Bari, Gius. Laterza & Figli, 1979, 2 vols., vol. II, pp. 37-38.
381
A SÁTIRA K O E N G E N H O
161. Harry Caplan, Rethoric ad Herennium, Cambridge, Harvard University Press, 1954, p. 173.
162. Ileinrieh Lausberg, op. cit., vol. I, p. 211. “Tanto o elemento ‘yirtuosista’ (Vari pour l’art) como
também a seleção dos assuntos do discurso fazem que o gentis demonstrativum se aproxime da poe
sia, da qual definitivamente se distingue apenas pela ausência da forma métrica. As influências
são recíprocas, pois o gentis demonslraúvum aceita a técnica da poesia tradicional, c, por sua vez,
devolve à poesia como um instrumento a técnica elaborada com detalhe na oratória.”
163. Quintiliano, De instiiulione oraloria, 3, 7, 1: “constai laude ac viluperulione". Cf. também \\ illiam S.
Anderson, Essays on Roman Salire, Princeton, Princeton University Pres.s, 1982, p. 443.
164. Aristóteles, Retórica, 1, 9, 1366a.
165. Idetn, 1, 9, 1366a; 1367b. Os parádoxa encómia são articulados na agudeza conceptista na forma de
iulynala, do gênero “neve ardente” ou “lombriga racional”. A questão da crítica ao “cultismo”,
aflorada páginas atrás, poderia ser reorientada aqui em termos de defensores da oratória deliberativa
- caso de Vieira no Sermão da Sexagésima - e adeptos do gênero demonstrativo - caso dos gongóricos
portugueses, como Frei Domingos de Santo Tomás, pregador famoso na Corte portuguesa em meados
do século XVII, alvo de Vieira no sermão da Sexagésima. A propósito da oratória demonstrativa, cf.
382
0 O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O
tâncias, ao passo que o elogio focaliza a virtude e seus graus como origem de
ações honestas. Aqui, utiliza-se indiferentemente “elogio” e “encômio”, uma
vez que a sátira ataca tanto vícios quanto ações, aproximando-se os dois ter
mos da tradução latina de Quintiliano, laus, louvor, em oposição a vitvperatio,
vituperação166.
O sistema de defensabilidade elogiosa dos objetos do gênero demonstra
tivo, segundo classificação de Menandro, tem quatro graus:
1. elogio de objetos inquestionavelmente dignos de elogio-Deus (endoxa);
2. elogio de males graves - demônios (ádoxa);
3. elogio de coisas parcialmente e evidentemente dignas de elogio, parcial
mente criticáveis, defendendo-se as propriedades criticáveis de maneira par
cial - (amphidoxa);
4. elogio paradoxal de objetos indignos de qualquer elogio - morte, vile-
za, pobreza, escravidão etc. (parádoxa)'67.
As mesmas regras do elogio valem para a vituperação, ocupando-se esta
dos vícios e, complementarmente, da fixação dos critérios do que é honesto. A
diferença entre o discurso ádoxon eparádoxon é determinada, na sátira, pela
categorização do cômico. Já se viu, com Tesauro, que as deformações satíricas
não são meramente ridículas, no sentido aristotélico da deformidade que faz
rir sem dor, pois trabalham para um ponto de vista sério, movido pelo interes
se ético e político. A deformação é cômica porque viciosa, apaixonada, embo
ra não necessariamente ridícula, uma vez que nem todo vício é matéria ridí
cula. Aristotelicamente, a virtude equivale sempre ao termo médio de dois
extremos: um deles é sempre mais vil e vergonhoso que o outro, segundo os
preceptistas do século XVII, sendo por isso também ridículo. Tome-se a Hon
ra: menos vergonhoso é o extremo Tirania que o outro, Servidão. O primeiro
é vício mesclado com a força e a altivez do coração, ao passo que o segundo
pressupõe um ânimo vil e impotente. Por isso, o tirano é representado como
deformidade cômica, mas não é ridículo no sentido aludido. Causa riso, mas
com dor. Fosse outro o caráter e fosse o vício o mais vergonhoso dos dois extre-
John W. OWlalley, Praisc and Blame in Renaissance Rome (Rethoric, Doctrine and Reform in lhe
Sacred Oraiors of lhe Papal Court c. 1450-1521), Durham, North Carolina, Duke University Press,
1979.
166. Sobre a etimologia da viluperatio, cf. A. Ernout & A. Meillet, Dictionnaire éiymologique de la langue
Laiine (Hisioire des mois), nouvellc édition revuc, corrigée et augmentcc d’un index, Paris,
Klincksieck, 1939, p. 1118: “vituperare - Le rapport avcc uiiium apparait cncorc dans Rhéi. and
l l e r 2, 27, 44; aviem aut scientiam aul siudium quodpiam uiluperare proplcr corum uilia qui in eo sludio
suni".
167. Cf. Heinrich Lausbcrg, op. cit.y p. 215.
383
A SÁTI RA F. O E N G E N H O
mos, sua encenação também seria ridícula, além de cômica: na Amizade, por
exemplo, mais ridículo é o Adulador que o Traidor, porque a adulação nasce
do ânimo servil, e a traição, do orgulho e da astúcia, que não causam riso, mas
horror168.
Riso com dor e riso sem dor, ridículo e horror são, desta maneira, critérios
distintivos do discurso ádoxon e parádoxon na sátira: como bem escreve
Lausberg, o ádoxon afeta males morais que não comportam nenhuma classe
de jogo, enquanto o parádoxon refere-se a coisas em que o jogo está previsto169.
Assim, como técnica da maledicência satírica, evidencia-se a figura da ironia
como articulação invertida do mesmo virtuosismo verbal ou tradução negativa
de metáforas dos gêneros elevados. A ironia é um dos principais operadores
do ataque em poemas que, desenvolvendo a crítica indireta, utilizam tópicas
do gênero demonstrativo, como “raça” e “sexo”, de maneira programatica-
mente inadequada, produzindo efeitos ridículos na recepção. É, por exem
plo, o caso já referido do soneto atribuído a Gregório de Matos, cuja formula
ção lírica apropriada de Camões é alterada, evidenciando-se parodicamente
irônica, quando a convenção alta é referida ao tema vil, como a mulher não-
branca. O mesmo efeito ridículo ocorre quando um vocábulo estranho ao con
texto discursivo do poema evidencia o jogo depreciativo da maledicência sa
tírica, como o termo que designa a inconveniência fisiológica de Caterina,
tratada até o final do 14“ verso do soneto com léxico lírico. Pode-se dizer,
portanto, que na sátira osparádoxa encómia vêm articulados, geralmente, na
qualificação ridícula de vícios que fazem rir sem dor. Quanto ao discurso
ádoxon - elogio de males inquestionáveis -, refere-se a vícios que, embora
cômicos pela deformidade, não são ridículos, já que causam dor. No caso, a
ironia evidencia-se intensificada como sarcasmo ou agressão, sendo exempla
res os poemas contra os governadores, principalmente Câmara Coutinho, ca
racterizado como “fanchono beato” e mais insultos. Observe-se, ainda, que a
agudeza conceptista e seu pendor para os adynata como “neve ardente”, “pe
destre cavalaria”, “lombriga racional” etc. são extremamente adequados para
tais jogos da inversão irônica, produzindo incongruências aptas para figurar
fantasticamente o vício e a sua correção pela voz maledicente da enunciação,
senhora dos protocolos.
168. Cf. Emanuele Tesauro, “Trattatodc’ ridicoli”, cit., pp. 351-352. A comédia representa caracteres
inferiores (Aristóteles, Poética, 5, 1), mas o vício nela representado não abarca a totalidade do
inferior, mas só uma parte, aquilo que não causa dor nem perturbação (Poética, 5). A comédia
representa o guclóion, parle do aiskrón - o ridículo, parte do feio. Lembre-sc o rosto deformado pelo
riso que não causa dor quando é visto.
169. Cf. Heinrich Lausberg, e[>. cit., vol. II, p. 215.
384
0 O R N A T O D I A L É T I C O E A P I N T U R A DO MI S T O
170. Como escreve Lausberg, “elogio” e “vitupério” encontram-se na divisória do plano ético e
estético. Cf. Heinrich Lausberg, op. cit., vol. II, p. 214. Cf. ainda J. Tricot (Introduction, notes
et index), em Aristote, Ethique a Nicomaque, Paris, Librairie Philosophique Vrin, 1967, p. 78:
“C ’esl le domaine du relalif el non de Vabsolu. [...] La valeur d'une action dépend de la manière dom
le group réagil. La louange ei le blârne conslilueni ainsi des crilèrcs assurés du bien ei du mal. Ceiie
iniervention consiante du facleur social s’expnrne par Videnlilé des nolions de bon el de beau: un acie
esl bon s’ilparail beau el s’il esl par conséquenl généralemeni approuvé; un acie esl mauvais s’il esl laid
el blâmé”.
171. Heinrich Lausberg, op. cil., p. 214. Nesta linha, “vício” é “feiúra humana”, dividida em duas, do
corpo e do ânimo. Cada uma delas se divide, por sua vez, em duas: feiúra do ânimo derivada da
maldade e feiúra do ânimo derivada da estupidez; feiúra corporal dolorosa e nociva, feiúra do
corpo não dolorosa nem nociva. Cf. Lodovico Castelvetro, “Seconda parte principale 1449a”, op.
cil., vol. I, p. 127. A sátira opera, basicamente, com as duas feiuras do ânimo - maldade e estupidez
- figuradas nas descrições da feiúra corporal dolorosa e nociva. Nela, o visível metaforiza o moral,
de modo que o feio é também o malvado ou o estúpido.
172. Quintiliano, De instilulione oraioria, 12, 1, 1.
173. Heinrich Lausberg, op. cil., p. 222.
174. Idern, p. 223.
385
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O
175. Quimiliano, De inslilulione oraioria, 3, 7, 6: “[...] quae maieria praecipue quidem in deos ei homines
cadit, esl lamcn et aliorum animalium, etiam carenlium anima”.
176. Quintiliano, op. cit., 3, 7, 10-25. Estes lugares também são articuláveis em outros gêneros, como o
judicial e o deliberativo, quando se subordinam ao fim proposto da decisão quanto ao futuro
(deliberativo) ou da ação quanto ao passado (judicial).
386
O O R N A T O D I A L É T I C O H A P I N T U R A DO M I S T O
177. Cf. Heinrich Lausberg, op. cil., p. 321. Cf. também Prisciano, “De laude”, Praexercilamina Prisciani
Grammatiãex Hennogene Versa in Rheiores Laüni Minores, Lipsiae, 1863, reed. Brown-Reprint Librarv,
Dubuque, Iowa, s/d., pp. 556 c ss. Cf. também Emporius, Demonstrativa matéria, idcm, pp. 567 e ss.
178. Quintiliano, De institutione oratoria, 5, 10, 15.
179. Idcm, 5, 10, 55-58.
387
_ v_
Os Lugares do Lugar
(OC,V, p. 1077.)
389
A SÁTI RA F. 0 E N G E N H O
P ariu a se u t e m p o u m c u c o ,
u m m o n str o (d igo) in u m a n o ,
q u e n o b ic o era tu c a n o
e n o sa n g u e m a m a lu co .
( O C , I, p. 19 9 .)
390
OS LUGARES DO LUGAR
1. Citado por Peter Burke em “A Arte do Insulto na Itália do século XVII”, conferência na Faculdade
dc Educação da USP, 21.8.1986.
Em tradução aproximada: “Aqui está o grandíssimo corno / Fcrdinando Recamador/ E sua mulher
putíssima / Recusada dos judeus / Com quem só o carrasco trepa / Briga comigo, cornudo, / Te
tenho no cu / Onde costumas ter o pau / Que te cortara os bigodes”.
2. Devo esta informação a Pctcr Burke, a quem aqui agradeço.
3. Cf. Pierre Klossowski, Sade mon prochain (Precede de Le philosophe scéléml), Paris, Seu il, 1967, pp.
51-52.
4. Cf. Jacques Lacan, “Du Ba roque”, em Encare, texte ctabli par Jacques-Alain Aliller, Paris, Seuil,
1975, p. 103 (Le Seminaire, livre XX): “La dit-mension de 1'obscénitc, voilà ce par quoi le christia-
nisme ravive la religion des hommes”.
391
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
392
OS LUGARES DO LUGAR
H a b it u s C o r p o r is ( C o n stitu iç ã o F ísica )
393
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
A boca desem p en ad a
é a p o n te de C oim b ra,
onde não entram , n em saem ,
m a is q u e m en tiras.
O u ça m , olh em ,
v e n h a m , v e n h a m , verão
o F risã o d a B ah ia
q u e está retratado
às m a r a v i , m a r a v i , m a r a v i l h a s .
( O C , II, p. 2 8 2 . )
C a d a pc junto
form a a p eanha,
o n d e se a m a n h a
a e stá tu a d o p ern il,
e do presunto.
A n ca de vaca
m u i d errib ad a,
m a is cavalgad a,
q u e sela de rocim ,
c h a r e l d e faca.
Puta ca n a lh a ,
to r p e , e m a l feita,
A q u e m se ajeita
u m a es tá tu a d e trapo
c h e ia d e p alh a.
( O C , V , p . 1121.)
394
OS LUGARES DO LUGAR
O lh o s ca g õ es, q u e c a g a m se m p r e à porta,
M e t ê m e s ta a lm a torta,
[■••]
C h a t o o n a r iz d e c o c r a s s e m p r e posto:
Te c o b r e to d o o rosto,
D e g a t in h a s b u s c a n d o a lg u m jazigo
A d o n d e o d e s c o n h e ç a m p or em b igo:
A té q u e se e s c o n d e , o n d e m al o vejo
P or fu g ir d o fed or d o teu b ocejo.
( O C , I, p. 15 6 .)
9. Lodovico Castelvetro, “Seconda parte principale”, Poética D’AristoteIe Vulgarizzla e Sposla, a cura di
Werther Romani, Roma-Bari, Gius. Laterza & Figli, 1978, vol. I, p. 127.
395
A SÁTI RA E O E N G E N H O
X a esq u e r d a trazias a b en g a la
o u p o r força, o u p o r gala;
X o sovaco por v ez e s a m etia s,
só p o r f a zer e n f i m d e s c o r t e s ia s ,
T ir a n d o ao p o v o , q u a n d o te d e s ta p a s ,
E n to n c e s o c h a p é u , agora as capas.
F u n d ia -se a c id a d e e m carcajadas,
V endo as d u a s entradas,
Q u e fizeste d o M a r a S an to Inácio,
E d e p o i s d o c o lé g io a teu palácio:
O R a b o er g u id o e m co rtesia s m u d a s,
C o m o q u e m p e lo cu to m a v a ajudas.
( O C , I, p. 15 8 .)
O rosto de azarcão a fo g u e a d o
E e m partes m al u n tad o,
T ã o c h e i o o c o r p a z i l d c g o d o l h õ e s [...]
V i - t e o b r a ç o p e n d e n t e d a g a r g a n t a [...]
O b i g o d e f a n a d o feito ao ferro
E s tá ali n u m d e ste r r o ,
E c a d a p ê l o e m s o l i d ã o t ã o rara .
( O C , I, p. 1 5 6 .)
( O C , I, p. 1 5 7 .)
396
OS LUGARES DO LUGAR
no saco / [...] tendes de Saturno a natureza qual uma harpia” (OC, II, p. 272);
damas-, “O papinho, que se enxerga / por baixo da barba airosa, / me está
dizendo-comei-me,” (OC, IV, p. 8 0 8 fidalgos: “[...] vestido de pimentão/com
fundos de flor de Li /[...] então vos supus, e cri / surrada tapeçaria, / tisnado
guadamecim” (OC, IV, p. 896)\frades: “O hábito levantas no passeio,/E cui
das, que está nisso o galanteio, / Mostras a perna mui lavada, e enxuta, /
sendo manha de puta / Erguer a saia por mostrar as pernas, / com que és
hermafrodita nas cavernas” (OC, II, p. 341 )-,judeus: “E encaixando o barrete, e
seu roupão / Representa um fatal Jacó Baru” (OC, III, p. 737); “um herege de
tão grão nariz” (OC, V, p. 1061); mulatos: “Inácia, chamada Ilhoa / para cada
beiçarrão / não bastava um canjirão / com sopas de pão, e broa” (OC, III, p.
632); negros: “o Preto é porra tisnada/ mas sobre ser porra dura, / é porra dura,
que atura, / o Branco mais lindo, e belo / é porra de caramelo, / desfaz-se na
cozedura” (OC, IV, p. 832); índios: “A tal era uma Tapuia / grossa como uma
jibóia, / que roncava de tipóia, / e manducava de cuia” (OC, I, p. 198); etc.
Em todos os casos, a medida unitária da feiúra física é a harmonia das
partes e do todo do corpo, a que moralmente corresponde a virtude da pru
dência e sua codificação como discrição fidalga. Logo, segundo esta tópica, o
belo e o bom são harmônicos, prudentes e discretos, dando-se a deformação
como falta de uma dessas virtudes. Pictóricas, as articulações deformantes da
tópica “constituição física” são coloridas pelos motivos de outras, vistas a
seguir.
G enus (O rigem )
397
A SÁTIRA E O ENGENHO
A vós, merda dos fidalgos, / a vós, escória dos Godos, / Filho do Espírito Santo, / E
Bisneto de um caboclo (OC, I, p. 213); Filho da puta com dita,/ alcoviteiro sem lucro,
/ cunhado do Mestre Escola, / parente que preza muito (OC, I, p. 279); [...] vilão agres
te, / se não sabes a parte, onde nascestes? (OC, II, p. 340); Tu és filho de um sastre de
bainhas, / E botas mui mal as tuas linhas, / Pois quando fidalgão te significas, / A ti
mesmo te picas (OC, II, p. 341); Verão um inocente, / que a fidalgo vai / e calando o pai
/ a mãe diz somente. / A este impertinente / lembro-lhe o godim / do pai matachim,/ e
a mãe vendilhona (OC, II, p. 465); [...] alvar fidalgo tendeiro, / que o pai sapateiro / lhe
fez o solar (OC, II, p. 466);[...] sangue vil, humor meretricano, / pois nascestes de sê
men franciscano,/ E sobre vossa Mãe em tempos francos / Caíram mil tamancos (OC,
IV, p. 805); [...] o sangue linhajudo / fora da imaginação / fará, que fiqueis vilão, / mas
heis de ficar sisudo (OC, IV, p. 901) etc.
N atio (N ação)
11. Idem, 5, 10, 24: “[...] nam el gentibus proprii mores sunt, nec idem in barbaro, Romano, Graeco probabile
est”.
398
OS LUGARES DO LUGAR
[...] quem sofrerá, que Mafoma / me queime por mau cristão, / vendo, que Mafoma é
cão, / velhaco, e de suja alparca, / e o mais torpe heresiarca, /que houve entre os filhos
de Adão (OC, 1 , p. 201); [...] como na lei de Mafoma /não se argumenta, e se briga,/ele,
399
A SÁTIRA E O ENGENHO
que não argumenta, / tudo porfia (OC, II, p. 284); [...] Vem um Clérigo idiota, / desmaia
do como um jalde, / os vícios com seu bioco, / com seus rebuços as maldades: / Mais
Santo do que Mafoma / na crença de seus Árabes (OC, II, p. 432); [...] Qualquer Bispo da
Turquia / sem igreja é Bispo fiel (OC, IV, p. 889); [...] Que hajam turcos belicosos/ filhos
da perversidade, / havendo na cristandade / Monarcas tão poderosos (OC, II, p. 477).
“ [...] A vaca é terror da aldeia, [...] todo o mundo se receia / de inimiga tão comua, /
porque armada a meia lua / parece pelo cruel / talvez Fatimá de Argel, / talvez de Salé
Gazua.” (OC, III, p. 602.)
[...] aquele madraço, / que em pés, mãos, e mais miúdos / pode bem - dar seis, e às / ao
maior Frisão dc Hamburgo (OC, II, p. 277); [...] Quando o Frisão considero, / o menos
que dele cuido, / é ser Pároco boneco / feito de trapos imundos (OC, II, p. 280); [...] Este
400
OS L U G A R E S DO L U G A R
Padre Frisão, este sandeu / [...] Não sabe musa, musae, que estudou, / Mas sabe as
ciências, que nunca aprendeu / Fntre catervas de asnos se meteu, / E entre corjas de
bestas se aclamou (OC, II, p. 286); [...] Presbítero montês, / Cara frisona, garras de
Irlandês / com boca de cagueiro de alcatruz (OC, IV, p. 871); [...] E o Frisão as Irmãs
pondo ao pespego, / Era força tirar grande tesouro, / Pois soube em ouro converter
pentelhos (OC, II, p. 286).
Vejam-se, ainda:
[...] e assim francesa nas obras / Portuguesa nas palavras / Tudo chamais por seu nome
/ tão propriamente, tão clara, / que ao cono lhe chamais cono, / chamais caralho à
caralha (OC, III, p. 568); [...] Verão um Galego grande salvajola, / veste à mariola, /
anda ao palacego: / Fidalgo Noroego / em cruz de Calvário, / que um certo falsário /
nos peitos lhe entona (OC, II, p. 465).
Articulando “religião”:
[...] com calva sacerdotal / é sacerdote calvino (OC, II, p. 256).
401
A SÁTIRA E 0 ENGENHO
(OC,V, p. 1206.)
