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CENA INVERTIDA I dramaturgias em processo

Organização GRUPO TEATRO INVERTIDO


Coordenação Editorial NINA CAETANO
Conselho Editorial CAMILO LÉLIS, KELLY CRIFER, LEONARDO LESSA, RITA MAIA
E ROGÉRIO ARAÚJO (GRUPO TEATRO INVERTIDO)
Redatores ANTONIO HILDEBRANDO, DAVI DOLPI, FERNANDO MENCARELLI,
LUIZ CARLOS GARROCHO, MARCOS ALEXANDRE, RITA GUSMÃO, RITA MAIA,
LETÍCIA ANDRADE E POLLYANA COSTA SANTOS
Produção Editorial LEONARDO LESSA
Revisão Ortográfica RACHEL MURTA
Projeto Gráfico GLAURA SANTOS
Fotografias DRAMATURGIAS
págs. 6, 159, 163, 178 - MARCO AURÉLIO PRATES
págs. 17, 21, 26, 41, 60, 76, 81, 85, 130, 169, 180, 185, 197,
198, 208, 226 - DANIEL PROTZNER
pág. 36 - L. ADOLFO
págs. 51, 53, 70, 94, 115, 119, 126, 130, 146, 152 - GUTO MUNIZ
págs. 108, 139, 140 - NATHÁLIA TURCHETI
págs. 206, 211, 216, 219 - DUKE WELLINTON
págs. 212, 223 - DIOGO DOMINGUES
Fotografias ARTIGOS
págs. 6, 14, 49, 90 - DANIEL PROTZNER
págs. 12, 40 - GUTO MUNIZ
págs. 16, 106 - MARCO AURÉLIO PRATES
pág. 26 - JOÃO CARLOS DINIZ
pág. 34 - MARCUS VINÍCIUS SOUZA
págs. 56, 71 - NATHÁLIA TURCHETI
pág. 113 - SANDRO GLODZINSKI

CENTRO DE PESQUISA E MEMÓRIA DO TEATRO / GALPÃO CINE HORTO


Coordenação LUCIENE BORGES
Bibliotecária FERNANDA CHRISTINA DA COSTA
6 POR UM OLHAR INVERSO
Grupo Teatro Invertido

dramaturgias

20 NOSSA PEQUENA MAHAGONNY


60 LUGAR CATIVO
108 MEDEIAZONAMORTA
158 PROIBIDO RETORNAR
198 ESTADO DE COMA
Por um olhar inverso
Grupo Teatro Invertido

!
6!
O Grupo Teatro Invertido foi fundado no ano de 2004, com o prin- preparação técnica do ator e criamos o espetáculo “Os Cupins”,
cipal objetivo de dar continuidade à pesquisa-prática em treina- com direção e dramaturgia de Bya Braga a partir do texto “Carta
mento do ator e criação cênica desenvolvida por seus integrantes aos atores”, do francês Valère Novarina. Em 2003, realizamos no
ao longo do curso de graduação em Teatro da UFMG. Desde o GRUPA a criação de Nossa Pequena Mahagonny, com direção de
início de nossa trajetória, buscávamos uma compreensão crítica Lenine Martins e dramaturgia coletiva inspirada no texto Ascensão e
do fazer teatral que pudesse nos levar a um caminho próprio, au- Queda da Cidade de Mahagonny, de Bertolt Brecht. O espetáculo
tônomo. Neste ano de 2010, às vésperas de completar sete anos de estreou no final desse mesmo ano e, em março de 2004, foi fun-
trabalho conjunto, sentimos grande necessidade de refletir sobre dado - por Leonardo Lessa, Rogério Araújo e Rita Maia - o Grupo
esse percurso e, mais ainda, compartilhar com outras pessoas essa Teatro Invertido, que incorporou Nossa Pequena Mahagonny ao
reflexão. Confiamos, então, a um respeitável time de pesquisadores seu repertório.
a tarefa de colocar seu ponto de vista sobre nossa trajetória e nos Foi nesse trabalho, por intermédio e provocação do diretor Lenine
sentimos extremamente felizes por terem aceitado o desafio, o qual Martins, que ocorreu nosso primeiro contato com o processo co-
frutifica neste livro. laborativo de criação teatral. Essa iniciação se deu eminentemente
! Na última década, o teatro da capital mineira passou por grandes no campo da prática e mobilizou nossos interesses artísticos de tal !
8! !9
transformações e avanços, dos quais nossos convidados foram forma que esse procedimento criativo passou a orientar todos os
partícipes e, nos dias de hoje, são fundamentais para a formação processos do grupo, como apresentaremos a seguir.
ética, pedagógica e artística de uma nova geração de criadores da Em Nossa Pequena Mahagonny, o desejo dos atores de aprofunda-
qual fazemos parte. Destacamos, dentre essas importantes con- rem a pesquisa em teatro de rua e conceberem uma dramaturgia
quistas, a criação do curso de graduação em Teatro da UFMG, que original inspirada no texto de Brecht foram somados à proposta de
contribuiu de forma definitiva para nossa qualificação profissional e horizontalidade nas relações criativas, apresentada pelo diretor, es-
abriu caminhos para que pudéssemos nos aprimorar tecnicamente tabelecendo-se, assim, os eixos norteadores do trabalho. Descobri-
e viabilizar parcerias. mos como seria essa “nova” dinâmica de criação não-hierarquizada
Foi no interior de um grupo de pesquisa vinculado ao curso que ao longo do próprio processo criativo. Na medida, por exemplo,
iniciamos nossas experimentações coletivas. No ano de 2002, Le- em que a montagem do espetáculo foi se desenvolvendo sem a
onardo Lessa e Rogério Araújo se integraram ao Grupo de Pesqui- presença de um dramaturgo, é que percebemos o quão era impor-
sa-Prática em Atuação - GRUPA, coordenado pela professora Bya tante para uma criação de natureza colaborativa a manutenção do
Braga, do qual Rita Maia, também aluna do curso, era co-fundadora. tripé: atuação, dramaturgia e direção.
Nesse grupo, desenvolvemos intensas investigações no campo da
Nos meses iniciais dos ensaios, contamos com a consultoria dra- turga Pollyana Costa Santos, a equipe de criação de um espetáculo
matúrgica de Reinaldo Maia (Grupo Folias D’Arte/São Paulo) que a ser realizado sob os princípios do processo colaborativo2. Essa ex-
em duas visitas a Belo Horizonte provocou discussões relacionadas, periência agregou à nossa trajetória uma importante contribuição
principalmente, à politização do texto de Brecht e suas correspon- ideológica e sedimentou a colaboração como princípio ético funda-
dências com a atualidade. Dos encontros com Reinaldo surgiu a mental no trabalho do grupo até os dias de hoje.
questão central da dramaturgia do espetáculo: uma transposição Ao longo de nove meses de ensaios, atores, diretor e dramaturga
da Mahagonny - cidade - brechtiana para uma Mahagonny exercitaram os princípios da horizontalidade criativa em busca
- emissora televisiva. A partir daí, o roteiro das cenas foi se da concepção de um espetáculo com dramaturgia original. Sem
construindo de forma improvisada e o material textual que o qualquer material previamente estabelecido, o vazio da sala de
compunha, registrado pelos próprios atores e diretor, sofrendo ensaio foi o ponto de partida para essa criação. As diversas leitu-
transformações a cada novo encontro. Na etapa de conclusão do ras e discussões em torno da colaboração como elemento nortea-
espetáculo, identificamos a necessidade de um olhar distanciado dor das relações criativas no teatro contaminaram a temática das
sobre o material e que pudesse amenizar, do ponto de vista dra- proposições e, consequentemente, do espetáculo gerado. Inicial-
matúrgico, alguns impasses para os quais não tinha havido consen- mente, as provocações se focavam em questões ligadas ao poder
so - elemento que nesse processo foi o principal definidor do que
! !
10 ! ! 11
permaneceria ou não na dramaturgia do espetáculo. Convidamos,
então, o dramaturgo Guilherme Lessa para a difícil tarefa de, em
pouco mais de um mês, “finalizar” o texto criado para a peça. 1
O Projeto Cena 3x4, realizado nos anos de 2003 a 2005 numa parceria entre o Galpão
Cine Horto (centro cultural do Grupo Galpão) e a Maldita Cia, visava a aprofundar os
Nossa Pequena Mahagonny é, portanto, resultante desse percurso estudos sobre o processo colaborativo de criação teatral. Esse projeto tinha como princi-
tortuoso e cheio de interferências que impregnou dessa mesma pal objetivo a socialização das relações da tríade básica do teatro: direção, dramaturgia e
atuação. Para tanto, o formato estabelecido era a realização de uma criação entre quatro
natureza a própria estrutura do trabalho. Com mais de oitenta novos diretores que dirigiriam quatro grupos de Belo Horizonte na montagem de quatro
apresentações realizadas em oito anos de existência, esse espetácu- peças escritas, durante o processo de criação cênica, por quatro novos dramaturgos. Os
lo está em constante atualização, sendo passível de absorver em sua diretores participantes do Cena 3x4 foram orientados por Antônio Araújo (2003/2004) e
Francisco Medeiros (2005); os dramaturgos, por Luís Alberto de Abreu (2003/2004/2005),
dramaturgia as mais diversas transformações. e Tiche Vianna (2005) ficou responsável pela orientação de atuação. Nos três anos de
existência do projeto, um ciclo contínuo de reflexão e pesquisa gerou oficinas, debates,
No ano de 2004, definimos por verticalizar a pesquisa em criação
encontros com profissionais convidados de outros estados e onze espetáculos que se
colaborativa e, a convite da Maldita Cia. de Investigação Teatral e do apresentaram em teatros convencionais, espaços públicos e alternativos.
Galpão Cine Horto, integramos a segunda edição do Projeto Cena 2
Sistematizados na dissertação de mestrado de Antônio Araújo (Teatro da Vertigem/São
3x4 1. Formamos, então, com o diretor Cristiano Peixoto e a drama- Paulo), que foi orientador do projeto no ano em que o integramos.
e à tolerância, porém foram se transformando até encontrarem na Medéia, relacionando-o com a marginalidade e a exclusão no am-
relação de interdependência entre artista e espectador uma pos- biente urbano. As pesquisas em diversas obras que trataram dessa
sibilidade de fio condutor para a dramaturgia. figura arquetípica e a construção de uma dramaturgia colaborativa
Desse ponto, surgiram inúmeras referências para a materialização aberta às interferências do espaço da encenação, promoveram a
do roteiro, sejam inspirações imagéticas ou influências diretas na criação de um espetáculo-instalação apresentado no interior de
estrutura da encenação. Criamos, então, Lugar Cativo, espetáculo um laboratório abandonado de engenharia sanitária. Esse espaço,
destinado a espaços não convencionais e que realizou sua primeira localizado à Rua Guaicurus (zona de prostituição, marginalidade e
apresentação pública na mostra de conclusão do Cena 3x4 em no- consumo de drogas de Belo Horizonte), abrigou por um período
vembro de 2004. Após essa ocasião, a equipe de criadores optou de quase três anos os ensaios e apresentações do trabalho. O labo-
por retornar à sala de trabalho para mais quatro meses de ensaios, ratório abandonado materializava a morada de Medéia, mulher de-
com o objetivo de reestruturar a dramaturgia do espetáculo. jeto da sociedade. Toda a carga simbólica do espaço cênico e de seu
entorno foi incorporada à dramaturgia do espetáculo a partir dos
Lugar Cativo retornou à cena em agosto de 2005, com uma nova materiais construídos nas experiências de imersão realizadas pela
dramaturgia que incorporava em sua composição percepções ad- equipe no hipercentro da cidade. Medeiazonamorta estreou em
!
12 ! vindas do primeiro contato do trabalho com o espectador. novembro de 2006 numa temporada-laboratório que contou com
!
! 13
Essa prática, exercitada de maneira intuitiva na criação de Lugar debates entre os criadores e o público após cada sessão. Desses
Cativo, passou a permear os processos criativos seguintes. Talvez encontros, surgiram diversas propostas de alterações no roteiro
pela natureza autoral de nossos trabalhos, uma postura ativa e original do trabalho, experimentadas diretamente na cena a cada
participativa do espectador tem sido elemento fundamental na nova apresentação.
construção dramatúrgica dos espetáculos. Desde então, temos Após realizar uma sequência de três criações colaborativas e somar
buscado criar oportunidades durante nossos processos para que à formação do grupo os atores Camilo Lélis e Kelly Crifer, consta-
os espectadores possam exercer essa participação, seja através de tamos a urgência de um aprofundamento técnico relacionado às
mostras de trabalho, ensaios abertos ou temporadas-laboratório. demais funções que compõem esse processo. Tal necessidade se
Esse último termo foi cunhado durante a criação do terceiro es- sustentava na conclusão de que na criação colaborativa é funda-
petáculo do grupo, Medeiazonamorta, também realizado sob os mental, para que o ator conquiste a condição de criador autônomo,
princípios da criação colaborativa. que ele dialogue com as outras funções que compõem a criação
Ao lado do diretor Amaury Borges e da dramaturga Letícia Andrade, da cena, principalmente a direção e a dramaturgia. Os requisitos
mergulhamos no universo de amor e abandono do mito grego de para essa conquista nos despertou o interesse em experimentar
procedimentos de criação específicos dessas outras áreas para, Nesse processo experimentamos a direção e a dramaturgia de for-
assim, conhecê-las em maior profundidade. Com esse objetivo, ma compartilhada, ou seja, assumimos os cinco atores tais respon-
durante os anos de 2007 e 2008, desenvolvemos o projeto Ator sabilidades, sem centralizá-las em um ou mais integrantes, como
Invertido - cinco sentidos para a construção da cena. Nessa havia sido feito durante a pesquisa. Essa experiência trouxe à tona
pesquisa, nos revezamos ocupando as funções de atuação, direção debates muito produtivos para a compreensão da especificidade de
e dramaturgia em cinco experimentos cênicos, cada um tendo cada um dos campos que compõem a construção do espetáculo.
como tema um dos cinco sentidos humanos. A diretora Cida Fala- O compartilhamento das responsabilidades em uma perspectiva
bella e a dramaturga Nina Caetano orientaram o andamento dos colaborativa, ou seja, que assegure procedimentos específicos da
trabalhos e forneceram o suporte teórico-prático necessário para direção, dramaturgia e atuação, revelou para o grupo a importân-
as criações. Como etapa de conclusão desse projeto, realizamos, cia de se preservar cada um desses territórios no decorrer de um
em fevereiro de 2009, a mostra Experimento 5!NCO, que levou a processo criativo, mesmo que não haja um único responsável por
público as cinco cenas resultantes da pesquisa. sua coordenação.
Motivados pela boa receptividade dos espectadores da mostra, es- Em outubro de 2009, estreamos Proibido Retornar, fruto desse
! pecialmente, em relação à cena Essência - dirigida por Rita Maia intenso percurso de investigação. O espetáculo apresenta para o !
14 ! ! 15
e com dramaturgia de Leonardo Lessa - e à cena Estado de Coma espectador, através de uma narrativa fragmentada e repleta de sim-
- com direção de Rogério Araújo e dramaturgia de Rita Maia, deci- bolismos, a saga de um retirante do interior que abandona sua terra
dimos dedicar mais tempo de ensaios no desenvolvimento desses natal em busca de oportunidades na cidade grande. O caráter estri-
dois materiais. Em Essência, identificamos uma força temática, tan- tamente autoral e autônomo desse processo na trajetória do grupo
to por sua reverberação afetiva na trajetória pessoal dos integrantes determinou radicalmente a flexibilidade da estrutura dramatúrgica
do grupo, quanto por sua crítica social. Constatamos, porém, fra- do trabalho que, desde o seu primeiro contato com o público nos
gilidades em sua dramaturgia e a necessidade de um maior apro- ensaios abertos, vem sofrendo interferências e alterações.
fundamento para que a cena se configurasse como espetáculo. Já Dando sequência ao planejamento estabelecido, retomamos o tra-
Estado de Coma apresentava uma proposta de encenação definida balho com Estado de Coma, logo após a primeira temporada de
e o encadeamento dramatúrgico coerente com a temática abor- Proibido Retornar. As funções determinadas durante a pesquisa
dada. Frente às características diversas dos dois materiais, optamos foram preservadas, ficando, portanto, a direção do trabalho a cargo
por desenvolver primeiramente aquele que demandaria maior in- de Rogério Araújo e a dramaturgia, de Rita Maia. Em poucos meses
vestimento do grupo. Iniciamos, assim, a criação de nosso quarto de ensaios, pequenos ajustes na encenação e alguns acréscimos tex-
espetáculo Proibido Retornar a partir da cena Essência. tuais foram feitos na estrutura inicial do trabalho. Abordando de
forma bem-humorada a relação do homem contemporâneo com o
sentido do paladar, Estado de Coma desenvolve um jogo irônico
com o espectador, que é convidado a participar de uma sessão te-
rapêutica conduzida por um médico-guru, especialista em nutrição
e autoajuda. O espetáculo estreou em março de 2010 e marcou o
retorno do grupo ao universo da comédia satírica, experimentada
em nosso primeiro trabalho, Nossa Pequena Mahagonny.
Mais do que afirmar certezas ou convicções buscamos, a cada TRAJETORIA DOS ESPETACULOS 2003 - 2010
experiência criativa, descobrir novas provocações e novos ques-
tionamentos. Partilhamos, com o público de nossa cena in- NOSSA PEQUENA MAHAGONNY
vertida, a tentativa constante de nos reinventar coletivamente
2003 2005
como artistas. Nesse encontro, pretendemos unir sensibilidade . Estréia no 11º Simpósio da Socie- . FRINGE - Festival de Teatro de
e senso crítico, gerando um olhar inverso que possa deslocar o dade Internacional Bertolt Brecht, Curitiba/ PR;
! ponto de vista passivo de quem assiste para uma visão ativa de (Berlim/ Alemanha); . Terceira temporada na Casa do Conde !
16 ! . Temporada de estréia no Centro dentro do Circuito OFF de Teatro, ! 17
quem também cria. Desejamos que nosso espectador também se
Cultural da UFMG, (BH/ MG); (BH/MG);
considere autor do espetáculo e possa renovar seu sentido, partin- . Trilha Cultural BDMG,
do de uma interpretação reflexiva e poética da realidade. 2004 (Pará de Minas / MG).
. Segunda temporada no Centro
A você, nosso leitor, também propomos experimentar esse olhar Cultural da UFMG, (BH/ MG); 2007
inverso ao conhecer parte de nosso percurso criativo pelos cami- . Mostra das Profissões da UFMG, . Circulação por praças e parques
nhos de nossas dramaturgias, aqui reunidas. (BH/ MG); de BH / MG;
. Terceira Temporada no Centro . 12º Festival de Inverno de
Cultural da UFMG, (BH/ MG); Congonhas / MG;
. 37º Festival de Inverno da UFMG, . 2º Festival Nacional de Teatro de
(Diamantina/ MG); Juiz de Fora /MG;
. Semana Cultural da PUC Betim/ MG; . Encontro das Artes,
boa viagem! . Diálogos Cênicos, (BH/MG);
. Encontro Nacional dos Estudantes
(Caiapó e Pirapetinga/ MG);
. Cena Aberta da Escola Livre do
de Arte - ENEARTE, (BH/MG); Grupontapé, (Uberlândia / MG);
. Festival de Cultura e Arte do DCE- . Encontro das Artes, (Uberaba / MG).
UFMG, (Belo Horizonte / MG).
2008 2006 2008 . Terceira temporada na sede do
. Festival de Inverno de Itabira/ MG; . Mostra ACT em Ação Compartilhada . Terceira temporada no Centro Grupo Teatro Invertido, (BH/ MG)
. Circulação por escolas da rede do FRINGE - Festival de Teatro de Cultural da UFMG, (BH/ MG). . Temporada de três apresentações
pública estadual pelo Prêmio Cena Curitiba / PR; no Teatro FUNARTE Plínio Marcos
Minas, (BH e Contagem/ MG); . Festival de Inverno da UFOP, 2009 (Brasília/ DF).
. Mostra Estação em Movimento do (Ouro Preto/ MG); . Quarta temporada no Centro
Movimento Teatro de Grupo de MG, . Mostra do projeto Cena 3x4, Cultural da UFMG, (BH/ MG).
(BH/ MG); (Ipatinga/ MG). ESTADO DE COMA
. Abertura do FETO - Festival
Estudantil de Teatro, (BH/ MG). 2007 PROIBIDO RETORNAR 2009
. 20º Inverno Cultural de . Pré-estréia no projeto Quarta Doze
2009 São João Del Rei/ MG; 2009 e Trinta em Comemoração aos 10
. Festival de Inverno de Itaguara/ MG; . 2º Festival de Inverno de . Temporada de estréia na sede do anos do Curso de Teatro da UFMG,
. Festival de Inverno de Itapecerica/ Ouro Branco/ MG; Grupo Teatro Invertido, (BH/ MG) (BH/ MG);
MG. . 12º Festival de Inverno . Prêmio Usiminas-SINPARC 2009:
de Congonhas/ MG; vencedor na categoria “Melhor texto 2010
2010 . Festival de Inverno de Catas Altas/ inédito” e indicado na categoria . Temporada de estréia na sede do
!
18 ! . Mostra Teatro para Ver de Perto MG. “Melhor Ator - Camilo Lélis”, Grupo Teatro Invertido, (BH/ MG);
!
! 19
do FRINGE - Festival de Teatro de . Prêmio SESC-SATED 2009: indicado . Mostra Teatro para Ver de Perto
Curitiba/ Paraná. nas categorias “Melhor Atriz - Kelly do FRINGE - Festival de Teatro de
. Temporada de três apresentações no MEDEIAZONAMORTA Crifer” e “Melhor Ator - Camilo Lélis”. Curitiba / PR;
Teatro Plínio Marcos (Brasília-DF) . Temporada de três apresentações
2006 2010 no Teatro FUNARTE Plínio Marcos
LUGAR CATIVO . Temporada de estréia no Centro . Segunda temporada na sede do (Brasília/ DF).
Cultural da UFMG, (BH/ MG). Grupo Teatro Invertido dentro do 4º
2004 . Prêmio Usiminas-SINPARC 2006: VerãoArteContemporânea, (BH/ MG);
. Temporada de estréia na Mostra indicado nas categorias “Melhor Ator - . Mostra Teatro para Ver de Perto
do projeto Cena 3x4 no Camilo Lélis”, “Melhor Diretor -Amaury do FRINGE - Festival de Teatro de
Galpão Cine Horto, (BH/ MG). Borges” e “Melhor Espetáculo”; Curitiba/ PR;
. Festival de Inverno da UFOP
2005 2007 (Ouro Preto/MG)
. 38º Festival de Inverno de . Segunda temporada no Centro . Temporada de duas apresentações no
Diamantina/ MG; Cultural da UFMG dentro do 2º TEUNI - Teatro Experimental da UFPR
. Segunda temporada no VerãoArteContemporânea, (BH/ MG). (Curitiba/ PR);
Galpão Cine Horto, (BH/ MG).
!
20 !

LEOCÁDIA BIGBONI
MOISÉS TRINDADE
Personagens WILLIAM ROBERTO
PAULO DA LASCA
GENNY SMITH
Livremente inspirado na obra
“Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny”,
de BERTOLT BRECHT

Dramaturgia BYA BRAGA, LENINE MARTINS, LEONARDO LESSA,


JULIANA COELHO, RITA MAIA E ROGÉRIO ARAÚJO
Atuação BYA BRAGA (2003 E 2004), CAMILO LÉLIS,
DAYSE BELICO (2005), KELLY CRIFER,
JULIANA COELHO (2003 A 2005),
LEONARDO LESSA, NETE BARROS (2004),
RITA MAIA E ROGÉRIO ARAÚJO
Direção LENINE MARTINS
Direção Musical e Trilha Sonora
ERNANI MALETTA E FERNANDO ROCHA !
! 23
Finalização dramatúrgica GUILHERME LESSA
Consultoria dramatúrgica REINALDO MAIA
Criação colaborativa BYA BRAGA E JULIANA COELHO
Assessoria em pesquisa VILMA BOTREL
Cenografia TARCISIO RIBEIRO JR.
Figurinos e adereços LAURA BARRETO
Iluminação ROGÉRIO ARAÚJO
Produção executiva ANDRÉIA QUARESMA
Realização GRUPO TEATRO INVERTIDO
Financiamento
FUNDO MUNICIPAL DE CULTURA DE BELO HORIZONTE

Estreia em Belo Horizonte/MG, no pátio do


Centro Cultural da UFMG, em 14 de novembro de 2003.
Cena 1 O Homem-Bomba three! Vê a porta ainda fechada: Don’t open the door? Arromba
a porta com um chute e vê uma mochila infantil no centro do
Um policial à paisana vigia o cenário e observa a plateia. Age espaço. Aproxima-se lentamente, abre a mochila, pega um relógio
como se fosse um segurança, fala no rádio, de vez em quando despertador, tenta desarmá-lo, até que ele é detonado. Gritos e, em
mexe na arma e limpa os óculos. Recebe aviso de seu capitão pelo seguida, aplausos.
rádio auricular sobre uma emergência.

