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dramaturgias
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6!
O Grupo Teatro Invertido foi fundado no ano de 2004, com o prin- preparação técnica do ator e criamos o espetáculo “Os Cupins”,
cipal objetivo de dar continuidade à pesquisa-prática em treina- com direção e dramaturgia de Bya Braga a partir do texto “Carta
mento do ator e criação cênica desenvolvida por seus integrantes aos atores”, do francês Valère Novarina. Em 2003, realizamos no
ao longo do curso de graduação em Teatro da UFMG. Desde o GRUPA a criação de Nossa Pequena Mahagonny, com direção de
início de nossa trajetória, buscávamos uma compreensão crítica Lenine Martins e dramaturgia coletiva inspirada no texto Ascensão e
do fazer teatral que pudesse nos levar a um caminho próprio, au- Queda da Cidade de Mahagonny, de Bertolt Brecht. O espetáculo
tônomo. Neste ano de 2010, às vésperas de completar sete anos de estreou no final desse mesmo ano e, em março de 2004, foi fun-
trabalho conjunto, sentimos grande necessidade de refletir sobre dado - por Leonardo Lessa, Rogério Araújo e Rita Maia - o Grupo
esse percurso e, mais ainda, compartilhar com outras pessoas essa Teatro Invertido, que incorporou Nossa Pequena Mahagonny ao
reflexão. Confiamos, então, a um respeitável time de pesquisadores seu repertório.
a tarefa de colocar seu ponto de vista sobre nossa trajetória e nos Foi nesse trabalho, por intermédio e provocação do diretor Lenine
sentimos extremamente felizes por terem aceitado o desafio, o qual Martins, que ocorreu nosso primeiro contato com o processo co-
frutifica neste livro. laborativo de criação teatral. Essa iniciação se deu eminentemente
! Na última década, o teatro da capital mineira passou por grandes no campo da prática e mobilizou nossos interesses artísticos de tal !
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transformações e avanços, dos quais nossos convidados foram forma que esse procedimento criativo passou a orientar todos os
partícipes e, nos dias de hoje, são fundamentais para a formação processos do grupo, como apresentaremos a seguir.
ética, pedagógica e artística de uma nova geração de criadores da Em Nossa Pequena Mahagonny, o desejo dos atores de aprofunda-
qual fazemos parte. Destacamos, dentre essas importantes con- rem a pesquisa em teatro de rua e conceberem uma dramaturgia
quistas, a criação do curso de graduação em Teatro da UFMG, que original inspirada no texto de Brecht foram somados à proposta de
contribuiu de forma definitiva para nossa qualificação profissional e horizontalidade nas relações criativas, apresentada pelo diretor, es-
abriu caminhos para que pudéssemos nos aprimorar tecnicamente tabelecendo-se, assim, os eixos norteadores do trabalho. Descobri-
e viabilizar parcerias. mos como seria essa “nova” dinâmica de criação não-hierarquizada
Foi no interior de um grupo de pesquisa vinculado ao curso que ao longo do próprio processo criativo. Na medida, por exemplo,
iniciamos nossas experimentações coletivas. No ano de 2002, Le- em que a montagem do espetáculo foi se desenvolvendo sem a
onardo Lessa e Rogério Araújo se integraram ao Grupo de Pesqui- presença de um dramaturgo, é que percebemos o quão era impor-
sa-Prática em Atuação - GRUPA, coordenado pela professora Bya tante para uma criação de natureza colaborativa a manutenção do
Braga, do qual Rita Maia, também aluna do curso, era co-fundadora. tripé: atuação, dramaturgia e direção.
Nesse grupo, desenvolvemos intensas investigações no campo da
Nos meses iniciais dos ensaios, contamos com a consultoria dra- turga Pollyana Costa Santos, a equipe de criação de um espetáculo
matúrgica de Reinaldo Maia (Grupo Folias D’Arte/São Paulo) que a ser realizado sob os princípios do processo colaborativo2. Essa ex-
em duas visitas a Belo Horizonte provocou discussões relacionadas, periência agregou à nossa trajetória uma importante contribuição
principalmente, à politização do texto de Brecht e suas correspon- ideológica e sedimentou a colaboração como princípio ético funda-
dências com a atualidade. Dos encontros com Reinaldo surgiu a mental no trabalho do grupo até os dias de hoje.
questão central da dramaturgia do espetáculo: uma transposição Ao longo de nove meses de ensaios, atores, diretor e dramaturga
da Mahagonny - cidade - brechtiana para uma Mahagonny exercitaram os princípios da horizontalidade criativa em busca
- emissora televisiva. A partir daí, o roteiro das cenas foi se da concepção de um espetáculo com dramaturgia original. Sem
construindo de forma improvisada e o material textual que o qualquer material previamente estabelecido, o vazio da sala de
compunha, registrado pelos próprios atores e diretor, sofrendo ensaio foi o ponto de partida para essa criação. As diversas leitu-
transformações a cada novo encontro. Na etapa de conclusão do ras e discussões em torno da colaboração como elemento nortea-
espetáculo, identificamos a necessidade de um olhar distanciado dor das relações criativas no teatro contaminaram a temática das
sobre o material e que pudesse amenizar, do ponto de vista dra- proposições e, consequentemente, do espetáculo gerado. Inicial-
matúrgico, alguns impasses para os quais não tinha havido consen- mente, as provocações se focavam em questões ligadas ao poder
so - elemento que nesse processo foi o principal definidor do que
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permaneceria ou não na dramaturgia do espetáculo. Convidamos,
então, o dramaturgo Guilherme Lessa para a difícil tarefa de, em
pouco mais de um mês, “finalizar” o texto criado para a peça. 1
O Projeto Cena 3x4, realizado nos anos de 2003 a 2005 numa parceria entre o Galpão
Cine Horto (centro cultural do Grupo Galpão) e a Maldita Cia, visava a aprofundar os
Nossa Pequena Mahagonny é, portanto, resultante desse percurso estudos sobre o processo colaborativo de criação teatral. Esse projeto tinha como princi-
tortuoso e cheio de interferências que impregnou dessa mesma pal objetivo a socialização das relações da tríade básica do teatro: direção, dramaturgia e
atuação. Para tanto, o formato estabelecido era a realização de uma criação entre quatro
natureza a própria estrutura do trabalho. Com mais de oitenta novos diretores que dirigiriam quatro grupos de Belo Horizonte na montagem de quatro
apresentações realizadas em oito anos de existência, esse espetácu- peças escritas, durante o processo de criação cênica, por quatro novos dramaturgos. Os
lo está em constante atualização, sendo passível de absorver em sua diretores participantes do Cena 3x4 foram orientados por Antônio Araújo (2003/2004) e
Francisco Medeiros (2005); os dramaturgos, por Luís Alberto de Abreu (2003/2004/2005),
dramaturgia as mais diversas transformações. e Tiche Vianna (2005) ficou responsável pela orientação de atuação. Nos três anos de
existência do projeto, um ciclo contínuo de reflexão e pesquisa gerou oficinas, debates,
No ano de 2004, definimos por verticalizar a pesquisa em criação
encontros com profissionais convidados de outros estados e onze espetáculos que se
colaborativa e, a convite da Maldita Cia. de Investigação Teatral e do apresentaram em teatros convencionais, espaços públicos e alternativos.
Galpão Cine Horto, integramos a segunda edição do Projeto Cena 2
Sistematizados na dissertação de mestrado de Antônio Araújo (Teatro da Vertigem/São
3x4 1. Formamos, então, com o diretor Cristiano Peixoto e a drama- Paulo), que foi orientador do projeto no ano em que o integramos.
e à tolerância, porém foram se transformando até encontrarem na Medéia, relacionando-o com a marginalidade e a exclusão no am-
relação de interdependência entre artista e espectador uma pos- biente urbano. As pesquisas em diversas obras que trataram dessa
sibilidade de fio condutor para a dramaturgia. figura arquetípica e a construção de uma dramaturgia colaborativa
Desse ponto, surgiram inúmeras referências para a materialização aberta às interferências do espaço da encenação, promoveram a
do roteiro, sejam inspirações imagéticas ou influências diretas na criação de um espetáculo-instalação apresentado no interior de
estrutura da encenação. Criamos, então, Lugar Cativo, espetáculo um laboratório abandonado de engenharia sanitária. Esse espaço,
destinado a espaços não convencionais e que realizou sua primeira localizado à Rua Guaicurus (zona de prostituição, marginalidade e
apresentação pública na mostra de conclusão do Cena 3x4 em no- consumo de drogas de Belo Horizonte), abrigou por um período
vembro de 2004. Após essa ocasião, a equipe de criadores optou de quase três anos os ensaios e apresentações do trabalho. O labo-
por retornar à sala de trabalho para mais quatro meses de ensaios, ratório abandonado materializava a morada de Medéia, mulher de-
com o objetivo de reestruturar a dramaturgia do espetáculo. jeto da sociedade. Toda a carga simbólica do espaço cênico e de seu
entorno foi incorporada à dramaturgia do espetáculo a partir dos
Lugar Cativo retornou à cena em agosto de 2005, com uma nova materiais construídos nas experiências de imersão realizadas pela
dramaturgia que incorporava em sua composição percepções ad- equipe no hipercentro da cidade. Medeiazonamorta estreou em
!
12 ! vindas do primeiro contato do trabalho com o espectador. novembro de 2006 numa temporada-laboratório que contou com
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Essa prática, exercitada de maneira intuitiva na criação de Lugar debates entre os criadores e o público após cada sessão. Desses
Cativo, passou a permear os processos criativos seguintes. Talvez encontros, surgiram diversas propostas de alterações no roteiro
pela natureza autoral de nossos trabalhos, uma postura ativa e original do trabalho, experimentadas diretamente na cena a cada
participativa do espectador tem sido elemento fundamental na nova apresentação.
construção dramatúrgica dos espetáculos. Desde então, temos Após realizar uma sequência de três criações colaborativas e somar
buscado criar oportunidades durante nossos processos para que à formação do grupo os atores Camilo Lélis e Kelly Crifer, consta-
os espectadores possam exercer essa participação, seja através de tamos a urgência de um aprofundamento técnico relacionado às
mostras de trabalho, ensaios abertos ou temporadas-laboratório. demais funções que compõem esse processo. Tal necessidade se
Esse último termo foi cunhado durante a criação do terceiro es- sustentava na conclusão de que na criação colaborativa é funda-
petáculo do grupo, Medeiazonamorta, também realizado sob os mental, para que o ator conquiste a condição de criador autônomo,
princípios da criação colaborativa. que ele dialogue com as outras funções que compõem a criação
Ao lado do diretor Amaury Borges e da dramaturga Letícia Andrade, da cena, principalmente a direção e a dramaturgia. Os requisitos
mergulhamos no universo de amor e abandono do mito grego de para essa conquista nos despertou o interesse em experimentar
procedimentos de criação específicos dessas outras áreas para, Nesse processo experimentamos a direção e a dramaturgia de for-
assim, conhecê-las em maior profundidade. Com esse objetivo, ma compartilhada, ou seja, assumimos os cinco atores tais respon-
durante os anos de 2007 e 2008, desenvolvemos o projeto Ator sabilidades, sem centralizá-las em um ou mais integrantes, como
Invertido - cinco sentidos para a construção da cena. Nessa havia sido feito durante a pesquisa. Essa experiência trouxe à tona
pesquisa, nos revezamos ocupando as funções de atuação, direção debates muito produtivos para a compreensão da especificidade de
e dramaturgia em cinco experimentos cênicos, cada um tendo cada um dos campos que compõem a construção do espetáculo.
como tema um dos cinco sentidos humanos. A diretora Cida Fala- O compartilhamento das responsabilidades em uma perspectiva
bella e a dramaturga Nina Caetano orientaram o andamento dos colaborativa, ou seja, que assegure procedimentos específicos da
trabalhos e forneceram o suporte teórico-prático necessário para direção, dramaturgia e atuação, revelou para o grupo a importân-
as criações. Como etapa de conclusão desse projeto, realizamos, cia de se preservar cada um desses territórios no decorrer de um
em fevereiro de 2009, a mostra Experimento 5!NCO, que levou a processo criativo, mesmo que não haja um único responsável por
público as cinco cenas resultantes da pesquisa. sua coordenação.
Motivados pela boa receptividade dos espectadores da mostra, es- Em outubro de 2009, estreamos Proibido Retornar, fruto desse
! pecialmente, em relação à cena Essência - dirigida por Rita Maia intenso percurso de investigação. O espetáculo apresenta para o !