[...] A tal era uma Tapuia / grossa como uma jibóia, / que roncava de tipóia,/ e manducava
de cuia (OC, 1, p. 198); [...] Há cousacomo ver um Paiaiá/M ui prezado de ser Caramuru,
/ Descendente do sangue do tatu, / cujo torpe idioma é copebá (OC, IV, p. 840); [...]
Adão de Massapé (OC, IV, p. 841); [...] Tenha embora Avô nascido lá,/ Cá tem três para
as partes do Cairu, / Chama-se o principal Parauaçu, / Descendente este tal de um
Guinamá. / Que é fidalgo nos ossos, cremos nós, / Que nisto consistia o mor brasão /
Daqueles que comiam seus avós (OC, IV, p. 842); [...] A linha feminina é carimá /
Moqueca, pititinga caruru / Mingau de puba, e vinho de caju / pisado num pilão de
Piraguá (OC, IV, p. 840).
s a lá r io p a g o a t r a b a lh a d o r e s b r a n c o s , q u a n d o a ld e a d o s , o u a m o tin a d o s p e lo s c a p u c h in h o s f ra n c e
s e s q u e lh e s f o rn e c e m a r m a s , q u a n d o n o s e rtã o , e n s ín a n d o - lh e s q u e o s v e r d a d e ir o s d o n o s d a te rra
s ã o o s f ra n c e s e s , q u a n d o a ta c a m e n g e n h o s e p la n ta ç õ e s d e m a n d io c a d e C a ir u , C a m a m u e B o ip e b a ,
c o m o s e v i u n o c a p í t u l o I I.
402
OS L U G A R E S DO L UGA R
15. Cf. códice J. A. Alves de Carvalho, n. 57, Cofre 50, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro, 1S9 fls., p. 79.
403
A S Á T I R A E 0 E N GE N H O
16. Como um discurso anônimo disseminado, os estereótipos antijudaicos não são propriedade exclu
siva de uma classe ou grupo de interesse que os articulariam para “ocultar”, como se diz, interesses
econômicos e políticos particulares. Em outros termos, não são exclusividade de membros da aris
tocracia proprietária que os manipularia para obstar os avanços políticos e econômicos da classe
mercantil cristà-nova, nem dos dominicanos do Santo Ofício, que os utilizariam para justificar a
expropriação das fortunas. Isto não implica, obviamente, que o Santo Ofício ou grupos da aristo
cracia da terra, entre outros, não lançassem mão deles como técnicas de difamação, de sublevaçào
popular e de pressão sobre a Coroa quando a ocasião era oportuna. É, por exemplo, o que ocorre
com muita freqüência nos anos de 1670-1680. Detentores em grande parte do capital comercial e
financeiro, participando majoritariamente na Junta do Comércio (anteriormente, Companhia Ge
ral do Comércio do Brasil), donos de navios ou proprietários de ações deles, com contatos comer
ciais nos principais entrepostos da Europa, propostos como financiadores potenciais de uma ja
mais criada Companhia das índias Orientais por simpatizantes de sua causa, como os padres Antônio
Vieira e Manuel Fernandes, a prosperidade e a riqueza dos cristãos-novos asseguram a muitos
deles a ascensão a posições de prestígio, que os estereótipos correntes criticam e interpretam como
perigo de contaminação das linhagens pela mescla do sangue impuro. Ao ressentimento e ao temor
partilhados generalizadamente pelas três ordens soma-se o horror do mito muito difundido de que
os judeus são deicidas cuja natureza, predisposta sempre a trair, nem mesmo a conversão forçada
de 1497 domesticou quando a capturou no aprisco da verdadeira fé. O cristão-novo é “Judas” e
“veste capa”, como então se apregoa, e embora muitos deles sejam católicos convictos, o mito da
limpeza de sangue, a ortodoxia e o ressentimento econômico os fazem irremediavelmente impu
ros, traidores, heréticos, confundindo-se no estereótipo “judeu” tanto o cristão-novo católico quanto
o israelita ortodoxo que pratica os ritos em segredo ou o marrano que os funde sincreticamente.
Crenças religiosas e raciais fundem-se inextricavelmente, assim, com interesses, temores, frustra
ções e ressentimentos de toda ordem, pessoais, econômicos, políticos. Acredita-se mesmo que os
estereótipos são sempre expressão da mais sincera e pura crença no mito, o que não implica afir
mar que sempre são expressão da sinceridade dos que os emitem, dados os interesses que articu
lam quando emitidos. São expressão da mais sincera e pura crença no mito, contudo, principal
mente numa sociedade como a portuguesa, em que o longuíssimo contato com a África obscurece
qualquer veleidade de origem e pureza das linhagens, dada a miscigenação óbvia, transformando-
se a questão da “limpeza de sangue”, também por isso, em verdadeira obsessão nacional. Lembre-
se ainda que a atividade mercantil a que desde cedo se dedicam os fidalgos portugueses faz muito
precária, para observadores fidalgos exteriores, como viajantes, a mesma questão da “limpeza”.
Investigações que se realizam ainda no século XVII em Portugal revelam que a maioria das famílias
fidalgas tem ascendência judaica, quando não moura.
404
OS LUGARHS DO L UGA R
A Divindade offendida,
Nosso Deos ultrajado,
17. Cit. por A. Carl Hanson, Economia e Sociedade no Portugal Barroco - 1668-1 703, Lisboa, Publica
ções Dom Quixote, 1986, p. 91. Uma interprciaçào já clássica propõe a questão cm termos de
conflito de classes que opõe “aristocracia da terra” c “classe mercantil”. Nele, a aristocracia teria
sido aliada do Santo Ofício da Inquisição, recebendo também o apoio da “pequena burguesia”
portuguesa. Aqui não é o lugar para discutir tal tese, mas, sim, a interpretação que hoje se costuma
propor para o eventual leitor da sátira sciscentista antijudaica, que a toma por pressuposto. Segun
do a interpretação, que opera uma dicotomia, a sátira é expressão de uma consciência de classe
aristocrata na defesa de seus interesses políticos através da representação de crenças religiosas e
raciais de natureza não-econômica. Conforme a interpretação, é usual afirmar que os debates reli
giosos que agitam o século XVII português costumam obscurccer - o verbo é típico - a verdadeira
natureza do conflito, as relações econômicas. Levando-se em conta, por exemplo, a recepção da
sátira, essa linha de argumentação propõe que a sátira apenas expressa crenças, uma vez que à
maior parte da população ibérica do século XVII são alheios os debates de natureza econômica e
política. Concebendo-sc o imaginário restritivamente, como auto-reílexão e auto-representação,
implicam-se as noções de alienação das consciências e de ocultamento da realidade pelas crenças
que a deformam. Assim, as práticas discursivas são interpretadas como representação diferida de
seu momento, apenas, não como práticas. Justamente porque expressa crenças, a sátira oculta as
determinações do conflito do qual passa a ser um produto. A interpretação é insatisfatória porque,
embora possa acertar quanto à natureza do conflito como luta de classes, atribui à poesia uma
função diferida de representação mais ou menos realista e posterior, diga-se assim, ao seu próprio
tempo e ao conflito do qual é parte. Como exteriorização de conteúdos preformados na consciência
de poeta e público, a sátira é estranhamente muito alienada de seu próprio tempo, que ela busca
com muita aplicação perseguir, só o conseguindo, evidentemente, de forma expressiva que é neces
sário interpretar para se evidenciar o que já se sabia de antemão: o poeta estava enganado e enga
nava os receptores enganados, pois falava-lhes de Judas quando efetivamente se tratava dos trinta
dinheiros. Por essa concepção, a sátira tem uma função social de reconhecimento, isto é, de conhe
cimento segundo, ficando razoavelmente embaraçoso advogar o interesse de seu estudo como ins
trumento de reposição de algo já posto e dado como infra-estrutura pelas ciências sociais. A mesma
concepção, aliás, que propõe a poesia como representação de um social exterior e preformado a ela
e nela perspectivado, ocultado, falseado e invertido, não leva em conta a historicidade da mesma
poesia, de modo algum exterior ou posterior à sua própria história, a menos que se postule a
preexistência de um lugar em que a verdade do social esteja limpidamente depositada à espera das
deformações posteriores. Geralmente, esse lugar existe, e é o do desejo do intérprete e de suas leis
históricas necessárias etc. Lm ambos os casos complementares - expressão de conteúdos preformados
e representação que oculta o real -, a sátira é a representação da intenção comunicativa de dois
sujeitos prévios a ela, poeta e receptor, que já conceberam, antes mesmo do discurso em que apare
cem os pronomes “eu” e “tu”, a sociedade referência dela. Por essa concepção, enfim, o “judeu”
preexiste à sátira na sátira, a laia religiosa ou racista oculta o conflito econômico de base, o homem
Gregório de Alatos e Guerra era intensamente ressentido ou mesmo tragicamente dilacerado,pessimis-
405
A SÁTIRA E 0 ENGENHO
O Príncipe enganado,
A Christandade vendida,
A Igreja escurecida,
O Triumpho da fé sem palma
la etc. Para nào propor aqui a sátira como um gesto perdido, exterior ou posterior ao ato que o
produz, é conveniente começar por não interpretá-la, uma vez que nada oculta, antes relacioná-la
com outras práticas e eventos contemporâneos dela, como se vem fazendo. Os estereótipos podem
ser a expressão sincera de crenças, como se escreveu, podendo mesmo ser a expressão de crenças
sinceras. Isto, porém, não tem nenhuma pertinência, porque mais pertinente é propor que assu
mem configuração prática, de intervenção, numa prática discursiva - murmuração, panfleto, pas
quim, sermão, anedota, sátira - em que várias posições imaginárias são encenadas como conflito
no conflito. Em outros termos, o conflito não é preexistente às práticas discursivas contemporâneas
que são parte dele e nele. E neste sentido, aliás, que a sátira antijudaica atribuída a Gregório de
Matos e Guerra deve ser lida: como nunca defende os cristãos-novos, como sempre os difama e
injuria, como sempre propõe as medidas mais drásticas contra eles, isto imediatamenle implica que
toma posição contra eles, sem hesitação, independentemente da “sinceridade” do homem Gregório
de Matos, impossível de averiguar, e que não vem ao caso. As tópicas articuladas são religiosas e
raciais, geralmente interpretadas como ocultação ou falseamento do conflito econômico de base,
ou seja, como reflexo, supostas a expressão e a representação. Levando-se em conta sua produtivi
dade e sua intervenção num determinado estado de coisas contemporâneo, contudo, ela é absolu
tamente visível, embora a mesma visibilidade seja interpretável de maneiras muito diversas. Não
se trata de ocultação, mas de apropriação assimétrica do que na metáfora pode ser mais oportuno
para cada posição nela dramatizada, enfim. Por isso, é prática, no sentido de que, tanto na
metaforização “judeu” quanto na dapersona satírica, lêem-se pontos de condensação e de disjunção
de posições imaginárias. São contemporâneas do ato discursivo, sendo efetuadas como transfor
mação poética de estereótipos que os dramatiza e opõe: “ortodoxo” x “herege”, “puro” x “impuro”.
Assim, tanto a metáfora “judeu” quanto a metáfora do “eu” só adquirem valor dramatizadas na
situação discursiva que articula metaforicamente os poderes e os interesses. Várias posições se
lêem na dramatização, conforme a perspectiva assumida quanto ao valor semântico de “judeu” e
das metáforas do “eu” satírico: a da Coroa; a da Cúria romana e dos dominicanos do Santo Ofício;
a dos jesuítas; a do clero regular; a de grupos da aristocracia aliados a jesuítas, como Vieira; a de
grupos da aristocracia inimigos deles; a de grupos corporativos, como os ourives, os comerciantes
cristãos-velhos; a da gente baixa; etc. Levando-se em conta justamente a recepção, que faz a sátira
eficiente como discurso aberto, torna-se difícil, se não historicamente impossível, reduzir o anti-
semitismo dela a uma oposição simples do gênero “aristocracia da terra” x “classe mercantil cristã-
nova”, incluída na oposição genérica “nobreza” x “burguesia”, incluída, por sua vez, na necessida
de das leis históricas do interesse do intérprete. Pouco se sabe da situação material de recepção da
sátira: era lida em voz alta para todos? era afixada em pasquins? circulava anônima em folhas
volantes? havia intervenções quando recebida? qual o tom de voz com que era falada, se falada? só
homens ouviam? se não, em que condições estavam presentes as mulheres? que homens ouviam?
etc. Pode-se afirmar, contudo, que a partilha dos estereótipos nela encenados era bastante assimétrica.
Suponha-se, como receptores, figurados pelo destinatário, um mulato; um familiar do Santo Ofí
cio; um jesuíta como Vieira; um comerciante cristão-velho concorrente de um cristão-novo; um
comerciante cristão-velho sócio de um cristão-novo na especulação dos gêneros alimentícios; um
fidalgo engastado na burocracia; um letrado da Relação; o próprio cristão-novo quando católico,
quando israelita, quando indiferente à religião; um negro escravo; um senhor de engenho branco,
catolicíssimo, cujos avós cristãos-novos vieram com os primeiros donatários cruzando-se com as
406
OS L U G A R E S DO l . UGAR
netas de Paraguaçu; etc. As combinatórias são praticamente ilimitadas, ainda que finitas, demons
trando o quanto a sátira é, para utilizar conceito de Roland Banhes, “plural”. Embora encene uma
uniiicação imaginária do gênero “ortodoxo” x “herético”, a mesma unificação é apropriada de
modos diversos, conforme a posição dos receptores. Em outros termos, não se unifica totalmcnte,
sendo refratada e reunificada segundo outros registros. Com tudo isto, enfim, afirma-se o óbvio:
engrossando o lugar-comum, a sátira intervém posicionando-se como termo do conflito que, po
dendo aparecer apenas religioso e racial, é simultaneamente econômico e político.
O descrédito dos cristãos-novos na intervenção fortalece as posições de seus inimigos, indepen
dentemente do posicionamento de seu autor suposto c da sua validade como representação semân
tica “justa”, “falsa”, “verdadeira”, de descrédito.
18. Um caso historiado por Carl A. Ilanson permitirá demonstrar melhor como tais posições antijudaicas
são dramatizadas na sátira numa relação de homologia. Em 10 de maio de 1670, ocorre um furto
que, insignificanie, assume proporções emblemáticas dada a instrumentalização de que é objeto.
Antônio Ferreira, um jovem camponês, assalta a igreja de Odivelas, aldeia próxima de Lisboa, rou
bando objetos sagrados e causando alguns danos ao edifício. A notícia da profanação espalha-se
rapidamente por todo o país, provocando intensa comoção e reações da piedade católica, como
missas, procissões etc. Em janeiro de 1671, quando a notícia chega à Bahia, as reações são similares,
ordenando o governador várias manifestações de pesar e desagravo. Imediaiamente atribuída aos
cristãos-novos, segundo o estereótipo de que são sempre os judeus que profanam templos católi
cos, a profanação de Odivelas provoca a ira da população em várias cidades de Portugal, ocorrendo
muitos ataques a cristãos-novos e depredações de suas propriedades. Em Lisboa, a população desce
às ruas, exigindo o fogo purificador para os culpados. Lembre-se que a população, aliás, é adepta
fervorosa dos rituais do Santo Ofício, deles extraindo grande prazer na medida mesma do seu res
sentimento. Embora a identidade do ladrão não esteja estabelecida, o príncipe Dom Pedro promul
ga, nas seis semanas seguintes ao furto, um conjunto de leis contra os cristãos-novos; entre elas, um
decreto que ordena a expulsão de todos que hajam abiuradode vehemenii, isto é, confessado trans
gressões graves. A ordem é extensiva a todos os cristãos-novos que tenham abjurado desde 1604,
atingindo grande número deles. O Santo Ofício opõe-se à medida, entretanto, defendendo junto ao
príncipe que, expulsos os cristãos-novos, sua investigação será seriamente prejudicada. Em julho e
agosto de 1671, novos decretos proíbem a ocupação de cargos públicos por todos que forent “sujos
de sangue”. Simultaneamente, intensificam-se os boatos contra os judeus, bem como as manifesta
ções piedosas nos templos. Em 1672, o Santo Ofício intensifica o terror: os acusados de judaísmo
ficam, a partir da data, proibidos de possuir contratos reais e cargos honoríficos, além de não pode
rem exercer funções públicas. Também são proibidos, a partir de 1671, de montar a cavalo, de usar
seda, ouro e jóias, de passear em liteira ou coche. Antônio Ferreira é preso em outubro de 1671.
Descobre-se que seus país são cristãos-novos, confirmando-se a crença com a crença: a profanação
de lugares sagrados é sempre obra de judeu. Descrito como ignorante, falho de raciocínio e mesmo
doido, Ferreira é torturado, confessando tudo quanto é preciso confessar. Em seguida condenam-no
à morte: “Em 20 de novembro, Ferreira desfilou, em parada, pelas ruas de Lisboa até o Rossio, onde
a execução iria ter lugar. Uma vez na praça, foi entregue aos executores, que lhe cortaram as mãos,
queimaram-lhe os olhos e em seguida enforcaram-no num poste alto. O carrasco queimou depois o
corpo do infeliz gatuno, e os poucos bens que possuía eram entregues à igreja que ele tinha pro
fanado”. Executado o ladrão, intensificam-se as perseguições, atingindo-se os cristãos-novos da
407
A S Á T I R A E O E N GE N H O
Junta do Comércio; segue-se um regimento que cria um conselho de cinco membros para ela, no qual
os comerciantes só ocupam dois lugares. Em 1673, apresenta-se a Dom Pedro uma proposta de um
perdão geral. Jesuítas, como os padres Baltasar da Costa e Alanuel Fernandes, estão entre os princi
pais responsáveis por ela. A Coroa aceita a decretação de um perdão geral pelo Papa; em troca, os
cristâos-novos deverão financiar uma Companhia Portuguesa das índias Orientais. Três cristãos-
novos riquíssimos se dispõem a financiá-la: Pedro Álvares Caldas, Manuel da Gama de Pádua, Antô
nio Correia Bravo. A murmuração aumenta: os cristãos-novos vão ser autorizados a praticar seus
ritos publicamente; vai-se construir uma sinagoga em Lisboa; somente cristãos-velhos serão recruta
dos como soldados para a nova Companhia das índias; haverá concessão de perdão às transgressões
da fé; articula-se a vingança dos cristãos-novos contra os cristãos-velhos. Uma conspiração palaciana
contra Dom Pedro, em 1673, articula o retorno de Dom Afonso VI, evidenciando ter o apoio dos anti-
semitas contra o príncipe. As Cortes de Lisboa de 1674, que se opõem ferozmente ao perdão, fazem
a Coroa recuar do projeto de fundar a Companhia das índias Orientais. Os comerciantes cristãos-
novos continuam despendendo somas enormes: por exemplo, como forma de obter os favores da
Santa Sé, oferecem 500 mil cruzados para a guerra da Polônia contra os turcos. Em 1674, o Papa
emite ordem de cessação dos autos-da-fé, do sentenciamento e compilação dos processos, para rever
as atividades da Inquisição portuguesa. Apesar do ultimato papal de que os processos sejam remeti
dos a Roma para exame, o príncipe Dom Pedro proíbe o inquisidor-geral de fazê-lo. Murmurações,
pasquins, piedade: “Quem desejar ser judeu, herege, sodomita, e casar três vezes, vá falar com o
padre Manuel Fernandes, confessor de Sua Majestade, e com Manuel da Gama de Pádua e Pedro
Álvares Caldas, que têm bulas do padre Quental para tudo”. As Cortes de 1679-1680 informam a
dom Pedro seu desejo de que o Santo Ofício retome as atividades anteriores à intervenção papal. Em
1675, Vieira chega a Lisboa com a imunidade que lhe concede o Papa; pretende, mais uma vez,
influenciar a Corte a favor dos cristãos-novos, sem sucesso. Em 1681, retorna para o Brasil. Em 1680,
morre Alanuel da Gama de Pádua, o comerciante que conseguiu interessar, riquíssimo, a Cúria ro
mana na causa dos cristãos-novos. Manuel Fernandes, um dos autores do projeto da Companhia das
índias Orientais, demite-se de sua função de confessor real, obedecendo ao Geral da sua Ordem.
Dois processos muito exemplares que o Santo Ofício envia para Roma atendendo à ordem do Papa
de anos antes são investigados e aprovados. Em agosto de 1681, o Papa restabelece a Inquisição em
Portugal, com todas as suas prerrogativas e funções. Ainda em 1681 e 1682, muitos comerciantes
cristãos-novos são presos. O auto-da-fé realizado em Lisboa, em 1682, tem a patrociná-lo o príncipe
Dom Pedro. Grande espetáculo, para ele são trazidos os presos de outras cidades do país, a ele assis
tindo toda a população de Lisboa, festivamente. Cf. Carl A. Hanson, op. cil., pp. 89-123.
408
OS L U G A R E S DO L UGA R
Nada permite afirmar que os dois irmãos Fulanos da Cruz referidos na sáti
ra não sejam cristãos-novos; nada permite afirmar, portanto, que o sejam. No
poema, porém, são judeus, e é o que importa, pois indicativo do posicionamento
da enunciação no tratamento do tema. Como uma isotopia paradigmática, o
estereótipo de que o profanador de coisas sagradas é sempre um judeu transfor-
ma-se, no poema, à medida que este se desenvolve, como metaforização de um
“horizonte de expectativa” sintagmaticamente distribuído pelo texto19. O poe
ma se ordena, desta maneira, como extensão e transformação metafóricas de
estereótipos encenados segundo uma expectativa estereotipada. Como a sátira
propõe, trata-se de “ladrão previsto” que “chama por Cristo” e que é um “patifão
/p o r judaica geração”: tem-se, no caso, uma perfeita definição do cristão-novo
como aquele que, convertido ao catolicismo, permanece essencialmente “judeu”,
segundo as tópicas “raça” e “origem” e seu interpretante/limpeza de sangue/.