POLICIAL Hello. Captain? Yes, I’m here. What? Repeat, please, cap- Cena 2 Mahagonny:
tain. An emergency? Oh, god! Ok… I’m going to speak to the peo- Entertainment and Television
ple. Vai até a plateia. Everybody, attention please. An emergency
is happening in this place. Please, we need evacuate this area, now.
Vê que ninguém ou que poucas pessoas se mexem. What’s hap- MOISÉS Não se deixe alarmar pelo caos urbano. Fuja da guerrilha
pening? Hey! I’m not an actor, ok? This is reality! It’s true! Emer- que assola as grandes cidades. Olá! Eu sou Moisés Trindade e está
!
24 ! gency!!! Danger!!! Vai até um homem. Sir, please, go to your home entrando no ar: a nossa pequena Mahagonny! !
! 25
now, ok? Evacuate this area! Move, man. Move! Move! First children
and women. Recebe um aviso pelo rádio. What, Captain? One ter- Canção para instaurar o Programa Mahagonny enquanto
rorist is here? Where? Aponta a arma para a pessoa. Stop, man! apresentador tira a roupa da cena anterior.
Don’t move, ok? Don’t smile, look to the floor. Recebe um aviso
pelo rádio e se comunica com o capitão. Yes, captain. No. No. TODOS CANTAM
Para o suspeito: Sorry. OK, I must go. Dá uma cambalhota no Nós escolhemos a felicidade
chão e entra no espaço cênico como se estivesse entrando em um o lado da festa e do amor,
edifício. Faz algumas evoluções pelo espaço, se relaciona com nós escolhemos a liberdade,
os outros atores, recebe chamado pelo rádio, mas não consegue que só Mahagonny pode dar.
ouvir: Captain! Captain! Repeat, please!!! Pede para que a música Vem pra Mahagonny,
pare: Stop! Falando pelo rádio: Captain! Yes, I’m here in ( fala o Você foi escolhido,
nome da cidade). It’s a beautiful city. Ok, captain, I go! Vê uma Realize seus desejos,
porta imaginária, bate três vezes: Open this door now! The po- Aqui tudo é permitido!
lice is here. Ninguém abre. Three seconds for you, ok? One, two, Mahagonny, meu amor...
MOISÉS E WILLIAM Mahagonny.
GENNY Entertainment and Television.

Saem William e Genny.

MOISÉS Olá, meus amigos e minhas amigas, meus queridos


colegas de trabalho, hoje é um dia muito especial para nós, das
Organizações Mahagonny.
GENNY Entertainment and Televison.
MOISÉS Hoje nós celebramos mais uma década de existência. E,
para abrir as comemorações, eu trago aqui ao nosso palco a mulher
que existe por trás da ideia. Recebam com muito carinho a minha
amiga, produtora e empresária Leocádia BigBoni! !
! 27
LEOCÁDIA Glória, louvores, obrigada, obrigada! Olá, Moisés. É
um prazer dividir o palco com você! Obrigada. Num raro prazer
eu estou aqui, ao vivo e em cores para aplaudir você. Sim, aplaudir
essa imensa rede de fiéis espalhada por todo canto deste país. Fãs,
fanáticos que creditam sua confiança em nossa conta... Digo, pro-
grama. Mahagonny faz aniversário e quem ganha o prêmio é você.
Você, que acredita em Moisés, e sabe que, juntos, podemos cruzar
esse Mar Vermelho, de sangue e sofrimento, que toma conta de
suas vidas. Porque somente Moisés Trindade pode lhe oferecer a
terra prometida, e Mahagonny é esse lugar! Portanto, o sortudo ou
a sortuda vai receber a graça, o prêmio, de UM MILHÃO!!!
TODOS Um milhão!!!
MOISÉS Um milhão! Ligue para 0800 171 752 ou entre no site www
ponto, Mahagonny ponto com, tudo junto e tudo minúsculo. Rece- Genny sai.
ba sua senha numérica e participe da promoção “ganhe um milhão
em Mahagonny”! MOISÉS É isso aí, Genny! Não perca esta chance, ligue para 0800
LEOCÁDIA É isso mesmo, meu louro querido. Porque nós sabemos 171 752 ou entre no nosso site www ponto Mahagonny ponto com,
o que é melhor para você. Nós sabemos que este é o seu desejo. e tenha seus sonhos realizados aqui! Alô, William, o homem mul-
Você, que está em casa, no serviço, no asilo, na fazenda ou numa tiuso das organizações Mahagonny, quantas pessoas já ligaram?
casinha de sapê. Ligue. Nós sabemos que você não quer sofrer nada, WILLIAM Novo recorde, Moisés, até o momento, 54 milhões, 720
e sim, gozar tudo! Fique conosco em Mahagonny, porque aqui... mil e 13 espectadores estão a um passo da fortuna!
WILLIAM, LEOCÁDIA: E MOISÉS...a semana tem sete dias de festa!!! MOISÉS Yes!
Tocando um jazz, William anuncia a entrada de Genny que LEOCÁDIA Yes! Yes! Yes! Ligue, ligue, ligue, ligue... Continuem
carrega a mala do Milhão. ligando. Por trás de tudo isso existe uma ideia muito forte, para
facilitar o seu prazer de viver! Com a exclusividade Mahagonny...
!
28 ! GENNY canta Happy birthday to you (bis) Haaaaaaappyyyyyyyy... GENNY Entertainment and Televison. !
! 29

TODOS ...birthday Mahagonny LEOCÁDIA O seu lugar é ao nosso lado! Aqui você manda! Você
Happy birthday to you. não vai perder esta chance, vai? Então, não saia daí. O futuro já
Parabéns pra você começou!!!
Nesta data querida
Muitas felicidades William toca bateria acompanhando Moisés e Leocádia num rap.
Muitos anos de vida.
MOISÉS Parabéns, Mahagonny! Atenção, senhoras e... senhores!!! MOISÉS É! Você… Você que está descontente. Você que está an-
Esta é Genny, uma artista completa: atriz, cantora, modelo e gustiado. Você que não tem amantes. Você, assalariado!
manequim. LEOCÁDIA Nenhum vício? Isso não é vida!
GENNY Eu estou ansiosa por sua ligação, ligue, se entregue. Além MOISÉS Mahagonny dá mais vida a tudo!
de falar pessoalmente comigo, você concorre a um milhão. E lem-
LEOCÁDIA Emoção pra valer.
bre-se: quanto mais você ligar, mais chance você tem de ganhar!
MOISÉS Mahagonny dá mais vida a tudo!
LEOCÁDIA Energia que dá gosto! MOISÉS Ligue!
MOISÉS Mahagonny. LEOCÁDIA Experimenta!
TODOS Isso é que é! MOISÉS E LEOCÁDIA Ligue-se agora!
LEOCÁDIA Nesse momento eu peço a todos aqueles que foram to-
cados pela nossa palavra que peguem o seu telefone, que peguem Moisés e Leocádia saem e surge Genny sobre a cadeira atrás do
o seu celular. É a tecnologia a nosso serviço! Ligue, liberte-se dessa cenário.
vida medíocre. Ao ligar, você vai ouvir uma palavra de carinho, uma
palavra de conforto. Eu sei, você é pobre, feio, ignorante, mas nós
amamos vocês. Então: ostente seus valores e seja... Cena 3 Paulo da Lasca:
O homem do milhão!
MOISÉS E seja…
TODOS E seja um grande astro em Mahagonny!
MOISÉS É! Você… GENNY Ladies and Gentlemen, welcome to Mahagony TV Show.
!
30 ! Stay with us and you’ll certainly win a lot of money! Good night, !
! 31
LEOCÁDIA Você que está descontente. people! Senhoras e senhores, com muito amor, o meu boa noite!
MOISÉS Você que está angustiado. And now, I am going to announce the winner of the prize “win one
LEOCÁDIA Você que não tem amantes. million in Mahagonny”. So, if you’re listening to the Programme, call
us now! Don’t waste time! Call us now and win one million in Ma-
MOISÉS Você, assalariado! hagonny! Vou anunciar, agora, o número do vencedor da promoção
MOISÉS E LEOCÁDIA Ligue, ligue-se agora! “ganhe um milhão em Mahagonny”! Escuta o ponto eletrônico. And
the prize goes to the number, e o vencedor é: number, 171, 171,
MOISÉS Prepare-se para a conexão! Muitos são os chamados e
171! One, seven, one. Número 171. Lets go, people! Oh my God!
poucos os escolhidos!
Look at your papers. Quem aí é 171? Aguarda alguém na plateia se
TODOS Ligue, ligue-se agora! manifestar. Quem ganhou? Pausa e Genny recebe uma mensagem
no ponto eletrônico. One moment, please, tenho aqui a informação
A percussão acelera, Leocádia e Moisés cantam “Ligue-se agora!” de que o vencedor é o senhor... Paulo... Paulo! Senhor Paulo, Paulo,
e dançam enlouquecidamente. A música termina. cadê o Sr. Paulo!? Para o público. Please, again, what? What? Alasca,
Da lasca, Da lasca! PAULO! PAULO DA LASCA!
PAULO Sou eu! Eu sou Paulo da Lasca. Ganhei um milhão! Um
milhão?! Um milhão é muito dinheiro... O que eu faço com tanto
dinheiro, por onde eu começo?! Vou poder comprar uma televisão
tela plana 50 polegadas, um ipod, um celular que tira fotos... Eu
ganhei! Ganhei! Ganheiiiiiiiiiiii! Deus, obrigado!

Paulo vai em direção à lona circular que delimita a área de


cena. Atrás dos painéis, ao fundo, Leocáida, William, Moisés e
Genny cantam.

LEOCÁDIA Nós te escolhemos pra felicidade. !


! 33
MOISÉS O lado da festa e do amor.
WILLIAM Nós te escolhemos pra liberdade...
Paulo que esperava oculto entre os
TODOS Que só Mahagonny pode dar.
espectadores se manifesta na plateia.
Paulo para antes de pisar dentro da lona. Os quatro aparecem
ao fundo sobre a cadeira, ainda cantando.

TODOS Vem pra Mahagonny.


Você foi escolhido.
Realize seus desejos,
Aqui tudo é permitido!!!
PAULO Mahagonny!!! Paulo da Lasca chegou!!!
Cena 4 Recepção de Paulo favor, preste bastante atenção nas regras do nosso jogo.

Paulo é recebido pelas pessoas que via na TV. Moisés sai.

WILLIAM É isso aí, man!!!! Você mandou bem demais, cara. Você PAULO Regras?!! Mas que regras?
é um vencedor, um campeão. Paulo... Não! Paul! Paul da Lasca, o
homem do milhão. E eu sou William, seu amigo. Daqui pra frente WILLIAM Regra número 1.
eu vou te levar pra conhecer toda a programação de Mahagonny. LEOCÁDIA Não é permitido sair de Mahagonny sem gastar seu
um milhão.
William, após abraçar Paulo, o lança para Leocádia. PAUL Não posso levar nada?
WILLIAM Regra número 2.
LEOCÁDIA Paul, Paul, Paul, você é um show! Eu sou Leocádia Big-
Boni, uma serva do senhor. Preparado para renascer em Mahagon- LEOCÁDIA Não pode comprar fiado, deixar na pendura ou pôr na
!
34 ! ny? Aproxima–se e coloca uma gravata vermelha em Paul. É só conta. Principalmente, não pode dar calote! !
! 35
pedir que eu aplico, terceirizo, especulo, intermedio, agencio... PAULO Mas eu não vou dar calote.
WILLIAM E lembre-se: a sua vida depende disso!
Entra Moisés.
PAULO Como assim minha vida depende...
MOISÉS Paul!
Moisés reaparece com uma mala de dinheiro
PAULO Moisés Trindade? Eu sou seu fã! Você não tem noção! Não
acredito que estou na sua frente. Assisto a todos os programas:
“Curtindo a Madrugada”, “Salvação ao Anoitecer”. Você não ima- MOISÉS Paul, aqui está o seu... milhão! Entrega a mala para Paul.
gina! Eu sei tudo sobre você...
PAULO Um milhão... não acredito... Um milhão.
LEOCÁDIA Paul? Congelam numa pose para uma foto juntos.
MOISÉS Acredite, meu amigo, aqui a semana tem sete dias de festa!
MOISÉS Antes de o senhor receber o seu milhão, Senhor Paul, por Seja bem-vindo à Nossa Pequena Mahagonny! Uêpa!!!
Cena 5
O Carnaval dos Prazeres

William e Leocádia entram na lona tocando instrumentos.


Ela entrega uma garrafa a Paulo e cantam o samba “Vem pra
Mahagonny”.

TODOS Vem, vem, vem pra Mahagonny, vem. (Bis)


Aqui você tem bebidas,
Aqui você tem muitos jogos.
Aqui você tem mulheres bonitas.
Não perca tempo, venha logo.
PAULO Uêpa!!! Termina o samba. !
! 37
LEOCÁDIA O senhor vai querer, antes de mais nada, ver uma meni-
na fresquinha, não é mesmo? Então, dinheiro na mão! Quer pagar
quanto? De acordo com a sua necessidade. Vai lá e diz qualquer
coisa pra ela. Essa é a real.
MOISÉS trazendo Genny sentada em uma cadeira Paul, aqui
está ela!
PAULO Genny?!
GENNY Oi, Paul. Eu estava ansiosa por você.
PAULO Oi, Genny.
MOISÉS Calma, meu amigo, sente-se e dê uma olhada nesta beldade.
GENNY Eu e você, em Mahagonny, não tem preço.
MOISÉS Aproveita, que esta é a mulher da sua vida.
GENNY Ai, Paul, eu nunca amei! TODOS Vem, vem, vem pra Mahagonny, vem.
MOISÉS Oh!! É uma donzela!
Paulo adormece. Genny, Leocádia, William e Misés saem e logo
PAULO Beldade de Mahagonny, fico com você! em seguida retornam. O carnaval reinicia em ritmo mais
MOISÉS E GENNY Assim é que se fala, Paul. Uêpa!!! acelerado.

Tocam e cantam o samba novamente. TODOS Uêpa!!!


Vem, vem, vem pra Mahagonny, vem. (Bis)
TODOS Vem, vem, vem pra Mahagonny, vem. (Bis) Aqui você tem bebidas,
Aqui você tem bebidas, Aqui você tem muitos jogos.
Aqui você tem muitos jogos. Aqui você tem mulheres bonitas.
Aqui você tem mulheres bonitas. Não perca tempo, venha logo!
Não perca tempo, venha logo. Vem, vem, vem pra Mahagonny, vem.
PAULO Uêpa!!!
!
38 !
Repetem até serem interrompidos por Paulo. !
! 39
TODOS Vem, vem, vem pra Mahagonny, vem!
PAULO Chega! Não aguento mais! Todos os dias é a mesma coisa?
Paulo adormece na cadeira e os outros saem da lona.
Não há nada de novo neste lugar? Chega desse carnavalzinho idiota!
TODOS Uêpa!!! MOISÉS Se acalme, Senhor Paul. Depois de tantos dias de puro
Vem, vem, vem pra Mahagonny, vem. (Bis) prazer, justamente hoje o senhor vai perder o controle da situ-
Aqui você tem comidas, ação!?
Aqui você tem muitos jogos. PAULO Controle? Aponta para todos, um controle remoto. O que
Aqui você tem mulheres bonitas. vocês estão pensando, hein? Comigo isso não pega. Bateram na
porta errada. Mostra alguma coisa de novo senão eu vou embora
Gemidos de Paulo interrompem o samba. Ele recebe carícias de deste lugar.
Genny.
LEOCÁDIA Se acalme, Senhor Paul.
MOISÉS Não perca tempo, venha logo! PAULO Eu não quero emoção pra valer, eu quero emoção de
verdade!
LEOCÁDIA Calma!!! Aqui você quer, aqui você pode.
WILLIAM Porque é o nosso prazer satisfazer o seu desejo.

Leocádia, Moisés e William apontam para Genny e deixam Paulo


sozinho com ela.

Cena 6 A Garota de Ipanema

GENNY É, Paul... Eu tenho um programinha especial para você.


Uma atração exclusiva e sem intervalos!
PAULO De verdade? Só eu e você?
GENNY Relaxe, Paul. Sorria. Para sua segurança, você está sendo
!
40 !
filmado.
PAULO Hã?

Leocádia, Moisés e William retornam cantando Garota de


Ipanema e Paulo se deixa levar pela dança com Genny. Começam
a brincar um com o outro. Genny venda os olhos de Paulo com
sua echarpe, começando um jogo de cabra-cega. Ele apalpa o
corpo dela. Moisés entrega para Genny uma garrafa com pó
branco. Aos poucos ela vai esfregando esse pó em Paulo. Genny
sai à francesa deixando um rastro de pó por onde passa.

GENNY Paul!
PAULO Genny, Genny... Retira a echarpe dos olhos.
Paulo vê o pó e começa a cheirá–lo como se farejasse Genny. PAULO Topo! Aposto todo meu milhão! Aposto tudo que está aqui
Começa a gargalhar sem parar, extremamente eufórico. dentro!
WILLIAM É isso aí, senhoras e senhoras, este é Paul, o homem mais
PAULO Calma e harmonia? Isso aqui não existe! Furacões? Isso, corajoso de toda a Mahagonny. Ele aposta todo o seu dinheiro, ele
sim, existe. O homem é assim mesmo. Ele precisa destruir tudo. O continua no jogo!!!
que é a fúria de um furacão comparada ao homem quando quer se LEOCÁDIA Façam suas apostas!
divertir? Aqui tudo é permitido! Aqui tudo é permitido!
TODOS Façam suas apostas!
Paulo abre a mala e lança todo o dinheiro que recebeu para o
alto. Cai no chão, delirando. Entram William e Genny. Entra Moisés, como árbitro da luta.

MOISÉS Atenção, senhoras e senhores, vamos dar início ao nos-


Cena 7 Luta so combate. Do meu lado esquerdo, pesando 50kg, o desafiante
!
42 !
Senhor Paul da Lasca. Em minha mão direita, pesando 800g, o !
! 43
campeão mundial universal, Pópôpó. Atenção, combatentes, para
WILLIAM É isso aí, Paul! Aqui você quer, aqui você pode. Eu tenho as regras da luta: vocês podem usar as duas narinas, mas uma de
uma ótima pedida pra você. cada vez. É proibido chupar, lamber ou assoprar o adversário.
PAULO O quê? Combatentes a postos? Primeiro round!

WILLIAM Uma oportunidade única e imperdível. Leocádia narra a luta como um jogo de futebol. Paulo cheira
PAULO Qual? freneticamente até que o pó acaba.
WILLIAM Você quer dobrar o seu milhão?
LEOCÁDIA Começa a partida, senhoras e senhores. Os adversários
GENNY Dobrar o seu milhão, Paul!!!!
começam medindo olhares. Da Lasca começa o confronto dando
PAULO Claro! um cruzado de direita. Pópôpó sentiu o baque. Os adversários
WILLIAM Mas pra isso você tem que apostar todo o seu dinheiro e parecem estar preparados tecnicamente para a luta. Da Lasca deu
vencer uma luta. Topa ou não topa!!!? um direto de esquerda. E outro cruzado de direita. Pópôpó vai ter
que voltar com tudo, pois Paulo da Lasca sai com uma boa vanta- Moisés sai e deixa Paulo caído no chão. Entra William e levanta
gem nesta luta. Paulo.

Soa a campainha. WILLIAM Olha lá, rapaz, faltava pouco. Te falei. E agora, o que vai
fazer? Tá sem dinheiro, sem nada. Frouxo! Fracote! Perdeu um
MOISÉS Fim do primeiro round. milhão...

WILLIAM É isso aí, Mano Paul. Mandou bem demais, campeão. PAULO Chega! A minha cabeça vai explodir.
Ainda faltam cem gramas. Não deixa ele te pegar. Seu dinheiro está WILLIAM Qualé, Paul?
em jogo. Encara ele. PAULO O meu nome é Paulo. Paulo da Lasca! E eu vou embora
MOISÉS Combatentes a postos?! Segundo round! deste lugar.

! Soa a campainha. Paulo cheira mais, começa a desfalecer. Moisés Paulo pega a mala e vai saindo. !
44 ! ! 45
faz com que Paulo pare de cheirar.
WILLIAM Regra número 1.
MOISÉS Fim do segundo round. Para Paulo. Separa, separa. LEOCÁDIA Não pode sair de Mahagonny sem gastar todo o seu
WILLIAM Não bambeia, meu chapa. Encara o adversário. Pensa na milhão.
grana, rapaz. Vai com a direita. Quer esse dinheiro? Então fala: esse PAULO Não seja por isso. Eu devolvo!
milhão é meu! Faltam só cinquenta gramas.
MOISÉS Combatentes a postos! Terceiro round! Paulo entrega a mala para Leocádia.

Soa a campainha. Paulo está muito excitado e cheira cada vez LEOCÁDIA E quanto à sua aposta, meu bem? Cadê o dinheiro?
mais, até que ele convulsiona e perde o equilíbrio. PAULO O dinheiro está aí.

MOISÉS Vamos! Um, dois, três... sete, oito, nove, dez. Nocaute!!! LEOCÁDIA Dinheiro: que palavra maravilhosa. Abre a mala e vê
que está vazia. Ah!!! Você quer me dar o calote?
PAULO Não! De jeito nenhum! PAULO Sim.
WILLIAM Vamos, Paulo, procura no bolso de trás. GENNY Fugir de quem? Pra onde?
GENNY É, Paulo, procura. PAULO Pra qualquer lugar, só me tira daqui.
PAULO Eu pago. Deixo cheque, cartão, promissória, qualquer coi- GENNY Sabe, Paul, tem uma coisa que eu nunca esqueci. Um
sa, mas eu pago. amigo toda noite me dizia: “O amor é tudo que existe, mas amanhã
WILLIAM Regra número 2. é outro dia.” Pay attention, Paul, o amor é um sonho oco, cada dia
te gasta um pouco. O tempo passa, o corpo fica um lixo. E eu não
LEOCÁDIA Não é permitido comprar fiado, deixar na pendura ou vou acabar no lixo.
pôr na conta. E principalmente...
PAULO Do que você está falando? Você já é lixo!!! Vai embora! Eu
WILLIAM E LEOCÁDIA ...não pode dar calote! não preciso de você!
WILLIAM pegando o controle remoto de Paulo Você sabe o que GENNY Mas nós precisamos! Porque o show não pode parar!!!
isto significa? Meu caro, a sua hora chegou.
!
46 ! PAULO Me solta! Me tira daqui, me solta! Alguém me ajuda! Genny sai. !
! 47

William e Leocádia prendem Paulo na cadeira, entra Genny.


Cena 9 O Julgamento de Paulo

Cena 8 Sozinho na Prisão WILLIAM Senhoras e senhores, aqui está um cidadão que não
paga consumação. Crime. Loucura. Perversão. E o mais grave: sem
tostão! Eu, William Roberto, farei a cobertura exclusiva do
PAULO Me tirem daqui. O que está acontecendo?
julgamento deste criminoso.
GENNY Hello, Paul!!!!
PAULO Julgamento?
PAULO Genny, eu posso contar com você? Vamos fugir!
WILLIAM Sim. Paulo da Lasca está sendo acusado de ter cometido
GENNY Fugir?! dois crimes hediondos. Ele violentou, violou uma jovem donzela
indefesa. E o mais grave, apostou e não pagou. Calote, calote em MOISÉS Dessa forma, convoco a segunda vítima do réu para depor.
Mahagonny, senhoras e senhores! E vejam, neste momento está WILLIAM É chegado o momento que todos esperávamos. O de-
adentrando o tribunal, o Meretríssimo Senhor Juiz. Vamos ouvir o poimento da segunda vítima, a produtora de Mahagonny, Leocádia
que ele tem a dizer sobre este caso. Big Boni.
Entra Moisés, usando beca e peruca de juiz. PAULO A porca madame não pode.
MOISÉS Silêncio no tribunal!
MOISÉS Inicio este julgamento convocando a primeira vítima do LEOCÁDIA Meretríssimo, é muito difícil para mim. Jamais, em toda
réu para depor. minha vida, pensei que fosse viver um constrangimento desse. O
Senhor Paulo da Lasca mal colocou os pés em Mahagonny e vio-
Entra Genny com uniforme de colegial. lou sem pudor as leis do sentimento humano. Eu fui humilhada,
eu fui ultrajada. Eu fui sacaneada por este larápio. A justiça clama
WILLIAM Exclusivo e ao vivo o depoimento da primeira vítima, por vingança.
!
48 ! Genny Smith. WILLIAM A que ponto chegamos? Leocádia, uma mulher respei- !
! 49
PAULO Genny, vítima?! tada, um exemplo para nossa sociedade, ter que passar por uma
humilhação como essa.
MOISÉS Senhorita, pode iniciar o seu depoimento.
MOISÉS Senhor Paulo, é verdade que o senhor apostou um milhão?
Apavorada, Genny narra em “gramelot” os abusos sexuais PAULO Apostei, mas...
cometidos por Paulo. MOISÉS E também é verdade que o senhor perdeu a aposta?
PAULO Perdi, e daí?
WILLIAM Vejam, senhoras e senhores, é uma mulher traumatizada,
uma mulher transtornada. Ela está desconectada. Ela foi violada MOISÉS Senhor da Lasca, o senhor se lembra da regra número 2?
por este animal. É comovente. PAULO Regra número 2?! Me falaram, mas eu já esqueci.
MOISÉS A senhorita tem algo a acrescentar ao seu depoimento? MOISÉS Data vênia, Senhor Da Lasca. Por ter violado uma jovem
donzela, o senhor será condenado a prestar serviços publicitários. A
Genny faz que não, com a cabeça. partir de agora, o seu direito de imagem nos pertence. Mas, por ter
nos dado o calote, o senhor será eliminado!!!
PAULO Eliminado?
MOISÉS O pior crime sobre a face da Terra é não ter dinheiro.
PAULO Como assim, eliminado?
MOISÉS Declaro encerrada esta sessão de julgamento.
PAULO Eu mereço uma explicação...

Saem Leocádia e Genny, seguidas por Moisés.