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e com dramaturgia de Leonardo Lessa - e à cena Estado de Coma espectador, através de uma narrativa fragmentada e repleta de sim-
- com direção de Rogério Araújo e dramaturgia de Rita Maia, deci- bolismos, a saga de um retirante do interior que abandona sua terra
dimos dedicar mais tempo de ensaios no desenvolvimento desses natal em busca de oportunidades na cidade grande. O caráter estri-
dois materiais. Em Essência, identificamos uma força temática, tan- tamente autoral e autônomo desse processo na trajetória do grupo
to por sua reverberação afetiva na trajetória pessoal dos integrantes determinou radicalmente a flexibilidade da estrutura dramatúrgica
do grupo, quanto por sua crítica social. Constatamos, porém, fra- do trabalho que, desde o seu primeiro contato com o público nos
gilidades em sua dramaturgia e a necessidade de um maior apro- ensaios abertos, vem sofrendo interferências e alterações.
fundamento para que a cena se configurasse como espetáculo. Já Dando sequência ao planejamento estabelecido, retomamos o tra-
Estado de Coma apresentava uma proposta de encenação definida balho com Estado de Coma, logo após a primeira temporada de
e o encadeamento dramatúrgico coerente com a temática abor- Proibido Retornar. As funções determinadas durante a pesquisa
dada. Frente às características diversas dos dois materiais, optamos foram preservadas, ficando, portanto, a direção do trabalho a cargo
por desenvolver primeiramente aquele que demandaria maior in- de Rogério Araújo e a dramaturgia, de Rita Maia. Em poucos meses
vestimento do grupo. Iniciamos, assim, a criação de nosso quarto de ensaios, pequenos ajustes na encenação e alguns acréscimos tex-
espetáculo Proibido Retornar a partir da cena Essência. tuais foram feitos na estrutura inicial do trabalho. Abordando de
forma bem-humorada a relação do homem contemporâneo com o
sentido do paladar, Estado de Coma desenvolve um jogo irônico
com o espectador, que é convidado a participar de uma sessão te-
rapêutica conduzida por um médico-guru, especialista em nutrição
e autoajuda. O espetáculo estreou em março de 2010 e marcou o
retorno do grupo ao universo da comédia satírica, experimentada
em nosso primeiro trabalho, Nossa Pequena Mahagonny.
Mais do que afirmar certezas ou convicções buscamos, a cada TRAJETORIA DOS ESPETACULOS 2003 - 2010
experiência criativa, descobrir novas provocações e novos ques-
tionamentos. Partilhamos, com o público de nossa cena in- NOSSA PEQUENA MAHAGONNY
vertida, a tentativa constante de nos reinventar coletivamente
2003 2005
como artistas. Nesse encontro, pretendemos unir sensibilidade . Estréia no 11º Simpósio da Socie- . FRINGE - Festival de Teatro de
e senso crítico, gerando um olhar inverso que possa deslocar o dade Internacional Bertolt Brecht, Curitiba/ PR;
! ponto de vista passivo de quem assiste para uma visão ativa de (Berlim/ Alemanha); . Terceira temporada na Casa do Conde !
16 ! . Temporada de estréia no Centro dentro do Circuito OFF de Teatro, ! 17
quem também cria. Desejamos que nosso espectador também se
Cultural da UFMG, (BH/ MG); (BH/MG);
considere autor do espetáculo e possa renovar seu sentido, partin- . Trilha Cultural BDMG,
do de uma interpretação reflexiva e poética da realidade. 2004 (Pará de Minas / MG).
. Segunda temporada no Centro
A você, nosso leitor, também propomos experimentar esse olhar Cultural da UFMG, (BH/ MG); 2007
inverso ao conhecer parte de nosso percurso criativo pelos cami- . Mostra das Profissões da UFMG, . Circulação por praças e parques
nhos de nossas dramaturgias, aqui reunidas. (BH/ MG); de BH / MG;
. Terceira Temporada no Centro . 12º Festival de Inverno de
Cultural da UFMG, (BH/ MG); Congonhas / MG;
. 37º Festival de Inverno da UFMG, . 2º Festival Nacional de Teatro de
(Diamantina/ MG); Juiz de Fora /MG;
. Semana Cultural da PUC Betim/ MG; . Encontro das Artes,
boa viagem! . Diálogos Cênicos, (BH/MG);
. Encontro Nacional dos Estudantes
(Caiapó e Pirapetinga/ MG);
. Cena Aberta da Escola Livre do
de Arte - ENEARTE, (BH/MG); Grupontapé, (Uberlândia / MG);
. Festival de Cultura e Arte do DCE- . Encontro das Artes, (Uberaba / MG).
UFMG, (Belo Horizonte / MG).
2008 2006 2008 . Terceira temporada na sede do
. Festival de Inverno de Itabira/ MG; . Mostra ACT em Ação Compartilhada . Terceira temporada no Centro Grupo Teatro Invertido, (BH/ MG)
. Circulação por escolas da rede do FRINGE - Festival de Teatro de Cultural da UFMG, (BH/ MG). . Temporada de três apresentações
pública estadual pelo Prêmio Cena Curitiba / PR; no Teatro FUNARTE Plínio Marcos
Minas, (BH e Contagem/ MG); . Festival de Inverno da UFOP, 2009 (Brasília/ DF).
. Mostra Estação em Movimento do (Ouro Preto/ MG); . Quarta temporada no Centro
Movimento Teatro de Grupo de MG, . Mostra do projeto Cena 3x4, Cultural da UFMG, (BH/ MG).
(BH/ MG); (Ipatinga/ MG). ESTADO DE COMA
. Abertura do FETO - Festival
Estudantil de Teatro, (BH/ MG). 2007 PROIBIDO RETORNAR 2009
. 20º Inverno Cultural de . Pré-estréia no projeto Quarta Doze
2009 São João Del Rei/ MG; 2009 e Trinta em Comemoração aos 10
. Festival de Inverno de Itaguara/ MG; . 2º Festival de Inverno de . Temporada de estréia na sede do anos do Curso de Teatro da UFMG,
. Festival de Inverno de Itapecerica/ Ouro Branco/ MG; Grupo Teatro Invertido, (BH/ MG) (BH/ MG);
MG. . 12º Festival de Inverno . Prêmio Usiminas-SINPARC 2009:
de Congonhas/ MG; vencedor na categoria “Melhor texto 2010
2010 . Festival de Inverno de Catas Altas/ inédito” e indicado na categoria . Temporada de estréia na sede do
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18 ! . Mostra Teatro para Ver de Perto MG. “Melhor Ator - Camilo Lélis”, Grupo Teatro Invertido, (BH/ MG);
!
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do FRINGE - Festival de Teatro de . Prêmio SESC-SATED 2009: indicado . Mostra Teatro para Ver de Perto
Curitiba/ Paraná. nas categorias “Melhor Atriz - Kelly do FRINGE - Festival de Teatro de
. Temporada de três apresentações no MEDEIAZONAMORTA Crifer” e “Melhor Ator - Camilo Lélis”. Curitiba / PR;
Teatro Plínio Marcos (Brasília-DF) . Temporada de três apresentações
2006 2010 no Teatro FUNARTE Plínio Marcos
LUGAR CATIVO . Temporada de estréia no Centro . Segunda temporada na sede do (Brasília/ DF).
Cultural da UFMG, (BH/ MG). Grupo Teatro Invertido dentro do 4º
2004 . Prêmio Usiminas-SINPARC 2006: VerãoArteContemporânea, (BH/ MG);
. Temporada de estréia na Mostra indicado nas categorias “Melhor Ator - . Mostra Teatro para Ver de Perto
do projeto Cena 3x4 no Camilo Lélis”, “Melhor Diretor -Amaury do FRINGE - Festival de Teatro de
Galpão Cine Horto, (BH/ MG). Borges” e “Melhor Espetáculo”; Curitiba/ PR;
. Festival de Inverno da UFOP
2005 2007 (Ouro Preto/MG)
. 38º Festival de Inverno de . Segunda temporada no Centro . Temporada de duas apresentações no
Diamantina/ MG; Cultural da UFMG dentro do 2º TEUNI - Teatro Experimental da UFPR
. Segunda temporada no VerãoArteContemporânea, (BH/ MG). (Curitiba/ PR);
Galpão Cine Horto, (BH/ MG).
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20 !
LEOCÁDIA BIGBONI
MOISÉS TRINDADE
Personagens WILLIAM ROBERTO
PAULO DA LASCA
GENNY SMITH
Livremente inspirado na obra
“Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny”,
de BERTOLT BRECHT
POLICIAL Hello. Captain? Yes, I’m here. What? Repeat, please, cap- Cena 2 Mahagonny:
tain. An emergency? Oh, god! Ok… I’m going to speak to the peo- Entertainment and Television
ple. Vai até a plateia. Everybody, attention please. An emergency
is happening in this place. Please, we need evacuate this area, now.
Vê que ninguém ou que poucas pessoas se mexem. What’s hap- MOISÉS Não se deixe alarmar pelo caos urbano. Fuja da guerrilha
pening? Hey! I’m not an actor, ok? This is reality! It’s true! Emer- que assola as grandes cidades. Olá! Eu sou Moisés Trindade e está
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24 ! gency!!! Danger!!! Vai até um homem. Sir, please, go to your home entrando no ar: a nossa pequena Mahagonny! !
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now, ok? Evacuate this area! Move, man. Move! Move! First children
and women. Recebe um aviso pelo rádio. What, Captain? One ter- Canção para instaurar o Programa Mahagonny enquanto
rorist is here? Where? Aponta a arma para a pessoa. Stop, man! apresentador tira a roupa da cena anterior.
Don’t move, ok? Don’t smile, look to the floor. Recebe um aviso
pelo rádio e se comunica com o capitão. Yes, captain. No. No. TODOS CANTAM
Para o suspeito: Sorry. OK, I must go. Dá uma cambalhota no Nós escolhemos a felicidade
chão e entra no espaço cênico como se estivesse entrando em um o lado da festa e do amor,
edifício. Faz algumas evoluções pelo espaço, se relaciona com nós escolhemos a liberdade,
os outros atores, recebe chamado pelo rádio, mas não consegue que só Mahagonny pode dar.
ouvir: Captain! Captain! Repeat, please!!! Pede para que a música Vem pra Mahagonny,
pare: Stop! Falando pelo rádio: Captain! Yes, I’m here in ( fala o Você foi escolhido,
nome da cidade). It’s a beautiful city. Ok, captain, I go! Vê uma Realize seus desejos,
porta imaginária, bate três vezes: Open this door now! The po- Aqui tudo é permitido!
lice is here. Ninguém abre. Three seconds for you, ok? One, two, Mahagonny, meu amor...
MOISÉS E WILLIAM Mahagonny.
GENNY Entertainment and Television.
TODOS ...birthday Mahagonny LEOCÁDIA O seu lugar é ao nosso lado! Aqui você manda! Você
Happy birthday to you. não vai perder esta chance, vai? Então, não saia daí. O futuro já
Parabéns pra você começou!!!
Nesta data querida
Muitas felicidades William toca bateria acompanhando Moisés e Leocádia num rap.
Muitos anos de vida.
MOISÉS Parabéns, Mahagonny! Atenção, senhoras e... senhores!!! MOISÉS É! Você… Você que está descontente. Você que está an-
Esta é Genny, uma artista completa: atriz, cantora, modelo e gustiado. Você que não tem amantes. Você, assalariado!
manequim. LEOCÁDIA Nenhum vício? Isso não é vida!
GENNY Eu estou ansiosa por sua ligação, ligue, se entregue. Além MOISÉS Mahagonny dá mais vida a tudo!
de falar pessoalmente comigo, você concorre a um milhão. E lem-
LEOCÁDIA Emoção pra valer.
bre-se: quanto mais você ligar, mais chance você tem de ganhar!
MOISÉS Mahagonny dá mais vida a tudo!
LEOCÁDIA Energia que dá gosto! MOISÉS Ligue!
MOISÉS Mahagonny. LEOCÁDIA Experimenta!
TODOS Isso é que é! MOISÉS E LEOCÁDIA Ligue-se agora!
LEOCÁDIA Nesse momento eu peço a todos aqueles que foram to-
cados pela nossa palavra que peguem o seu telefone, que peguem Moisés e Leocádia saem e surge Genny sobre a cadeira atrás do
o seu celular. É a tecnologia a nosso serviço! Ligue, liberte-se dessa cenário.
vida medíocre. Ao ligar, você vai ouvir uma palavra de carinho, uma
palavra de conforto. Eu sei, você é pobre, feio, ignorante, mas nós
amamos vocês. Então: ostente seus valores e seja... Cena 3 Paulo da Lasca:
O homem do milhão!
MOISÉS E seja…
TODOS E seja um grande astro em Mahagonny!
MOISÉS É! Você… GENNY Ladies and Gentlemen, welcome to Mahagony TV Show.
!
30 ! Stay with us and you’ll certainly win a lot of money! Good night, !
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LEOCÁDIA Você que está descontente. people! Senhoras e senhores, com muito amor, o meu boa noite!