Daí também o duplo sentido do verso final da décima - “cada qual mui mau
ladrão” -, que, referindo o furto efetuado pelos dois irmãos Fulanos da Cruz,
metaforiza-os no intertexto bíblico do “mau ladrão” que renega a Cristo. Pela
encenação bíblica, os Cruz são alçados à exemplaridade da Cruz, produzindo-se
a metáfora com os estereótipos dominantes do judeu como renegado e deicida:
19. Cf. Hans Robert Jauss, Pour une euhétique de la réceplion, Paris, Gallimard, 1978, pp. 49-51.
409
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
E se p elo a trev im e n to
de tão g ra n d es desaforos
m e r e c e m d o u s m il esto u ro s,
n ã o é ca stig o v iolen to:
q u e se fora a m e u c o n t e n to ,
o s q u e im a r a m lo g o logo,
e n ã o sa tisfa z m e u rogo
ter s e n t e n ç a d e á g u a fria,
q u e m so m e n te m erecia ,
q u e lh e p u s e s s e m o fogo.
( O C , V , p. 1 2 3 3 . )
Mazombo
[...] u m M a z o m b o / d e s t e s c á d o m e u p a v i o , / q u e s e m t e r e i r a , n e m b e i r a , / e n g e n h o ou
j u r o s a b i d o / t e m a m i g a , e j o g a l a r g o / v e s t e s e d a , p õ e p o l v i l h o s ( O C , I, p. 2 6 ) ; [...] Q u e
esse m a l há n o s m a z o m b o s , / têm tão p ou ca h a b i l i d a d e , / q u e o se u d in h e ir o d e sp e n d e m
/ p a r a h a v e r d e s u s t e n t a r - s e ( O C , II, p. 4 3 1 ) ; [...] C o m o n a d a v ê e m / e a n d a m s e m p r e
a o s t o m b o s / q u e r e m o s m a z o m b o s / q u e e u c e g u e t a m b é m : / n ã o t e m o n i n g u é m , e se
o s m a t u l õ e s / h ã o m e d o a p r i s õ e s , / e u s o u d e c a r o n a : / f o r r o m i n h a c o n a ( O C , II, p.
462).
41 0
OS LUGARES DO LUGAR
[...] n o s a n g u e m a m a l u c o / [...] u m t r o ç o d e f i d a l g u i a / p e d e s t r e c a v a l a r i a / t o d a d e
b e i ç o f u r a d o ( O C , I, p. 1 9 9 ) ; [...] u m h o m e m b r o n c o / r a c i o n a l c o m o u m c a l h a u , /
m a m a l u c o e m q u a r t o g r a u , / e m a l i g n o d e s d e o t r o n c o ( O C , I, p . 2 0 3 ) ; [...] n e t o d e
c u r i b o c a ( O C , 1, p. 2 1 8 ) ; [...] M u i t o s m u l a t o s d e s a v e r g o n h a d o s ( O C , 1, p. 3); [...] u m
M u la ta ço h a rp ia / arro g a n te ap a receu (O C , II, p . 3 2 9 ) ; [...] L a d r ã o c o m o m e n t e c a p t o /
no p ro fu n d o do p o r ã o ,/ p a ssa d o co m o la d r ã o ,/ e fino c o m o m u la to (O C , II, p . 3 6 7 ) ; [...]
Para o b ê b a d o m e s t i ç o , / e f i d a l g o a t r a v e s s a d o , / q u e t e n d o o p e r n i l t o s t a d o , / c u i d a , q u e
é b ran co ca stiço : / e d e fla to s e n f e r m i ç o / se ataca d e j e r ib it a ,/ c r e n d o , q u e o s fla to s lh e
q u i t a , / q u a n d o o s v o m i t a e m r e t o r n o s ; / s e i s c o r n o s ( O C , II, p. 4 5 3 ) ; [...] U m B r a n c o
m uito e n c o lh id o , / U m M u la to m u ito o u sa d o / U m B r a n c o todo co ita d o , / U m ca n a z
todo a tr e v id o (O C , IV, p . 7 9 0 ) ; [...] s e n ã o p o r q u e é m u l a t o : / t e r s a n g u e d e c a r r a p a t o : /
m ilagres d o B r a sil são (O C , IV, p . 7 9 3 ) ; [...] Q u e v o s d i r e i d o M u l a t o , / q u e v o s n ã o t e n h a
já d i t o , / s e s e r á a m a n h ã d e l i t o / f a l a r d e l e s e m r e c a t o ? ( O C , IV, p. 7 9 3 ) .
É p a rd o rajado em p reto,
ou preto e m b u tid o e m pardo,
m a l h a d o , o u já m a l h a d i ç o ,
d o t e m p o e m q u e for a e s c r a v o .
(O C , II, p . 4 5 8 . )
411
A SÁTI RA H 0 E N G E N H O
A le r ta p a r d o s d o trato,
a q u em a soberba em borca,
q u e p o d e ser h o je forca,
o q u e o n t e m foi m u la to .
( O C , II, p . 4 2 3 . )
Negro
q u e d e M u la t a sai m u la ,
c o m o d e m u la M u la ta .
( O C , V , p. 1 1 1 3 . ) 22
20. Cf. Hidalgo, Vocabulário: “Negro: astuio o laymado"; “Blanco: bobo o necio”.
21. Cf. Francisco de Quevedo, El Buscón, edición Carlos Vaíllo, texto estabelecido por F. Lázaro Carreter,
Barcelona, Bruguera, 1980, II, 1. “Negro" ta m b é m significa “rufião proxeneta”. Cf. Francisco de
Quevedo, La Hora de Todosy la Fortuna con Seso, Paris, Aubier-Montaigne, 1982, p. 430 (Collection
Bilingue).
22. Cf., por exemplo, “Fesceninas”, Sonetos de Gregário de Maios, cópia datilogafada, 251 lis., Códice
55, cofre 50, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, p. 1: “A huma mulata
que chamam Jelu”: “Jelú, vós sois Rainha das mulatas, / e sobretudo sois Deusa das putas / tendes
o mando sobre as dissolutas / que moram na quitanda dessas gatas. / Tendes muito distantes as
saparatas / por poupar de resoens e disputas, / porque são humas putas absolutas, / presumidas,
412
OS LUGARES DO LUGAR
(OC, I, p. 15.)23
[...] o u p o r l i m p o , o u p o r b r a n c o
fui na B a h ia m o fin o .
( O C , I , p . 17 1 .)
faceyras, pataratas. / Mas sendo vós mulata tão ayrosa, / tão linda, tão galharda e folgazona /
tendes hum mal que sois mui guaguarroza. / Pois perante a mais ínclita persona / desenscrrando a
alcatra alteroza, / o que branca ganhais, perdeis cagona".
23. Já se calculou que, de cada lote de mil escravos, 750 morriam em dez anos, em média, taxa
elevadíssima que determinava a carência crônica da mão-de-obra e um fluxo continuo da África
para a Bahia. Com um efeito talvez não previsto, contudo: a reposição contínua dos africanos
também repõe os padrões culturais de suas nações de origem, por exemplo língua, sexualidade,
religiões, que a sátira visa a expropriar pela ridicularização e constituição deles como heresia. Cf,
a respeito da mortalidade escrava, Sluart B. Schwartz, “The Bahian Slave Population”, Sugar
Planiations in lhe Formalion ofBrazilian Societv, Bahia 1500-1835, Cambridge, Cambridge University
Press, 1985.
413
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
A p a r e n t e l a s e ria,
que é gente, que aqui negreja,
p o r q u e lhe c a u sa v a in veja
ver, q u e lh e d ava h on raria.
(O C , II, p. 36K.)
Se a este p o d e n g o a sn eiro
o Pai o alvanece já,
a M ã e lh e le m b r e , q u e está
r o en d o e m u m tam oeiro:
que im p o rta u m b ran co cu eiro,
se o c u é t ã o denegridol
m a s se no m isto sen tid o
se l h e e s c o n d e a negridão:
m i l a g r e s d o B r a s i l sã o .
(O C , IV, p. 791.)
( O C , I, p. 17.)
414
OS LUGARES DO LUGAR
Senhor: os N e g r o s J u izes
da S en h o ra d o R osário
fa zem por u so o rd in ário
a l a r d e n e s t e s P a ís e s :
c o m o são tão in fe liz e s ,
que por seus negros pecados
an d am sem pre em ascarados
c o n tr a a lei d e p o líc ia ,
a n te V ossa S e n h o r ia
p e d e m licen ça prostrados.
A u m G en eral C a p itã o
su p lic a a Ir m a n d a d e preta,
q u e n ão irão d e careta,
m a s d e s c a r a d o s irão:
todo o negregad o Irm ão
desta Ir m a n d a d e b en d ita
p e d e , q u e se lh e p e r m ita
ir a o a l a r d e é n f r a s c a d o s
n ã o d e p ólvora atacados,
c a lc a d o s d e jeribita.
(OC, I, p. 1 8 6 . )
24. (.f., a propósito, padre Jorge S. J. Benci, Economia Cristã dos Scnhens no Governo dos Escravos ('Livro
Brasileiro dc 1 700), estudo preliminar de Pedro de Alcântara Figueira e Claudinei M. M. Mendes,
São Paulo, Grijalbo, 1977.
415
A SÁTI RA E O E N G E N H O
Outros
U m R o h m de M on ai B on zo Bramá
P r im a z da G rep a ria (C afraria) d o P egu ,
Q u e s e m ser d o P e q u i m , p o r s e r d o A ç u ( A c u ),
Q u e r s e r f i l h o d o S o l n a s c e n d o cá.
( O C , IV, p. 8 4 2 .)
25. Cf. Maria Sylvia Carvalho Franco, “Organização Social do Trabalho no Período Colonial”, Discur
so, São Paulo, FFLCH-USP/Hucítec, maio 1978, n. 8, p. 39. Sobre o escravo na poesia romana, é
útil ler Paul Veyne, üélégie érolique romaine (L’amour, la poésie ei l' Occident), Paris, Scuil, 1983. Trad.
brasileira de Milton Meira Nascimento e Maria das Graças de Souza Nascimento,/! Elegia Erótica
Romana (O Amor, a Poesia e o Ocidente), São Paulo, Brasiliense, 1985.
416
OS LUGARES DO LUGAR
P a t r ia (P á t r ia o u C id a d e )
Já q u e m c p õ e m a t o r m e n t o
m u r m u ra d o res n ocivos,
carregand o sobre m im
su a s c u lp a s , e delitos:
P or cred ito d e m e u n o m e ,
e n ã o por te m e r castigo
con fessar q u ero os p ecados.
26. Quintiliano, De inslitutione oratória, 5, 10, 25: “patria, quia simililer diam civitatium leges, instituía,
opiniones habenl differenliam".
417
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
A duplicação dapersona por vezes é apenas grave: “Desejo, que todos amem,
/ seja pobre, ou seja rico, / e se contentem com a sorte / que têm, e que estão pos
suindo” (OC, I, p. 28). Como duplicação da prudência, ainda, a fala distingue: “Se
por minha desventura /estou cheia de percitos,/como querem,/que haja em mim
/ fé, verdade, ou falar liso” (OC, I, p, 27). Encena-se outro lugar-comum da Con
quista ibérica, o do trópico como “paraíso terrenal” ou “inferno verde”, com sen
tido moral: “[...] para os bons sou inferno,/e para os maus paraíso” (OC, I, p. 13).
Constituída interlocutora, a Cidade é figurada antiteticamente, em opo
sição de "alto” “baixo”. Por exemplo, em discurso que inicialmente mimetiza
o da poesia encomiástica ou lírica (“Senhora Dona Bahia, / nobre e opulenta
cidade”) -, e imediatamente rebaixada no quiasma que diagrama a inversão
poética da inversão metaforizada que a enunciação corrige:
m adrasta d os N a tu ra is,
e d o s E stra ng eiro s m adre.
O c e r t o é, P á tr ia m i n h a ,
q u e f o s t e s terra d e alarves,
e in d a os ressá b ío s v o s d u ra m
d esse te m p o , e d essa idade.
E n tã o v o s p isa v a m ín d io s,
e v o s h a b ita v a m eafres,
hoje c h isp a is fidalgu ias,
arrojando personagens.
(O C , II, p. 4 3 0 . )
T ã o q u e im a d a , e destru íd a
te v e j a s , t o r p e c i d a d e ,
co m o S od om a, e G om orra
d u a s c id a d e s in fa m es.
(O C , II, p. 4 3 4 . )
418
OS LUGARES DO LUGAR
419
A SÁTI RA I-: O KMGKNTIO
pecados, logo puta: “De dous ff se compõe / esta cidade a meu ver / um furtar
outro foder” (OC, 1, p. 9).
Vejam-se mais exemplos de falha e falta: “[...] esta mofina, e mísera Cida
de” (OC, II, p. 416); “[...] a terra / sempre propícia aos infames” (OC, II, p.
432); [...] “Bem merece esta cidade / esta aflição que a assalta, / pois os di-
nheiros exalta / sem real autoridade” (OC, II, p. 440); [...] “Eia, estamos na
Bahia,/ onde agrada a adulação,/ onde a verdade é baldão /e a virtude hipo
crisia” (OC, II, p. 448); [...]” Guardai-vos, digo mil vezes,/de pôr os olhos nas
torres/dessa traidora cidade, / que tal basalisco encobre” (OC, IV, p. 950);
“[...] Doutor com borla de osso? mau agouro: / Adonde pode achar-se? Na
Bahia, / Que de um manso Coelho faz um Touro” (OC, III, p. 735); “[...] Esta
mãe universal, / esta célebre Bahia, / que a seus peitos toma, e cria, / os que
enjeita Portugal: / que ao que nasceu natural / seu Filhote em tenra idade / o
mate à necessidade, / porque lhe tem ódio interno / Oh praza a Deus, que no
inferno / se subverta esta Cidade” (OC, IV, p. 909).
S e x u s (S exo)
27. Quintiliano, De insiitulione oraioria, 5, 10, 25: “sexus, ul lalrocinium facilius in viro, veneticium in
femina credas".
420
OS LUGAR F S DO LUGAR
28. Cf. Pierre Legendre, O Amor do Censor (Ensaio sobre a Ordem Dogmática), Rio de Janeiro, Forense
Universitária/Colégio Freudiano, 1983, p. 114.
29. H. S. J. Busembaum, “O que é a consciência e se é preciso segui-la” (qttidconscientuisit et an seqttenda
sit). Do scculo XVII, o jesuíta Busembaum é citado por Pierre Legendre, op. cil., p. 110.
30. Pierre Legendre, op. cil., p. 124.
421
A SÁTI RA E O E N G E N H O
31. Cf. OC, , p. 203: “Pagamos ver esta Hiena / que com a voz nos engana, / pois fala como putana,/c
1
como fera condena: / que uma terra táo amena, / tão fértil, c tão fecunda / a tornasse tão imunda /
falta de saúde, e pão; / mas foi força, que tal mão / peste, e fome nos infunda”.
32. Cf. Baldassare Castiglione, II Libro dei Conegiano em Opere dl Baldassarc Casliglwne, Giovanni delta
Casa, Benvenulo Cellini, a cura di Cario Tardié, Alilano-Napoli, Riccardo Ricciardi Editore, 1960,
capítulos XXXI-XU.
422
OS LUGARES DO LUGAR
M u l h e r A t a lia , m u l h e r J e z a b e l, m u l h e r V asti, m u l h e r M i c o l , m u l h e r B e r s a b é ,
m u lh er fin a lm en te Eva. E e m t o d a s e l a s s e m p r e p o d e m a i s a v a i d a d e , q u e a v i r t u d e 3-'.
33. Cf. Padre Antônio Vieira, Sermão da Rainha Santa Isabel, Pregado em Roma na Igreja dos Portugue
ses no Ano de 1674, Coimbra, Confraria da Rainha Santa Isabel, Atlântida, MCMXLVIII, p. 12.
34. Graciano, Causa 32, questão 4, cânon 5, cit. por Pierre Lcgendre, op. cit., p. 135.
423
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
424
OS LUGARES DO LUGAR
Seja so lteiro , ou c a sa d o ,
é q u e s t ã o , é já s a b i d o
n ã o e s ta r s e m ter b or r a c h a
seja d o b o m , ou m a u v in h o .
E m ch eg a n d o a em b eb ed ar-se
d e sorte p e r d e os se n tid o s,
q u e d eixa a m u lh e r em couros,
e traz o s f ilh o s fa m in to s:
M a s a sua c o n c u b in a
há de a n d a r c o m o u m p a lm ito ,
para cu jo efeito e m p e n h a m
as b o ta s c o m s e u s a tilh o s.
E la s p o r n ã o se o c u p a r e m
c o m co stu ra s, n e m c o m bilros,
425
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
an tes d e ch eg a r aos d o ze
v e n d e m o s ig n o d e V irgo.
O u ç o d izer v u lg a rm en te
(não sei, é certo este d ito)
q u e fa z e m p o u c o reparo
e m ser caro, o u b a ra tin h o .
O q u e sei é, q u e e m m a g o te s
de d u a s , três, q u atro, c in c o
as v e jo to d a s a s n o ite s
sair d e se u s e s c o n d e r ijo s
E c o m o há tal a b u n d â n c ia
d esta fru ita n o m e u sítio
para ver se h á , q u e m a s c o m p r e ,
d ã o p e la s ru a s m il giros.
E é para sentir, o q u a n to
se d á D e u s p o r o f e n d i d o
n ã o só p o r e s t e p e c a d o ,
m a s p e lo s se u s co n jun tiv o s:
c o m o são ca n tig a s torp es,
b a ile s, e to q u e s la sc iv o s,
v en tu r a s, e fervedouros,
p a u d e forca e p u c a r in h o s .
( O C , I, p p . 2 3 - 2 4 . )
( O C , II, p. 3 7 5 . )
426
OS LUGARES DO LUGAR
E vão caindo todos, segundo a sátira, “[...] os ricos pelos tostões/ e os pobres
por caridade,/os leigos por amizade,/os Frades pelos pismões” (OC, II, p. 338),
uma vez que a natureza pecadora do macho não dispensa fêmea. Traduzida pe
los signos da troca, a “puta” é metaforizada como aquela em que o ato intransitivo
de vender é mais fundamental que o valor: “ [...] fazem pouco reparo / em ser caro,
ou baratinho” (OC, I, p. 24), declara a Bahia personificada. Veja-se, ainda: “[...]
Mulatinhas da Bahia,/que toda a noite em bolandas/ correis ruas, e quitandas
/ sempre na perpétua folia,/porque andais nesta porfia, / [...]) vós dizeis arrom
ba arromba” (OC, V, p. 1274). Descrições hiperbólicas e narração de ações obsce
nas compõem quadros muito dinâmicos que figuram a troca e a venda contínuas
do ser “puta”. Troca ilícita, também tem convenções hierárquicas: “[...] o falar
da janela, e da varanda,/só se achará em putas da quitanda./Cal-te, que a puta
grave, qual donzela,/geme na cama e cala na janela” (OC, V, p. 1168). O tipo é
evidentemente vil e sórdido, como baixa e vil é a “perpétua folia” do “dar-ven-
der-comprar”. O tipo exige o estilo baixo e a translado sórdida, portanto.
Em um dos poemas dirigidos contra o Padre Lourenço Ribeiro, a persona
se antecipa ironicamente à indignação do destinatário com índices metalin-
güísticos de que o insulto do chamar-lhe a mãe de “puta” nada mais é que
uma convenção retórica para insultar. Em outros termos, estilo torpe adequa
do ao caso, que não admite o tratamento épico ou lírico, a não ser como paró
dia. Observe-se o deslocamento do alto para o baixo:
E se a ca so v o s to ca a p u ta ria
Q u e ali p i n t o u a m i n h a fa n te s ia ,
N ã o v o s c a n se is e m d e fe n d e r as putas,
P o is se n d o d iss o lu ta s ,
N ã o vos q u e r e m so ld a d o a ventureiro,
Q u e r e m , q u e lh e a c u d a is co m b om d inheiro.
Para a s D a m a s d a C i d a d e ,
B ra n ca s, M u la ta s, e P retas,
que c o m so r tíleg a s tretas
ro u b a m to d a a lib erd ad e:
427
A SÁTI RA F. O E N G E N H O
e eq u iv o ca n d o a verdade
d iz e m , q u e são u m feitiço,
n ã o o te n d o e m o cortiço
tanto c o m o ca ld o s m ornos:
oito corn os.
( O C , II, P . 4 5 3 . )
A o b u r l e s c o se r á c o n o ,
ao tu d e sc o ch an caron a,
c u m a crica d e a zeito n a ,
o n d e en crica todo o m ono:
d aq u i a razão en to n o
para te satirizar,
e se o u tr a v e z p e s p e g a r
qu iseres, bu sca, garoupa,
36. Na forma masculina, “Damo” é personificação obscena do pênis (OC, V, p. 1251): “É tenro, amoro
so, e brando, / sendo no trabalho duro, / e se com queixas o apuro, / dá satisfações chorando: / de
sorte que vive amando, / e diz, que tanto se inflama, / que ele só sente, e derrama, / e que ele só pena,
e adora, / que chora na grade, e chora / muitas lágrimas na Cama”.