Cena 10 Manchete do dia WILLIAM Em vinte anos de carreira jamais tinha visto tamanha
! frieza. !
50 ! ! 51
WILLIAM Neste exato momento, estão se retirando do tribunal PAULO Minha garganta está seca. Seu hipócrita, você se vendeu,
Genny Smith, a produtora de Mahagonny, Leocádia Big Boni e não é? Imprensa vendida, sensacionalista! Abutres!
o Meretríssimo Senhor Juiz. Ele acaba de anunciar a sentença de WILLIAM Percebam, senhoras e senhores, percebam! Uma pessoa
Paulo da Lasca, que está em vias de ser eliminado. Vamos saber qual descontrolada que não tem condições de viver em sociedade. Vejam
é a opinião dele sobre sua condenação. suas feições. Trata-se de uma pessoa desestabilizada, um maníaco. A
PAULO Eu só queria um copo d’água. sociedade clama por justiça!
WILLIAM Im-pres-sionante. PAULO Que merda de justiça é esta?
PAULO Mas eu só pedi um copo d’água! WILLIAM Que você deve ser eliminado!!! Eu fico feliz, porque vejo
que a imprensa, mais uma vez, cumpre o seu papel social de levar
WILLIAM Percebam estas palavras sutis: só pedi um copo d’água. até você a informação verdadeira no momento em que ela acon-
Trata-se de uma pessoa desequilibrada, uma pessoa que, no mo- tece. Vamos dar prosseguimento com o nosso programa. Afinal,
mento em que é condenada, pede um copo d’água. é nosso prazer satisfazer os seus desejos. Com vocês, meu amigo
PAULO Mas eu apenas pedi um copo d’água. Moisés Trindade.
Cena 11 Show da Execução

MOISÉS Uêpa!!! Estamos de volta, minhas amigas e meus amigos,


e continuamos o nosso programa com uma atração inédita e exclu-
siva. A primeira eliminação transmitida ao vivo e em rede nacional.
Eu convido a minha fiel audiência para ligar e decidir o futuro da
vida do Senhor Da Lasca.
PAULO Ligar?
MOISÉS Sim. Se você acha que este senhor não deve ser eliminado,
ligue para:
WILLIAM 0300 559 721 e liberte este delinquente.
! MOISÉS O custo da ligação será revertido para o pagamento da
52 !
dívida deste caloteiro. Mas, se você acha que Paulo da Lasca deve
ser sumariamente eliminado, ligue para:
WILLIAM 0800 500 700 e faça justiça!
MOISÉS Esta ligação é inteiramente grátis. E atenção, senhoras e
senhores, eu trago, com exclusividade, uma das vítimas deste me-
liante. Recebam, com muito carinho, a nova ídolo do momento:
minha amiga, Genny Smith! Oi, Genny!

Entra Genny com roupas de pop star.

GENNY Oi, Moisés!


MOISÉS E então, querida, nos conte como foi o lamentável episó-
dio envolvendo a sua belíssima pessoa e o Senhor Da Lasca.
PAULO Vamos, Genny. Conta tudo sobre a nossa grande love story. WILLIAM Moisés, estamos ao vivo?
GENNY Realmente, Moisés, depois que conheci Paulo a minha MOISÉS William, já estamos com você...
vida mudou. Eu me sinto outra mulher. Estou escrevendo um livro WILLIAM Não te escuto... A comunicação se restabelece.
chamado “Eu e Paul: uma paixão sem limites”, um diário-romance
ficcional falando sobre nosso convívio. MOISÉS Conexão, William!
PAULO Aprendeu rápido a fazer sua cama, né, Genny? Será que WILLIAM Conexão, Moisés!!! Eu falo diretamente da... fala o nome
você vai se lembrar de todos os detalhes? do local e da cidade, ...onde milhares de pessoas estão ansiosas
por dar a sua opinião com relação ao caso Paulo da Lasca. Um caso
GENNY Olha isso, Moisés! Escuta isso, gente! Eu quero dizer que estarreceu a sociedade. Vamos ouvir o que elas têm a dizer.
na frente de todos vocês, em rede universal, eu vou dar o meu Entrevista uma pessoa na plateia. Você seria capaz de eliminar
testemunho. Apesar de tudo, eu te perdoo, Paulo. E, como hoje é Paulo da Lasca deixando a sociedade livre desta ameaça, sim ou
um dia muito especial, eu gostaria de te presentear com o primeiro não? Entrevista mais uma pessoa na platéia, fazendo as mesmas
exemplar da minha boneca, Genny Fashion. perguntas. Agora o momento que todos esperavam: o voto popu-
!
54 !
lar. Quem gostaria de eliminar Paulo da Lasca, por favor, levante as !
! 55
Entra Leocádia com uma caixa de boneca, mostra para o mãos. Vocês, que estão do outro lado das câmeras, não estão vendo,
público e deixa ao lado da cadeira de Paulo. mas é unânime! A sociedade quer justiça. Essa pergunta nem pre-
cisaria ser feita, mas por desencargo de consciência vamos fazê-la:
MOISÉS Uma salva de palmas para este gesto maravilhoso!!! Gen- quem gostaria de libertar Paulo da Lasca? Uma meia dúzia de três
ny, você é a pessoa mais humana que já conheci. gatos pingados que não entenderam a pergunta... Esta é a realidade
GENNY Tchau, gente!!! Good bye, Moisés. da televisão feita ao vivo. Apesar de todo o esforço da imprensa,
ainda existem alguns que insistem em ter opinião própria! É com
MOISÉS É isso aí, meus amigos, eu tenho o prazer de convidar você, Moisés!!!!
uma outra estrela do nosso time de craques. O nosso correspon-
dente, William Roberto, que fala de algum lugar do país. Alô, Wil- MOISÉS Ok, ok, William! Muito obrigado pela sua participação...
liam! Falha na comunicação, Moisés e William não se escutam. É isso aí, pessoal. Mahagonny, além de popular, é também
Alô, William?... Produção, não temos o William? democrático, por isso nós vamos ouvir o outro lado dessa história...
Senhor Paulo da Lasca, a nossa audiência é toda ouvidos.
WILLIAM Oi, Moisés...
PAULO O que vocês querem que eu diga? Que divulgue o telefone
MOISÉS Alô, William?! para votarem em mim ou que fique aqui rosnando para contribuir
com esse espetáculo grotesco? Vocês estão sendo enganados! Isso
é uma mentira, não liguem. Desliguem! Está tudo resolvido, já tomei todas as providências! O que? Moisés!
Circulando...
Moisés tapa-lhe a boca.
Os dois cochicham. Leocádia sai e Moisés se posiciona para
MOISÉS O nosso convidado não consegue dizer nenhuma frase continuar o programa.
inteligível. É por isso que eu convido os nossos patrocinadores para
!
56 ! darem o seu recadinho. MOISÉS Cinco, quatro, três, dois, um. Estamos de volta meus
!
! 57
amigos e eu acabo de receber uma notícia muito especial e que-
Entra Leocádia. ro dividi-la com vocês. Neste momento, o nosso programa está
em primeiro lugar na audiência. Entram William, Genny e
LEOCÁDIA Paulo, o que é que está acontecendo? Você quer sair da Leocádia para comemorar. Nós só temos que agradecer a uma
nossa grade de programas? Você está em cadeia nacional! Quantas única pessoa: você. Graças a você, neste momento, nós somos
pessoas queriam estar no seu lugar... número um! A família Mahagonny agradece!!! E, aproveitando essa
fenomenal audiência, eu aviso que estão encerradas as ligações
PAULO Eu vou falar, as pessoas precisam saber. Eu não vou calar
e vamos anunciar agora o resultado da votação. Este é um mo-
a boca!
mento muito emocionante para mim, por isso eu pedi à produção
LEOCÁDIA Cala a boca! Por favor, uma tarja preta na boca deste que instalasse um aparelhinho para medir os batimentos cardía-
desqualificado, agora! Assim ele fica calado. Entra William e cola cos do meu coração. Por favor, ouçam... Ao Fundo, William toca a
uma tarja preta na boca de Paulo. Moisés? Junto! Mais teor bateria lentamente. Mais rápido, William. Obrigado! E atenção,
dramático, Moisés. Mais jogo de câmera. Ela ouve algo em seu pon- Senhor da Lasca, com 97% dos votos... o senhor será... Rufar
to eletrônico. Sim? Como? Quem? É ele! Não, senhor, sim, senhor. de tambores. ELIMINADO!!!
MOISÉS Por favor, uma última salva de palmas pela participação
do Senhor Da Lasca em nosso programa. Obrigado, Paul! Moisés
aperta o controle e Paulo está olhando para o público, sorridente
e catatônico. Senhoras e senhores, não se esqueçam, a promoção
“ganhe um milhão em Mahagonny” continua no ar. Não perca a
oportunidade de se tornar uma celebridade para o resto da sua vida
como o Senhor Paulo da Lasca. Ligue, ligue-se agora!!!

Entra percussão do rap. Todos cantam com o público.

TODOS É! Você. Você que está descontente. Você que está


angustiado. Você que não tem amantes. Você, assalariado… (Bis)
Genny coloca um capacete em Paulo e Moisés aperta o botão
do controle remoto. Em off, um forte estrondo de choque elétri-
Genny, Moisés e Leocádia vão para a plateia. William entra e os
co, junto com sons televisivos reais, jingles, vinhetas, vozes de
!
! 59
quatro vão para o centro da cena batendo palmas.
apresentadores, músicas. Paulo se debate na cadeira e desmaia.
Leocádia canta a Ave Maria.
TODOS Ligue, ligue, ligue-se agora.

Posicionam–se como em uma fotografia.

WILLIAM E MOISÉS E até amanhã, com mais Mahagonny...


GENNY E LEOCÁDIA … Entertainment and Television!

Entra jingle de Mahagonny e todos saem.

FIM
!
60 !
Não sabem que estão sendo olhados.
Personagens
THEO
PHAOS
LUMEN

Dramaturgia POLLYANA COSTA SANTOS 1


Atuação LEONARDO LESSA, RITA MAIA E ROGÉRIO ARAÚJO
Direção CRISTIANO PEIXOTO
Cenografia A EQUIPE
Figurinos ANTÔNIO GOMES
Iluminação LEONARDO PAVANELLO E A EQUIPE
Trilha Sonora DR. PETER PARKER
Realização GRUPO TEATRO INVERTIDO
Financiamento RECURSOS DO GRUPO TEATRO INVERTIDO

Estreia em Belo Horizonte/MG, no teatro do Galpão Cine Horto,


em 18 de novembro de 2004.

1
Pollyana Costa Santos é atriz formada pelo CEFAR/ Palácio das Artes e psicóloga
formada pela UFMG. Realizou a dramaturgia de “Um outro Lugar” (2004) - vencedor
do Prêmio Usiminas/Sinparc Melhor Texto Inédito de 2004; “Hotel Açucenas” (2007)
- em processo colaborativo com a Cia. Flores de Jorge; “O ar da história” (2008) - em
processo colaborativo com Raul Starling e Marcelo do Vale.
PRÓLOGO comandados por Phaos, que se posiciona do lado de fora da arena.
A imagem sugere um animal subjugado por um domador
Theo dirige-se ao público que aguarda para entrar. num circo abandonado.

THEO Atenção! Por favor, atenção. Prestem bem atenção. Neste PHAOS Continue! Vamos! Continue! Não pare! O giro! Não caia!
momento, vocês vão entrar. Em silêncio. Lá dentro, não vão Levante-se! Não seja previsível! Vamos, me surpreenda, Lumen! Es-
saber que estão sendo olhados. Vocês estão sendo convidados a querda! Direita! Ao meu comando! Olhe a minha referência! Não
testemunhar um acontecimento ímpar: a preparação de uma pare! O giro! Não caia! Levante-se! Você não consegue terminar, Lu-
dançarina para a cena. Vão se surpreender com a entrega total, men. Retome antes, faça a volta e o giro. Direita! Esquerda! Olhe a
sem limites, dessa incansável e desejosa dançarina, que dedica os minha referência! Esquerda! Direita! Continue! Continue! Repete o
seus dias, todo o tempo, a serviço de uma encenação daquilo que texto anterior, num crescente, até fazer um corte, tanto da músi-
acredita ser o desejável. Sejam discretos com o olhar de vocês, ca, quanto da luz. Aproxima-se de Lumen. Quando é que você vai
porque existe sempre alguma coisa de muito íntimo no desejável entender que é esquerda e direita a partir da minha referência? Eu
! de uma dançarina. Mas mantenham o olhar atento e guardem silên- sou o eixo e você gira! Se você não se referenciar por mim, vai se !
66 ! ! 67
cio. Theo abre a passagem, caminhando à frente. E lembrem-se: perder, Lumen. Vamos! Continue!
não sabem que estão sendo olhados.
Lumen prossegue os movimentos, agora, sem música. Phaos

cena 1
mantém a luz sobre Lumen, ofuscando-lhe os olhos. Há algo de
torturante nisso. Lumen rende-se ao cansaço e cai. Phaos apaga
o foco sobre Lumen e acende um outro foco, que serve como um
simulacro da lua cheia. Lumen se recompõe, retoma o vigor que
Entrada do público. Entre a plateia e a cena existe um te- parecia perdido e avança para o foco lua. Avança e recua. A cena
cido translúcido, a fim de que a presença do público fique sugere um espelhamento com a lua.
velada. A iluminação também contribui para que o pú-
blico não seja visto pelos personagens. Em cena, tem-se LUMEN algo de hostil, de feroz O que acredita que é? Responda! O
uma arena iluminada e ouve-se uma música em alto que acredita que é? Não é nada! Não tem forma, não tem constân-
volume. No meio da arena, Lumen dança incansavelmente, cia. É inconstante e previsível. Metade à esquerda, metade à direita,
meio perdida em seus movimentos. A música, a luz e Lumen são metade à esquerda, metade à direita e no meio fica cheia de si e,
depois, cai num vazio! E continua: metade à esquerda, metade à LUMEN Eu estou cansada... Ah, Phaos... Estou cansada... esvaziada.
direita, metade à esquerda, metade à direita e no meio fica cheia Chora.
de si e depois: o vazio! Uma repetição frustrante! Um tédio essa sua PHAOS Ei! Pare com essa história! Não tem vazio nenhum. Acaba
eterna exibição, que eu desprezo! Fica aí, altiva, desejosa... Ofere- logo com esse choro! Isso não faz parte da cena que estamos pre-
cida! Oferecida! Ah! Lua! Caia por terra! Caia por terra! Sem essa luz parando! Lembra como era antes? Quando você entrava nesta arena?
que ilumina você, sem essa luz, você desaparece. Sem essa luz, você Lembra? Quando muitas pessoas esperavam pra ver você brilhar?
é apenas um corpo esburacado. Por que não desiste? Por que não Lembra de como se preparava momentos antes?
desaparece de vez?
LUMEN Eu ficava atrás da cortina e fechava os olhos... Ouvia as
PHAOS algo de receio Bravo! Está improvisando algo diferente, vozes lá fora e sentia meu corpo crescer. E, então, eu me colocava
Lumen? Por que não desaparece de vez? bem debaixo daquela luz branca dos bastidores, e fechava meus
olhos... Enquanto fala, Lumen vive a cena; gira em torno de si
Phaos retira o foco lua e a cena passa a acontecer no escuro; mesma. De olhos fechados, eu pedia pra ser brilhante como a lua
ouvem-se apenas as vozes dos personagens. cheia. E abria o corpo: “Lua brilhante, lua forte! Entre por todos os
!
68 ! buracos do meu corpo!” !
! 69
LUMEN Phaos! Phaos! Não me deixe sozinha! Eu tenho medo! PHAOS Viu? Não tem vazio nenhum! Quando fala desse vazio, você
Phaos, me dê a lua de volta! A lua, Phaos! Não deixe desaparecer! fica estranha, meu amor... Fica com essa conversa de desaparecer...
Phaos! Phaos! Eu estou aqui! Não deixe desaparecer! Pode me ver?
Phaos, não faça assim comigo! LUMEN Sinto isso, Phaos! Sinto que vou desaparecer. Eu sei que
vou desaparecer... É só uma questão de tempo...
PHAOS calando Lumen, tampando sua boca Calma, Lumen!
Calma... Está fora de órbita, meu amor? Está fora de órbita? Parece PHAOS calando Lumen, tampando sua boca Isso não vai acon-
que está. tecer. Eu estou aqui com você. Você não pode romper nosso pacto.
Temos um pacto, não temos? Em que estado vai me deixar, se um
Phaos se posiciona em atitude de guia no escuro e Lumen se dia desaparecer de vez desse lugar? O que vai ser de mim? Você sabe
entrega nas mãos dele. que, se estou aqui até hoje, se ainda permaneço, é por você. Se não
fosse nosso pacto, eu já tinha ido embora desta casa abandonada.
PHAOS Venha. As minhas mãos estão aqui. Fiz uma lua “cheia de LUMEN É assim que me sinto muitas vezes, Phaos: abandonada.
si” pra você, e você recebe assim? Cheia de si? Quantas e quantas vezes você me abandona aqui sozinha? Por que
não me leva junto?
PHAOS Eu volto, não volto? Sei que você precisa de mim. O que PHAOS dócil Eu preciso de você...
vai ser de você sem mim? Só restamos nós dois aqui. E a nossa LUMEN Nem sempre o meu movimento coincide com o seu...
promessa cumprida a cada dia.
PHAOS incisivo Eu preciso de você.
LUMEN algo de ironia, tentando escapar das mãos de Phaos
Comprida! Está comprida demais nossa promessa! LUMEN irreverente Eu preciso de você!... Você já pensou que
raramente acontece de o sol e a lua serem vistos juntos?
PHAOS Meu amor, sabe que nosso destino vai ser comprido. E será
cumprido dia a dia. Algo de crueldade na doçura da voz. Nosso PHAOS Nem tudo o que acontece pode ser visto. Não é claro?
destino foi selado com a promessa que fizemos: eu e você juntos. LUMEN Nem tudo o que acontece pode ser visto. É claro!
Phaos retira de si uma lanterna e acende, focando a boca de
PHAOS É claro!
Lumen. Abra a sua boca! Vamos, não resista! Abra um pouco mais...
A cena sugere um jogo, meio dança, conhecido dos dois. Eu pra LUMEN É claro!

cena 2
você e você pra mim. Vamos, repita: Eu prometo... Repita!

!
LUMEN Eu prometo...
70 !
PHAOS ...que cada movimento meu vai existir em coincidência
com o seu.
Theo, que até então estava escondido junto com a plateia, entra
LUMEN Que cada movimento meu vai existir em coincidência com
na arena.
o seu.
PHAOS Prometo olhar por você e para você, por tudo que nos resta
THEO É claro! Mas é claro! Vocês continuam no mesmo lugar!
e para o resto de nossas vidas.
PHAOS Theo? O que veio fazer aqui? A casa está fechada.
LUMEN Prometo olhar por você e para você, por tudo que nos
resta e para o resto de nossas vidas. THEO Mas vocês ainda continuam aqui. Insistem, não é? Como nos
velhos tempos! Senhoras e senhores de todos os tempos! Aqui es-
PHAOS Como a lua está para o sol e o sol está para a lua...
tão, diante de seus olhos, os remanescentes - resistentes! - desta
LUMEN Como a lua está para o sol e o sol está para a lua... antiga casa de espetáculos. E continuam inseparáveis.
PHAOS Nossa trajetória está para sempre escrita com essa promessa. LUMEN Onde você esteve Theo? Faz tanto tempo que não
LUMEN Nossa trajetória está para sempre escrita com essa promessa. aparece.
THEO Como assim? Esta é a minha casa! A casa pra onde sempre PHAOS Se depender de minha opinião, a casa continua fechada. Se
vou retornar. Algo teatral, em tom espetacular. Eu, e todos os ou- é isso que veio olhar, Theo, pode ir embora.
tros, que travamos nossas batalhas diárias, com tantos conflitos e THEO Mas que tratamento é esse, Phaos? Não era assim que você
restrições... Nós, os guerreiros cansados e sedentos... Brinca com me recebia antigamente... Era? Hein? Lumen, mostre a ele como é
o efeito de sua encenação. Sempre haveremos de retornar pra que me recebia antes.
este lugar cheio de promessas: a casa onde a água é farta, onde
se esquece a aridez do deserto e onde a ordem é: “A guerra pode LUMEN irreverente O que deseja, Senhor Theo?
esperar!” THEO Bravo! Bravo! O que deseja, senhor? O que deseja, senhora?
PHAOS A ordem é: a casa está fechada. Realizamos os seus desejos!
LUMEN A menos que ele tenha mudado de ideia... Você mudou de PHAOS A casa está fechada. Acabou. Foi sua última palavra. Está
ideia, Theo? Vai ordenar que a casa seja aberta de novo? lembrado?
THEO E, por falar em novo, o que há de novo? O que há de novo, THEO Acabou mesmo? Mas o que fazem ainda aqui? Sei que vocês
Phaos? não desistem, porque sabem que a qualquer momento eu posso
mandar abrir a casa. A última palavra? Assume a mesa de luz e ma-
! !
74 ! ! 75
PHAOS Não há nada de novo. Lumen não tem se mostrado bem. nipula focos sobre a arena. Estão esperando que depois da última
Tenho trabalhado dia e noite, sem descanso, lado a lado, dou o palavra venha outra, e mais outra, e mais outra... Mais! Queremos
melhor de mim, mas ela tem deixado de ser aquilo que um dia mais! Lembram disso? A casa ficava cheia! E a plateia pedia: “Lu-
quase foi... men, Lumen, queremos Lumen!”. Nossa casa era uma verdadeira
LUMEN Não é verdade, Phaos... Não é verdade, Theo... Confusa. vitrine pra todos os gostos e exigências! E a “oferta do dia”? Estão
Continuo sendo o que quase fui. Quero dizer, o que sempre fui... lembrados? Façam seus pedidos para a oferta do dia! E o bordão?
quero dizer... Phaos, eu estou quase conseguindo... Faço tudo o Estão lembrados do bordão? “Atrações de todos os sabores para
que você me pede... pessoas de todos os humores”!
PHAOS É pouco. PHAOS Mas... A casa foi ficando vazia... E sabe por que, Theo?
THEO Que pena, Lumen! Você nos decepciona. Enquanto você não Porque, antes, a cena foi ficando vazia... Todos os esforços foram
se superar, não vejo como reabrir a casa. Não posso mais convencer em vão. Resultado: a casa vazia, a casa fechada. Acabou.
uma plateia de estar aqui, se você não tem nada pra oferecer. THEO Será? Será que acabou mesmo, ou podemos reabrir a casa?
Afinal, vocês, sim, é que estão fechados aqui, há tanto tempo, e sei
que têm se preparado pra cena todos os dias. LUMEN Não é nada disso, Theo. Tem certos dias em que eu sinto
que estou desaparecendo...
PHAOS Todos os dias, não. Você fala em reabrir, porque não está
aqui pra ver. Lumen passa dias e dias em completo isolamento. PHAOS Ela está improvisando essa história de desaparecer...
Nem deixa que eu me aproxime dela. THEO Lumen, você não vai desaparecer enquanto estiver sob os
THEO Lumen, como pode fazer isso com Phaos? Ele se dedica nossos olhos... Os meus olhos, os olhos de Phaos. E de quem es-
tanto a você, faz tudo por você! Você não tem esse direito. tiver aqui pra ver você. Vamos! Eu estou aqui pra ver você. Dê meia
volta e retome de antes! Senhorita Lumen, você continua com sua
LUMEN Eu estou cansada de ficar fechada neste lugar... Às vezes,
dança!
parece que sinto como se a plateia estivesse aqui, parece que ouço
as vozes e sinto os olhares... Mas, depois, olho o vazio e sinto a falta LUMEN seduzida A minha dança? Quer que eu continue? Quer ver
de tudo. o que temos pra mostrar?
PHAOS Não venha com essa conversa agora, Lumen. Em nossas PHAOS Não temos o que mostrar. Ela não está pronta. Acabe com
últimas apresentações, antes de a casa fechar, você já não atendia isso, Lumen! Theo precisa ir embora. Sinto muito, Theo. A casa con-
! aos pedidos. Só fazia o que queria fazer. Deu no que deu: a casa tinua fechada. !
78 ! ! 79
esvaziada, a casa fechada. LUMEN Não, Theo! Não vá embora! Phaos, eu prometo que vou
THEO O Phaos tem razão, Lumen. me esforçar. Vou fazer tudo pra essa casa ficar cheia de novo...
LUMEN Mas as pessoas sempre queriam outra coisa, outra coisa... THEO O que tem pra mostrar, Lumen? A sua dança?
Nunca estavam satisfeitas. Parece que todos aqueles pedidos me PHAOS Não, Lumen, você ainda não está completamente pre-
esvaziaram. Ouviu isso, Phaos? Assume um tom teatral, algo de es- parada para se apresentar.
petacular e dramático. Eu estou vazia! Eu estou fechada! Toda a
LUMEN a Phaos Phaos, me deixe tentar... Eu posso fazer. A Theo
minha vida estive presa a esta arena. Houve um tempo em que eu
Quer que eu mostre o número dos Sete Pecados Originais? Você
ficava imaginando o que seria da minha vida se eu não tivesse esta
precisa ver o final. Criamos um oitavo pecado super original!
arena pra viver... eu teria outro rosto, outro corpo... Eu me imagi-
nava sem estas roupas todas que se confundem com o meu corpo e PHAOS Não, Lumen.
sem esta maquiagem que está grudada no meu rosto...
THEO Bravo! Você está de volta! Essa imaginação toda já faz até
aparecer uma cena!
LUMEN Phaos! Estamos muito tempo so-
zinhos... E, de repente, Theo pode reabrir a
casa e...
PHAOS interrompendo Lumen Ainda não há
nada pra ser visto! Por mim, a casa continua
fechada. Foi Theo quem quis assim. Ordem é
ordem.
THEO Ora, ora, ora... Por hora... A ordem pode
ser suspensa! É a sua grande chance, não é, Lu-
men? Ou vocês me convencem que já é hora
de a casa estar aberta, ou vão passar mais um
bom tempo aqui fechados. Vamos! Sorriam!
Vocês estão sendo olhados...
PHAOS algo de um desconcerto e um olhar
cúmplice com Theo Estamos sendo olhados?
THEO Por mim! Eu estou aqui, não estou?
Quero que apresentem um número. Deixem
me lembrar... O número da transformação! E
façam como se a casa estivesse cheia!

Neste momento, Lumen se enche de entu-


siasmo e sai para preparar-se para a cena.
Theo senta-se junto à plateia, à frente do te-
cido que a mantém encoberta, sem ser vista.
Phaos ocupa o centro da arena e faz sua
performance, como se considerasse a plateia
presente.
cena 3 Lumen esquiva-se de olhar.