MOISÉS Você que está angustiado. And now, I am going to announce the winner of the prize “win one
LEOCÁDIA Você que não tem amantes. million in Mahagonny”. So, if you’re listening to the Programme, call
us now! Don’t waste time! Call us now and win one million in Ma-
MOISÉS Você, assalariado! hagonny! Vou anunciar, agora, o número do vencedor da promoção
MOISÉS E LEOCÁDIA Ligue, ligue-se agora! “ganhe um milhão em Mahagonny”! Escuta o ponto eletrônico. And
the prize goes to the number, e o vencedor é: number, 171, 171,
MOISÉS Prepare-se para a conexão! Muitos são os chamados e
171! One, seven, one. Número 171. Lets go, people! Oh my God!
poucos os escolhidos!
Look at your papers. Quem aí é 171? Aguarda alguém na plateia se
TODOS Ligue, ligue-se agora! manifestar. Quem ganhou? Pausa e Genny recebe uma mensagem
no ponto eletrônico. One moment, please, tenho aqui a informação
A percussão acelera, Leocádia e Moisés cantam “Ligue-se agora!” de que o vencedor é o senhor... Paulo... Paulo! Senhor Paulo, Paulo,
e dançam enlouquecidamente. A música termina. cadê o Sr. Paulo!? Para o público. Please, again, what? What? Alasca,
Da lasca, Da lasca! PAULO! PAULO DA LASCA!
PAULO Sou eu! Eu sou Paulo da Lasca. Ganhei um milhão! Um
milhão?! Um milhão é muito dinheiro... O que eu faço com tanto
dinheiro, por onde eu começo?! Vou poder comprar uma televisão
tela plana 50 polegadas, um ipod, um celular que tira fotos... Eu
ganhei! Ganhei! Ganheiiiiiiiiiiii! Deus, obrigado!
WILLIAM É isso aí, man!!!! Você mandou bem demais, cara. Você PAULO Regras?!! Mas que regras?
é um vencedor, um campeão. Paulo... Não! Paul! Paul da Lasca, o
homem do milhão. E eu sou William, seu amigo. Daqui pra frente WILLIAM Regra número 1.
eu vou te levar pra conhecer toda a programação de Mahagonny. LEOCÁDIA Não é permitido sair de Mahagonny sem gastar seu
um milhão.
William, após abraçar Paulo, o lança para Leocádia. PAUL Não posso levar nada?
WILLIAM Regra número 2.
LEOCÁDIA Paul, Paul, Paul, você é um show! Eu sou Leocádia Big-
Boni, uma serva do senhor. Preparado para renascer em Mahagon- LEOCÁDIA Não pode comprar fiado, deixar na pendura ou pôr na
!
34 ! ny? Aproxima–se e coloca uma gravata vermelha em Paul. É só conta. Principalmente, não pode dar calote! !
! 35
pedir que eu aplico, terceirizo, especulo, intermedio, agencio... PAULO Mas eu não vou dar calote.
WILLIAM E lembre-se: a sua vida depende disso!
Entra Moisés.
PAULO Como assim minha vida depende...
MOISÉS Paul!
Moisés reaparece com uma mala de dinheiro
PAULO Moisés Trindade? Eu sou seu fã! Você não tem noção! Não
acredito que estou na sua frente. Assisto a todos os programas:
“Curtindo a Madrugada”, “Salvação ao Anoitecer”. Você não ima- MOISÉS Paul, aqui está o seu... milhão! Entrega a mala para Paul.
gina! Eu sei tudo sobre você...
PAULO Um milhão... não acredito... Um milhão.
LEOCÁDIA Paul? Congelam numa pose para uma foto juntos.
MOISÉS Acredite, meu amigo, aqui a semana tem sete dias de festa!
MOISÉS Antes de o senhor receber o seu milhão, Senhor Paul, por Seja bem-vindo à Nossa Pequena Mahagonny! Uêpa!!!
Cena 5
O Carnaval dos Prazeres
GENNY Paul!
PAULO Genny, Genny... Retira a echarpe dos olhos.
Paulo vê o pó e começa a cheirá–lo como se farejasse Genny. PAULO Topo! Aposto todo meu milhão! Aposto tudo que está aqui
Começa a gargalhar sem parar, extremamente eufórico. dentro!
WILLIAM É isso aí, senhoras e senhoras, este é Paul, o homem mais
PAULO Calma e harmonia? Isso aqui não existe! Furacões? Isso, corajoso de toda a Mahagonny. Ele aposta todo o seu dinheiro, ele
sim, existe. O homem é assim mesmo. Ele precisa destruir tudo. O continua no jogo!!!
que é a fúria de um furacão comparada ao homem quando quer se LEOCÁDIA Façam suas apostas!
divertir? Aqui tudo é permitido! Aqui tudo é permitido!
TODOS Façam suas apostas!
Paulo abre a mala e lança todo o dinheiro que recebeu para o
alto. Cai no chão, delirando. Entram William e Genny. Entra Moisés, como árbitro da luta.
WILLIAM Uma oportunidade única e imperdível. Leocádia narra a luta como um jogo de futebol. Paulo cheira
PAULO Qual? freneticamente até que o pó acaba.
WILLIAM Você quer dobrar o seu milhão?
LEOCÁDIA Começa a partida, senhoras e senhores. Os adversários
GENNY Dobrar o seu milhão, Paul!!!!
começam medindo olhares. Da Lasca começa o confronto dando
PAULO Claro! um cruzado de direita. Pópôpó sentiu o baque. Os adversários
WILLIAM Mas pra isso você tem que apostar todo o seu dinheiro e parecem estar preparados tecnicamente para a luta. Da Lasca deu
vencer uma luta. Topa ou não topa!!!? um direto de esquerda. E outro cruzado de direita. Pópôpó vai ter
que voltar com tudo, pois Paulo da Lasca sai com uma boa vanta- Moisés sai e deixa Paulo caído no chão. Entra William e levanta
gem nesta luta. Paulo.
Soa a campainha. WILLIAM Olha lá, rapaz, faltava pouco. Te falei. E agora, o que vai
fazer? Tá sem dinheiro, sem nada. Frouxo! Fracote! Perdeu um
MOISÉS Fim do primeiro round. milhão...
WILLIAM É isso aí, Mano Paul. Mandou bem demais, campeão. PAULO Chega! A minha cabeça vai explodir.
Ainda faltam cem gramas. Não deixa ele te pegar. Seu dinheiro está WILLIAM Qualé, Paul?
em jogo. Encara ele. PAULO O meu nome é Paulo. Paulo da Lasca! E eu vou embora
MOISÉS Combatentes a postos?! Segundo round! deste lugar.
! Soa a campainha. Paulo cheira mais, começa a desfalecer. Moisés Paulo pega a mala e vai saindo. !
44 ! ! 45
faz com que Paulo pare de cheirar.
WILLIAM Regra número 1.
MOISÉS Fim do segundo round. Para Paulo. Separa, separa. LEOCÁDIA Não pode sair de Mahagonny sem gastar todo o seu
WILLIAM Não bambeia, meu chapa. Encara o adversário. Pensa na milhão.
grana, rapaz. Vai com a direita. Quer esse dinheiro? Então fala: esse PAULO Não seja por isso. Eu devolvo!
milhão é meu! Faltam só cinquenta gramas.
MOISÉS Combatentes a postos! Terceiro round! Paulo entrega a mala para Leocádia.
Soa a campainha. Paulo está muito excitado e cheira cada vez LEOCÁDIA E quanto à sua aposta, meu bem? Cadê o dinheiro?
mais, até que ele convulsiona e perde o equilíbrio. PAULO O dinheiro está aí.
MOISÉS Vamos! Um, dois, três... sete, oito, nove, dez. Nocaute!!! LEOCÁDIA Dinheiro: que palavra maravilhosa. Abre a mala e vê
que está vazia. Ah!!! Você quer me dar o calote?
PAULO Não! De jeito nenhum! PAULO Sim.
WILLIAM Vamos, Paulo, procura no bolso de trás. GENNY Fugir de quem? Pra onde?
GENNY É, Paulo, procura. PAULO Pra qualquer lugar, só me tira daqui.
PAULO Eu pago. Deixo cheque, cartão, promissória, qualquer coi- GENNY Sabe, Paul, tem uma coisa que eu nunca esqueci. Um
sa, mas eu pago. amigo toda noite me dizia: “O amor é tudo que existe, mas amanhã
WILLIAM Regra número 2. é outro dia.” Pay attention, Paul, o amor é um sonho oco, cada dia
te gasta um pouco. O tempo passa, o corpo fica um lixo. E eu não
LEOCÁDIA Não é permitido comprar fiado, deixar na pendura ou vou acabar no lixo.
pôr na conta. E principalmente...
PAULO Do que você está falando? Você já é lixo!!! Vai embora! Eu
WILLIAM E LEOCÁDIA ...não pode dar calote! não preciso de você!
WILLIAM pegando o controle remoto de Paulo Você sabe o que GENNY Mas nós precisamos! Porque o show não pode parar!!!
isto significa? Meu caro, a sua hora chegou.
!
46 ! PAULO Me solta! Me tira daqui, me solta! Alguém me ajuda! Genny sai. !
! 47
Cena 8 Sozinho na Prisão WILLIAM Senhoras e senhores, aqui está um cidadão que não
paga consumação. Crime. Loucura. Perversão. E o mais grave: sem
tostão! Eu, William Roberto, farei a cobertura exclusiva do
PAULO Me tirem daqui. O que está acontecendo?
julgamento deste criminoso.
GENNY Hello, Paul!!!!
PAULO Julgamento?
PAULO Genny, eu posso contar com você? Vamos fugir!
WILLIAM Sim. Paulo da Lasca está sendo acusado de ter cometido
GENNY Fugir?! dois crimes hediondos. Ele violentou, violou uma jovem donzela
indefesa. E o mais grave, apostou e não pagou. Calote, calote em MOISÉS Dessa forma, convoco a segunda vítima do réu para depor.
Mahagonny, senhoras e senhores! E vejam, neste momento está WILLIAM É chegado o momento que todos esperávamos. O de-
adentrando o tribunal, o Meretríssimo Senhor Juiz. Vamos ouvir o poimento da segunda vítima, a produtora de Mahagonny, Leocádia
que ele tem a dizer sobre este caso. Big Boni.
Entra Moisés, usando beca e peruca de juiz. PAULO A porca madame não pode.
MOISÉS Silêncio no tribunal!
MOISÉS Inicio este julgamento convocando a primeira vítima do LEOCÁDIA Meretríssimo, é muito difícil para mim. Jamais, em toda
réu para depor. minha vida, pensei que fosse viver um constrangimento desse. O
Senhor Paulo da Lasca mal colocou os pés em Mahagonny e vio-
Entra Genny com uniforme de colegial. lou sem pudor as leis do sentimento humano. Eu fui humilhada,
eu fui ultrajada. Eu fui sacaneada por este larápio. A justiça clama
WILLIAM Exclusivo e ao vivo o depoimento da primeira vítima, por vingança.
!
48 ! Genny Smith. WILLIAM A que ponto chegamos? Leocádia, uma mulher respei- !
! 49
PAULO Genny, vítima?! tada, um exemplo para nossa sociedade, ter que passar por uma
humilhação como essa.
MOISÉS Senhorita, pode iniciar o seu depoimento.
MOISÉS Senhor Paulo, é verdade que o senhor apostou um milhão?
Apavorada, Genny narra em “gramelot” os abusos sexuais PAULO Apostei, mas...
cometidos por Paulo. MOISÉS E também é verdade que o senhor perdeu a aposta?
PAULO Perdi, e daí?
WILLIAM Vejam, senhoras e senhores, é uma mulher traumatizada,
uma mulher transtornada. Ela está desconectada. Ela foi violada MOISÉS Senhor da Lasca, o senhor se lembra da regra número 2?
por este animal. É comovente. PAULO Regra número 2?! Me falaram, mas eu já esqueci.
MOISÉS A senhorita tem algo a acrescentar ao seu depoimento? MOISÉS Data vênia, Senhor Da Lasca. Por ter violado uma jovem
donzela, o senhor será condenado a prestar serviços publicitários. A
Genny faz que não, com a cabeça. partir de agora, o seu direito de imagem nos pertence. Mas, por ter
nos dado o calote, o senhor será eliminado!!!
PAULO Eliminado?
MOISÉS O pior crime sobre a face da Terra é não ter dinheiro.
PAULO Como assim, eliminado?
MOISÉS Declaro encerrada esta sessão de julgamento.
PAULO Eu mereço uma explicação...
Cena 10 Manchete do dia WILLIAM Em vinte anos de carreira jamais tinha visto tamanha
! frieza. !