428
OS I.U GARES DO LUGAR
q u em n o vaso e m u p a a roupa,
se a ro u p a o p o d e e n tu lh a r.
( O C , III, p. 5 7 4 . )
429
A S ÁT I RA E O E NGE NHO
(0 (7 , V, p. 1168.)
430
OS LUGARES DO LUGAR
A o so m d e u m a g u ita r rilh a ,
q u e tocava u m c o lo m im
v i b ailar n a águ a B ru sca
as m u l a t a s d o Brasil:
Q u e b e m b a ila m as M u latas,
q u e b e m b a ila m o P aturi.
N ã o u sa m de ca stan h etas,
p orq u e cos d ed o s g en tis
fa z e m tal e s tr o p e a d a ,
q u e d e o u v i-la s m e estru gi:
Q u e b e m b a ila m as M u la ta s ,
q u e b e m b a ila m o P aturi.
A ta d a s p ela s v irilh a s
c u m a cin ta ca r m e sim
d e ver tão g r a n d e s barrigas
lh e t r e m ia m o s q u ad ris.
431
A SÁTI RA E O E N G E N H O
432
OS LUGARKS DO I. UGAR
nos relatos de caça às bruxas dos séculos XVI e XVII, uma conexão psicológica
entre a ortodoxia perseguidora e a lascívia sexuallí;. Na sátira, tal conexão é
evidente, por exemplo, entre o tema da “puta” e os do “adultério” e seu casti
go prescrito pela instituição. Em vários poemas, a persona é um adúltero que,
na proposta do gozo ilícito, figura a regra de sua proibição e conseqüências:
“[...] casemo-nos, que o perigo,/que eu corro, é ser açoutado/ por duas vezes
casado” (OC, III, p. 755); “[...] casemos, se vos contento, / e a segunda vez
casado / se me virdes açoutado, / isso mesmo é casamento” (OC, IV, p. 821),
encenando-se o gozo do castigo, que se sexualiza:
Se a justiça me açoutar
por casar segunda vez,
açoutado, em que me pês,
vos hei de alegre gozar:
quero as ruas passear
arrastando mil baraços
entre os alcaides madraços
e o algoz após de mim [...]
e se o algoz falseante
me puser por mais rigor
alguma marca ao traidor
por duas vezes casado,
dirão, que é vosso estreado
homem de marca maior.
(O C , IV, p. 8 2 2 . )
433
A SATI RA K O E N G E N H O
434
OS LUGARES DO LUGAR
O soldado de lampeiro,
quando chega ao batedouro,
vai lhe sacudindo o couro,
e com a força, que bate
faz trique zapete zapete.
435
A SÁTI RA K O E N G K N H O
tural for retida por longo tempo (em algumas partes) transforma-se em vene
no”42. Além da doença física, tal veneno também produz melancolia, como
reconhece Robert Burton43. Veja-se o poema:
D e sc a r to -m e da tronga, que m e ch u p a,
Corro por u m co n ch ego todo o m apa,
O ar d a f e i a m e a r r e b a t a a c a p a ,
O g a d a n h o da lim p a até a garu p a.
B u s c o u m a F reira, q u e m e d e se n tu p a
A via , q u e o d e s u s o às v e z e s tapa,
T opo-a, to p a n d o -a todo o b o lo rapa,
Q u e as cartas lh e d ão se m p r e c o m ch a lu p a .
Q u e h e i d e fazer, se s o u d e b o a c e p a ,
E na h o ra d e v er rep leta tripa,
D a r e i, por q u e m m o vase toda a Europa?
A m ig o , q u em se a lim p a da carepa,
O u sofre u m a m u c h a c h a , q u e o d issip a ,
O u faz da sua m ã o sua cach op a.
( O C ,V ,p . 12 1 8 .)
436
OS I. UGARKS DO LUGAR
À fé , q u e a í f i q u e i s d e s e n g a n a d a ,
e e n tã o c o n h e c e r e is d e entre a m b o s nós,
q u a l é m e lh o r , m ijar, o u ser m ija d a .
P o i s se n ó s n o s m i j a m o s s ó s p o r s ó s ,
h a v e is d e festejar u m a m ijad a,
p o r q u e e u a m ij a r e n t r o d e n t r o e m vós.
(OC, V I, p. 1334.)4?
45. C f. ta m b é m OC, V , p . 1 1 0 8 : “ E o c a ld o u m a q u i n t a - e s s ê n c i a ,/ c ta l, q u e u m a g o ta f r ia / p r o d u z u m a
S e n h o r ia , / e ta lv e z u m a E x c e l ê n c i a : / s e te n d e s d e le c a r ê n c ia , /e p o r fa rta r a v o n ta d e ,/o q u e re is em
q u a n t i d a d e , / n ã o t r a t e i s n ã o d e e s g o t a r / o s c u l h õ e s d e u m s e c u l a r / id e à b a r g u i l h a d e u m F r a d e " ;
(OC, VII, p. 1 5 7 9 ): “ Q u e tê m o s m e n s tr o s c o m ig o ? / o r d in á r io s q u e m e q u e r e m , / q u e d e o r d in á r io
m e m a t a m , / e c a d a h o r a m e p e r s e g u e m " e tc .
4 37
A S Á T IR A E 0 E N G EN H O
dos p ró lo g o s, os p rológios.
N ã o va i esta na d ia n te ir a ,
a n tes n o traseiro a p o n h o ,
p or ser traseiro o S en h or,
a q u e m d e d ic o m e u s tom os.
( O C , l , p . 213.)
438
OS L U G A R E S D O L U G A R
\ ' o b eco d o c a g a lh ã o
n o d e esp era -m e r a p a z ,
n o d e c a ta q u e f a r á s
e e m q u e b r a -c u s o a c h a r a m ,
q u e tir a n d o ao co m e -e m -v ã o
q u e era e s p e r a d o r d e c u s ,
lh e a rreb en to u o arcabuz;
n o b eco d e la v a - r a b o s ,
o n d e lh e ca n ta m d ia b o s
três o fíc io s d e catruz.
T o m e m p o is e x e m p lo aqui
o T u ca n o e o F erreira,
p o is lh e s d iz esta caveira,
a p r e n d e d , f l o r e s , d e m i:
m a i s a q u i , o u m a i s ali
s e m p r e o s d e m ô n io s sã o artos
se m p r e b ic h o s, e lagartos,
e d a r-lh e -ã o sobre b eiju s
a com er sem p re cuscus,
a v e r se se d ã o p o r fartos.
( O C , I, p . 2 0 9 . )
439
A SÁ T IR A E O E N G E N H O
D o r m i co d ia b o à destra,
e fa z e i-lh e o reb olad o
p orque o m estre do pecado
t a m b é m q u er a p u ta m estra:
e se na to rp e p a le str a
tiv e r d e s a lg u m desar,
n ão ten d es, q u e reparar
q u e o D ia b o , q u a n d o em b oca,
n u n c a dá a b eija r a b oca,
e n o c u o h e i s d e b e ij a r .
440
OS L U G A R E S D O L U G A R
amanhece lanhada, arranhada e suja de barro e folhas após passar a noite com
o Diabo (OC, III, p. 74); o mestre do pecado prefere as putas velhas e dissolu-
tas no mal (OC, V, p. 1153); o Cujo não é beijado na boca (OC, V, p. 1153); o
Demo vem na forma de bode & cabrito & cão & galo & touro preto, por vezes
também na de mulato encapuzado, “cabra” e “cabrão” (OC, V, p. 1283); à
noite, as bruxas desenterram cadáveres nos cemitérios para preparar poções
obscenas - “caldos” (OC, V, p. 1284); a bruxaria se propaga do mestre-feiticei-
ro para as discípulas-putas (OC, V, p. 1283); é sacrilégio enterrar adeptos de
Satã em terra consagrada (OC, V, p. 1282); os diabos e sequazes rezam “ofícios
de catruz”, expelindo gases cujo odor e ruído parodiam a Santa Missa (OC, I,
p. 209); o sêmen do Demônio ora é gelado, ora quente como o Inferno (OC, V,
p. 1153); como incubo ou aparência masculina, o Belzebu bestial tem um
“príapo à faísca” (OC, V, p. 1153); à noite, o bruxedo leva a morte às casadas
honestas, induzindo maridos ao adultério (OC, III, p. 746); o comércio com o
Ele é morte da alma (OC, III, p 768); só o fogo purifica os malefícios e se o
corpo de um bruxo é atirado ao mar, por exemplo, a ingestão dos peixes e
caranguejos que o comeram transmite a sodomia (OC, V, p. 1282); etc. Certos
objetos e substâncias correspondem-se simpaticamente e, malignos, sua pos
se faculta convocar Satã; a noite mais propícia é o São João; o local, adros de
igreja e fundos de quintais (OC, V, p. 1283).
Longo poema que satiriza Pedro Cabra da índia, “feiticeiro infernal” da
Cajaíba, dramatiza-lhe a fala em primeira pessoa: à hora da morte, com mil
diabos à espera da sua alma danada, Pedro recita uma paródia do Credo: “Creio
na Trindade Santa, / porém creio muito mais / na trindade das Mulatas / de
Dona Marta Sobral” (OC, V, p. 1280). O número “três”, muito rotineiro e
ligado a atores animados ou inanimados no romanceiro oral tradicional48, tem
valor mágico de inversão paródica e hierarquia das “putas”. As três irmãs -
Quita, Marana, Isabel - são dadas às práticas nefandas como discípulas de
Pedro Cabra da índia:
Q u a n d o a p ica m e ch u p ava,
e A n to n ic a por d etrás
n os co m p a n h eir o s pegava
para o c a n o en d ireita r,
M a r a n a s e p u n h a a rir,
m a s tra ta v a d e ajudar.
( O C , V, p. 1 2 8 4 . )
441
A SÁ T IR A E O E N G E N H O
442
OS L U G A R E S D O L U G A R
Q u e tu d o isso vale u m R e in o ,
se o so u b er aferventar
nas n o ite s de São João
p o r ad ros, e p o r q u in ta is:
N a form a, q u e lh e e n sin e i,
q u a n d o m e vin h a ch u p ar
a p ica to d a s a s n o ite s,
té q u e v i m a a rrebentar.
( O C , V , p p . 1 2 8 3 - 1 2 8 4 . ) 50
André Chastel lembra com agudeza que um dos grandes gestos da arte
“barroca” é o movimento simultaneamente teatral e ameaçador de abrir um
túmulo na frente da corte reunida51. Luxo e miséria, horror e pompa, o gosto
pelo macabro - e também pelo obsceno, lembrando-se que este figura o peca
do mortal - propõe a espiritualidade. Sua regra de intervenção, já se viu,
figura o Um, inscrito nos corpos como lei natural prévia a qualquer prática.
Linguagem das paixões levadas ao seu grau mais torpe de não-linguagem, a
obscenidade encena experiência análoga à da visão do túmulo, cuja decom
posição “[...] quer edificar-nos e trabalhar na obra da nossa salvação”52. O
despedaçamento do corpo, a fixação obsessivamente redundante das partes
excretoras e genitais, a redução do sexo à fisiologia, a autonomização fantás
tica de órgãos e funções, o excesso das misturas, a metamorfose burlesca do
Um ideal no pecado da carne insubordinada são procedimentos que mimeti-
zam a desagregação de toda finalidade. Pela reiteração do gesto obsceno, figu
ram a mecânica do cadáver e sua mímica sinistramente cômica. “Barroca
50. R o m a n c e d i r i g i d o a B a b u ( O C , III, p p . 7 4 6 - 7 4 7 ) f u n d e j o c o s a m e n t e o s t e m a s d a “ b r u x a ” , d o “ a m o r
c o rtê s ” e p ra g m á tic a s d e c o rte s ia , te rm in a n d o : “ N ã o q u e r o , q u e s e j a a b r u x a , / o u h e i d e s ê - lo
ta m b é m / p a r a a c o m p a n h a r d e n o ite , / e d e d ia a re c o lh e r. / A liá s h e i d e a c u s á - la / a s e u P a i, q u a n d o
v ie r, / p o r q u e s e e m p r is õ e s m e m a ta , / e m p r is õ e s m o r r a t a m b é m ” . C f. ta m b é m o p o e m a c u ja
d i d a s c á l i a d i z : “A B á r b o r a u m a M u l a t a m e r e t r i z a q u e m c e r t o s f r a d e s l h e p a s s a r a m u m g e r a l , d o
q u a l fic o u tã o p e r ig o s a q u e v e io a s a c r a m e n ta r - s e ” (O C , III, p . 7 6 7 ). A ú lt im a d é c im a p o n d e r a ,
d e p o is d e d is c o rre r s o b re o s p e c a d o s d e B á rb o ra (B a b u ): “ C h e g a s te d o c a so ta l, / a to m a re s o S e n h o r,
/ e fo ra m u ito m e lh o r / d a r - te B e rz a b u b e s tia l: / q u e q u e m p e c a d o m o r ta l / c o m e te , e d e le e n f e r m o u ,
/ lo g o o d i a b o o le v o u , / e q u e m s e s e r v e d o d e m o , / n a v e g a n d o a v e l a , e r e m o / n o s i n f e r n o s
a n c o ro u ” .
51. C f . A n d r é C h a s t e l , “ L e B a r o q u e e t la m o r t ” , e m I I I C o n g r e s s o I n t e r n a z i o n a l e d i S t u d i U m a n i s t i c i ,
Retórica e Barocco.Atti, R o m a ,
V e n e z i a , 1 5 -1 8 g i u g n o 1 9 5 4 , a c u r a d i E n r i c o C a s t e l l i , F ra te lli B occa
E d ito r i, 1 9 5 5 , p . 34. C f. ta m b é m , Cartas do Senado 1638-1673, S a l v a d o r , P r e f e i t u r a d o M u n ic íp io
d e S a l v a d o r , 1 9 5 1 , v o l. 1, p . 1 0 2 , c a r t a s o b r e n e g r o s f e i t i c e i r o s e e n v e n e n a d o r e s .
52. E . M â le , L'art religieux après le Concile de Trente, P a r i s , 1 9 3 2 , p p . 2 1 4 -2 1 5 , c it. p o r A n d r é C h a s te l, op.
cit., p . 34.
443
A SÁT IR A K O KNOltXHO
53. C f A n d r é C h a s t e l , op. cil., p . 3 9 : "IIy a la une arliculatwn considérable, rarement dcgagée, d’oú l’on
aperçoit de loin, mais irès dislincletnent, les caracteres majeurs de la cullure du monde b a r o q u e : uneprécision
cl une richesse nouvelles dans les objets qui occupenl 1’imagination el se trouvenl pourvus de stmctures
ncltes, definis coinme appareils et mécanismes, donc au teime: les deux infinis de Pascal ou le traité de
1’komme de Descartes..., mais loul le savoir passe par V inslrument graphique et se règlc sttr lui. Du mème
coup, se trottve accru et mis sous tous lesyeux le senliment de la comingence el de la singularité des étrcs,
quand on fouillelle ces planches superbes oú le délail d'un crime, d’tme oreille, dime main, s’expose dans
loule son élrangelé. Ce n’esl plus Vobjet dime médilalion pieuse; c’esl la Science qui mel, presque malgré elle,
le myslère de 1’organisme sous lesyeux de tous”.
444
OS LUGARES UO LUGAR
B a l d a s s a r e C a s t i g l i o n e , o p . c i t ., L i b r o S e c o n d o , p . 16 1 .
55. S e g u n d o o C o n d e d o s A rc o s , e m c a rta a o C o n d e d a s G a lv e a s , a B a h ia é “ te r r a d e h o te n to te s ” ,
r e f e r in d o - s e a o c o s tu m e d o is o la m e n to d a s m u lh e r e s f id a lg a s , d iz e n d o q u e o s p a is m e te m a s filh a s
e m r e c lu s ã o “ c o m o p r e t e x to d e fa lta d e c a s a s d e e d u c a ç ã o , m a s c o m o fim d e la s n ã o c a s a r e m c o m
o f ic ia is d a g u a r n i ç ã o ” . C f. T h a le s d e A z e v e d o , “ F r e ir a s e P a d r e s ” , P o v o a m e n io d a C id a d e d o S a l v a
d o r , 3 . e d ., B a h i a , E d . I t a p u ã , 1 9 6 9 , p . 1 7 9 . A z e v e d o c i t a o i n g l ê s C o s t i g a n q u e , n a s e g u n d a m e t a d e
d o s é c u l o X V III, d i z q u e e m P o r t u g a l “ a n o b r e z a é m u i t o p o b r e , e c o m o é d e m a s i a d o o r g u l h o s a p a r a
t r a ta r d e g a n h a r a v id a , o u p a r a d a r s u a s filh a s e m c a s a m e n to a p e s s o a s in f e r io r e s a e la s , n ã o te m
o u tr o r e c u r s o , s e g u n d o ju lg a , s e n ã o m a n d á - la s d e f in h a r p a r a u m c o n v e n to , se m c o n s u lt a r s u a s
te n d ê n c ia s , d e p r e f e r ê n c ia a c a s á -la s , e se m p e n s a r a q u e a c id e n te s e x p õ e as s u a s c o n s titu iç õ e s
f ís ic a s ” . E m 1 7 3 9 , o C o n d e d a s G a lv e a s e s c re v e a o R e i r e l a ta n d o - l h e q u e , n o s q u a t r o a n o s d e s e u
g o v e rn o , h o u v e n a B a h ia a p e n a s d o is c a s a m e n to s d e g e n te d e r e p r e s e n ta ç ã o , u m a v e z q u e a s m o ç a s
n o b r e s o u r i c a s v ã o t o d a s p a r a o c o n v e n t o . C f. I g n á c i o A c c i o li & B r á s A m a r a l , M e m ó r i a s H i s t ó r i c a s
445
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O
e Políticas da Bahia, Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1926, vol. II, p. 126: “[...] reconhecendo [o
Conde das Galveas] o dano resultante do grande número de freiras, e dos que se votavam ao estado
eclesiástico, pediu por Vezes providências ao governo, declarando em ofício de S de abrd de 1739
que, à falta de tais providências, se devia o ter havido, no espaço de quatro anos de seu governo,
dois únicos casamentos de pessoas de representação, porque os da classe ordinária, ainda que
poucos, comparativamente à população, eram apenas movidos pelo receio de recrutamento para os
corpos de primeira Unha”; “Numa terra de mulatos e cristãos-novos, ha poucos homens bons sol
teiros e os oficiais do Terço de Infantaria disponíveis são péssimo partido, equivalente a perda da
virgindade das moças. Pior que ela, aliás, porque afinal sempre se pode encontrar um nobre arrui
nado, disposto a não pôr reparo no pequeno detalhe anatômico em troca de um belo dote”. Cf. A. J.
R Russel-Wood, Fidalgos c Filantropos. .4 Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755, rrad
Sérgio Duarte, Brasília, Ed. da UnB, 1981, p 254. Moral da aparência e aparência da moral, por
tanto, em que o parecer fidalgo é fundamental, como a sátira acusa: um cristão-novo enriquecido no
comércio dos trastes pode achar a brecha oportuna para a ascensão, obtendo pelo dinheiro o que o
sangue barra: tornar-se “homem grande”, botar casas na Cidade, abrir engenhos, trajar roupas
suntuosas, ostentar escravos caros, vir a ser vereador da Câmara, coroando a carreira com o casa
mento com uma donzelíssima donzela local: "Começam a olhar para ele / os Pais, que ja querem
dar-lhe / Filha, e dote, porque querem homem, / que coma, e que não gaste” (OC, II, p. 431).
Quando o convento de Santa Clara do Desterro é fundado, em 1677, prevéem-se vagas para 50
freiras do véu preto e 25 do véu branco, como se leu no capítulo II. Os oficiais da Câmara sempre
pressionam junto ao Rei para garantir o privilégio do lugar para suas lilhas entre as religiosas do
véu preto, cujas vagas são rapidamente preenchidas quando da fundação. Ter filha em convento é,
além da conveniência econômica e sexual, distintivo de alia posição: a admissão é pautada por
critérios rigorosos de limpeza de sangue, tornando-se um atestado público da brancura ortodoxa da
família da moça. Muitos pais senhores de engenho são obrigados, assim, a mandar as filhas para
Portugal, onde sua aceitação é nrais fácil, apesar da mulatice ou da ascendência cristã-nova. Na
mesma linha, a reclusão social das mulheres fidalgas não significa que “morrem para o mundo”;
pelo contrário, vivem, e muito. Talvez nenhuma das Claras Pobres do Desterro tenha tido em sua
ceia os volumes que, na mesma época, tinha Sor Juana ines de La Cruz na Cidade do México, nem
o conhecimento de línguas, filosofia, teologia, astronomia, poesia e pintura da religiosa mexicana.