PHAOS para Lumen, em tom sussurrado Não se olha, por medo


de ver que é um equívoco da criação. Para a plateia. Mas ela che-
PHAOS Sejam bem-vindos, já que vieram. Sei que esperam por gou até aqui, neste lugar, porque ainda quer acreditar que pode ser
momentos emocionantes... Não perdem por esperar... Atenção, transformada. Sim, senhoras e senhores, transformada! Chegou até
senhoras e senhores! Tomem os seus lugares! Recolham os seus aqui com seus pés cheios de calos e descamações, os pés cansados
medos e coloquem para fora os seus desejos. Nesta arena, o cho- de perambular atrás de um tantinho de felicidade qualquer. Seus
rume se fez humano e encontrou o seu lugar. É este o lugar! É este pés doem, criatura?
o lugar! É este o lugar para criaturas perdidas como esta. LUMEN Doem...
Lumen entra na arena. Traz consigo algum acessório ou alegoria PHAOS Mais! Mais!
que caracterize uma personagem feita por ela. LUMEN Doem! Meus pés doem!
! !
82 ! PHAOS Essa pobre criatura vai conseguir o seu punhado de felici- ! 83
PHAOS Observem como é deprimente esta criatura. Não tem dade, assim que for transformada. Sim! Senhoras e senhores, ela
formosura. Nem forma tem. O que traz você aqui? será transformada! Está preparada?
LUMEN Eu não preencho os requisitos do mundo...
Lumen consente com um gesto afirmativo. Phaos coloca à frente
PHAOS Fale mais alto! Mais! Mais! dela um saco de lona escura e a conduz para que entre dentro
LUMEN Eu não preencho os requisitos do mundo! do saco.
PHAOS Ela não preenche os requisitos do mundo. Observem! É
pele e osso, e cabelos escassos. Os olhos parecem saltar de tanto PHAOS para Lumem Pode colocar aqui os seus pés... Os seus pés
susto e vergonha de existir. Olhem... Treme de fraqueza e falta de estarão para sempre guardados nestes decisivos passos para o seu
costume. Não está acostumada com tantos olhares... Sabemos que destino. Lumem entra dentro do saco e Phaos fecha-o com uma
os olhares não são tantos, mas a coitada não está acostumada nem corda Senhoras e senhores! Outra vez, diante dos nossos olhos,
mesmo com os próprios olhos sobre si mesma. Olhe pra você, o destino de uma criatura vai se cumprir conforme seus próprios
criatura! Olhe pra você! passos!
Phaos passa a açoitar o corpo de Lumen dentro do saco, com PHAOS seco e ríspido para Theo Temos o banho. Para Lumen.
violência e furor O banho.
LUMEN Não, Phaos. O banho não.
PHAOS Ela não preenche os requisitos do mundo! Tudo o que ela
quer é ocupar um lugar, e não se importa com a dor ou o sacrifício, PHAOS Você falou que faria tudo... Tudo pra não ficarmos sozinhos,
porque é assim que tem que ser, se quiser ocupar um lugar neste fechados... Não falou? Então vá se preparar... Lumen insinua argu-
mundo! mentar algo, mas Phaos tampa-lhe a boca e já a conduz para a
saída. Vá! Preciso ficar sozinho alguns instantes, pra preparar toda
Ao final desta cena de violência, Lumen, agonizante, mantém-se a cena... Só volte quando eu ordenar...
quase imóvel no chão. Phaos, exausto, dá continuidade à cena.
Lumen sai para os bastidores ao fundo. Phaos se dirige a Theo de
forma confidencial.
PHAOS aproximando-se de Lumen Olhem só, vocês! Ela ainda
respira... Ela ainda respira... Pronto, criatura. Sorria... Sorria... Isso!
! Olhem, senhoras e senhores, observem que antes ela não sorria. E PHAOS Desista, Theo! Não está dando certo! Você não vê como !
86 ! Lumen está perturbada? Sei que concordei com você, num pri- ! 87
então, quer pedir alguma coisa?
meiro momento, mas, sinceramente, não sei se acredito mais nesta
LUMEN Quero ser aquela borboleta branca guardada dentro do estratégia ingênua de fazer Lumen sofrer com essa casa vazia, pra
livro... Quero ser aquela borboleta branca guardada dentro do conseguir dela a melhor e maior performance...
livro... Quero ser...
THEO Pode ter certeza disso, Phaos! Precisamos fazer com que
THEO Próxima atração! ela continue acreditando que a casa vai continuar fechada, porque
se ela acreditar nisso vai se desdobrar para ver esta casa cheia de
Lumen levanta-se rapidamente e já se prepara para um próximo aplausos, de pessoas gritando por ela! Para a plateia, num
número. crescente de euforia. Senhoras e senhores, isso é uma experiência
comprovada!
PHAOS Chega, Theo! Você já se divertiu bastante por hoje.
THEO O que é isso, Phaos? Eu, a plateia, não podemos passar à Theo interrompe sua fala ao lembrar que Phaos está do seu lado.
míngua. Agradeça a presença e mostre o cardápio! O que temos? Apresenta-o como cúmplice.
Quero algo mais quente!
THEO Ah! Senhoras e senhores... Não precisam ficar constrangi- Atenção, todos vocês que vieram aqui para ver. Esta mulher, neste
dos. Phaos é nosso cúmplice nesta experiência. Ele esteve olhando instante, já não pode ver nada. Olha nos olhos de Lumen. Olhe nos
vocês olharem Lumen. Está no controle! Mas, voltando ao que eu meus olhos... bem no fundo dos meus olhos. Fecha os olhos de Lu-
dizia, podem ter certeza: somos como bichos de laboratório, priva- men. De agora em diante, você vai ser apenas uma imagem refletida
dos de água. Quanto mais privados, mais procuramos pela água e no espelho dos meus olhos... Está sozinha dentro do espelho. Seu
fazemos tudo pra isso! Quanto mais tempo Lumen sentir falta desta corpo vai ficar leve agora. Não tenha medo. Beija Lumen, enquanto
plateia, mais ela se entregará na cena... Até o limite, e além do limite! deixa cair um pouco de água no corpo dela. A cena sugere uma
hipnose. Entregue o seu corpo nessa água que cai em volta de
PHAOS Está apostando errado! Lumen está diferente... Ela está se você... Veja o seu corpo expandir dentro do espelho dessa água...
esquecendo, a cada dia, de tudo o que já fez! Não consegue mais se O banho... A água... O espelho... O banho... A água... O espelho... O
antecipar, como fazia antes. Não sabe mais se colocar pra atender banho... A água... O espelho...
ao que uma plateia quer ver, não sabe mais o que querem dela.
Com a casa fechada, ela não sabe mais nada e se perdeu nesta are- Theo avança para o centro da arena para tocar o ventre de
na. Podemos poupar Lumen disso tudo. Dirige-se à plateia. Peço Lumen.
!
88 ! desculpas, agradeço a presença de vocês, mas não vamos continuar. !
! 89
A Theo. Acabou, Theo, acabou!
PHAOS Afaste-se dela! Nunca foi permitido tocar!
THEO Acredita mesmo? O que realmente determina que acabou?
Ela ainda continua aqui. THEO Quero que você reaja, Lumen! Violento e erotizado, toca em
todo o corpo de Lumen.
Lumen interrompe a conversa, retornando à arena. PHAOS empurra Theo Volte ao seu lugar!
THEO Chega!
LUMEN Phaos... Theo...
PHAOS Chega.
PHAOS Eu quero que volte quando eu mandar.
LUMEN Não! Você queria ver, não queria, Theo? Então vamos se-
THEO retomando o jogo Fique! Eu estou mandando. O espetáculo guir em frente. Vamos continuar, Phaos!
não pode parar. Mostrem-se! E lembrem-se: a casa pode estar cheia
PHAOS Chega, Lumen.
de novo!
LUMEN Não! Agora é que eu vou começar! Vamos adiante! Adiante!
PHAOS retoma o jogo e conduz Lumen pra cena novamente
THEO Deixe que ela continue. Mas eu posso “surpreender” se, de repente, eu decidir matar o
LUMEN Senhoras e senhores que nunca aparecem! Agora, o núme- Phaos! Neste exato instante!
ro do rosto descoberto! É surpreendente! PHAOS meio constrangido com a ameaça da navalha, tenta
PHAOS Isso não é um número, Lumen! É uma brincadeira nossa! jogar com a cena E o que vai fazer sem mim? Vai ficar no escuro?
Você pode morrer no escuro, sabia? “Surpreendentemente”, vai ser
a próxima a morrer...
Lumen passa creme de barbear no rosto de Phaos, que fica quase
todo encoberto pelo excesso de espuma. Em seguida, pega uma LUMEN Então, eu posso, “surpreendentemente”, matar o Theo. Se-
navalha e inicia uma cena de barbear. ria uma morte súbita! E seria uma ironia pra você, não é, Theo, aí,
desse lugar de plateia, morrer e ver a própria morte...

LUMEN Onde está você, meu amor? Onde está que não vejo? Por THEO prossegue no jogo Se me matar, quem é que vai ver você?
que se esconde de mim? Tenho saudades de você. Por que não Vai ficar sozinha e vai morrer sozinha, sem ninguém para ver
aparece? a sua morte. Nem na hora da morte terá alguém pra ver você,
pobrezinha...
!
90 ! THEO O que tem de “surpreendente” nisso? !
! 91
LUMEN Sim! Posso morrer. Morrer é o que tem de mais previsível
LUMEN O rosto que aparece?! Os rostos andam tão desapareci- e imprevisível na vida! Posso morrer. Já posso morrer... Algo de
dos... Pode ser surpreendente! drama Eu sempre soube que desaparecer seria uma questão de
PHAOS Pare com isso, Lumen. tempo... Morrer é apenas um instante: o instante de desaparecer.
THEO É previsível... Eu diria até que é banal...
Lumen dirige a navalha para o próprio corpo. Simula sua morte.
LUMEN O que, então, pode ser tão surpreendente? A morte? A Mantém-se imóvel e em silêncio por instantes. A cena deve deixar
morte! A morte pode ser surpreendente! Senhoras e senhores! dúvidas quanto ao que tem de encenado por Lumen e o que tem
Com vocês, a inesperada morte! de verdade. Phaos e Theo compartilham desta dúvida. Passados
alguns instantes de suspensão, Lumen levanta-se rindo de tudo
Lumen inicia uma dança com a navalha, criando uma atmos- aquilo.
fera de ameaça aos dois.
LUMEN Próximo número!
LUMEN A morte não passa de um momento. E pode ser banal...
cena 4 aqui, só se obedecem ordens! Basta um comando do olhar e nos
colocamos à disposição! O que deseja beber, senhor? De que tama-
nho é a sua sede? Não se preocupe com a guerra lá fora. Esqueça
tudo. Como quer que enfeitemos a sua bebida? Podemos oferecer,
Lumen vai para os bastidores se trocar. Está visivelmente
transtornada. senhor! Podemos oferecer, senhora! Podemos, oferecer, Theo, mas
somente se eles estiverem aqui para nos indicar o que querem!
PHAOS Vamos encerrar, Theo. Peça pra ela parar. Diga a eles que THEO O que é isso, Phaos? O comando está aqui em nossas mãos.
acabou. Aponta, com a luza da lanterna, várias direções na arena. Olha
isso! Olha isso! Nós definimos o foco. Já rastreamos o que há de
THEO A casa vai permanecer fechada por tempo indeterminado! mais desejável para oferecer aos olhares... Já sabemos de que água
O tempo que precisar! Será que não vê, Phaos? É uma questão de eles têm sede...
sobrevivência! Tudo é uma questão de sobrevivência!
PHAOS Talvez seja aí que você se engane, Theo. Por que não
!
PHAOS De que sobrevivência você está falando? Com certeza, não pergunta pra eles... Que tal você deixar que falem sobre esta !
92 ! é a nossa sobrevivência... Você está totalmente enganado nessa sua ! 93
experiência da qual estão fazendo parte?
teoria da sobrevivência, porque o que acontece, “senhor” Theo, é
que Lumen não vai sobreviver mais por muito tempo. Neste momento, Lumen volta à cena com um vestido sedutor.
THEO São as leis do espetáculo, Phaos! Os olhares estarão tanto Sedutora também é a dança que ela inicia. Dança na arena, e,
mais atentos, quanto mais puder ser oferecido a eles! E tanto mais aos poucos, vai insinuando-se para Theo, que fica seduzido e/ou
será oferecido a eles, quanto mais esses olhares estiverem ausentes. subjugado. Do outro lado da arena, Phaos tenta impedir que
Preste atenção, Phaos, quanto mais estiverem privados de Lumen os olhos de Lumen fiquem voltados para Theo. Algo de sedução,
e Lumen também estiver em privação, nesse estado duplo de ciúme e competição na cena. Phaos tenta impedir a relação de
privação, mais teremos o encontro desejável de uma cena e seu Lumen e Theo através do comando da luz em cena, bem como
público. Será que não vê que isso tem a força de um ímã? pelo comando de voz: seu poder sobre Lumen.
PHAOS Eu não posso mais concordar com isso. À plateia. Sabemos
que nós, “sobreviventes” desta casa de espetáculos, não podemos PHAOS Lumen, chega!
estar privados dos olhares em volta! Mas, se continuar assim, den-
tro de pouco tempo não saberemos mais o que oferecer, já que, Lumen continua. Nega-se ao comando de Phaos.
THEO Continua, Lumen... Continua...

Lumen para. Nega-se ao comando de Theo.

PHAOS Isso, meu amor... pode parar agora.

Lumen continua.

THEO Isso, Lumen, continua... continua...

Lumen para.

THEO Continua, Lumen... A casa está cheia... Existem muitos aqui,


em volta, para ver você. Muitos que querem ver você em cena.
PHAOS Acabou, Lumen. Você não precisa continuar!
LUMEN Eu preciso continuar. Agora eu vou até o fim!

Lumen dança a sua “dança dos sete véus”. Em movimentos sen-


suais, às vezes, violentos, vai se despindo das suas vestes até ficar
nua em cena. Momentos antes de se despir da última veste, Lumen
puxa o tecido que encobria a plateia, revelando que sabe que o
público está presente.
LUMEN Luz! Mais luz!
Phaos corre em direção a Lumen e cobre a nudez dela.
PHAOS Chega, Lumen! LUMEN Chega! Chega! Eu preciso revelar vejo agora: eu não me vejo mais. Ao público. Vocês me veem? Não,
tudo! Preciso revelar todos vocês. Sorriam! São vocês que estão vocês não podem me ver. Nesta “casa do espetáculo” o que aparece
sendo olhados o tempo todo por nós. é outra coisa. É só imagem! Aparência! Será este o nosso lema?
THEO Pare com este improviso, Lumen. Parecer e aparecer! Pareça e apareça!

PHAOS Chega, Lumen! O espetáculo acabou, o jogo acabou! Nós THEO para Lumen e Phaos E vocês ainda não sabem? Pois tentem
não vamos mais continuar... Vamos encerrar. parecer sabidos, agora: apareçam! Vamos! Vocês estão obrigados a
dar um fim nesta promessa de espetáculo. E sorriam! Vocês estão
LUMEN Não vou parar. Vocês vieram aqui para ver, não é?! Então sendo olhados...
olhem! Olhem bem vocês que estão aqui para ver. O que posso
oferecer? O que deseja, senhor? O que deseja, senhora? Eis aqui
uma carcaça de uma coisa mutante: mercadoria que está a sua dis- Theo sai de cena.
posição, a seu serviço, senhor. Pra esquerda, pra direita. O eixo! Pra
lado nenhum! A minha referência! Isso tudo eu não posso mais... LUMEN ao público Eu peço a você que testemunhe essa sensação
! THEO Tentando se aproveitar da intervenção de Lumen. Bravo! que tenho agora: sinto que estou tão parecida com as marcas que !
102 ! as luzes desta arena me fazem, que só por alguns instantes eu tenho ! 103
Senhoras e senhores! Eis aqui o mais secreto espetáculo. Bravo!
Bravo! a sensação de me ver aparecer, sem marcas. Aparecer assim: eu!
Como uma estrela cadente, um brilho, um instante, um susto! E é
PHAOS Chega, Theo. O espetáculo acabou. neste instante, quando apareço sem o que pudesse parecer dese-
LUMEN Eu não sei de que lugar vocês vieram... jável aos olhos de vocês, neste instante eu sou como sou. Talvez
uma estrela desejável. Ou alguma coisa que brilha. Pausa. Eu não sei
THEO interrompendo a fala de Lumen Será que eu sei? O que
de que lugar vocês vieram e não sei o que trouxe vocês aqui... Mas
trouxe vocês aqui? E o que não deixa cada um de vocês ir embora?
sei que, se seu pudesse inverter... Sim! Se nós pudéssemos inverter!
Uma promessa? Estão aqui, nesta plateia, por causa da mais antiga
Phaos!
promessa de alegria e gozo? Estão atrás dessa velha promessa? En-
tão, olhem: um carrossel de luzes que não pode parar! Brinca com PHAOS É claro! Phaos posiciona-se e ilumina a arena nova-
efeitos de luz na arena. mente.
LUMEN Chega! Sintam como eu sinto agora: tudo está sumindo LUMEN Indica a arena. Olhem! Olhem esse lugar vazio.
debaixo dessa luz que pode ofuscar nossos olhos. Vejam como eu PHAOS Vejam esse lugar!
LUMEN Fechem os olhos... Um dos nossos
destinos é e será em algum momento fechar
os olhos... Fechem os olhos. É um risco, eu
sei. Mas tudo aqui é um risco. Desde que vie-
mos à luz... Não é assim que nascemos? Com
a luz? Desde que viemos à luz, desde que
abrimos os olhos estamos aqui: todos em
volta, cativos, presos às luzes e ao destino
de um olhar. Presos ao destino de aparecer
ou desaparecer. É sempre um risco. Fechem
os olhos. Phaos retira a luz da arena. Black out total.

!
104 !

LUMEN Eu não sei de que lugar vocês vieram, e


não sei o que trouxe vocês aqui, mas sei que...
PHAOS Pra além das promessas que foram feitas, pra além de
estarmos cativos ao destino de um olhar...
LUMEN Pra além do que possam querer tantos olhares, pra além
disso tudo, estamos, sim, presos ao destino de olhar esse lugar
vazio: o vazio deste lugar. Lumen e Phaos estão fora da arena;
esta, ilumina-se aos poucos. Presos ao destino de olhar este lugar,
e deixar alguma coisa aparecer diante dos nossos olhos. Alguma
coisa que brilha. Continuem!

Phaos e Lumen saem. A arena fica parcialmente iluminada para


a plateia olhar.

! !
106 ! ! 107

FIM
Dramaturgia LETÍCIA ANDRADE 1
Atuação CAMILO LÉLIS, LEONARDO LESSA E RITA MAIA
Direção AMAURY BORGES
Concepção cenográfica e figurinos INES LINKE
Cenotécnica PATRÍCIA LANARI
Iluminação ROGÉRIO ARAÚJO E AMAURY BORGES
Trilha sonora ADMAR FERNANDES
Produção executiva MICHELLE FERREIRA
Realização GRUPO TEATRO INVERTIDO !
! 109
Financiamento PRÊMIO FUNARTE MYRIAM MUNIZ DE TEATRO

Estreia em Belo Horizonte/MG, no antigo


Laboratório de Engenharia Sanitária da Escola de Engenharia
da UFMG, em 16 de novembro de 2006.

1
É atriz, dramaturga, professora e integrante da Maldita Cia de Investigação
Teatral. Mestre em Teoria Literária, leciona no Centro de Formação Artís-
tica do Palácio das Artes e no Departamento de Artes da UFOP. Atua no es-
petáculo Suba na vida, e já escreveu mais de dez dramaturgias, dentre elas:
Estamos trabalhando para você, Arriscamundo, Prato do dia e Cara Preta.
1 VITRINE DO CASAMENTO ARTIFICIAL
(Noiva Margarina, Noiva Esgotada, Voz do General)

Os espectadores entram num Galpão-Laboratório. Tempo


Ficcional de Memória: o Ensaio do Casamento. Noiva Esgotada
e Noiva Margarina aprontam-se para o casamento. A Noiva
Esgotada é um homem e a Noiva Margarina é uma mulher.
Narram a espera de cada uma. São dois grandes ambientes. No
primeiro ambiente, há estruturas e escadas de ferro. No segundo
ambiente, ao fundo, localiza-se o laboratório, que está fechado
por uma porta de vidro e ferro. Ainda no primeiro, temos um
! ambiente artificial: luzes azuladas e lilases. Repartições com !
110 ! ! 111
vidros transparentes: ambiente avermelhado em excesso, do tipo
“brega” e “fim de linha”. Inicia-se a trilha sonora de uma marcha
do tipo grandiosa, que ressoa por todo o espaço. Duas escadas NOIVA ESGOTADA Eu, jandirapedofiliadinastiamarisguiaevalilith, eu,
paralelas. Uma voz de homem também tece promessas, através mãetiaavónetasobrinhalençoldocefátimaritacreuzanossasenhora-
de um megafone, que, por vezes, emite a melodia romântica do daconceiçãomariadasgraçasluzluziatrezedemaiodemilnoventosese-
filme Titanic. Silêncio. Hino cívico. tentaeseisvasosamambaiaprivadavassourapanelamóvelalmoçocafé-
De costas para o público, a Noiva Margarina está posicionada jantafósforoestrumeperfumepropriedadeidolatriadinastiamulher,
em frente a uma escada, e prepara-se para subir. Ela usa vestido prometo-te amar, respeitar-te mesmo quando euvírginiavaríolarú-
branco belíssimo transparente e tem a pele envolta por pelícu- biarubéolatuberculosemalditamedeiabactériameduzadeusa perder
la fina transparente. Tem a singeleza e a cara de: “este é o dia minha juventudeviçomocidade. Te esperar toda noite com a boceta
mais feliz da minha vida”. Enquanto isso, a Noiva Esgotada, depilada e camisola transparente.
com vestido excessivamente espalhafatoso, repete uma promessa,
ao descer as escadas. Ações simultâneas: a Noiva Margarina sobe Noiva Esgotada, Noiva Margarina e General tecem suas
a escada e a Noiva Esgotada desce. promessas. Polifonia: vozes simultâneas.
NOIVA ESGOTADA Prometo NOIVA MARGARINA Eu, noiva- GENERAL Eu, generalanimal-
te amar, mesmo quando você virgempura, garota do sonho de masculino-joséalfredoraimun-
me deixar de amar. Te ser fiel, valsa e propagandas de marga- do-stalinbushaugustocésar-
mesmo quando você me trair, rina, sabor crocante salgadinha Getúliovargasalbertofuzi-
me deixar esperando na fun- cremosa, te aceito, como meu liraquefortecacetetebombei-
damadrugada. Eu camilacax- fiel esposo, e prometo te res- ropolíciacongressona-cional-
umbacinderelasaltoavental- peitar, na alegria e na tristeza, pentágonofalofu-tebolcach-
gorduraba-nhamurcha, na saúde e na doença, até que a açamulherpelada, prometo te
prometo te perdoar todos os morte nos separe. Eu, mulher- trair na primeira oportunidade
dias, ser passivaamigaaltiva, indefesa, menina do sonho de que eu tiver. Te humilharamar-
a do lar, quando você atrasar valsa e propagandas de sabão rarmaltra-tarcurrarcuspir no
pro jantar, vou requentar tua em pó, com garantia de origem seu arroz empapado, no seu
comida e tua cama. Não cho- e procedência, te aceito, como feijão sem tempero, te chutar o
rar, quando você me bater, meu fiel esposo, e prometo te ventre quando eu estiver bêba-
engolir a raiva, quando você respeitar, na alegria e na tris- do. E, se eu te trair, prometo
me cuspir na cara, ou quando teza, na saúde e na doença, chegar fedido em casa e te es-
você me for indiferente. Fingir até que a morte nos separe. pancar só porque não você não
que te olho nos olhos e abrir me olhou no olho e, por fim, te
minhas pernas pra que você meter meu pau rijo.
enfie seu pau mole em mim.

NOIVA ESGOTADA Eu, nanãiemanjáiansãoxumoraieuieu, eu, santaefigênianossasenhoradaconceição,


prometo te passar as roupas que você despirá para qualquer vagabunda. E costurá-la quando a siri-
gaita rasgar. Cuidar dos nossos filhosvírus, bactérias da carne, que consomem minha gordura, meus
lipídios, meus ciclos naturais.
NOIVA MARGARINA Eu, submissacasta, rapariga do sonho de valsa e das propagandas de sabonete
luscofusco, hidratante, creme e loção para pele e cirurgias de lipoaspiração e implantes de silicone, te
aceito, como meu fiel esposo, e prometo te respeitar, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença,
até que a morte nos separe.

Intensificação do momento do sim do Casamento. Polifonia: vozes simultâneas.


NOIVA ESGOTADA Eu brancolu- NOIVA MARGARINA Chega no GENERAL Te prometo a minha
ademeltapetevelaconvitecetim- alto da escada, ainda de costas velhice, meus cabelos brancos,
lírioflordelaranjeiraálbumfoto- para o público, senta-se, abre as minha barriga flácida, minha
grafiavalsacasamento, prometo pernas e simula uma trepada. impotênciaprepotênciaarrogân-
as varizes, a cesariana, os peitos Vem, perfura minha carne lisa ciaignorância. Prometo não te
murchos. Ajoelha-se, começa a siliconada, essas pernas sedo- amar e te insultarcuspirfingir-
debater nas grades da escada. sas, minha pele perfeita, me re- mentirdissimular por todos os
Prometo abrir mão dos meus produz, me introduz um varão dias da minha vida. O que o
sonhos, e frequentemente e re- de raça pura, de primeira linha, homem uniu Deus não separa.
ligiosamente fingir meus orgas- me faz um filho... Sim, eu aceito. Sim, você me aceita.
mos. Eu vou te amar por toda Enfia o véu no ventre.
minha vida. Serei muda. Não
vou pedir nada. Sim, eu aceito.