50 ! ! 51
WILLIAM Neste exato momento, estão se retirando do tribunal PAULO Minha garganta está seca. Seu hipócrita, você se vendeu,
Genny Smith, a produtora de Mahagonny, Leocádia Big Boni e não é? Imprensa vendida, sensacionalista! Abutres!
o Meretríssimo Senhor Juiz. Ele acaba de anunciar a sentença de WILLIAM Percebam, senhoras e senhores, percebam! Uma pessoa
Paulo da Lasca, que está em vias de ser eliminado. Vamos saber qual descontrolada que não tem condições de viver em sociedade. Vejam
é a opinião dele sobre sua condenação. suas feições. Trata-se de uma pessoa desestabilizada, um maníaco. A
PAULO Eu só queria um copo d’água. sociedade clama por justiça!
WILLIAM Im-pres-sionante. PAULO Que merda de justiça é esta?
PAULO Mas eu só pedi um copo d’água! WILLIAM Que você deve ser eliminado!!! Eu fico feliz, porque vejo
que a imprensa, mais uma vez, cumpre o seu papel social de levar
WILLIAM Percebam estas palavras sutis: só pedi um copo d’água. até você a informação verdadeira no momento em que ela acon-
Trata-se de uma pessoa desequilibrada, uma pessoa que, no mo- tece. Vamos dar prosseguimento com o nosso programa. Afinal,
mento em que é condenada, pede um copo d’água. é nosso prazer satisfazer os seus desejos. Com vocês, meu amigo
PAULO Mas eu apenas pedi um copo d’água. Moisés Trindade.
Cena 11 Show da Execução
FIM
!
60 !
Não sabem que estão sendo olhados.
Personagens
THEO
PHAOS
LUMEN
1
Pollyana Costa Santos é atriz formada pelo CEFAR/ Palácio das Artes e psicóloga
formada pela UFMG. Realizou a dramaturgia de “Um outro Lugar” (2004) - vencedor
do Prêmio Usiminas/Sinparc Melhor Texto Inédito de 2004; “Hotel Açucenas” (2007)
- em processo colaborativo com a Cia. Flores de Jorge; “O ar da história” (2008) - em
processo colaborativo com Raul Starling e Marcelo do Vale.
PRÓLOGO comandados por Phaos, que se posiciona do lado de fora da arena.
A imagem sugere um animal subjugado por um domador
Theo dirige-se ao público que aguarda para entrar. num circo abandonado.
THEO Atenção! Por favor, atenção. Prestem bem atenção. Neste PHAOS Continue! Vamos! Continue! Não pare! O giro! Não caia!
momento, vocês vão entrar. Em silêncio. Lá dentro, não vão Levante-se! Não seja previsível! Vamos, me surpreenda, Lumen! Es-
saber que estão sendo olhados. Vocês estão sendo convidados a querda! Direita! Ao meu comando! Olhe a minha referência! Não
testemunhar um acontecimento ímpar: a preparação de uma pare! O giro! Não caia! Levante-se! Você não consegue terminar, Lu-
dançarina para a cena. Vão se surpreender com a entrega total, men. Retome antes, faça a volta e o giro. Direita! Esquerda! Olhe a
sem limites, dessa incansável e desejosa dançarina, que dedica os minha referência! Esquerda! Direita! Continue! Continue! Repete o
seus dias, todo o tempo, a serviço de uma encenação daquilo que texto anterior, num crescente, até fazer um corte, tanto da músi-
acredita ser o desejável. Sejam discretos com o olhar de vocês, ca, quanto da luz. Aproxima-se de Lumen. Quando é que você vai
porque existe sempre alguma coisa de muito íntimo no desejável entender que é esquerda e direita a partir da minha referência? Eu
! de uma dançarina. Mas mantenham o olhar atento e guardem silên- sou o eixo e você gira! Se você não se referenciar por mim, vai se !
66 ! ! 67
cio. Theo abre a passagem, caminhando à frente. E lembrem-se: perder, Lumen. Vamos! Continue!
não sabem que estão sendo olhados.
Lumen prossegue os movimentos, agora, sem música. Phaos
cena 1
mantém a luz sobre Lumen, ofuscando-lhe os olhos. Há algo de
torturante nisso. Lumen rende-se ao cansaço e cai. Phaos apaga
o foco sobre Lumen e acende um outro foco, que serve como um
simulacro da lua cheia. Lumen se recompõe, retoma o vigor que
Entrada do público. Entre a plateia e a cena existe um te- parecia perdido e avança para o foco lua. Avança e recua. A cena
cido translúcido, a fim de que a presença do público fique sugere um espelhamento com a lua.
velada. A iluminação também contribui para que o pú-
blico não seja visto pelos personagens. Em cena, tem-se LUMEN algo de hostil, de feroz O que acredita que é? Responda! O
uma arena iluminada e ouve-se uma música em alto que acredita que é? Não é nada! Não tem forma, não tem constân-
volume. No meio da arena, Lumen dança incansavelmente, cia. É inconstante e previsível. Metade à esquerda, metade à direita,
meio perdida em seus movimentos. A música, a luz e Lumen são metade à esquerda, metade à direita e no meio fica cheia de si e,
depois, cai num vazio! E continua: metade à esquerda, metade à LUMEN Eu estou cansada... Ah, Phaos... Estou cansada... esvaziada.
direita, metade à esquerda, metade à direita e no meio fica cheia Chora.
de si e depois: o vazio! Uma repetição frustrante! Um tédio essa sua PHAOS Ei! Pare com essa história! Não tem vazio nenhum. Acaba
eterna exibição, que eu desprezo! Fica aí, altiva, desejosa... Ofere- logo com esse choro! Isso não faz parte da cena que estamos pre-
cida! Oferecida! Ah! Lua! Caia por terra! Caia por terra! Sem essa luz parando! Lembra como era antes? Quando você entrava nesta arena?
que ilumina você, sem essa luz, você desaparece. Sem essa luz, você Lembra? Quando muitas pessoas esperavam pra ver você brilhar?
é apenas um corpo esburacado. Por que não desiste? Por que não Lembra de como se preparava momentos antes?
desaparece de vez?
LUMEN Eu ficava atrás da cortina e fechava os olhos... Ouvia as
PHAOS algo de receio Bravo! Está improvisando algo diferente, vozes lá fora e sentia meu corpo crescer. E, então, eu me colocava
Lumen? Por que não desaparece de vez? bem debaixo daquela luz branca dos bastidores, e fechava meus
olhos... Enquanto fala, Lumen vive a cena; gira em torno de si
Phaos retira o foco lua e a cena passa a acontecer no escuro; mesma. De olhos fechados, eu pedia pra ser brilhante como a lua
ouvem-se apenas as vozes dos personagens. cheia. E abria o corpo: “Lua brilhante, lua forte! Entre por todos os
!
68 ! buracos do meu corpo!” !
! 69
LUMEN Phaos! Phaos! Não me deixe sozinha! Eu tenho medo! PHAOS Viu? Não tem vazio nenhum! Quando fala desse vazio, você
Phaos, me dê a lua de volta! A lua, Phaos! Não deixe desaparecer! fica estranha, meu amor... Fica com essa conversa de desaparecer...
Phaos! Phaos! Eu estou aqui! Não deixe desaparecer! Pode me ver?
Phaos, não faça assim comigo! LUMEN Sinto isso, Phaos! Sinto que vou desaparecer. Eu sei que
vou desaparecer... É só uma questão de tempo...
PHAOS calando Lumen, tampando sua boca Calma, Lumen!
Calma... Está fora de órbita, meu amor? Está fora de órbita? Parece PHAOS calando Lumen, tampando sua boca Isso não vai acon-
que está. tecer. Eu estou aqui com você. Você não pode romper nosso pacto.
Temos um pacto, não temos? Em que estado vai me deixar, se um
Phaos se posiciona em atitude de guia no escuro e Lumen se dia desaparecer de vez desse lugar? O que vai ser de mim? Você sabe
entrega nas mãos dele. que, se estou aqui até hoje, se ainda permaneço, é por você. Se não
fosse nosso pacto, eu já tinha ido embora desta casa abandonada.
PHAOS Venha. As minhas mãos estão aqui. Fiz uma lua “cheia de LUMEN É assim que me sinto muitas vezes, Phaos: abandonada.
si” pra você, e você recebe assim? Cheia de si? Quantas e quantas vezes você me abandona aqui sozinha? Por que
não me leva junto?
PHAOS Eu volto, não volto? Sei que você precisa de mim. O que PHAOS dócil Eu preciso de você...
vai ser de você sem mim? Só restamos nós dois aqui. E a nossa LUMEN Nem sempre o meu movimento coincide com o seu...
promessa cumprida a cada dia.
PHAOS incisivo Eu preciso de você.
LUMEN algo de ironia, tentando escapar das mãos de Phaos
Comprida! Está comprida demais nossa promessa! LUMEN irreverente Eu preciso de você!... Você já pensou que
raramente acontece de o sol e a lua serem vistos juntos?
PHAOS Meu amor, sabe que nosso destino vai ser comprido. E será
cumprido dia a dia. Algo de crueldade na doçura da voz. Nosso PHAOS Nem tudo o que acontece pode ser visto. Não é claro?
destino foi selado com a promessa que fizemos: eu e você juntos. LUMEN Nem tudo o que acontece pode ser visto. É claro!
Phaos retira de si uma lanterna e acende, focando a boca de
PHAOS É claro!
Lumen. Abra a sua boca! Vamos, não resista! Abra um pouco mais...
A cena sugere um jogo, meio dança, conhecido dos dois. Eu pra LUMEN É claro!
cena 2
você e você pra mim. Vamos, repita: Eu prometo... Repita!
!
LUMEN Eu prometo...
70 !
PHAOS ...que cada movimento meu vai existir em coincidência
com o seu.
Theo, que até então estava escondido junto com a plateia, entra
LUMEN Que cada movimento meu vai existir em coincidência com
na arena.
o seu.
PHAOS Prometo olhar por você e para você, por tudo que nos resta
THEO É claro! Mas é claro! Vocês continuam no mesmo lugar!
e para o resto de nossas vidas.
PHAOS Theo? O que veio fazer aqui? A casa está fechada.
LUMEN Prometo olhar por você e para você, por tudo que nos
resta e para o resto de nossas vidas. THEO Mas vocês ainda continuam aqui. Insistem, não é? Como nos
velhos tempos! Senhoras e senhores de todos os tempos! Aqui es-
PHAOS Como a lua está para o sol e o sol está para a lua...
tão, diante de seus olhos, os remanescentes - resistentes! - desta
LUMEN Como a lua está para o sol e o sol está para a lua... antiga casa de espetáculos. E continuam inseparáveis.
PHAOS Nossa trajetória está para sempre escrita com essa promessa. LUMEN Onde você esteve Theo? Faz tanto tempo que não
LUMEN Nossa trajetória está para sempre escrita com essa promessa. aparece.
THEO Como assim? Esta é a minha casa! A casa pra onde sempre PHAOS Se depender de minha opinião, a casa continua fechada. Se
vou retornar. Algo teatral, em tom espetacular. Eu, e todos os ou- é isso que veio olhar, Theo, pode ir embora.
tros, que travamos nossas batalhas diárias, com tantos conflitos e THEO Mas que tratamento é esse, Phaos? Não era assim que você
restrições... Nós, os guerreiros cansados e sedentos... Brinca com me recebia antigamente... Era? Hein? Lumen, mostre a ele como é
o efeito de sua encenação. Sempre haveremos de retornar pra que me recebia antes.
este lugar cheio de promessas: a casa onde a água é farta, onde
se esquece a aridez do deserto e onde a ordem é: “A guerra pode LUMEN irreverente O que deseja, Senhor Theo?
esperar!” THEO Bravo! Bravo! O que deseja, senhor? O que deseja, senhora?
PHAOS A ordem é: a casa está fechada. Realizamos os seus desejos!
LUMEN A menos que ele tenha mudado de ideia... Você mudou de PHAOS A casa está fechada. Acabou. Foi sua última palavra. Está
ideia, Theo? Vai ordenar que a casa seja aberta de novo? lembrado?
THEO E, por falar em novo, o que há de novo? O que há de novo, THEO Acabou mesmo? Mas o que fazem ainda aqui? Sei que vocês
Phaos? não desistem, porque sabem que a qualquer momento eu posso
mandar abrir a casa. A última palavra? Assume a mesa de luz e ma-
! !
74 ! ! 75
PHAOS Não há nada de novo. Lumen não tem se mostrado bem. nipula focos sobre a arena. Estão esperando que depois da última
Tenho trabalhado dia e noite, sem descanso, lado a lado, dou o palavra venha outra, e mais outra, e mais outra... Mais! Queremos
melhor de mim, mas ela tem deixado de ser aquilo que um dia mais! Lembram disso? A casa ficava cheia! E a plateia pedia: “Lu-
quase foi... men, Lumen, queremos Lumen!”. Nossa casa era uma verdadeira
LUMEN Não é verdade, Phaos... Não é verdade, Theo... Confusa. vitrine pra todos os gostos e exigências! E a “oferta do dia”? Estão
Continuo sendo o que quase fui. Quero dizer, o que sempre fui... lembrados? Façam seus pedidos para a oferta do dia! E o bordão?
quero dizer... Phaos, eu estou quase conseguindo... Faço tudo o Estão lembrados do bordão? “Atrações de todos os sabores para
que você me pede... pessoas de todos os humores”!