Cf. C. R Boxer,. 1 Mulher na Expansão Ultramarina Ibérica 1415-1815, Lisboa, Livros Horizonte,
446
OS LUGARES DO LUGAR
P o r c a r t a d e V o s s a M a j e s t a d e d e 18 d e m a r ç o d o a n o p a s s a d o m e m a n d a V o s s a
M a j e s t a d e s a b e r se as g r a d e s d o s l o c u t ó r io s d a s F r e ir a s e s tã o e m d i s t â n c i a d e se is p a l
m o s c r a v eiro s , t a p a n d o -s e as rod as d o s lo c u t ó r io s de p ed ra e cal q u e é o m e s m o q u e o s
P r e la d o s R e g u la r e s o r d e n a r a m ; e se tem m a n d a d o e x e c u t a r n o s C o n v e n t o s d a s F reira s
das F r e g u e s ia s e j u n ta m e n te n ã o c o n sin ta h aver a m iz a d e s ilícitas n o C o n v e n t o d a s Freiras
d esta C id a d e , e q u e a lém d a s leis q u e n esta s m a tér ia s e s tã o p o sta s, o e v it e m p e lo c a m i
n h o q u e m a is m e d ita a p r u d ê n c ia , a ju d a n d o ao A r c e b is p o n esta m a téria e m tu d o o q u e
e s tiv e r n o m e u p od er. A s g r a d e s estã o c o m o V ossa M a j e s t a d e m a n d a . A s ro d a s d o
lo c u tó r io fech a d a s. A s F reira s v iv e m , c o m o c o n v é m , d e que t e n h o m u it o p a rticu la r
c u id a d o ; a s s im p e lo q u e toca ao s e r v iç o d e D E U S , c o m o ao m a n d a t o d e V o s sa M a j e s t a
de. E e n q u a n t o e u g o v e r n a r s e g u r e - s e V ossa M a j e s t a d e q u e n e s t a p a r te p o d e e s ta r s e m
c u id a d o ; p o r q u e t o d o o m e u d e s v e lo , é n ã o faltar u m p o n t o ao q u e V ossa M a j e s t a d e m e
m a n d a 56.
Algo não passa mais, segundo o governador, algo não penetra mais, algo
não sai mais: as grades estão fixadas na medida exigida pela moral, pedra e
1977. p. 49. Eram muito ricas, contudo, famosas pela pureza racial e divertimentos que organiza
vam durante o carnaval. Em 1717, Le Gentil de La Barbinais escreve sobre as poses pouco conve
nientes dos atores de uma peça a que assistiu no Desterro, em seu N oiiíB ê u Voyage, vol. 3, pp. 207-
210. Cf. A. J. R. Russel-Wood, op. cit., p. 245. Cada uma delas pode ter duas empregadas, geralmente
moças órfãs pobres, por vezes escravas; algumas se dedicam aos negócios, emprestando dinheiro
ou vendendo terras. Boatos sobre encontros com homens, festas e outras práticas do gênero cir
culam cm Salvador para escândalo de virtuosos e regozijo de maledicentes, ocasionando severas
reprimendas da Coroa. Cí. A. ]. R. Russel-Wood, op. cit., p. 254. É esclarecedor lembrar que as 25
vagas do véu branco não foram preenchidas, pois eram de categoria inferior, destinadas aos tra
balhos manuais. Cf. lhalcs de Azevedo, op. cm, p. ISO. Cf. também Cartas sobre o assunto no
capítulo II.
56. Em 19 de junho de 1691, Cântara Coutinho escreve ao Rei sobre o Convento de Santa Clara do
Desterro, prestando-lhe contas das providências tomadas para cumprir urna ordem régia. A carta
de Coutinho duplica a ordem real, inicialmente por um resumo que a recorda, em seguida pela
exposição das providências efetivadas para cumpri-la. Ao fazê-lo, o sujeito da enunciação identifi-
ca-se com a posição real da ordem, evidenciando que é a mesma de outras autoridades, como o
arcebispo e prelados regulares. A carta de Câmara Coutinho evidencia, assim, a posição oficial
sobre o assunto. Ci. Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, “Carta para Sua Majestade sobre
as Religiosas do Convento de Santa Clara - 19.6.1691’, Livro de Canas que o senhor Antônio Luís
Gonçalves da Câmara Coutinho escreveu ,i Sua Majestade, sendo governador. e capitão geral do Estado do
Brasil, desde o princípio de seu governo até oJim dele (One foram as primeiras na frota qtte partia em 17 de
julho do ano de 1691), Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. A ordem
régia a que a carta responde encontra-se cm I. Àecioli & B. do Amaral, op. cit., vol. II, p. 25S:
“Governador do estado do Brasil Amigo.
“Lu El Rei vos envio muitos saudares. - Ao Arcebispo dessa cidade mando recomendar se refor
mem as grades dos conventos das freiras pondo-se em distância de seis Palmos de grossura e tapan-
do-sc em redor dos locutórios de pedra e cal que é o mesmo que os Prelados Regulares e ordinários
têm mandado executar nos conventos das freiras da sua obediência deste Reino, recomendando-
447
A SÁTI RA E O E N G E N H O
cal que tapam as rodas do locutório. “As Freiras vivem como convém”: dester
radas, sem as trocas das rodas, os sussurros dos ralos, os braços da grade, proi
bidas de ter “amizades ilícitas”. A enunciação da carta ordena-se segundo
três temas, materializados todos em “pedra e cal”: a conveniência, moral da
aparência e aparência da moral, medida a ser mantida conforme a posição
oficial representada nas falas e atos de governador, prelados, arcebispo e Rei
e, certamente, na de muitos pais afidalgados; o ilícito das “amizades”, segun
do a mesma conveniência e seus códigos (moral sexual, moral religiosa, mo
ral econômica); e a interdição, efeito da articulação do discurso da conveniên
cia sobre o do ilícito, reiterada na materialidade mesma da pedra e da cal:
“pecados de pedra, e cal” (OC, II, p. 264), como confirma a enunciação de
poema satírico dirigido a padre acusado de roubo:
A s F reiras, c o m sa n ta s se d e s,
saem co n d en a d a s em pedra,
q u a n d o o la d ro n a ço m ed ra
rou b an d o pedra, e paredes.
( O C , II, p. 2 6 4 . )
lhe também o grande cuidado que deve pôr para que se evitem todas as amizades ilícitas escanda
losas com as Religiosas desse Convento e vos recomendo muito que eviteis semelhantes amizades
pelos meios que vos for possível, não só por aqueles que mandam as leis mas por todos os que a
prudência vos ditar, para que as Religiosas vivam sem inquietação alguma espiritual causada por
pessoas seculares ou eclesiásticas e quando o Arcebispo (o que eu não espero do seu grande zelo e
virtude) falte em proceder contra as pessoas da sua jurisdição que nesse convento tiverem amizade
ou trato ilícito me o fareis presente e quando lhe não dê remédio conveniente me dareis conta,
mandando primeiro tomar alguma informação quando não conste das devassas que se tirarem
judicialmente a qual informação se não tirará por via de jurisdição mas somente a fim de poder ser
informado da verdade, e para o Arcebispo fazer a reforma que lhe recomendo lhe dareis toda a
ajuda e favor até que com efeito se consiga. Escrita em Lisboa, 18 de março de 1690. Rei".
O costume das visitas masculinas a conventos c generalizado no século XVII. Octavio Paz escreve
que, na Nova Espanha, alcançou tais proporções que uma das primeiras medidas do arcebispo Aguiar
y Seijas foi combatê-lo. Paz cita passagem do Diário de Sucesos Notables, de Antonio de Robles: “5 de
enero de 1682. Nolificación a Ias monjas de Ia Concepción y San Jerónimo no tengan nin consienlan
devotos en las rcjasy portcrias". Cf. Octavio Paz, "Las celdas y sus celadas”, Sorjuana Inés de Ia Cruz
o Las Trampas de la Fe, México, Fondo de Cultura Econômica, 1982, pp. 171-172.
448
OS LUGARES DO LUGAR
Q u e o Pai p ela d e sc e n d ê n c ia
d o filh o , o u d o seu a u m e n t o
m e ta a filh a n u m c o n v e n t o
freira d a c o n v e n iê n c ia :
q u e n ão faça c o n s c iê n c ia ,
se a casá-la o p ersu a d e,
d e lh e forçar a v o n ta d e,
e c o m o r d e m p erem p tó r ia !
B o a h istória.
( O C , II, p. 4 8 9 . )
( O C , II, p . 4 8 9 . )
57. Cf. Frei Lucas de Santa Catarina, “Carta 14 de frei Lucas de Santa Catherina em que persuade aos
Freiraticos, que o nãosejão. Quartel de Desenganos, e Advertências Freiraticas, para todo o Padecente
4 49
A SÁTI RA E O E N G E N H O
O secu la r e n te n d id o ,
e n co lh id o e m esurado
não pede de envergonhado,
de Grade, Mártir de Roda, e Paciente do Rallo. Pelo Inventor dos Sonhos, e Revedor dos Alentos".
Graça Almeida Rodrigues, Literatura e Sociedade na Obra de Frei Lucas de Santa Catarina (1660-
1740), Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983, p. 189.
58. Idern, p. 193.
59. Idcm, p. 200.
60. Idem, p. 190.
450
OS LUGARES DO LUGAR
n ão tom a d e com ed id o:
c o r te s m e n te de a dvertido,
e d e h u m ild e cortesão
d ecla ra a su a a feição,
e c o m o se a g r a v o fora,
c h a m a -lh e sua S e n h o r a ,
ch a m a -lh e, e ped e perdão.
( O C , IV, p. 8 5 7 . )
R o g o ao d e m o , q u e vo s tom e,
por d eix a r m orrer à fom e
u m p o b re fa m in to velh o:
rogo ao d e m o , q u e ao se u relho
v o s p r e n d a c o m força tanta,
q u e n u n c a a rred eis a p lan ta,
e q u e a esp in h a m u ita , ou pouca,
q u e m e tirastes da b oca,
se vos crave na garganta.
(O C , IV, p . 8 7 3 . )
Por isso, espaço ambíguo de penetrações, frestas por onde o olho, os bra
ços, as mãos..., roda, ralo e grade têm conotação erótico-obscena, separação e
junção dos corpos:
(O C , IV, p. 8 5 5 . )
45 1
A SÁTI RA E O E N G E N H O
E m c h eg a n d o à grade u m Frade
sem m a is ca rin h o , n em graça,
o braço logo arregaça,
e o tresp a ssa p ela grade:
e é tal a q u a lid a d e
de q u a lq u e r F rad e fam in to,
que e m u m á tim o su cin to
se vê a F r e ir a c o ita d a
c o m o u m figo a p o leg a d a ,
e m o lh a d a c o m o u m p in to.
( O C , IV, p . 8 5 6 . )
[...] P o r t a n t o , e u v o s a d m o e s t o , / q u e o m i m o , o r e g a l o , o d o c e / o s e c u l a r v o - l o a l m o c e ,
/ que a u m F ra d e b asta u m cab resto (O C , IV, p. 8 5 7 ) ; [...] T r o c a i o d o c e e m fa v o r , / c
c u r a i m e u m a l t ã o g r a v e / c o ’a q u e l a a m b r o s i a s u a v e , / c o m q u e f o i c r i a d o o A m o r ( O C ,
IV, p. 8 6 9 ) ; [...] t e n h o p o r m á c a r i d a d e / d a r d e s v ó s , F r e i r a , u m c a r á : ( O C , IV, p. 8 7 5 ) ; [...]
A ssim c o m o isto é v e r d a d e , / q u e p elo v o sso c o n se lh o / p erd i eu o m e u v e r m e lh o , /
percai v ó s a v irg in d a d e: / q u e vo -la arrebate um frade (O C , IV, p. 8 7 4 ) ; [...] v ó s t e n d e s
m e l h o r p a r t i d o , / m a i s l i b e r a l , e m a i s f r a n c o , / p o i s c o m o e m re a l e s t a n c o / ta l s e g u r o
vos p r o m e to / q u e p or u m c h o u riço preto / h eis d e levar o m e u bra n co (O C , IV, p. 8 7 8 ) .
452
OS LUGARES DO LUGAR
( O C , IV, p. 8 5 0 . )
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A SÁTI RA F. O E N G E N H O
Q u e a l g u é m p a g u e às e s p i a s
para ter F r e ir a s d e v o ta s,
e d e p o is d e m il derrotas
a n d e p e la s p ortarias:
q u e a n d e este to d o s o s d ia s
c o m cargas, e se m carreto,
e te n d o -s e por d iscreto
s e ja o b u r r i n h o d a fe ir a!
B oa asneira!
( O C , II, p. 5 0 4 . )
S e n h o r a M a ria n a , e m q u e v o s pês,
H a v e is d e m e p agar por esta cruz,
P orq u e n isto d e corn os n u n ca os pus,
E s e i , q u e m e p u s e s t e s m a i s d e três.
( O C , IV, p. 8 6 3 . )
A s f r e i r a s h ã o - s e d e c o n h e c e r , e n ã o tratar. P o r q u e e n q u a n t o c o n h e c i d a s , d i v e r t e m ;
e tr a ta d a s , c o n s o m e m . A freira se é m ú s ic a , o u v i-la ; se é d is c r e ta , e s c u tá -la ; se é d e s v a
n e c i d a , l o g r á - l a ; s e é t o l a , e n g a n á - l a ; s e é p r i m o r o s a , s a t i s f a z ê - l a ( m a s d e p a l a v r a ) , e se
é c a r in h o s a , a n im á -la m a s n ã o a d m iti-la q u e n iss o está a p e r d iç ã o d o s fr eirá tic o s, e o
g a n h o d a f r e i r a 6*.
454
OS LUGARES DO LUGAR
A las o F ra d e m a lcria d o ,
o vilão, o m a lh a d e ir o
n o s m o d o s é m u i g rosseiro,
nos gostos m u i depravado:
bram a, qual lobo esfaim ad o,
p o r q u e a F reira se d e s ta p e ,
e quer, p o r q u e n a d a e s c a p e ,
lev a r lo g o a ca u sa ao cabo,
e fed e c o m o o d ia b o
ao b u d u m d o trap e-zape.
( O C , IV, p. 8 5 7 . )
A s s im c o m o isto é verd a d e,
q u e p elo v o sso c o n se lh o
perdi eu o m eu verm elh o ,
percai v ó s a virg in d a d e:
q u e v o - la a r r e b a te u m frade;
m a s i s t o q u e p r a g a é? 96
69. Cf. OC, IV, p. 860. “Não sabeis a diferença / entre um Frade e um secular? / pois é esta a diferença:
/ tendo o leigo a capa imensa / como homem racional / nada lhe parece mal, / toda a Freira é uma
flor, / mas em sendo Frei Fedor, / a melhor é um cardal”. “Cardal”, de “cardo”, e também do
espanhol “corda”, “gente de la corda”', metaforicamente, os que são uma quadrilha de valentões,
rufiães, ou que têm outro modo de vida, mau c vicioso. Cf. Francisco de Quevedo, La llora de Todos
v la Fortuna con Seso, op. cit., p. 393.
455
A SÁTI RA E O E N G E N H O
praza ao d e m o , q u e u m c o b é
v o s p la n te tal m a n g a r á ,
q u e p a ra is u m P aiaiá,
m a is negro do q ue u m G u in é.
( O C , IV, p. 8 7 4 . )
D i z , q u e u m X isg a r a v is d eitara à lu z
M o r g a d o d e u m P resb ítero m o n tês,
C ara frison a, garras d e Ir la n d ês
C o m b o ca d e c a g u e ir o d e a lcatru z
D o u , q u e n a s c e s s e o tal X is g a r a v is ,
Q u e o p a r is s e u m a Freira: v a d e e m p az,
M a s q u e o g e r a s se o S e n h o r Padre! arroz
70. Sobre filhos ilegítimos, também frutos de amores de convento, cf. A. J. R. Russel-Wood, “A Roda
dos Expostos”, op. cit., pp. 233-251.
71. Sobre amores de padre e freira, cf. I. Accioli & B. do Amaral, op. cit., vol. V, pp. 489-495: “Pela Mesa
da Consciência e Ordens se fez presente a S. M. a queixa que a abadessa do Mosteiro de Santa Clara
do Desterro dessa cidade fez Inácio Moreira Franco, vigário do dito Mosteiro que também é da
paróquia, não só tratando ilicitamente com Josefa Clara religiosa nele, jactando-se de cometer cri
mes em desdouro da comunidade, chegando a intentar pelos forros da capela-mor passar aos dormi
tórios, comendo e bebendo com a dita religiosa nos postigos das grades da igreja e por já ser público
o escândalo lhe proibira o Cabido dessa Sé vacante o ingresso na clausura para administrar os Sacra
mentos às enfermas e o suspendeu da ocupação de capelão que interinamente exercia, [...] e inten
tando ultimamente a perdição daquele mosteiro introduziu por via da dita religiosa Josefa Clara
uma parcialidade na clausura com o título de rancho do vigário de que tem resultado muitas desu-
niões e discórdias, achando proteção a favor em muitos capitulares. Lisboa, 25.4.1738”. (Idem, pp.
491-492). Sobre devassas de freiráticos, cf. também op. cit., p. 493: “Manuel de Sousa de Brito, Escri
vão da Ouvidoria Geral da Correição da Cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos [...] no dito
ofício se acha a devassa efoi a décima dosfreiráticos que no presente ano sefez em a dita cidade [...] o Padre
Gonçalo com uma freira harpista e o Padre Duarte com uma freira. Bahia, 29.8.1738” (grifos meus).
456
OS LUGARES DO LUGAR
V erd a d e p o is o co ra çã o m e d iz,
Q u e o F i l h o f o i s e m d ú v i d a a l g u m tr á s ,
Para as b a r b a s d o P ai, o n d e se p ôs.
(O C , IV, p. 871.)
O h ! l á s t i m a d a c e g u e i r a f r e i r á t ic a ! q u e n a s c e n d o u m d e s t e s e n t r e g e n t e c a t ó l i c a ,
h a ja d e s e c o n d e n a r p e l a s e n s a b o r i a d o a p e t i t e m a i s i n ú t i l d o s h o m e n s ? o n d e o q u e é
e n t e n d i d o , s e r e p u t a p o r n é s c i o ; o q u e é l i b e r a l , f ic a m í s e r o ; o q u e é a g u d o , f i c a e n g a n a
do ; o q u e é a r d i l o s o , f i c a c o r r i d o ; o q u e é d e s v a n e c i d o , f i c a t o l o 72.
Mas certamcnte esta é mais uma das cenas para a persona satírica, ator
complexo, como se vê a seguir, segundo outra tópica.
A etas (I dade)
N ã o vos entra n o m io lo ,
que é de v a lo r m a is su b id o
um velh o, send o en ten d id o
q u e u m m e n i n o , s e n d o tolo?
(O C , IV, p. 9 3 8 . ) ,
457
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
OU
T á tá,
n ã o m e m a t e i s tá,
q u e in d a q u e so u v e lh o ,
n ã o h e i d e cansar.
( O C ,I V , p. 9 4 2 .)
M a s ela m e t e m tal ó d io ,
q u e fu g ir á té d e ser
m adrasta do G o n ça lin h o ,
q u e é l i n d o e n t e a d o à fé .
( O C , III, p. 7 4 7 . )
74. Sobre os ascendentes de Gregório, cf. Fernando da Rocha Peres, A Família Mattos na Bahia do
Século XVII, Salvador, Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia, 1988, n. 132.
458
OS LUGARES DO LUGAR
75. A. Kernan, The Cankered Muse: Salire of lhe English Renaissance, New Haven, 1959, pp. 16-28. Dis
cussão acurada do livro de Kernan acha-se em William S. Anderson, “Anger in Juvenal and Seneca”,
Essays on Roman Salire, Princeton, Princeton University Press, 1982. Este trabalho ratifica as teses
de Anderson, que observa que as conclusões de Kernan também são válidas para a sátira romana de
Juvenal, lembrando que a “musa cancerosa” da Renascença inglesa aparenta-se com a do satírico
raivoso de Juvenal, mais que qualquer outro autor romano, uma vez que sua sátira foi apropriada
pelas doutrinas inglesas da sátira no Renascimento (p. 295). A presença de Juvenal e Marcial é
forte também na sátira ibérica, lembrando-se aqui as traduções de Marcial feitas por Quevedo.
Geralmente, a sátira romana encontra-se na sátira seiscentista como citaçáo, personagens, situa
ções dramáticas e, evidentemente, desenvolvimento de lopoi do gênero demonstrativo.
459
A SÁTI RA E O EMG E N H O
+
brancura X não-brancura;
catolicismo X heresia e gentilidade;
discrição X vulgaridade;
fidalguia X plebe;
liberdade X escravidão;
honestidade X desonestidade;
masculino X feminino
460
OS LUGARES DO LUGAR
Matos, sempre positivado como causa ou origem dos poemas, apesar de não
se conhecer nenhum autógrafo e de nada ter editado em vida: doente, fauno
de Coimbra, tarado, mestiço, mazombo nativista, protonacionalista, nacio
nalista, crítico da ideologia oficial, carnavalesco, antropófago cultural, ateu,
liberal, libertino, transgressor, revolucionário, ressentido, pessimista, reacio
nário, machista, plagiário, desclassificado, canalha etc. Segundo a convenção
retórica, as inconsistências e contradições da persona são convenções aplica
das tecnicamente para figurá-la como persona dramática. Ou seja: supondo-se
que o homem chamado Gregório de Matos e Guerra tenha querido publicar
poeticamente seu ponto de vista individual sobre um assunto qualquer da
sociedade baiana do século XVII, ele não poderia fazê-lo sem aplicar as con
venções retóricas das paixões que modelam o “eu” poético como tipo não-
psicológico, ou seja, como tipo formalizado retoricamente. Em seu tempo,
era impossível fazê-lo de outra maneira.