“sim”
Noiva Esgotada levanta-se e sobe as escadas nova-
mente. Passagem. Noiva Margarina retira seu véu do
ventre simulando o nascimento de um bebê. O véu
retorcido é o bebê. Ela o segura. Rosto de gozo satisfeito. Ela se
levanta e desce as escadas, agora de frente para o público. Sorriso
de propagada de “miss universo”. Desce as escadas de frente para
o público. Polifonia de vozes.
ELA AFUNDA NO SEU ESGOTOCORPO
(Hospedeira, corpos-bactérias instáveis)

Espaço-Laboratório. Tempo presente: decadência, abandono,


2
solidão. Som metálico da ventilação do teto. Hospedeira tem a
aparência de homem, mas assume o ponto de vista feminino.
Ela desce do alto, sustentando o peso em hastes de ferro, prega-
das na parede. Em uma das extremidades do laboratório, estão
duas mesas longas de metal, e, em cima delas, estão dois corpos
cobertos. São as bactérias instáveis. Corpos em decomposição.
NOIVA MARGARINA Uma casa NOIVA ESGOTADA Neste dia
bela, três quartos, arejada, com feliz, mergulharei nas profun- Organismos deteriorados. Em alguns momentos, soam vozes,
dependência de empregada, dezas do esgoto humano, e cantos, vindos dos corpos.
jardim e cão de guarda. Pronta procurarei, através dos artifí-
! para morar. Para o público. cios da ciência, a água limpa e HOSPEDEIRA desce Agora eu sou a sua hospedeira. É o orgulho !
116 ! ! 117
Porque você é o grande amor potável da vingança. A água in- que sustenta essa mulher. Me salva da queda. A hospedeira afunda
da minha vida. Senhores e sen- controlável da minha vingança. no seu esgoto, farejando as bactérias e os excrementos da indús-
horas, por favor, me acompan- Amém. Pode beijar a noiva. triahumana, que ainda sobrevivem no lugarreservatório guardado,
hem, o jantar será servido no Para o público. Por favor, po- procura sua memóriamausoléu. Olha o lugar, procura por vida.
próximo salão. Ela vai agrade- dem acompanhar a mocinha. O tempo de agora é o do presente, e os organismos, que estão
cendo a presença. Obrigada por aqui expostos, estão mortos. Meu corpo é o traço de vida, a carti-
vir, obrigada pela presença. Mui- lagemcartografia do lugar. Atravessa no corredor atrás do públi-
tas felicidades, meus queridos! co. Realiza ações de ligar máquinas, organizar tubos de ensaio,
arrumar objetos no espaço. Espaço de sistema de tratamento
de esgoto por processos anaeróbios. Meu esôfagocano alimenta
os tubos de energiaraiva, com circulação de chorochorume. No
A noiva vai para o fundo, adentrando o segundo ambiente: Es- alto, a caixa d’água, reservatório de porra. Porosorifíciosedifícios,
paço-Laboratório. Ela conduz o público. Faz os seus saltos res- vidrosvenenos. Quem fez o homem? Quem? Leva a geladeira até
soarem no vazio. o centro. Devo falar da criançabactériaresistente. Para se realizar
o experimento nascimento, é necessário tempo
de maturação do espécime. O tempo dentro da
barrigatubodeensaio. Os enjôos, vômito, ciclos
menstruais, azia, excrementos... Parto, abro meu úte-
ro rasgado, casulo lambuzado dos filhos que gerei.
Bactérias fágicas, emocionamente instáveis. Vai até
a criança. Ainda não. Devo falar de mim? Eu quem?
Quem agora? Lava as mãos. Tá frio, aqui. Eu, excre-
mento de mulher, escarro de homem. De quem se
fala quando se fala de mim? Como vive nas ruínas de
teu corpo, mulhermemóriamorta. Mas ela vaivelha
reviver seu passado, acompanhando seus ossosteias
nas paredespeles. Eu e minha viagem marítima, ras-
tro de sangue. Os pedaços do irmão sendo atirados
!
118 !
ao mar... A imagem do pai, recolhendo o corpo do

3
filho esquartejado, meu irmão. E o mar... Revive o
passado. Saiam do mar, meus filhos!!! Mergulha
no tanque, sai da água. A hospedeira infiltra
no esgoto do macho e torna a alma mais potável.
Lembra com saudade. Meu corpo infância acorda
Sobe no tubo de ensaio. Contempla a beleza ao BACTÉRIAS JORRAM DO ÚTERO
redor. Eu, cheiro de terraestrumemolhada, vagi- (Hospedeira, Noiva Aborto, Filhocão, General)
naúmida, orvalhoágua que jorra dos lençóis alve-
jados da claridadedamanhã. Gozo. Olha para o alto. Tempo de Memória: os Nascimentos. Da Noiva Aborto,
Mergulha a mão na terra do tubo de ensaio, para do Filhocão e do General.
o público. Ela, madeira de lei, quase extinta, quase...
Árvore abatida, naturezamorta, ausente de úte- HOSPEDEIRA descobre os corpos-bactérias e direciona-se à fêmea
roviço, perfuradaviolada pela mão do homem. Devo Eu volto ao princípio. O tempo de agora é o da minha memória.
falar de mim? Eu, quem? Desce do tubo de ensaio. Do retorno ao útero. Dou vida às bactérias. Retorno ao início da
minha genealogia. Bactérias movem-se. Comida cozida em minhas
entranhas. Esfriando na hora do jantar? Eu, panela de pressão. Nove NOIVA ABORTO suave, frágil Meu homem nem esperou esfriar
meses cultivando os organismos. Abro meu útero rasgado. E resgato o vestido, meu leito de prazer, e já largou sua semente aqui den-
das bactérias fágicas, emocionalmente instáveis, artificialmente con- tro. Uma coisa viva dentro do meu útero. Horror do parto. Ele
troláveis, os filhos que gerei. já se mexia revoltado nas minhas entranhas. Violenta. Eu não sou
obrigada a te amar. Noiva Aborto para o Filhocão. Gritos. Urros.
Busca o corpo-bactéria da fêmea, envolto em plástico transpa- O menino se agarra à mãe e não quer soltá-la. Essa se desespera.
rente, manchado de vermelho. Desliza-a na bancada branca. Ele cai no chão.. Eu não aguento seu peso, leva este cão daqui!
Retira todo o plástico e analisa o corpo. Nasce. É uma menina. Filho da puta é aquele que não quer nascer... Eu lavo as minhas
mãos, assim como entrego este enjeitado ao mundo do cão.
HOSPEDEIRA Até que no momento exato, mamãe... perfeito, uma
fêmea, cinco dedos em cada mão, coxas bem torneadas, pele lisa, Morde o plásticoplacenta. Passagem para o Espaço-Rua. Filhocão
perfeito... criatura das minhas entranhas. Quem pariu o homem? rasteja. Homens cantam “Mãezinha do céu, eu não sei rezar...”.
Quem pariu quem? Enfia o plásticoplacenta debaixo do seu Noiva Aborto e Filhocão caminham perdidos em volta da gela-
!
vestido, configurando uma barriga. Já vem recheada. Recomeça deira. !
120 ! o ciclo. Leva a menina para debaixo da torneira. Abre-a. Molha ! 121
a sua cabeça. Mergulha. Batiza a criatura. A menina treme de FILHOCÃO O primeiro contato com o chão frio da sarjeta. Fareja
frio. Ela grita de dor. Eu te batizo joanaclaradinastialilithjoanad’a comidaconfortoquentura. Rasteja pelos becos numa procissão,
rcclaradosanjospandora como a fêmea escolhida para procriação e sem velas e rezas, farejando a mãe que o abandonou. Abandonado
reprodução involuntária. As bactérias são os organismos vivos que como animal raivoso, deficiente.
mais têm variações emocionais. Não podemos esperar nada delas. A
mesa póstuma, talheres, copos... Minha oferta, o melhor de mim, o NOIVA ABORTO Devo falar de mim? Uma noiva aborto, que foi
banquete está servido. Prenuncia a vingança. O amor me armava roubada do seu leito de prazer? Eu nasci mulher, eu não nasci pra
as mãos. segurar criança no colo, eu não nasci pra verter leite dos meus
seios e entregá-lo para qualquer um. Ela está perdida, dá voltas
Carrega a menina para a geladeira. Passagem. Menina agora em torno da geladeira - Espaço da Rua. Que lugarbeco é este?
é a Noiva Aborto e Hospedeira, o Filhocão. Noiva Aborto enfia Que rua é esta? Não sabia se ia pra direita ou para a esquerda. Tava
o Filhocão em suas entranhas. Filhocão enfia-se debaixo do seu perdida. Queria voltar para casa, pedir perdão para os pais. O cão
vestidopanobranco. Vai nascer. Noiva Aborto grita. Quer expelir sarnento a ataca. Sai vira-lata! Bicho nojento. Sai cão sarnento, sai
a coisa de si. daqui. Volta pra sarjeta que é o seu lugar. Acha a casa de seus pais.
Quer voltar para casa. Ela abre a porta da casa dos pais e entra. E riu. Esse trânsitofiladebanco congestionado. Não acreditar em falsos
pede que a deixem em paz por um momento. Abre a geladeira. deuses. Porque eu sou frágil e de carne e osso. Sou sua imagem e
Noiva Aborto entra dentro da geladeira. Ela se fecha. Grita dentro semelhança. Eu não sou Filhocão. Filhocão se lança na geladeira-
da geladeira. Me deixa em paz! Me deixa em paz! útero. Ela não se abre. Desiste. É inútil, esta coisa fria, seca, gelada
não me aquece mais. Ator abre a geladeira de uma vez. Barulho
Filhocão quer voltar para o útero da mãe. Avança para a estrondoso. Ela toma meu lugar.
geladeira. Fúria. ATOR/HOSPEDEIRA Ator assume o ponto de vista e o corpo da
Hospedeira.
FILHOCÃO Mãe, abre as portaspernas da sua casaútero! Abre a ATRIZ/PUTINHA DA ZONA A atriz sai de dentro da geladeira e agora
porta dessa escolaigrejahospital para mim! Para o público. Ele tinha é a Putinha da Zona.
culpa de engolir oxigênio. Para a mãe. Não sou carne exposta no
açougue! Eu queria que você me amasse, me amamentasse. HOSPEDEIRA Pouca bunda, pouca carne, pouca estria, pouca celu-
lite... perfume barato.
! Enquanto isso, a Noiva Aborto, de dentro da geladeira, descreve PUTINHA DA ZONA Filho homem é mais difícil de criar. Eu troquei !
122 ! ! 123
uma receita de bolo. Passagem para outra figura. as suas fraldas. Eu curei o seu umbigo. Acorda, homem, seja forte.
Vem nascer para a vida.
NOIVA ABORTO Três xícaras de farinha de trigo, quatro ovos, duas HOSPEDEIRA E você, por que não se levanta? Vem comandar seu
xícaras de açúcar, duas de leite, duas colheres de sopa de mantei- exército! Acorda, homem! Vem conquistar seu território. Depósito
ga, uma colher de café de fermento e quatro colheres de sopa de de porra, bagaço de laranja. Eu já escrevi teus discursos, verborragia
chocolate em pó. Bata bem os ingredientes até formar uma massa de lixo. O Planalto te espera. Se quer ser general, levanta, soldado!
lisa e despeje numa forma untada de margarina e farinha de trigo.
Leve ao forno, por aproximadamente quarenta minutos. Hospedeira vai buscar o corpo do homem e a Putinha da Zona
simultaneamente realiza a mesma ação, só que busca um boneco
Filhocão denuncia a mãe. Dimensão pública. que está na parte inferior da mesa de metal. Hospedeira carrega
o homem em suas costas e a Putinha da Zona carrega o boneco.
FILHOCÃO Eu não sou obrigado a ser o que eu sou: um cão. Ele es- Putinha da Zona repete as palavras da Hospedeira.
colhe descer deste ônibus lotado. Parar esse carroputa que me pa-
PUTINHA DA ZONA/HOSPEDEIRA Filho homem sempre dá mais
trabalho. Quantas vezes eu te gerei? Durante oitenta anos, oitenta
quilos carregados nas minhas costas. Pausa. Quem fez o Homem?

4
Depositam os corpos dentro da geladeira. Hospedeira e Putinha
da Zona fazem o General nascer. Espelho. Duas Medeias.

HOSPEDEIRA Seu hálito, um fedor de cama alheia. Dentro da


minha própria casa!? Levanta, filha. O corpo viçoso, sem rugas.
!
124 ! PUTINHA DA ZONA Elas geralmente são tão solidárias. PORQUE TODA TRAIÇÃO DEVE SER UM ATO PÚBLICO
HOSPEDEIRA Solitárias. (General, Putinha da Zona, Hospedeira)
PUTINHA DA ZONA Hilárias.
Memória da traição. Putinha da Zona leva o General para o
HOSPEDEIRA Otárias. Filha?!... tanque. Ele nasce. Passagem. Hospedeira, ao fundo, próxima às
PUTINHA DA ZONA Ela sabe o que deve fazer. mesas de metal, narra as ações dos dois. Putinha seduz General.
HOSPEDEIRA Todo homem já nasce casado.
PUTINHA DA ZONA Vem, filhinho, tá na hora de nascer... Vem, se-
Dentro da geladeira. Ele é frágil. Estado de corpo perdido, gura a mão da mamãe. Vem que eu te ensino tudo o que você pre-
saco vazio. cisa saber. Entra neste quartinho escuro e você não se arrependerá.
Isso, toma seu lugar no ringue. Olha no olho do adversário. Protege
ATOR/HOSPEDEIRA A Hospedeira vê a Putinha da Zona levar o o rosto. Levanta a guarda. Quero ver seu cruzado de direita. Isso,
General para o tanque. Ela irá iniciá-lo. Batizá-lo. Dentro da sua cruza a direita, cruza a esquerda! Umdoistrêsquatrocincoseissete-
própria casa. oito... Nocaute!!!
HOSPEDEIRA degusta a imagem com sedução Ela estende a mão
para ele. Ela era roliça, lânguida, cruzava as pernas, gazela, calcinha
no rego, sutiã furado, com o bico do seio à mostra. Um jeitinho de
sonsa e dissimulada... propaganda de margarina. Mas sabia como
fazer a manutenção de suas armas. Cuidava bem dele com jeito:
perfumava, lavava, desinfetava, dava apoio e reconhecimento. Vai,
reprodutor! Vem pra mim de A a Z, de zero a dez. Descobre a
traição. Mas não era ela. Não era eu. Era outra. Uma Putinha da
Zona. Ela, mais rodada que fechadura. Foi dentro da minha própria
casa. Agora vejo o filme na minha frente: estão ofegantes, entram
num banheiro fodidofedido, e torcem para que alguém veja e me
denuncie esta cena lamentável. Dimensão Pública. Protesto. Di-
famação. Direciona-se para a plateia. Porque toda traição deve
ser um ato público. Revelada para todo mundo. A traição, pra ser
legitimada, deve deixar o traído humilhado. Exposto. Porque eu !
! 127
sou a protagonista deste filme. Eu olho a cena, olho muito, até gas-
tar minhas pupilas, minhas entranhas de ódio. Eu sinto com todos
os meus suoresporos, minhas ancas de mulher grossa. Mas, sem
mim, eles não traem ninguém. Eles chegam num gozo doloroso. É
a mulher que come o homem!

Elas se aproximam do General. Elas narram.

HOSPEDEIRA Elas sobem suas calças.


PUTINHA DA ZONA Ele, o covarde.
HOSPEDEIRA Ele desce do tanque.

Elas dialogam com General.


PUTINHA DA ZONA Levanta, homem, seu tempo já acabou.
HOSPEDEIRA Bota as calças, meu general!
PUTINHA DA ZONA O Potro já nasce andando.
HOSPEDEIRA Calça as botas! Entra trilha sonora do filme Rock,
o lutador.
PUTINHA DA ZONA Gozado! A natureza é sábia, ela ampara os
animais.
HOSPEDEIRA As pernas bambas do gozo.
GENERAL Na beira do precipício ele desce do ringue amparado
pela sua derrota.
PUTINHA DA ZONA Vai, potrão! Vai ganhar o mundo!
PUTINHA DA ZONA Sua dona vê seu cavalo campeão.
! !
128 ! ! 129
GENERAL Que mulher vai receber em seus braços um fracassado? As mulheres levam o homem até as grades de uma plataforma.
PUTINHA DA ZONA Mais de trinta e três dentes. Ele sobe com dificuldade. Ergue-se, ganha território. Passagem
para o Espaço-Casa.
GENERAL Saco de pancadas.
PUTINHA DA ZONA Duros, rijos, brancos.
GENERAL começa a subir Homem não chora. Lá no alto, o topo
GENERAL Horas de treinamento, musculação. do mundo, o lugar mais alto do pódio, palanque, púlpito, planalto.
PUTINHA DA ZONA Patas largas, casco duro. Pelagem brilhante. Da parte mais alta da escada. De cima ele pode ver em quantas
Pode levar qualquer coisa nas costas. cabeças deseja pisar, contemplar o território da sua conquista,
traçar estratégias e planos. O barulho da água. Pranto das mulheres
GENERAL Proteínas, Ferro, Cálcio, Lipídios. Na testa dele pesa o que deixei para trás, fortalezas que destruí. Na minha testa, pesa o
letreiro “Eu sou um covarde”. Avista uma escada. Medo de dar o letreiro “Eu sou um covarde”. Entra na plataforma. Em voz de co-
primeiro passo. mando. Alça o primeiro lugar. O palanque. Lá em cima, ele é forte!
HOSPEDEIRA Pé direito, pé esquerdo. Homem não chora. Vejo as cabeças dos fracos daqui de cima. Vejo o inimigo que entra
Conquista o mundo, soldado. Quantas medalhas você quer? no quartel! Sabe que lá suas palavras são lei. Tropas, avante!
5
PROGRAMA DE IRMÃOS NAS FUÇAS DA MAMÃE
(Filhocão, Filhopai e Mãe Aborto)
Tempo da família: hábitos, vícios e obsessões. A falta
do pai. A culpa da mãe. A plataforma é a laje da
casa. General faz passagem para Filhopai e Hospe-
deira para Filhocão. Filhocão e Filhopai brincam de
exército. Dimensão pública. Filhocão sobe na laje.
FILHOPAI Soldados, avante! Tropas! Atenção, todos os homens FILHOPAI Ele calçava as botas do pai, o cliente.
devidamente uniformizados em suas posições! FILHOCÃO Ela bate na porta.
FILHOCÃO Sim, senhor! Muda de ideia. Vamos brincar de meni-
no de rua? Dimensão Pública. Extra! Extra! Mulher mata marido Mãe Aborto penetra na cena pela porta do fundo. Esquiva.
a facadas na hora do jantar! Menino cai da laje, empurrado pelo Esquisita. Perdida. No plano baixo, Mãe Aborto arruma a
próprio pai! Criança frita no micro-ondas. casa. Ela instaura a cozinha. Estado de Comissária de Bordo.
FILHOPAI Não! Tenho do meu lado a autoridade soberana. O Organizar a casa e assar a própria carne para oferecer à família.
perigo é claro. Chegamos, enfim, ao tempo das calamidades e con- Esperar o marido, que nunca chega. Pressente a brincadeira dos
taminações. Soldado! Meia volta volver! Preparado para carregar meninos, mas finge não saber. Procura em uma prateleira um
as armas? tubo de película transparente e começa a se embalar para se
assar. Obsessão de que tudo seja saborosíssimo.
FILHOCÃO Sim, capitão.

Os meninos cheiram produto tóxico. Meninos começam o MÃE ABORTO Mãe Aborto penetra na cena.
! !
132 ! “programa de irmãos”. Sacanagem lúdica. FILHOPAI Vem, pode entrar, docinho. ! 133

FILHOCÃO Ela abre a porta e entra no quarto.


FILHOCÃO Vamos brincar de papai e mamãe? Passagem para um MÃE ABORTO O tempo é o da família: a falta do pai. A culpa da mãe.
espaço imaginário dos meninos: bordel, quarto de motel. Os meninos perdidos.
FILHOPAI Quando ficavam sozinhos em casa, os dois subiam no FILHOPAI A boca rosada, pele branquinha, meiga e sensual.
telhado pra brincar de trepar que nem papai e mamãe...
FILHOCÃO Cintura fina, coxa firme, pouca bunda, pouca estria. Ela
FILHOCÃO O menino trepa na laje. se faz de inocente.
FILHOPAI Ele espera ansioso no quarto. MÃE ABORTO A casa estava toda desarrumada. Ela acordou de
FILHOCÃO O menino espera uma prostituta. manhã e já tinha convidados para o almoço. Ela espera o marido
FILHOPAI Os dois se preparavam minuciosamente para o momen- que nunca chega.
to do encontro. FILHOPAI Safada... Ele se aproxima dela, toca sua mão direita e a
FILHOCÃO Ele colocava as roupas da mãe, a puta. conduz pelo corpo dele.
MÃE ABORTO O marido bebeu a noite inteira. Eles dançaram por FILHOCÃO Filho? O que é isso? Querido, o que é isso? Tá nervoso,
horas a fio até ela ficar exausta. é?
FILHOCÃO Não faz assim, que eu sinto cócegas. FILHOPAI Agora é o garoto, que cobra sua grana. Você vai pagar!
MÃE ABORTO Quando ele bebia assim, ficava na cama até o meio- Vou cobrar minha dívida é no dente, veado, filho da puta.
dia. FILHOCÃO O que é isso? O quê? Não gostou do recheio,
FILHOPAI Vem, que eu vou te levar pra cama. Pode ficar deitada, queridinho? Os ovos e a linguiça?
que eu faço tudo. Posso tirar sua camisa? FILHOPAI Você me enganou! Eu não gosto de homem!!
MÃE ABORTO Ela podia fazer tudo sozinha. FILHOCÃO É sempre a mesma cena, vocês fingem não saber, mas
FILHOCÃO Tira. Apaga a luz... eu tenho vergonha. é isso que procuram! Vem, pega. Só tem nós dois aqui. Você gosta,
eu sei que gosta...
FILHOPAI Sem vergonha! Os seios, a barriga. Danadinha, ela...
FILHOPAI Tira a mão! Eu não tô brincando... Parei de brincar com
MÃE ABORTO Tudo no lugar. Isso não está no lugar . Coloca a você.
!
134 !
geladeira no centro do salão. !
! 135
FILHOCÃO Pega aqui.
FILHOCÃO Prepara-se para ser devorada. O meu perfumetempero
aguça o faro do macho. FILHOPAI E assim? Tá gostoso? E se eu apertar mais um pouco!
Ovos estralados, mexidos? Você gosta?
MÃE ABORTO A comida. É preciso preparar a comida. Desejo por
si mesma. Começa a se preparar como uma comida. FILHOCÃO Para. Você está me machucando! Ai!!! Solta! Não estou
mais brincando. Parei de brincar.
FILHOPAI Atiradinha... Apressadinha, ela. A carne tenra, suculenta.
Um banquete servido na cama. Posso tirar sua calça? Tira a calça. FILHOPAI Solta, solta o meu cabelo! Não vou mais brincar.
O que é isso? Que pedaço de carne é esse no meio das suas per- FILHOCÃO Agora eu quero fazer o homem.
nas? FILHOPAI Acabou a brincadeira. Chega. Desce. Sai do meu quarto!
Filhopai percebe que o que ele achava ser uma garota é um MÃE ABORTO Pele tenra, macia. Carne dourada por hora num
travesti. molho de ervas finas. Uma pitada de sal, uma pitada de açúcar para
tirar o azedo. Tudo preparado com muito carinho. Regue a carne
FILHOPAI Veado, filho da puta, sai daqui! com um bom vinho para amaciá-la e leve ao forno. O forno deve
ser pre-aquecido na temperatura de centoevintegraus. Não! Na Os meninos veem a mãe dentro da geladeira e agora brincam de
temperatura de duzentosgraus. Não, mais quente ainda, trezen- matá-la. Falta do pai. Culpa da mãe.
tosessentagraus! Na minha casa ninguém fica com fome. Coloque
a carne para assar por trinta minutos. Não abra o forno antes disso, FILHOPAI Como sempre, parada no meio da cozinha.
senão você estraga tudo.
FILHOCÃO Falta do pai.
Mãe Aborto se fecha na geladeira. Filhocão e Filhopai descem, FILHOPAI Culpa da mãe.
entram na casa. Passagem da brincadeira. Os meninos desco-
FILHOCÃO Pálida.
brem a caixa de ferramentas. Os meninos vão brincar com os
objetos do pai, abrem os armários e remexem nas ferramentas. FILHOPAI Fria.
Essas se transformam em armas. Posicionam-se para atacar. FILHOCÃO Calculista.
Escondem-se atrás das portas dos armários. Expectativa.
FILHOPAI Não me aquece mais.
Brincam de Casamento.
FILHOCÃO Insensível.
! !
136 ! ! 137
FILHOPAI Eu te recebo como minha legítima esposa. FILHOPAI Só pensa em utilidadesfutilidades domésticas.
FILHOCÃO Eu te aceito como meu marido. FILHOCÃO No preço da carne. Miram a Mãe Aborto. Preparam.
Atiram imaginariamente.
FILHOPAI E prometo te amar e respeitar.
FILHOPAI No carnê para pagar. No três: um, dois.
FILHOCÃO Na alegria e na tristeza.
FILHOCÃO Pou-Pou! Te matei mãe!
FILHOPAI Na saúde e na doença.
FILHOPAI Não! No três! Um, dois, três! Pou-pou!
FILHOCÃO Por todos os dias da minha vida.
FILHOCÃO Pou-pou! Te matei! Morre, mãe!
FILHOPAI Até que a morte nos separe!
MÃE ABORTO abre a geladeira Pronto! A comida está pronta! Ao
FILHOCÃO Até que a morte nos separe! O menino rasteja pelo
ponto!
chão da cozinha.
FILHOPAI Ele sobe na estante.
6
MESA PÓSTUMA
(Filhocão, Filhopai e Mãe Aborto)

Memória da vingança da mãe. Atrai as


presas pelo olfato. Manipula os dois como
se fossem cães atraídos pela comida.