PHAOS É pouco. PHAOS Mas... A casa foi ficando vazia... E sabe por que, Theo?
THEO Que pena, Lumen! Você nos decepciona. Enquanto você não Porque, antes, a cena foi ficando vazia... Todos os esforços foram
se superar, não vejo como reabrir a casa. Não posso mais convencer em vão. Resultado: a casa vazia, a casa fechada. Acabou.
uma plateia de estar aqui, se você não tem nada pra oferecer. THEO Será? Será que acabou mesmo, ou podemos reabrir a casa?
Afinal, vocês, sim, é que estão fechados aqui, há tanto tempo, e sei
que têm se preparado pra cena todos os dias. LUMEN Não é nada disso, Theo. Tem certos dias em que eu sinto
que estou desaparecendo...
PHAOS Todos os dias, não. Você fala em reabrir, porque não está
aqui pra ver. Lumen passa dias e dias em completo isolamento. PHAOS Ela está improvisando essa história de desaparecer...
Nem deixa que eu me aproxime dela. THEO Lumen, você não vai desaparecer enquanto estiver sob os
THEO Lumen, como pode fazer isso com Phaos? Ele se dedica nossos olhos... Os meus olhos, os olhos de Phaos. E de quem es-
tanto a você, faz tudo por você! Você não tem esse direito. tiver aqui pra ver você. Vamos! Eu estou aqui pra ver você. Dê meia
volta e retome de antes! Senhorita Lumen, você continua com sua
LUMEN Eu estou cansada de ficar fechada neste lugar... Às vezes,
dança!
parece que sinto como se a plateia estivesse aqui, parece que ouço
as vozes e sinto os olhares... Mas, depois, olho o vazio e sinto a falta LUMEN seduzida A minha dança? Quer que eu continue? Quer ver
de tudo. o que temos pra mostrar?
PHAOS Não venha com essa conversa agora, Lumen. Em nossas PHAOS Não temos o que mostrar. Ela não está pronta. Acabe com
últimas apresentações, antes de a casa fechar, você já não atendia isso, Lumen! Theo precisa ir embora. Sinto muito, Theo. A casa con-
! aos pedidos. Só fazia o que queria fazer. Deu no que deu: a casa tinua fechada. !
78 ! ! 79
esvaziada, a casa fechada. LUMEN Não, Theo! Não vá embora! Phaos, eu prometo que vou
THEO O Phaos tem razão, Lumen. me esforçar. Vou fazer tudo pra essa casa ficar cheia de novo...
LUMEN Mas as pessoas sempre queriam outra coisa, outra coisa... THEO O que tem pra mostrar, Lumen? A sua dança?
Nunca estavam satisfeitas. Parece que todos aqueles pedidos me PHAOS Não, Lumen, você ainda não está completamente pre-
esvaziaram. Ouviu isso, Phaos? Assume um tom teatral, algo de es- parada para se apresentar.
petacular e dramático. Eu estou vazia! Eu estou fechada! Toda a
LUMEN a Phaos Phaos, me deixe tentar... Eu posso fazer. A Theo
minha vida estive presa a esta arena. Houve um tempo em que eu
Quer que eu mostre o número dos Sete Pecados Originais? Você
ficava imaginando o que seria da minha vida se eu não tivesse esta
precisa ver o final. Criamos um oitavo pecado super original!
arena pra viver... eu teria outro rosto, outro corpo... Eu me imagi-
nava sem estas roupas todas que se confundem com o meu corpo e PHAOS Não, Lumen.
sem esta maquiagem que está grudada no meu rosto...
THEO Bravo! Você está de volta! Essa imaginação toda já faz até
aparecer uma cena!
LUMEN Phaos! Estamos muito tempo so-
zinhos... E, de repente, Theo pode reabrir a
casa e...
PHAOS interrompendo Lumen Ainda não há
nada pra ser visto! Por mim, a casa continua
fechada. Foi Theo quem quis assim. Ordem é
ordem.
THEO Ora, ora, ora... Por hora... A ordem pode
ser suspensa! É a sua grande chance, não é, Lu-
men? Ou vocês me convencem que já é hora
de a casa estar aberta, ou vão passar mais um
bom tempo aqui fechados. Vamos! Sorriam!
Vocês estão sendo olhados...
PHAOS algo de um desconcerto e um olhar
cúmplice com Theo Estamos sendo olhados?
THEO Por mim! Eu estou aqui, não estou?
Quero que apresentem um número. Deixem
me lembrar... O número da transformação! E
façam como se a casa estivesse cheia!
LUMEN Onde está você, meu amor? Onde está que não vejo? Por THEO prossegue no jogo Se me matar, quem é que vai ver você?
que se esconde de mim? Tenho saudades de você. Por que não Vai ficar sozinha e vai morrer sozinha, sem ninguém para ver
aparece? a sua morte. Nem na hora da morte terá alguém pra ver você,
pobrezinha...
!
90 ! THEO O que tem de “surpreendente” nisso? !
! 91
LUMEN Sim! Posso morrer. Morrer é o que tem de mais previsível
LUMEN O rosto que aparece?! Os rostos andam tão desapareci- e imprevisível na vida! Posso morrer. Já posso morrer... Algo de
dos... Pode ser surpreendente! drama Eu sempre soube que desaparecer seria uma questão de
PHAOS Pare com isso, Lumen. tempo... Morrer é apenas um instante: o instante de desaparecer.
THEO É previsível... Eu diria até que é banal...
Lumen dirige a navalha para o próprio corpo. Simula sua morte.
LUMEN O que, então, pode ser tão surpreendente? A morte? A Mantém-se imóvel e em silêncio por instantes. A cena deve deixar
morte! A morte pode ser surpreendente! Senhoras e senhores! dúvidas quanto ao que tem de encenado por Lumen e o que tem
Com vocês, a inesperada morte! de verdade. Phaos e Theo compartilham desta dúvida. Passados
alguns instantes de suspensão, Lumen levanta-se rindo de tudo
Lumen inicia uma dança com a navalha, criando uma atmos- aquilo.
fera de ameaça aos dois.
LUMEN Próximo número!
LUMEN A morte não passa de um momento. E pode ser banal...
cena 4 aqui, só se obedecem ordens! Basta um comando do olhar e nos
colocamos à disposição! O que deseja beber, senhor? De que tama-
nho é a sua sede? Não se preocupe com a guerra lá fora. Esqueça
tudo. Como quer que enfeitemos a sua bebida? Podemos oferecer,
Lumen vai para os bastidores se trocar. Está visivelmente
transtornada. senhor! Podemos oferecer, senhora! Podemos, oferecer, Theo, mas
somente se eles estiverem aqui para nos indicar o que querem!
PHAOS Vamos encerrar, Theo. Peça pra ela parar. Diga a eles que THEO O que é isso, Phaos? O comando está aqui em nossas mãos.
acabou. Aponta, com a luza da lanterna, várias direções na arena. Olha
isso! Olha isso! Nós definimos o foco. Já rastreamos o que há de
THEO A casa vai permanecer fechada por tempo indeterminado! mais desejável para oferecer aos olhares... Já sabemos de que água
O tempo que precisar! Será que não vê, Phaos? É uma questão de eles têm sede...
sobrevivência! Tudo é uma questão de sobrevivência!
PHAOS Talvez seja aí que você se engane, Theo. Por que não
!
PHAOS De que sobrevivência você está falando? Com certeza, não pergunta pra eles... Que tal você deixar que falem sobre esta !
92 ! é a nossa sobrevivência... Você está totalmente enganado nessa sua ! 93
experiência da qual estão fazendo parte?
teoria da sobrevivência, porque o que acontece, “senhor” Theo, é
que Lumen não vai sobreviver mais por muito tempo. Neste momento, Lumen volta à cena com um vestido sedutor.
THEO São as leis do espetáculo, Phaos! Os olhares estarão tanto Sedutora também é a dança que ela inicia. Dança na arena, e,
mais atentos, quanto mais puder ser oferecido a eles! E tanto mais aos poucos, vai insinuando-se para Theo, que fica seduzido e/ou
será oferecido a eles, quanto mais esses olhares estiverem ausentes. subjugado. Do outro lado da arena, Phaos tenta impedir que
Preste atenção, Phaos, quanto mais estiverem privados de Lumen os olhos de Lumen fiquem voltados para Theo. Algo de sedução,
e Lumen também estiver em privação, nesse estado duplo de ciúme e competição na cena. Phaos tenta impedir a relação de
privação, mais teremos o encontro desejável de uma cena e seu Lumen e Theo através do comando da luz em cena, bem como
público. Será que não vê que isso tem a força de um ímã? pelo comando de voz: seu poder sobre Lumen.
PHAOS Eu não posso mais concordar com isso. À plateia. Sabemos
que nós, “sobreviventes” desta casa de espetáculos, não podemos PHAOS Lumen, chega!
estar privados dos olhares em volta! Mas, se continuar assim, den-
tro de pouco tempo não saberemos mais o que oferecer, já que, Lumen continua. Nega-se ao comando de Phaos.
THEO Continua, Lumen... Continua...
Lumen continua.
Lumen para.
PHAOS Chega, Lumen! O espetáculo acabou, o jogo acabou! Nós THEO para Lumen e Phaos E vocês ainda não sabem? Pois tentem
não vamos mais continuar... Vamos encerrar. parecer sabidos, agora: apareçam! Vamos! Vocês estão obrigados a
dar um fim nesta promessa de espetáculo. E sorriam! Vocês estão
LUMEN Não vou parar. Vocês vieram aqui para ver, não é?! Então sendo olhados...
olhem! Olhem bem vocês que estão aqui para ver. O que posso
oferecer? O que deseja, senhor? O que deseja, senhora? Eis aqui
uma carcaça de uma coisa mutante: mercadoria que está a sua dis- Theo sai de cena.
posição, a seu serviço, senhor. Pra esquerda, pra direita. O eixo! Pra
lado nenhum! A minha referência! Isso tudo eu não posso mais... LUMEN ao público Eu peço a você que testemunhe essa sensação
! THEO Tentando se aproveitar da intervenção de Lumen. Bravo! que tenho agora: sinto que estou tão parecida com as marcas que !
102 ! as luzes desta arena me fazem, que só por alguns instantes eu tenho ! 103
Senhoras e senhores! Eis aqui o mais secreto espetáculo. Bravo!
Bravo! a sensação de me ver aparecer, sem marcas. Aparecer assim: eu!
Como uma estrela cadente, um brilho, um instante, um susto! E é
PHAOS Chega, Theo. O espetáculo acabou. neste instante, quando apareço sem o que pudesse parecer dese-
LUMEN Eu não sei de que lugar vocês vieram... jável aos olhos de vocês, neste instante eu sou como sou. Talvez
uma estrela desejável. Ou alguma coisa que brilha. Pausa. Eu não sei
THEO interrompendo a fala de Lumen Será que eu sei? O que
de que lugar vocês vieram e não sei o que trouxe vocês aqui... Mas
trouxe vocês aqui? E o que não deixa cada um de vocês ir embora?
sei que, se seu pudesse inverter... Sim! Se nós pudéssemos inverter!
Uma promessa? Estão aqui, nesta plateia, por causa da mais antiga
Phaos!
promessa de alegria e gozo? Estão atrás dessa velha promessa? En-
tão, olhem: um carrossel de luzes que não pode parar! Brinca com PHAOS É claro! Phaos posiciona-se e ilumina a arena nova-
efeitos de luz na arena. mente.
LUMEN Chega! Sintam como eu sinto agora: tudo está sumindo LUMEN Indica a arena. Olhem! Olhem esse lugar vazio.
debaixo dessa luz que pode ofuscar nossos olhos. Vejam como eu PHAOS Vejam esse lugar!
LUMEN Fechem os olhos... Um dos nossos
destinos é e será em algum momento fechar
os olhos... Fechem os olhos. É um risco, eu
sei. Mas tudo aqui é um risco. Desde que vie-
mos à luz... Não é assim que nascemos? Com
a luz? Desde que viemos à luz, desde que
abrimos os olhos estamos aqui: todos em
volta, cativos, presos às luzes e ao destino
de um olhar. Presos ao destino de aparecer
ou desaparecer. É sempre um risco. Fechem
os olhos. Phaos retira a luz da arena. Black out total.
!
104 !
! !