Kernan lembra que, se o personagem satírico permanecesse coerente ape
nas como personalidade pública, a simplicidade esquemática de seu caráter
seria totalmente compreensível, mas também parecería ingênua demais para
dar conta de um mundo muito complicado como o seu. No caso, a convenção
retórica da sátira prescreve que, em decorrência dos seus violentos ataques
aos vícios, a persona também adquire características por assim dizer “desa
gradáveis”, que tornam suspeita sua pose de defensor da verdade nua. Assim,
o poeta satírico constrói as inconsistências da persona por meio de cinco pares
de tensões encontráveis na sátira de Juvenal, na poesia satírica medieval e,
como demonstra Kernan, na sátira elisabetana. Os cinco pares ordenam a
invenção do “eu” da enunciação da sátira atribuída a Gregório de Matos, o
que parece ser uma evidência não propriamente da psicopatologia de homens
tão diversos que produziram sátiras em situações históricas tão diferentes,
mas, sim, da longa duração histórica da técnica retórica de figurar as incon
sistências da persona que caracteriza o gênero. Os cinco pares de tensões
desautorizam a atribuição das inconsistências poéticas, que são inconsistên
cias fictícias, produzidas sempre pelo cálculo muito racional de uma técnica,
à psicologia suposta num homem suposto autor dos poemas.
E útil lembrar que, na interpretação antiga das inconsistências da persona
agressiva e obscena, há duas vertentes: a peripatética e a estóica. A versão
peripatética propõe que a persona satírica é o vir bonus, o homem honesto,
eives, o cidadão, que se indigna contra os viciosos e os vícios que corrompem a
sua Cidade; por isso mesmo, sua ira e sua agressão muitas vezes obscenas
estão previstas. A vertente estóica, como a que é exposta por Sêneca, em De
ira, propõe que a indignação também é indigna, porque irracional ou excessi
461
A SÁTI RA E O E N G E N H O
76. Poucos poemas compõem a persona satírica como “simplicidade”; exemplar é o romance dialogado,
em forma de carta, dedicado ao Conde do Prado e que desenvolve o fugere urbem.
462
OS LUGARES DO LUGAR
M u i t o s e r a m o s fe r id o s d e se u ferro, q u e c o n s u lta r a m o r e m é d io n o m e s m o in s t r u
m e n to da c h a g a b e ija n d o A q u ile s a lan ça, q u e os trespassara. R aro t e st e m u n h o d esta
fa ta lid a d e foi a re s p o sta q u e d e u a u m q u e ix o s o , certo G o v e r n a d o r s e v e r a m e n te r e s o lu
to: “N ã o f a ç a u m c a s o ( d i s s e ) p o r q u e i s s o t a m b é m p a s s a p o r m i m s e m q u e p o r m i m
p a s s e a m í n i m a t e n ç ã o d e o c a s t i g a r ”77.
77. Licenciado Manuel Pereira Rabelo, “Vida do Excelente Poeta Lírico, o doutor Gregório de Matos
e Guerra”, em James Amado (org.), Obras Completas de Gregório de Maios (Crônica do Viver Baiano
Seiscentista), Salvador, Ed. Janaína, 1968, 7 vols., vol. VII, p. 1718.
463
A SÁTI RA E O E N G E N H O
ação verbal para a recepção. São tão explícitos que invalidam a noção rotinei
ra de que as incoerências dapersona são motivadas como expressão da persona
lidade doentia de um indivíduo empírico. Ao contrário, permitem demonstrar
que as incoerências da persona são fictícias, ou seja, construídas retoricamente
como “despropósitos a propósito” ou “inconveniências convenientes”, para
repetir Tesauro. Supõe-se que tal construção tenha ficado explicitada no de
correr deste trabalho. Para ratificá-la, contudo, vão mais exemplos.
Começando por poema já analisado no capítulo IV, que afirma que “A
narração há de igualar ao caso”, a questão nuclear da racionalidade é proposta,
encenando-se o pleno conhecimento dela púapersona, que não é néscia e, por
isso, conhece a técnica do fingimento poético:
O n é sc io , o ig n o ra n te , o in ex p erto ,
Q u e n ã o e le g e o b o m , n e m o m a u reprova,
P or t u d o p a ssa d e s lu m b r a d o , e in certo.
( O C , II, p . 4 7 0 . )
Outro poema, que satiriza Pedralves da Neiva por seus falsos foros de
fidalgo, afirma-lhe que
tu d o , o q u e aq u i v o s d igo,
ora é z o m b a n d o , o ra rin d o .
( O C , IV, p . 8 9 8 . )
464
OS LUGARES DO LUGAR
a t ip if ic a m c o m o / d e s c l a s s i f i c a d o / o u / i n f a m e / s ã o as c o r r e n te s n o s é c u lo X V II,
a r r ib a n d o d e fora p o r c a u sa d a c h u v a , c o m u m c a s a c ã o , e u m a c a r a p u ç a , e ela
lh e d is s e , q u e se fora p o e ta , c o m o e le , o h a v ia d e sa tir iz a r p e lo d e sc o c o : ao q u e
ele fe z esta s d é c im a s ” .
Q u e n ão v o s e n g a n a is, d igo,
B etica , e a n te s cu id a i,
q u e u m a sátira a m e u Pai
fa rei, se b u lir c o m ig o :
fá-la-ei ao m o r a m ig o ,
q u a n d o a le iv o s o m e toe,
e p o r q u e m e lh o r v o s soe,
se v o s p u s e m tanta calm a,
s e n d o o m e u í d o l o d ’a l m a ,
a q u e m q u ereis, q u e perdoe?
E se m a l v o s p a r e c e u ,
q u e eu fosse por esse p osto
tão d e s p id o , e d e sc o m p o s to ,
s e m ter r e s p e ito a e s s e c é u ,
b e m sab eis vós, q u e ch oveu ,
e eu v in h a d e m e em barcar:
p o r é m e n t o l d o u - s e o ar,
e p ara c a sa arrib ei,
c o m q u e se d e s a g r a d e i
q u e r o - m e satirizar.
B e tica, eu sou u m magano,
um patife, u m m a r i o l a ,
u m sátiro, u m salvajola,
e m a i s doudo q u e u m galhano'.
d e p o is d e ser v o ss o m a n o ,
e m t e m p o , q u e e u era h o n r a d o ,
fui m u ito desaforad o
e m v ir p e la v o s s a rua
c o m b a rrete d e falua,
e o pá de gato pin gado.
Sou um sujo, e u m patola,
de mau ser, má propensão,
p o r q u e se g a s t o o t o s t ã o
é só c o m n e g r a s d e A n gola:
465
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
um sátiro salvajola,
a quem a universidade,
não melhorou qualidade,
nem juízo melhorou,
e s e a c a s o lá e s t u d o u ,
si f o i loucura, e asnidade.
Sou u m tonto, e u m cabaça,
p o is fui qual bruto indigesto,
o n d e os m a is c o m p õ e m o gesto
p o r c a i r n a v o s s a gr aç a:
e se e n t ã o fu g i d a p raça,
o n d e estã o h o m e n s d e porte,
b e m é, q u e a praça m c corte,
p o i s a t e n t o à v o s s a fé
d evia d e e n te n d e r , q u e
o n d e v ó s e s ta is , é corte.
Se da sátira e n t e n d e r e s ,
q u e p o u c o p e s a d a vai,
vós, B etica , a acrescentai
c h a m a n d o - m e , o q u e q u iseres:
q u an tos n o m e s m e puseres,
to d o s m e v ira m frisan d o,
c se e n f i m a c r e s c e n ta n d o
não v o s pa recer b astante,
m u d a i- o s d e in sta n te a in sta n te,
p o n d o - m e u n s , e o u tr o s tiran do.
( O C , IV, p p . 9 6 3 - 9 6 5 . )
46 6
OS LUGARES DO LUGAR
indigesto” etc., opera as distinções discretas que a persona afirma não ter ca
pacidade de efetuar enquanto as efetua e aplica a si mesma. Em outros ter
mos, a convenção da irracionalidade picaresca é figurada como sendo de ple
no conhecimento da persona, um discreto que aqui desdobra o fingimento
poético, fingindo-se incapaz de fingir, pois declara-se “néscio”. É como cômi
co sem dor que o poema se enuncia: “Se da sátira entenderes, / que pouco
pesada vai”, implicando-se nesses versos a outra convenção, a da maledicên
cia, pela qual a sátira “muito pesada vai”. A “asnidade” da persona explicita-
se, desta maneira, como uma evidenciação das convenções para efetuar a “asni
dade”: a irracionalidade, a incoerência e a inconsistência são efetuadas muito
racionalmente, muito coerentemente e muito consistentemente, enfim, lem
brando-se mais uma vez o quanto há de cálculo no distanciamento auto-irô-
nico da persona.
Outro poema, em que a vítima do ataque é o Braço de Prata, o governador
Sousa de Meneses, expõe-lhe no exórdio-dedicatória:
Q u e é já v e l h o e m P o e t a s e l e g a n t e s
O ca ir e m to r p e z a s se m e lh a n te s.
D a P u lg a a c h o , q u e O v íd io tem escrito,
L u ca n o do M o sq u ito ,
D a s Rãs H o m ero , e d estes não desprezo,
Q u e escrev era m m a tér ia s de m a is p eso
D o q u e eu , q u e ca n to co u sa m a is delgada
M a is ch ata, m a is su til, m a is esm agad a.
(OC, I, p. 155.)
Aqui, mais uma vez a persona evidencia a convenção poética que prescre
ve o estilo baixo - “cair em torpezas semelhantes” -, encenando-a em sua fala
como digna de emulação - “Poetas elegantes” -, do porte de Ovídio, Lucano,
Homero. Observe-se que as obscenidades que continuam a pintura fantástica
de Sousa de Meneses no poema estão também prescritas pela intensificação
do estilo baixo como translalio sórdida: na comparação das matérias, a da persona
satírica é mais vil - “mais delgada, / Mais chata, mais sutil, mais esmagada”
- que a pulga, o mosquito e as rãs dos poetas elencados. Logo, impõe-se a
linguagem adequada a essa matéria ínfima, a agressão e a obscenidade, que a
persona conhece e domina com perfeição.
Muitos outros exemplos poderiam ser expostos e discutidos, mas acredi
ta-se já ter ficado patente o caráter retórico da persona e de suas “incoerências”.
Pode-se afirmar que ela não é monolítica ou unitária, ainda quando postula a
467
A SÁTIRA E O E N G E N H O
468
OS LUGARES DO LUGAR
E d u c a t io et D is c ip l in a ( E ducação e I n str u ç ã o )
78. Quintiliano, De insiüulione oraioria, 5, 10, 25: “educatio ei disciplina, quoniam referi a quibus ei quo
quisque modo sil insiituius”.
4 69
A SATI RA E O E N G E N H O
É q u e s t ã o m u i a n tig a , e altcrca d a
E n tre o s L etrad os, e os M ilic ia n o s,
S em as h aver d ec id id o em tantos anos,
Q u a l é m a i s n o b r e a p e n a , se a espa d a .
E sta p o i s c o n tr o v é r s ia tão r e n h id a ,
T ã o d isp u ta d a , q u an to d u vidosa
C e s s o u co d e sp o s ó r io , q u e se ord en a.
U m a p en a a soltou m u i en ten d id a ,
U m a e sp a d a a co rto u m u i va lero sa ,
P o i s já s e d ã o a s m ã o s e s p a d a , e p e n a .
(“A o m e s m o D e s e m b a r g a d o r [ D i o n í s i o d ’A v i l a V a r e i r o ] c a s a n d o - s e c o m a f i l h a d o
C a p i t ã o S e b a s t i ã o B a r b o s a ”)
( O C , II, p. 4 1 3 . )
79. Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, Livro de Cartas que o Senhor Antônio Luís Gonçalves
da Câmara Coutinho escreveu etc. (Cartas ao Rei, 1692), Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacio
nal do Rio de Janeiro, pp. 67-70.
470
OS LUG A R E S DO LUGAR
( O C , II, p . 4 0 9 . )
V ós graduado a borrões
e m u m a u n iv ersid a d e
q u e fu n d o u nesta cid a d e
o b r a ç o d o s a s n e i r õ e s 81:
( O C , III, p. 7 3 4 . )
80. Exposição minuciosa e diacrônica desse topos encontra-se em Luís de Sousa Rebelo, “Armas e
Letras, um topos do Humanismo Cívico”, A Tradição Clássica na Literatura Portuguesa, Lisboa, Li
vros Horizonte, 1982.
81. Francisco Rodrigues Lobo indica quem são os letrados no século XVII: “Têm as escolas, além
destes, um bem, que favorece esta opinião, e é que de ordinário os que as buscam, ou são filhos
segundos e terceiros da nobreza do Reino, que, por instituição dos morgados de seus avós, ficaram
sem heranças e procuraram alcançar a sua pelas letras; ou são filhos dos homens honrados e ricos
dele, que os podem sustentar com comodidade nos estudos; ou religiosos escolhidos nas suas pro
víncias, por de mais habilidade e confiança para as letras”. Cf. Francisco Rodrigues Lobo, “Diálo
go 16", Corte na Aldeia e Noites de Inverno, 1619, cit. por Vitorino Magalhães Godinho, Estrutura da
Antiga Sociedade Portuguesa, 3. ed., Lisboa, Arcádia, 1977, p. 251. Os oficiais da Câmara de Salvador
dirigem-se várias vezes à Coroa fazendo a mesma demanda. Por exemplo, em 10.4.1674 e em 7.7.1681,
pedem por uma universidade a exemplo da Universidade de Évora ou afirmam ser mais que justi
ficável sua fundação, tanto pela distância da Bahia quanto pelas despesas e riscos de mar a que se
expõem os moços que vão a estudar em Coimbra. Pedem também que se conceda o grau de licenciado
ou mestre em Artes àqueles que seguem os cursos ministrados pelos padres da Companhia de
Jesus, caso a universidade não seja possível. A carta de 7.7.1681 é explícita. Após as manifestações
protocolares de lealdade irrestrita, os senhores alegam que, castigados pelo Céu com duas pestes
de bexigas e tendo perdido grande número de filhos e de escravos, esta é a causa por que “[...]
desejando nos acrescentar nossos filhos com o lustre das boas artes e Ciências nas Universidades
471
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O
( O C , III, p. 7 1 8 . )
do Reino e autorizá-los com os graus de Licenciados, e Doutores, o não podemos fazer por falta de
cabedais para os enviar e sustentar no Reino como convém; e porque nesta Cidade da Bahia os
Religiosos da Companhia de Jesus além da Gramática e letras humanas ensinam a Filosofia e
Teologia assim moral como especulativas com grande aplauso, e proveito dos ouvintes os quais
com esperança do prêmio melhor se animarão ao estudo, Prostrados aos Reais Pés de Vossa Alteza
em recompensa dos Serviços referidos, vista a impossibilidade de Cabedal que alegamos, e sobre
tudo por nos fazer Vossa Alteza essa honra à nossa Cidade lhe pedimos queira ser servido de con
ceder aos que aqui se agraduarem com os mesmos graus de Licenciados na Filosofia e Doutores na
Teologia cheios os anos, e feitos os atos Literais os mesmos privilégios, que goza a universidade de
Évora no qual nos faz Vossa Alteza uma Grande de mercê”. Cf. Carias d o S e n a d o 1673-1684, Salva
dor, Prefeitura do Município do Salvador/Bahia, 1952, 2üvol., pp. 10-11 e 105-106. Os privilégios
não vêm, não se funda a Universidade, o colégio dos jesuítas continua a ensinar a sua Filosofia,
Teologia, Gramática (Latim), Retórica, Lógica, sem que os graus sejam conferidos aos formados no
local.
82. Bártolo ou Bartolomeu de Sassoferrato (1314-1357), professor das universidades de Pisa e Perúsia.
Suas obras foram estudadíssimas nos cursos de Cânones de Coimbra até as reformas pombalinas.
Cf. “Bártolo e bartolismo na história do direito português” em Martim de Albuquerque, Estudos de
Cultura Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, 1" vol., pp. 39-123. Para uma
exposição da estrutura do curso de Cânones em Coimbra, cf. Estatutos da Universidade de Coimbra do
anuo de MDCCLXX1I. Livro 11 Que contém os cursos jurídicos das Faculdades de Cânones e de Leis, Lis
boa, na Régia Officina Typografica, Anno M DCCLXXIII.
472
OS LUGARHS DO LUGAR
O la ca io a la tin a d o ,
ó m a c a r r ô n ic o ilu stre,
ó Ju rista b a la ú stre
ao m a c h a d o torneado.
( O C , III, p. 7 1 8 . )
Nos ataques aos magistrados que, por astúcia ou por inépcia, não exer
cem a “vocacia honrada” (OC, I I I , p. 735), a sátira lança mão mais uma vez do
topos “pena e espada”, equiparando “letras” a “armas” na maledicência, as
sim como as equipara no encômio dos poemas citados: “a minha Camena /
como vos corta co’a pena / vos pode cortar co’a espada” (OC, I I I , p. 739). O
mau letrado é, enfim, um “velhaco embusteiro”, “caco” (OC, I I I , p. 742) e
“asno barbado” (OC, I I I , p. 735); tem “[...] direitos / de Pedro de malas artes”
(OC, I I I , p. 738) e um “negro saber”, sendo “escriba cruel” (OC, I I I , p. 740);
quer ser “[...] como Bruto um grão talento” (OC, I I I , p. 737), não passa de “[...]
um simples e um coitado” (OC, I I I , p. 742). Tão coitado que umas décimas
dirigidas ao “Doutor Gilvaz”, ou “Cutilada”, têm a seguinte didascália: “Ao
mesmo letrado que havendo articulado contra huma parte em total perjuizo
de huma herança, esta huma noyte lhe metteo na cabeça uma panella de merda,
dizendo, que eram camarões. O poeta lhe chama aqui Gilvaz, porque tinha
huma cutilada na cara” (OC, I I I , pp. 720-724).
Quanto aos poetas e oradores sacros, a sátira os acusa de imperícia técni
ca no uso dos consoantes, de falta de concerto harmoniosamente agudo dos
conceitos, de ação que fere o decoro do púlpito, de mania gongórica de escu
recer tanto o poema que logo acodem morcegos, como diz Quevedo, que tam
bém propõe que tais versos não podem ter luz e ser claros senão quando quei
mados83. Contra a “ignorância / de Idiotas tão supinos” (OC, I, p. 173), afirma
a persona que “Anda aqui a poesia a todo trote” (OC, I I I , p. 711), implicando-
se os autores como “Pégaso”, ou “cavalos” e “asnos”, com tradução obscena de
seu valor: “[...] enfermou de caganeiras, / e fez muito verso solto” (OC, I I I , p.
83. Francisco de Quevedo, La Hora de Todosy la Foriuna con Seso, Paris, Aubier, 1980, p. 196: “Llegóse
uno lanto con un cabo de vela al poeta noche de invierno, de las que llaman boca de lobo, que se encendió
el papel por en medio. Dúbase el autor a los diablos de ver quemada su obra, cuando el que la pegófuego le
dijó: “Estos versos no pueden ser claros y lener luz si no los queman: más resplandeceu luminaria que
canción
473
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
M e u C o r p o vá a m o r t a lh a d o
no h áb ito de cacoetes,
que te m m e u a m o entre asn etes
d e falar a g o n g o r a d o .
( O C , II, p . 2 5 3 . )
V ia d e p e r f e i ç ã o é a s a c r a v i a ,
V ia d o c é u , c a m i n h o d a v e r d a d e :
M a s ir a o C é u c o m tal p u b l i c i d a d e ,
M a is q u e à v ir tu d e , o b o to à h ip o crisia .
4 74
OS LUGARES DO LUGAR
O ó d i o é d ’a l m a i n f a m e c o m p a n h i a ,
A p a z d e ix o u -a D e u s à crista n d a d e.
M a s arrastar p o r força, u m a v o n ta d e ,
E m v e z d e p e r f e i ç ã o , é t i r a n ia .
É p r ó p r i o d e u m p o r t e i r o d ’a u d i ê n c i a
E se n isto m a ld ig o , ou m al m e en g a n o ,
E u m e s u b m e t o à S a n t a M a d r e I g r e ja .
( O C , II, p. 2 5 2 . )
S e n d o u m z o te tão s u p in o ,
é s t ã o c o n f i a d o a lv ar ,
q u e andas por i a pregar
g e r i n g o n ç a s a o d i v i n o 84.
( O C , II, p. 2 7 6 . )
D e q u e m c o m L etras secretas
t u d o , o q u e a lc a n ç a é p o r tretas,
84. Cf. Francisco de Quevedo, Aguja de navegar cultos: “Quien quisiere ser atilo en sólo un dia, / lajeri
(aprenderá) goma siguienle" e, ironizando o autor da F á b u l a d e P o l i f e m e G a l a t é i a : “Este alajcringonza
quitó el nombre, / pites después que escribió ciclopemente, / Ia llama jeringóngora Ia gente La Hora de
Todos y Ia Fortuna con Scso, p. 406.
475
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
F o r tu n a ( D in h e ir o ; R iq u e z a x P o b r e z a )
85. Quintiliano, De inslitulione oraioria, 5,10, 26: “[...] fortuna, neque enim credibile esl in divile acpaupere,
propinquis, amicis, clietuibus abundante et his onmibus destituto
47 6
OS L U G A R E S DO L UGA R
( O C , III, p . 6 5 1 . )
Q u e v a i p e l a c l a r e z i a ? ........................S i m o n i a
E p e l o s m e m b r o s d a I g r e j a ? ............ I n v e j a
C u i d e i , q u e m a i s se l h e p u n h a ? ..............U n h a .