MÃE ABORTO A comida está pronta, meus


garotos, vejam que delícia! Dourada. chei-
rosa. Podem sentir o cheiro? não mandei
descer! É para olhar de longe. desçam daí,
agorinha, meus meninoscães! No chão!
Meus cachorrinhos! Vejam como a mamãe
está gostosa. não mandei chegar perto! Vem,
magrelo! Você fica, grandão! Isso, magrelo,
sente o cheiro gostoso da mamãe, lambe,
isso lambe. Agora, você, grandão! Cachor-
rão bobo da mamãe. Meus garotosabortos
podem se servir, se fartar, venham... O jantar
está na mesa! Na minha casa, ninguém fica
com fome!
Ela os obriga a elogiar a comida e pede para
eles dizerem o quanto ela é boa para eles.
Passagem para opressão e violência .
MÃE ABORTO Quem cuida de vocês? Cozi-
nha para vocês? Limpou a bunda de vocês? E
o que mais que eu faço?
MENINOSCÃES Você, mãe! Faz frango assado
no domingo! Encapa meus cadernos e me
ajuda a fazer o Para Casa!

7
NAUFRÁGIO
(Filhocão, Filhopai e Mãe Aborto)

Os meninos querem fugir. A mãe coloca os


meninos dentro da geladeira.

MÃE ABORTO Os meninos começam a es-


corregar do seu colo. O barco da mulher está
afundando. Meus garotos, meus dois abortos,
meus esgotos, estão escorrendo das minhas
entranhas. Quem fez o Homem?
FILHOPAI Eu te recebo como minha legítima esposa. alguma coisa, eu te estouro os miolos, te quebro os dentes. Mulher
FILHOCÃO Eu te aceito como meu marido. seca, imunda, asquerosa. Eu te desprezo, te enjeito, te devolvo ao
mundo do cão. Filhopai vai embora, levando sua mala.
FILHOPAI E prometo te amar e respeitar.
FILHOCÃO para a mãe Terra oca de amor, culpamãe. Puta mãe,
FILHOCÃO Na alegria e na tristeza. puta pátria, que me pariu.
FILHOPAI Na saúde e na doença.
Filhocão se fecha dentro da geladeira, narrando. Ela fica
FILHOCÃO Por todos os dias da minha vida.
sozinha.

8
FILHOPAI Até que a morte nos separe!
FILHOCÃO Até que a morte nos separe! Pode beijar a noiva.
FILHOPAI/ATOR O garoto agora assume o ponto de vista do pai, o ELA JORRA DO SEU ESGOTOCORPO
General que vai botar ordem na zona desta casa! (Mãe Aborto)
!
142 ! Memória da partida do pai. Filhopai assume agora o ponto de Memória do abandono. Abre uma torneira e começa a lavar as !
! 143
vista do General, homem que deixa a mulher. Filhopai fala do pai mãos, nervosamente, murmura, balbucia.
e diz que vai embora. O Filhopai se rebela e decide ir embora. Ele
recolhe suas coisas. Ela não aceita. Discussão. Filhocão narra a MÃE ABORTO Meu orgulho me sustenta, me salva da queda.
discussão da Mãe e do Pai. Quem fez o homem? Antes disso, devo falar de mim? Para o pú-
blico. Quem eu? Quem agora? Que tempo é este? Minha memória?
FILHOCÃO sentado na porta da geladeira Os dois gritavam. Todos Meu presente? Meu esôfagocano alimenta os tubos de energiaraiva.
os dias, meu pai desafiava que ia embora e nunca ia, mas, hoje, ele Porque eu sou a protagonista deste filme. Eu sinto com todos os
tomou o seu lugar. Eu me escondia nos lugares mais improváveis. meus suoresporos, minhas garras, minhas ancas de mulher aban-
donada. Eu parto. Eu tomo o seu lugar. Para o público. Devo falar
MÃE ABORTO Onde é que você pensa que vai? Você não pode me
de quem? De quem se fala quando se fala de mim? A única saída de
abandonar!
uma mulher abandonada é virar puta. Uma autêntica puta da zona.
FILHOPAI Eu parto. Eu não sou ignorante. Eu tenho escolha e a de- Eu parto.
cisão é minha. Eu escolho não acreditar em falsos deuses! Se disser
9 EU VOLTEI PRA ZONA, AGORA É PRA FICAR
(Putinha da Zona, Hospedeira e General)

Passagem. A Mãe Aborto agora é Putinha da Zona. Memória


do resgate da puta. Espaço-Bordel. Ambiente de boteco copo
sujo mal iluminado. Uma música de amor, melhor, de amor
largado, de amor traído. Está em frente a uma porta ima-
ginária.
todo dia. Sente o cheiro do homem que se aproxima, um cheiro
acre e forte.

Enquanto isso, General desce pelas grades do alto, sugerindo en-


trar em um ônibus.

GENERAL Nesse dia, ele entrou no ônibus lotado e se perdeu, como


ninguém. Ele, um joãoninguém. Ele, um lutador, fim de linha. Parou
no centro sujo e penetrou num boteco copo sujo. Bebeu todas pra
tomar coragem. Prepara-se para o primeiro round.
PUTINHA DA ZONA enxerga a porta da zona Rua Guaicurus,
centoeoitentaesete, fundos. Uma porta verde, singela. Ela hesita PUTINHA DA ZONA Ela sentia o cheiro de macho se aproximando
por alguns instantes, tem medo de entrar mais uma vez naquele lu- perto dela. Detrás da porta.
! gar. Ela sobe as escadasgavetas, atravessa a bancada e visualiza GENERAL Entrou no puteiro às cinco da madrugada. Bateu na !
144 ! ! 145
um corredor de um Puteiro. Até que, finalmente... Ela bate o ponto porta. Som de bater de porta.
às oitoecinquentaecinco. Abre-fecha a gaveta e entra. Religiosa-
mente. Na sua frente um corredor interminável, onde ela gosta de PUTINHA DA ZONA A Puta da Zona disse: “Entra, vem, docinho”.
ir num “vai em vem” constante. Entra no corredor, estreito, úmido. GENERAL Ele entrou, constrangido, como na primeira trepa. “Oi,
No fundo do corredor, o seu quarto, o quarto cor de rosa, onde quanto é o serviço?”.
um abajur com uma luz vermelha deixa tudo muito mais pesado
Mergulha no esgoto. O seu corpo se contorce, ela rasteja por esse Do lado oposto, numa cama de metal, o General, deseja levar a
esgoto escuro e pequeno como uma bactéria emocionalmente moça para uma boa vida. Ele abre a mala e retira um ramalhete
instável. Penetra no seu quartinho. Encontra o boneco, que simula de flores de plástico. Entrega as flores para ela, ela recusa. Ele
um cliente. Sai daí, tem outro na sua frente, a sua hora já acabou. pega na mão dela e ela foge, diz que “conversar” é mais caro.
Livra-se do boneco. Deita na cama. Ela deita na cama e espera,
uma longa espera de intermináveis nove meses. E, lá, aguarda os PUTINHA DA ZONA para o público A Putinha da Zona gostava do
clientes. Putinha realiza movimentos sensuais. Ensaiando poses, lugar, não queria ser outra coisa na vida do que puta. Para o Ge-
posições, estratégias do seu ofício. Do sexo, da trepa, da “foda” de neral.
GENERAL Eu quero conversar.

PUTINHA DA ZONA Quinhentos paus, a noite inteira.


Cada beijo de língua custa dez paus.
PUTINHA DA ZONA para o público Ela era uma puta de quali- GENERAL Nós teremos filhos perfeitos saudáveis.
dade, com várias especialidades. Mais rodada que fechadura. HOSPEDEIRA “Chama-se água o que me queima a pele”.
GENERAL Vem, deixa eu te levar dessa vida. Vem, me dá sua mão. GENERAL Com dentes fortes e rijos, com mais de trinta e três
PUTINHA DA ZONA para o General Oral e anal, só com adicional dentes.
e proteção extra! Para o General. Vem, vai, me fode, que nem os HOSPEDEIRA É preciso expelir o tumor, fazer a assepsia e desinfetar...
outros. Fala menos e faz mais, potrão!
GENERAL Lindos, belos e arianos.
GENERAL Eu não quero te foder, eu quero que você goste de
mim. HOSPEDEIRA Vomitar a comida estragada, que um dia foi seu
banquete.
PUTINHA DA ZONA Vem, perfura minha carne lisa siliconada, es-
sas pernas sedosas, minha peleplástico perfeita, me reproduz, me GENERAL Sem problemas de colesterol e depressão.
introduz um varão de raça pura, de primeira linha. Fala menos e HOSPEDEIRA Ela chora a lembrança do pai, o irmão esquartejado.
come mais! Que a janta já tá esfriando, docinho! GENERAL Terão livros didáticos, com bons textos e, sobretudo,
!
148 ! GENERAL Eu quero é te fazer feliz, porque você é o grande amor da com figuras coloridas.
!
! 149
minha vida. E o General vai levar essa mulher perdida, abandonada, HOSPEDEIRA Sua terra, a pátria que traiu por amor a esse
pra casa dele pra fazer dela sua mulher. Dimensão pública. Vejam! homem.
O homem vai salvar a mulher da zona, da lama, da difamação. Você
será a mulher mais feliz do mundo. Eu vou chegar com flores, de to- GENERAL E a nossa empregada terá também filhos, não tão felizes
das as espécies e qualidades. Nós sairemos daqui e atravessaremos quanto os nossos, mas decentes e limpos. Utilitários.
essa praça, e eu lhe comprarei o museu dessa praça. De mármore
branco, que nem essa bancada. Mandarei esculpir sua imagem na Pega o megafone. Vai saindo pela porta do fundo. Voz longínqua.
pedra para toda a eternidade. Abre os armários. Eu te darei os Vai sumindo.
faqueiros importados, de prata e ouro. Abre a torneira. Água limpa,
potável, leite longa vida, longa vida pros filhos, espuma jorrando, GENERAL Todos os anos iremos a uma viagem de férias. Caribeno-
uma banheira de hidromassagem. Eu te darei também a empregada vayorkpequimbangladesh, vou proibir o tsunami, dvdtelaplana,
ideal. A geladeira se abre, e a Hospedeira inicia seu lamento. microondasportátilcomputadorizado. Te comprarei carroimpor-
HOSPEDEIRA Ama teus filhos? O teatro da minha morte. tado, bmwconversível, jipe quatroporquatro...
Entra trilha sonora do filme “Titanic”. Polifonia das vozes da HOSPEDEIRA pega o primeiro NOIVA MARGARINA vai colo-
Putinha da Zona e Hospedeira. vidro de laboratório e vai colo- cando as flores nos vidros espa-
cando os frascos no chão Sobre lhados No dia do casamento,
teu corpo, escrevo agora meu a igreja enfeitada de flores.
PUTINHA DA ZONA Foi quan- HOSPEDEIRA Estamos no
espetáculo. Iansãoxossioxum, Muitas flores! Ela se casará na
do a putinha começou a sonhar tempo de agora, em que minha
ora, ieuieu. Rancor, ira, mágoa, prima-vera. Porque ela crê no
com uma casa limpa, cheirosa, carne é devorada pelos abu-
orgulho, entrega, perda, traição, feminino, no belo, na terra
bem arrumada. Um casamento tres e vermes, vírus, bactérias,
vingança. O teatro da vingança. fértil. Nas flores que, singelas,
perfeito. Uma casa bela, três fungos. Você me chamando
Estamos no dia em que meu mas fortes, nascem da aspereza
quartos, arejada, com depen- de puta, e eu, de meu amor. O
corpo é consumido pelo casa- da vida. Flores brancas, roxas,
dência de empregada, jardim canto nupcial chegou aos meus
mento e pelos tapas na cara. vermelhas. Enfeitando o chão
podado e cão de guarda. Pronta ouvidos, essa árvore não vai
Até que, enfim, chegará o dia que iluminará o dia mais feliz.
para morar. crescer pra cima de mim. Ama
no qual você me abandonará. O dia que ela pacientemente
teus filhos? Quer tê-los nova-
Em cada frasco, minha vingança esperou por toda sua vida.
mente? Feridas e cicatrizes dão

10
!
150 ! Entrega o vestido para a Noiva Sobe numa pequena escada e
um bom veneno.
Margarina. Aí está você, Noiva desce, visualizando a Igreja.
dos sonhos das propagandas Hospedeira coloca o véu nela.
de Margarina. Meu vestido de A noiva tem um baú que ela
noiva, toma como presente compõe com esmero, desde
para suas núpcias. Para o pú- os seus oito anos de idade.
FINALMENTE A HORA DO SIM blico. Quero fazer a noiva em Um enxoval de linho branco,
(Hospedeira, General, Noiva Margarina) tocha nupcial. O amor me arma imaculado. Sua mãe disse que é
as mãos. Vem, filha. Para o Ge- preciso preparar o enxoval, não
Memória e Presente: revivem o casamento e ao mesmo tempo neral. Tens ouvidos para os gri- importa o que aconteça. Desce
renovam os votos. Passagem da Putinha da Zona para Noiva tos? É preciso fechar as portas, da escada e atravessa o salão.
Margarina. Hospedeira dispõe frascos químicos pelo chão, de proibir a entrada do homem. Para o público. Porque você é
forma geométrica. Noiva Margarina coloca em cada frasco flores o grande amor da minha vida.
coloridas: roxas, brancas e rosas. Polifonia.
NOIVA MARGARINA Senhores e senhoras, obrigada por vir,
obrigada pela presença. Ela entra na limusine branca. Entra na
geladeira. Daqui a quinze minutos, ela estará na Igreja e receberá os
cumprimentos. Ela se fecha na geladeira.
HOSPEDEIRA fecha os armários da bancada branca, com fúria
Planta na carne uma selva de facas. Hoje é dia de pagamento. Quem
fez o homem?
GENERAL descendo a escada de ferro. Feliz. Traz flores nas mãos
O homem penetra no esgotocorpo da mulher hospedeira. Veio fin-
car o mastro da sua bandeira no último território a ser conquistado.
Nesta terra, não há exílio para mulher que não respeita a autoridade
do chefe da família. Elas são assim: nada lhes falta se o leito conju-
gal é respeitado, mas se recebem, algum dia, o menor golpe e vão à !
nocaute, elas desprezam os votos de amor. ! 153

HOSPEDEIRA Você conseguiu, chegou até o topo, meu generalse-


nadorpresidentetirano. Veio buscar os mortos ou os vivos?
GENERAL Se eu pudesse ter de outra maneira os filhos, não pre-
cisaria das mulheres, e nós, homens, estaríamos livres dessa praga!
HOSPEDEIRA Nas ruínasescombros de uma tragédia, difícil é
definir quem são os mortos, quem são os vivos.
GENERAL subindo a escada da plataforma É a vida dos meus
filhos que vim salvar! Pedaço da minha carne, semente que fiz ger-
minar e reguei com meus fluidos. Deixei-os sob os seus cuidados,
em conserva, para que um dia pudesse levá-los até a glória das
minhas novas conquistas. Quero tê-los ao meu lado, em meu
palanque. Dividir com eles a vitória, o primeiro lugar do pódio.
HOSPEDEIRA Foi maior o amor que a lucidez. Minha proprie- você não me olhou no olho, prometo de amarrarapertarmorder-
dade é a imagem dos mortos. Chegou tarde, homem da guer- chutarcuspircurrar... Começa uma curra com a geladeira. Te pro-
ra. Os filhos desta pátria já estão mortos. Sempre estiveram. meto a minha velhice, meus cabelos brancos, minha barriga flácida,
GENERAL Mortos? Sempre estiveram. Sim, agora, finalmente re- minha impotênciaprepotênciaarrogânciaignorância... Chega ao
cupero minha razão, perdida no dia em que te trouxe de sua terra gozo. Ah... ah... Sim, eu aceito.
e te instalei nesta casa limpa, solo fértil, em que se plantando tudo HOSPEDEIRA Eu, mãetiaavónetasobrinhalençoldocefátimanossas-
dá, hoje, transformado num enorme reservatório de excrementos, enhoradaconceiçãomariadasgraçasluzluziatrezedemaiodemilnove-
terra cagada. Você, sempre, a traidora da própria pátria. centosestentaeseisprivadaalmoçocaféjantafósforoestrumeperfume-
HOSPEDEIRA para o público Ouviram? Ouviram o grito do propriedadeidolatriadinastiamulher, eu prometo te amar, mesmo
Ipiranga? quando você deixar de te amar. Te ser fiel, mesmo quando você me
trair. Prometo te perdoar todos os dias, quando você atrasar pro
GENERAL Foi este o seu começo. jantar, vou requentar tua comida e tua cama. Abrir minhas pernas
HOSPEDEIRA Puta pátria que nos pariu. “Que símbolo ostentas e enfiar minhas unhas na tua pele. Prometo te passar as roupas
! estrelado”. Covarde. Ela deseja partir a humanidade em duas agora, que você despirá para qualquer vagabunda. E costurá-la quando a !
154 ! ! 155
e se lançar em queda livre. sirigaita rasgar. Prometo também cuidar do teu cheiro de fumo e
perfume barato de mulher. Sim, eu aceito.
GENERAL desce a escada de ferro Ele se lança no mais fundo
poço para resgatar a parte que lhe falta. Os filhos sempre estiveram GENERAL abre a porta da geladeira, lá dentro a noiva morta
mortos. Cinzas das minhas núpcias. Coloca-a nos ombros. Ruínas do incên-
HOSPEDEIRA Mas não posso. Minha morte não tem outro corpo dio final, água que queima a pele. Vagando pelo espaço, sem rumo,
que o teu. É meu homem, ainda sou tua mulher. indo em direção à saída. Ele, comandante sem armas, coronel sem
soldados, lutador sem ringue, perdido. Batalha sem tanques.
GENERAL em cima da geladeira Nas ruínas, escombros de uma
tragédia, difícil é saber quem são os mortos e quem são os vivos. HOSPEDEIRA no alto da plataforma Eu te espero. Paciente-
Abraçando a geladeira. Ele entrega os pontos, renovam os votos. mente. Sentada na cadeira em frente à porta. A porta estará sempre
Começa juramento em polifonia com Hospedeira. Eu, generalani- aberta. E você terá a chave. O meu olhar vai dar uma festa. Eu vou te
malmasculino presidentecoronelcomandantechefedonopatrãofer- amar por toda a minha vida. Na hora em que você chegar.
ropedragáspetróleodinheirobomba prometo te trair na primeira GENERAL Eu, subúrbios, favelas, periferias. Entre escombros e
oportunidade que eu tiver, prometo de chutar o ventre só porque entulhos, eu.
HOSPEDEIRA Nosso amor, um nó molhado. Minhas lágrimas desa-
guando. Eu, esperando noites a fio. Doce, cativa. Sim, eu espero.
Por toda a vida. Com a porta aberta. Grita no tubo de ventilação
do teto e sai. Eu vou te amar...
GENERAL Devo falar de mim? Eu, quem? De quem se fala, quando
se fala de mim? Eu. Quem, agora? Sai. Eu. Eu. Eu, quem?
HOSPEDEIRA volta para cena e declara para o público Estão
esperando o quê?

Podem ir... A porta da rua é serventia da casa.


!
! 157

FIM
Dramaturgia e direção CAMILO LÉLIS,
KELLY CRIFER, LEONARDO LESSA,
RITA MAIA E ROGÉRIO ARAÚJO
Atuação CAMILO LÉLIS, KELLY CRIFER,
LEONARDO LESSA, RITA MAIA E
ROGÉRIO ARAÚJO (2009/2010)
Preparação vocal ANA HADDAD
Preparação corporal LEANDRO ACÁCIO
Cenário e figurinos PAOLO MANDATTI
Iluminação FELIPE COSSE
Trilha sonora RICARDO GARCIA
Produção executiva LUDMILLA RAMALHO
Assistência de produção MARIANA CÂMARA
Realização GRUPO TEATRO INVERTIDO Estreia em Belo Horizonte/ MG,
Financiamento FUNDO ESTADUAL na sede do Grupo Teatro Invertido,
DE CULTURA DE MINAS GERAIS em 1º de outubro de 2009.
Esquecer, eu não esqueço.
Cena 1 . BOATE . MEMORY CLUB

Do lado de fora, o público espera para entrar. Ouve-se uma músi-


ca dançante que anuncia o início do espetáculo. As portas são a-
bertas e os espectadores recebidos por um garçom e uma garçonete
que entregam cartelas de consumação. Do lado de dentro instau-
ra-se um ambiente de boate. Moacir dança e bebe cerveja.

GARÇONETE Boa-noite! Seja bem-vindo. O número da sua identi-


dade, por favor. Aqui está sua cartela de consumação. Divirta-se.
GARÇOM Vamos chegando! Identidade, por favor. Não perca a
cartela. Primeira vez na casa? Se jogue! Hoje vai bombar!
!
! 165
Na cartela de consumação entregue a cada espectador estão lista-
dos os itens: Coca Cola, cachaça, ecstasy, água, sangue, petróleo,
engove, azeitonas pretas, castanha, botox, queijo prato, Jesus,
salaminho, mãe, fritas, mandioca, carne de sol, rins, córneas, an-
algésicos, corações de frango, genitais, cigarro, pai, canelone, Glo-
bo, ravióli, novelas, lasanha, Mc Donald’s, estacionamento, H1N1,
Yves Saint Laurent, Dramin, megabytes. Ao lado de cada item o
valor de R$1,99. O garçom e a garçonete dançam e se dirigem aos
espectadores.

GARÇOM Com licença, alguém vai consumir alguma coisa? Ok, já


anotei. Só um instante que vou trazer o seu pedido.
GARÇONETE Já escolheram? Só um instante que vou trazer o seu
pedido.
Moacir começa uma dança agitada que se transforma em um Cena 3 . CONDUÇÃO
delírio.
Moacir, com uma mala na mão, é surpreendido pela voz que vem
MOACIR Eiaaaaa... Eiaaaaaaa. A espora, a espora... Segura peão... de um megafone. Deslumbrado, ele percorre o espaço cênico bus-
Bebida, cigarro, fumaça, escuro, roda cabeça, cheira e tira a roupa cando caminhos ao redor do público. Babel direciona, comanda
e mete e chupa e baba e delira e enlouquece e esquece. Você viu e o incentiva a seguir em frente.
o Cruzeiro do Sul? Capiau de Merda. A saideira, vomita, varre,
depois esquece, vomita, varre, depois esquece... Esquecer, eu não BABEL Perímetro Urbano. Vermelho: Pare. Amarelo: Atenção.
esqueço. Esquecer, eu não esqueço. Verde: Siga em frente. Cidadão! Você não está vendo a placa? Pare.
Não feche o cruzamento e olhe para os dois lados. Cidadão! Você
não está vendo a placa? Siga em frente. Veja aquele edifício de 40
Cena 2 . APRESENTAÇÃO andares do seu lado esquerdo, aquele megashopping do seu lado
direito...
MOACIR Hã?!
!
! 167
!
166 ! BABEL Ligados no agito da galera! A noite promete e o compro-
misso aqui é com a diversão. Por isso, soltem as amarras e se BABEL Esse é o seu objetivo. Traçar uma linha reta e seguir em
deixem levar. O ritmo é o da batida! Cidade: complexo demográfico frente. Pegue os elevadores e suba as escadas rolantes. Atenção!
formado social e economicamente por importante concentração Animal na Pista. Animal na Pista. Animal na Pista. Para o público. Se-
populacional não agrícola e dada a atividades de caráter mercantil, nhores passageiros, são oito horas e quinze minutos. A prefeitura
industrial, financeiro e cultural. Aço e cimento, quase que só. Mas de Belo Horizonte lhes deseja uma boa viagem!
tal qual uma sereia o seu canto ainda seduz. Vejam aquele sujeito MOACIR Se for, não volta. Se for, não volta. Esquecer eu não
que se encontra no meio da pista. A sua viagem começa neste exato esqueço, porque não sou bicho que muda de pele, nem ár-
momento. RG: 1231234. CPF: 123123412345. Impulsos de medo: vore que descasca. Porra! Desculpa, companheiro, eu tô fa-
1106. Sistemas neuróticos: 36. Horas semanais de catequização lando que é pra aliviar meus pensamento, encurtar a dis-
pela TV: 26. Alegrias, alegriazinhas espontâneas: 2. Senhoras e Se- tância. Aqui no meu interior tem coisa que muda, mas tem
nhores... Bem-vindos à cidade maravilhosa. coisa que num muda. Porque a gente é criado de acordo com os
costume do lugar. Às vezes fica difícil voltar! O mato cresce. A estra-
da de terra vermelha ganha chão preto de asfalto. A gente se perde.
Eu trago comigo minha bagagem, me encontro nas lembrança que
guardo. Meu cheiro tem história.

Moacir abre a mala e dela retira folhas secas e sacos plásticos


que guardam temperos e outras lembranças do interior. Em cada
cheiro, uma lembrança. Tira uma latinha com vick vaporub da
mala, cheira e dá a um espectador para que faça o mesmo.

MOACIR Eu, o menino, sempre com nariz entupido.

Pega um pequeno pote com fumo de rolo, cheira e oferece a outro


espectador.

!
168 ! MOACIR Meu pai.

Retira agora um vidro de perfume e repete as mesmas ações.

MOACIR Das lembranças de mãe, eu guardei um vidro de per-


fume que ela esqueceu em cima da penteadeira. Aos domingo, mãe
me acordava bem cedinho pra gente ir para a missa. Punha eu pra
lavar o rosto. Enquanto eu tomava o café, ela penteava meu cabelo
partindo de lado. Mãe punha um vestido branco bordado de rosa
e renda. Nos pé, uma sandália azul. Sentir o cheiro é quase ver,
quase ter...