106 ! ! 107
FIM
Dramaturgia LETÍCIA ANDRADE 1
Atuação CAMILO LÉLIS, LEONARDO LESSA E RITA MAIA
Direção AMAURY BORGES
Concepção cenográfica e figurinos INES LINKE
Cenotécnica PATRÍCIA LANARI
Iluminação ROGÉRIO ARAÚJO E AMAURY BORGES
Trilha sonora ADMAR FERNANDES
Produção executiva MICHELLE FERREIRA
Realização GRUPO TEATRO INVERTIDO !
! 109
Financiamento PRÊMIO FUNARTE MYRIAM MUNIZ DE TEATRO
1
É atriz, dramaturga, professora e integrante da Maldita Cia de Investigação
Teatral. Mestre em Teoria Literária, leciona no Centro de Formação Artís-
tica do Palácio das Artes e no Departamento de Artes da UFOP. Atua no es-
petáculo Suba na vida, e já escreveu mais de dez dramaturgias, dentre elas:
Estamos trabalhando para você, Arriscamundo, Prato do dia e Cara Preta.
1 VITRINE DO CASAMENTO ARTIFICIAL
(Noiva Margarina, Noiva Esgotada, Voz do General)
“sim”
Noiva Esgotada levanta-se e sobe as escadas nova-
mente. Passagem. Noiva Margarina retira seu véu do
ventre simulando o nascimento de um bebê. O véu
retorcido é o bebê. Ela o segura. Rosto de gozo satisfeito. Ela se
levanta e desce as escadas, agora de frente para o público. Sorriso
de propagada de “miss universo”. Desce as escadas de frente para
o público. Polifonia de vozes.
ELA AFUNDA NO SEU ESGOTOCORPO
(Hospedeira, corpos-bactérias instáveis)
3
filho esquartejado, meu irmão. E o mar... Revive o
passado. Saiam do mar, meus filhos!!! Mergulha
no tanque, sai da água. A hospedeira infiltra
no esgoto do macho e torna a alma mais potável.
Lembra com saudade. Meu corpo infância acorda
Sobe no tubo de ensaio. Contempla a beleza ao BACTÉRIAS JORRAM DO ÚTERO
redor. Eu, cheiro de terraestrumemolhada, vagi- (Hospedeira, Noiva Aborto, Filhocão, General)
naúmida, orvalhoágua que jorra dos lençóis alve-
jados da claridadedamanhã. Gozo. Olha para o alto. Tempo de Memória: os Nascimentos. Da Noiva Aborto,
Mergulha a mão na terra do tubo de ensaio, para do Filhocão e do General.
o público. Ela, madeira de lei, quase extinta, quase...
Árvore abatida, naturezamorta, ausente de úte- HOSPEDEIRA descobre os corpos-bactérias e direciona-se à fêmea
roviço, perfuradaviolada pela mão do homem. Devo Eu volto ao princípio. O tempo de agora é o da minha memória.
falar de mim? Eu, quem? Desce do tubo de ensaio. Do retorno ao útero. Dou vida às bactérias. Retorno ao início da
minha genealogia. Bactérias movem-se. Comida cozida em minhas
entranhas. Esfriando na hora do jantar? Eu, panela de pressão. Nove NOIVA ABORTO suave, frágil Meu homem nem esperou esfriar
meses cultivando os organismos. Abro meu útero rasgado. E resgato o vestido, meu leito de prazer, e já largou sua semente aqui den-
das bactérias fágicas, emocionalmente instáveis, artificialmente con- tro. Uma coisa viva dentro do meu útero. Horror do parto. Ele
troláveis, os filhos que gerei. já se mexia revoltado nas minhas entranhas. Violenta. Eu não sou
obrigada a te amar. Noiva Aborto para o Filhocão. Gritos. Urros.
Busca o corpo-bactéria da fêmea, envolto em plástico transpa- O menino se agarra à mãe e não quer soltá-la. Essa se desespera.
rente, manchado de vermelho. Desliza-a na bancada branca. Ele cai no chão.. Eu não aguento seu peso, leva este cão daqui!
Retira todo o plástico e analisa o corpo. Nasce. É uma menina. Filho da puta é aquele que não quer nascer... Eu lavo as minhas
mãos, assim como entrego este enjeitado ao mundo do cão.
HOSPEDEIRA Até que no momento exato, mamãe... perfeito, uma
fêmea, cinco dedos em cada mão, coxas bem torneadas, pele lisa, Morde o plásticoplacenta. Passagem para o Espaço-Rua. Filhocão
perfeito... criatura das minhas entranhas. Quem pariu o homem? rasteja. Homens cantam “Mãezinha do céu, eu não sei rezar...”.
Quem pariu quem? Enfia o plásticoplacenta debaixo do seu Noiva Aborto e Filhocão caminham perdidos em volta da gela-
!
vestido, configurando uma barriga. Já vem recheada. Recomeça deira. !
120 ! o ciclo. Leva a menina para debaixo da torneira. Abre-a. Molha ! 121
a sua cabeça. Mergulha. Batiza a criatura. A menina treme de FILHOCÃO O primeiro contato com o chão frio da sarjeta. Fareja
frio. Ela grita de dor. Eu te batizo joanaclaradinastialilithjoanad’a comidaconfortoquentura. Rasteja pelos becos numa procissão,
rcclaradosanjospandora como a fêmea escolhida para procriação e sem velas e rezas, farejando a mãe que o abandonou. Abandonado
reprodução involuntária. As bactérias são os organismos vivos que como animal raivoso, deficiente.
mais têm variações emocionais. Não podemos esperar nada delas. A
mesa póstuma, talheres, copos... Minha oferta, o melhor de mim, o NOIVA ABORTO Devo falar de mim? Uma noiva aborto, que foi
banquete está servido. Prenuncia a vingança. O amor me armava roubada do seu leito de prazer? Eu nasci mulher, eu não nasci pra
as mãos. segurar criança no colo, eu não nasci pra verter leite dos meus
seios e entregá-lo para qualquer um. Ela está perdida, dá voltas
Carrega a menina para a geladeira. Passagem. Menina agora em torno da geladeira - Espaço da Rua. Que lugarbeco é este?
é a Noiva Aborto e Hospedeira, o Filhocão. Noiva Aborto enfia Que rua é esta? Não sabia se ia pra direita ou para a esquerda. Tava
o Filhocão em suas entranhas. Filhocão enfia-se debaixo do seu perdida. Queria voltar para casa, pedir perdão para os pais. O cão
vestidopanobranco. Vai nascer. Noiva Aborto grita. Quer expelir sarnento a ataca. Sai vira-lata! Bicho nojento. Sai cão sarnento, sai
a coisa de si. daqui. Volta pra sarjeta que é o seu lugar. Acha a casa de seus pais.
Quer voltar para casa. Ela abre a porta da casa dos pais e entra. E riu. Esse trânsitofiladebanco congestionado. Não acreditar em falsos
pede que a deixem em paz por um momento. Abre a geladeira. deuses. Porque eu sou frágil e de carne e osso. Sou sua imagem e
Noiva Aborto entra dentro da geladeira. Ela se fecha. Grita dentro semelhança. Eu não sou Filhocão. Filhocão se lança na geladeira-
da geladeira. Me deixa em paz! Me deixa em paz! útero. Ela não se abre. Desiste. É inútil, esta coisa fria, seca, gelada
não me aquece mais. Ator abre a geladeira de uma vez. Barulho
Filhocão quer voltar para o útero da mãe. Avança para a estrondoso. Ela toma meu lugar.
geladeira. Fúria. ATOR/HOSPEDEIRA Ator assume o ponto de vista e o corpo da
Hospedeira.
FILHOCÃO Mãe, abre as portaspernas da sua casaútero! Abre a ATRIZ/PUTINHA DA ZONA A atriz sai de dentro da geladeira e agora
porta dessa escolaigrejahospital para mim! Para o público. Ele tinha é a Putinha da Zona.
culpa de engolir oxigênio. Para a mãe. Não sou carne exposta no
açougue! Eu queria que você me amasse, me amamentasse. HOSPEDEIRA Pouca bunda, pouca carne, pouca estria, pouca celu-
lite... perfume barato.
! Enquanto isso, a Noiva Aborto, de dentro da geladeira, descreve PUTINHA DA ZONA Filho homem é mais difícil de criar. Eu troquei !
122 ! ! 123
uma receita de bolo. Passagem para outra figura. as suas fraldas. Eu curei o seu umbigo. Acorda, homem, seja forte.
Vem nascer para a vida.
NOIVA ABORTO Três xícaras de farinha de trigo, quatro ovos, duas HOSPEDEIRA E você, por que não se levanta? Vem comandar seu
xícaras de açúcar, duas de leite, duas colheres de sopa de mantei- exército! Acorda, homem! Vem conquistar seu território. Depósito
ga, uma colher de café de fermento e quatro colheres de sopa de de porra, bagaço de laranja. Eu já escrevi teus discursos, verborragia
chocolate em pó. Bata bem os ingredientes até formar uma massa de lixo. O Planalto te espera. Se quer ser general, levanta, soldado!
lisa e despeje numa forma untada de margarina e farinha de trigo.
Leve ao forno, por aproximadamente quarenta minutos. Hospedeira vai buscar o corpo do homem e a Putinha da Zona
simultaneamente realiza a mesma ação, só que busca um boneco
Filhocão denuncia a mãe. Dimensão pública. que está na parte inferior da mesa de metal. Hospedeira carrega
o homem em suas costas e a Putinha da Zona carrega o boneco.
FILHOCÃO Eu não sou obrigado a ser o que eu sou: um cão. Ele es- Putinha da Zona repete as palavras da Hospedeira.
colhe descer deste ônibus lotado. Parar esse carroputa que me pa-
PUTINHA DA ZONA/HOSPEDEIRA Filho homem sempre dá mais
trabalho. Quantas vezes eu te gerei? Durante oitenta anos, oitenta
quilos carregados nas minhas costas. Pausa. Quem fez o Homem?
4
Depositam os corpos dentro da geladeira. Hospedeira e Putinha
da Zona fazem o General nascer. Espelho. Duas Medeias.
Os meninos cheiram produto tóxico. Meninos começam o MÃE ABORTO Mãe Aborto penetra na cena.
! !
132 ! “programa de irmãos”. Sacanagem lúdica. FILHOPAI Vem, pode entrar, docinho. ! 133
7
NAUFRÁGIO
(Filhocão, Filhopai e Mãe Aborto)
8
FILHOPAI Até que a morte nos separe!
FILHOCÃO Até que a morte nos separe! Pode beijar a noiva.
FILHOPAI/ATOR O garoto agora assume o ponto de vista do pai, o ELA JORRA DO SEU ESGOTOCORPO
General que vai botar ordem na zona desta casa! (Mãe Aborto)
!
142 ! Memória da partida do pai. Filhopai assume agora o ponto de Memória do abandono. Abre uma torneira e começa a lavar as !
! 143
vista do General, homem que deixa a mulher. Filhopai fala do pai mãos, nervosamente, murmura, balbucia.
e diz que vai embora. O Filhopai se rebela e decide ir embora. Ele
recolhe suas coisas. Ela não aceita. Discussão. Filhocão narra a MÃE ABORTO Meu orgulho me sustenta, me salva da queda.
discussão da Mãe e do Pai. Quem fez o homem? Antes disso, devo falar de mim? Para o pú-
blico. Quem eu? Quem agora? Que tempo é este? Minha memória?
FILHOCÃO sentado na porta da geladeira Os dois gritavam. Todos Meu presente? Meu esôfagocano alimenta os tubos de energiaraiva.
os dias, meu pai desafiava que ia embora e nunca ia, mas, hoje, ele Porque eu sou a protagonista deste filme. Eu sinto com todos os
tomou o seu lugar. Eu me escondia nos lugares mais improváveis. meus suoresporos, minhas garras, minhas ancas de mulher aban-
donada. Eu parto. Eu tomo o seu lugar. Para o público. Devo falar
MÃE ABORTO Onde é que você pensa que vai? Você não pode me
de quem? De quem se fala quando se fala de mim? A única saída de
abandonar!
uma mulher abandonada é virar puta. Uma autêntica puta da zona.
FILHOPAI Eu parto. Eu não sou ignorante. Eu tenho escolha e a de- Eu parto.
cisão é minha. Eu escolho não acreditar em falsos deuses! Se disser
9 EU VOLTEI PRA ZONA, AGORA É PRA FICAR
(Putinha da Zona, Hospedeira e General)
10
!
150 ! Entrega o vestido para a Noiva Sobe numa pequena escada e
um bom veneno.
Margarina. Aí está você, Noiva desce, visualizando a Igreja.
dos sonhos das propagandas Hospedeira coloca o véu nela.
de Margarina. Meu vestido de A noiva tem um baú que ela
noiva, toma como presente compõe com esmero, desde
para suas núpcias. Para o pú- os seus oito anos de idade.