( O C , I, p. 3 3 .)
O n te m sim p le s Sacerdote,
h o je u m a grã d ig n id a d e ,
o n te m sa lv a g e n otório,
h o je en co b erto ignorante.
A o tal B e a to f in g id o
é força, q u e o p o v o a c la m e,
e os d o g o v e r n o se o b r ig u e m ,
p o is e d ific a a cid ad e.
[...]
C resce e m d in h e iro , e resp eito ,
vai r e m e t e n d o as fu n d a g e n s ,
c o m p r a to d a a sua terra,
c o m q u e fica h o m e m g ra n d e,
e eis aqui a personagem .
( O C , II, p. 4 3 2 . )
[...] p o r q u e s o i s t ã o m a u c r i s t ã o
q u e o q u e v o s cu sta u m tostão
v e n d e i s p o r d u z e n t o s r é is .
( O C , II, p. 3 9 2 . )
477
A SATI RA E O E N G E N H O
478
OS L U G A R E S DO L UGA R
( O C , II, p p . 4 3 0 - 4 3 1 . )
V em o u tr o d o m e s m o lote [...] u m c r i s t ã o
tão p o b re, e tão m iserá v el q u e a p e n a s b e n z e r - s e sa b e :
v e n d e o s r e t a l h o s , c tir a F i c a e m te r r a r e s o l u t o
c o m iss ã o c o m co u ro , e carne. a en trar na o r d e m m e r c a n te ,
C o p r in c ip a l se lev a n ta , troca p o r c ô v a d o , e vara
e tudo em p reg a no Iguapc, tim ã o , b a le stilh a , e m ares.
q u e u m e n g e n h o , e três fa zen d a s A r m a -lh e a ten d a u m ricaço,
o tê m feito h o m e m grande: q u e a terra c h a m a M a g n a t e
e eis aqui a p erso n a g e m . co m p a cto d e p arceria,
47 9
A SÁTI RA E 0 E N G E N H O
C o m isto o M a r in h e ir a z
d o p r im e ir o jacto, o u la n c e
b o t a fo r a o c u b r e a d o ,
as m ã o s d i s s i m u l a e m g u a n t e s .
V ende o cabedal a lh eio ,
e dá c o m ele em L evante,
vai, e v e m , e ao d ar d as co n ta s ,
d im in u í, e n ã o reparte.
[...] e m c a s a n d o - m e a b s o r t o
c u id a o B rasil, q u e sou m orto
para n e g ó c io s de amor.
O B rasil é u m v e lh a c o ,
u m falso, e u m e m b u s t e ir o ,
p o r q u e o u c a sa d o , o u solteiro,
q u a n d o en saco, desensaco:
e a vez que m e desataco,
a p e c ú n ia tanta, ou q u a n ta
d e u p o r p a g a r m e r c ê tanta;
p o r q u e sei, q u e na B a h ia
a c o i s a p o r q u a l q u e r v ia
v a i , c o n f o r m e se l e v a n t a 86.
86. Cf. também OC, III, p. 776: “Sede mercador dc amor, / onde um favor, que se gasta, / rende qui
nhentos por cento / em finezas de ouro e prata. / Fazei negócio comigo: / e se heis medo, à minha
barca, / quem não se arrisca não perde / mas no risco está a ganância”.
480
OS LUGARES DO LUGAR
D a q u i d e s ta P raia g r a n d e ,
O n d e à cid a d e fu gin d o,
c o n v e n t u a l d a s areias
e n t r e o s m a r i s c o s h a b i t o : [...]
G raças a D e u s , q ue não vejo
n e s t e tão d o c e retiro
h ip ócritas e m b u steiro s,
v e l h a c o s e n t r e m e t i d o s . [...]
V isita -m e o lavrador
sin c e r o , s im p le s , e liso ,
q u e e n t r a c o ’a b o c a f e c h a d a ,
e sai co q u e i x o ca íd o .
( O C , I, p p . 1 7 0 - 1 7 1 . )
Se, a q u e m v iv e e m so lid ã o ,
c h a m o u b ea to u m g en tio ,
e s p e r o e m D e u s , q u e h e i d e ser
p o r b ea to in d a b e n q u isto .
( O C , I, p. 1 7 4 .)
87. “Jimbo”. Nzimbu é o nome da moeda, geralmente uma espécie de concha, da ilha de Luanda.
481
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O
C o n d ic io (C o n d iç ã o e D ist â n c ia )
( O C , IV, p. 8 0 6 . )
[...] p r e s u m i u d e f i d a l g u i a , / c u i d o u , q u e era o u t r a B a h i a / o n d e b a s t a a p r e s u n ç ã o /
p a r a f a z e r - s e a u m c r i a d o / m u c h í s s i m a c o r t e s i a ( O C , I, p. 1 9 9 ) ; [...] c o m s e r b e s t a d e lei
/ t a n t o o s e r v i l ã o e s c o n d e , / q u e v e m d a V i l a d o C o n d e / m o r a r n a c a s a d ’E l - R c i ( O C , II,
p. 2 9 7 ) ; [...] h o j e c h i s p a i s f i d a l g u i a s / a r r o j a n d o p e r s o n a g e n s ( O C , II, p . 4 3 0 ) ; [...] po r
fo r a l u v a s , g a l õ e s , / i n s í g n i a s , a r m a s , b a s t õ e s , / p o r d e n t r o p ã o b o l o r e n t o ( O C , II, p.
4 4 3 ) ; [...] F i d a l g o N o r o e g o / e m c r u z d e C a l v á r i o / q u e u m c e r t o f a l s á r i o / n o s p e i t o s lh e 8
88. Quintiliano, Dc inslilulione oratona, 5,10, 26: “Condicionis eliam distanlia esl: mm clams an obscurus,
magistralus an privalus, pater an Jilius, civis an peregrinas, liber an servas, marilus an caelebs, parens
liberornm an orbus sil, plurimum distai”.
482
OS LUGARES DO LUGAR
E l Tiempo Perdido casó con la Ignorância, tuvieron un hijo, a quien llamaron Penséque;
este casó con lajuvenlud, en quien hubo muchos hijos: a No pensaba, No sabia, No di en ello,
Quiéti creyra. Esta casó con el Descuido, y tuvieron por hijos a Bien está, Mahana se hará,
89. A sátira recupera, como já s e viu, a concepção estóica da fundamental maldade humana. Cf., por
exemplo, Sêneca,De ira, em Trailés philosophiques, trad. François e Picrre Richard, Paris, Garnier,
1955, vol. I.
483
A SÁTIRA E O E N G E N H O
Tiempo hay, Olra ocasión vendrá. Tiempo hay casó con dona No pensaba,y tuvieron por hijos
a Descuidéme, Yo me enliendo, No se enganará nadie, Deseje deso, Yo me lo passaré. Yo me
entiendo casó con la Vanidad, y tuvieron por hijos Aunque no queráis, Yo saldré con la mia,
Galas quiero; esta casó con No faltará,y dellos nacieron Holguémonosy ha Desdicha, que tuvo
por marido a Poco seso, y por hijos a Bueno está eso, Qué le va a el, Paréceme a mí, No es
posible, No me diga más, Una muerte debo a Dios, Ello dirá, Verlo heis, Excusado es el consejo,
Esto es hecho, Aunque me maten, Diga quen dijere, Preso por mil, Qué se me da a mí, Nadie
murió de hambre, No son lanzadas que dineros son. Enviudó Galas quiero, y casó segunda vez
con la Necedad,y gastó lodo su patrimônio; dijo el uno al otro: Tened paciência, que a censo
tomaremos dinero con que nos holguemos este ano,y el otro, Dios proverá; y aconsejados con No
faltará, hicieron así,y como al plazo no hubiese con qué pagar lo que debían a censo, el Engano
los metió en la cárcel. Fueron visitados por Dios hará merced. La Pobreza los llevó al hospital,
donde acabaron la autoridad de Galas quieroy No miré en ello. Enterráronlos con su bisabuela,
la Necedad; dejaron muchos hijosy nietos, que andan derramadosy perdidos por el mundo*1.
90. Juan Pcrez dc Moya, Philosophia Secreta, Aladrid (1585), lib. II, cap. XLII, cit. por Baltasar Gracián,
“Discurso XXVII - De las crisis irrisórias”, Agudeza y Arte de Ingcnio em Obras Completas, Aladrid,
Aguilar, 1960, pp. 365-366.
91. Quintiliano, De insiüutione oraloria, 5, 10, 28: “Intuendum etiam quid affeciet quisque, locuples videri
an disertus, jusius an polcns. Spcctantur ante acta dictaque; cx praeterilis enim aeslwiari praesentia”.
48 4
OS LUGARES DO LUGAR
Por la misma calle, poco detrás, venía un azotado, con la palabra dei verdugo delante
chillando,y con las mariposas dei sepancuantos detrás,y el susodicho en un borrico, desnudo de
medio aniba, como nadador de rebenque. Cogióle la HOK4,y, derramando un rocín dal alguacil
que llevabay el borrico al azotado, el rocín se puso debajo dei azotado y el borrico debajo dei
alguacil, y mudando lugares, empezó a recibir lospencazos que acompanaba al que los recebia,
y el que los recibía a acompanar al que lo acompanaba. E l escribano se apeópara remediarlo,y,
sacando la pluma, le cogió la H O RA,y se la alargó en remo,y empezó a bogar cuando queria
escribid2.
A fo r tu n ilh a autora d e e n tr e m e z e s
T r a n sp õ e e m b u rro o H e r ó i, q u e in d ig n o cresce:
D e s a n d a a roda, e lo g o o h o m e m desce,
Q u e é d iscreta a fortu n a e m se u s reveses.
H o m e m (sei e u ) q u e foi V o s se n h o r ia ,
Q u a n d o o p isava da fortuna a R o d a ,
B u r r o foi a o s u b ir tã o a lto c lim a .
P o is vá d e s c e n d o d o a lto , o n d e jazia,
V erá, q u a n to m e l h o r se lh e a c o m o d a
S er h o m e m e m b a ix o , d o q u e b u rro e m cim a .
( O C , I, p . 1 6 5 .)
92. Francisco de Quevedo, “Azotado”, em La Hora de Todosy la Fortuna con Seso, cap. II, p. 188.
485
A SÁTIRA E 0 E N G E N H O
( O C , IV, p. 9 4 8 . )
[...] v á r i a a f o r t u n a t o d a
d e s a n d a v a a su a roda.
( O C , II, p. 2 4 5 . )
E m p e c e u - v o s a fortu n a,
q u e a fortu n a é v ilã o ru im ,
para os s e u s se m p r e a ch eg a r-se ,
e d e v ó s s e m p r e a fug ir .
( O C , II, p. 3 5 9 . )
[...] c o u s a s t ã o d i s p a r a t a d a s
ob ra-as a sorte im p o r tu n a ,
q u e d e in d ig n o s é co lu n a ,
e se m e h á d e ser p r e c is o
lo g r a r fo r tu n a s e m siso,
eu r e n u n c io à fortu n a.
( O C , II, p . 4 4 7 ) .
[...] n ã o q u i s a f o r t u n a e s q u e r d a ,
[...] d e s i g u a l a r - n o s .
( O C , III, p. 7 2 3 . )
( O C , III, p. 7 7 2 . ) e t c .
48 6
OS LUGARES DO LUGAR
paródia do topos, ela “[...] transpõe em burro o Herói, que indigno cresce”.
Sendo inconstante, a Fortuna é injusta e, ao mesmo tempo, sua injustiça é
justa - “discreta” - quando inverte o que de costume anda invertido. A sátira
moraliza o topos em chave teológico-política: opondo a virtude à Fortuna -
proposta esta como alegoria do desengano encena a interpretação agostinia-
na segundo a qual acreditar na Fortuna nega a providência divina9394.Como na
Divina Comédia, em que a Fortuna é instrumento da vontade divina93, reto
mando-se Boécio, que interpreta as ações incompreensíveis da deusa como
imagem e vestígio da Providência.
A sátira costuma desenvolver a tópica segundo as duas versões: na linha da
tradição antiga, a figura da Fortuna alegoriza o jogo cego dos acasos, aparência
e engano políticos, que fazem a vida invertida, opondo-se à firmeza da virtude.
No caso, a Fortuna tem significação negativa, como força irracional: “[...]se me
há de ser preciso / lograr fortuna sem siso, / eu renuncio à fortuna” (OC, I I , p.
447); “[...Jfortuna esquerda” (OC, I I I , p. 723); etc. A outra versão a propõe como
desconcerto concertado, bem ao gosto conceptista: instrumento justo, posto que
incompreensível, da Providência. Nela, ao tema da aparência - como indigni
dade, corrupção e presunção do grande teatro do mundo - a sátira opõe o da
unidade ideal e secreta da fé e seus corolários, o desprendimento estóico-cris-
tão, a ascese, a resignação, a obediência. Em outros termos, a oposição ético-
poética figura a oposição política, corrente no Portugal do século X V I I , de
maquiavelismo x providencialismo e suas variantes como tirania/monarquia, here-
sia/'ortodoxia, irracionalidade/racionalidade. Criticando a concepção clássica da
Fortuna e seus azares, a sátira toma partido dos segundos termos das oposições,
o que é indicativo de sua inserção católica contra-reformista, tipicamente ibé
rica, já tratada no capítulo I I I . Leia-se, por exemplo:
Isto, q u e o u ç o ch a m a r p or todo o m u n d o
F o r t u n a , d e u n s c r u e l , d ’o u t r o s i m p i a ,
E n o rigor d a boa t e o lo g ia
P r o v id ê n c ia d e D e u s alto, e p ro fu n d o .
V a i-se c o m t e m p o r a l a N a u ao f u n d o
C a r r e g a d a d e r ic a m e r c a n c i a ,
Q u e ix a -se da F o rtu n a , q u e a en via,
487
A SÁTI RA E O E N G E N H O
E s t r a n g e ir o s )
488
OS LUGARES DO LUGAR
489
A S Á T I R A E O E NGE NHO
F e r n a n d o d e H e r r e r a , “ O b r a s d e G a r c i l a s o d e la V e g a , c o n a n o t a c i o n e s ” ( S e v il h a , 1 5 8 0 ) e m E m ili a n o
D i e z E c h a r r i , T e o r ia s M é t r i c a s d e i S i g l o d e O r o , M a d r i d , C o n s e jo S u p e r i o r d e I n v e s t i g a c i o n e s C ie n tíf i c a s ,
1 9 4 9 , p . 2 6 3 : “M u c h o s se h a n i n c l i n a d o a c n l r e l a z a r v e r s o s i t a l i a n o s y e s p a h o le s , p a r e c e m e q u e s e p u e d e d e z i r p o r
lo s q u e h a z e n e s to Io q u e se d i x o p o r los q u e e s c r i v ía n j u n t o v e r s o y p r o s a ; q u e e r a n d o s v e c e s s in j u i c i o , p o r q u e es
m e s c la m a l c o n s id e r a d a a g e n a d e la p n t d e n c i a y d e c o r o p o é t i c o , y g r a n d e m e n t e h u i d a i a b o m i n a d a d e Io d o s. A s i
d i z e e t P r í n c i p e d e l a e l o q u e n a a R o m a n a q u e n o q u e r r i a u s a r m a s v o z e s e n o r a c ió n L a t i n a , q u e lo q u e u s a n los
G r ie g o s d e I a s L a t i n a s e n d G r i e g o ”. V e ja , a i n d a , J u a n d e la C u e v a , “ E j e m p l a r p o é t ic o , w . 2 9 2 -3 0 6 " e m
E m i t i a n o D i e z E c h a r r i , o p . c i t ., p . 2 6 3 : “G u a n d o e n v u l g a r d e E s p a n a se r a z o n a / n o m e z d e s v e r s o e s tr a d o ,
490
OS L U G A R E S DO I.U GA R
S u l q u i v a g a n t e , p r e t e m o r d e E s to lo ,
p u e s q u e lo e x p u e s to a l N o t o s o lijic a s
y o b tu s a s s p e lu n c a s c o m u n ic a s ,
d e s p e c h o d e la s m u s a s a ti solo,
h u y e n o c a r p a d e tu D a f n e A p o io
s u r c u lu s sla b r o s d e te r e ta s p is c a s ,
p o r q u e c o n tu s p e r -v e r s o s d a m n ific a s
los in s titu to s d e su sa c ro Tolo.
l i a s a c a b a d o M u n d o su P a r n a s o ;
a d u lte r a s la c a s ta p o e s ia ,
v e n t i l a s b a n d o s , n iiio s in q u ie ta s ,
p a r c o c e r u le o , v e te r a n o v a s o :
p iá - c u lo s p e r p e tr a tu p o r fía ,
e s tr u p a n d o n e o té r ic o s p o e ta s " * .
M u s a , si m e d a s tu a r d ie n te
F u r o r , d e la s a n ta n u a ,
como Lasso: / Non cssenni passaio ohra Ia gotma / [...] / Citalquiera cosa destas es viciosa / 1 no Ia deve usar el
que no quiere / padecer de censura rigurosa”.
106. Francisco de Quevedo, Obras Completas, Madrid, Aguilar, 1978, tomo II, p. 440 (Obras en ver
so). Cf. também, à p. 441: “Que captas noclurnal en tus canciones, / Góngora bobo, con crepusculallas,
/ si cuando anhelas mas garcibolallas / las reptilizas más y sublcrponcs? / Microcosmote Dios de
inquiridiones, / y quiere te investigue por medallas / como priscos, estigmas o anliguallas, /por dcsilinerar
vales lirones. / Tu forasteidad es tan eximia, / que te ha delractar el que te rumia, / pues ruelas
viscerable cacoquimia. / Farmacofolorando como numia / si eslomacabundancia das tan nimia, /
metamorfoseando el arcadumia
491
A SÁTIRA E O E N G E N H O
C o n tu b u e n a lic e n c ia ,
Alta e sp e ro c a n ta r mente107.
107 Jáuregui, “Epílogo más que poético de la vida de santa Teresa”, Epístola moral a Fábio y Otras
Poesias dei Barroco Seinllano, ed. José Onrubia de Mendoza, Barcelona, Bruguera, 1974, p. 301.
108. Cf. Luís Koshiba,/i Divina Colônia (Contribuição à História Social da Literatura). São Paulo, PFLCH-
USP, 1981, p. 139, mimeografado. Cf. também Augusto de Campos, Poesia, Antipoesia, Antropofagia,
São Paulo, Cortez & Moraes, 1978, p. 97: “[Gregório] é uma das raras aparições da alguma América
Latina que existe (e que o grande Borges desconhece) e de um Brasil que os próprios brasileiros, no
que lhes toca, teimam em camuflar com o museu de cera dos ‘grandes vultos’ das histórias da
carochinha literárias. Se não me digam: que literatura tinham na epoca os puritanos listados Uni
dos para contrapor a garra e à farra verbal de Gregório? Há nessa poesia acentos novos, mesmo em
relação ao modelo quevediano que inspirou o seu barroco tardio. Sem a boca do inferno do nosso
primeiro antropófago, esse baiano e estrangeiro que deglute e vomita o barroco europeu e o
retempera na mulatália e no sincretismo tropical, não há formação - por mais bem intencionada -
que informe o que há de vivo por trás dessa coisa engraçada chamada literatura brasileira . Rcal-
mente engraçada. Os Estados Unidos na época não tinham nenhuma literatura a altura para con
trapor à garra e à farra da América Latina de Gregório porque nào existiam os Estados Unidos nem
a América Latina na época. Por que não Dryden, Lord Rochester, Milton, Donne? Quanto ao
“nosso” primeiro antropófago, por que não Cunhambebe? Era mais literal, posto que não literário.
José Veríssimo vê bem a questão do nacionalismo: “A primeira geração de poetas brasileiros, inclu
sive Gregório de Matos, é unicamente portuguesa. Supor que há em Gregório de Matos alguma
originalidade de forma ou de fundo é mostrar desconhecer a poesia portuguesa do seu tempo e a
espanhola, que tão afim lhe era”. “O Primeiro Poeta Brasileiro: Bento Teixeira Pinto”, Estudos de
Literatura Brasileira, M série., Introdução de Letícia Malard, Belo Horizonte-São Paulo, Itatiaia/
Edusp, 1977, p. 31.
4 92
OS LI J GARKS DO L UGA R
[...] A língua deste gentio toda pela Costa he, huma: carece de ires letras scilicet, não se
acha nella F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé, nem Lei,
nem Rei; e desta maneira vivem sem justiça e desordenadamente11112.
109. Cf. Serafim Leiie S. J., Carias dos Primeiros Jesuítas do Brasil, São Pauio, Comissão do IV Centenário
da Cidade de São Paulo, 1954, vol. I (1538-1 553).
110. Cf. Pero de Magalhães Gândavo, “Da Condição e Costumes dos índios da Terra”, Tratado da Terra
do Brasil. História da Província Santa Crus, Belo Horizonte-São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1980, cap.
V I I , p . 5 2 (Reconquista do Brasil, 1 2 ) .
111. Idetn, ibidem.
112. Cf. Luiz Felipe Baêta Neves, O Combale dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios (Colonialismo e
Repressão Cultural), Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1978.
493
A SÁTIRA E O E N G E N H O
7 que s ie m p r e te g u a r d e s i r e tir e s
q u ’e n a g u d o n o a c a b e s e l a c e n to ,
p o r q u e la u n a sila b a n o tires.