A Mãe aparece com uma bacia na cabeça. Dentro dela traz tem-
peros verdes e cebolas.
MÃE A mãe acordava às cinco horas da manhã pra dar conta da e prosear com o povo que vem de fora. Dirige-se a um espectador.
lida... Ela cozinhava bem... Costelinha de porco com mandioca. E Moço... Esse causo vem lá do oco do mundo. Para a Mãe. Rosa,
mandioca que ela mesma arrancava, bem de mansinho, que é pra passa um café pra visita! Volta a falar com o espectador. Ele era
não acordar o chefe da casa. Para o menino. Menino! Vai panhar a sonhador, moço ainda. Queria conhecer a cidade grande, e lá fazer
lenha pra mãe fazer comida! Vai num pé e volta no outro. Para o es- bastante dinheiro. Pois, na primeira oportunidade que teve, arru-
pectador. Frango ao molho pardo nos domingo... Na semana, carne mou seu matulão, arribou num pau de arara e rumou estrada afora
de leitão engordado a meia... A carne é só ferventar e picar bem pi- pra capital. Lá chegando tratou logo de arrumar um cubico pra
cadinho. Daí cê coloca um caldeirão de ferro no fogo, um pouco de ele morar. No dia seguinte já tava empregado. Também, fez de um
gordura e mistura com os tempero verde. Aí, é só jogar os pedaço tudo. Passado aí uma base duns seis... sete anos, ele já tinha juntado
de carne e deixar eles ficar quase frito, depois chia com um pouco uma dinheirama danada. Tava doido pra voltar, comprar um pedaço
d’água e fica lá cozinhando. Então o cheiro começa a subir e invadir de terra e continuar tocando a sua vidinha aqui na roça. Mas era
as narina. Chega a dá água na boca... Vida boa, escorrendo que nem Semana Santa e ele convidou um compadre, seu conterrâneo, pra
as água do rio. Menino brincando na beira da felicidade. Mas é como cear mais ele lá no cubico. Festejar o Sábado de Aleluia.
!
o povo diz: - reinado de criança pobre passa ligeiro. É isso mesmo. !
170 ! A roça e a enxada num dá descanso nenhum. Meu sonho é vê esse A Mãe serve o café. ! 171
minino na cidade grande, pra completar os estudo e ser alguém na
vida. Isso num é coisa só de gente rico, não, filho de fazendeiro. PAI Conforme eu ia falando, o compadre foi cear lá no cubico. Só
Para o menino. Onde suas vista enxergar, seu zói alcança. Ocê pode que ele tinha olho grande. Sabia que o moço sonhador guardava o
ser doutor veterinário, mexer com a criação... Coisa bonita. E num dinheiro bem debaixo do colchão. Então, em plena Semana Santa,
preocupa cum seu pai não, que eu dou meu jeito. ele foi lá na cozinha pegou uma faca, dessas de cortar carne, e deu
MOACIR Mãe, sabia que até hoje eu ainda sinto a mão pesada dele foi sete facada no peito do moço sonhador. E ele ficou lá no chão.
batendo nas minhas costas? Insguinchando sangue, pra tudo quanto é lado. Cidade grande...
Aquilo lá é o inferno! E pronto! Acabou-se a estória! Num tem mais
O Pai entra com um rádio, fumando um cigarro de palha. não!
MOACIR Mas eu ainda tenho uma coisa pra dizer, pai. O boi inva-
PAI O pai era duro e seco, feito o chão desta terra. Tudo que con- diu as terras do fazendeiro. A bala atravessou a perna. Eu falei pro
seguiu arrancar da vida foi dependurado no cabo da enxada. Mas, senhor: eu tomo conta, eu cuido, eu trato dele. Mas o senhor falou
quando a lavoura dava trégua, ele gostava de fazer uma boca de pito que tinha que sacrificar o bicho para vender a carne, porque senão
era prejuízo. O boi era meu amigo, pai. O senhor sempre dizendo Moacir vai em direção a Babel.
que homem não chora, né? Naquele dia, pai, eu chorei.
BABEL Que isso? Avançando o sinal? Sujeito à multa, viu?! Não...
Preciso te conhecer melhor, saber das suas habilidades.
Cena 5 . ENTREVISTA MOACIR Eu nasci no Baixadão, mas fui criado em Santana da Di-
visa, que é município de Diamantina, norte de Minas.
BABEL Um brinde! Álcool ou gasolina? Eu... Sou flex! A roleta BABEL Atenção! Senta! Entrega um copo a ele.
gira. Hoje nós temos os darks, punks, nerds, hippies, skinheads, MOACIR Me entregou uma caneta e pediu pra preencher o for-
pagodeiros, emos, patricinhas, playboys. Sinal da multiplicação. mulário. A mão tremia de medo e ansiedade, mas eu assinei meu
Enxertar verba na construção civil, quadruplicar as ruas e avenidas, nome.
criar os jardins suspensos. Erguei, erguei e multiplicai. Já dizia Jesus
de Nazaré. BABEL Olho no olho. Dente por dente.
! MOACIR Eu já tava quase perdendo a esperança. MOACIR Agradecido.
172 !
!
! 173
BABEL É, deu sorte, eu vou te receber. Você é o... BABEL Vamos ver do que você é capaz. Levanta e tira a roupa.
MOACIR Moacir Ferreira da Silva, 22 anos, solteiro. MOACIR Doença eu não tenho não, fui criado na roça. Sou forte
que nem touro.
BABEL Está nervoso?
BABEL Tira a calça.
MOACIR As mão suava frio, as perna tremia que nem vara verde.
MOACIR Pediu pra ver os documentos... RG M-5647. 229,
BABEL Eu vou te dar um trago pra você relaxar. Também preciso CPF 824.952.036-04.
de combustível.
BABEL Tá bom, tá bom!
MOACIR para um espectador Eu vou te confessar uma coisa,
naquela hora, ele ficou meio encabulado, meio sem graça, ele não MOACIR É que eu sou bom de memória.
sabia falar a língua dela. Então ele se lembrou dos conselhos de BABEL O porte não é dos melhores, mas... Tudo bem. Pelo jeito,
mãe, e dos planos que ela tinha pra ele, quando ele tivesse ali, cara você é meio inexperiente, não é?
a cara com a cidade. Ele tinha que mostrar serviço.
MOACIR Currículo, tenho não. 8ª série. Sei roçar pasto, plantar
feijão, plantar milho. E eu sou bão de ordenha. e deixa lá esguichando o sangue. Pega ela pelos pés e enfia numa
BABEL De você eu espero dedicação, empenho, resistência, freio panela com água fervendo. Depois é só tirar as penas. Vai depe-
ABS, direção elétrica, potência. nando ela. Pena, por pena, a bichinha vai ficando peladinha!! Para
o público. Naquela hora ele percebeu que ela ficou interessada na
MOACIR para um espectador É só ter um pouquinho de paciência mão de obra. Então ele criou coragem e perguntou. Para Babel.
que ele aprende rápido. O que ele quer é uma chance. Para Babel. Tem vaga pra cozinheiro, não tem? Eu sei cozinhar! Se me der uma
Aí eu ponho a mão na massa. Fui criado laçando boi no pasto. Agora chance, eu trabalho dobrado. Dou duro de manhã, tarde e noite.
essa coisa de carteira assinada eu nunca tive não. É minha primeira Tempero tudo com salsinha, cebolinha, pimenta, sal, cebola...
vez.
BABEL Tá bom, tá bom... Qualificação, não tem! Pedigree, não tem!
BABEL É o quê? Primeira vez? Mais uma dose! ISO9000, não tem! Selo do INMETRO... Mas todo mundo merece
MOACIR Ah, minha Sant’Ana, eu não posso perder essa chance! uma chance. Volta amanhã.
Para o público. Foi aí que ele disparou a contar as receitas de co- MOACIR Amanhã, seis horas eu tô aqui pra bater o cartão e fazer o
mida que mãe tinha ensinado. Cada tipo de prato, cada tempero, café pra piãozada.
!
174 !
tim-tim por tim-tim. Para Babel. Pra fazer o feijão, primeiro você !
! 175
soca bem o alho e depois joga na gordura de porco bem quente e BABEL Tudo bem, pode voltar amanhã, mas agora vaza, que a fila
deixa ele lá, até ficar bem douradinho. Depois joga o feijão e afoga, tá grande.
coloca umas folha de louro, uns pedaço de carne. O cheirinho do MOACIR para o público Esse cara passou quase 24 horas numa
alho corre pela casa. Para Babel. E angu de minovo? Conhece? fila pra conseguir aquele emprego. Ser cozinheiro de obra não era
BABEL Angu de quê? bem o que ele tinha sonhado, mas com o tempo ele arrumava coisa
melhor. É como a mãe dele dizia, cê começa de baixo, depois vai
MOACIR Minovo! crescendo, crescendo, crescendo.
BABEL Milho novo! BABEL Ele, aquele que migra: viagens periódicas ou irregulares
MOACIR Agora o meu prato preterido é galinha ao molho pardo! feitas por certas espécies de animais. Esse cara chegou aqui assim:
com a barriga vazia, a cabeça cheia de planos e, na bagagem, um
BABEL Ah... O prato “preterido” é uma galinha! Gosta de uma
bocado de sonhos. Para a capital as coisas confluem.
galinha, é?!
MOACIR Primeiro você corre atrás da galinha no terreiro, pega a
bichinha e segura firme. Passa a faca no pescoço dela, bota o prato
Cena 6 . CANTEIRO DE OBRAS - PARTE 1 BABEL A desapropriação, neste caso, é imprescindível para o in-
teresse público. Decorre de uma situação emergencial! Trata-se do
processo de reconstrução de áreas antigas que precisam de ma-
MOACIR Bom-dia! Bom-dia! Bom trabalho. nutenção e modernização para suplantar o seu uso ou para atender
PEDREIRO Moacir, ô Moacir! Hei! Sabia que nesta esquina tinha a novos usos. É necessário expandir, sempre! A desapropriação é
uma padaria? Era a padaria do Francês. Eu vinha aqui quando cri- feita com prévia e justa indenização em dinheiro.
ança pra comer pão de minuto. E ali na frente tinha um sobradinho
onde morava o alfaiate, Seu Onofre. E bem aqui tinha um pé de
jaca. Era enorme. Era tão grande que o pessoal costumava se reunir
em volta dele pra bater um papinho. Teve um dia, foi demais. Tava Cena 7 . CONVERSA COM O PAI
o Tonhão e o Cebola jogando dama, de repente caiu uma jaca na
cabeça do Tonhão. Moacir conversa com um rádio.

MOACIR Pai, fiz boa viagem, cheguei bem. A rodoviária fala, con-
O som das máquinas aumenta e interrompe a conversa.
! !
176 ! ! 177
versa com as pessoa, moderno. Oh, precisa conhecer escada ro-
lante, elevador... Dá um frio na barriga. Oh, quando o senhor vier
MOACIR É, tem coisa que não entra na minha cabeça. Essa obra, me visitar, eu vou levar o senhor lá no Mirante. De lá a gente avista
por exemplo, tem que passar por aqui? Pra onde essas pessoa vão a cidade inteirinha, e à noite as luzes todas acesas... É lindo, pai. É
depois? lindo. Eu tô me alimentando direito. A comida é que tem sempre o
mesmo gosto. Estudar? Ainda não. Mas eu fui visitar a universidade.
BABEL Para o lugar da emancipação, o homem não se submete
Escuta só, um dia eu ainda vou ser doutor, veterinário. Emprego?
mais aos desígnios, às intempéries da natureza. As cidades crescem
Não. Oh, mas não esquenta, eu já fiz umas entrevista, tô esperando
numa velocidade infinitamente superior e as mudanças atingem
resposta. Calma, pai, com o tempo eu encontro meu lugar.
uma quantidade muito maior de pessoas. É o progresso, necessário,
salutar.
MOACIR se dirigindo ao público Você tá sabendo que vai ter que
deixar sua casa? Se vai ter que sair? Sua família tá sabendo? Aquele
quarteirão todo lá, pra que demolir? Se a obra só vai pegar esta parte
aqui?
Cena 8 . MOTOBOY

MOTOQUEIRO Identidade...
MOACIR M5 647 229.
MOTOQUEIRO Confere.

Entrega uma correspondência a Moacir. Ele abre o envelope e tira


de lá um cartão de crédito.

MOACIR Moacir Ferreira da Silva. Mãe, tá dando certo! Tô virando


gente. Olha o meu cartão de crédito aqui!

Cena 9 . UNIVERSO DA ROÇA

MOACIR A bença, mãe!


MÃE Aonde cê vai, menino?
MOACIR Vou capinar a carniça do feijão.
MÃE Volta aqui.
MOACIR Senhora?
MÃE Num quer ir, num vai.
MOACIR Depois pai vai falar!
MÃE Vai falar nada não, tira essa enxada das costa e vai brincar. Faz
ocê é bem...
PAI Fica adulando esse minino, que ocê vai vê aonde vai dá. Carniça
de feijão... E isso é jeito de falar? Malagradecido. Fala assim porque
nunca passou necessidade. Pois fique sabendo que eu e sua mãe já
passamo fome em tempo de seca. Num caía uma gota de água. As
vaca num dava leite, galinha num botava ovo...
MÃE Mas Deus num dá uma carga maió que a gente num pode
carregar.
PAI Mas, conforme eu tava falando, de repente chegou Semana
Santa e num tinha um isso pra fazer a ceia.
MÃE Aí ocê num sabe a festa que nós fizemo com o pouco que ti-
nha. Cê pricisava de ver seu pai dançando forró mais eu, no terreiro. !
! 181
PAI É... No meio daquela secura, daquela farta de tudo, nós cumeça-
mo a dançar, a rir e agradecer a Deus pela vida.
MOACIR E pai sabia dançar?
PAI E num sei, minino?
MÃE IIhh! Passava as mão nas minha bacia e me jogava pra lá e pra
cá. Cê precisava de vê.
PAI Cê precisava vê no dia seguinte, domingo de Páscoa. Foi ar-
mando uma chuvarada e de repente... Que toró! A plantação foi
ficando verdinha! E o pasto ficou bonito, cheio de gado. E pronto!
Acabou a seca! E acabou a história!
MÃE Foi aí que veio a inundação e foi tanta enchente que matou
os pé de amendoim lá da beira do rio, matô foi tudo!
PAI Mas é a natureza, a gente tem que aprender a trabalhar cum ela. corage e pula. Deixa de bestagem menino, a vida é cheia de sapo.
Vem pegar!
A mãe sai.
O menino pega o “sapo” das mãos da Mãe.
MOACIR Pai! Pai! Olha lá? Tá vendo? Pai, olha só aquela estrela!
PAI Num aponta não sô! Dá berruga. MOACIR Que nojo, ele é geladinho, ai, mãe, tá mexendo, tá me-
xendo, tá vibrando... Das mãos dele surge um aparelho celular.
MOACIR Que nem o marquinho, filho de ti quinzim? Vibrou. Alô, quem é? Jaqueline? De onde eu te conheço, Jaque-
PAI Sabe como que chama aquelas três lá? line? Ah, agora eu tô entendendo. É Moacir Ferreira da Silva. Eu fui
sorteado na promoção? Vantagem? A primeira só paga daqui a 90
MOACIR Mas estrela tem nome?
dias. Sei, eu tô entendendo, mas sabe o quê que é, Jaqueline? Eu já
PAI Mas é claro que tem! tenho o da C&A, da Riachuelo. Ah?! O seu é das Pernambucanas?
MOACIR Mas quem deu? Por que não falou antes? Então manda. Cê tem meu endereço?
! !
182 ! ! 183
PAI Uai, foi Deus. Ah. Aquelas lá em formato de cruz é o cruzeiro do
sul. Serve pra guiar a gente quando tá perdido. Pra lá é norte, aqui
atrás é sul, lá na mata é leste e lá no vale é oeste. Um dia, menino,
cê sai de casa de tardezinha, enfia no meio da mata. Escureceu. Tá Cena 10 . CANTEIRO DE OBRAS - PARTE 2
perdido? É só olhar pro céu que ocê enxerga o caminho de volta pra
casa. Cê intendeu?
CHEFE DE OBRA Falando no celular de novo? E então, rapaz, essa
A mãe entra interrompendo a conversa. comida está pronta?
MOACIR É só um minutinho.
MÃE Menino! Vem vê! Corre aqui, corre! Escuta aqui... CHEFE DE OBRA Atrasado? Eu tenho prazo. Metas a cumprir. Está
MOACIR Mãe, isso é sapo. Dá cobreiro, eu tenho medo. pronto?
MÃE Eita, menino, a gente num pode ter medo das coisa, não. É MOACIR Caprichei. Bom apetite!
como se fosse o rio, cê vê, fica cum medo de entrar, aí ocê cria
Entrega um prato com cimento e brita.
CHEFE DE OBRA É isso que eu vou comer? Você é doido? Eu fico ou sindicato são partes legítimas e poderão denunciar ilegalidades
o dia inteiro tomando sol na cabeça, no meio dessa peãozada burra perante o Tribunal de Contas. A Nação quer mudar. A Nação deve
e é isso que você prepara para eu comer? mudar. A Nação vai mudar. Mudar para vencer! Muda, Brasil!
MOACIR Mai eu pedi o encarregado para comprar tempero, sal-
sinha, cebolinha, louro, coentro. Gengibre, urucum... Coloral! Mas Black out.
pra tempero não tem verba.
MOACIR Eu faço de novo. Desculpa, deve ter cozinhado demais. Eu
CHEFE DE OBRA Na entrevista você falou que sabia cozinhar, rapaz... faço de novo. Eu acrescento uns pedaço de carne...
MOACIR Eu disse que aprendi a cozinhar na roça com minha mãe... CHEFE DE OBRA Cala boca. Cala boca e faz.
E lá, se não tivé tempero, a comida não sai.
MOACIR cantando Tutu Marambá, não venha mais cá...
CHEFE DE OBRA Cala essa boca, infeliz. Fica só resmungando.
Você é pago é para fazer. Analfabeto. Capiau. Quem foi que contra- Voz da Mãe continua a cantiga. A Mãe aparece segurando um
tou essa figura, essa porcaria de mão de obra? Capiau de merda! paletó.
!
184 !
Black out. Surge um rádio no centro da cena de onde se ouve um
trecho do discurso de Proclamação da Constituição Federal de
1988, feito pelo Presidente da Constituinte, Sr. Ulysses Guimarães.

VOZ EM OFF Hoje, cinco de outubro de 1988, no que tange à


Constituição, a Nação mudou. A constituição mudou quando quer
mudar o homem em cidadão e é só cidadão quem ganha justo e
suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, la-
zer quando descansa. Traidor da Constituição é traidor da pátria.
Senhor presidente José Sarney: Vossa Excelência cumpriu exem-
plarmente o compromisso de Tancredo Neves ao convocar a As-
sembléia Nacional Constituinte. A moral é o cerne da Pátria. Não
roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento MÃE cantando
da moral pública. Pela Constituição, os cidadãos são poderosos Não venha mais cá, que a mãe do menino te manda matar. Tutu ma-
e vigilantes agentes da fiscalização. Qualquer cidadão, associação rambá sai de cima do telhado, deixa o menino dormir sossegado...
Mãe e Moacir brincam de toureiro e boi. Ela veste um terno no MOACIR Tô indo embora pai. Vou pra cidade grande, tentá a vida.
filho que resiste. PAI E vai fazer o que lá, minino? Desde que sua mãe foi embora que
ocê fica com esse negócio na cabeça. Tá achando que vai encontrar
MÃE para o público A mãe guardou esse terno durante muitos o quê na cidade?
anos no fundo do guarda-roupa. Ela sonhava em vê o filho já MOACIR Eu não sou mais aquele menino cheirando a leite que não
crescido, homem feito, vestindo essa roupa. sabe o que quer da vida!
MOACIR Não deu tempo. PAI Você não sabe nada da vida, moleque! Num sabe quanto custa
MÃE Onde suas vista enxergar, seus zói alcança. o papel que te limpa a bunda.
MOACIR para o público Ele olhava para o pai, e sentia pena
daquele homem amargo, de mãos calejadas, pele seca e olhar fun-
do. Sabia que não era aquele futuro que queria pra ele.
Cena 11 . PARTIDA RUMO À CIDADE -
DESPEDIDA PAI Já te falei mais de mil vezes, larga mão dessa ideia e vem ganhar
!
186 ! a vida comigo aqui, no roçado. Seu lugar é aqui, na terra. !
! 187
MOACIR Que terra, pai? Esta terra nem é nossa. Meia dúzia de gado,
MOACIR com a mala na mão, para o público Se for, não volta. Se um pasto cheio de carrapato. Futuro no cabo da inxada? Pai, eu não
for, não volta. Meus passos certeiro guiava meu corpo em direção tô feliz aqui. Eu quero estudar. Eu quero ser gente! Quero ser igual
ao ônibus. Mas, na cabeça, a discussão com o pai ecoava. Encontra- esse povo aí, que vem nadar nas cachoeira. Quero falar igual gente,
se com o Pai. A benção, pai! vestir igual gente...

Entrega uma marmita de comida ao Pai. PAI Tá cuspindo no prato que comeu, seu filho de uma égua?
MOACIR O senhor bebeu de novo, né, pai? Depois que mãe foi
PAI Deus te abençoe, meu filho. embora, o senhor danô a fazer isso!

MOACIR Tá cansado? PAI Isso não é da sua conta. Eu bebo quando quiser. Quando eu
bem entender.
PAI Tô nada. A vida é assim mesmo e amanhã tem mais. Pra que
essa mala? Tá carregando esse negócio pra quê? MOACIR Então eu também posso fazer o que eu bem entender.
PAI É isso que você quer? Então vai, Moacir. Vai embora. Mas escuta Cena 12 . NAMORO, CASAMENTO E TRAIÇÃO
o que eu vou te falar. Se for, não volta!
MOACIR para o público Coração na boca, ele não olhô pra trás. MÃE para o público Quando chegava o final de semana, Rosa
PAI para o público E o pai viu o menino sumindo na estrada. num conseguia pregá os zói. E aí, quando dava por fé, o galo já tava
Caminhando forte feito um touro. Um homem feito. Ele sabia que cantando, o boi berrando na beira do curral e ela se aprontando
era a última vez que via o filho. toda, preocupada com uma coisa: que futuro teria se não conse-
MOACIR para o público Eu sentia o cheiro da terra molhada, guisse um marido... É ele chegando... Sempre cheirando a suor da
lembrei do rio, dos biscoito na gamela. Chorei pensando no boi, lavoura.
que foi presente do padrinho. Mas, na cabeça, a discussão com o PAI Cê tá cheirosa, Rosa. Para o público. O pai era um homem sim-
pai ecoava. ples. O que ele queria era ficar por ali mesmo, casar cum uma moça
bunita, ter uma roça. E ter uma Rosa pra eu cuidar todos os dias...
Pai e Moacir se abraçam. MOACIR É sua vez, Rosa!
! !
188 ! ! 189
PAI Espera! Moacir acompanha toda cena com um lampião na mão.

O Pai entrega um radinho de pilha antigo para o filho. MÃE Caí no poço.
PAI Quem te tira?
PAI Vai com Deus, meu filho!
MÃE Meu bem.
MOACIR Mas pai... Recusando o rádio.
PAI Seu bem é esse?
PAI Vai com Deus, meu filho!
MÃE Não.
MOACIR A benção.
PAI É esse?
PAI Deus te abençoe!
MÃE Não.
PAI apontando pra ele mesmo É esse?
MOACIR Mãe? Ô, Mãe? Pai, cadê mãe? Procurei na horta, na lida,
entrei no quarto dela e as roupa num tava lá. Nem o vestido branco,
MÃE É.
nem a sandália azul... Em cima da penteadeira, o vidro de perfume.
MOACIR E PAI O que você quer dele? Pêra, uva, maçã ou salada Para o público. Ele era menino quando a mãe foi embora.
mista?
MÃE Salada mista! Eu tomei banho de erva numa bacia de prata e O Pai entra bebendo cachaça.
coloquei um vestido todo feito de renda. Depois de pronta eu corri
no mato e busquei uma flor de sapucaia pra enfeitar os cabelo.
PAI para o público Naquela noite, ele chegou em casa bem mais
PAI É esse o meu sonho, Rosa. Casa mais eu, minha frô. Agora é tarde. Não quis que Rosa lhe lavasse os pés. Não tomou café e foi se
só nós dois. E nós dois se basta. Num precisa mais nada. Ô, Rosa, deitar. O cheiro no corpo era o da Dama da Noite.
me escuta. Pra onde eu for, eu te levo comigo. E, nunca, nada nesse
MOACIR para o público Ele chegou correndo da escola, lavou
! !
190 ! ! 191
mundo vai atrapalhar o nosso amor.
as mãos e sentou na mesa, esperando o prato de comida e o copo
de limonada. Demorou pra ele perceber que não tinha panela no
O casal se beija. Apenas à luz dos lampiões entra uma mulher que
fogo, não tinha cheiro, cozinha tava fria. Chorou sentado no pé do
agarra o Pai. Moacir e a Mãe observam.
fogão vendo a lenha se transformar em brasa e a brasa em cinza.
PAI Menino, cadê sua mãe? Vai chamar Rosa. Fala com ela que eu
MÃE para o público Naquela noite, ela sentiu as perna bamba,
mandei chamar.
mas criou corage, ergueu a cabeça e caiu no mundo. Quando as
coisa acontece, não adianta esperniar. Ela virou uma cabocla forte,
Moacir sai.
que benze quebranto e bota feitiço. Ela tira o vestido e fica nua.
Aprendi que, nesta vida, cada um é dono de si.
PAI Cadê Rosa? Rosa! Ô, Rosa! Para o público. Da última vez que
Moacir se aproxima com uma bacia cheia de terra e coloca na viram Rosa, ela tava indo lá pros lados do rio. Depois disso, nunca
cabeça da Mãe. Ela passa a terra pelo corpo, como se tomasse mais. Oferece cachaça a um espectador. Quer um gole? Pode
um banho. tomá, é da boa.
Cena 13 . CANTEIRO DA OBRAS - PARTE 3 MOACIR Nem com um animal a gente fala desse jeito. Nem com
um animal. Minha mãe sempre dizia: Cê nasceu pelado, Moacir,
se hoje cê tá vestido, é lucro. Pra mim já deu, tá ouvindo? Tô va-
CHEFE DE OBRA Então, cidadão, está pronto? zando!
Moacir entrega ao Chefe de obra um prato e, dentro dele, um
tijolo.
Cena 14 . BOATE
CHEFE DE OBRA É o melhor que você sabe fazer?
MOACIR Eu caprichei. Babel, Garçom e Garçonete dançam.