FINALMENTE A HORA DO SIM blico. Quero fazer a noiva em Um enxoval de linho branco,
(Hospedeira, General, Noiva Margarina) tocha nupcial. O amor me arma imaculado. Sua mãe disse que é
as mãos. Vem, filha. Para o Ge- preciso preparar o enxoval, não
Memória e Presente: revivem o casamento e ao mesmo tempo neral. Tens ouvidos para os gri- importa o que aconteça. Desce
renovam os votos. Passagem da Putinha da Zona para Noiva tos? É preciso fechar as portas, da escada e atravessa o salão.
Margarina. Hospedeira dispõe frascos químicos pelo chão, de proibir a entrada do homem. Para o público. Porque você é
forma geométrica. Noiva Margarina coloca em cada frasco flores o grande amor da minha vida.
coloridas: roxas, brancas e rosas. Polifonia.
NOIVA MARGARINA Senhores e senhoras, obrigada por vir,
obrigada pela presença. Ela entra na limusine branca. Entra na
geladeira. Daqui a quinze minutos, ela estará na Igreja e receberá os
cumprimentos. Ela se fecha na geladeira.
HOSPEDEIRA fecha os armários da bancada branca, com fúria
Planta na carne uma selva de facas. Hoje é dia de pagamento. Quem
fez o homem?
GENERAL descendo a escada de ferro. Feliz. Traz flores nas mãos
O homem penetra no esgotocorpo da mulher hospedeira. Veio fin-
car o mastro da sua bandeira no último território a ser conquistado.
Nesta terra, não há exílio para mulher que não respeita a autoridade
do chefe da família. Elas são assim: nada lhes falta se o leito conju-
gal é respeitado, mas se recebem, algum dia, o menor golpe e vão à !
nocaute, elas desprezam os votos de amor. ! 153
FIM
Dramaturgia e direção CAMILO LÉLIS,
KELLY CRIFER, LEONARDO LESSA,
RITA MAIA E ROGÉRIO ARAÚJO
Atuação CAMILO LÉLIS, KELLY CRIFER,
LEONARDO LESSA, RITA MAIA E
ROGÉRIO ARAÚJO (2009/2010)
Preparação vocal ANA HADDAD
Preparação corporal LEANDRO ACÁCIO
Cenário e figurinos PAOLO MANDATTI
Iluminação FELIPE COSSE
Trilha sonora RICARDO GARCIA
Produção executiva LUDMILLA RAMALHO
Assistência de produção MARIANA CÂMARA
Realização GRUPO TEATRO INVERTIDO Estreia em Belo Horizonte/ MG,
Financiamento FUNDO ESTADUAL na sede do Grupo Teatro Invertido,
DE CULTURA DE MINAS GERAIS em 1º de outubro de 2009.
Esquecer, eu não esqueço.
Cena 1 . BOATE . MEMORY CLUB
!
168 ! MOACIR Meu pai.
A Mãe aparece com uma bacia na cabeça. Dentro dela traz tem-
peros verdes e cebolas.
MÃE A mãe acordava às cinco horas da manhã pra dar conta da e prosear com o povo que vem de fora. Dirige-se a um espectador.
lida... Ela cozinhava bem... Costelinha de porco com mandioca. E Moço... Esse causo vem lá do oco do mundo. Para a Mãe. Rosa,
mandioca que ela mesma arrancava, bem de mansinho, que é pra passa um café pra visita! Volta a falar com o espectador. Ele era
não acordar o chefe da casa. Para o menino. Menino! Vai panhar a sonhador, moço ainda. Queria conhecer a cidade grande, e lá fazer
lenha pra mãe fazer comida! Vai num pé e volta no outro. Para o es- bastante dinheiro. Pois, na primeira oportunidade que teve, arru-
pectador. Frango ao molho pardo nos domingo... Na semana, carne mou seu matulão, arribou num pau de arara e rumou estrada afora
de leitão engordado a meia... A carne é só ferventar e picar bem pi- pra capital. Lá chegando tratou logo de arrumar um cubico pra
cadinho. Daí cê coloca um caldeirão de ferro no fogo, um pouco de ele morar. No dia seguinte já tava empregado. Também, fez de um
gordura e mistura com os tempero verde. Aí, é só jogar os pedaço tudo. Passado aí uma base duns seis... sete anos, ele já tinha juntado
de carne e deixar eles ficar quase frito, depois chia com um pouco uma dinheirama danada. Tava doido pra voltar, comprar um pedaço
d’água e fica lá cozinhando. Então o cheiro começa a subir e invadir de terra e continuar tocando a sua vidinha aqui na roça. Mas era
as narina. Chega a dá água na boca... Vida boa, escorrendo que nem Semana Santa e ele convidou um compadre, seu conterrâneo, pra
as água do rio. Menino brincando na beira da felicidade. Mas é como cear mais ele lá no cubico. Festejar o Sábado de Aleluia.
!
o povo diz: - reinado de criança pobre passa ligeiro. É isso mesmo. !
170 ! A roça e a enxada num dá descanso nenhum. Meu sonho é vê esse A Mãe serve o café. ! 171
minino na cidade grande, pra completar os estudo e ser alguém na
vida. Isso num é coisa só de gente rico, não, filho de fazendeiro. PAI Conforme eu ia falando, o compadre foi cear lá no cubico. Só
Para o menino. Onde suas vista enxergar, seu zói alcança. Ocê pode que ele tinha olho grande. Sabia que o moço sonhador guardava o
ser doutor veterinário, mexer com a criação... Coisa bonita. E num dinheiro bem debaixo do colchão. Então, em plena Semana Santa,
preocupa cum seu pai não, que eu dou meu jeito. ele foi lá na cozinha pegou uma faca, dessas de cortar carne, e deu
MOACIR Mãe, sabia que até hoje eu ainda sinto a mão pesada dele foi sete facada no peito do moço sonhador. E ele ficou lá no chão.
batendo nas minhas costas? Insguinchando sangue, pra tudo quanto é lado. Cidade grande...
Aquilo lá é o inferno! E pronto! Acabou-se a estória! Num tem mais
O Pai entra com um rádio, fumando um cigarro de palha. não!
MOACIR Mas eu ainda tenho uma coisa pra dizer, pai. O boi inva-
PAI O pai era duro e seco, feito o chão desta terra. Tudo que con- diu as terras do fazendeiro. A bala atravessou a perna. Eu falei pro
seguiu arrancar da vida foi dependurado no cabo da enxada. Mas, senhor: eu tomo conta, eu cuido, eu trato dele. Mas o senhor falou
quando a lavoura dava trégua, ele gostava de fazer uma boca de pito que tinha que sacrificar o bicho para vender a carne, porque senão
era prejuízo. O boi era meu amigo, pai. O senhor sempre dizendo Moacir vai em direção a Babel.
que homem não chora, né? Naquele dia, pai, eu chorei.
BABEL Que isso? Avançando o sinal? Sujeito à multa, viu?! Não...
Preciso te conhecer melhor, saber das suas habilidades.
Cena 5 . ENTREVISTA MOACIR Eu nasci no Baixadão, mas fui criado em Santana da Di-
visa, que é município de Diamantina, norte de Minas.
BABEL Um brinde! Álcool ou gasolina? Eu... Sou flex! A roleta BABEL Atenção! Senta! Entrega um copo a ele.
gira. Hoje nós temos os darks, punks, nerds, hippies, skinheads, MOACIR Me entregou uma caneta e pediu pra preencher o for-
pagodeiros, emos, patricinhas, playboys. Sinal da multiplicação. mulário. A mão tremia de medo e ansiedade, mas eu assinei meu
Enxertar verba na construção civil, quadruplicar as ruas e avenidas, nome.
criar os jardins suspensos. Erguei, erguei e multiplicai. Já dizia Jesus
de Nazaré. BABEL Olho no olho. Dente por dente.
! MOACIR Eu já tava quase perdendo a esperança. MOACIR Agradecido.
172 !
!
! 173
BABEL É, deu sorte, eu vou te receber. Você é o... BABEL Vamos ver do que você é capaz. Levanta e tira a roupa.
MOACIR Moacir Ferreira da Silva, 22 anos, solteiro. MOACIR Doença eu não tenho não, fui criado na roça. Sou forte
que nem touro.
BABEL Está nervoso?
BABEL Tira a calça.
MOACIR As mão suava frio, as perna tremia que nem vara verde.
MOACIR Pediu pra ver os documentos... RG M-5647. 229,
BABEL Eu vou te dar um trago pra você relaxar. Também preciso CPF 824.952.036-04.
de combustível.
BABEL Tá bom, tá bom!
MOACIR para um espectador Eu vou te confessar uma coisa,
naquela hora, ele ficou meio encabulado, meio sem graça, ele não MOACIR É que eu sou bom de memória.
sabia falar a língua dela. Então ele se lembrou dos conselhos de BABEL O porte não é dos melhores, mas... Tudo bem. Pelo jeito,
mãe, e dos planos que ela tinha pra ele, quando ele tivesse ali, cara você é meio inexperiente, não é?
a cara com a cidade. Ele tinha que mostrar serviço.
MOACIR Currículo, tenho não. 8ª série. Sei roçar pasto, plantar
feijão, plantar milho. E eu sou bão de ordenha. e deixa lá esguichando o sangue. Pega ela pelos pés e enfia numa
BABEL De você eu espero dedicação, empenho, resistência, freio panela com água fervendo. Depois é só tirar as penas. Vai depe-
ABS, direção elétrica, potência. nando ela. Pena, por pena, a bichinha vai ficando peladinha!! Para
o público. Naquela hora ele percebeu que ela ficou interessada na
MOACIR para um espectador É só ter um pouquinho de paciência mão de obra. Então ele criou coragem e perguntou. Para Babel.
que ele aprende rápido. O que ele quer é uma chance. Para Babel. Tem vaga pra cozinheiro, não tem? Eu sei cozinhar! Se me der uma
Aí eu ponho a mão na massa. Fui criado laçando boi no pasto. Agora chance, eu trabalho dobrado. Dou duro de manhã, tarde e noite.
essa coisa de carteira assinada eu nunca tive não. É minha primeira Tempero tudo com salsinha, cebolinha, pimenta, sal, cebola...
vez.
BABEL Tá bom, tá bom... Qualificação, não tem! Pedigree, não tem!
BABEL É o quê? Primeira vez? Mais uma dose! ISO9000, não tem! Selo do INMETRO... Mas todo mundo merece
MOACIR Ah, minha Sant’Ana, eu não posso perder essa chance! uma chance. Volta amanhã.
Para o público. Foi aí que ele disparou a contar as receitas de co- MOACIR Amanhã, seis horas eu tô aqui pra bater o cartão e fazer o
mida que mãe tinha ensinado. Cada tipo de prato, cada tempero, café pra piãozada.
!
174 !
tim-tim por tim-tim. Para Babel. Pra fazer o feijão, primeiro você !
! 175
soca bem o alho e depois joga na gordura de porco bem quente e BABEL Tudo bem, pode voltar amanhã, mas agora vaza, que a fila
deixa ele lá, até ficar bem douradinho. Depois joga o feijão e afoga, tá grande.
coloca umas folha de louro, uns pedaço de carne. O cheirinho do MOACIR para o público Esse cara passou quase 24 horas numa
alho corre pela casa. Para Babel. E angu de minovo? Conhece? fila pra conseguir aquele emprego. Ser cozinheiro de obra não era
BABEL Angu de quê? bem o que ele tinha sonhado, mas com o tempo ele arrumava coisa
melhor. É como a mãe dele dizia, cê começa de baixo, depois vai
MOACIR Minovo! crescendo, crescendo, crescendo.
BABEL Milho novo! BABEL Ele, aquele que migra: viagens periódicas ou irregulares
MOACIR Agora o meu prato preterido é galinha ao molho pardo! feitas por certas espécies de animais. Esse cara chegou aqui assim:
com a barriga vazia, a cabeça cheia de planos e, na bagagem, um
BABEL Ah... O prato “preterido” é uma galinha! Gosta de uma
bocado de sonhos. Para a capital as coisas confluem.
galinha, é?!
MOACIR Primeiro você corre atrás da galinha no terreiro, pega a
bichinha e segura firme. Passa a faca no pescoço dela, bota o prato
Cena 6 . CANTEIRO DE OBRAS - PARTE 1 BABEL A desapropriação, neste caso, é imprescindível para o in-
teresse público. Decorre de uma situação emergencial! Trata-se do
processo de reconstrução de áreas antigas que precisam de ma-
MOACIR Bom-dia! Bom-dia! Bom trabalho. nutenção e modernização para suplantar o seu uso ou para atender
PEDREIRO Moacir, ô Moacir! Hei! Sabia que nesta esquina tinha a novos usos. É necessário expandir, sempre! A desapropriação é
uma padaria? Era a padaria do Francês. Eu vinha aqui quando cri- feita com prévia e justa indenização em dinheiro.
ança pra comer pão de minuto. E ali na frente tinha um sobradinho
onde morava o alfaiate, Seu Onofre. E bem aqui tinha um pé de
jaca. Era enorme. Era tão grande que o pessoal costumava se reunir
em volta dele pra bater um papinho. Teve um dia, foi demais. Tava Cena 7 . CONVERSA COM O PAI
o Tonhão e o Cebola jogando dama, de repente caiu uma jaca na
cabeça do Tonhão. Moacir conversa com um rádio.