B o s c á n d i x o , s m m a s c o n o c im ie n to ,
a q u e lla R e y n a q u ’e n la m a r n a c ió ,
1 u so d e s te tr o n c a d o a b a tim ie n to .
I G a r c ila s s o d i x o i n o a d v i r ti ó
A m o r , A m o r , u n a b ito v e s ti,
Y D o n D ie g o e n m i l v e r s o s la s usó.
L o m is m o a o r a a v r a d e se r d e m i
q u e c ita n d o los v e r s o s q u e d ix e r o n
in c u r r o en lo q u e s ie m p r e a b o ir e c i [...]1,3.
113. Cf. Juan de la Cueva, “Ejemplar Poético” , w. 178-190” cm Emiliano Diez Echarri, op. cit., p. 233.
Cf. também Rengifo, XIII, 17: “[...] aunque no sean tan elegantes y sonoros como los de onze sílabas,
puedense usar algunas veces sin escrúpulo, y sin que para ello sea necesaria licencia. Verdad es que quantos
menos huviese destos claudicanles v mudos, irá mas llena, y grave, la composición", em Echarri, op. cit.,
pp. 234-235. Ou Caramuel, “Rhythmica”, 11, I, III, 56-57: “Sino que sin acelaeión alguna, creo será
lícito usarlo con arte, i a liempo, ipoco" (idem, p. 235).
494
OS L U G A R E S D O L U G A R
Pa/, Passe / Ma ré, Pa/”. Lembre-se ainda, como faz Castelvetro, que a translação
de coisas vis pela invenção poética faz a fábula vil114: uma terceira inconveniên
cia junta-se às anteriores, e é a dos nomes bárbaros de alimentos, plantas, subs
tâncias. Por ela, a materialidade misturada da natureza índia funde-se com a falta
de clareza, com a sonoridade desagradável, com a comicidade dos agudos:
“carimá”, “moqueca”, “pititinga”, “mingau de puba”, “caruru”, “vinho de caju”.
Desqualificando a cultura índia, o soneto se faz como sua desqualificaçãona lín
gua: todo o sangue tupi se converte em estilo baixo, sobredeterminação de “ter
ra”. A genealogia caramuru lança raízes em matérias pisadas, pastosas ou líqui
das, cuja falta de solidez figura o código cultural índio, diagramado na sonoridade
irônica como “torpe”, cômico-burlesco das misturas. Genealogia e língua, pisa
das nas batidas dos consoantes agudos, fundem-se e se espalham misturadas na
recolha metafórica “Cobé pá Aricobé Cobé Paí”.
Da mesma maneira opera o soneto que ironiza a pretensão de Cosme
Moura Rolim à fidalguia, distribuindo sabiamente os consoantes agudos como
rima interna:
495
A SÁTIRA E 0 EN G EN HO
496
OS L U G A R K S D O L U G A R
Como se lê, não há nexo temático entre a primeira estrofe e as duas se
guintes: a forma narrativa é suporte da sonoridade, que ressalta11516. Relacio
nam-se, contudo, pela estrutura e pela posição da enunciação: em todas -
com exceção do penúltimo verso da terceira estrofe, “Zabelê” - o termo final
é tupi, com rima aguda e grave (versos 6, 7 e 10 na primeira e 8 e 9 na segunda
estrofes); tanto Quatimondé (Ia) quanto Cumari/Camboatá (2a, 3a) são
ironizados pela enunciação. O primeiro, pela caracterização fantástica da si
tuação narrativa em que passa de caçador a caça; os demais, pela inversão da
declaração erótico-alimentar pelo termo “Miraró”. Veja-se que “Quatimondé”,
que significa “armadilha de quati” ou “pintado como armadilha”, também
está pintado fantasticamente, hiperbolizado rabelaisianamente pela ação de
engolir treze lagartos, pela perseguição das duas surucucus, pela equivalên
cia com “Tamanduá”, que o fazem pantagruélico, monstruoso, animalesco. Já
as duas estrofes seguintes desenvolvem outro tema, o da corte amorosa a uma
índia interpelada ironicamente pela enunciação: “Minha rica ... minha bela”.
As prendas amorosas são alimentos: coelho (tapiti), mariscos (sururus), pei
xes (baiacus), frutas (murici), raízes (aipi), caranguejo (guaiamu) e, de novo,
peixes vários. Ela é Cumari (pimenta) ou Camboatá (peixe) e, figurada na
posição de dama, despreza o amor alimentício. Ironicamente, a enunciação
reclama de seu desprezo substituindo termos portugueses previsíveis em poe
ma de corte de amor por termos tupis que os metaforizam no estilo baixo:
“não vedes que murici” (“murici”: fruta doce; metaforicamente, /doçura/);
“sou desses olhos timbó” (“timbó”: veneno de peixe; como a cunhã é “Camboa-
115. Códice 62, cofre 50, Seção de i\lanuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, p. 505. A
edição James Amado indica a p. 1147 do volume V para este poema, mas não se encontra lá, devido
a um erro de paginação que aí insere poemas do volume VI.
116. Sobre este poema, Antônio Dimas comenta: “Aparentemente, o significado isolado das palavras
deste poema é menos importante do que o ritmo sincopado que sua acentuação propícia. A sonori
dade dos versos acaba por se constituir seu princípio norteador e o significado, ainda que existen
te, deixa de ser prioritário. A prioridade, parece, é do significante”, em Antônio Dimas (Seleção de
textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico), Gregário de Matos, 2. ed., São Paulo, Nova
Cultural, 1988, p. 103. Na linha do que se vem expondo, trata-se de prioridade do significante
semantizado como sonoridade de barbarismo, independentemente da forma do conteúdo nele re
cortada.
497
A SÁTIRA E O EN G EN H O
N om en (N o m e )
117. Cf. Dr. Baptista Caetano de Almeida Nogueira, Vocabulário das Palavras Guaranis Usadas pelo Tra
dutor da Conquista Espiritual do Padre A. Rutz de Monloya - s/e., s/d., p. 371.
118. Cf. Padre A. Lemos Barbosa, Pequeno Vocabulário Tupi-Porluguês, Rio de Janeiro, São José, 1955, p. 70.
119. Dr. Baptista Caetano de Almeida Nogueira, op. cit., p. 270.
120. Quintiliano, De institutione oratoria, 5, 10, 30: “Ponunt iti persona et nomen; quod quidem accidere a
necesse est, sed in argumentum raro cadil, nisi cutn aui ex causa datum est, ui Sapiens, Magnus, Pius [...]”.
498
OS I . Ü G A R E S D O L U G A R
499
A SÁTIRA E O E N G E N H O
discursivo pela análise de sua etimologia. Por exemplo, nas décimas contra o
vigário Antônio Marques da Perada, lê-se o jogo com “pera”:
[...] veio o Jardim / mais rosado que um jardim (OC, III, p. 584); [...] era Pissarro em
piçarra (OC, III, p. 596); [...] sendo Conde de Unlião / já quer ser Marquês de Unhate
(OC, II, p. 452); [...] eu não vi na fidalguia / Mendonça sem ler Furtado (OC, II, p. 367);
[...] a todos nos pareceis / não somente João dos Reis, / senão o Rei dosjoãos (OC, II, p.
355); [...] Mas eu muito mais mc ri, / pois nunca Loureiro vi/enxertado em Limoeiro (OC,
II, p. 297) [“Limoeiro”: prisão de Lisboa]; [...] veio o grande Mergidhão / da casa dos
Mergulhandos (OC, IV, p. 910); [...] Dizem, que o vosso c u , Cota,/ assopra sem zombaria
(OC, III, p. 576) etc.
500
OS LUGARES DO LUGAR
Ia o L o g r a p e r s e g u i n d o
p e la rua d e S ã o B e n t o
certo ca lca n h a r b ich en to ,
e ia -lh e a N e g r a fu g in d o :
q u a n d o a D a f n e foi s e g u in d o
A p o io p a sto r d e A d m eto:
d a p o r alto d e creto
em L o u ro tra n sfig u ro u -se,
e agora d esfig u ro u -se
ao L o g r a , q u e fica e m preto.
[...] é c í r i o , q u a n d o s e a c e n d e ,
é reló g io , q u e n ão m e n te ,
é p ep in o de sem en te,
te m ca n o c o m o fun il,
é p au para tam b oril,
bate os c o u r o s lin d a m e n te .
(OC, V, p. 1195.)
[...] f a z h a v e r M e n e s e s ,
A lm a d a s , e V a sco n celo s,
R o c h a s , F arias, e T e le s,
C o e lh o s , B r ito s , P ereira s,
501
A SÁ TIRA E O E N G E N H O
S o u sa s, e C a stro s, e M eira s,
L a n ca str o s, C o u tin h o s , M eio s.
( O C , V , p . 1198.)
D e fo r n ic á r io e m lad rão
se c o n v e r t e u F rei F o d e r ib u s
o la sc iv o e m m u lie r ib u s,
o m u i alto fo d ín c h ã o .
(O C , II, p . 3 2 4 . )
O s te r m o s “ a s n o ” , “b u r r o ” , “ c a v a lo ”, “ j u m e n to ” , “ m u l a ” e s im ila re s têm
d u p l a s ig n if ic a ç ã o : a i r r a c i o n a l i d a d e o p o s t a à p r u d ê n c i a d is c r e ta e, s i m u l t a
n e a m e n te , a su g e s tã o o b sc e n a d o ta m a n h o do m e m b ro v iril d o p o rta d o r do
nom e: “ Sendo um Frei Jumento, / és um jumento sem freio” ( O C , I I , p. 3 1 9 ) .
Q u a n to a “ c a b ra ”, “c a b rito ” e “ca b rã o ” , fu n d e m a in c o n tin ê n c ia sex u al atri
b u íd a ao b o d e c o m a m is tu r a ra c ia l, s e g u n d o o topos “ o r i g e m ” , c o m c o n o taç õ es
d i a b ó l i c a s e h e r é t i c a s (o D i a b o c o s t u m a a p a r e c e r n a f o r m a d e b o d e o u d e
502
OS LUGARES DO LUGAR
mulato encapuzado), por vezes associadas ao motivo “corno”. Por este para
digma, o nome é sobredeterminado irracionalmente para sobredeterminar o
sentido das ações viciosas de seu portador. Assim, opera como “definição ilus
trada”: pictórico, define o tipo por sinédoque, fazendo ver imediatamente as
suas ações, que hiperboliza.
Nesta linha, outro paradigma de nomes insultuosos é constituído de
sinédoques metaforizadas, extraídas de dois campos semânticos, aspecto físi
co e práticas dos religiosos:
o Paternidade (OC, I, p. 8); [...] um Rodela (OC, III, p. 464); [...] Frei Garrafa (OC,
II, p. 314); [...] Frei Fodaz (OC, II, p. 341); [...] Frei Foderibus (OC, II, p, 324), [...] Frei
Porraz (OC, II, p. 326) etc.
503
A SÁTI RA E O E N G E N H O
II, p. 337) e “Frei Fustiga” (OC, IV, p. 860), também com conotações obscenas
pela ação perfurante significada no nome dos instrumentos. Da mesma ma
neira, o termo “Pirtigo” significa o pênis: “Frei Pirtigo” (OC, II, p. 319): “De
um pirtigo tão velhaco,/que tão súbito engrossa,/que direi, senão que almo
ça / vinte picas de Macaco” (OC, II, p. 343).
“Frei Sarna” (OC, II, p. 319) e “Frei Bertoeja” (OC, II, p. 319), nomes de
doenças da pele, associam o “coçar-se” a práticas sexuais incontinentes, ten
do aspecto freqüentativo, se é válido deslocar para o nome uma categoria do
verbo. No caso, certamente, pois a definição ilustrada Figura ações. No mes
mo paradigma /doença/, hiperbolizado como excreção e resíduo, têm-se “Frei
Monturo” (OC, IV, p. 805); “Frade Cisco” (OC, IV, p. 805) (também trocadilho
de “Francisco”); “Frei Fedor” (OC, IV, p. 860); “Frei Mixo” (OC, II, p. 323);
“Frei Bolório” (OC, IV, p. 860).
Outros nomes, como “Frei Carqueja” (OC, II, p. 319), “Frei Jalapa” (OC,
II, p. 323), “Frei Maganão” (OC, IV, p. 805), “Frei Caziqui” (OC, II, p. 325),
“Frei Azar ou Frei Piorno” (OC, II, p. 322), “Padre Alvar” (OC, II, p. 294)
assumem significação obscena no contexto discursivo que os interpreta. Por
exemplo, “Padre Alvar”, em que “alvar” significa “néscio” ou “asno”, faz-se
como trocadilho do nome satirizado, o do padre Manuel Álvares, capelão de
Marapé. “Caziqui” pertence ao topos “origem”, como insulto: atribui caracte
rística de índio a frade branco. Quanto a “Jalapa”, planta cuja raiz é purgati-
va, tem conotação escatológica. O mesmo ocorre com “Piorno”, nome de uma
giesta brava e amarga, utilizada em depurações e purgantes. Sabe-se que, no
século XVII, as cartas do baralho emblematizam os vícios121. Por metonímia,
“Frei Azar” é nome de vicioso. Por metáfora, com Azar é acabada a obra.
121. Por exemplo, a edição de 1666 das Sátiras, de Boileau, traz na capa um desenho em que a Sátira
arranca a máscara ao Vício, de cujas mãos caem cartas de baralho.
504
Bibliografia
505
A SÁTI RA F. O E N G E N H O
d e v e r m e lh o e m títu lo s, in ic ia is e d e se n h o s . P r e c e d id o d e u m a V id a d o D o u t o r
G reg o rio d e M a tto s G uerra. E scritta p elo L e c e n c ia d o M a n o e l P ereyra R a b ello . E x
c e le n te p ela ru sticid a d e. N o final, d ecla ra çã o e a ssin atu ras d e su c e ss iv o s p o s s u id o
r e s d o c ó d i c e , n o s é c u l o X V I II , u m d e l e s , A n t o n i o d a R o c h a P it t a . A d q u i r i d o e m f i n s
d o séc. p a s s a d o . C o l. T e resa C r is tin a M a r ia . C o n s t a p o r letra d e V / a l l e /C /a b r a l:
“ P e r t e n c e a S u a M a g e s t a d e o I m p e r a d o r ” , s. r e g i s t r o B . N . P a p e l : E n c a d e r n a d o . R e s
t a u r a ç ã o p r i m i t i v a . C a t . E x p . P e r g a m i n h o s I l u m i n a d o s e D o e s . P r e c i o s o s , n . 1 11.
Cofre 50, 5 7 -A
D o u t o r G r e g . d e M a t t o s G u e r r a . T o m o 5 ° s é c . X V I I . 1 9 4 f ls . 2 0 3 x 1 5 2 m m . R ú s t i c o . A
d u a s cores. T ít u lo s e m v e r m e lh o ; n u m e r o s o s d e s e n h o s a tin ta . M u it o s e m e lh a n
te a o a n te r io r (5 6 ). C o m n o ta d o a n t ig o p o ssu id o r : “ D o C a p p i t a m M ó r J o zê
R o d r i g u e s L i m a ” . A d q u i r i d o e m 1 9 3 9 . R e g . B. N . S ., m a s . 3 9 / 1 9 4 8 C a t . E x p .
P e r g a m in h o s I l u m i n a d o s e D o e s . P r e c io so s , n. 112.
Cofre 50, 60
P o e z i a s d o D o u t o r G r e g ó r i o d e M a t t o s G u e r r a . L e tr a d o s é c u l o XVII. 3 2 7 fls. 2 0 5 x
1 5 5 m m . T r a z u m e s c u d o h e r á l d i c o c o l a d o s o b o t í t u l o . N a f l. l v . , d u a s n o t a s : “ C .
C a s t e llo M . ” e “ F o i d a L iv r a r ia d e Pera. e S z a ” . R e s ta u r a ç ã o e e n c a d e r n a ç ã o
m o d e r n a s . E x c e l e n t e e x e m p l a r c a lig r á fic o . P o r letra d if e r e n t e , c o n sta : “ ( I n é d i
t a s ) ” . A d q u ir id o e m 1 9 6 0 . R e g is tr o B N 3 3 7 6 9 6 /1 9 6 3 . C o m p r a à L iv ra r ia São
506
B I BLI OGRAFI A
Cofre 50, 61
A s O b ras P o é tic a s d o D or. G reg o rio d e M a tto s G uerra D iv id id a s e m 4 to m o s. E m q u e
se c o n t e m as o b ra s sa cra s, jo co ser ia s, e sa tírica s, q u e a b r e v id a d e n ã o p e r m itt io
s e p a r a r . T o m o 2 ° . B a h i a a n n o d e 1 7 7 5 . 2 2 9 f ls . 2 0 4 x 1 4 7 m m . C o m n o t a m a n u s
c r i t a a l á p i s : “ P e r t e n c e a S . M a g 1'. O I m p e r a d o r , V / a l l e / C / a b r a l / . A d q u i r i d o e m
fin s d o s é c u lo p a ssa d o . C o l. T h e r e z a C r istin a M a ria . C at. E x p . P e r g a m in h o s I lu
m i n a d o s e D o e s . P r e c io s o s , n. 114. s e m r e g is tr o
Cofre 50, 62
O b r a s V arias A u t h o r o F a m o s o S a tír ic o o D o u t o r G r e g o r io d e M a t t o s n a tu r a l d a
C id a d e d a B a h ia . L e tr a d o s é c u lo XVIII. 4 2 3 f ls . 2 0 5 x 1 5 0 m m . C o n s t a n a c a p a :
“A f r â n i o P e i x o t o . C ó d i c e II”. O II t o m o p o s s u i e x - l i b r i s g r a v a d o c o m a s i n i c i a i s :
“ L ib r i b o n i a m i c i ” - L ib ra ria d e F r a n c is c o T e ix e ir a . C o m as s e g u i n t e s n o ta s:
“ D e F r a n c ° X e r d e B a s t o ” - 1 6 5 0 - e “A B i b l i o t e c a N a c i o n a l o f e r e c e A f r â n i o P e i
x o to . 2 0 -X II -l 9 3 3 , 3“ c e n t e n á r io d o n a s c i m e n t o d o P o e ta ” . A d q u i r i d o e m 1 9 3 3 .
R e g . B N 2 6 / 1 9 3 3 . C a t. E x p . P e r g a m i n h o s I l u m i n a d o s e D o e s . P r e c i o s o s , n. 1 13.
Cofre 50, 63
G u erra , G r e g o r io d e M a to s. P o esia s. L etra do sé c u lo XVII. 5 3 5 fls. 2 1 0 x 145 m m .
í n d i c e a d u a s c o r e s . C o m a d e d i c a t ó r i a : “A A l b e r t o d e F a r i a L ó J d o a m i g o d o
c o r a ç ã o J o ã o R i b e i r o . 2 4 d e j u n h o d e 1 9 1 7 ” . A d q u i r i d o e m 14 d e s e t e m b r o d e
1 9 2 6 , p o r c o m p r a ao D r. M á r io d e A le n c a r . C o n s t a a lá p is o p r e ç o d e “ 1 6 :0 0 0 $ ” .
Reg. B N 1 0 / 1 9 2 6 . C a t . E x p . P e r g a m i n h o s I l u m i n a d o s e D o e s . P r e c i o s o s , n.
115.
Cofre 50, 66
“ P o e s i a s d e G r e g o r i o d e M a t t o s ” . C ó p i a d o s é c u l o X I X . 3 3 fls . 2 2 x 16 c m . N o t a p o r V /
a l l e / C / a b r a l ” : “ C ó p ia feita e m É v o r a p e lo Dr. L in o d e A s s u m p ç ã o e m m a io d e
1 8 8 9 ” . A lá p is a z u l “ D e A V C ” . C o p ia d o na B ib lio t e c a d e É v o r a , c ó d ic e C X X X /t.
1 7 a f ls . 1 8 3 - 2 3 2 e 3 2 8 . A d q u i r i d o p o r O f e r t a d o D r . L i n o d e A s s u n ç ã o a B . N . e m
1 8 8 9 . A n e x o s : 1) “ C a r t a q u e e s c r e v e u G r e g ó r i o d e M a t t o s a o C o n d e d o p a r d o
e s t a n d o n a B a h ia c o m se u pay. M a r q u e z d a s M i n a s ” . B i b l i o t e c a d e É v o r a C ó d i c e
C V / l - 9 . 2) “ S o n e to D e B e r n a r d o V iey ra R a v a sc o S e c r e to d o E s ta d o d o B r a sil a
se u Ir m a m o P adre A n t o n io V ieyra C o n so a n t e s fo rça d o s.”
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A SÁTI RA K O E N G E N H O
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Título A Sátira e o Engenho
Autor João Adolfo Hansen
Revisão Geraldo Gerson de Souza
Capa Ricardo Assis
Editoração Eletrônica Aline E. Sato
Amanda E. de Almeida
Formato 16 x 23 cm
Tipologia Aldine 721 Lt BT
Papel do Miolo Pólen Rustic 85 g/m2
Papel de Capa Cartão Supremo 250 g/m2
Número de Páginas 528
Fotolito Liner Fotolitos
Impressão Lis Gráfica
JLaa&
oayi.a7iw
Imagem da capa: serlio , Sebastiano. Libro pruno(quarto'j d’
archilettura. Venctia, Senese & Z. Krugher, 1566.