!
CHEFE DE OBRA Eu não vou comer isso, não! BABEL Galera, hoje a festa não tem hora para acabar! É para dançar !
192 ! ! 193
MOACIR Já falei que sem tempero não dá! Ocês que fica insistindo a noite inteira! O Michael Jackson morreu, mas a gente está é muito
em comprar essas porcaria enlatada. Depois quer que eu faça mila- vivo!
gre. Isso pra mim é economia burra.
CHEFE DE OBRA Está me chamando de burro? Burro aqui é você. Garçom e Garçonete entregam os pedidos dos espectadores feitos
Capiau de merda! Quer saber? Cansei das suas ladainhas, junta as no início do espetáculo. Em cada prato entregue, cimento e brita.
suas coisas e some daqui! Rua! Moacir começa uma dança agitada que se transforma em um
delírio.
A Garçonete entra.
MOACIR Eiaaaaa... Eiaaaaaaa. A espora, a espora... Segura peão...
GARÇONETE É pra fechar a conta? Bebida, cigarro, fumaça, escuro, roda cabeça, cheira e tira a roupa
e mete e chupa e baba e delira e enlouquece e esquece. Você viu o
CHEFE DE OBRA Não entendeu não, retardado? Junta as suas coi- Cruzeiro do Sul? Capiau de Merda. A saideira, vomita, varre, depois
sas e some, você está demitido! esquece, vomita, varre depois esquece... Esquecer, eu não esqueço.
GARÇONETE Espera, vamos pedi uma saidera... Esquecer, eu não esqueço.

Cena 15 . DESAPROPRIAÇÃO

MULHER Que isso, cara!? Socorro! Ladrão! Alguém faz alguma


BABEL falando em um megafone Eu tenho ordens da justiça para coisa! Polícia!
retirar todos vocês dos seus estabelecimentos e moradias. Peguem
HOMEM Ô, maluco, não tem vergonha não. Assaltar mulher!
silenciosamente seus pertences pessoais e saiam imediatamente.
MOACIR Essa mala é minha!
O público é “convidado” a se levantar dos bancos em que estão HOMEM Sua, o caralho! E esse terno?
assentados. Os atores retiram os bancos e os empilham por todo
! !
194 ! ! 195
MOACIR O terno é meu, minha mãe que me deu.
o espaço da cena.
HOMEM Seu, o caralho! Esse terno é roubado. Conheço tua laia.
Ladrãozinho de merda. Você não tem onde cair morto.
BABEL Saiam sem oferecer resistência. Vocês receberam dinheiro.
Não leram o contrato? Vocês estão atrapalhando o trabalho dos MOACIR É meu...
profissionais competentes. Eu não me responsabilizo por danos HOMEM Tira o terno. Anda logo, mandei tirar.
físicos ou morais. Saiam antes que as máquinas passem por cima! MOACIR Por que cê tá fazendo isso? Por que cê tá fazendo isso?
MOACIR Sujô! Junta suas coisa. Pega suas coisa! Corre! Sujô!
Cruzeiro do Sul?! Que rua é essa? Conhece o abrigo? Abrigo? A Garçonete entre e interrompe.

Uma mulher pega a mala de Moacir.


GARÇONETE Só um instante, galera! Estamos fechando a cozinha,
MOACIR Essa mala é minha! Meus documentos, minha alguém quer consumir mais alguma coisa? Não? Ok!
identidade! HOMEM Seu capiau de merda!
Cena 16 . MALODORE

Moacir veste farrapos que exalam mau cheiro

MOACIR para o público É proibida a prática do delírio neste lugar.


Seu lugar é seu lugar? Seu lugar é meu lugar? Seu lugar! Capiau!
Piau é peixe que dá no Rio Jequitinhonha. O senhor tem um prato
de comida pra mim? Seu cuzinho é meu jantar! Eu planto naftalina
no bueiro porque a boca fede. É que eu venho de uma terra que
se você cospe no chão, nasce. Lá a mandioca num sai né de dentro
da calça, não, ela brota do chão. Dirige-se a um espectador. O se-
nhor tem um trocado? E um cigarrinho? Tá cuspindo no prato que
comeu, seu filho da égua? É proibida a prática do delírio neste lugar.
!
196 !
Eu conheci os verme, carrapato e berne, os daqui esconde atrás
de vidro filmê. Rárárá? Rárárá, róróró, que ela tem é uma só. Uai?
Uai! Uaiti! Dirige-se a um espectador. Posso sentar aqui? Não precisa
ficar com medo não. Roubar eu não vou. Roubar eu não vou.

Cena 17 . RETORNO ÀS ORIGENS

Moacir se despe dos farrapos, entra numa bacia de terra colocada


no centro da cena. Ele se banha com o pó da terra e adormece.
tutu marambá, Não venha mais cá,
MÃE cantando que a mãe do menino te manda matar.
Tutu marambá sai de cima do telhado,
deixa o menino dormir Sossegado...

fim
!
198 !
Dramaturgia RITA MAIA
Atuação CAMILO LÉLIS,KELLY CRIFER E LEONARDO LESSA
Direção ROGERIO ARAÚJO
Cenário GRUPO TEATRO INVERTIDO
Figurinos CAMILA MORENA
Iluminação ROGÉRIO ARAUJO
Trilha sonora ANDRÉ VELOSO
Realização e produção GRUPO TEATRO INVERTIDO
Financiamento RECURSOS DO GRUPO TEATRO INVERTIDO

Estreia em Belo Horizonte, na sede do


Grupo Teatro Invertido, em 22 de abril de 2010.
ar em oito tempos. Vamos juntos, um, dois e três. Inspira e solta
Cena 1 ENTRADA o ar, contando o tempo. Vamos abrir os nossos chácaras! Durante
a condução da dinâmica, se alguém sentir necessidade de falar, re-
latar alguma coisa, por favor, fale. Eu só vou pedir que sejam bem
objetivos. É preciso ir direto ao ponto, sem medo. Certo?! Coragem!!
Vamos entrar por aqui, por favor.
O público recebe uma senha numérica e aguarda numa antes-
O público entra em outro espaço onde existem duas grandes mesas
sala. Após soar uma campainha são recebidos pelo Doutor.
postas, com pratos, talheres e guardanapos para cada espectador.

DOUTOR Boa-noite! Mostra um prato. A senha. Enquanto recolhe DOUTOR Cada um escolha seu lugar à mesa e fique bem à vontade.
as senhas, ele conversa com os espectadores. Que bom ter você Quem quiser sentar nas almofadas, esta é uma proposta mais ori-
entre nós... Muito importante sua presença hoje... Olha, que bom, ental. Perceba esse espaço que você está ocupando. O que ele lhe
! está funcionando... Pergunta a uma pessoa do público. Aquele ra- sugere, que imagens, lembranças são suscitadas neste momento? !
202! ! 203
paz está com você? Ah, você está com ela. Seja muito bem-vindo! Perceba os pratos, os talheres. Olhe para o seu companheiro do
Você será bem acolhido pelo grupo. Não se preocupem, a identi- lado e perceba a comunhão do momento, esse encontro familiar.
dade de ninguém será revelada. Como estão se sentindo hoje? Agora, olhe fixamente para o prato que está à sua frente. A partir
Vocês estão bem? Espera a resposta. Então... Começamos mal. de agora eu vou pedir que você esqueça que eu estou aqui e ouça
Porque, como diria Confúcio: “Não corrigir nossas faltas é o mesmo apenas a minha voz. Olhando para o prato responda para si mesmo:
que cometer novos erros”. Vocês percebem que a mente humana você tem fome de quê? Vá fundo! Busque no fundo da sua alma. O
está em colapso? Mostra a metade um repolho. Uma parte está que te alimenta? Porque, como diria Bacon: “O homem é aquilo que
desesperadamente tentando encontrar a sua outra parte. Mas não sabe”, mas eu digo mais: o homem é aquilo que engole. Portanto,
se preocupem, estamos todos em busca de caminhos e é neles que eu pegunto novamente: Que alimento é esse que satisfaz a sua
vamos encontrar as soluções. Um grande pensador alemão, Goethe, fome? Chegamos ao ponto G da questão: aquilo que trouxe você
nos diz: “Uma vida inútil é uma morte prematura”. Profundo, não?! aqui. Nosso grande Sêneca diria: “É parte da cura o desejo de ser
Para o dia de hoje eu preparei uma dinâmica bem diferente, vou curado”. E eu sei que vocês desejam a cura. Sei que vocês precisam
pedir que vocês descruzem os braços, fiquem bem à vontade. Sem se aliviar. Eu estou aqui para ajudá-los nessa empreitada! Senhoras e
tensões, retenções. Nós vamos respirar profundamente e soltar o senhores, eu lhes apresento o cardápio da noite.
Cena 2 PRATO PRINCIPAL
O Doutor revela, então, um casal. O homem está sentado em
uma privada e tenta desesperadamente evacuar. A mulher está
de frente para outra privada e sofre tentando vomitar.
!
! 205

DOUTOR Senhoras e senhores... O desejo! Mostra a chama do


fogo vindo de um pequeno fogão. Aquilo que alimenta nossas
ambições, nos ofertando um cardápio variado. Eu pergunto aos
se-nhores: aquilo que engolem causa conforto ou desconforto?
Mostra um ovo de galinha.
Cena 3 DIARIO DIET MULHER 1° dia: Picadinho de alface. Estou me
sentindo maravilhosa, bem humorada, light. Uma
leve dorzinha de cabeça, talvez. 2º dia: Enrola-
Uma mulher faz sua ginástica diária ao som de uma música dinho de alface. Continuo me sinto maravilhosa.
dançante. A mulher está diante de uma geladeira, após a ginásti- A cabeça dói um pouquinho mais forte, mas nada
ca, ela come folhas de alface. Enquanto come, fala das impressões que uma aspirina não resolva. 3º dia: Rocambole de
do dia num diário. alface. Essa noite eu acordei no meio da madrugada com
um barulho esquisito. Achei que fosse ladrão. Mas depois de
um tempo percebi que era o meu próprio estômago. Roncando de
dar medo. Yes! 4º dia: Alface ao molho de alface. Estou começando
a odiar. Me sinto irritada. Minha cabeça parece um tambor. Preciso
me controlar, voltar a me concentrar. Comprei uma revista com a
Gisele Bündchen na capa. Minha meta. Não posso perder o foco.
Não posso perder o foco! Volta a fazer a ginástica. 5º dia: Bolinho
de alface. Estou um caco. Não dormi quase nada. E, o pouco que
consegui, sonhei com um pudim de leite condensado, feijão tro-
peiro, mousse de chocolate. 6º dia: Hoje decidi subir na balança.
Emagreci 250 gramas. Só 250 gramas?! Puta que pariu! Eu nunca
estive tão gorda! 7º dia: O dia amanheceu esplêndido! Fui acordada
hoje por um frango assado. Juro! Ele estava na beirada da cama,
dançando cancã. Matei a Gisele Bündchen!! Cortei ela em peda-
cinhos e todas as modelos magérrimas que tinha em casa. Retira
uma caixa da geladeira. Quebra um bloco de gelo para conse-
guir a chave e abre a caixa. Não resiste e acaba comendo toda a
comida que estava na geladeira. Presunto, Suflair, Nutela! Nutela!
Para o público. Meu Deus! Estou gorda! Eu não dei conta. Estou
gorda! Alguém me ajude! Aponta para alguém da plateia. Você,
que é magrinha, me ajude! Estou uma baleia! Socorro!
É
a
m
e
n
t
e
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g
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r
e
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a
l
i
m DOUTOR
e
n A receita é clara, clarís-
t
o. sima. É a mente que digere o
alimento. Para uma vida saudável,
temperos são essenciais. O ministério
da saúde adverte: o remédio servido
em doses cavalares provoca graves
efeitos colaterais. Prepara
uma omelete com o
ovo.
Cena 4 EXECUTIVO APRESSADO
HOMEM sentado na privada, para o público Nesta madrugada
eu não encontrei posição para dormir. De lado, de bruços, nada!
Merda, bosta! Passei a noite em claro, sentindo os movimentos,
as contrações. Eu não aguento mais carregar esse peso dentro
de mim. Eu preciso ficar livre disso. É duro. É muito duro! Toca
um telefone. Merda! Bosta! Eu estava quase conseguindo, merda!
Desiste e se levanta da privada. Atende o telefone. Alô?! Como?
Dona Odete? Sim, senhora. Não, senhora, eu estou quase entregan-
do os relatórios. Claro que sei da minha responsabilidade. Ele pega
um saco de Batatas Chips e come. Ah... Desculpe o mau jeito, Dona
!
210 !
Odete. Estou falando assim porque só agora estou começando a
fazer minha primeira refeição do dia. Como? Não, senhora, isso não
vai atrapalhar. A senhora pode ter certeza de que vou despachar
todos os processos ainda nesta tarde. Não vamos ter problemas
na fundação. Passar bem! Ele toma refrigerante. O telefone toca
novamente.
HOMEM Alô?! Pode transferir. Oi, querida! Não deu tempo de novo.
Não, querida! Não tem nada haver com a sua comida. É só minha DOUTOR fritando uma omelete Percebem a gravidade? Mas vamos
agenda querendo me engolir. O que? Sente dores na barriga. em frente, quero que voltem a seus pratos e se perguntem: Você
Continua. Meu bem, eu preciso desligar, estou atolado de serviço mastiga? Saboreia? Ou você simplesmente engole? Você come e
na repartição. Beijos. Ele tira do paletó uma barra de cereal. bebe aquilo que quer? Aquilo que verdadeiramente gosta? Ou você
O telefone toca mais uma vez. Merda, nem na hora da sobremesa! come às pressas, correndo, sem tempo, como se uma arma estivesse
Alô? Dona Odete? Como? Sim, já terminei. Reunião daqui a cinco apontada para sua cabeça? Afinal, quem aponta essa arma? Mas o
minutos com o presidente?! Sim senhora, estou indo. Merda! mais importante: Você alimenta o corpo ou o espírito? “O perigo e
Sai, sentindo dores na barriga. o prazer andam de mãos dadas.”
Cena 5 CONSULTA MULHER
Entra a Mulher no consultório.
MULHER Com licença, doutor, a senha. Entrega ao doutor uma MULHER Toda noite eu tenho sonhado com vômito. Outro dia eu
senha. Por favor, estou precisando da sua ajuda. sonhei que estava vomitando numa privada que ficava no gramado
DOUTOR Todos nós precisamos! Entre, fique à vontade. Me diga: de um estádio de futebol, lotado. Eu vomitando e toda aquela gente
qual é o seu problema? Quando tudo começou? me olhando e quando terminei as pessoas começaram a me aplaudir
como se eu tivesse feito um gol.
MULHER Tudo começou quando eu não dei conta mais. Mas
eu vou continuar, só preciso de uma ajudinha. Veja isso, minha DOUTOR Esse vômito? Era em pequena, média ou larga escala?
barriga está enorme, gigante, olha! Eu estou gorda, doutor! Preciso MULHER Escala? Não sei doutor! O senhor pode resolver meu
me livrar dessa banha, urgente! problema? Eu preciso ficar igual à Gisele Bündchen!
DOUTOR Conte, conte tudo minha filha, coloque tudo pra fora. DOUTOR É isso! Você precisa colocar tudo para fora! Entrega a
!
214 ! Você se sente gorda? ela um prato, simulando um espelho. Eu quero que você olhe para !
! 215
MULHER Não, doutor, não me sinto gorda, eu estou gorda! Cheia esse espelho. O que você vê?
de colesterol. Gordura trans! Tecido adiposo! Banha! Banha! MULHER Uma mulher gorda!
DOUTOR Opa! Já entendi. Sente-se, minha filha. Me diga: o que DOUTOR O que mais?
você anda comendo? MULHER Uma mulher obesa, um elefante, um hipopótamo! Feia,
MULHER Alface. Quer dizer, outro dia eu comi um pedaço de rejeitada, solitária! Uma baleia, uma baleia!
pão. Mas foi em legítima defesa. Ele me atacava com um pedaço DOUTOR Opa! Respira... Controle! Hummm... Você anda comendo
de salame. alface, não é mesmo?
DOUTOR Humm... Eu acredito em você. Relaxe, fique bem à von- MULHER Eu comi durante sete dias, mas eu não dei conta...
tade. Ajuda a mulher a tirar o casaco. Me conte um pouco mais...
DOUTOR colocando folhas de alface na boca da Mulher Você !
! 217
quer ficar igual à Gisele Bündchen?! Quer fazer uma cirurgia de
lipoaspiração? Colocar um pouco de botox? Aposto que você quer
ficar loura. Tem vários produtos de beleza na sua casa. A perfeição
sempre sonhada. Modelos magras, poderosas, sensuais, perfeitas.
A mulher vomita a alface na privada.
DOUTOR Isso! Coloque isso pra fora! Se liberte! Coloque para fora
aquilo que te menospreza, aquilo que te ridiculariza, aquilo que te
diminui. Você é uma mulher bonita! A partir do momento em que
você se separa da Gisele Bündchen, você se reencontra. Diga para
si mesma: Eu não sou um produto! Eu tenho identidade! Eu sou
livre! A Mulher para de vomitar. E então, como você se sente?!
MULHER Me sinto leve, normal! É uma sensação boa! Você me
salvou! Muito obrigada, doutor! É difícil de descrever, mas me sinto
uma nova mulher. Obrigada! Leve, normal!

!
218 ! A Mulher sai.

DOUTOR Recorro a Descartes: “Não existem métodos fáceis para


resolver problemas difíceis” Chegamos ao ponto crucial da nossa
sessão: Você tem prazer ao cagar? Consegue se libertar das impu-
rezas e dos restos que o organismo não aproveita ou isso pesa em
seu estomago? Em sua mente? Que bosta é essa que você caga, dá
descarga, mas ela não te abandona? Ela fica aí, à sua volta, e, quando
você se dá conta, você está atolado na merda? Eu pergunto: se você
esta fazendo merda, por que continua engolindo? Se você pode
escolher o que comer, então por que continua se servindo desse
alimento que não lhe faz bem? Francamente!
HOMEM Fase? Eu não faço a menor ideia. Mas isso já está me at-
Cena 6 CONSULTA HOMEM rapalhando muito. No trabalho, quando as pessoas estão reunidas
tomando um cafezinho e eu chego perto, elas fogem de mim como
Entra o Homem no consultório, sentindo muitas dores. se eu fosse um monstro.
DOUTOR Qual é a sua ocupação?
HOMEM Com licença... HOMEM Sou funcionário de uma repartição pública...
DOUTOR A senha?! O Homem entrega uma senha. Nossa, mas o DOUTOR Meu Deus! É absurdamente grave! A burocracia empe-
senhor está péssimo! Por favor, se sente. dra tudo! O senhor está gerando uma verdadeira prefeitura dentro
HOMEM Doutor, o meu problema não me permite sentar. É im- de si. Eu não sei se consigo resolver o seu problema! Eu só tenho
possível. mestrado, eu não fiz o doutorado.
! !
220 ! HOMEM Não? ! 221
DOUTOR Tudo bem. Vamos tentar uma posição confortável! Vou te
ajudar. Ponha os pezinhos aqui e se apoie na mesa. Ajuda o homem DOUTOR Não... Vai para debaixo da mesa. Eu estou ainda pen-
a se ajeitar em cima da privada. Isso. Perfeito! Pela sua fisionomia sando na questão... Por favor, sem pressão!
eu percebo que o senhor já sente as contrações? Em qual intervalo
HOMEM Doutor, isso não faz a menor diferença, pelo amor de
de tempo?
Deus, me ajude! As dores são insuportáveis!
HOMEM Eu não consigo precisar.
DOUTOR Eu posso tocar a região?
DOUTOR O senhor tem gases?
HOMEM Tocar? Pode.
HOMEM Tenho. Os da pior espécie. O senhor pode me ajudar?
DOUTOR examinando a cabeça do Homem O senhor consegue
DOUTOR Você consegue se lembrar se tudo começou na fase oral ver o seu cu? Nem com espelhinho? Não consegue ver o seu retro...
ou anal? projetor, não é mesmo? Então, é muito grave! Ele fechou!
HOMEM O quê? Me ajude! Eu não quero morrer dessa forma. É
uma morte muito triste para um homem tão jovem.
DOUTOR Tudo bem, eu acredito no senhor. Deite-se na mesa.
HOMEM Deitar? Mas eu não consigo...
DOUTOR De ladinho, de ladinho é mais gostoso! O homem se dei-
ta na mesa. Relaxe! Vai alimentando o Homem com a omelete que
preparou. Eu quero que o senhor diga para si mesmo. Eu acredito
em mim. Não! Não cuspa as palavras. Saboreie, deguste com prazer.
Eu sou aceito na sociedade. Eu posso ser verdadeiramente feliz!
Aviãozinho?! Eu mereço a vida! Eu sou especial! Eu quero me li-
bertar!
! HOMEM Doutor, as contrações! Elas estão vindo numa inten-
222 !
sidade que nunca tinha sentido antes.
DOUTOR Tá vindo? Ótimo! Solta! Respiração cachorrinho. Decú-
bito dorsal!
HOMEM O quê?
DOUTOR Decúbito boçal! Arria as calças. O Homem tira a calça.
O senhor quer ser livre? Fale mais sobre isso. O Doutor coloca um
desentupidor de vaso na bunda do Homem. Coloque para fora! O
que o senhor quer?
HOMEM Eu quero ser livre! Quero abandonar todos os processos.
Eu não quero mais olhar para a cara da Dona Odete. Sair de férias
com a minha mulher. Melhor, eu vou pedir minha exoneração. Eu
vou abrir o meu próprio negócio. Eu quero a minha liberdade!
Cena 7 SOBREMESA
DOUTOR Eis aí um homem que caga! Chegamos ao momento
mais esperado da nossa sessão. Agora é a vez de vocês. Na extremi-
dade das mesas tem um cesto com um alimento. Eu vou pedir a
O Homem consegue evacuar. quem está mais perto que se sirva, coloque em seu prato o alimento
e passe para o colega. Vamos repartir o pão.
DOUTOR Como o senhor se sente?
HOMEM Doutor, estou me sentindo tão bem, um novo homem. Os espectadores pegam os cestos com pães e servem-se um a um.
Tão leve! Normal! O senhor é o cara! Dá um abraço no Doutor. Há
muito tempo eu não me sentia assim, desde quando minha mãe me DOUTOR Quero que olhem bem para esse alimento que está no
! dava banana com mel amassadinha na boquinha e um copo de leite prato de vocês. Perceba a cor, a textura, consistência. Agora mental- !
224 ! ! 225
rosa... Como era mesmo o nome?! ize tudo de negativo, tudo que é nocivo a sua saúde. Tudo
DOUTOR E HOMEM Quick! De morango! aquilo que te impede de se sentir bem, de sentir o verdadeiro sabor
HOMEM Muito obrigado, doutor! Você é o cara! Vou te ligar pra da vida. Transfira tudo para esse alimento que está em seu prato.
gente marcar um chopinho, um futebol. Obrigado, doutor! Agora quero que vocês façam uma coisa que eu sei que é difícil,
mas que temos de reconhecer que fazemos todos os dias, sem nem
O Homem sai. perceber. Eu quero que comam esse alimento. É difícil, mas comam,
mastiguem bem, engulam com dignidade esse dissabor. Diga para
você, lá no seu íntimo, essa é a última vez que engulo tudo isso.
Muito bem, cada um ao seu tempo, eu vou pedir que se levantem.
Vamos dar as mãos.

Entram o Homem e a Mulher e ficam ao lado do Doutor.


DOUTOR Neste momento, que é de comunhão, em que estamos
dividindo as questões do dia a dia que nos deixam perplexos e
doentes, eu vou pedir que vocês repitam em voz alta essas frases
que vou dizer:
Amanhã quando eu defecar esse pão.
Estarei defecando toda a minha covardia.
Todos os meus medos.
A partir de hoje eu não vou mais engolir as coisas negativas que me
fazem sofrer.
Não vou engolir os sapos que me forçam goela abaixo.
Eu tenho escolha, eu escolho me alimentar melhor.
Eu escolho alimentar o meu espírito!
Muito bem, com esta mesma vibração positiva, nesta mesma sin-
tonia, eu vou dar um viva, bem alto, e gostaria que vocês respon- !
dessem, três vezes, eu disse três vezes, bem forte, para que o uni- ! 227
verso nos ouça.
Eu vou dizer Viva a Vida, e vocês respondam: Viva, Viva, Viva!
Viva a vida!
TODOS Viva, Viva, Viva!!!
DOUTOR Quero agradecer a presença de todos aqui nesta noite.
Quero lembrar que temos outras sessões agendadas. Se você
conhece alguém que necessita dessas palavras, desse encontro,
divulgue, indique. Estou aqui para recebê-los. Obrigado, mais uma
vez, e tenham todos uma boa noite!

FIM
Parcerias

Patrocinadora do Galpão Cine Horto


É com grande satisfação que o selo Edições
CPMT, do Centro de Pesquisa e Memória do
Teatro do Galpão Cine Horto, lança o livro
Cena invertida - dramaturgias em processo,
em parceria com o Grupo Teatro Invertido.
Com essa publicação, o Teatro Invertido traz
à cena uma importante contribuição para o Apoio
fortalecimento da criação dramatúrgica no
contexto do teatro de grupo no Brasil e o
CPMT inaugura as produções em parceria,
na certeza de que este é o caminho para tor-
nar viáveis projetos tão interessantes, porém
reféns do frágil e inconstante panorama da
produção cultural brasileira. Através dessa Realização
iniciativa, o CPMT reafirma seu compro-
misso de fomentar a publicação especiali-
zada em teatro e valorizar a produção dra-
matúrgica mineira.

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