MOACIR Pai, fiz boa viagem, cheguei bem. A rodoviária fala, con-
O som das máquinas aumenta e interrompe a conversa.
! !
176 ! ! 177
versa com as pessoa, moderno. Oh, precisa conhecer escada ro-
lante, elevador... Dá um frio na barriga. Oh, quando o senhor vier
MOACIR É, tem coisa que não entra na minha cabeça. Essa obra, me visitar, eu vou levar o senhor lá no Mirante. De lá a gente avista
por exemplo, tem que passar por aqui? Pra onde essas pessoa vão a cidade inteirinha, e à noite as luzes todas acesas... É lindo, pai. É
depois? lindo. Eu tô me alimentando direito. A comida é que tem sempre o
mesmo gosto. Estudar? Ainda não. Mas eu fui visitar a universidade.
BABEL Para o lugar da emancipação, o homem não se submete
Escuta só, um dia eu ainda vou ser doutor, veterinário. Emprego?
mais aos desígnios, às intempéries da natureza. As cidades crescem
Não. Oh, mas não esquenta, eu já fiz umas entrevista, tô esperando
numa velocidade infinitamente superior e as mudanças atingem
resposta. Calma, pai, com o tempo eu encontro meu lugar.
uma quantidade muito maior de pessoas. É o progresso, necessário,
salutar.
MOACIR se dirigindo ao público Você tá sabendo que vai ter que
deixar sua casa? Se vai ter que sair? Sua família tá sabendo? Aquele
quarteirão todo lá, pra que demolir? Se a obra só vai pegar esta parte
aqui?
Cena 8 . MOTOBOY
MOTOQUEIRO Identidade...
MOACIR M5 647 229.
MOTOQUEIRO Confere.
Entrega uma marmita de comida ao Pai. PAI Tá cuspindo no prato que comeu, seu filho de uma égua?
MOACIR O senhor bebeu de novo, né, pai? Depois que mãe foi
PAI Deus te abençoe, meu filho. embora, o senhor danô a fazer isso!
MOACIR Tá cansado? PAI Isso não é da sua conta. Eu bebo quando quiser. Quando eu
bem entender.
PAI Tô nada. A vida é assim mesmo e amanhã tem mais. Pra que
essa mala? Tá carregando esse negócio pra quê? MOACIR Então eu também posso fazer o que eu bem entender.
PAI É isso que você quer? Então vai, Moacir. Vai embora. Mas escuta Cena 12 . NAMORO, CASAMENTO E TRAIÇÃO
o que eu vou te falar. Se for, não volta!
MOACIR para o público Coração na boca, ele não olhô pra trás. MÃE para o público Quando chegava o final de semana, Rosa
PAI para o público E o pai viu o menino sumindo na estrada. num conseguia pregá os zói. E aí, quando dava por fé, o galo já tava
Caminhando forte feito um touro. Um homem feito. Ele sabia que cantando, o boi berrando na beira do curral e ela se aprontando
era a última vez que via o filho. toda, preocupada com uma coisa: que futuro teria se não conse-
MOACIR para o público Eu sentia o cheiro da terra molhada, guisse um marido... É ele chegando... Sempre cheirando a suor da
lembrei do rio, dos biscoito na gamela. Chorei pensando no boi, lavoura.
que foi presente do padrinho. Mas, na cabeça, a discussão com o PAI Cê tá cheirosa, Rosa. Para o público. O pai era um homem sim-
pai ecoava. ples. O que ele queria era ficar por ali mesmo, casar cum uma moça
bunita, ter uma roça. E ter uma Rosa pra eu cuidar todos os dias...
Pai e Moacir se abraçam. MOACIR É sua vez, Rosa!
! !
188 ! ! 189
PAI Espera! Moacir acompanha toda cena com um lampião na mão.
O Pai entrega um radinho de pilha antigo para o filho. MÃE Caí no poço.
PAI Quem te tira?
PAI Vai com Deus, meu filho!
MÃE Meu bem.
MOACIR Mas pai... Recusando o rádio.
PAI Seu bem é esse?
PAI Vai com Deus, meu filho!
MÃE Não.
MOACIR A benção.
PAI É esse?
PAI Deus te abençoe!
MÃE Não.
PAI apontando pra ele mesmo É esse?
MOACIR Mãe? Ô, Mãe? Pai, cadê mãe? Procurei na horta, na lida,
entrei no quarto dela e as roupa num tava lá. Nem o vestido branco,
MÃE É.
nem a sandália azul... Em cima da penteadeira, o vidro de perfume.
MOACIR E PAI O que você quer dele? Pêra, uva, maçã ou salada Para o público. Ele era menino quando a mãe foi embora.
mista?
MÃE Salada mista! Eu tomei banho de erva numa bacia de prata e O Pai entra bebendo cachaça.
coloquei um vestido todo feito de renda. Depois de pronta eu corri
no mato e busquei uma flor de sapucaia pra enfeitar os cabelo.
PAI para o público Naquela noite, ele chegou em casa bem mais
PAI É esse o meu sonho, Rosa. Casa mais eu, minha frô. Agora é tarde. Não quis que Rosa lhe lavasse os pés. Não tomou café e foi se
só nós dois. E nós dois se basta. Num precisa mais nada. Ô, Rosa, deitar. O cheiro no corpo era o da Dama da Noite.
me escuta. Pra onde eu for, eu te levo comigo. E, nunca, nada nesse
MOACIR para o público Ele chegou correndo da escola, lavou
! !
190 ! ! 191
mundo vai atrapalhar o nosso amor.
as mãos e sentou na mesa, esperando o prato de comida e o copo
de limonada. Demorou pra ele perceber que não tinha panela no
O casal se beija. Apenas à luz dos lampiões entra uma mulher que
fogo, não tinha cheiro, cozinha tava fria. Chorou sentado no pé do
agarra o Pai. Moacir e a Mãe observam.
fogão vendo a lenha se transformar em brasa e a brasa em cinza.
PAI Menino, cadê sua mãe? Vai chamar Rosa. Fala com ela que eu
MÃE para o público Naquela noite, ela sentiu as perna bamba,
mandei chamar.
mas criou corage, ergueu a cabeça e caiu no mundo. Quando as
coisa acontece, não adianta esperniar. Ela virou uma cabocla forte,
Moacir sai.
que benze quebranto e bota feitiço. Ela tira o vestido e fica nua.
Aprendi que, nesta vida, cada um é dono de si.
PAI Cadê Rosa? Rosa! Ô, Rosa! Para o público. Da última vez que
Moacir se aproxima com uma bacia cheia de terra e coloca na viram Rosa, ela tava indo lá pros lados do rio. Depois disso, nunca
cabeça da Mãe. Ela passa a terra pelo corpo, como se tomasse mais. Oferece cachaça a um espectador. Quer um gole? Pode
um banho. tomá, é da boa.
Cena 13 . CANTEIRO DA OBRAS - PARTE 3 MOACIR Nem com um animal a gente fala desse jeito. Nem com
um animal. Minha mãe sempre dizia: Cê nasceu pelado, Moacir,
se hoje cê tá vestido, é lucro. Pra mim já deu, tá ouvindo? Tô va-
CHEFE DE OBRA Então, cidadão, está pronto? zando!
Moacir entrega ao Chefe de obra um prato e, dentro dele, um
tijolo.
Cena 14 . BOATE
CHEFE DE OBRA É o melhor que você sabe fazer?
MOACIR Eu caprichei. Babel, Garçom e Garçonete dançam.
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CHEFE DE OBRA Eu não vou comer isso, não! BABEL Galera, hoje a festa não tem hora para acabar! É para dançar !
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MOACIR Já falei que sem tempero não dá! Ocês que fica insistindo a noite inteira! O Michael Jackson morreu, mas a gente está é muito
em comprar essas porcaria enlatada. Depois quer que eu faça mila- vivo!
gre. Isso pra mim é economia burra.
CHEFE DE OBRA Está me chamando de burro? Burro aqui é você. Garçom e Garçonete entregam os pedidos dos espectadores feitos
Capiau de merda! Quer saber? Cansei das suas ladainhas, junta as no início do espetáculo. Em cada prato entregue, cimento e brita.
suas coisas e some daqui! Rua! Moacir começa uma dança agitada que se transforma em um
delírio.
A Garçonete entra.
MOACIR Eiaaaaa... Eiaaaaaaa. A espora, a espora... Segura peão...
GARÇONETE É pra fechar a conta? Bebida, cigarro, fumaça, escuro, roda cabeça, cheira e tira a roupa
e mete e chupa e baba e delira e enlouquece e esquece. Você viu o
CHEFE DE OBRA Não entendeu não, retardado? Junta as suas coi- Cruzeiro do Sul? Capiau de Merda. A saideira, vomita, varre, depois
sas e some, você está demitido! esquece, vomita, varre depois esquece... Esquecer, eu não esqueço.
GARÇONETE Espera, vamos pedi uma saidera... Esquecer, eu não esqueço.
Cena 15 . DESAPROPRIAÇÃO
fim
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Dramaturgia RITA MAIA
Atuação CAMILO LÉLIS,KELLY CRIFER E LEONARDO LESSA
Direção ROGERIO ARAÚJO
Cenário GRUPO TEATRO INVERTIDO
Figurinos CAMILA MORENA
Iluminação ROGÉRIO ARAUJO
Trilha sonora ANDRÉ VELOSO
Realização e produção GRUPO TEATRO INVERTIDO
Financiamento RECURSOS DO GRUPO TEATRO INVERTIDO
DOUTOR Boa-noite! Mostra um prato. A senha. Enquanto recolhe DOUTOR Cada um escolha seu lugar à mesa e fique bem à vontade.
as senhas, ele conversa com os espectadores. Que bom ter você Quem quiser sentar nas almofadas, esta é uma proposta mais ori-
entre nós... Muito importante sua presença hoje... Olha, que bom, ental. Perceba esse espaço que você está ocupando. O que ele lhe
! está funcionando... Pergunta a uma pessoa do público. Aquele ra- sugere, que imagens, lembranças são suscitadas neste momento? !
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paz está com você? Ah, você está com ela. Seja muito bem-vindo! Perceba os pratos, os talheres. Olhe para o seu companheiro do
Você será bem acolhido pelo grupo. Não se preocupem, a identi- lado e perceba a comunhão do momento, esse encontro familiar.
dade de ninguém será revelada. Como estão se sentindo hoje? Agora, olhe fixamente para o prato que está à sua frente. A partir
Vocês estão bem? Espera a resposta. Então... Começamos mal. de agora eu vou pedir que você esqueça que eu estou aqui e ouça
Porque, como diria Confúcio: “Não corrigir nossas faltas é o mesmo apenas a minha voz. Olhando para o prato responda para si mesmo:
que cometer novos erros”. Vocês percebem que a mente humana você tem fome de quê? Vá fundo! Busque no fundo da sua alma. O
está em colapso? Mostra a metade um repolho. Uma parte está que te alimenta? Porque, como diria Bacon: “O homem é aquilo que
desesperadamente tentando encontrar a sua outra parte. Mas não sabe”, mas eu digo mais: o homem é aquilo que engole. Portanto,
se preocupem, estamos todos em busca de caminhos e é neles que eu pegunto novamente: Que alimento é esse que satisfaz a sua
vamos encontrar as soluções. Um grande pensador alemão, Goethe, fome? Chegamos ao ponto G da questão: aquilo que trouxe você
nos diz: “Uma vida inútil é uma morte prematura”. Profundo, não?! aqui. Nosso grande Sêneca diria: “É parte da cura o desejo de ser
Para o dia de hoje eu preparei uma dinâmica bem diferente, vou curado”. E eu sei que vocês desejam a cura. Sei que vocês precisam
pedir que vocês descruzem os braços, fiquem bem à vontade. Sem se aliviar. Eu estou aqui para ajudá-los nessa empreitada! Senhoras e
tensões, retenções. Nós vamos respirar profundamente e soltar o senhores, eu lhes apresento o cardápio da noite.
Cena 2 PRATO PRINCIPAL
O Doutor revela, então, um casal. O homem está sentado em
uma privada e tenta desesperadamente evacuar. A mulher está
de frente para outra privada e sofre tentando vomitar.
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218 ! A Mulher sai.
FIM
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